Você está na página 1de 420

L U I S F.

LADARIA

w
ï
H

O DEUS VIVO
E VERDADEIRO
O mistério da Trindade
TK<OLOGkA
Publicações de Teologia, sob a TOponsatiidxte d*
Faculdade de Teologia
CES — Centro de Estudos Superiores à Conpnkia de Jesus
C.P. 5024 (Venda Nova)
31611-970 — B elo Horizonte — IG
<$> (31) 3499-1608 — ® (31) 34917421
isices.@ zaz.com .br

Coleção Theologica
7. Eu creio, nós cremos. Tratado o $
J. B. Libanio, SJ
2. As lógicas da cidade
J. B. Libanio, SJ
3. Inculturação da fé. Uma abordagentedógica
M ario de França Miranda, SI
4. Nas fontes da vida cristã. Uma teologia d batismo-crisma
Francisco Taborda, SJ
5. Crer no amor universal. Visão históra, social e
ecumênica do uCreio em Deus to/"
Carlos Josaphat, 0P
6. Igreja, povo santo e pecadr
Álvaro Barreiro, SJ
7. O Deus vivo e verdadein
Luis F. Ladaria
8. A religião no inicio do miléio
J. B. Libanio, SJ
9. Olhando para o juturo
J. B. Libanio, SJ
10. uNum só corpo Tratado mistagógico sbn a eucaristia
Cesare Giraudo, SJ
11. O Cristianismo e as religiões. Do desenontfo ao encontro
Jacques Dupuis
12. A salvação de Jesus Cristo. A douma àa graça
Mario de França Mirana
13. Karl Rahner em perspectra
Pedro Rubens F. de Olhara
Claudio Paul
Luis F. Ladaria

0 DEUS VIVO
E VERDADEIRO
O mistério da Trindade

T ra d u ç ã o
Paulo G aspar de M eneses, SJ
T ítulo original:
El D ios vivo y verdadero — El mistério de la Trinidad
© E diciones Secretariado Trinitario 1998
Salam anca — Espanha

Preparação: C arlos Alberto Bárbaro


D iagramação: Míriam de M elo Francisco
Revisão : M aurício Balthazar Leal

E dições Loyola
R ua 1822 n° 347 - Ipiranga
04216-000 São Paulo, SP
C aixa Postal 42.335 - 04218-970 - São Paulo, SP
@ ):(1 1) 6914-1922
@ :(1 1 ) 6163-4275
Hom e page e vendas: www.loyola.com.br
Editorial: loyola@ loyola.com.br
Vendas: vendas@ loyola.com.br
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra
pode ser reproduzida ou transm itida por qualquer form a
e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo
fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistem a
ou banco de dados sem perm issão escrita da Editora.

ISBN: 85-15-02928-6 ;,

© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2005


Sumário

P R Ó LO G O ............................................. ....................................................... 11

ABREVIATURAS.......................................................................................... . 15

Questões prelim inares ................................................................................ 17

1. INTRODUÇÃO AO TRATADO............................................................. 19
Deus que se revela como objeto primário da teologia................. 19
A originalidade da noção cristã de D eus........................................ 23
O caráter central da fé no Deus uno e trino.................................... 27
O “esquecimento” da Trindade......................................................... 29
Sobre a estrutura do tratad o .............................................................. 33
O tratado sobre Deus na sistemática teológica........................ . 35

2. A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE “ECONÔMICA”


E A TRINDADE “IMANENTE” ............................................................ 37
Da Trindade econômica à Trindade im anente.............. ................ 37
Da Trindade à economia. A “identidade" entre a Trindade
imanente e a econômica..................................................................... 45

primeira parte

VISÃO HISTÓRICA

A A revelação de Deus em Cristo e sua preparação


no Antigo Testam ento ......................................................................... 53

3. A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS.


ESTUDO BÍBLICO-TEOLÓGICO...................................................... 55
Deus enviou seu filh o ......................................................................... 57
1. Deus, o Pai de Jesus ................................................................... 57
2. Jesus, o Filho de D e u s ................................................................ 64
3. Deus, Pai dos hom ens ................................................................ 67
4. Jesus, concebido p o r obra do Espírito S a n to ... ....................... 69
5 . 0 batismo e a unção de Je s u s ......................................................... 70
O Novo T estam ento e os P a d r e s .......................................................... 70
As POSIÇÕES RECENTES.............................................................................. 75
6. A Trindade e a cruz de Je su s ............................................................ 82
A REVELAÇÃO DA TRINDADE NA CRUZ NA TEOLOGIA CONTEMPORÂNEA 83
R eflexão c o n c lu s iv a ............................................................................................ 95
7. A ressurreição de Jesus, revelação do Deus U n o e Trino ....... 98
D eus enviou a n o s s o s c o ra ç õ e s o e s p írito d e seu f i l h o ................ 102
1 .0 Espírito, dom do Pai e de Jesus re s s u s c ita d o ....................... 102
2 . 0 dom do Espírito e seus efeitos depois da ressurreição
de Jesus .................................................................................................. 107
S inó ptico s e A t o s ....................................................................................108
O CORPUS PAUUNUM...................................................................................110
O s ESCRITOS DE JOÃO...............................................................................112
C o nclusão : a relação d o E spírito c o m J e s u s ................................... 113
3. O caráter pessoal de Espírito Santo segundo o
Novo Testamento .................................................................................. 114
O filh o e o E sp írito S anto em re la ç ã o com o D eus ú n ic o
no N o vo T e sta m e n to ................................................................................... 115
1. Alguns textos triádico s ..................................................................... 117
R eflexões c o n c lu s iv a s ...................................................................................... 120

4. A PREPARAÇÃO DA REVELAÇÃO D O
D EU S TRINO N O A N TIG O TESTAM EN TO ....... ..............................123
A revelação d o nom e d e D e u s ................................................................124
A s fig u ra s de m e d ia ç ã o n o A n tig o T e s ta m e n to .................................127

B. A história da teologia e o dogma trinitário na Igreja a n tig a ...........133

5. O S PADRES APO STÓ LIC O S E O S PADRES A P O L O G E T A S ...... 135


O s padres A p o s tó lic o s .............................................. 135
1. Clemente R om ano ............................................... ............................136
2. Inácio de A ntioquia .............................................................................137
3. Epístola do Pseudo-Bamabé ........................................................... 138
4. D idaché .................................... 139
5. O “Pastor' de H erm as ................. 139
O s padres a p o lo g e ta s ............................................................................. 140
1. Justino ...................................................................................................141
2. Taciano ................................................................................................. 144
3. A tenágoras .......................................................................................146
4. Teófílo d e A n tio q u ia ........................................................................ 148

6. A TEOLOGIA DO FINAL DO SÉCULO II E DO SÉCULO III........... 151


Ireneu de Lião......................................................................................... 151
Tertuliano.................................................................................................156
Hipólito de Rom a....................................................................................164
O rígenes.................................................................................................. 166
Novaciano................................................................................................175
Dionísio de Alexandria e Dionísio de R om a..................................... 177

7. A CRISE ARIANA E O CO N C ÍU O DE NICÉIA.


A LUTA ANTIARIANA NO SÉCULO IV.................................................183
A doutrina de Ário....... ..........................................................................183
A primeira resposta a Ário. Alexandre de alexandria...................... 188
Eusébio de cesaréia..............................................................................189
Marcelo de A ncira................................................................................. 191
O símbolo de Nicéia (3 2 5 )...................................................................193
As vicissitudes depois do Concílio de N ic é ia .................................. 198
Atanásio de Alexandria......................................................................... 202
Hilário de Poitiers................................................................................... 207
Os acontecimentos principais dos anos 361 -381 ......................... 212

8. OS PADRES CAPADÓCIOS. A FORMULAÇÃO DO DOGMA


TRINITÁRIO NOS CO NCÍLIO S I E II DE CONSTANTINOPLA.......215
Basílio de Cesaréia................................................................................217
Gregório Nazianzeno............................................................................ 224
Gregório de N issa................................................................................. 228
O primeiro Concílio de Constantinopla............................................. 231
Do primeiro ao segundo Concílio de Constantinopla....................234
Os concílios m edievais........................................................................237

segunda parte

DA “ECONOMIA” À “TEOLOGIA”

A. A reflexão sistemática sobre o Deus Uno e T rin o ............................241

9. “TRINITAS IN UNITATE". A VIDA INTERNA DE DEUS:


AS PROCESSÕES, AS RELAÇÕES, AS PESSOAS DIVINAS.......243
Das missões divinas às “processões” .............................................. 244
A s p ro c e s s õ e s d iv in a s : A g e ra ç ã o d o Filho e a e x p ira ç ã o
d o E s p írito S a n to ......................................................................................246
1. As p ro c e s s õ e s divinas e a analogia da m ente humana.
Agostinho e Tomás de A quino ....................................................... 248
2. A s p ro c e s s õ e s divinas e o am or interpessoal.
Ricardo de Sâo Vítor..........................................................................251
As re la çõ e s d iv in a s ...................................................................................255
1. As relações em Deus segundo Agostinho .................................. 256
2. Tomás de Aquino. As relações reais em Deus ...........................260
As p e sso a s d iv in a s ...................................................................................262
1. A noção de “pessoa" em A g o stin h o ........................................... 262
2. D e Boécio a Tomás de Aquino .......................................................264
3. Tomás de Aquino: a pessoa com o relação su b siste n te ........ 267
4. Pessoas, propriedades, apropriações ......................................... 271
5. A mútua inabitação das p e s s o a s ................................................. 274
A p ro b le m á tic a m o derna d a p e s s o a em D eus: a s
“três p e s s o a s ” n a u n id a d e d iv in a ........................................................ 276
1. Unidade do sujeito em Deus? Propostas alternativas
ao termo “pessoa". Karl Barth e Karl Rahner..............................277
2. A s pessoas se realizam em seu mútuo amor.
O m odelo social da Trindade........................................................... 285
3. Autoconsciência e alterídade nas pessoas divinas ..................288

10. 0 PAI, O FILH O E O ESPÍRITO S A N TO ............................................297


O Pai, o rig e m se m p rin c íp io ...................................................................297
1. Alguns elementos da tradição ....................................................... 299
2. O Pai, princípio do Filho e do Espírito S anto ............................. 302
3. O Pai, pessoa absoluta? ..................................................................304
4. A s p ro c e s s õ e s divinas em q u e s tã o ............................................ 306
5. O Pai, princípio relativo ..................................................................... 310
O Filho, a p e rfe ita re sp o sta a o a m o r d o p a i.................................... 314
1. O Filho, o Amado do Pai que corresponde a esse a m o r ....... 315
2. O Filho com o Logos e im agem de D e us ................................... 319
0 E sp írito S a n to , com unhão d e a m o r................................... ............ 323
1. O Espírito Santo com o d o m ...........................................................325
“ D om ” , nome pessoal do Espírito Sa n to .......................................... 330
O Espírito S anto como dom no crente e na Ig reja ........................ 333
2. O Espírito Santo com o am or do Pai e do F ilh o ......................... 335
O EspIrito Santo como amor na tradição .......................................336
O magistério e a reflexão teológica contemporânea.................... 340
3. A processão do Espírito S a n to .................................................... 344
A processão do E spírito no O riente e no O cidente ...................... 344
O Fiuoque nos símbolos e no m ag istério ......................................... 352
A questão na atualidade....................................................................... 355

11. “ UNITAS IN TR IN ITATE” . DEUS U N O N A TR IN D AD E.


SUAS PRO PRIEDADES E SEUS M O D O S DE ATU AÇ ÃO .............. 361
A unidade d a e s s ê n c ia d iv in a ................................................................ 361
1. A unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo ............................ 361
2. O primado do ‘pessoal’ ...................................................................... 365
3. A essência d iv in a .................................................................................. 367
4. A unidade de Deus e a unidade dos hom ens ..............................373
O S M ODOS DE ATUAR E AS PR O PR IED AD ES
(ATRIBUTOS) D E D E U S ........................................................................... 377
1. Algumas noções bíblicas .................................................................... 378
2. Propriedades divinas na tra d iç ã o .....................................................383
3. Alguns problem as a tu a is .................................................................... 387

12. O C O N H EC IM EN TO “ NATURAL’ DE D EU S
E A U N G U AG EM D A A N A L O G IA ......................................................... 393
O co n h e cim e n to d e D eus a p a rtir d a c ria ç ã o ................................... 393
7. 0 conhecim ento de Deus a partir da criação na Escritura .... 394
2. 0 Vaticano I e o Vaticano II .............................................................. 396
A questão d a a n a lo g ia ........................................................................... 401
7. Algumas noções clássicas ..............................................................402
2. A crítica de K. Barth ea reação católica: a ‘analogia Christi” .... 408
3. A ‘m aior sem elhança’ segundo E. Jüng el..................................414
4. Conclusão: ‘m aior dissim ilitudo ’ na m aior proxim idade .........417

E P ÍL O G O ........................................................................................................... 421

REFERÊNCIAS B IB LIO G R Á F IC A S ............................................................. 425

ÍN D IC E O N O M Á S T IC O .................................................................................. 427
PROLOGO

A teologia da Trindade tem sido objeto de renovado interesse nos


últimos tempos. Basta uma vista rápida nos repertórios bibliográficos mais
comuns para convencer-se disso. Algumas bibliografias especializadas
mostram ainda com mais clareza a abundância — absolutamente impossí­
vel de abarcar — de estudos que, a partir de diversos pontos de vista, abor­
dam o tem a1. Também não faltam nas principais línguas ocidentais, como
pode observar o leitor nas referências bibliográficas, os tratados e manuais
que correspondem aproximadamente às características do presente volu­
me. Surge a pergunta óbvia: do porquê de uma nova obra que contribuirá,
embora em pequena medida, para fazer ainda mais impenetrável a selva
das publicações. A pergunta se faz ainda mais aguda para o próprio autor,
quando está bem consciente de que sua contribuição não merecerá certa­
mente ser qualificada de decisiva e de que não é provável que influa de
modo significativo nos roteiros ulteriores da teologia.
Porém, o magistério em um centro internacional com alunado numeroso
fez com que as lições de um professor, de modo totalmente incontrolável de

1. É especialmente significativo o volume dedicado à bibliografia trinitária pela revis­


ta Estúdios Trmkorios 25 (1991) que abarca os anos 1976-1990: nas diferentes contribuições
de X. PIKAZA (Novo Testamento). E. ROMERO PO SE (Patrística), M. M. GARIfO-
GUEM BE (teologia ortodoxa e pneumatologia), S. dei CURA ELENA (sistemática cató­
lica e protestante), E . SCHADEL (a Trindade como problema filosófico) recolhem-se 4.463
títulos. Em bora haja inevitáveis repetições, não deixa de ser uma cifra imponente: alguns
autores notam que por muito compreensíveis razões os elencos não são exaustivos. E instru­
tivo com parar essa bibliografia com a que a mesma revista publicou em seu volume 11 (1977),
embora os critérios cronológicos e e numeração dos títulos sejam menos claros nesse último
caso. Cf. também A. COZZI, Coriginalità dei teismo trinitario. Bibliografia trinitaria. ScCort
123 (1995) 765-840.

11
O D EUS V IV O E VERDADEIRO

sua parte, comecem com facilidade a correr pelo vasto m undo em forma
de apontam entos de fiabilidade ao menos duvidosa. As conseqüências de­
sagradáveis que podem derivar desse fato são evidentes. Assim, oferecer
um ponto claro de referência, em prim eiro lugar aos alunos, foi a primeira
finalidade que m e propus ao compor este texto. Dar-me-ei por satisfeito se
alcançar esse objetivo. Se o esforço resultar também ú til para outros, a
alegria será multiplicada.
Duas preocupações fundamentais guiaram-me na redação desta obra.
Em prim eiro lugar oferecer suficiente informação positiva, sobretudo dos
principais dados do Novo Testamento, da Tradição e do M agistério da
Igreja sobre o m istério do Deus imo e trino que se revelou em C risto, mas
tam bém das principais contribuições sistemáticas sobre o tema, que orien­
taram na história a reflexão teológica ou exercem notável influência na
atualidade. A segunda preocupação foi articular esse abundante material
em um a síntese coerente que revele a relação intrínseca entre as diversas
questões estudadas. O mistério de Deus é incompreensível para nossa ra­
zão humana, mas isso não impede que o ensinamento que a Igreja nos
oferece sobre ele seja profundamente harmônico. Tbda reflexão teológica
deve tentar pôr em relevo essa coerência interna, o nexus mysteriarum de que
falava o Concílio Vaticano I (DS 3016), embora não seja possível, em muitos
casos, eliminar o paradoxo. Isso nos servirá de perene lembrança de que o
esforço crente para dar razão da esperança (lP d 3,15) não pode jamais con­
fundir-se com a pretensão de submeter tudo ao império de nossa razão.
Tomei do escrito mais antigo do Novo Testamento o título da obra (cf.
lTs 1,9). Esse é o Deus que, segundo Paulo, nós cristãos adoramos. A vida
e a verdade (veracidade) são propriedades divinas que já o Antigo Testamen­
to destaca e que adquirem todo o seu significado na revelação de Jesus.
N ão é preciso insistir na importância que o dado bíblico, em especial
o neotestamentário, deve ter em toda exposição teológica, e em particular
na matéria que nos propomos a estudar2. 0 Novo Testamento dá testemu­
nho de Jesus, que nos dá a conhecer o Pai e, depois de sua ressurreição e
exaltação, envia sobre seus discípulos o Espírito que repousou sobre ele.
Dediquei bastante espaço à evolução doutrinal dos primeiros séculos, de
capital interesse em nosso tratado. Colocando-nos na grande tradição
ocidental, embora muito boas razões ecumênicas nos obriguem a dirigir
nosso olhar também para o Oriente, não se podia de modo algum prescin­
dir de dar amplo espaço à teologia trinitária de Sto. Agostinho e de Sto.

2. Servi-me, em geral, da tradução da Bíblia de Jerusalém.

12
PRÓLOGO

Tomás de Aquino. Antes de tudo, pela preocupação a que m e referí de


oferecer suficiente informação histórica, sem a qual não se pode entender
a teologia do Ocidente, nem sequer a mais recente. Mas também, e sobre­
tudo, pelo valor intrínseco de muitas de suas intuições. N ão há por que
pensar que tenha sido mera casualidade a influência predom inante que ex­
erceram no passado e no presente. Ainda que não devamos dar a todas as
suas afirmações a mesma importância, não podemos prescindir de suas
contribuições decisivas. D e qualquer modo, não serão essas as únicas vozes
que vamos escutar. N ão se pode considerar, sem mais, superada a tradição
pré-nicena pelo desenvolvimento dogmático que precisou conceitos que
nos três primeiros séculos não se pôde conhecer. Anos de estudo me fami­
liarizaram com o pensamento de H ilário de Poitiers, ao qual o próprio
Sto. Agostinho dedicou tantos elogios3e que ainda continua freqüentemente
esquecido, apesar do valor que lhe reconhecem insignes especialistas4.5 O
recurso aos capadócios, em especial a Basílio de Cesaréia, necessita de menos
justificação. Passando à Idade Média, não podemos esquecer a influência
que nos últimos tempos teve Ricardo de São Vítor: também tem os que lhe
dar atenção, ainda que o que se escreveu sobre o modelo social da Trinda­
de requeira uma profunda revisão crítica.
Como se explicará com mais detalhe no primeiro capítulo, esta obra
pretende reunir os conteúdos clássicos dos tratados De Deo Uno e De Deo
Trino, porém com declarada preferência pelo segundo. Dedicaremos nossa
atenção aos conteúdos de fé da Igreja, e menos ao “contexto” em que essa
é hoje professada e testemunhada3. Não por menosprezo dessas questões
atuais, cuja importância não se pode desconhecer, senão pela consciência
dos limites pessoais e também pelo caráter que pretendi dar a esta obra. Só
a partir do conhecimento do núcleo central da fé cristã em um Deus uno
e trino pode-se estudar com possibilidades de êxito os outros problemas
que se relacionam intimamente com ele.

3. C , por ex., ContraJulianum 1 3 ,9 (PL 44,645); II, 8,28 (693); TrinVl 10 11 (CCL
50, 241) Também Sto. TOM ÁS fez um uso abundante de H ilário em seu tratado sobre a
Trindade na Summa.
4. A. ORBE, El estúdio de los Santos Padres em la fbrmarión sacerdotal, In: R.
LATOURELLE (ed.), Vaticano II: balanceyperspectivas. Vemtkinco anos despues (1962-1987),
Salamanca, 1989, 1.037-1.046 (aqui 1.043): “Sem negar o valor a Sto. Ambrósio, sempre
será dogmaticamente mais instrutivo, embora mais difícil, Sto. H ilário. Q uem domina ao
bispo de Poitiers, adianta-se m uito na patrística. M uito mais do que se estendesse o campo
de estudos simultaneamente a todos os Padres ocidentais (exceto Sto. Agostinho)”.
5. Cf. A. AMATO (ed.) Trinhà in contesto, Roma, 1993; e também P. CODA; A.
TA PK EN (eds.), La Trinhà e il pensare. Figure, procorsi, prospettive, Roma, 1997.

13
O D E U S VIVO E VERDADEIRO

Para que o volume pudesse m anter-se dentro dos limites razoáveis em


obra desse gênero, tratei de ser sóbrio na exposição e de não multiplicar
referências bibliográficas, que serão facilmente acessíveis a p artir das que
já se oferecem. Em contrapartida, fui mais generoso nas citações de auto­
res clássicos e m odernos, pois creio que nada pode suprir o acesso direto
aos textos, que fica assim , pelo menos em parte, facilitado.
Esta obra foi possibilitada pelo estímulo e pela ajuda de muitos cole­
gas, amigos e alunos. M encionarei especialmente duas pessoas que se pres­
taram ao incôm odo de ler meus manuscritos, inclusive antes de sua prepa­
ração definitiva, e me animaram para sua publicação: Mons. Eugênio Romero
Pose, bispo auxiliar de M adri, e o Pe. Angel Antón, professor da Faculdade
de Teologia da Pontifícia Universidade Gregoriana. A ambos, como a tantos
outros que não posso mencionar, vai minha gratidão mais sincera.

14
ABREVIATURAS

AAS Acta Apostolicae Sedis


AG Cone. Vaticano II, Decr. A d Gentes.
Ang Angelicum (Roma)
Aug Augustinianum (Roma)
BAC Biblioteca de Autores Cristianos (Madri)
C ath Catholica (Münster)
CCL Corpus Christianorum. Series Latina (Tum hout)
CIC Catecismo de la Iglesia Católica
CSEL Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum (Viena)
DS Denziger-Schönmetzer, Enchiridion symbolorum, definitionum
et declarationum de rebusfidei et morum, Barcelona, M1967.
DV Concilium Vaticanum II, C onst. Dogm. Dei Verbum
EphThLov Ephemerides Theologicae Lovanienses (Bruges)
EstEcl Estúdios Eclesiásticos (M adri)
EstTrin Eistudios Trinitarios (Salamanca)
FP Fuentes Patrísticas (Madri)
GCS D ie griechschen christlichen Schriftsteller der ersten drei
Jahrhundert (Leipzig)
G reg Gregorianum (Roma)
GS Cone Vaticano II, Const, past. Gaudium et Spes
LG Cone. Vaticano II, C onst dogm. Lumen Gentium
LThK Lexicon fü r Theologie und Kirche, Friburgo,21957-1965
M ünThZ M ünchener Theologische Zeitscrift (StO tilien)
MySal Mysterium Salutis. Fundamentos de Ia dogmática conto historia de
la salvación. Madri, 1969 ss.
NA Conc. V it. D, Deel. Nostra Aetate

15
0 DEUS VIVO E VERDADEIRO

NRTh Nouvelle Revue Théologique (Lovaina)


PG Patrologia Graeca (Paris)
PL Patrologia Latina (Paris)
RET Reoista Espanola de Teologia (Madri)
RevTh Revue Thomiste (Paris)
RM Joäo Paulo H, Enc. Redemptoris Missio
RSPhTh Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques (Paris)
RSR Recherches de Science Religieuse (Paris)
RthLou Revue Théologique de Louvain (Lovaina)
ScCat La Scuola Cattolica (Miläo)
SCh Sources Chrétiennes (Paris)
TheolSt Theological Studies (Baltimore)
TheoPhil Theologie und Philosophie (Friburgo)
TWAT Theologischess Wörterbuch zum Aken Testament, Stuttgart, 1973ss.
WA M artinho L utero, Werke. Kritische Gesamtausgabe, W eimar,
1883-1949
WiWe Wissenschaft und W eisheit (Düsseldorf)
ZThK Zeitschift für Theologie und Kirche (Tübingen)

16
Questões preliminares
1
Introdução ao tratado

DEUS QUE SE REVELA COMO OBJETO PRIMÁRIO DA TEOLOGIA

N ão parece difícil justificar que o tratado sobre Deus seja aquele que
mereça sobretudo e de modo mais estrito o qualificativo de “teológico”. E
claro que só a partir de todos os tratados teológicos podemos fazer uma
idéia global do mistério cristão, de Deus e da salvação que o Pai nos quer
outorgar em Jesus Cristo, seu Filho, e no Espírito Santo. Mas não há dúvida
de que, estando diretam ente ligadas a Deus mesmo as verdades que quis
revelar-nos para nossa salvação (cf. DV 2.6), corresponde a este tratado
uma prioridade sobre as outras questões que vão ser objeto de estudo da
teologia. Todas recebem sua luz do próprio Deus. N o estudo do tratado de
Deus, achamo-nos assim no centro da teologia.
Já no começo de sua Suma teológica*, Sto. Tomás pergunta sobre a
necessidade de uma doutrina fundada na revelação, distinta por conse­
guinte das disciplinas filosóficas. A razão fundamental que apresenta para
justificar a e ris tê n ria dessa doutrina é o fim do homem. Com efeito, o ser
humano ordena-se para D eus, um fim que excede a compreensão da razão.
A esse fim devem os homens ordenar suas ações para que possam alcançar
a salvação. Tem de ser, por conseguinte, um fim conhecido de antemão,
praecognitus, pelo homem. Por isso faz falta a doutrina fundada na revela­
ção, para que possam ser conhecidas pelo homem aquelas coisas que exce­
dem a razão e que se referem a seu fim último. Contudo, a revelação foi
necessária por um segundo motivo: até mesmo as verdades que o homem 1

1. S T h I, 1,1: “U trum sit necessarium, praeter philosophicas disciplinas, aliam


doctrinam habere”. Cf. este artigo para o que vem a seguir.

19
QUESTÕES PRELIMINARES

pode conhecer pela luz da razão são difíceis, requerem muita investigação,
não estão ao alcance de todos: não se chega a esses conhecimentos sem a
mescla de muitos erros. Por isso foi necessário que a revelação divina ins­
truísse sobre eles. O Concílio Vaticano I, na Constituição Dei Filius, fez-
se eco dessas razões que Sto. Tomás já tinha aduzido (cf. DS 3.004-3.005).
No momento devido, voltaremos mais detidam ente a esse ponto.
A necessidade ou a conveniência da revelação funda-se unicamente no
fim a que Deus destina o homem. N ão se trata portanto de adquirir um novo
conhecimento por pura curiosidade. E um conhecimento, como diz o Con­
cílio Vaticano II (DV 6), que tem por objeto o próprio Deus e os decretos
eternos de sua vontade acerca da salvação dos homens. A necessidade do
conhecimento de Deus, fundada na revelação, baseia-se portanto no que é
o único fim do homem, àquilo que o ser humano tende mesmo sem conhecê-
lo e que é o único que pode acalmar a intranqüilidade de seu coração2.
O conhecimento que vem da revelação, que o homem aceita pela fé,
é, segundo a terminologia de Sto. Tomás, sacra doctrina, que, embora dife­
rente das demais disciplinas h u m an as, merece o nom e de “ciência”3. Essa
ciência especial tem a Deus por objeto, é theologia, “sermo de Deo”4. O
objeto dessa ciência tem a ver diretamente com a finalidade dela, isto é,
ajudar ao homem na consecução de seu fim, que é só Deus. A teologia tem
a ver, portanto, com Deus mesmo, porque embora se ocupe com outros
assuntos os estuda todos sub ratione Dei. Em todo caso, Deus é o tema da
teologia, seja porque ela trata diretamente do próprio Deus, seja porque se
ocupa das outras coisas enquanto se ordenam a Deus5. Portanto, o que nos

2. Agostinho, Conf. 11,1 (CCL 27,1) “Fedsti nos ad te et inquietam est cor nostrum
donee requiescat in te”.
3. STh, I 1,2: “E t hoc modo sacra doctrina est sdentia: quia procedit ex prindpiis
nods lumine superiore sdentiae, quae scilicet est sdentia Dei e t beatorum”. De novo a
referenda a Deus é fundamental para determ inar o caráter “científico” da teologia. N ão
entramos evidentemente agora no complexo problema do caráter dentífico da teologia. Cf.
P.CODA, Teo-logia. La parola di Dio nelleparole deWuomo. Epistemologút e metodologia teologica,
Roma, 1997,171-190.
4. STh. 1 1,7. A teologia tem a Deus por objeto, porém D eus, além disso, é de algum
modo seu “sujeito”. Parte da revelação, do que Deus mesmo nos diz, e tem como prindpio,
como recorda Sto. Tomás, a mesma d ê n d a de Deus.
5. STh 1 1,7: “Omnia autem pertractantur in sacra doctrina sub ratione Dei vel quia
sunt ipse Deus, vel quia habet ordinem ad Deum, u t ad prindpium et finem. U nde sequitur
quod Deus vere sit subjectum huius sdentiae. Quod etiam manifestum fit ex prindpiis
huius sdentiae, quae sunt articuli fidei, quae est de Deo” Bid. ad 2: “Omnia alia quae
determ inantur in sacra doctrina, comprehenduntur sub Deo”.

20
INTRODUÇÃO AO TRATADO

propomos fazer é, no sentido mais estrito, sermo de Deo. Se nos aproxima­


mos de todos os temas teológicos com tem or e trem or, com mais razão
desse tema. O esforço especulativo não pode separar-se da atitude de es­
cuta e de contemplação. N ão se deve considerar tal atitude algo diverso da
teologia, mas antes é a que vai guiar o esforço teológico para que não se
desvie de seu autêntico objetivo, ajudar-nos na consecução de nosso fim
último que é Deus.
Vamos ocupar-nos em nosso tratado, seguindo a pauta do que até aqui
foi indicado, do Deus revelado em Cristo. A rica problemática atual sobre
Deus e a abertura do homem a ele só nos ocupará marginalmente, para
evitar repetições com tratados de teologia natural ou outras obras de índole
diversa que tratam espetificamente desse amplo complexo de problemas6.
Deveremos tomar como guia e base de nosso curso alguns textos
capitais do prólogo do Evangelho de João:
O Verbo se fez carne e pôs sua morada no meio de nós. E vimos sua glória,
glória que recebe do Pai como Filho único, cheio de graça e de verdade... De
sua plenitude todos nós recebemos, graça sobre graça. Se a lei foi dada por
Moisés, a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo. A Deus nunca ninguém
viu; o Filho único que está no seio do Pai deu-o a conhecer (Jo 1,14.16-18).

Em sua vinda ao m undo, dando-nos a conhecer a glória que lhe


corresponde como Filho único do Pai, Jesus nos revelou Deus, que ninguém
pôde ver e que habita em uma luz inacessível a todo ser humano (cf. Ex 33,20;
lTm 6,16). Deu-nos a conhecê-lo íãzendo-nos participantes de sua vida, dando-
nos de sua plenitude, comunicando-nos sua graça e sua verdade. A revelação
de Deus em Cristo não é uma simples comunicação de "verdades”, mas com­
porta uma doação de sua própria vida. E uma autêntica “autocomunicação”
de Deus. Por esta razão, a atitude de fé é fundamental para o acesso a essa
revelação divina. Em Jesus não só podemos ver o Pai mas temos também 0
único caminho de chegar até ele (cf. Jo 14,6-9).
D aí o caráter teológico de nosso tratado, que quer partir da revelação
acontecida em Cristo e acolhida pela Igreja na fé7. N a realidade, todo
conhecimento que o homem pode ter de Deus, de um modo ou de outro,

6. Podemos rem eter neste ponto, entre a enorme bibliografia, a J. de S. LUCAS, La


búsqueda de Dios en el bmbre, M adrid, 1994; e a J. ALFARO, De la cuestion del bombre a la
cuestián de Dios, Salamanca, 1988.
7. Significativos os títulos de alguns tratados que destacam esse aspecto: W. KASPER,
Der Gott Jesu Christi, Maiença, 1982; e recentemente L. SCHEFFCZYCK, Der Gott der
Offenbarung Gatteslehre, Aachen, 1996.

21
QUESTÕES PRELIMINARES

baseia-se no fato de que ele se deu a conhecer. Devemos estudar em seu


momento o problema teológico do acesso da razão humana a Deus. P o r
ora, basta-nos sinalizar que toda busca de Deus por parte do homem tem
em Deus mesmo sua iniciativa, está guiada por sua providência e por sua
mão, ainda que não o saibamos8.9 O mesmo conhecimento de Deus que o
homem pode adquirir a partir da criação vem do testem unho perene que
Deus dá de si (Vaticano II, DS 3). Além desse testemunho da criação, a
Constituição Dei Verbum 3 fala-nos de uma manifestação divina a nossos
primeiros pais, de nível mais elevado do que a criação mesma, em relação
com a salvação de uma ordem superior a que os destinava (supemae salutis).
A revelação do Antigo Testam ento ao povo escolhido é sem dúvida outro
passo no autodesvelamento de Deus: assim pôde ser reconhecido com o
“Deus único, vivo e verdadeiro; Pai providente e justo Juiz” (D V 3). Dessa
forma Deus foi preparando o caminho do Evangelho. Porém, só com Jesus
C risto a revelação chega à sua plenitude, porque o Verbo, que ilumina a
todos os homens, foi enviado pelo Pai para que “habitasse entre eles e lhes
revelasse os segredos de Deus” (D V 4)’.
A teologia tem por objeto D eus enquanto é o fim do homem, porque
a revelação que em Jesus alcança seu cumprimento não tem outro objeto
senão Deus e as verdades de nossa salvação. Temos portanto de olhar Jesus
para conhecer o Deus Pai. Revelando-nos o Deus como Pai, dá-nos a
conhecer-se ele mesmo como Filho. Podemos ter acesso a esse mistério no
Espírito de Deus, “porque ninguém pode dizer Jesus é o Senhor senão
no Espírito Santo” (IC or 12,3).
A revelação de Deus como Pai de Jesus, que comporta a de Jesus como
Filho de Deus e Deus também como o Pai, e a do Espírito Santo, dom do
Pai e de Jesus que introduz na intimidade de sua vida, é a revelação do Deus
uno e trino. A doutrina da unidade divina na trindade e da trindade na uni­
dade que a Igreja desenvolveu é a conseqüência direta do Deus que Jesus nos
deu a conhecer. Não estamos em um apêndice ou questão secundária da
teologia ou da fé, mas sim ante seu núcleo mais profundo, porque nos en­
frentamos com o mistério de Deus que se dá a conhecer como o único fim
ao qual o homem tende e no qual pode alcançar sua plenitude.

8. A G O STIN H O , Soliloquiorvm LIbid. 1 1,3 (PL. 32,870): “Deus, quem nemo quaerit
nisi admonitus”.
9. DV 4: “Com toda sua presença e manifestação, com suas palavras e suas obras,
sinais e milagres, e sobretudo com sua m orte e ressurreição gloriosa dentre os m ortos,
finalmente com o envio do Espírito de verdade, completa a revelação e confirma com o
testem unho divino que Deus vive conosco...”.
INTRODUÇÃO AO TRATADO

A ORIGINALIDADE DA NOÇÃO CRISTÃ DE DEUS

N a confissão do Deus uno e trino, temos por conseguinte o ponto


focal da fé cristã. Por uma parte, o cristianismo coloca-se ao lado das gran­
des religiões monoteístas: segue a tradição do Antigo Testam ento e se
considera legítimo herdeiro da religião de Israel, em que a unidade e a
unicidade de Deus são a verdade fundamental (cf. Ex 20,lss.; D t 6,4 etc.;
M c 12,29; Jo 17,13). Depois do cristianismo veio o Islã, que manteve com
força o monoteísmo da tradição veterotestamentária, rejeitando como um
desvio a Trindade cristã.
Mas, predsam ente porque o monoteísmo cristão, que devemos afir­
m ar com todas as forças, é o do Deus trino, não pode ser identificado sem
mais com o do judaísmo e do Islã. A unidade últim a de Deus, a maior que
possamos pensar, é em si mesma plural10.1D aí se segue que, embora haja na
afirmação uma parte de verdade, não se pode afirmar sem matizes que o
Deus uno pode ser conhecido pela razão, enquanto a Trindade divina deve
ser objeto da revelação. Certamente, com a razão pode-se chegar ao co­
nhecim ento do Deus uno, como também chegaram a essa idéia as outras
religiões mencionadas e talvez outras no mundo, sem a revelação definiti­
va em Cristo. Mas o Deus que se dá a conhecer em Jesus C risto é o Deus
uno e trino. A unicidade não é unicamente um dado prévio para a revela­
ção cristã, mas recebe com ela um sentido novo e muito mais profundo. Não
há unidade divina sem trindade, e vice-versa. A unidade divina que o cris­
tianismo afirma é a unhas in Trinhate, enquanto não se pode entender a
Trindade sem ter em conta a unidade divina, Trinitas in jmhaten. O Deus
revelado em Cristo é, ao mesmo tempo, o Deus uno e o Deus trino.
Desde o começo temos que estar bem conscientes da grande origina­
lidade da visão cristã, que iremos desenvolvendo ao longo de nossa exposi­
ção. Isso não quer dizer que à margem da fé cristã nada se possa saber sobre
Deus. A própria fé nos diz o contrário. A revelação do Antigo Testamento
é parte integrante da mensagem cristã, ainda que só à luz de Jesus Cristo
receba seu sentido definitivo. Em muitas tradições culturais e religiões há

10. A teologia crista está sem pre mais consciente desse problema: vamos abordá-lo
no capítulo 10 sobre a unidade de Deus. Cf. A. MANARANCHE, II monoteísmo cristiam,
Brescia, 1988. Esse problem a não deveria ser passado por alto no diálogo com judeus e
muçulmanos.
11. CO N CÍLIO LATERANENSE, ano de 649 (DS 501): Si quis... non confitetur
trinitatem in unitate et unitatem in trinitate”. SCHEFFCZYCK, op. cit., 343ss.-344: a...
a fé cristã na Trindade entendeu-se sempre a si mesma como a forma mais elevada da fé em
um só D eus”. Cf. G regório NAZIANZENO, Or. 25,17 (SCh 284, 198).

23
Q UESTÕ ES PREUMINARES

sementes do Verbo, raios da verdade e presença do Espírito12. Deus pode ser


conhecido pelas obras da criação (cf. Sb 13,1-9; Rm 1,19-23), que podem
levar com a luz da razão à certeza de sua existência (cf. DS 3.004). A fé cristã,
que não pode ser fruto de uma dedução racional, deve poder justificar-se
ante a razão mesma. Mas a profundidade do mistério de Deus só se conhece
com a revelação cristã em que Jesus nos diz tudo o que ouviu de seu Pai (cf.
Jo 15,15). O reconhecimento da possibilidade de um verdadeiro conheci­
mento de Deus fora da fé não nos deve levar a minimizar a originalidade da
mensagem cristã e de sua visão de Deus. Só com base no mistério trinitário
é compreensível a encarnação, que Deus se faça homem e comparta nossa
condição em tudo menos no pecado (cf. H b 4,25), até a morte, e morte de
cruz (F1 2,6-11), como igualmente só porque Deus é uno e trino podemos
pensar que introduz a nós, homens, na plenitude de sua vida.
Chegados a este ponto devemos dar um passo a mais: a revelação de
Deus em Jesus, a revelação cristã do Deus uno e trino, é um confronto com
um mistério cada vez maior. Com efeito, um Deus que se apresentasse como
simplesmente unipessoal seria mais fácil de entender, menos misterioso do
que nosso Deus uno e trino, revelado como tal na encarnação de seu Filho.
Não devemos pensar portanto que a revelação de Deus acontecida em Cris­
to nos “explique” o ser de Deus ou faça compreensível seu mistério: “O
Deus que envia seu Filho ao mundo, o Deus que manifesta seu am or entre-
gando-o à morte, mostra-se mais misterioso e inescrutável”13. A revelação
cristã significa desse modo o confronto mais imediato com o mistério de
Deus14. Nisso se deve ver a definitividade da manifestação de Deus em Cris­
to. A maior proximidade de Deus significa a maior possibilidade de ver sua
grandeza inescrutável. U m mistério não é simplesmente o inconciliável com
nossa experiência, nem tampouco o que não conhecemos e talvez possamos
algum dia conhecer, mas o mistério é o próprio Deus, Deus é o mistério

12. Cf. VATICANO II, NA 2; AG 9,11; O T 16; JOÃO PAULO II, Redanptoris
Missio 28-29; 5S-S6; COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, El Cristianismo y
las Religiones,Citú dei Vaticano, 1997,40-45.
13. JOÃO PAULO D, na audiência de 25-09-1985; cf. btsegnamenti di Giovanni Paolo
II, 8, 2 (1985) 764.
14. H . U. von BALTHASAR, Ttodramática 3. Las personas dei drama: el bombre tn
Cristo, M adri 1993,486: “U m D eus puram ente transcendente (caso pudesse existir seme­
lhante D eus) seria um m istério abstrato, puram ente negativo. Mas um D eus que em sua
transcendência pudesse ser tam bém im anente é um m istério concreto e positivo: na m e­
dida em que se aproxima de nós, começamos a reconhecer quando está elevado sobre
nós, e na medida em que se nos revela em verdade começamos a com preender quanto é
incom preensível”.

24
INTRODUÇÃO AO TRATADO

santo que tudo abarca. Q uanto m aior é a revelação de Deus, maior é seu
mistério, m aior é o saber do não-saber, porque põe diante de nós a imensa
grandeza de Deus. £ tudo isso não é apesar da proximidade, mas justamen­
te por causa dela. Isso podia valer, também, para a própria visão beatífica:
O que se sabe de Deus, sabe-se enquanto incompreensível: o que se sabe de
Deus é verdadeiramente sabido no último do conhecimento humano, só
quando seu caráter misterioso se sabe do modo mais alto; o supremo conhe­
cimento é o conhecimento do mistério supremo enquanto talIs.

É por isso que a revelação do mistério de Deus em Cristo não nos


resolve a questão de Deus, mas o que faz é confrontar-nos com o mistério
que é o próprio Deus de maneira mais radical. Porém estamos confronta­
dos com ele enquanto ele mesmo se dá a nós, põe-se a nosso alcance,
enquanto nos acolhe. E a proximidade radical do m istério santo, não sua
distância, que nos faz captá-lo em todo o seu esplendor. Por isso temos em
Jesus a revelação do mistério de Deus, quando contemplamos a glória que
lhe corresponde como unigénito do Pai (cf. Jo 1,14). N o m istério de Cris­
to que nos revela o Pai, encontramo-nos com a expressão do mistério in­
sondável de D eus que, paradoxalmente, pode dar-se-nos a conhecer na
proximidade de seu Filho feito homem, pode fazer-se tanto mais próximo
de nós quanto maior é sua transcendência.
O m istério do amor de Deus é o conteúdo fundamental da revelação
divina. Tudo isso é um chamamento ao louvor, à adoração, não uma afir­
mação negativa. Porque o Deus que não podemos abarcar e que está mais
além e acima de nós volta-se para nós. A ocultação de Deus é a ocultação
de sua revelação, a ocultação de sua glória na paixão e m orte de Jesus
Cristo, que é a máxima manifestação do amor de D eus pelos homens. A
revelação do mistério, que é a revelação de nossa salvação que não pode
senão o próprio Deus1 156. A revelação do mistério de Deus, que é o próprio
Cristo, dá-nos a plenitude da sabedoria e do conhecimento “para que al­
cancem em toda sua riqueza a plena inteligência e perfeito conhecimento

15. K. RAHNER, Sobre o conceito de m istério na teologia católica, in Escritos de


teologia IV, M adri 1964, 53-101, aqui 83. Quem na tradição cristã acentuou muito esse
aspecto foi GREGÓRIO D E NISSA, De vita Mos. I I 162; 163 (SCh 1 bis, 210): “N isto
consiste o conhecimento verdadeiro do que buscamos: em ver o não-ver”; n 233 (266):
“N isto consiste a verdadeira visão de Deus: em que quem o vê não se sacia nunca em seu
desejo de ver”: igualmente em 235; 239 (268;270).
16. Cf. W. KASPER, Der Gottjesu Christi, 165-167.

25
QUESTÕES PRELIMINARES

do m istério de Deus que é C risto, no qual estão todos os tesouros da sa­


bedoria e do conhecimento” (Cl 2,2-3).
Isso é precisamente o que aparece em Jesus: o amor de Deus, maior
do que podemos pensar, manifestado aos homens. Deus amou tanto o
mundo que enviou seu único Filho 0 o 3,16) para m orrer por nós. E a
revelação do abismo do amor, a incompreensibilidade da proximidade in­
compreensível que, superando-as, responde no mais profundo às expectati­
vas do coração humano. Uma esperança que o homem sabe não poder con­
seguir por si mesmo, Tudo isso é precisamente a revelação do Deus uno e
trino. U m Deus que em sua incomparavelmente maior proximidade mani­
festa sua incomparável incompreensibilidade, e vice-versa. A revelação de
Deus é o mistério de nossa salvação, é a participação em sua própria vida.
Encontram o-nos aqui com o mistério do “D eus sempre maior”, liga­
do ao m istério do amor de D eus. N o Novo Testamento, em particular nos
escritos de João, achamos diversas “definições” de Deus17. Entre elas se
destaca a de ljo 4,8.16: “D eus é amor”18. Toda a teologia trinitária pode
ser entendida como um comentário a essa frase, e na realidade não faremos
mais do que desentranhar seu sentido no curso de nossa exposição. Do
amor que se manifesta em C risto a primeira carta de João chega a insinuar
que é o próprio Deus.
Aí está a definitiva novidade do conceito de Deus bíblico e sobretudo
cristão. O deus aristotélico é o m otor imóvel, o fim de todas as coisas, o
que as atrai, o amado, mas não o amante19, lòdo-perfeito, não pode amar,
porque am ar é tendência a possuir. O Deus revelado em Cristo oferece-
nos a dimensão do amor como dom de s i20. E a radicalidade do dom de si
a nós que nos evidencia a condição de inabarcável do Deus amor. O mis­
tério de Deus que sua revelação põe diante de nós é, antes de tudo, o
mistério de seu infinito amor. E esse amor que a doutrina trinitária da

17. A impropriedade do term o é de todo evidente. Deus é por definição o “Ilim ita­
do”, o que não conhece o limite. Assim, segundo Jo 44,24, Deus é espírito: a noção de
espírito nos indica predsam ente o incontrolável, o que o homem não pode abarcar. Segun­
do ljo 1,5, Deus é luz, noção que claramente aponta também a plenitude sem lim ites.
18. C f. R. SCHNACKENBURG, Cartas de SanJüan, Barcelona, 1980,256-264, “El
amor como essenda de Dios”; T h SÖ D IN G , “G ott ist Liebe”, ljo h . 4,8.16 als Spitzensatze
Biblischer Theologie, in ID. (Org.) Der lebendige Gott. Studien zur Theologie des Neuen
Testaments (Festschrift W. Thüsing), M ünster, 1996, 306-357.
19. C f ARISTÓTELES, Metafísica, XU, 7-9,1072-1074 (ed. G. Reale, 562-584) [Edição
brasileira: Metafísica, XU, 7-9,1072-1074 (ed. G. Reale, 561-577), São Paulo, Loyola, 2002.]
20. Cf. E JÜ N G EL, Dias como mistério dei mundo, Salamanca, 1984,433 “A equipa­
ração ‘Deus é amor’ é uma afirmação que preserva a divindade de Deus”.

26
INTRODUÇÃO AO TRATADO

Igreja trata de aprofundar. Nada tem de particular portanto que os recen­


tes documentos da Igreja nos apresentem o m istério de Deus im o e trino
como o mistério central do cristianismo:
O mistério da Ssma. Trindade é o mistério central da fé e da vida cristãs. O
mistério de Deus em si mesmo. É, portanto, a fonte de todos os outros misté­
rios da fé, a luz que os ilumina. E o ensinamento mais fundamental da “hierar­
quia das verdades” da fé. A história da salvação é a mesma história do caminho
e do modo com que o Deus verdadeiro e uno, Pai, Filho e Espírito Santo, se
revela aos homens, separados pelo pecado, e os reconcilia e os une a Si21.

Essa constatação nos conduz ao ponto seguinte que devemos tratar.

O CARÁTER CENTRAL DA FÉ NO DEUS UNO E TRINO

Se a fé nos diz que Deus é o único fim do homem, e nos m ostra além
disso que a originalidade do conceito cristão sobre ele baseia-se em sua
característica última de ser o Deus amor, ou o Deus uno e trino, nada tem
de estranho que essa confissão constitua o centro da fé cristã. Segundo o
mandamento de Jesus em M t 28,19, o batism o é administrado em nome
do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Já esse fato mostra a relevância da fé
no Deus trino, pois em seu nome se entra na comunidade dos fiéis. As
antigas profissões de fé, os símbolos, têm em sua maioria uma estrutura
trinitária22. Pensemos em concreto no Símbolo apostólico e no niceno-
constantinopolitano. A confissão de fé no Pai, Filho e Espírito Santo pre­
cede em todo caso a profissão de outras verdades, quando essas são

21. CEC 234, trad. do Cathecbismus Catbolicae Ecclesiae, C ittà dei Vaticano, 1997,71.
Repete-se a idéia de forma sintética no n° 261, acrescentando sigmfícadvamente a estrita
necessidade da revelação desse m istério para que possamos conhecê-lo. “O mistério da
Santíssima Trindade é o m istério central da fé e da vida cristã. Somente Deus pode dar-nos
a conhecer, revelando-se com o Pai, Filho e Espírito Santo* (Ibid. 79). O utras confissões
cristãs confessam também essa centralidade do m istério de Deus uno e trino. Assim,
o Conselho Ecumênico das Igrejas define-se a si m esm o com estas palavras: “O Conselho
Ecum ênico das Igrejas é um a sociedade fraterna (feüawsbip) de Igrejas que confessam ao
Senhor Jesus C risto como D eus e Salvador segundo as Escrituras e se esforçam por respon­
der juntas a sua comum vocação para glória do único D eus, Pai, Filho e E spírito Santo” (cf.
J. VERCRTJYSSE, Introduzione atta teologia ecumenica, Casale M onferrato 1992, 51).
22. Igualm ente a “reg ra de féw apresentada pelos antigos escritores: cf. por ex.,
IR IN E U ,i4to. Haer. 1 10,1 (SCh 264,154-156); TER TU LIA N O , Adu. Prax. 2,2 (Scarpar,
144-146) etc.

27
q u e s t õ e s p r e l im in a r e s

introduzidas23. Outras fórmulas têm uma estrutura bipartida, trinitário-


cristológica24. Nesses casos, a parte trinitária coloca-se em primeiro lugar. A
Trindade está no lugar central da liturgia cristã, na celebração da eucaristia
e dos outros sacramentos. A oração eucarística dirige-se sempre ao Pai25, e
term ina com uma doxologia que menciona as três pessoas: “Por Cristo, com
Cristo em Cristo...”. As orações dirigem-se normalmente ao Pai por Jesus
Cristo, na unidade do Espírito Santo. A fórmula de louvor ao Pai pelo Filho,
no Espírito Santo deu lugar, para evitar interpretações subordinacionistas, à
que usamos com mais freqüência, “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito
Santo”, que sublinha a igual dignidade das três pessoas26. A Trindade foi
posta também no centro da vida da Igreja no Concílio Vaticano II; a Igreja,
chamada à unidade: “Assim se manifesta toda a Igreja 'como uma multidão
reunida pela unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo’” (LG 4)27.
O que sem dúvida está no centro da fé e da vida da Igreja deveria estar
também no centro da consciência cristã. Só no contexto da doutrina
trinitária podemos entender a salvação de C risto. Sem ela a cristologia fica
reduzida a mera funcionalidade que, no fim das contas, acaba por destruir
a função mesma. Porque reduzir nossa preocupação à significação de Jesus
ou de Deus para nós, sem indagar sobre o que são em si mesmos, equivale
a perder de vista o sentido mesmo da salvação cristã. Se não nos preocu­
pamos pelo que é em si mesmo o mistério divino do Pai que nos envia seu
Filho e o Espírito Santo e da unidade dos três que são um único Deus, por
que tem os de atribuir a C risto um caráter definitivo e insuperável? Em que
relação intrínseca com o m istério de Cristo se acha o dom do Espírito? Por
que em Cristo se realizou a salvação de todos os homens? Em que consiste,
em últim o term o, essa salvação tantas vezes caracterizada como participa­
ção na vida divina? Todas essas questões não são de pouca importância e

23. Cf. os exemplos aduzidos em DS 1-64. Alguns desses símbolos têm uma forma
interrogativa, que reflete o mesmo esquema (cf. DS 36,61-64).
24. Cf. DS 71-75. Especialmente im portante entre esses símbolos é o chamado
Quicumque, DS 75, provavelmente da prim eira metade do século V
25. Segundo a antíga fórm ula do Concílio de H ipona (ano 393): “cum altari adsisntur
semper ad Patrem dirigatur oratio”. Cf. B. NEUNHAUSER, “Cum altari adsistitur semper
ad Patrem dirigatur oratio” Der Kanon 21 des Konzils vm Hippo 393. Seine Bedeutuag und
Nadrairkung, Aug. 25 (1985) 105-119.
26. C f. BASÍLIO de Cesaréia, De Spiritu Sancto, I 3 (SCh 17 bis, 256). Ambas as
fórmulas são corretas segundo o bispo de Cesaréia.
27. Cf. CIPRIANO, De orat. dom. 23 (PL 4.553); A G O STIN H O , Sermo 71 ,20-33
(PL 3 8 ,463s);João DAMASCENO, Ado. lconocl. 12 (PG 96,1.358). Ver N . SILANES, La
Iglesia de !a Trinidad. La Ss. Trmidad en el Vaticano U, Salamanca, 1981.

28
INTRODUÇÃO A O TRATADO

não podem ser respondidas sem uma visão adequada do mistério do Deus
uno e trino. Chegamos ao mistério de Deus através da história da salvação,
mas ao mesmo tempo a exigência de esclarecer esse mistério vem da pró­
pria historia salutis, que ficaria sem fundamento sem essa consideração do
que é Deus em si mesmo.

O “ESQUECIMENTO” DA TRINDADE

A doutrina cristã de D eus estará sempre em busca de um equilíbrio


entre a unidade e a trindade divinas. Nem um Deus simplesmente monádico
nem um triteísm o são compatíveis com a revelação do Novo Testamento.
M anter a justa tensão entre esses dois pólos não foi, nem é ainda hoje, uma
tarefa facil. É um fato que no mundo ocidental não foram sempre felizes a
pregação e a catequese sobre o Deus uno e trino. ATrindade divina foi vista
simplesmente como o mistério incompreensível, mais do que como funda­
mento e princípio de nossa salvação. N a mesma teologia, a doutrina da
Trindade sofreu em algumas épocas um certo “afastamento”: uma vez afir­
mado que Deus é uno e trino, depois praticamente se deixou de lado, ou
ao menos não teve muitas repercussões no desenvolvimento de boa parte
das matérias restantes28. Nem sempre resultou facil ver o sentido desse ensina­
mento. N ão há dúvida de que em certos momentos da história produziu-se
em amplos estratos de crentes uma certa diminuição do sentido da origina­
lidade do monoteísmo cristão, da visão cristã de Deus.
Diversos fatores contribuíram para esse resultado. A Ilustração bus­
cou a razão universal, criticou a religião histórica e concretamente o cristia­
nismo: com o poderia a salvação de todos depender de um acontecimento
concreto que muitos não chegaram a conhecer e nem tiveram a possibili­
dade mais remota de fazê-lo? Não é injustiça da parte de Deus, que deixa
que grande parte dos homens ignorem Cristo?29Tudo isso leva necessaria-

28. C f. Karl RAHNER, Advertendas sobre el tratado dogmático “De Trinitate”, in


Escritos de Teologia IV, Madrid, 1964, 105-136, esp. 107-110. Asituação descrita pelo teó­
logo alemão já não corresponde, felizmente, ao momento atual. Também em 1981 a Co­
missão Teológica Intem adonal, em seu documento Teologia - Cristologia - Antropologia,
observava que a Trindade não era sufidentem ente levada em conta pelos autores da neo-
escolástica “para entender a Encarnação e a divinização do homem”. Cf. COMISSÃO TEO ­
LÓGICA INTERNACIONAL, Documentos 1980-1985, Toledo, s. f., 12. Veja-se ainda o
texto latino, Theologia-Christologia-Anthropologia, in Greg 64 (1983) 5-24,10.
29. Essa pergunta e outras semelhantes as formulavaJ. J. Rousseau. C f E A SULLIVAN,
Sahation outside tbe Cburtb? Tracmg bistory ofcatbolic response, New York, 1992,104-108.

29
Q U ESTÕ ES PRELIMINARES

m ente à desvalorização do cristianismo e de toda religião positiva. Esta


será necessariamente algo secundário, o verdadeiramente im portante é a
religião da razão. Dela nos vêm as maiores idéias sobre Deus.
Significativo também a esse respeito Imm anuel Kant, que expôs suas
idéias sobretudo em sua “A religião dentro dos lim ites da pura razão” (Die
Religion innerbalb der Grenzen der reinen Vemunfi). A verdadeira Igreja há
de ser algo universal, não pode fundar-se sobre um a revelação histórica,
que será necessariamente particular. Portanto, só a fé religiosa pura, fun­
dada na razão, pode ser reconhecida como verdadeira30. O que a religião
declara como mistério pode reduzir-se à razão somente, e especialmente à
sua dimensão moral. Quando há textos bíblicos que não somente superam
a razão, mas podem ser considerados contraditórios perante a razão práti­
ca, devem ser interpretados em favor dessa últim a. Isso acontece com a
Trindade: “Da doutrina da Trindade simplesmente nada se pode tirar para
a vida prática, inclusive se se acreditasse entendê-la imediatamente: mas
m uito menos ainda quando se está convencido de que supera nossos con­
ceitos”. Se em Deus há três ou dez pessoas, resulta indiferente, porque
“dessa diferença não se pode tirar nenhuma regra diversa para o compor­
tam ento”31. Impõe-se portanto uma interpretação puramente racional da
Trindade, já que esse ensinamento não só supera, mas contradiz a razão
prática. D aí que aquilo que a doutrina cristã do Deus uno e trino chama
três pessoas são unicamente esses três atributos de Deus, que é santo,
benévolo e justo: enquanto criador do céu e da terra é o legislador san­
to; enquanto rege e sustém o gênero humano, é benévolo; e é o juiz justo,
que faz cum prir suas leis santas32. A Trindade reconduz-se desse modo à
exigência prática da “vocação”, da “satisfação” e da “eleição” por parte de
Deus. “Vocação”: os homens são chamados a um estado divino não por
dependência devida à criação, mas por uma lei da liberdade. “Satisfação”:
porque o homem está moralmente corrompido, e portanto precisa que
D eus compense o que falta às capacidades humanas. Exigência da “elei­
ção”: pela qual Deus dá uma graça celestial não por mérito do homem,
mas por seu decreto incondicionado33.
N o único ser suprem o, unipessoal em bora com pluralidade de atri­
butos, adora-se o Pai enquanto ama os homens, ao Filho enquanto se faz
modelo para a humanidade, ao Espírito Santo enquanto busca o acor­
do e o consenso entre os homens e m ostra um am or fundado na sabedo­

30. Cf. I. KANT, D ie Religion... in Gesammelte Werke, Berlim, 1913, v. V I, 115.


31. Id., D er Streit der Fakultäten, in Gesammelte Werke, VII, 38-39.
32. Id., Die Religion..., 139ss.
33. Ibid., 142ss.

30
INTRODUÇÃO AO TRATADO

ria34.53Falar de um Deus em três pessoas seria politeísmo; não se trata portan­


to de três pessoas, mas de uma pessoa tríplice, enquanto rnnrmum ens, swttma
intelligentia, sumrnum bonum15. E claro com esses pressupostos que Jesus não
pode ser Deus, em sentido estrito, senão "homem divino”, o ideal sublime
de virtude inato em nossa razão. Com efeito, "na manifestação do Deus-
homem não é o que se apresenta aos sentidos ou pode ser conhecido por
experiência, senão o modelo existente em nossa razão o que constitui pro­
priamente o objeto da fé santificante”36.73Parece por conseguinte que a própria
figura histórica de Jesus é considerada, em últim o termo, irrelevante.
N ão é nosso intento desenvolver agora a filosofia k a n tia n a da reli­
gião, mas somente aduzir um exemplo significativo para ver com o a teo­
logia trinitária é a prim eira a desaparecer quando se trata de buscar um
deus e uma religião válidos para todos e submetidos às leis da razão erigidas
em norm a suprema. Certam ente a Igreja combateu esse racionalismo, mas
a necessidade da luta leva às vezes ao terreno do adversário. A preocupação
apologética obriga a m anter-se em um terreno de noções comuns, e assim
a peculiaridade do Deus cristão fica relegada a um segundo momento,
uma vez que se mostrou que a revelação de D eus é possível; os conteúdos
dessa revelação, e em concreto as características do Deus que se dá a co­
nhecer na encarnação, não aparecem no prim eiro plano desse confronto57.
Uma determinada concepção da relação entre a natureza e a graça pode ter
ajudado essa visão das coisas. A natureza, e com ela o conceito de Deus que
pela razão se pode alcançar, teria um sentido em si mesma; a revelação
sobrenatural vem acrescentar novos conteúdos a um horizonte que per se

34. Ibid., 145ss.


35. Cf. A. M ILANO, La 11111112 dei teologi e dei filosofi, in A. PAVAN; A. M ILANO
(ed.), Persona e personalismi, N ápoles, 1987, 120.
36. KANT, op. cit-, 139. E em Der Streit der Fakultäten, in Gesammelte Werke, VH,
39: “A situação é exatamente a mesma (como a da Trindade) para a doutrina da encarnação
de uma pessoa da divindade. Pois se esse Deus-homem não se apresentou como a idéia da
humanidade que desde a eternidade se encontra em Deus em sua completa perfeição moral
e a ele grata... senão como a divindade que habita corporalmente em um homem real e que
nele atua como uma segunda natureza, então esse m istério não tem nenhuma relevância
para nós, porque não podemos pretender de nós mesmos que devamos agir igual a um
Deus, e portanto não pode ser para nós um exemplo”.
37. Cf. R. LATOURELLE, Teologia de la Revelaáán, Salamanca, 1969,242ss. Segun­
do ele, os tratados sobre a revelação dos começos do século XX “passam rapidam ente a
tratar do problema da possibilidade da revelação, sem dar-se conta de que não se trata de
uma revelação qualquer, mas de uma revelação específica, que nos chega pelas vias da his­
tória e da encarnação”. O. G ONZÁLEZ D E CARDEDAL, La entraria dei cristianismo,
Salamanca, 1997,71: “Os teólogos, querendo refutar essa imagem de Deus, ficaram presos
a ela, por aceitar os pressupostos do debate”.

31
Q U ESTÕ ES PRELIM INARES

teria um sentido suficiente. Assim, a Trindade viria acrescentar-se a um a


noção de D eus uno que em si mesmo poderia ser considerado um fim
natural do hom em . Foi a crise dessa idéia racional de Deus, o aparecim en­
to do ateísm o, que pôs em prim eiro plano o interesse pela Trindade, a
idéia genuinam ente cristã do D eus amor.
M as a questão do relativo esquecimento do dogma trinitário tem tam ­
bém raízes intrateológicas mais antigas. A teologia pré-nicena foi enorm e­
m ente trinitária em suas formulações, e sobretudo ao considerar o desen­
volvim ento da economia salvífica. Mas não foi sempre de todo clara, ao
m enos para os momentos posteriores, sobre todas as implicações do dogma
trinitário, em particular no que respeita à igual dignidade das pessoas. Isso
levava essa grande teologia a algumas posições que do ponto de vista dos
desenvolvimentos que se seguiram pôde ser acusada de certa ambigüidade.
Em concreto, a tendência a considerar o Filho e o Espírito Santo em certo
sentido “subordinados” ao Pai, embora sua condição divina fosse clara­
m ente afirmada. A crise ariana obrigou a uma profunda reformulação da
questão. A negação da divindade do Filho (e do Espírito Santo) significava
a volta a um monoteísmo em que só havia lugar para uma pessoa divina, a
do Pai. A afirmação ortodoxa da divindade do Filho e do Espírito Santo
levou a uma forte acentuação da unidade da essência divina, manifestada
na unidade das atuações ad extra. Eliminado radicalmente da teologia o
problema do subordinacionismo, surge o da relevância do dogma trim táno
e sua vinculação com a história da salvação38. A afirmação legítima e neces­
sária da unidade pôde trazer consigo um certo esquecimento da relevância,
que também na sua atuação ad extra a respeito de nós, têm as distintas
pessoas do único Deus39. A insistência na unidade da essência do único
Deus e na igualdade das três pessoas não pode fazer esquecer a distinção
entre elas, que faz possível a própria história da salvação e portanto se
reflete nela. O único Deus que nós, cristãos, professamos há de aparecer
desde o prim eiro instante como o Deus trino, que se mostra tal em suas
relações conosco. Um só Deus e um só princípio das criaturas não quer
dizer um princípio indiferenciado. Se dizemos com o CIC (cf. nota 26)
que a Trindade ilu m in a todos os momentos da fé, isso deveria ter conse­
quências em cada um dos temas teológicos.

38. Sobre esse conjunto de problemas ver G. A N G ELIN I, II tema trim táno nella
teologia scolastica, ScCat 116 (1990) 31-67.
39. Um exemplo desse esquecimento relativo. Sto. TOM AS (STh D l 23,2) chega a
afirmar que a invocação do “Pai nosso” dirige-se às três pessoas divinas e que convém à
Trindade inteira a adoção dos homens como filhos de Deus. Cf. AGOSTINHO, Trm V,
11,12 (CCL 50, 219).

32
INTRODUÇÃO A O TRATADO

SOBRE A ESTRUTURA DO TRATADO

Já não é habitual nos recentes manuais a distinção clássica entre uma


parte dedicada ao De Deo uno e outra ao De Deo trino*0, que deriva em
último term o da sistemática de Sto. Tomás, que trata primeiro do que
corresponde à essência de Deus e depois da distinção das pessoas4 41.
0
Essa divisão fez fortuna durante séculos. Acentuada na época do Re­
nascimento e do Barroco, pôde facilmente dar a impressão de ser tributá­
ria de um a distinção demasiado drástica entre as verdades alcançáveis pela
razão e as que só podem ser conhecidas pela revelação divina. N o tratado
De Deo uno estuda-se a essência divina, seus atributos, a cognoscibilidade
de Deus etc. Assim, a prim eira parte do tratado e ainda, de certo modo, a
segunda, enquanto a prim eira deu o "tom” da exposição, centram-se no
“em-si” de Deus, com pouca relação com o m istério salvífico. Esse tratado
converteu-se em grande medida em tratado filosófico42.34 Uma vez que se
tratou de recuperar o seu conteúdo teológico, insiste-se muito na revela­
ção de Deus no Antigo Testamento. M as resulta demasiado simples e por
isso inexata a divisão entre a revelação do Deus uno no Antigo Testamento
e do Deus trino no Novo. Porque a revelação da Trindade é um aprofun­
damento da mesma unidade divina, não algo que a ela se justaponha. En­
tão, a divisão dos dois tratados, do Deus uno e do Deus trino, parece muito
mais difícil, para não dizer impossível. De outro lado, algumas das partes
clássicas do tratado De Deo Uno, em concreto os atributos ou propriedades
divinas, entendem-se melhor se se tem presente o Deus trino, em comu­
nhão de pessoas, e não só um a abstrata essência divina41; sobre o ser dessa
última reflete-se melhor uma vez que se sabe que a possuem o Pai, o Filho
e o Espírito Santo. A crescente preocupação, de outro lado, por partir da
"história da salvação”, e portanto da revelação de Deus em Jesus, faz que

40. A distinção se mantém m uito claramente, também no título, em J. AL ROVIRA


BELLOSO, Tratado de Diasimoy trino, Salamanca, 1993. M antém-se uma distição em alguns
manuais que recolhe toda a dogmática. Assim: G. L. M ÜLLER, Katholische Dogmatik. Für
Studium und Praxis der Theologie, Freiburg-Basel-W ien, 21996, embora não responda à divi­
são habitual entre Deus uno e trino. Cf. nota 46 a seguir.
41. C f. STb 1,2, prol.; Sto. Tomás é conseqüente com essa distinção no desenvolvi­
mento de seu tratado. Todavia Pedro LOMBARDO, Uber Sentetiarum I, combina as ma­
térias que com o tem po vieram a ser os tratados De Deo uno e De Deo trino.
42. Cf. A STAGLIANÒ, II mistero dei Dio vivente, Bologna, 1996,320.
43. Interessantes, nesse sentido, as posições d e j. AUER, Gott-der Eine und Dreieine,
Regensburg, 1978; L . SCHEFFCZYCK, Der Gott der Offenbarung. Gotteslehre, Aachen
1996.

33
Qu e s tõ e s p r e l im in a r e s

essa divisão fique mais difícil. Seguindo portanto a linha preponderante


nos últimos tempos, trataremos de integrar os dois âmbitos de problemas,
dando uma preferência muito clara e marcada aos que pertencem ao De
Deo trino na distinção tradicional. Mas trataremos de fazer ver, como tra­
dicionalm ente se fez, que a trindade e a unidade divinas são dois aspectos
igualm ente originais do ser de D eus, e que nunca podem separar-se um do
outro. Dirigimos nossa atenção desde o primeiro instante ao Deus uno e
trino, “triúno”44.
Nosso ponto de partida sistemático será a revelação de Deus em Cristo.
N ão há outro modo de chegar ao mistério profundo do verdadeiro Deus,
com o já indicamos. N a vida de Jesus, na revelação da “Trindade econômi­
ca” abre-se-nos o mistério da “Trindade imanente”. Depois de uma refle­
xão sistemática sobre a Trindade econômica e im anente, dirigiremos a
atenção para a manifestação da Trindade na vida de Jesus na primeira co­
munidade cristã. A evolução das doutrinas trinitárias até o segundo concí­
lio de Constantinopla e os concílios medievais será o passo seguinte. Mas
deixaremos o estudo de Sto. Agostinho e dos grandes teólogos medievais
para o m om ento da reflexão sistemática, que iniciaremos com as noções
clássicas de processões e relações, que nos abrirão o passo ao estudo da
pessoa, noção central da teologia trinitária. Estudaremos as noções clássi­
cas e os problemas modernos em tom o desse conceito. D aí poderemos
passar ao sentido da afirmação de três pessoas no Deus uno. O Deus Pai,
o Filho e o Espírito Santo, em suas propriedade pessoais, serão objeto de
estudo a seguir. Só depois veremos brevemente a unidade da essência di­
vina, as propriedades de Deus, o conhecimento natural de Deus e a lingua­
gem da analogia. Penso, com efeito, que uma vez estudada a trindade de
pessoas é mais facil abordar a questão da essência divina e das propriedades
de Deus. Trata-se da essência possuída pelas três pessoas e das proprie­
dades do Deus que em si mesmo é amor e comunhão45.

44. A palavra que normalmente indica a Trindade em alemão é Dreieinigkeit. Com­


binam-se portanto unidade e trindade no mesmo vocábulo. N as línguas latinas deve-se
recorrer a neologismos para exprimir a idéia. Cf. W. KASPER, Der Gottjesu Christi, M ainz,
1982,381 (“D er eine G ott ist dreieine”). G . GRESHAKE, Der dreieine Gott. Eine trinitariscbe
Theologie, Freiburg-Basel-W ien, 1997.
45. N ão sigo a opinião que tende a significar o Deus uno com o Pai. São dados os
resultados do artigo de K. RAHNER, Theos im Neuen Testam ent, Theos em el Nuevo
Testamento, in Escritos de teologia I, M adrid, 1963, 93-167, sobre o fato de que Deus signi­
fica no Novo Testamento o Pai, e que esse seja o Deus do Antigo Testamento. Daí não se
segue que tudo o que se deve dizer do Deus imo se diga simplesmente do Pai. O Pai não
é mais do que sua relação com o Filho e o Espírito e os três constituem o único Deus. Cf.
mais adiante os incisos dedicados ao Pai e à unidade divina (capítulos 10 e 11).

34
INTRODUÇÃO AO TRATADO

O TRATADO SOBRE DEUS NA SISTEMÁTICA TEOLÓGICA

Deus é o princípio e o fim de tudo, o Alfa e o Omega. Esses dois as­


pectos de uma só verdade hão de ver-se em sua m útua relação e tensão. Por
isso há quem tenda a ver a Trindade como o final e a coroa de toda a
dogmática, e há quem prefira vê-la no começo, por constituir a origem e
o princípio de todos os demais mistérios que só podem ser entendidos à
luz desse mistério fontal. Toda sistemática é limitada, todas oferecem van­
tagens e inconvenientes, e de fato vemos que não há unanimidade nas
recentes obras de conjunto e nas coleções, embora prevaleça a tendência
de colocar o tratado de Deus no começo da dogmática46. A presente obra
não se situa em nenhum plano de conjunto, e assim esse problema é aqui
relativamente secundário. Mas penso que há boas razões para colocar esse
tratado nos começos dos estudos teológicos, e em íntima relação com a
cristologia47. Creio acertadas as razões expostas por W. Kasper nas páginas
finais de seu tratado teológico Der Gottjesu Christi (O Deus de Jesus Cris­
to)48: o tratado sobre Deus trino deve ser colocado no começo da dogmática,
porque nele se trata o tema que depois, em múltiplas variações, tom ará a
sair à luz. Faz-se temático o tem a, dos muitos temas da dogmática. E de

46. Assim em Th. SCH N EID ER (ed.) Handbuch der Dogmatik, Düsseldorf, 1992, 2
vols., a Trindade aparece no final, ainda que precedida p o r um tratado sobre D eus. A
coleção que se começa a publicar Katoliscbe Dogmatik de L. SCHEFFCZYCK e A.
ZIEGENAUS, coloca o tratado de Deus (cf. n. 7), o prim eiro publicado, no volume 2 da
série, depois da Introdução. Disposição semelhante adotaram em seu tempo J. AUER e J.
RATZINGER, Kleine katholische Dogmatik. O tratado de D eus aparece também no começo
da dogmática em Mysterium sakuis. W. PANNENBERG colocou-o também no começo da
dogmática em sua Systematische Theologie. G. I. M ÜLLER, Katholische Dogmatikfür Studium
und Praxis der Theologie, Friburg-Basel-W ien, 1996, coloca um capítulo sobre a relação de
Deus criador como o Deus de Israel e o Pai de Jesus, depois da antropologia e da criação;
seguem a cristologia e a pneumatologia, e depois desses tratados a Trindade vem a signi­
ficar uma espécie de conclusão de um bloco teológico-cristológico, antes de mariologia,
escatologia, eclesiologia e sacramentos. Também W. BETNERT (ed.), Glaubenszugänge,
Lehrbuch der katb. Dogmatik, Paderbon-M ünchen-W ien-Zürich, 1995, coloca o tratado de
Deus no começo, combinando as m atérias dos tratados tradicionais (W. BREUNING,
Gotteslebre, v. I, 201-362). A coleção Sapienúa Fidei a coloca no começo dos tratados dog­
máticos. O Corso di Teologia Sistemática a situa depois do volume introdutório e da teologia
fundamental. B. LAURET e F. REFOULÉ (eds.), Initiation à la pratique de la Tbéologie,
Paris, 1982, 5 vols., a colocam ao final da dogmática (vol. 3, 225-276). Sobre alguns aspec­
tos da história da questão pode-se ver SCHEFFCZYCK, op. cit., 206-210.
47. Cf. G. COLOMBO, “Teocentrismo” e acristocentrism o,\ Teologia 6 (1991) 293-
306. “Não se pode falar do Deus cristão ignorando Jesus C risto, nem se pode falar de Jesus
Cristo antes que de Deus”.
48. Cf. o n. 44 especialmente nas páginas 379-380 da obra.
Q U ESTÕ ES PRELIMINARES

alguma maneira a gramática dos demais temas da dogmática, a afirmação


fundam ental da teologia (Grundsatz) que não pode nunca converter-se em
um acréscimo (Zusatz) a ela. Deve-se correr o risco de que nem tudo seja,
no inído, bem compreendido. Quanto ao mais, muitos dos temas objeto
de estudo não ficarão nesse tratado esgotados de uma vez por todas. Será
preciso voltar a eles em outras ocasiões49.
Deve-se buscar que o tratado de Deus revelado em C risto não seja
um a especulação vazia de sentido para a vida. Deve-se ver em todo mo­
m ento a relevância teológica das diversas afirmações no contexto da fé da
Igreja e da vida cristã. E, como insinuamos, teremos de abrir-nos constan­
tem ente à adoração do mistério santo que não podemos abarcar. Mas, ao
mesmo tempo, não se deve evitar as dificuldades inerentes à matéria que é
objeto de estudo. A fé procura entender não por um exercício especulativo
supérfluo, mas porque quer crer mais a fundo e quer dar melhor razão de
nossa esperança. É a fé que leva à compreensão (crede ta intelligas) mas tal
compreensão, se for correta, não pode deixar de enriquecer a própria fé
(inteüige ut credos). E o exercício da inteligência, nesse como em todos os
campos teológicos, tem seus momentos de dificuldade e de aridez. Tampouco
nós podemos poupar-nos deles. Só com esforço descobriremos as grandes
intuições dos que nos precederam, para sentir-nos assim mais iluminados
pelo mistério de amor que nos envolve, e o mesmo tempo conhecermos
m elhor o Deus em quem “vivemos, nos movemos e somos” (At 17,28).

49. W. PANNENBERG, Teologia sistemática I, M adri 1992,362: “A doutrina da cria­


ção, a cristologia e a doutrina da reconciliação, a eclesiologia e a escatologia, tudo forma
parte do desenvolvimento com pleto da doutrina da Trindade... E inversamente, a doutrina
trinitária de Deus é um resum o antecipado de toda a dogmática cristã”.

36
2
A relação entre a Trindade “econômica”
e a Trindade “imanente”

DA TRINDADE ECONÔMICA À TRINDADE IMANENTE

A breve introdução ao tratado nos mostrou que só com a revelação


acontecida em C risto temos acesso ao conhecimento do Deus uno e trino.
Nosso ponto de partida não pode ser outro senão a economia salvífica e,
em concreto, o que o Novo Testamento nos diz sobre Jesus, que, revelan­
do-nos o Pai, se nos dá a conhecer como Filho e que, depois de sua ressur­
reição, envia-nos, da parte do Pai, o Espírito Santo que desceu sobre ele
no batismo e na força do qual cumpriu sua missão. A “economia” é portan­
to o único caminho para o conhecimento da “teologia”1. Uma breve reflexão
sobre a relaçao entre as duas vai ajudar-nos a entrar com mais conheci­
mento de causa no estudo da história da revelação trinitária.
A relação entre a economia e a teologia foi muito discutida na teolo­
gia nos últimos tempos. Ocasião para isso foi a formulação de K. Rahner
do chamado “axioma fundamental” da teologia trinitária: “a Trindade eco­
nômica é a Trindade imanente, e vice-versa”2. Ou, em outras palavras:

1. A primeira é com freqüência chamada, em latim, disposido, dispensatio. Cf. Cate­


cismo da Igreja Católica,, n. 236, que se refere a essa antiga distinção dos Padres. Há que notar
de todas as maneiras, como veremos em seu momento, que essas palavras nem sempre são
utilizadas no mesmo sentido.
2 .0 Deus trin o como princípio e fundamento transcendente da história da salvação,
em AfySn/II/I, M adri (1969) 359-449, aqui 370. Cf. também, para o que segue, Ibid. 370-
371. Ja antes K. RAHNER tinha exposto ideias parecidas nas Advertências sobre o tratado
dogmático De Trmitate em Escritos de Teologia, M adrid, 1964, v. IV, 105-136. Não expomos
aqui simplesmente a doutrina de Rahner, mas, tomando como ponto de partida suas re­
flexões e as discussões a que deu lugar, tratam os de esclarecer a questão do conhecimento
da Trindade divina a partir da revelação dela na história da salvação.

37
QUESTÕES PRELIMINARES

D eus uno e trino revela-se na “economia”, tal como é sua vida imanente:
através da revelação de Cristo tem os um verdadeiro acesso à “teologia”. A
formulação desse princípio e a discussão a que deu lugar produziram uma
renovada tomada de consciência na teologia dessa verdade já antiga: só a
partir da revelação acontecida em Cristo tem sentido que falemos do Deus
trino. Dissemos que a verdade é antiga: a Trindade é uma verdade de fé,
irredutível a partir de qualquer conhecimento de Deus que possamos ad­
quirir a partir das coisas criadas: assim o considera explicitamente, entre
m uito outros, Tomás de Aquino5. E evidente que não podemos considerar
as coisas de outra maneira. Os esforços iniciados por Agostinho, e que
continuaram na teologia medieval, por encontrar nas realidades criadas
pegadas — vestigu? — da Trindade, que às vezes dão a impressão de ser
deduções racionais, são com freqüênda tentativas de explicação que su­
põem o universo da fé, que certamente não podemos compreender com
nossas categorias atuais5. Podem contudo mostrar, à luz da fé em Jesus,
que o Deus uno e trino do qual tudo procede não está longe de nós nem
de nosso mundo: permanecendo o princípio da indedutibilidade da Trin­
dade a partir da criação, podemos encontrar em nossa experiência humana
elementos que, ao ser iluminados pela fé, nos abrem ao menos inicialmen­
te para o sentido profundo do que somos. As “sementes do Verbo”, os
fragmentos da verdade que o Logos derramou no mundo6 têm a ver cer-
tam ente também com a Trindade, ainda que não a dêem a conhecer expli­
citamente.
“A Deus ninguém viu, o Filho unigénito que está no seio do Pai no-
lo deu a conhecer” (Jo 1,18; cf. lT m 6,16). A revelação do mistério de
Deus em toda a sua profundidade acontece unicamente em Jesus. Só pela
fé nele temos acesso a esse mistério, só se cremos nele como o Filho de
Deus podemos ver nele o Pai (cf. Jo 14,9). Essa revelação nos dá acesso ao
mistério de Deus enquanto o mesmo é o mistério de nossa salvação. O
Vaticano II estabelece uma clara conexão entre a revelação de Deus e a
revelação da verdade salvífica (cf. Vaticano D, Dei Verbum 2.6). Só Deus é
a salvação do homem. O conhecimento do Deus trino, enquanto verdade

3. Cf. STb I, q. 32 a. 1, cf. o Catecismo da Igreja Católica, n. 237.


4. Cf. L. SCHEFFCZYCK, Der Gott der Offenbarung, Aachen, 1996, 384ss.
5. Cf. W. SIM ONIS, Trinität und Vernunft, Frankfurt M ain, 1972; S. BONANI,
Abelardo e il problema delia conoscenza della 1111)113. Riflessioni a partire dalla lettura
della Theologin Scholarium, Pbilologia 4 (199S) 97-111.
6. Cf. JU STIN O , Apol. 1,5,4; 46 2-4 (W artelle 104; 160>, II, 7, 7; 8, 1-13 (206;208).
CLEM ENTE de Alexandria, Pntr. 1 6,4; X 98,4 (SCb 2bis, 60; 166); Ped. 1 96,1-2 (FP 5,
260); cf. nota 12 do cap. anterior, referências a documentos do Vaticano II e de João Paulo II.

38
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE 'E C O N Ó M IC A ' E A TRINDADE 'IM A N E N TE '

de fé, só nos é acessível portanto pela revelação feita por Jesus, porque nele
é o Deus mesmo que se revela. Isso implica que o D eus que se revela
mostra-se a nós tal como é. Senão, não havería revelação verdadeira. A
revelação cristã é a revelação de Deus e de seu desígnio salvífico. Ora,
segundo a Constituição Dei Verbum, esta revelação se realiza com as pala­
vras e as obras, especialmente com as de Jesus: "... com o feto mesmo de
sua presença e com a manifestação que realiza de si mesmo as palavras e as
obras, com os sinais e os milagres, e especialmente com sua morte e ressur­
reição dentre os mortos, e finalmente com o envio do Espírito Santo, cum­
pre e completa a revelação” (DV 4; cf ib. 2). A revelação de Deus, enquanto
revelação salvífica em si mesma, acontece na realização mesma de nossa
salvação por obra de Jesus C risto. Os dois aspectos são inseparáveis7. Co­
nhecemos a misteriosa e luminosa realidade do Deus trino pela revelação
salvadora que em Cristo faz de si mesmo. O modo como a Trindade se
apresenta a nós na economia da salvação deve refletir portanto como é em
si mesma8. Parece que essa reflexão se impõe. D o contrário, a salvação do
homem não seria Deus mesmo, deveria ser buscada em outro lugar, ou o
Deus que se revela e nos salva não é o que é em si mesmo; o que eviden­
temente não concorda com a fé cristã.
N ão parece que a esse m odo de raciocinar possa opor-se o princípio
da ação unitária das três pessoas divinas frente ao mundo e aos homens, ad
extra, de tal maneira que essa atuação, enquanto unitária, não possa refletir
a Trindade em si mesma. Certam ente o princípio da atuação unitária de
Deus tem de ser mantido. N ão teria sentido que as pessoas divinas atuas­
sem “separadamente” umas das outras. Mas ao mesmo tem po deve-se evi­
tar dar a esse princípio explicações exageradas, que levem em conta que o
único princípio que é Deus tem sempre a distinção em si mesmo. Em toda
atuação de Deus fora de si, ad extra, agem unitariamente as três pessoas
divinas. Deus é um só princípio da criação e da história da salvação, não
poderemos nunca falar de três princípios. Mas daí não se pode deduzir que

7. Cf. ALFÂRO, Encamacióny revelación, em Revelación cristiana,féy teologia, Salamanca,


1985,65-88.
8. RAHNER, El Dias trino como principioy fundamento... 371: “É certamente exata a
frase: A doutrina da Trindade e a doutrina da economia (doutrina da salvação) não se po­
dem distinguir adequadamente”. Com o se vê, a identidade não exclui uma certa distinção
não adequada. A distinção entre a 'Trindade im anente e econômica já está em Karl BÁRTH
(Kjrcblicbe Dogrmtik, 1/1, Munique, 1935, 352; 503): “Seguimos a regra e a consideramos
fundamental — de que as afirmações sobre a realidade e os modos de ser divinos, antes de
tudo em si mesmos, não podem ser distintas quanto ao conteúdo daquelas que devem ser
feitas precisamente sobre sua realidade na revelação”.

39
QUESTÕES PREUMNAHES

esse único princípio seja em si mesmo indistinto (ao contrário, sabemos


muito bem que não é) e não atue fora enquanto tal. Notemos também que
o princípio da atuação unitária de Deus para fora se viu sempre matizado
pelo uso da doutrina das “apropriações”: segundo a teologia tradicional, na
atuação do Deus único “apropriam-se” — na linguagem da Escritura ou da
Igreja — às distintas pessoas aqueles modos de atuar que mais diretam ente
correspondem ao que é “próprio” daquela pessoa na vida interna de D eus9.
Naturalmente, isso pressupõe um certo conhecimento do que é próprio de
cada pessoa no interior da vida trinitária; e dado que a Trindade é objeto
de fé, e não se pode deduzir de modo puramente racional, mas que só é
cognoscível à luz da revelação, só pelo modo de atuar salvífico de cada
pessoa se pode saber o que na vida interna de D eus lhe corresponde mais
diretam ente. Parece portanto que o princípio da unidade de operações ad
extra pode não excluir toda intervenção das pessoas enquanto tais. Pelo
que acabamos de dizer fica a impressão de que implicitamente se pressu­
põe o contrário10.
Existe um caso, além disso, em que sabemos que há uma atuação para
fora em que as pessoas atuam diferendadamente: a encarnação11. Somente
o Filho assumiu hipostaticamente a natureza humana. Não se trata de afir­
mar que as outras pessoas não tiveram parte nesse evento: sabemos muito
bem que não é assim. Foi o Pai que enviou o Filho ao mundo, e também isso
é uma atuação própria da pessoa do Pai (cf. Jo 3,17.34; Rm 8,3; G14,4). Por
sua parte, o Espírito Santo que desce sobre Maria faz possível a encarnação
(cf. Lc 1,35; M t 1,20; DS 150). N a encarnação, em toda a vida de Jesus sobre
a terra, e em sua ressurreição e exaltação à direita do Pai e no dom do Es­
pírito que segue a essas, temos uma atuação diferenciada das pessoas divinas
na história salvífica. E predsam ente essa diferendação que nos perm ite
conhecê-las. Não podemos pensar que a vinda de Jesus ao mundo seja uma

9. Cf. Tomás de Aquino, STh I q. 39, a. 7, que define a apropriação como “a mani­
festação da pessoa por meio de atributos essenciais”. A tributos essenciais são os que corres­
pondem à única essência divina. Fique claro que tudo o que dizemos aqui sobre as apropri­
ações não significa em absoluto questionar seu uso e sua legitimidade. Trata-se só de fazer
ver que só à luz do que é próprio das pessoas podemos “apropriar-lhes” o que corresponde
de seu aos três. Em nosso capítulo sobre a noção de pessoa voltaremos a falar das “apro­
priações”.
10. Cf. o resumo da pneum atologia de Atanásio e dos Capadócios em H . U . von
BALTHASAR, Tbeologik m . Der Geist der Wabrbeit, Einsiedeln, 1987,114-116. É interes­
sante notar que o CIC 2S8 assinala que cada pessoa realiza a operação comum segundo sua
propriedade pessoal. Funda-se para isso no H Concílio de Constantinopla (DS 421), texto
que analisaremos em seu momento.
11. Cf. RAHNER, op. cit., 372ss.

40
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE “ECONÔMICA” E A TRINDADE "IMANENTE"

exceção no modo de atuar de Deus a respeito de nós. Devemos antes afirmar


o contrário. Em Jesus temos o momento mais alto dessa atuação e o paradigma
e o fundamento de tudo o que Deus faz por nós: tudo tem sua consistência
em seu Filho amado em quem temos a redenção e o perdão dos pecados,
tudo foi feito mediante ele e caminha para ele (cf. Cl 1,13-20).
O ra, será que o fato da encarnação, precisamente do Filho enviado
pelo Pai, revela algo da vida interna trinitária, do que são as pessoas? Como
nos mostra esse fato, central na economia salvífica, algo da vida interna da
Trindade? Por razões já aduzidas, é claro que essa revelação aconteceu em
Cristo. E indiferente que tenha de fato sido assim, isto é, poderia ter sido
de outra maneira? O u esse fato indica algo do que é Deus em si mesmo?
D urante séculos foi doutrina comum que qualquer das pessoas divi­
nas poderia ter-se encarnado, embora sempre se tenha insistido na “conve­
niência” da encarnação do Filho. Assim pensaram, por exemplo, Boaventura
e Tomás de Aquino12. Ora, essa opinião dista hoje muito de ser pacífica, ou
de poder considerar-se definitivamente provada13. Podemos pensar que se o
Filho se encarnou é porque é, em si mesmo, o revelador do Pai, ao ser sua
imagem perfeita (cf. 2Cor 4,4; Cl 1,15; e também Jo 1,18; 14,9)14. N ão te-

12. C f BOAVENTURA, In III Sent., 1,1,4; mas a conveniência da encarnação do


Filho se sublinha em Ibid. 1,2,3; TOMÁS DE A Q U IN O , STh Hl, q. 3 a. 5; a conveniência
da encarnação do Filho em ibid. q. 3, a. 8. Tomás de Aquino assinala contudo que no caso
da encarnação do Pai não se pode falar de “missão”.
13. Pode ser ilustrativa alguma nota histórica. Com íreqüência (assim por ex.,
RAHNER, op. cit., [cf. nota 2] 374; Grundkurs des Glavbens, Freiburg-Basel-W ien, 1976,
213) diz que Agostinho teria sido o primeiro a afirm ar essa possibilidade. Mas não parece
que seja assim. Sem te r colocado diretam ente a questão, ele mostra uma sensibilidade à
correspondência entre a THndade econômica e a imanente, Trin IV, 20.28 (CCL 50.199):
“Pater... non dicitur missus, non enim habet a quo sit aut ex quo procedat”. Mas é interes­
sante, ibid., IV 21.32 (205): “Quia edam si voluisset Deus Pater per subiectam creaturam
visibiliter apparere, absurdissime tamen aut a Filio quem genuit, aut a Spiritu Sancto qui de
illo procedk missus diceretur”; o contexto amplo trata das teofanias, e no imediato se mostra
que o Filho e o Espírito Santo, embora enviados pelo Pai, não são por isso m enores que
Ele. N ão se considera, diretam ente, a hipótese da encarnação. Anselmo, por razões que nos
podem parecer hoje um tanto estranhas, mostra a inconveniência da encarnação do Pai ou
do Espírito Santo. Ep. De Inc. Verbi, 10 (ed. Schm itt, v. 2,25-28); também Citr Deus bomo7,
II, 9 (SCh 91, 376s.). Pedró Lombardo, Sent. IH 1,1-2, trata em prim eiro lugar da conve­
niência da encarnação do Filho, para afirmar depois a possibilidade da encarnação do Pai
e do Espírito Santo. É talvez o primeiro que afirma essa possibilidade. N otem os que os
grandes escolásticos mudaram a ordem com que ele aborda o problema.
14. A condição de imagem entra nos motivos da conveniência da encarnação do
Filho, tanto para Tomás como para Boaventura. Os antigos Padres da Igreja insistiram
muito nessa idéia de imagem, sem colocar o problem a que agora nos ocupa: IR IN E U , Adv.
Haer. IV 6,6 (SCh 100,450): “Visibile Patris Filius”; cf. também 6.7 (450ss): CLEM EN TE

41
Q U ESTÕ ES PRELIM INARES

mos por que colocar a questão se o Pai ou o Espírito Santo poderiam ter-
se encarnado, porque a revelação não nos oferece apoio suficiente para tais
especulações15. Mas alguma das razões aduzidas para afirmar a possibilida­
de teórica da encarnação de qualquer uma das três pessoas pode dar-nos
ocasião para alguma reflexão. Com efeito, uma das principais razões pa­
ra afirm ar a possibilidade da encarnação de qualquer das pessoas era, para
Sto. Tomás, o fato de que a ratio personalitatis é comum nas três pessoas,
ainda que sejam evidentemente distintas as propriedades pessoais de cada
uma delas16. M as, embora antecipando desde já questões que deveremos
desenvolver detidam ente mais adiante, podemos efetivamente duvidar que
o term o hipóstase, ou pessoa, signifique exatamente o mesmo quando apli­
cado ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Os “números” em Deus são
sempre problemáticos, tudo nele é irrepetível17. E claro que a terminologia
das três pessoas, consagrada pela tradição, é sem dúvida não só legítima,
mas também necessária. De alguma maneira, temos de designar os “três”
que a fórmula batismal e as confissões de fé mencionam18. Mas devemos
ser conscientes da dificuldade que acarreta o uso dos plurais aplicados a
Deus. Se for assim, não é ilegítimo pensar que a comunicação de Deus ao
mundo pôde realizar-se em forma de união hipostática porque esse modo
convém ao m odo de ser “hipóstase” da segunda pessoa, enquanto a comu­
nicação do Espírito Santo não ocorre nessa forma porque ela não cor­
responderia à sua peculiaridade pessoal19.

de Alexandria: o Filho é o prosopon do Pai, Paed. 1,57,2 (FP 5,192) Strom. V 24,1 (Sch 278,
80); VH 58,3 (CGS 17,42) fiar. Tbeod. 10,5; 12,1; 23,5 (SCh 23,80; 82; 108) TERTULIANO
fala do Filho com o a “fácies” do Pai, Ado Prax. 14, 8-10 (ScarpaT 180-182), embora se
trate de um texto m uito difícil. Voltaremos a esses textos ao tratar especificamente da pes­
soa do Filho (cap. 10).
15. Esse tem a não costuma ser m otivo de reflexão entre os autores atuais. Defende
a possibilidade teórica dessa encarnação G . M. SALVATI, Teologia trmitaria delia croce, Tbri-
no, Leumann, 1987, 98-104, na discussão com a opinião contrária de RHANER em MySal
n/1, 375-378; tam bém Grundkurs des Glaubens, Friburg-Basel-W ien, 1976, 213-214.
16. Cf. nota 12.
17. Cf. BALTHASAR, Tbeologik III. op. á t., 110-113, com abundantes citações
patrísticas sobre a questão. C f sobretudo BASILIO de Cesaréia, De Spiritu Soneto, 18,44-
45 (SCh 17 bis, 402-408); também J. M OLTM ANN, Trinität und Reich Gottes, Munique,
1980, 204, fida do princípio trinitário da irrepetibilidade, Einmaligkeit. Sem entrar aqui na
discussão do uso concreto do princípio, deve-se convir que se aponta para um verdadeiro
problema. Voltaremos a essa questão no nosso capítulo dedicado à noção de pessoa (c. 9).
18. Cf. A G O STIN H O , Trm, V 9-10; VH 4,7 (CCL 50, 217; 256-257).
19. Cf. RAHNER, op. cit., 374, que, em bora entre interrogações, usa expressões
mais fortes do que as que utilizamos: “a ‘peculiaridade’ dessa comunicação, enquanto está
determinada pela peculiaridade da segunda pessoa [...] depende do caráter próprio da ter­
ceira pessoa”.

42
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE "ECONÔMICA" E A TRINDADE "IMANENTE"

Tudo isso tem , para K. Rahner, im portantes repercussões na antropo­


logia. E o segundo Adão, Cristo, que dá sentido ao prim eiro (cf. Rm 5,14;
IC or 15,20-22; 45-49). A encarnação mostra-nos a verdade última do ser
do homem. H á uma relação fundamental e interna entre o Logos e a na­
tureza humana: por uma parte o Filho, enquanto Logos, palavra, é por sua
mesma essência o “proferível”, a palavra do Pai, na qual pode manifestar-
se e descobrir-se livremente ao não-divino. Por outra parte, quando essa
comunicação do Logos ao não-divino se realiza, é porque assume a natu­
reza humana. Essa não é portanto uma máscara que o Filho de Deus to ­
mou de fora e detrás da qual se esconde, mas por sua própria origem é em
si mesma sím bolo do mesmo Logos, de tal maneira que “com tuna auten­
ticidade ontológica última pode-se e deve-se dizer: o homem é possível
porque é possível a aÜenação do Logos”20.
A partir do modo concreto como Deus, dando-se a nós na vida intei­
ra, morte e ressurreição de seu Filho e na efusão do dom de seu Espírito,
deu-se nos a conhecer, podemos pensar que nessa maneira de atuar se nos
mostra algo de seu ser íntimo. Deus se revelou assim na dispensação salvífica;
é legítimo portanto pensar que esse modo de operar corresponde a seu
modo de ser na plenitude de sua vida intratrinitária.
Além disso, devemos ter presente a salvação concreta que o Filho de
Deus nos trouxe com sua encarnação21. Essa salvação consiste em que nós,
no Espírito Santo, nos convertemos em filhos de Deus. De novo aqui uma
opinião de escola, muito difundida em tempos passados, a unidade de atua­
ção ad extra das pessoas dá lugar à idéia de que somos filhos da Trindade.
Voltamos, p or outro caminho à questão do esquecimento relativo ou
irrelevância da doutrina trinitária na teologia, a que nos referimos. Sabe­
mos que alguma afirmação de Sto. Tomás está na base dessa doutrina22.32
Mas é difícil achar um fundamento dessa opinião no Novo Testamento,
que constantemente está pressupondo o contrário (cf. G14,4-6; Ri.i 8,14-
16; M t 5,45; 6,1.9.14; Lc 11,1-2). Entre a filiação divina de Jesus e a nossa,
no Espírito Santo, há uma relação intrínseca21. A graça não é primordial­
mente um dom de Deus, e sim o dom de Deus mesmo, o dom do Espírito
Santo, dom por antonomásia, mais ainda, “pessoa dom ”24. Podemos por­

20. Ibid., 378; cf. também do m esmo autor, Grundkurs des Glaubens, Friburg-Basel-
W ien, 1976, 211-225.
21. Cf. ibid., 376. làm bém W. KASPER, Der Gatt Jesu Christi, M ainz, 1982, 335.
22. Cf. nota 39 do cap. anterior. Também sobre a adoção filial cf. STb H l 32,1; 45,4;
1 33,3.
23. Cf. L. F. LADARIA, Teologia deipecado originaly la gracia, M adrid, 1993,231-266.
24. Cf. JO Ã O PAULO II, Dominum et Vivificantem, n. 10.

43
QUESTÕES PRELIMINARES

tanto pensar em uma inabitação pessoal do Espírito Santo no justo. M os-


tra-se a distinção das pessoas no operar de Deus conosco, e a partir dela
chegamos a descobrir as características próprias do Pai, do Filho e do
Espírito na vida interna da Trindade. Deus se nos comunica tal como é em
si mesmo. O Deus uno e trino é nossa salvação e nosso salvador25.
Em últim o termo, a primeira parte da tese da identidade entre a Trin­
dade econôm ica e im anente, “A Trindade econômica é a Trindade
im anente”, diz-nos que é Deus que se nos dá em si mesmo, não nos dá
simplesmente dons, por grandes que possamos pensá-los. Se não se nos
desse como é, não se daria ele mesmo. Se não se manifestasse como é, não
se nos revelaria. Tudo isso não se funda em uma afirmação clara de um
texto da Escritura, mas antes no “espírito” dela. O amor de Deus se ma­
nifesta em que nos deu seu Filho para a salvação do mundo (fo 3,16s; cf.
ljo 4; G1 4,4; Rm 8,3 etc.). O Pai envia o Espírito do Filho a nossos co­
rações (G14,6) ou Jesus ressuscitado nos dá o Espírito da parte do Pai (Jo
15,26) ou o Pai em nome de Jesus Qo 14,16.26). Devemos pensar que com
esse m odo de atuar e de comunicar-se a si mesmo Deus se nos dá a conhe­
cer tal como é. Pensar que poderia ter feito as coisas de outra maneira é
entrar em especulações para as quais a revelação não oferece nenhuma
base. H á portanto uma correspondência entre a Trindade econômica e a
imanente: são a mesma, não se distinguem adequadamente. Nesse sentido
não há dúvida de que o postulado formulado por K. Rahner, ao menos em
sua prim eira parte, é legítimo e necessário. Foi frutuoso para a teologia
católica, porque contribuiu para a redescoberta das implicações soterioló-
gicas do dogma da Trindade, do caráter central dele na teologia e de sua
relevância e de seu significado para a vida cristã. A Comissão Teológica
Internacional dá fé da aceitação ao menos em princípio na teologia cató­
lica do “axioma fundamental” quando afirma:
Por isso, o axioma fundamental da teologia atual se expressa muito bem com
as seguintes palavras: a Trindade que se manifesta na economia da salvação é
a mesma Trindade imanente, e a mesma Trindade imanente é a que se comu­
nica livre e graciosamente na economia da salvação. Por conseguinte deve-se
evitar na teologia e na catequese toda separação entre a cristologia e a dou­
trina trinitária...26.

25. Embora seja verdade que esse último título se atribui em geral a Jesus, o N ovo
Testamento o refere também a Deus Pai (cf. lT m 1,1; 2,3; 4.10; T t 1,3; 2,10; 3,4; Jd 25).
26. COMISSIO TH EO LO G ICA IN TERN A TIO N A LIS, Theologia-Christologia-
Anthropologia, Greg 64 (1983), 5-34, 10.

44
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE “ECONÔMICA" E A TRINDADE “IMANENTE"

Só baseando-se na Trindade pode ser compreensível a cristologia, se


não querem os reduzi-la à pura funcionalidade que acaba por esvaziar-
se com pletam ente de sentido. Em Jesus, Deus se nos mostra como é. Nesse
sentido são inseparáveis cristologia e doutrina trinitária.

DA TRINDADE À ECONOMIA A “IDENTIDADE”


ENTRE A TRINDADE IMANENTE E A ECONÔMICA

Se a prim eira parte do axioma de K. Rahner foi aceita sem dificuldade


na teologia católica, viram-se em seguida as dificuldades a que pode dar
lugar uma interpretação do “vice-versa”, não livre de toda possibilidade de
mal-entendidos. Porque se é claro que a revelação da Trindade na econo­
mia salvífica se funda na Trindade imanente, essa última podia existir sem
sua manifestação econômica. Deve-se pois ver o que esse axioma quer dizer.
Em prim eiro lugar, deve-se acentuar que a comunicação econômica da
Trindade imanente é gratuita e livre27. D ito com outras palavras, a identi­
dade não significa que a Trindade imanente só exista na econômica, que
Deus se faça trino na medida em que se comunica aos homens, ou que a
Trindade de pessoas seja fru to de sua livre decisão em vista dessa
autocomunicação. N ão é difícil ver que isso não pode ser assim. A Trinda­
de im anente comunica-se livre e graciosamente na economia da salvação.
A encarnação do Verbo é o supremo ato gratuito de Deus. Como é tam­
bém gratuita a criação, orientada de fato para a encarnação: Deus não se
aperfeiçoa com ela28, nem com a economia salvífica. Não necessita nem
dos homens nem do mundo. Só com a diferenciação da Trindade em si
mesma e em sua comunicação pode salvar-se essa liberdade divina. Uma
certa distinção (não separação) é portanto inevitável29. A Trindade imanente
não se realiza nem se dissolve na economia. Tèm em si mesma a plenitude,
independentemente da criação e da obra salvífica. Se assim não fora, nossa
própria salvação estaria comprometida. Deus não poderia nos salvar, por-

27. Assim o afirma claramente K . RAHNER, op. cit., 380: essa comunicação é “livre
e não devida”. A Comissão lèológica Internacional (cf. o texto ao qual se refere a nota
anterior) utiliza os mesmos termos. C f. também, para a discussão do axioma, KASPER, op.
cit., 333ss.; SCHEFFCZYCK, op. cit., 294-312, sobre a identidade e a distinção entre a
Trindade econômica e a imanente.
28. Cf. CO N CÍLIO VATICANO L Const. Da Filha (DS 3.002).
29. Distinção que o próprio R ahner reconhece ao assinalar que a Trindade econôm i­
ca e imanente não se distinguem adequadamente. Cf. nota 8.

45
QUESTÕES PRELIMINARES

que deveria também chegar à sua plenitude — em última instância, “sal­


var-se”. Somente garantindo a transcendência de Deus, ainda que afir­
mando sua profunda imanência a este mundo, pode a economia salvífica
ser verdadeiramente tal. A Trindade imanente é o fundamento transcen­
dente da economia da salvação.
Como exemplo de um a insuficiente atenção a esse princípio cita-se
com freqüência nesse contexto a filosofia de Hegel, que, ao menos segun­
do algumas interpretações, levaria a uma certa confusão entre a Trindade
em si mesma e sua manifestação salvadora. N o intento de superar o des­
locamento da fé para uma esfera superior à razão, Hegel quer abranger a
fé e a Trindade sob o olhar da filosofia30. Para ele Deus é espírito, absoluta
atividade, ato puro, plena subjetividade. A compreensão de Deus espírito
significa que pertence a sua essência que ele se faça objeto de si mesmo,
para superar logo essa diferença no amor31. Com isso a Trindade deixa de
ser um mistério para o pensamento especulativo. Em concreto, isso signi­
fica que no começo está o abstrato em geral, o Pai, sujeito em si mesmo,
que compreende tudo fora do mundo e de sua finitude por cima do tempo
no pensamento da eternidade. Deus se determina a si mesmo no outro, o
Filho, objeto em si mesmo, particularidade, consciência captada em rela­
ção com o outro, e assim história divina, rebaixamento no aparecer como
fenômeno; e por último no terceiro, no Espírito Santo, o geral se faz idéia
concreta. Na história do mundo, a realidade de Deus não permanece abs­
trata, mas se desenvolve e se manifesta com a finitude que a faz ser infini­

30. Cf. G. W. F. H EG EL, O desenvolvimento da idéia da Trindade, in G . LASSON


(ed.), Vorlesungen über Philosophie der Religion III, Leipzig 1929, 53ss. “Claro que não pode­
mos entrar aqui em sua ampla exposição. Pode-se ver J. S P L E l'1, Die Trinhätslebre G. W.F.
Hegel, Friburg-M unique, 1965; E. BRITO, La cbristologie de Hegel, Pars 1983; C . GRECO.
La mediazione trmitaria deWunità di Dio nellafilosofia delia religione di G. W. F. Hegel, em G.
M U CCI (ed.) Ecclesiologia e cultura moderna. Saggi teologia Roma, 1979, 299-351; breves
resumos encontram-se em A. M ILANO, La Trinità dei teologici e dei fihsofi: Umtelligenza
della persona in Dio, em A. PAVÄN; MILANO (eds.) Persona e personalismi, N apoli, 1987,1-
286, aqui 149ss; M. ÁLVAREZ GÓM EZ, Hegelianismo, in X. PEKAZA e N . SILANES
(dirs.) Diccionario teológico. El Dias cristiano, 597-611, e tam bém em KASPER, op. d t , 323ss.;
BALTHASAR, Gloria 5, M adrid, 1988,524-540; G. GRESHAKE, Der dreieine Gott, H ö-
H l. E evidente que não pretendem os uma apresentação exaustiva de um problem a tão
complexo.
31. Cf. HEGEL, \forlesungen über die Philosophie der Religion, 141s., in SPLETT,
op. c it, 120. Hegel define assim o amor em Vorlesungen in , 75: “O amor é um diferendar-
se (Untersbeiden) de dois, que não obstante em últim o term o não são distintos um para o
outro”. N a morte de C risto dá-se o maior sinal do am or de Deus pelo homem. N essa morte
Deus reconcilia o mundo e se reconcilia consigo mesmo. A ressurreição de C risto como a
negação da negação é um momento da mesma vida divina: cf. GRECO, op. d t , 441.

46
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE "ECONÔM ICA' E A TRINDADE ‘ IMANENTE"

ta32. Assim, a Trindade significa que Deus, a subjetividade infinita, com­


preende em si a contradição e ao mesmo tem po a solução dela, a diferença
e a anulação dessa última33. Deus é assim uno e trino, eterna vida no esva­
ziar-se e retom ar a si. Por isso o Deus trino significa que Deus é amor: no
amor a pessoa abandona sua particularidade para dilatar-se e ganhar a
personalidade concreta. Em Hegel esse desenvolvimento parece surgir da
carência mais que da superabundância do ser divino. Deus não é sem o
mundo, o Filho não é sem a encarnação34,53 o Espírito Santo não é tal sem
a comunidade cristã33. N ão há vida ad intra sem atividade ad extra, as
processões e as missões temporais não se distinguem sempre com clare­
za36. A Trindade é uma unidade que só se realiza no processo de doação
recíproca. Deus não é Deus sem o mundo: pertence à sua essência ser o
criador do mundo37. Assim, a diferença entre a Trindade em si mesma e a
Trindade econômica parece somente abstrata; em concreto ambas são a mes­
ma coisa. Embora esse processo de si não signifique nada de novo, senão
o assegurar-se de si mesmo, a verdade plena aparecerá somente no final38.
Hegel chamou assim a atenção para a escatologia, para a consumação final
da história.
O Concílio Vaticano I (DS 3024) formulou o cânon 4 da Constituição
Dei Filius contra o panteísm o em suas diversas formas; sem dúvida o
hegelianismo estava na m ente do Concilio: “Si quis dixerit... D eum esse
ens universale seu indefinitum , quod sese determinando constituat rerum
universitatem in genera, spedes et indivídua distinctam, anathema sit”.
Veremos ao longo de nosso tratado como, de outros pontos de vista, essa
questão da imanência de Deus ao mundo e a necessidade do mesmo para

32. Cf. Ibid., 340.


33. Cf. SPLETT, op. d t. 54; 108-109.
34. Ibid., 144: "M as se esse Deus não deve ficar em um pensamento sem realidade,
deve fazer sair de si o Filho e criar o mundo. Esse não é simplesmente o Filho, mas cons­
titui seu momento negativo. E assim não somente, como H egel diz, o Filho se faz a verdade
do m undo (cf. Vorlesungen..., I, 186) mas também o m undo é a verdade do Filho. Pois
somente nele se libera sua essência: ser negação e ‘frente a’ {Gegenüber), e só dessa verda­
deira oposição surge a essência absoluta como Espírito concreto”.
35. Ibid., 65s.: “O Espírito está no terceiro elem ento... ele é sua comunidade”.
36. Ibid. 145. “D ado que para Hegel a Trindade im anente realiza-se som ente como
Trindade econômica, desaparece a distinção entre ambas: não há nenhum interlocutor a
que a revelação de D eus possa dirigir-se. A economia se faz a ‘saída de si’ im anente do
mesmo desenvolvimento divino”.
37. HEGEL, Vorlesungen..., 1 148: “Sem mundo, Deus não é D eus”. Cf. também ibid.
IE 7 4 .
38. Cf. Ibid., m 65-72-74; cf. KASPER, op. d t., 324.

47
Q UESTÕ ES PRELIMINARES

sua plena realização, com o também a perspectiva escatológica da “plenitu­


de” de Deus, aparecerá em outro teólogos mais recentes3’.
Aspectos positivos e negativos misturam-se nessa visão. A insistência
no caráter pessoal de D eus e no Deus amor, a relação entre Trindade
imanente e a economia salvífica são outros aspectos que veremos desen­
volvidos em numerosos teólogos. A contribuição de Hegel à recolocação
desses problemas não pode ser negada. Ao mesmo tempo, aparecem as
ambiguidades apresentadas por essa concepção: de um lado a não-clara
diferenciação entre a Trindade imanente e a econômica, que faz pensar
que na economia Deus chega a ser em plenitude: de outro lado, o intento
de chegar à Trindade a partir da análise filosófica, que coloca o problema
da relação desse conhecimento como a única via de acesso ao mistério divi­
no, a revelação que Deus faz de si mesmo. O mistério de Deus trino, trans­
cendente a este mundo, só se pode conhecer através da Trindade econômica,
isto é, através da revelação de Jesus. O mistério salvador que é Deus mesmo
nos é unicamente acessível em virtude da livre comunicação divina.
A “identidade” entre a Trindade imanente e a econômica não pode
portanto explicar-se em termos de uma realização de Deus em sua econo­
mia, o que leva à confusão entre a doutrina da Trindade e a cristologia3 40.
9
Mas deve-se te r presente, além disso, um segundo aspecto da questão.
Assim como a Trindade imanente não se identifica com o desenvolvimento
da economia da salvação nem se “dissolve” nela, tampouco se “esgota” na
dispensação salvadora em que livre e gratuitam ente se comunica. Isso quer
dizer que em sua autocomunicação salvífica Deus nos faz ver mais de perto
seu mistério insondável, não o e limina. Deus se nos dá realm ente, po­
rém seu ser é infinitam ente maior do que nós podemos receber. Y. Congar
nota acertadamente esse problema quando pergunta se podemos afirmar
que Deus compromete e revela todo o seu mistério na autocomunica­
ção que faz de si mesmo41. Não podemos penetrar todos os mistérios da
vida intradivina, da unidade e da distinção das pessoas, da geração do Ver-

39. Cf. W. PANNENBERG, La teologia de la Trinidad en Hegel y su recepción en


los teólogos alemanes. Est-Trin, 30 (1996) 35-61.
40. Cf. por ex., P. SCHOONENBERG, Spirit cbristology and Logoscbristologp, Bijdragen
38 (1977) 350-375; Der Geist, das Wart und der Sobn. Eme Geist-Cbristídope, Regensburg,
1992, 183ss. etc. Segundo S., na encarnação se produziria uma plena “personalização” da
Palavra como Filho e do Espírito como Espírito do Filho.
41. Cf. El Esphitu Santo, Barcelona 1983,457; 454-462. Os matizes estão corretos,
embora Congar não pareça te r sempre levado em conta as afirmações de R ahner sobre a
gratuidade e liberdade da autocomunicação de D eus.

48
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE "ECONÔM ICA" E A TRINDADE "IMANENTE"

bo e da processão do Espírito etc. Só na consumação escatológica Deus se


dará a conhecer plenamente em sua autodoação total, e o veremos face a
face, tal como é (cf.lC or 13,12; ljo 3,2)42.34P or outra parte a autocom uni-
cação de Deus que se realiza na história com porta um elemento de kenose
e de cruz, de esvaziamento, que nos obriga a supor uma distinção entre a
Trindade econômica e a im anente45. A.forma servi foi realmente assumida
por Jesus; a ele pertence também a forma Dei, cujo conteúdo não podemos
plenamente conhecer na condição presente.
A identidade entre Trindade econômica e Trindade imanente deve-
se portanto entender no sentido de que por uma parte, Deus se nos dá
e se revela tal como é em si mesmo, mas que o fez livremente, isto é, seu
ser não se realiza nem se aperfeiçoa nessa autocomunicação; e que por
outra parte nessa revelação Deus mantém seu m istério, sua maior proximi­
dade significa a manifestação mais direta de sua maior grandeza. Essas
duas precisões para uma correta interpretação do axioma têm, na realida­
de, m uito em comum:
A Trindade econômica aparece de feto como a interpretação da Trindade
imanente, que, não obstante, ao ser princípio fúndante da primeira, não pode
ser identificada simplesmente com ela. Porque, em tal caso, a Trindade
imanente e eterna corre o risco de reduzir-se à Trindade econômica: mais
claramente, Deus corre o risco de ser absorvido no processo do mundo e não
poder chegar a si mesmo a não ser através desse dito processo44.

Certam ente, Deus ocupa-se com o mundo; o dogma da Trindade, em


sua entranha mais profunda, leva, como todo dogma, um cunho soterio-
lógico. Por outra parte, Deus ocupa-se com o mundo como Deus, “não se
converte no am or pelo feto de ter o mundo como um tu... senão porque já
em si mesmo e por cima do mundo é amor”45. Já nos referimos ao doeu-

42. Claro que há uma diferença qualitativa entre nosso conhecimento de Deus na
visão beatífica na outra vida e nosso atual conhecimento; assim o mostram os textos bíbli­
cos citados. Cf. também DS 1000 entre outros. (Poderíamos multiplicar as passagens da
Bíblia ou do magistério.) Mas ainda assim é possível afirm ar que mesmo então não podere­
mos abarcar plenamente a Deus. Cf. Sto.TOMÁS DE AQUINO, Exposição sobre o símbo­
lo dos apóstolos, 12, Opus tbeol. 2, que por sua vez dta AGOSTINHO: aTòtum gaudium non
intrabit in gaudentibus, sed toti gaudentes intrabunt in gaudium”. G . GRESHAKE, Der
dreieme Gott, 518: ttA dara manifestação de Deus como tal, pressupõe o fim da história”.
43. Cf. CONGAR, op. cit., 460. Do mesmo, La Parola e üsoffio, Roma, 1985, 131.
44. BALTHASAR, Teodramática UI. El bombre en Cristo, M adrid, 1993, 466.
45. Ibid., 467. Cf. também Teodramática IV. A ação, M adrid, 1996,295-296. Cf. tam­
bém entre os recentes autores católicos, J. WERBICK, D outrina trinitaria, in T h . SCH-

49
Q U ESTÕ ES PRELIM INARES

m ento da Comissão Teológica Internacional: Teologia, cristologia, antropo­


logia. Foi citado em relação com a prim eira parte do axioma fundamental,
que a Comissão parecia fazer seu; podemos agora recolher o que diz sobre
a segunda parte, que constitui ao mesmo tempo um bom balanço da dis­
cussão da teologia católica em tomo desse tema:
[...] deve-se evitar na teologia e na catequese toda separação entre a cristolo­
gia e a doutrina trinitária [...] Deve-se evitar também toda confusão imediata
entre o acontecimento de Jesus Cristo e a Trindade. A Trindade não se cons­
tituiu simplesmente na história da salvação pela encarnação, a cruz e a restau­
ração de Jesus Cristo, como se Deus necessitasse de um processo histórico
para chegar a ser trino. Há que manter portanto a distinção entre a Trindade
imanente, em que a Uberdade e a necessidade são idênticas na essência eterna
de Deus, e a economia trinitária da salvação, em que Deus exercita absoluta­
mente sua própria Uberdade sem necessidade alguma por parte da natureza.
A distinção entre a Trindade econômica e a Trindade imanente concorda
com a identidade real de ambas [...] A economia da salvação manifesta que o
Filho etemo em sua mesma vida assume o acontecimento “kenótico” do nas­
cimento, da vida humana e da morte na cruz. Esse acontecimento em que
Deus se revela e se comunica absoluta e definitivamente, afeta, de algum
modo, o ser próprio de Deus Pai enquanto ele é o Deus que reaUza esses
mistérios e os vive como próprios e seus com o Filho e o Espírito Santo. Pois
Deus Pai não só se revela e comunica üvre e graciosamente no mistério de
Jesus Cristo mediante o Filho e o Espírito Santo, senão que o Pai, com o
Filho e o Espírito Santo, conduz a vida trinitária de modo profundíssimo e —
segundo nosso modo de entender — quase novo, enquanto a relação do Pai
ao Filho encarnado na consumação do dom do Espírito é a mesma relação
constitutiva da Trindade. Na vida interna de Deus está presente a condição
de possibilidade daqueles acontecimentos que pela incompreensível liber­
dade de Deus encontramos na história da salvação do senhor Jesus Cristo.
Portanto, os grandes acontecimentos da vida de Jesus exprimem para nós
manifestamente, e tomam eficaz de um modo novo, o colóquio da geração

N EID ER (ed.) Nuovo curso di dogmatica, Brescia, 1995, v. II, 573-683, 624-636; STA-
GLIANÒ, II mistero dei Dio vivente. Per uma teologia deWAssoluto trinitario, Bologna, 1996,
482-493; B. J. HILBERATH, Pneumatologia, Brescia, 1996,196-200; M . GONZALEZ, La
relation entre Trinidad económica y Trinidad 'mmanente. El “axiomafundamental” de Rahnery
su réception. Lineas para continuar la reflexion, Roma 1996; G . LAFONT, Peut-on connaître
Dieu en Jésus-Cbrist? Paris 1969. 171-228. N o curso de nossa exposição veremos como
colocaram a questão os teólogos protestantes.

50
A RELAÇÃO ENTRE A TRINDADE "ECONÔMICA" E A TRINDADE "IMANENTE"

etema em que o Pai diz ao Filho: “Tu és meu Filho, hoje te gerei” (SI 2,7; At
13,33; Hb 1,5; 5,5 e Lc 3,22)*.

Já nos referimos à ilegitimidade da separação entre a doutrina trini-


tária e a cristologia. M as como se deve salvar a precedência da Trindade
im anente, já que essa é a que se comunica na história da salvação, se deve
evitar também toda confusão entre o acontecimento Jesus C risto e a Trin­
dade, como se só por esse acontecimento a Trindade se constituísse como
tal. O s termos da definição cristológica do Concílio de Calcedônia (sem
confusão, sem separação: cf. DS 302) servem para distinguir, e ao mesmo
tem po, manter unidos o plano da vida divina e o da economia salvadora. Se
no primeiro a liberdade e a necessidade (que certamente não se deve con­
ceber como as nossas) identificam-se com a natureza divina de um modo
que nos é desconhecido, no segundo desaparece totalmente a categoria de
necessidade. Encontramos-nos ante o libérrim o desígnio de Deus, que se
funda certamente no que ele é em si mesmo, mas que exclui toda necessi­
dade interna ou externa. A liberdade não significa por conseguinte que a
economia salvadora não funde suas raízes no ser divino.
A necessária distinção, não adequada, entre a Trindade econômica e
a imanente “concorda” com a identidade de ambas. Não há duas Trinda­
des. Por uma parte, na Trindade imanente está o fundamento, a condição
de possibilidade da economia salvadora. Mas por outra parte, e aqui se
acha em minha opinião um dos aspectos mais valiosos desse documento,
assinala-se que o acontecimento kenótico da encarnação e da m orte é as­
sumido pelo Filho etem o em sua vida. Enquanto o Filho assume em sua
vida esses acontecimentos, eles afetam o ser próprio de Deus Pai, que não
pode deixar de viver como próprios, com o mesmo Filho e o Espírito Santo,
os acontecimentos da vida temporal do Filho encarnado. Isso significa que
a vida da Trindade, que não é constituída por esses acontecimentos, se vi­
ve a partir deles de um modo “quase novo”4 47.
6 Em outras palavras, embora
na relação com a economia salvífica não seja pertinente a categoria de
necessidade, aquela, uma vez que foi livremente decidida por Deus, “afeta”

46. Tbeologia — Cbristologia — Antbropologia (cf. nota 25), 10-12. U tilizo a tradução,
modificando-a em alguns pontos, de Documentos 1981-1985, 12-13.
47. HILÁRIO de Poitiers, Trin IX, 38 (CCL 62,412) já falava da dispematimis novitas,
a “novidade” que a economia salvífica causa às relações entre o Pai e o Filho. C f também
as reflexões de GRESHAKE, op. d t., 323ss., para quem a Trindade imanente se fez para
sem pre econômica. O mesmo Greshake adverte para o perigo de dissolver o ser de Deus
na H istória (ibid.). Se hão de salvar, ao mesmo tempo, a transcendênda divina e o fato de
que D eus permanece “afetado” pela encarnação.

51
Q UESTÕ ES PRELIMINARES

a vida divina da Trindade imanente; Deus não quis ser sem nós. Isso não
quer dizer que a Trindade seja aperfeiçoada pela economia ou que essa lhe
proporcione algo de que carecia. A novidade está em que nas relações
constitutivas da Trindade entrou o Filho enquanto homem, Jesus, que
nasceu, morreu e ressuscitou. Deus vive os mistérios salvíficos como pró­
prios, não como alheios. A economia não constitui o D eus trino nem o
aperfeiçoa, mas isso não quer dizer que nada signifique para ele. A Trinda­
de imanente, na soberana liberdade de seu amor, é o fundam ento da his­
tória da salvação, mas por sua vez essa tem uma certa repercussão no ser
divino. Os mistérios salvíficos são mistérios próprios de Deus — ele mes­
mo e só ele opera neles — e só eles podem dar-nos a conhecer Deus e
fazer-nos participantes de sua vida.

52
primeira parte

VISÃO HISTÓRICA

A
Arevelação de Deus em Cristo e
sua preparação no Antigo Testamento
3
A revelação de Deus na vida de Jesus.
Estudo bíblico-teológico

N osso capítulo anterior sobre a relação entre a Trindade econômica


e a Trindade imanente indicou-nos o caminho a seguir no desenvolvimen­
to de nosso tratado. Na formulação do axioma da identidade entre ambas
(com as reservas e os matizes por nós apontados) parte-se sempre da Trin­
dade econômica. Assim o faz em concreto a Comissão Teológica Interna­
cional a que nos referimos: “A Trindade que se manifesta na economia da
salvação é a Trindade im anente”. Tudo isso não é mais que a conseqüência
direta do que dizíamos no começo desta exposição: a Trindade é um a ver­
dade a que temos acesso somente a partir da revelação. As conseqüências
metodológicas daí derivadas são claras, e estão fundadas no Novo Testa­
mento: não há outro caminho para ir ao Pai senão Jesus (cf. Jo 14,5-6).
Devemos partir da revelação, da Trindade econômica, porque só por ela se
nos dá a possibilidade de adentrar-nos, sempre com clara consciência da
impossibilidade de abarcá-lo, no mistério do ser de Deus. Só a partir do
Deus para outros, a economia, chegamos a Deus em si mesmo, a teologia.
Embora nunca possamos esquecer que Deus na sua vida íntima é desde a
eternidade de tal maneira que pode ser Deus para nós; e que nunca quis
existir só para si, mas desde sempre quis fazer-nos participantes de sua
plenitude. Esse caminho é hoje comumente seguido pela teologia católica.
Começaremos, pois, por considerar a revelação histórica de Deus que
chega a seu cume nas “missões” do Filho e do Espírito Santo. Deveremos
servir-nos para isso sobretudo dos dados que nos oferece o Novo Testamento.
Mas nossa intenção não é ver separadamente o que o Novo Testamento nos
diz de Deus ou da Trindade, mas também e sobretudo estudar como o
mistério de Deus se revelou na vida de Jesus (a revelação nos fatos e nas
palavras, a que já nos referimos) desde sua vinda ao mundo até sua ressur-

55
VISÃO HISTÓRICA

reição e exaltação aos céus e a efusão do Espírito Santo. Tratamos pois de


expor, pelo menos em parte, uma teologia dos mistérios da vida de C risto
desde o ponto de vista da revelação, do mistério de Deus1. Para isso p ro ­
longaremos nosso estudo bíblico com alguns dados da tradição e da refle­
xão teológica contemporânea. Também eles nos trarão elementos e intu i­
ções interessantes que nos ajudam a captar melhor a revelação de Deus em
Jesus Cristo. Portanto, nosso propósito não é meramente histórico, mas já
sistemático.
Pode servir-nos de guia em nossa exposição um texto capital da Epís­
tola aos Gálatas que mostra a estrutura trinitária da salvação ligada ao
envio da parte de Deus Pai de seu Filho Jesus e do Espírito Santo.
Quando chegou a plenitude dos tempos enviou Deus a seu Filho, nascido de
mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que se achavam sob a lei e para que
recebêssemos a filiação adotiva. A prova de que sois filhos é que Deus enviou
a nossos corações o Espírito de seu Filho que clama “Abbá, Pai!” (G14,4-6).

Pelo fato de ter enviado ao mundo Jesus seu Filho, e ter enviado
também a nossos corações o Espírito de seu Filho, Deus fez-nos filhos
seus, fez-nos participantes de sua vida; com isso nos abriu o m istério do
Deus uno e trino. Já notamos que nosso conhecimento de D eus vai unido
ao dom que ele nos faz. Deus se nos revelou vindo a nós, enviando-nos seu
Filho e seu Espírito Santo. O Novo Testamento feda-nos dessa dupla mis­
são. Tanto o Filho como o Espírito Santo foram enviados por Deus, e o
texto de gálatas que acabamos de citar coloca em paralelo as duas missões.
Em diferentes momentos de nossa exposição recordaremos a dificuldade
que supõe aplicar a Deus o plural. Também nesse caso temos de estar
conscientes desse problema. Porém aqui, mais do que em outros momen­
tos, é a linguagem do Novo Testamento que nos autoriza a esse uso e ainda
nos induz a ele. Emprega-se exatamente o mesmo termo para indicar o
envio ao mundo do Filho e do Espírito Santo (èÇairecrretX.ey). E claro,
por outra parte, que as características de uma e de outra missão são muito
distintas. Já alude a isso a mesma passagem de gálatas a que nos referimos
quando diz que o Espírito Santo foi enviado aa nossos corações”. Se a
missão de Jesus coincide com a encarnação, com sua entrada na vida hu­

1. Tratamos de não repetir os conteúdos que são mais próprios dos manuais de cris-
tologia. De qualquer m odo, os pontos de contato são evidentes e as fronteiras não podem
ser sinalizadas com precisão.

56
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS. ESTUDO BÍBLICO-TEOLÓGICO

mana para partilhar a vida dos homens, e é por isso um acontecimento


pontual no tempo e no espaço, a missão do Espírito tem um certo caráter
de continuidade, o Espírito é enviado ao coração de cada crente. Essa missão
tem além disso um caráter invisível (se prescindimos dos efeitos da efusão
do Espírito no dia de Pentecostes — A t 2,lss; 4,31; 10, 44-46; mas ainda
nesses casos, que não esgotam toda a multiplicidade de efeitos da missão
do Espírito, as características dessa missão são muito distintas da de Jesus),
e não se pode circunscrever no tempo e no espaço. As duas missões devem
ser vistas em sua m útua relação. Isso explicitaremos na exposição a seguir.
Começamos com a missão do Filho, mencionada em prim eiro lugar no
texto de gálatas que nos serve de ponto de partida.

DEUS ENVIOU SEU FILHO

Deus enviou Jesus, seu Filho, ao m undo. A idéia, com diversas formu­
lações, repete-se com frequência no N ovo Testamento (além de G14,4 e,
sem pretensão a exaustividade, Mc 9,37; M t 10,40; Lc 4,43; 9,48; Rm 8,3;
Jo 3,17; 5,23; 6,57; 8,42; 17,18; tpasshn em jo ; ljo 4,9s.l4). Deus (o Pai)
tom a a iniciativa nessa missão. O amor de Deus pelos homens é a única
razão desse envio do seu Filho ao mundo: “Eis como se manifestou o amor
de Deus entre nós: D eus enviou seu Filho único ao mundo para que vivês­
semos por meio dele” (ljo 4,9; cf. Jo 3,16). Esses textos de missão, que
estão em muitas ocasiões perto dos que afirmam a preexistência de Cristo,
implicam e pressupõem o conhecimento de toda a vida de Jesus. A partir
da vida de Jesus, de seus feitos e de suas palavras até sua m orte e ressurrei­
ção, chegou-se à idéia de que ele é o Filho que foi enviado ao mundo pelo
Pai, e não ao contrário. Ao mesmo tem po, em Jesus, no Filho, se conhece
o Pai. Os dois term os são estritamente correlativos. Na aparição histórica
de Jesus, o Filho, tem lugar a revelação de Deus como Pai.1

1. Deus, o Pai de Jesus

A revelação neotestamentária pressupõe a do Antigo Testamento. Nele


D eus deu-se a conhecer como o Deus da aliança, que estabeleceu com o
povo de Israel, seu eleito, um pacto de am or fundado na predileção divina.
Esse Deus é além disso o criador de tudo, e portanto o D eus de todos os
homens e de todos os povos. Esse Deus que o Novo Testamento pressupõe
57
VISÃO HISTÓ RICA

já daram ente como conhecido, ao menos até certo ponto, é o que em Jesus
seu Filho se nos revela como “o Pai”. Por conseguinte, o Deus do Antigo
Testamento é antes de tudo o que nós cristãos chamamos o Pai. O Deus
que envia Jesus identifica-se como o único Deus de Israel (cf. Mc 12,26;
12,29 e paralelos. D t 6,4s; M t 4,10; IC or 8,6; lT m 2,5; Jo 5,44; 17,3). A
ele se refere na imensa maioria dos casos o Novo Testamento quando se
fala de Deus2. Ele é o Deus cuja proximidade anuncia Jesus ao proclamar
a iminência da chegada do Reino, ligada à sua mesma pessoa (cf. M c 1,15;
M t4,17; 12,28; Lc 11,20; 17,21 entre outras muitas passagens). Algo pa-
reddo observaremos no uso da Igreja antiga que ainda a liturgia segue em
grande medida. Fundados no uso de Jesus e em seu ensinamento explícito,
nós, cristãos, chamamos esse Deus de “Pai”. Antes de deter-nos no estudo
da idéia da paternidade divina no Novo Testamento, um rápido olhar no
Antigo Testam ento vai permitir-nos avaliar a originalidade desse modo de
dirigir-se a Deus, próprio de Jesus, e, consequentemente, do uso cristão
dessa denominação3.
Deve-se constatar antes de tudo que o Antigo Testamento utiliza re­
lativamente pouco a idéia de paternidade para referir-se a Deus, talvez
porque esse motivo podia aparecer ligado a representações incompatíveis
com a fé de Israel4. Além dessa reserva geral, deve-se também ter presente
que são escassas as ocasiões em que a idéia da paternidade de Deus se
relaciona com a criação ou se considera fundada nela (cf. M l 1,6; 2,10, mais
claro; Is 45,10s; cf. também, muito mais de longe, SI 29[28],1; 89[88],7). A
idéia da paternidade divina ligada à criação pode perverter-se ao aplicar-se
aos ídolos: “disseram a um tronco: é meu pai, e a uma pedra: tu nos deste
à luz” Qr 2,27).

2. Cf. o artigo clássico de K. RAHNER, Theos en el Nuevo Testamento, IN Estritos


de Teologia I, M adrid, 1963, 93-168; também J. SCHLOSSER, Le Dieu de Jésus. Étude
exégetique, Paris, 1987, 30-34.
3. C f para o que segue, W. M ARCHEL, Abba, pire! La prière du Christ et des chrétiens,
Roma, 21971,23-36, 50-62 ; ID ., Dieu Pire dans le Nouveau Testament, Paris, 1966; J. JE ­
REMIAS, Abbay et mensaje centra!del Nuevo Testamento, Salamanca, 1981,19-35; B. BIRNE,
Sbm of God-Seeds ofAbraham, Roma, 1979; SCHLOSSER, op. d t. 105-122; F. GARCÍA
LOPEZ, Dios Padre en el Antiguo Testam ento a la luz de las interpretadones recientes de
la religion de Israel, em W AA, Dios es Padre, Salamanca, 1991,43-57; P. GRELOT, Dieu,
le Pire de Jésus-Christ, Paris 1994.
4. Cf. J. MART IN VELASCO, D ios com o Padre en la historia de las religiones, in
W . AA, Dios es Padre, 17-42, com ulterior bibliografia. A denominação serve para designar
a relação de Deus com o mundo e os hom ens, enquanto sua origem , outras vezes se trata
de explicar a Deus em si mesmo, ad intra (cf. 29-31).

58
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA D E JESU S. ESTUDO BÍBLICO-TEOLÓGICO

O povo de Israel não contemplou com m uita freqüência a paternida­


de de Deus em uma perspectiva universalista, mas antes a relaciona com a
predileção que Deus lhe mostrou e lhe segue m anifestando com a saída do
Egito, a aliança, a concessão da terra prometida etc. Assim Israel é o filho
e o prim ogênito de Deus (cf. Ex 4,22s; D t 14,ls; 32,5; SI 103[102],13,
como um Pai tem piedade de seus filhos o Senhor tem piedade dos fiéis;
também Is l,2s; 30,1.9; J r 3,4.19.22; Os 11,1). Deus é portanto o pai do
povo que escolheu para si (cf. D t 32,5s, que pelo contexto parece referir-
se à formação do povo eleito mais do que à criação em geral; J r 31,9; Is
63,16; 64,7, com o uso da imagem do oleiro). Em algumas dessas últimas
passagens, além da afirmação de que Deus é pai, encontram-se expressões
muito próximas da invocação como tal: “Tu, Senhor, és nosso pai” (Is 63,16;
64,7; também J r 3,4). N o Antigo Testamento põem-se em relevo alguns
aspectos diversos da paternidade divina, desde o dom ínio sobre todas as
coisas até o ensino e o cuidado pelo povo eleito, mas sobretudo sublinha-
se seu amor de tal maneira que pode afirmar-se que Javé é um “pai com
entranhas de mãe”5; assim aparecem claramente os traços matemos em Is
49,15: “Porventura a mulher esquece a sua criança de peito, esquece de
mostrar sua ternura ao filho de sua came? Ainda que elas os esquecessem,
eu, eu não te esquecerei!”; e sobretudo Is 66,13: “Com o alguém a que sua
mãe consola, assim os consolarei eu”. Indiretam ente aparece Deus co­
mo mãe nas palavras que Moisés dirige a Deus em N m 11,12-13: “Acaso
fui eu que concebi todo esse povo e o dei à luz, para que digas: Íeva-o em
teu regaço, como a mãe leva a criança de peito, até a terra que prom eti
com juram ento a seus pais?’”. A aproximação às figuras tanto do pai como
da mãe acham-se em SI 27[26], 10; Jr 31, 15-20 (cf. também possíveis
traços femininos em D t 32,18; Jó 38,8; 66,6). Segundo o SI 68[67],6 Deus
é pai dos órfãos, defensor das viúvas; a confiança pessoal e o cuidado amo­
roso que Deus tem pelos homens adquirem aqui um papel destacado. Nessa
e em outras passagens que acabamos de citar prevalece esse motivo sobre
o da pertença ao povo de Israel. Já nos referimos a alguns textos que, em 85*

5. Cf. GARCÍA LÓPEZ, op. cãt., 52ss; L. ARMENDARIZ, E l Padre m aterno, EstEcl
58 (1983) 249-275); S. dei CURA, D ios Padre/M adre. Significado e implicadones de las
imágenes masculinas y femininas en D ios, EstTrin 26 (1992) 117-154; J. BRIEND, Dieu
dans rÉcriture, Paris, 1992, 71-90; A. AMATO, Patem ità-m atem ità de D io. Problemi e
prospetive, in ID . (ed.) Trinità in contesto, Roma, 1993, 273-296; nesses estudos encontra-
se ulterior bibliografia. Cf. JOÃO PAULO H, Dhres in misericórdia, 4, n. 52, cf. AAS 72
(1980) 1.189s, com referenda ao vocabulário e aos textos do A ntigo lèstam ento. Já PAU­
LO I expressara a idéia em sua famosa alocução de 10 de setembro de 1978: cf. Insegnamenti
di Giovanni Paolo I, Città dei Vaticano 1979, 61s.

59
VISÃO HISTÓRICA

relação com a paternidade divina, falam também do povo de Israel como


filho. E claro que as duas noções são correlativas. Mas deve-se observar
que essas passagens são menos numerosas do que as que falam de Deus
como pai.
Além dos textos em que a paternidade divina refere-se ao povo de
Israel em geral, achamos outros em que é um indivíduo concreto, com
especial significação no povo eleito, que aparece como filho de Deus (cf.
2Sm 7,14; lC r 22,10, sobre o descendente de Davi: SI 2,7, referido ao
ungido do Senhor; Davi também é filho de Deus segundo o SI 89[88],27).
Também nesses casos é o traço de am or que é predom inante quando se fida
da paternidade de Deus e da filiação divina das pessoas a que foi confiada
uma missão especial.
Na literatura sapiendal, a paternidade de Deus põe-se também em
relação com as pessoas concretas, os justos, embora com freqüênda trate-
se somente de comparações (cf. Pr 3,12; Sb 2,16; 11,1o)6. Aparece todavia
nesse contexto a invocação explídta de Deus como Pai, combinada com o
título de Senhor em Sr 23,1.4 e Sb 14,3, sem nada acrescentar. Essa invo­
cação explícita de Deus com o pai é espedalm ente rara nos escritos
veterotestamentáríos, e só aparece em épocas relativam ente tardias. Em
todo caso é claro que o Antigo Testamento evita concepções demasiado
literais ou m ateriais da paternidade divina. Em todo momento se tem pre­
sente a transcendência de Deus e a inadequação de nossos conceitos para
referir-nos a ele7. N o judaísmo palestino da segunda metade do século I d.
C., encontramos essa invocação em relação tanto aos indivíduos como à
comunidade, mas normalmente acompanhada de outros títulos que dilu­
em de certo modo seu significado. N ão parece que se dê com freqüênda
essa invocação de Deus como pai por parte das pessoas concretas nos tem­
pos anteriores a Jesus Cristo. Só com ele aparecerá em sua plena luz a
paternidade de Deus.
Com efeito, a revelação dessa paternidade é um dos pontos funda­
mentais, ou mesmo central, da mensagem evangélica. Essa revelação apa­
rece essencialmente ligada à pessoa de Jesus, que não só fala de Deus como
de seu pai mas o invoca como tal, e com isso manifesta a consdênda de sua
proximidade com Deus, a familiaridade e a imediatez de sua relação com

6. Às vezes também se descobrem traços matemos ou pelo menos femininos na figu­


ra da Sabedoria (por ex., Sr 14,22ss; e sobretudo 15,2ss). A identificação da Sabedoria com
o Espírito podería tam bém apontar na mesma direção.
7. Fílon de Alexandria, De Opif. trtvndi (O bras 1,256); De Prev. I I 15 (obras, 35,226-
230) usa a comparação de Deus que se preocupa com os homens com o um pai.

60
A REVELAÇÃO DE DEUS N A V1DA DE JESUS. ESTUDO BÍBLICO-TEOLÓGICO

ele8; é legítimo passar daí à consciência de sua filiação, da especificidade de


sua relação com o Pai. A partir desse dado aproximamo-nos do núcleo
central do mistério da pessoa e da obra de Jesus, nele se nos revela uma
profundidade até então insuspeitada da paternidade de Deus e da filiação
que dela deriva; com isso abre-se a uma nova luz o m istério do ser divino.
Jesus tem consciência de uma relação original e única com Deus, na qual,
em último term o, baseia sua pretensão de que sua mensagem seja escutada
e acolhida. Deus é, em um sentido todo particular, seu pai. Jesus usa para
dirigir-se a Deus a palavra abbá, pai, que parece ser um term o usado por
seus contemporâneos no âmbito familiar (o que não implica que seja sim­
plesmente linguagem infantil). Os sinópticos recolhem uma só vez dos
lábios de Jesus esse term o original aramaico (Mc 14,36, a oração de Jesus
no horto; cf. também Rm 8,15; G14,6, onde o term o aparece nos lábios do
crente). M as só o fato de que a palavra original se tenha conservado, ainda
que prescindindo de seu uso na circunstância precisa9,- indica que foi uti­
lizada por Jesus, e que os primeiros cristãos atribuíram grande importância
ao termo concreto com que ele se dirigiu a Deus e o invocou em sua sú­
plica para iluminação do mistério de sua pessoa.
Em todas as ocasiões em que, segundo os evangelhos sinópticos10,
Jesus tem a Deus por interlocutor, chama-o “Pai” (Mc 15,34 = M t 27,46
não constitui, a rigor, uma exceção, pois se trata de uma citação do Salmo
22 [21],2). Também aqui podemos deixar entre parênteses se esse dado dos
sinópticos corresponde exatamente ao uso de Jesus11. E ntre essas invoca­
ções que os sinópticos nos apresentam , destaca-se o chamado “hino de
júbilo” (cf. M t 11,25-27 = Lc 10,21-22), uma das raras ocasiões em que
Jesus designa-se a si mesmo como “Filho” nos sinópticos (cf. também Mc
13,32). Junto com a intimidade com D eus que essa passagem reflete, des­
taca-se também a função reveladora de Jesus, fundada no conhecimento
recíproco (cf. também Jo 10,15). Ao mesmo tempo se exprime a iniciativa,
o beneplácito do Pai a que Jesus se abandona. Com efeito, não se pode
separar a invocação de Deus como Pai da atitude filial de Jesus, que se
entrega coníiantem ente em todo momento, e sobretudo no de sua morte
(cf. Lc 23,46).

8. Cf. JEREM IAS, op. c it, 37-73; SCHLOSSER, op. c it, 208s., e as outras obras
citadas na nota 3.
9. Cf. SCH LO SSER, op. cit., 130-139; 203-209.
10. Cf. a análise exaustiva de G . SCH N EID ER, El Padre de Jesus, Vision bíblica, in
W . AA. Dios es Padre, 59-100.
11. Cf. ibid., 205, que matiza a conhecida tese de J. JEREM IAS, op. c it, 66.

61
VISÃO HISTÓRICA

A função reveladora de Jesus, sua obediência à vontade do Pai e sua


contínua referência a ele serão postas em relevo com mais insistência, se
possível, no quarto Evangelho12. “Pai”, nos lábios de Jesus, é para o Evan­
gelho de João o modo normal de designar a Deus, enquanto “Filho”, no
mesmo Evangelho, é a denominação habitual de Jesus para designar a
si mesmo. O Pai é aquele que enviou Jesus ao mundo (cf. entre outras
passagens, Jo 5,36-37; 6,44.57; 8,18; 12,49; 14,24). Dele “vem” Jesus, ou
dele “saiu” (Jo 8,42; 13,3; 16,17-28); o Pai o marcou com seu selo (6,27).
Com essa missão de seu Filho, Deus Pai mostrou seu amor pelos hom ens
(Jo 3,16s; ljo 4,7-21), e com esse fato abre-se para nós uma perspectiva
insuspeitada para conhecer o ser mesmo de Deus.
O Pai é também aquele que Jesus conhece (e vice-versa: Jo 10,15) e
dá a conhecer (Jo 14,8. Cf. 1,18; 12,45; 17,6.26), a que Jesus obedece (Jo
4,34; 5,19s; 6,38-40; 12,49 etc.). Mais ainda, é aquele por quem Jesus vive,
e de cuja vida faz que participem os homens (Jo 5,26; 6,57). É aquele ao
qual Jesus volta, uma vez cumprida sua missão neste mundo (cf. Jo 13,1;
14,28; 17,4-5; 20,17). O Pai deu a Jesus o poder que tem (Jo 5,19ss), em
concreto, o poder de ressuscitar os mortos, de julgar, de fazer tudo o que
ele mesmo fez. O Pai dá testemunho a favor de Jesus (Jo 5,37), am a-o, e
Jesus, o Filho, corresponde a esse amor (Jo 3,35; 5,20; 14,31; 15,9). Igual­
m ente am ará tam bém os que guardam os m andam entos de Jesus
0 o 14,2 lss). O Pai é o que há de glorificar o Filho, como esse o glorifica
0o 17,lss). O Pai e Jesus são uma só coisa, e os crentes são chamados a
participar dessa unidade 0 o 30,10; 17,2lss). Jesus intercede perante o Pai
por todos nós, uma vez que ressuscitou e subiu aos céus 0o 14,13.16; 16,24ss;
ljo 2,1; cf. também Rm 8,34; Hb 4,14ss; 7,25; 9,24). Essas indicações
sumárias bastam para indicar como o Pai é o constante ponto de referência
de Jesus. N enhum aspecto de sua vida nem de sua ação se explica sem ele.
Jesus vive constantemente orientado e referido a Deus Pai, a esse corres­
ponde a primazia absoluta na vida inteira de Jesus. A comunhão entre ambos
é total.
De Deus Pai (achamos os dois nomes unidos em lC o r 8,6) diz-se que
vem a iniciativa da criação, dele tudo procede por meio do único Senhor
Jesus (cf. também Rm 11,36). Essa iniciativa de Deus Pai na criação colo­
ca-nos, por um lado, na continuidade com o Antigo Testamento, mas por

12. N o corpusjoharmeitm, e sobretudo no quarto evangelho, encontram-se mais da


metade das referências a Deus Pai de todo o Novo Testam ento (141 sobre 261). Cf. uma
visão de conjunto da questão em V. M . CAPDEVILA Y M UNTANER, El Padre en el
cuarto evangelio, in W . AA., Deus es Padre, 101-139.

62
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS. ESTUDO BiBLICO-TEOLÓGICO

outro lado m ostra a novidade: o Deus criador é o Pai de Jesus, que tudo
realiza m ediante seu Filho (cf. também Cl l,15ss; H b 1,2-3; Jo 1,3.10). De
Deus Pai vem também a iniciativa da missão de Jesus a este mundo, como
também sua última vinda (lT m 6,14; At 3,20). A paternidade de Deus é
posta em relação de modo muito especial com a ressurreição. Paulo vê a
Deus como o Pai do Senhor ressuscitado (cf. 2Cor 1,13; 11,31; Ef 1,17; F1
2,11; Rm 6,4). Desde então o D eus cristão não é senão o Pai de Jesus (E f
1,2-3; lP d 1,3: “Bendito seja D eus e Pai de Nosso Senhor Jesus C risto”).
O título de “Pai” de Jesus fica assim incorporado definitivamente à confis­
são do Deus cristão. Nossa profissão de fé começa por proclamar um só
Deus, Pai Tòdo-poderoso. N o final dos tempos, Jesus entregará a Deus
Pai o reino, e quando se lhe tenham submetido todas as coisas o próprio
Jesus se submeterá a quem tudo submeteu, para que Deus seja tudo em
todas as coisas (cf. IC or 15,24-28).
Na vida inteira de Jesus, e em particular em sua morte e ressurreição,
produz-se a revelação de Deus como Pai. Por essa razão não podemos
encerrar aqui o tratamento da questão, que apenas começamos. Em nosso
estudo dos mistérios da vida de Jesus devemos voltar inevitavelmente a
diferentes aspectos da revelação do Pai. Ele é, como já vimos, o que enviou
Jesus, mas também o ponto total e constante de referência de toda a vida
de Cristo. M as desde o primeiro instante nos encontraremos também com
a ação do Espírito Santo. A revelação das três pessoas divinas acontece de
modo simultâneo. Mas não será demais notar, antes de passar adiante, que
a revelação de Deus como Pai que envia Jesus equivale à revelação de Deus
como amor. Graças a essa revelação, Deus — prim ariamente o Pai, dado
o contexto — é definido como “amor” em ljo 4,8 e 16:
Queridos, amemo-nos uns aos outros, já que o amor vem de Deus e todo o
que ama nasceu de Deus e conhece a Deus. Quem não ama não conheceu a
Deus, porque Deus é amor. Nisso manifestou-se o amor que Deus nos tem: em
que Deus enviou seu Filho único ao mundo para que vivamos por meio dele.
Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, senão em que
ele nos amou e enviou seu Filho como propiciação por nossos pecados [...] Nós
conhecemos o amor que Deus nos tem e cremos nele. Deus é amor e quem
permanece no amor permanece em Deus e Deus nele (ljo 4,7-10.16).

Da economia salvífica se passa ao ser mesmo de Deus: “Que Deus


seja amor em seu ser mais profundo é algo que o autor descobre na atuação
divina, e assim no fato singularíssimo de que enviou seu Filho ao cosmo de

63
VISÃO HISTÓRICA

morte para dar a vida aos homens”1 1435. Daí que esse amor passe a ser tam­
bém o distintivo dos filhos de D eus, e sobretudo do Filho por antonomásia
que é Jesus. H á uma relação íntim a entre o amor e a filiação divina. Ainda
que a linha do pensamento joanino pareça mover-se aqui para a participa­
ção do amor de Deus por parte dos homens, não há dúvida de que há uma
clara mediação cristológica. Precisamente com ela manifesta a relação es­
pecial dessa revelação do amor com Jesus e como na entrega dele por nós
acontece essa manifestação do amor, “definição divina”. “Deus ama a pon­
to de entregar o que lhe é tmis querido, a fim de salvar os homens. Nesse
dar e dar-se a si mesmo, nesse compadecer-se e querer salvar, está o ver­
dadeiro amor, e é justamente esse amor o que constitui sua essência.”14N o
amor que se manifesta precisamente na doação de Jesus vislumbra-se um
novo modo de ser amor de Deus ad intra. O Novo Testamento, em con­
creto essas passagens da primeira carta de João, abrem-nos o mistério da
vida intradivina a partir da revelação que teve lugar em Jesus.

2. Jesus, o Filho de Deus

A paternidade de Deus e a filiação de Jesus estão em estrita correla­


ção. Porque Jesus viveu “em filiação”, revelou-nos a Deus como Pai e
mostrou-se a si mesmo como o Filho de Deus. D ada a correlação P ai-
Filho, é claro que não podemos traçar uma linha exata de separação entre
o que foi dito sobre o Pai nas páginas anteriores e o que diremos aqui
sobre Jesus, o Filho. Bastarão algumas indicações, porque não se trata de
repetir o que se estuda habitualmente nos tratados de cristologia15.
Não parece que Jesus se tenha chamado a si mesm o com freqüênda
“Filho”, ao contrário do uso, pelo menos muito freqüente, senão habitual
e constante, do “Pai” referido a Deus. Já mencionamos o chamado “hino
de júbilo”, um dos momentos culminantes que nos evangelhos sinópticos
nos mostram a relação de intimidade de Jesus com D eus Pai. Nesse lugar,
Jesus chama a si mesmo de Filho: “Ninguém conhece o Filho a não ser o

13. R. SCHNAKENBURG, Cartas de Sanjuan, Barcelona, 1980,257; ibid. 259: “O


Deus da nova aliança é por essência am or misericordioso que tu d o dá e que se comunica
a si mesmo”.
14. C f ibid. 269.
15. C f W. KASPER, Jesús d Cristo, Salamanca 1978,134-137. A. AMATO, Gesü, il
Signore. Saggio di cristologia, Bologna, 1988. 12 ls; G. 0 ’C O L L IN S , Gesü oggi. Linee
fimdamentali di cristologia, Cinisello Balsamo, 1993,87s; ID ., Cbristology. A biblical, bistorical,
and sistematic study afJesus Cbrist, Oxford, 1995, 113-135.

64
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS. ESTUDO BÍBUCO-TEOLÓ GICO

Pai, e ninguém conhece o Pai a não ser o Filho” (M t 1l,17=Lc 10,22).


Encontramos também essa denominação nos lábios de Jesus no chamado
logion da ignorância de M c 13,32 par.: “Daquele dia e hora ninguém sabe
nada, nem os anjos no céu, nem sequer o Filho, senão só o Pai”. Em ne­
nhum momento encontramos que Jesus se designe como “Filho de Deus”,
ao contrário do que fazem outras pessoas (nem sequer o faz diretam ente
em M t 26,64 par.). Mas o escasso uso desse título por Jesus mesmo pode
ser explicado pelo fato de que não se prega a si mesmo, mas a Deus. Ao Pai
pertence o Reino que Jesus se sentiu chamado a anunciar. Sua revela­
ção com o Filho é, desde esse ponto de vista, indireta. N o Evangelho de
João, como já notamos, aumenta particularm ente a freqüência de passa­
gens em que Jesus fala de si mesmo como o Filho.
Segundo os sinópticos, Jesus é proclamado Filho de Deus pela voz do
Pai nos momentos do batismo e da transfiguração (cf. Mc 1,11 par.; 9,7
par.). Notem os que o título “ Filho de Deus” está presente na confissão de
fé de Pedro (Mt 16,16, mas não nos paralelos de Mc 8,29 e Lc 9,20) em
sentido messiânico. Com as palavras “Se és filho de D eus...” (sem artigo),
começa a insinuar-se o diabo para tentar Jesus (Cf. M t 4,3.6;Lc 4,3.9); a
visão da filiação divina do tentador e a de Jesus diferem em grande medida.
Também proclama Jesus Filho de Deus, depois de sua morte, o centurião
que o guardava (cf. Mc 15,39; M t 27,54).
O título Filho (de Deus) indica, mais do que qualquer outro, a iden­
tidade últim a de Jesus, já que põe em relevo sua relação única com Deus
Pai. É usado já por Paulo (lT s 1,10; Rm 1,3.4.9; 8, 3.29.32; IC o r 1,9;
15,28; G1 l,15s; 2Cor 1,19, “o evangelho do Filho”, E f 4,13; C l 1,13),
embora com muito menos freqüência que o de “Senhor”, mais adequado
para expressar a condição de Jesus glorificado, em sua relação com a co­
munidade. Paulo pode ter usado tuna expressão que já encontrou presente
na comunidade cristã. O fundamental é que emprega esse título quando
fida da relação de Jesus C risto com Deus; isso implica também um a refe­
rência à sua função de m ediador da salvação16. H á portanto uma relação
íntima entre a relação de Jesus com Deus e sua condição de salvador dos
homens. Teologia e economia da salvação estão unidas já desde o começo,
na perspectiva neotestamentária. A doutrina da filiação divina de Jesus
impôs-se desde bastante cedo, e não parece reduzida a aspectos meramen­
te funcionais. Esses não podem ser separados da relação de Jesus com Deus
que o título ressalta.

16. C f. M. HENGEL, El Hijo de Dm, Salamanca, 1978, 25-30.

65
VISÃO HISTÓRICA

Ja observamos que nos escritos de João “Filho” é a denom inação


normal com que Jesus se refere a si mesmo, em correlação com o uso
m aaço da palavra “P ai” com que Jesus se refere a Deus. Como n o resto
do Novo Testam ento, essa relação filial de Jesus com o Pai é irrepetível
nos escritos de João. Jesus é o “Filho” por antonomásia, ò YUk, diante
«T~l?mTTS’ <lUC Sa° T8KV0L E também, em algumas passagens d e João,
o Filho U nigénito” Qo 1,14.18; 3,16.18; 1J0 4,9). Assim destaca-se ain­
da mais essa irrepetibiüdade. A finalidade do Evangelho de João, segun­
do o seu prim eiro final Qo 20,31), é dem onstrar que Jesus é o C risto , o
Filho de Deus. M
*eSpCCiaI «M» deJesus com Deus, em virtude da qual é seu
Fdho existe ,an o começo da vida pública (cf.M c 1,1, “começo do Evan­
gelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”) e inclusive no começo de sua exis­
tência sobre a terra (cf. Lc 1,35). Mas a cristologia dos primeiros tem pos
viu também a plena realização dessa filiação divina no momento da ressur­
g i * ’ com sua definitiva entronização de Jesus com o Senhor (cf. R m 1,3s;
FI 2;II; j 2,14ss; 13,32' 34)' A Passagem de Rm l,3s, provavelmente re­
produção de uma confissão de fé pré-paulina, é característica: Jesus é apre­
sentado como Filho de Deus no v. 3. Esse Jesus, que à todo m omento é o
o e eus, e o sujeito único de uma história que se desenvolve em dois
tempos, ou duas fases que se contrapõem: por uma parte, nasceu de Davi
segundo a carne, no que se refere à sua existência terrena, mas foi consti­
tuído Filho de Deus em poder em virtude do Espírito de santidade pela
ressurreição dos mortos. Voltaremos a essa passagem no momento opor­
tuno. Retenhamos, no momento, dois pontos: em primeiro lugar Jesus,
desde sempre oFilho de Deus, vive de algum modo enquanto homem uma
histona de sua filiação; na ressurreição, aquele que é desde o começo Filho
de Deus é constituído Filho de Deus em poder. E m segundo lugar, nessa
histona mtervem o “Espírito de santidade”” : essa história da filiação divi­
na de Jesus enquanto homem está ligada à atuação do Espírito em Jesus, o
Cnsto. Dizíamos no começo deste capítulo como nos diferentes mistérios
da vida de Jesus se realiza a revelação do mistério trinitário. Vamos percor­
rer brevemente alguns deles. Mas antes, uma vez que vimos a relação entre
Jesus e o Pai, fixemo-nos brevemente na participação de nós cristãos nessa
relação, como o Pai de Jesus é também nosso Pai e nós, seus filhos.71

17. É a úmca vez em que Paulo em p rep essa expressão; em geral fala do “Espírito
Santo”. Segundo H . SCHLIER, Der Rõmerbritf, Friburg-Basel-W ien, 1977,26s., a expres­
são podia ser equivalente a espírito da glória”. Veremos em seu m om ento como essas duas
noções se relacionam no Novo Testamento e na tradição.

66
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS ESTUDO BÍBUC O -TEO LÓ G IC O

3. Deus, Pai dos homem

A paternidade de Deus mostra-se-nos na missão de Jesus, o Filho, ao


mundo. Essa, segundo G 14,4-6, que é o texto que nos serve de guia nesta
exposição, tem como finalidade que os homens recebam a filiação. O envio
do Filho e a filiação divina dos homens estão por isso em relação últim a.
O mesmo insinuam os textos de ljo que já conhecemos (Cf. ljo 4,9.14).
Deus, que é o Pai de Jesus, quer também ser o Pai dos homens. O mesmo
Jesus nos introduz em sua relação filial com o Pai; e, segundo M ateus e
Lucas, ensina a seus discípulos a dirigir-se a D eus com a invocação “Pai
nosso” (M t 6,9; 11,2) na oração que ficou como exemplo e paradigma de
toda oração cristã. Também em outros lugares observamos que Jesus, di­
rigindo-se aos discípulos, refere-se a Deus como “vosso Pai” (cf. M c 11,25;
M t 6,32=Lc 12,30; M t 5,48=Lc 6,32; Lc 12,32; M t 23,9)18.
Assim como a filiação divina de Jesus se reflete em toda a sua existên­
cia, também para a vida concreta dos discípulos deve ter conseqüências o
reconhecimento da paternidade de Deus: os discípulos hão de amar e fazer
o bem a todos os homens sem distinção, à imitação do Pai misericordioso
que faz chover e brilhar o sol sobre os bons e os maus (cf. M t 5,45-48; Lc
6,27-36). Embora seja verdade que nesses textos fala-se em sentido estrito
de Deus Pai só a respeito dos discípulos, não é menos notável que segundo
eles D eus se comporta com uma atitude de am or (em certo sentido, por­
tanto, de paternidade) para com todos os homens. Entre a paternidade de
Deus a respeito de Jesus e a filiação desse por um a parte, e a dos discípulos
por outra, há uma inegável relação. Só porque Jesus é o Filho de Deus e
o chama “Pai” pode ensinar os discípulos a invocá-lo assim e a viver a vida
de filhos: é ele quem os introduz nessa relação patem o-filial. Mas devemos
notar que a filiação divina de Jesus e a dos discípulos nunca se equiparam.
Nunca se encontra no Novo Testamento um “nosso Pai” em que Jesus se
inclua em paridade de condições com os outros homens. A relação de Jesus
com o Pai é única e irrepetível. Assim se manifesta em suas palavras e em
sua conduta, de modo particular em sua oração solitária (cf. Lc 5,16; 6,12
etc.). M as predsamente em sua irrepetibilidade a filiação de Jesus funda­
menta a de seus discípulos.
O Espírito Santo é, segundo Paulo, o vínculo que relaciona a filiação
divina de Jesus e a nossa. E o mesmo Espírito que clama em nós “Abbd”

18. Esses são os textos que J. JEREMIAS, op. cit., 46-52, assinala como prováveis
palavras autênticas de Jesus. Em todo caso, para nós é relativamente indiferente saber até
que ponto nos achamos ou não ante a ipsissrma verba Jesu.

67
VISÃO HISTÓRICA

(G1 4,6), ou aquele que faz que nós mesmos o digamos (Rm 8,15). Um
aspecto importante da predestinação de todos os homens em Cristo desde
antes da criação do mundo é também a filiação divina (cf. Ef 1,5), que
certamente não se vive sem o dom do Espírito (cf. Ef 13). Jesus é explid-
tamente mencionado em outras passagens em que Paulo fida de Deus tam­
bém como nosso Pai, o que indica a vinculação de nossa filiação com a de
Jesus (cf. 2Cor l,2s; G1 l,3s; lTs 1,1-3; 3,11-13; 2Ts 1,1; 2,16).
Também para os escritos de João, de modo especial sua primeira car­
ta, os crentes nasceram de Deus ou foram engendrados por ele. Deus é
portanto também Pai dos que crêem em Jesus por esse novo título, por
terem sido engendrados por sua ação à vida da fé (cf. Jo l,12s; ljo 2,29; 3,9;
4,7; 5, 14.18; cf. também o nascimento do alto pelo Espírito em jo, 3,3ss).
A filiação divina, que já é real, será em sua plenitude um dom escatológico
(cf. ljo 3,2). Á vida e o amor que Jesus tem do Pai estão chamados a ser
transmitidos a seus discípulos. Deus é portanto Pai enquanto é o princípio,
de uma maneira muito real, da vida eterna dos homens mediada por Jesus
(Cf. Jo 6,57; 15,9, entre outras passagens). A relação e a distinção entre a
filiação de Jesus e a nossa exprime-se também em João (cf. Jo 20,17).
N ão é este o lugar para desenvolver com extensão o tema da paterni­
dade de Deus a respeito dos homens, e a filiação divina desses19, que tem
seu lugar próprio nos tratados sobre a graça. Somente nos interessa, nessa
prim eira aproximação da revelação bíblica de Deus como Pai, destacar
como, a partir da paternidade, a respeito de Jesus abrem-se outras pers­
pectivas. Em primeiro lugar, como veremos, a respeito do crente, mas em
segundo lugar a paternidade de Deus adquire, já no N ovo lèstam ento,
dimensões universais. Só a Deus convém a rigor o nome de “Pai”: “Não
chameis a ninguém de ‘pai’ na terra...” (M t 23,9). E em relação ainda mais
direta com a paternidade a respeito de Jesus dirá Paulo: “Por isso dobro
meus joelhos ante o Pai do qual toma nome toda paternidade no céu e na
terra” (E f 3,14). O Pai de Jesus é o único Deus de todos os homens, judeus
e gentios (cf. Rm 3,29-30), o criador de quem tudo provém (cf. IC or 8,6).
Se em um primeiro instante usam-se os nomes de Pai e Filho em um sen­
tido analógico, a partir da realidade intram undana, em um segundo mo­
m ento, tuna vez conhecido o mistério que Jesus nos revela, ressalta-se que
a paternidade divina é o analogado principal de toda noção de paternidade.
Tudo tem seu princípio no Pai de Jesus Cristo. Somente a ele, de um modo

19. Cf. L.F. LADARIA, Teologia dei pecado originaly de la gracia, M adri, 1993, 231*
266.

68
A REVELAÇÃO D E DEUS N A VIDA DE JESU S. ESTU D O BÍBLICO-TEOLÓGICO

misterioso e sempre diferenciado com relação a Jesus e com os outros


homens, corresponde a rigor o nom e de Pai. Deus é o “Pai de todos” (Ef
4,6). N o Antigo Testamento, dizíamos, são escassos os textos que unem a
paternidade de Deus à criação. N o N ovo Testamento achamos essas pou­
cas passagens de perspectiva universal, nas quais o motivo da criação está
apenas insinuado. M as deve-se sublinhar que não se adiam em continui­
dade direta com as passagens veterotestam entárias a que nos referimos. A
chave mudou. A paternidade paradigm ática de Deus funda-se em sua re­
lação com Jesus e na filiação divina desse. Na antiga Igreja encontramos
no entanto algumas referêndas diretas a Deus como Pai em relação com
a criação. Mas deve-se notar que esses textos estão sob a influência dos
escritos, ou pelo menos do espírito, neotestam entários, e, portanto, a de­
signação de Deus como Pai em relação com sua ação criadora não pode ser
vista desligada a priori da mensagem do Novo Testamento, ainda que não
responda diretam ente ao uso dele.

4. Jesus, concebido por obra do Espírito Santo

Segundo os evangelhos de M ateus e de Lucas, a encarnação de Jesus


realiza-se por obra do Espírito Santo (cf. M t 11,20; Lc 1,35). H á, por­
tanto, uma atuação do Espírito Santo no momento em que Jesus entra
neste mundo, ao qual é enviado pelo Pai. Deve-se notar porém que, se­
gundo os textos evangélicos, nesse m om ento o Espírito Santo desce di­
retam ente sobre M aria, não sobre Jesus (Cf. Lc 1,35). M as a “santidade”,
efeito dessa ação divina, é atribuída a Jesus desde o prim eiro instante: “o
que nascerá de ti será santo, e será chamado Filho de Deus” (ibid.). Embora
não sé diga de m aneira clara, tudo indica, pois, que desde o momento da
encarnação o Espírito Santo está presente na vida de Jesus, o Filho, que
se encarna no cumprimento do desígnio do Pai20. Sua origem nessa pe­
culiar ação de Deus mostra o caráter transcendente, divino, da pessoa
mesma de Jesus. A ação criadora do Espírito de Deus (cf. G n 1,2; Sb 1,7)
alcança aqui seu ponto mais alto. O Espírito Santo, ao descer sobre M a­
ria, faz possível a encarnação do Filho. Nesse sentido sua ação “precede”

20. Cf. H . SCHURMANN, Das Evangelium nach Lukas J, Friburg-Basel-Wien, 1982,


54; a filiação divina de Jesus de que se iãla nesse momento é todavia anterior a sua missão
messiânica; cf. também F. BOVON, Dos Evangelium nachLukas/, Zurique-Neuldrchen-Vluyn,
1989, 76; M . BORDONI, La cristologia neU’orizzonte deüo Spirito, Brescia, 1995,205s.

69
VISÃO HISTÓRICA

a do Filho. P o r outra parte, tudo parece indicar que o Espírito Santo está
presente na humanidade de Jesus, criada pelo fato mesmo de sua assunção
pelo Filho na união hipostática21. Desse ponto de vista a presença do
Espírito há de ser considerada logicamente (não cronologicamente) "pos­
terio r” à união hipostática por parte do Filho22. M as devemos notar ao
mesmo tem po que a atuação pública de Jesus movido pelo Espírito San­
to e a doação ulterior do mesmo Espírito não são postas em relação nem
no Novo Testamento nem na antiga tradição da Igreja com este momento
da concepção virginal de Jesus por obra do Espírito, mas com a vinda do
Espírito sobre Jesus no Jordão23.42A esse m istério da vida de Cristo deve­
mos dedicar agora nossa atenção.

5. O batismo e a unção de Jesus1*

O Novo T estamento e os Padres

Dizíam os no começo deste capítulo que nosso ponto de partida


queria ser a manifestação do m istério trinitário na vida de Cristo. O ra,
sem dúvida, para o Novo Testam ento Jesus é o Filho de Deus, o U nigé­
nito, que portanto, em um sentido estrito, não com parte com ninguém
essa condição filial. M as Jesus é também o “ungido”, com o E spírito, é
o “M essias”, o “C risto”. Além de ser o Filho, Jesus é o U ngido, o por­
tador do Espírito. N o texto de gálatas que nos serve de guia, e em que
notam os o paralelismo entre a missão do Filho e a do Espírito, deve­
mos notar que o Espírito tam bém é chamado “Espírito de seu F ilho”.

21. Segundo a fórmula lapidar ipsa assumptione creata inspirada em A G O STIN H O ,


Contra sermonem arian. 8 (PL 42, 688): “nec sie adsum ptus est u t prius creatus post
assumeretur, sed ipsa assumptione crearetur”, que é seguida quase literalm ente por LEÃO
M AGNO, Ep. 35,3 (PL 54, 807).
22. Esse duplo aspecto da ação de Espírito nem sempre foi levado em conta pelos
teólogos: cf. W. KASPER, Jesus el Cristo (cf. nota 5), 310; segue-o BORDONI, op. d t., 227;
cf. L. F. LADARIA, Cristologia del L ogosy cristologia dei Espíritu, Greg61 (1980) 353-360.
23. Cf. Y. CONGAR, EI Espíritu Santo, Barcelona, 1983,42; R. CANTALAMESSA,
“Incam atus est de Spiritu Sancto ex M aria Virgine” — Cristologia e pneumatologia nel
simbolo constantinopolitano e nella patrística, in Credo in Spiritum Sanctum. Atti del Con­
gresso Teologico Intemazionale di Pneumatologia, Roma, 1983, 101-125.
24. Para ulterior fundamentação do que segue, remeto a meus dois artigos: Humanidad
de C risto y don del Espiritu, EstEcl 51 (1976) 321-345; La undón de Jesus y el don del
Espiritu, Greg 71 (1990) 547-571, com o também ao artigo d tad o na nota 22.

70
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VID A DE JESUS. ESTUDO BÍBLICO-TEOLÓ GICO

A missão do Espírito Santo está em correlação com o fato de que Jesus


foi o portador do Espírito.
Os evangelhos sinópticos falam-nos do batismo que Jesus recebeu no
Jordão da mão de João Batista (cf. Mc 1,9-11 par.). Com diferenças notá­
veis, que não devemos abordar neste momento, em dois pontos im portan­
tes para nós dá-se uma coincidência entre os três evangelhos: a descida
sobre Jesus do Espírito Santo (Lc 3,21 acrescenta o significativo dado da
vinda do Espírito enquanto Jesus orava) e a voz do céu que proclama que
ele é o Filho de Deus; sem dúvida há relação entre esses dois pontos. O
prim eiro dado encontra-se também recolhido no quarto evangelho (cf. Jo,
1,32-34). Também para João essa descida e &permanência do Espírito sobre
Jesus mostram que ele é o Filho de Deus (cf. Jo 1,34). Jesus é apresentado
como enviado de Deus, seu Filho, a Israel, e vem dotado da força do E s ­
pírito necessária para o cumprimento de sua missão, uma força que
corresponde à relação única que o une com Deus25. A partir desse momen­
to, Jesus inicia sua vida pública, prega o Reino de Deus e confirma com os
sinais e prodígios que esse reino irrompeu entre os homens. Segundo o
Novo Testamento, o m om ento desse batismo é de uma importância capi­
tal. Jesus foi ungido com o Espírito Santo em vista de sua missão, que
continua e leva a cumprimento a dos profetas26.
O Novo Testamento, com clara referência ao momento do batismo
de Jesus, falou da unção de Cristo com o Espírito. O Evangelho de Lucas
põe na boca do próprio Jesus a passagem de Is 61,1-2: “O Espírito do
Senhor está sobre mim, porque me ungiu...” (Lc 4,18-19). E em A t 10,37-
38 se lê: “Vós sabeis o que sucedeu em toda Judéia, começando por Galiléia,
depois que João pregou o batismo; como D eus ungiu com Espírito Santo
e poder a Jesus de N azaré, que passou fazendo o bem e curando a todos os
oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com ele”. Parece fora de dúvida

25. Cf. F. LE N T Z E N -D E IS, Die TaufeJesu nach den Synoptikern, Frankfurt, 1970; R.
M cD O N N ELL, Jesus’ Baptism in the Jordan, TbeolSt 56 (1995) 209-236; E. YILDIZ, El
baudsm o de Jesus como teofanía trinitaria, Didlogo Ecuménico 31 (1996) 81-106.
26. Cf. I. de la PO T T E R IE , L’onction du C rist, NRTh 80 (1958) 225-252; R.
CANTÄLAMESSA, Lo Sptrito Santo neüa vita di Gern. 11mistero dell'unzione, M ilano, 41988,
15s: “O s Evangelhos sem o episódio inicial do batism o de Jesus seriam com o os Atos dos
Apóstolos sem o relato inicial de Pentecostes: faltaria a eles a chave de leitura para compreen­
der to d o o resto”; M . A. CHEVALIER, Aliento de Dios. El Espirita Santo en el Nuevo Testa­
mento, Salamanca, 1982, v. I, 151, relaciona também com o batismo a comunicação do
E spírito ao Messias: “M antém -se em um caso que o espírito divino intervém como criador
de vida [na Encarnação], no ou tro caso, como poder comunicado aos heróis de Deus em
geral, e ao Messias em particular”.

71
VISÃO HISTÓ RICA

que a unção refere-se ao batismo no Jordão27. 0 Novo Testamento parece


conhecer portanto esses dois m omentos, cronologicamente diferenciados:
a encarnação de Jesus por obra do Espírito, em virtude da qual ele já é
“santo” desde o prim eiro momento, e a unção, localizada no Jordão, a
partir da qual Jesus, proclamado solenemente Filho de Deus (mas recorde­
mos Lc 1,35), começa sua missão de pregação e manifesta em sua atuação
que é movido pelo Espírito de Deus.
Na teologia dos primeiros Padres da Igreja, a unção de Jesus ocupou
um lugar relevante. Essa unção significa em prim eiro lugar que Jesus re­
cebe sobre si o Espírito que vai ser dado à Igreja. Inácio de Antdoquia,
ainda que se refira diretamente à unção de Betânia (cf. M c 14,3 par.) ob­
serva que “o Senhor tomou ungüento sobre seu cabelo para inspirar
incorrupçao à Igreja”28. E com explícita menção ao batismo no Jordão Ireneu
observa que quando o Verbo de Deus era homem, da raiz de Jessé e da
descendência de Abraão, o Espírito de Deus descansava sobre ele e o ungia
para evangelizar os pobres29. E pouco depois, no mesmo contexto: “O
Espírito do Senhor desceu sobre ele, o Espírito daquele que tinha anunci­
ado por todos os profetas que ia ungi-lo para que nós fossemos salvos ao
receber da abundância de sua unção.30Alguns pontos dessas passagens hão
de ser postos em relevo. Em prim eiro lugar a identidade de Jesus que é
ungido, que é o Verbo de Deus, não um simples homem. Alas por outra
parte é ungido em sua humanidade31, não enquanto Deus, pois enquanto
tal é claro que não necessitava de unção32. Tampouco enquanto homem
necessitava Jesus do batismo para o perdão dos pecados. Mas isso não quer
dizer de nenhum modo que o batismo e a unção não tenham para Jesus
mesmo nenhum significado. Ireneu aponta, como acabamos de ver, que

27. Cf. também At 4, 26-27 (cf. SI 2,1-2), que igualmente parece referir a unção ao
batismo; por outro lado, em Hb 1,9, a citação do SI 45 [44], 8 parece se referir à ressurrei­
ção de Jesus. Em nenhum momento se relaciona diretam ente a “unção” com a concepção
por obra do Espirito Santo.
28. Ffes. 17,1 (FP l,120s). Embora essa passagem refira-se à unção de Betânia, fala-
se do batismo de Jesus imediatamente depois em 18,2 (ibid.). C f AORBE, La unam dei
Verbo, Roma, 1996, 5-13.
^ ^ Haer' UI 9,6 (SCh 211,206-208). Ireneu d ta nesse contexto Is 61,ls; Lc

30. Cf. Ado. Haer. m 9,3 (SCh 211, 110s). Cf. ORBE, op. dL, 507ss.
31. ATANASIO, Serap. I 6 (PG 26, 541): “Quando o Senhor foi batizado como
homem, por causa da carne que levava... diz-se que o Espírito Santo desceu sobre ele. E
quando o deu a seus discípulos, disse... Qo 20,22)”, cf. ibid. I 4 (537).
32. N ão podemos entrar no detalhe do tem a da “não-indigência”, tão freqüente nos
Padres. Cf. ORBE, op.cit, 46-52.

72
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS. ESTU D O B lBUCO -TEO LÓ G ICO

Jesus há de receber a unção para poder cumprir sua missão, para evangelizar
os pobres. Ao mesmo tempo se observa que essa unção, como já ocorria
em Inácio de Antioquia, está destinada à Igreja, aos hom ens33. O mesmo
Ireneu verá no nom e mesmo de C risto em relação com o batismo do Jor­
dão uma manifestação da Trindade: "N o nome de C risto se sobreentende
o que unge, o que é ungido e a unção com que é ungido. O Pai ungiu, o
Filho foi ungido, no Espírito que é a unção... significando assim o Pai que
unge, o Filho ungido e o Espírito Santo que é a unção”34.
Fica porém em aberto, nos prim eiros séculos cristãos, a questão da
“identidade” do Espírito em que Jesus foi ungido. N ão podemos presumir
que se trata sempre explicitamente da “terceira pessoa”, já que a noção de
espírito é, nos prim eiros tempos cristãos, ainda imprecisa. E claro, em
todo caso, que esse Espírito é uma força divina que procede do Pai e que
habilita Jesus, o Verbo encarnado, ao cumprimento de sua missão35.
Mas deve-se reconhecer que essa rica teologia da unção de Cristo vai
desaparecer da consciência da Igreja relativamente cedo. Predominará uma
corrente que tenderá a identificá-la ou a reduzi-la à encarnação, e assim o
fato de que sobre Jesus repousa o Espírito tenderá a confundir-se com a
união hipostática; não será considerado um aspecto relevante em si mes­
mo. O perigo do adodanismo em suas várias formas Qesus seria ura mero
homem que pelo dom do Espírito Santo foi adotado como filho de Deus;
ou em certas correntes gnósticas um homem sobre o qual veio a força
divina no Jordão, que inclusive o teria abandonado no momento de sua
morte); depois os perigos do arianismo (Jesus teria necessidade do Espírito,
logo não é Deus); ou também as formas extremas da cristologia antioquena
(necessidade do Espírito do homem Jesus para sua união com a pessoa divi­
na), propiciaram uma subvalorização da presença do Espírito Santo em Je­
sus. Talvez essa corrente de pensamento se insinue já desde o instante em
que se deixa de acentuar a dimensão trinitária da unção (o Pai unge a Jesus

33. Ado.Haer. m 17,1 (S C H 211-330); 18,7(364-370);IV 14,2 (SCh 100,542-544),


o homem também tinha de habituar-se ao Espírito.
34. Ado. Haer. III 18,3 (SCh 211, 350-352). É interessante notar que esse texto foi
reproduzido quase literalm ente por BASILIO de Cesaréia, De Sp. Sane. 12,28 (SCh 17bis,
344) e por AMBRÓSIO de M ilão De Sp. Soneto, 1 3,44 (CSEL 79,33). Para nenhum deles
é problema o m om ento dessa descida do E spírito Santo no batismo. Também para esses
autores fica claro que Jesus recebe o E spírito Santo enquanto homem. Cf. textos de
LADARIA, La uneión de Jesusy el don dei Espiritu (cf. nota 24) 565.
35. Cf. LADARIA, La cristologia de Hilário de Pohiers, Roma, 1989,105-115; ORBE,
Inttvduceión a la teologia de los siglos U y Hl, Roma, 1987, 662-665; ID ., Estúdios sobre la
cristologia cristiana primitiva, M adrid-Roma, 1994, 500-507.

73
VISÃO HISTÓRICA

com o Espírito) e se começa a afirmar que é o Filho *nqnar»tr» Deus que


dá à humanidade assumida o Espírito que lhe pertence enquanto Deus36.
Com facilidade pode-se passar desse pressuposto à confusão pura e
simples da encarnação e da unção. Cita-se com freqüência nesse contexto
uma passagem capital de G regório Nazianzeno:
É “Cristo” (Ungido) por causa de sua divindade; essa é a unção da humani­
dade que a santifica, não por operação, como nos outros “ungidos”, senão
com a presença total daquele que dá a unção, e por obra dessa presença o que
unge é chamado homem e o ungido é chamado Deus37.

Além de um interessante exemplo de “comunicação de idiomas” esses


textos mostram-nos com clareza a redução da unção de Cristo à imtárs
hipostática. Já não é o Espírito que unge o Verbo feito homem, mas a
divindade é que unge a humanidade. Sem que se possa falar de uma iden­
tificação tão clara, Sto. Agostinho também pensou que era impossível que
no Jordão Jesus tivesse sido unido com o Espírito Santo. O batismo do
Jordão tem um valor declarativo daquilo que foi uma realidade desde o
prim eiro instante da vida de Cristo; ao mesmo tempo, nele se prefigura
o que será a realidade da Igreja38. N ão difere muito o parecer de Sto. Tòmás.
A ação do Verbo e a do Espírito aparecem em algum momento bastante
diferenciadas, mas não parece que o Aquinate tenba refletido explicita-

36. Cf. ATANÁSIO, Contra Arianos I 46-47 (PG 26, 108-111); embora continue
sendo claro que o dom do Espírito afeta a humanidade de Jesus para a santificação de todos
os homens.
37. Or. 30,21 (SCh 250, 272) também 30.2 (ibid. 228): ‘a divindade é a unção da
humanidade”. Cf. também O r. 10,4 (SCh 405,304). Bastante mais matinAn G REG Ó RIO
de Nissa, In iliud Time ipsejilms (PG 44, 1.320): “O Logos, unindo-se com a*carne, elevou-
a a propriedades do Logos pela recepção do Espírito Santo que o Logos possuía antes da
Encarnação”. A influência de G regório Nazianzeno nota-se emJoão DAMASCENO, De
fide ortbod. II3 (PG 94,989); U I 17 (1.070); IV 14 (1.161); 18 (1.185); porém mais matizado
em IV 6 (1.112); 9 (1.120).
38. Trin XV 26,46 (CCL 50A, 526s): “Nec sane tunc «nctus est Christus spiritu
sancto quando super eum baptizatum velut columba descendit; tunc enim corpus suum, id
est ecclesiam praefigurare dignatus est... Sed ista mystica a invisibili unctione tunc
intellegendus est unctus quando verbrnn D ei cxcofactum est (Jo 1,14.), id est quando huma­
na natura sine ullis praecedentibus bonorum operam m eritis deo verbo est in utero virginis
copulata ita u t cum filio fieret una persona... Absurdissimum est enim u t credamus eu cum
iam triginta esset annorum... accepisse spiritum sanctum .” Ju to j prefiguração do que
acontece com a Igreja, a prefiguração do que acontece em nosse batismo; cf. G REG Ó RIO
NAZIANZENO, Or. 39,1; 14,17; 20 (SCh 358,151; 178-188; 194). AMBROSIO, De Spir
sane. I 3,44 (CSEL 79.33).

74
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESU S. ESTUDO BÍBUCO-TEOLÓ GICO

mente sobre a relação entre a graça de união e a plenitude da graça do Es­


pírito39. A idéia da unção de Jesus com o Espírito Santo praticamente desa­
pareceu no Ocidente. Quando foi lembrada, foi para assimilá-la praticamen­
te à encarnação. A unção não é outra coisa do que a plenitude da divindade
do Logos que se une à humanidade e vive realmente nela40. Não se pôde
levar em conta esse aspecto da revelação da Trindade na vida de Cristo.

As POSIÇÕES RECENTES

A presença do Espírito Santo em Jesus foi acentuada de diversos modos


na teologia contemporânea. Aqui não podemos deter-nos no estudo de
todas as linhas de pensamento que foram traçadas41. Limitamo-nos a al­
guns autores católicos significativos que buscaram harmonizar esses dados
com a cristologia da encarnação atestada no Novo Testamento e na tradi­
ção da Igreja.
Em minha opinião foi m érito de H . M ühlen ter recolocado a questão
no campo sistemático, depois que alguns estudos bíblicos e patrísticos a
propuseram no plano histórico. A encarnação e a unção de Jesus devem ser
distinguidas e, ao mesmo tem po, articuladas42. M ühlen parte nessa distin­
ção de uma preocupação eclesiológica, a de escapar à consideração, certa-

39. Cf. STb Iü q. 6, a. 6: a graça habitual de Cristo é efeito da graça da união; HE q.


34 a. 1, a santificação da humanidade de Cristo é desde o prim eiro instante, também sem
menção do Espírito Santo; mas em E I q.39 a 2 observa-se que Cristo não precisava do
batismo do Espírito, porque desde o prim eiro instante estava cheio da "graça do E spírito
Santo”. Cf. tam bém Õ-II q. 14, a. 1. Sobre a dimensão eclesial da unção em Sto. Tomás, cf.
BORDONI, op. cíl, 243.
40. Assim M . J. SCHEEBEN, Die Mysterien des Cbristentums, Freiburg, J951, 276.
Interessante o que afirma esse grande autor: "Quando os Padres dizem que Cristo foi
ungido com o Espírito Santo, isso significa que o Espírito Santo baixou na humamdade de
C risto no Logos de que ele procede, e que como eflúvio ou perfume da unção, que é o
mesmo Logos, unge e difunde seu arom a em sua humanidade” (o grifo é meu). Porém uma
m aior diferenciação encontra-se em Leão XEH, na encíclica Divinum iüud munus do ano de
1897 (cf. DS 3.327). Cf. também P IO X E, Mystid corporis; cf. AAS 35 (1943) 206s; 219:
desde o prim eiro instante de sua encarnação o Filho adornou a natureza humana substan­
cialmente unida a ele com a plenitude do Espírito Santo.
41. N ão faltaram tentativas de substituir por uma "cristologia do Espírito” a teologia
tradicional da encarnação: talvez o exemplo mais significativo tenha sido G . W. H. LAMPE,
T he Holy S pirit and the Person of C hrist, em S. W . SYKES; S. P. DAYTON (eds.), Cbrist,
Faitb and History, Cambridge 1972. ID ., Godas Spirit, O xford, 1976.
42. Cf. para o que segue, H . M Ü H LEN , Una Mystica persona, M unique-Padebom-
W ien, 41968, esp. 173-200; Também ibid. 244; 250, 252. ID ., DerHeiHge Geist ais Person,
M ünster, 21966, 186, 206.

75
VISÃO HISTÓRICA

m ente não isenta de problemas, da Igreja com o uma continuação da encar­


nação do Logos; é claro que a sua irrepetíbilidade pode entrar em contra­
dição com semelhante concepção. Segundo M ühlen, a Igreja deveria ser
vista antes como a continuação da unção de Jesus com o Espírito Santo.
Assim, entre a encarnação e a Igreja produz-se uma diferença que deriva
das duas missões, a do Filho e a do Espírito Santo. Segundo a Sagrada
Escritura há uma diferença temporal entre essas duas missões: a do Filho
tem lugar no momento da encarnação, o envio do Espírito Santo acontece
no Jordão. Mas M ühlen pensa, inspirando-se em Sto. Tomás, que se pode
considerar essa sucessão temporal um a m era sucessão lógica: apesar das
afirmações bíblicas, crê que há razões dogmáticas para situar no momento
mesmo da encarnação a unção da hum anidade de Cristo, correspondente
à missão do Espírito. Dar-se-ia, por conseguinte, uma coincidência crono­
lógica entre os dois acontecimentos, ainda que logicamente a unção pres­
suponha a encarnação e portanto essa a preceda. Jesus teve portanto, desde
o prim eiro instante de sua encarnação, a plenitude do Espírito Santo e a
plenitude da graça. Isso não quer dizer que não se possa falar de uma his­
tória da graça (e da presença do Espírito Santo) em Jesus, mas se trataria
só de um crescimento na manifestação dessa graça43. Além disso, o Espí­
rito que vem sobre Jesus no momento de sua encarnação é o Espírito Santo
do qual o Filho é origem. Jesus como homem recebe seu próprio Espíri­
to44. Ainda que se conceda uma importância relevante à m orte e ressurrei­
ção de Jesus, sobretudo no que se refere à doação do Espírito aos homens
por parte do Senhor glorificado, não se concede ao momento do batismo
mais valor que o de um a promulgação pública do que existiu desde o
momento da encarnação45.
Deve-se m anter a distinção fundamental entre a encarnação e a un­
ção, que recolhe um aspecto relevante da tradição. Jesus é o Filho de Deus
encarnado, já que é o “C risto”, o ungido, o portador e doador do Espírito.
Sublinha-se também a atuação de Espírito em Jesus durante o tempo de
sua vida mortal, outro elemento que deveremos reter para nossa exposição
futura. Coloca-se, por outro lado, o problema se a coincidência temporal
entre a encarnação de Jesus e a unção, ou, em outras palavras, o caráter
meramente manifestativo do batismo de Cristo, faz justiça aos dados do

43. Cf. M Ü H LEN , op. d t., 147s.


44. Ibid. 244, com base em CIRILO de Alexandria, Com. in Joel M 35 (PG 31,380).
Contudo, Cirilo parece colocar, segundo essa passagem, no batismo do Jordão a desdda do
Espírito sobre Jesus.
45. Cf. M ÜHLEN, op. d t., 249-257; Der Heilige Geist, 206.

76
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS. ESTUDO B ÍBUCO-TEOLÓ GICO

Novo Testamento, não só à “cronologia” mas também à intenção profun­


da dos autores. Também devemos questionar se fica devidamente posta a
dimensão trinitária da unção de Jesus. Víamos que na tradição prim eira é
o Pai que unge Jesus, e não o Filho que unge sua humanidade.
De maneira mais elaborada tratou também dessa questão H. U . von
Balthasar46. A atuação do Espírito Santo sobre Jesus é um dado evidente
do Novo Testamento. Se em um prim eiro momento se viu esse Espírito
como aquele em que Jesus tinha sido ungido como Messias, já logo depois,
para que o Senhor não fosse considerado um simples profeta, teve-se de
retroceder o começo da atuação do Espírito sobre ele até o momento mesmo
de sua concepção47. Produz-se, desse modo, uma certa “precedência” do
Espírito Santo em relação a Cristo, que se acentua sobretudo na encarnação,
já que o Espírito é que a toma possível, mas também em outros momentos
da vida de Jesus. Se depois da ressurreição Cristo envia o Espírito Santo,
de algum modo foi antes “enviado” p o r ele48. N a economia da salvação
tem lugar uma “inversão trinitária”, que não altera a “ordem ” da vida
intradivina, mas mostra como pelas necessidades da “dispensação” salvadora
mudam-se algum m odo as relações entre a segunda e a terceira pessoas49.
Assim, é o Espírito que opera a encarnação do Filho e, na economia, o
“precede”. O Espírito é, ao mesmo tem po, o Espírito do Pai e do Filho.
Como Espírito do Pai é enviado à Virgem e como Espírito do Filho move
esse para que deixe a encarnação produzir-se. O Espírito que está sobre
Jesus e o impele mostra o momento “im anente” do Espírito que vem do
Pai50. Também para von Balthasar a encarnação e a unção vêm a coincidir
no tempo, como coincidem a unção da humanidade de C risto com a na­
tureza divina por uma parte, e com o Espírito Santo por outra51. As “duas
mãos do Pai”, o Filho e o Espírito, segundo a conhecida expressão de
Ireneu, atuam de m odo diferenciado, mas sempre um com o outro. Por
outra parte, von Balthasar parece atribuir ao batismo de Jesus um valor

46. Cf. Tbeologik UI. Der Geist der Wahrheit, Einsiedeln, 1987, esp. 28-53 e 151-188.
47. Ibid. 156; cf. também 41ss.
48. E claro que se usa o termo com certa im propriedade. Segundo o Novo Testamen­
to , só o Pai envia seu Filho ao mundo. M as deve-se notar a curiosa formulação do Concílio
X I de Toledo (DS 538) “M issus tarnen Filius non solum a P atre, sed a Spiritu Sancto missus
esse credendus est.... A se ipso quoque missus accipitur...”
49. Cf. Ibid. 41; 166-168; 187. C f. S. BULGAKOV, U Paradito, Bolonha, 1987,437: a
ordem da atividade das hipóstases no m undo é inversa à sua ordem in tra trinitária, à sua taxis.
50. BALTHASAR, Teodramatica 3. Laspersonas dei drama. Elbombre en Cristo, M adrid,
1993,477; nessa obra também fala da inversão trinitária, 173ss.
51. Cf. Der Geist der Wahrheit, 168s.

77
VISÃO H ISTÓ RICA

mais do que manifestativo de uma presença do Espírito que se tivesse pro­


duzido desde sempre: desde o momento do batismo o Espírito “paira”
sobre Jesus (ihn... «fcr-schwebt) para fazer dele durante toda a sua vida o
receptor das indicações do Pai52. Mais claram ente em favor da sucessão
cronológica e lógica do N ovo Testamento expressa-se Y. Congar, que se
ocupou repetidas vezes dessa questão53. Sublinha a historicidade da obra
de Deus, a sucessão de acontecimentos tem porais, cuja “novidade” tem de
ser respeitada. A autocomunicação de Deus em Jesus conhece diversas etapas
históricas, que são momentos qualitativos dessa comunicação. Em concre­
to, observam-se no Evangelho momentos sucessivos da vinda do Espírito
sobre Jesus:
Quanto a Jesus, teremos sumo cuidado em evitar todo adocianismo. Afirma­
mos que é ontologicamente Filho de Deus pela união hipostática desde sua
concepção; que é o templo do Espírito desde esse mesmo momento, santifi­
cado pelo Espírito em sua humanidade. Porém, guiados pela intenção de
respeitar os momentos ou etapas sucessivas da história da salvação, e dar todo
realismo aos textos do Novo Testamento, propomos ver primeiro no batismo
e depois na ressurreição-exaltação dois momentos de atuação nova da virtus
(da eficiência) do Espírito em Jesus enquanto é constituído (não só declarado)
por Deus como Messias-Salvador e, posteriormente, Senhor54.

Em um sentido parecido se expressa M. Bordoni: não basta conside­


rar o valor simbólico do batismo de Jesus; a teologia há de iluminar tam­
bém o realismo da unção batismal de Jesus como um acontecimento no
Espírito que realmente teve lugar nele, tanto no aspecto cristológico como
no eclesiológico, porque o dom do Espírito que Jesus recebe está também
destinado à Igreja55.
Vemos por conseguinte que a teologia católica dos últimos decênios
recuperou a distinção (assim como a profunda relação) que o Novo Testa­
mento nos mostra entre a encarnação do Filho e sua unção, na humanida­
de, no Espírito Santo. Dois pontos não parecem ainda objeto de acordo

52. Ibid., 187; cf. também 220.


53. El Espiritu Santo, Barcelona, 1983, 42-46; 598-607; as últimas páginas reprodu­
zem um artigo anterior, Pour une christologie pneumatologique, RSPbTb 63 (1979) 435-
472; e também La Parole e il Soßio, Roma, 1985, 108-125.
54. El Espiritu Santo, 606. Também CANTAL AMES SA, “Incarnons est de Spiritu
Sancto” cf. n. 23); e do mesmo: Lo Spirito Santa en la vha di Gesù (cf. n. 26) 13-16.
55. Cf. BORDONI, op. d t., Bresda, 1995, 238ss.

78
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA D E JESUS. ESTUDO B ÍBUCO -TEO LÓ G ICO

geral, embora tenhamos, como creio, os elementos para achar um a solu­


ção: o momento cronológico da unção (na encarnação ou no Jordão) e o
sujeito ativo dela (o Pai ou o próprio Filho).
N o que diz respeito ao momento da unção, da constituição de Jesus
como Messias, são claras as diferenças entre os autores que brevem ente
examinamos. Deve-se dar preferência ao momento da encarnação ou ao
do batismo de Cristo?*6. N ão parece que diante das afirmações bastante
claras do Novo 'Ièstam ento e da primeira tradição possa-se opor objeções
de peso. A “unção” de Jesus, como vimos, coloca-se no Jordão. Esse é o
ponto de referência para a ação messiânica de Jesus e a posterior doação
dele aos homens*7. Deve ficar claro que a santificação da humanidade de
Jesus por obra do Espírito no prim eiro instante não é por isso posta em
discussão. Jesus é desde a encarnação pessoalmente o Messias, o C risto (cf.
Lc 2,11; M t 1,1.16-18). M as só depois da nova efusão do Espírito e da
manifestação aos homens no Jordão é que começa a exercer sua função
messiânica. O batismo tem uma significação parajesus, o Filho encarnado,
não é só uma manifestação para os outros de algo que já possuía*8. Sem cair
de m odo nenhum no adocianismo, podemos ver os momentos da “novi­
dade” no caminho histórico de Jesus, o Filho, em direção ao Pai, que cul­
minará na ressurreição.
Sobre Jesus, que é pessoalmente o Filho, desce e repousa o Espírito
Santo. O Espírito atua em Jesus, é a todo momento o guia de seu caminho
histórico como Filho para o Pai. Vale a pena recolher a idéia de H . U. von
Balthasar sobre o Espírito Santo como o “mediador”, de certa maneira, da
vontade do Pai para Jesus. N o Espírito, Jesus obedece em liberdade aos8576

56. O Catecismo da Igreja Católica ocupa-se em diversos lugares do batismo e da unção


de Jesus, cf. nn. 438; 453; 535; 565; 695; 727; 741; 1.224. Sublinha por uma parte que Jesus
é desde o prim eiro instante o “C risto” e que desde a encarnação tem a plenitude do Espí­
rito Santo, mas por outra que no batismo no Jordão foi ungido, consagrado e recebeu o
Espírito que vai permanecer sobre ele.
57. Uma tradição patrística insiste no fato de que no momento da vinda de Cristo
deve cessar toda ação do Espírito, porque somente dele, como de sua fonte única, tem de
ser recebido a partir desse momento. N o Jordão desce o Espírito destinado a essa ulterior
doação depois da ressurreição. Cf. JUSTTNO Dial. Trypb. 87-88 (BAC 116, 458-462), e
TERTU LIA N O , Adv. lud. 8,12 (CCL 2, IM l^A dv. M arc.VS (CCL 1,598); cf. ORBE,
op. d t., 39-60.
58. Também refere a unção ao momento do batismo no Jordão a COMISSÃO T E O ­
LÓGICA INTERNACIONAL, “Quaestiones selectae de Christologia”, Greg. 61 (1980) 609-
632, 630: “Logo ao ser batizado Jesus no Jordão (cf. Lc 3,22) foi ungido pelo Espírito para
cumprir sua missão messiânica (At 10,38; Lc 4,18)”. Também JOÃO PAULO H, Dominam et
vivificantem, 19, parece colocar a unção messiânica de Jesus no Jordão; cf. também ibid., 40.

79
VISÃO HISTÓ RICA

desígnios paternos59.06N ão são de pouco relevo as alusões no Evangelho


à atuação do E spírito em Jesus; é o Espírito que im pele Jesus ao deserto
para ser tentado depois do batism o no Jordão (cf. M c 1,21 par., com
significativas diferenças entre os evangelhos; segundo Lc 4,1 Jesus se
dirige ao deserto "cheio de E spírito Santo”); no mesm o Espírito Jesus
inaugura seu m inistério (Lc 4,14: "Jesus voltou à G aliléia pela força do
Espírito”). Já nos fixamos na citação de Is 6 1 ,ls que se põe nos lábios de
Jesus em Lc 4,18. Além disso, em virtude do E spírito de Deus, Jesus
expulsa os dem ônios, e com isso se mostra que chegou o Reino de Deus
(cf M t 12,28; o paralelo de Lc 11,20 fida, como é sabido, do dedo de
Deus). A m esm a idéia se manifesta em Mc 3, 22.28-30: Jesus não expulsa
os demônios em virtude do príncipe dos demônios, senão em virtude do
Espírito Santo; não reconhecer essa presença é blasfêmia contra o Espírito
Santo. Em M t 12,18-21, aplica-se a Jesus Is 42,1-4 (primeiro canto do Ser­
vo) que fida entre outras coisas da presença do Espírito no servo de Javé.
Jesus exulta no Espírito Santo (Lc 10,21). E , por últim o, em virtude do
“Espírito eterno” se oferece ao Pai na paixão e na m orte (cf. Hb 9,14). Não
é portanto indiferente a ação do Espírito em Jesus para levar a cabo sua vida
filial no cumprimento da missão que o Pai lhe confiou. Basílio de Cesaréia
resumiu assim as diversas afirmações neotestamentárias:
No plano da salvação para os homens... quem pode duvidar que se cumpre
com a graça do Espírito Santo? [...] E depois, as coisas ordenadas à vinda do
Senhor na carne [realizaram-se] mediante o Espírito Santo. Em primeiro
lugar, ele esteve com a mesma carne do Senhor, convertido em unção e de
maneira inseparável, segundo está escrito: Aquele sobre o qual verás baixar e
permanecer o Espirito émeu Filho amado (Jo 1,33; Lc 3,22). E: Jesus de Nazaré,
a quem Deus ungiu como Espirito Santo (At 10,38). E depois toda a atividade de
Cristo se levou a cabo com a presença do Espírito Santo90.

59. Efetivamente o Espírito é todo o contrário da coerção. N o ta com razão Bordoni


(op. d t-, 239) seguindo a Cantalamessa, que não basta afirmar a liberdade humana de Jesus,
mas se deve também levar em conta seu exercido efetivo, nessa dinâm ica e tensão que leva
até o cumprimento do projeto original do Pai.
60. De Spir. Soneto 16,39 (SCh 17bis, 386). C f. também ibid., 19,49 (418-420);
AMBRÓSIO de M ilão, De spir. soneto ffl 1,2.5-6 (CSEL 79, 150-151). JOÃO PAULO H,
Dominum et vmifieontem, 40: “N o sacrifício do Filho do homem o Espírito Santo está pre­
sente e atua do mesmo modo que atuava em sua concepção, em sua entrada no mundo, em
sua vida oculta e em seu ministério público”.

80
A REVELAÇÃO D E DEUS NA VIDA DE JESUS. ESTUDO B BU C O -TEO LÓ G IC O

Jesus, ungido no Jordão, pode assim começar sua vida pública e sua
missão61. Parece portanto mais conseqüente, sem esquecer uma presença
do Espírito em Jesus e sua condição pessoal de Messias desde sua vinda ao
mundo, colocar no momento de seu batismo a unção messiânica que o
habilita para o exercício do ministério entre os homens.
O segundo ponto controvertido refere-se ao sujeito ativo dessa un­
ção. E o Pai ou o próprio Filho que unge sua humanidade? Vistos os tes­
temunhos do Novo Testamento e da primeira tradição cristã, não parece
suficiente considerar que o Logos unge sua humanidade com o Espírito
que possui e lhe é próprio. E antes de tudo o Pai que realiza essa unção.
Não parece que responda à mentalidade do Novo Testamento dizer que o
Filho unge sua própria humanidade no Jordão. Notem os, além disso, que
a descida do Espírito Santo sobre Jesus, sua unção messiânica, há de ser
vista em relação com a voz do céu que proclama Jesus Filho: “Tu és meu
Filho, o amado, em ti pus minhas complacências” (M c 1,11; Lc 3,22; M t
3,17), e inclusive: “Eu te gerei hoje” (SI 2,7; variante de Lc 3,22). A iden­
tidade de Jesus como Filho põe-se nesse momento de manifesto, e a des­
cida do Espírito Santo não pode ser separada da realização da obra que
Jesus, como Filho de Deus, levará a cabo por encargo do Pai. O momento
do batismo se faz assim capital para a revelação da filiação de Jesus, em
plena identificação pessoal com a missão que o Pai lhe confiou62.
Em relação com esse problema há de se ver também o da “identida­
de” do Espírito que desce sobre Jesus. Aludimos às dificuldades da teologia
patrística nessa precisa identificação. E evidente que hoje não podemos te r
dúvidas sobre essa identidade. Sobre Jesus desce o Espírito Santo, o Espí­
rito do Pai e do Filho. Mas com isso nem tudo está dito. Há uma história
da revelação do mistério de Deus, do mistério trinitário e, por conseguin­
te, do m istério do Espírito Santo. No m omento do batismo, o Espírito
ainda não se manifesta plenam ente como o Espírito do Filho. Essa m ani­
festação terá lugar no momento da ressurreição. Voltaremos oportuna­
m ente a esse ponto. O Novo Testamento nunca se refere ao Espírito do
Filho ou de Jesus quando fala do Espírito que desce sobre ele no Jordão e

61. F. BOVON, op. d t., 180, sobre o batismo de Jesus: “Q ue o Espírito Santo tenha
operado no nascimento milagroso de Jesus não significa para Lucas que o Messias tenha já
alcançado sua perfeição. Para sua missão (mais do que para ele mesmo) recebe agora o
assentim ento e a assistência da foça divina”. Cf. ibid. 220, sobre Lc 4,18.
62. H . U. von Balthasar, Teodramãtica 3 (cit) 194, 205, a identificação de Jesus com
sua missão e a definição de quem está para Deus em relação com a voz do batismo; cf.
também 187;209.

81
VISÃ O HISTÓRICA

no qual é ungido. M as já na vida mortal de Jesus algo se revela do fato de


que o Espírito é também o Espírito do Filho: Jesus possui o Espírito como
algo próprio, não só como algo recebido de fora63. Enquanto é o Espírito
do Pai o que vem sobre Jesus, este é impelido a realizar sua missão. E n­
quanto é o Espírito do Filho, este, em Uberdade interior, faz-se obediente
ao Espírito do Pai que o guia. O Espírito Santo não é para Jesus um mero
princípio externo, mas habita nele e nele permanece como em seu lugar
natural. Dessa disponibiUdade do Filho na livre obediência ao Pai mani-
festa-se historicam ente a filiação eterna de Jesus. N a plena manifestação
dessa fifiação na ressurreição também se manifestará plenam ente a identi­
dade do Espírito como Espírito do Pai e do Filho, porque nesse momento
Jesus ressuscitado poderá dá-lo.
E verdade que no momento mesmo do batismo de Jesus de alguma
maneira já receberam o Espírito Santo todos os homens, enquanto o rece­
be Jesus, a “cabeça”64. Mas nesse m om ento o dom a todos ainda não é
efetivo. O Espírito ainda não revelou todas as suas virtualidades, não foi
plenamente manifestado em seus efeitos como acontecerá em Pentecostes,
depois da ressurreição e exaltação do Senhor à direita do Pai. Porém, o
batismo do Senhor é um momento de manifestação de Jesus Filho em sua
unção no Espírito por iniciativa do Pai, e por isso é um momento capital
na história da manifestação do Deus trino.
Devemos ter também presente o momento da transfiguração do Se­
nhor, que em tantos aspectos recorda o batismo. A nova proclamação de
Jesus como Filho de Deus, em termos m uito semelhantes aos do batismo
(cf. Mc 9,7; M t 17,5; Lc 9,35), ocupa sem dúvida um lugar central. M os-
tra-se assim a meta final da glória (cf. Lc 9,32) para a qual leva o caminho
de Jesus que deverá passar pela morte.

6. A Trindade e a cruz de Jesus

Se no mistério pascal da morte e ressurreição de Jesus chega a vida


dele ao seu momento culminante, nada tem de particular que precisamen­
te nesse instante tenha também lugar a manifestação do Deus trino. Já
insinuamos como a entrega de Jesus à m orte que nos purifica do pecado

63. Cf. González de CARDEDAL, La entrana dei cristianismo, Salamanca, 1997,714-


719.
64. Cf., além dos textos citados, ATANÁSIO, Contra Ar. 146-48 (PG 26,108-113).
Também HILÁRIO de Poitiers, In Mt 2, 5-6. C f. LADARIA, op. cit., 563ss.

82
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS- ESTUDO BÍBLICO-TEOLÓGICO

realiza-se em virtude do Espírito eterno (H b 9,14), que há de ser identifi­


cado provavelmente com o Espírito Santo do qual fala a carta no mesmo
contexto (Hb 9,8). O Espírito foi comparado ao fogo do sacrifício em vir­
tude do qual Jesus leva a cabo seu total oferecim ento ao Pai6S. N o m istério
pascal acontece sem dúvida o momento fundamental da revelação do mis­
tério de Deus amor, da paternidade e da filiação divina no Espírito Santo.
N a m orte de Jesus manifestou-se o amor que ele nos tem, mas também o
am or do Pai por nós pecadores (Cf. Rm 5,6-10; 8,32.35). O m istério pascal
há de ser visto sempre na unidade de m orte e ressurreição. Só por razões
de facilidade tratamos prim eiro da revelação do mistério de amor na cruz66,76
para passar depois à ressurreição.

A REVELAÇÃODATRINDADE NA CRUZ NA TEOLOGIA CONTEMPORÂNEA

N o campo da teologia católica despertou interesse — e também con­


trovérsia — o pensamento de H . U. von Balthasar sobre essa questão,
desenvolvido em diferentes escritos, mas sobretudo em sua teologia do
m istério pascal publicada em Mysterium Salut&7.
Von Balthasar observa que, segundo o Novo Testamento, Jesus entre­
ga-se à m orte por nós em obediência e acordo perfeito em “ser entregue”.
M as também do Pai se diz que entrega Jesus, seu Filho, e com isso mostra
que nos ama (cf. Rm 8,32; Jo 3,16). Tkmbém C risto nos ama (Rm 8,35; G1
2,20. E f 5,1), e quando se entrega à m orte manifesta ao mesmo tem po seu
am or e o amor do Pai por nós. Por isso “a teologia da entrega não admite
outra armação do que a trinitária. Que Deus ‘entrega’ seu Filho deve ser

65. Cf. A.VANHOYE, L’E sprit étem elet le feu du sacrifice em H b 9,14, in Bit 64
(1983) 263-274. Observa a esse propósito JOÃO PAULO H, Dommutn et Vrotficantem, 40
“O Filho de Deus, Jesus C risto, com o homem, perm itiu ao Espírito Santo, que já tinha
im pregnado intimamente sua humanidade, a transformasse em sacrifício perfeito m ediante
o ato de sua morte, com o vítima de amor na cruz. O Espírito Santo atuou de maneira
especial nessa autodoação absoluta do Filho do homem para transformar o sofrim ento em
am or redentor”.
66. H á ampla informação sobre o tema em G . M. SALVATT, 7eologia uinitarta delia
croce, Tòrino, 1987; e N . CIOLA, Teologia trmitaria. Storia-Metodo-Prospetáve, Bologna,
1996,165-197. Cf. as considerações sobre a im portância do mistério pascal para a teologia
da Trindade em G. LAFONT, Peut-on connaître Dieu en Jésus-Christ?
67. El mistério pascual, MySal 3/2, 143-335. As notas seguintes referem -se a essa
obra, caso não se indique o contrário. Claro que não podemos fazer aqui uma exposição
exaustiva de seu pensamento, Centramo-nos sobretudo nos aspectos trinitários. Cf. G.
M ARCHESI, La cristologia trmitaria di Hans Urs von Balthasar, Brescia, 1997, 524-534.

83
VISÃO HISTÓRICA

entendido em um sentido forte, não só no de um ‘envio’ ou ‘dom’, senão


que o Pai entregou totalmente C risto ao destino de m orrer”68. A essa ini­
ciativa do Pai corresponde a obediência de Jesus até a m orte. Já no começo
da Paixão a reductio in oboedientiam é o essencial da oração do H orto cujo
único objeto é dizer “sim” à vontade do Pai na renúncia à vontade própria;
todo o sentido da oração está em preferir a vontade do Pai por si mesma69.
Mas no sofrimento de Jesus, na kenose total, aparece a glória de Deus,
“brilha a glória de Deus no rosto de Jesus Cristo” (2Cor 4,6)70. Isso não
significa para von Balthasar que se elimine o realismo da paixão. Muito ao
contrário: “N ão há que adoçar o que se refere à cruz de Cristo, como se o
crucificado, sem sofrer comoção alguma em sua união com Deus, se tives­
se dedicado a cantar salmos e tivesse morrido na paz de Deus”71. O grito
de abandono que nos transmitem os evangelistas (M t 27,46; M c 15,34)
não é simplesmente a recitação do Salmo 22[21], senão que nele se nos
mostra em seu grau máximo a experiência real de abandono; tal experiên­
cia não pode ser menor do que a que tantos experimentaram, na antiga e
na nova aliança, Ireneu, contra os gnósticos, estabeleceu o princípio se­
gundo o qual C risto não pode exigir de seus discípulos sofrimentos que ele
mesmo não tivesse experimentado (cf. Adv. Haer. Hl 18, 5-6)72.37A unidade
da cruz e da glória, que é característica da teologia de João, permite-nos
ver na imagem do crucificado a última interpretação de Deus a quem nunca
n in g u ém viu (cf. Jo 1,18). Em Jesus crucificado, embora a luz da glorifica­
ção já se inicie nesse momento, acontece por conseguinte a máxima reve­
lação de Deus.
Porém resta precisar qual é o alcance desse abandono de Jesus por
parte do Pai, que paradoxalmente nos revelará os mistérios do amor divi­
no. O abandono de Jesus por Deus é tão irrepetível como é irrepetível o
Filho75. Em concreto, isso quer dizer que Jesus, no abandono e na passivi­
dade total que supõe a vivência do “sábado santo” (não só da dor da cruz
que com a m orte tinha alcançado seu fim), chegou a experimentar a vivência
do condenado: essa vivência “não tem por que ser outra coisa do que exige

68. Ibid. 212. Von BALTHASAR cita, nesse contexto, W. PO PK ES, Christus traditus.
Eme Untersuchung zum Begriffder Dabmgabe im Neuen Testment, Z ürich, 1967. Cf. também
BALTHASAR, Teodramdtica 4.1st action, M adrid, 1995, 294ss.
69. Cf. MySal, 207s.
70. Ibid., 218
71. Ibid., 220. C f. também BALTHASAR, Teodramdtica 3. Las personas del drama. El
bombre en Cristo. M adrid, 1993,485s.
72. Cf. MySal, 222s.
73. Ibid., 192.

84
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS. ESTUDO BÍBLICO-TEOLÓGICO

tuna autêntica solidariedade no sbeol, não iluminado por luz salvadora al­
guma, pois toda a luz da salvação procede exclusivamente de quem foi
solidário até o final; e se ele pode transm itir a luz é porque vicariamente
renunciou a ela”74. O autor observa: é “a experiência do pecado como tal”
que significa a total impotência e passividade:
Agora pertence Cristo aos refaim, aos impotentes. Agora não pode empreender
uma luta ativa contra as “forças do inferno”, nem pode triunfar subjetivamente,
porque ambas as coisas supõem vida e força. Mas sua extrema debilidade pode
e deve coincidir com o objeto de sua visão da segunda morte, que por sua vez
coincide com o puro pecado enquanto tal, não ligado a nenhum homem con­
creto nem encarnado em uma existência viva, senão abstraído de toda
individuação e contemplado em sua realidade nua, enquanto pecado75.

Temos assim a manifestação máxima do abandono e de kenose do


Filho. N a distinção e ainda “oposição” entre a vontade do Pai e do Filho
(cf. M t 14,36 par), assim como no abandono na cruz, faz-se presente a
oposição “econômica” entre as pessoas divinas, mas essa mesma oposição
é a manifestação última de toda ação unitária de Deus76, cuja lógica interna
se põe de manifesto na unidade inseparável da morte na cruz e da ressur­
reição. A revelação plena do mistério pascal acontece na ressurreição, mas
se preparou na oposição de vontades no horto e no abandono da cruz77. N a

74. Ibid., 256. Ver todo o contexto, esp. 253: “Se o Redentor, por sua solidariedade
com os m ortos, os poupou de toda experiência de estar m orto (enquanto à pena de dano)
fazendo que uma luz celeste de fé, esperança e amor iluminassem sempre o “abismo”, é
porque carregou vicariamente com toda essa experiência”. Porém , in BALTHASAR,
Tbeòlogik II. Wabrbeit Gottes, Einsiedeln, 1985,315 (nota 1, el A) parece abandonar o con­
ceito de “solidariedade com os m ortos”.
75. MySal, 256. Ver M . K EH L; W. LÕSER (eds.), In der FüUe des Glaubem. Haas
Balthasar Lesebuc, Freiburg-Basel-W ien, 1981, 158. “Temos também no sábado santo, a
descida de Jesus m orto ao inferno, quer dizer (simplificando m uito) sua solidariedade no
não-tem po com os perdidos longe de Deus. Para eles, essa escolha — com a qual escolhe­
ram seu “eu” em lugar do Deus d o amor desinteressado — é definitiva. A essa definitividade
da m orte desce o Filho m orto, de nenhuma maneira porém ativo, senão privado de todo
poder e iniciativa própria, com o aquele do qual se dispõe completamente, rebaixado até a
pura m atéria, totalm ente indiferente na obediência do cadáver, incapaz de toda solidarie­
dade ativa e de qualquer “pregação” aos m ortos. Por am or está m orto juntamente com eles.
£ justam ente desse modo destrói a absoluta solidão pretendida pelo pecador: o pecador,
que quer ser “condenado” longe de Deus, encontra de novo a D eus em sua solidão, mas o
Deus da absoluta impotência do amor”. Cf. Também BALTHASAR, op. c it, 314-329.
76. C f. BALTHASAR, Teodramática, 4 , 220.224: o abandono é também um momento
da “conjunção” das pessoas. Essa conjunção subjaz sem pre à separação.
77. MySal, 279,287.

85
VISÃ O HISTÓRICA

história da paixão se nos manifesta a relação patemo-filial Lntradivina. Desde


essa "separação” econômica podemos entender algo da doação total do Pai
e do Filho, que de algum m odo é uma prim eira “separação” intradivina
sem pre superada pela união no Espírito de amor. Naturalm ente, essas
considerações devem ser completadas à luz da ressurreição; assim, nos re­
metemos a nossa exposição ulterior.
Há que reter como valor irrenunciável também aqui, em paralelo com
o que víamos em nosso estudo da unção de Jesus, a consideração da histó­
ria da paixão como evento entre o Pai e o Filho no Espírito Santo, e por­
tanto em sua dimensão trinitária ineludível. N ão basta vê-la como uma
questão de relação entre divindade e humanidade em Cristo, por mais que
essa dimensão não possa estar ausente. M as há de ser enquadrada no mis­
tério da relação patem o-filial. E Jesus, o Filho, que se sente abandonado
pelo Pai, e não só “sua humanidade”. Devemos reter também a realidade do
abandono e da escuridão que Cristo experimenta em sua paixão. A força das
afirmações sobre Jesus feito pecado por nós não pode ser minimizada, lo d o
o amor do Pai que entrega aos homens o Filho de seu amor, e do Filho que
se entrega na obediência, ainda na angústia e na escuridão, na solidariedade
com os pecadores afastados de Deus, aqui se manifesta. Daí a passar às afir­
mações que reproduzimos sobre o sábado santo e a levar o abandono de
Deus à separação própria do condenado, há um passo que não me atrevo por
m in h a conta a dar. O sábado santo foi vivido como momento de esperança,
e na tradição foi visto antes como o momento de salvação que Jesus traz aos
que no hades experimentam o afastamento de Deus78.
A teologia da cruz foi central em Lutero. N ela está o lugar da reve­
lação de Deus. Já em suas teses de Heidelberg observa que não é verdadei­
ro teólogo o que vê o invisível de Deus através da criação, mas o que
entende o invisível e as costas de Deus pela paixão e pela cruz79. Nada tem

78. Cf. A. GRILLM EIER, D er Gottessohn im Tòtenreich. D oteriologische und


christologische M otivierung der Descensuslehre in der älteren Christlichen Überlieferung,
in Mi Ihm und in Um. Christologiscbe Forschungen und Perspektiven, Freiburg-Basel-W ien,
1978,76-174. Cf. ORBER, E l “Descensus ad inferos’y san Irineo, Greg 68 (1987) 485-522.
O mesmo von Balthasar, em Theologik II, 316, reconhece que se refere ao C risto triunfante
que desceu aos infernos segundo as imagens da Igreja oriental, e está consciente de que se
afasta dessa tradição.
79. Tese 19-20 (WA 1,354) “N on ille veras theologus dicitur, qui invisibilia Dei per
ea, quae facta sunt intellecta conspirit, sed qui visibilia e t posteriora D ei per passiones et
crucem intelligit”; outras expressões significativas: “Crux sola est nostra theologia” (WA 5,
176); “Crux Christi unica est eraditio verborum D ei, theologia sinceríssima” (ibid. 216); cf.
H . BLAUMEISER, Martin Luthers Kreuzestbeologie. Eine Untersuchunganhand der Operationes
in Psahnos (1519-1521), Paderborn, 1995, esp. 98ss.

86
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS. ESTUDO BÍBLICO-TEOLÓ GICO

de particular que os autores protestantes tenham seguido esse caminho. A


relação entre a cruz e o mistério trinitário foi espedalmente estudada por
J. Moltmann e E. Jüngel.
Moltmann desenvolveu o tema sobretudo na sua conhecida obra Der
gekreuzigte Gott (O Deus crucificado)80. Suas preocupações fundamentais
são, de um lado, sair do esquema demasiado estreito da teologia das duas
naturezas de Cristo, que se limita somente à relação divindade-humanidade
e deixa de lado a dimensão trinitária da cristologia. Por outro lado, quer
também acentuar a insuficiência do teísmo para dar razão do Deus trino e
do mistério pascal. Para o aspecto que ora nos interessa, o ponto de partida
das reflexões do autor são as fórmulas do N ovo Testamento, em concreto
as de Paulo e João, sobre a “entrega” de Jesus por parte de Deus para a
salvação dos “sem-Deus” e a definição do Deus amor que, em relação com
essa entrega, aparece em ljo 4,8.16. O am or de que aqui se fida vê-se
realizado na cruz. “Deus é amor” significa que existe no amor, e existe no
amor no acontecimento da cruz. N a cruz o Pai e o Filho estão separados
no mais profundo no abandono de Jesus e ao mesmo tempo, na entrega,
estão unidos no mais profundo. Desse acontecimento entre o Pai e o Filho
vem o Espírito, que justifica os “sem-Deus”, enche de amor os abandona­
dos e ressuscita os m ortos. O que acontece na cruz sucede antes de tudo
“entre Deus e Deus”, produz uma profunda separação em Deus, porque
Deus abandona Deus (o Pai abandona o Filho) e assim contradiz-se a si
mesmo; mas ao mesmo tem po produz-se em Deus uma profunda unidade,
que se mostra no Espírito que une o Pai e o Filho. E o Espírito que deve
ser entendido como o Espírito da entrega do Pai e do Filho, e ao mesmo
tem po é o Espírito que suscita amor para os homens abandonados e que dá
a vida aos m ortos81.
Essas frases deixam entrever que o Espírito “vem a ser” no aconteci­
m ento da cruz. D ecerto não podemos desconhecer outras afirmações de
M oltm ann sobre a “constituição” da Trindade, em que faz amplo uso dos
conceitos tradicionais. M as as relações entre a Trindade econômica e a
Trindade imanente nem sempre se expõem com toda a clareza desejável82.
Assim continua M o ltm a n n suas reflexões sobre o mistério da cruz:

80. Der gekreuzigte Gott. Das Kreutz Christi als Grund und Kritik christlicher Theologie,
M unique, 1972. E também Trinität und Reich Gottes. Zur Gotteslehre, M unique, 1980. N ão
podem os seguir aqui o debate suscitado por essas obras.
81. Cf. Der gekreuzigte Gott..., 229-232.
82. Cf- Trinität und Reich Gottes, 165s, 168s, 275s, 178-193, com a distinção entre a
constituição da Trindade e a vida da Trindade.

87
VISÃO HISTÓ RICA

Interpretamos aqui o acontecimento da cruz como um acontecimento entre


pessoas, em que essas pessoas se constituem em suas relações recíprocas. Com
isso, não vimos padecer somente uma pessoa da Trindade, como se a Trinda­
de estivesse já “à disposição” (vorhanden) em si mesma, na natureza divina...
Esse ponto de partida é novo a respeito da tradição. Supera a dicotomia entre
Trindade econômica e Trindade imanente, como entre a natureza de Deus e
sua “triunidade” interna. Assim faz-se necessário o pensamento trinitário para
a plena percepção da cruz de Cristo... Assim a doutrina trinitária é só um
resumo da história da paixão de Cristo em sua significação para a liberdade
escatológica da fé e da vida da natureza oprimida (verdrangffJ.

N ão é pois indiferente para a vida da Trindade a historia salutis, e, em


concreto, a cruz de Jesus. Também M oltmann insiste no abandono de Cristo
na cruz, abandono que traz consigo que o abandono de Deus, a m orte
absoluta, não o divino, seja demolido. Esse abandono é tal que chega a
converter-se em total oposição: “Nemo contra Deum nisi Deus ipse”8 84.
3 A
salvação dos homens realiza-se para M oltmann nessa “oposição” Pai-Fi­
lho que para ele significa o abandono: dessa “história” entre o Pai e o Filho
vem o Espírito da vida8S.
Portanto, não há que pressupor um conceito de Deus, há que partir
do que aqui se mostra. A partir da cruz de Jesus deve-se determinar o que
se entende por Deus. Quem fala dele do ponto de vista cristão tem de
contar a história de Jesus como história entre o Filho e o Pai. Deus é então
não uma natureza diversa, não uma pessoa celeste, mas um “acontecimen­
to”; mas não um acontecimento de comunidade na humanidade (M it-
menschlicbkeit), senão o acontecimento do Gólgota, o acontecimento do
amor do Filho e da dor do Pai, de quem brota o Espírito que abre o futuro
e cria a vida86. O mesmo M oltmann se pergunta: que significa então o
Deus pessoal? Porque não se pode rezar a um acontecimento. A resposta
é que não há um Deus pessoal como uma pessoa projetada no céu. Mas há
pessoas em Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Ora-se, pois, “em” esse
acontecimento, “mediante o Filho se ora ao Pai no Espírito Santo”87. O
Pai amoroso suscita a perfeita correspondência no Filho também amoroso,
e cria, no Espírito Santo, a correspondência do amor no homem que se lhe

83. Der gekreuzigte..., 232.


84. Ibid., 233. A expressão vem de Goethe; cf. BALTHASAR, Teodramdtica 3..., 486.
85. Cf. Der gekreuzigte, 233.
86. Ibid.
87. Ibid., 234.

88
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS. ESTUDO BÍBLICO-TEOLÓGICO

opõe. Tudo isso ocorre na cruz: nela Deus plenifica seu amor incondicio­
nal e cheio de esperança. Assim, a Trindade “não é um círculo fechado em
si mesmo no céu, mas um processo escatológico, aberto para o homem no
mundo, que sai da cruz de Cristo”88. N ela Jesus é rejeitado pelo Pai, sofre
a m orte dos sem-Deus para que todos possam ter comunhão com ele.
M oltmann tem formulações muito fortes para o abandono de Jesus, que
chegaria em sua agonia até a experiência do inferno; chega inclusive a falar
de um “conflito” trinitário, na separação entre o Pai e o Filho: “N a cruz o
Pai e o Filho estão separados até o ponto de interrom perem suas relações.
Jesus m orre sem Deus”89. Mas nessa separação o Espírito Santo é o vínculo
de u n iã o, que une tanto a separação como a união do Filho e do Pai.
M oltm ann recolhe aqui a antiga tradição do Espírito Santo como amor e
vínculo de união do Pai e do Filho, e a aplica a sua concepção da cruz de
C risto como separação radical do Pai e do Filho, em que o Espírito Santo
continua sendo o vínculo de união. N a doação do Filho mostra-se assim a
figura da Trindade: o Pai entrega seu Filho único à m orte absoluta por
nós; o sacrifício comum de Pai e Filho acontece no Espírito Santo, que
une e liga ao Pai o Filho abandonado90.
Sem dúvida, a profundidade da vida trinitária manifesta-se na cruz de
Cristo, e não é um caminho equivocado ver nesse supremo momento de
amor o caminho para penetrar nos m istérios do ser divino. N a doação
de Jesus mostra-se a própria doação do Pai. Nesse sentido, não se pode
deíTar de ver o aspecto positivo do pensam ento de Moltmann. Devemos
questionar porém se o Deus contra Deus desse autor encontra suficiente
justificação à luz do Novo Testamento, que ao mesmo tempo que nos conta,
e não dissimula, a angústia e a escuridão que Jesus experimenta também
nos fala de sua obediência à vontade do Pai e sua entrega confiante a ele.
Por outra parte, levantaram-se dúvidas sobre a “constituição” da Trindade
na cruz91. Nossas reflexões posteriores nos obrigarão a voltar a esses temas.
M encionamos também Eberhard Jüngel como outro dos autores pro­
testantes que querem contem plar o m istério de Deus a partir da cruz de
Cristo. Seu pensamento tem pontos de contato com M oltmann, embora

88. Ibid., 235s.


89. Trinität und Reich..., 93; cf. também Der gekreuzigte..., 265, também 230: o Pai no
abandono do Filho abandona-se também a si mesmo, sofre a m orte do Filho; à m orte do
Filho corresponde tam bém , p o r parte do Pai, a m orte de sua paternidade.
90. Trinität..., 98-99.
91. Cf. J. AKCVA, An den dreienen Gott glauben, Frankfurt am Main, 1994, 224;
BALTHASAR, Teodramdtica 4 ..., 398ss.

89
V ISÃ O HISTÓRICA

apresente m aior complexidade. N a introdução a sua obra capital, Deus como


mistério do mundo92, Jüngel coloca com toda clareza o problem a que quer
abordar: “Para a responsabilidade cristã da palavra ‘Deus’ o Crucificado é
precisamente algo assim como a definição real do que com a palavra ‘Deus’
se quer dizer. Por isso a teologia cristã é fundamentalmente teologia do
crucificado”93. D iante das idéias de um Deus impassível, distante, que se
deram de fato na teologia cristã e puderam dar lugar ao ateísmo, impõe-
se outro caminho. A idéia de Deus chega-se a partir da dureza da fé em
Jesus Cristo94. Para Jüngel é problem ático o caminho da metafísica clássi­
ca, em favor da qual vê boas razões. M as pensa que por essa via não se
chega ao definitivo. O homem contem porâneo é alérgico à idéia de um
D eus pensado como “absoluto”, necessário etc., de tal m aneira que, ante
sua soberania, o am or e a misericórdia resultam propriedades subordina­
das e secundárias95. O lugar em que o ser de Deus se revela em plenitude
é a morte e ressurreição de Jesus. Na m orte de Jesus Deus viu a m orte de
frente. A soberania de Deus deve pôr-se antes de tudo no amor, e por isso
é necessário pensar no sofrimento. N o batismo de Jesus se ouviu uma voz;
no Gólgota, ao contrário, Deus estava calado96.
Deve-se enfrentar o problema da “morte de Deus”. Mas qual é o
sentido desse discurso? Na m orte de Jesus a última palavra não é a escu­
ridão, mas a luz que ilumina a escuridão da morte. N a cruz de Cristo Deus
se nos mostra como um movimento para o profundo, um movimento
incontível para o fundo da miséria terrena. Isso inverte nossas idéias sobre
a onipotência. O fato de que Deus tenha sido afetado no mais íntimo pela
morte do Filho mostra que a dor e a m orte foram vencidas em sua raiz.
Deus mesmo vai à morte, na morte do homem Jesus entrega a divindade
ao golpe da morte, para ser, na dor da m orte, o Deus para os homens97.89No
crucificado pode-se conhecer a Deus. D aí a tese de Jüngen do crucificado
como vestigium trinitatis*. N a morte de Jesus inaugura-se uma nova rela­

92. Gott als Geheimnis der Weh. 7m Begründung der Theologie des Gekreuzigten im
Streit zwischen Theismus und Atheismus, Tübingen, 1997 (Dios como mistério del mundo,
Salamanca, 1984).
93. Ibid. 15 (Dios como mistério..., 31).
94. Cf. F. RODRÍGUEZ GARRAPUCHO, La cruz deJesusy eiserde Dios, Salamanca,
1992,95.
95. Gott als Geheimnis, 52.25 (64.41).
96. Cf. RODRÍGUEZ GARRAPUCHO, op. d t, 99-100.
97. Cf. E. JÜ N G EL, Das dunkle W ort vom “Tode G ottes”, Evangelische Kommentare
2 (1969) 133-138; cf. RODRÍGUEZ GARRAPUCHO, 109-110.
98. Cf. Gott als Geheimnis, 470ss (esp. 438ss).

90
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS. ESTUDO BÍBUCO-TEOLÔGICO

ção do homem com Deus, porque o ser de Deus revela-se em toda a pro­
fundidade de sua vida somente com a m orte de Cristo". Deus mostra-se
como Deus na vitória sobre a morte. “A fé anuncia e narra a tensão entre
vida eterna e morte temporal que determina o ser mesmo de Deus co­
mo história de Jesus Cristo. Pensa e confessa essa história no conceito do
D eus uno e trino.”9 1900 Em outros lugares fala Jüngen da identificação
de Deus com o crucificado. A fé no homem Jesus, crucificado por nós
como o Filho de Deus, pressupõe a identificação de Deus com Jesus e a
autodiférenciação trinitária de Deus. U m a identificação na distinção, pois
se não se desse essa diferenciação Deus ficaria apanhado em sua própria
m orte. Mas Deus manifesta-se como vencedor nessa morte. Por isso Deus
é aquele que pode suportar em seu ser a força aniquiladora do nada, a
negação que é a m orte, sem nela ser aniquilado101.
O Deus cristão é o Deus capaz de expor-se ao nada, e assim se mostra
e se define como am or na cruz de Jesus. “O especial acontecim ento
escatológico da identificação de Deus com o homem Jesus é ao mesmo
tem po o mais íntimo m istério do ser divino. N o acontecimento especial da
identificação de Deus com o crucificado, Deus se expressa como aquele
que desde sempre é em si mesmo.”102301Q uer dizer, Deus não se converte em
am or no instante da m orte de Cristo, senão que nesse momento o amor
divino se manifesta. A frase “Deus é am or” (o risco da auto-entrega, o
risco do nada) é a interpretação da auto-identificação de Deus com o ho­
mem Jesus crucificado102.
Jüngen fala da história de Deus explicando que essa história de amor
revelada em Cristo é justam ente Deus mesmo. D eus é ao mesmo tem po o
amante e o amado. Isso é possível pela distinção trinitária, Pai e Filho. Isso
porém ainda não é o am or mesmo104. Isso vem só quando o amor se abre
a um terceiro, o Espírito distinto do Pai e do Filho. O acontecimento do
am or dá-se quando o Deus Pai, separando-se do amado (Filho), não só se
ama a si mesmo, mas inclui o totalm ente diferente dele (mundo e homem)
por obra do Espírito. D eus se tem a si mesmo doando-se, sua autopossessão
é o evento de sua doação, a história de presentear-se a si mesmo. A essência

99. C f. Ibid., 471 (439).


100. Ibid.
101. Ib id ., 298 (287).
102. Ib id ., 299 (289).
103. Ib id ., 446 (418).
104. Ib id ., 448 (419-420).

91
VISÃ O HISTÓRICA

do amor é a capacidade sempre maior de desprendim ento. A cruz de


Jesus está no centro da revelação de D eus como amor, enquanto revela
D eus como Trindade: o amante é o Pai, o amado é o Filho que se entrega
e entregando-se chega ao outro diferente (ao homem m arcado pelo pe­
cado e pela m orte), o Espírito é o que faz possível que essa separação
chegue a superar-se englobando a m orte na vida divina de D eus: uO laço
do amor que une o Pai ao Filho, de tal m aneira que o hom em é introdu­
zido nessa relação de amor, é o Deus E spírito”105. Assim, a identificação
de Deus com o homem Jesus de Nazaré é obra conjunta do Pai, do Filho
e do Espírito Santo. Assim, Deus é amor. O amor humano surge porque
o outro é digno de amor. Em Deus é o contrário, Deus é am or e vai em
direção do perdido, do que por si não é digno de amor106. D eu nos mos­
tra o que é em sua vinda ao homem. P o r isso a fé cristã na Trindade não
se funda somente nos poucos textos trinitários que encontram os no Novo
Testam ento, mas na cruz de Jesus. Sem a história da vida e paixão de
C risto, os materiais do Novo Testam ento dão uma possibilidade para o
desenvolvimento da doutrina trinitária, mas essa não se faz nem m uito
m enos necessária107.
A morte de Jesus é assim um acontecimento entre D eus e Deus, “de
modo que o abandono de Jesus por parte de Deus aparece como a obra
mais originalmente própria de Deus”108. Deus mesmo “aconteceu” (Gott
ereignete sich selbst) nessa morte109. Se na ressurreição Deus identificou-se
com esse homem m orto, isso nos permite afirmar que se identificou com
ele na cruz e no abandono. Por isso o querigma do ressuscitado anuncia o
crucificado como autodefinição de Deus110. Nessa revelação como amor
manifesta-se o desprendimento (Selbstlosigkeit) de Deus, que não quer amar
a si mesmo sem amar a criatura. O “abandono” é parte integrante da re­
velação da Trindade. Pondo-se Deus da parte do abandonado de Deus,
distinguiu-se a si mesmo e foi capaz de dar ao mundo a reconciliação e a
salvação que o mundo não poderia nunca dar a si mesmo. Deus que recon­
cilia o mundo consigo, na medida em que na m orte de Jesus se contrapõe
como Deus Pai e D eus Filho sem deixar de ser uno111. 0 Espírito é a união

105. Ibid., 450 (421).


106. Ibid., 250ss.
107. Ibid., 480 s (446).
108. Ibid., 466 (461 mod.)
109. Ibid., 497 (462).
110. Ibid., 498 (493; e ao mesmo tempo define o homem Jesus com o Filho de Deus.
111. Ibid., 504 (468).

92
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VID A DE JESUS. ESTUDO BÍBLICO-TEOLÓGICO

e a força que dá a possibilidade de correspondência humana ao ser de Deus,


a fé. A essência das relações em Deus é o amor, a essência de Deus é doação
(Dabingabe). Assim, na cruz se manifesta como um “transbordamento” do
ser divino, quando na m orte de Jesus Deus se entrega por todos os homens.
Tildo isso, Deus o faz por amor, e por conseguinte em liberdade. N o amor
não se contrapõem as referências a si e ao outro: as duas coisas vão juntas. O
amor transborda, assim Deus é amor em seu ser trinitário. O ser de Deus
como Trindade de pessoas está constituído pelas relações. Essas constituem
a essência e a existência de Deus. O Pai é o que ama a partir de si mesmo,
o amor se oferece a outro que é o Filho, e não há amor ao Filho sem amor
ao homem e ao mundo. N o amor do Pai ao Filho está o fundamento do
am or ao mundo e ao homem, em última instância, à criação. A entrega
do Filho, o mais próprio de Deus, atesta o amor do Pai. Deus não quis ser
ele mesmo sem o homem. Mas não somente Deus entrega o Filho: também
o Filho se dá livremente, se entrega. Em Deus há, pois, correspondência.
Em Jesus o amor chega a seu cúmulo, à máxima realização, por isso chega
ao cúmulo a revelação da Trindade112.31
A entrega do Pai no Filho não é a contraposição anuladora, porque o
Espírito, preservando a distinção do Pai e do Filho, constitui a unidade do
ser divino como aquele acontecimento que é o amor mesmo. O Espírito
vinculvm caritatis é além disso o dom ao homem, é a relação etem am ente
nova do Pai e do Filho que abre o amor divino aos outros, implica o ho­
mem em sua relação Pai-Filho11J.
Nesse contexto alude nosso autor ao axioma de K. Rahner sobre a iden­
tificação entre a Trindade econômica e a Trindade imanente. A relação en­
tre esse axioma e a teologia a partir do crucificado parece-lhe evidente.
M as, na minha opinião, não aparece com clareza se para ele a economia
manifesta o que é desde sempre a vida imanente da Trindade, ou se nesse
acontecim ento Deus realmente “acontece” no sentido mais próprio da
palavra114. Certam ente é a economia salvífica que atrai sua atenção; a Trin­
dade imanente fica um tanto na penumbra.
Jüngel pensa ter destruído, mediante a distinção entre D eus e Deus
fundada na cruz de Jesus Cristo, as idéias da absolutez, da impassibilidade,
da imutabilidade de D eus que levaram ao ateísmo contem porâneo. O
ateísm o lutou contra o teísmo, mas também com a idéia cristã de Deus.

112. Ibid., 504-506 (468-470).


113. Ibid., 512-514 (475-477).
114. Ibid., 506-514 (470-477).

93
VISÃO HISTÓRICA

Será mesmo claro que eliminado o teísmo o D eus cristão vai fazer-se
mais compreensível aos homens? N o que se refere ao m istério pascal, é
claro que a cruz manifesta o am or de Deus, e nesse sentido é decisiva
para entender a Trindade. Jüngel fala do abandono do Filho pelo Pai,
mas não se expressou nos term os drásticos de oposição entre os dois que
vimos em M oltmann.
Dedicamos um pouco de espaço a esses autores porque sem dúvida
tiveram influência nos tempos recentes. Para com pletar nosso panorama
teológico, e antes de tirar brevemente nossa conclusões sobre esse ponto,
devemos fazer referência a um documento da Comissão Teológica Inter­
nacional que, embora tenha aceito algumas intuições que vão na linha dos
autores supracitados, mostrou grande prudência e evitou qualquer extre­
mo. O título do Documento é Questões seletas de cristologia, do ano de 1979,
e faz uma alusão marginal a esse problema; e para justificar o uso em
cristologia e soteriologia da noção de “substituição” afirma:
O homem foi criado para integrar-se em Cristo e com isso na vida trinitária,
e sua alienação de Deus, embora grande, não pode ser tão grande como a
distância entre o Pai e o Filho no seu aniquilamento kenótico (F12,7) e no
estado em que foi abandonado pelo Pai (Mt 27,46). Trata-se aqui do aspecto
econômico da relação entre as pessoas divinas, cuja distinção (na identidade
de natureza e do amor infinito) é máxima115.

Dois pontos merecem um breve comentário: em primeiro lugar, re­


colhe-se o tema do abandono de Jesus por parte de Deus, mas se renuncia
a toda especulação sobre as conseqüências desse abandono para além de
sua morte. N o contexto da substituição vicária faz-se referência à aliena­
ção de D eus do homem pecador, e se afirma que a distância entre o Pai e
o Filho, no aniquilamento kenótico do Filho e no abandono dele por parte
do Pai é ainda maior que a do pecador116. Parece, pelo contexto, que se há
de entender o pecador neste mundo não separado definitivamente de Deus;
no contexto soteriológico não teriam sentido outras especulações.
Em segundo lugar, a alusão à manifestação econômica da distinção
imanente das pessoas. O abandono de Jesus p or parte do Pai, que em

115. COM ISSIO TH EO LO G ICA , op. cit. (tf. nota 58), 629.
116. Cf. BALTHASAR, op. cit, 471: “Especular sobre a finitude ou infinitude da dor
resulta empresa vã; o único claro é que a tortura expiatória deve situar-se na profundidade
insondável de seu abandono pelo Pai; e assim já se demonstrou que a ruptura trinitária supera
e inclui todas as distâncias que separam Deus dos pecadores”. Cf. também ibid., 466s.

94
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS. ESTUDO BÍBLICO-TEOLÓGICO

todo contexto parece ser considerado “real”, e não só aparente, mostra


efetivamente a distinção das pessoas divinas. Essa distinção há de ser
vista sempre na unidade, como o texto observa claramente. M as não se
explica se nesse momento de abandono a unidade se expressa de algum
modo. Vimos que os teólogos estudados aludem ao Espírito Santo. Po­
dia-se também pensar em outro tipo de “abandono”, no abandono con­
fiante de Jesus nas mãos do Pai, expressado também com palavras de um
Salmo, que nos mostra o Evangelho de Lucas: “Pai, em tuas mãos enco­
mendo meu espírito” (Lc 23,46; cf. SI 31 [30],6). Mas nada se nos diz no
texto de maneira explícita117.

REFLEXÃO CONCLUSIVA

Q ue se há de dizer sobre a revelação trinitária no mistério da cruz?


Antes de tudo podemos afirmar que, com efeito, o momento em que se
mostra em seu grau máximo o amor de Deus por nós, na entrega de Cristo
na cruz, não pode ser indiferente para a revelação de quem é Deus. Jesus,
em toda a sua vida, é o que nos dá a conhecer a Deus. Parece portanto
coerente pensar que nesse momento supremo de sua existência nos diz
algo sobre o amor de D eus e por conseguinte sobre a vida do Deus trino.
Que a morte de Jesus é a manifestação do grande amor de Deus por nós
e o efetivo pôr em prática dele é uma afirmação constante no N ovo Tes­
tam ento (cf. por ex., Rm 5,8; 8,32-39; ljo 4,9-10). Que esse fato nos diz
algo sobre o ser do Deus amor em si mesmo é inegável.
M ostra-se esse am or na capacidade que tem Deus de pôr-se na situa­
ção do pecador: “Ao que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por
nós” (2Cor 5,21). Deus busca e acha o homem pecador chegando onde

117. A mesma Comissão voltou ao tema anos m ais tarde no documento Teologia —
Cristologia — Antropologia, que já conhecemos (Documentos dessa Comissão, M adrid, 1980-
1985, 7-26, 25s.). “Talvez se deva dizer o mesmo do aspecto trinitário da cruz de Jesus
C risto. Segundo a Sagrada E scritura, Deus criou livrem ente o mundo conhecendo na pres­
ciência eterna — não menos eterna que a geração do Filho — que seria derramado o
sangue precioso do Cordeiro im aculado Jesus Cristo (cf. lP d 1,19; Ef 1,7). N esse sentido,
o dom da divindade do Pai ao Filho tem um a íntima correspondência com o dom do Filho
ao abandono na cruz. Mas, já que também a ressurreição é conhecida como o desígnio
etem o de Deus, a dor da separação sempre se supera no gozo da união, e a compaixão de
Deus trino na Paixão do Verbo entende-se propriam ente como a obra do amor perfeitíssimo,
da qual há de alegrar-se. Pelo contrário, há que excluir completamente de Deus o conceito
hegeliano de ‘negatividade’”. Texto latino em Greg. 64 (1983) 5-24. 23ss.

95
VISÃO HISTÓRICA

esse se encontra118. Aludimos à distância entre o Filho e o Pai que o “abando­


no” de Deus significa. Jesus pode experim entar uma distância de Deus Pai
maior do que qualquer pessoa que se encontra afastada de Deus na vida
presente. Só o Filho, que experimenta como ninguém o amor do Pai e é
um só com ele, pode experimentar até esse extremo a escuridão que pro­
duz a dificuldade de aceitar os desígnios do Pai para ele. Deve-se entender
com todo realismo o uAbbá, Pai; tudo te é possível: afasta de mim este
cálice. Mas não se faça minha vontade e sim a tua” (Mc 13,36 par.). A
experiência de Jesus na solidão de sua paixão é, nesse sentido, irrepetível.
Assim pode reconciliar o mundo com Deus, ou melhor, nele o Pai pode
reconciliar o m undo consigo (cf 2C or 5,18-19). Mas, se é possível pensar
na realidade de um momento de escuridão de Jesus em sua relação com o
Pai, contudo nessa situação Jesus invoca a Deus como “Abbá” e põe a von­
tade misteriosa do Pai diante da sua. O pecador afasta-se de Deus na deso­
bediência, Jesus aceita sobre si as conseqüências desse pecado na obediência
ao desígnio do Pai. A diferença é fundamental. Alguns autores observam
que é possível que Jesus tenha recitado na cruz todo o Salmo 22, que co­
meça expressando a situação de desamparo, mas termina com um grito de
confiança em D eus119. Se Jesus pôde experimentar e expressar “toda a
angústia do Filho de Deus ao encontrar-se com as conseqüências da mis­
são que tinha recebido do Pai e que tinha aceito, de fazer-se plenamente
solidário com os homens pecadores”120, essa solidariedade não pode fazer
que o identifiquemos como um pecador a mais121. A relação de Jesus com
o Pai está sempre envolta em mistério, e no momento da m orte esse pode
fazer-se ainda maior. Os dados do Novo Testamento perm item -nos diver­
sas aproximações a esse mistério, que certamente não o desvelam a nós.
Devemos também reter um ponto que com razão foi acentuado pela
teologia dos últim os tempos, e ainda mais fortemente pelos autores a que
nos referimos. N ão é suficiente pensar na voz do abandono como “da
humanidade”. Em qualquer interpretação que demos dessa passagem difí-

118. BALTHASAR, Teodramática 2. Laspersonas del drama: el bombre en Dias, Madrid,


1992, 252s: “O mundo e a humanidade são criados no Filho: o extravio do homem para
uma finitude sem saída h z aparecer o centro, latente e oculto, do plano de D eus sobre o
mundo: a possibilidade da liberdade infinita de seguir o rastro extraviado até a última curva
de sua perdição”.
119. Assim KASPER, Jesus el Cristo, Salamanca, 1976; R. PESCH , Das Markuse­
vangelium II, Friburg-Basel-W ien, 1984,494-495.
120. J. VTVO, uSi oyerais su voz.” Santander 1988, 164.
121. Cf. CARDEDAL, op. c it, 578. Cf. todo o contexto.

96
A REVELAÇÃO DE DEUS N A VIDA DE JESUS. ESTUDO BÍBUCO-TEOLÓGICO

d l, trata-se sempre da voz do Filho que se dirige ao Pai. É certamente a


voz do Filho enquanto homem, encarnado e despojado de sua condição
por nós, mas no momento da paixão e da morte, como em todos os outros
da vida de Jesus, é sua relação com o Pai que está no prim eiro plano. A
história toda de Jesus, também a sua pando, morte e ressurreição, é a his­
tória da relação do Filho, certamente enquanto homem, com o Pai que o
enviou ao mundo, e que obedece até a m orte. Achamo-nos no âmbito da
relação entre as pessoas divinas, não só entre as duas naturezas de Cristo.
O Pai entregou seu Filho amado, entregou-o à morte, entregou-o nas
mãos dos homens (cf. M t 17,22). Há uma semelhança entre as fórmulas de
entrega e as de envio ou missão a que nos referimos, embora não sejam de
todo equivalentes. Mas devemos evitar pensar que o Pai entregou o Filho à
morte como o fizeram os homens. O Pai entrega o Filho nas mãos dos peca­
dores, não se deleita no sofrimento de Jesus. Aceita a morte de seu Filho nas
mãos dos homens porque respeita nossa liberdade e assim nos oferece a maior
demonstração de seu amor. Deus Pai, o que gera o Filho, não pode querer
diretamente sua m orte. Há portanto que precisar os diversos matizes da “en­
trega” no Novo Testamento. Deus não entrega seu Filho à m orte como fazem
seus inimigos (cf. por ex., Mc 3,19 par.; 15,15 par.; Lc 24,IO)122.
Mas essa “entrega” à m orte, que no entanto entra no desígnio de
Deus, encontra em Jesus não a rebelião, mas a plena correspondência.
Também Jesus entrega-se por amor: “amou-me e entregou-se por mim”
(G1 2,20) dirá o apóstolo (ver também entre outros lugares, E f 5,2.25).
Também o amor do Filho pelos homens manifesta-se em sua entrega. Trata-
se portanto do amor do Pai e do amor do Filho, da plena correspondência
do Filho ao desígnio do Pai. O amor de Deus Pai e o amor de Cristo pelos
homens contemplam-se unidos em Rm 8,32-39. Jesus, na sua paixão, não
sofre só o abandono mas entrega seu espírito nas mãos do Pai (Lc 23,4ó),
já que desde princípio de sua vida na terra veio para fazer sua vontade (Hb
10,7; F1 2,6-8; Jo 4.34; Mc 14,36 par.); N ão se pode portanto falar de um
“conflito” intradivino. Se o abandono de Jesus por parte do Pai pode ex­
pressar a “distância”, a diferenciação das pessoas em Deus, que é máxima,
a obediência do Filho, a aceitação do desígnio do Pai e a confiança radical
nele mostram a profunda unidade e a comunhão divina. Os dois aspectos
devem ser vistos em sua unidade. Tòda separação, por grande que possa­
mos e devamos pensá-la, não pode fazer esquecer que o Pai e o Filho são
na pura referência de um ao outro.

122. Cf. F. X. DURRW ELL, Le Père. Dieu en son mystère, Paris, 21988, 62ss.

97
VISÃO HISTÓ RICA

Os autores que citamos aludem certam ente à união entre o Pai e o


Filho que se manifesta no Espírito, também na separação e na escuridão da
paixão. Recorrem para isso, ainda que às vezes não digam expressamente,
à antiga tradição da teologia ocidental que rem onta ao menos a Agostinho,
que vê o Espírito Santo como vínculo de união do Pai e do Filho. Aludi­
mos ao oferecimento de Jesus ao Pai em virtude do “Espírito eterno” se­
gundo H b 9,14. N a entrega de Jesus à m orte e à escuridão, que podem ter
envolvido esse momento, expressa-se também a comunhão de amor entre
o Pai e o Filho no Espírito Santo.
Tudo o que foi dito sobre essa revelação do Deus trino em seu amor
aos homens no momento da paixão e da m orte do Senhor tem sentido à
luz da ressurreição. N ela aparece claramente o “Sim” de Deus a Jesus que
não constitui o cancelamento de sua vida terrena mas antes a demonstração
do perene valor que ela tem na eternidade de Deus. Jesus ressuscitado apa­
rece com os sinais de sua paixão. A vida da Trindade não se vive como se o
Filho não tivesse introduzido a humanidade na glória. Não se pode m inim izar
a certa “novidade” que, em seu Ubérrimo desígnio, Deus introduziu em sua
vida mesma pela assunção da humanidade por parte do Filho.
M as, antes de passar ao estudo da ressurreição, façamos uma breve
reflexão conclusiva sobre a cruz e a m orte em relação com a revelação
trinitária. Deus, na cruz de Cristo, manifesta seu amor até o fim, para dar
ao homem a possibiUdade de viver até o fim na entrega. O homem que
assim vive reflete mais o ser de Deus, o abismo do amor divino que Jesus lhe
manifestou. Deus é o fim do homem, que está chamado em Cristo a ser sua
imagem na perfeita semelhança. Quanto mais dê Deus ao homem a possi­
biUdade, no Espírito de amor, de amar até o fim, o ser humano chegará
desde o fundo à plenitude da salvação. Refletindo e vivendo o amor de Deus,
o homem fica inserido no caminho que leva a Deus como fim. E a salvação
como máxima plenitude do homem, certamente por dom de Deus, mas esse
dom o plenifica a partir do mais profundo de seu próprio ser.

7. A ressurreição de Jesus, revelação do Deus uno e trino

Devemos observar antes de tudo que a iniciativa da ressurreição, se­


gundo a maioria dos textos do Novo Testamento, corresponde a Deus Pai
(cf. Rm 6,4; 8,11; 10,9; 2C or 4,14; E f 1,20 etc.; a expressão usada pelos
evangelhos “rryépfhi”, ressuscitou, foi ressuscitado, pode ser entendida tam­
bém como um modo de indicar a ação divina). Em algumas passagens
mostra-se além disso a diferença entre a ação dos homens, que mataram
98
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS. ESTUDO B ÍBUCO -TEO LÓ G CO

Jesus, e Deus, que o ressuscitou: “Vós o matastes fazendo-o pregar na cruz


por uns ímpios, mas Deus o ressuscitou” (At 2,23-24; cf. também At 3,15;
4,10; 10,39). Com isso Deus se manifesta em seu poder divino: a fé na
ressurreição de Jesus não é um anexo da fé em Deus, é sua expressão da fé
no Deus cristão. O poder de ressuscitar e o de criar, com certa prioridade
para o prim eiro, vão juntos segundo Rm 4,1712J. Em ambos os casos, Deus
atua direta e imediatamente. D eus é o Pai de Jesus, e, como já tivemos
ocasião de ver, mostra essa paternidade ao ressuscitá-lo dos mortos (cf. G1
1,1 etc.). O poder onipotente de Deus manifesta-se nessa paternidade, po­
deríamos mesmo dizer que, à luz da ressurreição de seu Filho, identifica-
se com ela1 13224. M uitas passagens do Novo Testamento assim o atestam: 2C or
1,3; 11,31; E f 1,17; F1 2,11 etc.
N o uso neotestamentário de alguns textos dos salmos põe-se igual­
mente em relevo a iniciativa de Deus Pai na ressurreição. Assim o SI
110[109],1, “senta-te à minha direita”, uma das passagens do Antigo Tes­
tam ento citadas direta ou indiretam ente com mais freqüênda no Novo: (cf
Mc 12,36 par, 14,62 par; At 2,34; 5,31; 7,55; Rm 8,34; IC or 15,25; E f
1,20; H b 1,13; 10,12s; lP d 3,22 etc.). Jesus foi exaltado por Deus e parti­
cipa assim de sua glória125. Igualm ente em A t 13,33 (cf. H b 1,5; 5,5) aplica-
se a Jesus ressuscitado e exaltado o SI 2,7: “Tu és m eu Filho, hoje te gerei”.
A ressurreição encontra-se assim interpretada em term os de geração. Efe­
tivamente, nesse momento Jesus adquire a condição de Filho de Deus em
todo o seu poder (cf. Rm 1,3-4). Trata-se pois da exaltação filial do homem
Jesus. Se a paternidade de Deus põe-se em relação com a ressurreição, é
normal que também a filiação divina de Jesus veja-se manifestada no fato
de ser ressuscitado pelo Pai dentre os mortos. Já observamos que a pater­
nidade e a filiação são correlativas. Essa plena condição de Filho relaciona-
se com a exaltação de Jesus e sua entronização como Senhor (cf. At 2,14ss;
3,34ss; F1 2.11). Víamos que a condição de Filho refere-se à relação com
o Pai, e o título de Senhor refere-se antes a sua relação com os homens.
Mas os dois devem ser vistos em sua implicação m útua precisamente em
conexão com a ressurreição126. A filiação de Jesus possibilita a nossa (cf. G1

123. Que é, aliás, o único texto do Novo Testamento em que se Ma da criação do


nada; cf. 2Mc 7,28, em que se fala da criação do nada em um contexto de esperança na
ressurreição.
124. Cf. DURRW ELL, op. cit., 175.
125. Cf. F. J . SCHIERSEE, La revelación de la Trinidad en el Nuevo Testamento,
em MySal 2/1,138: “Dentro da m entalidade apocalíptica do judaísmo, ‘sentar-se à direita
de D eus’ é o suprem o e definitivo que se pode dizer de um ser que não é, sob todos os
pontos de vista, igual a Deus”.
126. Cf. B. M A G G IO N LI, La T rinità nel Nuovo Testamento, ScCar 118 (1990) 7-30.

99
VISÃO HISTÓRICA

4,4-6; Rm 8,29), e por outra parte sua relação com o Pai é fundam ento do
senhorio de Jesus sobre tudo.
Em algumas passagens do Evangelho de João, parece atribuir-se ao
próprio Jesus a iniciativa da ressurreição. Assim em Jo 10,17: “O Pai me
ama porque dou minha vida e tom o a recobrá-la. Ninguém a tira de mim,
sou eu que a dou. Tenho o poder de dá-la e o poder de recobrá-la: esse é o
mandamento que recebi de meu Pai” (cf. também 2,19-21, a palavra sobre
a destruição do Templo). Mas no texto citado a referência ao Pai está bem
manifesta. Outros textos do Evangelho de João destacam a iniciativa do Pai
na glorificação de Jesus (cf.Jo 12,23.28; 13,31-32; 17,1.5 etc.). Para o quarto
evangelho, o mistério pascal é a ida de Jesus ao Pai, que pôs tudo em suas
mãos (cf.Jo 13,1.3; 14,28; 20,17). O Evangelho de João não constitui assim
uma exceção que se afaste da linha dominante do Novo Testamento.
A paternidade de Deus e a filiação divina de Cristo que se manifesta
na ressurreição, que por sua vez oferece a chave de compreensão de toda
a vida de Jesus, abrem a porta para a compreensão da Trindade imanente.
Fazem-no por intermédio da afirmação da preexistência de Jesus à sua
encarnação, quer dizer, sua vida divina no seio do Pai não depende da
economia da salvação, mas, ao contrário, constitui seu único fundamento.
A filiação divina que Jesus vive neste mundo, e manifesta-se em plenitude
na ressurreição, baseia-se por conseguinte no próprio ser divino, em uma
relação com o Pai prévia à sua existência humana. Só à luz da “geração”
à vida divina na ressurreição pôde o Novo Testamento, e a partir dele a
tradição da Igreja, falar da existência do Filho desde o princípio no seio do
Pai que o gerou etem am ente. (cf. Jo l,lss; 8,58; 17,5.24; Rm 8,3; F1 2,6;
G 14,4; E f l,3ss; Hb 1,2 etc.). Só com a existência divina de Jesus prévia à
encarnação pode ter a economia salvífica seu fundamento no ser mesmo
de Deus, e assim a comunicação da vida de Deus aos homens. Jesus é desde
sempre o Filho de Deus, não chegou a sê-lo na ressurreição ou em algum
momento prévio de sua vida m ortal127.
Vimos que o N ovo Testamento fida da ressurreição em term os de
geração. Dado que a vida humana de Jesus “afeta” a vida intratrinitária, ou,
em outras palavras, que a assunção da natureza humana por parte do Filho
é irrevogável, a plena incorporação de Cristo também em sua humanidade
na vida divina faz-se necessária. Só se é Filho de Deus em plenitude, tam­
bém enquanto homem, pode ser o Filho realmente. Daí as profundas afir­

127. Pode-se ver para todo esse âmbito de problemas. K. J. KUSCHEL, Generato
prima Ji ttttti i secoli? la controvérsia suWorigjne de Cristo, Brescia, 1996.

100
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS. ESTUDO BÍBLICO-TEOLÓGICO

mações de Hilário de Poitíers sobre a relação entre a geração eterna e a


ressurreição:
Para que, o que antes era Filho de Deus, e então também Filho do homem,
enquanto Filho do homem fosse gerado como perfeito Filho de Deus; isto é,
para que tomasse a tomar, e lhe fosse concedida a seu corpo, a glória da
eternidade mediante a força de sua ressurreição; por isso, como encarnado,
tomava a pedir ao Pai essa glória (cf. Jo 17,5)128.
Uma vez dada a encarnação, a ressurreição vem a ser uma exigência da
mesma geração eterna, inclusive uma manifestação ou uma expressão dela.
A unidade do Pai e do Filho manifesta-se na ressurreição e exaltação
de Jesus. N ão se pode separar delas a efusão do Espírito dom do Pai e do
Filho, que, ao mesmo tempo que exprime a união dos dois, mostra a per­
tença do Pneuma ao âmbito divino, juntam ente com as duas prim eiras
pessoas. Mas antes de tratar da missão do Espírito, devemos notar que o
Espírito Santo intervém na ressurreição de Jesus que tem no Pai a inicia­
tiva. Os textos que a isso se referem não são m uitos, mas são significati­
vos129. O mais claro é Rm 1,4, que já conhecemos: “Constituído Filho de
Deus em poder segundo o Espírito de santidade pela ressurreição dos
m ortos”. A filiação divina de Jesus (que é a todo momento o Filho, Rm
1,3) em poder atua-se em virtude do Espírito. O Pai ressuscita Jesus no
Espírito. Esse Espírito de D eus, que no Antigo Testamento é força criado­
ra e que robustece o homem, é agora força de ressurreição (cf. Ez, 37,5ss,
em sentido ainda figurado). Também em Rm 8,11, ainda que o teor literal
fale só diretam ente da ação do Espírito em nossa ressurreição, não se pode
excluir que indiretam ente se expresse a mesma idéia que na passagem
anterior: “E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos
habita em vós, aquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos dará também
vida a vossos corpos mortais p or seu Espírito que habita em vós”. Em todo
caso, vale a pena notar a denominação que aqui se aplica ao Espírito de
Deus: é o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos. No
m istério pascal ficam definitivamente “caracterizados” o Pai e o Espírito.
A ressurreição de Jesus e o Espírito se relacionam também em outras
passagens (lT m 3,16; lP d 3,18), nas quais, com o em Rm 1,3-4, contra­
põem-se a vida de Jesus na carne e no espírito. A vida mortal de Jesus

128. HILÁRIO de Poitíers, Tr. ps 2,27 (CSEL 22,57); cf. também de Trmitate IX 38
(CCL 62A.412); cf. LADARIA, D ios Padre en H ilário de Poitíers, EstTrn 24 (1990) 443-479.
129. C f. Yves de CONGAR, op. d t, Barcelona, 1983, 603; M-A. CHEVALLIER,
Soufflé de Dieu. Le Saint-Esprit dam le Nouveau Testament, Paris, 1990, v. ET, 277-308.

101
VISÃO HISTÓ RICA

contrapõe-se a vida divina da ressurreição no Espírito de Deus. O próprio


Jesus, em sua ressurreição, foi feito “espírito vivificante” (IC or 15,45)1}0.
Não se trata, é claro, de uma identificação pessoal de Cristo com o Espí­
rito Santo, mas do fato de que Jesus, em sua ressurreição, ficou cheio do
Espírito Santo de Deus e se convertem em fonte de vida para todos que nele
crêem. Se o prim eiro Adão foi a fonte da vida terrena, uma vida que ter­
mina na m orte, Jesus, segundo e definitivo Adão, é a fonte do Espírito, da
vida definitiva, que agora preenche sua humanidade perfeitamente divi­
nizada e em total comunhão de vida com o Pai. Jesus ressuscitado coloca-
se portanto da parte do Criador, da vida. H á por isso uma relação clara
entre a divinização da humanidade de Cristo e a efusão do Espírito que
desceu sobre ele no Jordão e que agora tem em plenitude.
Segundo A t 2,33, Jesus, ressuscitado e exaltado à direita de Deus,
recebeu do Pai o Espírito, que no dia de Pentecostes efundiu sobre os
apóstolos. A plena posse do Espírito por parte de Jesus, que faz possível
sua efusão e seu dom aos homens, é uma manifestação — talvez se devesse
dizer a prim eira manifestação — da plena comunicação de Jesus com o
Pai, de sua filiação, e, por conseguinte, da paternidade divina. A teologia
dos tempos recentes recuperou esse motivo da antiga tradição1 10331. Isso já
nos introduz em um tema que não podemos de modo algum separar do
que até agora nos ocupou: a “missão”, o envio do Espírito depois da res­
surreição de Jesus; e ao mesmo tem po traçaremos algumas linhas básicas
da pneumatologia neotestamentária.

DEUS ENVIOU A NOSSOS CORAÇÕES O ESPÍRITO DE SEU FILHO

/. 0 Espírito, dom do Pai e de Jesus ressuscitado

Segundo o texto bíblico que nos tem servido de guia neste capítulo.
G1 4,4-6, “Deus enviou a nossos corações o Espírito de seu Filho”. Já
observamos o paralelismo entre a missão do Filho e a do Espírito, segundo
essa passagem. Mas agora podemos e devemos acrescentar algo mais: esse
envio do Espírito não se explica sem a glorificação do Filho. E precisa­
mente o “Espírito de seu Filho”. Portanto essa missão está em relação com

130. Sobre o Espírito que dá a vida, também 2Cor 3,6; Jo 6,63.


131. BALTHASAR, El mistério pascual, MySal 3/1,288: “Desde que o Pai ressuscita
Jesus e ambos derramam seu Espírito comum, revela-se a nós mais profundamente o mistério
trinitário, embora seja sua manifesta profundidade que nos abre a inabarcabilidade de Deus”.

102
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS. ESTUDO BÍBUCO-TEOLÓ GICO

a do Filho, que culmina na ressurreição. Nossas reflexões prévias nos orien­


taram já nesse sentido: Jesus em sua ressurreição recebe o Espírito em
plenitude, até o ponto que se pode dizer que “se fez espírito” (nos termos
que explicamos). A missão do Espírito depende portanto desse fato. Na
realidade, com expressões diversas, os diferentes escritos do N ovo Testa­
m ento contemplam a efusão do Espírito em relação com a glorificação e
exaltação de Jesus. Põe-se assim em relevo que entre as duas missões há
uma relação intrínseca, não estão simplesmente justapostas. Jesus, o Filho
enviado ao mundo, é a fonte do Espírito para os homens.
Antes de passar adiante, convém que façamos um esclarecimento: nos
primeiros capítulos do Evangelho de Lucas fela-se em diversas ocasiões da
ação do Espírito sobre os personagens que intervêm no evangelho da infan­
d a (além da encarnação por obra do Espírito Santo): Lc 1,41, Isabel; 1,67,
Zacarias; 2,25.27, Simeão. Sem dúvida há que pensar que essa ação do Es­
pírito Santo foi possibilitada pela vinda de Jesus ao mundo, embora tenha
características distintas da efusão de Pentecostes. E uma presença ocasional
sobre pessoas determinadas, uma ação pontual do Espírito que recorda o
modo como já tinha atuado no Antigo Testamento sobre os profetas (cf. lPd
1,11, segundo o qual os profetas já tinham o Espírito de Cristo)132. Não
parece, pois, que esses casos se oponham à afirmação geral da relação que o
Novo Testamento vê entre a glorificação de Jesus e o dom do Espírito.
Vejamo-lo brevemente nos diferentes escritos. Segundo Lc 24,39, Je­
sus enviará a promessa do Pai uma vez que tenha subido ao céu. O anúncio
da vinda do Espírito, sem indicar em concreto quem o enviará, repete-se em
At 1,5.8. Evidentemente a vinda do Espírito em 2,lss é o cumprimento
dessa promessa. Parece que o envio do Espírito é atribuída a Deus Pai em
At 2,17ss; mas At 2,3 3, que já conhecemos, matiza que Jesus recebeu do Pai
o Espírito que derrama em tão grande abundância. A citação do profeta Joel
no discurso de Pedro no dia de Pentecostes (cf. At 2,17ss; J1 3,1-5) mostra
a convicção de que com a ressurreição e ascensão do Senhor chegou o mo­
mento da efusão universal do Espírito sem limites nem fronteiras, que o
Antigo Testamento só podia profetizar para um futuro indeterminado. O
Espírito é visto assim como o dom escatológico, que além de impulsionar a
evangelização dá a alegria do louvor a Deus (At 2,4.11). Para João o dom do
Espírito é conseqüência da glorificação de Jesus em sua humanidade. Assim

132. Cf. BORDONI, op. cit., 208; também CHEVALEER, Aliento de DiosI, Salamanca,
1982,170s. No cap. seguinte tratarem os brevemente da ação do Espírito segundo o Antigo
Testamento.

103
VISÃO HISTÓRICA

se afirma com clareza em Jo 7,37-39: “Jesus gritou: Ése alguém tem sede
venha a mim, e beba o que crê em mim’, como diz a Escritura: De seu seio
correrão rios de água viva. Isso dizia do Espírito que haviam de receber os
que cressem nele. Pois ainda não havia Espírito porque Jesus não tinha sido
glorificado”. O Espírito estava já presente em Jesus durante o tempo de sua
vida m ortal (cf. Jo 1,32-33), mas até sua glorificação não estava para ser
dado. A doação do Espírito à Igreja e aos discípulos é conseqüênda insepa­
rável da glorificação do Senhor. Jesus fala do Espírito sobretudo no discurso
da ultima ceia, portanto na proximidade da m orte e ressurreição, às quais
está ligada sua efusão. Os textos concretos que anunciam a vinda do Espírito
são também claros a respeito: é conveniente para os discípulos que Jesus vá
embora, porque do contrário não virá para eles o Paráclito (cf. Jo 16,7).
Quanto ao sujeito agente da missão do Espírito, essas passagens do discurso
de despedida oferecem algumas variações: o Pai o dará a pedido de Jesus (cf.
Jo 14,16) ou em seu nome (14,26); o Espírito procede do Pai, mas Jesus o
enviará de junto do Pai (15,26); receberá do que Jesus tem em comum com
o Pai (16,14-15). Não se pode portanto esquecer a intervenção de Jesus na
efusão do Espírito Santo, ainda que o Pai seja o último princípio dessa missão.
Como dissemos, esse dom do Espírito pressupõe a ida de Jesus ao Pai, sua
glorificação. E Jesus ressuscitado quem dá o Espírito, no entardecer do dia
da Páscoa, soprando sobre os discípulos (cf. Jo 20,22)133. Mas a teologia
peculiar da exaltação e glorificação de Jesus, que vê essas já iniciadas com a
morte de Jesus na cruz, levantado no alto sobre a terra (cf. Jo 3,13-14; 8,28;
12,32), perm ite também pensar que, no momento da morte, Jesus, além de
expirar, antecipa o dom do Espírito (Jo 19,30: TrapéSoKev tò Ilveupot)134.
A água e o sangue do lado do Senhor (cf. Jo 19,34) foram também interpre­
tados como alusão ao batismo e à eucaristia: indiretam ente não se pode
tampouco excluir uma alusão ao Espírito que sai do corpo de Jesus (cf. Jo
7,38)13S, que foi seu receptáculo durante todo o tem po de sua vida136.

133. Segundo Jo 1,33 Jesus batiza no Espírito Santo.


134. Recentem ente nesse sentido X. LEO N -D U FO U R, Lecture de Vévangile selon
Saint Jean IV , Paris 1996, 159. Também Y. SIMOENS, Selon Jean 3. Une interprétation,
Bruxelas, 1997, 487.
135. Cf. POTTERIE, Christologie et pneumatologie dans S. Jean, in COMISSÃO BÍ­
BLICA PONTIFÍCIA, Bible et christologie, Paris, 1984,271-287. A possibilidade dessa interpre­
tação simbólica é também aceita pr R. SCHNACKENBURG, El evangelio segun sonJuan, Bar­
celona, 1980, HI, 359. Também aceita o simbolismo sacramental SIMOENS, op. dt, 856. Igual­
mente U. SCHELLE, Johannes als Geisttheologe. Novum Testamentum 40 (1998) 17-31, 24.
136. Essa interpretação é subjacente à teologia dos Padres. Para H ipólito o lado de
Cristo aberto é como vaso de perfum e partido que perm ite que o ungüento da vida se
derrame. Cf. A. ZANI, La cristologia di Ippolito. Bresda, 1983, 597-607.

104
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS. ESTUDO B ÍBUCO-TEOLÓ GICO

N ão encontramos em Paulo uma sucessão cronológica semelhante à


de Lucas ou de João, que destaque a vinculação intima entre a exaltação e
a glorificação de Jesus e o dom do Espírito Santo. Mas alguns dos textos
examinados indicaram que essa vinculação existe. Jesus converte-se em sua
ressurreição em “espírito vivificante” (IC o r 15,45). Paulo usa em geral o
term o “Espírito” sem acréscimos, e também “Espírito de Deus” e “Espí­
rito Santo”. Mas junto a essas denominações mais freqüentes em Paulo —
e em menor medida em outros escritos neotestamentários — usa-se uma
série de termos que destacam a vinculação do dom do Espírito a Jesus137.
Assim, o texto que já conhecemos de G14,6 fala do “Espírito de seu Filho”.
Também se usa “E spírito de filiação” (Rm 8,15); “Espírito de C risto”
(Rm 8,9; lP d 1,11); “de Jesus Cristo” (F1 1,19); “do Senhor” (2Cor 3,17);
“da vida em Cristo Jesus” (Rm 8,2). Em At 16,7, fala-se de “Espírito de
Jesus”. Também se acentua a vinculação entre Jesus glorificado e o Espí­
rito Santo, que é também o “Espírito de Senhor” e pode por sua vez ser
chamado de “Senhor” (cf. 2C or 3,16-18).
Com o dom do Espírito Santo como conseqüência da glorificação de
Jesus dá-se uma “novidade” na ação do Espírito Santo. Esse certamente,
como atesta o Antigo Testamento, havia atuado antes da vinda de Jesus,
mas agora aparece em todas as suas virtualidades. O N ovo Testamento
mostra essa nova situação, que se pode observar claramente nos efeitos do
dom do Espírito. Os Padres refletiram expressamente sobre isso, para ex­
plicar a razão dos efeitos concretos que produz a efusão do Espírito: trata-
se da novidade de Jesus ressuscitado que no Espírito é comunicada aos ho­
mens. Assim se exprime Ireneu de Lião: “[O Espírito Santo] realiza nos
homens a vontade do Pai e os renova da velhice na novidade de C risto”138.
A relação entre a novidade de Cristo e a do cristão pelo dom do Espírito
foi também destacada por Origenes:
Nosso Salvador, depois da ressurreição, quando o que era velho já havia pas­
sado e todas as coisas tinham sido renovadas, sendo ele mesmo o homem
novo e o primogênito dos mortos (cf. Cl 1,18), e os apóstolos também reno­

137. Cf. a abundantíssima bibliografia de R. PEN N A , Lo Spirito di Cristo. Cristologio


e pnsumatologia seconda un,origmaleformulazione paotína. Brescia, 1976. Cf. p. 271s sobre o
uso dos diversos termos
H8.Adv, baer. UI 17,1 (SCh 211,330)“... voluntatem Patris operans in ipsis et renovans
eos a vetustate in novitate C hristi”; cf. a continuação 17,2-3 (334s): “... Spiritus Dei descendit
in Dominum ... quem ipse iteram dédit Ecclesiae, in om nem terrain m ittens de caelis
Paraclitum ”; e também D I, 9,3 (110s); IV 33,15 (SCh 100,844): "... e t semper eundem
Spiritum Dei cognoscens etiamsi in novissimis tem poribus nove eftusus est in nos...”.

105
VISÃO H IS TÓ R IC A

vados pela fé em sua ressurreição, disse: “Recebei o Espírito Santo” Qo 20,22).


Isso, com efeito, era o que o mesmo Senhor e Salvador dizia no Evangelho
(cf; Mt 9,17) quando negava que se pudesse pôr vinho novo em odres velhos,
senão que mandava que se fizessem odres novos, quer dizer, que os homens
caminhassem na novidade de vida (cf. Rm 6,4), para que recebessem o vinho
novo, quer dizer, a novidade da graça do Espírito Santo139.

E H ilário de Poitiers acentua também com clareza a identidade do


que Jesus possui em plenitude e o que dá:
O profeta, com seu desejo, anuncia que Deus há de ser exaltado sobre os céus
(cf. SI 57[56],6). E porque depois de ter sido exaltado sobre os céus tinha de
encher tudo com a glória de seu Espírito Santo, acrescenta [o salmista]: “e tua
glória sobre toda a terra” (SI 57[56],6). Porque o dom do Espírito derramado
sobre toda carne ia dar testemunho da glória do Senhor exaltado sobre os céus140.

Bastam esses poucos testemunhos para ver como a antiga Igreja teve
consciência clara não só da sucessão temporal, mas também da relação interna
entre a ressurreição de Jesus e o dom do Espírito Santo. As duas missões, em
suas diversas características, estão intrinsecamente unidas.

139. De prinäpiis, I 3,7 (SCh 252, 158): MSe et salvator noster post resurrectionem
cum vetera iam transmissent e t facta fuissent omnia nova, novus ipse homo e t primogenitus
ex m ortuis (cf. Cl 1,18), renovatis quoque per fídem suae resurrecdonis apostolis ait: Aceipite
Spiritum sanctum (Jo 20, 22). H o est nimirum quod e t ipse Salvator dominus in evangelio
designabat cum vinum novum in utres m itti posse veteres denegabat (cf. M t 9,17), sed
iubetat utres fieri novos, id est homines in novitate vitae ambulare (cf. Rm 6,4), u t vinum
novum, id est Spiritus sancti gratiae susdperent novitatenT. E também ibid. II 7,2 (Ibid.
328): “Video tarnen quod praedpitus Spiritus sancti adventus ad homines post ascensionem
C hristi in caelos magis quam ante adventum eius declaretur. Antea namque solis prophetis
et paucis, si qui forte in populo meruisse, donum sancti Spiritus praebebatur; post adventum
vero salvatoris scriptum est adim pletum esse quod dictum fuerat in propheta Iohel... (At
2,16; J1 3,1-5)”.
140. Tr. SI. 56[55],6 (CSEL 27.172): “Ex voto ergo propheta praenuntiat exaltari
super caelos deum. Et quia exaltatus super caelos impleturus esset in tern s omnia sancti
spiritus sui gloria subiecit: e t super omnem terrain gloria tua: cum effiisus super omenem
camem spiritus donum gloriam exaltati super caelos domini protestaretur”. Cf. LADARIA,
El Esphitu Santo en S. Hilário de Poitiers, Madrid, 1977, 157ss. Também NOVACIANO,
7 rin XXIX165-166 (FP 8 ,248ss): “Unus ergo et idem Spiritus qui in prophetis e t apostolis,
nisi quoniam ibi ad momentum, hie semper. Ceterum ibi non u t semper in illis messet, hie
u t in illis semper maneret; et ibi mediocriter distributus, hie totus effiisus; ibi parce datus,
hie large commodatus. N ec tarnen ante ressurrectionem Domini exhibitus, sed per
ressurrectionem contributus”.

106
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS. ESTUDO BÍBUCO-TEOLÓGICO

N o dom do Espírito Santo por parte do Pai, por Jesus ressuscitado,


aparece plenamente a identidade do Espírito como também a riqueza e a
variedade de seus efeitos. Se na atuação do Espírito sobre Jesus durante
sua vida m ortal acentua-se sobretudo sua condição de Espírito de Deus (o
Pai), que não obstante é também próprio de Jesus, já que nele permanece
como seu lugar próprio, agora aparece com clareza que é ao mesmo tem po
o Espírito do Filho, de Jesus; desse fato dependem também os efeitos que
a partir de agora se mostram. O concílio Vaticano II expressou muito cla­
ramente a significação que tem para a Igreja e para os homens o fato de
que o Espírito que lhes é dado seja precisamente o de Jesus:
Para que incessantemente nos renovemos nele (cf. Ef 4,23), concedeu-nos
participar de seu Espírito, que sendo um só e o mesmo na cabeça e nos mem­
bros, de tal forma vivifica, unifica e move todo o corpo da Igreja que sua
operação pôde ser comparada pelos Santos Padres com o serviço que realiza
o princípio da vida, ou a alma, no corpo humano (LG 7; cf. também AG 4).

Jesus imprimiu no Espírito seu selo141. Isso veremos em concreto nas


diferentes atuações do Espírito segundo o Novo Testamento.

2. 0 dom do Espírito e seus efeitos depois da ressurreição de Jesus

É claro que não podemos desenvolver com detalhe a pneumatologia


do Novo Testamento. Vamos contentar-nos com alguns dados essenciais
que possam nos guiar em nossas ulteriores reflexões sistemáticas142.
N ão será demais começar com uma breve indicação terminológica. Já
aludimos à riqueza de denominações do Espírito Santo nos escritos paulinos,

141. BASÍLIO de Cesaréia, De Spiritu soneto, 18,46 (SC h 17 bis, 410): “O E spírito
Santo leva o caráter (xapotKTT|pí£ei.) da bondade do Pai que o enviou”. Já ATANASIO,
Strop. 1 23 (P G 26, S65): “O selo leva a forma de Cristo que é o que sela, do qual se fazem
participantes os que são selados”.
142. Para mais informação: cf. C h. SC H Ü TZ, Introdución o ta pneumatologia, Sala­
manca, 1991; CHEVALLIER, Aliento de Dios. El Espiritu Santa en el Nuevo Testamento.
Salamanca, 1982, v. L; Souffle de Dieu, Le Samt-Esprit dans le Nouveau Testament, Paris,
1990, v. II; CONGAR, o p .d t.; E LAMBIASI, Lo Spirito Santo: mistero epresenza. Per uma
sintesi de pneumatologia, Bologna, 1987; G. FERRARO, Lo Spirito e Crista nel vangelo di
Giovanni, Brescia, 1984; E W. H O R N , Das Angeld des Geistes. Studien zur paulmiscben
Pneumatologie, G õttinge, 1992; G. D . FE E , God's empowering presence. The Holy Spirit in the
Letters ofPaul, Peabody, Massachusets, 1994; T h . W EINANDY, The Father's Spirit ofSonsbip,
Edimburgo, 1995; J. C. N E IL , T h e H oly S p irit and th e Human S pirit in G alatians.
EphTbLov 71 (1995) 107-120.

107
VISÃO HISTÓRICA

sobretudo no que se refere à vinculação do Espírito com Jesus. Referimo-


nos em outros momentos à terminologia peculiar de outros autores neotes-
tamentários. Q uero agora notar somente que a denominação “Espírito
Santo” com a qual designamos habitualmente a terceira pessoa da Trinda­
de é quase uma novidade total do Novo Testamento. Aparece nele umas 70
vezes, enquanto no Antigo Testamento a achamos só três vezes na Bíblia
hebraica e outras duas no livro da Sabedoria143. A novidade da ação do
Espírito Santo no Novo Testamento corresponde uma novidade term ino­
lógica, certamente chamativa embora não absoluta.

Sinópticos e Atos

D o Espírito Santo o Novo Testamento fala sobretudo por seus efeitos.


Já falamos em outra passagem deste capítulo da atuação em Jesus. Dá-se
também por suposto no N ovo Testamento que o Espírito é o inspirador dos
profetas do Antigo Testamento (cf. M c 12,36 par; lPd 1,11 etc.); essa atua­
ção contempla-se como referida já a Jesus, porque ele é o objeto do anúncio
profético. No que respeita à ação futura dos discípulos, os evangelhos
sinópticos sublinham sobretudo a assistência nos momentos de perseguição
(cf. Mc 13,11; M t 10,19-20; Lc 12,11). Esse lógion, transmitido em contextos
diversos, é talvez uma das poucas alusões diretas feitas pelo Senhor ao Espí­
rito em sua pregação (cf. M c 3,29)144.
N o livro dos Atos dos Apóstolos, o Espírito Santo tem um papel es­
sencial. O Espírito é o dom prometido por D eus para os últimos tempos
(cf. Lc 24,49; At 1,4; 2,16ss; 2,33,2,39 etc.). O Espírito Santo será antes de
tudo, para os apóstolos, o dom que os habilitará para o testem unho em
favor de Jesus, “constituído por Deus Senhor e Cristo” (At 2,36; cf.1,8;
2,32; Lc 24,46-49). Esse é o testemunho que dão os apóstolos, talvez todos
os discípulos, e Pedro em seu nome, no dia de Pentecostes (cf. At 2,lss).
Os que os escutam recebem, com o batismo, o Espírito Santo (cf. 2,38). É
o Espírito que faz que Pedro dê testemunho ante o Sinédrio (4,8; cf. 5,32).
Também Estêvão fala perante seus acusadores, antes de ser lapidado, “cheio

143. Cf. SI 51 [50],13; Is 63, 10.11; Sb 1,4; 9,17.


144. Costuma-se afirmar comumente que Jesus falou pouco do Espírito Santo em
sua pregação; de fato, no Evangelho de Marcos Jesus refere-se ao Espírito só nas três
passagens citadas neste parágrafo; foi a experiência da efusão do Espírito em Pentecostes
que deu aos primeiros cristãos a compreensão do papel fundamental do Espírito na salva­
ção e inclusive na vida mesma de Cristo.

108
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS. ESTU D O BÍBLICO-TEOLÓGICO

de Espírito Santo” (At 7,55; já segundo At 6,5 Estêvão está “cheio de fé


e de Espírito Santo”). “O Espírito é o agente de todo testem unho valoro­
so.”145 A cena do dia de Pentecostes, que marca o começo da pregação
apostólica, é seguida por outras semelhantes, em que também o Espírito se
mostra em seus efeitos visíveis: At 4,31, “todos pregaram a palavra de Deus
com valentia”. Segundo At 8,14-17 os apóstolos impõem as mãos aos de
Samaria e eles recebem o Espírito Santo. Também segundo At 19,1-6, pela
imposição das mãos de Paulo aos discípulos de Efeso eles “começam a falar
em línguas e a profetizar”.
Pela ação do Espírito Santo faz-se universal a pregação dos apóstolos.
O Espírito indica a Pedro a presença dos enviados do centurião Comélio
(cf. At 10,19). O Espírito vem sobre os gentios que escutam a pregação de
Pedro na casa do centurião (At 10,44-45; cf. 11,15; 15,8) e por isso não se
pode negar a água do batismo “aos que receberam o Espírito Santo como
nós” (At 10,47). Assim o Espírito acompanha e precede a ação evange­
lizadora. Está na origem da pregação aos gentios, como está no testemu­
nho ante os israelitas. O Espírito assiste os apóstolos em sua função de
guiar a Igreja (15,28: “decidimos, o Espírito Santo e nós”); envia a pregar
em um lugar (13,2.4); ou impede sua ida a outro (cf. 16,6,7); faz indicações
a Paulo, põe os pastores da Igreja (20,23.28). O Espírito é por conseguinte
quem guia a Igreja, os apóstolos e os outros discípulos na pregação e no
testem unho de Jesus. Sem sua ação, não se teria realizado a obra
evangelizadora da Igreja. Lucas vê sobretudo o Espírito nessa ação “exte­
rior” da Igreja. M as não devemos esquecer que junto com esses textos, que
são a maioria do ponto de vista quantitativo, também a ação do Espírito se
manifesta na proclamação das maravilhas de Deus (At 2,4.11, que se pode
pôr em relação com Lc 1,42.67; 2,25; 10,21, Jesus exulta no Espírito San­
to)146. As nascentes Igrejas edificam-se e crescem “cheias da consolação do
Espírito Santo” (At 9,31). O s outros autores neotestamentários a que va­
mos referir-nos em seguida insistirão mais nessa ação interior do Espírito
Santo no crente.

145. CHEVALLIER, op. d t., 201; cf. G. H . PRATS. L'Esprit, font de l ’Église: Sa
nature et son activité d'après les Actes des Apôtres, Paris, 1975.
146. C f BO RD O N I, op. cit., 75.

109
VISÃO HISTÓ RICA

O CORPUS PAUUNUM

É sem dúvida mais complexo tratar de determ inar a atuação e os efei­


tos do Espírito Santo em Paulo. Comecemos pelo texto que tantas vezes
citamos neste capítulo: G1 4,6: “e p or serdes filhos, enviou a vossos cora­
ções o Espírito de Filho que clama em nós: Abbá, Pai!”147. O Espírito de
Jesus dá-nos a possibilidade de dirigir-nos a Deus com a palavra que Jesus
usou. N ão é possível levar uma vida filial sem a ação do Espírito em nós.
Somente se somos guiados pelo Espírito de Deus podemos ser e viver
como filhos de Deus:
lòdos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Pois não
recebestes um espírito de escravos para recair no temor, senão um espírito de
filhos adotivos que nos faz exclamar: Abbá, Pai! O Espírito mesmo une-se a
nosso Espírito para dar testemunho148de que somos filhos de Deus. E se filhos,
também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo... (Rm 8,14-17).

Esse texto, paralelo em mais de um ponto com o anterior, confirma


e completa seu ensinamento. O Espírito Santo, Espírito de Jesus, cria em
nós a atitude de filiação, o "espírito” dos filhos adotivos, contrário à atitu­
de do escravo, que vive no temor. Se no texto de Gálatas é o Espírito que
em nós clama "Abbá, Pai”, aqui é o crente que o faz diretamente, em vir­
tude do "espírito” que o Espírito de Deus cria em nós. A filiação traz
consigo a herança; dado que o Filho e o herdeiro propriamente é só Jesus
(cf. H b 1,2), nós somos co-herdeiros seus. Indiretam ente, se nos está di­
zendo que nossa filiação, em virtude do Espírito do Filho, é participação
na vida filial de Cristo. N ão se relaciona aqui diretam ente a posse do Es­
pírito com a herança que nos espera, o que se faz em outros lugares do
corpuspaulimm. Assim, é o Espírito o penhor de nossa herança (Ef 1,14; cf.
pouco antes, a mesma idéia da filiação em E f 1,8; segundo E f 4,30 fomos
selados com o Espírito Santo para o dia de redenção). Segundo 2Cor 1,22,
Deus nos deu em penhor o Espírito em nossos corações (cf.2Cor 5,5; Rm
8,23). Ele é a garantia de nossa vida futura. Pode-se relacionar essa idéia
com a que já conhecemos do Espírito agente de nossa futura ressurreição
à imagem da de Cristo (C f Rm 8,9-11).

147. Considera-se em geral que segundo essa passagem o Espírito não opera propria­
mente a filiação; mas é uma imediata conseqüência dela; e é necessário para a atuação da
relação com Deus que essa filiação com porta. Cf. R. PENNA, op. cit., 219ss.
148. Ou também: “O Espírito dá testem unho a nosso espírito de que somos filhos de
Deus”.

110
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS. ESTUDO BÍBUCO-TEOLÓGICO

Adquire-se o Espírito pela fé, não pelas obras da lei (G1 3,1-2.5.14).
E esse mesmo Espírito é o que nos permite confessar Jesus como Senhor
(IC or 12,2: “ninguém pode dizer que ‘Jesus é o Senhor’ a não ser em
virtude do Espírito Santo). O Espírito, por sua vez, faz-nos conhecer a
Deus, “sonda as profundezas de Deus” relacionadas com o mistério de
Cristo, desconhecido para a sabedoria do mundo (IC or 2,10-14). Também
o Espírito Santo garante a reta compreensão da palavra de Deus, cujo
sentido últim o foi revelado por Cristo, ao qual o mesmo Espírito nos con­
forma (2Cor 3,14-18). O Espírito Santo é o princípio da vida em Cristo,
que se opõe à vida segundo a carne, a vida segundo o pecado que Cris­
to venceu com sua morte; daí que o cristão não viva segundo a carne, mas
segundo o Espírito (Rm 8, 2-5.9.12-13; G1 5,14-25). As expressões “no
Espírito” e “em C risto” são equivalentes em Paulo (cf. Rm 8,1-14; 8,9;
ICor 6,11; Ef2,21-22;G 12,17 comparado com IC or 6,11; 2Cor2,17 com
ICor 12,3; F1 3,1 com Rm 14,17)149. Com isso mostra-se a relação íntima
entre Jesus e o Espírito Santo. Deus, dando-nos o Espírito Santo, infundiu
em nós o amor, manifestado no feto de entregar seu Filho à morte por nós
quando éramos ainda pecadores (Rm 5,5). Trata-se do am or com que Deus
nos ama, não do amor com que o amamos (cf. Rm 8,3 2ss). O Espírito dá-se
a nós no batismo (IC or 6,11; 12,13; T t 3,5), é por ele que nos identificamos
com Cristo morto e ressuscitado (Rm 6,3ss; Cl 2,12).
O Espírito opera no homem não como uma força exterior, mas de dentro
de nosso ser interior, porque habita em nós, foi dado ao crente. Em lTs 4,8
aparece pela primeira vez a idéia: Deus nos deu seu Espírito Santo. O Espí­
rito é o dom de Deus por excelência, como adiante veremos com m a is de­
talhe. A presença do Espírito em cada um de nós põe-se em relação com o
respeito que de cada um deve merecer seu próprio corpo, quer dizer, seu
próprio ser (lTs 4,4-8). Em IC or 6,19, em um contexto semelhante, se nos
diz que nosso corpo é templo do Espírito Santo; essa condição relaciona-se
com a união com Jesus, de cujo corpo somos membros e com o qual forma­
mos um só “espírito” (cf. 6,15ss); o Espírito que habita em nós é, ao mesmo
tempo, a força de Cristo que nos une a ele150. Ser templo do Espírito San­
to e ser membro de Cristo são, na realidade, uma e a mesma coisa. Segundo
ICor 3,16 somos templos de Deus porque o Espírito Santo habita em nós.
A presença do Espírito em nós equivale à de C risto (cf. Rm 8,9s).
Mas Paulo não considera somente a presença do Espírito em cada um
para seu bem pessoal. Essa presença tem também uma dimensão eclesial:

149. Cf. os paralelismos notados por CONGAR, op. cit., 67


150. Cf. PENNA, op. d t., 279.

111
VISÃO H ISTÓ R IC A

O E spírito Santo reparte como quer os dons e carismas, diversos em cada


um dos m em bros, mas que contribuem todos para a edificação do corpo de
C risto (cf. IC o r 12,4ss; Rm 12,4ss; Ef 4,1 lss). A ação do único Espírito
cria a unidade da Igreja. N ela está presente Cristo p or meio de seu Espíri­
to. Tanto se consideramos o crente em sua irrepetibilidade pessoal como se
olhamos a Igreja em seu conjunto, o Espírito não deixa de estar em referên­
cia a C risto. Faz-nos participar de sua relação com o Pai, faz-nos viver a
filiação segundo a vida que Jesus nos deu, faz-nos ser membros do corpo de
Cristo que cresce até a plenitude do próprio Cristo (cf. Ef 1,23; 4,13).

OS ESCRITOS DEJOÃO

N ão mudam radicalmente as coisas no evangelho e nas cartas de João,


embora os matizes sejam diversos. No discurso de despedida do Senhor,
nas passagens que já conhecemos, encontramos duas denominações carac­
terísticas para o Espírito Santo: o “Paráclito” e o “Espírito da verdade”.
Enquanto ‘Paráclito’ (advogado, consolador; cf. Jo 14, 16.26; 15,26; 16,7)
está sempre com os discípulos, assiste-os no testemunho de Cristo, e ele
mesmo dá testemunho no interior de cada crente, convencerá o mundo
quanto ao pecado, à justiça e ao juízo, porque o m undo não acreditou em
Jesus (cf. 16,7ss). Enquanto “Espírito da verdade” (cf.Jo 14,17; 15,26; 16,13
e também ljo 5,6: “o Espírito dá testemunho porque o Espírito é a verda­
de”) recorda aos discípulos o que disse Jesus: ele deve guiar os discípulos
para a verdade completa, anunciará a eles o que há de vir. N ão fida por si
mesmo, mas escuta Jesus, recebe do que é dele, e o comunica. Não se trata
pois da introdução de uma nova verdade que suplante a de Cristo, senão
que o Espírito mantém viva entre os discípulos a palavra e a própria pre­
sença de Jesus. O Espírito, também para João, “dá a vida” (Jo 6,62), é
origem de um novo nascimento do homem (cf. Jo 3,3-8).
Segundo a primeira carta de João, o Espírito (o óleo da unção, xpúr|xa)
introduz no verdadeiro conhecimento de Deus e de Cristo que o mundo
não pode alcançar (cf. ljo 2,20ss). O Espírito Santo é além disso a garantia
da reta confissão de Cristo, em especial em sua humanidade (cf. ljo 4,2),
e de permanência dos fiéis no am or (ljo 4,12ss). O Espírito está também
para João referido a Cristo, o que de nenhum modo significa que sua ação
possa ser considerada instrum ental151.

151. Cf. F. PORSCH, Pneuma und Wort. Ein exegetische Beitrag zur Pneumattdope des
Jobaimesevangelium, Frankfurt Main, 1974,405-407. Também em joão pode-se fazer a lista
de paralelos entre a ação de Jesus e a do Espírito Santo, cf. CONGAR, op. c it, 84

112
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS. ESTUDO BÍBLICO-TEOLÓGICO

C onclusão: a relação do Espírito com J esus

O Espírito Santo está referido a Jesus segundo o N ovo Testamento


não somente porque Jesus, que ressuscitou e subiu para direita do Pai, é
quem juntamente com o próprio Deus Pai envia o Espírito aos homens,
mas porque todos os seus efeitos na Igreja e no homem fazem referência
também a Jesus: O Espírito constrói o corpo de Cristo, impulsiona a pre­
gação e o testemunho de Jesus, faz-nos viver a vida dos filhos de Deus,
configura-nos com Cristo. O Espírito nos é dado como o Espírito de Cristo,
e também de Deus. Sua ação não pode ser entendida sem se ter presente
esse dado. A relação C risto-Espírito não pode ser interpretada no sentido
de uma subordinação do Espírito a C risto, ou, como foi insinuado um
momento antes, como uma função meramente instrumental. A isso obsta,
por si só, o fato de que o Espírito desceu sobre Jesus antes de que ele o
desse aos homens. Nas duas missões do Filho e do Espírito, em sua mútua
implicação, realiza-se a obra de salvação que tem no Pai o único iniciador
e a única fonte: “Deus, nosso Salvador, quer que todos os homens se sal­
vem e cheguem ao conhecimento da verdade. Porque há um só Deus e um
só mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus que se entre­
gou a si mesmo em resgate por todos” (lT m 2, 4-6). O Pai realizou seu
desígnio salvífico com a mediação única de Jesus Cristo, seu Filho unigénito.
Mas esse acontecimento de Cristo tem lugar “no Espírito”. Jesus realizou
todas as suas obras com a presença do Espírito Santo, e a salvação que nos
traz só chega aos homens pela ação do mesmo Espírito cujos efeitos aca­
bamos de enumerar. O Espírito Santo universaliza e faz eficaz para todos
os tempos e lugares a obra de Cristo, realizada em um momento e em um
lugar determ inados'” . Ao universalizá-la a atualiza, quer dizer, a faz pre­
sente, como acontece principalm ente nos sacramentos. Ao atualizá-la,
interioriza-a no homem, de maneira especial no crente1 153.
25 Mas a ação do
Espírito Santo não se limita ao âmbito visível da Igreja. A vontade salvífica
de Deus não tem fronteiras, como tampouco a mediação de Jesus. P or isso
a ação do Espírito também não pode conhecer fronteiras. O Vaticano II
assim se expressa em GS 22:
Isso vale não só para os cristãos, mas também para todos os homens de boa
vontade, em cujo coração a graça opera de modo invisível. Cristo morreu por

152. Não se trata de que a ação de Jesus não seja de si universal. A universalidade de
Jesus e a do Espírito encontram -se em relação m útua e não podem distinguir-se adequa­
damente.
153. Cf. CARDEDAL,Jesttf de Nazaret. Aproxtmaàón a la cristologia, Madrid, 1975,558.

113
VISÃ O HISTÓRICA

todos, e a vocação última do homem em realidade é uma só, isto é, divina. Por
isso devemos sustentar que o Espírito Santo oferece a todos a possibilidade de
que, em uma forma que Deus conhece, sejam associados ao mistério pascal154.

A influência salvífica universal de Jesus ressuscitado se exerce no Es­


pírito Santo, que constitui o âm bito, o m eio em que a salvação de C risto
se faz efetiva.

3. O caráter pessoal do Espírito Santo segundo o Novo Testamento

Discute-se com freqüência o problem a do caráter “pessoal” do Espí­


rito Santo segundo o N ovo Testamento. Efetivamente, assim como o Pai
e Jesus, seu Filho, aparecem com características que podemos qualificar,
sempre analogicamente, de “pessoais”, não podemos dizer o mesmo com
igual clareza a respeito do Espírito Santo. Y. Congar formula agudamente
a dificuldade que surge na hora de caracterizar o Espírito com o uma pes­
soa: o Espírito Santo nunca diz: “eu”155. Para bem colocar a questão deve-
se ter presente que não temos por que atribuir ao Espírito Santo um ser
pessoal das mesmas características que as do Pai e do Filho. N a Trindade,
já o sabemos, tudo é irrepetível.
Mas, dito isso, não se pode minimizar certos indícios que em todos os
escritos do Novo Testamento levam a considerar que o Espírito Santo é de
algum modo sujeito, e não uma força impessoal. Segundo os Atos dos
Apóstolos o Espírito Santo “não perm ite” a Paulo e Silas irem a Bitínia, ou
pregarem a palavra na Ásia (cf. At 16,6.7); também diz que separem a
Bamabé e Paulo (13,2). O Espírito Santo adverte a Paulo das tribulações
que o esperam (20,23); diz a Pedro que vá com os que o buscam da par­
te de Comélio, porque ele os enviou (10,19). O Espírito decide no Concílio
de Jerusalém, juntamente com os apóstolos e os anciãos (15,28). O mesmo
Espírito é que encarregou de sua missão os presbíteros de Éfeso (20,28).
Aliás, não faltam nos escritos de Paulo os traços pessoais do Espírito:
o Espírito perscruta as profundezas de Deus (cf. 2Cor 2,11, julga as coisas,
ib. 14). Em Ef 4,30 somos admoestados para não entristecer o Espírito

154. Cf. também JOÃO PAULO H, Redemptoris Missio, 28-29, onde diz que se deve
distinguir— sem separação — uma ação peculiar do Espírito na Igreja e um a ação universal.
155. Cf. CONGAR, opxit., 16. Embora em algum lugar do Novo Testamento fale
diretamente: At 13,2. Pelo menos não diz “eu” perante o Pai e o Filho. Cf. DUKWELL,
L'Esprit Saint de Dieu, Paris, 1983,156.

114
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS. ESTUDO BÍBLICO-TEOLÓGICO

Santo de Deus. O Espírito é enviado, como o é Jesus (G14,6). É claro que


cada um desses textos, separadamente, não prova m uito, porque se pode
dar diversos tipos de “personificações”, e Paulo as utiliza; mas todos juntos
sinalizam pelo menos uma direção.
N o Evangelho de João encontram-se traços mais acusadamente pes­
soais: o Espírito é enviado, ensina, recorda, dá testem unho, convence o
mundo, dirá o que tiver ouvido etc. (cf. Jo 14,16-17; 17,26; 15,16; 16,7-
11.13-14).Segundo o Apocalipse, o Espírito fala às Igrejas (cf. Ap 2,7-11
etc.; cf. também 14,13; 22,17). E difícil atribuir todas essas ações a uma
mera força impessoal. Em conjunto, pode-se afirmar que no Novo Testa­
mento o Espírito Santo aparece, embora não na mesma medida que o Pai
ou Jesus, como um “sujeito” (usando com a devida cautela essas palavras),
como “alguém” mais do que como algo, como quem está dotado de liber­
dade e não como um mero instrum ento sem iniciativa. Devemos ter em
conta, por outra parte, que tanto nos escritos paulinos como nos de João,
há um notável paralelismo entre as ações atribuídas a Jesus e as que
correspondem ao Espírito Santo156. Se há semelhança e mesmo coincidên­
cia nas ações, deve havê-las também nas características do ser de ambos.

O FILHO E O ESPÍRITO SANTO EM RELAÇÃO


COM O DEUS ÚNICO NO NOVO TESTAMENTO

Depois de nosso percurso pelas diferentes etapas da vida de Jesus em


que, revelando o Pai, se mostrou a si mesmo como Filho unigénito no
Espírito, devemos terminar com uma reflexão sobre o monoteísmo do Novo
Testamento e a estrutura trinitária da salvação tal como os mesmos escri­
tos neotestamentários os apresentam a nós.
Em primeiro lugar, há que destacar que a cristologia e a pneumatologia
neotestamentárias não são obstáculo à estrita fé monoteísta que Jesus e os
apóstolos herdaram do Antigo Testamento e proclamaram sem reservas.
Como já observamos no começo deste capítulo, esse Deus uno e único se
nos revela no N ovo Testamento como o Pai de Jesus. Esse, o unigénito e
o enviado de D eus, aparece em não poucas ocasiões unido ao Deus único
na fé e na confissão: cf. Jo 17,3; IC or 8,6; lT m 2,5; Rm 10,9. De Jesus

156. Cf. a lista de CONGAR, op. cit., 67s. Cf. também L. W EH R , Das Heilswirken
von Vater, Sohn und G eist nach den Paulusbriefen und dem Johannesevangelium. Zu den
neutestamentlichen Voraussetzungen der THnitätslehre, MiinTbZ 47 (1996), 315-324.

115
VISÃO HISTÓ RICA

predicam-se com freqüência títulos divinos, e em alguns textos, não m ui­


tos porém significativos, chega a ser chamado “Deus”. Segundo o Prólogo
do Evangelho de João, o Logos era Deus. Usa-se a palavra 8eóç, sem ar­
tigo, como predicado, enquanto se fala do Pai como ó 0eós (cf. Jo l,ls ).
U m a possível leitura de Jo 1,18 é “Deus unigénito” (em lugar de Filho);
tam bém aqui faltaria o artigo. Em Jo 20,28, achamos a confissão de fé de
Tomé: “M eu Senhor e m eu Deus” (ó xúpioç fxou koiI ó 0eó<5 jjlov) com o
artigo que acompanha os dois títulos. E lem os em ljo 5,20: “Sabemos que
o Filho de Deus veio e nos fez penetrar no conhecimento do Deus verda­
deiro e nós estamos no Deus verdadeiro, porque estamos em seu Filho
Jesus Cristo. Ele é o D eus verdadeiro e a vida etem a”. A divindade de Jesus
está claramente afirmada, junto com a do Pai e em relação com ela. O Pai
é o Deus verdadeiro, mas o Filho também é; e também a respeito dele usa-
se o artigo, o Deus verdadeiro. O título de “Filho” que aqui encontramos
unido ao de Deus, é o que no Novo Testamento e na tradição explicará
com maic profundidade a identidade de Jesus. A relação desses dois títulos
m ostra que Jesus é D eus sendo o Filho. E esta provavelmente a passagem
que afirma em termos mais explícitos a divindade de Jesus em todo o Novo
Testam ento157. Devemos notar também que no Evangelho de João aparece
com freqüência nos lábios de Jesus a expressão “Eu sou” (cf. Jo 5,35;
8,24.27.58; 13,19; 18,5-6 etc.), que remete a Ex 3,14.
Também alguns textos paulinos parecem referir-se a Jesus como Deus;
assim Rm 9,5:"... e os patriarcas, dos quais também procede C risto segun­
do a carne, o qual está acima de todas as coisas, Deus bendito pelos séculos”.
Parece que se chama C risto de Deus e a isso leva o ritmo da frase, embora
nãn se possa excluir que o final do versículo se trate de uma exclamação que
se dirige ao Pai. Segundo T t 2,13, esperamos “a feliz esperança e a manifes­
tação da glória do grande Deus e salvador nosso Jesus Cristo”; expressões
símiles em 2Pd 1,1: “a justiça de nosso Deus e Salvador Jesus C risto”. Parece
que seria forçado pensar que “Deus” se refere nesses casos ao Pai e que o
“salvador” é Jesus, ainda que não se possa excluir absolutamente.
Jesus portanto nos é apresentado como “Deus” no Novo Testamento,
em algnns textos com plena clareza, embora em outros não se possa elimi­
nar uma sombra de dúvida. Mas essas passagens, não muito numerosas,
não são as únicas importantes para nosso propósito. Devem ser lida no
conjunto da mensagem do Novo Testamento, que nos apresenta Jesus em
sua relação única e irrepetível com o Pai, que realiza o mistério de salvação
que Deus pensou desde a eternidade, que depois da ressurreição vive em

157. Cf. SCHNACKENBURG, Cartas de tím Juan, Barcelona, 1980, 312-314.

116
A REVELAÇÃO DE DEUS N A VIDA DE JESUS. ESTUDO BÍBLICO-TEOLÓGICO

comunhão plena com Deus, sentado à sua direita, que desde antes da cria­
ção existe na glória do Pai.
Algo semelhante podemos dizer do Espírito Santo. Nesse caso não
temos nenhuma afirmação explícita do Novo Testamento que nos fale de
sua divindade. Certam ente alguns dos textos mencionados na exposição
precedente têm difícil explicação se não se pressupõe essa divindade; por
exemplo, o Espírito escruta as profundezas de Deus (IC o r 2,10-12); “o
Senhor é o Espírito”, que em geral se entende como referido ao Espírito
Santo (2Cor 3,17). Mas é de novo sua associação ao Pai e ao Filho na
realização do m istério salvífico o que o coloca com mais clareza da parte
de Deus e não da da criatura. A obra de salvação que C risto realizou, de
uma vez para sempre (cf. Hb 7,27; 9,12;10,10), só alcança seus frutos nos
homens pela ação do Espírito Santo.
Mais do que uma doutrina elaborada sobre a Trindade, o Novo Tes­
tamento mostra-nos com clareza uma estrutura trinitária da salvação: uma
iniciativa que vem do Pai que envia Jesus ao mundo, que o entrega à morte
(nos termos que conhecemos) e que o ressuscita dentre os mortos; a obe­
diência de Jesus que por amor se entrega a nós, o dom do Espírito por
Jesus da parte do Pai depois da ressurreição, que habilita o homem para a
vida noVa e para configurar-se com C risto em seu corpo que é a Igreja.
Sem a intervenção conjunta e, ao mesmo tempo, específica de cada um
desses “Três”, nem o mundo nem cada homem em particular podem al­
cançar a salvação.
A essa linha que poderíamos chamar "descendente’, Pai-Filho-Espí-
rito Santo, de Deus ao homem, corresponde também no N ovo Testamen­
to uma linha que cham aríam o s "ascendente”: o dom do Espírito enviado
a nossos corações une-nos a Jesus e por ele temos acesso ao Pai. Espírito-
Filho-Pai seria a ordem do caminho do homem a Deus, possibilitado por­
que antes Deus, em seu Filho e em seu Espírito, veio a nós. Assim, no
Espírito Santo que a todos nos une por meio de Cristo, temos acesso ao
Pai: "Pois por ele [Cristo], uns e outros [judeus e gentios] temos acesso ao Pai
em um mesmo Espírito” (Ef 2,18). O Filho e o Espírito Santo aparecem
no Novo Testamento unidos ao único Deus. Isso veremos a seguir mais
explicitamente ao exam inar alguns textos de estrutura triádica, em que são
mencionados o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

1. Alguns textos triãdicos

H á no Novo Testamento confissões de fé cristológicas que com fre-


qüência incluem um a menção ao Pai (cf. F12,11; Rm 10,9; IC or 15,3-5).
117
VISÃ O H ISTÓ R IC A

O utras passagens, ainda que não tenham esse caráter de confissão de fé,
m ostram uma estrutura triádica. Nelas o Pai, o Filho e o Espírito Santo
aparecem juntos. Esses textos, dentro do N ovo Testamento, são um ponto
de chegada mais que de partida. Ao juntar em uma breve fórmula as três
pessoas, mostram a peculiar unidade entre elas que já todo o Novo Testa­
m ento atesta. Nesses textos exprime-se sinteticam ente a estrutura trinitária
da ação divina que encontramos em todo o N ovo Testamento e que é um
caminho que pode nos levar à reflexão sobre a Trindade em si. São nume­
rosos os textos em que de algum modo se pode achar traços dessa estrutu­
ra; m uitos deles foram já citados no curso da precedente exposição. Por
isso lim itam o-nos agora àqueles em que essa estrutura aparece de modo
mais explícito.
O primeiro lugar deve caber à fórmula batismal, segundo M ateus 28,19:
“Ide, pois, e fazei discípulos a todos os povos, batizando-os em nom e do
Pai e do Filho e do Espírito Santo”. N ão é preciso insistir na importância
que esse texto fundamental teve na tradição e na vida da Igreja. Afirma ao
mesmo tempo a pluralidade das pessoas e a unidade das três (o nom e, no
singular)1S8. Se o uso litúrgico da Igreja prim itiva pôde ter influído na for­
ma definitiva desse versículo, é questão que aqui pode ficar em aberto. Em
contraste com as passagens que veremos em seguida, esse texto nos oferece
a ordem que se tom ará tradicional na enumeração das três pessoas, e que
por sua vez corresponde à ordem histórica salvífica “descendente” a que nos
referimos há pouco. O batizado, por esse feto mesmo, fica referido ao Pai,
ao Filho e ao Espírito Santo. E sse mandato batismal deve ser visto em
relação com o batismo de Jesus no Jordão159.
2C or 13,13: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o am or de Deus e a
comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós”. E, na carta, a despe­
dida de Paulo, que em nossa prática litúrgica atual converteu-se em sauda­
ção de acolhida160. A “graça” pode ser identificada com o próprio Jesus
Cristo. N o Novo Testamento o Pai é o prim eiro que nos ama e a fonte do
amor. O Espírito Santo é fonte de comunhão entre Deus e os homens, e

158. B. M AGGIONI, La Trinità n d Nuovo Testamento, ScCat 116 (1990) 7-30,29:


“Essa fórmula trinitária de M ateus é im portante, porque não só afirma a distinção das
pessoas, mas também sua unidade (no nome, no singular). E mostra como a existência
cristã se desenvolve por inteiro, desde o início — do batismo — no âmbito de ação da
Trindade”.
159. Cf. J. GNILKA, Das Mattausnangelium I, Freiburg-Basel-W ien.
160. Cf. lC o r 16,23; G1 6,18; F14,23 etc. A fórmula de 2Cor é uma explicação e
explanação dessa outra, mais habitual.

118
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VID A DE JESUS. ESTUDO B iBUCO-TEOLÓ GICO

também dos homens entre si; ambos os elementos podem estar presentes
na intenção de Paulo (gen. objetivo e subjetivo).
IC or 12, 4-7: “H á diversidade de carismas, mas o Espírito é o mes­
mo; diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo; diversidade de
operações, porém é o mesmo Deus que opera tudo em todos”. A ordem é
aqui descendente, a que nos referimos. Os carismas unem-se especifica­
m ente ao Espírito Santo, os “ministérios” ao “Senhor” (notemos a corres­
pondência serviço/Senhor), tudo procede em último term o de Deus Pai,
único princípio.
G1 4,4-6: o texto que nos serviu de guia neste capítulo também nos
oferece um bom exemplo de texto triádico. Do Pai vem a iniciativa de
missão do Filho e do Espírito, em sua ordem e mútua interação.
Poderíamos mencionar de novo os textos do Paráclito no Evangelho
de João. Outros textos paulinos mostram também, com maior ou menor
clareza, um ritm o trim táno: Rm 8,14-17; IC or 6,11; E f 2,18; 4,4-6; 2Ts
2,13-14; T t 3,4-7; também lPd 1,2 etc. N ão se trata de um elenco exaus­
tivo. Todas essas passagens indicam que, na consciência dos autores do
Novo Testamento, o Pai, o Filho e o Espírito Santo acham-se unidos de
um modo especial. Caberá à reflexão posterior da Igreja explicitar o que
aqui se encontra in nuce e fazer ver como essa unidade dos Três não se opõe
ao monoteísmo, mas é sua mais legítima e genuína expressão.
Esses textos incipientemente trinitários não devem ser vistos como o
único ponto de partida da doutrina trinitária da Igreja. Somente têm sen­
tido à luz da economia da salvação que Deus, revelado como o Pai de
Jesus, realiza com a mediação desse e no Espírito. É a experiência da vida
de Jesus161e dos prim eiros instantes da vida da Igreja que leva a juntar esses
“Três”. Por uma parte, Jesus nos revela Deus como Pai e nos dá o Espírito
Santo que repousou sobre ele. Por outra, só a partir de sua relação com o
Pai e da unção do Espírito, em virtude da qual desempenhou a missão que
o próprio Pai lhe confiara, sabemos quem é Jesus, o Filho de Deus, o
Senhor e o Cristo. A fé em Jesus não pode expressar-se portanto em todas
as suas dimensões se não for em associação de Pai, Filho e Espírito Santo.
N esse sentido, dizíamos, essas fórmulas são de chegada mais que de parti­
da. M as enquanto presentes no Novo Testamento, e de algum modo sín-

161. B. M O N D IN , La Trinità mistero d’amore. Trattato di teologia trinitária. Rnlngna


1993, 91: “A experiência trinitária de Jesus tom a-se também a experiência trinitária da sua
Igreja. E como a experiência trinitária está no centro da vida de Jesus, de modo semelhante
a experiência trinitária está no centro da vida da Igreja”.

119
VISÃO HISTÓ RICA

tese de toda a sua mensagem, são, especialm ente a fórmula batism al, um
ponto obrigatório de referência para a reflexão posterior, unidas e nunca
separadas do conjunto da história que lhes deu origem e da qual extraem
seu significado.

REFLEXÕES CONCLUSIVAS

Nosso intento neste capítulo foi realizar um estudo não somente bí­
blico, mas bíblico-sistemático. Quisemos explicar não só o que nos é dito
sobre a Trindade no N ovo Testamento, mas como o mistério de Deus se
revela na vida de Cristo e na da primeira comunidade cristã. Essa revelação
do mistério de Deus não e uma “informação neutra, mas uma inserção do
homem na vida divina (cf. E f 2,18). Para isso utilizamos os dados bíblicos,
mas servimo-nos ramhém da tradição patrística e da reflexão sistemática sobre
esses dados. Tratamos de fazer uma teologia de alguns mistérios da vida do
Senhor, do ponto de vista da revelação de Deus neles. Tracemos agora, no
final deste extenso capítulo, um breve balanço dos resultados obtidos.
__^ revelação de D eus trino acontece não só com palavras, mas com
o envio ao mundo, por parte do Pai, de seu Filho e do Espírito.
Pois o texto de G 14,4-6, que nos serviu de guia, é especialmente
significativo. A salvação do homem consiste na “filiação”, e as mis­
sões de Cristo e do Espírito vão ordenadas a tomá-la possível.
__Essas duas missões não são independentes entre si, mas estão in­
timamente relacionadas. São dois momentos inseparáveis da rea­
lização do desígnio salvífico de Deus. Sua articulação interna des­
cobre-se na vida de Jesus.
__O Novo Testamento e a tradição da Igreja chegaram à conclusão,
fundada nos dados da vida, morte e ressurreição de Jesus, de que
o Filho de Deus veio a este mundo. Porém Jesus não é somente o
Filho de Deus, mas também o portador do Espírito. Daí toda nossa
teologia da unção. Indicamos que, durante muito tempo, essa unção
confundiu-se com a encarnação, e assim passou a um segundo
plano, na reflexão teológica, o dado bíblico de Jesus possuidor
do Espírito, no qual foi ungido. A teologia atual deslindou melhor
os campos, seguindo a antiga tradição dos Padres. Sobre Jesus,
que é pessoalmente o Filho, atuou o Espírito. Pela ação do Espí­
rito, Jesus entregou-se à morte e ressuscitou. A iniciativa é em
última instância do Pai.

120
A REVELAÇÃO DE DEUS NA VIDA DE JESUS. ESTUDO BÍBUCO-TEOLÓGICO

— O mistério pascal da morte e ressurreição de Jesus é um momento


esperialmente importante da revelação do mistério de Deus. A
capacidade do Filho de Deus de sair de si, de ir buscar o homem
perdido onde se encontrava, no afastamento do Pai (mistério do
“abandono”), não deve fazer esquecer que Jesus se entrega por
obediência e se confia às mãos de seu Pai silencioso. Em todo
caso, é o amor de Deus Pai e do Filho por todos nós o que aqui se
mostra. O Pai, com a intervenção do Espírito Santo, é o agente
principal da ressurreição de Jesus. A ressurreição e exaltação de
Jesus segue-se a efusão do Espírito Santo. O Espírito é enviado
pelo Pai e pelo Filho. Com isso, mostra-se que Jesus ressuscitado,
em sua distinção de Deus Pai, participa plenamente de sua vida.
Jesus envia o Espírito que, como vimos, recebe também do Pai.
— O anterior fez-nos ver que essa presença do Espírito em Jesus é
algo dinâmico, como é dinâmico o caminho histórico que enquan­
to homem o leva ao Pai. Por isso, o Espírito que Jesus dá é o seu;
é o seu no sentido de que vem dele, uma vez ressuscitado, mas
também no sentido de que é o que atuou sobre ele. Ele pode fa­
zer nos homens o que operou na humanidade de Cristo. Jesus é o
homem perfeito. Só por sua inserção no mistério trinitário podem
os homens chegar à plenitude como filhos de Deus, com Jesus e
como Jesus: o Filho de Deus fez-se homem para que nós homens
pudéssemos chegar a ser filhos de Deus. Tudo isso não é possível
sem seu Espírito.
— A salvação que o Pai quer outorgar aos homens realizou-se e re-
aliza-se m ediante C risto e pela ação do Espírito Santo. Essa obra
salvífica m ostra a unidade dos três. Por isso já no Novo T estam e n ­
to começamos a notar a presença de fórmulas triádicas que de um
modo sintético m ostram essa dinâmica trinitária de salvação. Só a
economia salvífica abre-nos o caminho para a reflexão do que é
Deus em si mesmo.
O que vamos estudar a seguir na história dos dogmas não é mais do
que o esforço da lógica para salvaguardar esse querigma neotestamentário
e penetrar seus conteúdos. O que se ganhar em precisão ou em profundeza
especulativa não significa que se diga mais do que achamos no N ovo Tes­
tam ento. São a preservação e a reta interpretação dessa mensagem que
justificam o enorme esforço da teologia desde os primeiros tempos até
hoje para mostrar a coerência da fé no Deus uno e trino.
121
4
A preparação da revelação do
Deus Trino no Antigo Testamento

Este breve capítulo configura-se como um apêndice do capítulo an­


terior. Já durante a exposição precedente tivemos ocasião de recorrer em
algumas ocasiões ao Antigo Testamento, seja para m ostrar a originalidade
de Jesus com respeito a ele, seja para fazer ver como certas categorias
veterotestamentárias são usadas no Novo Testamento para fazer compreen­
sível a revelação de Jesus. Deve-se m anter tanto a originalidade da mensa­
gem neotestamentária como a perene validade do Antigo Testamento para
os cristãos. A distinção entre os dois testamentos não pode nos fazer es­
quecer sua profunda unidade, e vice-versa1. Já tivemos a ocasião de obser­
var em nossa introdução que seria demasiado simplista pensar que a reve­
lação do Antigo Testamento nos dá a conhecer o Deus uno e a do N ovo
Testamento o Deus enquanto trino, embora haja algo de verdade nessa
afirmação. O Antigo e o Novo Testamento, em sua unidade profunda,
deram-nos a conhecer progressivamente a revelação de Deus, dirigida
primeiro a seu povo escolhido e depois, em Jesus, a todas as nações sem
distinção. O Antigo Testamento decerto não nos dá a conhecer Deus no
mistério insondável de sua triunidade, mas não é alheio a ele. E claro que
não podemos buscar, como foi feito na história da teologia, e teremos ocasião
de ver em nosso percurso histórico, afirmações claras sobre a Trindade nos
textos veterotestamentários (por exemplo, no plural de Gn 1,26, "façamos
o homem”). M as as promessas da presença de Deus no meio de seu povo,
sua proximidade com os homens e especialmente com os pobres e desam­
parados preparam certamente a revelação da presença de seu Filho no meio
de nós, compartilhando nossa condição.

1. Cf. D V 16, que alude à famosa sentença de Sto. A G O STIN H O . Quatst. in Hept.
2,73 (PL 34, 623) “Quamquam et in V etere Novum lateat, e t in Novo Vetus pateat”.

123
VISÃO HISTÓ RICA

Tòdo o Antigo Testamento, ao preparar a vinda de Jesus, prepara a


revelação definitiva do Deus imo e trino. Uma exposição completa da ques­
tão de Deus no Antigo Testamento iria além do objetivo que nos propomos;
uma seleção aleatória de temas, embora interessantes em si, também não
teria m uito sentido em uma obra como esta. Entre uma multidão de aspec­
tos que poderiam ser considerados, vou deter-me somente em dpis, que
parecem de especial relevância para iluminar a mensagem neotestamentária:
a revelação do nome de Deus a Moisés, e a existência, nos diferentes escritos
do antigo Testamento de certas figuras “mediadoras” da presença de Deus
que, sem distinguir-se adequadamente dele, servem para fazê-lo presente de
modo peculiar no meio de seu povo e no mundo.

A REVELAÇÃO DO NOME DE DEUS

A importância que já desde a perspectiva do Antigo Testam ento se


atribui à manifestação do nom e de Deus (favé) no Horeb e, por outra
parte, a relevância que na tradição cristã, desde os começos, tece essa pas­
sagem justificam que lhe dediquemos nossa atenção:
Disse Deus a Moisés: “Eu sou o que sou”. E acrescentou: “Assim dirás aos filhos
de Israel: Eu sou enviou-me a vós”. E Deus continuou dizendo a Moisés: Javé, o
Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, Isaac ejacó enviou-me a vós. Esse é meu
nome para sempre, por ele serei invocado de geração em geração (Ex 3,14-15).

Entre os diferentes nomes de Deus no Antigo Testamento, o de “Javé”


tem a primazia do nome revelado por Deus mesmo2. Com essa denomina­
ção o próprio Deus se deu a conhecer. Mas o nome não deve ser separados
dos acontecimentos que acompanham sua revelação. Javé não se dá a conhe­
cer em seu mistério tal como é, senão sobretudo como vai mostrar-se a
Israel, para libertá-lo, como antes se havia mostrado aos patriarcas e os tinha
guiado. Só assim vai revelar algo de sua essência. Quem é Deus em si mesmo
manifestar-se-á na “existência relativa e eficaz, ‘eu estarei aí (para vós)’”3. 0
nome de Javé indica assim a orientação futura das atuações de Deus que

2. Cf. A. MARANGON, Dios, em P. ROSSANO; G . RAVAS1; A. GIRLANDA, Nuevo


Diccumrio de Teologia bíblica, M adri, 1990,441-463, esp. 444ss. £ também freqüente no An­
tigo 'Testamento (umas 2.800 vezes, embora menos do que Javé, que aparece 6.800), o nome
El ou Eloim (essa segunda forma é m uito mais usada). N om e que Israel tomou da cultura
ambiente e que continuou utilizando para sublinhar a universalidade de seu Deus, Javé.

124
A PREPARAÇÃO DA REVELAÇÃO DO DEUS TRINO NO ANTIGO TESTAMENTO

estará com seu povo. Com as diferentes experiências históricas, o nome de


Deus irá enriquecendo-se com novas conotações. M as deve-se ter presente
que o ser e o atuar de Deus se correspondem, não são contraditórios. Em
seu agir concreto Deus dará a conhecer seu ser, na guia do povo escolhido,
na libertação do Egito que se seguirá quase imediatamente a essa revelação
do nome, e em toda a história posterior do povo de Israel. Deus anuncia que
suas intenções se manifestarão em suas ações futuras, que nesse momento,
porém, se nega ainda a revelar. “O que Deus quer fazer compreender a
Moisés é uma expressão de seu ser Deus, que se manifestará segundo seu
plano.”34 O nome de Javé equivale, pois, a “eu sou o que existo”, não no
sentido da definição dogmática de um monoteísmo abstrato, mas no de um
monoteísmo prático: Javé é para Israel o único que existe porque é seu único
salvador. E o que fará sair o povo do Egito (cf. Ex 3,9-11J5. Daí a interpre­
tação muito freqüente do nome de Javé como “eu estarei convosco”6. 0 que
é Deus em si mesmo se conhecerá a partir do que será para seu povo7.

3. G. von RAD, Teologia dei Antiguo Testamento L Teologia de las tradidoms históricas de
Israel, Salamanca, 1969, 235; cf., tam bém , todo o contexto.
4. B. S. CH ILD S, Il libro delTEsodo. Cmmentario critko-teologico, Casale M onferrato,
1995, 91; ibid. 92: “Deus revelou-se a Moisés com seu nome eterno. Esse é o nome que,
a partir de agora, o povo recordará no culto por todas as gerações. O nome não é revelado
para satisfazer a curiosidade de Israel, senão para ser o instrum ento de uma adoração con­
tínua”. W. ZIM M ERLI, Manual de Teologia dei Antiguo Testamento, M adrid, 1980, 18-19:
aO nome de Javé não se deve interpretar a partir do verbo isolado hyh, senão a partir da
figura de dicção: ‘Eu sou o que sou*. Essa figura deve com parar-se com a autoritária sen­
tença de Ex 3 3,19: ‘Eu me compadeço de quem me compadeço e favoreço a quem favoreço’.
Nessa figura de dicção ressoa a soberana liberdade de Javé, que nem sequer no mom ento
de revelar seu nom e se deixa apanhar nem se situa ao alcance do homem. Segundo a afir­
mação de Ex 3,14 até quando se designa por seu próprio nom e e o revela ao homem, Javé
continua sendo ‘o Livre’, o que só pode ser corretam ente com preendido na liberdade de
sua própria auto-apresentação”. Ibid. 19-20. “N a única passagem em que o AT tenta ofe­
recer uma explicação do nom e de Javé, rejeita uma ‘explicação* do nome que o encerrasse
em uma jaula d e definição. O AT tenta expressar que só se pode falar de Javé observando
atentam ente com o se manifesta (em sua atuação e em seus preceitos)”.
5. Cf. R de VAUX, Historia antigua de brad, M adrid, 1975, 343.345; cf. também 330-347.
6. J. M . ROVIRA BELLOSO, Tratado de Dios uno y trino, Salamanca 1993, observa
que em M t 28,20, “eu estarei convosco dia após dia até o fim dos séculos”, Cristo cumpre
em plenitude esse programa que Deus traçou para si desde o começo. VAUX, op. cit., 347:
“Ex 3,14 contém em potência os desenvolvim entos que lhe dará a continuação da revela­
ção, e nessa perspectiva de fé justifica-se o sentido profundo que nele lerão os teólogos.
Sem sair da B íblia, *Eu sou o existente’ encontra seu eco e com entário no último livro da
Escritura: ‘Eu sou o Alfa e o Omega’, diz o Senhor Deus, ‘o que é, o que era, o que há de
vir, o Tòdo-poderoso’ (Ap. 1,8). O próprio nome de Jesus (cf. M t 1,20) indica essa conti­
nuidade: Deus está com seu povo para salvá-lo”.
7. Cf. B. Sesbõué, Jésus-Christ, Tunique médiateur, 2. Les récits du salut, Paris 1991,74.
Também U. von Balthasar, Gloria 6, M adri, 1988,58.

125
VISÃO HISTÓRICA

Esse Deus que revela seu nome a Moisés e, por meio dele, a todo o
povo é o único que libertará Israel, que manifestará seu poder em aconte­
cimentos da história sucessiva. Com esse Deus, celebrará o povo de Israel
um a aliança solene, em virtude da qual será para sempre o povo de sua
propriedade e a porção de sua herança: “Quando o Altíssimo repartiu as
nações... fixou as fronteiras dos povos... M as a porção de Javé foi seu povo,
e Jacó a parte de sua herança” (D t 32,8-9). “Ele é nosso Deus e nós somos
seu povo, o rebanho que ele conduz” (SI 95[94],7). Isso exclui o culto de
outros deuses, como expressamente observa no Ex 20,2-3 a primeira pala­
vra do decálogo: “Eu sou Javé, sou teu Deus, que te tirou do país do Egito.
D a casa da escravidão. Não haverá para ti outros deuses diante de m im ”.
Essa pretensão de Javé de ser o único D eus para seu povo está na base do
monoteísmo radical, que já afirma claramente a existência de um só Deus
(e não só que Israel não pode adorar mais do que a um só Deus), que
chegará a ser formulado nos profetas do final do exílio e no livro do Deu-
teronôm io; assim, por exemplo, no Dêutero-Isaías, com uma evidente re­
ferência ao motivo da revelação do nom e de Javé no Êxodo:
Vós sois meus testemunhos — oráculo de Javé — e meus servos a que escolhi,
para que se me conheça e se me creia por mim mesmo, e se entenda que eu sou.
Antes de mim não foi formado outro Deus, nem depois de mim haverá outro.
Eu, eu sou Javé, e fora de mim não há salvador (Is 43,10-11)8.9
Reconhece pois e medita em teu coração que Javé é o único Deus, ali em
cima, no céu, e aqui embaixo, na terra; não há outro (Dt 4,39; D t 4,35;
6,4; 7,9)’.

8. Cf. também, entre outras passagens, Is. 42,8; 44,6-8: “Eu sou o prim eiro e o últi­
m o... Vós sois testemunhas: há outro Deus fora de mim?”; 45,5-6: “Eu sou Javé, não há
nenhum outro...”; 45,18-19.21; 46,8. Afirmações que encontram seu prelúdio já em J r 31,35;
32,17.27: “Eu, Javé, sou o D eus de toda carne”. Sobre a relação desse monoteísmo explícito
com o desenvolvimento da fé na criação, cf. L. E LADARIA, Antropologia telogica, Casale
M onferrato-Rom a, 1 9 9 5 ,18ss.
9. As etapas da evolução do monoteísmo em Israel acham-se resumidas em H .
VORGRIM LER, Doctrim teológica de Dios, Barcelona, 1987, 59s: uma primeira fase mar­
cada pela luta contra o deus Baal, no século IX a.C ., iniciada pelo profeta Elias; só se deve
adorar Javé. A segunda fase marcada por Oséias, por volta de 740 a.C.: deve-se adorar Javé
desprezando os outros deuses. Uma terceira fase é a reforma cultual de Ezequias (728-699)
caracterizada pela luta contra o culto às imagens no reino do N orte. A quarta fase é a
reforma de Josias (641-609) com a centralização do culto em Jerusalém; Sofonias, Ezequiel
e Jerem ias comprometem-se nesse movimento m onoteísta. A quinta e última fase, depois
de 586: com o exílio irrom pe o monoteísmo; não há outro Deus que Javé, em termos
absolutos; assim dizem o D euteronôm io e o D êutero-Isaías. Cf. Também S. SATTLER;

126
A PREPARAÇÃO DA REVELAÇÃO DO DEUS TRINO NO ANTIGO TESTAMENTO

Advertimos já no capítulo precedente como no Novo Testam ento


e, em particular, no Evangelho de João a revelação do nome de Deus no
Êxodo servirá como m eio para expressar a profunda identidade divina
de Jesus.

AS FIGURAS DE MEDIAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO

A transcendência de Deus é claramente um a constante no ensina­


m ento do Antigo Testamento, mas ao mesmo tem po sua atuação e sua
presença no meio do povo constituem uma doutrina central. Nossa expo­
sição anterior já manifestou isso. Entre os meios de que se servem os
escritos veterotestamentários para m anter a tensão entre a transcendência
de Deus e sua misteriosidade, de uma parte, e, de outra, sua capacidade de
fazer-se presente no mundo, assumem especial importância algumas figu­
ras “quase-divinas” de mediação; na m ultiplicidade de suas formas, elas
perm item vislumbrar a riqueza interna do ser divino, pressuposto da varie­
dade dessas manifestações exteriores. E claro que não devemos pensar em
seres distintos de Deus, embora em certos momentos essas figuras media­
doras possam parecer quase como “hipostasiadas”. Não devemos fazer
leituras precipitadam ente trinitárias do Antigo Testam ento. Mas, sem for­
çar em absoluto os textos, é líc ita interpretar essas mediações como m o­
m entos de uma preparação mais explícita para a revelação do Deus trino
no Novo Testamento. Essa apreciação é tanto mais legítima quanto, de
fato, o próprio Novo Testam ento e a tradição da Igreja serviram-se dessas
figuras, conhecidas pelos leitores familiarizados com as Escrituras de Israel,
para ilum inar a novidade da revelação evangélica; em particular para des­
tacar a identidade de Jesus e do Espírito Santo e de sua pertença ao âm­
bito divino em sua distinção a respeito do Pai. Tendo em conta esses pres-

T h . SCH N EID ER, D ottrina su D io, in T h. SCH N EID ER (ed.) Nuavo corso di dogmatica,
Brescia, 1995, v. 1 ,65-144, esp., sobre essa questão, 84-92; J. -M . van CANGH, Les origi­
nes d’Israël e t la foi monoteüste, RtbLou. 22 (1991) 305-326; 457-487; ID ., Les origines
d’Israël e du monotrïsm e: instituitíon et/ou charisme, in A. M ELLO N I; D. M EN O ZZI;
G . RU G G IERI; M. T O SC H I (eds), Cristianesimo nella Storia. Saggi m onore di G. Alberigo,
Bologna, 1996,35-88; B. LA N G (ed.), Der Einzige Gott. Die Geburt desbiblischen Monotheismus,
M unique, 1981; E. HAAG (ed.), Gott der Einzige. Zur Enttstebung des Monotheismus in b-
rael, Frei bürg, 1985; A. STAGLIANÒ, II misten del Dio viviente. Per uma teologia delTAssoIuto
trinitario, Bologna, 1996, 129-163; P. CODA, Dio Uno e Trino. Rrvelazione, esperienza e
teologia del Dio dei cristiani. Cinisello Balsamo, 1993, 19-81.

127
VISÃ O HISTÓRICA

supostos, daremos algumas breves indicações sobre essas concretas figu­


ras “mediadoras”10.
Fala-se no A ntigo Testamento do Anjo dejavé. Essa expressão indica
um a qualificação particular de alguns dos seres que aparecem designados
como “anjos” que acompanham Deus e o louvam (cf. SI 103 [102],20)11.21
Esse anjo de Deus aparece como o que ajuda e guia Israel na saída do Egito
e na peregrinação pelo deserto (cf. Ex 14,19; 23,20-23; 32,34; 33,2; Nm
20,16). Pode também ser juiz ou castigador (cf. 2Sm 14,17; 24,16ss.). É
enviado ao Profeta Elias em sua peregrinação para o H oreb (cf. lRs 19,5ss)
e em outros m omentos de seu m inistério profético (cf. 2Rs 1,3.15). De
nosso ponto de vista oferecem interesse especial algumas passagens em
que o “anjo de Javé“ não pode ser distinguido adequadamente de Deus
mesmo, porque tanto sua aparência com o sua linguagem são as de Deus.
Assim, por exemplo, a aparição a Agar, segundo G n 16,7.9s.l3; igualmente
na aparição a Jacó (G n 31,11.13). Nesses casos, começa falando o “anjo do
Senhor” que depois se identifica como o Senhor mesmo. N a narração da
teofania de H oreb, anterior à revelação do nome de Deus a Moisés (Ex
3,2,4ss), sucede o mesmo. Também o anjo resulta ser o próprio Deus na
aparição a Gedeão de Jz 6,1 ls.14. A figura do “anjo”, se não se identifica
de todo com Deus, ao menos não pode ser distinguida dele adequadamen­
te; em todo caso ajuda a acentuar a incompreensibilidade do que se mani­
festa sob essa aparência. Ainda mais importância oferece a figura da pala­
vra de Densu que aparece em múltiplos contextos. Antes de tudo devemos
ter presente a importância da palavra de Deus dirigida aos profetas, que
eles ouvem e que os impele a pregar e a transmiti-la ao povo (cf. Is 6,9; Ez
10,5; Jr 1,11; Am 1,4.7 etc.). Os profetas iniciam suas exortações com a
expressão: “Assim fala Javé...”. Ou também: “foi dirigida a palavra dejavé...”.
Essa palavra é poderosa, irresistível, domina o profeta (cf. Am 3,8; Ez 2,8ss
e sobretudo Jr 20,8ss), transforma-o e converte-o em enviado de Deus.
Além disso, a palavra profética, a palavra de Deus, é ensinamento,
revelação, mandato do Senhor. Os “mandamentos” do Decálogo são “pala­

10. Cf. R. SCHULTE!, La preparaáón de la revelación trinitaria, in MySal H/l, 77-


116, em especial 93-102.; L. SCHEFFCZYCK, Der Gott der Offenbarung, Aachen, 1996,
146-153.
11. Cf. também D. N . FREEDMAN; B. Z . W ILLONGHBY, m al’ak, in TfVAT, 4,
895-904.
12. Cf. W .H. SCHM IDT, dabar, in TfVAT, 2,101-133; G . GERLEM AN, dabar, in
E. JEN N I; C . W ESTERM ANN, Diccimario teológico deU'Antico Testamento, lö rin o , 1978,
v. 1 ,375-383

128
A PREPARAÇÃO DA REVELAÇÃO DO DEUS TRINO NO ANTIGO TESTAMENTO

vras” (cf. Ex 20,1; 24,3.4.8; 34,27s)u . Moisés é o primeiro receptor das


palavras e encarregado de transmiti-las ao povo (cf. Ex 3,4; 4,2; 5,3, etc.).
Por essas palavras o povo de Israel foi constituído "povo de D eus” (Ex
24.8; 34,27). N o Deuteronôm io aparecem todos esses elementos com es­
pecial clareza. As prescrições divinas que Moisés transmite ao povo mos­
tram a grandeza de Deus (D t 4,5ss). Essa palavra é a promessa da salvação
se o povo cumpri-la fielmente (cf. D t 4,lss; 5,lsse; 6,17; 34,14ss, etc.).
P or último a palavra é a executora da vontade de Deus na criação1 134
mas também na guia do povo. A palavra participa assim do poder divino.
A criação pelo poder da palavra acentua-se claramente no SI 33 [32],6: “Pela
palavra de Javé foram feitos os céus...”; Sb 9,1: “Deus dos Pais... que com
tua palavra fizeste o universo... “De modo mais indireto se indica que tudo
vem à existência pela palavra do criador em G n l,3ss: “e disse D eus...”; Is
48,13 etc. A palavra de D eus faz-se um a magnitude presente e viva que
Deus envia para livrar os que lhe suplicam auxílio (cf. SI 107[106],20), na
qual o justo confia (cf. SI 119[118],81.114.147; 130[129],5). A palavra é
enviada ao mundo para cum prir a vontade de Deus: “Como descem a chuva
e a neve dos céus e não voltam para lá mas embebem a terra... assim será
minha palavra, a que sai de minha boca, que não voltará a mim vazia, sem
que tenha realizado minha vontade e cum prido aquilo para o que a enviei”
(Is 55,1 Os); “D eus envia sua palavra à te rra , e ela corre veloz” (SI
145[144],15ss). Quando D eus pronuncia sua palavra, ela produz o efeito
pretendido (cf. Ez 12, 25ss).
A sabedoria divina15 é outra das figuras do Antigo Testamento que pre­
para a revelação de Deus trino. Essa sabedoria refere-se em prim eiro lugar
ao âmbito do reto agir humano, que só é possível se Deus a concede. Ê por
isso um bem divino (Jó 12,13) que o homem só pode conseguir como um
dom de Deus pelo qual deve suplicar (cf. G n 3,5ss; lRs 3,12; Pr 21,30). Essa
sabedoria faz-se presente na criação do mundo (cf. J r 10,12; P r 3,19; SI
104[103],24). O homem é sábio quando se acomoda à sabedoria de Deus, já
que perante o Senhor a sabedoria humana não tem nenhum valor (P r 21,30).
Assim, o temor de D eus está no começo da sabedoria para o homem (Pr 1,7;
9,10). Especial interesse assumem para nós alguns textos em que a sabedoria
aparece como “personificada”. Com ela identifica-se provavelmente nessas
passagens o desígnio eterno da criação que confere ao m undo sua ordem. O
exemplo mais interessante nesse sentido fornece Pr 8-9:

13. C f. W. H . SC H M ID T, op. d t , llO ss.


14. Para mais inform ação v er LADARIA, op. d t., 82-84
15. C f. M. G ILBERT, Sabiduria, in P. ROSSANO; G . RAVASI; A. GIRLANDA, op.
c it, 1.711-1.728, esp. 1.723ss.

129
VISÃO HISTÓRICA

Javé criou-me primícia de seus caminhos antes de suas obras mais antigas.
Desde a eternidade fui modelada, desde o princípio, antes da terra... Quando
assentou a terra ali estava eu... eu estava ali, como arquiteto... brincando com
o orbe da terra, e minhas delícias eram os filhos dos homens (Pr 8,22,31).
A Sabedoria edificou uma casa, lavrou suas sete colunas, cameou a rês, mis­
turou o vinho... (Pr 9, 1-2).

Também Sr 24 oferece características semelhantes: “A Sabedoria foz


seu próprio elogio, gloria-se no meio de seu povo. Na assembléia do
Altíssimo abre sua boca, e gloria-se diante do seu poder. Diz: ‘Saí da boca
do Altíssimo...’” (Sr, 24,1-2; ver também a continuação). Citam os por úl­
tim o tuna passagem do livro da Sabedoria:
Há nela um espírito inteligente, santo, único, múltiplo... Porque a todo
movimento supera em mobilidade a Sabedoria, tudo atravessa e penetra em
virtude de sua pureza. £ um sopro do poder de Deus, uma emanação pura da
glória do Onipotente... E um reflexo da luz eterna...” (Sb 7,22-26; cf. tam­
bém a continuação)16.

Devemos notar nesse último texto um a aproximação das noções de


sabedoria e de espírito, que é própria em geral do livro da Sabedoria (cf.
Sb 1,4-7). Isso abre-nos o caminho para a noção que vamos estudar em seguida.
O espírito é a última figura de “mediação” a que devemos dedicar aten­
ção. Muitos são os significados do termo. Como se sabe, inidalmente indica
o vento, o que não pode ser controlado pelo homem. Pode-se por isso relacio­
ná-lo facilmente com a energia e o poder divino, superior a toda força humana17.

16. Sobre o sentido da “personificação” nesses textos, Ibid., 1.726: “O problema de


fundo é saber como expressar transcendência e im anência divina. A sabedoria exprime,
sobretudo em Sb 1,7-9, essa imanência ou presença de Deus no mundo e nas almas dos
justos, e, nesse últim o caso, não estamos longe do conceito cristão da graça. Mas essa
presença divina dá também ao mundo sua coerência (Sb 1,7), seu sentido, seu significado.
A essa idéia podemos reduzir o conceito de ordem do mundo, utilizado a propósito de P r
8,22-31, a não ser que se veja aí o projeto criador e também salvador de D eus, projeto
considerado anterior à sua realização. Deus faz-se presente na história, e particularm ente
na história de Israel; e a essa presença nós chamamos revelação, segundo o desígnio origi­
nal de Deus”.
17. Cf., entre a abundante bibliografia, Ch. SC H Ü TZ, Introducción a lapTieumatoIogia,
Salamanca, 1991,159-167;M . A. CHEVALLIER, AlientodeDios, Salamanca, 1982,25-39;
B. J. HILBERATH, Pneumatologia, Brescia, 1996, 29-50; Y. CONGAR, El Espíritu Santo,
Barcelona, 1983, 29-40.

130
A PREPARAÇÃO DA REVELAÇÃO DO DEUS TRINO NO ANTIGO TESTAMENTO

O Espírito põe-se em relação com a força criadora de Deus. Ainda


que talvez não seja essa a característica mais original do Espírito, alguns
textos que falam dessa potência cósmica são muito antigos. Assim, por
exemplo, é o vento que Deus fez soprar, que retira as águas do mar Verme­
lho e abre a passagem para os israelitas (Ex 14,21 cf. 15,8); o poder cósmi­
co está a serviço da salvação do povo (cf. também Ex 10,13). Mais direta-
mente aparece o Espírito em relação com a criação: em Gn 1,2 o Espírito
de Deus paira sobre as águas; segundo Gn 8,1, o vento que Deus envia
retira as águas depois do dilúvio; no SI 33[32],6, destaca-se seu poder cria­
dor em relação com a palavra; segundo Sb 1,7 ao Espírito de Deus enche
a terra”, em conexão m uito estreita com a Sabedoria (cf. ib. 1,6) a que
acabamos de referir-nos. Em relação com essa função cósmica na criação,
devemos mencionar a im portância do Espírito para a vida em geral, e do
homem em particular, que depende sempre da ação de Deus: cf. Jó, 27,3;
33,4; 34,14, e de maneira especial o SI 104[103],29s: “Escondes teu rosto
e voltam ao nada, retiras teu sopro e expiram.. Envias teu sopro e são
criados, e renovas a face da terra”.
N os livros históricos mais antigos aparece com fireqüência o Espírito
de Deus como força que irrom pe em determinadas pessoas de maneira
inesperada para a realização de empreendimentos diversos. Assim, segundo
o livro dos Juízes, é o Espírito que impele esses guias do povo (cf. Jz 3,10;
6,34; 11,29; 13,25; 14,6.19; 15,14); características parecidas assume a atua­
ção do Espírito no primeiro livro de Samuel (ISm 10,6.10; 11,6, o Espírito
que vem sobre S aúl). O Espírito invade algumas vezes grupos de profetas
(cf. ISm 10,10). Também pousa sobre Davi, e permanece sobre ele mais do
que sobre seus predecessores (ISm 16,13, cf. 16,14; 2Sm 23,1-2).
O Espírito opera tam bém nos profetas; a ele atribui-se a profecia
mesma, sobretudo a partir do exílio (Ez 22,2; 3,24; 11,1.5.24; Os 9,7; e
também, retrospectivamente, Zc 7,12; Is 63,11). O portador do Espírito
mais característico será o Messias, o Ungido do Senhor sobre o qual o
Espírito repousará: já no prim eiro Isaías aparece essa idéia (cf. Is 42,lss;
28,5ss). Também o servo de Javé será o depositário desse dom, que se une
ao anúncio da salvação às nações (Is 42,lss.; cf. também Is 61,1). Os tem ­
pos messiânicos serão caracterizados por uma posse geral do Espírito, que
já não será o patrim ônio de uns poucos (cf. Is 2,4-6; 44,2). No profeta Joel
a efusão universal do espírito une-se aos acontecim entos do dia de Javé,
irrupção definitiva de D eus na história, momento em que todos profetiza­
rão (cf. J1 3,lss.; cf. At 2,17ss).

131
VISÃ O HISTÓ RICA

O Espírito é o começo de uma vida nova, da renovação moral, para o


povo e para cada um dos indivíduos. Sobretudo no profeta Ezequiel en­
contram os repetidam ente essa idéia: “... porei neles um coração novo: ti­
rarei de seu corpo o coração de pedra e lhes darei um coração de carne...”
(Ez 11,19; cf. 18,31; 36,26s). A volta do ezüio e a reconstituição do povo
são apresentadas pelo mesmo profeta como a metáfora da ressurreição por
obra do Espírito que vivifica os ossos secos (Ez 37,1-14; v. 14: “Infimdirei
m eu Espírito em vós e vivereis, vos estabelecerei em vosso solo e sabereis
que eu Javé o digo e o faço”). O utros escritos conhecem também essa
presença do Espírito no íntim o do hom em , que fica assim interiorm ente
transformado, em bora sempre na dependência dessa presença divina: “Cria
em mim um coração puro, renova-me por dentro por teu espírito firme,
não me rejeites longe de teu santo espírito”18 (SI 51[50],13). De maneira
semelhante, segundo o livro da Sabedoria, habita no interior do homem:
cf. Sb 1,4-6; 9,17.
Também em relação ao Espírito dá-se no Antigo Testamento um pro­
cesso de personificação, embora menos observado do que no caso da Sabe­
doria. O Espírito de Deus vai sendo cada vez menos uma força passageira
que irrompe em um homem em momentos de exceção, com uma ação ex­
terior e esporádica, para converter-se em um princípio que, mantendo sua
transcendência, se faz interior ao homem e ao povo para renová-los em
sua conduta e fazer possível a vida segundo Deus e segundo a aliança.
Sem querer ver uma revelação antecipada da Trindade no Antigo
Testamento, podemos constatar que essas figuras preparam sua revelação.
A constatação está justificada a posteriori: o Novo Testamento e a tradição
cristã, como já indicamos, referiram-se a essas figuras mediadoras. As três
primeiras, a Palavra e a Sabedoria19 sobretudo, serviram para interpretar a
função salvífica e para afirmar a divindade de Jesus. A continuidade, inclu­
sive terminológica, do Espírito de Deus nos dois testamentos não neces­
sita de especial comentário, ainda que não devamos dar menos valor à
novidade que supõe a presença do Espírito em Jesus, o Cristo, o Messias
anunciado e esperado pelos profetas, e o dom de seu mesmo Espírito que
o Senhor, uma vez ressuscitado, faz à sua Igreja e à comunidade.

18. Uma das poucas passagens em que aparece a expressão no Antigo Testamento.
Cf. nota 143 do capítulo precedente.
19. N o entanto veremos que alguns Padres, por exemplo, Sto. Ireneu, uniram a Sa­
bedoria com o Espírito Santo. O livro da Sabedoria, como já notamos é um precedente
dessa conexão.

132
B
Ahistória da teologia e o dogma trinitário
na Igreja antiga
5
Os Padres apostólicos
e os Padres apologetas

Um caminho difícil de reflexão, desde a era apostólica até o final do


século IV, levou à formulação dos elementos fundamentais do dogma da
Igreja sobre Deus uno e trino, em concreto sobre a divindade do Filho e
do Espírito Santo na unidade da essência com Deus Pai, com o qual são
um só Deus. Seguiremos, de forma certamente abreviada, essa evolução
nesta parte de nosso tratado1. N o final, completaremos nosso panorama
com uma breve visão dos documentos magisteriais mais importantes sobre
o tema trinitário nas épocas posteriores.

OS PADRES APOSTÓLICOS

A unicidade de Deus é um a constante fundamental do Novo Testa­


mento, mas junto com essa afirmação o mesmo N ovo Testamento apre­
senta-nos, unidos ao Pai na obra salvífica e na fórmula batismal, o Filho e
o Espírito Santo. Jesus Cristo, o Filho unigénito, é o único mediador entre
Deus e os hom ens e aparece unido a D eus Pai também na obra criadora.
O Espírito Santo está infimamente unido ao Pai e ao Filho na realização
da obra salvadora. N ada tem de particular, portanto, que desde o começo
esses “Três” apareçam nos escritos cristãos. Como no N ovo Testamento,
também nos antigos escritos patrísticos “Deus” é em geral o Pai. A ele

1. Além da bibliografia que iremos citando, pode-se ver F. C O U R TH , Trinität. In der


Schrift und Patristik, Friburg-B asel-W ien, 1988; B. SESBO Ü É; J. W O LIN SK I, Le Dieu
du saht, Paris, 1994; E . del CO V O LO (ed.) Storia delia Teologia, Bologna, 1996, v. I,; Dio
nei Padrideüa Cbiesa (Dizionariodi Spiritualità Biblico-Patristico 14) Roma, 1996; B. STU D ER,
Dios Salvador en los Padres de la Iglesia, Salamanca, 1993.

135
VISÃO H ISTÓ R IC A

pertence a iniciativa na criação e na salvação; ele é que envia o Filho e o


Espírito Santo. N ão faltam nos escritos desses primeiros séculos cristãos
— julgados do ponto de vista da evolução dogmática posterior — lacunas
e imprecisões. M as elas são também testem unhos de uma fé sem pre em
busca de formulações mais adequadas para expressar o que supera as pala­
vras e os conceitos humanos.

I. Clemente Romano

C om a C arta aos C orindos do bispo de Roma S. Clemente (morto


por volta do ano 100) nos encontramos no am biente teológico rom ano do
final do século I. As formulas trinitárias, mais do que a teologia trinitária,
já existem em S. Clem ente. Citamos alguns do textos mais claros: uPor que
há entre vós discórdias... Acaso não temos um único Deus, um único Cris­
to, um único Espírito de graça derramado em nós?”2. Não deixa de ser
curioso que sejam as discórdias na Igreja a ocasião que dá lugar a essa
fórmula triádica; mas nela não se sublinha a unidade dos Três, com o seria
de esperar, senão que cada um é "único”. Em outro momento aparecem
também mencionados os Três: “Porque vive Deus e vive o Senhor Jesus
C risto e o Espírito Santo, a fé e a esperança dos escolhidos”3. Clemente
conhece o Deus único (õeóç), o Pai, junto ao qual coloca o Senhor Jesus
Cristo, invocado também com o Pai. A menção ao Espírito em terceiro
lugar nessas passagens não se deve ser interpretada em sentido estrito de
teologia trinitária: mas mostra que se fortalece a tradição de juntar os três
nomes, o que significa que os Três estão unidos na consciência crente4.
O Pai é chamado 6eóç, SeaiTorqç, senhor da criação. A paternidade
divina refere-se com freqüência à criação: “Fixemos os olhos no Pai e
C riador de todo o cosmo... Os céus movidos por seu governo...”5. Somen­
te uma vez se fala do Pai em relação com Cristo: “Fixemos os olhos no
sangue de Cristo e reconheçamos que é precioso a Deus, seu P ai.”...6

2 . 1 Ciem. 46,6 (FP 4,130).


3. Ibid., 58.2 (144). Cf. também 42,2-3 (124); 1,3-2,2 (70); nesse último lugar fela-se
da efusão do Espírito como em 46,6.
4. J. P. MARTIN, El Espiritu Santo en los orígenes dei cristianismo, Zürich, 1971, 65:
"Clem ente não dá mostras de ter entendido em profundidade essas fórmulas trinitárias que
ele mesmo repete. Mas aí estão os textos para testem unhar sobre as linhas de um desenvol­
vim ento, para lá da inteligência ou da mentalidade de cada um dos testem unhos”.
5. 1 Ciem. 19, 2-20,12 (96-100): trata-se de um belíssimo texto sobre a criação.
6. 1 Ciem. 7,4 (FP 4,70); muito indiretamente sobre a geração do Filho (cf. SI 2,7),
ibid. 36,4(118).

136
OS PADRES APOSTÓLICOS E OS PADRES APOLOGETAS

Cristo preexiste à sua encarnação. O Espírito Santo já falava dele, e


ele mesmo já fala no Antigo Testamento7. Mas não se trata de uma noção
m uito precisa da preexistência. O Espírito Santo, como já vimos, foi der­
ramado sobre os cristãos. Falou no Antigo Testamento8; também Paulo e
o próprio Clemente escrevem guiados pelo Espírito9. Porém não há fór­
mulas claras sobre a divindade do Espírito Santo.
Digamos uma palavra sobre a chamada "Segunda carta de Clemente”
(por volta da metade do século II). Nela aparece Deus como Pai em rela­
ção com o envio ao mundo de Jesus Cristo: “Ao único Deus invisível, Pai
da verdade, que nos enviou o Salvador e guia da incorruptibilidade, por
meio do qual manifestou a verdade e a vida celeste...”10. De Jesus devemos
pensar como de Deus, para não ter em pouca estima nossa salvação11.

2. Inácio de Antioquia

Encontramos no m ártir Sto. Inácio (morto por volta de 110) alguns


pontos de contato com Clem ente Romano; também ele relaciona de al­
gum modo a unidade da Igreja e a “trindade”: "... esforçai-vos em perma­
necer firmes... na fe e n o amor, no Filho, no Pai e no Espírito, no princípio
e no fim. Submetei-vos ao bispo e também uns aos outros, como Jesus
C risto ao Pai, segundo a carne, e os apóstolos a Cristo, ao Pai e ao Espí­
rito”12.31Os cristãos são “pedras do templo do Pai, dispostos para a edificação
de Deus Pai, elevados ao alto pela máquina de Jesus C risto na cruz, e
ajudados pelo Espírito Santo que é a corda...”18. As três “pessoas” inter­
vêm, portanto, na edificação da Igreja e na salvação dos fiéis. Também não
faltam as afirmações de fé monoteístas: não é preciso insistir que o Deus
único de que se fala é o Pai, chamado com frequência assim14.

7. Cf. Ibid. 16,2.15 (90.92).


8. Além de 16,2 cf. 8,1; 13,1 (80; 88).
9. Cf. 47,3 (130); 63,2 (152).
10.2 Ciem. 20,5 (FP 4,208): tem a vida celeste relação com o Espírito Santo?; Cf.14,5
(200), o Espírito Santo dá a vida e a incorruptibilidade; cf. M ARTIN, op. d t , 161; fala-se
de Deus, nosso Pai, em 14,1 (196).
11. Cf. 1,1 (174) cf. 1,7; 2,7 (176; 178). De algum modo aqui se antedpa um argumento
que será usado no tempo da crise ariana; nesse contexto Jesus é chamado Pai; 1,4 (174).
12. Mag. 13,1-2 (FP 1,136).
13. Efes. 9,1 (FP 1,112); Ibid. (112s): “todos sois portadores de D eus e portadores de
um templo, portadores de C risto, portadores do santo (do Espírito Santo?)".
14. Cf. Magn, insc.: 3,1; 8,2 (FP 1,128; 132). Filaã. 8,1; 9,1 (164;166); Efes. Inscr. (102).

137
V IS Ã O HISTÓRICA

Jesus Cristo é chamado diretam ente de "D eus” em algumas ocasi­


ões15, é também "o conhecim ento (gnósis) de D eus”16. Algumas passagens
parecem colocar, ao menos de modo incipiente, o problema da processão
do Filho: “Jesus C risto saiu de um só Pai (&<(>’ èvòç iraTpòç irpoeXõóvra)”17
e a seguir especifica-se que Deus se manifestou por meio de Jesus Cristo,
que é sua Palavra saída do silêncio18.
O Espírito Santo está presente na geração humana e na unção de
Jesus19. Esse Espírito que atua sobre Jesus e que é comunicado à Igreja “é
de Deus (àirò 0eoü ôv)” e por isso não engana: fida também a Inádo20.

3. Epístola do Pseudo-Bamabé

A carta de Bamabé (final do século I, começo do século II) conhece


a preexistência de C risto à encarnação: a ele Deus se dirigia quando segun­
do Gn 1,26 disse: “Façamos o homem...”21. Essa exegese teve grande acei­
tação na época patrística. Jesus é chamado em duas ocasiões de o “Ama­
do”22. E também o kyrios, o Senhor, que suportou entregar sua carne à
destruição23. O Espírito derramado sobre nós provém da abundante fonte
do Senhor24; é talvez uma alusão ao batismo. Também a profecia é atribu­
ída à ação do Espírito25.

15. Cf. Efes. Insc; (102); 7,2 : “Deus feito carne” (110); Ram. 3,3 (152).
16. Efes. 17,2 (120).
17. Magn. 7,2 (132).
18. Magn. 8,2 (Ibid.): “Xó-yoç à-jrò 'irpoeXSúv”. Trata-se de lembranças da
teologia gnóstica, ao m enos na terminologia? Cf. A.ORBE, En losalboresde la exégesis ioburmea
Qob. 1,3), Roma, 1955, 37-40.
19. Efes. 18,1: “... o C risto, nosso Deus, da linhagem de Davi e do Espírito Santo...”;
cf. 17,1 (120). Já nos referim os a esses textos no capítulo 3.
20. Filad. 7,1-2 (164) nova coincidência no último ponto com Clem ente Romano.
21. Cf. Ep. de Bamabé, 5,5; 6,12 (FP 3 ,168; 176).
22. Cf. 3,6; 4,8 (160;164); cf. Inácio de Antioquia, Em. mscr. (FP 1,170); Hermas,
Pastar, Comp. IX 12,5 (FP 6,252).
23. Ep.de Bamabé 5,1 (168).
24. Ibid. 1,3 (150).
25. Cf. 6,14 (178); 9,7 (190): Abrãao viu a Jesus “em espírito”. M uitos Padres usaram
a mesma expressão. Cf. F. P. LADARIA, El Esprrrtu en ClementeAlejandrino, M adrid, 1980,
27s. Também Jacó viu “em espírito” a figura do povo futuro, 13,5 (208).

138
OS PADRES APOSTÓLICOS E OS PADRES APOLOGETAS

4. Didacbé

N a Didacbé (final do século I) encontramos em duas ocasiões a fórmu­


la batismal de M t 28,1926. As orações da celebração eucarística dirigem-se
ao Pai por Jesus C risto27. A Didacbé apresenta uma cristologia de traços
arcaicos, onde Cristo é apresentado como o “servo”28. Exceto as citações
de M t 28,19 não achamos nenhuma menção do Espírito.

5. O “Pastor” de Hermas

Defendeu-se com insistência que existia no “Pastor” (escrito prova­


velmente na primeira metade do século D) uma cristologia de tipo adocia-
nista. A base dessa apreciação é uma passagem difícil, em que de algum
m odo parecem identificar-se o Espírito Santo e o Cristo preexistente:
Ao Espírito Santo, preexistente, que criou toda a criação, Deus o fez habitar
na carne que quis. Essa carne, na qual habita o Espírito Santo, serviu bem ao
Espírito caminhando em santidade e pureza, sem manchar em nada o Espí­
rito. Posto que viveu bem e piamente e se esforçou junto ao Espírito Santo,
e cooperou em todo assunto e se comportou forte e valorosamente, tomou-
a como companheira do Espírito Santo. Pois a Deus agradou a conduta dessa
carne, porque quando tinha o Espírito Santo na terra, não o manchou. To­
mou por conselheiro o Filho e os anjos gloriosos para que a came mesma que
havia servido sem mácula o Espírito Santo tivesse uma morada e não pareces­
se que havia perdido a recompensa de seu serviço. Pois toda came em que
haja habitado o Espírito Santo, se for encontrada sem mancha e pura, rece­
berá sua recompensa29.03

As interpretações tradicionais, que tendiam a descobrir nesse texto


um a reflexão trinitária e cristológica ainda insuficiente, foram postas em
discussão recentem ente20. N ão se trataria em nada do Filho de Deus, que

26. Em Did. 7,1.3 (F P 3,96).


27. Cf. Ibid., 9, 1-4 (98).
28. Cf. Ibid., 9,3 (98); 10,2 (100); também aparece o “N om e”, 10,2.3 (100): “Damos-
te graças por teu Nom e san to ”; “Tu criaste o universo por causa de teu N om e.” Refere-se
o “N om e” a Jesus?
29. H erm as, Pastor, Com p. V 6,5-8 (FP 6,198s).
30. Cf. P h. H E N N E , La cbristohgfe chez Clément de Rome et le Pasteur à' Hermas,
Friburg, 1992.

139
VISÃO HISTÓ RICA

não se m e n c io n a em toda a passagem, senão do Espírito Santo que se une


aos homens, e a o qual eles devem obedecer para alcançar a salvação. Só na
alusão final a o Filho (junto com os anjos gloriosos) se filiaria especifica­
m ente do F ilh o de D eus. Ele é visto no conjunto da obra como o mediador
da salvação, m a s são quase nulas as alusões à encarnação e à sua obra his­
tórica. O F ilh o de D eus é transcendente, glorioso, embora não se lhe dê
nunca o títu lo de Senhor, sem dúvida para não com prom eter o rigoroso
monoteísmo. E s s a interpretação não encontrou assentimento total. Parece
que não se p o d e excluir uma certa interpretação cristológica do texto, que
tem sido a h a b itu a l. O filho da parábola pode ser o "espírito” que preexiste
em Deus, m a s não é o Espírito Santo como terceira pessoa. Em muitas
ocasiões, a n a tu re z a divina, em concreto a de Jesus, é chamada "Espírito”
nos prim eiros séculos cristãos31.
E ncontram os nos Padres apostólicos algumas fórmulas triádicas, mas
não podemos falar de uma teologia trinitária elaborada. U m pouco mais
desenvolvida encontra-se a teologia da relação Pai-Filho. Afirma-se a
preexistência de C risto à encarnação e inclusive é chamado "Deus” com
alguma freqüênda. O Espírito é relacionado com a inspiração profética, com
a concepção d e Jesus; contempla-se em algumas ocasiões como derramado
sobre nós, c o m provável alusão ao batismo. Pouco a pouco a mesma repe­
tição das fórm ulas triádicas (e em primeiro lugar a de M t 28,19) obrigará a
um maior aprofundam ento sobre os conteúdos que por elas se expressam.

OS PADRES APOLOGETAS

Com o s apologetas começa lentam ente na Igreja a reflexão trinitária


propriam ente dita. A preocupação desses teólogos foi, por uma parte,
defender a fé entre os cristãos para protegê-la de possíveis mal-entendi­
dos, mas ao mesmo tempo, diante dos judeus e pagãos, deviam expor a
coerência d o cristianismo. Tudo isso obrigou a iniciar um esforço especu­
lativo que já não é a repetição das formulas tradicionais nem tampouco o
mero anúncio da salvação de Jesus. Precisamente, a preocupação por essa
última leva a indagar o porquê da salvação transcendente que Deus nos

31. Cf. um resumo do estado da questão em J. J. AYAN, Hermas, 0 Pastor (FP 6),
Madrid, 1995,35-41. Cf. também M. SIM O N ETTI, El problema delTunità di D ioa Roma,
da Clemente a Dionigi, in ibid., Studi detta cristologa deiUe IIIsecolo, Roma, 1993,183-215,
187ss; A. STEWARD-SYKES, T he christology o f Hermas and the interpretation o f the
fifth similitude. Aug 37 (1997) 273-285.

140
OS PADRES APOSTÓLICOS E OS PADRES APOLOGETAS

oferece. Inidalmente, a reflexão centra-se nas relações Pai-Filho; intro-


duz-se depois, lentamente, o Espírito Santo. Mas em grande medida será
a geração do Logos, o Filho de Deus, a preocupação mais notável dos
apologetas no ponto que ora nos ocupa.

1. Jiistino

São Justino, filósofo e mártir, morto em Roma por volta de 165, deve
ser a primeira figura a ocupar nossa atenção. É sem dúvida o mais signifi­
cativo dos apologetas. O monoteísmo é um ponto indiscutido, uma con­
vicção que o filósofo compartilha com o judeu Trifon, seu interlocutor no
diálogo52. Deus é sempre do mesmo modo, invariável, e causa de tudo
quanto existe55. É ao mesmo tem po o “Pai do universo, ingênito
(à*yéwT)Tos), não tem nom e imposto, porque tudo o que leva um nome
supõe outro mais antigo que o impôs. Os (nomes) de Pai, Deus, Criador,
Senhor, Dono não são propriamente nomes, suas denominações tomadas
de seus benefícios e de suas obras”54.
Porém, a menção ao Pai está acompanhada pela menção ao Filho.
Assim continua o texto que acabamos de citar: “Quanto a seu Filho, aquele
que só p ro p ria m e n te se diz Filho, o Verbo, que está com ele antes das
criaturas, é gerado quando no princípio Deus criou e ordenou por seu
meio todas as coisas, chama-se Cristo por sua unção e por ter D eus orde­
nado por seu meio todas as coisas”55. Encontram o-nos aqui com a idéia de
uma “geração”, metáfora a que remete o nom e de filho, que se recolhe do
N ovo Testamento. O Filho ou Verbo está com Deus antes das criaturas (cf.
Jo 1,1-3). Pode pensar-se que a geração está ligada à criação, quer dizer,
que o Verbo veio à existência quando D eus criou todas as coisas por seu
m eio. Assim vem à existência o Filho de D eus que é Deus. O nascido de
A laria não vem à existência naquele momento: o Filho do Fazedor do
universo preexiste como Deus (sendo D eus, 0eó<; õv) e foi gerado como*32

32. Cf. Dialjrypb. 1,4 (BAC 116,301)


33. Ibid., 3,5 (306).
3 4 . 2ApoI. 6.1-2 (ed. W ARTELLE, 304). Com freqüênda fala-se do Pai também em
relação com a criação, com o já observamos em C LEM EN TE ROM ANO; Cf., por ex.,
Dial. Trypb. 74,1.3 (BAC 116,435); 76,3-7 (438s), por C risto pode ser conhecido o Pai.
3 5 .2 Apol. 6,3 (W ARTELLE, 204); d ara distinção a respeito da geração humana de
que se falará em seguida, Ib id ., 4-6 (204): “Jesus é nom e de homem... Porque... o Verbo se
fez hom em e nasceu por desígnio de D eus Pai...”.

141
VISÃO HISTÓRICA

homem por uma virgem36. A preexistência do Filho à geração humana


mostra-se em sua presença nas teofonias de Antigo Testamento, que são
propriamente manifestações do Filho, segundo a conhecida tese de Justino
que terá tantos seguidores nos prim eiros séculos cristãos37.
Jesus, o Verbo, é Filho de Deus em um sentido m uito real. D aí a
menção freqüente a sua geração, em contraste com o Pai ingênito. Jesus
Cristo é propriam ente o único Filho nascido de Deus, gerado por aquele
“que é D eus e Pai do universo”38, sendo seu Verbo prim ogênito e força de
Deus (irpuíTÒTOKOç kocí &úvap,ts)39. Como se realiza essa geração?
Deus, como princípio antes de todas as criaturas, gerou certa potência racio­
nal de si mesmo40, a qual é chamada também pelo Espírito Santo Glória do
Senhor e, às vezes, Filho. Iodas essas diversas denominações lhe vêm por
estar a serviço da vontade do Pai, e por ter sido gerada por querer do Pai. E
não vemos algo semelhante em nós? Com efeito, ao emitir uma palavra, ge­
ramos a palavra, não por corte, de modo que diminuísse a razão que há em
nós ao emiti-la. Algo semelhante vemos também em um fogo que acende
outro, sem que diminua aquele de que se formou a chama. Será a palavra da
sabedoria a que me prestará seu testemunho, por ser ela mesma Deus gerado
do Pai do universo...41.

Devemos reter alguns elem entos dessa im portante passagem. Em


primeiro lugar, a geração intelectual, não física: Deus produz uma potên­
cia racional que vemos identificada com sua sabedoria. Em segundo lugar,
essa geração, por ser intelectual, não é um processo cego, vem do querer
do Pai. Talvez se deva pôr em relação esse querer com o foto da geração
ligada à criação do mundo. A teologia vai ter ainda que trabalhar para
chegar à conclusão clara de que a geração do Filho pertence ao ser mesmo

36. Cf. Dial. Trypb. 48,2 (BAC 116,381). Em outras passagens fala-se do Filho ou
Logos como Deus, em geral sem artigo: I Apol. 63,1$ (W ARTELLE, 186); Dial. 56,1.4
(394); 61,1 (409); 63,5 (414); 126,2 (523).
37. Cf. Dial, Trypb. 50, lss; 56,lss (385ss; 394ss). 1 Apol. 63, lss (184ss).
38. Dial. 63,3 (414): de novo a paternidade em relação à criação; parece que dessa se
passa à paternidade a respeito do Verbo.
39. 1 Apol. 23,2 (128); Ibid., 21,1 (126) o Verbo “irpwrov ■yéwrijm” primeiro re­
bento de Deus. Sobre a Apologia, cf. Ch. M U N IER, Justin. Apologie, Fribourg, 1996.
40. •yevéwT|Ke SúvapAV Tvva é£ écnrroü Vyuci|v Cf. ORBE, Hacia la primera teologia
de laprocesión dei Verbo, Roma, 1958,565ss; SIM O N E T H , op. d t., Roma, 1993,75,81. Cf.
também Dial. Trypb. 62,4 (412) rebento em itido pelo Pai, 'npoflXiiOèv 'yéw eqpa. H a tal­
vez influxos gnósticos na terminologia.
41. Dial. Trypb. 61,1-3 (409s).

142
OS PADRES APOSTÓLICOS E OS PADRES APOLOGETAS

de Deus, não é fruto de uma decisão contingente, sem que por isso dei­
xe de ser livre. Por último, a geração não se produz por um corte ou excisão
material, não diminui o ser do Pai, como explica a metáfora de um fogo
que se acende em outro fogo. Notemos que, sem ser absolutamente idênti­
cas, há uma semelhança entre essa metáfora e a da “luz de luz” do Concílio
de Nicéia. Esse fruto, 'yéwqijux, que estava com o Pai antes das criaturas, é
o destinatário das palavras de Gn 1,26, segundo a exegese do Pseudo-Bamabé
que já conhecemos42. H á portanto uma verdadeira distinção entre os dois, o
Filho é realmente distinto do Pai, não se confunde com ele.
Essa distinção das "pessoas” é sublinhada fortem ente por Justino, que
ao mesmo tem po acentua a unidade do Filho com o Pai:
Essa potência seria inseparável e indivisível do Pai, da maneira — dizem [os
adversários] — como a luz do sol que ilumina a terra é inseparável e indivisível
do sol que está no céu. E como esse, ao pôr-se, leva consigo a luz, assim...
quando o Pai quer, faz saltar de si certa potência, e quando quer, a recolhe a
si... Essa potência... não é só distinta pelo nome, como a luz do sol, senão
numericamente outra (àpi0|iÂ> STepóv)43, e ali eu disse que essa potência é
gerada pelo Pai por poder e vontade sua, não por excisão ou corte, como se
dividisse a substância do Pai... Dei o exemplo dos dois fogos...44.

Reaparecem os temas conhecidos da geração pelo poder e pela vontade.


Mas essa geração dá origem a uma subsistência diversa do Pai. Apesar dessa
distinção claramente estabelecida e da condição divina do Verbo, exclui-se
que seja outro Deus, como objeta THfon45. Contudo, o problema especulativo
da unidade e da distinção ainda não se aborda de maneira explícita.
Diante dessa teologia do Logos, construída já com notável profundi­
dade, fala-se do Espírito Santo só em relação com a economia salvífica.
Sublinha-se sua atuação como Espírito profético46. Também atuou na vida
de Jesus: o E spírito opera sua encarnação, ainda que nesse caso se produza
uma certa confusão com o Filho47. O Espírito Santo desceu em Jesus no

42. Dial. Trypb. 62,lss (41 ls) C f. também sobre a passagem ORBE, op. d t., 699ss.
43. A m esm a expressão em Dial. Trypb. 129,4 (528).
44. Dial. Trypb. 128, 3-4 (526s) C f. ORBE, op. d t., 580ss.
45. Cf. Dial, 50,1; 55, 1-2; 56,3 (385, 392s; 394). Cf. sobre essa questão H E N N E ,
Pour Justin, Jésu s est-il un autre Dieu? RSPbTb, 81 (1997) 57-68.
46. Cf. 1 Apol. 31,1; 61,13 (136;184). Dial. 38,2 (364); 113,4 (499); Josué |á recebe a
força do E spírito de Jesus, 25,1 (341); o Espírito Santo clama pela boca de Isaías; 34,1
(356), dita um salm o a Davi.
47. Cf. 1 Apol. 35,5-6 (142); cf. Dial. 100,5 (479).

143
VISÃO HISTÓ RICA

batismo, sem ter Jesus necessidade disso, para que a partir dele o E spírito
pudesse derram ar-se sobre os cristãos48.*
Por últim o devemos aludir a algumas fórmulas triádicas que achamos
nos contextos doxológico e litúrgico, que m ostram que a fé trinitária se
desenvolveu no culto e na vida de fé da Igreja: “N ós prestamos culto ao
fazedor do universo... a Jesus Cristo... que aprendemos ser o Filho do
verdadeiro Deus, a quem pom os em segundo lugar, assim como ao Espí­
rito profético que pomos em terceiro lugar”44. A tríade batismal aparece
também em algumas ocasiões50. Em um contexto eucarístico, aparece a
doxologia que tem por objeto “Deus e Pai do universo, pelo nome de seu
Filho e do Espírito Santo”51; Justino vê a Trindade inclusive nos escritos de
Platão, que “dá o segundo lugar ao Verbo que vem de Deus e que ele disse
estar difundido em forma de X no universo; e o terceiro ao Espírito que
adejava sobre as águas (cf. G n 1,2)”52. M as a reflexão sobre a unidade dos
três ainda não tinha se desenvolvido.

2. Taciano

As intuições de Justino serão desenvolvidas por outros apologetas. Se


o filósofo insistia na não-diminuição do Pai pelo fato da geração do Filho,
a preocupação fundamental de seu discípulo Taciano (morto depois de
172) é m ostrar que essa geração não significa um a separação em D eus, e
que portanto o monoteísmo se mantém. Justino estava consciente de que
Jesus não era outro Deus, mas não dava ainda um a resposta adequada a
essa objeção do judeu Trifbn. Porém Taciano o faz, em uma passagem
fundamental de Ad Graecos-,
Deus era no princípio, mas nós recebemos da tradição que o princípio é a
potência do Verbo (cf. Jo 1,1). 0 dono do universo (Seoirórqs)... quando
a criação não tinha sido feita, estava só; mas enquanto com ele estava toda a

48. Cf. Dial. 87-88 (458-462), Cf. ORBE, La unáón dei Verbo, Romae, 1961, 21-82.
4 9 . 1 Apol. 13,1-3 (112). Cf. também 6 ,1 -2 (104) com menção dos anjos depois de
Jesus.
50. C f. IApol. 65,3; cf. ibid., 11-13 (182-184).
5 1 . 1 Apol. 65,3 (188s>, cf. 67,2 (190).
5 2 .1 Apol. 60,5-7 (180); cf. todo o contexto. Sobre essas passagens, cf. M ARTIN, op.
d t., 243ss. M ais em geral AYAN, Antropologia de son Justino, Santiago de Com postela/
Córdoba, 1988; e também A. M EIS, La fórmula dt f t uCreo en el Esptru Santo” en el sigh D,
suformation y significado, Santiago de Chile, 1980, 157-179.

144
O S PADRES APOSTÓLICOS E O S PADRES APOUOGETAS

potênda do visível e do invisível, ele tudo sustentou consigo mesmo pela potên­
cia do Verbo. E por vontade de sua simpliddade, sai (irporrneSÇ53) o Verbo. E
o Verbo, que não saía no vazio, resulta a obra primogênita do Pai. Sabemos que
ele é o princípio do mundo; mas não se produziu por divisão (àiró kotttjv) senão
por partidpação (pepurpóv). Porque o que se divide fica separado do primeiro;
mas o que se dá por partidpação, tomando o caráter de uma dispensação
(ôucovopía), não deixa carente aquilo donde se toma. Porque da maneira como
de uma só tocha se acendem muitos fogos, mas nem por acenderem-se muitos
diminui a luz do primeiro, assim também o Verbo, procedendo da pessoa do Pai,
não deixou sem razão (alogos) quem o tinha gerado... O Verbo, gerado no prin-
dpio, depois de fabricar a matéria, gerou nossa criação...54.5

Taciano recolhe a metáfora do fogo, já utilizada por Justino, para


explicar a geração do Filho. O Pai não fica diminuído com essa geração
porque não se trata de um corte físico, mas de uma participação em seu ser.
Por isso o Pai nunca fica sem razão. Também a vontade e a simplicidade
divinas estão na origem da geração do Verbo.
O utro elem ento fundamental que encontramos em laciano é a defi­
nição de Deus como espírito (cf. Jo 4,24)ss. Porém se explica que não é o
espírito que penetra pela matéria56, senão o criador dos espíritos materiais
e das formas da matéria mesma. O Verbo, nunca chamado Filho, participa
dessa condição espiritual; “O Verbo celeste, espírito que vem do espírito e
Verbo da potência racional, à imitação do Pai que o gerara, fez o homem
imagem da im ortalidade...”57.
A condição espiritual de D eus é participada pelo Verbo que possui a
mesma "natureza” de Deus. Essa condição espiritual faz que se entenda
a geração em term os não-m ateriais. Mas, além do "D eus espírito”, Taciano
fala do "Espírito de D eus”, que pode habitar no corpo humano e dá ao
homem sua perfeição58. Porém não se relaciona esse Espírito com o Pai e

53. Provavelm ente, segundo O RBE, Procesión dei Verho..., 592, Justino rejeitaria esse
“sair” porque pode dar a impressão de que se pode voltar atrás: vimos como Justino rejeita
essa possibilidade. P o r isso Taciano aceitaria provavelmente as comparações de lèrtuliano
a que nos referím os mais adiante (cf. ibid., 584ss.).
54. TA CIA N O , Ad Graecos 5 (BAC 116, 578s).
55. Ibid., 4 (577).
56. Cf. tam bém Ibid., 12, sobre os diversos “espíritos” (258s).
57. Ibid. 7 (580); cf. também a continuação do texto.
58. Ibid., 15 (593): “O Deus perfeito está isento de came; o homem porém é cam e.
O vínculo da cam e é a alma e o que a alm a retém é a came. E se semelhante constituição
é à maneira de um tem plo, D eus quer h abitar nele por meio do Espírito, que é seu legado”.

145
VISÃO HISTÓRICA

o Filho no seio da vida divina. Temos portanto em Taciano uma espécie de


“binitarism o”. Junto ao Pai está o Logos pessoal que participa da divinda­
de e da sua condição espiritual. O Espírito, legado de Deus que habita em
nós, não aparece diretamente associado a eles.

3. Atenágoras

Em Atenágoras (segunda m etade do século II), como já em Justino e


à diferença de Taciano, achamos de novo fórmulas trinitárias. Vale a pena
deter-nos em um extensa passagem em que é claramente visível a estrutura
triádica e em que de algum modo se pode reconhecer os começos da espe­
culação trinitária:
Nós admitimos um só Deus, incriado e eterno e invisível, impassível, incom­
preensível e imenso... rodeado de luz e beleza e espírito e potência inenarrável,
por quem (wb’ou) tudo foi feito por meio (8iu) do Verbo que dele vem
(irap’onrrou), e tudo foi ordenado e se conserva. Porque reconhecemos tam hém
um Filho de Deus... Nós não pensamos sobre Deus e também sobre o Pai e
sobre o Filho do modo como fazem vossos poetas... senão que o Pilho de Deus
é o Verbo do Pai em idéia e operação, pois em conformidade com ele (irpòs
entrou) e por meio dele tudo foi feito, sendo um só, o Pai e o Filho (evòç ovros
-roí TrotTpòs içai Toü utou). E estando o Filho no Pai e o Pai no Filho (Cf. Jo
10,38; 17,21-33 etc.) pela unidade e potência do espírito59, o Filho de Deus é
inteligência e verbo do Pai... O Filho é o primeiro rebento ('yéwqm) do Pai,
não como feito (yevóuevov), posto que desde o princípio Deus, que é inteli­
gência eterna, tinha em si mesmo o Verbo, sendo inteiramente racional; senão
como procedendo (irpoeMfájv) [de Deus] quando todas as coisas materiais eram
natureza informe e terra inerte... E concorda com nosso raciocínio o Espírito
profético: ‘O Senhor., me criou princípio de seus caminhos, para suas obras’
(Pr 8,22). E na verdade, o mesmo Espírito Santo, que opera nos que falam
profeticamente, dizemos que é uma emanação de Deus60, emanando e volvendo
como um raio de sol... Quem pois não se surpreenderá de ouvir chamar ateus
aos que admitem um Deus Pai, um Deus Filho e um Espírito Santo que mos­
tram sua potência na unidade e sua distinção na ordem (tóÇis)...61.

59. Sem artigo: trata-se da essência divina, como víamos em Taciano.


60. ónróppota (cf. Sb 7,25); cf. também a mesma metáfora em ATENÁGORAS, Legatio
pro Cbristianis, 24 (687).
61. ATENÁGORAS, Legatio..., 10 (BAC 116, 659-661). Atenágoras afirmou um
pouco antes que há um só Deus (ibid., 7, 656s).

146
O S PADRES APOSTÓLICOS E O S PADRES APOLOGETAS

Muitos pontos se oferecem nesse texto para o comentário. Antes de


tudo, como já dissemos, é a estrutura triádica que determina toda essa
extensa passagem, além da fórmula final mais concisa. A unidade do Pai e
do Filho encontra-se fortemente acentuada; parece fundar-se na inabitação
mútua e na comunidade de espírito. Faz-se uso de P r 8,22 para falar da
geração em relação à criação, o Verbo foi gerado para o princípio das obras
de Deus. Mas o Verbo não é criado, porque Deus é sempre racional. H á
uma alusão, portanto, ao logos imanente que existe em Deus antes da ge­
ração. Teófilo Antioqueno precisará ainda mais a noção. O Espírito Santo
está unido ao Pai e ao Filho, mas há que notar a certa ambiguidade da
noção de emanação (aporroia) que sai e volta à origem como um raio de sol.
Sabemos que Justino rejeitava essa idéia para o Logos. O Espírito Santo
não é chamado diretamente Deus, como ocorre, ao contrário, com o Pai
e o Filho no final da passagem. A questão da divindade do Espírito foi
colocada, no desenvolvimento dogmático, sempre depois da do Filho. Po­
rém, apesar dessas limitações, há um último ponto que vale a pena acen­
tuar: o intento de distinguir o plano em que se há de buscar a unidade
divina e aquele em que se há de considerar a distinção dos Três: a unida­
de vê-se na potênda, na dynamis, a distinção na “ordem ”, na taxis que se dá
entre os Três: essa ordem mostra que os Três não são intercambiáveis em
todos os aspectos, e que há, por conseguinte, uma distinção entre eles62.36
A unidade e a distinção estão expressas em term os semelhantes, pou­
co depois:
O desejo de conhecer o Deus verdadeiro e o Verbo que vem dele (irapVhrroü),
qual seja a comunicação (koivwvíoi) do Pai com o Filho, que coisa seja o
Espírito, qual a união (êvwotç) de tão grandes coisas, qual a distinção dos
unidos, do Espírito, do Filho e do Pai6}.

Torna-se a colocar aqui o problema que já chamaríamos trinitário no


sentido estrito, embora ainda de modo incipiente; mas em definitivo a teolo­
gia trinitária de todos os tempos deverá perguntar-se sobre a unidade e a
distinção do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Fala-se diretamente da geração
do Filho pelo Pai, porém ainda não se aborda a processão do Espírito.

62. Algumas expressões repetem -se em Leg., 24 (687s): “Afirmamos Deus ao Filho,
Seu Verbo, e ao E spírito Santo, unificados segundo o poder; ao Pai, ao Filho e ao Espírito,
porque o Filho é inteligência, verbo e sabedoria (oo<J>ía) do P ai, e o Espírito emanação
(àiróppota), com o luz do fogo...” Alguns acrescentam depois de “segundo o poder”, “dis­
tintos segundo a taxis”.
63. Leg. 12 (663s).

147
VISÃO HISTÓRICA

Outras fórmulas triádicas atribuem ao Espírito uma função cósmica,


talvez por influências estóicas: "Se pois Platão não é ateu... também nós
não o somos por saber e afirmar o Deus por cujo Verbo tudo foi fabricado,
e por cujo Espírito tudo é m antido em união”64. Tampouco podia faltar a
alusão à ação do Espírito na profecia, convicção comum na época65.

4. Teófilo de Antioquia

Devemos ao Ad Autolicum de Teófilo (morto por volta de 186), em


primeiro lugar, o term o grego T p í a ç , que em latim traduziu-se por trinitas
para designar o Pai, o Filho e o Espírito: “Os três dias que precedem a
criação dos luminares são símbolo da Trindade, de Deus, de seu Verbo e
de sua Sabedoria”66. Devemos notar que Sabedoria aqui não se refere ao
Filho, com o observamos até agora, mas ao Espírito Santo. O mesmo ocor­
rerá mais adiante em Ireneu de Lião. H á algumas vacilações nesse ponto
em Tèófilo. Em algumas passagens a Sabedoria aparece junto ao Logos e
parece identificar-se com ele67 mas em outras ocupa o lugar do Espírito em
clara diferenciação a respeito do Logos68. Fala-se pouco do Espírito Santo
ou Espírito de Deus em outros contextos, embora se lhe atribua especifi­
camente a inspiração da Escritura69. Também para Tèófilo a paternidade
de Deus refere-se à criação70. Afirma também a monarquia e a unicidade de
Deus, que se mostra na criação mesma71.

64. Leg. 6 (655). Cf. também de modo mais velado, Ibid.5 (653s). SIM O N E T O , op.
d t., (cf. nota 40) 89, observa que quando o Espírito é introduzido na vida da Trindade
desaparecem essas funções cósmicas, que se atribui então só ao Filho. Assim ocorre real­
mente nos textos dtados. Contudo há certas vadlações na teologia do Espírito.
65. C f. Leg. 7 (657).
66. Ad Autolicum 2,15 (805).
67. Aut. 2,10 (796); nesse contexto o Logos é também chamado “espírito”. União de
Verbo e Sabedoria também em 2,22 (813). Em ambos os casos se alude a ICor 1,24.30:
Cristo potênda e sabedoria de Deus. Cf, SIM O N ETTI, o p .d t., 92.
68. Ibid. 2,18 (808), Deus diz ao Logos e à Sabedoria: “Façamos o homem” (Gn
1,26); dá-se aqui a ampliação trinitária da interpretação inidada pelo Pseudo-Bamabé; cf.
1,7 (774,) onde se dá a mesma distinção no contexto da criação do mundo e comentando
SI 32[31],6, um dos lugares mais usados na patrística para afirmar a intervenção de toda
Trindade na criação. Parece portanto que se pode afirmar que há em Tèófilo uma fe trinitária
sufidentem ente assentada, senão perfeitam ente desenvolvida.
69. C f. Aut. 1,14; 2,9; 3,17 (781; 795; 857).
70. Cf. Ibid. 1,4 (786); 2,2 (814) o Pai do universo é o que gera o Verbo.
71. C f. AdAut. 1,6-7 (773-774); 1,11 (778); 2,28 (819).

148
OS PADRES APOSTÓLICOS E OS PADRES APOLOGETAS

Mas o aspecto que mais nos interessa destacar em lèófilo é sua doutri­
na dos dois estados do Verbo, o Logos imanente (èvSu&OsToç), no seio do
Pai, antes da geração propriamente dita, e o Logos proferido (<npo<|>opiKÓ<;),
quando Deus o gera para criar o mundo por seu meio:
O Verbo está sempre imanente72no coração de Deus (evSuíOeTov ev KotpSía
6eoü). Porque antes de criar nada, tinha a esse por conselheiro, como mente
e pensamento seu que era. E quando Deus quis fazer tudo o que tinha deli­
berado, gerou esse Verbo como proferido (<irpo<|>opiKÓv), primogênito de toda
a criação, não se esvaziando de seu Verbo, senão gerando o Verbo e conver­
sando sempre com ele73.

Assim se salva, por uma parte, a eternidade do Logos divino, que


existe antes de ser proferido, e ao mesmo tempo elimina-se a dificuldade
que poderia supor que o Pai antes da geração estivesse sem razão e sem
sabedoria. Vimos nos autores antes estudados alguma alusão a esse proble­
ma que aqui aparece formulado com clareza. Teófilo diferenciou explicita­
m ente esses dois estados do Logos preexistente, segundo a mentalidade da
época, e as palavras que usou converteram-se em termos técnicos para
designá-los.
Na doutrina dos apologetas, é im portante sobretudo sua doutrina do
Logos. Inspirada sem dúvida, em parte mas não só, no prólogo de João,
também sem dúvida alguma foi muito além do que esse texto bíblico afir­
ma. Mas permitiu dar razão da verdadeira filiação divina de Jesus, sem que
a geração se explicasse segundo os modelos humanos e animais. A geração
do Verbo contempla-se, assim, como um processo que está de acordo com
a natureza espiritual divina. A transcendência histórica dessa teologia dos
apologetas foi enorme. Nela se fundam, pelo menos remotamente, todas
as teorias da geração do Filho como um processo do intelecto que teremos
ocasião de ver ao longo de nosso percurso. Seu limite, que até o Concílio
de Nicéia não será definitivamente superado, será o da falta de clareza
sobre a "eternidade” dessa geração. Esse modelo explicativo permite no
entanto afirmar a divindade do Logos, como Filho de Deus, unido ao Pai.
N ão esqueçamos, por outro lado, que a insistência da atuação do Logos na

72. Cf. também 2,10 (796) o Logos imanente em suas entranhas.


Ti.AdAut. 2,22 (813). Teófilo parece referir-se a jo 1,1, ao Verbo em Deus; o Verbo
proferido parece vê-lo indicado em Jo 1,3; Ibid. (813s). Sobre essa teologia trinitária de
Tèófilo, ver G. URIBARRI BILBAO, Monarquiay Trmidad. Elconcepto teológico “monarcbia”
en la controvérsia “monarquiana”, M adrid, 1996, 105-129.

149
VISÃO HISTÓ RICA

criação perm itiu ver o caráter universal da mediação criadora de C risto


Jesus com o razão do universo e a presença de suas sementes em toda a
criação. Justino desenvolveu com particular vigor esse ponto. Está menos
precisa nesses autores a teologia do Espírito: mas não podemos esquecer o
intento de Atenágoras de considerá-lo, embora de modo incipiente, unido
ao Pai e ao Filho na vida trinitária. Tèófilo, por sua vez, o considera des­
tinatário, juntam ente com o Filho, das palavras de D eus em Gn 1,26, e
assim o inclui na trios divina.

150
6
A teologia do final do século II
e do século III

Entramos agora no estado da grande teologia dos últimos anos do sé­


culo II e da teologia do século UI. Vamos ocupar-nos sobretudo, mas não
exclusivamente, de três grandes personalidades: Ireneu de Lião, Tertuliano
e Orígenes. Graças a eles, a teologia trinitária conhecerá um grande desen­
volvimento. Os significados da unidade e da distinção, que eram objeto de
reflexão incipiente em Atenágoras, serão estudados com mais profundidade,
com o desenvolvimento de uma terminologia específica. Além disso, tom ar-
se-á cada vez mais explícita a teologia do Espírito Santo, o qual, ainda com
vacilações, ver-se-á cada vez mais unido ao Pai e ao Filho, não só na econo­
mia da salvação mas também na própria vida divina.

IRENEU DE LIAO

Santo Ireneu (m orto por volta de 202-203), bispo de Lião, ainda


que nascido em Esmima, constitui um vínculo entre o O riente e o O ci­
dente. N ão seguirá a linha de discussão com a filosofia grega, como os
apologetas, mas sua preocupação será antes a ameaça interna que para a
fé constitui a gnose. D iante das doutrinas complicadas da gnose, com ­
preensíveis só para os seletos, Ireneu acentuará que a fé da Igreja é aces­
sível a todos. O bispo de Lião oferece em seus escritos abundantes fórmulas

151
VISÃO H ISTÓ RICA

trinitárias1, junto a outras que se limitam ao Pai e ao Filho, sem menção


ao E spírito Santo2.
M uitos textos m ostram a estrutura trinitária da salvação, com form u­
lações que com freqüência partem do Espírito Santo, que conduz o ho­
mem ao Filho, que por sua vez lhe dá acesso ao Pai: a... o Espírito que
prepara o homem para o Filho de Deus, o Filho que o leva ao Pai, o Pai
que lhe dá a incorrupção para a vida eterna, que é concedida a todos pelo
fato de ver a Deus”3.
O Filho e o Espírito intervêm já na obra criadora do Pai. D eus é
assistido, segundo algumas passagens, pelo Logos4, mas segundo outras
pelo Logos e pela Sabedoria, o Filho e o Espírito, que são, segundo a
conhecida expressão de Ireneu, as duas mãos de Deus5. Há, portanto, uma
correspondência básica entre a obra criadora e a obra da salvação. Tudo
vem de um só Deus (contra as teses de M arcião) que tudo realiza com seu
Filho (o Verbo) e seu Espírito (Sabedoria). Ireneu, como antecipamos, iden­
tifica o Espírito com a Sabedoria. Fala mais dessa nos contextos cosmo-
lógicos, e do Espírito nos contextos soteriológicos6. Está firm em ente
estabelecida a fé no Pai, no Filho e no Espírito. M as como os três se rela­
cionam no seio da vida divina?
Ireneu é sóbrio ao falar da geração do Logos. Evita as analogias com
a psicologia humana. Escuda-se em Is 53,8 (segundo os LXX): “Quem
poderá contar sua geração?”7 Não segue portanto a linha dos apologetas.

1. C f. Ado Haer. 1,10 (SCh 264,154) IV 33,7 (SCh 100, 818); V 20,1 (SCh 153,254);
Démons. 3; 6; 10 (FP 2 56;62-64;75-77); reproduzimos uma dessas fórmulas, IV, 6,7 (SCh
100,454): "... in omnibus et per om nia unus Deus Pater et unum Verbum [Filius] e t unus
Spiritus et una salus credentibus in eum ”. Cf. J. FANT1NO La théologie d’Irmée. Lecture des
Ecritures en réponse à Vexégese gnostique. Une approche trmitaire, Paris, 1994, esp. 283-309.
2. C f., entre outras passagens, I 3,6 (SCh 264,62); H I 1,2 (SCh 264,62); E l 1,2 (SCh
211,24); 4,2 (46s); 16,6 (312); cf. M. SIM O N E T O , Studi sulla cristologia del U e II secolo,
Roma, 1993, 97ss.
3. Adv. Haer. IV 20,5 (SCh 100, 638s). Também ibid., 6 (644); Démons. 1 (FP 2,65s);
V 36,2 (SCh 153,460) “... et per huiusmodi gradus proficere, et per Spiritum quidem ad
Filium, per Filium autem ascendere ad Patrem”; IV 38,3 (954): “Pâtre quidem bene sentdente
et iubente, Filio vero m inistrante et formante, Spiritu vero nutriente e t augente...”
4. Cf. Adv. Haer. H 2,4 (SCh 294,38); 27,2 (266>, ffl 8,3 (SCh 211,94).
5. C£ Adv. Haer. W praef 4 (390); 7,4 (462s). Deus não predsou do m inistério dos
anjos para criar o homem; o mesmo em 20,1 (626). V 1,3; 6,1: cf. ORBE, Teologia de son
IrineOy M adrid-Toledo, 1985,1, 112ss; 266ss; Démons. 5 (60-62).
6. Cf. SIM ONETTI, op. d t., 100.
7. “Generationem dus quis enarrabit?”; c£ Ado. Haer II 28,5. (282); também Démons.
70 (FP 2,187). No original, essa frase nada tem a ver com o problema de que tratamos. A
tradução da Bíblia de Jerusalém é: “Quem se preocupa com sua causa?” Também se usou esse

152
A TEOLOGIA DO FINAL DO SÉCULO « E D O SÉCULO III

Como ele renuncia a toda especulação sobre o tema, é difícil determinar o


quando e o como da geração do Verbo em Ireneu. Está em relação com a
criação? E difícil responder diretam ente. Essa geração é “desde sempre”,
porque “sempre”, ao menos desde que há tempo, desde que há criação,
coexiste o Filho com o Pai®.
Para Ireneu, o Filho é Deus* 9,
8 participa certamente da divindade, vem do
Pai, mas o bispo de Lião reserva a denominação õ 0eós para o Pai, segun­
do a tradição que já conhecemos. A divindade do Filho, que não se põe em
dúvida, é compatível para Ireneu com uma certa “subordinação” a respeito do
Pai. Não chegou ainda a afirmar uma consubstandalidade totalmente perfei­
ta10entre ambos, porque o Filho não é igual ao Pai em todos os seus atributos.
Ireneu não é partidário do bomoousios, que lhe parece demasiado materialis­
ta e gnóstico11. O Filho é o único que nos dá o conhecimento do Pai. Esse
ponto é de capital importância na teologia de Ireneu. “O Filho é o conheci­
mento do Pai”12,31“visibile Patris Filius”, o Filho é o visível do Pai1}. O feto da
revelação do Pai pelo Filho implica a unidade de ambos: o Filho é o único que
compreende o Pai. Mas a cognosdbilidade do Filho diante da incognosdbi-
lidade do Pai pode implicar que em algum aspecto lhe é inferior14.

versículo na tradição para indicar a incompreensibilidade da geração virginal de Jesus. Cf.,


nesse sentido, Adv. Haer., IH 19,2 (374); iv 33,11 (830). Assim parece interpretá-loJU STIN O ,
Dial. Trypb. 43,3 (BAC 116,372); 63,2 (413); 68,4 (425); 76,2 (437); 89,3 (462); também
T E R T U L IA N O , Adv. Marc, ffl 7,6 (CCL 1, 517); Adv. Iud., 13,22; 14,6 (C C L 2,
1.389;1.393).
8. Cf. Adv. Haer. IV 20,3 (632): também a Sabedoria estava com ele antes da criação
(Ibid.); cf. tam bém II 25,3 (254), D eus não tinha necessidade de ser glorificado pelo ho­
mem, porque antes já estavam o Filho e o E spírito Santo. C f. ORBE, Proctsián dei Verbo,
197-198; Introduccwn a la teologia de los siglas II e UI, Roma, 1987, 50ss; Estúdios sobre la
teologia cristiaaa primitiva , M adrid-Rom a, 1994,5ss. Demora. 10,43 (PP 2,78; 148-152) são
textos que criaram dificuldade: cf. status quaestionis em IREN EU de L ião, Demonstracián de
la pndicación apostólica, editado por Rom ero PO SE, M adrid, 1992, 75-77; 148-152. Cf.
também SCh 4 0 6 ,9 6 .
9. Cf. Demora. 47 (156).
10. C f. ORBE, op. d t., 659; não é exceção nesse ponto entre seus contemporâneos.
11. Em Ado. Haer, II 17,2.3.4 (158.160) etc. se usa “eiusdem substantiae” em polêm i­
ca com os valen tinianos: cf. ORBE, op. d t , 660ss.
12. Demora. 7 (FP 2,68); cf. tam bém o contexto que ji conhecemos em parte.
13. Adv. Haer. IV 6,6 (448s): “E t per ipsum Verbum visibilem e t palpabilem factum
P ater ostendebatur, etiam si non om nes sim iliter credebant d , et om nes viderunt in Filio
Pater; invisibile etenim F ilii Pater, visibile autem Patris Filius”.
14. Ibid., IV 4,2 (420): “Etbene qui dixit ipsum immensum Patrem in Filio mensuratum;
mensura enitn Patris Filius, quoniam e t capit eum”; IV 20,1 (624): “Igitur secundum
magnitudinem non est cognoscere D eum : impossibile est enim mensurare Patrem”.

153
VISÃ O HISTÓRICA

Se não podemos descartar a possibilidade de que a geração do Verbo


esteja relacionada com a criação, não podemos estranhar que Deus seja
“Pai” para Ireneu, como para os autores que vimos até este momento, já
em virtude da criação mesma. O Pai do mundo é também o de Jesus, que
se faz Pai pelo amor: “Este é o Demiurgo, Pai pela dileção, Senhor pelo
poder, autor e plasm ador nosso pela sabedoria”15. Em muitas outras passa­
gens fala Ireneu da paternidade de Deus em relação com seu amor por nós,
porque nos ordena em Jesus seu Filho para o seu conhecimento16.
Vimos como o Espírito Santo encontra-se unido ao Pai e ao Filho na
profissão de fé, e sua função é capital na criação e na salvação do homem.
E “sempiterno”, quer dizer, pode dar ao homem a vida eterna, diferente do
sopro vital, a alma, que não dá mais do que a vida temporal17. Quanto à
vida do Espírito no seio do Pai, Ireneu é ainda mais parcimonioso do que
a respeim do Filho. Mas se pode descobrir algo da propriedade divina do
Espírito levando em conta as características de sua atuação:
[O Pai] não necessitara de ajuda para a fabricação do que foi feito, e para a
disposição dos negócios que se referem ao homem, senão que dispunha de
um ministério abundante e impossível de descrever: servem-lhe para tudo seu
Filho (progenies) e sua figura (figuratio), quer dizer, o Filho e o Espírito, o
Verbo e a Sabedoria aos quais estão submetidos todos os anjos18.

A “fabricação” e a “disposição” referem-se respectivamente à ativida­


de do Filho e do Espírito. Há uma diferença entre ambos no estar a serviço
do Pai. A figuratio do Espírito assemelha-se à semelhança, de que fala Gn
1,26. O próprio do Espírito é a assimilação a Deus Pai. Aperfeiçoa na
ordem dinâmica a obra do Verbo que realiza a “fabricação”. O Filho é a
imagem, o paradigma da criação. Ao contrário, o Espírito não tem forma
nenhuma, possui com o essência divina o dinamismo para vivificar a obra
do Filho. A Sabedoria dá coerência às coisas, é princípio de configuração,
“figura om am entorum ”19, que outorga às substâncias criadas o om ato, in­
clusive divino, que as aperfeiçoa na ordem operativa.

15. Ibid., V 17,1; cf. ORBE, Teologia de san Irrneo, M adri-Toledo, 1987, II, 121ss.
Todas as obras que D eus faz a título de demiurgo, ele as ama a título de Pai.
16. CLAdo. Haer. TV20,1,4-5 (625.635-641); Demons. 8 (69-70). Cf. ORBE, Pnceãán..., 129.
17. Cf.Ado. Haer. V 12,2: “... afflatus igitur tem poralis, Spiritus autem sempitemus”.
Cf. ORBE, Teologia..., I, 546s.
18. CÍAdv. Haer. IV 7 ,4(464). Cf. para o que segue, OHBE,Introducción..., 123-126.
19. Cf. Adv. Haer. TV 20,1 (626), a diferenciação das funções do Pai, do Filho e do
Espírito na criação.

154
A TEOLOGIA DO FINAL DO SÉCULO II E DO SÉCULO III

A Sabedoria criadora de P r 8,22 ss é, para Ireneu, o Espírito Santo,


não o Filho20. Segundo isso, o Espírito assistiria não diretatnente ao Pai,
mas ao Filho, que é quem realiza diretam ente a criação. O Filho realiza a
economia do Pai sobre o homem, o Espírito lhe assiste para fazer-nos
conseguir a plena semelhança, a assimilação divina. Se o Espírito que pos­
suímos agora como primícia faz-nos clamar “Abbá, Pai” (cf. G14,6), o que
não fará toda a graça do Espírito que será dada aos homens, da parte de
Deus. “Fará que nós sejamos semelhantes a ele [Deus] e realizará o bene­
plácito do Pai, como quem modela o homem à imagem e semelhança de
Deus (cf. Gn 1,26)”21. Assim temos o Espírito associado sempre à obra do
Filho, à mediação criadora. Leva à perfeição, à perfeita semelhança com
Deus, o homem, criado desde o começo à imagem do Filho. O Verbo
outorga o Espírito a todos os seres, conforme a vontade do Pai. Por uma
parte está a obra criadora, mas sobretudo o dom do Espírito filial: “En­
quanto o Pai leva por si o peso da criação e de seu Verbo, o Verbo, susten­
tado pelo Pai, outorga o Espírito a todos os seres, conforme a vontade do
Pai; a uns pela criação... a outros por adoção”22.
Dessa diferenciação na economia salvífica, talvez se possa chegar a
algo da “Trindade imanente”. A. O rbe escreve uma página interessante
sobre o modo da processão do Espírito em Ireneu23. V ê um paralelismo
entre a criação de Eva das costelas de Adão, porque não convinha que
Adão estivesse só, e a Sofia que vem do Logos, “ajuda” divina, proporcio­
nada, da mesma natureza, para a perfeição da obra do Logos, para dotar o
mundo de harmonia e de vida:
O sono do Logos, origem de Sofia, seria simplesmente a mudança de direção
no dinamismo do Filho: o qual, em vez de olhar para Deus, em comunhão de
vida com ele, teve de olhar para a “dispensação” futura para dar origem à
pessoal e divina Sabedoria do mundo. Entendemos agora, por analogia com
a processão de Eva, a índole da processão do Espírito Santo a partir do Logos.
Processão não-generativa, intimamente vinculada ao Logos, de cuja substân­
cia direta ou indiretamente procede, sob o influxo de Deus Pai24.

20. Ibid., IV 20,3 (362).


21. Ibid., V 8,1. Ver o Comentário de ORBE, Teologia..., I, 376ss.
22. Cf. Ado. Haer. V 18,2: ver ORBE, op. d t , II, 2 12ss: o V erbo que dá o Espírito é
o Verbo-homem, sustentado pelo Pai enquanto criatura. Cf. também ORBE, Estúdiossobre
la teologia cristiana primitiva, M adrid, 1 994,116s.
23. Cf. ORBE, op. d t , 120-122.
24. Ibid., 122.

155
VISÃ O HISTÓ RICA

Em analogia com a criação de Eva, a partir de Adão, o Logos seria o


substrato imediato do qual o Pai tira a Sofia — o Espírito Santo2S.62 Tería­
mos assim o Espírito associado no seio da Trindade com o Pai e o Filho,
como procedente em últim o termo do prim eiro, mas diretam ente do Fi­
lho, para a perfeição da obra criadora e salvadora que esse realiza. O Es­
pírito pertence à Trindade imanente, porque desde o prim eiro instante
intervém na criação, mas a distinção com a Trindade econômica não pare­
ce ainda haver-se conseguido completamente.

TERTULIANO

Tèrtuliano (m orto depois de 220) é o grande criador do vocabulário


trinitário latino. Recolhe e completa a problemática que os apologetas
estabeleceram. O problem a da unidade e da distinção em Deus é colocado
por Tèrtuliano em alto nível especulativo. Sua obra capital, do ponto de
vista da teologia trinitária, é o Adversus Praxean“ . Praxeas é apresentado
no princípio mesmo da obra como um “patripassiano”, que afirma que “o
Pai desceu à virgem, ele mesmo nasceu dela e padeceu, em resumo, ele é
o mesmo Jesus C risto’’27. E um pouco adiante: “no tempo, o Pai nasceu e
padeceu, o mesmo Deus onipotente é chamado Jesus C risto”28. A esse erro
Tèrtuliano opõe a regula fidei:
Porém nós... cremos em um só Deus, mas com essa dispensação que chama­
mos “economia”, quer dizer, que o único Deus tem também um Filho, sua
palavra, que procedeu dele mesmo, por meio do qual tudo foi feito, e sem o
qual nada se fez (cf. Jo 1,3-4). [Cremos] que esse Filho foi enviado pelo Pai
à Virgem, e nasceu dela, homem e Deus, Filho do homem e Filho de Deus,
e foi chamado Jesus Cristo; que ele padeceu, morreu e foi sepultado segundo
as Escrituras (cf. ICor 15,3.4), que foi ressuscitado pelo Pai, e levado de novo
ao céu, está sentado à direita do Pai e virá para julgar os vivos e os mortes. E
que depois enviou segundo sua promessa o Espírito Santo paráclito, sandfi-
cador da fé daqueles que crêem no Pai, no Filho e no Espírito Santo29.

25. É a tradição do caráter feminino do Espírito que dá fundamento a essa analogia:


Adão/Eva; Logos/Sofia.
26. Vou dtá-lo segundo a edição de G . SCARPAR, Q . S. F. TERTU LIA N O , Contro
Prassea, Torino, 1985.
27. Prax. 1,1 (142).
28. Prox. 2.1 (144).
29. Prox. 2 ,1 (144-146); cf. De froescr. boer. 13 (CCL 1,197-198)

156
A TEOLOGIA DO FINAL DO SÉCULO IIE DO SÉCULO III

Deve-se pois afirmar a unidade divina, mas ela não significa que o
Pai, o Filho e o Espírito sejam o mesmo. A unidade divina de que aqui se
trata dá-se no desenvolvimento da "economia” (que aqui é antes de tudo
uma realidade intratrinitária, embora seja contemplada em relação com a
economia salvífica que dela deriva, começando pela criação). Deus é um,
porque tudo vem do um pela unidade da substância, e ao mesmo tempo se
guarda o mistério da economia que dispõe a unidade na Trindade, na ordem
dos três, o Pai o Filho e o Espírito; mas três não pelo estado, e sim pelo grau;
não pela substância, senão pela forma; não pela potência, mas pela manifes­
tação; porém os três são de uma só substância, de um só estado e de uma só
potência30, porque um só é Deus do qual esses graus, formas e manifestações
se distribuem nos nomes do Pai, do Filho e do Espírito Santo31.

Esse texto capital nos mostra, como insinuamos acima, a reflexão já


explícita sobre os planos em que se movem a unidade e a diversidade em
Deus. A unidade é o ponto de partida, uma unidade garantida pelo Pai,
do qual tudo provém. A unidade funda-se na "substância”, no substrato do
que são os "três”, diante do mistério da economia que, como víamos já na
regra da fé, significa o desdobramento da Trindade "em pessoas”. A unidade
da substância significa também unidade no status e na potestas. Os três par­
ticipam do mesmo ser que tem no Pai sua origem; pertencem à mesma or­
dem divina, compartilham o mesmo poder. A distinção porém dá-se no pla­
no do gradus, da forma e da species. Essa série de distinções coloca-se em
outra ordem, que não afeta a unidade radical de Deus que lèrtuliano quer
claramente afirmar, senão que constituem o modo concreto como se há de
entender essa unidade. Assim, a unidade que de si mesma faz derivar a Trin­
dade não significa um a destruição da primeira, mas o modo como essa se
constitui32. Junto ao conceito de mitos, e em contraponto com ele, temos o
de trinitas, um term o fundamental chamado a fazer fortuna na história da

30. Já Atenágoras punha na dynamis a unidade dos três. Cf. ATENÁGORAS, Legatío
pro Cbristianis 10 (BAC 116, 659-661).
31. Prax 2,4 (146); cf. também 19,8 (198); sobre esses conceitos cf. a introdução de
SCARPAR à edição de Aàu. Prax., 84-98; G. URRIBARRI BILBAO, Monarquiay Trimdade. El
amcepto teológico “numarcbia” em la amtrvuérsia “monarqiúana1', Madrid, 1996,169ss. Fundamen­
tais são os estudos de R. BRAUN, Deus drrisúanontm. Recbercbes sur le vocakndam doctridal de
Tèrtulien, Paris, 1962; J. M O IN G , La tbéologie trmhaire de Tertulien, Paris, 1965-1969,4 vols.
32. Prax. 3,1 (146s) "... expavescunt, quod oikonomiam numeram et dispositionem
trinitads divisionem praesum unt unita tis, quando unitas, ex semedpsa derivans trinitatem ,
non destruatur ab illa, sed adm inistretur”.

157
VISÃ O HISTÓRICA

teologia, equivalente latino do grego Tpúxç que já conhecemos. A divindade


do Deus único deve pois ser entendida nessa “economia”33. A única umonar­
quia”, o único governo, não se destrói porque um rei tenha ministros e ofi­
ciais. Muito menos se dividirá pelo feto de ter um Filho que é feito partícipe
da monarquia mesma, mas continuará pertencendo a quem a detém34. Deus
não sofre dispersão pelo feto de que o Filho e o Espírito ocupem o segundo
e o terceiro posto, partícipes {consortes) da substância do Pai35. Não destrói a
unidade de Deus o Filho, que vem da substância do Pai («o» aliunãe deduco
sed de substantia Patris), que nada fez sem a vontade do Pai. E o mesmo
ocorre com o Espírito Santo, terceiro grau, que vem do Pai e do Filho {non
aliunde puto sed a Paire per Fifíumy6. A monarquia não se destrói, mas fica
ciam que o Pai, o Filho (e o Espírito) não são o mesmo37.
Esses três, unidos mas não identificados em todos os aspectos, são
chamados com freqüênda por 'Tertuliano “pessoas”38, outro vocábulo a ter
grande transcendência na teologia trinitária e na cristologia. Contudo,
devemos guardar-nos de ver já nesse momento um desenvolvimento com­
pleto dos conteúdos posteriores dessa noção3’. Jo 10,30 dá ocasião a uma
distinção entre a unidade da substância e a diferenciação pessoal: “O Pai e
eu somos um a só coisa (»mo»)”. Jesus não se refere à identidade pessoal,
mas à unidade na divindade40. Os três, unidos na substância e contudo
distintos, são cobaerentej41.

33. Cf. Prax., 3,1; 11,4; 12,1 (146; 168; 170).


34. Cf. Prax. 3,2-3 (148); cf., sobre a questão, UR1BARRI BILBAO, op. c it, 153ss.
35. Cf. Prax.3,5 (148).
36. Prax. 4,1 (150).
37. Cf. Prax. 4,2-4 (150), sobre a entrega do reino e a submissão de Cristo ao Pai
segundo IC o r 15,24-28; o que entrega o reino e aquele a quem o reino se entrega são dois.
38. Cf. entre outros lugares, Prax. 7,9; 9,3; 11,4.7; 27,11; 31,2 (158; 162; 168; 170;
226; 236).
39. P or uma parte, Tertuliano encontra-se com o uso latino de chamar aos indivíduos
“pessoas”; por outra parte, a exegese prosopografica introduz a ficção literária de persona­
gens que (alam: assim se usa a expressão “em pessoa de” alguém. Mas aqui não é esse o caso:
os seres divinos são realmente distintos, o que fala é distinto daquele ao qual se dirige a
locução. Com todos esses elementos, a partir das distintas palavras que correspondem ao
Pai e ao Filho, chega-se à conclusão de que esses dois são reais; assim são chamados pessoas
(também o Espírito Santo). Assistiremos ao desenvolvimento ulterior do conceito; cf. A
MTT ANTO, La Trinità dei teologi e dei filosofi. Uintelligenza delia persona in Dio, in A.
PAVAN; A M ILANO, Persona e personatísmi, Nápoles, 1987, 1-284, esp. 1 lss.
40. Prax. 25,1 (218): “Qui tres unum sunt, non unus, quomodo dictum est Ego et Pater
umtm sumas, ad substantiae unitatem, non ad numeri singidaritatem”; também 8,4 (160).
41. Prax. 12,7 (172): “ubique teneo unam substantiam in tribus cohaerentibus”; 25,1
(218): “Connexus Patris in Filio et Filii in Paradeto tres effid t cohaerentes”.

158
A TEOLOGIA D O FINAL DO SÉCULO IIE D O SÉCULO III

Para explicar essa unidade dos três fazendo ver ao mesmo tem po sua
distinção, Tertuliano usou uma série de comparações que, com sua apro­
vação ou sua rejeição, tiveram grande influência na tradição. É fundamen­
tal uma passagem do c. 8 do Adversas Praxean:
O tronco não está dividido da raiz, nem o rio da fonte, nem o raio do sol, nem
tampouco a Palavra está separada de Deus. Portanto, segundo a imagem que
esses exemplos proporcionam, confesso que falo de dois: Deus e sua palavra,
o Pai e seu Filho, porque a raiz e o tronco são duas coisas, mas unidas: e a
fonte e o rio são duas manifestações (species), mas indivisas; e o sol e o raio são
duas formas, mas enlaçadas (cobaerentes). Tudo o que procede de alguma coisa
deve ser algo distinto daquilo de que procede, mas não separado. Porém,
onde há um segundo há duas coisas, e onde há um terceiro, três. O tercei­
ro é o Espírito a respeito do Pai e do Filho, como o terceiro a respeito da raiz
é o fruto que vem do tronco, e o terceiro em relação à fonte é o arroio do
rio, e o terceiro do sol é a chispa do raio. De todas as maneiras, nada se aparta
da origem do que tem suas propriedades. Assim a Trindade, derivada do Pai
e através dos graus enlaçados e coesos, não é obstáculo à monarquia e protege
o status da economia42.34

N ota-se em seguida como se repetem as palavras que já vimos utili­


zadas para designar o que é comum e o que é próprio de cada um: species,
forma, e no final também gradus e status. São os termos que mostram a
distinção das pessoas. Porém mostra-se também a unidade dos três, que se
ap ressa no term o trmitas: a trindade tem no Pai sua origem única, não é
obstáculo à monarquia, e ao mesmo tempo defende a “economia”, que é o
modo específico da unidade de Deus. O Pai, o Filho e o Espírito Santo são
diversos um do outro e ao mesmo tempo inseparáveis; não há divisão entre
eles, mas sim distinção, de modo que cada um deles é realmente “outro”42.
As expressões de Tertuliano em relação à unidade e à diversidade dos
três parecem im plicar uma certa gradação entre eles, ainda que se mante­
nha a divindade comum:
O Pai contém toda a substância, o Filho é uma derivação e uma porção do
todo, como ele mesmo confessa: Porque oPai é maior do queeuQo 14,28).Tam­

42. Prax. 8 ,5 -7 (172): cf. todo o contexto, sobretudo o precedente. Cf. também 22,6
(206): “radius ex sole”, “rivus ex fonte”, “frutex ex sem ine”, só se fala do Pai e do Filho.
Igual em Apokgetiatm, 21,10-13 (CCL 1 ,124s).
43. Prax. 9,1 (162): “alium esse Patrem et alium Filium et alium Spiritum ”.

159
VISÃO HISTÓRICA

bém no salmo é cantado como inferior: Um pouco menos que os anjos (SI 8,6).
Assim o Pai é distinto do Filho ao ser maior do que o Filho, pois um é o que
gera e o outro o que é gerado; um o que envia, outro o que é enviado; um que
faz, e outro por meio do qual tudo foi feito44.

A distinção dos dois manifesta-se em suas diversas funções na criação


e na salvação do homem. Isso leva à distinção trinitária do que gera e do
que é gerado. N o Pai está toda a substância, no Filho uma derivação ou
portio. Não parece que se deva entender esse termo no sentido material,
mas antes no de participação45. Trata-se de uma participação no todo que
se encontra no Pai em plenitude. Mas isso não quer dizer que a plenitude
da divindade se encontre no Filho do mesmo modo que no Pai. Os textos
bíblicos aduzidos podem fazer pensar em uma certa “inferioridade’’, não
só na distinção pessoal entre o Pai e o Filho. A doutrina da processão do
Verbo (e a fortiori do Espírito Santo), a que vamos em seguida dedicar
brevemente a atenção, mostra a dificuldade de uma total participação do
Filho na divindade do Pai. Mas deve ficar claro que isso de modo algum
significa que a divindade mesma fique comprometida.
Devemos dizer algo sobre o problema da geração do Filho. Se Ireneu
mostrava-se sóbrio a esse respeito, e rejeitava a analogia da m ente humana
segundo o modelo dos apologetas, nada disso ocorre em Tertuliano. Para ele
a psique humana faz-se o modelo a partir do qual se entende a processão do
Filho, Tudo isso se justifica porque a mente humana é imagem do espírito
divino. Daí que a operação daquela seja usada para a iluminação do que ocorre
no ser de Deus46. Podemos distinguir na processão do Logos algumas fases.
1. Em uma fase eterna, o intelecto divino contempla-se a si mesmo:
o intelecto divino é desde sempre, sem começo. N o começo, diz
Tertuliano, Deus estava só: nada havia fora dele. M as corrige-se
de algum modo em seguida: não estava só porque tinha em si sua
razão que é sua mesma mente47. O intelecto está orientado para
Deus mesmo. Nenhuma passagem da Escritura aludiria direta­
mente a esse estádio.

44. Prax. 9,2. (162).


45. ORBE, Hacia ta primera teologia de ta procesián dei Verbo, Roma 1958, 592: J.
M OINGT, Theologie trinitaire, UI, 940ss. A portio aparece também em 26,3.6 (220): derivotio
e portio de novo unidas em 14.3 (178s)
46. Cf. para o que segue, ORBE, Introducciân, 96ss.
47. Prax. 5,2 (152): “Ceterum nec tune quidem solus; habebat enim secum quam
habebat in semetipso, rationem suam sdlicet... Q ua ratio, sensus ipsius est”.

160
A TEOLOGIA DO FINAL DO SÉCULO IIE DO SÉCULO III

2. A segunda fase tem lugar antes do tempo, em preparação à econo­


mia salvífica. O Logos, por vontade livre e positiva de Deus, passa
a contemplar-se a si mesmo no pensamento da economia salvífica,
na qual se dá a conhecer aos outros. Idéia de um a economia de
salvação que de algum modo é a transição entre a contemplação
de Deus em si mesmo e a formação da sabedoria pessoal.
3. N a terceira fase, também antes do tempo, assinala-se o começo da
concepção, ainda no interior de Deus, da palavra interna pessoal,
do logos endidtbetos que Tertuliano chama de a sophia**. Esse é o
momento de que fala a Escritura em P r 8,22: “o Senhor criou-me
no começo, para o início de suas obras...”. Deus quis produzir em
sua substância e forma exterior o que em si mesmo havia determi­
nado com sua sabedoria, sua razão e sua palavra; as coisas estavam
já dispostas, inclusive feitas no que respeita à mente de Deus4 49.
8
Faltava que aparecessem e pudessem ser reconhecidas em sua for­
ma e substância.
4. N o prim eiro dia Deus criou a luz (Gn 1,3). Esse é o momento do
nascimento perfeito da palavra proferida, gerada, que procede de
Deus. Nesse momento “a palavra mesma recebe sua forma e orna­
to, seu som e sua voz, quando Deus diz Faça-se a luz (Gn 1,3). Esse
é o perfeito nascimento da palavra, quando sai de Deus”50. N o
momento em que sai de Deus faz dele seu Pai51, e assim se conver­
te no Filho, primogênito, gerado antes de todas as coisas, e unigé­
nito, como o único gerado por Deus. Os Salmos 44[43],2: eructavit
cor meum verbvm bonum, e 2,7: Tu esfilius meus ego boite genui te,
aplicam-se também a esse momento52. Essa palavra tem uma con­

48. Cf. Prax. 6, lss (154); tam bém 7,1 (156) cf. Adv. Herrn. 45,1 (CCL 1,434).
49. Prax. 6,3 (154) “Nam, u t primum D eus voluit ea quae cum sophia et ratione e t
sermone disposuerat in tra se, in substan tias e t spedes suas edere, ipsum primum protulit
sermonem, habentem in se indivíduas suas, rationem e t sophiam, u t per ipsum fierent
universa per quem erant cogitata atque disposita, immo et fe rn iam quantum in Dei sensu...”.
50. Prax. 7,1.0 texto continua assim: “ conditus ab eo primum e t cogitatum in nomine
sophiae — Domnus amdidit me initivm viarum (P r 8,22) — , dehinc generatus ad effectum
— am pararet caelum, aderam illi (P r 8,27) — , exinde eum Patrem sibi fariens, de quo
procedendo Filius foetus est..”.
51. Prax. 10,2-3 (164) “Atquin pater filium fedt e t filius... H abeat necesse est pater
filium u t pater sit, e t filius patrem u t filius sit”. Retenhamos essas idéias, que mais adiante
serão fundamentais para o desenvolvimento da doutrina da relação, tão central na teologia
trinitária. Prax. 11,1 (166): “... ilium sibi Filium ferisse sermonem suum ”. Fez Filho a sua
palavra, gerando-a. C f. ORBE, Estúdios..., 3ss.
52. Cf. Prax., 7,1-2 (156).

161
VISÃO HISTÓRICA

sistência, é distinta do Pai, o Pai e o Filho são dois. Não é portanto


uma palavra vã. Não poderia sê-lo porque Deus não pode derivar
de sua substância nada vazio nem inconsistente. N ão pode estar
privado de consistência o que na mediação criadora há de dar
consistência a todas as coisas53.
O Verbo nascido como Filho unigénito do Pai é “espírito”, isto é,
participa do substrato comum da divindade, da natureza do Pai. Assim, “o
espírito é a substância da Palavra, e a Palavra é a operação do espírito”54,
substrato comum divino. Distingue-se assim a personalidade própria do
Filho e a substância espiritual que tem em comum com o Pai.
Também o problema do conhecimento do Filho, como já vimos em
Ireneu, coloca-se em Tertuliano. Esse Filho é cognoscrvel, com uma cognos-
dbilidade prévia à encarnação. Daí que as teofanias do Antigo Testamento,
como para Justino e Ireneu, mostram o Filho. Essa visibilidade, diante
invisibilidade do Pai, parece fundar-se em uma certa “inferioridade” do Fi­
lho: não podemos contemplar o sol, mas podemos ver seu raio55. 0 Filho é
assim o que dá a conhecer o Pai, aquele em que o rosto do Pai é visível56.
Devemos dizer algo sobre o Espírito Santo. Em m uitas ocasiões fala-
se dele como do “terceiro”57. Como já vimos na regula fídei de P rax. 2, o
Espírito é enviado pelo Filho ressuscitado. Todos esses aspectos são postos
em relevo na passagem seguinte:
Ele (Jesus) derramou o dom (munus) recebido do Pai, o Espírito Santo, ter­
ceiro nome da divindade e terceiro nome da majestade, pregador de uma
única monarquia e intérprete da economia... mestre de toda verdade, que está
no Pai, no Filho e no Espírito Santo segundo o mistério cristão58.

53. Cf. Prax. 7,5-8 (156-158).


54. Cf. Prax. 26,4 (220): “Nam et spiritus substantia est sermonis e t sermo operado
spiritus, et duo unum sunt”. O Filho é o espírito que sai de Deus, com a forma pessoal da
Sophia; cf. ORBE, op. d t., 27ss.
55. Prax. 14,3 (178s.) "... invisibilem Patrem intelligamus pro plenitudine malestatis,
visibilem vero Filium agnoscamus pro modulo derivarionis, sicut nec solem nos contemplari
licet.. radium autem eius toleramus oculis pro tem peratura portionis”. C f, todo o cap. 14
(178-182) sobre o Filho revelador.
56. C f Prax. 14, 9-10 (182) texto de grande complicação.
57. Já o vimos em Prax. 8,5-7; c f também 13,5.7 (176), e as passagens que atarem os
a seguir.
58. Prax. 30,5 (236); 9,3 (162): “... u t tertium gradum ostenderet in Paracleto...”; ver
25,1, o Paráclito receberá de Jesus como esse recebe do Pai; igualmente em 111,10 (170);
31,1-2 (236s), o Espírito Santo unido ao Pai e ao Filho na única divindade.

162
A TEOLOGIA DO FINAL DO SÉCULO IIE DO SÉCULO III

Tèrtuliano diz-nos algo mais sobre o Espírito e sobre sua origem di­
vina. O Espírito vem do Pai pelo Filho “non aliunde puto quam a Patre
per Filium ”59, como o Filho vem da substância do Pai. A palavra — o sermo
— subsiste, como já sabemos, no comum substrato divino, o espírito, que
viria a ser de algum modo a natureza divina. O ser sermo não se pode
comunicar, mas o substrato é de si comunicável. Daí a comunicação do
espírito que vem do Pai através do Filho60. 0 a Patre, do Pai, indicaria duas
coisas: a) o rem oto e universal princípio do Espírito Santo; b) o agente
principal na causalidade mesma do Filho. Deus Pai atua, como princípio
remoto, e também como agente principal, na processão do Espírito ex
Filio. Só do Pai deriva em últim o termo o “espírito” que o Filho é capaz de
emanar de si mesmo, como a água, que do rio vai ao arroio ou ao canal que
dele deriva, provém em últim o termo da fonte; ou como só do sol procede
definitivamente a luz que o raio é capaz de comunicar à chispa, para seguir
com as imagens tertulianas que já conhecemos61.
Também como em Ireneu a diferença entre Filho e Espírito pode-se
ver refletida na diferença entre a imagem e a semelhança divinas no ho­
mem. A semelhança está para a imagem como o Espírito pessoal está para
o sermo. O Espírito Santo dispõe o caminho para a mediação do Filho, não
tem “form a”. Faz o homem em seu dinamismo e em sua vida semelhante
a Deus. O Pai realiza a criação primeira, amorfa. O Filho, fundado em sua
sabedoria, a criação segunda. O Espírito alenta e vivifica os seres configu­
rados mediante o Verbo. Assim, por obra do Espírito, chega-se à perfeita
semelhança do Verbo encarnado, primeiro m odelo do homem segundo o
Africano. A criação do homem é assim obra da Trindade. Tèrtuliano, como
já fazia Tèófilo de Antioquia, estende ao Espírito Santo, terceira pessoa, o
“façamos” de Gn 1,26, que para o Pseudo-Bamabé se referia só ao Filho62.

59. Prax. 4,1 (150).


60. C f. ORBE, op. d t , 106ss., também para o que segue.
61. Ibid., 106: “O Verbo em posse do E spúito próprio, derivado do Pneuma pater­
no, é capaz de emanar, do próprio E spírito, um outro, um terceiro, e outorgar-lhe ipsofacto
subsistência. E assim como, segundo a analogia fims/flumen/riuus se supõe, a modo de
substrato comum, o pneum a... C om o o Pneuma do Filho procede do Pneuma do Pai, o
Espírito pessoal procede do E spírito do Filho. E assim com o o Pneuma do Filho não
provém ‘em igualdade’ do Pneum a do Pai, senão como participação nele (à m aneira de
ponio portionis totius. ”)
62. Prax. 12,3 (170s): “Im m o quia iam adhaerebat illi Filius secunda persona, sermo
ipsius et tertia... ideo plurale pronunciavic ‘fatiamus’... Cum quibus enim fadebat hominem
et quibus fadebat simile, Filio quidem qui erat induitum m hom inem , Spiritu vero qui erat
sanctificaturum hominem, quasi cum m inistris e t arbitris ex unitade Trinitatis loquebatur”;
cf. 12, 1-2 (170). Cf. ORBE, op. d t , 122s.

163
VISÃO HISTÓ RICA

Vimos que o E spírito Santo é dom, munus. Devemos reter essa idéia,
que a tradição posterior recolherá amplamente. É o dom que Jesus faz. É
interessante para a relação Pai-Filho-E spírito ressaltar um paralelismo: o
Filho é chamado vicarius do Pai, porque o faz visível63. Aplica-se o mesmo
term o ao Espírito Santo, a respeito de C risto. E o que o faz presente,
realiza sua obra nos hom ens64.
lèrtnliano oferece-nos uma teologia trinitária já bastante elaborada. Se
quer manter a unidade divina, em que Praxeas tanto insiste, acentua igual­
m ente que essa não se vê afetada pela economia intratrinitária, porque o Pai
comunica sua natureza divina, seu “espírito” ao Filho e, mediante este, ao
Espírito Santo. Esses três são um, por sua substância, seu “estado” e seu poder.

fflPÓLITO DE ROMA

N ão é agora nossa missão entrar nas complicadas questões da pater­


nidade das obras atribuídas a Hipólito. Lim ito-m e a umas quantas notas da
teologia do Contra Noetum, que nos ajudarão a completar nosso panorama
da teologia dos começos do século III65.
O Filho é, para H ipólito, “Logos, espírito, força”66. As denominações
vêm já da tradição. O Pai é espírito, gera em seu seio um fruto espiritual,
o Logos, que tem assim sua origem divina, tem uma unidade substancial
com Deus. O Logos divino não compromete a unicidade divina, como
pensa N oeto, de tendência patripassiana como Praxeas. Deus está origina-
riam ente só, nada há de coevo com ele, cria porque quer, e igualmente
gera o Logos segundo sua vontade67, embora de sua própria substância.
Em um primeiro momento, o Logos vive no coração do Pai: há uma uni­
dade de Deus e em Deus, uma distinção indivisa do Pai e do Filho. Deus,
sendo só, era múltiplo, pois não Lhe faltavam nem Logos, nem sabedoria,
nem força, nem vontade: tudo estava nele e ele era o todo68.

63. Prax. 24,6 (216) “vicarium se Patris ostenderet, per quem Pater e t videretur in
feeds e t audiretur in verbis...”.
64. Cf. De virg.vel., 1,4 (CCL 2, 1.209); De praes. Haer. 13,5 (CCL 1, 198).
65. Sobre a datação dessa obra, cf. URIBARRI BILBAO, op. cit., 236-280. C ito o
Contra Noetum pela ed. de R. BUTTERW ORTH, London, 1977.
66. Cf. Contra Noetum 4,11 (55); cf. IC or 1,24; também Justino, l Apol. 14,5; 33,4.6
(WARTELLE, 114,142). C f ORBE, op. d t, lOOss.
67. Cf. C. Noet., 10,3 (69); 16,4 (83); cf. A. ZANI, Cristologú di Ippolito, Bresda, 1984,
62.76.
68. Cf. C. Noet., 10,2 (69).

164
A TEOLOGIA DO FINAL DO SÉCULO IIE DO SÉCULO III

O ato criador é o primeiro passo da distinção entre Deus e o Logos.


Quando quis, como quis, nos tempos fixados, manifestou Deus seu Logos, por
cujo meio fez todas as coisas69. H á portanto relação entre o Logos, que é
finito da vontade do Pai, e o universo criado, resultante do mesmo querer
divino. “Por vontade, profere Deus o Logos pessoal, e mediante o Logos
fabrica logo o mundo.”70Portanto, Deus gera o Logos em ordem à criação
do mundo. O querer divino que o gera não o separa do Pai. A unicidade
de Deus é compatível com a economia. Também H ipólito, como Tèrtuliano,
recorre a jo 10,30, “o Pai e eu somos uma mesma coisa”, para sublinhar a
unidade e a distinção entre Jesus e o Pai71.
Deus emite, como Senhor da criação, o próprio intelecto, para que com
sua manifestação possa o mundo salvar-se. Portanto, há relação entre a emis­
são do Logos para a criação e seu envio ao mundo para a salvação. O Logos
fãz-se subsistente para, a seu tempo, revelar-se salvificamente na encarnação.
Há pois uma relação entre a processão eterna e a geração humana, de Maria.
O seio do Pai é para a geração secundum Spiritum o que o seio de Maria é para
a geração secundum comem. Ambas as gerações ocorrem quando o Pai quer. O
primeiro nascimento orienta-se, como foi dito, para o segundo. A geração de
Deus faz o Logos “espírito”, em distinção, não em separação do Pai. O “es­
pírito” indica a natureza, o Logos o nome pessoal. A geração de Alaria faz
Jesus homem, carne, pois o Logos era asarkós antes da encarnação. Com esta,
aparece o Filho perfeito de Deus, do Espírito e de Maria72.37“Filho” é portanto
o nome do encarnado. Para Hipólito, baixa à carne a Súvapiç de Deus, não o
Pai mesmo: “Eu saí do Pai e venho” (Jo 16,28). Mantém-se portanto a distin­
ção pessoal entre o Pai e o Filho7}.
H á porém uma unidade de ôúvapis74que garante a unidade de Deus.
Em virtude da mesma força, o Pai determina e o Filho cumpre a vontade
do Pai. Há uma semelhança com a unidade e a distinção do mesmo “espí­
rito”. A dynamis é ao mesmo tem po o Logos paterno e a mesma natureza
de Deus. A geração do Filho diferencia-se da geração humana e animal
precisamente pela distinção indivisa, segundo o mesmo espírito divino.
Assim Deus e o Logos não são duas coisas, mas se distinguem como a luz

69. Cf. C. N o et, 10,3-4 (69) cf. ZA N I, op. d t , 76s.


70. ORBE, op. d t, 10.
71. Cf. C. Noet. 7,1 (61); ZANI, op. d t., 96.
72. C. Noet. 4,10-11 (54-55).
73. Cf. C. Noet. 16,2 (81); ORBE, op. d t., 103s; ZANI, op. d t., 140ss.
74. C. Noet. 7,1 (61) há dois irpóoxoira, mas uma só SOvapis; também 11,1 (71), há
uma só força que vem do Pai.

165
VISÃO H ISTÓ RICA

da luz, a água da fonte, o raio do sol; uma é a ôuvapxç que deriva do todo,
a dynamis-Logos que provém do Pai7S. Já vimos que H ipólito fala de dois
'irpóvomot em relação com o Pai e o Filho76,87mas nunca de três, de modo
que não aplica o nome de "pessoa” ao Espírito Santo. N o entanto refere-
se à trios11 e emprega também algumas fórmulas triádicas: "Por m eio dele
(do Logos) conhecemos o Pai, cremos no Filho e adoramos o Espírito
Santo”7®. N o Contra Noetum, a teologia do Espírito Santo está claramente
menos desenvolvida do que em lèrtuliano.
D epois do estudo desses autores ocidentais, devemos dirigir nossa
atenção a Alexandria, a fim de estudar a grande figura de Orígenes, que
marcará a pauta da grande escola teológica daquela cidade no que se refere
à teologia trinitária.

ORÍGENES

A teologia de Orígenes (morto por volta de 254) é especialmente rica


e complexa, no ponto que nos ocupa como em tantos outros. Tratamos
somente, sem a pretensão de ser exaustivos, de alguns pontos que podem
iluminar a evolução da teologia trinitária. Começaremos com um texto do
comentário ao Evangelho de João, que nos introduzirá no amplo campo
de problemas que o alexandrino aborda:
Vede como se pode resolver o problema que perturba a muitos, que, queren­
do ser piedosos, por medo de reconhecer dois deuses, caem em opiniões er­
rôneas e ímpias, seja porque negam que a individualidade do Filho é diferente
da do Pai, ainda que professem como Deus ao que chamam de Filho ao menos
pelo nome, seja quando, negando a divindade do Filho, admitem que sua
individualidade (ISuímp-a) e sua substância pessoal (oucríot xara Treprypa<jn|v)
são, em suas características próprias (ISuárqTa), diferentes das do Pai.
E preciso dizer-lhes que o Deus é o Deus em si (aírroOeóç), e que por essa
razão também o Salvador diz na oração a seu Pai: Para que conheçam que tu és

75. C. Noet. 11,1 (71); ZANI, op.cit., 141ss. Notem os o uso de comparações pareci­
das com as de Tertuliano, embora neste estejam mais desenvolvidas.
76. Cf. C. Noet. 7,1 (61); 14,2-3 (75) onde se refere à graça do Espírito como “terceira
economia”.
77. Cf. C. Noet. 14,8 (77).
78. C. Noet. 12,5 (73); cf. também 9,2 (67); 14,6 (75s); “não podemos pensar no único
Deus se não cremos no Pai, no Filho, e no Espírito Santo”, dizem diversas fórmulas repe­
tidas em todo o cap. 14 (75s).

166
A TEO LOG IA DO FINAL DO SÉCULO II E DO SÉ C U LO III

o Deus verdadeiro 0o 17,3), enquanto todo aquele que, com exceção de D eus
em si (otvroOeóç), é deificado por participação à sua divindade, seria m ais
justo não o chamar o Deus, senão Deus. Portanto, de modo absoluto, o p ri­
mogênito de toda criatura (cf. Q 1,15), enquanto está junto com Deus e é o
primeiro que se impregna de sua divindade, é mais digno de honra entre
todos os que além dele são deuses..., porque lhes concede fazerem-se deuses,
tirando de Deus o princípio para deificar, e, em sua bondade, faz participan­
tes dele aos outros com liberalidade.
Deus é portanto o Deus verdadeiro. Os outros deuses que se fizeram se ­
gundo ele são como as reproduções de um protótipo. Por outra parte, a
imagem arquetípica dessas múltiplas imagens é o Verbo que está ju n to
a Deus, e permanece sempre Deus, enquanto não seria Deus se não e sti­
vesse junto a Deus e não perseverasse na contemplação ininterrupta d o
profundo do Pai79.

M uitos temas surgem, como se vê, nessa rica passagem. Antes de tu d o


a posição relevante do Pai, que é o único “Deus em si”80. O Filho, e m
outros lugares, é chamado o reino, a justiça, a sabedoria, a razão em si, m a s
nunca autotheós. É o “segundo Deus” (ôevrepos 0eóç)81. Só ao Pai co rres­
ponde o ser o Deus, com artigo (cf. Jo 1,1).
O texto que citamos mostra claramente a transcendência de D e u s
sobre o criado. Só Deus Pai é transcendente a tudo, é a âpxri, o princípio,
já que tudo deriva dele82; é também superior ao Filho e ao Espírito S an to .
Esses são transcendentes em relação aos outros seres, mas são superados
pelo Pai. Até mesmo em uma passagem, certam ente excepcional, p arece
comparar a distância que separa o Filho e o Espírito Santo do Pai com a

79. ORÍGENES, In job. H 2,16-18 (SCh 120, 216s). cf. Ibid. 149 (304s). Cf. o c o ­
m entário de G . PELLAND, A propos d ’une page d’O rigène in Joh. 2, 16-18, in A .
D U PLEIX (ed.) Recherches et Tradition. Mélanges patristiques offerts a Henri Crouzel, P a ris,
1992,189-198. Além dos estudos que iremos dtando, pode-se v er P. W IDDICOM BE, T b e
faterbood ofGod front Origen to Atbanasius, Oxford, 1994.
80. Com o também o princípio de toda bondade de que participam o Filho e o E s p í­
rito. Princ. 1 2,13 (SCh 252, 140-142).
81. O segundo Deus aparece no C. Ceisum V 39 (SCh 147,118); In Job. V I 19, 2 0 2
(SCh 157, 280). C. Ceisum ibid. (120), o Filho é a razão em si, a sabedoria e a justiça: a
autobasiléia aparece em ln M t. XIV 7 (GCS, Or. W er X 289). C f. ORBE, Hacia ta prim era
teologût de le procesión dei Verbo, Romae, 1958, 420; também M . FÉDOU, La sagesse e t le
monde. Le Christ d'Origàte, Paris, 1995.
82. Cf. Princ. 12,13 (SC h 140s) cf. SIM O N ETTI, Sulla teologia trinitaria di Origene,
em ID ., Studi suUa cristologia..., 109-143.

167
VISÃO HISTÓRICA

que separa deles as criaturas83. Acentua-se a posição de todo singular do


Pai. D e qualquer maneira, a divindade em sua articulação trinitária distin­
gue-se com clareza das criaturas. Deus tem em si mesmo, substancialmen­
te, o bem e a santidade. O Filho e o Espírito Santo encontram-se unidos
ao Pai, desse ponto de vista84.
O Pai, princípio de tudo, gerou etemamente o Filho. Em Orígenes
encontramos a prim eira afirmação clara dessa geração coetema com o ser
do Pai85. O Logos é desde o primeiro instante o Filho e tem um a subsis­
tência própria, ainda que incorpórea. N ão há razão nenhuma para que
Deus não tenha querido ou não tenha podido ser sempre Pai e gerar o
Filho86. A imutabilidade divina ajuda sem dúvida essa concepção. Deus
desde sempre é o Senhor, efetivamente pantokrator, não só em abstrato o
que pode tudo, TravToôuvajiós. Segundo isso, Deus desde sempre gerou o
Filho, quis ser e foi Pai, porque desde sempre foi Senhor das criaturas.
Deus tampouco começou a ser criador; daí se poderia concluir que as cria­
turas são eternas. Orígenes contenta-se com uma coetemidade intencio­
nal: a criação está feita desde sempre na sabedoria, nela está pré-formada
e prefigurada. Essa Sabedoria identifica-se com o Filho, com o Logos87.
Mas, à diferença da criação, a sabedoria pessoal existe como tal, não
simplesmente prefigurada. Deus é sempre luz (cf. Jo 2,5), e o Unigénito é
sempre o esplendor dessa luz88. Fica assim estabelecida a processão eterna
do Filho, embora subsista uma certa relação entre geração e criação. Para
Orígenes é daro que Deus não é Deus antes que Pai, é etemamente Pai do
Filho. O Logos, gerado desde a eternidade, é também desde sempre o Filho.
A idéia do resplendor da luz foi desenvolvida por Orígenes para explicar a
relação Pai-Filho na comunidade salvífica:

83. In Job. X lll 25, 151 (SCh 222, 112-114): “N ós afirmamos que o Salvador e o
Espirito Santo não são comparáveis com todos os seres que foram feitos, mas que os supe­
ram com uma transcendência infinita; porém eles, por sua vez, são superados pelo Pai,
tanto ou ainda mais do que o Filho e o Espírito Santo superam os outros seres”. Cf.
SIM O N ETTI, op. d t., 118.
84. Cf. Prmc.y I 5,5 (SCh 252, 192); nas criaturas a santidade é addental. Cf. J. Rius
CAMPS, Orígenes y su reflexion sobre la Trinidad, in La Trinidad en la reflexion pré-nicena,
Salamanca, 1973, 189-213, 199ss.
85. C f Princ. I 2,3s (112-116); I 2,9; (130); IV 4,1 (SCh 268, 400-402). C f ORBE,
Procesián..., 165s.
86. Princ. I 2, 2-3 (112-116); cf. ORBE, op. d t., 169.
87. Princ. I 4,4s (170-172): “In sapienda om nia facta sunt, cum sapientia semper
fuerit, secundum praefiguradonem et praefbrm ationem erant in sapienda ea quae prodnus
substandaliter facta sunt”. Cf. também I 2.2s (112-116).
88. Princ. I 2,7 (124).

168
A TEOLOGIA DO FINAL DO SÉCULO II E DO SÉCULO III

O resplendor dessa luz é o Filho unigénito, que procede dela inseparavelmente,


como resplendor da luz que ilumina todas as criaturas... Nesse sentido, porque
é o caminho e conduz ao Pai... da mesma maneira que é a verdade, vida ou
ressurreição (cf. Jo 14,6; 11,26), devemos entender de maneira conseqüente a
obra do resplendor; pois pelo resplendor se reconhece e se sente o que é a luz
mesma. £ esse resplendor, ao oferecer-se aos olhos mortais e débeis de forma
mais plácida e suave, lhes ensina e os acostuma pouco a pouco a suportar a
claridade da luz, pois remove deles o que obstrui ou impede a visão...; fez que
sejam capazes de receber a glória da luz, também nisso convertido em uma
espécie de mediador dos homens para que cheguem à luz89.

O Filho pois manifesta Deus aos homens, é o esplendor que o dá a


conhecer para fora. D aí se pode passar às relações mtratrinitárias do Pai e
do Filho. A passagem de Sb 7,25s oferece ao alexandrino a ocasião de
desenvolver uma rica doutrina sobre a relação do Pai e do Filho90. A força
do Pai manifesta-se no hálito que não tem inído. A emanação do O nipo­
tente significa que subsiste aquilo pelo qual se exerce a onipotência. Não
há, por conseguinte, onipotênria anterior à emanação que procede dela;
desde sempre o Filho, emanado de Deus, compartilha a glória do O nipo­
tente. N a eternidade, Deus é luz, e a Sabedoria é o resplendor da luz sem
princípio nem fim. O utros termos são menos importantes comparados com
o tema central da luz que aqui se desenvolve. N esta série de afirmações:
"hálito do poder de Deus; emanação da glória do Onipotente; esplendor
da luz eterna; reflexo do poder de Deus; imagem de sua bondade”, as ex­
pressões referidas ao Pai mostram a transcendência: poder, glória, luz eter­
na, bondade. As do Filho indicam mediação, possibilidade de conheci­
m ento pelo homem: hálito, emanação, esplendor, reflexo, imagem... São
perfeições orientadas para o homem, não para Deus. A relação do Pai com
a Sabedoria é gratuita, a processão do Filho não é “necessária” a não ser no
caso em que o Pai decida a criação e a deificação dos homens, Tildo é em
benefício destes últimos. N ão passa para o Filho toda a luz nem toda a

89. Prmc. 1 2,7 (124). Cf. ORBE, Estúdios sobre la teologia cristiana primitiva, M adrid,
1994, 41ss.
90. Recordemos o texto: “A sabedoria é um hálito do poder de D eus, uma emanação
pura da glória do O nipotente. E um reflexo da luz eterna, um espelho sem mancha da
atividade de Deus, uma imagem de sua bondade”. O com entário de O rígenes a essa passa­
gem encontra-se em Prmc. 1 2,9-12 (128-140). Como facilmente se pode adivinhar, a se­
gunda série de termos, para O rígenes, refere-se ao Pai, a prim eira ao Filho ou Sabedoria
pessoal subsistente (cf. ORBE, op. cit., 44-52).

169
VISÃO HISTÓ RICA

força do Pai etc., o que não impede que essa Sabedoria tenha sua origem
em Deus mesmo; é certam ente D eus e não criatura. D eus emite a Sabe­
doria com a mesma liberdade com que cria o mundo, sobre o qual a Sa­
bedoria mesma vai exercer sua função mediadora.
N o texto com que dem os início a esta exposição sobre Orígenes,
encontramos a afirmação, estranha à primeira vista, de que o Logos é Deus
por estar sempre com o Pai e contemplá-lo91, lem o s que explicar um pouco
m ais o problema da geração do Logos, geração eterna como vimos, porém
livre, ligada à vontade criadora e divinizadora de Deus.
O Logos é D eus por geração. H á uma diferença essencial entre sua
participação na divindade e a que se concede às criaturas. O Logos é, além
de divino, uma hipóstase própria, como também insinuava o texto do co­
mentário a João que nos serviu de guia. A individualidade do Filho, sua
idiotes, é distinta da do Pai. É o resplendor da luz, mas possui uma subsis­
tência pessoal. P o r uma parte, o Filho é natural, não é adotivo. P or outra
parte, apontamos a liberdade de sua geração. Enquanto Deus, o Filho proce­
de da m ente paterna; enquanto pessoa, de sua vontade. E Filho pelo que­
rer de Deus, e isso é o título de sua subsistência pessoal92. Daí a fórmula
tamquam a mente voluntas, o Filho procede do Pai como a vontade da
mente93.Trata-se de um processo livre, dada a correlação do Logos com a
criação. O Pai é a simplicidade absoluta. Não assim o Filho, por causa da
pluralidade de suas relações com a criação. Sua personalidade está em fun­
dão da economia livremente escolhida pelo Pai (cf. Cl 1,13). Subsiste pela
vontade de Deus, mas vem de sua mente. Nesse ponto estará a distinção
fundamental em relação aos arianos: a divindade do Filho não está em
absoluto comprometida por essa “vontade do Pai em sua geração94, já que
vem “de Deus” de modo completamente distinto de como vêm dele os
outros seres, que existem por criação do nada.
O Filho, para nós, é a verdade que nos revela o Pai95. Enquanto tal,
o “alimento” que lhe convém é fazer a vontade do Pai, e também desse
ponto de vista é sua imagem96. Tbdo o ser do Filho orienta-se assim para
os homens, para a manifestação do pensamento e da vontade do Pai. Tam-

91. Injo. II 2,12 (SCh 120,215): “O Verbo é Deus porque está voltado para o Pai”
0o 1,1).
92. C f. ORBE, Pncesiàn..., 499.
93. Cf. frag. em GCSIV,662; ORBE, op. c it, 388ss; CAMPS, op. c it, 205s.
94. Cf. Prínt. IV 4,1 (SCh 268,402); 1 2,6.9 (SCh 252, 122.130).
95. Cf. ORBE, op. d t , 420.
96. Cf. lnjob. X m 3 6 ,228ss. (SCh 222, 154ss) ORBE, op. d t., 420.

170
A TEOLOGIA DO FINAL DO SÉCULO II E DO SÉCULO III

bém o cumprimento do querer paterno é parte da condição de imagem


do Filho. Por essa razão, esse querer divino vem a ser o m anjar próprio do
mesmo Filho, pelo qual é o que é97.
Essas últimas idéias nos colocam, sem dúvida, um problema. O Logos
é Deus pelo cumprimento do mandato paterno, pelo contínuo estar volta­
do para ele e contemplá-lo, como nos dizia o texto de comentário Injfob.,
com o qual começou nossa exposição. E o Logos "pessoa” antes que estri­
tamente Deus?98 D iante da simplicidade paterna, as múltiplas relações do
Filho com o mundo, a multiplicidade de suas epmoiai (sabedoria, verdade,
Logos...) mostram a complexidade do Filho em sua pessoa: todas elas se
orientam para a dispensação salvadora. Em princípio, não teriam que ser
divinas. E não obstante o Logos é Deus. Sem que Orígenes tenha formu­
lado expressamente esse problema, o texto que já conhecemos de Injob. II
18 dá-nos um princípio de resposta. H á no Logos uma prim eira fase de
formação pessoal, outra de formação divina. Na primeira, D eus projeta na
pessoa do Filho as perfeições que o compõem. Assim constitui-se co­
mo pessoa, porém sem separar-se de Deus. Na segunda, o Filho volta para
Deus sua vista para receber a comunicação de vida com ele, a "dedicação”99.
"A mediação salvífica a que é chamado reclama sua comunhão de essência
e vida com o Pai. Donde, se por olhar para fora, a título de mediador
criativo, não tem por que ser Deus, por olhar para dentro, a título de
mediador salvífico, tem de O ser”100.
O Logos, portanto, está orientado para a criação e para a economia
salvífica. Estritamente, para a mediação criadora, não necessitaria ser Deus.
Mas sim para a mediação salvífica. Somente se é Deus em si mesmo pode
divinizar. Sua divindade, por assim dizer, "alimenta-se” constantemente da

97. Cf. H . C RO U ZEL, Tbéologie de Fmuge de Dieu cbez Origine, Paris, i956, 91:
ORBE, op. cit., 427; 429: “Orígenes supõe que a comunicação total da vontade paterna ao
Filho explica sua subsistência pessoal por efeito da vontade do Pai, como sua divind: de por
efeito do Pensamento paterno... que passou para ele”.
98. Cf. ORBE, Estúdios, 36ss., que sigo na continuação.
99. ORBE, op. c it, 37-38: “A prim eira tem lugar ao projetar Deus na pessoa do Filho
as perfeições todas (epmoias) que o compõem: orientadas todas para fora com o dinamismo
chamado a atuar-se na Dispensação criada. A pessoa feita assim consistente, fora do seio de
Deus, não se separa dele; ao contrário, não seria D eus. Ao sentir-se pessoalmente consti­
tuída — como quem olha para fora — e saber-se chamada a mediar deificamente entre
Deus e os homens, volta para Deus em busca de comunhão de vida com ele. O lha para Deus,
e sua vista recebe indivisamente o divino. Deifica-se em beneficio daqueles pelos quais foi
constituído pessoa. Sustenta o olhar de D eus porque somente de sua vista recebe o divino
que logo comunicará ao futuro universo”.
100. Ibid., 39; cf. CAMPS, op. c it, 205s.

171
VISÃO HISTÓRICA

contemplação do abismo paterno, do único princípio, úpxú, de tudo. Per­


deria sua divindade se, por impossível, deixasse de alim entá-la constante­
m ente nessa fonte. D ela vem o Filho desde a eternidade, porque Deus quis
sempre ser Pai e criador.
Que tipo de união e de distinção existe entre o Pai e o Filho? Tertuhano
falava da união do “espírito”, do substrato divino comum. Orígenes dis­
corre menos sobre a divindade em si. N ão é claro que a definição de Deus
como “espírito” tenha para ele um lugar relevante101. Certam ente entre o
Pai e o Filho não se dá uma identidade de sujeito, são dois, como já vimos
nesse particular. As peculiaridades do Pai e do Filho são distintas. Há uma
distinção segundo a essência? Parece que também nesse ponto diferem as
duas “pessoas”, não porque não haja en tre elas consubstandalidade, mas
porquesedeve distinguir a substância imparticipada da participada. O Filho
tem uma essência participada da do Pai; com ela tem a vida, a imortalidade
etc., propriedades da essência do Pai. Porém neste há simplicidade perfei­
ta; no Filho, a multiplicidade. N a participação, e não porque sejam de si de
índole diversa, funda-se a distinção segundo a essência102.301 Em algumas
passagens, em oposição aos patripassianos, Orígenes insiste fortem ente na
distinção das pessoas101. Em resumo, podemos dizer que a unidade do Pai
e do Filho, segundo Orígenes, é de índole dinâmica, funda-se na unidade
do querer e do atuar mais do que na categoria da essência104. E a preocu­
pação salvífica, mais do que a preocupação pela vida da Trindade em si
mesma, que caracteriza o enfoque de Orígenes.
Temos que com pletar nossa rápida visão da teologia trinitána de
Orígenes tratando do Espírito Santo. Só o Filho vem diretamente de Deus,
é gerado por ele. O Espírito Santo, por um lado, não é gerado, mas tam­
bém não é ingênito, pois somente o Pai é sem princípio105. Vem do Pai
mediante o Filho (cf. Jo 1,3), mas desde a eternidade. Por isso tem a posse

101. Cf. ORBE, Ptoceãán..., 441. Mais matizado S1MONE1T1, La teologia trínitaria...,

111SS 102. Cf. Injob. H 23, 149 (SCh 120, 304-306). Cf. ORBE, op. d t , 440ss.
103. Cf. Injob. X 37 246 (SCh 157, 530).
104 C f SIM O N ETTI, op. d t., 122s. Citações de In Jdb. X E 36,228 (SCh 122,
154V cf C Celsum V E 12 (SCh 150,200), onde se feia da unidade por concórdia, harmo­
nia, identidade de vontade etc. Cf. também CAMPS, El dinamismo trinitario en la divinisatión
de los seres racionales según Orígenes, Roma, 1970, que sublinha a preocupação fundonal da
doutrina trinitána do Alexandrino. Contudo, em alguns lugares fela-se da unidade de subs-
S r f t m r . I 2,6 (SCh 252, 122); IV 4,1 (SCh 268,402).
105. Cf. Injob. n 10,73ss (SCh 120,252ss) Princ. praef. 4 (SCh 252,82), que mos-
tram dúvidas sobre a “geração”.

172
A TEOLOGIA DO FINAL DO SÉCULO IIE DO SÉCULO III

substancial do bem. É o prim eiro dos seres feitos mediante o Verbo, po­
rém distinto das criaturas propriamente ditas, porque não passou do nada
ao ser. Sua existência é eterna, como a do Filho:
Quanto a nós, persuadidos como estamos de que existem três hipóstases, o
Pai, o Filho e o Espírito Santo, e crendo que nenhuma delas, exceto o Pai,
seja ingênita, pensamos que o Espírito Santo tem uma posição proeminente
sobre tudo o que foi feito mediante o Logos, e na ordem é o primeiro de
todos os seres derivados do Pai por meio de Cristo1“ .

Temos assim uma linha “descendente”, Pai-Filho-Espírito, que se


destaca em diferentes ocasiões: O Espírito Santo, feito por meio do Filho,
recebe o ensinamento também por meio dele1 16007; o Pai tem um âmbito de
poder maior do que o Filho e o Filho mais que o Espírito108. Junto a essa
concepção linear, vertical, em um a crescente subordinação, há outros tex­
tos em que o Filho e o Espírito aparecem como coordenados entre si e
referidos ao Pai109, leríam os assim dois esquemas trinitários diversos110,
ainda que o prim eiro pareça prevalecer. N a realidade, a função subordina­
da que se atribui ao Espírito Santo na teologia trinitária de Orígenes de­
pende de que, segundo ele, o Logos esgota toda a função mediadora D eus-
mundo. Desse ponto de vista, parece não sobrar espaço para o Espírito.
Mas na tradição o Espírito Santo encontra-se unido ao Filho. Por isso tem
de ser colocado ao lado de C risto na obra de mediação. N ão podia ser um
simples subordinado a Cristo, nem tampouco uma repetição dele. Segun­
do a tradição, atribui-se ao Espírito a santificação dos homens111e a inspi­
ração da Escritura. As funções salvíficas que a ele se atribuem, por outra
parte, não são exclusivas. Também o Filho as realiza.
O ser do Espírito e sua função na salvação dos homens aparecem
sobretudo em uma passagem de Injob à qual a crítica atribui especial re­
levância. E a continuação da que acabamos de citar; apresenta-nos o Espí­
rito Santo como o primeiro dos seres feitos pelo Pai por meio do Filho:
Penso que o Espírito Santo oferece, por assim dizer, a matéria dos dons da
graça (xapwpáTwv) concedidos por Deus àqueles que por ele e por sua par-

106. Injob. n 10, 75 (SCh 120, 254-256).


107. Cf. Injob. n 18,127 (290).
108. C f. Princ. I 3,5 (SCh 252, 154s).
109. C£ Hom. In Is. 4,1 (GCS, Or.Ver. V m , 257-259).
110. C f. SIM O N ETTI, op. c it., 130ss, também para o que segue.
111. Princ. I 3,6ss (154ss).

173
VISÃO HISTÓ RICA

ticipação nele são chamados santos. Essa matéria dos carismas, de que fala­
mos, proviria da atividade de Deus Pai (év8pTOV|iévqs àirò tou 6eou), seria
ministrada por Cristo (SiaKovovpévqs virò tou xpwttou) e teria sua própria
consistência no Espírito Santo (ú<|>e<rttixn)<; 8è KãtTÒt tò oryiov nvevpia)112.

Se o Verbo adquire consistência por vontade do Pai (tamquam a mente


voluntas), cabe presumir113 que o Espírito a adquiriu por meio do Verbo,
como o prim eiro dos efeitos vinculados espedficamente à sua atividade de
criação (embora distinto das criaturas). O Filho deu consistência, desse
modo, à matéria divina que prim eiro tinha recebido do Pai como energia
paterna destinada um dia aos homens, e que se encarregou de consolidar,
tirando-a de si, para fazer dela o material subsistente, graças e dons, orien­
tados ao cosmo e especialmente à Igreja. Em lugar de criá-la ex nihilo, como
as criaturas, estritamente falando, Deus consolidou mediante o Filho aque­
la energia divina que havia derramado nele com destino ao universo. Quando
ocorreu isso? Orígenes não diz. Teve de ser antes de sua efusão no cosmo,
nos prelim inares do omatus mundi. E um axioma, a partir da afirmação
universal de Jo 1,3, que o Espírito Santo foi feito por meio de Cristo. Assim
a hipóstase do Espírito Santo subordina-se à vontade de Cristo, mas sem­
pre segundo os desígnios do Pai. Assim como a encarnação do Verbo con­
fere a subsistência na natureza humana ao Filho de Deus que já subsiste em
sua natureza divina antes da criação do mundo, assim a efusão do Espírito
(no Jordão, no Cenáculo, em Pentecostes) faz subsistente na natureza hu­
mana (embora não por união pessoal, como no caso do Verbo) a hipóstase
que já de antes possuía o Espírito Santo, dado agora aos homens114.
O rígenes apresenta-nos assim a articulação dos três, Pai, Filho e Es­
pírito, unidos na confissão da fé e na obra da salvação. O modo da unidade
dos três poucas vezes aparece posto em relevo. Citamos uma im portante
passagem em que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são mencionados juntos

112. Injob. H 10,77 (SCh 120, 256). Cf. S IM O N E T O , op. rit., 132ss; também
ORBE, La uncción dei Verbo, Romae, 1961, 533s, Uma passagem paralela em Princ. I 2,7
(160): “E st alia quoque Spiritus sancti grada, quae dignis praestatur, ministrara quidem per
Filium, inoperata autem a Patre, secundum meritum eorum qui capaces eius effiduntur”.
113. C f. ORBE, Unctión..., 533ss, para o que segue.
114. CAMPS, Orígenes..., 207. “A diferença do Filho, o Espírito não procedeu por via
generativa. Deus não o concebeu em seu seio mediante o germe de seu querer. D aí não
poder chamar-se com propriedade ‘Filho de Deus’. O Espírito Santo podia considerar-se,
todavia, com o a ‘feitura’ primordial do Pai, realizada m ediante o Logos, Filho de Deus. O
Espírito indefinido e amorfo da divindade foi moldado pior contato com a individualidade
do Filho, adquirindo, assim, forma e constituição próprias”.

174
A TEOLOGIA DO FINAL DO SÉCULO II E D O SÉCULO III

como três “hipóstases”115, três subsistentes distintos no seio da divindade.


Esse term o tem em Orígenes e na teologia grega em geral o significado
que em lèrtuliano, e a partir dele na teologia latina, é próprio de “pessoa”.
O term o Tpíotç ou trinitas é certamente raro em Orígenes, mas isso não
quer dizer que a teologia trinitária não exista. As passagens de ritmo
trinitário não estão ausentes"6. Embora com imperfeições e desequilíbrios,
a contribuição de Orígenes para o desenvolvimento da teologia trinitária
não pode ser desprezada. Ainda que continue, ao que parece, relacionando
a processão do Verbo com a criação, a afirmação de que essa processão é
eterna, e portanto de que Deus não se tom a Pai, é sem dúvida de importân­
cia capital. A unidade entre os três está menos acentuada que o seu caráter
divino, talvez porque o Alexandrino é parco na caracterização da divindade
enquanto tal. A distinção entre as hipóstases será uma característica da teo­
logia alexandrina posterior. Levada ao extremo — um extremo que certa-
mente seria inadmissível para Orígenes — dará lugar à heresia de Ario.

NOVACIANO"7

N ão falaremos na agitada história pessoal de N ovadano, presbítero


de Roma e “antipapa” (m orto em 257); na capital do Im pério escreve seu
livro de Trinitate, ainda em situação regular na Igreja, entre os anos 240 e
250. Iremos nos lim itar a alguns aspectos de sua teologia trinitária.
Deus é criador, Senhor e Pai de toda a criação: “reconhecemos e sa­
bemos que Deus é criador de todas as coisas, Senhor por seu poder, Pai
pela criação”118. Ainda em Novadano, seguindo a linha que conhecemos
bem, a paternidade de Deus reladona-se com a criação. Mas também se

115. lnjob. II 10,75 (SCh 120,254) persuadidos como estam os de que existem
três hipóstases, o Pai, o Filho e o Espirito Santo...”; Cf. também In M t X V II4 (GCS, Or.
Wer. X 624); também Com. ep. Ram. V III 5 (PG 14, 1.169), os três não são um a simples
apelação.
116. C£ SIM O N E T T I, op. d t , 135-138, refere-se entre outros a H om jer 8,1; In
Job, 32, 16,187-189; In Mt., 12,20; 12,42 etc. Igualm ente trata dos textos conservados em
latim dos quais não se pode exduir a base trinitária no original, embora adm itindo possíveis
modificações na tradução.
117. Cf. SIM O N E T T I, Uunità dt Dio a Roma: da Clemente a Dionigi, in Studi sulla
cristologia..., 83-215, esp. sobre N . 203-208.
118.7m 3,17 (FP8,80); 1,1 (58): “A regra da verdade pede que antes de tudo creiamos
em Deus, Pai e Senhor onipotente, quer dizer, criador perfeitíssimo de todas as coisas”. Sobre
o Deus único cf. tam bém 2,11-12 (72-74); 3,18 (82); 30,176 (260); 31,182 (264) etc.

175
VISÃ O HISTÓ RICA

tom a em consideração a geração do Filho. O Pai, fonte de tudo, sem deixar


de ser o único D eus, tem um Filho que é D eus também: “O que procede
daquele por cuja vontade foram feitas todas as coisas é sem dúvida Deus
que procede de Deus, e constitui, enquanto Filho, a segunda pessoa depois
do Pai, sem tira r ao Pai o ser único Deus”11’. A divindade do Filho não
significa portanto que haja diversos deuses. Novaciano toma talvez de
Tèrtuliano a denom inação “pessoa” que aplica ao Pai e ao Filho1 1920. Tudo
que o Filho é, recebe-o do Pai: “Tudo o que é, não o é de si mesmo, porque
não é ingênito, senão do Pai porque é gerado. E isso enquanto é Verbo, ou
potência ou luz, ou Filho”121. Enquanto recebe do Pai o Filho é “menor”
do que ele: “Já que recebe a santificação do Pai, é m enor do que o Pai; por
conseguinte, se é menor, não é Pai senão Filho”122. Dessa geração vem a
diferença e a subordinação123. Novaciano ainda não é claro sobre o “mo­
mento” da emanação do Verbo: ele existe desde sempre, como gerado está
sempre no Pai porque senão esse não seria sempre Pai124. Mas às vezes pa­
rece seguir a tradição da decisão livre da vontade do Pai na geração: “Este,
pois, quando o Pai quis, procedeu do Pai e o que estava no Pai, porque era
do Pai, esteve depois com o Pai...”.125Talvez nos adiemos ante uma aproxi­
mação notável à formulação da idéia da eternidade da geração do Filho, sem
que se tenha chegado a dar o passo com toda a dareza.
Novaciano confessa a divindade do Filho, em subordinação e depen­
dência do Pai que o gerou. Os dois estão unidos, de maneira que se exclui
radicalmente que haja dois deuses. A união não implica identidade pessoal,
como quer Sibélio, que segue a tradição patripassiana que já conhecemos.
São uma só, coisa, unum (cf. Jo 10,30), pela semelhança, pela conjun­
ção, pelo am or do Pai que ama o Filho, pela concordância e pela carida­
de126. Não se explica essa união em termos de substância senão de am o r e

119. Trin 31,187 (272); 31,189 (275): “...devendo sua origem a seu Pai, não pôde
causar discórdia na divindade quanto ao número de deuses, aquele que ao nascer teve o ri­
gem de quem é o único Deus”.
120. Cf. Trm 26,145 (224); 27, 151 (236).
121.1bid., 31, 189(274).
122. Ibid., 27, 152 (236)
123. Cf. SIM O N EVil, op. d t., 183-215, 205: a subordinação parece critério da
distinção de pessoas.
124. Cf Trm 31,184 (268-270) também 31,185 (270), o Filho é “simul minor”.
125. Trin 31,186 (270-272). Parece que aqui se alude ao duplo estado do Verbo,
imanente e proferido, que já conhecemos. Também 31,183 (264) “Ex quo [Patre] quando
ipse voluit, sermo Filius natus est”.
126. Trin 27, 149-150 (230-234). Cf. também 28, 155ss (238ss) contra a interpreta­
ção sabeliana de Jo 14,9.

176
A TEOLOGIA DO FINAL DO SÉCULO IIE DO SÉCULO III

concórdia, embora se tenha falado claramente de geração, que parece


implicar algo mais. As formulações de Novadano nesse ponto não são
sempre de todo satisfatórias, mas acabamos de vê-las m uito semelhantes
em Orígenes. Seus adversários são os sabelianos, e diante deles tem de
insistir na diversidade das pessoas. Discutiu-se se, segundo Novadano, no
final dos tempos, quando Jesus entregar o reino ao Pai, continuará a sub-
sistênda pessoal do Filho, ou se esse será “reabsorvido” no Pai. Parece que
se deve inclinar antes para a persistência eterna da pessoa do Filho127.
Os problemas da relação do Filho com o Pai são os que mais ocupam
Novadano ao longo de sua obra. Alas dedica ao Espírito Santo o capítulo
29 do de Trinitate. Não se chama a ele pessoa nem se diz que é Deus. Mas
pelos efeitos que lhe são atribuídos é claro seu caráter divino. O mais im­
portante é o que se diz sobre sua plena manifestação e doação em relação
com a ressurreição de Jesus. Acentua-se que o Espírito Santo é o mesmo
no Antigo e no N ovo Testamento, mas à doação pardal dos tempos anti­
gos sucede, depois de Cristo, a efusão plena, possibilitada porque em Jesus
habita o Espírito plenus e t totus128. A promessa feita aos profetas corres­
ponde agora a doação feita por C risto129. 0 Espírito Santo é objeto de fé130
e acha-se unido ao Pai e ao Filho, na fórmula triádica no final da obra que
serve de resumo a ela131, mas nada se explica propriamente sobre a Trinda­
de, nem aparece esse term o já usado por Tèrtuliano.

1 2 7 .0 texto em questão é Trin 31,192 (278-280): “... totam divinitatis auctoritatem


rursus ex subiectione sui illi rem ittit, unus D eus ostenditur verus e t aetem us Pater, a quo
solo haec vis divinitatis emissa, etiam in Filio tradita et directa, rursum per subiectionem
Filii ad Patrem resolvitur. Deus quidem ostenditur Filius, cui divinitas tradita e t porrecta
conspidtur, et tamen nihilominus unus Deus P ater proba tur, dum grada tim reciproco meatu
illa maiestas atque divinitas ad Patrem , qui dederat eam, rursum ab illo ipso Filio revertitur
et retorquetur...”. C f. SIM ONETT1, op. d t., 207; G. PELLAND, Un passage difficile de
Namtien sur ICor 15-27-28: G r 66 (1985) 25-52; ORBE, Estúdios..., 102s; URIBARRI
BILBAO, op. d t., 423.
128. Trin. 29, 168 (252) posteaquam Dominus baptizatus est, super eum venit et
mansit, habitans in solo Christo plenus et totus, nec in aliqua mensura au t portione mutilatus,
sed cum to ta sua redundantia cumulate contributus, u t ex illo delibationem quandam
gratiarum ceteri possunt...”.
129. Cf. Trin. 29, 163-172 (246-256); cf. ORBE, op. d t., 527-636.
130. Cf. Trin. 30, 163 (246).
131. Trin. 30, 173 (256): “Haec quidem de Patre et de Filio e t de Spiritu Sancto
breviter sint nobis dicta...”.

177
VISÃO HISTÓRICA

DIONÍSIO DE ALEXANDRIA E DIONÍSIO DE ROMA

Até aqui estudamos os representantes mais qualificados da teologia


do Oriente e da do Ocidente. Roma e Alexandria vão confrontar-se direta­
m ente na discussão entre Dionísio de Alexandria e Dionísio de Roma. Um
breve resumo dessa discussão nos ajudará a entender alguns pressupostos da
crise ariana. Com efeito, se a unidade do Deus trino era fortemente acentua­
da nos autores ocidentais, a teologia alexandrina, como vimos em Orígenes,
tendia antes a uma maior distinção das hipóstases, com menos ênfase na
unidade divina. Essa diferença de acentos põe-se em relevo na discussão a
que agora devemos referir-nos, que teve lugar pelos anos 257-260. Em seu
desejo de opor-se aos sibelianos, parece que o bispo Dionísio de Alexandria
causou escândalo a seus fiéis, com proposições de sabor excessivamente
subordinacionista. Esses fiéis se dirigem ao bispo de Roma, chamado tam­
bém Dionísio, com uma série de acusações. Elas foram-nos transmitidas por
Atanásio1}2. Podem ser resumidas da seguinte forma:
— Dionísio separa o Filho do Pai.
— N ega a eternidade do Filho: Deus não era sempre Pai, nem o Filho
existia sempre; Deus era sem o Logos; o Filho não era antes de ser
gerado, portanto não é eterno.
— Nomeia o Pai sem o Filho e o Filho sem o Pai.
— Rejeita que o Filho seja consubstanciai ao Pai (Ó|aooixtiov
i r o t T p í ) 132133.

— Diz que o Filho é criatura do Pai (Troíqpa) que foi feito e portan­
to “veio-a-ser”. Para estabelecer as relações do Pai com o Filho
usa comparações ambíguas: é como o agricultor em relação à vi­
deira, ou o marinheiro em relação ao barco. O Filho, como cria­
tura, não era antes de ser feito.
Trata-se de um tipo de teologia de matiz origeniano, que pensa em
três entidades individuais subsistentes (hipóstases) na Trindade, mais do
que na unidade entre elas. N o ponto da eternidade da geração do Filho,
parece voltar a uma etapa anterior à teologia de Orígenes.

132. ATANÁSIO, Desent. Dym. (O PITZ, Ath. Werke, II/1,46-67); cf. o resumo dessas
acusações em A. GRILLMEIER, Jesus der Christus, Freiburg-Basel-Wien, 1979,1,28S.
133. N ão deixa de ser curiosa essa acusação que de algum modo antecipa o vocabu­
lário de Nicéia: o term o bcmomtsios não gozava de prestigio e tinha sido até rejeitado na
condenação de Paulo de Samosata; tinha um sabor modalista, que negava a personalidade
do Filho.

178
A TEOLOGIA DO FINAL DO SÉCULO II E DO SÉCULO III

Dionísio Romano responde às acusações contra seu colega (cf. DS


112-115)134. N ão se trata de introduzir novidades, senão de seguir uma via
média entre os que defendem o sabelianismo e os que dividem a Trindade.
Antes de tudo, deve-se defender a “monarquia” contra os que afirmam
três potências (vhtutes, Súvapeiç), três hipóstases separadas (pepepopévas),
e chegam inclusive à afirmação de três divindades. A monarquia parece aqui
ser interpretada no sentido da unidade divina, do monoteísmo; nessa unida­
de estariam de algum modo incluídos os três, sempre sob o primado do Pai,
como se esclarece em seguida. A corrente a que Dionísio se opõe destrói em
primeiro lugar a “santa mônada”, ao afirmar que de algum modo há três
deuses. Mas, por outra parte, Sabélio blasfema ao dizer que o Filho é o
mesmo que o Pai e vice-versa.
Para Dionísio é necessário que o Logos divino esteja unido ao Deus
do universo, e que o Espírito Santo permaneça e habite em Deus1” . Trata-
se da unidade do Filho e do Espírito Santo com D eus Pai. Além disso, é
necessário que a Divina Trindade (rpíots) seja recapitulada e unida em um
(eíç sva, notem os o uso do masculino), como em seu vértice, quer dizer,
no Deus de todas as coisas, o pantokrator. O Deus de todas as coisas é sem
dúvida o Pai, porque pouco antes se tinha filiado do Verbo unido ao Deus
de tudo, e usam-se exatamente os mesmos term os. M árcion, segundo
Dionísio, divide e corta a monarquia em três princípios; por isso sua dou­
trina não é dos discípulos de C risto, mas sim do diabo”6. Se a Escritura
divina fala da Trindade, nunca afirma três deuses (DS 112).
O papa Dionísio nega tam bém que o Filho seja uma criatura. Sua
geração não é uma criação. Se fosse criatura, teria havido um tempo em
que não existia. Jesus afirma, ao contrario, que existe desde sempre no Pai
(cf. Jo 14,10-11). Por ser Filho, palavra, força e sabedoria de Deus (ljo 1,14;
IC or 1,24) não se pode entender que o Pai tenha estado privado delas
antes da criação do Filho (DS 113). A propósito de P r 8,22, “o Senhor me
criou”, indica-se que a palavra criar tem muitas acepções, e que nunca se
entendeu na Escritura em termos de criação estrita a geração misteriosa do
Verbo (DS 114).82*6

134.0 texto foi transm itido tam bém por ÂTANÁSIO, De decretis Nicaenae Synodi, c.
26 (O P ltZ , op. d t., 22-23). Para maior facilidade citaremos DS. Cf. sobre ostatusquaestionis
atual, URIBARRI BILBAO, op. c it, 458-489.
135. Não se usam os mesmos term os para referir-se ao Pai, ao Filho e ao Espírito
Santo, talvez para não forçar demais o argumento: cf. SIM O N E T O , op. d t., 211, n. 153.
136. Sobre a exatidão da atribuição dessas doutrinas a M árcio, cf. H . PIETRAS, La
difesa delia monarchia divina da j>arte dei papa Dionigi (t 268), Arcbivum Historiae Pmtificiae
28 (1990) 335-342, aqui 339.

179
VISÃO HISTÓ RICA

N ão se pode separar em três divindades “a admirável divina unidade


(jjLÓvaôa)”. Ao contrário, deve-se manter a unidade divina e o santo querigma
da monarquia. Deve-se crer no Pai, no Filho e no Espírito Santo. O Verbo
está unido com Deus em todas as coisas (é a segunda vez que a expressão
aparece); para provar essa afirmação aduz-se Jo 10,30, sem alusão à diferença
entre o unum e o unus que aparece em Tertuliano, Hipólito, e N ovadano, e
também Jo 14,10, “eu estou no Pai e o Pai está em mim” (DS 115).
O texto não abunda em grandes precisões teológicas. Dionísio quer
antes de tudo rejeitar a separação ou divisão da tríade, que leva à afirmação
de três deuses. Defende a “monarquia” entendida no sentido tradidonal
do único prindpio que é o Pai. Não há nenhum vocábulo que indique a
distinção dos três; em concreto, desconhece a linguagem das três hipóstases,
mas defende ao mesmo tem po a monarquia e a trios, que tem o Pai em seu
vértice. Insinua-se a existênda ab aetemo do Filho, ao menos “no Pai”. Se
não se encontra nessa resposta nenhuma novidade teológica espedal, deve-
se notar o equilíbrio entre os extremos sabelianos e triteístas. Dado o con-
texto da controvérsia, são os perigos que vêm desses últimos os que são
tomados sobretudo em consideração.
Dionísio Alexandrino defendeu-se dessas acusações137.831
N ega que separe o Pai e o Filho. Acrescenta o Espírito Santo, dizen­
do donde e por quem vem. Afirma ao mesmo tempo a unidade e a Trin­
dade. O Filho é o resplendor (Hb 1,3) a sabedoria de Deus (IC or 1,24). A
relação Pai-Filho mostra que sempre estão o um e o outro. Há, portanto,
eternidade de geração, não houve um tempo em que Deus não fosse Pai.
Como para Orígenes, o Filho é Logos, Sabedoria, Potência. Não é que Deus
estivesse primeiro sem Filho e depois este viesse a ser. Mas o Filho deve ao Pai
a existência15®.
Especial interesse apresenta a questão do resplendor do Pai, o Filho como
“luz de luz”139. Conhecemos já em parte a história dessa expressão. Dionísio
põe o acento no resplendor, como Orígenes. Considerar o Filho luz, reflexo,
é a prova de que não separa o Pai do Filho. Fala também do hálito e da
emanação (cf. Sb 7,25). As idéias são de Orígenes, mas Dionísio não se quer
comprometer com a idéia da vontade do Pai como causa da geração do Filho.
Como os textos nos foram transmitidos em um contexto antiariano, pode
ficar sempre em aberto a questão da fidelidade dessa transmissão.

137. Cf. ATANÁSIO, De sent. Dyon; A. G RILLM EIER, op. d t , 287ss.; PIETRAS,
rU N IT Á D l Dio in Dionísio di Alessandria Gr 72 (1991) 459-490.
138. Cf. ATANÁSIO, De sent. Dyon., 15,1 (57).
139. Cf. Ibid., 2-5 (57).

180
A TEOLOGIA D O FINAL DO SÉCULO IIE DO SÉCULO III

O utra das acusações contra o bispo de Alexandria referia-se ao Filho


como “obra” de Deus (iroC-np-a). Dionísio defende-se dizendo que cha­
mou a Deus Pai do Filho, não O que o faz. Atanásio defende Dionísio: ele
falava da humanidade de Jesus140. Mas não parece que isso seja exato, já que
Dionísio falava das relações Pai-Filho, não diretamente da encarnação.
Porém Dionísio distingue os diversos termos, falou de “obra” mas não de
criatura do Pai; e também disse que vem do Pai. Responde à acusação de
não usar o termo homoousios, que não se encontra na Escritura; mas obser­
va que suas conclusões não se afastam do significado desse termo, porque
disse que os filhos diferem dos pais só no fato de serem filhos; também a
planta é da mesma natureza que a semente141, ou o rio da fonte. A mônada
e a Trindade afirmam-se ao mesmo tem po142.
Sem dúvida, achamos acentos diversos nos protagonistas da contro­
vérsia, mas não parece que as posições fossem irredutíveis. Os dois preo-
cupavam-se em m anter ao mesmo tempo a unidade e a Trindade divinas.
Com a radicalização ariana da distinção entre o Pai e o Filho, a prim eira
será afirmada em detrim ento da segunda. Ario talvez poderia encontrar
em Dionísio Alexandrino pontos de apoio em frases isoladas de seu con­
texto. M as dificilmente podemos dizer o mesmo do conjunto de seu pen­
samento. Mas o problema que será debatido em Nicéia já foi objeto de
discussão mais de meio século antes desse interessante episódio.

140. Ibid., 21,2.3 (62); GRILLM EIER, op. d t , 288s; PIETRAS, op. d t., 478ss.
141. Cf. ATANÁSIO, op. d t., 18,2-3 (59-60).
142. IbiiL, 17,2 (58); cf. também os fragmentos transm itidos por BASILIO de Cesaréia,
De Sp. Sane. 29,72 (SCh 17bis, 504).

181
7
A crise ariana e o Concílio de Nicéia.
A luta antiariana no século IV

A crise ariana dará lugar à primeira definição solene da Igreja não só


sobre o problema trinitário, mas em geral. N ão deixa de ser significativo
que a Igreja comprometa sua autoridade pela primeira vez na história para
salvaguardar a plena divindade de Jesus C risto. Poderíamos dizer que o
prim eiro problema a ser objeto dessa declaração doutrinal foi precisamen­
te o ponto central da fé: a identidade últim a de Jesus salvador, e com isso
o sentido do monoteísmo cristão. Indiretam ente coloca-se também o pro­
blema da divindade do Espírito Santo, que será solenemente afirmada,
embora de modo menos explícito, no prim eiro Concílio de Constantinopla.
Diremos primeiro algumas palavras sobre o pensamento de Ário, e
antes de passar ao Concílio de Nicéia lançaremos uma vista rápida sobre
o panorama teológico da primeira metade do século IV. Não faltavam os
que tendiam, com mais moderação, à linha preconizada por Ário, e quem,
ao contrário, se inclinava a uma forte concepção da unidade de Deus, em
que a subsistência eterna das hipóstases podia ficar comprometida.

A DOUTRINA DE ÁRIO

Ário era um presbítero de Alexandria, nascido por volta do ano 260.


Sua pregação causou problemas porque considerava Cristo um a criatura;
não uma criatura como as outras, senão privilegiada, mas criatura afinal.
Com outras palavras, negava-lhe claramente a condição divina. Sua preo­
cupação fundamental era a afirmação da unicidade de Deus, com prom eti­
da, segundo ele, se fosse aceita a divindade do Filho. Por outra parte, o
conceito de geração parece-lhe demasiado material, porque implica uma

183
VISÃO HISTÓRICA

perda ou diminuição no Pai. Queria também se opor ao sabelianismo, para


afirmar a verdadeira subsistência pessoal do Filho. A carta que Ario dirigiu
ao bispo Alexandre de Alexandria é um bom resumo de sua doutrina:
Conhecemos um só Deus, só incriado (ingênito), só eterno, só semprincípio,
só verdadeiro, só imortal, só inteiramente bom, só todo-poderoso. Esse Deus
gerou um Filho unigénito antes de todos os séculos, por meio do qual criou
os séculos e todas as coisas; nascido não em aparência, mas em verdade; obe­
diente à sua vontade, imutável e inalterável; criatura perfeita de Deus, mas
não uma a mais das criaturas; feitura perfeita, mas não como as outras feituras...
E, como dissemos, criado pela vontade do Pai antes dos tempos e dos séculos,
recebe do Pai a vida e o ser, e o Pai o glorifica ao fazê-lo partícipe de seu ser...
O Filho saiu do Pai fora do tempo, criado e constituído antes dos séculos; não
existia antes de nascer, senão que, nascido fora do tempo antes de todas as
coisas, ele recebe o ser só do Pai... Mas não é eterno, nem coetemo nem
incriado juntamente com o Pai...1.

Trata-se, como se vê, de pôr em destaque a posição única e irrepetível


do Pai. O Pai tem uma própria natureza e hipóstase distinta da do Filho.
Portanto, ninguém lhe pode ser consubstanciai. Só o Pai é sem princípio,
e nisso diferencia-se radicalmente do Filho que, como todas as criaturas,
tem seu princípio na vontade do Pai.
O Filho chama-se "gerado”. Como tal não pode ser coetemo, porque
tem princípio. N ão pode haver dois ingênitos. O Filho então deve ter
princípio, do que se deduz sua criaturalidade. Ario fala da geração do Fi­
lho, pelo Pai, mas em realidade, como o contexto claramente indica, é uma
criação2. Por uma parte, refere-se a uma geração anterior ao tempo, por­
que não há tem po sem criação. Mas por outra parte insiste na não co-
etemidade, usa expressões como “antes que existisse” etc. O Filho, portan­
to, embora tenha sido criado pelo Pai antes de todos os séculos, começou
a existir. O Pai, por conseguinte, começou a ser Pai. Esse é o ponto essen-

1. Texto transm itido p o r HILÁRIO de Poitiers, Trin. IV 12^13; V I 5-6 (CCL 62,
112-124; 199-202); ATANASIO, Syn. 15,1 (O PIT Z I I /l, 242-243).
2. Sobre o “criar” e o “gerar” cf. M . S IM O N E T O , La crià ariana neílVsecoio, Roma,
1975,53: pressupõe-se a identidade entre os dois verbos, levando-a até o “criar”. Também
A. GRILLM EIER, Jesus der Cbristus m Glauben dtrKircbe, Freiburg-Basel-W ien, 1979, L
369 sobre a confusão entre fryéviyios (que não teve que chegar a ser) e õryéwnTos (não
gerado). Desse ponto de vista todo aquele que foi “gerado”, chegou a ser, foi criado em
últim o termo; cf. também R. P. C. HANSON, The searcb for tbe cbristurn doctrine o/ God,
Edimburgo, 1988, 203ss, sobre a confusão inicial dos dois termos.

184
A CRISE ARIANA E O CONCÍLIO DE NICÉIA. A LUTA ANT1ARIANA NO SÉCULO IV

ciai. O Filho tem princípio “temporal” porque só o Pai é sem princípio.


Ario não compreende como o Filho pode ter no Pai seu princípio se for
coetem o com ele.
Ario rejeita toda forma de geração que possa parecer material ou
“animal”. O Filho não é parte do Pai nem sua emanação, e nem há entre
os dois substrato comum. Em algum momento não quis usar também a
preposição ex, que indica, segundo ele, “materialidade”3. O Filho, por
conseguinte, não vem da ousia, da essência do Pai. Essa geração do Filho,
livre e voluntária, é, portanto, “criação”. Se na voluntariedade da geração
do Filho Ario colocava-se em um a linha de continuidade com a tradição
anterior, não ocorre o mesmo com o ponto decisivo da geração não-autên-
tica, que para ele é simplesmente criação. O Filho vem do nada, foi criado
ex nibilo, ainda que sua criação não seja como a das outras criaturas. Esse
Filho, que a partir das premissas de Ario é chamado assim com im proprie­
dade manifesta, é ele que leva a cabo a criação. Sua “geração” está em
função da criação mesma.
C ontudo, o Filho é chamado “Deus”, mas trata-se de um deus infe­
rior: só se emprega esse term o em sentido trasladado, não em sentido
próprio. As passagens de Jo 10,30;14,9s, que na tradição anterior foram
usadas para sublinhar a unidade do Pai e do Filho, são interpretadas pelos
seguidores de Ario no sentido de “pertença”, de união de vontade, mas não
de participação do Filho na divindade do Pai4.
Não faltam passagens bíblicas, cuja discussão ocupará grande lugar na
controvérsia ariana, que parecem, à primeira vista, dar lugar às novas dou­
trinas, e nessas passagens apóiam-se seus representantes5. São importantes
sobretudo as passagens que falam da unicidade de Deus: lT m 2,4-5; Jo
17,3; Mc 10,18, ninguém é bom senão Deus; também as que indicam que
o poder de Jesus vem do Pai, Jo 3,35; 5,22. O Filho é o primogênito de
toda a criação, segundo Cl 1,15; P r 8,22, “o Senhor criou-me como come­
ço de suas obras”, será um dos textos em que mais se apoiarão os arianos
e que mais importância vai adquirir na controvérsia posterior ao longo do
século IV Essas passagens, que aparentemente falam do Filho como cria­
tura, põem -se em relação com as que se referem aos homens em geral

3. Cf. SIM ONETTT, op. d t , 48ss.; também para o que segue. C f também a carta
a Alexandre já citada, ARIO, Ep. I, 2, in O PIT Z , U rkunden, 2. Sobre a voluntariedade da
geração do F ilh o pelo Pai, cf. também Ibid., 4 (3).
4. Cf. S IM O N E T n , op. d t , 50.
5. Cf. Ib id ., 52s.

185
VISÃO HISTÓRICA

como filhos de Deus (por exemplo, Is 1,2; SI 81 [80] ,6); assim intenta-se
estabelecer a paridade entre Cristo e nós. E claro que também são impor­
tantes para os arianos os textos que mostram o sofrimento e a angústia de
Jesus: M t 26,38, “minha alma está triste até à morte”. Ao contrário, resulta
curioso que Jo 14,28, “o Pai é m aior do que eu”, que pareceria o texto
subordinacionista por excelência, não seja usado por Ario e seus seguido­
res em um prim eiro momento; uma certa “inferioridade” do Filho en­
quanto gerado pelo Pai era aceita por todos, e portanto o fato de que o Pai
era “maior” do que o Filho entrava perfeitamente, como já vimos, nos
esquemas ortodoxos. Alais ainda: esse versículo mostrava que entre o Pai
e o Filho pode-se estabelecer uma comparação (que seria impossível entre
grandezas de ordem diversa) e portanto estava a favor da consubstandalidade
dos dois. Em um segundo momento, quando existia na Igreja uma mais
clara consciência de que a divindade do Filho (e do Espírito) excluía qual­
quer tipo de inferioridade, a discussão em tom o desse texto será essencial
na controvérsia.
N o fundo, a doutrina ariana significava interpretar o cristianismo à
luz dos esquemas helénicos im perantes no tem po, em concreto no
platonismo médio; com isso se desconhecia, ou se reduzia em grande
medida, a originalidade cristã. N ão faltaram investigações nesse sentido
nos últimos tempos6. São interessantes algumas passagens de Ário: “O Filho
de Deus tem de Deus sua idade, sua grandeza, o desde quando e o de
quem ”. “O Pai é alheio na essência ao Filho (Çévos k<xt’ ow rlav), porque
é sem princípio: deves saber que existia a purvàs, antes que viesse à existên­
cia a ôúotç...”7. Essas frases são da Tbaleia de Ario, e mostram um notável
parentesco com modelos filosóficos conhecidos; podem explicar o fundo
ideológico de Ario e de seus seguidores: primazia absoluta do uno, a povòtç,
que se identifica com Deus, o Pai, de quem tudo procede. A Idéia ou Logos
é o segundo: é o Naus, o demiurgo8. Por último, em terceiro lugar, vem a
matéria que o demiurgo produz.
Esse esquema, ainda que não necessariamente nos mesmos termos,
encontra eco em Ario. Com a acentuação unilateral da divindade do Pai,

6. Cf. o resumo de HANSON, op. d t , 84-94; sobre a discussão mais recente, Ch.
STEAD, Was Arias a neoplatonist?, in Studia Patrística, XXXII, Lovaina, 1997, 39-52.
7. ARIO, Thaleia, in ATANASIO, Syn., 15 (242-243) cf. GRILLMETER, op. d t ,
362-363.
8. Cf. o texto de N um ênio aduzido por GRILLM EIER, op. d t , 364: “... o segundo
(Deus) que é duplo em si mesmo, forma em si mesmo a idéia e o mundo, porque é demiurgo”
(cf. EUSÉBIO de Cesaréia, Praeparatio Evangélica X I 22, 544; PG 21,905).

186
A CRISE ARIANA E 0 CO NCÍLIO DE NICÉIA. A LUTA ANT1ARIANA N O SÉCULO IV

e a conseqüente negação da do Filho, que é o Logos mediador da criação


(e afortiori da do Espírito Santo), Ario nega toda relação direta entre Deus
e o mundo. A criação foi levada a cabo pelo Filho, que não é Deus. O
próprio Filho e o Espírito Santo, enquanto criaturas, não podem causar
nenhum acesso direto do homem a Deus. Nem Deus vem aos homens,
nem os homens, por conseguinte, podem chegar a Deus. E a relação D eus-
mundo que está em jogo quando se fala da relação Pai-Filho. P or isso o
Filho é o mediador cósmico, porém Ario não fala da revelação de Deus
que ele nos traz, nem de sua mediação salvífica; tudo isso é perfeitamente
conseqüente com suas premissas. Os problemas de Ario em grande medi­
da derivaram de ter querido juntar o querigma cristão do Pai, do Filho e
do Espírito Santo com esquemas cosmológicos, em que a mediação se re­
baixa ao nível da criatura. Daí a ruptura de muitos elementos da tradição
cristã, à qual, por outra parte, não é alheio de todo. A relação entre criação
e processão do Logos não é nova, como bem sabemos. Mas as distinções
entre o Logos imanente e o proferido, as especulações sobre a participação
do Filho na vida mesma do Pai asseguravam sua pertença ao âmbito divi­
no, ainda que fosse gerado pela vontade paterna. Na realidade, não poucas
das dificuldades com que se encontraram os primeiros séculos da revelação
cristã aparecem aqui “resolvidas” de um m odo demasiado simples e radi­
cal. A posição extrema de Ario cai no perigo de encerrar a fé em esquemas
prévios. Por isso a reação da grande Igreja em Nicéia pôde ser qualificada
como uma verdadeira “deshelenização” do cristianismo”9.
N ão podemos term inar essas breves notas sem abordar o problema da
alma de Jesus, que não foi objeto de atenção nos primeiros momentos
da controvérsia ariana10. E possível que fosse a preocupação por garantir o
verdadeiro sofrimento de Jesus, a realidade de seu corpo como o nosso,
o que levasse os arianos a negar a divindade de Jesus, dados os pressupos­
tos da impassibilidade divina. Hanson observa11 que os arianos enfrenta­
ram em geral com toda crueza o escândalo da cruz, sem buscar escapató­

9. Cf. F. RICK EN , N ikea ais Krisis der altchristilichen Platonismus, TbeoPbU 44


(1969) 321-351. H oje resulta praticam ente impossível manter a tese do desenvolvimento
dogm ático na antiga Igreja com o um fenômeno de program a de acomodação aos esquemas
helénicos da época.
10. Segundo G RILLM EIER, op. cit., 374ss., nos primeiros tempos da controvérsia
ariana a questão só se fez consciente em alguns círculos (Eustáquio de Sebaste). Só a partir
de 360 o problema vai aflorar. Agostinho notará tam bém que não se levou em conta esse
assunto na luta contra os arianos: “In eo autem quod Christum solam cam em sine anima
suscepisse arbitrantur, minus n o ti ssunt”; C. baer. 49 (PL 42,39).
ll.O p .c it., 122.

187
VISÃO HISTÓRICA

rias da “peculiaridade” da humanidade de Cristo, de que algumas vezes se


serviram os nicenos. Naturalmente não tinham necessidade de fazê-lo,
porque o sujeito dessas dores e angústias para eles não é propriam ente o
Filho de Deus. A insistência na verdade dos sofrimentos de Jesus pode
estar na base da negação de sua divindade. Se for desconhecida a alma
humana de Cristo, toda a angústia deve cair diretamente sobre o Logos. A
união de Deus com a carne de Cristo faz-se, desde essa perspectiva, muito
difícil de aceitar. N ão fica nenhum espaço para o sofrimento do Logos “na
humanidade, enquanto homem”12. 0 problema trinitário da divindade do
Filho encontra-se pois em estreita ligação com a questão cristológica da
integridade da natureza humana assumida pelo Logos. O Espírito Santo
só entra marginalmente nesse momento da discussão. Certam ente, negan­
do a divindade do Filho, afòrtíori se nega a do Espírito. O problema vai
aflorar de modo reflexo só mais tarde, aproximadamente p or volta do ano
360. Resumindo, podemos dizer que não há para Ario e seus seguidores
uma Trindade im anente que seja o fundamento da economia da salvação.
Nisso vêm a coincidir no fundo com os sabelianos, que são, por outra
parte, seus grandes adversários.

A PRIMEIRA RESPOSTA A ÁRIO. ALEXANDRE DE ALEXANDRIA

Alexandre, bispo de Alexandria, tom a uma posição diante de seu pres­


bitério. Conhecemos só duas das cartas em que expõe suas reações à dou­
trina de Ario13. Limitamo-nos a um breve exame dos pontos essenciais.
Alexandre insiste na eternidade da geração do Filho. N ão há intervalo
nenhum em que D eus existisse sem te r gerado o Filho. O Logos é “no
princípio”, e, por conseguinte, a relação que o une ao Pai existe desde
sempre: o Pai é sempre Pai e o Filho é sempre Filho14. A geração é real,
ainda que inefável. Além de Is 53,815, passagem que vimos invocada nesse
sentido, Alexandre aduz SI 109[108],3; 44,216. N a insistência da geração
eterna, mostra-se a influência do pensamento de Orígenes. Alexandre
continua admitindo a voluntariedade da geração17, porém reduz ao máxi-

12. Cf. H A N SO N , op. d t , 17-122, e sobretudo GRILLM EIER, op. d t , 374-385.


13. Cf. SIM O N E 1 1 1, op. d t , 55-60; HANSON, op. d t , 140-145.
14. Ep. 2,26ss. (O W TZ, Urhmden, 23-24).
15. C it, por Alexandre em Ep. 2,21 (23).
16. Ep. 2,12 (9)
17. Cf. fragmento recolhido por OP1TZ, 22, aparam; S IM O N E lT l, op. d t , 59.

188
A CRISE ARIANA E O CONCÍLIO DE N IC ÉIA. A LUTA ANTIARIANA N O SÉCULO IV

mo todas as expressões que pudessem ter sabor subordinadonista. Fala do


Filho imagem do Pai, usa as metáforas conheddas da luz e do resplendor,
mas sublinhando a semelhança, não a diferendação. Em tudo o Filho é
imagem, a única diferença está em que o Pai gera, e o Filho é gerado. E
interessante nesse sentido o uso de Jo 14,28, “o Pai é maior que eu”, pre-
dsam ente para acentuar a semelhança: o Pai é certamente maior, mas o
simples fato de que a comparação possa ser estabeledda indica que são da
mesma natureza18. Portanto, o Filho é Deus. Também Alexandre faz uma
breve menção à confissão do Espírito Santo junto do Pai e do Filho: o
Espírito já renovou os justos do Antigo Testamento, e também os do Novo19.
Nada mais se acrescenta sobre a terceira pessoa.
N ão há no bispo de Alexandria um conceito técnico para indicar a uni­
dade do Pai e do Filho. O Pai e o Filho são todavia duas hipóstases, como
ocorre em Orígenes e Ario, sem mais aprofundamento. Mas a divindade, a
não-criaturalidade do Filho, é afirmada sem nenhum gênero de dúvida.
Depois dessa resposta inicial às questões (»locadas por Ario, a Igreja
reagirá de modo mais solene e decisivo no Concílio de Nicéia. Mas, antes de
passar a seu estudo, vamos deter-nos brevemente em duas figuras interes­
santes dos começos do século IV, Eusébio de Cesaréia e Marcelo de Ancira,
que, em suas posições contrapostas, nos ajudarão a compreender o ambiente
teológico do momento, e os escolhos que o Concílio tinha que salvar.

EUSÉBIO DE CESARÉIA

[O Filho] é cabeça da Igreja e sua cabeça é o Pai. Este é o único Deus, Pai do
Filho unigénito, e um só é também a cabeça do mesmo Cristo. Dado que um
só é o princípio e a cabeça, como podería haver dois deuses, e não ser um só
aquele que não tem nenhum acima de si e nenhum outro que seja causa de si
mesmo? Ele que possui como própria, sem princípio e ingênita, a divindade do
poder da monarquia e fez participar o Filho de sua divindade e de sua vida20.

18. Cf. Ep. 2,48.52 (27-28), o Pai é maior enquanto gera o Filho exatamente à sua
imagem.
19. C f Ep. 2,53 (28).
20. EU SEBIO de Cesaréia, Eccl. Theol. 111 (G CS, Eus.W . IV, 69-70). É interessante
a continuação do texto, sobre a encarnação e a exaltação de Jesus (70): "... quando lhe
subm eteu todas as coisas, quando o enviou..., lhe deu preceitos, lhe ensinou, quando tudo
lhe entregou, glorificou-o e declarou-o rei do universo, deu-lhe o poder de julgar... E o
Filho unigénito, obedecendo (a esse único Deus), despojou-se de si mesmo, hum ilhou-se,

189
VISÃO HISTÓ RICA

Esse texto mostra o caráter teológico desse grande historiador da Igre­


ja (morto em 339). D iferenda-se daram ente de Ario em sua afirmação da
divindade do Filho, mas sua preocupação fundamental é m anter a posição
única do Pai, o único que detém a "monarquia”. Seguindo a tendência de
Orígenes, distingue as três hipóstases, em ordem descendente, mas afirman­
do com clareza a divindade do Verbo, gerado pelo Pai de modo inenarrável21.
Assim, com ele o Pai é o ttporos Oeós22, o Deus primeiro, o único verda­
deiramente bom23, o único D eus verdadeiro24, porque é o único ingênito.
É apofaticamente indizível, incompreensível, inexprimível. É absolutamente
transcendente25.
Junto ao Pai transcendente, o Filho é Deus por participação; é o se­
gundo D eus, ôevrepos Oeós26. Ele é o criador, penetra tudo, revela o Pai
já nas teofanias do Antigo Testam ento, salva o mundo27. Foi gerado pela
vontade do Pai para a criação28, mas sua geração não é por divisão da es­
sência paterna29; porém fica claro que não é criado. A divindade do Filho
não é estranha à do Pai. Eusébio serve-se também das terminologias de
Orígenes do raio de luz, do eflúvio, da emanação30, mas parece que para ele
a geração não é eterna31. No entanto, insiste muito no Filho imagem do Pai,
única imagem perfeita, em tudo semelhante ao Pai32. Há para ele uma clara
diferença entre a filiação divina do Filho e a nossa. Também não aceita a
interpretação ariana de Pr 8,22; não se deve ler “me criou” e sim “me pos-

fez-se obediente... a esse Deus é ao qual suplica, obedece, dá graças... confessa que é m aior
que ele, ensina-nos a que creiamos nele como no único D eus...” Cf. idéias muito semelhan­
tes em II 7 (104). Cf. SIM O N ETTI, op. d t , 61-66; GRILLM EIER, op. d t , 301-326,
também para o que segue.
21. C f entre outras passagens Dem. Ev. IV 6; V 1 (GCS Eus. W erke VI, 158-160;
210-213). Eccl. Tbeol. 1 1-2.10 (62-63; 68)
22. Dem.Ev. V 4 ,ll (225); cf. IV 2,2 (152).
23. Dem. Ev. V 1, 24 (214).
24. Ibid., 4 ,9 (225).
25. Pode-se ver um lista das denominações do Pai e do Filho em GRILLM EIER, op.
d t , 305
26. Dem. Ev. V 30,3 (249);cf SIM O N ETTI, op. d t, 62: GRILLMEIER, op. d t , 305).
27. C f Dem. Ev. IV 2,6 (151-160); V 6,13 (229-230; 236-237); Eccl. Tbeol. TL21 (130-
131); m 3 (146).
28. C f Dem. Ev., IV 3,7 (153); cf. GRILLM EIER, 310.
29. Cf.EccI. Tbeol lí 14 (115), em oposição a Marcelo de Anrira; Dem.Ev. V 1,11 (212).
30. C f Ecd. Tbeol. 1 8.9.12 (66.67.72).
31. C f GRILLM EIER, op. d t , 310; R FARINA, Ulmpero e 1'lmperatore cristiano m
Eusebio di Cesarea. La frima teologia política dei crisáaneàmo, Zurique, 1966, 39.
32. C f entre outros lugares, Dem.Ev. IV 2.3.6 (152.154.160); V 4,10-115 (225-260);
Eccl. Tbeol. II 7 (104) etc.

190
A C RISE ARIANA E O CONCÍLIO D E NICÉIA. A LUTA ANT1AR1ANA N O SÉCULO IV

suiu”33. Igualmente para Eusébio o Filho é inferior ao Pai, segundo Jo 14,28,


que interpreta em termos semelhantes aos que conhecemos34.
Eusébio não fala m uito do Espírito Santo no seio da divindade e em
relação com a teologia trinitária. Em uma ocasião diz-nos que foi criado
pelo Pai mediante o Filho. Parece negar-lhe a condição de Deus35.63
A teologia de Eusébio move-se assim em uma certa ambigüidade, em
uma certa “penumbra teológica”, na formulação feliz de A G rillm eier3<.Se
por um lado afirma com clareza a divindade do Filho, e nesse ponto dis-
tancia-se de Ario, por outro essa divindade resulta um tanto de segunda
ordem . O Espírito Santo, ao que parece, fica excluído da condição divina,
inclusive na forma um tanto diminuída que corresponde ao Filho. Portan­
to Eusébio não consegue uma clara formulação da fé trinitária, mantém-
se no binitarismo. Mas, se peca pela excessiva separação das três hipóstases,
em seu grande adversário M arcelo de Ancira prevalece a tendência oposta;
a ele dedicamos uma rápida atenção.

MARCELO DE ANCIRA

Se Eusébio de Cesaréia, com as devidas distinções que pusemos em


relevo, podería de algum modo ser considerado próximo de Ario, M arcelo
(m orto por volta de 374) acentua fortem ente a unidade das três pessoas
divinas. N ão nega a Trindade, mas tende a tirar-lhe os contornos, com a
intenção de opor-se ao arianismo37. O problema não é se o Filho é Deus
ou não, mas sim até que ponto possui um a subsistência pessoal própria.
M arcelo trata de salvar a unicidade de D eus38. Já antes que o mundo exis­
tisse, o Logos estava no Pai como sua búvapts. O Logos é a potência de
D eus39 um só com o Pai em oúoía, e hipóstase40. As passagens clássicas

33. Cf. Eccl. Tbtol. Hi 1-2 (138-149) c também Dem. Ev. V 1.6 (211).
34. Cf. Eccl. Tbeol. I 11; H 7 (70. 105).
35. Eccl. Tbeol. Dl 6 (164): “Som ente o Filho, honrado com divindade paterna... fez
todas as coisas... inclusive o Espírito Santo (cf. Jo 1,3; Cl 1,16)... O Espírito P arádito não
é D eus nem é Filho... é um dos que foram criados por meio do Filho”; cf. LADARIA, El
Spiritu Santo en san Hilário de Poitiers, M adrid, 1977, 322.
36. Op. d t., 300.
37. Conhecemos o pensam ento de Marcelo sobretudo pelo livro de EUSÉBIO, Contra
Marcelbm (G CS, Eus. W erke IV, 1-58) no mesmo volume podem-se ver os fragmentos de
M arcelo (185-215).
38. Cf. Frag. 75-78 (200-202).
39. Frag. 73 (198).
40. Cf. EUSEBIO, C. Marc. 1 1,5 (4).

191
VISÃO HISTÓRICA

de Jo 10,30; 14,9 são interpretadas por M arcelo em um sentido de unidade


pessoal. É o extremo oposto ao da união de vontades que víamos na linha
ariana41. No “façamos” de Gn 1,26, o Pai dirigiu-se à sua “mente”, quer
dizer, na realidade, a si mesmo42. O Logos é mediador na criação, mas
antes como potência do Pai, não como hipóstase diversa. Os textos, da
unicidade de Deus, por exemplo, D t 6,4, utilizados pelos arianos para ex­
cluir Cristo da divindade, são usados por Marcelo para integrá-la na uni­
dade da pessoa: o Filho é uno (não só uma só coisa) com o Pai, e portanto
não há mais do que um só Deus. Também no sentido da unidade do Pai e
de seu Logos deve ser entendida a revelação do nome de Deus de Ex 3,1443.
A geração do Logos e os termos afins de Pr 8,2 2ss referem-se à gera­
ção humana de Jesus. Só nesse m om ento o Filho se faz claramente “pes­
soa”; Jesus chamou-se a si mesmo “filho do homem”, e por isso é à sua
humanidade, e não à sua divindade, que se referem as afirmações que acha­
mos sobre ele nas Escrituras. N o momento da encarnação a mônada divi­
na dilatou-se em díade, e depois em tríade, pela efusão do Espírito44. N a
linha indicada, as afirmações sobre o Filho em Cl l,14ss, sua condição de
imagem etc., referem -se à humanidade45.64Vòlta-se assim à tradição asiática
e africana de Ireneu e Tertuliano, certam ente mais próxima da intenção da
Carta aos Colossenses, embora evidentemente a concepção desses autores
seja bem diferente da de Marcelo. N a linha de sua interpretação da teolo­
gia trinitária deve-se colocar a do final dos tempos. E conhecida sua exegese
de IC or 15,24-28, que deu lugar a tanta discussão44: a entrega do reino ao
Pai significa o fim do reino de Jesus, iniciado com sua vinda ao mundo;
terminou-se a função soteriológica para a qual o Pai enviou seu Filho ao
mundo. O Logos não deixa de existir, mas se encontra na mesma situa­
ção em que se achava antes da criação do mundo; volta como “energia” ao
Deus de que saiu47. Marcelo faz ver suas dúvidas sobre a sorte final da

41. Frag. 74 (199-200).


42. Frag. 48 (195). C. Marc. II 2,41-42 (42-43).
43. Cf. SIM O N ETTI, op. d t., 67; Frag. 61-63 (196-197); 77-78 (201-202).
44. Frag. 66-70; 76-77 (197-198; 201) não pode haver Trindade se tã o tem origem
na mônada (f. 60); o Logos e o Espírito são distintos na unidade. Sobre a últim a biografia
de M arcelo, cf. K. SEIBT, Die Tbtokgie des Markett von Ancyra, Beriim-Nova York, 1994;
cf. a nota crítica de SIM O N ETTI, Sulla teologia di Marcello di Ancira, Rivista di Scienza
e Letteratura Religiosa 31 (1995) 257-269: Seibt, entre outras coisas, tende a considerar a
filiação divina do Logos antes da encarnação. C ontra a tese sustentada pela maioria.
45. Cf. Frag. 91-95 (204-205).
46. C f G. PELLAND, La théologie et l’exégèse de M arcel d’Ancyre sur IC or 15,
24-28. U n schème hellénistique en théologie trinitaire. Greg 71 (1990) 679-695.
47. Cf. GRILLM EIER, op. cit., 436s.

192
A CRISE ARIANA E O C O N ClUO DE NICÉIA. A LUTA ANTIARIANA NO SÉCULO IV

humanidade do Logos. Terminada sua missão salvadora, não há razão para


que fique unida ao Logos48. Mas sobre esse ponto não há clareza total. A
oposição à doutrina de M arcelo sobre o final do reino do Filho determ i­
nará a inserção no Símbolo de Constantinopla do inciso “e seu reino não
terá fim”. Voltaremos a isso oportunamente.
Sem termos pretendido uma exposição cronologicamente rigorosa,
temos aqui as linhas de pensamento que se movem em tom o de N icéia e
nos permitem interpretar devidamente em seu contexto o Símbolo desse
importante Concílio. Vimos como teve grande influência a linha de O rí-
genes sobre as três hipóstases, embora se tenha dado dela uma interpreta­
ção exagerada que chega à separação entre elas, já na posição extrema de
Ario, já na mais moderada de Eusébio. Por outra parte, temos a forte acen­
tuação da unidade divina em M arcelo, que cria problemas sobre o modo da
existência eterna da THndade mesma; foi por isso considerado por alguns
o herdeiro do sabelianismo. E ntre essas duas linhas teve de encontrar seu
caminho a teologia da grande Igreja, que alcançará uma qualificada ex­
pressão em Nicéia.

O SÍMBOLO DE NICÉIA (325)

Sem dúvida alguma, com o Símbolo de N icéia chegamos a um dos


pontos fundamentais, senão ao decisivo, do desenvolvimento do dogma
trinitário. N ão é função nossa detalhar as vicissitudes históricas que deram
lugar à convocação e ao desenvolvimento da assembléia conciliar49. Q uanto
à origem da fórmula, Eusébio afirma que teve por base o símbolo de sua
Igreja, que ele mesmo apresentou à assembléia; teriam feito alguns acrés­
cimos, em particular o ópooúoios. Não parece que a informação mereça
crédito total. Uma espécie de preparação do Concílio niceno encontra-se
no sínodo de Antíoquia, dos começos de 325, que já se ocupou do proble­
ma ariano; sobretudo os anátemas que acompanham o Símbolo parecem
antecipar os de Nicéia50. Porém , seja o que for dessas influências, é o texto
do Concílio que nos interessa examinar:

48. Frag. 119-121 (211); cf. SIM O N ETTI, op. d t, 71.


49. D etalhes podem encontrar-se em SIM O N ETTI, op. d t , 78s; HANSON, op.
d t , 152ss.
50. Cf. SIM O N ETTI, op. d t , 83; HANSON, op. d t , 164; J. N . D . KELLY, Credos
cristianos primitivos, Salamanca, 1980, 250ss.

193
VISÃO HISTÓRICA

Cremos em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador de todas as coisas visí-


veis e invisíveis.
E em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado pelo Pai como
unigénito, isto é, da essência (owíct) do Pai, Deus de Deus, luz de luz, Deus
verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstanciai (òpnoúoujv)
ao Pai, por meio do qual todas as coisas foram feitas, as que estão no céu e as
que estão na terra. O qual, por nós homens e por nossa salvação, desceu do
céu e se encarnou; fez-se homem, padeceu e ressuscitou no terceiro dia, subiu
ao céu e virá para julgar os vivos e os mortos.
E no Espirito Santo.
Aos que afirmam “Houve um tempo em que não existia”, e: “Antes de ser
gerado não era”, ou dizem que o Filho de Deus foi feito do nada, ou que
deriva de outra hipóstase ou essência (vmxnáoeu* oòríaç), ou que é mutável
ou alterável, a Igreja católica os anatematiza. (DS 125-126).

Devemos comentar brevemente alguns dos pontos mais salientes51. O


primeiro artigo refere-se ao único Deus, Pai Todo-poderoso. Que a deno­
minação de Deus convenha sobretudo ao Pai, nos primeiros tempos da Igre­
ja, está fora de dúvida: já tivemos ocasião de comprová-lo. O Deus Pai foi no
Novo Testamento o Pai de Jesus. Mas nos séculos II e m reladonou-se a
paternidade com a criação de todos: e de feto o Pai é aqui o Todo-poderoso,
criador de todas as coisas. A formulação é freqüente nos símbolos dos pri­
meiros séculos. As idéias do “único” Deus e Pai e a criação de tudo encon­
tram-se unidas em IC o r 8,6.0 pantokrator grego não se traduz exatamente
por “onipotente” ou “Todo-poderoso”. N ão é só o que tudo pode, senão o
que tudo mantém e rege em seu poder transcendente; não se indica uma
propriedade abstrata, mas o exercício efetivo dela. Mas seria interpretar mal
o primeiro artigo do credo pensar que se detém no cósmico. A estrutura
trinitária do símbolo nos descobre que a paternidade divina afirma-se sobre­
tudo em relação com o Filho. Como em seu momento foi notado, só a
revelação de Deus como Pai de Jesus, atestada no Novo Testamento, permi­
tiu que se falasse de Deus Pai como criador de todas as coisas.
O segundo artigo dedica-se ao Filho, tomando como ponto de parti­
da a encarnação: “um só Senhor Jesus C risto” (cf. IC or 8,6); a Jesus C risto
referem-se todas as afirmações seguintes. Ele é o “Senhor”; são muitas as

51. Cf. sobre o texto e sua transmissão, G . L. D O SSETI, II simbolo di Nicea e di Cons-
tantinopoli, Roma, 1967. Além dessa, as obras a que nos vimos referindo, cf. B. SESBOÜÉ,
Le D ieu du salut, em Histoire des dogmes, Paris 1994,1, 103-120; sobre a estrutura dos
símbolos, com especial referência a peculiaridades do de N icéia, em 343ss.

194
A CRISE ARIANA E O C O N CÍUO DE NICÉIA. A LUTA ANT1ARIANA NO SÉCULO IV

passagens em que se juntam os títulos de Cristo e Senhor (cf. F12,11; Rm


5,1; 7,25 etc.). Desse Senhor Jesus Cristo diz-se, em primeiro lugar, que é
Filho de Deus. A formulação baseia-se no Novo Testamento. O artigo con­
tinua com a origem eterna de Jesus “gerado do Pai”; esses termos pertencem
à antiga tradição. A geração do Filho é única e irrepetível, é a do “unigénito”
(cf. ljo 1,14.18; 3,16; ljo 4,9); a precisão é freqüente nos antigos símbolos.
Que o Filho foi gerado equivale a dizer que é “da essência do Pai”. Trata-se
de sublinhar o verdadeiro sentido da geração, que não se deve entender
como algo material, como se o Filho fosse uma parte do Pai52. Os arianos
rejeitavam a geração porque pensavam significar a dsão ou corte de uma
parte do Pai, mas podiam talvez estar de acordo com essa interpretação.
Mais genéricas são as expressões seguintes: “Deus de Deus, luz de
luz” (vimos algo da história dessa comparação, que introduz em Deus a
distinção sem prejuízo da unidade). Porém “Deus verdadeiro de Deus ver­
dadeiro” opõe-se diretamente aos arianos, que de modo genérico aceita­
vam chamar Deus ao Filho (entendido também esse nome em sentido ge­
nérico). O símbolo sublinha que o Filho é Deus em sentido estrito, em
virtude da geração53. “Gerado, não criado” é uma nova precisão; a geração
que dá o ser ao Filho é de natureza diversa da criação pela qual vêm à
existência os seres que conhecemos. Apurando as coisas, tamh^m Ário podia
aceitar isso, porque distinguia a geração ou criação do Filho do Pai só da
criação das outras coisas por obra do Filho e por vontade do Pai. Mas a
linguagem do Concílio vai mais além: trata-se de distinguir claramente os
dois modos de vir à existência, sem que caibam term os médios. A isso
apontam os termos do Novo Testamento Pai e Filho. A geração do Filho
não é uma criação do nada. Indica-o a analogia com a geração humana.
M antendo todas as distâncias, em Deus acha-se o analogado principal de
toda paternidade e de toda filiação.
“Consubstanciai ao Pai”. Consubstanciai é o term o mais característi­
co de Nicéia, que dará lugar a inúmeras controvérsias. É talvez a fórmula
mais diretam ente antiariana54. A discussão esclareceu que o termo não se
aplica a D eus como aos seres corporais, de modo que a integridade da
essência ou da potência do Pai fica garantida55. N em sequer com essas

52. Cf. EUSÉBIO de Cesaréia, Ep. 3,9-10, à Com unidade de Cesaréia (cf. O P IT Z ,
U rkunden, 45); SIM O N E T T I, La crisi ariana, 89.
53. Çf. G R ILLM EIER , op. cit., 407s.
54. Ário nega expressamente o bomoousios em Tbaleia-, c f ATANÁSIO Syn. 15,3;
O PIT Z , Ath., Werice, H/1 242): “N ão é igual (ao Pai) nem de sua substância”.
55. Cf. EU SEBIO , Ep. 3, 12-13 (45-46); cf. SIM O N E T T I, op. cit., 89; H A N SO N ,
164ss.

195
VISÃO HISTÓRICA

precisões Ário podia aceitá-lo. Continuava a valer que se tratava de uma


palavra não usada na Escritura. P o r outra parte, a ambiguidade do homoousios
vem da ambiguidade da mista, que podia indicar a essência individual, ou a
essência comum a todos os seres do mesmo gênero. P o r conseguinte, enten­
dida a trusta no primeiro sentido, o homoousios podia ser sabeliano, e nessa
linha moveu-se a oposição dos arianos e dos filoarianos. Porém o fato mes­
mo de que podia interpretar-se em vários sentidos podia fazê-lo aceitável
por todos. Em concreto, uns podiam interpretá-lo em um sentido m uito
forte de unidade do Pai e do Filho56. Fica claro, de todas as maneiras, que se
exclui um terceiro entre o Deus transcendente e o mundo. O Filho é Deus
como o Pai, e por ele Deus mesmo entra em contato direto com a criatura.
Deve-se portanto reconhecer que o sentido do homoousios não estava de
todo claro no começo. E mais importante o que nega que o que afirma. O
Filho é Deus como o Pai, não é um segundo Deus, possui a mesma divindade
recebida do Pai. A mediação criadora universal do Filho encerra essa parte do
Credo (cf. IC or 8,6; Jo 1,3; Cl 1,16, que menciona espedficamente todas as
coisas do céu e da aterra). A geração não se vê em relação direta com essa
atuação criadora. A teologia pós-nicena esclarecerá ainda mais esse extremo.
Desde já fica claro que o mediador da criação é Deus, como o Pai.
Depois da geração etem a, seguindo o esquema comum dos símbolos,
passa-se a tratar da geração humana de Jesus. N ão parece que se deva
considerar com o uma precisa afirmação da alma de Cristo a reduplicação
“encarnou-se, fez-se homem”. Essa questão, que se agitará mais tarde nas
controvérsias com Apolinário de Laodicéia, ainda não foi colocada expli-
dtam ente naqueles momentos. A humanidade de Jesus é porém acentuada
junto com sua divindade, de que se falou imediatamente antes. Se tem de
confessar o nascimento divino de Jesus, também tem de confessar o humano,
“por causa de nós e de nossa salvação”. Todos os credos reproduzem o

56. Cf. em SIM O N ETTI, op. d t., 89ss. um resumo da história da questão: O rígenes
usa-o segundo um fragmento conservado só na tradução de Rufino, que tratou de “norm a­
lizar” em sentido niceno as afirmações de Orígenes. N a controvérsia dos dois Dionísios, a
coisa toma outro rumo. Acusa-se ao de Alexandria de não o aceitar, mas o de Roma não
recolhe a acusação. De todas as maneiras o primeiro defende-se dizendo que não aceitou
por perigo de sabelianismo. Dá-se conta da polissemia e depois o aceita pro bmo pacis, no
sentido de essência genérica, como um pai e um filho humanos. Sabemos que Paulo de
Samosata usava-o para negar ao Filho subsistência pessoal. N ão foi usado por Alexandre de
Alexandria. Era alheio à term inologia de Orígenes, que insistia na substância pessoal do
Filho, e à terminologia de seus seguidores, que sustentavam com ele as três hipóstases.
Dificilmente pôde vir dessa linha a proposta. Talvez tenha vindo do Ocidente, onde havia
menos preocupação em definir a subsistência pessoal do Filho. A possibilidade de interpretá-
lo em sentido genérico (Dionísio) pode te r induzido os origenistas a aceitá-lo.

196
A CRISE ARIANA E O C O N C ÍLIO DE NIC ÉIA A LUTA ANTIARIANA NO SÉCULO IV

centro do querigma neotestamentário, a morte e a ressurreição de Jesus


(cf. lC or 15,3-4) e a ascensão ao céu. Também a confissão de Jesus exal­
tado e sentado à direita do Pai é freqüente no Novo Testamento, embora
o último ponto ainda não se explicite em Nicéia (cf. At 2,3 3; Rm 8,34; lPd
3,22; H b 1,3 etc.). N ão há nessa parte do símbolo nenhuma especial ori­
ginalidade, como tampouco na menção à segunda vinda para julgar os vi­
vos e os mortos (cf. At 10,42).
Brevíssima a menção ao Espírito Santo, sem comentário algum. O
Espírito encontra-se unido na confissão cristã ao Pai e ao Filho, mas nada
mais absolutamente se acrescenta. Veremos como esse artigo será desen­
volvido em Constantinopla.
Os anátemas completam a formulação da fé. Condenam-se as expres­
sões mais radicais dos arianos — “houve um tempo em que não existia”,
“antes de ser gerado não existia” — que se opõem à eternidade do Filho,
e sobretudo “feito do nada”, que constituía a negação mais clara de sua
divindade. Segundo Eusébio de Cesaréia57, essas formulações sobre a eter­
nidade do Filho deixavam aberta a possibilidade de algum tipo de distinção
entre uma geração em potência e outra em ato, que era a linha de Marcelo
de Andra e de outros bispos que não queriam falar de geração antes da
encarnação. Por outra parte, os seguidores da linha de estudo de Eusébio
tinham dificuldade em uma geração ab aetemo como já ensinara Orígenes,
que para eles podia ser equivalente à negação da geração. Condena-se além
disso quem diz que o Filho é mutável ou alterável. O próprio Ário manti­
nha a imutabilidade do Filho. O ponto fundamental é o último: o Filho
não foi feito do que não existia (do nada, esquema da criação), não deriva
de nenhuma outra essência nem hipóstase que não seja a do Pai. E a repe­
tição do já dito no símbolo, mas o interessante do anátema é que se fala de
ousía ou “hipóstase” consideradas equivalentes. Surge portanto o proble­
ma de se ousía deve ser entendida no sentido da essência individual, e então
pode-se dar a impressão de que se trata da mesma hipóstase, isto é, de que o
Filho não tem individualidade pessoal; por isso alguns consideravam que
botnoousios era sabelianoS8. Em todo caso, essas imprecisões e dificuldades

57. Assim o tinha esclarecido C onstantino, segundo EUSÉBIO, Ep. 3,16 (OP1TZ,
op. d t., 46); cf. também SIM O N ETTI, op. d t., 93
58. SIM O N E T T I, op. d t, 94, aponta um a possível distinção en tre os usos de ousía
e de botnoousios. A prim eira entende-se sempre no sentido de essênda individual: o Filho é
gerado da essência do Pai, que assim se distingue do Filho. Ao contrário, o botnoousios
compreende o Filho na ousía paterna. A derivação do Filho da ousía paterna não implica
necessariamente que a sua seja distinta, senão que é partíripe da do Pai. D e lato, não se fala
de uma ousía do Filho.

197
VISÃ O HISTÓ RICA

nos m ostram que se está no início de um caminho que desde 325 nos
levará quase até os anos finais do século IV. É natural que só o tem po vá
contribuir para precisar os term os novos, usados para indicar uma deter­
minada direção de pensam ento, mas ainda sem um conteúdo preciso bem
delim itado.
Podem os ver assim os pontos que Nicéia deixou claros, e ao mesmo
tem po os pontos que deixou em aberto. Além disso, pensemos que para ter
um a visão mais completa da situação teológica que imo se fixou ainda na­
queles m om entos uma clara doutrina do concílio ecumênico, de sua auto­
ridade m agisterial etc. Precisamente a partir do feto de Nicéia essa doutri­
na começará a desenvolver-se. E claro qUe não podemos julgar somente a
partir de nossos critérios atuais as discussões, e inclusive a oposição a que
deu lugar o Concílio de Nicéia.

AS VICISSITUDES DEPOIS DO CONCÍLIO DE NICÉIA

A complexa história do século IV, em que, junto com os aspectos es­


tritam ente doutrinais, também os da política im perial têm uma im portân­
cia decisiva, não pode ser objeto de nosso estudo detalhado. É interm iná­
vel o núm ero de sínodos, com prevalência em cada um deles de um grupo
ou partido, que trataram do problema da Trindade e elaboraram em con-
seqüência um símbolo de fé«. Nosso interesse deverá mover-se em tom o
das grandes figuras teológicas que aprofundaram o conteúdo da fé procla­
mada em Nicéia. Traçaremos só um breve panorama histórico que nos
ajude a entender a evolução doutrinal no tempo que vai do Concílio de
Nicéia (325) ao de Constantinopla (381)* 60.
1. Acontecimentos até a m orte de Constantino em 337. Um ano antes
dele feleceu Ario. Atanásio tinha sido eleito para a sede episcopal de Ale­
xandria em 328, com a m orte de Alexandre. Houve unanimidade para a
sua eleição, embora algumas fontes filoarianas digam que se produziram
intrigas. Desde esse m «m o ano de 328, muitos arianos ou arianizantes,
partidários da linha de Eusebio de Cesaréia, encontraram outra vez graça
diante do imperador, sentiram-se em maioria no Oriente; chegou-se in-

•ktoí'w t jwui viuuO em SIM O N ETTI,


op. d t , 99-434; também em H A NSON, op. d t , 181-386; Kelly, op. d t , 315-351.
60. Inspiro-m e sobretudo no resumo de SESBOÜÉ, op. d t , 250ss., completado
com SIMONErm, op. d t , 99-267.

198
A CRISE ARIANA E O C O N C ÍU O DE N IC É IA A LUTA ANTIARIANA N O SÉCULO IV

clusive a uma reabilitação de Ário. M arcelo de Ancira, que como vimos


move-se no extremo oposto ao arianismo, é deposto pela prim eira vez de
sua sede. Também Atanásio, de tendência nicena, sofre a mesma sorte.
2. Com a m orte de Constantino, passaram a reinar no O riente e no
Ocidente seus filhos C onstando e Constante. O primeiro era filoariano, o
segundo mais niceno. M arcelo de Ancira, em uma declaração ao papa Júlio
(341, Concílio de Roma), esclarece que o reino do Filho não terá fim, que
o Filho remará sempre com o Pai. O Logos é chamado Filho já como
preexistente. Mas evita falar da geração do Filho, que continua sendo con­
siderado uma dynamis, como no período anterior. Em Roma nesse 341,
havia muita indulgência para com M arcelo; bastava seu antiariamsmo para
eliminar toda suspeita.
N o mesmo ano de 341 em Antioquia, celebra-se um concílio contra
o papa Júlio. Usam-se termos vagos, não radicalmente arianos. Predomina
a preocupação anti-sabeliana e antimarceliana; Afirma-se que o Filho foi
gerado antes de todos os tempos, condenam-se os artigos arianos extre­
mos, mas há mudanças significativas em relação a Nicéia: afirma-se que o
Filho não é uma criatura como as outras, que não foi gerado como elas.
Reproduzem-se fórmulas arianas, ao mesmo tempo em que se tomam di­
versos elementos do símbolo de Nicéia. Fala-se das três hipóstases unidas
pela harmonia. Como se vê facilmente, são muitos os problemas apresen­
tados pela ambigüidade das formulações.
Uma impropriamente chamada quarta fórmula de Antioquia foi apre­
sentada ao imperador Constante em Tréveris no ano de 342. E mais breve
do que a anterior, não fida das três hipóstases, mas tampouco menciona o
bomoousios, nem se refere ao “Deus verdadeiro de D eus verdadeiro”;
os anátemas mantêm-se como em Nicéia. São também de compromisso os
símbolos de Sárdica de 343. Os orientais e os ocidentais elaboraram seu sím­
bolos em separado. Os primeiros querem m anter que o Pai gerou o Filho
por seu poder e sua vontade (contra Marcelo, porque a expansão da mônada
em trios era “natural”), enquanto os ocidentais sublinham a unidade divi­
na, falando de uma hipóstase do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Fun-
dam-se para isso em textos como Jo 10,30; 14,9, que vimos interpretados
de maneira mais matizada pelos grandes autores. Mais exageradamente
filoarianas serão as fórmulas de Antioquia em 344 e as de Sírmio dos anos
349, 350 e 351. A morte de Constante em 350 põe todo o im pério nas
mãos de Constando. Com isso também ganha força no O ddente o partido
filoariano: celebram-se sínodos de ortodoxia problemática, manipulados
pelo imperador, em Aries e Milão (353 e 355). Hilário de Poitiers resiste
199
VISÃO H B TÔ R C A

nas Gabas, mas sua sorte é o exílio, como também a do papa Libério e de
Osio de Córdoba, já ancião. Seguem as sucessivas deposições de Atanásio.
Pelos anos 357-360, o triunfo ariano parece total61. O símbolo de Sírmio,
de 357, representaria o máximo triunfo da linha filoariana: não se menci­
ona o bomoousios, insiste-se m uito em que o Pai é m aior do que o Filho em
dignidade, glória, majestade. O Pai não tem princípio, nada sabemos da
geração do Filho (cf. Is 53,8, usado aqui quase que em um sentido de
negação, não de silêncio reverente). Não se usa o term o substancia, por­
que não está nas Escrituras.
3. Rumo a uma mudança de situação. Mas a partir de 358-360 esses
mesmos excessos produzem a cisão. No sínodo de Sírmio de 358 não se pro­
duz uma formula da fé, mas triunfam as teses homoousianas, isto é, o Filho é
semelhante ao Pai” segundo a ausía. Sem que os termos correspondam exa­
tamente aos de Nicéia, produziu-se uma aproximação com eles. Já no sínodo
de Ancira em 358, por obra de Basüio de Ancira, tinha-se proposto a fórmula
opourixrioç kolt oixnotv”. No quarto Concílio de Sírmio, de 359, chega-se
a um compromisso de fórmulas genéricas que a ninguém satisfaz.
Ainda no ano de 359 têm lugar os Concílios dos ocidentais e orientais
separadamente em Rimim e em Selêuda62. Enquanto os primeiros se mos­
tram em uma linha próxima a Nicéia e aceitam o term o substantia, os se­
gundos proscrevem o uso do equivalente grego “oíxría” porque não o en­
contram nas Escrituras. No O riente vencem os filoarianos. E, como
consequência de uma série complicada de vicissitudes, propicia-se que tam­
bém por parte dos ocidentais seja aprovada uma série de fórmulas ambíguas
que, com aparência de ortodoxia, não acabam por rejeitar de todo a tese
fundamental ariana da criação do Filho. Com efeito, enquanto se anatematiza
quem diz que o Filho não existe absolutamente antes de todo tempo (e não
só antes dos séculos), condena-se também a quem diz que o Filho é como as
outras criaturas. Conhecemos já a matriz ariana dessa afirmação.
Por txás desses acontecimentos estão as posições doutrinárias de seus
protagonistas. Os arianos mais radicais seguem com suas teses extremas,
chamadas anomeas porque queriam evitar toda menção da igualdade ou
semelhança entre o Pai e o Filho. Aécio e EunÔmio são os nomes mais

61. Recordemos a famosa frase de JERÔNIM O, Dial. contra Luciferiams, 19 (PL


23,172): “Gemeu todo o m undo e se espantou de ser ariano”. H ILÁ RIO de Poitiers, Trm.
V I 1 (CCL 62, 196): “Em quase todas as províncias do Im pério rom ano muitas Igrejas já
foram contagiadas pele doença dessa pregação venenosa, e estão como que impregnadas
dela por causa do prolongado hábito desse ensinamento...”.
62. Cf. SIM O N E 1T 1, op. cit., 313-349.

200
A CRISE ARIANA E O CONCÍLIO DE NICÉIA. A LUTA ANTIARIANA NO SÉCULO IV

característicos desse arianismo da segunda geração. Suas teses são m uito


radicais: dado que o que caracteriza a natureza divina é a falta de geração,
o Filho, gerado, não pode ser Deus. O Filho foi criado, embora não como
as outras coisas, já que é superior a elas. P r 8,22, “O Senhor me criou...”,
é um ponto de apoio fundamental desse grupo. Também Jo 14,28, “o Pai é
maior do que eu”, que agora é interpretado no sentido de uma diferença
de substância. N o começo da controvérsia ariana servia ainda para afirm ar
a divindade do Filho, enquanto gerado pelo Pai “m aior” do que ele. Agora,
uma vez que segundo a linha ortodoxa o Filho é em tudo igual ao Pai, o
texto de Jo 14,28 serve aos arianos para negar a divindade mesma.
Menos conhecido e importante, o grupo dos “homos”, que se conten­
tavam com afirmar a semelhança genérica entre o Pai e o Filho (opoúnaiç)
mas sem pronunciar-se sobre a questão da substância (cf. as fórmulas a que
nos referimos no sínodo de Sírm io de 357).
Os “homoiousianos” professam, como já tivemos ocasião de observar,
que o Filho é “semelhante ao Pai segundo a essência”. N ão se atrevem a
afirmar o “homos”, a igualdade ou identidade da essência, mas sim a m en­
cionar a essência junto com a semelhança, para salvar assim a subsistência
do Filho. Basílio de A ndra e Jorge de Laodicéia contam-se entre os repre­
sentantes dessa linha. O bomoousios, para eles, confundiria o Pai e o Filho,
porque esse não é uma palavra inconsistente; é verdadeiramente gerado,
diferentemente dos homens, que são filhos de D eus por adoção. H á uma
só divindade, uma só “basiléia”, um só princípio. A passagem de P r 8,22,
longe de implicar uma criação do nada, ajuda a purificar a idéia da geração:
elimina toda a conotação da paixão, da geração corpórea. A geração pro­
duz um semelhante. N ão basta falar de unidade da vontade entre o Pai e
o Filho, porém , por outra parte, o semelhante não se identifica com aquele
a que se assemelha. Por isso as prerrogativas da divindade do Filho são
semelhantes, mas não iguais, às do Pai. O Espírito Santo também subsiste
do Pai m ediante o Filho. Essas são as idéias fundamentais dos “hom oiou-
sianos”. A partir do começo da década de 360, ocorrerá um a maior união
entre esses grupos e os nicenos63, e vão aumentar os partidários da tese
conciliar. Produziu-se uma mudança notável na situação em muito poucos
anos64. Os homoiousianos contribuíram não pouco para o triunfo final das

63. Essa união foi m uito propiciada por HILÁRIO de Poitiers, que tratou de atrair
esses grupos mais m oderados para fazer frente comum contra os arianos mais radicais. Cf.
Desyn. 85-89 (PL 10, 536-542).
64. Adais adiante tratarem os brevem ente dos principais acontecimentos dos anos 360-
380, quer dizer, até a celebração do Concílio de Constantinopla.

201
VISÃ O HISTÓRICA

teses nicenas. Por isso não parece adequado o qualificativo “semi-arianos”


com que durante séculos foram conhecidos. A classificação não é tão sim­
ples. Isso terá sido m ostrado por esse brevíssimo percurso pelos aconteci­
m entos do conflitivo século IV. Agora podemos entrar no estudo das gran­
des figuras teológicas daquele momento, que no Oriente e no Ocidente
contribuíram decisivamente para o triunfo da fe nicena: Atanasio de Ale­
xandria e H ilário de Poitiers.

ATANASIO DE ALEXANDRIA

Entram os agora no estudo das principais figuras teológicas que mar­


caram a evolução posterior com a defesa do credo de Nicéia. Começamos
p o r Atanásio (morto em 373), ao qual já nos referimos na seção anterior.
Sua vida foi marcada por cinco exílios, conseqüências das vicissitudes ecle­
siásticas e políticas a que há pouco nos referimos brevemente. Agora nos
centramos em alguns aspectos de sua contribuição teológica.
Atanásio recolheu, como seu predecessor Alexandre, as metáforas da
grande tradição origeniana de Alexandria que já nos são conhecidas: o Filho
é imagem, esplendor (âiroirY áajia), tim bre (xapcucrrip) (H b 1,2), verda­
de, sabedoria; usa também a metáfora do raio de sol e de luz65. Dado que
D eus não pode estar nunca sem o que lhe e proprio, tem de ser eterno
como o Pai, tem por consequência de existir desde sempre66.
Para Atanásio — e aqui achamos sem dúvida uma contribuição fun­
damental para a doutrina cristã de Deus —, a Trindade não depende da
criação do mundo. Existe, em sua plenitude de vida, com independência
dela. Deus não necessita produzir prim eiro um intermediário ou demiurgo
para poder criar o m undo. É claro que Atanásio desenvolve a tese tradi­
cional do Filho, mediador da criação, que já encontramos atestada no Novo
Testamento. Porém esse mediador é, desde toda a eternidade, Deus como
o Pai, não é gerado para esse fim. Não veio à existência por nossa causa,
senão nós é que fomos criados para ele. Ainda sem a criação o Filho exis­
tiria sempre junto ao Pai67. N ão é preciso recorrer a nenhum tipo de

65. Cf. entre outras passagens, C. Asian. 1 20-21; 24; 27 (PG 26,53-56; 61;68); HI 3-
4 (328-329). Além das obras a que vimos nos referindo, pode-se ver Ch. KA N N EN G Œ S-
SER, Le Verbe de Dieu selon Atbanase d’Alexandrie, Paris, 1990; P. W IDDICOM BE, Tbe
fatherhood of Godfrom Origin to Athanasius, Oxford, 1994; B. SESBOÜÉ; B. M EU N IER,
Dieu peut-il avoir un Fils. Le débat trinitaire du IVsiècle, Paris, 1993.19-130.
66. Cf. C Ar. 1 19-20 (52-53).
67. Cf. C. Ar. H 29-31 (208-213). Cf. SIM O N E T O , op. d t , 268s.

202
A CRISE ARIANA E O CO N CÍLIO DE NICÉIA. A LUTA ANTIARIANA NO SÉCULO IV

"inferioridade” do Filho para explicar a mediação criadora. H á uma rela­


ção direta Deus-m undo, ao contrário do que pensam os arianos. O Filho
é da ousta do Pai68. Há no Pai e no Filho uma só divindade, uma e a mesma,
uma unidade de essência69.
Essa união do Filho com o Pai, que não depende da criação, faz que
para Atanásio não haja um logos e uma sabedoria substanciais, próprios da
essência divina, e um logos e um a sabedoria que viriam da existência do
Logos pessoal; ao contrário, o verdadeiro Filho é a potência e a sabedoria
e o Verbo do Pai; é a sabedoria em si mesma, a potência, a luz, a verdade
em si...; somente o Filho é a imagem perfeitíssima do Pai70.
A geração do Filho pelo Pai não significa cisão, nem corte, nem
tampouco paixão. Deus é certamente incorpóreo, mas apesar disso a gera­
ção é a palavra justa para indicar a processão do Filho, não a criação. A co-
etemidade do Pai e do Filho baseia-se no fato de que a essência do Pai foi
sempre completa, sem necessidade de que ninguém lhe venha acrescentar
o que lhe pertence. O Filho é o broto do Pai, é seu. Os seres humanos
geram depois de seu nascim ento; isso é devido a que sua natureza é incom­
pleta. Nada disso ocorre com Deus: sua geração é eterna porque sua natu­
reza é completa71. A essa coetemidade do Filho corresponde sua perfeita
divindade por natureza e verdade (<tn3oei kou ôtXTjOeux), não por graça
(ícaTÒ xápiv) como ocorre na divinização dos homens72.
Também P r 8,22 é objeto de discussão e análise por parte de Ataná­
sio. A “criação” da sabedoria para “suas obras” indica seu nascimento cor­
poral, não a substância do Filho. Esse nascimento corporal tem sentido
porque só D eus pode nos resgatar, uma vez que pelo pecado as obras de
Deus se tinham tom ado imperfeitas. Assim, a “criação” da humanidade do
Filho tem lugar para completar sua obra73. A encarnação é necessária para

68. Cf. C. Ar. 115 (44): o Filho é “ ck ouoías” do Pai, Ibid. 1 16 (45): “ck tt\<;
ouoíotç ourou 7 é w q ita ”; cf. I 20; 26 (53; 65); H l 6 (332s) no Filho está a plenitude da
divindade do Pai etc.; cf HANSON, op. c it, 438; SIM O N ETTI, op. d t., 279s.
69. C. Ar. II 3-4 (328-329): são um , na peculiaridade e propriedade de sua natureza
e na identidade da mesma divindade tq TotúrÒTCTi rqç ju as Ocótutos. Isso seria o mais
próprio de A tanásio para indicar a unidade. Cf. SIM O N ETTI, op. d t., 275s. Ainda não usa
term os técnicos para indicar a distinção das pessoas.
70. Cf. Contra Gentes, 46 (PG 25,93).
71. C. Ar. 1 14 (41); também 126.28 (65-68.69); Dedecr. Nic. Syn. 11-12 (OPITZ, op.
d t., 11/1,9).
72. Cf. C. An, I 39(92-93); H 59 (272-273) N ão somos filhos pbysei, mas tbesei. Cf.
SIM O N ETTI, op. d t., 271. A verdadeira filiação é a garantia de nossa salvação, já que essa
só pode suceder se Deus mesmo a realiza, Cf. Or. de Incar. Verbi, 13,54 (PG 25,120; 192).
73. Cf. CJÍr. H 66-67 (285-291).

203
VISÃO HISTÓ RICA

que o homem possa ser divinizado e possa te r acesso ao Pai: “O homem


unido a uma criatura, isto é, se o F ilh o não fosse Deus verdadeiro não podia
ser divinizado, e o homem não teria podido estar na presença do Pai se o que
se tinha revestido de seu corpo não fosse por natureza o Verbo verdadeiro do
Pai”7457O argum ento soteriológio desem penha, como vemos, um papel muito
essencial no discurso trinitário de Atanásio. A verdadeira salvação do ho­
mem não pode se realizar se o salvador não é o Filho verdadeiro do Pai.
Afirma-se com clareza a divindade do Filho, que é gerado e não cria­
do, coetem o com o Pai. Existiram sem pre o gerante e o gerado. O Filho
é próprio do Pai segundo a essência, Ka^ouaúxv, não é uma parte do Pai.
A geração humana é tem poral, a divina é eterna. N a discussão com os
arianos coloca-se o problem a da voluntariedade dessa geração. E claro que
para eles a geração (propriam ente criação) advém porque o Pai quer. A
eternidade da geração e o fato de que esta se encontre de si desligada da
criação ou do desígnio de criar põem em dúvida o problema da vontade
com que o Pai gera o seu Filho. Seria então a geração algo forçoso para
Deus? Segundo Atanásio, a diferença da teologia ortodoxa com a dos aria­
nos não é a vontade com que o Pai gera, mas sim a natureza que dá origem
à geração. Com efeito, os arianos unem à geração livre a geração no tem­
po; o Filho não existia antes de sua geração. Mas para a teologia ortodoxa
não se pode falar de momento prévio à geração, de decisão prévia, porque
esse momento prévio não existe, dada a coetemidade do Pai e do Filho.
Porém isso não significa que o Pai não queira a geração do Filho, como se
fosse possível opor em Deus Uberdade e necessidade. Pois se deve pensar
justamente o contrário:
Se o Filho é por natureza e não por vontade, é que não foi querido pelo Pai,
que existe contra sua vontade? Em absoluto. O Filho é querido pelo
Pai... Pois assim como sua bondade não começou por vontade, ao mesmo
tempo não é bom sem vontade nem desígnio... igualmente, a existência do
Filho, embora não tenha começado por vontade, não é involuntária, nem
carece de consentimento. Pois, da mesma maneira que o Pai quer sua própria
hipóstase, quer a do Filho, que é própria de sua essência...7’.

Nada, portanto, é involuntário em Deus; nele, necessidade e vontade


não se relacionam como em nós. É interessante notar que a vontade com

74. Ibid. n 70 (296).


75. Ibid., i n 66 (461); cf. os cap. prévios, ólss. (452ss.): no Verbo o Pai quer todas as
coisas.

204
A CRISE ARIANA E O C O N ClUO DE NICÉIA. A LUTA ANTIARIANA NO SÉCULO IV

que o Pai quer o Filho é a mesma pela qual quer a si mesmo. A geração é,
pois, eterna e necessária, o que não quer dizer involuntária. Por outra par­
te, sem a divindade do Filho não pode haver salvação das criaturas. Como
se relacionam a divindade do Pai e a do Filho segundo nosso autor? Co­
mo articula a unidade e a distinção entre os dois? Q ue uso fez do term o-
chave de Nicéia, “homoousios”? Todos esses problemas especulativos da
teologia trinitária não estão ainda perfeitamente esclarecidos em Atanásio.
O homoousios parece significar para Atanásio "igual natureza”76. 0 bispo
de Alexandria não se serve ainda desse termo nos primeiros escritos, mas
explica e defende seu uso em De Decretis Nkaenae Synodf7. Em De Synodis
prefere-o ao homoiousios; o termo indica, ao mesmo tempo que a igualdade da
substância, a procedência da ousía do Filho, gerada da ousía do Pai78. A proce­
dência e a união não devem ser entendidas de modo material, de separação,
mas como a metáfora do raio e do sol: "não falamos de dois deuses, mas de um
Deus que existe como uma forma de divindade, como relação entre a luz e o
raio”79. Para Atanásio, o homoousios significa que o Filho de Deus procede do
Pai, e por isso têm ambos a mesma essência. Há uma substância paterna da
qual provém o Filho como imagem perfeita; a unidade dos dois é assim explicada
nos termos da unidade da luz e do reflexo80.
Portanto, a única substância da Trindade que Atanásio defende é a
substância do Pai. Preocupa-o menos a questão da unidade de substância do
Pai e do Filho. Por isso não encontramos a linguagem técnica da distinção
das hipóstases na unidade da substância. Não eram essas as categorias em
que Atanásio se movia. Interessa-lhe mais a afirmação de divindade do Filho
(e do Espírito Santo) do que o “monoteísmo trinitário”81, isto é, a questão de
como os três são um só Deus, o que, ao contrário, vai ser a preocupação
principal dos capadócios. Mas é claro que isso não significa que a unidade da
Trindade estivesse completamente fora de suas perspectivas:

76. Cf. SIM ONETT1, op. cit., 274.


77.1.3 sobretudo 20 (O PITZ, op. d t , n /1 ,1.3.17), o term o significa que o Filho não
é só semelhante ao Pai, senão a mesma coisa que procede do Pai na semelhança.
78. Cf. Syn 41- 48 (O PITZ, op. d t , II/l, 226-227; 272-273; o Filho e o Pai são um
na ousía. Usa também o term o em Serap. II 5.6 (PG 26,616-617) com referência ao Pai e
ao Filho; a consubstandalidade deriva do fato da geração. N ão parece aprofundar-se mais
no modo da unidade divina. Em Serap. 1 27 (PG 26,593) diz-se além disso que o E spírito
Santo é consubstanciai ao Pai e ao Filho.
79. Syn. 52,1 (275); HANSON, op. dL, 441.
80. Cf. HANSON, op. d t, 441; H . PIETRAS, Lhinità di D io in Atanasio di Alexan­
dria. Una descrizione dinamita delia Trinità. Rassegna di Teologia 32 (1991) 558-581, esp.
565.567.572.
81. Assim viu bem W. PANNENBERG, Teologiasistemática, Madri, 1992,1,296 (298).

205
VISÃO HISTÓRICA

Há uma só forma da divindade (elôos Ttjç OeÓTtyroç) que também está no


Logos. Um só é Deus Pai, que também se faz presente no Filho e que está
Mmhém no Pneuma, pois em todas as coisas opera mediante o Logos nele
(Espírito). Assim confessamos que Deus é um só na Trindade82.

Exceto umas poucas menções como as que acabamos de recordar, o


ensinamento de Atanásio sobre o Espírito Santo encontra-se nas cartas a
Serapião. Nessas cartas, ao desenvolver a doutrina sobre o Espírito Santo,
completa-se também o ensinamento sobre a Trindade. C om efeito, o Es­
pírito, que é de Deus e não criatura83, pertence à Trindade ima, eterna,
i m u t á v e l . . . 84. É ela o único D eus85. A unidade de operação da Trindade,

com diferenciação das pessoas, mostra que os três são inseparáveis. Essa
miiHade de ação dá-se na santificação e na criação86. O mais interessante
que nos diz do Espírito Santo é sua pertença ao Filho, de tal maneira que
se estabelecem relações paralelas: Pai-Filho, Filho-E spírito Santo87. O
Espírito é do Filho como o Filho é de Deus. Em algumas ocasiões diz-se
que é “próprio” (íSiov) do Filho ou do Logos, mas também de Deus (ou
do Pai)88. É consubstanciai (óptcxrikrujv) ao Pai e ao Verbo89, embora nunca

82. C. Ar. m IS (353); sobre o Pai no Filho também H l 16 (356-357). Cf. também
TTT3-5 (328-332) embora sem menção do E spírito Santo. D e novo, sem menção do Espí­
rito Santo, fala da Trindade eterna em 1 17.18 (48-49).
83. Cf. Serap. 13ss (PG 26,536ss), sobretudo 1 21-27 (580-593); o Espírito escruta as
profundezas de Deus (IC o r 2,11), santifica e não é santificado, vivifica e não recebe a vida,
é unção, diviniza etc.; repetem-se os argum entos em Serap. UI (Ibid., 525-637).
84. C f entre outros lugares, Serap. 1 28-30 (596-600); U I 6 (633); IV 7-12 (648; 652-
653) etc.
85. Serap. I 14 (565): “... uma é a graça que, originada do Pai, por intermédio do
Filho, se cum pre no Espírito Santo. H á uma só divindade, um só Deus que está por cima
de todos, e em todos” (cf. E f 4,6); 116 (569): “Um a é a divindade e a fé da santa 'Irindade”;
cf. IV 7 (648) etc.
86. Assim prova-se a divindade do Espírito; cf. a nota anterior e Serap. I 12.20.23.28.30-
31 (561.577.584.596.601); III 5 (632), repetem -se com fieqüência as proposições do Pai
mediante o Filho, no Espírito Santo. Sobre o Espírito Santificador, cf. tamhém DÍDIM O o
Cego, De Sp. sana. 5,19; 53,231 (SCh 386,160; 352).
87. Cf. Serap. 1 20 (576-580) a unidade com o Filho como esse com o Pai; 121 (580),
sobre a 7 4nkns do Espírito em relação ao Filho, como esse em relação ao Pai; III
1 (525) a “propriedade” do Filho a respeito do Pai, como a do Espírito a respeito do Filho;
o Espírito Santo é imagem do Filho, 1 20; 1 24; IV 3 (577.588.641).
8 8 .1 25.32 (589-605) é próprio do Logos e da divindade do Pai, IV 4 (641); próprio
da substância do Verbo, e também próprio de Deus, não é estranho à substância e à divin­
dade do Filho.
89. Cf. Serap. 1 27 (593).

206
A CRISE ARIANA E O CONCÍLIO DE NICÉIA. A LUTA ANTIARIANA NO SÉCULO IV

chegue a dizer diretamente que é Deus90. 0 Espírito é de Deus, dado pelo


Pai mediante o Filho:
O Espírito é dado e enviado da parte do Filho, e também ele é um, e ruo
muitos... Se o Filho, Verbo vivente, é um, assim uma deve ser sua energia
vivente, perfeita e plena, santificadora e iluminadora, que é seu dom. Diz-se
que procede do (èk) Pai (cf. Jo 15,26) porque brilha, é enviada e é dada da
parte (irapà) do Logos, o qual é, como confessamos, do Pai91.

Como já observamos a propósito das relações entre o Pai e o Filho,


tampouco há solução especulativa no que se refere à união do Espírito com
as duas primeiras pessoas, sua "processão” etc. Mas sem dúvida já encontra­
mos nessas cartas um notável desenvolvimento da pneumatologia, fundada
na dara afirmação de que o Espírito Santo é Deus, consubstanciai ao Pai e
ao Filho, e como tal pertencente à Trindade una e indivisível. Sua atuação
salvadora junto ao Pai e ao Filho é a prova definitiva de sua divindade.

HILÁRIO DE POITIERS

O ponto de partida de Hilário (morto em 367) em sua reflexão trinitária


é a fórmula batismal de M t 28,19. Dela parte para afirm ar a unidade divina
que tem no Pai sua fonte, e também a Trindade (term o que não usa com
muita freqüênda):
Mandou batizar em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, isto é, na
confissão do autor, do unigénito e do dom. Um só é o autor de todas as coisas, pois
um só é Deus Pai do qual tudoprocede. Eumsó éo Senbor nossoJaus Cristo, por meio
do qual tudofoifeito (ICor 8,6). E um só Espúito, dom em todos... Nada ficará
faltando em uma perfeição tão grande, na qual no Pai, no Filho e no Espírito se
acham a infinitude no eterno, a revelação na imagem, o gozo no dom92.

Os “três” aparecem nessa passagem fundamental brevemente carac­


terizados. O Pai é antes de tudo o "autor”, do qual tudo provém. Repete-
se com m uita fireqüência esse term o. A ele corresponde especialmente o

90. Mas em Serap. I 31 (601) diz-se que é reconhecido como Deus (OeoXoyoú^evov)
junto com o Logos em 128 (596) usa-se o mesmo term o com referência aos três da Trindade.
91. Serap. I 20 (580); cf. I 22 (581).
92. Trin. II 1 (CCL 62.38).

207
VISÃO HISTÓ RICA

ser infinito, eterno; nele está, em últim o termo, o poder. O Filho é carac­
terizado como imagem; é a revelação perfeita do Pai. E freqüente em Hilário
essa denominação, junto com outras semelhantes (forma, figura do Pai)93.
O Espírito Santo é caracterizado desde o início como dom. Voltaremos a
isso no final destas páginas.
O Filho, palavra do Pai, é o verbo consistente, não é um flatus voeis,
mas é real, tem em si um a verdadeira subsistência: “Esse Verbo é uma
realidade, não um som; uma substância, não uma simples expressão; é Deus,
não um vazio”94. Precisamente porque Hilário quer m anter a verdadeira
consistência do Filho, não considera suficientes as metáforas, tradicionais
desde 'Ièrtuliano, do rio e do raio de sol9S. Ao contrário, a luz que provém
da luz é a comparação preferida para assegurar a verdadeira subsistência
do Filho e ao mesmo tempo sua igualdade com o Pai de que nasceu96.
D iante dos arianos, que falam de “pai” e de “filho” sem dar a esses
nomes da Escritura seu autêntico valor, Hilário insiste em que refletem a
realidade. O Pai é Pai e o Filho é Filho, de maneira real, ainda que de
modo distinto do que ocorre na paternidade humana. Há entre os dois
uma unidade de natureza fundada em que o Pai gerou o Filho. Nosso
autor vê expressa a distinção dos dois em diversas passagens bíblicas, em
particular IC or 8,6, que segundo H ilário fala do “Deus ex quo” e do “Deus
per quem”. Essa distinção lhe servirá para ver em ação o Pai e o Filho, com
funções diferenciadas, na criação do mundo e do homem segundo G n
1,1ss97. Mas na criação mesma mostra-se ao mesmo tem po a unidade da
substância, porque o Pai e o Filho criam juntos o homem à imagem e
semelhança “nossa” (cf. G n 1,26), isto é, dos dois conjuntamente98. A ge­
ração é assim o fundamento da unidade do Pai e do Filho, ainda que Hilário,
como antes dele já fazia Ireneu, escude-se em Is 53,8 (generationem eiusquis
enarrabitT) para evitar especulações de como se realiza essa geração99.

93. Ibid., I I 8 (45); Dl 23 (95);VH 37 (304-305) etc. N a mediação criadora e também


na salvação, começando pelas teofanias do Antigo lèstam ento, o Filho, com freqüênda
chamado Verbo, revela o Pai,
94. Ibid., H 15 (53); cf. VH 11 (270-271).
95. Ibid.,1X37; cf. San HILÁRIO de Poitíers,!« Trinidad(ed. L. LADARIA), M adrid,
1986,463s sobre o uso dessas metáforas por outros autores.
96. Cf. Trm V I 12 (209-210); VH 29 (296-297).
97. Ibid., IV 16-22 (117-125); V 4-10 (154-160).
98. Ibid., IV 18-19 (121-122); V 8-9 (158-159).
99. Ibid., H 10-11 (47-49); m 17 (88-89). Também V I 16 (214-215); IX 26 (399-
400); em X II8 (584-585) explica como não há de se entender em sentido antropomórfico
demasiado crasso o “útero” do SI 109[108],3.

208
A C RISE ARIANA E O CONCÍLIO DE NICÉIA. A LUTA ANT1ARIANA N O SÉCULO IV

Porém, sem descer a detalhes excessivos, Hilário mostra te r uma idéia


coerente da paternidade e da geração. O Filho não é criatura, recebeu a
natureza que lhe dá o Pai, porque geração em Deus significa que o que
gera dá tudo o que tem:
Segundo as leis da natureza, não pode ser tudo aquilo que é só uma porção.
O que procede do perfeito é perfeito, porque o que tem tudo lhe deu tudo.
Não se deve pensar que não deu porque ainda tem, nem também que não
tenha porque deu1“ .

A geração, portanto, não significa nem ruptura nem diminuição por parte
do Pai. A razão disso está na simplicidade da natureza divina, que pode ser
comunicada na geração inefável de um modo total. O Pai pode dar tudo o que
tem sem ficar por isso privado do que dá. Tudo isso é devido à idéia da vida
divina (cf. Jo 5,26) que em sua plenitude exclui toda limitação:
... como o Pai tem a vida em si mesmo, deu ao Filho ter a vida em si mesmo.
Com isso [Jesus] quis indicar a unidade da natureza (;mitos naturae) que pos­
sui em virtude do mistério de seu nascimento. Ao filar daquilo que o Pai tem,
quis dizer que tem em si o Pai mesmo; porque Deus não existe, como os
homens, como um composto de elementos, de tal modo que haja uma dife­
rença entre o que possui e ele mesmo que o possui, senão que tudo o que ele
é, é vida, isto é, natureza perfeita, completa, infinita; não formada por ele­
mentos díspares, senão que ela mesma vive em todo seu ser. E essa natureza
se dá como é possuída; e ainda que isso signifique o nascimento daquele a que
foi dada, não implica uma diversidade na substância, porque a natureza se dá
como é possuída (“cum talis data est qualis et habetur’’)1 1001.

Deus, sumamente simples, pode dar-se inteiramente; m ais ainda, só


pode dar-se desse m odo. Assim, a idéia mesma da geração divina, para
H ilário, elimina de raiz todo subordinacionismo. E contraditória a comu­
nicação parcial da natureza divina. Deus, completamente simples, é por
isso mesmo inteiram ente Pai, é Pai em tudo o que é. As reflexões de Hilário
em tom o da paternidade divina constituem uma das mais belas contribui­
ções à doutrina cristã de Deus.

100. Ibid., II 8 (46). H ilário reage aqui, com o se vê, contra a idéia da portio de
Tertuliano.
101. Ibid., V Ü I43 (356); sobre a definição de Deus como vida e to tal autopossessão,
e portanto doação plena, cf. também Ibid., V II 27 (294); Syn. 19 (P L 10, 495) entre
outras passagens. Cf. LADARIA, D ios Padre en H ilário de Poitiers, Estlrin 24 (1990)
443-479, esp. 454s.

209
VISÃO HISTÓ RICA

Deus em todo momento sabe ser somente amor, somente Pai. O que ama não
tem inveja e o que é Pai é Pai por completo... O Pai é Pai em tudo quanto nele
existe, possui-se inteiramente naquele para o qual mio é Pai somente em parte102.301
De maneira incompreensível, inenarrável, antes de todo tempo e toda idade,
procriou o Unigénito da substância ingênita que nele há, e deu a esse Filho
nascido dele, por meio de seu amor e de sua potência, tudo o que Deus é10}.

Por duas vezes aparece a idéia do amor unida à de autocomunicação


que o Pai faz ao Filho de seu ser divino. Deus é inteiramente Pai, não só
em parte. Tudo nele é doação, amor, o que exclui toda inveja de comunicar
ao outro tudo o que é e tem. N ão teria sentido que, podendo dar-se intei­
ramente, não o fizesse. O Pai é assim capacidade infinita de comunicação,
capacidade infinita de amor. P or isso o Filho tem de ser Deus inteiram en­
te, em tudo igual ao Pai na natureza divina, exceto na paternidade. A na­
tureza divina que o Pai possui originariamente é possuída igualmente pelo
Filho, em bora como recebida. Mas sem degeneração alguma, porque nada
alheio se introduz na geração. A natureza divina mantém-se invariável104.
Desde esse ponto de partida compreende-se a interpretação hilariana de
Jo 14,28, “o Pai é maior do que eu”. E maior somente enquanto dá, en­
quanto é princípio. Porém o Filho, enquanto recebe tudo, não é m enor105.
E essa doação total do Pai não é só a da geração eterna: é também a da
perfeita glorificação da humanidade de Jesus no momento da ressurreição,
em virtude da qual o Filho eterno de Deus faz-se plenamente Filho tam ­
bém na humanidade que assumiu106.

102. Trin IX 61 (440). Também I I 6 (43): “Pater tantum est”. A exclusão da inveja em
Deus na geração do Filho também em VI 21 (220) Cf. G REGÓRIO N azianzeno, Or.
25,16 (SCh 284, 194-196).
103. Trin m 3 (74).
104. Ibid., IX 36 (410); V ffl 41 (354).
105. Ibid., IX 54 (433) “Portanto, se por sua autoridade de doador o Pai é maior,
acaso pela confissão do dom o Filho é menor? Certam ente o que dá é maior, mas já não
é menor aquele a quem se concede ser uma só coisa com ele”; IX 56 (435-436): “O Pai é
maior enquanto é Pai; porém o Filho não é menor enquanto é Filho”. Veremos essa mesma
interpretação em outros autores. O utra interpretação do difícil texto na época foi que o
Filho era m enor do que o Pai enquanto encarnado. £ uma interpretação que oferece menos
interesse teológico. Cf. SIM O N E 'T U , Giovanni 14,28 nella controvérsia ariana em
Kyriakon, FestscbriftJ. Quasten, M ünster 1970,1, 151-161.
106. Trin IX 54 (433): “Assim pois o Pai é m aior que o Filho. E certam ente é m aior
porque lhe dá ser tudo o que ele mesmo é, e lhe concede ser a imagem dele m esmo... e
tendo nascido em sua glória C risto segundo o espírito (segundo a divindade) concede de
novo a Jesus C risto estar em sua glória como Deus segundo a cam e depois de ter m orrido;
cf. também IX 56 (436).

210
A CRISE ARIANA E O C O N C ÍU O DE NICÉIA. A LUTA ANTIARIANA NO SÉCULO IV

Como a divindade que o Filho recebe é só do Pai, não é um segundo


Deus junto dele. O Pai e o Filho são uma só coisa (cf. Jo 10,30), porque o
uno vem do uno107. Mas ainda não encontramos uma explicação técnica
para o bomoousios. Dizer que o Filho é consubstanciai ao Pai, equivale para
Hilário a dizer que “Deus é Deus”, a afirmar que o Filho nasceu, não é
uma divisão do Deus ingênito, unigénito em tudo igual ao Pai, que sua
essência não é dessemelhante108. Fala em outros lugares de igualdade de
natureza109. A unidade do Pai e do Filho não é só de concórdia ou de
vontade, mas de natureza, de honra, de poder110. Já aludimos ao trabalho
de mediação que H ilário efetuou com os “homoiousianos”. Em sua inter­
pretação teológica do bomoousios tende a identificar a semelhança da natu­
reza com igualdade dela1" , a única natureza divina do Pai e do Filho.
H ilário não vai mais além na explicação dos planos em que se deve
buscar a unidade e a diversidade em Deus. A interpretação de Jo 10,30, na
linha que já conhecemos de Tèrtuliano, ajuda a distinguir a natureza co­
mum das pessoas112; mas esse vocabulário ainda não é usado de modo coe­
rente e com rigor técnico113.
A concepção da paternidade de Deus que expusemos implica que a
geração do Filho é etema. D o contrário, Deus não seria sempre Pai nem
só Pai. O Filho recebeu seu nascimento da eternidade do Pai114. Como a
geração é etem a, D eus não é nem nunca foi solitário. H ilário insiste mui­
to, contra Sabélio, nessa característica115. Também Hilário se preocupa com
a reta interpretação de Pr 8,22ss: “O Senhor criou-me para o começo de
suas obras”, contra os arianos que se fundavam nessa passagem para fazer
do Filho uma criatura. Para H ilário não se trata só da criação da natureza
humana de Jesus, senão das aparências humanas ou de outro tipo, adotadas
pelo Filho desde o começo nas diversas epifanias do Antigo Testamento;
com elas inicia-se o caminho da salvação, que só com o nascimento huma­
no de Jesus pode chegar a seu cumprimento. Com uma clara diferença em
relação ao acontecim ento único e definitivo da encarnação, as teofanias

107. Ibid., V 11 (162).


108. Cf. Syn. 88 (PL 10, 540).
109. T riii VII 1 5 (276), aequalitas naturae que só o nascimento garante.
110. Ibid., V m 19 (330), e caps. seguintes.
111. C f Syn. 8 9 (541): “A semelhança verdadeira está na verdade da natureza. A
verdade da natureza e r a um e outro não se opõe ao bomoousion”.
112. C f Trin V I I 22-31 (286-298).
113. C f P. SMLTLDERS, La dextrme trinitaire desaint Hüavrt de Poitiers, Romae, 1944.
114. C f 7nn I V 6 (105).
115. Ibid., IV 1 7 (119-120); V ü 39 (307); VM 36 (349).

211
VISÃO HISTÓ RICA

significam já uma certa assunção por parte do Filho de uma realidade cria­
da. Por isso, segundo Hilário, já no Antigo Testamento aparece a Sabedo­
ria criada para as obras de Deus, isto é, para dar-se a conhecer aos homens
mediante as criaturas; essas “obras” teriam seu vértice na encarnação116.
Ainda que a teologia de H ilário sobre o Espírito Santo seja muito rica
no aspecto histórico salvífico, é pouco clara no trinitário. De qualquer
modo, fica bem estabelecido que o Espírito está unido ao Pai e ao Filho na
confissão, e que é Deus e não criatura117. Como vimos no texto com o qual
iniciamos estas linhas, o Espírito é caracterizado sobretudo como “dom ”.
E o dom da vida mesma de C risto ressuscitado comunicado aos homens.
H ilário apenas colocou os problemas dogmáticos acerca do Espírito que
Atanásio teve ocasião de abordar nas cartas a Serapião. M as é claro de
todas as maneiras que o Espírito não foi criado, embora não seja gerado.
É o Espírito de Deus e de C risto. Repete em diversas ocasiões, sem expli­
car o sentido da fórmula, que procede do Pai mediante o Filho118.
Com Atanásio e Hilário a fé expressa em Nicéia foi não só difundida
mas também aprofundada e esclarecida. Sua contribuição para a manuten­
ção da reta doutrina no Oriente e no Ocidente foi inestimável. Outros acon­
tecimentos contribuíram para uma decisiva perda de influência dos arianos
nos anos 361-381. A seguir, vamos referir-nos brevemente a eles.

OS ACONTECIMENTOS PRINCIPAIS
DOS ANOS 361-381

N o ano 361 m orre o im perador Constando. O imperador Juliano, o


Apóstata, precisamente por te r abandonado o cristianismo, segue uma
política mais liberal nas questões eclesiásticas. A p artir desse ano a contro­
vérsia ariana entra em nova fase, já preparada nos momentos imediata­
mente precedentes. Já em 361 mesmo, um concílio de Paris tinha falado na
legitimidade do uso do bomoousios, eliminando o sentido sabeliano. Em
362, Atanásio encontra-se de novo em sua sede de Alexandria. Um concí­
lio nesse mesmo ano passou para a história pela carta sinodal conhecida

116. Ibid., XH 35-50 (605-621).


117. Ibid., XH 55 (625).
118. Ibid., XII 54-57 (624-627); cf. LADARIA, El Esptritu Santo em Hilário..., esp.
293-308. Alguns textos de H ilário sobre o Espírito Santo oferecem contudo certa dificul­
dade, já que parecem negar a unidade de substancia do Espírito com o Pai e o Filho; assim
Syn. 32 (PL 10, 505A); ver LADARIA, op. cit., 312-319.

212
A CRISE ARIANA E O C O N C ÍLIO DE NICÉIA. A LUTA ANT1ARIANA N O SÉCULO IV

como “Tomos ad Antiochenos”, em cuja redação interveio decisivamente


Atanásio. Nela se esclarece que dizer “três hipóstases” não é necessaria­
mente ariano ou triteísta, e também que dizer “uma substância” ou ousía
não é necessariamente sabeliano. Ainda quando de si não traga nenhuma
contribuição positiva, esse esclarecimento terminológico elimina muitas di­
ficuldades e mal-entendidos. As três hipóstases não significam três deuses,
senão que na Trindade não há somente três nomes, mas três realmente exis­
tentes e subsistentes. Paralelamente, os defensores de uma só hipóstase na
divindade não queriam ser sabelianos e eliminar o Filho e o Espírito Santo,
mas esclareciam que ao procederem estes do Pai eram uma só ousía ou na­
tureza com ele“ 9. Uns e outros podiam ser reconhecidos como ortodoxos.
Preparava-se o caminho para sucessivas fórmulas que precisamente combi­
nariam essas duas afirmações que pareciam incompatíveis.
N o ano de 363, alguns bispos de Antioquia dirigem uma carta ao impe­
rador1120.
91 Explicam o bomoousios dizendo que o Filho foi gerado da ousía do Pai
e é semelhante a ele pela substância (bpoioç KaT’owríav). O termo ousia foi
introduzido para evitar a idéia da criação do Filho. Aceita-se o bomoousios,
ainda que a explicação que dele se dá seja de sentido “homoiousiano”. De
todos os modos não foi pouco que se aceitasse o termo niceno por parte de
alguns que havia pouco tempo, eram declaradamente filoarianos.
O imperador Valente, a partir de 369, tom a a ser favorável aos aria­
nos. M as com essa política, na realidade, força os orientais homoousianos
a aceitar o bomoousios como condição indispensável para ter algum apoio
no Ocidente. A p artir de 370, Basílio de Cesaréia encontra-se imerso nessa
batalha. Apesar do apoio de Valente, esse renascimento do arianismo dura
pouco. Abre-se o caminho para o triunfo da fé nicena por obra dos
capadócios.
Antes de passar ao estudo destes últimos, aduzimos alguns textos do
papa Dâmaso, escritos por volta de 374, que podem dar idéia do estado da
teologia trinitária naquele momento: confessa-se a Trindade, que possui
uma só majestade, divindade, ouaía; mas ao mesmo tem po afirmam-se
três pessoas que sempre permanecem, não diminuem nem se reintegram
na unidade. O Verbo não é só proferido mas nascido de Deus, é Deus
verdadeiro de D eus verdadeiro, gerado, luz verdadeira da verdadeira luz;
não é menor do que o Pai, .é esplendor, imagem; quem o vê vê o Pai (cf. Jo 14,9).
O Espírito Santo é unius usiae, unius virtutis com Deus Pai e com Nosso

119. Cf. Tomus ad Antbiocbenos, 5-6 (PG 26, 800-802).


120. C f SIM O N E T O , La crisi ariana..., 374.

213
VISÃO HISTÓRICA

Senhor Jesus C risto. Não pode ser separado do Pai e do Filho, perfeito em
tudo, em poder, honra, majestade, divindade; nós o adoramos juntamente
com o Pai e o Filho (Cf. DS 144-147)121. Já se fala das “três pessoas” e da
unidade delas.
A questão do Espírito Santo começou a colocar-se explicitamente por
volta de 360. Atanásio, como vimos, já lhe dera atenção122. A afirmação da
divindade do E spírito Santo e a discussão em tom o da fórmula trinitária
estão em íntima relação. O tema do Espírito coloca-se devido às doutrinas
de M acedônio, expulso de Contantinopla em 360, que afirmava que o
Espírito Santo é servidor de Deus, como os anjos, não bomoousios ao Pai.
Dos macedonianos distinguem-se, em um primeiro tem po, os “pneuma-
tômacos” (inimigos do Espírito Santo)123, mas os dois grupos terminam
por se identificar. Tanto na questão da divindade do Espírito como na
fórmula trinitária de uma essência e três hipóstases será fundamental a
contribuição dos capadócios. Com eles iniciaremos o próximo capítulo.

121. Sobre a procedência desses escritos de Dâmaso, c£ a introdução ao texto em


DS, 144-147. É possível que algumas das afirmações sobre o Espírito Santo sejam resposta
a uma carta de Basílio.
122. SIM O N ETTI, op. d t , 362ss.; HANSON, op. r it, 738-748.
123. Cf. ATANÁSIO, Serap. I 32 (605), que usa o verbo pneumatomaxein; dos “pneu-
matômacos” fala BASÍLIO de Cesaréia De Sp. Sancto 11,27; 21,52 (SCh 17 bis, 340; 432).

214
8
Os Padres capadócios.
A formulação do dogma trinitário
nos concílios I e II de Constantinopla

Atanásio no Oriente e H ilário no Ocidente foram os grandes defen­


sores do dogma de Nicéia. M ostraram as incongruências da posição aria­
na, do ponto de vista tanto do verdadeiro sentido da paternidade de Deus
como da salvação que Deus oferece ao homem, a participação na filiação
divina de C risto. Mas, como pudemos observar, nem um nem outro
aprofundaram ainda a significação do bomoousios, nem deram uma solução
especulativa ao problema da unidade e da distinção pessoal em Deus. Essa
foi a tarefa assumida pelos capadócios, a quem coube também uma parte
muito fundamental no desenvolvimento da pneumatologia, em especial na
reflexão sobre a unidade do Espírito Santo com o Pai e o Filho na única
divindade. Esse é um ponto a que Hilário apenas se refere, mas que foi
objeto de atenção de Atanásio nas cartas a Serapião. Trataremos desses
dois problemas em nosso breve estudo do pensamento trinitário de Basflio
de Cesaréia, Gregório Nazianzeno e Gregório de Nissa.
Mas antes de entrar nesse estudo, e precisamente para poder entender
devidamente o pensamento desses Padres, devemos considerar brevemente o
desenvolvimento da doutrina ariana, naquele que é talvez seu representante
mais significativo na segunda metade do século I\^ Eunômio (morto depois
de 392). Viram-se obrigados a combatê-lo tanto Basflio como seu irmão
Gregório de Nissa, autores de vastos tratados Contra Eunomium. Por isso a
“Apologia”, escrita pouco depois de 360, é ponto obrigatório de referência
para entender o pensamento de seus ilustres adversários. A idéia fundamental
de Eunômio é a definição de Deus como o “ingênito”. Ser ingênito é o pró­
prio da substância de Deus. Não é difícil descobrir a intenção dessa afirmação:
toda a tradição afirmou que o Filho é gerado pelo Pai. Insistir na falta de
geração como o próprio e o específico de Deus significa negar a divindade do
Filho. Vejamos como constrói Eunômio sua argumentação:
215
VISÃO HISTÓ RICA

Confessamos um só Deus, ao mesmo tempo segundo a noção natural e segun­


do o ensinamento dos Padres. Não foi produzido nem por si mesmo nem por
outro, pois qualquer dessas hipóteses é igualmente impossível já que, segundo
a verdade, aquele que fez deve preexistir ao que é feito, e o que é produzido
deve ser segundo em relação ao que o produz. Não pode ser que uma coisa seja
anterior ou posterior a si mesma, nem que seja prévia a Deus... Se foi demons­
trado que Deus não existe antes dele mesmo, nem que nenhuma outra coisa
existe antes dele, senão que é ele mesmo antes de tudo, é que lhe corresponde
o ser ingênito. Ou melhor: que ele mesmo é a substância ingênita1.

N ão pode ser Deus o que vem de outro. N o momento em que a


teologia já tinha afirmado com clareza a geração eterna do Filho, Eunômio
empenha-se em sustentar de novo que tudo o que vem de outro é posterior
no tempo àquele do qual provém. Portanto, o Filho não pode ser Deus.
Deus é portanto o ingênito; não podemos usar esse term o segundo os
conceitos humanos. Chamar Deus ingênito não é uma privação, não é
tirar-lhe nada que previamente tivesse. Ele é em si mesmo a “substância
ingênita”2.3 Sendo ingênito, não pode gerar, não pode fazer partícipe nin­
guém de sua natureza que é, precisamente, ser ingênito. N ão cabe na subs­
tância divina nem diferenciação nem separação.
Por outra parte, ninguém poderá dizer que o Filho não é ménor do que
o Pai, um a vez que o próprio Filho assim se declarou (cf. Jo 14,28). Esse
agora é um dos pontos de apoio da argumentação ariana, ao qual a ortodoxia
nicena há de responder. O Filho é menor do que o Pai porque não é ingênito;
portanto não pode haver comunhão de substância entre os dois. N ão pode
ser ao mesmo tempo gerado e não-gerado. Uma vez que foi gerado, existe
antes de todas as coisas por decisão do Pai. O Filho não pôde ser gerado
quando já existia. Se não, teria existido como irijgênito antes de ser gerado.
Mas, nessa hipótese, que necessidade tinha de gèração? Portanto é impossí­
vel que o Filho exista antes de ser gerado. Mas, se a substância de Deus não
admite geração, o Filho há de ser uma criatura, certam ente superior às ou­
tras, o m inistro mais apto para cumprir a vontade dq PaP. .
Segundo Eunômio é absolutamente irracional negar que o Filho seja
criatura, ainda que não seja como as outras, criadas por meio dele. Tàm-

1. EU N Ô M IO , AjpoL 7 (SCh 305, 244s); cf. ibid., 8.9 (245s.250) pode-se ver sobre
essa questão B. SESBOUÉ; B. M EU N IER, Dieu, peut-il avoir un Fils? Le débat trrnitair* au
IVsiècky Paris, 1993, 147ss.
2. Cf. Apol. 8 (246s).
3. Ibid., 14-15 (260-264).

216
O S PADRES CAPADÓCIOS. A FORMULAÇÃO DO DOGMA TRINITÁRIO N O S C O N C ÍU O S I E II

bém ele chama “Deus” ao Filho, como já faziam os arianos do primeiro


momento, mas sabemos o significado que para eles tinha esse vocábulo. Se­
gundo Paulo, o Filho é imagem do Pai, mas essa imagem não é da substân­
cia, mas da atividade. Em sua mediação criadora, descobre-se todo o poder
do Pai4. Sobre o Espírito Santo Eunômio diz pouco: é o terceiro em ordem,
em dignidade e em natureza (âÇuópaTi kou Táfjei «ai rqv tjriknv). Não
pode ser o primeiro quanto à natureza, que é só o Pai, e tampouco o unigénito,
já que esse título corresponde ao Filhos. Bastam-nos esses pontos de refe­
rência para passar ao estudo do pensamento de S. Basílio de Cesaréia.

BASÍLIO DE CESARÉIA

Basílio (c. 330-377/379), o prim eiro dos capadócios, de alguma ma­


neira marcou a pauta da escola. Em seu Contra Eunômio respondeu ao
arianismo radical deste. O bispo de Cesaréia parte do arcano da divindade,
e portanto da impossibilidade de definir a substância divina, como Eunômio
pretendia fazer. Deus não pode ser definido, somente é conhecido pelo
Filho e pelo Espírito Santo4.6Pela Escritura sabemos que Jesus chama a si
mesmo de muitas maneiras: luz, pastor, vinha, caminho. Assim o faz para
indicar suas diferentes atividades e a variedade dos benefícios que nos faz.
Algo semelhante podemos dizer de Deus Pai: nós o chamamos ingênito,
mas também incorruptível7. A palavra “ingênito”, por conseguinte, não diz
tudo. lodos os nomes nos dão um conhecimento obscuro do que é Deus,
de seu modo de ser, de “como” é a divindade (õrnoç) mais do que do tò t i ,
seu ser mesmo. Chegamos à palavra “ingênito” na investigação do “como”
é Deus, não do “que” é; não constitui um a exceção a essa regra8.

4. Ibid., 22-24(278-284).
5. Ibid., 25 (284s); foi feito por vontade do Pai e pela energia do Filho.
6. Cf. C. Eun. I 14 (SC h 299,220). Cf. para o que segue, SESBOÜÉ; M EUNIER,
o p .rit., 163ss; sobre a teologia trinitária de Basílio: V. H . DRECOLL, Die Entmicklvngder
TrinitätsUbre des Basilius von Cäsaren, G öttingen, 1996; SESBOÜÉ, SamtBasiketkTrm hi,
Paris, 1998
7. C.Eun. 1 7 (SCh 299,188-192); cf. também DeSp. Sone. 8,17 (SCh 17bis, 302-304).
Pode-se ver nesses textos um a influência da doutrina origeneana das epihoiai, embora com
diferenças a respeito do Alexandrino; C f. A. ORBE, La Epinoia. Algunos preliminares histó­
ricos de la distinción kat'epinoian (En tomo a la filosofia de Leoncio Bizantino), Roma 1955; H .
S. SIEBEN, Vom Heil in d er vielen “Nam en C h risti”, TeoPbil 73 (1998) 1-28.
8. C.Eun. 1 15 (224s): “ingênito” não pode se r o nome da substância porque é nega­
tivo; ibid., 11 (210).

217
Por outra parte, os nomes que achamos na Escritura não são “ingê-
nito” e “gerado”, mas sim Pai e Filho. Levando adiante a idéia de Eunômio,
desaparece o vocabulário do Evangelho. Se Deus não é capaz de transm itir
sua natureza ao Filho que gera, o Pai e o Filho não são realmente tais, e
portanto as próprias palavras do Evangelho perdem seu valor. Se o Pai e o
Filho não têm a mesma natureza, não se entende como Jesus pode dizer,
por exemplo, que quem o vê vê o Pai (cf. Jo 12,45; 14,9)’. A semelhança do
Pai com o Filho não está, para Basílio, na atividade (como queria Eunômio),
mas em sua própria natureza divina. Se Deus Pai não tem forma nem fi­
gura, a semelhança não está na forma e na figura, só pode estar na substân­
cia mesma. N a igualdade do poder (cf. Jo 5,19; IC o r 1,24) manifesta-se a
identidade da substância9 10. D iante da objeção que. pode vir das palavras do
Senhor, “o Pai é maior do que eu” 0 o 14,28), Basílio segue a interpretação
já clássica dos representantes da ortodoxia nicena: o Pai é maior enquanto
é Pai, enquanto “causa” e “princípio” do Filho que dele foi gerado. M as o
fato de que o Filho realize as atividades de Deus mostra a identidade de
natureza11.
Mas depois dessa refutação, fundada no sentido dos textos bíblicos,
Basílio empreende outro tipo de argumentação especulativa que vai ter
grandes conseqüêndas na teologia trinitária posterior. Eunômio baseava
sua negação da divindade do Filho no fato de que ele é “gerado”, é um
“rebento” do Pai. Como gerado, não pode ter a mesma natureza do Pai
ingênito. Pois bem, responde Basílio, deve-se distinguir dois tipos de no­
mes, os absolutos e os relativos. Uns indicam o que uma coisa é em si
(homem, cavalo, boi), outros o que é em relação a outro (filho, escravo,
amigo). E evidente que “yéw ep,a, rebento, é da segunda categoria. N ão
nos diz o que o Filho é em si, mas sua relação com o Pai. Por isso não pode
significar a essência do Filho, como ingênito não pode significar a do Pai.
Os nomes Pai e Filho, de modo análogo, aplicam-se a Deus e aos homens,
sendo Deus e os homens tão diversos entre si. Isso é possível porque esses
nomes, enquanto relativos, não indicam o que são em si mesmos aqueles
aos quais se referem, mas somente a relação que os une. Por isso podem
ser aplicados a seres tão diversos, e ninguém pensa que quando aplicamos
os mesmos termos a Deus e aos homens afirmamos que Deus e os homens
têm a mesma substância. Do mesmo modo também 7 éwep.ot, rebento, é

9. Ibid., 1 17-18 (232-238).


10. Ibid., 1 23 (254).
11. Ibid., 124-25 (256-262): se não fossem iguais pela substância, a atividade do Filho
igual à do Pai seria desproporcionada segundo sua natureza.

218
OS PADRES CAPADÓCIOS. A FORMULAÇÃO DO DOGMA TRINITÁRIO NO S C O N C ÍU O S I E II

um relativo. Trata-se sempre de rebento “de” alguém. Se pensamos que


rebento nos diz a substancia de algo, resultaria que todos os rebentos são
consubstanciais12. As conseqüências que se deduzem são claras: os nomes
de pai e de filho e outros relativos não indicam a substancia, mas sim a
relação. Por isso podem ser aplicados a seres tão díspares. N ão há dúvida
de que Basílio foi brilhante nessa refutação. Não só destruiu o raciocí­
nio de Eunômio, mas também estabeleceu as bases para uma futura teolo­
gia trinitária, em que se combinará a unidade da essência divina com a
pluralidade das pessoas precisamente a partir da distinção entre os nomes
absolutos e os relativos.
Pai e Filho são, pois, nomes relativos, implicam-se mutuamente: não
há pai sem filho nem filho sem pai. Por isso, se Deus Pai é eterno, eterno
também deve ser seu Filho. Vimos que Eunômio não era capaz de pensar
no Pai como princípio do Filho sem dar a esse “princípio” um caráter
temporal. Basílio distingue a relação de procedência da sucessão cronoló­
gica. É o que tinha feito antes dele a tradição nicena. Portanto, o Filho
pode ser ao mesmo tempo etem o e gerado. Basílio, para afirm ar a eterni­
dade do Filho, usa um argumento baseado em Jo 1,2 : “Verbo era junto a
Deus”. O imperfeito indica um tempo que não começou; a partir desse
“era” não se pode chegar a um m om ento anterior em que o Filho não
existia13: “O Filho existe desde toda a eternidade, unido, enquanto gerado,
à inascibilidade do Pai”14.
Não tem sentido considerar o ingênito e o gerado, que dele recebeu
seu ser, como de natureza diversa. Não pode haver diferença de natureza
entre a luz ingênita e a gerada15. Por outra parte, a atividade do Filho cor­
responde à natureza de Deus, o unigénito é a imagem da substancia do
Pai16. Portanto, não se pode duvidar da divindade do Filho. Tampouco
o Espírito Santo pode ser considerado um a criatura17, e juntamente com o
Pai e o Filho encontra-se na tríade divina. Uma vez estabelecido isso, deve-

12. Ibid., I I 9-10 (SCh 305,36-40); cf. M. SIM O N ETTI, La crisi ariana nelIVsecolo,
Roma, 1975, 464.
13. Conf. C. Eun. II 12.14-15 (44s.50-60); H ilário já tinha usado o mesmo argumen­
to: Trrn. I I 13 (CCL 62, 50-51). Cf. L. F. LADARIA, D prologo di Giovanni nei primi libri
dei de Trinitate di Hario de Poitiers, in L. PADOVESE (ed.), A tti dei III convegno di Efesoy
Roma, 1994, 157-174, 166.
14. C.Eun. H 17 (66).
15. Ibid., H 27 (112-116).
16. Ibid., B 31 (128-132).
17. Ibid., DI (SCh 305, 144-174) Voltaremos depois ao tema do Espírito, desenvol­
vido sobretudo no De Spiritu soneto.

219
VISÃO HISTÓRICA

se dar um passo adiante: como é que esses três, sendo distintos, possuem
a mesma divindade.
As três pessoas têm uma só natureza, são um só Deus. O s três são
incríados. O Pai não deriva de nenhuma causa. O Filho brilha como o
único unigénito da luz ingênita. Por sua vez, o Filho não pode ser compre­
endido se não for pela iluminação do E spírito18. Não há três princípios
últim os, o único princípio é o Pai, que dá tudo sem receber em troca, e
sem perder nada; que cria mediante o Filho e aperfeiçoa a criação no Es­
pírito19. O Pai e o Filho (e podemos afirmar, por nossa conta, o Espírito
Santo), segundo as propriedades das pessoas (ttjv l&uyrnra twv irpooümwv),
são distintos, são um e um (eis kou eis), mas segundo a comunidade da
natureza (kcctòi 8è tò koivòv rq s <jrixre<i>s) são um só20. H á portanto uma
unidade na substância (oúoíct). Mas propriedades distintas não rompem a
comum substância:
Se se quer aceitar o que é verdade, isto é, que o gerado e o ingênito são pro­
priedades distintas consideradas na substância, que conduzem como pela mão
à noção clara e sem confusão de Pai e Filho, então se escapará do perigo da
impiedade e se guardará a coerência nos raciocínios. Pois as propriedades, como
características e formas consideradas na substância, fazem uma distinção entre
o que é comum graças às características que as particularizam, mas não rom­
pem o que há de comum na essência. Por exemplo, a divindade é comum, mas
a paternidade e a filiação são propriedades (iôuójuxTa). E da combinação dos
dois elementos, o comum e o próprio, opera-se em nós a compreensão da
verdade. Assim, quando ouvimos falar da luz ingênita pensamos no Pai, e se
ouvimos falar de um a luz gerada compreendemos a noção do Filho. Enquanto
luz e luz, não há entre eles nenhuma oposição, enquanto gerado e ingênito, são
considerados em contraposição. Tal é, com efeito, a natureza da propriedade,
a de mostrar a alteridade na identidade da essência (oòoía)21.

A doutrina das relações (de que não se fala aqui diretam ente) e das
propriedades, em que já tocamos22, juntam-se nessa passagem; na unidade

18. Cf. De Spjmc. 26,64 (SCh 17bis,476); Ep. 39,4 (Ed. CO U K TO N N E, I, 84).
19. Cf. De Spjanc., 16,38 (376-378); ver todo o contexto. Em outros lugares fala-se
do Pai como raiz, fonte etc.; cf. HANSON, op. cit., 693.
21. C. Eun. I I 28 (118-120); cf. também entre outros lugares, Ep 38,3 (182s); 210, 3-
4 (D 192s).
22. Cf. também C.Eun. I I 4 (118-120), sobre a comum substância da humanidade e
a distinção das propriedades pessoais de Pedro e Paulo.

220
OS PADRES CAPADÓCIOS. A FORMULAÇÃO DO DOGMA TRINITÁRIO NOS C O N C ÍU O SIE II

da essência divina, caracterizada como luz segundo a tradição (doutrina


que encontrou eco em Nicéia), o Pai e o Filho distinguem-se por suas
propriedades relativas. aA propriedade tem como conteúdo uma relação e
essa relação designa um sujeito divino como tal.”23
Vimos aqui distintas a ousta (com freqúência usa-se pbysis, pratica­
mente equivalente) e as propriedades. Entretanto, ainda não apareceu o
termo tnróoraaiç, como contraposto a o ú ria. Basílio chegará lentamente
à formulação que se imporá com o tempo como fórmula trinitária. Á acei­
tação depende de que se tenha uma idéia clara e justa sobre o homoousios.
Essa palavra mostra a propriedade das três hipóstases na perfeita seme­
lhança de natureza, porque sempre uma coisa é consubstanciai a algo (a
palavra mesma implica portanto a distinção)24. O Pai, o Filho e o Espírito
Santo existem cada um deles em uma hipóstase própria25. Falar de uma
hipóstase pode também ser suspeito de sabelianismo. Cada uma das pessoas
ou hipóstases, na unidade da essência divina, tem sua peculiaridade
irredutível: a paternidade, a filiação, a santificação:
A essência e a hipóstase têm entre si a mesma diferença que existe entre o
comum e o particular, como por exemplo a que há entre o animal em geral
e um homem determinado. Por essa razão, reconhecemos uma só essência na
divindade..., a hipóstase pelo contrário é particular; assim o reconhecemos para
ter uma idéia distinta e clara sobre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Com
efeito, se não consideramos as características definidas para cada um, a pater­
nidade, a filiação e a santificação, e assim não confessamos Deus segundo a
idéia comum do ser, é impossível para nós dar razão de nossa fé como se deve.
Portanto deve-se unir o que é particular com o que é comum, e confessar assim
a fé. O que é comum é a divindade; o que é particular é a paternidade; depois
é preciso reunir essas noções e dizer: creio em Deus Pai. O mesmo deve-se
fazer na confissão do Filho e também a respeito do Espírito Santo.26

23. SESBOÜÉ, Le Dieu du salta, Paris, 1994, 289.


24. Cf. Ep. 52,3 a 136); cf. SESBOÜE, op. cit., 298.
25. C f Ep. 125, 1 (II 32). Essa seria também para Basílio a opinião dos Padres de
N icéia. Referências à fórmula de uma ousta e três hipóstases encontram -se em M ário
V ICTO RIN O , Adv. Ar. I I 4 (SCh 68, 408; 450), que a transm ite como m odo de folar dos
gregos. Cf. SIM O N E T T I, op. cit., 513, que sinaliza como possível fonte Porfirio através
do de Trm, atribuído a Dídimo.
26. Ep 236, 6 (III, 53s); cf. 214, 3-4 (H 204s); cf. SESBOÜÉ, op. cit., 300; cf. SI-
M O N ETT1, op. d t., 515s; cf. também de Sp. sant 17,41 (394); 18,44-45 (402-408); o Pai,
o Filho e o Espírito Santo são um só Deus, não se podem “somar’’ para dar lugar ao
triteísm o. “N a Koivuma da divindade está a unidade”.

221
VISÃO HISTÓRICA

Este texto já nos introduziu na questão da divindade do Espírito San­


to, unido ao Pai e ao Filho nas fórmulas tradicionais. Basúio dedicou à
questão sua famosa obra de Spiritu Sancto, escrita em 375. Seguindo a linha
que já conhecemos de Atanásio, opõe-se aos “pneumatômacos” que afir­
mam que o Espírito Santo é uma criatura; ou então que dizem que não
pode ser objeto de adoração juntamente com o Pai e o Filho, já que esses
são adorados e glorificados “no” Espírito27. M as Basflio mostra que o Novo
Testamento aplica ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo as diversas prepo­
sições, “de”, “por”, “em”, de tal maneira que de seu uso não se pode dedu­
zir uma diferença de natureza entre os três28: nenhuma preposição é exclu­
sivamente de uma pessoa. De outra parte, o Espírito aparece unido ao Pai
e ao Filho na fé batismal; portanto não pode ser separado deles29. A união
com o Pai e o Filho na atuação exterior deles mostra também que não é
criatura30. Em concreto, o Espírito opera na criação: o Pai tudo cria me­
diante o Filho e o aperfeiçoa no Espírito Santo31. Há também unidade na
ação salvífica: o Espírito é o que reparte os dons, o Filho é quem o enviou,
e o Pai é a fonte e a causa de todo bem32. O Espírito é sobretudo capaz de
divinizar. Em Basílio encontra-se talvez o texto mais belo de toda a patrís­
tica sobre a divinização operada no crente pelo Espírito Santo:
Ele, iluminando aqueles que se purificaram de toda mancha, os faz espirituais
por meio da comunhão com ele. E como os corpos límpidos e transparentes,
quando um raio os fere, convertem-se eles mesmos em brilhantes e refletem
outro raio, assim as almas que levam o Espírito são iluminadas pelo Espírito;
fazem-se plenamente espirituais e transmitem aos outros sua graça. Daí o

27. Cf. de Spjanc.1-2 (250-262). Sobre esse tratado, H . DÖRRIES, De Spiritu Sancto.
Der Beitrag des Basilius zum Abschluss des trinitarischen Dogmas, G öttingen, 1956; E.
CAVALCANTI, Uesperienza di Dio nei Padri Greci. II trattato aSuüo Spirito Santo"di Basilio
de Cesareia, Roma, 1984; R LUISLAM PE, Spiritus vivificans, Grundzüge einer Theologie des
Hl. Geistes nach Basilius von Caesarea, M ünster, 1981; J.-R . POUCHET, Le traitéde S. Basile
sur le Saint Esprit. Milieu originei, RSR 84 (1996) 325-350; ID ., Le traité de S. Basile sur le
Saint Esprit. Stmcture etportée, ibid. 85 (1997) 11-40; Basilius von Casarea. Ü ber den H l.
G eist, Ü bersetzt und eingeleitet von H . J. Sieben, Fontes cbristiani 12, Freiburg-Basel-
W ien, 1993.
28. Cf., entre outras passagens, de Sp. Sanc. 4-5; 7-8 (268-284; 298-320).
29. Ibid., 10, 24.26 (332-336); 12,28 (344s); 27,67 (488).
30. Ibid., 25,53 (440s) koivcdvóv è o n tcjv évepyeutív: o Espírito é também difícil de
conhecer, como o são o Pai e o Filho (cf. Jo 14,17: o m undo não o pode receber porque não
o conhece).
31. Ibid., 16,38 (376-384) Basílio baseia-se sobretudo no SI 32[31],6.
32. Ibid., 16, 37 (376); 19.49 (418-422).

222
O S PADRES CAPADÓCIOS. A FORMULAÇÃO DO DOGMA TRINÍTÁRIO NOS CONCÍLIOS I E II

conhecimento das coisas futuras, a compreensão dos mistérios... a semelhan­


ça com Deus; o cumprimento dos desejos: converter-se em Deus3 345.

A grandeza do Espírito m ostra-se também em que atua em Jesus


mesmo34. Por todas essas razões Basílio insiste na inseparabilidade do Es­
pírito Santo do Pai e do Filho; serve-se do termo koinonia para falar dessa
união. Em um a passagem significativa fala da icoivwvía èk (frúrecos pela
qual o Espírito é nomeado juntamente com Deus33; e também da koinonia
da glória36. P or intermédio do Filho único está unido com o único Pai; é
próprio do Filho segundo a natureza37. Mais ainda, é "divino segundo a
natureza”38. Por isso, o Espírito há de ser glorificado com o Pai e o Filho39.
Entre o Pai, o Filho e o Espírito não há diferença de grau, porque a Escri­
tura não fala nunca de um prim eiro, segundo ou terceiro, e tampouco de
um, dois ou três, para não cair no politeísmo40. Porém em momento ne­
nhum Basílio chama ao Espírito diretam ente Deus, nem bomoousios com o
Pai e o Filho41, embora em alguma ocasião fale da Irindade consubstanciai42.
O Espírito Santo vem de Deus, como o alento de sua boca, ainda que não
se possa estender esse sopro divino de maneira antropom orfa; não é gera­
do nem criatura. Embora seja claro que pertence a Deus, é indizível seu
modo de existência43.

33. Ibid., 9,23 (328). Outros textos sobre os efeitos do espírito que mostram indire­
tamente seu caráter divino em 9,22 (322-326); 15,36 (370 -372).
34. Ibid., 19,49 (418-420); 12,28 (344) e sobretudo 16,39 (386).
35. Ibid., 13,30 (352). C f 16,38 (376) de novo sobre a Komovúx.
36. Ibid., 24,55 (450); koivüjvóv nas atividades, 22,53 (440) já citado, 27,68 (488).
37. Ibid., 18,45 (408) Basílio relaciona o Espírito Santo com o Filho, embora vaga­
m ente, também quanto à origem. Toda a potência do Filho move-se para a hipóstase de
Espírito Santo, como a do Pai para a geração do Filho; cf. C. Eun. II 32 (134); cf. também
I I 34 (142). Cf. SIM O N E 1T1, op. c it, 497s. A capacidade santificadora e a dignidade real
vão do Pai m ediante o Filho ao Espírito: de Sp. sane. 18.47 (412); como consolador leva o
caráter da bondade do consolador a quem vem, 18,46 (410).
38. de Spione. 23,54 (444) 6etov T f j <|nxrei E provavelmente a afirmação que mais
se aproxima da confissão direta da divindade do Espírito. Cf. também Ep. 159 (II 86s).
39. Cf. de Sp. Sane. 18,46 (410) 25 (456-464) etc.
40. Cf. Ibid., 18,44.47 (402.414); cf C. Eun. m 1-2 (146-152).
41. Cf. a carta 71 de BASÍLIO (1166s) em relação com a 58 de GREGÓRIO N a-
zianzeno (GCS 53,52-54). Sobre as razões dessa reserva, cf. SIEBEN, Basilius von Caesarea.
Überden Hl. Geist, 42ss. A explicação tradicional era tática: Basílio não queria exasperar os
adversários. Sieben pensa antes que Basílio não considerava ainda a divindade do E spírito
como parte do kerigma vinculante. Bastava afirm ar que não era criatura.
42. De Fide, 4 (PG 31,688), e também o Filho consubstanciai ao Pai e ao E spírito
Santo, Ep. 90, 2 (1 196). M ais referências em HANSON, op. d t., 818s.
43. De Sp.Sane. 18,46 (408) é inefável o tropos tes byparcheos do Espírito Santo.

223
VISÃ O HISTÓRICA

GREGÓRIO NAZIANZENO

Também G regório Nazianzeno (m orto por volta de 389/390) se põe


o problema da unidade divina e da distinção das hipóstases por suas pro­
priedades. Veremos prim eiro como caracteriza as pessoas, para depois passar
a alguns de seus textos-chave em tom o da unidade da divindade. Para
G regório, o Pai é sem princípio, não-gerado; o Filho é o gerado sem prin­
cípio; o Espírito Santo o que procede sem ser gerado44. Em uma formula­
ção semelhante, o Pai é o ingênito, o Filho, gerado, o Espírito Santo o que
procede do Pai (èk tou irotTpóç èKiTpeuópevov)4S.64A mudança mais no­
tável em relação ao que observamos em Basílio é a propriedade do Espírito
Santo, que o bispo de Cesaréia via na santificação, isto é, m ais em relação
conosco do que em relação com as outras duas pessoas. G regório, ao con­
trário, fundando-se em Jo 15,26, falou da “processão” do Espírito Santo
do Pai, para indicar a origem da terceira pessoa. Foi o prim eiro a usar essa
noção bíblica, que a partir desse momento se tom ará um term o técnico da
teologia trinitária. N esse proceder do Pai está a propriedade característica
do Espírito. Essa propriedade refere-se pois às relações ad intra, não à sua
atuação em nós. G regório acrescenta que o Espírito procede do Pai, mas
não como gerado; o ser gerado é o próprio do Filho44.
As três pessoas são eternas, não começaram nunca a existir, mas isso
não significa que sejam anarchoi, sem princípio47. O único que não tem
princípio é o Pai, enquanto o Filho foi gerado, e o Espírito Santo procede
do Pai. O Pai nunca começou a ser Pai, porque sempre teve o Filho. O
Filho, pela mesma razão, nunca começou a ser nem a ser Filho. Ser gerado
e existir desde o começo não são coisas contraditórias48. E ntre o que ge­
ra e o que é gerado, há identidade quanto à natureza; não há diferença na
ouaía. A noção mesma de geração obriga a pensar assim. P or outra parte,

44. Cf. Or. 30,19 (SCh 250,266).


45. Or. 29, 2 (180); cf. 39,12 (SCh 358,174); 25,16 ( SCh 284-196).
46. Or. 31,8 (290): "... enquanto procede do Pai não é criatura, enquanto não foi
gerado, não é Filho... Se me perguntas: que é a processão? Dize-me o que é a condição de
ingênito própria do Pai, e eu te explicarei... o que é a geração do Filho e a processão do
Espírito...”. Usar determinadas fórmulas não significa que se compreenda exatamente o
que com elas se quer indicar.
47. Cf. Or. 29,3 (182); 25,15 (SCh 284,194).
48. Or. 29,5-6 (184-188). Também 31,4 (280-282) sobre a eternidade do Espírito. A
geração do Filho não é em função da criação: seria uma ofensa a deus Pensar que tivesse
que gerar o Filho para poder realizar a criação. Or. 23.6 (SCh 270,294) cf. também 23,7
(294-296).

224
O S PADRES CAPADÓCIOS. A FORMULAÇÃO D O DOGMA TRINITÁRIO N O S CONCÍLIOS IE II

o Pai é o único ingênito, e nem por isso é menor a honra do Filho por ser o
Filho de tal Pai49.
Gregório, como Basílio, recorre à categoria da relação para fundar a
unidade da natureza do Pai e do Filho; esses dois term os não definem a es­
sência, nem tampouco uma ação (èvép7 eux), mas precisamente a relação
que há entre ambos. Os nomes de Pai e de Filho indicam a opo<|njía, a
natureza igual dos dois50.
O Filho é o unigénito, não só porque de fato é único, mas porque é
a única geração, já que em Deus nada se repete; o Filho é a “definição
breve da natureza do Pai”51. Diversas são as denominações do Filho: sabe­
doria, potência, verdade, selo do Pai, imagem, luz, vida etc. Todas fondam-
se na consubstandalidade com o Pai52.*35P or outra parte, também o Espírito
é Deus e é bomoousios (com o Pai e o Filho)55. G regório não vacila em
aplicar-lhe esse termo.
O discurso 31 sobre o Espírito Santo (discurso teológico 5) oferece
alguns dos textos sintéticos mais ricos da teologia trinitária de Gregório, que
afirma a igualdade das três pessoas em oposição a todo subordinarionismo:
Que feita ao Espírito... para ser Filho?... Por outra parte, tampouco ao Filho
feita nada para ser Pai, porque a condição de Filho não significa uma carên­
cia, e não por essa razão é o Pai... Essas palavras não indicam uma carência
nem uma distinção segundo a essência (tcarà rrjv owriav), enquanto o não
ter sido gerado, o ter sido gerado e o proceder indicam, o primeiro o Pai, o
segundo o Filho, e o terceiro aquele que se chama precisamente o Espírito
Santo — de maneira que se conserve sem confusão (âovyxuT0V) a distinção
das três hipóstases em uma única natureza (év rrj pia «jnkrei) e na única
dignidade da divindade. 0 Filho não é o Pai, pois o Pai é um só, porém é a
mesma coisa que o Pai; nem o Espírito é o Filho pelo feto de provir de Deus,
porque um só é o Unigénito; porém é a mesma coisa que o Filho. Os três são

49. Or. 29, 3.5.6.10-12 (SCh 250, 182.184.196-200). E também 30,20 (266-268).
50. Or. 29,16 (210).
51. Or. 30,20 (268).
52. Cf. Ib id .
53. Or. 31,10 (292) cf. também Or. 12, 6 (SCh 405, 360). G regório parece fazer
suas as críticas a Basílio (cf. nota 41) p o r não te r ousado um a form ulação mais clara; cf.
C. M O R E SC H IN I, Dios Padre en la especulación de G regorio N acianceno, in Dios es
Padre, Salamanca, 1991,179-202, aqui 192. Cf. também D ID IM O o C ego, De Sp. Sane.
17,81; 29, 130s; 32, 145; 53, 231 (SC h 386, 218; 266; 280; 352), o E spírito é D eus, e
consubstanciai a o Pai e ao Filho (deve-se saber que não possuím os o texto original dessa
obra de D ídim o).

225
VISÃO HISTÓ RICA

um só ser quanto à divindade, e o único ser são três quanto às propriedades


(êv ia Tpía fteónyrí kou tò êv Tpía Tais ISumiaiv)54.

Gregário insiste fortemente, como se vê, na unidade da essência divina,


possuída pelos três: os três são a divindade única55. Mas fica igualmente clara
a distinção das hipóstases, caracterizadas por suas propriedades. A unidade
e a trindade em Deus devem ser afirmadas ao mesmo tempo. Aparece ante
nossos olhos um ou outro aspecto segundo o ponto de viste:
Quando dirigimos o olhar para a divindade (ttjv rneórexa) e para a causa
primeira e a “monarquia”, surge para nós a unidade; quando olhamos aqueles
em que se encontra a natureza divina, aqueles que provêm fora do tempo, e
com igual honra da causa primeira, então são três os que adoramos56.

“Três diversas propriedades, uma só divindade não dividida na glória,


na honra, na essência e na realeza (basiléia).”57 Esse pode ser o resumo da
teologia trinitária do Nazianzeno. Em G regório é muito forte, mais do
que em Basílio, a insistência na unidade divina. A unidade da essência
enquanto possuída pelos três parece mais acentuada do que a unidade que
provém do Pai. Porém essa outra perspectiva não está ausente. N em falta
tampouco a preocupação de evitar a confusão das hipóstases. Assim não lhe
satisfazem as metáforas tradicionais do sol e da fonte, porque pensa que a
subsistência do Filho e do Espírito não ficam suficientemente garantidas58.
Gregório recolheu em um texto magistral muitas das atividades e ope­
rações do Espírito Santo, segundo a Sagrada Escritura, como prova de seu
caráter divino:

54. Or. 31,9 (290-292).


55. Assim em Or. 39,11 (SCh 358, 170-172): “Três pelas individualidades ou pelas
hipóstases... mas uma com relação à substância, tal é a divindade. Posto que as três estão
divididas sem divisão, se posso expressar-me assim, e estão unidas na divisão. Com efeito,
a divindade é uma em três, e as três são um nos quais a divindade reside, ou, para falar de
modo mais preciso, que são a divindade”. Cf. sobre essa acentuação H A N SO N , op. c it,
699s; e SIM O N ETTI, op. cit., 521. Mas também se diz que o Pai é o único princípio, e que
em virtude desse princípio único há um só Deus. Cf. Or. 20,7 (SCh 270,72); tam bém Or.
25,15-16 (SCh 284,194-196); 29,2 (SCh 250,180); 42,15 (SCh 384,82), a unidade dos três
é o Pai que a faz, para que estejam não misturados, senão unidos.
56. Or. 31, 14 (302-304); também 29,2 (178): “... nós adoramos a m onarquia, não
uma monarquia delimitada por uma só pessoa... senão um a monarquia constituída pela
mesma dignidade e natureza, concórdia de pensamento, identidade de m ovim ento e retor­
no à unidade dos que dela vêm ...”. Porém em Or. 25,15 (SCh 284,194), a “monarquia”
parece referir-se aos três.
57. Cf. Or. 31,28.
58. Cf. Or.31,31-32 (338-340).

226
OS PADRES CAPADÓCIOS. A FORMULAÇÃO DO DOGMA TRINITÁRIO NOS CONCÍLIOS I E I I

Por outra parte, assusto-me ao considerar a riqueza dos títulos e de todos os


nomes ultrajados pelos que atacam o Espírito! E chamado Espírito de Deus
(ICor 2,11), Espírito de Cristo (Rm 8,9) mente de Cristo (ICor 2,16), Espí­
rito do Senhor (Sb 1,7; 2Cor 3,17), Senhor mesmo (2Cor 3,17), Espírito de
adoção ( Rm 8,15), de verdade Qo 14,17; 15,26), de liberdade (2Cor 3,17),
Espírito de sabedoria, de inteligência, de conselho, de força, de ciência, de
piedade, de temor de Deus (Is 11,2); porque ele criou todas essas coisas; enche
todas as coisas, enche o mundo (Sb 1,7), com sua substância, mas não pode ser
contido pelo mundo quanto à sua potência; é bom (SI 142[141],10), reto (SI
50[49],122), guia (SI 50[49],14); santifica (ICor 6,11) por natureza, não por
disposição de outro, e não é santificado; mede e não é medido (Jo 3,34); dele se
participa (Rm 8,15) mas ele não participa; preenche (Sb 1,7) não é preenchido;
contém (Sb 1,7), não é contido; é recebido por herança (Ef 1,13-14), é glorifi­
cado (ICor 6,19-20); é contado com [o Pai e o Filho] (Mt 28,29); dá lugar a
uma ameaça (Mc 3,29); é o dedo de Deus (Lc 11,20); é um fogo (At 2,3), como
Deus (Dt 4,24), para mostrar — penso eu — que lhe é consubstanciai.
E o Espírito que cria (SI 103 [102],30), que recria o mundo pelo batismo ([o
3,5; c£ ICor 12,13), por meio da ressurreição (Ez 37,5-6, 9-10.14). É o Es­
pírito que conhece todas as coisas (ICor 2,10), que ensina Qo 14,26), que
sopra onde quer e como quer Qo 3,8), que guia (SI 142[141],10), que fida (At
13,2), que envia (At 13,4), que põe à parte (At 13,2), que se irrita Q64,9), que
é tentado (At 5,9), que revela Qo 16,13), ilumina Qo 14,26), que vivifica Qo
6,63; ICor 3,6) — ou melhor, é a própria luz e a própria vida — que faz de
nós templos (ICor 3,16; 6,19); que nos diviniza (ICor 3,16; 6,19), que nos faz
perfeitos Qo 16,13), de modo que precede ao batismo (At 10,47) e é buscado
depois do batismo. Opera tudo o que Deus opera (ICor 12,4-6.11), divi-
de-se em línguas de fogo (At 2,3), distribui os carismas (ICor 12,11), faz
apóstolos, profetas, evangelistas, doutores (Ef 4,11). E inteligente, múltiplo,
daro, penetrante, irresistível, imaculado (Sb 7,22). Isso quer dizer que é a
sabedoria suprema, o que opera de muitas maneiras (cf. ICor 12,11), o que
ilumina e penetra todas as coisas (Sb 7,24), o ser livre e imutável (Sb 7,23).
Ele tudo pode, vigia todas as coisas, penetra todos os espíritos, os intelectuais,
os puros, os mais sutis (Sb 7,23) — refiro-me às potências angélicas — como
também os dos profetas (Sb 7,27) e dos apóstolos, no mesmo instante, mas
não nos mesmos lugares (Sb 8,1), posto que estão dispersos aqui e ali, o que
mostra que nada o circunscreve59.

59. Or. 31, 29 (332-336). Servi-me da tradução de J. R. Díaz SÁ N CH EZ-CID , in


GREGÓRIO Nazianzeno, Los cinco discurso teológicas, M adrid, 1995, 259-262, com ligeiras
modificações.

227
VISÃO HISTÓRICA

Seria difícil encontrar outras passagens sintéticas em que se expresse


m elhor a riqueza da ação do Espírito segundo a Escritura. N essa variada
atuação na economia da salvação m ostra-se sua consubstancialidade com o
Pai e o Filho. Também Gregório, como já fazia Basílio, serve-se da presen­
ça do Espírito em Jesus para m ostrar sua grandeza e sua dignidade — sua
divindade em últim o termo*®.

GREGÓRIO DE NISSA

Também o irmão mais jovem de Basílio (morto por volta de 395) teve
que lidar com esse problema de Eunômio, sobre a diferença de natureza
entre o gerado e o não-gerado6 61.
0 A resposta será que a geração divina é
sempre um ato eterno, não há em Deus antes nem depois. Como seu irmão
Basílio, argúi a partir de Jo 1,1.2: no princípio existia o Logos e estava junto
a Deus. Os imperfeitos indicam a continuidade, mostram que o Logos nãn
começou a estar junto a Deus e portanto tampouco começou a existir62.36
Também G regório pergunta-se pelas características próprias de cada
uma das pessoas na única natureza divina. A distinção fundamental dá-se
entre os seres incriados e criados. Os primeiros são as pessoas divinas.
Nesse ponto não há diferença entre elas, o ser incriado é comum, é a única
natureza divina a que possui essa característica. Os próprios das pessoas são:
para o Pai, não ser gerado; para o Filho unigénito, ser gerado. O Espírito
Santo tem comunhão de natureza com o Pai e o Filho, Tqç <Jnxreü>s rqv
Koivotjvíotv, mas o signo distintivo que o caracteriza é não ser nem gerado
nem não-gerado. Distingue-se do Filho em que não tem a subsistência do
Pai como unigénito, senão que se manifestou por meio do Filho61.
Gregório de Nissa explica a única essência e as três hipóstases recor­
rendo à comparação, certamente um pouco ambígua, com a unidade da
essência humana, que afirma com muita insistência. Pedro, Tiago e João

60. Or. 31,29 (332): “C risto é gerado, ele o precede; Cristo é batizado, ele dá teste­
munho; Cristo é tentado, ele o conduz de novo (à Galiléia?); C risto fez milagres; ele o
acompanha”.
61. Cf. SIM O N ETTI, op. d t, 464s. C. Eun. m 67-72 (JAEGER II, 27-29). Eunômio
comete o erro de identificar essênria e geração. Sobre G regório, pode-se ver GREGÓRIO
de Nissa, Teologia trinitária, C. M ORESCHINI (ed.), Milano, 1994; B. P O T H E R , Dieu
et le Christ selon Grégoire de Nysse, Namur, 1994.
62. C. Eun., m 2 , 18ss (JAEGER n , 58).
63. Cf. C. Eun. 1 278-280 (JAEGER, 1 107-109). Cf. SIM O N ETTI, 517ss.

228
OS PADRES CAPADÓCIOS. A FORMULAÇÃO DO DOGMA TRINITÁRIO NOS CONCÍLIO S I E II

são uma só essência, uma só natureza, embora nas propriedades da pessoa


(hipóstases) de cada um deles. De maneira semelhante podemos entender
as três pessoas em Deus: a ousta é uma, nas características próprias das
hipóstases64. Dizemos em nossa linguagem normal "três homens” para
designar Pedro, Tiago e João, mas neles “um só é o homem”65. Para G re-
gório é um certo abuso nomear em plural os que não estão divididos pela
natureza, mas pelo costume66. C om maior razão, as três pessoas divinas
têm uma mesma ousta ou essência67. Assim, deve-se confessar que Deus
segundo a essência é um, mas nas características reconhecíveis das hipóstases
são três, dado que professamos a fé no Pai, no Filho e no Espírito Santo,
distinguindo-os mas sem confundi-los. A peculiaridade da hipóstase faz
ver a distinção das pessoas, prosopa, e o único nome em que cremos (Deus)
mostra a unidade da essência68.
Porém essa essência divina é incognoscível. Conhecemos Deus não
por sua natureza, mas por sua atividade. O nome “D eus” (6eóç), segundo
a etimologia admitida por Gregório, vem de 6eáo|xai, ver: Deus é por
conseguinte “o que vê”, o que tem capacidade de ver no mundo. Essa
capacidade é atribuída na Escritura ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo69.
Gregório é consciente da objeção que se lhe pode opor: a unidade dos três
se refere, segundo isso, à comum atividade que desempenham. Mas se são
três os que a exercem, os que têm a capacidade de ver, deveríamos falar de
três deuses. Ele responde que na atuação comum de três homens não pode
haver uma unidade como a que existe na ação divina no mundo; essa é
iniciada pelo Pai, realizada pelo Filho e aperfeiçoada pelo Espírito em total
unidade de vontade e de ação. O s três querem e realizam o mesmo. H á
uma só disposição do Pai, que se leva a cabo pelo Filho e pelo Espírito;
nenhum ato é realizado separadamente, não há intervalo nem interrupção
na ação dos três, como também não há em sua vida70. A unidade divina tem
também esse aspecto dinâmico e concreto.

64. Já G regório Nazianzeno tinha utilizado esse argum ento, embora não com tanta
força, Gr. 31,15.16 (SCh 250, 304-306); cf. também BASÍLIO [GREGÓRIO de Nissa?],
Ep 38,4 (184ss).
65. Quad non sunt tns dei (JAEGER 111,1,54); cf. Ibid., (40).
66. Ibid., (39).
67. Ad Graecos (JAEGER H, 1,22).
68. Cf. Ref. Conf. Eun. 6,12.13 (JAEGER H, 314-315; 317-318). Cf. HANSON op.
d t , 725s. O D eus uno parece ser a Trindade, segundo Quod non sunt... (42). Sobre as
noções de ousta e hipóstase, cf. P O T H E R , op. tit., 95ss.
69. Cf. Quod non sunt... (42-48).
70. Quod mm sunt.. (46-53). Cf. tam bém BASÍLIO [GREGÓRIO?] Ep 38,4 a 86).

229
VISÃO HISTÓ RICA

H á uma ordem, um a taxis das pessoas. Mas essa ordem não afeta a
igualdade na divindade. O Filho está unido ao Pai, e não perde a digni­
dade pelo fato de provir dele. A ordem na enum eração não significa di­
versidade de natureza. O mesmo deve-se dizer do Espírito Santo71. A
natureza divina deste conhece-se por seus efeitos, que são os mesmos
que os do Pai e do Filho. Tem as mesmas propriedades que eles, pelo que
não pode ser criatura72. Afirma-se em m uitas ocasiões que é divino, ou de
natureza divina73. Como Basflio, G regório vê também uma geração ao
Filho na origem do Espírito, mas deve-se te r presente que nem sempre
podem os presum ir uma clara distinção entre o que depois se chamou
“processão” e “missão”. Assim, o Espírito procede do Pai e é recebido do
Filho74. O E spírito Santo tem sua causa no Pai através do Filho e com
ele75. A vida divina transm ite-se ao Filho pela geração, ao Espírito Santo,
m ediante o Filho, pela processão. Esse pode ser o resum o do pensam ento
de G regório sobre a questão.
O s capadócios insistiram na plena divindade do Filho e do Espírito,
sem adm itir nenhum subordinacionismo. Desde o momento em que a
geração do Verbo não é vista em função da criação, dá-se um passo de­
cisivo para considerar a igual dignidade dos três na unidade da essência
divina. Os autores imediatamente posteriores ao Concílio de N icéia já ti­
nham aberto esse caminho. As vezes pode-se dar a impressão de que a espe­
culação trinitária a partir desse momento afasta-se um tanto da economia
salvífica, que é o único caminho para conhecê-la. M as, em último termo, a
realidade da salvação do homem só pode ser garantida com a reta confissão
da fé no Deus uno e trino. A contribuição dos capadócios à teologia trinitária
foi certamente da máxima relevância. Além disso, ao abordar o problema

71. C. Eun. I 197-204; 690-691 a 310-312; 464) cf. HANSON, op. d t , 729ss.;
P O T H E R , op. c it, 313-378.
72. Cf. Ado Eus. De Trm (J. m 1,7-11). Com o Espírito Santo foi ungido C risto, Ibid.
(14-16); De Fide (65-67); Adv. Mac. de Sp. Sane. (100); Ibid. (112) a mesma idéia da unção;
cf. H A NSON, 784 ss.
73. Ado. Mac. de Sp.Smc. (90.92.94.101): está unido em tudo ao Pai e ao Filho (100).
Tem Koivowía de natureza e de honra com o Pai e o Filho (90). O Espírito está unido ào
Pai e ao Filho na ação criadora e salvadora; são formulações semelhantes às de BASILIO
(cf. 100.106.109). ____
74. Ado. Mac... (97); é do Pai e de Cristo, Ibid. (89-90). Cf. PO 1TIER, op. d t , 357ss.
75. Cf. C. Eun. 1 378-379 (1 138;180); RefConf. Eun. 190-192 (H 392-393), contra o
modo eunomiano de entender a processão mediante o Filho; BASILIO [GREGORIO?],
Ep 38,4 (85.86). O Espírito com o a terceira lâmpada que se acende a partir da prim eira, por
meio da segunda, Ado. Mac... (93); Quod non sunt... (56), a mediação do U nigénito: cf.
SIM O N E 1'l í , op. d t , 499s.

230
OS PADRES CAPADÓCIOS. A FORMULAÇÃO DO DOGMA TRINITÁRIO NOS CONClUO S I E I I

especulativo da unidade e da trindade em Deus, afirmaram decididamente a


divindade do Espírito Santo. Com isso, prepararam o terreno para o primei­
ro Concílio de Constantinopla, o segundo dos ecumênicos, do ano 381, cujo
estudo podemos agora abordar com esses pressupostos.

0 PRIMEIRO CONCÍLIO DE CONSTANTINOPLA

Os desenvolvimentos teológicos do século IV, a partir do Concílio de


Nicéia, tiveram de algum modo seu ponto de chegada no primeiro Con­
cílio de Constantinopla (381). N ele completou-se a fidesnicem, sobretudo
no artigo dedicado ao Espírito Santo, com o reconhecimento de sua divin­
dade — embora não diretamente afirmada — e de sua unidade com o Pai
e o Filho manifestada na honra e adoração que recebe. N ão chegou até nós
o tomus, de cuja existência há notícias, que explicava o conteúdo do símbo­
lo. M as não faltam elementos para esclarecer o sentido de suas afirmações
mais im portantes (cf. DS 150).
Como para o símbolo de Nicéia, também em relação ao de Constan­
tinopla coloca-se o problema: se aceitou (e em que medida) um símbolo
anterior, ou se compôs o que conhecemos nas sessões conciliares76. A ques­
tão não é de prim eira im portância para nós. Estudamos sobretudo as
modificações mais significativas a respeito do símbolo niceno que já co­
nhecemos.
N o artigo dedicado ao Pai, acrescenta-se que é criador “do céu e da
terra”. Não parece uma novidade espedalm ente significativa: sublinha-se
a universalidade do domínio do Pai sobre tudo.
Mais relevância têm as mudanças da segunda seção do símbolo. Acres­
centa-se que a geração do Filho é antes de todos os séculos. A idéia da
geração eterna recolhia-se nos anátemas de Nicéia, que agora desapare­
cem. E sobretudo eliminam-se as palavras “quer dizer, da essência {ousta) do
Pai” como esclarecimento a “nascido do Pai”. Com a distinção entre ousta e
hipóstase que N icéia ainda não conhecia (ver os anátemas) e que se introdu­
ziu no curso dos debates do século IA7 essas palavras teriam podido criar con­
fusão. Depois da afirmação da mediação criadora universal, elimina-se o inciso

76. Cf. HANSOM , op. c it, 815-817; L. ABRAMOWSKI, Was hat das Nicaeno-
Constantinopolitanum mit dem Konzil von Konstantinopel zu tun? TbeoPbil 67 (1992)
481-513; SESBOÜÉ, op. c it, 273-277. Sobre o símbolo mesmo, R ITTER , Das Konzil von
Konstantinopel und sem SymbolG ottingen, 1985: G. L. DOSE l T l, II simbolo di Nicea e di
Constantmopoli, Rom a, 1967.

231
VISÃO HISTÓ RICA

“o que há no céu e na te rra ”, em correspondência com o que foi acrescen­


tado ao prim eiro artigo a que acabamos de referir-nos.
Enriquecem -se as referências à vida histórica de Jesus. A ntes de tudo,
diz-se que a encarnação se dá "(por obra) do Espírito Santo e de Maria, a
Virgem ”. Acrescentam-se as referências à crucifixão e à sepultura de Jesus;
a ressurreição é "segundo as Escrituras”; Jesus, que subiu ao céu, "está
sentado à direita do Pai”. A segunda vinda será “com glória”. Além disso,
acrescenta-se "e seu reino não terá fim”, para excluir as possíveis ambigui­
dades da interpretação de Marcelo de Ancira sobre a entrega do reino ao
Pai, a finalização do reino do Filho e a sorte final da humanidade de Jesus.
As novidades de m aior transcendência referem-se ao Espírito Santo.
Diferentemente de Nicéia, diz-se agora “tò n v e u p a tó cryiav”, repete-se o
artigo, o Espírito que é o Santo. N ão se diz "um só Espírito Santo”, como
ocorre com o Pai e o Filho; a diferença estava já em Nicéia. Basílio falou da
"unicidade” do Espírito Santo, juntamente com a do Pai e do Filho77.87
As afirmações concretas sobre o Espírito Santo têm uma dara inspi­
ração bíblica. O Espírito é Senhor (2Cor 3,17)7Í. N o Novo 'Ièstam ento, o
título aplica-se sobretudo a Deus Pai e a Jesus Cristo. Sua utilização pelo
Concílio indica portanto uma equiparação em dignidade com as primeiras
pessoas. "Doador de vida” é, ao contrário, uma qualificação que no Novo
Ièstam ento aplica-se sobretudo ao Espírito (cf. 2Cor 3,6; Jo 6,63; em IC or
15,45 refere-se a Jesus ressuscitado feito “espírito que dá a vida”). Víamos
como já Atanásio argiiia contra a criaturalidade do Espírito, fundando-se
em que ele dá a vida e não a recebe. Alude-se, sem dúvida, não só à função
criadora do Espírito, senão também à ação santificadora e à comunicação
da vida divina. O Espírito "procede do Pai”. Não se fala da essência, cuja
menção em relação à geração do Filho foi eliminada, como já observamos.
A afirmação conciliar inspira-se em Jo 15,26, mas não se trata de uma
citação literal, porque o Concílio muda a preposição trapa por êk. Em
IC or 2,12 diz-se que o Espírito é êk tou 0eaü. Com a mudança de prepo­
sições o texto não se afasta da direta inspiração bíblica. E claro que existe
um paralelismo entre a geração do Filho “do Pai” e a “procedência” do
Espírito, também do Pai. Com a afirmação de sua procedência do Pai,
quer-se mostrar antes de tudo que o Espírito é divino e não criatura79.

77. De Sp. Sane., 18,45 (SCh 17 bis, 408). Sobre a pneumatologia do símbolo, cf. A.
de HALLEUX, La profession de l’E sprit Saint dans le Symbole de Constantinople, in
Patrologie et oecuménisme, Lovaina, 1990, 322-337.
78. Çf. BASÍLIO, de Sp. Sont. 21, 52 (434).
79. É assim em ATANÁSIO, Serap. 115 (PG 26,565), a processão do Pai contrapõe
o espírito às criaturas, aos anjos especificamente.

232
OS PADRES CAPADÓCIOS. A FORMULAÇÃO DO DOGM A TRINITÁRIO NOS CONCÍLIOS I E II

Seria anacrônico ver no texto do símbolo uma referência aos problemas do


Filioque que se suscitarão posteriorm ente; é uma questão alheia à mentali­
dade do momento.
“Q ue com o Pai e o Filho é adorado e glorificado.” E evidente a in­
fluência de Basílio que, como sabemos, protestava contra o uso subordina-
cionista das preposições80. A “isotim ia” equivale realm ente à consubstan-
cialidade. Diz-se por último que o Espírito “falou pelos profetas”. E uma
idéia que se encontra já no N ovo Testamento, e na tradição mais antiga,
como tivemos ocasião de comprovar. Trata-se de uma ação própria do
tempo do Antigo Testamento; não se sublinha a “novidade” do Espírito
como dom de Jesus, insinuada no vivificantem. Recordemos que se falou
antes da ação do Espírito na encarnação, mas não se especificam outras
ações próprias do Novo Testamento81. Fica claro, de todas as maneiras,
que é o mesmo Espírito que atuou antes e depois de C risto. O Espírito não
é chamado dtreutmente Deus, nem bomooustos com o Pai. Também aqui a
coincidência com Basílio é evidente.
N ão nos deteremos nos acréscimos sobre a Igreja, o batismo, a res­
surreição dos m ortos, que não entram agora diretam ente no campo de
nosso interesse. Podem ser explicados com a presença desses temas nos
credos em que Constantinopla tenha podido inspirar-se.
As diversas afirmações do Concílio de Constantinopla sobre o Espí­
rito Santo, embora diferentes no estilo das que se aplicam ao Filho, refle­
tem a convicção íntima da divindade da terceira pessoa, igual à do Pai e à
do Filho. A contribuição desse concílio para o desenvolvimento do dogma
trinitário é, assim, decisiva; comparável à do Concílio de Nicéia, que pro­
clamou a plena divindade do Filho e sua consubstancialidade com o Pai.
O símbolo de Constantinopla não foi muito conhecido nos anos que
seguiram imediatamente ao concílio. A opinião comum naqueles momen­
tos parece ter sido que Constantinopla confirmou a fé nicena sem mais, e
assim o símbolo niceno constituía o único ponto de referência nas contro­
vérsias teológicas do final do século IV e começos do século V. Foi o Con­
cílio de Calcedônia (451) que reconheceu e apresentou esse símbolo como
do Concílio de Constantinopla, atribuindo-lhe a mesma importância que
ao credo de Nicéia.

80. C f. De Sp. Sane. 5; 10; 25; 27; 29 (272-284; 332-338; 456-464; 478-490; 500-
518) etc.
81. Outros credos fazem referência à descida do Espírito no Jordão e a outras ativações
mencionadas no Novo Testamento: falou nos apóstolos, habita nos santos, cf. DS 44;'46.

233
VISÃO H ISTÓ R IC A

Q ual a teologia trinitária que em geral se desprende do Concílio de


Constantinopla, com os precedentes da teologia capadóda? O símbolo
constantinopolitano recolheu o bomoousios niceno; que significado lhe dá,
no novo contexto teológico, certamente mais afinado na terminologia? M.
Simonetti82, seguindo as observações de M. R itter83, observa que, em Nicéia,
a identificação entre ousta e hipóstase orienta a interpretar o bomoousios
como indicativo da identidade numérica da essência divina. Os capadócios,
apesar do exemplo não m uito feliz da humanidade e dos homens concre­
tos, viram a essência divina de maneira concreta e real. A fórmula de Ba-
sílio aparece como tentativa de combinar a acentuação na unicidade de
Deus, da linha ocidental (da qual viria o bomoousios), com a distinção das
hipóstases propugnada pelos homoousianos. Basílio concebeu a essência
divina com o concreta e real, como os autores do símbolo de N icéia, mas
insiste ao mesmo tempo na distinção das três hipóstases, em que se articula
a única concreta essência divina. O bomoousios deveria ser entendido, por­
tanto, à luz dessa evolução, no sentido da unidade numérica; indicaria a
mesma essência divina, não simplesmente a unidade genérica. Nessa única
essência divina integra-se a articulação das três pessoas, equilibrando a
teologia nicena, que acentuaria mais a unidade84.58

DO PRIMEIRO AO SEGUNDO CONCÍLIO DE CONSTANTINOPLA95

C om o prim eiro Concílio de Constantinopla e a definição clara,


embora indireta, da divindade do Espírito que é Senhor, procede do Pai e
é adorado e glorificado com o Pai e o Filho, o dogma trinitário ficou de­
finido no essencial. Mas houve mais tarde outros pronunciamentos solenes
a que devemos dar atenção. Antes de passar a eles, devemos estudar breve-

82. O p. d t, 541.
83. RITTER, op. d t (cf. nota 76), 270ss.
84. HANSON, op. d t , 735ss., parece tender antes a uma forma genérica da Trinda­
de. As analogias dos capadódos iriam do particular ao geral, embora essas m etáforas não
devam ser tomadas em sentido demasiado estrito. Mas ao mesmo tempo sublinha, seguin­
do a G . L . PRESTIGE (God mpatristk tbougt, Londres, 1936,233), que a unidade dos três
não se fonda somente na pessoa do Pai, mas que os três, ainda sem levar em conta direta­
mente a origem, em um sentido real são um em si mesmos.
85. A diferença do que dissemos até aqui, agora não trataremos do desenvolvimento
ulterior da “teologia” trinitária, mas só dos pronunciamentos doutrinais mais im portantes.
Reservamos o estudo dessa evolução teológica, em concreto do pensamento de Sto. Agos­
tinho, para os capítulos sistemáticos a seguir.

234
OS PADRES CAPADÓCIOS. A FORMULAÇÃO DO DOGM A TRINITÁRIO NOS CONCÍLIOS I E I I

mente dois documentos importantes que se seguem imediatamente no tem­


po ao Concílio de Constantinopla: a carta dos bispos do Oriente ao papa
Dâmaso, e o tomus deste último, resultado do Concílio romano de 382.
N a carta dos bispos do O riente ao papa Dâmaso e aos bispos ociden­
tais reunidos em Roma em 382, desculpando-se por não poderem assistir
ao Concílio a que o papa os convocara, lê-se:
[Aprofissão de fé batismal] ensina-nos a crer em uma só divindade e potência
e essência do Pai, do Filho e do Espírito Santo, em sua igual honra e eterno
poder real, em três hipóstases perfeitas ou em três pessoas perfeitas. Assim,
não se dá lugar à peste de Sabélio, que confunde as hipóstases e elimina as
propriedades, e não se dá força à blasfêmia dos eunomianos, arianos e
pneumatômacos, que dividem a essência, a natureza e a divindade, e introdu­
zem na Trindade incriada, consubstanciai (bomoousios) e coetema uma natu­
reza posterior, criada ou de outra essência“.

Observa-se também neste texto o resultado da obra de Basílio de


Cesaréia e de seus seguidores. Afirma-se a unidade da ousta na distinção da
hipóstases ou pessoas8 87,
6 que subsistem realmente. Veremos como algumas
dessas formulações vão ser utilizadas também pelo segundo Concílio de
Constantinopla.
O Tomus Damasi está composto por uma série de anátemas em que se
resume a fé trinitária e se condenam os diferentes erros aparecidos. Apon­
temos algumas das afirmações mais importantes para nós: O Pai e o Filho
constituem uma só divindade, potestade, majestade, potência... São ao
mesmo tem po três “pessoas” verdadeiras, iguais, sempre viventes, que tudo
contêm, tudo fazem... e tudo salvam (DS 302).
O Concílio de Calcedônia, do ano 451, na linha da fórmula da união
entre C irilo de Alexandria e os bispos da escola antioquena de 433 (DS
272), distinguirá as duas gerações do único C risto Filho unigénito: a gera­
ção eterna do Pai antes dos séculos segundo a divindade, a temporal de
Maria segundo a humanidade (DS 302).
A fórm ula da unidade da essência na trindade das hipóstases será san­
cionada definitivamente no segundo Concílio de Constantinopla (553). Não

86. C f. o texto de G . ALBERIGO (dir.) L a Condia oecumcniques, Paris 1994, D, 81; cf.
SIM O N E T T I, op. d t., 550; SESBOÜE, op. t i t , 301, observa que essa é a primeira vez que
aparece em um texto de caráter ofidal o que depois será a fórmula dogmática da Trindade
87. A equivalênda dos conceitos está já nos capadócios. Em concreto, G regório de
Nissa usa com m uita freqüênda prósopon.

235
VISÃO HISTÓRICA

entraremos nos complicados avatares de sua história88. O Concílio ocupou-


se sobretudo de temas cristológicos, mas o primeiro cânon é trinitário:
Se alguém não confessa uma só natureza ou substância (4rimv q m oúnov) do
Pai do Filho e do Espírito Santo, uma só potência e poder, uma trindade
consubstanciai (rpíaSot opooúnov), uma só divindade adorada em três hipóstases
ou pessoas (irpóouma), seja anátema. Pois há um só Deus e Pai do qual provêm
todas as coisas, e um só Espírito Santo em que estão todas as coisas (DS 421).

O texto consta de duas partes: a primeira é um resumo da teologia


trinitária, que se esforçou por combinar adequadamente os planos da uni­
dade da essência e da distinção das pessoas em Deus; a segunda, de mais
direta inspiração bíblica, refere-se à unidade e distinção na atuação de D eus
ad extra. A unidade em Deus encontra-se na essência divina. A ousta ou
pbysis é a substância concreta única da divindade. A essa unidade da essên­
cia corresponde a unidade do poder. Vimos no Concílio de Nicéia e no de
Constantinopla a idéia do Filho consubstanciai ao Pai. Aqui se fala da
Trindade consubstanciai, como já faziam os bispos orientais em 382. A
igualdade das três pessoas aparece mais em prim eiro plano. Trata-se da
mesma divindade, da mesma natureza dos três, não simplesmente de “igual”
natureza, no exemplo clássico dos três homens. A só e única divindade é
adorada em três hipóstases ou pessoas. São três subsistentes reais, não só
três que aparecem como tais. Em Deus, portanto, sem detrimento da uni­
dade da essência, dá-se a distinção das três pessoas. A divindade una não é
a soma da das três pessoas, mas a unidade da divindade é somente a da
Trindade consubstanciai.
A unidade na Trindade aparece também na segunda parte do texto,
inspirada em IC or 8,6, com o acréscimo do Espírito Santo no qual são
todas as coisas. Reproduzem-se quase literalm ente as fórmulas de Ataná-
sio, e também de Basílio, que tratam da unidade da ação dos três, mas ao
mesmo tem po recolhem-se as distinções pessoais nessa ação única e con­
junta. N otem os que nas três ocasiões repete-se o “um só”. Cada uma das
pessoas é irrepetível e é Deus inteiram ente89.

88. Cf. SESBOÜÉ, op. cit., 417-428: A. GRILLM EIER, Jesus der Cbristus im Glauben
der Kircbe, Freiburg-Basel-wien, 1989,11/2, 469-484.
89. M uitos dos conceitos se repetem no Sínodo lateranense (649): “Si quis secundum
sanctos Patres non confitetur proprie e t veraciter Patrem et Filium et Spiritum Sanctum,
trinitatem in unitate et unita tem in trin itate, hoc est, unum Deum in tribus subsistentiis
consustantialibus et aequalis gloriae, unam eam dem que triu m deitatem , naturam ,
substantiam, virtutem , regnum... condemnatus sit” (DS SOI).

236
OS PADRES CAPADÓCIOS. A FORMULAÇÃO DO D OGM A TRINITÁRIO NOS C O N C iU O S I E I I

OS CONCÍLIOS MEDIEVAIS

Ainda haverá ocasião de citá-los no estudo sistemático, mas devemos


mencionar desde agora alguns importantes concílios ecumênicos da Idade
Média que se ocuparam de questões trinitárias. O prim eiro deles é o Con-
c l U o Lateranense IV (1215), o qual confessa que

existe um só Deus verdadeiro, etemo, imenso, imutável, incompreensível,


onipotente e inefável, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, três pessoas, mas uma
só essência, substância ou natureza completamente simples: o Pai não pro­
vém de nenhum, o Filho provém unicamente do Pai, o Espírito, dos dois, ao
mesmo tempo; sem começo, existe sempre e sem fim: O Pai gera, o Filho
nasce, o Espírito Santo procede; são consubstanciais e iguais entre si, conjun­
tamente onipresentes e eternos... (DS 800).

Ainda na forte acentuação da unidade divina que caracterizará os con­


cílios medievais, afirma-se que o único Deus é o Pai, o Filho e o Espírito
Santo. Seguem outras afirmações sobre a criação, em oposição aos cátaros e
aos albigenses, para passar depois à confissão cristológica (cf. DS 801).
O põe-se também o Concílio aos ensinamentos de Joaquim de Flora,
que contra Pedro Lom bardo afirmava que não se podia falar do Pai, do
Filho e do Espírito como de uma summa res, de tal m odo que além das três
pessoas do Pai, do Filho e do Espírito existisse a essência comum; assim
vinha a estabelecer-se um a espécie de “quatem idade”. Além disso, Joa­
quim entendia a unidade de Deus como a de uma coletividade, como muitos
hom ens são um só povo, ou muitos fiéis tuna só Igreja (Cf. DS 803)90. Em
relação a isso, afirma o Concílio:
Cremos e confessamos... que existe «ma certa “summa ref, incompreensível
e inefável, que é verdadeiramente o Pai, o Filho e o Espírito Santo, ao mesmo
tempo, três pessoas e cada uma delas por separado: e assim em Deus há so­
mente uma Trindade, não uma quatemidade, porque cada uma das três pes­
soas é aquela realidade (illa res), isto é, a substância, a essência ou a natureza
divina, que só é princípio de todas as coisas, além da qual não pode encontrar-
se nenhum. E essa res não é nem gerante nem gerada nem procedente, senão
que é o Pai o que gera... (DS 804).

90. Sobre a doutrina trin itária de Joaquim, cf. G . D l N A PO LI, La teologia trinitaria
de G ioachino da F iore, Divmitas 23 (1979) 281-312. Sobre Joaquim e Pedro Lom bardo, F.
C O U R T H , Trinität. In der Scholastik, Freiburg-Basel-W ien, 1985,77-86; F. FÖ SC H N ER ,
Der T rin itätsb eg riff Joachim s von Fiore, WiWt 58 (1975) 117-136.

237
VISÃO H ISTÓ R IC A

Portanto, ainda que o Pai seja um, outro o Filho, e outro o Espírito Santo,
não são outra coisa; senão que o que é o Pai o são também completamente o
Filho e o Espírito Santo, de tal maneira que se deve crer, segundo a fé católica
e ortodoxa, que são consubstanciais. O Pai que desde sempre gera o Filho
deu-lhe sua substância... (DS 805).

O segundo Concílio de Lião e o de Ferrara-Florença tentaram a união


das Igrejas do O riente e do O cidente com a resolução do espinhoso pro­
blema do Filioque. Reservamos para mais adiante o estudo dessa questão,
e assim voltaremos a tratar das afirmações fundamentais dos dois concílios.
Agora, nos contentamos com umas poucas indicações. N o segundo Con­
cílio de Lião (1274) foi lida a profissão de fé do imperador Miguel Paleólogo,
que começa assim:
Cremos na Santa Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, um Deus onipoten­
te, e na completa divindade na Trindade, coessendal e consubstanciai, coetema
e co-onipotente, de uma só vontade, potestade e majestade, criador de todas
as criaturas, do qual procede tudo, mediante o qual tudo foi feito e no qual
tudo existe91... Cremos que cada uma das pessoas na Trindade é o único Deus
verdadeiro, pleno e perfeito (DS 851)92.

Também se observa que “a Santa Trindade não são três deuses, senão
um único Deus, onipotente, etem o, invisível e imutável” (DS 853).
Nesses textos, reconhecemos também idéias que foram abrindo ca­
minho já desde o final do século IV. A tendência de acentuar fortem ente
a unidade divina, e menos a distinção de pessoas, sobretudo no que se
refere à sua atuação exterior, é clara. Mas ao mesmo tempo se insiste na
perfeita divindade de cada uma das pessoas e em sua identificação com a
essência divina.
D o Concílio de Florença, o segundo dos “Concílios da união” (1439/
1442), devemos destacar as afirmações trinitárias contidas no decreto para os
gregos (cf.DS 1.300-1.302); e o decreto para os jacobitas (cf. DS 1.330-1.333).
N o momento, recolhemos somente umas poucas frases deste último decreto:

91. Notemos como as preposições que em Constantinopla II aplicavam-se ao Pai, ao


Filho e ao Espirito Santo, aqui se aplicam à Trindade sem diferenciações.
92. Sobre a significação do II Concílio de Lião, cf. a carta de PAULO V I ao cardeal
W illebrands por motivo da celebração do sétimo centenário do Concílio em 1974, AAS 66
(1974) 620-62$; nela se reconhece que a unidade, tal como esse Concílio realizou, não
podia entrar nas mentes dos cristãos orientais (623).

238
OS PADRES CAPADÓCIOS. A FORMULAÇÃO DO DOGM A TRINITÁRKD NOS C O N C ÍU O S IE II

A Igreja católica... crê em um só Deus verdadeiro, onipotente... Pai, Filho e


Espírito Santo, um na essência, trino nas pessoas. 0 Pai, ingênito, o Filho,
gerado pelo Pai, o Espírito Santo que procede do Pai e do Filho... Essas três
pessoas são um só Deus e não três deuses, porque é uma só a substância dos
três, uma a essência, uma a natureza, uma a divindade, uma a imensidade e uma
a eternidade: em tudo são uma só coisa, onde não se opõe a oposição da relação
(“omniaque sunt unum, ubi non obviat relationis oppositio”) (DS 1.330).

A continuação de nossa exposição nos fará entender m elhor as afir­


mações desses concílios medievais. Notem os somente, a propósito da últi­
ma frase citada, a forte acentuação da unidade divina, que deve ser afirmada
em tudo aquilo em que não seja obstáculo a pluralidade de relações. Em
nossa reflexão sistemática voltaremos à maior parte desses textos. Será útil
para nós ter adquirido desde agora um a certa familiaridade com eles.

239
segunda parte

DA “ECONOMIA”
À “TEOLOGIA”

A
A reflexão sistemática
sobre o Deus Uno e Trino
9
“Trinitas in unitate”.
A vida interna de Deus: as processões,
as relações, as pessoas divinas

Nossa exposição histórica m ostrou-nos como a reflexão da Igreja se


viu impelida a refletir sobre a vida divina, sobre o que é Deus em si mes­
mo, precisamente para garantir a verdade da salvação que Deus nos ofere­
ce em C risto. A “economia” levou necessariamente à “teologia”. Inter­
rompemos nosso percurso histórico (exceto as referências a alguns concílios
medievais) no momento final da formulação do dogma trinitário. Introdu­
ziremos em nosso tratamento sistemático as contribuições de Sto. Agosti­
nho, tão determ inantes para a teologia ocidental, e também as da teologia
medieval, em especial as de Sto. Ibm ás. Em todo momento deveremos
procurar que nossa reflexão se funde na manifestação histórico-salvífica de
Deus, que é o único caminho que se nos oferece para chegar a seu m isté­
rio. N o capítulo 3 tomamos com o ponto de partida as duas missões do
Filho e do Espírito Santo, de que nos fila G14,6. Tratarem os de ver agora
como essas missões nos levam ao ser de Deus, seguindo o caminho de
reflexão teológica que foi empreendido na tradição da Igreja.
A doutrina clássica sobre D eus, tão íreqüentem ente inspirada na sis­
temática de Sto. Ibm ás, tratou do Deus uno antes de tratar do Deus trin o 1.
A ordem da exposição corresponde, para o Aquinate à ordem de nosso

1. Na Suma teológica o estudo do tema de Deus coloca-se no começo da prim eira


parte (q. 2-43); a continuação imediata é a criação, que para Ib m ás é ainda parte do tratado
de Deus (constitui sua terceira parte) enquanto trata da saída das criaturas de Deus. As duas
primeiras partes tratam do que pertence à essência divina (q. 2-26) e do que pertence à
Trindade das pessoas (q. 27-43). Se m uitas das questões tratadas na prim eira parle nos
parecem ter caráter filosófico, não devem os esquecer que nossa distinção não corresponde
à mentalidade do século X lll. Sto. 'Ibm ás argúi a partir da Escritura também nessas ques­
tões. Além disso, também a essência divina refere-se ao Deus trino. Sobre o pensamento
trinitário de Sto. Ibmás, com ulterior bibliografia, cf. G. M . SALVATI, “Cognitio divina-

243
DA “ECONOM IA” À “TEOLOGIA"

conhecimento; não se trata de dar prioridade a uma dimensão sobre a ou­


tra*
2. U tilizarem os amplamente Sto. Tomás em nossa exposição sucessiva,
embora seja distinta, em parte, a ordem que seguiremos. Nossa considera­
ção da única essência divina vem no final, porque não há outra unidade em
Deus que não seja a do Pai, do Filho e do Espírito Santo: a essência divina
não é algo prévio às pessoas (tampouco para Sto. Tomás, evidentemente)
porque só subsiste nos três. Mas desses três só podemos falar a partir da
manifestação histórico-salvífica de Deus, porque o Pai enviou seu Filho e
o Espírito Santo. Por isso já nos referimos às “missões” do Filho e do
Espírito Santo, e delas voltaremos a tratar brevemente em primeiro lugar3.
A partir dessas missões divinas ad extra consideraremos a geração eterna
do Filho e a processão do Espírito Santo, isto é, as processões divinas,
segundo a terminologia teológica ocidental. N osso breve percurso pela
história da teologia dos prim eiros séculos cristãos deu-nos elementos para
entender essas noções.

DAS MISSÕES DIVINAS ÀS “PROCESSÕES”

Deus enviou seu Filho e o Espírito Santo. A partir da aparição histó­


rica de Jesus e da experiência de seu Espírito, já o Novo Testamento che­
gou à conclusão de que ambos preexistem à sua missão a este mundo por
parte de Deus Pai. Nos primeiros Concílios, ficará definida a fé da Igreja

rum Personamm”... La reflexión sistemática de Santo Tomás sobre el Dios cristiano, EstTrin
29 (1995) 443-472; também L. ABRAMOWSKI, Zur Trinitätslehre des Thomas von Aquin,
ZTbK 92 (1995) 466-480; P. VANIER, Théologie trmitaire chez samt Thomas d’Aqum, M on­
treal-Paris, 1953; G. EMERY, La Trinité créatrice. Trinité et création dans les commentaires aux
Sentences de Thomas â*Aquin et ses prédécesseurs Albert le Grand et Bonaventure, Paris, 1995;
ID ., Existentialisme et personalisme dans le traité de D ieu chez saint Thomas d’Aquin,
RevTb 48 (1998) 5-38; H. Ch. SCHM IDTBAUT, Personarum Trmitas. Die trmitariscbe
Gotteslebre des heiligen Thomas von Aquin, St. O ttilien, 1995. Mais em geral, sobre os temas
que ora tratam os, cf. W. KASPER, Der Gott Jesu Christi, Mainz, 1982, 337-347; J.-M .
ROVIRA BELLOSO, Tratado de Dios um y trino, Salamanca, 1993, 569-614; A. STA-
GLIANÒ, U mistero dei Dios vivente, 534-543: L. SCHEFFCZYCK, Der Gott der Offenbarung,
350-370, J. R. GARCÍA MURGA, El Dios dei amor y de la paz, 242-250.
2. C . STh 1,33, 3 ad 1
3. N a sistemática clássica, de maneira muito conseqüente, as missões ocupam o úl­
timo lugar. Se considerarmos a Trindade imanente, as missões ad extra são conseqüências
da vida interna da Trindade. Cf. Tomás de AQUINO, STh. 1 43. Se ao contrário, preferi­
mos a ordem de nosso conhecimento a partir da revelação neotestam entária das missões ad
extra do Filho e do Espírito, podemos entrar na consideração do que esses são, em relação
ao Pai, na vida interior de Deus. Cf. sobre esse ponto STh I 43, 7.

244
TR IN fTA S IN UNITATE". A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES, AS RELAÇÕES, AS PESSOAS DIVINAS

sobre a divindade do Filho e do Espírito, que são um só Deus com o Pai.


N a ulterior reflexão sobre a onipresença divina, surge a pergunta de como
pode ser enviado a um lugar quem já está em todas as partes. Agostinho
formulou a questão4. A resposta é que a missão, nesse caso, significa o mes­
mo que manifestação, fãzer-se visível. Trata-se de um novo tipo de presença,
de características distintas das que são próprias da onipresença de Deus. N o
caso da encarnação do Filho, aparece claramente a novidade que a missão
significa, pois constitui uma manifestação sensível única e irrepettvel5. Por
sua vez, a missão do Espírito relaciona-se com as manifestações visíveis que
acompanharam a vinda do Espírito Santo em Pentecostes6.
Com isso mostram-se as distintas pessoas divinas, porque são distin­
tas as missões de um e de outro dos dois enviados. O Pai enviou, mas não
é enviado; não pode ser enviado, segundo Agostinho, porque não procede
de nenhum outro7. 0 Filho é enviado e envia. O Espírito Santo é enviado
e não envia. A visibilização ou manifestação que constitui o novo modo de
presença das pessoas divinas tem lugar no tem po8. Trata-se da entrada das
pessoas divinas na história dos homens para realizar a salvação. E portanto
um novo tipo de presença qualificada, uma presença livre e pessoal9. As
missões dão a conhecer a unidade e as distinções em Deus. M ostram-nos,
segundo Sto. Tomás, a processão do enviado a respeito do que o envia10.
Portanto, o fato de que Deus Pai tenha enviado ao mundo o Filho e o
Espírito Santo mostra-nos que eles vêm de Deus. Vêm de D eus Pai ao
mundo, mas com essa vinda se nos dão a conhecer que procedem de Deus
também quanto a seu ser mesmo, de modo diverso de como dele vêm as
criaturas. Essas missões divinas, por conseguinte, nos introduzem na ques­
tão da origem em Deus mesmo do Filho e do Espírito Santo, à “geração”

4 . AGOSTINHO, Trin ü 5,7s (CCL 50,87-90); Tomás de AQUINO, STb 1 43,1.


5. Cf. AGOSTINHO, 7 rm. II 5,9 (91-92); Tomás de AQUINO, STb, m ostra a re ­
lação ( babitudo) do enviado a respeito do que envia; e, por outra parte, m ostra a babimdo a
respeito do termo ao qual um é enviado. Assim, no que respeita a esse segundo aspecto diz-
se que o Filho foi enviado ao m undo porque foi enviado visivelmente; é claro que antes já
estava no mundo.
6. Cf. Agostinho, Trin 20,29; 21.30 (201-202).
7. Ibid., IV 20,28 (198-199). Cf. a nota 13 do capítulo 2, cf. BOAVENTURA, Bre-
viloquium, 1 5,5 (todo o contexto).
8. Tomás de AQUINO, STb 1 43, 2; já A G O STIN H O , Trin II 4,7ss (169ss).
9. C f as distinções de A G O STIN H O , Dcpraescntia Dei liber (Ep. 187 “ad Dardanum”),
CSEL 57,81-119. Cf. KASPER, op. d t , 338.
10. STb 143,1. A missão em Deus interessa a processão de origem. Por isso o Pai não
pode se r enviado. Indusive, na hipótese da encarnação do Pai, cuja possibilidade teórica
Tomás não exclui, esse não seria “enviado”; cf. Ibid., 1 43,4.

245
DA "ECONOM IA” À -TEOLOGIA"

do Filho e à “processão” do Espírito. N o vocabulário teológico tradicional


fala-se das processões divinas que têm o Pai por seu princípio último. Como
o Pai enviou o Filho e (com o Filho) enviou o Espírito Santo, assim o Filho
recebe seu ser do Pai, como também dele o recebe primariamente o Espírito
Santo, embora com a participação do Filho. Vamos ocupar-nos a seu tempo
das características dessa intervenção. Essa foi a lógica com que, de modo mais
ou menos explícito, se guiou a teologia cristã desde os primeiros tempos.

AS PROCESSÕES DIVINAS: A GERAÇÃO DO FILHO


E A EXPIRAÇÃO DO ESPÍRITO SANTO

Segundo Sto. Tomás, toda “processão”, no sentido mais geral de que


um a coisa procede de outra, supõe uma ação. Ao aplicar a Deus essa noção,
observa que nem todas as ações divinas têm seu efeito no exterior. O efeito
pode permanecer em Deus mesmo. Precisamente nisso consiste a peculia­
ridade das processões divinas e sua diferença com a criação. Não só se dá
um a ação divina para fora, mas também há tuna ação divina que perm ane­
ce em D eus11. Esse é um aspecto decisivo da originalidade do ensinamento
cristão sobre o Deus uno e trino. Esse tem em si mesmo tuna plenitude de
vida para a qual não necessita da criação. Se não reconhecermos essa ple­
nitude de vida íntima em Deus, voltaremos inevitavelmente ao Deus sim­
plesm ente uno. Em seus excessos opostos, Sabélio e Ário chegam no fundo
à mesma conclusão: a negação da vida divina ad intra. Ioda ação de Deus,
segundo esses pressupostos, teria de ser para o exterior, porque não cabe,
no Deus somente uno, nenhuma fecundidade interna. Mas esse não é o
Deus de nossa fé, como tivemos ocasião de comprovar.
Nossa exposição histórica já nos confrontou com o problema da gera­
ção do Filho e com a processão do Espírito Santo. A reflexão sobre a prim ei­
ra desenvolveu-se já desde os começos mesmos da teologia. Conhecemos as
especulações dos apologetas, continuadas por não poucos autores, que se
fundaram na analogia da palavra pronunciada pelo homem. O fato de que o
Filho seja o Verbo, a Palavra, dá margem a essa comparação12. Porém, ainda
os antigos autores que não queriam entrar nesse tipo de especulação (funda­

11. Cf. STb 1 27,1.


12. D aí o uso frequente do SI 45[44], 2: “eructavit cor meum verbum bonum”. Cf.
entre outros, TERTU LIA N O , Prax. 7,1; 11,2 (SCARPAT 156;166). O RÍGENES, In Job.
1 24,158; 38,280 (SCh 120,136; 200). NOVACIANO, Trm 15,83 (FP 8,152). D IO N ISIO
de Alexandria, em ATANASIO, De sent.Dyon. 23 (O PITZ, 11/2,63); cf. TEÓFTLO de An­
ti oquia, Ad Aut. I I 22 (BAC 116, 813).

246
TR IN ITA S IN UNITATE*. A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES, AS RELAÇÕES, AS PESSOAS DIVINAS

dos em Is 53,8: “generationem eius quis enarrabit”) filiaram da geração do


Filho. A analogia da geração vem dada pela própria terminologia bíblica,
Pai/Filho. Desenvolveu-se menos a teologia da processão ou expiração do
Espírito Santo, que, inclusive pelo próprio termo, se caracteriza por ser
mais vaga13. A processão do Espírito é chamada também spiratio, dado o
sentido original do term o “espírito”, associado ao vento, ao sopro.
A teologia bíblica latina englobou sob o conceito comum de processão
tanto a geração do Filho como a processão ou expiração do Espírito Santo.
A teologia oriental prefere falar de geração e de processão sem englobá-las
em um conceito genérico. Não faltam razões muito boas para proceder
assim: em Deus tudo é único e irrepetível. Trataremos de usar de preferên­
cia na exposição que segue esses dois conceitos diferenciados. Se continua­
mos também usando o conceito de processão em sentido lato, não é por
falta de sensibilidade a essas razões. Não é sempre fácil mudar a termino­
logia quando temos atrás de nós o peso da tradição ocidental em que nos
movemos. Além disso, sem retirar nada do que acabamos de dizer, esse uso
tem também sua razão de ser: segundo a tradição cristã, o Filho e o Espí­
rito têm em comum não ter em si mesmos a fonte de seu ser, diferente­
m ente do Pai. O termo genérico processão dá razão de algum modo dessa
diferença entre o Pai por um lado e o Filho e o Espírito por outro. Algo
semelhante acontece também com as “missões” do Filho e do Espírito:
usa-se nos dois casos, já no Novo Testamento, o mesmo termo: “enviar”.
A geração do Filho e a processão do Espírito, às quais temos acesso a
partir das missões, são por conseguinte as expressões da vida e da fecun­
didade interna do Deus uno e trino. A teologia usou comparações a partir
do mundo criado para explicar a unidade e a Trindade em Deus. Vimos as
velhas metáforas da fonte, do rio e do canal, do sol e do raio, da raiz, do
tronco e do fruto. Eram comparações tomadas da natureza iníra-hum ana.
A teologia da processão do Logos dos apologetas já tomou em considera­
ção o intelecto humano. Com clara consciência da infinita distância que
separa o homem de Deus, a teologia ocidental, a partir de Sto. Agostinho,
usou de preferência a comparação da vida interna da mente humana para
de algum modo aproximar-se do mistério da fecundidade interna da vida
divina. A teologia oriental foi mais esquiva ao uso de imagens, pela ten­
dência de ressaltar o caráter inefável e misterioso de Deus e de sua vida
trinitária. Independentemente do valor que cada um possa atribuir a essas

13. Sobretudo diz-se que essa processão não é: nem criação nem geração. Assim o
símbolo Quicumque (DS 75): “non factus, nec genitus sed procedens”.

247
DA -ECONOM IA“ À "TEOLOGIA"

analogias, é necessário para nós seu conhecimento. Sem ele não podemos
entender um capítulo decisivo da teologia cristã que continua ainda influen­
ciando em nossos dias.

1. A s processões divinas e a analogia da mente bumana.


Agostinho e Tomás de Aquino

Como já foi dito, Agostinho usou as comparações tiradas da mente


hum ana para ilum inar o mistério da Trindade. Seu intento não é chegar a
D eus a partir do homem, mas penetrar na imagem divina que o criador
imprimiu na alma humana. Daí, indiretam ente, tira-se alguma luz para
aproximar-nos do m istério trinitário. Sem essa referência a G n l,26s não
se pode compreender o sentido do intento agostiniano. A alma humana,
segundo Agostinho, foi criada à imagem e semelhança de Deus — da Trin­
dade em seu conjunto —, já que Deus diz, segundo o Gênesis, “Façamos
o homem à nossa imagem e semelhança”14. Imagem muito desigual, mas
enfim imagem, observa o bispo de H ipona15. Na alma humana encontra-
se a tríade da m ente, do amor, do conhecimento16; ou também, a da me­
m ória, da inteligência e da vontade17. A m ente foi criada de tal maneira que
sempre se recorda, entende e ama a si mesma18; porém o homem chegará
a ser imagem de Deus enquanto a alma não só se conheça e ame a si mes­
ma, senão a Deus, pois só assim participará da sabedoria que é própria de
D eus19. Nessa tríade o Filho, enquanto Logos, relaciona-se com o enten­
dimento, ou o conhecimento; no conhecimento das coisas temos um verbo
dentro de nós: ao dizê-lo, nós o geramos in^eriormente e não se separa de
nós pelo foto de nascer; assim analogamente, Deus gera o seu Verbo sem
que esse se separe dele20. Esse Verbo é igual áò Pai21.

14. Cf. Trm V II 6,12 (266s). Antes dele já tinha sublinhado esse aspecto HILÁRIO
de Poitiers, Trm IV 17-19; V 8-9 (CCL 62, 119-122; 158-159).
15. Cfc Trm IX 2 ,2 (294).
16. Ibid., IX 5,8 (300); IX 12,18 (309): a m ente, o conhecimento e o amor, e esses três
são um só.
17. Ibid., X 11,18 (330). Cf. também Conf. X H I11,12 (CCL 27,247) a tríade do ser,
do conhecimento e da vontade.
18. Trm XIV 14,18 (445).
19. Ibid., XIV 12,15 (442s); também XIV 16,22 (451): a imagem deve ser reformada
por aquele que a formou; XV 20,39 (516s): a contemplação e a deleitação na Trindade
etem a hão de ser a vida de quem é criado à sua imagem.
20. Ibid., IX 7,12 (304).
21. Ibid., XV 14,23 (496).

248
“TRINITAS IN UNITATE’ . A VIDA INTERNA DE DEUS. AS PROCESSÕES, AS RELAÇÕES. AS PESSOAS D M NAS

Só conhecendo-se a m ente humana pode amar-se a si mesma22. O


Espírito Santo, como veremos a seguir, será posto em relação com a von­
tade e o amor, enquanto vêm depois do conhecimento. No uso dessas
imagens, Agostinho é bem consciente de que o Verbo de Deus e o nosso
não podem ser comparados. A presença da imagem de Deus na alma não
elimina essa diferença fundamental23.
Com esses pressupostos, a teologia medieval, em particular Sto. To­
más, desenvolverá uma teologia da processão pela via intelectual, própria
da geração do Verbo. Vimos há pouco que nas processões divinas dá-se
uma ação que não tem um objeto exterior, mas permanece no mesmo agente.
O exemplo mais eloqüente disso é, para Sto. Tomás, o intelecto, cuja ação
— o entender— permanece naquele que entende24. A processão do Verbo
chama-se geração porque se faz no modo de uma ação inteligível, e a con­
cepção do intelecto é a semelhança da coisa entendida: essa concepção
existe na própria natureza divina, porque em Deus é o mesmo entender e
ser25. Santo Tomás esclarece ainda que a processão por via intelectual é
segundo a semelhança, e pode chamar-se geração enquanto o generante
gera a seu semelhante. Pelo modo de sua processão, o Filho é semelhan­
te ao Pai: por isso tem pleno sentido o nome de Filho, enquanto procede
por geração que o faz semelhante ao que o gera. Ao contrário, a proces­
são por via da vontade não se faz segundo a semelhança, porque não há na
vontade nenhum a se m e lh a n ç a com a coisa querida: na vontade há antes
um impulso e um movimento para algo26.
A processão por via da vontade ou do am or reserva-se tradicional­
mente ao Espírito Santo. O prim eiro ponto com que nos encontramos na
tradição é que o Espírito é “de Deus” (cf. IC or 2,12)27. M as não é gerado,
porque do contrário haveria em D eus dois filhos, contra a afirmação explí­
cita do N ovo Testam ento (cf. Jo 1,14.18; 3,16.18; ljo 4,9).
Santo Agostinho já unia à vontade e ao am or a pessoa do Espírito28;
na “trindade” do amante, do amado e do amor, este últim o ocupa o lugar

22. Ibid., IX 3,3 (295s).


23. Ibid., XV 15-16 (497-501).
24. STb 1 27,1.
25. STb 127,2: “conceptio inteUectus e st similitudo rei intellectae: et in eadem natura
emstens, quia in D eo idem est intelligere e t esse”.
26. STb 1 27, 4 . Já Agostinho, Tritt IX 11,18 (309).
27. IR IN E U , Adv. Haer. V 12,2: “D eus tirou de si o E spírito”; cf. A. ORBE, Teologia
desanlrmeo, M adrid, 1985, 547.
28. Tritt IX 12,17 (308) “sicu t dei verbum filium esse nullus christianus dubitat, ita
caritas esse Spiritus sanctus”; tam bém V I 5,7 (235s), o am or e a unidade do Pai e do Filho.

249
DA -ECO NO M IA" À TEO LO G IA '

do E spírito29. Algo parecido podemos dizer, com o já se observou, de suas


tríades memória /entendim ento /vontade ou mente/conhecimento/amor.
Quando a mente se ama a si mesma, temos em um primeiro momento a
mente e o amor, mas o am or pressupõe o conhecimento que a m ente tem
de si mesm a30. Assim ocupa o terceiro lugar. Deveremos tratar de novo o
Espírito Santo como amor, segundo a perspectiva agostiniana, quando
virmos as características próprias de cada uma das pessoas divinas.
Santo Tomás observa que na natureza intelectual, junto aos atos de
entendim ento, estão os da vontade:
Segundo a operação da vontade encontra-se em nós outra processão, isto
é, a processão do amor, enquanto o amado está no amante, como pela
concepção do verbo a coisa dita ou entendida está no que entende. Daí
que, junto com a processão do Verbo, põe-se em Deus outra proces­
são, que é a processão do amor31.

O intelecto e a vontade em Deus não são coisas distintas; não obstan­


te, como pertence ao modo de ser do amor que só proceda da concepção
do intelecto, a processão do amor distingue-se em Deus da processão do
Verbo32. Portanto, embora em Deus tudo se identifique com a natureza
divina, as processões distinguem-se em razão da ordem de uma a respeito
da outra, já que a segunda pessoa pressupõe a primeira. A distinção entre
as duas funda-se também na diversidade da semelhança que se dá em um
caso e no outro:
A semelhança pertence de uma maneira ao verbo e de outra maneira ao amor.
Pertence ao verbo enquanto é uma certa semelhança daquele que o gera; mas
pertence ao amor não porque o amor mesmo seja semelhança, senão enquan-

29. C f. Ibid., IX 22 (294s), embora Agostinho esclareça aí que ainda não fala da
Trindade divina.
30. Ibid., IX 3,3; 5,8 (296;300s) Cf. A. TURRADO, Agustin (San), in Dicátmario
teologia». El Dios cristúmo, 15-25 (com ulterior bibliografia); ROVIRA BELLOSO, La fé se
hace teologia refleja (S. Agustin), Estlrin 29 (1995) 419-441.
31. STb 1 27,3.
32. STb I 27,3 ad 3: “... nihil enim potest voluntate amari, nisi sit in intellect»
conceptum ... ita licet in Deo sit idem voluntas et intellectus, tarnen quia de ratione amoris
est quod non procedat nisi a conceptione intellectus, habet ordinis distinctionem processio
amoria a processione verbi in divinis”.

250
■TRINÍTAS IN UNITATE". A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES, AS RELAÇÕES, A S PESSOAS D M N A S

to a semelhança é o princípio de amar. Donde não se segue que o amor seja


gerado, senão que o que é gerado é o princípio do amor13.

Por conseguinte, a processão do Espírito Santo, segundo Sto. Tomás,


deve ver-se unida à do Verbo e, ao mesmo tempo, deve ser diferenciada dela.
Essas são as duas únicas processões que têm lugar em Deus, porque só o
entender e o amar são ações que ficam no agente. O sentir, que pareceria ter
essa característica, não é próprio da natureza intelectual. Por isso não pode­
mos pensar em Deus mais processões que a do verbo e a do amor. Porque
Deus entende e ama a sua essência, sua verdade e sua bondade. Deus enten­
de todas as coisas em um ato simples, e com um ato simples as quer. Por isso
não pode haver uma processão do Verbo ex Verbo nem do amor ex amor0a.
Como já indicamos, cabem avaliações diversas dessa especulação de
Sto. Agostinho e de Sto. Tbmás sobre as processões divinas. Não se trata
evidentemente de uma doutrina vinculante, e não se pode dizer que hoje
seja muito seguida pela teologia católica. Mas é necessário seu conheci­
mento para a compreensão de muitos aspectos da tradição teológica que,
embora não dependam em si mesmos dessa especulação, foram com ffe-
qüência iluminados a partir dela.

2. As processões divinas e o amor interpessoal. Ricardo de São Vítor

Mas a analogia com a alma humana que se conhece e se ama não foi
o único caminho que se seguiu na história da teologia para explicar a
fecundidade da vida divina ad intra. Também se seguiu, em bora em m enor
medida, a analogia do amor interpessoal. Santo Agostinho falava dos três
da Trindade igualmente em analogia com o amante, o amado, o amor mes­
mo, embora referindo-se prim ordialm ente à m ente hum ana que se co­
nhece e se ama334S. Mas não faltam indícios de que o amor interpessoal foi
tomado em consideração, pelo menos indiretam ente, pelo doutor de

33. STb 1 27,4 ad 2: “Similitude) aliter perdnet ad verbum, et aliter ad amorem. N am


ad verbum pertinet inquantum ipsum est quaedam similitude) rei intellectae, sicut genitum
est similitudo generantis; sed ad amorem pertnet, non quod ipse amor sit similitudo, sed
inquantom sim ilitudo est prindpium amandi. U nde non sequitur quod amor sit genitus;
sed quod genitum sit prindpium am oris”.
34. STb 1 27,5.
35. Trm IX 2ss (294ss). Cf. J. GALOT, La génération étem elle du Fils, Gr 71 (1990)
657-678.

251
DA "ECONOMIA" À “TEOLOGIA"

H ipona36. Esse veio foi seguido mais decididam ente por Ricardo de São
V ítor (m orto em 1173), anterior em um século a Sto. Tomás. Vale a pena
que nos detenhamos brevem ente em seu De Trinitate para ver o utro modo
de colocar o problema da pluralidade em D eus e da fecundidade ad intra.
Em bora Ricardo não coloque de modo direto o problema das processões,
como Sto. Tomás, a explicação do prim eiro responde à mesma questão,
isto é, “justificar” a existência de uma pluralidade no Deus uno.
Ricardo busca esclarecer com a razão o mistério em que cremos, buscar
as rationes necessariae para explicar a Trindade37. O ponto de partida é que
em D eus tudo é uno, tudo é simples, todos os atributos são uma só coisa
e o mesmo, não há mais do que um Sumo Bem38. A diversidade em Deus
funda-se na perfeição da caridade: nada há m elhor nem mais perfeito do
que a caridade. Esta, essencialmente, tende ao outro; por isso o am or de si
não pode ser a realização perfeita do mesmo39. Para que haja caridade,
deve haver portanto pluralidade de pessoas. Para que Deus possa ter esse
sumo amor, é necessário que haja quem seja digno dele. Chega-se à mesma
conclusão partindo da idéia de felicidade. Esta vai unida à caridade: “como
nada há melhor do que a caridade, nada há mais gozoso do que a caridade”
(sicut nibil contate melius nibil caritate iucundius). Se a divindade é a suma
felicidade, precisa da pluralidade de pessoas para que o amor seja gozoso,
porque o que ama quer, por sua vez, ser amado por aquele a quem ama40.
Se D eus (o Pai) não quisesse comunicar a outro seu amor e sua felicidade,
seria por defectus benevolentiae. Se não pudesse, não seria onipotente. As
duas coisas devem ser excluídas nele. A pluralidade de pessoas, requisito
para o amor gozoso, pede que as pessoas sejam iguais, coetemas, “a suma
caridade exige a igualdade das pessoas” {caritas simrma exigit personarum

36. Trm V III 10,14 (290-291) “Q uid amat anim us in amico nisi animum? Ex illic
igitur tria sunt”. In Job, XIV 9; XXXIX 5 (CCL 36,148; 348). Não esqueçamos, por outra
parte, que Agostinho se opôs a que se considerasse imagem da Trindade a tríade formada
pelo m arido, a m ulher e a prole: TririXH 5,5ss (359ss).
37. RICARDO de São V ítor, De Trinitate, prol; 1,4 (SCh 63,52s; 70). Sobre sua teo­
logia trinitária, cf. X. PTKAZA, Notas sobre la Trinidad en Ricardo de San Victor, EstTrin 6
(1972) 63-101; M . SCHNEIERTSHAUER, Consummatio Caritatis. Eine Untersueben zu
Richard von St. Victors De Trinitate, Mainz, 1996. Sobre as razões necessárias, cf. 88-91;
essas são tais porque se acham em Deus mesmo.
38. Cf. RICARDO, Trm, H 18 (142).
39. Ibid., R I,2 (168): N ihil caritate melius, nihil caritate perfectius... U t ergo phiralitas
personarum deest, caritas om nino esse non potest”.
40. Ibid., m , 3 (172).

252
TR IN ITA S IN UNITATE*. A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES. AS RELAÇÕES, AS PESSOAS DIVINAS

aequalitatem), sempre na unidade da substância. D e contrário, haveria mais


de um Deus41.
Da simples consideração da pluralidade deve-se passar à da Trinda­
de42.34 Surge efetivamente a pergunta: por que não bastariam dois? A res­
posta de Ricardo é que a caridade perfeita pede que o outro seja amado
como cada um ama. Tem de haver consortium amoris. N ão suportar um
condilectus, o que é amado juntamente com ele mesmo, seria um sinal de
grande fraqueza; seria sinal de amor egoísta. Mas quando a condilectio não
só se suporta, mas se deseja, temos um sinal da máxima perfeição. Por isso
a consumação da caridade pede a trindade de pessoas. Também a plenitude
da felicidade exclui todo defeito da caridade. P or essa razão, a dilectio e a
condilectio vão juntas; somente com dois não haveria quem comunicasse as
delícias da caridade45. A condilectio, o am or conjunto, tem lugar quando um
terceiro é amado com concórdia por dois, é amado “socialmente”; o afeto
de dois inflama-se em caridade no incêndio de amor a um terceiro44. As­
sim, com a existência da terceira pessoa, logra-se a caridade e a concórdia
e o amor solidário; esses não se encontram nunca sós (“concordialis caritas
e t consolidalis amor ubique nusquam singularis invenitur”) Para que esse
amor solidário possa ter lugar os três devem ser iguais, co-etem os etc. O
ser dos três é comum a cada um deles, e ao mesmo tempo sumamente
simples (“summe simplex esse est singulis commune”)45.
Com isso se m ostrou que não bastam duas pessoas para o perfeito
amor e a perfeita felicidade. Mas por que só três? Por que não se podem
m ultiplicar indefinidamente as pessoas divinas? Vimos a solução que já
dava Sto. Tomás: só os atos da inteligência e da vontade permanecem no
agente; por isso só pode haver duas processões em Deus. Ricardo segue
outra via: o Pai dá o ser e o amor e não os recebe; o Filho recebe e dá
ambos; o Espírito Santo só os recebe. O Pai é só amor gratuito, que dá; o
Filho, no centro, tem o amor devido por tuna parte ao Pai, e o am or gra­
tuito, por outra, ao Espírito Santo46. Se houvesse mais pessoas que dessem

41. Ibid., m 4-7 (174-182).


42. Ibid., ffl 11 (196-194); cf. SCHNEIERTSHAUER, op. d t., 129ss.
43. Cf. RICARDO, Tritt, E I 13-14(196-200). BOAVENTURA, op. d t., 1 2,3. “Et
ideo, ut altissime et piisim e sentiat, didt, D eum se summe communicare, aetem aliter
habendo dilectum et condilectum , ac per hoc, D eum unum et trinum .”
44. Ibid., Dl 19 (208s): “Ubi a duobus tertíus concorditer diligitur, sodaliter amatur,
e t duorum affectus tertii am oris incêndio in unum conflatur”. O vocabulário de Ricardo
para indicar esse feto é m uito variado: “concordialis”, “condelectari”, “confoederatio”...; cf.
SCH N IERTSHAUER, op. d t., 134.
45. C f. RICARDO, Tritt, H 21-22 (212-216).
46. C f. Ibid., V 16 (344).

253
DA “ECONOMIA" À "TEOLOGIA”

e recebessem produzir-se-ia a confusão entre elas, porque cada pessoa é o


mesmo que seu amor, “quaelibet persona... est idem quod amor suus”47.
Por isso não se pode m ultiplicar as pessoas divinas, pois do contrário fal­
taria a peculiaridade, cada um a delas não teria um tipo de amor como
característica, própria e exclusiva. A diferença do tipo de amor não leva a
uma diversidade de graus, nem a que um seja maior, e o outro menor. Se
segundo essa análise do amor não podem ser mais de três as pessoas, pelas
razões que já conhecemos não podem ser menos. T èr um condigno é a per­
feição de um , ter um condikcto é a perfeição de um e do outro48. Por isso,
na processão do Filho dá-se a comunhão de honra (já que é o condignus) e
na do Espírito Santo dá-se a comunhão do amor (por ser o condilectus). O
Filho, com toda a tradição, é chamado por Ricardo genitus, gerado; os
próprios nom es do Pai e do Filho nos levam a essa denominação. O Espí­
rito Santo — e tampouco aqui Ricardo é esperialmente original — não é
nem genitus nem ingenitus, já que por uma parte não é Filho mas por outra
foi produzido segundo a natureza, e por essa razão não pode ser chamado
“não-gerado”49. Dado que o condignus na ordem lógica vem antes do
condilectus, a processão do Filho é anterior à do Espírito Santo50.
Dois modos ou duas tentativas de aproximação ao mistério da vida
interna de D eus, que tiveram e continuam a ter influência na teologia até
o m om ento presente. C ertam ente a direção agostiniano-tom ista gozou
na história de um predicam ento que não podemos atribuir à linha do
amor interpessoal de Ricardo. Mas esta foi revalorizada notavelm ente
nos últimos tempos. Deveremos voltar a essa questão ao analisar o con­
ceito de pessoa. N o momento, retenham os as idéias básicas dessas duas
vias, usadas na história, como aproximações do m istério inefável da vida
interna de Deus. N a fundamental inadequação de toda explicação possí­
vel, devemos afirmar que a fecundidade ad intra do amor divino é um
dado essencial da concepção cristã de Deus. Isso é o que nos querem
mostrar os conceitos clássicos da geração do Filho e da processão ou
expiração do Espírito. A isso se chega através das missões ad extra com
que Deus se revela. A reflexão crente, sob a ação do Espírito, descobriu que
essas missões temporais têm na própria vida im anente de Deus seu fun­
damento eterno.

47. Ibid., V 20 (352).


48. Ibid., V 8; V I6 (322;388).
49. Ibid., V I 16 (420s).
50. Ibid., V I 6-7 (386-390).

254
TR IN ITA S IN UNITATE- A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES, AS RELAÇÕES, AS PESSOAS DIVINAS

A teologia oriental não seguiu essas analogias com a psicologia huma­


na e com o amor interpessoal para iluminar esse m istério da geração e da
expiração. Manteve-se mais “apofática”, sobretudo no que respeita à pro­
cessão do Espírito Santo. João Damasceno, para citar um exemplo, formu­
lou o problema deste modo: “O modo da geração e da processão são in­
compatíveis. Sabemos que há um a diferença entre a geração e a processão,
mas não sabemos qual é essa diferença”51. Notem os a propósito deste texto
que se distingue geração (para o Filho) e processão (para o Espírito Santo).
Como insinuamos, não se usa o conceito genérico de processão.
D e propósito se deixou de lado nesta exposição das processões divinas
o tema da processão do Espírito Santo do Pai e do Filho. Os autores oci­
dentais que citamos claramente a pressupõem. M as estudaremos mais de­
tidamente esse problema ao tratar da pessoa do Espírito Santo. Então tere­
mos todos os dados para compreender a questão que se colocou na história
em relação à processão do Espírito, e os problemas ecumênicos ligados a
ela, e infelizmente ainda não superados52.

AS RELAÇÕES DIVINAS

N a sistemática clássica da teologia trinitária, depois das processões


divinas, aborda-se o tema das relações em Deus. Trata-se, sem dúvida al­
guma, de outra das categorias fundamentais da doutrina sobre a Trindade,
que deve ser vista em conexão íntima com a que até agora nos ocupou.
Com efeito, segundo a teologia tradicional, as relações em Deus derivam
das processões, isto é, do fato de que no Pai, no Filho e no Espírito Santo
se dá uma ordem no “proceder”. Já os nomes de Pai e de Filho, como
tivemos ocasião de ver, sugerem a idéia de relação. Podemos aceitar, por­
tanto, como ponto de partida que o fato da geração do Filho e da expiração
do Espírito determina a existência de relações em Deus. Os capadócios,
Basúio e Gregório Nazianzeno tinham introduzido a noção de relação na
teologia trinitária. O Pai e o Filho têm a mesma substância enquanto são

51. De fide ortbodoxa, 1 8 (PG 94, 822); cf. também 1 2 (793); I 7-8 (817-824).
52. Enumeramos alguns textos im portantes do m agistério sobre as processões divi­
nas (alguns citados no final do capítulo anterior, outros mais adiante, em relação com a
questão específica da processão do Espírito Santo); DS 850; 851,853 (Concílio II de Lião)
1300-1302; 1330-1331 (Concílio de Florença). Como já insinuamos, o magistério, ao tra­
tar das processões, não se comprometeu com nenhum m odelo especulativo de “explicação”
delas.

255
DA ■ECO NO M IA' À ■TEOLOGIA’

o que gera e o que é gerado; nomes relativos como “pai”, “filho” ou “reben­
to” não indicam a substância de nenhum ser, mas uma relação: n o caso de
Deus a relação do Pai ao Filho e vice-versa. H á nomes que se aplicam às
pessoas e às coisas por si mesmas, outros que se referem à sua relação com
outras: homem, cavalo, boi pertencem às primeiras; filho, escravo e amigo,
às segundas: indicam somente a relação ao term o a que se contrapõem. Assim,
falar do pai e do “rebento” — no exemplo de Eunôm io — não tem por que
implicar duas substâncias, porque tanto um nom e como outro só têm sen­
tido em relação com aquele a que se contrapõem na relaçãoS3.

1. As relações em Deus segundo Agostinho

C om esses antecedentes, Sto. Agostinho fez da relação uma das peças


mestras de sua teologia trinitária. Devemos notar que em seu prim eiro De
Trinitate ele não utiliza apenas o termo relatioS4, mas relativum, relative, e
outras expressões equivalentes como ad aliquid, ad aliud etc. Vejamos bre­
vemente os passos que segue o D outor de Hipona55: parte-se da idéia, que
Agostinho já encontra na tradição, da simplicidade de Deus. D aí se pode
tirar um a falsa conseqüência: dado que em Deus não pode haver acidentes,
tudo o que se afirma tem de ser segundo a substância. Ora, do Pai e do Filho
predicam-se coisas distintas. Portanto, já que pela simplicidade divina a di­
ferença não pode ter caráter acidental, a diversidade deve referir-se à subs­
tância. Por conseguinte, o Filho não pode ser Deus como o Pai.
Para refutar essa objeção, Agostinho introduz uma distinção que não
pode se reduzir à distinção que se dá entre substância e acidente. Efetiva­
mente, não há acidentes em Deus, mas nem tudo se predica nele segundo
a substância. Também há coisas que se predicam ad aliquid, a respeito de
outro, em relação com outro. Segundo Aristóteles, a categoria da relação
é acidental56; mas os acidentes têm origem na mutabilidade, que em Deus

53. Recordemos alguma das afirmações fundamentais dos capadócios: BASÍLIO, C.


Etm. II 5 (SCh 305,22); “Pai e Filho não designam a substância, mas as propriedades”; II
28 (118), “a divindade é comum e entre as propriedades contamos a paternidade e a filiação”;
GREGORIO Nazianzeno, Or. 29,16 (SCh 250, 210): “Pai não é um nome de essência nem
de atividade, mas um nome de relação que indica como o Pai é a respeito do Filho, e o
Filho a respeito do Pai; cf. Ibid., 31,9 (290s).
54. Talvez a única exceção em Trin V 11 12 (241) “ipsa relatio non apparet in hoc
nomine (Spiritus Sanctus)...”.
55. Cf. sobretudo Trin V (CCL 50, 206-227).
56. Diferentes alusões às categorias aristotélicas em Trin V 1.2; 7,8; 8,9 (207, 213s,
215s); Conf. IV 16,28-29 (CCL 27,54),

256
TR IN ITA S IN UNUATE". A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES. AS RELAÇÕES, AS PESSOAS D M NA S

está excluída. Portanto, ao ser imutável, o relativo que se dá em Deus não


tem caráter acidental. Introduz-se assim, na medida em que se aplicam a
Deus, um novo critério da divisão dos predicamentos: o que se diz adse, e
o que se diz ad aliquid. Precisamente por isso o Pai e o Filho são sempre
tais, não há neles mudança nem mutação57. N a suma simplicidade do ser
divino deve-se, pois, m anter a distinção entre o que se diz de Deus em si
mesmo e o que se diz em relação a outro: “Portanto, embora seja diverso
ser Pai e ser Filho, não significa ter diversa substância; porque essas coisas
não se dizem segundo a substância, mas segundo a relação (relativum)-, e
esse relativo não é acidente, porque não é mutável”58. Fala-se em Deus de
Pai e Filho em termos relativos, não absolutos, e portanto nada impede
que a substância seja a mesma, que não haja diversidade substancial, ain­
da que os dois não sejam o mesmo. Os nomes de Pai e de Filho fazem-nos
ver portanto as relações que se estabelecem entre os dois, as de paternida­
de e de filiação. Só há Pai porque há Filho, e vice-versa. Na tradição an­
terior encontramos com fireqüência esse argumento.
U m a dificuldade maior apresenta-se a Agostinho quando tem de tra­
tar do Espírito Santo. Esse termo não é relativo, e por outra parte não
parece próprio de nenhum, porque também o Pai e o Filho são “espíritos”
e são “santos”59. Mas o caráter relativo do Espírito Santo, que não aparece
nesse nome, aparece quando se chama “dom”. Já o Novo Testamento abre-
nos caminho para usar esse term o (cf. At 2,38; 8,20; 10,45; 11,17; também
Jo 14,16 ete. sobre o Espírito “dado”). Agostinho pode recorrer aqui à
tradição latina anterior, especialmente de H ilário de Poitiers, que conhece
e cita com elogio60, e para quem “dom” constitui na prática outro nome
pessoa] do Espírito Santo. Com matizes diversos que já conhecemos, no
Novo Testamento o Espírito é de Deus e é de Cristo, é dado pelos dois.
Por isso, e como essa relação deve se estabelecer form alm ente entre
dois term os, o Espírito aparece como dado pelo Pai ao Filho que juntos
constituem o princípio único da terceira pessoa61.

57. Cf. L. F. LADARIA, Persona y relación en el D e Trinitate de san Agustín, Misce­


lânea Camillas 30 (1972) 245-291, esp, 257.
58. T m V 5,6 (211):"... quamvis diversum sit Patrem et Filium esse, non est tamen
diversa substantia: quia hoc non secundum substantiam dicuntur, sed secundum relativum;
quod tam en relativum non est accidens, quia non est m utabile”.
59. Cf. Trin V 11,12 (219s) também para o que segue.
60. C f. HILÁRIO de Poitiers, Trin I I 1 (CCL 62,38) que, embora com modificações,
AGOSTINHO d ta em Trin. V I 10,11 (241). Nessa passagem não se fida de donum mas de
mttnus. O s termos são equivalentes.
61. Ibid., V 14,15 (223) “relative ad Spiritum Sanctum, unum prindpium ”.

257
DA "ECONOMIA” À “TEO LO G IA'

Embora Agostinho não o tenha formulado diretamente, de seus textos


depreende-se que a geração eterna do Filho e a processão do Espírito são as
que dão origem a essas relações. Os nomes relativos da Escritura, por outra
parte, fazem-nos conhecer as processões que lhes dão origem. Não causa
especial dificuldade a geração do Filho. A relação que se estabelece entre o
Pai e o Filho m ostra esse tipo de “processão”. O Espírito Santo, porém, que
é “dom”, não procede como nascido, senão como dado, “non qupmodo natus,
sed quomodo datus”42. 0 Espírito, enquanto “dom”, procede de quem o dá.
Talvez essa doutrina das relações tenha podido influenciar na questão da
processão do Espírito do Pai e do Filho, com que já nos encontramos e a que
dedicaremos especificamente nossa atenção mais adiante; temos aqui um
exemplo interessante da relação entre a Trindade econômica e Trindade
imanente: se Agostinho disse que o Espírito é dom “economicamente”, isso
o leva a dizer que procede como “dado”. Mas não foi conseqüente até o
final. A geração do Filho, segundo isso, deveria corresponder já na Trindade
imanente a “doação” do Espírito. Mas Agostinho não seguiu esse caminho.
São evidentes as confusões a que se teria prestado essa terminologia.
Enquanto Deus é imutável, das relações mútuas deduz-se a eternida­
de das três pessoas. Com o ocorre com freqüência na teologia trinitária,
essa questão é mais clara na relação com o Pai e o Filho. Se o ser do Pai
é ser pai, não se pode adquirir essa condição em um momento dado, tem
de ser eterna; portanto, é também etem o o Filho, diferentem ente do que
pensavam os arianos. M ais dificuldade oferece a eternidade do Espírito
Santo. Esse nom e, como já se observou, não indica relação, e o dom do
Espírito aos homens certamente não é ab aetemo. O Espírito começa a
existir quando é dado? Agostinho encontra a saída dessa dificuldade na
distinção ente “dom” e “dado” (donatum). O Espírito Santo desde sempre
é “dom”, e por conseguinte é “doável”, ainda que não se possa dizer que
foi desde sempre dado6 63.
2 Por isso a terceira pessoa existia como as outras
duas desde o princípio, as relações intratrinitárias que a ela se referem são
também eternas e portanto imutáveis.
Agostinho partiu certamente de uma forte acentuação da unidade
divina64. Mas com sua doutrina das relações consegue afirmar a distinção

62. Ibid., (220): “Exit enim non quomodo natus sed quomodo d atu s...”.
63. Ibid., V 15,16 (224).
64. Cf. especialmente os três primeiros livros De Trmitate, em que m ostra uma dara
tendência de aplicar a Deus enquanto uno (Pai, Filho e Espírito Santo) uma série de pas­
sagens do Novo Testam ento que daram ente se referem ao Pai. Mas ainda assim fica daro
que o Pai é o princípio de toda divindade: Trm IV 20,29 (200): “... totius divinitatis vel si
melius didtur deitatis princíphim pater est”.

258
"TRINITAS IN UNITATE". A VIDA IN TER N A DE DEUS: AS PROCESSÕES, AS RELAÇÕES, AS PESSOAS D M NA S

das pessoas sem que a unidade da essência fique afetada. Deve-se distin­
guir entre o que se diz da essência divina e o que se diz em particular de
cada pessoa. O que se predica da essênda divina, que é comum a todas as
pessoas, é o que se predica a i se. O que se predica a i aliquid, em relação a
outro, pode referir-se a uma relação ad extra, a respeito das criaturas, e
então se afirma também de toda a Trindade (por exemplo, Deus é criador),
por ser essa um só princípio de todo o criado. Mas pode se referir também
às relações ad intra, e então se afirma de um a das pessoas em sua relação
com as outras. As afirmações absolutas que se faz de cada uma das pessoas
referem-se igualmente às outras: assim o pede a simplicidade da essênda
divina; do contrário, cairíamos no triteísm o. Assim Pai é luz, como tam­
bém o Filho e o Espírito Santo; mas os três não são três luzes, mas uma só.
O mesmo digamos da sabedoria, e por últim o do próprio ser divino: os três
são Deus, mas um só D eus65.
Em tudo o que se diz de Deus ad se, exclui-se por conseguinte o nú­
m ero plural. Isso não implica desconhecimento da distinção entre o Pai, o
Filho e o Espírito Santo. Agostinho serve-se, como já o fazia Tèrtuliano,
de Jo 10,30 para m ostrar a unidade e a distinção em Deus: “Ego et Pater
unum sumas... unum secundum essentiam, sumus secundum relativum”66.
O singular em Deus refere-se à única essência divina. Nesse plano está
excluído o plural, porque nos levaria, dada a simplicidade divina, ao triteís­
mo. Pode-se fazer referência somente às relações, que não afetam a unida­
de da essência.
Severino Boécio, seguindo a linha agostiniana, terá uma afirmação
curiosa e contundente: “a substância contém a unidade; a relação m ultipli­
ca a trindade67. Boécio observa também que nem toda relação supõe uma

65. Trin. V II 3,6 (254): “Lumen ergo pater, lumen filius, lumen spiritus sanctus;
simul autem non tria lum ina, sed unum lumen. E t ideo sapiemia pater, sapientia filius,
sapientia spiritus sanctus; e t sim ul non tres sapientiae, sed una sapientia; et quia hoc est ibi
esse quod sapere, una essentia pater et filius et spiritus sanctus. N ec aliud est ibi esse quam
deum esse: Unus ergo deuspater etfilius et spiritus sanou?'. Cf. também VI 7,9 (237s) Deus
é trin o , mas não triplo. Ecos dessa idéias encontram -se no símbolo Quiaimque (DS 75); e
tam bém no XI Concílio de Toledo (DS 528).
66. Trin V II 6,12 (266); cf. outras citações do texto em V 3,4 (208); 9,10 (217); VI
2,3(231).
67. BOÉCÍO, Irin (P L 6 4 ,1.254s): “Sed quoniam nulla relatio ad se ipsum referri
potest, iddrco quod ea secundum seipsum est praedicatio quae reladonem caret, facta quidem
est trinitatis numerositas in eo quod est praedicatio relationis: servata vero unitas in eo
quod est indifferentia vel substantiae, vel operadonis, vel omnino eius quae secundum se
d id tu r praedicationis. Ita ig itu r substantia condnet unitatem , relatio m utiplicat trinitatem :
atque ideo sola sigillatim proferuntur atque separa tim quae relationis sunt...”.

259
DA "ECONOMIA” À "TEOLOGIA"

diferença de plano, como ocorre entre o servo e o senhor. A relação na


Trindade é do igual com o igual, e do semelhante com o semelhante, do
que é o mesmo que o outro68.

2. Tomás de Aquino. As relações reais em Deus

A doutrina agostiniana das relações será compilada e aperfeiçoada por


Sto. Tomás. Ele parte de que tudo o que há em Deus ou é absoluto ou é
relativo69. As relações em Deus são reais: há uma verdadeira paternidade e
filiação porque do contrário não haveria verdadeiramente um Pai e um
Filho, o que seria a heresia de Sabélio. As processões em Deus dão-se na
identidade da natureza; por isso o princípio e o que procede estão referi­
dos e "inclinados” um para o outro70. Portanto, há uma distinção a respeito
das criaturas, que têm relação real a Deus, mas não vice-versa, porque
Deus as fez porque quis71. A relação e a essência em D eus são o mesmo,
pela razão que já conhecemos, porque nada pode haver em Deus como um
acidente em um sujeito. Portanto a relação distingue-se da essência só
enquanto na relação se trata de algo a respeito do oposto; o que não ocorre
no nome da essênda72.
As relações distinguem-se por sua vez entre si, e essa distinção é real;
mas não se produz segundo a essênda, na qual há suma unidade e simpli­
cidade, mas segundo a relação73. É a distinção das pessoas que obriga a
essas predsões, já que do contrário ela mesma se veria comprometida. Essas
relações reais e distintas em Deus fundam-se em sua ação, que dá lugar às
processões internas. São, como já sabemos, a processão segundo a ação do
intelecto, que é a processão do Verbo, e a processão segundo a ação da

68. Ibid., (1255): “Sane sciendum est, non semper talem esse relativam praedicationem,
u t semper ad differens praedicetur; u t et servus ad dominum, differunt enim. Nam omne
aequale aequali aequale est, et simile simili simile est, et idem ei quod est idem, idem est:
et similis est in T rinitate relado, Patris ad Filium et utriusque ad Spiritum sanctum; u t eius
quod est idem ad id quod est idem”.
69. In I Sent, d.26,1,1
70. Cf. STb I 28,1.
71. Ibid., 28,2: “in Deo non est relatio realis ad creaturas”.
72. Ibid.: “Quidquid in rebus creatis habet esse acddentale, secundum quod transfertur
in Deum habet esse substandale: nihil enim est in Deo sicut accidens in subiecto. Sed
quidquid est in Deo est eius essenda... Relado realiter existens in D eo est idem essendae
secundum rem . E t non differt nisi secundum intelligendae radonem , prout in reladone
im portatur respectum ad suum oppositum, qui non im portatur in nom ine essendae”.
73. Cf. STb I 28,3.

260
TR IN ÍTA S IN UNITATE". A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES, AS RELAÇÕES, AS PESSOAS DIVINAS

vontade, que é a processão do amor, a do Espírito Santo. Em cada uma


dessas processões achamos duas relações opostas: uma que é a do que pro­
cede do princípio, outra, do mesmo princípio. Já sabemos que a processão
do Verbo recebe o nome de geração. A relação do princípio dos seres vivos
chama-se “paternidade”, a do que procede do princípio chama-se “filiação”.
São, como se vê, duas relações opostas. A processão do amor não tem nome
próprio. Mas a relação por parte do que é princípio chama-se “expiração” e
a contrária, por parte do que procede do princípio, é denominada de modo
genérico “processão”, e também “expiração passiva”74. Temos assim, segun­
do Sto. Tomás, quatro relações reais em Deus. Retenhamos esses dados para
nossa exposição seguinte sobre o conceito de pessoa em Deus.
A teologia da relação em Deus mostra-nos que ele existe na plenitude
da vida e da comunhão, que o Deus uno e único é o contrário de uma
mônada fechada em si mesma. E claro que ao pensar na relação em Deus
nos vêm necessariamente à lembrança nossas múltiplas relações humanas.
Mas, embora essa analogia possa ajudar-nos, não podemos cair em um
ingênuo triteísm o. Em nossa experiência cotidiana nós, em prim eiro lugar,
somos, e depois entram os em relação, por mais que reconheçamos a im­
portância da relação. Em todo caso, nosso ser não se identifica com ne­
nhuma relação inter-humana. Nossa relação com Deus determina o que
somos, mas trata-se sempre de uma relação contingente: Deus nos criou
porque quis, poderíamos não existir. As relações em Deus, dada a suma
simplicidade da essência divina, identificam-se com a essência mesma. Deus
não tem relações, Deus é diversidade de relações reais, que têm seu prin­
cípio e seu term o nele mesmo. Deus é amor, sua vida é essencialmente
comunicação. Deus existe só nas relações internas e nunca fora — ou à
margem — delas. Não são algo “posterior” ao ser divino, são eternas como
é o próprio ser de D eus, não existe prim eiro Deus e depois suas relações.
Em virtude dessa plenitude devida interna, Deus pôde sair de sina encarnação,
como pôde também realizar a criação, que recebe da primeira seu pleno sen­
tido. A realidade criada contingente, distinta de Deus, tem seu fundamen­
to na distinção que as relações significam em Deus mesmo75.
As relações não contradizem a unidade divina, senão que essa se dá
precisamente nas relações e não à margem delas; por sua vez, a oposição
das relações só tem sentido no âmbito da unidade divina. O Concílio de

74. Ibid., 28,4; tam bém 29,4; 30,2. Também BOAVENTURA, op. cit., I 3,4.
75. Cf., sobre a relação da criação com a Trindade, LADARIA, Antropologia teológica,
Casale M onferrato-Rom a, 1995, 64 ss.

261
DA “ECONOM IA” À "TEOLOGIA”

Florença, em seu D ecreto para os Jacobitas, formulou o conhecido prin­


cípio: "Tudo [em Deus] é um onde não se interpõe a oposição da relação”
“omniaque unum sunt, ubi non obviat relationis oppositio”; D S 1.3 3O)76.
N ão se trata sim plesm ente de que as relações divinas se opõem à unidade,
como esta não se opõe à trindade de pessoas. Deus não seria m ais "trino”
sem a unidade da essência, como não seria mais "uno” se não se dessem as
relações. Também nelas se expressa a unidade divina. Esta não se vê menos­
cabada nem obstada p o r essas relações m útuas que, como veremos em
seguida, constituem as pessoas.

AS PESSOAS DIVINAS

O conceito da relação em Deus conduz-nos à consideração do pro­


blema das pessoas. Com o observa W. Kasper, as relações contrapostas em
Deus não são mais do que a expressão abstrata das três pessoas divinas ou
hipóstases77. Como vimos, tanto na teologia de Sto. Agostinho e de Sto.
Tomás como no Concílio de Florença (cf. DS 1.330), a relação é o que
distingue em Deus; a pessoa é o que é distinguido. Ambos os conceitos
estão, por isso, particularm ente ligados.

1. A noção de “pessoa” em Agostinho

Em nossa breve história do dogma trinitário78vimos como Tèrtuliano


introduz o term o no vocabulário teológico latino, como contraposto à
substância. Com a noção de pessoa, ainda não completamente elaborada,
faz-se referência à distinção em Deus. N a teologia grega, alexandrina em

76. Costuma-se citar Sto. ANSELMO como precursor dessa fórmula. Deproc. Spiritus
sancti I (Opera [Obra com pleta], SCH M ITT (ed.), v. 2,180-181): “Sic ergo huius unitatis
et huius relationis consequentiae se contemperant, u t nec pluralitas quae sequitu r relationem
transeat ad ea, in quibus predictae simplidtas sonat unitatis, nec unitas cohibeat pluralitatem,
ubi eadem relatio significatur. Quatenus nec unitas am ittat aliquando suam consequentiam,
ubi non obviat aliqua relationis oppositio, nec relatio perdat quod suum est, nisi ubi obsistat
unitas inseparabilis”. Nem a unidade nem a distinção podem ser afirmadas uma em detri­
m ento da outra. A formulação de Anselmo parece mais completa do que a do Concílio de
Florença. Sobre as relações em Deus, cf. também DS 528; 570; 573.
77. Cf. D er G ott..., 342.
78. Sobre a história do termo, A. M ILANO, La Trinità dei teologi e dei filosofi.
L’inteUigenza della persona in D io, em A. PAVAN; A. M ILANO (eds.), Persona epersonalism»,
N apoli, 1987, 1-286; do mesmo, Persona in teokgia, N apoli, 1984.

262
"TRINITAS IN UNITATE". A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES, AS RELAÇÕES, AS PESSOAS D M N A S

particular, introduz-se a terminologia das “três hipóstases”: com ela se deu


ocasião a dificuldades e mal-entendidos, porque pôde ser interpretada no
sentido de uma excessiva separação, e não de simples distinção, entre os
“três”. O Concílio de Nicéia ainda não distingue com clareza a “hipóstase”
da ousta. N o “Tomos ad Antiochenos” (ano 360) Atanásio elimina as preven­
ções contra o uso da expressão “três hipóstases”. N ão é necessariamente
ariana, como não é forçosam ente sabeliana a fórmula “uma ousta”. O s
capadócios já basearam sua teologia trinitária na distinção entre ousta e
hipóstase. Em lugar deste último termo usaram também como equivalente
prásopon, talvez mais aparentado em suas origens à persona dos latinos.
Agostinho, em seu De Trinkate, refletiu já de maneira bastante reflexa
sobre o termo persona. Depois de tê-lo usado nos começos da obra de modo
mais ou menos impreciso e geral, em um m om ento determinado de sua
exposição, sobretudo no livro V II, tem de entrar no estudo direto da ques­
tão. Os gregos falam de uma essência {ousta) e três substantiae (bypostaseis);
os latinos de uma essência ou substância, e três pessoas79. Deve-se preferir
em latim o term o pessoa, porque a substantia, equivalente etimológico de
bipostasis, se confundiria com a essência, dado o uso habitual dessas pala­
vras em latini. Mas, isso não significa que persona seja um termo adequado
com que Agostinho se sinta satisfeito. Usou a palavra porque não encon­
trou outra melhor: “dictum est tam en tres personae, non ut illud diceretur,
sed ne taceretur”80. Pois, com efeito, quando nos encontramos com os três,
Pai, Filho e Espírito Santo, e os chamamos pessoas, usamos a mesma ex­
pressão para referir-nos a três homens, com a diferença que há entre os
homens e Deus. A necessidade força a utilizar esse term o menos inadequa­
do que outros.
Agostinho já nos disse que Pai, Filho e Dom (nome próprio do Espí­
rito Santo, como sabemos) são term os relativos. M as, quando dizemos que
o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três pessoas, falamos somente das
relações que os unem, do mesmo modo quando falamos de três amigos ou
três vizinhos, ou dizemos algo deles em si mesmos? O u formulado de outra
maneira: as três pessoas estão em relação, mas o estão por ser “pessoas” ou
por ser Pai, Filho e Dom? E pessoa um relativo? Em nossa linguagem
dizemos que um é amigo ou vizinho de outro; ou, referindo-se às pessoas

79. Cf. Trin V II 4,7 (C C L 50,255); também V 8,10(217). Agostinho dá por suposto
que há equivalência entre os term os gregos (que não cita no original), senão em tradução
latina {essentia, substantia), e os latinos, “uma essentia vel substantia, tres personae”.
80. Trin. V 9,10(217); cf. também V II 4,7 (255); cf. LADARIA, Persona y relation.
245-291; 268ss, também para o que segue.

263
DA ‘ ECONOMIA" À TEO LO G IA -

divinas, chamando Pai do Filho, e Filho do Pai, ou Dom dos dois. Com
isso m ostra-se que usamos term os relativos. Mas quando dizemos a pessoa
do Pai não falamos do Filho, m as do Pai mesmo. A conseqüênda é que o
conceito de pessoa nao se predica em relação a outro, senão uad se”*1.
Agostinho encontra-se com um a dificuldade insuperável. Foi dito antes
que a pluralidade em Deus vinha da relação, e que não cabia o plural em
tudo o que se diz ad sei mio são três deuses, nem três sábios, nem três
luzes... Agora nos encontramos com um plural que se diz ad se: três pesso­
as. As três estão em relação enquanto Pai, Filho e Dom8 82,
1 mas não enquan­
to "pessoas”. Agostinho não pôde ir mais além. Viu claramente que o plu­
ral em D eus vinha das relações, mas o conceito de pessoa é para ele um
absoluto. D essa aporia não pôde sair83. Agostinho não tratou de d e fin ir
diretam ente a pessoa. Mas nesse contexto observa que é algo singular e
individual, “aliquid singulare atque individuum”84. N ão deixa de chamar a
atenção que use o neutro nessa aproximação da noção.

2. De Boécio a Tomás de Aquino

Santo Tomás será capaz de sair da aporia de Agostinho com os ele­


mentos que o próprio D outor de Hipona lhe proporcionou. Mas antes de
entrar no estudo de seu pensamento temos de deter-nos brevemente em
alguns autores que influíram no pensamento posterior.
Devemos mencionar antes de tudo Boécio (m orto em 524), que pro­
porcionou a definição da pessoa que foi, e continua a ser, o ponto de refe­
rência obrigatório na teologia ocidental: "persona est naturae rationalis
indivídua substantia”85. O contexto em que Boécio aborda a questão da
pessoa é cristológico, ainda que pretenda que sua definição seja também
válida do ponto de vista trinitário e antropológico (incluindo também os
anjos). O prim eiro elemento da definição é substantia, o substrato do ser,
mas esta tem de ser individualizada, isto é., não intercambiável com outra.

81. Cf. Trm VII 6,11 (261-26$); texto-chave para a noção agostiniana da pessoa. Cf.
LADARIA, op. cit., 217ss. Parece que Agostinho pensa ainda em um “ser” do Pai, de
algum modo anterior a seu ser “Pai”, e o mesmo das outras pessoas; tende a apoiar a relação
sobre um absoluto, um ser de algum m odo prévio a ela.
82. Cf. Trm. IX 1,1 (293) as três pessoas estão relacionadas ad hwicem.
83. Assim se vê obrigado a aceitar esse plural “absoluto”, além da pluralidade de
relações: cf. Trm V II 6,12 (262); VDI proem. 1 (268).
84. Trm. VH 6,11 (263).
85. Liber de persona et duabus naturis, 3 (PL 64,1.343).

264
TR IN ITA S IN UNITATE”. A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES. AS RELAÇÕES, AS PESSOAS DIVINAS

A natureza racional especifica ainda mais essa individualidade: é precisa­


mente nela em que nós, os homens, experimentamos a incomunicabilidade.
É necessário esse elemento porque em si mesma a individualidade não é
mais do que uma concreção da natureza, não nos leva ainda ao domínio do
que entendemos normalmente por "pessoal”86. Só os seres racionais são
por conseguinte "pessoas”, têm a individualidade que os faz realmente
irrepetíveis.
Ricardo de São Vítor modificou a definição boedana. Para ele, a pessoa
é a "naturae rationalis incommunicabilis existentia”, a existência incomu­
nicável de natureza radonal87. Eliminou a “substância” e acentuou o ele­
mento relacional. Ricardo chega a essa definição sobretudo tomando em
consideração as pessoas divinas. N ota a dificuldade de aplicar a Deus a
definição de pessoa de Boécio: se na definição se fida de substantia há o
risco de pensar que as três pessoas em Deus são três substâncias ou essên­
cias, e assim cair no triteísmo. Usar o termo subsistentia, demasiado próxi­
mo a substantia, pode com portar um perigo semelhante88. Por outra parte
a pessoa significa o quis, enquanto a substância o quüP9. Há uma dara
diferença entre os dois planos. Daí que se proponha substituir substantia
por existentia, palavra que indica a essênria, sistere, o que há no um, e ao
mesmo tempo a procedência, o er do ser de cada um90. Só por isso se
distinguem as pessoas divinas, já que têm a mesma qualidade, não há entre
elas dessemelhança ou desigualdade. Em Deus há unidade segundo o modo
de ser, iuxta modum essendi, mas pluralidade segundo o modo de existir,
iuxta modum existendfl. A diferença vem da origem92. Precisamente, do
diverso modo de existir, em relação com a procedência ou não procedên­
cia, vêm as propriedades das pessoas: próprio de uma é ser em si mesma,
comum às outras duas não ser de si mesmas. O Pai não procede de nenhum,
“er-siste” a partir de si mesmo, as outras pessoas procedem dele. O Filho

86. Cf. KAPER, op. d t., 342; M ILANO, La Trmità... Slss.


87. RICARDO de São Vítor, 7rm. IV 23 (SCh 63, 282). Uma exposição detalhada do
conceito de pessoa em Ricardo pode-se ver em M. SCHNIERTSHAUER, op. d t., 147-177.
88. Ibid., IV 3,4 (232-238); 21 (280). É possível que Boédo já houvesse se dado conta
desses problemas: em seu De Trinitate (PL 64, 1.247-1.256) não usa apenas o term o pessoa,
mas fala abundantemente em relação.
89. Ibid., IV 7 (242s). Víamos como Agostinho falava ainda do aliquid em relação
com a pessoa (cf. o texto a que se refere a nota 84).
90. Ibid., IV 12 (252s).
91. Ibid., IV 19 272); Ibid., (270): “possunt esse plures existentiae, ubi non est nisi
unitas substantiae”.
92. Ibid., IV 15 (260).

265
DA “ECONOMIA" À "TEOLOGIA"

procede do Pai e tem outro que procede dele. O Espírito Santo procede de
outro e não há ninguém que proceda dele93. A propriedade pessoal é aquilo
pelo qual cada um é o que é, e por isso há em Deus tantas pessoas como
"existências incomunicáveis”94. D aí a definição da pessoa divina como “divinae
naturae incommunicabilis existentia”95. A partir dessa definição da pessoa
divina chegamos à definição da pessoa em geral que já conhecemos.
N a pluralidade de pessoas divinas dá-se uma "concórdia diferente” e
um a "diferença concorde”96. Dado que o am or é tão determinante no modo
de explicar as processões, as pessoas divinas, quanto a seu m odo de proce­
der, caracterizam-se pelo modo de seu amor, já que um e outro pratica­
m ente coincidem. Cada pessoa é o mesmo que seu amor, segundo o texto
que já conhecemos97. N o amor está a diferença, não na dignidade ou no
poder. Dessa maneira, a visão de Ricardo mostra-nos como a pessoa, em
sua identidade, e em sua incomunicabilidade, é ao mesmo tem po abertura
no amor. Mais ainda, o amor determina sua irrepetibilidade. Trata-se sem
dúvida de uma intuição muito rica: o irrepetrvel em cada um é o modo
com o sai de si no amor, o modo, poderíamos dizer, como se relaciona com
os outros; esse é o elem ento "incomunicável” mais do que a substância.
Isso vale antes de tudo para Ricardo em relação com as pessoas divinas,
mas podemos pensar que, com as devidas diferenças, também podemos
aplicar o princípio aos homens. N a qualidade do am or determina-se o que
somos: Agostinho, em outro contexto, tinha formulado já algo parecido98.
Em Deus há um só amor, mas distinto em cada uma das pessoas99.
N o receber e no dar o amor, o Filho expressa a imagem do Pai, que
é quem dá o amor originaríamente. Não assim o Espírito Santo, que, se­
gundo Ricardo, não dá o amor ad hora. P or isso o Filho é verbo, sabedoria,
porque por ele temos notícia do Pai, fonte da sabedoria, já que por ele se
manifesta a glória paterna100. No Filho aparece a glória do Pai, "quão grande
seja, dado que quis e pôde ter um Filho tal, igual a ele em tudo”101. Ao

93. Cf. Ibid., V 13 (336).


94. Ibid., I V 17-18 (264-268).
95. Ibid., IV 22 (280s).
96. Ibid., V 14 (338).
97. Ibid., V 20 (352): “E rit ergo unicuique trium idem ipsum persona sua quam
dilectio sua”, “qualibet persona... est idem quod am or suus”.
98. Cf. In Ep. Job. 2,14 (PL 35, 1997).
99. Ricardo, T rm V 2i (360).
100. Ib V I 12 (404-406); cf. A G OSTINHO, Trin. VI 2,3 (230-231): o Filho é verbo,
imagem, todos nomes relativos em referência ao Pai.
101. Ricardo, Trin. V I 13 (410).

266
•TRINITAS IN UNITA TE' A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES, AS RELAÇÕES, AS PESSOAS D M NA S

Espírito Santo atribui-se propriam ente esse nome, que de si convém tam­
bém ao Pai e ao Filho, porque é o que santifica, é o amor que é comum aos
dois. O Espírito Santo é dado ao homem quando o am or da deidade é
inspirado no coração humano (cf. Rm 5,5); “enquanto devolvemos a nosso
criador o am or devido, somos configurados segundo a propriedade do
Espírito Santo”102. As pessoas distinguem-se pelo amor com que estão
unidas. Com isso mostra-se que a unidade e a distinção em Deus não se
opõem entre si.

3. Tomás de Aquino: a pessoa como relação subsistente

lem o s que nos deter especialmente em Sto. Tomás, porque sua defi­
nição da pessoa divina como relação é especialmente feliz. Foi capaz de
resolver a aporia agostiniana a que já nos referimos. Tomás aceita substan­
cialmente a definição boeciana da pessoa, que é aplicável a todos os seres
racionais103. Mas é bem consciente de que o term o não se aplica a Deus
como às criaturas, senão de maneira mais excelente; mais ainda, já que o
nome de pessoa indica a dignidade que é “subsistir na natureza racional”,
convém especialmente a D eus, dada a maior dignidade de sua natureza104.
Tomás passa em revista os elementos da definição boeciana para aplicá-los
a Deus. A natureza racional significa em Deus simplesmente a natureza
intelectual, já que nele razão não implica discurso. O princípio da indivi­
duação em Deus não pode ser a matéria: por isso “indivíduo” em Deus
quer dizer incomunicável. A substantia convém a Deus enquanto significa
existir por si mesmo105.
Mas o passo decisivo para a teologia trinitária de Tomás dá-se quando
indaga se o nome de pessoa significa a relação106. Tomás é bem consciente

102. Ibid., V I 14 (412s). Cf. V I 10 (398s).


103. Cf. S 7M 29,1.
104. Cf. STb 129,3, da substância de Boécio se passa ao subsistere. Em Pot. 9,4, define-
se a pessoa em geral como “substantia indivídua rationalis naturae... idest, incommunicabilis
et ab aliis distincta”. Por conseguinte, a pessoa em Deus como “subsistens distinction in
natura divina” e também “distinction relatione subsistens in essentia divina”. Cf. E FRAN­
CO, La communione delle persone nella riflessione trinitaria delia “Summa theologiae”,
Rkercbe Teologkbe 8 (1997) 271-301, além da bibliografia indicada na nota 1.
105. Cf. STb 1 29,3 ad 4. Tomás, diferentemente de Ricardo, dará mais im portância
à relação que à origem, na definição da pessoa divina.
106. Ibid., 4, “U trum hoc nom en persona signified relationem ”. A esse artigo nos
referimos na continuação.

267
DA “ECONOM IA’ À “TEOLOGIA"

da dificuldade que se apresenta: o term o em questão predica-se em plural


de três, e não se diz aà aliquid (como já observava Agostinho); e isso parece
contraditório. Por isso alguns pensaram que o nom e significava a essência
divina. M as não pode ser assim, porque nesse caso falar de três pessoas
daria ocasião a calúnias dos hereges que precisamente o uso do vocábulo
pretendeu evitar.
Para propor uma solução, Tomás vai centrar-se no que é peculiar às
pessoas divinas. Partindo da definição de Boécio, indaga o que é o indiví­
duo: é aquilo que é indistinto em si, distinto dos outros. Em qualquer
natureza, pessoa é o que é distinto “naquela natureza”. Assim, no caso dos
homens, a carne, os ossos, a alma pertencem à definição da pessoa humana,
embora não pertençam à definição da pessoa em geral, porque são princí­
pios que individualizam o homem. Mas em Deus a distinção faz-se por
relações; a elas deve-se recorrer para encontrar a noção de pessoa divina-.
A distinção em Deus fiz-se somente segundo as relações de origem... Mas a
relação em Deus não é como um acidente inerente a um sujeito, senão que é
a mesma essência divina; donde se segue que é subsistente, como subsiste a
essência divina. Portanto, como a deidade é Deus, assim a paternidade divina
é Deus Pai, que é uma pessoa divina. Assim, pois, a pessoa divina significa a
relação enquanto subsistente107.

A noção de pessoa não é equívoca, mas também não é unívoca. A


relação subsistente define a pessoa divina, mas não a humana e a angélica,
porque a relação não determina a individualidade nessas naturezas, como
vemos que ocorre em Deus. Em Deus, a substância individual, isto é, dis­
tinta e incomunicável (não-intercambiável, insubstituível) é a relação. Por
isso, no divino muito mais do que no humano, o conceito de pessoa signi­
fica a autodoação, a abertura. As pessoas divinas se distinguem enquanto se
relacionam. A distinção não é, portanto, separação mas relação, e o ser
irrepetível não é fechamento nem isolamento, e sim doação. As pessoas
divinas, Pai, Filho e Espírito Santo, são enquanto se relacionam. A unida­
de divina não é a unidade do solitário, mas a da comunhão perfeita. N o
Pai, no Filho e no Espírito Santo não há um substrato “prévio” a esse ser
doação. As pessoas divinas não são “antes” de entrar em relação, senão que
são enquanto se relacionam.

107. Ibid., corpus. Cf. também Ibid., 34,2; 40.2; 42,4: “Eadem essentia quae in Patre
est patem itas, in Filio est filiado”. Sobre a noção de pessoa e a teologia trinitária de lòm ás,
cf. G. GRESHAKE, Der dreiene Gott. Eme trmitariscbe Tbeologie, Freiburg-Basel-W ien,
1997,111-126.

268
"TRINtTAS IN UNITATE". A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES, AS RELAÇÕES. AS PESSOAS DIVINAS

Seguimos em nossa exposição desse tema a ordem tradicional, que é


a de Sto. Tomás: das processões às relações e destas às pessoas. Seria es­
sa a ordem de nosso conhecimento, a p artir das missões divinas. Mas isso
não quer dizer que seja a ordem do “ser”. Que é primeiro, a pessoa ou a
relação? Primeiro, naturalmente, não na ordem cronológica, mas na or­
dem lógica. Parece que se deve pensar que há relações porque há pessoas;
essas seriam o prim eiro. Precisamente porque o Pai, o Filho e o Espírito
Santo são tais, estão relacionados, e não inversamente. O concreto deve
preceder o abstrato108. O uso da categoria da relação ajudou a m anter a
distinção pessoal afirmando ao mesmo tempo a unidade da essência. Mas
o ponto de partida de Sto. Tomás em sua doutrina trinitária é a pessoa do
Pai, não a essência divina10’.
Afirmar as três pessoas em Deus não significa multiplicar a essência
divina. O único que se distingue em Deus é o que se contrapõe ad invicem.
N ão se distinguem realmente, por exemplo, a sabedoria e a bondade110. Só
por causa das relações pode-se falar de distinção em Deus. Isso leva à questão
das “três” pessoas. Sendo quatro as relações, Tomás indaga porque só são
três as pessoas. As relações constituem as pessoas, declaramos, enquanto
são realmente distintas. Essa distinção real que se produz entre as relações
está em razão da oposição relativa. A paternidade e a filiação não oferecem
dificuldade. São relações opostas e portanto pertencem a duas pessoas. A
expiração (ativa) pertence ao Pai e ao Filho, convém aos dois. A processão
(expiração passiva) convém a outra pessoa, ao Espírito Santo, que procede
à maneira de amor. As pessoas só são três porque a expiração ativa não é
um a propriedade, por não convir a uma só pessoa. Por isso há quatro re­
lações, mas só três pessoas: só três dessas quatro relações são subsistentes,
a paternidade que é a pessoa do Pai, a filiação que é a pessoa do Filho, e a
processão que é a pessoa do Espírito Santo111.
A pluralidade de pessoas é a razão pela qual — segundo Sto. Tomás
— Deus não é solitário. Já os Padres insistiram neste particular112. Ainda

108. Cf. KASPER, op. d t , 343; A. MALET, Personne et amour dans la théologie de saint
Thomas d'Aquin, Paris, 19S6,84: “... saint Thom as concède que si on considère la relation
comme relation, elle suit l’hypostase”; Ibid., 92, com ritação de /» I Sent d 23, a.3.
109. Cf. MALET, op. d t., 87; GRESHAKE op. d t., 110s. Cf. en tre outras pesquisas
STh 1 33,1; 39,8: “o Pai é o prindpio que não vem do princípio’’.
110. C f S7M 30,1.
111. Ibid., 130,2.
112. Cf. HILÁRIO de Poitiers, Trin IX 36 (CCL 62A, 410): “[Deus]... neque in
solitudine neque in diversitate consistit”.

269
D A “ECONOM IA“ À ‘TEOLOGIA"

que os anjos e os santos estivessem com ele, D eus seria solitário se não
existisse a pluralidade de pessoas, porque a solidão não se elimina pela
associação com alguém de natureza estranha113, Também se diz que um
homem está só em um jardim, embora haja animais e plantas (C f G n 2,18ss).
A doutrina das pessoas e das relações de Sto. Tomás não é um a especulação
abstrata, preocupada só com a coerência lógica. M ostra a plenitude da vida
em Deus, incompatível com a solidão. D á a impressão, embora Sto. Tomás
não diga, que a solidão em Deus conotaria imperfeição. Na plenitude
da vida trinitária as três pessoas se “acompanham” mutuamente. A idéia da
com unhão interpessoal em Deus parece estar aqui presente, ainda que cer­
tam ente de um m odo velado.
A pessoa não se diferencia da essência divina secundum rem. E sempre
a noção da simplicidade divina a que se opõe a uma tal diferenciação. As
relações em Deus não são acidentes, e portanto devem identificar-se com
a essência, embora as pessoas se distingam umas das outras de maneira
real. A relação, comparada com a essência divina, não difere na coisa, se­
não que há somente distinção de razão. Mas quando a relação se compara
com a relação oposta, por causa da oposição mútua, dá-se uma diferença
real. Em virtude dela pode-se — e deve-se — afirmar de cada um a das
pessoas algumas coisas que se nega das outras114. Do contrário não seria
real a distinção entre as pessoas e se cairia no sabelianismo. Pela mesma
razão, tem sentido a fórmula trinitária habitual, de uma essência que é de
três pessoas, ou três pessoas da mesma essência, porque em Deus não se
multiplica a essência se se multiplicam as pessoas115.
As pessoas, p o r outra parte, identificam-se com a relação116. Em vir­
tude dela distingue-se cada uma das outras. Nesse sentido, diz-se melhor
que as pessoas distinguem-se por sua relação do que por sua origem. Pois
origem, do ponto de vista ativo, significa que alguém procede de uma pessoa
subsistente, quer dizer, de algum modo a pressupõe como já constituída.

113. STb 131,3: “Licet angeli et animae sanctae semper sint cum D eo, tam en, si non
esset pluralitas personarum in divinis, sequeretur quod Deus esset solus vel solitarius. Non
enim tollitur solitudo per associadonem alicuius quod est extraneae naturae... Consociado
angelorum et animarum non exdudit solitudinem absolutam a divinis”.
114. Ibid., 139,1.
115. Ibid., 139,2. “Q uia in divinis, multiplicatos personis, non m ultiplicatur essentia,
dicimus una essentia esse trium personarum, et tres personae unius essentiae”. Deve-se
preferir essa fórmula a “tres personae ex eadem essentia” porque com o ex, que significa
procedência, poder-se-ia pensar que uma coisa é a pessoa, outra a essência da qual procede.
116. Ibid., I 30, 2; 40,1, além dos textos já citados.

270
TR IN ITA S IN UNITATE". A VIDA INTERNA D E DEUS. AS PROCESSÕES. AS RELAÇÕES. AS PESSOAS DIVINAS

Igualmente, do ponto de vista passivo, significa o c a m in h o que leva à pes­


soa subsistente, mas ainda não a constitui. Segundo esse princípio, melhor
que generans e genitus, o generante e o gerado, diz-se Pai e Filho, porque
esses nomes indicam a relação; e só a relação, e não a origem, constitui e
distingue a pessoa117. Deve-se ter presente, por outra parte, que a relação
não só distingue as pessoas, mas também as une; a “oposição” entre elas
deve ser entendida como reciprocidade118.

4. Pessoas, propriedades, apropriações

As pessoas, constituídas pelas relações opostas, distinguem-se tam­


bém p o r suas “propriedades” ou “noções”119. A noção é o modo de co­
nhecer a pessoa divina. N ão podemos captar a simplicidade divina: te­
mos que nomear Deus segundo o que apreendemos, quer dizer, segundo
o que encontram os nas coisas sensíveis das quais recebemos o conheci­
m ento. Para falar delas, no caso das formas simples, usamos nom es abs­
tratos; e usamos nomes concretos para falar das coisas subsistentes. Em
razão da simplicidade de Deus, referimo-nos a ele usando também no­
mes abstratos. Precisamos usá-los para m ostrar com eles a distinção das
pessoas. Por isso há propriedades e noções abstratas, como a paternidade
e a filiação120.
As propriedades concretas das pessoas se deduzem das relações de ori­
gem, pelas quais aquelas se multiplicam. O Pai não pode dar-se a conhecer
porvir de outro, mas outros vêm dele. Por isso pertence-lhe a inascibilidade
e a paternidade. O Filho vem do Pai: a propriedade ou noção que o carac­
teriza é a filiação. Ao Pai e ao Filho juntos pertence a expiração comum
(ativa), ao Espírito Santo a processão. Temos assim cinco “noções” ou “pro­
priedades” das quais uma é comum a duas pessoas, a expiração, comum ao
Pai e ao Filho. Essas noções ou propriedades são, como seu mesmo nome

117. Ibid., 140,2 ad 2: “Personae divinae non disdnguuntur in esse in quo subsistunt,
neque in aliqno absoluto; sed solum secundum id quod ad aliquid dicuntur. U nde ad eanun
distinctionem sufficit relatio”; Boaventura seguiu uma linha um tanto distinta, que acentua
mais a processão; cf., por exemplo, In Sent. I d. 27 q. 2; Brevüoquium 1 4,6.
118. Cf. F. BOURASSA, La 'Irinità, em K. H. N EU FELD (ed.), Problem e orientamenti
di teologia dognatica, Bresda, 1983, 337-372, 351.
119. Cf. STbl 32,2-3.
120. Ibid., I 32,2: “...e t huiusm odi sunt proprietates vel notiones in abstracto
significatae, ut patem itas et filiado. Essentia significatur in divinis u t quid, persona vero ut
quis, proprietas autem ut quo”.

271
D A ‘ E C O N O M IA ' A ‘ TEOLOGIA"

indica, p róprias das pessoas. Os atos nocionais, que correspondem a es*


sas noções ou propriedades, devem ser atribuídos às diversas pessoas121. Essas
propriedades referem-se todas à vida intratrinitária.
J u n to às noções ou propriedades devemos considerar o conceito das
apropriações. Já nos encontramos com elas no começo de nossa exposição,
quando n o s referíamos ao problema da Trindade econômica e da Trindade
im anente. Fala-se por apropriação quando as propriedades essenciais, que
de si convêm à Trindade toda, aplicam-se a uma determinada pessoa devi­
do ao m o d o como essa pessoa se manifesta, Também nos atributos essen­
ciais divinos, os que correspondem a toda a Trindade, encontramos uma
m anifestação das pessoas. Essas manifestações constituem, segundo To­
más de Aquino, “apropriações”122.321 Boaventura, de maneira semelhante,
observa que as apropriações levam ao conhecimento da pessoa, embora
isso não signifique que os atributos que se lhes apropriam passem a ser
próprios de cada uma delas121.
Talvez um dos exemplos mais claros das apropriações seja o do come­
ço do C redo, quando chamamos a Deus Pai “Tòdo-poderoso” e “criador
do céu e da terra”. C em m ente esses nomes convêm também às outras
pessoas. O s três são onipotentes, e não obstante há em Deus uma só oni­
potência. Além disso, as três pessoas são um só princípio da criação (cf. DS
800; 851 etc.). M as não há dúvida de que ao Pai, enquanto princípio da
Trindade, convém também o ser princípio também a respeito das criatu­
ras, ainda que em nenhum momento o seja sem as outras pessoas. Santo
Tbmás, entre outros exemplos, menciona a apropriação da potência ao Pai,
da sabedoria ao Filho e da bondade ao Espírito Santo. N ão se trata de que
cada pessoa possua exclusivamente essas propriedades. Contudo, não há
dúvida de que convêm especialmente à pessoa a que se atribuem: ao Pai, a
potência, pela razão já indicada; ao Filho, a sabedoria (cf. IC or 1,24.30),
enquanto Logos e razão do universo; ao Espírito, a bondade, enquanto

121. Ibid., 1 41,1; cf. também I 41,3. BOAVENTURA, Brtvüoquium I 3,1: “Para a
inteligência sã dessa fé (da Trindade) a doutrina sacra ensina que em D eus há duas emana­
ções (processões), três hipóstases, quatro relações, cinco noções e... somente três proprie­
dades pessoais”. C f também Ibid. 3,2ss.
122. Cf. STb I 39,7. Santo Tbmás nota que através das criaturas pode-se chegar ao
conhecimento das propriedades essenciais de Deus, mas não das pessoas. Mas, assim como
nos servimos de vestígios que Deus deixou nas criaturas para a manifestação das pessoas,
também nos servimos dos atributos essenciais para esse fim. As apropriações supõem por­
tanto a fé na Trindade e o conhecimento do que é próprio das pessoas divinas.
123. Cf. BOAVENTURA, op. d t , I 6,1.

272
"TRINITAS IN UNITATE". A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES, AS RELAÇÕES, AS PESSOAS DIVINAS

relacionada com o amor124. Vimos que já os Padres falavam do Espírito


como causa aperfeiçoadora de todas as coisas; podemos pensar que ao
aperfeiçoá-las lhes confere a bondade.
O uso das apropriações tem sem dúvida uma base bíblica e de tra­
dição e é ffeqüente na liturgia e na teologia. Mas é legítima a pergunta
se seu âm bito é tão amplo como se pensou em certas épocas da história
da teologia, ou se é preciso deixar mais espaço ao específico e próprio de
cada uma das pessoas no que respeita à atuação divina ad extra, na criação
e na salvação. O princípio segundo o qual todas as atuações divinas em
direção ao m undo são comuns a toda a Trindade não deve nos fazer es­
quecer que este é por sua vez um princípio que contém em si mesmo a
distinção. Com o a atuação salvífica há de refletir de algum modo o ser
mesmo de D eus, cabem perfeitam ente as relações próprias do cristão
com cada uma das pessoas divinas. Isso pode também valer para a cria­
ção, obra certam ente das três pessoas, mas já no N ovo Testamento acha­
mos a diferença entre a ação do Pai, como origem últim a de tudo, e a do
Filho como mediador (cf. sobretudo lC or8,6; também Jo 1,3.10; C l l,15ss;
Hb 1,2). Desde cedo se falou — como vimos — do Espírito Santo, no
qual tudo existe. Desse modo vê-se refletida já na obra criadora, orien­
tada para a salvação de C risto, a unidade e distinção da Trindade que
quer incorporar os homens à sua vida divina. Pode-se portanto pen­
sar que essa atuação diferenciada das pessoas é um reflexo da distinção
intradivina, e que nela se está de algum modo prefigurando a intervenção
de cada uma das pessoas na história da salvação, que na missão por parte
do Pai, do Filho e do Espírito Santo alcançará sua expressão máxima125.
N aturalm ente, com essas considerações não se põe em dúvida a legitim i­
dade e mesmo a necessidade do conceito de apropriação, mas somente
algumas de suas aplicações. A unidade da Trindade na ação criadora e
santificadora não tem por que im pedir que a distinção das pessoas no
seio da Trindade reflita-se tam bém na atuação para o exterior. Antes, se
deve pensar que se a criação, e por conseguinte a atuação divina ad extra,
só é possível porque D eus é trino, essa dimensão deverá refletir-se em

124. Cf. STb 1 39,8. Ver outros exemplos indicados no mesmo artigo. Coincidem em
parte com o que indica BOAVENTURA, op. cit., 1 6 ,lss. Esses exemplos já constavam de
PEDRO LOMBARDO, Lib. Sent. I d 32; 34, 3-4.
125. Santo lòm ás, na passagem citada na nota anterior, considera que o uso diversi­
ficado das proposições ex, per e m é apropriado somente a cada uma das pessoas. Notemos
que o Concílio II de Lião usa as três proposições referidas indistintam ente para toda a
Trindade (DS 851). Mas vimos que não foi esse o uso nas etapas anteriores da tradição.

273
DA “ECONOM IA" À “TEO LO G IA 1

todas as suas atuações, ainda que isso não signifique que em todas elas
possamos ver um a revelação da Trindade126.

5. A mútua inabitação das pessoas

U m a últim a noção teológica importante, muito valorizada ultima­


mente, é a da perichoresis ou circumincessio. Essas expressões indicam que as
pessoas divinas não estão somente em relação com as outras, que não se dá
nelas somente um esse ad senão também um esse in. A base dessa doutrina
encontra-se no Novo Testam ento, em especial em algumas palavras de
Jesus segundo o Evangelho de João: “Eu estou no Pai e o Pai está em mim”
Qo 14,1 Os); “assim sabereis e conhecereis que o Pai está em mim e eu no
Pai” Qo 10,38; cf. 17,21). Essas expressões deram lugar ao desenvolvimen­
to da idéia de um a mútua “inabitação” do Pai e do Filho, que se enrique­
ceu mais tarde com a explícita menção do Espírito Santo.
A mútua inabitação do Pai e do Filho é expressão da unidade de “po­
tência e espírito” segundo o apologeta Atenágoras127. Dionísio Romano vê
na inabitação m útua das três pessoas divinas a garantia da Trindade que
se reúne na monarquia do Pai (cf. DS 112). Hilário de Poitiers (citado
nesse contexto por Tomás128 e com muita fireqüênda pelos modernos)
baseou-se na inabitação mútua para mostrar a unidade da natureza do Pai
e do Filho e a perfeita geração do segundo a partir do primeiro:
O que está no Pai está no Filho, o que está no Ingênito está no Unigénito...
Não é que os dois sejam o mesmo, mas que um está no outro, e não há em

126. Devemos tomar nota nesse contexto da nova abordagem do conceito das apro­
priações proposta por G. GRESHAKE, op. cit., 214-216, na qual, em lugar do conceito
clássico que parte da atribuição a uma pessoa do que é comum às três, propõe o caminho
inverso: a partir da unidade pericorética entre as pessoas, cada uma delas tem suas proprie­
dades em comum com as outras, e por isso é que o próprio de cada pessoa se faz próprio
da comunhão divina, ou da essência divina; assim Deus é onipotente porque existe o Pai em
cujo dom tudo se funda; Deus é verdade e am or redentor porque existe o Filho etc. Creio
que esse caminho podia ser visto como um complemento, mais do que como uma alterna­
tiva ao tradicional, se a unidade e a distinção em Deus devem ser vistas como igualmente
primárias e originais. O Pai dá realm ente ao Filho tudo o que é (e ambos ao Espírito
Santo), exceto a paternidade (e a filiação), e nesse sentido não está fora do lugar o discurso
de propriedades comuns às três pessoas, embora possuídas por cada uma segundo sua
especificidade pessoal. É claro que, como veremos mais adiante, se questiona o conceito
das relações de origem e das processões em Deus, o problema da unidade divina coloca-se
de outro modo. Ver o cap. seguinte.
127. Cf. Legpro Cbris. 10 (BAC 116,660); o contexto é o da geração do Verbo.
128. Cf. STb 1 42,5.

274
“TRINITAS IN UNITATE’ . A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES, AS RELAÇÕES, AS PESSOAS DIVINAS

um e no outro uma coisa distinta. O Pai está no Filho porque o Filho nasceu
dele, o Filho está no Pai porque de nenhum outro tem ser o Filho... Assim
estão um no outro, porque como tudo é perfeito no Pai ingênito também o
é no Filho unigénito129.
Aquele em quem está Deus é Deus. Porque Deus não habita em uma natu­
reza distinta e alheia a ele mesmo130.

João Damasceno será o primeiro a usar nesse sentido trinitário a palavra


pencboresis, que se converterá em termo técnico para expressar essa realidade
sobre a qual a teologia tinha refletido desde os tempos antigos131. Em latim se
fakrá de circummcessio, que às vezes se converte em àrcuminsessio ou circumsessio.
O uso desses termos é muito mais tardio, vem da tradução latina de Damasceno
(metade do século XII). N ão se encontram ainda em Sto. Tomás, que, é claro,
fala da questão: a unidade da essência e o fato de que cada pessoa se identifi­
que com ela faz que o Pai esteja no Filho, e vice-versa. A isso acrescenta que
a processão do Verbo inteligível não é ad extra, mas permanece em quem o
diz. O mesmo se pode dizer do Espírito Santo132.
O Concílio de Florença considera a perichoresis como a consequência
da unidade da essência divina: “Por causa dessa unidade o Pai está to­
do inteiro no Filho, todo no Espírito Santo133; o Filho está todo no Pai,
todo no Espírito Santo; o Espírito Santo está todo inteiro no Pai, todo
inteiro no Filho” (DS 1.331).
Tanto no uso cristológico como no trinitário a drcum incessão serve
para exprimir a unidade na diversidade. Com a unidade que vem da essên­
cia comum e do amor m útuo, cada uma das pessoas encontra-se em pro­

129. Trin EB 4 (CCL 62,75).


1 30.Ibid.,I V 40 (1 4 5 );cf. também V 37-38(192-193);V H 31,33 (298. 300);BASÍ-
LIO de Cesaréia, de Sp. Soneto, 18,45 (SCh 17bis, 406) A G O STIN H O , Trin. IX 5,8 (300),
sobre a inabitação m útua da m ente, do conhecim ento e do amor.
131. Defide ortbodoxa, I 8.14 (PG 94, 829,860) etc. Cf. S. dei CURA, Perikhóresis,
in Dicaonarto teológico. El Dtos cnstiano, 1.086-1.094. A expressão começou a ser usada em
cristologia para folar da unidade de Cristo em suas duas nanu^a«; cf. GREGÓRIO Na-
zianzeno, Ep. 101 (P G 37,181), ainda que use a forma verbal. Também DAMASCENO
usa o term o nesse sentido, cf. IO 4.7 (1.000, 1.012).
132. Cf. STb 1 42, 5; tam bém Ibid., 39,2 onde Tbmás vê expressa implicitamente na
Escritura a fórmula “tres personae unius essentiae” nos textos de Jo 10,30, “o Pai e eu
somos um a só coisa”, e tam bém Jo 10,38 (cf. Jo 14,10), “o Pai está em mim e eu estou no
Pai”. Parece que a pericorese equivale portanto à unidade de essência, não é um a simples
conseqüênda dela, com o ocorre em outras passagens.
133. Trata-se d e uma citação de FU LG ÊN C IO de Rtispe (então se pensava que era
de Agostinho), De Fide... ad Petrum, líber unus, 1 4 (PL 65, 674).

275
DA “ECONOM IA" À "TEOLOGIA"

funda união e comunhão com as outras duas. Manifesta-se assim uma di­
mensão fundamental da unidade divina: que essa unidade é a da Trindade.
A inabitação de cada pessoa nas outras respeita certamente a taxis ou ordem
das processões, mas ao mesmo tempo mostra a igualdade radical entre
elas, a comunhão perfeita em que cabe mais a distinção do que a diferen­
ça154. A circumincessão não é algo que se junte a uma unidade e distinção
já preestabelecidas, não é só um estático uestar em” o outro que é simples
conseqüênda da unidade da essência divina; essa foi uma interpretação
freqüente, que pode apoiar-se certamente no Concílio de Florença. Mas,
sem excluir essa dimensão, podemos também considerar que a inabitação
mútua é ao mesmo tempo um elemento essencial dessa unidade, constituí­
da também pela interação dinâmica das três pessoas. Nessa direção aponta
o sentido do term o grego155. A unidade e a distinção em Deus são tais que
implicam ser um no outro, não somente com ou junto ao outro. Junto à
relação (esse aã) que distingue na unidade divina, a pericorese (esse in) une
m antendo a distinção. A inabitação recíproca expressa e realiza na máxima
medida a unidade das pessoas em sua distinção. Ao mesmo tem po, essa
união mostra a que comunhão com Deus nós, os homens, estamos chama­
dos. C om efeito, segundo Jo 17,21s, os que crêem em Jesus devem ser uma
só coisa no Pai e no Filho156. A pericorese intratrinitária mostra-se tam­
bém, como todo mistério de Deus uno e trino, na economia: a atuação do
Filho e do Espírito no cumprimento do desígnio do Pai realiza-se em
profunda unidade, desde a encarnação de Cristo por obra do Espírito Santo,
até a ressurreição por obra do Pai, em que tampouco está ausente a inter­
venção do Espírito Santo (Cf. Rm 1,4; 8,11). Em nosso capítulo sobre a
unidade de Deus, unitas in Trinitate voltaremos a alguns aspectos relacio­
nados com essa questão.

A PROBLEMÁTICA MODERNA DA PESSOA EM DEUS:


AS “TRÊS PESSOAS” NA UNIDADE DIVINA

Em Deus há três pessoas na unidade da essência. O dado dogmático


deu origem a uma reflexão teológica sobre a pessoa que do campo trinitário 63154

134. Cf. H. U. von BALITIASAR, Tbeobgik U. Wahrheit Gottes, Einsiedeln, 1985,137.


135. Assim, por ex., JO Ã O DAMASCENO; cf. HUCULAK, Constituzione delle
persone divine secondo S. Giovanni Damasceno, Antonianum, 59 (1994) 179-212.
136. KASPER acentuou isso em Der Gott..., 346s. Voltaremos a essa questão no ca­
pítulo dedicado à unidade divina.

276
"TRINUAS IN UNITATE" A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES. AS RELAÇÕES. AS PESSOAS DIVINAS

e cristológico passou ao antropológico. Dois aspectos revelaram-se espe-


cialmente fecundos nessa reflexão: por uma parte acentuou-se que a pes­
soa é o sujeito, diferentemente da natureza; é o quis em contraste com o
quid, com seu caráter irrepetível e não-intercambiável. Um segundo as­
pecto é o da relação, visto com clareza por Agostinho e desenvolvido por
Tomás de Aquino. Já observamos que essa dimensão para Tomás é especí­
fica da pessoa "divina”, não da angélica nem da humana. Porém não é
estranho que ao usar-se, sempre analogicamente, o mesmo vocábulo da
teologia se tenha passado à antropologia, e também esses elementos te­
nham encontrado lugar, com o tempo, na reflexão teológica e filosófica so­
bre a pessoa humana137. Em um movimento de fluxo e refluxo, a teologia
viu-se, por sua vez, influenciada pelas aproximações filosóficas da matéria. A
discussão teológica dos últimos tempos sobre o conceito da pessoa divina
refletiu essa complexa evolução, cujos detalhes não podemos seguir agora a
não ser enquanto incidem sobre o objeto fundamental de nosso estudo.

1. Unidade do sujeito em Deus?


Propostas alternativas ao termo “pessoa”. Karl Bartb e Karl Rahner

Desde os começos da Idade M oderna, o conceito filosófico de pes­


soa evoluiu até passar a significar um ser que se possui a si mesmo em
consciência e liberdade138. Karl Barth (m orto em 1968) foi o primeiro a
notar as dificuldades que no campo teológico podem surgir se for aceito
com todas as conseqüências esse conceito de pessoa e aplicado às três
pessoas divinas. Isso significaria que em D eus há três centros de consciên­
cia, três vontades, três liberdades, três sujeitos capazes de autodeterm inar-
se. Pode-se assim chegar a representações próximas do triteísm o. Daí a
mudança de term inologia que B arth propõe: o term o “pessoa” devia ser
substituído p o r “modo de ser” (Seinsweise), que não correria o perigo de
má interpretação a que está exposto o term o tradicional. Essa proposta
terminológica coloca-se em um contexto teológico m uito articulado, a
p artir do qual recebe seu sentido.

137. Cf. E . Bueno D E LA FU EN TE, La “persona” en perspectiva teológica, in O .


González de CARDEDAL; J. J. SANGRADOR (eds.), Coram Deo. Memorial Juan Luis
Ruiz de la Pena, Salamanca, 1997,329-344.
138. Sobre essa evolução, ver R O VIRA BELOSO, Tratado de Dios..., 615-635; G .
GRESHAKE, op. á t , 127-168; MILANO, Persona in teologia...; ID ., La trin ità ..., in PAVAN;
M ILANO (eds.) Persona epersonalism..., 1-286.

277
DA "ECONOMIA" À “TEOLOGIA"

Barth parte do evento da revelação, em que Deus se manifesta, em


uma unidade indissolúvel, como o D eus que se revela, o acontecimento da
revelação, e o efeito dela sobre o homem. A esse mesmo Deus, que em
uma unidade indestrutível é o revelador, a revelação e o ser revelado, é
atribuída ao mesmo tempo uma diversidade em si mesmo, precisamente
nesses “três modos de ser”139. Portanto, Deus segundo a revelação, é “em
unidade indestrutível o mesmo, mas ao mesmo tempo, em indestrutível uni­
dade, três vezes o mesmo, de maneira diversa”140. O Pai, o Filho, e o Espí­
rito Santo são na unidade de sua essência um único Deus, e na diversidade
de suas pessoas precisamente o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Somente na
encarnação do Filho tem-se o ponto de partida para entender que há em
Deus mesmo uma diferença, que é próprio de Deus ser “outra vez” Deus
na humanidade, na forma daquilo que ele mesmo não é141. O Deus que se
revela na Escritura é um em três específicos modos de ser, que existem em
suas relações mútuas, Pai, Filho e Espírito Santo. Assim é o Senhor, o Tu
que sai ao encontro do Eu humano, e assim se lhe revela como seu Deus142.
Deus é Deus nessa tripla repetição, e só nessa repetição é o único Deus143.
Não há em Deus três “personalidades”, não há três “Eu”, senão um só Eu
que se repete três vezes144.
Barth insiste muito na personalidade de Deus. De seu “Ele” não se
pode fazer nunca um neutro, um “isso”145.641E ao mesmo tem po sublinha sua
unidade. Cita o texto conhecido do XI Concílio de Toledo, a Trindade,
que é o único e verdadeiro Deus, nem se afasta do número nem se entende
pelo número “quae unus et veras est Deus, nec recedit a num ero nec capitur
numero” (cf. DS 530). A pluralidade não indica, pois, um aumento de
quantidade. E por outra parte em Deus mesmo estão superadas todas as
limitações que atribuímos à unidade. Deus não é solidão nem isolamento.
A unicidade do D eus revelado inclui a distinção e a ordem das três pessoas,
ou melhor, dos três “modos de ser” (Seinsweisey*6. Da revelação deduz-se
claramente que D eus não é um poder impessoal, mas

139. Cf. Die kircbticbe Dogmatik, M unique, 1935,1/1, 315.


140. Ibid., 324.
141. Ibid., 334.
142. Ibid., 367.
143. Ibid., 369.
144. Ibid., 370.
145. Ibid., Em diversas ocasiões Barth fala da personalidade de D eus sem esclareci­
mentos ulteriores. C f. Ibid., 125; 143; 214; 370.
146. Ibid., 374.

278
■TRINITAS IN UNITATEV A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES. A S RELAÇÕES, AS PESSOAS DIVINAS

um Eu que existe em si e para si com seu próprio pensamento e vontade. E


assim é, ao mesmo tempo, Deus como Pai, Filho e Espírito. O único Deus,
isto é, o único Senhor, é o único Deus pessoal no modo do Pai, do Filho e do
Espírito Santo147.

N ão há nenhuma propriedade, nenhuma ação de Deus que não seja


a do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Mas há diferenças entre eles que de
nenhuma maneira podemos reduzir a um denominador comum. As dife­
renças vêm das distintas relações de origem. Porém os três “modos de ser”
são iguais em sua essência e em sua dignidade sem discriminação alguma
em sua divindade. A doutrina trinitária é a negação de todo modalismo e
de todo subordinacionismo. A unidade e a trindade em Deus vão unidas,
uma não se dá à custa de outra; no termo Dreieinigkeit, que equivaleria a
“triunidade”, Barth vê o resumo da unidade e da trindade de Deus.
Barth, como vemos, quer evitar qualquer perigo de representações
triteístas. Sua terminologia dos “modos de ser” valeu-lhe às vezes a acusa­
ção de “modalista”; mas deve-se ter presente que ele claramente afirma a
diferença em Deus mesmo, não só em seu m odo de manifestar-se. Seu
ensino concreto sobre o Pai, o Filho e o Espírito Santo é claro a esse
respeito. Bastará citar uma frase: “Deus é Pai na criação porque antes é Pai
em sua essência enquanto Pai do Filho”148. Mas, uma vez isso apontado,
podemos indagar se o uso que faz Barth do conceito da pessoa em Deus é
o mais adequado. N ão há dúvida de que Barth afirma a personalidade di­
vina. M as na tradição o conceito serviu para m ostrar em Deus a distinção,
não a unidade, como parece que ele tende a fazer. Por outra parte — e a
crítica foi também dirigida a K. Rahner, de quem nos ocuparemos em
seguida — o sujeito que se autopossui é só um aspecto do conceito moder­
no de pessoa; também a relação entra nele149. De resto, também o uso que
Barth faz da noção de pessoa está presente na evolução moderna dessa
noção; suas definições de Deus pessoal partem dela, embora só em parte a
tenha recolhido e a tenha aplicado a Deus em sua unidade e não em sua
trindade. Com isso se deve relacionar a acentuação da unidade divina na
qual um só Eu repetido constitui o Tu que é D eus para o homem. Não

147. Ibid., 379.


148. Ibid. 404; o texto encontra-se no enunciado da tese que começa a fsúar de Deus Pai.
149. C f. J. MOLTMANN, Trinität und Reich Gottes, M unique, 1980, lólss; KASPER,
op. d t , 350ss; 366. Cf. também M ILANO, op. d t , 199: "N ão se pode evitar de indagar
donde um teólogo tão rigoroso e sutil como Barth extrai tan ta segurança no negar que os
Três da Trindade sejam ‘Eu’...”. O mesmo autor, nesse trecho, indaga se não se trata da
preocupação idealista de ver um só sujeito em Deus. Ver também todo o contexto, 183ss.

279
DA -E C O N O M IA ’ À "TEOLOGIA'

cabería outro uso dos pronomes para descrever as relações do homem com
Deus? N a economia salvífica, o Pai e o Filho, sendo certamente a mesma
coisa (cf. Jo 10,30), aparecem mais como um eu e um tu intercambiáveis do
que com o um “eu” repetido. E certo que devemos m anter a distinção —
não adequada — entre a Trindade imanente e a Trindade econômica. Mas
parece que a p artir da revelação cristã se tom a difícil conceber a relação
entre o Pai, o Filho e o Espírito como a repetição de um “eu”.
N o campo católico, K arl Rahner fez-se eco das preocupações de Karl
Barth. N ão se pode dizer, sem mais, que K. Rahner propugne uma simples
substituição do term o pessoa. Está bem consciente de que esse term o está
sancionado por um uso m ultissecular150.15Mas ao mesmo tempo está cons­
ciente das dificuldades que derivam do fito de que, no modo norm al de
entender a noção, dada a evolução histórica das palavras que a Igreja não
pode controlar, a expressão “três pessoas” pode ser equivalente a três cen­
tros distintos de consciência e de atividade, o que levaria a um entendi­
mento herético do dogma. Deve-se evitar que se considerem as três pes­
soas em Deus como três subjetividades, o que levaria ao tríteísmo.
A partir dessa preocupação de não cair no tríteísm o, mas respeitando
a peculiaridade de cada um a das pessoas, desenvolve K. Rahner seu esboço
de teologia da Trindade.
Conseqüente com seu axioma fundamental, Rahner parte da idéia de
que, caso Deus queira comunicar-se aos homens, é o Filho que há de apa­
recer historicam ente na carne como homem, e tem que ser o Espírito o
que opere a aceitação da dita comunicação na fé, na esperança e no amor
por parte do mundo. Tudo isso pressupõe a liberdade de Deus, mas se
Deus livremente quer autocomunicar-se já não é “livre” para fazê-lo de
outro modo, porque então a autocomunicação não nos diría nada sobre o
Pai, o Filho e o Espírito SantoIsl.
D ado que a comunicação de Deus ao homem tem de tomar em con­
sideração a estrutura deste últim o, pode-se assinalar quatro duplos aspec­
tos (reduzidos depois a dois modos fundamentais) que deverão estar pre­

150. El Dios trino como fundam ento..., MySal2/1,387: “O term o ‘pessoa’ é um feto:
encontra-se sancionado pelo uso de mais de mil e quinhentos anos; ainda não existe um
termo que seja realmente melhor, que todos possam entender e que se preste menos a felsas
interpretações. Portanto, será m elhor conservar esse nom e, embora sabendo que... não se
acomoda, nem m uito menos em todos os aspectos à expressão do que se deseja afirm ar”;
Cf. ibid., 341; também Trindade em SM VI, 758. Cf. B. J. HILBERATH, Der Personbegriff
m der Trmitãtstbeologjie in RMckjrage von Karl Rabner zu Tertulians “Adversas Praxean ”,
Innsbruck, 1986; W A A ., La teologia trmitaria de Karl Rabner, Salamanca, 1988.
151. El Dios trino como fundamento..., 419ss.

280
"TRINITAS IN UNITATE" A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES, AS RELAÇÕES, AS PESSOAS DIVINAS

sentes nessa autodoação divina: a) origem /futuro; b) história/transcendên-


cia; c) oferta/aceitação; d) conhecimento/amor (considerados em sua uni­
dade, pois o conhecimento não se esgota em si mesmo, mas tende ao amor
do que se conhece)152.351Pode ver-se facilmente que a origem, a história, a
oferta encontram-se unidas em oposição a seus contrários. Trata-se da ini­
ciativa divina original, a oferta da autocomunicação que é o plano com o
qual se esboçou o mundo. Mas podemos questionar por que se há de unir
também a elas o conhecimento (ou a verdade). Trata-se da aparição da
verdade de Deus, de sua essência; e essa aparição, que pede a aceitação no
amor, é oferta, origem e história.
Os aspectos contrários acham-se igualmente relacionados entre si. O
futuro e a transcendência vêem-se unidos com relativa facilidade. Contu­
do, deve-se ter presente que o futuro não é simplesmente o que ainda não
chegou, mas sim a modalidade da comunicação de Deus, que se dá aos
homens como consumação do homem mesmo. Daí que em relação ao futuro
se deva falar de aceitação de um futuro absoluto. A oferta de Deus leva
consigo a aceitação dela, a inclui, já que ela é obra de Deus mesmo. A
autocomunicação que pretende ser absoluta, e produz a possibilidade de
ser aceita e sua aceitação mesma, é o que designamos como amor.
Assim, esses dois modos, verdade e amor, constituem as duas moda­
lidades da autocomunicação divina. Comunicação como verdade significa
que tem lugar na história, comunicação como amor significa a abertura
dessa história na transcendência para o futuro absoluto. As duas dimensões
estão intrinsecamente unidas, condicionam-se mutuamente, mas não se
identificam: “A autocomunicação divina tem lugar na unidade e na dife­
renciação na história (da verdade) e no espírito (do am or)”155.
Daí Rahner querer passar para a Trindade imanente, uma vez que deter­
minou que Deus, "economicamente”, se comunicou assim. Essa autocomu­
nicação não podia ser considerada senão a partir do duplo modo que Deus
tem de comunicar-se a si mesmo, em sua vida interna, na Trindade imanente:
o Pai dá-se a si mesmo ao Filho e ao Espírito Santo. Esse duplo modo de
autocomunicação para fora tem de convir a Deus em si mesmo, porque do
contrário não teria se comunicado verdadeiramente. Essa comunicação de
Deus tem dois efeitos criados distintos (a humanidade de Cristo e a graça
criada no homem), diferentes em si, mas não pode ser reduzida a eles. Esses

152. Ibid., 421ss; também para o que segue.


153. Ibid., 429.

281
D A “ECONOM IA" À “TEOLOGIA"

dois diferentes efeitos são a conseqüência das duas modalidades da autoco-


m unicação divina n o seio da Trindade, não constituem a diferença delas1*4.
Se queremos expressar a Trindade im anente a partir da economia,
nos encontramos com o D eus único enquanto é ao mesmo tem po o ser
sem origem , o que é pronunciado para si com verdade, e o que é recebido
e aceito p o r si mesmo com amor; somente assim Deus pode comunicar-se
para fora com liberdade. Essa diferença real no Deus único constitui-
se por um a dupla autocomunicação do Pai, com a qual p or uma parte se
com unica a si mesm o e, ao mesmo tempo, estabelece a diferença com
o comunicado e recebido. O comunicado, enquanto se dá essa unidade e
diferença, recebe o nome de “divindade”, “essência divina”. A diferença
entre o que originariam ente se comunica a si mesmo e o pronunciado e
recebido deve ser entendida como “relativa” (relacional). E a conseqüência
da identidade da essência divina. Mas essa relação que distingue em Deus
não deve ser considerada algo de m enor importância: a relação não é a
menos real das realidades porque a Trindade é o mais real que existe1” .
Com esses pressupostos passa Rahner a falar da “aporia” do conceito
de pessoa na teologia trinitária. Quando nos referimos a Deus, não pode­
mos falar de três pessoas no sentido usual da palavra. D izer que em Deus
há três pessoas não significa uma multiplicação da essência, como ocorre
com os homens, nem tampouco a “igualdade” da personalidade das três
pessoas (se dizemos três homens, os três são iguais enquanto homens, ain­
da que saibamos que são distintos). Em Deus dá-se tuna distinção consci­
ente, mas não a p artir de três subjetividades, senão que o ser consciente se
dá em um a só consciência real. A tripla subsistência não é qualificada por
três consciências. P or isso Rahner observa que no seio da Irindade não se
dá entre o Pai e o Filho um “tu” recíproco1 156.
514 Parece portanto que se de­

154. Ibid., 429ss.


155. Ibid., 431-432. Cf. também KASPER, op. c it, 354.
156. Cf. op. d t., 412, nota 79: “Por isso tam pouco existe intratrinitariam ente um ‘tu’
recíproco. O Filho é a auto-expressão do Pai, mas por sua vez não se pode conceber como
‘pronunciando’; o E spírito é o ‘dom’ que por sua vez não dá”. E em 434: “... em D eus não
há três centros de atividade, nem três subjetividades ou liberdades. Tanto porque em Deus
só há vma essência e, portanto, só um ser em si absoluto, como também porque só há uma
autopronundação do Pai, o Logos, que não é o que pronunda mas o pronundado, e não
há propriamente amor recíproco (que suporia dois atos) entre o Pai e o Filho, senão uma
auto-aceitação amorosa...”; cf. LONERGAN, De Deo Trino II. Parssystematica, Roma, J1964,
195s: “in divinis ad in tra nemo d id t nisi Pater”. A questão é levada mais ao extremo por
SCHOONENBERG, Der Geist, das Wort und der Sobn. Ene Geist-Christologie, Regensburg,
1992,183-211. Sobre essa posição de RAHNER, ver BALTHASAR Teledramatica IV, Ma­
dri, 1995, 297, que questiona se nesse caso o conceito de autocomunicação pode receber

282
“TRINITAS IN UNITATE”. A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES. AS RELAÇÕES, AS PESSOAS DIVINAS

vería interpretar que o “tu ” que é o Pai para Jesus segundo os evangelhos
(cf. M t 11,25; Mc 14,36 par. etc.) é consequência da encarnação.
Segundo Rahner, por conseguinte, a subsistência como tal não seria
por si mesma “pessoal” no sentido atual da palavra, isto é, não seria centro
de atividade. O autor alemão inspira-se na definição de Sto. Tomás,
“subsistens distinctum in natura rationali” para propor a fórmula “o Deus
único subsiste em três modos distintos de subsistência” (em alemão,
Subsistenzweisé). A partir de seu axioma fundamental, que já conhecemos,
Rahner observa que “a autocomunicação única do Deus único tem lugar
em três modos distintos, nos quais se dá em si mesmo o Deus único e
idêntico... Deus é o D eus concreto em cada uma dessas formas de dar-se,
que naturalmente têm relações mútuas entre si, sem fusionar-se modalis-
ticam ente”*157. O que significa subsistir ilumina-se a partir daquele
ponto da própria existência em que nos encontramos com o primeiro e o
último dessa experiência, com o concreto, irredutível, inconfundível e
insubstituível... Aqui se confirma de novo nosso axioma fundamental: sem a
experiência histórico-salvífica do Espírito-Filho-Pai não poderá conceber-se
nada como o Deus único em seu subsistir distinto158.

A divindade concreta existe necessariamente nessas três formas de sub­


sistência. N ão se deve pensar em uma divindade que fosse a base real prévia
a essas formas. A prim eira forma de subsistência constitui Deus como Pai,
como princípio sem origem da autocomunicação e da automediação divinas,
de tal maneira que não existe um “Deus” anterior a essa prim eira forma de
subsistência159. E verdade que essa fórmula, admite Rahner, diz pouco sobre
o Pai, Filho e Espírito Santo como tais, mas o mesmo ocorre com outros
termos da teologia trinitária, como a “relação”. Mas a expressão “forma de

consistência fora do marco da economia. Também A. GONZÁLEZ, Trinidady Liberación,


San Salvador, 1996, 35ss. São as relações entre a Trindade imanente e a Trindade econô­
mica qne estão em jogo, cf. GRESHAKE, op. c it, 197s; V H O LZER, Le Dieu Trinití dam
Fbistoire. Le differend théologique Balthasar-Rabner, Paris, 199$, 211ss.
157. El Dios trino..., 437; no mesmo contexto (cf. 447ss) justifica os term os de sua
proposta e assinala que a expressão que propõe é mais próxima do uso tradicional que
aquela de Karl Barth; cf. tam bém 410, nota 76, em que alude ao tropos tbes byparcbeos dos
capadócios, que equivalia então ao “m odo de existência ou de ser”. Ver, p. ex., BASÍLIO de
Cesaréia, De Sp. sana. 18, 46 (SCh 17bis, 408).
158. Ibid., 437-438.
159. A pessoa do Pai é o rosto concreto que D eus adota quando se lhe considera ao
mesmo tempo em sua asseidade e em sua paternidade. C f HO LZER, op. cit., 121.

283
DA "ECONOMIA" À -TEOLOGIA"

subsistência” oferece uma vantagem em comparação com a palavra “pes­


soa”: a de não insinuar a multiplicação da essência e da subjetividade1*0.
Vê-se com clareza que o obstáculo que Rahner quer evitar é o triteís-
mo. Observa-se também que suas preocupações coincidem em grande
medida com as de Barth: como ele, insiste na necessidade de excluir três
centros autônomos de consciência e de ação em Deus. Mas a partir da termi­
nologia rahneriana de “modas (ou formas) de subsistência”, como da termino­
logia de Barth de “modos de ser”, não se deve deduzir que esses autores
sejam sem mais modalistas, por mais que suas tentativas possam ser — e
tenham sido, de feto — objeto de discussão. Já o víamos a propósito de
Barth, e o mesmo podemos dizer de Rahner. Para ele a Trindade não é
meramente econômica, mas também imanente. Os modos de D eus autoco-
municar-se para fora correspondem ao que Deus é em si mesmo. K. Rahner
insiste também, como Barth, no ponto de partida no Pai: não há uma es­
sência divina prévia a esses três modos de subsistir, diferenciados e ao mesmo
tem po unidos nas relações reais. Mas, uma vez feita essa afirmação funda­
m ental, o que podemos questionar é se, com sua proposta, Rahner chega
onde quer chegar; se suas considerações não devem ser completadas com
outras, ou mesmo corrigidas. Daí a discussão que sua teologia trinitária, e
em concreto a questão da “pessoa” em Deus, suscitou nos últim os tempos.
Naturalmente também nessa crítica se correu o risco de cair no extremo
oposto ao que se pretendia evitar.
Já felamos do enriquecimento experimentado pelo conceito de pessoa
nos últimos tempos. A pessoa não é entendida somente como o indivíduo
que se autopossui e é consciente de si, sujeito e centro de atividades. Tam­
bém no conceito moderno de pessoa entra a comunicação, o amor, em
uma palavra, a relação. A terminologia das três pessoas pode ajudar por­
tanto a ver que Deus é relação, é comunhão. Com todas as cautelas e evi­
tando certamente cair em representações das três pessoas divinas segundo
o modelo de três pessoas humanas, será que se devia falar na Trindade só
de um a repetição do eu, como fez Barth, excluindo todo tu recíproco
intratrinitário, como fez K. Rahner? N ão feltaram vozes da parte católica
que observaram que as pessoas divinas se caracterizam pela consciência de
si e pela liberdade, por seu existir em si mesmas não só distinguindo-se das
outras, mas em sua relação para com elas1 161.
06 Com as formulações de três

160. Cf. El Dios trino..., 439.


161. Cf. F. BOURASSA, Personne et conscience en théologie trinitaire, Greg SS
(174) 471-493; 677-720, esp. 483,489. Com essa colocação não é efetivamente tão claro
que o estado da questão estabelecido por K. Barth e K. Rahner recolha todos os aspectos
da questão mesma. Cf. o indicado nas notas 149 e 1S6.

284
"TRINITAS IN UNITATE" A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES, AS RELAÇÕES, AS PESSOAS DIVINAS

modos de ser, ou três modos de subsistir, não se exprime a dimensão do


mistério que é a unidade na intersubjetividade; antes se corre o perigo de
negá-la. Já aludimos ao problema que isso coloca na relação entre a Trin­
dade econômica e a Trindade imanente, porque é claro que, na primeira,
Jesus está ante o Pai em atitude dialogai. Será que Karl Rahner partiu
realmente da Trindade econômica no desenvolvimento concreto de sua
teologia trinitária? Mas na discussão em tom o à questão da pessoa em
Deus aludiu-se ainda a outro problema. Embora admitindo que o conceito
de pessoa dos tempos modernos insista na idéia de sujeito, individualidade
etc., Barth e Rahner não só não o rejeitaram, como o aceitaram; mas não o
aplicaram às três “pessoas” na linguagem tradicional e sim a Deus mesmo
como sujeito absoluto. Se partiram desse “sujeito” é claro que depois se
tomou difícil falar de três. Deus é o sujeito de sua auto-revelação (Barth) ou
de sua autocomunicação (Rahner)162. Mas a tradição cristã falou da uni­
dade de substância ou de essência, mas não de unidade de sujeito, seja do
sujeito da auto-revelação segundo K. Barth, seja de sua autocomunicação
segundo K. Rahner163. Portanto, se certamente não podemos pensar que haja
em Deus três autoconsciências diversas, daí não se segue necessariamente
que se deva negar três centros de consciência e de ação, três “agentes”164.

2. As pessoas se realizam em seu mútuo amor.


O modelo social da Trindade.

Foi M oltm ann sobretudo que, de maneira mais conseqüente — e,


ousaria dizer, mais radical —, fundou sua teologia trinitária sobre a comu­
nhão das pessoas, colocando-se portanto no extremo oposto da posição de
Barth e Rahner que acabamos de expor. M oltmann pensa que na história
da teologia não existiu o perigo de triteísmo, e que a luta contra ele não

162. KASPER, op. cit., 366; M ILA N O , op. cit., 2 4 9 .0 m étodo transcendental, que
parte do sujeito hum ano, não ajuda Rahner a abrir-se aos três “sujeitos” em Deus. A influência
da doutrina psicológica da Trindade é clara. 'Ièria também contribuído essa teologia para
eliminar o “nós” da teologia trinitária? C f as observações de RATZINGER sobre Agosti­
nho, e sobretudo Tbmás de Aquino, Zum Personverständnis in d er Theologie, in Dogma
und Verkündigung, M unique-Friburgo, 1973, 205-223,
163. Cf. KASPER, op. d t., 366; cf. também GRESHAKE, op. d t , 141-150.
164. Cf. KASPER, op. d t , 352; ROVIRA BELLOSO, op. d t., 626,634ss. As pro­
postas term inológicas de Barth e de R ahner foram criticadas tam bém do ponto de vista
pastoral; assim KASPER, op. d t., 351: “N ão se pode invocar, adorar, glorificar um distinto
modo de subsistênda”. Cf. também J. O ’D O N N ELL, The mytery of the Triune God, London,
1988. 104.

285
DA “ECONOMIA" À TE O L O G IA "

passa de um m odo de ocultar as tendências “modalistas”165. Insiste na par­


cialidade com que os autores citados acolheram o conceito contemporâ­
neo de pessoa166: o “e u ” só pode ser entendido em relação com o “tu ”. E
portanto um conceito de relação. Personalidade e socialidade vão juntas,
não existe a prim eira sem a segunda. P o r isso, não se pode partir da idéia
de subjetividade absoluta em D eus, po rq u e a partir dela não se sai do sim­
ples m onoteísm o.
Mas p o r outra p a rte M oltm ann vê também dificuldades no uso em
teologia trinitária do conceito de substância: não é uma noção bíblica, e,
além disso, quando s e vê a unidade d e Deus nesse plano, ela é entendida
com o um “n eutro”, com o algo não-pessoal. Sendo inviáveis os caminhos
da subjetividade absoluta e da unidade de substância, está aberto um ter­
ceiro caminho para falar da união167 divina: este caminho para M oltmann
é a “pericorese”: só a partir dela podem os chegar à união em Deus:
Só o conceito da união (Emigkeit) é o conceito de uma unidade imediata e
aberta. O Deus uno é um Deus “unido” (einiger). Isso pressupõe uma
autodiferendação de Deus pessoal, não somente modal, pois só as pessoas
podem estar “unidas” (emig sem), não os modos de ser ou de subsistência... A
união da “Tri-unidade” (Die Emigkeit der Drei-einigkeit) já está dada pela
comunhão (Gemeitiscbafi) do Pai, do Filho e do Espírito. Não precisa ser
assegurada ainda mais por um ensinamento específico da unidade da substân­
cia divina...168.

Um conceito individualista da pessoa vê a relação em segundo lugar,


um a vez que o “eu” já esteja constituído. Diante dessa concepção deve-se
insistir que as duas dimensões, a do “eu” e a da “relação”, estilo intima­
mente unidas. Por isso observa M oltm ann que o Pai, o Filho e o Espírito
Santo não só são distintos por sua personalidade, mas ao mesmo tempo,
por essa mesma razão, está cada um deles com o outro e no outro. As três
pessoas estão unidas por sua mútua relação e por sua m útua inabitação.
Ambas as noções, de pessoa e de relação, são igualmente originais na Trin­
dade. Por uma parte, a relação supõe a pessoa. Por outra parte, não há

165. Cf. Trinität und Reich Gottes. Zur Gotteskbre, M unique, 1980, 161.
166. Cf. Ibid. 154-166. W. Kasper foi notavelmente influenciado por M oltmann em
sua crítica a K. Rahner.
167. A palavra usada por M oltmann é Emigkeit (e também Vereinigung) e não Einheit.
Parece querer insinuar com essa term inologia um elemento dinâmico, p o r isso traduzi por
“união” e não por “unidade”. Seria possível também pensar em unificação.
168. Trinität und Reich Gates, 167.

286
"TRINITAS IN UNITATE*. A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES, AS R EIA ÇÕ ES. AS PESSOAS DIVINAS

pessoa se não é em relação. Os dois conceitos surgem simultaneamente e


em conexão, estão unidos, segundo o autor, “geneticamente”. A constitui­
ção das pessoas e sua manifestação na relação são as duas faces de uma
mesma realidade169.
A partir dessa teologia trinitária, M oltmann quer tirar conseqüências
para a teologia política: o monoteísmo entende Deus em termos de auto­
ridade, de domínio. O m istério pascal de Jesus dá outra versão da sobera­
nia: Deus é entendido como comunhão. Assim entendida, a Trindade é um
programa social. Os homens criados à imagem da Trindade estão chama­
dos a esse tipo de união, a essa pericorese. “A unidade pericorética do
Deus trino e uno (drei-einig) corresponde à experiência da comunidade de
Cristo”170. A mútua inabitação das pessoas mostra que não há subordina-
cionismo na Trindade171.
M oltm ann quer eliminar até certo ponto a distinção entre Trindade
econômica e imanente172.371A função positiva dessa distinção é salvaguardar
a liberdade da graça que Deus nos dá; a cruz aparece só na economia
salvífica, não na Trindade imanente. Mas a distinção revela-se inoperante
quando se parte da idéia de que em Deus liberdade e necessidade não se
opõem, mas coincidem no amor. Deus ama o mundo com o mesmo am or
que ele é17}. Assim Deus pode ser pensado tem poral e historicamente.
M oltmann fala da “constituição” da Trindade, e serve-se para isso em boa
medida dos conceitos tradicionais; fala também de uma vida trinitária, da
Trindade imanente, da comunhão de amor das três pessoas e da m útua
inabitação174. Mas ao mesmo tem po Deus está aberto à criação, ao tem po,
à história. Assim o problema da unidade em Deus, do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, é a questão da escatologia, da consumação da história
trinitária por Deus mesmo175. A história trinitária ainda não está completa
porque ainda vivemos em um tem po de pecado, de m orte etc. Cada um de
nós tem de colaborar para que as forças do mal sejam vencidas, para que
se supere a divisão e para que as forças de união prevaleçam. A his­

169. Ibid., 189.


170. Ibid., 174. Cf. o desenvolvimento dessa questão na últim a parte da obra, 207-239.
171. Ibid., 191. Eliminar o perigo do subordinacionismo é uma constante nos auto­
res que propugnam um m odelo social na Trindade, e também nos que criticam a constitui­
ção das pessoas a partir das relações de origem. Ver a exposição seguinte neste capítulo e
no próximo.
172. Ibid., 168; 176-177.
173. Ibid., 169.
174. Ibid., 179ss.
175. Ibid., 167.

287
DA “ECONOMIA“ À "TEOLOGIAr

tória trinitária estará completa quando na consumação escatológica Deus


será tudo em todos (IC o r 15,28). Deus será glorificado na criação e a
criação será glorificada em Deus176.
Temos aqui uma concepção da unidade da Trindade que se qualifica
com o “aberta”, e que não deixa de suscitar diversas perguntas. M antém-se
a liberdade divina na economia, ou se realiza Deus nesta? Qual é o vínculo
que ultimamente une os “três”? Essa união é só o resultado de um proces­
so? M oltmann, de outra parte, vê as pessoas relacionadas, mas não admite
que a relação seja a pessoa ou que a constitua. Pensa que isso leva ao
modalismo. Para ele o Pai está certam ente relacionado com o Filho, mas
esse fato não o constitui, mas pressupõe sua existência177. Com o se vê, a
decidida vontade de elim inar o perigo do modalismo fez surgir a duvida:
não nos aproximamos do outro extremo? Não se abandona o conceito da
unidade da natureza de Deus, mas tom a-se difícil evitar a impressão de
que essa natureza é possuída pelos três que em um segundo “momento”
entram em relação:
O conceito da substancia reflete as relações da pessoa à natureza divina
comum. O conceito da relação reflete a relação das pessoas entre si. As
pessoas da Trindade subsistem na natureza divina comum, existem em suas
relações m útuas178.

3. Autoconsciência e alteridade nas pessoas divinas

“A doutrina da Trindade não pode deixar-se encerrar na (falsa) alter­


nativa entre uma concepção rigidamente ‘monossubjetiva’ e uma concep-

176. Ibid., 178.


177. Ibid., 189. N o cap. seguinte voltaremos a esse ponto.
178. Ibid. Como se vê, trata-se de evitar o conceito de “relação subsistente”. N atu­
ralm ente, com essa breve exposição não pretendem os chegar à última clareza sobre o pen­
sam ento de M oltmann. Contentam o-nos com indicar a linha fundamental e os problemas
que suscita, em relação com o que já dissemos em seu momento sobre a Trindade em
relação com o mistério pascal. Cf. GRESHAKE, op. cit., 168-171, que vê em M oltmann
o perigo de um certo triteísmo; W. PANNENBERG, Teologia sistemática, M adri, 1992,
363, pensa que Moltmann não cai no triteísm o, mas que se opõe a uma unidade de Deus
não “trinitária”, embora não tenha conseguido form ular de modo adequado seu pensamen­
to a respeito da constituição da Trindade por uma parte a partir do Pai, e por outra nas
relações mútuas. M uito inspirado em M oltmann, Leonardo Boff quis buscar na comunhão
da pericorese uma terceira via entre a teologia grega e a teologia latina para expressar a
unidade e a diferença em Deus. Ver sobretudo, La Trinidad, la sociedady la liberación, M adri,
1987, e La Trinidad es la mejor comunidad, M adri, 1990.

288
TR IN ITA S IN UNITATEV A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES, AS RELAÇÕES, AS PESSOAS DM NAS

ção ‘social’ da Trindade.”179 De feto, nas tentativas recentes no campo da


teologia católica tratou-se de evitar esses dois extremos. N a menção feita
das críticas formuladas a K. Barth e K. Rahner de uma parte, e a J. Moltmann
de outra, já se insinuou o que agora queremos expor. Se a unidade da
essência divina exclui em Deus três autoconsciências, nem por isso se de­
vem excluir três agentes, três “sujeitos”; nem renunciar, certam ente com as
devidas cautelas, a uma iluminação do m istério da unidade divina que te­
nha em conta a alteridade e a intersubjetividade.
Ainda no marco da teologia escolástica tradicional, B. Lonergan fala­
va do Pai, do Filho e do Espírito Santo como de três sujeitos que, referidos
uns aos outros por relações, são conscientes cada um deles de si mesmo e
dos outros aos quais estão referidos. H á três sujeitos divinos conscien­
tes, o que não significa que haja pluralidade de consciências, porque em
Deus o ato essencial e os atos nodonais não se distinguem realmente. Mas,
havendo pluralidade de sujeitos, há pluralidade de sujeitos conscientes.
Daí se deduz que “há três sujeitos reciprocamente conscientes por meio de
uma só consciência, que é possuída de modo diverso por cada um dos
três”180. W. K asper181 seguiu-o quase ao pé da letra; por sua parte feia tam­
bém do “diálogo” que caracteriza as pessoas divinas: “As pessoas divinas
não existem só no diálogo: elas mesmas são diálogo”182. De m an eira seme­
lhante F. Bourassa põe em relevo que aquilo que indivídua as pessoas dis­
tintas (opostas) entre elas não é uma individuação absoluta senão o caráter
m útuo das relações, que é total comunicação recíproca na plenitude da
substância divina. “Tudo o que é m eu é teu” (Jo 17,10). N ão somente o eu
divino é infinito, senão que além disso é total comunicação de sua infinitude.
E uma promoção ao infinito daquele a quem se comunica. Assim, a comu­
nicação do Pai ao Filho gera este em sua plenitude, como único Deus com
ele. A pessoa está constituída para existir em plenitude na intercomunica­
ção pessoal. Cada um é pessoalmente consciente e livre em sua proprieda-

179. J. W EBICK, D o ttrim trinitaria, em T h . SCH N EID ER (ed.), Nuovo Corso di


Dogmático, Brescia, 1995, 573-685,636.
180. De Deo Trmo..., 193: “Tria subiecta sunt inviceem cônscia per unam conscientiam
quae aliter et aliter a tribus habetur”; cf. 186-196. Porém, embora Lonergan fale de três
sujeitos, não crê que as três pessoas sejam “eu” e “tu ” intratinitari amente (cf. nota 156);
sobre essa questão J . M. M cDERM O lT , Person and nature in Lonergan’s D e Deo Trino,
Ang 71 (1994) 153-185, esp. 182-185.
181. KASPER, op. tit., 352: “Na T rindade encontram o-nos com três sujeitos que são
redprocam ente consdentes graças a uma idêntica consdênda, que é “possuída” pelos três
sujeitos de forma diversa em cada caso”.
182. Ibid., 35. Nesse ponto afasta-se, pois, de Lonergan.

289
DA "ECONOMIA" À "TEOLOGIA”

de pessoal, no exercício da mesma consciência infinita. Assim, cada pessoa


é total comunicação de si mesma, e a perfeita comunicação com porta har­
monia total, unidade infinita, na plenitude da consciência, de am or e de
liberdade. Uma comunicação pessoal recíproca, total e infinita opõe-se à
independência e à limitação. N ão há portanto em Deus três consciências
distintas, senão perfeita unidade de substância e de amor, não há teu e
meu. Porém essa consciência é pessoal. A consciência divina é uma, mas o
“eu” divino não é o eu comum às três pessoas, senão distintam ente o eu
próprio de cada uma. Cada pessoa divina é consciente de si sendo consciente
de que é Deus, por isso essa consciência é em comunhão, é uma consciên­
cia exercida por cada um em comunhão com os outros. “Unidade interior
em Deus infinitam ente consciente e plenitude de amor, unidade não inerte
e solitária de uma pessoa única, mas comunidade de vida do Pai e do Filho
que é seu único am or.”18’
Outros autores católicos seguiram com mais decisão a linha do diálo­
go e da analogia com as relações inter-humanas que claramente já víamos
insinuada em alguns dos teólogos que acabamos de citar. Em Agostinho
notávamos alguns traços dessa linha, mas nele sem nenhuma dúvida pre­
domina a analogia psicológica. Mais decididamente Ricardo de São Vítor
partia da análise do amor inter-hum ano, e não custa grande esforço ob­
servar na mais recente teologia católica um renovado apreço por essa orien­
tação. Junto com a categoria do “Eu”, que víamos predominar em K. Barth,
também se usou explicitamente a do “N ós” em Deus, ainda que em modo
diferenciado segundo os autores.
Teve notável influência, e ao mesmo tempo suscitou discussão, o
modelo desenvolvido por H eribert M ühlen: O Pai é caracterizado como
o “Eu”, o Filho como o “Tu” e o Espírito Santo como o N ós do Pai e do
Filho, “o Nós em pessoa”1 13884, o Nós hipostasiado, poderíamos dizer. Mühlen

183. BOURASSA, op. c it, 719. Ver também para o que precede, 717;720; do mes­
m o, La Trinità, em K. H . N EU FELD , op. cit., 337-372, esp. 352-353: “A consciência de
si exercida pessoalmente por cada uma das pessoas divinas é, por cada um a, a consciência
de ser Deus, e isso é comum com as outras pessoas e a consciência de si como distinta das
outras, mas em uma relação de toda a própria existência ao outro... Isso significa um a vida
divina vivida por cada pessoa, divinamente, portanto unicamente, infinitam ente e total­
m ente para o outro”. “Essa consciência pessoal de uma existência vivida para o outro, em
uma reciprocidade tão total e infinita, é o ápice da unidade”.
184. Cf. H . M Ü H LEN , Der HeiUge Geist als Person in der Trinität in der Inkarnation
und im Gnadenbund, M ünster, 1963, esp. 100-168; cf., do mesmo, Una mystica persona, Mu-
nique-Paderbom -Viena, 31968,196-200: o E spírito Santo é uma pessoa em duas pessoas
no seio da Trindade, o que corresponde à fórmula edesiológica que o autor propugna: uma
pessoa em muitas pessoas.

290
TRINITAS IN UNITATE". A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES, AS RELAÇÕES, AS PESSOAS DIVINAS

observa agudamente que “Nós” não pode ser nunca o plural da primeira
pessoa, porque esta, a rigor, não tolera o plural. “Eu” há um só, mas pode
haver muitos Vós, ou muitos eles. “N ós” é ao mesmo tempo o plural da
primeira e da segunda pessoa, o plural do Pai e do Filho. O matrimônio
dá uma imagem desse “N ós”: o m atrim ônio não é nem teu nem meu, mas
nosso. Mühlen coloca-se sem dúvida na tradição da teologia ocidental que
viu o Espírito Santo como o amor mútuo do Pai e do Filho e a expressão
de sua unidade, como já ocorre em Agostinho e em grande parte da tradi­
ção ocidental. Embora reconhecendo a validade de sua intuição, alguns
críticos questionaram se Mühlen justificou a exclusividade da aplicação
dos pronomes ao Pai e ao Filho, e o que é que esses nos dizem sobre as
propriedades pessoais do Pai e do Filho. N ão poderia aplicar-se também
ao Espírito Santo? Além disso, se esse é o “N ós” do Pai e do Filho, não fica
desfigurada sua propriedade pessoal?185
Também J. Ratzinger usou uma metáfora parecida, introduzindo tam­
bém a idéia da pluralidade de sujeitos e o diálogo em Deus:
O conceito de pessoa exprime desde sua origem a idéia do diálogo e a Deus
como a essência dialogai. Indica a Deus como a essência que vive na palavra
e subsiste na palavra como Eu, Tu e Nós. Desse conhecimento de Deus re-
vela-se ao homem, de modo novo, sua própria essência186.

A partir de Agostinho, define Ratzinger a pessoa como o fenômeno


da total relatividade, que em sua plenitude só em Deus pode ter lugar, mas
que sinaliza a direção do que, de algum modo, é todo ser pessoal, e portan­
to também o hom em 187. Mas na teologia cristã não existe o simples prin­
cípio dialógico “eu-tu” dos tempos modernos. Não existe esse simples
princípio dialógico da parte de Deus, porque nele há sempre o nós do Pai,
do Filho e do Espírito Santo. E tampouco da parte do homem, que existe
somente na comunidade do povo de Deus, em última instancia existe em
Cristo, que une o nós dos homens com o tu de Deus188.

185. Cf. por ex., MILANO, op. dt., 256s; GRESHAKE, op. d t., 163; 194. GONZÁLEZ,
op. d t., 198ss. Voltaremos sobre o tema ao tratar da pessoa do Espírito Santo.
186. RATZINGER, op. d t., 210.
187. Ibid. 213, cf. também RATZINGER, Introducdón al cristianismo, Salamanca,
1971, 151-153; 159: “O eu é ao mesmo tem po o que tenho e o que menos m e pertence...
Um ser que se entende verdadeiramente com preende que em seu ser mesmo não se per­
tence, que chega a si mesmo quando sai de si mesmo, e volta a orientar-se com o referênda
à sua verdadeira originalidade”.
188. Cf. Personvertandnis..., 222.

291
DA "ECONOMIA" À "TEOLOGIA"

Também H .U . von Balthasar usou a imagem do “nós”, mas não como


o nós dos três, como faz Ratzinger, senão do Espírito Santo como o “nós”, o
eterno diálogo entre o Pai e o Filho, em uma linha que tem seus pontos de
contato com H . M ühlen189. Mas usa também a imagem da fecundidade
matrimonial que se abre no filho190. Segundo essa metáfora, o Espírito
apareceria antes como o fruto da unidade do Pai e do Filho. Von Balthasar
pensa que com essa imagem dá-se um complemento à idéia do diálogo
exclusivo eu-tu, que, apesar de todas as diferenças, corresponderia tam ­
bém à Í7nago Trrnitais inserta na criatura. N ão supera somente o fechamen­
to do “Eu” no conceito agostiniano, mas também permite que o condilectus,
que no esboço de Ricardo de São Vítor parece antes trazido de fora, surja
da mesm a com preensão interna do am or191. C laro que não se pode
absolutázar essa imagem sem cair no risco do triteísm o192, mas pode aju­
dar a mostrar que a unidade dos dois se expressa e se assegura em um ter­
ceiro, que o amor perfeito entre o que ama e o amado não se dá sem um
condilectus que brota do interior desse mesmo amor.
Com diferenças de matiz que não se pode desconhecer, a teologia
católica tratou de ilum inar o m istério das divinas pessoas em sua unidade
e em sua distinção, combinando os elementos da autopossessão e da auto­
consciência e os da relação inter-humana. Para ambos oferece a tradição

189. Cf. Spiritus Creator, Einsiedeln, 1967, 152.


190. Cf. TheologikU. Wàbrbeit Gottes, Einsiedeln, 1985,54ss, onde rita M . J. Scheeben,
segundo o qual a mãe, que é o vínculo de união entre o pai e o filho, podería ser imagem
do E spírito Santo. Mas o próprio Scheeben estava consciente que a idéia era estranha à
tradição. Já vimos como Agostinho a rejeitava expressamente. Em termos m uito mais ge­
néricos JOÃO PAULO II usou em várias ocasiões essa analogia com a família: “Foi dito,
de form a bela e profunda, que nosso Deus, em seu m istério mais íntimo, não é uma solidão,
mas um a família, posto que leva em si mesmo a paternidade, a filiação e a essência da
família que é o am or” {Homilia de Puebla, 28/jan71979). Também na Carta àsfamüias, de 2
de fevereiro de 1994, o “N ós” divino constitui o modelo eterno do “nós” humano, antes de
tudo por esse nós humano que está formado pelo hom em e a mulher criados à imagem e
semelhança divina”. Cf., sobre a questão, W .AA., Mistério cristiano y existência humana,
Salamanca, 1995.
191. Ibid., 56s.
192. O mesmo autor observa que nenhum dos modelos pode absoludzar-se; cf. 7eo-
dramática 3, Madrid, 1993,482s. Do mesmo, Tbeologik II, Einsiedeln, 1985,35; 39: o modelo
interpessoal não chega a alcançar a unidade substancial de Deus, o modelo “intrapessoal”
não expressa o real e permanente “estar diante” das hipóstases em Deus; cf. também W ER-
BICK, op. dL, 617s; 639s. Sobre diferentes tentativas (de resultados muito variados) de
fundar a unidade divina na comunhão pessoal, cf. CVDONNEL, The Trinity as Divine
Community, Greg 69 (1988) 5-34. Também sobre alguns aspectos do problema na teologia
atual, B. J. HILBERATH, Der dreieinige Gott und die Gemetnschaft der Menseben, M ainz,
1990.

292
TRINfTAS IN UNITATE". A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES. AS RELAÇÕES. AS PESSOAS DIVINAS

elementos válidos, embora a introdução desses elem entos no pensamen­


to teológico não se explique sem a influência da evolução antropológica
e filosófica.
A autopossessão na consciência de si, a condição de “sujeito” são re­
conhecidas como elementos integrantes da noção da pessoa divina. Não
foi muito seguida nesse sentido a proposta de K. Rahner, embora sua ad­
vertência em relação ao triteísmo não tenha caído no vazio. Em seguida
deve-se sublinhar, e assim de fato se tem feito na teologia católica, que os
três “sujeitos” têm uma só autoconsciência, uma só liberdade, um só amor
e conhecimento193. Cada um se autopossui e é consciente de si na relação
com as outras pessoas e na comunhão plena com elas. Cada um é distinto
na radical relacionalidade (a pessoa é a relação) de tal maneira que o ser de
cada uma das pessoas— Pai, Filho e Espírito Santo— e a correspondência
com os outros dois são idênticos194. N as pessoas divinas coincide o ser de
cada uma delas com a relação com as outras na comunhão perfeita do
único amor. A autopossessão de cada uma das pessoas identifica-se com a
real doação às outras duas. Só enquanto relacionada com as outras cada
pessoa divina tem sua “identidade” própria.
Pode-se pensar, com efeito, seguindo as palavras de Jesus, “Tudo o
que é meu é teu e tudo o que é teu é meu” Qo 17,10) e “Que todos sejam
um, como tu Pai estás em mim e eu em ti” (Jo 17,21) — com a necessária
inclusão do Espírito Santo —, em uma união das pessoas que, mantendo
a distinção que corresponde ao eu e ao tu, elimine totalm ente o meu e o
tu. A unidade não é só um estar “com”, mas estar “em ” outro, em tuna

193. Pode-se falar nesse sentido de um a certa linha de consenso. Ver, além dos autores
já citados, M ILANO, op. d t, 242-246; J. M . NICOLAS, De la Trrnití à la Trmité. Syntbèse
âognatique, Freiburg, 1985, 147s: há três conscientes e livres, m as uma só consdênda;
GRESHAKE, op. d t., 122: “H á em Deus uma consdênda, um amor, um agir livre, mas
todos esses atos não são realizações da natureza, senão dos sujeitos pessoais, isto é, os sujeitos
dessas ações são três autoconsdêndas, três centros do conhecimento, três liberdades...” Pes­
soalmente, prefiro formular “três autoconsdentes, três livres etc.”, para dar mais relevânda
à pessoa. Pode-se legitimamente duvidar da oportunidade do uso das categorias de “sujeito”,
de eu e tu em Deus na Trindade imanente; bastaria falar da realidade em autopossessão; assim
se expressa GONZALEZ, op. d t , 194, inspirado nas categorias de X. ZUBIRI, embora
naturalmente acrescente que essa autopossessão dá-se em plena comunhão e na entrega total
de um as pessoas às outras. Ainda que bem consciente da dificuldade, prescindo em minha
exposição dessas precisões porque, se na economia da salvação as pessoas aparecem como um
eu e um tu, deve-se pensar que há algo na Trindade imanente que corresponde a esse modo
de dar-se a conhecer o Pai, o Filho e o Espírito na economia salvífica.
194. Cf. W ERBICK, op. d t,6 5 2 ; GRESHAKE, o p .d t, 184s; ROVIRA BELLOSO,
op. cit., 636; a intim idade e a relação são um e o mesmo.

293
DA “ECONOM IA” À “T E O L O G IA ”

com unhão perfeita q u e é a inabitação recíproca. É clara a diferença com a


pessoa hum ana, a q u a l, embora esteja sempre em relação e aberta aos outros,
existe sem pre em u m a certa tensão em ser ela mesma e sua relação ao
o u tro (por isso podem os fechar-nos a Deus e ao próximo); até na comu­
nhão mais perfeita q u e possamos im aginar não podemos fazer participan­
tes aos o utros de tu d o o que somos, nem participar plenamente de tudo o
que são os que nos rodeiam . M as em D eus as pessoas existem na desapro­
priação to tal e na doação absoluta.
Tòdas as im agens e os modelos que a partir da realidade humana pre­
tendam ilum inar-nos o acesso ao m istério deverão reconhecer o limite
fundam ental da in fin ita superioridade do modelo sobre a imagem e a impos­
sibilidade d e en cerrar Deus em nossos esquemas humanos. Precisamente
quanto m ais se aventura a teologia na exploração do mistério divino, mais
deveria ser consciente do momento apofatico que, sem ser absolutizado,
deve sem pre caracterizá-la. Q ualquer imagem estará, de entrada, relativi-
zada, ainda que seja apenas pelo fato de que Jesus não a utilizou quando
tom ou sobre si a ta re fa de explicar no humano o divino de sua pessoa1’5.
M as isso, naturalm ente, não quer dizer que devamos desprezar os esforços
seculares da teologia nem as tentativas sempre renovadas de dar razão de
nossa esperança.
N a unidade d a única divindade subsistem o Pai, o Filho e o Espírito
Santo, distintos realm ente uns dos outros em virtude das relações recípro­
cas. Mas essas não só os distinguem, senão que os unem em um amor
infinito e na com penetração mútua. Unidade e distinção não se opõem em
Deus. As expressões bíblicas da unidade do Pai e do Filho (cf. Jo 10,30;
14 9-10 etc., e cf. tam bém H b 1,3, o Filho esplendor da glória de Deus e
efígie de sua substância) apontam para uma unidade na distinção que cer­
tam ente vai mais além de tudo o que podemos imaginar.
Aliás, deve-se te r em conta que em Deus não se dá nenhuma repeti­
ção, e que portanto o Pai, o Filho e o Espírito Santo não só são distintos,
senão que são pessoa de maneira distinta. Já aludimos a essa questão. Vi­
m os que a partir de Sto. Agostinho, pelo menos, causa problemas o uso do
plural “três pessoas”. É a necessidade que força a isso. Cada uma das pes­
soas identifica-se com a essência divina de maneira que Deus não “cresce”
com a soma do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Diferentes intervenções
do Magistério, já desde tempos antigos, advertiram contra a “multiplica­
ção” de Deus. Assim, o papa Hormisdas no ano 521: “Unum est Sancta591

195. Cf. BALTHASAR, Tbeologik ü, 61.

294
TR IN ITA S IN UNITATE". A VIDA INTERNA DE DEUS: AS PROCESSÕES, AS RELAÇÕES, AS PESSOAS DIVINAS

Trinitas, non m ultíplicatur numero, non crescit augmento...” (DS 367). O


Concílio XI de Toledo (675) nota que Deus é Trindade, mas não é “tri­
plo”196. Cada pessoa não é sem as outras, mas isso não quer dizer que ne­
cessite ser completada porque algo lhe falte. Cada pessoa é Deus inteira­
mente. Essa é outra razão pela qual não cabe em Deus nem soma nem
multiplicação. A referência de cada pessoa às outras duas, sem a qual ne­
nhuma pessoa divina é, por uma parte pertence necessariamente ao ser
divino, mas por outra se dá no puro transbordamento do amor, não para
suprir qualquer tipo de deficiência ou de falta.

196. “Quae non triplex, sed Trinitas et dici et credi debet. N ec recte dici potest, u t
in uno D eo sit Trinitas, sed unus Deus Trinitas” (DS 528): inspira-se em A G O STIN H O ,
Trm V I 7,8 (CCL 50,238); cf. V E 1,2 (249); o mesmo Concílio: “nec m inoratur in singulis
nec augetur in tribus” (DS 529); “nec recedit a num ero, nec capitur numero” (530). Tam­
bém é interessante a precisão de PIO VI na bula Auctoremfidei de 1794: Deus é “um em três
pessoas distintas”, mas não “distinto em três pessoas” (DS 2.697). Numerosas intervenções
repetiram essas idéias: cf. E ntre outros lugares DS 470; 490; 501; 800; 803s., o Lateranense
IV, contra Joaquim de Fiore; 1880... Pode-se ver m aterial sobre a dificuldade que desde os
tem pos antigos suscitou o “núm ero” em Deus em BALTHASAR, Tbcologik III. Der Geist
der Wahrheit, Einsiedeln, 1987, llOss. Cf. AMBRÓSIO de Milão, De Spiritu Soneto I I I 13
(CSEL 79,189): “Quomodo pluralitas recipit imitas divinitatis, cum pluralitas numeri sit,
num erus autem non recipiat divina natura”; BASILIO de Cesaréia, de Sp. sane., 18,44-46
(SCh 17bis, 402-410), cada hipóstase é nomeada por si mesma.

295
10
O Pai, o Filho e o Espírito Santo

Vimos que a noção de pessoa divina como relação subsistente signi­


fica a existência em Deus de três distintos centros de autopossessão e de
atividade na comunhão perfeita, que, podendo ser tomados como três “eu”,
excluem qualquer teu e meu (cf. Jo 16,14-15). N otam os também que em
Deus não se dá aumento nem diminuição por causa da diferenciação das
pessoas divinas, senão que a essência divina é possuída inteiram ente pelo
Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo, cada um a seu modo, como cada um
é a seu m odo “pessoa” em Deus. Por essa razão não podemos contentar-
nos com a reflexão, necessariamente um tanto genérica, que levamos a
cabo no capítulo precedente. N ão basta falar da trindade de pessoas, deve­
mos estudar também quem são o Pai, o Filho e o Espírito. Neste capítulo
passamos portanto ao tratam ento diferenciado das características próprias
de cada um dos três. Deveremos recolher de m odo mais sistemático uma
parte do que tivemos ocasião de ver em nosso estudo histórico.

O PAI, ORIGEM SEM PRINCÍPIO

O Pai, segundo a tradição teológica que data dos Padres da Igreja,


é o que assegura a unidade da Trindade por ser a fonte única da divinda­
de. Sabemos que não há uma essência divina “anterior” às pessoas, nem
natureza divina que esteja “acim a” delas (cf. DS 803-804), senão que essa
natureza é possuída inteiram ente pelos três, cada qual a seu modo. O Pai
a possui de maneira fontal, originária, dando-a e nunca a recebendo, em­
bora sem pre relativamente ao Filho e ao E spírito Santo; quer dizer, sua
posse originária da divindade não pode ser considerada com indepen-

297
DA “EC O N O M IA " À TEO LO G IA "

dência das outras duas pessoas. Sabemos já tam bém que quando o Novo
Testam ento fala de Deus refere-se em geral, em bora não exclusivamente,
ao Pai1. Como não há um a essência divina anterior, é claro que se fala
sobretudo dele quando se fala do Deus infinito, eterno, onipotente (cf. o
C redo). W . Kasper acentua isso fortem ente2. Mas fizeram-se reparos a
essa concepção. C ertam ente, não para negar os dados bíblicos, mas para
fazer v e r que, à luz da revelação cristã, Deus Pai não existe nunca sem o
Filho e o Espírito Santo; as afirmações veterotestam entárias sobre Deus
não podem ser com preendidas como referidas de modo exclusivo à pri­
meira pessoa3. D e todas as maneiras permanece a identificação pessoal
do Pai de Jesus com o D eus do Antigo Testamento. Tudo o que se diz de
Deus com o fonte última de tudo o que existe fala-nos sobretudo do Pai.
Mas não podemos considerar essas afirmações referidas exclusivamente a
ele, já que não é o princípio de tudo o que existe com independência da
mediação do Filho, e da perfeição que o Espírito Santo concede a tudo.
D eus manifesta-se como Pai, como já sabemos, na vida de Jesus, e
sobretudo em sua ressurreição dentre os mortos. Cremos que Deus ressus­
citou Jesus e com esse fato m ostrou de modo definitivo e irrevogável sua
paternidade (cf. Rm 10,9; F1 2,11; At 13,32-33; entre outras passagens).
Nosso estudo das afirmações fundamentais do Novo Testamento, da teo­
logia patrística e do magistério já nos puseram em contato com as princi­
pais afirmações referentes ao Pai. Agora devemos recolher e com pletar
esses dados de modo mais sistemático4.

1. Cf. K. RAHNER, Theos en el Nuevo Testamento, em ID ., Escritos de teologia,


Madrid, 1963,1,93-167; cf. algumas matizações de J. GABOR, Le mystère de la personne
du Père, Greg 11 (1996) 5-31.
2. Der Gott Jesu CbristiyM ainz, 1982,187-197, onde praticam ente o “De D eo uno”
considera-se um ensinamento sobre o Pai. Cf. também A. STAGLIANO, D mistero dei Dio
viventey Bologna, 1996, 590ss.
3. C f. R. SCHULTE, La preparation de la revelation trinitaria, MySal 2/1, 77-116,
80-87; H . U . von BALTHASAR, Teodramdtica 3: Laspersonas del drama: el bombre en Cristo,
Madrid, 1993,470. Voltaremos a essa questão no capítulo seguinte.
4. Sobre o Pai, além da bibliografia já citada e a que continuaremos utilizando, ver,
entre outros, W AA. Dios es Padre, Salamanca, 1991; L. BOUYER, Le Père invisible, Paris,
1976; A. TORRES QUEIRUGA, Creo en Dios Padre, el Dios de Jesus como afirmación plena
dei bombre, Santander, 1978; F. X. DURRW ELL, Le Père. Dieu en son mystère, Paris, 1988;
J. GALOR, Découvrir le Père. Esquisse d’une théologie du Père. Louvain, 1985; X. PEKAZA,
Padre, in Diccionario teológico. El Dios cristiano, 1.003-1.021.

298
O PAI. 0 FILHO E O ESPÍRITO SANTO

1. Alguns elementos da tradição

Sabemos que se em um primeiro instante, na linguagem cristã, fala-


se do Pai em analogia com a paternidade humana em um segundo mo­
m ento o Novo Testam ento faz-nos entender que o Pai de Jesus é o
analogatum prrnceps de toda paternidade: somente ele merece a rigor o nome
de Pai (Cf. M t 23,9: “a ninguém chameis de Pai sobre a terra...”; E f 3,15:
“O Pai de quem toma nom e toda paternidade...”). Falou-se do Pai origem,
fonte e também de sua “monarquia”. Mas esta de modo algum exclui o
Filho e o Espírito Santo. Todas essas denominações tratam de destacar
o papel singular que o Pai tem na Trindade e na economia salvífica. Algu­
mas expressões da teologia pré-nicena podem ter para nossos ouvidos um
certo sentido subordinacionista, mas vimos igualmente como a divindade
do Filho e a do Espírito Santo foram afirmadas com vigor. A crise ariana
obrigou a formulações cada vez mais claras sobre a igualdade das três pes­
soas. O Pai é princípio do Filho e do Espírito Santo que são D eus como
ele. Essas considerações não levaram a uma diminuição da pessoa do Pai,
m uito ao contrário. Sua grandeza como princípio mostra-se precisamente
aí. Já Gregório Nazianzeno notava que se o Pai fosse somente o princípio
das coisas criadas o seria de modo pobre e mesquinho. O Pai é “âpxrj” em
plenitude enquanto o é “da divindade e da bondade que se adora no Filho
e no Espírito Santo”5. O Pai é “princípio”, mas nem por isso o Filho e
o Espírito Santo podem ser considerados menores6. O Pai não pode ser
identificado simplesmente com a essência divina, porque é D eus comuiu-
cando-a totalmente ao Filho e ao Espírito Santo. A monarquia está cons­
tituída pela dignidade de igual natureza, não por uma só pessoa7. O caráter
de princípio próprio do Pai pede, para ter sentido pleno, a divindade do
Filho e do Espírito Santo. Segundo G regório de Nissa, ao se distinguir a

5. GREGÓRIO N azianzeno, Or. 2,38 (SCh 247,140). Cf. A G O STIN H O , Trm IV,
20,29 (CCL 50,200): “to tíu s divinitatis vel si melius dicitur deitads principium pater est”.
6. GREGÓRIO N azianzeno, Or. 30,7 (SCh 250,240), o Pai é m aior (cf. Jo 14,28)
refere-se à causa, porém que o Filho é igual (cf. Jo 10,30) refere-se à natureza. Já nos
referim os em diversas ocasiões à interpretação de Jo 14,28 pelos autores nicenos. O Pai é
m aior enquanto princípio, mas o Filho não é m enor enquanto recebe tudo dele. A pater­
nidade divina mostra-se precisamente na doação plena da divindade. Cf. tam bém AGOS­
T IN H O , Trm IV 20,27; V I 3,5 (CCL 50 195.233). ATANÁSIO, C. Arian. 1 20; ffl 6 (PG
26, 53. 333), o Pai só o é em relação do Filho.
7. Cf. G REG Ó RIO Nazianzeno, Or. 30,2 (SCh 250,178). Cf. também BASILIO de
Cesaréia, de Sp. Sane. 18, 45 (SCh 17 bis, 404-406).

299
D A “ECONOMIA" À "TEOLOGIA”

causa e o q u e dela provém, indica-se só a diferença dos m odos de existir,


não da essência ou natureza8.
A idéia do prim ado do Pai enquanto fonte e origem da divindade foi
mantida, com ovem os, mesmo quando a igualdade das três pessoas foi afir­
m ada e reconhecida claramente9. Foi precisamente a reflexão sobre o que
significa a paternidade da prim eira pessoa que excluiu todo subordina-
cionismo n o s autores nicenos. N um erosas declarações magisteriais de ní­
vel diverso sublinharam essa verdade. Assim, por exemplo, os diversos
Concílios de Toledo, em concreto os V I, XI e XVI, dos anos 638, 675 e
693, respectivamente10. Que o Pai não tem princípio, é ingênito, recolhe-
se igualm ente nesses e em outros textos11. A igualdade das três pessoas é
compatível com essa diferença.
Sendo o princípio e a fonte da divindade, o Pai, por sua vez, não tem
princípio, é ingênito. Muitos Padres fizeram uso dessa denominação e a
consideraram característica da pessoa do Pai12. Os excessos a que deu lugar
o uso desse term o por Eunômio não deram razão nenhuma para evitar essa
denominação. M uitos autores consideraram o ser inascível a propriedade
mais relevante do Pai. Para Boaventura a inascibilitas seria a razão da ple­
nitude fontal da divindade do Pai13. Para lòm ás, ao contrário, essa certa­
m ente é um a propriedade, uma noção do Pai, mas é apenas negativa, diz
só que o Pai não é o Filho14. E claro que não pode haver outro ingênito,
pois do contrário haveria mais de um Deus. Com efeito, conhecemos já a
relação que se estabeleceu entre a unidade divina e o único princípio sem
princípio que é o Pai.

8. GREGÓRIO de Nissa, Quod non sunt tres dei (JAEGER, UI, 156) Contra Eunomium
I, 497 (JAEGER, I, 170).Fala-se nesses textos do prós emai, do tropos tes bipartbeos. Cf.
também C IR ILO de Alexandria (PG 75,185B) o Filho ao existir como propriedade mesma
da essência do Pai, leva em si o Pai p o r com pleto.
9. Tomás de Aquino, STb 133,1 ad 2: “Quia licet attribuamus Patri aliquid auctoritatis
ratione principii, nihil tamen ad subiecrionem vel minorationem quocumque modo pertinens,
attribuimus Filio vel Spiritui Sancto”.
10. Cf. DS 490; 525; 568. Para os tempos mais recentes cf. LeãoX H I, enc. “Drvmum
Mud munus, do ano 1897 (DS 3.326).
11. Cf. DS 60; 75 (Quicumqne), 441; 470; 490; 525; 569; 572; 683; 800 (LATERA-
N E N SE IV ); 1330s (Florentino). Ver também 1862, Pnfessio fidei tridentina.
12. Cf. HILÁRIO de Poitiers, Trm II 6 (CCL 62,43): “Ipse ingenitus, aetemus, habens
in se semper u t semper sit” (Cf. LADARIA, Dios Padre en H ilario de Poitiers, EstTrin. 24
(1990) 443-479,446s. Já falamos dos capadócios no capítulo dedicado à história.
13. Cf. BOAVENTURA, In ISent. 29, dub. 1; Brtvüoquium 1 3,7: “Inascibilitas in Patre
ponit fontalem plenitudinem”. G . Y. CONGAR, EI Espiritu Santo, Barcelona, 1983 57 ls.
14. Cf. STb I 33, 4 ad 1.

300
O PAI, O FILHO E O ESPÍRITO SANTO

Segundo Sto. Tomás, o Pai é o ingênito e o princípio sem princípio.


Mas também é o que gera o Filho, e é, com ele, princípio do Espírito
Santo. Falamos de “Pai” antes de tudo enquanto se relaciona com o Filho,
e só secundariamente a respeito das criaturas15. Deus pode criar porque é
Pai, não o contrário. H á uma relação íntima entre as processões divinas
e a criação; as primeiras são causa da segunda16. Tomás reivindica o nome
do Pai para a primeira pessoa, mais próprio do que genitor ou generans
porque esses últimos indicam a geração in fie ri , e o de Pai a geração já
realizada. A denominação de uma coisa refere-se sobretudo à sua perfeição
no fim. Por isso, como já notamos, Tomás dá preferência à “relação” sobre
a “origem”. D aí a maior adequação do nome de “pai”. A paternidade e a
geração são ditas de Deus com m aior propriedade que das criaturas, por­
que a geração será tanto mais perfeita quanto mais próxima seja a forma do
gerado da form a do que o gera. N ão cabe maior proximidade que a exis­
tente entre o Pai e o Filho, porque na geração divina a forma é numerica­
mente a mesma entre os dois, o que não pode ocorrer nas criaturas. Nelas
trata-se só da mesma espécie (O Pai e o Filho são o mesmo Deus, o que
evidentemente não se dá na geração humana). Porém , o mais decisivo no
artigo que Tomás dedica ao nom e de Pai como o próprio de uma pessoa
divina17 é o uso que se faz da idéia da pessoa como relação subsistente. A
paternidade subsistente é o Pai:
O nome próprio de uma pessoa significa aquilo pelo qual essa pessoa se dis­
tingue de todas as outras... Aquilo pelo qual se distingue a pessoa do Pai de
todas as outras é a paternidade. Por conseguinte, o nome próprio da pessoa
do Pai é este nome de Pai, que significa a paternidade18.

A justificação dessas afirmações deve ser buscada na definição de To­


más da pessoa divina como relação subsistente. A paternidade significa que
o Pai é enquanto é Pai, não há um ser prévio a seu ser Pai. N ão é como o
pai humano, que é antes de ser pai e que em algum momento começou a
sê-lo. O “ser” e o “ser Pai” coincidem na primeira pessoa da Trindade. E
o ser em pura doação. “O sentido do ser não é a substancia que subsiste em

15. STb I 33,3: “Per prius patem itas dicitur in divinis secundum quod im portatur
respectus personae ad personam”.
16. STb 1 45,6: “Processiones divinanun personarum sunt causa creationis”.
17. STb I 33,2; a esse artigo refere-se já o que precede.
18. Ibid., corpus. Também 142,4 ad 2; 140,4 ad 1: “quia P ater est, générât”: a relação
é prévia ao ato nocional, como a pessoa precede à ação.

301
DA “EC O N O M IA ' À “TEOLOGIA"

si mesma, senão o amor que se comunica a si mesmo.”19 Enquanto o Pai


é princípio sem princípio, e dele provém tudo em último term o, a partir de
sua "paternidade” podemos entender o ser como doação e abertura. O Pai
é, pois, pura capacidade de doação, e de doação inteira. Já H ilário dizia que
a natureza divina é comunicada ao Filho tal como é possuída pelo Pai20. Se
em D eus não se desse essa doação total seria ou por falta de capacidade ou
por falta de vontade. E m ambos os casos a noção mesma de Deus ficaria
afetada. Nos tem pos da controvérsia ariana, como vimos, desempenhou
um papel a falta total de "inveja” do Pai, para mostrar que sua doação
ao Filho é completa. O amor já se mostra assim como a dimensão funda­
m ental de ser do Pai; p o r conseguinte, determina também a geração do
Filho e a processão do Espírito. A paternidade é portanto o am or fontal,
o am or que se dá. Diz Máximo o Confessor: "Deus Pai, movido por um
amor eterno, procedeu à distinção das hipóstases”21. N ão se deve pensar
que o amor se oponha à "natureza”. Em D eus não podem opor-se neces­
sidade e vontade (cf. D S 526): tudo é imo em sua suma simplicidade.

2. O Pai, princípio do Filho e do Espírito Santo

“O Pai, só, gerou o Filho de sua substância (DS 1.330, Concílio de


Florença, Decreto para osjacobitas). Tomamos essa frase, resumo de uma
longa tradição, como ponto de partida de nossa reflexão sobre a geração
do Filho. Notemos o duplo aspecto da afirmação: O Pai gera de sua subs­
tância. A idéia repete-se constantemente, desde o Concílio de Nicéia22.
Tomás de Aquino recolhe a expressão: o Filho é "da substância do Pai”23.
Mas ao mesmo tempo deve-se ter presente que as processões divinas, na
concepção tradicional, são atos pessoais enquanto são atos do entendi­

19. W. KASPER, Der Gottjesu Cbristbi, M ainz, 1982.


20. Trm. V H I43 (CCL 62 A, 356) “Talis data qualis et habetur”. Cf. LADARIA, op.
d t , 455ss.
21. Esc. m de dio. Nmt. (PG 4,221) d tad o por CONGAR, op. d t , 577. Cf. também
os outros textos citados nesse lugar.
22. “Gerado do Pai... quer dizer, da substância do Pai” (DS 125). Concílio de Ibledo
XI (DS 526): “N ec enim de nihilo, neque de aliqua alia substantia, sed de Patris útero, id
est, de substantia eius idem Filius genitus vel natus est”. Notemos a metáfora do “útero”,
que parece identificar-se com a substânda do Pai. Também aqui aparece um traço “mater­
no” do Pai, que mea ao mesmo tempo um aspecto pessoal.
23. STb 14 1 ,3 .0 Pai transm ite ao Filho toda sua natureza, não uma parte dela como
ocorre na geração humana.

302
O PAI, 0 FILHO E O ESPÍRITO SANTO

mento e da vontade. São atos nocionais, próprios de cada uma das pessoas.
Portanto, embora o Pai gere o Filho de sua substância (ou, mutatis mutandis,
expire o Espírito Santo), a geração e a expiração são atos do Pai. Devemos
recordar a esse propósito um texto fúndamenéd do Concílio IV de Latrão:
Em Deus existe só a Trindade, não uma “quatemidade”, porque qualquer das
três pessoas é aquela realidade (res), isto é, a substância, essência ou natureza
divina: a qual é o único princípio de todas as coisas, fora da qual não se pode
encontrar outro. Porém aquela realidade não gera, não é gerada e não pro­
cede, senão o Pai é que gera, o Filho é que é gerado, e o Espírito Santo o que
procede, de tal maneira que haja distinções nas pessoas e unidade na natureza
(DS 804).

O Pai é portanto o princípio da Trindade, não a natureza divina. É


claro que o Pai, como Deus, gera o Filho de sua substância, mas o gera
como Pai, não como substância ou natureza. “Cristo dá graças só ao Pai,
que é Deus, mas nunca à divindade que seria fecunda no Pai.”24
O nome de Pai faz referência à relação ao Filho. E a terminologia que
aparece em relevo no Novo Testamento. Mas o Pai é também relativo ao
Espírito Santo, embora essa relação não esteja expressa em seu nome pes­
soal. Porém, ser princípio do Espírito (juntamente com o Filho ou mediante
ele) lhe é tão próprio como a geração do Filho, por mais que no decurso
da história, sobretudo nos primeiros tempos, tenha sido a relação Pai/Fi-
Iho a que ocupou a maior parte da reflexão. Vimos que nos primeiros
momentos da teologia cristã não se afirmava sempre com nitidez que Deus
fosse Pai ab aetemo; a geração intelectual do Filho ou Logos não aparecia
claramente desligada da criação do mundo. A partir de O rígenes fica clara
a eternidade da paternidade: o Logos, gerado ab aetemo, é por isso, desde
sempre, o Filho, embora a geração não seja contemplada ainda com total
independência da criação do mundo. Desde o Concílio de Nicéia ficou
esclarecida também essa segunda questão. E com efeito, quando os Padres
quiseram fundamentar a eternidade do Filho, argum entaram que, do con­
trário, Deus não teria sido sempre Pai. Esse não pode ser etem o como tal
Pai se não o é também o Filho. Com o não se pode pensar em um ser
do Pai anterior à sua paternidade, esta última é a garantia mesma da eter­
nidade e da igualdade do Filho e do Espírito Santo.

24. BALTHASAR, Tbeologik II. Wabrbdt Gotta, Einsiedeln, 1985, 123; cf. ROVIRA
BELLOSO, Tratado de Diosmoy trino, Salamanca, 1993, 593.

303
D A "EC O N O M IA ' À "TEOLOGIA*

A questão da eternidade do Filho e do Espírito está portanto ligada à


relação essencial do Pai com o Filho (e, respectivamente, com o Espírito
Santo) sem a qual não somente o Pai não é Pai, mas não é. Seu ser é ser Pai.
Se a questão se tom a somente do ponto de vista cronológico, o argumento
não tem muito peso. Se houvesse "logicamente” um ser anterior ao ser
"Pai”, que a relação com o Filho se estabelecesse ou não em um momento
posterior não mudaria m uito as coisas. Mas a eternidade do Filho aponta
a algo mais do que o meramente cronológico. Faz-nos ver que o Pai é
enquanto é princípio e fonte da divindade, enquanto gera o Filho e é prin­
cípio do Espírito que só é enquanto se dá. Vimos as dificuldades com que
deparou Agostinho ao ver-se obrigado a pensar que o conceito de "pessoa”
divina é absoluto, o qual o levava — ao que parece — a adm itir que o Pai,
o Filho e o Espírito Santo eram algo prévio às relações que unem e distin­
guem os três. O doutor de Hipona estava bem consciente de não ter encon­
trado a solução satisfatória ao problema que se tinha colocado. A idéia de
relação subsistente vai nos dizer — como já sabemos — que não há na
pessoa divina nada que seja prévio à relação.

3. 0 Pai, pessoa absoluta?

Tudo isso tem seu interesse atual porque, por uma parte, a definição
da pessoa divina como relação foi contestada25. Além disso, em concreto,
a dificuldade aparece com especial gravidade em relação ao Pai. "O Pai...
não pode ser constituído a partir de uma relação. Tèm de ser constituído
por si mesmo.”26 A razão é que não procede de nenhuma outra pessoa. E
com efeito, como no Pai está a origem e a plenitude da divindade, à pri­
meira vista parece coerente que essa posse original da divindade seja ante­
rior a seu ser pólo de uma relação pessoal. Assim se expressa Y. Congar,
sem insistir especialmente nisso27. Outros autores católicos, com diferen­
tes matizes, no legítimo intento de acentuar a posição do Pai como fonte

25. Recordemos o que foi dito a propósito de J. MOLTMANN, para quem a iden­
tificação da pessoa com a relação de Sto. Tomás seria, no fundo, modalista: Cf. Trmitat und
Reicb Gottesy Munique 1980, 189.
26. M OLTMANN, op. cit., 182.
27. CONGAR, La Parola e il Soffio, Roma, 1985,138: aO Pai é a fonte da divindade,
antes de ser (logicamente falando) pólo de oposição pessoal. E o que confessa o Símbolo:
C reio em Deus (divindade fontal) Pai onipotente”. N aturalm ente podemos perguntar se o
Pai não é fonte da divindade precisamente enquanto pólo das relações. Cf. mais adiante.

304
O PAI, 0 FILHO E 0 ESPÍRITO SANTO

da divindade, seguiram uma linha semelhante28. Também em alguns textos


de W. Kasper aparece o conceito de “pessoa absoluta” aplicado ao Pai,
que, como já notamos, é para ele o Deus uno29: segundo o teólogo alemão,
a pessoa humana só pode alcançar sua plenitude quando se encontra com
uma pessoa que, não só em sua pretensão intencional mas também em seu
ser real, é infinita. Um conceito adequado da pessoa como “estar-aí”
irrepetível do ser leva necessariamente ao conceito da pessoa absoluta,
divina30. Porém não se deve tirar do contexto essas afirmações de W. Kasper.
Não se trata de falar do Pai como a pessoa absoluta, diferentemente do
Filho e do Espírito, e sim do problema filosófico da personalidade de Deus
como “absoluto”, ao qual se poderia chegar pela razão. Dado o pressuposto
teológico a que nos referimos, esse “absoluto” seria o Pai. Mas essa é uma
questão diversa do problema trinitario das relações entre as três pessoas
divinas. Para Kasper, quando se chega à visão de Deus como plena Uber­
dade — porque a pessoa é relação —, supera-se uma concepção que ficaria
no meramente substancial31. Também para ele é claro que a pessoa é rela­
ção, e que nesta se encontra a expressão mais alta do ser. N ão exclui em
nada o Pai nessa apreciação geral.
Com distintos acentos temos portanto a idéia de que o Pai é princípio
e origem de toda a Trindade, segundo uma concepção que deriva da mais
antiga tradição da Igreja. Em algumas interpretações atuais dessas afirmações

28. Cf. G . GIRONÉS, La divina arqueologia, Valência, 1991, 25: “A origem de tudo
é o Pai, não da Trindade em si mesma, como drcu lo fechado de sua própria reciprocidade.
Isso quer dizer que o Pai explica e justifica sua existência por si mesmo, sem referência ao
Filho e ao Espírito Santo”; 31: “A pessoa do Pai está pois constituída p o r sua livre abertura
a toda comunicação (de amor), a toda relação a outro. Tem essa faculdade originariam ente (sem
dependência alguma) mas não teria sido reconhecido se não se expressasse em um diálogo
com o Filho e o Espírito Santo, e com as mesmas pessoas da criação”; 43: "... o Pai eterno
é princípio de tudo de uma dupla maneira: absoluta e relativa. É o princípio absoluto en­
quanto sua pessoa é a original identidade com a essência divina; é o princípio relativo
enquanto livremente se quis comunicar, constituindo os ‘O utros’ como term o de relação”.
Ver também 21-31; 37-44. Alguns teólogos ortodoxos falam do Pai em termos que ao
menos à prim eira vista são semelhantes. Ver Y. SPITERIS, La doctrina trinitaria nella
teologia ortodossa. A utori e prospettive, in A AMATO (ed.) Trinità in contexto, Roma,
1993, 45-69.
29. O pção não isenta de problemas, como já insinuamos. Cf. PANNENBERG, Teo­
logia sistemática, M adrid, 1992,1, 353, que questiona em concreto (Ibid. n 204) se Kasper
leva suficientemente em conta que a idéia de Deus como Pai está condicionada desde o
princípio por sua relação com o Filho. Em seguida trataremos da posição de Pannenberg
sobre este ponto.
30. Cf. Der Gottjesu Cbristi, 195, também 192: Deus é a liberdade e a pessoa absoluta.
31. Cf. Ibid., 195-196.

305
DA ‘ ECONOMIA" À “TEOLOGIA"

clássicas, tende-se a ver na pessoa do Pai algo “prévio” à relação ou referência


ao Filho e ao Espírito Santo. O Pai não seria assim pura relação, embora sua
pessoa tenha certamente uma dimensão relacional. Seria (logicamente, não
temporalmente) antes de ser Pai — a referência ao Filho e ao Espírito Santo
viria em um segundo momento. Seria convincente essa tese? Antes de respon­
der devemos ter em conta outros aspectos do panorama teológico contempo­
râneo que nos mostrarão uma direção oposta.

4. As processões divinas em questão

N esse panorama atual nos deparamos, com efeito, com alguma posi­
ção que parece radicalmente oposta à que acabamos de expor. Assim, W.
Pannenberg opõe-se à diferenciação das pessoas em D eus segundo suas
relações de origem . Pensa que esse modo de proceder leva a posições
subordinadonistas, pois por uma parte coloca o Pai como princípio e fonte
da divindade, e, por outra parte coloca as outras duas pessoas cuja divinda­
de está subordinada à do Pai e dela depende. Esse tinha sido o caminho
seguido pela patrística grega e também pela teologia ocidental, a partir de
Agostinho, que, com sua analogia psicológica, interpreta o Filho e o Espí­
rito Santo como expressões da autoconsdênda e da auto-afirmação do
Pai32. P or outro lado, observa o mesmo autor, do ponto de vista bíblico a
noção de “geração” não mostra com clareza a pertença de Jesus ao mundo
de Deus; põe-se em relação antes com o momento do batismo de Jesus, em
que ele inicia sua atuação pública. Mais importância teriam nesse sentido
as passagens que se referem ao envio do Filho ao mundo por parte do
Pai33. Mas os term os de origem não dão conta com justiça da reciprocidade
das relações entre as pessoas divinas34. Pannenberg apóia-se sobretudo em
Atanásio, que insiste muito (mas evidentemente não é o único a fazê-lo)
em que sem o Filho o Pai não é tal: a divindade do Pai estaria por conse­
guinte “condicionada” ao Filho35. Não podemos falar de Deus Pai sem
Deus Filho, e tampouco sem Deus Espírito Santo.

32. Cf. PANNENBERG, op. cíl, 328 s.


33. Ibid., 332s.
34. Ibid., 346; o Pai é Pai só na relação, Ibid., 337.
35. Ibid., 349; PANNENBERG cita ATANÁSIO, C. Arian. 1 20 (PG 26,55): “Pois se
o Filho não tivesse existido antes de ter sido gerado, a verdade não teria estado sempre em
Deus. Mas essa é uma afirmação injusta. Pois quando existia o Pai sempre estava com ele a
verdade que é o Filho, o qual diz: Eu sou a verdade 0o 14,6)”. E comenta: “Com essas atre­

306
0 PAI, 0 FILHO E O ESPÍRITO SANTO

Certamente esse princípio está solidamente ancorado na tradição. Pôde


ser estabelecido com clareza depois do Concílio de Nicéia, quando se re­
fletiu mais explicitamente sobre a eternidade do Filho e sua igualdade com
o Pai. As relações em Deus são recíprocas, e, por conseguinte, se não pode
subsistir o Filho sem o Pai, tampouco pode subsistir este sem aquele e sem
o Espírito Santo. Mas é necessário para isso abandonar por completo a
idéia das relações de origem? N ão apontam a elas, de algum modo, os
próprios nomes de Pai e Filho, não só de indubitável raiz neotestamentária,
senão que rem ontam ao uso do próprio Jesus? Pois, ainda que esses nomes
tenham sua origem na experiência historico-salvífíca, terão algo a dizer-
nos, sem dúvida, acerca da Trindade imanente.
As três pessoas existem só em relação, e isso vale também para o Pai.
Pannenberg observa que isso é assim não só a respeito da identidade pessoal
dos “três”, mas também a respeito de sua divindade mesma. O Pai só possui
o reino por meio do Filho e do Espírito36. Pannenberg não insiste só no con­
dicionamento mútuo das pessoas em sua identidade e divindade mesma, mas
também afirma que a plena revelação (e realização?) da divindade do Deus
trino na consumação da historia salutis terá lugar na entrega ao reino ao Pai
p or parte do Filho (cf. ICor 15,24-28). Segundo ele, o problema da unidade
do Deus trinitário não pode ser esclarecido considerando unicamente a Trin­
dade imanente, anterior à criação, sem ter em conta a economia da salvação.
Claro que a distinção entre Trindade econômica e Trindade imanente é ne­
cessária, porque Deus é o mesmo em sua essência eterna e em sua revelação,
isto é, deve ser pensado tanto como idêntico com o acontecimento de sua
revelação, como distinto dele. M as por outra parte pode-se também pensar na
unidade do Deus trinitário prescindindo de sua revelação e da ação econômi-
co-salvífica de Deus no mundo que se resume na dita revelação:
Como a monarquia do Pai e seu conhecimento estão condicionados pelo
Filho, resulta imprescindível incluir a economia das relações divinas com o

vidas idéias, Atanásio punha radicalmente em questão a compreensão habitual da divindade


d o Pai, segundo a qual essa divindade não está submetida a condição nenhuma, enquanto
a do Filho e a do Espírito derivam dela. Mas não, a divindade do Pai está condicionada ao
Filho; é esse que no-lo mostra como o único D eus verdadeiro (c. Arian, 3,9; cf. 7). Também
Atanásio falava do Pai como ‘fonte’ da sabedoria, quer dizer, do Filho (1,9) mas de tal
m aneira que sem o Filho, que procede da dita fonte, não se pode cham ar o Pai de Fonte”.
36. Ibid. 351: “Sem o Filho, o Pai não possui seu reino: só por m eio do Filho e do
Espírito tem sua monarquia. E isso não vale só a respeito do acontecimento da revelação,
senão que, sobre a base da relação de Jesus com o Pai, devemos afirm á-lo também da vida
interna do D eus trino”.

307
DA “ECONOMIA" À "TEOLOGIA"

mundo na questão da unidade da essência de Deus. Ou seja, que a unidade de


Deus não se esclareceu ainda com dizer que seu conteúdo é a monarquia do
Pai. Se a monarquia do Pai não se realiza diretamente como tal, mas só por
meio do Filho e do Espírito, a essência da unidade do Reinado de Deus estará
também na dita mediação. Ou inclusive mais: é essa mediação que define o
conteúdo da essência da monarquia do Pai37.

Claro que para Pannenberg o Deus trino é perfeito em si mesmo já antes


da criação. “Mas, com a criação de um mundo, a divindade de Deus e mesmo
sua existência fazem-se dependentes da realização plena do destino do dito
mundo com a presença do Reinado de Deus.”3893Como se vê, abre-se de novo
a difícil problemática da relação entre a Trindade econômica e a Trindade
imanente. Mas, prescindindo agora de todo esse complexo de problemas,
atemo-nos a um significativo paralelismo que o autor destaca: a realização
plena da soberania do Pai na consumação escatológica passa pela entrega que
o Filho lhe faz de seu reino (o Filho ao qual, por outra parte, o Pai submeteu
todas as coisas); na Trindade imanente não cabe falar da divindade do Pai sem
a do Filho e a do Espírito que a “condicionam”. Tudo isso não afeta a “mo­
narquia” do Pai, mas é o único modo para que ela possa realizar-se. Monar­
quia não significa superioridade por um lado (do Pai) e subordinação por
outro (do Filho e do Espírito Santo).
Também no campo da teologia católica encontraram eco algumas das
afirmações de Pannenberg. Sem entrar no espinhoso problema das rela­
ções da Trindade com a história, G . Greshake considera que a doutrina
clássica das processões é um obstáculo a considerar a Trindade como co­
munhão, e a unidade divina como unidade na relação e não como algo
“prévio” a ela; daí o questionamento do princípio tradicional, recolhido
em diversas intervenções magisteriais, do Pai como princípio da divinda­
de” . O conceito das processões pôde ter sido necessário em um horizonte

37. Ibid. 354; também 358ss. PANNENBERG rejeita a idéia do devir em Deus na
história, mas na p. 359 escreve: “A divindade etem a do Deus trinitário, como também à
verdade de sua revelação, falta ainda sua confirmação na história”; e na p. 360: “a consu­
mação da história é que decide sobre a dita verdade”. Sobre a concepção da história de
Pannenberg, que determ ina em grande medida essas idéias sobre a confirmação da verdade
de Deus, cf. entre outros escritos, La revelación como historia, Salamanca, 1977; D er G ott
der Geschichte. D er trinitarische G ott und die W ahrheit der G eschichte, in Grundfragen
systematischer Theologie, G öttingen 1980, vol. 2, 112-128.
38. ID ., Teologia sistemática, 1 424.
39. Cf. G. GRESHAKE, Der dreieine Gott. Eine trinitarische Theologie, Freiburg-Basel-
wien, 1997, 190ss.

308
O PAI, O FILHO É O ESPIRITO SANTO

unitário, mas hoje já não seria. Por isso Greshake mostra-se crítico em
relação à corrente fortem ente representada na teologia católica que fez
partir a teologia trinitária do Pai como princípio e fonte da divindade, do
qual procedem o Filho e o Espírito40. Não há na Trindade uma linha uni­
lateralmente descendente, porque o Pai recebe do Filho o ser Pai, nenhum
dos dois existe sem o Espírito, que se recebe a si mesmo como relação do
Pai e do Filho e glorifica a ambos41. Contudo, Greshake está bem consciente
da peculiaridade da pessoa do Pai, que vê em ser ele dom original (Ur-Gabe),
o que significa que é o que dá à comunhão trinitária seu fundamento e sua
consistência, que a mantém e sustém como uma. Mas insiste que isso não
significa que o Pai seja o princípio de um processo genético, mas que essa
posição da primeira pessoa é pensável somente em relação com as outras
duas pessoas e nunca com independência delas42. De fato podemos indagar
se a concepção clássica das processões, enquanto se coloca em última re­
lação com as relações constitutivas das pessoas, não acentuou também uma
posição permutável delas quanto às características de dar e receber de cada
uma delas. O Pai, como seu nome relativo indica, não pode ser pensado
sem o Filho (e sem o Espírito Santo).
Essas posições de teólogos ocidentais recentes, que tendem a reduzir
o valor das “processões” intratrinitárias, e portanto a relativizar a afirma­
ção clássica do Pai como origem e fonte da divindade, têm de certa manei­
ra um precedente no teólogo ortodoxo russo S. Bulgakov43. Para ele é um
erro falar das processões em termos de “produção”. N ão se deve colocar a
questão da origem, porque na Trindade ninguém a tem, todas as pessoas
são igualmente eternas, e por outra parte falar de origem lógica mas não
cronológica é para ele tuna solução que não convence. O Pai portanto
não é “causa” — essa noção não existe no divino. Cada pessoa se autodetermina
e produz a si mesma44. O s nomes designam as correlações concretas entre
as hipóstases: a paternidade não se limita à geração; além disso deve-se te r
presente que as relações são sempre trinitárias, não basta para definir o Pai

40. Cf. Ibid. 194, com referência a W. Kasper e a H. U . von Balthasar.


41. Cf. Ibid. 186. Nesse contexto Greshake fala também da “monarquia” do Pai, que
não é pressuposto, senão resultado da atuação pericorética cemjunta das pessoas, Ibid. n. 498.
42. Cf. Ibid. 207s. D iante dessa caracterização do Pai como dom original, o próprio
Filho é “ser com o acolhida” (Dasein ah Empfang), no reconhecimento e correspondência
do dom em sua transmissão ulterior. O Espírito Santo se caracteriza, por uma parte, com o
o puro receber, e por outra como a união do Pai e do Filho; ibid., 208.210. Se descobre
aqui, sem dificuldade, ecos da teologia de Ricardo de são Vítor.
43. Cf. S. BULGAKOV, llParadito, Bologna, 1987 (o original é de 1936), 272ss.
44. Cf. Ibid., 285s.

309
D A “ECONOMIA" À “TEOLOGIA"

a relação com o Filho, senão que tem de entrar também o Espírito Santo41.
Assim o Pai é relativo ao Filho como o que o gera, e relativo ao Espírito
Santo como o que o expira. Bulgakov reage também contra a idéia de “co-
num erar” as processões: a geração e a expiração não têm um denominador
comum de processão. Cada uma delas é o que é. Só assim se vê que tudo
está em relação com os três; com as duas processões cinde-se um ato
trinitário único.
Mas, ao mesmo tem po em que reage contra essa questão de origem,
o teólogo russo insiste muito fortem ente na primazia do Pai e em seu
posto especial: é o centro ontológico e lógico da união que forma os três
centros hipostáticos da Trindade, é o que se revela nas outras hipóstases.
P o r isso a hipóstase inicial44, fundamental, é propriamente o sujeito, as
outras duas são predicado e cópula4 47.
645 O Pai tem assim um aspecto fixo, é
sem pre o primeiro, enquanto os postos da segunda e da terceira hipóstases
seriam reversíveis48. O Filioque sobre o qual Bulgakov mostra-se relativa­
m ente aberto viria contudo privar o Pai dessa posição peculiar de ser o
único que se revela, enquanto os outros dois revelam-no a ele49.050 que são
a segunda e terceira hipóstases depende assim do que é o Pai e a outra
hipóstase co-reveladoraso. Naturalmente não é esse o momento de dar um
juízo sobre toda a teologia trinitária de Bulgakov, decerto hem complexa.
Ficamos com o fato de que não se pode entender o Pai sem as outras
pessoas, e portanto sem a relatividade que lhe é própria. A característica de
“hipóstase inicial’’ do Pai resulta claramente em relevo, e apesar da crítica
a certas maneiras de entender as processões divinas continua-se a usar as
noções de geração e de expiração.

5. O Pai, princípio relativo

Essa breve exposição do pensamento de alguns teólogos im portantes


dos últimos anos mostra-nos, talvez simplificando um pouco, essas duas
correntes contrapostas. Uma que insiste na posição relevante do Pai en­

45. Ibid., 291ss. O problem a das processões e das relações significa para Bulgakov o
prim ado da natureza sobre as hipóstases. Porém no ser tri-hipostático de Deus não há
nenhum neutro, não se dá o “isso”.
46. Cf. Ibid., 139; 136ss, contra a idéia de causalidade.
47. Cf. Ibid., 284, 356.
48. Ibid., 162s.
49. Ibid., 285ss.
50. Ibid., 303ss.

310
O PAI, O FILHO E O ESPÍRITO SANTO

quanto princípio da Trindade, que leva em alguns casos até a considerá-lo


uma pessoa “absoluta”, isto é, um ser que de algum m odo seria “prévio”
(lógica, não cronologicamente é claro) a suas relações com as outras pes­
soas. Outra corrente, por temor de subordinacionismo que pode acompa­
nhar a idéia de processões e de relações de origem, pensa que se deve
abandonar essas categorias para poder chegar a um conceito da unidade de
Deus que se funde na perfeita comunhão das três pessoas. Mas ainda assim
não se exclui que seja próprio do Pai o amor e a doação originais, aos quais
correspondem o Filho e o Espírito Santo, cada um a seu modo.
C ertam ente devemos evitar fazer do Pai uma pessoa absoluta, e
considerá-lo com independência do Filho e do Espírito Santo. É o pró­
prio nome de Pai que nos impede de considerá-lo sem relação intrínseca
ao Filho e ao Espírito Santo. Sem eles o Pai simplesmente não é. O
fecundo conceito da pessoa como relação subsistente vem uma vez mais
em nossa ajuda. Para Sto. Tomás, lembremos, é a relação mais do que a
processão o que constitui a pessoa. Mas, ao mesmo tem po, o princípio
segundo o qual o Pai é a origem e a fonte da Trindade está tão fortem en­
te ancorado na tradição que não parece possível prescindir dele. A reci­
procidade das relações faz que se possa evitar todo subordinacionismo,
sem renunciar à doutrina tradicional das processões, ou, preferindo não
usar o conceito genérico, da geração e da expiração. O Pai não é mais
que Pai, não é mais que enquanto gera o Filho (e é princípio do Espírito
Santo). Só o Pai é fonte, por mais que seja verdade que sem o Filho e o
Espírito Santo que procedem dessa fonte não pode o Pai receber esse
nome. Deve-se afirm ar ao mesmo tempo duas coisas: o Pai é a única
fonte e princípio da divindade, como também que não existe nem pode
existir sem o Filho e o Espírito, e nesse sentido está referido a eles, como
o Filho e o Espírito estão referidos ao Pai. O Concílio X I de Toledo, do
ano 675, afirma:
O que o Pai é, não o é a respeito de si mesmo, senão do Filho; o que o Filho
é, não o é a respeito de si mesmo, mas do Pai; de maneira semelhante também
o Espírito Santo não se refere a si mesmo, mas relativamente ao Pai e ao
Filho, ao ser chamado Espírito do Pai e do Filho51.

51. "Quod enim Pater est, non ad se, sed ad Fîlium est: et quod Filius est, non ad se,
sed ad Patrem est; sim iliter et Spiritus Sanctus non ad se, sed ad Patrem et Filium relative
refertur, in eo quod Spiritus Patris et Filii praedicatur.” (DS 528). E também "... quia nec
Pater sine Filio, nec Filius aliquando existit sine Pâtre. E t tarnen non sicut Filius de Pâtre, ita
Pater de Filio, quia non Pater a Filio, sed Filius a Pâtre generationem acceptf...” (DS 526).

311
DA 'E C O N O M IA À “TEOLOGIA”

A prim eira pessoa da Trindade, sendo a única fonte e princípio da


divindade, é isso enquanto se refere ao Filho e ao Espírito Santo, en­
quanto está em relação com eles; isto é, o Pai é só enquanto é doação
original de si mesmo. A fonte primária da divindade é pura doação com­
pleta ao Filho e ao Espírito. Acredito que, com todas as dificuldades que
sem dúvida se acumulam para nossa inteligência, devemos m anter esses
dois extremos: tudo vem do Pai, que só é enquanto princípio do Filho e
do Espírito. A partir da economia salvífica que nos faz conhecer o Pai
precisam ente enquanto nos dá o Filho, podemos e ainda devemos tentar,
sem pre com tem or e trem or, um olhar para a Trindade em si mesma. O
am or fontal do Pai é o que entrega tudo ao Filho” . E, se na econom ia é
o am or que tudo move, também no âmbito intratrinitário esse fato deve
encontrar uma correspondência e um fundamento. O Pai não é uma pessoa
fechada, senão que é desde sempre aquele que, entregando-se, dá o ser
ao Filho e ao Espírito Santo. O amor, que tem no Pai sua fonte, é o
princípio interno da vida da Trindade que faz o Pai enviar o Filho que
antes já amou (Jo 17,24). Tudo sucede na vida trinitária na radical
gratuidade do am or que as pessoas se permutam (o que não exclui na vida
íntim a de Deus a "necessidade”) de que é reflexo a gratuidade da criação
e da redenção, porque nem a criatura nem o pecador têm direito algum
a tuna coisa nem a outra” . A possibilidade da encarnação do Filho, de
fazer-se mutável “no o u tro ”5
54,
352 para que todos os homens possam chegar
a ser filhos de Deus (cf. G 14,4-6), fimda-se na gênese intratrinitária, no
am or do Pai que, ao gerar o Filho, não retém para si só ser Deus. A
entrega do Filho ao m undo por amor funda-se portanto nessa entrega
intratrinitária. Se o Filho revela o amor do Pai, não será equivocado
pensar que mostra também em sua entrega por nós a capacidade infinita
de autodoação do Pai55. A entrega do Filho funda-se no amor abissal do
Pai, que é capacidade infinita de doação e de amor, amor substancial para
o qual necessita do amado gerado na autodoação, e para dem onstração

52. Cf. PANNENBERG, op. d t , 339; apesar das reservas sobre a idéia de processão,
resulta evidente a inidativa do Pai.
53. C f BALTHASAR, op. d t, 128. C f a continuação 130: esse amor não é cego,
senão mais sábio do que se possa pensar.
54. C f RAHNER, Grundkurs des Glaubens, Freiburg-Basel-W ien, 1976, 217-219.
55. COADSSIO TH EO LO G ICA INTERNATIONALIS, Teologia-C ristologia-
Antropologia, Greg 644 (1983) 5-24,23, há íntima correspondênda entre o dom da divin­
dade do Pai ao Filho e o dom do pilho ao abandono da cruz. C f BALTHASAR, op. d t,
259; Tbeodramaúk IV. Das Endspiel, Einsiedeln 1982, 106s.

312
O PAI, O FILHO E O ESPÍRITO SANTO

gratuidade plena necessita também do “terceiro” fruto e testem u-


j^iho da unidade do am or que gera e agradece56.
O Pai é fonte da divindade, enquanto é amor fontal, referido de todo
£ to Filho e ao Espírito Santo. N ão há um ser “absoluto” do Pai anterior a
e ss a paternidade fontal; também sua pessoa é a relação que implica neces­
sariam ente a reciprocidade das outras duas pessoas; mas ao mesmo tempo
n ã o parece que se possa deixar de dizer que o Filho e o Espírito Santo
recebem dele o seu ser. O Pai é Pai precisamente enquanto dá tudo, en­
quanto dá ao Filho toda a sua substância, não em parte (cf. Concílio IV de
X atrão, DS 805). E evidentemente enquanto é princípio do Espírito San­
to . Em Cristo o Pai manifesta-se como justo, bom, rico em misericórdia,
nas palavras e nos atos de Jesus, que constituem, juntos e inseparavelmente,
a revelação total do Pai (cf. DV 2,4). A geração do Filho e a processão do
Espírito Santo não implicam, de si, subordinação:
Um princípio só pode ser perfeito se é princípio de tuna realidade que o
iguale. Os Padres gregos gostavam de falar do “Pai-causa”, mas trata-se so­
mente de um termo analógico, cuja deficiência nos permite medir o uso
purificador do apofatismo: em nossas experiências, a causa é superior ao efei­
to; em Deus, ao contrário, a causa como cumprimento do amor pessoal não
pode produzir efeitos inferiores: quer que sejam iguais em dignidade: a causa
mesma é a causa de sua igualdade... O Pai não seria pessoa, em um sentido
verdadeiro, se não fosse pros, para, totalmente voltado para outras pessoas,
comunicado inteiramente a elas, às quais faz pessoas e portanto iguais, pela
integralidade de seu amor57.

Creio que essa passagem resume admiravelmente o que tivemos oca­


sião de ver em nossa breve exposição da história da teologia dos primeiros
séculos, sobretudo da que se desenvolve depois de Nicéia.

56. BALTHASAR, Tbeologik III. Der Geia der Wabrbeü, 404: “O Pai divino é mais
que ‘benevolência’, ‘fidelidade’, ‘misericórdia’, isto é, é amor substancial em si mesmo (e
não só diante da criatura), para o qual necessita do amado gerado na autodoação, e para
demonstração do perfeito desprendimento da unidade dos dois necessita também do ‘ter­
ceiro’, o fruto e o testemunho do amor que gera e agradece”. Cf. também Ibid., 406; Ibid.,
145: “A doação eterna dá-se a entender como um ato de amor impensável, que o Filho
como tal recebe, e não passivamente como o Amado, senão que, dado que ele como Amado
do Pai recebe sua substância, ao mesmo tem po é amante como o Pai, amante em corres­
pondência que responde de todo ao amor do Pai, preparado para tudo no amor”. O Pai só
pode ser na eterna correspondência do Filho e do Espírito Santo.
57. V. LOSSKY, citado por B. BOBRINSKOY, Le mystíre de la Trinité, Paris, 1986,
268s.

313
DA "ECONOM IA" À “TEO LOG IA'

A fé e a teologia cristãs chegaram a essa convicção de que o Pai é no


seio da Trindade o princípio sem princípio e o amor originário a partir da
missão de Jesus ao mundo. Deus, conhecido agora como o Pai de Jesus, é
aquele que por meio de seu Filho criou o mundo; em virtude de sua pater­
nidade pode ser criador. O Pai é por último aquele a quem o Filho entre­
gará o Reino n o final dos tempos (cf. IC or 15, 24-28). “Tudo vem dele,
passa por ele e vai para ele. A ele a glória pelos séculos” (Rm 11,31)38.

O FILHO, A PERFEITA RESPOSTA AO AMOR DO PAI

A referência do Filho ao Pai é tão total quanto a do Pai ao Filho.


Além disso, de nosso ponto de vista, essa referência é ainda mais evidente,
porque em nossas categorias, tiradas da experiência humana, a existência
de quem é Pai não depende da de seu filho, mas ao contrário. Já sabemos
que em Deus as coisas não são assim. Mas é claro que para nós é mais fácil
considerar o Filho como constituído por sua relação ao Pai (e ao Espírito)
do que vice-versa. Não pode haver nele nenhum ser prévio à filiação. Se o
Deus do Antigo Testamento é conhecido como Pai de Jesus a partir da
vida, m orte e ressurreição deste últim o, Jesus mesmo, em sua revelação do
Pai, mostra-se a nós como o Filho em uma relação peculiar com Deus que
não partilha com ninguém. E ele, segundo o Novo Testamento, o “Filho
único”. Entre os diversos títulos cristológicos, o de Filho de Deus ocupa
já um papel especialmente relevante no Novo Testamento, e seguindo essa
linha foi privilegiado na tradição. Foi assim porque já desde o princípio se
entendeu que a relação irrepetível com Deus Pai, expressa no term o “F i­
lho”, revela-nos o mais profundo do ser de Jesus. Os outros títulos rece­
bem à luz deste sua explicação definitiva. E, segundo a reflexão posterior,
se o Pai é a paternidade subsistente, o Filho é a filiação subsistente, a re ­
lação oposta à paternidade que constitui a pessoa do Pai. Também não
devemos esquecer que suas relações com o Espírito Santo são igualm ente 85

58. Para completar a exposição acrescento as referências de algumas das principais


declarações do M agistério sobre Deus Pai (OS números referem -se à DS). E o “princípio
sem princípio” tudo o que tem , tem -no de si mesmo: 1.331; não vem de nenhum outro: 75;
441; 485; 490; 525; 527; 589; 800; 1.330. O Pai é o que gera o princípio e a fonte de toda
divindade: 284; 525; 568; 3.326. O Pai gera o Filho de sua substancia: 470; 485; 525-526;
571; 617; 805; 1.330; sem diminuição de si mesmo dá tudo ao Filho, 805. O Pai com o
criador 27-30; 36; 40-51; 60; 125; 150. Dele tudo procede: 60; 421; 680; 3.326. Cf. DS 861;
RAHNER, El Dios trino como principio y fundamento trascendente, 399-401.

314
O PAI, O FILHO E O ESPÍRITO SANTO

constitutivas da pessoa do Pai e da pessoa do Filho, mas estas aparecem


menos em prim eiro plano, pois como notou Sto. Agostinho essas relações
não aparecem no nom e “Espírito Santo”.

1. O Filho, o Amado do Pai que corresponde a esse amor

Jesus, o Filho, é antes de tudo o objeto primeiro do am or do Pai. A


proclamação de Jesus como Filho e com o amado estão juntas no Novo
Testamento em diferentes ocasiões. De particular importância é a voz do
céu no momento do batismo de Jesus: “Tu és meu Filho amado, em ti me
comprazo” (Mc 1,11; cf. M t 3,17; Lc 3,24), e também a voz que sai da
nuvem na cena da transfiguração: “Este é meu Filho, o amado, ouvi-o”
(Mc 9,7; cf. M t 17,5; Lc 9,35 segundo algumas variantes). N os sinópticos
aparece de novo a idéia na parábola dos vinhateiros assassinos: “ainda res­
tava um, seu filho querido...” (Mc 12,6; cf. Lc 20,13). Segundo Cl 1,13,
Jesus, que nos liberta do pecado, é “o Filho de seu amor”. N o quarto
evangelho aparece com muita freqüência a idéia do amor de Deus Pai por
seu Filho: cf. Jo 3,35; 5,20; 15,9; 17,23-24.26, um amor ao qual Jesus
corresponde, já que ele, por sua vez, ama o Pai (Jo 14,31). N ão temos por
que pensar que esse amor se limita à economia salvífica. Ao menos na
oração sacerdotal, fala-se do amor do Pai pelo Filho antes da criação do
mundo (Jo 17,24).
O amor do Pai pelo Filho foi recolhido na tradição. Orígenes uniu
esse amor à processão eterna do Filho59.06Já nos referimos ao amor como o
princípio da geração do Filho em Hilário. Para Agostinho o Filho é o ama­
do, junto ao Pai que é o amante, e o Espírito Santo que é o próprio amor*0.
Também para Ricardo de São Vítor, o Filho é o primeiro objeto do amor
do Pai, o sumrne dilectus, amor ao qual o Filho responde61.
O Pai dá ao Filho por amor tudo o que é, tudo o que tem62, seu ser
divino, que se no Pai se manifesta em entrega e doação, no Filho é aceita­

59. Cf. por exemplo, In Job. X X X II10, 121 (SCh 385, 240) o Filho da bondade
paterna e de seu amor. C f A. ORBE, Hacia laprimera teologia de laprocesián dei Verbo, Roma,
1958. 398ss.
60. Trin V m , 10,14 (CCL 50,290s); a correspondência do amor por parte do Filho
expressa-se em V I 5,7 (236) “unus diligens eum qui de illo est e t unus diligens etim de quo
est e t ipsa dilectio”.
61. RICARDO de São Vítor, Trin. m 7 (SCh 63,180ss).
62. E chega a dar tudo para dar tudo com o Filho (processão do E spírito Santo, do
Pai e do Filho na visão ocidental). Cf. BALTHASAR, Tbeohpk U, 150s.

315
DA “ECONOMIA" À “TEOLOGIA“

ção e correspondência. Paternidade e Filiação ap arecem em sua implicação


mútua. Uma não existe sem a outra, ainda que à primeira corresponda a
primazia do amor original. O Filho é o perfeito reflexo de seu ser e de seu
amor, porque o am or com que o Pai se dá ao Filho é a fonte da razão e da
sabedoria, o sentido de todo sentido63.
A correspondência do Filho ao amor do Pai manifesta-se na econo­
mia da salvação, no cumprimento total da vontade paterna (cf. Hb 10,7-9),
na obediência de Jesus até à morte a morte, de cruz, que significa o grau
máximo do esvaziamento de si (cf. F1 2,6-8). Ao responder em sua vida ao
amor paterno e manifestar o amor que o Pai tem por nós, Jesus revela
também o amor do Pai por ele. A partir desses dados do Novo Testamento,
alguns teólogos tratam de diversas maneiras de penetrar no m istério
intratrinitário do amor do Pai e do Filho. Vale a pena deter-nos um instan­
te no exame de algumas dessas tentativas.
H . U . von Balthasar, partindo da correspondência que de algum modo
se dá entre a economia e a teologia, chega a falar de uma kenose original das
pessoas divinas em sua doação mútua: assim, só no fato da geração do Filho
se daria no Pai mesmo uma espécie de esvaziamento de si, uma kenose pri­
mordial a que corresponderia a doação eterna total do Filho, a qual por sua
vez encontraria sua expressão e manifestação na kenose histórico-salvífica de
Jesus, o Filho encarnado, sua expressão e manifestação64. “O que rege en­
tre Jesus e o Pai como mediação da missão é a forma econômica do acordo
eterno entre o Pai e o Filho.”65A iniciativa desse acordo corresponde ao Pai,

63. Ibid., 130: "Desse amor abissal que tudo funda, deve-se dizer ao mesmo tem po
que é tudo menos cego; mais ainda que é o mais sábio e com isso o últim o sentido de todo
saber e de toda razão”.
64. Theodramatik IV Das Endspiel, 106ss: “Deve-se dizer que essa (kenose da obediên­
cia),... encontra-se fundada na kenose das pessoas eternas, um as em relação às outras, como
um aspecto entre os infinitos aspectos reais da vida eterna”. Cf. também Teodramática IV, La
acción, M adrid, 1995, 300-304; Teodramática II, Laspersonas dei drama, 272 etc. Sobre esse
aspecto do pensam ento de von Balthasar, ver P. GILBERT, Kenose et ontologie, em M . M .
O LIV ETTI (ed.) Philosophie de la religjon entre étbique et ontologie, Pádua 1996, 189-200,
esp. 190-195. J. W ERBICK, G ottes D reieinigkeit denken? H . U. von Balthasar Rede von
den göttlichen Seihstentäusserung als M itte des Glauben und Zentrum der Theologie,
TbQ 147 (1996) 225-240; V. H O LZER, Le Dieu Trinkt dans Pbistoire. Le differend tbéologique
Bakbasar-Rabner, Paris, 1995, 238ss; P. MARTTNELLI, II mistero delia morte in H. U. von
Balthasar, M ilão, 1996,342-351. G . MARCHESL, La cristologia trmitaria de H. U. von Bal­
thasar, Brescia, 1997, 516-535. Como ele mesmo indica, Balthasar tom a a idéia de BUL­
GAKOV, Le Verbelncamé, Paris, 1943. Cf. Teodramática, IV, 253; 289ss. 300. Sobre Bulgakov,
cf. P. CODA, L’altro di Dio. Rivelazione e kenosi in Sergej Bulgakov, Roma 1998. làm bém
Evdokimov tinha exposto idéias semelhantes.
65. Teodramática Hl, 468.

316
O PAI. O FILH O E O ESPÍRITO SANTO

evidentemente, n u s isso supõe a aceitaçao das outras pessoas, a total coin­


cidência do amor divino. Em Jesus dá-se uma identidade perfeita entre a
espontaneidade no cumprimento da missão e a plena obediência com que
a realiza. Essa identidade é mostra da perfeita co-divindade do Filho com o
Pai66. A entrega do Filho mostra a entrega que o Pai fez de tudo o que ele
é. Há portanto uma perfeita correspondência entre o Pai e o Filho, e por isso
o Filho é a imagem perfeita do Pai67. Porém o Filho, que na obediência
realiza as obras do Pai (cf. Jo 10,37; 14,9-10), realiza também suas obias
própnas, reflexo do amor fontal na obediência feita carne própria.
W. Pannenberg por sua vez, refere-se à autodistinção do Filho a res­
peito do Pai: diferentemente do primeiro homem, Adão, que querendo ser
igual a Deus separou-se dele, Jesus, glorificando o Pai como Deus e não
retendo avidamente o ser igual a Deus, encontra-se unido a ele (cf. F12,6)68
Essa autodistinção é também constitutiva para o Filho eterno em sua re­
lação com o Pai69. Chegara a suas últimas conseqüêndas na morte do Se­
nhor na cruz, em cuja aceitação Jesus se confirma como o Filho. Também
o Pai, que ama o Filho, é afetado por essa morte em virtude de sua “com­
paixão”70. Da atitude histórico-salvífica de Cristo, que em sua obediência
mostra a atitude contraposta a Adão, que pretendeu ser como Deus (cf. Gn
3,5; F12,6ss), Pannenberg tira a conseqüência de que a submissão à divin­
dade do Pai é já constitutiva do ser divino intratrinitário do Filho.
J. M oltmann vê também a obediência eterna do Filho ao Pai manifes­
tada e realizada na cruz. O sacrifício do amor sem limites encontra-se já
incluído na permuta de amor que constitui a vida divina da Trindade. O
fato de que Jesus m orra e se entregue na cruz encontra-se em relação com
a obediência eterna, na qual se entrega inteiramente ao Pai71. Desde sem-

66. Ibid., 467s.


67. O que significa essa paternidade na eternidade pode-se entrever na missão do
Filho, cuja tarefo é revelar o amor do Pai que vai até ao fim... Essa paternidade não pode
ser senão a entrega de tudo o que é o Pai... Enquanto Deus, o Filho deve ser igual ao Pai,
apesar de provir do Pai, e como o Pai expressou no Filho todo o seu am or sem reservas, é
o Filho a perfeita imagem do Pai”.
68. Cf. sobre esse tema em Pannenberg, ver LADARIA, Adan y C risto en la “Teo­
logia sistemática” de W. Pannenberg, RET 57 (1997) 287-307.
69. Cf. Teologia sistemática /, M adrid, 1992, 336s; 348: “Só no caso do Filho tem a
autodistinção o sentido de que outra pessoa, da qual diferencia a si mesmo, isto é, o Pai, seja
para ele o único Deus, fundando-se sua própria divindade justamente nessa sua submissão
à vontade do Pai”.
70. Ibid. 340s.
71. Trinität und Reich Gottes, 184: “Por outra parte osacrifício do amor semfronteiras do
Filho no Gólgota está desde sempre incluído no intercâmbio de amor essencial que cons-

317
DA 'E C O N O M IA ' À "TEOLOGIA“

pre o amor d o Pai que dá à luz o Filho é o amor que dá e gera. O am or do


Filho é o da resposta, frente ao do Pai, que dá tudo72.
Estas e semelhantes considerações não carecem, em princípio, de le­
gitimidade; bem ao contrário, mas parece necessário um discernim ento
sobre elas. P o r uma parte, é claro que se deve ver na vida da Trindade
imanente e n a permuta de am or entre as pessoas a condição de possibili­
dade da projeção do am or de D eus ad extra na economia salvífíca. Mas não
aparece com a mesma clareza que se deva interpretar tudo o que ocorreu
na vida de Jesus como reflexo temporal de um “dram a” eterno. Pode resul­
tar difícil levar até esses extremos a correspondência entre a Trindade eco­
nômica e a Trindade im anente. Esta última, como já tivemos ocasião de
observar, nem se esgota na economia salvífíca, nem é completada ou leva­
da à perfeição por ela73. O que na economia da salvação se realiza funda­
menta-se decerto na vida interna de Deus, mas é fruto da soberana liber­
dade divina. Ambos os extremos devem ser mantidos. Certamente, “entre
o Filho na vida etema de Deus e o Filho na história terrestre de Jesus, dá-
se uma íntim a correspondência, mais ainda uma identidade real, que se
nutre com a unidade e a comunhão filial de Jesus C risto com Deus P ai”74.57
M ais ainda, “na vida interna de Deus está presente a condição de possibi­
lidade daqueles acontecimentos que, pela incompreensível liberdade de
Deus, encontraremos na história da salvação do Senhor Jesus Cristo”” . O

titui a vida divina da Trindade. Que o Filho morra na cruz, e nisso entregue-se a si mesmo,
está incluído em sua obediência etem a, pela qual se entrega ao Pai segundo todo o seu ser,
mediante o E spírito que recebe do Pai. A criação está salva e purificada na eternidade no
sacrifício do Filho, que é o fundam ento que a sustenta”.
72. Ibid.: “O Pai ama o Filho com amor paterno, que produz. O Filho ama o Pai com
um amor que responde, que se subm ete”. Cf. também GRESHAKE, op. d t., 208.
73. Cf. en tre outros, as observações que fazem às teses de von Balthasar, H . V O R-
GRIM LER, Doclrina teológica de Dios, Barcelona, 1987, 193-194; L. SCHEFFCZYCK,
Der GottderOffènbarung. Gotteslebre, Aachen, 1996,409-410; HOLZER, op. d t., 238; 257;
GRESHAKE, op. d t., 280s., que faz no tar também como em outros momentos de sua obra
o próprio von Balthasar relativiza essa tese. Creio que é m elhor, como faz o Novo Testa­
m ento, reservar a terminologia da kenose ao esvaziamento de si do Filho na encarnação, sem
querer projetá-la em um evento trinitário original ao qual não tem os nenhum acesso direto
que nos garanta a perfeita correspondênda com e economia. Também aqui devia-se aplicar
o que foi dito sobre a “segunda parte” do “axioma fundam ental” de K. Rahner (cf. c. 2).
O utros usos analógicos do term o kenose referidos, por exemplo, ao certo ocultam ento de
Deus na criação, ou ao “anonimato” do Espírito que atua na Igreja sem fazer-se visível,
oferecem mais semelhança com a kenose histórico-salvífica do Filho a que explidtam ente se
refere o Novo Testamento.
74. COM ISSIO THEOLOGICAINTERNATTONALIS, op. d t., 19.
75. Ibid. 11; O texto continua: “Portanto, os grandes acontecimentos da vida de Jesus
expressam para nós manifestamente, e fazem eficaz de um m odo novo, o colóquio da ge­
ração eterna em que o Pai diz ao Filho: ‘Tu és meu Filho, hoje te gerei’ (SI 2,7 cf. At 13,33;

318
O PAI. O FILHO E O ESPÍRITO SANTO

amor de Jesus, manifestado na entrega de si até a m orte em obediência ao


Pai, será o reflexo do am or do Pai mesmo que encontra no Filho sua res­
posta. Sem que seja necessário falar de kenose ou despojamento, é cerm que
podemos pensar que o amor do Pai ao Filho é o de doação total, embora
não possamos conhecer as modalidades dela. Uma vez que quem vê Jesus,
que se entrega até o fim, vê o Pai (cf. Jo 14,9), essa conseqüênda é legíti­
ma. A obediência de Jesus até a m orte, e morte de cruz, é também, nesse
sentido, mostra de sua perfeita acolhida ao amor do Pai, de seu ser em total
gratidão e correspondência.

2. O Filho como Logos e imagem de Deus

O Filho, primeiro objeto do amor do Pai, é, enquanto tal, o que o dá


a conhecer. A tradição, com clara base no lestam ento, falou do Filho como
Logos (Verbo, Palavra) e imagem do Pai. A idéia da revelação está subjacente
a esses dois títulos. Sem dúvida há entre eles uma íntima relação. Se o pri­
meiro refere-se primariamente ao aspecto da audição (cf. também Mc 9,7
par.), é a visão o que aparece mais diretamente posto em relevo no segundo.
A imagem do Logos vem, como é sabido, do prólogo do Evangelho
de João (cf. Jo 1,1.14; também ljo 1,1; Ap 19,13). As noções veterotes-
tamentárias da palavra e da sabedoria de Deus, que já nos são conhecidas,
estão sem dúvida na raiz do uso desse conceito no Evangelho, ainda que
possa ter influído também a filosofia religiosa de Füon de Alexandria, por
sua vez também inspirado nas mesmas fontes do Antigo lestam ento76. A
noção de Logos é também conhecida na filosofia helenística. M as natural­
mente há novidade radical no conceito joanino: o Logos estritamente pessoal
que é o Filho de Deus encarnado. W. Kasper observa que, ainda com essa
diferença fundamental no conteúdo, se dá entre a noção filosófica e a
neotestamentária do Logos uma certa afinidade formal: o Logos mostra-
nos o sentido do mundo, a revelação do ser no pensamento e na palavra77.
Não vamos repetir o que foi dito em nossa breve exposição da his­
tória da teologia trinitária. A idéia do Logos serviu já desde os apologetas
para iluminar a geração do Filho pelo Pai, por meio de um a analogia

H b 1,5; 5,5 e Lc 3,22)”. Também, ibid., 23: “o dom da divindade do Pai ao Filho tem uma
íntim a correspondência com o dom do Filho ao abandono da cruz”. Ver no ta 55.
76. Cf. R. SCHNACKENBURG, El evangelio según um Jutm I, Barcelona 1980,
306-308.
77. Cf. Der Gottjesu Cbristi, 230ss.

319
D A “ECONOM IA” À “TEOLOGIA”

inspirada n a mente humana e não na geração carnal. Agostinho tematizou


em seu De Trinitate, em especial no últim o livro78, as relações entre a
palavra in terio r do homem e a exterior. A palavra exterior é o sinal da
que brilha dentro; quando falamos do que sabemos é como se a palavra
nascesse em nós: há um a palavra que está antes do som. Esse esquema se
aplica a D eus:
E assim a palavra de Deus Pai é o Filho unigénito, em tudo igual ao Pai, Deus
de Deus, luz de luz, sabedoria da sabedoria, essência da essência. Ao pronundá-
la o Pai gerou, e porque se expressava a si mesmo, sua Palavra é em tudo igual
a si mesmo79.

Para Tomás, que segue Agostinho80, “Verbo” é também um term o re­


lativo, como o é o de Filho. É relativo àquele de quem é o Verbo. P or essa
razão, pode ser nome pessoal do Filho, já que não é um nome essencial81. A
“geração” em Deus, que se efetua pela via intelectual (cf. o que se disse ao
falar das processões82), permanece no interior de Deus, porque nele o ser
e a autoconsciência vêm a coincidir. E sua palavra, em tudo igual a ele, e
portanto de sua mesma substância, ao contrário do que diziam os arianos.
A processão intelectual chama-se geração, por isso o nome de Verbo é
próprio do Filho e só dele83. E algo subsistente, porque tudo o que existe
na natureza de Deus subsiste, “quidquid est in natura Dei, subsistit”84.
Para Tomás o Verbo não significa somente algo a respeito de Deus, senão
também a respeito das criaturas. Em seu Verbo substancial, no qual se
conhece a si mesmo, conhece Deus ao mesmo tem po todas as coisas. N ele
as criaturas são constituídas e conhecidas85.
Junto com a teologia do Logos, a tradição desenvolveu a da imagem.
Já o Novo Testamento, como bem sabemos, fala-nos de Jesus revelador do
Pai. Como tal é a “imagem do Deus invisível” (Cl 1,15; cf. 2Cor 4,4). É o
“esplendor da glória de Deus e timbre de sua essência” (Hb 1,3; cf. 2Cor 4,6).
A idéia desenvolveu-se de diversos modos na idade patrística. Ireneu cu­

78. Cf. A G O STIN H O , Trin. XV 10-14 (CCL 50, 483-497).


79. Ibid., XV 14,23 (496).
80. Ibid.,Vn 2,3 (250).
81. Cf. STb I 34,1. Segundo 34,2 o nascimento do Filho expressa-se com diversos
nomes porque nenhum deles pode esgotar toda sua perfeição.
82. Ibid., I 27,1.
83. Ibid., 1 27,2; I 34,2.
84. Ibid., I 34,2.
85. Ibid., I 34,3; De Ver. q. 4 art. 5.

320
0 PAI, O FILHO E O ESPÍRITO SANTO

nhou a célebre formulação “visibile Patris Filius”86. Para Clemente Alexan­


drino, o Filho é o rosto, irpóowirov, do Pai87. Tèrtuliano parece considerá-
lo sua “fedes”88. Esses diversos nomes não diferem entre si89. Mas se nos
primeiros tem pos o Filho enquanto encarnado era considerado a imagem
de Deus, em evidente relação com a função reveladora do Pai que Jesus
realiza, logo prevalecerá a tendência a considerar que essa imagem refere-
se ao Filho eterno, enquanto é igual ao Pai em sua dignidade divina. A luta
anti-ariana é responsável, em grande parte, não de todo, por essa mudan­
ça90. Agostinho vê a relação entre Filho, Logos, imagem no feto de que
todos são relativos a respeito do Pai91. E a consideração da Trindade
imanente que prevalece. Também para Tomás a condição de imagem refe-
re-se ao Filho preexistente, e é exclusiva do Filho por ser ligada à sua
geração intelectual como Verbo92.
Todas essas considerações só são possíveis porque Jesus se manifestou
ao mundo como revelador do Pai. O Filho pode, sem deixar de ser Deus,
sair de si e fazer-se criatura93. D o fato da encarnação podemos deduzir
portanto que o Filho é o princípio pelo qual Deus atua a d ex tra . D aí a
única mediação salvífica de Jesus (lT m 2,5). Na possibilidade da encarnação,
mávima “exteriorização” de Deus, funda-se a possibilidade da criação94, rea­
lizada com a mediação do Filho (cf. Jo l,3s.l0; IC or 8,6; Cl l,15s; H b 1,2)
e que, na ordem concreta em que nos encontramos, está orientada para
Cristo desde o prim eiro instante (cf. Cl 1,16s). Daí a preposição “por” (dià,

86. Ado. Haer. IV 6,6 (SCh 100, 450): “invisibile etenim Filii Pater, visibile autem
Patris Filius”; Ibid., 6,7 (452s): “Agnitio enim Patris Filius, agnitio autem Filii in Patre et
per Filium revelata”.
87. Ped. I 57,2 (FP 192-193): “O rosto de D eus é o Logos, por m eio do qual se faz
visível e é conhecido”. Também em Strom. V 34,1 (SCh 278,80); VH 58,3 (GCS 17,42);
Exc. Tbeod. 10,5; 12,1; 23,5 (SCh 23,80; 82; 108).
88. Cf. Adv. Prax. XIV 10 (SCARPAT, 182); cf. o conjunto Ibid, XIV-XV lss (178-
186). Cf. nota 14 do cap. 2.
89. HILÁRIO de Poitiers, Tr. Ps. 68,25 (CSEL 22,335): “Form a e t vultus et fades e t
imago non differunt”.
90. Cf. R. CANTALAMESSA, C risto “immagine di D io”. Le tradizioni patritri^hf
su Col. 1,15. Rivista di Storia e Letteratura Religiosa 16 (1980) 181-212; 345-380. SI-
M O N ETTI, Exegesi ilariana di Col 1,15, Vetem Cbristianorum 2 (1961) 165-182.
91. Cf. Um V 13,14 (CCL 5 0 ,220s); VI 2,3 (230s); VH 1,1-2 (245); 2,3 (249s)
92. STb I 35,2: “sicut Spiritus Sanctus, quam vis sua processione acdpiat naturam
Patris, sicut et Filius, non tarnen didtur natus... Q uia Filius procedit u t Verbum, de cuius
ratione est sim ilitudo spedei ad id de quo procedit”.
93. Como já vimos no capítulo 2, não temos p o r que pensar na possibilidade de outra
pessoa encamar-se.
94. Cf. RAHNER, Grundkurs des Glaubens, 213,225.

321
DA "ECONOM IA" À "TEOLOGIA*

per) qu e vimos aplicada ao Filho no Concüio II de Constantinopla, seguin­


do um a longa tradição. Enquanto Filho encarnado, “Deus conosco” (Mt
1,23) feito como nós e participando de nossa condição, Jesus é o único
m ediador entre Deus e os homens. Só à luz da vida concreta de Jesus
pode-se falar dele como palavra e imagem do Pai, e só à luz de sua existên­
cia concreta recebem esses títulos seu conteúdo pleno.
A vida de Jesus é correspondência, inteira disponibilidade agradecida
por tudo que o Pai lhe deu. Jesus não busca sua própria glória, senão honrar
o Pai e deixar que seja este que o glorifique (Jo 8,49s.54; 17,1-5). Definiti­
vamente, Jesus não proclamou seu reino, mas o do Pai. Também no final dos
tempos devolverá o reino ao Pai, e se submeterá inteiramente a ele (cf. IC or
15,24-28), o que não significa, como já sabemos, que deixe de reinar (Credo
niceno-constantinopolitano). Se o Pai é Deus enquanto dá, o Filho é Deus
enquanto recebe e ao mesmo tempo dá. O Filho é o amado que, enquanto
tal, é, p or sua vez, o amante. Nessa referência ao Pai que lhe entregou tudo,
entende-se a entrega aos homens na liberdade e na espontaneidade da obe­
diência. Em sua referência ao Pai, é sua perfeita imagem, e pode revelar-nos
seu am or em sua vida e em sua morte. Nicéia falou do Filho dizendo que é
bomoousios com o Pai. C om isso, garante-se a verdade de nossa salvação,
nossa verdadeira relação com Deus em seu Filho, que nos dá a conhecer a
Deus e nos une a ele. Mas o bomoousios não nos diz só quem é Jesus, o Filho,
mas também em último term o quem é Deus Pai, que pode comunicar-se
inteiramente ao Filho e que pode enviá-lo a partilhar a condição humana;
assim pode portanto entrar em relação última com sua criatura.
M as Jesus não é só consubstanciai ao Pai, mas também, ainda que
de m odo diverso93, consubstanciai conosco (símbolo da união, DS 272;
C oncílio de Calcedônia, DS 301). A dupla consubstancialidade há de
ser vista em sua unidade profunda: porque o Pai se deu inteiram ente ao
Filho, e por conseguinte este lhe é consubstanciai, pode o Filho, na
plena obediência e resposta ao Pai, fazer-se em tudo sem elhante a nós,
exceto no pecado, para entregar-se até o fim pelos hom ens, seus ir­
mãos. N a perfeição dessa entrega, Jesus é um homem com o nós —
como disseram os antigos concílios e tem os repetido —, senão tam­
bém, como observou o Concílio Vaticano II, o “homem perfeito” (GS
22,41), aquele em quem se cumpre até o fim o desígnio de D eus sobre 59

95. É evidente que a consubstancialidade com os homens não pode ser numérica.
Jesus é um só Deus com o Pai, mas não é um só homem conosco, por mais que se tenha
unido intimamente a cada um dos homens (Cf GS 22).

322
O PAI, O FILH O E 0 ESPÍRITO SANTO

o ser hum ano, e em cujo seguim ento nos fazemos todos mais hom ens.
N a unidade de seu ser divino-hum ano, Jesus, enquanto ama inteira­
m ente a D eus (enquanto é pura resposta de am or ao Pai no Espírito),
pode, de m odo insuperável, entregar-se aos hom ens, para assim fazer-
nos participantes do amor prim ordial com que o Pai o amou (cf. Jo
15,9; G1 2,20; Rm 8,39, entre outras passagens)96.

O ESPÍRITO SANTO, COMUNHÃO DE AMOR

As dificuldades com que nos defrontamos na reflexão sobre o Espí­


rito Santo são evidentes. Poderíam os começar já com o que nos narram
os Atos dos Apóstolos (19,2): “N em sequer ouvimos que existe Espírito
Santo...”. Em toda nossa exposição anterior tivemos repetidas ocasiões
de ver como a teologia trinitária girou com m uita freqüência em tom o
da relação Pai-Filho: o caráter “pessoal” de ambos é mais claro que o do
Espírito e suas relações recíprocas aparecem nos próprios nomes. Mas
também observamos que o m odo de ser pessoa em Deus é distinto em
cada caso, dado que na Santíssima Trindade nada é simplesmente “repe-
tível”; o próprio uso da expressão “três pessoas” não deixava de suscitar
problemas já para Sto. Agostinho97. M as em nosso capítulo 3 foi possível
observar como o Espírito Santo, em suas características peculiares, apa­
rece no N ovo Testamento com o sujeito, como centro de atividade. E

96. Para completar a informação acrescentamos a referência de algumas declarações


fundamentais do magistério sobre o Filho (os números referem -se à DS). Cf. ibid., 861;
RAHNER, El Dios unoy trino..., 401-404. É “principium de principio”: 1.331; “genitus sive
natus*doPai: 75,125,150, 1.330. É da natureza do Pai: 76,125,126,900. Tudo o que tem ,
tem -no do Pai: 1.331.0 Pai deu-lhe tudo menos ser Pai: 900,1.331,1.986,3.675. N ão é
parte do Pai: 526, 805. N ão é extensão do Pai: 160. É o único, unigénito: 4s, 12-30, 125,
150,178, 258, 357, 538, 900,3.350, 3.352. N ão foi criado “ex nihilo”: 75,125,126, 150.
Gerado sem começo, eternamente: 1.331, 357, 470; “ab aetem o” 75, 126, 150,50ss, 526,
538, 547, 554 etc.
97. Cf. também as matizadas observações de Sto. Tomás, STi 1 30,4: em Deus Tbdo-
poderoso não podemos folar de gênero e de espécie; também em 1,30,3: em Deus os núm e­
ros nada indicam de positivo, só servem para rem over falsas concepções. Já nos referim os
ao problema que apresenta a aplicação dos “núm eros” a Deus. Aplicando concretamente a
questão ao Espírito Santo, MOLTMANN, op. d t., 205, assinala que o Espírito Santo não
é pessoa em um sentido unívoco no que respeita ao Filho, e ambos não são pessoas como
o é o Pai. Em Deus não ocorrem conceitos gerais, tudo é irrepetível. D e modo pareddo,
para PANNENBERG, op. cit., a “autodistinção” (já nos referim os a este conceito nas
páginas precedentes) não siginifica o mesmo para cada pessoa.

323
DA “ECONOMIA" À “TEOLOGIA"

claro que este fato nada tira da maior dificuldade que desde sempre sus­
citou o discurso sobre o Espírito Santo98.
Essa dificuldade não começou em nossos dias, e é também antiga a
consciência que dela se tem. Os Padres já advertiram sobre ela. H ilário de
Poitiers não queria comprometer-se para além da afirmação de sua exis­
tência e de sua divindade, como também de sua doação aos homens99.
G regório Nazianzeno falava da revelação do Espírito Santo mais tardia do
que a do Pai e do Filho, de tal maneira que só no tempo da Igreja se teria
chegado à sua manifestação clara e distinta100. Para Basílio, o “tropos tes
hyparcheos”, o modo de ser, do Espírito Santo é inefável101.
Sem dúvida, essas dificuldades foram causa em parte do relativo esque­
cimento do Espírito Santo e de sua função insubstituível em nossa salvação,
que de fato se produziu em certas épocas, tanto na reflexão teológica como
na piedade do povo cristão102. Essa situação, que se prolongou até tempos
relativamente recentes, não é mais a nossa. O interesse pela pneumatologia
é um signo de nossos tempos. Já tivemos ocasião de verificar que para a teo­

98. Sobre o Espírito Santo, além da bibliografia citada, esp. a do capítulo 2, cf. B. H.
HILBERATH, Pneumatologia, Bresda, 1996; DURRWELL, UEsprhSamtde Dieu, Paris, 1983;
LEsprit du Père et du Fils, Paris-M ontréal, 1989; E LAMBIASI, Lo Spirito Santo. Mistero e
presenza, Bologna, 1987; C . E. LAVATORI, Lo Spirito Santo, dono deiPadre e deiFiglio, Bologna,
1987; C. GRANADO, El Spiritu Santo en la teologiapatrística, Salamanca, 1987;MOLTMANN,
Lo Spirito delia vita. Per unapneumatologia integrale, Bresda, 1994; M. WELKER, Spirito di Dio.
Teologia dello Spirito Santo, Bresda, 1995; G. COLZANI (ed.), Verso ima muwa età dello Spirito,
Padova, 1997; V MARALDI, Lo Spirito e la Sposa. Ilruolo ecdesiale dello Spirito Santo dal Vaticano
lalla Lumen Gentium dei Vaticano II, Casale M onferrato, 1997; COMISSÃO TEO LO G ICO -
STORICA dei Grande Giubileo delTAnno Duemila, Del tuo Spirito, Signore, è piem la terra.
Cinisello Balsamo, 1997; J. GALOT, LEsprit Saint, personne de communion, Saint Maur, 1997;
O . González de CARDEDAL, La entraria dei cristianismo, Salamanca, 1997,693-739.
99. Cf. Trin H 29 (C C L 62, 64).
100. Or. 31,26 (SCh 250,326): o Antigo Testam ento anundou manifestam ente o Pai,
enquanto o Filho foi anundado de modo mais obscuro. N o Novo Testam ento apareceu
com clareza a divindade do Filho, enquanto a divindade do Espírito som ente se deixou
entrever. N o tempo atual o Espírito se manifesta de maneira mais clara.
101. De Spiritu Soneto, 18,46 (SCh 18bis, 408). Segundo CIRILO de Jerusalém , Cot.
16, 24 (PG 33, 953) não há que investigar a natureza do Espírito Santo, pois não há que
investigar o que não está escrito. O utros dados obre essas dificuldades dos Padres encon-
tram -se em BALTHASAR, Theologk III, 106s.
102. Impressionante a lista de exemplos aduzidos por CONGAR, El Esphitu Santo,
188ss. Ver também H . M Ü H LEN , Um mystica Persona, M ünster, 1968, 473ss; HILBE­
RATH, op. cit., 8ss. N a página 212 indica como causas desse esquecimento: a dificuldade
da Igreja com os movimentos espirituais; o pouco interesse teológico pela vida e a expe­
riência espiritual; a acentuação unilateral da unidade da ação das pessoas na atuação história
salvífica; e a separação da Trindade econômica e da Trindade imanente que teria levado ao
“cristomonismo” na teologia ocidental. Igualmente se teria produzido um esquecimento
do Espírito no estudo da graça.

324
O PAI, O FILHO E O ESPÍRITO SANTO

logia católica atual é claro que sem a atuação do Espírito Santo não se expli­
ca a vida de Jesus103, nem também a da Igreja (cf. L G 4) e a do cristianis­
mo104. Nossa breve exposição da teologia do Novo Testamento já nos tinha
persuadido disso. O mais recente magistério da Igreja indicou além disso
que, em relação com a unicidade e a universalidade da obra salvadora de
Cristo, também o Espírito Santo, o Espírito de Jesus, exerce sua função
salvífica para além das fronteiras visíveis da Igreja, associando os homens ao
mistério pascal de Jesus (cf. GS 22; João Paulo D, Redemptcris missio 28-29;
56s; também Dvrnmum et vivificantem , 23; 53). Sem o Espírito Santo nem se
realiza nem produz seus efeitos em nós a salvação que Cristo nos trouxe. A
convicção cristã de que o Espírito Santo é Deus e não criatura funda-se
nessa base. O Espírito Santo acha-se unido ao Pai e ao Filho na fórmula
batismal e nas antigas confissões de fé da Igreja. Sem ele não podemos falar
da “Trindade”. Seguindo de perto o ensinamento do Novo Testamento, a
tradição apresentou-nos o Espírito Santo como o dom de Deus que é Deus
mesmo, o dom por excelência aos homens. Por conseguinte, é de algum
modo a pessoa divina mais “próxima” de nós105, a mais “exterior” de Deus.
Mas, ao mesmo tempo em que é esse transbordamento de Deus em nossa
direção, o Espírito Santo é a expressão da união e do amor do Pai e do Filho,
e, como tal, o mais íntimo do ser divino. O Espírito Santo como dom, o
Espírito Santo como amor foram os dois grandes temas da pneumatologia
no Ocidente106. Devemos ocupar-nos dos dois aspectos, que se encontram
em uma relação mais íntima do que à primeira vista pode parecer. Também
devemos dedicar alguma atenção à questão da “processão” do Espírito.

L 0 Espírito Santo como dom107

No Novo Testamento fala-se muitas vezes que o Espirito Santo foi


dado, enviado etc. Já conhecemos muitos desses textos108. Mas em algumas

103. N ão é o momento de repetir tudo o que foi dito nos capítulos precedentes. M as
apontemos como um dado curioso que, segundo o Concílio XI de Toledo (DS 538), Jesus
não só foi enviado pelo Pai, senão tam bém pelo Espírito Santo (cf. Is. 48,16).
104. Evidentemente não podemos entrar aqui nos terrenos da eclesiologia e da teolo­
gia da graça.
105. Cf. M Ü H LEN , Der Heilige Geist ab Person, M ünster, 1967, 279ss.
106. Cf. TOMÁS D E A Q U IN O , STb 1 37-38. Nossa exposição a seguir vai dar-nos
ocasião de aludir a muitas das declarações do Magistério sobre o Espírito. Um resum o
sistemático delas encontra-se em D S, 862. Cf. também RAHNER, op. d t., 405s.
107. Encontra-se m aterial sobre a questão ao longo da história em E. LAVATORI,
Lo Espmtu Santo dono dei Padre e dei Figlio, Bologna, 1987.
108. Cf., por exemplo, Jo 14,16; Rm 5,5; Lc 11,13: “... quanto mais o Pai do céu dará
o Espírito Santo aos que lhe pedirem”. O texto paralelo de M t 7,11 diz que dará “coisas boas”.

325
DA “ECO NO M IA" À “TEO LO G IA "

passagens dos A tos dos Apóstolos encontra-se mais especificamente a de­


nom inação “dom ” . Em At 8,20 o Espírito aparece como o “dom de Deus”;
em At 2,38; 10,45, fala-se do dom do Espírito Santo; segundo A t 11,17
Pedro refere-se a o mesmo dom que os gentios receberam, em alusão clara
ao E spírito de q u e se falou no versículo anterior: “se Deus lhes concedeu
o mesmo dom q u e a nós...”. Também as noções de dom e Espírito Santo
põem-se em relação em H b 6,4. N a tradição identificou-se com a pessoa
do E spírito Santo o “dom de Deus” de que se fala em Jo 4,10 (cf. 4,14): “Se
tu conhecesses o dom de D eus”...109, embora seja provavelmente excessivo
querer identificar com precisão esse dom, que se refere a Jesus e à sua obra
salvífica em term os mais genéricos. M as, tomando em consideração o con­
junto do Novo Testam ento, devemos constatar que tanto pela direta deno­
minação de dom referida ao Espírito como pelas numerosas alusões à sua
doação a im portância que essa noção teve na tradição teológica está plena­
mente justificada. E verdade que também Jesus, o Filho, foi dado, entre­
gue. M as esse dom de Jesus produziu-se de uma vez para sempre (cf. H b
7,27; 9,12; 10,10; Rm 6,10); sua vida histórica e sua entrega por nós si­
tuam-se em determinadas coordenadas do tempo e do espaço. Mas o dom
do Espírito é um dom constante, é expressão da perenidade da ação salvado­
ra de D eus realizada de uma vez para sempre em Cristo, mas que o Espírito
Santo constantem ente universaliza, atualiza e interioriza110. 0 Espírito San­
to, como o am or de Deus derramado em nossos corações (cf. Rm 5,5; G1
4,6), nós é dado dia a dia, na missão invisível de que filiava Sto. Tomás.
D eus nos ama e esse am or é realidade em nós pelo dom de seu Espí­
rito no interior de nossos corações. D o dom de Jesus realizado de uma vez
para sem pre vem o perene dom do Espírito aos corações dos homens. Se
Jesus é Deus conosco (cf. M t 1,23), Deus feito homem como nós, o Espí­
rito Santo é o dom em nós, Deus nos homens. É Deus que sai para fora,
é o “êxtase” de Deus111. P or isso com freqüênda, nas primeiras fórmulas
trinitárias, o Espírito Santo aparece sobretudo em sua dimensão histórico-
salvífica, mais do que na Trindade imanente: o Espírito está em nós. N o

109. Assim A G O STIN H O , Injob. Ev. 15,16-17 (CCL 36, 156) Trrn. XV 19, 33
(CCL 50,509); CIRILO de Jerusalém , Cath. 16,1 (PG 3 3 ,931ss),
110. JOÃO PAULO ü , Dominion et vivificantesm 24: “A redenção é totalm ente rea­
lizada pelo Filho, o ungido, que veio e atuou com o poder do Espírito Santo, oferecendo-
se finalmente em sacrifício supremo no madeiro da cruz. E essa redenção, ao mesmo tem ­
po, é realizada constantemente no corações e nas consciências humanas — na história do
mundo — pelo Espírito Santo, que é o outro Parádito”. Ver também n. 153 do cap. 3.
111. Cf. KASPER, op. cit., 278.

326
0 PAI, 0 FILH O E O ESPÍRITO SANTO

Espírito Deus sai para fora de si em sua autocomunicação aos homens, de


maneira especial nos que creem em Jesus. Pela ação do Espírito, aceita-se
a palavra divina, crê-se em Jesus (IC o r 12,3). E a unção interior, de que
fala ljo 2,20-27, que Agostinho comenta assim: “se sua unção os ensina
tudo, trabalhamos sem razão para isso... Vossos ouvidos são tocados pelo
som de minhas palavras, mas o m estre é interior”...112
Vimos a importância que a noção de dom teve no pensamento de Sto.
Agostinho, que faz dela o nome pessoal do Espírito Santo quando busca
um nome relativo como os de Pai e de Filho. Mas se o termo “dom” é
relativo, como sabemos, é claro que se trata do dom de alguém. N o Novo
Testamento é claro que são o Pai e Jesus os que dão o Espírito Santo, com
diferentes expressões nas diversas passagens: o Pai envia o Paráclito por­
que Jesus lhe pede, ou “em nome de Jesus” (Jo 14,16.26). Também Jesus
é o que envia o Espírito, da parte do Pai (Jo 15,26; cf. 16,7). Jesus ressusci­
tado sopra sobre seus discípulos no mesmo dia de sua ressurreição (Jo 20,22);
nos Atos é Jesus ressuscitado e elevado à direita do Pai (At 2,33). Vimos nos
escritos paulinos as fórmulas Espírito de Jesus, de Jesus C risto etc., ao mes­
mo tempo que Espírito de Deus ou Espírito Santo, com o que aparece claro
que o mesmo Espírito é ao mesmo tempo de Deus Pai e de Jesus113. Não é
preciso sublinhar uma vez mais que o dom está unido à Páscoa de Jesus.
A relação do Espírito com o dom de Cristo ressuscitado é constante
na tradição. A Ireneu de Lião devemos umas das mais belas “definições”
do Espírito Santo em sua aparição histórico-salvífica: o E spírito é
“communicado Cbristí”114. O dom é para Hilário o nom e pessoal do Es­
pírito, mas o termo não é empregado para indicar seus efeitos e sua atua­
ção, que por outra parte conhece, antes de Jesus. Assim, por exemplo, não

112. AGOSTINO, In Ep. Job. m 13 (PL 35, 2.004). Cf. Ibid. IV, 1 (2.005); cf.
CONGAR, La Parola e il Stffio, 35.
113. Não tratamos ainda no mom ento o problema intratrinitário da processão do
Espírito Santo.
114. Adv. Haer. I I 24.1 (SCh 211,472): o Espírito brota do corpo de Jesus; Ibid.: “de
corpore Christi procedentem nitidissimum fontem ” (474). C f 111,17 2-3 (330 ss., esp. 334):
“... quod Dominas acdpiens munus a Patre ipse quoque his donavit qui ex ipso participantur,
in universam terram mittens Spiritum Sanctum ”; conforme todo o contexto, como tam­
bém m 9,3 (110s): “Spiritus ergo Dei descendit in eum, eius qui per prophetas prom iserat
uncturus se eum, u t de abundantía unctionis eius nos percipientes salvaremur”; EI 11,9
(170): V 20,1 (Cf. ORBE, Teologia de san Irmeo, ü , M adrid, 1987,304ss). A íntim a relação
do Espírito comJesus foi posta em evidência também por GREGO R IO de Nissa, Adoersus
MacedonianosdeSpiritu Soneto 16 (JAEGER H l 1,102-103): “A noção de unção sugere que
não há nenhuma distância entre o Filho e o Espírito. De fato, como entre a superfície do

327
DA -ECO NO M IA“ À "TEOLOGIA"

se fala de dom em relação à inspiração do Antigo Testamento, que se atri­


bui ao mesmo Espírito. Para Basüio, o Paráclito, enquanto Espírito de
Cristo, leva o selo, mostra o Paráclito que o enviou115. Agostinho, com sua
preocupação com o nome relativo, acentua que o Espírito Santo é o dom
do Pai e do Filho. Não se pode pôr em dúvida a referência do Espírito
Santo a Jesus e em concreto a Jesus morto e ressuscitado.
Ao menos em um lugar do N ovo Testamento a atuação do Espírito
no tempo da antiga aliança é vista em relação com o dom de Jesus, com o
dom que dará o Ressuscitado (cf. lP d 1,11, o Espírito de Cristo nos pro­
fetas). A pneumatologia cristã quer a todo momento salvar a unidade da
história da salvação, e por isso contempla o Espírito como unido a Cristo
e à sua obra, que faz presentes na Igreja e em cada um dos cristãos. P or isso
não se aceitou a divisão proposta por Joaquim de Fiore (morto em 1202),
segundo o qual, ao menos na interpretação corrente de seu pensamento, a
primeira idade do mundo foi a do Pai, caracterizada pelo domínio dos reis
sobre seus súditos. A segunda é a do Filho, que alcança seu ponto máximo
com a vinda de C risto, caracterizada pela Igreja visível institucional, e em
concreto pelos sacerdotes que pregam a palavra de Deus. Mas esta deve
ceder o lugar à era do Espírito Santo, a era dos monges e espirituais, na
qual será o Espírito que regerá diretamente os homens, não a estrutura
hierárquica. Assim se correria o perigo de considerar que a atuação do
Espírito não estaria intrinsecamente unida à de Jesus, mas que, em certo
sentido, constituiria sua superação116.

corpo e a unção do azeite nem a razão, nem a sensação conhecem interm ediários, igual­
mente é im ediato o contato do Filho com o Espírito. Portanto, o que está a ponto de entrar
em contato com o Filho mediante a fé deve necessariamente entrar antes em contato com
o azeite. N enhum a parte carece do Espírito Santo”.
115. De Sp. sane. 18,46 (SCh 17bis 410). Sobre o Espírito dom, cf. também ibid.
23,57 (452, 454), dom que vem de Deus. M as no mesmo contexto, comentando G1 4,6, a
voz do E spírito — Abbá, Pai — converte-se na voz dos que o recebem. Os bens vêm do Pai
pelo U nigénito com a ação do Espírito. P or outra parte, o conhecim ento de Deus segue
para Basílio o ritm o ascendente inverso: De Spir sane, 18,47 (412). Cf. AMBRÓSIO de
Milão, De Spinsanc 2,13 (CSEL 79,137). D ÍD IM O , o Cego De Spirsanc. 4,12 (SCh 386,154)
o Espírito é a plenitude dos dons de Deus,
116. A interpretação clássica de Joaquim foi posta em discussão recentemente por
MOLTMANN, Speranza cristiana: messianismo o trascendenza? In dialogo teologico con
Gioacchino de Fiore e Tommaso d’Aquino, in Nella storia dei Dio trinitario. Contribuaper uma
teologia trmhana, Bresda, 1993,147-173. N ão é este o momento de dar um juízo global sobre
a teologia trinitária de Joaquim, a que já nos referimos. Interessa-nos sublinhar a íntima
referência ao Pai e ao Cristo de toda a ação do Espírito. Cf. a n. 90 do cap. 8.

328
O PAI, 0 FILH O E 0 ESPÍRITO SANTO

A consideração do Espírito como dom do Pai e do Filho mostra a


unidade da Trindade, já que assim se garante a unidade da economia salvífica.
Ver o Espírito em referência a Jesus não quer dizer vê-lo em “subordina­
ção”. A unidade da economia da salvação implica a referência mútua das
três pessoas, que corresponde à sua mútua inter-relação no seio da Trinda­
de imanente. Desde que a história da salvação tem sua culminância em
Jesus, e precisamente no mistério pascal, o dom do Espírito por Jesus res­
suscitado manifesta a unidade do Pai e do Filho. O Espírito não é dado
senão quando Cristo é Senhor117. P or isso nossa consideração do Espírito
Santo como dom nos recorda e completa o que vimos no capítulo 3 sobre
a revelação do mistério triiutário na vida de Jesus118.
Nossas considerações precedentes nos dizem que em todo caso deve
ficar claro que o dom do Espírito é, de uma parte, uma relação interna no
crente119e, por outra parte, que esse dom, procedente em último termo do
Pai, não pode ser visto nunca separado de Jesus. Esses dois aspectos estão
inseparavelmente unidos. O Espírito, um e o mesmo, está presente na cabeça
e nos membros, como diz o Concílio Vaticano II (LG 7). Essa dimensão
cristocêntrica nunca será sufirientem ente destacada. Precisamente porque
o Espírito esteve e está em Jesus pode ele habitar nos homens. Jesus é o
ungido de Deus, o Messias, aquele a quem o Espírito foi dado, por assim

117. Cf. CONGARjOp. cit., 161; BALTHASAR, Teodramátka 3. E l bombre en Cristo,


Madrid, 1993,478-479: “0 Espírito em Jesus está agora [durante sua vida mortal] total­
mente ocupado em prestar atenção ao Espírito sobre ele. Sua eterna conformidade com o
Pai, sua eterna espontaneidade e sua autoridade sobre o Espírito estão como que ligadas e
concentradas na obediência ao Espírito paterno; por isso, antes da m orte de Jesus, o Espí­
rito não está livre para os outros: ‘não havia ainda’ (fo 7,39). Só estará livre quando estiver
consumada a missão terrena, quando o E spírito na morte de Jesus tiver agora também
humanamente expirado, edevolvido ao Pai... para poder na Páscoa ser inspirado à Igreja...
e em Pentecostes descerapartir do Pai e do Filho sobre a Igreja”. Ver também Teodramatka
4, A ação, Madrid, 1995,341.
118. ORBE, La uncim dei Verbo, Roma, 1961,633, resume assim o pensamento dos
primeiros Padres da Igreja sobre o Espírito Santo, dom de Jesus ressuscitado: “N o batismo
do Jordão começa, não mais, a humanação do Espírito... A humanidade de Jesus deve fazer-
se instrumento apto do Espírito para os outros... Só no dia da ressurreição, espiritualizado
inteiramente em sua humanidade e selado pelo Espírito, começa a infundi-lo sobre os
apóstolos”. Ibid., 637: “Alais do que assimilação do Espírito pela humanidade de Jesus, era
a assimilação de Jesus pelo Espírito... Em virtude de sua destinação aos homens, seu ime­
diato princípio [do Espírito] será o Verbo encarnado enquanto tal. O próprio Pai não se
difunde direta e imediatamente sobre os mem bros da Igreja”.
119. Cf, recentemente sobre a questão, S. W OLLENW EIDER, D er G eist Gottes
ais Sellus der Glaubenden. U berlegungen zu einem ontologischen Problem in der
paulinischen Anthropologie, ZTbK 93 (1996) 163-192).

329
D A ’ ECONOMIA" À TEO LO G IA"

dizer, originariam ente, para que por m eio dele o recebam os homens. Já
conhecemos a tradição patrística, bem clara nesse ponto. Para Sto. Tomás,
o Espírito é “unus num ero in Christo e t in omnibus”120. Já antes dele dizia
H ugo de São V ítor:
De igual maneira que o espírito da pessoa desce pela cabeça para vivificar os
membros, de igual maneira o Espírito Santo, por Cristo, vem aos cristãos.
Cristo é a cabeça... o cristão é o membro. A cabeça é uma, os membros são
muitos, e forma-se um só corpo com a cabeça e os membros; e nesse único
corpo não existe mais do que um só Espírito. A plenitude desse Espírito re­
side na cabeça, a participação nos membros121.

O Espírito que Jesus possui em plenitude é o que nos foi dado e habita
em nós. N ão é em vão que a preposição que na tradição mais se une com o
Espírito Santo é “em ”. Já vimos como Basílio, justamente, mostrava como
não há nem pode haver uma associação exclusiva das preposições com cada
uma das pessoas divinas. Mas isso não obsta a que possamos indicar uma
certa “preferência” bem atestada no próprio magistério (cf. DS 421, Concí­
lio II de Constantinopla). Aliás, podemos distinguir dois usos da preposição:
por um lado refere-se ao Espírito em que estão todas as coisas; assim o texto
que acabamos de citar. Mas porque o Espírito do Senhor tudo abarca (cf. Sb
1,7) pode ser o dom em nós, em nosso interior122.321Portanto pertence espe­
cialmente ao Espírito ser “dom”, porque pode ao mesmo tempo estar em
todos, na cabeça e nos membros. E capaz de suscitar no homem a resposta
adequada à Palavra que é o Filho, porque o Pai se dirige a nós.

“Dom”, noxME pessoal do Espírito Santo

Como pode ser “dom” uma designação pessoal do Espírito Santo se


o termo faz referência à economia salvífica? Sabemos que já Sto. Agosti­
nho colocava o problema: por que se chama dom o Espírito Santo, sendo
que não havia sido dado antes de um momento determinado; porém desde
sempre era “doável”12}, quer dizer, essa propriedade pertence a seu ser

120. In Sent. UI d. 13, q. 2, a 1, ad 2. Cf. outras afirmações em CONGAR, op. d t , 84.


121. HUGO de São Vítor, De soar. cbrisfid. II 1,1 (PL 176,415).
122. Cf. a relação estabeledda por BASÍLIO de Cesaréia, De Sp. Sane., 26,62 (SCh
17bis, 472), o Espírito é “lugar* dos santos, com o eles são “lugar” do Espírito.
123. 7rin V 15,16 (CCL 50,224), desde a eternidade procede para poder ser dado.

330
O PAI. O FILHO E 0 ESPÍRITO SANTO

divino. Sto. Tomás coloca a mesma questão e responde de modo seme­


lhante: diz-se dom enquanto tem a aptidão de ser dado, enquanto tem em
si mesmo essa propriedade124. Por isso é legítimo o nome aplicado à tercei­
ra pessoa da Trindade, que é eterna embora a doação tenha lugar no tem­
po. Porque, com efeito, segundo o mesmo Sto. Tomás, o dom refere-se
àquele que dá, e àquele a quem é dado. Por isso a pessoa divina que é dom
é de alguém em dois sentidos, ou por razão de origem ou por razão daquele
a quem é dado. Por isso podia ser desde sempre dom de Deus ainda que
não tivesse sido dado ao hom em 125. Por outra parte, o Espírito Santo pode
estar em outro (a criatura racional) só enquanto dado: ninguém, por suas
forças, pode chegar a tê-lo. Compete portanto à pessoa divina ser dada e
ser assim Dom. Enquanto à origem, é dom do Pai e do Filho, e assim se
distingue pessoalmente deles desde a eternidade. Em outro sentido, o dom
distingue-se do homem que o recebe126.
Porém , para Sto. Tomás o Espírito Santo não é só dom do Pai e do
Filho, mas também dá-se a si mesmo enquanto é dono de si e poderoso
para usar, ou melhor, gozar de si mesmo127. Poder-se-ia talvez notar que
aqui Sto. Tomás se afasta um tanto da idéia bíblica do Espírito Santo como
dom do Pai e do Filho, levado pela legítima preocupação de insistir na
idéia de igualdade das pessoas. Deve-se, no entanto, ter presente, por outra
parte, que também no Novo Testamento o Espírito é ativo na distribuição
dos dons que são suas manifestações (cf. IC or 12,7-11)128. Santo Tomás
acrescenta que donum, enquanto nome pessoal, “não indica submissão, mas
só origem, em relação a quem o dá. Mas em relação com aquele que recebe
significa livre uso e fruição”129.
Santo Tomás não se contenta com essas observações sobre o caráter
pessoal do nome de “dom” em Deus. Indaga também mais precisamente

124. STh 1 38,1, ad 4: “... donum non d id tu r ex eo quod actu datur; sed inquintum
habet aptitudinem u t possit dari. U nde ab aeterno divina persona d id tu r donum”. Cf. o
mesmo artigo para o que segue.
125. Cf. Ibid., I 38,2 ad 3.
126. Cf. Ibid., I 38,1.
127. Ibid., 1 38,1: “Et tarnen Spiritus Sanctus dat seipsum, inquantum est sui ipsius,
u t potens se uti vel potius frui...”
128. A idéia do Espírito Santo ativo no dom está presente em BASILIO de Cesaréia,
De Spir. sanc. 16,37 (SCh 17bis, 376): “quando recebemos os dons, pensamos prim eiro
naquele que os reparte...”; Cf. A G O STIN O , Trrn. XV 19,36 (513). “Tu qui dator es et
donum”, hino do ofído de leituras de Pentecostes, Liturgia bararvm. Editio Typica, Typis
poliglottis Vaticanis, 1977, vol 2. 799.
129. STb I 38,1.

331
DA ‘ ECONOM IA- À “TEOLOGIA"

por que o nome convém em particular ao Espírito Santo130. Segundo Agos­


tinho, o ser do Espírito Santo como dom está em relação com sua processão
do Pai e do Filho131. Tomás, que já tratou do Espírito Santo com o am or do
Pai e do Filho (em seguida abordaremos essa questão), observa que o nom e
de dom vem do fato que indica a doação irreversível e gratuita. O ra, é pre-
dsam ente o amor o que comporta sobretudo a doação irreversível e gra­
tuita. O amor é sempre o dom primeiro e original porque só m ediante ele
pode-se dar todos os dons gratuitos132. Por isso o amor é o dom p or excelên­
cia. Procedendo o Espírito Santo, segundo Sto. Tomás, pela via do amor,
mais ainda, sendo o am or mesmo, segundo a expressão agostiniana, procede
como o dom primeiro. Ainda que o Filho também seja dado (cf. Jo 3,16) diz-
se que o Espírito Santo é dom porque procede do Pai ut amor (como amor);
por isso o dom é seu nome específico, como do Filho se diz que é imagem,
porque procede a modo de Verbo133.
Santo Tomás realiza uma aproximação, que não é sem interesse, entre
a doação do Espírito Santo atestada pela Escritura (e portanto o nome de
“dom ” dada pela tradição que o precedeu) e a especulação trinitária do
Espírito como amor. A relação entre os dois aspectos aparece com clareza.
A capacidade específica de ser dado que é própria do Espírito Santo vem
de sua condição de Amor. O dom do Espírito Santo e o amor de Deus são
relacionados em Rm 5,5. Assim pode-se pensar que, embora a ordem da
exposição de Sto. Tbmás proceda do interior da Trindade para o dom ad
extra, também a historia salutis teve uma relevância na hora de fundam entar
sua reflexão sobre a Trindade imanente. D e qualquer modo, não deixa de
suscitar problema se o dom do Espírito, e por conseguinte sua inabitação
em nós, for considerado só na ordem das “apropriações” e não for visto
com o algo próprio da terceira pessoa134. N esse caso, ficaria m uito
minimizado tudo o que se disse sobre o Espírito como dom no crente. Mas
a nós é permitido ilum inar o ensinamento do Aquinate com os dados

130. Em Ibid., I 38,2.


131. Cf. Trm. TV 20,29 (CCL 50, 200).
132. Ibid., I 38,2: “Amor habet rationem prim i doni, per quod omnia dona gratuita
donantur”. Já AG O STIN H O , Trin. XV 18,32 (507), o Espírito diz-se dom “propter di-
lectionem ”: 19,35 (512), o Espírito é dom enquanto é dado aos que por ele amam a Deus.
Cf. também 19,37 (513 bis).
133. Cf. STb I 38,2.
134. Cf. para toda essa problemática, J. PRADES, “Deus specialiter est in sanctis per
gratiam”. El mistério de la inbabitación de la Trmidad en los escritos de santo Tomás, Roma, 1993,
419-428, segundo o qual Tomás move-se no esquema das apropriações, e só alguns textos
sugerem em alguma ocasião uma ação própria.

332
O PAI, O FILHO E 0 ESPÍRITO SANTO

neotestamentários e com os da m ais antiga tradição,-que dão muito mais


apreço às relações próprias de cada um a das pessoas com o homem. Nesse
sentido, podemos interpretar a condição de dom do Espírito derramado
em nossos corações como algo “próprio” do Espírito Santo, ainda que sua
presença com porte sempre de algum m odo a do Filho e do Pai que o dão
e enviam a nós (cf. Rm 8,9-11; Jo 14,16s.23). O Espírito Santo, que não
tem, segundo a concepção clássica, “fecundidade” no seio da divindade,
toma-se fecundidade para fora135. N ão há razões de peso que nos obri­
guem a considerar essa “fecundidade”, tão central na tradição, meramente
“apropriada”. A ação de cada um a das pessoas da Trindade é inseparável da
ação das outras; o que não significa que essa ação não possa ter, e não tenha
de fato, seus traços característicos distintos em cada caso.

O Espírito Santo como dom no crente e na Igreja

Tudo isso pode levar-nos à conclusão de que a graça de Deus no


homem há de ser vista ligada de modo especial à pessoa do Espírito San­
to136. Ele é o dom mesmo de D eus, o mesmo amor pessoal, comunicado ao
homem; em virtude do Espírito, pela mediação de Cristo, temos acesso
ao Pai (cf. E f 2,18). Embora o N ovo Testamento nada diga diretamente a
respeito, pode-se considerar que o Espírito Santo está também presente já
na criação, enquanto é o transbordamento do amor de Deus para fora que
concede à criatura a participação no ser e na vida, que corresponde somen­
te a Deus. Essa participação adquire seu grau máximo na participação da
própria vida divina na graça. P or isso, no dom do Espírito à Igreja e aos
crentes no dia de Pentecostes, com um novo ato gratuito de Deus, começa
a criação nova que há de levar a criação inteira, em especial o ser humano,
à sua plenitude (cf. Rm 8,23). Se Jesus, o Filho, é imagem de Deus, se Deus
tem nele a possibilidade de sair de si assumindo como própria a realidade
criada, o Espírito Santo tem a capacidade de difondir-se sobre tudo: “envia
teu sopro e renasce a criação, e renovas a face da terra” (SI 104[103],30);
“o Espírito do Senhor enche a terra” (Sb 1,7)137. O Espírito aperfeiçoa a

135. Cf. CONGAR, El Espíritu Santo, 272.


136. Cf. LADARIA, Teologia dei pecado originaly de la grada, Madrid, 1993, 253ss;
KASPER, op. d t., 278ss.
137. Em bora nâo se mencione expressamente, podemos pensar que também o Espí­
rito Santo intervém na doação das perfeições às criaturas de que fala S. JOÃO DA CRU Z,
Cântico espiritual 5,4 (Obras completas, Salamanca, 1992, 599): “E indo-os olhando/só

333
DA “EC O N O M IA ” À TEO LO G IA ”

criação realizada com a mediação do Filho138. N o Novo Testamento, o


Espírito de Jesus infiinde-se nos crentes como Espírito de filiação em que
podemos clam ar “Abbá, Pai” (cf. Rm 8,15; G 14,6), Nesse momento des­
dobra o Espírito Santo todas as sua virtualidades. E funde-se fora de Deus
para introduzir na vida mesma de Deus os homens. Pelo Espírito, a salva­
ção, que Jesus nos trouxe, tom a-se realidade em cada um de nós. E a pri­
mazia do dom incriado que é Deus mesmo sobre todos os diversos dons e
graças que Deus nos dá13’.
N ão devemos esquecer nesse contexto que o Espírito é também dom
à Igreja, corpo de Cristo, sobre o qual o Espírito Santo repousou. Apesar
da universalidade de seus efeitos, e sem dim inuir nem minimizar o que foi
dito sobre isso, a Igreja é, de algum modo, o lugar “natural” do Espírito,
como foi a humanidade de Jesus no tem po de sua vida mortal. Deve-se
recordar a formulação de Ireneu: “Onde está a Igreja, ali está o Espírito de
Deus, e onde está o Espírito de Deus, ali está a Igreja e toda graça, pois o
Espírito é a verdade”140. O Espírito santifica constantemente a Igreja, mora
nela, a introduz na plenitude da verdade, unifica-a, dirige-a, enriquece-a
com diversos dons hierárquicos e carismáticos, e a leva à perfeição (cf.
Vaticano II, L G 4) e constitui seu princípio vital, sua alma (ibid., 7;
cf. também n. 5-8). E a garantia da fidelidade à tradição ao mesmo tempo
que a energia que a impele para a novidade do futuro141. Na doutrina da
graça e na eclesiologia desenvolvem-se com mais extensão esses pontos
que aqui podemos somente insinuar.

com sua figura/deixou-os vestidos de formosura... Deve-se pois saber que só com a figura
de seu Filho Deus olhou todas as coisas, que foi dar-lhes o ser natural, comunicando-lhes
muitas graças e dons naturais, fazendo-as acabadas e prefeitas... Olhá-las m uito boas era
fazê-las m uito boas no Verbo, seu Filho. E não somente lhes comunicou o ser e graças
naturais olhando-as... mas tam bém com só essa figura do Filho as deixou vestidas de for­
mosura, comunicando-lhes o ser sobrenatural...”
138. Cf. também BASÍLIO de Cesaréia, De Spir sane. 16,38 (376-384); G REG Ó RIO
deN issa, Quod non svnt tres dei 0A E G E R IH 1,47-48. 50)\DeSp. Soneto Ado. Mac (ib 100).
C f LADARIA, Antropologia teológica, Roma-Casale M onferrato, 1995, 64-69.
139. C f LEÃO X m , Divinum Ulud munas (DS 3.330).
140. IR IN EU de Lion, Aâv. Haer, III 24,1 (SCh 211,474): “Uni enim Ecclesia, ibi
et Spiritus Dei, et ubi Spiritus Dei, ibi Ecclesia et omnis grada. Spiritus autem veritas”;
JOAO CRISÓSTOM O, Hom. Pent. 1 4 (PG 49,459): “Se o Espírito Santo não estivesse
presente, não existiria a Igreja; se existe a Igreja, isso é um sinal aberto da presença do
Espírito”.
141. C f H IPÓ LITO , Trad. apost. prol (SCh 11,40), o Espírito ensina aos que estão
à cabeça das Igrejas; CONGAR, op. d t., 240; BAUTHASAR, Spiritus Creator, Einsiedeln,
1967, 97s.

334
0 PAI, O FILH O E O ESPÍRITO SANTO

O dom do Espírito é associado ao gozo e à fruição (cf. GI 5,22). Tam­


bém para Agostinho, o dom comporta o “uso” e também o amor, o gozo,
a felicidade142.3410 Pai e o Filho, enquanto se amam, gozam um do outro no
Espírito que é amor, e nosso gozo de Deus tem semelhança com o Espírito
Santo que é a suavidade do Pai e do Filho145.
O Espírito Santo é por isso o dom de Deus em pessoa enquanto por
ele gozamos de Deus. Já desde o N ovo Testamento aparece com essas
características. O dom do Pai e do Filho vistos em sua unidade, sobretudo
quando Jesus, o Verbo encarnado, exaltado à direita do Pai, o envia aos
apóstolos e à Igreja toda. N o Espírito, dom dos dois, manifesta-se a timão
do Pai e do Filho. Este é o ponto a partir do qual podemos considerar a
questão do Espírito como união e am or do Pai e do Filho na Trindade.

2. 0 Espírito Santo como amor do Pai e do Filbo

Essa questão é, de si, mais complicada do que a questão tratada acima,


porque é mais distante o ponto de apoio no Novo Testamento e na primei­
ra tradição da Igreja. O ponto de partida não pode ser outro que o fato de
que, segundo o N ovo Testamento, o Espírito Santo é o Espírito do Pai e
do Filho. Assim o viu claramente Agostinho, cuja influência foi decisiva no
desenvolvimento da doutrina de que agora vamos ocupar-nos.
Já encontramos repetidas vezes essa questão em diferentes momentos
de nossa exposição. A relação explícita do Espírito Santo com o amor de
Deus encontra-se, sem dúvida, claramente atestada no N ovo Testamento.
Segundo Rm 5,5, “a esperança não engana porque o am or de Deus foi
derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”. Do
amor do Espírito fala-se também em Rm 15,30144. Além disso, o Espírito
Santo se nos apresenta, em diferentes lugares, como um fator essencial da
unidade entre os cristãos, de comunhão entre si e com Deus (cf. IC or
12,3ss; 2Cor 13,13; Ef 2,18; 4,3). P o r outra parte, com o já sabemos, na
vida de Jesus, o Filho de Deus, em seu caminho histórico para o Pai, o
Espírito desempenha um papel essencial ao fazer-lhe presente a vontade

142. HILÁRIO de Poitiers, Trm. II 1 (CCL 62,38), “usus in numere”; cf. Ibid. 35
(70-71). Agostinho Trm VI 10,11 (CCL 50,242): “Dia dilectio, delectatio, felicitas et bea-
titiido... usus ab illo (Hilário) apellatus est”; cf. o contexto.
143. TOMÁS D E AQUINO, STb I 39,8.
144. “O am or do Espírito”: provavelmente o amor que o Espírito põe em nós ou o que
o mesmo Espírito nos tem; cf. J.-AJTTZM YER, Romans, New York-London, 1992,725.

335
DA “ECONOM IA" À "TEOLOGIA’

do Pai; em virtude do Espírito, Jesus oferece-se ao Pai; o mesmo Espírito


é ativo em sua ressurreição. A presença e a ação do Espírito não são, pois,
indiferentes para a realização concreta da união de Jesus com o Pai. O dom
do Espírito por parte do Pai e do Filho ressuscitado manifesta também a
unidade dos dois.
Devemos te r presentes esses dados para entender o sentido dessa
doutrina do Espírito Santo como expressão do amor e da comunhão entre
o Pai e o Filho. Embora seja verdade que não possua base explícita no
Novo 'Testamento, não faltam indícios que oferecem um fundamento e
fazem compreensível o desenvolvimento que temos a estudar. O Espírito
Santo aparece com essas características de vínculo de união entre Deus e
os homens e dos homens entre si; por isso é legítima a pergunta se isso não
responde de algum modo a seu ser pessoal também ad intra, como selo e
expressão da unidade do Pai e do Filho. Desde a experiência do dom que
a Igreja recebeu, podemos ter acesso a esse profundo aspecto da vida divi­
na intratrinitária. Devemos ter em conta que essa doutrina desenvolveu-se
sobretudo no Ocidente, mas não podemos considerá-la de todo alheia à
teologia oriental. Conheceu-a, por exemplo, G regório Palamas: “O Espí­
rito do Verbo altíssimo é como um amor inefável do Pai por esse Verbo
gerado inefavelmente. Amor que esse mesmo Verbo e Filho amado do Pai
usa a respeito do Pai”145.

O E spírito Santo como amor na tradição

Tivemos ocasião de ver como foi Agostinho o prim eiro a desenvolver


essa doutrina. M as podemos encontrar alguns pequenos precedentes na
teologia latina anterior. M ário V itorino tinha falado do Espírito: “Patris et
Filii copula”146. Em Hilário de Poitiers encontram-se algumas formula­
ções que literalmente parecem antecipar as de Agostinho, ainda que no

145. G REG Ó RIO PALAMAS, Capita pbysica 36 (PG 150,1.144-1.145). N o século


XX a mesma doutrina foi recolhida por BULGAKOV, II Paraclito, 143ss: o Pai, o Filho e
o Espírito Santo renunciam reciprocam ente a si mesmos, no am or total. O Espírito Santo
é o amor e a alegria hipostáticos. Usa também o esquema agostíniano do am ante/amado/
amor mesmo (160). O Pai é a imagem do am or sacrifical paterno, o Filho do amor sacrifical
filial, o E spírito do am or exultante (285s). O Espírito Santo é a união do Pai e do Filho
(303s); é a hipóstase do amor (346). A doutrina do Espírito Santo como amor tem sem
dúvida relação com a questão da processão do Espírito do Pai e do Filho, mas não unica­
mente. Cf. PANNENBERG, op. c it, 343, que trata de distinguir as duas questões.
146. Cf. Hirnnos I; Dl (SCh 68, 620; 650. Também Adv. Ar. IH 9 (Ibid. 466).

336
O PAI, 0 FILHO E O ESPÍRITO SANTO

conjunto de sua teologia não pareçam significar mais do que a unidade do


Pai e do Filho, m anifestada no fato de que o Espírito recebe dos dois147.
Ambrósio de M ilão refere-se ao Espírito como “individuae copula trini-
tatis”14®. Vejamos um dos texto fundamentais de Agostinho:
Por isso o Espírito Santo subsiste na mesma unidade e igualdade de substân­
cia. Pois tanto se é a unidade de ambos, ou a santidade, ou o amor, como se
é a unidade porque é o amor, e é o amor porque é a santidade, é manifesto
que não é algo diferente dos dois, aquilo pelo qual um e outro estão unidos,
aquilo pelo qual o gerado é amado por aquele que o gera e ama por sua vez
a este último; de tal maneira que existem conservando a unidade do Espírito no
vínculo da paz (Ef 4,3), não por participação nem pelo dom de alguém que
fosse superior a eles, senão pelo seu próprio149.

A união entre o Pai e o Filho não lhes vem por uma coisa alheia ou
por um princípio exterior, senão pelo dom deles mesmos; o Espírito San­
to, que tem a mesma essência divina do Pai e do Filho, é o amor em que
os dois se unem. Parece que o Espírito Santo, dom ad extra, converte-se
aqui em dom m útuo, ad intra, em comunhão. Agostinho passa do Espírito
Santo como “dom” ao amor. O maior dom de Deus é o amor, e ao mesmo
tempo o maior dom de Deus é o Espírito Santo150. Por isso Espírito e amor
devem coincidir. Assim o amor {caritas) é, junto com o dom, o nome pró­
prio do Espírito Santo151. Agostinho, como já vimos, chegou à idéia do

147. LADARIA, El Espíritu Santo en son Hilário de Poitiers, M adrid, 1977, 278ss.
148. Exp. Ps. CXVII1,18,37 (CSEL 62,441). Sobre os antecessores de Agostinho no ,
O riente, cf. L. ABRAMOWSKI, D er G eist als “Band” zwischen \foter und Sohn — ein
Theologoumenon der Eusebianer, ZNtWis 77 (1996) 126-132; segundo Abramowski, Ata-
násio teria combatido a idéia. A expressão “copula Trinitatis” encontra-se também em
Dídimo, o Cego, De Sp. Sane. 47,214 (SCh 386, 336).
149. TrinW 5,7 (CCL 50,235); também V 11,12 (219), o Espírito Santo é “ineffàbilis
quaedam patris et filii communio”. M uito inspirada em Agostinho é a fórmula do XI Con­
cílio de Toledo (DS 527): “Quia caritas sive sanctitas amborum esse m onstratur”.
150. Trin XV 19,37 (513) “... si in donis D ei nihil maius est caritate et nullum est
maius donum dei quam spiritus sanctus, quid consequentius quam u t ipse sit caritas quae
dicitur et deus et ex deo”; Ibid., 18,32 (508) “Dilectio igitur quae ex deo est et deus est
proprie spiritus sanctus est, per queem infunditur in cordibus nostris dei caritas per quam
nos tota inhabitat trinitas. Quodrca rectissime spiritus sanctus, cum sit deus, vocatur etiam
donum dei (cf. At 8,20). Quod donum proprie quid nisi caritas intelligenda est, quae perdudt
ad deum et sine qua quodlibet aliud donum dei non perducit ad deum?”.
151. Cf. Trin XV 17,29 (504); 17,31 (506s) “... “ipse dilectio est”. Cf. também V I 5,7
(236) as três pessoas caracterizadas como o que ama, o que ama ao que o ama, e o amor
mesmo. Igualmente em VIII 10,14 (291); XV 3,5; 6,10 (465; 472). A partir de Agostinho
desenvolve-se a longa tradição que chegou até nossos dias que vê no amor o nome próprio do

337
D A -ECONOMIA" À TEO LO G IA ”

Espírito Santo com o amor a partir da chamada analogia “psicológica” da


Trindade. M as também, embora em m uito menor medida, teve presente a
analogia do amor interpessoal1” . O Espírito Santo é a caridade pela qual
se amam o Pai e o Filho, porque é o dom dos dois1 155.
45132 Ao ser e demonstrar
a “communitas amborum”154 recebe com o próprio o nom e de amor, por­
que, já que é comum aos dois, é chamado pessoalmente com o nome que
designa Pai e Filho em mútua com unhão155.
Em Ricardo de São V ítor vimos mais claramente essa linha de amor
interpessoal156. O Espírito Santo, ao ser amado do Pai e do Filho, o
condilectus, é o am or em que os dois, Pai e Filho, participam, realizando
assim a perfeita união do amor. Em todos os pressupostos de Ricardo fica
claro que o Espírito Santo vem do Pai e do Filho, mas não é considerado
diretamente como o amor dos dois, é antes contemplado como o destina­
tário do am or que o Filho recebe do Pai e que, juntam ente com esse, dá
por sua vez. O ponto de vista de Ricardo é pois distinto do de Sto. Agos­
tinho, embora seja claro que o pensamento do bispo de H ipona influiu nas
intuições fundamentais do Vitorino.
Para Boaventura, o Espírito Santo é produzido por m odo de “libera­
lidade” da concórdia do Pai e do Filho. Boaventura segue de algum modo
a reflexão de Ricardo, ao indicar que o amor m útuo que se comunica é o
amor mais perfeito157. Também para ele o Espírito, amor e dom significam
a mesma realidade, embora sob aspectos diversos: “Espírito” acentua a
força que produz o amor; “amor” indica o modo de emanação do Espírito,
como “nexo” entre o Pai e o Filho; o “dom ” é a conseqüência do anterior,
porque o Espírito está feito para unir-nos158. Também aqui, como em

Espírito Santo. Assim G REG Ó RIO M A G N O , Hom. In Ev. II, 30 (P L 76,1.220) “Ipse
namque Spiritus sanctus amor est”. Cf. ANSELM O, Proslogion X X III (SC H M TlT, v.
1, 117).
152. Cf. Trin. V m 10,14.
153. Trin. XV 17,27 (513): “Q ui spiritus sanctus secundum scripturas sanctas nec
patris solitis est nen filii solius sed amborum, et ideo communem qua igitur invicem se
diligunt pater et filius insinuat caritatem ”.
154. Cf. In Job. Ev., 99,7; cf. também Ibid., 8-9 (CCL 36, 586, 587).
155. Tritt. XV 19,37 (513): “E t si caritas qua pater diligit filium e t patrem diligit filius
ineffabiliter communionem dem onstrat amborum, quid convenientius quam ut ille dicatur
caritas proprie, qui spiritus est commune ambobus ?”. Ibid. (514): “Q uia enim est commune
ambobus, id vocatuir ipse proprie quod ambo communiter”; cf. Ibid. 17,29 (507).
156. Ver o que foi dito no capítulo 9, 251-255; 265-267.
157. Com. ISent. d.. 10, a.1 q .l. Cf. CONGAR, op. d t , 116.
158. Cf. Com Sent. I d. 18, a .l, q.3 ad 4; Breviloquhim, 1 3,9: “cum proprium Spiritus
sancd esse donum, esse nexum seu caritatem amborum”

338
O PAI, O FILH O E O ESPÍRITO SANTO

Agostinho, acentua-se a relação entre a teologia e a economia. O Espírito


Santo, nexo de am or do Pai e do Filho, realiza na história da salvação a
união entre os cristãos.
Santo Tomás, como tivemos ocasião de indicar, fala dos dois nomes
do Espírito Santo: amor e dom. Já vimos como os relaciona entre si. Pro­
cedendo em sua exposição da teologia à economia, trata prim eiro do Es­
pírito Santo como amor do que como domIS9. O nome de amor pode ser
tomado “essencialmente” e “pessoalmente”. Tomado em sentido pessoal
é o nome próprio do Espírito, tomado como Verbo o é o do Filho. Usa-
se o verbo amar e equivalentes {diligere etc.) para expressar o modo de
comportar-se (habitudo) daquele que procede por amor a respeito de seu
princípio, e vice-versa. Por conseguinte entende-se por “amor” o amor
que procede160. O Espírito Santo é chamado am or enquanto procede por
essa via. Enquanto amor, o Espírito Santo é o “nexo” do Pai e do Filho,
posto que o Pai ama com um mesmo amor o Filho e a si mesmo, e o
mesmo faz o Filho. Por isso no Espírito Santo enquanto am or encontram-
se o modo de comportar-se do Pai a respeito do Filho, e o do Filho a
respeito do Pai. Segundo a origem, o Espírito Santo é o terceiro na Trin­
dade, já que procede do Pai e do Filho. Mas segundo esse modo de com-
portar-se (habitudo) a que nos referimos é o nexo que existe entre os dois,
por proceder de ambos161. Em Sto. Tomás encontramos a idéia do amor
mútuo, de tradição agostiniana, mas não faz muito uso dela162. Predomina
nele a imagem da Trindade psicológica e na processão pela via do amor,
diferente da processão do Filho pela via da inteligência163.

159. Cf. STb 1,37, “D enom ine Spiritus sancti quod est amor”; na q . 38, trata do dom.
Antes, na 36, falou da pessoa do Espírito Santo; se preocupa sobretudo com sua “processão”,
de que em seguida tratarem os.
160. Ibid., 1: “In quantum vero his vocabulis (amor, diligere) utim ur ad exprimendum
habitudinem eius rei quae procedit per modum amoris, ad suum principium et e converso;
ita quod p er amorem intelligatur am or procedens; sic Amor est nomen personae, e t diligere
vel amare est verbum notionale, sicut dicere vel generare”.
161. Ibid.: “Im portatur in Spiritu sancto, prout est amor, habitudo Patris ad Filium,
e t e converso, u t amantis ad amatum. Sed ex hoc ipso quod Pater et Fílius se mutuo amant,
oportet quod mutuus amor, qui est Spiritus sanctus, ab utroque procedat. Secundum igitur
originem, Spiritus sanctus non est medius, sed tertia in Trinitate persona. Secundum vero
praedictam habitudinem, est medius nexus duorum , ab utroque procedens”.
162. Algumas alusões, além do texto supracitado, em STb I 37, 2: o Pai e o Filho
amam-se no Espírito Santo, o “amor procedente”; 39,8.
163. Cí, STb 1 27, 2-3, onde a idéia não aparece. Tampouco em STb 1 36,2, onde se
explica p o r que o Espírito Santo procede também do Filho (senão, não se distinguiriam a
segunda e a terceira pessoas) nem no Comp. Theol. 50. Cf. mais dados sobre a questão em
CONGAR, op. d t , 116-120S.

339
DA 'E C O N O M IA ' À 'T E O L O G IA '

O MAGISTÉRIO EAREFLEXÃOTEOLÓGICA CONTEMPORÂNEA

Q uer se a c e n tu e a idéia de am or mútuo do Pai e do Filho, quer a da


processão pela v o n tad e, a idéia do Espírito Santo como amor esteve muito
presente — e a in d a continua — na teologia ocidental. O primeiro aspecto
é, com m uita diferença, o que mais se sublinha nos últim os tempos164. Faz-
se ver a correspondência, já presente na tradição, entre o amor e a entrega
mútua ad intra e o dom aos homens; o vínculo de união entre o Pai e o
Filho e o p rin c íp io de união dos homens na Igreja, corpo de Cristo. Algu­
mas dessas id éias foram recolhidas pelo recente magistério pontifício. João
Paulo II as desenvolveu especiahnente na encíclica Dominum et Vivificantem
de 18 de maio d e 1986. Vale a pena reproduzir alguns dos parágrafos mais
significativos p a ra o tema que nos ocupa:
Deus, em su a vida íntima, “é amor” (ljo 4,8.16), amor essencial comum às três
pessoas divinas. 0 Espírito Santo é amor pessoal como amor do Pai e do Filho.
Por isso “sonda até as profundezas de Deus” (ICor 2,10), como amor-dom
incriado. Pode dizer-se que no Espírito Santo a vida íntima de Deus uno e trino
faz-se inteiramente dom, intercâmbio de amor entre as pessoas divinas, e que
pelo Espírito Santo Deus “existe” como dom. O Espírito Santo é pois a expres­
são pessoal dessa doação, desse ser-amor. E pessoa-amor. E pessoa-dom...
Ao mesmo tempo... é amor e dom (incriado) do qual deriva como de uma
fonte (fins vrvus) toda dádiva às criaturas (dom criado)...165.
A luz do que Jesus disse no discurso do Cenáculo, o Espírito Santo é revelado
de uma maneira nova e mais plena. E não só o dom à pessoa (a pessoa do Mes­
sias), senão que é uma pessoa-dom..}66.
No dom feito pelo Filho completam-se a revelação e a dádiva do amor eterno: o
Espírito Santo, que com a inescrutável profundidade da divindade é uma pessoa-
dom, por obra do Filho, isto é, mediante o mistério pascal, é dado de modo novo
aos apóstolos e à Igreja, e por meio deles à humanidade e ao mundo inteiro167.

Acentua-se com clareza nessas passagens que a condição de pessoa-


amor, pessoa-dom, no seio da própria vida divina, é que possibilita e de­
termina o dom do Espírito aos homens. Do amor m útuo entre o Pai e o
Filho passa-se à doação do amor que abraça todos os homens. É claro que

164. Por exemplo, H. M Ü H LEN , op. c it; CONGAR, op. rit., 2 18ss; BALTHASAR,
Tbeologik III, l_44ss.
165. JOÃO PAULO H, Dominum et Vivificontem, 10.
166. Ibid., 22.
167. Ibid., 23.

340
O PAI, O FILHO E O ESPÍRITO SANTO

na ordem do conhecimento e da revelação, só partindo do dom dado à


Igreja e à humanidade em Pentecostes pode-se chegar à riqueza do amor
que une o Pai ao Filho.
Com os nomes pessoais de amor e dom sublinham-se duas caracte­
rísticas inseparáveis da pessoa do Espírito Santo: por uma parte, nele se
expressa a vida divina em sua m aior intimidade, o amor que constitui a vida
divina; é nesse sentido o núcleo mais profundo da vida trinitária. Por outra
parte, constitui a máxima expressão da comunicação divina em direção à
criatura, o dom do Pai e do Filho, capaz de introduzir o homem nessa inti­
midade divina que o mesmo Espírito exprime. Os dois aspectos não se con­
tradizem entre si. A comunicação para dentro é a condição de possibilidade
do “transbordamento”, do “êxtase” de Deus que sai para fora de si168. O
Espírito que no seio da Trindade leva à plenitude o Deus amor consuma
também a obra salvadora que, realizada por Cristo de uma vez para sempre
por iniciativa do Pai, é efetivada constantemente nos homens, até o mo­
mento final da história, pelo Espírito Santo169. O Espírito Santo fecha e
arredonda assim o círculo do ser de Deus como amor, uma palavra em que
se pode resumir tudo o que constitui a vida divina170.
Por tudo isso não é de estranhar que na teologia recente se acentue de
diferentes maneiras esse especial modo do Espírito Santo manifestar, en­
quanto amor recíproco do Pai e do Filho, o ser mesmo de Deus. Assim,
por exemplo, observa-se que no Espírito Santo encontra-se como “hipos-
tasiado” aquilo que chamamos a essência, a natureza divina171. “O Espírito
é etem amente ele mesmo, ao compreender seu ‘eu’ como o ‘nós’ do Pai e
do Filho, e ao ser ‘expropriado’ em seu prvprissimum"172 Significa isso que

168. C f KASPER, op. d t , 278: “O Espírito Santo expressa a essência mais íntima de
Deus, o amor que se dá a si mesmo, de tal modo que o mais íntim o seja também o mais
externo, isto é, a possibilidade e a realidade do ser de D eus fora de si. O Espírito é igual­
mente o êxtase de Deus. E Deus no puro transbordamento, Deus na superabundânria de
amor e de graça”. fflLBERATH, op. d t., 205: “Espírito Santo é o acontecimento do en­
contro amoroso, o espaço em que o Pai e o Filho se superam e os une no amor até cons­
tituir uma unidade. Nesse sentido, espírito e amor, as características da vida divina, são ao
mesmo tempo os signos espedficos do Espírito Santo”.
169. Cf. JO Ã O PAULO D, op. d t , 14.
170. Cf. BALl HASAR, op. d t , 146-148; GRESHÀKE, op. d t , 211, no Espírito
Santo faz-se pessoalmente palpável a plenitude da vida divina.
171. Cf. DURRWELL, op. d t , 146: “tudo o que a linguagem teológica chama a
essênda divina, natureza divina, encontra-se hipostasiado nele”. Cf. também 148-149.
172. Cf. BALTHASAR, Teodramática 2,235. Várias vezes nos referimos à conhedda
tese de H . Mühlen sobre o Espírito Santo como o “nós” do Pai e do Filho. Cf. nota 184
do capítulo 9.

341
DA “ECONOMIA" À “TEOLOGIA"

o Espírito Santo é só a união e o amor do Pai e do Filho, de tal maneira


que sua propriedade pessoal desapareça simplesmente na dos outros dois?
O Espírito Santo sela a união do Pai e do Filho enquanto é distinto deles,
enquanto o am or dos dois produz o "fruto” da terceira pessoa e assim se
converte na expressão do amor mesmo. N a economia da salvação, a plena
efusão do Espírito Santo sobre os homens é também o "fruto” da ida de
Jesus ao Pai e de sua plena comunhão com ele também em sua humanida­
de. O amor e a união dos dois só se realiza em um terceiro. Além do am or
mesmo entre o amante e o amado (Agostinho), o Espírito Santo sela o
amor dos dois enquanto os dois amam também um terceiro, o condilectm
(Ricardo de São Vítor)17’. Também Agostinho falava do Espírito que mos­
tra a comunhão do Pai e do Filho1 174
37 .571E também Sto. Tomás disse que o Pai
e o Filho se amam no amor que procede17’. A relação do Pai e do Filho,
que de certa maneira pode aparecer como “prévia” à expiração do Espí­
rito, não alcança sua plenitude sem esse último. Só em relação com o
Espírito Santo o Pai e o Filho são plenamente pessoas, estão unidos em
seu am or paterno e filial. A relação Pai-Filho não se entende se não é
nesse amor que tem no Espírito Santo ao mesmo tem po sua expressão
e seu fruto. Em Deus, as três pessoas são igualmente importantes, cada
uma se constitui pelas relações com as outras duas, e como já indicamos
as processões ou a ordem (taxis) intratrinitária não implicam superiori­
dade de nenhum dpo de umas pessoas sobre as outras. Nenhuma delas é
nem pode ser sem as outras duas. Se dissemos que o Pai, único princípio
sem princípio, não é sem o Filho, a mesma lógica deve levar-nos a afir­
mar que o Pai e o Filho, anteriores na taxis não podem ser sem o fruto
do amor dos dois, o Espírito Santo.

173. Sobre o Espírito Santo como fruto e expressão do am or do Pai e do Filho, cf.,
entre outros, GRESHÀKE, op. d t , 210: “Nisso mostra-se o duplo caráter do Espírito
Santo: Ele é 1) o resumo (Inbegriff') do am or mútuo e da união do Pai e do Filho, e ele é 2)
o fruto objetivo do amor e com isso, no sentido de Ricardo de São Vítor, com o ‘terceiro’,
é a garantia de seu amor. Contudo, esse duplo caráter não significa nenhuma dualidade”;
c£ também Ibid. 156; A l KEHL, Kirche-Sakrament des Geistes in KASPER (ed.), Gegenwart
des Geistes, Aspekte der Pneumatologie beute, Freiburg-Basel-W ien, 1979, 155-180, 159: o
Espírito Santo é ao mesmo tem po o pressuposto e o fruto da com unhão do Pai e do Filho.
Cf. BALTHASAR, op. c it, 130; A. G ONZALEZ, Trinidady Liberación, San Salvador, 1994,
202; GALOT, L’origine étem elle de l’E sprit Saint, Greg 78 (1997) 501-522, esp. 517. Cf.
o cap. anterior, 288-295.
174. Tritt XV 19, 37 (513): “communionem dem onstrai amborum”. Cf. a nota 154.
175. STb 1 38,2. Cf. 38,1. LEÃO XUI, Divinum iUvd (DS 3.330): “qui a mutuo Patris
Filiique amore procedens”. O Espírito Santo não é somente o am or do Pai e do Filho, mas
procede do am or de ambos.

342
O PA I, O FILHO E O ESPÍRITO SANTO

O transbordam ento do dom para fora, a união do Pai e do Filho na


intimidade da vida divina foram acentuados de maneira diversa nas tradições
teológicas do Oriente e do O cidente176. Mas não se deve considerar as duas
visões incompatíveis e alternativas. A tradição teológica oferece base para as
duas, que podem portanto ser consideradas complementares. Não se deve
pensar que as analogias a partir das realidades criadas, do homem em con­
creto, utilizadas no Ocidente, tenham por finalidade a “explicação” do mis­
tério divino. Deus se nos mostra como maior e incompreensível quanto
mais se aproxima de nós e nos dá a conhecer os mistérios de seu amor. A
afirmação e a negação deveriam combinar-se sempre em nossa aproximação
crente do mistério de Deus uno e trino. A revelação não significa que o
mistério deixe de ser mistério. Isso vale de modo especial quando se trata do
Espírito Santo, pelo certo “anonimato” que o caracteriza177.
A posição do Espírito Santo no centro do m istério divino mostra-se
paradoxalmente na falta de exclusividade dos nomes que lhe aplicamos. O
mesmo nome de Espírito Santo, já notavam os Padres, conviria igualmen­
te ao Pai e ao Filho já que ambos são “espíritos” e são “santos”178. 0 amor
é a característica de Deus segundo ljo 4,8.16. O Filho foi também dado
pelo Pai e deu-se a si mesmo. Ao ter como próprios os nomes que não lhe
convêm exclusivamente, o Espírito Santo manifesta o profundo mistério
do ser divino, precisamente por tom ar possível que os homens entrem em
comunhão com Deus179.

176. BALTHASAR, Tbeologik II, 141: “A visão oriental contem pla nm últim o
autotransbordamento do Pai mediante o Filho na amplitude e liberdade do Espírito que
tudo abarca; a visão ocidental contempla no voltar-se em resposta do Filho ao Pai (que é
uma só coisa com o saber divino do Filho de que vem completamente do Pai e a ele há de
agradecer tudo) a processão do Espírito como o encontro frutuoso do am or que dá e que
recebe, que produz esse amor — absolutamente como Espírito do am or — no comum
alento que vai para lá de si mesmo”. C f a continuação do texto, 141-142.
177. Assim J. M . GARRIGUES, ElEspiritu que dite: “Padre!”, Salamanca, 1985,63:
0 tropos da terceira pessoa é o anonimato; BULGAKOV, op. cit, 336ss., falava do Espírito
Santo como a hipóstase desconhecida.
178. Cf. HILÁRIO de Poitiers, Trin. I I 30 (CCL 62,65); DÍD IM O o Cego, De Spir.
sane. 54,237 (SCh 386,356s); BASÍLIO de Cesaréia, De Sp. Sane. 19,48 (SCh 17bis, 416);
e sobretudo AGOSTINHO, Trin. V 11,12 (CCL 50,219); TOMÁS D E AQUINO, STb
1 36,1 ad 1, entre outros muitos.
179. Cf. AGOSTINHO, Trin. V I 5,7 (235) que põe em relação Deus como amor com
o Espírito, amor do Pai e do Filho. BALTHASAR, Tbeologik III, 148: “Assim a ‘ponta mais
exterior’ da essência divina, ao mesmo tempo idêntica com o ‘centro mais interior’, e quando
o Espírito for dado como dom à criatura, nesse dom está toda a essência da divindade e com
isso a ‘divinização’ da criatura”. Também ibid., 214, o dom do Espírito à criatura não «n«!«
nosso ser de criatura, e portanto não elimina o diálogo do homem com Deus.

343
DA “ECONOM IA* À TEO LOG IA"

3. A processão do Espírito Santo

Tratamos de desenvolver as linhas fundamentais da teologia do Espí­


rito Santo sem centrá-la exclusivamente na questão de sua processão,
embora tendo de fazer freqüentes referências a ela, dada a proximidade
desse tema com os que acabamos de desenvolver. Abordamos agora dire­
tam ente esse problem a do ponto de vista doutrinal, ainda não totalmente
clarificado nas relações entre O riente e Ocidente. N os últimos anos, pro­
duziram-se declarações da parte católica que, cabe esperar, possam ajudar
para um entendim ento180. Mas antes de filar diretamente do problema
controvertido do Filioque, devemos tratar das diferentes aproximações que
na história foram dadas a esse problema, antes de se converter em uma
questão explicitamente controvertida entre as diversas confissões cristãs.
E evidente que não podemos pensar que nos prim eiros tempos da
Igreja a questão tenha sido colocada nos termos que depois foram propos­
tos. Precisamente por isso a lembrança de alguns dados neotestamentários
e da antiga tradição podem ajudar a ver a questão com maiores perspecti­
vas. O que vamos dizer aqui ajudará a completar o que vimos expondo
sobre a pessoa do Espírito.

A processão do Espírito no Oriente e no Ocidente

Antes de tudo é inevitável um a referência a jo 15,26, texto de que se


valeu toda a tradição: o Espírito Santo procede do Pai, irotpà tou iraTpó«;
êiciropeúeTai; mas Jesus também participa em sua missão (Jo 16,7) e o
Espírito recebe dele, do que é seu Qo 16,14s). Em IC or 2,13, fala-se de tò
nveupa tò 8K tou 6sou Não repetim os o que já conhecemos sobre o
envio do Espírito por parte de Jesus ressuscitado, nem sobre o fato de que

180. JOÃO PAULO II, em sua hom ilia na solenidade de S. P edro e S. Paulo (29, jun.,
199S), ante o patriarca ecumênico de Constantinopla, expressou o desejo de que se expli­
que “a doutrina tradicional do Filioque presente na versão litúrgica do Credo latino, de
modo que seja esclarecida a plena harmonia com o que o Concílio ecumênico de Cons­
tantinopla, em 381, confessa em seu símbolo: o Pai como fonte de toda Trindade, única
origem do Filho e do Espírito Santo” (Cf. UOsservatore Romano, 30 jum/1 jul., 1995). O
esclarecimento pedido pelo papa teve lugar em uma Declaração do Pontifício Conselho
para a Promoção da Unidade dos Cristãos publicada no Osservatore Romano de 13 de setem­
bro de 1995. Os dados que damos em seguida sobre a história do problem a podem-ser
completados com A. PAATFORD, Le Filioque dans la conscience de lEglise avant Ephèse,
RevTb 97 (1997) 318-354.

344
O PAI, O FILHO E O ESPIRITO SANTO

segundo o Novo Testamento o Espírito é não só “de Deus”, mas também


“do Filho” ou “de Jesus”.
Também já tivemos ocasião de estudar alguns elementos da antiga tradi­
ção. Considera-se em geral que o Espírito vem do Pai, o que é, em último
termo, a garantia de sua divindade, mas a partir do feto incontrovertído da
doação do Espírito por parte do Filho passa-se também a contemplar uma
certa função da segunda pessoa em sua mesma processão.
Segundo Orígenes, o Espírito, embora sendo claramente divino, e
portanto essencialmente diverso das criaturas, é o primeiro dos seres que
vêm à existência por ação do Pai mediante o Filho, segundo a interpreta­
ção universal que o Alexandrino fez de Jo 1,3.
Tertuliano usou a fórmula “a Patre per Filium”181, mas pode ser que
se refira só à doação do Espírito Santo ad extra. O Espírito é o terceiro “a
Deo et (ex) Filio”1*2. Tertuliano fez essa afirmação no contexto das compa­
rações trinitárias que já conhecemos, que mostram um esquema linear:
fonte, rio, canal; raiz, tronco, ramo... Observa também que o Espírito Santo
toma o de Jesus (cf. Jo 16,14) como Jesus do Pai183.
Atanásio parece aplicar um esquema linear parecido: o Pai é luz, o
Filho, resplendor, o Espírito Santo nos ilumina; o Pai é fonte, o Filho, rio,
bebemos do Espírito Santo184. A preocupação de Atanásio nesse contexto
é fazer ver como a participação imediata na vida divina acontece no Espí­
rito Santo. Outros textos que fezem referência à vida interna de Deus são
mais vagos: tudo o que o Espírito tem, tem-no do Logos, irotpà tou Xotou185;
mas também cita em outra ocasião Jo 15,26, o Espírito Santo procede do
Pai, embora enviado e dado pelo Verbo, T iapà toü Xotou186. Conhecemos
o paralelismo das relações Pai-Filho/Filho-Espírito que Atanásio esta­
belece187. Mas é óbvio que não podemos buscar resposta clara em um pro­
blem a que naquele tem po não estava colocado.

181. Ado. Prax., 4,1 (SCARPAT, 150).


182. Ibid., 8,7 (160).
183. Ibid., 25,1 (218): “DemeosumetQo 16,14), iriquit, sicut ipse de Patre. Ita connexus
P atris in Filio e t Filii in Paraclito tres efficit cohaerentes, alteram ex altero”.
184. Cf. Serap., 1 19 (PG 26, 573). Cf. para o que segue, S IM O N E lT l, La crisi
ariana nel IV secolo, Roma, 1975,494-500.
185. C. Arian. m 24 (PG 26, 376).
186. Serap. 1 20 (580). C f m 5 (632) as coisas recebem do Espírito, para tou logpu, a
força para serem.
187. Serap. 1 25 (588s): certos indícios da relação intratrinitária Filho-E spírito em
Atanásio, foram recolhidas p o r CONGAR, op. d t , 469. D ÍD IM O o Cego, De Sp. Sane. 34,
153 (286). O Espírito é “ex Patre et ex me (Jesus)”; mas não dispomos do original grego.

345
D A “ECONOM IA" À -TEOLOGIA"

Também não são claras as indicações de Basüio. Encontram -se nele


as idéias de Atanásio sobre a proximidade e a imediatez do Espírito em
nós, que nos faz participantes da vida divina188. A relação entre Jesus e o
E spírito está expressa sobretudo neste texto: “Chama-se Espírito de Cristo
porque está intimamente unido a ele p o r natureza... como Paráclito mani­
festa a bondade do Paráclito que o enviou, e em sua própria dignidade põe
em relevo a dignidade daquele de que saiu”189. Se em um prim eiro mo­
m ento esse texto refere-se claramente à missão salvíBca, o significado de
“sair” não é tão evidente; porém a intervenção do Filho podia limitar-se à
economia. Sabemos já que devemos a G regório Nazianzeno o term o téc­
nico “processão”, aplicado ao Espírito, mas a pessoa de quem procede é o
Pai. A “processão” perm ite determ inar a propriedade do Espírito em rela­
ção com as outras pessoas divinas: o Espírito Santo não é ingênito, nem
tampouco gerado190. Provêm do Pai as outras duas pessoas, não para esta­
rem confundidas, senão unidas191.
Gregório Nazianzeno tem textos em que se insinua a intervenção do
Filho na processão do Espírito Santo, que tem no Pai seu princípio. Uma
e a mesma é a pessoa, a do Pai, que gera o Filho e da qual também procede
o Espírito192; parece assim que a geração do Filho e a processão do Espírito
se põem em relação. G regório usa também a metáfora da lâmpada que
acende uma outra, e por meio dela um a terceira193. Em outras passagens
usam-se os conhecidos textos do Evangelho de João: o Espírito Santo vem
do Pai e recebe do Filho (cf. Jo 16,26, e também Rm 8,9), sem que o
problema da relação interna fique excluído:
No que é causado vemos imediatamente uma nova distinção entre o que vem
imediatamente do primeiro e o que vem pela mediação do que vem imedia­
tamente do primeiro... A posição intermédia do Filho reserva para ele a pro­
priedade de ser unigénito, e o Espírito Santo não está privado de sua relação
natural com o Pai194.

Diríamos que G regório fala em geral de uma processão do Espírito a


Patre per Filium, mas sem precisões exatas. A ordem (taxis) das pessoas não

188. De Sp. soneto 26,63-64 (SCh 17bis, 472-476).


189. Ibid., 18,46 (410): o Espírito Santo une-se ao Pai através do Filho.
190. Or. 31, 8 (SCh 250,290); ibid., 31,9 (292): ao Espírito Santo nada falta, mas há
diferença a respeito do Filho na relação.
191. Or. 42,15 (SCh 384,82).
192. Cf. Aà Graeco ex comum. nationibus (JAEGER, m , 1, 25).
193. Cf. De Sp. soneto adv. Mac. (JAEGER, III 1,93). C f a nota 74 do cap. 8.
194. Quod non sunt tres dii (JAEGER, DI 1,56).

346
O PAI, 0 FILHO E O ESPÍRITO SANTO

implica diferença cronológica alguma195. O Espírito procede do Pai, a in­


tervenção do Filho não se exclui, mas permanece em certo âm bito de in-
determinação. O que sobretudo importa é a divindade do Espírito, assegu­
rada pela relação com o Pai, e não tanto o problem a estrito da “processão”,
que nesses tempos ainda não era objeto de discussão.
Em Cirilo de Alexandria aparece em algumas passagens a idéia do
Espírito como próprio do Filho, que é dele e que dele recebe. Algumas
dessas afirmações devem-se à oposição a N estório. Era preciso acentuar
que o Espírito Santo era próprio de Jesus enquanto encarnado, para afir­
mar a unidade da pessoa de Jesus196. Da economia parece que se passa à
Trindade imanente: o Espírito é da essência do Filho197; é do Pai e do
Filho, próprio do Filho198, e inclusive “dele”199, mas só a respeito do Pai
usa-se o termo èKirópeutm, que significa a relação ao princípio sem prin­
cípio; entretanto o verbo iTpoiévai, e outros semelhantes, mais vagos, ex­
pressam também a relação para com o Filho200. C irilo foi atacado por
Tèodoreto de Ciro, que o acusava de dizer que o Espírito tem sua existên­
cia do Filho ou pelo Filho, quando Jesus diz que procede do Pai. Mas
C irilo não mudou de parecer, e ainda depois de ser combatido continuou
dizendo: “de ambos”. Evidentemente não se trata da teologia que em seguida
veremos elaborada por Agostinho, mas de fazer ver que o Espírito Santo
está unido à essência divina e é Deus como o Pai e o Filho. Não é criatura
porque é próprio do Filho. Parece afirmar-se uma relação com o Filho na
processão do Espírito, mas com um certo vagar. A fonte última de que pro­
vém o Espírito é o Pai. Máximo Confessor observa que o Espírito Santo, por
sua natureza, tem sua origem no Pai por meio do Filho gerado201.

195. Contra Em. 181 (JA EG ER1689): “Como o Filho está unido ao Pai e recebe sua
origem dele, sem ser posterior a ele... assim também o Espírito Santo a recebe, p o r sua vez,
do F ilh o , pois esse é considerado anterior à hipóstase do Espírito Santo, som ente em re­
lação à causalidade, sem que nessa vida etem a haja lugar para intervalos tem porais”; GRE­
GO R IO di Nissa, Teologia trimtaria (Tradução e introdução de C. M O RESCHINI), Milão,
1994, 189s.
196. Ado. Nest. IV 1 (PG 76,173) cf. CONGAR, op. d t , 479ss, também para o que
segue.
197. Cf. Tbesattrus (PG 75, 585; 608) o Espírito é da mesma ousta do Filho, realiza a
plenitude da santa Tríade.
198. h loel. 35 (PG 71, 377).
199. “Ex autou”; De S. Trin. Dial. 7 (PG 75, 1.093).
200. Assim, por exemplo, Injob. ev 2 (PG 71,212); Tbesaurus, PG 75,585; <508; 612);
Ado. Nest. IV 1 (PG 76, 173).
201. Cf. Quaestíones ad Tbalassium, 63 (PG 90, 672).

347
DA “ECONOM IA" A “TEOLOGIA"

Devemos ver também algumas formulações de João Damasceno (mor­


to em 749), antes de passar aos ocidentais. Sua preocupação principal é
sublinhar a unidade divina, da qual passa à “monarquia” de Deus Pai. £ ele
o Pai do Filho unigénito e proboleus do Espírito Santo. Este não vem por
geração, mas tem outro modo de vir ao ser, ou de subsistir (rpóitos rq<;
vjrápfjecü«;). O Espírito vem só do Pai, só ele pode ser chámado “causa” do
Espírito, mas é o Espírito do Filho, não porque saia dele, mas porque vem
por ele (St* avrou) do Pai. O Pai produz pelo Verbo o Espírito que o ma­
nifesta. E chamado Espírito do Filho não como (procedendo) dele, senão
procedendo do Pai por ele202. Também o Espírito repousa no Verbo e o
acompanha, participa de sua atividade tom ando-o manifesto. E a imagem
do Verbo. Certam ente não se pode dizer que João Damasceno ensine que
o Espírito procede do Pai e do Filho. Mas a processão do Espírito está de
algum modo referida à geração do Filho. N ão podemos determinar exata­
m ente a diferença entre uma e outra: “Pela fé recebemos que existe dife­
rença entre geração e ekporeusis ou origem do Espírito Santo. A fé não nos
diz em que consiste essa diferença”203. João Damasceno vê a processão
im anente e o dom do Espírito em íntima relação.
Em conjunto, a fórmula a Paire per Filium, sem querer dar ao último
membro uma significação especialmente precisa, pode ser considerada uma
linha presente na teologia dos Padres gregos. Devemos acentuar sobretudo
que a ekporeusis propriamente dita se afirma exclusivamente do Pai, já que só
ele é a causa e a fonte da THndade. Uma intervenção do Filho não está exclu­
ída, mais ainda: é afirmada por muitos, mas em termos pouco precisos.
A teologia ocidental seguiu outros caminhos, sobretudo a partir de
Sto. Agostinho. Mas antes temos de notar que a fórmula a Patre per Filium,
que vimos em Tèrtuliano, foi recolhida por H ilário como algo adquirido,
em bora devido ao escasso desenvolvim ento de sua pneum atologia
“im anente” não possamos perceber exatamente o sentido que lhe dava:
talvez haja nele influências da linha de Orígenes, que já conhecemos204.
Ambrósio foi provavelmente o primeiro a afirmar que o Espírito procede

202. Cf. Defide ortbodoxa, 112 (PG 94,849); cf. 1 8 (832s) o Espírito não vem do (ek)
Filho, mas é chamado Espírito do Filho. Cf. J. GREGOIRE, La relation étemelle de l’E sprit
an Fils d’après les écrits de Jean de Damas, Revue d'Histoire Ecclésiastique 64 (1969) 713-755.
203. De fide ortbod. 1 8 (824); cf. CONGAR, op. rit., 484
204. Cf. LAD ARIA, El Esptrim Santa en S. Hilario de Poitiers, Madrid, 1977, 302ss.
HILÁRIO também vê um paralelismo entre o proceder do Pai e o receber do Filho, segun­
do Jo 16,14.15 (7h». V m 20; CCL 62,33 ls). O Espírito não é gerado, mas também não é
criado.

348
O PAI, O FILH O E O ESPÍRITO SANTO

do Pai e do Filho20S, embora, devido ao contexto, seja difícil precisar até


que ponto refere-se à processão intratrinitária, ou se, antes, trata da doa­
ção do Espírito aos homens.
A corrente de pensamento que deriva de Agostinho, com os antece­
dentes que indicamos, e que vê o Espírito como dom do Pai e do Filho, e
ao mesmo tem po como amor m útuo e fruto desse am or recíproco, leva a
teologia ocidental, a começar pelo próprio Agostinho, a afirmar a processão
a partir das duas primeiras pessoas. O Pai e o Filho constituem um prin­
cípio único do Espírito Santo, que assim procede dos dois206. Agostinho,
porém, teve o cuidado de observar que, embora o Espírito Santo proceda
dos dois, vem principatiter do Pai, porque, se procede também do Filho, é
porque o Pai deu ao Filho essa possibilidade. Tudo o que o Filho é e tem,
e portanto também que dele proceda o Espírito Santo, lhe foi dado pelo
Pai na geração207
D o fato de que o Espírito Santo seja considerado am or e dom do Pai
e do Filho, deve-se concluir que também procede da segunda pessoa,
embora o Pai, de quem o Filho recebe tudo, continue sendo a fonte única
da Trindade. Devemos notar o marcado caráter antiariano do Filioque ao
associar o Pai e o Filho na processão do Espírito: assim fica acentuada mais
fortemente a plena comunhão de essência dos dois, a consubstancialidade
do Filho com o Pai. O Ocidente medieval seguirá com esses esquemas,
depois de ter sido o Filioque, como veremos, afirmado em numerosos sínodos
e Concílios regionais. Anselmo dedica uma obra à processão do Espírito
Santo em que defende com vigor o Filioque contra os gregos208. Também

205. De Sp. Sane. 1 11. 120 (CSEL, 79, 67).


206. Cf. Centra Maxim. II 14,1 (PL 42,769), além dos textos de Trin. que já conhe­
cemos.
207. Trin XV 17,29 (CCL 50, 503s): “...nec de quo genitum est verbum et de quo
procedit principaliter spiritus sanctus, nisi deus pater. Ideo autem addidi principaliter, quia
et de filio spiritus sanctus procedere reperietur. Sed hoc quoque illi pater dedit non iam
existenti et nondum habend, sed quidquid unigénito verbo dedit, gignendo dedit. Sic ergo
eum genuit ut etíam de illo donum commune procederet, et spiritus sanctus spiritus esset
amborum”; XV 26,47 (529); “Filius autem de patre natus est, et spiritus sanctus de patre
principaliter, et ipso sine ullo temporis intervallo dante, communiter de utroque procedit”;
cf. também In Job. ev. 99,8 (CCL 36,587).
208. Cf. De processione Spiritus sancri 1; 2; 4; 12; 14; 16, in Opera, edição de F. S.
SCHMIRR, v. 2, 185; 190; 193; 209s; 212-215; 217, entre outras passagens; só pode ser
o Espírito Santo se procede dele. Da economia se passa à Trindade imanente. Também o
“principaliter” agostiniano foi recolhido por ANSELMO, Ibid., 14 (213). Cf. GILBERT, La
confession de foi dans le De processione Spiritus sancti de samt Anselm, in W . AA., Latuatità
filosófica di Anselmo d'Aosta, Roma, 1990,229-262; S. BONANNI, II “Filioque” tra dailettica
e dialogo. Anselmo e Abelardo: posizioni e confronto, Latcranwn 64 (1998) 49-79.

349
DA 'E C O N O M IA ' À “TEOLOGIA"

Ricardo de São V ítor argúi a favor da processão dos dois devido ao fato da
com unhão de poder de todas as pessoas209. A processão do Espírito faz-se
pela comunhão de amor (o Espírito é o condilectus) como na do Filho entra
a comunhão da honra.
Santo Tomás observa a relação entre o nome do Espírito Santo e o
modo de sua processão. Como Agostinho e os autores que o precederam,
nota que o nom e próprio do Espírito Santo de si é comum: isso se deve a
que procede pela via do amor. A conveniência do nome vem portanto, em
prim eiro lugar, de ser o Espírito dos dois, do Pai e do Filho. O nome é
tam bém conveniente porque o amor, como o espírito, é impulso, moção:
isso também é próprio do Espírito Santo. Por isso à pessoa que procede
por am or convém o nom e de “espírito”. Também lhe convém o adjetivo
“santo”; atribui-se a santidade àquelas coisas que são ordenadas para Deus.
Se essa pessoa procede por meio do amor, pelo qual Deus é amado, “de
modo conveniente é chamado Espírito Santo210.
Porém, como foi notado, o amor do Pai e do Filho em Sto. lòm ás
desempenha um papel reduzido na processão do Espírito Santo do Pai e
do Filho. A razão fundamental pela qual se deve afirmar a intervenção do
Filho nessa processão são as relações opostas:
É necessário que o Espírito Santo proceda do Filho. Pois, se não viesse dele,
não se poderia distinguir pessoalmente dele de nenhum modo... As pessoas só
se distinguem entre si pelas relações. Ora, as relações só podem distinguir as
pessoas enquanto opostas... O Pai tem duas relações, das quais uma se refere
ao Filho, outra ao Espírito Santo, mas por não serem opostas não constituem
duas pessoas. Portanto, se no Filho e no Espírito Santo não se pudesse en­
contrar mais que duas relações com as quais cada um deles se referisse ao Pai,
essas relações não seriam opostas entre si... Donde se seguiria que a pessoa do
Filho e do Espírito Santo seria uma só211.

A doutrina da processão do Espírito Santo por via do am or leva à


mesma conclusão: o am or procede do verbo, porque não podemos amar
uma coisa senão enquanto a apreendemos pela concepção da mente212.
Os próprios gregos, diz St». Tomás, entendem que a processão do
Espírito Santo tem uma certa ordenação ao Filho, já que dizem que o

209. Cf. Trin V 8 (SCh 63, 318ss).


210. Cf. STb I 36,1.
211. STb I 36,2
212. Ibid.

350
0 PAI, O FILH O E 0 ESPÍRITO SANTO

Espírito Santo é também Espírito do Filho, o que “procede a Patre per


Filium”. E acrescenta uma observação interessante, que revela os mal­
entendidos terminológicos que podem surgir em tom o dessa questão: nota­
mos que muitos Padres gregos, embora reconheçam uma certa intervenção
do Filho na processão do Espírito, não se referem a ela com o termo ekporeusis.
Reservam esse termo para a procedência do Pai, porque somente ele é o
princípio original e a primeira fonte do Espírito. Mas Sto. Tomás nota que
em latim o verbo procedere é usado para designar qualquer origem; por essa
razão podemos concluir que o Espírito Santo procede do Filho213, embora
somente no Pai esteja a fonte originária da divindade.
A fórmula da processão do Espírito Santo “a Patre per Filium” é acei­
ta também por Tomás. Sua explicação é, no fondo, agostiniana, baseada no
principaliter que já conhecemos: o Filho recebeu do Pai que dele também
proceda o Espírito Santo. Assim o Espírito procede do Pai por uma parte,
imediatamente, porque o Pai é o princípio imediato, mas por outra par­
te procede dele mediatamente, enquanto procede também do Filho que
recebeu do Pai ser princípio do Espírito214.
O Pai e o Filho são um só princípio do Espírito Santo, porque em sua
condição comum de princípio do Espírito não se opõem relativamente.
Tòmás fonda-se já no princípio segundo o qual em Deus há unidade onde
não há oposição de relações, que formulará, dois séculos depois, o Concí­
lio de Florença215. E uma propriedade que pertence a dois sujeitos, como
também aos dois pertence a mesma natureza. Mas, se se considera os su­
jeitos da expiração, é claro que se trata de dois, pois procede deles enquan­
to amor unidvo dos dois216.
O breve resumo de alguns representantes das tradições oriental e
ocidental sobre essa questão fez-nos ver as diferenças de aproximação ao
tema, e igualmente os pontos de contato: o reconhecimento do Pai como
fonte última da divindade, uma presença do Filho na processão do Espírito
Santo, expressa em termos vagos no Oriente, às vezes com a formulação
genérica “do Pai mediante o Filho”, e mais estritos no Ocidente, onde
desde Sto. Agostinho fala-se na processão do Espírito “do Pai e do Filho”
como de um só princípio. N o Ocidente, o dado “econômico” do Espírito,
dom do Pai e do Filho, passou ao dado imanente da processão dos dois; a

213. Cf. Ibid.


214. Cf. STb I 36,3.
215. STb I 36, 4: “Pater e t Filius in omnia «mum sunt, in quibus non distinguitur
inter eos relationis oppositio”. C f. DS 1.330.
216. Ibid., ad 1: “Procedit ab eis ut am or unitivus duorum”.

351
DA "ECONOM IA" À "TEOLOGIA"

teologia oriental não deu esse passo, ao menos com igual clareza. Teve
mais em conta, ao contrário, que o Espírito vem sobre Jesus, o Filho en­
carnado. A concepção teológica ocidental levou à introdução do Filioque
no credo, e às discussões que em tom o desse fato se suscitaram. A esse
problem a vamos dedicar agora nossa atenção.

O F i l i o q u e nos símbolos e no magistério

A doutrina agostiniana da processão do Espírito Santo do Pai e do


Filho já encontra eco no símbolo Quicumque, surgido provavelmente na
G ália m eridional entre 430 e 450, e que gozou de grande autoridade tanto
no O riente como no O cidente. Encontramos nele a fórmula: “Spiritus
sanctus a P atre et Filio, non factus, nec creatus, nec genitus, sed procedens”
(DS 75). Leão Magno ensina a mesma doutrina: o Espírito Santo procede
dos dois (ano 447; DS 284). M as ainda a “fides Pelagii papae” (Pelágio I,
ano 557) afirm a que o Espírito Santo “ex patre intem poraliter procedens,
Patris est Fillique Spiritus” (DS 441).
O Filioque encontra-se já no credo de Victrício de Rouen, discípulo de
Ambrósio, do final do século IV217, e em diferentes credos espanhóis do
século V218. N o terceiro Concílio de Toledo (ano de 589), na profissão de fé
católica de Ricaredo (antes ariano), lê-se: “Igualmente o Espírito Santo deve
ser confessado por nós e deve-se afirmar que procede do Pai e do Filho e que
é de uma só substância com o Pai e o Filho” (DS 470). A afirmação, clara-
mente antiariana, busca, antes de tudo, afirmar a consubstandalidade do Pai
e do Filho, e a do Espírito Santo com os dois. E o Concílio IV de Toledo,
de 633, afirma uma vez mais que o Espírito Santo não é criado nem gerado,
senão procedente do Pai e do Filho (cf. DS 490)219.
O papa M artinho I, em uma carta sinodal (Sínodo de Latrão, 649),
afirmou que o Espírito Santo procede também do Filho. N o O riente, al­
guns se inquietaram. Máximo Confessor responde a algumas dessas preo­
cupações, observando que os latinos mostram a processão do Espírito Santo
por meio do Filho. Máximo distingue entre o ÈKiropeúecrOoa do irpoiévai.

217. Cf. PL 20, 246. Cf. GARRIGUES, op. rit., 1985, 91ss.
218. C f. J. N .D. KELLY, Primitivos endos cristianos, Salamanca, 1980,426-428, entre
outros o concílio de Toledo I do ano 400, mas com acréscimos à formula de 447.
219. Cf, também os símbolos dos Concílios de Toledo V I, IX e XVI (DS 490; 527,
569-70). Interessantes as formulações do último, “ex Patris Filliique unione procedit”, “a
Patre Filioque”.

352
O PAI, O FILHO E O ESPÍRITO SANTO

Os latinos não fizeram do Filho a “causa” do Espírito Santo, mas afiima-


ram a processão (proemai) por meio dele, e assim mostraram a identidade
da essência. D istingue-se pois a ekporeusis, que é só a partir do Pai — o
sair da primeira fonte ou causa inicial — , do procedem, que não implica essa
precisão220. 0 problem a parece não ter tido m aiores conseqüências naque­
le momento. Também na Inglaterra um sínodo, em 680, em Hartfield
professa: “Spiritum Sanctum procedentem ex Patre et Filio inenarrabiliter”’
Aceita-se o que foi dito pelo papa M artinho I.
Igualmente na França, no Sínodo de Gentilly, em 767, afirma-se que
o Espírito Santo procede do Filho da mesma maneira que procede do Pai
Alcuíno de York insiste em favor do Filioque perante Carlos Magno- esse
protestou ante o papa porque o Concílio de N icéia de 787 aceitou a con­
fissão de fé do patriarca Tarásio, que professa que o Espírito não procede
do Pai e do Filho, de acordo com a fé do símbolo niceno (!), senão do Pai
pelo Filho221. 0 papa Adriano I defendeu os orientais. O Concílio de Frank­
furt, em 794, devia condenar os orientais, mas Leão m , sucessor de Adriano
defendeu de novo o H Concílio de Nicéia. O papa aceita a doutrina do
Filioque, mas não quer introduzi-la no credo. Faz gravar duas placas, na
confissão de S. Pedro, com o texto em latim e em grego, sem o acréscimo
Fódo não acusou Roma dim am em e pelo nem
para isso, pois em Roma não se havia introduzido no credo. Somente quando
H enrique H foi coroado imperador em 1014 introduziu-se em Roma o
credo na missa (que até então não se recitava), e se o introduz com o acrés­
cimo já habitual no Ocidente. Entretanto, Fócio, que tinha falecido em
comunhão com Roma depois de ter sido excomungado e deposto, tinha
escrito desde 867 contra o Filioque latino, e formulou a tese da processão
do Espírito Santo só do Pai, formulação mais radical do que as dadas até
então. Insiste na monarquia do Pai, dele vêm tanto o Filho como o Espí­
rito Santo, de tal maneira que se elimina toda possibilidade de intervenção
do Filho na processão do Espírito Santo, o que não fora feito até então. A
intervenção do Filho na missão do Espírito Santo na economia salvífica
está assim completamente privada de toda possível correspondência intra-

220. Mais dados ero GARRIGUES, op. cit., 105ss. Vimos que essas distinções ter­
minológicas já se achavam também em Cirilo de Alexandria.
221. Cf. GARIJO GUEMBE, Filioque, em PIKAZA; SILANES, Diccionario del Dm
cristiano, Salamanca, 1992, 545-554, 547. CONGAR, op. tit., 496: “Tinha-se introduzido
o Filioque no símbolo na última década do século VI, e se acreditava de boa-fé que provinha
de Nicéia-Constantinopla, de maneira que muito tempo antes do fogoso H um berto, em
1054, os Ldbri carolini, por volta de 790, puderam acusar os gregos de tê-lo suprim ido do
símbolo í”. Cf. também Ibid., 496 ss., para o que segue.

353
DA “EC O N O M IA " À " T E O L O G IA ”

trin itária. A te o lo g ia de G regório Palamas parece excluir o Filho da


processão “h ip o stá tic a ” do Espírito Santo, m as lhe concede em troca um
lugar na m a n ifestação “energética” econômica. A graça dada pelo Filho é
incriada, m as n ã o é o E spírito Santo mesmo, e sim energia incriada, dom
divinizador inseç>arável do Espírito Santo222.
C o n h e c e m o s já a posição de Sto. Tomás, que morreu precisamente
quando se dirigia, a Lião para participar dos trabalhos do segundo Concílio
daquela cidade e m 1274: o concílio tinha sido convocado para restabelecer
a união com o s gregos. N o salão leu-se a profissão de fé de M iguel
Paleólogo: “C re m o s tam bém no Espírito Santo, Deus verdadeiro, pleno e
perfeito, que p ro c e d e do Pai e do Filho, igual e consubstanciai...” (DS
853). O Pai e o F ilh o são um só princípio do Espírito Santo (cf. DS 850).
A união desejad a não se realizou.
O C o n cílio de Florença (1439-1445) voltou à questão. Alguns dos
representantes gregos foram muito críticos da posição latina, qualificada
de sim plesm ente herética. A lembrança da posição mediadora de Máximo
Confessor, que já conhecemos, pôde desbloquear a discussão. N ão se po­
dia pensar que o s santos Padres latinos e gregos tivessem podido contra­
dizer-se entre s i.
A Ata da T Jnião de Florença foi subscrita pelo imperador e 39 orien­
tais. N ão a assinou o principal orador oriental, Marcos Eugênico. Infeliz-
m ente tam pouco nessa ocasião a união pôde realizar-se. No Concílio de
Florença entendeu-se o “a Patre per Filium” no sentido do Filioque, mas
em com pensação faltou o reconhecimento oposto, isto é, de que também
o Filioque poderia ser o equivalente de “a P atre per Filium”. A diversidade
de pontos de v ista ficou reduzida assim à fórmula ocidental:
Definimos... que o Espírito Santo procede etemamente do Pai e do Filho, e
do Pai juntamente e do Filho tem sua essência e seu ser subsistente, e de um
e do outro procede etemamente como um só princípio e por uma única
expiração. Igualmente dedaramos que o que os santos doutores e padres di­
zem, a saber, que o Espírito Santo procede do Pai pelo Filho, tende a essa
inteligência, a expressar que também o Filho é, segundo os gregos, causa,
segundo os latinos, princípio da subsistência do Espírito Santo, como tam­
bém o Pai. E como tudo o que é do Pai, o Pai mesmo o deu ao seu Filho
unigénito ao gerá-lo — exceto ser Pai —, o mesmo preceder o Filho ao Es­
pírito Santo o Filho o tem etemamente também do mesmo Pai, de quem é

222. Cf. CONGAR, op. c it, 504: GARIJO GUEM BE, op. d t , 549s.

354
0 PAI, O FILH O E O ESPÍRITO SANTO

também etemamente gerado. Além disso definimos que a adição da palavra


Filioque foi lícita e razoavelmente posta no símbolo, em graça de declarar a
verdade e por necessidade então urgente (DS 1.300-1.302).

A linha do principaliter de Agostinho é facilmente reconhecível em


toda a argumentação. Parece estranho que se tenha dito que os gregos
chamam o Filho tam bém “causa” do Espírito Santo. Antes, reservam essa
expressão ao Pai, segundo alguns textos que tivemos ocasião de considerar.

A QUESTÃO NA ATUALIDADE

Embora o problem a não conheça na atualidade a virulência de outros


momentos, não podemos considerar que esteja de todo resolvido. H á re­
presentantes da ortodoxia que opõem grandes dificuldades para aceitar a
concepção ocidental, mas outros não consideram o Filioque por si só um
motivo que justifique a separação223. Bulgakov pensava que o Filioque não
significava uma divergência dogmática entre as Igrejas do O riente e do
Ocidente; se não se observam diferenças notáveis na vida das respectivas
Igrejas, é sinal de que não há também na fé224. Outros teólogos ortodoxos
insistem na simultaneidade da geração do Filho e da processão do Espírito
e querem antes ver uma mútua relação entre elas, sem negar uma interven­
ção do Filho eterno na processão do Espírito Santo, que é o Espírito do
Pai e do Filho225.

223. Cf. as teses de Bolotov, no final do século XIX, em CONGAR, op. d t., 627;
parece significativa a tese n. 3: “A opinião segundo a qual a expressão dia tou Hyiou nunca
teria contido outra coisa além de uma missão temporal do Espírito, obriga a violentar a
interpretação de alguns textos dos Padres”.
224. Cf. IlParaclitOy 208; 231. Ver p. 145: "... o Filho, na humilhação sacrifidal de si
mesmo, recebe também simultaneamente o Espírito, que procede do Pai sobre ele, que
sobre ele repousa e passa por meio dele, como redproddade, resposta, anelo do am or”
225. Assim BOBRINSKOY, op. d t, 298: “O Filho será pois a ‘razão de ser’ da
processão do Espírito que será ao mesmo tem po o Espírito do Pai e o Espírito do Filho.
O Espírito estará não menos ligado — inefavelmente — à geração paterna do Filho, repou­
sando sobre o Filho que é pneumatófòro desde toda eternidade. Pode-se então conceber
que o Espírito procede do Pai somente, lembrando-se que se deve entender ‘Pai do Fi­
lho’...”. Cf. também 300; 304: “O Filho eterno não é estranho à processão do Espírito
Santo. M as, acrescentará a teologia ortodoxa: a) de maneira inefável; b) sem fazer introdu­
zir a noção de causalidade e c) sem pôr em questão o caráter intransmissível da propriedade
hipostática do Pai, de ser ele única Fonte e Princípio da divindade do Filho e do Espírito”.
Ver também os elementos positivos e as lacunas que encontra no “filioquismo”. M ais infor-

355
D A -E C O N O M IA ' À TE O LO G IA "

A te n d ên c ia da teologia católica é antes ressaltar a compatibilidade e


a com plem entaridade das fórm ulas oriental e ocidental. Essa é a posição
refletida p e lo Catecismo da Igreja Católica, que observa que a complemen­
taridade d e ambas as visões, se não for exacerbada, não vai contra a iden­
tidade d a fé no mesmo m istério confessado226. Deve-se reconhecer que
nesse p o n to puderam-se produzir mal-entendidos, causados por pensar
que e n tre a ekporeusis dos gregos e a processio dos latinos há uma equivalên­
cia de significado. Vimos com o já Máximo Confessor e Sto. Tomás foram
sensíveis a essas diferenças. Q ualquer procedência é para os latinos
“processão”. Para os gregos a ekporeusis é a processão como do prim eiro
princípio, do Pai, portanto. Daí que somente o Pai seja “causa”. Com di­
ferenças que não se pode desconhecer, também não se pode esquecer os
pontos d e coincidência com o prrndpaliter de santo Agostinho. Além disso,
a fórm ula de C onstantinopla não deve ser considerada exaustiva. Nesse
sentido, “pelo F ilho” é um a explicação do símbolo que não tem por que
ser contrária a ele, como também o Filioque não tem que ser contrário à
m onarquia do Pai, fonte de toda a Trindade, única origem do Filho e do
E spírito Santo.
B uscaram -se fórmulas de compromisso. Por exemplo, “o Espírito
Santo v em do Pai enquanto é Pai do Filho”. N ote-se que o símbolo diz
que procede do Pai: quando se menciona o Pai já se pensa em um a rela­
ção com o Filho, já que sem isso o term o carece de sentido: a procedên­
cia do E spírito Santo não é geração227. A proposta de J. M oltm ann tem

mações sobre a teologia oriental encontra-se na mesma obra, 294-305; e em GARIJO-


GUEM BE, op. d t., 551-553. Sobre esse tem a pode-se ver também Encbridion Oecumeniatm
m , 2.001ss; 2.700ss. Cf. também B. PIRA, Lo Spirito Santo nella recente letteratura or-
todossa, in G. COLZANI (ed.) Verso uma numia età deUoSpirito. Filosofia-Teoiogia-Movimenti,
Padova, 1997,155-237. Também SPITERIS, op. d t Sobre a situação ecumênica atual, cf.
M .-H. G AM ILLSCHEG, Die Kontroverse um das Filioque. Möglichkeiten einer Problemlösung
auf Grund der Forschungen und Gespräcbte der letzten hundert Jahre, W ürzburg, 1966.
226. CIC 248. Cf. Também a Declaração do Pontifido Conselho para a Unidade dos
Cristãos de 13 de setembro de 1955 (cf. nota 180).
227. Cf. GARRIGUES, op. d t , 129; daí a formula que propõe “saído (ekporeuo-
menon) do Pai, procede (proion) do Pai e do Filho” (Ibid. 98). Ibid. 113: “Como o Espírito
Santo existe por natureza segundo a essênda do Pai, do mesmo modo é pela natureza do
Filho, enquanto sai essendalmente do Pai em razão do Filho gerado”. A fórmula latina
seria: “ex único Pâtre unicum Filium générante se exportans (ekporeuomenon), ab utroque
procedit (procboron)”. Cf., do mesmo, La clarification sur la procession du Saint E sprit el
l’enseignement du Concile de Florence, Irénikon (1995) 501-506; Id., A la suite de la
darification romaine sur le Filioque, NRTh 119 (1997) 321-334, mostra sobretudo como
a ação do Filho e do Espírito Santo são complementares na obra da salvação.

356
0 PAI, 0 FILHO E O ESPÍRITO SANTO

pontos de contato com a anterior: procede do Pai do Filho e recebe sua


form a do Pai e do Filho22®.
Sem querer propor uma fórmula concreta, senão explicando o senti­
do do Filioque e sua compatibilidade com o reconhecimento da única fonte da
divindade no Pai, a declaração do Pontifício Conselho para a Unidade dos
Cristãos de 1995, a que já nos referimos2 229,
82 observa que, embora na ordem
trinitária o Espírito Santo seja consecutivo à relação entre o Pai e o Fi­
lho230, posto que tem sua origem do Pai enquanto este último é Pai do
F ilh o unigénito, tal relação entre o Pai e o Filho alcança sua perfeição
trinitária somente no Espírito. Do mesmo modo que o Pai é caracterizado
como Pai pelho Filho que ele gera, o Espírito, que tem sua origem do Pai,
caracteriza em modo trinitário o Filho em sua relação com o Pai. O Pai gera
o Filho somente expirando o Espírito Santo, e o Filho é gerado somente na
medida em que a expiração passa por meio dele. Notemos que se mantém a
ordem trinitária, dado que o Pai é caracterizado como tal pelo Filho, não
pelo Espírito Santo231. Isso porém não significa diferença cronológica nem
subordinação. Somente no Espírito Santo essa relação é caracterizada
trinitariamente. A processão do Espírito do Pai não pode prescindir portan­
to do feto de que esse Pai é tal em tanto e enquanto gera o Filho.
Como se vê nessas tomadas de posição, não só pessoais, mas também
de caráter oficial, trata-se de ressaltar o caráter trinitário de todas as rela­
ções intradivinas. A relação Pai-Filho não pode ser considerada com inde­
pendência do Espírito, o dom mútuo de amor em que se unem e se amam;
sem o Espírito a relação patem o-filial não pode chegar a aperfeiçoar-se232.

228. Cf. MOLXMANN, Trinität und Reich Gottes, 203. Cf. também, Lo Spirito delia
vita, in Per vma pneumatolgia integrale, Brescia, 1994, 347.
229. Cf. notas 180 e 226.
230. Segundo a mesma Declaração, o Espírito Santo não precede ao Filho, porque
o Filho caracteriza como Pai aquele do qual o Espírito Santo tem sua origem, o que cons­
titui a ordem trinitária. Mas a expiração do Espírito a partir do Pai faz-se por m eio e através
(os dois sentido de dm em grego) da geração do Filho.
231. Cf.J. GALOT, op. d t., 501-522, esp. 516-517; do mesmo, UEsprit Samt, perstmne
de commvnum (cf. nota 98) esp. 122ss, e 150.
232. A necessidade de ver em relação sempre as três pessoas levou a colocar o pro­
blema da presença do Espírito na geração do Verbo. Cf., por exemplo, DURRW ELL, op.
c í l , em esp. 154ss, idéias desenvolvidas também em Le Pire. Dieu en son mystère, 147ss.

Deus gera “no Espírito”. Cf. também CANTALAMESSA, “Utriusque Spiritus’’. L’attuale
dibattito teologico alia luce deli “Veni Creator”, Rassegna di Teologia 38 (1997) 465-484,
esp. 477ss, onde se refere à unção pré-cósmica do Filho pelo Pai em vista da criação, de que
conheceram os Padres. Cf. ORBE, op. d t , Roma, 1961. Mas deve-se ter presente que não
está sempre claro o caráter pessoal desse “espírito”. Alguns Padres, por ex., G REG O RIO

357
DA “ECONOMIA” À "TEOLOGIA"

E a processão do Espírito do Pai não pode ser considerada com indepen­


dência do Filho. A taxis trinitária não implica subordinação, mas sim mútua
referência. A ordem não significa a eliminação da mútua interdependência
das pessoas. Talvez essa linha de pensamento possa contribuir para o en­
tendim ento entre as Igrejas do O riente e do Ocidente.
Deve-se ter presente que O riente e Ocidente estiveram ainda juntos
depois da introdução ocidental do Filioque no símbolo. A teologia de Agos­
tin h o foi elaborada antes de C alcedônia, que reconheceu o valor de
Constantinopla I. Naquele momento os latinos não puderam entender a
diferença de significado que em grego e em latim se dá ao "proceder” do
Concílio. Q uando o Ocidente recebeu o credo de Constantinopla, o Filioque
já estava provavelm ente introduzido, inclusive em diferentes símbolos
ocidentais (o de V itrício de Rouen, o Quicumque, como vimos). Esses an­
tecedentes devem ser levados em conta na hora de avaliar a introdução do
Filioque no niceno-constantinopolitano, por parte do papa, embora seja
verdade que ela se fez sem ter em conta as Igrejas orientais.
Essa é a razão p o r que nos últim os anos levantaram -se vozes que
propugnam a supressão pela parte católica do acréscim o ao credo, o
que, é claro, não deve significar a desautorização da evolução teológi­
ca que deu lugar ao Filioque. As diferentes teologias e as fórmulas em
que se condensaram podem representar aproximações válidas ao m isté­
rio, e serem inclusive com plem entares entre si se as diversidades não se
exacerbarem . Y. C ongar foi entre os teólogos católicos de relevo um
dos que com m aior clareza se pronunciou pela supressão do Filioque,
mas sempre que
no diálogo com as instâncias qualificadas das Igrejas ortodoxas se tenha posto
em claro e reconhecido o caráter não-herético do Filioque entendido correta­
mente, a equivalência e a complementaridade das duas expressões dogmáticas,
“do Pai, fonte absoluta, e do Filho”, “do Pai pelo Filho”... Por sua parte, os
orientais não deveriam ir mais além, em “do Pai somente”, das implicações da
monarquia do Pai e das exigências dos textos do Novo Testamento235.

de Nissa, chegaram a ver a unção no momento mesmo da geração: Contra Apolmarem, 52


(PG 4 5 ,1.249s). N ão parece pelo contexto que se possa tirar muitas conseqüêndas dessa
unção ab aetemo em relação com a presença do Espírito na geração do Filho. Se é legítima
e mesmo necessária a insistência no caráter trinitário de toda a vida intradivina e das rela­
ções entre as pessoas, não se vê com a mesma clareza como se pode alterar a ordem tradi­
cional das processões divinas.
HZ.ElEspíritu Santo, 639; de modo semelhante GARRIGUES, op. cit., 133, 149.

358
O PAI, 0 FILHO E O ESPÍRITO SANTO

Além disso seria preciso que o povo do Oriente e do Ocidente esti­


vesse devidamente preparado para esse passo. Parecer um tanto oposto é
o de W. Kasper, que opina que se os ortodoxos reconhecem que o Filioque
não é herético o Ocidente não tem por que renunciar a sua tradição, que
naturalmente não quer impor aos outros234. Penso por minha parte que a
volta a uma confissão comum da fé que nos une, ainda com a legítima
variedade nas teologias, seria sem dúvida de desejar. Esperemos que em
algum momento não distante possam dar-se as condições para isso.
Alguns passos já fiaram dados por parte da Igreja católica. Já desde Bento
XIV (ano 1742), o Filioque não é obrigatório para as Igrejas católicas de rito
oriental. Em 31 de maio de 1973, a hierarquia católica da Grécia o suprimiu
também na recitação do credo em grego nas celebrações de rito latino. O
papa João Paulo II recitou o credo constantinopolitano na celebração solene
de Santa Maria Maior, no ano centenário do Concílio de Constantinopla
(381-1981). O mesmo fez na Basílica de São Pedro em 29 de junho de 1995,
em companhia do Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu I. Já em 1925,
em uma celebração em grego, Pio XI fizera o mesmo235.
A recente declaração do Pontifício Conselho para a Unidade dos
Cristãos, a que nos referimos repetidas vezes, observa como o Espírito
Santo repousa no Filho236,732e durante a vida de Jesus o orienta no amor para
o Pai. Em nosso capítulo 3 tratamos longamente dessa questão. Essa fun­
ção do Espírito na economia deriva de uma relação trinitária eterna, em
que o Espírito, em seu mistério de dom de amor, caracteriza em certa
medida a relação do Pai e do Filho. Vbn Balthasar vê nos diferentes modos
de relacionar-se Jesus e o Espírito no tempo da vida daquele a justificação
das duas diversas concepções da processão do Espírito. O Espírito nele, no
Filho encarnado, que depois o dará aos homens, significa a fórmula econô­
mica do Filioque; e o Espírito que permanece sobre ele, adeja sobre ele e o
impele, significa a fórmula do a Patre procedit2^. As fórmulas “do Pai e do
Filho” ou “do Pai por meio do Filho” têm a vantagem de considerar a
Trindade em seu conjunto e na relação de cada pessoa com as outras duas,

234. Der Gottjesu Christi, 272.


235. Cf. BALTHASAR, Tbeologik UI, 190. Sobre as decisões de supressão de outras
Igrejas e comunidades eclesiais, assim como da Comissão “Fé e constituição”, cf. CONGAR,
op. d t., 638s.
236. Idéia m uito familiar à ortodoxia, BOBRINSKOY, op. d t., 303: “A desdda do
Espírito sobre Jesus no Jordão aparece pois na visão teológica ortodoxa como um ícone,
uma manifestação na história do repouso eterno do Espírito do Pai sobre o Filho”.
237. Cf. Teodramdtica, 3, 477.

359
D A “ECO NO M IA" À “TEOLOGIA"

não díades separadas, como poderia ocorrer se considerássemos somente


a relação P ai-F ilho e Pai-Espírito, ou Pai-Filho e Filho-Espírito238.
Na realidade, a questão tem a ver com a adequada relação cristologia-
pneum atologia: p o r uma parte, o Espírito é não só o Espírito de Deus,
senão ao mesm o tem po o Espírito do Filho, o Espírito de Jesus, dom do
Senhor ressuscitado. Por outra parte, o Espírito opera a encarnação de
Jesus, vem e atua sobre ele, e não somente guia e acompanha a evangelização,
senão que também a prepara e precede. Jesus dá o Espírito, mas, por sua
vez, o E spírito repousa sobre ele. A cristologia e a pneumatologia nunca .
podem se r separadas. Portanto, a reflexão sobre o Filioque abre uma série
de perspectivas que não se esgotam na estrita doutrina trinitária. Também
na cristologia (como tivemos ocasião de ver) mas ainda na eclesiologia, na
antropologia e na teologia dos sacramentos vão refletir-se sem dúvida as
conseqüências dessa complexa relação239.

238. Balthasar propugna com força o Filioque, que vê unido à idéia de Deus amor e
do Espírito como o am or dos dois. Por outra parte, observa que Jo 15,26 deve entender-
se com referência à economia, não à vida intratrinitária. Cf. op. cit., 189-200. Também em
seu momento, K. BAKTH, Ksrcblkbe Dogmatik 1/1, M unique, 1935, 500ss, foi um grande
defensor do Filioque: se o Espírito dado pelo Filho não é na eternidade do Filho, desaparece
o fundamento de nossa união com Deus.
239. Cf. CONGAR, op. d t, 540-544, sobre as conseqüênrias edesiológicas do Filioque,
e se o problema do “cristomonismo” e o relativo esquecimento do Espírito Santo no Ociden­
te devem ser considerados conseqüênda dessa doutrina. Há razões para pensar que se trata
de uma disputa “duvidosa”. Cf. ID ., La parola e il soffio, 142ss. BULGAKOV, op. d t, 277s.,
pensa igualmente que existe uma relação entre o Filioque e a idéia do papa como Vigário de
Cristo. Cf. também BOBRINSKOY, op. d t., 302-303, que insinua m uito mais suavemente
as repercussões eclesiólogicas. Só a título de curiosidade, vale a pena observar que Sto. Tomás
considerou erros similares negar o primado do papa e que o Espírito Santo procede do Filho.:
Contra errores graecorum, I I 32 (dtado por CONGAR, ElEsptritu Santo, 639s). Em todo caso
deve-se evitar conclusões predpitadas e exageradas. Cf. também as considerações de R.
CANTALAMESSA, op. d t , 470s: se as defidêndas da Igreja oddental se deveram ao Filioque,
também teriam de dar-se devido a ele suas virtudes e seus aspectos positivos.

360
11
“Unitas in trinitate”.
Deus uno na Trindade.
Suas propriedades e seus modos de atuação

A UNIDADE DA ESSÊNCIA DIVINA

1. A unidade do Pai, do Filbo e do Espírito Santo

Depois de percorrer, a partir da historia salutis, a doutrina clássica da


Trindade desde as processões até as pessoas, tratamos com certa amplitude
as características do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Cabe-nos agora
abordar o problema da unidade da essência divina. Estou consciente de
que esse modo de proceder não é o de uma grande linha da tradição teo­
lógica, que, como tivemos ocasião de ver, preferiu partir da unidade da
essência divina1. Mas a unidade de Deus não é uma unidade prévia à Trin­
dade de pessoas, embora tampouco possa ser considerada “posterior” a ela.
Por uma parte, é a unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, mas por
outra é uma unidade que desde sempre é dada, que não chega a ser como
o resultado de um processo da união dos três2. 0 Novo Testamento apre­
senta-nos o “único Deus verdadeiro” (cf. Jo 17,3) como o Pai de Nosso
Senhor Jesus C risto e o que nos dá o Espírito Santo ao qual tanto o Filho
como o Pai acham-se intimamente unidos. E o Deus Pai que imo existe
nunca sem o Filho, e sem seu Espírito; por isso na tradição da Igreja se

1. Porém o ponto de vista mais econômico-salvífico que nos últim os anos abriu ca­
minho na teologia católica fez que seja sempre mais seguida a disposição que aqui propo­
mos. Cf. PORRO, Dio nostra sehezza, lntroduzione al mistero di Dio, Tòrino, 1994, 189ss;
235ss, e sobretudo G. GRESHAKE, Derdreiene Gott, Eine trinitariscbe Tbeologic, 184-185;
196ss entre outros lugares.
2. Cf. J. W ERBICK, Teologia trinitaria, em Th. SCHNEIDER (ed.), Nuovo corso di
Teologia Dogmática, Bresda, 1995, v. 2, 573-685; 659.

361
D A ‘ EC O N O M IA ’ À T E O LO G IA '

considerou que o Deus uno é o Pai, o Filho e o Espírito Santo na unidade


de sua essência, em sua bomoousia. A essência divina é única, possuída pelas
três pessoas. Mas esse fato de ser possuída pelos três faz também parte de
sua essência. Já conhecemos a evolução que se deu na distribuição das
m atérias dos antigos tratados “de D eo uno” e “de Deo trino”5.
Já nos referimos à opção de alguns teólogos que, precisamente ante a
dificuldade dessa divisão clássica, optam por considerar que as questões do
tratado “de Deo uno” são na realidade um “tratado” de Deus Pai. Com
efeito ele foi considerado na tradição o “fundamento” da unidade da Trin­
dade, enquanto é o princípio da divindade. O Deus do Antigo Testamento,
por o u tra parte, identifica-se no Novo com o Pai de Jesus. O D eus uno,
por conseguinte, é o Pai, ao qual, enquanto fonte da divindade, se referem
as afirmações sobre a onipotência, a eternidade de Deus etc.3 4.5Igualmente
no C redo, o D eus identifica-se com o Pai de Jesus. N ão se pode negar,
portanto, os fundamentos dessa posição. M as podemos indagar se são ab­
solutamente convincentes. Por uma parte, a identificação do Deus do Antigo
Testam ento com o Pai é evidente. Mas daí a pensar que o Antigo Testa­
mento seja só um a revelação do Deus uno identificado com o Pai há um
certo salto que não se justifica. Não se pode aceitar sem matizes uma “su­
cessão” na revelação das pessoas divinas, como uma leitura precipitada de
um conhecido texto de Gregório Nazianzeno poderia talvez sugerir5. 0 modo
de comportar-se do Deus do Antigo Testamento só é possível porque se
trata do “Pai”, isto é, porque desde sempre existe só em relação ao Filho e
ao Espírito Santo e no intercâmbio de amor com eles. Em outras palavras,
essa revelação do Deus uno, em que depois reconheceremos o Pai de Jesus,
é tal na medida em que nos está preparando a revelação do Deus uno e trino.
Portanto, se por uma parte é claro que o Deus do Antigo Testamento se
identifica com o Pai, a revelação progressiva de Deus, precisamente porque
esse Deus é o “Pai”, é ao mesmo tempo, de modo incoativo, a da trindade
das pessoas na unidade da essência divina.

3. Cf. cap. 1, 33-36.


4. C f. o capítulo anterior, notas 1-3. Mas ainda nesses casos a reflexão sobre a unida­
de divina não se esgota nesse estudo sobre Deus Pai. Também se toma em consideração a
unidade da Trindade. Cf. W. KASPER, Der Gottjesu Christi, Mainz, 1982, 354-377.
5. Or. 31,26 (SCh 250,326) “O Antigo Testamento anunciou m anifestamente o Pai,
e de um modo mais obscuro ao Filho. O Novo Testam ento deu a conhecer abertam ente o
Filho, e fez entrever a divindade do Espírito Santo. Agora o Espírito está presente no meio
de nós e nos concede uma visão mais clara de si mesmo”... (GREGORIO Nazianzeno, Os
cinco discursos teológicos, M adrid, 1995, 254). Já nos referim os a essa passagem na nota 100
do capítulo anterior. Sem dúvida, a passagem contém m uito de verdade. Mas não pode ser
interpretada de modo unilateral; cf. a continuação do texto.

362
"UNITAS IN TRINITATE". DEUS UNO NA TRINDADE. SUAS PROPRIEDADES E MODOS DE ATUAÇÃO

Somente na m útua implicação da unidade e da trindade divinas temos


a plena revelação de Deus. N o Antigo Testamento não achamos a plena
revelação do Deus uno tal como nós cristãos o professamos. Não é que
falte só uma revelação da Trindade que se justaponha de algum modo à da
unicidade divina que o Antigo Testamento proclama com tanta clareza. E
que nosso Deus uno é o Deus Pai, Filho e Espírito Santo. A revelação da
essência divina comum e a revelação de Deus como Pai, Filho e Espírito
implicam-se mutuamente:
Poder-se-ia dizer que correm paralelas a revelação da plenitude da essência
“comum” divina e a revelação de Deus como Pai, como Filho (palavra) e
como Espírito Santo. Ou melhor: ambas as revelações formam uma unidade,
crescem ao mesmo tempo e em uma mesma compreensão, posto que consti­
tuem a única manifestação... do Deus uno, Pai, Filho e Espírito Santo6.

Devemos portanto pensar que existe uma manifestação progressiva


do Deus uno e único na história da salvação da antiga e da nova aliança, e
que todo progresso no conhecimento dessa unidade divina é ao mesmo
tempo um crescimento no conhecimento do Deus tripessoal; este, por
evidentes razões, não podia ainda fazer-se explícito no Antigo Testamen­
to7. Inversamente, no esclarecimento da diferenciação pessoal em Deus
ilumina-se o conhecimento da unidade do ser divino e configuram-se os
traços do monoteísmo cristão8. Em bora seja claro que não podemos admi­
tir muitas de suas afirmações concretas, fica um núcleo permanente de

6. R. SCHULTE. La preparadon de la reveladon trinitaria, in MySal 2/1, 77-116,


87. Ibid.: "... dado que Deus é um e único, e dado, por conseguinte, que a manifestação
progressiva desse Deus um e único é também uma e única na única história da salvação da
antiga e nova aliança (...) todo ‘progresso’ do conhedm ento sobre D eus ‘em si’ (essência)
é também progresso do conhecimento da fé sobre o m istério ‘espedaT desse Deus que se
manifesta, definitivamente, como tripessoal. E inversamente: em todo esclarecimento de
uma ‘diferendação pessoal’ em D eus amplia-se também, ao mesmo tem po, o conhecimen­
to dessa essênda divina”.
7. COM ISSIO THEOLOGICAINTERNATIONALIS, Theologia— Christologia-
Anthropologia, Greg 64 (1983) 5-24, aqui 9: “O monoteísmo do A ntigo lèstam ento tem
sua origem na revelação sobrenatural, e por isso, contém um a relação intrínseca à revelação
trinitária”.
8. Cf. SCHULTE, op. d t., 87; também 80-81. Ver também, de outro ponto de vista,
H. U. von BALTHASAR, Teodramatica 3. Laspersonas del drama, el bombre en Cristo, M adrid,
1993,470: “A idéia de uma revelação sucessiva das três pessoas divinas é absurda, pois elas
são essendalm ente imanentes umas às outras; na revelação pré-cristã com Deus, só o Deus
vivo (trinhário) pode ter sido revelado, embora não formalmente na trindade”. Deus não
teria podido estabelecer nenhuma aliança com os homens sem seu Verbo e seu Espírito.

363
DA “ECONOM IA" À “TEOLOGIA"

verdade n o ensinamento dos Santos Padres que viam a Trindade já reve­


lada no Antigo Testam ento.
Sirvam essas reflexões de justificação à nossa sistemática: as afirma­
ções sobre o Deus uno não se referem a uma essência divina que em um
segundo momento desdobra-se em três pessoas, nem se referem exclusiva­
mente ao Deus que em um tempo posterior mostra-se como o Pai de Je­
sus. T anto o Deus uno com o o Deus trino são o Pai, o Filho e o Espírito
Santo. Tanto a unidade com o a diferenciação é desses três. E claro que isso
não significa abandonar a terminologia tão antiga da unidade da essência
divina: essa é a realidade comum às três pessoas9. Mas, como já observa­
mos, a essa essência pertence ser possuída pelo Pai, pelo Filho e pelo Es­
pírito Santo, por cada um deles inteiramente e a seu modo. Porque ao falar
da unidade da essência não podemos esquecer que essa é uma unidade
profundíssima que se dá ao mesmo tempo na máxima distinção pessoal.
Deve-se afirmar, ao mesmo tempo, os dois extremos, tal como nos fazia
ver o m istério de Jesus que morre na cruz abandonado pelo Pai e é ressus­
citado p o r seu poder divino. E a unidade do am or divino, máxima expres­
são do ser "uma só coisa” das três pessoas que existem somente na unidade
de sua mútua autodoação e portanto em sua diferença irredutível:
Cada hipóstase divina mantém seu mistério impossível de resolver: o Pai,
todo autodoação (relatio) e que não obstante pode ser quem se autodoa; o
Filho, como Palavra que é resposta, em sua entrega ao Pai pode ser partícipe
da potência originante desse último, e juntamente com essa potência pode
não só ser o amor, senão também fazê-lo surgir: o Espírito, a liberdade divina
mais excelsa e soberana e, ao mesmo tempo, total desprendimento que existe
só para o Pai e o Filho10.

N o amor desinteressado, realidade interna que se comunica às criatu­


ras, exprime-se do modo mais alto o que nas três pessoas é comum11. Em
Jo 10,30 indica-se que o Pai e o Filho são uma mesma coisa, e se usa o

9. Cf. CIC, 252; com esse term o indica-se a divindade comum às três pessoas; jun­
tam ente com os term os, equivalentes no uso, de substância e de natureza, designa o ser
divino em sua unidade.
10. BALTHASAR, Tbeologik Iü , 199-200.
11. ORÍGENES, In Rom. IV (PG 14,997)"... podemos amar a Deus porque somos
amados por Deus. E de fato o próprio São Paulo fala do Espírito de amor (Rm 15,30). Deus
é chamado amor e C risto é chamado o Filho do amor (Cl 1,13) E se sabemos que o Espírito
é amor, o Filho é am or e Deus é amor, é obvio que de uma fonte da divindade paterna
conhecemos o Filho e o Espírito Santo, de cuja abundância se difunde a abundância do
amor no coração dos santos para fazê-los participantes da natureza divina, como ensina o
apóstolo Pedro (2Pd 1,4)”.

364
“UNHAS IN TRINITATE". DEUS U N O NA TRINDADE. SUAS PROPRIEDADES E MODOS DE ATUAÇÃO

gênero neutro. Os Padres deram a esse fato grande importância, porque


esse neutro elimina o perigo do sabelianismo, ou do patripassianismo (uma
só coisa, mas não uma só pessoa). Mas essa unidade é das pessoas, e mani-
festa-se sobretudo em seu amor e em sua doação, não é uma unidade que
se possa conceber sem elas12. Basílio de Cesaréia afirma que, “na natureza
divina e não composta, a unidade consiste na comunhão da divindade”13.
Também para Sto. Agostinho o só Deus uno e único é a Trindade14.
Evidentemente devemos evitar todo perigo de triteísmo; não podemos
pensar na existência independente das três pessoas que só em um segundo
momento chegariam a constituir uma unidade com características de cole­
tividade15. Se em nossa sistemática colocamos a unidade de Deus depois de
ter falado das três pessoas não é porque queiramos considerar essa unidade
subordinada a respeito da distinção pessoal. Os dois aspectos do ser divino
são igualmente originários. E porque, como indicamos, a unidade divi­
na não é simplesmente a unidade de um Deus unipessoal, a de uma essência
divina abstrata, nem sequer a unicidade do Pai, senão a unidade do Pai, do
Filho e do Espírito. Assim se manifestou essa unidade na historia salutis e essa
é a única razão de ser da ordem de nossa exposição.

2. O primado do upessoal”

Talvez seja este o momento adequado para fazer um breve balanço


dos problemas encontrados em momentos anteriores de nossa exposição,
mas vistos agora nessa perspectiva concreta da relação entre unidade e

12. TERTULIANO,/f<fo. flnax. 22,11 (208), sobre o umm de Jo 10,30: “N on pertinet


ad singularitatem sed ad unitatem , ad similitudinem, ad coniuncüonem, ad dilecdonem
Patris qui Filium diligit et ad obsequium Filii qui voluntati Patris obsequitur”. [Não per­
tence à singularidade mas à unidade, à semelhança, à conjunção, ao amor do Pai que ama
o Filho e à obediência do Filho que obedece á vontade do Pai]. HILÁRIO de Poitiets
distingue a unhas que se dá entre as pessoas da mio que não as distinguiria e seria sabeliana;
cf. Trin IV 42; V ,l; V I 8.11 (CCL 62,149; 152; 203; 207), e sobretudo X I1 (530): “id quod
uterque in proprietate sua unus est, sacramentum unitatis ad utrum que”.
13. De Sp. Sane. 18,45: “èv r q k o i v o j v í ç i q ç 8e«m)TÒç è o riv t | êvwoiç”; ibid., o Pai
está no Filho e o Filho está no Pai, pois cada um é como o outro; nisso consiste que ambos
sejam uma coisa só.
14. Trin 1 2,4 (CCL 50,31):"... quod Trinitas sit unus et solus e t verus D eus”; XV 5,7
(468):"... unum Deum, quod est ipsa Trinitas”; Símbolo “Clemens Trinitas” (DS 73): “C le-
mens Trinitas est unadivinitas”.
15. Cf. CO N CÍLIO LATERANENSEIV, contra Joaquim de Fiore: “Verum uni­
tatem huiusmodo non veram e t propriam , sed quasi collectivam e t simulitudinariam esse
fatetur, quemadmodum dicuntur m ulti hom ines unus populas, e t m ulti fideles una Eccle-
sia...” (DS 803).

365
DA -ECONOM IA" À “TE O LO G IA ”

trindade de D eus. M oltmann condenava o ponto de partida na única es­


sência divina, porque com ele só se podia chegar a um modalismo. Mas
tivemos ocasião de constatar que seu método não ficava livre de todo do
perigo contrário. Deus ficava demasiado dependente do mundo e da his­
tória, a definitiva unidade divina ficava como uma realidade escatológica.
Mas o ponto de partida que quer antes de tudo evitar o perigo do triteísm o
(na linha de K. Barth e de K. Rahner) partindo de Deus como sujeito
tampouco resultava satisfatório em todos os sentidos: a repetição do “Eu”
faz-se em K. B arth mais essencial do que a relação Pai-Filho que nos apre­
senta o Novo Testam ento, e a correspondência entre o diálogo histórico-
salvífico e a vida interna das pessoas em Deus faz-se problemática em K.
Rahner16. Mas n ão se lhes pode negar, nem a um nem a outro, o mérito de
ter partido do pessoal, da noção de sujeito e da pessoa do Pai, e não da
substancia impessoal. N ada em D eus pode ser impessoal, nada pode ser
“neutro”, em bora, como vimos, a noção de pessoa utilizada resultasse, por
sua vez, insuficiente porque a dimensão relacional não era tida em conta
de maneira adequada. A unidade “pessoal” de Deus não pode ser a mesma
da pessoa absoluta, senão a das três pessoas em sua relação recíproca. Essa
unidade, por sua vez, é um dado prim ário e não derivado.
Vimos tam bém como a unidade do Deus trino, a unidade da essência
do Deus “tri-uno”, fundou-se na tradição na origem e fonte única da di­
vindade que se encontra no Pai. M as ao mesmo tempo deve-se afirmar que
também o Pai é relacional, está referido completamente ao Filho e ao
Espírito Santo, e que não é tal sem essa relação. N ão há um ser do Pai
prévio e independente da paternidade. O Pai, portanto, está completa­
mente dado à comunicação de seu ser ao Filho e (com o Filho, pelo Filho)
ao Espírito Santo. O Pai é por sua parte a origem, a fonte; mas é igualmente
relação. O Pai dá o ser àqueles que não existem senão em sua relação a ele,
mas ao mesmo tempo ele é enquanto Pai, é enquanto gera o Filho e é
origem do Espírito Santo enquanto está relacionado com as outras pesso­
as. Da relação de origem, que não é dependência unilateral, surge a unida­
de e a comunhão das três pessoas. A unidade substancial e a distinção das
pessoas em sua união também pessoal são assim dois aspectos inseparáveis
do ser divino. N ão há uma essência prévia às pessoas nem também um
sujeito absoluto. Creio que, se se entende bem o sentido da paternidade,
a primeira pessoa na taxis intradivina, se exclui o perigo do subordina-
cionismo, ao sublinhar as relações mútuas dos três; também o do modalismo,

16. Cf. cap. 9, 277-285.

366
“UNITAS IN TRINITATE'. DEUS U N O NA TRINDADE. SUAS PROPRIEDADES E M ODOS DE ATUAÇÃO

já que não se parte do sujeito individual absoluto; e, por último, do triteís-


mo, já que se reconhece no Pai o princípio único da divindade. Assim, na
pessoa do Pai estão ao mesmo tempo a fonte da unidade e a da Trindade.
Afirmamos a unidade essencial que não dá lugar à exclusão das relações
internas em Deus, mas que existe precisamente nelas. As pessoas são rela­
tivas umas às outras, e o são, não independentem ente das relações de ori­
gem, mas precisamente por elas, porque a origem primeira é o Pai17. 0 Pai
não é pensável sem o Filho e sem o Espírito Santo (embora, como foi dito
muitas vezes, a linguagem seja menos clara no caso da terceira pessoa),
quer dizer, “depende” deles tanto como dependem do Pai. Mas não se
deve acentuar só a origem, mas ainda mais a relação entre as pessoas18, que
as une ao mesmo tempo em que as distingue, sem desprezar nenhum dos
dois aspectos. A unidade de Deus dá-se no intercâmbio de am or m útuo
que é comunicação de ser na distinção. A unidade suprema não é a da
mônada isolada, mas a do Deus amor e comunhão perfeita, Pai, Filho,
Espírito Santo19.

3. A essência divina

Em Deus, como dissemos, nada há de “neutro”, tudo é “pessoal”20.


A “uma só coisa” (cf. J o 10,30) que são o Pai, o Filho e o Espírito Santo
não é algo distinto da plenitude de vida que os três têm em comum. Essa
essência divina foi considerada tradicionalm ente inefável e inacessível ao
homem21. N o entanto, nada nos impede que procuremos aproximar-nos

17. “De quem as outras pessoas procedem, mas n lo as “precede”; A G O STIN H O ,


Trin. V I 2,3 (231): “non praecesit genitor illud quod genuit”.
18. Conhecemos já a posição de Sto. Tomás, que prefere o termo “Pai” ao “generans-
genitor” (cf. STb. I 33,2). O prim eiro concede à relação primazia sobre a origem. Em
consequência o Pai gera porque é Pai, não é Pai porque gera. São poderosas as razões para
preferir essa posição à sua contrária.
19. Cf. as considerações de GRESHAKE, op. c it, 196s: em Deus deve-se excluir
qualquer “algo” que pudesse ser pensado sem relação, e a p artir do qual se form aria a
unidade desde as relações.
20. Cf. CONCILIO LATERANENSE, IV (DS 803-804), textos que já conhecemos.
A sumvtã reséo Pai, o Filho e o Espírito Santo, neles está plenamente a essência divina, em
cada um na comunhão com os outros dois. Cf. já a declaração de Eugênio U I, depois do
C oncílio de Reims contra G ilberto Porretano (ano 1148), não se pode estabelecer divisão
en tre a natureza e a pessoa (DS 745).
21. Pseudo-DIONÍSIO Areopagita, Cael. Hier. II 3 (SCh 58bis, 77ss), Deus existe
m ais além de toda essência (oúoíot), de toda vida. C f. mais adiante a nota 48 do cap. 12
(sobre a analogia).

367
DA "ECONOM IA" À TEO LOG IA"

desse m istério, que aparecerá cada vez maior quanto mais de perto se nos
m anifestar.
A Escritora já nos oferece uma base para esse intento. No N ovo Tes­
tam ento, em particular nos escritos joaninos, apresentam-se diferentes
“definições” de Deus (é evidente a impropriedade com que usamos o ter­
mo “definição”) que foram ponto de partida para reflexões ulteriores.
Conhecemos já algumas delas: sem dúvida a mais decisiva de todas é “Deus
é am or” (ljo 4,8.16), mas também: “Deus é Espírito” (Jo 4,24); “Deus é
luz” (ljo 1,5.7; cf. lT m 6,16); Deus é o vivente por antonomásia (cf. M t
16,16; 26,63; SI 18[17],47; Jo 6,51; ljo l,ls etc.). Algumas dessas expressões
aplicam-se também a Jesus: luz (Jo 1,4.9; 9,5); vida (Jo 1,4; 11,25; 14,6).
C ertam ente essas palavras não pretendem dar-nos definições metafísicas
de D eus; referem-se à manifestação salvadora de Deus em Cristo. Perante
o m undo de trevas, de m orte e de ódio apresentam-nos a ação de D eus que
nos oferece a salvação em Cristo. Mas, indiretam ente, algo nos dizem de
Deus mesmo. Em Jesus manifestou-se o que desde sempre é realidade na
vida divina, a vida que vem do Pai e que compartilham o Filho e o Espírito.
Essas expressões e outras semelhantes apontam para uma plenitude de ser2232
sem nenhuma dependência, para a totalidade de bem e de vida que não
conhece as limitações de toda ordem a que os homens estão submetidos.
Sugerem uma plenitude de ser pessoal, de total posse e conhecimento de
si, de inteira transparência, de infinita liberdade.
D e fato, ao ser “espírito” de Deus, a tradição da Igreja uniu, desde
tempos remotos, a absoluta simplicidade divina (cf. entre outras passagens
DS 566; 800; 3.001)25; daí deduziu-se a plenitude da vida em Deus “todo
razão, todo ouvido, todo olho, todo luz”24. Podemos portanto pensar a
única essência divina inefável, a partir dessas metáforas sem dúvida muito
distantes, como plenitude do ser que implica a plenitude de vida e de

22. Deus é o que é (cf. Ex 3,14) Somente ele É . C f. CEC 213. Cf. TOM ÁS DE
A Q U IN O , STb I 13,11, “o que é” é o nome mais próprio de Deus. I 12,14, D eus é o
“ipsum esse subsistens”.
23. Já TACIANO, Ad Graecos 5 (BAC 115,578); A G O STIN H O , De àv. Dei X I 10
(CCL 48,332): “Quae habet [Deus] haec et est”; cf. todo cap. 10 (330-332); De Trm 1 12,26
(66), entre outros lugares.
24. LRENEU, Adv. Haer, n 13,3 (SCh 294,116); cf. ulteriores exemplos dos Padres,
assim com o referências sobre a procedência dessas cláusulas em A. ORBE, Antropologia de
san Irineo, M adrid, 1969,95. N otem os que Sto. Tomás fala em primeiro lugar da simplici­
dade quando começa a falar do que Deus é ou mais propriam ente, do que não é, STb I q.
3, Introd. Cf. também BASÍLIO, C. Eunom. I I 29 (SCh 305, 122).

368
'U N ITA S IN TRINITATE” DEUS U NO NA TRINDADE. SUAS PROPRIEDADES E M ODOS DE ATUAÇÃO

autopossessão, plena identidade consigo mesmo na completa liberdade.


Ser, portanto, inteiram ente pessoal25.
A “definição” de Deus como amor nos acrescenta uma precisão defi­
nitiva a essas enumerações das propriedades divinas. Com efeito, o ser em
plenitude e a plena autopossessão adquirem uma expressão máxima na
doação perfeita de si. Só quem se possui pode dar-se inteiram ente, e nessa
autodoação manifesta-se a plena posse de si. O ensinamento bíblico do
Deus amor, que dá seu sentido último às outras metáforas já indicadas,
mostra-nos que a perfeição divina não se vive no modo de fechamento ou
isolamento, mas na doação no amor. N ão se trata de que haja prim eiro
autopossessão e logo amor e autodoação. O amor diz-nos antes como é
essa autopossessão divina, que penetrada por ele completamente dá-lhe o
sentido definitivo. A capacidade e a realidade do am or infinito devem ser
consideradas portanto pertencentes ao mais íntimo do ser de Deus. Cada
n m a das pessoas tem esse amor infinito a seu modo; mais ainda, não só o
tem, senão que, como dizia Ricardo de São Vítor, cada pessoa é seu amor.
Mas esse am or é também comum aos três — é o que mostra sua unidade
profunda. D istinta em sua modalidade, a plena doação amorosa de si aos
outros dois, expressão da plena autopossessão, é comum às três pessoas. O
amor é assim o que une e distingue, como vimos ocorrer com a relação.
Fm Deus o que une é o que distingue, ser é doação e doação implica o
outro, não é solipsismo. A triunidade do ser divino abre-nos assim o sen­
tido do ser, a identidade na diferença, a autopossessão na autodoação26.
A “definição” do Deus am or mostra-nos assim o que para nós é
o mais profundo do ser de Deus, da essência divina que não podemos abar­
car e que fica sempre no mistério. Ainda que os textos neotestamentários
que indicamos se refiram mais diretam ente à doação ad extra, deixam-nos

25. X. ZUBIRI, Elbombrey Dias, M adrid, 1984,168: “D eus, realidade absolutamente


absoluta é dinamiridade absoluta, é ‘um dar de si’ absoluto”. Cf. o contexto. ID . Naturaleza.
Historia. Dias. M adrid, 91987,481: “D eus é... um puro amor pessoal. Como tal, extático e
efusivo”.
26. Cf. P. GILBERT, La semplicità dei principie. Introduziane alia metafísica, Casale
M onferrato, 1992,356: “A metafísica é a busca do princípio mais universal e mais neces­
sário. O universal é comunhão; o necessário é estabelecido entre o que é de fato diferen­
te. A tensão entre o uno e o múltiplo ou entre o idêntico e o diferente é assunto daquilo
que é ao mesmo tempo universal e necessário, uno e diverso, vale dizer, do espírito capaz
de tomar-se em ato na ação expressa. A substância que subsiste em conformidade a esta
estrutura do espírito é a “pessoa”. A pessoa se reconhece idêntica a si sendo valorizada
diante do outro, isto é, diferente, no interior de uma troca gratuita, de cuja ‘pessoa’ é a
única origem”. Cf. também ID . Kenose et Ontologie (cf. nota 64 do cap. anterior), esp. 195-
200.

369
D A “ECONOMIA" À 'TEOLOGIA”

entrever algo da própria vida divina (da Trindade econômica à Trindade


imanente). A unidade e a unicidade divinas, precisamente porque Deus
deve ser pensado como plenamente pessoal, não podem ser entendidas
como solidão e isolamento27. 0 Pai dá ao Filho e ao Espírito essa plenitude
de ser no amor que só pode existir nessa comunicação. O D eus pessoal não
é, pois, unipessoal, é tripessoal, porque à sua essência pertence o amor:
Entre os homens o amor funda uma estreita e profunda comunhão de pessoas,
mas não uma identidade de essência. Ao contrário, Deus é amor, e sua essência
é absolutamente simples e única; por isso possuem as três pessoas uma única
essência; sua unidade é unidade da essência, e não só comunhão de pessoas.
Essa Trindade na unidade da única essência é o mistério inesgotável da Trin­
dade que nunca podemos compreender racionalmente, mas somente em forma
de esboços (in Ansätzen) podemos fazer acessível à compreensão crente28.

Podemos indagar se a incom preensibilidade da essência divina não


significa a incompreensibilidade do am or divino29, a incompreensibilidade
da total autopossessão na comunicação e plena comunhão que ao mesmo
tempo funda e expressa a unidade originária do Pai, do Filho e do Espí­
rito Santo. Na teologia católica recente achamos nos últim os tem pos um
consenso sempre mais amplo na identificação, embora com matizes di­
versos, do amor com a essência divina30. Santo Agostinho já tinha iden­
tificado o amor com a Trindade em sua famosa sentença: “vides Trinitatem

27. KASPER, op. cit., 364: “Assim a pessoa não existe de outro modo a não ser na
autocomunicação a outros e no reconhecimento por parte de outras pessoas. P o r isso é
impossível que a unidade e unicidade de Deus, precisamente porque desde o princípio
Deus é pensado como pessoal, seja entendida com o solidão. Aqui está o fundam ento mais
profundo pelo qual a concepção teísta de um Deus impessoal não se pode m anter”. No
mesmo sentido, L. SCHEFFCZYCK, Der Gott der Offenbarung, 433: “o Deus que em sua
essência é amor pessoal não pode propriam ente ser pensado senão como trinitário”.
GRESHAKE, op. cit., 198-200, o amor é ao mesmo tempo o que distingue e o que une;
cf., nesse contexto, a citação de BOAVENTURA (199): “Si omitas divina est perfectissima,
necesse est quod habeat pluralitatem intrinsecam” (Q. dis. de Trm,., 2,2s.).
28. KASPER, op. cit., 365; 372: “A unidade de Deois... como comunhão do Pai, do
Filho e do Espírito Santo determina-se como unidade no amor”.
29. A partir da revelação do Novo Testamento podemos corrigir um apofatismo
unilateral: A. MELANO, Analogia Christi. Sul parlare interno a Dio in ima teologia cristiana,
Rkercbe teologkhe 1 (1990) 29-73,72: “... de Deus podem dar-se nomes, e entre eles o mais
alto é o que lhe reconheceu João: agapé... A agapé é, na verdade, ‘id quo magis cogitari
nequit* e é portanto o nome mais próprio de D eus”.
30. Além dos autores que acabamos de citar, cf. BALTHASAR, Tbeologik II Wahreh
Gottesy 130: “o amor idêntico com a essência de D eus”; esse amor é que dá sentido a tudo;
cf. Ibid., 140-141, 163; SCHEFFCZYCK, op. cit., 413: Deus, em sua essência, é amor

370
"UNITAS IN TR IN ITATE’ . DEUS U N O NA TR IN D AD E. SUAS PROPRIEDADES E M O D O S DE ATUAÇÃO

si caritatem vides”31. A unidade mais profunda que pode existir no Deus


trin o é pois a do am or32.
Unidade e distinção não são portanto contraditórias. A única essência
divina não deve ser vista em oposição à pluralidade das pessoas, nem como
prévia a elas, senão que pode ser considerada como a mesma unidade e
comunhão entre elas33, o que não significa que essa unidade seja conseqüên-
cia da união dos três. A unidade e a trindade são ambas absolutamente
primárias e originais, nenhuma é “prévia” à outra. Ambas têm seu único
fundamento do Pai que por sua vez só é na relação ao Filho e ao Espírito.

pessoal; B. M O N D IM , La Trinità misten d'amore. Trattato di teologia trinitaria. Bologna


1993,295-299; C. PO RRO , Dio nostra sahezza. Introduzione al mistero di Dio 309ss- STA-
GLIANO, II misten dei Dto vivente, 597. COM ISSIO TH EO LO G IC A IN TER N A TIO -
NALIS. op. d t , 14: “O mistério de Deus e do homem manifesta-se como m istério dê
caridade”. São significativos os parágrafos que dedica ao Deus amor o C IC (218-221.231)-
“Ipsum Dei esse est am or... Ipse aetem e est am oris commerdum: Pater, Filius et Spiritus
Sanctus, nosque destinavit u t huius simus partidpes” (221); Ipsum D ei esse est veritas et
am or” (231). N o campo da Igreja ortodoxa, cf. D . STANISLOAE, Diosesamor Salamanca
1984,88; e também Y. SPITERIS, La dottrina trinitaria nella teologia ortodoêsa. Autori t
prospettive, in A. AMATO (ed.), Trinità in contesto, Roma 1993, 45-69, esp. 58 sobre J
Zizioulas: “O amor não é uma conseqüênda ou um a ‘propriedade’ da súbstânda divinaT
mas o que constitui a sua súbstânda”.
31. Trin VIR 8,12 (287); também Trin XV 17,29 (504): “substantia ipsa sit caritas et
cantas ipsa sit substantia sive in patre sive in filio sive in spiritu sancto”- cf. XV 6 1014721
PEDRO LOMBARDO, Sent. 1 32,5: “E t sicut in Trinitate dilectio est, quae est Pater, Filius
e t Spiritus sanctus, quae est ipsa essentia deitatis; e t tarnen Spiritus sanctus dilectio est ”
32. BERNARDO de Claraval, De diligendo Deo, 12,35 (PL 182,996): “Quid vere in
summa et beata illa Trinitate summam et ineffebilem conservat unitatem nisi caritas? Lex
e rit ergo, et lex Domini, caritas, quae Trinitatem in unitate quodammodo cohiber et collieat
in vinculo pads”. 8
33. Cf. notas 11 ss. Também B. FORTE, Trinidad como historia. Ensayo sobre el Dios
cristiano, Salamanca, 1988,18s; W. PANNENBERG, Teologia sistemática I, 361s: “O trata­
m ento dessa idéia [da essência divina enquanto tal]... terá de mostrar... se é possível pensar
o conceito da essênda divina como um compêndio sintético {Inbegriff) das relações entre
Pai, Filho e Espírito, diferente daquela outra idéia ontológica de essência que Agostinho se
julgava obngado a pressupor”; 362s: “Para a fé trinitária do cristianismo, a única coisa que
im porta é a vida concreta, diferendada em si mesma, da unidade divina. D e modo que a
doutrina da Trindade é efetivamente um ‘monoteísmo concreto’. Com isso diferenda-se de
determinadas idéias acerca do Deus uno, localizado no abstrato mais além, e acerca de uma
unidade abstrata que exclui de si toda pluralidade, e que de feto converte o Deus uno em
um mero correlato do mundo do mais aquém e da pluralidade do finito”. Sobre o mesmo
“monoteísmo concreto” ver KASPER, op. d t., 358s; cf. também S. de CURA, El Dios
único cristiano. Apologia dei monoteísmo trinitário, Burgense 37 (1996) 65-92 esp 88
sobre a origem da expressão “monoteísmo concreto”. K. RAHNER, Ü ber die Eigênart des
christlichen Gottesbegriff, in Schriften zur Theologie 15, Zürich-Einsielden-Köln 1983
185-194,190. Deus não é só o doador, senão o próprio dom. Isso só é possível ein uma’
concepção trinitária.

371
DA "ECO NO M IA" À “TEOLOGIA"

M etodologicam ente poderá ser válido tom ar uma ou outra como ponto de
partida, mas sempre com a consciência de que não há prioridade de uma
ou outra, nem lógica nem ontologicam ente. O m onoteísm o cristão é o
m onoteísm o do Deus trino revelado em Jesus. Deus é em si mesmo uni­
dade e pluralidade, e p o r isso, na superabundância de seu amor, do amor
que é em si mesmo, pode dar-se ao m undo, que não é necessário, e, ao ser
am or em si mesmo, pode ser am or para nós.
Em últim o term o, toda a doutrina trinitária pode converter-se em um
com entário a ljo 4,8.1634. O amor, em nossa experiência humana, é por
um a parte o que une35, mas por outra é o que deixa ao outro ser o que é.
C ria comunhão, mas não absorve nem elimina as diferenças. O que ama é
e deixa que o outro seja36. Se podemos aplicar a Deus analogicamente essa
experiência humana (e com consciência da diferença fundamental, a que já
aludimos, entre a unidade da essência divina possuída pelos três e a comu­
nhão entre os homens, por íntim a que queiramos concebê-la), podemos
pensar como o amor funda ao mesmo tem po a máxima união na máxima
distinção das pessoas. Assim se pode falar de Deus que vem a nós e se fez
um conosco (Deus conosco), do Espírito derramado em nossos corações
(D eus em nós) sem atentar de nenhum modo contra a sua transcendência
e contra a incompreensibilidade de seu mistério (Deus Pai, Deus acima
de nós)37. D eus habita em uma luz inacessível (lT m 6,16), a Deus ninguém
viu, só o Filho único o deu a conhecer (Jo 1,18). A partir dessa revelação
em Jesus nos vemos confrontados com a luz de seu mistério. Por isso so­
m ente no am or temos acesso ao conhecimento de Deus. O que ama nas­
ceu de Deus e o conhece, e, ao contrário, o que não ama não pode conhecê-
lo (cf. ljo 4,7-8)38.

34. Cf. R. PREN TER, Der G ott, der Liebe ist. Das Vehältnis der G otteslehre zur
Christologie, ThLZ 96 (1971) 401-413,403: “Deus éamor. Por que não simplesmente Deus
nos amou...? P or que não simplesmente Deus nos tem um am or infinito, pois nos amou
tanto? Por que não simplesmente: D eus está cheio de amor por nós? P or que: Deus é
am or”? Citado por PANNENBERG, op. d t , 461; cf. também, T h. SÖ D IN G , “G ott ist
Liebe”. 1Joh 4,8.16 als Spitzensatz biblischer Theologie, in ID . (ed.), Der lebendige Gott.
Studien zur Theologie des Neuen Testaments (Festschrift W. Tbäsmg), M ünster, 1996,306-357.
35. AG O STIN H O , Irin. VIII 10,14 (290): “Quid est ergo amor, nisi quaedam vita
duo aliqua copulans vel copulare appetens, amantem sdlicet e t quod am atur?”
36. Deus criador, que cria por amor, dá à criatura sua própria consistência.
37. Cf. GRESHAKE, op. d t , 532. Cf. já ATANÁSIO, Serap. I 28 (PG 26, 596).
38. Cf. E. JÚ N G E L , Gott als Geheimnis der Welt, 446ss. Jüngel observa que re­
conhecemos o Deus amor quando envia seu Filho ao mundo, com o que se expõe à falta de
amor. Assim Deus mostra-se não só como o que ama, senão como o acontecimento mesmo

372
■UNITAS IN TRINITATE". D EU S U NO NA TRINDADE. SUAS PROPRIEDADES E M ODOS D E ATUAÇÃO

4. A unidade de Deus e a unidade dos homens

A unidade do Deus trino é tal que nela, acentuando devidamente todas


as diferenças, os homens têm cabimento. A chamada “oração sacerdotal”
de Jesus (Jo 17) oferece a base para tal consideração, de tal modo que
podemos tomá-la como ponto de partida de nossa reflexão’9.
Os primeiros versículos do capítulo tratam da glorificação mútua do
Pai e do Filho; culminam no v. 5, com a súplica de Jesus de ser glorificado
pelo Pai com a glória que tinha junto dele antes da criação do mundo.
Nessa glorificação manifesta-se a glorificação mesma do Pai. Trata-se da
revelação escatológica do ser etemo de Deus. Deus possui desde sempre a
glória de sua divindade: esta consiste na glorificação mútua do Pai e do
Filho, e agora abarca também o Filho enquanto homem, já que sua huma­
nidade, na ressurreição e exaltação, entra na plena participação da vida
eterna de Deus. Precisamente porque a humanidade de Jesus é introduzida
nessa “doxologia” eterna, pode-se introduzir nela também os crentes.
“Neles” é glorificado o Filho (Jo 17,10). Essa glorificação acontece mediante
o “outro Paráclito”, o Espírito da verdade que Jesus enviará e que guiará
os discípulos à verdade total, porque lhes comunicará o que ouviu (Jo 16,14:
“Ele m e dará glória, porque receberá do meu e o comunicará a vós”). A
doutrina trinitária tem como finalidade a doxologia, enquanto parte da glo­
rificação mútua do Pai e do Filho. Mas nessa glorificação os homens são
introduzidos; essa glorificação significa nossa salvação: “a glória do nome de
Deus”, dizia Ireneu40. A finalidade última do homem está na glorificação
do D eus uno e trino e em ser acolhido na vida plena da Trindade. Isso é
possível porque essa unidade divina não elimina a diferença, mas a assume
em si. Em Deus é o mesmo ser e ser com o outro3 4091. Por isso Deus pode
acolher em seu seio a criatura, sem que esta deixe de ser tal42.

do amor. Deus não quer amar-se a si mesmo sem amar o mundo. N a missão do Filho ao
mundo, Deus entra na carência de amor, e assim faz digno de am or o homem odioso. Á
identificação de Deus com o am or não perm ite a redução feuerbachiana: o am or só é ver­
dadeiro quando vem de Deus. Cf. também a análise do amor m uito rica e sugestiva em
Ibid., 430-446.
39. Cf. KASPER, op. c it, 369ss. Inspiro-me nele para o que segue.
40. Adu. Haer. m 20,2 (SCh 211,388).
41. Cf. KASPER, op. cit., 373.
42. FuncUfbe nisso a relação intrínseca entre a criação e a Trindade. Só porque em
Deus existe a altjfcdade pode fazer surgir o outro, a criatura, sem fazer-se dependente dele.
Deve-se a firm # a unidade da ação divina na criação, porque, sendo as três pessoas
inseparáveis, Deus é um só princípio das criaturas. A G O STIN H O o formulou de modo

373
DA ‘ ECONOMIA” À “TEOLOGIA"

Dessas características do ser de Deus uno e trino deriva nossa salva­


ção, que é nossa relação com ele e a participação na sua vida. A vida eterna
está no conhecim ento de Deus: “que te conheçam a ti, único Deus verda­
deiro, e ao Jesus C risto que enviaste” (Jo 17,3). Jesus, o enviado do Pai,
acha-se assim indissoluvelmente associado ao “único D eus”. A unidade do
Pai e do Filho funda por sua vez a união dos crentes com Deus, e a deles
entre si: “Que todos sejam um: como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, que
eles também sejam um em nós para que o mundo creia que me enviaste.
Dei-lhes a glória que me deste, para que sejam um, como nós somos um”
(fo 17,21-22). A unidade funda-se no dom que Jesus fez aos seus da “gló­
ria” que o Pai lhe deu, na participação da vida divina que dele recebeu43.
Toda a ação de Jesus na terra tende a criar essa união, a fazer de todos os
homens filhos de Deus. Também, segundo Jo 17,26, o am or com que o Pai
amou Jesus deve estar entre os cristãos. A unidade entre os cristãos funda-
se na unidade da Trindade44.
Chama a atenção que essa oração sacerdotal não mencione o Espírito
Santo, do qual se fala amplamente nos capítulos precedentes. Precisamen­
te por isso não se pode pensar que a união dos homens com o Pai e o Filho,
e a presença deste entre os seus, faça-se prescindindo da ação do Paráclito,
Espírito da verdade. Sem que queiramos fazer concordâncias precipitadas,
deve-se notar que as noções de glória e de Espírito estão associadas re-

lapidar em Trin. 14,7 (CCL 50,36) "... sicut inseparabiles sunt, ita inseparabiliter operentur”.
Isso não significa que esse princípio não contenha em si mesmo a distinção, e que portanto
na ação inseparável das pessoas cada uma não participe do modo que lhe é próprio. Cf. L.
F. LADARIA, Antropologia teologica, Casale M onferrato-Roma, 1995, 64-69.
43. Cf. R. SCHNAKENBURG, EI evangeUo segun sanjuan, Barcelona, 1980, Hl,
238ss. A glória e a unidade vão também juntas em Rm 15,5-6. Sobre a relação entre a
unidade do Pai e do Filho e a dos homens, expressa na glória, D . M A RZO TTO , Lunità
degli uomoni nel vangelo di Giovanni, Brescia, 1977, 192; “Jesus e o Pai são uma coisa só,
expressa na glória que o Pai deu a Jesus, porque sempre o amou, mas Jesus concedeu essa
glória aos discípulos e esses creram nele. A unidade originária se abre no acolher aos ou­
tros, que se tomam um a só coisa também eles ‘em nós', ‘como nós’, ‘a partir do momento
que somos uma coisa só'; cf. ibid., 198s. Ver Y. SIMOENS, La gloire d’aimery Structures
stylistiques et interprétatives dam le Discours de la Cène Qn 13- 17) Roma, 1981, 248: “‘Um ',
na relação ao Pai e a Jesus, eles recebem com o dom a glória que define a identidade mesma
de Deus”. Ver também GS 24, embora o texto não se refira diretam ente à introdução dos
homens na unidade divina.
44. Cf. C O N C ÍLIO VATICANO II, L G 1,4, com a famosa citação de S. CIPRIANO
de Cartago, De or. Dom. 23: “de unitate Patris et Filii et Spiritus Sancd plebs adunata”. Cf.
também TERTU LIA N O , De Bapt. 6,1 (C C L 1,282): “Ubi tres, id est pater e t filius e
spiritus sanctus, ibi Ecclesia, quae trium corpus est”.

374
“UNHAS IN TRINITATE'. DEUS UNO NA TRINDADE. SUAS PROPRIEDADES E MODOS DE ATUAÇÃO

petídamente no Novo Testamento (cf. 2Cor 3,6-9; E f 3,16; lP d 4,14)45.


Uma tradição patrística considerável mantém essa íntim a união, e chega
mesmo à identificação pura e simples das duas noções46. A unidade com o
Pai e o Filho funda-se em todo caso na comunicação que Jesus faz da glória
com a qual é um só com o Pai. Por isso podemos falar com propriedade,
e não só em sentido figurado, da verdadeira participação dos homens na
vida de Deus uno e trino. Essa unidade é que perm ite que Deus venha a
nós na linha descendente do exitus, Pai-Filho-Espírito, que se inverte em
movimento ascendente do reditus: “Pois por ele (Cristo) uns e outros te­
mos acesso ao Pai no mesmo Espírito” (Ef 2,18), já que Jesus com sua
morte derrubou todo muro de separação entre os homens e em particular
entre os judeus e os gentios (cf. E f 2,11-17). Sendo que a unidade divina
se dá na distinção das pessoas, também a unidade que à imagem da Trin­
dade se funda na Igreja recolhe as diferenças e não busca a uniformidade
(cf. IC or 12,4-30; Rm 12,4-9; E f 4,9-13). A unidade entre os homens só
pode dar-se no respeito das peculiaridades das pessoas, dos grupos e povos.
“Unum Deum in Trinitate et Trinitatem in unitate veneremur” (Sím­
bolo Quicumque, DS 75). N ão podemos pensar na unidade divina sem que
a Trindade esteja presente, nem refletir sobre ela esquecendo a unidade.
Cada afirmação que só leve em conta um desses aspectos deverá sempre
ser corrigida por sua complementar. A unidade no amor tem sua fonte na
pessoa do Pai, que por sua vez não é senão em relação com o Filho e o
Espírito Santo; o que nos ajuda a pensar simultaneamente nos dois aspec­
tos inseparáveis do ser divino. O amor está no “princípio” da Trindade, e,
através do Filho, é também o que fecha o círculo dela, o Espírito Santo
amor em pessoa, enquanto fruto do amor do Pai e do Filho47. E se tudo

45. Cf. F. X. DURRW ELL, ÜEspritSamtdeDieu, Paris, 1983,22s; ID .,U Père. Dieu
en son mystère, Paris, 1988,28: “O poder, a glória e o Espírito são inseparáveis’.
46. Cf. JU ST IN O , Dial.Trypb. 49,2-3 (BA C116,383); cf. J. P. MARTIN, EIEspíritu
Santo en los orígenes dei cristianismo, 196-200, sobre a relação entre esses conceitos e também
com os de kbáris e dynamis; IR IN EU de Lion, Ado. Haer. IV 14,1-2 (SCh 100, 538-546).
Tanto a glória com o o Espírito Santo operam a comunicação com Deus; HILÁRIO de
Poitiers, In M t 2, 6-, 12,23 (SCh 254-110; 172). 7r.ft. 56,6 (CSEL 22,172); AMBROSIAS-
TER, Com. 2Cor 3,18 (CSEL 8 1 ,2 19s). A passagem mais interessante é a de GREGÓRIO
de N issa, Hom. in Cant. XV (PG 44, 1.117): “O vínculo dessa unidade é a glória (cf. Jo
17,22). P o r outra parte, examinando com atenção as palavras do Senhor se descobrirá que
o Espírito Santo é denominado glória. Diz assim, com efeito, Dei-lbes a glória que meétste
(Jo 17,22). Efetivamente tinha lhes dado aquela mesma glória quando lhes disse: Rccjki o
Espírito Santo (Jo 20,22)”.
47. A partir de consideração semelhante observa PANNENBERG, op. d t , 466, que
no Pai enquanto origem e no Espírito Santo como amor (essênda comum) é mais mani­
festa a essênda divina, a “divindade em seu conjunto”.

375
DA “ECONOMIA" À TEO LO G IA "

quanto existe vem d o amor criador do Deus uno e trino, no transbordar do


eterno intercâm bio de amor que é a vida íntima de Deus, podemos pensar
que a doação de si no desprendimento é o sentido últim o de tudo o que
existe. “O sentido do ser é o desprendimento do amor.”48 Assim falou-se
ultim am ente na teologia católica de um a “ontologia trinitária”49, na qual o
amor é visto como o núcleo mais profundo que dá sentido a toda a reali­
dade50. Sendo a Trindade, também enquanto tal, a origem da criação, essas
considerações estão justificadas. Valem naturalmente, antes de tudo, para
os homens. A entrega de Jesus revela-nos o mistério de am or e de entrega
que constitui a vida divina. Seguir a Jesus, por quem tudo foi feito, signi­
fica, como recorda o Concílio Vaticano II (GS 41), fazer-se mais homem.
Significa entrar no verdadeiro sentido da vida, que parte da vida mesma de
Deus. Esse prim ado da pessoa e da relação permite integrar aquelas expe­
riências que não entram em nenhum sistema: a solidão e a culpa, a tristeza
e o fracasso51.
A revelação desse sentido últim o do ser acontece na vida de Jesus,
imagem e revelador do Pai, o qual, p or sua vez, é o princípio, a raiz e a
fonte da Trindade. Quem vê Jesus vê o Pai. Quem vê Jesus pode entender
a Deus como o to tal desprendimento do amor. Vida, m orte e ressurreição
de Jesus abrem -nos o mistério da comunhão trinitária no amor desprendi­
do. No etem o am or trinitário está a condição de possibilidade da kenose

48. KASPER, op. cit., 377. Veja-se todo o contexto.


49. A expressão foi cunhada por K. HEM M ERLE, Tbesen zu einer trinitariscben On-
tologky Einsieldeln, 1976. A ontologia que deriva da fé deve ser seu ponto de partida no
amor, no dar-se. O pensam ento da Trindade descobriu o amor como o núcleo nos mistérios
do cristianismo, mas tam bém em tudo o que é (Ibid. 36). Do mesmo autor, Aufden góttlicken
Gottzudenken; Unterwegs mitdem dreieinen Gott, Freiburg, 1996. Ver também GRESHAKE,
op. cit, 454-464; STAGLIANÒ, op. cit., 602-606; COMISSIO T H EO LO G IC A IN TER -
NATIONALIS, op. cit., 14: “Manifesta-se ao mundo o mistério de Deus e do homem
como m istério de caridade. Dessa consideração, sob a guia da fé cristã, pode-se deduzir
uma nova visão universal de todas as coisas... N o centro dessa ‘metafísica da caridade’ já
não se coloca, como na filosofia antiga, a substancia em geral, senão a pessoa, cujo ato
perfeitíssimo e sumamente perfectivo é a caridade”.
50. HEM M ERLE, op.cit, 55: “O que não perdoou o seu próprio Filho, mas que o
entregou por todos nós, como é possível que não nos dê com ele todas as coisas? (Rm 8,32).
Essa experiência fundamental da fe funda-se na m orte e na ressurreição de Jesus. Experi-
nfiinta que Jesus entregou-se por nós, mas que sua entrega é a entrega de Deus, que nela dá
sedado ao ser, que fica completamente transform ado porque é dado desde seu últim o fun­
damento, é assumido no ritmo de sua auto-entrega (de Deus)”. Ibid., 57: “o que crê em
Cristo crê em um am or que está no começo, no centro e no final”.
51. C f KASPER, op. c it, 377. Ibid.: “E finalmente uma interpretação que leva à
esperança, uma antecipação da doxologia escatológica sob o véu da história”.

376
'UNITAS IN TRINITATE". DEUS UNO NA TRINDADE. SUAS PROPRIEDADES E M ODOS DE ATUAÇÃO

temporal do Filho. Chegar à definição do ser como doação e como des­


prendimento só tem sentido a partir de Jesus revelador do Pai, e com isso
do mistério da santa Trindade, único Deus. Nesse m istério somos introdu­
zidos mediante a fé e o batismo que recebemos em nome (não nos no­
mes52)35 do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e pelo qual somos associados
à morte e ressurreição de Jesus e passamos a formar parte da Igreja que é
seu corpo. A Igreja tem por lei o novo mandamento de amar como Cristo
nos amou (cf. Jo 13,34) e que é o germe mais forte de unidade para a
humanidade inteira (cf. LG 1,9).

OS MODOS DE ATUAR E AS PROPRIEDADES


(ATRIBUTOS) DE DEUS

O Deus uno e trino, que a fé cristã confessa, mostra-se-nos em sua


revelação aos homens como “o que é” em plenitude de autopossessão, no
etem o intercâmbio de amor entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. E n­
tende-se melhor a doutrina sobre as propriedades (atributos) de Deus, ma­
nifestadas em seu operar, à luz da revelação trinitária, a única que nos
mostra o ser profundo de Deus. Assim, esse ensinamento tradicional, a
que dedicaremos atenção limitada55, pode ser considerado um prolonga­
mento de nossa reflexão sobre a essência divina.
Com freqüência encontramos no caminho a questão da incompreen-
sibilidade de Deus. É uma conseqüência que deriva de sua infinidade54.
Santo Tomás, como já tivemos ocasião de observar, referia-se a como Deus
“não é”, mais do que a como é55. Sua existência é conhecida por seus efei­
tos, mas devido à desproporção entre os efeitos e sua causa não podemos

52. Cf. C IC 233; já Catbecimus Romanus D 2,10; cf. KASPER, op. d t , 3S9.
53. O s manuais recentes diferem notavelmente na atenção concedida a esse tema.
Dedica-lhe espaço m uito considerável SCHEFFCZYCK, op. d t., 419-507, depois de ha­
ver tratado dos problem as essenciais da teologia trinitária. M uito mais brevem ente
STAGLIANÒ, op. d t., 597-601; GRESHAKE, op. d t., 214-216; ambos sublinham o ca­
ráter trinitário dessas propriedades
54. Cf. G REG O RIO de Nissa, Contra Eunomio, m ,l, 103 (JA EG ERII, 38). Vale a
pena reproduzir um texto de PANNENBERG, op. d t., I, 368: “Os grandes desvarios no
campo do conhecim ento de Deus não se produzem quando os homens são consdentes de
que seu entendim ento está sempre abaixo da grandeza desse objeto, mas quando tomam
equivocadamente suas limitadas idéias pela coisa mesma”.
55. STb I 2, começo. Mas de D eus podemos também fazer proposições afirmativas:
STb 1 13,12. Cf. JOÃO DAMASCENO, Defide ortbod. 1 2.4 (PG 94, 793. 799).

377
DA “ECONOMIA" À “TEOLOGIA"

conhecê-lo perfeitam ente segundo sua essêndaS6. Talvez por essa razão
encontrem os freqüentem ente elencos de propriedades de Deus, longas
enum erações que indicam que com uma só expressão não se pode abarcar
D eus. Essas propriedades divinas deduzem-se na Escritura dos modos e
atuação de D eus e formam um todo com elas. Evidentem ente, tampouco
com muitas palavras se esgota a imensidade divina, mas não há dúvida de
que a enumeração e a diversidade de aproximações ajuda a dar a impressão
mais viva de que nos encontram os diante do que nos ultrapassa. Assim já
o fez a Escritura. E precisamente a riqueza transbordante do amor de Deus
a que se m anifesta na abundância das propriedades divinas, que não são
mais do que um a articulação daquela idéia central. D e modo algum deve­
mos pensar que essas longas enumerações se oponham ao princípio da
simplicidade divina. E antes a impossibilidade humana de captá-la real­
m ente que obriga a uma pluralidade de aproximações.
Nas páginas a seguir não pretendemos um estudo exaustivo dessa ques­
tão. Contentam o-nos com algumas indicações sobre os ensinamentos da
Bíblia e da tradição, para depois passar a refletir sobre os problemas atuais
em tom o da imutabilidade e da impassibilidade divinas.

1. Algumas noções bíblicas

As afirmações mais profundas sobre Deus na Bíblia não se encontram


em tuna linguagem abstrata acerca dele, mas nas orações. Quando louva
ou suplica, quando fida com o coração, quando experimenta sua bondade
infinita, é então que o homem se aprofunda mais em seu mistério. N ão
podemos ficar surpresos com o feto de que no Antigo Testamento seja
precisamente o livro dos Salmos o que nos fale com mais freqüência das
grandezas de Deus e enumere seus grandes benefícios aos homens, que
mostram os caracteres de seu ser. Assim por exemplo, o SI 103[102], 3-9:
O que perdoa todas as suas culpas, cuida de tuas doenças, resgata tua vida do
fosso, coroa-te de amor e ternura; o que farta de bens tua existência, enquanto

56. STb I q .l, a.2. Sobre a incompreensibilidade de Deus nos apologetas, pode-se ver
PANNENBERG, Die Aufhahme des philosophischen G ottesbegrifls ais dogmadsches
Problem der Érühchrisdlichen Theologie, in Grmdfragen systematiscber Tbeologie, G õttm gen,
1967, 296-346, 332ss; cf. também BASILIO de Cesaréia, De Fide (PG 31,681): “N em as
palavras podem descrever nem a mente pode abarcar a majestade e a glória de Deus; não
podem ser expressas nem com uma palavra nem com um conceito, nem podem ser com­
preendidas com o são”.

378
"UNÍTAS IN TRINITATE". DEUS UNO NA TRINDADE. SUAS PROPRIEDADES E MODOS DE ATUAÇÃO

tua juventude se renova como a águia. Javé é o que faz obras de justiça e
outorga o direito aos oprimidos... Clemente e compassivo, Javé, tardo para a
cólera e cheio de amor; não se zanga etemamente nem para sempre guarda
rancor...

Também o SI 145[144] é um canto de louvor a Deus que o homem


não pode abarcar:
Grande é Javé, digníssimo de louvor, insondável em sua grandeza... Será feita
memória de tua imensa bondade, tua justiça será aclamada. Clemente e compas­
sivo Javé, tardo para a cólera e grande em amor, bom é Javé para com todos, e
suas ternuras sobre todas suas obras.... Teu reino é um reino por todos os
séculos, teu domínio é um domínio por todas as gerações. Javé é fiel em todas
as suas palavras, amoroso em todas suas obras (SI 145,3.6.7-9.13-14; cf. tam­
bém SI 71 [70], 72[71], 84[83], 146[145].

A fidelidade do amor divino também está expressa nos profetas (cf.,


por exemplo, J r 31,3; Os 2,21-22). São antes das obras de Deus, da expe­
riência de seu am or a seu povo, de que tratam esses textos, mas daí se passa
a afirmações sobre a grandeza e o poder divinos. Essas passagens e outras
semelhantes parecem comentários ou ecos de Ex 34,6-7, a resposta à invo­
cação de Moisés: “Javé, Javé, Deus misericordioso e clemente, tardo para
a cólera e rico em amor e fidelidade, que mantém seu am or por m il gera­
ções. Que perdoa a iniqüidade, a rebeldia e o pecado...”.
A riqueza insondável do ser de Deus manifesta-se no fato de ser ele,
por antonomásia, o “vivente”. Aele pertence a vida (cf. Jr 10,10; SI 36[35],10;
Dn 6,27 etc.); n o Novo Testamento a vida aparecerá em C risto (cf. Jo
1,16). Mas outras expressões mostram o poder de Deus, sua transcendência
sobre a terra: D eus é incompreensível (Jó 36,26); é o Altíssimo (SI 7,18;
73[72],11; 78[77],56); seu poder é onipotente; o que quer, ele o faz (SI
115[114],3; Jr 32,17; Jó 42,2). A onipotência de Deus manifesta-se em sua
fidelidade ao pacto estabelecido com seu povo (cf. SI 111 [110]). A partir
das maravilhas da criação, Javé aparece vestido de esplendor e majestade
(SI 104[103],lss; cf. 113[112],4). O s céus proclamam a glória infinita de
Deus (SI 19[18],2), mas não podem contê-lo: “Se os céus e os céus dos céus
não podem conter-te, quanto menos esta casa que construí” (lR s 8,27; cf.
Is 66,1). A onipresença de Deus acha-se expressa no SI 139[138],7-8: “Aonde
irei e onde poderei fugir de teu rosto? Se subo até os céus, aí estás tu, se
deito nos infernos, ali te encontras”. Seu trono está nos céus, seus olhos
379
DA “EC O N O M IA ' À "TEOLOGIA”

vêem tudo, suas pálpebras exploram os filhos de Adão (SI 11 [10],4; cf.
14[13],4;Jr 23,24).
A permanente onisciênda de Deus é posta em relevo em Sr 42,18-20:
“Ele sonda o abismo e o coração humano, e penetra seus cálculos secretos.
Pois o Altíssimo penetra todo saber e fixa seus olhos nos sinais dos tempos.
Anuncia o passado e o futuro, e descobre os vestígios das coisas secretas...”.
Deus não passa, existe desde sempre e para sempre, diferentemente de suas
obras; SI 102[101],25-28: “De idade em idade duram teus anos. Desde os
tempos remotos fundaste a terra, e os céus são a obra de tuas mãos: eles
perecem, mas tu ficas. M as tu és sempre o mesmo, não têm fim teus anos”.
Por isso Deus é chamado com freqüênda a “rocha”, metáfora que exprime a
solidez do apoio que oferece ao homem (cf. SI 18[17],32, entre outras muitas
passagens). A eternidade do amor e o poder de Deus estão expressos no Salmo
136[135] que contempla em um olhar de conjunto a criação do mundo, a
libertação do Egito e o cuidado amoroso de Deus por suas criaturas57.
M uitos desses temas encontram-se reunidos em um texto do Ecle­
siástico (Sirácida):
O que vive etemamente tudo criou por igual
Só o Senhor será chamado justo.
A ninguém deu o poder de proclamar suas obras
pois quem poderá rastrear suas maravilhas?
O poder de sua majestade, quem o calculará?
Quem poderá contar suas misericórdias?
Nada há que tirar, nada que acrescentar
e não se podem rastrear as maravilhas do Senhor.
Quando o homem crê acabar, então começa,
quando pára, fica perplexo...
A misericórdia do homem só alcança o seu próximo,
a misericórdia do Senhor abarca o mundo todo.
(Sr 18,1-7.12).

A santidade de Deus é outra de suas propriedades mais características.


Segundo o SI 22 [21],4, D eus é “o Santo”. A santidade aplica-se somente a
Deus, no Antigo Testamento. O santo é originariamente o separado desse

57. C f, para m aior inform ação, ROVIRA BELLO SO , op. cit., 253-292; E A. PAS­
TO R , La lógica de lo inefable. Una teoria teológica sobre el lenguaje dei teísmo cristiano, Roma,
1986, 131-147; O , González de CARDEDAL, La entraria dei cristianismo, Salamanca,
1977, 43-59.

380
“UNITAS IN TRINITATE”. DEUS U NO NA TR INDADE. SUAS PROPRIEDADES E M ODOS DE ATUAÇÃO

mundo. Por isso convém a Deus. Mas essa separação implica a inexistência
de pecado e de impureza. Assim a santidade é a expressão do mistério
divino, é o bem e a bondade do mesmo Deus, que se converte em misté­
rio de salvação enquanto essa santidade é comunicada. Duas vezes no livro
do Levítico (Lv ll,4 4 s; 19,2) diz-se que essa santidade deve ser imitada
pelo homem. Se em uma ocasião trata-se antes de preceitos de natureza
ritual (primeiro texto), na segunda passagem a imitação da santidade de
Deus identifica-se com o cumprimento dos mandamentos divinos: no res­
peito aos pais, na observância do sábado, na abstenção da idolatria. Deus
jura por sua santidade, que parece assim identificar consigo mesmo. (cf.
Am 4,2). A santidade de Deus mostra-se sobretudo no am or e na miseri­
córdia: Os 11,9: “N ão executarei o ardor de minha cólera, não tom arei a
destruir Efraim, porque sou Deus e não homem: em m eio de ti eu sou o
Santo e não gosto de destruir”. H á, pois, uma relação intrínseca entre a
santidade de Deus e seu amor misericordioso pelos homens. A santidade
tem relação com o poder e a majestade de Deus (Is 6,1-6) mas não se trata
de um poder destruidor, e sim de seu am or que salva perdoando. Por essa
razão, Deus enquanto salvador58 converte-se no santo de Israel (cf. Is 1,4;
10,20; 43,3.14)59.06
O Novo Testamento não nos oferece uma lista tão grande de pro­
priedades divinas. Mas alguns desses elementos repetem-se. O rosto de Deus
deve ser visto em Jesus. Em suas palavras, em suas ações, revela-nos a bonda­
de e a misericórdia de Deus (cf. por exemplo, as três parábolas em Lc 8,38-
49; Lc 15: da ovelha perdida, da dracma perdida e do filho pródigo); por isso
prefere os pobres e abandonados, os publicanos e os pecadores. Da miseri­
córdia de Deus fala-se expressamente em Lc 1,45.78 (cf. também 6,36**,
entre outras passagens). Deus é “rico em misericórdia” (E f 2,4).
A onipotência de Deus está expressa também com clareza: “Tudo é
possível para Deus” (Lc 1,37; cf. M t 19,26). Deus faz valer sua onipotência
para salvar os homens. Deus é, segundo o Apocalipse, “o que é, o que era,
o que há de vir” (Ap 1,4.8; 4,8); são claras as reminiscências de Ex 3,1461.
As vezes, em conexão com as expressões do Apocalipse que acabamos de
mencionar, aparece repetido no mesmo livro o qualificativo pantocrator,

58. Cf. Ex 15,2, Deus é salvador porque libertou o povo do Faraó.


59. C f G. ODASSO, Santidad, em P. ROSSANO; G. RAVASI; A. GIRLANDA,
Nuevo dicàonario de teologia bíblica, Madrid, 1990, 1.779-.1788.
60. C f M t 5,48, um texto paralelo onde o Pai celestial é chamado “perfeito”
61. Em outras passagens aparece Deus como existente antes dos séculos ou “éons”;
c f E f 3,9; Cl 1,29; é o rei dos séculos ITm 1,17. Cf. também Hb 1,8 que cita o SI 45[44],7.

381
DA “ECONOMIA" À “TEOLOGIA"

que a tradição usará com tanta freqüência (Ap. 1,8; 4,8; 11,17; 15,3; 16,7.14;
19,6.15; 21,22; cf. 2C or 6,18). Em alguns desses mesmos contextos Deus
é chamado o “santo” (Ap 4,8; 6,10; 3,7; 15,4; 16,5a ). Repete-se a expressão
em outras passagens do Novo Testamento, com referência a Deus (cf. Jo
17,11; lP d 1,15; ljo 2,20) e também a Jesus (Cf. Lc 1,35; M c l,24;Jo 6,29;
A t 3,14; 4,27). Deus Pai e também Jesus, segundo o Apocalipse, são “o
prim eiro e o último” (Ap 1,6; 1,17; 2,8; 21,6; 22,13); é uma expressão que
pode sem dúvida relacionar-se com a eternidade divina. Para Deus, “mil
anos são como um dia e um dia como m il anos” (2Pd 3,8; cf. SI 90[89],4).
A eternidade divina aparece também em Rm 16,26.
Deus é “invisível” ainda que dado a conhecer por Jesus: cf. Jo 1,18;
C l 1,15; lT m 1,17; 6,15s. É im ortal (cf. lT m 1,17; 6,16); incorruptível
(Rm 1,23, cf. Sb 2,2 3s). É igualmente o “Altíssimo”; assim, segundo Lc
1,32, Jesus é o “Filho do Altíssimo” e o Espírito é a força dele (cf. Lc
1,35; cf. também A t 7,48; M c 5,7 = Lc 8,28). A transcendência divina fica
assim firmemente acentuada. Mas ao mesmo tem po os hom ens podem
chegar a ser “filhos do Altíssimo” segundo a palavra de Jesus em L c 6,35
(cf. SI 82[81],6).
Além disso, Deus é “bom ”, mais ainda, é o único a quem convém
propriam ente esse q ualificativo (Mc 10,18). É veraz, o único que possui a
justiça (cf. Rm 3,4-5).
Poderíamos seguir ainda essa enumeração, mas facilmente poderia
tom ar-se um simples acúmulo de dados. E interessante notar que muitas
dessas características e propriedades de Deus, que indicam claram ente sua
transcendência sobre todo o criado, podem ser comunicadas aos que crêem
em Jesus sem que a transcendência divina se questione em absoluto. Em
Jesus podemos ser participantes da justiça de Deus (cf. Rm 3,26). Nele
temos acesso à vida que somente Deus é, à vida etem a que é participação
da eternidade mesma de Deus (cf. Jo 6,39s.54-58). Nele também partici­
pamos do amor divino (Cf. ljo 4,7-21). Para o que crê “tudo é possível”,
como nada há de impossível para Deus, salvas todas as distâncias (cf. Mc
9,23; M t 21,21 = M c 11,23). Essas duas dimensões das propriedades divi­
nas vão juntas no N ovo Testamento, que por uma parte continua subli­
nhando, como o Antigo Testamento, a transcendência divina, mas ao mesmo
tem po nos fala da participação na vida de Deus (cf. Jo 10,34; SI 82 [81],6:
“sois deuses”) pela ação salvadora de C risto e pelo dom do Espírito. A
proximidade de Deus pode ser salvífica precisamente porque supera infirn-26

62. Nesses últimos textos não se usa bdgios mas bósios.

382
"UNHAS IN TRINITATE”. D EUS UNO NA TRINDADE. SUAS PROPRIEDADES E M O D O S D E ATUAÇÃO

tam ente todas as forças e capacidades humanas. Na transcendência e na


proximidade de Deus está a possibilidade de salvação para o homem. Não
bastam nem uma nem outra se desligadas eiitre si. Deus mesmo (o Pai,
pelo contexto), e não somente Jesus, é, em algumas ocasiões, especialmen­
te nas cartas pastorais, o “salvador”, que quer que todos os homens se
salvem e cheguem ao conhecimento da verdade (lT m 2,3-4; cf. também
lT m 1,1; 4,10; T t 1,3; 2,10; 3,4). A grandeza e a majestade divinas, e, por
outro lado, a proximidade aos homens são duas constantes que, diferente­
m ente acentuadas, vamos encontrar nos textos da tradição.

2. Propriedades divinas na tradição

Em Clemente Romano achamos também uma combinação das pro­


priedades que nos falam do Deus grande e onipotente e das que levam em
consideração o perdão e a misericórdia divina:
Tu, Senhor, criaste o universo;
Tu és fiel em todas as gerações,
justo nas sentenças,
admirável por sua força e grandeza, sábio ao criar,
inteligente ao estabelecer solidamente o que existe,
bom com as coisas visíveis,
fiel com os que confiaram em ti,
misericordioso e compassivo63.

Basílio de Cesaréia introduz uma distinção entre as propriedades di­


vinas que terá sua importância nas épocas posteriores. Por uma parte, Deus
é incorruptível, imortal, invisível: trata-se de propriedades negativas; mas
tam bém dizemos que é “justo, bom, criador, juiz e coisas semelhantes.
Assim como os termos precedentes significavam a negação e a recusa do
que é estranho a Deus, esses de agora expressam uma afirmação e a existência

63. CLEM ENTE Romano, Ad Cor. 60.1 (FP 3,148s); também Ibid. 59,3: “... para
conhecer-te a ti, o único Altíssimo nas alturas, o Santo, que descansas entre os santos, que
hum ilhas a soberba dos orgulhosos, que enriqueces e empobreces, que matas e fazes viver,
que crias a vida, que vês nos abismos, testemunhas as obras humanas, e socorres os que
estão em perigo...”. Notemos o caráter de invocação que têm essas enumerações das pro­
priedades divinas, inspiradas nas orações bíblicas; cf. ROVIRABELLOSO, op. cit., 336.0
m esm o veremos em outros textos.

383
DA "ECONOMIA" À “TEOLOGIA"

do que pertence a Deus”64.56 G regório de Nissa indica com o próprias das


três pessoas divinas a incorruptilidade, a integridade, a felicidade, a bonda­
de, a sabedoria, o poder, a justiça, a santidade66. Agostinho, também no
contexto do louvor e da invocação, acumula uma impressionante série de
propriedades divinas:
Ó sumo, ótimo, onipotentíssimo, misericordiosíssimo, justíssimo, muito se­
creto e muito presente, belíssimo e fortíssimo, estável e inapreensível, imu­
tável e que tudo muda, nunca novo e nunca velho, renovador de toda coisa,
que levas os soberbos à decrepitude. Sempre ativo, sempre em repouso; re­
colhes sem que necessites de nada; guias, enches e conservas; crias, nutres e
fazes amadurecer; buscas quando na realidade nada te falta; amas mas não te
agitas, estás ciumento e ao mesmo tempo seguro; te arrependes sem sofrer, a
ira te sobrevém, mas estás em paz; mudas as obras mas não teu desígnio;
recebes o que encontras e nunca o tinhas perdido; nunca necessitado, te ale­
gras com o ganho; nunca avarento, mas exiges os juros. Emprestamos a ti
para que nos devas, e quem tem algo que não seja teu? Pagas as dívidas sem
dever nada, as perdoas sem perder nada. E que dissemos, Deus meu, minha
vida, minha doçura? O que se diz quando se fala de ti? Mas ai dos que não
falam de ti! Porque estão mudos ainda que falem66.

Encontram os de novo uma mescla de propriedades negativas e po­


sitivas. E enquanto algumas podem ser consideradas abstratas, a p artir da
consideração do “ser supremo”, em outras ocasiões, como na referência
à ira e ao arrependim ento, é clara a inspiração na história concreta da
Bíblia. Em bora a filosofia do platonismo, em particular do platonismo
médio e do neoplatonismo, seja sem dúvida um elem ento que influi no
pensamento dos Padres, não é certam ente o único nem o determ inante67.
O texto de Agostinho mostra a dificuldade de falar de Deus a par da
necessidade de fazê-lo.
João Damasceno (morto por volta de 749) compraz-se especialmente
em oferecer-nos longas listas de propriedades divinas. Escolhemos uma
entre várias que se encontram em sua De Fide ortodoxa, dessa vez no con­
texto de uma profissão de fé:

64. Contra Eunom. 1 9 (SCh 299,200); cf. 10 (206).


65. De Fide (JAEGER III 1,66). Também Or. Catb. Magna, 24 (PG 45,64).
66. A G O STIN H O , Conf. 1 4 (CCL 27,2-3) e também Ibid. 3 (2).
67. Pode-se ver em geral sobre esses problemas, com referência especial aos apologetas,
PANNENBERG, op. cit.

384
■UNHAS IN TR IN ITATE'. D E U S U N O NA TRINDADE. SUAS PROPRIEDADES E M ODOS DE ATUAÇÃO

Cremos em um só Deus, um só princípio, carente de princípio, incríado,


ingênito, que não conhece destruição nem morte, etemo, imenso, incircuns-
crito, não limitado por nenhum termo, de potência infinita, simples, não-
composto, incorpóreo, livre de fluxo de paixão e de toda mndauça e alteração,
invisível, fonte de toda bondade e justiça, luz intelectual e que não foi acesa,
potência não compreendida em nenhuma medida, que só é abarcada por sua
vontade, que é criadora de todas as coisas, causa das coisas visíveis e das in­
visíveis, conservadora de tudo, que tem providência sobre tudo, que contém
e rege todas as coisas, superior em essência, vida, palavra e pensamento; é a
mesma luz, a mesma bondade, a mesma vida...68.

Santo Tomás, com o já indicamos, pensa que devemos falar de como


Deus não é, antes de falar como é. O caminho é portanto negativo; trata-
se de elim inar m entalmente o que não lhe convém. Assim se chega à sim­
plicidade de Deus, perfeição, bondade, infinitude, imutabilidade, eterni­
dade, unidade69. Depois de te r considerado o que Deus é (ou melhor, o que
não é) em si mesmo, passa-se às operações de Deus, as que permanecem
nele e as que dão lugar a um efeito exterior. Assim, fala em p rim e ir o lugar
do que corresponde ao intelecto de Deus (sua ciência e sua vida) e depois do
que corresponde à sua vontade (seu amor, sua justiça e sua misericórdia).
Por últim o, seu poder e sua felicidade70.
Essa tradição foi recolhida pelo Vaticano I na Constituição Dei Filias:
A santa, católica e apostólica Igreja romana crê e confessa que um só é o
Deus verdadeiro e vivo, criador e senhor do céu e da terra, onipotente,
eterno, imenso, incompreensível71, infinito em intelecto e em vontade e em
toda perfeição, o qual, sendo uma substância espiritual singular, completa­
mente simples e imutável, deve ser considerado distinto do mundo na rea­
lidade e na essência, totalmente feliz em si mesmo e por si mesmo, e ineía-
velmente excelso sobre tudo o que existe ou pode conceber-se além de si
mesmo (DS 3.001).

68. JO Ã O DAMASCENO, De Fide ortbodoxa, I 8 (PG 94,808); cf. também outras


listas em I 2; I 5; 1 14 (792, 801; 860).
69. Cf. STb I q. 3-11. Ver o q u e já observamos na nota 5 5 .0 princípio da “teologia
negativa” vem do Pseudo-D IO N ISIO Areopagita: de D eus são verdade as negações; as
afirmações slo imperfeitas, cf. De cael Hier. Ò 3 (SCh 58,79.C f 77-81).
70. C f. STb I qq. 14-26. Com essa classificação Tbmás combina os atributos “me­
tafísicos” com os que se mostram na revelação divina.
71. C f. já o Cone. IV de Latrão, Deus é incompreensível e inefável.

385
D A 'ECONOM IA" À 'TE O LO G IA '

Nessa linha de propriedades divinas não se encontra nenhuma que se


refira à atuação concreta de Deus em relação aos homens: sua bondade72,
sua misericórdia, seu amor... Essa omissão explica-se tomando em conta a
estrutura da Constituição Dei Filius, que fala em prim eiro lugar de Deus
criador de todas as coisas, que pode ser conhecido pela luz da razão; mas
em seguida acrescenta que Deus, “por sua bondade infinita”, ordenou os
homens a um fim sobrenatural, isto é, à participação nos mesmos bens
divinos que o ser humano não pode chegar a conhecer por sua inteligência73.
Para esse conhecimento precisa-se da revelação divina. Portanto, não se
pode dizer que a consideração da bondade divina e do am or de Deus pelos
homens esteja fora da visão do Concílio.
Tentaram-se diversas maneiras de classificar essas propriedades ou
atributos divinos74. Creio que não vale a pena deter-nos demasiado nessas
classificações. Em último term o, todas apontam para a plenitude da vida e
a plenitude do ser de Deus, que é a plenitude do amor. D aí a tendência de
negar em Deus todas as nossas limitações, tanto físicas como espirituais e
morais. Deus é o imenso e o etem o, diante de nossa limitação e de nossa
mortalidade, mas é o que ama e perdoa, diante de nosso ódio e de nos­
so rancor, é o que, como dizia Oséias (11,9), perdoa porque é Deus e não
homem, é o “santo” por excelência. E o Deus bom diante de nossa maldade,
o fiel diante de nossa infidelidade, o veraz diante de nossa mentira. Os dois
aspectos vão juntos. Não pode dar-se a doação total se não na plena liberda­
de da posse de si e na exclusão de toda classe de limitações. Inversamente,
essa plenitude não pode ser a do egoísmo e do fechamento, mas a de doação

72. Porém da bondade se filiará na continuação, DS 3.002, antepondo-a à onipotên­


cia, ao tratar mais diretamente da criação: “H ic solus verus Deus bonita te sua et ‘omnipotenti
virtute’ non ad augendam suam beatitudinem nec ad aquirendam...”.
73. DS 3.006: “... sed quia Deus ex infinita bonitate sua ordinavit hominem ad finem
supematuraalem, ad participanda scilicet bona divina quae humanae mentis intelligentia
omnino superant”. V er também 3.007ss; 3.025.
74. Cf. J. AUER, Gott - der Eme ttnd Dreinde, Regesnburg, 1978, 356-580, que os
classifica segundo se referem ao ser de Deus e a sua vida e ação. E ntre os primeiros distin­
gue três grupos: os que se referem à asseidade, aos transcendentais e à negação do que
pertence à criatura. E ntre os segundos, distingue também três grupos, segundo se relacio­
nam com o conhecim ento, com a vontade e com a ação e o ser do Deus trino. Segue-o em
parte J. M. ROVIRA BELLOSO, op. d t., Salamanca 1993,338ss. Segundo W. PÂNNEM-
BERG, Teologia sistemática 1,426ss, alguns atributos pertencem à idéia de Deus em geral,
outros à ação concreta conhedda pela revelação. L. SCHEFFCZYCK, op. d t., Aachen,
1996,419-508, distingue também entre as propriedades que conhecemos pela ação sahífica
e as que pertencem ao ser de Deus. Podemos rem eter a essas obras para um estudo deta­
lhado da questão.

386
"UNHAS IN TRIN ITATE'. DEUS UNO NA TRINDADE. SUAS PROPRIEDADES E M O D O S DE ATUAÇÃO

plena. A autocomunicação e a vida acontecem em primeiro lugar em Deus


mesmo; esse é o pressuposto da comunicação aos homens.

3. Algum problemas atuais

Falamos há pouco das limitações que nos faz sentir nossa experiência,
tanto na ordem física como na ordem moral. Deus está livre de umas e de
outras. Mas aqui devemos deter-nos brevemente. Com efeito, a tendência
legítima e justificada de negar em Deus qualquer limitação leva a pensar
que existe na perfeição pura, de que há de excluir-se toda mudança e todo
sofrimento. Vimos que segundo o Vaticano I Deus é imutável75 e perfeita­
mente feliz, e não criou o mundo nem para adquirir felicidade nem para
aumentá-la. Deve ficar claro que todas essas afirmações têm um sentido
óbvio, são vinculantes para nós e portanto não são objeto de discussão. O
problema é se com elas se disse tudo. Porque se pode e se deve acrescentar
outras considerações, que de modo disperso já apareceram no decurso de
nossas exposições anteriores: em seu am or pelos homens, o Filho de Deus,
obediente à vontade do Pai, encam ou-se e sofreu a paixão e a morte igno­
miniosa da cruz. N ão podemos duvidar de que o que sofre e morre é o
Filho de Deus, ainda que seja certam ente enquanto homem76. Essa é a
consequência inevitável que se deduz da unicidade do sujeito em Jesus, que
assumiu hipostaticamente a humanidade.
A reflexão patrística chegou à idéia da apatbeia de Deus para excluir
dele todas as paixões e todos os sofrimentos humanos, em clara oposição
à visão da mitologia grega. Mas essa não foi sua única palavra. Citam-se
com freqãência alguns textos de Orígenes, em que, partindo da kenose do
Filho, que sofreu por nós a “paixão da caridade”, chega-se a afirmar que
também o Pai, o Deus do universo, sofre de alguma maneira, toma sobre
si, como fez Jesus, nossa maneira de ser. Assim, ao compadecer-se de nós,
coloca-se por amor em uma situação incompatível com a grandeza de sua
natureza ao tomar sobre si, por nós, os sofrimentos humanos77. Claro que

75. Já o declarou o Concílio de N icéia (DS 126) e também o XVI de Ibledo, de 693
P S 569).
76. N otem os a fórm ula, referida certam ente a Jesus, de INÁCIO de Antioquia, Ad
Rom. 6,3 (FP 1, 156-157): “Perm ití-m e ser im itador da paixão de meu Deus”.
77. Hom. Ez. 6,6 (SCh 352,229-231). “Em primeiro lugar, sofreu porque desceu e se
manifestou. Q ual é portanto essa paixão que sofreu por nós? A paixão da caridade. E o Pai
mesmo, Deus do universo, cheio de indulgência, de misericórdia e de piedade, não é ver­

387
DA “EC O N O M IA ” À “TEOLOGIA“

não se tra ta de atribuir a D eus, de maneira indiferenciada, as paixões hu­


manas, nem de abandonar a doutrina da apatbeia. Esta se pressupõe, mas
se com pleta à luz da revelação. A impassibilidade divina não pode ser a de
um D eus insensível aos destinos do mundo. P o r isso a “paixão da caridade”
coloca o Filho e o Pai mesmo em um a situação que não corresponde à sua
grandeza. Não há confusão entre a natureza humana e a divina, mas pre­
cisamente o sofrimento de D eus é o próprio de sua natureza, que é o amor78.
E o sofrimento de quem se compadece, de quem não carece de entranhas,
não de quem seja lim itado79. N a Idade Média também Sto. Anselmo notou
a dificuldade de conciliar a imutabilidade divina com a misericórdia80.
Ultim am ente voltou-se a colocar o problema da impassibilidade de
Deus em relação com sua imutabilidade. Diante da idéia certamente questio­
nável de um Deus unicam ente transcendente e que está acima das vicissi­
tudes do mundo, foi posta em relevo a implicação de Deus na história, sua
participação nos destinos do homem. Segundo o Antigo 'Ièstam ento, Deus
se encoleriza, castiga, arrepende-se (C f Gn 6,6; Ex 32,7-14; SI 78[77],34ss;
Is 63,7ss; 64,lss; J r 18,7-10 etc.). Mas sobretudo deve-se considerar o fato
de que o Filho de Deus se encarnou, partilhou por inteiro a sorte dos
homens, “provado em tudo menos no pecado” (Hb 4,25; cf. Concílio de
Calcedônia, DS 301). K. Rahner defendeu a idéia da mutabilidade de Deus
“no outro” para tom ar a sério a afirmação de João 1,14, “o Verbo se fez
carne”. É o Logos o sujeito desse fazer-se, segundo a afirmação bíblica, ele
é o sujeito da mudança e da transformação que experimenta em sua vida
humana, em nossa história. Ele que em si mesmo é imutável pode mudar
“no outro”, na criatura, quer dizer, pode fazer-se homem, fazer-se outra
coisa no tempo. N ão se deve entender essa possibilidade como um sinal de

dade que sofre de alguma maneira? Ou ignoras que enquanto se ocupa de assuntos huma­
nos experimenta uma paixão humana? Deus toma sobre si teus modos de ser, o Senhor teu
Deus, com o um homem toma seu filho sobre si (cf. D t 1,31). Deus toma portanto sobre si
nossos modos de ser como o Filho de Deus tomou nossas paixões. O Pai mesmo não é
impassível. E, se se roga a ele, tem piedade, se compadece, experimenta uma paixão de
caridade, e se coloca em uma situação incompatível com a grandeza de sua natureza, e por
nós tom a sobre si as paixões humanas”. C f, também, Hom Ez. 13,2 (SCh 352,411); Com.
Mt. 10,23 (SCh l62,259); Selm Ez. 16(PG 13,812). Vêr ainda o breve, porém substancial,
estudo de M . FÉDOU, La “souflrance de Dieu” selon O rigène, em E. A. LIV1NGSTONE
(ed.), Studia Patrística XXVI, Louvain, 1993, 24Ó-250.
78. C f FÉDOU, op. d t.
79. C f ORÍGENES, SeL In Ezecbielem 16 (PG 13,812); também HILÁRIO de Poitiers,
Tr. Ps. 149,3 (CSEL 22, 867-968), pensa que a imutabilidade divina se “tem pera” com a
mutabilidade humana, em concreto com a penitênria e a conversão.
80. C f Pmskgion V ffl (ed. SCHM ITT, 1 ,106).

388
"UNITAS IN TRINITATEV DEUS U NO NA TRINDADE. SUAS PROPRIEDADES E M ODOS DE ATUAÇÃO

necessidade interna, de limitação, mas justamente ao contrário, como o


cúmulo da perfeição divina, que seria m enor se o Filho de Deus não pu­
desse converter-se em algo menor permanecendo o que é81. N ão se trata,
pois, de pôr em dúvida a perfeição divina e a imutabilidade, que de si lhe
corresponde, mas de acentuar a capacidade de sair de si por am or aos
homens. A necessidade de reexaminar o sentido dessas duas propriedades
divinas vem da consideração cristológica. O mistério da encarnação obriga
a refletir sobre o sentido da mutabilidade divina, e o da cruz sobre o da
impassibilidade. Vê-se assim a relação íntima que há entre os dois. Na
realidade, talvez fosse mais adequado reintroduzir a noção bíblica da “fi­
delidade” de Deus a seus desígnios de amor, que duram de idade em idade
(SI 33 [3 2], 11), no meio de todas as vicissitudes da história humana.
Em nossa exposição da revelação do mistério do am or divino na cruz,
já encontramos alguns autores que de maneira diversa abordaram o tema
do sofrimento divino. Pode Deus permanecer insensível à dor, à solidão
de seu Filho Jesus na cruz? E ao sofrimento de tantos filhos seus ao longo
dos tempos e lugares?82Se por um lado certas noções sobre a imutabilidade
e a impassibilidade divinas podem parecer dificilmente compatíveis com a
imagem de Deus que nos apresenta o Antigo Testamento, e sobretudo o
Novo, por outra parte deve-se evitar os evidentes excessos de considerar que
Deus se realiza ou aperfeiçoa na história, que seu ser divino não se acha
totalmente constituído desde a eternidade, que só na participação no destino
humano alcança sua verdadeira plenitude. E claro que a mutabilidade ou o
sofrimento em Deus não pode vir de falta de ser ou de imperfeição, senão da
perfeição de seu ser. Dissemos que a plenitude do ser de Deus se manifesta
em seu amor, na doação intratrinitária e também na doação para fora, na

81. Cf. Grundkurs des Glaubens, 217-221. BALTHASAR, El mistério pascual, em


MySal m /2 ,144-335; diante dos hereges, “a imutabilidade de Deus tinha de ser afirmada
de tal modo que não implicasse que ao encamar-se o Logos preexistente não ocorria nele
algo real; e havia que evitar que esse sucesso real degenerasse em teopasquismo”. ID.,
também, em Teodramática UI. Las persorw dei drama. El Hrnnbre em Cristo, M adrid, 1993,
480: “N ão é Deus em si mesmo o que muda, mas é o Deus imutável que entra em relação
com o ser criado, e essa relação dá a suas relações internas uma nova face, face, a bem da
verdade, não puram ente externa, como se essa relação exterior não o afetasse realm ente...”.
Cf. também i<L, Tbeologik U, Einsiedeln, 1985, 258-259.
82. Além dos autores já citados no cap. 3, cf. K. KITAMORI, Teologia dei dokr de Dios,
Salamanca, 1975; J. GALOT, Dieu souffri-t-il? Paris, 1976; W. KASPER, Der Gott, 235-
245; A. GESCHE, Dieu pourpenser I. Le mal, Paris, 1993. Pode-se ver o exame de algumas
posições de teólogos atuais em S. de Cura ELENA, El “sufrimiento” de Dios en el trasfbndo
de la pregunta por el mal, RET 51 (1991) 331-373. Já antes, J. VIVES, La inmutabilidad
de Dios a examen, Actualidad Bibliográfica 14 (1977) 111-136.

389
DA “ECONOMIA" À "TEOLOGIA"

criação e sobretudo na salvação dos homens, como transbordamento livre


do amor infinito que é em si mesmo. A “paixão de Deus” é assim a passio
caritatis de que falava Orígenes, a capacidade infinita de compadecer-se de
quem padece e de pôr-se a seu lado e em seu lugar.
A Comissão Teológica Internacional, no documento que já conhece­
mos bem, Teologia — Cristologia — Antropologia, abordou esse problema,
e recolheu algumas idéias que aqui insinuamos. Deve-se afirm ar as idéias
da imutabilidade e da impassibilidade de Deus que encontram sua raiz na
Escritura e na tradição, mas não devem ser concebidas de m odo que Deus
permaneça indiferente aos acontecimentos humanos. Vale a pena repro­
duzir as passagens m ais significativas:
Deus que nos ama com amor de amizade quer que se lhe responda com amor.
Quando seu amor é ofendido, a Sagrada Escntura fala da dor de Deus, e ao
contrário, se o pecador se converte a ele, fala de sua alegria (cf. Lc. 15,7). “A
saúde da dor é mais próxima da imortalidade do que o pasmo daquele que
não sente” (Agostinho, Enarr.in Ps., 55,6). Os dois aspectos se completam
mutuamente.. Descuidando-se de um deles, desfigura-se o conceito do Deus
que se revelou.
Em nossos tempos, as aspirações dos homens buscam uma divindade que
certamente seja onipotente, mas que não pareça indiferente; mais ainda, que esteja
como comovida misericordiosamente pelas desgraças dos homens, e nesse
sentido “com-padeça” com suas misérias. A piedade cristã sempre recusou a
idéia de uma divindade a que de nenhum modo chegassem as vicissitudes de
suas criaturas, e inclusive está propensa a conceder que, como a compaixão é
uma perfeição nobilíssima entre os homens, também existe em Deus de modo
eminente e sem imperfeição alguma, a mesma compaixão, isto é, “a inclina­
ção da comiseração, não a falta de poder” (Leão J)m, e que ela é conciliável
com sua felicidade eterna. Os Padres chamaram a essa misericórdia perfeita
em relação às desgraças e dores dos homens “paixão de amor”, de um amor
que na paixão de Jesus Cristo levou ao cumprimento e venceu os sofrimentos
(cf. Gregório o Taumaturgo, Ad Theopompum)8 8435.

83. Cf. nota 7. Os textos citados se encontram nas páginas 24-26 do texto espanhol
e nas páginas 20-24 do texto latino.
84. DS 293: “Inclinatio fiiit miserationis, non defectio potestatis”. Refere-se o texto
diretamente à Encarnação. Mas parece justo tom ar desse acontecimento os critérios para
entender toda a atuação de Deus em relação aos homens. E meu esse com entário entre
parênteses.
85. Cf. João Paulo II, Dives m misericórdia, 7 AAS 72. 1980, 1.199ss.

390
“UNITAS IN TRINITATE". DEUS UNO NA TRINDADE. SUAS PROPRIEDADES E M ODOS DE ATUAÇÃO

Por isso, nas expressões da Sagrada Escritura e nas dos Padres, e nas tenta­
tivas modernas que se deve purificar no sentido explicado, certamente há
algo a reter.

As mesmas idéias em outras semelhantes foram acolhidas em mo­


m entos mais recentes no magistério de João Paulo II:
A concepção de Deus como ser necessariamente perfeitíssimo exclui certa-
mente de Deus toda dor derivada de limitações ou feridas; mas nas profun­
dezas de Deus dá-se um amor de Pai que ante o pecado do homem, segundo
a linguagem bíblica, reage até o ponto de exclamar: “Estou arrependido de
ter criado o homem” (Gn 6,7)... Com freqüência o livro sagrado nos fala de
um Pai que sente compaixão pelo homem, como partilhando sua dor. Em
definitivo, essa inescrutável e indizível “dor”de Pai vai gerar sobretudo a ad­
mirável economia do amor redentor de Jesus Cristo. Na boca de Jesus redentor,
em cuja humanidade se verifica o “sofrimento” de Deus, ressoará uma palavra
em que se manifesta o amor eterno, cheio de misericórdia: “Sinto compai­
xão” (cf. Mt 15,32; Mc 8,2)w.
O “sofrimento” de Deus não implica, portanto, im perfeição nem
necessidade, senão capacidade infinita de amar: capacidade do Filho de
carregar sobre si todo o nosso sofrimento, capacidade do Pai de “compai­
xão”. E, ao contrário, uma expressão de sua perfeição máxima, de sua ple­
nitude de vida e de ser. E claro que só à luz da revelação de Deus em Jesus
C risto se pode enfocar desse modo a questão das propriedades divinas.
Ainda que seja certo que se deve afirmar a possibilidade do conhecimento de
Deus a partir das criaturas (cf. DS 3.004), e o que por esse caminho pode
descobrir-se de Deus não é irrelevante para a teologia, não é menos certo
que nossas idéias sobre Deus devem estar abertas à revisão profunda à luz da
manifestação definitiva do ser de Deus que se nos dá na revelação cristã8/.

86. Domimtm et vivificantem, 39; ibid., antes da passagem citada no texto: “Ele ‘con­
vencerá no que se refere ao pecado’ Qo 16,8)— N ão deverá revelar a dor, inconcebível e
indizível que, como conseqüência do pecado, o Uvro Sagrado parece entrever... nas profun­
didades de Deus e, em certo modo, no coração mesmo da Trindade?”. Também, ibid., 41:
“Se o pecado gerou o sofrim ento, agora a dor de Deus em Cristo crucificado recebe sua
plena expressão humana p o r meio do Espírito Santo. D á-se assim um m istério paradoxal
de amor: em Cristo sofre Deus rejeitado pela própria criatura”. Cf. tam bém DM 4.5.8.
87. Por uma parte a revelação Bíblica deve corrigir as idéias que possamos formar
filosoficamente de Deus. M as o conhecim ento filosófico, já que a fé há de ser racional,
pode às vezes criticar tam bém as imagens apressadas que podem julgar-se legitimadas pela
revelação (cf. D . SATTLER; T h. SC H N EID ER , D ottrina su Dio, in T h . SCHNEIDER
(ed.), Nuovo corso di dogmatica, Brescia, 1995,1 65-144, 130.

391
12
O conhecimento “natural” de Deus
e a linguagem da analogia

O CONHECIMENTO DE DEUS A PARTIR DA CRIAÇAO

Temos acesso ao conhecimento da Trindade somente pela revelação


acontecida em C risto que acolhemos na fé. Só assim podemos vislumbrar
a profundidade do m istério divino revelado em Cristo de que Deus, na sua
infinita bondade, quis tom ar-nos participantes. M as o próprio ensinamento
da Igreja nos ensina a possibilidade de um conhecimento de Deus a par­
tir da criação. Fala-se às vezes, ainda que se deva precisar o sentido do
termo, em conhecimento "natural” de Deus, porque adquirido dos dados
da "natureza”; esse conhecimento contrapõe-se ao que podemos alcançar
pela revelação “sobrenatural”. Essa terminologia parece fundar-se na Cons­
tituição Dei Filius do Vaticano I, que, precisamente depois de ter afirmado
a possibilidade do conhecimento de Deus a partir da criação, afirma que
Deus se revelou a si mesmo e seus decretos por outra via sobrenatural (cf.
DS 3.004); esta corresponde ao fim sobrenatural a que Deus destinou o
homem, a participação em seus mesmos bens divinos (cf. DS. 3.005). Por
isso pode-se falar de supematuralis revelatio (DS 3.006)1. Daremos uma
visão de conjunto sobre as afirmações da Escritura sobre a possibilidade de
conhecer a Deus a partir das criaturas, para depois passar à definição dessa
possibilidade no Vaticano I.

1. Sobre o conceito de “sobrenatural” no Vaticano I pode-se ver H . J. POTTM EYER,


Der Glaube von dem Anspruch der Wissenschaft. Die Konstitution über den katholischen Glauben
aDei Filius” des Ersten Vaticanischen Konzils und die unveröffentlicben theologischen Voten der
vorbereitenden Kommission, Freiburg-Basel-W ien, 1968,100-107. Cf. também P. SEQUERI,
II Dio affidabile. Saggio di teologia fondamentale, Brescia, 1996, 55ss.

393
DA “ECONOMIA" À TEOLOGIA"

1. O conhecimento de Deus a partir da criação na Escritura

A possibilidade do conhecimento de Deus através da criação encon­


tra-se já na Escritura. Através da criação, Deus deixou entrever algo de si
mesmo. Segundo o SI 19[18],2, “o céu proclama a glória de Deus, e o
firmamento apregoa a obra de suas mãos”. O lugar clássico sobre a matéria
no Antigo Testamento é Sb 13,1-5:
São vãos por natureza todos os homens que ignoram a Deus e não foram
capazes de conhecer pelos bens visíveis Aquele que é, nem, vendo as obras,
conheceram o artífice... E se, seduzidos por sua beleza, os tomaram por deu­
ses, saibam quanto os supera o Senhor deles todos... E se foi seu poder e
eficiência que os deixou surpreendidos, deduzam daí quanto mais poderoso é
Aquele que os fez, pois da grandeza e formosura da criatura chega-se, por
analogia, a contemplar o seu autor...2.

O autor do livro parte da possibilidade do conhecimento de Deus a


partir das coisas criadas, mas não justifica esse princípio, que dá como
suposto; nem também explica por que passos se pode chegar a esse conhe­
cimento. Constata que de fato nem todos os homens chegam a ele. Nesse
contexto, os que não conhecem a Deus por suas obras não são os “ateus”3,
mas os pagãos que se deixam levar ao culto dos elementos naturais ou dos
astros, até o ponto de confundi-los com Deus, o Criador de todos eles (Sb
13,2-3). A partir das criaturas pode-se chegar a Deus “por analogia”,
àvaXÓ7 <oç. Pela prim eira vez encontra-se aqui esse term o aplicado ao
processo humano de conhecimento de Deus: indica-se com ele certa pro­
porção, evidentemente muito distante, entre os dois termos da compara­
ção4.5 Alas esses homens não são capazes de descobri-la, não conseguem
dar o salto das criaturas para o Criador. A beleza das coisas criadas os
subjuga*, ficam presos no que contemplam. Por essa razão, embora não
sendo inescusáveis, não merecem uma grave repreensão; explica-se, até
certo ponto, que a beleza da criação os engane (Sb 13,6-9).

2. Para uma análise detalhada do texto, v erj. VÍLCHEZ LÍN D EZ, Sabiduria, Estella,
1990, 348-362; mais brevemente, J. R. BUSTO, Lajusticia es mmortal. Una lectura dei libro
de la Sabiduria de Salomon, Santander, 1992, 115s; Ph. MÜLLER. W eisheit 13, 1-9 ais
“locus classicus” der naturalischen Theologie, MünTbZ 46 (1995) 395-407.
3. Também o Antigo Testamento conhece o caso daqueles para quem Deus não con­
ta, que agem como se não existisse (cf. SI 10[9],3s; 14[13],1).
4. A seção seguinte será ocasião de aprofundar esse tmna.
5. AGOSTINHO, Conf. X 27,38 (CCL 27,175): “Retinham-me longe de ti aquelas
coisas que não teriam existido se não existissem em ti”.

394
O CONHECIMENTO "NATURAL” DE DEUS E A LINGUAGEM DA ANALOGIA

M uito mais grave é o pecado daqueles que se deixaram seduzir pelos


ídolos, e chamaram deuses às obras das mãos humanas (Sb 13,10ss; cf. SI
115[114],4-8). Seu erro é muito mais grosseiro. Os fenômenos da natu­
reza podem deixar transluzir algo do m istério de Deus, mas não as obras
dos homens. N o Novo Testamento temos também o texto fundamental
de Rm 1,19-23:
[...] o que de Deus se pode conhecer está neles manifesto: Deus manifestou-
se. Porque o invisível de Deus, desde a criação do mundo, deixa-se ver para
a inteligência por meio de suas obras: seu poder eterno e sua divindade, de
modo que são indesculpáveis, porque tendo conhecido a Deus, não o glori­
ficaram como Deus nem lhe deram graças, antes se ofuscaram em vãos racio­
cínios e seu coração insensato se entenebreceu.

O que primeiro chama a atenção nesse texto, de modo semelhante ao


que ocorria, como vimos, no livro da Sabedoria, é a constatação de que o
conhecimento de Deus através da criação nem sempre levou à honra e à
glorificação de Deus que devia ser conseqüênda desse mesmo conhecer.
Isso já nos faz ver que o conhecimento de Deus não pode reduzir-se a seu
aspecto intelectual, Deus não é um objeto de conhecimento “neutro” como
os outros. N o reto conhecimento de Deus entram fatores morais, a atitude
de dar-lhe graças e glorificá-lo. Sem essas atitudes de adoração e de reco­
nhecimento, o próprio conhecimento degenera em idolatria, muda-se a
verdade de Deus pela mentira, serve-se a criatura em vez do Criador (cf. Rm
1,23-2$). A limpeza do olhar de quem contempla é essencial para não cor­
romper a reta imagem de Deus. O utro aspecto é fundamental para a com­
preensão adequada do texto: na criação já se dá uma manifestação de Deus6.
E Deus mesmo o que se dá a conhecer desse modo, certamente ainda im ­
perfeito, comparado com a revelação de Jesus. Não estamos, pois, ante um
simples movimento do homem que conquista um conhecimento. C verbo
usado no versículo 19, <J>avepoOv7, é o mesmo que Paulo utiliza, por exem­
plo, em Rm 3,21, para referir-se à revelação da justiça de Deus em Cristo.
A possibilidade do conhecimento de Deus através da criação, inclusi­
ve com a consciência das dificuldades concretas que com porta, deve ser
mantida como um princípio irrenunciável8. A Idade Média falou dos dois

6. Cf. H . SCLIER, Der Romanbrief, Freiburgo-Basel-W ien, 1977, 51ss.


7. J. FTTZMYER, Rcmans, Nova York, 1993, 279ss; esse verbo significa dar a conhe­
cer, tom ar público.
8. AG O STIN H O , Sermo 241,2 (PL 38,1.134): “Pergunta à beleza da terra, do m ar...
Pergunta à beleza do céu... Sua beleza é como um a confissão”.
DA "ECONOM IA" À “TEOLOGIA"

“livros”, o da criação e o da Escritura: neles pode-se conhecer a Deus. As


tentativas de m ostrar a existência de Deus com a razão humana, prescin­
dindo do valor concreto a ser dado a cada argumento concreto, têm essa
legitimidade fundamental que vem da própria Escritura e da tradição que
nela se funda.

2. 0 Vaticano I e o Vaticano II

N o século XIX encontramos algumas interessantes intervenções do


magistério sobre o conhecimento natural de Deus. Diante do fideísmo
tradicionalista que pensava que se devia renunciar a uma justificação racio­
nal da fé, a Igreja teve de m anter o caráter racional desta. Por isso afirma
a possibilidade não só do conhecimento de Deus, senão mesmo da prova
ou demonstração de sua existência, e da infinitude de suas perfeições, com
a luz da razão (DS 2.751; cf. também 2.765ss; 2.811-2.814)9.
A Constituição Dei Filins do Vaticano I, a que nos referimos, contém
a principal declaração do magistério eclesiástico sobre essa questão:
A mesma santa Madre Igreja sustenta e ensina que Deus, princípio e fim de
todas as coisas, pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão
humana a partir das coisas criadas; “pois o invisível dele se deixa ver para a
inteligência desde a criação do mundo, a partir das coisas que foram feitas”
(Rm 1,20) (DS 3.004; cf. o cânon correspondente DS 3.026).

N o mesmo contexto se anatematiza os que negam a existência de Deus.


E a prim eira vez que o magistério da Igreja se vê confrontado com o ateís­
mo moderno (cf. DS 3.02 lss; Vaticano II, GS 19-21)10.
Deve-se destacar nessa definição alguns aspectos. Em prim eiro lugar,
que ela não se encontra isolada. Não se trata de legitimar uma teologia
natural junto ou em lugar da que procede da revelação divina. N ão é essa
a intenção conciliar. O conhecimento “natural” é uma condição mesma da
fé. Esta não pode subtrair-se à razão; a fé é uma resposta livre, pessoal e
responsável à revelação de Deus. Se essa possibilidade do conhecimento

9. Condenam-se também os erros opostos, derivados do “racionalismo”, que quer


encerrar a fé e as verdades teológicas nos limites da razão humana (DS 2.738-2.740; 2.775-
2.777; 2.850-2.851; 2.90^2.909).
10. Cf. B. SESBOÜÉ; Ch. THEOBALD, La parole qui sauve, in B. SESBOÜÉ
(ed.), Histoire des Dogmes, Paris, 1996, IV, 206ss; 274ss.

396
O CONHECIM ENTO ’ NATURAL" D E D EU S E A UNG UA G EM DA ANALOGIA

natural de Deus não existe, a fé mesma tom a-se impossível. A fé seria cega.
E claro que não se trata de que esse conhecim ento a partir da realidade
criada seja prévio cronologicamente ao contato com a revelação ou com a
fé. Antes, é a própria fé que inclui um certo conhecimento natural de Deus
que não precisa ser formulado expressa e reflexivamente11. Em segundo
lugar devemos ter presente que se trata da afirmação de uma possibilidade,
de uma quaestio iuris, e não de fato. Já vimos como os textos bíblicos, que se
situam em outro contexto, não são otimistas quanto aos resultados efetivos
dessa “revelação” de Deus na criação. O próprio Concílio Vaticano I parece
seguir essa linha quando, depois do texto citado, observa que há verdades
acerca de Deus que não são de si inacessíveis à razão, mas no estado atual da
condição humana não podem ser conhecidas por todos facilmente ou com
certeza ou sem mescla de erro (cf. DS 3.005)12.
A que se refere o Concílio quando fala da luz natural da razão e por­
tanto, indiretam ente, da “natureza” humana? Trata-se de uma afirmação
abstrata, que não quer entrar no problema dos estados em que o homem
tenha podido encontrar-se e fazer uso de sua razão. Não se trata portanto,
em concreto, da natureza decaída, nem também da “natureza pura”. A
natureza, no contexto, parece identificar-se com a criação: é o Deus cria­
dor, princípio e fim de todas as coisas, que pode ser conhecido pela razão
natural a partir das coisas criadas13. O conhecimento natural distingue-se,
portanto, nesse contexto, do que o homem adquire pela revelação que tem
lugar em Jesus, já preparada pelo Antigo Testamento. O Concílio distin­
gue com clareza duas ordens de conhecimento (cf. DS 3025).
O Concílio afirma que com a razão natural Deus pode ser conhecido
com certeza, certo cognosci posse. Rejeitou-se expressamente o acréscimo et
demonstrar,i14. Preferiu-se uma formulação mais suave, embora com o certo se
excluísse um conhecimento meramente subjetivo, não repousando sobre uma

11. Cf. POTTM EYER, op. d t-, 179s.


12. Cf. Também DS 3.875; CEC 36,38; JOÃO PAULO n , Fides et Ratio, 8-9.
13. Cf. PO IT M EYER, op. d t., 196-200. Sobre a noção de “natureza pura”, parece
que o Concílio era mais cético. Abundante informação sobre o conceito de natureza no
Vaticano I em H . U. von BALTHASAR, KarlBarth, Darstellungand Deutungseiner Theologie,
Colônia, 1951, 315-335.
14. Embora a expressão que já vimos usada antes do Vkticano I também tenha sido
usada em diferentes documentos depois dele; cf. DS 3.538, o juramento antimodemista; 3.890,
PIO XII enc. Humani Generis, que acrescenta ainda que essa demonstração pode dar-se sem
a ajuda da graça (não só sem a revelação). Admitida essa possibilidade, provavelmente seja
legítimo acrescentar que não seja esse o caminho mais freqüente. Cf. Vaticano n , LG 16,
sobre a graça que pode atuar inclusive nos ateus. Veremos mais na continuação do nosso texto.

397
DA -ECONOM IA” À TEOLOGIA"

base objetivamente justificada. N ão parece que entre na definição o modo


como se pode chegar, em cada caso concreto, a esse conhecimento certo15.
A possibilidade desse conhecim ento foi de novo afirmada no C on­
cílio Vaticano II, que em D V 6 reproduz o texto do Vaticano I ao qual
nos referim os. Mas também é im portante o núm ero 3 da mesma C ons­
tituição, onde se observa que “Deus, que cria e conserva todas as coisas
mediante o Verbo (cf. Jo 1,3), oferece aos homens nas coisas criadas um
perene testem unho de si (cf. Rm 1,19-20)”. Seguindo a linha dos textos
bíblicos a que nos referimos, talvez menos visível, mas também presente,
no Vaticano I 16, o Vaticano II confirma que na criação se dá uma m ani­
festação de Deus, e que, por conseguinte, é a iniciativa divina que está na
base de to d o possível conhecim ento de Deus através das coisas criadas
(cf. também GS 15,19).
Não nos encontramos, portanto, ante uma iniciativa do homem con­
tra ou à m argem da revelação divina. Trata-se antes, como o concebe a Dei
Verbum, do começo de um processo que encontrará seu term o e seu sen­
tido definitivo na plenitude da revelação que é C risto. De fato, embora a
partir da criação não seja possível conhecer a Trindade, mas só Deus en­
quanto uno, esse Deus, imperfeitamente conhecido, é o Deus imo e trin o 17.
A tradição antiga da Igreja contemplou uma atuação diversificada das três
pessoas divinas na criação, seguindo as pautas da intervenção delas na historia
salutis. N o Concílio de Constantinopla essa linha de pensamento encon­
trará sua máxima expressão: um só Deus e Pai de quem tudo procede, um
só Senhor Jesus Cristo mediante o qual tudo foi feito, um só Espírito Santo
no qual tudo existe (Cf. DS 421)18. Se o criador é o Deus uno e trino, o
conhecimento a que se chega a partir da criação há de referir-se de algum

15. Cf. POTTM EYER, op. d t., 187,202; BALTHASAR, El comino de acesoa la realidad
de Dios, in MySal ü , 1, M adrid, 1969, 41-74, 57s. Faz amplo uso dos textos do Vaticano I
o CEC 36-38.
16. PO TTM EY ER, op. d t., 199, observa que nessas atas conciliares aparece com
freqüênda a expressão manifistatio naturalis. N o Vaticano II introduz-se também o tem a
neotestam entário da criação mediante o Verbo. Cf. também C l 1,15-18; lC or6,8; H b 1,2.
N o entanto se evita a terminologia “natural-sobrenatural”.
17. Com efeito, não sendo a criação como tal uma chamada à partidpação da vida
divina, por m eio dela não se pode conhecer a Trindade. A p artir da criação, Deus aparece
como um só printípio de todas as coisas. Por meio dela se conhece o que pertence à única
essência divina, não o que pertence à pluralidade das pessoas; cf. TOMAS DE AQ U IN O ,
STb 1 32,1.
18. Cf. Catecismo da Ignja Católica, 258 (nota 2 do capítulo 2) e também 290-292.
Sobre a história da questão L. F. LADARIA, Dios creador dei delo y de la tierra, em B.
SESBOÜÉ, Historia de los Dogmas, Salamanca, 1996, v. 2, 29-73.

398
O CONHECIM ENTO “NATURAL“ DE DEUS E A UNG UAGEM DA ANALOGIA

modo ao Deus que cria para salvar-nos, que cria m ediante seu Filho que na
plenitude dos tempos nos salvará, assumindo a condição humana.
Não se pode excluir (ao contrário, deve-se pensar) que o caminho que
leva ao conhecimento “natural” de Deus seja, ao menos em muitos casos,
um caminho guiado e orientado pela graça; por meio desse conhecimento
o homem é conduzido, embora de modo imperfeito, para seu último e
único fim19. Conhecimento natural de Deus não significa um conhecimen­
to que nada tenha a ver com o Deus da salvação. A revelação de Deus na
criação e a revelação que culmina em C risto não devem ser confundidas.
Mas não devem ser separadas20. Devido à unidade do desígnio divino que
abraça a criação e a salvação do homem, e vê nesta últim a o sentido pro­
fundo da prim eira, parece difícil pensar que a prim eira manifestação de
Deus na criação, de feto, nada tenha a ver com a últim a finalidade do
homem. Esse conhecimento funda-se em uma manifestação de Deus, em
uma iniciativa divina e não tem por que não estar guiado por Deus mesmo
em todo o seu processo. O conhecimento “natural” de Deus, na ordem
concreta em que nos achamos, não é, pois, o conhecimento de Deus na
hipotética “natureza pura”21. E o conhecimento ao qual, com todas as di­
ficuldades que temos visto, aludem a Escritura e o M agistério da Igreja, é
no entanto possível a partir da criação. Essa é a prim eira manifestação de
Deus que, na ordem concreta em que nos encontramos, tende já para a

19. Cf. BALTHASAR, KariBartb... 335;J. M. ROVIRA BELLOSO, Tratadoie Dios


unoy trino, 293-306.
20. Cf. COM ISSIO TH EO LO G ICA IN TERN A TIO N A LIS, Theologia — C hris-
tologia — Anthropologia, Greg 64 (1983), 7.
21. Ibid., 9: aO teísmo cristão não exclui, mas ao contrário, pressupõe, de certo modo,
o teísmo natural, porque o teísmo cristão tem sua origem em Deus que se revelou por um
desígnio libérrimo de sua vontade; por sua vez, o teísmo natural corresponde intrinsecamente
à razão humana, como ensina o Concílio Vaticano II. N ão se deve confundir o teísmo natural
com o teísmo/monoteísmo do Antigo Testamento, nem com os teísmos históricos, isto é,
com os teísmos que, de modos diversos, professam os não-cristãos em suas religiões. O
monoteísmo do Antigo Testamento tem sua origem na revelação sobrenatural e por isso tem
uma relação intrínseca com a revelação trinitária. Os teísmos históricos não nasceram da
‘natureza Pura’, mas sim da natureza submetida ao pecado, uma vez que objetivamente redimida
por Jesus Cristo e alçada ao fim sobrenatural”. Notemos que nenhum conhecimento de Deus
que se produziu historicamente, e não somente o das religiões, nasce da "natureza pura”. N ão
me parece claro, nesse contexto, o significado do “teísmo natural”; cf. ibid., 8-9, no teísmo
verdadeiramente natural não existe coisa alguma que realmente contradiga o cristocentrismo.
Parece que se quer excluir como não verdadeiramente conforme à razão aquele teísmo “que
põe em dúvida a possibilidade ou o feito da revelação” (ibid.). Evidentemente que não se trata
de um teísmo “natural”, porque o que se funda na criação não pode colocar em dúvida, ou
excluir, a possibilidade da revelação. Q ue se trate do conhecimento fundado na criação, pa­
rece se deduzir do texto a que se refere a nota anterior.

399
DA "ECONOMIA" À “TEOLOGIA"

plena revelação em Cristo. D e (ato, não poderemos entender a mensagem


que ele nos dá se não houver no homem uma certa “prenoção” e desejo de
Deus22.32P or outro lado, ao defender esse princípio a Igreja luta contra todo
fideísmo: a possibilidade do conhecimento "natural” de Deus garante a
liberdade e a responsabilidade do ato de fé25 que, se não pode dar-se a
partir de puros pressupostos racionais, deve ser justificável perante a razão.
O conhecim ento de Deus, embora imperfeito, se é autêntico, coloca-
se no caminho da aceitação da revelação que ele nos faz de si mesmo em
Cristo; não parece equivocado pensar que nele haverá, em muitos casos,
uma dimensão de entrega pessoal; não será somente resultado de um racio­
cínio. Deus não pode ser um objeto de conhecimento como outros24. Se
Deus se nos faz presente como doação pessoal, a forma de acesso do ho­
mem a Deus será a entrega25. Deus não se apresenta a nós como um objeto
de conhecimento simplesmente “neutro”. Como seu conhecimento é o
conhecimento do fundamento de nosso ser, com ele se nos sinaliza o âm­
bito de nossa entrega. Em todo conhecimento de Deus haverá algo, de
forma incoativa, daquela atitude que conhecemos como a fé26, a entrega

22. Cf. Ibid., 7: essa prenoção em C risto se supera e alcança um cum prim ento que vai
além dos desejos do homem.
23. VATICANO I, Dei Filius (DS 3.008) “... plenum revelanti Deo intellectus er
voluntads obsequium fide praestare tenem ur”; (DS 3.009): “U t nihilom inus fidei nostrae
‘obsequium rationi consentaneum ’ (cf. Rm 12,1) esset...”; cf. também DS 3.035; Vaticano
II. DV 5: “Quando D eus se revela deve-se prestar-lhe a obediência da fé (Rm 16,26; cf. Rm
1,5; 2Cor 10,5-6) pela qual o homem se confia inteira e livremente a Deus, prestando ‘a
Deus que se revela a homenagem do entendim ento e da vontadem (Dei Filius). Cf. também
Vaticano IIA A 4: “Som ente com a fé... se pode conhecer sempre e em todo lugar a Deus”.
JOÃO PAULO II, op. d t , 13.
24. Cf. P. GELBEKT, Prouver Dieu e t espérer en lui, NKTb 118 (1996) 690-708.
25. X. ZUBIRI, Elbombrey Dios, M adrid, 1984,196: “Porém a fundamentalidade de
Deus é, segundo vimos, doação pessoal. Em sua virtude, o homem acede religadamente a
Deus em uma tensão que tem um caráter sumamente preciso: uma tensão que é o correlato
humano da tensão donante, a saber, a tensão em entrega. À doação corresponde a entrega.
A forma plenária do acesso do homem a Deus é ‘entrega’”; cf., também, ibid., 197; 209;
239; 258: “Todo conhecim ento de Deus é o traçado do âmbito de uma possível entrega,
porque Deus é realidade fundamentante do nosso Eu, e, portanto, seu conhecimento abre
em e por si mesmo a área de minha fundamentalidade. E ntre conhecimento e fé em Deus
existe, pois, uma unidade que não é de mera convergência, mas sim uma unidade intrínseca
e radical”. BALTHASAR, op. d t., 323: “O Espírito humano já está por natureza tão ple­
namente sujeito e submisso a seu Criador e Senhor que seu ato fundamental, já na esfera
da natureza e antes de que se deva falar de revelação pela palavra, não pode ser nenhum
outro senão algo sem elhante à fé”. Por isso, quando se pede ao homem a fé ante a revelação
divina, não se lhe pede algo irradonal ou contrário à sua natureza.
26. C. AMBROSIASTER, Com. Ep. Rom., I, 19 (PL 17,57): “opus fe d t per quod
possit agnosd per fidem ”.

400
0 CONHECIM ENTO -NATURAL’ DE DEUS E A LING UAGEM DA ANALOGIA

plena a Deus que se revela na homenagem do entendim ento e da vontade.


Ás características desse conhecimento derivam não só da pessoa que co­
nhece e do conhecimento mesmo, mas também de Deus que se dá a conhe­
cer. Ele está no começo de toda busca por seus vestígios que o homem
possa empreender27. Só podemos conhecer a Deus porque ele se nos ma­
nifesta. O Deus que conhecemos “naturalm ente” é o D eus que desde sem­
pre nos criou, para poder nos fazer participantes de sua vida íntima. Por
isso seu conhecimento não se alcança normalmente por uma simples via
intelectual. Somente amando pode-se conhecer o que cria por amor, pois
tudo o que vem de Deus vem do amor28. Somente a partir de Deus amor,
revelado em Cristo, podemos conhecer portanto o “estatuto teológico” do
conhecimento de Deus a partir das criaturas.

A QUESTÃO DA ANALOGIA

Nossa rápida reflexão sobre o texto de Sb 13 nos pôs em contato com


a noção da “analogia”, que, no sentido de proporção, relação, semelhança,
foi conhecida pela filosofia grega29. Vimos como o texto bíblico usava a
noção como caminho para o conhecimento de Deus. A esse conhecimento
podia-se chegar por comparação, semelhança, proporção, a partir das coi­
sas criadas que ele fez; evidentemente, no discurso teológico, a “analogia”,
enquanto nela entra Deus, tem que se relacionar com a criação. Em vir­
tude dela, a criatura se acha em relação com Deus30. Essa relação, cujos
termos devemos precisar, perm ite-nos um conhecimento de Deus, permi-
te-nos falar com sentido dele, apesar de sua incompreensibilidade: esse
conhecimento e essa linguagem são possíveis porque o homem, como cri­
atura, encontra-se referido a Deus e em total dependência dele. A tradição

27. A G O STIN H O , Stdil. I, 3 (PL 32,270): “Deus quem nemo quaerit nisi admonitus”.
Cf. também ANSELM O, Prvslogion, 1 1 (SCHMTTT, V. 1, 97-100).
28. Cf. M. SCHM AUS, Dogmatik I, M unique, 1948, 204, L. SCHEFFCZYC, Der
Gottder Offenbarung, Aachen, 1996,70. N esse pont» parece existir um notável consenso na
teologia católica. JO Ã O PAULO II, fárcare le sogfie delia speranza, M ilão, 1994,31, observa
também que a resposta à pergunta sobre a existência de Deus não é só questão de intelecto,
mas também da vontade do homem, e mais ainda de seu coração.
29. Cf. PLATÃO, Tmteu 31-32 (Plat. W erke 4,40-42); ARÍSTOTELES, Metafísica
IV 2 ,1.003a 32-b7 (E d., G. REALE, 130-132[Edição brasileira, Loyola, 2002, v. H, B I­
OS]). C f, para todo o prim eiro segmento deste capítulo, GILBERT, La patience d'être.
Métaphysique, Bruxelas, 1996, 91-107.
30. TOMÁS D E AQUINO, Sunsmacontra Gentes, 2,18: “Creatio est ipsa dependentia
esse créa ti a principi a quo instituitur, et sic est de genere relationis”.

401
D A “ECONOM IA" À TEO LO G IA ’

filosófica e teológica falou assim de uma analogia do ser, “analogia entis”31.


A questão suscitou problem as no diálogo ecumênico desses últimos decê­
nios, e não poucas discussões no âmbito da teologia católica. Mas antes de
abordar esses problemas teológicos, não será demais recordar algumas das
noções tradicionais.

1. Algumas noções clássicas

Analogia (edmologicamente, a palavra que vai para cima, ou por cima)


significa, entre outras coisas, comparação. Usamos esse term o com muita
freqüência na linguagem cotidiana, sem dar-nos conta dele. Nosso mundo
faz-nos experimentar coisas que são em parte iguais, em parte diversas.
Bastará um exemplo banal: aparece constantem ente ante nossos olhos o
fenômeno da vida, em suas múltiplas manifestações. Assim, falamos da
vida de um a planta e da vida dos homens, que têm decerto muito em co­
mum: plantas e homens nascem, crescem, morrem; mas há também pro­
fundas diferenças. Falamos de uma escola que pode ser desde o lugar em
que se ensinam as prim eiras letras até um centro de ensino superior de alta
especialização; e a mesma palavra pode indicar também uma corrente de
pensam ento nas diversas ciências ou ramos do saber humano. Nessas di­
versas acepções do term o há elementos comuns, mas também se dão gran­
des diferenças entre elas. Em grau maior ou m enor fazemos um uso muito
freqüente da analogia.
A analogia, sempre segundo as noções clássicas, move-se entre dois
entremos; a univocidade e a equivocidade32. Produz-se equivocidade quan­
do um mesmo vocábulo significa duas coisas completamente diferentes.
Em todas as línguas há casos de equivocidade. “Manga” pode ser uma
fruta, uma parte da roupa etc. “Banco” serve para depositar dinheiro ou

31. Terminologia iniciada por Caetano e Suarez. Santo Tomás não a usa diretam ente,
mas fala antes que “ens est analogicum”, “nomina dicuntur de Deo et creatura secundum
analogiam, id est, proportionem ”, “ens analogice d id tu r”; c£ STh I 13, 5 corpus e ad 1;
ibid., 10, ad 4, entre outros lugares. A expressão foi popularizada no século XX na teologia
pela obra de E. PRZYWARA, Analoga entis, M unique, 1932; de novo em Analogia entis.
Metaphysik. Ur-Struktur und All-Rhytmus, Einsiedeln, 1962. A ele atribui-se erroneam ente
a paternidade da expressão. Cf. J. Tèrán DUTARI, Die Geschichte des Terminus “Analo­
gia entis” und das W erke Przywaras. Dem D enker der “Analogia entis” zum achtzisten
G eburtstag. PhilosophischesJahrbuch 77 (1970) 163-179.
32. TOMÁS DE A Q U IN O , STb 1 13,5: “Iste modus communitatis medius est inter
puram aequivocationem e t simplicem univocationem”.

402
O CONHECIM ENTO ■NATURAL’ DE DEUS E A LINGUAGEM DA ANALOGIA

para sentar-se etc. Aunivocidade se dá quando os termos referem-se a uma


realidade específica: homem, cavalo. Certam ente podemos perguntar se é
correto considerar que a analogia é um terceiro gênero a que chegamos
depois de conhecidos os outros dois ou se não há nela algo mais original.
As afirmações unívocas, diz W. Kasper, só são possíveis porque podem
distinguir-se e relacionar-se com outras. A univocidade pressupõe portan­
to a possibilidade de comparar, e com isso pressupõe ao mesmo tempo
algo que em si encerra a igualdade e a diversidade3’. Portanto, a analogia
é uma forma primária da linguagem. Só a partir dela podemos entender o
unívoco e o equívoco.
N a terminologia tradicional distingue-se a analogia de proporciona­
lidade da analogia de atribuição (também chamada de proporção). Esta
últim a se dá quando o term o em questão compete propriam ente a várias
realidades, embora a cada uma delas de m aneira distinta. De si consta de
três termos, dois dos quais se referem a um terceiro, que é o atributo, o
qual se atribui aos outros dois. Aristóteles assim falava referindo-se ao ser:
“O ser toma-se em muitas acepções, mas sempre em relação com um ter­
mo único, a uma só natureza determinada... o ser toma-se em acepções
múltiplas, mas em cada acepção toda denominação se faz por relação a um
princípio único”. Nesse contexto, usa-se o célebre exemplo da saúde e do
term o “são”. Tudo o que é são reladona-se com a “saúde”: o homem ou o
animal, que a têm ou a podem receber; o alimento, que a conserva; a
medicina, que a produz3 34.
3 E claro que se usa a palavra com propriedade em
todos os casos, mas em cada um de maneira diversa. O term o tem nas
diversas atribuições sucessivas a mesma significação; não se trata, portan­
to, de um termo unívoco mas se aplica a uma diversidade de sujeitos reais
“que recebem um predicado único, atribuindo-o de maneiras diversas”35.
Essas atribuições guardam uma certa proporção com a saúde, que “no animal

33. Cf. W. KASPER, Der Gattjesu Cbristi, 125; cf. (com um a referência direta à
relação do homem com Deus) K. RAHNER, Grundkurs des Glaubens, Freiburg-Basel-W ien,
1976,80.
34. ARISTOTELES, Metaßsia, op. d t. Santo Tomás serviu-se também desse exem­
plo {STh 1 13,5): “sicut multa habent proportionem ad unum, sicut sanus dicitur de medi­
cina e t urina in quantum utrum qque habet ordinem et proportionem ad sanitatem animalis,
cuius hoc quidem signum est, illud vero causa; vel ex eo quod unum habet proportionem
ad alterum , sicut sanus dicitur de medicina et de anim ali, in quantum m edicina est causa
sanitatis quod est in animali.... Significat proportionem ad aliquid unum; sicut sanum, de
urina dictum, significat signum sanitatis animalis, de medicina vero dictum, significat cau­
sam iusdem sanitatis”.
35. GILBERT, op. d t., 93-94.

403
DA “ECONOM IA" À “TEOLOGIA"

são” se realiza de modo mais pleno. Mas em todos os casos há uma refe­
rência à “saúde”, da qual participam de maneira diversa e relativa os sujei­
tos concretos. A “saúde” não é um a realidade, mas um predicado ideal ou
máximo que se relaciona com muitas realidades, e se aplica mais ou menos
segundo os casos. O analogado não é um termo fixado definitivamente
cujo sentido se realiza para sem pre da mesma maneira. “O atributo análo­
go une todos os sujeitos sob um a forma ideal, mas é significado de m aneira
proporcional a suas aplicações concretas. Não se trata portanto de um
conceito cujo sentido se realiza de uma vez para sempre.”56
Esse exemplo da tradição aristotélica é usado por Sto. Tomás, sem
tirar entretanto ulteriores conclusões, para justificar a linguagem “análo­
ga” — não unívoca nem equívoca — sobre Deus:
Desse modo algumas coisas dizem-se de Deus e das criaturas analogicamente,
não de modo puramente equívoco nem também unívoco. Pois não podemos
falar de Deus senão a partir das criaturas... Tudo o que se diz de Deus e das
criaturas diz-se enquanto há uma certa ordenação da criatura a Deus, como
a seu princípio e causa, na qual preexistem de maneira excelente todas as
perfeições das coisas57.

Podemos, no entanto, questionar se essa analogia de atribuição é su­


ficiente para falar de Deus. Com efeito, não há proporção entre o infinito
e o finito, já dizia Aristóteles58. Santo Tomás, no contexto a que nos refe­
rim os, observa que Deus não é uma medida proporcionada às coisas que se
medem. D onde Deus e a criatura não se poderem conter sob um mesmo
gênero59. D eus e a criatura não podem participar do “ser” como um
analogado que se predica de um e do outro. Como não há um gênero de
“bondade” do qual participem D eus e o homem, não há um terceiro term o
“mediador” entre Deus e o homem. Nesse sentido não parece portanto
que a analogia de atribuição seja adequada para a lingiragem humana sobre
Deus, e para a teologia. A proporção ou atribuição corre o risco de reduzir
tudo ad unum, mas isso não se pode fazer entre D eus e a criatura; não se
pode apelar a um gênero superior de “ser” que abrace a ambos.
O utro tipo de analogia é a de proporcionalidade. A de atribuição (ou
proporção) funciona com três term os — que se pode ampliar: o analogado938*6

36. Ibid., 94.


37.S7&. I 13,5.
38. Sobre o Céu, 275a 14 (ARISTÓTELES, VI, 58). Cf. GILBERT, op. cit., 98.
39. STh I 13, 5 ad 3: “Deus non est mensura proportionata mensuratis. U nde non
oportet quod Deus et criatura sub uno genere contineantur”.

404
O CONHECIM ENTO "NATURAL” DE DEUS E A LINGUAGEM DA ANALOGIA

— a saúde, no exemplo clássico — predica-se de duas ou mais realidades


distintas. A analogia de proporcionalidade, ao contrário, funciona com
quatro termos: A está para B como C está para D. Exemplo clássico: o
ocaso é para o dia o que a velhice é para a vida; o piloto é para a nave o que
o governante é para a cidade. A analogia de proporcionalidade pode ser
extrínseca ou intrínseca. N os exemplos acima se trata, evidentemente, de
uma atribuição extrínseca. Estamos no terreno da metáfora, a que se redu­
zem, em último termo, a maioria dos exemplos que se possa aduzir. Mas
também se faz uso do mesmo esquema em relação ao ato de ser; então nos
achamos ante um caso a que convém a proporcionalidade propriamente
dita: "Aplicando essa estrutura ao discurso metafísico que conclui no Ab­
soluto, teríamos o seguinte tipo de analogia: ua criatura é o ser como o
Absoluto (Deus) é para o ser”40.
Também a analogia de proporcionalidade encontra objeções a seu uso
no campo teológico. Fundam-se em que, com a comparação entre o "ser”
de Deus e o das criaturas, cai-se de novo no ser comum, que se predica do
mesmo modo de Deus e do criado. O ser de Deus situa-se acima de todo
gênero e espécie. Mas a proporcionalidade, diferentemente da proporção,
não indica a referência a um, senão a semelhança das proporções. Obje­
tou-se também que a proporcionalidade é impossível, posto que é infinito
um dos termos. Mas o que não pode dar por si a proporcionalidade é dado
pela categoria da "causa criadora” que é capaz de articular a comunicação
que abrace todos os seres na clave do dom do ser. O ser, segundo Sto.
Tomás41, deve-se entender como “ato de ser”, o ato que é o movimento
dinâmico que constitui o ser em sua realidade mais própria. O verbo ser
indica assim um ato, um a ação, não um estado. Então a relação entre o
criador infinito e a criatura finita pode exprimir-se como uma relação de
duas modalidades de ato:
O infinito e o finito, embora não possam ser reduzidos a proporção, podem
ser proporcionalizados, porque o finito é igual ao finito, como o infinito ao
infinito. E desse modo há uma semelhança entre as criaturas e Deus, já que
Deus está em relação com o que lhe convém, assim como a criatura em re­
lação a suas propriedades42.

40. V. M UNIZ RODRIGUEZ, Analogia, em X. PIKAZA; N . SILANES, Dicámario


teológico. El Dm cristiam, Salamanca, 1992,44-49,46.
41. Cf. STb I 3 ,4 ; 1 5,1. Cf. GILBERT, op. d t , 100-101.
42. TOMÁS D E A Q U IN O , De veritate, 23, 7 ad 9, dtado por GILBERT, op. d t ,
101. Também PRZYWARA, op. d t , 135-141.

405
DA "ECONOM IA” À "TEOLOGIA"

A analogia de proporcionalidade concerne à realidade dos entes em


seu ato de ser. Não se constata uma relação recíproca entre duas coisas,
mas a semelhança de uma relação com a outra43.
A proporcionalidade supõe que o ato finito e o ato infinito exercem
a mesma estrutura do ato, embora o finito só possa fazê-lo porque o recebe
do infinito. A analogia de proporcionalidade pode servir assim não só para
relacionar entre si as criaturas, mas também as criaturas com o Criador, se
se articula de maneira adequada a relação do existir à essência44. Assim não
há perigo de fazer Deus objeto de conceitos humanos que abarquem ao
mesmo tem po Deus e a criatura. A analogia não tom a vã toda linguagem
humana sobre Deus, mas em último termo remete a seu mistério45. Trata-
se de um processo que ao final não nos mostra um termo preciso, senão
que nos abre para quem é m aior do que nossa palavra e nosso pensamento.
D e uma parte as criaturas existem em referência a Deus de quem recebe­
ram e continuam recebendo constantemente o ser; deve haver portanto
uma certa semelhança entre o Criador e as criaturas pois Ele e elas estão
em relação com o que lhes convém. Mas a dessemelhança entre ambos é
ainda maior. Não há comparação possível entre o Criador infinito, que
cria em sua onímoda liberdade, e a criatura que só existe em referência a
Deus. N ão podemos abarcar os dois em um conceito comum nem com
nosso pensamento nem com nossas palavras46. Portanto a analogia assim
entendida não significa abraçar Deus e a criatura em um mesmo conceito
e em uma mesma linguagem, mas precisamente rem eter-nos ao m istério,
ao que está mais além de nós mesmos. E enquanto se funda no fato da
criação, porque nele se baseia toda a possível semelhança da criatura com
o Criador, não se coloca no caminho do homem a Deus, mas no de Deus
ao homem: a criação, como sabemos, é o início da manifestação, da reve­
lação divina. E importante esse dado para nossas reflexões posteriores.

43. Cf. De Veritate, 2,3, ad 4, citado por GILBERT, op. d t., 106. BOAVENTURA,
In II Sent. 16, 1,1 ad 2: “in convenientia proportionis non est similitudo in uno, sed in
duabus comparationibus”
44. GILBERT, op. d t., 197: “Se o existir finito se exerce em uma essênda finita, o
existir infinito se exerce em uma essência infinita”.
45. Cf. PRZYWARA, op. d t., 137: “tudo reduz-se ao últim o e irredutível Prius de
Deus”. Cf. Ibid., 138ss; 210. Os três passos clássicos da linguagem humana analógica sobre
Deus são a afirmação em Deus das perfeições e bens deste m undo; a negação das lim itações
dessas perfeições em Deus; a eminência, as perfeições que observamos no mundo, livres de
suas limitações, existem em Deus em um grau em inente, que excede toda compreensão
adequada das mesmas por nossa parte; cf. TOMÁS D E A Q U IN O , De Potentia, q.2, a5.
46. Trata-se de uma propordonalidade misteriosa, “porque entre as grandezas que se
comparam, a segunda permanece ignota em sua essência: Deus e seu ser”: ROVIRA
BELLOSO, op. d t , 321.

406
O CONHECIM ENTO "NATURAL" DE DEUS E A U NG UAG EM DA ANALOGIA

Temos que recordar, neste contexto, a definição do IV Concílio de


Latrão (1215): “entre o C riador e a criatura não se pode notar uma seme­
lhança, sem que deva ser sinalizada uma dessemelhança maior entre eles”47.
A semelhança e a dessemelhança não podem ser colocadas no mesmo plano,
como pode ocorrer no caso das criaturas entre si. Em toda semelhança que
se notar entre o Criador e a criatura deve-se notar sempre uma dessemelhança
maior. Essa afirmação do Lateranense IV constitui para nós um ponto obri­
gatório de referência. O contexto da definição é a teologia trinitária, não um
discurso filosófico sobre Deus. Sempre existiu na tradição cristã a consciên­
cia da inadequação de nossos conceitos e palavras para falar de Deus, embora
isso não tenha comportado o simples silêncio sobre ele48.
A doutrina sobre a analogia teve grande importância na tradição filo­
sófica da “teologia natural”. Mas ultimamente tratou-se muito do problema
no estrito âmbito intrateológico; o que deu lugar a não poucas discussões
entre os autores protestantes e católicos. Em concreto, apresentou-se a
questão da substituição da tradicional analogia do ser pela analogia da fé,
por obra sobretudo de Karl Barth. Isso deu lugar a uma mais ampla discus­
são sobre a função da analogia no discurso teológico e sobre o lugar que a

47. DS 806: “Q uia inter creatorem et creaturam non potest similitudo notari, quin
inter eos maior sit dissim ilitudo notanda”. £ interessante o contexto em que essa frase se
situa, e os exemplos evangélicos que nele se aduzem: não podem reduzir-se a um denomi­
nador comum a união dos cristãos com C risto e a união entre o Pai e seu Filho (cf. Jo
17,22). Nem tampouco a perfeição de Deus e a dos homens chamados a imitar a perfeição
divina (cf. M t 5,48). Cf. DS 803; 804, Deus é “incompreensível e inefável”. Cf. PRZYWARA,
op. cit., 251-261.
48. Já conhecemos a sentença de D IO N ISIO Areopagita, De Coei. Hier.y II 3 (ver
nota 69 do capítulo anterior): BASÍLIO de Cesaréia, Hom. DeFide (PG 31,464), cf. tam­
bém a nota 56 do capítulo anterior; AGOSTINHO, De Trrn. V 1,2 (CCL 50, 207) “pie
tamen cavet, quantum potest, aliquid de eo sentire quod non sit”; Ibid. V II 4,7 (255); Sermo
52,6 (PL 38, 360). “Si ennim quod vis dicere, si cepisti, non est Deus: si comprehendere
potuisti, cogitatione tua te decepisti. Hoc ergo non est, si comprehendisd; “si autem hoc
est, non comprehendisti”. TOM ÁS DE A QUINO, STb I, 1,7; I 2, prol.: “primo con-
siderandum est an D eus sit; secundo quomodo sit, vel podus quomodo non sit”; I 13,1:
“...non tamen ita quod nomen significans ipsum , exprimat divinam essendam secundwn
quod est”; 1 13,2 etc. Mas não pode haver negação sem um certo conhecimento: Pot. q.7,
a 5; VATICANO I, Dei Filius (DS 3.016) “At ratio quidem, fide illustrata, cum sedulo, pie
et sobrie quaerit, aliquam Deo dante m ysterionun intelligentiam eamque fhictuosissimam
assequitur, tum ei eorum , quae naturaliter cognosdt, analogia, tum e mysteriorum nexu
inter se e cum fine hom inis ultim o; nunquam tamen idônea redditur ad ea perspicienda
instar veritatum, quae proprium eius obiectum constítuunt”. GREGORIO Nazianzeno,
Or 28,9 (SCh 250,118): “De igual m odo o que se esforça por invesdgar a natureza ‘daquele
que é’ (Ex 3,14), não poderá dizer somente o que não é, senão que, depois de ter dito o que
não é, terá que dizer também o que é”.

407
DA -EC O N O M IA ” À TEO LO G IA "

analogia do ser pode ter dentro do raciocínio teológico que deve partir da
revelação e da fé cristã49.05

2. A crítica de K. Barth e a reação católica: a “analogia Cbristi”

K arl Barth m ostrou seu profundo escândalo ante a idéia da analogia


do ser, que provavelmente não compreendeu em seu reto sentido. Segun­
do ele, a analogia em uso na teologia católica põe no mesmo nível o ser de
Deus e o do hom em , sem levar em conta a diferença abismal entre um e
outro. Só da palavra de Deus pode vir o conhecimento de Deus mesmo.
Aos intentos de alguns protestantes de aproximação a um conhecimento
natural de Deus, em uma linha semelhante à da teologia católica que en­
controu expressão no Vaticano I, só pode responder com um decidido não.
A analogia entis é para Barth uma invenção do Anticristo, e essa é uma
razão definitiva pela qual não se pode ser católico; qualquer outro motivo
seria pouco sérioso. Daí a negação fundamental de todo vestigium Trínitatis,
das pegadas da Trindade na criação, de ampla tradição no mundo ociden­
tal. Para ele, a analogia entis significa a aceitação de uma semelhança entre
o Criador e a criatura, também no mundo decaído51. A figura do mundo
decaído não tem a capacidade de revelar Deus, como nós também não
temos a capacidade de reconhecer a Deus nela. A única interpretação pos­
sível da palavra de Deus é a que ela dá a si mesma. A palavra de Deus
acontece na criatura oposta a ele, mas não no mundo enquanto tal52.*35Não
tem sentido, para Barth, falar de um “ser” que a criatura e o Criador te­
nham conjuntam ente, inclusive apesar da “maior dessemelhança”55. Mas

49. Com efeito se pôde acusar a doutrina da analogia, e o seu uso teológico, por ter
parddo excessivamente da criação, mas não de Cristo; a relação da fé com a inteligência foi
estudada sem fixar o olhar em Jesus; Cf. A. M ILANO, Analogia C hristi. Sul parlare intom o
a Dio in uma teologia cristiana, Ricercbe Teologicbe 1 (1990) 29-73,29.32s.35.63.
50. Cf. Die Kinblicbe Dogmatik, 1/1, M unique, 1935, VÜI-IX: “Considero que a ana­
logia entis é a invenção do Anticristo, e penso que por causa dela uma pessoa não pode
tornar-se católica. £ também me perm ito considerar que os outros motivos que se pode ter
para não se fazer católico são de visão estreita e pouco sérios’’.
51. Cf. Ibid., 40.
52. Ibid., 172s.
53. Cf. Ibid. 252. Barth parece pensar na analogia de proporção. N ão podemos en­
trar aqui nos detalhes de seu pensamento. Cf. entre outros estudos, G . POHLM ANN,
Analogia entis oder Analogia fidei. Die Frage nacb der Analogie bei Karl Barth, G õttingen,
1965; H . CHAVANNES, L’analogie entre Dieu et le monde selon saint Thomas d’Aquin et selon
KarlBartíi, Paris, 1969; recentemente, J. PALAKEEL, The useqfanalogy in tbeologicaldiscourse.
An investigation in ecumenicalperspective, Roma, 1995,13-66; A. J. TORRANCE, Persons in

408
O CONHECIM ENTO "NATURAL" DE DEUS E A LINGUAGEM DA ANALOGIA

isso não significa que Barth não faça uso da noção de analogia* 54. À analogia
do ser opõe a analogia fidei. A expressão, como é bem sabido, procede de
Rm 12,6. lem os de lim itar-nos a algumas de suas afirmações fundamentais
sobre o assunto. Sem abandonar a idéia de dessemelhança total entre o
C riador e a criatura, Barth afirma que nessa total dessemelhança permane­
ce a possibilidade humana de captar (ergreifen) na fé a promessa de Deus.
Essa capacidade humana não deixa de ter semelhança com a possibilidade
que Deus tem de realizar sua promessa. Essa possibilidade não a tem o
homem em si mesmo, senão a partir do destino que Deus nos deu. Em
virtude dessa capacidade podemos reconhecer a palavra de D eus de uma
maneira segura e clara, certam ente não igual, mas semelhante, à segurança
e à clareza com que D eus se reconhece a si mesmo em sua palavra. H á
portanto na fé uma correspondência do que é reconhecido no conhecer,
do objeto no pensamento, da palavra de Deus na palavra humana. Essa
analogiafidei coloca-se na linha das expressões paulinas que falam do conhe­
cer Deus como somos por ele conhecidos (Cf. G14,8s; IC or 8,2s; 13,12).
O homem pode assim conhecer a palavra de Deus enquanto é conhecido
por Deus mesmo55. A fé acontece no homem, mas o seu fundamento acha-
se em Deus, objeto da fé, não no homem. O fato de que o homem creia é
ação de Deus. O homem é o sujeito da fé; não Deus; o homem é o que crê:
Mas esse ser sujeito do homem na fe é como posto entre parênteses, como
um predicado do sujeito Deus, posto entre parênteses do mesmo modo como o
Criador abraça a sua criatura, o Deus misericordioso ao homem pecador; mas
de tal maneira que permanece o ser sujeito do homem, e precisamente o Eu
do homem como tal existe somente desde o Tu do sujeito Deus56.

Não há continuidade entre o ser de Deus e o ser do homem, não há


semelhança entre Deus e a criação decaída, mas há semelhança entre Deus
e o homem que crê, ou, mais precisamente, na fé pode o homem reconhe­
cer a Deus de modo sem elhante como D eus se reconhece em sua palavra.
N ão se pode portanto falar de analogia do ser, já que a criatura decaída
nada pode nos dizer sobre o ser de Deus. Mas na fé dá-se um verdadeiro
conhecimento de Deus. Aí se produz então a “analogia”, mas além da igual­
dade e da desigualdade, entre a semelhança e a dessemelhança. Por isso o

communion. An essay on trinitarian description and human participation with special reference to
volume one of Karl Barth's Church dogmatics, Edimburgo, 1996,120-212.
54. Cf. entre outros lugares, Kirchliche Dogmatik, 1/1, 252, 255.
55. Cf. Ibid., 256s.
56. Ibid., 258.

409
DA ‘ ECONOM IA’ À “TEOLOGIA’

conceito d e analogia se faz necessário: não pode haver total semelhança


entre Deus e o homem, porque isso significaria que Deus deixou de ser
D eus ou q u e o homem se fez Deus. Tampouco pode haver completa
dessemelhança, porque nesse caso nada poderíamos dizer de coerente so­
bre Deus m esm o. Esse meio entre semelhança e dessemelhança chama-se
“analogia”57. As palavras que usamos para falar de Deus são sempre suas,
não nossas. E le escolhe nossas palavras como expressão de sua verdade:
Sua verdade não é a nossa. Porém nossa verdade é a sua. O que fazemos em
nosso conhecimento de sua criação, que se realiza com intuições, conceitos e
palavras, tem sua verdade, oculta para nós, nele como seu Criador e o nosso.
Tudo o que dizemos foi e será verdade previamente nele... Nossas palavras
não são nossas, mas são propriedade sua. E, na medida em que ele dispõe
delas como sua propriedade, põe-nas, por sua vez, à nossa disposição58.

Em Jesus Cristo essa analogia tem seu fundamento último, porque


nele tem lugar essa correspondência do homem com Deus, e só a partir
dele podemos falar teologicamente com sentido do ser humano59. A ana­
logia da fé resolve-se assim em uma analogia da relação60.
A analogia da fé, que equivale à analogia da relação com Deus cristolo-
gicamente fundada, coloca-se diante da analogia do ser, que Barth consi­
dera um simples esforço filosófico e, portanto, um intento de abarcar a
Deus com categorias humanas. Será que Barth entendeu verdadeiramente
o sentido da analogia do ser? A teologia católica seguiu caminhos diversos
no confronto com essa crítica radical de Barth, na qual não se reconhe­
ceu61. A analogia do ser, como forma fundamental da teologia católica,
mais do que um princípio do qual se possa deduzir algo, significa antes
uma reductio in mysterium, a ocultação de Deus que começa na criação e
que aparece sobretudo, paradoxalmente, na encarnação mesma e na cruz62.

57. Cf. Kircb, Dog. II /l, Zurique, 1946, 254s, 264s.


58. Ibid., 258-259. Cf. BALTHASAR, op. cit., 118-119.
59. Cf. os desenvolvimentos de Die Kirchliche Dogmatik, 3X/2 Zurique, 1948.
60. Kircb. Dog, 131/1, Zurique, 4a ed., 1970, 207. “A analogia entre Deus e o homem
é simplesmente a existência entendida como uma relação entre um ‘eu’ e um ‘tu* que estão
face a face. Essa existência analógica é antes de tudo constitutiva de Deus [alusão à doutrina
trinitária], e é por conseguinte também do homem criado por D eus. Eliminá-la equivale a
suprimir tanto o divino em Deus como o humano no homem”.
61. Cf. PRZYWARA, op. cit.; do mesmo, Analogia ends, in LThK l 470-473; Ana­
logia fidei, ibid., 473-476; também as notas seguintes.
62. Cf. ID ., LThKl, 471; cf. também Analogia entis, 647ss; do mesmo, D er Grundsätze
“Grada non destruit, sed supponit et perfecit naturam”. Eine ideengeschdiche Interpretation,
Scholastik 17 (1942) 178-186; cf. sobre o problema, S. CANISTRA, La posizione di E.
Jüngel nel dibatdto su ll’analogia, ScCat 122 (1994) 413-446, 428ss.

410
O CO NHECIM ENTO “NATURAL" DE DEUS E A UNGUAGEM DA ANALOGIA

E a acentuação, em Cristo, da semelhança entre Deus e o homem, mas


essa significa antes uma insistência na ocultação de D eus. Parece que se
trata portanto do contrário do que K. Barth temia63.
N o diálogo com K. Barth, também G. Söhngen64 e H . U . von Bal­
thasar65 trataram de situar a analogia do ser no âm bito da analogia da fé,
da correspondência entre Deus e o homem que tem lugar em Jesus e que
se descobre só na fé nele. O Verbo de Deus que assume a natureza huma­
na é nossa analogia da fé, que em si mesmo assume a analogia do ser66.
Por outra parte, H. U. von Balthasar esforça-se por descobrir que para o
próprio Barth é a mesma fé que pressupõe a existência de um homem
livre, de um verdadeiro interlocutor com Deus. “Só os falsos deuses têm
inveja do homem. O Deus verdadeiro lhe perm ite ser aquilo para o que
o criou.”67N a concepção barthiana da criação como pressuposto para que
Deus possa estabelecer aliança com os homens68, existiria um caminho
para superar incompatibilidades à primeira vista irreconciliáveis. A reve­
lação de Deus pressupõe um m undo distinto dele a que se pode manifes­
tar. O homem, sempre por dom e por graça de Deus, é um verdadeiro
sujeito. A graça de Deus é eficaz na liberdade de suas criaturas, e por isso
elas podem estar diante de Deus não só passivamente, mas de modo ativo
em grau máximo. Assim resume von Balthasar suas considerações sobre a
analogia fidei de Barth:
Há uma correspondência entre o Criador e a criatura, certamente tal que em
qualquer ordem em que se considere repousa sobre uma absoluta unilatera-
lidade, tanto da criatura como do que recebe a graça. Mas a criatura vem de
tal maneira de Deus, que obtém dele não só o receber, senão também o res­
ponder. Ou melhor, o receber também o poder responder, e responder de tal

63. A questão foi bem posta em relevo por E. JÜ N G EL, a quem em seguida nos
referimos: Dios como mistério dei mundo, Salamanca, 1984, 367: “Se se tratasse somente de
respeitar a Deus como o-totalm ente-outro, nada seria mais apropriado para conseguir isso
com a reflexão do que a tão vituperada analogia entis. Precisamente por isso não pode convir
a uma teologia que responda ao Evangelho”.
64. Cf. esp., Analogia fidei. Die E inheit in der Glaubenswissenschaft, Catb 3 (1934)
113-136; 176-208; Analogia entis oder analogia fidei, WiWe 9 (1942) 91-100; mais recen-
tem ente, La sabiduria de la teologia p o r el camino de la dencia, M ySall/2, 995-1.070, esp.
1.017s, em que trata de reladonar a analogia do ser católica e a analogia da criação protes­
tante na referenda de ambas à analogia da fé.
65. Cf. Karl Bartb... (nota 58).
66. Cf. SÖ H N G E N , Analogia fidei, 208; cf. CANISTRÀ, op. d t , 425.
67. Karl Bartb, 122, dtando KD 7 (m/3, Zurique, 2* ed., 1951) 98-99.
68. Cf. ibid„ 129s; 177.

411
DA “ECONOM IA" À "TEOLOGIA"

maneira que essa resposta “autônoma” continue sendo um receber no mais


alto grau. Isso chama-se analogia teológica69.

A resposta de von Balthasar move-se em um âmbito análogo ao da


relação entre natureza e graça: não existe um a “natureza pura”. O conhe­
cim ento “natural” de D eus, como tivemos ocasião de ver, dá-se por meio
de um a criação que, segundo o testemunho do N ovo Testamento, tem
lugar “em C risto”. Não p or ser criação, mas por ser “em Cristo”, a fé deve
descobrir no âmbito das criaturas essa correspondência com Deus. A ana­
logia do ser tem , pois, seu sentido à luz de C risto, à luz da analogia da fé,
em um a certa correspondência com a criação, certamente “autônoma” e
consistente em si mesma, mas que veio à existência em vista da graça e da
autocomunicação de Deus70. E claro que todo conhecimento de Deus apóia-
se em uma relação prévia por parte de Deus mesmo, e que o homem ante
essa revelação só pode estar na situação da entrega adorante. Deve-se ver essa
revelação antes de tudo em seu centro, Jesus Cristo. M as nele, precisamen­
te, descobre-se que Deus pode revelar-se na criação e na história. Assim a
encarnação pressupõe a ordem da criação, não idêntica com ela, mas que
para ela dispõe e orienta. Pode, pois, a criação conter imagens e analogias,
que nos levam a Deus. O homem, em sua natureza social, é capaz da aliança,
e isso é o pressuposto para que Jesus possa fazer-se nosso irmão. O homem
é o ser que existe na correspondência com Deus. Nesse espaço que Deus
mesmo abre não se pode negar o valor aos símbolos da criação, embora só
à luz da encarnação se tom em plenamente eloqüentes71.
A criação toma-se potencialidade para a revelação enquanto se vê o
sentido cristológico dela. Deus pôs nela a aptidão para seus planos. E Deus
mesmo o que a utiliza, não são outras mãos as que a fazem servir para
outros fins. A criatura faz, na obediência ao Criador, o que não seria capaz
de fazer por si mesma. A ressurreição de Jesus é o exemplo culminante.
Fazendo que se supere a si mesma, Deus leva a criação ao fim a que a quis
destinar72. Apesar do pecado, a criação não está de todo corrompida, não
perdeu de todo sua capacidade de refletir a Deus.

69. Ibid., 123.


70. Cf. Ibid., 128-129; 13 lss.
71. Cf. Ibid., 177-179. Von Balthasar nota nesse contexto que BARTH usa o term o
Dasein para referir-se a Deus e à criatura em seu livro sobre S. Anselmo, Fides quaerens
mteüectum. Ansehns Beweis der Existenz Gottes, M unique, 1931, 178-180.
72. Cf. KarlBartb, 181. Cf. também RAHNER, op. tit., 221: a criação é.a “gram á­
tica” que Deus mesmo estabelece para sua manifestação.

412
O CO N HEC IM EN TO “NATURAL” DE DEUS E A LINGUAGEM DA ANALOGIA

O Deus Logos feito carne é assim princípio de toda analogia73. De


Jesus chega-se a Deus, não porque o revele de baixo para cima, senão porque
em Cristo Deus se revela de cima para baixo. Jesus não só expressa o Logos,
o único sujeito nele, mas também, em virtude das relações trinitárias, é a
expressão de todo o Deus trino. N a analogia que acontece no “Verbum-
caro” acha-se a medida de qualquer outra analogia filosófica ou teológica.
Só ela é o modo como o Logos mesmo junta todas as coisas e as eleva a si
mesmo, já que ele é o fundamento de todas as coisas criadas. As coisas têm
seu lugar definitivo dentro da analogia que tudo abraça do Verbo feito
came. Contudo permanece inclusa na analogia cristológica a distancia
original e infinita entre Deus e a criatura, uma distancia que o homem não
pode medir nem abarcar com o olhar74. Na recapitulação de todas as coisas
em Cristo, sem que a criatura desapareça, ficará ela mesma transfigurada
na distancia infinita das pessoas divinas na única natureza. Sabemos algo
dessa distância pela relação de Jesus com seu Pai, na qual tomaremos parte
mais intimamente quando chegar o momento dessa transfiguração75. Te­
mos assim que, a partir da fé em Cristo, se abre a possibilidade de um
conhecimento e de uma linguagem coerentes sobre Deus, fundados na
Palavra de Deus feita homem. N ão porque o homem queira prender Deus
em suas categorias, mas sempre a partir da revelação de Deus em Cristo,

73. Cf. BALTHASAR, Theologik II. Die Wahrheit Gottes, 284-288, cap. Intitulado
Verbum-Caro und Analogie, Tbeodramãtica 3y 205ss, por ser a união hipostática a união
definitiva de Deus e do homem, Jesus é a “analogia entis concreta” mas de nenhum modo
pode essa analogia transbordar em direção da identidade (206). Deve-se sempre salvar o
inconfiuse de Calcedônia; cf. G. M ARCHESSI, Lacristologia trinitaria d iH.U. von Balthasar,
Brescia, 1997,219-251; V HOLZER, Le Dieu Trmitédans Phistoire, Paris, 1995,66; 74; 86;
202ss, entre outros lugares. M ILANO, op. cit., 65: MSe Jesus C risto tudo pensou, tudo
falou e tudo fez ‘de uma maneira conforme a Deus’, agora é dele, e não de outros, que se
precisa aprender com o pensar e ‘dizer as coisas divinas’. A estrutura formal da analogia...
só se pode pensar abertamente mediante a análise do discurso sobre Deus vindo em Jesus
de Nazaré, que doravante é o único discurso de fato correspondente a D eus...”.
74. Cf. já El camino de aceso a la realidad de Dios, MySalTUl, 41-74,61: aA analogia
do ser entre Deus e a criatura não perm ite nem a comparação a partir de um terceiro
membro neutro (o ‘conceito do ser*, pois, não se dá), nem a comparação baseada em uma
proposição formal que se mantenha igual entre ambos extrem os... nem a redução de um
(a criatura) ao outro (Deus), de sorte que nessa atribuição a criatura se achasse a uma
distância do Criador que ela mesma pudesse comprovar e medir, com o que também, in­
versamente, pudesse abarcar o olhar a distância de Deus à criação. Em qualquer tipo de
comparação se evidencia a maior dissimilituddn (DS 806).
75. Cf. Tbeologik II, 288. Von Balthasar observa que nesse contexto a “proporcio­
nalidade”, relação de relações, entre a relação Deus-criatura e a que existe entre o Pai, o
Filho e o Espírito Santo. Cf. HOLZER, op. d t., 181; 184.

413
DA "ECONOMIA" À "TEOLOGIA"

no qual está o fundam ento últim o de toda a criação76. P or essa razão, a


p artir da realidade criada, pode-se filar sobre D eus. Na criação em C ris­
to dá-se um a “semelhança”, sempre na m aior dessemelhança do m istério
inabarcável a que a realidade criada nos rem ete. A analogia é distinção
en tre C riador e criatura, na relação profunda de aliança definitiva no
sangue de Jesus. Esse m istério de Jesus se nos manifestou. Porém , como
observamos no com eço de nosso tratado, não significa que o m istério
desapareça, senão que nos vemos mais im ediatam ente confrontados com
ele. Deus é sempre m aior, D eus semper m aior, em bora de um a forma nova,
segundo a expressão agostiniana77 tão querida de E. Przywara. Essa for­
m a nova não é a do m istério oculto e inacessível, mas a da infinita riqueza
que nos é dada e da qual somos feitos participantes, de cuja plenitude
recebem os. Deus se disse a si mesmo nas palavras do homem. Q uem vê
Jesus vê o Pai.

3. A “'maior semelhança” segundo E. Jüngel

Na teologia protestante dos últimos tempos a questão da analogia foi


suscitada de novo por E. Jüngel78. Já nos referimos à sua apreciação sobre
Barth, fundada em seu estudo histórico sobre a tradição filosófica e teoló­
gica e seu confronto com E. Przywara. A analogia do ser é precisamente o
m elhor instrum ento para salvar o Deus totalm ente outro, e por essa ra­
zão não pode ser usada por uma teologia que se inspire no Evangelho. João
1,18 diz-nos que nunca ninguém viu a Deus, mas o Filho unigénito no-
lo deu a conhecer. Se a prim eira parte da frase foi usada pela tradição para
insistir na indizibilidade de Deus, não se usou a segunda para problemati-
zar teologicamente o axioma fundado só naquela79. N o processo que levou
à afirmação da incognoscibilidade de Deus e até mesmo ao agnosticismo

76. Cf. MILANO, op. d t., 67. £ a natureza capaz da graça que perm ite falar de uma
analogia enús, sempre com fundam ento na nova criação manifestada e atuada em C risto.
77. A G OSTINHO, En. in Ps., 62[61],16 (CCL 39,804): “Semper enim ille m aior est
quantumque crevimus”.
78. Cf., sobre a analogia em Jüngel, F. RO DRIGUEZ GARRAPUCHO, La cruz de
Jesusy eiserde Dios. La teologia del Crucificado en EberhardJüngel, Salamanca, 1992,182-193;
J. A. M ARTINEZ CAMINO, Recibirla libertad. Dospropuestas defitndamentacién de la teologa
en la modemidad: W. Pannenbergy E. Jüngel, M adrid, 1992,227-239; R GAM BERINI, Nel
legame del Vangelo. U analogia nel pensiero di Eberhard Jüngel, Brescia-Rom a, 1994;
CANISTRÀ, op. d t (n. 62).
79. Cf. JÜ N G EL, Gott als Geheimnis der Welt, Tübingen, 1977, 317-321.

414
O CO N HEC IM EN TO "NATURAL” DE DEUS E A LINGUAGEM DA ANALOGIA

sobre ele80, não se levou devidamente em conta o amor. O amor de Deus


foi levado à linguagem unicam ente como “causa” e por essa razão nunca
poderá superar a distância entre D eus e o homem, que se caracteriza pela
superioridade infinita de Deus. “O Deus trazido desse modo, como amor
à linguagem, fica na dimensão de causador situado acima de nós. Precisa­
mente essa é a debilidade teológica da forma clássica da doutrina da analo­
gia.”81 E a fé na encarnação que, segundo Jüngel, obriga a recolocar a
questão, e mesmo a negar as premissas da tradição metafísica, que faz
possível a suspeita da falta de sentido da encarnação mesma. Trata-se, pois,
de ver se há um uso teológico da analogia que corresponda à fé na
encarnação de Deus. D iante das reservas em relação ao antropomorfismo,
nosso autor indaga se não há um antropomorfismo “possibilitado, ofereci­
do e exigido p o r Deus mesmo”82. Ao contrário do que opinaram os protes­
tantes, e em particular o Barth da primeira época, a analogia não é um
instrumento para pensar, juntos em um mesmo sistema, Deus e o mundo,
mas antes o contrário: a linguagem análoga sobre Deus não tem outra
finalidade que a de m anter seu m istério.
Em contrapartida, Jüngel propõe o Evangelho como fala análoga sobre
Deus. Trata-se da analogia do “advento” que leva à linguagem a chegada
de Deus ao homem. O Deus que vem ao mundo serve-se do que nesse
mundo é evidente, para, ilum inando-o desde dentro, pô-lo a serviço de
algo ainda mais evidente. E evidente, por exemplo, que alguém dê tudo o
que tem para assegurar-se a mais-valia de um tesouro encontrado no cam­
po. “Mas essa evidência aparece sob uma luz totalm ente nova quando vem
à linguagem como parábola da majestade de Deus que se deixa encon­
trar.”83 O ser de Deus revela-se vindo: Deus deixa de ser um desconhecido.
Deus se revela servindo-se da evidência intramundana, fazendo-se palavra,
vindo à linguagem. Por isso não se pode partir de princípios gerais para
saber como falar de Deus, senão que isso só se pode saber a partir da fala
de Deus que já aconteceu. Deve-se supor que essa linguagem corresponda
a Deus84.
O acontecimento em que D eus se faz palavra chama-se “revelação”.
“Nesse acontecimento... realiza-se a analogia da fé, na qual as palavras

80. Ibid., 381: “O uso tradicional teológico da analogia que pudemos observar em
K ant é predom inantem ente agnóstico, e precisam ente por causa da perfeição de D eus”.
81. Ibid., 381.
82. Ibid., 283. Cf. o contexto.
83. Ibid., 390.
84. Ibid., 391.

415
DA "ECONOMIA" À TEOLOGIA"

humanas não entram na proximidade de Deus, senão que Deus, como


palavra, vem para perto dos homens em palavras humanas”85. A diferença
entre D eus e o homem que constitui a essência da fé cristã não é, segundo
Jüngel, a de uma dessemelhança maior, mas a de um a semelhança cada vez
maior, em uma dessemelhança tão grande ainda entre Deus e o homem. E
a distinção e a semelhança entre a hominidade de Deus e a hominidade do
homem. E a semelhança ainda maior como a fé cristã confessa a encarnação
da palavra de Deus em Cristo. O homem Jesus é, como tal, a parábola, a
comparação (Gleicbnis) de Deus. Essa afirmação cristológica é o axioma de
um a hermenêutica da “dizibilidade” de Deus. E o ponto de partida de uma
doutrina da analogia que foça valer o Evangelho como “co-respondência”86.
N a parábola que é Jesus, D eus se põe em relação com o mundo e com o
homem. Então chega também à lin g u a g e m a “co-respondência” própria
do Evangelho. Embora em seguida se deva notar que essa correspondência
da linguagem humana com Deus não é uma possibilidade própria da lin­
guagem, mas que vem de D eus mesmo87.
Com a parábola e a metáfora não se encobre a realidade, mas justa­
m ente ao contrário: a linguagem fez-se mais direta, mais aguda, aquilo de
que se fala faz-se concreto na linguagem mesma. As parábolas foram usa­
das por Jesus, em particular, para falar do reino dos céus. A parábola não
é uma tese, não se diz o reino de Deus é, senão é como; começa-se uma
história que é capaz de envolver o ouvinte. A ele vem o reino de D eus em
parábola, se o ouvinte se abandona a ela. Essas parábolas do reino mostram
uma distinção fundamental entre o reino de Deus e o mundo, e por con­
seguinte uma dessemelhança e uma distância entre ambos, mas essa
dessemelhança tão grande apresenta-se em uma semelhança e uma apro­
ximação ainda maiores. Por isso a parábola, ainda quando feia a linguagem
do mundo, fala de Deus com verdade e propriedade. Já não é o ouvinte o
mais próximo a si mesmo, senão que Deus está mais perto dele. Deus vem
à humanidade, mais perto do que o eu humano pode aproximar-se de si
mesmo: “intimior intim o meo”88.
Achamo-nos aqui ante a analogia do advento: é maior a semelhança
porque há maior proximidade. Deus, no homem Jesus, esteve presente entre
os homens. Isso nos permite e, ainda, nos obriga a falar de Deus como ho­
mem, de seu desprendimento cada vez maior, e portanto de Deus como

85. Ib id ., 371.
86. Ib id ., 394.
87. Ib id ., 395.
88. A G O ST IN H O , Confissões m 6 ,1 1 ; cf. Gott..., 402-404.

416
0 CONHECIM ENTO “NATURAL" DE DEUS E A LINGUAGEM DA ANALOGIA

amor. O am or não é só o causante, com o já dizíamos. O amor, na medida


em que p o r ele D eus vem a nós, é o que nos perm ite falar de Deus, porque
o amor vem à linguagem. O amor é capaz da palavra, “capax verbi”89. Deus
distingue-se do homem unindo-se a ele em Jesus C risto. Porém , o funda­
mento dessa união não é a criação, mas a eleição em C risto, em virtude da
qual Deus elege o homem para si. N essa eleição funda-se a antropologia.
Dizendo sim a Jesus Cristo, Deus diz sim ao homem e o chama à existên­
cia. Esse sim funda-se no que Deus diz a si mesmo, no seio de sua vida
trinitária90. Mas o funda fora de si, extra se91. Só a analogia da fé pode servir
de base para a teologia. A analogia do ser pode significar para Jüngel uma
fase histórica, que passa desde que for aprofundada. A analogia da fé colo-
ca-se além dela, não contra nem ao lado, mas nos aproxima mais radical­
mente da origem na mesma eleição divina92.

4. Condusão: “maior disshnilitudonna maior proximidade

A reflexão sobre a fundamentação do homem e do mundo na eleição


divina em Cristo foi certamente positiva para a teologia católica. Também
ela preocupou-se nos últimos anos em centrar na encarnação a doutrina da
analogia. Só a partir do Deus que fala, que em sua palavra feito carne vem
a nós, tem sentido falar de uma aco-respondência,, do homíem93; este veio

89. Ib id ., 408.
90. JÜ N G E L vê um a relação fundam ental entre o sim de D eus a si mesmo n o seio
das relações trinitárias e p sim de D eus ao hom em , ao eleito em Jesus C risto: “E o sim do
livre am or divino, que o Deus trin o se diz a si mesmo, e portan to tam bém à sua criatura,
o qual se cria assim sua própria co rresp o n d ên cia1*. D ie M ö g lich k eit theologischer
Anthropologie au f der G runde d er Analogie. E in e U ntersuchung zur A nalogieverständnis
Karl Barths, in Barth-Studien, G üttersloh, 1982, 210-232, esp. 222.225; cf. CANISTRA,
op. d t , 442-443.
91. Pode-se observar aqui um a diferença d e acento com os teólogos católicos. E nquanto
estes sublinham a consistência, certam ente relativa, da realidade criada, Jüngel acentua a fun­
damentação de tudo em Cristo e portanto a falta de fundam ento “em si”. Daí a tendência
entre os prim eiros a ver a analogia d o ser d en tro da analogia da fé (consistência natural da
criação em C risto) enquanto Jüngel tende antes a mostrar a incom patibilidade entre ambas.
92. C f. CA N ISTRA , op. d t., esp. 442-446. W. PA N N EN B ER G também m ostra-se
crítico quanto ao uso da analogia. P o d e existir, segundo ele, analogia do uso teológico com
o profano, m as não a respeito de D eus m esm o. D eus faz suas nossas palavras e dá a nosso
louvor seu significado definitivo: A nalogie u n d Doxologie, in Grundfragen systematischer
Theologie, G öttingen, 1967,181-202.
93. N ote-se o jogo de palavras, que os au to res de língua alemã usam constantem ente
ao tratar desses problem as, entre sprechen (falar) e entsprechen (corresponder).

417
DA “ECO NO M IA- À TEO LO G IA ”

à existência porque foi eleito em C risto Jesus desde antes da criação do


mundo (cf. Ef l,3ss). O ser do homem está assim determinado por essa
presença de Deus, pelo “D eus intim ior intim o meo”, segundo a fórmula
de Agostinho que Jüngel recordava.
M as significa isso que temos de inverter a fórmula do Lateranense IV
como E . Jüngel propõe? N a vinda de Deus ao mundo temos uma proximi­
dade cada vez m aior em m eio a um a distância ainda grande. E maior a
semelhança que a dessemelhança entre Deus e o homem? Claro que não
podemos minimizar a proximidade de Deus ao homem, o fato de que Jesus
se fez nosso irmão, provado em tudo como nós menos no pecado (cf. H b
4,15). D eus vem realm ente ao homem, é capaz de despojar-se de si mesmo
por amor. Em Jesus temos Deus perto de nós, que no am or Deus vem até
nós. M as não é precisam ente a manifestação desse amor o que nos faz ver
com mais clareza a enorme distância entre Deus e nós?
Quando se trata do mistério no âmhito da revelação da graça, o acento recai
na incompreensibilidade positiva de Deus. Sempre transbordará toda com­
preensão o fato de que o Deus absoluto e superior a toda contradição se digne
a descer ao nível de sua criatura. Mais ainda: que a ame e até a honre com um
amor tal que tome sobre si todas as suas culpas, que morra por ela em meio
à dor e ao pavoroso abandono divino, e que se prodigue, em estado de “víti­
ma”, como comida e bebida do mundo inteiro. A distância, superior a toda
medida, entre a natureza e índole humana e a divina manifesta-se precisa­
mente na “grande semelhança” (in tanta smifítudine, DS 806) do empréstimo
de seu ser divino aos homens e na assunção por parte de Deus da natureza
humana94.

A mesma proximidade de Deus, quê vem a nós, mostra a grande


dessemelhança; o amor com que se aproxima de nós abre-nos, paradoxal­
mente, para a maior dessemelhança.
Sem querer forçar os termos até o extremo, será útil considerar o
ritmo da “semelhança” no Novo Testamento. Jesus veio em um a carne
semelhante à do pecado (Rm 8,3), feito semelhante em tudo aos irmãos
(Hb 2,17), provado em tudo à semelhança dos homens, exceto no pecado
(Hb 4,15). Estamos na linha descendente do Filho de Deus que vem até
nós. M as, em linha ascendente, a semelhança coloca-se no futuro. Nossa

94. BALTHASAR, El comino...» 63; ID ., Tbeologik IL .., 67: a ... m ostra-se com a
mesma clareza que Jesus, tam bém em sua plena hum anidade, continua sendo o totalm ente
outro, o irrepetível, com o in térp rete do Pai”.

418
o CONHECIMENTO ‘ NATURAL" DE D EUS E A UNGUAGEM DA ANALOGIA

semelhança com Deus (ou com Cristo) reserva-se para a consumação final.
“Seremos semelhantes a ele porque o veremos tal como é” (ljo 3,2). Ele
se fez o que nós somos para que nós pudéssemos chegar a ser o que ele é,
diz o conhecido axioma do “intercâmbio” dos Padres. Se a prim eira parte,
a descida de Jesus, se realizou, não assim a segunda, que espera a consuma­
ção. Ele salva a distância infinita entre C riador e criatura, mas nós não. A
capacidade de salvar a distância é precisamente um a mostra a mais da maior
disshnilitudo. O ojjlooúctlos típáv de Calcedônia não nos deve fazer esque­
cer de que Jesus é o opoow ux; t<ú TTotTpl. A grande semelhança (e aqui
tem talvez pleno sentido introduzir essa leitura do IV Concílio de Latrão)
mostra-nos uma m aior dessemelhança que só o am or de Deus salva, tam­
bém nessa grande manifestação de proximidade, “dessemelhante”. A ana­
logia que se funda no amor e na Uberdade encontra-se também com a
diferença entre Deus e o homem, ainda quando se sublinhe, com toda
legitimidade, o m om ento da semelhança devido à infinita condescendên­
cia divina.
Esse tema tem a ver também com o da relação entre a Trindade eco­
nômica e a Trindade imanente que nos ocupou desde o começo de nosso
tratado45. A vinda de Deus ao homem não esgota seu mistério. Mais ainda,
abre-o para nós em m aior profundidade. A incompreensibilidade de Deus
se nos manifesta em sua maior grandeza no acontecimento de Cristo, não
apesar dele. Vimos no capítulo 2 as reservas justificadas ante algumas pos­
síveis interpretações do “vice-versa” da formulação do axioma fundamen­
tal de K. Rahner. O ser de Deus não se aperfeiçoa nem se reaUza na eco­
nomia salvífica, mas também não se “esgota” nela. Inclusive a partir de
C risto e, poderíamos dizer, sobretudo ante o abismo de am or que Cristo
nos revela, não nos resta senão considerar que em tudo o que possamos
pensar ou dizer de Deus, em tudo o que nós ou as criaturas somos, achamo-
nos a infinita distância do mistério de amor que se nos revela em Cristo
crucificado e ressuscitado por nós.

95. Alguns críticos católicos observaram algum a am bigüidade de Jü n g el neste ponto;


cf. G . LA FO N T, Dim, le temps et F im , Paris, 1986,293; A. B E R T U L E T l l, D concetto
di persona e il sapere teologico, Teologia 20 (1995) 117-145, 124.

419
EPÍLOGO

“Q ue incomparáveis encontro teus desígnios, Deus meu, que imenso


é seu conjunto! Se me ponho a contá-los, são mais que a areia; se os dou
por terminados, ainda tu me restas” (ou também: “quando me desperto,
ainda estou contigo”) (SI 139[138], 17-18). O salmista considera em um
único olhar a grandeza dos desígnios divinos e a majestade de Deus mes­
mo. Os prim eiros ultrapassam já a capacidade do homem. Mas, se por
impossível os déssemos por term inados, ficava ainda Deus mesmo, que
está sempre conosco. N o livro do Deuteronôm io exprime-se também a
admiração pela proximidade ao povo do Deus soberano que realiza prodí­
gios nunca vistos nem ouvidos. “Que nação, por grande que seja, tem seus
deuses tão perto como o Senhor, nosso Deus, está perto de nós sempre que
o invocamos?” (D t 4,7).
A proximidade de Deus a seu povo eleito não é mais do que a prefi­
guração de sua proximidade a todos os homens e povos porque seu Filho
fez-se um de nós, e “uniu-se de certo modo a todo homem” (GS 22). Deus,
pela encarnação de seu Filho, é “Deus conosco”, de um modo que nem os
sábios nem os profetas do Antigo 'Ièstam ento poderiam suspeitar (cf. Is
7,14; M t 1,23). A doutrina do Deus uno e trino nos m ostrou o pressuposto
da proximidade de Deus ao homem: o amor intratrinitário é a origem do
amor de Deus ao homem manifestado ao enviar ao m undo seu Filho e o
Espírito. A Trindade “imanente” mostrou-se a nós assim como a origem e
o termo da história da salvação. D o Pai, princípio sem princípio, vem a
iniciativa da missão do Filho e do Espírito; Jesus entregará o reino ao Pai
quando tiver submetido todas as coisas (lC or 15,24-28). A plenitude do
homem e seu últim o fim, como foi dito no começo deste tratado, é somen­
te Deus. Por isso só Deus é o objeto da teologia. O Deus que envia ao
mundo seu Filho e o Espírito é o D eus a quem podemos chamar Pai, o que
421
DEUS VIVO E VERDADEIRO

nos convida a participar de sua vida como filhos em seu Filho ao comunicar-
nos o Espírito de filiação (cf. G14,4-6; Rm 8,14-15). Essa é a salvação a que
Deus nos destinou ao escolher-nos em Cristo antes da criação do mundo. O
Filho unigénito, pela condescendência de seu amor, faz-se primogênito entre
muitos irmãos, e ao unir-nos a si une-nos também entre nós. Fez-se o que
nós somos para aperfeiçoar-nos no que ele é1.
Somente porque Deus é ao mesmo tempo imo e trino é possível a
encarnação do Filho, e somente porque este pode com partilhar nossa con­
dição podemos chegar a ser o que ele é. A Trindade, a encarnação e a graça
resultam assim, em sua mútua inter-relação, os mistérios centrais do cris­
tianismo2,3 o eixo que integra em harmonia todas as outras verdades de
nossa fé. N a Igreja, corpo de Cristo, recebemos a superabundância dos
dons salvíficos, a palavra e os sacramentos. Enquanto peregrinamos nessa
vida, temos já as primícias do Espírito e dos bens futuros, que esperamos
gozar um dia em plenitude. A salvação que Cristo nos dá é a prolongação
da vida superabundante de Deus. Só com o ponto de partida da Trindade
divina têm sentido todos e cada um dos mistérios de nossa fé, e só a partir
dela fica definitivamente iluminado o mistério de nossa existência. Já não
são os dons de D eus o objeto de nossa gratidão e o estímulo de nosso
louvor, senão o dom que Deus nos faz de si mesmo, conseqüência do dom
mútuo de amor das três pessoas divinas. N o âmbito desse am or que, como
já vimos, é sempre o dom prim eiro, desenvolve-se toda a nossa vida. Só
porque Deus é trino pode criar, e só por isso pode receber-nos em seu seio.
Santo Ireneu expressou isso em term os insuperáveis:
0 Espírito dispõe o homem para o Filho de Deus; o Filho o conduz ao Pai,
e o Pai lhe outorga a incorrupção para a vida eterna, que a cada um lhe
sobrevém da vista de Deus. Assim como os que vêem a luz estão dentro da luz
e percebem sua claridade, assim também os que vêem a Deus estilo dentro de
Deus, participantes de sua claridade. A glória de Deus vivifica: participam
segundo isso da vida os que vêem a Deus’.

1. IR E N E U de L ião, Adv. Haer. V pref.; cf. A. ORBE, Teologia de san Irineo, M adrid-
Tòledo, 1 9 8 5 ,1, 48-51 en tre outras passagens.
2. C f. K . R A H N E R , Sobre el concepto de m istério en la teologia católica, in Escritos
de Teologia IV 53-101; 91ss; tam bém Reflexionesfundamentales sobre antropologiay protologia
en el marco de ta teologia, in MySal II 1, 454-468, 458; O. G onzález de CA RD ED A L, La
entram dei cristianismo, Salamanca, 1997, 8: “A Trindade prolonga sua própria vida nos
hom ens pela encarnação e pela graça. T rindade, encarnação e graça constituem o cerne do
cristianism o, com o expressões do único M istério, que é D eus existindo na im ensidade e
encerrando-se na pequenez do hom em ”.
3. Adv. Haer. IV 20,5; cf. ORBE, Teologia de san Irineo, M adrid, 1996, IV, 288-290.

422
EPÍLOGO

A vida de D eus manifestou-se em Cristo, e dessa vida os homens foram


feitos participantes. Nesse âmbito se desenvolve nossa existência neste
mundo. Viver em D eus é nosso destino definitivo, nas numerosas moradas
que há na casa do P ai (cf. Jo 14,1-3) — tantas moradas terá como membros
o corpo de C risto (de novo Ireneu)4.
A salvação cristã é portanto a obra do D eus uno e trino e tem esse
Deus como princípio e meta. Esse é o Deus desconhecido, que os homens
buscam sem saber, o único que pode satisfazer nossas aspirações porque
unicamente “nele vivemos, nos movemos e somos” (At 17,28). Refletir
sobre o m istério de Deus não é portanto afastar-nos do mundo que nos
rodeia. É deixar-nos penetrar pelo ar que respiramos, e descobrir o que
está mais dentro de nós que nossa própria intim idade, para abrir-nos ao
irmão em que também Deus nos sai ao encontro.
Nossas palavras sobre Deus, sempre insuficientes, devem-nos levar à
oração confiante. N ão é por acaso que os melhores entre os antigos trata­
dos De Trinitate terminem com uma oração. Também alguns dos moder­
nos. O estudo do mistério de Deus deve convidar-nos à adoração, à ação
de graças e ao louvor5. A isso leva a impossibilidade de dizer palavras ade­
quadas, mas muito mais a consciência de que Deus se expressou em si
mesmo nos atos e nas palavras de Jesus. Também nós podemos concluir
nosso percurso glorificando a Deus com as palavras de S. Paulo e da litur-
, gia eucarística:
Ó abismo da riqueza, da sabedoria e da dência de Deus! Quão insondáveis
são teus desígnios e inescrutáveis teus caminhos! Com efeito, quem conheceu
o pensamento do Senhor? Ou quem foi seu conselheiro? Ou quem lhe deu
primeiro para ter direito à recompensa? Porque dele, por ele e para ele são
todas as coisas. A ele glória pelos séculos! Amém (Rm 11,32-35).

Por Cristo, com ele e nele, a ti, Deus Pai onipotente, na unidade do Espírito
Santo, toda honra e toda glória pelos séculos dos séculos. Amém.

4. M v. Haer. IH 19,3 (SCh 211, 382).


5. A G O ST IN H O , En. in Ps. 3 2 ,1 ,8 (C C L 38,254) “Ineffabilis enim est, quem feri
non potes. E t si eum feri non p o tes, et tacere non debes, quid restât nisi ut iubiles? U t
gaudeat cor sine verbis, et inmensa ladrado gaudiorum m etas non hab eat syllabarum ”. Trm
V 1,1 (C C L 50,206) “[Deus] de q u o sem per cogitate debem us, de quo digne cogitare non
possumus, cui laudando reddenda est omni tem pore benedictio”.

423
Referências bibliográficas

Esta bibliografia inclui as obras de caráter geral, não as monografias


que se referem só a algum ponto concreto do tratado. Para evitar repeti­
ções, as obras citadas com mais fireqüência nem sem pre aparecem nas notas
com a referência completa. Estas poderão ser encontradas nesta bibliogra­
fia, que se limita, salvo alguma exceção, a indicar obras recentes.

ARIAS REYERO, M. El Dios de nuestra ft. Dios unoy trino. Bogotá, 1991.
AUER, J. Gott der Eine und Dreiene, Regensburg, 1978.
BALTHASAR, H . U. von, Teodramática 1. Prolegomenos. M adrid, 1991.
______ . Teodramática 2. Las personas del drama: el bombre en Dios. Madrid, 1992.
______ . Teodramática 3. Las personas del drama: el bombre en Cristo. Madrid, 1993.
______ . Teodramática 4. La action. M adrid, 1995.
______ . Teodramática 5. El último acto. Madrid, 1997.
______ . Tbeologik 1. Wahrheit der Welt. Einsiedeln 1983.
______ . Tbeologik U. Wahrheit Gottes. Einsiedeln 1985.
______ . Tbeologik UI. Der Geist der Wahrheit. Einsiedeln 1987.
BOBRINSKOY, B. Le mystere de la Trinité. Cours de tbéologie orthodoxe. Paris 1986.
BONANNI, S. La Trinhä, Casale M onferrato, 1991.
BREU N IN G , W.; BEINERT, W. G otteslehre. In: BEINERT, W. (Org.) Glaubenszugänge.
Lehrbuch der Katoliscben Dogmatik. Paderbom-M ünchen-W ien-Zürich, 1995, v. 1, p.
201-362.
CIOLA, N . Teologia trinitaria. Storia-Metodo-Prospettivey Bologna, 1996.
CODA, P. Dios Unoy Trino. Revelation, expertentiay teologia del Dios de los cristianos. Salamanca
1993.
CONGAR, Y. ElEspiritu Santo. Barcelona 1983.
COUKTH, E II mistero del Dio Trinità. Milano, 1993.
DURW ELLL, E X. Nuestro Padre. Dios en su mistério. Salamanca. 1990.
FORTE, B. Trinidad conto historia. Ensayo sobre el Dios cristiano. Salamanca, 1968.
GARCÍA-MURGA, J. R. El Dios de amory de paz. Madrid, 1991.
GRESHAKE, G. Der dreieine Gott. Eine trinitariscbe Theologie, Freiburg-Basel-W ien, 1997.
JU X G EL, E. Dios conto mistério del mundo, Salamanca, 1984.
KASPER, W. Der Gott Jesu Christi, Mainz, 1982.

425
O D EU S VIVO E VERDADEIRO

LA FO N T, G . Peut-on cm naitn Dieu en Jesus-Cbrist? Paris, 1970.


M E L O lT Í, L . Un solo Padre, un solo Signore, un solo Spirito. Saggio di teologia trmitaria.
Torino, 1991.
M O LTM A N N , J. Trinidady Reino de Dios. La doctrina sobre Dios. Salamanca, 1983.
M O N D IN , B. La Trinità mistero d’amore. Trattato di teologia trmitaria. Bologna, 1993.
M Ü LLER, G . L. Katholische Dogmatik. Für Studium und Praxis der Theologie. Freiburg-
Basel-W ien, 1985, p. 226-252; 390-413; 415-476.
N ICO LA S, J.-H . Synthese dogmatique. De la Trinité à la Trinité. Paris, 1985, p. 27-265.
O ’ D O N E L L , J. J. The mystery o f the triune God. London, 1987.
PANNENBERG, W. Teologia sistemática. Madrid, 1992, v. I.
PENAMARIA DE LLANO, A. El Dios de los cristianos: estructura mtroductoria a la teologia
de la Trinidad (Tratado de Dios uno y trino). M adri, 1990.
PIKAZA, X; SILANES, N . (dir.) Diccionario teológico. El Dios cristiano. Salamanca, 1992.
PO RRO , C. Dio nostra salvezza. IntroduzJone al mistero di Dio. Torino, 1994.
RAHNER, K. El Diso trin o como principio y fundamento trascendente de la historia de
la salvación. MySal, M adrid, v. II, 1 (1969) p. 359-449.
ROVIRA BELLOSO, J. M . Tratado de Dios unoy trino. Salamanca, 1993.
SCHEFFCZYK, L. Der Gott der Offenbarung, Gotteslehre. Aachen, 1966.
STAGLIANO, A. II mistero del Dio vivente. Per una teologia delPAssoluto trmitario. Bologna,
1996.
VIVES, J. uSi oyeraissu voz”. Exploration cristiana dei mistério de Dios. Santander, 1988.
VORGRIM LER, H. Doctrina teológica de Dios, Barcelona, 1987.
W .A A ., D ios como principio y fundamento de la historia de la salvación. MySal, M adri, v.
H, n. 1 (1969) p. 39-449.
W ERBICK, J. Dottrina trinitária. In: SCHNEIDER, T h. (ed.) Nuovo corso di dogmatica.
Bresda, 1995, v. 2, p. 573-683.

426
Índice onomástico

A B
Abramowski, 231, 244, 337 Balthasar, H. U. Von, 2 4 ,4 0 ,4 2 ,46,49,77,79,
Agostinho, santo, 12,13,20,22, 28, 32, 34, 38, 81, 83-86, 88, 89, 94, 96, 102, 126, 276,
41, 42, 49, 70, 74, 98, 123, 187, 234, 245, 282,283,292,294,295,298, 303,309, 312,
249,250, 252, 257,261-268, 273,275-277, 313, 315, 316, 318, 324,329,334, 340-343,
279-281, 283-285, 292,294, 295, 299, 310, 359, 360, 363, 364,370,389,397-400,410-
311, 314,320, 322,326,327, 332,335,337, 413, 418
338,342, 343, 348-350,352, 353,356, 359- Barth, K., 39, 277-280, 283-285, 289, 290, 360,
362, 366-368, 372-374,377, 381, 383, 384, 366, 397, 399, 407-412,414, 415, 417
386, 389, 394, 395,401,407,413,414,416, Basílio de Cesaréia, são, 13,28,42,73,80, 107,
421, 423, 425 181, 213-215,217,235,265,275,283,295,
Akcva, J., 89 299, 330, 331, 334, 343, 378, 383, 407
Alberigo, G., 127, 244 Beinert, W., 35
Alexandre de Alexandria, 184, 188, 196 Bamabé (Ps.), 138
Alfaro, J., 21, 39 Bertuletti, A, 419
Alvarez Gomez, M ., 46 Birne, B., 58
Amato, A , 13, 59, 64, 305, 371 Blaumeiser, H., 86
Ambrosiaster, 375, 400 Boaventura, são, 41, 245, 253, 261, 271-273,
Ambrósio, 13, 348, 352 300, 370, 338, 406
Ambrósio de M ilão, 73, 80, 295, 328, 337 Bobrinskoy, B., 313, 355, 359, 360
Angelini, G., 32 Boédo, 264, 265, 267, 268
Anselmo, santo, 41, 262, 338, 349, 388, 401, Boff, L., 288
412 Bolotov, B., 355
Arias Reyero, M ., 186 Bonanni, S., 349
Ário, 175, 181, 183-193, 195-197, 199, 246 Bordoni, M., 69, 70, 75, 78, 80, 103, 109
Aristóteles, 26, 256, 403, 404 Bourassa, F, 271, 284, 284, 290
Armendáriz, L., 59 Bouyer, L., 298
Atanásio, santo, 40, 74,82, 107, 178, 180, 181, Bovon, E , 69, 81
184, 186, 195, 198-200, 202-206, 212-215, Braun, R., 157
222,232,237, 246,263,299, 306,307, 337, Breuning, W., 35
345, 346, 372 Briend, J., 59
Atenágoras, 146, 150, 155, 157 Bueno de la Fuente, E., 277
Auer, J., 33, 35, 386 Bulgakov, Sn 77,309,310,316,336,343,355,360
Ayán, J. J., 140, 144 Busto, J. R , 394

427
DEUS V IV O E VERDADEIRO

c Eunômio, 200, 215-219, 228, 256, 305


Canistrà, S., 410, 411, 414, 417 Eusébio, 191, 192, 195, 196, 197, 201
Cantalamessa, R, 70, 71, 78,80, 321, 357, 360 Eusébio de Cesaréia, 186, 189-191, 195, 197
Capdevila y M untaner, V. M ., 62
Cardedal, O. G. de, 31, 82, 96, 113, 277, 324, F
380, 422 Fantino, J., 151
Chavannes, H., 408 Farina, R., 190
Chevalier, M. A., 71, 103 Fédou, A l, 167, 388
Childs, B. S„ 125 Fee, G. D., 107
Gola, N ., 83 Fernandez Sangrador, J. J., 277
Cipriano de Cartago, são, 28, 374 Ferraro, G., 107
Grilo de Alexandria, são, 76,235, 300,347, 353 Filon de Alexandria, 60, 325
G rilo de Jerusalém, são, 324, 326 Fitzmyer, J. A , 335, 395
Claraval, 371 Forte, B., 371, 425
G em ente, 41, 136, 137 Fôschner, F., 237
G em ente Alexandrino, 320 Franco, E , 267
G em ente de Alexandria, 38 Freedman, D. N ., 128
G emente Romano, são, 136,137,138,141, 383 Fulgêndo de Ruspe, sâo, 275
Coda, R, 13, 20, 127, 316
Colombo, G., 35 G
Colzani, G ., 324, 356
Galot, J., 251, 324, 342, 357, 389
Congar, Y., 48,49, 70, 78, 101, 107, 111, 112,
Gamberini, P., 414
114, 115,130,300,302,304, 309,324, 327,
Gamillscheg, M. H ., 356
329,330,333,334, 338-340, 345,347, 348, Garda Lôpez, F., 58, 59
353-355, 359, 360, 363 Garda Murga, J. R., 244
Courth, E , 135, 237 Garijo-guembe, 11
Cozri, A., 11 Garrigues, J. M., 343, 352, 353, 356, 358
Crouzel, H ., 167, 171 Gerleman, G., 128
Cura, S. dei, 11, 59, 275, 371, 389 Gesché, A , 389
Gilbert, M., 129, 349, 401, 403-406
D Gilbert, R, 316, 369, 400
Dâmaso, são, 214 Girlanda, A , 124, 129, 381
Dayton, S. R, 75 Gironés, G., 305
Del Covolo, E., 135 G nilka,J., 118
Di Xapoli, G., 237 Gonzalez, A , 283, 291, 293, 342
Didaché, 139 Gonzalez, M., 50
Dídimo o Cego, 206, 221,225, 328, 337, 343, Granado, C., 324
345 Greco, C ., 46
Dionísio Areopagita (Ps.), 367, 385, 407 Grégoire, J., 348
Dionísio de Alexandria, 177, 178, 246 Gregôrio, 224-226, 228-230, 346, 357
Dionísio de Roma, são, 177 Gregôrio de Nissa, 25, 74,215, 228, 229, 235,
Domes, H ., 222 299, 300, 327, 334, 375, 377
Dosetri, G. L., 231 Gregôrio di Xissa, 347
Drecoll, V. H., 217 Gregôrio Magno, 338
Dupleix, A., 167 Gregôrio Xazianzeno, 23, 74, 210, 215, 223,
Durrwell, F. X., 97,99,298,324, 341, 357, 375 224,227,229,255,256,275,299,324, 346,
362, 407
Gregôrio o Taumaturgo, 390
E
Gregôrio Palamas, 336, 354
Emery, G ., 244 Greshake, G., 34, 46, 49, 51, 268, 269, 274,

428
Indice onom ástico

277,283,285,288,291,293,308,309,318, K
341, 342, 361, 367, 370, 372, 376, 377 Kannengiesser, Ch., 202
Grillmeier, A., 86,178,180,184,186-188,190-
Kant, L, 30, 31, 415
192, 195, 236
Kasper, W., 21, 25, 34, 35, 43, 45-47, 64, 70,
96, 244,245, 262, 269,276, 279, 282, 285,
H 286,289,298,302, 305,309, 319, 326, 333,
Haag, E., 127 341, 342,359,362, 370,371, 373, 376, 377,
Halleux, A. de, 232 389, 403
Hanson, R. P. C., 184, 186-188, 193, 195, 198, Kehl, M., 85, 342
203,205,214,220,223,226,229,230,234 Kelly, J. N. D., 193, 198, 352
Haya Prats, G., 109 Kitamori, K , 389
Hegel, G. W. E, 46-48, 95 Kuschel, K J., 100
Hemmerle, K., 376
Hengel, M ., 65 L
Henne, Ph., 139, 143
Hernias, 138-140 Ladaria, L. E, 43,68, 70, 73,82,101, 106, 126,
Hilário de Poitiers, santo, 13, 51, 82, 101, 106, 129, 138,191,208,209,212,219,257,261,
184, 199-202,207,208,248,257,269,274, 263,264,300, 302,317,333,334,337, 348,
300, 321,324, 335-337, 343, 365, 375, 388 374, 398
Hilbeiatfa, B. J., 50, 130, 280, 292, 324, 341 Lafònt, G., 50, 83, 419
Hipólito de Roma, 105, 164, 165, 179, 334 Lambiasi, E, 107, 324
Holzer, V , 283, 316, 318, 413 Lampe, G. W. H., 75
Hormisdas, papa, 294 Lang, B., 127
Horn, E W., 107 Latourelle, R., 13, 31
Huculak, B., 276 Lauret, B., 35
Hugo de São Vítor, 330 Lavatori, E., 324, 325
Leão Magno, são, 70, 352
I Leão Xin, papa, 75, 300, 334, 342
Lentzen-Deis, E, 71
Inicio de Antioquia, santo, 72,73, 137,138,387
Léon-Dufòur, X., 104
Ireneu de Lião, santo, 72, 73,77, 84, 105,132,
Livingstone, E. A., 388
148, 151-154,160,162,163, 192,208, 320,
Lonergan, B., 282, 289
327, 334, 368, 422, 423
Löser, W., 85
Irineu, 153
Lossky, V , 313
Lucas, J. de S„ 21, 67,69,71, 81,95, 103, 105,
J 109
Jeirni, E., 128 Luislampe, P., 222
Jeremias, J., 58, 61, 67, 126 Lutero, M., 16, 86
Jerônimo, são, 200
João da Cruz, são, 333 M
João Damasceno, são, 28, 74, 255, 275, 276, Maggioni, B., 90, 118
348, 377, 384, 385 Malet, A., 269
João Paulo H, 16, 24, 38, 43, 59, 79, 80, 83, Manaranche, A., 23
114,292,325, 326,340,341, 344, 359,390, Maraldi, V., 324
391, 397, 400, 401 Marangon, A., 124
Joaquim de Flora, 237 Marcei D’ançyre, 192
Jüngel, E , 26,87, 89,90,93,94, 372,410,411, Marcelo de Andra, 189-191, 197, 199, 232
414-419 Marchesi, G., 83, 316
Justino, são, 38, 79, 141-147, 150, 152, 162, Mário Vitorino, 336
164, 375 Martin, J. R, 136, 375

429
D EU S VIVO E VERDADEIRO

Martin Velasco, J., 58 Pavan, R, 31, 46, 158, 262, 277


Mardnelli, R , 316 Pedro Lombardo, 33, 41, 273, 371
Martinez Camino, J. A., 414 Pelágio I, 352
Marzotto, D ., 374 Pelland, G., 167, 177, 192
Máximo Confessor, sáo, 302, 347,352, 354,356 Penna, R., 105, 110, 111
Medermott, J. M., 289 Pesch, R., 96
Mcdonnell, R., 71 Pietras, H., 179, 180, 205
MeUoni, A., 127 Pikaza, X., 11, 46, 252, 298, 353, 405
Melotti, L., 426 Pio XI, 359
Menozzi, D., 127 Platão, 144, 148, 401
Meis, A., 144 Pohlmann, G., 408
Meunier, B., 202, 216, 217 Popkes, W., 84
Milano, A., 31, 46, 158, 262, 265, 277, 279, Porfírio, 221
285, 291, 293, 370, 408, 413, 414 Porro, C., 361, 371
Milano, A., 71, 228 Porsch, F, 112
M oingt,J., 160 Potterie, I. de la, 71, 104
Moltmann, J., 42,87-89,94,279,285-289, 304, Pottier, B., 228-230
317, 356, 323, 324, 328, 357, 366 Pottmeyer, H. J., 393, 397, 398
Mondin, B., 119 Pouchet, J. R., 222
Moreschini, C., 225, 228, 347 Prades, J., 332
Mucd, G., 46 Prenter, R., 372
Mühlen, H., 75, 76, 290-292, 324, 325, 340, Prestige, G. L., 234
341 Przywara, E., 402, 405-407, 410, 414
Müller, G. L, 33, 35
Müller, Ph., 394 R
Munier, Ch., 142
Rahner, K., 25, 29, 34, 37, 39-45, 48, 50, 58,
93, 277, 279-286, 289, 293, 298, 312, 314,
o 318,321, 323,325,366, 371,388,403,419,
O’collins, G ., 64 422
Odasso, G., 381 Ratzinger, J., 35, 285, 291, 292
O ’donnell, J., 285 Ravasi, G., 124, 129, 381
Olivetti, M. M ., 316 Refoulé, F , 35
O’Neil, J. C., 108 Ricardo de São Vítor, 13,251-254,265-267,290,
Orbe, A., 13, 72, 73, 79, 138, 142-145, 152- 292, 309, 315, 338, 342, 350, 369
155,160-165,167-174, 177,217, 249, 315, Ricken, F, 187
327, 329, 357, 368, 422 Ritter, A. M., 231, 234
Orígenes, 106,151,166,168,169,171-176,178, Rius Camps, J., 168
180,188-190,193,196, 197,303, 315,345, Rodriguez Garrapucho, E, 90, 414
348, 387, 390 Romero Pose, E., 11, 14, 153
Rossano, R, 124, 129, 381
P Rousseau, J. J., 29
Rovira Belloso, J. M., 33, 125, 244, 250, 277,
Paatford, A., 344
285, 293, 303, 380, 383, 386, 399, 406
Padovese, L., 219 Ruggieri, G., 127
Palakeel, J., 408
Pannenberg, W., 35,36,48,205,288, 305-308,
312, 317, 323,336, 371,372,375, 377,378, S
384, 414, 417 Sattler, S., 127
Pastor, F. A., 138-140 Salvati, G. M., 42, 83, 243
Paulo de Samosata, 178, 196 Scarpar, G., 27
Paulo VI, 238 Schädel, E., 11

430
ÍN D IC E ONOM ÁSTICO

Scheeben, M.J., 75, 292 Tertuliano, 27,42, 79, 145,151, 152, 156-166,
Scheffczyck, L., 21, 23, 33, 35, 38, 45, 128, 171, 174,176,177, 179,192,208,209,211,
244, 318, 370, 377, 386 246, 259, 262, 321, 345, 348, 365, 374
Schelle, U., 105 Theobald, Ch., 396
Schiersee, F. J., 99 Tomás de Aquino, santo, 13, 38, 40, 41, 49,
Schlier, H., 66 325,244,245,248,260,264,267,272,277,
Schlosser, J., 58, 61 285, 300,302,335, 343,368, 398,401,402,
Schmaus, Ai, 401 405-407
Schmidt, W. H., 128, 129 Tòrrance, A. J., 408
Schmidtbaut, H. Ch., 244 Torres Queiruga, A., 298
Schnackenburg, R., 26, 104, 116, 319 Toschi, M., 127
Schneider, G., 61 Turrado, A., 250
Schneider, Th., 35, 127, 289, 361, 391
Schniertshauer, M., 253, 265 u
Schoonenberg, R, 48, 282 Uribarri, G., 149, 158, 164, 177, 178
Schulte, R., 128, 298, 363
Schürmann, H., 69
Schütz, Ch., 107, 130
V
Seibt, K., 192 Van Cangh, J. M., 127
Sequeri, R, 393 Vanhoye, A., 83
Sesboül, B., 135, 194, 198, 202, 216, 217, 221, Vanier, R, 244
231, 235, 236, 396, 398 Vaux, R. de, 125
Sieben, H., 217, 222, 223 Vercruysse, J., 27
Silanes, N., 28, 46, 353, 405 Víctrírio de Rouen, 352
Simoens, Y., 104, 105, 374 Vílchez, J., 394
Simonetti, M., 140, 142, 148, 152, 167, 172, Vives, J., 389
173, 175-177,179, 184,185, 188,190, 192, Vorgrimler, H., 126, 318
193, 195-198,200,202,203,205,210,213,
214,219,221,223,226,228,230,234,235, w
321, 345 Wehr, L., 115
Simonis, W., 38 Weinandy, Th., 108
Smulders, R, 211 Welker, M., 324
Söding, Th., 26, 372
Werbick, J., 49, 292, 293, 316, 361
Söhngen, G., 411
Westermann, C., 128
Spiteris, Y., 305, 356, 371
Widdicombe, R, 167, 202
Splett, J., 46, 47
WiUonghby, B. Z., 128
Stagiiano, A, 33,50, 127,244,298,371,376,377
Wolinski, J., 135
Stanisloae, D., 371
Wollenweider, S., 329
Stead, Ch., 186
Steward-sykes, S., 140
Studer, B., 135
Y
Sullivan, F. A., 29 Yildiz, E., 71
Sykes, S. W., 75
z
T Zani, A., 105, 164, 165
Tadano, 144, 145, 146, 368 Ziegenaus, A., 35
Tapken, A., 13 Zimmerli, W., 125
Teöfilo de Antioquia, 147-150, 163, 246 Zizioulas, J., 371
Teran Dutari, J., 402 Zubiri, X., 293, 369, 400

431
Este livro foi composto nas famílias tipográficas
Swis 721 e Janson Text
e impresso em papel Offset 75g

Editoração, Impressão e Acabamento


Rua 1822, n. 347 • Ipiranga
04216-000 SÃO PAULO, SP
Tel.: (0 **1 1 )6 9 14 -1 9 22

Você também pode gostar