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COMENTÁRIO

ao EVANGELHO
SEGUNDO

JO Ã O
V o l u m e 2 ( 1 3 2 1 ‫)־‬

I n tr o d u ç ã o , T r a d u ç ã o e N ota:
EDITORA ACADEMIA CRISTÃ

Editores responsáveis
Luiz Henrique Alves da Silva
Dr. Paulo Cappelletti
Prof. Dr. Waldecir Gonzaga (PUC-Rio, Brasil)

CONSELHO EDITORIAL

Prof. Dr. Abim ar Oliveira de Moraes (PUC-Rio, Brasil)


Prof. Dr. Adelson Araújo dos Santos (Gregoriana, Roma, Itália)
Profa. Dra. Andreia Serrato (PUC-PR, Brasil)
Profa. Dra. A parecida M aria de Vasconcelos (FAJE, Brasil)
Prof. Dr. Carlos Ignacio M an Ging Villanueva (PUCE, Equador)
Profa. Dra. Edith Gonzáles Bernal (PU Javeriana, Bogotá, Colômbia)
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Prof. Dr. Erico João H am m es (PUC-RS, Brasil)
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Profa. Dra. Francilaide Queiroz de Ronsi (PUC-Rio, Brasil)
Prof. Dr. Francisco Nieto Renteria (UP, México)
Prof. Dr. Gabino Uribarri (UP Comillas, Espanha)
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Profa. Dra. Gizela Isolde W aechter Streck (EST, Brasil)
Dr. Júlio Paulo Tavares Zabatiero (FTSA, Brasil)
Profa. Dra. Maria Isabel Pereira Varanda (UCP, Portugal)
Profa. Dra. Maria Teresa de Freitas Cardoso (PUC-Rio, Brasil)
Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza (UMESP, Brasil)
Prof. Dr. Valmor da Silva (PUC-GO, Brasil)
Profa. Dra. Vilma Stegall de Tommaso (PUC-SP, Brasil)
Prof. Dr. Waldecir Gonzaga (PUC-Rio, Brasil)
Profa. Dra. Gleyds Silva Domingues (FABAPAR)
RAYMOND E. BROWN, S.S.

COMENTÁRIO
ao EVANGELHO
SEGUNDO

JOÃO
Volume 2 (13-21)

Introdução, Tradução e Notas

T r a d u to r :

V alter G racian o M artin s

Santo André ‫ ־‬SP


2020

CRISTÃ PAULUS
© b y Yale U n iv ersity as a ssig n ee from D ou b led ay, a d iv isio n o f R andon H o u se, Inc.
© by Editora A cadem ia Cristã

Título do original inglês: The G osp el A ccordin g to John (XIII-XXI)

Supervisão editorial:
L uiz H enrique A lv e s da Silva
Dr. Paulo C appelletti

Diagramação:
C icero Silva 97463-6460 (11)‫־‬

Revisão:
Pe. M izael A. Silva
R ogerio d e Lima C am pos

Capa:
Jam es Valdana

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057

B row n, R aym ond Edw ard, 1928-1998.


C om entário ao e v a n g elh o se g u n d o João V o lu m e 2 (13-21): introdução, tradução e
notas / R aym ond E dw ard Brow n, S.S.; tradução d e V alter G raciano M artins. - Santo
Andre: A cadem ia Crista; São Paulo: P aulu s, 2020.

Bibliografia
ISBN 978-65-5562-097-9
Título original: T he G osp el A ccordin g to John (XIII-XXI)

1. Bíblia N .T.-João-C om entários. I. Título. II. M artins, Valter G raciano

C D D 226.5077
20-3499 C D U 226.5

índices para catálogo sistemático:

1. E van gelh o se g u n d o João - C om entário

Af
ACADEMIA
CRISTÃ PAULUS
EDrroRA A cademia C ristà Paulus Editora
R u a M a rio A u g u s to d o C a r m o , 37 - J a rd im A v e lin o Rua Francisco C ru z, 229
C E P 03227 ‫־‬070 ‫ ־‬S ã o P a u lo , S P ‫ ־‬B rasil 04117-091 - São P a u lo -S P
Tel.: (11) 32975 7 3 0 ‫־‬ Tels.: (11) 5087-3700-F ax: (11)5579-3627
E -m ail: s ilv a rico 3 3 @ g m ail.co m E-mail: editorial@paulus.com.br
Site: w w w .e d ito ra a c a d e m ia c ris ta .c o m .b r Site: w w w .p au lu s.co m .b r
Este comentário completo é dedicado
a meu pai em seus setenta anos

Um pequeno gesto de gratidão


por uma vida de generosidade
S umário

Prefácio à edição brasileira............................................................................XI


Principais abreviaturas................................................................................. XV

III. O LIVRO DA GLÓRIA

O LIVRO DA GLÓRIA

P rimeira P arte: A última ceia....................................................................... 899

Esboço da prim eira p a rte ........................................................................... 900


46. A ceia: - O lava-pés (13,1-20)............................................................. 903
47. A ceia: - Predição da traição (13,21-30)............................................ 934
48. O últim o discurso: Observações gerais............................................. 944
49. O últim o discurso: - Primeira seção (introdução) (13,31-38)........ 974
50. O últim o discurso: - Primeira seção (primeira unidade)
(14,1-14)................................................................................................. 989
51. O últim o discurso: - Primeira seção (segunda unidade)
(14,15-24)................................................................................................ 1014
52. O últim o discurso: - Primeira seção (terceira unidade)
(14,25-31)................................................................................................ 1030
53. O últim o discurso: - Segunda seção (primeira subdivisão)
(15,1-17).................................................................................................. 1041
54. O últim o discurso: - Segunda seção (segunda subdivisão)
(15,18 - 16,4a)........................................................................................ 1075
55. O últim o discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão)
prim eira unidade (16,4b-15)................................................................1098
VIII Com entário ao evangelho segundo João

56. O últim o discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão)


segunda unidade (16,16-33)................................................................ 1116
57. O último discurso: - Terceira seção (primeira unidade)
(17,1-8).....................................................................................................1142
58. O último discurso: - Terceira seção (segunda unidade)
(17,9-19)...................................................................................................1165
59. O último discurso: - Terceira seção (terceira unidade)
(17,20-26).................................................................................................1178

S egunda P arte: A N arrativa da P aixão ................................................... 1199

Esboço da segunda p a r te ........................................................................... 1200


60. A narrativa da paixão: Observações gerais.......................................1202
61. A narrativa da paixão: - Primeira seção (primeira unidade)
(18,1-12)...................................................................................................1225
62. A narrativa da paixão: - Primeira seção (segunda unidade)
(18,13-27).................................................................................................1243
63. A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 1-3)
(18,28-40).................................................................................................1273
64. A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 4-7)
(19,l-16a).................................................................................................1312
65. A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução;
episódios 1-4) (19,16b-30)..................................................................... 1343
66. A narrativa da paixão: - Terceira seção (episódio 5; conclusão)
(19,31-42)................................................................................................ 1388

T erceira P arte: A Ressureiçâo de Jesus ..................................................... 1429

Esboço da terceira p a rte ............................................................................. 1430


67. A ressurreição: Observações gerais.................................................... 1431
68. A ressurreição de Jesus: - Primeira cena (20,1-18)......................... 1447
69. A ressurreição de Jesus: - Segunda cena (20,19-29)........................ 1497

C onclusão: D eclaração do P ropósito do A utor (20,30-31).................. 1543

70. Declaração do propósito do autor (20,30-31)....................................1544


Sumário IX

IV. EPÍLOGO

Esboço (cap. 21)........................................................................................... 1554


71. O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao Mar de
Tiberíades (21,1-14)............................................................................... 1555
72. O Jesus ressurreto fala a Pedro (21,15-23).........................................1600
73. A (segunda) conclusão (21,24-25).......................................................1628

APÊNDICE

A pêndice V: O parácleto............................................................................ 1641

ÍNDICES

ÍNDICE DOS PRINCIPAIS AUTORES CITADOS.................................1656

ÍNDICE DE CITAÇÕES BÍBLICAS.......................................................... 1665

OUTRAS FONTES CITADAS 1697


P refácio à edição brasileira

om dupla alegria é que aceitei e me proponho a fazer este prefá-


C cio à edição brasileira da obra do Prof. R aym o nd E dward B row n ,
renomado biblista, com grande destaque sobremaneira no corpus joa-
nino: a primeira foi a de receber a notícia da tradução e publicação
para o português do Brasil desta obra monumental, em dois volumes
realmente densos e completos em todos os sentidos; e a segunda foi
ter sido convidado para prefaciar esta obra, que já tanto usamos em
nossos cursos de literatura joanina, na Graduação e na Pós-graduação
em todo o território deste imenso Brasil, de norte a sul, de leste a oeste.
Esta obra foi escrita por B row n , com seu original em inglês. Aliás,
o primeiro volume, The Gospel According to John, I-XII. A new translation
with introduction and commentary, The Anchor Yale Bible Commenta-
ries Series, Vol. 29. Hardcover: Yale University Press, 1966, 538 pp.,
e o segundo volume, sempre no inglês: The Gospel According to John,
XIII-XX1. A new translation with introduction and commentary, The Anchor
Yale Bible Commentaries Series, Vol. 29, Part A. Hardcover: Yale
University Press, 1970, 688 pp. Depois essa belíssima obra foi tra-
duzida para vários idiomas, o que a tornou ainda mais acessível.
A língua portuguesa é mais um ganho na difusão desta obra de super-
lativa grandeza e de valor incomensurável para os estudos joaninos e
bíblicos em geral, sendo muito apreciada pelas várias tradições cristãs.
O Prof. R aym o nd E dw ard B ro w n , nascido em 1928 e falecido em
1998, atravessou o século XX sendo realmente um dos maiores biblistas
e renomados professores de Sagrada Escritura, especialmente do
Novo Testamento, com sede na Union Theological Seminary (UTS), de
New York, EUA. Como grande especialista em Literatura Joanina -
além de outros temas e textos do Novo Testamento - , a fim de que
realmente tenhamos uma maior ideia da grande envergadura das ca-
pacidades deste querido biblista joanino, eu gostaria aqui de recordar
algumas de suas obras, inclusive traduzidas para o português e muito
XII Com entário ao evangelho segundo João

usadas em nossos cursos de teologia pelo vasto território nacional.


Vou procurar citar apenas algumas de suas obras, mantendo sua or-
dem cronológica de tradução e publicação no Brasil: Evangelho de João
e Epístolas (1975), As Recentes Descobertas e 0 Mundo Bíblico (1986), As
Igrejas dos Apóstolos (1986), A comunidade do discípulo amado (1999), En-
tendendo 0 Antigo Testamento (2004), O Nascimento do Messias (2011),
A Morte do Messias: Vol. 1 (2011), A Morte do Messias: Vol. 2 (2011), In-
trodução ao Novo Testamento (2012), Novo Comentário Bíblico São Jerôni-
mo - Antigo Testamento (2007) e Novo Comentário Bíblico São Jerônimo -
Novo Testamento (2011), sendo essas duas últimas obras uma coedição
entre R aym ond E . B r o w n / J oseph A . F itzm yer / E . R o la n d .
Por isso, e por tudo mais que B rown representa no mundo da lite-
ratura bíblica, ver agora o seu Comentário ao Evangelho segundo João, esta
obra monumental, de superlativa qualidade e seriedade acadêmica -
como já o sabemos - , sendo traduzida e publicada no Brasil, disponível
em nossas mãos, a fim de facilitar ainda mais nossos estudos, é algo
que nos enche de alegria e renova nosso ânimo acadêmico. Desde que
o Vol. 1 foi publicado originalmente, em 1966, e o Vol. 2, em 1970, a
obra continua sendo muito atual e indispensável para os estudos refe-
rentes ao Quarto Evangelho, sendo cada vez mais traduzida e publica-
da em novas línguas, como está sendo agora para o português. Por isso,
continua sendo muito empregada nos estudos teológico-bíblicos, como
uma obra referencial. De fato, poucos textos têm sido usados no mundo
com tão ampla difusão e tradução para vários idiomas como esta obra.
Sendo já volumosa no original inglês, com seus dois amplos volumes,
ela é traduzida respeitando a mesma divisão, até mesmo porque são
1.698 páginas contando os dois volumes, na edição brasileira.
Não me cansarei de afirmar e não tenho dúvidas de que, como dito
acima, tendo em vista o amplo uso que já é feito desta obra no meio acadê-
mico nos cursos de Teologia no Brasil - tanto em nível de graduação como
de Pós-Graduação - , a tradução desse livro /dessa coletânea para o portu-
guês e sua publicação no Brasil constitui um ganho incalculável, visto que
abrirá inúmeras possibilidades para os estudos futuros, proporcionando
um maior acesso, em todos os sentidos, e não apenas linguístico.
Nestes dois volumes dedicados ao Evangelho de João, B row n reú-
ne todos os seus anos de magistérios, lecionando sobre a literatura joa-
nina, bem como recolhendo os frutos de seus antecessores neste mesmo
campo das Sagradas Escrituras. Nesse sentido, podemos considerar
Prefácio à edição brasileira XIII

que B ro w n faz e nos apresenta uma grande síntese de todas as colabo-


rações anteriores a ele e lança luzes sobre as produções posteriores a
esta obra, como podemos conferir pelo seu amplo uso. Ele, mais que
ninguém de sua época, soube meditar e refletir sobre a riqueza da
literatura joanina e, em especial, sobre ο IV Evangelho e tudo aquilo
que ele representa em paralelo aos três outros Evangelhos no Novo
Testamento, da literatura Sinótica, trazendo/dando/conferindo outra
tonalidade e riqueza de detalhes sobre a vida e a obra do Mestre.
Nos últimos séculos foram realizadas grandes descobertas bíbli-
cas que trouxeram luzes para os estudos bíblicos, os quais avançaram
e muito em suas pesquisas e investigações. Sobremaneira recordamos:
a) Guenizá do Cairo (Egito: 1896); Nag Hammadi (Egito: 1945) e
Qumran (Israel: 1947). Porém, alguns falam também do valor dos 70 li-
vros de metal com bíblicos, encontrados na caverna da Jordânia (2011).
Mas em nada todas essas descobertas afetaram os textos bíblicos. Pelo
contrário, toda a literatura encontrada até então tem ajudado ainda
mais os sérios trabalhos realizados nos estudos bíblicos, com muitas
dissertações e teses que são produzidas dentro de nossas inúmeras
Universidades espalhadas pelos cinco continentes do orbe terrestre.
Se os sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) produziram a sua teolo-
gia própria, como, aliás, todos os autores bíblicos - com maior apro-
ximação de temas, linguagem, fatos da vida de Cristo - , o autor do
Evangelho de João seguiu um caminho diverso, com temas, vocabu-
lário e narrativas próprias, diferenciando dos sinóticos, com igual ou
superior riqueza de dados e teologia, mas não entrando em contradi-
ção e sim completando ainda mais os dados da revelação que o Verbo
Encarnado veio nos trazer. A riqueza teológica de João completa a
grandeza dos dados sobre a vida do Mestre e da Igreja nascente, sem
a qual não teríamos o mesmo acesso a tão fina teologia sobre Jesus
Cristo, como ο IV Evangelho nos apresenta.
No que diz respeito ao trabalho de R aymond E dward B rown . Cometí-
tário ao Evangelho segundo João. Volume 1: Introdução, Tradução e No-
tas (1-12). Santo André: Academia Cristã / São Paulo: Paulus, 2020,
a obra apresenta uma introdução geral ao Evangelho de João, tradução do
texto bíblico, comentários e notas ao texto grego dos capítulos 1 a 12 do
Quarto Evangelho, que conta com o Prólogo e o Livro dos Sinais. Ou-
tro aspecto muito positivo é toda a parte introdutória, com um status
quaestionis sobre o Quarto Evangelho, destinatários, data, autoria, local
XIV Com entário ao evangelho segundo João

de composição, propósito, linguagem, unidade, gnosticismo, helenis-


mo, judaísmo, teologia etc., sendo dividida entre Prólogo (1,118‫ )־‬e Li-
vro dos Sinais: Primeira Parte: Os dias iniciais da Revelação de Jesus
(1,19-51); Segunda Parte: De Caná a Caná (2,1 a 4,54); Terceira Parte:
Jesus e as principais Festas dos Judeus (5,1 a 10,42); Quarta Parte: Je-
sus segue rumo à Hora da Morte e Glória (11,1 a 12,50); Apêndices e
vasta bibliografia para ulteriores aprofundamentos.
B row n pretende, com isso, apresentar-nos toda a riqueza do
Quarto Evangelho. Sua tradução procura manter a riqueza linguís-
tica, inclusive em seus detalhes, respeitando as nuances e o contexto
de cada narrativa; suas notas e seus comentários intentam traduzir a
riqueza e a beleza que a literatura joanina comporta, trazendo sempre
luzes para, inclusive, aproximar-se dos sinóticos com maior gosto e
desejo de crescer nas pesquisas e nos estudos bíblicos. É óbvio que ao
fazer a passagem do grego, língua original do Novo Testamento, para
uma outra língua, como o inglês ou o português, não é algo tão fácil
de se conseguir com isenção e maestria como consegue o nosso autor.
Mais ainda quando se trata de traduzir esta obra escrita originalmente
em inglês e agora versada para o português. Mas a tradução realmen-
te foi feita com esmero e coloca em nossas mãos esta obra-prima, com
todas as suas riquezas e detalhes.
Enfim, se não bastasse toda a riqueza da obra em si, com todos
os seus comentários e notas, ao longo dos dois volumes, B row n vai
nos presenteando com uma rica e vasta bibliografia, que muito ajuda
a todos os interessados em aprofundar ainda mais o tema, além de
que nos proporciona ter ciência das fontes em que o autor bebeu para
tecer sua obra. Mais ainda, esta obra também apresenta os índices re-
missivos dos autores e das passagens bíblicas citadas, separadas por
Antigo Testamento e Novo Testamento, inclusive do Evangelho de
João, bem como dos deuterocanônicos e de apócrifos.

Prof. Dr. Waldecir Gonzaga


Waldecir Gonzaga, Doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia
Universidade Gregoriana (Roma) e Pós-Doutorado pela FAJE (Belo Horizonte).
Diretor e Professor de Teologia Bíblica do Departamento de Teologia da
PUC-Rio: graduação e pós-graduação.
Rio de Janeiro / RJ - Brasil / E-mail: waldecir@puc-rio.br
P rincipais A breviaturas

Além das abreviações padrão de livros da Bíblia usadas na série:

Livros Deuterocanônicos do AT:


Tob Tobias
Jt Judite
I & II Mac I & II Macabeus
Sir Sirácida ou Eclesiástico
Sab. Sal. Sabedoria de Salomão
Bar Baruque

Livros Apócrifos relacionados com 0 AT:


Jub Jubileu
I En 1 Enoque
II Bar II Baruque
I & II Esd I & II Esdras
Sal. Sal. Salmos de Salomão

1. Publicações

AASOR Annual of the American Schools of Oriental Research


AER American Ecclesiastical Review
APCh Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament in English
por R. H. Charles (2 vols.; Oxford: Clarendon, 1913)
ATR Anglican Theological Review
BA The Biblical Archaeologist
XVI Com entário ao evangelho segundo João

BAG W. Bauer (como traduzido por W. F. Arndt e F. W. Gingrich),


A Greek-English Lexicon of the New Testament (University
of Chicago, 1957)
BASOR Bulletin of the American Schools of Oriental Research
BCCT The Bible in Current Catholic Thought, ed. J. L. McKenzie, em
honra de M. Gruenthaner (Nova York: Herder & Herder,
1962)
BDF F. Blass and A. Debrunner (como traduzido por R. W. Funk),
A Greek Grammar of the New Testament and Other Early
Christian Literature (University of Chicago, 1961). Referências
a Seções
Bib Biblica
BibOr Bibbia e Oriente
BJERL Bulletin of the John Rylands Library (Manchester)
BNTE The Background of the New Testament and Its Eschatology, eds.
W. D. Davies and D. Daube, em honra de C. H. Dodd
(Cambridge, 1956)
BVC Bible et Vie Chrétienne
BZ Biblische Zeitschrift
CBQ Catholic Biblical Quarterly
CDC Cairo Genizah Document of the Damascus Covenanters
(the Zadokite Documents)
CINTI Current Issues in New Testament Interpretation, eds. W. Klassen
e G. F. Snyder, em honra de O. A. Piper (Nova York:
Harper, 1962)
CSCO Corpus Scriptorum Christianorum Orientalium (Louvain)
CSEL Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum (Vienna)
DB H. Denzinger e C. Bannwart, Enchiridion Symbolorum, rev.
por A. Schönmetzer, 32 ed. (Freiburg: Herder, 1963).
Referências a seções
DBS Dictionnaire de la Bible - Supplément
ECW Early Christian Worship by Oscar Cullmann (ver General
Selected Bibliography)
EstBib Estúdios Bíblicos (Madri)
ET Expository Times
ETL Ephemerides Theologicae Lovanienses
Principais abreviaturas XVII

Evjean L'Evangile de Jean by M.-E. Boismard et al. (Recherches


Bibliques, III; Louvain: Desclée de Brouwer, 1958)
EvTh Evangelische Theologie (Munique)
GCS Die Griechischen Christlichen Schriftsteller (Berlim)
HTR Harvard Theological Review
IEJ Israel Exploration Journal
IMEL In Memoriam Ernst Lohmeyer, ed. W. Schmauch (Stuttgart:
Evangelisches Verlag, 1951)
Interp Interpretation (Richmond, Virginia)
JBL Journal of Biblical Literature
JeanThéol Jean le Théologien by F.-M. Braun
JG Johannine Grammar by E. A. Abbott (Londres: Black,
1906). Referências a seções
JJS Journal of Jewish Studies
JNES Journal of Near Eastern Studies
JohSt Johannine Studies by A. Feuillet (Nova York: Alba, 1964)
JPOS Journal of the Palestine Oriental Society
JTS Journal of Theological Studies
LumVie Lumière et Vie
MD La Maison-Dieu
NovT Novum Testamentum
NRT Nouvelle Revue Théologique
NTA New Testament Abstracts
NTAuf Neutestamentliche Aufsätze, eds. J. Blinzler, O. Kuss, e F.
Mussner, em honra de J. Schmid (Regensburg: Pustet,
1963)
ΝΤΕ New Testament Essays by Raymond E. Brown (Milwaukee:
Bruce, 1965; reimpresso em Nova York: Doubleday Image,
1968)
NTPat Neotestamentica et Patristica, em honra de O. Cullmann
(SNT, VI)
NTS New Testament Studies (Cambridge)
PG Patrologia Graeca-Latina (Migne)
PL Patrologia Latina (Migne)
1QH Hinos de Ação de Graças
lQpHab pê§er sobre Habacuque
XVIII Com entário ao evangelho segundo João

1QM Qumran War Scroll [A Regra para a Guerra]


1QS Qumran Manual of Discipline [Manual de Disciplina]
RB Revue Biblique
RecLC Recueil Lucien Cerfaux (3 vols.; Gembloux, 1954-62)
RHPR Revue d'histoire et de philosophie religieuses
RivBib Rivista Biblica (Brescia)
RSPT Revue des sciences philosophiques et théologiques
RSR Recherches de science religieuse
RThom Revue Thomiste
SacPag Sacra Pagina, eds. J. Coppens, A. Descamps, E. Massaux
(Louvain, 1959)
SBT Studies in Biblical Theology (Londres: SCM)
SC Sources Chrétiennes (Paris: Cerf)
ScEccl Sciences Eccléstiastiques (Montreal)
SFG Studies in the Fourth Gospel, ed. F. L. Cross (Londres:
Mowbray, 1957)
SNT Supplements to Novum Testamentum (Leiden: Brill)
StB H. L. Strack e P. Billerbeck, Kommentar zum Neuen Testament
aus Talmud und Midrasch (5 vols.; Munique: Beck, 1922-55)
StEv Studia Evangélica (Papers from the Oxford International
Congresses of NT Studies; published at Berlin, Akademie-
Verlag)
TalBab The Babylonian Talmud, English ed. by I. Epstein (Lon-
dres: Soncino, 1961)
Taljer The Jerusalem Talmud
TD Theology Digest
ThR Theologische Rundschau (Tübingen)
TLZ Theologische Literaturzeitung
TNTS Twelve New Testament Studies by John A. T. Robinson (SBT,
No. 34; Londres: SCM, 1962).
TS Theological Studies
TWNT Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament, ed. G. Kittel
(Stuttgart: Kohlhammer, 1933-)
TWNTE Same work translated into English by G. W. Bromiley
(Grand Rapids: Eerdmans, 1964-)
TZ Theologische Zeitschrift (Basel)
VD Verbum Domini
Principais abreviaturas XIX

VigChr Vigiliae Christianae


VT Vetus Testamentum
ZDPV Zeitschrift des Deutschen Palästina-Vereins
ZGB M. Zerwick, Graecitas Bíblica (4 eds.; Roma: Pontifical Bi-
blical Institute, 1960). Referências são a seções; estas são
as mesmas na tradução inglesa da 4a ed. por J. Smith
(Roma: 1963)
ZKT Zeitschrift für katholische Theologie
ZNW Zeitschrift für die neutestamentliche Wissenschaft und die
Kunde der älteren Kirche
ZTK Zeitschrift für Theologie und Kirche

2. Versões

BJ Biblia de Jerusalém
KJ The Authorized Version of 1611, ou a King James Bible
LXX The Septuagint
TM Masoretic Text [Texto Massorético]
NEB The New English Bible (New Testament, 1961)
RSV The Revised Standard Version, 1946,1952
SB La Sainte Bible - "Bible de Jerusalem" - traduite en français
(Paris: Cerf). D. Mollat, L'Evangile de Saint Jean (2 ed. 1960)
Vulg. Vulgata

3. Outras Abreviações

NT Novo Testamento
AT Antigo Testamento
Aram. Aramaico
Boh. Bohairic (Cópta)
Et Etíope
Gr. Grego
Heb. Hebreu
OL [Latim antigo]
OS [Siríaco antigo] (OScur; OSsin denote the Curetonian and Si-
naiticus mss. Respectivamente)
Sah. Sahidic (Cópta)
XX Com entário ao evangelho segundo João

App. Apêndices no final do livro


P Papyrus
par. Ver paralelo(s)
* O asterisco depois de um manuscrito indica amão do co-
pista original, como distinta da dos últimos revisores.
[ ] Colchetes na tradução indica uma palavra ou passagem
textualmente dúbia.
O LIVRO DA GLORIA

"A hora" de Jesu s na quäl ele é elevado ao Pai e glorificado a fim de


dar 0 E spírito aos que creem nele e, assim , gerá-los com o filh os
de Deus.

"M as todos quantos 0 aceitaram receberam


o poder de serem filhos de Deus".
No vol. 1, pp. 159, explicamos as razões existentes para dividir ο
Quarto Evangelho em "O Livro dos Sinais" (1,19-12,50) e "O Livro da
Glória" (13,1-20,31). Há notáveis diferenças entre os Livros. Primeiro,
durante o ministério público, como descrito no Livro dos Sinais, as
palavras e obras de Jesus foram dirigidas a um amplo auditório, pro-
vocando uma crise de fé: alguns creram e outros se recusaram a crer.
O Livro da Glória, todavia, é dirigido ao auditório restrito daqueles
que creram. Segundo, os sinais do primeiro Livro anteciparam o que
Jesus faria pelos homens quando fosse glorificado. O segundo Livro
descreve a glorificação, i.e., "a hora" da paixão, crucifixão, ressurreição
e ascensão quando Jesus é elevado ao Pai para desfrutar outra vez a
glória que tivera com o Pai antes que o mundo existisse (17,5). Estas
diferenças se manifestam no primeiro versículo do Livro da Glória:
"Ora, antes da festa da páscoa, sabendo Jesus que já era chegada sua
hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que esta-
vam no mundo, amou-os até o fim" (13,1).
A vida do Jesus joanino tem sido comparada ao arco de um pên-
dulo, que oscila de um ponto alto até um ponto baixo, e então sobe
outra vez às alturas. Certamente, alguém pode verificar isto no hino
que denominamos de Prólogo. Ele começa no céu: "A Palavra esta-
va na presença de Deus" (1,1); então vem a crise do ministério: "Ele
estava no mundo... todavia o mundo não o reconheceu" (1,10) e "vi-
mos sua glória, a glória de um Filho unigênito vindo da parte do Pai"
(1,14); finalmente, o olhar se ergue outra vez ao céu: "é Deus, o Filho
unigênito, sempre ao lado do Pai" (1,18). O mesmo arco do pêndulo
se encontra no próprio evangelho. O Filho é aquele que desceu do céu
(3,13), mas é rejeitado por muitos que preferem as trevas à luz (3,19);
e seu ministério atinge seu ápice quando é rejeitado por seu próprio
povo: "Muito embora Jesus realizasse tantos sinais diante deles, se re-
cusaram a crer nele" (12,37). O Livro dos Sinais descreveu esta primei-
ra parte do pêndulo, a saber, a trajetória descendente [do pêndulo];
Ill · O Livro da Glória 897

o Livro da Glória é a descrição da trajetória ascendente. A "elevação"


do Filho do Homem que atrairá todos os homens a ele (predito em
12,32) começa na cruz onde Jesus é fisicamente elevado da terra. Para
outros homens, a crucifixão teria sido uma humilhação; mas porque
Jesus entrega sua vida com o poder de reassumi-la (10,18), há um ele-
mento de triunfo no conceito joanino de crucifixão. E uma morte que
produz a glorificação, e o Jesus crucificado é proclamado como rei nos
principais idiomas do mundo (19,19-20). A elevação de Jesus prosse-
gue na ressurreição que é interpretada como parte da ascensão de Jesus
ao Pai (20,17). Todavia, João não conclui o relato evangélico quando o
pêndulo haja concluído seu giro para cima e Jesus está com o Pai. Se
Jesus é o Filho de Deus, ele é o Filho consagrado a ampliar a família de
Deus e a ter outros homens partilhando do amor de Deus assim como
ele partilha dele. E então a primeira ação do Jesus glorificado é dar aos
discípulos o Espírito Santo (20,22), o qual os gera do alto (3,3.5), de
modo que Deus se torna seu Pai e Jesus, seu irmão (20,17).
Já dissemos que a "elevação" começa com a crucifixão e termina
com a ressurreição e ascensão. Então, por que incluímos no Livro da
Glória os capítulos 13-17, os quais descrevem a última ceia de Jesus
com seus discípulos e o extenso último discurso? No Livro dos Sinais,
vimos o fenômeno em que os discursos de Jesus, vindo após os sinais,
serviram para interpretar os sinais. No Livro da Glória, a última ceia e
o discurso que precede a ação da glorificação servem para interpretar
aquela ação. O lava-pés no cap. 13 expõe nitidamente o significado da
morte de Jesus - é uma morte que purifica os discípulos e lhes dá uma
herança com ele. O majestoso Discurso Final reassegura aos discípu-
los que a morte de Jesus não é o fim. E sua partida para o Pai; porém
vezes e mais vezes Jesus promete que voltará (na ressurreição, ao ha-
bitar neles, no Parácleto, na parousia), e sua volta será marcada pela
paz e alegria. Seu retorno capacitará os discípulos a permanecerem
em união com ele (15,1-17), uma união similar à sua própria união
com o Pai (17,12).
A solenidade do pensamento e estilo joaninos está nitidamente em
evidência no Livro da Glória, e certamente esta apresentação de Jesus
em suas últimas horas é uma das mais belas composições na literatura
religiosa da humanidade. O redator joanino afirmará que nenhum li-
vro ou livros podem captar integralmente a figura de Jesus de Nazaré
(21,25), mas o Livro da Glória faz jus com toda dignidade à reivindicação
898 III · O Livro da Glória

do testemunho a favor de Jesus pelo discípulo a quem ele amou de


maneira especial e que teve bem junto de seu coração (19,35; 21,24;
13,23.25).
Trataremos o Livro da Glória como que consistindo de três partes
e uma conclusão:

PRIMEIRA PARTE: A última ceia (13 1 7 ‫;)־‬


SEGUNDA PARTE: A narrativa da paixão (1 8 1 9 ‫;)־‬
TERCEIRA PARTE: O Jesus ressurreto (20,1-29);
CONCLUSÃO (20,3031‫)־‬.

Esboços detalhados serão exibidos com cada parte.


O LIVRO DA GLÓRIA

Primeira Parte: A última ceia


ESBOÇO

PRIMEIRA PARTE: A última ceia


(caps. 13-17)

A. 13,1-30: A ceia. (§§ 46-47)


(1-20) O lava-pés. (§ 46)
1: Introdução ao Livro da Glória.
2-11: O lava-pés, interpretado como símbolo da morte
de Jesus, com uma referência secundária ao
batismo.
2-3: Introdução.
4-5: Lava-pés.
6-10a: Interpretação do lava-pés (um diálogo).
10b-ll: Referência a Judas.
12-20: Outra interpretação do lava-pés, como um exem-
pio de um serviço humilde.
12-15.17: Interpretação mediante discurso.
16 e 20: Ditos isolados com paralelos mateanos.
18-19: Referência a Judas.
(21-30) Predição da traição. (§ 47)
B. 13,31 - 17,26: O último discurso. (§§ 48-59)
(13,31 -14,31) Primeira seção: A partida de Jesus e o futuro dos disci-
pulos. (§§ 49-52)
13,31-38: Introdução: O tema da partida de Jesus e o manda-
mento do amor. Negação de Pedro. (§ 49)
14,1-14: Primeira unidade: Jesus é o caminho para o Pai para
todos os que creem nele. (§ 50)
1-4: Partida e retorno de Jesus.
5: Pergunta de transição.
6-11: Jesus como o caminho.
12-14: Poder da fé em Jesus (transição ao que
segue).
15-24: Segunda unidade: O Parácleto, Jesus e o Pai virão
para os que amam a Jesus. (§ 51)
15-17: A vinda do Parácleto (mas não ao mundo).
18-21: O retorno de Jesus.
22: Pergunta de transição.
23-24: A vinda do Pai (com Jesus).
Esboço 901

25-31: Terceira unidade: Pensamentos finais de Jesus an-


tes da partida. (§ 52)
25- 26: O envio do Parácleto como mestre.
27ab: O dom da paz como despedida.
27c-29: A partida de Jesus.
3 0 3 1 ‫־‬: A luta contra o Príncipe deste mundo.

(15-16) Segunda seção: A vida dos discípulos e seu encontro com


o mundo depois da partida de Jesus. (§§ 53-56)
15,117‫־‬: Primeira subdivisão: A videira e os ramos. (§ 53)
1-6: O mashal.
7-17: Desenvolvimento parenético sobre o amor.
7-10: Permanecer em Jesus e em seu amor.
11: Referência transitória à alegria.
12-17: O mandamento do amor mútuo.
15,18 - 16,4a: Segunda subdivisão: O ódio do mundo para com
Jesus e seus discípulos. (§ 54)
15,18-21:0 mundo odeia e persegue os discípulos.
22-25: O pecado do mundo.
26- 27: O testemunho do Parácleto.
16,l-4a: A perseguição aos discípulos.
16,4b-33: Terceira subdivisão: Duplicata da Primeira seção.
(§§ 55-56)
4b-15: Primeira unidade: A partida de Jesus e a
vinda do Parácleto. (§ 55)
4b: Transição.
5-7: A partida de Jesus e a tristeza dos
discípulos.
8-11:0 Parácleto contra o mundo.
12-15:0 Parácleto como guia dos discípulos.
16-33: Segunda unidade: O retorno de Jesus trará
alegria e conhecimento aos discípulos. (§ 56)
16,23a: Os discípulos verão Jesus outra vez
e se alegrarão.
23b-33: Terão seus pedidos concedidos e com-
preenderão Jesus claramente.
(17) Terceira seção: A oração final de Jesus. (§§ 57-59)
1-8: Primeira unidade: Jesus, tendo concluído sua obra, pede
para ser glorificado. (§ 57)
1-5: Jesus pede para ser glorificado.
6-8: A obra de revelação de Jesus entre os discípulos.
O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

9-19: Segunda unidade: Jesus ora por aqueles que o Pai lhes
confiou. (§ 58)
9-16: Os discípulos e o mundo.
17-19: A consagração dos discípulos e de Jesus.
20-26: Terceira unidade: Jesus ora pelos que creem nele pela
palavra dos discípulos. (§ 59)
20-23: A unidade dos que creem em Jesus.
24-26: Jesus deseja que os crentes permaneçam unidos
a ele.
46. A CEIA: - O LAVA-PES
( 13,1 ‫ ־‬20)

13 1Ora, um pouco antes da festa da Páscoa, estando Jesus ciente de


que lhe havia chegado a hora de passar deste mundo para o Pai, tendo
amado os seus que estavam neste mundo, amou-os até o fim.

2Estavam ceiando, o diabo já havia induzido Judas, filho de Simão, o


Iscariotes, a trair Jesus. E então, durante a ceia, 3sabendo que o Pai tudo
colocara em suas mãos, e que tinha saído de Deus e estava indo para
Deus, 4Jesus levantou-se da mesa e tirou sua túnica. Ele tomou uma
toalha e se cingiu com ela. 5Então derramou água numa vasilha e come-
çou a lavar os pés de seus discípulos e enxugá-los com a toalha com que
se cingira.
6Então chegou em Simão Pedro, o qual lhe disse: "Acaso vais lavar
meus pés, Senhor?" 7Jesus respondeu: "Não podes compreender ago-
ra o que estou para fazer, mais depois o compreenderás". 8Pedro repli-
cou: "Não lavarás meus pés - jamais!" "Se eu não te lavar", respondeu
Jesus, "não terás herança comigo". 9"Senhor", disse-lhe Simão Pedro,
"então não só meus pés, mas também minhas mãos e o rosto". 10Jesus
lhe disse: "O homem que já se banhou não necessita de lavar [exceto
seus pés]; tudo mais está limpo. E agora vós, homens, estais limpos,
muito embora nem todos". (11A razão por que ele disse "Nem todos
vós estais limpos", foi porque ele conhecia seu traidor).
12Depois de ter lavado seus pés, Jesus vestiu sua túnica e retornou ao
seu lugar. Então, ele lhes disse:

"Compreendeis o que eu tenho feito por vós?


13Vós me tratais como 'Mestre' e 'Senhor',
e com certeza é assim, pois é isso que eu sou.
904 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

14Ora, se eu vos lavei os pés,


ainda sendo eu Senhor e Mestre,
também deveis lavar os pés uns aos outros.
15Pois eu lhes estou dando um exemplo:
que façais exatamente como eu vos fiz.
16Na verdade, na verdade eu vos asseguro:
o servo não é maior que seu senhor;
nem o enviado maior do que quem o enviou.
17Ora, uma vez entendais isto,
felizes sois se o puserdes em prática.
18O que eu digo não se reporta a todos vós:
eu sei o tipo de homens que escolhi.
Mas o propósito é para que se cumpra a Escritura:
'Aquele que se farta de pão comigo
levantou seu calcanhar contra mim.‫׳‬
19Eu vos digo isto agora antes que aconteça,
para que, quando acontecer, creiais
que EU SOU.
20Na verdade, na verdade eu vos asseguro:
Todo o que recebe aquele a quem eu enviar,
a mim me recebe;
e todo o que me recebe,
recebe Aquele que me enviou".

NOTAS

13.1. um pouco antes da festa da Páscoa. Esta é uma tradução livre. Literalmen-
te, há uma frase proposicional seguida de dois particípios e um verbo
principal: "antes da festa da Páscoa, Jesus, sabendo..., tendo amado...,
demonstrou agora seu amor". B ultmann, p. 3 5 2 , seguindo W. B auer e
alguns dos Padres gregos, argumenta que a frase cronológica modifi-
caria o primeiro particípio (= Jesus sabia antes da Páscoa), porque nin-
guém pode afixar uma data para o amor de Jesus. J eremias, EWJ, p. 80,
crendo que a última ceia foi uma refeição pascal, admite por que ele não
quer que esta frase seja usada para datar a última ceia em um período
pré-pascal. Não obstante, G rossouw, p. 128, pensa que, gramaticalmente,
a frase deve ser construída com o verbo principal, e que, o que é datado
46 · A ceia: - O lava-pés 905

antes da Páscoa, não é o sentimento do amor, e sim uma expressão


concreta de amor, i.e., a morte de Jesus (incluindo o lava-pés como ação
simbólica dessa morte). Talvez não devamos tentar ser exatos demais,
visto que a frase provavelmente modifique a ambos, conhecimento e
o ato de amor. Ela é inserida para dar, igualmente, um cenário teo-
lógico e um cronológico para toda a paixão de Jesus, e não apenas à
ceia. João passou a construir isto com referências à próxima Páscoa em
11,55 e, especialmente, em 12,1 ("seis dias antes da Páscoa" - para as
atividades dos dias intermédios, ver 12,12.36). A tarde desta refeição e
o dia seguinte, quando Jesus morrerá, constituem a véspera da Páscoa;
ver comentário.
passar. Metalambanein é usado em 5,24 e em ljo 3,14 para passar da morte
para a vida. Beda o venerável via aqui um jogo de palavras com o nome
da festa da Páscoa (também os nestorianos; conforme A. P hillips e J. R.
H arris, ET 38 [1926-27], 233), e alguns estudiosos modernos os têm segui-
do. Não há, porém, nenhuma indicação do uso na LXX, ou em Josefo, de
que este verbo estivera relacionado com a ideia de "passar sobre". Antes,
13,1 parece simplesmente ser uma redistribuição das palavras de Jesus em
16,28: "Agora estou deixando o mundo e estou voltando para o Pai".
deste mundo. O "mundo", às vezes no sentido da esfera do mal, aparecerá
frequentemente nestes últimos capítulos. O mundo tem os seus próprios
a quem ama (15,19), assim como Jesus tem os seus a quem ama. Aqui,
todavia, o contraste entre o mundo e o Pai não é tanto o contraste entre
o bem e o mal, quanto o contraste entre o que é aqui de baixo e o que é
lá de cima (3,31).
Tendo amado. O particípio é um aoristo composto que abarca todo o minis-
tério público.
que estavam neste mundo. Isto antecipa 17,15: "Não estou te pedindo que os
tires do mundo".
amou-os. Literalmente, "amou"; o aoristo indica um ato definido. Este ver-
sículo tem sido estudado por C. Spicq, RB 65 (1958), 360-62.
até 0 extremo. A frase eis telos tem um duplo significado: "totalmente, com-
pletamente", e "até o fim da vida", i.e., até a morte. A morte voluntária é
apresentada em 15,13 como a expressão suprema do amor. O verbo rela-
cionado, telein, aparece nos lábios de Jesus no momento da morte: "Está
consumado" (19,30). No vol. 1, pp. 782, 788-92, vimos as semelhanças
entre o relato joanino do final do ministério público de Jesus e a parte
final de Deuteronômio. Hoje muitos evocam Dt 31,24: "Quando Moisés
terminou de escrever todas as palavras desta lei em um livro, fez isso até
o fim [LXX: eis telos]...".
906 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

2. já. Mc 14,10-11 e par. retratam a traição de Jesus da parte de Judas, para


os principais sacerdotes, como tendo acontecido antes da última ceia.
É possível que João concordasse, embora este versículo signifique apenas
que Judas tinha atingido o que estava tramando com seus planos.
Estavam ceiando. Na verdade, esta frase vem antes do restante do v. 2
numa construção de dois genitivos consecutivos absolutos: "E a ceia
estando em processo, o diabo tendo posto..., 3 Jesus plenamente côns-
cio...". Há forte atestação para uma redação alternativa: "quando a ceia
foi servida"; contudo, o v. 26 indica que ainda há talheres na mesa.
João não usa o artigo antes de "ceia", e se poder esperar o artigo se
ele estivesse se referindo à refeição pascal. Os sinóticos não fazem re-
ferência à refeição como uma ceia, mas Paulo, em ICor 11,20, fala da
refeição eucarística comemorativa como "a ceia do Senhor". João nada
informa sobre o local em que a refeição foi consumida. Presumível-
mente, foi em Jerusalém por causa de 18,1. Nada é dito de um cenáculo
(Mc 14,14-15).
induzido Judas. Há duas redações: (a) O diabo já havia posto (ballein) no co-
ração que Judas o traísse, (b) O diabo já havia posto no coração de Judas
que o traísse. Bultmann, p. 3534, sugere que (b) era original, e que foi mu-
dado pelos copistas para o mais ambíguo (fl), porque parecia contradizer
o v. 27. Entretanto, (a) é mais bem atestado (P66, Vaticanus, Sinaiticus) e
deve ser preferido como a redação mais difícil; (b) provavelmente repre-
sente uma tentativa de copista para dar maior clareza. Mas, se aceitar-
mos (a) o coração de quem está envolvido? B arrett, p. 365, pensa que é
o coração do próprio diabo (= o diabo se decidiu); no entanto, o fato de
o verbo estar na voz ativa se toma difícil. Outros sugerem que o que está
implícito é o coração de Judas: o diabo pusera no coração (de Judas) que
Judas traísse Jesus. A construção é estranha, mas W. B auer pensa que a
menção do nome de Judas foi deixada até o fim da sentença para acen-
tuar o efeito dramático. Há pouca importância na diferença entre as duas
interpretações de (a).
Judas, filho de Simão, 0 Iscariotes. Os mss. estão divididos quanto a se "Isca-
riotes" modifica Judas ou Simão; temos assumido a primeira possibili-
dade, seguindo P66, Vaticanus e Sinaiticus. Ver nota sobre 6,71.
trair Jesus. Literalmente, "entregá-lo"; ver nota sobre 6,64.
3. colocara. Literalmente, "deu em suas mãos"; a mesma expressão se encon-
tra em 3,35.
tinha saído de Deus e estava indo para Deus. Inácio, Magnesians VII 2 , parece
ecoar isto: "... Jesus Cristo que saiu do Pai único, o único com quem ele
está e o único para quem ele voltou". Ver segunda nota sobre 5,19.
46 · A ceia: - O lava-pés 907

4. tirou. Literalmente, "pôs [abaixo]"; este é o mesmo verbo (tithenai) usado


em 10,11.15.18 para a entrega da vida. Um paralelismo deliberado não
está fora de questão, já que a ação correspondente de tirar (respectiva-
mente, a túnica e a vida) é também expressa por um verbo (lambanein)
em 13,12; 3,10.17.18. Tudo isto serve para relacionar o lava-pés e a morte
do Senhor.
túnica. Teríamos esperado o singular himation, visto que, obviamente, está
implícito a túnica externa; João, porém, tem o plural, "vestes", aqui e
igualmente no v. 12.
cingiu. Jesus se ringe como um servo (Lc 12,37; 17,8).
5. uma vasilha. Literalmente, o artigo mostra que a vasilha é um utensílio
habitual nas refeições. J eremias, EW J, p. 1005, vê o uso do artigo como um
dos numerosos semitismos nestes versículos. Fora desta passagem, a pa-
lavra niptèr ocorre somente numa inscrição chipriota da época romana;
visto, porém, que niptein significa "lavar", este é um utensílio para la-
vagem (o sufixo -ter é agenciai ou instrumental). No antigo Oriente Pró-
ximo, a lavagem normalmente não era feita numa vasilha já com água, e
sim derramando água sobre as partes do corpo (2Rs 3,11).
discípulos. Quem estava na última ceia? Ao menos, dez pessoas ti-
nham de estar, necessariamente, para uma refeição pascal. Mc 14,17 e
Mt 26,20 mencionam os Doze (Lc 22,14, "os apóstolos"). J eremias, EWJ,
p. 46, salienta que isto não exclui necessariamente a presença das mu-
lheres que tinham seguido Jesus desde a Galileia (Mc 15,40-41). João
não menciona os Doze, mas uma comparação de 13,18 ("os homens
que escolhi") com 6,70 ("Não vos escolhi a vós os Doze?") torna piau-
sível que o evangelista estava pensando nos Doze. Os mencionados
nominalmente no relato joanino da ceia estão nas listas sinóticas dos
Doze: Judas Iscariotes, Pedro, Tomé, Filipe, o outro Judas (lista lucana)
e até mesmo o discípulo amado, caso seja ele o João de Zebedeu (vol.
1, p. 103-04).
pés. Os discípulos parecem estar nos divãs, reclinando-se do lado es-
querdo. Cada um usaria seu braço esquerdo para apoiar sua cabeça
e sua direita para alcançar os alimentos que estavam numa mesa que
estava colocada no centro dos divãs (ver nota sobre v. 23). Jesus teria
circulado a parte externa dos divãs para lavar os pés dos discípulos
que estavam estendidos atrás deles. Reclinar não era a posição normal
nas refeições em casa, mas era costumeiro na Páscoa (J eremias, E W J,
pp. 48-49).
6. chegou em Simão Pedro. Que Pedro era o primeiro (Agostinho) é menos
provável que fosse o último (O rígenes). A evidência é insuficiente; mas,
908 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

depois de discutir com Pedro, Jesus diz: "E agora vós, homens, estais
limpos". Ver também nota sobre v. 23.
meus pés. A posição incomum do possessivo no grego pode indicar ênfase:
"meus pés"; assim B ernard, porém BD F, § 473' discorda.
7. agora. Falta no OSsine em algumas cópias da OL; P66 parece confuso.
mais tarde. Literalmente, "depois destas coisas [tauta]". Em si a frase é vaga
(ver nota sobre 2,12), mas, provavelmente, o significado seja o mesmo
como em 12,16: "A princípio os discípulos não compreenderam estas coisas;
mas, quando Jesus foi glorificado, então lembraram que foram precisamente
estas coisas que foram escritas sobre ele e estas coisas lhes foram feitas".
8. jamais. Aqui, o ou mê tem a força de um juramento (J eremias, EWJ,
pp. 209-10).
não terás. Literalmente, tempo presente; seu uso como futuro é considerado
por P. J oüon um aramaísmo, RSR 17 (1927), 214.
9. Simão Pedro. As testemunhas textuais variam sobre a forma do nome; tal-
vez o nome seja um esclarecimento de escriba de um "ele" original.
rosto. Literalmente, "cabeça".
10. se banhou. Até este momento, a conversação tem girado em tomo de "lavar-
se" (niptein); aqui se introduz o tema de "banhar" (louein). O primeiro
verbo tende a ser usado para a limpeza de uma parte do corpo; o segun-
do, para todo o corpo. Niptein foi usado em 9,7.11 onde é provável que o
cego lavou somente seus olhos ou rosto.
lavar [exceto seus pés]. M.-E. Boismard, RB 60 (1953), 353-56, favorece o
possível texto mais curto, omitindo todas estas palavras, como fez o mi-
núsculo ms. grego 579, T ertuliano e algumas testemunhas OL. É mais
comum questionar somente as palavras entre colchetes, cuja omissão
é endossada pelo Codex Sinaiticus, algumas testemunhas na Vulgata
e importantes Padres da Igreja. De fato, os Padres latinos não revelam
conhecimento da frase entre colchetes antes do tempo de A mbrósio no
final do século IV, quando essa redação entrou no Ocidente, vinda do
Oriente (ver H äring, art. cit.). Uma ampliação peculiar se encontra no
Codex Bezae e algumas testemunhas OL: "lavar a cabeça, mas somente
os pés".
vós homens estais limpos, muito embora nem todos. T. H. W eir, ET 24 (1912-13),
476, sugere a possibilidade de um duplo significado semita na entreli-
nha, refletindo a ambiguidade do heb. kõl e do aram. mir, significando
"todo, totalidade, inteiro". Os discípulos poderíam ter entendido Jesus
no sentido de que estavam limpos, porém não inteiramente (seus pés
estavam empoeirados), enquanto o que ele realmente tinha em mente era
que nem todos eles estavam limpos, pois um deles era pecador.
46 · A ceia: - O lava-pés 909

11. (A razão...). Para este versículo, o Codex Bezae simplesmente diz: "Pois
ele conhecia seu traidor".
traidor. Literalmente, "aquele que estava para entregá-lo", um particípio
presente pressupondo que a traição já estava em processo (ver primeira
nota sobre v. 2). Contudo, J eremias, EW J, p. 1792, pensa haver aqui um
aramaísmo, a saber, um presente usado com valor de futuro.
12. retornou ao seu lugar. Literalmente, "reclinou-se outra vez".
compreendeis? Isto podería ser interpretado como um imperativo: "Entendais
o que eu vos fiz". Já pusemos o que segue em forma poética (vol. 1, p. 149),
mas não é certo que todos os versículos entre 12 e 20 estejam num estilo de
discurso solene. SB põe somente 16,19 e 20 em forma poética.
13. 'Mestre' e ,Senhor'. Ambos os títulos (rab, mãr) eram dados aos rabinos
por seus discípulos (StB, II, 558). A ordem em que os dois títulos são
mencionados pode refletir o desenvolvimento da compreensão dos dis-
cípulos, pois "Mestre" é mais comum nos primeiros capítulos do evan-
gelho e "Senhor", nos últimos capítulos.
14. Se eu... também deveis. Este tipo de argumento, a minori ad maius, era usado
com frequência pelos rabinos (B arrett, p. 369).
Senhor e Mestre. Pode ser significativo que Jesus mude a ordem dos títulos,
pois aqui a questão é do que ele é realmente. Em contrapartida, a mu-
dança na ordem pode ser simplesmente uma variação em favor do estilo.
16. servo e senhor. Ou "escravos" e "senhor". Na comparação parabólica
de base, usa-se kyrios no sentido de proprietário ou dono, mas prova-
velmente haja um jogo de palavras em kyrios como "Senhor", usado nos
versículos anteriores.
enviado. A palavra apostolos tem o significado de emissário na comparação
parabólica de base, mas não é impossível que João esteja pensando nos
discípulos como "apóstolos", i.e., os enviados a pregar a ressurreição.
Ver nota sobre 2,2.
17. uma vez entendais isto. Literalmente, "se", com uma referência à realidade
presente (BDF, § 3721‫)’־‬: agora entendem; no futuro o porão em prática.
felizes. O gr. makarios costuma ser traduzido por "bendito", mas isso leva
à confusão; pois dois jogos de palavras (e idéias) devem ser mantidos
distintos, um a que podemos chamar "participial", e o outro, "adjetival".
Particípio passivo: heb. bãrük, gr. eulogêtos, lat. benedictus.
Adjetivo: Heb. 1,ã srê, gr. makarios, lat. beatus, port, felizes (ou como um
adjetivo "abençoado", mas não há como manter isto distinto do particí-
pio). Em seu sentido próprio como um particípio passivo, bãrük é usado
somente em relação a Deus. "Bendito seja o Senhor" (SI 28,6) significa:
que o Senhor seja bendito pelos homens; que Ele seja adorado e cultuado.
910 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

Quando este particípio se estende aos homens, ele invoca sobre eles a
benevolência de Deus e de outros homens. Assim, uma "benção" é uma
invocação pedindo que alguém seja abençoado ou repleto de favores.
Em contrapartida, o conjunto adjetival de palavras representadas por
3ãSrê não é parte de um desejo e nem invoca uma benção. Antes, elas
reconhecem um estado existente de felicidade ou boa fortuna. No AT, as
palavras adjetivais são usadas somente em relação aos homens, embora
no NT makarios seja usado duas vezes em relação a Deus (lTm 1,11; 6,15).
O reconhecimento de boa fortuna dos homens frequentemente é implici-
tamente do ponto de vista de Deus; ocasionalmente, a felicidade é uma
alegria futura que será recebida no juízo, mas para com a qual alguém
está no bom caminho e da qual alguém tem posse incipiente. Consequen-
temente, um macarismo ou beatitude é propriamente uma proclamação
aprobatória de fato, invocando um juízo valorativo. No NT, o macarismo
reflete o juízo que um estado escatológico veio a ser possível pela anun-
ciação do reino. Mateus e Lucas têm muitos dos macarismos de Jesus;
João contém apenas dois (aqui e em 20,29); Apocalipse tem sete.
18. escolhí. Aparentemente, a ideia é que Jesus escolheu Judas muito embora
soubesse o tipo de homem que ele era, e assim o Jesus joanino não se
equivocou. B arrett, p. 370, salienta outra possibilidade gramatical: Jesus
conhecia a quem realmente escolheu, e não escolheu Judas. Entretanto,
compare 6,70: "Não escolhi a vós os doze? E um de vós é um diabo". (Re-
cordemos bem, 6,70 se relaciona com a passagem eucarística em 6,51-58,
uma passagem que podería ter estado no contexto da última ceia;
ver vol. 1, p. 528).
0 propósito é. Literalmente uma cláusula subordinada com hina, esta frase
tem sido também interpretada como um imperativo na terceira pessoa:
"Que se cumpra a Escritura" (BDF, § 3S73). No entanto, na compreensão
usual de João, é em termos de propósito: o evento ocorre a fim de cum-
prir-se o AT (ver nota sobre 12,38).
a Escritura. Marcos tem dezessete citações do AT em sua narrativa da pai-
xão; João tem nove; esta é uma das quatro que eles têm em comum. Nem
Mateus nem Lucas a citam. (Ver Dodd, Tradition, pp. 31-33). Os rabinos
entendiam esta passagem no SI 41,10(9) como uma referência à conspira-
ção de Aitofel e Absalão contra Davi (2Sm 15,12).
se cumpra. O uso do aoristo passivo de plêroun em referência ao cum-
primento das palavras sagradas previamente enunciadas é comum em
Mateus (doze vezes) e em João (oito vezes); é usado somente uma vez
em Marcos (14,49, pois é possível que 15,28 não seja genuína) e em Lu-
cas (24,44; cf. 4,21; 21,22). Este tipo de fórmula de cumprimento não se
46 · A ceia: - O lava-pés 911

encontra em Qumran (J. A. F itzmyer, NTS 7 [1960-61], 303). Na maioria


dos casos da fórmula nos evangelhos, a referência é ao cumprimen-
to do AT, a saber, "O que foi dito pelo Senhor", ou "O que foi dito
através dos profetas", ou simplesmente "a Escritura". Todavia, note-
mos que Mt 2,22 registra o cumprimento de um texto profético inde-
finido, enquanto Jo 18,9 e 32 se referem ao cumprimento das palavras
do próprio Jesus. Em Mateus, o evangelista salienta o cumprimento
(porém, cf. 26,56), e o cumprimento nos textos de Mateus está disperso
por todo o evangelho. Em três dos exemplos joaninos (aqui, 15,25 e
17,12), como nos exemplos singulares em Marcos e Lucas, é o próprio
Jesus quem nota o cumprimento. Os textos joaninos de cumprimento
estão todos no contexto de "a hora", i.e., da paixão - isto procede mes-
mo em 12,38, o único texto de cumprimento no Livro dos Sinais. Ver
J. O 'R ourke, "John's Fulfillment Texts", ScEccl 19 (1967), 433-43; C. F. D.
M oule , "Fulfillment-Words in the New Testament: Use and Abuse", NTS 14
(1967-68), 293-320.
se farta de pão comigo. A maioria das testemunhas textuais favorece esta
redação. Com a exceção do Codex Vaticanus tem "meu pão", mas isto
pode se tratar de uma harmonização dos escribas com a passagem
do salmo ("meu pão" em ambos na LXX e no TM do SI 41,10[9] - se,
como de costume, o sufixo no hebraico lahml for entendido como um
genitivo; atualmente, pode ser lido como um dativo, "comigo"). Em
contrapartida, "comigo" em João pode ser causado por escribas que
fizeram uso de Mc 14,8. A forma da citação em João difere do salmo
na LXX no uso de "fartar" (trõgein) em vez de "comer" (esthiein) e no
uso do substantivo singular para "pão" (assim também o TM) em vez
do plural. Ambos, o TM e a LXX, leem "exaltou" em vez de "levantou"
em João.
levantou contra mim seu calcanhar. No Oriente Próximo, mostrar a sola do
pé para alguém é sinal de desprezo; ver E. F. Bishop, ET 70 (1958-59),
331-32. Tal ação era especialmente grave da parte de um amigo que
partilhava da mesa de alguém. Porque a refeição supõe a luta entre
Jesus e o diabo (13,2.27), há quem veja aqui uma reminiscência de
Gn 3,15: "Tu ferirás [LXX, 'aceches'] seu calcanhar"; mas isto parece
forçado demais.
19. Eu vos digo isto... antes que aconteça. O mesmo tema aparece em 14,29; 16,4;
também Mt 24,25. É um eco do AT: "Antes que aconteça, eu to anunciei"
(Is 48,5).
agora. Literalmente, "desde agora" (ap’ arti); todavia, o significado pare-
ce ser simplesmente "neste tempo"; em 14,29, se usa um ambíguo nyn.
912 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

H owever, BDF, § 123, pensa que significa "seguramente" (= amém) e o


compara com o uso em Mt 26,29.64.
para que creiais. Há melhor evidência para o aoristo subjuntivo (indicando
uma única ação: a chegada à fé plena) do que para o presente (indican-
do uma confiança contínua). A paixão, morte, ressurreição e ascensão,
concebidas como um todo, levarão os discípulos a um ato de fé completa
em Jesus.
que EU SOU. Alguns são partidários de suprir um predicado implícito, "o
Messias", por causa da compreensão rabínica do SI 41, que se acaba de
mencionar. Todavia, a conexão do salmo com o Messias davídico não é
conjeturado por João, e provavelmente devamos interpretar isto como
egõ eimi absoluto (vol. 1, p. 841) na analogia de outras passagens como
Jo 8,58, onde nada há que pressuponha "Messias" como predicado.

COMENTÁRIO: GERAL

Data e natureza da última ceia

Segundo os sinóticos (Mc 14,12 e par.), Jesus comeu uma refeição pas-
cal com seus discípulos na noite anterior à sua morte; J erem ias EWJ,
pp. 41ss., tem mostrado isto detalhadamente. A legislação veterotes-
tamentária (Lv 23,5) prescreveu o comer da ceia pascal na noite que
terminava em 14 de Nisan e começava em 15 de Nisan (no calendário
lunar, o início de um novo dia era computado a partir do pôr do sol).
Assim, para os evangelhos sinóticos, a noite em que a última ceia foi
consumida, juntamente com a próxima manhã e a tarde em que Jesus
foi crucificado, constituía 15 de Nisan, a festa da Páscoa. Quanto ao
dia da semana, Mc 15,42 especifica que a tarde da crucifixão precedeu
o sábado; então 15 de Nisan transcorria do ocaso de quinta-feira ao
ocaso de sexta-feira.
João fornece um quadro diferente. A última ceia é estabelecida
em um tempo anterior à Páscoa (nota sobre v. 1), e a condenação e
crucifixão de Jesus são datadas claramente na véspera da Páscoa, 14
de Nisan (18,28; 19,14). Só depois de o corpo de Jesus ser posto no
túmulo e que marcou a abertura da festa, então a ceia pascal pôde ser
consumida. A despeito da diferença das datas do calendário, Jo 19,31
concorda com Marcos que o dia da semana envolvido era quinta-feira
até a noitinha de sexta-feira.
46 · A ceia: - O lava-pés 913

Qual visão é a correta? O dia mais importante na vida de Jesus era


15 de Nisan (Páscoa) ou 14 de Nisan (véspera da Páscoa)? Correspon-
dentemente, a última ceia foi ou não a ceia pascal? Talvez esta seja a
questão de calendário mais discutida no NT e uma que não podemos
esperar solucionar na breve discussão abaixo. Como preliminar, men-
cionamos uma recente teoria que foi proposta com base no calendá-
rio solar conhecido como tendo sido usado pelos essênios de Qumran.
Neste calendário a Páscoa, 15 de Nisan sempre caía em uma noite de
terça-feira para quarta-feira. Por conseguinte, tem havido uma tentativa
de mostrar que Jesus celebrou a última ceia na noite de uma terça-feira,
que foi preso na mesma noite, que os vários julgamentos ocorreram nos
poucos dias seguintes, e que, finalmente, ele foi entregue à morte na
sexta-feira, o 14 de Nisan oficial. Esta teoria tem sido fortemente defen-
dida por A. J aubert , The Date of the Last Supper (Staten Island, N.Y.: Alba,
1965; ver também NTS 7 [1960-61], 1-30) e por E. R uckstuhl, Chronology
of the Last Supper (Nova York: Desclée, 1965). Entretanto, juntamente
com B enoit, G aechter , J eremias e B linzler , este autor não encontra da-
dos bíblicos suficientes para essa elaborada reconstrução e considera
como muitíssimo improvável que Jesus, que não era essênio, tivesse
seguido um calendário essênio (pois a aceitação de um calendário era
uma questão religiosa). Ver R. E. B row n , "The Date of the Last Supper",
BiTod 11 (1964), 727-33; também em ΝΤΕ, pp. 160-67 ou 207-17.
J eremias , EWJ, pp. 75-79, que segue a cronologia sinótica, tem feito
uma heróica tentativa de mostrar que todas as ações individuais que
os evangelhos registram sobre a sexta-feira (julgamentos, flagelação,
levar a cruz, homens que regressam do campo, crucifixão, compra de
especiarias, preparação de um túmulo e sepultamento) poderíam ter
ocorrido na Páscoa sem violação da lei judaica. Contudo, tanta ati-
vidade durante uma festa permanece difícil; e parece mais provável
aceitar a cronologia de João em que tal atividade ocorresse em um dia
ordinário, não em um dia santo. A verdadeira razão para a posição
de J eremias é sua convicção de que a última ceia foi uma ceia pascal.
E inegável que haja características pascais na ceia, inclusive em João;
ver também P. B enoit , "The Holy Eucharist", Scripture 8 (1956), 97-108.
Todavia, este fato não resolve a questão cronológica. Jesus antecipou
a ceia pascal porque teria conhecimento da trama de Judas para traí-lo
e entregá-lo à morte antes da Páscoa? Jesus estava seguindo outro
calendário além do oficial, de modo que para ele a noite de quinta-feira
914 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

era 15 de Nisan, enquanto o calendário oficial era o dia 14? (L agrange


sugeriu uma diferença entre a computação galileia e hierosolimitana
de dias; e B illerbeck sugeriu uma diferença entre uma computação fa-
risaica e saduceia. Todavia, a evidência corroborante é muito fraca).
Portanto, sugerimos que, por razões desconhecidas, a noite de
quinta-feira, 14 de Nisan pelo calendário oficial, o dia anterior à Páscoa,
Jesus celebrou com seus discípulos uma ceia que tinha características
pascais. Os sinóticos, ou sua tradição, influenciados pelas característi-
cas pascais, aceitaram rapidamente a alegação de que o dia realmente
era a Páscoa; João, em contrapartida, preservou a informação cronoló-
gica correta. Naturalmente, tanto as tradições sinóticas como as joani-
nas tinham interesse nas possibilidades teológicas oriundas do contex-
to pascal em que Jesus morreu. Se o quarto evangelista não identifica
aquele dia como a Páscoa, contudo apresenta a condenação de Jesus à
morte ocorrida logo após a véspera da Páscoa (19,14), a mesma hora
em que os sacerdotes começavam matar os cordeiros pascais na área
do templo. As referências ao hissopo, em 19,29, e aos ossos quebrados,
em 19,36, podem ser outras alusões à Páscoa. (Sobre a relação entre a
cronologia pascal de João e a posterior controvérsia quartodecimana
na Igreja, ver K . A. S tand , JBL 84 [1965], 25158‫)־‬.

Comparação dos relatos joanino e sinótico da ceia

O relato que João faz da última ceia difere dos relatos sinóticos
mais do que em cronologia. Para falar das omissões, falta em João a
narrativa da preparação para a ceia (Mc 14,12-16 e par.) e as palavras
eucarísticas de Jesus sobre o pão e o vinho (Mc 14,23-25 e par. - ver,
porém, vol. 1, p. 528). Para falar de materiais peculiares, João registra
o lava-pés (13,1-20) e um extenso discurso Final (13,31-17,26), nenhum
dos quais se encontra nos evangelhos sinóticos.
No entanto, há alguns detalhes interessantes sobre o que aconte-
ceu na ceia que as duas tradições têm em comum:

Detalhes comuns a João e aos três evangelhos sinóticos:

1. Uma advertência sobre a traição (da parte de Judas): João


13,18-19, 21-30; ocorrendo antes da Eucaristia em Lc 22,22-23.
O tema de que o traidor é um dos que celebravam com Jesus
46 · A ceia: - O lava-pés 915

ocorre de diferentes maneiras em Mc 14,18 e Jo 13,18. A afir-


mação "um de vós me trairá" se encontra em Marcos, Mateus
e João. A referência a molhar o bocado no prato se encontra em
Mc 14,20, Mt 26,23 e Jo 13,26-27; mas o relato joanino é mais
dramático. Em contrapartida, a embaraçosa reação sobre o que
Jesus tem em vista é mais dramática: em Mc 14,19 e par. ou em
Jo 13,22.
2. A predição da negação de Pedro: feita durante a ceia em Jo 13,38
e Lc 22,3134‫ ;־‬depois de deixarem a sala da ceia como se deu no
Monte das Oliveiras em Mc 14,2931‫ ־‬e Mt 26,33.
3. Uma referência ao fruto da videira: Jo 15,16‫ ;־‬Mc 14,25 e par.,
mas o tratamento é bem diferente.
4. Um tema da aliança está implícito nas referências de João a um
(novo) mandamento (13,34; 15,12.17 - ver p. 985ss.) e explícito
na descrição sinótica do sangue da (nova) aliança em Mc 14,24
e par.

Detalhes comuns a João e a Marcos/Mateus:

5. Uma predição da dispersão dos discípulos: durante a ceia


em Jo 16,32; depois de deixarem a sala da ceia em Mc 14,27 e
Mt 26,31.

Detalhes comuns a João e a Lucas:

6. Uma lição aos discípulos sobre a humildade: Jo 13,1217‫;־‬


Lc 22,24-27.0 vocabulário é muito diferente, mas Lc 22,27 des-
creve algo que se assemelha ao que Jesus relata em João sobre
o lava-pés (p. 927).
7. Uma referência ao futuro dos discípulos no reino ou casa do
Pai: Jo 1 4 ,2 3 ‫ ;־‬Lc 22,30. Reiterando, o vocabulário é muito di-
ferente.

As similaridades mais próximas estão em 1, 2 e 5; e mesmo nes-


ses casos há diferenças significativas entre João e os sinóticos. Embo-
ra haja interessantes similaridades partilhadas por João e Lucas, João
não se aproxima tanto de Lucas no relato da última ceia como no caso
no relato da paixão. Assim, João não parece ser dependente dos rela-
tos sinóticos da ceia, mas parece tem uma tradição independente.
916 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

O significado do Lava-pés

A primeira vista parecería que não possa haver dificuldade so-


bre o significado da cena com que João abre o relato da última ceia.
Os vs. 14,17 declaram explicitamente que o que Jesus fez ao lavar os
pés dos discípulos foi um exemplo de humildade abnegada que de-
via ser imitado por eles. Umas poucas e pequenas seitas cristãs têm
entendido esta imitação em sentido literal e têm praticado o lava-pés
como algo obrigatório; outros grupos o têm praticado como um cos-
tume laudatório; por exemplo, como parte da liturgia da Quinta-Feira
Santa ou, no caso do monasticismo beneditino, como parte da hospi-
talidade devida a hóspedes. Mas a maioria dos cristãos desde o prin-
cípio parece ter sentido que o que Jesus estava ordenando em 14-17
era uma imitação do espírito do lava-pés. E assim, mesmo onde o
lava-pés tem sido parte da liturgia, geralmente tem sido entendido
como um sacramental mais do que um sacramento, ou seja, como um
rito sagrado de menor importância.
Muitos comentaristas do Evangelho de João se contentam com o
simbolismo de humildade pressuposto pela própria narrativa e não
veem outro significado. Na antiguidade, esse foi o ponto de vista de
C risóstomo e de T eodóro de Mopsuéstia; nos tempos modernos, esse
tem sido o ponto de vista de L agrange, B ernard , F iebig e V an den B ussche,
só para mencionar uns poucos. J. M ichl , art. cit., tem defendido vigo-

rosamente esta posição. Todavia, há dificuldades. Os vs. 6-10 indicam


que o que Jesus fez no lava-pés é essencial se os discípulos estão para
compartilhar uma herança com ele (v. 8) e, aparentemente, esta ação
os purifica do pecado (10). Parece estar envolvido algo mais que um
exemplo de humildade. Além do mais, há carência de harmonia na
narrativa: o v. 7 declara que a compreensão só virá mais tarde, i.e.,
aparentemente, depois da ressurreição (ver nota); mas os vs. 12 e 17
implicam que a compreensão já é possível, como teria sido se estivesse
envolvido um mero exemplo de humildade.
Estas dificuldades têm levado os estudiosos a buscar outro sim-
bolismo no lava-pés além do de humildade. Isto não seria estranho,
já que João tem vários exemplos de simbolismo duplo; por exemplo,
do pão da vida. O rígenes relacionou o lava-pés com a preparação
para se pregar o evangelho. B u ltm a n n vê nos vs. 6-11 uma ação para-
bólica simbolizando a purificação dos discípulos através da palavra
46 · A ceia: - O lava-pés 917

de Jesus (15,3)· S c h w a n k , "Exemplum", inclui um exemplo de humil-


dade num símbolo de união através do amor e vê nela profundas
implicações eclesiológicas. H oskyns e R ich ter consideram o lava-pés
como um símbolo da morte de Jesus. Outros estudiosos têm expio-
rado as possibilidades sacramentais do simbolismo. O uso de água
naturalmente pressupõe o batismo e discutiremos abaixo o apoio pa-
trístico para uma interpretação batismal do lava-pés. Alguns autores
modernos (G o g u el , M acg reg o r ) têm visto uma referência à Eucaris-
tia, porque em João o lava-pés (um ato de amor) substitui a ação de
Jesus sobre o pão e o vinho (uma ação que também envolve amor
recíproco - ver IC or 11,20-22). C u llm a n n tem revivido a teoria de
LoiSY e W. B a u er de que o lava-pés se refere, respectivamente, ao Ba-
tismo e à Eucaristia. Influenciados por A gostinho , escritores latinos
a partir do séc. IV e os autores católicos modernos têm visto no v. 10
uma referência à penitência: "... não tem necessidade de lavar senão
os pés", pois a Penitência purifica os pecados cometidos após a lava-
gern batismal (ver G relo t , art. cit.). L o h m eyer tem visto no lava-pés
uma espécie de ordenação apostólica (ver nota sobre v. 16).
Não podemos discutir todas essas teorias. Dos pressupostos
sacramentais, somente uma referência ao batismo é possível cor-
responder ao critério que temos sugerido para o sacramentalismo
joanino (vol. 1, pp. 103-106). Por exemplo, uma possível referência
à Eucaristia não cumpre o critério externo do reconhecimento pri-
mitivo e amplamente difundido na antiguidade ( H ugo de S t . V ictor
na Idade Média é um dos proponentes mais antigos); nem há uma
indicação interna de que o autor tinha em vista uma referência à
Eucaristia, já que não há menção de pão, vinho ou de beber. Discu-
tiremos abaixo uma referência ao batismo, mas, ao fazermos isso,
de modo algum estamos sugerindo que no lava-pés Jesus batizava
seus discípulos. Não sugerimos necessariamente que Jesus tivesse
em vista com o lava-pés um símbolo para o batismo; estamos apenas
discutindo as intenções do autor. Em outro lugar em João, o sim-
bolismo sacramental esteve num nível secundário, reinterpretando
feitos e palavras de Jesus que tinham um significado primário mais
pertinente ao próprio ministério. Portanto, se o lava-pés é um sím-
bolo para o batismo, antes de tudo poderia ter sido um símbolo para
a morte de Jesus; e devemos discutir também esta possibilidade.
918 O Livro da Gloria · Primeira Parte: A última ceia

A unidade da cena

Estreitamente relacionado ao problema de um ou mais significados


simbólicos para o lava-pés é o problema de se os vs. 1-20 constituem
uma unidade original. Se o único significado do lava-pés é um exemplo
de humildade, então a cena pode representar uma combinação joani-
na incomum de ação (1-11) e subsequente interpretação por meio de
um discurso (12-30). H irsch e L ohm eyer estão entre os que insistem na
unidade, e esta posição foi recentemente defendida por W eiser, art. cit.
Mas se os vs. 6-11 constituem outra interpretação do lava-pés, então
é improvável que ambas as interpretações, uma por meio do diálogo
(6-11) e a outra por meio do discurso (12-20), formaram desde sempre
parte da cena. Outro argumento contra a unidade é o da indicação con-
flitiva supramencionada sobre se o lava-pés será entendido só no futuro
(7) ou pode ser entendido já (w . 12,17) os partidários de que trata-se de
uma cena composta oferecem explicações conforme as diversas teorias
da composição deste evangelho (vol. 1, pp. 8ss). Vejamos como B ultmann
e B oismard aplicam suas teorias a esta cena (cf. vol. 1, pp. 253-54).
B u ltm a n n , pp. 351-54, pensa que o relato do lava-pés representa
uma fonte escrita especial que passou por processo redacional. Nesta
fonte, os vs. 4-5 originalmente eram unidos aos vs. 12,20, enquanto os
vs. 7-11 foram anexados pelo evangelista aos vs. 12-20. Nos versículos
introdutórios (1-3) em que há certa quantidade de repetição, somente
parte do v. 1 e a totalidade do v. 3 eram originais; o restante do v. 1 era
uma introdução à oração do capítulo 17, e o v. 2 era uma glosa reda-
cional. Para uma crítica desta discussão de 1-3, ver G rossouw , art. cit.
Boismard, art. cit., pensa que não se trata de uma redação secundária
de um relato original, mas de dois relatos completos que foram combina-
dos. "Moralizante" e "sacramental" são os títulos que ele dá a dois relatos
caso o lava-pés fosse interpretado como um símbolo de humildade ou do
batismo. Cada relato tinha uma introdução, uma descrição do lava-pés, e
uma interpretação; cada um foi seguido de uma predição da traição.

Relato Moralizante Relato Sacramental


Introdução 1-2 3
Lava-pés 4-5 4-5
Interpretação 12-15.17 6- 1 0 (1 1 )
Anúncio da traição 18-19 21-30
[Os vs. 16 e 20 são considerados como redacionais.]
46 · A ceia: - O lava-pés 919

N a opinião de B oismard , a interpretação "moralizante" do lava-pés


era a mais original; nisto ele concorda com B ultmann , M erx, W ellhausen ,
W . B auer e muitos outros, enquanto S pitta e R ichter tratam a interpre-
tação ("sacramental") nos vs. 6 1 0 ‫ ־‬como a mais original.
Pessoalmente, opino que a reconstrução que B oismard faz de dois
relatos é demasiada e rigorosamente sistemática. Por exemplo, os vs.
2130‫ ־‬parecem ser material tradicional sobre a última ceia com parale-
los na tradição sinótica; para incluí-lo como uma parte integral de um
relato do lava-pés parece artificial, especialmente por que não há razão
convincente para relacioná-lo com o relato "sacramental". G rossouw ,
art. cit., tem criticado persuasivamente a tentativa de achar as introdu-
ções aos dois relatos nos vs. 1-3. Admitimos que há uma duplicação
entre os vs. 1 e 3; mas se o v. 1 constitui uma introdução distinta do
v. 3, podemos considerá-lo plausivelmente como uma introdução a
todo o Livro da Glória. O supremo ato de amor ao qual o v. 1 alude é,
como indica a referência a "a hora", o ato da paixão, morte, ressurrei-
ção e ascensão. (O v. 1 não se relaciona tão estreitamente a 12-20, como
Boismard mantém, pois estes versículos se ocupam de um exemplo
de humildade, e não menciona o amor especificamente). O v. 1 faz
parte do tema "os seus", no Prólogo, com o evangelho; e precisamen-
te como o Prólogo é a introdução a todo o evangelho e ao Livro dos
Sinais, em particular, o redator poderia ter adicionado este versículo
para recordar o Prólogo e introduzir o Livro da Glória. Neste caso, os
vs. 2-3 constituiríam a verdadeira introdução ao lava-pés.
O ú n ic o p o n t o n a te o r ia d e B oismard p a r a o q u a l h á b a s ta n te e v i-
d ê n cia é a s u g e s tã o d e interpretações d u p lic a ta s d o la v a -p é s . A s e g u in -
te m o d if ic a ç ã o d a te o r ia d e B oismard s a lie n ta o p a r a le lis m o d e 6 -1 1 e
1 2 -2 0 c o m o d u a s in te r p r e ta ç õ e s :

6-11 12-20
7 compreendendo o lava-pés 12
8 importância do que Jesus tem feito: transmite 15
uma herança ou é um exemplo a ser imitado
10a efeito salvífico sobre os discípulos: é a própria 17
purificação ou a bem aventurança dos que imi-
tam seu espírito
10b mas não afeta todos os discípulos 18a
_ 11 a exceção é o traidor 18b-19.
920 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

(Colocamos entre colchetes as duas últimas linhas para o reconhe-


cimento da possibilidade desta tese proposta por R ich ter , p. 309, de
que 10b -ll não eram originais, mas foram introduzidos como uma
imitação redacional de 18-19). Se duas interpretações completas
do lava-pés agora estão lado a lado na cena joanina, qual delas
pertence à redação original do evangelho? (Isto não é necessária-
mente o mesmo que perguntar qual delas é a mais antiga; no vol. 1,
p. 19s, sugerimos que às vezes o redator acrescentava ao evangelho
material genuinamente antigo). Somente o formato sugeriría que a
primeira interpretação (6-11) é a mais original. Já vimos que, quan-
do no curso da redação ou redigir outra unidade, o material joa-
nino foi adicionado ao evangelho, houve uma tendência de anexar
isto no final de uma seção em vez de quebrar a unidade já existente
(cf. 3,31-36; 6,51-58; 12,44-50; também 15-16 abaixo). No caso que
discutimos os vs. 6-11 vão ligados estreitamente à ação do lava-pés
do que os vs. 12-20, que poderia facilmente ter sido acrescentados.
O diálogo em 6-10 não tem outra possível referência senão o lava-
pés, enquanto alguns dos ditos em 12-20 são de caráter geral e apro-
priados a outros momentos da vida de Jesus. Que os vs. 12-20, em
alguma extensão, é uma coleção de materiais diversos, é reconhecido
por B oismard e outros, os quais tratam 16 e 20 como adições reda-
cionais, já que são estreitamente paralelos aos ditos em Mt 10 (ver
pp. 939-42 abaixo). R ichter , art. cit., fez um estudo muito interessante
da relação de 12-20 com ditos nos capítulos 15-16. (Podemos comparar
13,16 com 15,15.20 sobre o tema do servo e o senhor; 13,18 com 15,16
sobre o tema da escolha que Jesus faz dos discípulos. Se Jo 13,16.20 se
relaciona com Mt 10, o mesmo ocorre com Jo 15,18-16,2 [p. 990 abai-
xo]). Mais adiante sugeriremos (pp. 950-51 abaixo) que os capítulos
15-16 não formavam parte do último discurso, na primeira redação
do evangelho, e assim o paralelismo com eles poderiam indicar que
13,12-20 não foi a primeira explicação do lava-pés. Na mesma linha de
raciocínio, o verbo trõgein, em 18, pode relacionar 13,12-20 com a in-
terpretação secundária do pão da vida em 6,51-58, o outro único lugar
em João onde trõgein ocorre (quatro vezes).
A razão por que B oismard pensa que os vs. 1 2 -1 7 representam uma
interpretação do lava-pés anterior a 6-10, em parte se deve ao fato de
que ele explica os vs. 6-10 sacramentalmente. Em geral, já vimos que as
referências sacramentais em João representam um estrato secundário
46 · A ceia: - O lava-pés 921

de seu simbolismo. Neste caso, sugerimos que a referência ao Batis-


mo, em 6-10, é uma alusão secundária, similar à alusão secundária à
Eucaristia, em 6,35-50 (ver vol. 1, p. 513), e que a referência primária
nos vs. 6-10 está para o lava-pés como uma ação profética simbólica
da paixão e morte de Jesus (assim H oskyns, p. 437; Richter, art. cit.).
Ao dignar-se para lavar os pés dos discípulos, Jesus está represen-
tando antecipadamente sua humilhação e morte, assim como Maria
representou antecipadamente a unção de seu corpo para o sepulta-
mento (12,1-8). O lava-pés é uma ação de serviço prestado a outros,
símbolo do serviço que ele prestará ao render sua vida em prol de
outros (ver nota sobre v. 4); eis por que Jesus pode alegar que o lava-
pés é necessário se os discípulos desejam partilhar de sua herança (8)
e que isto tornará os discípulos limpos (10). Naturalmente, os disci-
pulos não entenderam este simbolismo até que chegasse "a hora".
Tal compreensão de 6-10, como primariamente cristológica e só se-
cundariamente sacramental é mais uma razão para considerar estes
versículos como mais originais que 12-20, pois certamente a ênfase
cristológica se aproximaria mais do propósito deste evangelho (20,31)
do que a ênfase moral.
Podemos resumir nossa abordagem de 1-20 como segue:

v. 1 é uma introdução ao Livro da Glória.


vs. 2-11 formam uma unidade que consiste de uma introdução, o
relato do lava-pés e uma interpretação. O lava-pés é apresentado
como uma ação profética simbolizando a morte de Jesus, em sua
humilhação para a salvação de outros. Um simbolismo batismal
secundário foi também entretecido no texto. Os vs. 2-10a aparece-
ram em uma redação primitiva do evangelho; os vs. 10b -ll podem
ser uma adição equiparando 18-19, inseridos no tempo em que
12-20 foram apensos.
vs. 12-20 contêm outra interpretação do lava-pés corrente nos círculos
joaninos nos quais eram considerados um exemplo moral de humil-
dade a ser imitado por outros. A esta interpretação, agregou-se ma-
terial variado (16,20). Esta seção foi anexada a 2-10a provavelmente
na mesma época em que os vs. 15-16 foram anexados ao v. 14 na
formação do último discurso.
922 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

COMENTÁRIO: DETALHADO

Versículo 1: Introdução ao Livro da Glória

"A hora" que é o tema do Livro da Glória (p. 896 acima) verá a morte
de Jesus; este versículo deixa claro que na concepção joanina Jesus
abordou sua morte como um ato de amor para com aqueles que cre-
ram nele (ver nota sobre "até o fim"). Deixa claro ainda que sua morte
foi uma vitória, porque era uma volta para seu Pai. (Funcionalmente,
Jo 13,1 tem alguma similaridade com Lc 9,51: "Aconteceu que, com-
pletando-se os dias para sua assunção, manifestou o firme propósito
de ir a Jerusalém". Em Lucas, isto marca o término do ministério ga-
lileu e o início do movimento rumo à morte que faria Jesus subir ao
céu; e é seguido por extensos discursos de Jesus dirigidos aos seus
discípulos de caminho para Jerusalém). Ele está deixando para trás
estas duas idéias de amor para com os discípulos e do retorno ao Pai
entrelaçadas para formar o motivo condutor do Livro da Glória. Des-
de o versículo inicial, João enfatiza a consciência de Jesus de tudo o
que lhe aconteceria, tema este reiterado no v. 3 e em 18,4 e 19,28. Isto
concorda com o que Jesus disse em 10,18: ninguém ma tira de mim,
mas eu de mim mesmo a dou. Sobre a possibilidade de que 13,1 em
algum momento seguiu a 10,42, ver vol. 1, p. 696-97.

Versículos 2-3: Introdução ao Lava-pés

Se interpretarmos o lava-pés como uma ação profética simboli-


zando a morte de Jesus, introduzindo a morte de Jesus, o v. 1 também
se reporta ao lava-pés; todavia, uma preparação mais imediata para
o lava-pés é suprida por 2-3. A traição é mencionada no v. 2 precisa-
mente para que o leitor vincule o lava-pés e a morte de Jesus. Jesus
mesmo realiza esta ação simbólica de sua morte somente depois que
as forças foram postas em ação e assim o levassem à crucifixão. Exis-
te certa duplicação entre os vs. 2 e 27, descrevendo o controle que o
diabo exerce sobre Judas: o v. 2 diz que o diabo lhe pôs no coração
(ver nota) que Judas traísse Jesus, enquanto o v. 27 diz que Satanás
entrou em Judas. Por ter duas referências a Judas, uma no início da
ceia e a outra no final, João não está sendo contrário à tradição; cf.
Mc 14,10-11, antes da ceia, e Mc 14,17-21, durante a ceia. Mas existe
46 · A ceia: - O lava-pés 923

alguma progressão nas duas referências joaninas como existe em Mar-


cos? Pode-se argumentar que o v. 2 se refere ao estágio dos planos, en-
quanto no v. 27 Satanás assume momentaneamente o controle sobre
Judas e a traição é imediatamente consumada. Boismard, não obstante,
pensa que os dois versículos são duplicatas e os destina, respectiva-
mente, a seus dois diferentes relatos. Não podemos decidir, mas deve-
mos salientar que, ao falar de "Satanás", em vez de "o diabo", o v. 27
poderia estar usando um vocabulário mais antigo (ver nota sobre 6,70).
Lc 22,3, "Entrou, porém, Satanás em Judas", é mais estreito com 27 no
vocabulário, porém concorda mais com o v. 2 no cenário (antes da ceia).
Ver vol. 1, p. 743, para o valor relativo das duas explicações joaninas da
deslealdade de Judas: vítima da avareza ou instrumento de Satanás.
O v. 3 menciona que o Pai entregara a Jesus todas as coisas. Visto
que isto foi mencionado também durante o ministério (3,35; 6,39; 10,29),
não podemos pensar que aqui seja um poder especial devido a Jesus
porque ele já havia sido glorificado em "a hora". Boismard usa este ver-
sículo para argumentar em prol da significação batismal do lava-pés;
ele evoca Mt 28,18-19: "Toda a autoridade me foi dada no céu e na ter-
ra... batizando-os no nome do Pai...". Contudo, em João a entrega de
todas as coisas a Jesus não é tanto uma questão de autoridade universal
quanto de missão salvífica. O lava-pés como uma ação simbólica da
morte de Jesus é realizado porque ele sabe que tem o poder de salvar
outros e o poder de dar sua própria vida para este propósito.
O v. 3 também afirma que Jesus agiu como agiu porque sabia que
viera de Deus e estava indo para Deus. Este é outra sugestão de que
o lava-pés está relacionado com a morte de Jesus. "Que ele saíra de
Deus" fosse mencionado para enfatizar que era o Filho de Deus que
se sujeitara à morte e, assim, adquire mais força o elemento de hu-
milhação visível no lava-pés e na morte que ele simboliza. A ênfase
sobre o conhecimento de Jesus no v. 3 nos lembra a ênfase similar no
v. 1. Se estivermos certos em nossa explicação que o v. 1 foi composto
pelo redator como uma introdução ao Livro da Glória, ele poderia ter
tomado do v. 3 (assim como tomou do Prólogo e de 15,13).

Versículos 4-5: O Lava-pés

Visto que os pés eram calçados somente com sandálias, eles eram
cobertos pelo pó das estradas sem pavimento, era costumeiro que o
924 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

anfitrião providenciasse água para o hóspede lavar seus próprios pés.


Mas, como a Midrásh Mekilta, sobre Ex 21,2, nos informa, não se podia
requerer de um escravo judeu a lavagem dos pés de um senhor. No
entanto, como sinal de devoção, ocasionalmente os discípulos pres-
tariam este serviço ao seu mestre ou rabi; e nos vs. 13 1 4 ‫ ־‬parece que
Jesus alude a este costume. Assim, no lava-pés, Jesus se humilha e
assume a forma de um servo. É quase como se ele estivesse represen-
tando as palavras de Lc 12,37: "Bem-aventurados aqueles servos, os
quais, quando o senhor vier, achar vigiando! Em verdade vos digo
cjue se cingirá, e os fará assentar à mesa e, chegando-se, os servirá".
E possível que, além de ser visto como um ato de humilde devoção,
o lava-pés fosse entendido como um ato de amor. Schwank, "Exem-
plum", aponta para o capítulo 20 de José e Asenate, uma obra judaica
alexandrina provavelmente composta entre 100 a.C e 100 d.C. Quan-
do Asenate, destinada a ser a esposa de José, se oferece para lavar
seus pés, José protesta que uma serva poderia fazer isso; mas Asenate
exclama cheia de devoção: "Teus pés são meus pés... outra não lavará
teus pés" (20,1-5).
Nada existe no ritual para a ceia pascal que se compare ao lava-
pés. Ele era feito quando alguém entrava na casa, não durante o curso
da refeição. O ritual pascal prescrevia uma lavagem das mãos após
o segundo cálice, mas não há evidência de que a ação de Jesus fosse
uma variante de tal costume.

Versículos 6-11: Interpretação do Lava-pés (um diálogo)

A chave para o simbolismo do lava-pés está na conversação entre


Jesus e Pedro. É difícil ter certeza se ao expressar sua objeção Pedro é o
porta-voz dos demais discípulos (como em 6,68) ou está agindo impe-
tuosamente de modo próprio (como em 18,10; 21,7). Embora a conver-
sação tenha suas implicações simbólicas, nada há de implausível na
implicação básica, a saber, que Pedro ficou embaraçado ante o gesto
de seu mestre. A primeira das implicações aparece no v. 7. Jesus está
fazendo mais do que ministrar uma lição de humildade para que os
discípulos pudessem entender facilmente; o que está envolvido tem
implicações teológicas que só podem ser entendidas depois que ehe-
gar "a hora" (cf. 2,22; 12,16). M ichl, p. 706, argumenta que o v. 7 sig-
nifica simplesmente que Pedro entendera em toda sua profundidade
46 · A ceia: - O lava-pés 925

a humildade e amor de Jesus, exibidos no lava-pés, depois que ele viu


a morte de Jesus. Contudo, para ser exato, o v. 7 fala da compreensão
posterior do próprio lava-pés, não do espírito do lava-pés.
O v. 8 tem outra implicação de significado mais profundo: o lava-
pés é tão importante, que sem ele o discípulo perde sua herança com
Jesus. Michl nos informa que aqui Jesus está falando sobre a importân-
cia do amor; porém, uma vez mais, o texto não se refere à necessidade
do espírito demonstrado no lava-pés, e sim da necessidade da própria
lavagem. Além do mais, Jesus não diz a Pedro: "Se não permitires ser
lavado" (uma expressão que daria primazia à participação de Pedro),
e sim "Se eu não te lavar" - está envolvida uma ação salvífica de Jesus,
não simplesmente um exemplo a ser imitado. Em contraste o v. 17, que
põe o peso da ação sobre os discípulos, se o lava-pés deva ter seu efeito.
A palavra "herança", no v. 8, é significativa. A expressão grega
echein meros pode significar simplesmente "participar; ter parte com",
e este parece ser o sentido subentendido por Michl. Mas meros signi-
fica mais que amizade; pois meros (também meris), na LXX, é usado
para traduzir o heb. hêleq, a palavra que descreve a herança dada por
Deus a Israel. (Ver P. Dreyfus, "Le thème de Vhéritage dans VAncien Tes-
tament", RSPT 42 [1958], 3-49). Cada uma das tribos, exceto Levi, ha-
veria de ter sua "parte" na Terra Prometida, e esta era sua herança da
parte de Deus (Nm 18,20; Dt 12,12; 14,27). Quando as esperanças de
Israel se converteram em um pós-vida, a "participação" ou "herança"
do povo de Deus foi descrita em termos celestiais. O uso escatológi-
co de meros para o galardão eterno é encontrado em outro lugar nos
escritos de João (Ap 20,6; 21,8; 22,19). Esta interpretação de meros, no
v. 8, é reforçada pelo fato de que Jesus fala de uma herança "comigo".
O tema da união dos discípulos com Jesus no céu aparece no último
discurso (14,3; 17,24). A maneira de uma semelhança distante, é inte-
ressante que no relato lucano da última ceia foi suscitada a questão da
posição dos discípulos no reino futuro: "Para que comais e bebais à
minha mesa em meu reino" (Lc 22,30). Recordamos ainda de Lc 23,43:
"hoje estarás comigo no paraíso".
Portanto, é óbvio que o lava-pés é algo que toma possível aos dis-
cípulos ter vida etema com Jesus. Essa ênfase é inteligível se entender-
mos o lava-pés como símbolo da morte salvífica de Jesus. Grossouw,
p. 131, compara a repulsa de Pedro no lava-pés com a reação negativa
na primeira predição do sofrimento do Filho do Homem (Mc 8,31-33).
926 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

Podemos ter aqui a maneira de João enfatizar a necessidade de acei-


tação do escândalo da cruz. Como argumento em prol de um simbo-
lismo batismal secundário para o lava-pés, podemos notar que a ideia
de herança (k lêro n o m ia , não m eros) é mencionada no NT em um con-
texto batismal (lPd 1 ,3 4 ‫ ;־‬Tt 3,7).
A narrativa prossegue no v. 9 com um mal entendido joanino
clássico (vol. 1, p. 153), mas é interessante ver como o autor combina
esta técnica literária com um elemento da impetuosidade caracterís-
tica de Pedro. Ele foi ao extremo oposto: se o lava-pés traz herança
com Jesus, então, quanto mais lavar, melhor. Esta incompreensão leva
Jesus a indicar que o fator salvífico não é a lavagem física em si, mas
aquela que esta simboliza (v. 10a). Mas deixando de lado, por um mo-
mento, a frase entre colchetes em 10a, podemos discutir o significado
da afirmação de Jesus: "Aquele que está lavado não necessita de lavar
senão os pés". Se o "lavado" (ver nota) se refere ao lava-pés, então
Jesus está dizendo a Pedro que ele está compreendendo mal em pen-
sar que o número ou extensão do lavatório aumentará sua herança
com Jesus. O lava-pés só é importante porque ele simboliza a morte
de Jesus. Muitos autores pensam que Jesus estava ansioso para impe-
dir que os discípulos interpretassem sua ação como uma ordem para
abluções rituais do tipo encontradas no judaísmo, e assim vissem aqui
um tipo de polêmica contra as repetidas abluções ordenadas pelos
fariseus (W. Bauer, Lohmeyer - ver Mc 7,1-5), ou contra as abluções es-
sênias (Schlatter), ou contra as que praticavam os discípulos de João
Batista (Baldenspercer, Dodd, Schnackenburg).
O uso do verbo "banhar" para o lava-pés é a principal evidên-
cia para uma interpretação batismal (secundária) do lava-pés. O ver-
bo "banhar", louein, e seus cognatos são o vocabulário habitual do
NT para o Batismo. Em At 22,16, Ananias diz a Saulo: "Levanta-te,
e batiza-te, e lava [apolouein] os teus pecados, invocando o nome do
Senhor". Tt 3,5 proclama: "nos salvou pela lavagem [loutron] da re-
generação e renovação no Espírito Santo". Ver também ICor 6,11;
Ef 5,26; Hb 10,22; e a variante em Ap 1,5. Richter, art. cit., p. 17, e
op. cit., pp. 296-98, argumenta contra uma referência batismal, man-
tendo que no pensamento joanino o Batismo não é descrito em ter-
mos de purificação; antes, é o sangue de Jesus que purifica (ljo 1,7;
Ap 7,14). Contudo, a purificação pelo Batismo e pelo sangue de Jesus
não são mutuamente excludentes (cf. Hb 9,22 com 10,22; Tt 2,14 com 3,5).
46 · A ceia: - O lava-pés 927

Ο fato de que João não mencione explicitamente o aspecto purifica-


tório do Batismo não significa necessariamente que este aspecto fosse
desconhecido à comunidade joanina. Aliás a purificação do pecado
era tanto uma parte da expectativa judaica com respeito ao banho es-
catológico que dificilmente poderia estar ausente de qualquer com-
preensão cristã do Batismo.
Que apoio externo existe para a interpretação batismal do lava-
pés? H äring, art. cit., documenta a forte adesão patrística a uma refe-
rência batismal, especialmente no Ocidente; mas Richter, op. dt., 1-36,
argumenta que devemos avaliar com toda prudência esta adesão.
A maioria dos Padres latinos que veem uma referência ao Batismo em
"O homem que se banhou não necessita de lavar-se [exceto seus pés]"
faz isso porque distingue entre o lavar (um batismo dos discípulos que
se deu inicialmente, por exemplo, pelo Batista) e o lava-pés (um per-
dão dos pecados subsequentes). Uma interpretação do lava-pés como
símbolo da purificação batismal se encontra entre os primeiros Pais
em T ertuliano, C ipriano, A fraates e C irilo de Alexandria; e mesmo
esta evidência não é isenta de ambiguidade. Por exemplo, T ertuliano,
Treatise on Baptism 12,3; SC 35:83, evidentemente pensa no lavar-se de
Jo 13,10a como um batismo prévio e assim implicitamente não inter-
pretaria o lava-pés em termos batismais. No entanto, na mesma obra,
9,4; SC 35:79, T ertuliano cita entre os tipos neotestamentários de ba-
tismo o fato de que Cristo "administrou água aos seus discípulos" -
mais provavelmente, uma referência ao lava-pés (13,14) que o Mestre
realizou em seus discípulos (embora uma referência a 4,14 não possa
ser excluída). Assim, há algum apoio externo antigo em prol do lava-pés
como símbolo do Batismo, mas é mínimo.
Ao discutirmos a evidência patrística, deparamos com a sugestão
de que o lavar em 13,10a não é o mesmo que o lava-pés. Esse ponto de
vista é defendido também por alguns estudiosos modernos. Jeremias,
EWJ, p. 49, pensa que Jesus estava se referindo ao banho ritual orde-
nado para antes da Páscoa pelas leis de pureza levítica (Nm 19,19).
Outros, como F ridrichsen, art. cit., pensam que o banho se refere ao
mesmo tipo de ação espiritual; por exemplo, a purificação pela pala-
vra de Jesus (15,3) e que isto torna desnecessárias qualquer outro la-
vatório, incluindo o lava-pés. G rossouw, art. cit., salienta que não nos é
dito que os pés de Pedro foram lavados; todavia, ele é declarado limpo
juntamente com os outros. Entretanto, tal interpretação parece reduzir
928 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

a conversação sobre o lava-pés em 6-8 a algo sem sentido: se o lava-pés


(como uma ação simbólica da morte de Jesus) não é um banho que
purifica, por que Jesus insiste que sem ele Pedro não pode ter herança
com ele?
A inclusão da frase "exceto os pés" em algumas testemunhas
textuais do v. 10a provavelmente se relacione com este problema.
A explicação mais plausível é que um copista, confrontado com a afir-
mação, "aquele que já se banhou não necessita de lavar-se", e não
reconhecendo o banho como o lava-pés, pensou que havia inserido
uma frase de exceção para mostrar que Jesus não pretendia excluir
o lava-pés, quando disse que não havia necessidade de lavar-se. Ao
fazer isso, com relutância proveu os teólogos posteriores uma doutri-
na sacramental mais rica, pois a frase poderia ser interpretada como
uma referência à necessidade de penitência após o banho batismal.
W. K nox, art. cit., toma a frase "exceto os pés" como autêntica (perti-
nente ao evangelho, porém não à tradição mais antiga) e sugere que
João está admitindo uma lavagem para os cristãos que basicamente
estão limpos, porém caíram em pecados que não lhes usurpam de
sua pureza batismal (diferente de Judas que realmente não está lim-
po). K nox evoca a distinção em ljo 5,16 entre pecados para a morte e
pecados não para a morte. Enquanto tal teoria concorda com a última
interpretação de que a frase se refere à penitência, pensamos que a
adição da frase feita por um copista é mais facilmente postulada do
que a omissão do copista.
Portanto, a explicação mais simples do lava-pés permanece que
Jesus realizou esta tarefa servil para anunciar simbolicamente que ele
estava para ser humilhado na morte. O questionamento de Pedro pro-
vocado pela ação capacitou Jesus a explicar a necessidade salvífica de
sua morte: ela levaria homens a serem herdeiros com ele e os purifi-
caria do pecado. Uma dúvida poderia ter ocorrido ao leitor se tal ação
altamente simbólica realmente foi realizada por Jesus, especialmente
visto que não temos nenhuma corroboração nos sinóticos. Barrett,
p. 363, juntamente com Strauss antes dele, tem sugerido que o lava-
pés é uma ilustração imaginária e fictícia do dito registrado no relato
que Lucas (22,27) faz da última ceia: "Pois qual é maior: quem está à
mesa, ou quem serve? Porventura não é quem está à mesa? Eu, porém,
entre vós sou como aquele que serve". Contudo, pode-se salientar
que em outro lugar no Evangelho de João já vimos que a genealidade
46 · A ceia: - O lava-pés 929

do evangelista está mais em explicar a significação teológica do que lhe


vem da tradição do que em inventar ilustrações. E se duas interpreta-
ções diferentes do lava-pés surgiu nos círculos joaninos, a tradição do
lava-pés seria antiga. Enquanto tal ação profética possa parecer implau-
sível aos olhos modernos, alguém podería apontar para ações muito
mais estranhas, com Jeremias e Ezequiel predizendo a queda de Jerusa-
lém. Que Jesus insistisse na ação profética é parte também da tradição
sinótica, como vemos no relato da maldição lançada sobre a figueira.
Os vs. 10b e 11 deixam claro que Judas não foi transformado pelo
lava-pés. Pedro protestou à ação de Jesus, mas rapidamente aceitou o
lava-pés quando Jesus lhe adverte sobre a finalidade salvífica daquela
ação. Mas o coração de Judas (v. 2) já estava cheio de má intenção, e
não se abrira ao amor que Jesus lhe estava estendendo. Muitos comen-
taristas têm sugerido que 10b-ll são redacionais e não, como 2-10a,
parte da narrativa original.

Versículos 12-20: Interpretação do Lava-pés (um discurso)

A segunda interpretação do lava-pés é que Jesus representou


a seus discípulos um exemplo que estivessem preparados a imitar.
O rabi prestou a seus discípulos um serviço que ocasionalmente dis-
cípulos generosos podiam fazer pelo rabi; os discípulos deveríam
estar prontos a praticar atos similares de serviço uns pelos outros.
Que a prática fosse levada a sério é atestado em lTm 5,10, onde uma
das qualificações para uma mulher ser arrolada como viúva era que
praticasse a hospitalidade e "lavasse os pés dos santos". J. A. Robin-
son, p. 145, tem salientado semelhanças com a cena em Mc 10,32-45.
Ali, depois de Jesus haver predito sua morte, Tiago e João pediram
que participassem de sua glória. Jesus insistiu que antes de tudo par-
ticipassem de seu destino e fossem batizados com seu batismo; e ele
afirmou que o maior fosse como o servo, e que seu próprio serviço
consistia em dar sua vida. Assim, há na cena marcana elementos de
ambas as interpretações do lava-pés. E interessante que Lc 22,24-26,
paralelo a Mc 10,42-45, é parte da cena da última ceia. (Anteriormen-
te, chamamos a atenção para Lc 22,27 como similar ao tema do lava-
pés, e para Lc 22,28-29 como similar ao tema da herança em Jo 13,8).
A forma que Lucas dá à passagem não é tão claramente orientada
para a morte de Jesus como é em Marcos, mas está relacionada com a
930 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

traição de Jesus. Talvez Lc 22,24-29 represente um misto da tradição


sinótica, com seu mandamento, e de uma tradição similar àquela que
encontramos em João.
Mesmo tomado simplesmente como um exemplo de humildade,
o lava-pés não perde sua associação com a morte de Jesus; o contexto
geral indicaria isto. Portanto, 15,12-13, com seu mandamento de levar
o amor ao ponto de entregar sua própria vida em prol de outros, é um
excelente comentário sobre o que Jesus quer dizer em 13,15, quando
declara: "Que façais exatamente como eu vos fiz".
Façamos uma breve pausa para considerar o v. 16. Embora ele
se relacione com o tema de 12-15, provavelmente não fosse original-
mente parte da interpretação do lava-pés. Podemos compará-lo com
paralelos na tradição sinótica:

Jo 13,16: "o servo não é maior que o seu senhor;


nem o enviado [ap ostolos] maior do que
quem o enviou".
Mt 10,24-25: "o discípulo não é mais que o mestre,
[nem o servo mais do que o seu senhor;]
é suficiente que o discípulo seja como seu mestre,
pois o servo deve ser como seu senhor".
Lc 6,40: "Nenhum discípulo é maior que seu mestre;
mas todo o que, quando plenamente instruído, será
como seu mestre".

Obviamente, João se aproxima mais de Mateus. (Em Mateus, a li-


nha entre colchetes foi perdida no OL e OSsin. Teria havido uma omissão
de copista para harmonizar-se com Lucas, ou uma adição redacional
para formar uma quadra onde a segunda linha se igualasse à quarta?)
Enquanto João não tem a comparação discípulo/mestre de Mateus, a
questão do mestre é suscitada no v. 13; aliás, 13 menciona "M estre" e
"Senhor" [kyrios = senhor], os dois papéis que aparecem na passagem
mateana. O v. 16 contém o único uso de apostolos (mensageiro, envia-
do) em João, enquanto o único uso de apostolos em Mateus ocorre no
contexto da comparação que estivemos comparando (Mt 10,2; também
apostellein em 10,5.16.40). Com base nestas similaridades, Sparks, art.
cit., tem argumentado que o quarto evangelista conhecia o Evange-
lho de Mateus. Num estudo mais recente, Dodd, art. cit., mostra que,
46 · A ceia: - O lava-pés 931

se realmente João estava copiando Mateus, não há explicação lógica


para as omissões, já que a comparação discípulo/mestre teria sido
mais útil em relação ao lava-pés e ao v. 13. Antes, o dito original de
Jesus provavelmente circulava em várias versões, e estas foram re-
gistradas independentemente pelos diferentes evangelistas. Entre-
tanto, devemos notar que João tem diversos paralelos com o material
em Mt 10:

Jo 12,25 = Mt 10,39 (ver vol. 1, pp. 769-71)


Jo 12,26 = Mt 10,38 (ver vol. 1, p. 771)
Jo 12,44 = Mt 10,40 (ver vol. 1, p. 788-89)
Jo 13,16 = Mt 10,24-25
Jo 13,20 = Mt 10,40 (ver abaixo)
Jo 15,18-16,43 = Mt 10,17-25 (ver p. 1087)

Ambos os evangelhos partem de uma coleção comum de material


que cada um usa de seu próprio modo.
O v. 17 é a última referência ao lava-pés, cuja explicação começou
no v. 2. Ambos os versículos insistem em que os discípulos já podem
compreender o lava-pés como exemplo de humildade (em contraste
com o v. 7). A bem-aventurança joanina do v. 17 (cf. nota) pode ser
comparada, enquanto ao tema, com as bem-aventuranças reunidas em
Lc 11,28: "Bem-aventurados os que ouvem a palavra de Deus e a guar-
dam". (Cf. Jo 12,47) e Mt 24,46 "Bem-aventurado aquele servo que o
senhor quando vier, achar servindo assim". Cf. também Mt 7,24. No
v. 17, "o " (plural tauta) é provavelmente uma referência geral ao lava-
pés e a lição que encerra. Entretanto, supondo que o relato joanino da
última ceia conteve alguma vez uma instituição da eucaristia (talvez
conservada parcialmente em 6,51-58; cf. vol. 1, p. 530 então o tauta e
o poiein (colocar em prática, fazer) do v. 7 podería comparar-se com o
mandamento eucarístico de Lc. "Fazei isto (touto poieité) em memória
de mim (22,19)‫ ״‬.
Ambas as interpretações do lava-pés, 6-10 e 12-17, terminam com
uma referência à única exceção entre os discípulos que não foi afetada
pelo que Jesus fizera. (Não obstante, além de servir como conclusão
à cena do lava-pés, os vs. 18-19 também servem como transição para
21-30, a próxima seção que tratará mais diretamente da traição de Ju-
das. Richter, op. dt., pp. 308-9, argumenta fortemente que a conexão
932 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

entre 18-19 e 17 não é original; que 18-19 numa época seguiram 10a, e
que seu deslocamento para o atual lugar deu ocasião à inserção redacio-
nal de 10b-ll). Em ambos os versículos, 11 e 18, João deixa claro que Je-
sus estava perfeitamente cônscio de que Judas se voltara contra ele irre-
vogavelmente. Todavia, em 18 somos informados por que Jesus aceitou
esta traição: para que se cumprisse a Escritura. A mesma explicação foi
oferecida em 12,38ss. para a recusa do povo hebreu para aceitar Jesus.
O recurso ao SI 41,10(9) pode ter caráter tradicional da parte dos
primeiros cristãos, pois ele é citado implicitamente em Mc 14,18: "Eu
vos asseguro que um de vós me trairá, um que está comendo [esthie-
in] comigo". (Que Marcos tinha ciência de um pano de fundo escri-
turístico para o que estava acontecendo, pode-se deduzir de 14,21:
"O Filho do Homem segue seu caminho como está escrito a seu res-
peito"). A citação implícita de Marcos faz eco da redação do salmo
como está na LXX; a citação explícita de João se aproxima mais do
TM do que da LXX (ver nota sobre "o que come do pão comigo").
Concordamos com Dodd, Tradition, pp. 36-37 (contra F reed, OTQ,
p. 92), que o uso que João faz do salmo é independente de Marcos. Em
particular, notamos o uso que João faz do verbo trõgein ("com er"),
também usado em 6,51-58. Esta seria outra indicação de que 6,51-58
uma vez esteve no mesmo contexto que 13,12-20? Caso se aceitasse a
forma breve da instituição lucana da Eucaristia, o dito "Isto é o meu
corpo" seria seguido imediatamente de "a mão daquele que me trai
está comigo sobre a mesa" (Lc 22,19a e 21). Ver também a estreita re-
lação entre traição e Eucaristia em ICor 11,23. Não seria ilógico, pois,
associar a referência de João à traição, "Aquele que se come pão comi-
go levantou contra mim seu calcanhar", com uma seção eucarística tal
como 6,51: "O pão que eu darei é minha própria carne". Em qualquer
caso, 13,18 é a única passagem no relato joanino da última ceia que
menciona que o pão foi comido.
O salmo prossegue com o versículo seguinte: "Mas tu, Senhor,
tem piedade de mim, e levanta-me". Em João, o próximo versículo fala
de vir ao crente em Jesus como aquele que diz: "EU SOU"; e tal convic-
ção só é possível depois da crucifixão e ressurreição: "Quando levan-
tardes o Filho do Homem, então compreendereis que EU SOU" (8,28 -
sobre "levantar", ver vol. 1, p. 353). A predição da traição da parte de
Judas que é a ação que inicia o processo de morte e ressurreição, aju-
dará a levar os discípulos a crer no Jesus que foi elevado para seu Pai.
46 · A ceia: - O lava-pés 933

No tema da predição do v. 19, João se aproxima mais das reivindica-


ções de Deus proclamadas em Ez 24,24: "quando isso suceder, sabe-
reis que eu sou o Senhor Deus"; e em Is 43,10: "Vós sois minhas teste-
munhas, diz o Senhor, e meu servo, a quem escolhi; para que o saibais
e me creiais, e entendais que EU SOU [egõ e im i)".
Nesta sequência sobre Judas, o v. 20 parece estranhamente fora
de lugar. Richter, art. cit., p. 26, sugere com muita imaginação que a
traição de Judas podería ter levado o povo a suspeitar que os aposto-
los fossem enviados por Jesus, e assim o desígnio do v. 20 era assegu-
rar aceitação para os apóstolos. São também forçadas as tentativas de
relacionar o v. 20 com o contexto geral do lava-pés; por exemplo, a su-
gestão de que se mantém o tema de serviço aos demais por amor. Uma
tese mais plausível é que o v. 20, que tem um paralelo em Mt 10,40,
tinha anteriormente uma relação mais direta com o v. 16, o qual tem
um paralelo em Mt 10,24-25; e que, quando 16 foi introduzido em seu
presente contexto, assim se deu com 20. Se isto é procedente, então o
v. 16 se tornou mais apropriado à sequência sobre o lava-pés, enquan-
to o v. 20 foi livremente anexado ao final. Notamos que ambos, 16 e
20, começam com "Na verdade, na verdade [Amém, amém] eu vos
asseguro", e ambos tratam do envio. O paralelo mateano com o 20 é
como segue:

Jo 13,20: "Todo o que recebe aquele a quem eu enviar, a mim


me recebe;
e todo o que me recebe, recebe Aquele que me en-
viou [pempein]”.
Mt 10,40: "Todo o que vos recebe, a mim me recebe;
e todo o que me recebe, recebe Aquele que me en-
viou [apostellein]".

D odd, art. cit., está certo quando insiste que o mesmo logion está
envolvido, porém que é independentemente registrado nos dois
evangelhos; em Mc 9,37 (= Lc 10,48) e Lc 10,16 parece haver outras
variantes e combinações.

[A Bibliografia para esta seção está inclusa na Bibliografia no fi-


nal do § 47].
47. A CEIA: ‫ ־‬PREDIÇÃO DA TRAIÇÃO
(13,2 1-30)

13 21Após estas palavras, Jesus perturbou-se interiormente. Então


declarou: "Eu firmemente vos asseguro: um de vós me trairá". 22Os
discípulos olharam uns para os outros, confusos quanto a quem ele
podería significar. 23Um deles, o discípulo a quem Jesus amava, es-
tava à mesa bem junto a Jesus; 24então Simão Pedro lhe fez sinal que
indagasse de Jesus de quem ele falava. 25[Desde sua posição] ele se
inclinou sobre o peito de Jesus e lhe disse: "Senhor, quem é?" 26Je-
sus respondeu: "É aquele a quem eu der o bocado de pão que estou
para imergir no prato". E imergiu o bocado [e o tirou] e o deu a Ju-
das, filho de Simão o Iscariotes. 27Naquele momento, após o bocado
de alimento, Satanás entrou nele. Então Jesus lhe disse: "Age logo,
e faze o que estás para fazer". (28Naturalmente, nenhum dos que es-
tavam à mesa entendeu por que lhe disse isto; 29pois alguns tinha a
ideia de que, já que Judas tinha a bolsa, Jesus estava lhe dizendo para
comprar o que era necessário para a festa ou dar algo aos pobres).
30E então, assim que ele tomou o bocado, Judas saiu. Era noite.

24: fez sinal; 25: disse; 26: respondeu, [tomou], deu; 27: disse. No tempo presente his-
tórico.

NOTAS

13.21. Após estas palavras. Isto pode ser simplesmente uma conexão redacio-
nal. Não há nada, no que segue, que se relacione, necessariamente, com
o lava-pés ou sua(s) interpretação(s).
perturbou-se interiormente. Tarassein. Ver nota sobre 11,33.
47 · A ceia: - Predição da traição 935

declarou. Literalmente, "ele testificou e disse"; MTGS, p. 156, aponta para esta
parataxis (em João mais usualmente, "respondeu e disse") como um semi-
tismo. Há nesta seção diversos semitismos possíveis: um pronome resumin-
do a um relativo em 26 (ZGB, § 201); também a sentença "e o tirou" em 26
- ver a respectiva nota. Wilcox, art. cit., estuda os semitismos amplamente.
23. discípulo a quem Jesus amava. O Discípulo Amado aparece em seis passa-
gens, todas no Livro da Glória; ver Vol. 1, pp. 98ss).
à mesa bem junto a Jesus. Literalmente, "estava reclinado sobre o peito de
Jesus". Como João visualizava a posição dos que se reclinavam (ver nota
sobre "pés" no v. 5) na última ceia? F. Prat, RSR 15 (1525), 512-22, tem
estudado os arranjos da mesa e lugares de honra entre os judeus con-
temporâneos de Jesus. Ele sugere que a disposição da mesa, nesta ceia,
era a do triclinium romano, isto é, três divãs num formato de ferradura,
dispostos em tomo de uma mesa central. Se os Doze estavam presentes
com Jesus, podería ter cinco discípulos em cada lado de dois divãs e dois
discípulos com Jesus no meio (lugar de honra) no topo do divã ou lectus
medius. Embora pudéssemos esperar que o segundo lugar de honra fosse
à direita de Jesus (cf. SI 110,1), Prat, p. 519, assegura que em tal arranjo
ele ficava à esquerda de Jesus. Ora, à luz da evidência que faz o evange-
lho é óbvio que o Discípulo Amado é descrito à direita de Jesus, de modo
que, quando ele inclinou sua cabeça para trás, apoiou no peito de Jesus.
(Em vista da tese de que o Discípulo Amado era João, podemos recordar
Mc 10,37, onde Tiago e João reivindicaram assentar-se à direita e à esquer-
da de Jesus em sua glória). Pode ser que Judas esteja sendo apresentado à
esquerda de Jesus, pois assim Jesus podería passar-lhe o bocado de pão.
Como o tesoureiro (12,6), pode ser que tivesse a autorização de ocupar
um (ou inclusive 0) lugar de honra entre os discípulos. Se o v. 24 for lido
no sentido de que Pedro fez sinal ao Discípulo Amado sem falar com ele
(ver abaixo), então é possível que Pedro estivesse a certa distância de
Jesus; e isto estaria em harmonia com o fato de que Pedro não falou por
si mesmo. Visto que ele era visível ao Discípulo Amado, provavelmente
fosse descrito no divã, à direita, talvez no extremo, se foi o último a ter
seus pés lavados (ver nota sobre v.6). Curiosamente, Prat põe Pedro à
esquerda de Jesus e o tem inclinado sobre o corpo de Jesus a cochichar ao
Discípulo Amado! Têm havido elaboradas tentativas de designar lugares
aos outros discípulos, mas isto é mera imaginação - mesmo a reconstru-
ção acima é altamente especulativa.
24. Pedro lhe fez sinal. Literalmente, "acenou". K. G. Kuhn, "The Lord's
Supper and the Communal Meal at Qumran", in The Scroll and the New Tes-
tament, ed. K. Stendahl (Nova York: Harper, 1957), p. 69, salienta que
936 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

nas refeições essênias e os sectários de Qumran (Josefo, War 2.8.5; 132;


e 1QS 6.10) alguém só podia falar na devida ordem. Sobre esta analo-
gia, ele conclui que o Discípulo Amado teria estado em um lugar mais
elevado que Pedro e tinha o direito de falar antes de Pedro. No entanto,
a ação de Pedro pode ser entendida mais simplesmente se ele estava a
certa distância e não queria expressar em voz alta a indagação. Pensan-
do que o Quarto Evangelho é dependente e modificador do relato sinó-
tico no qual os discípulos em geral expressam a dúvida sobre a quem
Jesus se referia, Loisy, p. 395, mantém que João "individualizou" a cena,
levando Pedro a formular a pergunta sozinho. Mas, se tudo isto é o pro-
duto de imaginação inventiva, por que o evangelista não se contentou
a deixar o Discípulo Amado formular a pergunta, em vez de complicar
o quadro, introduzindo Pedro também? É muito mais sensato pensar
que o evangelista estava tratando de uma reminiscência venerada que
chegou a ele através da tradição.
indagasse de Jesus de quem ele falava. Há muitas variantes textuais, mas basi-
camente as redações podem ser classificadas em duas: (a) "pergunta de
quem ele estava falando", endossada por P66, Bezae, Alexandrinus, ver-
sões copta e siríaca; (b) "e lhe disse: Dize-lhe de quem ele está falando",
endossada pelo Vaticanus, a versão latina e Orígenes. A segunda redação
pressupõe que Pedro estava bem mais próximo do Discípulo Amado e
podia lhe falar (então, por que o sinal?) e que o Discípulo Amado sabia
e podia informar a Pedro de quem Jesus estava falando (então, por que
o Discípulo perguntou a Jesus?). A segunda redação quase certamen-
te representa mal-entendido do copista. Boismard, RB 60 (1953), 357-59,
analisou todas as variantes. Ele sugere que o original diz simplesmente:
"Simão Pedro fez-lhe sinal" (assim Crisóstomo). Copistas expandiram
isto de duas maneiras diferentes adicionando ou (a) "pergunta de quem
ele estava falando" ou (b) "e disse-lhe: "Dize quem é". Para Boismard, as
numerosas redações de mss. representam combinações destas expansões
mais antigas.
25. [Desde sua posição]. Literalmente, o advérbio houtõs é "tal como estava"
ou "confortavelmente" (depois do sinal de Pedro) ou "sem mais ceri-
mônia" - ver nota sobre "assentado" em 4,6. É omitido em importantes
testemunhas.
inclinou para trás. Há alguma evidência de ms. para uma forma mais forte
da mesma raiz verbal, significando "caiu para trás".
26. bocado de pão. Na cristandade grega, psõmion tem sido usado para anfi-
trião eucarístico, e por isso alguns estudiosos sugerem que Jesus estava
dando a Judas a Eucaristia. Loisy e W. Bauer usam ICor 11,29, que fala
47 · A ceia: - Predição da traição 937

da condenação dos que comem o corpo do Senhor sem discernir, para


explicar por que Satanás entrou em Judas depois de comer o bocado (eu-
carístico). Mas o escritor esperaria que seus leitores entendessem que o
bocado era a Eucaristia, quando não descreveu a instituição? Isso seria
temível somente na dúbia hipótese de que ele estava observando a dis-
ciplina arcani, ocultando a instituição aos de fora que porventura lessem
o evangelho.
imergiu 0 bocado. A mesma ação é descrita em Mc 14,20 e Mt 26,23, mas
o vocabulário é diferente; e o relato de João parece ser independente.
A referência marcana e mateana à imersão no prato precede a descrição
da instituição da Eucaristia, mas a referência lucana ao traidor (22,21-23
- Lucas não menciona a imersão) segue a instituição.
[e 0 tirou]. Omitido numa combinação distinta de testemunhas, isto pode
ser uma harmonização com uma frase similar no relato sinótico da insti-
tuição da Eucaristia ("havendo tomado" em Mt 26,26-27). Todavia, ZGB,
§ 367, aponta para isto como um possível exemplo de uma construção
redundante com o verbo coordenado, frequente no uso semita.
Simão 0 Iscariotes. Assim leem aqui as testemunhas mais seguras; contraste 13,2.
27. Satanás entrou nele. O mesmo vocabulário para o "entrar em" de espíritos
maus se encontra em Mc 5,12 e Lc 8,30. Esta é a única vez que ocorre
"Satanás" em João.
Então Jesus lhe disse. A implicação é que Jesus sabia que Judas está decidi-
do. Sobre o conhecimento que Jesus tinha dos corações dos homens, ver
2,23-25.
Age logo. Isto traduz um advérbio no comparativo. Ou o comparativo tem
o sentido enfraquecido de um simples positivo ou é elevado ao máximo
("o mais rápido possível"): BDF, § 2441.
0 que estás para fazer. Literalmente, "o que fazes"; provavelmente há uma
inflexão conativa no tempo presente usado aqui (MTGS, p. 63). Esta or-
dem se assemelha às palavras ditas por Jesus a Judas no Getsêmani se-
gundo uma variante de Mt 26,50: "Amigo, faze [ou se faça] o que vieste
fazer". Ver W. Eltester, NTPat, pp. 70-91.
28. nenhum dos que estavam à mesa entendeu. A luz do v. 26, talvez o Discípulo
Amado e Pedro devam ser excetuados. Nos relatos sinóticos, os discípu-
los não são especificamente informados sobre quem é o traidor, além da
descrição geral de que ele é um dos que retiraram o alimento do mesmo
prato usado por Jesus. (A informação de Mt 26,25 de que Jesus respon-
deu afirmativamente quando Judas perguntou "Sou eu?" certamente é
secundária; em qualquer caso, Mateus não indica que os outros ouvi-
ram). Que os discípulos não sabiam que Jesus tinha em mente Judas é
938 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

confirmado por sua aparente ignorância do propósito de Judas, quando


se aproximou de Jesus no jardim.
29. tinha a bolsa . Ver nota sobre 12,6.
com prar 0 que era necessário para a festa . Alguns estudiosos, p. ex., Loisy,
têm usado isto para provar que a última ceia joanina na noite de quin-
ta-feira não era a refeição pascal, pois o que era necessário para a festa
pascal ainda não fora comprado (contrastar Mc 14,12-16); e assim, pre-
sumivelmente, a refeição pascal tinha de ser comida na noite de sexta-
feira. Mas então, por que Judas seria enviado a fazer as compras na noi -
te de quinta-feira, quando o dia inteiro de sexta-feira era reservado para
fazê-la? Jeremias, EWJ, p. 53, argumenta que esta afirmação se ajusta
bem à cronologia sinótica, em que a noite de quinta e de sexta consti-
tuía a Páscoa. Ele sugere que as tendas "comércio" estariam abertas na
noite de quinta, mesmo que a Páscoa tivesse começado; mas não seriam
abertas na sexta (o dia da festa) nem no sábado. Portanto, pensava-se
que Judas estava sendo enviado a fazer compras antes que as "tendas"
se fechassem para a "semana santa".
dar algo aos pobres . Jeremias, EWJ, p. 54, salienta que era costume fazer doa-
ções aos pobres na noite da Páscoa.
30. noite . A principal refeição normalmente era consumida no final da tar-
de, mas a refeição pascal era sempre de noite (Jeremias, EWJ, pp. 44-46).
Que a ultima ceia foi consumida de noite parece ser confirmado por
ICor 11,23: "O Senhor Jesus, na noite em que foi entregue, tomou o pão...".
A menção de "noite" e de "ceia" (nota sobre v. 2), partilhada por ICor 11 e
Jo 13, porém não pelos sinóticos, é usada por Wilcox, pp. 144,155, para su-
gerir que Paulo e João (também Jo 6) poderíam estar refletindo uma antiga
tradição eucarística não preservada em Marcos.

COMENTÁRIO

Havendo realizado uma ação profética no lava-pés, agora Jesus enun-


cia uma profecia sobre seu traidor. Esta profecia é também registrada
pelos sinóticos, mas não há evidência real de que João seja dependen-
te em suas narrativas. Ambos, Bultmann, p. 366, e Dodd, Tradition,
pp. 52-54, mantêm que o relato joanino tem por base uma tradição
independente. W ilcox, pp. 155-56, encontra três estratos de tradi-
ção combinados nos vs. 21-30, um deles se aproxima de Paulo (ver
nota sobre 30) e outro parecido com a tradição marcana. O terceiro
47 · A ceia: - Predição da traição 939

estrato, o m ate ria l p e c u lia r a João, é m ais ó b v io em 23-25 e 28-29.


É d ig n o d e n o ta q u e, se estes v e rsíc u lo s fo rem re m o v id o s, p erm a n ec e
aí u m a h istó ria c o n sec u tiv a n a q u a l sem itism o s são c o m u n s (ver nota
sobre " d e c la ra d o " em 21). C o n tu d o , W ilcox p e n sa q u e h á tam b ém
alg u n s sin ais d e u m a d a ta p rim itiv a n o e stra to p e c u lia rm e n te joanino.
Os d e ta lh e s n a cen a d e João q u e n ã o p o d e m se verificar n o s sinóticos
são d e c a rá te r d ra m á tic o , m as p lau sív eis.
O v. 21 m en cio n a q u e Jesu s se n tiu -se p e rtu rb a d o . Em João, a p er-
tu rbação d e Jesu s se relacio n a com a p rese n ç a d e S atan ás n a m o rte,
com o v im o s e m n o ssa d isc u ssã o d e Jesus se n tin d o -se p e rtu rb a d o an te
a m o rte d e L á z aro (vol. 1, p . 721). U m a p a ssa g e m q u e tem m u ito em
com um co m 13,21 é 12,27, o n d e Jesus se p e rtu rb a com a c h e g ad a d a
hora. N o vol. 1, p . 772, sa lie n ta m o s q u e 12,27 tem u m p a ra le lo n a cena
sinótica d a a g o n ia n o G etsêm an i, o n d e Jesu s se en triste ce e n q u a n to
a g u a rd a a c h e g a d a d e Ju d a s p a ra se r e n tre g u e a se u s inim igos. A m -
bos, Jo 12,27 e a cen a sin ó tica d o ja rd im , p a re c e m citar o SI 42,6(5):
"Por q u e e stá s a b a tid a , ó m in h a a lm a [= cena sinótica, M c 14,34], e
p o r q u e te p e rtu rb a s e m m im [= Jo 12,27]?" É d ig n o d e n o ta q u e aq u i
em 13,21 João p a re c e c ita r o p ró x im o v ersícu lo d o m esm o salm o: "M i-
n ha alm a se se n te p e rtu rb a d a " . (P or c a u sa d isto , Boismard su p õ e q u e
Jo 12,23.27-29 o rig in a lm e n te p e rte n cia ao co n tex to q u e o ra estam o s
co n sid eran d o , e q u e o s v e rsíc u lo s fo ram re m o v id o s p a ra o c a p ítu lo 12
q u an d o 11-12 fo ra m in tro d u z id o s n o p la n o d o e v a n g elh o - v e r vol. 1,
p. 696) Em q u a lq u e r caso, se 12,27 p a rtilh a d a cena sin ó tica d a agonia,
a p e rtu rb aç ã o d e Jesus com a c h e g a d a d a h o ra, em 13,21, com o na
cena sinótica d a a g o n ia , a lú g u b re so m b ra d a traição d e Ju d a s tom a
conta d a alm a d e Jesus e o en c h e d e tristeza.
A afirm ação d e Jesus em 21, "E u firm em en te vos asseg u ro [= A m ém ,
am ém ], u m d e v ó s m e tra irá " , se e n c o n tra (só com u m "a m é m ") em
Mt 26,21 e M c 14,18, e m b o ra M arco s a d icio n e as p a la v ra s " a q u e le q u e
com e co m ig o ", as q u a is, com o v im o s, têm seu p a ra le lo em Jo 13,18.
Mas, n o q u e se seg u e, o s p a ra le lo s com o s sinóticos n ã o são tão es-
treitos. T o d o s o s sin ó tico s c o n c o rd a m q u e o s d isc íp u lo s su scitara m a
questão q u a n to a o q u e Jesus tin h a em m en te , m as o q u e stio n a m e n to
está re g istra d o d e fo rm as d ife ren te s em Jo 13,22, Lc 22,23 e M c 14,19
(= M t 26,22). M arcos relata q u e o p rim e iro p e n sa m e n to d e cad a disci-
p ulo era q u e ele m esm o p o d e ría ser o traid o r; em L ucas e João, os dis-
cípulos in d a g a m em geral q u e m é o tra id o r. Em M arcos, a p re se n ta m
940 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

su a p e rg u n ta d ire ta m e n te a Jesus; e m L ucas, p e rg u n ta m u n s ao s o u -


tros; João tem e le m en to s d e a m b o s (22 e 24).
O s in cid en tes descritos em 23-24 são p ecu liares a João. Isto n ã o sur-
p reen d e, já q u e d izem resp eito ao D iscípulo A m a d o , e este e v a n g elh o
reivindica p re se rv a r o teste m u n h o d e sse D iscípulo (19,35; 21,24). Esta
prim eira descrição d o D iscípulo A m a d o é típica em su a ênfase so b re
su a afin id ad e com Jesus e sobre su a a m iz a d e com P ed ro . Ele está re-
p o u sa n d o n o seio d e Jesus, assim com o em 1,18 Jesus é d escrito com o
n o seio d o Pai. Em o u tra s p a la v ras, o D iscípulo é tão ín tim o com Jesus
com o Jesus é com o Pai. A q u i se p o d e v e r p o r q u e e stu d io so s su g e re m
q u e ele é o sím bolo jo an in o p a ra o cristão, v isto q u e em 17,23 Jesus o rará
a seu P ai q u e os cristãos d e sfru te m tam b ém d essa in tim id ad e: "E u ne-
les e T u em m im ". (T odavia, n ã o h á e vidência real a q u i d e q u e ele é u m
sím bolo p a ra o cristão gentílico, com o B ultm ann , p. 369, sugere). T alvez
a razão d e n ã o term os o u v id o d ele a n tes (m as veja a n o ta so b re o s "d o is
d iscíp u lo s" em 1,35) seja q u e o e v an g elista desejasse in tro d u z i-lo com o
u m a an títese d e Ju d as, m o stra n d o os b o n s e m a u s ex trem o s n o esp ectro
d o d iscip u lad o . João, p o rém , n ão a p re se n ta o D iscípulo com o u m m ero
sím bolo sem rea lid a d e histórica. N a d a h á d e sim bólico n o sin al q u e Pe-
d ro lhe faz p a ra in d a g a r d e Jesus sobre o traid o r. P ara a teoria d e q u e
ele é João, filho d e Z eb ed eu , v e r vol. 1, p. 105.
Em M c 14,20 (M t 26,23), e m re sp o sta à p e rg u n ta d o s d isc íp u lo s,
Jesu s id en tifica o tra id o r com o u m d o s q u e ali e stã o o u m e rg u lh o u
o a lim e n to co m ele n o p ra to co m u m . A im a g e m é d e a lg u é m esten -
d e n d o a m ão p a ra p e g a r u m p e d a ç o d e u m p ra to q u e e stá n o cen tro .
A p a la v ra p sõm ion , "b o ca d o ", g e ra lm e n te se refere a o p ã o , p o ré m n ã o
n ecessariam en te. O s in te re ssa d o s n o a sp ecto d a refeição p a sca l têm
s u g e rid o q u e João e stá d e sc re v e n d o o m e rg u lh o d e e rv a s n o h aroseth
d e m o lh o , ação q u e o co rria m ais c ed o n a ceia p ascal a n te s d o p ra to
p rin c ip al com se u a to d e ab e n ço a r o p ã o e o terceiro cálice d e v in h o
(g eralm en te, as b ê n ç ão s a sso ciad as com a E u caristia - Jeremias, EWJ,
p p . 86-87). O b v iam en te, isto n ã o p o d e se r p ro v a d o . O q u e João d es-
crev e é u m g esto e le m e n ta r d e h o sp ita lid a d e o rie n tal, co m o é p o s-
sível v e r em Rt 2,14. A liás, Jesus p o d e ria e s ta r e s te n d e n d o a Ju d a s
u m a to esp ecial d e e stim a p e lo q u a l u m a n fitrião to m a u m h ó sp e d e
a q u e m deseja h o n ra r e se p a ra p a ra ele d o p ra to c o m u m u m p e d a ç o
esco lh id o d e alim ento. M as este sin al d a afeição d e Jesus, co m o o a to
d e a m o r q u e o tro u x e ao m u n d o , leva Ju d a s ao m o m e n to d ecisiv o d e
47 · A ceia: - Predição da traição 941

ju lg am en to (v er 3,16.21). S ua aceitação d o b o c a d o sem q u a lq u e r m u-


d ança e m se u p la n o p e rv e rso d e tra ir Jesus significa q u e ele d ecid ira
p o r S atan ás e m v e z d e Jesus.
N o ta m o s q u e so m e n te em João o u v im o s q u e o b o c a d o foi d a d o a
Judas, em b o ra n e ste p o n to d a n a rra tiv a M a te u s (com o João, m as di-
ferente d e M arco s e L ucas) id e n tifiq u e Ju d a s co m o o tra id o r. Jo 13,27
concorda v e rb a lm e n te com Lc 22,3, o n d e tam b é m o u v im o s q u e Sata-
nás e n tro u em Ju d as; m as, co m o já m en cio n am o s, a p a ssa g e m lu can a
é a q u e se a p ro x im a m ais d e Jo 13,2 e m d e te c ta r u m a in flu ên cia d iabó-
lica so b re J u d a s a in d a a n te s d o início d a ceia. T em os n o ta d o a possibi-
lid ad e d e q u e Jo 13,2 e 27 sejam d u p lic a ta s. A lg u n s têm p e n sa d o nos
vs. 27-29 co m o u m a a d ição red a c io n a l a in te rro m p e r a sequência d e
26 e 30; m as u m e x am e m ais d e tid o su g e re q u e so m e n te os vs. 28-29
co n stitu em u m a a d ição e q u e o v. 27 d e v a ser reco n h ecid o com o es-
sencial à n a rra tiv a (B u ltm a n n , p. 366).
D epois d e c o m er o b o cad o , lem o s q u e Ju d a s (v. 30) saiu. Cos-
tum a-se p re s s u p o r q u e ele se d irig iu às a u to rid a d e s p a ra trair Jesus,
pois na p ró x im a v e z q u e a p a re c e (13,2-5) ele já v e m com a g u a rd a d a
p arte d o s sa ce rd o te s e d o s fariseu s com o in tu ito d e p re n d e r Jesus. N a
tradição sin ó tica h o u v e co n ta to e n tre Ju d a s e as a u to rid a d e s a n te s d a
últim a ceia (M c 14,10-11), e é p ro v á v e l q u e Jo 13,2 esteja em h a rm o n ia
com isso. T en d o Ju d a s se a p a rta d o d a ceia so m e n te d e p o is q u e Jesus
lhe d isse q u e p a rtisse , João en fatiza o co n tro le d e Jesus so b re seu des-
tino; n in g u é m p o d e tira r d e Jesus su a v id a, a m en o s q u e ele o c onsinta
(10,18). A liás, te n d o reco n h e c id o o a sp ecto irre v o g áv e l d a m alícia d e
Judas, Jesu s o ap re ssa . P o d e-se e v o c ar Lc 12,50: "E u ten h o u m b atism o
com o q u a l e sto u p a ra ser b a tiz a d o , e sin to -m e a n g u stia d o até q u e ele
se concretize".
C om o já v im o s n as resp e c tiv a s n o tas, J. J eremias u sa os d a d o s do s
vs. 28-30 p a ra s u b sta n c ia r su a tese d e q u e n ã o só a ú ltim a ceia joanina
tem característicos p ascais (o q u e a d m itim o s), m as tam b é m q u e ela foi
c o n su m id a d u ra n te a festa d a P áscoa, i.e., a n o ite q u e iniciava o dia
15 d e N isan (m esm o q u a n d o João d eix e claro q u e a sexta-feira pascal
aind a n ão h a v ia com eçado: 18,28; 19,14). T al p ro v a n ão é d e stitu íd a
de d ificu ld ad e. Se o s vs. 28-29 c o n stitu e m u m a explicação red acio n al,
não fica claro se co n têm tra d içã o au tên cica o u u m a su p o sição red a-
cional. E m bora a afirm ação "era n o ite " p o ssa tam b ém ter im p o rtân cia
cronológica, n ã o p o d e h a v e r d ú v id a d e q u e o e v an g elista a in clu iu em
942 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

v irtu d e d e su a im p licação teológica d ram á tic a. A ssim , n ã o e sta m o s


certo s se esses d a d o s p o d e m c o n trib u ir p a ra o p ro b le m a histórico.
C o m a p e rm issã o d e Jesus d a d a a Ju d a s e a so len e a p a riç ã o d e
S atan ás n o d ra m a , a h o ra d a s tre v a s (noite) ch eg o u . N o s d ia s fin ais
d e se u m in istério , Jesus a d v e rtira : "a n o ite v e m " (9,4); "se a lg u é m an-
d a r d e n o ite, tro p eça, p o rq u e n ã o tem lu z em si" (11,10). Ju d a s é u m
d o s q u e " tê m p re fe rid o as tre v a s à lu z, p o rq u e s u a s o b ra s e ra m m á s"
(3,19). "E ra n o ite " em João é o e q u iv a le n te d a s p a la v ra s d e Jesu s n o
G etsêm an i, re g is tra d a s p o r Lc 22,53: "m a s e sta é v o ssa h o ra e o p o -
d e r d a s tre v a s". T o d av ia, m esm o n e ste m o m e n to trág ico n a v id a d e
Jesus, q u a n d o a s tre v a s o e n v o lv em , h á a c erteza d o P rólogo: " A lu z
b rilh a n a s trev as, p o is as tre v a s n ã o p re v a le c e ra m c o n tra e la " (1,5).
Se esta n o ta d e o tim ism o era certa n a situ a ç ão c a u sa d a p e lo p rim e i-
ro p e c ad o n o m u n d o , foi tam b é m certa n a n o ite d a p a ix ã o d e Jesus.
A lo n g a n o ite q u e o ra descia so b re a te rra teve su a a u ro ra q u a n d o "n a
m a n h ã d o p rim e iro d ia d a se m a n a , e n q u a n to a in d a e ra e scu ro , M aria
M a d ale n a foi so z in h a ao tú m u lo " (20,1).

BIBLIOGRAFIA
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47 · A ceia: - Predição da traição 943

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4 8 .O ULTIMO DISCURSO:
OBSERVAÇÕES GERAIS

Em g eral, a q u e stã o d e co m o d iv id ir as p a rte s d o L iv ro d a G ló ria


(cf. p. 896 s u p ra ) n ão é tão difícil co m o a q u e stã o d a d iv is ã o d o L iv ro
d o s Sinais. E sta d ife re n ç a é e x e m p lific a d a e m u m a rtig o d e D . D eek s ,
N TS 15 (1968-69), 107-29, so b re a e s tr u tu r a d e João: e n q u a n to a a n á -
lise q u e D eeks faz d a e s tr u tu r a d e Jo 1-12 d ife re , e m m u ito s d e ta lh e s,
d a q u e la q u e d e m o s n o vol. 1, p p . 158-159 (q u e ele p a re c e d e sc o n h e -
cer), u m a a n á lise q u a se id ên tic a é p ro p o s ta d e Jo 13-20. O ú n ic o p ro -
b lem a d e m a io r v u lto n a e s tr u tu r a d o L ivro d a G ló ria é a d iv isã o
d o lo n g o d isc u rs o q u e co rre, com b re v e s in te rru p ç õ e s o c a sio n a is, d e
13,31 a 17,26. A o rig e m , c o m p o siç ão e d iv is ã o d e ste ú ltim o d isc u rs o
re q u e re m u m a d isc u ssã o m ais ex ten sa.
N o L ivro d o s Sinais, n o tam o s a ten d ê n c ia d e João d e n a rra r p ri-
m eiram e n te o sinal d e Jesus e se g u ir isto com u m d isc u rso q u e in-
terp reta sse o sinal; p o r ex em p lo , caps. 5, 6 e 9. N o L ivro d a G lória, o
esq u em a é in v ertid o . O ú ltim o d isc u rso explica a significação e im p li-
cações d a m aio r d e to d as as o b ra s d e Jesus, a sab er, seu re to rn o p a ra
seu Pai; m as n este caso o d isc u rso p re c e d e ao q u e tra ta d e explicar.
A razão p a ra esta m u d a n ç a d e e sq u em a é fácil d e e n te n d e r: seria es-
tra n h o in te rro m p e r a ação d a p aix ão , m o rte e ressu rreição ; e seria an ti-
clim ático colocar tão lo n g o d isc u rso d e p o is d a ressu rre içã o . A lém d o
m ais, n a psico lo gia q u e reg e a a p re se n ta ç ã o d o ev a n g elista , v isto q u e
os d isc íp u lo s seriam a fe tad o s pela p aix ã o e m o rte d e Jesus, tin h a m
d e e sta r p re p a ra d o s p a ra isto a tra v és d a explicação e co n so lação d e
Jesus. (M en cio n arem o s abaixo a p o ssib ilid a d e d e q u e o e v a n g elista foi
o rie n ta d o p o r u m a tra d içã o m ais a n tig a d e u m d isc u rso p ro n u n c ia d o
p o r Jesus n a ú ltim a ceia).
48 · O último discurso: Observações gerais 945

T o d av ia, o ú ltim o d isc u rso n ã o é sim p le sm e n te m ais u m d iscu rso


in te rp re ta n d o u m sinal. A m o rte e ressu rre içã o d e Jesus irro m p e m d a
categoria d e sin a l p a ra a esfera d a glória; ag o ra ele faz p re se n te e dis-
po nív el ao s h o m e n s as re a lid a d e s celestiais sig n ificad as n o s m ilag res
do m in istério . C o rre sp o n d e n te m e n te , o ú ltim o d isc u rso p a rtic ip a d a
glória d e " a h o ra " e s u p la n ta e m n o b rez a e m ajestad e até m esm o os
m ais so len es d isc u rso s d o m in istério . E stes às v ezes e ra m d irig id o s
aos a u d itó rio s h o stis ("os ju d e u s " e e ra m p ro n u n c ia d o s co n tra u m
p an o d e fu n d o d e rejeição p e lo m u n d o . M as, n o ú ltim o d iscu rso , Jesus
fala aos " se u s" (13,1) em p ro l d e q u e m ele se d isp ô s a re n d e r su a v id a,
tão in ten so é se u a m o r (15,13). O Jesus q u e fala a q u i tra n sc e n d e tem p o
e espaço; ele é u m Jesus q u e já e stá a c a m in h o p a ra o Pai, e su a p reo cu -
pação é n ã o d e ix a r só os q u e creem nele, m as q u e h ã o d e p e rm a n ec e r
no m u n d o (14,18; 17,11). E m b o ra ele fale n a ú ltim a ceia, n a realid a-
de ele está fala n d o d o céu; e m b o ra os q u e o o u v e m sejam seu s dis-
cípulos, su a s p a la v ra s são d irig id a s ao s cristão s d e to d o s os tem pos.
O ú ltim o d isc u rso é o ú ltim o te sta m e n to d e Jesus: significa q u e só se-
ria lid o d e p o is q u e ele d eix asse a terra. M as n ã o é com o o u tro s ú ltim o s
testam en to s q u e são as p a la v ra s re g istra d a s d e h o m en s q u e m o rre m e
não p o d e m m ais falar; p o is tu d o q u a n to haja d e ipsissirna verba d e Je-
sus no ú ltim o d isc u rso foi tra n sfo rm a d o à lu z d a ressu rreição , e atra-
vés d a v in d a d o P arácleto , em u m d isc u rso v iv o p ro n u n c ia d o , n ã o p o r
u m h o m em m o rto , m as p o r a q u e le q u e p o ssu i a v id a (6,57), a to d o s
q u an to s leiam o ev an g elh o .
Em ra z ã o d isto tu d o , tem -se d ito , co m ra z ã o , q u e o ú ltim o dis-
curso é m ais b e m e n te n d id o q u a n d o ele p a ssa a se r tem a d e pie-
d osa m e d ita ç ã o e q u e a n á lise cien tífica re a lm e n te n ã o faz ju stiça a
esta o b ra g en ial. A ssim c o m o u m a g ra n d e p in tu r a p e rd e su a bele-
za q u a n d o p a rte s in d iv id u a is são e s tu d a d a s so b u m m icro scó p io ,
assim o e s tu d o n e c essá rio d a c o m p o siç ão e d iv isã o d o ú ltim o dis-
curso p o d e im p e d irm o s e m a lg u m m o m e n to q u e e sta m o s lid a n d o
com u m a o b ra p rim a . T e rem o s d e s a lie n ta r s u a m o n o to n ia d e estilo,
rep etiçõ es, c o n fu n d in d o p e rsp e c tiv a d e te m p o e q u a se irreco n ciliá-
vel v a rie d a d e d e e x p e c ta tiv a s so b re a p re se n ç a p ó s-re ssu rre iç ã o d e
Jesus com se u s d isc íp u lo s. T o d a v ia, n a d a d isso im p e d e o leito r d e
reco n h ecer q u e o ú ltim o d isc u rs o é u m a d a s m a io re s c o m p o siçõ es na
lite ra tu ra relig io sa. A q u e le q u e a q u i fala, fala co m o n e n h u m h o m em
jam ais falo u .
946 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

A natureza compósita do discurso

N ã o p o d e h a v e r d ú v id a d e q u e os c a p ítu lo s q u e fo rm a m o ú ltim o
d isc u rso n ã o e stiv e ra m se m p re u n id o s. Já em L ucas v e m o s e m ação
a ten d ên cia d e in c o rp o ra r n o ú ltim o d isc u rso m ate ria l d a s e ta p a s d o
m in istério (co m p are Lc 22,24-26 com M c 10,42-45). A e u c aristia cristã,
q u e ev o cav a a ú ltim a ceia, fornecia u m a o p o rtu n id a d e p a ra p re g a r e
en sin ar; e o u s o d e sta ocasião p a ra re u n ir d ito s tra d icio n a is d e Jesus
p o d e ria te r tid o se u efeito n a n a rra tiv a d a p ró p ria ceia. T al te n d ê n c ia
estaria em ação esp ec ialm en te n o E v an g elh o d e João; p o is o fato d e
q u e o m in isté rio p ú b lic o foi c o n sisten te m e n te re tra ta d o co m o u m en-
c o n tro com in cré d u lo s o u c ren tes p a rc iais d á m aio r força à te n d ê n c ia
a re u n ir as p a la v ra s d e s tin a d a s aos cre n tes n o L ivro d a G ló ria, o n d e
Jesus está tra ta n d o com "o s se u s". A ssim , o ú ltim o d isc u rso , in d u b i-
tav elm en te, se c o m p õ e d e m a te ria l v a ria d o em u m a m b ie n te n o q u a l
Jesus está fala n d o a o s se u s d iscíp u lo s.
C a ta lo g u e m o s os d e ta lh e s q u e su scita u m a d ú v id a so b re o enca-
d e a m e n to lógico d o d isc u rso e rev ela o c a rá te r artificial d a p re se n te
org an ização :

(a) A s p alav ras d e 14,30-31 ("E u já n ão falarei [m uito] c o n v o sc o ....


Levantai-vos! Saiam os d a q u i e to m em o s n osso c am in h o ") m ar-
ca claram ente o final d e u m discurso e o m o m en to q u e Jesus se
levanta d a m esa. T odavia, Jesus co n tin u a falan d o em m ais três
capítulos, e som ente em 18,1 a p a rtid a p arece ter su a realização.
(b) U m a p a rte d o d isc u rso n ã o se h a rm o n iz a com a o u tra p a rte .
E m 13,36, S im ão P e d ro fala: "S en h o r, p a ra o n d e e stá s in d o ? "
T o d av ia, em 16,5, Jesus se q u eix a ao s d iscíp u lo s: " N e n h u m d e
v ó s m e p e rg u n ta : 'P a ra o n d e estás in d o ? '" .
(c) H á n o ú ltim o d isc u rso d u p lic a çõ e s e rep etiçõ es. D a re m o s abai-
xo u m gráfico (I) d o s p a ra le lo s e n tre 13,31-14,31 e 16,4b-33.
T al rep etição é difícil d e ex p licar se e sta s seções fo ra m orig i-
n a lm e n te p a rte s c o n secu tiv as d o m esm o d iscu rso .
(d) P a rte d o m ate ria l q u e a p a re c e n o ú ltim o d isc u rso se asse-
m elh a in tim a m e n te ao m ate ria l q u e os e v a n g e lh o s sin ó ti-
cos colocam n o m in isté rio p ú b lico . P a ra o s p a ra le lo s e n tre
15,18-16,4a e M t 10,17-25, veja p. 1087 abaixo. N atu ralm en te, a
localização sinótica desse m aterial não é n e c e ssa ria m e n te m ais
48 · O último discurso: Observações gerais 947

o rig in a l, m as a d iferen ça d e localização p re ssu p õ e q u e a o m e-


n o s p a rte d o m a te ria l p a ra le lo n e m se m p re estev e asso ciad o
co m a ú ltim a ceia.
(e) P a rte d o m a te ria l d o d isc u rso , co m o a p a rá b o la alegórica da
v id e ira e m 15,1-6, n e c essa ria m e n te n ão tem conexão com o
tem a d a p a rtid a d e Jesu s q u e é característica d a ú ltim a ceia
(ver p . 1051 abaixo).
(f) A v a rie d a d e d a p e rsp e c tiv a teológica e n c o n tra d a n o ú ltim o
d isc u rso é m ais difícil d e ex p licar se to d o s os d ito s foram
e n u n c ia d o s a o m esm o tem p o . A s d ife ren te s e x p ectativ as so-
b re co m o Jesu s v o lta rá são u m b o m ex em p lo d e sta dificu ld a-
d e; veja p p . 970-71 abaixo.

Diversas teorias sobre a composição do discurso

C om o, p o is, o ú ltim o d isc u rso a ssu m iu su a fo rm a a tu a l, se ori-


g inalm en te n ã o e ra u m a u n id a d e ? T em -se su g e rid o p a ra o p ro b le m a
e n u n ciad o e m (a ) u m a so lu ção b e m c o n serv a d o ra . A lg u n s têm p ro -
posto q u e Jesu s re a lm e n te se a fa sto u d a sala d a ceia d e p o is d e d izer
o q ue co n sta e m 14,30-31, e q u e o re sta n te d o d isc u rso foi d ito d e ca-
m inh o p a ra o ja rd im d e G e tsêm a n i, d o o u tro la d o d o C e d ro m (18,1).
E assim su a s o b serv açõ es so b re a v id e ira e o s ram o s fo ram su g e rid a s
pela v isão d a s v in h a s p o n tilh a n d o os d ecliv es q u e d escem p a ra o v ale
d e C ed ro m , e a a d v e rtê n c ia e m 15,6 ("Se a lg u é m n ã o p e rm a n e c e em
m im , será la n ç a d o fora, co m o o ram o , e seca; e reco lh em e lan çam no
fogo p a ra ser q u e im a d o " ) foi in sp ira d a p e la v ista d a s p ira s d e ram o s
m ortos se n d o q u e im a d o s p e lo s v in h ate iro s. Essa a b o rd a g e m é ro m ân -
tica, d e p e n d e n te d e d ire triz e s d e e stá g io n ã o reg istra d o , hoje foi q u ase
u n iv ersa lm en te a b a n d o n a d a . N ã o só d eix a d e reso lv e r os o u tro s p ro-
blem as so b re o ú ltim o d isc u rso , m a s n e m m esm o faz ju stiça a 18,1, o
qual d iz q u e so m e n te d e p o is d a s p a la v ra s d o cap. 17 é q u e Jesus se foi.
A re o rg a n iz a ç ão c o n siste n u m a te n ta tiv a d e so lu c io n a r os p ro b le-
m as (a) e (b). Se 14,30 e 31 fo rem re m o v id o s p a ra o final d o d iscu rso ,
então, n a tu ra lm e n te , estes v e rsíc u lo s p o d e m se rv ir d e co n clu são per-
feita p a ra to d o o co n ju n to . Se 16,5 fo r reco lo cad o , d e m o d o q u e v e n h a
antes d e 13,36, e n tã o a a p a re n te c o n tra d iç ã o d esap a re ce . Bernard, p o r
exem plo, p ro p õ e o se g u in te arranjo: 15, 16 ,1 3 ,3 1 -3 8 ,1 4 , 17. M offatt
concorda su b sta n c ia lm e n te , p o ré m coloca a p rin c íp io m eio versículo,
948 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

13,31a; e, à lu z d e 14,31, ele p ro p õ e q u e o cap. 17 foi p ro n u n c ia d o


p o r Jesus em p é , a n te s d e d e ix a r a sala. B ultm a nn tem u m arra n jo
d iferente: 17, 13,31-35, 15, 16, 13,36-38, 14. Já e x p re ssa m o s n o ssa s d e
confianças so b re a re o rg a n iz a ç ão co m o u m a so lu ção a d e q u a d a p a ra
as d ific u ld a d e s e n c o n tra d a s em João (vol. 1, p p . 8-11). C aso se objete
q u e o ú ltim o d isc u rso é u m p ro b le m a especial e q u e a re o rg a n iz a ç ão
p o d e ría ser feita ao m en o s a q u i, a in d a teria d e in fo rm a r-n o s co m o a
a tu a l seq u ên cia com se u s su p o sto s d e slo c a m e n to s e n tra ra m em v ig o r
e p o r q u e a ó bvia falta d e seq u ên cia n ã o p e rtu rb o u o re d a to r final d o
ev an g elh o . Se d isse rm o s q u e u m re d a to r d o I a século p ô s frag m en -
tos d eslo c a d o s n a p re se n te o rd e m , p o d e ria m o s s u p o r se ria m e n te q u e
ele n ão v iu q u e 14,30-31 m arc o u o fim d o d isc u rso e n ã o p o d e ria ser
p o sto n o m eio? A lém d o m ais, a re o rg a n iz a ç ão n a d a faz p a ra reso lv e r
os o u tro s p ro b le m a s c a ta lo g a d o s acim a sob (c) e (/) e n a m e lh o r d a s
h ip ó teses p o d e ria ser so m e n te u m a so lu ção p arcial.
M u ito s hoje p e n sa m n o ú ltim o d isc u rso co m o se c o m p o n d o d e dis-
cu rso s m ais b rev e s in d e p e n d e n te s o u m esm o d e se n te n ç as iso la d a s, al-
g u m as d a s q u a is fo ram p ro n u n c ia d a s p o r Jesu s e m o u tra ocasião. M as
d e n tro d e ste p o n to d e v ista h á u m a m p lo e sp ec tro d e teo rias o sc ila n d o
d a s m ais rad ic ais às m ais c o n serv a d o ra s. Em u m e x trem o , a lg u n s es-
tu d io so s su g e riría m q u e o ev a n g elista d e se n v o lv e u s e u d isc u rso com
b ase em u n s p o u c o s e a u tê n tic o s d ito s d e Jesus to m a d o s d a tra d iç ã o si-
nótica; o resto foi o c o m e n tário criativ o d o ev an g elista. B u ltm a n n tem
u m a a b o rd a g e m d iferente: a e sp in h a d o rsa l d o d isc u rso v eio d a F o n te
d e D iscu rso G n ó stico R ev elató rio N ã o C ristão (vol. 1, p . 13; p a ra a re-
co n stru ção q u e B ultm a n n faz d e ste m ate ria l e m p re sta d o , veja S mith ,
p p . 30-34). N o o u tro ex trem o , c o m e n tarista s c o n se rv a d o re s p ro p õ e m
q u e o d isc u rso se c o m p õ e d e u m d isc u rso d a d o p a la v ra p o r p a la v ra
p o r Jesus n a ú ltim a ceia e tam b é m d isc u rso s d a d o s p a la v ra p o r p a la -
v ra em o u tra s ocasiões. P o r e x em p lo , W . J. P. B o yd , Theology 70 (1967),
207-11, p ro p õ e q u e o contexto original d e Jo 14-17 era po sterio r a res-
surreição, pois estes capítulos pertencem ao gênero literário conhecido
com o "co n v ersações e n tre Jesus e se u s d isc íp u lo s a p ó s a ressu rre iç ã o " .
M ais especificam ente, J. H ammer (Bibel und Kirche 14 [1959], 33-40)
p e n sa q u e os cap ítu lo s 15-16 re p re se n ta m o q u e foi d ito p e lo Jesu s red i-
v iv o q u a n d o se m an ifesto u ao s q u in h e n to s irm ã o s (IC o r 15,6), e n q u a n -
to o cap. 17 foi p ro n u n c ia d o n a a p a riç ã o final d e Jesu s u m p o u c o a n te s
d e a s c e n d e r a o céu. H ammer e stá te n ta n d o reso lv e r u m p ro b le m a real,
48 · O último discurso: Observações gerais 949

a saber, o e s tra n h o u so d o s te m p o s v e rb a is n o d isc u rso , e specialm en te


no cap. 17, o n d e Je su s p a re c e e s ta r se re fe rin d o ao s e u re to rn o a seu
Pai co m o a lg o já re a liz a d o (17,11: "Já n ã o e s to u n o m u n d o " ). Q u e
p a rte s d o ú ltim o d isc u rs o tê m a re s p ó s-re s su rre iç ã o é re fle tid o n a
an tig a p rá tic a litú rg ic a d a s ig re jas g reg a , siríaca e la tin a d e ler ex tra-
tos se le c io n a d o s d o d isc u rs o n a o casião p ó s-p a sc a l. T o d a v ia, a so lu -
ção d e H am m er é m u ito sim p lista e n ã o re s p o n d e ao a g u d o p ro b le m a
m e n c io n ad o so b (c) acim a.
P en sam o s, em lin h a s g erais, q u e a crítica literá ria to rn a m ais im -
plausível q u e o ú ltim o d isc u rso co n siste até certo p o n to d e d iscu rso s
com pletos p ro n u n c ia d o s em o u tra s ocasiões e sim p le sm e n te transfe-
ridos p a ra o c e n ário d a ú ltim a ceia. O s blo co s m aio res d e m ate ria l q u e
vieram co m o u n id a d e s su b sta n c ia is p a ra o d isc u rso d e o u tro s contex-
tos são, em n o sso ju ízo , a p a rá b o la a leg ó rica em 15,1-6 e a u n id a d e q u e
trata d o ó d io q u e o m u n d o n u triría p e lo s d isc íp u lo s em 15,18-16,4a,
em bora o ú ltim o te n h a acréscim o s q u e se a d e q u a m ao se u a tu a l ce-
nário. P o r o u tro lad o , a a tm o sfe ra p a rtilh a d a p o r to d as as p a rte s d o
discu rso significa q u e to d o o m ate ria l q u e foi to m a d o d e o u tro lu g ar
foi re e s tru tu ra d o e u n ific ad o s com m ate ria l tra d ic io n a lm e n te perti-
nente ao co n tex to d a ú ltim a ceia. N ã o p o d e m o s ex clu ir a possibili-
d ad e d e q u e a lg u n s d o s d ito s in d e p e n d e n te s in c o rp o ra d o s n o ú ltim o
discurso p o d e m ter sid o , o rig in a lm en te , tra n s m itid o s e m u m contexto
p ó s-ressu rreição , m as c o n sid e ra m o s q u e o rec u rso h a b itu a l a tal pos-
sib ilid ad e co m o u m a so lu ção in a d e q u a d a ao p ro b le m a d a p e c u liar
p ersp ectiv a te m p o ra l d o d isc u rso . H á n o ú ltim o d isc u rso diferen tes
po n to s d e v ista tem p o rais: a lg u m a s v ezes Jesus olha p a ra sua p a rtid a
e u n ião co m o P ai q u e jazem a d ia n te ; a lg u m a s v ezes ele enfoca essas
realid ad es co m o p a ssa d a s. M as e x em p lo s d e sse ú ltim o caso n ã o são
n ecessariam en te d ito s p ó s-re ssu rreiç ã o ; a n te s, refletem a in cu rsã o d o
p o n to d e v ista te m p o ra l d o co m p o sito r. P ara o e v an g elista, o reto rn o
de Jesus ao P ai fora c o n c re tiz a d o m u ito antes; ele e se u s leito res esta-
vam v iv e n d o n a era e m q u e Jesus v o lta ra p a ra os h o m en s n o e a tra v és
do Parácleto. V isto q u e ele p e n sa n o e v a n g elh o d e Jesus e n q u a n to fala
aos leitores, seu p o n to d e v ista se to rn o u p a rte d o co n tex to histórico.
D odd , Interpretation, p . 3 9 7 , d escre v e a situ a ç ão n estes term os: "T oda
a série d e d isc u rso s, in c lu in d o d iálo g o s, m o n ó lo g o s e a o ração conclu-
siva, é co n ceb id a co m o o c o rre n d o d e n tro d o m o m e n to d a culm inação.
É v e rd a d e q u e o cen ário d ra m á tic o é o d e 'n a n o ite em q u e ele foi
950 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

tra íd o ', com a cru cifixão em p ro sp e c to . T o d av ia, n u m s e n tid o rea l, é o


C risto re ssu rre to e g lo rificad o q u e m fala".
A s p a rte s d o ú ltim o d isc u rso p ro v a v e lm e n te fo ra m fo rm a d a s d a
m esm a m a n e ira q u e os d e m a is d isc u rso s jo an in o s (vol. 1, p . 19; Se-
g u n d o estágio); d ito s tra d ic io n a is d irig id o s ao s d isc íp u lo s, q u e fo ra m
p re se rv a d o s e m v á rio s co n tex to s, fo ra m u n id o s n o d isc u rso contí-
n u o so b re u m tem a p a rtic u la r; e n tã o as u n id a d e s d o d isc u rso fo ra m
e la b o ra d a s e m co m p o siçõ es m aio res. A s v e z es p o d e m o s a in d a v e r
s u tu ra s em q u e u n id a d e s d ísp a re s fo ra m u n id a s; p o r e x e m p lo , e n tre
14,1-4 e 14,6ss. T alv ez o s tem a s o rie n ta d o re s d a s d is tin ta s co m p o si-
ções fo ra m s u p rid a s p o r u m n ú c le o d e m a te ria l q u e d e s d e s u a fo rm a -
ção m ais p rim itiv a e sta v a a sso c ia d a com o c o n te x to d a ú ltim a ceia.
É v e rd a d e q u e n ã o h á tra d iç ã o e m M arco s e M a te u s d e u m d isc u rso
e n u n c ia d o p o r Jesu s d u r a n te a ceia, m as Lc 22,21-38 te m u m a coleção
d e d ito s p ó s-e u c a rístic a, a lg u n s d o s q u a is p o d e ría m te r p e rte n c id o ,
o rig in a lm en te , a este cen ário . A lém d o m ais, os sin ó tico s tê m a tra -
d içã o d a o raç ã o d e Jesu s a se u P ai n o G e tsêm a n i, c o rre s p o n d e n te à
o ração q u e João tem n a c o n clu são d o d isc u rso . A o d isc u tirm o s Jo 6
(vol. 1, p p . 469, 514), v im o s q u e , e n q u a n to os sin ó tico s tin h a m a p e -
n a s lev es traço s d e u m a ex p licação d a m u ltip lic a ç ã o d o s p ã e s, João
tin h a u m d isc u rs o ex p lic ativ o p le n a m e n te d e se n v o lv id o ; e o m e sm o
fen ô m e n o p o d e e s ta r p re s e n te aq u i. Seja co m o for, te m a s a d a p ta d o s
ao co n tex to d a ceia (p a rtid a e reto rn o ; u m le g a d o d e m a n d a m e n to s
e a m o r a in te rce ssão d ia n te d o Pai) tê m c o lo rid o e m o d ific a d o to d o s
os d e m a is d ito s tra d ic io n a is q u e fo ra m tra z id o s p a ra o a tu a l con tex -
to. D esta m a n e ira , diversos últimos discursos independentes fo ra m for-
m a d o s, e e v e n tu a lm e n te e ste s fo ra m c o m b in a d o s n o ú ltim o d isc u rso
co m o o co n h ecem o s. E stes ú ltim o s d isc u rso s in d e p e n d e n te s n o s d ã o
a ch av e p a ra e n te n d e r a d iv isã o d e 13,31-17,26.

As divisões do último discurso (ver esboço, p p . 900-901 acim a)

(O q u e seg u e é p ro p o sto à lu z d a teo ria d a c o m p o siç ão d o e v a n -


gelho d e sen v o lv id a n o vol. 1, p p . 21-26; estág io s 3-4-5). A p rim e ira , o u
ao m en o s u m a b e m an tig a, fo rm a escrita d o e v a n g e lh o (T erceiro está-
gio) p ro v a v e lm e n te c o n tin h a u m ú ltim o d isc u rso c o n sistin d o d e u m a
in tro d u ç ã o (13,31-38) e u m a p a la v ra final d e Jesus ao s s e u s d isc íp u lo s
su b sta n c ia lm e n te sim ilar ao q u e hoje é o cap. 14. Este ú ltim o d isc u rso
48 · O último discurso: Observações gerais 951

teria s id o in c lu íd o c o m o sin a l p a ra o fin a l d a ceia e m 14,31· E n tre-


tan to , n ã o p o d e m o s estar certos d e q u e todos os d ito s ora enco n trad o s em
13,31-14,31 faziam p a rte deste p rim itiv o discurso final, pois algum as
m odificações d e ste m aterial p o d e ria ter sido in tro d u z id o n a p ró p ria re-
dação q u e o ev angelista fez d o evangelho (Q u arto estágio) o u n a reda-
ção final d o e v an g elh o (Q uinto estágio). C o n tu d o , este p rim eiro discur-
so final p erm an ece, substancialm ente, com o a Primeira seção d o final
do últim o discurso. C h am am o s a atenção p a ra o fato d e que, ju n tam en te
com D odd , tratam o s 13,31-38 com o a p a rte in tro d u tó ria d a Prim eira se-
ção, em vez d e u m a in tro d u ção a to d o o d iscu rso (14-17). A últim a posi-
ção é a ssu m id a p o r m u ito s estu d io so s (L agrange , S chneider , B arrett), e
discutirem os a q u estão d e ta lh ad a m e n te n as p p . 978-79 abaixo.
O m ate ria l ad ic io n al d o d isc u rso foi re u n id o ao p rim itiv o d iscu r-
so final p e lo ú ltim o re d a to r. N ã o se se n tin d o liv re p a ra reescrev er a
p ró p ria o b ra d o ev a n g elista , ele n ã o m u d o u o final d o cap. 14; antes,
ele an ex o u m ais d isc u rso s a o q u e já era p a rte d o ev an g elh o . O m a-
terial n estes d isc u rso s a n e x a d o s n ã o é n e c essa ria m e n te in ferio r a o u
p o sterio r a o m a te ria l d a P rim e ira seção; P ois em n o ssa teo ria d a com -
posição d o e v a n g e lh o in sistim o s q u e o re d a to r foi in c o rp o ra n d o o u tro
m aterial g e n u in a m e n te jo an in o , p a rte d e le an tig o , p a rte d ele o riu n d o
do p ró p rio ev a n g elista , m as, p o r u m a raz ã o o u o u tra , n ã o fazia p a rte
p rev ia m e n te d o e v a n g e lh o n o s terceiro e q u a rto estágios.
A a d ição m ais lo n g a c o n stitu iu o q u e o ra é a Segunda seção d o
últim o d isc u rso (15-16), u m a coleção d o m ate ria l m a io r q u e a co n tid a
na P rim eira seção. A s o rig e n s d o m aterial, n a S e g u n d a seção, foram
bem d iv ersa s e d istin g u ire m o s três su b d iv isõ es:

(a) A primeira subdivisão é 15,1-17. C o n tê m u m a p a rá b o la alegóri-


ca so b re a v id e ira e os ra m o s (15,1-6) a c o m p a n h a d a com u m a
ex p licação d a q u a l a p a re c e m traço s em 15,7.16. M as essa ex-
p licação foi a d a p ta d a ao co n tex to d a ú ltim a ceia p e la ad ição
d e tem a s a p ro p ria d o s d a p a rtid a , fo rm a n d o o belo conjunto
d e 15,7-17. O tem a d o m in a n te é q u e o a m o r u n iria os d iscíp u -
los a Jesus e u n s ao s o u tro s.
(b) A segunda subdivisão é 15,18-16,4a. O tem a d o m in a n te a q u i
é o ó d io q u e o m u n d o se n te p o r Jesus e se u s d iscíp u lo s. O
m ate ria l foi to m a d o em p a rte d e u m c o rp o d e tra d içã o in d e-
p e n d e n te so b re a p e rse g u iç ã o fu tu ra m u ito sim ila r à trad ição
952 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

e n c o n tra d a e m M t 10,17-25 e n o d isc u rso escato ló g ico sinótico


(Mc 13 e par.).
(c) A terceira subdivisão é 1 6 ,4 b 3 3 ‫־‬. Ela co n stitu i u m p a ra lelo m u ito
estreito em c o n te ú d o e org an ização com a fo rm a d o ú ltim o d is-
cu rso en c o n trad o em 13,31-14,31. D iscutirem os esta sim ilarid a-
d e em u m gráfico, m as p o d e m o s ressaltar q u e esta su b d iv isã o
é a ún ica p a rte d a S eg u n d a seção q u e tem in te rru p ç õ e s d a p a r-
te d o s d iscípulos, u m aspecto e n c o n trad o n a P rim eira seção.
C o n seq u en tem en te, so m en te nesta divisão, com o n a P rim eira
seção, h á alg u m a referência a u m cenário o n d e os d iscíp u lo s
fo ram o a u d itó rio d e Jesus n u m a m esa d e ceia; n a p rim e ira e
se g u n d a su b d iv isõ es d a S eg u n d a seção tem os d isc u rso d ire to
e n u n c ia d o aos d iscíp u lo s sem q u a lq u e r indicação d e cenário.

É p o ssív el q u e o leito r in d a g u e p o r q u e su g e rim o s q u e a s três


p a rte s, (a), (b) e (c), d e v e m se r tra ta d a s com o su b d iv isõ e s d e u m só
d isc u rso (S eg u n d a seção), e m v ez d e d isc u rso s se p a ra d o s. A ra z ã o é
q u e, e n q u a n to estas u n id a d e s tiv e ram o rig e n s in d e p e n d e n te s , h o u v e
u m v e rd a d e iro esforço red a c io n a l p a ra unificá-las. O tem a d a esco lh a
d o s d isc íp u lo s em (a) salta p a ra (b); cf. 15,16 e 19. O tem a d o a m o r em
(a) é e q u ip a ra d o p e lo tem a d o ó d io em (b). O tem a d a o p o siç ã o d o
m u n d o em (b) p re p a ra o c a m in h o p a ra a d escrição d o P arácleto co m o
o a c u sa d o r d o m u n d o e m (c).
V o ltan d o à Terceira seção d o ú ltim o d isc u rso , a g ra n d e o raç ã o
sa ce rd o ta l d o cap. 17, e n c o n tram o s u m c o n ju n to p e rfe ita m e n te e stru -
tu ra d o . Se m a te ria l d e o rig e m d iv e rsa se in tro d u z iu n o cap. 12, esse
m ate ria l foi re u n id o d e m o d o m ais u n ifo rm e d o q u e e m q u a lq u e r o u -
tra d iv isã o o u su b d iv isã o d o d iscu rso . O c a p ítu lo 17 c o n té m a o ração
d e Jesus n o m o m e n to d e se u re to rn o ao Pai, e o re d a to r ex ib iu u m
caráter d e g e n ia lid a d e ao p ô -lo n o fin al d o d iscu rso . S ua q u a lid a d e
su b lim e e lírica oferece u m clím ax p erfeito , p o rq u a n to q u a lq u e r o u -
tra u n id a d e q u e fosse a d ic io n a d a a q u i p o d e ria ter q u e b ra d o a tensão.
N a tu ra lm e n te , ao lo calizar a o ração n o final, o re d a to r p o d e ria ter s id o
g u ia d o p elo e sq u em a tra d icio n a l v isto n o s sin ó tico s q u e re g istra ra m
a o ração d e Jesus a se u P ai (no G etsêm an i) p re c isa m e n te a n te s d e
s u a p risão . O s seg u in te s a sp ecto s n a tra d içã o sin ó tica d e sta o ração
(M c 14,35-36) têm p a ra lelo s em João: a invocação: "P ai"; o tem a d e "a
h o ra " ; o tem a d a c o n fo rm id a d e com a v o n ta d e d o P ai (Jo 14,31).
48 · O último discurso: Observações gerais 953

C o n c lu in d o n o ssa d isc u ssã o d a s d iv isõ es d o ú ltim o d iscu rso , po-


d em o s c o m p a ra r n o sso s re su lta d o s com os d e d u a s a b o rd a g e n s d o
p ro b lem a m u ito d ife ren te s. Z im m erm ann , art. cit., e n c o n tra u m a di-
ferença d e tem a e m 1 3 1 4 ‫ ־‬e 15-16, re sp e c tiv a m e n te os caps. 13-14 se
p reo c u p a m co m a p a rtid a d e Jesus, e n q u a n to os caps. 15-16 se p reo -
cu p am com a p e rm a n ê n c ia d a p rese n ç a d e Jesus e n tre se u s d iscípulos.
Z immermann v ê d o is d isc u rso s, o d o s caps. 13-14 se situ a n a p ersp ecti-
va d o p e río d o a n te rio r à p a rtid a d e Jesus, e os caps. 15-16, se situ a na
p ersp ectiv a d o p e río d o p o ste rio r à id a p a ra o Pai. A oração d o cap. 17
é p ro n u n c ia d a p o r Jesus co m o u m P arácleto o u in tercesso r celestial
ju nto ao Pai, a p e la n d o em fav o r d o s se u s q u e a in d a estã o n o m u n -
do. R ichter , art. cit., id en tifica d u a s classes tem áticas n o m a te ria l em
discussão. A p rim e ira é o tem a cristológico o u soteriológico n o q ual
Jesus realiza a salv ação , c u m p rin d o a v o n ta d e d e seu Pai, e sua m o rte
na cru z o ex ib e n a q u a lid a d e d e M essias e S alv ad o r. A atm osfera é
ap ologética e co n fessio n al, s u b lin h a n d o a fé em Jesus com o o M essias
em fu n ção d e re s p o n d e r ta n to às objeções d o s d e fora com o fortale-
cer a o scilan te fé d o s d e d e n tro . V isto q u e este tem a c o rre sp o n d e à
afirm ação d e p ro p ó sito e m 20,31, o p ró p rio ev a n g elista é resp o n sá-
vel p elas p a rte s d a cena d a ú ltim a ceia em q u e se e n c o n tra m (13,2-10;
21-33; 36-38; 14; 17,1-5). O s e g u n d o tem a, p ro e m in e n te n a ob ra d o re-
dator, é u m a p a rê n e se o u d e ex o rtação m oral: Jesus e n tre g a su a v id a
à m orte, m o v id o d e a m o r p e lo s seus, e seu e x e m p lo d e v e se r im itad o .
A qui, o ap e lo n ã o é p rim a ria m e n te à fé, m as ao a m o r e à p rá tic a do s
m an d am en to s. E ste tem a, q u e está em h a rm o n ia com o esp írito d e
1 João, c aracteriza 13,1; 12-20; 34-35; 15-16; 17,6-26. É característico
de u m ú ltim o estágio n o d e sen v o lv im en to d a c o m u n id a d e joanina,
que já estav a d o u trin a ria m e n te m ais b em estabelecida. N o tam o s q u e
nas teorias d e am b o s, Z immermann e R ichter , o núcleo d e 13,31-14,31 é
a trib u íd o a u m d isc u rso o u e stá g io d e c o m p o sição d ife ren te d a q u e le
rep re sen ta d o p e lo n ú c le o d e 15-17. A m b o s os a u to re s a d m ite m dife-
rença d e p e rsp e c tiv a n o s d o is co n ju n to s d e m aterial.

A relação especial entre 13,31 - 14,31 e 16,4b-33

T en d o c o n s id e ra d o a s trê s p rin c ip a is d iv isõ es d o ú ltim o d iscu rso ,


d em o s m ais a te n ç ã o à relação e n tre P rim e ira seção e a terceira su b d iv i-
são d a S e g u n d a seção. O gráfico I ab aix o m o stra rá q u a n to s versículos
954 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

são p a ra lelo s n e sta s d u a s u n id a d e s. Q u a n to ao s p a ra le lo s g erais, no-


tam o s q u e a e s tru tu ra g eral d a s d u a s é a p ro x im a d a m e n te a m esm a.
A m b as co m eçam com o tem a d a im in e n te p a rtid a d e Jesus. L ogo v e m
a lu m e a q u e stã o d e p a ra o n d e ele está in d o e o m o tiv o d a triste z a d o s
d iscíp u lo s. C a d a u n id a d e tem d u a s p a ssa g e n s so b re o P arácleto ; c a d a
u m a p ro m e te q u e em b re v e o s d isc íp u lo s v e rã o Jesus o u tra v e z e q u e
o P ai a m a rá o s d iscíp u lo s; c a d a u m a a sse g u ra a o s d isc íp u lo s, q u e tu d o
q u a n to fo r p e d id o e m n o m e d e Jesus, será co n ced id o . E m c a d a u m a
Jesus é in te rro m p id o p o r p e rg u n ta s d a p a rte d o s d isc íp u lo s, e e m cad a
u m a ap a re c e o tem a d a in fid e lid a d e d o s d isc íp u lo s p a ra com Jesu s
d u ra n te a paix ão . C e rta m en te , n o ta m o s q u e h á a lg u m a s seções em
u m a q u e n ã o tem p a ra le lo n a o u tra , d a í o v a lo r d o G ráfico II.
48 · O último discurso: Observações gerais 955

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956 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

15,11: "Para que m inha alegria esteja em

17,13: "a fim de que tenham em si m inha


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OUTROS PARALELOS PERTINENTES
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48 · O último discurso: Observações gerais 957

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12.31: acima. Tam bém ljo 5,4-5


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33: "Tendes bom ânim o"


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33: "Eu venci o m undo"


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958 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

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11: "Crede [em mim] por causa das obras"

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48 · O último discurso: Observações gerais 959

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960 O Livro da Gloria · Primeira Parte: A última ceia

N o vol. 1, p . 8ss, d isc u tim o s o fe n ô m e n o d e d isc u rs o s d u p li-


c a d o s em João, e a q u i, a p a re n te m e n te , e sta m o s tra ta n d o d e o u tro
caso d e s te fen ô m en o . O s m e sm o s te m a s e in c lu siv e o s m e sm o s d ito s
fo ram p e g o s, r e u n id o s e escrito s e m d u a s d ife re n te s co leçõ es q u e
p o d e m ter-se o rig in a d o d e d ife re n te s p e río d o s n a h istó ria d a tra d i-
ção jo a n in a o u d e d ife re n te s círcu lo s n a c o m u n id a d e jo a n in a . V im os
o m esm o p ro c e sso d e e la b o ra ç ã o e m 5,19-25 e 26-30, e o u tra v e z em
6,35-50 e 51-58.
Q u a l a coleção m ais an tig a ? P ro v a v e lm e n te n ã o seja p o ssív e l ne-
n h u m a resp o sta d efin itiv a. C o m b a se n a co n clu são d a d a p o r 14,30-31,
já s u g e rim o s q u e 13,31-14,31 re p re se n ta , su b sta n c ia lm e n te , o d isc u rso
q u e e sta v a n a a n tig a fo rm a escrita d o e v a n g elh o (T erceiro e stá g io , tal-
vez com a lg u m a red a ç ã o ad ic io n al n o Q u a rto estág io ), e q u e 16,4b-33
foi a d ic io n a d o ju n ta m e n te com o re sta n te d e 15-16 p e lo re d a to r final
(Q u in to estágio). M as, re ite ra n d o , d e v e m o s in sistir q u e isto n ã o signi-
fica q u e o m ate ria l em 16,4b-33 seja n e c essa ria m e n te p o ste rio r, v isto
q u e o re d a to r e sta v a d a n d o seq u ên cia e a d ic io n a n d o m a te ria l jo an in o
d e to d o s os p e río d o s, a n te rio re s e p o ste rio re s. (L agrange, p p . 399,434,
p e n sa q u e 16,4b-33 é m en o s d e se n v o lv id o d o q u e 14,1-31). C a d a u m a
d e sta s d u a s coleções d e riv a m d e a n tig o s d ito s d e Jesus e c a d a u m a
tem d e sen v o lv im e n to s p o ste rio re s. P o rta n to , as d u a s d e v e m se r com -
p a ra d a s v ersícu lo p o r versícu lo ; e n e m se m p re é p o ssív el u m a d ecisão
q u a n to a q u e é m ais a n tig a em c ad a v ersícu lo . P o r ex em p lo , m u ito s
e stu d io so s s u g e rirã o q u e as p a ssa g e n s d o P arácleto , n o cap. 14, são
m ais a n tig a s d o q u e as d o cap. 16, p o rq u e , em 14,16 e 26, o Pai d á e
en v ia o P arácleto , e n q u a n to em 16,7 é Jesus q u e m e n v ia o P arácleto.
(T odavia, q u ã o clara d iferen ça h á e n tre o a to d o P ai em e n v ia r o P ará-
cleto, em nome de Jesus, e o a to d e Jesus em enviá-lo!) E n tre ta n to , u s a n d o
o m esm o a rg u m e n to , a lg u é m teria q u e a trib u ir p rio rid a d e a 16,23-24
(o Pai d a rá o q u e os d isc íp u lo s p e d ire m ) so b re 14,13-14 (Jesus d a rá
o q u e os d isc íp u lo s p e d ire m ). Em o u tra c o m p a raç ã o , co m o é p o ssí-
vel d e c id ir se 16,5 (n e n h u m d o s d isc íp u lo s p e rg u n ta a o n d e Jesu s está
in d o ) é m ais a n tig o d o q u e 13,36 e 14,5 (P e d ro p e rg u n ta a o n d e Jesus
está in d o ; T om é d iz q u e n ã o sa b em a o n d e Jesu s está indo)?
D eix an d o d e lad o a q u e stã o d a p rio rid a d e d e u m a d e sta s d u a s
coleções so b re a o u tra , a in d a d e v e m o s m a n te r q u e , se re p re s e n ta m os
ú ltim o s d iscu rso s fo rm a d o s in d e p e n d e n te m e n te em d ife re n te s círcu-
los jo an in o s e d iferen tes ép o cas, p o d e m ser g u ias m u ito ú te is ao tip o
48 · O último discurso: Observações gerais 961

de m ate ria l q u e é m ais o rig in a l n o co n tex to d a ú ltim a ceia. E stúdio-


sos fre q u e n te m e n te têm te n ta d o iso la r este m a te ria l u tiliz a n d o vários
critérios. D odd , Interpretation, p p . 390-400, tem b u sc a d o , p o r exem plo,
d istin g u ir n o a tu a l ú ltim o d iscu rso : (I) m a te ria l q u e ten h a paralelo s
nos e v a n g elh o s sin ó tico s e (II) m ate ria l q u e é p e c u lia rm e n te joanino.
Sigam os este m é to d o , p re s ta n d o p a rtic u la r a te n ç ã o aos ex em p lo s ex-
traíd o s d a s d u a s coleções q u e o ra e sta m o s c o n sid e ran d o .
(I) O m ate ria l n o ú ltim o d isc u rso d e João, q u e tem p a ra lelo s e
sim ila rid a d e s n o s sinóticos, p o d e ser d iv id id o d e sta form a: se os pa-
ralelos ap arecem : (A) n o s rela to s sin ó tico s d a ú ltim a ceia e as c en as d o
G etsêm ani o u (B) e m o u tro lu g a r n o s e v a n g elh o s sinóticos. Q u a n to a
(A), a lista d e p a ra le lo s d a d a acim a n a p. 914 serv irá; os N m 2-7 na-
quela lista são ap licáv eis aq u i; e com a exceção d e 3, estes p aralelo s
são e x traíd o s d e 13,31-14,31 o u d e 16,4b-33. D ev em o s a d ic io n ar a essa
lista três p a ra le lo s e n tre João e a cena d o G etsêm ani:

• A o ração d e Jesus em Jo 17,1 e M c 14,36.


• A c o n fo rm id a d e e n tre a v o n ta d e d e Jesus e a d o P ai e m Jo 14,31
e M c 14,36.
• A s p a la v ra s "L evantai-vos! S aiam o -n o s d a q u i" , e m Jo 14,31 e
M c 14,42.

Q u a n to a (B), p o d e m -se a p re s e n ta r os se g u in te s p a ra lelo s e sim i-


laridades: •

• A p e rse g u iç ã o d o s d iscíp u lo s: Jo 15,18-16,4a (ta m b ém 16,33);


M t 10,17-25: M c 13,9-13 (d isc u rso escatológico).
• A m en ção d o P arácleto co m o a q u e le q u e d á te ste m u n h o atra-
vés d o s d isc íp u lo s (Jo 15,26-27) se asse m e lh a à m en ção d o Es-
p írito S an to fa la n d o a tra v é s d o s d isc íp u lo s q u e d a rã o testem u -
n h o (M t 10,20; M c 13,9-11).
• O tem a d e p e d ir e receb er (ver p p . 985-86 abaixo).
• O id eal d e Jo 15,13 (" d a r su a v id a p e lo s q u e ele am a") se
asse m e lh a a M c 10,45: " O F ilho d o H o m e m veio... p a ra d a r su a
v id a co m o resg a te p o r m u ito s".
• A s p ro m e ssa s jo an in a s d e q u e Jesus v o lta rá (14,3; 18-19; 16,22)
se a sse m e lh a v a g a m e n te p o r seu tem a às p red iç õ es sinóticas d a
ressu rre içã o (M c 8,31; 9,31; 10,34).
962 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

• O tem a a p o calíp tico d a v in d a d o F ilho d o H o m e m e n c o n tra d o


n o s ev a n g elh o s sin ó tico s p a re c e ser re in te rp re ta d o e m te rm o s
d e escato lo gia re a liz a d a em João (ver d isc u ssã o d e 14,2-4).
• A confissão d e Jesus com o aq u ele q u e p ro ce d e d o P ai (16,30)
tem u m a leve sem elhança com a confissão d e P e d ro e m M c 8,29;
m as h á m elh o res p a ra le lo s p a ra essa confissão e m Jo 1,41-42;
6,68-69.

É difícil a v a liar estas sim ila rid a d e s e n tre João e os sinóticos. C er-
tam e n te a ju d a m a m o stra r q u e João está re c o rre n d o a m a te ria l tra-
d icio n al, p o ré m é m ais difícil u sá -la s p a ra d e te rm in a r te m a s q u e fo-
ra m o rig in ais n o c o n tex to d a ú ltim a ceia. S o m en te a q u e le s sob (A) são
m u ito p ro v e ito so s n e ste resp e ito , e é in te re ssa n te q u e a m a io r p a rte
d esses é p a ra le lo com 13,31-14,31, o u com 16,4b-33, as u n id a d e s q u e
su g e rim o s co m o a ch av e p a ra o ú ltim o d iscu rso . Q u a n to ao s p a ra le -
los sob (B), n o ta m o s q u e as ú ltim a s trê s sim ila rid a d e s a o m a te ria l em
Jo 13,31-14,31 e 16,4b-33 são b e m fracas, e n q u a n to as sim ila rid a d e s
p re c e d e n te s a o m ate ria l e m Jo 15 são b e m m ais fortes. É b e m p ro v á v e l
q u e isto é assim p o rq u e 15,1-16,4a em q u e se u tiliz o u b a s ta n te m ate -
riais n ão o rig in a lm e n te rela cio n a d o s com a ú ltim a ceia.
(II) P o d e m o s su b d iv id ir a in d a o m ate ria l q u e é p e c u lia rm e n te
jo an in o e se m p a ra lelo s n o s sinóticos:

(A) M aterial q u e 13,31-14,31 e 16,4b-33 têm em com um . Ver G ráfico I.


(B) M aterial e n c o n tra d o so m e n te em u m a d a s d u a s coleções,
m as co m p a ra le lo s e m o u tra s p a rte s d o ú ltim o d isc u rso . V er
gráfico s I e II.
(C) M aterial e n c o n tra d o so m e n te em u m a d a s d u a s coleções,
m as co m p a ra le lo s e m o u tro s lu g a re s d o s escrito s jo an in o s;
p o r ex em p lo , n o s d isc u rso s d o L ivro d o s S inais o u n a s ep ís-
to las jo aninas. V er gráfico II.
(D) M aterial e n c o n tra d o so m e n te em u m a d a s coleções e co m n e-
n h u m o u tro p a ra le lo jo an in o ; p o r ex em p lo , a a firm a ç ão e m
16,29 d e q u e Jesu s a g o ra está fala n d o c la ra m e n te se m fig u ra s
d e lin g u ag em .

N ã o h á co m o d e c id ir cien tificam en te se o m a te ria l (D) p e rte n -


cem o rig in a lm en te a o c e n ário d a ú ltim a ceia, e o b v ia m e n te o m a te ria l
48 · O último discurso: Observações gerais 963

(C) tem menos chance do que (A) ou (B) de pertencer originalmente


a este cenário. Se um pequeno núcleo de ditos relacionados tradicio-
nalmente à última ceia estava sendo expandido pelo evangelista ou
outros em um último discurso formal, a adição e a readaptação de
material dos discursos do ministério seriam prováveis. Boismard sus-
tenta, por exemplo, que 14,6-11 é posterior em composição ao mate-
rial paralelo na forma mais antiga do cap. 8. Ele sugere ainda (RB 68
[1961], 519-20) que em 14,15-23 tem havido reelaboração de material
mais antigo sob a influência de 1 João.
Mesmo dentro do material (A) ou (B) se pode fazer alguma esco-
lha quanto ao que é original no contexto da última ceia. A escatologia
de 14,2-3 parece ser a escatologia final da expectativa da parousia em
glória, enquanto 14,18ss. parece apontar para a escatologia realizada
e a habitação divina. Se este for um estágio posterior do pensamento
joanino, mais que o primeiro (vol. 1, pp. 129-135), ambos os ditos não
podem ser originais no último discurso. J. Schneider, art. cit., é quem
tem feito um importante esforço de isolar os núcleos mais primitivos
de material no cap. 14 partindo de um estrato posterior de material
(ambos são obra de uma única mão). Ele sugere que as duas pas-
sagens do Parácleto (14,16-18.26) são tardias, e igualmente 14,19-20
(porque o cap. 15 seria seguido do cap. 21). Este método depende
da ideia que tenha os intérpretes sobre o que é consecutivo em João:
obviamente, 14,15 e 21 são relacionados, mas é uma relação tão es-
treita que tudo o que está entre eles deve ser considerado como se-
cundário? E possível concordar que as passagens do Parácleto, como
se encontram agora, representam um nível tardio do pensamento
joanino; contudo, visto que aparecem em dois últimos discursos pre-
sumivelmente independentes (13,31-14,31; 16,4b-33), é bem prová-
vel que se indague se alguma tradição sobre o Espírito não era parte
da tradição joanina do último discurso desde os tempos mais anti-
gos. Se tivéssemos que selecionar de (A) e (B) o material mais prova-
velmente original no contexto da última ceia, ele teria que incluir os
temas da partida (hypagein, poreeusthai, erchesthai), da consolação dos
discípulos e das promessas para o futuro depois da partida. (Veja
D odd , Interpretation, p. 403; S chneider , art. cit., p. 108). Estes temas,
combinados com o material dado acima em (I) sob (A), apareceríam
em qualquer reconstrução do primitivo discurso final.
964 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

O gênero literário do último discurso

Se o red a to r final d o evangelho p ro d u z iu o a tu a l ú ltim o discurso,


acrescentando discursos ao ú ltim o discurso q u e en co n tro u n u m a for-
m a p rim itiv a d o evangelho, teria sido g u iad o p o r a lg u m p lan o literário?
Pois os q u e v eem n o Q u a rto E vangelho p a d rõ e s d e setes (vol. 1, p. 163),
é d ig n o d e n o ta q u e h á sete referências ao p e d ir e receber d o s discípu-
los "em m eu n o m e" (14,13.14.26; 16,15.15; 16,23.24.26). O u tro s q u e são
parciais q u a n to aos p a d rõ e s quiásticos (vol. 1, p. 153) n ão en co n trarão
dificu ld ad es em d etectar u m deles n a form a final d o ú ltim o discurso:

13,31-38: Introdução 17,1-26: Conclusão


14.1- 31: temas originais 16,4b-33: temas originais
ao contexto da ao contexto da
última ceia última ceia
15.1- 17: amor mútuo 15,18- 16,4a: ódio do mundo
entre Jesus e para com Jesus
seus discípulos e seus discípulos

E n tre tan to , ta n to n o s casos d o s e sq u e m a s q u iástic o s co m o n a d es-


cob erta d e ste p a d rã o se p te n á rio s p o d e m o s e sta r tra ta n d o m ais com a
e n g e n h o sid a d e d o in té rp re te d o q u e com a in te n ç ão fin al d o re d a to r.
P o r ex em p lo , a sim ila rid a d e e n tre a in tro d u ç ã o e a c o n clu são difícil-
m en te é ó bvia.
P o n d o d e la d o a q u e stã o d o p la n o literá rio e v o lta n d o a o d o gê-
n ero literário , já m en c io n am o s a p o ssib ilid a d e d e q u e, n a tra d iç ã o an-
terio r ao e v a n g elh o , à q u a l o ev a n g elista rec o rre u , p o d e ria ter h a v id o
u m b rev e d isc u rso e n u n c ia d o p o r Jesus a seu s d isc íp u lo s n a n o ite an -
terio r à su a m o rte. E n tre tan to , a id eia d e c o m p o r u m d isc u rso so len e
an te s d a m o rte , a te sta d o n o s v á rio s d isc u rso s in d e p e n d e n te s q u e te-
m os p ro p o s to ( 1 3 ,3 1 - 1 4 ,3 1 ; 1 4 - 1 6 e 1 7 ) e n o d isc u rso fin al c o m p o sto ,
p ro v a v e lm e n te foi in sp ira d o m ais d o q u e p o r rem in iscên cia h istó ri-
ca. A lg u n s têm p e n s a d o q u e a id eia d e c o m b in a r a d escrição d a ceia
com u m d isc u rso e so térico e u m a o raç ã o in tercessó ria ( 1 7 ) foi su g e ri-
d a p ela litu rg ia. S chneider, art. cit., e W . G rundm ann , N o v T 3 ( 1 9 5 9 ) ,
6 3 , su g e re m q u e Jo 1 3 - 1 7 reflete u m a a n tig a litu rg ia c ristã d a ú ltim a
ceia. H oskyns, p. 4 9 5 , diz: " P o d e se r q u e a e s tru tu ra d o s caps. 1 3 - 1 7
c o rre sp o n d a com a e s tru tu ra d o cu lto cristã o n o te m p o e m q u e o
e v a n g elh o foi co m p o sto , n a q u a l a cena d o cen ácu lo foi r e p r o d u z id a e
48 · O último discurso: Observações gerais 965

criativam ente in te rp re ta d a p o r en sin o s e sp iritu a is (caps. 14-16) e final-


m ente re su m id a n u m a o ração eucarística c o m p reen siv a (cap. 17)". Esse
tipo d e h ip ó te se é in te re ssa n te , p o ré m difícil d e se p ro v a r.
P referim o s u m a a b o rd a g e m q u e p o ssa ser verificada p o r evidência
co n te m p o râ n e a e, p o r isso, n o s u n im o s aq u e le s e stu d io so s (W. B auer,
O. M ichel, K äsemann , e n tre o u tro s) q u e p e n sa m q u e o ú ltim o d iscu rso
exem plifica o p a d rã o literá rio b e m e stab elecid o d e a trib u ir a h o m en s
fam osos d isc u rso s d e d e s p e d id a e n u n c ia d o s a n te s d a m o rte. Este gê-
nero literário tem sid o c u id a d o sa m e n te e s tu d a d o (veja B ibliografia);
em p a rticu la r, a q u i d e p e n d e m o s d a an álise q u e M unck faz d o desen -
v o lv im en to d o d isc u rso d e d e s p e d id a d e n tro d o ju d a ísm o e p elas ta-
belas d e p a ra le lo s c o m p o sta s p o r S tauffer.
O d isc u rs o d e d e s p e d id a já a p a re c e n o s m ais a n tig o s liv ro s d o
AT; p o r e x e m p lo , a d e s p e d id a e b ê n ç ã o s d e Jacó a se u s filhos em
Gn 47,29-49,33; a d e s p e d id a q u e Jo su é faz a Isra e l em Js 22-24; a des-
p e d id a d e D av i e m l C r 28-29. T a lv ez o m ais im p o rta n te ex em p lo d o
p e río d o p ré-ex ílico se ria D e u te ro n ô m io , o n d e to d o o liv ro é com pos-
to p o r d isc u rs o s d e d e s p e d id a e n u n c ia d o s p o r M oisés a Israel. Este
gênero lite rá rio se to rn o u a in d a m a is p o p u la r ao fin al d o p e río d o
bíblico e d u r a n te o p e río d o in te rte s ta m e n tá rio . A d e s p e d id a d e To-
bias n o leito m o rtu á rio e stá re g is tra d o e m Tb 14,3-11, e a to ta lid a d e
dos Testamentos dos Doze Patriarcas (ou u m a o b ra ju d a ic a co m in te r-
polações c ristã s o u u m a o b ra c ristã p rim itiv a q u e re c o rre a fo n tes
judaicas) é fo rm a d a p e la s d e s p e d id a s d o s d o z e filh o s d e Jacó a seu s
filhos. E n o q u e, E sd ra s e B a ru q u e s u p o s ta m e n te fiz e ra m to d o s eles
e lo q u en tes d is c u rs o s d e d e s p e d id a s a o p o v o d e Israel (lE n 91ss.;
2Esd 14,28-36; II Bar 77ss.). O livro de Jubileus a trib u i d e s p e d id a s p o r
N oé (10), p o r A b ra ã o (20-22) e p o r R ebeca e Isa q u e (35-36), e n q u a n -
to J osefo fo rn ece u m p o r M oisés (Ant. 4.8.45-47; 309-26). N o N T, o
d iscu rso d e P a u lo ao s a n c iã o s d e E feso (A t 20,17-38) é u m tip o d e
d iscu rso d e d e s p e d id a . E ste g ê n e ro é ta m b é m a te s ta d o n a lite ra tu ra
ep isto lar; p o r e x e m p lo , as P a sto ra is são u m a fo rm a d e d e s p e d id a
p a u lin a (esp e c ia lm e n te 2T m 3,1-4,8), e 2 P e d ro é u m a fo rm a d e des-
p e d id a p e trin a (a in d a q u e p s e u d ô n im a ). O s d isc u rso s escato ló g ico s
nos e v a n g e lh o s sin ó tico s c o n tê m c e rto s e le m e n to s em c o m u m com
este g ê n e ro lite rá rio , m a s os d isc u tire m o s s e p a ra d a m e n te abaixo.
E n u m erarem o s a seg u ir os aspectos d estes discu rso s d e d e sp ed id a
bíblicos e pós-bíblicos q u e se en co n tram tam b ém no últim o d iscu rso
966 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

d e João. A situ a ç ão c o m u m é a d e u m g ra n d e p e rso n a g e m q u e re ú n e


seu s se g u id o re s (seus filhos, se u s d isc íp u lo s, o u o p o v o ) à v é s p e ra d e
su a m o rte p a ra m in istra r-lh e s in stru çõ e s q u e os a ju d e m a p ó s s u a p a r-
tid a. Em João, isto ocorre n u m a m b ie n te d e u m a ceia d e d e s p e d id a ;
e u m a ceia p re c e d e a m o rte tam b é m em Jubileus 35,27 (R ebeca), 36,17
(Isaque) e o Testamento de Naftali 1,2.

• O p e rso n a g e m a n u n c ia a im in ên cia d e s u a m o rte . E m Jubileus


36,1, Isaq u e diz: "M eu s filhos, e sto u se g u in d o o c a m in h o d e
m e u s p a is ru m o à casa e te rn a o n d e se e n c o n tra m m e u s p a is" .
Z e b u lo m ( Testamento de Zebulom 10,4) diz: "A g o ra m e a p re s-
so ru m o ao m e u d e scan so ". O tem a d e " E sto u p a rtin d o " é re-
c o rre n te n o ú ltim o d isc u rso jo anino. E m p a rtic u la r, e m 14,2-3,
Jesu s fala d e ir p a ra a casa d e se u Pai, e em 13,33 e 14,16, ele
frisa q u e su a p a rtid a é im in en te.
• O casio n alm ente, este a n ú n cio p ro d u z tristeza, e se faz necessária
a lg u m a fo rm a d e reafirm ação. Em Jubileus 22,23, A b ra ã o d iz a
Jacó: "N ã o tem as"; e 1 Enoque (92,2) a d v e rte seus filhos: " Q u e
vo sso esp írito n ão se p e rtu rb e ". N o Testamento de Zebulom 10,1-2,
o p atriarca diz: "N ã o vo s entristeçais p o r e u e sta r m o rren d o ...
p o is m e levantarei o u tra v ez n o m eio d e vós... e m e regozijarei".
Em v árias ocasiões em João (14,1.27; 16,6-7.22), Jesus d iz a se u s
d iscíp u lo s q u e n ão se p e rtu rb a sse m o u se entristecessem , e em
14,27, ele acrescenta: "N ã o tem ais". Ele lhes a sse g u ra q u e, se está
p a rtin d o , tam b ém estará v o lta n d o (14,3.18; 16,22), e este re to rn o
lhes p ro p iciará ocasião d e alegria (15,11; 16,22).
• N a s d e s p e d id a s m aia a n tig a s d o AT, o p e rso n a g e m te n d e a
e n d o s sa r s u a s in stru çõ es, e v o c an d o o q u e D eus fizera p o r Is-
rael, n o s ex em p lo s ju d aic o s ta rd io s se to rn o u m ais c o stu m e iro
o p e rs o n a g e m e v o c ar su a p ró p ria v id a p reg re ssa ; p o r e x em p lo ,
em Testamentos. E m seu d isc u rso d e d e s p e d id a , M a ta tia s, p a i
d o s M acab eus, lem b ra a seu s filhos o q u e ele fizera p o r Israel
e in siste com eles q u e im ite m se u s feitos (Ant. XII.6.3; 279-84).
Em p a rtic u la r, Jesus fala d o P a rá c le to /E s p írito cuja tare fa se-
ria in te rp re ta r p a ra os d isc íp u lo s o q u e Jesu s d isse ra e fizera
(14,26; 16,14-15). E m 14,12, Jesus p ro m ete: "A q u e le q u e tem fé
em m im rea liz a rá as m esm a s o b ras q u e e u realizo. A liás, ele
rea liz a rá m u ito m aio res q u e estas".
48 · O último discurso: Observações gerais 967

• A recomendação de guardar os mandamentos é frequente-


mente parte do conselho transmitido pelo personagem; por
exemplo, por Abraão em Jubileus 21,5. Moisés (Dt 30,16) insis-
te sobre isto como uma condição necessária: "Se obedecerdes
aos mandamentos do Senhor vosso Deus, os quais vos ordeno
neste dia, amando ao Senhor vosso Deus...". Algumas vezes
o personagem menciona seus próprios mandamentos ou pa-
lavra. 1 Enoque 94,5 tem o mandamento: "Retende minhas pa-
lavras". Em João, Jesus frequentemente reitera a condição: "Se
me amardes e guardardes meus mandamentos...". (14,15.21;
15,10.14). Em 14,23, ele diz: "Se alguém me ama, guardará
minha palavra".
• Em particular, o personagem muitas vezes ordena a seus filhos
que amem uns aos outros; por exemplo, Abraão, em Jubileus
20,2. Em Jubileus 36,3-4, Isaque diz a Esaú e a Jacó: "E isto vos
ordeno... meus filhos, amai um ao outro... como um homem ama
sua própria vida". Em Jo 13,34 e 15,12, Jesus fala do novo man-
damento de amor recíproco; e no cap. 15,13, ele estabelece um
padrão: "Ninguém pode ter maior amor do que este: dar sua
vida por aqueles a quem ama". Veja p. 983.
• Unidade é outro tema recorrente nas formas tardias dos dis-
cursos de despedida. Em Jubileus 36,17, Isaque se regozija de
haver uma só mente entre seus filhos; veja também Matatias,
em A nt. XII.6,3; 283. Baruque frisa a unidade entre as tribos,
"unidas por um só vínculo" (2Bar 78,4). No Testamento, de Ze-
bulom 8,5-6 insta com os filhos de Zebulom que amem uns aos
outros, pois o dano feito ao irmão de alguém viola a unidade; e
Testamento de José 17,3 diz: "Deus se deleita na unidade dos fi-
lhos". Este mesmo tema de unidade aparece nos lábios de Jesus
em Jo 17,11.21-23.
• O personagem tende a olhar para o futuro e a ver o destino que
recairá sobre seus filhos. 1 Enoque (91,1) diz: "O espírito é derra-
mado sobre mim para que eu vos mostre tudo o que vos sobrevi-
rá para sempre". Em João, embora o próprio Jesus faça predições
gerais sobre o futuro, é o Parácleto/Espírito, que Jesus enviará,
que declarará aos discípulos as coisas por vir (16,13).
• Ao olhar para o futuro, o personagem amaldiçoa os que per-
seguem o justo e se regozija em suas tribulações (2 Enoque 95,7;
O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

98,13; 100,7). C o rre sp o n d e n te m e n te , Jesus p re d iz q u e o m u n d o


o d iará e p e rse g u irá os d isc íp u lo s (Jo 15,18.20; 16,2-3) e se rego-
zijará em su a p ró p ria m o rte (16,20).
O p e rs o n a g e m p o d e in v o ca r p a z so b re se u s filhos (Jub 21,25:
" Id e em p a z , m e u s filhos") e p ro m e te r a a le g ria n a o u tra v id a
(lE n 103,3; Testamento de Judá 25,4). Jesus d á a in d a s u a p a z aos
d isc íp u lo s (Jo 14,27; 16,33) e lh es p ro m e te a ale g ria q u e n in -
g u é m p o d e tira r d eles (16,22).
O p e rs o n a g e m p o d e p ro m e te r a se u s filhos q u e D e u s e sta rá
com eles, se fo rem fiéis. C o m a cau tela d e q u e h á in te rp o la ç õ es
cristãs n o s Testamentos, d e v e m o s n o ta r o q u e d iz José 10,2: "Se
se g u ird e s a m o d éstia... o S en h o r h a b ita rá e m v ó s"; e 11,1: "P ois
to d o a q u e le q u e o b se rv a a Lei d o S e n h o r será a m a d o p o r Ele".
Isso tra z à m e n te Jo 14,23: "Se a lg u é m m e a m a , g u a rd a r á m in h a
p a la v ra. E n tão m e u P ai o a m a rá , e v ire m o s p a ra ele e farem o s
nele m o ra d a ".
E n a tu ra l p a ra u m h o m em m o rib u n d o p re o c u p a r-se com a p er-
m an ên cia d e seu nom e. E m Jubileus 22,24, A b ra ã o d iz co m re-
ferência a seu s d e scen d en tes: "E sta casa q u e c o n stru í p a ra m im
m esm o a fim d e p ô r n ela o m e u n o m e so b re a terra. ...C o n stru i-
reis m in h a casa e estabelecereis m e u n o m e d ia n te d e D e u s p a ra
se m p re ". O Jesus jo an in o tam b é m fala d o n o m e q u e D e u s lhe
d e u (17,11-12); e ele diz: "M an ifestei o te u n o m e ao s h o m e n s
q u e m e d e ste d o m u n d o " (17,6). E stes h o m e n s o ra rã o e ro g a-
rão a D e u s n o n o m e d e Jesus (14,13.14; 15,16; 16,24.26) e assim
m a n te rã o se u n o m e v iv o so b re a terra.
C o m o p a rte d a d e sp e d id a d e M oisés a Israel, ele to m a Josué
com o su cesso r q u e d e m u ita s m an e ira s será o u tro M oisés
(D t 31,23). N o A p ê n d ic e V, sa lie n ta re m o s q u e esta relação em
série se assem elh a à relação e n tre Jesus e o P arácleto. O P arácle-
to acerca d e q u e m Jesus fala n o ú ltim o d isc u rso é seu su c esso r
e conclui su a obra.
F in alm en te, o p e rso n a g e m c o stu m a c o n clu ir seu d isc u rso d e
d e s p e d id a com u m a o ração p o r seu s filhos o u p e lo p o v o q u e
está d e ix a n d o p a ra trás. E m D t 32, M oisés evoca a b e n ç ã o d e
D eu s so b re as tribos, e em Jubileus 22,28-30, A b ra ã o o ra a D eu s
q u e p ro teja Jacó. A ssim tam b é m o ú ltim o d isc u rso jo an in o é
co n clu íd o com o c a p ítu lo 17, n o q u a l Jesus o ra p o r si, p o r se u s
48 · O último discurso: Observações gerais 969

d isc íp u lo s e p o r to d o s q u a n to s v iessem a crer n ele p o r in term é-


d io d a p a la v ra d e se u s d iscíp u lo s.

À lu z d e ta n to s tem a s p a ra lelo s, p a re c e in d u b itá v e l q u e o últi-


m o d iscu rso d o Q u a rto E v an g elh o p e rte n c e ao g ên e ro literário d o
discurso d e d e s p e d id a . D odd , Interpretation, p p . 420-23, c o m p a ro u
o últim o d isc u rso a o d iálo g o n o s tra ta d o s H erm ético s (veja vol. 1,
pp. 52,53), e crê q u e os leito res d o e v a n g elh o teriam in te rp re ta d o este
discurso c o n tra esse p a n o d e fu n d o h elen ista. É m u ito difícil e sta r se-
guro so b re a m e n ta lid a d e d o s leitores, m as crem o s q u e a com posição
do d iscu rso p o d e ser m ais b e m e x p licad a com o u m a im itação d o s m o-
delos b em c o n h ecid o s n o ju d a ísm o , se m a n e c essid ad e d e rec o rre r a
m odelos p ag ão s.

O último discurso e escatologia

E ntre os ev a n g elh o s sinóticos, so m en te Lucas (22,24-34) tem u m a


coleção d e d ito s d e a lg u m a ex ten são n a ú ltim a ceia. E ntretanto, na
tradição sinótica d o m in istério p ú b lico h á u m longo d iscu rso final de
Jesus, a saber, o d isc u rso escatológico (ou ap o calip se sinótico: M c 13;
Mt 24-25; Lc 21). Ali, fre q u e n te m en te em lin g u a g e m apocalíptica, Jesus
volve su a aten ção p a ra o fu tu ro . Ele a d v e rte d e fu tu ro s p e rig o s e perse-
guições e d e p erig o s n o to can te à fé, e ressalta a n ecessid ad e d e m an te r
vigilância. T u d o term in a rá q u a n d o o F ilho d o H o m em v ier n as n u v e n s
e enviar anjos a re u n ir seu s eleitos d o s q u a tro v e n to s (Mc 13,26-27).
Em M t 24,45-51, h á u m a g a ra n tia d a a m a b ilid a d e d o se n h o r àq u eles a
quem ele e n c o n trar v ig ian d o . F inalm ente, M t 25,31-46 p in ta a d ram áti-
ca cena d o ju ízo o n d e os p e rv e rso s serão e n v ia d o s à p u n içã o etern a, en-
quanto os ju sto s serão re c o m p en sa d o s com a v id a eterna. Este d iscurso
escatológico n ão é e x a tam en te u m d isc u rso d e d e sp e d id a , em b o ra os
discursos d e d e s p e d id a em Enoque e 2 Baruque, citados acim a, estão
entrelaçados com v isões ap o calíp ticas d o fim d o s tem pos.
Tem -se su g erid o q u e o ú ltim o d iscu rso é u m su b stitu to joanino
para o discu rso escatológico d o s sinóticos. C o m alg u m as m atizações,
esta tese se ap ro x im a d a v erd ad e. T oda u m a seção d o últim o discurso,
15,18-16,4a, co n tém m aterial b em sim ilar àquele q u e se encontra n o dis-
curso escatológico (veja p. 1087 abaixo). P alav ras com o as d e Jo 14,29,
"Eu vo-lo disse ag o ra an tes q u e aconteça, p a ra que, q u a n d o acontecer,
970 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

acred iteis" (tam b ém 16,1.33) n o s rec o rd a m M c 13,23 (M t 24,25): "A ten -


tai b em ; eis q u e d e a n te m ã o v o s ten h o d ito tu d o ". N o e n ta n to , a in d a
m ais im p o rta n te, o tem a d o re to rn o d e Jesus, q u e o co rre em m u ita s
fo rm as n o ú ltim o d iscu rso , p o d e re p re se n ta r u m a fo rm a jo an in a n ã o
ap ocalíp tica d o tem a d a v in d a d o F ilho d o H o m e m q u e e n c o n tram o s
n o a p o calip se sinótico. Já n o tam o s q u e a lg u n s e le m en to s e scatológicos
fu tu rista s e n c o n trad o s no s d isc u rso s d e d e s p e d id a d o s escrito s ap o -
calípticos ju d aico s ap a re c em e m João n u m a atm o sfera d a escatologia
realizad a. P o r ex em plo, o Testamento de Judá 25,4 e 1 Enoque 103,3 m en -
cio n am jú b ilo n a p ró x im a v id a com o g a la rd ã o p a ra os q u e h o u v e re m
m o rrid o n u m e s ta d o d e justiça; m as e m Jo 15,11 e 16,24 este jú b ilo p a -
rece ser característico d a v id a cristã n e ste m u n d o a p ó s a ressu rre içã o
d e Jesus.
E x am in em o s m ais d e ta lh a d a m e n te o q u e o ú ltim o d isc u rso d iz
so b re o re to m o d e Jesus. D e a c o rd o com o c e n ário jo a n in o d o d isc u r-
so, Jesu s e stá fala n d o à s v é sp e ra s d e su a m o rte so b re o q u e a c o n tecerá
a p ó s su a m o rte. O leito r cristão tem u m a con vicção d e fin id a so b re o
q u e aco n teceu a p ó s essa m o rte , a sab er, q u e h o u v e u m b re v e p e río -
d o d e a p ariçõ es p ó s-re ssu rreiç ã o q u e fo ra m se g u id a s d e u m p e río d o
m ais lo n g o , a in d a c o n tin u a n d o , q u a n d o Jesus e stav a (e está) p re s e n te
a tra v és d e seu E sp írito in v isív el, e q u e a cu lm in a ç ã o d e tu d o isto será
a p a ro u s ia o u s e g u n d a v in d a d e Jesus. Esta cren ça fre q u e n te m e n te
g u ia in co n sc ien te m e n te o leito r cristão q u a n d o in te rp re ta o s d ito s d e
Jesus so b re o re to rn o q u e estã o re g istra d o s n o ú ltim o d isc u rso ; p o r
co n seg u in te, ele ap lica a lg u n s d ito s às a p a riçõ e s p ó s-re ssu rre iç ã o , al-
g u n s à p rese n ç a d o E sp írito e a lg u n s à p a ro u sia . M as p o d e m o s p re s-
s u p o r q u e esta seq u ên cia clara e ra c o n h e cid a o u p re d ita d u r a n te a
v id a terren a d e Jesu s o u e n te n d id a n o s p rim e iro s a n o s d o cristian is-
m o? Se aceitarm o s a e v id ê n c ia d o s e v a n g e lh o s d e q u e Jesus p re d is s e
q u e ele seria v ito rio so a p ó s a m o rte , a in d a n o s resta te r c e rtez a d e
com o ele co n ceb eu a v itó ria. O s e v a n g e lh o s sin ó tico s re tra ta m Jesus
co m o a p re d iz e r s u a ressu rre içã o a p ó s trê s d ia s (M c 8,31; 9,31; 10,34 e
p ar.); o a p re s e n ta m co m o a p re d iz e r u m a e ra q u a n d o o s h o m e n s se rã o
m o v id o s p e lo E sp írito S an to (M t 10,20; Lc 11,13; cf. M t 3,11); o a p re -
s e n ta m co m o a p re d iz e r a v in d a d o F ilho d o H o m e m (M t 16,27-28;
24,27.30.37.39). A in d a q u e aceitássem o s to d a s e stas a firm açõ es e m su a
fo rm a a tu a l co m o o riu n d a d o m in isté rio d e Jesu s (u m a p re ssu p o siç ã o
difícil), n ã o sab eriam o s co m o Jesus as co m b in o u . Se Jesu s falo u d a
48 · O último discurso: Observações gerais 971

ressu rreição d o F ilho d o H o m e m , p a rece ta m b é m ter fala d o d a v in d a


do Filho d o H o m e m lo g o d e p o is d e su a p ró p ria m o rte (Mc 14,62 -
afirm an d o q u e o su m o sa c e rd o te o co n te m p la ria ); estas afirm ações
se referem ao m esm o e v en to ? Jo 20,22 re tra ta a era d o E sp írito com o
tendo co m eçad o im e d ia ta m e n te a p ó s a ressu rreição ; A t 2,1 re tra ta u m
interv alo d e c in q u e n ta dias.
O ca rá te r c o n fu so d a s p red iç õ es q u e ch e g ara m a n ó s é m ais apa-
rente n o ú ltim o d iscu rso . A q u i Jesus fala d e v o lta r p a ra lev ar seus dis-
cípulos co n sig o (14,3); ele fala d a v in d a d o P arácleto (veja ap ê n d ic e V);
fala d a v in d a com se u P ai p a ra fazer m o ra d a n o cren te (14,23); fala q u e
os d iscíp u lo s n ã o m ais o v e ría m p o rq u e ele e staria com o Pai (16,10);
fala q u e o v e ria m o u tra v ez d e p o is d e p o u c o tem p o (16,22); expressa
0 desejo q u e o s d isc íp u lo s estiv essem com ele p a ra q u e p u d e sse m ver
sua g lória (17,24). E staria ele fala n d o d e su a s ap ariçõ es pós-ressurrei-
ção? De u m a p rese n ç a a tra v és d o E spírito? D e o u tro tip o d e habitação?
De su a v in d a n a m o rte d o cristão? o u d a p a ro u sia (cf. 5,28-29)?
P ara ilu s tra r a c o n fu sã o m ais p rec isam e n te , c o n cen trem o -n o s n o s
vários tip o s d e h a b ita çã o p ro m e tid a s n o ú ltim o d isc u rso e n as epísto-
las joaninas:

• H ab itação q u e e n v o lv e o Pai, Jesus e o s discíp u lo s:


O P ai e Jesu s n o s d iscíp u lo s: 14,23.
Ko i nõni a m ú tu a o u v id a co m u m : l j o 1,3.
O s d isc íp u lo s n o Pai e em Jesus: 17,21; l j o 5,20.
• H ab itação q u e e n v o lv e Jesus e os discíp u lo s:
Jesus n o s d iscíp u lo s: 17,23.26.
H ab itação m ú tu a : 14,20; 15,4.5(7); veja ta m b é m 6,54.56.
O s d isc íp u lo s em Jesus: 15,6.7; l j o 5,20.
• H ab itação q u e e n v o lv e o E sp írito e os d iscíp u lo s:
O P a rá c le to /E s p írito n o s d iscíp u lo s: 14,17; 16,7-8.

C o m e n ta ristas têm b u sc a d o e x tra ir u m e sq u e m a h istó rico e teo-


lógico co n sisten te d a s v á ria s p red iç õ es e referên cias à h a b ita çã o q u e
aparecem n o ú ltim o d isc u rso , m as d e v e m o s a d m itir q u e, sem con-
siderável rein te rp re ta ç ã o , estas p red iç õ es e referên cias p a re c e m ser
to talm ente d iv ersa s. E n tre tan to , o re d a to r final e, talv ez, até m esm o
o ev an g elista, a p a re n te m e n te , n ã o v iam c o n tra d iç ã o n e sta d iv ersid a -
de, já q u e su a s p re d iç õ e s e referên cias fo ram p o sta s la d o a lad o sem
972 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

u m a ten ta tiv a d e conciliá-las. N e m se m p re é fácil e s ta r certo d e co m o


o re d a to r in te rp re to u as p red içõ es; e é a in d a m ais difícil c o n je tu ra r
o q u e sig n ificav am q u a n d o fo ra m re g istra d a s p e la p rim e ira v ez, em
esp ecial se o rig in a lm e n te p e rte n c ia m a o u tro co n tex to a lém d a q u e le
d a ú ltim a ceia. A teoria d a c o m p o sição d o ú ltim o d isc u rso e sp o sa d a
a q u i a d v e rte o leito r q u e e sp e re e n c o n tra r n o d isc u rso u m a coleção d e
d ito s c o m p o sto s o u re fo rm u la d o s em v á rio s e stá g io s n a h istó ria d o
p e n sa m e n to escatológico jo an in o , co m o ta m b é m os d ito s p rim itiv o s
re in te rp re ta d o s d e u m m o d o co n so an te ao p e n sa m e n to p o ste rio r.

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4 9 .0 ÚLTIMO DISCURSO:
- PRIMEIRA SEÇÃO (INTRODUÇÃO)
(13,3 1-38)

A partida de Jesus; o mandamento de amor, a negação de Pedro

13 31E ntão, assim q u e Ju d a s acab o u d e sair, Jesus disse:

"A g o ra o F ilho d o H o m e m tem sid o g lorificado,


e D eu s foi g lo rificad o nele.
32[Se D eu s foi g lo rificad o nele,]
D eus, p o r su a vez, o glorificará em Si m esm o
e o g lo rificará logo.
33M eus filh inhos,
p o r p o u c o te m p o a in d a e sto u convosco.
Vós m e b u scareis;
m as, co m o d isse ao s ju d e u s
e ag o ra d ig o tam b é m a vós:
'A o n d e e s to u in d o , v ó s n ã o p o d e is ir.'
34E u v o s d o u u m n o v o m an d a m en to :
q u e v o s am eis u n s ao s o u tro s.
A ssim co m o te n h o v o s a m a d o ,
assim tam b é m vo s am eis.
33N isso co n h ecerão to d o s q u e sois m eu s d isc íp u lo s -
p elo a m o r q u e te n d e s u n s p e lo s o u tro s".

31: disse. No tem po presente histórico.


49 · O último discurso: - Primeira seção (introdução) 975

36"S e n h o r", d is s e S im ão P e d ro , " p a r a o n d e e stá s in d o ? " Jesu s res-


p o n d eu :

" P a ra o n d e e sto u in d o , n ã o p o d e is se g u ir-m e agora;


m a s m e se g u ire is m ais ta rd e " .

37"S en h o r", d isse P e d ro , " p o r q u e n ã o p o d e m o s se g u ir-te ag o ra? P o r


ti d arei a m in h a v id a " . 38"E n tão , d a rá s a tu a v id a p o r m im ?" - res-
p o n d e u Jesus. "C o m to d a firm eza te a sse g u ro q u e o g alo n ão can tará
antes q u e m e n e g u e s trê s vezes!"

36: disse-, 37: disse-, 38: respondeu. N o tempo presente histórico.

NOTAS

13.31. Deus foi glorifiçado nele. C aird, art. cit., enumera quatro maneiras possí-
veis para se entender esta frase:
(a) "A través d e Jesus, D eu s é tid o em honra p e lo s hom ens". Esta interpre-
tação não é im p o ssív e l, p orém im p rovável, p o is requer o "Agora" que
prefacia o versícu lo para referir-se não só a "a hora" da paixão, m orte,
ressurreição e ascen são d e Jesus, m as tam bém ao m o m en to futuro da
apreciação d e sse s e v e n to s p ela co m u n id a d e cristã. Tal ex ten sã o d e tem -
po faz o cio so o p róxim o v ersícu lo q u e exp ressam en te se refere ao futuro.
(b) "Deus é glorificado por Jesus"; por exem plo, por sua obediência. A inda
quando este conceito seja joanino (17,4: "Eu te glorifiquei na terra"), Caird
encontra dificu ld ad e n o fato d e que em nenhum a outra parte João usa a
preposição en com o dativo d e agente pessoal. A lém d o m ais, tal interpre-
tação não se ajusta a frase quase paralela em 14,13: "E tudo quanto pedir-
des em m eu n om e eu o farei, para que o Pai seja glorificado no Filho".
(c) "D eus é glorificad o em Jesus". Esta interpretação tem o u so local m ais
aceitável d e en, m as é aberta à m esm a objeção suscitada contra a prim eira
interpretação acim a.
(d) "D eus revelou Sua glória em Jesus". Esta é a interpretação q u e C aird
aceita, ressaltan d o q u e o p a ssiv o d e doxazein, aqui, realm ente é intransi-
tivo, com o n orm alm en te na LXX, q u an d o traduz o niphal d o heb. kãbêd,
u sad o n o sen tid o d e m anifestar glória.
N o vol. 1, p. 802, en fatizam os q u e glória e n v o lv e u m a m anifestação vi-
sível da m ajestade d e D eu s em atos de poder. Estas d u a s q u alid ad es são
976 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

verificadas na m orte e ressurreição d e Jesus, q u e é u m a ação d e seu pró-


prio p od er (10,17-18). V isto que o p od er d e Jesus é a o m esm o tem p o o
p od er d e D eu s (veja v o l. 1, p. 688), o sign ifica d o co m p leto aq u i d e v e
ser encontrado num a com binação da segu n d a e quarta interpretações d e
C aird. (N o N T, a prep osição en tem às v e z e s um a am p litu d e sem elh a n te
ao heb. be). M. M artinez P astor (Miscelânea Camillas 42 [1964], 173-82)
tem an alisad o o con ceito d e glória na ex e g e se q u e O rígenes faz d este ver-
sículo. O rígenes h elen izo u o con ceito d e glória na direção d o g n o sticism o
cristão, p o is ele associou glória com conhecer a D eu s e ser co n h ecid o p or
D eus. O con ceito hebraico não enfatiza o elem en to d e con tem p lação.
32. [Se Dews...]. Esta sentença d esapareceu em alg u m a s d as testem u n h a s tex-
tuais m ais im portantes, in clu in d o P66 e o C od ex V aticanus, m a s p o d e ser
por homoioteleuton. É m ais fácil explicar por q u e ela teria sid o p erd id a d o
que por que teria sid o agregada. Bernard, Lagrange, Bultmann e Thüsing
estão entre os q u e aceitam a sentença.
em Si mesmo. Por contraste com o v. 31, o qual afirm a q u e D eu s é glorificad o
em Jesus, este v ersícu lo significa q u e Jesus é glorificad o em D eu s. (Toda-
via, m u itos, in clu siv e C irilo d e A lexandria, Lagrange e Behler, p en sa m
que a referência é a Jesus sen d o g lorificad o em si m esm o). A m esm a id eia
se encontra em 17,5: "G lorifica-m e, ó Pai, em tua presença".
logo. A paixão, m orte, ressurreição e ascen são se con tem p lam co m o um a
só e b reve ação (tam bém o "apenas por u m p ouco" d o v. 33) g u ia n d o à
glória futura na presença d o Pai.
33. Meus filhinhos. Esta expressão ( teknia) aparece sete v e z e s em 1 João; m as,
em João, som en te aqui. A q u e direção a influência segu iu ? Teria o autor
d e 1 João se b asead o em u m u so ocasional d e Jesus, o u o próprio m o d o d e
falar d o autor teria sid o relido n o discurso? N en h u m a resposta definitiva
é p ossível, m as há evid ên cia d e que u m m estre judaico p odería ter-se di-
rígido a seu s d iscíp u los com o "m eus filhos" ( tekna, em v e z d o d im in u tiv o
joanino teknia)·, e em M t 18,3 e 19,14, Jesus adm oesta o s d iscíp u lo s a q u e
fossem com o crianças. Ver nota sobre "m oços" em 21,5.
por pouco tempo. N o Livro d o s Sinais tiv em o s d o is casos da ex p ressã o eti
mikron chronon: "Vou estar co n v o sco som en te p or p o u co tem po" (7,33);
"a lu z está entre v ó s som en te por p o u co tem po" (12,35). N o ú ltim o d is-
curso, chronos, "tem po, esp aço d e tem po", é o m itid o e o neutro mikron é
u sad o com o substantivo. E ncontram os eti (som en te, apenas) mikron aqui
e em 14,19; m as eti é o m itid o em 16,16. Bultmann, p. 4451, salienta o forte
tom sem ita desta exp ressão q u e não é norm al em grego. Q u e a ex p ressã o
n os inform a p ou co sobre a duração cronológica se v ê n o fato d e q u e ela
p o d e ser u sada tanto em 7,33, q u an d o Jesus tinha ao m en o s m ais seis
49 · O último discurso: - Primeira seção (introdução) 977

m eses d e v id a , e n o p resen te contexto, q u an d o Jesus tem ap en as um as


p ou cas horas d e vid a. É u m a exp ressão d o A T u sad a p e lo s profetas para
expressar, em term os otim istas, a im in ên cia d o tem p o antes que a salva-
ção d e D eu s c h eg u e (Is 10,25; Jr 51 [28] 33).
como disse aos judeus. A referência é às cenas em 7,33 e 8,21 (veja com entá-
rio) q u e ocorreram ao m en o s seis m eses antes. N ã o tem o s que n o s preo-
cupar se o s d iscíp u lo s teriam se lem brado d o d ito d e p o is d e tanto tem po;
com o em tantas outras ocasiões, essa advertência está im plícita para o
leitor cristão d o evan gelh o.
34. Eu vos dou. A lg u m a s testem u n h as tom am o "agora" d e 33 (v em com a
últim a linha) com 34: "Agora esto u dando...".
mandamento. O tem a do(s) m andam ento(s) recorre frequentem ente no últim o
discurso (seis o u sete v ezes) e nas Epístolas joaninas (dezoito vezes). D o la-
tim para "m andam ento" ( mandatum) obtem os o nom e Quinta-Feira Santa.
que vos ameis uns aos outros. Esta sen ten ça é p reced id a por hina, a qual te-
m os trad u zid o ep exegeticam en te, d e m o d o q u e "amar u n s aos outros"
constitui o m an d am en to. ZGB, § 415, m enciona a p ossib ilid ad e d e um
hina im p erativo. Jerônimo (Ad Galat. Ill 6:10; PL 26:433) relata a história
de q u e, na velh ice d e João, sua m en sagem se reduzira a isto: "M eus filhi-
nhos, a m ai-vos u n s aos outros" - u m a com binação d e frases d o s v s. 33 e
34. Para o am or q u e d e v e existir entre os d iscíp u lo s d e Jesus, João sem pre
usa o verb o agapan; entretanto, em outros lugares em João agapan e philein
parecem ser intercam biáveis (vol. 1, p. 803).
Assim como tenho vos amado. N o con texto d e "a hora", a dem onstração de
am or d e Jesus in clu i a entrega d e su a própria v id a e tom á-la d e volta
(veja 13,1; 15,13).
assim também vos ameis. Esta é um a cláusula hina, e a lg u n s intérpretes pre-
ferem lhe dar o p len o sign ificad o final: "Eu v o s tenho am ad o para que
tam bém v o s a m eis u n s aos outros".
35. pelo amor que tendes uns pelos outros. L o is y , p . 4 0 2 , s a l i e n t a q u e o e v a n g e -

lis ta e s t á e s c r e v e n d o so b r e a lg o q u e h á m u ito h a v ia e x p e r im e n ta d o , e

bem d e p o is d e s e u te m p o o s a p o lo g e t a s c r is tã o s in v o c a r ia m o im p a c to

c a u s a d o p e lo a m o r c r istã o c o m o u m a r g u m e n t o h a b itu a l e m p rol d a su -

p e r io r id a d e d o c r is tia n is m o .

36. para onde estás indo? Em latim , isto é "Quo vadis?" N o final d o 2a século,
o apócrifo Atos de Pedro cap. 25 (= Martyrdom of Peter cap. 3), as palavras
reaparecem . Q u ando Pedro foge d e Roma e d o perigo d o martírio, ele en-
contra Jesus e pergunta: "Senhor, para on d e estás indo?" Jesus fala a Pedro
que está in d o para Rom a a fim d e ser crucificado outra v ez (no lugar de
Pedro). E nvergonhado por seu Senhor, Pedro volta à cid ad e para morrer.
978 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

37. Senhor. A lg u n s m anuscritos an tigos favorecem a o m issã o d esta palavra.


darei minha vida. Embora João partilhe esta cena co m o s sin ó tico s (veja co-
m entário), a lin g u a g em é p ecu liarm en te joanina (nota sobre 10,11)·
38. darás a tua vida por mim? N a resposta d e Jesus há um a nota tanto d e ironia
com o d e resignação para com a fraqueza hum ana.
0 galo não cantará. João, com o os sin óticos, é cu id a d o so em narrar o cum pri-
m ento desta predição em 18,17-18.25-27.

COMENTÁRIO: GERAL

C o n sid e ra m o s 13,31-38 co m o se n d o a in tro d u ç ã o à p rim e ira seção d o


ú ltim o d iscu rso . T o d av ia, o p ró p rio fato d e q u e tra ta m o s 13,31-38 se-
p a ra d a m e n te d e 14,1-31 im p lica certa d istin çã o e n tre a in tro d u ç ã o e o
co rp o d a p rim e ira seção, d e m o d o q u e n ã o fo rm a m u m a u n id a d e p e r-
feita. U m a in d icação d e d e slo c a m e n to d e e n fo q u e e n tre o final d o cap.
13 e o início d o cap. 14 é v ista n a m u d a n ç a d e a u d itó rio : em 13,38 Jesu s
está fala n d o a P e d ro , e n q u a n to e m 14,1 ele e stá fa la n d o a to d o s o s d is-
cíp ulo s. N u n c a o u tra v ez n o d isc u rso , a d e sp e ito d a in te rru p ç ã o e m 14
p o r d isc íp u lo s in d iv id u a is (T o m é,F ilip e e ju d a s fn ã o o ls c a rio te s ]), Jesus
cen tra a aten ção so b re o d e stin o d e u m d isc íp u lo , co m o ele c o m P e d ro
em 13,36-38. Se r e s p o n d e às in d ag a ç õ e s d e in d iv íd u o s, logo v o lta a fa-
lar a to d o s os d iscíp u lo s; p o r ex em p lo , veja o "v ó s h o m e n s" em 14,7.10.
(O d iscu rso d u p lic a d o em 16,4b-33 reflete esta a titu d e , ter os d iscíp u -
los como um conjunto in te rro m p e Jesus). A lém d o m ais, a n a tu re z a d e
14,1-31 com o u m a u n id a d e s e p a ra d a d e 13,31-38 é in d ic a d o p e la in-
clu são e n tre 14,1-3 e 27-28 (estar a g ita d o s; ir e v o lta r), fo rm a n d o o
início e o fim d e u m a seção.
M as, se há u m a dem arcação en tre 13,31-38 e 14,1-31, p o d e-se inda-
g ar se 13,31-38 p o rq u e n ão se p ara r co m p letam en te d o cap. 14 e tra tar
com o in tro d u ção a to d o o ú ltim o d iscu rso (assim S chneider, p. 106; tam -
bém Lagrange e Barrett). A objeção real a isto é q u e 14,4b-33, q u e é u m a
d u p lic a ta d o cap. 14, tam b é m tem p a ra le lo s em 13,31-38. A q u e stã o
so b re a o n d e Jesus está in d o é fo rm u la d a em 13,36 e d isc u tid a e m 16,5.
A s p red iç õ es d a n eg ação d e P e d ro em 13,36-38 e d a d e serç ã o d o s d is-
cíp u lo s em 16,32 estão rela cio n a d a s; p o is e stã o u n id a s n o s p a ra le lo s
sin óticos (Mc 14,27-31; M t 26,31-35), p o ré m em o rd e m in v ersa . E ntão,
so b re a an alo g ia d e 16,4b-33, p a re c e ría q u e 13,31-38 p e rte n c e a 14,1-31.
49 · O último discurso: - Primeira seção (introdução) 979

A su g e stã o m a is p lau sív e l, p o rta n to , é q u e, n o e stá g io q u a n d o o q u e é


agora 1 4 ,131‫ ־‬s u b sta n c ia lm e n te c o n stitu ía a to ta lid a d e d o ú ltim o dis-
curso, 1 3 ,3 1 3 8 ‫ ־‬se rv iu co m o a in tro d u ç ã o à q u e le d iscu rso . C o m o u m a
ab ertu ra, ele c o m b in o u b re v e s ecos d o s d o is tem a s q u e fo ra m o u v id o s
de m o d o p ro e m in e n te n o ú ltim o d isc u rso o rig in al (e, n a tu ra lm e n te ,
são o u v id o s d e m o d o a b ra n g e n te n a fo rm a final m u ito m ais an tig a
do ú ltim o d iscu rso ): os tem a s d e a m o r e d a p a rtid a im in e n te d e Jesus.
A d up licação m en o s e s tru tu ra d a em 16,4b-33 n ã o tem in tro d u ção , m es-
m o q u a n d o reitera e m form a d isp e rsa elem en to s p resen tes em 13,3138‫־‬.
C o n s id e ra d o e m si m esm o , 13,31-38 te m o b v iam e n te u m ca rá te r
com posto. Ele c o m b in a m ate ria l q u e os e v a n g e lh o s sin ó tico s tam b ém
colocam n a ú ltim a ceia (p re d içã o d a n e g a çã o d e P e d ro em 3 6 3 8 ‫ )־‬com
tem as p ecu liares a João; p o r exem plo, glorificação, p a rtid a, a m o r frater-
nal. Q u a n to ao s v e rsíc u lo s q u e c o n tê m os ú ltim o s tem as, Loisy, p. 402,
é p e rfe ita m e n te c o rre to e m a firm a r q u e os vs. 3 1 3 5 ‫־‬3 2 ,3 3 ,3 4 ‫ ־‬são m ais
ju stap o sto s d o q u e c o m b in a d o s. A lém d o m ais, têm p aralelo s em ou-
tros lu g are s e m João ( 3 1 1 5 , 1 2 = 34-35 ;8,21
de m o d o q u e é d ifícil d e te rm in a r q u a n to d o m a te ria l em 3 1 3 5 ‫ ־‬p e r-
tence a situ a ç ão h istó ric a d a ú ltim a ceia e q u a n to tem sid o to m a d o d o
m inistério p ú b lico.
N ão o b sta n te , é p o ssív e l tra ç a r a lógica q u e lev o u à u n iã o d estes
elem entos d ísp a re s. A glorificação d e Jesus (31-32), q u e é o alv o d e
"a h o ra", é u m tem a d e a b e rtu ra a p ro p ria d o p a ra o g ra n d e d isc u rso
in te rp re ta n d o a h o ra. E sta g lorificação e n v o lv e seu re to rn o a se u Pai e,
p o rtan to , su a p a rtid a d e se u s d isc íp u lo s (33). O m a n d a m e n to d e a m a r
(3435‫ )־‬é a fo rm a d e Jesus a sse g u ra r a p e rm an ên cia d e seu esp írito en tre
seus discípulos. P ed ro , fracassan d o em e n te n d e r a n a tu re za d e sta parti-
da, deseja se g u ir Jesus: o " p a ra o n d e estás in d o ", d o v. 36 re to m a o " p a ra
o n de estás in d o " d o v. 33. In d o a lém d e ste e n c a d e a m e n to d e idéias,
L. C erfaux, art. cit., tem p ro p o sto u m a an á lise m ais su til d a s relações
nestes v ersícu lo s. Ele su g e re q u e o tem a d o a m o r (3 4 3 5 ‫ )־‬está relacio-
n ad o com o tem a d o re to rn o d e Jesus in sin u a d o n o v. 33, o n d e Jesus
fala d e su a p a rtid a . A b a se p a ra e sta su g e stã o é q u e o tem a d o a m o r
ou c a rid a d e a p a re c e e m seções d o s e v a n g e lh o s sin ó tico s q u e tra ta m
do re to m o d e Jesu s n a p a ro u sia ; p o r e x em p lo , n a s p a rá b o la s d e M t 25.
Ora, é b em n o rm a l q u e u m a p a rá b o la seja e n te n d id a eq u iv o cad am en te,
e C erfaux v eria a p e rg u n ta d e P e d ro em 36-37 com o u m a confusão d as
idéias d e 3 3 3 5 ‫־‬. N ã o no s p a rece q u e esta análise seja p a rticu la rm e n te
980 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

c o n v in c e n te , e m b o r a C er fa u x e ste ja c e r t o e m e n f a tiz a r q u e h á u m a
r e la ç ã o tr a d ic io n a l m a io r e m 3 1 - 3 8 d o q u e a p a r e c e à p r im e ir a v is ta .

COMENTÁRIO: DETALHADO

Versículos 31-32: Glorificação

O últim o d iscu rso se ab re com u m a p ro clam ação d a glorificação d o Fi-


lho d o H o m em . D epois q u e os g reg o s a p a receram n a cena em 12,20-22,
Jesus a n u n c io u q u e c h e g ara a h o ra e c o m eço u a fala r d a glorificação
d o Filho d o H o m em (12,23.28-29). T em os sa lie n ta d o (vol. 1, p. 772) q u e
a lg u n s estu d io so s ju n ta ria m a q u ela seção d o cap. 12 a 13,31. E inclusive
possível q u e estejam os tra ta n d o d e u m a d u p licação , esp ecialm en te já
q u e os c ap ítu lo s 11-12 p o d e m ter tid o u m a histó ria in d e p e n d e n te e ter
sid o an ex ad o s ao e v an g elh o p ro p ria m e n te d ito so m en te n o ú ltim o está-
gio red acio n al (vol. 1, p p . 695, 71 ls). Seja com o for, n ã o h á co n trad ição
em h a v e r d u a s p roclam ações d a glorificação d o Filho d o H o m em . D e
u m lad o , a v in d a d o s gregos p ro cla m o u o início d a glorificação, p o is
p refig u ra ram to d o s os h o m en s q u e seriam a tra íd o s a Jesus q u a n d o ele
fosse e lev ad o ao Pai (12,32). P o r o u tro lado, a traição d e Ju d a s, aceita
p o r Jesus (13,27), rea lm e n te in a u g u ro u o processo d a p a ssa g e m d e Je-
sus d este m u n d o p a ra o Pai. T em -se su g e rid o q u e o "a g o ra " d o v. 31 se
refere p rim a riam e n te ao lav a-p és com seu sim bolism o d a m o rte a u to
sacrificial d e Jesus; p o rém , m ais d ire tam e n te , se refere à situ ação p ro -
d u z id a p ela p a rtid a d e Ju d a s d a ú ltim a ceia, q u a n d o sai e m b u sca d a
g u a rd a e so ld ad o s q u e p re n d e rã o Jesus e o e n tre g a rã o à m o rte.
Já e n fa tiz a m o s q u e a in te rp re ta ç ã o q u e João d á d a glo rificação d e
Jesus co m o rela cio n a d a com o so frim e n to e m o rte é p re fig u ra d a em
Is 52,13 (vol. 1, p . 773). D. H ill , N TS 13 (1966-67), 281-85, su g e re q u e
a m esm a relação d e g ló ria e m o rte a p a re c e n a tra d içã o sin ó tica em
M c 10,35. Ali, T iago e ]oão são in fo rm a d o s d e m a n e ira fig u ra tiv a q u e
só é p o ssív e l p a rtilh a r d a g ló ria d e Jesus a tra v é s d o so frim e n to e d a
m o rte ("Sois c a p az e s d e b e b e r o cálice q u e e u b eb o , o u se r b a tiz a d o s
com o b a tism o com q u e e u so u b a tiz ad o ? ").
A m u d a n ç a d e u m tem p o p reté rito n o v. 31 ("tem sid o g lorificado")
p a ra u m tem p o fu tu ro n o v. 32 ("glorificará") tem p ro v o c a d o m u ito
com entários. A liás, a ideia n o v. 31 d e q u e Jesus já foi g lorificado ilu stra
49 · O último discurso: - Primeira seção (introdução) 981

que, co m eçan d o com o p rim e iro v ersículo d o ú ltim o discurso, h á u m


problem a d e p e rsp ectiv a d e tem po, d isc u tid o acim a (p. 948). Bultmann,
p. 401, tem u s a d o o p re té rito d o v. 31 p a ra ju stificar su a reo rd e n a çã o
em q u e o cap. 17 p re c e d e 13,31, a firm a n d o q u e o v. 31 é o c u m p rim e n -
to d a o ração d e Jesus p o r glorificação em 17,1. N ã o o b sta n te , com o
Bultmann m esm o reco n h ece, o tem a d e g ló ria q u e d o m in a a se g u n d a
p arte d o e v a n g e lh o (O L ivro d a G lória) é p re té rito , p re se n te e fu tu ro ,
visto q u e to d o o p ro ce sso é v isu a liz a d o d e u m a p e rsp e c tiv a e te rn a
(talvez p ro d u z id a p e la m escla d a p e rsp e c tiv a d a n o ite a n te s d e Jesus
m o rrer e d a p e rs p e c tiv a d o ú ltim o p e río d o d a co m p o sição d o evan-
gelho). A m e sm a m escla d e p re té rito e fu tu ro q u e e n c o n tram o s em
13,3132‫ ־‬foi v isto em 12,28: "Já o te n h o g lo rificad o , e o glorificarei ou -
tra vez" (veja d isc u ssã o d e T hüsing : o p re té rito (aoristo em 31) é com -
plexo, refe rin d o -se a to d o o p ro ce sso d a p aix ão , m o rte, ressu rreição e
ascensão q u e o c o rre m em "a h o ra " ; o fu tu ro em 32 se refere à glória
que se g u irá q u a n d o o F ilho v o lta r à p rese n ç a d o P ai (cf. 17,5).
E stes d o is v ersícu lo s são tam b é m in te ressa n te s, já q u e se referem
a "o F ilho d o H o m e m " , u m títu lo q u e o co rre so m e n te a q u i n o L ivro
da G lória, q u a n d o c o m p a ra d o aos d o z e ex em p lo s n o Livro d o s Si-
nais. M en cio n am o s n a n o ta so b re 1,51 q u e h á n a tra d iç ã o sinótica três
tipos d e d ito s so b re o F ilho d o H o m em . O v. 31 (tam b ém 3,14) d ev e
ser u m e x e m p lo d o s e g u n d o tip o d e d ito q u e se refere ao so frim en to
do Filho d o H o m e m . A id eia d e q u e o Filho d o H o m e m foi glorifi-
cado n o p ro ce sso d e m o rte e ressu rre içã o p o d e ser c o m p a ra d a com
Mc 8,31: "O F ilho d o H o m e m d e v e so frer m u ita s coisas e d e p o is d e
três d ias re s s u rg irá " . O v. 35, p o r o u tro lad o , v isto q u e fala d e glorifi-
cação fu tu ra (q u e se rá v ista p e lo s se g u id o re s d e Jesus: 17,24), seria u m
exem plo d o terceiro tip o d e d ito e p o d e ser c o m p a ra d o com M c 13,26:
"E ntão v e rã o o F ilho d o H o m e m v in d o n a s n u v e n s c om g ra n d e p o d e r
e glória". N o e n ta n to , talv ez seja u m ta n to e q u iv o c a d o in te rp re ta r o
uso q u e João faz d o títu lo à lu z d o u so sinótico; p a ra u m a co m p aração
do p re s e n te v e rsíc u lo com 17,1 ("G lorifica te u F ilho p a ra q u e o Filho
Te g lo rifiq u e") su g e rim o s q u e , p a ra João, o títu lo "F ilho d o H o m e m "
se to rn a in te rca m b iá v e l com "o F ilho [de D eu s]". C o m p a re tam b ém
estes d o is títu lo s em 3,13-17, e veja os a rtig o s n a m esm a lin h a d e E. D.
Freed, JBL 86 (1967), 402-9, e H .-M . D ion , ScEccl 19 (1967), 49-65. U m a
n o va an á lise d o s d ito s jo an in o s so b re o títu lo F ilho d o H o m e m já foi
feita p o r S. S. S malley, N T S 15 (1968-69), 278-301.
982 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

Versículo 33: A partida

A ex p re ssã o a fe tu o sa, " m e u s filh in h o s" (v er n o ta), é p a rtic u la r-


m e n te a p ro p ria d a se a ú ltim a ceia for tid a co m o u m a ceia p ascal, p o is
o s p e q u e n o s g ru p o s q u e se re u n ia m p a ra co m er a ceia p a sca l tin h a m
d e m o d ela r-se à v id a d a fam ília, e u m d o g r u p o tin h a d e a g ir co m o
u m p a i q u e explica aos filhos o sig n ificad o d o q u e e sta v a s e n d o feito.
A e x p re ssã o é tam b é m m u ito a p ro p ria d a se o ú ltim o d isc u rso é tid o
co m o u m d isc u rso d e d e s p e d id a , p o is n e ste g ê n e ro lite rá rio a cena às
vezes é d e u m p a i m o rib u n d o in stru in d o seu s filhos. E xem plos d e p a r-
ticular in teresse em v ista d o contexto em João (v. 34 m en cio n a o m an -
d a m e n to d e a m o r recíproco) são e n c o n trad o s n o s Testamentos dos Doze
Patriarcas, u m a obra ju d aica com in terp o laçõ es cristãs, o u talv ez u m a
o b ra cristã d e p e n d e n te d e fontes judaicas. "M eu s filhos, c u id a d o com
o ódio... p o is ó d io é n ã o q u e re r o u v ir as p a la v ra s d o s m a n d a m e n to s
d e D eus co n cernentes ao a m o r d o p ró x im o " (Gad 4,1-2). "A g o ra, m eu s
filhos, q u e cad a u m a m e a seu irm ão... a m a n d o u n s ao s o u tro s" ( Gad
6,1). Veja tam b ém Zebulom 5,1; 8,5: José 17,1-2; Issacar 7,6-7; Simeão 4,7.
A afirm ação d e Jo 13,33, "M eu s filhinhos", e u v o u c o n tin u a r convosco
só p o r p o u co tem p o ", n ã o é d iferen te d e Ruben 1,3, "M eu s filhinhos,
esto u m o rre n d o e sigo o cam in h o d e m e u s p ais". D o m esm o m o d o q u e
Jesus p e rto d e p a rtir d á m a n d a m e n to a seu s filhinhos, assim o u v im o s
em Ruben 4,5: "M e u s filhos, o b se rv a i tu d o o q u e v o s te n h o o rd e n a d o " .
O tem a d e p a rtid a n o v. 33 tem resso n â n c ia e m 7,33-34 e 8,21:

• "E u v o u c o n tin u a r co n v o sco só p o r p o u c o te m p o " = 7,33 (m as


o ú ltim o tem a p a la v ra chronon q u e falta n o v. 33);
• "V ós m e b u sc are is" (sem a frase "e n ã o m e a c h are is") = 8,21
(7,34 tem "e n ã o m e ach areis");
• " P a ra o n d e e sto u in d o , n ã o p o d e is ir" = 8,21 (7,34 tem " a o n d e
v o u e sta r".

N o s caps. 7 e 8, Jesus estav a a d v e rtin d o "os ju d e u s" q u e n ão po -


d iam en co n trá-lo p o rq u e n ão criam nele; m as n esta p a ssa g e m as m es-
m as p a la v ras d ita s a seus d iscíp u lo s são u m a p re p a ra ç ã o p a ra su a p a r-
tida e retomo. (Os d iscíp u lo s n ã o p o d e m ir p a ra o n d e Jesus está in d o ,
m as, su b seq u en tem en te, Jesus e o P ai v irã o a eles [14,23]). A id eia d e
q u e o v. 33 é tam b ém u m a ad v ertên cia p o rq u e p re p a ra p a ra a p red iç ão
49 · O último discurso: - Primeira seção (introdução) 983

da neg ação d e P e d ro n o s vs. 36-38 dificilm ente é correta. A expressão,


"M eus filh in h o s", d á ao v ersículo u m a to n alid a d e d e tern u ra; e certa-
m ente as p a la v ra s d e Jesus, n o v. 36, in te rp re ta m a afirm ação d o v. 33
com o u m a p ro m e ssa d e felicidade final ("m e seg u ireis depois"). Veja
tam bém a p a ssa g e m paralela em 16,4ss., a q u a l p ro m e te u m re to m o e
presença co n tín u a atrav és d o Parácleto. N a v e rd a d e , a sim ilarid ad e de
13,33 a 7,33-34 e 8,21 n ão é q u e to d o s são casos d e ad v ertên cias, m as
na m á-co m p reen são d e q u e recebe tan to a p ro m essa d e 13,33 com o a
ad vertência d e 7 e 8. Em 13,37, P e d ro d e m o n stra q u e ele n ão co m preen-
de p o r q u e n ã o p o d e ir c om Jesus.

Versículos 34-35: O mandamento do amor

V isto q u e o s d isc íp u lo s n ã o p o d e m se g u ir Jesus q u a n d o ele dei-


xar esta v id a , receb em u m m a n d a m e n to q u e, se o bedecido, m an terá
vivo e n tre eles o e sp írito d e Jesus e n q u a n to c o n tin u a re m v iv en d o nes-
te m u n d o . O m a n d a m e n to d e a m o r recíp ro co a p arece o u tra v ez no
últim o d isc u rso em 15,12 e 17, e é o tem a d e d iscu ssão em l jo 2,7-9;
3,23; 4,21; 5,2-3; 2Jo 5. A p ró p ria id eia d e q u e o a m o r é u m m an d a m e n -
to resu lta in te ressa n te . N o A T, o s d e z m a n d a m e n to s têm u m cenário
na aliança e n tre D eu s e Israel n o Sinai; tra d icio n a lm e n te , e ra m as esti-
p ulações q u e Israel tin h a d e o b se rv a r se q u isesse ser o p o v o e scolhido
de D eus. A o fala r d o a m o r co m o o n o v o m a n d a m e n to p a ra aq u eles
a q u e m esco lh era co m o os se u s (13,1; 15,16) e com o u m a m arca p ela
qual p u d e s s e m ser d istin g u id o s d o s d e m a is (v. 35), o e v a n g elista m os-
tra im p lic ita m en te q u e ele e stá p e n s a n d o n a cena d e sta ú ltim a ceia em
term os d e alian ça. O s rela to s sin ó tico s d a E ucaristia to rn a m isto espe-
cífico (Mc 14,24: " m e u sa n g u e d a alian ça"; Lc 22,20: "a nova aliança
em m eu sa n g u e " ; ta m b é m IC o r 11,25).
T odavia, o a m o r é m ais q u e u m m an d am en to ; é u m dom ; e, com o
os outros d o n s d a dispensação cristã, ele vem d o Pai através d e Jesus
aos q ue creem nele. N o cap. 15,9 ouvim os: "C om o o Pai m e tem am ado,
assim tam b ém e u vos am o"; e em am bos, 13,34 e 15,12, o "com o vos te-
nho am ad o " en fatiza q u e Jesus é a fonte d o a m o r recíproco do s cristãos.
(Só secu n d ariam en te se refere a Jesus com o o p a d rã o d o am o r cristão).
O am or q u e Jesus tem p o r seus seguidores é n ão só afetivo, m as tam -
bém efetivo: efetua a salvação. Ele é expresso em seu ato d e entregar sua
vida, e o ato d o a m o r q u e d á v id a aos hom ens. Isto é b em expresso em
984 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

A p 1,5: "... a q u ele q u e n o s am a e lib erto u [ou lavou]-nos d e nossos pe-


cados". D evem os enfatizar ainda q u e o "am o r m ú tu o " d e q u e fala o Je-
sus joanino é o am or entre cristãos. Em nossos dias, u m frequente ideal é o
am o r d e todos os hom ens, enunciado em term os d a p atern id ad e d e D eus
e a irm an d ad e d e todos os hom ens. Tal m áxim a tem certa fundam enta-
ção bíblica n a criação d e todos os hom ens p o r D eus (veja M t 5,44), m as
a ideia não é joanina. Para João, D eus é Pai som ente do s q u e creem em
Seu Filho e q u e são gerados com o filhos d e D eus pelo Espírito n o Batismo.
O "u n s aos outros" que o cristão deve am ar é corretam ente definido em
ljo 3,14, com o "nossos irm ãos", isto é, aqueles d entro d a co m u n id ad e
(veja o u so d e "irm ãos" em Jo 21,23). N esta ênfase, João n ão está longe d o
pensam ento d e Q u m ran (veja nossa discussão em CBQ 17 [1955], 561-64,
reim presso em NTE, pp. 123-26 ou 163-67). E nquanto os ad ep to s d e
Q u m ran sequer prestavam atenção p ara os d e fora, m as suas ênfases sobre
o am or fraternal eram edificantes. Eram instruídos a "am ar todos os filhos
d a luz, cada u m segundo sua p arte n os desígnios d e D eus, e o diar a todos
os filhos d as trevas, cada qual segundo sua culpa e o lu g ar q u e lhe corres-
p o n d e na vingança divina" (1QS 1,9-11). Todavia, en q u an to p ara Q u m ran
o am o r é u m d ever consequente sobre os pertencentes à com unidade, p ara
João, o am or d e Jesus pelos hom ens é elem ento constitutivo d a com unidade.
Em q u e se n tid o o m a n d a m e n to d o a m o r m ú tu o é u m "novo m an -
d a m e n to "? E stu d io so s c ristão s fre q u e n te m e n te têm te n ta d o e x p lic ar a
n o v id a d e c o n tra sta n d o com a a titu d e v e te ro te sta m e n tá ria p a ra co m o
próxim o. A o m a n d a m e n to d a d o ao israelita p a ra a m a r seu se m e lh an te
com o a si p ró p rio (Lv 19,18) foi a c re sc en ta d o n o A T u m m a n d a m e n to
sim ilar d e a m a r o e stra n g e iro q u e h a b ita sse e n tre os isra e lita s (19,34);
m as n ã o h á n o A T clara ev id ê n c ia d e q u e estes m a n d a m e n to s recebe-
ra m ên fase especial. T o d av ia, u m a ê n fase so b re a m a r o se m e lh a n te é
a te sta d o n o ju d a ísm o in te rte sta m en tá rio ; p o r ex em p lo , p o r p a rte d e
H illel (PirqeAboth i 12). A n o v id a d e n o e n sin o d e Jesus tem sid o c re d ita -
d a ao fato d e ele d a r ao m a n d a m e n to d o a m o r ao p ró x im o u m a im p o r-
tân cia u n ic a m e n te a n te a o m a n d a m e n to d o a m o r a D e u s (M c 12,28-31;
M t 22,34-40) e p o r d e fin ir "p ró x im o " em u m se n tid o m u ito a m p lo
(Lc 10,29-37). Se esta a b o rd a g e m é v á lid a p a ra a tra d iç ã o sin ó tica,
n ã o p o d e m o s d isc u tir a q u i (Lc 1 0 ,2528‫ ־‬tem u m escrib a, n ã o Jesu s,
asso ciad o a d o is m an d a m e n to s). M as tal c o n tra ste com o A T lan -
ça p o u c a lu z so b re a n o v id a d e d o m a n d a m e n to d o a m o r e m João;
p o is o Jesus jo an ino n ão m enciona dois m an d a m e n to s (veja n o ta so b re
49 · O último discurso: - Primeira seção (introdução) 985

ljo 4,21) e, co m o já vim os, seu conceito d e " o u tro " n ã o é abrangente.
A fo rm u lação d o m a n d a m e n to joanino, "A m ai-vos u n s aos o u tro s", não
recorda Lv 19,18 tão d ire tam e n te com o faz o v ocabulário sinótico. Este
tam bém to m a d u v id o sa a su g estão d e q u e a n o v id ad e consiste n o fato
de q u e Jesus m a n d e q u e o cristão a m e "com o e u vo s ten h o am ad o ",
en q u an to o A T m a n d a q u e o israelita am e seu p ró x im o como a si mesmo.
B. Schwank, "Der Weg", 103-4, ao refu tar p e re m p to ria m e n te a ideia d e
que o m a n d a m e n to joanino é n o v o m ed ia n te contraste com o m an d a-
m ento d o AT, salienta que, ao a rg u m e n ta r em p ro l d a necessidade d e
se am ar u n s aos o u tro s, l jo 3,11-12 to m a d o AT u m exem plo negativo,
com o se o m a n d a m e n to d o a m o r fosse o brigató rio n o s dias d o AT.
A n o v id a d e d o m a n d a m e n to d o a m o r rea lm e n te se relaciona com
o tem a d e alian ça n a ú ltim a ceia - o "n o v o m a n d a m e n to " d e Jo 13,34 é
a estip u lação básica d a "n o v a alian ça" d e Lc 22,20. A m bas expressões
refletem a p rim itiv a c o m p re en sã o cristã d e q u e em Jesus e seus segui-
dores se c u m p riu o id eal d e Jerem ias (31,31-34): "Eis q u e v êm dias, diz
o Senhor, em q u e farei u m a aliança n o v a com a casa d e Israel e com a
casa d e J u d á ". (P ara Jerem ias, esta era u m a aliança m ais re n o v a d a m ais
do q u e u m a n o v a aliança, e e sta p ro v a v e lm e n te foi tam b ém a in terp re-
tação cristã m ais an tig a, com ên fase n a n a tu re z a rad ical e escatológica
da renovação). E sta n o v a aliança tin h a d e ser in te rio riz a d a e m arc ad a
pelo c o n ta to ín tim o d o p o v o com D eus e co n h ecim en to d ele - u m co-
n h ecim en to q u e é o e q u iv a le n te d e a m o r e u m a v irtu d e p actu ai. O s te-
m as d a in tim id a d e , h ab itação e u m co n h ecim en to m ú tu o ap arecem ao
longo d o ú ltim o d iscu rso . S alien tam o s a n te rio rm e n te os p a ra lelo s d e
Q u m ran co m o tem a jo an in o d e a m o r fratern al; n ão é a cid en tal q u e a
c o m u n id a d e d e Q u m ra n fale d e si m esm a e d e su a v id a com o "a alian-
ça d e m isericó rd ia [graça]" (1QS 1,8), "a alian ça d a c o m u n h ã o [unida-
de] e te rn a " (3,11-12, e "a n o v a alian ça" (CD 6,19; 20,12).
A m arca q u e d istin g u e o a m o r d e D eus expresso n a aliança inclu-
sive d a s m ais n o b res form as d o a m o r h u m a n o é q u e ele é esp o n tân eo
e não m o tiv ad o , d irig id o aos h o m en s q u e são p ecad o res e in d ig n o s d o
am o r - u m tem a b e la m en te e x p o sto n a ob ra clássica d e A nders N vgren
Agape and Eros. A g e n e ro sid ad e d o a m o r d e D eus já era conhecida p o r
Israel (D t 7,6-8), e p o r isso d e certa m an eira o conceito cristão d e am o r
não é n o v o (cf. l jo 2,7-8). T odavia, v isto q u e a g e n e ro sid ad e d o am or
d e D eus n ã o p o d e ría ser p len a m en te conhecida até q u e ele d esse seu
p ró p rio Filho, p o r isso p o d e-se afirm ar tam b ém q u e o conceito cristão
986 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

d e a m o r o riu n d o d e Jesus é novo. O v. 35 d iz q u e m esm o os "estra n h o s"


reconhecerão a d istin ção d o a m o r cristão. O m esm o tem a a p arece em
17,23, o n d e lem os q u e a atenção d o m u n d o será a tra íd a p elo a m o r e
u n ião q u e existem e n tre o Pai, o Filho e os d iscíp u lo s cristãos. Tal a m o r
desafia o m u n d o assim com o Jesus desafiou o m u n d o , e leva os h o m en s
a fazerem su a escolha pela luz. A ssim , e n q u a n to o am o r cristão estiver
no m u n d o , o m u n d o n ão d eixará d e en co n trar-se a n te Jesus; e assim po-
d em o s v er q u e o m a n d a m e n to d o am o r, nos vs. 3 4 3 5 ‫־‬, é u m a resp o sta
ao p ro b lem a su scitad o pela p a rtid a física d e Jesus no v. 33.

Versículos 36-38: Predição da negação de Pedro

Já m en c io n am o s q u e a p e rg u n ta d e P e d ro , "P a ra o n d e estás
in d o ?", n o v. 36 tem certo p a ra le lism o com 16,5: " N e n h u m d e vós
m e p e rg u n ta : 'P a ra o n d e estás in d o ? '" P ro v a v elm en te sejam fo rm a s
v a ria n te s d o m esm o in cid en te. O rea rra n jo d e B u ltm a n n n o q u a l 13,36
seg u e ao cap. 16 na v e rd a d e n ão é p ro v eito so , p o is e n tã o a p e rg u n -
ta "P ara o n d e estás in d o ?" seria logo a p ó s 16,28 ("E stou in d o p a ra o
Pai") e u m a n o v a lógica seria criad a. Em su a a tu a l se q u ên c ia, o v. 36
reto m a o tem a d a p a rtid a d e Jesus d o v. 33.
E interessante com parar a cena joanina com Lc 22,31-34, o n d e a predi-
ção da negação d e Pedro é posta d u ran te a últim a ceia em u m breve discur-
so seguindo a Eucaristia, e com Mc 14,26-31 e M t 26,30-35, o n d e a predição
é d ad a p o r Jesus d e cam inho para o M onte das Oliveiras.

Marcos/Mateus Lucas
Jesus adverte que os Veja 15,32
I discípulos fugiríam e se
Ξ dispersariam. Jesus adverte Pedro que Pedro pergunta para onde
Satanás o peneiraria, Jesus está indo. Jesus lhe
porém ele sobreviverá. informa que ele só poderá
) mais tarde.
Pedro diz que não Pedro diz que está pronto Pedro diz que está pronto
deserdará, ainda que os para ir para a pnsao e a dar sua vida a fim de
outros o façam para a morte. segui-lo.
Jesus prediz que Pedro ' jesus prediz que Pedro o Jesus prediz que Pedro o
o negará antes que galo negará antes que o galo negará antes que o galo
cante (Marcos: o galo cante. cante.
canta segunda vez).
Pedro diz que morrerá
em vez de negar Jesus. Os
outros dizem o mesmo.
49 · O último discurso: - Primeira seção (introdução) 987

O s p re lim in a re s são d istin to s n o s três relatos; Jo 16,32 tem u m a


sim ila rid a d e co m M a rc o s /M a te u s , e Jo 13,36 tem u m a ligeira sim ila-
rid ad e com L ucas. E n q u a n to à p re d iç ã o em si h á d o is p o n to s gerais
em co m u m : a d isp o siç ão d e P e d ro d e m o rre r e a p re d iç ã o d a negação
antes q u e o g alo cante. M as, se e x a m in arm o s estes p o n to s co m u n s,
ainda h á n u m e ro s a s d ife ren ç a s q u a n to ao s d etalh es.
Primeiro, a d isp o siç ão d e P e d ro d e m o rre r. Em M a rc o s /M a te u s
isto seg u e a p re d iç ã o d e Jesus d a n egação; em L ucas e João, ela prece-
de ao m esm o . O fra se a d o d a a firm a ç ão d e P e d ro é b e m v ariad o :

M a rc o s /M a te u s: " A in d a q u e e u m o rra co ntigo, n ão te n e g a re i".


Lucas: " E sto u p ro n to a ir co n tig o p a ra a p risã o e p a ra a m o rte ".
João: " P o r ti d a re i a m in h a v id a " .

N a s d u a s p rim e ira s fo rm a s d a afirm ação , P e d ro está p ro n to a


a c o m p a n h a r Jesu s a té a m o rte; n a fo rm a d e João, P e d ro sacrificará sua
p ró p ria v id a p a ra sa lv a r a v id a d e Jesus. E m João, a cena tem m ati-
zes teo ló g icas d e fin id as. O P e d ro jo an in o fala com o u m d iscíp u lo q u e
tem o u v id o Je su s in sistir q u e o b o m p a s to r está d isp o sto a re n u n c ia r
sua v id a p o r s u a s o v e lh a s (10,11), e, p o r su a im p e tu o sid a d e , P ed ro ,
im p licitam en te, p ro c la m a s u a d isp o siç ão d e c o rre sp o n d e r a esta exi-
gência. Jesus, p o ré m , rejeita o o ferecim en to d e P ed ro , p o is P e d ro está
ex cessiv am en te confiante. (H á u m ele m en to d e excessiva confiança
da p a rte d e to d o s o s d isc íp u lo s n a cena rela cio n a d a em 16,2932‫ ־‬- veja
co m en tário ali). P e d ro n ã o av alia c o rre ta m e n te su a p ró p ria fra q u e z a
ou a d ific u ld a d e d e se g u ir Jesus, p o rq u a n to a m o rte a q u e Jesus seg u e
en volve lu ta c o n tra o p rín c ip e d e ste m u n d o . S o m en te q u a n d o Jesus o
tiver v en cid o , o u tro s p o d e rã o seguí-lo. D ep o is d a ressu rre içã o , Jesus
oferecerá a P e d ro o p a p e l d e p a s to r e ao m esm o te m p o p re d iz com o
P ed ro re a lm e n te d a rá su a v id a (21,15-19). E n tão as p a la v ra s d e Jesus
a P ed ro , "S e g u e-m e", c u m p rirã o a p ro m e ssa d a d a em 13,36: "T u m e
seg u irás m ais ta rd e " . C o m o Bultmann , p. 461, o b serv a, o "m a is ta rd e "
do v. 36 e q u iv a le a " d e p o is" d e 13,7 - a m b o s se referem ao p e río d o
ap ó s "a h o ra " . A lu z d e ste tem a jo an in o im p lícito d e p a sto r, é interes-
sante q u e M a rc o s /M a te u s n o s in fo rm e q u e, a n te s d e Jesus p re d iz e r a
negação d e P e d ro , ele cito u Zc 13,7: "E u ferirei o pastor, e as ov elh as
ficarão d isp e rsa s" .
Segundo, a p re d iç ã o d a n e g a çã o d e P e d ro a n te s d e o g alo cantar:
988 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

M a rc o s /M a te u s: "E u te a sse g u ro , [M arcos: hoje] n e sta m esm a


n o ite, a n te s q u e o galo ca n te (M arcos: d u a s v ezes], tu m e n eg a-
rá s [aparneisthai] trê s v ezes".
Lucas: "P e d ro , e u te a sse g u ro q u e hoje o g alo n ã o c a n ta rá a té q u e
m e te n h a s n e g a d o [aparneisthai] trê s v e z es q u e m e co n h eces".
João: "C o m to d a firm eza e u te a sse g u ro , o g alo n ã o c a n ta rá a n te s
q u e m e n e g u e s [arneisthai] três v ezes".

A fo rm a jo an in a d a sen ten ça n ã o tem n e n h u m d o s d e ta lh e s p e c u -


liares a M arcos, m as p a rtilh a o s a sp ec to s c o m u n s com M a te u s e L ucas.
T o d av ia, aí p e rm a n e c e m d ife ren ç a s in ex p licáv eis e m u m a teo ria ba-
se ad a em e m p ré stim o ; p ro v a v e lm e n te u m d ito d e Jesus foi tra n s m itid o
com fo rm as lig e ira m e n te v a ria n te s. A d m itid o to d a s a s o u tra s d ife ren -
ças q u e tem o s visto, n ão tem o s ra z ã o p a ra d u v id a r q u e D odd , Tradition,
p p . 55-56, está certo q u a n d o in siste q u e o re la to q u e João faz d a cena
é in d e p e n d e n te d o s rela to s sinóticos. N ã o é p o ssív e l d e te rm in a r q u a l
d e ste s rela to s é o m ais o rig in a l (em b o ra o re la to d e João seja e stre ita-
m en te in te g ra d o n o s in te resse s teológicos joaninos); talv e z e le m en to s
d o q u e u m a v e z foi u m a cen a m ais ex ten sa te n h a m sid o tra n s m itid o s
em cad a u m a d a s v á ria s trad içõ es.

[A B ibliografia p a ra esta seção e stá in clu sa n a B ibliografia e n co n -


tra d a n o final d o § 52).
5 0 .0 ÚLTIMO DISCURSO:
- PRIMEIRA SEÇÃO (PRIMEIRA UNIDADE)
(14,1 -14)

Jesus é o caminho para o Pai para todos que creem nele

14 1" N ã o se tu rb e o s v o sso s corações.


T e n d e s fé em D eus; en tã o , te n d e s fé e m m im .
2N a casa d e m e u P ai h á m u ita s m o ra d a s;
se n ão , e u v o s teria av isad o .
E sto u in d o p re p a ra r u m lu g a r p a ra vós;
3e q u a n d o eu for e p re p a ra r-v o s u m lu g ar,
e n tã o v o lta re i p a ra lev ar-v o s com igo,
p a ra q u e , o n d e e u e sto u , estejais tam b ém .
4E co n h eceis o c a m in h o p a ra o n d e e sto u in d o ".

5"S en h o r", d isse T om é, " n ã o sa b em o s p a ra o n d e estás in d o . E ntão,


com o p o d e m o s co n h ecer o cam in h o ?" 6Jesus lh e disse:

"E u so u o c a m in h o e a v e rd a d e e a vida:
n in g u é m v e m a o P ai se n ão p o r m e u in te rm é d io .
7Se v ó s, re a lm e n te m e conhecésseis,
e n tã o ta m b é m co n h ecerieis a m e u Pai.
D esd e a g o ra v ó s O co n h eceis e O te n d e s v isto ".

5: disse; 6: disse. N o presente histórico.


990 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

8"S en h o r", d isse F ilipe, "m o stra -n o s o Pai. Isso n o s b a sta " . 9"F ilip e",
rep lico u Jesu s, "eis q u e e sto u co n v o sco a ta n to tem p o , e a in d a n ã o m e
conheceis?

T o d o a q u e le q u e m e tem visto , tem v isto o Pai.


E ntão, co m o p o d e is d izer: 'M o stra -n o s o P ai'?
10N ão c re d e s q u e e u e sto u n o Pai
e q u e o P ai está em m im ?
As palavras que eu digo a vós, não as digo de m im mesmo;
é o Pai, h a b ita n d o em m im , q u e realiza as o b ras.
11C red e-m e q u e e sto u n o Pai
e q u e o P ai está em m im ;
se n ão , crede[-m e] p o r ca u sa d a s obras.
12E u v o s a sse g u ro com to d a firm eza:
q u e m crê em m im
fará as o b ras q u e e u faço.
A liás, fará até m aio res q u e estas,
p o rq u e v o u p a ra o Pai,
13e tu d o o q u e p e d ird e s e m m e u n o m e
e u o farei,
p a ra q u e o P ai seja g lo rificad o n o Filho.
14Se m e p e d ird e s a lg u m a coisa, em m e u n o m e,
e u o farei".

8: disse; 9: replicou. No presente histórico.

NOTAS

14.1. Não. O C od ex Bezae, OL e OSsin têm u m verso in trodutório n ão preser-


v ad o na m aioria das testem unhas textuais: "E e le d isse a seu s d iscíp u los" .
Se este verso fosse original, então confirm aria a separação entre 13,38 e
14,1, com o su gerid o à p. 978. Entretanto, é bem p rovável q u e fo sse apenas
um a interpolação litúrgica para facilitar a leitura em público. "Jesus d isse
a seu s discípulos" é prefixado a m uitas p erícop es d o ev a n g elh o selecio-
nadas para leitura na liturgia romana; por ex em p lo , para esta p erícop e
(14,1-13) na liturgia d e 11 d e m aio (Festa d o s S antos F ilipe e T iago).
corações. U sa-se o singular, com o tam bém em 14,27; 16,6.22. MTGS, p. 23,
observa: "Contrário ao grego norm al e à prática latina, o N T s e g u e a
50 · O último discurso: - Primeira seção (primeira unidade) 991

preferência aram aica e hebraica para u m sin gu lar d istributive". N o A T e


n o s e v a n g e lh o s sin óticos, geralm en te "coração" é a se d e d a s d ecisões; na
m aioria d o s u so s joaninos, ele tem u m p ap el afetivo.
se turbe. E ste verb o, tarassein, foi u sa d o para d escrev er as e m o ç õ e s d e Je-
su s q u a n d o con fron tad o com a m orte d e Lázaro em 11,33 ("ele pertur-
bou -se" ) e an te a traição da parte d e Judas, q u e lh e entregaria à m orte
(13,21).
Tendes fé. T em os trad u zid o isto com o u m in d icativ o , em bora seja igu alm en te
p o ssív el trad u zi-lo c o m o u m im p erativo ("Tende fé"), co m o feito n o OL.
A diferença d e sign ificad o n ão é grande, p o is a tradução im perativa real-
m ente significaria: "Se ten d es fé n o Pai, ten d e fé em m im " (BDF, §3872).
U m paralelo tem ático aparece em M c 11,22-24, o n d e, durante seu s últi-
m os d ias em Jerusalém , Jesus d iz a seu s d iscíp u lo s que tiv essem fé em
D eu s e n ão d u v id a sse m em se u s corações. A palavra hebraica para "fé",
procede da raiz ,mn, tem um a m atiz d e firm eza; ter fé em D eu s equivale
a participar d e sua firm eza - um a ideia m u ito apropriada no presente
contexto.
2. moradas. A significação d o term o grego, moríê, é disputada. M uitos têm
pen sad o q u e ele representa o aram aico. ’wn ’ Çõnâ, o u algum as v ezes
,awaumâ), palavra q u e p o d e referir a um a parada noturna ou p on to de
p ou so para u m viajante em sua jornada. Monê tem u m sign ificad o sim ilar
no grego secular; e O rícenes (De principiis II 9,6; PG 11:246) en ten d e que
João está a referir-se às estações d o cam inho para D eus. Esta poderia ter
sid o tam bém a com p reen são d os tradutores latinos q u e traduziram moríê
por mansio, u m lugar elevad o. Tal interpretação tam bém teria se adequa-
d o à teoria gnóstica d e q u e a alm a, em sua escalada, p assa por estágios
em q u e ela é gradualm ente purificada d e tu d o o que é m aterial. W estcott,
p. 200, aceita "estações" com o sen d o o significado, co n tu d o a forte oposi-
ção d e T. S. Berry, The Expositor, 2nd series, 3 (1882), 397-400. Estaria m ui-
to m ais em harm onia com o p en sam en to joanino relacionar moríê com
o verbo cogn ato menein, frequentem ente u sa d o em João em referência
a ficar, perm anecer, o u habitar com Jesus e com o Pai. J. C. James, ET 27
(1915-16), 427-29, aponta para a inscrição nabateana d o início da era cris-
tã, a qual usa ’w n ’ em ap osição a "túm ulo", com o sen tid o d e u m lugar
de rep ou so o u u m lugar para m orar em p az d ep o is das lutas da vida.
E assim , ao usar moríê, João poderia estar se referindo a lugares (ou situa-
ções) on d e os d iscíp u los p u d essem habitar em paz, p erm anecendo com o
Pai (cf. 14,23). U m interessante paralelo com esse quadro se encontra em
um a obra tardia, 2 Enoque 41,2: "N o m u n d o por vir... há m uitas m oradas
preparadas para o s h om en s, as b oas para o s b o n s e as m ás para os maus".
992 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

na casa de meu Pai. Há considerável evidência patrística para a redação


"com m eu Pai"; Boismard, RB 57 (1950), 388-91, insiste que esta é a reda-
ção original. As duas redações gregas poderíam ser traduções alternati-
vas da mesma frase semítica (b)bêt 'abbâ; veja Boismard, Évjean, p. 52.
Entretanto, "com m eu Pai" pode representar tam bém um a reinterpreta-
ção teológica de "na casa de m eu Pai": veja comentário. Irineu (Contra
Heresia 5.36:2; PG 7:1223) cita as palavras "na (casa) de m eu Pai há mui-
tas m oradas" aparentem ente como um dito do Senhor transmitida pelos
anciãos. Quase certam ente ele está se referindo aos anciãos m encionados
por Papias (veja vol. 1, p. 93); contudo, é curioso que ele atribuísse o dito
a eles em vez de ao Q uarto Evangelho que ele conhecia. A lguns têm visto
aqui a confirmação de que o evangelho foi com posto po r João o ancião
(João o Presbítero); outros têm argum entado que Irineu estava citando
um a tradição independente e não do evangelho. Veja B. W. Bacon, ET 43
(1931-32), 477-78.
eu vos teria avisado. Literalmente, "eu vos teria dito" ou, possivelm ente, "eu
vos teria informado?". Há excelente, porém não conclusiva, evidência
de ms. para ler a conjunção hoti, "que" ou "porque", depois do verbo
"dizer" (Isto poderia ter sido um a tentativa dos copistas de esclarecer a
parataxe de João). Esta redação com hoti torna possível quatro possíveis
traduções do prim eiro verso:

(a) "se não, eu vos teria dito [= advertido], porque estou indo preparar...".
(b) "se não, então eu vos teria dito, porque estou indo preparar...?"
(c) "se não, eu vos teria dito que estou indo preparar...".
(d) "se não, eu vos teria dito que estou indo preparar...?"

Só se pode fazer sentido a tradução de (a) se "se não, eu vos teria dito"
for posto entre parênteses, e nesse caso a verdadeira sequência é: "Na
casa de m eu Pai há m uitas m oradas (...) porque estou indo preparar-
vos um lugar". Ambos, (b) e (d), dependem de afirmações anteriores de
Jesus; todavia, Jesus não disse anteriorm ente a seus discípulos que há
m uitas m oradas na casa de seu Pai (b) ou que estava indo preparar-lhes
um lugar (d). Pode-se fazer sentido de (c): se não houvesse aposentos,
Jesus lhes teria dito que partiría para preparar-lhes um lugar. Todavia,
como o v. 3 indica, realmente não é um a questão de Jesus dizer-lhes que
estava partindo, m as de sua ida real. Seja como for, a tradução sem hoti
faz m elhor sentido.
estou indo. Aqui e no v. 3 o verbo é poreuesthai; no v. 4, como em 13,33.36, o
verbo é hypagein. Sobre outras variantes, veja nota sobre 16,5.
50 · O último discurso: - Primeira seção (primeira unidade) 993

um lugar. Em A p 12,8, topos é u sa d o para design ar u m lugar n o céu. A lgu n s


com parariam o p a p el d e Jesus, in d o e preparando lugar para seu s dis-
cíp u los, co m H b 6,20, o n d e lem o s q u e Jesus entrou n o Santo d o s Santos
d o tem p lo celestial "com o precursor em n o sso favor". O utros têm visto
um a sem elh an ça com o perfil d o salvad or g n ó stico q u e leva as alm as
escolh id as da terra para o céu. A ú ltim a com paração sem p re enfrenta a
d ificu ld ad e da diferença entre o m ito gn óstico da d iv in iza çã o d o hom em
e o ev a n g elh o cristão da v id a d o Jesus histórico.
para vós. A seq u ên cia d esta frase varia em u m as p o u ca s testem u n h as gre-
gas para o v. 2 e em m u ito m ais para o v. 3. T alvez u m d o s d o is casos de
sua ocorrência seja u m esclarecim ento d a parte d o s copistas.
3. quando eu for. Sobre ean, "se", com o significado "quando", ver BAG, p. 210, § ld .
então voltarei. Em a lg u n s liv r o s d o N T , a p aro u sia é a v in d a d e Jesus
para a q u al se u m in istério era ap en a s u m a preparação. João está m u ito
m ais p erto d e e n ten d er a p arou sia c o m o a se g u n d a v in d a ("volta" ou
"retornar").
levar-vos comigo. L iteralm ente, "levar-vos para m im ". A. L. H umphries, ET
53 (1941-42), 356, argum enta em prol da conotação "levar co m igo para
meu lar". Pros com um p ron om e reflexivo tem um a conotação sim ilar em
20,10; Lc 24,12; IC or 16,2.
4. Outra redação b em atestada (in clu in d o P66') é: "Sabeis para o n d e estou
in d o e con h eceis o cam inho"; é grego am en iza d o , m as p or essa m esm a
razão su sp eita -se q u e h o u v e sse m elh oram en to redacional. P o d e-se ter
su gerid o pela d iv isã o q u e aparece na afirm ação d e T om é n o v. 5 . D o d d ,
Interpretation, p. 4121, p en sa q u e estas redações alternativas interpretam
erroneam ente o v . 4; p o is Jesus tem em vista: "conheceis o cam inho [eu
sou o cam inho], m as não sab eis ao n d e e le con d u z" . A pergunta d e Pedro
em 13,36 se p reocu p ava com o d estin o, e n en h u m a resposta foi dada.
S egu n d o D o d d , a objeção d e T om é n o v . 5 significa: "Se n ão con h ecem os
o d estin o, co m o p o d e m o s conhecer o cam inho?"
5. Tomé. O C od ex B ezae acrescenta: "Este n o m e significa ,G êm eo'", com o
em 1 1 , 1 6 (ver nota ali) e 2 0 , 2 4 . B a r r e t t , p. 3 8 2 , observa: "Tom é aparece
em João com o u m d iscíp u lo leal, p orém ob tu so, cujas incom p reen sões
servem para destacar ainda m ais a verdade".
Então, como podemos conhecer. H á m u itas variantes sem im portância; alguns
m anuscritos im p ortan tes dizem : "nós conhecem os?" O "então" é im plí-
cito n o â m ago da q u estão, se o kai inicial, encontrado em m u itas testem u-
nhas, é o u n ão original.
6 . 0 caminho e a verdade e a vida. H á um a interessante p a ssa g em n o Evangelho
da Verdade (obra gn óstica d o 2a sécu lo d.C ) q u e faz eco a essa s palavras:
994 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

"[O E vangelho] lh es d eu u m cam inho, e o cam in h o é a v erd a d e q u e ele


lh es m ostrou" (18,18-21). É d ig n o d e nota que zõê, "vida", q u e ocorre 31
v e z e s n o Livro d o s Sinais, ocorre som en te quatro v e z e s n o Livro d a G ló-
ria. A gora q u e "a hora" se aproxim a, a vid a realm ente está se n d o d ad a já
não há n ecessid a d e d e falar a respeito.
O p r o b le m a m a is d ifíc il d iz r e s p e ito à r e la ç ã o q u e e s t e s tr ê s s u b s ta n t iv o s

tê m e n tr e s i. D e la P o t t e r ie , pp. 907-13, te m o fe r e c id o u m resu m o das

d is tin ta s o p in iõ e s :

(A ) E xp licações n a s q u a is o caminho se d irig e para u m a lv o q u e é a verdade


e / o u a vida: (1) A m aioria d o s P adres g reg o s, A m b r ó s i o e L e ã o o G ran d e
[Leão I] e n te n d e u o ca m in h o e a v e r d a d e c o m o a c o n d u z ir e m à v id a
(vid a etern a, n o céu ). M a l d o n a t u s ap resen ta u m a v a ria n te, u m a v e z
q u e e le via p or detrás d o g reg o u m h eb ra ísm o n o q u a l a v e r d a d e é
ap en a s u m a d escrição adjetiva d o cam inho: "Eu so u o v e r d a d e ir o ca-
m in h o para a vid a" . (2) C l e m e n t e d e A lexan d ria , A g o s t i n h o e a m aioria
d o s P ad res la tin o s en ten d era m q u e o c a m in h o c o n d u z tan to à v e r d a d e
q u an to à v id a . N e sta in terp retação, tanto v e r d a d e c o m o v id a sã o rea-
lid a d e s d iv in a s e e sc a to ló g ic a s (a v e r d a d e é a m e n te d e D e u s, o Logos).
T o m á s de A q u i n o su ste v e u m a v ersã o m e d ie v a l d a teoria em q u e C risto

era o ca m in h o e m co n fo rm id a d e com su a h u m a n id a d e , m a s a v erd a -


d e e a v id a em co n fo rm id a d e com su a d iv in d a d e . M u ito s e s tu d io s o s
m o d ern o s ain d a su sten ta m essa m esm a teoria, m a s m o d ific a d a ( D e la
P o t t e r i e en u m era W e s t c o t t , V. T a y l o r , L a g r a n g e e B r a u n ) . ( 3 ) O u tro s

e stu d io so s m o d e r n o s (W . B a u e r , B u l t m a n n e D o d d ) in terp reta m João


sob re o p a n o d e fu n d o d o d u a lism o g n ó stic o , m a n d e a n o o u p e n sa -
m en to h erm ético (vol. 1, p. 44). P en sam na a sc e n sã o d a alm a a o lo n g o
d o ca m in h o para a esfera celestia l da v e r d a d e , lu z e v id a . B u l t m a n n ,
p p . 467-68, m an tém q u e João d e m ito lo g iz o u o q u a d ro g n ó stic o , para
q u e em Jesus o s d isc íp u lo s en co n tra ssem se u S a lv a d o r, e o c a m in h o
n ã o é m a is p arcialm en te sep a ra d o d o a lv o d a v e r d a d e e v id a . A v er-
d a d e é a rea lid a d e d iv in a m a n ifesta d a , e a v id a é e ssa rea lid a d e parti-
lh ad a p e lo s h om en s.
(Β) E xplicações n as q uais 0 caminho é o p red ica d o prim ário, e a verdade e a
vida são apenas exp licações d o cam inho. Jesus é o cam in h o porq u e e le é a
verd ad e e a vida. Entre o s d efen sores d este p o n to d e vista se encontram
D e la P o t t e r ie , B engel, B. W e is s , S chlatter, St r a thm ann , W . M ic h a e l is ,

T e V a n d e n B u s s c h e . Q u e "o cam inho" é a frase d o m in a n te n o v. 6


il l m a n n

é su g erid o p elo fato d e q u e Jesus está reafirm ando sua afirm ação sob re o
cam in h o em 4, em resposta à p ergunta d e T om é sobre o c am in h o n o v . 5.
A lém d o m ais, a seg u n d a linha d o v. 6 d eixa d e lad o a v erd a d e e a v id a e
50 · O último discurso: - Primeira seção (primeira unidade) 995

se concentra e m Jesus com o o cam inho: " N in g u ém v em ao Pai sen ão por


mim". Este p on to d e vista parece o m elhor para este escritor. Se as três
frases, "o cam inho", "a verdade" e "a vida" se u n em p e lo "e", o kai entre
a prim eira e a seg u n d a p o d e ser ep ex eg ético o u ex p licativo (= "isto é";
BDF, §4 4 2 9 ‫־‬.
ao Pai. Este é o a lv o d e "o cam inho".
7. Se vós realmente me conhecésseis. Isto já não é d irig id o so m en te a T om é, m as
a tod os o s d iscíp u lo s. O testem u n h o d e m anuscritos é q u ase invariável-
m ente d iv id id a sobre q u e tipo d e con d ição está im plícito: (a) N egativa,
im p lican d o q u e eles n ão tinham ch egad o a conhecê-lo; isto recebe al-
gum a confirm ação d o v. 9; cf. tam bém 28: "Se m e am ásseis"; (b) Real
("Se m e conheceis"), im p lican d o q u e chegaram a con h ecê-lo, e prom e-
ten d o-lh es con h ecim en to d o Pai. O ú ltim o se adequa m elhor à segu n d a
m etade d o versícu lo, m as por essa m esm a razão é su sp eito com o um
m elh oram en to d e u m a d ificu ld ad e. T odavia, se n o s inclinarm os para a
prim eira redação sobre o p rincípio d e escolh er a redação m ais difícil, re-
con h ecem os a p o ssib ilid a d e d e q u e tem h a v id o um a influência cruzada
d e 8,19 ("Se m e recon h ecésseis, reconhecerieis tam bém a m eu Pai"), o nde
a con d ição é claram ente negativa.
Desde agora. N ã o se refere a este preciso m o m en to na últim a ceia, m as da
suprem a "hora" da revelação q u e corre d esd e a p aixão até a ascensão.
Isto é m ais claro em 16,25: "chega a hora em q u e já não v o s falarei m ais
em figuras, m as v o s falarei d o Pai claram ente".
O tendes visto. A q u i e n o v. 9 o verb o é horan; em 12,45 tiv em o s o m esm o
p en sam en to exp resso com theorem ‫׳‬, em am b os o s casos, se trata d e um a
visão esp iritu al (veja vol. 1, pp. 814-817). O "O" é o m itid o n o C od ex Va-
ticanus; p o d e representar um a ad ição d e copista para esclarecer o que
está im plícito.
8. Filipe. Veja nota sobre 1,43.
9. mostra-nos 0 Pai. P75 e a lgu n s m anuscritos latin os acrescentam "também",
talvez em im itação d o v. 7.
Então. Veja nota sobre 5 acim a.
10. vós. N a m etad e d o versícu lo, o "vós" de repente se torna plural, e o que
seg u e é d irigid o não só a Filipe, m as tam bém a to d o s o s d iscíp u los.
realiza as obras. A s testem u n h as textuais têm variantes: "Suas obras"; "as
obras d e le próprio"; assim tam bém n o v. 11: "Suas obras"; "as m esm as
obras". P rovavelm en te, estas são ten tativas d e su avizar o estilo d o ori-
ginal e ter sid o in flu en ciad o p or 10,37-38. A relação d e "as palavras"
em 10c com "as obras" em lOd n ão é clara. Escritores patrísticos, com o
A gostinho e C risóstomo, tenderam a identificá-las sobre as b ases d e que
996 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

palavras d e Jesus eram obras. B u l t m a n n , p. 471, p or outro la d o , parece


en ten d er "obras" em 10-14 prim ariam ente co m o palavras. M ais p rova-
velm en te, o s term os são com p lem en tares, p orém não idênticos; o parale-
lism o é p rogressivo m ais q u e sin ôn im o. Contra o p o n to d e v ista d e B u l t -
m a n n , cham am os a atenção para a ên fase aqui sobre realizar obras, para o

contraste im p lícito entre palavra e obra em 11, e para o co n tex to n o v. 12


que parece exigir u m a referência a obras. D a ótica d e Jesus, tanto palavra
quanto obra têm força reveladora, m as da ótica d o a u d itório obras têm
m aior valor confirm ativo d o q u e palavras.
11. Crede-me. Isto form a um a in clu são com o im p erativo "então, ten d e fé [cre-
de] em m im " d o v. 1. A q u i, "crede" (pisteuein) é se g u id o d o p ro n o m e da-
tivo; e m 1 e outra v e z em 12 é se g u id o da frase p rep o sicio n a l "em m im "
(vol. 1, p. 841).
[mim] P66 e P75 estão a favor d o s m anuscritos q u e o m item o p ro n o m e, o q ual
podería ter sid o acrescentado por cop istas em im itação da prim eira linha
d o versículo.
13. pedirdes. Em v e z d e u m aoristo subjuntivo, o C o d ex V aticanus e p rova-
v elm en te P75 trazem o tem p o p resen te q u e daria caráter d e u m a ação
continuada ao p ed id o. A Vulgata Clementina e alg u n s o u tro s m an u scritos
acrescentam "o Pai" e, assim , esp ecificam a direção d o p ed id o . A ad ição
está p rovavelm en te sob a influência d e 15,16 e 16,23.
14. T od o o versícu lo é o m itid o em a lgu n s im p ortan tes m an u scritos, in clu siv e
a OL e OS, m as am bos, P66 e P75, o têm . Seu caráter rep etitiv o p od ería ter
cau sad o a om issão. H á algu m a ev id ên cia para outra redação: "Se p ed ir-
d es algo [om ite "de m im "] e m m eu n om e, eu farei isto". É b em p ro v á v el
que isto seja u m a tentativa d e am enizar a estranheza d o original; por
exem p lo, na seq u ên cia "de m im em m eu nom e". L a g r a n g e , p. 3 8 0 , sa-
lienta que não há nada excessivam en te iló g ico sobre Jesus p ed ir em seu
próprio n om e, p o is n o A T o salm ista p ed ia a Iah w eh p or am or d e Seu
n om e (SI 25,11). É ainda m en os iló g ico se "em m eu nom e" significa "em
u n ião com igo".

COMENTÁRIO: GERAL

A in tro d u ç ã o (13,31-38) a n u n c io u o tem a d a p a rtid a d e Jesus; o q u e se-


g u e n o ú ltim o d isc u rso se d e d ic a a re s p o n d e r os p ro b le m a s s u sc ita d o s
p o r esta p a rtid a - n ã o o p ro b le m a d o q u e a c o n tecerá a Jesu s (su a glo-
rificação só é m en c io n ad a ), m as o s p ro b le m a s d o q u e a co n tecerá ao s
d isc íp u lo s q u e ele d eix a p a ra trás. T o d a v ia, o cap. 14 (P rim eira seção)
50 · O último discurso: - Primeira seção (primeira unidade) 997

e su a d u p lic a ta 16,4b-33 (S eg u n d a seção, S u b d iv isã o 3) ata c a m estes


p ro b lem as m ais d ire ta m e n te d o q u e as o u tra s p a rte s d o s caps. 15 e 16.
O cap. 14 co m eça c om a n o ta d e se g u ra n ç a q u e se d á a o s d isc íp u lo s n ão
serão s e p a ra d o s d e Jesus. Ele v o lta rá p a ra levá-los c o n sig o (3); seu s pe-
d id o s se rã o re s p o n d id o s p o r se u P ai e p o r ele m esm o (12-13); o P ará-
cleto v irá p a ra eles co m o u m a fo rm a d e p re se n ç a c o n tin u a d a d e Jesus
(16-17.26); Jesu s m e sm o v o lta rá p a ra eles (18); e assim seu P ai v irá
p ara eles (23). F in a lm e n te (27-29) o c a p ítu lo re to rn a ao tem a d a segu-
rança. Se to d a s essas se n te n ç as fo ra m o u n ã o o rig in a lm e n te p ro n u n -
ciadas n e sta o casião, em su a fo rm a a tu a l se e n caix am p e rfe ita m e n te
na atm o sfera d a p a rtid a im in e n te q u e se re sp ira n a ú ltim a ceia.
N ã o é fácil d e d isc e rn ir a o rg a n iz a ç ã o in te rn a d o cap. 14. L a -
grange, p o r ex em p lo , su g e re u m a d iv isã o em 1-11; 12-26; 27-31, en-
q u an to Bultmann su g e re 1-4; 5-14; 15-24; 25-31. U m p o n to d e d e m a r-
cação p a re c e o c o rre r e n tre 14 e 15, p o is em 15-16 in tro d u z -se o novo
tem a d o P arácleto . M as, m esm o e sta in te rru p ç ã o n ã o é d ecisiva; p ois o
Parácleto v e m a p e d id o (erõta n ) d e Jesus, e os vs. 13-14 têm -se p reo cu -
p ad o com ro g a r (a itein ) em n o m e d e Jesus. A in clu são q u e existe e n tre
o com eço e o fim d e 1-14 te n d e a e n d o ssa r a su g e stã o d e q u e estes v er-
sículos c o n stitu e m u m a u n id a d e : o d e safio d e c re r em Jesus é fo rm a d o
p o r 1 e 11-12; o tem a d e q u e Jesus está in d o p a ra o P ai é fo rm a d o p o r
2 e 12. O s vs. 13-14 c o n stitu e m u m p ro b lem a: são rela cio n a d o s com 12 e
p ro v av e lm e n te d e v e m ser m a n tid o s com esse v ersícu lo , m as tam b ém
oferecem u m a tra n siç ã o p a ra o v. 15. A q u i, p o d e m o s te r u m ex em p lo d a
técnica jo an in a d e so b rep o sição , o n d e a co n clu são d e u m a u n id a d e é o
com eço d a s e g u in te (vol. 1, p . 164). A u n id a d e se g u in te p a re c e consistir
de 15-24, p o is h á u m a in clu são e n tre 15 e 23-24 n o tem a d e a m a r Jesus
e g u a rd a r se u s m a n d a m e n to s e p a la v ras. Isto leva 25-31 a u m a tercei-
ra u n id ad e . E n tre tan to , estas trê s u n id a d e s, 1-14; 15-24 e 25-31 n ã o são
su b d iv isõ es to ta lm e n te iso lad as, com o e n c o n tra re m o s n o s caps. 15-16,
pois a ilação d a s id éia s m a n té m u m a m arc a d a conexão ao lo n g o d e
todo o co n ju n to . Se os tra ta rm o s em seções se p a ra d a s, n e ste com entá-
rio, n a v e rd a d e é u m a q u e stã o d e p ra tic id a d e .
A n alisem o s a p rim e ira u n id a d e , vs. 1-14. Burney, The Poetry of
Our Lord, p p . 126-29, p e n sa q u e p o r d e trá s d e 14,1-10 subjaz u m a poe-
sia aram aica o rig in al em ritm o d e q u a tro acentos, e assim v ê u m a uni-
d ad e c o n d e n sa d a a o m en o s n e ste g ru p o d e v ersícu lo s. M u ito s a u to re s
não co n co rd am . Boismard, RB 68 (1961), 519, se g u in d o a o rien tação
998 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

d e S pitta, p e n sa q u e os vs. 1-3 e 4ss. fo rm a v a m e m o u tro te m p o com -


p lex o s in d e p e n d e n te s. N o v. 3, Jesus a n u n c ia q u e e stá in d o p re p a r a r
u m lu g a r p a ra se u s d isc íp u lo s e, q u e logo re to m a rá p a ra lev á-lo s con-
sigo; m as n o v. 6 Jesus m esm o é o c am in h o p a ra o Pai. C e rtam en te, isto
é u m a m u d a n ç a n a direção d o p en sam en to ; to d av ia, p o d e -se tam b ém
ad m itir q u e a co nexão e n tre as d u a s p a rte s é b a s ta n te re g u la r n a p ri-
m eira red ação . Q u ã o difícil é o p ro b le m a , p o d e -se v e r n o fato d e q u e
Bultmann , d ife ren te d e Boismard, p re fe re u n ir o v. 4 a o 3. (A d ific u ld a -
d e é c e n tra d a n o sig n ificad o d e "o c a m in h o " em 4: significa o p ró p rio
c a m in h o d e Jesu s p a ra o n d e e stá in d o [u m a id eia m ais a p ro x im a d a d e
2-3], o u o c a m in h o d o s d isc íp u lo s p a ra o P ai [m ais a p ro x im a d o d e 6]?
D e la P0TTER1E, p p . 9 2 7 -3 2 , a rg u m e n ta q u e 2 -6 c o n stitu e m u m a
su b u n id a d e , sem in te rru p ç ã o a b ru p ta e n tre 3 e 4 . P ara ele, a se g u n d a
s u b u n id a d e seria 6-11, com o v. 6 com o u m elo p a ra a su b u n id a d e an-
terior (to d av ia, à p. 9 1 4 ele parece falar d e 7 -1 4 ). Em ap o io d e s u a rei-
vindicação, ele a p re se n ta u m a com plicada teoria b a sea d a so b re enlaces
verbais q u e n ão parece convincente. (A lgum as d a s p a la v ra s q u e ele u sa
em ap o io à u n id a d e d e 6 -1 1 tam b ém ap arecem em 1 2 -1 4 com q u a se a
m esm a frequência; então, p o r q u e o s ú ltim o s v ersículos n ã o estão in-
cluídos?) M as ele está certo em salien tar q u e no s p rim e iro s versículos
o tem a se o c u p a d a p a rtid a e re to m o d e Jesus e p o ssu e m u m forte to m
escatológico, e n q u a n to no s vs. 6-11 os tem p o s v erb ais e o p e n sa m e n to
se o cu p am d o tem p o em q u e os cristãos estão v iv en d o ; so m e n te em
1 2 -1 4 reap arece o tem a d a p a rtid a e d o s tem p o s fu tu ro s.
C o m h esitação , p ro p o m o s a se g u in te d iv isã o em su b u n id a d e s:
1-4; 6-11 e 12-14. A p e rg u n ta in se rid a n o v. 5 se rv e p a ra m u d a r a li-
n h a d e p e n sam e n to ; a p e rg u n ta e re sp o sta d o s vs. 8-9a se rv e m a p e n a s
p a ra d a r c o n tin u id a d e ao d iscu rso .

COMENTÁRIO: DETALHADO

Versículos 1-4: Partida e retorno de Jesus

Jesus com eça com u m a referên cia, n o v. 1, à p e rtu rb a ç ã o d o co ração


q u e su a p a rtid a está c a u sa n d o e m se u s d iscíp u lo s. A n te rio rm e n te , o u -
v im o s q u e Jesus m esm o e sta v a perturbado ao e n c a ra r a m o rte (veja a
resp e c tiv a nota), a p a re n te m e n te p o rq u e a m o rte p e rte n c e ao âm b ito
50 · O último discurso: - Primeira seção (primeira unidade) 999

de S atan ás. L ev ar Jesu s à m o rte se rá o a to final d e h o stilid a d e p o r p a r-


te d o m u n d o e d e S atan ás, se u p rín cip e; e p o rq u e a m o rte d e Jesus es-
tabelecera u m a h o stilid a d e im p lac á v e l e n tre o m u n d o e os d iscíp u lo s
que s e g u em a Jesus (15,18; 17,14). A ssim , a c o n tu rb a ç ã o d o s corações
dos d isc íp u lo s em face d a p a rtid a d e Jesus (ta m b ém 16,6: "V ossos co-
rações se e n c h e rã o d e triste z a " ) n ã o é m ero se n tim e n to , m as é p a rte
da lu ta d u a lístic a e n tre Jesus e o p rín c ip e d e ste m u n d o . P o r e sta ótica,
a exo rtação d e Jesu s q u e te n h a m fé n ele é m ais q u e u m p e d id o p o r
um v o to d e co nfiança: a fé d o s d isc íp u lo s v en ce o m u n d o ( ljo 5,4),
u n in d o -o s a Jesu s q u e te m v e n c id o o m u n d o (Jo 16,33). N a m o rte d e
Jesus, o p rín c ip e d e ste m u n d o é ex p u lso (12,31), m as esta v itó ria só
será n o tó ria p e lo P a rác leto so m e n te n o s q u e p o ssu e m fé (16,8-11).
É in te ressa n te n o ta r q u e n a tra d iç ã o sin ó tica (Mc 5,35-36; M t 8,25-26),
em co n tex to s in te ira m e n te d ife ren te s, a c h am o s ex em p lo s sim ilares d e
tem or em face d a m o rte e a m esm a su g e stã o d e q u e a fé é o rem édio.
N o v. 1, o tem a d e q u e fé em D eu s tem com o su a co n trap arte fé
em Jesus reap arece em term o s d e conhecer e v e r n o s vs. 7 e 9. João não
quer d ize r q u e a fé d o cristão, e m Jesus, seja u m critério d a fé d o cristão,
em D eus; an tes, está e n v o lv id a u m a e a m esm a fé. A m esm a ideia se
encontra em 12,44: "T o d o o q u e crê em m im n a v e rd a d e está crendo,
não em m im , m as n a q u e le q u e m e e n v io u "; tem os esta ideia expressada
neg ativ am en te em l j o 2,23: "T o d o o q u e nega o Filho n ão tem o Pai".
C om o fim d e tra n q u iliza r seus d iscíp u lo s com resp eito à su a par-
tida, Jesus lh es afirm a q u e n a casa d e se u Pai há m u itas m o ra d a s (moríê
- v. 2), q u e ele está in d o p rep a ra r-lh e s u m lu g ar (topos - vs. 2-3), e que
ele v o ltará a fim d e levá-los p a ra si, p a ra q u e estejam o n d e ele está.
Estes d o is v ersícu los são e x tra o rd in a ria m e n te difíceis. A sentença (se é
que se trata d e uma só) n ã o teria sid o reco lh id a se a p ro m e ssa n ão fosse
tida com o já rea liz a d a o u se n d o realizável. A p esar disso, n ão se vê que
Jesus tivesse re to rn a d o p a ra levar seus discípulos consigo-, e se a referência
é tida com o se n d o u m a v in d a n o fim d o s tem p o s (o q u e hoje sabem os
que estava lo n g e d e im inente), com o isso p o d e ria c onsolar os discípulos
que n u n ca a v eríam ? A lém d o m ais, esta p ro m essa parece colidir com
m uitas o u tra s afirm ações n o ú ltim o d iscu rso d e q u e Jesus voltaria, não
para lev ar c o nsigo os d iscíp u lo s, m as p a ra estar com os discípulos aqui
em baixo. Veja p p . 970-01 acim a so b re este prob lem a.
P odem os com eçar nosso e stu d o n o tan d o q u e Jesus está u sa n d o ter-
m inologia tradicional. T om ada d o p a n o d e fu n d o judaico, a ex p ressão
1000 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

"casa d e m e u P a i" p ro v a v e lm e n te d e v a ser e n te n d id o co m o o céu.


F ilo (De somniis 1,43; 256) fala d o c éu co m o "a casa p a te rn a " . Q u a n to
às " m u ita s m o ra d a s " , d e v e m o s rejeitar a tra d iç ã o p a trístic a , q u e re-
m o n ta ao m e n o s a Irineu (veja n o ta), q u e elas se refe re m a d ife re n te s
g ra u s d e p erfeição celestial, isto é, lu g a re s m ais e le v a d o s e m ais b a i-
xos n o céu. O " m u ita s" sim p le sm e n te significa q u e h á b a s ta n te p a ra
to d o s; as " m o ra d a s " refletem o tip o d e im a g e n s ju d a ic a s e n c o n tra d a s
em 1 Enoque 39,4 q u e fala d e " a s m o ra d a s d o s sa n to s e o s lu g a re s d e
re p o u so d o s ju sto s" q u e estã o situ a d o s n a s e x tre m id a d e s d o s céu s
(tam b ém 41,2; 45,3). Em 2Esd 7,80 e 101, faz-se d istin ç ã o e n tre a s a lm a s
d o s p e rv e rso s q u e n ã o p o d e m e n tra r n a s m o ra d a s e d e v e m p e ra m -
b u la r e as a lm a s d o s ju sto s q u e e n tra rã o em s u a s m o ra d a s. N o N T , a
im ag em d e m o ra d a s (skêne) e te rn a s se e n c o n tra e m Lc 16,9, e n q u a n to
M c 10,40 fala d e se d es celestiais (p re p a ra d a s p e lo P ai, n ã o p o r Jesus).
A p ro m e ssa d o Jesus jo an in o a se u s d isc íp u lo s d e q u e h a v e ria m o ra -
d a s p a ra eles n a casa d e se u P ai é u m ta n to sim ila r com a p ro m e ssa
feita a eles em Lc 22,29-30 (u m a se n te n ç a d a ú ltim a ceia): "E e u v o s
d e stin o o rein o , co m o m e u P ai m o d e stin o u , p a ra q u e co m ais e be-
b ais à m in h a m esa em m e u rein o , e v o s asse n te is so b re tro n o s, ju lg a n -
d o as d o z e trib o s d e Israel". A lin g u a g e m q u e a p a re c e em Jo 14,2-3,
e ir e p r e p a ra r u m lu g a r, p o d e ria o rig in a r-se d a tip o lo g ia d o Ê xo d o
(a ú ltim a ceia se s itu a n a n o ite a n te rio r à Páscoa). E m D t 1,33, D e u s d iz
q u e irá a d ia n te d e Israel no caminho p a ra e sco lh e r um lugar p a ra eles;
D t 1,29 diz: "N ã o v o s e sp a n te is, n e m os tem a is" - u m a o rd e m n ã o
d ife ren te d a d e Jesus: "Q u e v o sso s corações n ã o se p e rtu rb e m " . N e sta
tip o lo g ia, Jesu s e staria in d o a d ia n te d o s d isc íp u lo s à T erra P ro m e tid a
p a ra p re p a ra r-lh e s u m lu g ar.
Se a ssu m irm o s q u e as " m u ita s m o ra d a s [m on ê]" n a casa d o P ai
e o lu g a r (topos) q u e Jesus está in d o p re p a ra r p a ra se u s d isc íp u lo s
são a m esm a coisa, o q u e Jesus tem em m e n te q u a n d o d iz q u e vol-
tará p a ra lev ar os d isc íp u lo s consigo, a p a re n te m e n te p a ra os lu g a re s
q u e p re p a ro u ? E stes v e rsíc u lo s são m ais b e m e n te n d id o s co m o u m a
referên cia a u m a p a ro u sia e m q u e Jesus v o lta ria logo d e p o is d e s u a
m o rte p a ra lev a r se u s d isc íp u lo s triu n fa n te m e n te ao céu. (A id eia d e
u m a p a ro u s ia lo g o d e p o is d a m o rte fica su b jacen te em M t 26,29, o n d e
na ú ltim a ceia Jesus diz: "N ã o b eb erei o u tra v ez d e ste fru to d a v id e ira
até a q u ele d ia em q u e o b e b e re i n o v o co nvo sco n o rei d e m e u P ai").
U m a referên cia à p a ro u sia se e n c o n tra em Jo 21,22, o n d e se e m p re g a
50 · O último discurso: - Primeira seção (primeira unidade) 1001

o m esm o v e rb o "v ir, v o lta r" q u e é u s a d o e m 14,3; cf. ta m b é m A p 3,20.


Sobre a p a ro u s ia co m o o m o m e n to e m q u e Jesu s lev a rá se u s seg u id o -
res p a ra si, v e r lT s 4,16-17: "P o is o S e n h o r m esm o d escerá d o c é u . ...
Então os m o rto s e m C risto re ssu sc ita rã o p rim e iro ; e a ssim , n ó s, os q u e
estiv erm o s v iv o s, se re m o s a rre b a ta d o s ju n ta m e n te n a s n u v e n s p a ra
o en co n tro d o S e n h o r n o s ares; e e n tã o e sta rem o s p a ra se m p re com o
Senhor"; n o te co m o a ú ltim a c lá u su la se p a re c e com a d e João " p a ra
que, o n d e e u e sto u , estejais v ó s tam b é m ".
A lg u n s e s tu d io so s p e n s a m q u e 14,2-3 se refere à v in d a d e Jesus
para se u s d isc íp u lo s à h o ra d e s u a m o rte a fim d e levá-los p a ra o céu.
D evem os v e r isto co m o u m a p o ssív e l re in te rp re ta ç ã o d o tem a d a pa-
rousia, q u a n d o se c o m p re e n d e u q u e a p a ro u s ia n ã o o c o rre u logo de-
pois d a m o rte d e Jesu s e q u a n d o o s d isc íp u lo s co m eçaram a m orrer.
(Pode-se d esen v o lv er a m esm a d u p la p erspectiva em 17,24; veja p. 1.193
abaixo). Q u a n d o a n a lisam o s 13,36-37 à lu z d e 21,15-19, v im o s q u e a
p ro m essa d e Jesu s a P e d ro , "T u m e se g u irá s d e p o is" , foi su b seq u en -
tem ente rela c io n a d a com a m o rte d e P ed ro . A id eia d e q u e a tra v és d a
m orte os cristão s são le v a d o s p a ra a casa d o P ai p a rece e sta r refletid a
em 2C or 5,1: "P o is sa b em o s q u e, se n o ssa te n d a /c a s a te rre n a for des-
tru íd a, te m o s u m edifício d a p a rte d e D eu s, u m a casa feita n ã o p o r
m ãos, q u e é e te rn a n o s céus".
Se a d m itirm o s q u e 14,2-3 se referia o rig in a lm e n te à p a ro u s ia e,
p o ssiv e lm e n te , foi re in te rp re ta d o em te rm o s d a m o rte d o s cristão s,
n ão p o d e m o s ig n o ra r a ten sã o e n tre tal p o n to d e v ista em 2-3 e a
escatologia re a liz a d a d o re s ta n te d o c a p ítu lo ; p o r e x e m p lo , o p e n sa-
m en to n o s vs. 15-17 (ta m b é m 16,7) d e q u e Jesu s v o lta rá p a ra o cren te
em e a tra v é s d o P a rác leto q u e h a b ita n o cristão , o u a id eia d o v. 23
(so m en te o u tro u so n o N T d e m on ê ) d e q u e Jesu s e o P ai farão su a
m o ra d a n o cristã o . (Boismard , art. cit., sa lie n ta b e m a d ife ren ç a en-
tre as d u a s p e rsp e c tiv a s). T em os in sistid o q u e h á em João e lem en to s
tan to d a e scato lo g ia fin al q u a n to d a re a liz a d a (vol. 1, p p . 129s) e q u e
p o d e m se r e n c o n tra d o s a té m esm o e m p a ssa g e n s c o n tíg u a s (5,19-25;
26-30). T o d a v ia, a lg u n s c o m e n ta rista s a c h a m difícil p e n s a r q u e d u a s
im ag en s tã o d ife re n te s d e m o ra d a celestial co m Jesu s e d e h a b ita çã o
d iv in a te rre n a p u d e s s e m te r sid o p o sto s la d o a la d o n o cap. 14 com o
p ro m e ssa s d e co m o o s d isc íp u lo s se ria m c o n so la d o s a p ó s a p a rtid a
d e Jesu s se m a lg u m a te n ta tiv a d e conciliação o u h a rm o n iza ç ã o . A lu z
d e n o ssa d isc u ssã o , é ó b v io q u e a fraseo lo g ia d o s vs. 2-3 n ã o se referia
1002 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

o rig in a lm e n te ao re to rn o d e Jesu s n a fo rm a d e h a b ita ç ã o , m a s p o d e -


ria ter s id o r e in te rp re ta d a , se c u n d a ria m e n te , n e ste s te rm o s p a r a tor-
n á-la h a rm o n io sa com o tem a d e h a b ita ç ã o q u e a p a re c e n o r e s ta n te
d o cap ítu lo ?
S chaefer, art. cit., tem p ro p o s to u m p o ssív e l sig n ific a d o d e "ca sa
d e m e u P ai" q u e p o d e se r ú til n e ste resp e ito . A fra se o c o rre u e m 2,16
em referên cia ao te m p lo d e Je ru sa lé m , m as João re in te rp re to u o tem -
p io d e m o d o q u e fosse o c o rp o d e Jesu s (2,19-22). A in d a m a is sig n ifi-
c ativ o é o d ito p a ra b ó lic o so b re a casa e m 8,35: " O ra , o se rv o n ã o tem
u m lu g a r [m enein] p e rm a n e n te n a casa [ou fam ília: o ik ia , co m o e m
14,2]; o F ilh o tem ali u m lu g a r p a ra se m p re " . E sta c asa e sp ec ial, o u
fam ília, o n d e o filho te m u m a m o ra d a p e rm a n e n te , s u g e re u m a u n iã o
com o P ai re s e rv a d a p a ra Je su s, o F ilho, e p a ra to d o s q u a n to s são
g e ra d o s co m o filh o s d e D e u s p e lo E sp írito q u e Jesu s d á . A ssim , h a -
v e ria a lg u m p re c e d e n te p a ra re in te rp re ta r p a ra b o lic a m e n te " n a casa
d e m e u P ai h á m u ita s m o ra d a s " , co m o p o s s ib ilid a d e s p a ra a u n iã o
p e rm a n e n te {m on ê / m en ein) c o m o P a i e a tra v é s d e Jesus. (G undry ,
art. cit., p ro p ô s in d e p e n d e n te m e n te u m a in te rp re ta ç ã o sim ila r: "...
n ã o m a n sõ e s n o céu , m a s p o siç õ e s e s p iritu a is e m C risto "). Je su s e stá
d e c a m in h o p a ra u n ir-se a o P ai - é a ssim q u e ele p r e p a r a a s m o ra d a s .
A re d a ç ã o v a ria n te p a ra "n a casa d e m e u P a i" é "co m m e u P a i" (veja
n o ta), e e sse é ju sta m e n te o sig n ific a d o q u e a frase p o d e te r a ssu m i-
d o q u a n d o foi in te g ra d a n o c o n ju n to d a teo lo g ia jo a n in a d o c ap . 14.
O r e to m o d e Jesu s a p ó s a re ssu rre iç ã o se ria p a ra o p r o p ó s ito d e to-
m a r o s d isc íp u lo s em u n iã o co n sig o e com o P ai, se m q u a lq u e r ê n fa se
d e q u e a u n iã o é n o céu - se u c o rp o é a casa d e se u Pai; e o n d e q u e r
q u e Jesu s é g lo rificad o , a í e stá o Pai. N a e x p re ssã o g re g a d o v. 3, Je su s
d iz literalm en te: "V o ltarei p a ra le v a r-v o s co m ig o "; n a re in te rp re ta -
ção, e sta a firm a ç ão p o d e te r p e rd id o se u sig n ific a d o o rig in a l d e u m a
lo ca lid a d e celestial. A m on ê o u " m o ra d a " p o d e ter-se to m a d o a m on ê
d e 14,23 - u m a h ab itação .
P o d e ser n e ste se n tid o re in te rp re ta d o q u e os vs. 2-3 são relacio-
n a d o s p e lo a u to r jo an in o aos v s. 6ss., e n q u a n to o v. 4 se rv e c o m o u m a
tran sição m e d ia n te a técnica jo an in a d e c o m p re e n sã o e q u iv o c a d a .
Se p o r s u a m o rte , ressu rre içã o e ascen são Jesus d e v e to rn a r p o ssív e l
u m a u n iã o d o s d isc íp u lo s com s e u P ai, ele d e v e p re p a r a r s e u s disci-
p u lo s p a ra a u n ião , faz e n d o -o s e n te n d e r co m o ela d e v e se r rea liz a -
d a. A gostinho (In Jo. 98,2; PL 35:1814) ex p re ssa isto e n g e n h o sa m e n te :
50 · O último discurso: - Primeira seção (primeira unidade) 1003

"Ele p re p a ra a s m o ra d a s, p re p a ra n d o os q u e se d e stin a m a m o ra r ne-


las". A ssim , o v. 4 b u sc a e n v o lv e r os d iscíp u lo s, q u a n d o Jesus lhes
asseg u ra q u e co n h ecem o c a m in h o p a ra o n d e ele está in d o ( - p a ra o
Pai, p o rq u e co n h ecem Jesus). M as assim co m o "o s ju d e u s" d e 7,35 e
8,22 n ão p u d e ra m e n te n d e r a o n d e Jesus e stav a in d o , ta m p o u c o o p o d e
Tom é. E m resp o sta, ag o ra Jesus d e v e explicar cla ram e n te q u e está in d o
p ara o P ai e q u e ele re p re se n ta o c a m in h o p a ra ch e g ar ao Pai (v. 6).

Versículos 6-11: Jesus como 0 caminho

E stes v e rsíc u lo s ex p licam d e q u e m an e ira Jesu s é o c a m in h o p a ra


o Pai. Ele é o c a m in h o p o rq u e é a v e rd a d e o u rev elação d o P ai (veja
nota so b re c o m o in te rp re ta r o s trê s su b sta n tiv o s e m 6a), d e m o d o q ue,
q u a n d o o s h o m e n s o co n h ecem , e n tã o co n h ecem o Pai (7); e q u a n d o
os h o m en s o v e e m , ta m b é m v e e m o P ai (8). Ele é o cam in h o p o rq u e é
a v id a - v isto q u e ele v iv e n o P ai e o P ai v iv e n ele (10-11), ele é o canal
atrav és d o q u a l a v id a d o P ai flu i p a ra o s h o m en s.
Q u a l é o p a n o d e fu n d o d o q u a l e ste conceito d e Jesus com o "o
cam in h o " foi e x tra íd o ? D ois p a ra lelo s, h e rm ético e m a n d e a n o , têm
sido p ro p o sto s; n e ste s escrito s, g e ra lm e n te "a v e rd a d e " é a esfera d o
divin o , e "o c a m in h o " é a ro ta p a ra a d iv in d a d e (em bora n o s textos
m a n d e a n o s o re d e n to r n u n c a seja c h a m a d o "o cam in h o "). Em p a r-
ticular, tem -se n o ta d o a e x p re ssã o m a n d e a n a "o c a m in h o d a ver-
d a d e ". W . M ichaelis (“Hodos”, TW N T E, V, 82-84) e D e la P otterie
(pp. 917-18) re je ita ra m estes p a ra lelo s. S alien tam q u e o conceito joâ-
nico d e " o c a m in h o " re a lm e n te n ã o é e sp ac ial d a m esm a m an e ira q u e
estes co n ceito s g n ó stico s são espaciais. A lém d o m ais, m u ito d o q u e
p o ssa ser in te re ssa n te e m tais p a ra le lo s a té c erto p o n to já existiam
no ju d a ísm o . E m p a ssa g e n s v e te ro te sta m e n tá ria s (SI 119,30; Tb 1,3;
Sb 5,6), "o c a m in h o d a v e rd a d e " é u m c a m in h o d e v id a em conform i-
d a d e co m a Lei. O SI 86,11 p õ e "ca m in h o " e " v e rd a d e " em paralelis-
mo: "E n sin a-m e o te u cam in h o , ó S enhor, p a ra q u e a n d e n a v e rd a d e " .
N o tam o s q u e n estes textos v e te ro te sta m e n tá rio s n ã o h á in d ag ação de
um c a m in h o p a ra a v e rd a d e , com o e n c o n tra d o n o s escritos gnósticos;
antes, o c a m in h o é u m c a m in h o d e v e rd a d e (e isto p arece apro x im ar-
se m ais com o sig n ificad o jo an in o - veja nota). N o AT, às v ezes este
cam in h o te m re sso n â n c ia s escatológicas, p o is leva d a m o rte p a ra a
vida: " P a ra o sábio, o c a m in h o d a v id a leva p a ra cim a, p a ra q u e se
1004 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

d esv ie d o a b is m o e m b a ix o " (P r 15,24). O c a m in h o d a v id a e o c a m i-


n h o d a m o rte são c o n tra s ta d o s e m Jr 21,8. O SI 16,11 d iz q u e o c a m i-
n h o d a v id a é re v e la d o p o r D e u s a o h o m e m ; isto se u n e p a r a co m -
b in a r a s trê s n o ç õ e s q u e Jo ão te m d e c a m in h o , v e r d a d e e v id a . E m
Q u m ra n , o c a m in h o d o (E sp írito d a ) v e rd a d e é o p o s to d u a lis tic a m e n -
te ao c a m in h o d o e s p írito d e in iq u id a d e (1QS 4,15-16; veja ta m b é m
2 P d 2,2 e 15 q u e c o n tra s ta " o c a m in h o d a v e r d a d e " e " o c a m in h o
d e B alaão").
A té q u e p o n to e ste m a te ria l ju d a ic o o ferece u m p a n o d e f u n d o
p a ra Jo 14,6? Em João n ã o há ê n fa se so b re o a sp e c to m o ra l d o ca-
m in h o tal co m o se e n c o n tra n o c o n c eito v e te ro te s ta m e n tá rio d e "o
c a m in h o d a v e rd a d e " ; a n te s, p a ra João, Je su s é o c a m in h o p o r q u e
ele é a rev e laç ã o d o Pai. T o d a v ia, n ã o d e v e m o s im p o r u m a d ico to -
m ia e n tre o a sp e c to re v e la tó rio e o a sp e c to m o ra l d e Je su s c o m o o
cam in h o . M c C asland , art. cit., e n fa tiz a q u e Je su s é o c a m in h o n u m
se n tid o d u p lo : p rim e iro , co m o u m m e d ia d o r d a sa lv a ç ão ; s e g u n d o ,
co m o u m a n o rm a d e v id a . P a ra João, v e rd a d e c o n s titu e u m a e sfe ra
d e ação d a m e sm a m a n e ira q u e o c re r e co n h e ce r; p o r e x e m p lo , ele
p o d e fala r d e a g ir n a v e rd a d e (3,21). Se p u d e rm o s e v o c a r n e sse se n -
tid o u m a p a s s a g e m sin ó tica , em M c 12,14, o s fa rise u s a d m ite m q u e
Jesu s e n sin a "o c a m in h o d e D e u s e m v e rd a d e " .
O u tra objeção p a ra e n c o n tra r o p a n o d e fu n d o d o co n ceito joani-
no d e "o ca m in h o " n o ju d a ísm o é q u e n ão h á n o A T n e n h u m e x e m p lo
d o u so a b so lu to d e "o ca m in h o ". M as, com a d e sco b e rta d o s R olos d o
M ar M orto, p o d e m o s p re sc in d ir d e sta objeção, p o is a c o m u n id a d e d e
Q u m ra n se d e s ig n o u a b so lu ta m e n te com o "o c a m in h o " (h a -d e r e k ).
A q u eles q u e se in g re ssa ra m n a c o m u n id a d e e ra m "o s q u e e sco lh e ra m
o c a m in h o " (1QS 9,17-18), e n q u a n to o s q u e o s a p ó sta ta s e ra m "o s q u e
se d e s v ia ra m d o C a m in h o " (C D 1,3). A s n o rm a s p e la s q u a is se reg ia a
v id a d a c o m u n id a d e e ra m "a s n o rm a s d o c a m in h o " (1QS 9,21). P ara
Q u m ra n , "o c a m in h o " co n sistia n a e strita o b se rv â n c ia d a lei m o saica
com o foi in te rp re ta d a p elo g ra n d e M estre d a c o m u n id a d e , e n ã o p o d e
h a v e r d ú v id a d e q u e e ste u so é o h e rd e iro d o p a n o d e fu n d o v e te ro -
te sta m e n tá rio m e n c io n a d o acim a (com o fato r a d ic io n al d o d u a lism o ).
Em p a rticu la r, o u so a b so lu to d e "o c a m in h o " e m Q u m ra n p a re c e
ter-se o rig in ad o d e reflexão so b re Is 11,3. E n c o n tra m o s tal reflex o em
1QS 8,12-16, u m tex to d e m a io r im p o rtâ n c ia p a ra se c o m p re e n d e r a
co n cep ção q u e a c o m u n id a d e tem d e si m esm a:
50 · O último discurso: - Primeira seção (primeira unidade) 1005

Q uando os hom ens [que foram provados] se tom am membros da comu-


nidade em Israel, de conformidade com todas estas regras, eles se sepa-
rarão dos lugares onde hom ens perversos habitam a fim de irem para o
deserto e ali prepararem o caminho para ele, como está escrito: "Prepa-
rai o caminho do Senhor no deserto; fazei reta um a vereda para o nosso
Deus no ermo". Este (caminho) é o estudo da Lei que ele ordenou através
de Moisés, para que ajam segundo tudo o que foi revelado de tempo em
tem po, e como os profetas têm revelado por meio de seu santo espírito.

Se a c o m u n id a d e d e Q u m ra n e sta v a v iv e n d o "o c a m in h o d o Se-


n h o r n o d e s e rto " , João B atista tam b é m p ro fe sso u este id eal d e p re p a -
rar o c a m in h o d o S enhor. A c o m u n id a d e cristã, q u e se a ssem elh a à
c o m u n id a d e d e Q u m ra n em a lg u m a s p rática s e o rg an izaçõ es básicas,
p arece ta m b é m ter-se c o m p a ra d o a "o c a m in h o " (A t 9,2; 19,9.23; 22,4;
24,14.22), talv ez p o rq u e su a v id a era o c a m in h o q u e p re p a ra v a p a ra
a ú ltim a v in d a d e C risto , u m c a m in h o d e v id a traçad o p o r Jesus e
a n im a d o p e lo E spírito. A g o ra su g e rim o s q u e Jo 14,6 reflete toda esta
co n caten ação d e u so d a im a g e m d e "o c a m in h o ", o rig in ária d o AT,
m o d ificad a p e lo p e n sa m e n to ju d aic o sectário ilu stra d o em Q u m ra n
e, fin a lm e n te , a d a p ta d a p e la c o m u n id a d e cristã co m o u m a au to -d e-
signação. N ã o é e s tra n h o q u e o Jesus jo an in o to m e u m a term in o lo g ia
a n te rio rm e n te a p lic a d a a Israel (e su b se q u e n te m e n te a d o ta d o p ela co-
m u n id a d e cristã) e ap licá-la a si. Se a c o m u n id a d e cristã é o tem p lo
(Ef 2,19-21; lP d 2,5; 4,17), p a ra João Jesus é o tem p lo (2,21). O s d ito s
"E u so u ...", d o Jesus jo an in o to m a m o lu g a r d o s d ito s sinóticos "O
reino d e D e u s [céu] é se m e lh a n te a...", (vol. 1, p. 120), e em a lg u n s
casos o re in o d e D eu s p a rece ter sid o p a rc ia lm e n te id en tifica d o com a
Igreja. A im a g e m d o a p risc o e d a v in h a, a p lic ad a n o AT a Israel e nos
ev a n g elh o s sin ó tico s ao rein o d e D eus, em João é ap lic ad a a Jesus, o
p a sto r e a v id eira. O m esm o p ro ce sso p a re c e e sta r em ação, ao ch am ar
Jesus, em v e z d a c o m u n id a d e cristã, d e "o ca m in h o ". Se o Batista veio
p a ra e n d ire ita r "o c a m in h o d o S en h o r", su a m issão, d o p o n to d e vis-
ta jo an in o , era re v e la r Jesus a Israel (1,23.31), p o is Jesus é o cam in h o
d a d o p o r D e u s aos h o m en s.
Tal tra n sfo rm aç ã o d e term in o lo g ia p o d e ter sid o enco rajad a pela
c o m p re e n sã o jo an in a d e Jesus com o a S ab ed o ria d iv in a p erso n ificad a
(vol. 1, p. 136). Em P r 5,6, está im p lícito q u e a S ab ed o ria oferece aos
h o m en s o c a m in h o d a v id a (veja tam b é m P r 6,23; 10,17). H á u m a in-
terp o lação cristã m u ito p e rsp ic a z n a s p a la v ra s d a S abedoria na versão
1006 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

latin a d e S iraq u e 24,25. A S abedoria diz: "E m m im e stá o d o m d e to d o


caminho e verdade; e m m im está to d a a esp era n ç a d a vida e v irtu d e " .
É q u ase co m o se o in te rp o la d o r tivesse asso ciad o a d escrição jo an in a
d e Jesus, e m 14,6, com as reiv in d icaçõ es d a S ab edoria. C o n c lu in d o esta
d iscu ssão d o p a n o d e f u n d o d o conceito jo an in o d e Jesus co m o o cam i-
n h o , d esejam o s e n fa tiz a r q u e reco n h ecem o s q u e o m ate ria l e x tra íd o d e
fontes ju d aicas tem sid o g ra n d e m e n te tra n sfo rm a d o à lu z d a cristolo-
gia jo an in a, p o ré m in sistim o s q u e a s fontes ju d aic as o ferecem b a sta n te
m atéria p rim a p a ra q u e rea lm e n te n ã o m ais seja n ecessário a tra v e ssa r
o u tro s cam p o s em b u sc a d o p a n o d e fu n d o .
Q u a n d o v o lta m o s à exegese d e Jo 1 4 ,6 , d e sco b rim o s q u e , ao d iz e r
"E u so u o c a m in h o ", Jesu s n ã o e stá se a p re s e n ta n d o p rim a ria m e n te
com o u m g u ia m o ral, n e m co m o u m líd e r p a ra se u s d isc íp u lo s se g u ir
(com o em H b 2 ,1 0 ; 6 ,2 0 ). A q u i, a ên fase é d ife re n te d a q u e la d e 1 6 ,1 3 ,
o n d e lem o s q u e o P a rá c le to /E s p írito g u ia ria o s d isc íp u lo s a o lo n g o
d o caminho em to d a a verdade. A n tes, Jesus está se a p re s e n ta n d o co m o
a ro ta ú n ica p a ra a salvação, à m a n e ira d e 1 0 ,9 : "E u so u a p o rta , to d o
a q u ele q u e e n tra a tra v é s d e m im será salv o ". Isto é a ssim p o rq u e Jesus
é a verdade (a lê th e ia ), a ú n ica rev elação d o Pai q u e é o a lv o d a v iag em .
N in g u é m jam ais v iu o Pai, exceto Jesus (1 ,1 8 ) ; Jesus n o s c o m u n ic a o
q u e ele v iu na p rese n ç a d o P ai (8 ,3 8 ) ; e Jesus c o n v e rte os h o m e n s em
filhos d e D eu s a q u e m p o ssa m , en tã o , c h a m a r d e P ai (veja c o m e n tá rio
so b re 2 0 ,1 7 ). A o d e n o m in a r-se d e a v e rd a d e , Jesus n ã o está d a n d o u m a
d efin ição on to ló g ica em term o s tra n sc en d e n tais, e sim d e sc re v e n d o a
si em term o s d e su a m issão aos h o m en s (cf. n o ta so b re 4 ,2 4 ). "E u so u
a v e rd a d e " d e v e ser in te rp re ta d o à lu z d e 1 8 ,3 7 : "E u p a ra isto nasci, e
p a ra isto vim ao m u n d o , a fim d e d a r te ste m u n h o d a v e rd a d e " . T o d a-
via, D e l a P0TTER1E, p . 9 3 9 , está certo ao in sistir q u e a fó rm u la jo an in a
faz m ais d o q u e d ize r-n o s o q u e Jesus faz: ela n o s in fo rm a o q u e Jesus
é em relação a o s h o m en s. A lém d o m ais, ela se refere a o q u e Jesu s é em
si mesmo; to d a a in sistên cia jo an in a so b re "o v e rd a d e iro " (a lêth in o s : o
p ã o v e rd a d e iro , o v in h o v e rd a d e iro ) seria em v ão se o q u e Jesus é em
relação ao s h o m en s n ã o fosse u m a v e rd a d e ira in d icação d o q u e ele é
em si m esm o .
Se Jesu s é o c a m in h o n o se n tid o q u e ele é a v e rd a d e e ca p ac ita
os h o m en s a co n h ecerem seu alvo, ele é tam b ém o c a m in h o n o sen-
tid o q u e é a vida (zõê ). U m a v ez m ais, esta é a d escrição d e Jesus em
term o s d e su a m issão ao s h om ens: "E u v im p a ra q u e te n h a m v id a,
50 · O último discurso: - Primeira seção (primeira unidade) 1007

e a te n h a m e m a b u n d â n c ia " (10,10). O d e stin o d o c a m in h o é a v id a


com o Pai; e sta v id a , o P ai d e u ao F ilho (5,26), e o F ilho é o ú n ico q u e
p o d e d á -la ao s h o m e n s q u e c re e m n ele (10,28). O d o m d a v id a n a tu -
ral d a d o a L á z aro e ra u m sin al d a s re a lid a d e s e te rn a s p o r d e trá s d a
reiv in d icação d e Jesu s d e se r a ressu rre içã o e a v id a (11,25-26): "T odo
aq u ele q u e v iv e e crê e m m im jam ais m o rre rá " .
Se Jesu s é o c a m in h o p o rq u e ele é a v e rd a d e e a v id a , " v e rd a d e "
e " v id a " n ã o são te rm o s sim p le sm e n te c o o rd e n a d o s: a v id a v e m atra-
vés d a v e rd a d e . O s q u e creem e m Jesu s co m o a rev elação e n c arn a d a
d o P ai (e é isso q u e " v e rd a d e " significa) receb em o d o m d a v id a , d e
m o d o q u e as p a la v ra s d e Jesus são a fo n te d a vida: "A s p a la v ra s q u e
eu vo s te n h o d ito são E sp írito e v id a " (6,63); "A q u e le q u e o u v e m in h a
p a la v ra e tem fé n a q u e le q u e m e e n v io u p o ssu i a v id a e te rn a " (5,24).
O u so d o a rtig o d e fin id o a n te s d o s três su b sta n tiv o s, n o v. 6, im plica
q ue Jesu s é o ú n ico c a m in h o p a ra o Pai. Bultmann , p p . 468-69, está
certo em in sistir q u e , q u a n d o u m a p e sso a v ai a Jesus com o a v e rd a d e ,
não é sim p le s m e n te u m a q u e stã o d e a p re n d e r algo. Ela d e v e p erten -
cer à v e rd a d e (18,37). A ssim , n ã o só n o início d a fé Jesus é o cam inho,
m as Jesu s p e rm a n e c e p a ra sem p re.
O s v e rsíc u lo s q u e se g u em (7-11) são sim p le sm e n te u m com en-
tário so b re a relação d e Jesus com o Pai, q u e foi ex p re ssa d e form a
la p id a r n o v. 6. N ã o im p o rta q u e tip o d e c o n d ição seja lid a no v. 7
(veja n o ta), o tem a é q u e o c o n h e cim e n to d e Jesus e q u iv a le ao conhe-
cim en to d o Pai. (B. G ärtner, N TS 14 [1967-681, 209-31, v ê n este tem a
um reflexo d o p rin c íp io g reg o d e c o n h ecim en to d e ig u al p a ra igual).
Os d isc íp u lo s n ã o falh a ra m c o m p le ta m e n te em co n h ecer Jesus (com o
fizeram "o s ju d e u s" : 8,19); to d av ia , su a s p e rg u n ta s in d icam q u e não
o co n h ecem p e rfe ita m e n te . T u d o isto m u d a rá a p a rtir d e ag o ra (veja
nota); a p ó s "a h o ra " , o a u to r d e 1 João (2,13) p o d e rá d iz e r com certeza
ao seu a u d itó rio cristão: "V ós te n d e s co n h ecid o o Pai". Em Jo 14,7, o
tem a d e co n h e ce r Jesus e, assim , co n h ecer o P ai tam b é m se en co n tra
no assim c h a m a d o lo g io n jo an in o d o s e v a n g elh o s sin ó tico s (M t 11,27;
Lc 10,22): " N in g u é m co n h ece o F ilho exceto o Pai, e n in g u é m conhece
o Pai exceto o Filho, e a q u e le a q u e m o F ilho o q u ise r rev elar".
A a p a riç ã o d e ste tem a n o ú ltim o d isc u rso reflete a atm o sfera
p actu ai d a ú ltim a ceia (p. 985 acim a). H. B. H uffm o n (BASOR 181
[1966], 31-37) tem m o stra d o q u e o v e rb o "co n h e c e r", n o se n tid o d e
"re co n h ecer", p e rte n cia à lin g u a g e m c o n tra tu a l d o O rien te Próxim o.
1008 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

É u s a d a n a Bíblia p a ra o reco n h e c im e n to d e Israel d e Ia h w e h co m o


seu ú n ico D eu s e so b e ra n o (Os 13,14); e Jerem ias (24,7; 31,34) faz d o
v e rd a d e iro c o n h e cim e n to o u rec o n h e c im e n to d e Ia h w e h p a rte d a
n o v a aliança. O Jesus jo an in o , co m o a u to r d a n o v a alian ça c o m os
d iscíp u lo s, in siste q u e d e v e m o s conhecê-lo a ssim co m o Isra e l co n h ece
Iah w eh , p o is " d o ra v a n te " é Jesus q u e m se rá rec o n h e c id o p e lo s cris-
tão s co m o "M e u S e n h o r e D e u s m e u " (20,28).
O s d isc íp u lo s a in d a e n te n d e m e q u iv o c a d a m e n te: Jesu s e stá fa-
la n d o so b re co n h ecer e v e r o Pai, p o ré m eles n u n c a v ira m o P ai (v. 8).
E x atam en te o q u e Filipe e sp era , em term o s d e v isão , é difícil explicar.
T alvez, n a situ a ç ão h istó rica p ré-p a sca l, d e v a m o s p e n s a r q u e F ilipe
esteja refletin d o so b re as g ra n d e s teo fan ias n o S inai [m an ifestad as]
a M oisés e a Elias. (N o texto g reg o d e Ex 33,18, M oisés d iz a D eus:
"M o stra-te a m im "). O u esteja p e n s a n d o n a s visõ es d a c o rte celestial
c o n te m p la d a s p e lo s p ro fetas? N o co n tex to d a ép o ca d o e v a n g elista ,
talv ez Filipe se c o m p o rte com o o p o rta v o z in g ê n u o d a q u e le s c ristã o s
h erético s q u e b u sc a m u m a v isã o m ística d e D eus.
E m q u a lq u e r caso, a p e rg u n ta d á a o p o r tu n id a d e d e Je su s ex p li-
car c la ra m e n te (v. 9) q u e tais te o fa n ia s o u v isõ e s são in ú te is a g o ra q u e
a P a lav ra , q u e é D eus, se fez carn e. A o v e r Je su s se v ê a D eu s. E sta é
u m a c risto lo g ia e le v a d a , m e sm o q u a n d o , c o m o já in sistim o s p re v ia -
m en te (vol. 1, p. 689), a ê n fa se jo a n in a so b re a u n ic id a d e d e Je su s e o
Pai se re la c io n a p rim a ria m e n te co m a m issã o d o F ilho a o s h o m e n s e só
tem im p licaçõ es m eta físic a s s e c u n d á ria s so b re a v id a in te rn a d a D ei-
d a d e . S u g e rim o s a in d a q u e , m u ito d a e q u iv a lê n c ia e n tre P ai e F ilho,
é e x p re ssa e m lin g u a g e m q u e se o rig in a d a c o n c ep ç ã o ju d a ic a d e q u e
a q u e le q u e é e n v ia d o ( sãlTah) é o p e rfe ito re p re s e n ta n te d o q u e o en -
via. E sta id eia foi a g o ra a d m ira v e lm e n te d e s e n v o lv id a p o r P. Borgen ,
‫ ״‬God’s Agent in the Fourth Gospel", in Religions in Antiquity (G o o d e-
n o u g h V o lu m e; L eiden: Brill, 1968) p p . 137-48. Ele a p o n ta p a ra o
p rin c íp io leg al o u h a lá q u ic o d o s rab in o s: " U m a g e n te se a sse m e lh a
à q u e le q u e o e n v io u " , o u , co m o e stá e scrito em T alB ab Quiddushin
43a: "E le se classifica co m o a p ró p ria p e sso a [de s e u s e n h o r]" . P or-
q u e Jesu s é u m a g e n te q u e é ta m b é m o p r ó p rio F ilho d e D e u s, João
a p ro fu n d a a rela çã o legal d e a g e n te com o q u e o e n v ia a tal p o n to
d e to rn á -la u m a relação d e se m e lh a n ç a d e n a tu re z a (to d a v ia , a in d a
q u e n ã o em te rm o s filosóficos). O e s tu d o q u e Borgen faz d o p a n o d e
fu n d o ju d aic o d o tip o d e lin g u a g e m q u e e n c o n tra m o s e m 14,9 é m ais
50 · O último discurso: - Primeira seção (primeira unidade) 1009

im p o rta n te p o r c a u sa d a a le g a ç ã o feita fre q u e n te m e n te d e q u e as


p a ssa g e n s n e o te s ta m e n tá ria s q u e d e sc re v e m Jesu s com lin g u a g e m
d iv in a são , e m ú ltim a a n á lise , d e o rig e m p a g ã . P o d e m o s a c re sc en ta r
q u e h á s im ila rid a d e s e n tre a d e sc riç ã o d e Je su s n o v. 10 e a d o P ro-
feta-co m o -M o isés em D t 18,18 d e q u e m D e u s d iz "E u p o re i m in h a s
p a la v ra s em s u a b o ca, e ele lh es fa la rá tu d o o q u e e u lh e o rd e n a r" .
D o m e s m o M o isés, D t 34,10-12 d iz q u e o S e n h o r o e n v io u p a ra fazer
sin ais e o b ras.
E m se u s d o is tem as d a u n ião d e Jesus com o Pai e d a cap acid ad e
d e su as " o b ra s" em rev elar tal u n ião , o v. 10 contém m ais a fin id ad e com
10,38: "M as, se as faço, e n ã o cred es e m m im , cred e nas obras; p a ra que
conheçais e acred iteis q u e o Pai está em m im e eu nele". Em paralelis-
m o co m p lem en tário , as ú ltim a s d u a s linhas d o v. 10 u n e m p ala v ras e
ob ras co m o teste m u n h a s d a u n iã o d e Jesus com o Pai. Em 12,49-50 e
em 8,28 já o u v im o s Jesus reiv in d icar q u e ele diz som ente o que o Pai
lhe d isse e m a n d o u q u e ele dissesse; em 8,28 ele afirm ou: "Eu n ad a faço
de m im m esm o ". A ssim , p recisam en te p o rq u e nem suas p alav ras nem
suas o b ras são p ro p ria m e n te su as, estas p a la v ra s e obras inform am aos
h o m en s q u e Jesus se relaciona in tim a m en te com o Pai. Esta a titu d e é
m elh o r ex p o sta em 17,4, o n d e to d o o m inistério d e Jesus, p ala v ras e
obras, são a "o b ra " q u e lhe foi d a d a p o r se u Pai p a ra q u e ele a cum pra.
O v. 11 re ite ra o v. 10 com u m a p e lo m ais d ire to ao crer. O s
d o is m o tiv o s d e c re r q u e são o fere c id o s ("c red e -m e "; "cred e[-m e]
p o r c a u sa d a s o b ra s" ) n ã o são to ta lm e n te d istin to s , p o is n ã o h á ap e lo
às o b ra s m ira c u lo s a s m e ra m e n te co m o c re d e n c ia is e x trín se c a s p a ra
a m issã o d e Je su s (vol. 1, p p . 693). A fé a u tê n tic a n a s o b ra s im p lica
a c a p a c id a d e d e e n te n d e r se u p a p e l co m o sin a is - a c a p a c id a d e d e
v er a tra v é s d e le s o q u e elas re v e la m , a sa b er, q u e são a o b ra ta n to d o
Pai c o m o d o F ilho, q u e são u m , e, p o rta n to , q u e o P ai e stá em Jesus
e Jesu s e stá n o Pai.

Versículos 12-14: A força da fé em Jesus

O v. 12 se rv e d e tra n siç ã o e n tre o tem a d e crer (10-11) p a ra o tem a


d e receb er a a ju d a d e D e u s (1 3 1 4 ‫)־‬. A fé em Jesus d a rá ao cristão o
p o d e r d e re a liz a r as m esm a s o b ras q u e Jesu s realiza, p o rq u e , ao u n ir
u m a p e sso a co m Jesus e o Pai, a fé lhe d á p a rticip a çã o n o p o d e r q u e
eles p o ssu e m . A p ro m e ssa ad icio n al, q u e o cren te "re a liz ará (obras)
1010 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

m aio res q u e e s ta s", é ex p licáv el n a situ a ç ão d ife re n te q u e se seg u i-


rá n o p e río d o p ó s-re ssu rreiç ã o . D ep o is q u e Jesus fosse g lo rific ad o
(17,1.5), o P ai rea liz a ria em n o m e d e S eu F ilho o b ras c a p a z e s d e m a-
n ifestar a g ló ria d o F ilho (note o ú ltim o h e m ístiq u io d o v. 13). E m
5,20 h o u v e o u tra referên cia à s "o b ra s m a io re s" (cf. ta m b é m 1,50) n u m
co n tex to e m referên cia ao ju lg a r e ao d o m d a v id a , e talv e z u m a p a r-
ticip ação n e sta s d u a s o b ras esteja in clu sa n o q u e a o s d isc íp u lo s o ra
está se n d o p ro m e tid o . P a rtic ip a rã o n o ju ízo , p o is o Jesu s re s s u rre to
lh es d a rá p o d e r so b re o p e c a d o (20,21-23) e lhes d a rá o P a rác leto q u e
co n v en cerá o m u n d o d o seu e rro (16,8.11). T a m b ém terã o u m a m issã o
d e lev ar a o u tro s u m a p a rtic ip a ç ã o n a v id a d e Jesu s (" p ro d u z ir fru -
to": 15,16). A id eia d e q u e ao s d isc íp u lo s se rá d a d o p o d e r d e re a liz a r
o b ras m a ra v ilh o sa s se e n c o n tra e m m u ito s escrito s n e o te sta m e n tá rio s.
O v. 12 com s u a p ro fu n d a afirm ação d e q u e o h o m e m q u e te m fé rea -
lizará o b ra s m aio res d o q u e a q u e la s feitas p o r Jesu s é u m ta n to sim ila r
a M t 21,21: "E m v e rd a d e v o s d ig o q u e , se tiv e rd e s fé e n ã o d u v id a r-
des, n ã o só fareis o q u e foi feito à fig u eira, m a s a té se a e ste m o n te
d isserd es: e rg u e -te e p re c ip ita -te n o m a r, assim se rá feito". O final
m aio r d e M arco s (16,17-18) e n u m e ra u m a série d e m ilag re s q u e os
cren tes rea liz a rã o e m n o m e d e Jesus. E, n a tu ra lm e n te , A to s ex ib e os
d isc íp u lo s o p e ra n d o g ra n d e s m ilag re s em se u n o m e, in clu siv e o tira r
a v id a (5,1-11) e o d e d a r a v id a e c u ra r (3,6; 9,34.40) o u seja, a s o b ra s
d e ju lg a r e d a r v id a. E n tre tan to , o p e n s a m e n to d e João d ife re d e ste s
o u tro s e x em p lo s d o N T e m q u e em João h á m e n o s ê n fase a o c a rá te r
m ara v ilh o so d a s "o b ra s m a io re s" q u e os d isc íp u lo s fariam : o " m a io -
res" se refere m ais a o se u c a rá te r escatológico.
A firm açõ es tais co m o as d o s vs. 13 e 14, q u e Jesus fará tu d o o q u e
for p e d id o em se u n o m e, são fre q u e n te s n o ú ltim o d isc u rso . A n alise-
m o s c u id a d o s a m e n te q u a tro m o d elo s d istin to s:

(a) 14,13: " T u d o o q u e p e d ird e s e m m e u n o m e, e u o farei [poiein]".


14,14: "Se m e p e d ird e s a lg u m a coisa, em m e u n o m e , e u o farei
[poiein]".
(b) 15,16: "T u d o o q u e p e d ird e s ao Pai em m eu nom e, Ele vo s d a rá ".
16,23: "Se p e d ird e s a lg u m a coisa ao Pai, Ele v o -lo d a rá em
m e u n o m e".
(c) 16,24: "P ed i, e receb ereis".
15,7: "P ed ireis o q u e q u iserd es, e v o s será feito [ginesthai]".
50 · O último discurso: - Primeira seção (primeira unidade) 1011

(d) U m a fo rm a liv re (q u e a p a re c e ta m b é m em 1 João):


16,26: " N a q u e le d ia p e d ire is em m eu n o m e, e n ão v o s dig o
q u e e u ro g a re i ao P ai p o r v ó s",
l j o 3,21-22: "A m a d o s, se o n o sso co ração n ão no s co n d en a,
tem o s con fian ça p a ra com D eus; e q u a lq u e r coisa q u e lhe
p e d irm o s, d e le a receb erem o s, p o rq u e g u a rd a m o s os seus
m a n d a m e n to s , e fazem o s o q u e é a g ra d á v e l à su a justiça",
l jo 5,14-15: "E esta é a confiança q u e tem o s nele, que, se p edir-
m o s a lg u m a coisa, se g u n d o a su a v o n tad e , ele no s ouve. E,
se sab em o s q u e ele no s o u v e em tu d o o q u e p ed im o s, sabe-
m o s q u e alcançam os as petições q u e lhe fazem os".

N a s se n te n ç as d o tip o (a) n o cap. 14, o p e d id o é (a p a re n te m e n te


no 13, c e rta m e n te em 14) d irig id o a Jesu s e ele o a te n d e ; n as sentenças
tip o (b) n o s cap s. 15 e 16, o p e d id o é d irig id o ao P ai e Ele o resp o n d e
no n o m e d e Jesus. (C u rio sa m e n te, se c o m p a ra rm o s as sen ten ças rela-
cio n ad as ao P arácleto n o s resp e c tiv o s ca p ítu lo s, a situ ação é inversa:
no cap. 14, o P ai d á o u e n v ia o P arácleto n o n o m e d e Jesus o u sob o pe-
d id o d e Jesu s, e n q u a n to q u e n o s caps. 15 e 16, Jesus en v ia o P arácleto).
N as se n te n ç as tip o (d) o p e d id o é c o n c ed id o p o r D eu s sem q u a lq u e r
m enção d o n o m e d e Jesus. N a s se n te n ç as tip o (c) n ã o se m en cio n a
nem o q u e receb e n e m o d o a d o r, m as n o co n tex to se g u in te d e cad a
sen ten ça se a lu d e ao Pai.
O e sq u e m a d a s sen ten ças d o s tip o s (a) e (b), e em alg u m a extensão
nas sen ten ças (d), e n v o lv e u m a condição com u m a cláu su la " tu d o " ou
"se" d a sen ten ça; n a s sen ten ças (c) usa-se u m im p erativ o (tem po pre-
sente em 16,24; ao risto em 15,7).
N a s s e n te n ç as (a) o v e rb o " fa z e r" () a p a re c e n a a p ó d o se; em (b) o
v erb o " d a r" ap arece; (c) e (d) têm v o c a b u lá rio v a ria d o , m as "receb er"
é freq u en te.
H á u m g ru p o d e se n te n ç as d o s sin ó tico s n as q u e en co n tram o s
p a ra lelo s ta n to d e v o c a b u lá rio co m o d o esq u em a: •

• M t 7,7 (Lc 11,9): " P e d i e v o s será d a d o " . O im p e ra tiv o (p resen-


te) é u s a d o co m o n o tip o (c ) d e João, m as o v e rb o " d a r" aparece
co m o e m (b).
• M t 7,8 (Lc 11,10): "T odo aquele q u e pede, recebe". E nquanto
este esq u em a e stru tu ra l não aparece n os ditos d e João, há u m a
1012 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

sim ilaridade com (c) n o verbo "receber" e n o fato d e q u e o doa-


d o r não é nom eado. N ote-se q u e estas sentenças são a g ru p a d a s em
versículos consecutivos, com o tam bém em Jo 14,13-14; 16,23-24.
• M t 18,19: "se d o is d e v ó s c o n c o rd a re m n a te rra acerca d e q u a l-
q u e r coisa q u e p e d ire m , isso lhes será feito [ginesthai] p o r m e u
Pai, q u e está n o s céu s". A se n te n ç a c o n té m u m "se " , c lá u su la
co n d icio n al, co m o em (a ); o P ai é o a g e n te co m o e m (b ) e (d ); o
v e rb o ginesthai é u s a d o co m o em (c).
• M t 21,22: "E, tu d o o q u e p e d ird e s n a o ração , c re n d o , o recebe-
reis" (veja u m a v a ria n te em M c 11,24). O e sq u e m a d a p rim e ira
p a rte d a se n te n ç a se a p ro x im a m u ito d o tip o (a) o u (b), m a s a
falta d e in d icação d o a g e n te e o u so d o v e rb o "re c e b e r" e stã o
m ais p ró x im o s d o tip o (c).

E stá c la ro q u e h á m u ita s s im ila rid a d e s e n tre os e s q u e m a s jo an i-


n o s e os d o s sin ó tico s, e sp e c ia lm e n te o s d e M a te u s (a in d a q u e seja
in u sita d o p a ra Jo ão e M a te u s te r p a ra le lo s p a rtic u la re s : v ol. 1, p . 32).
T o d a v ia, e stá ta m b é m c la ro q u e h á m u ita s v a ria ç õ e s e c o m b in a ç õ e s
d ife re n te s, e n e m d e João é e x a ta m e n te as m e sm a s q u e a s se n te n -
ças sin ó ticas. D o d d , Tradition, p p . 349-52, p ro v a v e lm e n te esteja c e rto
u m a v e z m ais e m m a n te r q u e Jo ão e os sin ó tic o s p r e s e r v a m ecos
in d e p e n d e n te s d e se n te n ç a s m ais a n tig a s. A lg u m a s d a s v a ria ç õ e s
em m o d o (im p e ra tiv o o u c o n d ic io n al) e v o c a b u lá rio ("seja d a d o " ,
"re c e b er", v á rio s v e rb o s d e ação) e v o z (ativ a o u p a ssiv a ) p o d e m ser
a trib u íd a s a d ife re n te s te n ta tiv a s d e tr a d u z ir d ito s o rig in a is a ra m a i-
cos p a ra o g reg o .
H á d o is p o n to s q u e m e re c e m u m a b re v e a p re c ia ç ã o . A s ú ltim a s
d u a s se n te n ç a s e m (d) e as ú ltim a s se n te n ç a s e m M a te u s e x p re s-
sa m c o n d içõ es p a ra te r o p e d id o c o n c e d id o - tais co m o g u a r d a r os
m a n d a m e n to s , d e p e d ir d e a c o rd o com a v o n ta d e d e D e u s, d e te r
a a n u ê n c ia d e v á rio s c ristã o s so b re o q u e se d e v e p e d ir e d e crer.
A ú ltim a c o n d iç ã o m e n c io n a d a , a d e fé d a p a rte d a p e s so a q u e p e d e ,
re a lm e n te e stá im p líc ito em to d a s as fo rm a s d o d ito . M as a s o u tra s
c o n d içõ es p o d e m te r sid o d ita d a s p e la e x p e riê n c ia c o n c re ta d a v id a
d a c o m u n id a d e d e q u e n e m to d o s o s p e d id o s são c o n c e d id o s. A s
fo rm a s in c o n d ic io n a is d a s se n te n ç a s são m ais o rig in a is, e é in te re s-
s a n te q u e n a tra d iç ã o jo a n in a a s fo rm a s c o n d ic io n a is n ã o são a trib u í-
d a s a Jesu s.
50 · O último discurso: - Primeira seção (primeira unidade) 1013

O o u tro p o n to a se r c o n sid e ra d o é q u e cinco d a s se n te n ç as joani-


nas m en c io n a m p e d ir (o u d a r -1 6 ,2 3 ) "em m e u n o m e". E n q u a n to João
enfatiza e ste tem a, e m b o ra n ã o seja o ú n ico a fazê-lo. E m M t 18,19,
a sen ten ça c ita d a acim a é im e d ia ta m e n te se g u id a d e u m a afirm ação
q ue se e x p re ssa a b a se p a ra co n fian ça d e q u e o p e d id o será concedido:
"P ois o n d e d o is o u trê s e stiv e re m re u n id o s em meu nome, ali e u estou
no m eio d e le s". E m s u a s o rações, os ju d e u s fre q u e n te m e n te evoca-
v am os P a tria rc a s n a e sp e ra n ç a d e q u e D eu s se d eix aria to car pela
m em ó ria d a q u e le s sa n to s h o m en s, e a o ração em n o m e d e Jesus p o d e
ter-se o rig in a d o d e m a n e ira sim ilar. Veja tam b é m M c 9,41 e a ideia
de d a r e m n o m e d e Jesus. A E ucaristia q u e se celebra em m em ó ria
de Jesus p o d e ter c o n trib u íd o p a ra o c o stu m e d e o ra r em seu nom e,
esp ecialm en te p o sto q u e as oraçõ es cristãs p rim itiv a s fre q u e n te m en te
fossem p ro n u n c ia d a s p o r ocasião d a E u caristia (assim Loisy, p. 409).
A teo lo g ia jo an in a , p o ré m , in tro d u z iu n a o ração em n o m e d e Jesus
um a ên fase q u e vai a lém d o u so d e u m a m era fórm ula. U m cristão
ora em n o m e d e Jesu s n o se n tid o d e q u e ele está em u n iã o com Jesus.
A ssim , o tem a d e p e d ir " e m m e u n o m e " , e m 14,13-14, c o n tin u a e de-
senv o lv e o tem a d e m o ra d a d e 10-11: p o rq u e o cristão está em u n iã o
com Jesu s e Jesu s está em u n iã o com o Pai, n ã o p o d e h a v e r d ú v id a
de q u e o p e d id o d o cristã o será co n ced id o . Este co n tex to d e u n ião
com Jesu s ta m b é m su g e re q u e os p e d id o s d o s cristão s já n ã o são tid o s
com o p e d id o s acerca d e coisas sem im p o rtâ n c ia n a v id a - são p e d id o s
de tal n a tu re z a , q u e q u a n d o são co n c ed id o s o Pai é glo rificad o n o Fi-
lho (13). São p e d id o s p e rtin e n te s à v id a cristã e à c o n tin u a çã o d a obra
pela q u a l Jesu s g lo rifico u o Pai d u ra n te seu m in isté rio (17,4).

[A B ibliografia p a ra esta seção está in clu sa n a B ibliografia no fi-


nal d o § 52.]
5 1 .0 ÚLTIMO DISCURSO:
- PRIMEIRA SEÇÃO (SEGUNDA UNIDADE)
(14,15-24)

O Parácleto, Jesus e o Pai virão para aqueles que amam a Jesus

14 15"Se m e am ais
e g u a rd a is os m e u s m a n d a m e n to s,
16e n tã o , e u ro g are i ao P ai q u e v o s d a rá o u tro P arácleto
p a ra e s ta r co nvosco p a ra sem p re.
17Ele é o E sp írito d a V e rd a d e
a q u e m o m u n d o n ã o p o d e aceitar,
p o rq u e n ã o o v ê n e m o conhece;
m as v ó s o conheceis,
já q u e ele p e rm a n e c e co nvosco e está em vós.
18Eu n ão v o s d e ix a rei órfãos:
V o ltarei p a ra vós.
19A in d a p o u c o tem p o , o m u n d o n ã o m e v e rá m ais;
m as v ó s m e v ereis
p o rq u e e u ten h o v id a , vó s tereis v id a.
20N a q u e le d ia co n h ecereis
q u e e u e sto u n o Pai,
e v ós estais e m m im , e e u em vós.
21A q u ele q u e g u a rd a os m a n d a m e n to s q u e tem d e m in h a p a rte ,
e o s c u m p re , esse é o q u e m e am a;
e q u e m m e a m a será a m a d o p o r m e u Pai,
e e u o a m a rei
e m e rev e lare i a ele".
51 · O último discurso: - Primeira seção (segunda unidade) 1015

22"S e n h o r", d isse Ju d a s (n ão Ju d a s Iscariotes), " d e o n d e v e m q u e hás


d e m a n ife sta r-te a n ó s, e n ã o ao m u n d o ? " 23Jesus re sp o n d e u :

"Se a lg u é m m e am a,
g u a rd a rá a m in h a p a la v ra.
E n tã o m e u P ai o a m a rá,
e v ire m o s p a ra ele
e fare m o s n ele m o ra d a .
24T odos q u antos n ão m e am am , n ão g u a rd a m as m inhas palavras;
o ra, a p a la v ra q u e o u v iste s n ã o é m in h a,
m as v e m d o P ai q u e m e e n v io u ".

22: disse. N o tem po presente histórico.

NOTAS

14.15. e guardais. Temos lido este verbo no subjuntivo (fêrêsête) como parte da
protasis, juntamente com P66e o Codex Sinaiticus. Outras redações são bem
atestadas: (a) Códices Alexandrinus e Bezae trazem um imperativo (têrêsate):
"Se me amais, guardai os m eus mandamentos"; (b) o Codex Vaticanus
tem o futuro (têrêsete): "Se m e amardes, guardareis os meus mandamen-
tos". A redação que temos seguido relaciona estreitamente o v. 15 com o
v. 16. A redação (b) pode representar um a harmonização da parte de co-
pistas com o esquema que aparece no v. 23. A redação (a) e, com menos
intensidade, a redação (b) isola este versículo do v. 16, não estabelecendo
nenhum a relação gramatical entre as estipulações do v. 15 e a doação do
Espírito no v. 16. K. T omoi (ET 72 [1960-61], 31) entende esta ausência de co-
nexão tão incisivamente que sugere que o v. 15 está fora de lugar e deveria
estar entre os vs. 20 e 21. Tal rearranjo destrói o esquema triádico da seção
(veja comentário) e é desnecessário, se nossa tradução for aceita.
guardais os meus mandamentos. O verbo têrein ("guardar" no sentido de
"cum prir") é usado em João para a observância dos m andam entos de
Jesus (14,21; 15,10); em outros lugares, ele é usado para observar os Dez
M andam entos de Deus (Mt 19,17; IC or 7,19). Em 1 João, igualm ente (2,3-4;
3,22-24), o verbo é usado para os m andam entos de Deus; um paralelo
m uito estreito com o presente versículo se encontra em ljo 5,3: "Pois
o am or de Deus consiste nisto: que guardem os os seus m andam entos".
Deve-se notar que aqui e no v. 21, Jesus fala de seus m andam entos no
1016 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

plural, em contraste com o "novo m andam ento" (singular) de 13,34.


A m esm a variação de plural e singular se encontra quando se fala do(s)
m andam ento(s) de Jesus em 15,10 e 12. Seus m andam entos não são sim-
plesm ente preceitos morais: eles envolvem todo um estilo de vida em
amorosa união com ele.
16. rogarei. Bernard, II, 545, sustenta que em geral este verbo erõtan é usado
para descrever as orações de Jesus, enquanto aitein é usado para as ora-
ções dos discípulos (como em 13 e 14). Mas há m uitas exceções.
0 Pai que vos dará. Em 1 4 , 2 6 , ouvimos que "o Pai enviará" o Parácleto; mas
em 1 5 , 2 6 e 1 6 , 7 , o envio é feito por Jesus. A atribuição da ação ao Pai pode
ser a mais original. Não devemos exagerar o caráter joanino desta varia-
ção, pois ela pode ser encontrada também em Lucas/A tos (em Lc 2 4 , 4 9 e
At 2 , 3 3 Jesus envia ou derram a seu Espírito; todavia, estas m esm as pas-
sagens m ostram que o Pai é a fonte do Espírito). O verbo "dar" costuma
ser, no NT, associado ao Espírito Santo (Rm 5 , 5 ) , de m odo que o térm ino
"dom " se tom ou um a designação do Espírito (At 2 , 3 8 ; 8 , 2 0 ; 1 0 , 4 5 ; 1 1 , 1 7 ) .
outro Parácleto. O grego podería ser traduzido: "outro, um Parácleto", um a tra-
dução que remove a implicação de que tem havido um Parácleto anterior; e o
OS5‫»״‬endossa isto. Não obstante, este não é o significado óbvio (cf. 1 0 , 1 6 : "eu
tenho outras ovelhas"; não "eu tenho outras - ovelhas"), e ljo 2,1 demonstra
que o pensamento joanino não acha inconveniente apresentar Jesus como
Parácleto. Jo h n s o n , p. 3 3 , entende essa frase como um modificador adjetival
de "o Espírito da Verdade" no versículo seguinte: "O Pai dará como outro
Parácleto... o Espírito da Verdade, a quem o m undo não pode aceitar...".
estar convosco. Os que pensam em um original aramaico que subjaz João
sugerem que hina, a conjunção grega que expressa propósito, é um a tra-
dução equivocada do relativo aramaico de (- "que estará convosco"). Tal
hipótese é desnecessária, pois na verdade há um elem ento de propósito
na frase. Os mss. que têm o verbo "estar" exibem considerável variante
na sequência das palavras, e há tam bém forte evidência para se ler o ver-
bo "perm anecer" (menein ). Uma vez mais, alguns encontram nisto apoio
para um original semítico, pois o hebraico costum a usar o verbo "estar"
no sentido de perm anecer; por exemplo, o grego de M t 2 , 1 3 reflete o uso
hebraico: "Fica [i.e., permanece] ali até que eu te diga". Para o uso joani-
no de menein, veja vol. 1, pp. 8 1 1 .
17 .0 Espírito da Verdade. No pensam ento joanino, o genitivo é objetivo: o
Espírito comunica a verdade (veja 16,13), em bora possa haver tam bém
um elemento do genitivo apositivo (ljo 5,6[7]: "o Espírito é a verdade").
A frase não dá um a descrição ontológica essencial do Espírito; para o
pano de fundo, veja o apêndice V.
51 · O último discurso: - Primeira seção (segunda unidade) 1017

a quem ... 0. Os pronom es gregos neste versículo referentes ao Espírito são


neutros, pois pneum a é neutro. Contudo, os pronom es m asculinos ekeinos
e autos são usados para Espírito/Parácleto em 15,26; 16,7.8.13.14. Como
o Parácleto, o Espírito assum e um papel mais pessoal do que em m uitas
outras seções do NT.
posto que não 0 vê nem 0 conhece. A incapacidade para perceber "ver", real-
m ente não é razão ou causa para o fracasso do m undo de aceitar o Espí-
rito da Verdade. O verbo ver th e o r e m , pode ser usado em relação à visão
física (2,23; 14,19) ou à visão espiritual (12,45; veja vol. 1, p. 799). O m undo
não pode ver fisicamente o Parácleto porque o Parácleto não é corpóreo;
tam pouco o m undo possui visão espiritual para perceber sua presença
divina nos discípulos. Para a atitude de Paulo sobre a mesma questão,
veja IC or 2,14.
vós 0 conheceis. Este verbo e o "perm anecer" na próxim a linha estão no
tem po presente; nas dem ais passagens sobre o Parácleto, as ações do
Parácleto são descritas no tem po futuro. E bem provável que devamos
considerar os tem pos presentes, aqui, como tendo um valor prolépticos
(BDF, §323). Mas alguns autores preferem os tem pos presentes literal-
m ente e afirm am que, ou que o Parácleto já habitava na última ceia, ou
que o versículo foi escrito da perspectiva tem poral do evangelista. W. R.
H u t t o n (ET 5 7 [ 1 9 4 5 - 4 6 ] , 1 9 4 ) pensa que estas linhas constituem um co-

m entário parentético acrescentado pelo evangelista às palavras de Jesus


como um a nota de rodapé. Veja vol. 1, p. 357ss, para nossa atitude geral
para com tal abordagem dos discursos de João.
já que ele permanece convosco. Reiterando, isto não é um a razão ou causa: a
habitação e conhecimento estão coordenados. Com o o expressou B e n -
gel: a falta de conhecimento exclui a habitação, enquanto a habitação é
a base do reconhecimento. Aqui se diz que o Espírito da Verdade vive
ou perm anece com os discípulos. 2Jo 2 usa este m esm o vocabulário duplo
em referência à própria verdade: "... a verdade que está [permanece] em
nós estará conosco para sem pre". O caráter intercambiável de "verdade"
e "Espírito de Verdade" tem certo paralelo em Q um ran (1QS 4,23-24):
"Até agora os espíritos da verdade" e da m entira lutam nos corações dos
homens. ... Em conform idade com sua porção de verdade, um homem
odeia a m entira".
está em vós. As testem unhas textuais estão divididas sobre se leem uma
forma presente ou futura do verbo. O futuro pode ser um a correção de
copista para evitar a ideia de um a habitação já na últim a ceia; ou o fu-
turo pode ser preferível como um lectio difficilior depois de dois verbos
no tem po presente (assim R i e g e r , art. cit., p. 20) - a m enos que o copista
1018 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

introduzisse o futuro para enfatizar a qualidade proléptica dos dois ver-


bos precedentes. R i e g e r pensa que, neste versículo, as linhas 2 , até a úl-
tima parte da 5, constituem um parêntese, enquanto a últim a parte da
linha 5 dá sequência à linha 1: "Ele é o Espírito de Verdade (...) e estará
entre vós". As linhas parentéticas, em sua visão, tratam da presença do
Parácleto/Espírito durante o m inistério de Jesus. A últim a parte de sua
teoria parece insustentável, um a vez que para João o Parácleto só pode
vir quando Jesus tiver ido (16,7); durante o m inistério de Jesus não foi
outorgado o Espírito aos hom ens (7,39).
18. órfãos. Esta figura de linguagem não é incomum: dizia-se que os disci-
pulos dos rabinos ficavam órfãos após a m orte deles (StB, II, 562), como
ocorreu com os discípulos de Sócrates após sua m orte (Fédort 116A). No
último discurso, a imagem se encaixa na alocução de Jesus dirigida a
seus discípulos como "filhinhos" (13,33). Se aqui órfão significa desti-
tuído de pai ou, mais geralmente, alguém abandonado sem ter ninguém
que cuide dele, é difícil de dizer; todavia, Schwank, "Vom Wirken", p. 152,
assinala este versículo como base para cham ar Cristo de "Pai" na oração.
voltarei. Enquanto "voltar" (palin) foi expresso no v. 3, aqui e em 28 só está
implícito.
19. ainda pouco tempo. Eti mikron; veja nota sobre 13,33. Q ue isto se refere ao
ínterim antes do período escatológico é visto pela referência no versículo
seguinte ao cum prim ento da prom essa de ver Jesus "naquele dia".
verá. Um tem po presente usado prolepticam ente para com unicar a certeza
do futuro. Theorem é usado aqui, enquanto horan é usado na passagem
paralela em 16,16.
porque eu tenho vida, vós tereis vida. Literalmente, "porque eu vivo, vós vi-
vereis". Uma vez mais, a relação desta linha com a linha precedente é
mais coordenada do que causal: a visão do Jesus ressurreto e a vida cons-
tituem um só dom. Na verdade, esta últim a linha do v. 19 podería ser
form ada num a sentença separada: "porque eu tenho vida, tam bém vós
tereis vida".
20. Naquele dia. Esta expressão ocorre três vezes em João: aqui em 16,23.26.
Muito embora no AT "aquele dia" seja um a fórm ula tradicional para
descrever o tem po da intervenção final de Deus (também em Mc 13,32),
na forma definitiva do pensam ento joanino o termo parece aplicar-se ao
período da existência cristã possibilitado por "a hora" de Jesus. Com pare
"no últim o dia" em 6,39.40.44.54.
conhecereis. Isto podería ser traduzido por "vós mesmos", se o pronom e ex-
presso para "vós" for enfático (assim Bernard, II, 548); mas é bem provável
que Bultmann, p. 479s, esteja certo quando mantém o contrário (BDF, §2T72).
51 · O último discurso: - Primeira seção (segunda unidade) 1019

21. Aquele que. Em 21,23-24a há um a m udança para a terceira pessoa (talvez


sob o im pacto do tem a Sabedoria - veja comentário). Os vs. 1-20 têm sido
dirigidos aos discípulos na segunda pessoa; o discurso duplicado do cap.
16 conserva invariavelm ente na segunda pessoa.
guarda os mandamentos que tem de minha parte. Literalmente, "tem os m eus
m andam entos e os guarda". Não há diferença real entre ter os m anda-
m entos (somente aqui, m as com paralelos rabínicos) e guardá-los, ainda
que Bernard, II, 548, veja guardar os m andam entos como um passo a
mais (assim tam bém A gostinho).
será amado por meu Pai. P75 diz "o guardará a salvo" (têrein ; cf. 17,11) para
"am ado"; e C. L. Porter, em Studies in the History and Text of the New
Testament, ed. por B. L. D aniels e M. J. S uggs (Salt Lake City: University
of Utah, 1967), p. 74, opina que esta pode ser a redação original. Barrett,
p. 388, diz que João não tem em m ente que o am or de Deus é condicional
à obediência do homem; antes, ele está se concentrando na correspon-
dência m útua do amor. Todavia, é possível reconhecer isso no dualismo
joanino, visto que o am or espontâneo de Deus é expresso no dom de seu
filho, se alguém se aparta do Filho, esse despreza o am or de Deus.
22. "Senhor", disse Judas. As três perguntas que interrom pem a sequência,
propostas pelos discípulos neste capítulo (aqui, vs. 5 e 8) começam da
m esm a m aneira. Evidentemente, há algum artifício redacional; contudo,
se estivesse envolvida m era invenção, por que se introduziu um discípu-
lo tão obscuro como este Judas?
Judas (não Judas Iscariotes). O original poderia ter dito sim plesm ente
"Judas"; e o parêntese, bem como as variantes das versões, poderíam
p rovir de tentativas po r parte dos copistas visando ao esclarecimento.
A saída d e Judas Iscariotes, em 13,30, poderia ter indicado a um copista
que este Judas não era o Iscariotes. Além de Iscariotes havia ao menos
dois outros hom ens im portantes cham ados Judas (= Judá) que tinham
contato com Jesus. O primeiro foi Judas, parente ou irm ão de Jesus
(Mc 6,3; M t 13,55). Ele era irm ão de Tiago de Jerusalém e é tradicional-
m ente identificado como o autor da Epístola de Judas. O segundo foi Judas
de Tiago (i.e., presum ivelm ente, o filho de Tiago, não o irm ão de Tiago,
como algum as traduções dizem ). Seu nom e aparece nas duas listas lu-
canas dos Doze (Lc 6,16; At 1,13), porém não nas de Marcos ou Mateus.
N ada sabem os dele, m as na hagiografia posterior houve um a tentativa
de identificá-lo com Tadeu, ou Lebeu, cujo nom e aparece nas listas de
M ateus e M arcos dos Doze (Mc 3,18; M t 10,3), m as desapareceu da lista
de Lucas - um a identificação que, presum ivelm ente, é o produto de
um a conjetura de alguém com parando as listas. Geralm ente, sugere-se
1020 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

que o Judas m encionado no presente versículo, p o r João, é Judas de


Tiago, e que ele era um dos Doze (assim Lucas e João frente a M ateus e
Marcos sobre a composição dos Doze).
A versão copta saídica deste versículo diz "Judas o C ananeu", talvez
uma tentativa de identificar Judas com Simão o C ananeu das listas m ar-
cana e m ateana. O OS traz "[Judas] Tomé", e esta tradição de identificar
Judas com Tomé Dídimo (veja nota sobre 11,16, que m enciona a lenda
de que Tomé era o irm ão gêmeo de Jesus) aparece em obras de origem
siríaca e no Evangelho de Tomé. H. Koester, HTR 58 (1965), 296-97, sugere
que a tradição siríaca é correta e que o Judas em questão era o irm ão de
Jesus e foi apóstolo de Edessa. Entretanto, isto é m uito especulativo, indo
além da evidência e até mesmo além das tradições da igreja de Edessa.
Cf. G. Q uispel, NTS 121 (1965-66), 380. Podem os notar que estas tentativas
nas versões para identificar Judas se opõem a identificá-lo com o "Judas
de Tiago" lucano, pois a lista de Lucas distingue este discípulo d e Simão
o Zelote e de Tomé. Em face de evidência tão confusa, não é possível
chegar a um a conclusão.
23. guardará a minha palavra. A expressão é usada nos vs. 23 e 24; em 8,51;
e em 15,20; o tema de guardar a palavra de Deus aparece em ljo 2,5.
Nos vs. 15 e 21, anteriorm ente, é utilizado a m esm a expressão "guardar
[os] m eus m andam entos". O plural e singular de "palavra" aparecem no
v. 24 sem diferença aparente de significado; e então a variação entre sin-
guiar e plural no uso tanto de "palavra" como de "m andam ento" (cf. a
nota ao v. 15) não é de significação teológica clara. A equivalência entre
"palavra" e "m andam ento" se apoia no AT, onde os Dez M andam entos
são m encionados como as "palavras" de Deus (Ex 20,1; D t 5,5.22 - de
fato, "palavra", heb. dãbãr, pode ser um term o técnico para se referir as
estipulações da aliança); veja tam bém como são intercam biáveis "m an-
dam entos", "palavra" e "palavras" no texto grego do SI 119,4.25.28.
A luz deste pano de fundo veterotestam entário, não aceitam os a tese de
Bultmann (p. 4752) de que, posto que "guardar os m andam entos" é o
mesmo que "guardar a palavra", a expressão sim plesm ente se refere à
fé, e, portanto, em João não há sinal do "legalismo d a igreja católica inci-
piente". Por todo o pensam ento neotestam entário, há tun forte legado da
lei e preceitos recebidos do AT. Em 1 João se unem a fé e um a vida m oral
cuidadosam ente regulada.
Então meu Pai 0 amará, e viremos para ele. Em RB 57 (1950), 392-94, Boismard
dá evidência em prol de um a forma mais breve: "Então eu e m eu Pai
viremos". Para a diferença entre a noção que João tem de m orada divina
e a de Filo, veja Lagrange, pp. 389-90.
51 · O último discurso: - Primeira seção (segunda unidade) 1021

24. a palavra que ouvistes não é minha. Os m anuscritos ocidentais leem: "mi-
nha palavra não é m inha". Talvez esta redação tenha sido produzida por
analogia com 7,16: "M inha doutrina não é m inha, m as vem daquele que
m e enviou".
vem de mim. Literalmente, "é de".

COMENTÁRIO

M u ito s a u to re s , e n tre eles B ultmann , W ikenhauser e Boismard têm en-


c o n tra d o u m in te re ssa n te e sq u e m a triá d ic o n e sta se g u n d a u n id a d e d a
P rim e ira seção. Se o m a n d a m e n to , " te n d e fé [crede] e m m im ", d o m in a
a p rim e ira u n id a d e (14,1.11), a id eia d e "am a i-m e " d o m in a a se g u n d a
u n id a d e . U m a a firm a ç ão so b re a m a r a Jesus e g u a rd a r seus m an d a -
m e n to s /p a la v ra (s ) o co rre trê s v ezes (15,21,23); e e m c ad a caso h á u m a
p ro m e ssa d e q u e a p rese n ç a d iv in a v irá aos q u e c u m p re m o m an d a -
m ento. N o s vs. 15-17, é o P a rá c le to /E s p írito q u e v irá h a b ita r no s dis-
cíp u lo s. N o s vs. 18-21, é Jesus q u e m v irá h a b ita r n o s d iscíp u lo s. N os
vs. 23-24 (o v. 22 se rv e d e tran sição ), é o P ai q u e m v irá , ju n ta m e n te
com Jesu s, faz e r m o ra d a n o s d isc íp u lo s. A ssim , a p a re n te m e n te , aq u i
há u m e s q u e m a triá d ic o q u e p õ e em e stre ito p a ra le lism o o E spírito,
Jesus e o P ai (com Jesus). T al e sq u e m a n ã o seria in co m u m ; p o r exem -
pio, e s q u e m a s triá d ic o s b re v e s são fre q u e n te s n o s escrito s p a u lin o s
(IC o r 12,4-6; 2 C or 13,13; Ef 4,4-6). Se a lg u é m aceita este e sq u em a em
Jo 14,15-24, a teo ria m ais p la u sív e l so b re su a o rig e m é q u e as senten-
ças in d e p e n d e n te s so b re a p re se n ç a d iv in a fo ram re u n id a s, e q u e es-
tas se n te n ç as se o rig in a ra m d e d ife re n te s p e río d o s d e n tro d a história
da tra d iç ã o jo an in a. (F re q u e n tem e n te as se n te n ç as so b re a p resença
d e D eu s a tra v é s e n o P arácleto são tid a s co m o se n d o as m ais tardias).
E n tre tan to , sem n e g a r n e c essa ria m e n te a v a lid a d e d o esq u em a
triád ico , p o d e -s e n o ta r q u e ele a te n u a m u ita s d ific u ld a d e s. A terceira
s u b u n id a d e n ã o se p re o c u p a u n ic a m e n te com o Pai, m as com o Pai
e com Jesu s. N a v e rd a d e , o P ai já h á sid o m e n c io n a d o n o v. 21, n a
s e g u n d a s u b u n id a d e , em b o ra a m o ra d a d o Pai n ã o seja especificada
ali. D e fato, n o s vs. 21-24 se p o d e a p re s e n ta r u m a ra z ã o p a ra certa
u n id a d e , v isto q u e esses v ersícu lo s falam d o d isc íp u lo cristão n a ter-
ceira p e sso a , e n q u a n to q u e os vs. 15-20 se d irig e m ao s d isc íp u lo s n a
se g u n d a p e sso a (cf. n o ta so b re " a q u e le q u e " n o v. 21). A lém d o m ais,
1022 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

0 e sq u em a d e p e rg u n ta e resp o sta, n o s vs. 22-23a, re a lm e n te se rv e


m elh o r co m o u m co n ectiv o e n tre o s vs. 21 e 2 3 2 4 ‫ ־‬d o q u e co m o u m
d iv iso r e n tre d u a s d a s u n id a d e s triá d ic a s m en o res.
M as in d e p e n d e n te m e n te d e q u e se aceite o u n ã o o e sq u em a triá-
dico, o certo é q u e h á m en ção d e três tip o s d e h ab itação d iv in a. A des-
p eito d e su a s o rigens p resu m iv e lm e n te in d ep e n d e n te s, os d ito s so b re
estas h ab itaçõ es têm sido c o m b in ad as em u m a u n id a d e q u e com eça e
term in a so b re o tem a d e a m a r Jesus e g u a rd a r seu s m an d a m en to s. P ro-
v av elm en te, n o estágio final d a teologia joanina, to d as estas h ab itaçõ es
eram tid as co m o se n d o realizad as atra v és d o Parácleto. O P arácleto é a
p resen ça d e Jesus e n q u a n to ele está au sen te, d e m o d o q u e " e u v o ltarei
p a ra v ó s", n o v. 18, n ã o c o n stitu i c o n trad ição à id eia d e q u e o P arácleto
está sen d o e n v iad o . E v isto q u e o P ai e Jesus são u m , a p rese n ç a d o P ai
e Jesus (23) realm en te n ã o é d iferen te d a p resen ça d e Jesus n o Parácleto.
Finalm ente, p o d em o s n o tar q u e em 16,4b-33, q u e o d iscu rso é u m a
duplicação d o cap. 14, n ão há n e n h u m esq u em a triádico rig o ro sam en te
form ulado. N ão volta a repetir-se reg u larm en te a sentença sobre a m a r Je-
sus e g u a rd a r seus m an d am en to s. A v in d a d o Parácleto, n o s vs. 16,13-15,
é seguido d e u m a seção q u e p rom ete q u e os d iscípulos verão Jesus o u tra
vez (= 14,19); m as n ão se d iz que Jesus h abitará nos discípulos, n e m se diz
que o Pai h abitará neles (em bora em 16,27 leiam os q u e o Pai am a os disci-
pulos). Boismard, art. cit., afirm a q u e o cap. 14 se parece m u ito com as epís-
tolas joaninas, m esm o que o cap. 14 seja cristocêntrico, e n q u an to 1 João é
teocêntrico. A os versículos d o cap. 14 (15,21,23-24) q u e falam d e a m a r a
D eus co rrespondem os versículos em 1 João (4,20-21; 5,2-3) q u e falam d e
am ar a Deus. N a nota sobre o v. 15, indicam os q u e a insistência n esta u ni-
d ad e d e João sobre g u a rd a r os m an d am en to s d e Jesus co rresp o n d e com
1 João, insistindo sobre g u a rd a r os m an d am en to s d e D eus, cuja o bservân-
cia assegura a habitação d e D eus n o cristão (ljo 3,24; 4,12-16).

Versículos 15-17: A vinda do Parácleto

O v. 15 com eça com o m an d a m en to d e a m a r a Jesus. E n q u an to


o am o r d e D eus é u m tem a b e m a te stad o em am b o s o s T estam entos,
su rp re e n d en te m e n te o tem a d o a m o r d e Jesus p a ra com o cristão n ão
é m u ito co m u m - fé em Jesus é u m tem a m ais frequente. O a m o r d e
Jesus é m en cio n ad o p rin cip alm en te no s livros tard io s d o NT: agapan
é o v erb o u sa d o nesta u n id a d e d e Jo 14; em 8,42; 21,15.16; Ef 6,24;
51 · O último discurso: - Primeira seção (segunda unidade) 1023

lP d 1,8; e philein é u s a d o e m Jo 16,27; 21,17; M t 10,37 (cf., p o rém ,


Lc 14,26); IC o r 16,22.0 conhecim ento d e q u e o cristão d ev e a m ar a Jesus
assim co m o ele am a o Pai, p o d e ser u m a faceta d e u m d esenvolvim ento
teológico g ra d u a l n a co m p reen são d e q u e m é Jesus, m as n ã o p o d em o s
d esco n sid erar o fato d e q u e o m an d a m en to d e Jesus d e ser am a d o é
p erfeitam en te fam iliar n o am b ien te d a aliança d o últim o discurso e d a
ú ltim a ceia. N . Lohfink (GeistLeb 36 [1963], 271-81) tem a p o n ta d o para
u m p aralelism o e n tre o m a n d a m e n to d o D eus d a aliança d o Sinai d e ser
a m a d o e x clu siv am ente p o r seu p o v o (Dt 6,5) e o m an d a m en to p o r a m or
exclusivo d a p a rte d e Jesus, q u e é a presen ça visível d e D eus en tre os
h o m en s, estab elecendo u m a nova aliança com eles.
A in tro d u ç ã o d o tem a d o P arácleto n o s vs. 16-17 n ã o é tão a b ru p -
ta q u a n d o o d o m d o P arácleto é a sso ciad o com o tem a d e q u e as ora-
ções d e a lg u é m são re s p o n d id a s p o r D e u s (1 3 1 4 ‫)־‬. O b tem o s a m es-
m a s e q u ên c ia em Lc 11,9-13: " P e d i e v o s será d a d o . ... Q u a n to m ais o
Pai celestial d a rá o E sp írito S an to ao s q u e lho p e d ire m " . O s vs. 16-17
c o n stitu e m a p rim e ira d a s cinco p a ssa g e n s d o P arácleto n o ú ltim o dis-
cu rso , a s q u a is tra ta re m o s em c o n ju n to n o a p ê n d ic e V, m en c io n an d o
a q u i so m e n te a sp ecto s p e c u liare s a esta p a ssa g e m q u e a g o ra com en-
tam os. D u a s d a s p a ssa g e n s q u e o co rrem n o cap. 14, e d u a s q u e ocor-
rem n o d isc u rs o d u p lic a d o d e 16,4b-33; e em cad a u m d o s casos, a
p rim e ira p a s sa g e m se o c u p a d a o p o sição e n tre o P arácleto e o m u n d o .
A referên cia d o v. 16 ao P arácleto com o " o u tro P arácleto " (veja nota)
tem a im p licação ó bvia d e q u e Jesus tem sid o u m P arácleto, v isto q u e o
o u tro P arácleto v irá q u a n d o Jesus p a rtir, l j o 2,1 a p re se n ta Jesus com o
u m P arácleto em su a fu n ção d e in tercesso r celestial d ia n te d o Pai de-
p ois d a ressu rreição ; to d av ia , João p a rece d a r a e n te n d e r q u e Jesus tem
sido u m P arácleto d u ra n te seu m in istério terreno. (A su g e stã o d e que
Jesus é u m P arácleto em v irtu d e d e h a v e r p ro n u n c ia d o a g ra n d e ora-
ção in tercessó ria d o cap. 17 dificilm en te é a d e q u a d a p a ra explicar a im -
plicação d e 14,16-17, o n d e n ã o se a trib u i ao P arácleto n e n h u m a função
intercessó ria). N o a p ê n d ic e V v e re m o s q u e o E spírito d a V e rd a d e é u m
P arácleto p re c isa m e n te p o rq u e ele leva a d ia n te a ob ra te rre n a d e Jesus.
O P a rá c le to /E s p írito d iferirá d e Jesus, o P arácleto, em q u e o E spírito
n ão é fisicam en te visível, e su a p resen ça só será possível p o r m eio d a
h ab itação n o s d iscíp u lo s. O tem a v e te ro te sta m e n tá rio d o "D eu s conos-
co" (o E m a n u el d e Is 7,14) se realizará ag o ra n o P a rá c le to /E sp írito q u e
p e rm a n ec e com os d iscíp u lo s p a ra sem pre.
1024 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

Versículos 18-21: A vinda (retorno) de Jesus

H á u m p aralelism o e n tre a prim eira e a seg u n d a u n id a d e s m enores


d o esquem a triádico, aquelas q u e tratam , respectivam ente, d a v in d a e d a
habitação d o P arácleto /E sp írito e a v in d a (retom o) e h abitação d e Jesus:

vs. 15-17 vs. 18-21


C o n d içõ es necessárias: a m a r a Jesus; g u a rd a r seu s
m a n d a m e n to s 15 21
D oação d o P arácleto; re to rn o d e Jesus 16 18
O m u n d o n ã o v e rá o P arácleto n e m a Jesus 17 19
O s d isc íp u lo s reco n h ecerão o P arácleto e v e rã o a Jesus 17 19
O P arácleto e Jesu s h a b ita rã o n o s d isc íp u lo s 17 20

(João p a re c e te r d o is e s q u e m a s d e p a ra le lis m o . U m é q u iá s ti-


co, o n d e h á u m a s e q u ê n c ia in v e rs a n a s d u a s se çõ e s, d e m o d o q u e ,
ju n ta s , fo rm a m u m a c u rv a p a ra b ó lic a ; veja 6,36-40 e m v o l. 1, p . 455;
ta m b é m 15,17-17 à p . 1053 a b a ix o . N o o u tro e s q u e m a , a s e q u ê n c ia
é a m e sm a e m a m b a s a s seçõ es, f re q u e n te m e n te c o m a e x c eç ã o d e
q u e o p rim e iro v e rs íc u lo e m u m a se çã o se v in c u la c o m o ú ltim o
v e rs íc u lo d a o u tra ; v eja 5,19-30 e m v ol. 1, p . 444. O ú ltim o e s tá e n -
v o lv id o a q u i). T al p a ra le lis m o c o n s titu i a m a n e ira d e Jo ão d e d iz e r
ao le ito r q u e a p re s e n ç a d e Je su s, a p ó s s e u re to r n o a o P ai, é re a liz a -
d a e m e a tra v é s d o P a rá c le to . N ã o se tra ta d e d u a s p re s e n ç a s , m a s
sim d e u m a m e s m a p re se n ç a .
V isto q u e já c h a m a m o s a ate n ç ã o p a ra as se m e lh an ç a s e n tre Jo 14
e 1 João, é in te re ssa n te sa lie n ta r q u e os cinco a sp ec to s c ita d o s acim a se
e n c o n tra m e m 1 João, g e ra lm e n te e m d escriçõ es d o P ai (n em s e m p re é
p o ssív el d iz e r a q u e m o "ele" e " se u " d e 1 João se refere):

1 João
C o n d içõ es necessárias: a m a r u n s ao s o u tro s;
g u a rd a r seu s m a n d a m e n to s 3,23-24
R evelação d e D eu s 3,2
O p o sição e n tre o P ai e o m u n d o 2,15-17
O s cristão s o v e rã o co m o ele é 3,2
D eu s h a b ita n o s cristão s 3,24
51 · O último discurso: - Primeira seção (segunda unidade) 1025

C o m e n ta n d o os v e rsíc u lo s in d iv id u a is d e sta su b seção , encon-


tra m o s n a p rim e ira lin h a d o v. 18 u m a p o n te e n tre a referên cia ao
P arácleto e a referên cia à a tu a ç ã o p ó s-p a sc a l d e Jesus. D e fato, é difí-
cil e s ta r c e rto so b re q u e tip o d e h a b ita çã o c o n stitu e a b ase p a ra "n ão
vos d e ix a re i ó rfã o s". A in d a q u e n a p re se n te se q u ên cia "v o lta re i p a ra
v ó s" p ro v a v e lm e n te d e v a ser in te rp re ta d a em term o s d a v in d a d o
P arácleto , d e v e m o s in d a g a r so b re a referên cia o rig in al d e sta s p ala-
v ras, se, co m o é p ro v á v e l, u m a v ez ex istiram in d e p e n d e n te m e n te d a
p ro m e ssa d o P arácleto. O s P a d re s latin o s p e n sa v a m q u e a referência
era à p a ro u s ia p ro m e tid a em 14,2-3. A im p licação n o v. 19, d e q u e a
v in d a o c o rre rá d e p o is d e p o u c o tem p o , n ão c o n stitu i o b stácu lo a esta
in te rp re ta ç ã o , já q u e a frase n ã o é u m a in d icação cronológica (nota
so b re 13,33), e as p a la v ra s " n a q u e le d ia " , d o v. 20, p o d e m favorecer
a id eia d a p a ro u sia . M as a afirm a ç ão n o v. 19 d e q u e o m u n d o não
v erá Jesu s n ã o se a d e q u a a b so lu ta m e n te à p a ro u sia . O s P a d res orien-
tais e m g e ra l e n te n d e ra m q u e se fazia u m a referência às aparições
p ó s-re ssu rre iç ã o d e Jesus, in te rp re ta ç ã o q u e to m a " p o r p o u c o tem p o "
litera lm e n te . Isto se a d e q u a b e m à id eia d e q u e o m u n d o n ã o verá
Jesus (A t 10,40-41: "D e u s fez q u e se m an ifestasse, n ão a to d o o p ovo,
m as a n ó s q u e fo m o s esco lh id o s co m o te ste m u n h a s"). Ig u alm en te, a
afirm ação n o v. 19, " e u te n h o v id a " , p a re c e u m a term in o lo g ia caracte-
rística d a ressu rreição : Lc 24,5: " P o r q u e b u sc ais o v iv o e n tre os m or-
tos?"; 23: "... u m a v isã o d e anjos, q u e d iz e m q u e ele v iv e"; tam b ém
Mc 16,11; A t 1,3; A p 1,18.
T o d a v ia, é ó b v io q u e Jesu s e stá fala n d o d e u m a p re se n ç a co n tin u a-
d a m ais d o q u e e ra p o ssív e l n o b rev e p e río d o d e a p ariçõ es p ó s-ressu r-
reição - n ã o só as p a la v ra s " n ã o vo s d e ix a rei ó rfã o s", m a s to d a a tona-
lid a d e d e s u a s o b serv açõ es im p lic a m u m a c o n tin u id a d e . P o rta n to , se
o rig in a lm e n te estes v ersícu lo s se refe ria m à v o lta d e Jesus n u m a série
d e a p a riçõ e s p ó s-re ssu rreiç ã o , logo fo ra m in te rp re ta d o s n o s círculos
jo an in o s co m o u m a referên cia a u m a p rese n ç a p e rm a n e n te e n ã o físi-
ca d e Jesu s a p ó s a ressu rre içã o . (E a p a re n te m e n te isto aco n teceu an te s
q u e fo ssem a sso c ia d o s com a p ro m e ssa d o P arácleto e p o ste rio rm e n te
re in te rp re ta d o s co m o u m a referên cia à p rese n ç a d e Jesus p o r m eio d e
seu E spírito). E sta re in te rp re ta ç ã o se d e se n v o lv e u a p a rtir d a p ro fu n d a
co n v icção q u e o v e rd a d e iro d o m d o p e río d o p ó s-re ssu rreiç ã o se d e u
n a q u e la u n iã o co m Jesus q u e já n ã o h a v e ria d e d e p e n d e r d a p rese n ç a
física. Isto n ã o significa q u e p a ssa g e n s tais co m o esta d e sp o je m o ev en to
1026 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

p ascal d e se u c a rá te r e x te rn o e m ira cu lo so ( B u l t m a n n , p . 4 7 9 ) , e q u e
n ão h á d iferen ça e n tre as a p a riçõ e s q u e se g u em à re ssu rre iç ã o e a h a-
bitação. M ais c erto é q u e o Q u a rto E v an g elh o ( 2 0 , 2 7 ) sai u m p o u c o d e
su a lin h a p a ra in sistir n o c a rá te r e x te rn o d a s a p a riçõ e s e n a rea lid a -
d e c o rp ó re a d o Jesus ressu rre to . M as João tam b é m c o m p re e n d e u q u e
as ap ariçõ es e a re a lid a d e c o rp ó re a n ão e ra m u m fim e m si m esm as;
m as sim q u e in iciav am u m tip o m ais p ro fu n d o d e p resen ça. (V im os
a m esm a a titu d e com relação a o s m ilag re s d e Jesus: o Q u a rto E van-
g elh o n ã o p re sc in d e d a re a lid a d e d o s m ilag res, p o ré m in siste so b re
seu sig n ificad o e sp iritu a l). Esta p o s tu ra n ã o é ex clu siv a d e João; p o is
em M t 2 8 , 2 0 o Jesu s re ssu rre to diz: "E u e sto u s e m p re co n v o sco , até a
c o n su m ação d o s séculos". (T odavia, é p o ssív e l q u e M a te u s n ã o esteja
fala n d o d a p rese n ç a d e Jesu s n o s cristão s in d iv id u a is, m a s n a c o m u -
n id a d e cristã co m o tal). D eve-se n o ta r q u e n e n h u m a d e sta s p a ssa g e n s
se o c u p a d a p rese n ç a d e Jesu s e n c o n tra d a p e lo s m ísticos; a p re se n -
ça d e Jesus é p ro m e tid a , n ã o a u m a m in o ria seleta, m a s ao s cristão s
em geral.
O tem a n a ú ltim a lin h a d o v. 19, d e q u e a v id a d e Jesus é a b a se e a
fonte d a v id a cristã é d o u trin a co m u m d o N T (Rm 5,10; IC o r 15,22). N o
v. 20, João d á u m p asso a m ais e p ro p õ e a ideia d e q u e, u m a v e z q u e os
cristãos ten h a m recebido a v id a d e Jesus, serão a p to s a reco n h ecer q u e
ela é u m a v id a m u tu a m e n te p a rtilh a d a pelo P ai e p elo F ilho (veja tam -
b ém 5,26; 6,57). Já salien tam o s q u e m u ita s classes d e fó rm u la s referen te
à h ab itação q u e e n v o lv em Jesus, o P ai e o s d iscíp u lo s (p. 971 acim a).
A m en ção d e h a b itação n o v. 20 é s e g u id a , n o v. 21, p e la co n d iç ã o
d a q u a l d e p e n d e essa habitação: g u a rd a r os m a n d a m e n to s d e Jesu s e,
p o rta n to , am á-lo . A s p rim e ira s d u a s lin h a s d o v. 21 se rela cio n a m c om
o v. 15 d e u m a fo rm a in v ersa e m o stra m q u e a m a r e g u a rd a r o s m an -
d a m e n to s são a p e n a s d u a s d ife ren te s facetas d o m esm o e stilo d e v id a.
O a m o r m o tiv a a g u a rd a d o s m a n d a m e n to s , e d e v e ra s o a m o r é a
su b stâ n c ia d o s m a n d a m e n to s d e Jesus. A a firm a ç ão n o v. 21 d e q u e
to d o o q u e a m a (agapan ) Jesus será a m a d o p e lo P ai te m u m p a ra le lo
n o d isc u rso d u p lic a d o d e 16,27: "P o is o p ró p rio P ai v o s a m a [philein ],
p o rq u e m e te n d e s a m a d o " . O p a n o d e fu n d o sa p ie n c ia l v e te ro te s-
ta m e n tá rio d o p e n sa m e n to e v o c a b u lá rio jo an in o s e m g ra n d e m e-
d id a v e m em p rim eiro p la n o n o v. 21. P o r exem plo, Sb 6,18 fala d a
S ab ed o ria: " O a m o r [a g a p ê ] co n siste em g u a rd a r su a s leis"; ta m b é m
6,12: "E la é facilm ente v ista [theorem ] p o r a q u e le s q u e a a m a m " .
51 · O último discurso: - Primeira seção (segunda unidade) 1027

Se Jesu s d iz: "E u m esm o m e rev e lare i a ele [o q u e m e a m a ]", Sb 1,2 d iz


q u e o S e n h o r se rev e la rá aos q u e co n fiam nele.
A q u e s tã o p ro p o sta n o v. 22 co n ecta o final d a s e g u n d a su b u n id a -
d e (18-21) co m o início d a terceira s u b u n id a d e (23-24) - a m en o s q u e se
leve m ais a sério a p o ssib ilid a d e s u p ra m e n c io n a d a (p. 1022) d e q u e os
vs. 21-24 fo ra m u m ú n ico co n ju n to . O p ro b le m a q u e p re o c u p a Ju d a s é
tão p e rtu r b a d o r co m o o p ro b le m a p ro p o sto b e m a n te s em 7,4, q u a n -
d o o s " irm ã o s " d e Jesus in siste n te m e n te su g e rira m q u e ele m o strasse
seus m ila g re s ao m u n d o . P o d e ria m o s e sp e ra r q u e n esse m o m e n to Ju-
d as tiv esse ex ercid o m ais fé e m Jesu s d o q u e os irm ã o s in cré d u lo s
d ele (Jesus), m as, e v id e n te m e n te , a n a tu re z a d a s e x p e cta tiv a s m essiâ-
nicas d o s d isc íp u lo s n ã o m u d o u m u ito (cf. Lc 22,24, n a ú ltim a ceia).
Jesus fala ra d e rev e lar-se ao s se u s d isc íp u lo s. Ele tin h a em m e n te q u e
faria isso p e la h a b ita çã o (se falarm o s n o n ív el d o p re se n te contexto);
m as este m e sm o te rm o fora u s a d o n as descrições q u e a LXX faz d a
teofan ia a p re s e n ta d a a M oisés n o Sinai (Ex 33,13.18). E n tão p arecería
q ue J u d a s, talv e z n ã o d ife re n te d e Filipe, n o v. 8, está b u sc a n d o ou-
tra teo fa n ia q u e d eix e o m u n d o p e rp le x o e n ã o co n seg u e e n te n d e r a
afirm ação d e Jesu s n o v. 19 d e q u e o m u n d o n ã o o v e rá m ais. (Se em
u m p e río d o a n te rio r à " v o lta " d o vs. 18-21 se referia à s a p ariçõ es pó s
-ressu rreição , e n tã o e sta q u e stã o p o d e te r sid o o rig in a lm e n te c en trad a
no fato d e q u e o Jesu s re ssu rre to n ã o se m o stro u a to d o s o s h o m en s,
u m p ro b le m a refle tid o e m A t 10,40-41 e a in d a era d isc u tid o n o s d ias
d e O rígenes. O rígenes [Celso 2,63-65; G C S 2:185-87] d e u a resp o sta d e
q ue n e m to d o s o s o lh o s p o d e ría m s u p o rta r a g ló ria d o R essurreto.
A re sp o sta d e João p a re c e ría ter sid o q u e o a m o r d e Jesus e a g u a rd a
d os m a n d a m e n to s e ra m n ecessário s p a ra se p a rtilh a r d a p rese n ç a d e
Jesus e m q u a lq u e r d e s u a s form as).

Versículos 23-24: A vinda do Pai (junto com Jesus)

C o m o su c ed e u an tes com m u ita frequência (3,5; 4,13), Jesus não


resp o n d e d ire ta m e n te à p e rg u n ta p ro p o sta p o r Ju d as, em b o ra, q u a n d o
p ro p ria m e n te e n te n d id o , o q u e ele d iz c o n stitu e u m a resposta. Ele se
vale d a o p o rtu n id a d e p a ra explicar u m a v e z m ais o q u e realm en te sig-
nifica vê-lo; e, p o rta n to , im p licitam en te explica p o r q u e o m u n d o não
p o d e vê-lo. N o v. 9, ele disse a Filipe: "T odo aq u ele q u e m e tem visto, tem
visto o P ai"; ag o ra ele salienta q u e su a p resen ça d ep o is d a ressurreição
1028 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

tam b é m sig n ificará a p rese n ç a d o Pai. S alien tam o s acim a cinco as-
p ecto s q u e e ra m c o m u n s às d escriçõ es d a p re se n ç a d o P arácleto e d e
Jesus; trê s d e ste s rea p a re c e m a q u i n o v. 23, em relação à p re se n ç a d o
Pai: as co n d içõ es n ecessárias d e a m a r a Jesus e d e g u a rd a r s u a p a la -
vra; a afirm ação d e q u e o P ai (e Jesus) v irá p a ra o s d isc íp u lo s; e u m a
referên cia à h a b ita çã o d o P ai (e Jesus) n o in te rio r d o d isc íp u lo . D os
d o is asp ecto s re sta n te s, n ã o h á m en ção específica d a in c a p a c id a d e d o
m u n d o d e v e r o Pai, com o foi o caso com o P arácleto e com Jesus; m as
os v ersícu lo s q u e tra ta m d a p re se n ç a d o P ai são e m re sp o sta à in d a -
gação d e Ju d a s p o r q u e n ã o h a v e rá rev elação ao m u n d o . Q u a n to à
c a p a c id a d e esp ecial d o c ristão d e v e r o u reco n h ecer o Pai, o u v im o s n o
v. 7: "Se v ó s rea lm e n te m e conhecésseis, e n tã o tam b é m reco n h ecerieis
a m eu Pai. D esd e ag o ra v ó s, O co n h eceis e O te n d e s v isto ". A ssim , as
sim ila rid a d e s p a rtilh a d a s p e la s s u b u n id a d e s d o p a d rã o triá d ic o são
rea lm e n te im p re ssio n a n te s.
N o v. 23, Jesu s e n fatiza q u e a h a b ita çã o d iv in a flui d o a m o r d o
Pai p a ra com o s d isc íp u lo s d e Seu Filho. E m 3,16, o u v im o s q u e D e u s
am o u o m u n d o d e tal m an e ira q u e d e u se u F ilho u n ig ê n ito - se a en-
carn ação (e a m o rte) d o F ilho foi u m a to d o a m o r d o P ai p a ra com o
m u n d o , a h a b ita çã o p ó s-re ssu rreiç ã o é u m ato esp ecial d o a m o r p a ra
com o cristão. N o v. 2 e n c o n tra m o s a p a la v ra " m o ra d a " (m oriê) u s a d a
p a ra a m o ra d a celestial com o P ai p a ra o n d e Jesus lev aria se u s disci-
p u lo s; aq u i, ela é u sa d a p a ra a h a b ita çã o d o P ai e o F ilho n o cren te.
E m b o ra as p a la v ra s d e Jesus n ã o ex clu am a p a ro u s ia o u rev e laç ã o em
g ló ria tal co m o Ju d a s e sp era v a , ele está d iz e n d o im p lic ita m e n te q u e
n a h ab itação se c u m p re m a lg u m a s d a s e x p e cta tiv a s d o p e río d o final.
U m p ro fe ta co m o Zc (2,14 [10]) p ro m e te u em n o m e d e Iah w eh : "E is
q u e e u v irei h a b ita r n o m eio d e v ó s". Israel h a v ia e s p e ra d o q u e isto
o co rresse n o tem p lo , a casa d e D e u s (cf. Ex 25,8; IR s 8,27ss.); m a s n o
p e n sa m e n to jo an in o esta e ra a g o ra a h o ra em q u e o s h o m e n s a d o ra -
riam o Pai, n ão n o M o n te G erizim , n e m n o T em p lo d e Je ru sa lé m , m a s
em E sp írito e em v e rd a d e (4,21-24).
O v. 24 re p e te in d ire ta m e n te à ra z ã o p e la q u a l o m u n d o n ã o p o d e
v e r o Pai, a sab er, p o rq u e ele rec u sa o u v ir a p a la v ra d e Jesus, p o sto
q u e ele n ã o a m a a Jesus. C o m o o ex p re ssa A gostinho (In Jo. LXXVI 2;
PL 35:1831), "O a m o r s e p a ra o s sa n to s d o m u n d o " . O tem a n o v. 24
é m u ito sim ilar ao q u e Jesus d isse em 12,48-49. A li ele p ro m e te u
q u e a p a la v ra q u e ele falava c o n d e n a ria os in c ré d u lo s n o ú ltim o d ia.
51 · O último discurso: - Primeira seção (segunda unidade) 1029

A q u i, v e m o s co m o se faz re a lid a d e a q u e la a m eaça a o s e p a ra r o in-


c ré d u lo d a fo n te d a v id a à q u a l o v e rd a d e iro d isc íp u lo d e Jesu s está
u n id o .

[A B ibliografia p a ra esta seção e stá in clu sa n a B ibliografia n o fi-


n al d o §52.]
5 2 .0 ÚLTIMO DISCURSO:
- PRIMEIRA SEÇÃO (TERCEIRA UNIDADE)
( 14,25 ‫־‬31 )

Pensamentos fínais de Jesus antes da partida

14 25‫״‬£ u vos tenh0 dito isto enquanto estou ainda convosco.


26M as o Parácleto, o Espírito Santo
que o Pai enviará em m eu nom e,
vos ensinará todas as coisas
e vos fará lem brar de tu d o o que eu vos disse [de m im m esm o].
27Deixo-vos a paz.
M inha ‫׳‬p a z ' é o m eu dom a vós,
e não vo-la dou
com o o m u n d o a dá.
Q ue vossos corações não se turbem ,
N em voz atem orizeis.
28O uvistes o que eu vos disse:
'V ou', e 're to m o p ara vós.'
Se m e am ásseis,
Vós vos regozijarieis p o r eu ir para o Pai,
pois o Pai é m aior do que eu.
29M as agora eu vos tenho dito isto antes que aconteça,
para que, q u an d o acontecer, acrediteis.
30Já não falarei [muito] convosco,
pois o Príncipe deste m u n d o está chegando.
N a verdade, contra m im , ele n ad a pode;
31m as o m u n d o deve reconhecer que eu am o o Pai
e que faço com o o Pai m e ordenou.
Levantai-vos! P artam os daqui".
52 · O último discurso: - Primeira seção (terceira unidade) 1031

NOTAS

14.25. Eu vos tenho dito isto. Literalmente, "estas coisas". Estas palavras se repeti-
rão seis vezes como um refrão na Segunda Seção do último discurso (15,11;
16,1.4a.6.25.33). Em dois casos (16,4a.33), o refrão marca o fim de um a sub-
divisão; em três casos (15,11 e 16,1.25), ele vem uns poucos versículos antes
do final quando Jesus conclui, na forma de resumo, suas palavras. B e r n a r d ,
II, 485, salienta que um refrão deste tipo não é incomum nos profetas: "Eu,
o Senhor, tenho falado" ocorre muitas vezes em Ezequiel (p. ex., 5,13.15).
Há um paralelo funcional no refrão com o qual Mateus marca o final de
cada um de seus cinco grandes discursos: "Quando Jesus terminou estas
palavras [ou estas parábolas ou instrução]...". (7,28; 11,1; 13,53; 19,1; 26,2).
estou ainda convosco. Literalmente, "perm anecendo convosco"; para a in-
tercam bialidade entre "perm anecer" e "estar", veja nota sobre o v. 16
("estar convosco"). Se João usa o verbo menein aqui para descrever a
presença de Jesus na últim a ceia com seus discípulos, o verbo foi usado
anteriormente no v. 17 para descrever a presença futura do Parácleto/Es-
pírito com os discípulos, e o substantivo cognato moríê foi usado no v. 23
para descrever a presença futura do Pai e do Filho com os discípulos.
26. Mas. O v. 26 se relaciona com o v. 25; o Parácleto assum e o lugar de Jesus
(explicitamente em 16,7).
0 Espírito Santo. Esta é um a redação m uito bem atestada. Há apoio menor
para "o Espírito da Verdade", mas isto provavelmente seja um a harmoni-
zação com outras passagens do Parácleto (1 4 ,1 7 ; 1 5 ,26; 1 6 ,1 3 ). O OSsin diz
simplesmente "o Espírito"; B a rrett , p. 3 9 0 , salienta que não é impossível
que um a redação tão sucinta fosse original, e que ambos, "santo" e "de
verdade", são esclarecimentos de copistas. Deve-se notar que este é o úni-
co exemplo, em João, da forma grega mais completa do "Espírito Santo
(.to pneuma to hagion), de modo que, até mesmo alguns que pensam ser esta
a redação genuína sugerem que no processo da redação joanina ela foi in-
troduzida num a passagem que originalmente só mencionou o Parácleto.
A questão tem importância, porque há alguns estudiosos que questionam
a identificação tradicional do Parácleto com o Espírito Santo (veja Ap. V), e
esta é a única passagem que faz explicitamente essa identificação.
enviará. Veja nota sobre "dará" no v. 16.
t;os ensinará todas as coisas. Um pronom e masculino é o sujeito do verbo (veja
nota sobre "o" no v. 17). Embora devam os precaver-nos de ler discussões
teológicas do 4a século no Oriente sobre pessoa e natureza ao analisar
este pronom e, B e r n a r d , II, 500, está certo em dizer que o uso dos prono-
m es m asculinos m ostra que, para o autor, o Espírito era mais do que um
1032 O Livro da Glória · Primeira Seção: A última ceia

im pulso ou influência. O "tudo" estabelece um contraste com o "isto"


("estas coisas") do v. 25, m as não necessariamente no sentido de que
o Parácleto ensinará mais, quantitativam ente, do que Jesus fez durante
seu ministério. Antes, como deduzim os de 16,13, o Parácleto capacitará os
discípulos a verem o pleno significado das palavras de Jesus. Em ljo 2,27,
o cristão é informado que a unção que ele tem de Deus "vos ensina acerca
de tudo" e que ele não necessita de novo ensino (também 2Jo 9). A presente
passagem e seu paralelo em 16,13 ("ele vos guiará a toda a verdade") são
um eco do SI 25,5: "Guia-me pelo caminho de tua verdade e ensina-me".
vós fará lembrar. O verbo é usado em Lc 22,61 para evocar as palavras de
Jesus. B u l t m a n n , p. 485’, salienta que ensinar e lem brar não são duas
funções diferentes do Parácleto, e sim aspectos da m esm a função. Assim,
as últim as duas linhas do v. 26 constituem um paralelism o sinonímico.
[de mim mesmo]. O pronom e pessoal se encontra no Códice Vaticano e em
uns poucos manuscritos; se esta leitura é original, tem valor enfático.
27. 'Paz' é 0 meu adeus a vós. Literalmente, "a paz eu vos deixo". O verbo
"deixar" pode ter o sentido de legado, em bora não seja um term o técnico
judicial. Há aqui um jogo de palavras na saudação tradicional hebraica
"Shalom" (sãlõm , "paz"), p. ex., lRs 1,17. Ao partir, Jesus diz "Shalom"
aos seus discípulos; m as seu "Shalom" não é a saudação im pensada dos
hom ens ordinários - é o dom da salvação (veja Comentário). "Paz", jun-
tam ente com "graça" se tom ou parte da saudação tradicional de um cris-
tão para o outro (Rm 1,7; IC or 1,3); mas, a despeito do seu frequente uso,
ela reteve seu significado profundam ente religioso: "Q ue a paz d e Cristo
reine em vossos corações" (Cl 3,15).
corações. Veja nota sobre 14,1.
tenhais medo. Ap 21,8 amaldiçoa os covardes juntam ente com outros per-
versos; pois o m edo para os prim eiros cristãos representava falta de fé
em Jesus.
28. Ouvistes 0 que eu vos disse: 'Vou e retorno.' O verbo é hypagein. Jesus disse
isto indiretam ente em 13,33 ("Para onde estou indo [hypagein], vós não
podeis vir") e em 14,4 ("Vós conheceis o caminho para onde estou indo
[hypagein]". Aparentem ente, é ao últim o que Jesus está se referindo.
'Retorno para vós.' O verbo é erchesthai. Jesus disse isto exatam ente em 14,18,
mas veja tam bém o palin erchesthai de 14,3. Somente em 14,3-4 é que as
duas afirmações citadas no v. 28 aparecem juntas, m as ali nenhum a delas
coincide ao pé da letra com as palavras do v. 28.
Se me amásseis. Alguns m anuscritos am enizam o elem ento condicional de
forma que se entenda que os discípulos am am realm ente a Jesus. Para o
uso do aoristo na apódose desta condição irreal, veja ZGB, §317.
52 · O último discurso: - Primeira seção (terceira unidade) 1033

ir para 0 Pai. Aqui, o verbo é poreuesthai; veja nota sobre "partir" no v. 2.


pois 0 Pai é. O OS diz "que é".
29. Veja N ota sobre 13,19.
30. [muito]. N ão são fortes as provas a favor de sua omissão (OSsin); todavia,
um copista, pensando ser a afirmação "não m ais falarei convosco" estra-
nha, quando três capítulos do discurso estavam ainda adiante, podería ter
inserido a palavra. Sem "m uito" a afirmação teria feito sentido perfeito
quando todo o discurso final se reduzia à Prim eira Seção.
0 Príncipe deste mundo. Veja nota sobre 12,31. No discurso duplicado do
cap. 16 ele é m encionado no v. 11.
contra mim, ele nada pode. Literalmente, "em m im ele nada tem"; para nossa
tradução, veja BAG, p. 334, §1,7. Há evidência, tanto nas versões como na
patrística, para outra redação: "em mim ele nada acha" (por combinação,
o Codex Bezae tem am bos os verbos). Isto pode ser um a tentativa de
copistas em oferecer um a leitura mais fácil, mas B o i s m a r d sugere que os
dois verbos representam traduções alternativas de um verbo aramaico
Paskah) que significa tanto "ser capaz" e "encontrar" - veja discussão
completa em Évjean, pp. 54-55.
31. mas 0 mundo deve reconhecer. Literalmente, "a fim de que o m undo reco-
nheça" - um a construção elíptica sim ilar àquelas em 9,3 e 13,18. Alguns
a conectariam ao que segue para que explique a razão para a ordem de
levantar e sair (talvez entendido como um a referência à sua ascensão ao
Pai). M ais provavelm ente, a cláusula deve relacionar-se com o conjunto
de idéias precedentes e explica por que Jesus está entrando em luta com
o Príncipe deste m undo.
e que faço como o Pai me ordenou. A obediência de Jesus ao m ando do Pai é
um tem a joanino: "Fazendo a vontade daquele que me enviou... que é
m eu alim ento" (4,34); "Eu guardo sua palavra" (8,55).

COMENTÁRIO

N o cap. 14 é d ifícil sa b er o n d e u m a u n id a d e te rm in a e a o u tra com eça.


Por e x em p lo , o s vs. 25-26 p o d e ser tra ta d o co m o o térm in o d a u n id a d e
15-24 (assim S chwank ), com a referên cia ao P arácleto d o v. 26 servin-
d o co m o u m a in clu sã o à seção a n te rio r so b re o P arácleto em 15-17.
E n tretan to , d e o u tro p o n to d e v ista, 25-26 p o d e m ser p o sto s com
27-31, p o is e ste s v e rsíc u lo s c oligem o s v á rio s tem a s q u e se e sp a lh a ra m
p o r to d a a P rim e ira Seção d o ú ltim o d isc u rso e a cen a d a ú ltim a ceia
q u e se rv e d e prefácio:
1034 O Livro da Glória · Primeira Seção: A última ceia

26: O P arácleto = 14,16-17


27: N ã o se tu rb e m os v o sso s co rações = 14,1
28: E sto u in d o = 14,2
28: E n tão v o lta re i = 14,3
28: Se m e a m ásseis (c o n tra ria n d o o fato d a co n d ição ) = 14,7 (Se
rea lm e n te m e conhecésseis)
29: E u v o s d isse isto a n te s q u e aco n teça = 13,19
30: O P rín cip e d e ste m u n d o = 13,27 (S atanás)

V isto q u e o refrão d o v. 25, " e u v o s te n h o d ito isto ", é u s a d o em


o u tro lu g a r n o ú ltim o d isc u rso p a ra in tro d u z ir o b se rv a ç õ e s conclusi-
v a s (veja n o ta), p a re c e p refe rív e l c o n sid e ra r o s vs. 25-31 co m o a con-
clu são d a cena d a ú ltim a ceia e d a fo rm a o rig in a l d o ú ltim o d isc u rso
(pp. 947-50 acim a). A s o b serv açõ es tê m u m a sp ec to d e c o n c lu sã o e
d e s p e d id a , e o v. 31 é o sin al d e p a rtid a d o cenáculo.

Versículos 25-26: O envio do Parácleto como mestre

O refrão n o v. 25 difere d o s o u tro s casos d e seu u so e m q u e ele


é m odificado p ela cláusula " e n q u a n to esto u convosco", u m a som -
b ria ad v ertên cia d e q u e o tem p o d e Jesus com seus d iscíp u lo s está se
acabando. Isto p re p a ra o cam inho p a ra o u tra referência ao P arácleto.
A se g u n d a p a ssag em sobre o P arácleto tan to n o cap. 14 com o n o cap. 16
(13-14) trata d e su a função com o m estre. A m bos são in tro d u z id o s p o r
u m a afirm ação sobre as lim itações q u e o tem p o tem im p o sto ao q u e o
p ró p rio Jesus p o d e ría en sin ar (14,25; 16,12), e o en sin o d o P arácleto se
relaciona claram en te com o p ró p rio ensino d e Jesus. "Ele n ã o falará d e
si p ró p rio , m as falará so m en te o q u e ouvir... p o rq u e é d e m im q u e ele
receberá o q u e há d e vo s d eclarar" (16,13-14). Se a p rim e ira p a ssag em
sobre Parácleto (14,16) a firm o u q u e o Pai daria o P arácleto a pedido de
Jesus, esta p assag em d iz q u e o Pai en v iará o P arácleto em nome de Jesus.
A s d u a s frases se relacionam (recorde-se q u e no s vs. 13-14 os cristãos
foram in fo rm ad o s a fazer seus p e d id o s em n o m e d e Jesus); m as, com o já
salientam os (p. 1012 acim a), "em m e u n o m e" leva consigo u m a im plica-
ção d e u n ião com Jesus. Q u a n d o o Pai age em n o m e d e Jesus, esta ação
flui d a u n ião d e Pai e Filho (um a u n ião q u e foi o tópico d o s vs. 2,23-24).
A qui, "em m eu n o m e" p o d e tam b ém referir-se à m an eira d e desenvol-
v e r d a m issão: a m issão d o Parácleto vem co m p letar a m issão d e Jesus.
52 · O último discurso: - Primeira seção (terceira unidade) 1035

Jesus p o rta o n o m e d e D eus (17,11-12) p o rq u e ele era a revelação d e


D eus ao s h o m en s; o E spírito é e n v ia d o n o n o m e d e Jesus p o rq u e ele
revela o sig n ificado d e Jesus p a ra os hom ens. Se Jesus p ô d e d izer no
v. 24, "A p a la v ra q u e o u v istes n ã o é d e m im m esm o ", assim tam b ém o
ensino q u e o P arácleto co m u n icará n ão é p ro p ria m e n te seu.

Versículo 27ab: O dom da paz como despedida

A s p rim e ira s q u a tro lin h a s d e ste v ersícu lo c o n sistem n u m a p ro-


m essa so len e feita p o r Jesus ao s d isc íp u lo s d e q u e ele d eix a o m u n d o .
A p a z d e q u e Jesu s fala n a d a tem a v e r com a au sên cia d e lu ta (aliás,
ela só v irá d e p o is q u e o m u n d o for ven cid o : 16,33), n e m com o tér-
m ino d a te n sã o p sicológica, n e m com u m a sen sação se n tim e n ta l d e
b em -estar. C irilo d e A le x a n d ria id en tifico u a p a z com o E sp írito S anto
m e n c io n ad a n o v e rsíc u lo a n te rio r; su a e x eg ese é e rrô n e a , m as se apro-
xim a m ais d a v e rd a d e d o q u e m u ita s d a s m o d e rn a s d isto rçõ es retó-
ricas d e s te v ersícu lo , p o is ele reco n h ece c o rre ta m e n te q u e a p a z d e
Jesus é u m d o m q u e p e rte n c e à salv ação d o h o m em . B arrett , p . 391,
ressalta q u e já em m u ita s p a ssa g e n s d o A T " p a z " a d q u irira m ais d o
q ue u m sig n ificad o co n v en cio n al; p o r ex em p lo , co m o u m d o m es-
pecial d o S e n h o r em SI 29,11; Is 57,19. N a lin g u a g e m jo an in a, " p a z " ,
" v e rd a d e " , " lu z " , " v id a " e "a le g ria " são term o s fig u ra tiv o s q u e re-
fletem d ife re n te s facetas d o g ra n d e d o m q u e Jesus tro u x e d o P ai aos
h o m en s. " 'P a z ' é o m e u d o m a v o s" é o u tro m o d o d e d iz e r " e u lhes
d o u a v id a e te rn a " (10,28). A " m in h a p a z " d e q u e Jesus fala a q u i é o
m esm o q u e a " m in h a a le g ria " d e 15,11 e 17,13.
O u so d o term o " p a z " , aq u i, é p a rticu la rm e n te a p ro p riad o , u m a
vez q u e está e n v o lv id a u m a d e sp e d id a (veja nota). N o v. 20, Jesus uso u
a ex p ressão típica d o AT "n aq u e le d ia", im p lican d o q u e su a p erm a-
nência co m seu s d iscíp u lo s d e p o is d a ressu rreição cu m p riría as visões
escatológicas d o s p rofetas. P ara estes p rofetas, o rei m essiânico e n v iad o
p o r D eu s h a v ia d e ser o p rín cip e d a p a z (Is 9,6) q u e "o rd e n a ria p az
às naçõ es" (Zc 9,10). O p o rta d o r d a s b o as notícias hav ia d e ser aquele
q ue a n u n c ia p a z e salvação (Is 52,7). O tem a d a p a z tam b ém p erten -
ce à m e n ta lid a d e p a c tu a i q u e tem os visto exibida n a ú ltim a ceia. Em
Ez 37,26, Iah w e h d iz a Ezequiel: "F arei com eles u m a aliança d e paz".
(Ezequiel d eix a claro q u e u m a p a rte essencial d a aliança é q u e Iahw eh
p o ria seu sa n tu á rio n o m eio d e seu p o v o p a ra sem p re; assim tam b ém
1036 O Livro da Glória · Primeira Seção: A última ceia

a aliança d e Jesus com seu s seg u id o res e n v o lv e su a p e rm a n ên c ia com


eles p a ra sem pre). S eg u n d o Sb 3,1-3, p a z é u m a d a s b ên ção s d a s alm as
d o s ju sto s q u e estão n a m ão d e D eus, m as n a escatologia rea liz a d a joa-
n in a p a z é d e sfru ta d a p elo s cristãos d u ra n te esta v id a.

Versículos 27c-29: A partida de Jesus

A s ú ltim a s d u a s lin h a s d o v. 27 re p e te m o c o n selh o inicial d o cap.


14, a sab er, q u e o s d isc íp u lo s n ã o tem essem o u n ã o se a te m o riz a sse m
com a p a rtid a d e Jesus. E n q u a n to este p e n sa m e n to liga su a v e m e n te
a p ó s a m en ção d e p a z , su a fu n çã o p rim o rd ia l é p re p a r a r o c a m in h o
p a ra os vs. 2 8 2 9 ‫־‬, o n d e essa p a rtid a será e n fa tiz a d a e a m p lia d a . U m a
v ez m ais, e sta m o s n a a tm o sfera d o d isc u rso d e d e s p e d id a , p o is p a rte
d o co n selh o d e M oisés em D t 31,8 é " n ã o tem a s". T al c o n selh o é e sp e-
cialm en te a p ro p ria d o q u a n d o Jesus p a rte , p o is e sta p a rtid a e n v o lv e
u m co m b ate com o P rín cip e d e ste m u n d o (3 0 3 1 ‫)־‬.
N o v. 28 Jesu s rec o rd a o q u e ele d isse n o vs. 3 4 ‫( ־‬veja n o ta) so b re
ir e m b o ra e v o lta r, u m a in clu são q u e e n g lo b a o início e o fim d o c o rp o
d a P rim eira Seção. A c o n d ição irreal, "Se m e a m ásseis...", n ã o sig n i‫־‬
fica n e g a r q u e o s d isc íp u lo s o a m a m , m as sim in d ic a r q u e se u a m o r é
p o ssessiv o em v ez d e se r gen ero so . O Jesu s jo an in o re p re s e n ta o P ai e
leva ao Pai, e assim , ao ir p a ra se u P ai, ele e stá c u m p rin d o o p ro p ó sito
d e su a v id a; q u a lq u e r a m o r q u e fracasse em rec o n h e c er e ste fato, esse
n ã o é a m o r v e rd a d e iro . A ssim , fé e a m o r im p lícito s estã o e stre ita m e n -
te asso ciad o s aq u i. O p e n sa m e n to é le v a d o a in d a m ais lo n g e e m 16,7:
"É p a ra o v o sso p ró p rio b e m q u e e sto u p a rtin d o " , p o is n e ssa afirm a-
ção são v isu a liz a d o s ta n to a glorificação d e Jesus co m o P ai co m o os
re s u lta d o s d essa glorificação p a ra os h o m en s.
A ú ltim a lin h a d o v. 28, "p o is ó P ai é m aio r d o q u e e u " , te m sid o
cau sa d e m u ito d e b a te cristológico e trin itário . O s a ria n o s e v o c av a m
esta afirm ação p a ra ju stificar su a cristo lo g ia, e, s u b se q u e n te m e n te ,
m u itas v e z es ela tem sid o u sa d a co m o u m a rg u m e n to c o n tra a d iv in -
d a d e d e Jesus. (A qui, p o ré m , L oisy , p. 415, é m u ito p e rc e p tiv o : "À lu z
d o p ró p rio fato d e C risto c o m p a rar-se com o Pai, é to m a d o p o r a d m i-
tid o q u e ele é d e n a tu re z a d iv in a p o r ra z ã o d e s u a o rig e m celestial".
P ara o u tro s textos q u e p a re c e m fazer Jesus m e n o r q u e D e u s P ai, veja
vol. 1, p. 199). T em h a v id o d u a s in te rp re ta ç õ e s o rto d o x a s clássicas. U m
g ru p o d e P a d re s d a igreja (O rígenes , T ertulian o , A tan ásio , H ilário ,
52 · O último discurso: - Primeira seção (terceira unidade) 1037

E pifânio , G regório de N azianzo , J oão D am asceno ) tem explicado o texto


com o e x p re ssa n d o a d istin ção e n tre o Filho e o Pai: o F ilho é gerado,
e n q u a n to o P ai n ã o o é. E n tretan to , esta in terp retação tem com o p o n to
de p a rtid a a reflexão d o g m ática p o ste rio r so b re a E scritura, e m lu g ar d e
u m a exegese üteral. É anacrônico im a g in a r q u e João tin h a Jesus falando
a seu s d iscíp u lo s d e relações trin itárias íntim as. O u tro g ru p o d e P ad res
d a igreja (C irilo d e A lexandria, A mbrósio, A gostinho) tem explicado que,
como homem e n c arn a d o , o Filho era m e n o r q u e o Pai. A p rim e ira vista,
esta explicação p a rece ser u m a exegese m ais plau sív el d o q u e a anterior.
T odavia, e n q u a n to João oferece a b ase so b re a q u a l c o n stru ir a teologia
su b seq u e n te d a distin ção d e n a tu re z a em Jesus (com pare a afirm ação
sob c o n sid eração com 10,30: " O Pai e eu so m os u m "), n ão d ev em o s in-
terp re ta r João co m o se a teologia p o ste rio r estivesse n a m en te d o autor.
O ev an g elista p e n sa ria em u m a d istin ção e n tre Jesus falan d o com o ho-
m em e Jesu s fala n d o com o D eus? M ais p articu larm en te, tal distinção é
a p ro p ria d a n o ú ltim o d iscu rso o n d e m ais q u e em q u a lq u e r o u tro lugar
o Jesus q u e fala tra n sc en d e ao tem p o e espaço (veja p p . 944-45 acima)?
Se b u sc arm o s explicar a p a ssag em sem reco rrer a prin cíp io s dog-
m áticos fo rm ais d e u m p e río d o p o sterio r, p ro v av e lm e n te a chave es-
teja n u m a afirm ação sim ilar feita em 13,16: "N e m o e n v iad o m aior
m aior d o q u e q u e m o e n v io u ". Já explicam os q u e afirm ações com o
"O Pai e e u so m os u m " (10,30) e "T odo aq u ele q u e m e tem visto, tem
visto o P ai" (14,9) têm seu p an o d e fu n d o no conceito judaico d a rela-
ção e n tre u m m ensageiro o u agente e aquele q u e o enviou. (Veja p. 1008
acim a e o a rtig o d e P. Borgen citad o ali). B orgen , p. 153, destaca a subor-
dinação d o a g en te ao q u e o envia: "O q u e env ia é m aio r q u e o e n v iad o "
(Midrash Rabbah 78.1 sobre G n 32,27). P or o u tro lado, a afirm ação em
Jo 14,28 d e v e e sta r relacio n ad a com seu contexto: os discípulos se re-
gozijariam q u a n d o Jesus fosse p a ra o Pai, pois o Pai é m aio r q u e Jesus.
N e n h u m a d a s explanações d o g m áticas clássicas explica p o r q u e os dis-
cípulos se regozijariam . E bem p ro v áv e l q u e a ideia seja a m esm a que
em 17,4-5: Jesus está re to rn a n d o p a ra o Pai, o q u al o glorificará. D uran-
te su a m issão n a terra, ele é m en o r q u e aq u ele q u e o enviou, m as sua
p a rtid a significa q u e a obra q u e o Pai lhe d e u a fazer está consum ada.
A gora ele será g lorificado com aq u ela glória q u e teve com o Pai antes
que h o u v e sse m u n d o . Isto é u m m o tiv o d e regozijo p ara os discípu-
los p o rq u e, q u a n d o Jesus for glorificado, en tã o tam b ém glorificará os
d iscípulos, o u to rg a n d o -lh e s v id a eterna (17,2).
1038 O Livro da Glória · Primeira Seção: A última ceia

O "E u v o s te n h o d ito isto a n te s q u e a co n teça" d o v. 29 é u m a refe-


rência a to d o o p ro ce sso d e m o rte, ressu rre içã o , asce n sã o e d o a ç ã o d o
E spírito. Q u a n d o aco n tecer, o s d isc íp u lo s se rã o a p to s a reco n h ecê-lo
co m o o c u m p rim e n to d o q u e Jesus d isse ra p re c isa m e n te p o rq u e terã o
o P arácleto q u e os le m b ra rá d e tu d o o q u e Jesus lh es d isse (14,26). A té
q u e tiv essem a ilu m in a ç ã o d o P arácleto , n ã o c o m p re e n d e ría m a m o rte
d e Jesus (Lc 24,20-21) n e m e sta ria m p ro n to s a c re r em su a re ssu rre iç ã o
(Jo 20,25; M t 28,17).

Versículos 30-31: Luta com 0 príncipe deste mundo

A q u i, ju sta m e n te com o n o final d o d isc u rso d u p lic a d o n o cap. 16,


h á u m a a lu sã o à lu ta im in en te com o m u n d o , p e rso n ific ad a n o v. 30
em seu p rín cip e. Em a m b o s os casos, Jesus está c o n fian te d e s u a v itó ria
(16,33: "E u venci o m u n d o "). H á q u e m su g ira q u e a afirm ação d e q u e
o p rín c ip e d e ste m u n d o n a d a tem a v e r com Jesus se refere ao fato d e
q u e Jesus en tre g a su a v id a p o r d ecisão p esso al, e n ã o p o rq u e a lg u é m a
tira d ele (10,18). N ã o o b stan te, a in d a v a m o s v e r o m o m e n to e m q u e Je-
su s se s u b m e te u à m orte; p o is em 13,27, d e p o is q u e S atan ás e n tro u em
Ju d as, Jesu s d isse a Ju d a s q u e fizesse o q u e e stav a p a ra fazer. A g o ra, é
m ais v ero ssím il q u e a fonte d e confiança é q u e a n in g u é m te rá p o d e r
so b re Jesus, exceto p ela p e rm issã o d o Pai (19,11). A afirm ação d o v. 31,
q u e a lu ta com o P rín cip e d o m u n d o d e m o n stra rá q u e Jesus faz com o
o Pai lhe o rd e n o u , in d ica q u e o co n tro le q u e o P ai m a n té m so b re o q u e
está a co n tecen d o im p e d irá q u e P rín cip e d e ste m u n d o d e ter q u a lq u e r
v a n ta g e m so b re Jesus. U m a v ez m ais, n ão estam o s p e n s a n d o q u e os
resu lta d o s d a lu ta serão im e d ia ta m e n te e v id e n tes ao s o lh o s d o m u n -
do. Se d essa lu ta o m u n d o v ier a reco n h ecer a relação e sp ecial d e Jesus
com o Pai (31), será p reciso a in terv en ção d o P arácleto p a ra p ro v a r isto
ao m u n d o (16,8-11).
O v. 31 é a única p assag em n o N T q u e declara q u e Jesus ama o Pai.
Em q u e este a m o r consiste se to rn a óbvio p ela s e g u n d a linha, p o is o "e"
q u e u n e a se g u n d a linha à p rim e ira tem carácter epexegético (B ultm a nn ,
p. 4884) - o am o r consiste em fazer o q u e o Pai o rd en o u , assim com o o
am o r d o cristão p a ra com Jesus consiste em q u e ele faça o q u e Jesus tem
o rd en ad o . N in g u ém p o d e acusar o evangelista d e falta d e realism o.
N o vol. 1, p p . 765-66, m o stra m o s q u e , e n q u a n to João n ã o d escre-
v e a ag o n ia no G etsêm an i, e le m en to s p a ra lelo s a essa cen a se a c h am
52 · O último discurso: - Primeira seção (terceira unidade) 1039

d ip erso s a tra v é s d e seu e v a n g elh o . A lg u n s d e ste s se e n c o n tra m no s


vs. 30-31. A m enção d a v in d a d o P ríncipe deste m u n d o lem bra Lc 22,53,
o n d e Jesu s reco n h ece q u e o m o m e n to d e su a p risã o é a h o ra d e "o p o -
d e r d a s tre v a s " . N o v. 31, a o rd e m d e le v a n ta r e sa ir é a m esm a o rd e m
d a d a p o r Jesu s e m M c 14,42, q u a n d o J u d a s se a p ro x im a d o jardim :
"L ev an tai-v o s! P a rta m o s d a q u i" . N e ste co n tex to , p o d e m o s c o m p a ra r
o " e u faço co m o o P ai m e o rd e n o u " d e João co m Lc 22,42: "Pai... faze
a tu a v o n ta d e , n ã o a m in h a " . M c 14,42, recém c ita d o , co n clu i com
estas p a la v ra s : " L e v an ta i-v o s, v a m o s; eis q u e e stá p e rto o q u e m e
trai". E sta é u m a refe rê n c ia à a p ro x im a ç ã o d e Ju d a s; João está m ais
in te re s s a d o n a a p ro x im a ç ã o d e S a tan á s q u e é a força rea l a tu a n d o em
Ju d a s (13,2.27).
A ú ltim a lin ha d o v. 31 era o final original d o ú ltim o discurso. Te-
m os su g e rid o q u e o a u to r d a red ação final n ão queria m exer nesta for-
m a final, e p o r isso, a d esp eito d o fato d e estar crian d o um a sequência
estran h a, ele an ex o u form as adicionais d o ú ltim o discurso depois do
v. 31. D o d d , Interpretation, p p . 407-9, em b o ra reconheça a possibilidade
de tal in terv en ção redacional, p en sa q u e "Levantai-vos! P artam os da-
qui!" seria inteligível m esm o em sua atu al posição o n d e seg u em ain-
da v ário s capítulos. Ele o e n te n d e em term o s d e encorajam ento p ara
sair ao e n co n tro ao P ríncipe deste m u n d o , na m o rte e ressurreição,
e en te n d e q u e o q u e ocorre no v. 31 é " u m im p u lso d o espírito", em
vez d e u m m o m en to físico, d e m o d o q u e o p róxim o estágio d o últi-
m o d iscu rso é d e u m a perspectiva além d a cruz, ap ó s a m orte (assim
tam bém Z im m krm ann , art. cit.). Isto p arece forçado e desnecessário.
E m ais p lau sív el q u e o red a to r final sim plesm ente fez o m elhor q u e p o d e
de u m a situ ação difícil e n ão b u sco u forçar u m n ovo significado n o v. 31.

BIBLIOGRAFIA
(13,31-14,31)

Veja a bibliografia geral sobre o ú ltim o d iscurso no final do §48 e a Biblio-


grafia sobre o Parácleto no Ap. V.
BOISMARD, M.-E., "Uévolution du thème eschatologique dans les traditions
johanniques", RB 68 (1961), especialm ente 518-23.
CAIRD, G. B., " The Glory of God in the Fourth Gospel: An Exercise in Biblical
Semantics", NTS 15 (1968-69), 265-77. A S tudy of 13.31.
1040 O Livro da Glória · Primeira Seção: A última ceia

CERFAUX, L. "La charité fraternelle et le retour du Christ (Jn. Xiii 33-38)",


ETL 24 (1948), 321-32. Tam bém RecLC, II, 27-40.
DE LA POTTERIE, I., '"Je suis la Voie, la Vérité et la Vie' (Jn 14, 6)", NRT 88
(1966), 907-42. C ondensado em inglês em TD 16 (1968), 59-64.
GUNDRY, R. H., "'In my Father's House are many Monai' (John 14,2)",
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KUGELMAN, R., "The Gospel for Pentecost (Jn. 14:23-31)", CBQ 6 (1944),
259-75.
L E A L , "'Ego sum via, veritas, et vita' (Ioh. 14, 6)", VD 33 (1955), 336-41.
M CCASLAND, S. V., "The Way", JBL 77 (1958), 222-30.
RIEGER, J., “Spiritus Sanctus suum praeparat adventum (Jo 14, 16-17)", VD
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SCHAEFER, O., “Der Sinn der Rede Jesu von den vielen Wohnungen in seines
Vaters Hause und von dem Weg zu ihm (Joh 14, 1-7)", ZN W 32 (1933),
210-17.
SCHW ANK, B., "Der Weg zum Vater (13, 31-14,11)", SeinSend 28 (1963),
100-14.
__________ “Vom Wirken des dreieinigen Gottes in der Kirche Christi (14,12-26)”,
SeinSend 28 (1963), 147-59.
__________ '"Frieden hinterlasse ich euch' (14, 27-31)", SeinSend 28 (1963),
196-203.
5 3 .0 ULTIMO DISCURSO:
- SEGUNDA SEÇÃO (PRIMEIRA SUBDIVISÃO)
(15,1-1 7 )

A Videira e os Ramos

15 1"E u so u a v id e ira v e rd a d e ira


e m e u P ai é o ag ricu lto r.
2Ele p o d a
to d o ra m o q u e n ã o p ro d u z fruto,
m as to d o o q u e p ro d u z fru to
ele a lim p a
p a ra fazê-lo p ro d u z ir m ais fru to ain d a.
3V ós já estais lim p o s,
p ela p a la v ra q u e vo s ten h o falado.
4P e rm a n e ce i em m im , com o eu p e rm a n e ç o em vós.
A ssim co m o o ra m o n ã o p o d e d a r fru to d e si m esm o
sem q u e p e rm a n e ç a n a v id eira,
a ssim n e m vó s p o d e is p ro d u z ir fru to
se m q u e p e rm a n e c e is em m im .
5E u so u a v id eira; vó s sois os ram os.
A q u e le q u e p e rm a n e c e em m im e e u nele,
esse é o q u e p r o d u z m u ito fru to ,
p o is sem m im n a d a p o d e is fazer.
6Se a lg u é m n ã o p e rm a n e c e em m im ,
co m o o ram o , c o rta d o e seco,
o q u a l reco lh em
e la n ç a m n o fogo p a ra ser q u e im a d o .
1042 O Livro da Glória · Primeira Seção: A última ceia

7Se p e rm a n e c e rd e s em m im ,
e m in h a s p a la v ra s p e rm a n e c e re m e m vós,
p e d is o q u e q u ise rd e s,
e v o s será feito.
8M eu Pai tem sid o g lo rificad o nisto:
em p ro d u z ird e s m u ito fru to
e em v o s to rn a rd e s m eu s d iscíp u lo s.
9C o m o o P ai m e tem a m a d o ,
assim e u v o s te n h o a m a d o .
P erm an ecei em m eu am o r.
10E p e rm a n ec e reis em m eu a m o r
se g u a rd a rd e s m eu s m a n d a m e n to s,
assim com o ten h o g u a rd a d o os m a n d a m e n to s d e m e u Pai
e p e rm a n e ç o em Seu am or.
11E u v o s ten h o d ito isto
p a ra q u e m in h a aleg ria esteja em vós,
e v o ssa ale g ria seja p len a.
12E ste é o m e u m an d a m e n to :
A m ai u n s ao s o u tro s
co m o e u v o s te n h o a m a d o .
13N in g u é m p o d e ter m a io r a m o r d o q u e este:
d a r su a v id a p o r aq u e le s a q u e m am a.
14E v ó s sois m eu s am ig o s
q u a n d o fizerd es o q u e e u vo s m a n d o .
15Eu já n ã o v o s c h a m o servos,
p o is o se rv o n ã o e n te n d e o q u e seu se n h o r está fazen d o .
A n tes, ten h o -v o s c h a m a d o m e u s am ig o s,
p o is v o s ten h o re v e la d o tu d o o q u e o u v i d o Pai.
16N ão fostes vó s q u e esco lh estes a m im ;
m as, a n tes, e u q u e vo s escolhi.
E v os d esig n ei
p a ra q u e v a d e s e d e is fru to -
fru to q u e p e rm a n e ç a -
a fim d e q u e tu d o q u e p e d ird e s ao P ai em m e u n o m e,
Ele v o s d a rá .
17Isto v o s o rd en o :
A m ai-v o s u n s ao s o u tro s" .
53 · O último discurso: - Segunda seção (primeira subdivisão) 1043

NOTAS

15.1. Eu sou. Temos discutido as afirmações "eu sou" como um predicado


nom inativo no vol. I, p. 841. Somente no presente caso (vs. 1 e 5) é que
há um desenvolvim ento da afirmação, m ediante novas expressões pre-
dicativas - "m eu Pai é o agricultor"; "vós sois os ram os". No entanto,
especialm ente no v. 1, fica claro que a ênfase está em Jesus como a videira
verdadeira, e não no Pai como o agricultor. A últim a era um a imagem
com um para os que fam iliarizados com o AT e não carecia de ser enfati-
zada. A menção do Pai realm ente ajuda a qualificar o tipo de videira que
Jesus é - um a videira que pertence à ordem celestial (Borig, p. 36).
verdadeira. Até então, temos traduzido consistentemente o atributivo alêthinos
como "verdadeira" (vol. 1, p. 797), m antem os aqui esta tradução. Veja
Com entário quanto ao significado.
videira. O OL, OScur, a versão Etíope e alguns dos Padres leem "vinha". Al-
gum as vezes no grego popular nos papiros ampelos, "videira", assum e o
significado de ampelõn, "vinha". Veja nota sobre "podar" no v. 6 abaixo.
agricultor. Basicamente, geõrgos é alguém que lavra o solo; e L a g r a n g e ,
p. 401, observa que às vezes na Palestina pouco mais se faz pela vinha
do que apenas lavrar o solo. Todavia, o term o pode referir-se, de um a
m aneira especial, a um viticultor; por exemplo, ele é usado para os ar-
rendatários perversos que trabalham na vinha de Deus em Mc 12,lss.
Em João, Deus se encarrega de sua própria vinha. (Forçando os detalhes
alegóricos em demasia, os arianos argum entavam que assim como havia
um a diferença de natureza entre o agricultor e a videira, assim havia
um a diferença de natureza entre o Pai e o Filho. Um dos principais pon-
tos desta parábola alegórica é que o ram o extrai sua vida da videira, isto
é, que o discípulo extrai sua vida de Jesus. Frequentemente, em João se
chegaria a p artir daqui à ideia de que Jesus recebe sua vida do Pai (6,57),
m as aqui o papel do Pai é cuidar da videira, não de dar-lhe vida.
2. poda... a limpa. N o grego há um jogo de palavras que soam de modo pa-
recido (paranom ásia) de dois verbos similares, respectivamente, airein e
kathairein. (Assim, a despeito das possíveis raízes semíticas desta pará-
bola alegórica, a fraseologia grega se tornou um veículo essencial). Um
adjetivo, katharos, "limpos", correspondendo ao segundo verbo, kathairein,
"lim par", aparece no versículo seguinte como parte de um a cadeia de
idéias. Propriam ente dito, kathairein não é frequente no grego bíblico; seu
uso para os processos agrícolas é bem atestado no grego secular, embora
haja algum a dúvida se, tom ado isoladam ente, tem o significado "podar"
que é exigido pelo contexto aqui. (Nos exemplos que os comentaristas
1044 O Livro da Glória · Primeira Seção: A última ceia

usualm ente dão, tom ados de Filo, kathairein é acom panhado de outro
verbo que significa "cortar"). O uso de airein, "tirar fora", para cortar
os ram os é ainda m ais estranho. E assim parecería que ambos os verbos
foram escolhidos não por causa de sua adequação para descrever práti-
cas no cultivo de vinhas, e sim por sua aplicabilidade a Jesus e aos seus
seguidores (D odd, Interpretation, p. 1 3 6 ) . Alguns dos m anuscritos latinos
têm estes verbos no futuro - um a tentativa do copista para conform ar a
parábola à perspectiva futurística própria do últim o discurso.
todo ramo que não produz fruto. Literalmente, "Ele poda todo ram o em
mim que não produz fruto". Esta construção parecería ser um nomi-
nativo que vem depois de "todo, cada um ", um a construção que fre-
quentem ente é um semitismo (BDF, § 4 6 6 3; ZGB, § 3 1 ; contudo, B a r r e t t ,
p. 3 9 5 , afirma que ele não é um semitismo aqui). Um semitismo seria
interessante à luz da paranom ásia grega que vimos acima.
3. Vós. O simbolismo parabólico indireto se presta para dirigir o discurso aqui.
pela. A preposição é dia com o acusativo que geralm ente significa "por cau-
sa de", mas algum as vezes "através de". B e r n a r d , II, 480, argum enta for-
temente em prol do prim eiro significado aqui. Não significa que através
ou por meio de sua palavra Jesus declara seus discípulos limpos, um a
interpretação endossada por C i r i l o de Alexandria, A g o s t i n h o e alguns
autores m odernos como S c h l a t t e r , p. 305. E mais um a questão da ação da
palavra de Jesus no interior dos discípulos. Veja comentário.
palavra. Aqui, logos significa todo o ensino de Jesus. Cf. 5,38: "E sua palavra
não perm anece [menein] em vós, porque não credes naquele que ele en-
viou". ljo 2,24: "se o que tendes ouvido desde o princípio perm anece em
vossos corações, então perm anecereis no Filho e [em] o Pai".
4. Permanecei em... permaneço em. Estas traduções representam a m esm a ex-
pressão grega menein en, a qual é usada dez vezes nos vs. 4-10. E m uito di-
fícil achar um a tradução consistentemente adequada às relações, respec-
tivamente, entre um a videira e seus ram os e entre Jesus e seus discípulos.
Os ram os devem perm anecer em a videira; os discípulos devem perm a-
necer em Jesus.
Permanecei em mim, como eu permaneço em vós. Há outros m odos possíveis
de traduzir a ideia nesta frase ( B a r r e t t , pp. 3 9 5 - 9 6 ) : "Se perm anecerdes
em mim, eu perm anecerei em vós"; "Perm aneceis em m im e como eu
perm aneço em vós". As várias traduções realm ente não se excluem; no
v. 5 adotarem os a últim a m encionada, como fizemos em 6 , 5 6 .
sem que permaneceis. Os m anuscritos gregos variam entre um aoristo e um
presente do subjuntivo. O últim o daria mais ênfase ao caráter contínuo
da ação, m as isto é óbvio em qualquer caso com o verbo "perm anecer".
53 · O último discurso: - Segunda seção (primeira subdivisão) 1045

A imagem se interrom pe aqui e cede lugar à realidade que é simbolizada:


um ram o não tem a função de decidir perm anecer na videira.
5. muito fruto. Aqui e no v. 8, o grego é karpos polys. Em ET 77 (1965-66), 319,
J. F o s t e r apresentou a sugestão de que P o l i c a r p o , bispo de Esmima, no
início do 2 a século, e discípulo de João (segundo I r i n e u : veja vol. 1 , pp. 9 1 ) ,
recebeu seu nom e à luz do desafio destes versículos. Ele era um discípulo
produzindo muito fruto.
sem mim. O grego chõris tem os significados "sem " e "à parte de"; é pos-
sível que João desejasse conservar am bas as conotações, a imagem des-
critiva requer a últim a alternativa. Veja nota sobre 1,3: "A parte dele,
nenhum a coisa veio a existir".
nada podeis fazer. A m esm a ideia se encontra em 2Cor 3,5: "N ão que sejamos
suficientes em nós m esm os para reivindicar algo como vindo de nós;
mas nossa suficiência vem de Deus".
6. Se alguém não permanece. Esta é a contraparte negativa de "aquele que per-
manece" no v. 5.
esse é como um ramo, cortado e seca. Literalmente, "ele foi tirado como um
ram o e secou". Há um a inversão do padrão simbólico: deveriamos espe-
rar encontrar um a descrição do que aconteceu ao ram o com um a implica-
ção de que o destino dos discípulos seria similar; aqui, porém, a descrição
é subordinada à realidade. Q uando um hom em é feito o sujeito imediato
destes verbos, isso é m uito difícil. Ambos os verbos estão no aoristo, e tem
havido várias tentativas para explicar isto. W. B a u e r pensa que o aoristo
enfatiza a imediação da sequência: no m omento em que um homem não
mais está unido a Jesus, esse é o m omento em que ele já foi lançado fora
e secou. O u podem os estar lidando com um aoristo proléptico depois de
um a condição implícita: o resultado é tão certo que o futuro é expresso
como se já tivesse ocorrido ( L a g r a n g e ; B e r n a r d ; MTGS, p. 7 4 ; ZGB, § 2 5 7
- a Vulgata tam bém tem tem pos futuros). Ou podem os ter um aoristo
gnômico usado para expressar algo que é válido para todos os tempos:
ele é sem pre eliminado e seco - esse tipo de aoristo não é incomum num a
parábola em que o autor está generalizando com base em um caso espe-
cífico que tem em m ente (BDF, § 3 3 3 ' ; MTGS, p. 7 3 ) . Devemos notar ainda
a expressão "cortado"; isto se adequaria à imagem de um a vinha melhor
que a de um a videira em que podem os esperar "cair".
recolhem. B e r n a r d , II, 481, provavelm ente pensando na parábola sinótica
da vinha, sugere que o "eles" se refere aos servos anônimos. Mas pro-
vavelm ente, temos aqui o costum e semítico de usar a terceira pessoa
plural para o passivo. O verbo é do tipo que era usado para ajuntar frag-
mentos (6,12-13) e para congregar os filhos dispersos de Deus em 11,52.
1046 O Livro da Glória · Primeira Seção: A última ceia

O fato de que este verbo e o verbo seguinte, "lançam ", estão no tem po
presente sugere a Lagrange, p. 404, um intervalo entre o m om ento em
que os ram os eram cortados (aoristo) e o m om ento em que são recolhidos.
O argum ento gram atical não é convincente, pois isto é provavelm ente
um caso do presente geral, descrevendo o que as pessoas ordinariam ente
fazem na situação visualizada na parábola. Esta interpretação é m uito
apropriada se os aoristos precedentes forem são de caráter gnômicos.
0fogo. O uso do artigo (contraste M t 3,10) pode ser um caso da tendência de
usar-se o artigo definido em estilo parabólico; ou, o autor pode estar se
referindo ao fogo bem conhecido da punição escatológica (veja comen-
tário). W estcott, p. 216, propõe sem qualquer plausibilidade que, se esta
parte do últim o discurso foi pronunciada de caminho para o M onte das
Oliveiras, as fogueiras dos ram os podados das videiras no vale Cedrom
podem ter dado origem à imagem.
7. Se permanecerdes em mim. Alguns estudiosos que não percebem um a divi-
são entre os vs. 6 e 7 sugerem que esta frase no v. 7 é a possível contra-
parte para "se alguém não perm anece em m im " no v. 6. Mas tem os sa-
lientado que a contraparte positiva para o v. 6 está no v. 5. N o v. 7 há um a
m udança para a segunda pessoa, e a imagem da videira se desvanece.
minhas palavras permanecerem em vós. Nos vs. 4-5, Jesus falou dele mesmo
perm anecer nos discípulos (também 14,20); aqui, são suas palavras que
perm anecem nos discípulos. Jesus e sua revelação são praticam ente inter-
cambiáveis, pois é a revelação encarnada (a Palavra). Cf. 6,35: "Eu sou o
pão da vida", onde pão simboliza sua revelação. E duvidoso se o plural
"palavras" (remata ) deva ser distinguido do singular "palavra" (logos) do
v. 3; veja nota sobre "guardará a m inha palavra" em 14,23.
pedis. Isto podería ser traduzido como um futuro ("vós pedireis"), m as o
im perativo parece preferível; conforme o esquema(c) à p. 1011 acima.
será feito. O passivo é um a circunlocução para descrever as ações de Deus
sem m encionar seu nome; cf. 16: "Tudo que pedirdes ao Pai em m eu
nome".
para vós. Om itido em P66*e alguns m anuscritos ocidentais.
8. tem sido glorificado. O aoristo pode ser proléptico ("terá sido glorificado") ou
gnômico ("sempre é glorificado") - veja nota sobre "cortar" no v. 6. Todavia,
é possível que haja neste aoristo um elemento do "um a vez por todas". Visto
que os discípulos continuam a obra do Filho e permanecem unidos a ele, há
somente um a missão partilhada pelo Filho e seus discípulos. Nesta missão
una o Pai tem sido glorificado. (Cf. 17,4: "Eu te glorifiquei [aoristo] na terra
completando a obra que me deste para fazer"). É também possível que o
pretérito represente a perspectiva do evangelista do tempo se encontra.
53 · O último discurso: - Segunda seção (primeira subdivisão) 1047

nisto. A frase se reporta ao que segue na segunda e terceira linhas do v. 8,


em vez do que precede no v. 7. O him que introduz a segunda linha do
v. 8 é epexegético de "isto" (ZGB, §410). O Pai é glorificado em que os
discípulos se tornem como Jesus e levem adiante sua obra.
tornardes. P66 parece adicionar seu endosso à redação um subjuntivo aqui,
assim fazendo "tornar-se" parte da cláusula him, gram aticalm ente
coordenado com o subjuntivo precedente, "produzirdes". Outros bons
m anuscritos trazem um futuro indicativo, e isto podería favorecer a
tradução: "e então vos tom areis m eus discípulos" (assim BDF, §3693).
Enquanto julgam os ser o futuro a redação m ais provável, em significado
ela é coordenada com o subjuntivo precedente (ZGB, §342). Assim, "pro-
duzir m uito fruto" e "tornar-se m eus discípulos" na realidade não são
duas ações diferentes, um a é consequente da outra. O sentido não é que,
quando os ouvintes produzem fm to, se tornarão seus discípulos, mas
que, ao produzirem fruto, m ostram que são discípulos. Tom ar-se ou ser
um discípulo é o m esm o que estar ou perm anecer em Jesus.
9. Como. Para João, kathõs é não só com parativo, mas também causativo ou
constitutivo, significando "porquanto" (BDF, §4532; nota sobre 17,21).
O am or do Pai para com Jesus é a base do am or de Jesus para com seus
discípulos, ambos quanto à origem e intensidade. O Filho ama a seus
discípulos com o m esm o am or divino que o Pai nutre para com ele.
0 Pai tem me amado. O vocabulário para am or em 9, 10, 12, 13a e 17 é
agapan /agapê, enquanto em 13b, 14 e 15 há casos de philos (veja nota
sobre 13). Em 3,35 e 10,17 (agapan) e em 5,20 (philein) o am or do Pai
para com Jesus é expresso no tem po presente, um a indicação de seu
caráter contínuo. A qui e em 17,24, o tem po é aoristo, e a ênfase está na
expressão do am or em Jesus dar-se pelos hom ens - um ato suprem o
de am or bem expresso pelo aoristo. C ertam ente, esta ênfase não exclui
a contin u id ad e do am or, como se pode ver na últim a linha do v. 10.
Spicq, RB 65 (1958), 358, sustenta que no prim eiro século agapan tinha a
conotação de am or que se m anifesta. Assim, o Pai am ou o Filho antes
da criação do m undo (17,24) e este am or se tornou m anifesto quando
Ele enviou o Filho ao m undo (3,16).
permanecei. Im perativo aoristo; veja nota sobre "sem que perm aneça" no
v. 4 . O tom abrupto acentua a ideia de autoridade; A b b o t t , JG, § 2 4 3 8 , diz
que esta "provavelm ente seja a abordagem mais próxima de m andam ento
autoritativo (em João) para se obedecer um preceito moral ou espiritual".
meu amor. Isto significa "m eu am or para convosco", embora o am or dos
discípulos para com Jesus não esteja excluído (cf. 14,15, "se me amais")
- para a possibilidade de um significado secundário em tais frases, veja
1048 O Livro da Glória · Primeira Seção: A última ceia

nota sobre 5,42. Um interessante paralelo a esta ideia em João é Judas 21:
"Guardai-vos no am or de Deus".
10. Se guardardes os meus mandamentos. Já vimos esta expressão em 14,15.21.23-24
("guardai a[s] minhafs] palavra[s]"). Veja nota sobre 14,15.
como tem guardado. Os tempos perfeitos nestes versículos dão um a ideia de
uma ação completa; contraste 8,29: "Eu sempre faço o que Lhe agrada".
O tem po perfeito não está fora de lugar no contexto do último discurso,
quando "a hora" já começou e o ministério está no fim, m as o tem po pode-
ria igualmente ser atribuído à perspectiva que o evangelista tem de tempo.
os mandamentos de meu Pai. Vimos num a nota sobre 14,15 que a altem ação
entre singular e plural, ao falar do[s] m andam entofs] de Jesus, não tinha
um a significação particular; o m esm o parece ser o caso com o[s] man-
damento[s] de Deus; aqui, no plural, em 14,31, singular; veja tam bém a
alternância em ljo 3,22-23.
11. isto. Literalmente, "estas coisas"; está incluído m ais do que foi dito no
v. 10, pois a afirmação "vos tenho am ado" no v. 9 é a verdadeira base da
alegria no v. 11.
minha alegria. Stanley, p. 489, salienta que Jesus falou de "m inha paz" que
é a saudação hebraica "Shalom" (nota sobre 14,27), e aqui ele fala de
"m inha alegria" (chara) que soa parecido com a saudação grega chaire.
O Cristo ressurreto encherá os discípulos de alegria quando os saúda
com a "Paz" (20,19-21).
vossa. Literalmente, "em vós".
12. amai uns aos outros. O uso do presente do subjuntivo sugere que esse am or
de uns pelos outros seria contínuo e perene.
como eu vos tenho amado. O tem po aoristo prepara o cam inho para o supre-
mo ato do am or de Jesus que será m encionado no próxim o versículo. Os
escritos paulinos tam bém evocam a m orte de Cristo como sinal d e amor:
"Deus prova seu am or para conosco, em que Cristo m orreu por nós, sen-
do nós ainda pecadores" (Rm 5,8); "andai em am or, como tam bém Cristo
vos am ou, e se entregou a si mesmo por nós" (Ef 5,2).
13. dar sua vida. Esta é um a construção epexegética com hina (BDF, §394) ex-
plicando o "isto" da prim eira linha. Mas, como S picq (RB 65 [1958], 363)
salienta, há tam bém um a afinidade: o am or cristão não consiste simples-
m ente em d ar alguém sua vida; mas porque ele tem sua origem em Jesus,
há um a tendência no am or cristão que p roduz tal auto-sacrifício. Eis por
que Jo 15,13 im prim e no com portam ento subsequente um a m arca m aior
do que, por exemplo, um a sentença similar em P latão (Symposium 179B):
"Somente os que am am é que desejam m orrer por outros". Para a expres-
são "dar alguém sua vida", veja nota sobre 10,11.
53 · O último discurso: - Segunda seção (primeira subdivisão) 1049

por aqueles a quem ama. A m esm a preposição, hyper, ocorre nas fórmulas
eucarísticas para o sangue da aliança que é derram ado "por muitos"
(Mc 14,24) ou "por vós" (Lc 22,20). O substantivo em 13-15 que temos
traduzido como "aqueles a quem am a" é philos, "am igo", um cognato
do frequente verbo joanino philein, "am ar". A palavra portuguesa "ami-
go" não capta suficientem ente sua relação de am or (pois temos perdido
o sentim ento de que "am igo" se relaciona com o verbo frêon, "amar").
No pensam ento joanino, Jesus não está falando aos discípulos aqui tão
casualm ente como lhes fala em Lc 12,4: "Eu vos disse, m eus amigos, não
tem ais os que m atam o corpo" - o único uso sinótico de philos para os
discípulos. Antes, o v. 14 é similar ao v. 10, e o "vós sois m eus philoi" do
v. 14 é o equivalente do "perm anecereis em m eu am or" do v. 10. Lázaro
é o philos de Jesus (11,11) porque Jesus o am a (agapan, em 11,5; philein
em 11,3). Algum as vezes em relação a este versículo de João, o título de
A braão como "o amigo de Deus" é relem brado (philos em Tg 2,23). En-
tretanto, deve-se notar que a LXX em Is 41,8 fala de Abraão como aquele
"a quem Deus am ou" (agapan). Assim, o título de Abraão se torna outro
exemplo de nossa tese de que philos significa "o am ado" (veja também
nota sobre 3Jo 15 no volum e 30 da série Anchor Bible). Veja o uso sinôni-
m o d e ph ilia e agapê em Justino, Trifo XCIII4: PG 6:697C.
15. servos. Doulos pode significar ambos, escravo e servo. De certa maneira,
"escravo" pode ser mais apropriado aqui quando a condição servil do
doulos é realçada - ele segue ordens sem com preender. Todavia, a impli-
cação de que até então Jesus havia tratado os discípulos como escravos
parece abrupta demais. O contraste entre doulos e philos não era estranho
aos judeus; ele aparece em Filo (De sobrietate 11; 55), o qual diz que a Sa-
bedoria é o philos de Deus, não seu doulos.
vos tenho revelado [revelei]. Ainda que "a hora" não se esgotou, o aoristo é usa-
do para a obra consumada de Jesus. E a revelação da "hora" em sua totali-
dade que m uda a condição dos discípulos, não simplesmente as palavras do
último discurso. A afirmação de que Jesus revelara aos discípulos tudo o que
ele ouvira do Pai parece contradizer 16,12: "Ainda tenho muito mais a dizer-
vos, mas não podeis suportá-lo agora". Mas, desse último lemos no contexto
da vinda do Parácleto, e salientamos que o Parácleto não revela nada novo,
porém outorga um conhecimento mais profundo ao que Jesus já revelou.
16. vos designei. Este é o verbo tithenai, o mesmo verbo usado no v. 13 na ex-
pressão "d ar alguém a própria vida", de m odo que no grego a conexão
entre a comissão dos discípulos e o exemplo de am or que Jesus lhes deu
seriam m uito evidentes. O uso do verbo aqui faz a expressão grega um
tanto brusca. Em citações neotestam entárias do AT (Rm 4,17; At 13,47),
1050 O Livro da Glória · Primeira Seção: A última ceia

tithenai reflete o verbo hebraico nãtan, "dar", assim a ideia literal pode
ser: "eu vos tenho dado o ir". Todavia, B a r r e t t , p. 3 9 9 , sugere que o
verbo grego pode refletir o hebraico sãmak, "im por [as mãos] em, or-
denar", o verbo usado no judaísm o tardio para a ordenação de um rabi-
no. Sãmak / epitithenai são usados respectivam ente no TM e na LXX de
Nm 8,10 para a ordenação dos levitas e em Nm 27,18 para a comissão de
Josué dada através de Moisés.
vades. Para B u l t m a n n , p. 4 2 0 2, entre outros, aqui o verbo hypagein é me-
ram ente um a expressão pleonástica semítica que podería ser om itida
quanto ao significado. Mas L a g r a n g e , p. 4 0 8 , e B a r r e t t , p. 3 9 9 veem piau-
sivelmente aqui um a referência à missão apostólica ao m undo. Lc 1 0 , 3
usa o mesmo verbo ao descrever a m issão dos setenta.
afim de que. Depois de designados há duas construções com hina; literalmen-
te, "a fim de irdes e produzirdes fruto..., a fim de que tudo o que pedir-
des ao Pai em m eu nome, Ele vo-lo conceda". Gram aticalm ente, estas são
orações coordenadas; m as os com entaristas estão divididos quanto a se a
segunda é logicamente subordinada à prim eira, a fim de que a produção
de fruto predisponha o Pai a conceder o pedido.
17. Isto eu vos ordeno. O "isto" (literalmente "estas coisas") não se refere ao
que precedeu, m as ao que segue. Na m aior parte dos m anuscritos (não
P66 ou Codex Bezae), a segunda linha é precedida por um hina que quase
certamente é epexegético, fazendo o "Amai-vos uns aos outros" o m an-
damento. O hina podería ser final: "Eu ordeno estas coisas a fim de que
vos ameis uns aos outros"; m as a omissão, em alguns m anuscritos, pare-
ce indicar que os respectivos copistas interpretaram -no com o epexegé-
tico, e, consequentem ente, não necessário para o sentido.

COMENTÁRIO: GERAL

A estrutura da subdivisão

G eralm en te, 15,1-17 é reco n h ecid o p e lo s e stu d io so s co m o s e n d o u m a


u n id a d e ; p o is a ú ltim a m en ção d a im a g e m d a v id e ira ("d e is fru to ")
a p arece n o v. 16, e ali p a re c e ser u m a m u d a n ç a d e tem a e n tre o v. 17 e
o v. 18. (S tr ac h a n é u m a exceção e n tre os c o m e n ta rista s so b re Jo 15; ele
situ a a in te rru p ç ã o e n tre 16 e 17). C aso se b u s q u e m s u b u n id a d e s d e n -
tro d o s vs. 1-17, os e stu d io so s su g e re m q u e se isole 1-8, e m q u e se tra ta
d a v id eira e os ram o s, e 9-17, em q u e se tra ta d o a m o r d o s d iscíp u lo s.
53 · O último discurso: - Segunda seção (primeira subdivisão) 1051

(B orig , p . 19, é u m a exceção, p o is ele v ê 1-10 co m o a p rim e ira su b u -


n id a d e ). A lg u n s in clu siv e su g e re m q u e d o is blocos in d e p e n d e n te s
d e m a te ria l têm sid o ju sta p o sto s. B u ltm a n n , p . 415, v ê as d u a s p a r-
tes c o m o p a ra lela s, a p rim e ira te n d o o tem a "P erm an ecei em m im "
e a s e g u n d a te n d o o tem a "P e rm a n ec e i n o a m o r". Em s u a s preleções
em Je ru sa lé m , B oismard p o d e ter e x p re ssa d o m e lh o r a relação q u a n d o
fala d a s e g u n d a p a rte co m o u m co m e n tário p a re n té tic o o u ex o rtativ o
so b re a p rim e ira .
A lém d o m ais, p o d e ser preferível d iv id ir as p a rte s assim : 1-6, a
figura d a v id eira e os ram os; 7-17, u m a explicação d esta figura n o con-
texto d o s tem as d o ú ltim o discurso. L em bram os ao leitor a e stru tu ra q ue
p ro p u se m o s p a ra 10,1-21. Em 10,1-5 h o u v e sentenças figurativas sobre
o p a s to r e as ovelhas, extraídos d a v id a pastoril; em 10,7-18 h o u v e vá-
rios d esen v o lv im en to s o u explicações d estas figuras; p o r exem plo, dois
d esen v o lv im en to s d a p o rta e dois d o pastor. P ro p o m o s u m a e stru tu ra
sim ilar p a ra 15,1-17 (com a n o táv el exceção d e q u e n o cap. 10 as passa-
gens d o " e u so u " n ã o são descrição figurativa [1-5], senão n a seção que
d esen v o lv e as figuras [7-17]; e n q u a n to aqui, n o cap. 15, estão n a p ró p ria
descrição figurativa). P o d e ser d ig n o d e n o ta q u e IC o r 9,7 ju stap o n h a as
im agens d a v in h a e o c u id a d o d o s rebanhos.
C o m e c em o s com os vs. 1-6. Se c o m p a ra rm o s o q u e é d ito aq u i
com o u tra s p a rte s d o ú ltim o d isc u rso , se d estaca u m asp ec to d istin -
tivo: n ã o h á n e n h u m e le m en to fu tu rista n a d escrição d a u n iã o e n tre
os ra m o s e a v id eira. Em m u ita s o u tra s p a ssa g e n s d o ú ltim o d iscu rso ,
a u n iã o co m Jesu s é d e scrita co m o p e rte n c e n te ao fu tu ro (14,3.20-22;
16,22, p a s sa g e n s d o P arácleto). M as em 15,1-6 os d isc íp u lo s já estão
em u n iã o co m Jesus, e a ên fase está n a p e rm a n ê n c ia n e ssa u n ião . N ão
há a m ais lev e referên cia à p a rtid a im in en te; n e m a p a re c e m ao s o u tro s
tem as característico s d a ú ltim a ceia. (A su g e stã o d e q u e o rig in alm en -
te os vs. 1-6 fo ra m d ito s im e d ia ta m e n te a p ó s a d istrib u iç ã o d o cálice
eu carístico , q u a n d o a ên fase e sta ria n a ex istên cia d a u n iã o eucarística
com Jesu s, é in te ressa n te , m as to ta lm e n te c a re n te d e p ro v a).
N o s vs. 15,7-17, a situ a ç ão é b e m d iferen te; os tem a s d a últim a
ceia são e n c o n tra d o s e m c ad a linha. N o v. 7 e n o v. 16 h á o tem a d e
p e d ir e ter o p e d id o c o n c ed id o (14,13-14; 16,23-24.26). N o v. 8 h á o
tem a d a g lo rificação d o P ai (13,31-32; 14,13; 17,1.4). N o v. 9 h á o tem a
d o a m o r d o P ai p a ra com Jesus (17,23) e d o a m o r d e Jesus p a ra com
os d isc íp u lo s (13,1.34; 14,21). N o s vs. 10 e 14 h á a co m b in ação d e a m a r
1052 O Livro da Gloria · Primeira Seção: A última ceia

e g u a rd a r os m a n d a m e n to s (14,15.21.23-24). N o v. 11 h á o re frã o " e u


v o s ten h o d ito isto " (14,25; 16,1.4a.6.25.33). N o s vs. 12 e 17 h á o m a n -
d a m e n to d e a m a r u n s ao s o u tro s (13,34). N o v. 13 h á u m a refe rê n c ia
im plícita ao s d isc íp u lo s d a n d o su a p ró p ria v id a (13,37). N o v. 15 h á a
an alo g ia d a relação s e rv o /s e n h o r (13,16; 15,20). N o v. 16 h á o te m a d a
escolh a d o s d isc íp u lo s (13,18; 15,19). Se, p o is, o s v s. 7-17 tê m m u ito s
ecos d o s tem as d a ú ltim a ceia, em c o n tra p a rtid a h á so m e n te u n s p o u -
cos ecos d a im a g e m d a v id e ira e d o s ra m o s (7: " p e rm a n e c e i e m m im ";
8: " p ro d u z ird e s m u ito fru to "; 16: " d e is fru to ").
S ugerim os q u e a im ag em d a v id eira e d o s ram o s e n c o n trad a em
15,1-6 p erten ceu o riginalm ente a o u tro contexto. (N ão d e v e m o s ten-
tar, co n tu d o , especificar esse contexto, com o faz J. E. R oberts, ET 32
[1920-21], 73-75, o q u al su g ere q u e ela foi p ro n u n c ia d a n o p e rc u rso
en tre B etânia e Jerusalém , em conjunção com a m ald ição d a fig u eira -
ele a p o n ta p a ra a ideia d e n ã o p ro d u z ir fru to [Jo 15,4] e m M t 21,19, e
a d e ter os p e d id o s concedidos [Jo 15,7] em M t 21,22). Q u a n d o foi in-
tro d u z id a n o ú ltim o discurso, ela foi su p rid a com u m d esen v o lv im en -
to e aplicação parentéticos. Este desen v o lv im en to , o ra e n c o n trad o n o s
vs. 7-17, foi fo rm ad o pela com binação d e alg u m a im ag em ex tra íd a d a
figura d a v id eira e os ram o s com d ito s e tem as tradicionais n o m aterial
d o ú ltim o d iscu rso joanino. (N ão é necessário q u e p e n sem o s n isto com o
u m processo m eram en te literário; tal com binação p o d e ría ter o co rrid o
no cu rso d a pregação). A tese d e q u e há u m a d iv isão e n tre 1-6 e 7-17, ba-
sead a n a falta d e paralelos ao ú ltim o discurso n a p rim e ira e su a p resen -
ça n a seg u n d a, é e n d o ssa d a p o r o u tro s a rg u m en to s. E n q u an to os vs. 1-6
faz alg u m u so d a se g u n d a pessoa, a terceira p esso a d o m in a o cenário;
m as o u so d a se g u n d a pessoa no s vs. 7-17 é consistente, m esm o q u a n d o
se evoca o cenário d a v id eira e d o s ram os. N o s vs. 1-6 h á u m a inclusão
en tre 1 e 5 ("E u so u a videira"); em 7-17 h á inclusões e n tre 8 e 16 (p ro d u -
zird es m u ito fruto) e e n tre 7 e 16 (p ed ir e o b ter o p edido).
E m p a rtic u la r os vs. 7-17 tem u m a e s tru tu ra in te rn a m a is in teres-
sante. É p o ssív el d iv id i-lo s m ais em 7-10 e 12-17, te n d o o v. 11 co m o
u m a tra n siç ã o q u e re su m e o teo r d e 7-10. H á in clu sõ es m e n o re s q u e
ju stificam esta su b d iv isã o ad icio n al. E m 7-10, o v. 7 p a rtilh a co m o s
vs. 9 e 10 a ên fase so b re p e rm a n e c e r e m Jesus o u e m s e u a m o r. O v. 7
en fatiza q u e as p a la v ra s d e Jesus p e rm a n e c e ría m co m o q u in h ã o d o s
d iscíp u lo s, e n q u a n to o v. 10 e n fa tiz a q u e o s m a n d a m e n to s d e Je su s d e-
v em ser g u a rd a d o s p e lo s d isc íp u lo s (p ara a e q u iv a lên c ia e n tre p a la v ra
53 · O último discurso: - Segunda seção (primeira subdivisão) 1053

e m a n d a m e n to , veja n o ta so b re 14,23). E m 12-17, o v. 17 re p e te 12 qu a-


se lite ra lm e n te . Se p u s e rm o s 7-10 e 12-17 la d o a lad o , d esco b rim o s u m
in te re s s a n te p a d rã o quiásm ico:

7-10 12-17
Se m inhas palavras 7 17 Isto vos ordeno
perm anecerem em vós
Pedis tudo o q ue quiserdes, 7 16 T udo que pedirdes ao Pai [...],
e vos será feito Ele vos dará
P roduzirdes m uito fruto 8 16 Deis fruto
T om ardes m eus discípulos 8 16 Eu que vos escolhi
O Pai m e tem am ado 9 15 Vos tenho revelado tudo o
que ouvi do Pai
Eu vos tenho am ado 9 Φ15 Eu vos tenho cham ado m eus
amigos
Perm anecereis em m eu 10 14 Vós sois m eus amigos, se
am or, se g uardardes fizerdes o que vos mando
m eus m andam entos 12 M eus m andam entos: que
am ai-vos u ns aos outros
11: Eu vos tenho dito isto para
que m inha alegria esteja em vós

É se m p re difícil e star seg u ro d e q u e a descoberta d e u m a e stru tu ra


quiásm ica tão e la b o rad a n ão reflete m ais d a e n g e n h o sid a d e d o invés-
tig ad o r d o q u e d a intenção d o a u to r joanino. Borig , p p . 68ss., u sa o es-
q u em a q u iásm ico p a ra d efen d er u m a divisão diferente d o s versículos).
C o n tu d o , a q u i h á corresp o n d ên cias e m d em asia p ara ser coincidência.

Versículos 1-6 como um mashal

A gora n o s v olvem os p a ra o gênero literário d e 15,1-6. Já discutim os


a q u estão d e alegoria e p arábola e m João (vol. 1, p p . 667-68). C ertam ente
há elem en to s alegóricos nos vs. 1-6; p o r exem plo, a identificação d a videi-
ra, o a g ricu lto r e os ram os; m as V a n den B ussche , p. 102, está correto em
insistir q u e n ã o h á alegoria c u id ad o sam en te construída, na qual todos os
detalhes ten h a m significação. A realid ad e q u e João está descrevendo, a
saber, a relação d e Jesus e seus discípulos, u ltrap assa os lim ites d a lingua-
gem figurativa; e d e fato p a rte d o vocabulário é m ais ap ro p riad a a esta
relação d o q u e é a viticultura. (Incidentalm ente, p o d em o s lem brar q u e há
u m arranjo alegórico p a ra a parábola sinótica d a v in h a [Mc 12,1-11 ep ar.],
o n d e o p ro p rie tá rio é D eus, os arren d atário s são as au to rid ad es judaicas,
1054 O Livro da Glória · Primeira Seção: A última ceia

o filho é Jesus etc.). Bu ltm a nn , p p . 406-7, tem razão q u a n d o d iz q u e o q u e


tem os n a descrição d a videira e d o s ram os n ão é alegoria n e m p arábola.
M as n ão avança o suficiente; p ois n ão enfatiza q u e o p ro b lem a d e classi-
ficação é com plexo e inclusive levado a extrem os errôneos p ela ten tativ a
d e aplicar categorias precisas d eriv ad as do s retóricos gregos (parábola,
alegoria) aos div ersos esq u em as d a s com parações sem íticas, to d o s eles,
n o p en sam en to hebraico, p o d e n d o ser ch am ad o s mashal (mãèãl). D eve-
m os reconhecer q u e as ilustrações e figuras en co n trad as tan to em João
com o nos sinóticos v êm sob o n o m e mashal. O m áxim o q u e p o d e m o s
dizer é q u e o elem ento alegórico recebe m ais ênfase em João.
Já en co n tram o s em 10,1-18 o gênero mashal n a im agem d a p o rta d as
ovelhas e o pastor. Ali v im os tu n esq u em a consistente em p aráb o las b á-
sicas (10,1-5) seg u id o d e elem entos d e dois desenvolvim entos o u explica-
ções alegóricas (7-18), u m deles está m ais p róxim o ao significado original
d as respectivas p arábolas d o q u e o outro. O ra, acabam os d e o b serv ar
q u e n o capítulo 15, vs. 7-17, eles são u m a ad ap tação e d esenvolvim ento
d a im agem d a v id eira e os ram os (1-6) n o contexto d o últim o discurso.
H avería o u tro desenvolvim ento alegórico m ais próxim o ao significado
original d a im agem ? Sugerim os q u e havia e q u e o encontram os realm en-
te entretecido em 15,1-6 (não sep ara d o dele com o n o caso d e 10,8 e 14,16).
N o capítulo 10, os desenvolvim entos alegóricos v ieram na form a "E u so u
a p o rta" e "E u so u o bo m p a sto r" (cada u m d u a s vezes). E ncontram os
afirm ações sim ilares em 15,1-6: "E u so u a videira [verdadeira]" (1 e 5);
"M eu Pai é o agricu ltor" (1); "vós sois os ram o s" (5). O v. 3, "V ós já estais
lim pos", é u m d esenvolvim ento relacionado com a im agem d a p o d a do s
ram os lim pos n o v. 2. A m u d an ça p a ra a seg u n d a pessoa, n a terceira
linha d o v. 5, é o u tro sinal d e q u e a im agem está sen d o explicada. A o
discutirm os o cap ítulo 10, insistim os q u e h á boa razão p a ra crer q u e Je-
su s explicou o u desenvolveu suas p arábolas p a ra seus discípulos e que,
em bora tais desen v olvim entos foram frequentem ente "m o d e rn iz a d o s"
pelo tem p o em q u e foram inseridos nos evangelhos, a lg u n s elem entos
d a s explicações originais realm ente foram conservados. É b em possível
q u e este ten h a sid o o caso em Jo 15,1-6.

O pano de fundo do cenário da videira e dos ramos

N o to can te a ta n to s o u tro s casos o n d e h á u m p ro b le m a so b re o


p a n o d e fu n d o d o p e n s a m e n to jo an in o , a lg u n s e stu d io so s re c o rre m
53 · O último discurso: - Segunda seção (primeira subdivisão) 1055

à s fontes gnósticas e m an d e a n a s (W. B auer , B u ltm a nn ), e n q u an to ou-


tro s (B e h m , B ü ch sel , J aubert ) e n fa tiz a m os escrito s ju d aico s e d o AT.
E m p a rtic u la r, B u l t m a n n , p. 4076, m a n té m q u e as im a g e n s d e João
reflete o m ito o rie n ta l d a á rv o re d a v id a , a lg u m a s v ezes rep re sen ta -
d o co m o u m a v id eira; e ele oferece a lg u n s p a ra le lo s im p re ssio n a n te s
d a sem i-g n ó stica Odes de Salomão (vol. 1, p. 47 - to d av ia , veja J. H.
C h a r lesw o rth , "The Odes of Solomon - Not Gnostic", C B Q 31 [1969],
357-69) p a ra a asso ciação d e tem a s d e a m o r e aleg ria com a im ag em
d a v id e ira . S. S c h u l z , Komposition und Herkunft der johanneischen Reden
(S tu ttg art: K o h lh a m m e r, 1960), p p . 114-18, e m b o ra ele ap recie m ais
os p a ra le lo s ju d aic o s p a ra João d o q u e B u l t m a n n , p e n sa q u e, neste
caso, o s m e lh o re s p a ra le lo s e stã o n a lite ra tu ra m a n d e a n a e gnóstica,
m u ito e m b o ra haja u m m isto d e e le m en to s v e te ro te sta m e n tá rio s. Esta
foi ta m b é m a a firm a ç ão d e E. S ch w eizer em Ego Eimi (G öttingen: V an-
d e n h o e ck , 1939), p p . 39-41), e m b o ra p a re ç a q u e ele ten h a m o d ificad o
se u s co n ceito s (in N T EM , p p . 233-34). B o r ig , op. cit., fez u m c u id a d o so
e s tu d o d e s ta s su g e stõ e s, m as e n c o n tra o p a n o d e fu n d o ju d aico e ve-
te ro te s ta m e n tá rio p a ra o sim b o lism o jo an in o m u ito m ais p la u sív e l do
q u e q u a lq u e r d o s o u tro s. P or ex em p lo , ele reco n h ece (pp. 135-87) q u e
os d o c u m e n to s m a n d e a n o s oferecem p a ra lelo s p a ra João em q u e o
sim b o lism o d a v id e ira é u s a d o p a ra d e scre v e r in d iv íd u o s e u sa d o em
c o m b in ação co m os d ito s "E u so u ", m as as ênfases m a n d e a n a s e joa-
n in as n o sim b o lism o d a v id eira são m u ito diferen tes. O sim b o lism o
m a n d e a n o é a lta m e n te m ístico; n ã o se co n cen tra no s ram o s; além d o
m ais, e n q u a n to q u e , e sp ec ialm en te n o s escrito s m a n d e a n o s tard io s, a
v id eira é u m a á rv o re d a v id a (note q u e João n ã o m en cio n a d ire tam e n -
te " v id a " e m su a descrição), a fu n ção g e ra d o ra d e v id a d a v id eira em
relação ao s ram o s, q u e é im p o rta n te em João, n ão a ssu m e o p rim e iro
lu g a r n a d escrição m a n d e a n a (B o r ig , p. 172).
E x am in em o s, p o is, o p o ssív el p a n o d e fu n d o ju d aic o e v etero testa-
m e n tá rio p a ra v e rm o s se ele é aplicável. N o A T, a v in h a é u m freq u en -
te sím b o lo p a ra Israel. O c a sio n alm en te, o sím b o lo é o d a fertilid a d e
(Is 27,2-6); m ais frequente, a v inha é im p ro d u tiv a o u d eso lad a e desagra-
d a Iah w eh (Jr 5,10; 12,10-11). N a tradição sinótica, Jesus se vale d o sim bo-
lism o v e te ro te sta m e n tá rio d a vinha: su a p a rá b o la d a v in h a (M c 12,1-11
e p a r.) cita im p lic ita m e n te o "cân tico d a v in h a " d e Isaías (Is 5,1-7). Veja
tam b é m as p a rá b o la s d o s tra b a lh a d o re s n a v in h a (M t 20,1-16), d o s fi-
lh o s o b e d ie n te e d e so b e d ie n te (M t 21,28-32) e d a fig u eira p la n ta d a n a
1056 O Livro da Glória · Primeira Seção: A última ceia

v in h a (Lc 13,6-9). O ra, em João e sta m o s tra ta n d o m ais d e u m a v id e ira


d o q u e d e u m a v in h a. Q u e esta d istin çã o n ã o é tão a c e n tu a d a co m o
a lg u n s c o n sid e ra ria m é su g e rid o p e la re d a ç ã o v a ria n te n o v. 1 e p e lo
v erb o n o v. 6 (veja n o ta so b re " p o d a r" , lite ra lm e n te "la n ç a r fora").
A lém d o m ais, n o A T a im a g e m a lg u m a s v ezes rec u a e a v a n ça , d a
v id eira p a ra a v in h a (cf. SI 80,9[8] e 13[12]). A n n ie J aubert , p . 94, e stá
certa ao su g e rir q u e to d o o sim b o lism o d e Israel co m o u m a p la n ta o u
á rv o re, fre q u e n te n o AT, n o s A p ó crifo s e em Q u m ra n , ta m b é m d e v e
e sta r em jogo aq u i. M as, m esm o q u e n o s lim ite m o s a o u so d a v id e ira
com o u m sím b o lo , p o d e m o s citar O s 10,1; 14,8(7); Jr 6,9; Ez 15,1-6;
17,5-10; 19,1-14; SI 80,9(8)ss.; e 2Esd 5,23. E stas p a ssa g e n s o ferecem
m u ito s p a ra lelo s d ire to s com João, e sp ec ialm en te n o s tem a s d a fertili-
d a d e , p o d a r os ra m o s ru in s etc.
A v e rd a d e ira d ificu ld ad e q u e e n co n tram o s p a ra s u p o r q u e estas
im ag en s co n stitu am o p a n o d e fu n d o d e João está n o fato d e q u e a vi-
d eira o u a v in h a rep re sen ta m Israel, e n q u a n to João identifica a v id eira
com Jesus e n ã o com u m p ovo. M as, com o salien tam o s acim a (p. 1003)
ao tra tarm o s d e "o cam in h o " em 14,6, este é u m asp ecto p e c u liar d a
teologia jo an in a q u e Jesus ap lico u a si term o s u sa d o s n o A T p a ra Israel
e, em o u tra s p a rte s d o N T , à c o m u n id a d e cristã. Isto é p a rte d a técnica
joanina d e s u b stitu ir "o reino d e D eus é com o...", p o r "E u sou...". E ntre-
tanto, n o p resen te caso, d ev e m o s n o ta r q u e o e lem en to d a co letiv id ad e
n ão está au sen te. Jesus n ã o é o caule, e sim to d a a v id eira, e os ram o s
p erm an ecem p a rte d a v id eira. V isto q u e João (1,47) v ê os cristão s cren-
tes com o os israelitas gen u ín o s, a v id eira com o u m sím bolo d e Jesus e
os crentes, e m certo sen tid o , são o sím bolo d o n o v o Israel. (R ecordem os
q u e às v ezes tem -se su g e rid o q u e v id eira é o e q u iv alen te d a n o ção q u e
P aulo tin h a d e corpo. A equivalência n ão é total; p o r ex em plo, n a im a-
gern d e João n a d a existe q u e e q u ip a re a ênfase d e P aulo so b re a d iv er-
sid ad e d e m em b ro s; e o q u e v e m à lem b ran ça é o conceito p a u lin o m ais
an tig o em q u e o s cristãos são m em b ro s d o co rp o físico d e C risto, e n ã o
o conceito p a u lin o p o sterio r, n o q u al C risto é a cabeça d o corpo. M as,
u m a v ez a d m itid a s estas reservas, a ideia d o s cristãos e sta rem e m Jesus
com a resu ltan te im ag em c o rp o rativ a é m u ito sim ilar).
A lg u m as p a ssa g e n s específicas d o p a n o d e fu n d o ju d a ic o e v ete-
ro te sta m e n tá rio têm sid o o ferecid as p a ra se c o n sid e ra r q u ã o e stre ita-
m e n te relacio n ad o é o p e n sa m e n to d e João. D odd , Interpretation, p. 411,
a p o n ta p a ra o SI 80,9(8)ss., o n d e h á u m a d escrição d e Israel c o m o u m a
53 ‫ י‬O último discurso: - Segunda seção (primeira subdivisão) 105 7

v id eira. C o m e n ta rista s d e ste salm o à s v e z es têm c o n sid e ra d o a últim a


p a rte d o v. 16(15) co m o u m a d u p lic a ç ã o in co rreta d o 18(17); m as se
16(15) fo r lid o co m o está, e sp ec ialm en te n a LXX, p a re c e id en tificar a
v id eira d e Israel com o "filh o d o h o m e m " so fred o r. T oda a p a ssa g e m
m erece se r citad a: "C u id a i d e sta v id e ira e p ro te g e i [?] o q u e vossa
m ão d ire ita p la n to u , o filho d o h o m e m a q u e m vó s m esm o s fizestes
forte; p o is a q u e im a ra m com fogo e a d e rrib a ra m " . Se esta red ação
su rg iu p o r a c id e n te o u p o r reflexão teológica, a lg u é m p o d e v er com o
ela v eio a sim b o liz a r Jesus, o F ilho d o H o m e m , co m o a v id eira. T oda-
via, a co n ex ão é a lta m e n te e sp ecu lativ a.
E. M . S 1DEB0TT0 M, ET 68 ( 1 9 5 6 2 3 4 ,(57‫־‬, salien ta q u e, d o p o n to d e
vista d o v o cab u lário , Jo 15 se ap ro x im a m u ito ao mashal d a v id eira em
Ez 17. E ste mashal foi p ro p o sto à casa d e Israel p e lo "filho d o h o m em ",
u m a fo rm a d e d isc u rso q u e D eus u sa v a fre q u e n te m en te em referência
a E zequiel. Seria p o ssív el q u e a m ed ita ç ã o so b re E zequiel tivesse leva-
d o à asso ciação d o n o v o F ilho d o H o m e m com a videira? Esta conexão
p arece m u ito fo rçad a, m as o q u e é significativo é q u e a im ag em d a vi-
d eira d e Ez 17 se re p o rta a u m rei d a casa d e D avi. C om o afirm a B orig ,
p. 101: " N o AT, a im a g e m d a v id eira já e stav a associada n ão só com a
c o m u n id a d e d e Israel, m as tam b é m c om a d escrição d e u m a p esso a in-
d iv id u a l, d e m o d o q u e a tran sp o siç ã o joanina d e u m a im ag em coletiva
p a ra u m a p e sso a já está a n te c ip a d a n o sim b o lism o d a v id eira em Eze-
q uiel". É d ig n o d e n o ta q u e Ez 34 o fereceu o p a ra le lo m ais e streito com
as p a ssa g e n s d e Jo 10 em referência ao p a sto r, d e m o d o q u e p o d e m o s
reiv in d ic a r u m a relação e n tre a im ag em d e João e a im ag em d e Eze-
quiel. O u tro s p o ssív eis p a ra lelo s e n tre os d o is são sa lie n ta d o s p o r B.
V a w t e r , "Ezekiel and John", CB Q 26 (1964), 450-58. P ara a id eia d e que
a v id e ira re p re s e n ta u m a p esso a, a lg u n s têm a p o n ta d o p a ra 2 Baruque
39,7ss., o q u a l p a re c e falar d o M essias o u seu p rin c ip a d o com o u m a
v id eira d e s a rra ig a n d o os p o d e re s m a u s d o m u n d o . E m bora isto pos-
sa ser p ro v e ito so p a ra m o stra r q u e era aceitável d e n tro d o ju d aísm o
re tra ta r o M essias co m o u m a v id eira, c e rtam e n te a força d a im ag em é
m u ito d ife re n te d a lição q u e João extrai.
O u tra objeção às te n ta tiv a s d e e n c o n tra r u m p a n o d e fu n d o vete-
ro te s ta m e n tá rio p a ra a v id e ira e ra m o s jo an in o s é q u e n e n h u m a d as
p a s sa g e n s v e te ro te sta m e n tá ria s d a v id e ira e n fatiza a v id e ira com o
fo n te d e v id a p a ra o s ra m o s, p o n to q u e é c a p ital em João. (N o SI 80,
d isc u tid o acim a, ju n ta m e n te com u m ap e lo p a ra se c u id a r d a v id eira
1058 O Livro da Glória · Primeira Seção: A última ceia

[= filho d o h o m em ] h á u m a súplica: "D á-n o s v id a " [19(18)], m a s n ã o


há sugestão d e q u e a videira seja a fonte d e vida). E ntretanto, A nnie
J aubert, p. 95, arg u m en ta q u e n o judaísm o pós-bíblico h o u v e certa as-
sim ilação d a videira p a ra a árvore d a vida. N a iconografia judaica pos-
terior, a árv o re d a v ida foi retratad a com o u m a videira (Z. A meisenowa ,
Journal of the Warburg Institute 2 [1938-39], 340-44). Esse tip o d e a ssim i-
lação p o d e ría ter o c o rrid o n a esfera d o p e n sa m e n to sa p ie n c ia l co m o
u m m eio d e sim b o liz a r o p o d e r v iv ifican te d a sa b e d o ria , d a lei o u d a
p a la v ra d e D eus. A. F eu illet , N R T 82 (1960), 927ss., te m c h a m a d o a
aten ção p a ra o s p a ra lelo s q u e a lite ra tu ra sa p ie n c ia l oferece a Jo 15.
Em Eclo 24,17-21, a S ab ed o ria p e rso n ific a d a fala n e ste s term o s: "E u
p ro d u z o d eleites com o a v id eira; m in h a s flores se c o n v e rte ra m em
fru to s b elo s e ricos. V in d e a m im , to d o s o s q u e m e d e seja m , e em -
p a n tu rra i-v o s d e m e u s f r u t o s .... A q u e le q u e co m e d e m im a in d a terá
fom e; a q u e le q u e b eb e d e m im terá m ais se d e a in d a " . T u d o in d ica
q u e esta p a ssa g e m foi co n h ecid a n o s círculos jo an in o s (veja n o ta so-
b re 6,35), e já m en c io n am o s a n te rio rm e n te q u e u m g lo sa d o r cristã o
v iu su a co n ex ão com Jo 14,6. A cena d e c o m e r o fru to d a v id e ira é
d ife ren te d a q u e la d e João, m a s a v id e ira é a p re s e n ta d a co m o d o a d o ra
d e v id a. C e rta m e n te a á rv o re d a v id a fig u ra d a n o p e n s a m e n to jo an i-
n o (ex p licitam en te, em A p 22,2; im p lic ita m en te , talv e z co m o p a rte d o
p a n o d e fu n d o d e Jo 6 - veja vol. 1, p . 521-22), e a id eia q u e João tin h a
d a v id e ira e d o s ra m o s p o d e ter-se o rig in a d o d e u m a c o m b in a çã o d a
im ag em d e Israel com o a v id e ira e a im a g e m d a S a b e d o ria co m o u m a
á rv o re o u v id e ira vivificante. (V em os co m o u m a im a g e m tão com -
plexa e m ista q u e se p o d e o b ter; em I nácio , Trallians 11,1-2, p a re c e
co m b in ar a v id eira, o m a d e iro d a c ru z e a á rv o re d a v id a: "F u g i d e sse s
ren o v o s p e rv e rso s q u e p ro d u z e m fru to m o rtífero . ... P ois e ste s n ã o
são a p la n ta d o Pai. Se fossem , se p a re c e ría m com o s ra m o s d a c ru z , e
seu fru to seria in co rru p tív el").
C onclu in d o , é óbvio q u e o mashal q u e João form a d a v id eira e d o s
ram o s tem u m a ún ica orientação, consoante com a cristologia joanina.
Esta o rientação n ão se enco n tra no AT o u n o p e n sam e n to judaico, m as
m u itas d as im ag en s e idéias q u e têm sido c o m b in ad as sob esta orien-
tação se en co n tram ali. A d m itin d o a o rig in alid ad e d o p e n sa m e n to joa-
nino, su g erim o s q u e o AT e o ju d aísm o forneceram a m atéria p rim a d a
q u al este mashal foi com posto, ju stam en te com o forneceram a m atéria
p rim a p a ra o mashal d a p o rta d a s o velhas e d o p a sto r (vol. 1, p p . 646-47).
53 · O ú ltim o discurso: - S eg u n d a seção (prim eira subdivisão) 1059

A videira como um símbolo eucarístico?

O sig n ificad o b ásico d a v id e ira é m u ito claro. D o m esm o m o d o


com o Jesu s é a fo n te d a á g u a v iv a e é o p ã o d o céu q u e g era v id a , as-
sim ele é a v id e ira q u e c o m u n ica v id a . A té a q u i, a s m etá fo ra s q u e con-
cern em à recep ção d o d o m d a v id a q u e Jesus co n ced e tem e n v o lv id o
ações ex tern as: a lg u é m tem q u e b e b e r a á g u a o u co m er o p ã o p a ra ter
v id a. A im a g e m n o mashal d a v id e ira é m ais ín tim a, co m o co n v ém ao
tem a g e ra l d a in te rio riz a ç ão q u e d o m in a n o ú ltim o discu rso : alg u ém
d e v e p e rm a n e c e r em Jesus co m o u m ra m o p e rm a n e c e n u m a v id eira
a fim d e te r v id a . B eber á g u a e c o m e r p ã o e ra m sím b o lo s d e crer em
Jesus; a ex p licação e m 15,7-17 deix a claro q u e p e rm a n e c e r n a v id eira
sim b o liza o a m o r. T em o s su g e rid o q u e, em u m n ív el se cu n d á rio , a
á g u a e o p ã o e ra m sím b o lo s sa cra m e n tais, re sp e c tiv a m e n te d o batis-
m o e d a e u caristia. É p o ssív e l q u e a v id e ira sim b o lize tam b é m a u n ião
eu carística e a vivificação eu carística, à m e d id a q u e ela p o d e ria ser
u m a fig u ra rela c io n a d a com o cálice d o v in h o eucarístico?
C o m o era d e se esp erar, B ultm ann , p. 4 0 7 , d escarta ap ressad a-
m ente a p o s sib ilid a d e , sa lie n ta n d o q u e n o mashal n ão h á ê n fase sobre
o v in h o . E sta objeção c e rta m e n te exclui u m a referên cia à eu caristia
com o o sim b o lism o p rim á rio - co n clu são q u e tam b é m seria d ita d a
p o r n o ssa afirm a ç ão d e q u e o mashal n ã o foi o rig in a lm en te d ito no
contexto d a ú ltim a ceia. T o d av ia, d e v e m o s certificar a in d a se o mashal
d a v id eira, p o s to n o co n tex to d a ú ltim a ceia e d a in stitu içã o d o cálice
eucarístico , d e v e o u n ã o ter e v o c ad o im e d ia ta m e n te id éias eucarís-
ticas e, assim , ter a d q u irid o u m sim b o lism o eu carístico secu n d ário .
A a u sên c ia d a in stitu içã o d a eu c aristia n o rela to q u e João faz d a últi-
m a ceia re a lm e n te n ã o é u m o b stácu lo in tra n sp o n ív e l a esta su g estão
- n ão só p o rq u e ali p o d e ter h a v id o im e d ia ta m e n te u m rela to joânico
da in stitu içã o (veja vol. 1, p p . 5 3 0 ), m as tam b é m p o rq u e u m a u d itó -
rio cristã o p rim itiv o c e rta m e n te teria tid o c o n h ecim en to d a trad ição
da in stitu içã o d a ú ltim a ceia (pois, a p a re n te m e n te , ela era p a rte da
p reg ação h a b itu a l: cf. IC o r 11,23-26). Q u e os leito res d o e v a n g elh o as-
so ciariam facilm en te a im a g e m d a v id e ira com o cálice eu carístico no
contexto d a ú ltim a ceia é su g e rid o p e la d esig n a ç ão d o c o n te ú d o da-
q u ele cálice co m o "o fru to da videira" em M c 14,25; M t 26,29. N a p ró-
p ria p rá tic a litú rg ic a d o s p rim e iro s cristão s p re s e rv a d a p a ra nó s na
Didaquê 9,2, as se g u in te s p a la v ra s fo ram d ita s com o p a rte d a benção
1060 O Livro da Glória · Primeira Seção: A última ceia

eucarística: "G raças [eucharistein] a ti, n o sso Pai, p e la sa n ta videira d e


D avi, te u serv o , q u e rev elaste a nó s a tra v é s d e Jesus, te u serv o ". E sta
citação d a Didaquê é im p o rta n te e m raz ã o d a estreita sim ila rid a d e q u e
v im o s e n tre as p a la v ra s d a Didaquê co n cern en tes ao p ã o eu carístico e o
relato jo an in o d a m u ltip licação d o s p ã e s (vol. 1, p. 480s).
E x am in arem o s a g o ra a lg u m a s p o ssib ilid a d es q u e o mashal d a vi-
d eira e os ram o s p o d e ser relacio n ad o com a eu caristia. E ste mashal é
n a rra d o p o u c o an te s d a m o rte d e Jesus, e d e fato a explicação (15,13
- veja n o ta so b re " p o r a q u eles a q u e m a m a ") m en cio n a a m o rte sacrifi-
ciai. A im p o rtâ n c ia d e p ro d u z ir fru to é ressa lta d a n o mashal; e o ú n ico
o u tro lu g a r n o e v a n g elh o q u e se m en cio n a a p ro d u ç ã o d e fru to é em
12,24, o n d e se e n fatiza q u e a sem en te d e v e m o rre r p a ra p ro d u z ir fruto.
Este tem a d a m o rte d e Jesus é, n a tu ra lm e n te , p a rte d e to d o s o s rela to s
d a in stitu ição d a e ucaristia. O tem a d a u n iã o ín tim a c om Jesus tam b é m
d ev e ser p a rtilh a d o tan to p elo mashal d a v id eira (p erm an e c e r e m Jesus)
com o p ela teo lo g ia eu carística d a Igreja p rim itiv a (IC o r 10,16-17).
É m u ito in te re ssa n te c o m p a ra r Jo 15,1-17 com a seção eu c arístic a
d e Jo 6,51-58. Em geral, o m esm o p a n o d e fu n d o sa p ie n c ia l p a re c e
s u b lin h a r a m b a s as p a ssa g e n s. E m p a rtic u la r, 15,5, com seu "A q u e le
q u e p e rm a n e c e e m m im e eu n e le " ecoa 6,56: " A q u e le q u e co m e d e
m in h a ca rn e e b eb e m e u sa n g u e p e rm a n e c e em m im e e u n ele". N o
cap. 15 está im p lícito q u e a v id a p a ssa p a ra os ra m o s a tra v é s d a v id ei-
ra; assim o u v im o s em 6,57: " A q u e le q u e co m e d e m im terá a v id a em
v irtu d e d e m im ". Em 15,13 Jesus fala d e a lg u é m d a n d o s u a v id a p o r
aq u eles q u e ele am a; em 6,51 ele diz: " O p ã o q u e e u d a re i p e la v id a
d o m u n d o é m in h a p ró p ria c arn e". O "E u so u o p ã o v iv o " d e 6,51 e
"E u so u a v id e ira v e rd a d e ira " d e 15,1 fo rm a m u m d íp tic o jo ân ico n ã o
d ife ren te d e "Isto é o m e u c o rp o " e "Isto é o m e u sa n g u e " .
A ssim , p a re c e p ro v á v e l q u e o mashal d a v id e ira e os ra m o s te-
n h a n u a n c es eu carísticos. Esta é u m a tese e n d o s sa d a ta n to p o r p ro -
testa n te s (C u llm a n n ) e católicos ro m a n o s (V an den B ussche , S t a n ley ).
S andvik , art. cit., tem a rg u m e n to c om v ig o r e m p ro l d e sta tese, e m b o ra
n u tra m o s d ú v id a so b re a d im e n sã o eu carística a crescid a q u e ele in-
tro d u z em q u e a v id e ira re p re se n ta o tem p lo q u e é o corpo d e Jesus
(2,21 - veja vol. 1, p. 325). T am p o u co p o d e m o s a c eita r se m re se rv a s a
av aliação q u e C u llm a n n faz d a p rim a z ia d e sta referên cia eu carística:
"A relação e n tre o ra m o e a v id e ira é, p o rta n to , acim a d e tu d o , a co-
m u n h ã o eu carística d o s c re n tes com C risto " (ECW , p . 113). A relação
53 · O último discurso: - Segunda seção (primeira subdivisão) 1061

é p rim a ria m e n te a d e a m o r (e fé) e só se c u n d a ria m e n te eucarística.


P o d e se r q u e , q u a n d o ele foi in tro d u z id o n o co n tex to d a ú ltim a ceia,
o mashal d a v id e ira se rv iu , n o s círcu lo s jo an in o s, com fin a lid a d e p a-
ran é tic a d e in sistir q u e a u n iã o e u carística d u ra ria e p ro d u z iría fru to e
se a p ro fu n d a ria a u n iã o e n tre Jesu s e os d isc íp u lo s já e x isten te atra v és
d o a m o r.

COMENTÁRIO: DETALHADO

Versículos 1-6: O mashal da videira e os ramos

N o v. 1, Jesu s in siste q u e ele é a v id e ira v e rd a d e ira (p ara alêthin os


co m o " v e rd a d e ira " , veja vol. 1, p. 797), e m en cio n a seu Pai p a ra con-
firm ar e sta reiv in d icação . V im os a m esm a id eia em 6,32: "M eu Pai é
q u e m v o s d á o v e rd a d e iro p ã o d o céu ". N ã o p a re c e que, ao reivin-
d ica r ser a v id e ira v e rd a d e ira , Jesus esteja p o le m iz a n d o d ire tam e n te
co n tra u m a falsa v id eira; a n tes, está e n fa tiz a n d o q u e ele é a fonte d a
" v e rd a d e ira " v id a , v id a q u e só p o d e v ir d o alto e d o Pai. Jesus é a vi-
d e ira n u m s e n tid o e m q u e so m e n te o F ilho d e D eu s p o d e ser a v id eira.
A q u i, " v e rd a d e ira " é a lin g u a g e m d o d u a lism o jo an in o q u e d istin g u e
o q u e é d e b aix o e o q u e é d e cim a. C o n tu d o , p o d e m o s in d a g a r se em
u m n ív el s e c u n d á rio n ã o p o d e h a v e r, p o r im plicação, u m a referência
a u m a falsa v id eira. O casio n a lm e n te, o c o n tra ste e m " v e rd a d e ira " é
n ão só celestial v e rsu s terren o , m as tam b é m N T v e rsu s AT (ou cristão
v e rsu s ju d aico ); p o r ex em p lo , n o caso d o p ã o d o c éu o u m an á. Já vi-
m os q u e n o AT a v in h a o u v id eira fre q u e n te m e n te re p re se n ta Israel e
q u e n a tra d iç ã o sin ó tica Jesus reco rre ao cân tico d a v in h a d e ís 5 p a ra
c o n stru ir u m a p a rá b o la (Mc 12,1-11) q u e a d v e rte os líd e res judaicos
de serem rejeitad o s. N a co n clu são d a p a rá b o la , M t 21,43 reg istra estas
p alav ras: "O rein o d e D eu s será tira d o d e v ó s e d a d o a u m a nação que
p ro d u z a se u s fru to s". N o mashal d a v id e ira e os ram o s, é João q u e con-
trasta Jesu s e se u s se g u id o re s co m o a v id e ira v e rd a d e ira com a falsa
v id eira re p re s e n ta d a p e la sin a g o g a ju d aica (vol. 1, p p . 67-71). É bem
p o ssív el q u e a v id e ira com o u m sím b o lo su g e riría o ju d aísm o . U m
d o s n o táv e is o rn a m e n to s d o T em p lo d e Jeru salém era u m a v id e ira d e
o u ro co m cach os tão alto s co m o u m h o m e m n o (Josefo, Ant. 15.11.3;
395; War, 5.5.4; 210; T ácito, Hist. 5.5; M ish n a h Middoth 3:8); e nas
1062 O Livro da Glória · Primeira Seção: A última ceia

m o ed as d a p rim e ira rev o lta ju d aica (66-70 d.C.), c u n h a d a s p a ra ex altar


a sa n tid a d e d e Jerusalém , h av ia o d e sen h o d e u m a v id eira e seu s ram os.
D epois d a q u e d a d o tem plo, o re a g ru p a m e n to d o s d iscíp u lo s rabínicos
em Jâm nia, sob a a u to rid a d e d o R abino Jo h an an b en Z ak k ai foi conhe-
cido com o u m a v in h a (M ishnah Kethuboth 4:6). P o r o u tro lad o , p a rte d a
descrição joan in a d a v id eira e os ram o s ecoa p a ssa g e n s v etero testam en -
tárias q u e tra tam d o castigo d e Israel. A ex p ressão "v id e ira v e rd a d e ira "
(ampelos alêthinê) ocorre n a LXX n a p assag em d e Jr 2,21: "E u vo s p lan -
tei com o u m a v id eira frutífera, in teiram en te genuína. C o m o v o s to m a s-
tes u m a v id eira selvagem , q u e veio a ser a m arg a?" P recisam en te com o
João d iz q u e o Pai é o ag ricu lto r d a v id eira, o C ântico d a V inha d e Isaías,
q u e é o p a n o d e fu n d o d a p aráb o la sinótica m en c io n ad a acim a, enfatiza
q u e Iah w eh lav ro u , lim p o u e cu id o u d a v in h a só p a ra ser reco m p en -
sad o com u v a s azed as. P o r su a vez, Iah w eh d iz q u e cau sará ru ín a n a
v in h a (Is 5,1-7). E assim , ao rep re se n ta r Jesus com o a v id eira v e rd a d e ira ,
é b em p ro v áv el q u e o escritor joanino estivesse p e n sa n d o q u e D eus, fi-
nalm ente, h av ia rejeitado a v id eira im p ro d u tiv a d o ju d aísm o q u e ain d a
so brevivia n a Sinagoga. (Para u m a sugestão so b re a a titu d e cristã m o-
d e m a p a ra com tal polêm ica anti-sinagoga, veja vol. 1, p. 653).
O v. 2 d escrev e d u a s diferen tes ações d o ag ricu lto r o u viticultor.
A p rim eira, a d e p o d a r os ram o s q u e n ão p o d e m p ro d u z ir fru to , q u e
se realiza em fevereiro-m arço. A lg u m as v ezes as v id eiras são tão com -
p letam en te a p a ra d a s, q u e se v ê n as v in h as so m en te os caules d estitu í-
d o s d e ram o s (F. G. E ngel , ET 60 [1948-49], 111). M ais ta rd e (agosto),
q u a n d o a v id eira já p ro d u z iu folhas, vem o se g u n d o estág io d e p o d a ,
q u a n d o o v iticu lto r corta os p o u co s b ro to s p a ra q u e os p rin cip ais ram o s
p ro d u tiv o s ab so rv am to d o s n u trie n te s (G. D a lm an , Arbeit und Sitte in
Palästina [G ütersloh: B ertelsm ann, 1935], IV, 312-13, 331). Este versicu-
lo, pois, in tro d u z u m a n ota som bria; p o is ele reconhece a m b as as coisas:
q ue h á ram o s n a v id eira (literalm ente, "em m im ") q u e n ão p ro d u z fru-
to e q u e m esm o os ram o s frutíferos n ecessitam d e p o d a.
O q u e significa o sim b o lism o d e p ro d u z ir e n ã o p r o d u z ir fru to ?
E sp o n tan e a m e n te , a ten d ê n c ia é in te rp re ta r a im a g e m e m te rm o s d e
b o as o b ras e u m m o d o v irtu o so d e v id a (assim L agran ge , p . 4 0 1 ) , m as
d e v e m o s ter e m m e n te q u e João n ã o faz a d istin çã o q u e p o ste rio r-
m en te os teó lo g o s cristão s fariam e n tre a v id a q u e v e m d e C risto e a
tra d u ç ã o d e ssa v id a em o b ras. P ara João, a m a r e g u a rd a r os m a n d a -
m en to s são ta n to u m a p a rte d a v id a o riu n d a d a fé q u e q u e m n ã o se
53 · O último discurso: - Segunda seção (primeira subdivisão) 1063

c o m p o rta d e m a n e ira v irtu o sa n ã o tem a b so lu ta m e n te v id a n e n h u -


m a. V id a é v id a n a p rática . P o rta n to , u m ra m o q u e n ã o p ro d u z fru to
é sim p le s m e n te u m ra m o im p ro d u tiv o , n ã o e stá v iv o , e sim m orto.
A lg u é m p o d e a c h a r esta in te rp re ta ç ã o d u ra , já q u e ela n ã o a trib u i
n e n h u m a e sp e ra n ç a p a ra os ra m o s im p ro d u tiv o s; to d a v ia , n o d u a -
lism o jo a n in o n ã o h á m u ito esp aç o p a ra u m está g io in term ed iário :
h á so m e n te ra m o s v iv o s e m o rto s. A gostinho (In Jo. 81,3; PL 35:1842)
ca p ta p e rfe ita m e n te este d u a lism o em se u e p ig ra m a latin o rítm ico:
" A u t v itis, a u t ig n is [O u v id e ira , o u fogo]". A ssim , o p e n sa m e n to d e
João é d ife re n te d a q u e le im p lícito em M t 3,8, o n d e o B atista d iz aos
líd e res ju d aico s: " P ro d u z i fru to d ig n o d e a rre p e n d im e n to " ; p o is João
está fa la n d o d e c ristão s q u e já h a v ia m se c o n v e rtid o e estã o em Jesus,
m as a g o ra estã o m o rto s. A a titu d e se a p ro x im a m u ito d a s p a la v ra s d e
Jerem ias (5,10) so b re a v in h a d e Judá: "S ubi ao s seu s m u ro s, e d e stru í
-os (p o ré m n ã o façais u m a d e stru iç ã o final); tirai se u s ram o s, p o rq u e
já n ã o são d o S en h o r". N a a tm o sfe ra d a ú ltim a ceia, Ju d a s p o d eria
ser tid o co m o u m ra m o q u e n ã o p r o d u z fru to ; a g o ra ele é u m ins-
tru m e n to d e S a tan á s e p e rte n c e ao rein o d a s tre v a s (13,2.27.30). N a
a tm o sfera d o p ró p rio te m p o d o e v an g elista, talv e z os "an ticristo s" d e
ljo 2,18-19 fo ssem tid o s com o ra m o s em Jesus q u e n ã o p ro d u z ia m
fruto; sa íra m d a s fileiras d o s cristão s p o rq u e re a lm e n te n ã o p e rm a -
n eceram u n id o s à c o m u n id a d e cristã. A caso a q u i h á tam b é m polêm i-
ca c o n tra a sin ag o g a? C e rta m e n te m u ita s d a s p a ssa g e n s v etero testa-
m en tá ria s, se re fe rin d o à p o d a d o s ra m o s e a e ste rilid a d e (Ez 17,7ss.),
tratam d a in d ig n id a d e e reb elião d e Israel, e o m esm o se p o d e di-
zer d e a lg u m a s p a ssa g e n s n e o te sta m e n tá ria s (figueira in fru tífera em
Mc 11,12-14; os ram o s q u e b ra d o s d a oliveira em Rm 11,17). E ntretanto,
João dificilm en te p o d e ria c o m p a rar os ju d e u s d a sinagoga com ram os
que estão e m Jesus. Se a q u i existe alg u m a polêm ica, teria q u e ser contra
os ju d e u cristão s q u e n ã o p ro fessav am p u b lic a m e n te su a fé e a in d a p er-
m aneciam n a sinagoga, m as tal referência é m u ito especulativa.
O fin al d o v. 2 m en cio n a q u e o a g ric u lto r lim p a os ra m o s q u e p ro-
d u z e m fru to a fim d e q u e p ro d u z a m a in d a m ais fruto. N ã o fica claro
o q u e isto sim b oliza. V isto q u e a p ro d u ç ã o d e fru to é u m sím b o lo d a
p o ssessão d a v id a e te rn a , a p a ssa g e m se o c u p a d o d e sen v o lv im e n to
nessa v id a e o d e se n v o lv im e n to n a u n iã o com Jesus. P ro d u ç ã o d e
fruto p ro life ra d a tam b é m im p lica a co m u n icação d a v id a a o u tro s?
A ex p licação d o mashal e n fatiza fo rte m e n te o a m o r p a ra com o u tro s
1064 O Livro da Glória · Primeira Seção: A última ceia

(15,12-13) e p a re c e rela cio n a r a p ro d u ç ã o d e fru to n o m in isté rio a p o s-


tólico (v. 16). Em 12,24 está im p lícito q u e Jesus m e sm o só " p ro d u z fru -
to " q u a n d o , a tra v é s d e su a m o rte e ressu rre içã o , ele p o d e c o m u n ic a r
v id a a o u tro s. N o mashal ag ríco la q u e e n v o lv e co lh eita e fru to (4,35-38)
o foco e m g ra n d e m e d id a e sta v a n o e m p re e n d im e n to m issio n á rio . D o
m esm o m o d o , p o is, a im a g e m d e lim p a r o s ra m o s p a ra q u e p ro d u -
z a m m ais fru to e n v o lv e u m crescim en to em a m o r q u e u n e o c ristã o a
Jesus e d ifu n d e v id a a o u tro s. C o m o realça V a n d en B ussch e , p . 108,
seria e rrô n e o p e n s a r q u e o e scrito r jo an in o teria sid o cô n scio d e u m a
d istin ção e n tre a v ita lid a d e cristã in te rn a e s u a a tiv id a d e a p o stó lic a
d irig id a a o u tro s, p o is ele n ã o teria p e n s a d o n a " v id a " d e u m c ristã o
co m o alg o v o lta d o p a ra si e m u m iso la m e n to im p ro d u tiv o . O s e n tid o
d e q u e h a v ia o u tro s q u e tin h a m d e ser c o n d u z id o s a o re b a n h o (10,16)
era, n o p rim e iro século, fo rte d e m a is p a ra se r o m itid o d e q u a lq u e r
in te rp re ta ç ã o d o q u e sig n ificav a e sta r u n id o a Jesus.
O v. 3, q u e c e rta m e n te é u m d e se n v o lv im e n to o u ex p licação d a
im ag em o rig in al, força o mashal (veja p rim e ira n o ta so b re o v. 3) a rea-
firm a r ao s d isc íp u lo s q u e eles já e stá lim p o s e n ã o n e c essita m d e se-
rem p o d a d o s p e lo Pai. Se isto está im p lícito co m o u m a c o n so la ç ão a o s
d iscíp u lo s já tem ero so s (14,1.27), e n tã o é a ú n ica lin h a n o mashal q u e
v isu aliza d ire ta m e n te o cen ário d a ú ltim a ceia e p ro v a v e lm e n te foi
an ex ad o n o te m p o em q u e o mashal foi in se rid o e m s e u p re s e n te con-
texto. E star " lim p o " n o v. 3 se refere p rim a ria m e n te a e s ta r lim p o n ã o
do pecado, e sim d e tu d o o q u e im p ed e a p ro d u ção d e fruto (B orig, p. 42).
E p o ssív el q u e o re d a to r q u isesse re c o rd a r 13,10, o n d e e m referên cia
ao lav a-p és Jesus d isse a se u s d iscíp u lo s: "E a g o ra v ó s, h o m e n s, esta is
lim p o s". S u g erim o s q u e isso sig n ificav a q u e os d isc íp u lo s fo ra m p u ri-
ficados e m v irtu d e d a a ção sim bólica d e Jesus p re fig u ra n d o s u a m o rte
d e Jesus (e e m u m n ív el se c u n d á rio os c ristão s fo ra m p u rific a d o s a tra -
vés d o b atism o ). N ã o o b sta n te , a q u i é a p a la v ra d e Jesus q u e p u rific a
o s d iscíp u lo s. (B u ltm ann u sa 15,3 p a ra in te rp re ta r o lav a -p és co m o
sím bolo d o p o d e r p u rific a d o r d a p a la v ra; e n a p . 410 ele a p o n ta p a ra
este v ersícu lo c o m o u m in d ic a d o r d e q u e o cristão está p u rific a d o n ão
p e la s in stitu içõ es d a igreja o u m eios sa cra m e n tais d e salv ação , m as
e x clu siv am en te p e la p a la v ra d o rev elad o r!) A s d u a s id é ia s n ã o são
c o n tra d itó ria s. O e scrito r Jo an in o c e rtam e n te n ão p e n sa n o s d isc íp u -
los, n a ú ltim a ceia, co m o já p le n a m e n te u n id o s a Jesu s e p r o d u z in d o
fru to com a b u n d â n c ia . T o d as as q u e stõ e s a trib u íd a s a eles e n fa tiz a m a
53 · O último discurso: - Segunda seção (primeira subdivisão) 1065

im p erfeição d e s e u co n h ecim en to . M as q u a n d o "a h o ra " e stiv e r com -


p le ta d a e o P a rá c le to /E s p írito for d a d o ao s d iscíp u lo s, e n tã o ele se
e n c a rre g a rá d e q u e a o b ra d e Jesu s p r o d u z a to d o s se u s fru to s. A ssim ,
p o d e -se d iz e r q u e a p a la v ra d e Jesu s já o s fez lim p o s p o rq u e já recebe-
ram s u a p a la v ra e e stã o n o co n tex to d e "a h o ra " q u e to m a rá po ssív el
a ação d e s sa p a la v ra . A ssim ta m b é m o lav a -p és os p u rific o u preci-
s a m e n te p o r q u e ele foi u m a ação sim bólica c a p ta n d o em si m esm a a
sujeição d e Jesu s à m o rte. P ara João, n ã o existe u m a d ico to m ia e n tre
a ação salv ífica d e Jesu s e su a p a la v ra salvífica. N em h a v ia n a m en te
d o e scrito r jo a n in o q u a lq u e r d ico to m ia n ecessária e n tre o b a tism o e a
ação d a p a la v ra d e Jesu s a tra v é s d o P arácleto. O s cristão s a q u e m este
mashal foi d irig id o te ria m se to rn a d o ra m o s em Jesus a tra v é s d o ba-
tism o. Isto o s faria p ro d u to re s d e fru to p o rq u e lhes d a ria v id a g e ra d a
d e cim a e o s faria lim p o s s e g u n d o o sim b o lism o d e 13,10. M as, p a ra
fazê-los p r o d u z ir m ais e m ais fru to era n ecessário q u e o m a n d a m e n to
d o a m o r d e Jesu s g ra d u a lm e n te se e x p ressasse m ais e m ais em suas
v id as. P o d e m o s m e n c io n a r q u e o p o d e r a trib u íd o a q u i à p a la v ra d e
Jesus é p e rfe ita m e n te c o n so an te com o u tra s afirm açõ es jo an in as sobre
esta p a la v ra : ela é u m a força a tiv a q u e c o n d e n a o in cré d u lo n o ú ltim o
d ia (12,48), m a s p a ra o cren te ela é ta n to E sp írito q u a n to v id a (6,63).
T am p o u co e ste p e n sa m e n to é p e c u lia rm e n te jo anino. E b e m po ssív el
q u e e m u m c o n te x to b a tism a l l P d 1,23 a trib u a à p a la v ra d e D eus o
p o d e r d e g e ra r h o m e n s d e novo. Jo 15,3 n ã o está lo n g e d e m a is d o p en-
sarn en to d e A t 15,9: "D e u s p u rific o u se u s corações p e la fé".
E m b o ra p ro v a v e lm e n te o v. 3 fosse in se rid o n o mashal, o v ersícu-
lo co m o o ra se e n c o n tra se rv e d e tra n siç ã o ao s vs. 4-5. Se os d iscíp u lo s
já estã o lim p o s, e n tã o d e v e m c o rre sp o n d e r e v iv e r d ia ria m e n te neste
e stad o p e rm a n e c e n d o e m Jesus (4). H oskyns , p . 475, v ê u m elem en to
d u p lo n a p u rific a ç ão d o s d iscíp u lo s: a lim p ez a inicial o c a sio n ad a pela
p a la v ra d e Jesu s, e su a c o n serv ação a tra v é s d a m a n u te n ç ã o d e u m a
u n ião p e rm a n e n te com ele. Isto p o d e ser u m a d iv isã o m ais form al
d o q u e o escrito r jo an in o ten cio n av a, m as ao m en o s fica claro q u e no
p e n s a m e n to jo a n in o se r p u rific a d o n ã o é a lg o e stático e n e m c o n stitu e
u m fim e m si m esm o .
O v. 4 com eça "P erm an ecei e m m im , com o e u p e rm an eço em vós".
Isto n ã o é u m a sim p les co m p aração e n tre d u a s ações, tam p o u c o u m a p ar-
te d e ste m a n d a m e n to é u m a condição causai d a o u tra - antes, u m a não
p o d e ex istir sem a o u tra. P erm an ecer e m Jesus e ter Jesus p e rm a n e n te n o
1066 O Livro da Glória · Primeira Seção: A última ceia

d isc íp u lo são p a rte s d o to d o , p o is só h á u m a relação p e sso a l e n tre


Jesus e se u s d iscíp u lo s: se p e rm a n e c e re m e m Jesus a tra v é s d a fé, ele
p e rm a n ec e n eles a tra v é s d o a m o r e fru to q u e d a rã o (B o r ig , p p . 4 5 4 6 ‫)־‬.
Eis p o r q u e o s vs. 4 e 5 in siste m q u e , p a ra se p r o d u z ir fru to , é p rec iso
p e rm a n e c e r em Jesus; to d o s q u a n to s p e rm a n e c e m e m Jesus p ro d u -
z e m fru to , e so m e n te esses. (O v. 2 fez a p ro d u ç ã o d e m ais fru to de-
p e n d e n te d e se r p o d a d o p e lo P ai - e v id e n te m e n te , to d o e ste sim b o lis-
m o se refere a m e sm a coisa). O v. 5 sim p le sm e n te d iz p o s itiv a m e n te o
q u e o v. 4 d iz n e g a tiv am e n te . E ste tem a d a u n iã o se a d e q u a b e m com
a teo lo g ia g e ra l d o ú ltim o d isc u rso e p o d e ría ter s id o o fato r c h a v e q u e
lev o u à in clu são d o mashal em s e u p re s e n te contexto. A d e p e n d ê n c ia
to tal d o cristão d e Jesus, q u e é o m o tiv o c o n d u to r d o p e n s a m e n to joa-
n in o , e m p a rte a lg u m a é e x p re sso com m ais elo q u ê n c ia d o q u e aq u i.
A ú ltim a lin h a d o v. 5, "S em m im n a d a p o d e is faz e r", tem ex e rc id o
u m im p o rta n te p a p e l n a h istó ria d a d isc u ssã o teológica so b re a graça.
A g o st in h o a u s o u p a ra re fu ta r P elá g io q u e e n fa tiz a v a a c a p a c id a d e
n a tu ra l d o h o m e m d e fazer b o a s o b ras d ig n a s d o g a la rd ã o e te rn o ; e
o texto foi c ita d o e m 418 p e lo C oncilio d e C a rta g o (DB 227) c o n tra
o s p e la g ia n o s e n o v a m e n te em 529 p e lo S e g u n d o C oncflio d e O ra n -
g e (DB 377) c o n tra os sem i-p e lag ia n o s q u e d e fe n d ia m a c a p a c id a d e
n a tu ra l d o h o m e m d e fazer b o a s o b ra s q u e e m a lg u m se n tid o e ra m
m ere ce d o ra s d a g raça. O tex to a p a re c e u n o v a m e n te n o C o n cilio d e
T ren to (DB 1546) n o s a rg u m e n to s d e R om a co n tra o s R e fo rm a d o re s,
d e fe n d e n d o a q u a lid a d e m e ritó ria d a s b o a s o b ras feitas e m u n iã o com
C risto. E n q u a n to estes d e b a te s teológicos v ão a lé m d o sig n ific a d o cia-
ra m e n te p re te n d id o p e lo e scrito r jo an in o , p o d e m o s v e r co m o a teo-
logia d a g raça e d o m é rito c o n stitu i u m a te n ta tiv a d e s iste m a tiz a r as
id éias tra n s m itid a s p o r João (veja L ea l , art. cit.).
N o v. 6, o mashal v o lta a tra ta r d o d e stin o d o s ra m o s q u e fo ra m cor-
tad o s. Já sa lie n ta m o s q u e m u ita s p a ssa g e n s d a v i n h a /v id e ir a d o A T
e n v o lv e m u m a rejeição d e Israel e c u lm in a m com u m a n o ta so m b ria
d o ju ízo d iv in o e m q u e a v in h a é p iso te a d a o u a v id e ira é d e v a sta d a .
O c en ário d e s ta s p a ssa g e n s p a re c e ter in flu e n cia d o João. E m E z 15,4-6
a m a d e ira d a v id e ira é la n ç a d a ao fogo co m o c o m b u stív e l (na LXX
n o v. 4 se a firm a q u e o fogo co n so m e o q u e é podado a c a d a a n o - cf.
Jo 15,2); em Ez 19,12 o u v im o s q u e o cau le d a v id e ira se seca e o fogo
o con so m e. P a ra a d escrição d o c re stam e n to d o s ra m o s q u e n ã o p ro -
d u z e m fru to , é in te re ssa n te ler Is 40,8: "seca-se a e rv a , e cai a flor,
53 · O último discurso: - Segunda seção (primeira subdivisão) 1067

m as a p a la v ra d e n o sso D e u s p e rm a n e c e p a ra s e m p re " , e sp ecialm en te


q u a n d o n o s le m b ra m o s q u e p a ra João os ra m o s fru tífe ro s já foram
lim p o s p e la p a la v ra d e Jesus (15,3). O fato d e te rm in a r, u m mashal
so b re o te m a d o ju ízo tem p a ra le lo n a p a rá b o la m a te a n a d o joio no
m eio d o T rigo; em M t 13,30 o u v im o s: "C o lh ei p rim e iro o joio, e atai-o
em m o lh o s p a ra o q u e im a r" . A explicação d a p a rá b o la (13,41) in ter-
p reta as e rv a s d a n in h a s co m o m alfeito res q u e têm v iv id o d e n tro d o
rein o d o F ilho d o H o m em . A ssim tam b é m em João os ra m o s q u e são
q u e im a d o s e s tiv e ra m u m a v e z u n id o s a Jesus, a v id eira. A ex p ressão
"seco u -se" o co rre em M c 4,6 n a p a rá b o la d o se m e a d o r p a ra d escrev er
o d e s tin o d a se m e n te q u e cai n o so lo ro ch o so e com eça a crescer, m as
é q u e im a d a p e lo sol.
E m q u e m e d id a a descrição n o v. 6 tem sim p lesm en te o alcance
de u m a im ag em p arabólica, i.e., a descrição d e u m d estin o ap ro p ria-
d o aos ram o s? A té q u e p o n to tra ta d e d escrev er a p u n ição concreta
v isu alizad a p elo s h o m en s rep re se n ta d o s p elos ram os? (H á q u em pen-
se q u e essa d escrição foi su g e rid a pelo c o m p o rtam en to d e Judas; pois
em 13,10 o tem a d e estar lim p o [tam bém e n c o n trad o em 15,3] leva a
u m a referên cia a Judas). N a tu ra lm e n te, os e stu d io so s q u e se recusam
ver q u a lq u e r escatologia final e m João são relu tan te s em v er aq u i u m a
referência à p u n iç ã o escatológica, m as n ão estaria além d a esfera d o
p e n sam e n to jo anino su g e rir q u e os q u e se a p a rta m d e Jesus h ã o d e ser
p u n id o s p e lo fogo (cf. 5,29). O s ev an g elh o s sinóticos oferecem alg u n s
in teressan tes p o n to s d e co m paração; veja Mc 9,43; M t 25,41; e p a rtia l-
larm en te M t 3,10: "T oda árv o re q u e n ão p ro d u z b o m fru to é cortada
e lan çad a ao fogo". O e stra n h o u so q u e João faz d e "rejeitar" [literal-
m ente, 'tira d o s fora'], o q u al n ã o se ad e q u a à im agem , p o d e ría ter sido
su g erid o p elo freq u en te uso d este v erb o em descrições escatológicas:
"O s filhos d o reino serão lançados fora n as trevas exteriores" (M t 8,12).
A su g estão d e q u e "lançar fora" é u m a referência à ex com unhão da
c o m u n id a d e cristã é m ais difícil d e p ro v a r, p o ré m v eja l j o 2,19.

Versículos 7-17: Desenvolvimento do mashal no contexto do último discurso

O s vs. 5-6 o fereceram a lte rn a tiv a d u a lístic a d e p e rm a n e c e r o u n ã o


em Jesus; m a s n o s vs. 7ss. C o n tu d o , so m e n te o la d o p o sitiv o d o mas-
dial é d e s e n v o lv id o p a ra n ó s ag o ra n o co n tex to d o ú ltim o d isc u rso e
Jesus e stá fa la n d o a o s seu s, i.e., a o s q u e p e rm a n e c e m n ele (note q u e os
1068 O Livro da Glória · Primeira Seção: A última ceia

d iscíp u lo s d e Jesu s são cla ram e n te esp ecificad o s n o v. 8). A ssim , os


vs. 7 1 7 ‫ ־‬ex p licitam a im p licação d a p e rm a n ê n c ia em Jesus q u e foi o
tem a d o mashal n o s vs. 1-6. (P ara a su b d iv isã o e o a rra n jo q u iásm ic o
d e 7 1 7 ‫־‬, veja p p . 1050-53 acim a. N o te q u e a s e g u n d a lin h a d o v. 7 ex-
p lica a p rim e ira linha: a p e rm a n ê n c ia e n v o lv e u m a ex istên cia v iv id a
em h a rm o n ia com a rev elação d e Jesus (veja n o ta so b re " p a la v ra s " e
em o b ed iên cia ao s m a n d a m e n to s d e Jesus (co m p a re " m in h a s p a la -
v ras" n o v. 7 com "m e u s m a n d a m e n to s" n o v. 10). O s p e d id o s d o s q u e
en tã o se co n fo rm am a Jesus se rã o h a rm o n io so s com o q u e Jesus q u e r
e p a ra q u e se m p re sejam co n c ed id o s p e lo P ai (ú ltim a p a rte d o v. 7).
Jesus n ã o especifica q u e o p e d id o d e v e ser feito "em m e u n o m e " , con-
dição q u e a p arece n a m aio ria d a s o u tra s fo rm u laçõ es jo an in a s d e sta
sen ten ça (veja p. 1009s. acim a); m as tal especificação n ã o é n ecessária,
v isto q u e o p e d id o é feito p o r aq u e le s q u e p e rm a n e c e m e m Jesus.
O s vs. 7 e 8 v ão u n id o s, e os p e d id o s m en cio n ad o s n o v. 7 p ro v a -
velm en te d e v a m ser in te rp re ta d o s à lu z d o v. 8; são p e d id o s q u e en-
v olvem o crescim ento d a v id a cristã, a saber, p ro d u z ir fru to e se to m a r
discípulos. C h eg am os à m esm a conclusão se e stu d a rm o s o v. 16, o q u a l
form a u m a inclusão com os vs. 7-8: aí tam b ém os p e d id o s d o s cristãos
estão associados com ir e p ro d u z ir fruto. (De p assag em , q u ã o estreita-
m ente o v. 8 se relaciona com o v. 7 é ilu stra d o pelo e stu d o d e 8,31: "Se
in sistird es [em perm anecer] em m in h a p alav ra, realm en te sois m eu s
d iscíp u lo s" - esse versículo se ju n ta a "to rn a r m eu s d iscíp u lo s" d o v. 8
com o "Se m in h a s p a la v ras p e rm a n ec e rem em v ó s" d o v. 7). M ed ian -
te seus p ed id o s, os cristãos to m am p a rte ativa n o p la n o d e D eus. N o
mashal, o Pai foi m en cio n ad o com o o ag ricu lto r q u e a ju d o u os ra m o s a
p ro d u z ir m ais fruto; o d esen v o lv im en to d o mashal m o stra co m o o Pai
exerce seu p a p e l (v. 8). Já v im o s em João (12,28; 13,31-32; 14,13) q u e o
Pai foi glorificado n a m issão d o Filho; m as ag o ra q u e o F ilho c o m p leto u
su a m issão d e tra z er v id a aos hom ens, o Pai é glorificado n a c o n tin u a-
ção d essa m issão p elos d iscíp u lo s d e seu Filho. Em M t 5,16, declara-se
q u e os h o m en s v erão as b o as o b ras d o s d iscíp u lo s e d a rã o glória ao Pai
no céu. E n tretan to, n o p e n sam e n to joanino, a glorificação d o P ai no s
d iscíp u lo s n ão é m era m e n te u m a q u estão d e lo u v o r p o r o u tro s; está
rad icad o n a v id a d o s d iscíp u lo s com o particip ação n a v id a d e Jesus
(cf. 17,22: "E u lhes ten h o d a d o a glória q u e m e ten s d a d o "). S ugerim os,
ao d iscu tirm o s o mashal q u e " p ro d u z ir fru to " era sím bolo d e p o ssu ir
v id a div in a, e q u e, se cu n d ariam en te, envolvia a com u n icação d essa
53 · O último discurso: - Segunda seção (primeira subdivisão) 1069

v id a a o u tro s. E ste asp ecto d e p a rtilh a r a v id a vem em p rim eiro p lan o


m ais fo rtem en te n o d e sen v o lv im e n to d o mashal. "T ornar-se m eu s dis-
cíp u lo s" e n v o lv e a m o r p a ra com Jesus (9 1 0 ‫ )־‬e a m o r recíproco (12-17).
O a m o r d o d iscíp u lo p a ra com seu irm ão cristão d ev e ser tão g ran d e
q u e esteja d isp o sto a d o a r su a v id a (13). I nácio d e A n tio q u ia (c. 110)
exem plificou v e rd a d e ira m e n te a noção jo an in a d e tornar-se discípulo
de Jesu s q u a n d o a cam in h o d o m artírio ele exclam ou: "A gora estou
co m eçan d o a ser u m d iscíp u lo " (Rm 5,3)·
A ssim , o s vs. 9-17, com seu tem a d o a m o r, re a lm e n te são u m a
in te rp re ta ç ã o d a id eia d e p r o d u z ir fru to q u e ap a re c e n o v. 8 (m esm o
q u a n d o esta co n ex ão n ã o ten h a sid o original); e em b o ra a im ag em
da v id e ira e os ra m o s o co rra o u tra v e z so m e n te no v. 16, a to ta lid a d e
d os vs. 9-17 a in d a se relaciona m u ito com essa im agem . T em os obser-
v a d o co m fre q u ê n c ia p a ra lelo s e n tre p a rte s d o ú ltim o d isc u rso e 1
João; c e rta m e n te o tem a d o a m o r é m ais fo rte m e n te d esen v o lv id o nos
vs. 9ss. d o q u e em q u a lq u e r o u tro lu g a r n o ev an g elh o , e chegam os
m u ito p e rto d o s tem a s d e 1 João. (O a u to r d e 1 João foi o re d a to r que
in tro d u z iu o mashal n o con tex to d o ú ltim o d isc u rso e o s u p riu com
u m a ex p licação fo rm u la d a d o s tem as d o ú ltim o discurso?) Em o u tro
lu g ar (6,57) foi d ito q u e a v id a foi tra n sfe rid a d o Pai p a ra o Filho p a ra
q u e o F ilh o p u d e s se co m u n icá-la a o u tro s; a g o ra (15,9) é o a m o r q u e é
tra n sfe rid o . Isto é a p ro p ria d o p o rq u e Jesus está fala n d o em "a h o ra "
q u a n d o " te n d o a m a d o os seus..., a m o u -v o s" (13,1). T o d av ia, a p e rm u -
tab ilid a d e p a rc ia l d e " v id a " e " a m o r" no s ac au te la co n tra p e n s a r q u e
p o r " a m o r" João e n te n d a alg o p rim a ria m e n te e m o cio n al - além d e ser
ético, o " a m o r" às v ezes e stá p e rto d e ser alg o m etafísico (B oric , p. 61).
D ibelius , p. 174, ob serv a q u e o a m o r n ão é u m a q u estão d e u n id ad e
de v o n ta d e ex istente em v irtu d e d e u m a relação afetiva, m as u m a uni-
d a d e d e ser em v irtu d e d e u m a q u a lid a d e divina. P ara João, o am or
se relaciona com e sta r o u p e rm an ecer em Jesus. A últim a linha no
v. 9, "P erm an ecei em m eu am o r", coloca nos d iscíp u lo s u m a exigência
a q u e re s p o n d a m ao a m o r d e Jesus p a ra com eles, assim com o a prim ei-
ra lin h a n o v. 4, "P erm an ecei em m im ", p õ e neles u m a exigência a que
re sp o n d a m à p u rificação q u e Jesus faz neles p o r m eio d e su a palavra.
O tem a d o am o r in tro d u z id o n o v. 9 se d esenvolve no v. 10 (B oris,
p. 68, d esco b re u m arranjo quiásm ico no grego destes dois versículos
q ue os u n e e n tre si). Em particu lar, o v. 10 associa am o r e m an d am en -
to(s), u m a associação já en co n trad a em 13,34; 14,15.23-24. B arrett, p. 397,
1070 O Livro da Glória · Primeira Seção: A última ceia

observa: "... a m o r e obediência estão em d e p e n d ên c ia m ú tu a . O a m o r


nasce d a obed iência e a obediência d o am o r". Isto está em m arc an te
diferença d o conceito d e a m o r em m u ito s d o s p aralelo s g nósticos a d u -
zid o s p ela im ag em d a videira; ali, o a m o r é m u ito m ais m ístico.
N o v. 11 reaparece o refrão "E u vo s ten h o d ito isto" (veja n o ta so-
b re 14,25); aq u i ele m arca a transição d e 7-10 p a ra 12-19 (d iag ram a à
p. 1053 acim a). O tem a d a alegria, v isto d e p assag em em 14,28, é m encio-
n ad o b rev em en te n o v. 11; será o tem a d e u m a m p lo d esen v o lv im en to
em 16,20-24. A alegria é a p resen tad a com o q u e fluindo d a obediência e
am o r d e q u e Jesus tem falado. A p ró p ria alegria d e Jesus e m an a d e su a
u n ião com o P ai q u e acha expressão n a obediência e a m o r (14,31: "E u
am o o Pai e que faço com o o Pai m e ord en o u "). O bediência e am o r, aos
q uais p o r su a v ez Jesus conclam a seus discípulos, co n stitu em e testifi-
cam , respectivam ente, su a u n ião com ele; e é esta u n ião q u e será a fonte
d e su a alegria. A ssim , "m in h a alegria", com o "m in h a p a z " (p. 1035 aci-
m a), é u m d o m salvífico. E interessante ver q u ão frequente n o ev an g elh o
a "alegria" está associada com a obra salvadora d e Jesus:

• 3,29: A p le n a o u c o m p le ta ale g ria d o B atista co n siste e m ele


o u v ir a v o z d e Jesus, o noivo.
• 4,36: O s e m e a d o r e o ceifeiro se reg o zijam m u tu a m e n te em v e r
o fru to q u e é rec o lh id o p a ra a v id a e tern a.
• 8,56: A b ra ã o se reg o zijo u em c o n te m p la r o d ia d e Jesus.
• 11,15: Jesus se regozija p o r n ã o e sta r lá q u a n d o L á z aro m o rre u ,
a fim d e q u e seu s d isc íp u lo s cressem .
• 14,28: O s d isc íp u lo s se reg o zijariam e m sa b er q u e Jesu s foi p a ra
o Pai.

A ssim tam b ém , n o p re se n te caso, se a aleg ria e m a n a d a u n iã o d o s


d isc íp u lo s co m Jesus, a p le n itu d e d e sta ale g ria e sta rá n o fato d e q u e
eles estã o d a n d o se q u ên cia à m issão d e le e p ro d u z ia m m u ito fru to .
O v. 12 (re p e tid o n o v. 17) se relacio n a com e talv e z seja u m a d u -
p licata d e 13,34: "E u v o s d o u u m n o v o m a n d a m e n to : Q u e v o s a m e is
u n s aos o u tro s" . E m 15,10, Jesus d isse ra q u e p e rm a n e c e ría m e m se u
a m o r se g u a rd a s s e m se u s m a n d a m e n to s; a g o ra os d isc íp u lo s são in fo r-
m a d o s q u e o m a n d a m e n to b ásico é o am o r. O a m o r só p o d e su b sistir
se p ro d u z ir m ais am o r. N o te a co n cen tração d o a m o r q u e se e n c o n tra
n o s vs. 9 e 12: o Pai a m a Jesus; Jesus am a os discípulos; e stes a m a m u n s
53 · O último discurso: - Segunda seção (primeira subdivisão) 1071

aos o u tro s. E n q u a n to isto se tra ta d e u m a fo rm u lação tip ica m e n te joa-


nin a, M t 5,44-45 oferece u m a in te re ssa n te co m p aração : "A m ai vossos
inim igos... a fim d e q u e sejais filhos d e v o sso P ai q u e está n o céu".
O m o d e lo d o a m o r d o s d isc íp u lo s é o s u p re m o a to d e a m o r d e Jesus,
a e n tre g a d e s u a p ró p ria v id a (o "co m o v o s te n h o a m a d o " é especifi-
cado p e lo v. 13). Em 10,18 e e m 14,31 este e n tre g a r a v id a foi d ito com o
u m m a n d a m e n to d o P ai - assim , u m a v ez m ais, tem o s a com binação
de a m o r e m a n d a m e n to . D e q u e m an e ira a m o rte d e Jesus p o r o u tro s é
tida co m o se n d o u m ex em p lo p a ra (e a fonte de) o a m o r d o s discípulos?
E v id en tem en te, d e v e ser u m m o d elo d a intensidade d e seu a m o r, m as
ljo 3,16 p a re c e ría in te rp re tá -lo tam b é m com o u m m o d elo p a ra a ma-
neira de expressar o am or: "A m an e ira d e v irm o s a e n te n d e r o q u e signi-
fica a m o r foi q u e ele e n tre g o u su a v id a p o r nós; d e m o d o q u e nó s tam -
bém d e v e m o s e n tre g a r n o ssas v id a s p o r n o ssos irm ãos". O s vs. 12-13,
to m ad o s em u m se n tid o e x p a n d id o , se to m a ra m u m a d as g ran d e s jus-
tificativas p a ra o s m á rtire s cristãos. A o d isc u tir o v. 13, L. J acobs , art.
cit., salien ta q u e o s m o d e rn o s m estre s ju d e u s têm sid o invariavelm en-
te u n â n im e s em rejeitar este m a n d a m e n to radical d e auto-sacrifício,
e co n stitu i u m a d a s distin çõ es m ais clássicas e n tre o cristian ism o e o
ju d aísm o . N a tu ra lm e n te , am bos, o A T e os rabinos, reco n h eceram a sa-
c ralid ad e d e a rrisc a r a lg u é m su a se g u ra n ç a p o r o u tro , m as J acobs diz
que eles n ã o o o rd e n a ra m . D eve ser n o ta d o q u e tem o s in te rp re ta d o os
vs. 12 e 13 ju n to s, p o is co n c o rd a m o s com B ultm a nn , p. 417, q u e o v. 13
está c o n e cta d o tan to ao q u e p rec e d e q u a n to ao segue. Em c o n tra p ar-
tida, D ibelius , art. cit., tem a rg u m e n ta d o q u e os vs. 13-15 fo rm am u m
tipo d e e x cu rso m id rá sh ic o q u e in te rro m p e a u n id a d e e n tre 12 e 17,
com o v. 16 co m o u m a glosa. E sta crítica p arece incisiva d em ais: em de-
term in a d o m o m e n to o v. 13 p o d e ría ter sid o u m lo gion in d ep e n d e n te ,
m as a g o ra está m u ito b e m in te g ra d o em seu contexto.
N o v. 14 so m os in fo rm ad o s q u e o ato d e a m a r d e q u e fala o v. 13 é
con stitu tiv o d o g ru p o d aq u eles a q u e m Jesus am a (os philoi-, veja nota).
Este n ão é u m g ru p o esotérico d e n tro d a c o m u n id a d e cristã m ais am -
pia. A m o rte d e Jesus, q u e é seu g ra n d e ato d e am or, to rn ará possível a
doação d o E spírito a to d o s q u a n to s crerem nele, e este E spírito gerará
todos os cren tes com o filhos d e D eus. P ortanto, os philoi o u am igos de
Jesus são to d o s cristãos crentes. N as p a la v ras d e l jo 4,19, "Ele n o s am o u
prim eiro "; é seu a m o r q u e faz o cristão ser d ig n o d e ser am ad o . A o fazer
os h o m en s seu s philoi atrav és d e su a u n ião com eles, Jesus está agindo
1072 O Livro da Glória · Primeira Seção: A última ceia

à m an eira d a Sabedoria divina: "E, e n tra n d o n as alm as san tas d e c ad a


geração, as faz a m a d a s [philoi] d e D eus" (Sb 7,27). A se g u n d a lin h a d o
v. 14 descreve a m an eira d e alg u ém a g ir com o u m philos d e Jesus. N ão
d ev em o s e n te n d e r este versículo n o sen tid o em q u e a obediência aos
m an d am en to s d e Jesus faz alg u ém u m philos - tal obediência n ã o é u m
teste se alg u ém é o u n ão a m a d o p o r Jesus, m as flui n a tu ra lm e n te d e ser
a m a d o p o r Jesus. O v. 14 realm en te rep ete o v. 10 em o u tro s term os:
"P erm anecereis em m eu am o r se g u a rd a rd e s m eu s m an d a m en to s".
O v. 15 explica m ais d e ta lh a d a m e n te a co n d ição d e ser u m philos
d e Jesus. N ã o d ev e m o s to m a r tam b é m litera lm e n te a ex clu são d o sta-
tu s d e serv o (doulos). D o m esm o m o d o q u e n o A T os p ro fe ta s falav am
d e si m esm o s co m o os servos d e D eus (A m 3,7), os cristão s falav am
d e si m esm o s co m o servos. Em Lc 17,10, Jesus in stru i os d isc íp u lo s a
dizer: "S om os servos in ú teis". Em Jo 13,13, ao s d isc íp u lo s se o rd e n o u
q u e se d irig isse m a Jesus co m o "S en h o r", u m a alo cu ção q u e tem a im -
plicação d e q u e são seu s servos; veja tam b é m 13,16; 15,20. P a u lo c h am a
a si m esm o d e o "serv o d e Jesus C risto " (Rm 1,1); to d av ia , em G1 4,7
ele afirm a q u e o cristão já n ão é servo, e sim filho. A ssim , n o p e n sa-
m en to n e o te stam e n tá rio , o cristão se g u e s e n d o u m doulos p ela ótica d o
serviço q u e ele d ev e p re sta r, m as, p ela ótica d a in tim id a d e com D eus,
ele é m ais q u e u m doulos. A ssim tam b é m a q u i em Jo 15,15, p e la ótica
d a revelação q u e lhe foi d a d a , o cristão n ão é m ero servo. Se o a to d e
Jesus, d e a m a r e m o rre r p o r eles, fez d o s d isc íp u lo s se u s a m a d o s, a
m esm a eficiência p o d e ser a trib u íd a à su a p a la v ra q u e ele receb eu d o
Pai - n o te u m a v ez m ais a relação ín tim a e n tre o ato e a p a la v ra d e
Jesus. O s e stu d io so s q u e veem influência gnóstica em Jo 15,1-17 logi-
cam en te a q u i p e n sam no s a m a d o s o u philoi d e Jesus com o u m g ru p o
m in o ritário q u e alega ter tido u m a revelação especial. N ã o tem o s q u e
ir longe d em ais da ideia co n tid a n o v. 15. N o AT, a rev elação su p re m a
d e Iah w eh a M oisés n o Sinai era tão ín tim a q u a n to u m h o m em q u e fala
a seu philos (Ex 33,11). E ain d a m ais d o p ró x im o p e n sa m e n to d e João é
a p a ssag em d e Sb 7 su p ra c ita d a no c o m en tário ao v. 14.
A co n stitu ição d o s d isc íp u lo s com o seu s a m a d o s é p a rte d e su a
eleição p o r Jesus (v. 16). A o falar d a q u e le s a q u e m ele esco lh eu , o Jesus
jo an in o está in d u b ita v e lm e n te se d irig in d o a to d o s os cristão s q u e são
os "eleito s" ou "esco lh id o s" d e D eus (Rm 8,33; Cl 3,12; l P d 2,4). A lg u n s
e stu d io so s in sistiríam n isto a p o n to d e João h a v e r n e g a d o q u a lq u e r
sig n ificad o esp ecial a o s D oze. T o d av ia, é m u ito m ais c o n so an te com o
53 · O último discurso: - Segunda seção (primeira subdivisão) 1073

p e n s a m e n to jo an in o a p re s e n ta r os D oze q u e e ra m os d isc íp u lo s m ais


ín tim o s d e Jesu s c o m o os m o d elo s d e to d o s os cristãos, tan to e m os ha-
v er esco lh id o , q u a n to em os h a v e r e n v ia d o p a ra lev ar a p a la v ra a ou-
tros. Em 6,70 e 13,18, Jesus fala d e h a v e r escolhido os D oze (e, deveras,
o v e rb o "esco lh er, eleg er" é u s a d o em referência à seleção d o s D oze
em Lc 6,13; A t 1,2). C o m o Jo 15,27 deixa claro, as p a la v ra s d e Jesus,
aq u i, são d irig id a s aos q u e e stiv eram com ele d e sd e o p rin cíp io . Q ue
os a p ó sto lo s, "o s e n v ia d o s" , estão p a rtic u la rm e n te em p a u ta n o "Eu
vos e sco lh i" d o v. 16 está p re ssu p o sto p elo q u e segue: "E u vos d esignei
p a ra q u e v a d e s e d eis fru to ". A m b as as noções d e ir (veja nota) e d e d a r
fru to (veja acim a) têm conotações d e u m a m issão a o u tro s. O uso do
v erb o g reg o " d e s ig n a r" (veja n o ta) em p a ssa g e n s v ete ro te sta m e n tá ria s
relacio n ad as com u m a m issão o u vocação ad icio n a u m a n o v a m atiz
m issio n ária e ste versículo. Se em o u tra s p a ssa g e n s joaninas os D oze
são ap ó sto lo s p o r excelência (A p 21,14: "os d o z e apóstolos d o C ordei-
ro"), ao s D o ze está se n d o d a d a u m a m issão q u e todos os cristãos de-
vem c u m p rir. A o e n fa tiz a r q u e o fruto q u e p ro d u z isse m p erm anecería,
no v. 16 João realiza u m a in clu são com os tem as d o s vs. 7 e 8, e n o fim
d a explicação d o mashal u m a v e z m ais utiliza ao p ro e m in e n te vocabu-
lário u s a d o p a ra d escrev er a v id eira e os ram os. O tem a d e p e d ir e ser
c o n ced id o está tam b é m n o final d o v. 16 co n stitu i tam b ém u m a inclu-
são com o v. 7. O v. 7 d e u a certeza d e q u e D eus o u v iria aq u eles q u e
estão u n id o s a Jesus; o v. 16 d á a certeza d e q u e D eus o u v irá os esco-
lh ido s e a m a d o s d e Jesus. São os co m issio n ad o s p o r Jesus, q u e p o d e m
fazer s u a s p etiçõ es em n o m e d e Jesus (note Lc 10,17, o n d e os 70(2) que
foram e n v ia d o s p o r Jesus ex p u lsa m d e m ô n io s em seu nom e).
A ex p ressão "isto vos o rd en o " d o v. 17 n ão só form a u m a inclu-
são com o v. 12; com o tam b ém é u m a v arian te d o refrão "E u vos tenho
dito isto " com q u e, com o já vim os, João escolhe v árias d as u n id a d e s ou
sub div isõ es d o ú ltim o discurso. O "am ai-vos u n s aos o u tro s" u m final
a d e q u a d o p a ra u m a seção q u e se o cu p a tan to com o am or; ela está em
notáv el co n traste com as p a la v ras sobre o ódio d o m u n d o q u e veem a
seguir.
1074 O Livro da Glória · Primeira Seção: A última ceia

BIBLIOGRAFIA
(15,1‫־‬17 )

Veja a bibliografia geral sobre o últim o discurso no final d o § 48.


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5 4 .0 ÚLTIMO DISCURSO:
- SEGUNDA SEÇÃO (SEGUNDA SUBDIVISÃO)
(15,18 - 1 6 ,4 a )

O ódio do mundo para com Jesus e seus discípulos

15 18"Se o m u n d o vo s o d eia,
te n h a is em m e n te q u e tem o d ia d o a m im an te s d e vós.
19Se p e rte n cé sse is ao m u n d o ,
o m u n d o a m a ria o q u e é seu;
m a s a ra z ã o p o r q u e o m u n d o vo s o d eia
é q u e n ã o p e rte n ce is ao m u n d o ,
p o is e u v o s esco lh i d o m u n d o .
20L em b rai-v o s d o q u e e u vo s disse:
'N e n h u m serv o é m ais im p o rta n te d o q u e seu se n h o r.'
Se p e rs e g u ira m a m im ,
eles v o s p e rse g u irã o ;
se g u a rd a s s e m a m in h a p a la v ra ,
g u a rd a rã o ta m b é m a vossa.
21M as v o s farão to d a s essas coisas p o r c a u sa d e m e u n o m e,
p o is n ã o co n h ecem a q u e le q u e m e en v io u .
22Se e u n ã o v iesse e n ã o lh es falasse,
n ã o te ria m p ecad o ;
m a s a g o ra n ã o têm ju stificativ a p a ra seu p e c a d o -
23o d ia r-m e e q u iv a le a o d ia r m e u Pai.
24Se e u n ã o fizesse o b ra s e n tre eles
tais co m o n e n h u m o u tro jam ais fez,
n ã o se ria m c u lp a d o s d e p ecad o ;
1076 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

m as eles n ã o só têm visto,


e a p e sa r d isso têm o d ia d o a m im e a m e u Pai.
2-,E n tre tan to , isto é p a ra c u m p rir-se o escrito em su a lei:
'O d ia ra m -m e sem c a u sa .'

26Q u a n d o o P arácleto v ier,


o E sp írito d a V e rd a d e q u e p ro c e d e d o Pai
e a q u e m e n v ia rei d a p a rte d o Pai,
ele d a rá te ste m u n h o a m e u resp eito .
27V ós tam b é m d a re is te ste m u n h o ,
p o rq u e te n d e s e sta d o co m ig o d e sd e o p rin cíp io .
1E u v o s te n h o d ito isto
p a ra im p e d ir q u e v o ssa fé seja ab alad a.
2Eles v o s e x p u lsa rã o d a sin ag o g a.
Mas, a h o ra está c h e g a n d o
q u a n d o q u a lq u e r q u e vo s e n tre g a r à m o rte
p e n s a rá q u e está se rv in d o a Deus!
3E [vos] farão tais coisas
p o rq u e n u n c a co n h e ce ram o P ai n e m a m im .
43M as, e u v o s ten h o d ito isto
p a ra q u e, q u a n d o a h o ra [deles] ch eg ar,
v o s rec o rd e is d e q u e já vo-lo tin h a d ito ".

NOTAS

15.18. Se 0 mundo vos odeia. P66 tem o verbo no tem po aoristo: "odiou". Gra-
m aticalmente, esta é um a condição real; o m undo odeia os discípulos.
Aqui, "odiar" tem seu sentido literal, diferente de Mt 6,24, onde, m edian-
te exagero semítico, significa "am ar menos".
tenhais em mente. Literalmente, "sabeis". Isto pode ser um indicativo, m as
as versões mais antigas o entendem como um imperativo - não há diferen-
ça significativa de sentido. A presença quase parentética de um a form a
do verbo "saber" é característica do estilo joanino; por exemplo, "... o
testem unho que Ele dá a meu respeito, eu sei que pode ser verificado"
(5,32; cf. também 12,50).
tem odiado. O tem po perfeito indica que o ódio é perene.
a mim antes de vós. "Antes" é prõtos, "prim eiro", usado como com parati-
vo, como em 1,30 (BDF, §62). O Codex Sinaiticus e alguns m anuscritos
54 · O último discurso: - Segunda seção (segunda subdivisão) 1077

ocidentais om item o "vós", levando à tradução: "me odiaram primeiro";


é bem provável que isto represente um esforço dos copistas de melhorar
gram aticam ente a passagem .
19. Se pertencésseis. Isto é um a condição contrária ao fato ou irreal. Literal-
m ente, "pertencésseis a" equivale a "fôsseis de"; a preposição ek, usada
desta m aneira, expressa pertencer a certo grupo (ZGB, §134).
0 que é seu. A expressão está em gênero neutro - um exemplo da tendência
joanina de usar um neutro para pessoas tom adas como um grupo. Veja
Nota sobre 6,37.
0 mundo vos odeia. A ideia tem um eco na afirmação majestosa de Inácio de
Antioquia (Rm 3,3): "O cristianism o não é um a questão de convicção, e
sim de genuína grandeza quando é objeto de ódio por parte do m undo".
eu vos escolhí do mundo. Esta ideia com posta de eleição e de separação é difí-
eil de traduzir. D. H einz, ConcTM 39 (19 6 8 ), 775, prefere "deste m undo",
pois ele pensa no ek como partitivo. Veja comentário.
20. Lembrai-vos do que eu vos disse. Literalmente, "Recordeis a palavra que vos
disse". O Codex Bezae e o OL trazem "palavras"; o Sinaiticus traz "fa-
lei"; T aciano e alguns manuscritos trazem "minha palavra"; o OSsin omite
"a palavra". O núm ero de variantes leva a suspeitar que um texto mais
breve foi expandido por copistas. Esta linha pode formar um a inclusão
com 16.4a, e concluir a subdivisão: "... para que vos lembrais de que eu
vos disse isto".
servo... senhor. Esta é um a citação literal de 13,16 (veja nota ali). Todavia, no
cap. 13 o dito constitui um estímulo a que se imite a hum ildade do se-
nhor; aqui, diz respeito à necessidade de se entender o destino do senhor.
O reaparecim ento da figura do servo e do senhor está um pouco fora de
lugar quando se olha para 15,15: "Eu já não vos chamo servos".
Se perseguiram a mim. Com o no v. 18, aqui se trata de condição real. At 9,4
("Saulo, Saulo, por que me persegues?") contém a equação adicional: a
perseguição dos cristãos está não só baseada na perseguição de Jesus,
m as a perseguição dos cristãos é a perseguição de Jesus.
Se guardassem a minha palavra. As três condições precedentes, nos vs. 18-
20, adotam um tom negativo, descrevendo a atitude do m undo para
com Jesus e seus discípulos, m as de repente sugere-se a possibilidade
de um a reação positiva por parte do m undo. Aqui, um tom positivo é
tam bém contrário à tensão no próxim o versículo que pressupõe a hosti-
lidade do m undo. Assim, com certa lógica, porém sem base textual, al-
guns estudiosos introduziríam negativas sob esta condição: "Se não têm
guardado a m inha palavra, nem tam pouco guardarão a vossa". Todavia,
essa leitura destrói o paralelism o na forma das duas condições no v. 20.
1078 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

Talvez seja m elhor estabelecer um a implicação negativa: guardarão a


vossa palavra na m edida em que guardaram a m inha (e não têm guarda-
do a minha). D odd, Tradition, p. 409, vê um inexprim ível per impossibile
por detrás da afirmação; L agrange, p. 411, fala de um a hipótese que é ne-
gada pela triste realidade. Em qualquer caso, é m ais im provável que o v.
20 esteja apresentando um a escolha igual entre as duas alternativas que
se deparam os hom ens, a saber, de perseguir Jesus e seus discípulos ou
de aceitar seu ensino. N ão é tão neutro como ljo 4,6: "Todo aquele que
tem conhecimento de Deus vos ouve, enquanto aquele que não pertence
a Deus se recusa a ouvir-vos".
21. vos farão. P66 tem um verbo no tem po presente.
todas estas coisas. Os que pensam que a últim a cláusula no v. 20 tem um
caráter positivo encontram dificuldade para interpretar este versículo.
B ernard, II, 493, salienta que a sequência seria m ais suave sem o v. 21,
e notam os que a ideia central do v. 21 é reiterada em 16,3. O versículo
pode ser um a inserção com o propósito de conectar o que um a vez eram
grupos de sentenças independentes (18-20 e 22-25). "Todas" é om itido
pelo Codex Bezae e alguns m anuscritos segundários.
vos. Há uma divisão entre os manuscritos se se deve ler um dativo ou eis com
o acusativo; a segunda alternativa é mais bem atestada, e o dativo pode ser
um m elhoramento gramatical vindo de um copista sobre o estranho uso
de eis (que é inesperado; MTGS, p. 256). Mas é também possível que, em
ambas as formas, o "vos" tenha sido adicionada por copistas.
por causa do meu nome. B arrett, p. 401, sugere que isto significa simples-
m ente por causa de Jesus, e cita o uso do hebraico, leSêm, aramaico,
lesêma, "por causa de". Mas parece mais provável que isto seja um jogo
de palavras sobre o tem a teológico joanino de que Jesus porta o nom e
divino; veja comentário. A frase "por causa do [grande] nom e de Deus"
ocorre no AT (ISm 12,22; 2Cr 6,32; Jr 14,21), onde ela significa por conta
do que Deus é, i.e., sua bondade, poder, fidelidade etc. O utros casos des-
ta fórmula nos escritos de João estão em ljo 2,12: "porque pelo seu nom e
vossos pecados são perdoados"; Ap 2,3: "Conheço as tuas obras, e o teu
trabalho, e a tua paciência, e que não podes tolerar os m aus por causa do
m eu nome".
22. Se eu não viesse... não teriam pecado. Esta é tuna condição irreal, expressada
em tem pos diferentes. Em vez do uso de tem pos im perfeitos ou o uso
de tem pos aoristos de am bas as partes para expressar o que podería ter
havido no passado ("tinha... teria"), temos um aoristo na prótase (Jesus
veio e falou) e um im perfeito na apódose (eram e ainda são culpados).
O mesmo esquem a se encontra no v. 24.
54 · O último discurso: - Segunda seção (segunda subdivisão) 1079

lhes falasse. O paralelo no v. 14 é: "Se eu não houvera feito obras". Uma


vez mais, encontram os o tema joanino das palavras e obras revelatórias
de Jesus; cf. 14,10. Um a comparação dos vs. 22 e 24 não sugere que aqui
obras são consideradas m ais persuasivas do que palavras. A combinação
"vir e falar" não implica um a coordenação real, como se se tratasse de
duas ações iguais e separadas. L agrange, p. 411, sugere que o sentido é:
"Se, tendo vindo, eu não ha veria falado".
não teriam pecado. O pecado básico é a recusa de crer em Jesus (16,9); ódio é
a necessidade concomitante a tal recusa, pois os hom ens devem decidir
a favor ou contra Jesus.
Mas, agora não têm. Aqui, nyn, "agora", com binado com de, não possui ver-
dadeira significação temporal; significa "na realidade". A expressão é
reiterada no v. 24.
23. odiar-me. Literalmente, "aquele que me odeia, tam bém odeia a m eu Pai".
Salientando que os vs. 22 e 24 são paralelos em estrutura, B u l t m a n n ,
p. 4241, sugere que o v. 23, que rom pe a estrutura, foi tirado de outro lugar.
Todavia, ao conectar o v. 23 à sentença no v. 22, como temos feito, desco-
brim os que a última linha dos vs. 22-23 contrapõe a última linha do v. 24.
2 4. têm visto e apesar disso têm odiado a mim e a meu Pai. Literalm ente, "tanto
me têm visto como têm odiado a m im e a m eu Pai". B e r n a r d , II, 4 9 5 ,
insiste que cada um dos verbos abrange os dois objetos, de m odo que
João está dizendo: eles têm visto a m im e a m eu Pai, e têm odiado a
m im e a m eu Pai. Entretanto, o Jesus joanino diria que os que perten-
cem ao m undo têm visto a seu Pai? (Há quem cite 1 4 ,9 : "Todo o que
m e tem visto, tem visto o Pai"; todavia, isto é dirigido aos discípulos e
pressupõe a aceitação de Jesus na fé). O m undo tem visto a Jesus, mas
não tem tido a fé de ver nele o Pai. Em uns poucos versículos mais
adiante (14,3), Jesus dirá dos hom ens do m undo: "N unca conheceram
ao Pai nem a m im ". Talvez devam os entender o ver no v. 24 como se
referindo às obras que Jesus acabara de m encionar: "Eles têm visto (as
obras que eu fiz entre eles) e, todavia, têm odiado tanto a m im como a
m eu Pai". Q ue essa interpretação é possível para a prim eira construção
"tanto... com o" é verificado por BDF, §4443. O tem po perfeito em "têm
odiado" insinua um ódio deliberado e duradouro.
25. Entretanto, isto é para. O grego é sim plesm ente alia hina. O alia é difícil de
traduzir; B ultmann, p. 4248, salienta que devem os entender algo mais ou
m enos assim: O fato de que têm visto e ainda têm odiado é quase incrí-
vel; to d av ia ,... A frase com hina pode ser traduzida como um construção
no im perativo: "Entretanto, que se cum pra o texto em sua lei" (ZGB,
§415). Mais provavelm ente, a sentença é elíptica (BDF, §4487), e temos de
1080 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

suplem entar "isto ocorre"; cf. 9,3: "Antes, foi para que a obra de Deus se
revelasse nele" (também 13,18).
em sua lei. Como em 10,34 e 12,34, "Lei" se refere a um conjunto m ais am plo
do que os cinco livros de Moisés, pois a citação é de um salmo. Para a
dissociação de Jesus da herança judaica aparentem ente implícita no uso
de "seu", veja notas sobre 7,19; 8,17. Aqui, a ideia é que os próprios livros
que "os judeus" alegam como seus os acusam. F reed, OTQ, p. 94, diz que
a fórm ula usada aqui para introduzir a Escritura é a mais longa em João
e, talvez, em todo o NT.
Odiaram-me sem causa.' No SI 35,19, o salmista ora para que Deus não dê
alegria "àqueles que me têm odiado sem causa"; no SI 69,5(4), o salmista
perseguido se queixa que m ais num erosos do que os cabelos de sua ca-
beça são "os que me têm odiado sem causa". No hebraico e no grego de
am bas as passagens, a construção é com particípio; João usa um verbo fi-
nito. (É interessante tam bém Salmos de Salomão 7.1, onde o salm ista pede
a Deus que fique perto, para que "não nos assaltem os que nos odeiam
sem causa"; aqui, o verbo está no m odo infinitivo. Cf. tam bém SI 119,161:
"Os príncipes me perseguem sem causa"). J. Jocz, The Jewish People and
Jesus Christ (Londres: SPCK, 1962), p. 43, cita o TalBab Yoma 9b, onde o
Rabino Johanan ben Torta indica como um a das causas da destruição
do templo: "Porque nesse lugar tem prevalecido ódio sem causa". Jocz
pensa que este rabino, que viveu c. de 110 d.C., poderia ter sido influen-
ciado pela tradição judaico-cristã, ecoando o presente versículo em João
(pois os cristãos explicavam a destruição do tem plo como procedente da
rejeição dos líderes judeus e do ódio por Jesus). Esta teoria vai, conside-
ravelmente, além do que perm ite os dados.
26. que procede do Pai. O verbo é ekporeuesthai, enquanto o verbo exerchesthai
será usado em relação a Jesus em 16,27-28. Esta descrição foi introduzida
nos credos do 4Qséculo para expressar que a terceira pessoa da Santíssima
Trindade procede do Pai. M uitos dos Padres gregos pensavam que João
estava se referindo à processão eterna, e L agrange, p. 413, ainda argu-
m enta em prol desta interpretação. Não obstante, ainda quando o tem po
do verbo seja presente, a vinda está em paralelism o com o "eu enviarei"
na próxima linha e se refere à missão do Parácleto/Espírito aos hom ens
(veja nota sobre 16,28). O autor não está especulando sobre a vida interior
de Deus; sua atenção se centra nos discípulos que ficam no m undo.
a quem enviarei. Alguns manuscritos ocidentais têm um verbo no tempo presente
na tentativa de harmonizar com o presente ("vem") na linha precedente. Em
14,26, Jesus falou do Pai que enviaria o Parácleto. Se a diferença de agência
em enviar o Parácleto reflete ou não diferentes estágios no desenvolvimento
54 · O último discurso: - Segunda seção (segunda subdivisão) 1081

do pensam ento joanino, a variação realm ente não é significativa no nível


teológico, pois no pensam ento joanino o Pai e Jesus são um (10,30). "São
fórm ulas distintas, não idéias distintas", diz Loisy, p. 427, "e não provam
que as passagens não procedem da m esm a m ão". O fato de que Jesus
envia o Parácleto é enfatizado aqui, porque o tema se ocupa de Jesus e
do m undo.
ele dará testemunho. Isso implica decididam ente o caráter pessoal do Espírito.
27. vós também. A prim eira vista, isto dá a im pressão de um testem unho em
adição àquele do Parácleto/Espírito; mas, como indica H oskyns, p. 481,
a ideia é: "E, além do mais, é vós que fareis e dareis testem unho (do Es-
pírito)". Uma coordenação sim ilar no escrito joanino sobre o Espírito se
encontra em ljo 4,1314‫־‬: "Ele nos tem dado de seu próprio Espírito,
e nós... podem os testificar" (cf. tam bém 3Jo 12).
dareis testemunho. Com o no v. 18 a forma verbal no tem po presente pode
ser indicativa ou im perativa, não há m uita distinção de significado con-
tanto que Jesus seja com preendido como descrevendo um papel para os
discípulos exercerem após o recebimento do Espírito. Mas Bernard, II,
500, pensa que o tem po presente usado em relação aos discípulos está
em contraste com o futuro usado no v. 26 em relação ao Espírito - o
m inistério dos discípulos de dar testem unho já começou, enquanto o do
Espírito ainda é futuro. Esta interpretação deixa de reconhecer que o tes-
tem unho dos discípulos é sim plesm ente a exteriorização do testem unho
do Espírito (veja comentário). No pensam ento joanino, como no lucano,
o testificar dos discípulos começa no período pós-ressurreição, quando o
Espírito for dado; aqui, as palavras são equivalentes às palavras do Jesus
ressurreto em Lc 24,48: "Vós sois testem unhas destas coisas". At 1,8 deixa
claro como isto se concretizaria: "Recebereis poder, quando o Espírito
Santo vier sobre vós; e sereis m inhas testem unhas".
tendes estado comigo. Literalmente, "estais"; o tem po presente é usado com
valor de perfeito (MTGS, p. 62), porque a ação é concebida como ainda
em processo. (Isto é certo, m esm o que a afirmação seja visualizada da
perspectiva do evangelista no tempo: os cristãos estão ainda com Jesus,
porque possuem o Parácleto que é a presença de Jesus). Em 14,9, a relação
era vista de outro extremo: "Eis que estou convosco todo este tempo". Se
com binarm os a frase "comigo" deste versículo com a "eu vos escolhi"
do v. 19, não estam os longe da ideia expressada em Mc 3,14 onde somos
informados: "Ele designou Doze para estarem com ele".
desde 0 princípio. N o cenário da últim a ceia, a p ’ archês significa desde o prin-
cípio do m inistério de Jesus, quando os discípulos começaram a segui-lo;
veja nota sobre 16,4a. O tema de que os que estiveram com Jesus durante
1082 O Livro da Gloria · Primeira Parte: A última ceia

seu ministério eram testemunhas privilegiadas, se encontra tam bém nos


escritos lucanos: Lc 1,2 fala de "os que desde o princípio foram testemu-
nhas oculares"; At 1,21 especifica que o lugar de Judas tinha de ser preen-
chido por alguém "de entre os hom ens que nos acom panharam durante
todo o tem po em que o Senhor Jesus entrou e saiu dentre nós". Q uando a
afirmação em João é considerada da perspectiva tem poral do evangelista,
H oskyns, p. 482, salienta que pode referir-se aos cristãos que têm sido fiéis
a Jesus desde sua conversão ("desde o princípio" em ljo 2,13.14.24 etc.).
16.1. Eu vos tenho dito isto. Literalmente, "estas coisas"; a referência é ao conteú-
do de 18-27, e não meramente à promessa do Parácleto nos vs. 26-27. Para
esta afirmação como um refrão no último discurso, veja nota sobre 14,25.
para impedir que vossa fé seja abalada. Literalmente, "para que não vos es-
candalizeis". Segundo Mt 26,31, as prim eiras palavras que Jesus falou
depois da ceia e saiu para o M onte das Oliveiras foram: "N esta noite,
todos vós vos escandalizeis por m inha causa". N o pensam ento de João
(6,61; ljo 2,10), "escândalo" é o que faz um discípulo tropeçar e o afasta
da com panhia de Jesus; ou, se transferirm os a cena do m inistério de Jesus
para a vida terrena da igreja joanina, "escândalo" é o que faz alguém re-
nunciar a verdadeira fé cristã e o afasta da com unidade. O m esm o uso se
encontra nos escritos protocristãos; por exemplo, Didaquê 16,5 distingue
entre dois grupos em juízo: os m uitos que se "escandalizam " e se per-
dem e os que perseveram na fé.
2. Vos expulsarão da sinagoga. Veja nota sobre 9,22. É impossível à luz do adjetivo
aposynagõgos estar certo de que João não está se referindo a um a sina-
goga local. Mas todo o contexto da introdução à oração feita na sinagoga
que contém a m aldição contra os judeus cristãos (vol. 1, p. 73), m ais as
condenações de "os judeus" e as referências hostis a diferentes sinagogas
em Ap 2,9 e 3,9, nos levam a pensar que ele está se referindo à sinagoga
em geral e com batendo um a política que está, no mínimo, em vigor em
todas as sinagogas da área que ele conhece.
Mas. Alia ("mas") não é usado adversativam ente aqui; BDF, §4486, salienta
que alia tem a função de introduzir um ponto adicional de um a m aneira
enfática, enquanto MTGS, p. 330, sugere o significado: "Sim, deveras"
(cf. Lc 12,7).
hora. Não é seguro que aqui e no v. 4a haja um jogo de palavras no simbo-
lismo joanino de "a hora" de Jesus (vol. 1, pp. 820-21), em bora H oskyns,
p. 483, pensa que "a hora" que envolvia o sofrimento de Jesus se esten-
deu à hora futura do sofrimento dos discípulos. (Mas, no conceito joani-
no de "a hora", sofrimento e crucifixão estão subordinados ao retom o de
Jesus para o Pai).
54 · O último discurso: - Segunda seção (segunda subdivisão) 1083

servindo a Deus. O grego traz "oferecer latreia a Deus", expressão um tan-


to redundante, pois latreia em si significa o serviço de oferecer culto à
deidade. Ao afirm ar que a m atança dos cristãos seria considerada um
serviço a Deus, estaria João se referindo aos perseguidores romanos, tais
como aqueles que form aram o pano de fundo do livro do Apocalipse?
Somos inform ados que em um período logo após, a gratidão de T rajano
aos deuses pelas vitórias sobre os dacianos e citas o induziram a perse-
guir os cristãos que se recusavam a reconhecer esses deuses. Todavia, em
outras passagens no NT (Rm 9,4; Hb 9,1.6), latreia se refere ao culto judai-
co. Por outro lado, no v. 2 esta m atança de cristãos está associada à ex-
pulsão da sinagoga. Portanto, parece provável que o autor está pensando
na perseguição dos cristãos m ovida pelo judaísmo, e não na perseguição
rom ana. Os judeus do 1“ século lançam os cristãos à m orte (cristãos ju-
deus - dificilmente gentios), pensando que, ao fazerem isso, estavam ser-
vindo a Deus? Certam ente a literatura cristã faz esta acusação. Em Atos
ouvim os da responsabilidade judaica pelo m artírio de Estêvão (7,58-60) e
pela m orte de Tiago, irm ão de João (12,2-3). Que as autoridades judaicas
podiam agir assim é confirm ado por J osefo (Auf. 22,9,1; 200) que faz o
sum o sacerdote Ananus II responsável pelo apedrejam ento de Tiago, ir-
m ão de Jesus. A razão que A nanus apresentou aos juizes do Sinédrio foi
que Tiago transgredira a lei. Paulo, que foi testem unha na execução de
Estêvão (At 8,1), diz que sua razão para perseguir a Igreja violentamen-
te foi o zelo por suas tradições judaicas ancestrais (G1 1,13-14; também
At 26,9). Justino, escritor cristãos do 2“ século, nascido na Palestina, acusou
seus oponentes judeus nestes termos: "Ainda que m atastes a Cristo, não
vos arrependestes; m as tam bém nos odiais e nos matais... sem pre que
obtendes autorização" (Trifon 63,6, 45,4). O Martírio de Policarpo (12,1)
diz que "os judeus foram extrem am ente zelosos, como é seu costume", em
preparar a fogueira para a queim a do santo. Indubitavelm ente, algum as
destas afirmações constituem exagero polêmico, m as representam um a
continuação da atitude referida por João. J. L. M artyn, History and Theo-
logy in the Fourth Gospel (Nova York: H arper, 1968), pp. 47ss., argum enta
convincentem ente que m uito da ação hostil assum ida contra Jesus em
João (tentativas de prendê-lo e matá-lo) realm ente reflete a ação assumi-
da contra os judeus cristãos da com unidade joanina pelas autoridades da
sinagoga local, de m odo que a situação visualizada na presente passa-
gern na verdade se passou no tem po de João. Já foi salientado que há pas-
sagens na literatura judaica que podem ser tom adas para exemplificar a
atitude de que João fala. Por exemplo, a M ishnah Sinédrio 9:6 adm ite cer-
tos casos em que os zelotes podiam m atar pessoas por ofensas religiosas.
1084 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

Em relação ao ato de Fineias, ao m atar um israelita que fora contam ina-


do por idolatria, a Midrash Rabbah 21,3 sobre N m 25,13, observa: "Se um
hom em derram a o sangue de um perverso, é como se ele oferecesse um
sacrifício". (Temos de acrescentar que, do lado cristão, há passagens na
literatura patrística que apresentam o ódio aos judeus ser um dever para
com Deus. N enhum a das duas religiões pode pretender que não tenham
feito um ao outro sofrerem em nom e do Deus a quem servem. Todavia,
de fato, no plano ético, por causa da profissão que o cristianismo faz da
necessidade se am ar os inimigos, os cristãos são especialm ente culpáveis
em conduzir perseguição de qualquer tipo; e, no plano histórico, a tra-
gédia é que os cristãos têm tido o poder político de fazer infinitam ente
mais dano aos judeus do que vice-versa). Q uanto ao v. 2, B arrett, p. 404,
vê aqui um exemplo de ironia joanina: os perseguidores pensam que es-
tão servindo a Deus, enquanto a verdadeira latreia vem do m ártir cristão
como vítima. Todavia, não é certo que o autor tinha em vista fazer esse
jogo irônico.
3. farão. Uns poucos m anuscritos entre as versões têm um tem po presente.
Todo o versículo é om itido no OSsin, talvez porque seja repetitivo, já que
é um a duplicata 15,21.
[ ü o s ] . O Codex Sinaiticus e m uitas dos m anuscritos ocidentais têm esta fra-

se. É difícil decidir se ela é original ou um a adição em imitação de 15,21


(cf. também "vos tenho dito isto" em 16,1.4a).
porque nunca conheceram. Este é o aoristo de ginõskein; cf. o perfeito de
eidenai (oida) em 15,21: "N ão conhecem aquele que m e enviou". (Veja vol.
1, p. 814, para estes dois verbos). MTGS, p. 71, cita isto como um exemplo
do aoristo inceptivo ou ingressivo, significando que não com eçaram a
reconhecer.
4a. Mas. Alguns m anuscritos ocidentais omitem o alia inicial, como faz BDF,
§4483. A omissão sugere que os copistas encontraram aqui um a adversa-
tiva estranha, m as a conjunção tem um a implicação continuativa que é
legítima no presente caso.
eu vos tenho dito isto. Literalmente, "estas coisas"; veja v. 1 acima.
a hora [deles]. O pronom e possessivo é om itido por m uitos m anuscritos im-
portantes, m as a omissão poderia ser um a tentativa de conform ar a frase
à mais usual "a hora". Embora seja possível entender o "deles" no senti-
do de a hora para estas coisas, m ui provavelm ente signifique a hora dos
perseguidores. Em Lc 22,53, Jesus diz aos principais sacerdotes e aos que
saíram para prendê-lo no Getsêmani: "Esta é a vossa hora".
vos recordeis de que já vo-lo tinha dito. Literalmente, "vos lem breis destas
coisas - que eu vos disse".
54 · O último discurso: - Segunda seção (segunda subdivisão) 1085

COMENTÁRIO: GERAL

A p rim e ira su b d iv isã o (1 5 ,1 1 7 ‫ )־‬d a S e g u n d a Seção d o ú ltim o d iscu rso


e n fa tiz o u o a m o r d e Jesu s p a ra com seu s d iscíp u lo s; a s e g u n d a sub-
d iv isã o (ta m b é m é to d a ela u m m o n ó lo g o ) e n fatiza, p o r co n tra ste , o
ó d io d o m u n d o p a ra com estes d iscíp u lo s. Jesus a m a se u s d iscíp u lo s
p o rq u e p e rm a n e c e m o u p e rse v e ra m nele; o m u n d o os o d e ia p ela m es-
m a raz ã o . C o m o d iz tão b e m H oskyns , p . 479, " O ó d io im p lacáv el d o
m u n d o p e lo s a m ig o s d e Jesus é o sin al d a a u te n tic id a d e d e ssa am iza-
d e ". P e rte n c e r a Je su s n ã o é p e rte n c e r ao m u n d o , e o m u n d o só p o d e
a m a r o q u e lh e p e rte n ce . A lém d isso , e s ta n d o relacio n ad a com a p ri-
m eira su b d iv is ã o , p o r v ia d e c o n tra ste , a se g u n d a su b d iv isã o reitera no
v. 19 o tem a d a esco lh a q u e Jesus fez d e se u s d isc íp u lo s (q u e a p areceu
em 15,16).
V im o s q u e h o u v e c o n c o rd â n c ia g e ra l e n tre os e stu d io so s d e q u e
15,1-17 c o n s titu iu u m a u n id a d e o u su b d iv isã o . H á m u ito m en o s con-
c o rd â n c ia so b re o n d e a su b d iv isã o q u e com eça em 15,18 d e v e term i-
n ar. A lg u n s tra ria m a u n id a d e a u m a c o n c lu sã o d e n tro d o cap. 15.
P o r e x e m p lo , H oskyns e F ilson su g e re m u m a in te rru p ç ã o d e p o is d e
15,25. Isto te m em se u fav o r u m a in clu sã o e n tre 15,18 e 25, a m b o s
p a rtilh a n d o d o te m a d o ó d io a Jesus; a lém d o m ais, a in tro d u ç ã o d o
P a rác leto e m 15,26-27 p a re c e in d ic a r q u e o d isc u rso a d q u ire u m n o v o
giro. E n q u a n to a c eita m o s u m a d iv isã o m e n o r e n tre 25 e 26, n ão de-
v e m o s p ô r u m a lin h a m a io r d e d iv isã o a q u i, p o rq u e , co m o v e re m o s
ab aix o , c re m o s q u e o tem a d o P a rác leto e stá in tim a m e n te relacio n a-
d o co m o d a resistê n c ia ao ó d io d o m u n d o . O u tro g r u p o d e e stú d io -
sos tra ta 15,18-27 co m o u m a u n id a d e e p õ e a d iv isã o e n tre 15,27 e
16,1 (assim , B arrett e S tr ac h a n [15,17-27]). M as o " e u v o s te n h o d ito
isto " d e 16,1 im p lic a u m a relação com o q u e p rec e d e , e o m o tiv o d e
p e rs e g u iç ã o e m 16,1-4a é sim ila r a o d e 15,18-25 (com o v e re m o s no
g ráfico a b a ix o , a m b a s a s p a ssa g e n s tê m p a ra le lo s e m M t 10,17-25).
C re m o s q u e M a ld o n atus e sta v a c erto q u a n d o a firm o u q u e c o n stitu iu
u m e q u ív o c o c o m e ç a r u m n o v o c a p ítu lo em 16,1. (S c h w a n k , "Da sie",
p. 299, s u g e re q u e a q u i se co m eço u u m c a p ítu lo p o rq u e , p o r an alo g ia
com M t 26,31 [veja se g u n d a n o ta so b re 16,1], im a g in o u -se q u e , p o r
fim , Je su s c h e g o u a o M o n te d a s O liv eiras).
E m c o n tra p a rtid a , h á e stu d io so s q u e p refe re m a d iv isão p a ra m ais
a d ia n te d o cap . 16 (D odd su g ere 15,18-16,11; L oisy su g ere 15,18-16,15).
1086 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

D a n o ssa p a rte e sta m o s m ais d e a c o rd o com L a gran ge , S tra th m a n n ,


B ushsel , B u ltm a n n , V an den B ussche , e n tre o u tro s, c o lo c a n d o o final
d a su b d iv isã o n a p rim e ira p a rte d e 16,4.0 tem a d a p e rse g u iç ã o term i-
n a aí, e o "E u v o s te n h o d ito isto " d e 16,4a é u m a b o a co n c lu sã o (em
16,33 ela exerce o m esm o p ap el). O rec o n h e c im e n to d e q u e 15,18-16,4a
c o n stitu i u m a u n id a d e é c o n firm a d o p e lo fato d e q u e estes v e rsíc u lo s
têm p a ra lelo s e m M t 10,17-25, e n q u a n to 16,4b-33 é u m a u n id a d e q u e
v e m a se r u m a d u p lic a ta d e 13,31-14,31, P rim e ira Seção d o ú ltim o d is-
cu rso . (Veja G ráfico I à p p . 955-59 acim a).
E sta s u b d iv isã o é o e q u iv a le n te jo an in o d a a m eaça d e p e rse g u iç ã o
q u e exerce tão im p o rta n te p a p e l n o d isc u rso escatológico d o s sin ó ti-
cos (Mc 13; M t 24-25, m ais 10,17-25; Lc 21). É in te re ssa n te q u e a m b a s
as trad içõ es, jo an in a e sinótica, colocam e sta a d v e rtê n c ia e n tre as ú lti-
m as p a la v ra s d ita s p o r Jesus. N o g ráfico q u e a p re s e n ta re m o s abaixo,
fica e v id e n te q u e , e n q u a n to João tem m u ito s p a ra le lo s em M c 13,9-13
e em Lc 21,12-17, os m elh o res p a ra le lo s estã o e m M t 10,17-25 e 24,9-10.
M u ito s críticos creem q u e M t 10,17-25 foi d e slo c a d o d e u m c o n te x to
o rig in al m ais p ró x im o a 24,9-10, lu g a r o n d e a sim ila rid a d e d e M a-
teu s com M arco s e L ucas n o s lev aria a e sp e ra r e n c o n tra r e ste m a te ria l.
(E in te ressa n te q u e, se Jo 15,18-16,4a tem estes p a ra le lo s e m M a te u s,
Jo 16,33 tam b é m p a re c e eco ar o tem a d a thlipsis o u so frim e n to d e
M t 24,9-10). A s sim ila rid a d e s e n tre João e M a te u s n ã o sã o ta n ta s q u e
n o s fazem p e n s a r q u e u m e v an g elista co p io u d o o u tro (veja D odd ,
Tradition, p p . 406-13); em p a rtic u la r, se o q u a rto e v a n g e lista tiv esse
c o p ia d o d e M ateu s, ele teria a n te c ip a d o a era d a crítica m o d e rn a , re-
c o n h e ce n d o q u e M t 10,17-25 e 24,9-10 se p e rte n ce m . A m b o s o s ev a n -
g elh o s p re s e rv a m in d e p e n d e n te m e n te a tra d iç ã o p rim itiv a , e João
tem m a n tid o o m a te ria l p rim itiv o e stre ita m e n te m ais coeso d o q u e
M ateus. (A liás, o desejo d e João é m a n te r o m ate ria l coeso q u e p ro v a -
v e lm e n te e x p liq u e a a p a riçã o d e " N e n h u m se rv o é m ais im p o rta n te
d o q u e seu s e n h o r" em 15,20, m esm o q u a n d o já te n h a sid o u s a d o em
13,16). E m b o ra e ste m ate ria l tra d icio n a l te n h a sid o fo rm a d o n o s es-
q u e m a s característico s d o p e n sa m e n to jo an in o , n e n h u m a o u tra p a s-
sa g em d o d isc u rso jo an in o se assem elh a ao d isc u rso sin ó tico tã o d e
p e rto co m o Jo 15,18-16,4a.
M arcos e L ucas situ a m as adv ertên cias so b re a p e rse g u içã o n o dis-
cu rso escatológico, o n d e as p erseg u içõ es são tra ta d a s co m o p relim in a-
res ao s sinais apo calípticos q u e in d icarão a ch eg ad a d o fim . M ateu s,
54 · O último discurso: - Segunda seção (segunda subdivisão) 1087

M arcos 13,9-13; Lucas 21,12-17

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1088 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

ao m u d a r este m e sm o m a te ria l p a ra o cap. 10 e situ á -lo n o co n tex to


d e u m d isc u rso so b re m issã o cristã (veja M t 10,5), d á a im p re ssã o d e
q u e a p e rse g u içã o será o a c o m p a n h a m e n to n o rm a l d a p re g a ç ã o cristã
n o m u n d o . João u sa este m ate ria l n a m esm a p e rsp e c tiv a q u e M a te u s.
D istin g u ire m o s q u a tro g ru p o s d e v e rsíc u lo s n e sta su b d iv isã o .
O p rim e iro (15,18-21) e o ú ltim o (16,l-4a) tratam d iretam en te d o ó d io d o
m u n d o e a perseguição do s discípulos. C ad a u m relaciona este ód io
ao fato d e q u e o m u n d o não tem conhecido o Pai (15,21; 16,3). O se g u n d o
g ru p o (15,22-25) analisa a culpa e o pecado d o m u n d o ; o terceiro g ru p o
(15,26-27) trata d o Parácleto que, com o verem os em 16,8-11, é o único
q u e salienta a cu lpa e o pecado d o m u n d o . De tu d o isto se d e d u z q u e a
su b divisão está estru tu ra d a conform e a u m certo m o v im en to quiástico.

COMENTÁRIO: DETALHADO

Versículos 18-21: O mundo odeia e persegue os discípulos

João deixa claro q u e o ó d io d o m u n d o p elos cristãos n ã o é u m fenôm e-


no passageiro; o ó d io p ro v é m n ã o m en o s d a essência d o m u n d o co m o o
am o r p ro v ém d a essência d o cristão. O m u n d o é o p o sto a D eu s e à su a
revelação; ele n u n ca p o d e ter algo sen ão ó d io p elo s q u e reconhecem
aq u ela revelação em seu Filho. N u m a série d e q u a tro sen ten ças con-
dicionais, reitera-se q u e o ód io d o m u n d o p elo s cristãos é b asicam en te
a rejeição ao p ró p rio Jesus. O a m o r d e Jesus tem feito p elo v e rd a d e iro
cristão tan to , q u e ele é tra ta d o d a m esm a m an e ira q u e Jesus. P o d e m o s
lem b rar q u e, n a época em q u e o Q u a rto E vangelho recebeu su a form a
final, a p erseg u ição p elos ro m a n o s e a ex p u lsão d o s ju d e u s c ristão s d a s
sin ag o g as já era m fatos c o n su m a d o s e n ão m ais so m b rio s p resság io s.
A id eia n o v. 18 se e n c o n tra em o u tro s lu g a re s e m João. E m 7,7,
Jesus d isse a se u s p a re n te s in c ré d u lo s q u e e sta v a m te n ta n d o -o a m os-
tra r seu p o d e r m ira cu lo so em Jerusalém : " O m u n d o n ã o v o s p o d e
o d iar, m as o d e ia -m e ". Im p lic ita m en te , isto a firm a q u e o m u n d o o d e ia
a to d o s q u a n to s n ã o lh e p e rte n ce m . Q u e este ó d io se e ste n d e a o s cris-
tão s é d e c la ra d o e m l j o 3,13: " M e u s irm ã o s, n ã o v o s m a ra v ilh e is se o
m u n d o v o s o d eia".
A d istin çã o ex isten te e n tre a esfera d e Jesus e a d o m u n d o , q u e
se acha im p lícita n o v. 19, já fora sa lie n ta d a in cisiv a m e n te em 8,23,
54 · O último discurso: - Segunda seção (segunda subdivisão) 1089

d irig id o a "o s ju d e u s " : "V ós d o is d a q u i d e b aixo; e u so u d e cim a. V ós


d o is d e s te m u n d o , e u n ã o s o u d e ste m u n d o " . N o to c a n te a o s d isc íp u -
los d e J e su s, em 15,16, Je su s d isse: " N ã o fo stes v ó s q u e m e escolhes-
tes a m im , m as, a n te s, e u q u e v o s e sco lh i". A g o ra , p o ré m , o tem a d a
v o cação d o s d isc íp u lo s é e la b o ra d o p e la id eia d e q u e Jesu s os está ti-
ra n d o d o m u n d o , a o m e n o s n o s e n tid o d e q u e , e n q u a n to e stiv e re m n o
m u n d o , n ã o p e rte n c e rã o a o m u n d o (17,15-16). A id e ia n ã o é sim p les-
m e n te q u e os d isc íp u lo s se e sq u iv a sse m d o s e le m e n to s p e c a m in o so s
d e u m m u n d o p a g ã o (com o em l P d 4,3-4); a n te s, o fato d e q u e fo ram
c h a m a d o s sig n ifica q u e são p o r ta d o r e s d a p a la v ra d e D e u s e, assim ,
estã o e m p o s iç ã o d u a lís tic a co m o m u n d o . Isto se rá re ite ra d o em
17,14: " E u lh e s d e i a tu a p a la v ra , e o m u n d o o s o d io u , p o rq u e n ã o são
d o m u n d o , c o m o e u n ã o so u d o m u n d o [n u n ca p e rte n c í ao m u n d o ]" .
O m e s m o te m a d u a lís tic o a p a re c e em l j o 4,5-6: "D o m u n d o são,
p o r isso fa la m d o m u n d o , e o m u n d o o s o u v e . N ó s so m o s d e D eus;
a q u e le q u e c o n h e ce a D e u s o u v e -n o s; a q u e le q u e n ã o é d e D e u s não
nos ouve.
A s d u a s p rim e ira s lin h as d o v. 20 ex p ressam fig u ra d am e n te a tese
d e q u e o s d isc íp u lo s n ã o p o d e m ser su p e rio re s a Jesus. Isto é se g u id o
p o r d u a s sen ten ças condicionais. A p rim e ira c o rre sp o n d e ao tem a d e
p erseg u ição n o d isc u rso escatológico d o s sinóticos; a se g u n d a é ain d a
m ais rad ical, p o is im plica q u e a p a la v ra d o s d iscíp u lo s d e Jesus terá
a m esm a eficácia q u e a p a la v ra d o p ró p rio Jesus. O "E u vos escolhi"
d o v. 19 (e d e 16) tem resso n ân cias m issionárias: a p a la v ra d e Jesus
será a g o ra c o m u n ic ad a atra v és d a p reg ação e d o en sin o d o s discípulos.
N o AT, os p ro fe tas p o rta m a p a la v ra d e D eus, e com o Iah w eh disse a
E zequiel, "Eles n ão te o u v irão , p o rq u e n ão o u v irã o a m im " (Ez 3,7).
O m esm o se d a rá n o caso d o s d iscípulos. H á u m b o m p aralelo p a ra esta
ideia em M t 10,14 (o m esm o d iscu rso m issio n ário n o q u al e n co n tram o s
p aralelo s p a ra o tem a d e perseguição): Jesus in stru i seus m issionários,
"Se a lg u é m n ão vo s receber n e m o u v ir v o ssas p a la v ras, sacu d i o p ó
d e v o sso s p é s q u a n d o d eix arem aq u ela casa o u cid ad e". Jesus, pois,
p ro m e te ju ízo so b re tal cidade; m ais a d ia n te, em 10,40, ele diz: "A quele
q u e v o s recebe, a m im m e recebe, e q u e m m e recebe, recebe A quele
q u e m e e n v io u " (veja p. 933 acim a so b re Jo 13,20, q u e é p aralelo de
M t 10,40).
O v. 21 re s u m e o tem a d e p e rse g u iç ã o e explica su a cau sa. João u sa
u m a fó rm u la p a d rã o , " p o r ca u sa d e m e u n o m e " (p aralelo s sinóticos
1090 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

no gráfico (p. 1087); lP d 4,14; A t 5,41), u s a d a p o r c ristão s p a ra refe-


rir-se aos q u e e sta v a m se n d o p e rse g u id o s em ra z ã o d e co n fe ssa re m
a Jesus. O s ju d e u s se e sca n d a liz a m a n te o n o m e " C risto " p e lo q u a l
os cristão s p ro fe ssa v a m Jesus com o o M essias; o s ro m a n o s se ofen-
d e m a n te a reiv in d ic a çã o exclusiva d e q u e ele é "S e n h o r" o u kyrios,
u m títu lo p e lo q u a l o Im p e ra d o r (D om iciano) era co n h ecid o . M as, n o
p e n sa m e n to jo an ino, " p o r c a u sa d e m eu n o m e " significa m ais q u e tal
p ro fissão d e fé e m Jesus e n o s leva a té à ra z ã o b ásica d e p o r q u e Jesu s
n ão é aceito p elo m u n d o . Jesu s p o rta o n o m e d iv in o (veja p p . 1161-62
abaixo); o P ai lh e o u to rg o u (17,11-2); e isto significa q u e ele é a re-
velação e n c a rn a d a d e D eu s ao s h o m en s. P e rse g u ir os se g u id o re s d e
Jesu s p o r cau sa d e seu n o m e e q u iv a le a reje ita r a rev elação d e D e u s
em Jesus. Isto se to rn a claro n a s e g u n d a lin h a d o v. 21 q u e a trib u e a
p e rse g u içã o a o d e sco n h e c im e n to d e q u e o P ai e n v io u Jesus. E m 8,19;
10,30; 12,44; 14,9 (cf. l jo 2,23), Jesus re iv in d ic o u q u e so m e n te o s q u e
o co n h eciam tam b é m c o n h eceríam o Pai, d e m o d o q u e d esco n h ecê-lo
e q u iv alia d e sco n h e c e r o Pai. A q u i, a reiv in d ic a çã o é in v e rtid a : ig n o ra r
o Pai lev a a lg u é m a ig n o ra r Jesus. E sta in v e rsã o n ã o é s u rp re e n d e n te
se n o s lem b ra rm o s q u e so m e n te aq u e le s a q u e m o P ai lh e d e u p o d e m
ir a Jesu s (6,37.39); p o rta n to , esta a b e rtu ra ao P ai se re q u e r a n te s q u e
a lg u é m p o ssa se a b rir a Jesus. E sta a b e rtu ra ao Pai, q u e é d e m o n s tra d a
n u m a v id a h o n ra d a , é p re c isa m e n te o q u e falta a o m u n d o (3,19-20).
A ssim , Jesu s está e s te n d e n d o ao m u n d o a re s p o n s a b ilid a d e d e se ig-
n o ra r o P ai, a q u a l ele já lan ç o u c o n tra "o s ju d e u s " (5,37; 7,28). D e fato,
a d iscu ssão m a n tid a com "os ju d e u s " em 8,54-58 ilu stra b e m a id eia
e n c o n tra d a em 15,21. E m 8,54-55, Jesu s d iz a "o s ju d e u s " q u e eles n ã o
co n h ecem o P ai a q u e m reiv in d ic a m co m o se n d o o se u D eu s; e n tã o ,
n o v. 57, Jesu s p ro fe re o n o m e d iv in o , d iz e n d o "EU S O U ", e e m v ir-
tu d e d e seu u so d o n o m e d iv in o , "o s ju d e u s " te n ta m a p ed rejá-lo . N a s
p a la v ra s d e 15,21, fizeram estas coisas a Jesus p o r c a u sa d e s e u n o m e,
m o stra n d o q u e n ão c o n h eciam à q u e le q u e o e n v io u .

Versículos 22,25: A culpa do mundo

N o v. 21, a referência ao desconhecim ento leva ao tem a d a cu lp a


(o v. 21, co nsequentem ente, n ão só resu m e os vs. 18-20, m as tam b ém in-
tro d u z os vs. 22-25). H á n o N T diversas passagens o n d e lem os q u e os res-
ponsáveis p elo sofrim ento d e Jesus n ão ignoram o q u e faziam (Lc 2334;
54 · O último discurso: - Segunda seção (segunda subdivisão) 1091

A t 3,17); to d a v ia , q u a n d o em Jo 15,21 e o u tra v ez em 16,3, Jesus decia-


ra q u e o s q u e p e rs e g u e m se u s d isc íp u lo s faziam isso p e la falta d e co-
n h e c im e n to d o P ai (e d ele), n ã o h á in d ício a lg u m d e q u e tal ig n o rân cia
m in im iz a sse a c u lp a b ilid a d e . A o c o n trá rio , o d e sco n h e c im e n to em si
é c u lp á v e l. Jesu s h a v ia se a p ro x im a d o d a q u e le s h o m en s, com p ala-
v ra s (22) e com o b ras (24); to d a v ia , se rec u sa m a reconhecê-lo, e esta
rec u sa e m c re r é a raiz d o p ec ad o . P o rq u e as p a la v ra s e o b ras d e Jesus
são as p a la v ra s e o b ras d o P ai (5,36; 14,10), a rejeição e ó d io a Jesus
c o n stitu e m rejeição e ó d io ao Pai, com o o v. 23 d eix a claro. (Esta a titu -
d e le m b ra o re s p e ito q u e D eu s exige p a ra o P rofeta-com o-M oisés de
Dt 18,18-19: "E u p o re i m in h a s p a la v ra s em s u a boca. ... E será q u e
q u a lq u e r q u e n ã o o u v ir as m in h a s p a la v ra s em su a boca, q u e ele fa-
lar e m m e u n o m e, e u o req u e re i dele"). H o u v e d u ra n te o m in istério
a lg u n s q u e v ira m os sin ais d e Jesus e re a g ira m com e n tu siasm o , con-
fu n d in d o -o co m u m ta u m a tu rg o ; m as este co n h ecim en to im perfeito
a b riu c a m in h o p a ra p ro g re sso u lte rio r (4,46-54). M as a q u eles d e q u e m
Jesus e stá fa la n d o a q u i são os q u e re c u sa ra m até m esm o este p asso
inicial (veja vol. 1, p. 834). São co m o "o s ju d e u s " q u e n ã o q u ise ra m
crer q u e o cego tivesse sid o c u ra d o (9,18) e a q u e m Jesus disse: "Se
a p e n a s fôsseis cegos, n ã o seríeis c u lp a d o s d e p ecad o ; m a s ag o ra q u e
aleg ais v e r v o sso p e c a d o p e rm a n e c e " (9,41).
E m 12,38-39, a fim d e e x p lic ar e ssa in c a p a c id a d e d e c re r, o es-
c rito r jo a n in o re c o rre u à E sc ritu ra - foi p a ra se c u m p rir as p a la v ra s
d e Isa ía s q u e p re d is s e a in c re d u lid a d e . A ssim ta m b é m em 15,25, a
fim d e e x p lic a r o ó d io p a ra co m Je su s q u e se o rig in a n a in c re d u li-
d a d e , o a u to r re c o rre a u m sa lm o q u e fala d o ó d io se m ca u sa . Em -
b o ra h aja d o is sa lm o s d o n d e a citação p o d e ria se r tira d a (veja n o ta),
o SI 69,5 [4] é o c a n d id a to m ais p ro v á v e l; p o is e m o u tro s lu g a re s
n o s e v a n g e lh o s e ste sa lm o é a sso c ia d o à p a ix ã o e m o rte d e Jesus
(SI 69,22[21] e m Jo 19,29 e M c 15,36; o SI 69,10(9] e m Jo 2,17; h á tam -
b ém fre q u e n te re fe rê n c ia a o SI 69 n o A p o c a lip se [3,5; 13,8; 16,1;
17,8]). A lé m d o m ais, o c o n te x to d o SI 69 é m e lh o r p a ra o sig n ific a d o
q u e Jo ão d á à citação.
E d ig n o d e n o ta q u e, e n q u a n to o s vs. 22-25 d e se n v o lv e m o tem a
d a p e rse g u iç ã o , fazem isso d e u m a m an e ira p a rtic u la rm e n te joanina;
e n ã o h á p a ra le lo p a ra estes v e rsíc u lo s n o tra ta m e n to so b re a p erse-
g u ição e n c o n tra d o n o d isc u rso escatológico d o s sinóticos. R epresen-
tam u m b o m e x e m p lo d o d e se n v o lv im e n to q u e o s a u to re s jo an in o s
1092 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

têm d a d o ao m a te ria l tra d icio n a l c o m u m a João e aos sin ó tico s, com -


b in a n d o -o com o m ate ria l q u e é p e c u lia r à tra d iç ã o jo an in a.

Versículos 26-27: O testemunho do Parácleto

Sobre o p a n o d e fu n d o d a acusação fo rm u la d a p o r Jesus d e q u e


o ó dio d o m u n d o m anifesta q u e ele é c u lp a d o d e p ecad o , o tem a d o
P arácleto é in tro d u z id o p a ra p re p a ra r o cam in h o p a ra a descrição com
traços forense em 16,8-11, o n d e, co n v en ien tem en te, a m issão d o Pa-
rácleto será estabelecer a cu lp a e o p ec ad o d o m u n d o . O m u n d o tem
rejeitado a v era c id a d e d a s p a la v ras e o b ras d e Jesus, e o E spírito d a
v e rd a d e o d em o n stra rá. O m u n d o p e rse g u irá os d iscíp u lo s p o r cau-
sa d o n o m e d e Jesus, e p a ra co n fro n tar essa p erseg u ição o P arácleto
será e n v iad o em n o m e d e Jesus (14,26). N esta p erseg u ição , o d iscíp u -
lo cristão n ão se d estin a a ser u m a v ítim a passiva; o P arácleto h ab ita
nele (14,17), o teste m u n h o d o P arácleto contra o m u n d o se fará o u v ir
n a v o z d o s d iscípulos. Este ato co m b ativ o d e te ste m u n h a r p ro d u z irá
m ais h o stilid a d e p o r p a rte d o m u n d o (16,l-4a). A p a ssa g e m so b re o
P arácleto em 15,26-27 n ã o só antecipa as p a ssa g e n s q u e seg u em , m as
tam b ém se relaciona com o q u e acabara d e ser d ito p o r Jesus, p o is a vin-
da d o P arácleto p ro p icia u m a p ro fu n d a explicação d e p o r q u e o m u n -
d o trata os d iscíp u lo s d e Jesus d a m esm a m an e ira q u e o tem tra tad o .
O Parácleto rep re sen ta a presen ça d e Jesus e n tre os h o m en s (A p. V); e,
ao o d iar os d iscíp u lo s q u e são a h ab itação d o P arácleto, o m u n d o está
a tacan d o a c o n tín u a p resen ça d e Jesus n a terra. A trav és d a h ab itação d o
Parácleto, os d iscíp u lo s rep re sen ta m Jesus contra mundum.
E stu d io so s co m o W indisch têm a firm a d o q u e a s p a ssa g e n s so b re
o P arácleto re p re se n ta m u m a e s tra n h a a d ição a o ú ltim o d isc u rso ; em
p a rtic u la r, m u ito s têm p e n s a d o ser fácil d e m o n s tra r q u e 15,26-27 é
u m a p a ssa g e m in te rp o la d a . (Já M aldonatus rec o n h e c eu q u e 16,1 se g u e
15,25 m ais facilm en te d o q u e se g u e 15,26-27). E m c o n tra p a rtid a , Bar-
rett, p. 402, a rg u m e n ta : "T o d o o p a rá g ra fo m o stra m arc as tã o fo rtes
d e u n id a d e q u e p a re c e to ta lm e n te im p ro v á v e l q u e os v e rsíc u lo s so b re
o P arácleto fo ssem in se rid o s n o m a te ria l a n te rio rm e n te re d a ta d o " . Su-
g erim o s q u e a p re se n te p a ssa g e m p o d e ser a ch a v e d e c o m o a fig u ra d o
P arácleto v eio a exercer u m p a p e l tão im p o rta n te n o ú ltim o d isc u rso
Joanin o . Se ac eita rm o s a e v id ê n c ia d e n o sso gráfico d e q u e 15,18-16,4a
co n tém m ate ria l tra d icio n a l p a ra le lo ao q u e o ra se e n c o n tra n o ú ltim o
54 · O último discurso: - Segunda seção (segunda subdivisão) 1093

d isc u rs o d o s sin ó tico s, é d e g ra n d e im p o rtâ n c ia q u e em M t 10,20 (cf.


M c 13,11) haja u m a referên cia ao E sp írito d o Pai fala n d o a tra v é s do s
d isc íp u lo s. N o A p ê n d ic e V, e n fa tiz a re m o s q u e o p e rfil jo an in o d o Pa-
rác leto n ã o p o d e se r sim p le sm e n te e q u ip a ra d o ao q u a d ro g eral q u e
o N T oferece d o E sp írito - o P arácleto é o E sp írito sob u m asp ecto
p a rtic u la r, e p a ra a fo rm ação d o conceito têm su rg id o e le m en to s es-
tra n h o s; p o r ex em p lo , e le m en to s o riu n d o s d a a n g elo lo g ia e o d u alis-
m o. C o n tu d o , é p re c isa m e n te e sta m en ção d o E sp írito n o co n tex to d a
p e rse g u iç ã o im in e n te d o m u n d o q u e p o d e ria a tu a r co m o c a ta liz a d o r
p a ra o d e s e n v o lv im e n to d a c o m p re e n sã o q u e João tev e d o P arácleto.
N o ta m o s q u e ao P arácleto se d á o títu lo d e "o E sp írito d e V e rd a d e"
em 15,26, títu lo q u e Q u m ra n a trib u e a o líd e r d a s forças d o b e m co n tra
as forças d o m a l (veja A p. V). A lém d o m ais, o P arácleto tem m ais
em c o m u m co m a d escrição d o E sp írito n o d isc u rso escatológico nos
sin ó tico s d o q u e te m com a m a io r p a rte d a s o u tra s descrições sinóti-
cas d o E sp írito . O P arácleto é o u to rg a d o p e lo P ai (Jo 14,16); a m enção
sin ó tica d o E sp írito n a h o ra d a p e rse g u iç ã o está em u m contexto o n d e
Jesus p ro m e te q u e o q u e os d isc íp u lo s tiv e rem q u e d iz e r lh es será dado
(M t 10,19-20; M c 13,11). In d u b ita v e lm e n te , tem o s d e e n te n d e r q u e
D eus é o d o a d o r, p o is o p a ssiv o é fre q u e n te m e n te u m a circunlocu-
ção p a ra e v ita r a m en ç ã o d o n o m e d iv in o . (M t 10,20 co n firm a isto,
fala n d o d e "o E sp írito de vosso Pai". É in te re ssa n te q u e Lc 21,15 faz d e
Jesus o d o a d o r d e "elo q u ê n c ia e sa b e d o ria " n e ste m o m e n to d e p er-
seg u ição - Jo ão tam b é m a lte rn a e n tre o P ai e Jesus com o a q u e le q u e
en v ia o P arácleto). O s sin ó tico s no s esclarece q u e este d o m co m u n i-
cará ao s d isc íp u lo s o q u e d e v e rã o d izer: "P o is n ão sereis vó s q u e m
falará, e sim o E sp írito d e v o sso P ai fala n d o a tra v é s d e v ó s" (M t 10,20;
Mc 13,11 tem "o E sp írito S anto"). O p a p e l d e d a r te ste m u n h o em tem -
pos d e p e rse g u iç ã o e d e fazer a ssim a tra v é s d o te ste m u n h o d o s dis-
cíp ulo s é p re c isa m e n te o p a p e l a trib u íd o ao P arácleto em Jo 1 5 ,2 6 2 7 ‫־‬.
O p a ra le lo lu ca n o p a ra esta afirm ação em M ateu s e M arcos n ão se
en co n tra n o d isc u rso escatológico, e sim em Lc 22,12: "P o is o E spírito
Santo v o s ensinará n a q u e le m o m e n to o q u e d ev eis d ize r"; e em Jo 14,26
d esco b rim o s q u e o P arácleto "v o s e n sin a rá to d a s as coisas". C ertam en -
te, os sin ó tico s d e scre v e m o E sp írito co m o o d e fe n so r d o s d iscíp u lo s
d ian te d a s v á ria s a u to rid a d e s , e n q u a n to João re tra ta o P arácleto com o
o a c u sa d o r d o m u n d o . M as esta d iferen ça é p a rte d a n o v a o rien tação
no d e s e n v o lv im e n to jo an in o ; ela n ã o v icia as sem elh an ças, in c lu in d o a
1094 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

d o cenário forense. P ara concluir, p o is, h á u m a p o ssib ilid ad e d e que,


q u a n d o o m aterial trad icio n al sobre a p erseg u ição q u e ag o ra se encon-
tra em 15,18-16,4a foi in tro d u z id o n o contexto d o ú ltim o d iscu rso , a des-
crição d o E spírito com funções judiciárias n esse m aterial foi u m catali-
z a d o r p a ra a form ação d a d escrição joanina d o P arácleto q u e e n c o n tro u
seu cam in h o p a ra as o u tra s divisões e su b d iv isõ es d o ú ltim o d iscurso.
O p rocesso teria sid o facilitado se já h o u v esse u m a m en ção d o E spírito
nas fo rm as m ais an tig as d o ú ltim o discurso, alg o su g e rid o p e la p resen -
ça d e d u a s p assag en s d o P arácleto e m 13,31-14,31 e e m 16,4b-33, os dis-
curso s d u p lic a d o s q u e tem o s u sa d o com o u m g u ia p a ra a form a o riginal
d o ú ltim o discurso. Esta m enção original (hipotética) d o E spírito en tã o
teria sid o tra n sfo rm ad a na p rese n te descrição d o Parácleto. A ssim , a
q u estão se as p assag en s sobre o P arácleto foram o rig in alm en te p a rte d o
ú ltim o d iscu rso p o d e req u e re r u m a resp o sta com m u itas n u an ças.
Berrouard, art. cit., tem a rg u m e n ta d o q u e o te s te m u n h o d o P ará-
cleto (15,26) e o te ste m u n h o d o s d isc íp u lo s (27) n ã o são d o is te ste m u -
n h o s se p a ra d o s. Isto e stá e m h a rm o n ia com M t 10,20, o n d e é d ito o Es-
p írito falará a tra v é s d o s d iscíp u lo s. A c o o rd e n a ç ão d o s te ste m u n h o s
em 26 e 27 lem b ra a d e A t 5,32: "S om os te ste m u n h a s d e sta s coisas, n ó s
e tam b ém o E sp írito S anto, a q u e m D e u s tem d a d o ao s q u e lh e obe-
d ecem ", q u a n d o esse v ersícu lo é in te rp re ta d o à lu z d e A t 6,10: "E n ã o
p o d ia m resistir à sa b ed o ria, e ao E sp írito com q u e falav a". (Veja tam -
b ém A t 15,28: " N a v e rd a d e p a re c e u b em ao E sp írito S an to e a n ó s").
O P a rá c le to /E s p írito é in v isív el a o m u n d o (14,17), d e m o d o q u e a ú n i-
ca m an e ira d e seu te ste m u n h o ser o u v id o é a tra v é s d o te ste m u n h o
d o s d iscíp u lo s. A gostinho e n te n d e u isto p e rfe ita m e n te: " P o rq u e ele
falará, tam b é m falareis - ele, em v o sso s corações; vós, em p a la v ra s;
ele, p o r in sp iração ; v ó s, p e lo s so n s" (In Jo. 43,1; PL 35:1864). O teste-
m u n h o d o E sp írito e o te ste m u n h o d o s d isc íp u lo s e stã o e m relação
e n tre si em g ra n d e m e d id a d a m esm a m a n e ira q u e o te s te m u n h o d o
Pai se relacio n a com o te ste m u n h o d o Filho. Em 8,18, Jesu s disse: "E u
d o u te s te m u n h o d e m im m esm o , e ta m b é m o Pai, q u e m e e n v io u ,
d á te ste m u n h o d e m im "; m as a afirm ação n o v ersícu lo se g u in te ("Se
m e reco n h ecésseis, reco n h ecerieis tam b é m a m e u P ai") m o stra q u e
so m e n te u m te s te m u n h o o u te ste m u n h a e stá e n v o lv id o , a sa b er, o d o
P ai m a n ife sta d o a tra v é s d e Jesus.
A ú ltim a linha d o v. 27 indica q ual será o tem a d o teste m u n h o d a d o
pelo Espírito através d o s discípulos. Eles são as únicas te ste m u n h a s,
54 · O último discurso: - Segunda seção (segunda subdivisão) 1095

p o rq u e têm v iv id o com Jesus, e é a p a la v ra d e le q u e d e v e se r lev ar


ao m u n d o . Isto c o n c o rd a com o q u e o u v im o s d o P arácleto em 14,26
("Ele v o s fará le m b ra r d e tu d o o q u e e u v o s d isse [a m e u resp eito ]")
e e m 16,13-14 ("E le n ã o falará d e si m esm o . ... É d e m im q u e ele re-
ceb erá o q u e h á d e v o s d e c la ra r"). A lém d o m ais, isto c o n co rd a com
o u tra s refe rê n c ia s jo a n in a s ao te ste m u n h o d o s d isc íp u lo s n o p e río d o
p ó s-re ssu rreiç ã o : em l j o 1,2 e 4,14, d a r te ste m u n h o é c o m b in a d o com
a d eclaração : " N ó s m esm o s tem o s v isto ". Jesus é a s u p re m a revela-
ção d e D e u s ao s h o m en s; n ã o p o d e h a v e r n e n h u m o u tro te ste m u n h o
ao m u n d o se n ã o o te ste m u n h o q u e ele dá. T o d o s os o u tro s teste m u -
n h o s d o P arácleto , a tra v é s d o s d isc íp u lo s, sim p le sm e n te in te rp re ta m
a q u e le te ste m u n h o .

Versículos 16,1-áa: A perseguição aos discípulos

R ea p a re c e a q u i, a m o d o d e in clu são , o tem a d o s vs. 18-21, m as


ag o ra o a u to r d e ix a claro q u e ele v ê o ó d io d o m u n d o co n tra os disci-
p u lo s c ristão s, p la s m a d o n o tra ta m e n to q u e receb em d a sin ag o g a (com
o q u e se c o n d e n sa m p o lem ic a m en te , sin ag o g as, p risõ es, g o v e rn a n tes
e reis q u e c o n s titu e m os p e rse g u id o re s n o s relato s sinóticos). A o di-
v id ir o m a te ria l rela tiv o a p e rse g u içã o , p a ra q u e p a rte s d ele v iesse no
início d a s u b d iv isã o e u m a p a rte v iesse n o final, é p o ssív el q u e o au-
tor te n h a p re te n d id o u m d e se n v o lv im e n to d e su a s idéias. O p rim ei-
ro g ru p o d e v e rsíc u lo s (15,18-21) se g u e 15,1-17, u m a p a ssa g e m q u e
fala d o a m o r d e Jesu s p a ra com se u s d isc íp u lo s, d e m o d o q u e o ód io
do m u n d o e stá em c o n tra ste com o a m o r cristão. O se g u n d o g ru p o
(16,1-4a) se g u e a m en ção d o P arácleto e se o c u p a d o s m eio s específi-
cos d a p e rs e g u iç ã o q u e se rã o a d o ta d o s p a ra im p e d ir q u e os cristãos
d êem v o z o te s te m u n h o d o P arácleto.
P o r d u a s v ezes (vs. 1 e 4a) n e ste s ú ltim o s v e rsíc u lo s Jesus explica
p o r q u e ele e stiv e ra fala n d o ao s d isc íp u lo s acerca d a p e rse g u içã o fu-
tu ra. A r a z ã o é p a ra im p e d ir q u e a fé d e le s fosse a b a la d a ("escân d alo ";
veja n o ta). E ste tem a d e e scâ n d a lo a p a re c e n a s p a la v ra s d e Jesus n a úl-
tim a ceia, e m M c 14,27 (M t 26,31), o n d e ele p re d iz q u e, q u a n d o ele so-
frer p e rse g u iç ã o , to d o s v o s d isp e rsa re is, i.e., "se e sca n d a liz a rã o ". (En-
q u a n to João te m a q u i o tem a d e e scâ n d a lo , a d isp e rsã o d o s d isc íp u lo s
a p a re c e a té 16,32). E m Jo ã o , o te m o r d e e s c â n d a lo e n tr e o s d is c íp u -
los v a i a lé m d e s u a re a ç ã o a n te a p r is ã o d e J e su s e a b a rc a ta m b é m a
1096 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

d e s ilu d id a reação d e le s d ia n te d a s fu tu ra s p erseg u içõ es. P o d e te r h a v i-


d o u m a te n d ê n c ia d e e s p e ra r a felicid ad e m essiân ica a p ó s a v itó ria d e
Jesus, e talv ez a lg u n s estiv e sse m co m e ç a n d o a p e n s a r q u e s u a fé e m Je-
su s era v ã q u a n d o n o m u n d o se d e p a ra ra m com g u e rra , e m v e z d e p a z .
A lem b ran ça d e q u e Jesu s p re d isse ra isto p o d e ria e lim in a r o e le m en -
to d e e scâ n d a lo (cf. a p sico lo g ia d e l P d 4,12). M as, c e rta m e n te , a lé m
d e ste m o tiv o d e a n te c ip a r e e v ita r c h o q u e , o p rin c ip a l d esejo d o Jesu s
jo an in o é ex p licar c la ra m e n te q u e o conflito com o m u n d o é in ev itá -
vel, p o is ele s u rg e d a a titu d e n a tu ra l d o m u n d o p a ra com D eus.
A s p a la v ra s d o v. 2 m o stra m q u e o ev a n g elista tin h a u m a ra z ã o
p rática p a ra re g istra r estas p a la v ra s d e Jesu s, a sa b er, q u e a c o m u -
n id a d e cristã e sta v a em o p o sição com a sin a g o g a (vol. 1, p p . 67-74).
Q u e n o p e n s a m e n to jo an in o a sin a g o g a p o d ia ser id e n tific a d a co m
o m u n d o m a u e h o stil, se v ê p e lo e p íte to "sin a g o g a d e S a ta n á s" em
A p 2,9 e 3,9. Jo ão n ã o se refere ao fato d e os cristão s se re m a ç o ita d o s
o u flag elad o s n as sin a g o g a s (assim M c 13,9; M t 10,17), e sim à su a
e x p u lsã o d a s sin ag o g as; isto in d ic a q u e a situ a ç ão c o rre s p o n d e a d o s
an o s 80 e 90, q u a n d o a e x c o m u n h ã o e sta v a s e n d o in v o c a d a c o n tra
os ju d e u s q u e p ro fe ssa v a m Jesus co m o o M essias. Veja a n o ta so b re
a p o ssib ilid a d e d e q u e os ju d e u s e sta v a m e n tre g a n d o o s ju d e u s cris-
tão s à m o rte, co n v e n cid o s q u e com isso e sta v a m se rv in d o a D eus.
O m ais p ro v á v e l é q u e g ra n d e p a rte d a s p re d iç õ e s g e ra is feitas p o r
Jesus d e fu tu ra s p erse g u içõ e s a n te s d a v itó ria m essiân ica c o m p le ta
ten h a sid o e sp ecificad a e m term o s d a situ a ç ão c o n te m p o râ n e a . P a u lo ,
q u e em g ra n d e m e d id a so fre u p o r p a rte d a sin a g o g a , a c h o u q u e isso
seria p ro v eito so a fim d e q u e to d o o Israel fosse sa lv o (R m 11,26);
m as, p a ra João, os ju d e u s d a sin a g o g a re p re s e n ta v a m o m u n d o em
su a o p o sição ao Pai: " N u n c a c o n h eceram o Pai n e m a m im " (16,3).
U m a v e z m ais, lem b ram o s ao leitor, com o já fizem o s n o vol. 1, p. 637
q u e a a titu d e jo an in a p a ra com a sin a g o g a d e v e se r a v a lia d a à lu z d o
co n tex to p o lêm ico d e su a época.
Já n o tam o s as sem elhanças existentes e n tre 16,3 e 15,21. T e n d o se-
p a ra d o o m aterial p e rtin en te à p erseg u ição em d o is g ru p o s, u m n o iní-
cio e o o u tro no final d a su b d iv isão , o desejo d o a u to r p o d e ria ser o d e
reiterar a cau sa d e sta perseguição. Tal com o ag o ra se e n c o n tra o v. 3 é
qu ase p aren tético , in te rro m p e n d o o fluxo d o p e n sa m e n to d e 2 a 4.
O v. 4a re ite ra d e u m a m an e ira lev e m en te m ais p o sitiv a o q u e
foi d ito n o v. 1. A fo rm a d e ex p ressar-se, " p a ra que... v o s lem b reis d e
54 · O último discurso: - Segunda seção (segunda subdivisão) 1097

q u e e u v o -lo d isse " , é p a rtic u la rm e n te a p ro p ria d o a p ó s o tem a d o Pa-


rácleto d e 15,26-27, p o is u m a d a s fu n çõ es d o P arácleto será lem b rar
os d isc íp u lo s d e tu d o o q u e Jesus lhes h a v ia d ito (14,26). C e rtam en te,
n a m e n te d o a u to r, a ap licação d o s d ito s tra d icio n a is d e Jesus sobre
p e rse g u iç ã o à situ a ç ã o d a p o lêm ica ig re ja /s in a g o g a n o final d o século
é p re c is a m e n te u m a o b ra d o P arácleto, p o is este E sp írito rec o rd a d e
m an e ira v iv a e a d a p ta a tra d iç ã o d a s p a la v ra s d e Jesus a u m a situ a-
ção ex isten cial. E m se u "E u v o s te n h o d ito " , Jesu s está fala n d o a u m a
n o v a g eração , fa la n d o a tra v é s d o P arácleto q u e a g o ra é su a p resen ça
e n tre o s h o m en s.

[A B ibliografia p a ra esta seção está inclu sa n a B ibliografia p a ra o


cap. 16, n o fin al d o §56.]
5 5 .0 ÚLTIMO DISCURSO:
- SEGUNDA SEÇÃO (TERCEIRA SUBDIVISÃO)
PRIMEIRA UNIDADE (16,4b-15)

A partida de Jesus e a vinda do Parácleto

16 410 ^ ‫ ן«נ‬p r in cíp i0 , e u n ã o v o s d isse isto,


p o rq u e e sta v a convosco;
5m as ag o ra v o u p a ra A q u e le q u e m e e n v io u .
T o d av ia, n e m u m d e v ó s m e p e rg u n ta : T a r a o n d e e stá s in d o ? '
6J u sta m e n te p o rq u e e u vo s d isse isto,
v o sso s corações se e n c h e ra m d e tristeza.
7C o n tu d o , e sto u d iz e n d o -v o s a v e rd a d e :
co n v ém -v o s q u e e u vá.
P ois se e u n ã o for,
o P arácleto jam ais v irá p a ra vós;
to d av ia , se e u for,
e u v o -lo en v iarei.
8E q u a n d o e u for,
ele c o n v en cerá o m u n d o d o
p ec ad o ,
justiça,
e juízo.
9P rim eiro , p e c a d o -
p o rq u e se rec u sa m c re r em m im .
10E ntão, ju stiça -
p o rq u e v o u p a ra o Pai,
e n ã o m ais m e v ereis.
55 · O último discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão) 1099

11F in a lm en te , ju ízo -
e m q u e o P rín c ip e d e ste m u n d o já está ju lg ad o .
12T e n h o m u ito m ais a d izer-v o s,
m a s n ã o o p o d e is s u p o rta r ag o ra.
13T o d a v ia, q u a n d o ele v ier,
o E sp írito d a V e rd a d e,
ele v o s g u ia rá a to d a a v e rd a d e .
P o rq u e ele n ã o falará d e si m esm o ,
m a s falará o q u e o u v ir
e v o s d e c la ra rá as coisas p o r vir.
14Ele m e g lo rificará,
p o rq u e h á d e receb er d o q u e é m eu ,
e v o -lo h á d e a n u n c ia r.
15T u d o o q u e o P ai tem é m eu ;
eis p o r q u e e u disse:
Έ d e m im q u e ele recebe
o q u e h á d e v o s d e c la ra r‫"׳‬.

NOTAS

16.4b. no princípio, arches, encontrado tam bém em 6,64, literalm ente é "des-
de o princípio"; como ap' archês em 15,27, significa desde o princípio de
m eu ministério.
eu não vos disse isto. Literalmente, "estas coisas", a saber, a inevitabilida-
de da perseguição por parte do m undo, como acabamos de discutir em
15,18-16,4a. Jesus fez referência simbólica à necessidade de sofrimento
e m orte em 12,24-26, m as aquela passagem já estava sob a rubrica de
"a hora" (12,23). Também nos sinóticos, a ameaça de perseguição futura
contra os discípulos tende a vir depois na vida de Jesus; por exemplo, no
discurso escatológico. As vezes não podem os depender dos ditos crono-
lógicos do evangelho, m as não é im plausível neste caso.
porque estava convosco. Uma razão lógica para não falar de perseguição no
princípio (João pressupõe que Jesus o previu desde o princípio) teria sido
o desejo de não am edrontar os discípulos antes que começassem a enten-
der e a crer. Mas esta não é a razão que Jesus oferece. Pode ser que a ideia
seja que, enquanto estava com eles, toda perseguição se deflagrava contra
ele. Somente quando ele partir é que haverá problem a para seus discípu-
los, os quais virão a ser os principais porta-vozes da palavra de Deus.
1100 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

5. mas agora. Em "a hora" como contrastado com "no princípio".


vou para Aquele que me enviou. Em 7,33, Jesus disse às m ultidões: "Por pouco
de tem po estou convosco, e então vou [hypagein] para Aquele que m e en-
viou". Note como o tema de voltar para o Pai dom ina sua atitude diante
da morte. A partida de Jesus foi um tema frequente no cap. 14, fraseado
num vocabulário variado (nota sobre 14,2). Sem elhantem ente, aqui no
cap. 16: nos vs. 5 e 10 "ir" é hypagein (também 13,33.36; 14,4.5.28); no
v. 7, "partir" é expresso duas vezes por aperchesthai, enquanto "vou" é
poreuesthai (também 14,2.3.12.28).
6. isto. Literalmente, "estas coisas".
vossos corações se encheram de tristeza. Literalmente, "a tristeza encheu vosso
coração"; para o singular "coração", veja nota sobre 14,1. O tem a da tris-
teza (lypê) é forte neste capítulo, aparecendo outra vez nos vs. 20,21 e 22.
No cap. 14, ele está implícito no v. 1: "N ão se turbe os vossos corações".
Para "encher de tristeza" a versão gótica traduz "feito insensível pela
tristeza" (cf. 12,40).
7. estou dizendo-vos a verdade. Jesus usou esta expressão ao falar a "os judeus"
em 8,45-46 (cf. o tom de segurança em Rm 9,1; ITm 2,7). Se trata mera-
mente de um a segurança, ou a "verdade" tem sua conotação joanina es-
pecial de revelação divina? O que segue no capítulo é parte do que Jesus
veio para revelar.
convém-vos. Esta expressão ocorreu em 11,50 ("que convém ter..."; será reitera-
da em 17,14), e ah também diz respeito à morte de Jesus.
jamais virá para vós. A negativa (mg + o subjuntivo) é enfática. Talvez a ne-
gativa mais branda (ou mais o futuro) que aparece na tradição bizantina
pode representar um a modificação teológica; cf. nota sobre 7,39, "o Espí-
rito ainda não fora dado".
se eu for. Toda esta últim a condição é om itida em P66‘ por hom oioteleuton.
eu vo-lo enviarei. Aqui, como em 15,26, Jesus envia o Parácleto; em 14,26, o
Pai o envia.
8. ele convencerá... Tem havido muita discussão sobre os possíveis significados
de elenchein peri ( B a r r e t t , p. 4 0 6 ; D e La P o t t e r i e , "Le paraclet", pp. 5 1 - 5 2 ) .
Buscaremos dar um a interpretação apropriada para as três frases regi-
das pelo mesmo verbo neste versículo, em bora alguns tenham trabalha-
do com a ideia de que o significado m uda de frase para frase (cf. A. H.
S t a n t o n , ET 3 3 [ 1 9 2 1 - 2 2 ] , 2 7 8 - 7 9 ) . O verbo significa tanto "trazer à luz,

expor" como "convencer alguém de algo" (tam bém "corrigir, punir",


mas tal significado não é pertinente aqui). B a r r e t t prefere o segundo
significado por causa da analogia de 8 , 4 6 , onde Jesus desafia "os judeus"
a convencê-lo de pecado. Mas se examinarm os os três elem entos regidos
55 · O último discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão) 1101

pela preposição peri em 16,8, descobriremos que "convencer de" só é


apropriado para o prim eiro elemento, precisam ente porque ali ele é um a
questão do pecado do m undo. Mas "convencer de" é m enos apropria-
do para o segundo e o terceiro elementos, pois não se trata da justiça
do m undo, nem do juízo do m undo. A ideia é que, num a inversão do
julgam ento de Jesus, o m undo se acha culpado de pecado em que ele não
reconheceu a justiça de Deus no Jesus glorificado, e esta m esm a convic-
ção é u m juízo sobre o Príncipe deste m undo que acusou Jesus e o levou
a m orte. Assim, a sentença "convencer o m undo da justiça e do juízo"
não é um a tradução tão satisfatória. Um a tradução em termos de expor
a culpa do m undo em relação aos três elementos parece mais apta para
captar a am plitude da ideia. (O Testamento de Judá 20,5 tem um paralelo
interessante: "O espírito da verdade acusará a todos"; m as ali o verbo é
katêgorein ) N o uso de elenchein peri e men... de... de coordenando para es-
tabelecer um padrão nos vs. 9,10 e 11, respectivamente, João mostra uma
elegância de estilo quase clássica. A "atraente" paráfrase da NEB é digna
de nota: "m ostrará onde está a culpa, o direito e a justiça". Bultmann
pensa que na Fonte do Discurso de Revelação o v. 8, com sua linguagem
jurídica, seguia diretam ente os vs. 15,26, de m odo que a prova da culpa-
bilidade do m undo constitui o testem unho que o Parácleto havia de dar
em favor de Jesus. Esta interpretação do significado é correta indepen-
dentem ente de se aceitar ou não a sequência proposta.
pecado. Os três substantivos, "pecado", "justiça", "juízo" não têm artigo -
o autor está tratando de idéias básicas, e não de casos individuais. Este
efeito é intensificado pela falta de quaisquer genitivos esclarecedores
("pecado do m undo"; "justiça de Deus em Jesus"; "julgam ento do Prín-
cipe do m undo" - há um a tentativa de suprir estes em OSsin, com base na
inform ação em 9,10 e 11). A questão não é prim ariam ente quem pecou,
e sim em que consiste esse pecado (B ultmann, p. 434).
justiça. A palavra dikaiosyriê, tão im portante nas cartas paulinas, em João
ocorre som ente nestes versículos. Sabido é que, em relação o NT em
geral, se apresenta o problem a de qual pode ser sua m elhor tradução
"retidão" ou "justiça", m as o am biente judicial, nesta passagem , parece
tornar "justiça" m ais apropriada. Certam ente, a palavra tem um contex-
to mais am plo do que justiça forense; em particular, a "justiça de Deus"
envolve tanto sua santidade quanto sua majestade. O papiro Bodmer III,
um a versão Bohairic de João datada do 4“ século recentem ente desco-
berta, traz "verdade" em vez de "justiça". E. M assaux, NTS 5 (1958-59),
211, sugere que esta pode ser um a redação gnóstica, pois no pensam ento
gnóstico verdade era m ais im portante que justiça.
1102 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

juízo. Krisis, aqui com m atiz condenatória, como vem os à luz do v. 11. Veja
nota sobre 3,17, "condena".
9. Primeiro. Traduzim os a construção de men... de... de em 9,10 e 11 po r "pri-
meiro... então... finalmente".
Porque. Hoti pode ser traduzido "porque" (Bareeit, p. 406), m as a principal
ênfase parece ser explicativa antes que causativa (B ultmann, p. 4343).
se recusam crer em mim. O tem po presente (literalmente, "não crê") indi-
ca incredulidade prolongada. Uns poucos m anuscritos gregos e a Vulg.
Trazem um aoristo que enfatizaria a decisão de não crer tom ada um a vez
para sempre. A obstinação do incrédulo já foi indicada em 15,22.
10. justiça - porque vou para 0 Pai. Em outras passagens no NT Jesus é cha-
m ado de justo no sentido que ele é m oralm ente virtuoso (ljo 2,1.29; 3,7);
aqui, porém , Jesus é justo no sentido de alguém que foi vindicado ante o
tribunal (cf. Dt 25,1, onde os juizes absolvem o saddiq). Ele está na pre-
sença do Pai e por isso participa da justiça de Deus, diante de quem não
pode perm anecer nada injusto.
0 Pai. A tradição bizantina traz "m eu Pai".
e não mais me vereis. O tem po presente de theõrein. Em 14,19, Jesus disse:
"Ainda um pouco, e o m undo não m e verá mais, m as vós m e vereis
[theõrein]". Nas pp. 1024-27 acima, sugerim os que, enquanto 14,19 pode
ter-se referido originalm ente às aparições pós-ressurreição, ela foi rein-
terpretada em círculos joaninos em referência a um a presença m ais per-
m anente e não corpórea de Jesus depois da ressurreição, especialm ente
para sua presença no Parácleto. Este versículo não necessita de reinter-
pretação; ele se refere diretam ente ao período em que a presença de Jesus
entre os discípulos no Parácleto já não é visível.
11. ;0 está julgado. Krinein·, veja krisis em 8. A ideia de que no p ró p rio fato
da m orte de Jesus o dom ínio de Satanás foi encerrado parece ter sido
com um nos tem pos do NT. H b 2,14 fala da m orte de Jesus nulificando
o p o d er da m orte (um p o d er do diabo). O final de M arcos em m anus-
critos independentes diz: "O lim ite dos anos d a autoridade d e Satanás
já se cum priu". Todavia, 1 João suscita um a dificuldade: enquanto os
cristãos são louvados po r já terem vencido o M aligno (2,13), e se afir-
m a que o m u n do já p assou (2,17), lem os que o m undo inteiro ain d a jaz
sob o p o d er do M aligno (5,19). Assim , enquanto derrotado, o Príncipe
deste m u n d o m antém o p o d er em seu p róp rio dom ínio (veja Ef 2,2;
6,22). A lguém p o d e tam bém p o n d erar sobre Ap 20,2-3, onde o diabo
ou Satanás fica preso p o r m il anos, antes de ser solto no m u n d o m ais
um a vez. Fica claro, contudo que Satanás não tem m ais p o d e r algum
sobre o crente.
55 · O último discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão) 1103

12. muito mais. Literalmente, "ainda m uitas coisas"; o "ainda" é om itido por
T aciano, OSsin e alguns testem unhos patrísticos.
não podeis suportar. B arrett, p. 407, observa que este uso de bastazein não é
m uito com um em grego, e pode refletir um a ideia semítica (heb. nãéã,
ou o rabínico, sãbal). Enquanto a ideia básica é que não podem entender
agora, há tam bém a questão de "suportar", porque está envolvida a per-
seguição pelo m undo.
0. O objeto pronom inal não está expresso, m as é suprido por alguns teste-
m unhos ocidentais.
agora. Isto é om itido no Codex Sinaiticus e em alguns m anuscritos menores
das versões. SB [La Sainte Bible] sugere que um a forma mais abreviada
deste versículo pode ter sido original: "Eu tenho m uito a dizer-vos, mas
não podeis suportar isto".
13. Espírito da Verdade. Este título apareceu na prim eira passagem sobre o Pa-
rácleto (14,17), bem como em 15,26. Bultmann a considera como a adição
do evangelista ao m aterial tom ado da fonte do discurso de revelação.
Veja Ap. V.
vos guiará. O verbo hodêgein está relacionado com hodos, "caminho" (14,6:
"Eu sou o caminho"); o verbo é usado em Ap 7,17 para descrever como
o Cordeiro conduz os santos à água viva. Alguns dos Padres gregos
(G rilo de Jerusalém, E usébio) leem outro verbo aqui, a saber, diêgeisthai,
"explicar"; e este verbo pode estar por detrás da tradução da Vulg.: "ele
vos ensinará" - tradução que faz a segunda passagem sobre o Parácleto no
cap. 16 ecoar a segunda passagem do Parácleto em 14 (26: "vos ensinará
tudo"). As testem unhas textuais estão mais uniformemente divididas so-
bre qual preposição se deve ler com hodêgein Vaticanus e Alexandrinus
leem eis, "para dentro", enquanto o Sinaiticus, Bezae e o OL leem en, "em".
Entre os comentaristas modernos, W estcott, L agrange, B ernard, B ult-
mann, B raun, L eal e M ollat preferem eis, enquanto Barrett, G rundmann
e M ichaelis preferem en. Alguns objetam contra eis com base de que a ver-
dade não é o alvo da orientação do Parácleto, pois a própria orientação é
a verdade; consequentemente, preferem en que indica que a verdade é a
esfera da ação do Parácleto. Todavia, D e L a P otierie, "Le paraclet", p. 451, res-
ponde que eis tem um significado mais amplo do que apenas direção: pode
significar tam bém que o m ovimento term inará no interior do lugar para o
qual é dirigida e, assim, pode expressar adequadam ente como a orientação
do Parácleto se relaciona com a verdade. Provavelmente, se atribua uma
importância excessiva às matizes que expressam as distintas preposições,
quando a realidade é que estas se utilizavam sem m uita distinção naquela
época. (BDF, §218; m as De L a P otterie não concordaria).
1104 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

de toda a verdade. "Toda" é om itido pelo Sinaiticus e na versão Bohairica;


sua posição varia em outros manuscritos.
porque. Esta conjunção m ostra que a função orientadora do Parácleto de
guiar ao longo do caminho de toda a verdade se relaciona com seu falar
sobre o que ele ouviu de Jesus.
não falará de si mesmo. Isto foi tam bém dito do Filho (12,49; 14,10).
mais falará 0 que ouvir. Os Codices Vaticanus e Bezae (um a combinação
m uito forte) trazem o tem po futuro de "ouvir"; o Sinaiticus traz o pre-
sente; a tradição bizantina, por desejo de m elhoram ento gram atical, lê o
subjuntivo com an ("tudo o que pu d er ouvir"). A escolha entre o futuro e
o presente é difícil de se fazer. É duvidosa a sugestão de que o tem po pre-
sente representa um a adaptação à teologia trinitária (o Espírito continua
ouvindo). Em outras passagens, a obra do Parácleto é descrita em am bos
os tempos, futuro ("ensinará", em 14,26; "provará", em 16,8; "guiará",
em 16,13) e presente (frequentemente proléptico: "perm anece" e "está",
em 14,17 - veja nota ali). Note a variação sem sentido entre "receberá" e
"recebe" no dito registrado em 14 e 15 abaixo. O princípio de preferir a
redação mais difícil se inclina para a aceitação do tem po presente aqui,
pois todos os verbos no contexto im ediato são futuros, e tun copista se
veria tentado a fazer este verbo conform ar-se com os demais. Em qual-
quer caso, deve-se notar que o tem po usado para o Parácleto difere do
aoristo usado para Jesus em 8,26: "o que dele tenho ouvido, isso falo
ao m undo" (também 12,49). W estcott, p. 230, sustenta que a diferença
de tem po implica que a m ensagem que o Filho tinha que enunciar era
completa e definida, enquanto a m ensagem do Parácleto é contínua e se
prolonga no tempo. Duvidam os sobre a validade desta distinção: visto
que João considera a m ensagem do Parácleto como sendo a de Jesus, a
m ensagem do Parácleto é do mesmo m odo completa. (Por outro lado, os
verbos no tem po presente são usados tam bém para o que Jesus recebe
do Pai em 5,19; 7,17; 14,10). Se há um a tensão entre a com pletude da
m ensagem e a necessidade de aplicação contínua, essa tensão se dará a
obra, quer de Jesus, quer do Parácleto, pois ambos têm a m esm a tarefa
de revelação. Concluindo, notam os que João não especifica de quem o
Parácleto ouve o que fala. Mas esta não é um a questão de indagar se o
Parácleto ouve de Jesus ou do Pai. Se a implicação é que ele ouve de Jesus
(veja 14), tudo o que Jesus tem ouvido provém do Pai (15).
declarará. O verbo anangellein, "anunciar, revelar, declarar", aparece três
vezes em 13-15. P. Joüon , RSR 28 (1938), 234-35, acha o significado clás-
sico do verbo mais apropriado a toda a literatura joanina (seis vezes),
a saber, repetir novam ente o que já fora dito; a única exceção possível
55 · O último discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão) 1105

é Jo 4,25. Nesta interpretação, o prefixo am- tem a função do português


"re-"; assim, "re-anunciar, re-proclamar". Se usarm os o emprego que a
LXX faz de amngellein como nosso guia do significado em João, os resul-
tados são parcialm ente similares. O verbo é m uito comum em Isaías (ein-
quenta e sete vezes; cf. F. W. Y oung, "A Study of the Relation of Isaiah to the
Fourth Gospel", ZNW 46 [1955], 224-26). Aquele livro deixa bem claro que o
ato de declarar coisas é um privilégio de Iahweh que os falsos deuses não
possuem (48,14). Quase a m esm a expressão que João usa se encontra na
LXX em Is 44,7, onde Iahweh desafia a qualquer outro que declare as coi-
sas que estão por vir (veja também 42,10). Em 45,19 aparece Iahweh decla-
rando a verdade - um a expressão que combina duas descrições que João
faz do papel do Parácleto em 16,13. Assim, a afirmação de que o Parácleto
declarará aos discípulos as coisas que hão de vir concorda perfeitamente
com a afirmação de que o Parácleto é dado ou enviado pelo Pai, pois ao
declarar assim o Parácleto está desem penhando um a função peculiar refe-
rida unicam ente a Deus. D e L a P otterie, "Le paraclet", p. 46, tem feito um
estudo de anangellein na literatura apocalíptica; por exemplo, na versão de
Teodocião de Dn 2,2.4.7.9 etc. Ali o verbo é usado para descrever a inter-
pretação de mistérios já comunicados em sonhos ou visões. A interpretação
aclaratória trata do futuro, buscando um significado mais profundo do
que já aconteceu (veja a m esm a ideia em A t 20,27). Podemos notar que as
palavras cognatas apangellein ("proclamar" em 1J01,2.3) e angelia ("mensa-
gern" em ljo 1,5; 3,11) implicam claramente um a interpretação do que já
foi revelado em Jesus Cristo.
14. Ele me glorificara. Há um a passagem no Evangelho da Verdade (veja vol. 1,
p. 46) que tem um a certa semelhança com isto: "Seu espírito se regozija
nele e glorifica aquele em quem ele veio estar" (43,17-18). Contudo, o do-
cum ento gnóstico poderia estar falando do eu interior do crente, e não do
Espírito Santo; assim K. G robel, The Gospel of Truth (Nashville: Abingdon,
1960), p. 201.
do que é meu. Tem-se sugerido que João tinha em mente enfatizar o partiti-
vo no sentido de que toda a verdade divina implícita em Jesus não seria
revelada aos hom ens e que o Parácleto escolhería dela somente o que é
apropriado. O universalismo de 14,26 ("vos ensinar tudo e vos fará lem-
brar tudo") e de 16,13 ("toda a verdade") tom a esta sugestão improvável.
15.0 versículo todo é om itido em P66*por hom oioteleuton (os vs. 14 e 15 têm
o m esm o final).
Tudo 0 que 0 Pai tem é meu. N a teologia trinitária isto tem sido usado para
m ostrar que o Filho tem a m esm a natureza que o Pai; João, porém , está
pensando na revelação que tinha de ser com unicada aos homens.
1106 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

eis por que. Algum as vezes se tom a difícil determ inar se a expressão dia
touto, "por causa disto", se refere ao que precede ou ao que segue; aqui,
evidentem ente, ela se refere ao que precede.
ele recebe. Aqui, um caso presente é lido pelos m elhores m anuscritos como
contrastado com o futuro do v. 14. Os m anuscritos que têm um futuro no
v. 15 estão harm onizando com o v. 14. N ão há ao que parece diferença
algum a de significado nesta m udança de tempos.

COMENTÁRIO

T u d o in d ica q u e o v. 4b foi c o n stru íd o p a ra serv ir d e tran sição e n tre


d u a s su b d iv isõ es d o ú ltim o d iscu rso , a saber, o m ate ria l o rig in alm en -
te in d e p e n d e n te so b re p erseg u ição q u e a g o ra a p arece e m 15,18-16,4a,
e o m a te ria l em 16,5-33, o q u a l, com o já v im o s n o g ráfico I (p. 1087 aci-
m a), fo rm a u m p a ra le lo m u ito e stre ito com 13,31-14,31. T em o s d iv id i-
d o 13,31-14,31 (P rim eira Seção) e m u m a in tro d u ç ã o e trê s u n id a d e s .
A in te rru p ç ã o q u e p re ssu p o m o s e m 16,4b-33 é m ais p ro b le m átic a , p o is
a q u i o m ate ria l é m en o s o rg a n iz a d o d o q u e n a P rim e ira Seção. P o rq u e
as p a ssa g e n s so b re o P arácleto te rm in a m em 16,15, te m p a re c id o ló-
gico à m aio ria d o s e stu d io so s (L oisy, B uchsel , H oskyns , S trathm an n ,
B arrett , D odd ) reco n h ecer u m a in te rru p ç ã o e n tre o s vs. 15 e 16. M as
B u ltm ann e n c o n tra u m a in te rru p ç ã o e n tre o s vs. 11 e 12. E sta ú ltim a
d iv isão tem a v a n ta g e m d e u n ir a se g u n d a p a ssa g e m so b re o P arácleto
em 16 (13-15) com u m a p a ssa g e m q u e m en cio n a os d isc íp u lo s com o
ten d o v isto Jesus o u tra v e z (16-22) e u m a p a ssa g e m q u e m en c io n a o
P ai (23-28). A ssim , é p o ssív el d esco b rir u m tríplice m o tiv o e m 16,12-28,
q ue co rresp o n d e a se g u n d a u n id a d e n a p rim e ira seção (14-15-24), a q u al
falou d a v in d a d o P arácleto, d e Jesus e d o P ai h a b ita n d o n o s hom ens.
T odavia, esta sim ilarid ad e seria artificial, p o is n o cap. 16 n ã o h á m en ção
d e u m a h abitação d o Pai. O s p aralelo s en tre 16,4b-33 e a P rim eira Seção
tem q u e b u scar m ais n o m aterial d o q u e n a c on strução d o d iscurso.
E n tão , p o r co n v en iên cia, tra ta re m o s 16,4b-15 co m o u m a u n id a -
de. D e n tro d e la p o d e m o s d istin g u ir trê s g ru p o s d e v ersícu lo s: u m a
p a ssa g e m in tro d u tó ria n o s v s. 5-7 (co n cern en te à p a rtid a d e Je su s e a
triste z a d o s d iscíp u lo s), c o n d u z in d o às d u a s p a ssa g e n s so b re o P a rá-
cleto n o s vs. 8-11 e 13-15. F alam o s d e duas p a ssa g e n s so b re o P arácle-
to, m esm o q u e sejam co lo cad as m u ito m ais p ró x im a s u m a d a o u tra d o
55 · O último discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão) 1107

q u e são a s o u tra s trê s p a ssa g e n s so b re o P arácleto n o ú ltim o d iscu rso ,


e n ã o é im p la u s ív e l q u e , p e la in se rç ão d o ele m en to d e tra n siç ã o v. 12,
q u e a in te n ç ã o d o a u to r fosse q u e 8-15 fo ssem lid o s co m o u m a ú n ica
p a s sa g e m so b re o P arácleto.

Versículos 5-7: A partida de Jesus e a tristeza dos discípulos

O te m a d a im in e n te p a rtid a d e Jesus n ã o m ais o u v id a d e sd e o


cap. 14; s u a re a p a riç ã o n o s v s. 4b-5 m o stra q u e e sta m o s u m a v e z m ais
tra ta n d o d e m a te ria l q u e é to ta lm e n te fam iliar n o c en ário d o ú ltim o
d isc u rso . O s v e rsíc u lo s iniciais d e sta su b d iv isã o tê m e stre ito s p a ra le-
los n a p rim e ira u n id a d e d o cap. 14. A o e s tu d a rm o s 14,1, salien tam o s
q u e a p e rtu rb a ç ã o d o s co rações d o s d isc íp u lo s em face d a p a rtid a d e
Jesu s e ra m a is q u e u m m e ro se n tim e n to e refletia a lu ta d u alística en tre
Jesu s e o P rín c ip e d e ste m u n d o . Isto é a in d a m ais claro em 16,6, o n d e
p o n d e ra m o s q u e a triste z a d o s d isc íp u lo s é c o n seq u e n te d a terrív el
d escrição q u e Jesu s faz d a p e rse g u iç ã o q u e eles so fre ria m n o m u n d o .
E ssa tris te z a é tã o p ro fu n d a , q u e n e n h u m d o s d isc íp u lo s p e rg u n -
ta a Jesus: " P a ra o n d e e stá s in d o ? " (5). A q u i, e n c o n tra m o s u m fam oso
p o n to cru c ial d o ú ltim o d isc u rso , v isto q u e ali re a lm e n te se in d a g o u
so b re a o n d e Jesu s e sta v a in d o , p e rg u n ta fo rm u la d a p o r S im ão P e d ro
(13,36) e p o r T o m é (14,5). Já m e n c io n am o s teo rias d e reo rd e n a çõ e s d o
texto q u e b u s c a d e sfa z e r a d ific u ld a d e , co lo can d o 16,5 a n te s d a s o u tra s
d u a s p a s sa g e n s (p p . 947-50 acim a). O u tro s, co m o W ellh a u sen , v eem
u m a c o n tra d iç ã o a q u i e u m a p ro v a d e q u e as v á ria s p a rte s d o ú ltim o
d isc u rso n ã o p e rte n c e m a o m esm o a u to r. A in d a o u tro s b u sc a m eluci-
d a r a a p a re n te c o n tra d iç ã o . B arrett , p . 405, e n fatiza o te m p o p re se n te
em 16,5: o s d isc íp u lo s estã o tão sen sib iliza d o s q u e, e n q u a n to in d ag a -
ram p re v ia m e n te p a ra o n d e Jesu s e sta v a in d o , n e n h u m a p e rg u n ta foi
feita. L a g ran g e , p p . 417-18, te m u m p o n to d e v ista sim ilar: já não lhe
p e rg u n ta v a m ; e S ch w a n k , "Es ist gut", p. 341, a p o n ta p a ra A m 6,10
p a ra p r o v a r q u e n o e sq u e m a lin g u ístico h eb raico n e m se m p re h á u m a
d istin çã o tã o c lara e n tre " n ã o " e "já n ã o ". T alvez e sta s ú ltim a s o b serv a-
ções p o s s a m se r u s a d a s p a ra e x p licar o sig n ificad o d a p a ssa g e m com o
está n a fo rm a re d a c io n a l d e fin itiv a d o e v a n g elh o q u a n d o estam o s
te n ta n d o d e sc o b rir o se n tid o d o ú ltim o d isc u rso o ra com o está. M as,
q u a n to à s o rig e n s d a d ific u ld a d e , já in d ic a m o s n o ssa convicção d e q u e
16,5 é u m a d u p lic a ç ã o d o in c id e n te q u e se rv e d e b a se a 13,36 e 14,5.
1108 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

E m u m a fo rm a d o rela to , a q u e stã o é p ro p o sta p e lo s d isc íp u lo s a Jesus


e o co n tex to in d ic a q u e n ã o e n te n d e m p a ra o n d e ele e stá in d o . N a o u -
tra fo rm a, a q u e stã o n e m m esm o é p ro p o sta , p o rq u e os d isc íp u lo s n ã o
e n te n d e m su fic ie n tem e n te a im p o rtâ n c ia d e su a p a rtid a .
A afirm ação q u e a p arece n a p rim e ira p a rte d o v. 7, q u e é b o m p a ra
os d iscíp u lo s q u e Jesus v á, tem s e u p a ra le lo e m 14,28: "Se m e am ás-
seis, v o s reg o zijarieis p o r e u ir p a ra o P ai". E n tre tan to , ali a im p licação
é q u e é m elh o r p a ra o p ró p rio Jesus q u e esteja p a rtin d o , e n q u a n to a
id eia em 16,7 é q u e é m e lh o r p a ra o s d iscíp u lo s. L agrange , p . 418, se
p e rg u n ta p o r q u e a h u m a n id a d e n ã o p o d e ría ter tid o o p riv ilé g io d a
p rese n ç a c o n tín u a ta n to d o F ilho glo rificad o q u a n to d o P arácleto. C on-
tu d o , se n o ssa co m p re en sã o d o P arácleto (A p. V) é co rre ta , isto seria
u m a co n trad ição . O P arácleto é o E sp írito e n te n d id o co m o a p re se n ç a
d o Jesu s au sen te , e p o r d efinição o P arácleto e Jesus n ã o p o d e m e sta r
n a te rra ju n to s. R eco rd em o s 7,39: " P o rq u e o E sp írito S an to a in d a n ã o
fo ra d a d o , p o r a in d a Jesus n ã o ter s id o g lorificado". Isto im p lic a n ã o só
q u e é o Jesus g lo rificado q u e m d á o E spírito, m a s ta m b é m q u e o p a p e l
d o P a rá c le to /E s p írito é a ssu m ir o lu g a r d o Jesus g lo rificad o n a terra.
M as se p o d e a in d a in d a g a r p o r q u e João d iz q u e esta tro ca d e lu g a r
e n tre Jesus e o P arácleto é p a ra o b e m d o s d isc íp u lo s - p o r q u e eles
n ã o p o d e ría m v iv er b e m se Jesus p e rm a n ec e sse com eles? A re sp o sta
é q u e so m en te a tra v és d a p rese n ç a ín tim a d o P arácleto q u e os d isc íp u -
los v iríam a c o m p re e n d e r Jesus p len a m en te . O u , se ev o c arm o s o u tra s
p assag en s o n d e João d escrev e o E spírito, so m e n te a c o m u n ic aç ã o d o
E sp írito g era h o m en s com o filhos d e D eu s (3,5; 1,12-13); e, n o s p la n o s
d e D eus, o E sp írito a tu a co m o o p rin c íp io d a v id a q u e p ro c e d e d o alto.
A p ro m e ssa d o v. 7 se c u m p re em 20,22, o n d e se d iz q u e a p rim e ira
ação d o Jesus ressu rre to , q u e a sc e n d e u a s e u P ai (20,17), é s o p ra r so b re
seu s d iscíp u lo s e dizer: "R ecebei o E sp írito S anto".

Versículos 8-11: O Parácleto contra 0 mundo

A p rim e ira p a ssa g e m d o P arácleto em 14 (15-17) ta m b é m se ocu-


p a d a relação e n tre o P arácleto e o m u n d o . E m 14,7 foi d ito q u e o
m u n d o n ã o p o d e ac eita r o P arácleto , p o sto q u e n ã o o v ê n e m o reco-
nhece. N o cap. 16, se to rn a e v id e n te q u e e sta in c a p a c id a d e p a ra v e r o
P arácleto n ã o re su lta e m in d iferen ça, e sim em h o stilid a d e , o m e sm o
tip o d e h o s tilid a d e q u e m a rc o u a relação d o m u n d o com Jesus.
55 · O último discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão) 1109

O s c o m e n ta rista s n ã o tê m a c h a d o fácil a exposição d e ta lh a d a dos


vs. 8 1 1 ‫־‬. A gostinho e v ita v a esta p a ssa g e m p o r co n sid erá-la m u ito difí-
d l; T om ás de A quino citav a d iv ersa s o p iniões, m as se m d ecid ir-se a fa-
v o r d e n e n h u m a ; M aldonatus d izia q u e ela está e n tre a s m ais o b scu ras
d o Q u a rto E v an g elh o . L oisy , p. 430, o b serv a q u e o e sq u e m a consistente
d e m e n c io n a r a s trê s acusações (8) e e n tã o explicar c a d a u m a d elas
(9-11) - "ex p licação m etó d ic a q u e n ã o tem m u ita clareza" - é m ais ca-
racterístico d a su tilez a d e 1 João d o q u e d o e v a n g elh o (cf. 1J0 2,12-13;
5,6-8). P a rte d o p ro b le m a d iz resp e ito ao v e rb o elenchein q u e tem o s tra-
d u z id o co m o " p ro v a r" (veja nota). Q u e m seria o recip ien te d e sta p ro -
va? A lg u n s tê m p e n s a d o q u e a tarefa d o P arácleto é p ro v a r ao m u n d o
seu p e c a d o , e assim elenchein significa "co n v en cer". M as M ow inckel ,
p. 105, te m a rg u m e n ta d o p e rsu a siv a m e n te q u e elenchein n ão im plica
n ecessariam en te a co n v ersão o u m u d a n ç a d a p a rte en v o lv id a n o p ro-
cesso. A n tes, é u m a q u estão d e tra z e r a im placável lu z d a v e rd a d e so-
b re o delito: a ú n ica certeza é q u e a p a rte q u e é o objeto d e elenchein é
c u lp ad a. P o r o u tro lado, a id eia d e q u e o m u n d o d ev e ser convencido
p elo P arácleto c o n tra d iz a afirm ação d e 14,17, a saber, q u e o m u n d o
n ão p o d e aceitar o Parácleto. O m u n d o n ã o p o d e ser convencido pelo
E spírito d a v e rd a d e , p o rq u e su a rejeição d a v e rd a d e é d e lib e ra d a (3,20).
O q u e p e n s a r en tão ? A caso João e stá p e n s a n d o em alg o com o
u m ju lg a m e n to c o n d u z id o p e ra n te D e u s o n d e a c u lp a d o m u n d o será
p u b lic a m e n te d e m o n s tra d a ao s d iscíp u lo s? C e rta m e n te a p ro v a d a
c u lp a b ilid a d e d o m u n d o se rea liz a em b enefício d o s d iscíp u lo s, m as
em u m fo ro in te rn o . N a escato lo g ia re a liz a d a jo an in a , e le m en to s d o
ju lg a m e n to d o m u n d o estã o in c o rp o ra d o s a q u i; m as n o trib u n a l n ão
co n stitu e e m a lg u m ap o c alíp tico v ale d e Josafá (J1 3,2.12), e sim n a
m en te e e n te n d im e n to d o s d isc íp u lo s. (Isto tem s id o d e m o n stra d o p o r
B errouard , art. cit.). M ais a in d a , o ju lg a m e n to só é in d ire ta m e n te u m
ju lg a m e n to d o m u n d o . E p ro p ria m e n te u m a rev isã o d o ju lg a m e n to
d e Jesu s e m q u e o P arácleto faz a v e rd a d e e m e rg ir p a ra os d iscíp u -
los c o n te m p la re m . S eu efeito so b re o m u n d o p ro v é m d o fato d e que,
te n d o sid o a s se g u ra d o s p e lo P arácleto d a v itó ria d e Jesus n esse julga-
m en to , o s d isc íp u lo s s a em a d a r te ste m u n h o (15,27) e, a ssim , d esafiam
o m u n d o co m s u a in te rp re ta ç ã o d o ju lg a m e n to . A o ser a força m o to ra
p o r d e trá s d isto , o P a rác leto e stá sim p le sm e n te c o n tin u a n d o a o b ra d e
Jesus q u e ele m e sm o d e u e v id ên cia c o n tra o m u n d o d e q u e as o b ras
d o m u n d o são m á s (7,7).
1110 O Livro da Glória · Primeira Parte: A ultima ceia

O prim eiro elem ento (v. 9) n a atividade forense do Parácleto é


provar aos discípulos que o m u n d o é culpado de pecado - o pecado
fundam ental que consiste em recusar-se a crer em Jesus. Este tem sido
run tem a d a descrição que o evangelho faz d o m inistério d e Jesus, u m
m inistério que tem sido apresentado m uitas vezes envolto n a atm osfe-
ra forense de um julgam ento (vol. 1, p. 224-25). N o prim eiro discurso
de Jesus, ele resum e o efeito de sua vinda: "A lu z veio ao m undo, m as
os hom ens preferiram as trevas à luz, porque seus feitos eram m aus"
(3,19). N o final do m inistério público, o autor joanino fez esta avaliação:
"M esm o quando Jesus realizasse tantos de seus sinais diante deles, re-
cusavam -se a crer nele" (12,37). Todos os outros pecados individuais
encontram expressão em o u se relacionam com este pecado funda-
m ental da incredulidade. Se trata de u m pecado inteiram ente culpável
(15,22-24) que representa um a perm anente escolha do m al (9,41) e que
merece a ira de D eus (3,36). O Parácleto se fixará na expressão de incre-
dulidade que culm inou na exposição de Jesus à m orte, m as os que são
culpados form am um grupo m uito m ais am plo do que os participantes
do julgam ento histórico de Jesus. Esses participantes são apenas os pre-
cursores dos hom ens de cada geração que serão hostis a Jesus. Talvez
a atitude encontrada em João choque os cristãos de hoje com bastante
espanto, acostum ados como estão a u m a sociedade pluralista onde a in-
credulidade p ara com Jesus não representa necessariam ente u m a hosti-
lidade particular para com ele ou para com Deus. João, porém , não esta-
va realm ente considerando a culpa subjetiva e individual; e sua atitude
dualística estava condicionada pelo contexto polêm ico em que ele vivia.
O segundo elem ento (v. 10) na atividade forense do Parácleto é
provar que o m u n d o está errado acerca d a justiça, m ostrando que Jesus,
a q u em ju lg aram cu lp ad o , n a v e rd a d e era inocente e justo. Influen-
ciado pelo debate paulino sobre a justiça (dikaiosynê), alguns dos Padres
da Igreja, inclusive A gostin ho , e alguns dos reform adores, pensaram que
o v. 10 se refere à justificação do cristão pela fé. Todavia, o "eu estou indo
para o Pai" dem onstra que o tema é a vindicação de Jesus, a manifes-
tação da justiça de Deus na exaltação de Jesus. (Nestes versículos, João
está tratando das m esm as noções fundam entais, e a justiça do cristão é
derivativa da justiça de seu Senhor). "Os judeus" tinham considerado a
reivindicação de Jesus de u n id d a d e com o Pai com o tuna dem onstra-
ção de arrogância e o acusaram de ser u m enganador, um pecador e um
blasfem o (5,18; 7,12; 9,24; 10,33). O propósito do julgam ento d a sentença
55 · O último discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão) 1111

co ntra ele à m o rte se p ro p u n h a m o strar q u e ele era c u lp ad o e n ã o era o Fi-


lh o d e D eu s (19,7). C o n tu d o , o Parácleto d em o n strará aos discípulos q ue
esta m esm a sentença d e m o rte n a realid ad e d em o n strav a q u e Jesus era o
q u e afirm av a ser, pois ap ó s su a m o rte ele está com o Pai; e, e o Pai lhe tem
d a d o a razão ao glorificar Jesus (13,5). "O reto m o p a ra o Pai é a ratifica-
ção d e D eu s so b re a retid ão [justiça] m anifestada n a v id a e m o rte d e Seu
Filho" (H oskyns, p. 485). A ideia d e q u e a exaltação d e Jesus é u m a m ani-
festação d a justiça d e D eus é tam b ém vista n o hino d e lT m 3,16, o qual
co ntrasta a encarnação e a exaltação nestas palavras: "Ele foi m anifestado
n a cam e, justificado n o Espírito". Esta p assag em tem interessantes raízes
n o AT, com o se vê e m Is 5,15-16: "E ntão o p leb eu se abaterá, e o nobre
se h u m ilh ará; e os olhos do s altivos se hum ilharão. P orém o SEN HO R
d o s Exércitos será exaltado em juízo; e D eus, o Santo, será santificado em
justiça". Sendo exaltado à presença d o Pai, Jesus está n a esfera d a justiça
divina. C o m o o Parácleto m o strará aos discípulos q u e Jesus está com o
Pai? P ara explicar isto, a lg u n s têm recorrido a A t 7,55, onde Estêvão, cheio
do Espírito, testificou d e Jesus com o e stan d o à d estra d o Pai - em outras
palavras, o E spírito o u to rg a o d iscernim ento necessário p a ra v er a vitória
d e Jesus. O u tro s fazem u m a d ed u ção lógica a p a rtir d e Jo 7,39, o n d e se
declara q u e n ão havería a doação d o E spírito antes q u e Jesus fosse glo-
rificado. M as se raciocinarm os a p a rtir d a p ró p ria n atu reza d o Parácleto,
o arg u m e n to é ain d a m ais forte, pois o Parácleto é a presença espiritual
no m u n d o d aq u ele m esm o Jesus q u e está com o P ai (Ap. V). T oda a ideia
d o P arácleto é sem sentido e auto-contraditória, se Jesus n ão tivesse ven-
cido a m orte; e então, u m a v ez q u e os discípulos reconheçam o Parácleto
(14,17), tam b ém reconhecerão q u e Jesus está com o Pai.
A ú ltim a se n te n ç a d o v. 10, " n ã o m ais m e v e re is", é q u a se u m
p a ra d o x o . C o m o p o d e ser q u e o fato d e os d isc íp u lo s n ã o to m a re m a
vez Je su s seja p a ra eles a p ro v a d e q u e e ra m ju sta s as afirm açõ es d e
Jersus? P ro v a v e lm e n te , isto d e v a ser in te rp re ta d o à lu z d a p rese n ç a
d o P arácleto , e sp ec ialm en te se p e n s a rm o s n e sta s p a la v ra s co m o q u e
d irig id a s n ã o p rim a ria m e n te aos d isc íp u lo s n a ú ltim a ceia, m as aos
cristão s d a ig reja jo a n in a (L oisy , p . 429). A té Jesus v o lta r p a ra levá-los
co nsig o p a r a s u a h a b ita çã o celestial (14,2-3; 17,24), os c re n tes n ã o o
v e rã o fisicam en te, m a s tão -só e m e a tra v é s d e se u E sp írito , o P ará-
cleto. E les s e g u e m p e rte n c e n d o ao g ru p o d a q u e le s a fo rtu n a d o s " q u e
n ão v ira m e, n o e n ta n to , têm c rid o " (20,29). D u ra n te se u m inistério, Je-
sus a d v e rtiu q u e logo o s h o m en s p e rd e ría m a o p o rtu n id a d e d e vê-lo
1112 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

(7/33-34; 8,21); após sua m orte, estará presente o Parácleto a qu em uni-


cam ente os crentes p o d em v er e aceitar. A ssim , ao condenar Jesus à
m orte, o m u n d o tem condenado a si m esm o.
Isto nos leva ao terceiro e últim o elemento (v. 11) na atividade foren-
se do Parácleto, isto é, provar que, ao condenar Jesus, o próprio m u ndo
tem sido julgado. Ma m orte de Jesus na cruz, a dura prova que d u ro u
todo o seu ministério parece finalizar com a vitória de seus inimigos.
Mas, no Parácleto, Jesus continua presente após sua m orte, e assim a
provação teve um surpreendente resultado. Se a hora da paixão e m or-
te representou a confrontação de Jesus e o Príncipe deste m u n d o (12,31;
14,30), então, ao ser vitorioso sobre a m orte, Jesus foi vitorioso sobre o
Príncipe deste m undo. O próprio fato de Jesus ficar justificado diante
do Pai significa que Satanás foi condenado e já perd eu seu po d er sobre
o m undo (veja nota). Temos aqui já realizado algo do que o próprio li-
vro do Apocalipse descreve em term os de escatologia final. Enquanto
A p 22,5.7-12 retrata sim ultaneam ente a exaltação do Messias e a expulsão
de Satanás do céu, a prisão de Satanás (20,2) e sua condenação final ao ar-
dente torm ento (20,10) ainda estão por vir. O pensam ento em 1 João está
m uito próxim o ao de João, e ali fica claro que os que creem participam da
vitória de Jesus sobre o M aligno (2,13-14; 4,4; 5,4-5). Ao d ar testem unho
desta vitória, o Parácleto é, pois, verdadeiram ente u m antídoto p ara a
dor que se apodera do coração dos discípulos em face d a partida de Jesus
e da violenta investida da perseguição contra eles no m undo.

Versículos 12-15:0 Parácleto guiará os discípulos para compreender a Jesus

A segunda passagem sobre o Parácleto no cap. 16, com o seu equi-


valente em 14,26, diz respeito ao p ap el do Parácleto com o m estre dos
discípulos. O v. 12 oferece um a transição p ara este aspecto d a obra do
Parácleto. O que Jesus tem em vista q u an d o d iz que tem m u ito m ais a
falar, m as que os discípulos não p o d em su p o rtar agora? Significa que
haverá novas revelações após sua m orte? A lguns têm crido assim , e
tem -se construído certa m ística com base nesta afirm ação. A g o s t in h o
pensava ser tem erário especular o que estas coisas viriam a ser. O s teó-
logos sistem áticos têm u sad o este versículo em apoio d a tese d e q u e a
revelação continuou após a m orte d e Jesus até a m orte d o últim o após-
tolo. Os teólogos católicos rom anos têm visto nele u m a referência à
contínua expansão do dogm a d u ra n te o período d a existência d a Igreja.
55 · O último discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão) 1113

T odavia, devem os ser cautelosos, com parando estas palavras com


15,15, o q u al parece excluir as revelações ulteriores: "Pois vos tenho
revelado tu d o o q u e ouvi d o Pai". (L oisy , p. 432, trata estes versículos
com o contraditórios, na linha de u m a suposta contradição entre 16,5
e 13,36 q u e já nos referim os anteriorm ente). M ais provavelm ente, o
v. 12 significa que só depois d a ressurreição de Jesus é que haveria
plen o en ten d im en to d o que aconteceu e foi dito d u ran te o m inistério,
tem a este q u e é frequente em João (2,22; 12,16; 13,7). Esta prom essa de
com preensão m ais p ro fu n d a p o d e ser expressa em term os de "tenho
m uito m ais a dizer-vos", porque, agindo em e através do Parácleto, Je-
sus com unicará esse conhecim ento. É im provável que no pensam ento
joanino houvesse alg u m conceito de revelação ulterior após o m inisté-
rio de Jesus, pois ele é a revelação d o Pai, a Palavra de Deus.
E assim som os levados ao v. 13 e ao tema do Parácleto como aque-
le que guia os discípulos à plena verdade do que Jesus disse. Alguns
querem relacionar esta im agem do Parácleto com o papel do guia nas
religiões pagãs de mistério, m as há tam bém o pano de fundo veterotes-
tam entário. Recordemos o SI 113,10: "O teu bom espírito m e guiará por
vereda plana"; e 25,4-5: "Ensina-m e as tuas veredas, ó Senhor; guia-me
à tua verdade". N a LXX de Is 63,14, lemos: "O espírito desceu da parte
do Senhor e os guiou no cam inho". A lgum as vezes se objeta que estas
passagens veterotestam entárias tratam de um a orientação m oral, e não
de um a com preensão m ais profunda da revelação, e que, portanto, a
im agem que João passa do Parácleto como um guia é m uito diferente.
O bviam ente, "espírito", "cam inho" e "verdade" têm um significado no
pensam ento joanino que vai além do AT; m as estam os tratando somente
da questão do pano de fundo veterotestam entário, e ao m enos este es-
critor pressupõe que, originalm ente, a m ensagem cristã de João exigiria
um a transform ação e adaptação de tudo que o evangelista pode ter rece-
bido do am biente que o rodeava. N o entanto, m ais diretam ente, a orien-
tação do Parácleto ao longo do cam inho de toda a verdade envolve mais
do que um a com preensão intelectual m ais profunda do que Jesus disse
- envolve u m cam inho de vida em conform idade com o ensino de Jesus,
e assim não está longe dem ais da noção que o AT tem de guia, como po-
deria parecer à prim eira vista. Podem os mencionar ainda que o papel de
guiar os hom ens foi atribuído à Sabedoria personificada (Sb 9,11; 10,10);
assim com o a figura do Jesus joanino é m odelada pela Sabedoria divina
personificada, assim tam bém é a figura do Parácleto (veja Ap. V).
1114 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

O P arácleto g u ia ria os h o m e n s ao longo do caminho de toda a verda-


de. E m 8,31-32, Jesu s p ro m e te u : "Se p e rm a n e c e rd e s e m m in h a p a la v ra ,
v e rd a d e ira m e n te sereis m e u s d iscíp u lo s; e co n h ecereis a v e rd a d e " .
Isto se c u m p riu em e a tra v é s d o P arácleto . T em o s u m in te re ssa n te
ex em p lo d e co m o isto se c u m p riu e m A t 8,31, o n d e o e u n u c o n ã o con-
se g u e e n te n d e r q u e a p a ssa g e m d o S ervo S ofred o r, e m Is 53, se refe re
a Jesu s, a té q u e fosse o rie n ta d o p o r F ilipe q u e, p o r s u a v ez, se a c h a sob
a in flu ên cia d o E sp írito (8,29). G u ia r a lg u é m p e lo c a m in h o d a v e rd a d e
é levá-lo ao m istério d e Jesus q u e é a v e rd a d e (Jo 14,6). A m en ç ã o d e
toda a v e rd a d e e m 13 (cf. " tu d o o q u e e u v o s d isse [de m im m esm o ]"
em 14,26) e a ên fase d e q u e o P arácleto n ã o fala rá d e si m e sm o , m as
so m e n te o q u e o u v e , p a re c e c o n firm a r a tese d e q u e a q u i n ã o se h á d e
p e n s a r e m n e n h u m a n o v a revelação.
M as a ú ltim a p a rte d o v. 13 a p resen ta u m a d ificuldade. A p ro m e ssa
"vos declarará as coisas p o r v ir" n ão im plicaria n o v a revelação? W ike-
nhauser , p. 295, e B ernard , II, 511, estão e n tre o s m u ito s q u e v e e m a q u i

u m a referência à existência d e u m ofício profético o u carism a n a igre-


ja joan in a (ou p ré-joanina - W indisch ), sem elh an te ao d o m d e profecia
g u iad a p elo E spírito d e lT s 5,19-20; IC o r 12,29; 14,21-33; Ef 4,11. Loisv,
p. 433, p en sa n a profecia apocalíptica dirig id a p elo E spírito so b re as coi-
sas p o r v ir (Ap 2,7; 14,13; 19,10; 22,17). B ultmann , p. 443, p a ra q u e m este
verso é u m a adição d o evangelista à Fonte d o s D iscursos d e Revelação,
p en sa qu e, em si m esm o o verso p o d e refletir a crença d a c o m u n id a d e n o
espírito d e profecia, em seu p resen te contexto ele p e rd e seus tons apo-
calípticos. Este ú ltim o p o n to d e vista p arece m ais razoável, já q u e ele se
ad eq u a à ênfase joanina sobre a escatologia realizada. O s estu d o s d a p a-
lavra anangellein, "declarar", à q u al tem os rep o rtad o n a n o ta correspon-
dente, p ressu p õ em q u e a declaração d as coisas p o r v ir consiste e m inter-
p reta r em relação a cada geração v in d o u ra o significado co n tem p o rân eo
d o q u e Jesus disse e fez. A m elh o r p rep aração cristã p a ra o p o rv ir n ã o é
u m a p rev isão exata d o futuro, m as u m a p ro fu n d a com preensão d o q u e
Jesus significa p a ra cada época. E m su a função d e interp retação proféti-
ca, o Parácleto co ntinua a obra d e Jesus q u e se id entificou à m u lh e r sarna-
ritana com o o M essias q u e anuncia o u declara (anangellein) ao s h o m en s
to d as as coisas (4,25-26). V im os n a n ota sobre 4,25 q ue, p a ra a m u lh e r sa-
m aritana, isto significava q u e Jesus era o e sp erad o P rofeta com o M oisés,
isto é, u m p ro feta q u e in terp retaria a Lei m osaica, d a d a m u ito tem p o an-
tes, com o fim d e resolver os problem as presentes d aq u ela co m u n id ad e.
55 · O último discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão) 1115

E m relação a Jesus, o Parácleto tem a m esm a função d e an u n ciar o u de-


clarar to d as as coisas.
B arrett, p. 408, observa u m a nuança especial n a interpretação q u e o
Parácleto fará d e todas as coisas p o r vir; ele p en sa q u e este é p o r d e m a-
nifesto o p ecado, d a justiça e o juízo com o n arrad o em 8-11. Em bora o jul-
g am en to d e Jesus p ertença ao passado, as im plicações d a m orte d e Jesus e
su a glorificação tem d e estabelecer-se d e novo aos discípulos e p ara cada
n o v a geração. O Parácleto se encarregará d e m anifestar aos discípulos o
alcance d a m en sagem d e Jesus q u e não p o d eríam com preender agora (12).
O v. 14 refo rça a im p re ssã o d e q u e o P arácleto n ã o tra z n o v as
rev elaçõ es, p o rq u e ele receb e d e Jesus o q u e te m d e d e c la ra r aos disci-
p u lo s. Je su s g lo rifico u o P ai (17,4), re v e la n d o o P ai aos h o m en s; o Pa-
rác leto g lo rifica Jesus, re v e la n d o -o ao s h o m en s. A g ló ria en v o lv e m a-
n ife sta ç ã o v isív el (vol. 1, p . 802); e ao faz e r d o s h o m en s testem u n h as
(15,26-27), o P arácleto p ro c la m a p u b lic a m e n te o Jesus re ssu rre to que
p a rtilh a d a g ló ria d o P ai (17,5). (Em o u tro lu g a r e m João, a p re n d e m o s
q u e o E sp írito glorifica Jesus m e d ia n te a g eração d e filhos d e D eus
q u e, a ssim , reflete a g ló ria d e D e u s d e u m a m a n e ira sim ila r à q u e la em
q u e Jesu s reflete a g ló ria d e D e u s - veja n o ta so b re 17,22). N o ta m o s
m ais u m e le m en to d e escato lo g ia re a liz a d a n e sta referên cia à glória.
S e g u n d o os e v a n g e lh o s sinóticos, o F ilho d o H o m e m v irá e m glória
n o ú ltim o d ia (Mc 13,26), m as, p a ra João, já h á g ló ria n a p rese n ç a d e
Jesu s e m e a tra v é s d o P arácleto.
O v. 15 toca in d ire ta m e n te n a relação d o P arácleto com o P ai e com
o Filho. Já o b se rv a m o s q u e o cap. 16 su b lin h a a in terv en ção d e Jesus
co m re sp e ito a o P arácleto (v. 7: "E u o en v iarei") com o c o n tra sta d o com
o cap. 16,26, o n d e o P ai é o agente. M as o v. 15 m o stra q u e o a u to r d o
cap. 16 sab ia tam b é m q u e d e fin itiv am e n te o P arácleto, com o o p ró p rio
Jesus, era o e m issário d o Pai. A o d e c la ra r o u in te rp re ta r o q u e p erten ce
a Jesu s, o P arácleto rea lm e n te e stá in te rp re ta n d o o P ai p a ra os hom ens;
p o is o P ai e Jesu s p o ssu e m to d a s as coisas em c o m u m . P o sterio rm en te,
os teó lo g o s o rie n tais e o cid en tais d isp u ta ria m n a teologia trin itá ria se
o E sp írito p ro c e d e so m e n te d o P ai o u d o P ai e d o Filho. N a teologia
jo an in a, seria in in telig ív el q u e o P arácleto te n h a alg o d e Jesus q u e não
seja d o P ai, m a s tu d o o q u e ele te m (p ara os h o m en s) é d e Jesus.

[A B ibliografia p a ra e sta seção está in clu sa n a B ibliografia p a ra o


cap. 16, n o fin al d o §56.]
5 6 .0 ULTIMO DISCURSO:
- SEGUNDA SEÇÃO (TERCEIRA SUBDIVISÃO)
SEGUNDA UNIDADE (16,1633‫)־‬

O retomo de Jesus trará alegria e conhecimento aos discípulos

16 16‫ ״‬u m p o u c o d e te m p o e já n ã o m e v e re is m ais,


e e n tã o , o u tra v ez, u m p o u c o d e tem p o , m e v e re is".

17N isto a lg u n s d e se u s d isc íp u lo s d isse ra m e n tre si: " O q u e isto sig n i-


fica? Ele n o s diz: 'U m p o u c o d e te m p o n ã o m e v e re is, e e n tã o , o u tra
v ez, em p o u c o d e te m p o m e v e re is‫ ;׳‬e d iz ain d a: 'P o rq u e e s to u in d o
p a ra o P a i" 18 .‫ ׳‬E n tão c o n tin u a ra m in d a g a n d o : " O q u e significa e ste
'p o u c o d e te m p o ' [de q u e ele fala]? N ã o e n te n d e m o s [de q u e ele e stá
falan d o ]". 19S ab en d o q u e eles q u e ria m p e rg u n ta r-lh e s, Jesu s lh es fa-
lou: "E stais in d a g a n d o e n tre si so b re m e u dito: 'U m p o u c o d e te m p o
já n ão m e v ereis, e e n tã o , o u tra v ez u m p o u c o d e te m p o a in d a m e
v e re is.'

20V e rd a d e ira m e n te , v o s a sse g u ro ,


v ó s ch o ra re is e c o n tin u a re is la m e n ta n d o
e n q u a n to o m u n d o se reg o zijará;
ficareis tristes,
m as v o ssa triste z a se c o n v e rte rá e m júbilo.
21Q u a n d o u m a m u lh e r está co m d o re s d e p a rto , ela se e n triste ce
p o r ter c h e g a d o s u a h o ra.
M as, u m a v e z a criança te n h a n ascid o ,
s u a ale g ria a faz e sq u ec e r o so frim en to ,
p o rq u e u m a crian ça tem n a scid o p a ra o m u n d o !
56 · O último discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão) 1117

22A ssim ta m b é m é co nvosco - a g o ra estais tristes;


m a s e u v o s v e re i o u tra v ez,
e v o sso s co raçõ es se reg o zijarão
c o m u m jú b ilo q u e n in g u é m v o s p o d e rá tirar.
23E n a q u e le d ia n a d a m e p e rg u n ta re is.
V e rd a d e ira m e n te , v o s a sse g u ro ,
se p e d ird e s a lg u m a coisa a o Pai,
E le v o -la d a rá em m e u n o m e.
24A té a g o ra n a d a p e d iste s e m m e u n o m e.
P e d i, e recebereis,
p a r a q u e v o ssa ale g ria seja co m p leta.
25E u v o s te n h o d ito isto p o r m eio d e figuras.
C h e g a a h o ra
e m q u e já n ã o v o s falarei m ais e m fig u ras,
m a s v o s falarei d o P ai claram en te.
26N a q u e le d ia p e d ire is em m e u n o m e,
e n ã o v o s d ig o q u e ro g a re i a o P ai p o r vós.
27P o is o p ró p rio P ai v o s am a,
p o rq u e v ó s m e te n d e s a m a d o
e te n d e s c rid o q u e saí d e D eus.
28[Saí d o Pai]
e v im p a ra o m u n d o .
A g o ra e s to u d e ix a n d o o m u n d o
e v o u p a ra o P ai".

29D issera m -lh e s e u s d iscíp u lo s:


"E is q u e a g o ra falas a b e rta m e n te , se m fig u ra s d e linguagem !
30P o r fim sa b e m o s q u e tu co n h eces to d a s as coisas - n e m m esm o ne-
cessitas q u e a lg u é m te p e rg u n te . P o r c a u sa d isto crem o s q u e saíste d e
D e u s". 31Jesu s lh es re sp o n d e u :

" E n tã o c re d e s ag o ra?
32Eis q u e a h o ra ch eg a - d e v e ra s já c h e g o u -
e m q u e sereis d isp e rso s, c a d a u m p a ra se u lad o ,
d e ix a n d o -m e so zin h o .
M as, n u n c a e s to u so zin h o ,
p o rq u e o P ai e stá com igo.
1118 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

33E u v o s te n h o d ito isto


p a ra q u e e m m im te n h a is p az.
N o m u n d o tereis aflições,
m as te n d e s b o m ânim o:
e u v en ci o m u n d o " .

29: disseram. No tempo presente histórico.

NOTAS

16.16. pouco de tempo. Mikron; veja nota sobre 13,33. Nas afirmações sim ilares
em 7,33; 12,35 e 13,33, quando Jesus diz que estaria com seus ouvintes
mais um pouco (tempo), ele segue o discurso com um a advertência de
que partirá para um lugar onde não poderá ser visto.
já não me vereis mais. A negativa é ouketi. O verbo é theorem·, na linha se-
guinte, é horan (opsesthai). A últim a é tida po r alguns como se referindo
ao discernim ento espiritual m ais profundo (assim Bernard, II, 513); veja,
porém , nossos comentários no vol. 1, p. 801.
outra vez um pouco de tempo. A ideia de que haverá apenas pouco tempo antes de
encontrar a felicidade junto a Deus aparece em um contexto apocalíptico em
Is 26,20: "Vai, pois, povo meu, entra nos teus quartos, e fecha as tuas portas
sobre ti; esconde-te só por um momento, até que passe a ira". Isto é interes-
sante, pois Is 26,17 é parte do pano de fundo do v. 21 (veja comentário).
me vereis. A tradição grega bizantina, juntam ente com as versões latina e
siríaca, acrescenta um a linha: "porque eu vou para o Pai". Esta sentença
(que em 7,33 segue um a afirmação sobre não m ais ver a Jesus) foi intro-
duzida para justificar a segunda citação no próxim o versículo (17). Um
copista teria pensado que am bas as citações do v. 17 vieram do v. 16.
17. seus discípulos disseram. Esta intervenção m arca a prim eira vez que fala-
ram desde que Judas deu voz a confusão que todos sentiam em 14,22;
assim term ina o monólogo do evangelho. As intervenções na prim eira
seção do últim o discurso vieram de discípulos individuais; as interven-
ções no cap. 16 vêm dos discípulos como um grupo.
O que isto significa? Ele nos diz... Isto é sim ilar a um a frequente fórm ula ra-
bínica (Schlatter, p. 314).
'Um pouco de tempo.' Esta primeira citação do v. 17 é tomada literalmente do v. 16
com a exceção do uso de uma forma negativa mais breve (ou em vez de ouketi).
e diz ainda. O grego tem sim plesm ente "e"; o verbo do dito que precede a
prim eira citação é subentendido como a cobrir tam bém a prim eira.
56 · O último discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão) 1119

'Porque estou...'. A segunda citação começa com hoti, presum ivelm ente com
o significado "em que, dado que" que ela tem no v. 10 donde a citação é
tom ada ao pé da letra, embora com um a variante da ordem das palavras.
Entretanto, é possível que o hoti no v. 17 seja simplesmente o "que" usado
para introduzir discurso (indireto). M uitos favorecem o último, porque ele
propicia um a tradução mais suave: "Ele diz ainda que estou indo para
o Pai". Todavia, na verdade o discurso é direto, não indireto, e então o
hoti narrativo seria ocioso; Por outro lado, não há hoti narrativo antes da
prim eira citação, e assim não esperaríamos um antes da segunda citação.
18. Então continuaram indagando. Literalmente, "dizendo" (a si mesmos).
Isto é om itido por m uitos m anuscritos ocidentais. Como verem os mais
adiante, há m uitas variantes devido aos copistas no texto deste versículo,
talvez por causa de seu caráter repetitivo. Tal repetição é típica de narra-
tiva sim ples, especialm ente no O riente Próximo.
'pouco de tempo.' N a m aioria dos m anuscritos, mikron é precedido de um ar-
tigo (om itido em P5, Vaticanus, o corretor do Sinaiticus e, aparentem ente,
em P66). L agrange, p. 426, argum enta que mesmo sem o artigo o sentido
é: Realmente, sua ausência d urará apenas pouco tempo?
[de que ele fala]. Isto é om itido por P66 e alguns im portantes manuscritos
ocidentais.
[de que ele está falando], A maioria dos manuscritos lê o verbo Mein, enquanto
que os códices Bezae e Koridethi leem legein. O vaticanus omite a sentença.
Podería ter sido adicionada por copistas num a tentativa de esclarecer o texto.
19. Conhecendo. Frequentem ente João atribui a Jesus o poder de ler as mentes
dos hom ens (2,24-25; 4,17-18). Nos outros evangelhos, às vezes fica difícil
estar seguro se o evangelista quer que pensem os que este conhecimento
era sobrenatural o u sim plesm ente um caso de excepcional discernimen-
to: cf. Lc 7,39-40; M t 9,22 com Mc 5,30 com a tradição "Q" de M t 12,25 e
Lc 11,17. Em João, o conhecimento especial atribuído a Jesus parece ser
consistentem ente apresentado como sobrenatural; e certam ente, no pre-
sente caso, o entusiasm o que seu conhecimento provoca (30) indica que
está implícito um conhecimento além do normal.
queriam. Alguns m anuscritos incluindo o Sinaiticus e P66, leem "estavam
continuando". P66 tinha am bos os verbos - isto é interessante, pois cos-
tum eiram ente é o m anuscrito mais tardio que tende a combinar duas
redações diferentes.
Estais indagando. Isto podería ser um a pergunta: "Estais indagando...?"
não me vereis. A negativa é ou como no v. 17, não ouketi, como no v. 16.
20. chorareis... lamentando. A referência é aos gritos plangentes e lamentação
que é a reação costumeira em face da morte no Oriente Próximo. Para estes
1120 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

verbos usados no contexto de m orte, veja Jr 22,10; Mc 16,10 ("choran-


do"); Lc 23,27 ("lamentavam ").
tristes. O tem a da lypê de 16,6 retom a em 2 0 2 2 ‫־‬. No NT, lypê descreve pri-
m ariam ente um a angústia física ou moral. L oisy, p. 435, com enta que
um a palavra para dor física teria sido m ais apropriada; por exemplo,
õdin, o term o técnico de dores de parto (e para os ais messiânicos). Mas
o vocabulário da parábola alegórica é dom inado pela situação dos disci-
pulos, onde "tristeza" é m ais apropriada.
se converterá. Provavelm ente, um hebraísm o (hyh /); cf. MTGS, p. 253. Ve-
rem os no comentário que João está usando aqui um antigo sim bolismo
hebraico.
21. uma mulher. Literalmente, "a m ulher". Este é um discurso simbólico,
como o v. 25 deixa claro; e o artigo definido é frequentem ente usado
para introduzir substantivos que são os sujeitos das parábolas (cf. 12,24).
dores de parto. Tiktein, "gerar, dar à luz".
entristece. Lypê·, veja nota sobre 16,6. Feuillet, "L'heure", pp. 178-79, chama a
atenção para Gn 3,16: "Com tristeza [lypê] darás à luz [tiktein] filhos". Isto é
importante porque a história de Adão e Eva se tem proposto frequentemen-
te como possível pano de fundo para o simbolismo usado por João.
sua hora. O Codex Bezae, P66, OL e OS leem "dia", m as tem os seguido a
maioria das testem unhas textuais. Bons argum entos podem ser apresen-
tados de ambos os lados por que copistas poderiam ter m udado um a
palavra por outra. Pode-se argum entar que "hora" foi inserido p or estar
em m ais acordo com a teologia joanina na qual a paixão e a ressurreição
constituem "a hora" de Jesus; note tam bém o uso de "hora" nos vs. 25 e
32. Todavia, "dia" poderia ter sido inserido para estabelecer um a refe-
rência a "o dia do Senhor" com suas tribulações e sofrimentos; note o uso
de "dia" em 23 e 26.
sofrimento. Thlipsis; veja comentário. O tem a retom a no v. 33.
uma criança tem nascido para 0 mundo. A expressão literal, "um ser hum ano
tem nascido para o m undo" é um tanto tautológica, pois na linguagem
rabínica "o nascim ento de alguém no m undo" é um a descrição de um ser
hum ano; veja nota sobre 1,9. Todavia, a ideia pode ser que sua alegria
não é sim plesm ente porque ela tem um filho, m as tam bém porque ela
tem contribuído para a hum anidade ou o m undo. F euillet, "L'heure", pp.
157-77, pensa que o uso de "ser hum ano" (anthrõpos ), em vez de "filho",
é outro eco do pano de fundo de Gênesis m encionado acima. Em parti-
cular, ele cita Gn 4,1: "Eva concebeu e deu à luz a Caim, dizendo: 'Com
o auxílio do Senhor tenho gerado um homem'" (F ilo, De Cherubim 16-16-17;
53-57, chama a atenção para o uso de "hom em " aqui). Às pp. 366-69,
56 · O último discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão) 1121

F euillet sugere que a frase "no m undo" tem aqui a intensão de evocar o
curso da vida de Jesus que veio ao m undo com sua encarnação e voltará
ao m undo depois de sua paixão e ressurreição como um Novo Adão
(um a interpretação oferecida em tem pos de outrora por C risóstomo,
A quino, C ornelius a L apide, entre outros).
22. estais tristes. Literalmente, "tendes tristeza". Uma forte combinação de
testem unhas textuais (P66, Bezae, Alexandrinus) endossa um tem po futu-
ro, m as a diferença não é significativa.
Eu vos verei outra vez, e vossos corações se regozijarão. Há aqui um eco da
LXX de Is 66,14: "E vós vereis e o vosso coração se alegrará". B arrett,
p. 411, observa que a m udança de João de "vós vereis" para "eu verei"
deste versículo dificilmente pode ser acidental. Outros, com parando "eu
vos verei" deste versículo com o "vós m e vereis" do v. 16, observam que
tem se dado um a progressão, porque é preferível ser visto por Deus do
que vê-lo. Entretanto, é possível suspeitar de que "vós me vereis" e "eu
vos verei" sejam sim plesm ente os dois lados de um a m oeda, tanto quan-
to o viver "vós em m im e eu em vós" do qual temos vários exemplos.
corações. Literalm ente no singular, como no v. 6; veja nota sobre 14,1.
poderá tirar, "tira" ou "tirará"; o Vaticanus e o Bezae endossam um tempo
futuro, m as é bem provável que o presente (P66) seja o original, sendo
usado p ara expressar a certeza do futuro.
23. naquele dia. A frase aparece aqui e no v. 26; veja nota sobre 14,20.
não me perguntareis nada. O verbo é erõtan. Os com entaristas estão divi-
didos sobre se este verso se refere ao que precedeu ou ao que segue.
Caso se refira ao que precedeu (W estcott, L oisy, L agrange, B ultmann,
H oskyns, B arrett), a referência é ao tipo de pergunta que foi o tema dos
vs. 17-19: um a pergunta que denuncia um a falta de compreensão. Jesus
está prom etendo que "naquele dia" entenderão. Isto concordaria com
nossa tese que expomos no comentário de que esta passagem se refere à
presença de Jesus através do Parácleto. O Parácleto trará entendimento,
já que ele ensinará aos discípulos todas as coisas (14,26) e os guiará no
cam inho de toda a verdade (16,13). E possível achar um a ideia similar em
ljo 2,27: "E a unção que vós recebestes dele, está em vós, e não tendes
necessidade de que alguém vos ensine".
Caso se refira ao que segue (C risóstomo, B ernard), perguntar equivalería
aqui a pedir (aitein) coisas ao Pai: um pedido ou petição por algo que al-
guém deseje. Jesus está prom etendo que "naquele dia" não mais lhe apre-
sentarão seus pedidos, mas serão capazes de pedir diretamente ao Pai.
O fato de que dois verbos diferentes {erõtan e aitein ) são usados nos ver-
sos 1 e 3 não favorecem esta solução, embora frequentemente estes verbos
1122 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

sejam intercambiáveis (no v. 26 abaixo erõtan é usado para um a petição).


O fato de que os versos 1 e 3 são separados pelo solene "Am ém " duplo
("Verdadeiramente, vos asseguro") também sugere um a m udança de su-
jeito e assim favorece a primeira interpretação. Mas, em nossa mente, o ar-
gumento conclusivo pela primeira interpretação está no contexto. Nossas
notas sobre os vs. 26 e 30 abaixo dão motivos para se pensar que as "per-
guntas" do v. 3, verso 1, dizem respeito à compreensão e não são petições.
Verdadeiramente, vos asseguro. Jesus iniciou a resposta aos seus discípulos
no v. 20 com estas palavras, e agora essa resposta tom a um novo rum o.
O axioma de B ernard (1,67) de que o duplo "Am ém " nunca introduz um
novo dito sem estar relacionado com o que precede só é verdadeiro se
alguém inserir um "totalm ente" antes de "não relacionado". Esta expres-
são costum a m arcar o início de um novo pensam ento ou um a nova fase
no discurso, como no v. 10,1.
se. Um raro uso de an em vez de ean (BDF, §107); cf. 14,14: "Se [ean] m e
pedirdes algum a coisa em m eu nome, eu o farei".
ao Pai. Como indica a citação do cap. 14 que acabamos de fazer, ali se asse-
gura petições feitas a Jesus, enquanto que aqui se trata de petições [feitas]
ao Pai. Veja discussão à pp. 1009-12 acima.
Ele vo-la dará em meu nome. Nos códices Vaticanus e no Sinaiticus, e as versões
coptas, a frase "em m eu nome" vem depois do verbo "dar" e deve ser inter-
pretada assim. Mas nos códices Bezae e Alexandrinus e na tradição bizanti-
na, "em m eu nome" é posto antes do verbo "dar" e assim pode ser traduzido
com o verso precedente: "Se pedirdes alguma coisa ao Pai em m eu nome,
eu vo-lo darei". Esta tradução, endossada pelo OL e OS, concorda com 15,16
("Tudo que pedirdes ao Pai em m eu nome, Ele vos dará") e também, na
sentença padrão, com 14,14 citado acima. As testemunhas textuais estão di-
vididas por iguais, mas preferimos a primeira tradução, porque ela é mais
difícil e rara. Em nenhum a outra parte em João ou no NT lemos que as coisas
serão dadas em nome de Jesus, e é possível que copistas tenham harmoniza-
do esta afirmação ao esquema mais usual de pedir nesse nome. Que a ideia
de o Pai dar em nome de Jesus seria familiar no pensamento joanino se vê
em 14,26: "O Parádeto... que o Pai enviará em m eu nome".
24. pedistes. O im perativo presente ("continuar pedindo") põe a ênfase na
persistência do requerente. Sobre a construção desta sentença e seus pa-
ralelos nos sinóticos, veja p. 1087 acima.
para que vossa alegria seja completa. Literalmente, "para que se cum pra"; a
construção é perifrástica; e às vezes, mas nem sem pre, este é u m sinal de
tradução de m odism os semitas.
25. isto. Literalmente, "estas coisas".
56 · O último discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão) 1123

de figuras. Paroimia, com o mãSãl cuja tradução na LXX abarca um a am-


p ia gam a de expressões parabólicas e alegóricas. (Veja nota sobre 10,6;
tam bém A. J. Simonis, Die Hirtenrede im Johannes-Evangelium [Analecta
biblica 29; Roma: Pontifical Biblical Institute, 1967], pp. 75-79). Nesse
tipo de linguagem costum a haver um elem ento de dificuldade, o obs-
curo o u enigm ático; po r exem plo, em Eclo 39,3, acham os um parale-
lism o "os segredos de paroimiai" e "os enigm as de parabolai". Tam bém
foi em pregado de linguagem figurativa na Prim eira Seção do últim o
discurso (o sim bolism o do lava pés em 13,8-11; o servo e o m ensagei-
ro em 13,16) e na presente Seção (a videira e os ram os em 16,1-17; a
m u lh er com dores de p arto em 16,21). Ao evocar o costum e de Jesus
d e falar figuradam ente, João está em concordância com Mc 4,34: "Ele
n ão lhes falava sem um a parábola \parabole, sinônim o de paroim ia ],
m as explicava tu d o privativam ente aos seus p róprios discípulos (tam-
bém Mc 4,11). Todavia, p ara João a explicação com pleta não veio até a
era do Espírito.
chega a hora. Veja vol. 1, p. 802.
falarei. Este verbo, apangellein, é usado em ljo 1,2.3 para descrever a pro-
clam ação apostólica do que haviam ouvido de Jesus. No comentário,
desenvolverei a tese de que a prom essa de Jesus de falar aos discípulos
acerca do Pai com palavras claras é concretizada através do Parácleto.
Um a associação deste versículo com a obra do Parácleto é sugerida pela
tradição textual bizantina que (incorretamente) lê anangellein, "declarar",
o m esm o verbo usado na passagem do Parácleto de 16,13-15.
claramente. Parrêsia pode significar tam bém "sinceridade, confiança, ousa-
dia". Se estam os certos em interpretar a prom essa de falar "claram ente"
como um a tarefa de ilum inação realizada em e através dos discípulos
(comentário), então o pensam ento de João é um tanto sim ilar àquele de
Atos, onde falar com ousadia {parrêsia ) é um dom especial do Espírito
(veja A t 2,29; 4,13.29.31; 28,31).
26. Naquele dia. Isto significa: quando a hora m encionada no v. 25 atingir seu
cum prim ento. N o v. 23, foi dito: "N aquele dia já não m e fareis nenhum a
pergunta". Já argum entam os que estas perguntas foram feitas com meio
de informação e para se com preender, e não petições; aqui vemos que
"naquele dia" ainda haverá petições.
pedireis em meu nome. O verbo é aitein. Em 14,13 ("Tudo o que pedirdes em
m eu nom e, eu o farei") houve um a prom essa explícita de que a petição
seria concedida; aqui ela é implícita.
rogarei. O verbo é erõtan ; veja nota sobre "não m e perguntareis nada" no
v. 2 3 . L a g r a n g e , p. 4 3 0 , sugere que a ideia é que Jesus não terá que chamar
1124 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

a atenção sobre ninguém que esteja necessitado (veja o uso de erotan em


Lc 4,38).
2 7 . 0 próprio Pai. B e r n a r d , II, 5 2 0 , cita F i e l d no tocante a "o elegante uso grego"

do pronom e autos aqui, significando "o Pai de si mesm o" (proprio motu);
ele diz ser evidente que m uito do grego de João não é um a m era tradu-
ção do semítico. Entretanto, autos pode ser um pronom e proléptico usado
para antecipar enfaticamente um substantivo que vem na sequência, essa
construção gramatical que B l a c k , pp. 7 0 - 7 4 , caracteriza como um puro
aramaísmo. MTGS, pp. 2 5 8 - 5 9 , cita isto como um caso em que "não é fácil
decidir, mas provavelmente o pronom e contém um a intenção enfática".
ama... tendes amado. Philein; a m esm a coisa foi dito de agapan em 14,21.23
(veja vol. 1, p. 794).
tendes crido. Aqui, fé é a segunda condição para se ganhar o am or do Pai;
em 14,21.23, a segunda condição foi guardar os m andam entos e a palavra
de Jesus. Para João, amor, fé e obediência são todos parte do complexo da
vida cristã, e um pressupõe o outro. Note-se o tem po perfeito nos verbos
"amastes" e "crestes"; está implícita um a atitude m antida ao longo da vida.
saí. Este é o aoristo de exerchesthai como em 8,42 (veja nota ali); tam bém
17,8. Em 15,26, ouvimos que o Espírito da V erdade saiu (presente de
ekporeuesthai) do Pai.
de Deus. Os códices Vaticanus e Bezae, T aclano e as versões coptas dizem
"do Pai" - um a combinação forte. As testem unhas que leem "Deus" estão
divididas sobre se o artigo vem ou não antes de theos. Com o artigo, theos se
refere ao Pai (nota sobre 1,1), e a leitura "o Pai" pode ser um esclarecimento
disto. Ou, "o Pai" pode representar a influência cruzada da prim eira parte
do versículo seguinte e de 15,26 (todavia, veja 8,42, o qual tem "Deus").
28. [Saí do Pai]. Esta sentença se encontra nos melhores manuscritos ocidentais,
incluindo o Sinaiticus e o Vaticanus, talvez por meio de homoioteleuton.
A confusão no final do versículo precedente, sobre se ler "de Deus" ou
"do Pai" podería ter levado algum copista a combinar e incluir ambas as
redações, repetindo o verbo. Mas é difícil adm itir que o padrão quiásmico
perfeito agora encontrado no v. 28 foi criado por um a adição casual de co-
pista: os versos 1 e 4 tratam da encarnação e ressurreição da perspectiva do
Pai; os versos 2 e 3 as tratam da perspectiva do m undo. Este argum ento in-
clina a balança em favor da autenticidade da prim eira parte do versículo.
Saí... vim. N o tem po aoristo e perfeito, respectivamente. O prim eiro tem po
serve para indicar que a encarnação ocorreu em um m om ento particular
do tem po; o segundo reconhece seu efeito perm anente. Um contraste si-
m ilar aparece em 8,42: "Pois saí de Deus e estou aqui" (um aoristo e u m
presente com um significado perfeito).
56 · O último discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão) 1125

do Pai. Os m anuscritos que trazem esta prim eira linha entre colchetes estão
divididos sobre se leem para ou ek ("de"). N ão existe diferença real de
sentido; aliás, um a terceira preposição, apo, aparece no v. 30. Ek não pode
ser interpretado teologicam ente como um a alusão à relação intratrinitá-
rias d o Pai e Filho ("saí do Pai"), já que este verso se refere à encarnação,
não ao que a teologia posterior cham aria de a processão do Filho. (Por
outro lado, em 8,47 a frase ek tou theou é usada para descrever um crente
comum: "Q uem é de Deus").
agora. Palin, "outra vez", é usado aqui para indicar o que vem na sequência;
todavia, tam bém tem a conotação de um retom o a um a condição prévia,
donde nossa adição de "vou" na linha seguinte. Cf. BAG, p. 611, e o em-
prego em 11,7.
deixando... vou. Os verbos são aphienai e poreuesthai; para o restante do voca-
bulário, veja nota sobre 16,5.
29. por fim. Literalm ente, "agora"; nyn aparece outra vez no início do v. 30.
B ultmann , p. 454, propõe este significado: "agora, no último discurso,
estás falando claram ente, em contraste com o m odo de falares duran-
te o m inistério público". Mas, se alguém não aceita a reordenação de
B ultmann que situa o cap. 16 no princípio do últim o discurso, então se
torna m enos provável que os discípulos estão contrastando o que é dito
no últim o discurso (o que frequentem ente eles têm entendido equivoca-
dam ente) com o que foi dito durante o ministério. Podem ser descritos
como a pensar que, como a partida de Jesus se torna mais iminente, ele
começou a falar m ais claram ente do que se fez anteriorm ente no último
discurso, e que agora chegou a hora que fora prom etida no v. 25, hora
quando não m ais falaria p or meio de figuras.
30. sabemos... cremos. H ouve tam bém um a combinação do verbo conhecer
com o verbo crer, quando Pedro expressou as convicções dos discípulos
em 6,69: "Temos crido, e estam os convencidos \ginõskein\ de que tu és
o Santo de Deus".
nem mesmo necessitas que alguém te pergunte. O verbo é erõtan. Este versí-
culo, que se referiría às perguntas de informação, é im portante para a
com preensão da prom essa em 23a: "N aquele dia já não m e perguntareis
nada [erõtan]"■, aparentem ente, os discípulos pensam que a prom essa já
se cum priu. Alguns exegetas não têm feito um a conexão com o v. 23a e
pensam que a afirmação, na prim eira parte do v. 30, que Jesus conhece
todas as coisas, deve ser seguida, logicamente, por um a afirmação de
que Jesus (não "um a pessoa") não tem necessidade de que se façam per-
guntas; assim, o OS: "N ão necessitas que um a pessoa te pergunte" (cf.
tam bém A gostinho, In Jo. 53,2; PL 35:1900). Entretanto, não só há pouco
1126 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

suporte textual para tal reinterpretação, m as tam bém negligencia a ideia


judaica de que a capacidade de antecipar perguntas, e não a necessidade
de ser indagado, é um a característica do divino. Em J osefo, Ant. 6.11,8;
230, Jônatas jura a Davi p o r "Este Deus... que, antes que tenha expressa-
do m eu pensam ento com palavras, já conhece qual é". A m esm a ideia se
encontra em M t 6,8: "Vosso Pai sabe o de que tendes necessidade, antes
mesmo que lho peçais".
Mais precisamente, na presente sequência em João, por que os discípulos
concluem que Jesus não necessita que um a pessoa lhe faça perguntas, e
por que esta conclusão conduz os discípulos a afirm ar sua convicção de
que ele veio de Deus? (Η. N. B ream dedicou um im portante artigo a es-
tas questões, e apenas apresentam os sucintamente aqui). M uitos comen-
taristas, consciente ou inconscientemente, dem onstram a dificuldade da
sequência, transferindo para os discípulos a negação da necessidade de
Jesus e explicando por que os discípulos já não necessitam de fazer per-
guntas a ele (assim L utero, Spitta, Strachan, L ightfoot). Contudo, isto
destrói o paralelismo entre a prim eira e a segunda parte do v. 30: "Tu
conheces todas as coisas - nem mesmo necessitas...". O utros estudiosos,
lidando com a afirmação dos discípulos como a temos traduzido, expli-
cam que os discípulos ficaram im pressionados pela capacidade que Jesus
tinha de saber e responder às suas indagações não expressas; p. ex., no
v. 19, e talvez nos vs. 20-28 (assim C risóstomo, B. W eiss, W estcott, L agrange,
Bernard, B ultmann, B arrett). Mas devemos notar que a expressão afir-
m a mais do que Jesus não necessitava que os discípulos lhe fizessem per-
guntas; afirma que ele não necessitava que alguém lhe fizesse perguntas.
B ream sugere que esta afirmação pode estar relacionada com o costum e
de buscar respostas nos oráculos, um a prática que no pensam ento cristão
equiparar-se à falsa profecia. N o Pastor de Hermas, Mandato 11,2-5, há um
ataque contra o falso profeta a quem se deve fazer perguntas: "Para todo
espírito que é dado da parte de Deus necessita que se lhe faça perguntas
[<erõtan], m as tem o poder da deidade e fala todas as coisas de si mesmo,
porque provém de cima" (11,5). No pensam ento joanino, Jesus teria este
poder porque ele é o único verdadeiro revelador de Deus. Q uando os dis-
cípulos reconhecem que ele conhece as perguntas antes m esm o de serem
form uladas, reconhecem, automaticamente, que ele veio de Deus.
Por causa disto. Literalmente, "nisto" (= a razão de que; BDF, §2192).
O "isto" é a capacidade que Jesus tem de antecipar perguntas e de
conhecer tudo.
saíste de Deus. Aqui, a preposição é apo, como contrastada com ek no v. 28;
mas certamente (com a devida vênia a L agrange, p. 432) o escrito joanino
56 · O último discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão) 1127

com isto não insinua, com esta mudança de vocabulário, que os discípulos
estão fazendo um a afirmação menor que a que Jesus reivindicou em 28.
Estão aceitando o que Jesus disse de si mesmo numa extensão que pudessem
entendê-lo, e a mudança de preposição não tem nenhum significado especial.
31. Credes agora? Gramaticalm ente, é difícil decidir se isto é um a pergunta
ou um a afirmação; BDF, §440, fala de am biguidade. O caso similar no
cap. 13,38 sugere que se trata de um a pergunta. Mesmo que seja um a
afirm ação ("Agora credes" - a saber, no momento), ela lança dúvida so-
bre a adequação da fé dos discípulos. A fé deles ainda não está comple-
ta; ela vacilará (v. 32). Esta interpretação vai contra um a exegese (p. ex.,
L agrange) em que Jesus exclama que finalmente os discípulos chegaram
a crer - e já era hora, pois ele está para ser preso.
32. Eis que. Idou, literalmente, com sentido adversativo como em 4,35.
chega a hora... porque. Frequentem ente hora é conectado com hote, "quan-
do" (4,21;23; 5,25; 16,25), m as aqui e em três outros casos (12,23; 13,1;
16,2) é construído com hina. BDF, §382J, e Z erwick, §428, negam qualquer
nuança final ao hina, de m odo que não veem nenhum a diferença de sig-
nificado nas duas construções. Todavia, não deixa de ser tentador ver
em hina um a implicação de que o que aconteceu foi a fim de se cum prir a
profecia de Zacarias sobre as ovelhas sendo dispersas.
dispersos. João usa skorpizein; no comentário salientarem os o paralelo com
Mc 14,27 que usa diaskorpizein ao citar Zc 13,7. O Codex Alexandrinus
de Zacarias tam bém usa diaskorpizein; todavia, quase certam ente a reda-
ção da LXX do original de Zacarias era ekspãn, que aparece nos códices
V aticanus e Sinaiticus. Embora os verbos que usam João e Marcos sejam
ligeiram ente diferentes, alguns têm sugerido que João depende da forma
m arcana da citação de Zacarias. Entretanto, é possível que ambos, João
e Marcos, sejam dependentes aqui de um a tradição de testem unhos ou
textos coletados po r suas referências cristológicas (assim D odd) em que
havia u m a form a variante do texto grego de Zacarias. Também não é in-
concebível que João e Marcos representem tentativas independentes de
trad u zir o hebraico de Zacarias m ais fielmente para o grego.
para seu lado. Literalmente, "aos seus". É possível o significado "para sua
própria ocupação", m as o significado "para sua própria casa" é mais
provável (veja uso em Est 5,10; 3Mc 6,27; Jo 19,27). Isto se referiría às
m oradias tem porárias dos discípulos em Jerusalém, ou às cidades natais
na Galileia? O Evangelho de Pedro, 59, menciona especificamente que os
discípulos foram para seus lares.
deixando-me sozinho. Essas palavras são um eco de Is 63,3: "Eu sozinho pisei
no lagar e dos povos ninguém houve comigo".
1128 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

mas nunca estou sozinho. A m esm a afirmação foi feita em 8,16 ("Eu não es-
tou só - tenho do m eu lado A quele que m e enviou") e em 8,29 ("Aquele
que m e enviou está comigo. Ele não m e tem deixado sozinho").
33. dito isto. Literalmente, "estas coisas"; note a inclusão com o v. 25. O "es-
tas coisas" se referiria m ais do que a d ura advertência do v. 32, pois isso
dificilmente daria paz aos discípulos. Provavelm ente, a referência seja às
prom essas dos vs. 26 e 27, e talvez a algum as das prim eiras prom essas do
capítulo. O fato de que o v. 33 não concorde facilmente com o v. 32 levou
alguns (E. H irsch, D ibelius) a sugerirem que, originalm ente o v. 33 seguia
o v. 32 e que os vs. 29-32 são um a adição do redator (a p artir da tradição
sinótica). W ellhausen propôs que o v. 33 se harm oniza m elhor com o v.
24; L agrange pensava que ele se adequaria bem depois de 16,3. Provável-
mente seja m ais sensato sim plesm ente reconhecer o caráter heterogêneo
do m aterial aqui sem tentar reconstruir a sequência original.
tereis aflições. Uns poucos m anuscritos endossam um tem po futuro. A pala-
vra para "sofrim ento" é thlipsis; veja comentário sobre o v. 21.
eu vend. N o NT, particularm ente no Apocalipse (5,5; 6,2; 17,14), Jesus é
descrito como aquele que vence. Tam bém IC or 15,57: "Graças a Deus
que nos dá a vitória por interm édio de nosso Senhor Jesus Cristo".

COMENTÁRIO

Tal com o tem os hoje o cap. 16, dificilm ente p o d e h av er d ú v id a d e q u e o re-


d ator joanino final concebeu a passagem d e 16,4b-33 com o u m todo, e que,
portanto, ao d istinguir entre as u n id ad es 4b-15 e 16-33, dev am o s distinguir
entre d u a s p artes d entro d o todo, e não e ntre d u a s subdivisões realm ente
independentes. A u n id ad e d o conjunto é ilustrada pela referência d o v. 17
a algo já dito n o v. 10. N aturalm ente, isto n ão significa q u e tal u n id a d e seja
original. Aliás, o fato d e q u e a m enção específica d o tem a sobre o Parácleto
está in d u id a unicam ente em 4b-15 sugere que estam os lid an d o com u m a
u n id ad e im posta ao que u m a v ez foram blocos in d ep en d en tes d e m ate-
rial. N otam os tam bém q u e os vs. 16-33 tem o estilo d e u m diálogo entre
Jesus e seus discípulos, enquanto 4b-15, não. O tem a d a tristeza q u e vim os
no v. 6 reaparece no s vs. 20-22; todavia, nestes versículos a resp o sta a essa
tristeza não é u m a p rom essa d a v in d a d o P arád eto , e sim u m a p rom essa
d e q ue os discípulos verão Jesus o u tra vez (16; cf. 22). Foi req u erid a con-
siderável reinterpretação p elo a u to r joanino a fim d e p ropiciar u n id a d e a
essas expectativas diversas, com o verem os m ais adiante.
56 · O último discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão) 1129

H á d e n tro d o c o n ju n to d o s v s. 16-33 u m a e s tru tu ra reconhecível?


M u ito s e s tu d io s o s (L agrange , H oskyns , B arrett , B u ltm a n n ) p ro p õ e m
u m d u p lo a g ru p a m e n to d e v ersículos: 16-24 e 25-33. In d ic a m q u e o
v. 25 p o d e s e rv ir co m o o início d e u m n o v o g ru p o d e v ersícu lo s, v isto
q u e ex iste u m a a tm o sfe ra d e fin a lid a d e , com o se o d isc u rso estivesse
a g o ra c h e g a n d o à s u a conclusão. P o r o u tro la d o , p o d e -se a c h ar u m a
in c lu sã o n o refrão : " E u v o s te n h o d ito isto " , q u e a p a re c e n o s vs. 25
e 33. N ã o o b s ta n te , h á ta m b é m a rg u m e n to s c o n tra tal div isão ; p o r
e x e m p lo , o tem a d o s vs. 23b-24 (p e d ir e receber) é m u ito se m e lh an te
ao te m a d o s v s. 26-27, e p a re c e r e s u lta r u m a v io lên cia a o texto se p a ra r
estes v e rsíc u lo s e m d ife re n te s a g ru p a m e n to s.
S u g e rim o s q u e o m a te ria l seja d iv id id o e m d o is g ru p o s 16-23a e
23b-33, e q u e e ste s d o is g ru p o s d e v ersícu lo s sejam rela cio n a d o s e n tre
si c o n fo rm e a o p a d rã o q u iástico tip ic a m e n te jo an in o , assim :

16 - 23 a 23 b-33
Predição de julgamento e de 16 ‫׳‬ ‫־‬ / v 3 1 -3 3
consolação subsequente
Observações dos discípulos 1 7 -1 9 - 2 9 -3 0

Promessa de bênçãos a serem 2 0 -2 3 a '


‫׳‬ _ /
" 2 3 b -2 8
desfrutadas pelos discípulos

E stam o s c ie n tes d o risco q u e c o rre m o s a o v e r u m a e s tru tu ra m aio r


p a ra a u n id a d e d o q u e p re te n d ia o escrito r jo an in o , m as h á p o n to s
específicos q u e d ã o p la u s ib ilid a d e à tese d e q u e s u a e stru tu ra ç ã o é in-
ten c io n ad a . A a d v e rtê n c ia d e ju lg a m e n to n o v. 16 (" u m p o u c o d e tem -
p o , n ã o m e v e re is m ais") te m se u e q u iv a le n te n o v. 32 ("E is q u e chega
a h o ra - d e v e ra s já c h e g o u - e m q u e sereis d isp e rso s"). A n o ta acom -
p a n h a n te d e co n so lação n o v. 16 (" o u tra v ez, u m p o u c o d e tem p o ,
m e v e re is") c o rre s p o n d e à d o v. 33 (" p a ra q u e e m m im te n h a is p az").
A s in te rv e n ç õ e s d o s d isc íp u lo s n o s vs. 17-19 e 29-30 estã o explicita-
m en te re la c io n a d a s p e la referên cia d o v. 30 ao c o n h ecim en to d e Jesus
d o q u e e s ta v a e m s u a s m e n te s a n te s m e sm o q u e fo rm u la sse m u m a
p e rg u n ta - u m a fa c u ld a d e q u e foi e x em p lificad a e m 19. F in alm en te,
os d o is g ru p o s m a is e x ten so s d o d isc u rso (20-23a, 23b-28) são q u ase
ig u al e m e x te n sã o , e c a d a u m é in tro d u z id o p o r "V e rd a d e ira m e n te ,
v o s a s se g u ro ". C a d a u m se o c u p a d o q u e a c o n tecerá ao s d iscíp u lo s
" n a q u e le d ia " (23a, 26), q u a n d o " a h o ra " fin a lm e n te c h e g ar (21, 25).
1130 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

O p rim e iro (20-25a) p ro m e te q u e aos d iscíp u lo s u m a aleg ria d u ra d o u ra


(20-22) e c o n h e cim e n to (23a); o s e g u n d o (23b-28) p ro m e te a c o n cessão
d e su a s p e tiç õ es (23-24,26) e c o n h e cim e n to (25).

Versículos 16-23a: Os discípulos verão Jesus outra vez e se alegrarão

O v. 16, a ch av e p a ra este g ru p o d e v ersícu lo s e, n a v e rd a d e , p a ra


to d a a u n id a d e , ilu stra a g ra n d e d ific u ld a d e d e d e te rm in a r o q u e sig-
nifica e x a ta m e n te n o ú ltim o d isc u rso o re to m o d e Jesus, d ific u ld a d e
já m e n c io n ad a n a s p p . 969-72 acim a. Se tra ta rm o s o v. 16 co m o u m a
sen ten ça p ro n u n c ia d a n o contexto d a ú ltim a ceia, a p rim e ira v ista p a -
rece q u e tem o s d e en te n d ê -lo assim : Jesus m o rre rá e m b rev e , e assim
e m p o u c o te m p o o s d isc íp u lo s n ã o o verão ; m a s e n tã o d e n tro d e p o u -
co te m p o o v e rã o o u tra v ez, p o rq u e , d e p o is d e se u se p u lta m e n to , ele
ressu scitará e a p a re c erá a eles. Este e ra o p o n to d e v ista d a m a io ria d o s
P a d res g reg o s. (O b v iam en te, tal in te rp re ta ç ã o p re s s u p õ e q u e Jesu s sa-
b ia d e ta lh a d a m e n te o q u e aco n teceria a p ó s s u a m o rte , u m a p re s s u p o -
sição q u e m u ito s e stu d io so s, p ro te sta n te s e católicos, n ã o m ais fariam ).
T o d av ia, h á certos elem en to s n a d escrição q u e João faz d o e sta d o d o s
d iscíp u lo s d e p o is q u e v isse m Jesus q u e n ã o se e n q u a d ra m b e m a u m a
referên cia à s a p ariçõ es p ó s-ressu rreição . E v e rd a d e q u e n a ótica d e
João a s p ro m e ssa s d e aleg ria e p a z (16,20-22.24.33) e m a lg u m a exten-
são se c u m p rira m n a s a p ariçõ es d o Jesus re ssu rre to (20,20.21.26), m as
essas ap ariçõ es rea lm e n te o u to rg a m " u m a ale g ria q u e n in g u é m p o d e
tirar-v o s"? M u ito d o q u e João reg istra em 16,16ss. a n te c ip a u m a u n iã o
m ais p e rm a n e n te co m Jesus d o q u e a p ro p o rc io n a d a p o r a p a riçõ e s
p ó s-ressu rreição . O v. 23a p ro m e te a o s d isc íp u lo s u m c o n h e cim e n to
p len o , d e m o d o q u e n ã o m ais n ecessitam fo rm u la r p e rg u n ta s. E sse co-
n h ecim en to m ais p ro fu n d o dificilm en te foi co n c re tiz a d o n o b re v e p e -
río d o p ó s-ressu rreição , d e n tro d o q u a l Jesus lh es ap a re c eu . O te m a d e
fazer p etiçõ es e tê-las alcan çad o (23b-24,26) p a re c e im p lic a r u m lo n g o
p e río d o d e te m p o em q u e isto seria u m p ro c e d im e n to co stu m eiro .
O u tra solução tem sido p ro p o sta. A gostinho (In Jo. C l 6; PL 35:1895)
e n te n d e o s e g u n d o " p o u c o te m p o " d o v. 16 co m o o p e río d o a n te s d a
p a ro u s ia e su g e re q u e o s d isc íp u lo s (cristãos) v e ría m Jesu s o u tra v e z
q u a n d o ele v ie r n o fim d o s tem p o s. A litu rg ia ro m a n a p a re c e se g u ir
e sta in te rp re ta ç ã o , p o is ela lê esta p a ssa g e m em u m d o m in g o após a
festa d a ressu rre içã o . Q u e a ex p ressão " m e v e re is" p o d e ria refe rir-se
56 · O último discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão) 1131

à p a ro u s ia se d e m o n s tra p o r p a ssa g e n s sin ó ticas q u e falam d e v e r o


F ilho d o H o m e m v in d o so b re a s n u v e n s e m p o d e r e g ló ria (Mc 13,26;
14,62). A im a g e m d a s d o re s d o p a rto (21) é e m p re g a d a n o A T p a ra
d e s c re v e r o d ia escato ló g ico d o S en h o r, u m d ia q u e é ta m b é m e co ad o
n a fra se " n a q u e le d ia " d o s vs. 23 e 26. T o d av ia, n ã o p o d e m o s lim itar
a p ro m e s s a d o v. 16 u n ic a m e n te à p a ro u sia , p o is isso im p lic a ria q u e
n a d a d o q u e Jesu s p ro m e te u teria a in d a sid o c u m p rid a s.
Se te m o s d e in te rp re ta r e sta se n te n ç a n o co n tex to h istó rico d a
ú ltim a ceia, ta lv e z p o ssa m o s c o m b in a r o m e lh o r d a s d u a s in te rp re -
taçõ es a n te rio re s. É p o ssív e l q u e Jesu s p ro m e te sse a o s d isc íp u lo s bên-
çãos q u e se ria m d e le s a p ó s s u a v itó ria so b re a m o rte e o m al, m a s sua
e x p e c ta tiv a d o q u e essa v itó ria c o n sistiría n ã o p u d e s s e ser c laram en te
d e fin id a. P o d e se r q u e fosse u m a ex p e cta tiv a q u e p u d e s se ser expres-
sa n a lin g u a g e m tra d ic io n a l ta n to d a re ssu rre iç ã o com o d a p aro u sia.
(N o v o l. 1, p . 351, su g e rim o s q u e as v a g a s referên cias jo an in a s sobre
a e x altação d e Jesu s fo sse m m a is o rig in a is e m s u a p e rsp e c tiv a d o que
as d e ta lh a d a s p re d iç õ e s sin ó ticas d a ressu rreição ). A ssim , a d istin ção
e n tre v e r Jesu s n o te m p o d e s u a s a p a riçõ e s p ó s-re ssu rre iç ã o e vê-lo
n o te m p o d e s u a p a ro u s ia p o d e m u ito b e m ter sid o u m a d istin ção
fo rm u la d a p e la ig reja p rim itiv a p re c isa m e n te q u a n d o os c ristão s com -
p ro v a ra m q u e n e m to d a s as p ro m e ssa s d e Jesu s se c u m p riría m em
su a s a p a riç õ e s a p ó s a ressu rre içã o . E sta d istin çã o n ã o seria o rig in al
em se n te n ç a s p ro v e n ie n te s d o m in istério .
Se d o p o ssív el significado d a sen ten ça n o contexto d a ú ltim a ceia
p a ssa m o s a e s tu d a r o q u e significaria n o contexto to tal d o evangelho,
d esco b rim o s q u e n o p e n sa m e n to jo an in o " v e r" Jesus e a aleg ria e o co-
n h ecim en to q u e são c o n seq u en tes d e sta experiência são co n sid erad o s
p riv ilég io s d a existência cristã d e p o is d a ressurreição. A s p ro m essas
d e Jesu s têm -se c u m p rid o (ao m en o s n u m a ex ten são significativa) no
q u e te m sid o a sse g u ra d o a to d o s os cristãos, p o is o ú ltim o d iscu rso é
d irig id o a to d o a q u e le q u e crê em Jesus e n ã o só ao s q u e e sta v a m p re-
sentes. "V er" Jesus te m sid o re in te rp re ta d o n o se n tid o d e experiência
co n stan te d e su a p resen ça n o cristão, e isto só p o d e significar a p resen-
ça d o P a rác le to /E sp írito . T al rein terp re ta çã o é legítim a n o p e n sam e n to
joanino, p o rq u e o P arácleto é o u to rg a d o p e lo Jesus ressu rreto , p recisa-
m en te co m o o cam in h o p a ra to m a r p e rm a n e n te su a p resen ça glorifica-
d a e n tre seu s d iscíp u lo s, a g o ra q u e se u lu g a r é ju n to a o Pai. E n q u an to a
sen ten ça d o v. 16 p o d e ter-se referid o o rig in alm en te a u m a v isão física,
1132 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

ag o ra se refere a u m a v isão esp iritu al; e assim n ã o h á co n trad ição rea l


e n tre "m e v ereis" d o v. 16 e "n ão m ais m e v ereis" d o v. 10; cf. tam b é m
20,29. C o m o os p aralelo s com os ev an g elh o s sinóticos e m 23-24,25,26
e 32 su g erem , a q u i o a u to r joan in o e stav a tra ta n d o d a s sen ten ças q u e
tin h a m su as raízes em u m a trad ição an terio r. E m v e z d e ree lab o ra r
co m p letam en te estas sentenças e m term o s d e v e r Jesus e m e a tra v és
d o Parácleto, ele lev o u a cabo su a rein terp retação , colocando-as la d o
a lad o com a s sen ten ças so b re o P arácleto d e 16,8.15. (A o a n a liza rm o s
14,2-3 [pp. 998-1000 acim a], v im o s u m a técnica sim ilar d e rein te rp re ta -
ção atrav és d o contexto). A P rim eira Seção d o ú ltim o d isc u rso te m u m
p aralelo com 16,16 n a sen ten ça d e 14,19: "A in d a u m p o u co , e o m u n d o
n ão m e v e rá m ais, m as v ó s m e vereis; p o rq u e e u te n h o v id a , e v ó s te-
reis v id a". C o m o salien tam o s às p p . 1024-25, esta sen ten ça foi tam b é m
re in te rp re ta d a em referência a u m a p rese n ç a m ais p e rm a n e n te d e Jesus
d o q u e era p o ssív el n o p e río d o p ós-ressurreição; se g u in d o logo d e p o is
a p a ssag em so b re o P arácleto e m 14,15-17, e p o d e tam b é m ser p erfeita-
m en te in te rp re ta d o em term o s d a v in d a d o P a rác leto /E sp írito .
E n q u a n to a o d iálo g o e m 16,17-19, d e sco b rim o s q u e , se te m o s tid o
d ific u ld a d e e m d e te rm in a r o sig n ificad o ex ato d o q u e Jesu s d isse n o
v. 16, os d isc íp u lo s ta m b é m e sta v a m confuso s. A p ro m e s s a d e Jesus
d e q u e o v e ria m o u tra v e z logo d e p o is (16) p a re c e c o n flitar-se co m s u a
afirm ação d e q u e e sta v a in d o p a ra o P ai (v. 10: "E u v o u p a ra o P ai, e
n ã o m ais p o d e re is v er-m e"). Já sa lie n ta m o s a n te rio rm e n te q u e o a u to r
jo an in o re so lv e u a a p a re n te c o n tra d iç ã o , re in te rp re ta n d o o significa-
d o d e " v er"; m as, se m a v a n ta g e m q u e s u p õ e a re in te rp re ta ç ã o p o s-
terio r, os d isc íp u lo s tin h a m to d o o d ire ito d e e sta r c o n fu so s. S om os
in fo rm a d o s q u e Jesu s sab ia as in ten çõ es d e le s e a n te c ip o u s u a s p e r-
g u n ta s, m as a re sp o sta q u e d e u n u n c a in fo rm a a eles o u a n ó s co m o
reso lv e r a d ific u ld a d e d e n tro d o co n tex to h istó ric o d a ú ltim a ceia - a
d e sp eito d o fato d e q u e os d isc íp u lo s m ais a d ia n te (29-30) se m o stra m
e n tu sia sm a d o s com o fato d e Jesus a n te c ip a r s u a s p e rg u n ta s e a g o ra
e stav a fala n d o com to d a clareza.
O Jesu s jo a n in o te m o c o stu m e d e r e s p o n d e r in d ire ta m e n te a
p e rg u n ta s , e su a re s p o s ta n o s vs. 20ss. re a lm e n te é u m a d e scriçã o
d o s p riv ilé g io s q u e o s d isc íp u lo s d e s fru ta rã o d e p o is " u m p o u c o d e
te m p o " , a sa b er, " n a q u e le d ia " (23,26), q u a n d o "a h o ra " c h e g a r e m
s u a p le n itu d e (21, 25). N o s vs. 20-23a, d e sc re v e m -se d o is p riv ilé g io s:
ale g ria e c o n h ecim en to .
56 · O último discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão) 1133

A alegria d u rad o u ra dos discípulos (20-22) é contrastada com a


falsa e cruel alegria que se assenhoreia do m u n d o quando Jesus m orrer.
A alegria dos discípulos se relaciona tam bém com sua m orte, m as é
u m a alegria que em erge triunfantem ente do sofrim ento. Ao descrever
este fenôm eno, Jesus se reporta a u m a parábola extraída d a experiência
com um d o nascim ento do ser hum ano. Todavia, a linguagem figurati-
va que ele em prega tam bém tem raízes no A ntigo Testam ento onde se
d iz que as dores de parto que Israel terá de suportar antes que chegue
o d ia d o Senhor ou antes que o M essias venha. Em Is 26,17-18 (LXX),
lemos: "C om o a m ulher grávida, quando está próxim a sua hora, tem
dores de parto... assim som os nós diante de ti, ó Senhor! ...Temos anun-
ciado o espírito de tu a salvação". Isto é seguido p o r um a prom essa de
que os m ortos viverão e p o r u m cham ado aos que jazem no pó para que
se regozijem (euphrainein; não o chairein de João), pois a ira do Senhor
d u ra som ente pouco tempo (mikron). Is 66,7-10 descreve as dores de parto
de Sião ao d a r à luz seus filhos e então encoraja todos os que a am am
que se regozijem (euphrainein) com ela. Esta passagem poderia estar em
m ente n a redação de Jo 16,21, pois o v. 22 cita Is 66,14 (veja nota). Veja
tam bém Os 13,13; M q 4,9-10; 5,2(3). A im agem das dores de parto conti-
n u o u a ser em pregada no pensam ento judaico no período posterior ao
AT. N os M anuscritos do M ar M orto, 1QH 3,8ss. descreve um a m ulher
grávida d e seu prim eiro filho, u m varão. A pós dores lancinantes, ela
dá à luz ao "m aravilhoso conselheiro" (descrição do rei prom etido em
Is 9,5[6]). A intenção deste hino de Q um ran é obscura, m as é possível
que descreva figurativam ente o nascim ento do Messias.
A im agem tam bém se encontra em A p 12,2-5, onde a m ulher ves-
tida d o sol, en tre gritos de dores em seu p arto, dá à luz a u m varão
que h á d e governar todas as nações com v ara de ferro (descrição do
rei [messias] u n g id o do SI 2,9). Ao discutirm os o prim eiro m ilagre em
C aná e o p ap el d e M aria ali (vol. 1, pp. 302-04), tivem os ocasião de co-
m entar sobre esta cena no A pocalipse. A pontam os p ara seu p an o de
fund o em G n 3,15-16, o n d e lem os que a m u lh er d aria à luz seus filhos
entre dores e que seu descendente esm agaria a cabeça d a perversa
serpente. (Veja notas p ara notáveis paralelos com o relato de Gênesis
tam bém em Jo 16,21). Sugerim os que a m ulher do A pocalipse é u m
sím bolo d o povo de D eus, de quem M aria, m ãe de Jesus, é u m a per-
sonificação. N o artigo que citam os, A. F euillet tem defendido com ar-
gum entos convincentes que A p 12, ao alu d ir ao doloroso nascim ento
1134 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

d o M essias, e stá se re fe rin d o à m o rte e re ssu rre iç ã o d e Jesus. Isto e stá


p re s s u p o s to e m A p 12,5, o n d e n o m o m e n to e m q u e o m e n in o n a s-
ce, ele é a rre b a ta d o p a ra o céu. A e q u iv a lên c ia e n tre re ssu rre iç ã o e
n a scim en to é e la b o ra d a n o início d o A p o c a lip se (1,5), p o is ali Jesu s é
c h a m a d o "o p rim o g ê n ito d o s m o rto s". A id eia d e q u e a re ssu rre iç ã o
-ascen são g e ro u o M essias está em c o n fo rm id a d e co m A t 2 ,3 4 3 6 ‫ ;־‬ali
P e d ro p ro c la m a q u e , a o e le v a r Jesu s à s u a d e stra , D e u s o fez M essias.
A lu z d este p a n o d e fundo, F euillet sugere q u e a b rev e paráb o la
em Jo 16,21 é tam b ém tu n a alegoria. (Para a m escla joanina d e paráb o -
la e alegoria, veja vol. 1, p p . 6 6 6 -6 7 ). A p resen te tristeza e a alegria futu-
ra d o s d iscípulos são n ão só c o m p arad as com a tristeza e a alegria q u e
tu n a m u lh e r n o rm a lm e n te se n te n o n a sc im e n to d e s e u filho, m a s tam -
b é m h á referên cia a u m e sq u e m a sim bólico já c o n h e cid o n o q u a l a
m o rte e a v itó ria d e Jesus são r e tra ta d a s co m o a s d o re s d e p a rto d a
m u lh e r e o su b seq u en te nascim ento d o filho m essiânico. M as até o n d e
p o d em o s chegar com esta alegoria? L oisy (Ed. 1 9 0 3 ), p. 7 8 8 , d efen d ia q u e
a m u lh e r d o v. 21 p arece rep resen tar a sinagoga co n v ertid a ao cristia-
n ism o - p o n to d e vista rejeitado p o r H oskyns, p. 4 8 8 , e p o r B ultm ann ,
p. 4 4 6 5 ("absurdo"). A o tem p o d e su a edição em 1 9 2 1 , L oisy, p. 4 3 6 , foi
m ais cauteloso sobre identificar detalhes alegóricos. A. K errigan , Anto-
nianum 3 5 (1 9 6 0 ), 3 8 0 -8 7 , v ê u m a referência p articu lar a M aria; ele corro-
b o ra isto ev o can d o Jo 1 9 ,2 5 -2 7 , o n d e na morte d e Jesus, M aria é m enciona-
d a com o "M u lh er", e fez dela a m ãe d o D iscípulo A m ad o (sim bolizando
o cristão). W . H . B rownlee , NTS 3 (1 9 5 6 -5 7 ), 2 9 , v ê u m a referência p arti-
cular aos apóstolos q u e são co m p arad o s a u m a m u lh e r p a rtu rie n te cujo
filho é o Jesus ressurreto. T alvez seja preferível d izer sim p lesm en te q u e
Jo 2 ,4 ; 1 6 ,2 1 ; 1 9 ,2 5 -2 7 e A p 1 2 todos ecoam d e u m a m an eira o u d e o u tra a
alegoria d o p a p e l d a m u lh e r n a aparição d o M essias com o vitorioso, sem
ten tar ser m ais específico sobre o s d etalh es d e 1 6 ,2 1 .
C o n tu d o , p o d e-se v e r m u i p lausivelm ente u m d e ta lh e com o con-
ten d o significação alegórica: o "sofrim ento" o u thlipsis d a m u lh er. E sta é
u m a p a la v ra u s a d a q u ase tecnicam ente p a ra descrever a tribulação q u e
p reced erá a ação escatológica d e D eus; p o r exem plo, n o texto g reg o d e
D n 12,1: "E n aq u ele tem p o se levantará M iguel, o g ra n d e p ríncipe, q u e se
levanta a favor d o s filhos d e teu p ovo, e h av erá u m tem p o d e an g ú stia,
q u al n u n ca h o u v e, d e sd e q u e h o u v e nação até àquele tem po; m as n aq u e-
le tem p o o te u p o v o será libertado, to d o aquele q u e for ach ad o escrito
n o livro". Em Sf 1,14-15, se diz: "O g ran d e d ia d o Senhor e stá p ró x im o .
56 · O último discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão) 1135

... A q u e le d ia é u m d ia d e g ra n d e ira, u m d ia d e sofrimento e an g ú stia".


Veja ta m b é m H a b a c u q u e 3,16. N o N T , thlipsis é u sa d o p o r Jesus p a ra
d e scre v e r o so frim en to o u trib u lação q u e p re c e d e rá a v in d a d o F ilho d o
H o m e m (M c 13,19.24; cf. R m 2,9). M ed ian te u m certo tip o d e escatologia
rea liz a d a , a s aflições d a Igreja, d u ra n te o tem p o q u e p erm a n ec e n a ter-
ra, fo ra m in te rp re ta d a s com o thlipsis (Mc 4,17; A t 11,19). E m h arm o n ia
co m o sim b o lism o e m q u e a m o rte e ressu rreição d e Jesus co m b in ad as
são re p re s e n ta d a s p elo n ascim en to m essiânico d e u m m en in o , João vê
o so frim en to d o s d iscíp u lo s n a m o rte d e Jesus com o thlipsis q u e preced e
a e m e rg ên cia d a d isp en sação d iv in a definitiva. A se g u n d a m en ção d e
thlipsis n o v. 33 e ste n d e a n oção d e sofrim ento p a ra in clu ir a co n tín u a
aflição d o s d iscíp u lo s d u ra n te a p erseg u ição p elo m u n d o (isto concor-
d a co m o u so e m A p 7,14). D o m esm o m o d o q u e o sofrim en to tem u m
d u p lo m o tiv o , assim tam b é m a aleg ria q u e o segue. A alegria d o disci-
p u lo cristão é n ã o só a aleg ria d e reconhecer q u e Jesus já v en ceu a m orte
e m s u a ressu rre içã o (20,20); é u m a alegria d u ra d o u ra com o resu ltad o
d a p re se n ç a d e Jesus n o Parácleto. A p rim e ira alegria seg u e a tristeza
e o so frim en to d a p a rtid a d e Jesus n a m orte; a se g u n d a a leg ria (que é a
c o n tin u a çã o d a p rim e ira) coexiste ao so frim en to im p o sto p elo m u n d o .
O s e g u n d o p riv ilé g io q u e os d iscíp u lo s d e sfru ta rã o d e p o is d o " u m
p o u c o d e te m p o " é m en c io n ad o n o v. 23a: u m co n h ecim en to p le n o q u e
to rn a rá in ú te is q u a isq u e r p e rg u n ta s. N o p e río d o p ó s-ressu rreição , os
d isc íp u lo s v irã o a e n te n d e r o q u e Jesus d isse ra e fizera e m se u m inisté-
rio (2,22; 12,16; 13,7). E sta co m p re en sã o p o d e ría ter co m eçad o com as
a p a riçõ e s d o S en h o r (20,9.24-28; 21,4-7; cf. Lc 24,27), m a s s u a perfeição
e c o n tin u id a d e são o b ra d o P arácleto (16,13-15). O s d o is p riv ilég io s d a
aleg ria (em v irtu d e d a p re se n ç a d e Jesus n o P arácleto) e co m p reen são
(p ro p ic ia d a p e lo P arácleto) rea lm e n te n ão são d istin to s, p o is a alegria
flu i d o fato d e q u e o cristão tem c h e g ad o a c onhecer e c o m p re e n d e r Je-
sus. U m a co n ex ão e n tre co m p re en sã o e a leg ria é feita e m l j o 1,4, o n d e
o a u to r d iz q u e e stá escre v e n d o so b re o q u e ele v ira e o u v ira d e Jesus,
a fim d e " c o n d u z ir à p le n itu d e n o ssa ale g ria c o m u m ".

Versículos 23b-33: Os discípulos terão suas petições concedidas e


entenderão Jesus claramente

A s p a la v ra s d e Jesus n o s vs. 23b-28, a s q u a is a té certo p o n to são


p a ra le la s co m a s d o s vs. 20-23a (cf. p . 1129 a cim a), ta m b é m p ro m e te m
1136 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

d o is p riv ilé g io s q u e os d isc íp u lo s d e sfru ta rã o d e n tro d e " u m p o u c o


d e tem p o ": o p riv ilé g io d e u m a in tim id a d e co m D e u s q u e g a ra n tirá
q u e se u s p e d id o s se rã o a te n d id o s (23b-24,26) e, u m a v e z m ais, o p riv i-
légio d e c o m p re e n d e r a Jesus co m o a rev elação d o P ai (25). O p riv ilé -
gio d e ter os p e d id o s a te n d id o s n a r e a lid a d e b ro ta d o " v e r" Jesu s (16).
V isto q u e o cristão e x p e rim e n ta rá a p re se n ç a d e Jesu s n a h a b ita ç ã o
in te rio r d o P arácleto , ele p e rm a n e c e rá u n id o a Jesus; e, c o m o se p ro -
m e te u e m 15,7: "Se p e rm a n e c e rd e s e m m im ... p e d is o q u e q u ise rd e s,
e vo s se rá feito". P re cisa m e n te p o rq u e os cristão s te rã o a p re se n ç a
ín tim a d e Jesus n o P arácleto , ta m b é m d e s fru ta rã o d e in tim id a d e co m
o P ai q u e é u m co m Jesus. E ste fato n o s ca p ac ita a e n te n d e r a p e c u lia r
ên fase d e 16,23b-24, q u e n ã o só são coisas a se re m p e d id a s e m n o m e
d e Jesus, m as ta m b é m se rã o d a d a s e m n o m e d e Jesus. V isto q u e Jesu s
h a b ita n o s cristão s, su a s p e tiç õ es são feitas e m n o m e d e Jesus; v isto
q u e o P ai é u m com Jesus, as p e tiç õ es q u e Ele a te n d e são o u to rg a d a s
em n o m e d e Jesus. O v. 24 é m ais p ro fu n d o d o q u e p a re c e à p rim e ira
vista. A afirm ação d e q u e até e n tã o (a ú ltim a ceia) o s d isc íp u lo s n ã o
tin h a m p e d id o n a d a em nome de Jesus im p lica re a lm e n te q u e os disci-
p u lo s n ã o p o d e m v iv e r c o m p le ta m e n te u n id o s a Jesu s (e a ssim a g ir
em se u n o m e) se n ão d e p o is d a h o ra d a p a ix ã o , m o rte , re ssu rre iç ã o e
d o ação d o E sp írito. S o m en te e n tã o , co m o e x p re ssa Ef 2,18, eles " te rã o
acesso ao P ai e m u m m esm o E sp írito ".
Q u e tipo d e p e d id o s João tem em m ente ao registrar estas sentenças
relativas a p ed ir e receber? Tem os sugerido, ao discutir 14,13-14 e 15-17
(pp. 1013 e 1024 acim a), que, prim ariam ente, n ão é u m a questão d as neces-
sidades ordinárias d a vida, m as d e tu d o q u an to ap ro fu n d ará a v id a eterna
e fará frutífera a obra d o Parácleto. N o cap. 16, o contexto d a sentença em
23b-24 confirm a isto, pois am bos, 23a e 25, dizem respeito a u m a com -
preensão m ais p ro fu n d a d e Jesus (através d o Parácleto). P odem os ain d a
com parar a sentença n o v. 24, "P edi e recebereis, p a ra q u e vossa alegria
seja com pleta", com o que foi dito em 15,11: "E u v os ten h o dito isto p a ra
que m in h a alegria esteja em vós, e vossa alegria seja plena". A p len itu d e
d a alegria cristã v e m através d a com preensão d o q u e Jesus tem revelado,
u m a co m preensão q u e influencia o m o d o d e viver d o cristão.
C o m o v. 25, to rn a -se ób v io q u e as o b serv açõ es d e Jesus c h e g a m
a u m p o n to final. A p ro m e ssa d e u m c o n h e cim e n to m ais p r o fu n d o n o
v. 23a foi feita e m te rm o s d o s d isc íp u lo s já n ã o n e c e ssita re m d e for-
m u la r m ais p e rg u n ta s a Jesus; a g o ra a p ro m e ssa é e m te rm o s d e Jesu s
56 · O último discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão) 1137

fala r co m m ais clareza. (D e fato, o v. 25 p a re c e ter u m c a rá te r d e in-


serção e n tre o s vs. 24 e 26, a m b o s o s q u a is tra ta n d o d o tem a d a s p er-
g u n ta s . P a rrêsia , " c la ra m e n te ", se e n c o n tra asso ciad o com o tem a
d e p e d ir e rec e b e r e m l j o 3,21-22 e 5,14-15, o n d e o term o se refere à
" co n fian ç a " co m q u e a lg u é m p o d e certificar-se d e q u e o p e d id o será
re s p o n d id o ). O q u e im p lic a o c o n tra ste e n tre " fig u ra s d e lin g u a g e m "
e " c la ra m e n te "? D u ra n te o m in isté rio , "o s ju d e u s " d e sa fia ra m Jesus
a fala r co m p a la v ra s claras (10,24), m a s ele a firm o u q u e o v e rd a d e iro
p ro b le m a e ra q u e, o b stin a d a m e n te , se re c u sa v a m a crer n o q u e ele
d izia ; e sta re s p o sta p a re c e im p lic a r q u e ele e sta v a fala n d o com p ala-
v ra s c laras [claram ente] d u ra n te se u m in istério . O u so d e p a r r ê s ia em
11,14 a ju d a m ais: ali Jesu s e stev e fala n d o em lin g u a g e m fig u ra d a d o
s o n o d e L ázaro , m a s o s d isc íp u lo s n ã o e n te n d e ra m , e e n tã o Jesus teve
q u e lh es fa la r c la ra m e n te q u e L ázaro h a v ia m o rrid o . N o p re se n te caso,
o s d isc íp u lo s n ã o c h e g a ra m a e n te n d e r a fig u ra d a m u lh e r p a rtu rie n -
te q u e Jesu s u s a p a ra ilu s tra r su a p a rtid a , e e n tã o Jesus p ro m e te que
v irá o te m p o e m q u e tais fig u ra s n ã o m ais se rã o necessárias. T alvez
d e v a m o s ir a lé m d o sig n ificad o litera l d e "fig u ra s d e lin g u a g e m " no
c o n te x to im e d ia to e p e n s a r n a e x p re ssã o com o u m a referên cia ao ele-
m e n to d e m isté rio q u e ca ra c te riz a to d a s a s p a la v ra s d e Jesu s n o evan-
g e lh o - o m isté rio in e v itá v e l a p re s e n ta d o p o r a lg u é m d o alto q u a n d o
fala ao s q u e são d a te rra (em su m a , a fo rm a jo an in a d o q u e n o s sinóti-
cos se c h a m a co m o o m isté rio d o re in o o cu lto em parábolas: veja nota).
E ste m isté rio só p o d e ser d e sv e la d o q u a n d o fo rem g e ra d o s d o alto
(3,3-6,31-32). E n tão , a o p ro m e te r falar c laram en te, Jesus e stá faz e n d o
m ais d o q u e p ro m e te r u m a in te rp re ta ç ã o d a s p a rá b o la s alegóricas q u e
te m u s a d o n o ú ltim o d isc u rso ; e stá se re fe rin d o a u m a ilu m in ação
g e ra l so b re to d a su a rev elação . U m a v e z m ais, em relação ao v. 25,
teó lo g o s siste m á tic o s tê m p e n s a d o n a p o ssib ilid a d e d e n o v a s revela-
ções d e p o is d a ressu rre içã o ; n o e n ta n to , p ro v a v e lm e n te João te n h a em
m e n te a o b ra d o P arácleto . P o d e m o s c o m p a ra r o v. 25 com 14,25-26:
" E u v o s te n h o d ito isto e n q u a n to e sto u a in d a convosco. M as o Pa-
rácleto ... v o s e n s in a rá to d a s as coisas e v o s fará le m b ra r d e tu d o o
q u e e u v o s te n h o d ito [de m im m esm o ]". E m p a rtic u la r, s e g u n d o com
16,25, Jesu s (atrav é s d o P arácleto ) d irá ao s d isc íp u lo s a respeito do Pai.
Isso se d á p o rq u e o P a rá c le to /E s p írito p ro c e d e d o P ai e g e ra os disci-
p u lo s c o m o filh o s d o P ai, d e fo rm a q u e s e u c o n h e cim e n to d o P ai seja
q u a s e c o n a tu ra l.
1138 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

O s vs. 26-27 d e se n v o lv e m a n o ta d e in tim id a d e c o m o P a i e a


a p lic am a o te m a d e p e d ir e rec e b e r (d e p o is d e se re m tra ta d o s n o s
vs. 2 3 b 2 4 ‫)־‬. S e n ten ças a n te rio re s so b re e ste te m a (p. 1011-12 acim a)
têm e n fa tiz a d o o u o p e d ir o u o c o n c e d e r em nome de Jesus; o v. 26 d iz
alg o n o v o e n q u a n to q u e p a re c e e x c lu ir a in te rc e ssã o d a p a rte d e Je-
sus. T o d a v ia, h á n o s escrito s jo an in o s o u tra s p a s sa g e n s q u e to m a m
p o r a d m itid o a in te rc e ssã o d e Jesu s e m fa v o r d o s c ristã o s n o p e río d o
p ó s-re ssu rreiç ã o . E m 14,16, o P a rác leto é d a d o a p e d id o d e Jesu s, e
l j o 2,1 d e sc re v e o p r ó p rio Je su s co m o u m P a rá c le to (" in te rc e sso r")
n a p re se n ç a d o P ai, a ju d a n d o o s c ristã o s q u e tiv e re m p e c a d o . E n tão ,
talv e z a v e rd a d e ira im p lic a ç ão d e 16,26 n ã o seja e x c lu ir a in te rc e ssã o ,
e sim e x p lic ar q u e co m o in te rc e sso r Je su s n ã o é u m a re a lid a d e in te r-
m e d iá ria e n tre o P ai e se u s filhos. A n te s, o p a p e l n e c e ssá rio d e Je su s
em c o n d u z ir h o m e n s ao P ai e o P ai ao s h o m e n s (14,6-11) e sta b e le c e rá
u m a rela çã o tã o ín tim a d e a m o r em e através de Jesus, q u e Je su s n ã o
p o d e se r c o n s id e ra d o co m o u m in te rm e d iá rio . O P ai a m a rá o s d isci-
p u lo s co m o m e s m o a m o r com q u e Ele te m a m a d o a Je su s (17,23-26);
e o P ai, Jesu s e os d isc íp u lo s se rã o u m (17,21-23). Je su s n ã o te rá q u e
in te rc e d e r ao P ai e m fav o r d o s c ristã o s, p o is a o raç ã o d o s c ristã o s
será a o raç ã o d e Jesus. L oisy , p . 438, e x p re ssa o p e n s a m e n to d e Jo ão
assim : "E m s e u e s ta d o g lo rio so , C risto n ã o o ra rá p e lo s se u s; ele o ra rá
com eles e a tra v é s d e le s e m s u a Igreja. A q u i se c h e g a a o p o n to m a is
p ro fu n d o d a m ística cristã. O P ai v ê n o s c ristã o s o p r ó p rio C risto , q u e
ao m esm o te m p o é o objeto d e s u a fé e a m o r" .
E m u m a m ajesto sa se n te n ç a (v. 28) q u e lev a à s u a c o n c lu sã o este
g ra n d e d isc u rso (ou, ao m en o s, q u e é a g o ra a S e g u n d a Seção d o ú lti-
m o d iscu rso ), Jesus explica co m o ele é u m co m h o m e n s e u m co m o
Pai. V in d o ao m u n d o , ele e stab eleceu u m v ín cu lo d e u n iã o co m se u s
irm ão s; d e ix a n d o o m u n d o , ele v o lta a estab elecer, em s u a p le n itu d e ,
su a u n iã o co m o P ai (S ch la tter , p . 316). S o m en te q u a n d o isso seja u m a
re a lid a d e é q u e "a h o ra " se c o m p le ta rá n a q u a l os d isc íp u lo s p a rtic i-
p a rã o d a aleg ria, d o c o n h e cim e n to e d a con fian ça q u e Jesu s lh es p ro -
m etera. Sc h w a n k , "Sieg und Friede", p . 398, sa lie n ta q u e ο v. 28 é u m
p a ra le lo cristo ló g ico co m a bela d escrição n o D e u te ro isa ía s (55,10-11)
so b re a p a la v ra d e D eus: "a ssim co m o d esce a c h u v a e a n e v e d o s
céus... A ssim será a m in h a p a la v ra , q u e sa ir d e m in h a boca; ela n ã o
v o lta rá p a ra m im v a z ia , a n te s fará o q u e m e a p ra z , e p ro s p e ra rá n a-
q u ilo p a ra o q u e a en v iei".
56 · O último discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão) 1139

A d esp eito d a m ajestu o sid ad e e concisão d o v. 28, tu d o o q u e ele


d iz já foi d ito an teriorm ente. P ortanto, q u a n d o n o v. 29 os discípulos
recebem esta sentença o u a q u e lhe p reced e im ed iatam en te com o u m
ex em p lo d e falar claram ente, eles estão sen d o im petuosos. A té agora,
eles n ã o c o m p re en d e ra m Jesus q u a n d o ele disse estas coisas, m as agora
se g abam : "C onhecem os... crem os q u e saíste d e D eus" (30). T odavia, não
estão m ais p e rto d a v e rd a d e ira co m p reen são d o q u e estavam q u a n d o
fo rm u la ram p e rg u n ta s in g ên u as n o início d o discurso. N aturalm ente,
eles têm u m a fé incipiente; eles a tiv eram d e sd e os p rim eiro s d ias d o
m in istério (1,41.45.49; 2,11). (D odd , Interpretation, p . 392, salienta q u e a
afirm ação d o s discípulos n o v. 30 v êm a ser q u ase u m a duplicação d a
d eclaração d e P ed ro em 6,69: "tem o s crido e estam os convencidos d e
q u e tu és o Santo d e D eus"). E já q u e ag o ra se en co n tram im ersos n a
atm osfera d e "a h o ra", esta fé incipiente p o d e ter-se desenvolvido con-
sid erav elm en te. M as é im possível a fé p len a sem o d o m d o Espírito q ue
v irá n o p e río d o pós-ressurreição. Jesus p ro m e te u que, q u a n d o chegasse
p len a m en te a h o ra, ele falaria claram ente (25). O s d iscípulos p e n sam que
isto aco n teceu p o rq u e, com o descrito n o v. 19, Jesus an tecip o u a p e rg u n -
ta d eles an te s q u e a expressassem e m p alav ras - u m sinal d e q u e ele veio
d e D eu s (veja n o ta sobre a cap acid ad e d e a n tecip ar p e rg u n ta s com o u m
sinal d o divino). Esta avaliação d e m o n stra q u e su a com preensão e su a fé
n ão e stão co m p letas (31). A h o ra só p o d e chegar através d e sofrim ento e
m o rte, e d e v e m p a rtilh a r d isto se q u erem c o m p reen d er e crer (32).
N a referência d o v. 32 à d isp ersão d o s discípulos ag o ra q u e a h o ra já
cheg o u , p a rece q u e tem os u m p aralelo joanino com o q u e se enco n tra em
M c 14,27 (M t 26,31), o n d e, ap ó s a ú ltim a ceia, d e c am in h o p a ra o M onte
d a s O liv eiras Jesu s p re d iz q u e to d o s os discípu los o ab an d o n arã o e, as-
sim , se c u m p rirá a profecia d e Zc 13,7: "Fere ao p asto r, e se esp alh arão
as o v elh as". N a trad ição sinótica, n a v e rd a d e esta profecia se c u m p re no
G etsem ân i (a q u a l M c 14,35 d escreve com o "a h o ra " d e Jesus), pois ali
to d o s os d iscíp u lo s o a b a n d o n ara m e fu g iram (Mc 14,50; M t 26,56). N o
Evangelho de Pedro, se d iz q u e os discípulos se e sco n d eram d e seus per-
seg u id o res (26); c ad a u m v o lto u p a ra seu p ró p rio lar, e n q u a n to Sim ão
P e d ro e A n d ré v o lta ram a p escar (59-60). M as em João n ão h á m enção
d e tal d eserção n a cena d o G etsem âni, e d e fato o Q u a rto E vangelho
enfatiza a fid elid ad e d e u m d o s discípulos, o D iscípulo A m ado, d u ra n te
a crucifixão (19,26-27). A lém d o m ais, a cena em 20,19, o n d e os discípu-
los se re ú n e m n o crep ú scu lo d o d ia d a ressurreição, dificilm ente d á a
1140 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

im p re ssã o d e q u e se d isp e rsa ra m . (Jo 21, com s u a d escrição d o s d is-


cíp u lo s v o lta n d o à G alileia e m se u tra b a lh o o rd in á rio , se en caix aria
m elh o r com a p ro fecia d e s u a d isp ersão ). F ascher , art. cit., e x a m in o u
e x a u stiv am e n te as ten ta tiv a s d e reso lv er esta d ific u ld a d e , in c lu in d o
o rearran jo d a p a ssa g e m a fim d e p re c e d e r a p re d iç ã o d a n e g a çã o d e
P e d ro em 13,36-38 (u m rearran jo q u e é feito à b ase d a tese d a u n iã o
d a s d u a s p red iç õ es em M c 14,26-31; M t 26,30-35). M as p a re c e p refe-
rível c o n sid e rar Jo 16,32 com o u m ex em p lo d e u m a tra d iç ã o p rim i-
tiv a p re s e rv a d a n o ú ltim o d iscu rso , a in d a q u a n d o n ã o c o rre sp o n d a
p e rfe ita m e n te ao d e sen v o lv im e n to d a n a rra tiv a s u b seq u e n te . N o n ív el
d o sig n ificad o ten c io n ad o p elo a u to r jo anino, a p a ssa g e m p e rd e u su a
referên cia ao s d iscíp u lo s n o G etsem ân i e se to rn o u u m a p re d iç ã o d o
so frim en to q u e a g u a rd a aos cristão s d isp e rso s em u m m u n d o hostil.
N o fin al d o v. 32, a so b e ra n ia d e Jesus se rea firm a . S eu c o n tro le
d e se u p ró p rio d e stin o e sta v a im p lícito n o v. 28, m a s a g o ra ele reafir-
m a a fo n te d e s u a co nfiança ao e n tre g a r s u a v id a (veja 10,18). Ele se
m a n té m se re n o n a c erteza d e q u e se u P ai n ã o o a b a n d o n a rá m e sm o
q u e os d isc íp u lo s esco lh id o s o façam . A lg u n s tê m su g e rid o q u e n o
v. 32 o a u to r jo an in o e stá c o rrig in d o u m m a l-e n te n d id o acerca d o q u e
se co n ta d o q u e Jesu s d iz so b re a cruz: "D e u s m e u , D eu s, p o r q u e m e
a b a n d o n a ste ? " (Mc 15,34; M t 27,46) - m a l-e n te n d id o p o rq u e a lg u n s
n ã o c o n seg u e m c o m p re e n d e r q u e ele e sta v a c ita n d o o SI 22. H oskyns ,
p. 492, a firm a q u e a se n te n ç a jo a n in a p re s s u p õ e e in te rp re ta o sig n i-
ficado co rreto d a tra d iç ã o m ais an tig a. C o n tu d o , n ã o p o d e m o s e sta r
certo s d e q u e o a u to r jo an in o co n h ecia este d ito m a rc a n o -m a te a n o .
P arece ser m ais se g u ro su g e rir q u e 16,32 in d ic a q u e a c o n cep ção joa-
n in a d a relação d e Jesus co m o P ai im p e d iría a João a trib u ir a Jesu s as
p a la v ra s cita d as d e M arco s e M a te u s, n ã o im p o rta q u ã o in o ce n te m e n -
te tais p a la v ra s im p lic a v a m . Veja p. 1386 abaixo.
A seção term in a em u m to m triunfante n o v. 3 3 . A p rim eira seção
d o últim o d iscurso (1 4 ,3 0 ) te im in o u com a afirm ação d e Jesus d e p o d e r
frente ao Príncipe deste m u n d o ; a S egunda Seção term in a c om u m a p ro -
clam ação d e vitória sobre o m u n d o . (A altem ação e n tre v encer S atanás e
vencer o m u n d o se encontra em l jo 2 ,1 3 .1 4 ; 5 ,4 . J. E . B runs, JBL 8 6 [1 9 6 7 ],
4 5 1 -5 3 , está p len am en te certo em insistir q u e a vitória sobre o m u n d o e
sobre seu P ríncipe inclui vitória sobre a m orte; entretanto, acham os p o u -
ca evidência p a ra en d o ssar su a p reten são d e q u e a descrição q u e João
faz d e Jesus com o v en ced o r ecoa o m ito p ag ão d e H ércules, o v en ced o r
56 · O último discurso: - Segunda seção (terceira subdivisão) 1141

d a m o rte e d o m al. A s idéias se ap ro x im am aq u i ao d ualism o judaico


tard io [veja vol. 1, p. 50]. O contraste entre "em m im " e "n o m u n d o "
m o stra q u e o a u to r está p e n san d o n a existência cristã pós-ressurreição.
O sofrim ento (thlipsis) consiste n a perseguição p red ita em 15,18-16,43
(tam b ém M t 24,9-10). O tem a d a p az, q u e apareceu n o final d a Prim ei-
ra Seção (14,27), aparece a q u i tam bém ; e u m a vez m ais (veja p. 1035-36
acim a) enfatizam os q u e ela [a paz] é u m d o m salvífico. O fato d e q u e ela
ap areça ju n to com o sofrim ento m o stra q u e esta não é u m a p a z no sentido
o rd in ário d o term o. E m 14,29, Jesus disse: "E u v os tenho dito isto... para
que... creiais". A qui, ele diz: "E u vos tenho dito isto p a ra q u e em m im te-
n h ais p az". A p a z nasce d a fé em Jesus e consiste n a união com ele. A p az
n ã o é a d q u irid a sem esforço, pois ela v em u nicam ente d a vitória sobre o
m u n d o . Se Jesus vence o m u n d o , o cristão tam bém d ev e vencer o m u n d o
(A p 3,21); e isto é feito através d a fé (ljo 5,4-5). A ssim , se faz m uitíssim o
necessário o m an d am en to , "T endes b o m ânim o", em 33. Ele lem bra o cris-
tão d a tarefa q u e n u n ca term in a d e escolher en tre Jesus e o m undo.

BIBLIOGRAFIA
(15,18-16,31)

Veja a bibliografia geral sobre o últim o discurso no final d o §48 e a Biblio-


grafia sobre o Parácleto em Ap. V.

BREAM, Η. N ., "No Need to Be Asked Questions: A Study of Jn. 16:30",


Search the Scriptures-New Testament Studies in Honor of Raymond T.
Stamm (G ettysburg Theological Series 3; Leiden: Brill, 1969), pp. 49-74.
FASCHER, E., "Johannes 16, 32", Z N W 39 (1940), 171-230.
FEUILLET, A., "L'heure de la femme (Jn 16, 21) et l'heure de la Mère de Jésus
(Jn 19, 25-27)", Bíblica 47 (1966), 169-84,361-80,557-73.
SC H W A N K , B., "'Da sie mich verfolgt haben, werden sie auch euch verfolgen'
(15,18-16, 4a)”, SeinSend 28 (1963), 292-301.
_________ ",Es ist gut für ench, dass ich fortgehe' (16, 4b-15)", SeinSend 28
(1963), 340-51.
_________ "Sieg und Friede in Christus (16, 16-33)", SeinSend 28 (1963),
388-400.
ZERW ICK, M., "Vom Wirken des Heiligen Geistes in uns (Jo 16, 5-15)",
GeisLeb 38 (1965), 224-30.
5 7 .0 ÚLTIMO DISCURSO:
- TERCEIRA SEÇÃO (PRIMEIRA UNIDADE)
(17,1-8)

Jesus, tendo completado sua obra, pede para ser gloríficado

17 1D ep o is d e s ta s p a la v ra s, Jesu s le v a n to u o s o lh o s ao céu e disse:


"P ai, é c h e g a d a a hora:
glorifica a te u F ilho
p a ra q u e o F ilho te g lo rifiq u e -
2assim co m o lh e c o n ced este p o d e r so b re to d o s o s h o m e n s
p a ra q u e ele co n ced a v id a e te rn a a to d o s o s q u e tu lh e d e ste " .

3E a v id a e te rn a co n siste nisto: q u e te co n h eçam , o ú n ico D e u s v e rd a -


d eiro , e a Jesu s C risto , a q u e m en v iaste.

4"E u te g lo rifiq u ei n a terra,


C o m p le ta n d o a o b ra q u e m e d e ste p a ra fazer;
5a ssim a g o ra glorifica-m e, ó P ai, em tu a p rese n ç a ,
com aq u ela glória q u e e u tive contigo antes q u e o m u n d o existisse.

6E u m an ifestei o te u n o m e a o s h o m e n s
q u e m e d e s te e os tirei d o m u n d o .
E ra m teu s, e tu m o s d este,
e tê m g u a rd a d o a tu a p a la v ra .
7A g o ra sab em
q u e d e ti v e m tu d o o q u e m e ten s d a d o .
57 · O último discurso: - Terceira seção (primeira unidade) 1143

8P o rq u e a s p a la v ra s q u e m e d este,
e u lh es d ei,
e a s aceitaram .
E e m v e rd a d e c o n h eceram
q u e e u v im d e ti,
e c re ra m
q u e tu m e e n v ia ste".

NOTAS

17.1. destas palavras. Literalmente, "estas coisas".


levantou os olhos ao céu. U m a ação sim ilar está registrada antes da oração de
11,41; veja nota correspondente.
Pai. Esta invocação abrupta, tão característica, também aparece em 11,41 e
12,27; para seu significado especial, veja vol. 1, p. 721.0 Pai é o sujeito ativo
destacado nesta oração; e a invocação "Pai" é frequente do começo ao fim,
sendo usada isoladamente em 1,5,21 e 24, e com modificativos nos vs. 11 e
25. As testemunhas textuais não estão de acordo se leem com função de vo-
cativo (pater) ou um nominativo (patêr) que funciona como vocativo (BDF,
§147). A variação pode ser explicada se, como em P66, o manuscrito do qual
os am anuenses estiveram copiando empregava um a abreviação (pr).
é chegada a hora. Já ouvimos isto em 12,23 e 13,1; obviamente, "a hora" é um
longo período de tempo, começando com a prim eira indicação de que o
processo que levaria Jesus à m orte já se pusera em movimento, e finaliza
com seu retom o para seu Pai. N o Livro da Glória, o único uso prévio sem
modificação de "a hora", na últim a ceia, foi em 13,1, esta aí a base por
detrás do rearranjo de Bultmann (veja comentário) que põe 17,1 imediata-
m ente após 13,1. Ele pensa que "Jesus estava ciente de que havia chegado
a hora para ele passar deste m undo para o Pai" faz um a excelente intro-
dução à oração que Jesus dirige ao Pai quando se aproxima a hora. Mas,
m esm o sem o rearranjo, a atmosfera de "a hora" em que Jesus retom a ao
seu Pai dom ina a últim a ceia e fornece um cenário para a oração.
glorifica a teu Filho. O processo de glorificação já havia começado com o iní-
cio de "a hora", m as ainda não está completo. Cf. 13,31-32: "Agora o Filho
do H om em foi glorificado, e Deus foi glorificado nele. ... Deus, por sua
vez, o glorificará em Si m esm o e o glorificará logo".
para que 0 Filho. Vários m anuscritos im portantes, tanto ocidentais ou bizan-
tinos, leem "teu Filho". Esta é a prim eira de duas orações subordinadas
1144 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

introduzidas por him; a segunda está no v. 2b: "para que ele conceda...".
Estão separadas por um a construção com kathõs ("assim como") do vs.
2a. A m esm a construção aparece m ais adiante no v. 21 (tam bém 13,34).
te glorifique. Bernard, II, 560, observa que toda a paixão se desenvolve sob
o lema de "ad maiorem Dei gloriam".
2. lhe concedeste. O tem po aoristo implica um a ação passada: a autoridade lhe
foi dada como parte do seu ministério terreno. Não obstante, este poder de
conceder vida não se tom aria plenam ente eficaz até a exaltação de Jesus.
poder. Ou "autoridade" (exousia; veja vol. 1, pp. 180).
sobre todos os homens. Literalmente, "toda cam e", um semitismo (cf. 8,15).
O habitual dualism o joanino entre carne e Espírito não parece estar em
m ente aqui. Talvez o poder sobre todos os hom ens é o poder de juízo
(5,27), pois o próxim o verso deixa claro que Jesus tem o po d er de dar
vida som ente a um grupo seleto, i.e., àqueles que o Pai lhe deu.
para que ele conceda. Esta é a segunda sentença com hina (cf. "que o Filho"
no v. 1). De que é dependente? E dependente de "glorifica a teu
Filho" do v. 1, de m odo a ser paralela à prim eira sentença com hina?
(Então a frase com kathõs, "assim como", deve ser tratada como um
parênteses; assim Bernard). O u é dependente de "lhe concedeste p oder"
na frase com kathõs do verso 2a? (Assim Lagrange e Barrett). Provável-
m ente seja preferível reconhecer que as interpretações não são conclu-
sivas, e que em algum a extensão a segunda sentença com hina elabora
ambos os antecedentes. A concessão de vida eterna é o alvo do poder
sobre todos os hom ens que foram concedidos ao Filho (segunda inter-
pretação); todavia, o dom da vida eterna tam bém constitui o propósito
para o qual o Filho roga que fosse glorificado (prim eira interpretação)
- é o m odo pelo qual o Filho glorifica o Pai. Bultmann, p. 3761, considera
todo o v. 2 como um a adição em prosa do evangelista à Fonte do Dis-
curso de Revelação.
vida eterna. A qui e no versículo seguinte estão as únicas vezes que "vida
eterna" é m encionada no Livro da Glória, em contraste com o uso fre-
quente da expressão no Livro dos Sinais. Talvez um a ênfase sobre o tipo
diferente de vida que Jesus oferece fosse mais im portante no período
mais antigo quando hom ens começavam a irem a Jesus, enquanto que,
neste discurso, dirigido "aos seus" (13,1), o esclarecim ento já não fosse
necessário. Em outras passagens em João (6,63; 7,38-39) é evidente que
o dom do Espírito é o m odo de Jesus conceder vida eterna; m as o Espí-
rito não é m encionado no cap. 17, nem m esm o sob o título de Parácleto.
todos os que. Um neutro em vez de um masculino como em 6,37 (veja nota
ali), um neutro tam bém nos vs. 7 e 24. Aqui (veja v. 6) o autor está se
57 · O último discurso: - Terceira seção (primeira unidade) 1145

referindo claram ente aos hom ens, e o uso de um neutro pode conferir
certa u nidade ao grupo - são "seus".
tu lhe deste. O tem po perfeito é apropriado, porque os hom ens ainda são
possessão de Jesus (v. 12). Este capítulo enfatiza o que o Pai d eu a Jesus,
a saber, hom ens (2,6,9,24); todas as coisas (7); palavras (8); o nom e divino
(11,12); e glória (22,24). A ideia de que Jesus dá vida eterna a um grupo
seleto aparece tam bém em 10,27-28 (às ovelhas que ouvem sua voz); em
ljo 2,23-25 (aos que confessam o Filho e o Pai); etc.
3. consiste nisto. Literalmente, "Ora, esta é a vida eterna". O estilo explicativo
é u m traço joanino; p o r exemplo, 3,19, "O julgam ento consiste nisto".
te conheçam. Embora alguns m anuscritos tenham um futuro do indicativo,
os m elhores m anuscritos têm um presente do subjuntivo; isto implica
que o conhecimento é um a ação contínua.
único Deus verdadeiro. "Um " (ou "único") e "verdadeiro" são atributos tradi-
cionais de Deus: monos em Is 37,20; Jo 5,44; alêthinos em Ex 34,6; Ap 6,10.
Geralmente, tais atributos eram enfatizados em oposição ao politeísmo do
m undo gentflico; cf. "vos convertestes dos ídolos... para servirdes a um
Deus vivo e verdadeiro" (lTs 1,9). Notamos que o "um Deus verdadeiro"
e "Jesus Cristo" não são identificados. Este versículo tem um a conotação
um tanto contrária aos outros versículos em João, os quais denominam
Jesus de "Deus" (1,1.18; 20,28); veja vol. 1, p. 199.
Jesus Cristo. Embora João apresenta Jesus falando de si m esm o na terceira
pessoa, p o r exemplo, como "o Filho", é anômalo que Jesus se denomine
de "Jesus Cristo". Em outra passagem do evangelho, o Prólogo (1,17),
que é u m hino cristão aparece este mesmo nome. Este versículo é clara-
m ente um a inserção no texto d a oração d e Jesus, provavelm ente um a in-
serção que reflete um a fórm ula confessional ou litúrgica da igreja joanina
(veja ljo 4,2). H á inserções expücativas sim ilares no Prólogo.
4. glorißquei. Este verbo está no aoristo (também o verbo no v. 6: "manifes-
tei"), como se a ação estivesse já concluída. Há quem pense que Jesus
está se referindo à sua glorificação pretérita de Deus em seu ministério;
contudo, a glorificação do Pai dificilmente estivesse completa antes da
hora da m orte, ressurreição e ascensão. Parece que a perspectiva a partir
da qual se form ularam estas afirmações não parece ser o últim o discurso,
e sim o período após "a hora" e após a exaltação de Jesus.
na terra. Isto é contrastado com "em tua presença" do v. 5; cf. "de cima... da
terra" (3,31); "coisas terrenas... coisas celestiais" (3,12).
completando a obra. H á som ente três usos ativos do verbo teleioun em João,
e todos estão relacionados com a(s) obra(s) do Pai (para um uso passivo,
veja o v. 23). Em 4,34, Jesus disse que seu alim ento era "fazer a vontade
1146 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

daquele que m e enviou e levar sua obra à conclusão". Agora a obra é


concluída. N o entanto, obviam ente a com pletude só tem lugar ao longo
de todo o conjunto de "a hora" que se estende do cap. 13 ao 20. Em 13,1
menciona-se o "fim " (te lo s ), e se em prega o passivo de te le io u n (19,28: "as
coisas estavam consum adas") quando Jesus é cravado na cruz.
m e d e s te p a ra f a z e r . O "fazer" é um a sentença com h in a . V anhoye, a r t . c i t . ,
discute extensam ente se esta sentença (e aquela em 5,36) expressa pro-
pósito (= a obra que foi d ad a a Jesus com a intenção de que e le a fizesse)
ou sim plesm ente com plem entar (= a obra d ada a Jesus consiste em fa-
zer, i.e., em concretizar a vontade do Pai; veja BDF, §392). Tem os dú-
vida se a distinção deva ser levada até o extrem o onde um a conotação
exclui a outra.
5. agora . Laurentin, a r t . c it ., estudou exaustivamente esta expressão kai n y n . Fre-
quente em Atos (dez vezes) e nos escritos joaninos (nove vezes), am iúde ela
é um semitismo, traduzindo w e c a t t ã h , um a expressão hebraica que é tanto
uma conjunção como um a interjeição. No AT, ela aparece em fórmulas ju-
diciais, especialmente aquelas relacionadas com as estipulações da aliança
(para o tema da aliança em Jo 17, veja pp. 1159 e 1194 abaixo), e em petições
litúrgicas (o cap. 17 é uma oração). Muitas vezes seguida por um impera-
tivo, a expressão hebraica pode marcar a transição do resum o em que se
expõe um a situação à petição de um resultado que deveria seguir-se. Bons
exemplos se encontram em Ex 19,5; Js 9,6; 24,14; Jz 13,4; 2Sm 7,25. Em espe-
ciai, Laurentin, 425, indica que kai n y n pode introduzir um a repetição mais
decisiva de um a petição já formulada; tal parece ser a função neste caso pre-
sente, se o compararmos os w . 5 e 1. No pensamento joanino, o "a hora" (é
chegada a hora ou melhor dito, tem chegado: 4,23; 5,25).
em tu a p resen ça . .. c o n tig o . A preposição p a ra é usada em am bas estas frases;
contraste 1,1: "A Palavra estava na presença [pros com o acusativo] de
Deus; 1,18: "O Filho unigênito, sem pre ao lado [eis to n k o lp o n ] do Pai".
Há certa tendência entre as testem unhas textuais de om itir ou a levar a
um a oposição distinta um a ou outra destas duas frases. Boismard, RB 57
(1950), 394-95,398-99, apresenta argum entos para a form a m ais breve do
texto que om itiria am bas "em tua presença" e "assim agora" do v. 5a; to-
davia, a últim a expressão é quase certam ente original, se a investigação
de Laurentin for válida. A posição da segunda frase, "contigo", se toma-
da literalm ente, perm itiría outra tradução: "Com a glória que eu tive ao
teu lado antes que o m undo existisse". J. M. Ballard, ET 47 (1935-36),
284, argum enta em prol desta tradução, m as a diferença de significado
não parece im portante. Ambas as traduções se referem à glória que antes
da criação com partilham Pai e Filho. As duas frases preposicionais que
57 · O último discurso: - Terceira seção (primeira unidade) 1147

viem os discutindo constituem a m aneira joanina de descrever a Jesus


sentado à direita de Deus (At 2,33; 7,55).
aquela glória. Isto implica que a glória que Jesus terá depois de sua exal-
tação na carne será a m esm a glória que ele teve antes da encarnação?
Se for sim, a "carne" de Jesus não parece exercer um papel profundo
na visão que João tinha de sua exaltação. Dificuldades como estas têm
levado Käsemann, p. 21, a insistir que a escatologia de João realm ente é
um a "protologia", pois o alvo é um a restauração de todas as coisas como
eram "no princípio".
que eu tive contigo. A parentem ente, algum as das testem unhas textuais
gregas diziam em algum m om ento ên, um a form a do verbo "ser" em
lu g ar de eichon, um a form a do verbo "ter". Entre os Padres latinos e
em alguns mss. etíopes se encontra apoio para a redação: "aquela gló-
ria que estava contigo" ou "aquela glória pela qual eu estava contigo".
Boismard, RB 57 (1950), 3961, seguido por M ollat em SB, sugere a ori-
ginalidade de um texto sem qualquer verbo conectivo ("aquela glória
contigo"), um a leitura que conta com algum a evidência em outros mss.
etíopes e no Diatessaron.
antes que 0 mundo existisse. Em vez de "existisse" (einai), alguns manuscri-
tos ocidentais leem "veio à existência" (ginesthai). Isto pode estar sob a
influência de 8 . 5 8 , "Antes m esm o que Abraão vir à existência [ginesthai]
EU SOU". Se einai é a redação correta, este é o único exemplo no NT da
preposição pro com um infinitivo presente (BDF, § 4 0 3 ) . O verbo "estar"
é caracteristicamente usado neste evangelho em relação ao Filho; ele é,
enquanto todas as dem ais coisas vieram à existência. B u l t m a n n , p. 3 7 8 ,
considera esta frase como um a glosa do evangelista à Fonte do Discurso
Revelatório.
6. eu manifestei 0 teu nome. O verbo é phaneroun. Este é outro m odo de dizer o
que foi dito no v. 4: "Eu te glorifiquei".
os tirei do mundo. Isto ecoa o tem a de 15,19: "Eu vos escolhi do m undo".
guardado a tua palavra. Da perspectiva cronológica do qual a afirmação é fei-
ta parece ser o do tem po do autor, em vez daquele da últim a ceia, pois a
ideia de que os discípulos tinham guardado a palavra de Deus no passado
e ainda a estava guardando (tempo perfeito) fica fora de lugar na última
ceia. Em outras passagens em João (8,51; 14,23), é a palavra de Jesus que
aos hom ens se exige guardar, porém a palavra de Jesus veio do Pai (7,16).
7. agora sabem. U m tem po perfeito do verbo "saber". O Codex Sinaiticus e al-
g um as das versões trazem "agora sei", talvez com base po r influxo dos
verbos na p rim eira pessoa singular que abrem os vs. 4 e 6. Com nyn ini-
ciai, este versículo é sem elhante a 16,30: "A gora sabem os que conheces
1148 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

to d as as coisas". Os discípulos que en ten d eram só parcialm en te du-


rante o m inistério são tidos como vindo ao conhecim ento m ais pleno
durante "a hora" (veja tam bém 13,17). Todavia, um a vez m ais, deve-se
entender "a hora" como abarcando a exaltação de Jesus e a doação do
Parácleto, o qual ensinará os discípulos todas as coisas (14,26; 16,12-13).
Durante a últim a ceia, os discípulos m ostram claram ente que não enten-
dem plenam ente (14,7.9; 16,5.18), e Jesus lança dúvida sobre a alegação
deles de que creem (16,31).
de ti vem tudo 0 que me tens dado. A tautologia frisa a dependência que Jesus
tem do Pai.
8. Porque. E possível, porém não plausível, que o hoti introdutório d á conti-
nuidade ao discurso indireto do versículo anterior: "Agora sabem... que
as palavras que m e deste, eu lhes dei".
palavras. É o plural remata, em contraste com o singular logos dos vs. 6 e 14.
Barrett, p. 421, pensa que o singular se refere à m ensagem divina como
um todo, enquanto o plural se aproximaria mais de "preceitos". A distin-
ção é tênue quando comparamos os vs. 8 e 14; veja nota sobre 14,23.
que me deste. A m elhor leitura parece ser o aoristo, em bora alguns m anus-
critos tenham o perfeito. Em 15,15, Jesus falou de m odo semelhante:
"Pois vos tenho revelado tudo o que ouvi do Pai".
as aceitaram. Tem po aoristo; em contraste com o perfeito no v. 6: "têm guar-
dado a tua palavra". O com plem ento não se expressa na m aioria das
testem unhas textuais, m as é exigido pelo sentido d o verso.
e em verdade conheceram. A lgum as im portantes testem unhas textuais,
orientais e ocidentais, om item esta frase e colocam o verbo "aceitaram ",
no verso anterior, rege o substantivo d a frase seguinte, assim: "e aceita-
ram que eu vim de ti". Se "verdadeiram ente conheceram " é a redação
correta, provavelm ente se saberia em term os de descobrir seu conhe-
cim ento e aprender a verdade (Barrett, p. 422). "Em verd ad e" trad u z
o advérbio "verdadeiram ente", m as aqui o advérbio significaria m ais
do que realm ente conheceram . O verbo "conheceram ", neste verso, e
o verbo "creram ", dois versos m ais adiante, estão no tem po aoristo;
em contraste com o tem po perfeito de "vieram a conhecer" do v. 7.
Bultmann, p. 38113, diz que os tem pos perfeitos dos vs. 6 e 7 descrevem
a essência d a fé, enquanto os tem pos aoristos no v. 8 descrevem como se
prod u ziu essa fé. N ão obstante, não podem os estar certos de que o autor
joanino foi tão preciso, e am bos os tem pos procedem da perspectiva de
um tem po posterior à últim a ceia; todavia, veja 16,30. O paralelism o
de "conheceram " e "creram ", no v. 8, ilustra o fato de que em João estes
dois verbos são quase intercam biáveis (vol. 1, p. 814). Em 16,27.30, a
57 · O último discurso: - Terceira seção (primeira unidade) 1149

v inda de Jesus d a parte do Pai é o objeto do verbo "crer"; aqui, ele é o


objeto de "conhecer".
que vim de ti. Q ue isto se refere à missão terrena do Filho, mais do que uma
processão intratrinitária, se vê à luz do paralelism o deste verso com a
últim a linha do versículo: "m e enviaste". Veja nota sobre 8,42 e sobre
16,28 ("do Pai").
me enviaste. Esta frase é quase um refrão ao longo de toda a oração do cap.
17 (Bernard, II, 565); ela aparecerá m ais quatro vezes (18,21,23,25).

COM ENTÁRIO: GERAL

Função e gênero literário do cap. 17

A g o ra p a ssa m o s a u m d o s m o m e n to s m ais m ajestosos d o Q u a rto Evan-


gelh o , o clím ax d o ú ltim o d isc u rso e m q u e Jesus se v o lta p a ra seu Pai
e m oração. Já id en tificam o s o g ên ero literário d o ú ltim o d iscu rso com o
u m to d o (pp. 964-69 acim a): é u m d iscu rso d e d e sp ed id a . E já salienta-
m o s q u e n ã o é ra ro q u e u m o ra d o r term in e u m d iscu rso d e d e sp ed id a
co m u m a o ração p o r seu s filhos o u p e lo p o v o q u e está d eix an d o p a ra
trás. A esse resp eito , o liv ro d e D eu te ro n ô m io é p a rticu la rm e n te in stru -
tivo. C o m o u m a coleção d o s ú ltim o s d iscu rso s d e M oisés a se u p ovo,
ele oferece u m in te ressa n te p a ra lelo com o ú ltim o d iscu rso joanino. Em
p a rtic u la r, é d ig n o d e n o ta q u e já p e rto d o final d e D eu tero n ô m io h á
d o is cân tico s d e M o isés; u m n o c a p . 32, o n d e M o isé s se v o lta d o
p o v o p a r a d irig ir-s e ao s céus, e o o u tro n o cap. 33, o n d e M oisés aben-
çoa a s trib o s p a ra o fu tu ro . A ssim tam b é m e m Jo 17 Jesus se d irig e p a ra
o céu e fala com o Pai, p o ré m m u ito d o q u e ele d iz se o c u p a d o fu tu ro
d e se u s d iscíp u lo s. A ssim , ao colocar a o ração d o cap. 17 n o final do
ú ltim o d iscu rso , o a u to r jo an in o p e rm a n e c e u fiel ao g ên ero literário d e
d isc u rso d e d e s p e d id a q u e ele ad o ta ra. A o re o rd e n a r o d iscu rso d e m a-
n e ira q u e o cap. 17 fiq u e n o início, B u ltm ann com ete u m d isp a ra te con-
tra o b o m se n tid o literário: e sta o ração certam en te fica m elh o r com o u m
clím ax d o q u e co m o u m a in tro d u ção . M as ele e stá certo em v e r q u e o
cap. 13 (o início d a cen a d a ú ltim a ceia) e 17 estão in tim a m en te relacio-
n a d o s; m a s só p o r v ia d e inclusão, n ã o d e ilação d ireta. P o d em o s n o tar
o s se g u in te s p a ra lelo s e n tre os d o is capítulos: a referência à v in d a d e
" a h o ra " (13,1; 17,1); a glorificação d o Filho p elo P ai (13,31-32; 17,1.4-5);
1150 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

telos e teleioun (13,1; 17,4 - veja nota); os d iscíp u lo s c o n tin u a m n o m u n d o


(13,1; 17,11.15); a entrega d e to d as as coisas e o p o d e r d a d o s a Jesus (13,3;
17,2); Ju d as, o in stru m e n to d e S atanás e o filho d a p erd iç ão (13,2.27;
17,12); o c u m p rim e n to d a E scritura acerca d o tra id o r (13,18; 17,12).
V erem o s m ais a d ia n te q u e v á ria s sen ten ças d o cap. 17 tê m p a -
ralelo s sinóticos; e é b e m p ro v á v e l q u e o c a p ítu lo foi c o n stru íd o , e m
g ra n d e m e d id a co m o o resto d o d iscu rso , so b re e lab o ração d e d ito s
trad icio n ais d e Jesus, a lg u n s d o s q u a is e ra m o rig in a is n o c e n ário d a
ú ltim a ceia. P o r certo q u e ele evoca m ais d ire ta m e n te a a tm o sfe ra d e
d e sp e d id a característica d a ú ltim a ceia d o q u e o m a te ria l e m 15,1-6 o u
em 15,18-16,4a. S e g u n d o a teo ria d e co m p o sição q u e tem o s se g u id o
(pp. 946-50 acim a), a oração d o cap. 17 n ã o e ra p a rte d o ú ltim o d isc u r-
so n a p rim e ira red a ç ã o d o ev an g elh o , o n d e 14,31 se g u ia d ire ta m e n te
18,1. T am p o u co esta oração foi p a rte d o d isc u rso in d e p e n d e n te m e n te
fo rm ad o q u e hoje o c u p a o s caps. 15-16 (se g u n d a seção d o ú ltim o d is-
cu rso em su a fo rm a final). A o ração p a rece ter tid o u m a co m p o sição
in d e p e n d e n te q u e o re d a to r an ex o u ao m esm o te m p o q u e a n e x o u os
caps. 15-16. P o d e se r q u e a oração ten h a v in d o d o m esm o círculo d e n tro
d a igreja jo an in a q u e p ro d u z iu o P rólogo, p o is as d u a s o b ras tê m inte-
ressan tes sim ilarid ad es em su a q u a lid a d e po ética, e s tru tu ra c u id a d o sa
(incluindo co m en tário s explicativos em p ro sa) e se u tem a (veja 17,5).
A s co m p a raç õ e s com os cânticos d e M oisés e m D e u te ro n ô m io e
com o P ró lo g o s u g e re m q u e o cap. 17 te m a q u a lid a d e h in ó d ic a . D odd ,
Interpretation, p p . 420-23, sa lie n ta q u e v á ria s v e z es n o s e scrito s h e rm é -
ticos (veja vol. 1, p . 52) u m d iálo g o é co n c lu íd o co m u m a o ra ç ã o o u
h in o , e q u e a lin g u a g e m d e sse s h in o s te m a lg u n s in te re ssa n te s p a ra le -
los co m o cap. 17. A d efin ição d e v id a e te rn a co m o c o n h e cim e n to , e m
17,3, tem s e rv id o d e a p o io ao s q u e e n fa tiz a m as in flu ê n cia s g n ó stic a s
n e ste e v a n g elh o . B u ltm a n n , p . 374, e n c o n tra u m p a ra le lo d o cap. 17 n a
lite ra tu ra g n ó stica m a n d e a n a q u e re g istra o raçõ es p ro n u n c ia d a s p e lo s
e n v ia d o s a o m u n d o p o r ocasião d e s u a p a rtid a dele. N a tu ra lm e n te , a
av aliação d e ste s p a ra le lo s se rá in flu e n c ia d a p e la p o siç ã o g e ra l q u e se
a ssu m a so b re as in flu ên cias q u e tê m m o ld a d o o p e n s a m e n to jo an in o .
O u tro s p e n s a m an te s em u m h in o d e n tro d o con tex to litúrgico.
F u n cio n alm en te o cap. 17 exerce u m p a p e l n o relato d e João sem elh an -
te ao exercido p elo h in o q u e M c 14,26 reg istra com o te n d o sid o e n to a d o
n o final d a ú ltim a ceia (p resu m iv elm en te, u m h in o d o H allel q u a n d o
term in av a a ceia pascal). T em -se su g e rid o q u e o cap. 17 e ra rec ita d o o u
57 · O último discurso: - Terceira seção (primeira unidade) 1151

c a n ta d o n a s celebrações eucarísticas cristãs, e P oelm an , art. cit., teo riza


q u e o v. 3 p o d e se r u m re m a n e sc e n te d o re sp o n so a n tifo n a l d a p a rte
d a co n g reg ação ! H oskyns , q u e p e n sa q u e o ú ltim o d isc u rso to d o refle-
te a o rd e m d o c u lto cristão , p ro p õ e (p. 495) q u e a p a rte d o u trin a i d o
c u lto (14-16) e ra s e g u id a d e u m a o ração eu carística. B ultm a nn , q u e
co loca o cap. 17 n o início d o d isc u rso , su g e re q u e e sta o raç ã o o c u p o u
d e fato o lu g a r d a ação eucarística! O s litu rg ista s cató lico -ro m an o s
fre q u e n te m e n te tê m c o m p a ra d o Jo 17 com o h in o o u p refácio q u e p re-
c e d e a p a rte sacrificial d a m issa, u m h in o q u e é se m p re d irig id o a
D e u s P ai. T a m b ém , in d ic a m q u e Jesus fala a s e u P ai a n te s d e se p ô r
d e c a m in h o p a ra s e u sacrifício h istó rico . W estcott , p . 236, fala d o cap.
17 co m o u m a oração d e consagração m ed ia n te a q u al o Filho se oferece
co m o u m sacrifício perfeito. J. S chneider , IMEL, p p . 139-42, p e n sa que
o cap. 17 p o d e ter sid o com p o sto m ais o u m en o s d a m an eira d o cap. 6
(o n de, co m o vim os, h á u m tem a eucarístico e o n d e a p rática litúrgica
p o d e ter exercido u m p a p e l form ativo: vol. 1, p. 534).
É e v id e n te q u e a lg u m a s d e sta s h ip ó te se s (e são a p e n a s u m a sele-
ção) são a lta m e n te ro m â n tic a s e to ta lm e n te im p o ssív eis d e se p ro v a r.
E m b o ra p o s s a h a v e r u m a a lu sã o a o au to -sacrifício e m 17,19, n ã o se in-
siste c la ra m e n te so b re o tem a d e o ferta sacrificial n o cap. 17: Jesus n ã o
d iz q u e e stá e n tre g a n d o su a v id a, m as q u e está in d o p a ra o Pai. Q u an to
à in te rp re ta ç ã o e u carística d o cap. 17 (fav o recid a p o r L oisy , C u llm a n n ,
W ilkens , e n tre o u tro s), o m e lh o r a rg u m e n to é b a se a d o e m p a ra lelo s
co m a o ra ç ã o eu c arístic a d a Igreja p rim itiv a com o e n c o n tra d a n a
Didaquê 9-10 (veja ta m b é m vol. 1, p . 480 e p . 1155 acim a). A o ração
n a Didaquê 10,2 com eça: " D a m o s-te g raças [eucharistein], ó P ai santís-
sim o "; Jo 17,1 co m eça com a in v o cação "P a i" e n o v. 11 en c o n tram o s
"P a i s a n to " . D o m e sm o m o d o co m o o tem a d a g ló ria p e rc o rre to d o o
cap . d e Jo 17 (1 ,5 , 22), o te m a d a g ló ria ao P ai a tra v é s d e Jesus C risto
a p a re c e m u ita s v e z es n a Didaquê (9-2,3,4; x 2,4,5). E m term o s p a re n té -
ticos, v a le n o ta r q u e a lg u n s d o s P a d re s d a Igreja G reg a, co m o C irilo
d e A le x a n d ria e J o ão C risóstomo , rela cio n a m a g ló ria d e João cap. 17
co m a E u caristia. Jo 17 m en c io n a o n o m e d iv in o q u e é d a d o a Jesus
(11,12) e o q u a l, p o r s u a v ez, ele rev ela aos d isc íp u lo s (6,26); Didaquê
9,5 d iz q u e n in g u é m p o d e receb er a E ucaristia se n ã o h o u v e r sid o b a-
tiz a d o n o n o m e d o S en h o r, e 10,2 re n d e g raças ao P ai p o r " te u sa n to
n o m e q u e fizeste h a b ita r em n o sso s corações". O v e rsíc u lo se g u in te n a
Didaquê d iz q u e o S e n h o r c rio u to d a s as c oisas p o r a m o r ao se u nom e.
1152 O Livro da Gloria · Primeira Parte: A última ceia

C o n h e c im e n to e o q u e Jesus to rn o u c o n h e cid o é u m te m a d e João


(3,6,7,8,23,25,26); n a Didaquê 9,3 e 10,2 a g ra d e c e a D e u s p e lo con h eci-
m e n to e o q u e ele to rn o u c o n h e cid o m e d ia n te Jesus. H á n a Didaquê 10,5
u m a p e tiç ão p a ra q u e D e u s lib e rte a Igreja " d e to d o o m a l" (ponêros
co m o e m Jo 17,15), a c o n d u z a à p le n itu d e e m a m o r (teleioun ; cf.
Jo 17,23), e a re ú n a em s a n tid a d e (o u co n sag ração ; cf. Jo 17,17.19) n o
rein o q u e D e u s te m p r e p a ra d o p a ra ela (cf. Jo 17,24). T o d a v ia, a p e sa r
d esses p a ra lelo s, Didaquê 9-10 m en c io n a o p ã o e o v in h o eu carístico s,
e n q u a n to Jo 17 n ã o o faz. O te m a d a u n id a d e e m Jo 17 é u m te m a fre-
q u e n te m e n te asso ciad o co m a E u caristia, m a s te m o s q u e a d m itir q u e
tal referên cia à E u caristia é m u ito m e n o s ó b v ia d o q u e a q u e e n co n -
tra m o s e m Jo 6,51-58. E a ssim q u a lific a ría m o s a q u e la in te rp re ta ç ã o
eu carística d a o ração c o n tid a n o cap. 17 co m o sim p le sm e n te p o ssív el.
A tese d o e m p re g o litú rg ico d o cap. 17 co m o u m h in o é ta m b é m p o s-
sível, m a s e sta tese n ão p o d e e x ercer n e n h u m p a p e l d e c isiv o e m n o ssa
in te rp re ta ç ã o .
A o ra ç ã o d o cap . 17 te m sid o tra d ic io n a lm e n te d e s ig n a d a c o m o
o raç ã o s a c e rd o ta l. Já n o in ício d o 5a sé cu lo C irilo d e A le x a n d ria (In
Jo. XI 8; P G 74:505) fala d e Je su s n e s te c a p ítu lo 17 co m o u m a in te r-
cessão feita p e lo s u m o sa c e rd o te e m n o sso fav o r. O te ó lo g o lu te r a n o
D avid C h yträu s (1531-1600) in titu lo u o cap . 17 d e a " o ra ç ã o d o s u m o
s a c e rd o te " (precatio summi sacerdotis ). M as, se a q u i Je su s é u m s u m o
sa c e rd o te , n ã o é p rim a ria m e n te n o s e n tid o d e a lg u é m q u e o ferece
sacrifício, p o ré m m a is c o n fo rm e às lin h a g e n s d o s u m o s a c e rd o te
d e scrito e m H b e e m R m 8,34 - a lg u é m q u e e stá d ia n te d o tro n o d e
D e u s in te rc e d e n d o p o r n ó s. N a tu ra lm e n te , é v e r d a d e q u e n a o ra ç ã o
d e Jo 17 Je su s s e g u e fa la n d o n o c o n te x to d a ú ltim a ceia; m a s d a to-
n a lid a d e d o q u e ele d iz e d o s te m p o s d o s v e rb o s, se n te -se q u e Je su s
te m a tra v e s s a d o o lim ia r d o te m p o ru m o à e te r n id a d e e já e s tá d e
c a m in h o p a r a o P ai o u , ao m e n o s, a m eio c a m in h o e n tre e ste m u n d o
e a p re s e n ç a d o P ai. L a g r a n g e , p . 437, e x p re ssa e ssa a m b ig u id a d e
q u a n d o d iz q u e a o raç ã o e stá e sc rita sub specie aeternitatis e, c o n tu d o ,
re a lm e n te re p re s e n ta as p r ó p ria s p a la v ra s d e Jesu s. C o m o p o d e o
Jesu s d o cap . 17 d iz e r, re s p e c tiv a m e n te , "já n ã o e s to u n o m u n d o "
(11) e " d ig o tu d o isto e n q u a n to a in d a e s to u n o m u n d o " (13)? T e m o s
a firm a d o q u e o Je su s d o ú ltim o d isc u rso tra n s c e n d e o te m p o e o es-
p aço , p o is d e s d e o cé u e a lé m d o tú m u lo ele já e stá fa la n d o a o s d isci-
p u lo s d e to d o s o s te m p o s. E m p a rte a lg u m a é isto m a is e v id e n te d o
57 · O último discurso: - Terceira seção (primeira unidade) 1153

q u e n o c ap . 17, o n d e Je su s já a s su m e o p a p e l d e in te rc e sso r celestial


q u e l j o 2 ,1 lh e a trib u i d e p o is d a re ssu rre iç ã o . D odd , Interpretation ,
p . 419, o e x p re s s o u m u ito b em : d e a lg u m a m a n e ira , a o raç ã o e m si
é a a s c e n sã o d e Je su s ao Pai; n a v e rd a d e , é já a o raç ã o d e " a h o ra " .
M a s d e v e m o s a n a lisa r m ais p ro fu n d a m e n te o se n tid o ex ato em
q u e o cap . 17 é in te rce ssão e o ração. Ela p o s s u i m u ito d a s caracterís-
ticas d a s o raçõ es d e Jesus; p o r ex em p lo , o g esto d e o lh a r p a ra o céu
e a in v o cação " P a i" (veja n otas). H á p a ra le lo s claros co m a s petições
d a o raç ã o d o S e n h o r [Pai nosso]: c o m p a re a p e tiç ão "seja glorificado
[san tificad o ] o te u n o m e " com o tem a d e g lorificação d o P ai e o u so d o
n o m e d iv in o e m 17,1.1112‫ ;־‬a p e tiç ão "seja feita a tu a v o n ta d e " com o
te m a d e c o m p le ta r a o b ra q u e o P ai d e u a Jesus p a ra fazer e m 17,4; a
p e tiç ã o " liv ra -n o s d o m a lig n o " com o tem a ex p re sso q u a se n a s m es-
m a s p a la v ra s e m 17,15. T o d av ia, a o ração d o cap. 17 é d e ca rá te r es-
p ecial, e Je su s n ã o é u m s u p lic a n te o rd in á rio . A freq u ên cia d a p a la v ra
" P a i" n a o raç ã o lh e d á u m a n o ta d e in tim id a d e sin g u la r. O d iscíp u lo
e o leito r são p a rte d e u m a c o n v ersação celestial fam iliar. Jesus coloca
s e u " q u e ro " (24) d ia n te d e se u P ai com a se g u ra n ç a d o Filho div in o .
A í n ã o p o d e h a v e r d ú v id a d e q u e o q u e ele p e d e será co n ced id o , p o is
s u a v o n ta d e e a v o n ta d e d o P ai são u m a só. O s e v a n g elh o s sinóticos
ta m b é m c o n h ecem u m a ú ltim a o ração d e Jesus p ro n u n c ia d a a p ó s a
ú ltim a ceia e p o u c o a n te s q u e fosse lev a d o p re so , a sab er, s u a o ração
a s e u P ai n o G e tsem â n i (M c 14,34-36). M as q u ã o d ife ren te s são as ora-
ções sin ó tica s e jo aninas! N o G etsem ân i, a p a re c e u m Jesus entristeci-
d o e a n g u s tia d o , p ro s tra d o e m terra, ro g a q u e o cálice d o so frim en to
p a s se d e le - u m a o raç ã o q u e n ã o p o d e se r a te n d id a . Se tra ta d e u m a
o ração h u m a n a q u e se situ a n o te m p o p re se n te (G eorge , p . 395). M as
o d iv in o e o te m p o ra l são a m arc a d a o ração jo an in a. O Jesus jo an in o
n a d a p e d e p a ra si. (É v e rd a d e q u e n o s vs. 1 e 5 ele p e d e p a ra se r glo-
rificad o , m a s e sta g ló ria n a v e rd a d e v isa a seu s d isc íp u lo s, p a ra q u e
lh e s c o n c e d a v id a [2]). Ele n ã o ro g a p a ra q u e fosse liv ra d o d o sofri-
m e n to , m a s so m e n te q u e ele deix e u m m u n d o n o q u a l tem sid o u m
e s tra n h o (K ä sem a n n , p p . 5 ,6 5 ). E sta é m ais u m a o ração d a c o m u n h ã o
e n tre o P ai e o F ilho d o q u e u m a o ração d e petição.
E sta o raç ã o é p ro n u n c ia d a em v o z alta, d ia n te d o s d iscíp u lo s,
p re c is a m e n te p a ra q u e tiv e ssem p a rticip a çã o n e sta u n iã o (21-23). P or-
q u e h á u m a u d itó rio , a o ração é u m ato d e rev e laç ã o e d e intercessão.
O " tu " é d irig id o a D eu s, m a s Jesus está fa la n d o ao s d isc íp u lo s tan to
1154 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

a q u i co m o n o resta n te d o discurso. (N otam os q u e as o u tra s o rações joa-


n in as e m 1 1 ,4 1 4 2 ‫ ־‬e 12,27-28 ta m b é m p re s s u p õ e m a p re se n ç a d e u m a u -
d itó rio ; M orrison , p p . 259-60, in d ic a q u e e sta técnica n ã o te m p a re c id o
tão e s tra n h a p a ra os a n tig o s co m o é p a ra nós. E n c o n tra m o s o m esm o
fen ô m en o e m Lc 10,21-22). E " d isc íp u lo s" significa n ã o só o s [aq u e-
les q u e o u v ira m ] o ú ltim o d isc u rso , m as, e in clu siv e p rim a ria m e n te ,
os cristão s d a s geraçõ es se g u in te s (com a d e v id a v ê n ia a A gourides ,
p . 141, q u e in siste e m u m g r u p o u n itá rio : o s d o ze). E ste in te re sse p e la s
g eraçõ es f u tu ra s se to rn a m ais específico n o s vs. 20ss. d o q u e e m q u a l-
q u e r o u tro lu g a r a n te s d a ressu rre içã o . O cap. 17 te m sid o c o m p a ra d o
a u m a m e n sa g e m p e sso a l q u e u m h o m e m m o rto re g is tro u e d e ix o u
p a ra a q u e le s a q u e m a m a v a , m a s essa c o m p a raç ã o se a p re s e n ta co m
d ific u ld a d e p o is tal m e n sa g e m logo ficaria s u p e ra d a . A n te s, n o cap.
17, a in te n ç ão d o a u to r jo an in o , é a n te s a p re se n ta rm o s u m Jesu s q u e
fala co m a cen to s fam iliares d e s u a existência te rre n a , p o ré m re in te r-
p re ta d o (p ela o b ra d o P arácleto) p a ra q u e o q u e ele a g o ra d iz se con-
v e rta e m u m a m e n sa g e m v iv a e p a ra sem p re.

A estrutura do cap. 17

M esm o m u ito s d o s e sp ec ialista s q u e n ã o e n c o n tra m u m a e s tru -


tu ra p o é tic a n o s d isc u rso s jo a n in o s e m g e ra l re c o n h e c e m o e stilo p o é -
tico d o cap. 17. E sta o raç ã o p e rm a n e c e in te rm e d iá ria e n tre a p o e sia
d o P ró lo g o e o to m m ais liv re d o s o u tro s d isc u rso s. U m a c u id a d o s a
e s tru tu ra p o d e se r su p o s ta , m a s têm -se d e fe n d id o d iv isõ e s d ife re n -
tes. C o m se g u ra n ç a , L oisy , p . 441, afirm a: "E la p o d e se r d iv id id a se m
d ific u ld a d e e m se te estro fes d e o ito v e rso s c a d a " . A d a p ta d a s à n o s-
sa tra d u ç ã o , a s e stro fe s q u e ele rec o n h e c e sã o 1-2, 4 - 5 / 6 - 8 / 9 - l l c /
l l d - 12c, 1 3 -1 4 / 15-19/ 2 0 -2 3 / 24-26; ta n to o v. 3 c o m o o s ú ltim o s
v e rso s d o v. 12 são tra ta d o s co m o a d iç õ e s e m p ro sa . E n tre ta n to , o
siste m a e m q u e ele a c h a o ito v e rso s e m c a d a e stro fe é m u ito d e b a -
tid o . C o m n ã o m e n o r se g u ra n ç a (" to d o s c o n c o rd a m " , in c lu siv e
T om ás d e A q u in o ), L agran ge , p . 436, a c eita u m a q u á d r u p la d iv isão :
1-5, 6-19, 20-23, 24-26. D odd , Interpretation, p . 417, p ro p õ e o u tra d i-
v isã o q u á d ru p la : 1-5, 6-8, 9-19, 20-26; e e ste é u m e s q u e m a fre q u e n -
te m e n te aceito. U m a d ific u ld a d e q u e e n fre n ta a m b a s a s q u á d ru p la s
d iv isõ e s é a e x te n sã o d e s ig u a l d a s u n id a d e s . U m a d iv isã o tríp lic e em
1-8, 9-19, 20-26, q u e é s e g u id a abaixo, é tã o c o m u m co m o a d iv is ã o
57 · O último discurso: - Terceira seção (primeira unidade) 1155

q u á d ru p la . (P a ra u m c u id a d o s o e x am e d a v a rie d a d e d e d iv isõ e s p ro -
p o s ta s p a r a o cap. 1 7 , veja B ec k er , p p . 5 6 -6 1 ) .
A n te s d e a p re se n ta rm o s n o ssas ra z õ e s p a ra ac eita rm o s a divi-
sã o tríp lic e, te m o s d e m e n c io n a r a d iv isã o d e fe n d id a p o r L aurentin ,
p p . 427-31, so b re a b a se d e q u e ela é m e n o s su b jetiv a e m e n o s ociden-
ta l e m s u a p e rs p e c tiv a d o q u e o s sistem as p ro p o sto s a n te rio rm e n te .
Ele d iv id e 17 assim :

1-4: In tro d u ç ã o : u n id a d e q u e com eça e te rm in a com o tem a d e


g ló ria. N o u so d e "P a i" e " te g lo rifiq u ei" h á u m a in clu são
co m o s vs. 25-26, abaixo.
5-6: T ran sição: kai nyn (veja n o ta so b re o v. 5). " A n te s q u e o
m u n d o ex istisse" fo rm a u m a in clu são co m o v. 24.
7 1 2 ‫־‬: P rim e ira P arte: com eça co m nyn : seg u e-se u m e sq u e m a d e
a firm a ç ão (7-8), p e tiç ão (9), e u m a referên cia, à g ló ria (10)
e à u n id a d e (11).
13-23: S e g u n d a P arte: com eça co m nyn: se se g u e u m e sq u e m a d e
a firm a ç ão (13-14), p e tiç ão (15), e u m a referên cia, resp ecti-
v a m e n te , à g ló ria (22) e à u n id a d e (21-23).
24: T ransição: " a n te s d a criação d o m u n d o " .
25-26: C o n clu são : "P a i ju sto " ; " e u rev elei o te u n o m e".

H á m u ito d e a tra e n te n a d iv isã o d e L auren tin , e u sa re m o s alg u -


m a s d e s u a s o b se rv a ç õ e s e m n o sso co m en tário . C o n tu d o , p o rq u e su a
d iv is ã o rejeita o q u e n o s p a re c e c laras m arc as d iv isó ria s n o s vs. 9 e 20,
n ã o p o d e m o s aceitá-la e m s u a to ta lid a d e .
O u tra e s tr u tu r a c o m p lic a d a d o cap. 17 te m sid o p ro p o sta p o r
B ecker , p . 69. Ele e n c o n tra a p e tiç ão p rin c ip a l d a o ração n o s vs. 1-2,
e isto , p o r s u a v ez, é d e se n v o lv id o em q u a tro p e tiç õ es d istin ta s con-
s is tin d o d o s vs. 4-5; 6-13; 14-19 e 22,26. E m c a d a u m a d e sta s q u a tro ,
B ec k er d e te c ta u m p a d rã o co n stan te: (a) u m a afirm ação so b re o q u e
Jesu s te m feito; (b) a lg u m a s v e z es u m a afirm ação p re lim in a r d e q u e
ele e stá o ra n d o o u ro g a n d o p o r algo; (c) p e tiç ão e m sí; (d) o s fu n d a -
m e n to s p a ra a p etição . Esse iso la m e n to d o s e sq u e m a s é im p o rta n te ,
a in d a q u e se p re fira a d o ta r u m a d iv isã o m ais tra d ic io n a l d o cap. 17.
A c h a v e d a o rg an iz aç ã o d o cap. 17 se e n c o n tra n a s trê s indica-
ções d e Jesu s so b re p o r q u e m ele e stá o ran d o : n o v. 1, ele o ra p o r su a
p ró p ria glorificação; n o v. 9, p e lo s d isc íp u lo s a q u e m o P ai lh e d e u ; e,
1156 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

n o v. 20, p o r a q u e le s q u e c re rã o a tra v é s d a p re g a ç ã o d o s d isc íp u lo s.


F eu illet (art. cit. n a B ibliografia d o §56), p . 375, in d ic a u m a tríp lic e d i-
v isão sim ila r n a o raç ã o d e A rã o e m L v 16,11-17: o su m o sa c e rd o te o ra
p o r si m esm o , p o r su a casa o u fam ília sa ce rd o ta l, e p o r to d o o p o v o
(isto é in te re ssa n te q u a n d o lem b ra m o s q u e o cap. 17 é d e n o m in a d o
d e o ração sa ce rd o ta l d e Jesus). O p rin c ip a l p o n to d e d ife re n ç a e n tre a
fre q u e n te m e n te d e fe n d id a q u a rta e tríp lice d iv isõ e s d iz re sp e ito a s vs.
6-8, o n d e os d isc íp u lo s são m en c io n ad o s. E stes v e rsíc u lo s d e v e m se r
tra ta d o s co m o u m a u n id a d e d istin ta , o u d e v e m se r u n id o s a o s vs. 1-5,
o u aos vs. 9-18 (B u ltm a n n , G iblet )? P o n d o -o s com o vs. 1-5, ch eg a-se
a u m a d iv isã o d e trê s u n id a d e s a p ro x im a d a m e n te co m a m e sm a em
ex ten são (1-8,9-19,20-26). O bjetar-se-á q u e o v s. 1-5 tra ta m d a glorifi-
cação d e Jesus, e n q u a n to o s vs. 6-8 tra ta m d o s d iscíp u lo s. M as q u a n d o
n o s vs. 1-5 Jesu s o ra p o r glorificação, a b a se d e su a o raç ã o é a o b ra
q u e ele já fez e n tre a q u e le s a q u e m D e u s lh e d e u , e o p ro p ó sito d e su a
g lorificação v isa a q u e ele lh es c o n c ed a a v id a e te rn a . E m o u tro s ter-
m o s, os d isc íp u lo s já fo ra m m e n c io n a d o s n o s vs. 1-5 e m rela çã o com
a g ló ria d e Jesus. O s vs. 6-8 são sim p le sm e n te u m a e x p a n sã o d o tem a
e x p o sto n o v. 4: falam com d e ta lh e s co m o Jesus fez a o b ra d e D e u s
e n tre os d iscíp u lo s. N ã o o b sta n te , se os vs. 6-8 v ã o co m os vs. 1-5, e stes
v ersícu lo s p re p a ra m o c a m in h o p a ra a s e g u n d a u n id a d e (9-19), o n d e
Jesus o ra m ais d ire ta m e n te p e lo s d iscíp u lo s. N o fin al d a u n id a d e ,
e n c o n tram o s e x a ta m e n te o m esm o fe n ô m e n o d e u n s v e rsíc u lo s q u e
se rv e m d e tran sição: n o v. 18, Jesu s m en c io n a o en v io d e d isc íp u lo s, e
isto p re p a ra p a ra a terceira u n id a d e , o n d e Jesu s o ra p o r a q u e le s q u e
são c o n d u z id o s à fé em v irtu d e d e ssa m issão.
H á a lg u n s a sp ecto s in te re ssa n te s q u e rela cio n a m a s trê s u n id a d e s
e n tre si e ilu s tra m a c u id a d o sa e stru tu ra ç ã o q u e h á sid o o bjeto e ste
capítulo: •

• c a d a u n id a d e com eça p e lo q u e Jesu s e stá p e d in d o o u o ra n d o


(1,9,20)
• c a d a u m a te m o tem a d e g ló ria (1-5,10,22)
• c a d a u m a tem u m a in v o cação a o P ai d e n tro d o c o rp o d a u n i-
d a d e (5,11,21)
• c a d a u m a m e n c io n a os h o m e n s d a d o s a Jesu s p e lo P ai (2,9,24)
• c a d a u m a tem o tem a d e rev elação d e Jesu s d o P a i p a ra o s ho -
m en s (v. 6 " te u n o m e " ; v. 14 " tu a p a la v ra " ; v. 26 " te u n o m e " )
57 · O último discurso: - Terceira seção (primeira unidade) 1157

H á tam b é m aspectos c o m u n s p artilh ad o s p o r d u a s d a s três unida-


des. H á sim ilarid ad e p o r inclusão en tre a p rim eira e a terceira u n id a-
d es, isto é, e n tre o com eço e o fim d a oração. Se as três u n id a d e s u sam
invocação "P ai" sem m odifieativos, isto ocorre com m ais frequência n a
p rim e ira e terceira u n id a d e s (1,5,24,25). E stas d u a s u n id a d e s p artilh am
o te m a d a rela çã o d e Jesu s com o P ai a n te s q u e o m u n d o existisse
(5,24) e ta m b é m o te m a d e faz e r c o n h e cid o o n o m e d e D e u s (6,26).
Se c o m p a ra rm o s a p rim e ira e a se g u n d a u n id a d e s , a m b a s c o n tra sta m
o q u e foi feito n a te rra e o q u e será feito (4-5,12-13), e a m b a s m en-
c io n a m q u e Jesu s te m d a d o ao s d isc íp u lo s a(s) p a la v ra(s) q u e lh e foi
d a d a p e lo P ai (8,14). Se c o m p a ra rm o s a s e g u n d a e a terceira u n id a d e s,
a m b a s co m e ç a m c o m " ro g o " (9,20); a m b a s tê m o te m a d a u n id a d e
(11,21-23); a m b a s u s a m u m q u a lific a d o r a d je tiv a l p a ra falar c om o Pai
(11, " P a i sa n to " ; v. 25, "P a i ju sto "). D e n tro d a se g u n d a u n id a d e p o d e
h a v e r u m a in clu são e n tre os vs. 9 e 19 (9, " e m fav o r d eles" \peri autõn ];
19, " p o r e les" [hyper autõn]. D e n tro d a terceira u n id a d e h á u m a in-
c lu sã o e n tre o s v s. 21 e 26 n o te m a d a h ab itação .

C O M E N T Á R IO : D E T A L H A D O

Versículos 1-5: Jesus pede para ser glorificado

Se d e ix a rm o s d e la d o p o r u m m o m e n to o c o m e n tário p a re n té tic o em
p ro s a n o v. 3, o te m a d a g ló ria d o m in a estes v ersícu lo s. N o s vs. 1-2 se
ex p lica p o r q u e o F ilho d e v e ser g lo rificad o à lu z d o q u e o F ilho glori-
ficad o fa rá - g lo rificará o P ai e c o n c ed e rá v id a ao s discíp u lo s. N o s vs.
4-5 se ex p lica p o r q u e Jesus d e v e ser g lo rificad o à lu z d o q u e ele já fez -
c o m p le to u a o b ra q u e lhe foi d a d a p elo Pai. (N o tem os a m u d a n ç a d a ter-
ceira p e s so a ["o F ilho"], n o s vs. 1-2, p a ra a p rim e ira p e sso a ["E u"], no s
vs. 4-5; n ã o é im p o ssív e l q u e te n h a m o s a q u i d ito s o rig in a lm e n te in d e-
p e n d e n te s ). N o vol. 1, p. 802, sa lie n ta m o s q u e " g ló ria " tem d o is aspec-
tos: e la é u m a m an ifestaç ã o visível d a m aje sta d e a tra v é s d e atos de poder.
A g ló ria p e la q u a l Jesus ro g a n ã o é d istin ta d a g ló ria d o Pai, p o is as
se n te n ç as d e 8,50 e 12,43 ex clu em q u a lq u e r am b ição d e g ló ria exceto
a g ló ria d e D eu s. " A h o ra " significa p a ra Jesu s a v o lta ao Pai, e en tã o
o fato d e q u e ele e o P ai p o s s u e m a m esm a g ló ria d iv in a será visível
a to d o s o s cren tes. O ato co n creto d e p o d e r q u e fará visív el a u n id a d e
1158 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

de Jesus e o Pai será o d o m d a v id a eterna aos crentes (v. 2, "a todos


os que tu lhe deste"). A doação d a v id a eterna está intim am ente rela-
cionada com a obra que Jesus esteve fazendo n a terra (v. 4) e co n d u z
esta obra à com pletude, pois suas obras n a terra foram sinais d e seu
p o d e r d e d a r v id a eterna (vol. 1, A p. III, p. 831). B ultmann, p. 376, ex-
pressa perfeitam ente esta ideia q u an d o diz: "Sua obra não alcança u m
fim com sua v id a terrena, m as, em u m sentido real, só com eça com o
fim dessa vida". Em su a glorificação, Jesus glorificará o P ai (v. 1) pelo
do m d a vid a eterna, pois este dom gerará p ara D eus novos filhos que
o honrarão com o Pai (veja 1,12). A ssim , em seu p ed id o de vo ltar p a ra
seu lar celestial, Jesus n a d a busca p a ra si m esm o; ele está interessado
no reconhecim ento d e seu Pai e no bem -estar de seus discípulos.
O p ed id o de Jesus p a ra ser glorificado p o d e parecer estranho, já
que João deixou bem claro que Jesus já possuía e a m anifestou ao lon-
go de todo seu m inistério. O "tem os visto sua glória" d o Prólogo se-
gue im ediatam ente a referência a palavra se fez carne (1,14). Em C aná
(2,11), Jesus revelou sua glória a seus discípulos; veja tam bém 11,4.40;
12,28. Todavia, a glória d e Jesus d u ran te o m inistério foi vista através
de alguns sinais, ainda q u an d o seu p o d er gerador de v id a fosse exer-
cido através de sinais. A o chegar "a hora" passam os dos sinais p ara
a realidade, de m odo que "a hora" é o m om ento certo p a ra "o Filho
do H om em ser glorificado" (12,23). Q uando "a hora" estiver com ple-
ta, a vida eterna verdadeiram ente po d erá ser concedida no d o m do
Espírito (20,22). A ideia que d u ran te o m inistério Jesus já possuía a
glória aparece nos evangelhos sinóticos no relato d a transfiguração
(especialm ente Lc 9,32); m as é evidente que o pleno reconhecim en-
to de Jesus com o o Filho de D eus se p ro d u z a p artir de su a m orte
(Mc 15,39), ressurreição e ascensão (At 2,36; 5,31). O p ensam ento de
João sobre a glorificação de Jesus através de seu retorno ao Pai tem
alguns aspectos em com um com o pensam ento do hino prim itivo ci-
tado p o r Paulo em F1 2,9: "Portanto, D eus o exaltou sobrem aneira e
lhe d e u o nom e que é acim a de todo nom e" (veja o tem a d o nom e
em Jo 17,11-12). Todavia, há um a diferença; K äsemann, p. 10, está cer-
to em insistir que a avaliação do m inistério d e Jesus em F1 2,7 com o
um a kenosis não aparece em João. Se "a Palavra se fez carne", ela não
se esvaziou, pois n a encarnação lhe foi concedido p o d e r sobre to d a
carne (17,2; tam bém 5,27). Ao m inistério terreno d e Jesus, João atribui
u m po d er universal que é atribuído som ente ao C risto ressurreto em
57 · O último discurso: - Terceira seção (primeira unidade) 1159

M t 28,18; c o n tra ste ta m b é m A p 12,10, o n d e só d e p o is d a d e rro ta d e


S a tan á s p e la ex altação d o filho m essiânico se p ro c la m a m o rein o d e
D e u s e o poder d e C risto.
O c o m e n tá rio ex p licativ o p a re n té tic o n o v. 3 re q u e r a ten ção es-
pecial. C o m o te m o s m en c io n a d o , este v ersícu lo tem sid o c ita d o com o
u m e x e m p lo d e g n o stic ism o joânico, p o is a q u i o d o m salvífico d a v id a
é d e fin id o e m te rm o s d e co n h ecim en to . C la ro q u e, p a ra João, conhecer
a D e u s n ã o é m e ra m e n te u m a q u e stã o in telectu al, m as e n v o lv e u m a
v id a d e o b e d iê n c ia ao s m a n d a m e n to s d e D e u s e d e a m o ro sa com u-
n h ã o co m o s irm ã o s cristão s ( ljo 1,3; 4,8; 5,3). Isto e stá e m co n co rd ân -
cia c o m o u s o h e b ra ico d o v e rb o "co n h e c e r" co m s u a c o n o tação d e ex-
p e riê n c ia e in tim id a d e d ire tas. T o d av ia, n ã o p o d e m o s n e g a r q u e 17,3
re la c io n a v id a e te rn a c om u m a c o rre ta a p reciação d o P ai e d e Jesus. Se
n o p e n s a m e n to jo an in o fé é u m estilo d e v id a e m c o m p ro m etim e n to
co m Jesu s, isto n ã o significa q u e fé seja d e s titu íd a d e c o n te ú d o inte-
lectu al. K ä sem a n n , p . 25, e n fa tiz a c o rre ta m e n te q u e a id eia d e fé com o
a a c eitação d e d o u trin a o rto d o x a já e stá p re se n te d e m o d o incoativo
e m João. P a ra receb er v id a e te rn a , d ev e-se aceitar com o d o u trin a n a
fo rm a d e c re d o q u e Jesu s é o F ilho d e D e u s ( ljo 2,22-23). M u ita s p as-
sa g e n s d a Bíblia, os ad je tiv o s " ú n ic o " e " v e rd a d e iro " são a p lic ad o s a
D e u s p a ra d istin g u i-lo d o s d e u se s p a g ã o s; m as, p a ra João, o "ú n ico
e v e rd a d e iro D e u s" te m u m a co n o tação esp ecial - ele é o D e u s q u e é
c o n h e c id o e m e a tra v é s d e s e u F ilho Jesus C risto , d e m o d o q u e q u e m
n ã o co n fessa o F ilho n ã o confessa o "ú n ic o e v e rd a d e iro D eu s".
A g u isa d e c o m p a raç ã o d e Jo 17,3 com o g n o sticism o , p o d e m o s
faz e r d u a s o b serv açõ es. P rim eira, p a ra João o c o n h ecim en to d e D eus
e m q u e co n siste a v id a e te rn a te m sid o m e d ia d o p o r alg o q u e aconte-
c eu n a h istó ria (a m o rte e re ssu rre iç ã o d e C risto), e e ste co n h ecim en to
é salv ífico n o se n tid o e m q u e ele liv ra os h o m e n s d o p e c a d o (8,32).
S e g u n d a , a v id a e te rn a é c o n c ed id a ao s h o m e n s so b re e sta terra.
E n q u a n to o Jesu s jo a n in o deseja iso lar se u s se g u id o re s p a ra q u e real-
m e n te n ã o p a rtic ip e m d o m u n d o (17,14.16) e fin a lm e n te o s leve con-
sig o p a r a o c é u (24), m a s a v id a e te rn a lh es co n ced e e n q u a n to a in d a
e s tã o n o m u n d o . N e ste s p o n to s João d ife re d e u m g n o sticism o q u e n a
re a lid a d e é in d e p e n d e n te d a h istó ria e n o q u a l a v id a é o b tid a p elo
a b a n d o n o d o m u n d o e d a co n d ição carnal.
E m b o ra o co nceito d e q u e v id a e te rn a co n siste e m u m conheci-
m e n to te n h a u m a m a tiz p e c u lia r e m João, d e v e m o s rec o n h e c er q u e h á
1160 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

antecedentes p a ra a ideia no AT. Jerem ias pro m ete com o u m d o s fru-


tos da nova aliança u m conhecim ento íntim o d e D eus: "E u lhes d arei
u m coração que saiba que eu sou o Senhor; e eles serão o m e u po v o e
eu serei o seu D eus" (24,7; 31,33-34). Este paralelo é im p o rtan te por-
que várias das idéias m ais im portantes do últim o discurso se relacio-
n am com o am biente característicos d a últim a ceia e d a n a rra tiv a d a
paixão (veja p p . 985-86). O conhecim ento d e D eus foi tam bém visuali-
zado com o característico do perío d o escatológico: "A te rra se encherá
do conhecim ento d a glória d e D eus" (Hc 2,14), e o últim o discurso de
João tem traços característicos de u m discurso escatológico. V em os a
expectativa d o conhecim ento de D eus capaz d e com unicar v id a tra-
d u zid a p ara o vocabulário judaico helenista em Sb 15,3: "C onhecer-
te é perfeita justiça e conhecer te u p o d e r é a raiz d a im o rtalidade".
(R. E. M urphy, CBQ 25 [1963], 88-93, sugere que "p o d e r" n esta citação
é o p o d e r p ara d estru ir a m orte e encontra u m paralelo autêntico p a ra
o pensam ento joânico). Em Q um ran, o au to r do hino que conclui a
Regra d a C om unidade fala d e ser justificado, p o rq u e lhe foi conce-
dido o conhecim ento de Deus: "Pois m inha lu z em anou d a fonte de
seu conhecim ento; m eus olhos têm contem plado seus m aravilhosos
feitos; e a luz de m e u coração está n o m istério p o r v ir" (1QS 11,3-4).
E v erd ad e que a ideia que a seita tinha do conhecim ento d e D eus con-
sistia, em sua m aioria, em u m conhecim ento especial d a Lei; m as já
vim os que, p a ra João, Jesus assum e o lu g ar d a Lei (vol. 1, p. 829).
N o NT não é apenas em João que lem os que a felicidade escatoló-
gica consiste no conhecim ento. Paulo escreve em IC o r 13,12: "A gora
conheço em parte, m as então conhecerei assim com o sou conhecido".
P ara Paulo, este conhecim ento é algo ain d a futuro; João p õ e m ais ên-
fase em sua realização no presente. U m paralelo p a ra o pen sam en to
de João p o d e ser tam bém encontrado no dito d a antiga fonte "Q " pre-
servada em M t 11,27; Lc 10,22; este dito enfatiza a im portância d e co-
nhecer o P ai através d a revelação com unicada pelo Filho. O versículo
seguinte em M ateus prom ete o descanso escatológico a todos quantos
acolham o Filho. N o final do 2a século, I rineu d á à ideia u m a expressão
teológica m ais formal: "A quele que é incom preensível, intangível e
invisível se fez v er e entender pelos hom ens, p a ra que todos o vejam e
o entendam possam v iv e r.... A única vid a é a participação em D eus, e
fazem os isto conhecendo D eus e desfru tan d o de su a b o n d a d e " (Con-
tra as Heresias, 4,20:5; SC 100: 640-42).
57 · O último discurso: - Terceira seção (primeira unidade) 1161

E m 1 7 ,5 , a g ló ria q u e Jesu s p e d e é id en tifica d a co m a g ló ria q u e


Je su s tin h a ju n to a o P ai a n te s q u e o m u n d o existisse. M ais a d ia n te , no
v. 2 4 , se d irá q u e e sta g ló ria p ro v é m d o a m o r q u e o P ai tin h a p o r Jesus
a n te s d a criação d o m u n d o . B u ltm a n n , p . 3 7 9 , ca ra c te riz a e stas id éias
co m o p ró p ria s d o e sq u e m a d o m ito gnóstico. São se m e lh an te s à p e rs-
p e c tiv a teo ló g ica d o P ró lo g o ( 1 ,1 ) , e su g e rim o s o m esm o p a n o d e fun-
d o q u e s u g e rim o s p a ra o L ogos, a sa b er, a e sp ecu lação ju d aic a so b re a
S a b e d o ria p e rso n ific a d a . A S a b e d o ria existia antes que a terra fosse criada
(P r 8 ,2 3 ) ; d u r a n te a criação , ela estava com Deus, q u e se deleitava nela
( 8 ,3 0 ) ; ela e ra u m a p u r a e fu sã o d e s u a glória (Sb 7 ,2 5 ). Jesu s, q u e fala
c o m o S a b e d o ria d iv in a , tem as m e sm a s o rig en s. A relação q u e 1 7 ,5
e sta b e le c e u e n tre a g ló ria fin al d e Jesus e s u a g ló ria a n te rio r à criação
a ju d a a e x p lic ar p o r q u e a p rim e ira ação d o Jesus g lo rificad o é a d e
u m a n o v a criação se m e lh a n te a d e G ên esis (veja p . 1 5 2 2 abaixo).

Versículos 6-8: A obra de revelação de Jesus entre os discípulos

O v. 2 m en c io n o u os h o m en s q u e D eu s confiou a Jesus; v. 4 disse


q u e Jesus glorificou a D eus n a terra, co m p le ta n d o a o b ra q u e D eus lhe
d e ra p a ra fazer. O s vs. 6-8 u n e m estes d o is tem as: a ob ra d e Jesus q u e
glorificou a D eu s foi a m anifestação d e D eu s àq u eles a q u e m D eus lhe
confiou. N o v. 6, a tarefa d a revelação é e x p re ssa d a em term o s d e fazer
co n h ecid o o n o m e d e D eus. (Este c a p ítu lo é o ú n ico lu g ar e m João o n d e
é d ito ex p licitam en te q u e ele rev e lo u o n o m e d e D eus aos hom ens).
O p a n o d e fu n d o e o significado d e sta id eia m erece c u id a d o sa análise.
N o A T, o a u to r d o SI 22,23(22) d iz " P ro c la m a rei o te u n o m e aos
m e u s irm ã o s" . C o m isto o sa lm ista tem em m e n te q u e ele lo u v ará
a D eu s, m a s o sa lm o p o d e te r a ssu m id o u m sig n ificad o m ais p ro -
fu n d o q u a n d o foi a p lic a d o p e lo s cristão s a Jesus (H b 2,12). N o AT,
c o n h e cim e n to d o n o m e d e D e u s im pÜ cava u m c o m p ro m etim e n to
d e v id a ("O s q u e c o n h e ce m o te u n o m e p õ e m e m ti s u a confiança",
SI 9,11 [10], e o m e sm o v a le p a ra João, p o is a q u e le s a q u e m Jesus re-
v e lo u o n o m e g u a rd a m a p a la v ra d e D e u s (17,6). H á p a ssa g e n s n o
D e u te ro isaía s q u e p a re c e m falar d e tu n n o m e e sp ecial (de D eus?) q u e
será d a d o ao s se rv o s d e D e u s n a e ra escatológico (veja Y o u n g , Z N W
46 [1955], 223-23). P o r ex em p lo , a LXX d e Is 55,13: "o q u e se rá p a ra
o S e n h o r p o r n o m e , e p o r sin al e te rn o "; 62,2: " c h a m a r-te -ão p o r u m
n o m e n o v o , q u e a b o ca d o S en h o r d e sig n a rá " ; 65,15-16: "E d eix areis o
1162 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

vosso nom e aos m eus eleitos p o r m aldição... e a seus servos cham ará
p o r outro nom e. De sorte que aquele que se b endisser n a terra, se
bendirá no D eus da verd ad e". Isto é m u ito parecido com A p 2,17;
3,12, o n d e som ente o cristão conhece u m novo nom e e tem o nom e
de D eus escrito nele; em 19,12-13, som os inform ados que Jesus p o rta
u m nom e que n inguém conhece, senão ele m esm o, a saber, "A Pa-
lavra de D eus". O utro exem plo interessante do AT seria o costum e
deuteronôm ico de falar d a localidade central d o culto d e Israel (onde
estava o tabem áculo o u o tem plo) com o o lu g a r o n d e D eus tem po sto
seu nom e (Dt 7,5.21 etc.). P ara João, Jesus su bstitui o ta b em ácu lo (veja
vol. 1, pp. 209-10) e o tem plo (pp. 322-23), e agora é o lu g a r o n d e D eus
tem posto Seu nom e.
N o judaísm o dos dias d e Jesus havia, certam ente, especulações
acerca do nom e divino. G. S cholem (Major Trends in Jewish M ysticism
[3rd ed.; N ova York, 1961], pp . 68ss.) pensa que a ênfase sobre o nom e
nos escritos m ísticos do judaísm o tardio teve origens m ais antigas. Em
particular, havia especulação sobre o anjo do Senhor m encionado em
Ex 22,2-21: "Eis que envio u m anjo adiante d e vós p ara g u ardar-vos
no cam inho e conduzir-vos ao lu g ar que já preparei... meu nome está
sobre ele". Esta descrição p o d e adequar-se perfeitam ente ao Jesus de
Jo 17. As especulações sobre o nom e divino que aparecem nos prim i-
tivos escritos gnósticos p o d em tam bém ter tido raízes judaicas; veja
G. Q ukpel em The Jung Codex (Londres: M ow bray, 1955), pp . 68ss.; e
J. E. M énard, L'Evangile de Vérité (Paris: Letouzey, 1962), pp. 183-84,
que cita u m pan o de fundo oriental m ais am plo. D uas passagens d as
obras recentem ente descobertas em Chenoboskion são dignas d e nota:

O nom e do Pai é o Filho. É Ele que no princípio lhe deu um nom e que
procedeu dele - que é Ele m esm o - e a quem Ele gerou como Filho. Ele
lhe deu Seu nom e que Lhe pertencia. ... O Filho pode ser visto, m as o
nom e é invisível.... O nom e do Pai não é expresso, m as é revelado pelo
Filho. (E v a n g e lh o d a V e r d a d e , 38,6ss.).

Um só nom e que não se pronuncia no m undo, o nom e que o Pai d eu ao


Filho, que é acima de todas as coisas, que é o nom e do Pai. Pois o Filho
não se tornaria o Pai, exceto que se vestiu com o nom e do Pai. Os que
têm este nom e o conhecem, porém não o pronunciam . Mas os que não
o tem não o conhecem. ( E v a n g e lh o d a V e r d a d e ; veja R. McL. W ilson, T h e
G o s p e l o f P h il ip [Nova York: H arper, 1962], p. 30).
57 · O último discurso: - Terceira seção (primeira unidade) 1163

A s idéias destas obras gnósticas possuem certa sim ilaridade com


João, m as vão além , ao identificar o Filho com o Pai e ao enfatizar a
inefabilidade do nom e. Finalm ente, notam os que as lendas judaicas
anti-cristãs d as Toledoth Jeshu atribuem p oderes (mágicos) a Jesus ao
fato d e que ele havia conseguido apoderar-se do nom e divino.
Q ual foi o nom e d e D eus que Jesus revelou? É bem atestado que
n o ju d aísm o o uso da expressão "o nom e" era u m m o d o de evitar o te-
trag ram a (YHW H), de m o d o a ser possível que João tivesse em m ente
u m n o m e divino especial. Em contrapartida, visto que p ara o sem ita
u m n o m e é u m a expressão de p ersonalidade e p o d e r de u m indiví-
d u o , revelar o nom e de D eus p o d e sim plesm ente ser u m a m aneira
d e descrever ao estilo sem ita a revelação divina em geral (B ultmann,
ρ. 3851). Som os inclinados à p rim eira e m enos abstrata interpretação
d a teologia joanina do nom e. Em u m interessante artigo, B onsirven in-
dica q u e os P adres d a igreja, com o C irilo d e A lexandria e A gostinho,
e ram m ais inclinados a enfatizar a relação pessoal do nom e, enquanto
os com entaristas posteriores falavam do nom e em abstrato. (Esta úl-
tim a tendência ain d a se encontra nas traduções m odernas; em 17,11,
d a NEB e d a "T odays's English V ersion" d a A m erican Bible Society's
d e 1966 encontram os "o p o d e r de teu nom e" em vez d e "te u nom e").
S ugerim os a hipótese que o nom e divino que o Jesus joanino fez
conhecido aos hom ens era "EU SOU". Em 17,11-12, Jesus d iz que
D eus lhe d e u o nom e divino; obviam ente, este d o m não se tornaria
totalm ente evidente até a glorificação d e Jesus. Isto corresponde ao
que Jesus dissera sobre o "EU SOU". "Q u a n d o levantardes o Filho
do H om em , então reconhecereis que "EU SOU" (8,28). N o vol. 1,
A p. IV, discutim os o p an o de fu n d o veterotestam entário p ara o pe-
culiar u so absoluto que Jesus fez d e "EU SOU". Particularm ente per-
tinente p a ra Jo 17,6 é a prom essa de D eus em Is 52,6: "N aquele dia
m e u p o v o conhecerá o m eu nom e, que Eu sou (egõ eim i) A quele que
fala". O u tra passagem significativa seria Ex 3,13-15. Q uando M oisés
p e rg u n to u o nom e d e D eus a fim de ir ao povo com as devidas cre-
denciais, D eus replicou: "D ize isto ao po v o de Israel: 'EU SOU m e
enviou a vós'". (N o vol. 1, p. 841, reconhecem os que este não pode
ter sido o significado original da passagem que contém o tetragra-
m a, m as este parece ser o significado d a d o a ela em tem pos poste-
riores). A ssim tam bém o Jesus joanino se apresenta entre os hom ens,
não só conhecendo o nom e d e D eus com o "EU SOU", m as inclusive
1164 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

p o rta n d o -o , p o rq u e ele é a rev elação d e D e u s a s e u p o v o . N o s vs. 6,


11 e 12, o n o m e é m e n c io n a d o e m rela çã o aos q u e Jesus e stá d e ix a n d o
p a ra trá s e o s q u a is fo ra m e n v ia d o s ao m u n d o (18). D e m a n e ira m u ito
se m e lh an te ao q u e o c o rre u c o m M oisés, o fato d e q u e o s m e n sa g e iro s
d e Jesu s c o n h ecem se u n o m e d iv in o se c o n sa g ra ra m a tu d o q u e im p li-
ca esse n o m e a u te n tic a a m issão.
U m a v ez m ais, o p e n sa m e n to jo an in o tem certas sim ila rid a d e s
com o p e n s a m e n to ex p resso n o h in o d e F12,9, o q u a l d iz q u e "o n o m e
q u e é acim a d e to d o s os o u tro s n o m e s" foi o u to rg a d o a o Jesus exalta-
do. O n o m e d e q u e P au lo fala é kyrios, "S e n h o r", "E U S O U ", a tra d u -
ção g reg a d e Y H W H ; o n o m e d e q u e João fala, "E U S O U ", se relacio n a
in d ire ta m e n te com Y H W H (vol. 1, p . 844). P a ra P au lo , p o ré m , o n o m e
só é d a d o d e p o is d a ressu rreição ; p a ra João, Jesus p o rta o n o m e d iv in o
já d u ra n te seu m in istério . E n tre tan to , e m o u tra co rre n te d o p e n sa m e n -
to jo an in o , em A p 19,12-13, Jesus tem g ra v a d o so b re si o n o m e d iv in o ,
"A P alav ra d e D eu s", e m u m te m p o a in d a n o fu tu ro q u a n d o ele desce-
rá d o céu p a ra d e rro ta r as h o stes m alig n as.
O s vs. 7 e 8, d o cap. 17, tira m a s im p licaçõ es d e q u e ao s d isc íp u lo s
foi d a d o c o n h ecim en to d o n o m e d iv in o q u e Jesu s p o rta . Isto o s le v o u
a c o m p re e n d e r q u e tu d o o q u e Jesus te m v e m d o P ai (7), esp ecial-
m e n te s u a s p a la v ra s (8). V isto q u e Jesu s p o rta o n o m e d e D eu s, eles
sab em , co m o M oisés, q u e ele foi e n v ia d o p o r D e u s (8). A d e scriçã o d e
Jesus n a s p rim e ira s lin h a s d o v. 8 são u m eco d a d escrição d o P ro feta-
com o-M oisés e m D t 18,18: D eu s p õ e su a s p a la v ra s n a b o ca d o p ro fe ta
q u e e n tã o fala co m o D eu s lh e o rd e n o u . E in te re ssa n te q u e e sta o ração ,
o n d e a g ló ria e a d iv in d a d e d e Jesus são tão p ro e m in e n te s, ta m b é m
in siste en fa tic a m e n te n a su a d e p e n d ê n c ia d o Pai.

[A B ibliografia p a ra e sta seção está in clu sa n a B ibliografia p a r a o


cap. 17, n o final d o §59.]
5 8 .0 ÚLTIMO DISCURSO:
TERCEIRA SEÇÃO (SEGUNDA UNIDADE)
(17,9-19)

s ora por aqueles que o Pai lhe deu

9"É e m fav o r d e le s q u e e u rogo.


N ã o ro g o p e lo m u n d o ,
m a s p o r a q u e le s q u e m e d este,
p o rq u e são te u s

10(assim co m o tu d o o q u e é m e u é teu ,
e tu d o o q u e é te u é m eu ),
e é n e le s q u e ten h o sid o glorificado.

11E u já n ã o e sto u n o m u n d o ;
e e n q u a n to e sto u in d o p a ra ti,
eles a in d a estã o n o m u n d o .
O P ai sa n tíssim o ,
G u a rd a co m o te u n o m e os q u e m e d e ste
[p ara q u e sejam u m , co m o nós].
12E n q u a n to e sta v a com eles,
e o s g u a rd a v a e m te u n o m e, q u e m e d este,
e u o s m a n tiv e se g u ro s e n e n h u m d e le s se p e rd e u ,
exceto à q u e le q u e tin h a q u e p e rd e r-se ,
a fim d e c u m p rir-se a E scritura.

13M as a g o ra e sto u in d o p a ra ti.


T o d a v ia, e n q u a n to a in d a n o m u n d o , e u d ig o tu d o isto
a fim d e q u e te n h a m em si m in h a p len a alegria.
1166 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

14E u lh es d e i a tu a p a la v ra ,
e o m u n d o o s o d io u ,
p o rq u e eles n ã o p e rte n c e m a o m u n d o
[com o e u n ã o s o u d o m u n d o ].
15N ã o e s to u r o g a n d o q u e os tire d o m u n d o ,
e sim q u e o s g u a rd e d o M aligno.
16E les n ã o p e rte n c e m ao m u n d o ,
co m o e u n ã o p e rte n ç o ao m u n d o .
17C o n sag ra-o s n a v e rd a d e -
Ά tu a p a la v ra é a v e rd a d e ';
18p o is co m o m e e n v ia ste ao m u n d o ,
ta m b é m e u os en v iei a o m u n d o .
19E é p o r eles q u e e u m e c o n sag ro ,
p a ra q u e ta m b é m sejam c o n sa g ra d o s n a v e rd a d e " .

NOTAS

17.9. Eu rogo. Literalmente, "eu peço". Nos vs. 9, 15 e 20 o verbo erõtan é


usado absolutam ente sem com plem ento direto pessoal; subtende-se que
o Pai é o destinatário do pedido. Em casos em que usa este verbo para
petição no últim o discurso (14,16; 16,26), "o Pai" é o objeto. Schwank ,
"Für sie", p. 487, defende a tese de que o Jesus joanino fala de sua própria
oração em term os de erõtan e não usa aitein, o verbo m ais frequente-
m ente usado em relação à petições de seus discípulos. Veja 16,26, onde
os verbos parecem sinônim os e 16,23, onde parecem não ser sinônimos.
aqueles que me deste. N o contexto da últim a ceia, esta é um a referência aos
discípulos mais próxim os a Jesus, presum ivelm ente os doze (veja nota
sobre 13,5). Mais adiante (v. 20), a oração m udará destes discípulos para
os futuros convertidos. Contudo, visto que os discípulos são m odelos
para todos os cristãos, ambos os vs. 9-19 e 20-26, são focados os cristãos
de um tem po futuro.
porque são teus. Esta frase é explicativa, seja porque Jesus está oran-
do por eles ou porque Jesus pode dizer que foi o Pai que lhos conce-
deu. B ultmann, p. 3 8 2 7, enfatiza som ente a prim eira relação, m as que
a últim a tam bém está em m ente é visto nas linhas que funcionam
como um parênteses do versículo seguinte. As últim as duas linhas do
v. 9 (aqueles que me deste, porque são teus) inverte à terceira linha do v. 6
("Eram teus, e tu m os deste").
58 · O último discurso: - Terceira seção (segunda unidade) 1167

10. ( a s s im c o m o tu d o 0 q u e é m e u é t e u ...) . Esta sentença a m odo de parente-


ses é sim ilar a 16,15. Notam os que houve um a m udança de prono-
mes masculinos no v. 9 ("aqueles que") para pronomes neutros no v. 10
("tudo o que"); o neutro tem o efeito de am pliar esta reivindicação.
A equivalência entre os que pertencem a Jesus e os que pertencem ao Pai
significa que no pensam ento joanino não é a criação de um hom em que
o faz pertencer a Deus, e sim sua atitude para com Jesus. Ninguém pode
aceitar Jesus a m enos que pertença a Deus, m as ninguém pode pertencer
a Deus a m enos que aceite Jesus.
n e le s q u e te n h o s id o g lo r if ic a d o . No que se refere a seus discípulos imediatos,
a glória de Jesus foi prim eiram ente revelada em Caná (2,11). Contudo, da
perspectiva tem poral do autor, Jesus foi glorificado nos cristãos crentes
que vieram à fé depois da ressurreição. O Codex Bezae diz "tu m e glori-
ficaste", talvez pela analogia do v. 1, onde o Pai é o autor da glorificação.
11. Emj á n ã o e s t o u n o m u n d o . Nota-se o contraste com o v. 13 abaixo: "Enquan-
to ainda no m undo, eu digo tudo isto"; todavia, em ambos os versículos,
Jesus diz: "Estou indo para ti". As três partes do v. 10 e as prim eiras três
linhas do v. 11 começam todas com k a i, "e"; é difícil decidir o que coor-
d enar e o que subordinar na tradução em português.
in d o . Em outro lugar em João lemos que Jesus está in d o para Deus (notas
sobre 14,2 e 16,5); aqui, porém, ele está falando diretamente ao Pai e "me
vou a ti" é mais apropriado. Depois desta sentença, o Codex Bezae e alguns
m anuscritos do OL acrescentam: "Já não estou no m undo; todavia, eu es-
tou no m undo". A adição parece unir a sentença do v. 11 à que precede:
"Eu estou indo para ti", com a do v. 13 que segue "Eu estou indo para ti".
ó P a i s a n t í s s i m o . Literalmente, "Pai santo". N o AT, Deus é denom inado
de "o Santo" (de Israel), e é invocado como santo nas orações judaicas:
"Ó Senhor santo de toda santidade" (2Mc 14,36); "Ó Santo entre os san-
tos" (3Mc 2,2), já m encionam os acima o em prego da D id a q u ê 10,2.
g u a r d a . Literalmente, "guarda-os"; os discípulos guardaram a palavra do
Pai (6), assim Jesus roga ao Pai que os guarde. Guardá-los significa guar-
dá-los da contam inação do m undo (ljo 2,1517‫)־‬.
c o m 0 te u n o m e . Literalmente, "em teu nome"; o "em" é, respectivamente,
local e instrum ental: eles tinham de ser, respectivamente, m arcados e
protegidos pelo nom e divino que foi dado a Jesus. P66‘ traz "em m eu
nom e" aqui e no v. 12.
q u e m e d e s te . O tem po perfeito do verbo deve ser preferido ao aoristo que apa-
rece em alguns mss.; o nome foi dado no passado, m as ainda é possuído por
Jesus. Um problema mais importante diz respeito ao antecedente do prono-
me relativo "que". As melhores testemunhas textuais, inclusive P66, têm o
1168 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

dativo neutro do singular, e isto significa que "teu nom e" é o antecedente.
Um grande núm ero de m anuscritos posteriores e m enos confiáveis tem
um relativo m asculino plural, cujo antecedente é "eles", a saber, os disci-
pulos. Temos adotado a prim eira redação, enquanto que SB e NEB ado-
taram a segunda (RSV é ambígua). É bem provável que a segunda reda-
ção represente um esforço dos copistas para harm onizar este versículo
com os vs. 2, 6 e 9 que falam de hom ens sendo dados po r Deus a Jesus.
A redação que temos seguido faz os vs. 11 e 12 os únicos exem plos em
João onde se lê que Deus deu o nom e (divino) a Jesus. Têm havido di-
versas tentativas de resolver a diversidade de redação. B urney sugeriu
que um relativo aramaico am bíguo foi entendido de duas m aneiras di-
ferentes. H uby, a r t . c i t . , tem argum entado que a redação original era o
pronom e neutro no acusativo singular (encontrado em Bezae*), m as que
se referia aos discípulos (um caso de tendência joanina ao uso de neutro
coletivo para um a ideia m asculina plural).
[p a r a q u e s e ja m u m , c o m o n ó s ] . Toda a sentença é om itida em P66’, OSsin, OL,
versões coptas e talvez T aciano - um a im portante com binação de teste-
m unhas textuais. O tem a da unidade é m ais fam iliar na terceira u nidade
da oração (veja 21-23) do que é aqui. O Codex Vaticanus e alguns m a-
nuscritos secundários acrescentam "tam bém " a "com o nós". João usa
o neutro h ê n para "um "; e B arrett, p. 424, interpreta isto no sentido de
que os discípulos não fossem guardados unidos, m as com o unidade.
E interessante que João não utilize noção abstrata para "unidade",
h e n õ t ê s , encontrado em Ef 4,3.13, e frequentem ente em I nácio de An-
tioquia.
12. o s g u a r d a v a ... m a n t i v e s e g u r o s . Os verbos são f ê r e i n e p h y l a s s e i n .
Aqui, Jesus tem feito por seus discípulos o que a Sabedoria fez por
Abraão, em conform idade com Sb 10,5: "Ela encontrou o hom em jus-
to e o guardou [f ê r e i n ] irrepreensível diante de Deus e o preservou
[p h y l a s s e i n ] resoluto...".

e m te u n o m e , q u e m e d e s t e . As testem unhas textuais estão divididas sobre o


pronom e relativo em boa m edida da m esm a m aneira que se dividiram no
v. 11.0 Codex Sinaiticus* e a OSsin om item toda a sentença; assim faz P66*
(K. A land, NTS 10 [1963-64], 67). B ultmann omite a sentença em sua re-
construção da seção poética da Fonte do Discurso de Revelação.
n e m u m d e le s s e p e r d e u . Em 3,16, afirmou-se que Deus deu ao Filho "para
que todos os que creem nele não pereçam"; em 10,28, Jesus disse d e suas
ovelhas "Jamais perecerão. Ninguém as arrebatará de m inha m ão"; em
6.39 diz também: "A vontade daquele que m e enviou é que eu n ada per-
ca do que Ele m e deu".
58 · O último discurso: - Terceira seção (segunda unidade) 1169

exceto àquele que tinha que perder-se. Literalmente, "o filho da perdição"; a pa-
lavra "perdição" é da mesma raiz grega que "perecer". N o NT, "perdição"
frequentemente significa condenação (Mt 7,13; Ap 17,8); e assim "o filho
da perdição" se refere àquele que pertence ao âmbito da condenação e está
destinado à destruição final. Embora, como tem salientado F. W. D anker,
NTS 7 ( 1 9 6 0 9 4 ,(61‫־‬, este tipo de frase possa ser encontrado no grego clás-
sico, quase certamente estamos tratando com um semitismo. R. E. M urphy,
Biblica 39 (1958), 664, sugere que a frase grega de João traduz ben Sahat;
pois enquanto Sahat possa referir-se ao poço do Sheol, no hebraico de
Q um ran ela significa "corrupção" e é um sinônimo para ’ãuiel, "perver-
sidade", um termo usado no dualismo de Q um ran para descrever a esfe-
ra oposta ao bem (vol. 1, p. 57). A frase "o filho da perdição" é usada em
2Ts 2,3 para descrever o anticristo que vem antes da parousia. E interes-
sante que na escatologia realizada joanina "o filho da perdição" aparece
durante o ministério de Jesus antes de seu retom o ao Pai. Se isto é uma
modificação intencional da expectativa apocalíptica é difícil dizer; veja vol.
30 da Anchor Bible para nossa discussão da abordagem joanina sobre o an-
ticristo em relação a IJo 2,18.20. Evidentemente, no evangelho a referência é
a Judas como o instrum ento de Satanás. Em 6,70, Judas é descrito como um
diabo; e em 13,2.27.30 somos informados que Satanás entrou no coração de
Judas, e que ele saiu para o reino das trevas a fim de trair Jesus.
a fim de. A m entalidade na qual se im aginou que as coisas aconteceram no
m inistério de Jesus a fim de se cum prir o que fora predito na Escritura é
descrito no vol. 1, pp. 782-83. Não fica claro se esta últim a linha do v. 12
é apresentada pelo autor joanino como as próprias palavras de Jesus ou
como um a observação pelo próprio autor. Exemplos de am bas as práti-
cas são encontrados em João; com pare 13,19 com 12,14-15.
a Escritura. Presum ivelm ente, está implícita um a passagem particular.
Evidentem ente, os prim eiros cristãos rapidam ente saíram em busca de
passagens veterotestam entárias para explicar a traição de Judas, pois os
relatos distintos da m orte de Judas destacam um pano de fundo vetero-
testam entário. A t 1,16-20 alega que o Espírito Santo falara de antemão
sobre Judas e cita explicitamente SI 69,26(25), 109,8. Mt 27,3-10 cita im-
plicitam ente um princípio legal sobre não usar dinheiro contam inado
na casa do Senhor (cf. Dt 23,19[18], e na sequência se faz um a citação
explícita, m as livre de Zc 11,12-13 sobre as trintas m oedas de prata,
talvez com binando-a com um a passagem de Jeremias (32,6-15?). Nos-
sa única chave para a passagem que João tem em m ente é que a des-
crição da traição de Judas em 13,18 cita explicitamente o SI 41,10(9).
Se esta últim a linha de Jo 17,12, com sua referência a "a Escritura",
1170 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

é um a adição explicativa em prosa ao hino do cap. 17 (como era o v. 3),


então o redator que a inseriu podería ter se referido a 13,18. F reed, OTQ,
p. 97, aponta p ara a possibilidade de que a passagem do AT, em m ente,
não é a que prediz traição, e sim a que usa da expressão "o filho da per-
dição", daí que a versão da LXX de Pr 24,22a (a única ocorrência no AT
- "filhos da perdição" aparece em Is 57,4). A opinião de F reed de que "a
Escritura" não é aqui palavras do AT, e sim palavras de Jesus em 6,70-71
não achamos plausível.
13. Mas agora. L aurentin, art. cit., indica que, com seu nyn inicial, o v. 13 lem-
bra o v. 7 e usa esta observação como a chave para sua divisão do capítulo
(p. 1154 acima). No entanto, na essência do pensam ento o v. 13 (primeiras
duas linhas) é m uito mais próxim o do v. 11.
tudo isto. Literalmente, "estas coisas"; presum ivelm ente, está em p au ta a
prim eira parte da oração, e não todo o últim o discurso.
tenham em si minha plena alegria. Cf. 15,11: "Tenho-vos dito isto, para que
m inha alegria perm aneça em vós, e vossa alegria seja com pleta"; 16,24:
"Pedi e recebereis, para que vossa alegria seja completa". N o m om ento,
seus corações estão cheios de tristeza (16,6). A alegria plena é um conceito
escatológico que aparece nos escritos rabínicos (B ultmann, p. 38 8 ).
14. tua palavra. Aqui se usa, o singular logos; veja nota sobre "palavras" no v. 8.
0 mundo os odiou. Temos am enizado a construção com aoristo; esta cons-
trução certam ente está escrita da perspectiva tem poral do autor. Q uase o
m esm o pensam ento e expressão se encontram em 15,18-19; note o tem po
presente ali.
não pertencem ao mundo. Literalmente, "não são do m undo". N o pensam en-
to joanino, o cristão é gerado de cima e é de Deus (3,3-6; 1,13). Os discípu-
los foram escolhidos do m undo (15,19). A carta a Diogoneto (6,3), do final
do 2a século, parece apoiar a João: "Os cristãos vivem no m undo, porém
não pertencem ao m undo".
[como eu não sou do mundo]. Isto é om itido por P66‘ e im portantes m anus-
critos ocidentais. Teria sido om itido por parecer redundante em face do
v. 16? A últim a hipótese parece m ais plausível.
15. os tire do mundo. Schlatter, p. 3 2 3 , m o stra b ons p aralelo s rab ín icos p a ra as
exp ressões u sa d a s e m am b as as linhas d este versículo.
que os guardes do Maligno. A palavra poriêros, "Maligno", é passível de ser tra-
duzida como um a noção abstrata, "o mal"; mas na analogia de ljo 2,13-14;
3,12; 5,18-19, é bem provável que a intenção fosse um a aplicação pessoal
ao diabo. O Maligno é o Príncipe deste mundo, pois ljo 5,19 diz: "O m un-
do inteiro está sob o Maligno". Esta linha é o paralelo joanino à petição na
versão mateana da Oração do Senhor: "Livra-nos do Maligno" (Mt 6,13 -
58 · O último discurso: - Terceira seção (segunda unidade) 1171

frequentem ente, porém com não m uita exatidão, traduzido por "Livra-
nos do mal"). A petição precedente em M ateus que trata da provação
("tentação") final m ostra que está em pauta um livram ento no fim dos
dias. A petição de João é em term os de escatologia realizada; ela roga por
proteção enquanto os discípulos estiverem no m undo. Ap 3,10, por outro
lado, é em term os de escatologia final: "Porque tens guardado a m inha
palavra... eu te guardarei seguro da hora da provação que há de vir sobre
o m undo inteiro", ljo 2,13-14 ilustra a concessão da petição expressa por
Jesus no presente versículo, pois ali os jovens cristãos são informados
que já venceram o Maligno.
16. Exceto por um a leve m udança na ordem das palavras, este versículo é o
m esm o que as últim as duas linhas do v. 14. Juntam ente com outros ma-
nuscritos, P66 (corretor) suprim e todo o versículo.
17. Consagro-os. Literalmente, "santifica"; há um eco de "Pai santíssimo" no v. 11.
na verdade. O artigo (faltando quando a frase é repetida no v. 19) significa
que a expressão não é sim plesm ente adverbial: "verdadeiram ente, con-
sagra-os". A "verdade" tem eficácia; cf. 8,32: "a verdade vos libertará".
Aqui, "verdade" é tanto a agência da consagração como a esfera em que
são consagrados; o "em " significa, respectivamente, "por" e "para".
,a tua palavra é a verdade'. O Codex Vaticanus e alguns manuscritos do texto
de Taciano trazem um artigo antes de "verdade"; a tradição bizantina tem
u m "tu " com fim de esclarecer antes de "verdade". A passagem é idêntica
à form a que a LXX dá ao SI 119,142 como encontrado no Codex Sinaiticus;
o TM e as outros manuscritos da LXX dizem o versículo do salmo como
"tua lei é verdade". Estaria João citando um a forma variante do salmo co-
nhecido no prim eiro século e ainda preservado no Códice Sinaiticus? Ou
a tradição sinaítica adapta o AT para conformar-se a João? Podemos men-
cionar que ser consagrado num a verdade que consiste na palavra divina
lem bra a ideia de ser purificado pela palavra de Jesus (15,3).
18. pois como me enviaste. Com base no pressuposto de que a citação (?) na última
parte do v. 17 é parentética, em 18 não começamos um a nova sentença, mas
fornecemos um "pois" para relacionar esta sentença kathõs com a primeira
parte do v. 17. (Compare a sentença kathõs do v. 2, que se relaciona com o
Pai glorificando o Filho no v. 1). A consagração na verdade não é simples-
m ente um a purificação do pecado (veja 15,3), mas é a consagração para
um a missão; estão sendo consagrados, porquanto estão sendo enviados.
também. A construção "como... assim " estabelece um paralelism o entre o
que o Pai tem feito para Jesus e o que Jesus faz para os discípulos. Em ou-
tras passagens no evangelho, este paralelism o aparece em relação com ã
vida (6,57), conhecimento (10,14-15), am or (15,9; 17,23) e unidade (17,22).
1172 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

eu os enviei. A família Ferrar de mss. minúsculos tem um tem po presente


aqui, mas esta é um a tentativa de copistas para am enizar a dificuldade
causada pelo aoristo. Da perspectiva da última ceia, em que momento ante-
rior Jesus enviou os discípulos? É arriscado referir-se aos episódios narrados
nos sinóticos (Mt 10,5; Lc 10,1) não registrados por João (a menos que se su-
ponha que estamos lidando com um antigo dito que foi preservado em João,
muito embora o incidente a que originalmente se referia não fosse preserva-
do). Esta é a mesma missão que foi mencionada em 4,38 (vol. 1, p. 401) em
referência à colheita espiritual entre os samaritanos? Mais provavelmente,
o tempo é da perspectiva temporal do evangelista e se refere à verdadeira
missão dos discípulos iniciada depois da ressurreição (20,21-22).
19. Eu me consagro. Um núm ero im portante de m anuscritos, inclusive P66,
om ite o pronom e enfático, "Eu"; m as o contexto confere um tom enfático
em qualquer caso. Em 10,36, foi dito que o Pai consagrou (passado) a
Jesus; aqui, Jesus é que se consagra - outro exemplo de um m esm o poder
com partilhado pelo Pai e por Jesus (vol. 1, p. 687).
na verdade. Na maioria das testem unhas textuais, a frase ocorre depois do par-
ticípio "consagrou", m as aparentem ente antes dela em P66. 0 uso de "ver-
dade" sem o artigo depois da preposição "em " é com um no estilo joanino
(ljo 3,18; 2Jo 1,3 etc.; veja BDF, §258). O significado aqui realm ente não é
distinto do significado da frase com o artigo no v. 17; aqui, porém , "ver-
dade" é m ais a esfera da consagração dos discípulos do que a agência
dessa consagração - a consagração que Jesus faz de si m esm o é o agente
na consagração dos discípulos (cf. J. Reid, ET 24 [1912-13], 459-60).

C O M E N T Á R IO

Versículos 9-16: Os discípulos e 0 mundo

C o m o p a n o d e fu n d o p a ra este p e d id o p a ra q u e o P ai o g lo rifiq u e,
Jesus m en c io n o u su a o b ra e n tre os h o m e n s q u e lhe fo ra m d a d o s p e lo
Pai: ele re v e lo u a g ló ria d e D eu s e n tre eles (v. 4); rev e lo u -lh e s o n o m e
d e D eu s (6); e d e u -lh e s as p a la v ra s d e D e u s (8). A g o ra, e m s u a o ração ,
ele v o lta a in clu ir estes m esm o s h o m en s e m se u p e d id o a s e u Pai.
A m o d o d e p a ra lelo , n o te-se q u e n o rela to q u e L ucas faz d a ú ltim a
ceia Jesu s o ra p o r u m d o s d isc íp u lo s, S im ão P e d ro , e re v e la s u a p re o -
c u p a çã o p e lo s o u tro s, p a ra q u e estiv essem a rm a d o s p a ra e n fre n ta r a
lu ta q u e se a p ro x im a (Lc 22,32.36).
58 · O último discurso: - Terceira seção (segunda unidade) 1173

A o raç ã o e m fa v o r d e se u s d isc íp u lo s (9) é u m a ex ten são d a ora-


ção e m q u e p e d e p o r s u a p ró p ria glorificação (1); p o is é n a p ersev e-
ra n ç a e m issã o d e ste s d isc íp u lo s q u e o n o m e d e D eu s, d a d o a Jesus,
s e rá g lo rific ad o n a terra. C o m o Jesus d iz n o v. 10, "é n eles q u e ten h o
sid o g lo rific ad o ". O tem a d e o p o sição e n tre os d isc íp u lo s e o m u n -
d o , p ro e m in e n te n a s e g u n d a seção d o ú ltim o d isc u rso (esp ecialm en te
e m 15,18-16,4a), a g o ra a p a re c e n a o ração final d e Jesus. O s d iscíp u lo s
tê m d e se r d e ix a d o s n o m u n d o (11); p o ré m n ã o p e rte n c e m ao m u n d o
(18,36). P o rq u e são co m o q u e e stra n h o s n o m u n d o , a p ró p ria p resen -
ça d e le s p ro v o c a d istú rb io . Jesus lh es d e u a p a la v ra d e D e u s (14) e os
e n v io u ao m u n d o (18), m a s o m u n d o re a g irá com ó d io (14).
C o m o é p o ssív el conciliar a id eia d e q u e Jesus en v ia os discípulos
ao m u n d o c o m su a recu sa d e o ra r p elo m u n d o (9)? H á q u e m a m enize a
d u re z a d e " n ã o ro g o pelo m u n d o " , c o m p re e n d e n d o isto n o sen tid o d e
q u e n a ú ltim a ceia Jesus está em co n tato so m en te com seu s discípulos,
d e ix a n d o d e lad o (p o rém n ã o rejeitando) o m u n d o p o r u m m om ento
(Schwank , ‫ ״‬Für sie", p. 488). A a titu d e d o Jesus joanino co stu m a ser in-
te rp re ta d a à lu z d a trad ição sinótica o n d e Jesus insiste em q u e se deve
o ra r p e lo s in im ig o s (M t 5,44; tam b é m Lc 23,34) e atrav és d o im perati-
v o p a u lin o d e q u e se d e v e o ra r p o r to d o s os h o m en s (lT m 2,1). M as
tais esforços p a ra a m e n iz a r Jo 17,9 n ã o fazem justiça ao d u a lism o joani-
no. N o início d o m in istério , Jesus disse q u e D eu s d e tal m o d o a m o u o
m u n d o q u e d e u seu F ilho u n ig ên ito (3,16). E n tretan to , a v in d a d o Filho
p ro v o c o u ju ízo (3,18-19), d e tal m o d o q u e "o m u n d o " ch eg o u a perso-
n ificar os q u e tê m se a p a rta d o d e Jesus e estão sob o p o d e r d e S atanás
( ljo 5,19), o p rín c ip e o u líd er d o m u n d o (12,31; 14,30). O m u n d o já foi
c o n d e n a d o n a p esso a d e se u p rín c ip e (16,11); e assim o m u n d o não
d e v e receb er in tercessão, e sim ser co n v en cid o d e su a m a ld a d e (16,8-11)
e v e n c id o ( ljo 5,4-5). B arrett, p. 422, ex p ressa b e m a p ersp ectiv a joani-
na: "... a ú n ica esp eran ça p a ra o kosmos é p recisam en te q u e ele deixasse
d e ser o kosmos". O m u n d o h á d e p a ssa r ( ljo 2,17).
Se o s d isc íp u lo s são e n v ia d o s a o m u n d o , é p a ra o m esm o p ro -
p ó sito p a ra o q u a l Jesus foi e n v ia d o ao m u n d o - n ã o p a ra m u d a r o
m u n d o , e sim p a ra d e sa fia r o m u n d o . E m c a d a g eração h á n a te rra u m
g ru p o d e h o m e n s c o n fiad o s p o r D e u s a Jesus, e a tarefa d o s d iscíp u lo s
é s e p a ra r estes filhos d a lu z d o s filhos d a s tre v a s q u e os cercam . O s
q u e são c o n fia d o s a Jesu s rec o n h e c erã o su a v o z em e a tra v é s d a m is-
sã o d o s d isc íp u lo s e se u n irã o p a ra ser u m a só coisa (final d o v. 11).
1174 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

E sta c o m u n id a d e d e cristãos será o d ia d a p e lo m u n d o , m a s Jesus


n ã o q u e r q u e sejam p o u p a d o s d e sta h o stilid ad e. P a ra q u e a p ro fu n d i-
d a d e d e seu a m o r se m anifeste, Jesus m esm o n ã o d eix ará o m u n d o sem
en fren tar a h o stilid a d e d e se u p rín c ip e (14,30-31). D e m o d o sem elh an -
te, cad a u m d e seu s se g u id o re s d e v e e n fre n ta r o M aligno (17,15; cf.
l jo 2,15-17 so b re as sed u çõ es d o m u n d o ) se e v e n tu a lm e n te ele estiv er
com Jesus (17,24). Jesus sabe q u e seu s se g u id o re s n ecessitam d e auxílio
n esta peleja escatológica, u m a peleja d e fla g ra d a n ã o n o A rm a g e d o m
(A p 16,16), m as n a alm a d e cad a h o m em . C o n se q u e n te m en te , Jesus
p e d e a D eu s q u e g u a rd e os d iscíp u lo s e m se g u ra n ç a co m o n o m e di-
v ino q u e lh e foi d a d o (17,11). O p o d e r p ro te to r d o n o m e d e D e u s é u m
tem a ju d aico já a te stad o e m P r 18,10: "O n o m e d o S en h o r é u m a to rre
forte; o ju sto co rre p a ra ela e vive seg u ro ". Se estam o s certos e m afirm a r
q u e p a ra João o n o m e é egõ eim i, "E U SO U ", tem o s e m Jo 18,5-8 u m
ex em p lo d e com o este n o m e p ro te g e os discípulos; p o is q u a n d o Jesus
d iz egõ eim i, o s q u e v ie ra m p a r a p r e n d ê - lo c a e m im p o te n te s , e Je-
s u s p e d e q u e d eix em ir sem d a n o a lg u m a seu s discípulos.
E sta a titu d e p a ra com o m u n d o choca m u ito s a cristão s m o d e rn o s
com o se n d o e stra n h a e in clu siv e u m a d isto rção d o v e rd a d e iro a p o sto -
lad o cristão. E m u m a época e m q u e se v a lo riza o co m p ro m isso e m q u e
os h o m en s estão c o n sid e ran d o a fu n ção d a Igreja n o m u n d o m o d e rn o ,
a recu sa d o Jesus jo an in o d e o ra r p e lo m u n d o co n stitu i u m escân d alo .
E, n o e n ta n to , a h o stilid a d e p a ra com o m u n d o n o N T n ã o é exclusivi-
d a d e d e João. Tg 4,4 d iz ao s cristãos: "Ser am ig o d o m u n d o e q u iv a le a
ser in im ig o d e D eus". E m G 11,4, P au lo d iz q u e C risto se e n tre g o u p a ra
liv rar os h o m en s d a p re se n te era m á. N a tu ra lm e n te , a d esco n fian ça
p o r u m m u n d o q u e é v isto com o m a u n ã o esg o ta a m en sa g e m d o N T ,
e h á m u itas p a ssa g e n s q u e in cu lcam o c o m p ro m isso com o m u n d o .
M as se os cristão s creem q u e a E scritura exerce certo p o d e r p a ra ju lg a r
e corrigir, en tã o as ú ltim a s p a ssa g e n s são m ais significativas e m tem -
p o s em q u e a Igreja te n d e a afastar-se d o m u n d o , e n q u a n to p a ssa g e n s
tais co m o as q u e tem o s e n c o n tra d o em João têm u m a m e n sa g e m p a ra
u m a e ra q u e se to m a in g e n u a m e n te o tim ista so b re m u d a r o m u n d o o u
inclusive a firm a r seu s v alo res sem n e c essid ad e d e m u d a n ç a . (Sobre o
conceito jo an in o d e m u n d o , veja vol. 1, p p . 809-10).
C o n clu in d o , p o d e m o s n o ta r q u e a certeza d e e n c o n tra r h o stilid a d e
n o m u n d o n ã o tem p o r objetivo en tristecer os d iscípulos. A p ro m e ssa
d e p ro te ç ã o d iv in a feita p o r Jesu s c o m p e n sa rá a triste z a e c o n d u z irá
58 · O último discurso: - Terceira seção (segunda unidade) 1175

a a le g ria d o s d isc íp u lo s à p le n itu d e (13). O te m a d a aleg ria e m m eio


à h o s tilid a d e d o m u n d o a p a re c e u d u a s v e z es n a s e g u n d a seção d o
ú ltim o d isc u rs o (veja p . 1070 acim a). E v id e n te m e n te , esta com bina-
ção p a ra d o x a l foi u m m o tiv o cristão fre q u e n te ; p o r ex em p lo , M t 5,11:
"B e m -a v e n tu ra d o s sois q u a n d o o s h o m e n s v o s in ju ria rem e v o s p e r-
se g u ire m ... p o r m in h a c a u sa "; lT s 1,6: "re c e b e n d o a p a la v ra e m m u ita
trib u la ç ã o , co m a ale g ria d o E sp írito S anto".

Versículos 17-19: A consagração dos discípulos e de Jesus

N o v. 11 Jesus se d irig e a se u P ai com o "san to ". P ara a m en ta lid a d e


ju d aic a, isto su g e riría algo so b re a sa n tid a d e a ser e sp e ra d a d o s disci-
p u lo s p o r q u e m Jesus está o ran d o , p o is o p rin cíp io d e Levítico (11,44;
14,2; 20,26) é q u e os h o m en s se to m e m san to s, p o rq u e D eus é santo.
O fato d e q u e os d iscíp u lo s p e rte n ç a m a D eu s (9) é a raz ã o p a ra q u e se
m a n te n h a m se p a ra d o s d o m u n d o , visto q u e n a m en ta lid a d e d o AT a
s a n tid a d e d e D e u s é o p o sta ao q u e é secular e pro fan o . O tem a d a santi-
d a d e d o s d iscíp u lo s se to rn a explícito n o v. 17, o n d e se p e d e a o P ai q ue
os co n sag re (os santifique) n a v e rd a d e . E m p a ssa g e n s an terio res tem os
sid o in fo rm a d o s q u e o P ai é sa n to e co n sag ro u a Jesus e o en v io u ao
m u n d o (10,36). A g o ra Jesus, o S anto d e D eus (6,69), q u e r os discípulos
c o n sag ra d o s e e n v ia d o s ao m u n d o (18). C om o já en fatizam o s n a s notas,
a co n sag ração d o s d iscíp u lo s é d irecio n ad a p a ra su a m issão (M orrison ,
art. cit., en fatiza isto). Isto está em h a rm o n ia com o q u e o A T enten-
d e p o r co n sag ração; p o r exem plo, d iz-se q u e M oisés, q u e h av ia sido
c o n sa g ra d o p o r D eu s (texto g reg o d e Eclo 45,4), recebe em Ex 28,41 a
o rd e m d e co n sag ra r o u tro s p a ra q u e pudessem servir a D eus com o sa-
cerd o tes. O s d iscíp u lo s tin h a m d e ser co n sag rad o s p a ra q u e p u d e sse m
se rv ir co m o ap ó stolos, isto é, com o enviados.
E m p a rtic u la r, os d isc íp u lo s tin h a m d e ser c o n sag ra d o s n a v e rd a -
d e, q u e é a p a la v ra d e D eus. N a o ração ju d aic a c o m u m (StB, II, 566),
era p ro c la m a d o q u e D e u s santifica (consagra) ao s h o m en s atra v és d e
se u s m a n d a m e n to s - u m a id eia q u e é p a rc ialm en te se m e lh an te ao pen -
sa rn e n to d e João, v isto q u e p a ra João " p a la v ra " e " m a n d a m e n to " são
p ra tic a m e n te in tercam b iáv eis (nota so b re 14,21). É tam b é m in teressan -
te u m a o raç ã o ju d aic a d o A n o N o v o citad a p o r W estcott, p . 245: "P u-
rifica n o sso s corações p a ra te serv irm o s em v e rd a d e . T u, ó D eus, és a
v e rd a d e [Jr 10,10], e tu a p a la v ra é a v e rd a d e e p e rm a n e c e p a ra sem p re".
1176 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

Devemos ter em m ente que na teologia joanina Jesus é tanto a Palavra


como a V erdade (14,6), de m odo que um a consagração na verd ad e que
é a palavra de D eus vem a ser sim plesm ente um aspecto d e pertencer a
Jesus (e, naturalm ente, pertencer a Jesus é pertencer a D eus [17,10] que
é santo). Os discípulos têm aceitado e gu ard ad o a palavra que Jesus lhes
trouxe da parte de D eus (17,6.14); esta palavra os tem purificado (15,3);
agora ela os separa p ara um a m issão de com unicá-la a outros (17,20).
É curioso que na oração do cap. 17 que se ocupa do futuro dos dis-
cípulos não há menção do Parácleto/Espírito que será o fator m ais im-
portante nesse futuro. Todavia, especialmente na teologia ortodoxa orien-
tal, a oração tem sido interpretada em term os do papel do Espírito Santo
(P. E vdokimov, Verbum Caro 14 [I960], 250-64). A lguns exegetas veem em
particular um a referência implícita ao Espírito no tem a de consagração
na verdade que é a palavra de Deus. Frequentem ente no evangelho te-
mos visto um a semelhança entre a obra d a palavra revelatória de Jesus e
a obra do Espírito (vol. 1, pp. 394-95). Pode ser que "verdade" em 17,17
se destina a ser identificada não só com a palavra de Deus, m as tam bém
com o Parácleto que é o Espírito da Verdade. Se os discípulos hão de ser
santificados na verdade, então esta é a esfera do Espírito Santo, o Parácleto
(14,26) que faz a palavra de Jesus inteligível. A associação destas idéias se
encontra em 2Ts 2,13: "Deus vos escolheu desde o princípio para serdes
salvos através da santificação pelo Espírito e fé na verdade".
N o últim o versículo da u n id ad e (v. 19), descobrim os que Jesus
está não só pedindo ao Pai que consagre os discípulos na verdade, m as
tam bém consagrando a si m esm o para esse propósito. Em que consiste
esta auto-consagração de Jesus? N o AT, tanto hom ens com o anim ais
são consagrados. Em particular, os profetas e sacerdotes são consagra-
dos para um a tarefa especial. U m exem plo de consagração profética
se encontra nas palavras de D eus a Jerem ias (1,5): "A ntes que saísses
do ventre eu te consagrei; eu te designei profeta às nações" (tam bém
Eclo 49,7). O profeta tinha de ser santificado, p o rq u e ele era o po rtad o r
da palavra de Deus. Referências à consagração de sacerdotes se encon-
tram em Ex 40,13; Lv 8,30; 2Cr 5,11. Estes exem plos de consagração
profética e sacerdotal são u m bom pano de fundo p ara Jo 10,36, onde
lemos que o Pai consagrou a Jesus e o enviou ao m undo; são m enos
apropriadas p ara a interpretação de 17,19, onde Jesus se consagra a si
mesmo. A qui podem os estar m ais perto da ideia de consagrar vítim as
sacrificiais (Dt 15,19).
58 · O último discurso: - Terceira seção (segunda unidade) 1177

Estaria Jesus pensando em sua auto-oferta na m orte pelos discípulos


quando diz "É por eles que eu m e consagro a mim m esm o"? A frase "por
[hyper] eles" pod e pressupor a m orte, como vem os pelo uso de hyper ao
longo do evangelho. Em 11,51, Jesus há de m orrer pela nação; em 10,11,
o bom pastor renuncia sua vida por suas ovelhas; em 15,13, Jesus fala de
renunciar sua própria vida por aqueles a quem ama. (Também em outras
passagens do NT; p o r exemplo, Rm 8,32: "Aquele que não p o upou a seu
próprio Filho, m as, antes, o entregou por todos nós"). A solene autori-
d ad e do "m e consagro a m im m esm o" pode ser com parado com o tom
de 10,17-18: "Porque dou a m inha vida... eu de m im m esm o a dou". Se a
auto-consagração de Jesus for relacionada com a consagração e envio dos
apóstolos, o envio não ocorre até depois da m orte e ressurreição de Jesus
(20,21). E se a consagração dos discípulos na verdade, envolve o Espírito
Santo, então o Espírito não é dado até depois da m orte e ressurreição de
Jesus (20,22). Assim, é plausível que, quando em 17,19 Jesus fala de auto-
consagração, devem os pensar nisso não só como a encarnação da Palavra
de D eus consagrada pelo Pai, m as tam bém com o sacerdote que se ofe-
rece com o vítim a por aqueles que Deus lhe confiou. O tem a sacerdotal
aparentem ente reaparece no cap. 19 (veja p. 1373 abaixo).
Já m encionam os que a oração sum o sacerdotal de Jo 17 tem um a
atm osfera não m uito diferente daquela d a C arta aos H ebreus, onde Je-
sus é retratado com o sum o sacerdote celestial, que faz intercessão pelos
hom ens. Em H b 9,12-14, descobrim os que Jesus se ofereceu com o um a
vítim a sacrificial, pensam ento este que pode corresponder a Jo 17,19.
Podem os m encionar ainda o paralelo com Jo 17 em H b 2,10-11. Ali o au-
tor fala d e Jesus se aperfeiçoando através do sofrim ento, e isto lem bra
a ideia que João tem de Jesus sendo glorificado através de seu retorno
ao Pai. O autor de H ebreus descreve Jesus com o aquele que consagra
(ou santifica), enquanto os cristãos são irm ãos de Jesus a quem ele con-
sagrou. A ideia é reiterada em H b 10,10: "Tem os sido consagrados atra-
vés do sofrim ento do corpo de Jesus Cristo um a vez p o r todas". Jo 17,19
tem Jesus se consagrando, aparentem ente com o vítim a, de m odo que
seus discípulos possam ser consagrados - seus discípulos, por outro
lado, são u m só com Jesus (11,12,21-23). Veja tam bém vol. 1, p. 693.

[A Bibliografia p ara esta seção se acha inclusa n a Bibliografia


p a ra o cap. 17, no final do §59.]
5 9 .0 ÚLTIMO DISCURSO:
- TERCEIRA SEÇÃO (TERCEIRA UNIDADE)
(17,20-26)

Jesus ora p o r aqueles q u e crerem n ele através


da palavra dos discípulos

17 20‫ ״‬T o d av ia, n ã o ro g o so m e n te p o r estes,


m a s ta m b é m p o r a q u e le s q u e c re re m e m m im
a tra v é s d e s u a p a la v ra ,
21p a ra q u e to d o s sejam u m ,
assim co m o tu , ó P ai, e stá e m m im e e u em ti,
p a ra q u e sejam [um ] e m n ó s,
assim o m u n d o creia q u e tu m e en v iaste.
22E u lh es te n h o d a d o a g ló ria q u e m e te n s d a d o ,
p a ra q u e sejam u m ,
assim co m o so m o s u m ,
23e u n eles e T u e m m im ,
p a ra q u e sejam p e rfe ito s e m u n id a d e .
A ssim o m u n d o co n h eça q u e tu m e e n v ia ste
e q u e os a m a ste, a ssim co m o tu m e am aste.
24Pai, eles são tu a d á d iv a p a ra m im ; q u e ro q u e,
o n d e e u e sto u ,
q u e ta m b é m eles estejam com igo,
p a ra q u e v ejam m in h a g ló ria q u e m e d este,
p o rq u e m e a m a ste a n te s d a criação d o m u n d o .
59 · O último discurso: - Terceira seção (terceira unidade) 1179

25Ó P ai ju stíssim o ,
e n q u a n to o m u n d o n ã o te co n h eceu
(a in d a q u a n d o e u te conheci),
E stes h o m e n s v ie ra m a co n h e ce r q u e m e en v iaste.
26E a eles e u fiz te u n o m e con h ecid o ;
e c o n tin u a re i a fazê-lo co n h ecid o
p a ra q u e o a m o r co m q u e m e te n s a m a d o esteja neles
e e u n e le s esteja".

NOTAS

17.20. rogo. O verbo erõtan aparece no início desta seção, assim como se deu
no início da últim a seção (v. 9).
aqueles que crerem. Se a perspectiva tem poral é a da últim a ceia, este par-
ticípio presente é proléptico, com valor de futuro (BDF, §339/2b; ZGB,
§283), um uso que pode refletir um semitismo. Se a perspectiva tem poral
é a do autor joanino, os crentes são um a realidade atual.
em mim através de tua palavra. N o texto grego, a prim eira destas duas frases
segue a segunda; assim, seria possível traduzir assim: "creem através da
palavra deles sobre m im ". A ideia não está m uito longe do que se diz em
Rm 10,14; Hb 2,3-4.
21. H á u m notável paralelism o gram atical entre as seis frases que formam
os vs. 20-21 e as seis frases que form am os vs. 22-23. Em particular, note
o seguinte:

21a [hina] para que todos sejam um


21b [kathõs] assim como tu, ó Pai, está em m im e eu em ti
21c [hina] para que sejam [um] em nós
21d [hina] assim o m undo crerá que tu m e enviaste

22b [hina] para que sejam um


22c-23 [kathõs] assim como somos um , eu neles e Tu em m im
23b [hina] para que sejam perfeitos em unidade
23c [hina] Assim o m undo conheça que m e enviaste

C ada u m desses blocos de quatro linhas consiste de três sentenças que come-
çam com hina com um a sentença com kathõs separando a primeira frase da
segunda. A prim eira e segunda sentença com hina em cada um a envolve
1180 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

a unidade dos crentes. Enquanto a terceira fala do efeito que isso terá no
m undo. A segunda sentença com hina não repete m eram ente a primeira,
mas desenvolve a noção de unidade. A sentença com kathõs em cada blo-
co apresenta aos crentes o modelo da unidade de Jesus e o Pai. Randall,
p. 141, analisa exemplarmente este paralelismo.
assim como tu. Kathõs tem aqui, respectivamente, um a função com parativa
e causativa (BDF, §4532): a unidade celestial é tanto o m odelo como a fon-
te da unidade dos crentes. N o quarto século, os ortodoxos tendiam a usar
Jo 10,30 ("O Pai e eu somos um ") como um argum ento contra os arianos.
Estes replicaram fazendo uso deste versículo para provar que a unidade
do Pai e o Filho é o mesmo tipo de unidade que existe entre os crentes, a
saber, unidade moral. Entretanto, como indica Pollard, art. cit., João não
não coloca como modelo a unidade celestial com base na unidade terrena,
e sim vice-versa.
tu, ó Pai, está em mim e eu em ti. N a últim a frase do v. 11 a com paração
oferecida para a unidade dos discípulos foi sim plesm ente "assim como
nós". Aqui, a comparação é delineada com detalhe, e descobrim os que
o m odelo de unidade é a habitação m útua de Pai e Filho. N ão há razão
para pensar que a unidade proposta no v. 11 ("para que sejam um , assim
como nós") é um tipo diferente de unidade daquela proposta aqui, a
despeito da tentativa de alguns de distinguir entre um a u nidade em fé e
um a unidade em Deus. Inácio, Efésios 5,1, se aproxim a m ais à linguagem
joanina: "Eu te considero tão abençoado como aquele que está unido a
ele [teu bispo] como a Igreja é com Jesus Cristo, e como Jesus Cristo é
com o Pai, para que todas as coisas sejam harm oniosas em uníssono".
sejam [um] em nós. Sobre bases m eramente textuais, a evidência para a omis-
são de "um " (Vaticanus, Bezae, OL, OSsin, aparentem ente P66) é mais es-
tranha do que a evidência para sua inclusão (Sinaiticus, tradição bizanti-
na, Vulgata, Peshitta). Se "um " é um a adição, provavelm ente venha dos
esforços dos copistas para conformar a segunda sentença com hina com
a primeira. Em contrapartida, o hen podería ter sido acidentalmente omi-
tido por um copista através de um tipo de homoioteleuton (en hêmin hen
õsin). O paralelismo destas sentenças com hina com aquelas dos vs. 22-23
favorece a inclusão, já que as segundas têm "um " em todos os versos. Com
ou sem o "um ", a segunda sentença com hina no v. 21 é um desenvolví-
mento sobre a prim eira, já que ela roga não só por unidade (primeira sen-
tença), mas também pela habitação divina.
Deve-se notar que para as prim eiras três linhas do v. 21 (as sentenças
com hina, kathõs, hina) O rígenes, em dez ocasiões, lê um texto m uito
mais breve: "Como eu e tu somos um , para que eles sejam um em nós".
59 · O último discurso: - Terceira seção (terceira unidade) 1181

É tentador descartar esta redação como um resum o livre do que se disse


nos vs. 11,21,22,23; m as a m esm a redação ocorre em m uitos dos Padres,
inclusive Jerônimo (dez vezes). Boismard, RB 57 (1950), 396-97, cita isto
como um exemplo onde os Padres preservam um a redação mais antiga e
m ais sucinta que podería ser original. Todavia, o cuidadoso paralelism o
das sentenças no v. 21 com as dos vs. 22-23 milita contra a aceitação da
redação m ais sucinta, em nosso juízo.
Assim 0 mundo creia. Literalmente, "para que o mundo...". É bem evidente que
a prim eira e segunda sentenças com him do v. 21 constituem o conteúdo
d a oração d e Jesus: ele está orando p o r u n id ad e e habitação. Acaso a ter-
ceira sentença com him seria tam bém parte d a oração ("Eu rogo... para
q ue o m u n d o creia que m e enviaste")? J. C. Earwaker, ET 75 (1963-64),
316-17, afirm a que sim; m as Bultmann, p. 3941, pensa que a terceira
sentença n ão se relaciona com "Eu rogo" - antes, ela expressa o obje-
to d a habitação m encionada na segunda sentença com him (p. 3944).
O p o n to de vista de Bultmann se adequa m elhor com o restante da
teologia joanina, onde Jesus não ora diretam ente pelo m undo. A uni-
d a d e e a habitação visíveis entre seus seguidores desafiam o m undo a
crer na m issão d e Jesus, e assim , indiretam ente, o m u n d o está incluí-
d o na oração de Jesus.
creia. Os melhores manuscritos, inclusive P66, têm um presente do sub-
juntivo, enquanto a tradição bizantina tem um aoristo, que é mais fá-
eil de entender. Bultmann, p. 3946, não vê diferença real de significado.
Entretanto, A bbott, JG, §§2524-26, 2511, indica que João é m uito estri-
to em observar a distinção entre os tempos presente e aoristo nas sen-
tenças com him; veja 10,38, onde em um a só linha o presente e o aoris-
to do mesmo verbo são usados com significados diferentes. Em §2528,
A bbott sustenta que o presente de pisteuein, nesta construção, implicaria
um a fé contínua, enquanto o aoristo se referiría à fé em seus começos e em
vias de formação. Em §2554, A bbott contrasta a sentença em 21d (= "para
que o m undo cresça em fé") com a sentença paralela em 23c que emprega
o aoristo (= "para que o conhecimento induza o m undo"). Se aceitarmos a
interpretação de A bbott, o v . 21d implica que o m undo já está crendo e que
Jesus está orando para que ele continue a crer. Tal atitude contraditaria
m uitas das outras afirmações do Jesus joanino sobre o m undo (16,33; 17,9).
Veja comentário. Sobre a questão como um todo, consulte H. Riesenfeld,
"Zu den johanneischen him-Sätzen", ST 19 (1965), 213-20.
que me enviaste. Este tem a foi envolvido na oração de 11,42.
22. eu lhes tenho dado... me tens dado. Segundo os m elhores m anuscritos, és-
tes dois verbos estão no tem po perfeito, não no aoristo. Jesus continua
1182 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

possuindo a glória que lhe foi dada pelo Pai, e os discípulos continuam
possuindo a glória que lhes foi dada por Jesus. Q uando Jesus lhes deu
esta glória? A oração no v. 1, "Glorifica a teu Filho para que o Filho te
glorifique", sugere que glória será dada depois da exaltação de Jesus, já
que o Filho glorifica o Pai através dos discípulos. Consequentem ente, os
tem pos do v. 22 parecem ser da perspectiva do tem po em que o autor
joanino está vivendo. Rm 8,30 faz a glorificação do cristão um a conse-
quência de sua justificação. N otam os que o tem a da glória ocorre nas três
unidades de Jo 17 (1,5,10,22).
assim como somos um. A comparação para a unidade na últim a frase do v. 11
foi "assim como nós"; no v. 21b foi "assim como tu, ó Pai, está em m im
e eu em ti". O presente versículo quase combina as duas comparações
anteriores.
23. para que sejam perfeitos em unidade. Literalmente, a última frase é "para um ".
O verbo é o passivo de teleioun, um verbo que foi usado ativamente no v. 4
(veja nota ali) quando Jesus falou de completar a obra dada pelo Pai para
ele realizar. O passivo é particularm ente comum em 1 João (2,5; 4,12.17.18),
onde se menciona que o am or de Deus é conduzido à com pletude ou per-
feição; note que o tema do am or aparece na última linha do presente ver-
sículo. Aparentemente, no pensam ento joanino os crentes devem ser leva-
dos à perfeição já nesta vida, pois esta perfeição deve exercer um efeito no
mundo. A m aneira de comparação, notam os que Paulo confessa que ele
ainda não se sente perfeito ou completo, m as prossegue, porque Cristo
Jesus já se apoderou dele (F13,12).
Assim 0 mundo. Podem os suscitar a m esm a questão sobre a terceira sen-
tença com hina nos vs. 22-23 que suscitam os sobre a terceira sentença
com hina no v. 21 (veja nota ali). Ela explica por que Jesus dá a glória aos
crentes ou modifica a ideia na segunda sentença com hina, de m odo que é
a unidade completa dos crentes que desafia o m undo ao conhecimento?
A segunda hipótese parece ser a ideia dom inante, apesar das objeções
de Earwaker. Há um a concatenação de idéias: a dádiva da glória leva à
unidade dos crentes, e esta, por sua vez, desafia o m undo a reconhecer
Jesus como o emissário do Pai de quem em ana toda a glória.
conheça. N o aoristo; veja nota sobre "creia" no v. 21. D urante o m inisté-
rio de Jesus, o m u n d o não conheceu Jesus (1,10), m as através do m inis-
tério dos discípulos o m undo teria o utra chance, pois sua m ensagem
provocará o m u n d o e lhe incitará a julgar-se a si m esm o.
que tu me enviaste. A concatenação de idéias neste versículo tem um
interessante p aralelo em Zc 2,12-13(8-9): O m ensageiro, v in g ad o r an-
gélico, foi enviado pela glória de D eus às nações p erversas com o um a
59 · O último discurso: - Terceira seção (terceira unidade) 1183

lição p ara Israel, de m odo que viessem saber que o Senhor dos Exérci-
tos 0 enviara.
que os amaste. Bernard, II, 579, interpreta isto no sentido de que o m undo
entenderá que Deus 0 ama; porém , m ais provavelm ente, significa que o
m u n d o entendería que Deus tem am ado os cristãos crentes. O am or de
Deus pelo m undo só é m encionado como um a preparação para a en-
cam ação do Filho em 3,16; veja o contraste com 15,19. O Codex Bezae e
algum as testem unhas latinas leem "Eu os am o", e Barrett, p. 429, pensa
que possivelm ente esta foi a redação original. Um a redação que se disse
que Jesus am ou os discípulos como o Pai am ou ele estaria m uito próximo
do pensam ento joanino (veja v. 26 abaixo; tam bém 15,9). Todavia, um
dos tem as desta oração é a presença do Pai na vida cristã, e "os amaste"
está em harm onia com isto. Este versículo declara que a unidade dos
crentes provará ao m undo que Deus os tem amado. Parte dessa unidade
é o am or que os crentes nutrem entre si, e 13,35 dá a isso um a força pro-
batória: "Nisso conhecerão, todos que sois m eus discípulos - pelo amor
que tendes uns pelos outros".
assim como tu me amaste. A comparação é de tirar o fôlego, m as lógico; visto
que os cristãos são filhos de Deus e lhes têm outorgado a vida que Jesus
tem da parte do Pai (6,57), Deus am a a estes filhos como am a a seu Filho.
H á som ente um am or de Deus; cf. Spicq, p. 210.
24. Pai. A oração agora chega a um a conclusão; e, para assinalar isto, várias
inclusões foram inseridas, em que se escutam de novo os elementos do
início (vs. 1-5). A invocação "Pai" aparece no v. 1; e o presente versículo
rem odela o pedido p or glorificação feito no v. 1.
eles são tua dádiva para mim. Literalmente, "aquilo que me tens dado"; ou,
como em m uitos m anuscritos gregos tardios, "aqueles que m e deste".
Para o uso de um neutro em vez de um masculino, veja nota sobre "tudo
o que" no v. 2. Esta sentença substantiva está num a construção pendens,
antecipando o pronom e "lhes" na terceira frase do versículo. Visto que
tal construção se destina a dar ênfase, temos convertido a sentença su-
bordinada num a sentença principal.
eu estou. A lguns traduziríam a forma eimi por outro verbo: "vou"; veja nota
sobre 7,34.
quero. Jesus já não diz "eu oro"; agora m ajestosamente expressa sua vonta-
de. (com pare Mc 14,36: "N ão o que eu quero, m as o que tu queres"). Na
teologia joanina, este "quero" não é pretensioso, pois a vontade de Jesus
é na verdade a do Pai (4,34; 5,30; 6,33). Em 5,21, ouvimos: "O Filho conce-
de vida àqueles a quem ele quiser [conceder]"; ali, como aqui, a vontade
do Filho é expressa em term os de um dom aos homens.
1184 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

estejam comigo. Jesus tem dito claram ente que os que não creem não podem
ir com ele para onde está indo (7,34; 8,21); nem podem ir com ele os disci-
pulos que se encontram em sua com panhia na últim a ceia. Mas, chegará
run dia que os que servem e seguem a Jesus estarão com ele (12,26; 14,3).
Uma esperança sim ilar se encontra em 2Tm 2,11: "Se já m orrestes com
ele, tam bém com ele vivereis", enquanto Rm 8,17 fala dos cristãos sen-
do glorificados com Cristo. É possível que aqui tenham os o equivalente
joanino das palavras que Jesus fala no relado de Lucas da últim a ceia:
"Comereis e bebereis à m inha m esa em m eu reino" (Lc 22,30).
vejam minha glória. Este uso de theõrein supõe um a dificuldade para os que
opinam que o verbo se refere a um a visão que vai acom panhada de um
conhecimento im perfeito (veja vol. 1, p. 816).
que me deste. Uma vez mais, o perfeito, não o aoristo, provavelm ente seja a
redação correta, embora o Códice Vaticanus tenha o aoristo.
porque me amaste. Tempo aoristo. O am or do Pai para com o Filho antes da
criação do m undo é a base d a glória que o Filho possuía antes da criação
(17,5). Este am or é tam bém a base da missão terrena de Jesus (3,35).
antes da criação do mundo. Literalmente, "fundação" ou "princípio". N ão é
um a expressão que ocorra na LXX, em bora ocorra no apócrifo Ascensão
de Moisés (1,13-14), obra do início do prim eiro século d.C. Evidentem en-
te, [a frase] era bem conhecida no período neotestam entário, pois ocorre
nove vezes no NT; veja especialm ente Ef 1,4; lP d 1,20.
25. Ó Pai justíssimo. Literalm ente, "Ó Pai justo"; isto é paralelo a "Ó Pai san-
tíssim o" no v. 11. Mais rom anticam ente, H oskyns, p. 495, vê um a progres-
são nas invocações "Pai", "Pai santíssim o", "Pai justíssim o", refletindo
o m ovim ento da oração desde a m orte de Cristo rum o à glorificação da
Igreja. Assim tam bém Schwank, "Damit", p. 544, o qual pensa na designa-
ção "justo" como um avanço para a designação "santo" e cita IC or 6,11:
"Vós vos lavastes, fostes santificados, fostes justificados". Isto é m uito
duvidoso; em nossa opinião, "santo" e "justo" não são variantes signi-
ficativas, m as pensa-se que "justo" era m ais apropriado no v. 25 por-
que o restante do versículo descreve um julgam ento (veja com entário).
O tem a da justiça de Deus é frequente no AT (Jr 12,1; SI 116,5; 119,137),
que ecoa no NT (Rm 3,26; Ap 16,5). N o NT, pensa-se que a justiça de
Deus tem , respectivam ente, efeitos positivos (Ele salvará o inocente) e
efeitos negativos (Ele p unirá os perversos). O efeito positivo aparece
em ljo 1,9: "Se confessarm os nossos pecados, ele, que é fiel e justo,
perdoará nossos pecados e nos purificará de toda injustiça"; tam bém
em 2,1-2, que descreve Jesus como justo q uando intercede diante d o Pai
por nossos pecados.
59 · O último discurso: - Terceira seção (terceira unidade) 1185

enquanto 0 mundo... estes homens. Literalmente, "e o m undo... e estes ho-


m ens" - um a coordenação dura das duas sentenças. O autor está des-
crevendo os dois grupos que estão diante da justiça do Pai, a saber, o
m undo que não o conhece e os hom ens que passaram a conhecer.
(1eu te conhecí). A sentença é parentética, interrom pendo a coordenação com
kai... kai da segunda e quarta linhas. Ela explica em que sentido o mun-
do não conhece a Deus: ele não chegou a conhecer a Jesus, o único que
conhece a Deus (1,10; 1 0 , 1 4 1 6 , 3 ;14,7 ;15‫)־‬. Um paralelo m uito próximo é
8,55: "Vós não o conheceis, m as eu o conheço"; ali o tem po perfeito de
eidenai (oida) tem valor do tem po presente. Os três usos de "conhecer", no
presente versículo, são aoristos.
estes homens vieram a conhecer. Em ljo 2,14(13), o autor se dirige aos cristãos
como filhos "pois tendes conhecido o Pai".
26. Eu fiz... conhecido. O verbo gnõrizein se relaciona com ginõskein, "conhe-
cer", usado três vezes no versículo anterior. H om ens vieram a conhe-
cer Jesus porque Jesus lhes tornou possível conhecer. Este verso é pouco
m ais que um a repetição do v. 6a.
continuarei a fazê-lo conhecido. A revelação ocorre durante o ministério e
ocorrerá depois do m inistério; a m esm a coisa valeu para a glorificação
que Jesus fez ao Pai (1,4).
0 amor com que me tens amado. Literalmente, "o amor (com) que tu m e amaste";
um a construção similar se encontra em Ef 2,4. A tautologia pode ser um se-
mitismo. O Pai am ou o Filho antes da criação (24); este amor agora se toma
um a força criadora, fazendo possível a habitação de Deus nos homens.
amor... esteja neles. N o texto grego, não se expressa a copolutiva nem neste
verso no seguinte. A força do am or de Deus para com o cristão é procla-
m ado em Rm 8,39: nada "poderá separar-nos do am or de Deus em Cristo
Jesus nosso Senhor".

C O M E N T Á R IO

N esta terceira u n id a d e d a oração d o cap. 17, Jesus v olve su a atenção, di-


retam en te, p a ra o futuro, p rev e n d o o resu ltad o d a m issão d o s discípulos,
m en cio n ad a n o v. 18. A oração pelos discípulos, n a seg u n d a u n id a d e (vs.
9-19), tam b ém leva em conta os fu tu ro s cristãos, visto q u e os discípulos
sim bolizam o q u e serão os crentes; agora, p o rém , a projeção fu tu ra é m ais
d ireta, talvez p o rq u e a u n id a d e d ev a ser o tem a principal. Jesus prevê
n ã o só u m a c o m u n id a d e sobre a terra q u e confessa o seu no m e (21-23);
1186 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

ele tam b ém a sp ira p elo liv ram en to escatológico d e ssa m esm a co m u n i-


d ad e, p a ra q u e seu s m em b ro s estejam c om ele n o c éu (24-26).

Versículos 20-23: A unidade dos que creem em Jesus

D ois a sp ec to s são im p o rta n te s n a relação d o s fu tu ro s c ristã o s n o


v. 20. P rim e iro , creem em Jesus. E n q u a n to e sta fé im p lic a c o m p ro m e -
tim en to e a m o r p esso ais, n o p e n sa m e n to jo an in o fé é m ais q u e a d e -
são a Jesu s, p o is im p lica u m c o n h ecim en to d e q u e m é Jesus. S o m e n te
a q u ele q u e crê q u e Jesus p o rta o n o m e d iv in o , so m e n te o h o m e m q u e
confessa q u e Jesu s é o C risto , so m e n te q u e m co n fessa q u e Jesu s é o
F ilho d e D e u s (20,31) - p o d e c u m p rir a s ex igências d a fé e m Jesu s
se g u n d o o p e n s a m e n to jo an in o . K äsemann , p . 25, in siste c o rre ta m e n te
q u e, p a ra João, os cristão s d e v e m a d e rir a o m en o s a u m d o g m a c risto -
lógico, co n c re ta m e n te , a relação d o F ilho com o Pai; veja R. E. B rown ,
In te rp 21 (1967), 397-98. Isto c o n c o rd a com l j o 4,2-3, o n d e se oferece
u m critério cristo lógico p a ra se d istin g u ir e n tre o s q u e tê m o e sp írito
d e D eu s e os q u e tê m o e sp írito d o an ticristo .
S e g u n d o , os cristão s têm v in d o à fé a tra v é s d a p a la v ra d o s disci-
p u lo s d e Jesus. A teo lo g ia lu c a n a e n fa tiz a a c a d eia d e tra d iç ã o d o s d is-
cíp u lo s p a ra o c re n te m u ito m ais q u e a teo lo g ia jo an in a ; aliás, o con-
ceito d o P arácleto (veja A p . V), q u e é d a d o d ire ta m e n te a c a d a c re n te,
im p e d e a c e n tu a r ex cessiv am en te a d e p e n d ê n c ia co m re sp e ito a u m a
tra d içã o h u m a n a . T o d av ia, m e sm o n o p e n s a m e n to jo an in o , se d á p o r
certo q u e o s d isc íp u lo s q u e e sta v a m co m Jesu s fo ra m c o m issio n a d o s
a p re g a r ao s h o m e n s, e q u e a fé v e m a tra v é s d e o u v ir o q u e eles p re -
gam . Se o P arácleto d á te ste m u n h o d e Jesus, e n tã o fez isso a tra v é s d o s
d iscíp u lo s, e n ã o d e u m a m a n e ira m e ra m e n te e s p iritu a l (15,26-27).
Veja o p a p e l d a d o ao d isc íp u lo a m a d o e m 19,35.
Q u a n to à constituição d o g ru p o d o s q u e v iessem a crer e m Jesus
atrav és d a p a la v ra d o s d iscípulos, p o d e m o s re c o rd a r 10,16 e 11,52,
o n d e o c h a m a d o se e ste n d e a o s gentios ("o u tra s ovelhas... q u e n ã o p e r-
tencem a este aprisco; os filhos d isp erso s d e D eu s"), a lém d o s ju d e u s.
João a d m ite q u e D eu s seleciona aos seus, m as n ã o so b re u m a b a se ética.
Jesus v eio c h a m a r aq u eles q u e seu P ai lhe confiou e q u e estã o d isp e rso s
p elo m u n d o , aq u eles q u e a tu a m com o D e u s q u e r (3,21). A " p a la v ra "
d e Jesus p re g a d a p elo s d iscíp u lo s é u m a força d in âm ic a q u e é o u v id a
p elo s q u e são as o v elh as d o reb a n h o d e Jesus (10,3). P a ra os q u e o u v e m ,
59 · O último discurso: - Terceira seção (terceira unidade) 1187

esta p a la v ra , ela é e sp írito e v id a (6,63), m as p a ra os q u e se rec u sa m d a r


c ré d ito à p a la v ra , ela é se c o n v erterá em ju iz (12,48).
N a ú ltim a p a rte d o v. 11, Jesus p e d iu a se u P ai q u e o s d iscíp u lo s
fo sse m u m ; a g o ra , n o s vs. 21-23, ele ro g a p a ra q u e os q u e v iere m a crer
n e le a tra v é s d a p a la v ra d o s d isc íp u lo s ta m b é m sejam u m . E m cad a
caso , o m o d e lo o ferecid o p a ra esta u n id a d e é a u n id a d e e n tre o P ai e
o F ilho. E m q u e co n siste e sta u n id a d e ?
Jo 17,21-23 te m sid o fre q u e n te m e n te u s a d o em d iscu ssõ es ecu-
m ên ic a s co m o p re s s u p o s to d e q u e esta p a ssa g e m se refere à u n id a d e
d a igreja. P a ra o s católicos, e m p a rtic u la r, " p a ra q u e to d o s sejam u m "
é 0 slo g a n ecu m ên ico . E n tre tan to , T. E. P ollard, art. cit., te m u tiliz a d o
17,21 p a ra a rg u m e n ta r c o n tra a u n iã o d a igreja. V isto q u e a u n id a d e
d o s c re n tes é m o d e la d a n a u n id a d e d o P ai e o Filho, esta u n id a d e
a d m itiría d iv e rsid a d e , p o is o P ai e o F ilho p e rm a n e c e m p e sso a s dis-
tin ta s, a d e s p e ito d e s u a u n id a d e . P o r c o n seg u in te, P ollard in siste q u e
a u n id a d e e n tre os c ristão s d e v e reco n h ecer e p re s e rv a r u m a d istin ção
d e id e n tid a d e d e n o m in a cio n a l. S eu a rg u m e n to foi re s p o n d id o p o r
E. L. W enger, a firm a n d o q u e P ollard n ã o faz ju stiça à descrição d a
u n id a d e d e se ja d a p e lo Jesus jo an in o , esp ec ialm en te às id éia s d e que
e s ta u n id a d e v isa a o ferecer a o m u n d o u m a o p o rtu n id a d e d e crer e v ir
a c o n h e ce r q u e Jesus foi e n v ia d o p e lo P ai (21,23). N o p o n to d e v ista
d e W enger, n e n h u m a m era in te r-c o m u n h ã o d e d e n o m in a çõ e s corres-
p o n d e a estes asp ecto s; so m e n te a u n id a d e o rg ân ic a d a igreja faz isso.
E sta d isc u ssã o d a s im p licaçõ es e c u m ên icas d e 17,21-23 c e rta m e n te é
im p o rta n te , m a s sejam os claros q u e tais p ro b le m a s d ificilm en te es-
ta v a m n a m e n te d o a u to r. A p e rsp e c tiv a jo an in a n ão é em a b so lu to
e c u m ên ica; 2Jo 10, p o r ex em p lo , p ro íb e o cristão d e s a u d a r a alg u é m
cu ja d o u trin a n ã o seja o rto d o x a.
E stes v e rsíc u lo s d e João tê m sid o ta m b é m u s a d o s e m a p o io d e
teo rias d e co m o a Igreja d e v e se r o rg a n iz a d a . B. H äring , This Time of
Salvation (N o v a York: H e rd e r & H e rd e r, 1966), p p . 12ss., a p re se n ta
Jo 17 co m o u m m o d elo p a ra a igreja católica a p a rtir d o V aticano II,
e sp e c ia lm e n te n a q u e stã o d o co leg iad o d o s b isp o s. Isto é a p e n a s u m
e x e m p lo d e v á ria s a b o rd a g e n s d e Jo 17 q u e co n scien te o u inconscien-
te m e n te in te rp re ta o p e n sa m e n to à lu z d a d o u trin a p a u lin a d o co rp o
co m s e u s d ife re n te s m em b ro s.
O u tro s e sp ecialistas tê m a firm a d o q u e n ã o h á p ro v a s su ficien tes
d e q u e o cap. 17 v isa à u n id a d e d a igreja e q u e n o s v ersícu lo s q u e
1188 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

o ra d isc u tim o s n a d a h á so b re o rg an iz aç ã o o u c o m u n id a d e . R a n d a l l ,
p p . 12-16,4041‫־‬, cita n u m e ro sa s o p in iõ es. S eria a u n id a d e u m a q u e stã o
d e p ro p ó sito s co n ju n to s e x p re ssa n d o -se n u m a m issã o e m e n sa g e m
cristãs c o m u n s (S t r a c h a n )? Seria u m a q u e s tã o d e o s c ristã o s tra b a -
lh a re m h a rm o n io sa m e n te ju n to s se m d issid ê n c ia (S ch la tt er )? S eria a
u n iã o d o s c ristã o s e n tre si e co m C risto , m o d e la d a n a u n iã o q u e exis-
te e n tre p e sso a s, e sp ec ialm en te e n tre e sp o so e e sp o sa (S t r a t h m a n n )?
Seria u n id a d e e fe tu a d a a tra v é s d o c a rá te r s in g u la r d a im a g e m d e
D e u s n a co n sciência d e c a d a c re n te (H o ltz m a n n )? S eria ela u m a u n i-
d a d e m ística (B . W eiss, B ern a rd )? Seria u m a u n id a d e fu n d a d a so b re
a u n id a d e d e c a d a cristã o com o P a i e o F ilh o (B eh ler )? E staria e sta
u n id a d e re la c io n a d a com o m in isté rio e u c arístic o (A. H a m m a n )? Se-
ria u m a u n id a d e q u e se m a n ife sta n o p o d e r d e o p e ra r m ila g re s (W.
B a u er ; cf. 14,11-12)? S eria u m a u n id a d e em to rn o d a " p a la v ra " q u e
fu n d a a c o m u n id a d e - u m a u n id a d e q u e n a d a te m a v e r c o m se n ti-
m e n to p e sso a l o u p ro p ó sito c o m u m e n ã o é sim p le sm e n te h a rm o n ia
fra te rn a , n e m o rg an iz aç ã o , n e m d o g m a , n e m m e sm o e ste s p o d e m
ser te s te m u n h a s d a u n id a d e (B u ltm a n n )? M ais c e d o o u m a is ta rd e , a
m aio ria d o s a u to re s d irá q u e ela é a u n iã o d e a m o r. A í e stá o p ro b le -
m a; m a s K ä sem a n n , p . 5 9 , te m ra z ã o , q u a n d o diz: " U su a lm e n te , n e ste
p o n to d e s v ia m o s a q u e stã o co m lin g u a g e m e d ifica n te, re d u z in d o a
u n id a d e ao q u e c h a m a m o s d e a m o r" .
E m v e z d e an alisarm o s estas teorias u m a a u m a , salien tem o s os
aspectos q u e p arecem estar claros n as afirm ações d e João so b re a u n i-
d ad e. Q u a lq u e r a b o rd a g e m q u e situ e a essência d a u n id a d e n a solida-
rie d a d e d o e m p e n h o h u m a n o n a re a lid a d e n ão faz justiça à insistência
d e João d e q u e a u n id a d e tem su as origens n a ação d iv in a. O p ró p rio
fato d e q u e Jesus ro g u e ao P ai p o r esta u n id a d e in d ica q u e a c h av e p a ra
alcançá-la está n as m ãos d e D eus. N o v. 22, Jesus d á a e n te n d e r q u e a
u n id a d e d o s crentes b ro ta d o d o m q u e ele m esm o faz ao s cren tes d a
g lória q u e o P ai lhe d e u , e assim a u n id a d e flui d o P ai e d o F ilho aos
crentes. N e n h u m a d estas hip ó teses im p lica u m a p a ssiv id a d e p o r p a rte
d o s crentes n a q u estão d a u n id a d e , m as a ação deles n ã o é a fo n te p ri-
m ária d a u n id ad e .
A s afirm açõ es jo an in a s so b re a u n id a d e im p lic a m ta n to u m a d i-
m en são h o riz o n ta l co m o u m a vertical. A u n id a d e e n v o lv e a rela çã o
d o s cren tes co m o P ai e o F ilho (vertical) e a relação d o s c re n te s e n tre
si (ho rizo n tal). A ú ltim a d im e n sã o se e n c o n tra e m to d a s as a firm açõ es,
59 · O último discurso: - Terceira seção (terceira unidade) 1189

e n fa tiz a n d o o a m o r recíp ro co q u e tem o s o u v id o n o ú ltim o d iscu rso


(13,34-35; 15,12.17); veja ta m b é m o tem a d a c o m u n h ã o e m l jo 1,7.
A ssim , p a ra Jo ão a u n id a d e n ã o se r e d u z a u m a relação m ística com
D eu s. E m c o n tra p a rtid a , a d im e n sã o v ertical, a p a re n te n a s freq u en -
tes a firm açõ es tã o a c e n tu a d a n o ú ltim o d isc u rso (esp ecialm en te no
v. 21: " p a r a q u e ta m b é m sejam [um ] e m n ó s"; v. 23: " E u neles, e tu
e m m im "), sig n ifica q u e a u n id a d e n ã o é sim p le sm e n te c o m u n h ã o
h u m a n a o u a h a rm o n io sa in te raç ã o d o s cristãos. (D evem os n o ta r q u e
ao in tr o d u z ir ta n to o P ai q u a n to o F ilho n a u n id a d e , João v a i além d a
u n id a d e v isu a liz a d a n a im a g e m p a u lin a d o co rp o d e C risto).
A lg u m tip o d e u n id a d e v ita l e o rg ân ic a p a re c e ser ex ig id a p elo
fato d e q u e a relação d e P ai e F ilho é m a n tid a co m o o m o d e lo d a u n i-
d a d e . A relação P ai-F ilho e n v o lv e m ais d o q u e u n iã o m oral; as d u a s
e stã o re la c io n a d a s, p o rq u e o P ai d á v id a ao F ilho (6,57). D e m o d o se-
m e lh a n te , os cristão s estã o u n id o s e n tre si e com o P ai e o Filho, p o r-
q u e p a rtic ip a m d e sta v id a.
O fato d e a u n id a d e ser v isível b a sta p a ra d esafiar o m u n d o a crer
e m Jesu s (vs. 2 1 ,2 3 ) p arece m ilita r co n tra u m a u n iã o m era m e n te espi-
ritu a l. Se in te rp re ta rm o s 17,21-23 à lu z d e 10,16, com s u a ênfase sobre
u m só reb a n h o , en tã o se to m a p lau sív e l q u e a u n id a d e im p liq u e com u-
n id a d e , m esm o q u a n d o a se g u n d a id eia n ão a p areça explícita n o cap.
17. C e rta m en te , n o mashal d a v id eira e d o s ram o s, q u e tem o m esm o
co n tex to q u e a o ração d o cap. 17, a id eia d e u n ião com Jesus im plica co-
m u n id a d e (15,5-6). A koin õn ia o u " c o m u n h ã o " d e l jo 1,3.6.7 p o d e ser
u m a ex p ressão d a id eia d e u n id a d e e n c o n trad a n o evangelho.
A im p re ssã o d e q u e João está p re s s u p o n d o u m a c o m u n id a d e cris-
tã é a g o ra g ra n d e m e n te c o rro b o ra d a p e la ev id ên cia d o s M an u scrito s
d o M a r M o rto . A s afirm açõ es jo an in a s so a v am até a g o ra com o u m a
coisa e s tra n h a co m su a in sistên cia so b re ser " u m " (hen n eu tro ), espe-
cialm en te 23b: "... p a ra q u e sejam p erfeito s em u n id a d e " . N a b usca
p e lo p a n o d e fu n d o p a ra esta ideia, a lg u n s têm se v o lv id o p a ra Pitágo-
ras e o s estoicos p a ra q u e m "o u n o " (hen) e ra u m im p o rta n te conceito
filosófico e religioso. O id eal d a u n iã o com "o u n o " tam b é m exerceu
certo p a p e l n o gnosticism o. M as a g o ra tem o s u m m elh o r p aralelo no
v o c a b u lá rio relig io so d e Q u m ra n ; cf. F. M. C ross, The Ancient Library
of Qumran (N o v a York: D o u b le d a y A n c h o r ed., 1961), p. 209. A co-
m u n id a d e falav a d e si m esm a s com o a y a h a d o u " u n id a d e " ; o term o
o co rre u m a s se te n ta v ezes so m e n te e m 1QS. T em h a v id o in ú m e ro s
1190 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

artigos d ed icad o s a analisar o significado preciso d o term o: S. T a lm o n ,


VT 3 (1953), 133-40; A . N eher , e m Les manuscrits de la M er Morte, collo-
que de Strasbourg (Paris: P resses U n iv e rsita ire s, 1957), p p . 44-60; J. C.
de M o o r , VT 7 (1957), 350-55; J. M aier , Z A W 72 (1960), 148-66; E.
K o ffm a h n , Bíblica 42 (1961), 433-42; B. W . D ombrowski, H T R 59 (1966),
293-307 - resu m o e m R an d a ll , p p . 188-206. P arece claro q u e o u so d e
y a h a d em Q u m ra n n ã o d e riv a d ire tam e n te d o A T, em b o ra tal u so p o s-
sa ter se to m a d o co m u m n o ju d aísm o p o sterio r, co m o v em o s d o s in-
teressan tes ex em plos q u e N eher tem desco b erto n a s p rim e ira s seções
m ais an tig as d o T alm u d e. M aier en fatiza q u e y a h a d e m Q u m ra n n ã o
se c en tra n a u n id a d e organizacional; an tes, o term o é u m nomen actio-
nis com m atizes ritu a is e p actu ais. K o ffm a h n a d m ite a p o ssib ilid a d e d e
in te rp re ta r a y a h a d com o u m a p e sso a m oral. O significado rad ic al d a
p a la v ra lh e d á as p ossíveis conotações ta n to "ju n to " co m o "só".
É difícil co m binar to d as estas observações. D os d o c u m e n to s d e
Q u m ra n tem os a im p ressão d e q u e y a h a d é a c o m u n h ã o d e in d iv íd u o s
q u e lev am a m esm a v id a, u n id o s p o r su a aceitação c o m u m e a obser-
vação d e u m a in terp retação p a rticu la r d a Lei. A org an ização d a c o m u -
n id a d e d eriv a d a u n ião d o s m em bros, n ã o vice-versa. S ua u n iã o tem
u m a d im en são escatológica: já p o ssu em certa c o m u n h ã o com os anjos,
p o rém an tecip am o d ia em q u e D eus os re u n irá consigo. E stão sós, u n i-
d o s p elo am o r recíproco e u n id o s em su a oposição a u m m u n d o hos-
til. N ã o é im p ossível q u e o hen joanino, " u m " , tra d u z a literalm en te o
conceito d e y ah ad . C ross salienta as v árias expressões q u e le m b ra m a
lin g u ag em d e João; p o r exem plo, Ihywt lyhd, "ser u m a u n id a d e " (1QS
5,2; co m p are o " p a ra q u e sejam u m " d e João); b h ’spm lyhd, "so b re se-
rem eles reu n id o s n a u n id a d e " (1QS 5,7; co m p are Jo 11,52: ‫ ״‬reunir em
um os filhos d isp erso s d e D eus"). E m q u a lq u e r caso, o q u a d ro joan in o
d a u n id a d e cristã, com seus elem entos escatológico e vertical e com s u a
oposição ao m u n d o , tem m u ito e m c o m u m com a y a h a d d e Q u m ran .
Q u e a id eia joanina im plica u m a co m u n id ad e é tam b ém su g e rid o
q u a n d o estabelecem os o contato vital d o cristianism o p rim itiv o q u e
p o d e ter orig in ad o a insistência sobre a u n id a d e e m 17,21-23. K ä sem ann ,
p p . 56-57, in d ic a q u e a situ a ç ão su b jacen te a Jo 17 le m b ra o q u e en-
co n tra m o s em E fésios (isto é sig n ificativ o se a e p ísto la re a lm e n te foi
e n d e re ç a d a ao s E fésios, a lo ca lid a d e g e ra lm e n te fav o re c id a p a r a a
co m p o sição d o Q u a rto E v an g elh o ) e n a s P a sto ra is (as d u a s c a rta s a
T im ó teo o co lo cam co m o o d e le g a d o d o a p ó sto lo e m Éfeso; se e sta s
59 · O último discurso: - Terceira seção (terceira unidade) 1191

c a rta s s ã o p ó s -p a u lin a s, s u a d a ta d e c o m p o sição p o d e n ã o e sta r m u ito


lo n g e d a q u e la d o Q u a rto E vangelho). P o d e m o s a c rescen tar à com pa-
ra ç ã o a situ a ç ã o su b jacen te a 1 João. H á e m Efésios (4,3-6) u m a ênfase
so b re a u n id a d e , e n a s P a sto ra is so b re a sã d o u trin a (lT m 1,10; 6,3;
2 T m 1,13; 4,3) e o m e sm o e m 1 João ( 2 , 2 2 5 , 1 0 ;4,2-3.15 ;24‫)־‬. A Igr
v isív e l é a c o lu n a e o b a lu a rte d a v e rd a d e (lT m 3,15), e aq u e le s q u e
e n s in a m d o u trin a s d ife ren te s se rã o c a stig ad o s (lT m 1,3-7.18-20; 6,3-5;
2 T m 4,3-5; l j o 2,19). E m lT m 1,3 e l j o 4,6 su b lin h a -se a im p o rtâ n c ia
d o m e s tre in v e s tid o d e a u to rid a d e . E m João, so m e n te a lg u n s d estes
e le m e n to s v ê m e m p rim e iro p lan o . P a ra João, o m e stre in v e stid o d e
a u to rid a d e é Jesus, o q u a l ag e a tra v é s d o P arácleto , e h á p o u c a ênfase
so b re o s m e stre s h u m a n o s. (T odavia, se Jo 21,15-17 for a d m itid o com o
u m a te s te m u n h a d o p e n s a m e n to jo an in o , p o d e -se im a g in a r q u e Jesus,
o ú n ic o p a s to r, te m tid o se u s re p re se n ta n te s h u m a n o s). E m João, po -
ré m , h á u m a ê n fase d o u trin a i n ã o d ife re n te d a ê n fase n a s o u tra s o b ras
n e o te s ta m e n tá ria s q u e tem o s citad o , p o is so m e n te os q u e confessam
Je su s c o m o o F ilh o d e D e u s p o d e m fazer p a rte d a u n id a d e d o s cren-
tes. E se a u n id a d e jo an in a se o p õ e a o m u n d o q u e cerca os cristãos,
p a rte d e s se m u n d o co n siste d e cristão s d issid e n te s q u e fo ra m expul-
sos (15,6; cf. l j o 2,19). U m id e a l d e u n id a d e q u e se d e se n v o lv e u so-
b re se m e lh a n te p a n o d e fu n d o q u a se n e c essa ria m e n te seria u m id eal
d e c o m u n id a d e .
A n te s d e co n clu irm o s n o ssa afirm ação d e u n id a d e n o s vs. 2 1 2 3 ‫־‬,
d e v e m o s d isc u tir su c in ta m e n te o efeito d esejad o q u e esta u n id a d e
d e v e ex ercer so b re o m u n d o . T em os refe rid o n a s n o tas so b re os vs. 21
e 23 à teo ria d o s q u e in te rp re ta m d e u m a m an e ira m u ito o tim ista as
d u a s sen ten ças: "A ssim o m u n d o creia q u e tu m e e n v ia ste" e "A ssim
o m u n d o co n h eça q u e tu m e en v iaste". M as d a n o ssa p a rte essas afir-
m açõ es n ã o sig n ificam q u e o m u n d o aceitará Jesus; ao co n trário , os
cristão s cre n tes oferecerão ao m u n d o o m esm o tip o d e desafio q u e Je-
s u s o fereceu - o d esafio d e reco n h ecer D e u s em Jesus (cf. M . B outtier,
R H P R 44 [1964], 179-90). A q u eles a q u e m D eu s d e u a Jesus crerão e
co nh ecerão ; m a s p a ra o re sta n te d o s h o m en s, isto é, os q u e co n stitu em
o m u n d o , e ste d esafio será ocasião d e au to -co n d en ação , p o is se retro-
ced erão . C o m o a unidade cristã a p re se n ta tal desafio? Jesus rep re se n to u
u m d esafio p o rq u e reiv in d ic o u ser u m c om o Pai; a g o ra os cristãos são
p a rte d e s ta u n id a d e ("p a ra q u e sejam [um ] em n ó s") e e n tã o ap resen -
tam o m esm o desafio. Jesus re p re se n to u u m desafio p o rq u e reiv in d ico u
1192 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

ser a revelação d a g ló ria d e D eus; ag o ra Jesus co m u n ic o u s u a g ló ria ao s


cristãos (22) p e lo o q u e a tra v és d eles c o n tin u a se n d o a p re se n ta d o ao
m u n d o o m esm o desafio. (D esta p e rsp ectiv a d e u m a teologia p o ste rio r
e m ais precisa, é p o ssív el estabelecer u m a distin ção m ais b e m d e fin id a
d o q u e João p ro v ê e n tre a en carn ação d e D eus e m Jesus e a h ab itação
d e D eu s n o cristão - e m o u tro s term o s, e n tre a filiação n a tu ra l d e Jesus
e a filiação g en érica d o s cristãos. É possível q u e tal distin ção n ã o e ra es-
tra n h a ao p e n sa m e n to jo an in o p o d e -se in d ic a r p e lo c o stu m e d e João d e
referir-se a Jesu s com o o huios o u "F ilho" d e D eus, e n q u a n to os cristãos
são d esig n a d o s com o tekna o u "filh o s‫ ; ״‬m a s n e n h u m a diferenciação d e-
finid a é a p re se n ta d a no s v ersículos q u e e stam o s co n sid eran d o ).

Versículos 24-26: Jesus quer que os crentes estejam junto a ele

Se a u n id a d e d o s c ristão s v isa a d e sa fia r o m u n d o e c o n d u z i-lo a o


m o m e n to d o ju ízo , e n c o n tra m o s o re s u lta d o d o ju íz o im p lic ita m e n te
d escrito n o s vs. 24-26. N o v. 25, v e m o s d o is g ru p o s d e h o m e n s q u e es-
tão d ia n te d o "P a i ju stíssim o ": a q u e le s q u e fo rm a m o m u n d o q u e n ã o
rec o n h e c eu a Jesu s, e c o n se q u e n te m e n te n ã o c o n h e ce ram a D e u s (n o ta
so b re o v. 25), e a q u e le s q u e re c o n h e c era m a Jesu s c o m o re p re s e n ta n te
d e D eus. N ã o se m en c io n a o d e stin o d o m u n d o , m a s so m o s in fo rm a -
d o s q u e o d e s tin o d o c ristão é e sta r co m Jesu s o n d e ele e stiv e r (a sa b er,
com o Pai) e v ir s u a g ló ria e te rn a (24). T em os o u v id o q u e o s d isc íp u lo s
v ira m a g ló ria d e Jesus d u ra n te s e u m in isté rio (2,11; cf. 1,14) e q u e
u m a m an ifestaç ã o m ais p le n a d e s u a g ló ria h a v ia d e se r c o n c re tiz a d a
n o p e río d o p ó s-re ssu rreiç ã o (17,10.22). M as, e v id e n te m e n te , h á u m a
m an ifestação fin al d a g ló ria d e Jesus q u e a g u a rd a o c ristã o q u a n d o ele
se ju n ta r a se u m e stre n o céu. O p e n sa m e n to n ã o é d ife re n te d e l j o 3,2:
"A g o ra so m o s filhos d e D eus; o q u e serem o s a in d a n ã o foi rev e la d o .
S abem os q u e, n e sta m an ifestação , se re m o s se m e lh a n te s a ele, p o is o
v erem o s co m o ele é". (E n tretan to , 1 João p a re c e e sta r fa la n d o d e v e r a
D eu s, e n q u a n to João se o c u p a d e v e r a g ló ria q u e D e u s d e u a Jesus).
R m 8,18 d istin g u e e n tre o te m p o p re se n te com s e u so frim e n to e " a
g lória q u e n o s h á d e se r re v e la d a " . 2C or 3,18 fala d o te m p o p re s e n te
q u a n d o , " C o n te m p la n d o a g ló ria d o S en h o r, se re m o s tra n s fo rm a d o s
em su a se m e lh an ç a d e g ló ria e m g ló ria".
O ú ltim o desejo d e Jesu s é q u e se u s se g u id o re s e ste jam c o m ele.
V isto q u e o v e rb o thelein n o v . 24 significa, re sp e c tiv a m e n te , " d e se ja r"
59 · O último discurso: - Terceira seção (terceira unidade) 1193

e " q u e re r" , p o d e m o s fala r d a ú ltim a v o n ta d e d e Jesus, c o n ta n to q u e


re c o n h e ç a m o s q u e ela n ã o é a v o n ta d e d e u m m o rto , m a s a v o n ta d e
p e rm a n e n te d o Jesu s v iv o q u e e stá co m o Pai. Jesu s reco n h ece q u e
s e u s s e g u id o re s n ã o p o d e m se r tira d o s d o m u n d o sem p rim e iro lu ta-
re m c o n tra o M a lig n o (15), m as s u a v o n ta d e é q u e , d e p o is d e sta lu ta,
fin a lm e n te sejam lib e rta d o s d o m u n d o a q u i em b a ix o e lev a d o s p a ra
o c é u q u e é s u a m o ra d a d e fin itiv a (14,2-3), v isto q u e fo ram g e ra d o s
d o a lto (3,3). K äsemann , p . 72, in d ic a q u e n a d escrição q u e João faz
d o d e s tin o d o c re n te, a lg u n s d o s an tig o s tem a s ap o calíp tico s ju d ai-
cos tê m sid o e sp iritu a liz a d o s. O s p ro fe ta s fala ra m d a re u n iã o d o s
filh o s d is p e rs o s d e Israel e m Je ru sa lé m p a ra p a rtilh a re m d a s bên-
ção s d o S e n h o r e d e se u U n g id o ; m as e m João os q u e são p re d e sti-
n a d o s p a ra se re m filh o s d e D e u s são c o n g re g a d o s p a ra e sta r com o
F ilh o d e D e u s n a p re se n ç a d o Pai. N a a p o calíp tica d e Q u m ra n e n o
liv ro d o A p o c a lip se se p e n s a q u e D e u s in te rv irá n a b a ta lh a p a ra li-
b e rta r s u a c o m u n id a d e d e se u s in im ig o s n o m u n d o , m a s e m João a
c o m u n id a d e é tira d a d o m u n d o p e rv e rso p a ra estar com Jesus. O desti-
n o d a h istó ria d o m u n d o n ã o é u m n o v o céu e u m a n o v a terra (A p 21,1),
m a s sim a re u n iã o d a s alm as em se u lar celestial. O F ilho d o H o m em
n ã o é re tra ta d o com o v in d o sobre n u v e n s d o céu p a ra socorrer seus
se g u id o re s, m a s seu s seg u id o res são a rre b a ta d o s a ele n o céu (Jo 12,32).
K äsemann , p o r s u a v e z v ê o p e n sa m e n to jo an in o co m o m a rc an te m e n -
te d ife re n te d a q u e le d a m a io r p a rte d o N T , e a trib u i a ele u m a o rien ta-
ção g n ó stica, v isto q u e a p o ia o id ea l d e re tira d a d o m u n d o . E n q u a n to
m u ita s d a s id é ia s d e K äsemann são v á lid a s, m a s ele e n fatiza excessi-
v a m e n te o iso la m e n to e p e c u lia rid a d e d o p e n sa m e n to jo an in o . P aulo,
p o r e x em p lo , e x p re ssa o desejo d e d e ix a r o m u n d o e e sta r com Jesus
(2C or 5,8: "d ese jam o s a n te s d e ix a r e ste co rp o , p a ra h a b ita r com o Se-
n h o r" ; F 1 1,23: " te n d o d esejo d e p a rtir e e sta r co m C risto , p o rq u e isto
é a in d a m u ito m elh o r"); e, co m o o te m a d e d esco n fian ça p e lo m u n d o ,
este p o d e te r s id o a v isã o cristã co m u m .
É d isc u tív e l a té q u e p o n to a e sp e ra n ç a d e re u n ir-se a Jesus n o céu
ex clu ía a s e x p e cta tiv a s ap o calíp ticas. O [aspecto] a p o calíp tico se en-
c o n tra n o A p o c a lip se , u m a o b ra d a escola jo an in a , e n o p ró p rio evan-
g e lh o (vol. 1, p . 129ss). In d u b ita v e lm e n te , o e v a n g elh o in siste n a esca-
to lo g ia re a liz a d a , p o ré m n ã o e xclui a escato lo g ia fu tu ra . P o r exem plo,
17,24 n ã o ex p lica co m o o s cristão s se ju n ta rã o a Jesu s n o céu. O Fi-
lh o d o H o m e m d e sce rá a ch am á-lo s q u e sa ia m d o tú m u lo (5,28-29)?
1194 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

T alvez a c o m p reen são o rig in al d e 17,24 en v o lv esse essa cen a ap o ca-


líptica; e en tão , q u a n d o as expectativas d a escatologia fu tu rístic a se
to m a ra m m en o s v iv id a, o desejo d e Jesus p a sso u a ser tid o co m o já
c u m p rid o n a m o rte d o cristão. (N as p p . 9981003‫ ־‬acim a su g e rim o s
ex atam en te e ste d e se n v o lv im e n to d o sig n ificad o e m 14,2-3). Isto se
h a rm o n iz a ria com 11,25, q u e p ro m e te v id a e te rn a a p ó s a m o rte físi-
ca. V isto q u e p a ra João os cristão s, filh o s d e D eu s, estã o in tim a m e n te
co n fo rm ad o s à im a g e m d e Jesus, o F ilho d e D eu s, a id e ia d e q u e Je su s
e n tro u e m s u a g ló ria a tra v é s d a m o rte p o d e ría te r le v a d o à c o m p re e n -
são d e q u e, a p ó s a m o rte , o cristão v e ria Jesu s e m s u a g ló ria. E v id e n -
tem en te, a id eia d e q u e a m o rte lev a à u n iã o com Jesu s n ã o te v e o p o r
q u e ex clu ir a e s p era n ç a d e u m liv ra m e n to fin al d e to d a a c o m u n id a d e
cristã n a p a ro u s ia - c o m p a re a s citações p a u lin a s c ita d a s a c im a co m
a s ex p ectativ as ap o c alíp tica s d e P a u lo e m lT s 4,13-17; IC o r 15,51-57.
A ssim , e n q u a n to o p e n s a m e n to jo a n in o so b re o f u tu ro te m s u a p ró -
p ria m o d a lid a d e (u m a m o d a lid a d e q u e m ais ta rd e o g n o stic ism o
ac h aria sim p á tic a e m su a teo lo g ia d e liv ra m e n to d o m u n d o ), n ã o d e -
v e m o s a d m itir o m é to d o d ialético p a ra le v a r-n o s a a trib u ir a João ati-
tu d e s m ais a v a n ç a d a s d o q u e p e rm ite m o s d a d o s.
O ú ltim o v ersícu lo d o cap. 17 explica p o r q u e os c re n te s e sta ria m
d e fin itiv a m e n te u n id o s a Jesus, a sab er, p o rq u e fo ra m in tim a m e n te
u n id o s a Jesu s d u ra n te su a p e rm a n ê n c ia n a terra. Jesu s já lh e s fiz e ra
o n o m e d e D e u s co n h ecid o , e c o n tin u a ria a fazê-lo co n h ecid o . Se re-
c o rd a rm o s q u e Jesus está fa la n d o d u r a n te a ú ltim a ceia e se re fe rin d o
ao s cre n tes fu tu ro s q u e se c o n v e rte ría m p o r m eio d e se u s d isc íp u lo s,
a afirm ação " e u lh es fiz c o n h e cid o o te u n o m e " é u m ta n to e stra n h a .
P re su m iv elm e n te , e sta rev elação p a s s a d a é a o b ra q u e o c o rre u d u -
ra n te s e u m in isté rio q u e se u s d isc íp u lo s c o m u n ic a ra m ao s cren tes.
A s e g u n d a afirm ação , "e c o n tin u a re i a fazê-lo c o n h e c id o " , p o d e re-
ferir-se à o b ra d o P arácleto (14,26; 16,13). E ste a p ro fu n d a m e n to cres-
cen te d a c o m p re en sã o d a rev e laç ã o d e D e u s e m Jesus te m co m o se u
p ro p ó sito e fin a lid a d e a h a b ita çã o d e Jesus n o cristã o (26d). Je su s só
p o d e h a b ita r n o s q u e c o m p re e n d e m e a p re c ia m s u a rev elação . Se as
ú ltim a s d u a s lin h a s d o v. 26 fo rem c o m p a ra d a s, n o ta r-se -á q u e a p re -
sen ça d e Jesu s n o c ristã o te m se u p a ra le lism o c o m a p re se n ç a d o a m o r
d e D e u s n o cristão. Isto significa q u e á p re se n ç a d e Jesu s é d in â m i-
ca, q u e se e x p re ssa n o a m o r. O e stu d io so m ed ie v al, R upert de D eu tz
(PL 169:764; veja S c h w a n k , "Damit", p . 541) id en tifica o a m o r im a n e n te
59 · O último discurso: - Terceira seção (terceira unidade) 1195

d e s c rito n o v. 26c ("o a m o r q u e tiv e ste p o r m im " ) co m o o E sp írito


S a n to - e v id e n te m e n te , u m reflexo d a teo lo g ia trin itá ria p o ste rio r,
o n d e o E sp írito é o a m o r e n tre o P ai e o Filho. T o d av ia, ele n ã o p o d e
e s ta r tã o e rra d o e m v e r q u e so m e n te a tra v é s d o E sp írito as p ro m es-
sa s d e Je su s n o v. 26 p o d e m c u m p rir-se. A im p licação e m João n ão
p o d e se r d ife re n te d o q u e é esp ecificam en te d ito p o r P a u lo (R m 5,5):
" O a m o r d e D e u s foi d e rra m a d o e m n o sso s co rações a tra v é s d o E spí-
rito S an to q u e n o s foi d a d o " .
N ã o p o d e ria se r m ais o p o rtu n o q u e e sta b ela oração, q u e é a m a-
jesto sa c o n c lu sã o d o ú ltim o d isc u rso , te rm in a c om a n o ta d a h abitação
d e Jesu s n o s cre n tes - u m te m a c o rro b o ra d o p e la reiv in d icação d e
Je su s d e te r c o m u n ic a d o ao s c re n tes a g ló ria (22) e d e ter-lh es feito
c o n h e cid o o n o m e d e D eu s. T em o s d e c la ra d o q u e o tem a d a n o v a
alia n ça p e rc o rre to d o o re la to jo an in o d a ú ltim a ceia, m esm o q u a n d o
n ã o h aja m en ç ã o e xplícita d o c o rp o e d o s a n g u e e u carístico s d e C risto.
V im o s (na p . 463) q u e o m a n d a m e n to d o a m o r, m e n c io n a d o n o s p ri-
m e iro s v e rs o s d o ú ltim o d isc u rso (13,34), é " n o v o " p rec isam e n te p o r
c o n stitu ir a e s tip u la ç ã o p rin c ip a l d a aliança. A ssim tam b é m a n o ta
fin al d e h a b ita ç ã o é u m eco d a teo lo g ia d a aliança. D ep o is d a aliança
d o S inai, a g ló ria d e D e u s q u e h a b ita v a n a m o n ta n h a (Ex 24,16) veio
h a b ita r n o ta b e rn á c u lo n o m eio d e Israel (4,34). N o p e n sa m e n to joa-
n in o , Jesu s, d u r a n te s u a v id a te rre n a , foi o ta b e rn á c u lo d e D eu s q u e
e n c a rn a v a a g ló ria d iv in a (Jo 1,14), e ag o ra , n u m c en ário p a c tu a i, ele
p ro m e te d a r a s e u s se g u id o re s a g ló ria q u e D e u s lh e d e u . N a lin g u a -
g e m d o D e u te ro n ô m io , o tab e rn á c u lo (o u o n d e e ra g u a rd a d o a A rca)
foi o lu g a r o n d e o D e u s d a alian ça e sta b e le c e u se u n o m e. A ssim a g o ra
o n o m e d e D e u s d a d o a Jesu s foi co n fiad o a seu s se g u id o re s. O S enhor
D e u s q u e falo u n o S inai a sse g u ro u a se u p o v o q u e e sta v a n o m eio de-
les (Ex 29,45; N m 11,20; D t 7,21; 23,14). Jesus, q u e será a c la m a d o p o r
se u s s e g u id o re s c o m o S en h o r e D e u s (20,28), n a s ú ltim a s p a la v ra s q u e
ele lh es d irig e d u r a n te su a v id a m o rta l o ra p a ra q u e, d e p o is d e su a
m o rte , lh e seja c o n c ed id o estar com eles.

BIBLIOGRAFIA
(1 7 )

Veja a bibliografia geral sobre o ú ltim o discurso n o final d o §48.


1196 O Livro da Glória · Primeira Parte: A última ceia

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__________ ,"Für sie heilige ich mich, die du mir gegeben hast' (17, 6-19)",
SeinSend 28 (1963),484-97.
__________ "'Damit alle eins seien' (17,20-26)", SeinSend 18 (1963), 5 3 1 4 6 ‫־‬.
SPICQ, C., Agapè (Paris: G abalda, 1959), III, 2 0 4 1 8 ‫־‬. C itações são do
francês, m as h á em inglês u m a forma abreviada em Agape in the New
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59 · O último discurso: - Terceira seção (terceira unidade) 1197

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(I960), 3 7 7 4 1 9 ‫־‬.
W ENGER, E. L., ",That They All May Be One'", ET 70 ( 1 9 5 8 3 3 3 ,(59‫־‬.
O LIVRO DA GLORIA

Segunda Parte: A Narrativa da Paixão


ESBOÇO

SEGUNDA PARTE: A NARRATIVA DA PAIXÃO


(caps. 18-19)

A. 18,127‫ ־‬Primeira seção: A PRISÃO E INTERROGATÓRIO DE JESUS


(§§61-62)
(1-11) Primeira unidade: A Prisão de Jesus (§61)
1-3: Cenário da cena no jardim.
4-8: Jesus encontra o grupo que vem prendê-lo e demonstra
seu poder.
(9): Adição explicativa parentética.
10-11: Pedro reage à prisão, ferindo o servo.
(12-13) M udança de cena, encerram ento da prim eira unidade
e abertura da segunda, como Jesus é levado do jardim
para Anás.
(14-27) Segunda seção: O interrogatório de Jesus (§62)
(14): Adição explicativa parentética.
15-18: Introdução de Pedro no palácio do sumo sacerdote;
prim eira negação.
19-23: Anás interroga Jesus que alega sua inocência.
(24): Inserção preparatória para o julgam ento perante
Pilatos; Jesus enviado a Caifás.
25-27: Segunda e terceira negações de Pedro.
18,28-
B. 19,16a Segunda seção: O JULGAMENTO DE JESUS PERANTE PILATOS.
(§§63-64)
18 (28-32) Primeiro episódio: As autoridades judaicas pedem a
Pilatos que condene Jesus. (§63)
(33-38a) Segundo episódio: Pilatos interroga a Jesus sobre sua realeza.
(38b-40) Terceiro episódio: Pilatos busca soltar Jesus; "os judeus"
preferem Barrabás.
19 (1-3) Quarto episódio (intermediário): Os soldados rom anos
açoitam e escarnecem de Jesus. (§64)
(4-8) Quinto episódio: Pilatos apresenta Jesus a seu povo; "os
judeus" pedem que seja crucificado.
(9-11) Sexto episódio: Pilatos fala com Jesus sobre poder.
Esboço 1201

(12-16a) Sétimo episódio: Pilatos cede as exigências dos judeus e


ordena a crucifixão de Jesus.
C. 19,16b-42 Terceira seção: A EXECUÇÃO DE JESUS NA CRUZ E SEU
SEPULTAMENTO. (§§65-66)
(16b-18) Introdução: A via dolorosa e a crucifixão (§65)
(19-22) Primeiro episódio: Pilatos e a inscrição sobre a cruz.
(23-24) Segundo episódio: Os executores dividem as roupas
de Jesus; a túnica inconsútil.
(25-27) Terceiro episódio: Jesus confia sua mãe ao Discípulo Amado.
(28-30) Quarto episódio: Jesus grita de sede; os executores lhe
oferecem vinho; ele rende o espírito.
(31-37) Quinto episódio: Pilatos ordena não quebrar as pernas
de Jesus; brota sangue e água. (§66)
(38-42) Conclusão: O sepultam ento de Jesus por José e
Nicodemos.
60. A NARRATIVA DA PAIXÃO:
OBSERVAÇÕES GERAIS

E m se u The Gospel of the Hellenists (N o v a Y ork: H o lt, 1933), p p . 226-27,


B. W . B a co n p õ e sob trê s tó p ico s as p e c u lia rid a d e s d a N a rra tiv a Joa-
n in a d a P aixão. P rim e iro , h á u m a te n d ê n c ia ap o lo g ética: "o s ju d e u s "
em e rg em co m o os ú n ico s v ilõ es d a tra m a . A s acu saçõ es rea is c o n tra
Jesus são e x c lu siv am e n te d e c u n h o relig io so , e P ila to s se to rn a u m a
fig u ra sim p ática, sin c e ra m e n te in te re ssa d a n o b e m -e sta r d e Jesus.
S e g u n d o , h á u m a o rie n taç ã o d o u trin a i p recisa: Je su s se g u e ru m o à
p a ix ã o n ã o co m o v ítim a, e sim co m o o Ser so b e ra n o e s o b re -h u m a n o
q u e a q u a lq u e r m o m e n to p o d e ria faz e r o p ro ce sso p a ra r. T erceiro , h á
u m fo rte ele m en to d ra m á tic o q u e B a co n a trib u i à a d iç ã o d e d e ta lh e s
im ag in ário s. E stes são a p e rfe iç o a m e n to s n ã o -h istó rico s d a s n a rra tiv a s
sinóticas.
A o d e sta c a r a ap o lo g ética, o d o u trin a i e o d ra m á tic o , B a co n certa-
m en te c a p to u o e sp írito d a N a rra tiv a Jo an in a d a P aixão. E n tre ta n to , se
fô ssem o s a v a liar d e ta lh a d a m e n te as ap reciaçõ es d e B a co n p a r a com
c ad a u m , teríam o s qualificações m en o re s so b re a p rim e ira e a se g u n -
d a , e u m a qualificação m a io r so b re a terceira. E stas o b se rv a ç õ e s g erais
serão d irig id a s a to d o s os três p o n to s. C o m e ç are m o s co m as relaçõ es
d a P aix ão em João com os rela to s sinóticos, e e n tã o v o lta re m o s a u m a
av aliação g lo b al d o q u e é h istó ric o em to d o s o s rela to s d o e v a n g elh o .
F in alm en te, ao tra ta rm o s a e s tru tu ra d a N a rra tiv a Jo a n in a d a P aixão,
sa lie n ta re m o s o e le m e n to d ram ático .

João e os sinóticos

A N a rra tiv a d a P aix ão n o s oferece o m e lh o r m a te ria l p a ra u m


e s tu d o d a relação d o Q u a rto E v an g elh o com o s e v a n g e lh o s sin ó tico s,
60 · A narrativa da paixão: Observações gerais 1203

A N Á LISE Q U E TA YLO R FA Z D A
N A R R A TIV A M A R C A N A D A PA IX Ã O

A = R elato Prim itivo B = A dições M arcanas


14,26-31: Jesus sai para o M onte das
Oliveiras; ali prediz a negação de Pedro 14,32-42: Agonia no Getsêmani

43-46: Prisão de Jesus 47-52: Pedro corta a orelha do servo;


Jesus alega que ensinou diariam ente
no templo; um jovem foge desnudo
(53,55-64: Jesus perante 0 Sinédrio
[à noite]) 54,65,66-72: Escárnio de Jesus pelo
Sinédrio; negações de Pedro
15.1: Jesus perante o Sinédrio de 15,2: Pilatos pergunta a Jesus:
m anhã "És 'o Rei de dos Judeus'?"
3-5: Os sum os sacerdotes acusam
Jesus p erante Pilatos 6-14: Incidente de Barrabás
15: Pilatos entrega Jesus para ser
crucificado 16-20: Escarnecimento de Jesus da
parte dos soldados rom anos
21-24: Simão carrega a cruz; chegada
no Gólgota; lhe dão a beber vinho;
crucifixão de Jesus; repartem suas 25: Crucifixão de Jesus à terceira hora
roupas
26: Inscrição: "O Rei dos Judeus" 27: Crucifixão d e dois bandidos

29-30: Escarnecimento da parte dos 31-32: Escarnecimento da parte dos


transeuntes sum os sacerdotes e os dois bandidos
34-37: Jesus grita à hora nona; um 33: Trevas desde as horas sexta e
guarda oferece esponja com vinho nona
comum; Jesus grita e dá seu últim o 38:0 véu do tem plo é rasgado
suspiro
39: Exclamação do centurião 40-41: M ulheres contem plam à
42-46: José solicita de Pilatos 0 corpo; distância
Pilatos não dá boa acolhida a José; 0 corpo
dado a José que 0 enfaixa e 0 sepulta em 47: As duas M arias observam onde
um túmulo Jesus é sepultado
1204 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

p o is ele se co n stitu i n a n a rra tiv a m ais lo n g a d a m esm a ação q u e as d u a s


trad içõ es têm em com um . P o sto q u e a m aio ria d o s especialistas estu -
d a m esta relação em term o s d e tradições rec o n stru íd as m ais an tig as
subjacentes aos ev angelhos, a p aix ão é, a p a rtir d e ste p o n to d e vista,
in ig u alav elm en te im p o rtan te; p o is g eralm en te h á co n co rd ân cia d e q u e
as n a rra tiv a s d a p aix ão fo ram as g ra n d e s seções d o m aterial d o ev an g e-
lho a ser fo rm ad o p a ra a n a rra tiv a co ntínua. P ara q u a d ro s d e ta lh a d o s
c o m p a ran d o os d iferen tes evangelhos, v eja L éon -D ufour , cols. 1 4 3 9 -5 4 .
P o d e m o s co m eçar c om a relação d e João co m M arcos. E specialis-
tas críticos d a s d iv e rsa s ten d ê n c ia s (B u ltm a n n , J erem ias e T a ylo r , p a ra
m en c io n ar u n s p o u co s) c o n c o rd a m q u e a N a rra tiv a d a P aix ão m arc a-
n a é co m p o sta , e q u e u m a d a s p rin c ip a is fo n tes d e M arco s foi u m rela-
to c o n tín u o m ais a n tig o d a p aix ão . A p a re n te m e n te , este re la to com e-
ço u com a p ris ã o d e Jesus e c o n tin u o u co m u m a a p re se n ta ç ã o d e Jesu s
p e ra n te o S in éd rio , u m ju lg a m e n to e fe tu a d o p o r P ilato s, a c o n d e n a -
ção d e Jesus, s u a c o n d u ç ão ru m o ao G ó lg o ta, s u a crucifixão e m o rte .
(As p red iç õ es em 8 ,3 1 ; 9 ,3 1 e 1 0 ,3 3 -3 4 , q u e co n tê m m a te ria l p ré -m a r-
cano, fo rn ece o m esm o q u a d ro ; e o fra se a d o é p a rc ia lm e n te in d e p e n -
d e n te d a N a rra tiv a M a rc a n a d a Paixão). J eremias d e d u z a ex istên cia
d e ste rela to p rim itiv o a p a rtir d e u m a c o m p a raç ã o d e M arco s e João
e d a in fo rm ação em M c 1 0 ,3 3 -3 4 . B ultm a nn d e d u z s u a ex istên cia d a
crítica literá ria d a n a rra tiv a m arc an a , c o m p a ra n d o -a co m a o u tra
N a rra tiv a Sinótica d a Paixão. A s d e d u ç õ e s d e T a ylo r são b a se a d a s
n a p re se n ç a e a u sên c ia d e se m itism o n a s d ife re n te s p a rte s d a p a ix ã o
m arcan a. E m g eral, B u ltm a n n e J erem ias a trib u e m m e n o s m a te ria l ao
relato p rim itiv o d o q u e faz T a ylo r , m as o co n sen so g e ra l q u e flu i d e
três m é to d o s d ife ren te s é im p re ssio n a n te . (D eve-se d e ix a r c laro q u e
este relato " p rim itiv o " n ã o é in in te rru p to e n o tic iá rio factu al; a refle-
xão teológica já d e ix o u su a s m arc as nele). O ra, a este re la to p rim itiv o
M arcos a n e x o u o u tro m aterial. B u ltm a n n ex p licaria e ste m a te ria l a n e-
x ad o co m o n a rra tiv a s le n d á ria s o u d e acréscim o s d o u trin a is. T a ylo r ,
e n tre ta n to , a p o n ta p a ra o fo rte to m sem ítico d o m a te ria l a n e x ad o : n ã o
é c o n tín u o , m as co n siste d e n a rra tiv a s v iv id a s e a u to -su fic ie n tes e d e
d e ta lh e s su p le m e n ta is. T a ylo r p e n sa q u e M arco s a g re g o u as rem i-
niscên cias d e P e d ro ao re la to p rim itiv o q u e e n c o n tro u e m circu lação
em R om a. C o m o te re m o s m u ita s ocasiões d e n o s refe rirm o s a o s d o is
tip o s d e m ate ria l m arc an o , a p re se n ta m o s u m e sq u e m a re s u m id o d o
p o n to d e v ista d e T a ylo t (Mark, p . 6 5 8 ). T a ylo r n ã o te m c e rtez a se a
60 · A narrativa da paixão: Observações gerais 1205

p a s s a g e m e n tre p a rê n te se s (14,53.55-64) p e rte n c e a A. D e n tro d a co-


lu n a A co lo cam o s e m itálicos as cen as q u e B u ltm a n n , HST, p p . 268ss.,
não aceita co m o p rim itiv a s.
N a q u e s tã o d a s relaçõ es e n tre João e M arcos, v e m se to rn a n d o
m ais c o m u m e s tu d a r a se m e lh an ç a d e João com u m a d a s fo n tes m ar-
can as, A o u B , em v e z d a N a rra tiv a M a rc a n a d a P aix ão com o u m todo.
V isto q u e J erem ias , EWJ, p . 94, b a seia su a rec o n stru ç ã o d o rela to con-
tín u o p rim itiv o n u m a c o m p a raç ã o d e M arco s e João, lo g icam en te ele
e n c o n tra ria m u ita s s im ila rid a d e s e n tre a P aix ão d e João e A. N ã o obs-
ta n te , B use , e m u m e s tu d o b a se a d o p re c isa m e n te n a teo ria d e T a ylo r ,
ach a im p re ss io n a n te s sim ila rid a d e s e n tre João e B , d a q u al, su g ere
ele, João e x tra iu e a q u a l su p õ e -se ter circ u la d o in d e p e n d e n te m e n te .
S. T em ple , art. cit. tem re e stu d a d o as trad içõ es A e B d e M c 14, suge-
rin d o correções a serem feitas n a d istrib u ição d o m aterial d e T aylor .
P o r e x e m p lo , n o re la to d a p risã o , a rec o n stru ç ã o d e B q u e T em ple faz
(M c 14,32-42.43a.44-46) n ã o te m p a ra le lo s jo an in o s. T erem o s d e exa-
m in a r a s s im ila rid a d e s a M arco s q u a n d o d isc u tirm o s c a d a cena em
Jo ão , m a s à g u isa d e a n te c ip a ç ã o p o d e m o s a firm a r q u e desco b rim o s
q u e Jo ão te m e le m en to s e m c o m u m com A e B. E m c o n tra p a rtid a , al-
g u m a s d a s ce n as e m B estã o p e rd id a s e m João: a a g o n ia n o G etsêm a-
ni; o protelado a b u so d o S in éd rio ; crucifixão à terceira h o ra; trev as; v éu
d o te m p lo ra sg a d o ; m u lh e re s à d istân cia; a s d u a s M arias o b se rv a n d o
o n d e Jesu s é se p u lta d o . (A lista seria m ais lo n g a caso B ultm a n n seja
s e g u id o e m s u a classificação d e m a te ria l u lte rio r co m o não-A ). M u itas
d a s c e n as e m A ta m b é m estã o fa lta n d o em João: sessão n o tu rn a d o
S in éd rio ; S im ão d e C irene; m o tejo d o s tra n se u n te s; o g rito d e Jesus
" E l o i a ex clam ação d o ce n tu riã o . (C aso se aceite o A m ais b re v e d e
B u ltm a n n , s o m e n te u n s p o u c o s e p isó d io s se ria m e n c o n tra d o s em A
q u e n ã o a p a re ç a e m João). M esm o n a s cen as p a rtilh a d a s p o r João e
o u A o u B h á im p o rta n te s diferen ças; e, n a tu ra lm e n te , João tem m u ito
m a te ria l, b o a p a rte b e m p lau sív e l, q u e n ã o se e n c o n tra em n e n h u m a
fo n te m arc an a . A ssim , n o ssa co n clu são a n te c ip a d a é q u e a tra d içã o
p rim itiv a d a p a ix ã o su b jacen te (P rim eiro estág io - vol. 1, p . 20) em
a lg u n s p o n to s e ra se m e lh a n te a a m b a s as fo n tes m arc an a s, A e B , m as
e ra m in d e p e n d e n te s delas.
A c o m p a ra ç ã o d e João e M a te u s é c o m p lic a d a p e lo fato d e q u e a
crítica sin ó tica q u e atin ja u m co n sen so so b re se M a te u s rec o rre u a u m a
tra d iç ã o in d e p e n d e n te p ré-e v a n g élic a p a ra a p a ix ã o o u sim p lesm en te
1206 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

m o d ifico u M arcos. T o d o s c o n c o rd a m q u e a lg u m a s d a s cen as e d e ta -


lhes p ecu liares a M a te u s refletem elab o ração teológica e o rn a m e n to s
p o p u lare s. E m g eral, os críticos alem ães te n d e m a p e n s a r q u e M a te u s
d e p e n d e u d e M arcos e n ã o tev e fo n te p rim itiv a im p o rta n te , e n q u a n to
os franceses e b elg as p e n sa m q u e M a te u s teve u m a fo n te m ais p rim i-
tiv a d o q u e M arcos em m u ito s casos (veja L éo n -D ufour , cols. 1448-53).
P esso alm en te, aceitam os a d e p e n d ê n c ia m a te a n a d e M arcos p a ra a
m aio ria d o s ep isó d io s, m a s m an te re m o s e m m e n te a o u tra po ssib ili-
d a d e q u a n d o co m e n tam o s so b re a relação d e João com a tra d iç ã o si-
nó tica em c ad a ep isódio. P. B orgen , q u e a d m ite q u e n e n h u m a relação
literária d ire ta se p o d e p ro p o r e n tre João e os sinóticos, su g e re q u e em
João u n id a d e s d e p ro v en iê n cia sinótica fo ram a n e x a d a s a u m a tra d i-
ção jo an in a u m a v e z in d e p e n d e n te . Ele se co n cen tra p a rtic u la rm e n te
n o s p aralelo s a M ateus; m as a crítica q u e B use faz à p o sição d e B orgen
é co n v in cen te, a sab er, q u e os p a ra lelo s jo an in o s com M a te u s n ã o são
p a rticu la rm e n te decisivos o u claros. P o r ex em p lo , n o e p isó d io o n d e
Jesu s é p reso , so m en te João e M a te u s têm Jesus in stru in d o o d isc íp u lo
a d e se m b a in h a r s u a e sp a d a , m as ta n to as p a la v ra s u s a d a s p a ra fo rm u -
lar a in stru çã o co m o as raz õ e s a d u z id a s p a ra ela são m u ito diferen tes.
A c o m p a raç ã o e n tre as N a rra tiv a s d a P aix ão d e João e L ucas é d e
certo m o d o a m ais in te ressa n te . L ucas p a re c e te r u s a d o M arco s co m o
u m a fo n te p a ra a lg u m a s seções d a p a ix ã o (cerca d e u m q u a rto d o re-
lato lu ca n o p o d e ser tid o co m o a r e p ro d u z ir M arcos), m a s q u a n to ao
resta n te d a n a rra tiv a d a p a ix ã o L ucas d ife re n o ta v e lm e n te d e M ar-
cos. LoiSY, H o ltzm an n , L ietzm an n , D ibelius e B u ltm a n n e stã o e n tre os
q u e h e sita m a trib u ir a L ucas o u so d e u m a fo n te p rim itiv a re a lm e n te
in d e p e n d e n te d e M arcos e as fo n tes m a rc a n a s - estes e stu d io so s ten -
d e m a a trib u ir m u ito d a s d ife ren ç a s e n tre L ucas e M arco s à re d a ç ã o
lu can a criativ a d e M arco s o u d e u m a fo rm a m ais a n tig a d a s fo n te s d e
M arcos. A q u i, p o ré m , m u ito m ais d o q u e n o caso d e M a te u s, p e n sa -
m o s q u e u m a só lid a defesa se p o d e fo rm u la r p a ra a tese d e q u e L u-
cas re c o rre u a u m a fo n te re a lm e n te in d e p e n d e n te , n ã o m a rc a n a , tese
h a b ilm e n te a p re s e n ta d a p o r A. M . P erry , The Sources o f Luke's Passion
Narrative [As F o n tes L u can as d a N a rra tiv a d a P aixão] (U n iv e rsid a d e
d e C h icag o , 1 9 2 0 ) e c o rro b o ra d a p o r B . W eiss, S pitta , B urkitt , E aston ,
S treeter , T a ylo r , J erem ias , B enoit , W inter , e n tre o u tro s. O sty , art. cit.,
tem s a lie n ta d o m ais d e q u a re n ta casos o n d e so m e n te L u cas e João te m
algo e m c o m u m n a N a rra tiv a d a P aixão, a lg u n s d o s caso s p rec iso s
60 · A narrativa da paixão: Observações gerais 1207

dem ais p a ra qu e sejam acidentais. O sty tem sugerido que um discípu-


lo d e Lucas o u alguém que conhecia o Evangelho de Lucas se envoi-
v eu na redação de João; B oismard tem identificado o red ato r joanino
com o sendo o p ró p rio Lucas. (Isto vai além d e nossa posição - vol. 1,
p. 23ss - de que possivelmente o red ato r final de João anexou alguns
detalhes ao evangelho q u an d o a d q u iriu sua form a final, tom ando-os
d a tradição sinótica, especialm ente de M arcos). C rem os que os parale-
los p o d em ser explicados em term os d a dependência joanina de um a
tradição m ais antiga que em m uitos casos se aproxim a da tradição
u sa d a p o r Lucas. N ão é im possível que Lucas conhecesse u m a form a
prim itiv a d a tradição joanina desenvolvida (um a tese que O sty tam -
b ém abraça em seu esforço p o r explicar os traços joaninos de Lucas).
A ssim , nossa conclusão geral sobre a N arrativa da Paixão, que
será exposta detalh ad am en te pelos com entários sobre as seções indi-
viduais, é a m esm a conclusão detectada p o r nosso estudo do restan-
te d o Q uarto Evangelho, a saber, que João não recorre, em nenhum a
extensão, aos evangelhos sinóticos existentes o u às suas fontes como
reconstruídas p o r especialistas. A N arrativa da Paixão joanina é ba-
seada em u m a tradição in d e p en d en te que tem sim ilaridades com as
fontes sinóticas. O n d e as várias fontes pré-evangélicas concordam ,
estam os n a presença de u m a tradição que teve am pla aceitação em
u m estágio m uito antigo na história d a Igreja C ristã e, portanto, um a
tradição que é m u ito im portante em questões d e historicidade. Entre-
tanto, o valo r histórico d e detalhes peculiares a um a ou ou tra tradição
pré-evangélica não deve ser desconsiderado apressadam ente, em bora
haja m aior possibilidade de que tais detalhes sejam o riundos da preo-
cupação teológica ou apologética d a respectiva tradição.
C ertam ente, na N arrativ a d a Paixão joanina, a tradição pré-evan-
gélica subjacente tem sido drasticam ente rem odelada p o r interesses
doutrinais, apologéticos e dram áticos, com o B acon tem insistido. Por
exem plo, o relato que João conta de Jesus n a cruz consiste d e episó-
dios selecionados p o r sua im plicação sim bólica e raram ente se tem
incluído u m detalhe que não seja teologicam ente orientado. Tem-se
em p restad o ao julgam ento joanino de Jesus p eran te Pilatos um cená-
rio dram ático e tornou-se um veículo explicativo d a n atu reza do reino
de Jesus e d a culpa de "os ju d e u s" na m orte d e Jesus. Todavia, a acei-
tação d a tese de u m a tradição in d ep en d en te subjacente a João nos faz
cautelosos sobre assum ir tão depressa que a doutrina, a apologética e
1208 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

o d ra m a criaram a m a té ria p rim a b ásica p a ra a s ce n as e n v o lv id a s. E m


n o ssa o p in iã o , o g ên io d e João, a q u i, com o em o u tro s lu g a re s, consis-
tiu e m r e in te rp re ta r, em v e z d e in v en ta r.

Reconstrução histórica da prisão e julgamento de Jesus

E n q u a n to d e a lg u m a s m a n e ira s esta d isc u ssã o p o d e ría se g u ir m e-


lh o r n o sso co m en tário so b re as cen as e n v o lv id a s, ela p re v e n irá rep e ti-
ção e co n fu são se d e rm o s u m a v isã o g lobal a n te s d e p a ssa rm o s ao co-
m en tário . A lém d o m ais, v isto q u e e sta série d e c o m e n tário s é d irig id a
a u m a u d itó rio m isto p a ra a lg u n s d o q u a l esta p o d e ria se r u m a q u es-
tão sensível, p e n sam o s ser sábio esclarecer d e sd e o início n o ssa lin h a
d e a b o rd a g e m . U m fato histó rico é lu c id a m e n te claro: Jesu s d e N a z a ré
foi sen ten ciad o p o r u m p refeito ro m a n o a se r cru cificad o so b a c u lp a
política d e h a v e r re iv in d ic a d o ser " o Rei d o s Ju d e u s" . A s fo n tes cris-
tãs, ju d aic as e ro m a n a s c o n c o rd a m nisto. O v e rd a d e iro p ro b le m a d iz
resp eito a se e em q u e m e d id a o S in éd rio o u as a u to rid a d e s ju d aic as
d e Jeru salém ex erceram a fu n ção d e lev a r a efeito a crucifixão d e Jesus.
D e fato, h á o u tro p ro b le m a su sc ita d o p e lo p ró p rio N T q u a n to a se
a re sp o n s a b ilid a d e p e la crucifixão d e Jesus d e v e se r p o sta so b re to d a
a n ação d e se u te m p o e in clu siv e so b re as g eraçõ es su b se q u e n te s d o s
Ju d e u s. P o r m ais e m b a raç o so q u e seja esse s e g u n d o p ro b le m a p a ra
m u ito s c ristão s hoje, é p rec iso rec o n h e c er h o n e s ta m e n te q u e ele te m
su a s o rig e n s e m certas g en eralizaçõ es d o N T so b re o s ju d e u s (vol. 1,
p. 56) e n a s p a ssa g e n s co m o M t 27,25; Jo 7,19; 8,44; e lT s 2,14-16. (En-
q u a n to a h o s tilid a d e n e sta s afirm açõ es tev e s u a o rig e m n u m a p o lê-
m ica e n tre sin a g o g a e igreja, a m iú d e o s cristão s e s p e ra v a m d e s p e rta r
n o s ju d e u s c u lp a p e la rejeição d e Jesu s e, assim , p ro v o c a r s u a con-
v ersão ). E ste p ro b le m a n ã o é so lu c io n a d o n e m p e la p re te n s ã o d e q u e
os resp ectiv o s a u to re s d o N T n ã o q u e ria m d iz e r o q u e d iss e ra m n e m
ex clu in d o a s p a s sa g e n s o fen siv as (p. ex., com o fez D agobert R u n es ,
The Gospel According to Saint John... editado em conformidade com 0 verda-
deiro espírito ecumênico de Sua Santidade, 0 Papa João XXIII [N o v a York:
P h ilo so p h ical L ib rary , 1967]). A so lu ção jaz n o rec o n h e c im e n to d e q u e
os liv ro s d e a m b o s o s T e sta m en to s p o d e m se rv ir co m o sig n ificativ o s
g u ias so m e n te q u a n d o se le v a r e m co n ta o e sp írito d a ép o c a e m q u e
fo ram c o m p o sto s. N ã o o b sta n te , isto é o b v ia m e n te m a is u m p ro b le m a
teológico d o q u e histórico.
60 · A narrativa da paixão: Observações gerais 1209

C o n fin a n d o -n o s ao p ro b le m a p rim á rio e o ú n ic o q u e p ro p ic ia es-


p e ra n ç a d e so lu ç ã o h istó rica, a sa b er, o p ro b le m a d o e n v o lv im e n to
d a s a u to rid a d e s ju d a ic a s, p o d e m o s d istin g u ir ao m e n o s q u a tro p o n -
to s d e v ista:

(1) A p o siç ã o cristã clássica d e q u e a s a u to rid a d e s ju d aic as fo ram os


p iv ô s c e n tra is n a p risã o , ju lg a m e n to e sen ten ça d e Jesus. T ram a-
ra m c o n tra ele p o rq u e n ã o c re ra m e m su a s reiv in d icaçõ es m essiâ-
n icas; o S in é d rio o e x a m in o u sob a acu sação d e b lasfêm ia e o sen-
ten c iara m . N ã o o b sta n te , o u p o rq u e so m e n te o s ro m a n o s p o d ia m
e x e cu ta r c rim in o so s o u p o rq u e as a u to rid a d e s ju d a ic a s desejaram
tra n s fe rir p a ra o s ro m a n o s a re sp o n sa b ilid a d e p ú b lic a d e m a ta r
Jesu s, o S in é d rio o e n tre g o u a P ilato s sob u m a a c u sação política e
c h a n ta g e a ra m P ilato s a fazer a sen ten ça. (A lg u n s in clu siv e d iría m
q u e P ilato s a p e n a s ratifico u a se n te n ç a d e m o rte ju d aica). P o r este
p ris m a , o s ro m a n o s fo ra m p o u c o m ais q u e ex ecu to res. C o m v aria-
ções, e sta é a in te rp re ta ç ã o d e M om m sen , Sc h ü rer , V on D obschütz ,
W . B a u er , B illerbeck , D ibelius e B lin zler .
(2) U m a m o d ificação d a teo ria a n te rio r q u e stio n a o c a rá te r fo rm al
d o ju lg a m e n to d o S in éd rio e su g e re q u e re a lm e n te n ã o se p a sso u
n e n h u m a se n te n ç a ju d a ic a so b re Jesus. E m b o ra a s a u to rid a d e s ju-
d a ic a s e stiv e sse m p ro fu n d a m e n te e n v o lv id a s, to d a s as p rin c ip ais
fo rm a lid a d e s leg ais fo ra m e x e c u ta d a s p e lo s ro m a n o s. H oje m u i-
to s e s tu d io s o s c ristão s a d o ta m , d e u m a fo rm a o u o u tra , e ste p o n to
d e v ista.
(3) O s ro m a n o s fo ra m o s p iv ô s cen trais. T in h a m o u v id o d e Jesus
co m o u m p o ssív e l p e rtu rb a d o r e fo rç a ra m a co o p eração judaica.
M u ito s e s tu d io so s ju d e u s tê m su g e rid o q u e a p e n a s u m a p e q u e -
n a facção d e n tro d o S in éd rio (os a d e p to s d o su m o sa ce rd o te o u
o s lid e re s s a d u c e u s, p o ré m n ã o os fariseu s) e sta v a e n v o lv id a n a
p ris ã o e in te rro g a tó rio d e Jesus. P. W inter p e n sa q u e o S inédrio,
re lu ta n te m e n te , a c e d e u à p re ssã o ro m a n a co m o u m g esto d e con-
v e n iê n c ia p o lítica, m as n ã o h a v ia a n ta g o n ism o relig io so real con-
tra Jesus. A . B ü c h ler (1902) su g e re q u e h a v ia d o is S in éd rio s, u m
e n v o lv id o c o m q u e stõ e s relig io sas e o o u tro co m q u e stõ e s civis
(ta m b ém , com v ariaçõ es, L auterbach , A braham s , Z eitlin ). T eori-
za-se q u e o S in éd rio relig io so , o real c o rp o g o v e rn a n te d o ju d aís-
m o , q u e e ra o re p re s e n ta n te ro m an o .
1210 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

(4) A s a u to rid a d e s d e m o d o a lg u m e sta v a m e n v o lv id a s, n e m m e sm o


co m o u m in s tru m e n to d o s ro m a n o s. T o d a s as referên cias a e la s o u
ao S in éd rio n o N T re p re s e n ta m u m a falsificação a p o lo g é tic a d a
h istó ria.
(P ara m ais d e ta lh e s so b re os d e fe n so re s d e sta p o siç ã o e s u a s v a ria n -
tes, v eja B lin zler , Trial, p p . 10-20; L éo n -D u fo u r , cols. 1488-89).

A lg u é m p o d e s im p a tiz a r c o m a ú ltim a tese m e n c io n a d a c o m o


u m a re a ç ã o ao s sé cu lo s d e p e rs e g u iç ã o a n ti-ju d a ic a , a m iú d e d e fla -
g ra d a co m o u m a v in g a n ç a p e la s u p o s ta re s p o n s a b ilid a d e ju d a ic a
p e la cru cifix ão . N ã o o b sta n te , ela te m p o u c o d ire ito a se r re c o n h e c í-
d a co m o c ie n tific a m e n te re sp e itá v e l. É u m a re iv in d ic a ç ã o re la tiv a -
m e n te m o d e rn a , p o is a s refe rê n c ia s ju d a ic a s m a is a n tig a s a o te m a
a c eita m fra n c a m e n te o e n v o lv im e n to ju d a ic o n a m o rte d e Jesu s. T al
é o caso d a baraitha e m TalB ab, Sanhedrin, 43a, u m a p a s s a g e m cujo
v a lo r e a n tig u id a d e (a n te rio r a 220) sã o d e fe n d id o s p o r M . G o ld stein ,
Jesus in the Jewish Tradition (N o v a Y ork: M a cm illan , 1950), p p . 22ss.
The Testimonium Flavianum, o u a re fe rê n c ia a Je su s e m J o sefo , Ant.
18.3.3; 64, d iz q u e Je su s foi in d ic ia d o p e lo s p rin c ip a is h o m e n s d e n tr e
o s ju d e u s . (U m c re sc e n te n ú m e ro d e e s tu d io s o s se d is p õ e m a reco -
n h e c e re m q u e e sta re fe rê n c ia a Je su s p e rte n c e s u b s ta n c ia lm e n te a o
tex to d e J o sefo d o l e sécu lo ; cf. L. H . F eld m a n , v ol. IX n a e d iç ã o d e
L oeb C lassical L ib ra ry [H a rv a rd , 1965], p . 49; W in ter , "Josephus").
N e m n o s a p o lo g e ta s ju d e u s c o n tra o c ristia n ism o re fle tid o n o Did-
logo contra Trifo, d e J ustino , e e m Celso d e O ríg en es , n e m n a s v á ria s
v e rsõ e s d a s le n d a s a m a rg a m e n te a n ti-c ristã s d o Toledoth Jeshu h á
e v id ê n c ia d e u m a te n ta tiv a a n tig a d e co lo car a e x c lu siv a re s p o n s a -
b ilid a d e p e la m o rte d e Je su s so b re os ro m a n o s (E. B a m m el , N T S 13
[1966-67], 328).
Se p a s sa rm o s d a e v id ê n c ia ju d a ic a p a ra a d o N T , p o d e -se retro -
ced er ao s a n o s 40 a aleg ação d o e n v o lv im e n to ju d aic o . É v e rd a d e q u e
os e v a n g elh o s te n d e m a in ten sificar a re s p o n s a b ilid a d e ju d aic a; m a s
n ã o é p o ssív e l m a n te r q u e o s e v a n g elista s in v e n ta ra m a tese d e q u e
as a u to rid a d e s ju d a ic a s e sta v a m e n v o lv id a s, p o is ela a p a re c e a n te s
d o te m p o d o s e v a n g e lh o s escritos. H . E. T ö d t , The Son of Man in the
Sinoptic Tradition [O F ilho d o H o m e m n a tra d iç ã o Sinótica] (F iladél-
fia: W e stm in ste r, 1965), p p . 155ssv tem a rg u m e n ta d o p la u siv e lm e n -
te q u e a s p re d iç õ e s a trib u íd a s a Jesus co n c ern e n te s à s u a p a ix ã o ,
60 · A narrativa da paixão: Observações gerais 1211

m o rte e ressurreição, em Mc 8,31; 9,31; 10,33-34, foram de origem


p ré-m arcana e, em sua m aioria, palestinense. E estas predições pres-
su p õ e m envolvim ento judaico. (G. S trecker, Interp 22 [1968], 42142‫־‬,
concorda que a predição básica é pré-m arcana, p ro v in d a da com u-
n id a d e prim itiv a pós-pascal). A lém do m ais, o relato prim itivo pré
-m arcano d a paixão, que tem os discutido anteriorm ente, parece ter
incluído u m com parecim ento de Jesus ao Sinédrio ou sum o sacerdote.
S egundo m uitos autores, os serm ões atribuídos a P edro em A tos con-
têm m u ito m aterial prim itivo; e estes serm ões (3,14-15; 4,10; 5,30; cf.
8,27-28) tam bém dão às au to rid ad es judaicas u m p ap el na m orte de
Jesus. N o escrito cristão m ais antigo p reservado (61 a.C), Paulo fala
d e "os ju d eu s que m ataram o Senhor Jesus" (lT s 2,14-15). Esta é um a
passagem polêm ica que generaliza e exagera; m as não podem os ra-
cionalm ente su p o r que Paulo, que conheceu bem a Palestina dos anos
30, escrevesse essas palavras com o p u ra invenção.

Se rejeitarm os a q u arta opinião supram encionada e pressupor-


m os a lg u m envolvim ento d as au to rid ad es judaicas, tam bém devem os
reconhecer as debilidades da prim eira opinião que faz as autorida-
des judaicas quase totalm ente responsáveis pela m orte de Jesus ao
q u al o d iav am unicam ente p o r razões religiosas. O bviam ente, esta-
va no interesse d a Igreja cristã buscar a tolerância das autoridades
ro m an as sobre as quais ela tinha de viver, a fim de evitar culpar os
ro m an o s pela m orte d e Jesus. (N ão acham os particularm ente convin-
cente a objeção de que já em fins d o p eríodo neotestam entário a Igre-
ja se v oltou contra Rom a, com o testem unhado no A pocalipse, e não
se p reo cu p a ria com a opinião rom ana. A Igreja ainda não querería
d iz er q u e houvesse algum a justificativa n a alegação de que seu Se-
n h o r era u m revolucionário político contra Roma). Os efeitos desta
tendência d e justificar os rom anos nas narrativas do evangelho são
óbvios a m e d id a em que o tem po vai passando. Em Mc 15,6-15, Pila-
tos ten ta absolver Jesus, m as não tem gran d e resultado de sua relu-
tância a sentenciar Jesus. Em M t 27,19.24-25, a relutância de Pilatos
é m u ito m ais notável; não só sua esposa lhe inform a d e seu sonho
d e q u e Jesus é u m hom em inocente, m as Pilatos lava publicam ente
su as m ãos d a responsabilidade, proclam ando: "E u sou inocente do
san g u e deste hom em ". Em Lc 23,4.14.22 Pilatos solenem ente declàra
três vezes que não encontra em Jesus n enhum a culpa. Ele envia Jesus
1212 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

a H e ro d e s n u m a te n ta tiv a d e e v ita r p ro n u n c ia r a se n te n ç a c o n tra Je-


su s e in clu siv e p ro p õ e ao s líd e res ju d e u s o c o m p ro m isso d e aç o itar
Jesus e m v e z d e e n tre g á-lo à m o rte (23,16.22). E m Jo 18,28-19,16, Pi-
lato s faz d e te rm in a d o esforço p a ra p e rd o a r Jesus e re a lm e n te m a n d a
aço itar Jesu s e a p re se n tá -lo ao p o v o n u m esforço d e c o n q u ista r s u a
sim p atia. P ilato s e stá d e p le n a p o sse d e Jesu s e p a re c e te m e r q u e es-
teja lid a n d o co m a lg u m se r d iv in o (19,7-8). O p ro ce sso d e m e lh o ra r a
im a g e m d e P ilato s c o n tin u a além d o p e río d o n e o te sta m e n tá rio a té o
te m p o d e E usébio . P o r ex em p lo , o Evangelho de Pedro, 2, faz H e ro d e s,
n ão P ilato s, o ú n ico q u e p ro n u n c ia a se n te n ç a d e m o rte . N a tra d iç ã o
siríaca (OSsin), a N a rra tiv a d a P aix ão m a te a n a é re e sc rita p a r a faz e r
p a re c e r q u e so m e n te os ju d e u s m a ltra ta ra m e cru c ific ara m Jesus.
A Didascalia Apostolorum (v 19:4; F u n k ed ., p . 290), d o 3a sécu lo , com -
p o s ta n a Síria a firm a q u e P ilato s n ã o c o n se n tiu n a s m a q u in a ç õ e s d o s
p e rv e rso s ju d e u s. T ertulian o , Apologeticum 21,24; PL 1:403, p e n s a e m
P ilato s co m o u m cristão n o coração, e m ais ta rd e le n d a s fala m d e s u a
co n versão . N a C ó p tica e n a h a g io g ra fia etió p ica, P ila to s e s u a e sp o sa
P ro cla são q u alificad o s d e sa n to s cuja festa é c e le b ra d a e m 25 d e ju -
nh o . Se n e ste p ro ce sso d e ju stificativ a, P ilato s e os ro m a n o s p o d e m
ser re c o n stru íd o s a p a rtir d e 60 d.C ., fazem o s b e m e m s u p o r q u e isto
já e sta v a em ação n a e ra p ré-ev an g élica, e q u e e m a lg u m a e x te n sã o
o E v an g elh o d e M arco s já h a v ia m o d e ra d o o e n v o lv im e n to ro m a n o .
Se o s ro m a n o s fo ra m m ais re sp o n sá v e is d o q u e p o d e p a re c e r a
p a rtir d e u m a le itu ra inicial d o s e v a n g elh o s, p o rv e n tu ra as a u to rid a -
d e s ju d aic as, c o rre sp o n d e n te m e n te , fo ra m m e n o s e n v o lv id a s? S eg u n -
d o M arco s e M a te u s, o p ro ce sso d e Jesu s foi fo rm a lm e n te e x a m in a-
d o p e lo S in éd rio , te ste m u n h a s fo ra m c h a m a d a s e p ro n u n c ia d a u m a
sen ten ça d e m o rte . A se n te n ç a é m a is clara em M c 14,64 d o q u e e m
M t 26,66; m as a m b o s os e v a n g e lh o s (M c 10,33; M t 20,18) re g istra m u m a
v ersão d a terceira p re d iç ã o q u e Jesus fez d e s u a m o rte , o n d e é d ito q u e
os p rin c ip a is sa ce rd o te s e escrib as o condenarão à m o rte . E sta ú ltim a
ev id ên cia sig n ifica q u e a id eia d e u m a se n te n ç a ju d a ic a d e m o rte era
co n h ecid a n a c o m u n id a d e p a le stin e n se p ré -m a rc a n a ; ta m b é m exclui
in te rp re ta ç õ e s b e n e v o le n te s (L agran ge , B ick erm a n n ) d a c en a d o trib u -
n a l em q u e so m o s in fo rm a d o s q u e o S in éd rio m e ra m e n te e x p re sso u
a o p in iã o d e q u e Jesu s e ra m ere c e d o r d e m o rte. S e g u in d o a o p in iã o
d e H ans L ietzm an n , m u ito s esp ecialistas, co m p e rsp e c tiv a s b íb licas
m u ito d ife ren te s (p. ex., G o guel , B ickerm ann , B enoit , W inter ), têm ,
60 · A narrativa da paixão: Observações gerais 1213

e m g ra u s v a ria n te s, e x p re ssa d o su a s re se rv a s acerca d a s descrições,


m a rc a n a e p ré -m a rc a n a , d e u m ju lg a m e n to fo rm al e u m a sentença. E
p a ssív e l d e d ú v id a se tal c en a fosse e n c o n tra d a n o rela to p rim itiv o d a
p a ix ã o (relato m a rc a n o A); e L u cas e João p a re c e m c o n c o rd a r, in d e-
p e n d e n te m e n te , n u m a v e rsã o d o e n v o lv im e n to ju d a ic o q u e n ã o inclui
u m ju lg a m e n to co m te ste m u n h a s o u u m a se n te n ç a d e m o rte. C onsi-
d e re m o s s u c in ta m e n te estes d o is ev a n g elh o s. E m Jo 18, a p risã o d e
Jesu s é e fe tu a d a p e la força d a g u a rd a d o tem p lo com a co rro b o ração
d e s o ld a d o s ro m a n o s. C o n d u z id o a A n á s p a ra in te rro g a tó rio , Jesus
ex ig e q u e se a p re se n te p ro v a d e q u e ele te m feito alg o e rra d o . E ntão é
e n v ia d o a C aifás q u e o lev a a P ilatos. A ssim , h á a p e n a s u m a descrição
m u ito in su ficie n te d a ação ju d a ic a leg al c o n tra Jesus. E m Lc 22,66-70,
o su m o sa c e rd o te in te rro g a Jesus d ia n te d o S in éd rio , p o ré m n ã o se
a p re s e n ta n e n h u m a te ste m u n h a e n ã o se p ro n u n c ia n e n h u m a sen-
ten ça. É difícil a v a lia r a o m issã o lu c a n a d e te ste m u n h a s co n tra su a
p re s e n ç a e m M a rc o s /M a te u s . A a u sên c ia lu c a n a d e teste m u n h a s é
c o lo c a d a e m d ú v id a p o r Lc 22,71, o n d e a q u e stã o " P o r q u e necessita-
ría m o s d e te s te m u n h a s? " poderia im p lic a r q u e tem h a v id o o u tro teste-
m u n h o a lé m d a q u e le d o p ró p rio Jesus. E m c o n tra p a rtid a , a p resen ça
d e te s te m u n h a s e m M a rc o s /M a te u s p o d e ria refletir a in flu ên cia d o
A T n o re la to d a p aixão: " C o n tra m im se le v a n ta ra m falsas teste m u -
n h a s " (SI 27,12). A o m issão d e u m a se n te n ç a ju d ic ia l e m L ucas dificil-
m e n te é a c id e n ta l, p o is n a fo rm a lu c a n a d a terceira p re d iç ã o d a paix ão
(Lc 18,31-33) n a d a h á re g istra d o so b re se r Jesus e n tre g u e ao s prin ci-
p a is sa c e rd o te s e se r c o n d e n a d o à m o rte , co m o n a fo rm a m a r c a n a /
m a te a n a . A tra d iç ã o d e L ucas so b re a ação ju d a ic a leg al c o n tra Jesus
p a re c e e s ta r re s u m id a e m A t 13,28: "E, e m b o ra [os q u e v iv ia m em
Je ru sa lé m e s e u s g o v e rn a n tes] n ã o ach assem a lg u m a coisa d e m o rte,
p e d ira m a P ila to s q u e ele fosse m o rto ".
P o rta n to , d e u m a c o m p a raç ã o d o s ev a n g elh o s, ficam os co m a im -
p re s s ã o d e p o ssív e l e x ag ero n a tra d iç ã o m a rc a n a d e u m ju lg a m e n to
fo rm al. D e p o is d e re g istra r u m a sessão n o tu rn a d o S in éd rio q u e se
p ro n u n c ia u m a se n te n ç a d e m o rte c o n tra Jesus, M arcos (15,1) e M t
(26,1) d e s c re v e m u m a s e g u n d a sessão m a tu tin a d o Sinédrio! N ã o tem
u m a fin a lid a d e c lara p a ra e sta s e g u n d a sessão, e p ro v a v e lm e n te ela
re su lta d a fu sã o d e d o is rela to s d a m esm a cena. M u i fre q u e n te m en te
se su scita u m a q u e stã o so b re co m o os se g u id o re s d e Jesus p o d e ria m
ter d e sc o b e rto o c o n te ú d o d a sessão d o S inédrio. A d ific u ld a d e n ão
1214 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

é tão séria, p o is a lg u n s d o s p re se n te s p o d e ría m , su b se q u e n te m e n te ,


te r c o m e n ta d o so b re o s p ro ce d im e n to s. N ã o o b sta n te , a re s p o s ta co-
m u m d e q u e a lg u n s d o S in éd rio e ra m se g u id o re s d e Jesu s (José d e
A rim ateia? O s m e n c io n a d o s e m Jo 12,42?) n ã o n o s é d e m u ita v a lia
aq u i, p o is M c 14,55 fala d e to d o o S in éd rio e sta n d o p re s e n te e 14,64
d isc u te q u e todos eles o c o n d e n a ra m . M u ito s d o s a m ig o s d e Jesus,
e m alto s p o sto s, p o d e ría m te r u s a d o s u a in flu ê n cia p a ra d e sc o b rir o
q u e aco n teceu .
C o m o o s d e ta lh e s d o ju lg a m e n to leg al d e Jesus, co m o n a rr a d o n o s
e v an g elh o s, se e q u ip a ra m com o q u e co n h ecem o s d a ju ris p ru d ê n c ia
c o n te m p o râ n e a ? M u ito s e stu d io so s ju d e u s têm re ssa lta d o a to ta l irre-
g u la rid a d e d o s p ro c e d im e n to s d o S in éd rio , se fo rem ju lg a d o s à lu z d o
có d ig o p e n a l e n c o n tra d o n a M ish n a h Sanhedrin q u e d a ta d e u m sécu lo
a p ó s a m o rte d e Jesus, m as q u e n ã o co n té m m a te ria l m ais a n tig o . E m
co n ju n to , o p ro c e d im e n to legal d e scrito n o s e v a n g e lh o s v io la o c ó d ig o
M ish n ático em v in te e sete detalhes! P o r ex em p lo , u m a sessão n o tu r-
n a d o S in éd rio , d u ra n te a festa d a P ásco a (cro n o lo g ia sinótica) o u às
v é sp e ra s d a P áscoa (cronologia jo an in a) teria sid o irre g u la r ta n to em
su a e x ig u id a d e d a h o ra co m o e m su a p ro x im id a d e d o d ia S anto. Se-
g u n d o a M ish n a h , req u e ria m -se d u a s sessõ es p a ra u m a p e n a c a p ital,
e ta m p o u c o te ria m s id o co n v o c ad a s d u ra n te u m a festa o u à s v é sp e ra s
d e u m a festa. N o e n ta n to , n ã o sa b em o s se estas leis d o p e río d o m ish -
nático e ra m ap licáv eis n o te m p o d e Jesus. H . D a n by , JTS 21 (1920),
51-76, tem a rg u m e n ta d o q u e n ã o e ra m , e n q u a n to I. A braham s , Studies
in Pharisaism and the Gospel (N ova York: K TAV re im p re ssã o , 1968), II,
129-37, tem a rg u m e n ta d o q u e eram . U m a ra z ã o p o r q u e n ã o e ra p o ssí-
vel q u e fo ssem ap licáv eis é q u e a M ish n a h codifica a tra d iç ã o farisaica,
e n o te m p o d e Jesus o S in éd rio e sta v a d o m in a d o p e lo s s a d u c e u s (StB,
II, 818ss.; J. B lin zler , Z N W 52 [1961], 54-65). H á u m c o n tra -a rg u m e n to
q u e, co m o fim d e o b ter o a p o io d o s fariseu s, os sa d u c e u s tin h a m q u e
ced er ao s fariseu s em a lg u m p ro c e d im e n to legal. B lin zler n e g a isto
e afirm a q u e Jesu s foi ju lg a d o p o r u m có d ig o in te ira m e n te s a d u c e u ,
p o is c a d a d e ta lh e n o có d ig o m ish n á tic o p o s te rio r q u e te m o a m p a -
ro d o A T e, assim , teria sid o aceito p e lo s sa d u c e u s (q u e a c e ita v a m a
Lei escrita d o A T, p o ré m n ã o a lei o ral d o s fariseu s), foi o b se rv a d o
n o p ro c e d im e n to c o n tra Jesus. (B lin zler p ro sse g u e d e fe n d e n d o se u
p o n to c o n tra a s rec e n te s objeções em se u "Zum Prozess Jesu", Leben-
diges Zeugnis 1 [1966], 15-17). W inter , Trial, p . 71, to m a o u tra d ireção :
60 · A narrativa da paixão: Observações gerais 1215

ele m a n té m q u e a s n o rm a s d o I a século e ra m d ife ren te s d a s n o rm a s


ju d ic ia is d a M is h n a h ta rd ia , p o rq u e n o I a século o S in éd rio se consti-
tu ía n ã o só d e u m c o rp o ju d icial, m a s ta m b é m d e u m leg islativ o e u m
e x e cu tiv o (to d a v ia, veja n o ta so b re 18,31). J eremias , EWJ, p . 78, arg u -
m e n ta q u e , m e sm o q u e a lei m ish n á tic a fosse ap licáv el, o ju lg a m e n -
to d e Jesu s, co m o d e sc rito n o s e v a n g elh o s, a in d a e ra p o ssível; p o is
o p ró p rio A T p e rm itia q u e crim es re a lm e n te sério s fo ssem tra ta d o s
e m m o m e n to s festiv o s (J erem ias p e n sa q u e Jesus foi a c u sa d o d o m ais
sé rio c rim e d e falsa profecia). P o d e m o s re s u m ir, re c o n h e c en d o q u e
s im p le s m e n te n ã o sa b em o s o su ficien te so b re os c o stu m e s d o Siné-
d rio n o te m p o d e Jesu s p a ra e sta rm o s c erto s d e q u e as ações d a q u e la
c o rp o ra ç ã o d e s c rita s e m M a rc o s /M a te u s fo ssem p o ssív eis, m a s a im -
p ro b a b ilid a d e in trín se c a d e te r h a v id o d u a s sessões tã o p e rto u m a d a
o u tra (u m a d e la s re a liz a d a à n o ite) su jeita a n a rra tiv a à d ú v id a .
A q u e s tã o p o d e ria se r e stab elecid a c o n c lu siv am e n te se conhecês-
se m o s a c o m p e tên c ia ex ata d o S in éd rio e m p u n iç ã o capital. A d esp ei-
to d a a firm a ç ão d e Jo 18,31 (veja n o ta), d e q u e o S in é d rio n ã o p o d ia
e x e c u ta r u m a se n te n ç a d e m o rte , a lg u n s especialistas tê m m a n tid o
q u e a s a u to rid a d e s ju d a ic a s tin h a m o p o d e r d e execução, inclusive
p a r a c rim es p o lítico s. Se esse e ra o caso, e n tã o o p ró p rio fato d e q u e
Je su s foi e n tre g u e ao s ro m a n o s seria p ro v a d e q u e ele n ã o foi sen ten -
c ia d o p e lo S in éd rio ; p o is a se n te n ç a d o S in éd rio p o d ia ter sid o execu-
ta d a se m a in te rv e n ç ã o ro m a n a . M as, com o v e re m o s, a e v id ên cia p o r
d e trá s d e s ta teo ria e stá lo n g e d e ser co n clu siv a, e a in fo rm ação d e João
p o d e se r c o rre ta , a o m e n o s com re sp e ito a crim es políticos. D eixan-
d o d e la d o a q u e stã o d a p u n iç ã o cap ital, a lg u n s têm p e n s a d o ser im -
p ro v á v e l q u e h o u v e sse d o is ju lg a m e n to s, u m ju d aic o e u m ro m an o ;
m a s o s e x p e rto s e m ju ris p ru d ê n c ia p ro v in c ia l ro m a n a n a d a a c h am d e
e s tra n h o e m d o is ju lg a m e n to s d e sse tip o (V erdam , p . 286).

A d e s p e ito d o fato d e q u e n ã o p o d e m o s c h e g ar a u m a certeza


a b so lu ta , p a re c e , p o is, q u e a p o sição prima face d o e v a n g e lh o d e q u ase
to ta l re s p o n s a b ilid a d e ju d a ic a p a ra a m o rte d e Jesu s (o p rim e iro do s
q u a tro p o n to s d e v ista q u e e n u m e ra m o s) é e x a g era d a, e q u e o seg u n -
d o o u terceiro p o n to d e v ista e sta ria m m e lh o r fu n d a m e n ta d o s. O pa-
p e l d a s a u to rid a d e s ju d a ic a s n a n o ite o u n a m a n h ã a n te s d e Jesus ser
m o rto , seja p e la ação ex clu siv a d e A n á s o u d o S in éd rio , se in te rp re -
taria m e lh o r e m te rm o s d e u m a investigação preliminar. V isto q u e os
1216 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

resultados desta investigação tinham de ser colocados à disposição de


Pilatos, a analogia de u m a gran d e ação do júri p o r p a rte d o Sinédrio
não é tão inapropriada. (U sarem os este term o ação d o " g ra n d e júri",
m esm o q u an d o estejam os totalm ente cônscios do perigo d e m oder-
nizar e inclusive d e am ericanizar a situação. N ão é m ais d o q u e u m
m odo conveniente d e descrever o que im aginam os ter sido o procedi-
m ento: o Sinédrio estava capacitado p ara in terrogar alguém q u e fosse
preso, ouvir as testem unhas e então d eterm in ar se havia evidência
suficiente p ara enviar o prisioneiro a juízo p eran te o prefeito rom ano).
A luz desta avaliação, com o decidim os entre o seg u n d o e o terceiro
pontos d e vista? D iferem em dois aspectos: o g ra u d o envolvim ento
judaico (os principais sacerdotes estavam ansiosos em elim inar Jesus
ou eram instrum entos involuntários dos rom anos?) e o m otivo p o r
detrás deste envolvim ento (religioso ou político?). Talvez a situação
h u m an a seja em aran h ad a dem ais p ara desvendarm os o g rau e m otivo
exatos, p o r isso vejam os os dados.
Segundo a tradição não cristã (judaica e rom ana), nem Pilatos nem
os sacerdotes judeus da casa de A nás foram figuras dignas de adm i-
ração. (Para um a perspectiva m ais favorável sobre Pilatos, veja H.
W a n sbro ugh , Scripture 18 [1966], 84-93). Q ue havia colisão entre Caifás
e os rom anos, pressupõe-se pelo fato de que ele foi capaz de m a n ter o
ofício p o r dezoito anos - o pontificado m ais longo nos cem anos desde
a elevação de H erodes o G rande até a queda de Jerusalém ! E dez des-
tes anos esteve sob Pôncio Pilatos, de m odo que os dois hom ens teriam
sido aptos a agir juntos q u an d o isso servia aos seus propósitos. (É dig-
no de nota que, tão logo Pilatos foi rem ovido do ofício, Caifás foi igual-
m ente deposto). O térm ino d e Pilatos com o prefeito foi m arcado p o r
explosões do nacionalism o judaico, pelo que não lhe faltariam razões
p a ra preocupar-se diante de alguém que era aclam ado com o "o Rei
dos Judeus". Segundo Josefo , A nt. 17.10.8; 285, a Judeia se m an tin h a
viva com as guerrilhas de b andidos (lestes); e alguém po d ia fazer-se
rei na liderança de u m b an d o de rebeldes e então p assar à destruição
da com unidade. (Para a longa lista de revolucionários no I a século, veja
E. E. Jen sen , "The First Century Controversy over Jesus as a Revolutionary
Figure", JBL 60 [1941], 261-62). Jesus era galileu, e Pilatos já havia sido
p erturbado p o r galileus (Lc 13,1). As profecias apocalípticas d e Jesus
continham referências a guerras im inentes. Entre os seguidores m ais ín-
tim os de Jesus estava u m zelote ou revolucionário (Lc 6,15). Sua en tra d a
60 · A narrativa da paixão: Observações gerais 1217

em Jerusalém antes d a Páscoa d eu início a u m a recepção tum ultuosa


em que m uitos o saudavam com o rei. C om o a Páscoa estava próxim a,
Jesus era u m a possível fonte d e perturbação na cidade apinhada que
recentem ente v iu u m a insurreição e onde as cadeias estavam repletas
d e ban d id o s guerrilheiros (Mc 15,7; Lc 23,19). Os seguidores de Jesus
p o rtav a m arm as p ara o caso de tum ulto (Lc 22,38; M t 26,51; Jo 18,10).
E nquanto todos esses detalhes do evangelho p odem m uito bem ser
históricos, m esm o u m a seleção deles tornaria com preensível p o r que
Pilatos pod eria ter decidido a não correr riscos e pressionar as autori-
d ad es judaicas a p ren d erem Jesus antes d a festa. Isto não precisa signi-
ficar que Pilatos tencionasse crucificar Jesus, m as apenas que ele que-
ria ad q u irir inform ação sobre as intenções e reivindicações de Jesus e
tirar Jesus do cam inho d u ra n te u m período tão perigoso.
Q u an to à m otivação das au to rid ad es judaicas, Jo 9,47-53 d á um a
descrição d e u m a sessão do Sinédrio que p o d e conter m ais história
d o que os estudiosos geralm ente adm item (vol. 1, p. 728). Ela m ostra
o Sinédrio tem eroso d a atração que Jesus exercia sobre as m assas e
apreensivo que tal m ovim ento não levasse os rom anos a interferir no
tem plo e em Jerusalém e em to d a a nação. Podem os su p o r que tais
m otivos políticos exerceram o p ap el de levar os principais sacerdotes
a agir com os rom anos na prisão de Jesus. Escritores cristãos costu-
m a m p resu m ir que todos os líderes ju d eu s estavam cientes de que
Jesus n ão u m revolucionário potencial, e assim usav am o cargo polí-
tico com o cortina de fum aça p a ra sua antipatia religiosa contra Jesus.
A situação não era tão sim ples. A t 5,33-39 apresenta G am aliel, um dos
principais líderes d o Sinédrio, com o um hom em honesto d e bom juízo
que está interessado em servir à v o n tad e de D eus. Todavia, G am aliel
crê ser possível que os cristãos constituíssem outro m ovim ento revo-
lucionário sem elhante ao de T eudas e de Judas Galileu. (A lingua-
gem d e A tos n ão é necessariam ente histórica, m as p o d e refletir cor-
retam ente as d ú v id a s que m uitos tinham sobre Jesus). Em qualquer
caso, p o r o rd em ro m an a e talvez com o auxílio de tropas rom anas,
os sa c e rd o te s/líd e re s d o Sinédrio p o d ería m ter p re n d id o Jesus num a
m asm o rra solitária p ara que não causasse sublevação entre as m ulti-
dões p resentes em Jerusalém p ara a festa. A parentem ente, o p artido
enviado a realizar a prisão estava bem arm ad o e esperava tum ulto,
m as som ente u m seguidor de Jesus tentou lutar. Jesus reconheceu que
estava sendo preso com o u m revolucionário e pro testo u que em suas
1218 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

ações n a d a havia que perm itisse ser tratad o com o u m b a n d id o guer-


rilheiro (lestes: Mc 14,48 e par.).
N ão podem os ter certeza até que po n to os relatos que o evangelho
faz das interrogações judaicas a Jesus são históricas, m as to d as con-
sistem de questões religiosas que têm u m a m atiz política, p ro v an d o
o status revolucionário de Jesus. Em Jo 18,19, A nás o interroga sobre
seus seguidores e seu ensino, talvez com a insinuação d e que ele é
subversivo. Em Mc 14,58 e M t 26,6, surge a questão sobre a intenção
de Jesus de d estruir o tem plo - certam ente u m gesto revolucionário.
(Se isto era ou não p arte do interrogatório, há am pla concordância
de que Jesus fez afirm ações contra o tem plo e de fato p o d eria ter re-
centem ente assum ido ação violenta no átrio d o tem plo. Veja vol. 1,
pp. 315-20) nos três relatos sinóticos, Jesus é interrogado pelo sum o
sacerdote se ele se considera ser o M essias, isto é, o rei davídico que ha-
via de libertar Israel. U m a vez m ais, escritores cristãos algum as vezes
pressupõem que as autoridades judaicas entenderam que Jesus estava
falando d e u m a m aneira figurativa sobre destru ir o tem plo e q u e sua
m essianidade não era política. Isto é m uito im provável, pois o p ró p rio
N T dem onstra que os p róprios seguidores d e Jesus, d em o raram anos
para ter estes discernim entos. A o entregarem Jesus aos rom anos com o
pseudo "Rei dos Judeus", estas autoridades p oderíam p e n sar sincera-
m ente que Jesus e seu m ovim ento fossem politicam ente perigosos.
Se a interpretação que tem os apresen tad o até aq u i salienta os
fortes m otivos políticos que ap arentem ente u n iram os ro m an o s às
auto rid ad es judaicas em p ren d er, in terrogar e julgar Jesus, devem os
precaver-nos d e diversas hiper-sim plificações. Prim eiro, o fato d e que
alguns dos oponentes e seguidores d e Jesus in terp reta m su a carreira
em term os políticos não significa que Jesus fosse u m revolucionário
político. N as entrelinhas dos evangelhos descobrim os evidência de
que sua pregação do reino fru stro u a m uitos, am iú d e precisam ente
p o rque ela não se ad eq u av a às expectativas políticas. Seu incôm odo
em aceitar o título M essias (Mc 8,29-31) e ser aclam ado com o rei (vol.
1, pp . 480-82, 753-55) revelam que seu conceito d e seu p ró p rio p a p e l
não coincidia com as ressonâncias políticas que m uitos su p u n h am .
N ão negam os a possibilidade de que os evangelhos p u d e sse m te r de-
senfatizado algum a das aparências políticas d o m inistério d e Jesus;
todavia, respeitam os a sólida tendência d a tradição evangélica p a ra
o efeito de que os que in terp retaram Jesus prim ariam en te em term os
60 · A narrativa da paixão: Observações gerais 1219

p o lític o s o c o m p re e n d e ra m m al. E a ssim , a o a firm a r a p re se n ç a d e u m


fo rte m o tiv o p o lític o n a ação leg al c o n tra Jesus, d isso c iaríam o s enfati-
c a m e n te n o ssa v isã o d a s teo rias co m o a d e S. G. F. B randon , The Trial
o f Jesus of Nazareth (N o v a York: S tein & D ay , 1968), p p . 146-47, q u e
in fe re q u e Jesu s s u b iu a Je ru sa le m p a ra p re p a r a r u m coup d'é ta t [golpe
d e e sta d o ] m essiân ic o c o n tra a aristo cracia sa cerd o tal, p o ssiv e lm e n te
c o m o p a rte d e u m a ta q u e c o n c e rta d o co m B arrab ás c o n tra o tem p lo e
a s p o siç õ e s ro m a n a s.
U m a s e g u n d a sim p lific a ç ão c o n tra a q u a l d e v e m o s a c a u te la r-
n o s é a in c lu s ã o d e to d a m o tiv a ç ã o re lig io sa d a s m e n te s d a s a u to -
r id a d e s ju d a ic a s q u e e n tre g a ra m Je su s a o s ro m a n o s. N a h istó ria d e
Isra e l, d e s d e M o isés a té n o sso s d ia s, o d e s tin o d a n a ç ã o n u n c a foi
u m a q u e s tã o m e ra m e n te p o lític a n a m e n te isra e lita o u ju d a ic a . Se
a s a u to r id a d e s te m ia m q u e Je su s e n c ab e ç a sse u m m o v im e n to revo-
lu c io n á rio q u e p u d e s s e p re c ip ita r a a ção ro m a n a c o n tra o tem p lo
(o u c o n tra a b u s o s n o te m p lo ), p o r p a la v ra o u p o r a to o u p o r am b o s.
Isto p o d e ria te r sid o a lg o m e n o s relig io so d o q u e as ex p lo sõ e s d o
p ro fe ta J e re m ia s c o n tra o te m p lo ? Se o s sa c e rd o te s q u e ria m d e sv en -
c ilh a r-se d e Je su s e m ra z ã o d e s e u m e d o d e R o m a, isto n ã o ex clu i o
d e sejo d e d e s v e n c ilh a r-s e d e le p o r h a v e r ele a ta c a d o o q u e e ra sacro
a s e u s o lh o s. H o u v e e m Je re m ia s u m a re a ç ã o se m e lh a n te : "M erece
a s e n te n ç a d e m o rte o h o m e m q u e p ro fe tiz a r c o n tra e sta c id a d e " (cf.
Jr 26,6.11.20-23 - é ta m b é m c ita d o o e x e m p lo d e U ria s q u e fo i ex-
p o s to à m o rte ). S o m e n te u n s 150 a n o s a n te s d o te m p o d e Jesus, a
o p o s iç ã o d o M e stre d e Ju stiç a d e Q u m ra n a o te m p lo h ie ro so lim ita n o
e a o s e u s a c e rd ó c io fez o su m o sa c e rd o te b u s c a r m a tá -lo e m u m d ia
festiv o (cf. l Q p H a b 9,4-5,11,4-7).
A q u e s tã o d e Jesus com o o M essias teria ta m b é m tid o fo rtes im -
p licaçõ es relig io sas. U m a v e z m ais, n ã o é cru cial se e sta q u e stã o foi o u
n ã o s u s c ita d a n o in te rro g a tó rio q u e o S in éd rio fez a Jesus; c e rtam e n te
s u rg iu d u r a n te se u m in isté rio e teria c h e g a d o ao c o n h ecim en to d a s
a u to rid a d e s . (O p o n to n ã o é se Jesu s se id en tifico u co m o s e n d o o M es-
sias - h á ra z õ e s p a ra se p e n s a r q u e ele n ã o fez isso ex p licitam en te - ,
m as se se u s s e g u id o re s o p ro c la m a ra m assim ). A lg u n s tê m a rg u m e n -
ta d o q u e a id en tificação d e Jesus co m o o M essias n ã o teria c a u sa d o
a n ta g o n is m o relig io so d a p a rte d a s a u to rid a d e s ju d aic as, p o is h o u v e
m u ito s p s e u d o m essias n o I s século q u e n ã o fo ra m c o n d e n a d o s p elo
S inédrio. D e fato, n o 2a século Sim ão B ar-K ochba (Ben K osiba) recebeu
1220 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

a p o io relig io so p a ra s u a s re iv in d ic a ç õ e s m e ssiâ n ic a s d e a lg u m a s d a s
m ais e le v a d a s a u to r id a d e s re lig io sa s ju d a ic a s. T o d a v ia , e ste s o u tro s
p s e u d o m essias e ra m n a c io n a lista s, e s e u su c e sso d a ria in d e p e n d ê n -
cia p o lític a im p líc ita p e lo S in é d rio e a g lo rific aç ã o d e J e ru s a lé m e
d o te m p lo . U m m e ssia s q u e a o m e sm o te m p o a m e a ç a sse s u b v e rte r
o te m p lo b e m q u e p o d e ria te r p ro v o c a d o o p o siç ã o re lig io sa . M as
p o d e se r q u e n ã o e sta m o s a lc a n ç a n d o o â m a g o d o p ro b le m a relig io -
so q u a n d o d isc u tim o s Jesu s co m o o M essias (e sp e c ia lm e n te se ele
n ã o a c e ito u p a r a si, im e re c id a m e n te , o títu lo ). H á ra z ã o p a r a se c re r
q u e a re a l a c u sa ç ã o re lig io sa c o n tra Je su s fo sse q u e ele e ra u m falso
p ro fe ta . R. H . F u l l e r , The Foundations o f New Testament Christology
(N o v a Y ork: S crib n er, 1965), p p . 125-29, e m u m a a n á lise c rític a d a
a u to -c o m p re e n sã o d e Jesu s, m a n té m q u e Je su s n ã o r e iv in d ic o u se r o
M essias, o F ilh o d o H o m e m , o u o F ilh o d e D e u s; A n te s, ele in te rp re -
to u s u a m issã o e m te rm o s d e p ro fe c ia e scato ló g ica. Seja c o m o fo r, é
sig n ific a tiv o q u e a a n tig a re fe rê n c ia ju d a ic a a Je su s e m T alB ab, Sa-
nhedrin, 43a, d iz q u e ele foi e x e c u ta d o p o r p ra tic a r b ru x a ria e a tr a ir
Isra e l à a p o s ta s ia - e m s u m a , p o r q u e e ra u m falso p ro fe ta q u e c a iu
so b a s e n te n ç a d e m o rte d e D t 13,5 e 18,20. E sta a c u sa ç ã o c la ra m e n te
relig io sa é u m eco d o s re la to s sin ó tico s d o e s c a rn e c im e n to ju d a ic o
c o n tra Je su s (M c 14,65 e p a r.) e ta lv e z n o in te rro g a tó rio q u e A n á s
fez a Je su s (veja p . 1262 abaixo; c o m p a re ta m b é m Jo 7,15-19 co m
D t 18,20). P. E. D avies , BiRes 2 (1957), 19-30, o ferece a b u n d a n te e v i-
d ê n c ia n e o te s ta m e n tá ria , m o s tra n d o q u e o s p r im e iro s c ristã o s co n -
c e b era m o so frim e n to e a m o rte d e Je su s e m te rm o s d o d e s tin o d e
u m p ro fe ta m á rtir.
D ev em o s m en c io n ar a in d a q u e m u ita s ações d e Jesu s d u r a n te se u
m in isté rio tin h a m p ro fu n d a s im p licaçõ es relig io sas, d a s q u a is os q u e
o in te rro g a ra m te ria m sid o b e m cientes. Seria p o ssív e l q u e a o p o si-
ção q u e Jesus fez ao s farise u s (ce rta m en te u m a sp e c to h istó ric o em
seu m in istério ) foi e sq u ec id a p e lo s escrib as q u e e ra m p a rte d o Siné-
d rio ? N ã o p o d e ria su a a titu d e p ro fé tic a p a ra com o s rico s e s e u a p e lo
às classes m ais p o b re s te r c o n tra ria d o a aristo cracia a b a sta d a d o seio
d a q u a l v in h a m a lg u n s d o s a n cião s d o S inédrio? N ã o p o d e m o s e sta r
certo s se a acu sação ex p lícita d e b lasfêm ia foi la n ç a d a c o n tra Jesus,
m esm o q u a n d o a p a re c e in d e p e n d e n te m e n te n a s tra d içõ e s d ife re n te s
d o e v a n g elh o (veja vol. 1, p . 689). P o d e se r q u e a d escrição e v an g élica
d o q u e c o n stitu ía a b lasfê m ia, a sab er, a re iv in d ic a çã o d e se r o F ilho
60 · A narrativa da paixão: Observações gerais 1221

d e D eu s, fo sse re lid a n o m in isté rio d e Jesus à lu z d a s ú ltim a s conde-


n a ç õ es q u e a sin a g o g a fez à teo lo g ia d o s se g u id o re s d e Jesus (vol. 1,
p . 71s). M as a in ce rte z a so b re a fo rm u la ç ã o n ã o n o s d e v e ceg ar à rea-
lid a d e e n v o lv id a , o riu n d a d o m in isté rio d e Jesus. A o u s a d a p rocla-
m a ç ã o q u e Jesu s fez d o a d v e n to d o re in o e a a u to rid a d e com q u e ele
p re g a v a e a g ia n ã o teria sid o o fen siv a à q u e le s q u e m a n tin h a m os con-
ceito s relig io so s e stab elecid o s, farise u s e s a d u c e u s ig u alm e n te ? É b e m
p o ss ív e l q u e O . L inton , N T S 7 (1960-61), 261, esteja certo em in sistir
q u e , se as a u to rid a d e s te ria m o u n ã o d e n u n c ia d o Jesus p o r b lasfêm ia,
n o se n tid o técnico, fa z e n d o -lh e objeção com o a in tro m e te r-se im pli-
c ita m e n te n o s p riv ilé g io s esp eciais d e D e u s e fa z e n d o u m a ta q u e à
co n fissão d e q u e h á u m só D e u s a lé m d o q u a l n e n h u m o u tro existe.
P e n s a r q u e m o tiv o s relig io so s n ã o e n tra ra m n a c o n d e n aç ã o d e u m a
fig u ra c o m o a d e Jesu s e q u iv a le ir c o n tra tu d o o q u e sab em o s d a longa
h is tó ria d e co n flito e n tre os p ro fe ta s e a a u to rid a d e .
O S in é d rio (to d o o u p a rte ) q u e e sta v a e n v o lv id o com Jesus teria
s id o o c o rp o relig io so m ais s in g u la r d e to d a s a s c o rp o raçõ es religiosas
d a h istó ria , se n ã o h o u v e sse in c lu íd o u m m isto d e p o lítico s eclesiás-
ticos, h o m e n s ju sto s d e zelo a rd e n te , e h o m e n s p ie d o so s d e com pai-
x ão e ju stiça. A o d e v o lv e re m Jesu s ao s ro m a n o s com a reco m en d a ç ã o
d e q u e fo sse tra ta d o co m o u m rev o lu c io n á rio e m p o ten c ial com rei-
v in d ic a çõ e s m o n á rq u ic a s, a lg u n s e sta v a m in d u b ita v e lm e n te a g in d o
e g o istic a m e n te e se m m u ito e sc rú p u lo s d e consciência, a fim d e p ro -
te g e r s e u s in te re sse s a d q u irid o s n o status quo. O u tro s e sta v a m tam -
b é m a g in d o p o r m o tiv aç ã o p o lítica, m a s h á m u ito d e c id ira m q u e seus
in te resse s c o in c id ia m com o q u e e ra m elh o r, ta n to te m p o ra l q u a n to
e sp iritu a lm e n te , p e la nação. A in d a o u tro s p o d e ría m ter d e sp re z a d o a
in te rv e n ç ã o ro m a n a e a g id o iso la d a m e n te , m o tiv a d o s p e la ira justifi-
c a d a c o n tra a q u e le q u e tin h a v io la d o o te m p lo d e D e u s e q u e se com -
p o rta v a e fala v a c o n tra os sa n to s c o stu m e s religiosos. D ificilm ente h á
u m a ig reja c ristã q u e n ã o co n sig a e n c o n tra r e m s u a h istó ria co n d en a-
ções d e h o m e n s b o n s d irig id o s p o r assem b léias relig io sas com u m a
v a rie d a d e sim ila r d e m o tiv o s.

A estrutura ãa narrativa joanina da paixão

C o m relativ a facilidade, se p o d e d iscern ir as lin h as g erais d a es-


tru tu ra d o s d o is c ap ítu lo s e n v o lv id o s n a N a rra tiv a Joanina d a Paixão
1222 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

(p p . 1 2 0 0 0 1 ‫ ־‬a c im a). H á trê s d iv is õ e s p r in c ip a is c o m a p ro x im a d a -


m e n te a m e s m a e x te n s ã o , c o n te n d o re s p e c tiv a m e n te v e rs íc u lo s
27, 29 e 36. A p r im e ir a d iv is ã o (1 8 ,1 2 7 ‫ )־‬c o n s is te d a p r is ã o d e Je-
s u s e d e s e u in te r ro g a tó r io p e la s a u to r id a d e s ju d a ic a s . A p r is ã o
le v a d ire ta m e n te a o in te r ro g a tó r io (vs. 1 2 1 3 ‫)־‬. A s e g u n d a d iv is ã o
(1 8 ,2 8 1 9 ,16‫־‬a) c o n siste d o ju lg a m e n to d e J e su s p o r P ila to s , u m e n -
c o n tro a lta m e n te d ra m á tic o e b e m e sta b e le c id o . A te rc e ira d iv is ã o
(1 9 ,1 6 b 4 2 ‫ )־‬c o n siste d o s e p is ó d io s e m to rn o d a c ru c ifix ã o , m o r te e
s e p u lta m e n to d e Je su s.
D e n tro d a s d iv isõ e s m a io re s h á sin a is d e c u id a d o s o a rra n jo e
su b d iv is ã o . E m c a d a u m a d e s sa s u n id a d e s d a p rim e ira d iv is ã o (p ri-
são , in te rro g a tó rio ) h á u m in c id e n te s u b s id iá rio e n v o lv e n d o P e d ro
(d e c e p a n d o a o re lh a d e M alco, n e g a n d o Jesu s). N a s e g u n d a d iv isã o ,
o ju lg a m e n to d e P ila to s c o n siste d e se te e p isó d io s, c a d a u m d e trê s
a seis v e rs íc u lo s p o r ex te n so . São a lte rn a d a m e n te lo c a liz a d o s fo ra e
d e n tro d o p re tó rio e o rg a n iz a d o s n a fo rm a d e u m a in c lu sã o (d ia g ra -
m a , p . 1294 ab aix o ). A te rc e ira d iv is ã o te m u m a in tr o d u ç ã o (a c ru -
cifixão), cin co e p is ó d io s n a c ru z e u m a c o n c lu sã o (o s e p u lta m e n to ),
ta m b é m o rg a n iz a d a b a s ta n te n a fo rm a d e u m a in clu sã o .
J a nssens d e V a r eb ek e , art. cit., te m feito u m e s tu d o d e ta lh a d o d a
e s tr u tu r a d e s te s c a p ítu lo s, u s a n d o o m é to d o q u e o s e s tu d io s o s c o m o
V a n h o y e e L a u r en tin tê m a p lic a d o a o u tro s liv ro s d o N T . E le reco -
n h ece a c e rta d a m e n te o s se te e p is ó d io s d a s e g u n d a d iv is ã o , e co m
b a se n isto te m te n ta d o e n c o n tra r s e te e p isó d io s o u su b se ç õ e s n a s o u -
tra s d u a s d iv isõ e s. D isc o rd a re m o s d e s u a s c o n c lu sõ e s q u a n d o d is-
c u tirm o s a e s tr u tu r a d a p rim e ira e te rc e ira d iv isõ e s ab aix o . D e u m
m o d o g e ra l, d e s c o b rim o s q u e ele im p õ e n a N a r ra tiv a d a P a ix ã o u m
p a d rã o e u m a c o n sistên c ia q u e e stá a lé m d a in te n ç ã o d e m o n s trá v e l
d o e v a n g elista .

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61. A NARRATIVA DA PAIXÃO:
- PRIMEIRA SEÇÃO (PRIMEIRA UNIDADE)
( 18, 1‫ ־‬12)

A prisão de Jesus

18 1T e n d o d ito isto, Jesus sa iu com seu s d iscíp u lo s p a ra além d o vale


d e C id ro m o n d e h a v ia u m jard im , n o q u a l e n tra ra m juntos. 2Este
lu g a r e ra ta m b é m fam iliar a Ju d as, o tra id o r, p o is Jesus co stu m av a ir ali
co m se u s d iscíp u los. 3E ntão Ju d a s lev o u u m d estacam en to d e soldados,
ju n ta m e n te co m a g u a rd a fornecida p elo s p rin c ip ais sacerdotes e os fa-
riseu s, e fo ram p a ra lá com lan tern as, tochas e arm as.
4S a b e n d o p le n a m e n te o q u e e sta v a p a ra lh e aco n tecer, Jesus
a d ia n to u -s e e p e rg u n to u : "A q u e m estais b u sc a n d o ? " 5"Jesus o N azo -
re a n o " , rep lica ram . Ele lh es falou: " E u s o u ele". (O ra, Ju d a s, o tra id o r,
e sta v a ta m b é m co m eles). 6Q u a n d o Jesus lhes disse, " A q u i e sto u ",
re c u a ra m e c a íra m p o r terra. 7E n tã o ele lh es p e rg u n to u o u tra vez:
"A q u e m esta is b u sc a n d o ? " "Jesus o N a z a re n o " , rep e tira m . 8"E u vo s
d isse q u e s o u e u " , re s p o n d e u Jesus. "E se e u so u a q u e le q u e q u ereis,
deix ai ire m estes h o m en s". (9Isto foi p a ra se c u m p rir o q u e ele dissera:
" N ã o p e r d i s e q u e r u m d o s q u e m e d este").
10E n tã o S im ão P e d ro , q u e tin h a u m a e sp a d a , p u x o u -a e feriu o
serv o d o s u m o sa ce rd o te , d e c e p a n d o s u a o re lh a d ire ita . (O n o m e d o
se rv o e ra M alco). 11M as Jesus d isse a P ed ro : "R e p o n h a essa e sp ad a .
A caso n ã o b e b e re i o c o p o q u e o P ai m e d e u ? "
12N isso o s s o ld a d o s, com s e u trib u n o e a g u a rd a d o s ju d e u s , p re n -
d e ra m Je su s e o m a n ie ta ra m .

3: foi; 4: perguntou; 5: disse. N o tem po presente histórico.


1226 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

NOTAS

18.1. Tendo dito isto. Literalmente, "Havendo dito estas coisas". D e la Potterie,
entre outros, vê nesta frase a conotação de propósito ou preparação, de
m odo que a N arrativa da Paixão que segue representa a culm inação das
palavras de Jesus. Por exemplo, a crucifixão seria a glorificação do que se
falou em 17,1-5. A conexão é possível, m as em outro lugar em João a frase
é m eram ente sequencial (13,21; 20,20).
saiu com seus discípulos. Praticam ente, as m esm as p alav ras aparecem nos
relatos sinóticos do final da ceia. Mc 14,26 (Mt 26,30) traz: "Saíram ";
Lc 22,39: "E, saindo, ele foi... e seus discípulos o seguiram ". Todos os
relatos dos evangelhos im plicam que a intenção de Jesus era p a ssa r a
noite nas cercanias da cidade, e não na p ró p ria cidade. Isto concorda-
ria com o que sabem os das condições de com o se enchia a cid ad e no
período da Páscoa (veja nota sobre 11,55). O costum e judaico exigia
que a noite pascal (cronologia sinótica) fosse p assad a em Jerusalém
- esta era a exegese contem porânea de Dt 16,7. M as, p a ra solucionar
o problem a de acom odações, o distrito d a cidade foi alarg ad o para
p ropósitos pascais, incluindo as cercanias até Betfagé, no M onte das
Oliveiras. Betânia, o lugar de residência costum eira d e Jesus na área
de Jerusalém (nota sobre 11,1), ficava fora do lim ite legal. Veja Jere-
mias EWJ, p. 55.
Q uanto à designação dos que estavam com Jesus, de "seus discípulos",
Jeremias, EWJ, p. 95, salienta que, no relato prim itivo pré-m arcano da pai-
xão, a palavra "discípulos" não é usada na cena d a prisão, m as som ente
a designação m ais vaga "aqueles que estavam ali".
para além do vale de Cidrom. Literalmente, "a corrente invernal de C idrom "
(ou Cedrom, se for seguir a pronúncia grega). O Cidrom , não mencio-
nado pelos sinóticos, é o ribeiro que só tem água corrente na estação
chuvosa ou invernal. O uso que João faz da term inologia correta para o
Cidrom não é necessariam ente prova de que o evangelho esteja recor-
rendo a um a tradição palestinense autêntica (vol. 1, p. 29), pois "corrente
invernal" é a designação usual do Cidrom na LXX (2Sm 15,23; lR s 15,13).
Loisy, Lagrange, entre outros, pensam que João está sutilm ente alu-
dindo aqui o relato da fuga de Davi diante de Absalão em 2Sm 15 (14:
"Levantemo-nos e fujamos" [Jo 14,31]; 23: "e o rei atravessou o vale de
Cidrom"). Guilding, p. 165, relacionando a narrativa joanina a lR s 2,
lê como um haphtarah dois meses antes da Páscoa no prim eiro ano do
ciclo trienial das leituras da sinagoga (vol. 1, pp. 518s). Em particular,
ela aponta para a advertência de Salomão a Simei: "N o dia em que
61 · A narrativa da paixão: - Primeira seção (primeira unidade) 1227

atravessares o vale de Cidrom, saibas que certamente m orrerás" (lRs 2,37;


veja tam bém nota sobre Malco no v. 10 abaixo). StB, II, 567, menciona o
fato de que os resíduos do sangue dos sacrifícios feitos no tem plo eram
jogados no Cidrom. N o entanto, a referência ao Cidrom obviam ente não
é simbólica.
onde havia um jardim. Alguns detectam aqui um a nota de finalidade: por-
que havia ali um jardim . A palavra kêpos se refere a um lote de terra
onde se plantavam vegetais ou flores, e algum as vezes tam bém árvo-
res. Somente João dá este nom e ao lugar. D. M. Stanley e B. P. Robinson
(art. cit.), seguindo um a antiga tradição (Cirilo de Alexandria, A quino),
pensam que, ao estabelecer-se a luta entre Judas (o instrum ento de Sa-
tanás) e Jesus em um jardim , João está aludindo ao tem a do Jardim do
Paraíso em Gn 2-3. Alguns dos propostos tem as do Paraíso (árvore da
vida) em ergem da combinação deste jardim com o jardim mencionado
em 19,41-42, onde Jesus foi crucificado, sepultado e ressuscitado; mas
n ad a em João pressupõe que esteja envolvido o m esm o jardim em am-
bos os episódios. Além do mais, João não usa a palavra paradeisos encon-
trada no relato de Gênesis, ainda quando a palavra seja conhecida em
outras partes nos escritos joaninos (Ap 2,7). E assim a exegese simbólica
se torna difícil de justificar. Mc 14,32 e M t 26,36 m encionam "um a por-
ção de terra [chõrion ] com o nom e Getsêmani". Este nom e, proveniente
da fonte B de Marcos (veja p. 1203 acima), não se encontra em Lucas
(que fala sim plesm ente de "o lugar") ou em João. Significa "vale do
óleo" ou "prensa de óleo", e não era um a designação inapropriada para
um a localização no M onte das Oliveiras. (Note que, enquanto o Monte
das Oliveiras aparece na fonte [A] de Marcos e nos três sinóticos, mesmo
esta identificação geral da localidade está ausente de João). E possível
com binar a informação evangélica e pensar no local como um bosque
de olivas nos declives m ais baixos do M onte das Oliveiras, passando de
Jerusalém pelo vale do Cidrom; e este é onde a tradição cristã tem loca-
lizado como sendo o lugar desde o 4a século. Em Zc 14,4 (uma das duas
referências explícitas ao M onte das Oliveiras no AT), o Senhor se põe
de pé sobre este m onte para a batalha final contra as nações, e depois
desta batalha vêm as bênçãos do dia do Senhor. Colocando a agonizante
luta de Jesus sobre o M onte das Oliveiras, os evangelhos sinóticos po-
dem estar se utilizando do simbolismo teológico de Zacarias (cf. tam bém
Mc 13,3-4), simbolismo ao qual João não recorre. Finalmente, podem os
notar que o costum eiro título "a agonia de Jesus no jardim " é um a mé-
lange [m istura ou misto]: a "agonia" é descrita nos sinóticos (Lc 22,44, ex-
clusivam ente, traz a palavra agonia)·, somente João m enciona o "jardim".
1228 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

entraram. O verbo eiserchesthai (= erchesthai... eis de Mc 14,32; M t 26,36) evo-


ca a imagem de um a área fechada; assim tam bém "adiantou-se" no v. 4.
juntos. Literalmente, "ele e seus discípulos".
2. 0 traidor. Literalmente, aqui e em 5: "o traidor"; veja notas sobre 6,64.71.
No Livro da Glória, João já identificou Judas como o traidor três vezes
(13,2.11.21), e os exemplos aqui e no v. 5 geralm ente são tidos como a re-
fletir a m ão do redator. N ão obstante, é necessário prudência quando se
julga o presente versículo - no relato pré-evangélico prim itivo d a paixão
é possível ter havido a necessidade de identificar Judas na cena da prisão
de Jesus, pois esta teria sido a prim eira vez que ele apareceu. N o rela-
to da prisão em Mc 14,42.44 e M t 26,6.48 Judas é cham ado "o traidor";
cf. Lc 22,48: ‫ ״‬Trairías o Filho do H om em com um ósculo?"
costumava ir ali com seus discípulos. Ou, "ficava ali com"; o verbo syna-
gesthai norm alm ente significa "reunir-se" (cf. At 11,26). N ão obstante,
no presente caso, e talvez anteriorm ente, os discípulos de Jesus foram
com ele ao jardim , em vez de encontrar-se com ele ali (R eynen , art. cit.).
A inform ação de João, de que Jesus frequentava o jardim , pode ser
com parada com a inform ação de Lc (21,37) de que Jesus costum ava
passar a noite no M onte das Oliveiras; m as João é o único que extrai
a inferência lógica de que o hábito de Jesus possibilitou a Judas saber
onde o encontrar.
3. Judas levou. Aqui o particípio "levar" implica pouco m ais que acom panha-
m ento como guia (BAG, p. 4651‘; cf. BDF, §4185); não é necessário atribuir
a Judas nenhum a autoridade particular. Assim, não acham os convincen-
te a insistência de W inter (Trial, pp. 44-45) de que aqui João, equivoca-
dam ente, implica que Judas estava encarregado dos soldados rom anos
e, assim, contradiz o v. 12, o qual menciona um oficial m ilitar rom ano.
Somos hesitantes em presum ir que o redator final ignorasse tal discre-
pância dentro de poucos versículos.
um destacamento de soldados. Literalmente, "a escolta". Que soldados (como
distintos da guarda) estavam envolvidos na prisão de Jesus é m encionado
somente em João. No NT, "escolta" sem pre se refere a soldados romanos,
descrevendo ou a escolta de 600 hom ens, ou o m anipulo de 200. Pode ser
que a menção aqui de um a escolta, em vez de um destacam ento menor,
veio à m oda de confusão com a escolta m antida nos relatos da crucifixão.
(Mc 15,16 menciona a convocação de "toda a escolta" para o escarnecimen-
to de Jesus, e alguns copistas introduziram essa redação neste versículo de
João). A referência a um tribuno no v. 12 confirma a im pressão de que João
está pensando nos soldados romanos (vênia a B linzler, Trial, pp. 64-70;
B enoit, Passion, p. 46). Um apelo à LXX onde term os militares romanos
61 · A narrativa da paixão: - Primeira seção (primeira unidade) 1229

foram usados anacronicam ente para tropas não rom anas não lança luz
sobre a p resente situação. U m escritor que vivesse sob o dom ínio rom a-
no dificilm ente usaria um term o técnico m ilitar rom ano p ara um a força
judaica quan d o sua intenção é m encionar ao lado da escolta e distinta
dela "a g u ard a fornecida pelos principais sacerdotes e os fariseus". Se
a m enção de tropas rom anas é histórica, então devem os presum ir que
foram colocadas p o r Pilatos à disposição dos sacerdotes ou do Sinédrio,
talvez p orque ele tem esse o perigo de outra insurreição (cf. Mc 15,7;
Lc 23,19). Isso tam bém poderia explicar a dificuldade do grande nú-
m ero d e soldados, se form os tom ar "escolta" literalm ente. De uns pou-
cos anos depois do tem po de Jesus (At 10,1) até m eados do 2“ século,
o prefeito ou p rocu rad o r rom ano na Palestina tinha à sua disposição
tro p as de um a escolta (Cohors Secunda Italica) consistindo de tropas
arreg im en tad as na Itália e com plem entadas po r recrutas de Samaria e
Cesareia (Josefo, Ant. 19.9,2; 365). E nquanto o relato sinótico da prisão
de Jesus não m enciona rom anos, alguns veem um a referência a eles
em Mc 14,41 (Mt 26,45): "O Filho do H om em é entregue nas m ãos de
pecadores [i.e., gentios?]".
guarda fornecida pelos principais sacerdotes e fariseus. Para estas guardas do
tem plo (hypêretai), veja nota sobre 7,32. Literalmente, são os guardas
"dos principais sacerdotes"; e em 12 são cham ados "a guarda dos ju-
deus", em distinção da escolta (romana) com seu tribuno. As descrições
sinóticas do grupo envolvido na prisão de Jesus são mais gerais, com
Lucas sendo m ais afim com João. Mc 13,43 (Mt 26,47) fala de "um a (gran-
de) m ultidão... dos principais sacerdotes, dos escribas e dos anciãos (do
povo)"; Lc 22,52 coloca os principais sacerdotes e os próprios anciãos na
cena lado a lado com "os oficiais do tem plo" (de At 5,22-24.26 podem os
concluir que os stratêgoi de Lucas são os oficiais que estão com andando
os hypêretai do templo).
V oltando à expressão de João, "os principais sacerdotes e os fariseus",
notam os que ela ocorreu quatro vezes antes (7,32.45; 11,47.57). Em si, a
combinação não oferece m uita dificuldade (ela ocorre em Josefo, Life 5;
21), m as alguns veriam aqui um am álgam a dos sacerdotes do tem po de
Jesus e dos fariseus do tem po dos evangelistas. Considerem os cada termo.
O uso plural "sum os sacerdotes" ocorre um as dez vezes em João (cinco
vezes na N arrativa da Paixão) e é m uito frequente nos sinóticos e em Atos.
N ão indica necessariamente que os escritores neotestamentários não co-
nheciam que havia somente um sumo sacerdote oficial, pois o plural é
um a expressão corrente encontrada em Josefo e na Mishnah. Sob a rubri-
ca dos principais ou sumos sacerdotes estava incluído o sumo sacerdote
1230 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

incumbido (João e M ateus mencionam Caifás nas Narrativas da Paixão),


primeiro os sumos sacerdotes que foram depostos, m as que ainda viviam
(p. ex., Anás), e m em bros das famílias privilegiadas dentre as quais eram
escolhidos os sumos sacerdotes. Veja S c h ü r e r , II, 1 , 2 0 3 - 6 . Talvez a rubrica
também cobrisse os m antenedores dos ofícios sacerdotais (assim Jeremias,
como citado em BAG, p. 112).
Todos os evangelhos dão aos principais sacerdotes o m ais proem inente
papel na ação contra Jesus. Marcos e M ateus m encionam m uitas vezes
os anciãos, enquanto Lucas (23,13.35; 24,20) m enciona os governadores
juntam ente com os anciãos (22,52; cf. 66).
Nas N arrativas da Paixão propriam ente, som ente João m enciona os fari-
seus, e então som ente no presente caso (Mt 27,62 os envolve no cenário
da guarda ao túm ulo - certam ente um a adição posterior à narrativa).
Entretanto, pode ser que João quisesse incluí-los em outro lugar na N ar-
rativa da Paixão sob a rubrica de "os judeus", como fazem os sinóticos
quando se referem a todo o Sinédrio (Mc 15,1) e aos escribas (os três
evangelhos). Alguns estudiosos pensam que aqui João é culpado de erro
ao falar da guarda do tem plo fornecida pelos fariseus que na realidade
não tinham autoridade sobre tal guarda. Entretanto, João não poderia
ter em m ente mais do que a guarda enviada pelo Sinédrio na qual os
sacerdotes, os escribas fariseus e os anciãos tinham voz (Mc 14,43). His-
toricamente, é impossível determ inar precisam ente quão envolvidos na
ação contra Jesus estavam os fariseus ou todo o Sinédrio (aparentem ente,
vinte e três dos setenta conselheiros eram suficientes para form ar um
quórum ); m as é possível conjeturar plausivelm ente tanto que os fariseus
eram im portantes dem ais para terem sido ignorados pelos sacerdotes,
como tam bém que não nutriam nenhum afeto por Jesus depois de suas
afirmações públicas sobre eles.
Lanternas e tochas. M encionado som ente po r João, este detalhe poderia ter
sido incluído na narrativa para enfatizar o tem a teológico de que era
noite (veja comentário). Isto não exclui a possibilidade de que o deta-
lhe fosse factual. É frágil a objeção de que não teria havido necessidade
de lanternas, pois este era o tem po da lua pascal quase cheia: o senso
comum indica que um bosque de oliveiras tem seus cantos escuros em
que um hom em poderia esconder-se. H aenchen , "Historie", p. 59, pensa
ser irreal que 600 ou m esm o 200 hom ens viessem carregando lanternas e
tochas, porém ninguém tem que interpretar João como significando que
todos as levavam.
armas. Mc 14,43 e M t 26,47 mencionam espadas e cacetes. P. W inter,
"The Trial of Jesus" (preleção m im eografada, 19 de fevereiro, 1964, p. 10),
61 · A narrativa da paixão: - Primeira seção (primeira unidade) 1231

insiste que a guarda judaica carregava bastões (cacetes) e os soldados


rom anos portavam espadas; implicitam ente, pois, p ara ele o relato mar-
can o /m atean o reconhecería a presença dos dois grupos.
4. Sabendo. H á corroboração textual m ais fraca para "vendo", um a redação
que é m enos teológica. Reconhecimento de Jesus é um forte tem a joanino
(6,6; 13,1). Em Mc 14,42 (Mt 26,46), Jesus sabe que seu traidor está por
perto antes m esm o de Judas entrar em cena.
adiantou-se. Som ente em João Jesus tom a a iniciativa de ir ao encontro
de Judas; p ara João, Jesus perm anece em pleno controle de tudo o que
acontece.
5. Nazoreano. Podemos distinguir três designações de Jesus: (a) apo Naza-
reth, "de Nazaré": Mt 21,11; Mc 1,9; Jo 1,45; At 10,38. (b) Nazarenos,
"N azareno": quatro vezes em Marcos; duas vezes em Lucas; um a varian-
te textual ocidental neste versículo de João. (c) Nazõraios, "Nazoreano":
duas vezes em M ateus; oito vezes em Lucas/A tos; três vezes na Narra-
tiva da Paixão de João (aqui, 18,7; 19,19). Este terceiro term o tem sido o
tem a da discussão erudita. Ao tem po em que o Evangelho de Mateus
foi escrito, Nazõraios era interpretado como um a referência à vinda de
Jesus de N azaré (Mt 2,23). N o relato da negação de Pedro após a prisão
de Jesus, Mc 14,67 m enciona Jesus o N azareno enquanto Mt 26,71 fala
de Jesus o N azoreano. E verdade que M. B lack, p. 144, entre outros, tem
questionado a derivação de Nazõraios como da N azaré gentüica, m as a
m aioria dos estudiosos ainda endossa esta derivação como sendo piau-
sível e perm anece a m elhor hipótese elaborada. (Veja G. F. M oore in The
Beginnings of Christianity, ed. por K. Lake e F. J. Foakes-Jackson [Londres:
M acmillan, 1920], I, I, 426-32; W. F. A lbright, JBL 65 [1946], 397-401).
E perfeitam ente lógico que um grupo enviado a prender alguém queira
identificá-lo plenam ente pelo nom e e lugar de nascimento. Aqui não há
razão p ara se pensar que um a referência a Nazaré como a cidade natal
de Jesus contenha um a nota de m enosprezo, como em 45-46 (cf. 7,41.52).
Algum as das outras hipóteses para explicar Nazõraios incluem: (a) O
nom e designa um a seita judaica pré-cristã ("Observantes", da raiz nsr),
talvez os seguidores do Batista. Os m andeanos, que alegam descender
do m ovim ento do Batista, ocasionalmente se denom inam de nasorayya.
Os Padres da Igreja, como T eodoreto e E pifânio, tinham conhecimento de
um a seita herética judaico-cristã cham ada Nazõraioi, m as E pifânio (Haer.
XVIII, XXIX; GCS 25:215,321) distingue entre eles e os Nazõraioi pré-
cristãos, (b) O nom e deve ser relacionado com os antigos nazireus (heb.
nãzir) que eram consagrados a Iahw eh m ediante um voto; veja Jz 13,5 e o
argum ento de E. Schweizer em Judentum, Urchristentum, Kirche 0. J eremias
1232 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

Festschrift; Berlin: Töpelm ann, 1960), pp. 90-93. (c) O nom e designa Jesus
como o "renovo messiânico" (heb. riêçer) de Is 11,1. (d) O nom e está rela-
cionado ao passivo do verbo nasar, "preservar", assim riãsur, "o preser-
vado", com conotações do rem anescente messiânico - Jesus é aquele que
foi separado e guardado para a tarefa messiânica; seus seguidores são o
remanescente. B. G ärtner, Die rätselhaften Termini Zazoräer und lskariot
(Horae Soederblomianne 4; Uppsala: Gleerup, 1957), p. 14, pensa que as
passagens Is 42,6 e 49,6, que contêm este verbo, são as profecias referi-
das em M t 2,23 como a base para cham ar Jesus um N azoreano. G ärtner
tam bém apresenta sua explicação do substantivo cognato isaiano nêser,
supram encionado. Para um exame de pontos de vista, veja Η. H. Schae -
der, TWNTE, IV, 874-79.
"Eu sou ele". Literalmente, "Eu sou" (egõ eimi). O Codex Vaticanus, que
lê "Eu sou Jesus", preserva um a tentativa de copista para esclarecer. Um
egõ eimi ocorre na narrativa m arcana da paixão (14,62), quando Jesus
responde à pergunta do sum o sacerdote sobre ser ele o Messias. Além
do mais, em Mc 14,44, na prisão de Jesus, Judas diz: "Aquele a quem eu
beijar, esse é ele [autos estin]".
(Ora, Judas...). Isto parece ser um a inserção m uito estranha: a presença de
Judas não só já fora m encionada, m as já não exerce nenhum o utro papel
que justificasse ser m encionado outra vez. B ultmann, p. 493, pensa que
esta foi a prim eira referência a Judas na cena do relato da paixão no jar-
dim usada pelo evangelista, enquanto a referência a Judas no v. 3 repre-
senta um a adição introdutória com posta pelo evangelista. W inter, Trial,
p. 45, pensa que todas as referências a Judas nesta cena são secundárias.
Seria a segunda m enção a Judas um eco da tradição sinótica onde Judas
tem um papel m ais im portante? Para a possibilidade de adições m enores
da tradição sinótica, veja vol. 1, p. 25.
6. recuaram. Os relatos sinóticos não registram qualquer hesitação na prisão
de Jesus. Não obstante, em outros lugares em João há registros de difi-
culdade em prender ou em prejudicar Jesus (7,30.44; 8,20.59; 10,39; 12,36;
tam bém Lc 4,29-30). J. H . H ingston, E T 32 (1920-21), 232, tem tentado
resolver a dificuldade, interpretando as palavras neste sentido: "ficaram
atrás [dele]", interpretação que requer a omissão da frase seguinte.
e caíram por terra. M ein, art. cit., é perfeitam ente correto em rejeitar a inter-
pretação de B ernard (II, 586-87) de que as palavras não im plicam nada
mais senão que os hom ens que foram fazer a prisão se viram vencidos
pela ascendência m oral de Jesus e então ficaram "desconcertados". Mas
a própria tese de M ein de m odo algum é convincente, a saber, que isto
é um eco da LXX de Is 28,13b: "... para que vão, e caiam para trás, e
61 · A narrativa da paixão: - Primeira seção (primeira unidade) 1233

se quebrantem , e se enlacem, e sejam presos". M ein combina isto com


a m enção da p edra angular escolhida, três versículos posteriores em
Isaías, de m odo que na imagem de João Jesus, a pedra angular, se con-
verte num a p edra de tropeço, como em lP d 2,6-8. Mas nada existe no
Q uarto Evangelho a sugerir que este simbolismo da pedra angular exer-
cia algum papel no pensam ento joanino. L agrange, p. 457, que toma
o relato joanino literalm ente, diz que não se deve exagerar o milagre,
pois relativam ente poucos soldados teriam ouvido as palavras e caído!
S. B artina, art. cit., que tam bém tom a a cena literalm ente, pensa que os
judeus tinham o hábito de prostrar-se em terra quando Jesus mencio-
nava o nom e divino "EU SOU". O últim o tem a está envolvido (veja co-
m entário), m as temos aqui um a construção teológica joanina mais do
que um a reminiscência histórica. H aenchen , "Historie", p. 59, apresenta a
tese de que os salmos, que exerciam um papel tão im portante na reflexão
d a Igreja prim itiva sobre a paixão, tam bém penetraram o pensam ento
joanino nesta cena; por exemplo, SI 22,2: "Q uando os malfeitores vie-
ram p ara devorar m inha carne, m eus adversários e m eus inimigos é que
tropeçaram e caíram"·, 35,4: "Que sejam recuados e confundidos os que
m aquinam o m al contra m im ". Veja Com entário sobre os salmos ainda
m ais pertinentes.
9. Isto foi para se cumprir 0 que ele dissera. Como se dá frequentemente em João
(nota sobre 15,25), isto é sim plesm ente um a sentença de propósito hina,
tendo que suprir o verbo dom inante "Isto foi" (MTGS, p. 304). Outros
intérpretes oferecem a solução m enos plausível de um hina imperativo:
"O que ele disse se cum priría" (MTGS, p. 95 - "duvidoso"). Em outros
lugares (Mateus, João e especialmente Atos) o verbo plêroun é usado
para descrever o cum prim ento neotestam entário de passagens vetero-
testam entárias: para se cum prir "o que foi dito pelo Senhor"; "o que foi
dito através do profeta"; ou sim plesm ente "a Escritura". Somente aqui e
em 18,32 temos o verbo usado para cum prim ento das palavras de Jesus
(contudo, veja a teoria de F reed na nota sobre 17,12). Tal uso poria impli-
citam ente as palavras de Jesus no m esm o nível com as palavras das Es-
crituras judaicas e é o início de um a atitude que levaria ao reconhecimen-
to dos escritos canônicos cristãos lado a lado com os judaicos. Em João,
a base para este uso é que as palavras de Jesus, que lhe foram das por
Deus (17,8), e aquela revelação de Jesus suplantam a Torá dada através
de Moisés (1,17). N otam os que na cena do Getsêmani de Mt 26,54 há uma
referência ao cum prim ento da Escritura, porém num contexto diferente.
"não perdi sequer um dos que me deste". N ão obstante, de fato Jesus não disse
isto antes ao pé da letra em João. Esta é um a citação livre do conteúdo
1234 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

de 17,12, "Eu os guardava em teu nom e, que m e deste. Eu m antive vi-


gilância e nenhum deles se perdeu"? (A semelhança é m uito estreita
se tom arm os a redação alternativa desse versículo: "Eu m antive segu-
ros em teu nom e aqueles que m e deste" - veja notas sobre 17,11 e 12).
B ultmann, p. 495, pondera sobre 6,39: "A vontade daquele que m e en-
viou é que eu nada perca do que Ele me deu" e m antém que o presente
versículo foi anexado por um redator que entendeu m al a passagem no
cap. 6. Em qualquer caso, o redator final parece ser o m esm o que supriu
o comentário parentético, e poderia estar citando as palavras de Jesus tão
livrem ente como fazem os outros autores neotestam entários quando ci-
tam o AT. Note a implicação de que Judas, que se perdeu, realm ente não
foi dado pelo Pai a Jesus. Judas é explicitamente catalogado como um a
exceção à regra geral em 17,12, porém não em 6,39.
10. Simão Pedro... Malco. Os quatro evangelistas m encionam o incidente da
orelha do servo, m as som ente João dá os nom es dos envolvidos. Para
o que atacou, Mc 1 4 , 4 7 registra "um dos que estavam perto"; M t 2 6 , 5 1
registra "um dos que estavam com Jesus"; Lc 2 2 , 5 0 registra "um deles".
Os quatro evangelistas descrevem a vítim a como um servo do sum o
sacerdote (portanto, não um da guarda do tem plo, pois os servos e a
guarda são distintos no v. 1 8 ) . Alguns estudiosos pensam que a presen-
ça dos nom es em João reflete a tentativa criativa do evangelista de dar
plausibilidade à sua narrativa. N ão obstante, visto que a tendência dos
criadores de lendas é identificar figuras anônim as com as mais bem co-
nhecidas, isto explicaria a presença do nom e de Pedro, porém não o de
Malco. O nom e deste não é incom um na época; ele se encontra cinco
vezes em J o s e f o e é conhecido de Palm yrene e nas inscrições nabateanas
(donde a sugestão que Malco era árabe). Há quem tenha tentado desco-
brir um simbolismo por detrás do uso que João faz do nome. G u i l d i n g ,
p. 1 6 5 , vê um a referência a Zc 1 1 , 6 , lê como um haphtarah, alguns me-
ses antes da Páscoa, no prim eiro ano de um ciclo trienial (vol. 1,
pp. 5 1 8 - 5 2 1 ) : "Eu entregarei... cada um na m ão de seu rei [malkô]". K r i e -
g e r , art. cit., sugere que Judas era o servo do sum o sacerdote ferido pelo

discípulo de Jesus. Tais explicações im aginativas é m ais difícil de se acei-


tar do que a possibilidade de que a tradição de João preservou infor-
mação acurada. (Veja tam bém nota sobre 2 6 abaixo). Q uanto a Pedro, a
ação se adequa ao seu caráter im petuoso (Jo 1 3 , 3 7 ) . L a g r a n g e e T a y l o r ,
ao discutirem a descrição m arcana do discípulo que atacou o servo, en-
contram vestígio de que este discípulo era conhecido de Marcos. Isto não
seria desfavorável à indicação de João, pois a tradição associa Marcos
com Pedro.
61 · A narrativa da paixão: - Primeira seção (primeira unidade) 1235

espada. Em conform idade com Lc 22,38, o grupo possuía duas espadas.


A ação im previsível de Pedro sugere um a arm a do tam anho de um a ada-
ga, que podia ser ocultada.
puxou-a. João usa elkein; Mc 14,47 e M t 26,51 tam bém m encionam o desem-
bainhar ([apo]span) da espada.
decepando. João usa apokopteirv, os sinóticos usam aphairein.
orelha direita. M arcos e as m elhores testem unhas textuais de João usam
õtarion, um dim inutivo duplo, daí nosso "earlobe" [lóbulo da orelha].
M ateus, Lc 22,51 e Jo 18,26 usam õtion (lido no presente versículo de
João por P66, tradição alexandrina e a bizantina), tam bém um diminutivo.
Lc 22,50 usa ous, "orelha", um classicismo segundo BD F, §1113. B enoit,
Passion, p. 371, entende o dim inutivo como a designar a parte externa da
orelha.
Somente João e Lucas designam a orelha direita, e este detalhe parece ser
suprido independentem ente, pois os dois evangelhos usam palavras di-
ferentes para "orelha". B e n o i t , Passion, p. 4 3 , pensa que Pedro, delibera-
dam ente, escolheu o órgão direito, o mais valioso, de acordo com as leis
de im unidade do tem po, como um a m arca de desafio. A lguns intérpretes
engenhosos, observando que um hom em destro norm alm ente ferirá a
orelha esquerda de um oponente qué ora o enfrenta, extraiu deste epi-
sódio a inform ação vital de que Pedro era canhoto - a m enos que Pedro
fosse um covarde, que usasse a m ão direita para ferir um hom em que lhe
estava de costas!
11. Reponha essa espada. Literalmente, "Mete na bainha". Entre os sinóticos,
som ente M ateus m enciona esta ordem , m as o fraseado é diferente.
não beberei...? A b b o t t , JG, § 2 2 3 2 , pensa que literalm ente esta é um a excla-
m ação negativa: "não estou, naturalm ente, para bebê-lo [segundo o teu
desejo]". A m aioria interpreta a frase como um a pergunta retórica com
um a implicação afirm ativa (BDF, §3654).
copo. O u "cálice". O simbolismo é de um copo de sofrimento, tam bém men-
cionado pelos sinóticos na cena do Getsêmani (Mc 14,36 e par.: "Remove
de m im este copo").
12. os soldados. Literalmente, "a guarda" como em 3.
tribuno. Literalmente, o grego chillarchos é um capitão ou oficial sobre 1.000
hom ens, m as o term o era usado para traduzir o tribunus militum romano,
um com andante de um a escolta de 600. W i n t e r , Trial, p. 29, sugere que o
relato de João tem o oficial graduado e que mais provavelm ente ele fosse
um decurio ou pequeno destacam ento sobre dez homens.
prenderam Jesus e 0 manietaram. Segundo Mc 15,46 e M t 26,50, assenhorea-
ram -se (kratein) de Jesus antes do incidente da orelha do servo; João e
1236 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

Lc 22,54 descrevem a prisão (syllambein) como ocorrendo após o inciden-


te. A segunda é a ordem mais lógica. Mc 14,48 e M t 26,55 usam o verbo
syllambein quando Jesus indaga "Saístes com espadas e varapaus a pren-
der-me, como a run salteador?"

C O M E N T Á R IO

A estrutura da primeira seção da narrativa da Paixão

A p aix ã o com eça com o re la to d a p ris ã o d e Jesu s n o ja rd im ru m o ao


C id ro m . E m 18,1 se faz u m a tra n siç ã o p a ra a N a rra tiv a d a P aix ão
d e sd e o ú ltim o d iscu rso . Já v im o s q u e h á u m té rm in o d e u m a fo rm a
m ais o rig in a l d o ú ltim o d isc u rso e m 14,31, o n d e Jesu s diz: "S aiam o s
d a q u i e sig am o s n o sso c a m in h o ", e q u e o p re se n te a rra n jo , o n d e e sta
term in a ç ão é se g u id a p o r trê s c a p ítu lo s d e d isc u rso é u m p r o d u to re-
d acio n al (pp. 941-53 acim a). A ssim m u ito s s u g e riría m q u e e m certo
m o m e n to 14,31 p re c e d e u im e d ia ta m e n te 18,1. Isto é p o ssív e l, m a s a
h istó ria d e ste s c a p ítu lo s p ro v a v e lm e n te seja m ais c o m p le x a d o q u e
p o d e m o s re c o n s tru ir hoje. E d e v e m o s le m b ra r q u e a N a rra tiv a d a P ai-
xão b e m q u e p o d e ter sid o u m a e n tid a d e iso la d a a n te s q u e fosse u n i-
d a a q u a lq u e r fo rm a d o ú ltim o d iscu rso .
A p rim e ira seção d a N a rra tiv a d a P aix ão a b a rc a 18,1-27. C o m o já
m en c io n am o s (pp. 1121-22 acim a), J anssens de V arebeke p e rc e b e a q u i
u m p a d rã o d e sete su b d iv isõ es. P o r ex em p lo , ele faz 18,1 u m a su b d iv i-
são iso lad a, s e p a ra d a d e 2-3. M ais p la u siv e lm e n te , e m n o sso ju íz o , os
vs. 1-3 se en caix am com o u m cen ário p a ra os d o is e p isó d io s e m 4-8 e
10-11. U m a v e z m ais, J anssens de V arebeke tra ta 12-16a c o m o u m a su b -
d iv isão , m a s d e v e m o s c o n sid e ra r 12-13 u m a p a ssa g e m d e tra n siç ã o
en tre a cena n o ja rd im e a cena n o palácio d o su m o sacerdote. R o m p e r a
u n id a d e d e 15-18 em 16a tam b é m parece p reju d ica r a e stru tu ra . O a u to r
jo an in o cerca o in te rro g a tó rio d e Jesus com d u a s m e ta d e s d e u m a cen a,
o n d e P e d ro n eg a Jesus (15-18 e 25-27). P a rte d o a rg u m e n to d e J anssens
de V arebeke é b a se a d a n o q u e ju lg a m o s se r a sso n â n c ias a c id e n ta is en-

tre p a la v ra s (p. ex., hestõs e m 18 e 25 e p a restêk õ s e m 22). P a rte d e le


é b a s e a d a n o u so n u m é ric o d e certas p a la v ra s (erchesthai) n a s v á ria s
div isõ es. Ele ta m b é m ev o ca a lg u m a s in clu sõ es q u e só p o d e m o s ca-
ra c te riz a r co m o e x cessiv am en te forçadas; p o r ex em p lo , u m a in clu sã o
61 · A narrativa da paixão: - Primeira seção (primeira unidade) 1237

e n tre o g o lp e d e P e d ro d e c e p a n d o a o re lh a d o se rv o n a P rim e ira se-


ção e o g o lp e d o s o ld a d o q u e feriu com tu n a lança o la d o d e Jesus n a
T erceira seção. C o m o fica e v id e n te d o esboço q u e a p re se n ta m o s n a
p . 1200 a cim a, d e te c ta m o s u m a e s tru tu ra m e n o s co m p lex a n a P rim eira
seção. E la co n siste d e d u a s u n id a d e s: a p ris ã o d e Jesus n o ja rd im (vs.
1 1 1 ‫ )־‬e o in te rro g a tó rio d e Jesu s feito p o r A n á s n o p a lá c io d o su m o sa-
c e rd o te (vs. 14-27). A tra n siç ã o e n tre as d u a s u n id a d e s é e fe tu a d a sua-
v e m e n te n o s vs. 12-13. (A o colocar o v. 12 com a p rim e ira u n id a d e e o
v. 13 co m a s e g u n d a , e sta m o s su b d iv id in d o p o r c o n v en iên cia prática;
o a u to r te n c io n a v a q u e as d u a s se g u isse m ju n tas).
N o ta m o s q u ã o b e m a s d u a s u n id a d e s e q u ilib ram u m a à outra: em
c a d a u m a o c o m p o rtam e n to d e P e d ro é im p licitam en te c o n trastad o
co m o d e Jesus. Este m o stra q u e p o d e ría fru stra r a p risã o com p o d e r
d iv in o (v. 6), p o ré m p e rm ite ser p reso e m an ietad o . P e d ro ten ta resistir
à p ris ã o co m p o d e r h u m a n o (a esp ad a), m as isso é ineficaz. Jesus se
d e fe n d e b ra v a m e n te d ia n te d e A nás, a p e la n d o p a ra o caráter aberto
d e se u en sin o . E ntrem entes, P ed ro , q u e o u v ira tal ensino, n eg a q u e co-
n h ecesse Jesus. N o s p rim e iro s versículos d e c ad a u n id a d e encontram os
o s d iscíp u lo s d e Jesus seg u in d o -o lealm ente; m as n o final d e cad a uni-
d a d e e n c o n tram o s P ed ro , u m d iscíp u lo rep resen tativ o , im possibilitado
d e a d m in is tra r a situ ação n a q u a l Jesus d e m o n stra su a fortaleza m oral.
A q u i se exibe o sen so joan in o d e org an ização d ram á tic a em seu m elhor.

A historicidade e independência do relato joanino da prisão

A té m e sm o n a av aliação m ais crítica d a e v id ê n c ia ev an g élica p o d e


h a v e r p o u c a d ú v id a d e q u e Jesus foi p re so e m a lg u m lu g a r n o M onte
d a s O liv eiras, p o u c o a n te s d a crucifixão e le v a d o d e v o lta à c id ad e
p a ra o ju lg a m e n to . E ste fato b ásico tem sid o objeto d e in te rp re ta ç ã o
teo ló g ica em to d o s os e v a n g elh o s; co m o v e re m o s abaixo, a o rien tação
jo a n in a é d ife re n te d a q u e la d o s sin ó tico s e se a d e q u a ao s in teresses
teo ló g ico s p e c u lia re s e n c o n tra d o s em o u tra s p a rte s d o ev an g elh o . Se
d e ix a rm o s d e la d o , p o r u m m o m e n to , o alcance teológico d a cena, no-
ta m o s q u e d o is p o n to s m aio res d e d iferen ça d o s rela to s sinóticos m e-
rec e m ate n ç ã o , a sa b er, q u e João o m ite a cena d a a g o n ia n o G etsêm an i
e q u e Jo ão a trib u i u m p a p e l à s tro p a s ro m a n a s n a p risã o d e Jesus.
Primeiro, a a u sê n c ia d e u m a cen a d a ag o n ia. Isto c o stu m a ser des-
c a rta d o co m o u m efeito ó b v io d a teo lo g ia jo an in a. B u ltm a n n , p . 4 9 3 ,
1238 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

d iz q u e Jo ão tin h a q u e o m itir esta cena, p o rq u a n to Je su s já h a v ia sid o


d escrito co m o "g lo rificad o ". N ã o o b sta n te , n o ta m o s q u e n o cap . 12,
d e p o is d e Jesu s h a v e r p ro c la m a d o q u e a h o ra d a glo rificação c h e g ara
(12,23), ele e n fre n to u u m a c o n tu rb a çã o d a a lm a (27) sim ila r à cen a si-
nó tica d a ag o n ia. A ssim , n ã o é c o m p ro v a d o q u e a g ló ria e a a n g ú s tia
m u tu a m e n te se excluam . N ã o o b sta n te , se p o d e te o riz a r q u e n o fluxo
d o p e n s a m e n to jo an in o a n o ta d e a n g ú stia ficaria m e lh o r co m o u m
p re lú d io à h o ra (12), e m v e z d e v ê-la p a rc ia lm e n te (18).
M as, m esm o e n tã o a q u estão n ã o é tão facilm ente resolvida.
A m aio ria d o s críticos c oncorda q u e a cena d a ag o n ia n o G etsêm an e foi
d esap arecen d o d o relato p rim itiv o e consecutivo d a p aix ão (a fonte A
m arcan a - p. 1203 acim a). P ortanto, su a au sên cia e m João p o d e n ã o ser o
resu ltad o d e u m a om issão o u rearranjo redacional, m as p o d e ter-se ori-
g in ad o d o fato d e q u e, n este detalhe, a trad ição jo an in a pré-evangélica
era sim ilar à fonte A m arcana. A h isto ricid ad e d a cena d a a g o n ia é u m
p ro b lem a p a ra e stu d o sinótico, e n ã o no s p re o c u p a aqui. (E b e m pos-
sível q u e o p resen te relato m arcan o seja u m a fu são d e d u a s fo rm as d a
n arrativa, só u m a delas sen d o p rese rv ad a em L ucas [cf. K. G. K uhn , EvTh
12 (1952-53), 260-85]). Seu aspecto m ais difícil é aq u ele em q u e se su p õ e
o q u e Jesus teria d ito e m su a agonia, d ito s p a ra os q u ais n ã o h á testem u -
n h a s (os três discípulos estav am d o rm in d o ). T eria a trad ição B m arcan a
e a trad ição lu can a (se in d ep en d en tes) p ree n c h id o a cena d a a g o n ia com
dito s q u e u m a v ez tiv eram o u tro contexto n o m inistério d e Jesus? T alvez
isto explicaria p o r q u e João contém d ito s d isp erso s sim ilares ao s d ito s d a
cena sinótica d a agonia; veja vol. 1, p p . 772-74 e p. 1038 acim a; tam b ém
T. B oman , "Der Gebetskampt Jesu", N TS 10 (1963-64), 261-73.
Segundo, a p rese n ç a d e so ld a d o s ro m a n o s n o jard im . Já m en cio n a-
m o s n a n o ta so b re v. 3 a lg u m a s d a s objeções d e d e ta lh e c o n tra a infor-
m ação d e João e tem o s m o stra d o q u e tais objeções p o d e m se r resp o n -
d id as satisfato riam ente. O p ro b le m a rea l se o c u p a d a p ro b a b ilid a d e d o
en v o lv im en to d e Pilatos com o S inédrio n a p risã o d e Jesus. T al coope-
ração p o d e ría ter sid o m u tu a m e n te benéfica se P ilatos q u isesse Jesus
fora d o cam in h o tem p o raria m e n te (veja p. 1220 acim a) e se o S inédrio
quisesse o ap o io ro m a n o n o caso d e os se g u id o re s d e Jesus cau sasse
su b lev ação em su a p risão . N ã o h á evidência sinótica clara e m p ro l d o
p ro fu n d o en v o lv im en to d e P ilatos d e sd e o p rin cíp io , co m o se a ch a im -
plícito e m João. H . C o n zelm a n n (The Theology of St. Lucke [N ova York:
H a rp e r, 1960], p p . 90-91) p e n sa q u e em A t 3,13-14; 4,27 e 13,28 tem o s a
61 · A narrativa da paixão: - Primeira seção (primeira unidade) 1239

e v id ê n c ia d a fó rm u la p ré -lu c a n a q u e a trib u ía a P ilatos g ra n d e resp o n -


s a b ilid a d e n a m o rte d e Jesus. Ele su g e re q u e e m s e u p ró p rio ev an g e-
lh o L u cas fra c a sso u p o r in c o m p re e n sã o em r e p ro d u z ir este tem a. Em
M c 15,2 e M t 27,11, P ilato s, se m receb er q u a lq u e r in fo rm ação , sab ia d e
q u e Je su s e ra a c u sa d o , isso n ã o significa n e c essa ria m e n te q u e P ilatos
e x e rc e u u m p a p e l n a p risã o ; a ab re v iaç ã o d e u m re la to m ais lo n g o
o u o c o n h e c im e n to c o m u m so b re Jesu s se ria u m a ex plicação suficien-
te. N a tra d iç ã o p ré -m a rc a n a d a s p re d iç õ e s d a p a ix ã o (M c 8,31; 9,31;
1 0 ,3 3 3 4 ‫ )־‬n ã o h á in d íc io d e e n v o lv im e n to ro m a n o n a p risã o .
M u ito s críticos su g e re m q u e João in tro d u z iu so ld a d o s ro m a n o s
n a c en a d o ja rd im p a ra p ro p ó sito s teológicos (assim L oisy, B ultm a nn ,
B arrett , L o h se ). A p re se n ç a d e tro p a s ro m a n a s la d o a la d o com a
g u a rd a ju d a ic a p o d e te r sid o u m sím b o lo d o " m u n d o " in te iro se n d o
p e rfila d o c o n tra Jesus. B arrett n o s le m b ra d a o p o sição e n tre R om a e
o c ristia n ism o n o liv ro d o A p o calip se. H á q u e m su g ira q u e a partici-
p a ç ã o d a a u to rid a d e ro m a n a n a p risã o ten c io n av a p r e p a ra r o cam i-
n h o p a ra a d ra m á tic a c o n fro n tação d e Jesu s e P ilato s q u e d o m in a o
re la to jo a n in o d a p aix ão . E n tre ta n to , tem o s q u e a d m itir q u e o p ró p rio
e v a n g e lh o n ã o c h a m a a a te n ç ã o p a ra o v a lo r sim b ó lico d o s so ld a d o s
ro m a n o s co m o re p re s e n ta n te s d e "o m u n d o " ; d e fato, a p re se n ç a do s
s o ld a d o s n ã o é e n fa tiz a d a n e m m esm o com o a p re se n ç a d e R om a -
só é p o r d e d u ç ã o q u e c o m p re e n d e m o s q u e P ilato s e, p o rta n to , a au-
to rid a d e ro m a n a teria sid o c o n su lta d a. T a m p o u co a cen a d a p risã o
p re p a ra re a lm e n te o c a m in h o p a ra a c o n fro n tação d e Jesu s e Pilatos.
A in fo rm a ç ã o d e q u e P ilato s tev e p a rte n a p risã o d e Jesu s v a i d e en-
c o n tro a im a g e m d e P ilato s n o trib u n a l o n d e ele é sim p á tic o a Jesus e
p e n s a q u e o p ro c e sso ju d a ic o c o n tra Jesus n ã o é co n v in cen te. O ra, se
u m a d e s ta s d u a s im a g e n s (P ilatos tra m a n d o a p risã o d e Jesus e P ilatos
tra m a n d o a s o ltu ra d e Jesus) é v e rd a d e ira e a o u tra foi re m o d e la d a
p o r m o tiv o s teo lógicos, a d o P ilato s d o trib u n a l é m ais p ro v a v e lm e n te
a criação teológica. N ã o é fácil a n u la r u m q u a d ro d o e n v o lv im e n to ro-
m a n o n a p ris ã o d e Jesus co m o u m a in v en ç ã o d o ev an g elista; e é b e m
p ro v á v e l q u e G o g u el , C u llm a n n , W inter , e n tre o u tro s, estejam certos
e m p e n s a r q u e a q u i João p re s e rv o u u m d e ta lh e h istó rico p re ssu p o sto
n o s o u tro s re la to s evangélicos. (Cf. n o ta so b re " a rm a s" n o v. 3).
D escobrim os, pois, q u e nos dois pontos m aiores o n d e João difere dos
evangelhos sinóticos n o relato d a prisão, a inform ação o u a b o rd a g e m d e
João te m c o n sid e ráv e l p la u s ib ilid a d e co m o re p re s e n ta n te d a tra d içã o
1240 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

m ais an tig a. F ixem o-nos a g o ra e m u m in c id e n te q u e João p a rtilh a


co m os sin ó tico s, m a s o n d e h á d e ta lh e s jo an in o s p e c u liare s. N a s n o ta s
so b re vs. 1 0 1 1 ‫ ־‬p u se m o s e m d e sta q u e a s sim ila rid a d e s e d issim ila ri-
d a d e s e n tre o s rela to s jo an in o s e sin ó tico s d o d e c e p a m e n to d a o re lh a
d o serv o . N a tu ra lm e n te , n in g u é m p o d e estab elecer a v e ra c id a d e d o s
d e ta lh es n a rra d o s so m e n te p o r João (P ed ro , M alco, o re lh a d ire ita [Lu-
cas ta m b é m tem o relh a direita]); m as n ã o são im p la u sív e is, e as teo rias
d a in v en ção d e ste s d e ta lh e s n ã o sã o to ta lm e n te co n v in cen tes.
Isto n o s lev a à q u e stã o d a m e d id a a q u e a N a rra tiv a Jo a n in a d a
P aixão é d e p e n d e n te d o s e v a n g elh o s sin ó tico s o u d e s u a s fo n tes. D is-
cu tim o s isto em term o s g erais acim a (pp. 1202-07), m a s p ro m e te m o s
v o lta r às n o ssas co n clu sõ es m e d ia n te e stu d o s in d iv id u a is. A c en a
d a p risã o n o s d á u m a ch an ce d e te sta r a teo ria d e B use d e q u e Jo ão se
relacio n a com a fo n te B m arc an a . João carece d e q u a se to d o o m a te ria l
e n c o n tra d o em B: a a g o n ia n o G e tsêm a n i e os in c id e n te s d e M c 14,49-51.
(Mc 14,49 te m a lg u m a sim ila rid a d e com Jo 18,20, m a s n ã o p o d e h a v e r
d ú v id a so b re a d e p e n d ên c ia). D e fato, João p a rtilh a co m B so m e n te
n o in cid e n te d o d e c e p a m e n to d a o re lh a d o servo; e exceto p e la s p a -
lav ra s co m o "fe rir" e " o re lh a " , os d o is rela to s n ã o sã o a b so lu ta m e n te
afins. N o s in cid e n te s n a rra d o s , João é b a s ta n te m ais afim co m a fo n te
A m arc a n a (o re la d o p rim itiv o d a p aixão). Β ενογγ p e n s a q u e M a te u s
tem u m rela to in d e p e n d e n te d a p risã o ; m u ito s p e n s a m q u e L u cas te m
u m a fo n te in d e p e n d e n te . N ã o o b sta n te , é d ig n o d e n o ta o q u a n to João
d ifere d o s trê s (M arcos A , M a te u s, Lucas): a d escrição q u e Jo ão faz
d a s forças p risio n a is é d iferen te; João in clu i o d e ta lh e d a s la n te rn a s
e tochas; ele o m ite o beijo d e Ju d as; ele n ã o m e n c io n a o M o n te d a s
O liv eiras e d escrev e a lo ca lid a d e e m te rm o s d ife ren te s. E m face d e sta s
d iferen ças, a teo ria d e B orgen d e q u e o s d e ta lh e s d o s v á rio s re la to s si-
n ó tico s fo ram fu n d id o s e a n e x a d o s a João p a re c e im p ro v á v e l. Se João
c o n co rd a co m L ucas c o n tra M arco s e M a te u s e m colocar o a ta q u e d o s
d isc íp u lo s ao se rv o d o su m o sa ce rd o te a n te s d a p risã o d e Jesu s, João
n ã o tem , p ra tic a m e n te , n e n h u m d o s o u tro s d e ta lh e s e m q u e L u cas di-
fere d e M arco s e M a te u s (a p e rg u n ta feita p e lo s d isc íp u lo s e m Lc 22,49;
a cu ra d a o relh a d o se rv o e m 51; a p re se n ç a d o s p rin c ip a is sa c e rd o te s
n a p a tru lh a q u e o lev a n o v. 52). T a m p o u co João te m os d e ta lh e s em
q u e M a te u s d ife re d e M arco s e L ucas (p. ex., o s d ito s d e M t 26,52-54 -
veja n o ta so b re v. 11). D iferenças tais co m o e sta s n o s le v a m a fav o re-
cer a teo ria d a in d e p e n d ê n c ia joanina.
61 · A narrativa da paixão: - Primeira seção (primeira unidade) 1241

O significado dado à cena no pensamento joanino

Se Jo ão re c o rre u à tra d iç ã o in d e p e n d e n te m ais a n tig a , o m aterial


d e s sa tra d iç ã o foi re e la b o ra d o n o s in te resse s d a teo lo g ia jo an in a. Em
u m a rtig o rec e n te , R ich ter a rg u m e n to u q u e o re la to jo an in o d a p risã o
é s im p le s m e n te ela b o raç ã o teo ló g ica d o re la to sin ó tico o u p ré-sin ó -
tico, m a s ele e x tra i se u s p rin c ip a is a rg u m e n to s d o tip o d e m ate ria l
q u e p a s sa m o s a d isc u tir a se g u ir e n ã o d o s d e ta lh e s q u e já tratam o s.
E m n o s s o ju ízo , p a ra q u e se faça ju stiça a to d a s as c o m p le x id a d e s d o
re la to jo a n in o , é p rec iso a d m itir am b as, a tra d iç ã o in d e p e n d e n te dis-
p o n ív e l e u m a ela b o raç ã o a lta m e n te teológica.
O v. 2 im plica q u e a traição d e Ju d as consistiu em info rm ar as autori-
d a d e s o n d e Jesus p o d e ría ser p reso secretam ente, à noite, sem o risco d e
tu m u lto s. João, p o rém , p o d e ría estar m ais interessado n o valor sim bólico
d a p resen ça d e Judas. E m 13,27.30, q u a n d o v im os Judas pela ú ltim a vez,
ele se co n v ertera n o in stru m e n to d e S atanás e p a rtira noite adentro. Esta
foi u m a n o ite ru im d a q u a l Jesus ad v ertira em 11,10 e 12,35, noite em que
os h o m en s tro p eçam p o rq u e n ão têm luz. T alvez isto seja p o r q u e Judas
e seus co m p an h eiro s v iera m p o rta n d o lan tern as e tochas. N ão aceitaram
a lu z d o m u n d o , e assim p referiram a lu z artificial. Este m o m en to d e
trev as p o d e ser co n trastad o com o triu n fo final d e Jesus n a Jerusalém
celestial (A p 22,5), o n d e os abençoados n ã o precisarão d e lâm p ad as, pois
o S enhor D eu s será su a luz. H á u m eco d este m esm o tipo d e sim bolism o
n a cena lu can a d a p risão (22,53), o n d e Jesus d iz a seus captores: "E sta é
vossa h o ra e o p o d e r d a s trevas". (Se João e stava extraindo d o relato lu-
cano, a om issão d e u m d ito tão a p ro p ria d o seria inexplicável).
A c o n fro n tação d ire ta d e Jesus e a s forças d a s trev as é n a rra d a com
in stin to d ram ático . Jesus sabia o q u e e stav a p a ra acontecer e saiu ao en-
co n tro d e se u s o p o n en tes. Já o u v im o s dizer: "N in g u é m a to m a [m inha
v ida] d e m im ; an tes, e sp o n ta n e am e n te a e n tre g o " (10,18). Jesus d e ra a
Ju d a s p e rm issã o d e d eix ar a ú ltim a ceia a fim d e traí-lo (13,27); ag o ra se
p e rm itirá a Ju d a s e às su a s forças p ren d ê-lo . P ara João, a paix ão n ã o é
u m d e stin o in ev itáv el q u e se assen h o reia d e Jesus; ele é se n h o r d e seu
p ró p rio d estin o . (É b e m p ro v áv e l q u e esteja certo o a rg u m e n to d e
R ichter , art. cit., d e q u e esta im ag em jo an in a d e Jesus visasse a resp o n -
d e r ao tip o d e objeções ju d aicas e n c o n trad a s m ais ta rd e e m O rígenes,
Celsus I I 9; G C S 2:135: Se Jesus e ra d iv in o , com o p o d e ría m os h o m en s
fazê-lo p risio n eiro e m atá-lo?) E m João n ã o p o d e ría h a v e r contato físico
1242 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

en tre Ju d a s e Jesus, n e m beijo com o n o relato sinótico. (Seria o beijo u m a


ad ição sim bólica à h istó ria original?) O s d o is lad o s estão d iv id id o s n a
p u g n a . Jesus faz às forças lid e ra d a s p elo d iscíp u lo re n e g a d o u m a p e r-
g u n ta sem elh an te à q u ela q u e p ro p u se ra ao s seu s p rim e iro s d iscíp u lo s
("A q u e m q u e estais b u sc an d o ? " [1,38]). A q u eles d iscíp u lo s o se g u ira m
em b u sc a d a v id a; o p a rtid o d e Ju d a s v eio e m b u sc a d a m o rte d e Jesus.
N o n ív el d a c o n v ersação o rd in á ria , a frase p e la q u a l Je su s res-
p o n d e , "E u s o u [ele]", se rv e sim p le sm e n te p a ra id en tifica r Jesu s co m o
o p ro c u ra d o , fu n çã o ex ercid a p e lo beijo d e J u d a s n a tra d iç ã o sin ó ti-
ca. M as a reação d e cair p a ra trá s e m co n fu são , à re sp o sta d e Jesus,
n ão é s im p le sm e n te e sp a n to e sp o n tâ n e o . O s a d v e rsá rio s d e Je su s es-
tão p ro s tra d o s so b re se u s ro sto s d ia n te d e s u a m aje sta d e (B a rtin a ,
art. cit.), e a ssim p o d e h a v e r p o u c a d ú v id a d e q u e João te m e m v ista
"E U SO U " co m o u m n o m e d iv in o (veja vol. 1, A p. IV). C a ir é u m a
reação à rev elação d iv in a e m D n 2,46; 8,18; A p 1,17. P o d e se r q u e o
SI 56,10(9) te n h a e n tra d o n a fo rm ação d a cena: " E n tã o os m e u s in im i-
g o s c airão p a ra trás: isto e u sei, p o rq u e D e u s é p o r m im ". U m p a n o d e
fu n d o a in d a m e lh o r teria sid o v a lio so se a le n d a já e stiv e sse e m cir-
cu lação q u e , q u a n d o M oisés p ro n u n c io u d ia n te d e F a raó o n o m e se-
ereto d e D eu s, ele c a iu m u d o p o r te rra (E usébio , Praeparatio evangélica
IX. XXVII. 24-26; G C S 43’:522, o a trib u i a A rtapan us , u m escrito r q u e
v iv e u a n te s d o I a século a.C.; veja R. D. B ury , ET 24 [1912-13], 232-33).
A cena jo an in a ilu stra q u e Jesus te m o p o d e r d e D e u s so b re a s forças
d a s tre v a s, p o rq u e ele tem o n o m e d iv in o . Isso refo rça a im p re ssã o
d e q u e Jesu s n ã o p o d e ría te r sid o p re s o a m e n o s q u e o p e rm itisse .
A m esm a id eia se e x p re ssa rá e m p a la v ra s d ia n te d e P ilato s e m 19,11:
"N ã o terias so b re m im n e n h u m p o d e r, se n ã o te fosse d a d o d o alto ".
M as desta v ez não decide Jesus deixar im potentes a seus inim igos.
N a cena sinótica d a agonia se d á a en ten d er com to d a clareza q u e Jesus
n ão p en sa em resistir à v o n tad e seu Pai, tam b ém em João p erm ite Jesus
ser preso, com tan to q u e não se cause n e n h u m d a n o a seus seguidores.
Jesus n ão u sa a proteção d o n o m e divino em seu favor, m as sim e m favor
daqueles q ue ele am a. O s discípulos se livram e d este m o d o se cu m p re o
tem a d e 17,12, o n d e se proclam ava a força pro teto ra d o n o m e divino.

[A B ibliografia p a ra e sta seção e stá in clu sa n a B ibliografia n o fi-


n a l d o §62.]
62. A NARRATIVA DA PAIXÃO:
- PRIMEIRA SEÇÃO (SEGUNDA UNIDADE)
(18,13-27)

O interrogatórío de Jesus

18 13P rim e ira m e n te , le v a ra m Jesus a A n ás, p o is e ra o so g ro d e Cai-


fás, q u e e ra o su m o sa ce rd o te n a q u e le an o . (14V ale le m b ra r q u e foi
C aifás q u e m a d v e rtiu aos ju d e u s q u e "co n v é m ter u m só h o m em
m o rto p e lo p o v o ").
15O ra , S im ão P e d ro p a s so u a se g u ir Jesu s ju n ta m e n te com ou-
tro d isc íp u lo . E ste d isc íp u lo , q u e e ra c o n h e cid o d o su m o sacerd o te,
a c o m p a n h o u Jesus a té o p alácio d o s u m o sacerd o te, 16e n q u a n to P e d ro
foi d e ix a d o e m p é d o la d o d e fora d o p o rtã o . E n tão o [outro] d iscíp u lo
(o c o n h e cid o d o su m o sacerd o te) sa iu e falo u à jo v em ju n to ao p o rtã o
e tro u x e P e d ro p a ra d e n tro . 17E sta se rv a q u e g u a rd a v a o p o rtã o disse
a P ed ro : " N ã o és tu ta m b é m u m d o s d isc íp u lo s d e ste h o m em ? " "N ã o
s o u " , re p lic o u ele. 18P o r e sta r frio, os se rv o s e o s g u a rd a s fizeram u m a
fo g u eira e se p u s e ra m e m p é ao r e d o r p a ra se aq u ecerem ; e n tã o P e d ro
ta m b é m se p ô s e m p é com eles e se a q u e n ta v a .
19O s u m o sa c e rd o te in te rro g a v a Jesus acerca d e se u s d isc íp u lo s e
d e se u en sin o . 20Jesu s re sp o n d e u :

"E u te n h o fa la d o a b e rta m e n te a to d o m u n d o .
E u s e m p re e n sin e i n u m a sin a g o g a o u n o s rec in to s d o tem p lo ,
o n d e to d o s os ju d e u s se reu n ia m .
N a d a h o u v e d e secreto acerca d o q u e e u disse.

17: disse; replicou; 26: insistiu. No tempo presente histórico.


1244 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

21P o r q u e m e p e rg u n ta s? P e rg u n ta ao s q u e m e o u v ia m e n q u a n to
e u falava. O b v ia m e n te, se le m b ra ria m d o q u e e u d isse ". 22A n te e sta
resp o sta, u m d e n tre a g u a rd a em serviço d e u u m a b o fe ta d a n o ro sto
d e Jesu s, ex clam an d o : "É d e ssa m a n e ira q u e re s p o n d e s ao s u m o sa-
cerd o te?" 23Jesu s re sp o n d e u : "Se e u d isse alg o m al, p r o d u z a lg u m a
ev id ên cia d isso . M as se e sto u certo, p o r q u e m e feres?" 24E n tã o A n á s
o e n v io u m a n ie ta d o a C aifás, o su m o sacerd o te. 25E n tre ta n to , S im ão
P e d ro p e rm a n e c ia em p é ali, a q u ecen d o -se. E n tã o lh e d isse ram : "É s
tam b é m u m d e se u s d isc íp u lo s? " "N ã o , n ã o so u " , d isse n e g a n d o -o .
26" N ã o te v i co m ele n o ja rd im ? ", in sistiu u m d o s se rv o s d o su m o
sacerd o te, p a re n te d o h o m e m cuja o re lh a P e d ro d e c e p a ra . 27P e d ro ne-
g o u -o o u tra v ez, e em se g u id a u m g alo c o m eço u a can tar.

NOTAS

18.13. Levaram. Literalmente, "conduziram ", agagein, como em Lc 22,54.


M uitos m anuscritos posteriores leem "tiraram ", harm onizando com
Mc 14,53; M t 26,57.
Anás. Em conform idade com Josefo (Ant. 18.2.1; 26), o sum o sacerdote
Ananus (gr. Ananos, do heb. Hananyãh-, a form a neotestam entária Anás
é um a abreviação) foi designado pelo prefeito rom ano Q uirino em 6 a.C.
e deposto por Valério Grato em 15 (48.2.2; 34). Ele perm aneceu podero-
so, pois seus cinco filhos eventualm ente se tom aram sum os sacerdotes
(20.9.1; 198). A família de Anás é m encionada diversas vezes nos escri-
tos judaicos posteriores; ela era notável por sua avareza, bem como por
suas riquezas e poder. Lucas é o único outro evangelista que associa
Anás com o período geral do m inistério de Jesus. Lc 3,2 data o sum o
sacerdócio de Anás e Caifás com a vinda da palavra de Deus ao Batista
no deserto; At 4,6 menciona que Pedro foi conduzido perante "Anás,
o sum o sacerdote, e Caifás, e João [talvez Jônatas, filho de A nanus que
governou em 36-37, depois de Caifás], e Alexandre [igualmente desco-
nhecido]". A m aioria dos críticos presum e que Lucas, equivocadam ente,
cria que Anás ainda era sum o sacerdote ou, ao m enos, sum o sacerdo-
te adjunto de Caifás. W inter, Trial, p. 33, pensa que Lucas incorreu em
erro ainda mais avultado de antedatar para os anos 30 A nanus II que
reinou em 62 d.C. e Tiago, irm ão de Jesus, foi apedrejado. A parente-
mente W inter pensa que o m esm o equívoco foi feito pelo autor de João
18,12-27! Pelo m enos no caso de Lc 3,2, esta abordagem m inim alista so-
62 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (segunda unidade) 1245

bre a exatidão lucana pode ser hipercrítica; pois não é impossível que,
ao cham ar A nás "sum o sacerdote", Lucas está preservando um título de
cortesia dado aos prim eiros sum os sacerdotes. Temos evidência de tal
uso tanto na M ishnah (Horayoth 3:12,4‫ ־‬- o sum o sacerdote retinha sua
santidade e obrigações m esm o depois que não mais estivesse no ofício)
e em J osefo (War, 2.12.6; 243 - Jônatas é m encionado como sum o sacer-
dote quinze anos depois de sua deposição). Ainda pode ser que judeus
utra-ortodoxos se recusassem reconhecer a deposição rom ana dos sumos
sacerdotes e considerassem Anás como sendo o sum o sacerdote legítimo
visto que o sum o sacerdócio era tido como um ofício vitalício (Nm 35,25).
E p o d e ser que na situação de facto o velho e sagaz Anás fosse o sumo sa-
cerdote efetivo, m anejando o poder por detrás das cenas enquanto seus
parentes retinham o título.
João é nossa única fonte para dois detalhes: que Anás exerceu certo pa-
pel no interrogatório de Jesus e que A nás era o sogro de Caifás. Do que
tem os dito, nenhum detalhe é implausível, a despeito da tendência de
m uitos críticos de descartá-los. O problem a sério é que em 15,16,19 e 22
João cham a Anás "o sum o sacerdote". Devemos interpretar isto à luz das
sugestões feitas acima sobre o uso lucano desse título. (O autor joanino
sabia claram ente que Caifás era o sum o sacerdote oficial no tem po da
m orte de Jesus [v. 14; 11,49], e dificilmente podem os im aginar que ele
fosse tão ignorante d a situação palestiniana para crer que houvesse dois
sum os sacerdotes ao m esm o tem po. Os críticos que fazem esta sugestão
não podem explicar como um autor que conhecia o AT tão bem pudesse
com eter um equívoco tão elementar). O utros têm tentado resolver o pro-
blem a se valendo da crítica literária. Descobrimos no OSsin, na Filoxenian
Syriac, na m argem do Evangeliarium H ierosolym itanum , no Greek Cur-
sive 225 e em C irilo de Alexandria suporte para um rearranjo em que o
v. 24 seja lido im ediatam ente após o v. 13. Isto significaria que, depois
de Jesus ser levado a Anás, foi bem rapidam ente enviado de Anás para
Caifás; e assim o interrogatório ocorreu antes de Caifás que é designa-
do p o r toda parte de "o sum o sacerdote". Enquanto este rearranjo tem
apelado para diferentes estudiosos (L utero, C almes, L agrange, Streeter,
D urand, J oüon, V osté, S utcliffe) e continua a receber suporte e melho-
ram ento m odernos (artigos da Igreja e Schneider), provavelm ente seja
esta um a antiga tentativa de um copista para m elhorar a sequência, em
vez de u m genuíno eco da ordem original. O OSsin, que é o testem unho
básico para o rearranjo, tende a fazer tais "m elhoram entos" na ordem;
p o r exemplo, ele coloca 19-23 após 14-15. Se no v. 24 original seguiu o 13,
não há explicação racional de como sucedeu a ordem ora encontrada em
1246 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

m uitas testem unhas; m as é possível explicar facilmente que um copista


rem ovesse 24 e o colocasse depois de 13 para levar João a harm onizar-se
com a tradição m ateana na qual Jesus foi interrogado por Caifás. Além
do mais, o rearranjo torna supérflua a menção de Anás.
Finalmente, alguns têm objetado que os soldados romanos (v. 12) nunca
teriam entregado um prisioneiro às autoridades judaicas. Mas esta objeção
pressupõe que Pilatos não esteve atuando em cooperação com os soldados
do Sinédrio. Deve-se notar que o evangelista não sugere que as tropas ro-
m anas entraram na corte do sum o sacerdote; somente a guarda do tem plo
e os servos são colocados ali (v. 18).
Caifás. Entre os evangelhos sinóticos, som ente M ateus identifica o sum o
sacerdote que interrogou Jesus: "Então os que se apoderaram de Jesus
o levaram a Caifás, o sum o sacerdote" (Mt 26,57). Marcos e Lucas sim-
plesm ente falam do sum o sacerdote; e W inter, Trial, p. 3 3 , pensa que a
tradição cristã não preservou o nom e do sum o sacerdote. A m enos que
acreditemos que João copiou de M ateus, o tal teria que pressupor que os
dois evangelistas buscaram , independentem ente, informação judaica so-
bre o sum o sacerdote que teria estado no ofício ao tem po da m orte de
Jesus. Antes, a omissão do nome, em M arcos e Lucas, podería refletir as
origens e destinação gentílicas desses dois evangelhos; E M ateus e João,
neste caso, poderíam ser m ais afins à tradição palestinense.
sumo sacerdote naquele ano. Veja nota sobre 11,49. B ultmann, p. 497, como
W ellhausen antes dele, trata de toda a referência a Caifás em 13 e 14 como
um a glosa feita pelo evangelista em sua fonte. O v. 14 parece ser um a
adição parentética e provavelm ente estivesse relacionado com aquele es-
tágio de redação joanina responsável pelas introduções dos caps. 11-12
no esboço do evangelho (vol. 1, pp. 696-07; 711). Mas esta adição podería
ter sido sugerida pelo fato de que o relato do interrogatório identificasse
Anás como o sogro de Caifás, e assim não fica claro que a últim a p arte do
13 é tam bém um a adição.
14. Vale lembrar. O escritor faz um a referência retroativa a 11,50: "N em com-
preendeis que convém ter um só hom em m orto pelo povo, do que terdes
toda a nação destruída".
morto. Apothanein-, as testem unhas m ais tardias leem apolesthai, "perecer,
ser destruído". Ambos os verbos aparecem em 11,50. E tentador teorizar
que o original do presente versículo tinha "alguém pereça", e que copis-
tas inseriram "m orto" para fazer a citação harm onizar-se com o original.
15. Simão Pedro. Por todas as negações, se utilizará o nom e "Pedro"
(16,17,18,27); m as quando o discípulo é m encionado pela prim eira vez,
aqui e outra vez em 25 após o inquérito de Anás, João prefere usar o
62 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (segunda unidade) 1247

nom e completo (nota sobre 1,40). Os três evangelhos sinóticos concor-


dam que Pedro seguiu Jesus.
outro discípulo. Acaso este discípulo anônim o deva ser identificado com
"o outro discípulo" de 20,2, que é o Discípulo Am ado? Veja vol. 1, p. 91.
A lguns copistas antigos fizeram esta identificação, pois escreveram
“0 outro discípulo" no presente versículo. Bultmann, p. 4996, rejeita a
identificação, m as há argum entos em seu favor. Este "outro discípulo"
está associado com Pedro, um a marca registrada do Discípulo Amado
(13,23-26; 20,2-10; 21,7.20-23). O Discípulo A m ado teria tam bém seguido
Jesus durante a paixão, porque ele aparece ao pé da cruz em 19,25-27.
Além do m ais, o fato de que este "outro discípulo" acom panhava Je-
sus ao palácio do sum o sacerdote sugere o profundo apego a Jesus, que
é característico do Discípulo Amado. Veremos as dificuldades sobre a
identificação nas notas que seguem.
conhecido do sumo sacerdote. Schlatter, p. 332, argum enta que gnõstos não
implica necessariam ente am izade, m as apenas que alguém não era des-
conhecido. Todavia, Barrett, p. 439, salienta que na LXX gnõstos se refe-
re a um am igo íntimo. Esta descrição suscita dois problem as. Primeiro,
se este "outro discípulo" era conhecido do sum o sacerdote, seria ele o
Discípulo Am ado? N ão seria tam bém conhecido que ele era o favorito
de Jesus e como então podia ser adm itido ao palácio do sum o sacerdote
sem ser questionado quando Pedro foi interrogado? Temos a impressão
de que, se Pedro confessasse ser discípulo de Jesus, não teria sido admi-
tido ou teria sido preso; m as este "outro discípulo" se m ove livremente.
Esta dificuldade leva Bultmann a sugerir que o discípulo não era um
dos Doze e não era do conhecimento que fosse seguidor de Jesus. E. A.
A bbott (cf. ET 25 [1913-14], 149-50) tem feito a engenhosa proposta de que
o discípulo era Judas, um dos m em bros dos Doze de quem sabemos esteve
tratando com o sum o sacerdote e cuja presença no palácio não teria sus-
citado indagações. M t 27,3-4 tem um a tradição de que Judas seguiu bem
de perto o interrogatório de Jesus. Mas não há evidência de que o quarto
evangelista estivesse pensando em um discípulo como Judas na descri-
ção em 1516‫־‬. O utra proposta, feita por E. A. Tindall, ET 28 (1916-17),
283-84, é que o discípulo era Nicodemos, um habitante de Jerusalém
(Jo 2,23-3,1) que estava envolvido nos eventos da paixão (19,39) e que,
como m em bro d o Sinédrio, teria tido entrada franca ao sum o sacerdote.
O segundo problem a se origina da possibilidade de um a resposta afir-
m ativa ao prim eiro: se o discípulo é o Discípulo Am ado, pode o Discípu-
lo A m ado ser João filho de Zebedeu? Como podería u m pobre, iletrado,
pescador galileu ser conhecido do sumo sacerdote? Todavia, enquanto
1248 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

um relacionamento com o sum o sacerdote pudesse ser m ais fácil se o dis-


cípulo fosse judeu, e não galileu (D odd, Tradition, pp. 88-89), João, filho
de Zebedeu, não é tão facilmente excluído. W. W uellner, The Meaning
of "Fishers of Men" (Filadélfia: W estminster, 1967) tem proposto o frágil
fundam ento subjacente à atitude com um para com a ignorância e po-
breza dos discípulos galileus. O fato de que um hom em fosse pescador
nos diz pouco de sua classe social ou educação. Mc 1,20 apresenta Ze-
bedeu, pai de João, como um hom em com servos assalariados, e ambos,
João e sua mãe, com ambições de prestígio (Mc 10,3545‫ ;־‬M t 20,20-28).
Tampouco a observação em At 4,13, de que João era iletrado, nos diz
m uito sobre sua educação, pois esta observação é polêm ica e pode ser
um vilipêndio. Em um de nossos m ais antigos comentários sobre a iden-
tificação deste "outro discípulo", N onnus (meado do 52 século), em sua
paráfrase m étrica do evangelho, pensa nele como um jovem (um pesca-
dor comerciante (cf. W. D rum, ET 25 [1913-14], 381-82). Para outros co-
m entários sobre este versículo, veja vol. 1, p. 103. Obviam ente, nenhum a
solução definida é possível para am bos os problem as.
no palácio do sumo sacerdote. A palavra aulê pode referir-se a um edifício
palaciano ou a um átrio aberto. A parentem ente está em pauta o últi-
m o significado, quando os três evangelhos usam o term o para o local
das negações de Pedro. (O "aulê do sum o sacerdote" é m encionado em
Mc 14,54 e M t 26,58, enquanto Lc 22,54-55 fala de "a casa [oikia] do sum o
sacerdote" e se refere a um aulê naquela casa). Eles têm posto Pedro as-
sentado no aulê com a guarda palaciana, e Marcos e Lucas m encionam
um a fogueira no aulê para se aquecerem. Em Mc 14,66, o aulê é no andar
térreo, enquanto o julgam ento é m antido em um a sala do an d ar supe-
rior; em Mt 26,58, o aulê é do lado de fora; em Lc 22,54-55 é apenas parte
da "casa" do sum o sacerdote. Mas, no relato joanino, a questão é mais
complexa. Aqui tam bém Pedro é indubitavelm ente retratado como do
lado de fora do pátio próxim o ao portão, enquanto, aparentem ente, Je-
sus é interrogado em outro lugar. João, porém , não usa aulê para o lugar
onde Pedro está esperando e se aquecendo. O único uso de aulê, neste
episódio, é preferivelm ente traduzido por "palácio", pois norm alm ente
alguém não fala de ter acesso a um pátio.
Onde ficava o palácio do sum o sacerdote? Caifás era o sum o sacerdote
oficial; presum ivelm ente, ele vivia no palácio hasm oneano sobre a Colina
Ocidental da cidade, sobranceiro sobre o vale Tyropeon e de frente para
o templo. (Posto que no 4a século a casa de Caifás foi localizada na parte
sudeste da colina ocidental, justam ente fora do portão de Sião e próxi-
ma ao cenáculo; m as a historicidade desta tradição é m uito duvidosa.
62 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (segunda unidade) 1249

Veja Kopp. HPG, pp. 352-57). Entretanto, no relato de João a referência é


ao palácio de Anás, donde Jesus foi enviado subsequentem ente a Caifás.
Anás tinha seu próprio palácio? (No 13a século a tradição local de Jerusa-
lém começou a distinguir entre a "cada de Anás" e a "casa de Caifás"; an-
tes nenhum a atenção foi dada à residência de Anás - Lagrange, p. 460).
Anás teria ido ao palácio do sum o sacerdote oficial donde Jesus seria
enviado a Caifás, que estava no palácio onde o Sinédrio se reuniu? Esta
sugestão concordaria com Lc 22,54.66 onde Jesus é levado de "a casa do
sum o sacerdote" para "o Sinédrio". M uitos comentaristas (A gostinho,
Z ahn, P lummer, D alman, Blinzler) sugerem que Anás e Caifás viviam
em alas diferentes do m esm o palácio, alas circunscritas por um pátio co-
m um através do qual Jesus passou quando foi de um sacerdote para o
outro. M uito disto é m era especulação.
16. Pedro foi deixado em pé do lado de fora. N enhum dos sinóticos indica que
Pedro teve problem a em entrar no pátio.
0 [outro] discípulo. A lgum as testem unhas m enores leem "aquele discípulo";
P66 não tem "outro" nem "aquele".
conhecido do sumo sacerdote. Em 15, gríõstos governou um dativo; aqui ele
governa um genitivo. N ão há diferença aparente de significado, mas
pode ser que houvesse um a m ão diferente (o redator) que anexou aqui
um esclarecimento parentético.
jovem junto no portão. O substantivo thyrõros pode ser masculino ou fe-
m inino, de acordo com o sexo do porteiro; aqui o artigo indica que está
implícita um a m ulher. (Para porteiras, veja a LXX de 2Sm 4,6; A t 12,13).
Um a redação m asculina é refletida em OSsin, a etiópica e um a testem unha
para o texto de Taciano; Benoit, Passion, p. 68, pensa que esta pode ter
sido a redação original. Veja a nota seguinte.
17. serva que guardava 0 portão. Uma paidiskê ou serva aparece em todos os
relados que os evangelhos fazem da prim eira negação de Pedro, m as so-
m ente João especifica seu trabalho. Marcos, que tem a serva como o inda-
gador tam bém na segunda negação, coloca essa negação em frente ao átrio
(14,68: proaulion - em Mt 26,71 isto é um a entrada ou pylon ); e assim pode
haver na tradição sinótica um indício que associa a jovem com o portão
para o átrio. M uitos estudiosos (Bultmann, p. 4997) têm expresso dúvida se
fosse perm itido que um a m ulher atendesse ao portão do palácio do sumo
sacerdote, especialmente à noite. Alguns propõem que o redator joanino
converteu o porteiro originalmente indefinido ou masculino de 16 em uma
porteira para harmonizar-se com a tradição sinótica de um a serva, e assim a
sentença em consideração representa um a combinação redacional das duas
idéias. Aqui, o OSsin e a etiópica leem "a serva do hom em que guardava o
1250 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

portão"; esta redação implica que um porteiro deixou Pedro entrar, m as sua
serva interrogou Pedro. Isto é atraente, m as cabe-nos lembrar que o OSs‫ ״‬se
caracteriza por sua tendência por amenizar as dificuldades desta cena.
disse. T aciano e o OSsin acrescentam que ela cismou com Pedro, um em prés-
timo de Lc 22,56.
"Não és tu também...?" Um a pergunta com mê norm alm ente antecipa um a
resposta negativa. O significado norm al seria possível no presente con-
texto se teorizarm os que a serva poderia estar propensa a pensar em Pe-
dro como um perturbador, já que ele estava sendo apadrinhado p o r um
conhecido da casa. Mas em 25 a m esm a pergunta com mê reaparece, e ali
é m ais difícil explicar como um a resposta negativa poderia ser antecipa-
da. É m ais sim ples presum ir que algum as vezes mê perde sua força nas
perguntas joaninas (veja Jo 4,29 e MTHGS, p. 283). N ão obstante, a tercei-
ra pergunta feita a Pedro (26) em prega um ouk (sinal de antecipação de
um a resposta afirmativa), e assim há algum contraste tencionado entre
os dois tipos de perguntas.
Q ual é a função do "tam bém " aqui? A lguns (L agrange, W estcott) pensa
que a serva sabia que o outro discípulo era um dos seguidores de Jesus.
Mas então por que o outro discípulo foi adm itido e po r que ele não cor-
ria nenhum risco, como Pedro aparentem ente teria corrido se fosse con-
fessar a verdade? "Tu tam bém " e "este hom em tam bém " aparecem nos
relatos sinóticos da acusação de Pedro (Mc 14,67 e par.), onde não há
problem a de um a com paração com outro discípulo; e "tam bém " implici-
tam ente se refere aos discípulos que estavam com Jesus quando este foi
preso. Assim, em João tam bém a ideia pode ser: "És tu tam bém , como
aqueles outros, um discípulo?"
Não sou. G rundmann, NovT 3 (1959), 651, sugere que o ouk eimi de Pedro,
aqui e em 25, são as contrapartes negativas do egõ eim i de Jesus em 5 e 8.
Assim G rundmann chega a um interessante contraste entre a confissão
de Jesus sobre quem ele é em defesa dos discípulos e a negação d e Pedro
de ser um discípulo.
18. frio. Somente João fornece este detalhe, m as é um a implicação óbvia em
M arcos e Lucas que mencionam um a fogueira no pátio. Jerusalém , a 760
m etros acima do nível do m ar, pode ficar fria nas noites de prim avera.
servos e os guardas. Juntam ente com as tropas rom anas havia servos e os
guardas no jardim para a prisão de Jesus (servo, no v. 10; polícia, em 3 e
12). Mc 14,54 e M t 26,58 m encionam guarda no pátio do sum o sacerdote,
embora não os m encionem na cena da prisão.
fizeram uma fogueira. Dos sinóticos, som ente Lucas (22,55) m enciona o ato
de acender fogo (pyr; em 56 phõs, "luz") tão logo a patrulha chegou na
62 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (segunda unidade) 1251

casa do sum o sacerdote. Mc 14,54 fala de um braseiro ( p h õ s ), m as omite


o ato de acender; M ateus om ite toda m enção de um a fogueira. João fala
de a n th r a k ia ou carvão aceso (fogo).
s e a q u e c e r e m . O verbo aparece em T aciano e em algum as testem unhas siría-
cas num a form a diferente; está perdido em alguns mss. gregos. Visto que
ele ocorre duas vezes neste versículo, um a ocorrência pode representar
um a adição de copista.
e m p é . N o s três relatos sinóticos, Pedro se assenta com a guarda ou os pre-
sentes. Todavia, "em pé" não necessita ser tom ado tão literalmente, se
julgarm os pelo uso semítico. ZGB, §365: " E s t o s ocasionalmente significa
não m ais que m era presença em um lugar.
s e a q u e n ta v a . Somente Marcos (14,54 e 67) m enciona isto; João tam bém o
tem d uas vezes (aqui e 25). Buse, "M arcan", p. 217, vê um a conexão lite-
rária entre este versículo em João e Mc 14,54; todavia, note as diferenças
que já tem os indicado.
19. s u m o s a c e r d o te . Veja nota sobre Anás em 13. O v. 24 implicas que Caifás
não estava presente.
20. J e su s r e s p o n d e u . Somente com hesitação é que pusem os a resposta de Jesus
em form ato de versículo; Bultmann e SB não o fazem. Embora a terceira
linha seja m ais prosaica, as prim eiras duas form am paralelism o, e junta-
m ente com a últim a linha podem ecoar o tem a da Sabedoria falando aos
hom ens em público (Pr 8,2-3; 9,3; Sb 6,14.16; Bar 3,37[38].
te n h o f a la d o a b e r ta m e n te . O tem po é perfeito, enquanto os verbos subsequen-
tes ("eu ensinei"; "eu disse") estão no aoristo. MTGS, pp. 69-70, aponta
p ara isto como um exem plo de um verbo no tem po perfeito funcionando
em u m sentido aorístico. Estaria Jesus alegando que sua doutrina não é
esotérica ou que ela não é subversiva? H istoricam ente, a últim a hipóte-
se podería ter sido o problem a se ele foi preso como um revolucionário.
Em Mc 14,48-49, Jesus se queixa de que eles saíram arm ados para prendê
-lo com o se ele fosse um b andido líder de guerrilha; todavia, "Eu estive
convosco diariam ente, ensinando nos recintos do tem plo e não se asse-
nhorearam de m im ". O paralelo com João é m ais afim se W inter, T r ia l,
p. 49, está certo em alegar que o k a t h k é m e r a n de Marcos, "diariam ente",
significa "de dia" e, assim , tem a m esm a im plicação que o "abertam en-
te" de João. Aqui, a afirm ação de Jesus concorda com algum as passa-
gens prévias em João, pois o tem plo, 7,26, onde o povo de Jerusalém
reconheceu que Jesus estava falando em público e indagava se o fato de
que as au toridades fracassaram em refreá-lo não significava que o ti-
nham aceitado com o o Messias. Veja tam bém 11,54, o qual implica qúe
m over-se "abertam ente entre os judeus" era o plano de ação norm al de
1252 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

Jesus até um pouco antes do final de seu ministério. Todavia, em 10,24


"os judeus" desafiaram Jesus: "Se realm ente és o Messias, dize-nos com
palavras bem mais claras Iparrêsia = 'abertam ente, publicam ente']".
Assim, para João, em certo sentido Jesus falava aberta e claram ente, m as
em outro sentido suas palavras eram obscuras. Algum as vezes a obscu-
ridade provinha da indisposição do auditório em crer; todavia, o evan-
gelista tam bém reconhece um a profundidade nas palavras de Jesus que
somente o Parácleto pode clarificar (16,12-13). É interessante com parar a
resposta de Jesus ao sum o sacerdote com a resposta de Sócrates a seus
juizes: "Se alguém disser que sem pre tem aprendido ou ouvido algo de
mim em privado, que todos os dem ais não poderíam ter ouvido, então
saibas que o tal não fala a verdade" (P latão, Apologia 33B).
sempre. Isto não deve ser tom ado literalm ente demais; obviam ente, Jesus
falou a N icodemos e à m ulher sam aritana em privado.
numa sinagoga. Só um caso disto está registrado em João (6,59).
nos recintos do templo. Veja 2,14; 7,14.28; 8,20; 10,23. Um paralelo com sina-
goga foi dado acima; todavia, a im agem do frequente ensino nos recintos
do tem plo não se harm oniza com o esboço sinótico no qual Jesus vai a
Jerusalém somente um a vez.
onde todos os judeus se reuniam. Dificilmente Jesus teria dito isso ao sum o
sacerdote. Se este versículo preserva um dito original de Jesus, ele foi
expandido, de m odo que fosse dirigido aos leitores gentílicos do evange-
lho. Todavia, a segunda e terceira linhas deste versículo são as que Bult-
mann, p. 500, julga ter vindo da fonte mais antiga da paixão, enquanto
a prim eira e quarta representam a expansão do evangelista (pois são as
mais teológicas).
nada houve de secreto acerca do eu disse. Isto ecoa as palavras de Iahw eh em
Is 14,19: "eu não disse nada em segredo" (também 48,16).
21. Por que me perguntas? O princípio de que é im próprio que um a pessoa acu-
sada condene a si m esma está explícito na lei judaica de tem pos posterio-
res (p. ex., Maimônides) e pode já estar vigente nesse tempo. A tradição
bizantina lê um verbo mais forte ("interrogar") em vez de "perguntar".
Pergunta aos que me ouviram. Jesus está reclam ando por um julgam ento com
testem unhas - um a boa indicação de que a audiência perante Anás não
era um julgam ento formal. Tal auto-presunção perante a autoridade pro-
vavelm ente fosse surpreendente; pois Josefo, Ant. 14.9.4; 172, nos infor-
m a que a atitude norm al perante um juiz era de hum ildade, tim idez e
busca de compaixão.
22. Um dentre a guarda... deu uma bofetada no rosto de Jesus. Os evangelhos sinó-
ticos descrevem m ais elaboradam ente as vexação a que Jesus foi sujeito.
62 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (segunda unidade) 1253

De conform idade com M t 26,67, na conclusão do julgam ento noturno


de Jesus diante do sum o sacerdote e do Sinédrio, eles (aparentem ente
os m em bros do Sinédrio) lhe cuspiram , o espancaram e o esbofetearam,
desafiando‫־‬o a que profetizasse. É bem provável que o relato m ateano
seja um a simplificação da forma com posta em Mc 14,65, onde dois gru-
pos estão envolvidos: prim eiram ente, alguns (do Sinédrio) cuspiram no
rosto de Jesus, o espancaram e lhe desafiaram a profetizar; então, um
dos guardas o levou e o esbofeteou (veja P. Benoit, "Les outrages à Jésus
prophéte", in NTPat, pp. 92-110). O relato em Lc 22,63-64 é notavelmente
diferente: na casa ou pátio do sum o sacerdote, depois de Pedro haver
negado Jesus três vezes, os hom ens que iam conduzindo Jesus o escarne-
ciam e o feriam, vendando-o e desafiando-a a profetizar. Então falaram
contra ele, vilipendiando-o. O relato de João é um tanto m ais próximo
à ultim a linha de Marcos e a Lucas na questão dos que cometiam as ve-
xações, porém m ais afim a Marcos e M ateus na questão do que era feito
(Lucas não m enciona as bofetadas). O ato de esbofetear era mais um in-
sulto d o que pancadas com dano físico.
"É dessa maneira que respondes ao sumo sacerdote?" Em Ex 22,28 exigia
um a atitu d e respeitosa: "N ão insultarás a D eus nem am aldiçoarás [di-
zer algo injusto de] o príncipe de teu povo". N ão é incom um que um
assistente em u m tribunal seja levado a agir contra um prisioneiro; cf.
a h istória do julgam ento perante o Rabi Papa em TalBab Shebuoth 30b.
23. Jesus respondeu. Somente em João Jesus responde às vexações.
Se eu disse algo mal. Implicitam ente, Jesus cita a lei de Ex 22,28 supram en-
cionada e nega que a tivesse violado.
produz alguma evidência disso. Em 8,46, Jesus exibiu a mesma confiança em
sua inocência: "Pode algum dentre vós convence-me de pecado? Se estou
dizendo a verdade, por que não credes?" Veja também 15,25: "Odiastes-me
sem causa".
feres. Entre os relatos sinóticos das vexações, Lucas (22,63) é o único que
usa este verbo derein.
24. Então. O u "assim "; talvez p orque Jesus estivesse exigindo um a audiên-
cia form al e o interrogatório não podia ser form alizado em qualquer
lugar.
enviou. Mencionamos acima (nota sobre Anás em 13) as tentativas de mu-
dar este versículo para um a posição imediatamente depois do v. 13 e,
assim, fazer Caifás o interrogador em 19. Outra proposta com o mesmo
objetivo é entender o verbo aoristo como um mais-que-perfeito (Grotius,
D. F. Strauss, Edersheim), convertendo isto em um a observação parentética
que Anás enviou Jesus a Caifás, a saber, antes do interrogatório de 19-23.
1254 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

manietado. Jesus foi conduzido a A nás m anietado (12). Foi ele liberado du-
rante o interrogatório, ou Lagrange está certo em sugerir que isto signi-
fica "ainda m anietado"? (Com pare At 22,30, onde Paulo fora liberado
quando conduzido perante os principais sacerdotes e o Sinédrio, m as
este privilégio poderia ter sido acordado com ele po r ser um cidadão
romano). Ainda em outra tentativa de resolver o problem a de um in-
terrogatório de Jesus perante Anás, A. M ahoney, art. cit., recorre a um a
em enda textual: em lugar de dedemenon, "m anietado", ele lê menõn:
"Anás, porém , persistindo (após a saída de Caifás) o enviou a Caifás".
Esta em enda pressupõe detalhes não mencionados: Caifás estava com
Anás quando Jesus foi interrogado; mas, depois do interrogatório, ele
partiu para onde o Sinédrio estava reunido.
Na tradição m arcana/m ateana, a prim eira m enção de Jesus m anietado,
quando enviado do Sinédrio a Pilatos (Mc 15,1; M t 22,2). Lucas não tem
referência as am arras.
a Caifás. Ao palácio do sum o sacerdote oficial, ou (se A nás já estava
lá) a o u tra ala do palácio, ou a algum lu g ar em que o Sinédrio se
reunia (veja nota sobre "palácio" em 15). N aturalm ente, João não
m enciona o Sinédrio, m as som ente Caifás; m as é bem pro v áv el q u e o
"eles" de 28 (nota ali) im plique os líderes do Sinédrio. N ão sabem os
onde o Sinédrio se reunia n esta época. Veja Blinzler, Trial, p p . 112-14.
M ishnah Middoth, 5:4, fala d a Sala da P ed ra L avrada d o lado su l do
átrio do tem plo; m as, segundo TalBab, Abodah Zarah, 8b, o Sinédrio
ab an d o n o u esta sala quarenta anos (núm ero redondo?) antes que o
tem plo fosse d estru íd o (70 d.C.) e m udou-se para a praça do m ercado
(veja vol. 1, p. 317s) - assim , aparentem ente, m ais ou m enos n o tem po
de Jesus.
25. Entretanto. Esta é um a tradução livre de de; aparentem ente, João está re-
trocedendo-se para contar-nos o que aconteceu enquanto Jesus estava
sendo interrogado. Marcos e M ateus deixam claro que Pedro estava do
lado de fora ou na parte inferior enquanto Jesus estava sendo interro-
gado do lado de dentro ou parte superior. Em João, tem os a im pressão
(mas nenhum a afirm ação clara) de um a m udança de cena de u m a p arte
do edifício para outra.
Simão Pedro... aquecendo-se. Esta é um a repetição do v. 18, de m odo que as
duas prim eiras negações se acham vinculadas. João concorda com Lucas
sobre a localização da segunda negação; veja gráfico à p. 1268 abaixo.
disseram. Presum ivelm ente, os servos e a guarda m encionados no v. 18.
"Es também...?" "Não, não sou". João tem a m esm a pergunta e resposta
como na prim eira negação.
62 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (segunda unidade) 1255

disse, negando-o. Literalmente, "ele o negou e disse" - um hebraísmo;


cf. MTGS, p. 156.
26. parente. O autor revela um detalhado conhecimento da casa do sumo
sacerdote; ele sabia de Malco em 10, e aqui ele sabe do parente de Malco.
A lguns explicariam isto com base em que o Discípulo Am ado, que é a
fonte da tradição do Q uarto evangelho, era o "outro discípulo" conheci-
do do sum o sacerdote (15). Se o nom e no v. 10 é fictício, o autor se esfor-
çou por levar avante a ficção.
27. em seguida um gab começou a cantar. O canto do galo é associado às negações
de Pedro em todos os evangelhos. João não tem o detalhe lucano de que esta
foi a segunda vez que o galo cantou, nem o detalhe lucano de que, quando o
galo cantou, o Senhor se voltou e olhou para Pedro. Os três sinóticos evocam
o aviso de Jesus de que Pedro negaria seu mestre; João não faz isso. Alguns
têm questionado se havia galos em Jerusalém; pois a Mishnah, Baba Komma,
7:7, proíbe a criação de galinha em Jerusalém (cf. StB, 1,992-93). Mas não es-
tamos certos que isto fosse estritamente observado; veja J. Jeremias, Jerusalem
in the Time of Jesus (Filadélfia: Fortress, 1969), pp. 47-4Su [Jerusalém no Tempo
de Jesus, Academia Cristã, Paulus/2020]. Bernard, II, 604, endossa de que
o que estava envolvido não era o canto de tuna ave, e sim o sinal da trom-
beta feito no final da terceira vigília chamado "canto do galo" (meia-noite
às três da manhã). Isto significaria que o interrogatório feito por Anás e as
negações de Pedro terminaram às três da manhã. O empenhado estudo que
Père Lagrange faz da questão tem produzido a informação de que o natural
canto do galo em Jerusalém, em março-abril, ocorre muitas vezes entre três
e cinco da m anhã, com o mais cedo registrado em 2,30. H. Kosmala, Annual
of the Swedish Theological Institute 2 (1963), 118-20; 6 (1967-68), 132-34, registra
consistente evidência para três distintos cantos do galo noturnos todo o ano
na Palestina, de 12,30; 1,30 e 2,30, com o segundo como tradidonalmente o
mais importante. Consulte também C. Lattey, Scripture 6 (1953-54), 53-55.

COMENTÁRIO

N o esb o ço d e s ta u n id a d e d a d o à p . 1200 acim a, sa lie n ta m o s q u e, basi-


ca m e n te , ela c o n siste d e u m e p isó d io cen tral, o in te rro g a tó rio d e Jesus
feito p o r A n á s, ce rc a d a d e a m b o s os la d o s p e la n e g a çã o q u e P e d ro faz
d e Jesu s. O e p is ó d io c e n tra l te m a p e n a s p a ra le lo s re m o to s n o s relato s
sinóticos; o e p isó d io d a s n eg açõ es d e P e d ro te m p a ra le lo s estreitos.
E stu d e m o s c a d a e p isó d io d e ta lh a d a m e n te .
1256 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

O interrogatório de Jesus feito porAnás (vs. 1 3 1 9 - 2 3 ;14‫)־‬

Os estudiosos encontram g ran d e dificuldade em su as tentativas


de estabelecer u m a sequência histórica d as diversas apresentações
evangélicas dos interrogatórios de Jesus feitos pelas au to rid a d e s ju-
daicas. Em u m gráfico tem os esquem atizado os dados. P odem os co-
m eçar nosso estu d o catalogando o que parece factual o u p lausível nos
relatos sinóticos (recorrendo ao problem a se a apresentação d e Lucas
é indep en d en te d e M arcos - p. 1206 acima):

(1) U m a sessão d o Sinédrio (todo o u u m a parte) foi convocada


p ara tratar d e Jesus e d eterm in ar se ele seria en treg u e aos ro-
m anos p ara julgam ento. Os três sinóticos testificam d isto (veja
tam bém nota sobre "a C aifás" em Jo 18,24); parece te r sido p ar-
te do relato prim itivo pré-m arcano (fonte A d e T aylor, 15,1 -
p. 1203 acim a); e é m encionado em d u as d as três predições
d a paixão (Mc 8,31; 10,33), que são, ao m enos em p arte , de
origem pré-m arcana.
(2) A sessão m atutina descrita em Lucas é u m a d u p licata d a ses-
são n o tu rn a descrita em M arco s/M ateu s. A form a lucana,
em que não há testem unhas e sem sentença d e m orte, d á a
im pressão de u m interrogatório em vez d e u m julgam ento e
p o d e ser m ais original. Veja pp. 1212-13 acim a.
(3) A tradição lucana de apenas u m a sessão do Sinédrio é prefe-
rível à tradição de d u as sessões (noturna e m atutina) em M ar-
cos/M ateus. A ideia de du as sessões provavelm ente resulta da
com binação de fontes. O relato prim itivo d a paixão pré-m arca-
no (fonte A d e M arcos) parece sim plesm ente ter m encionado
um a sessão (Mc 15,1), sem d a r seu conteúdo. O relato m ais
detalhado aparecendo agora em M arco s/M ateu s com o a ses-
são notu rn a provavelm ente p rovenha d a fonte B d e M arcos
(assim B ultmann, enquanto T aylor hesita). Julgam os sem êxi-
to as m uitas tentativas d e explicar com o racional a sequência
m a rc an a/m ate an a; p o r exem plo: que a sessão m atutina era ne-
cessária p ara determ inar que os rom anos validasse a sentença
de m orte passada à noite; ou que M t 27,1 não registra u m a
nova sessão, porém resum e a sessão precedente ("chegando a
m anhã... form aram conselho contra Jesus p ara o m atarem ").
62 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (segunda unidade) 1257

(4) U m a sessão p ro v a v e lm e n te o c o rre u d e m a n h ã m u ito cedo


(Lucas: re la to p rim itiv o ). O s trib u n a is re u n id o s n o m eio d a
n o ite são e v ita d o s n a ju ris p ru d ê n c ia d e q u a se to d o p a ís, e a
sessão n o tu rn a te ria la n ç a d o d ú v id a so b re a b o a fé d o Siné-
d rio . Se o S in é d rio a in d a se re u n isse n o s recin to s d o tem p lo
(n o ta so b re " a C aifás" em 24), a á re a d o tem p lo e sta ria fechada
à n o ite. O h o rá rio m a tu tin o d a sessão teria sid o d ita d o p e lo co-
n h e c im e n to d e q u e Jesu s tin h a d e ser le v a d o a o p refe ito ro m a-
n o q u e n o rm a lm e n te e sta ria d isp o n ív e l p a ra q u e stõ e s ao am a-
n h e c e r (veja n o ta so b re 18,28). E ste fato r, m ais a c o m p re en sã o
d e q u e to d o s o s p ro ce sso s leg ais te ria m d e ser d e te rm in a d o s
a o c a ir d a ta rd e (início d a P áscoa), e stim u lo u a b re v id a d e .
(5) A n a rra tiv a d o a b u so c o n tra Jesus tin h a d e se r lev a d a a sério,
u m a v e z q u e ela existe e m re la to s in d e p e n d e n te s (M a rc o s/M a -
teu s; L ucas; ta m b é m João). O s q u a tro ev a n g elh o s co n co rd am
q u e ele o c o rre u à n o ite a p ó s a p risã o d e Jesus; v isto , p o rém ,
q u e ela n ã o e sta v a n o re la to p rim itiv o d a p a ix ã o (fonte A),
s u a lo calização é in certa. A te n ta tiv a d e M a rc o s /M a te u s d e
an ex á-la a u m ju lg a m e n to fo rm a l e te r a s vexações co m etid as
p e lo s m e m b ro s d o S in é d rio é im p la u sív e l e p ro v a v e lm e n te
o riu n d o d a ap o lo g é tic a a n ti-ju d aica.

E stas b re v e s o b serv açõ es n ã o reso lv e m to d o s os p ro b le m as. P or


ex em p lo , se M arco s c o m b in o u d o is rela to s d e u m a sessão d o S inédrio,
p o r q u e n ã o u s o u o re la to m ais c o m p le to d a fo n te B p a ra e x p a n d ir a
referên cia a u m a sessão e n c o n tra d a e m A? P o r q u e ele p ô s o relato d a
fo n te B co m o u m a sessão n o tu rn a re u n id a a n te s d a sessão m a tu tin a
d o re la to A ? H a v ia u m a v a g a le m b ra n ç a d e d u a s a u d iê n c ia s, u m a re-
u n id a à n o ite e a o u tra d e m a n h ã ? E sta tese receb e s u p o rte d o cu rio so
arran jo e m João. Ele re g istra com d e ta lh e s o in te rro g a tó rio d e Jesus à
n o ite p o r A n á s e e n tã o m en c io n a se m d e ta lh e s q u e Jesus foi e n v ia d o
a C aifás e m a n tid o a h a té a a lv a q u a n d o foi le v a d o d e C aifás p a ra Pi-
latos. A ssim , c o m o M a rc o s /M a te u s , João a p re s e n ta u m a n a rra tiv a em
q u e Je su s a p a re c e d u a s v e z es p e ra n te a s a u to rid a d e s ju d aicas; João
d e scre v e u m a d e sta s ap ariçõ es, e a o u tra sim p lesm en te m en cio n a.
A h a rm o n iz a ç ã o d e João e d o s rela to s sin ó tico s n ã o n o s p re o c u p a
ex cessiv am en te; m a s a n te s d e tra ta rm o s d a s q u e stõ e s p ro p ria m e n te
jo an in a s, p o d e se r ú til a p re s e n ta r u m re su m o modificado com b a se n a
1258 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

etado a Caifás (nenhum


julgam ento registrado).
Jesus é enviado m ani-
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JESUS PERANTE AS AUTORIDADES JUDAICAS

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62 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (segunda unidade) 1259

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1260 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

h a rm o n iza ç ã o d e B enoit a fim d e ilu s tra r o m é to d o a p lic ad o . B enoit


su g e re q u e h o u v e d o is p ro c e d im e n to s leg ais q u e le v a ra m Jesu s p e-
ra n te as a u to rid a d e s ju d aic as. A n o ite, co m o João rela ta , h o u v e u m a
in v estig ação p re p a ra tó ria d a p a rte d e A n ás, o p rim e iro s u m o sacer-
d o te. V isto q u e os p rin c ip a is sa ce rd o te s e x erciam a u to rid a d e so b re
a g u a rd a d o te m p lo q u e c o n d u z ia Jesus, p o d e m o s c o m p a ra r isto ao
in te rro g a tó rio , n o q u a rte l-g e n e ra l d a g u a rd a , d e u m p risio n e iro re-
cém -p reso (u m p ro c e d im e n to q u e , d ife re n te d e u m trib u n a l, co stu -
m a o c o rre r à n o ite im e d ia ta m e n te a p ó s o p risio n e iro se r a p re e n d id o ).
C o m u m en te , o in te rro g a tó rio se d a v a n o p a lá c io d o su m o sa c e rd o te
(Lc 22,54), e n ão n o á trio d o edifício d o S in éd rio (22,66). E n q u a n to João
é a fonte p rin c ip a l p a ra este in te rro g a tó rio , Lc 22,52 p o d e ría p re s e rv a r
u m eco d ele, re tra ta n d o o s p rin c ip ais sacerd o tes co m o p a rte d o g ru p o
q u e p r e n d e u Jesus. M a rc o s /M a te u s p o d e ría p re s e rv a r u m a m e m o -
ria co n fu sa d o in te rro g a tó rio , te n d o Jesus sid o c o n d u z id o p e ra n te o
su m o sa ce rd o te à n o ite (em b o ra o q u e re a lm e n te d e sc re v e m o co rresse
d e m an h ã). E m term o s co n creto s, o su m o sa c e rd o te oficial n ã o e sta v a
p re se n te p a ra n ã o c o m p ro m e te r o p a p e l q u e ele teria d e ex ercer n a
m a n h ã (u m a e única) d a in v estig ação n o S inédrio. M as, c e rta m e n te ,
C aifás a p re c io u to d a a in fo rm ação q u e se u so g ro foi c a p a z d e o b te r n a
n o ite a n te rio r. C aifás p o d e ria ter ficado a n sio so p a ra v e r q u e tip o d e
d efesa Jesu s a p re se n ta ria a fim d e sa b er c o m o a p re s e n ta r a s a cu sa ç õ e s
co n tra ele. E b e m p ro v á v e l q u e ele e stiv esse ta m b é m in te re ssa d o em
q u a isq u e r p a sso s p re p a ra tó rio s q u e facilitassem a sessão m a tu tin a .
N o fim d a n o ite d e in v estig ação p re lim in a r, Jesus foi e sp a n c a d o
p ela g u a rd a p a la c ia n a q u e o re tin h a (Lc 22,63-65; Jo 18,22). Isto n ã o foi
feito p e lo s m em b ro s d o S in éd rio (M a rc o s/M a te u s) e ta lv e z n e m m es-
m o n a p re se n ç a d e A n á s (João); p o d e ser q u e fosse feito n o p á tio en-
q u a n to se u s c a p to re s a g u a rd a v a m p e la a u ro ra a fim d e lev á-lo a C aifás
e ao S in éd rio . O s trê s sin ó tico s estã o certo s ao d e scre v e r u m a sessão
m a tu tin a d o S in édrio; m a s os d e ta lh e s d a sessão v e s p e rtin a e n c o n tra
em M a rc o s /M a te u s p e rte n c e m à m a n h ã (com o e m L ucas). C aifás p re -
sid ia (M ateu s, João). P ilato s tin h a c o o p e ra d o com C aifás o rg a n iz a n d o
a p risã o d e Jesu s, m as a g o ra era tare fa d o S in éd rio d e te rm in a r se o caso
co n tra Jesu s era tal q u e ele fosse le v a d o a ju lg a m e n to p e ra n te o g o v er-
n a d o r p e la o fen sa c a p ital d e traição c o n tra o im p e ra d o r (p. ex., e ra ele
u m rev o lu c io n á rio [lêstês ] q u e p re te n d ia ser "o Rei d o s Ju d e u s" ? ). N es-
te p ro c e d im e n to d o " g ra n d e jú ri" , o S in éd rio d e c id iu a firm a tiv a m e n te
62 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (segunda unidade) 1261

e e n tre g o u Jesu s a P ilato s com u m re su m o d o s p ro c e d im e n to s e u m a


re c o m e n d a ç ã o q u e P ilato s o d e c la re c u lp a d o .
T al h a rm o n iz a ç ã o é p la u sív e l caso se aceite a m a io r p a rte d a tra-
d içã o d o e v a n g e lh o co m o h istó rica e te n te p rese rv á-la com u m m í-
n im o d e m o d ificação. N ã o o b sta n te , m u ito s d o s e stu d io so s críticos
d u v id a ria m q u e a m em ó ria h istó rica d a c o m u n id a d e cristã p rim itiv a
foi tão fid e d ig n a .

Se deixam os a harm onização, três problem as no relato de João merecem


m ais atenção: a omissão do procedim ento do Sinédrio diante de Caifás;
o valor da informação sobre o interrogatório feito por Anás; e o valor da
descrição que João faz das injúrias a Jesus.

Primeiro, co m o e x p lic a rm o s a o m issã o q u e Jo ão faz d a sessão d o


S in é d rio ? A ex p lic aç ã o m a is ó b v ia é q u e a in fo rm a ç ã o p e rtin e n te não
e s ta v a n a tra d iç ã o jo a n in a p ré -e v a n g é lic a . A d e s p e ito d a d ú v id a d e
T aylor, p ro v a v e lm e n te te n h a m o s q u e a tr ib u ir à fo n te [A] m a rc a n a a
in fo rm a ç ã o so b re a sessão , a sab er: a in tim a ç ã o d a s te ste m u n h a s; a
re fe rê n c ia à a firm a ç ã o d e Jesu s so b re d e s tr u ir o tem p lo ; a q u e stã o se
Je su s e ra o M essias; a a c u sa ç ã o d e b lasfê m ia; e a c o n d e n a ç ã o à m o r-
te. Já v im o s o p ro b le m a d e c e rto s d e ta lh e s (a in tim a ç ã o d a s teste m u -
n h a s , a se n te n ç a d e m o rte ) q u e e stã o fa lta n d o n a fo rm a d a n a rra tiv a
d e L u cas. M u ito s e s tu d io s o s (p. ex., B ultmann , D ibelius) reje ita ria m
o re la to s u m a ria m e n te ; o u tro s (B enoit, K ümmel) p ro p õ e m ao m en o s
u m a h is to ric id a d e p a rc ial. D e v e m o s n o ta r q u e u m a a v a liaç ã o d a his-
to ric id a d e d o re la to é a fe ta d a n ã o só p e la in clu sã o d e teo lo g ia p os-
te rio r, m a s ta m b é m p e la p o ssív e l a b re v ia ç ã o d o q u e teria sid o u m a
se ssã o b a s ta n te p ro lo n g a d a .
P ara n o sso s p ro p ó sito s, é in te re ssa n te q u e, e n q u a n to João o m ite a
sessão , a m aio ria d o s d e ta lh e s e n c o n tra d o s no s rela to s sinóticos apa-
recem em o u tro s lu g a re s em João: •

• E m 11,47-53 h á u m a sessão d o S in éd rio sob C aifás o n d e se re-


c o m e n d a q u e Jesus fosse m o rto . E xpressa-se o m e d o q u e ele
v iesse a p ro v o c a r os ro m a n o s e estes d e stru ísse m "o lu g ar",
isto é, o te m p lo (veja vol. 1, p p . 728-29).
• E m 2,19 en co n tram o s u m a afirm ação d e Jesus sobre a destruição
d o tem p lo sem elh an te a M c 14,58 (veja vol. 1, p p . 319-20).
1262 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

• E m 10,24-25.33.36 a s p e rg u n ta s , acu saçõ es e re sp o sta s são


se m e lh an te s às p e rg u n ta s e re sp o sta s n a sessão d o S in éd rio ,
esp ec ialm en te co m o a p a re c e m e m Lc 22,67.70 (veja v ol. 1,
p p . 686-87; 689-90).
• E m 1,51 Jesus faz u m a p ro m e ssa acerca d e u m a v isã o f u tu ra
d o F ilh o d o H o m e m q u e tem a lg u m a sim ila rid a d e co m a res-
p o s ta q u e ele d á a o su m o sa ce rd o te e m M t 26,64 (veja vol. 1,
p p . 274).

A ssim os tem a s d a sessão d o S in éd rio com o re g istra d o s p elo s


ev an g elh o s sin óticos são, se g u n d o o te ste m u n h o in d e p e n d e n te d e
João, rea lm e n te tem as p re se rv a d o s n a tra d içã o c o m u n itá ria d o m inis-
tério d e Jesus. M as tem o s d e in d a g a r se, n u m esforço p a ra p re e n c h e r
o relato d a sessão d o S inédrio, as trad içõ es p o r d e trá s d e M arco s e
L ucas têm re u n id o as acusações feitas acerca d e Jesus d u ra n te se u m i-
n istério so b re o p re ssu p o sto d e q u e estas teriam fo rm a d o o c e n tro d a
in vestig ação d o S inédrio. O u a tra d içã o d e João d isp e rs o u o c o n te ú d o
d a sessão d o S in édrio d e m o d o q u e os cristão s e n te n d e sse m q u e estas
acusações co n tra Jesus n ã o su rg ira m d e re p e n te n o final d e se u m i-
n istério? (C aso seja assim , en tão , p resu m iv e lm e n te , n ã o h a v ia neces-
sid a d e d e o ev an g elista reitera r os in cid en tes n a N a rra tiv a d a Paixão.
A cham o s tam b ém m u ito subjetivas as su g estõ es d e q u e o ev an g elista,
d e lib e ra d a m e n te, a b re v io u os p ro ce d im e n to s ju d aic o s legais p o rq u e
estav a p rim a ria m e n te in te ressa d o n a co n fro n tação d e Jesus c om R om a
o u p o rq u e ele d esejav a e lim in a r a referência ap o calíp tica ao F ilho d o
H o m em e n c o n tra d a em M c 1 4 ,6 2 [B ultm a nn , p. 4 9 8 ]) . P o d e se r q u e
am b as as trad içõ es, sinótica e jo an in a, p re se rv e m u m e le m en to h istó -
rico: as acu saçõ es fo ram feitas d u ra n te o m in isté rio (João) e fo ra m ela-
b o ra d a s o u tra v e z p a ra fo rm a r a su b stân cia d a s in v estig açõ es q u e o
S inéd rio fez d e Jesus (sinóticos). E n q u a n to esta ú ltim a su g e stã o é u m
tip o d e h arm o n ização , dev e-se a d m itir q u e ela n ã o é im p lau sív el.

Segundo, q u e valor se d ev e atrib u ir ao interrogatório d e A nás a Jesus,


a ú n ica ação leg al d escrita n a P aixão Joanin a? A ch am o s e s tra n h a a
co n fian te afirm ação d e Bultmann , p. 500 (se g u id a p o r Jeremias, EWJ,
p. 784), d e q u e João p e n sa d isso , co m o u m a sessão d o S in é d rio e u m
ju lg a m e n to re g u la r. S o m en te A n á s é m en c io n ad o . O v. 24 d e ix a claro
q u e C aifás n ã o e sta v a p re se n te ; e à lu z d e 45-53 p o d e m o s c o n c lu ir
62 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (segunda unidade) 1263

q u e o a u to r jo an in o sab ia p e rfe ita m e n te b e m q u e , se h o u v e u m a ses-


são d o S in éd rio , C aifás a teria p re sid id o . D u a s v e z es n o in te rro g a tó rio
(vs. 21,23), Jesu s exige d e A n á s q u e se p ro d u z is s e m te ste m u n h a s e
p ro v a s - e m s u m a , u m a ex ig ên cia p o r u m ju lg a m e n to o u au d iên cia.
A ssim , co m a d e v id a v ê n ia a B ultmann , e sta m o s n o a m b ie n te d e u m
in te rro g a tó rio d e u m c rim in o so rec é m -p reso a n te s q u e se d e sse início
a q u a is q u e r p ro c e d im e n to s form ais.
T e ría m o s ta m b é m q u e d isc o rd a r d e Bultmann , p . 497, q u e o in-
te rro g a tó rio feito p o r A n á s re p ro d u z u m a tra d iç ã o sim ila r à q u e la p o r
d e trá s d o in te rro g a tó rio sin ó tico d o S in éd rio , p o ré m fo rm a d o d e u m a
m a n e ira d ife ren te . R ealm en te n ã o h á sim ila rid a d e e n tre os d o is, e cre-
m o s q u e as d u a s tra d içõ e s p ro v ê m d e d u a s a u d iê n c ia s diferen tes. Se
o in te rro g a tó rio feito p o r A n á s é histó rico , p o d e m o s e sta r certos d e
q u e a tra d iç ã o d e João p re s e rv o u so m e n te u m resu m o ; m a s B ultmann
n ã o te m d a d o s p a ra p re s s u p o r q u e a u m te m p o ela c o n tin h a m aterial
p a ra le lo m a is p ró x im o d a s v e rsõ e s sin ó ticas d a sessão d o Sinédrio.
P la u siv e lm e n te , tal m ate ria l p e rte n c e ría n ã o ao in te rro g a tó rio feito
p o r A n ás, m a s à cen a d o v. 24, n a q u a l Jesus é c o n d u z id o p e ra n te
C aifás e, to d a v ia , d e n a d a so m o s in fo rm a d o s q u e C aifás o ten h a feito.
A s d u a s p e rg u n ta s q u e A n á s fo rm u la a Jesus so b re seu s d iscíp u lo s
e so b re seu e n sin o são m ais g erais d o q u e os d o is p o n to s su scitad o s nos
reg istro s sin ó tico s so b re a sessão d o S inédrio (d estru ição d o tem p lo e
m essian id a d e). T o d av ia, as p e rg u n ta s são suscetíveis d e im plicações
religio sas e p o líticas co n so an tes ao q u a d ro sinótico d o q u e a s a u to rid a-
d e s te m ia m so b re Jesus. N o nível religioso o u teológico, p o d e m refletir
a acu sação d e q u e Jesus era falso p ro fe ta - acusação v ista n o relato
sin ótico d o escarn ecim en to n o tu rn o d e Jesus a p ó s su a p risã o (cf. abai-
xo) e n a p rim e ira acu sação d e Lc 23,2. M eeks, p p . 60-61, a p o n ta p a ra as
d u a s m arc as d o falso p ro fe ta d a d a s e m D t 13,2-6; 18,20: ex trav ia o u tro s
(a q u e s tã o so b re os discíp u lo s) e p re su m e falsam en te falar em n o m e d e
D eu s (a q u e stã o so b re o e n sin o d e Jesus). Já m en cio n am o s q u e Jeremias,
EWJ, p . 79, p e n s a q u e, histo ricam en te, a acusação d e ser falso profeta
era a b a se d a ação d o s ju d e u s co n tra Jesus.
N o n ív el p o lítico , a q u e stã o so b re os d isc íp u lo s d e Jesus p o d e ría
o c u p a r-se d a p o s sib ilid a d e d e le c a u sa r su b lev ação e o risco a p re se n ta -
d o p o r seu n ú m e ro crescen te (11,4; 12,19). A m en o s q u e o ev an g elista
fosse c o n tro la d o p o r su a trad ição , é difícil ex p licar p o r q u e ele n ão
reg istra a re s p o s ta a esta q u estão . E m o u tro lu g a r ele d e ix o u b em claro
1264 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

q u e o Jesus jo an in o n ã o receb eu se g u id o re s q u e in te rp re ta sse m seu


m o v im en to em term o s políticos (6,15; 12,14 - veja vol. 1, p p . 754-57), e
assim Jesus p o d e ría ter re fu ta d o h o n e sta m en te as im plicações políticas
d a in d ag ação d e A n ás so b re seu s discípulos. Q u a n to à q u e stã o so b re o
en sin o d e Jesus, p o d e ría ter h a v id o u m a p reo c u p a ç ão n ã o só so b re su a
ortod o x ia e p ro p ag a ç ã o (7,15), m as tam b ém so b re as p o ssib ilid a d es d e
su b v ersão (veja n ota sobre " te n h o falado a b e rtam e n te ", e m 18,20).
A ssim , o in te rro g a tó rio p e ra n te A n á s p o d e ría ter tid o u m p ro -
p ó sito m u ito p rático . P o d e ría ter refletid o a p re o c u p a ç ã o rea l d o s lí-
d e re s relig io so s so b re se Jesus era falso p ro feta; e p o d e ría te r sig n i-
ficado g ran je ar in fo rm ação p e lo s p ro c e d im e n to s d e " o g ra n d e jú ri"
d ia n te d o S in éd rio n a m a n h ã se g u in te o q u a l d e te rm in a ria se h a v ia
o u n ã o u m a acu sação p o lítica com b a se n a q u a l Jesu s seria e n tre g u e
aos ro m a n o s p a ra ju lg a m e n to . H a e n c h e n , "Historie", p . 6 3 , d eclara:
" N ã o e sp e ra ría m o s a c h ar a q u i in fo rm ação h istó rica a lém d a e n c o n tra -
d a n o s sin ó tico s". P esso alm en te, n ã o e sta m o s c o n v e n cid o s d isto . H á
d ific u ld a d e s so b re a lg u n s d e ta lh es, com o já m e n c io n a m o s n a s n o tas,
p o ré m n ã o são tão g ra v e s q u e n o s lev em a d e sco n fiar d e to d o o relato.
M ais im p o rta n te , n ã o ach am o s m o tiv o jo an in o claro e teológico q u e
explicasse a in v en ção d a n a rra tiv a so b re A nás. H a e n c h e n a firm a q u e
a cena foi fo rm a d a d e m o d o q u e os p ro c e d im e n to s ju d aic o s n a N a rra -
tiva d a P aixão p e rd e sse m to d a e q u a lq u e r im p o rtâ n c ia e o ju lg a m e n to
d e P ilato s se to m a sse decisivo. M as, en tã o , p o r q u e p re o c u p a r-s e em
in serir u m a n a rra tiv a d e u m in te rro g a tó rio n o tu rn o ? A N a rra tiv a d a
P aixão d e L ucas p ro sse g u iu so zin h a. O u tra su g e stã o , a sa b er, q u e a
cena foi criad a p a ra ilu s tra r a in d e p e n d ê n c ia d e Jesus d ia n te d e se u s
c a p to res se a d e q u a m e lh o r com o p e n s a m e n to jo an in o a te sta d o , e, in-
d u b ita v e lm e n te , o a u to r jo an in o m o stro u u m Jesus m ajesto so , e n u n -
c ia n d o su a refu tação d ig n ificad a. M as n ã o p o d e m o s p ô r e sta cena em
p é d e ig u a ld a d e com o in c id e n te "EU SO U " n o ja rd im , o n d e a n a rra ti-
va é rea lm e n te im p lau sív el. N a d a h á d e im p ro v á v e l n a id eia básica d e
q u e Jesu s a cu so u seu s c a p to res d e tere m a d o ta d o u m a p o s tu ra in ju sti-
ficável e sem in d a g a re m d a q u e le s q u e o o u v ira m c om freq u ên cia. Este
tem a a p arece tam b é m n o s rela to s sin ó tico s (Mc 14,49). N a tu ra lm e n te ,
visto q u e o in te rro g a tó rio d e A n á s a p a re c e so m e n te e m João, n ã o se
p o d e a v erig u á-lo com certeza; m as n in g u é m d e v e d eix ar-se d o m in a r
p o r u m a a titu d e a priori d e q u e o n d e João é n o ssa ú n ica fo n te a infor-
m ação tem p o u c o valor.
62 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (segunda unidade) 1265

Finalm ente, que valor se deve atrib u ir ao relato d e João do abu-


so sofrido p o r Jesus? Já insistim os que João, Lucas e a últim a par-
te d e M c 14,65 são m ais verossím eis em atribuir o abuso à guarda
(Lc 22,63: "os hom ens que detin h am Jesus"), em vez de aos m em bros
d o Sinédrio (M t e a prim eira p arte d e Mc 14,65). Em Lucas, a cena não
está po sta no curso d e algum procedim ento legal, m as então Lucas não
registra n e n h u m interrogatório noturno; m as isto não surpreende, já
q u e João fale apenas de Jesus sendo esbofeteado p o r um guarda, e não
d o extenso escarnecim ento registrado na tradição (ou tradições - aqui
Lucas p o d ería ser in d e p en d en te de M arco s/M ateu s e m ais prim iti-
vo). O s que pen sam em João com o d ep en d en te dos sinóticos explicam
q u e o q u arto evangelista om itiu o escarnecim ento p o r achá-lo incon-
sistente com seu tem a da m ajestade d e Jesus. M as, então, p o r que ele
tam bém não om itiu a zom baria rom ana a Jesus (19,1-3)? Sem entrar na
discussão se os relatos sinóticos do escarnecim ento são históricos, de-
vem os sim plesm ente salientar que são orientados m ais teologicam en-
te d o que o relato d e João. Se o esboteam ente a Jesus registrado por
João e p o r M a rco s/M ate u s se ajusta bem ao tem a de que Jesus m orreu
com o o Servo Sofredor (LXX de Is 50,6: "ofereci m inha face aos que me
batiam "), este tem a é buscado na m enção m a rc a n a / m ateana de ser ele
cuspido (a o u tra m etade de Is 50,6: "m e afrontavam e m e cuspiam ").
O registro sinótico do escarnecim ento da capacidade de Jesus profe-
tizar concorda com Is 53,3: "Era desp rezad o e o m ais rejeitado entre
os hom ens"; e o silêncio d e Jesus ante seu tratam ento concorda com
53,7: "em sua aflição, ele não abriu sua boca". Assim , com respeito a
este incidente, pode-se alegar com justiça que o relato d e João é o m ais
sim ples, ao m enos teologicam ente orientado, e (juntam ente com Lu-
cas) tem os detalhes m ais verossím eis no tocante ao cenário e atores.

Pedro e suas negações de Jesus (vs. 15-18.25-27)

O s q u a tro evangelhos colocam as negações de P ed ro d u ra n te a


noite em q u e Jesus foi preso. N o todo, o incidente consiste de um a
in tro d u ç ã o q u e leva a P edro à cena e d as três negações, tão som ente
Lucas (22.54-62) a p resen ta o relato contínuo a in tro d u ção e as ne-
gações. M a rc o s/M a te u s sep ara a in tro d u ção (Mc 14,54; M t 26,58)
das três negações (Mc 14,66-72; M t 26,69-75) in serin d o a cena do jul-
g am en to n o tu rn o d e Jesus p e ra n te o su m o sacerdote e o Sinédrio.
1266 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

João co lo ca a in tro d u ç ã o e a p rim e ira n e g a ç ã o ju n ta s (1 8 ,1 5 1 8 ‫ )־‬e e sta


c o m b in a çã o é s e p a ra d a d a s e g u n d a e te rc e ira n e g a ç õ e s (25-27) in se-
rin d o a c e n a d o in te rro g a tó rio d e Je su s p e ra n te A n á s. P a re c e c laro
q u e em c erta é p o c a a in tro d u ç ã o e a s trê s n e g a ç õ e s fo rm a v a m u m a
u n id a d e , e q u e n e sta q u e s tã o L u cas é m a is o rig in a l. O s d ife re n te s
m o d o s d e in te rro m p e r a cen a e m M a rc o s /M a te u s e e m Jo ão tê m o
m e sm o p ro p ó s ito , a sa b er, in d ic a r s im u lta n e a m e n te o p ro c e d im e n to
n o tu rn o leg al c o n tra Jesus. (U m re c o n h e c im e n to d a u n id a d e p rim iti-
v a d a cen a n ã o d á s u p o rte à s a n tig a s e m o d e rn a s te n ta tiv a s d e re o r-
g a n iz a r a n a rra tiv a d e João a fim d e r e s ta u ra r a o rd e m jo a n in a " o ri-
g in a l" d e n tr o a d a q u a l a in tro d u ç ã o e a s n e g a ç õ e s fo rm a ria m u m a
u n id a d e - a ssim S pitta, M offatt e a Igreja. A p re s e n te in te rru p ç ã o
d a cen a foi, e m m e u ju íz o , a o b ra d e lib e ra d a d o e v a n g e lista . S o b re
a re o rg a n iz a ç ã o , veja v ol. 1, p . 8s), c o m e s ta ê n fa se so b re a sim u l-
ta n e id a d e , M a rc o s /M a te u s e Jo ão e x p re ssa m s u a c o m p re e n s ã o d e
q u e Jesu s n ã o e sta v a p re s e n te q u a n d o P e d ro o n e g o u ; L u c a s (22,61)
p a re c e d a r a e n te n d e r q u e ele e sta v a p re se n te .
O e sq u e m a g eral d a s n eg açõ es é o m e sm o n o s q u a tro e v a n g elh o s,
m as os d e ta lh e s v a ria m g ra n d e m e n te , co m o se p o d e v e r n o gráfico
p p . 1 2 6 8 6 9 ‫־‬. In d u b ita v e lm e n te , a lg u m a s d a s v a ria çõ e s re p re s e n ta m
reo rg an ização d e lib e ra d a ; p o r ex em p lo , com re sp e ito às re s p o s ta s d e
P ed ro , a p rim e ira e a terceira rép lica d e L ucas p a re c e m te r o in v e rso
d e M arcos, d e m o d o q u e a p rim e ira d e L ucas se p a re c e com a terceira
d e M arcos, e a terceira d e L ucas se p a re c e com a p rim e ira d e M ar-
cos. N ã o o b stan te, u m a o lh a d a em 1, 6, 7, 8 ,1 0 ,1 1 e 13 s u g e re m q u e
d e n tro d o s e v a n g elh o s sin ó tico s L ucas p re se rv a u m a tra d iç ã o in d e-
p e n d e n te (B ultmann , HST, p. 269; to d a v ia , T aylor d isc o rd a , Behind
the Third Gospel [O xford: C la re n d o n , 1926], p p . 48-49). S o m e n te n o
v. 3, p a rte d e 10, 11 e 12 é João afim com M a rc o s /M a te u s ; e m 3, 7,
a o u tra p a rte d e 10 e 12 João é afim com L ucas (cf. ta m b é m 9 e 13).
A ssim João p a re c e p re se rv a r a in d a u m a terceira tra d iç ã o in d e p e n -
d e n te (veja D odd , Tradition, p . 85). T o rn a-se até d iv e rtid o a p re s e n ta r
a lg u m a s d a s te n ta tiv a s d o p a ssa d o tra ta r o s d e ta lh e s d iv e rg e n te s d a s
três trad içõ es (M a rc o s/M a te u s, L ucas, João); a lg u n s in té rp re te s lite-
ralista s têm c o n clu íd o q u e teria h a v id o g ru p o s d e trê s n eg açõ es, as-
sim faz e n d o P e d ro c u lp a d o n o v e vezes! A o c o n trá rio , a s três tra d iç õ e s
estão lo n g e d e u m rela to o rig in al, e a tra n sm issã o n ã o d e ix o u d e ter
se u efeito n o s d e ta lh es. T em -se su g e rid o q u e a fo rm a m a is a n tig a d o
62 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (segunda unidade) 1267

re la to era m u ito m ais sim p les d o q u e q u a lq u e r u m d o s três e envolvia


s o m e n te u m a n e g a çã o d e P ed ro . C. M asson , R H PR 37 (1957), 24-35,
p ro p õ e a a tra e n te h ip ó te se d e q u e a tríp lice n e g a çã o d e M arcos é p ro -
v e n ie n te d a c o m b in a çã o d e d u p lic a ta s d o in cid en te, u m a com u m a
ú n ica n e g a çã o e a o u tra c o m u m a n eg ação d u p la . M as, e n tã o , se L ucas
e João p re s e rv a m v e rsõ e s in d e p e n d e n te s, com o tam b é m e n c o n trara m
u m a n e g a çã o tríplice? (B enoit, Passion, p p . 71-72, re a lm e n te en co n tra
a lg u m a co n firm a ç ão d a h ip ó te se d e M asson n a m an e ira com o João
d iv id iu as n egações: u m a n eg ação a n te s d a cena com A n ás e d u a s
d e p o is d ela. M ais p ro v a v e lm e n te , p o ré m , isto reflete u m a técnica lite-
rá ria e n ã o é o re s u lta d o d e u n ir d u p lic a ta s d e p ro v en iê n cia diferente).
G. K lein, ZTK 58 (1961), 309-10, p ro v a v e lm e n te esteja certo em insistir
q u e , p o r m ais q u e rec u e m o s n a h istó ria , n ã o tem o s e v id ên cia p ara
sim p lific a r a n a rra tiv a p a ra m en o s d e trê s n eg açõ es (m esm o q u e a
priori su s p e ite m o s q u e o p a d rã o d e três é u m a elaboração).
O e p is ó d io d a s n eg açõ es d e P e d ro n ã o é p a rte d o relato p rim iti-
v o d a p a ix ã o (ela p ro v é m d a fonte B d e M arcos n o esboço m arcano).
Q u e v a lo r h istó ric o a n e x aría m o s a ela? M u ito s p e n sa m q u e a form a
m a rc a n a d o re la to v eio d a s rem in iscên cias d e P e d ro e é b asicam en te
co n fiáv el (L oisy, E. M eyer, J. W eiss, S chniewind , T aylor). O u tro s, po-
rém , tê m d ú v id a s . G oguel p e n sa q u e a tríp lice n e g a çã o foi in v e n ta d a
p a ra c u m p rir a p re d iç ã o d e Jesus d e q u e P e d ro o n eg aria. B ultmann
d e s c a rta a n a rra tiv a co m o len d á ria . E. L innemann , ZTK 63 (1966), 1-32,
p e n sa q u e h isto ric a m e n te to d o s o s d isc íp u lo s n e g a ra m a Jesus e q u e
o re la to so b re P e d ro sim p le sm e n te se rv e p a ra tip ificar a n eg ação ge-
ral. G . K lein ZTK 58 (1961), 285-328, e Z N W 58 (1967), 39-44, tam b ém
n eg a a h isto ric id a d e , p o ré m p o r u m a ra z ã o d istin ta . Ele e o u tro s a n tes
d e le tê m e n fa tiz a d o q u e as n eg açõ es d e P e d ro fo rm a m u m a u n id a d e
co m a p re d iç ã o d a s n eg açõ es e m M c 14,29-31 e p a r. N o c o n tex to d esta
p re d iç ã o , Lc 22,31-32 tem o u tra p re d iç ã o so b re P edro: "S im ão, Sim ão,
eis q u e S a tan á s v o s [plu ral] p e d iu p a ra v o s c ira n d a r co m o trigo; m as
e u ro g u e i p o r ti, para que tua fé não desfaleça; e tu , q u a n d o te converte-
res, co n firm a teu s irm ã o s". Esta se g u n d a p re d iç ã o é aceita p o r K lein
co m o m u ita a n tig a (m as n ã o as p a la v ra s d e Jesus). N o e n ta n to , as pa-
la v ra s e m itálico c o n stitu e m u m a g losa p a ra to rn a r a p re d iç ã o origi-
n al, a q u a l d iz q u e P e d ro n ã o d esfalecería, c o n fo rm an d o -se à ú ltim a
id eia c o n tra d itó ria d e q u e ele n e g o u Jesus. A lém d o m ais, o relato
d a s n eg açõ es p re s s u p õ e q u e P e d ro se g u iu Jesus d e p o is d a p risão ,
1268 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

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62 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (segunda unidade) 1269

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1270 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

e isto é v isto co m o c o n tra d iz e n d o M c 14,27, o q u a l p re d iz q u e o s dis-


cípulos se d isp ersariam . Q u a n to ao sen so co m u m , a objeção d e q u e a
c o m u n id a d e p rim itiv a dificilm ente in v en ta ria u m a h istó ria q u e lança
o p ró b rio so b re P ed ro , u m a fig u ra cristã d e sta c ad a , so m o s in fo rm a d o s
d e q u e tal in v en ção reflete u m m o v im en to a n ti-p etrin o n a h istó ria d a
trad ição evangélica (cf. M c 8,32-33; M t 14,31; a " su p re ssã o " d a ap arição
a P ed ro m en cio n ad a em IC o r 15,5).
A o av aliar-se esta a rg u m en tação , é possív el in d ag a m o s se n ã o ha-
v iam se rad icalizad o até ao p o n to d e fazê-las co n trad itó rias, sen ten ças
p erfeitam en te conciliáveis e n tre si. N ã o seria m ais razo áv el aceitar o
p ró p rio critério d e M arcos d e q u e n ã o h á c o n trad ição e n tre a fu g a g eral
d o s d iscíp u lo s (14,27.50) e o fato d e q u e P ed ro m ais ta rd e c o n seg u iu v e r
o q u e estav a aco n tecen d o a Jesus? A afirm ação d e q u e L ucas acrescen-
to u a sentença q u e tem os p o sto em itálico e m 22,32 n ã o é a b so lu ta m e n te
certo. M as, m esm o sem essa sentença, Lc 22,31-32 n ecessariam en te om i-
te a n eg ação q u e P e d ro fez co n tra Jesus? N ão p o d e ría a ad ição lu can a
d a sentença, se foi u m a adição, ter in te rp re ta d o o d ito co rretam en te?
A ideia p o d e ría ter sid o q u e o teste real d a fé d e P ed ro , o n d e carecia d o
especial auxílio d ivino, foi d e p o is d e ter n e g a d o Jesus, d e m o d o q u e n ã o
p u d e sse seg u ir o cu rso d e Ju d as, m as p u d e sse a rre p e n d e r-se e, assim ,
deixasse a o u tro s u m ex em p lo q u e tin h a m im p licitam en te n e g a d o Jesus
pela fuga. O b v iam en te, a q u estão d a h isto ric id a d e d a s negações d e Pe-
d ro carece d e e stu d o m ais d e ta lh a d o d o q u e o esp aço p e rm ite aq u i,
m as a lg u m a s d estas teorias com plexas so b re com o u m a h istó ria fictícia
colocam em p ro v a m ais n ossa c a p ac id ad e d e crer d o q u e a aceitação d a
n arrativ a co m o b a sea d a em u m a rea lid a d e histórica.
N o sso in teresse p a rtic u la r se o c u p a d o v a lo r o u p la u s ib ilid a d e
d o s d e ta lh e s p e c u lia rm e n te jo an in o s. O m ais fo rm id á v e l é a a firm a ç ão
d e q u e P e d ro n ã o e ra o ú n ico , m as foi in tro d u z id o n o té rre o d o p a lá -
cio d o su m o s a ce rd o te p o r o u tro d isc íp u lo d e Jesus. A lg u n s v e ría m
isto co m o u m a v iolação a in d a m ais fla g ran te d a tra d iç ã o d e q u e to-
d o s os d isc íp u lo s fu g ira m , co m o p re d ito em M c 14,27 e d e c la ra d o em
14,50. D e fato, João n ã o afirm a q u e to d o s os d isc íp u lo s, m a s h á u m a
p re d iç ã o p a ra esse p ro p ó sito (veja p p . 1237-38 acim a) e m Jo 16,32: "E is
q u e está c h e g a n d o a h o ra., e m q u e sereis d isp e rso s, c a d a u m p o r si,
m e d e ix a n d o so z in h o ". (A a p a re n te c o n tra d iç ã o é m ais d ig n a d e n o ta
se o d isc íp u lo a n ô n im o q u e a c o m p a n h a v a P e d ro n ã o fosse o D isci-
p u lo A m ad o ; p o is e n tã o o D iscíp u lo A m a d o , p re s e n te ao p é d a c ru z ,
62 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (segunda unidade) 1271

a in d a é o terceiro se g u id o r d e Jesus q u e n ã o se d e se rto u d e se u m es-


tre!) N a s n o ta s tem o s sa lie n ta d o os m u ito s p ro b le m as q u e cercam este
" o u tro d isc íp u lo " , e n ã o são facilm ente re sp o n d ív e is. N o s sen tiriam o s
in clin a d o s a d e s c a rta r o in cid e n te com o im ag in ativ o , se p u d é sse m o s
e n c o n tra r u m a ra z ã o inteligível p a ra su a in v en ção o u inclusão. C erta-
m en te , o d isc íp u lo n ã o exerce n a cena n e n h u m p a p e l d e significância
teológica. Bultmann su g e re q u e o d isc íp u lo p o d e ria d e v e r su a existên-
cia à n e c e ssid a d e d e explicar co m o P e d ro e n tro u n o palácio d o su m o
sacerd o te. M as, q u a n ta n e c essid ad e h a v ia p a ra se e xplicar isto? O s ou-
tro s três e v a n g elh o s têm P e d ro p re se n te n o p á tio sem oferecer n e n h u -
m a ex p licação d e c o m o ele p a sso u p e lo p o rtã o . Se o a u to r jo an in o sim -
p le sm e n te ju n to u o início d o v. 15 com o v. 17 ("O ra, Sim ão P ed ro estava
s e g u in d o Jesus... n o p alácio d o s u m o sacerdote... m as a serv a q u e g u ar-
d a v a o p o rtã o d isse a P e d ro etc".), q u e m teria tid o d ific u ld a d e com a
n a rra tiv a ? In v e n ta r u m d isc íp u lo d e Jesus q u e in ex p licav elm en te era
aceitáv el n o p alácio d o su m o sa cerd o te é criar u m a d ific u ld a d e o n d e
n ão ex iste n e n h u m a . H á m u ita v e rd a d e n o juízo d e D odd (Tradition,
p. 86) so b re a cena d e João: "Esta vivida narrativa... o u é o p ro d u to de
u m n o táv el gênio dram ático, o u rep o u sa sobre inform ação valiosíssim a".
Q u a n to aos m u ito s d etalh es m enores em q u e João difere d e M a rc o s/
M ateu s e d e Lucas, é arriscado fazer u m a avaliação global. P ode m u ito
b em ser q u e u m relato seja m ais p róxim o a o o riginal em u m detalhe en-
q u a n to o u tro relato seja m ais p róxim o em o u tro detalhe. Em M arcos, a
terceira resp o sta d e P ed ro é clim ática, sen d o u m a negação genuína, e não
u m a alegação d e q u e ele n ão e n ten d eu . João n ão tem este d ram a, pois
P ed ro n eg a Jesus d e sd e o p rim eiro m om ento. Se João é m ais elaborado
d o q u e o u M a rc o s/M a te u s o u Lucas n a identificação d o s interrogadores,
João é m ais sóbrio d o q u e am b o s em descrever a reação d e P ed ro ao can-
to d o galo. É difícil, pois, justificar a afirm ação d e q u e o relato joanino é
co n sisten tem en te secu n d ário em to d o s os seus elem entos.
N ã o o b sta n te , João faz u so teológico ú n ico d a cena d a s negações
d e P e d ro . A o faz e r a s n eg açõ es d e P e d ro sim u ltâ n e a s com a defesa d e
Jesus p e ra n te A nás, João co n stru iu u m contraste d ram ático n o q u al Jesus
p e rm a n e c e firm e d ia n te d e se u s q u e stio n a d o re s se m n e g a r n a d a , en-
q u a n to P e d ro se a c o v a rd a d ia n te d e se u s q u e stio n a d o re s e n eg a tu d o .
Em n e n h u m se n tid o rea l é a v in d a d e P e d ro a p ó s Jesu s a o p alácio d o
su m o sa c e rd o te u m a c o n tra d iç ã o d a p re d iç ã o d e Jesus (16,32) d e q u e
to d o s o s d isc íp u lo s o d e ix a ria m so zin h o . Jesu s n u n c a estev e m ais só,
1272 O Livro da Gloria · Segunda Parte: A narrativa da paixão

h u m a n a m e n te fala n d o , d o q u e q u a n d o P e d ro d isse trê s v e z es q u e n ã o


era d isc íp u lo d e Jesus. A tra d içã o jo an in a re p re s e n ta d a p o r Jo 21 en-
c o n tro u a in d a o u tro tem a teológico n a s n eg açõ es d e P e d ro , a sab er,
q u e e stas n eg açõ es só p o d ia m ser e x p ia d a s p o r u m a tríp lic e confissão
d o a m o r d e P e d ro p a ra com Jesus (21,15-17) - u m a e x a tid ã o teológica
n ão e n c o n tra d a n o s e v a n g elh o s sinóticos.

BIBLIOGRAFIA
(18,1‫־‬27)

Veja a bibliografia geral sobre a N arrativa da Paixão no final d o §60.

BARTINA, S., "Ύ0 soy Yahweh' - nota exegética a Jn. 18, 4-8" in XVIII
Semana bíblica espanola (M adrid: Consejo su p erio r d e investigationes
1959), pp . 393-416.
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CH URCH, W. R., "The Dislocations in the Eighteenth Chapter of John",
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1-12)", BiLeb 10 (1969), 26-39.
ROBINSON, B. P., "Gethsemane: The Synoptic and Johannine Viewpoints",
ChQ R 167 (1966), 4-11.
SCHNEIDER, J., "Zur Komposition von Joh 18, 12-27. Kaiphas und Hannas",
Z N W 4 8 (1966), 111-119.
SCHW ANK, B., "Jesus überschreitet den Kidron (18, 1-11)", SeinSend 29
(1964), 3-15.
__________ "Petrus verleugnet Jesus (18,12-27)", SeinSend 29 (1964), 51-65.
63. A NARRATIVA DA PAIXÃO:
- SEGUNDA SEÇÃO (EPISÓDIOS 1 3 ‫)־‬
(18,28-40)

O julgamento de Jesus perante Pilatos

PR IM E IR O EPISÓ D IO

18 28E ntão, ao ro m p e r d o d ia, lev a ram Jesus d e C aifás ao pretório.


Eles m esm o s n ã o e n tra ra m n o p retó rio , p o is tin h a m q u e e v ita r a im -
p u re z a ritu a l e p o d e re m com er a ceia pascal. 29E n tão Pilatos saiu p a ra
fora. "Q u e acu sação trazeis contra este h o m em ?". 30"Se este h o m em não
fosse crim in o so ", resp o n d e ra m , "ce rta m en te n ã o o e n treg aríam o s a ti".
31N isto , d isse -lh e s Pilatos: " E n tã o to m ai-o v ó s m esm o s e ju lg ai-o se-
g u n d o v o ssa p ró p ria lei". M as d isse ram -lh e o s ju d eu s: " N ã o n o s é
p e rm itid o m a ta r a n in g u é m " . (32Isto foi p a ra c u m p rir-se o q u e Jesus
d isse ra , in d ic a n d o q u e tip o d e m o rte ele h a v ia d e m orrer).

S E G U N D O E PISÓ D IO

33E n tã o P ilato s foi [to m o u ] a o p re tó rio e c h a m o u a Jesus. "É s tu 'o Rei


d o s J u d e u s '? " p e rg u n to u -lh e . 34Jesus resp o n d e u : "T u d iz e s isto d e ti
m esm o , o u o u tro s to d isse ra m a m e u resp eito ? "S e g u ra m en te , n ã o es-
tá s p e n s a n d o q u e e u so u u m ju d e u , e stá?" 35ex clam o u P ilatos. "É tu a
p ró p ria n a ç ã o e o s p rin c ip a is sa ce rd o te s q u e te e n tre g a m a m im . O q u e
fizeste?" 36Jesu s re sp o n d e u :

28: levaram; 29: demandaram. N o tem po presente histórico.


1274 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

"M e u rein o n ã o é d e ste m u n d o .


Se m e u rein o fosse d e ste m u n d o ,
m e u s s ú d ito s e sta ria m lu ta n d o
p a ra sa lv a r-m e d e se r e n tre g u e aos ju d e u s.
M as m e u rein o n ã o é d a q u i" .

37"E n tão , és tu rei?" d isse P ilatos. Jesus resp o n d e u :

"T u d ize s q u e e u so u rei.


E u p a ra isso nasci,
e p a ra isso v im ao m u n d o ,
p a ra d a r te ste m u n h o d a v e rd a d e .
T o d o a q u e le q u e p e rte n c e à v e rd a d e , o u v e m in h a v o z ".

38" V e rd a d e ? " re tru c o u P ilatos. "E o q u e é isso?"

TERCEIRO E PISÓ D IO

D epois d esta observação, Pilatos saiu o u tra vez aos ju d eu s e lhes disse:
"D e m in h a p arte, n ão acho n e n h u m a cu lp a neste hom em . 39Lem brai-vos
q u e ten d e s o co stu m e d e e u soltar-vos a lg u é m n a Páscoa. Q u ereis, p o is,
q u e v o s solte ‫׳‬o Rei d o s Ju d e u s'? " 40N isto em resp o sta to m a ra m a cia-
m ar: "Q u erem o s B arrabás, n ã o este". (B arrabás era u m b a n d id o ).

38: retrucaram, disseram. No tem po presente histórico.

NOTAS

18.28. ao romper do dia. Prõi, literalm ente "quatro da m anhã", era a últim a
divisão rom ana da noite (vinda depois do "canto do galo"), de 3-6. É
possível interpretar João no sentido de que o interrogatório feito por
Anás e as negações sim ultâneas da parte de Pedro term inaram cerca de
3 horas (nota sobre 27); que durante o próxim o período de três horas
Jesus estava com Caifás, e que, finalmente, perto das seis horas Jesus foi
levado a Pilatos, onde o julgam ento durou até cerca de meio-dia, quando
foi sentenciado (19,14). Em conform idade com Mc 15,1 e Mt 27,1, a se-
gunda sessão do Sinédrio ocorreu a "a prim eira hora" e im ediatam ente
63 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 1-3) 1275

a seguir Jesus foi levado para Pilatos. Lc 22,66 fala da reunião do Sinédrio
"quando já era dia". S herwin-W hite, " Trial", p. 114, salienta que o dia
de trabalho de um oficial rom ano começava à prim eira hora da aurora
e que, por exemplo, o im perador Vespasiano term inava seu trabalho de
escrivaninha antes do amanhecer. (Sherwin-W hite usa isto como argu-
m ento pela validade de um a sessão noturna do Sinédrio, mas o costume
rom ano pode ser conciliado tam bém com um a sessão do Sinédrio na pri-
m eira hora da manhã).
Levaram. Nos casos de levar Jesus do jardim ao palácio ou casa do sumo
sacerdote e de levá-lo de Caifás a Pilatos, João (18,13.28) e Lucas (22,54;
23,1) usam o verbo agagein, "tom ar, levar"; Marcos (14,53; 15,1), seguido
por M ateus, usa apagagein, "levar embora". O últim o verbo aparece em
Lc 22,66 para a condução de Jesus da casa do sum o sacerdote para o Si-
nédrio.
Eles. Quem? A últim a sentença em referência a Jesus foi em 24: "Anás o
enviou m anietado a Caifás". João não menciona um a sessão do Sinédrio
enquanto Jesus estava com Caifás; m as o "eles" pode bem incluir algu-
m as das autoridades do Sinédrio, se levarm os em conta que João nos
inform a dos acusadores de Jesus durante o julgam ento romano. No v. 35,
Pilatos identifica os principais sacerdotes como estando entre os que lhe
entregaram Jesus; cf. também "os judeus" (31,38 etc.) e "os principais
sacerdotes e a guarda do tem plo" (19,6).
de Caifás. Do palácio do sum o sacerdote ou do local de reunião do Sinédrio
(nota sobre 24)? Uns poucos mss. e o OL leem equivocadamente "a Caifás"
sob a influência de 24.
ao pretório. Originalmente, este term o designava aquela tenda dentro de um
acam pam ento militar onde o pretor rom ano erigia seu quartel-general.
Ele veio a denotar o lugar da residência do oficial chefe em território ro-
m ano subjugado. Na Palestina, a residência perm anente do governador
rom ano ficava em Cesareia (veja At 23,33-35 que coloca o governador ro-
m ano no pretório de Herodes, isto é, em um palácio herodiano adaptado).
Aqui estam os preocupados com a residência do governador em Jerusa-
lém, ocupada durante as festas ou em tempos de perturbação. Mc 15,16
(cf. Mt 27,27) coloca o "pretório" em oposição ao aulê, "palácio, átrio";
e parece claro que os três evangelhos que usam o termo "pretório" (Lu-
cas não) visualizassem um grande edifício com um pátio externo onde
a m ultidão se reuniría. Teria havido salas interiores, inclusive quartos
(Mt 27,19 menciona a presença da esposa de Pilatos) e barracas para os
soldados. Mc 15,8 tem a m ultidão "subindo" a Pilatos, talvez refletin-
do um a tradição de que o pretório ficava na seção superior da cidade.
1276 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

Naturalm ente, não podem os estar certos se tal informação reflete a imagi-
nação do evangelista ou um a reminiscência histórica.
A localização do pretório em Jerusalém é incerta, m as entre as fortale-
zas herodianas da cidade há duas prováveis candidatas, am bas mencio-
nadas por Josefo, Ant. 15.5; 292. (1) A fortaleza de Antônia, um castelo
hasm oneano rem odelado por H erodes o G rande, c. de 35 a.C., e usado
por ele por doze anos tanto como castelo e palácio. Este ficava na Coli-
na Oriental bem ao norte dos recintos do tem plo, e a escolta pretoria-
na a protegia durante os tem pos festivos precisam ente por causa de sua
proxim idade com o palácio onde sublevação era m ais provável eclodir.
A tradição cristã tem honrado este local como o pretório desde o 12“ sé-
culo. Em 1870, a tradição recebeu suporte da descoberta na área de um
pavim ento de lajes de pedra maciça. Subsequente escavação tem leva-
do P ère V incent a identificar isto como o Lithostrotos ou "Pavim ento de
Pedra" m encionado em 19,13 (veja nota ah). Para detalhes, veja a tese
de M ather A line de Sião La Forteresse Antonia et la question Du Prétore
(Jerusalém, 1955). (2) O Palácio H erodiano sobre a Colina O riental (hoje
próxima ao portão Jaffa) dom inando toda a cidade. H erodes o G rande
construiu isto como um a habitação de m uita grandeza e m udou da An-
tônia para cá em 22 a.C. A luz da evidência em Josefo e Filo, isto serviu
como a residência usual em Jerusalém para os procuradores rom anos
(Kopp, HPG, pp. 368-69). Segundo Filo, Ad Gaium 38; 299, Pilatos erigiu
ah algum as placas douradas, talvez como um a renovação da residência
do governador. A palavra aulê, usada por Mc 15,16 para descrever o pre-
tório aparece com frequência nas referências de Josefo ao palácio hero-
diano, m as nunca em referência à fortaleza de Antônia. N um a discussão
com V incent, P. Benoit, RB 59 (1952), 513-50), argum enta que a evidência
antiga favorece conclusivam ente este local como o pretório. Assim tam-
bém E. Lohse, ZDPV 74 (1958), 69-78.
evitar impureza ritual. At 10,28 diz que era ilícito para os judeus associar-
se com ou visitar alguém de outra nação, e alguns estudiosos têm in-
terpretado isto no sentido de que no Io século a.D. os judeus palesti-
nianos pensavam que todos os gentios eram leviticam ente im puros
(Schürer, 2,1, p. 54). Em um cuidadoso estudo no Jewish Quarterly Re-
view 17 (1926-27), 1-81, A. Büchler tem m ostrado que isto não procede.
Embora as atitudes m ais estritas dos fariseus exercessem certa predo-
minância, até m esm o os fariseus não consideravam os gentios autom a-
ticamente im puros. Nos prim órdios do século, as m ulheres gentílicas
eram tidas como im puras, porque ignoravam as leis de Lv 15,19-24 que
envolviam im pureza pós-m enstruação (os hilelitas eram m ais austeros
63 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 1-3) 1277

do que os sham aítas nesta questão), e se julgava que esta im pureza era
com unicada aos esposos gentílicos. Um pouco m ais tarde, os hilelitas,
contra a oposição sham aítas, quiseram declarar os gentios sujeitos a
contam inação por um cadáver (Nm 19,16; 31,19); e isto teria significado
quase um estado perm anente de contaminação, já que os gentios amiú-
de sepultavam os m ortos debaixo de suas casas. O "Rolo do Templo"
de Q um ran, do 1“ século a.C. expressa desgosto pelo costum e gentílico
de sepultar "os m ortos em qualquer lugar, inclusive em suas casas" (Y.
Yadin, BA 30 [1967], 137). Que causa de im pureza o evangelista tem em
m ente no presente caso? Pilatos estava im puro por causa de sua esposa?
Norm alm ente, a esposa do governador não teria vindo com ele de Cesa-
reia a Jerusalém, porém M t 27,19 (de valor histórico duvidoso) registra
sua presença. Estaria o pretório im undo sobre as bases gerais do costu-
m e gentílico de sepultam ento? Todavia, ambos os locais possíveis para
o pretório, supram encionados, foram construídos ou reconstruídos por
Herodes o G rande, de m odo que quaisquer sepulturas ali teriam vindo
após os gentios tom arem posse. O u a im pureza se baseava na pressupôs-
ta presença de ferm ento na casa de um gentio? No período da Páscoa (a
Festa dos Pães Asmos), os israelitas que não tinham contato com fermen-
to (Dt 16,4) no início da tarde de 14 de Nisan.
e poderem comer a ceia pascal. Se um judeu se contam inasse por im pureza e
não pudesse comer a ceia pascal no tem po regular, ele tinha que pror-
rogar a celebração por um mês (Nm 9,6-12). Büchler, p. 80, salienta que
a contam inação pela im pureza levítica do gentio, onde ela existisse, era
um perigo prático som ente para o sacerdote no cum prim ento do dever
no tem plo e para o judeu ordinário que fosse purificado pela participa-
ção de um a refeição sacrificial. As circunstâncias visualizadas em João
vêm precisam ente na área onde a contração da im pureza tinha de ser
evitada: os sacerdotes norm alm ente tom avam parte na matança dos cor-
deiros pascais na tarde (veja nota sobre 19,14) e na refeição após o pôr do
sol. Todavia, se já tinham contraído im pureza por entrarem no pretório,
p o r que a im pureza tem porária não podería ter sido rem ovida antes da
refeição m ediante um banho vespertino (Nm 19,7)? Talvez isto pudesse
ser respondido se conhecéssemos a m ente do evangelista sobre a causa
da im pureza. A im pureza provinda do contato com um cadáver era uma
contaminação de sete dias (Nm 19,11). É interessante que, segundo Josefo,
Ant. 18.4.3; 93-94, os judeus que saíam para receber as vestim entas do
sum o sacerdote sob a custódia rom ana eram cuidadosos em fazer isso
sete dias antes da festa. (Mas em 15.4.4; 408, o próprio Josefo fala somente
de um dia antes da festa).
1278 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

A referência a posterior da ceia pascal deixa claro que para João Jesus
foi exam inado por Pilatos e crucificado no dia antes da Páscoa. Jeremias,
EWJ, pp. 80-82, tenta atenuar várias outras passagens joaninas que en-
dossam esta cronologia, m as adm ite que aqui João não é ambíguo. Ao
descrever a refeição que ocorrería naquela noite, João usa a m esm a ex-
pressão grega, phagein to pascha, que os sinóticos usam para descrever a
últim a ceia da noite anterior (Mc 14,12; M t 26,17; Lc 22,15).
29. Pilatos. Embora esta não seja a prim eira m enção do nom e do hom em em
João, ele não é identificado para o leitor como o governador (contraste
Mt 27,2). Provavelm ente, os cristãos conheciam o nom e de Pilatos desde
a prim eira vez que ouviram o querigm a. Ele é m encionado nos serm ões
de Atos (3,13; 4,27; 13,28), e encontrou um espaço no credo (já nos credos
romanos de c. 200: DB §§10, 11). Marcos, M ateus (veja, porém , variante
em 27,2) e João se referem a ele som ente por seu cognome; Lucas (3,1;
At 4,27) usa o padrão de nom e e cognome, Pôncio Pilatos, e é introduzí-
do assim por Josefo, Ant. XVIII.2.2; 35. Seu prenom e é desconhecido. Ele
era de categoria equestre, isto é, da nobreza inferior, quando contrasta-
da com a categoria senatorial. Ele governou a Judeia desde 26 a 36 d.C.
A Judeia era um a província im perial menor: desde o tem po de C láudio
(41-54), o título dado aos oficiais governantes de tais províncias era pro-
curatores Caesaris pro legato. (As legiões só podiam ser com andadas pelos
legados que eram senadores; a designação pro legato era um a form a de
dar a um m enos nobre o poder de dispor dos legionários). Assim Pila-
tos é geralm ente identificado como o procurador (assim Tacitus); m as a
inscrição de Pilatos descoberta em 1961 em Cesareia se refere a ele como
um prefeito, praefectus Iudaaeae (JBL 81 [1962], p. 70). Isto parece con-
firmar a tese m antida por alguns estudiosos de que antes do tem po de
Cláudio um a província como a Judeia tinha um prefeito em vez de um
procurador. Veja D. H irschfeld, Die Kaiserlichen Verwaltungsbeamten (Ber-
lin, 1905) e A. M. Jones, "Procurators and Prefects in the Early Principate',
Studies in Roman Government and Law (Oxford, 1960), pp. 115-25.
A importância razoável sobre Pilatos é conhecida à luz das informações
judaica e o quadro não é m uito favorável. Filo, Ad Gaium 38; 302, atribui
a Pilatos roubo, homicídio e desum anidade. (A exatidão do registro de
Filo tem sido questionada por P. L. M aier, HTR 62 [1969], 109-21, o qual
pensa que o perfil m ais sim pático do NT pode ser m ais genuíno do que
até então suspeitado). Josefo, Ant. XVIII.3.1-2 e 4.1-2; 55-62,85-89, escreve
de forma vivida sobre seus erros crassos e atrocidades (cf. tam bém a ma-
tança dos galileus m encionada em Lc 13,1). Sua ação contra Jesus é um
dos poucos detalhes evangélicos que têm atestação antiga não cristã, pois
63 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 1-3) 1279

Tácito, Annals 15,44, registra: "Cristo foi executado no reinado de Tibério


pelo procurador da Judeia, Pôncio Pilatos". Com o já mencionamos ante-
riorm ente, um perfil tendenciosam ente favorável de Pilatos foi pintado
na tradição cristã.
saiu para fora. Somente João menciona isto, e de fato o quadro de movimento
dentro e fora do edifício durante o julgamento é joanino. Os sinóticos pa-
recem pressupor que todo o julgamento se deu em público, pois as mui-
tidões adiantavam -se e gritavam suas opiniões (veja Mc 15,8). Somente
depois de Jesus ser sentenciado, Mc 15,16 e Mt 27,27 registram que ele foi
introduzido no pretório. Deste versículo em João se pode ter a impressão
de que Pilatos estava esperando a delegação (uma atitude bem explicável,
se os soldados rom anos estavam envolvidos na prisão).
Que acusação? Em Lc 23,2, os m em bros do Sinédrio começam a acusar Jesus
antes m esm o de Pilatos dizer qualquer coisa; em Mc 15,2 e M t 27,11, Pi-
latos não precisa de informações, m as im ediatam ente surge a questão da
realeza. Se estam os certos em sugerir que as autoridades judaicas tinham
conduzido os procedim entos do "grande júri" contra Jesus (p. 1215 aci-
ma), Pilatos deveria ter esperado receber os resultados da investigação
deles. Todavia, V erdam, p. 285, salienta que a pergunta de Pilatos se en-
quadra tam bém na ideia de um julgam ento judaico formal de Jesus. Se
o tivessem exam inado, teriam vindo a Pilatos esperando obter licença
para prosseguirem com a sentença (um exsequatur); m as Pilatos trata sua
decisão m eram ente como um a acusação (katêgoria ) e planeja ver Jesus
pessoalmente.
30. este homem. Este parece ser um uso desprezível de houtos (BAG, p. 601).
não fosse... criminoso. Literalmente, "fosse... alguém fazendo o mal", uma
construção perifrástica do verbo "ser" e um particípio presente a gover-
nar um substantivo. A estranheza deste semitismo provocou tentativas de
copistas para melhorarem o texto, como é atestado pelas redações varian-
tes. N ão fica claro que mal ou crime preciso se conclui que as autoridades
tivessem em mente. Em um nível histórico, era um crime político, prova-
velm ente o de ser revolucionário (ele foi preso como um lêstês: Mc 14,48);
m as no conceito do evangelista o motivo real era teológico (19,7; cf. 10,32).
entregaríamos. O verbo paradidonai (também "trair") já foi usado previa-
m ente no evangelho oito vezes para identificar Judas; agora o ônus de
entregar Jesus passou para as autoridades judaicas.
a ti. Acaso há um tom de insolência aqui?
31. julgai-o. Esta afirmação pressupõe que não houve julgam ento judaico
formal sobre Jesus; o oposto se encontra em Mc 14,64 e, num a extensão
m enor, em M t 26,66. Veja pp. 1212-15 acima. Há quem entenda Pilatos
1280 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

como a falar ironicamente: ele sabe que as autoridades judaicas queriam


m atar Jesus e sabe que eles não têm poder para tal; e assim ele lhes traz
à memória, sarcasticamente, a impotência deles. O utros pensam que o
evangelista é vítima de um equívoco um tanto grosseiro: apresenta Pila-
tos como a ignorar que as autoridades judaicas não têm qualquer poder
de executar. Ainda outros levam a sério a afirmação de Pilatos: ele não
sabe o que as autoridades judaicas têm decidido sobre Jesus; então so-
licita deles os resultados de suas deliberações e eles não lhos entregou;
e assim ele lhes informa que não pode conduzir o julgam ento sob tais
circunstâncias e eles m esmos terão de fazê-lo.
Deixaremos para outra nota, o problem a se o Sinédrio tinha o poder
de executar um a sentença de morte, indagam os aqui: que competência o
Sinédrio tinha sob os governadores romanos? Com base em outra evi-
dência de Josefo e das afirmações na M ishnah de um período posterior,
m uitos estudiosos pensam que o Sinédrio tinha am pla competência em
ambas as questões, civil e religiosa, de m odo que som ente ofensas polí-
ticas m uito sérias, que autorizassem um a sentença capital, eram reserva-
das ao governador. Outros, recorrendo à investigação de R. W. H usband
(The Prosecution of Jesus [Princeton, 1916], afirm am que na adm inistração
provincial rom ana, um tribunal local, tal como o Sinédrio, só teria sido
incum bido de casos menores, e que um caso civil ou criminal, de algum a
importância, tinha de ser subm etido aos romanos. A incerteza da am pla
competência do Sinédrio é ecoada por D anby, JTS 21 (1920) 56-57. Estudos
recentes da questão, feitos por A. N. Sherwin-W hite, têm por base inves-
tigações mais detalhadas da adm inistração provincial rom ana que têm
sido possíveis, no ínterim, desde o tratado clássico de T heodor M ommsen
sobre o sistema judicial romano, publicado em 1899. Sherwin-W hite sa-
lienta que um prefeito equestre, num a província m enor como a Judeia, não
tinha assistentes romanos de alto posto que pudessem partilhar com ele os
deveres importantes da administração e jurisdição. A presença rom ana era
de natureza militar, e o governador sobrecarregado de obrigações tinha de
depender de oficiais locais para questões cívicas. Mas os "governadores
m antinham em suas próprias mãos os poderes essenciais dos quais depen-
dia a manutenção da ordem, e deixavam as coisas de somenos im portân-
cia para as m unicipalidades. Todos os crimes para os quais a penalidade
fosse trabalho forçado em minas, exílio ou m orte, eram reservados pelos
governadores" ("Trial'', p. 99). Na adm inistração dos julgam entos crimi-
nais, o prefeito não estava vinculado pela lei de Roma que era aplicada
somente aos cidadãos rom anos e às cidades rom anas. E assim não ha-
via código criminal universal para julgam entos provinciais, o qual era
63 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 1 3 ‫)־‬ 1281

conhecido como extra ordinem ou "julgamentos fora do sistema". Embora


ele seguisse um p adrão costum eiro na condução dos julgamentos, o pre-
feito era livre para fazer suas próprias regras sobre quais acusações ele
aceitaria para consideração ou rejeitar. Adm itindo esta situação, vemos
quão difícil é reconstruir, com algum a certeza, os motivos de Pilatos em
concordar em devolver o caso às autoridades judaicas (caso João, aqui,
preserve um a reminiscência histórica). No nível teológico, João poderia
estar esclarecendo que desde o prim eiro m omento Pilatos não queria en-
volver-se e assim a total responsabilidade recaísse sobre "os judeus".
disseram-lhe. Isto é om itido em algum as testem unhas im portantes, inclusi-
ve o Codex Sinaiticus* e P66. Pode bem ser um esclarecimento de copista.
os judeus. Indubitavelm ente, aqui o term o tem sua referência joanina es-
pecial às autoridades, especialm ente as de Jerusalém, que eram hostis a
Jesus (vol. 1, p. 67); e nos lem bram os que com um ente ela abrange tantos
os fariseus como os sacerdotes.
"não nos é permitido matar a ninguém". Em M arcos/M ateus não fica claro por
que as autoridades judaicas levam Jesus a Pilatos, em vez de executá-lo
eles m esmos, especialm ente já que o tinham achado culpado de blasfê-
mia, um crime religioso punível de morte. Somente João oferece uma
explicação razoável: o Sinédrio não podia executar um a sentença capital.
Se Jesus deve m orrer, então terá de ser sentenciado e executado pelos ro-
manos. Isto tam bém esclarece por que um a acusação não religiosa ou po-
lítica tinha de ser levada adiante. (Já sugerim os acima [pp. 1217-21] que,
ainda que concordemos que houvesse oposição religiosa real a Jesus da
parte do Sinédrio, a acusação política pode ter sido feita honestam ente
- um a possibilidade não considerada nos evangelhos). Seria essa explica-
ção razoável de João um a invenção imaginativa do evangelista a fim de
resolver um a dificuldade, ou som ente João preservou um a reminiscência
de vital im portância dos procedim entos judiciais na Palestina antes dos
anos 70? Uma obra da autoria de Jean Juster, Les juifs dans VEmpire romain
(Paris, 1914), tem exercido m uita influência ao estabelecer o ponto de vis-
ta de que o poder do Sinédrio não era lim itado com respeito a sentenças
capitais, para que estudiosos como G oguel, Lietzmann, Burkitt e W inter
pensem que João está equivocado. Todavia, outros, como Büchsel, Blin-
zler, Benoit e Jeremias afirm am que João está certo.
N aturalm ente, não há dúvida de que o governador rom ano tinha o po-
der de punição capital (Josefo, War II.8.1; 117) ou que ele tivesse dado ao
Sinédrio este poder para ofensas específicas, especialmente de natureza
religiosa (a pena de m orte autom ática para gentios apanhados em ato de
transgressão nas partes internas dos recintos do tem plo é atestada por
1282 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

um a inscrição). Mas o Sinédrio tinha competência de executar prisionei-


ros considerados culpados em casos religiosos, civis e crim inais sérios? Os
que pensam assim apontam para o núm ero de execuções efetuadas pelas
autoridades romanas, algum as precisam ente afetando cristãos. Estêvão
foi apedrejado nos anos 30 (At 7,58-60); Tiago, o líder d a igreja hierosoli-
m itana, foi apedrejado nos anos 60 (Josefo, Ant. 20.9.1; 200). A relutância
de Paulo ao ser exam inado pelo Sinédrio em Jerusalém (At 25,9-11) é m ais
inteligível se aquele tribunal tinha poder de pronunciar sentença capital
(veja também At 22,30; 23,20). O relato da m ulher adúltera em Jo 8,3-5
pode ser interpretado como um a indicação de que as autoridades judai-
cas podiam executar réus (vol. 1, p. 595). Entretanto, os que pensam que
o Sinédrio não tinha a competência geral de executar oferecem outra ex-
plicação para cada caso. Por exemplo, sugerem que o caso de Estêvão era
a "lei do linchamento", e que, como Josefo o indica, Tiago foi executado
no ínterim entre os term os de dois governadores romanos, com o resulta-
do de que o sum o sacerdote envolvido foi subsequentem ente punido. H á
um a tradição judaica de confiabilidade incerta de que a jurisdição sobre
a vida foi tirada de Israel há quarenta anos (núm ero redondo?) antes
que o tem plo fosse destruído (Taljer, Sanhedrin, 1,18a, 34; 7,24b, 41; veja
Barrett, p. 445). Para discussão detalhada deste m aterial e para conclu-
sões discrepantes, pode-se consultar Blinzler, Trial, pp. 157-63, e W inter,
Trial, pp. 11-15, 76-90. Embora não seja possível um a conclusão sólida
sobre o presente estado da investigação, são m uito convincentes nos ar-
gum entos que W herwin-W hite têm apresentado em apoio da exatidão
geral de João. De seu detalhado estudo da estrutura provincial rom ana,
ele conclui que os rom anos zelosam ente m antinham o controle da puni-
ção capital; pois nas m ãos locais o poder de um a sentença de m orte podia
ser usado para elim inar facções pró-rom anas. A turbulenta Judeia era o
últim o lugar onde os rom anos provavelm ente teriam feito um a exceção
(Roman Society, pp. 36-37). V erdam, pp. 279-81, assum e um a posição afim,
salientando que m esm o um autoritário como H erodes o G rande se recu-
sava a d ar sequer um passo contra seus filhos sem autorização rom ana.
Tem havido algum as tentativas, não particularm ente bem -sucedidas, de
contornar a dificuldade, interpretando a afirmação de João de um a ma-
neira limitada. A gostinho (In ]0. 44,4; PL 35:1937), seguido por Belser,
entende João como a significar que aos judeus não era perm itido, por sua
própria lei, apedrejar alguém em dia de festa. Esta interpretação poderia
ser mais plausível se o dia envolvido no relato joanino fosse a Páscoa,
enquanto que aqui só temos a véspera da Páscoa; além do m ais, Jeremias,
EWJ, p. 78, m ostra que de fato certos crimes graves podiam ser punidos
63 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 1-3) 1283

com a pena de m orte em dias festivos. H oskyns, p. 616, sugere que há


um a limitação implícita acerca da maneira de execução: João tem em vista
que os judeus não podiam derram ar sangue, embora pudessem apedrejar.
Em apoio, salienta-se que o v. 32 vêm na afirmação um a implicação sobre
o tipo de m orte que Jesus estava para sofrer. D öllinger pensa que a limita-
ção se ocupa com 0 crime envolvido: João tem em m ente que às autoridades
judaicas não era perm itido executar [alguém] por crimes políticos, e Jesus
era acusado de um crime político. Entretanto, o texto joanino não dá indí-
cio de limitação ou qualificação com respeito ao tempo, m odo ou crime.
32. Isto foi. Temos suprido estas palavras; o grego sim plesm ente tem uma
construção elíptica hina. (nota sobre 15,25; 18,9).
para cumprir-se. Um a vez m ais (nota sobre 15,9), João usa o term o em re-
ferência às palavras prévias de Jesus. A passagem em m ente é 12,32:
"Q uando eu for levantado da terra...", pois a observação redacional em
12,33 deixa claro que esta afirmação indicava que tipo de m orte ele esta-
va para m orrer.
indicando. Veja nota sobre 12,33.
tipo de morte. Temos explicado que a resposta judaica em 31 clarifica para
nós por que as autoridades judaicas conduziram Jesus a Pilatos. Mas note
que o evangelista não está interessado na resposta como um esclarecí-
m ento histórico; ele está interessado em sua implicação teológica. Se as
autoridades judaicas não podiam executar Jesus, então ele m orrería nas
m ãos dos rom anos pela crucifixão, e então ele seria levantado da terra
num a cruz (veja comentário). Evidentemente, o evangelista pensa na
crucifixão como sendo um a penalidade rom ana, e não como um a pe-
nalidade judaica normal. E. Stauffer, Jerusalem und Rom (Bem: Francke,
1957), pp. 123-27, m antém que os judeus am iúde praticavam a crucifixão,
m as W inter, Trial, pp. 62-66, certam ente está quase certo em refutar os
argum entos de Stauffer. O s incidentes onde a crucifixão era praticada
eram contem plados como horror; por exemplo, quando Alexandre Jan-
naeus crucificou os fariseus (Josefo, War, 1.4.6; 97; 4Q pN ahum 1:7). Aos
olhos judaicos, a execução de Jesus num a cruz lhe traria ignomínia. Era
considerada como equivalente a enforcamento (At 5,30; 10,39), e Dt 21,23
enuncia o princípio: "Um hom em enforcado é m aldito de Deus" (veja
G13,13). N o tocante a como o próprio Sinédrio teria executado Jesus, não
estam os totalm ente certos do que os saduceus teriam considerado como
form as aceitáveis da punição capital. Das quatro formas m encionadas na
lei farisaica posterior (Mishnah Sanhedrin 7:1), a saber, apedrejamento,
fogueira, decapitação e estrangulam ento, as três prim eiras eram reconhe-
cidas no AT e teriam sido aceitáveis aos saduceus (veja nota sobre 8,5).
1284 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

Nos evangelhos, a acusação judaica mais com um contra Jesus é blasfê-


mia, para a qual a execução por apedrejam ento é a penalidade especifica-
da no AT (Lv 24,16), no NT (Jo 10,33; At 7,57-58), e na M ishnah (Sanhedrin
7:4,9:3).
33. [tornou]. As m elhores testem unhas estão divididas sobre onde localizar
esta palavra (palin), e algum as testem unhas m enores a omitem.
chamou a Jesus. Não fica claro se Jesus já estava dentro do pretório.
"És tu '0 Rei dos Judeus’?" Em todos os relatos dos evangelhos, estas são
as prim eiras palavras de Pilatos dirigidas a Jesus. Nos lábios de Pila-
tos, a expressão "os judeus" não tem seu sentido joanino especial, como
um a designação das autoridades judaicas hostis (como no v. 31), m as se
refere à nação judaica. (O mesmo vale dizer quando outro estrangeiro,
a m ulher sam aritana, falou dos judeus em 4,9.22). "O Rei dos Judeus"
poderia ter sido um título específico usado pela prim eira vez pelos reis
sacerdotes hasm oneanos, na verdade os últim os governantes indepen-
dentes da Judeia antes do surgim ento de Roma na Palestina. Josefo, Ánt.
14.3.1; 36, cita um a passagem de Strabo (não preservada) de que um a
videira dourada foi dada a Pom peu por Alexandre, filho de Alexandre
Jannaeus, e que foi mais tarde foi posta no tem plo de Júpiter Capitolino
em Roma; ela portava a inscrição: "De Alexandre, o Rei dos Judeus".
Mais tarde Josefo aplica o título a H erodes o G rande (Ant. 16.10.2; 311).
Pode ser que o título tenha se m antido vivo durante o dom ínio rom ano
como um a designação para o libertador esperado. (Vimos que algum as
das imagens usadas para saudar Jesus em sua entrada em Jerusalém foi
a evocativa panóplia m acabeia/hasm oneana: vol. 1, p. 754). Q uanto à
pergunta de Pilatos, é possível que o "tu" seja enfático (assim Bernard, II,
609, m as MTGS, p. 37, duvida disto), expressando incredulidade. Pilatos,
tendo ouvido do esperado aparecim ento do libertador nacional, "o Rei
dos Judeus", teria ficado atônito ante o semblante de Jesus que tem sido
acusado de reivindicar o título. O título mais antigo, "o Rei de Israel", era
também usado no tocante a Jesus (veja vol. 1, p. 278).
34. Jesus respondeu. Nos evangelhos sinóticos, a resposta de Jesus à pergunta
de Pilatos sobre ser ele o Rei dos judeus é "Tu dizes assim [legein]"; veja
nota sobre 37 abaixo. Segundo os sinóticos, isso é tudo o que Jesus diz em
todo o julgam ento perante Pilatos!
tu dizes isto de ti mesmo. Schlier, "Jesus", p. 61, pensa que, se Pilatos dissesse
isto de si mesmo, ele estaria enunciando um a profecia inconsciente com
respeito a Caifás em 11,49-52.
35. "Seguramente, não estás pensando que eu sou um judeu, está?" Literalmen-
te, "Eu sou um judeu?", pergunta introduzida por rríêti e que espera
63 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 1-3) 1285

um a resposta negativa. M uitos com entaristas veem aqui um a entonação


de desdém rom ano pelos judeus. É bem provável que seja assim; mas
H aenchen, "Historie", p. 68, está certo em insistir que a única implicação
clara da observação de Pilatos é que ele não alega ter nenhum outro conhe-
cimento real de Jesus senão o que as autoridades judaicas lhe reportaram.
nação e os principais sacerdotes. Com pare Lc 23,13: "os principais sacerdotes, os
líderes e 0 povo". Já que nem João nem Lucas introduzem explicitamente
um a m ultidão judaica na cena (Marcos e M ateus o fazem), estas referên-
cias a "a nação" e "o povo" são sua única indicação da participação de
um grupo mais am plo do que as autoridades do Sinédrio.
36. Meu reino. Jesus não responde à última pergunta de Pilatos: "O que tens fei-
to?", e sim à pergunta formulada em 33: "Tu és 'o Rei dos Judeus'?" Mes-
mo então sua resposta é em termos de reino, em vez de título de realeza.
não é deste mundo. Literalm ente. Isto tem certa sem elhança com a respos-
ta que supostam ente os netos de Judas, o "irm ão" do Senhor, teriam
d ad o à p erg unta de Dom iciano sobre o reino de Cristo: "Disseram que
ele não era m undano ou da terra, e sim celestial e angélico, e que seria
estabelecido nos confins do m undo" (Eusébio, Hist. 3,20:4; GCS 9’:234).
Um a versão do apócrifo Atos de Pilatos afirm a que o reino de Jesus não é
deste m undo; m as a m aioria dos com entaristas interpreta o pensam en-
to de João à luz de 17,11.16: o reino de Jesus, como seu discípulo, está
no m undo, porém não é dele. Por exemplo, Schlier, "Jesus", pp. 61-62,
cita a interpretação de A gostinho: "Seu reino está aqui até o fim dos
tem pos... m as não é daqui, porque só está no m undo como peregrino"
Qn Jo. 45,2; PL 35:1939). N ão obstante, não devem os esquecer que no
pensam ento joanino o alvo últim o dos discípulos é ser afastados do
m u n d o (cf. 14,2-3; 17,24).
Se meu reino fosse deste mundo. A prim eira e a segunda linhas deste versícu-
lo estão em um tipo de paralelism o em forma de escada (vol. 1, p. 189),
onde a segunda linha assum e um a expressão da primeira. Mas Schlier,
"Jesus", p. 611, exagera, com parando o form ato deste versículo com a
poesia mais consistentem ente cuidadosa de Jo 1,1.
meus súditos. A palavra é hypêretês, a qual João tem usado para a guarda
do tem plo, e talvez haja um contraste deliberado com os que prenderam
Jesus. Na LXX, o term o pode referir-se ao m inistro ou oficial de um rei
(Pr 14,35; Is 32,5; Dn 3,46; Sb 6,4). A maioria dos comentaristas entende
Jesus como a afirm ar que seu reino tem súditos. Há quem tome Mt 26,53
como um paralelo: "O u pensas tu que não poderia agora orar a m eu Pai,
e que ele não m e daria mais de doze legiões de anjos?"; e Bernard pensa
que a referência em João é a anjos. Entretanto, João é um evangelho que
1286 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

dá pouca ênfase aos anjos; e como a hipótese diz respeito a um reino des-
te m undo, alguém esperaria mais logicamente que os súditos sejam deste
m undo. Schlier, “Jesus", p. 64, identifica os súditos com os que ouvem
a voz de Jesus (v. 37). Devemos notar, contudo, que os "súditos" só são
mencionados na parte correspondente a um a condição irreal da afirma-
ção de Jesus - se seu reino fosse deste m undo, ele teria súditos. Não so-
mos inform ados explicitamente que um reino que não é deste m undo tem
súditos. Jesus não pensaria em seus discípulos como súditos no sentido
de serem seus servos, pois em 15,15 ele recusou-se a chamá-los de servos.
Se a palavra "súdito" for aplicável dentro do reino de Jesus, ela tem pas-
sado por tanta interpretação como a própria noção de reino.
estariam lutando. Há um a am biguidade no tem po im perfeito usado aqui;
BDF, §3603, oferece esta tradução: "Teriam lutado e continuado a lu-
tar". É verdade que Pedro tinha lutado, m as Jesus lhe ordenou que em-
bainhasse a espada (18,10-11).
de ser entregue aos judeus. Agora Jesus foi entregue aos rom anos (palavras
de Pilatos em 35), m as serenam ente ignora a im portância dos rom anos.
Os inimigos reais são "os judeus".
mas. Literalmente, "agora" - a situação real quando oposta à condição con-
trária ao fato que tem precedido.
meu reino não é daqui. A frase "ser de" ("pertencer") indica não só a origem ,
mas tam bém a natureza do que está envolvido.
37. Então. Oukoun ocorre som ente aqui no NT; como oun, o term o tem a fun-
ção de volver a conversação para o tem a principal depois de um parên-
tese (BDF, §451'), e assim Pilatos está retrocedendo à sua pergunta de
33. MTGS, p. 337, declara: "O oukoun interrogativo pode ser o ipsissimum
verbum de Pilatos". O presente escritor não está seguro sobre o que isso
significa, m as resistiría qualquer tese de que Pilatos falava a Jesus em um
grego que foi preservado literalmente.
tu és rei. Pilatos não repete "o Rei dos Judeus"; pode ser que ele tenha
entendido que este título não é aceito por Jesus que fala de "os judeus"
como seus inimigos. A repetição da pergunta não é incom um; porque,
pela prática rom ana, quando o réu não se esforça em defender-se, a per-
gunta direta lhe era expressa três vezes antes que seu caso fosse ignorado
(Sherwin-W hite, "Trial", p. 105).
Tu dizes que eu sou rei. Isto é um a variante do "tu o dizes" pela qual Jesus
responde a Pilatos nos relatos sinóticos (primeira nota sobre 34 acima).
Com bastante frequência (Bultmann, p. 5067), isto é tratado como um a
resposta afirmativa: "Sim, tu o dizes corretam ente, eu sou rei". D odd,
Tradition, p. 991, salienta que há pouco suporte para esta interpretação no
63 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 1-3) 1287

uso rabínico; ele só acha válido um dos exemplos apresentados por StB.
Costuma-se buscar evidência em Mt 26,64, onde, em resposta à pergunta
do sum o sacerdote sobre se ele é o Messias, Jesus responde: “Tu 0 disseste,
porém vos digo que vereis...". O paralelo em Mc 14,62 diz: "Eu o sou, e
vereis...". A ideia de que o "Eu sou" de Marcos é equivalente ao "assim o
disseste" tem por base a perigosa pretensão de que os dois evangelistas en-
tenderam a resposta no mesmo sentido, pretensão esta questionável pelo
fato de que M ateus a segue por um a adversativa "mas", enquanto Marcos
a segue pelo "e". Em conformidade com a tendência cristã de identificar
Jesus como o Messias, Marcos pode estar simplificando um a compreensão
mais m atizada da atitude de Jesus em que ele não aceitou irrestritamente
essa designação. Também em João, a afirmação que segue "Eu te digo que
sou rei" pode ser de tonalidade adversativa: a razão de Jesus entrar no
m undo não é para que fosse rei, e sim para testificar da verdade. O. M er-
lier, Revue dês Études Grecques 46 (1933), 204-9, provavelmente esteja certo
em interpretar a frase de Jesus não como um a afirmativa, e sim como uma
resposta qualificada: "Tu é que dizes, não eu"; assim também BDF, §§2772,
4418; MTGS, p. 37; Benoit, Passion, p. 106 ("Em aramaico, como em grego,
esta é um a resposta evasiva"). Jesus não nega ser rei, porém este não é um
título que espontaneam ente escolhería para descrever seu papel. Para esta
atitude para com a realeza, veja 6,15; tam bém comentário sobre 12,12-16
no vol. 1, pp. 752-57.
Há pouco para se recom endar as sugestões de que a crase deva ser lida
como um a pergunta ("Tu o dizes...?" - W estcott-H ort, Greek NT, à mar-
gern) ou que fosse pontuado diferentem ente ("Tu o dizes. Porque eu sou
rei, eu nasci...").
Eu para isso nasci, e para isso vim ao mundo. Lagrange, p. 477, nega correta-
m ente qualquer sugestão de que o prim eiro verbo se refere ao nascimen-
to de Jesus enquanto o segundo se refere ao seu m inistério público. Ao
contrário, form am um paralelism o e ambos se referem à mesma coisa.
João em outros lugares usa o verbo gennan, "ser gerado, nascer" em refe-
rência a Jesus (vol. 1, pp. 182), e no presente caso ele usa paralelism o para
deixar bem claro que o nascim ento de Jesus foi o ingresso da verdade
no m undo.
para dar testemunho da verdade. Em 9,39 Jesus disse: "Eu vim a este m undo
para juízo"; visto que a revelação da verdade tem o efeito de juízo, nada
há de contraditório nos propósitos enunciados para a vinda de Jesus ao
m undo. Em 5,33 (veja paralelo em Q um ran na nota ali) ouvimos que
João Batista testificou da verdade; agora a m esma linguagem é usada por
Jesus em referência a si mesmo. Jesus pode dar testem unho da verdade
1288 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

porque ele pertence ao que é de cima (8,23) e é o único que desceu d o céu
(3,13); assim ele tem visto o que o Pai faz (5,19) e tem ouvido o que o Pai
tem dito (8,26). Aliás, ele é a incorporação da verdade (14,6), de m odo
que os feitos e palavras de seu m inistério constituem o testem unho da
verdade. Schlier, "Jesus", p. 64, vê aqui um indício de que a m orte de
Jesus será o suprem o testem unho.
Todo aquele que pertence à verdade, ouve minha voz. O verbo akouein, "ouvir",
é aqui construído com o genitivo e se refere a ouvir com entendim ento e
aceitação; contraste a construção com o acusativo (nota sobre 8,43; ZGB,
§69). Em 10,3 fomos inform ados que as ovelhas ouvem ou dão atenção à
voz do pastor. (Este paralelo é interessante, porque, como vimos no vol. 1,
p. 674, o tema do pastor tem seu pano de fundo no perfil que o AT tem
do rei, e aqui Jesus está respondendo a um a pergunta sobre sua realeza).
Assim, os que pertencem à verdade são as ovelhas dadas a Jesus pelo
Pai; mas os que não ouvem ou não dão atenção não pertencem a Deus
(8,47). ljo 3,18-19 dá um m odo prático de testar quem pertence à verdade,
a saber, se os hom ens exibem por seus feitos que seu am or é genuíno, e
não m eram ente expressando com palavras. Obviamente, Jesus está falan-
do em linguagem dualística e não está se referindo sim plesm ente a um a
disposição moral (pondo a vida de alguém em harm onia com a verdade
revelada), m as ao status de ser cham ado por Deus para aceitar Seu Filho.
Veja M. Z erwick, VD 18 (1938), 375. M eeks, p. 67, vê no tem a de ouvir a
voz de Jesus outro eco do tema Profeta-como-Moisés: "O Senhor teu Deus
te levantará um profeta do meio de ti... como eu; a ele ouvirás" (Dt 18,15).
38. Não acho nenhuma culpa neste homem. Este juízo "nenhum a culpa" será
dado m ais duas vezes (19,4.6); um juízo bem sim ilar se encontra tam -
bém três vezes em Lucas (23,4.14.22). A prim eira ocorrência em am bos os
evangelhos vem logo depois da pergunta sobre a realeza. Para "culpa",
Lucas usa aition, enquanto João usa o cognato aitia (= crim e de que um
prisioneiro é acusado).
39. tendes 0 costume de eu soltar-vos alguém na Páscoa. N ão há confirmação
extra-bíblica para este costum e ao qual dos evangelhos testificam (Lucas
sozinho é am bíguo, já que 23,17 pode ser um a adição de copista); e a
exatidão histórica dos registros do evangelho é calorosam ente debatido
(veja Blinzler, Trial, pp. 218-21, versus W inter, Trial, pp. 91-94). Q ue tipo
ou prática os evangelistas tinham em mente? Os sinóticos descrevem
isto como um a prática de Pilatos (Mc 15,6; [Lc 23,17]) ou do governador
(Mt 27,15); João o descreve como um costum e judaico. Para João, é um
costume pascal (donde o nom e privilegium paschale); e, presum ivelm ente,
isto é o que os sinóticos tam bém significam, quando usam a expressão
63 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 1-3) 1289

"na festa". (Não é impossível que o costum e existisse tam bém nas outras
festas de peregrinação; m as a anistia se enquadra bem ao tem a geral da
libertação do Egito que dram atiza a Páscoa). Então devem os pensar em
um a anistia anual peculiar à Palestina e reconhecida por todos os gover-
nadores rom anos, o u devem os pensar em um a prática peculiar ao reina-
do de Pilatos, visando a aprim orar sua relação com seus súditos judeus?
Dos evangelhos tem os a im pressão de que a anistia não se limita a um a
determ inada classe de crimes, pois Barrabás que é solto é descrito como
assassino e revolucionário! R. W. H usband, American Journal of Theology
21 (1917), 110-16, tem tentado reduzir a im plausível am plitude da anis-
tia, sugerindo que Barrabás não foi achado culpado, m as foi acusado e
aguardava julgam ento - assim ele e Jesus, os dois candidatos à anistia,
estariam no m esm o estágio de procedim entos legais. Todavia, o fato de
que dois bandidos revolucionários foram executados juntam ente com Je-
sus sugere que o destino dos envolvidos na recente insurreição (Mc 15,7;
Lc 23,19) já estava decidido. O frenético interesse em ter Barrabás solto
seria m ais explicável se ele já estivesse a caminho da morte.
C. B. C havel, JBL 60 (1941), 273-78, entre outros, tem buscado substanciar
a existência de um a anistia pela referência na M ishnah Pesahim 8:6, que
fala da necessidade de m atar um cordeiro pascal por um a quem "prome-
teram libertar da prisão" (na véspera da Páscoa). C havel argum enta que
a referência é a prisioneiros políticos no tem po do dom ínio rom ano e que
os rom anos poderíam ter assum ido o costum e dos hasm oneus (os sacer-
dotes governantes da Palestina no 2a e I a séculos a.C ). Mas, obviamente,
esta passagem é passível de explicações que nada têm a ver com um
privilegium paschale. Alguns têm encontrado um a analogia no registro de
Livy (History V 13) do lectisternium, um a festa religiosa de oito dias, sen-
do um a das características a soltura de prisioneiros. Uma analogia mais
provável é o incidente que ocorreu no Egito em 85 d.C., quando o go-
v em ad o r soltou um prisioneiro ao povo (D eissmann, LFAE, p. 269). Não
obstante, m uitos concordariam com H. A. Riggs, JBL 64 (1945), 419-28,
no julgam ento negativo que ele passa sobre o valor dos paralelos pro-
postos. Enquanto há considerável evidência na antiguidade em prol de
anistias ocasionais, fica faltando a evidência de um a anistia para crimes
sérios em um a festa anual.
soltar-vos. O "vos" é omitido em Taciano e aparece em algum as testemunhas
como um genitivo, não como um dativo. E possível que seja original.
'0 Rei dos Judeus'. Veja nota sobre v. 33. Agora Pilatos entende que Jesus
não reivindica realeza política, pois percebe que Jesus é inocente. Por
que, então, como concebido pelo evangelista, Pilatos persiste em dar a Jesus
1290 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

este título? Alguns têm sugerido que ele está sendo sarcástico, m as difi-
cilmente decidisse ser ofensivo se sinceram ente está tentando ver Jesus
solto. (Mesmo que o evangelista não tivesse interesse em escrever um
estudo psicológico do prefeito, devem os presum ir que Pilatos é apresen-
tado como a agir racionalmente). Outros têm pensado que Pilatos está
usando o título para apelar ao senso nacionalista da m ultidão - a multi-
dão estava interessada em revolucionários como Barrabás, e Pilatos está
salientando que Jesus é tam bém um herói. Esta explicação pode enqua-
drar-se a Mc 15,9 onde Pilatos se dirige a um a m ultidão que subiu em
busca da libertação de um a prisioneiro preso por insurreição; porém não
se enquadra a João onde Pilatos tem declarado que Jesus é inocente de
crime político e onde está se dirigindo não a um a m ultidão que podería
ser convencida, e sim a "os judeus" que são inim igos de Jesus. Pode ser
que Pilatos previsse que não optariam pela soltura de Jesus e quer fazer
"os judeus" renunciar implicitam ente sua expectativa de "o Rei dos Ju-
deus". Este m otivo certam ente está envolvido em 19,15. Em qualquer
caso, o presente episódio põe mais ênfase sobre o que "os judeus" são
forçados a fazer do que na m otivação de Pilatos: "os judeus" são força-
dos a preferir um bandido ao seu rei.
40. tornaram a clamar. Clam ar se enquadra m elhor no relato m arcano/m atea-
no, onde há um a m ultidão, do que em João, onde "os judeus" (autorida-
des judaicas) estão envolvidos - um a prova m ais clara de que o evange-
lista joanino reescreveu a tradição à luz de sua hostilidade para com os
judeus (a sinagoga) de um período posterior. Alguns mss. posteriores
trazem "todos gritaram ", talvez um a tentativa de copista de converter
o auditório em um a m ultidão; veja tam bém 19,6, onde João apresenta
gritando os principais sacerdotes e a guarda do tem plo. A palavra palin
significa "tornar" ou "outra vez". O últim o significado no presente caso
implicaria que gritaram previam ente, e há quem pense que João está
condensando e selecionando um relato mais longo que retratava um a
m ultidão gritando mais cedo no julgamento. Blinzler, Trial, p. 21220, sus-
cita a questão se o clamor era um voto oral genuíno.
Barrabás. Em M ateus (27,17) é Pilatos quem m enciona Barrabás pela pri-
meira vez, enquanto nos outros três evangelhos Barrabás é sugerido pe-
los judeus (as autoridades ou a m ultidão) no lugar de Jesus. N ada sabe-
mos dele além da evidência do evangelho. "Barrabás" não é um nome
pessoal, e sim um patroním ico identificador (como Simão Barjonas) que
ocorre tam bém no Talmude. Presum ivelmente, ele significa "filho de
abba", isto é, "do pai". Mas se alguém aceita a variante que soletra Bar-
rabbás encontrada em algum as testem unhas, ele pode significar "filho
63 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 1-3) 1291

de rabbatt", isto é, "de nosso m estre" (assim J erônimo). Algum as das tes-
tem unhas textuais a M ateus apresentam o nom e do hom em como Jesus
Barrabás, um a antiga redação já dos dias de O rígenes. Neste caso, Pila-
tos estaria tratando de dois hom ens cham ados Jesus ao m esm o tempo.
W inter, Trial, p. 99, dá rédeas à conjetura de que Pila tos não sabia qual
Jesus estava processando e quis saber da m ultidão. Por conseguinte,
quando descobriu que Barrabás não era esse, então o soltou. Nesta con-
jetura, o privilegium paschale se torna um a explicação errônea desenvol-
vida pelos evangelistas que se esqueceram por que Barrabás fora libera-
do. O utros têm pensado em Barrabás como um a criação fictícia. R iggs,
JBL 64 (1945), 417-56, pensa que, originalm ente, Jesus Barrabás ("Filho
do Pai") era outra designação de Jesus o Messias, e que os dois nomes
expressam as acusações religiosas e políticas contra Jesus. L oisy é um
dos que têm recorrido à inform ação de F ilo (In Flaccum 6; 36-39) que,
quando o rei judeu Agripa I visitou Alexandria no tem po da Páscoa,
a plebe vestiu de rei um louco, rendeu-lhe hom enagem desdenhosa e
então o espancou. O louco era cham ado Karabas, e L oisy toma Barrabás
como outra forma do título para tal papel. Recentemente, B ajsic, art. cit.,
argum entou que Barrabás era um perturbador notório a quem Pilatos
tem ia e que Pilatos estava usando Jesus para im pedir que a anistia se
estendesse ao perigoso Barrabás.
bandido. Cf. J. J. T womey, Scripture 8 (1956), 115-19, com esta observação.
Lêstês pode referir-se a um simples ladrão ou assaltante, como distin-
to de um gatuno (kleptês ) que conta com a esperteza e não na violên-
cia. Com frequência (p. ex., War, 2,13.2-3; 253-54) J osefo usa lêstês para
descrever o bandido revolucionário ou guerrilha de guerreiros que, com
variados m otivos de pilhar e de nacionalismo, m antinha-se no campo
em constante insurreição. K. H. Rengstorf, TWNTE, IV, 258, observa: "É
constantem ente usado para os zelotes que... suscitam conflito arm ado
contra os rom anos por exercerem total dom ínio sobre a vida deles e por
isso estão preparados a arriscarem tudo, mesmo a própria vida, para con-
seguirem a liberdade nacional". Não estamos certos como João entendia
a palavra, m as a tradição sinótica entendeu claram ente Barrabás como
um revolucionário. Mc 15,7 diz que ele era um dos que foram presos por
com eterem homicídio num a insurreição; Lc 23,19 o descreve como um
hom em que fora lançado na prisão por ter m ovido insurreição na cidade
e p o r homicídio. O fato de ser ele o único dos revolucionários a quem a
m ultidão indica para a anistia pressupõe que podería ter sido o líder e
bem conhecido. Mt 27,16 o caracteriza como episêmos ou "notório", pa-
lavra usada por Josefo (War, 2,21.1; 585) para descrever os líderes zelotes;
1292 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

e u m as p ou ca s testem u n h as textuais m en ores d este versícu lo em João


leem architêstês o u "bandido o u caudilho". C aso e le tenha co m etid o ho-
m icídio, então, seg u n d o a lei israelita, n ão se teria p erm itid o n en h u m
perdão (N m 35,31), e o fato d e q u e as au torid ad es e o p o v o queriam q u e
ele fosse solto indica q u e con sid eravam seu h o m icíd io m ais em term os
d e patriotism o d o que d e crim e.

COMENTÁRIO: GERAL

P or to d o este co m en tário no s sen tim o s c o m p e lid o s a reco n h ecer d o is


asp ecto s co n flitantes d o E v an g elh o d e João: d e u m lad o , ele p re se rv a
u m n ú cleo d e trad ição histórica q u e exige m ais resp e ito d o q u e se lhe
tem d a d o em an o s recentes; d o o u tro lad o , o ev a n g elista reelab o ra ra-
d icalm en te to d o o seu m aterial tra d icio n a l p o r razõ es teológicas e d ra -
m áticas. Em p a rte a lg u m a a in teração e n tre tra d içã o h istó rica e os inte-
resses d a teologia e d o d ra m a se to rn a m ais a p a re n te d o q u e n a cen a d o
ju lg am en to p e ra n te P ilatos q u e co n stitu i a S e g u n d a Seção d a N a rra tiv a
d a Paixão. B lank e H a enchen têm in sistid o rec e n te m e n te so b re a p re-
d o m in ân cia d o s tem as teológicos aqui. B oismard , J anssens de V arebeke ,
e n tre o u tro s, têm c o m e n ta d o so b re a c u id a d o sa o rg an iz aç ã o d ra m á tic a
d o m aterial. D odd tem en fatizad o a p resen ça d e u m a tra d içã o histórica.
C om ecem os e s tu d a n d o a in teração d e to d o s estes fatores.

O arranjo dramático da cena

A c u id a d o sa m o n ta g e m d o c en ário d o rela to jo an in o d o ju lg a-
m en to su scita a q u e stã o d a h isto ric id a d e . O rela to m a rc a n o /m a te a n o
d o ju lg a m e n to é m u ito sim p les e n q u a n to ao c o n te ú d o e co n siste d e
três ep isó d io s: (a) Jesus é c o n d u z id o a P ilatos p a ra se r in te rro g a d o so-
b re su a reiv in d icação d e ser rei, m as se recu sa a re sp o n d e r; (b) q u a n d o
a m u ltid ã o se re ú n e p a ra solicitar a so ltu ra d e B arrab ás, P ilato s lhes
oferece Jesu s, p o ré m rejeitam ; (c) a n te su a in sistên cia, P ilatos e n tre g a
Jesus p a ra ser crucificado. T o d a a cena o co rre e m u m c e n ário p ú b lic o ,
e só d e p o is q u e Jesu s é e n tre g u e p a ra ser cru cificad o é q u e ele é tra z i-
d o d e d e n tro d o p re tó rio p a ra ser e scarnecido . A cena lu ca n a é q u a se a
m esm a, em b o ra seja in te rro m p id a p o r u m e p isó d io e m q u e Jesus é en-
v ia d o a H e ro d e s (23,6-12), e n ão h á e p isó d io final d e e sca rn e cim e n to
63 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 1-3) 1293

d e n tro d o p re tó rio . Em to d a s as v ersõ es sin ó ticas d o ju lg a m e n to Jesus


p e rm a n e c e e m silêncio.
O c e n ário jo an in o é m u ito m ais co m p lex o e d ram ático . H á d ois
c e n ário s d ram á tic o s: o p á tio e x te rio r d o p re tó rio o n d e "o s ju d e u s" se
re ú n e m ; a sala in te rio r d o p re tó rio o n d e Jesus é m a n tid o prisio n eiro .
P ilato s v ai e v e m d e u m la d o p a ra o o u tro , em sete e p isó d io s cu id a d o -
s a m e n te b a la n c e ad o s. A a tm o sfe ra in te rio r é d e calm a, e a raz ã o p o r
q u e o in o ce n te Jesu s e stá ali fica b e m c lara a P ilatos; fora h á g rito s fre-
n ético s d e ó d io q u a n d o "o s ju d e u s " p re ssio n a m a P ilato s q u e declare
Jesu s c u lp a d o . A c o n sta n te p a ssa g e m d e P ilato s d e u m c en ário a o u tro
d á e x p re ssã o e x te rn a a lu ta q u e se p a ssa em su a alm a, p o is su a certeza
d a in o cên cia d e Jesu s a u m e n ta n a m esm a p ro p o rç ã o q u e a p ressã o po-
lítica o força a c o n d e n a r Jesus. V ários e p isó d io s n a n a rra tiv a joanina
têm to q u e s d ig n o s d e u m g ra n d e d ra m a ; p o r e x em plo, o in cid e n te ecce
homo, e o clím ax o n d e "o s ju d e u s " se v e e m fo rçad o s a p ro cla m a r q u e
aceitam o im p e ra d o r co m o seu rei.
T em -se p ro p o sto diferentes esq u em as p ara d iv id ir a cena. Bultmann,
p. 501, reco n h ecería seis e p isó d io s d istrib u íd o s em d o is g ru p o s, o p ri-
m eiro g ru p o (18,28-19,7) c o n sistin d o d e q u a tro ep isó d io s, o se g u n d o
g ru p o (19,8-16) c o n sistin d o d e d o is e p isó d io s. E m geral co n co rd am o s
com se u d e lin e a m e n to d o s ep isó d io s, e m b o ra ach em o s sete, em vez
d e seis, p o is d iv id im o s 19,1-7 em d o is e p isó d io s (veja p. 1331 abaixo).
M as n ã o a c h am o s co n v in c e n te seu a g ru p a m e n to d esconexo d o s epi-
só d io s n e m o a rg u m e n to d e q u e o p rim e iro g ru p o leva a u m com "Eis
o h o m e m " (19,5) e o se g u n d o g ru p o , com "Eis v o sso rei" (19,14). Ao
c o n trá rio , co m o m u ito s o u tro s e stu d io so s, ach am o s a q u i o u tro exem -
p io d e u m p a d rã o q u iásm ic o jo an in o v isto v á ria s v ezes a n te s (vol. 1,
p. 515; acim a, p p . 1053 e 1129).
A o rg an iz aç ã o n ã o é perfeita; p o r ex em p lo , a lg u n s d o s m o v im en -
tos fora e d e n tro n ã o são e x p re ssa m e n te in d ic a d o s m esm o q u a n d o
sejam c la ra m e n te im p lícito s (n o tas so b re 19,4.9.12). M as h á u m equilí-
b rio m u ito c u id a d o so d o s ep isó d io s, l e 7 , 2 e 6 , 3 e 5 - u m equ ilíb rio
no cen ário , c o n te ú d o e in clu siv e em ex ten são (1=7; 2+3=5=6). O ú n ico
e p isó d io em q u e P ilato s n ã o fig u ra p ro e m in e n te m e n te é 4, o ep isó d io
d o cen tro . O b v ia m e n te, a m ão d e u m p la n e ja d o r m eticu lo so estev e em
ação a q u i, e n e ste caso e n c o n tra m o s d iv isã o ju stificad a e sé tu p la q u e
J anssens de V arebeke im p o ria em to d a s as três d iv isõ es d a N a rra tiv a
da P aix ão (p. 1221 acim a).
1294 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

1. Fora (18,28-32) 7. Fora (19,12-163)


Judeus pedem a morte Os judeus conseguem a
condenação e a morte
2. Dentro (18,33-38a) 6. Dentro (19,9-11)
Pilatos interroga Jesus Pilatos fala a Jesus
sobre sua realeza sobre poder
3. Fora (18,38b-40 5. Fora (19,4-8)
Pilatos não acha culpa Pilatos não acha culpa
em Jesus em Jesus "Eis o homem‫׳‬
4. Dentro (19,1-3)
Soldados açoitam a Jesus

Para conseguir esta organização, sem d ú v id a o evangelista teve


que efetuar considerável m udança no m aterial tradicional q u e chegou
a ele den tro da escola joanina. Por exem plo, ele tom ou a lib erd ad e de
m u d a r o açoitam ento d o fim d o julgam ento p ara o centro. Ele expan-
diu episódios adicionando diálogo e pod ería ter abreviado episódios
m ais longos (N otas sobre 18,40; 19,8). H aenchen , "Jesus", p. 96, objeta
que João, im plausivelm ente, apresenta Pilatos com o se este fosse u m
cidadão p riv ad o en tran d o e saindo de sua casa. M as é possível pres-
su p o r que um q u ad ro m ais com plexo foi sim plificado e q u e alguns
dos interm ediários e m ensageiros foram rem ovidos p a ra não se dis-
traírem da confrontação entre Pilatos e os dois p artid o s conflitantes.
E ntretanto, visto que, com o salienta S herwin-W hite (veja nota sobre
18,31: "julgai-o"), havia escassez de assistência adm inistrativa no go-
verno provincial rom ano, João p o d ería ter corrigido perfeitam ente,
descrevendo Pilatos com o a conduzir pessoalm ente o interrogatório.

A questão da historicidade

A reelaboração dram ática foi num a escala tal que perm anece pou-
co material histórico? N enhum a resposta simples a esta questão é possí-
vel. M as tam pouco há de se apoiar dem asiadam ente das afirm ações no
sentido de que o quadro joanino é im possível sobre bases psicológicas;
por exem plo, H aenchen, "Histone", p. 64, argum enta que u m gover-
nador rom ano jam ais teria se rebaixado em sair às autoridades judai-
cas caso se recusassem a entrar no pretório. Com o é possível estar tão
seguro disso? N unca houve m om entos em que Pilatos, com o outros
políticos, engolisse seu orgulho a fim de esquivar-se de problem a pior?
63 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 1-3) 1295

M as, m esm o q u e deixem os de lado as objeções que estão fora d o esco-


po d e pro v a, aí perm anecem dificuldades bem fundam entadas sobre
o relato d e João.
Em conform idade com os evangelhos sinóticos, o julgam ento pare-
ce ter-se realizado em público (e este era o costum e rom ano); todavia, os
evangelhos nada registram praticam ente do conteúdo do julgamento.
João d á m uito m ais detalhe das conversações que foram conduzidas
em privado no recinto do pretório! B arrett, p. 443, julga ser altam ente
im provável que inform ação confiável concernente a tais conversações
tivesse chegado ao evangelista. Q uando se propôs o problem a similar
de com o os cristãos teriam obtido inform ações sobre o conteúdo do in-
terrogatório de Jesus, poderiam os dizer com algum a plausibilidade que
os seguidores de Jesus poderíam terem sido consultado nos arquivos do
Sinédrio e entre os sacerdotes poderíam ter sido capazes de descobrir
o que aconteceu; m as aqui nenhum a resposta desse tipo é possível. A
tese de que u m registro escrito do julgam ento foi m ais tarde consultado
nos arquivos rom anos não passa d e ficção. A lguém pode especular que
teria havido outros presentes; p o r exem plo, intérpretes; m as não há no
NT evidência do acesso d e cristãos na casa de Pilatos. A dificuldade
de com o a conversação podería ter-se tom ad o conhecida, alguém adi-
cionaria o problem a do notável caráter joanino do diálogo entre Pila-
tos e Jesus. Este fala no estilo semi-poético dos discursos joaninos. Suas
palavras soam em grande m edida com o o que teria sido a apologética
padrão d a Igreja em face da suspeita rom ana d e traição na últim a parte
do 1“ século (nota sobre "não é deste m undo" em 18,36). Vimos que no
relato joanino do m inistério público alguns dos detalhes entre Jesus e
"os judeus" refletiram as controvérsias posteriores entre a igreja e a si-
nagoga. A qui, as respostas de Jesus ao governador rom ano refletem as
respostas posteriores dos cristãos às autoridades do Im pério Romano.
Se tem os razão em pen sar que o diálogo entre Jesus e Pilatos não
é histórico, o que diriam os do perfil geral que João form a de Pilatos?
Já salientam os a tendência cristã p ara com o "lavar as m ãos" de Pi-
latos que aparece em todos os relatos dos evangelhos (pp. 1211-1212
acima); m as João, m ais que os dem ais evangelhos, insiste no desejo de
Pilatos em fazer o que era certo com respeito a Jesus. Se podem os crer
em J osefo e em F ilo, quase certam ente João chega a ser ingênuo em
atrib u ir a Pilatos essa sensibilidade m oral. Todavia, João e os outros
evangelhos po d eríam estar certos em sua rem iniscência de que Pilatos
1296 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

b u sc av a so lta r Jesus. B ajsic , art. cit., tem s u g e rid o q u e P ila to s fez e ste
esforço n ão p o r a m o r à ju stiça, m as p o rq u e n ã o q u e ria so lta r B arrabás,
u m in su rreic io n ista n o tó rio e p e rig o so . B ajsic co n je tu ra q u e P ilato s ar-
d ilo sa m e n te ju lg o u ser Jesus p o litic a m e n te in o fe n siv o e e sp e ra v a q u e
o p o p u la c h o se d eix asse p e rs u a d ir em ac eita r a so ltu ra d e Jesus. Esta
m o tiv ação p o lítica, q u e co n c o rd a com im p licaçõ es n o s fato s b íblicos,
teria se e n q u a d ra d o com o calejado d é sp o ta d e sc rito n a s fo n te s ju d ai-
cas. E n q u a n to tal teo ria n ã o p u d e r ser p ro v a d a , n o s a c o n se lh a m o s a
c o n sid e rar a p o ssib ilid a d e d e q u e João e stiv esse p re s e rv a n d o as rem i-
niscên cias h istó ricas às q u a is se tem d a d o n o v a d ire triz.
M u ito s d o s d e ta lh es d o ju lg a m e n to p e c u liare s ao re la to d e João
n ão p o d e m ser a v e rig u ad o s, m as n ã o são im p lau sív eis. N ã o é im p ro -
v ável q u e P ilatos q u isesse in te rro g a r p riv a tiv a m e n te u m p risio n e iro
político p o ten c ialm en te p e rig o so e n q u a n to as a u to rid a d e s ju d a ic a s
p erm an eciam d o lad o d e fora. M esm o q u e P ilatos co o p erasse co m o
S inédrio o u in clu siv e tivesse s u p rid o o ím p e to n a p risã o d e Jesus, n ã o
p o d e ria estar e x a g era d am e n te co n fian te n a in fo rm ação d o S in éd rio
so b re Jesus e, assim , p re te n d e sse d esco b rir p o r si m esm o so b re o ho -
m em . A lg u m as d a s in fo rm açõ es q u e João d á so b re o p re tó rio têm b o a s
chances d e serem exatas (nota so b re " P a v im e n to d e P e d ra " em 19,13).
E n q u an to reco n h ecem o s a rem o d elação jo an in a d o d iálo g o e n tre Jesus
e Pilatos, é b em p ro v áv e l q u e João seja histó rico q u a n d o rem e m o ra
q u e Jesus re s p o n d e u a P ilatos d u ra n te o ju lg am en to . S u sp eita-se q u e,
ao re tra ta re m Jesus com o silencioso d u ra n te o ju lg a m e n to , os sinóticos
refletem a teologia d o Servo S ofred o r (nota so b re 19,9). A lg u n s têm
p e n sa d o q u e em lT m 6,13 tem o s u m a confirm ação in d e p e n d e n te d o
Jesus jo an in o m ais loquaz. Esta p a ssa g e m , q u e p ro v a v e lm e n te ecoa
u m cred o b atism al p rim itiv o , m en cio n a Jesus " q u e fez a m esm a n o b re
confissão d ian te d e P ilatos [ou: n o tem p o d e P ilatos]". A ep ísto la se re-
p o rta a teste m u n h o verbal? O contexto n ã o é d esfa v o ráv e l a isto, pois
ele se refere à n o b re confissão d e T im óteo na p rese n ç a d e m u ita s teste-
m u n h as, a p a re n te m e n te u m a confissão v erb al n o b a tism o o u d ia n te d e
u m m ag istrad o . N ão o b stan te, a ep ísto la p o d e significar sim p lesm en te
q u e Jesu s d e u teste m u n h o , morrendo sob o P ôncio Pilatos.
A lém d o m ais, o rela to d e João d o ju lg a m e n to n ã o é facilm en te
d e sca rta d o co m o u m rem a n eja m e n to d o m ate ria l sin ó tico d e seg u n -
d a m ão (D odd , Tradition, p. 120). P aralelos su b sta n c ia is com os rela-
tos sinó tico s só se e n c o n tram em ep isó d io s 3 e 4, e m esm o en tã o há
63 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 1-3) 1297

c o n s id e rá v e is d iv e rg ê n c ia s (veja gráficos à p p . 1308-09 abaixo). N o se-


g u n d o e p isó d io , so m e n te a p e rg u n ta "É s tu o Rei d o s Ju d e u s? " e p a rte
d a re s p o s ta "T u o d izes...", em 18,37 são sim ilares ao q u e se en co n tra
n o s sin ó tico s. O s o u tro s e p isó d io s c o n sistem g ra n d e m e n te d e m aterial
p ro p ria m e n te jo an in o . N o ta m o s q u e em a lg u m d e ste s m ate ria is João
faz p a re lh a co m u m a tra d içã o refletid a em L ucas (que, com v ên ia a
B u ltm a n n , p a re c e ter tid o u m a fonte in d e p e n d e n te p a ra o ju lg a m e n to
d e P ilatos). P o r e x em p lo , João e L ucas têm em c o m u m o seg u in te: Pi-
lato s d iz três v e z es q u e n ã o ach a c u lp a em Jesus, e a seq u ên cia em q u e
a s trê s a firm açõ es a p a re c e m é e m b o a m e d id a a m esm a (n o tas sobre
18,38; 19,4.6); o e sca rn e cim e n to d e Jesus o co rre em m eio ao ju lg am en -
to e n ã o n o final; Jesus é e n tre g u e aos ju d e u s p a ra ser crucificado e
n ã o esp ec ific am e n te ao s so ld a d o s ro m a n o s. A s sim ila rid a d e s n ã o são
v e rb a lm e n te tão e stre ita s q u e p e n se m o s q u e u m e v an g elista copiou
d o o u tro , e p o d e m o s p re s s u p o r q u e tais d e ta lh e s v ie ra m a a m b o s os
e v a n g e lista s d e tra d içõ e s m ais an tig as. Isto n ã o faz os d e ta lh e s ne-
c e ssa ria m e n te h istó rico s, m as acau tela c o n tra a ssu m ir com extrem a
fac ilid a d e q u e o m ate ria l, q u e em g ra n d e p a rte é p e c u lia r a João, re-
p re se n ta a criação d o ev an g elista.
C o m to d o s e u d ra m a e su a teologia, o rela to q u e João faz d o julga-
m e n to é o m ais c o n sisten te e in telig ív el q u e tem os. S o m en te João dei-
xa claro p o r q u e Jesus foi c o n d u z id o a P ilato s n o p rim e iro local e p o r
q u e P ilato s c e d e u e d e ix o u Jesus ser c rucificado. A cro n o lo g ia d e João,
o n d e o p ro c e sso ju d icial se d á n o 14“ d ia d e N isan , é m ais crível d o q u e
o d o s sin ó tico s, o n d e se d á n a festa d a Páscoa. João deix a lu cid a m e n te
claro q u e e m p rin c íp io P ilato s está in d a g a n d o a Jesus so b re a acusa-
ção política q u e foi fo rm u la d a c o n tra ele, acu sação q u e faria d ele u m a
am eaça ao im p e ra d o r. O perfil d e P ilatos se re n d e n d o à su til recipro-
c id a d e d a s forças p o líticas a c arreta certa convicção. S h erw in - W hite ,
Roman Society, p. 147, d e p o is d e rev e r c u id a d o sa m e n te as p ráticas
p ro v in ciais ro m a n a s, conclui q u e os d e ta lh es legais e a d m in istra tiv o s
p ecu liares a João d e m o d o a lg u m são im plausíveis. D odd , Tradition,
p. 120, a rg u m e n ta q u e u m e scrito r no final d o l u século e n u m am -
b ien te h elen ista n ã o p o d ia ter in v e n ta d o u m relato tão p e rsu a siv o de
u m ju lg a m e n to c o n d u z id o sob condições q u e há m u ito se passara. Ele
p e n sa q u e o a u to r tin h a u m v iv id o senso d a situ ação n a P alestina antes
d a ex tin ção d a a u to n o m ia judaica local. A su m a d o ju lg am en to feita
p o r D odd é e x p ressa assim : "E n q u a n to h á ev id ên cia d e a lg u m grau
1298 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

d e elab o ração p e lo a u to r, a co n clu são m ais p ro v á v e l é q u e , e m subs-


tância, ela rep re sen ta u m a classe in d e p e n d e n te d e trad ição , q u e teria
sid o fo rm a d a n u m p e río d o m u ito m ais p ró x im o ao s e v e n to s d o q u e o
p e río d o q u a n d o o Q u a rto E van g elh o foi escrito, e em a lg u n s asp ecto s
p arece ser m ais b em in fo rm a d a d o q u e a tra d içã o p o r d e trá s d o s sinóti-
cos, cujo relato co n fu so ela clareia". P esso alm en te, e n fa tiz a ría m o s com
m ais v ig o r os esforços elab o rativ o s d o escrito r jo anino, m a s n o to d o
p referim o s a av aliação d e D odd à c o n tu n d e n te afirm ação d e W inter
(Trial, p. 891): "D e Jo 18,20 em d ian te , o Q u a rto E v an g elh o n ã o co n tém
n a d a q u e p o ssa n o s se rv ir p a ra a v alo ração d o s fatos h istó rico s".
Se c rem o s q u e e m João tem o s d e ta lh e s d e u m a tra d iç ã o p rim itiv a
ree la b o ra d a em u m to d o teológico e d ra m á tic o , n ã o o b sta n te ev ita-
m o s u m a ten ta tiv a d e d e te rm in a r com c erteza o u g ra n d e p re c isã o o
q u e v e m d a tra d iç ã o e o q u e re p re se n ta ela b o raç ã o d a p a rte d o e v a n -
gelista. (M esm o B ultm a nn , p p . 502-3, q u e c o m u m e n te e screv e com
se g u ran ça so b re tais a ssu n to s, ach a e sta seção difícil d e a n a lisar; ele
d etecta F o n te d a P aixão e m João p a rtic u la rm e n te e m 18,39-19,6 [veja
S mith , p . 49]). A lg u m as elab o raçõ es são m ais o u m en o s ó b v ias, m as
so m o s se m p re lim ita d o s em d e te c ta r a m ão d o e v a n g e lista m e d ia n te
nossa d isc u ssã o d e q u e a fo n te d e tra d iç ã o n ã o era e s tra n h a à escola
jo anin a. T em os p ro p o sto (vol. 1, p . 6) q u e a m o d e la g e m d a tra d iç ã o
em u m e v a n g elh o o c o rre u d e p o is d e u m p e río d o d e a n o s e n u m v iv o
co n tex to d e p reg a ç ã o e en sin o . A s teo rias q u e re tra ta m o e v a n g e lista
faz e n d o ad içõ es a u m d o c u m e n to escrito fixo q u e fora re c e n te m e n te
co lo cad o à su a d isp o sição , in ev ita v e lm e n te são m ais o tim ista s so b re
a c a p a c id a d e m o d e rn a d a e ru d iç ã o em d istin g u ir e n tre o e v a n g elista
e a trad ição .

O julgamento romano como um veículo da teologia joanina

João o m ite u m re la to d o in te rro g a tó rio d e Jesus d ia n te d o Siné-


d rio sob C aifás. M esm o q u a n d o d e ta lh e s d e sse p ro c e d im e n to estejam
d isp e rso s p o r to d o o Q u a rto E v an g elh o , o efeito d a o m issã o d á u m a
o rien tação p e c u lia r à N a rra tiv a Jo an in a d a Paixão. O s p ro c e d im e n to s
ju d aico s legais têm sid o re d u z id o s a u m a p e rg u n ta feita a Jesu s p o r
A n ás, e assim o p ro ce sso ju d icial ro m a n o se to rn a 0 ju lg a m e n to d e
Jesus. H á u m a ra z ã o teológica p a ra a ê n fase d e João so b re o ju lg a m e n -
to ro m an o ?
63 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 1-3) 1299

T alv ez a a tm o sfe ra se cu la r d o ju lg a m e n to p e rm itisse ao escritor


jo an in o u sá-la m ais e fe tiv a m en te d o q u e p o d e ria ter u s a d o os proce-
d im e n to s ju d aic o s p a ra ex p licar a realeza d e Jesus. B lank , p. 62, está
c erto e m in sistir q u e a realeza é o tem a teológico q u e d o m in a os episó-
d io s d o ju lg a m e n to . O s e g u n d o e p isó d io d isc u te a n a tu re z a d a realeza
d e Jesu s, rea lez a esta q u e P ilatos p ro cla m a d u a s v ezes (terceiro e sé-
tim o e p isó d io s). O q u a rto e p isó d io d e scre v e a v e x a tó ria en tro n iza ç ã o
d e Jesu s co m o rei, e n o q u in to e p isó d io Jesus é c o n d u z id o e a p re se n ta -
d o a se u s s ú d ito s q u e o acla m a m com b ra d o s d e crucifixão. N o te q u e
Jo ão v in c u la o tem a d e so frim e n to com o d e realeza. A a d iç ã o d o inci-
d e n te ecce homo faz a d u r a ex p eriên cia d e Jesus d u ra n te o ju lg a m e n to
m ais a p a re n te e m João d o q u e é n o s e v a n g elh o s sinóticos. A ssim n ã o
h á n e c e s s id a d e d e im a g in a r q u e, ao e n fa tiz a r a realeza, João a te n u o u
in te ira m e n te o q u a d ro d o S ervo S ofredor. T em as ad icio n ais d o julga-
m e n to q u e p o d e m o s m en c io n ar in clu e m a inocência d e Jesus e Jesus
co m o o v e rd a d e iro ju iz q u e ex p õ e se u s a d v e rsá rio s a ju lg am en to .
O u tro s in té rp re te s têm e n c o n tra d o a ch av e p a ra a im p o rtâ n c ia
teo ló g ica d o ju lg a m e n to ro m a n o p a ra João n a ên fase so b re Pilatos. Al-
g u n s a p o n ta m p a ra o SI 2,2 (citad o em A t 4,25-26) co m o u m tem a do-
m in a n te : "L e v a n ta ra m -se o s reis d a terra, e os p rín c ip e s se a ju n ta ra m
à u m a , c o n tra o S e n h o r e c o n tra seu u n g id o " . N ã o o b sta n te , os relato s
sin ó tico s d o ju lg a m e n to d e P ilatos p re e n c h e ría m este texto precisa-
m e n te co m o faz o rela to d e João. Se João fosse a m p lia r o esco p o d o
ju lg a m e n to ro m a n o à lu z d e ste texto, e sp e ra ría m o s q u e ele o citasse
ex p lícita o u im p lic ita m en te . O u tra su g e stã o é q u e o e v an g elista foca-
lizo u o ju lg a m e n to d e P ilatos p o rq u e ele q u e ria re tra ta r Jesus e m dire-
ta c o n fro n taç ã o com R om a. N o m in istério , Jesus tev e q u e e n fre n ta r a
o p o sição d e "o s ju d e u s" ; a g o ra ele está d ia n te d a en c arn a çã o ro m a n a
d o p o d e r m u n d a n o . É p o ssív el v e r a q u i u m d u e lo e n tre as esferas re-
lig io sa e se cu la r em q u e a se cu la r tem o p o d e r b ru to so b re a religiosa,
m as a relig io sa d o m in a p e la força d e su a in te g rid a d e . T o d av ia, n u m
ex am e e strito d e sco b rim o s o tem a d e p o d e r lev a d o a v a n te so m en te
n o Sexto e p isó d io (19,10-11) e talv ez a té certo p o n to n o se g u n d o epi-
só d io ; d e m o d o q u e o conflito e n tre o relig io so e o se cu la r dificilm en-
te seja u m tem a d o m in a n te . A v a ria çã o d e sta tese e m q u e P ilatos se
to m a u m a p erso n ificação d e u m a R om a q u e é h o stil ao cristian ism o
reflete o L iv ro d o A p o calip se e n ã o o Q u a rto E vangelho. A d m iti-
m o s q u e em João u m a escolta ro m a n a é p a rte d o p a rtid o q u e p re n d e
1300 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

Jesus e q u e os s o ld a d o s ro m a n o s m o tejam d e Jesus d u r a n te o ju lg a -


m en to ; m a s o p ró p rio P ilatos é a p re s e n ta d o co m o fav o rá v e l a Jesus.
A m alev o lên cia d e "os ju d e u s " p e rm a n e c e u m a n o ta d o m in a n te , e Je-
su s é e n tre g u e ao s ju d e u s p a ra a crucifixão.
A in d a em o u tra in te rp re ta ç ã o teo ló g ica d o p a p e l d e P ila to s, ele
se to m a o r e p re s e n ta n te d o E sta d o c o m a in c u m b ê n c ia d e d e c id ir e n -
tre o m u n d o e a v e rd a d e . Jo ão e stá u s a n d o P ila to s p a ra m o s tr a r q u e
o E sta d o n ã o p o d e p e rm a n e c e r n e u tro à v e rd a d e , p o is a n e u tr a lid a -
d e fo rç a rá o E sta d o a te m p o riz a r m e sm o n a s q u e s tõ e s m a is e le m e n -
tare s d a ju stiça e a a g ir c o n tra s e u s a u to -in te re s s e s reais. A o n ã o d e -
c id ir c o n tra o m u n d o , o E sta d o lo g o se v ê s u je ita d o a o m u n d o . E sta
in te rp re ta ç ã o te m sid o p o p u la r e n tre e sc rito re s a le m ã e s (S c h l ie r ,
B u ltm a n n ) e c o m p re e n s iv e lm e n te reflete a a n g ú s tia te o ló g ic a so b re
o p a p e l d o E sta d o in s p ira d o p e la e x p e riê n c ia n a z ista . M as V o n C a m -
pen h a u sen , H a e n c h e n , e n tre o u tro s , tê m s a b ia m e n te q u e s tio n a d o se

isto n ã o é u m a re in te rp re ta ç ã o d e Jo ão à lu z d e u m p ro b le m a teo ló g i-
co m o d e rn o em v e z d e u m a e x p o siç ã o d o p r ó p rio p o n to d e v ista d o
e v a n g elista . N a v e rd a d e , a lu ta e n tre Je su s e "o s ju d e u s " é u m a lu ta
e n tre a v e rd a d e e n c a rn a d a e o m u n d o , m a s a a b stra ç ã o " o E s ta d o " é
u m co n ceito p o s te rio r.
E n q u a n to João tem re tra ta d o "o s ju d e u s " co m o d u a listic a m e n te
o p o sto a Jesu s e se re c u sa n d o to ta lm e n te a c re r n ele, ele ta m b é m n o s
tem d a d o ex em p lo s d e o u tra s reações p a ra com Jesu s e m q u e o s ho -
m en s n ã o se rec u sa m a c re r n e m a ceitam p le n a m e n te a Je su s p e lo q u e
ele rea lm e n te é (vol. 1, p p . 838-39). N ic o d e m o s, a m u lh e r sa m a rita n a , o
h o m em c u ra d o n o Poço d e B etesda v ê m à m en te. D e v e m o s o lh a r p a ra
o P ilatos jo an in o n ã o c o m o u m a p erso n ificação d o E stad o , e sim c o m o
o u tro re p re s e n ta n te d e u m a reação p a ra com Jesu s q u e n e m é fé n e m
rejeição. P ilato s é típico, n ã o d o E stad o q u e p e rm a n e c e ría n e u tro , m as
d o s m u ito s h o m e n s h o n e sto s, b e m d isp o sto s q u e te n ta ria m a d o ta r a
p o sição m éd ia n u m conflito q u e é total. A o e s tu d a r o re la to d a m u lh e r
sa m a rita n a (vol. 1, p p . 390), v im o s q u ã o a rtistic a m e n te Jo ão d e scre -
v e u u m a p e sso a q u e, a d e sp e ito d a s te n ta tiv a s d e e sc a p a r à s d ecisõ es,
p ô d e ser le v a d a a c re r em Jesus. O re la to d e P ilato s n o s d á o o u tro
lad o d a m o ed a , p o is ele ilu stra co m o u m a p e sso a q u e rec u sa d ecisõ es
é lev a d a à tra g é d ia . Em u m a s p o u c a s p a la v ra s, Jesu s d issip a o te m o r
sin cero d e P ilato s d o p e rig o p o lítico (18,36); m as Jesu s n ã o se c o n te n ta
em d e te r-se aí: ele d e safiaria P ilato s a rec o n h e c er a v e rd a d e (18,37).
63 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 1-3) 1301

P ila to s n ã o e n c a ra rá o d e safio d e d e c id ir p o r Jesu s e c o n tra "o s ju-


d e u s " ; ele p e n s a q u e p o d e p e rs u a d ir os ju d e u s a a c eita re m u m a so-
lu ç ã o q u e se lh e to rn a rá d e sn ec e ssário d e c id ir em fav o r d e Jesus. Pri-
m eiro , P ila to s lh es oferece u m a esco lh a e n tre o s p risio n eiro s: Jesus
o u B a rra b á s (18,39-40). Q u a n d o isso falh a, ele co m eça a re n d e r-se ao
m u n d o , fa z e n d o Je su s se r a ç o ita d o e m o te ja d o , e s p e ra n d o q u e isto
fo sse s u fic ie n te (19,1-6). Q u a n d o isso falha, ele oferece a e n tre g a d e
Je su s à v o n ta d e d e "o s ju d e u s " sob o q u e ele c o n sid e ra u m a c o n d ição
im p o ssív e l. Se eles q u e re m Je su s cru cificad o , ele o s fará re q u e re r d e
tal m o d o q u e terá d e n e g a r to d a s as s u a s e sp e ra n ç a s m essiân icas e
p ro c la m a r q u e o Im p e ra d o r é se u ú n ic o rei (19,14-15). M as "o s ju-
d e u s " n ã o titu b e a rã o n e m m e sm o d ia n te d e sta b lasfêm ia; p o is sabem
q u e e sta é u m a lu ta a té a m o rte , e q u e , se se u Jesu s n ã o m o rre r, o
m u n d o s e rá v e n c id o p e la v e rd a d e . E a ssim P ilato s, o h o m e m p se u -
d o -n e u tro , é fru s tra d o p e la in te n s id a d e d o s p a rtic ip a n te s. T en d o
fra c a ss a d o e m o u v ir a v e rd a d e e d e c id ir e m se u fav o r, ele e to d o s
o s q u e o im ita m in e v ita v e lm e n te a c ab a m ao serv iço d o m u n d o . Em
n o sso ju íz o , e sta é a p ro fu n d a c o m p re e n sã o jo a n in a d e P ilatos. Se a
d ra m a tiz a ç ã o d e tal c o m p re e n sã o re q u e re ría h a b ilid a d e e esforço d a
p a rte d o e v a n g e lista , d e v e -se a d m itir q u e o re s u lta d o é d ig n o d e su a
co n cep ção : m u ito s são o s q u e p o d e m a c h a r re tra ta d o s e m P ilato s su a
p r ó p ria e trá g ica h istó ria d e c o n te m p o riz a ç ã o e in d ecisão .
E a ssim h a v ia ra z õ e s teo ló g ic a s p a ra Jo ão e n fa tiz a r o ju lg a m e n -
to ro m a n o d e Je su s, m a s n ã o d e v e m o s s u p o r in g e n u a m e n te q u e as
ra z õ e s teo ló g ic a s e x p lic am c a d a faceta d o ju lg a m e n to ro m a n o . N ã o é
in co n c e b ív e l q u e João e n fa tiz o u o ju lg a m e n to ro m a n o ta m b é m p o r-
q u e s u a tra d iç ã o p r e s e rv o u u m a rem in isc ên c ia h istó ric a c o rre ta no
fato d e q u e e sse e ra o m a is im p o rta n te d o s p ro c e d im e n to s legais
c o n tra Je su s e d e fato o ú n ic o ju lg a m e n to real. E p o ssív e l q u e P ilato s
re a lm e n te e x e rc e sse u m p a p e l d o m in a n te n a p a ix ã o d e Jesu s (veja
p p . 1218-19 acim a). O s d isc u rs o s d e P e d ro e d e P a u lo em A to s, os
q u a is p o d ia m c o n te r tra d iç ã o p rim itiv a , p ro p o rc io n a lm e n te enfati-
zam o e n v o lv im e n to ro m a n o (A t 2,23: " m a ta s te s p e la s m ã o s d e ho-
m e n s in íq u o s " ; 3,13: " n a p re se n ç a d e P ila to s"; 13,28: " p e d ira m a Pi-
la to s q u e ele fo sse m o rto " ). E a ssim e n c e rra m o s a d isc u ssã o so b re a
n o ta co m q u e a co m eçam o s: o d e lic a d o a m á lg a m a jo a n in o d a h istó ria
e teo lo g ia .
1302 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

COMENTÁRIO: DETALHADO

Primeiro episódio: As autoridades judaicas solicitam que Pilatos condene a


Jesus (18,28-32)

P rim eiram en te, co m p ararem o s este ep isó d io com a n a rra tiv a sinótíca.
A a b e rtu ra d o ju lg am en to ro m a n o e m M arcos (15,2-5) é c o m p o sta, re-
c o rren d o a d u a s fontes m arcan as (p. 1204 acim a). Da fo n te B m arcan a
vem 15,2 q u e d iscu tirem o s em relação ao se g u n d o e p isó d io e m João.
D a fonte A m arcan a o u relato p rim itiv o co n secu tiv o p ro ce d e 15,3-5: os
p rin cip ais sacerd otes a c u saram Jesus d e m u ita s coisas; P ilatos se v iu
su rp re so an te o n ú m e ro d e acusações e in te rro g o u Jesus so b re elas; Je-
su s p e rm a n ec e u em silêncio. A seq u ên cia m arc an a é e stra n h a, p o is os
vs. 3-5 fariam u m m elh o r ixucio d o q u e com o v. 2. Lucas tem a p e n a s u m
p aralelo p arcial com o m aterial A m arcan o . Em 23,2, talvez refletin d o
u m a fonte in d ep e n d e n te , Lucas reg istra q u e o s m em b ro s d o S inédrio
catalo g aram três acusações co n tra Jesus: in d u z ir a o e rro a nação; p ro ib ir
q u e im p o sto s fossem p a g o s ao im p e rad o r; reiv in d icar ser o M essias-Rei.
L ucas n ão reg istra q u e P ilatos in te rro g o u Jesu s so b re as três acusações
o u q u e Jesus p e rm a n ec e u em silêncio. O p rese n te e p isó d io e m João d is-
cute a acusação lan çad a c o n tra Jesus p o r "os ju d eu s"; o silêncio d e Jesus
é m en cio n ad o em o u tro contexto n o sexto ep isó d io (19,9). E difícil crer
q u e João ten h a to m a d o d o m aterial A m arcan o e o reescrito to talm en te;
as diferenças são m u ito m ais p ro em in en te s d o q u e as sim ilarid ad es.
A lém d o m ais, algo d o m aterial q u e se e n c o n tra so m en te e m João é d a
m áxim a im p o rtância; p o r exem plo, a explicação d e q u e a s c ortes ju d ai-
cas n ão p o d ia m executar sentenças d e m orte. Se essa in fo rm ação for
correta (nota so b re 18,31), en tã o João está claram en te rec o rre n d o a u m a
tradição h istórica in d e p e n d e n te d e M arcos e d a s fontes m arcanas.
T em o s d isc u tid o n a s n o ta s o s p ro b le m a s h istó rico s d e ta lh a d o s.
A q u i, n o s o c u p a re m o s com a se q u ên cia lógica d a n a rra tiv a como 0
evangelista a apresenta e com a im p licação teológica q u e o e v a n g e lista
ex trai d o q u e ele d escreve.
A cena se a b re n o ro m p e r d o d ia - u m a in d ic a çã o c ro n o ló g ica
co m u m às tra d içõ e s d o e v a n g elh o so b re o ju lg a m e n to ro m a n o . M as
ex eg etas co m o B u ltm a n n e B lank a c h am im p licação teológica n o em -
p re g o q u e João faz: a n o ite d o m al m e n c io n a d a em 13,30 e sta v a p a s-
sa n d o , e o d ia ra ia v a q u a n d o a lu z d o m u n d o v e n c ería a tre v a s (1,5).
63 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 1-3) 1303

N a v e rd a d e , João n ã o m en c io n a a lu z a q u i, e n ã o h á in d icação c lara d e


q u e ele tiv e sse em m e n te a lg u m sim b o lism o , m as q u e isso se h a rm o -
n iz a ria co m a teo lo g ia joanina.
A c o n fro n taç ã o inicial d e P ilatos e "o s ju d e u s " é d e scrita com
u m a iro n ia su til. T e n d o c in icam en te d e c id id o so b re a m o rte d e Jesus,
v isto q u e e ra m ais v a n ta jo so q u e a lg u é m m o rre sse em v e z d e to d a a
n a ç ã o se r d e s tru íd a ( 1 1 ,5 0 ) , as a u to rid a d e s ju d a ic a s são, n ã o o b stan te,
e s c ru p u lo sa m e n te c o rre ta s em su a o b serv ân cia d a p u re z a ritu al. N ão
h e sita m e m fazer u so d o s g e n tio s p a ra a a n u la ç ã o d e se u a d v e rsá rio ,
m a s n ã o e n tra rã o n a casa d o g entio. Im p lic ita m en te , p o d e h a v e r o u tro
e le m e n to d e ironia: tem e m q u e a im p u re z a ritu a l im p e d isse q u e co-
m esse m o c o rd e iro p ascal, m as in co n sc ien te m e n te estã o e n tre g a n d o à
m o rte a q u e le q u e é o C o rd e iro d e D eu s (1 ,2 9 ) e assim estã o to m a n d o
p o ssív e l a v e rd a d e ira Páscoa.
A a p re se n ta ç ã o inicial d e P ilatos a p re se n ta u m p ro b le m a n a lógica
d a n a rra tiv a jo an ina. Se as tro p a s ro m a n a s fo ram e n v ia d a s p a ra a pri-
são d e Jesu s, e assim P ilatos e stav a c o o p e ra n d o com C aifás, p o r q u e a
q u e stã o d a in te rro g a ç ão d e P ilatos q u e acusação e stav a se n d o lançada
c o n tra Jesus? T o d av ia, a q u e stã o é inteligível co m o p a rte d o sistem a
p ro v in c ial d e a d m in istra r justiça a tra v és d o cognitio p esso al d o gover-
n a d o r ro m a n o (veja S h erw in - W hite , Roman Society, p . 17). E n q u an to
acu saçõ es e p e n a lid a d e s e ra m liv re m e n te fo rm u la d a s, e v e n tu a lm e n te
u m a a cu sação p e c u lia r e fo rm al tin h a d e se r feita ao m a n te n e d o r d o
Imperium, d e m o d o q u e ele p u d e sse in v estig ar e a d q u irir conh ecim en to
(cognitio) p esso al. P ilatos p o d e ria ter c o o p e ra d o c om o S inédrio em p ô r
u m p o ssív el p e rtu rb a d o r sob p risã o tem p o rá ria d u ra n te u m perig o so
p e río d o festivo; aliás, ele p o d e ria ter sid o o m o tiv o im p u lsio n a d o r p o r
d e trá s d a p ris ã o d e u m h o m em so b re q u e m o u v ira ser rev o lu cio n ário
e su a in te n ç ão p o d e ria ser q u e o S in éd rio in v estig asse se co n v in h a sub-
m eter-lh e a ju lg am en to . M as ag o ra as a u to rid a d e s d o S in éd rio estav am
e n tre g a n d o u m p risio n eiro p a ra u m ju lg a m e n to oficial, e P ilatos tinha
q u e se g u ir o fo rm a to legal. U m reg istro d e ste ju lg a m e n to teria d e ser
g u a rd a d o , e P ilatos n ã o p o d ia p ro p ic ia r a seu s in im ig o s evidência d e
irre g u la rid a d e s legais. V ista d e sse m o d o , a p e rg u n ta inicial d e Pilatos
é a e s p e ra d a fo rm a lid a d e legal: ele deseja co nhecer os re su lta d o s do s
p ro c e d im e n to s d o " g ra n d e jú ri" c o n tra Jesus.
M u ito e m b o ra H a en c h e n , "Historie", p. 6 5 , p e n se q u e a resp o sta
d a s a u to rid a d e s ju d aic as n ã o d e v e ser in te rp re ta d a psico lo g icam en te,
1304 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

ach am o s difícil n ã o v e r a q u i u m to m d e insolência. E in so lên cia n ã o


d e v e ser tão in e sp e ra d a se o S in éd rio e stiv esse a g in d o sob a s o rd e n s
d e P ilatos, e c o n se q u e n te m e n te as a u to rid a d e s se se n tia m se g u ra s d e
q u e P ilato s teria d e ac eita r su a decisão. M as P ilatos re s p o n d e à inso-
lência in sistin d o em c o rrig ir o p ro c e d im e n to . Se ele o rd e n a sse o u lh es
p e rm itisse c o n d u z ir u m in q u é rito , n ã o teria c e d id o se u d ire ito d e ju l-
gar. A s a u to rid a d e s ju d aic as seriam a p ta s a ju lg a r Jesu s c u lp a d o so b re
bases religiosas e s e g u n d o su a s p ró p ria s leis, e P ilatos os c o n v id a a
fazer isso. U n icam en te em resp o sta à su a re p u lsa a "os ju d e u s " in d ica
q u e P ilatos p erceb e q u e eles estão a c u sa n d o Jesus d e u m a ofen sa capi-
tal d e c u n h o civil, im p licitam en te a ofen sa d e q u e P ilato s su sp eitav a:
Jesus é u m rev o lu cio n ário com p rete n sõ e s m o n árq u ica s. O s ru m o re s
q u e c h eg aram ao s o u v id o s d e P ilatos e o lev a ram a e n v ia r tro p a s ro-
m an a s p a ra p re n d e re m Jesus p ro v a v a m ser isto u m fato: Jesus está
reiv in d ic a n d o ser "o Rei d o s Ju d e u s". T em os a p re s e n ta d o u m a recons-
tru ção q u e p arece d a r se n tid o à n a rra tiv a d e João, re c o n stru ç ã o n a q u a l
P ilatos assu m e u m caso judicial se m elh an te ao d o s oficiais ro m a n o s
d escritos em A t 18,14-15 e 2 3 ,2 8 2 9 ‫־‬. N a tu ra lm e n te, n ã o p o d e m o s e sta r
seg u ro s d e q u e a reco n stru ção in te rp re ta c o rre ta m en te a in te n ç ão d o
evangelista. C o m o em o u tra s n a rra tiv a s (vol. 1, p. 296), tem o s d e fazer
co n jetu ras e ler n a s e n tre lin h a s p a ra c o m p le ta r a sequência. E n tre tan to ,
n o p e rc u rso tal reco n stru ção parece m en o s im p lau sív el d o q u e a p res-
su p o sição d e q u e n esta cena d e ju lg a m e n to c riterio sam en te c a lcu lad a o
evan g elista com ete erro s in gênuos; p o r exem plo, o e rro d e p e n s a r q u e
P ilatos n ão sab eria q u e os trib u n a is ju d aico s n ã o p o d ia m ex ecu tar u m a
sen ten ça cap ital e isso teria d e ser lem b rad o p o r se u s sú d ito s.
A resp o sta d o s ju d e u s, "A n ó s n ã o n o s é p e rm itid o m a ta r n in -
g u é m " , serv e a v á rio s p ro p ó sito s teológicos. V isto q u e João n ã o des-
crev eu u m S in éd rio p ro c e ssa n d o n a n o ite a n te rio r, a té e n tã o n ã o fo-
m os in fo rm a d o s q u e a d ecisão d e 11,53 ("p la n eja v am m atá -lo ") a in d a
está em v ig o r. O b v ia m e n te, é: o s in im ig o s d e Jesus têm n ã o só d e fu g ir
d a lu z, m as estão d e te rm in a d o s a ex tin g u i-la. A iro n ia é q u e a tra v é s
d a m o rte se v e rá a v itó ria d a lu z. A lém d o m ais, s e u s in im ig o s já d e te r-
m in a ra m q u e Jesus d e v e m o rre r d e u m a m an e ira p a rtic u la rm e n te ro-
m an a , a sab er, n u m a cru z; p o is a se u s o lh o s isto o m e rg u lh a rá n a des-
graça. M as n ã o sab em q u e Jesus é se n h o r d e su a p ró p ria v id a e m o rte
(10,17-18) e q u e, se está p a ra m o rre r n u m a cru z, e sta é a fo rm a d e m o r-
te q u e ele m esm o p re d isse e esco lh eu (12,32-33). S ua e lev ação à c ru z
63 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 1 1 3 0 5 (3‫־‬

n ã o s e rá u m a d e sg ra ç a , m a s se rá u m p a sso a v a n te em su a v o lta a seu


Pai. "O s ju d e u s " e stã o im p e lin d o Jesus à m o rte n u m a c ru z p a ra im p e-
d ir q u e to d o s os h o m e n s p a sse m a c re r n ele (11,48), m a s iro n icam en te
e s tã o le v a n ta n d o -o p a ra q u e p o ssa a tra ir a si to d o s os h o m en s.

Segundo episódio: Pilatos interroga Jesus sobre a realeza (18,33-38a)

V im o s q u e o p rim e iro e p isó d io se a sse m e lh a v a g a m e n te ao


m a te ria l e m M c 15,3-5 d a fo n te A o u d o re la to p rim itiv o d a paixão.
O m a te ria l n o s e g u n d o e p isó d io é c o n stru íd o em to m o d a p e rg u n ta
d e P ilatos: "É s tu 'o Rei d o s J u d e u s '? ‫ ״‬, q u e a p a re c e em M c 15,2 d a
fo n te B (ta m b é m em Lc 23,3). Bultmann , q u e su sp e ita d o m ate ria l B
m a rc a n o , v isu a liz a isto co m o u m a a d iç ã o a e x p re ssa r o p o n to d e v ista
cristã o d e q u e Jesu s foi e x e cu ta d o p o r su a s reiv in d icaçõ es m essiân icas
(HST, p . 272). E n tre tan to , Lohse, History, p. 89, in d ica c o rre ta m en te
q u e n ã o e n c o n tra m o s "o Rei d o s Ju d e u s" co m o u m a fo rm u lação cristã
m essiân ica. Ela n ã o a p a re c e n a p re g a ç ã o c ristã p rim itiv a , e su g erim o s
n a n o ta q u e ela tin h a u m a co n o tação p o lítica n a c io n a ü sta e, assim ,
teria se a d e q u a d o p la u siv e lm e n te ao ju lg a m e n to histórico. E ntretan-
to, e n q u a n to c o n sid e ra m o s a q u e stã o básica e n c o n tra d a n o s q u a tro
e v a n g e lh o s co m o h istó rica, reco n h ecem o s q u e a am p lificação d e sta
q u e s tã o n o s e g u n d o e p isó d io é em g ra n d e p a rte u m a re c o n stru ç ã o d o
e scrito r jo an in o o u d e se u s p red e c e sso re s (p. 1296 acim a).
Se h o u v e m ais d e u m a a cu sação p o lítica a p re s e n ta d a c o n tra Jesus
(M c 15,3; Lc 23,2), so m e n te u m a é re g istra d a com o a o c u p a r a aten ção
d e P ilato s, a acu sa ç ã o d e q u e Jesu s reiv in d ic a v a ser "o Rei d o s Ju-
d e u s " . S o m e n te João se d á ao tra b a lh o d e re s p o n d e r à acu sação e ex-
p lic a r q u e a rea lez a d e Jesus n ã o e ra política. E n tre os vs. 33 e 37a (os
d o is v e rsíc u lo s q u e tê m p a ra lelo s sinóticos) h á u m bloco d e m ate ria l
p e c u lia rm e n te jo an in o (34-36), o q u e B enoit, Passion, p . 147, caracteri-
z a c o m o " u m a ex p o sição teológica em q u e João p õ e p a la v ra s n a boca
d e P ila to s q u e n ã o p o d e ría m ser p ro n u n c ia d a s co m o se e n c o n tram
e, acim a d e tu d o , faz Jesus d iz e r coisas q u e P ilato s n ã o p o d e ria ter
e n te n d id o " . T o d a v ia, se c o n c o rd a rm o s q u e este d iálo g o reflete a ap o -
lo g ia d a Igreja a n te ao Im p é rio n o s a n o s 70 e 80, n ã o p o d e m o s excluir
a p o s s ib ilid a d e d e u m a v ag a rem in iscên cia d e u m fato h istó rico , a
sa b er, q u e P ilato s c o n sid e ro u a aleg ação d e q u e Jesus e ra u m p re te n so
re v o lu c io n á rio e q u e u m d o s sin ais n e g a tiv o s e ra q u e se u s se g u id o re s
1306 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

n ã o fizeram resistên cia a rm a d a q u a n d o ele foi p re so (v. 36 - d e sco n -


sid e ra m o s o ato d e P e d ro d e ferir u m escrav o , p o is isso d ific ilm e n te
seria in te rp re ta d o com o u m a revolta).
Seja co m o for, João n o s d á u m a e sp lê n d id a ex p o sição teológica
d a realeza d e Jesus, e tu d o isso ta n to m ais in te ressa n te , p o rq u e João
n ã o in sistiu e x p lic ita m e n te so b re o tem a d o rein o d e D e u s tã o p ro e m i-
n e n te n o s e v a n g elh o s sin ó tico s (vol. 1, p. 120). O Jesu s jo an in o com eça
p o r d istin g u ir e n tre " re i" u s a d o n o se n tid o po lítico o q u a l os ro m a n o s
e n te n d e ría m , e " re i" n o se n tid o ju d aic o com im p licaçõ es relig io sas
(v. 34). N o te q u e o crim in o so a c u sa d o fo rm u la p e rg u n ta s co m o se ele
m esm o fosse o ju iz, e a p a rtir d a s p rim e ira s p a la v ra s d e Jesu s é o p re -
feito q u e está s e n ta d o n o b a n c o d o s réus! P ilato s é u m h o m e m q u e
está e n c a ra n d o a lu z e q u e tem d e d e c id ir se p re fe rirá a lu z o u a s tre-
v as (3 ,1 9 2 1 ‫)־‬. P ilatos re s p o n d e q u e está sim p le sm e n te re p e tin d o o q u e
lhe foi p a s sa d o , e com a a sp e re z a ro m a n a p e rg u n ta o q u e Jesu s tem
feito. (A p e rg u n ta , "Q u e m al ten s feito?", a p a re c e d e p o is n o s láb io s d e
P ilatos n o ju lg a m e n to em M c 15,14; Lc 23,22). Isto in fo rm a rá P ila to s se
o "R ei" c o n stitu i a lg u m a a m eaça à h e g e m o n ia ro m a n a .
A resp o sta d e Jesus é fo rm u la d a em e x p ressõ es so len es e p o é ti-
cas. N a s cinco lin h a s d e 36, a afirm ação a b so lu ta d a p rim e ira lin h a é
re fo rm u la d a e re ite ra d a n a ú ltim a lin h a, e n q u a n to as lin h a s in te rm e -
d iárias 2-4 oferecem u m a explicação. Jesus n ã o fala d e si m esm o , e
sim d e se u reino. N o ta m o s q u e, p a ra João, esta é u m a q u e stã o d o rei-
n o d e Jesus, e n q u a n to os sinóticos g e ra lm e n te p re fe re m falar d o rein o
de Deus (tam b ém Jo 3,3). M as esta n ã o é u m a d iferen ça sig n ificativ a,
p o is n o p e n s a m e n to jo an in o o q u e p e rte n c e a D eu s p e rte n c e a Jesu s e
vice-versa (17,10). Jesus n ã o n eg a q u e se u rein o o u realeza a feta este
m u n d o , p o is o m u n d o será v e n c id o p e lo s q u e creem n ele ( ljo 5,4).
M as ele n eg a q u e se u rein o p e rte n ç a a este m u n d o , co m o ele m e sm o
v em d e cim a. Ele p e rte n c e à esfera d o E spírito, e n ã o à esfera d a car-
ne. B lank, p. 69, e n fa tiz a a im p a rc ia lid a d e co m q u e Jesus a q u i p ro cla -
m a seu rein o ; e m face d a m o rte, n ã o h á co m o isso se r m a l-e n te n d id o .
(N ão o b sta n te , d ificilm en te se p o d e c o m p a ra r a situ a ç ão e m João co m
a q u ela em M arcos, o n d e n o s ju lg a m e n to s ju d aic o e ro m a n o se e rg u e o
v é u m essiân ico - o Jesus jo an in o tem sid o m ais d ire to e m s u a s p ro cla -
m açõ es d u ra n te o m inistério).
P ilato s p a re c e p e rd e r o te o r d a s o b serv açõ es d e Jesus; ele te m ou-
v id o a p a la v ra "re in o ", e p a ra ele isto é u m a e n tid a d e p olítica; e assim
63 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 1-3) 1307

ele te n ta a rra n c a r u m a confissão (37). Jesus n ã o se re c u sa rá categori-


c a m e n te se r rec o n h e c id o co m o u m rei (veja nota), p o ré m in d ica q u e
p re fe re d e sc re v e r seu p a p e l em term o s d e d a r te ste m u n h o d a v e rd a -
de. Jo ão n ã o tem re tra ta d o Jesus co m o p re g a d o r d o rein o , e sim com o
o ú n ic o re v e la d o r e o ú n ico q u e p o d e falar e exibir a v e rd a d e acerca
d e D eus. Jesu s n ã o tem sú d ito s reais co m o se d a ria se seu rein o fosse
co m o o s d e m a is rein o s; a o co n trá rio , ele tem se g u id o re s q u e o u v em
su a v o z co m o s e n d o a v e rd a d e . S o m en te os q u e p e rte n c e m à v erd a-
d e p o d e m e n te n d e r em q u e se n tid o Jesus tem u m rein o e é u m rei.
A ra z ã o real d e Jesu s se r e n tre g u e a P ilato s é p rec isam e n te p o rq u e ele
tem d a d o te s te m u n h o d a v e rd a d e : "o m u n d o ... m e o d e ia p o r c au sa d o
te s te m u n h o q u e tra g o c o n tra ele" (7,7).
D e certo m o d o , a afirm ação d e Jesus p e rm ite q u e P ilatos se tran-
q uilize: a realeza d e Jesus n ão a p re se n ta n e n h u m risco aos g e n u ín o s
in teresses políticos d e R om a. T odavia, d e o u tra form a, a afirm ação d e
Jesus d e ix a P ilatos d esco n fo rtáv el, p o is Jesus im p licitam en te desafiava
P ilato s a reco n h ecer a v e rd a d e . T o d o a q u ele q u e p e rte n ce à v e rd a d e d á
o u v id o s a Jesu s - P ilatos p e rte n ce à v e rd a d e ? D este m o m e n to em d ian-
te, o te m a d o ju lg a m e n to já n ã o é se Jesus é inocente o u cu lp ad o ; Pila-
tos a d m ite isto p ro c la m a n d o im e d ia ta m e n te q u e Jesus n ã o é c u lp a d o
(v. 38b). A g o ra, o tem a d o ju lg a m e n to é se P ilatos re sp o n d e rá o u n ão
à v e rd a d e . V em os u m in d ício d a d ireção q u e P ilatos to m a rá em sua
resp o sta: "V erd a d e ? E o q u e é isso?" Esta p e rg u n ta já foi in te rp re ta d a
d e m u ita s m an eiras; p o r ex em plo, com o u m a ex p ressão d e ceticism o
m u n d a n o o u in clu siv e com o p o n d e ra ç ã o filosófica. P o rém , n ã o é p ro-
v áv el q u e João ten h a p in ta d o u m político v e n a l com o u m filósofo. A o
n ível d a p ro g re ssã o d o ju lg am en to , o ev an g elista p o d e ria ter em m en te
a q u e stã o d e ex p licitar o fracasso d e P ilatos em e n te n d e r, o u talvez
a im p aciên cia d o político com jarg ão teológico judaico. M as, ao nível
teológico, o ev an g elista u sa a q u e stã o p a ra m o strar q u e Pilatos está se
e s q u iv a n d o d a v e rd a d e . Ele n ã o aceita as acusações d e "os ju d e u s" ,
m as n e m d a rá o u v id o s à v o z d e Jesus. Ele n ã o reconhece a v erd ad e.

Terceiro episódio: Pilatos busca soltar Jesus; "os judeus" preferem Barrabás
(18,38b-40)

N e s te e p isó d io , se faz necessária u m a c o m p a raç ã o d e ta lh a d a d e


João e o s sin óticos; veja o gráfico abaixo. O relato m a rc a n o é ex traíd o
1308 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

d a fo n te B. N ã o é c erto se L ucas te m u m a tra d iç ã o in d e p e n d e n te , p o is


as d iferen ças d e M arcos p o d e m ser o re s u lta d o d e tra b a lh o red a c io n a l.

GRÁFICO COMPARATIVO PARA O INCIDENTE DE BARRABÁS


(Mc 15,6-11; Mt 27,15-21; Lc 23,18-19; Jo 18,38a-40)
(a) Sequência
Marcos, M ateus, João: logo depois da pergunta se Jesus é "o Rei dos
Judeus".
Lucas: Depois que Pilatos enviou Jesus a H erodes e este o enviou de
volta àquele.

(b) O grupo abordado por Pilatos


Marcos, Mateus: Uma m ultidão que subiu para a soltura do prisioneiro
(Mt 27.20: "m ultidões"). Entre a m ultidão estão os principais
sacerdotes (e os anciãos - Mateus).
Lucas: Os principais sacerdotes, os líderes e o povo* (cf. At 3,13, onde
Pedro fala ao povo que negou a Jesus na presença de Pilatos).
João: "Os judeus", i.e., as autoridades hostis.

(c) O privilegium paschale


Marcos, Mateus: Descrito pelo evangelista como um a prática ou costu-
me do governador.
Lucas: Descrito pelo evangelista como um a obrigação do governador,
m as 23,17 está ausente em m uitos mss. e provavelm ente não é
autêntico.
João: Descrito p or Pilatos como um costum e judaico.

(d) A iniciativa
Marcos: A m ultidão pede a Pilatos que solte um prisioneiro.
Mateus: Enquanto a m ultidão está ali em busca da soltura do prisionei-
ro, não se faz nenhum pedido específico, de m odo que Pilatos
menciona prim eiro a soltura, perguntando se a m ultidão quer
Barrabás ou Jesus.

* Este versículo (Lc 23,13) é o único caso na Narrativa Lucana da Paixão onde o
evangelista apresenta "o povo" como hostil a Jesus. Em outros lugares, Lucas con-
trasta "[todo] o povo", que é favorável a Jesus, com as autoridades que o odeiam
(Lc 19,47-20,1; 20,6.19.26.45; 21,38; 23,27.35.48; 24,19-20). G. R a u , ZNW 56 (1965),
41-51, argumenta em prol da tese de W in t e r que 23,13 deve ser lido "os líderes do
povo". Em qualquer caso, Lucas sabe de uma multidão hostil a Jesus (22,47; 23,4).
63 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 1-3) 1309

Lucas: Os principais sacerdotes, os líderes e o povo pedem a soltura


de Barrabás.
João: Pilatos lembrar aos judeus seu costume para que ele solte alguém.

(e) Pergunta de Pilatos


M arcos, João: "Quereis [Marcos: thelein; João: boulein] que eu vos solte
"o Rei dos Judeus"?
Mateus: "Quereis que vos solte (Jesus) Barrabás ou Jesus chamado
Messias?"
Lucas: nenhum .

(f) A resposta
Marcos, Mateus: Os principais sacerdotes (e anciãos) incitam a(s) multi-
dão(s) a pedir a soltura de Barrabás (e a morte de Jesus - Mateus).
Lucas: Os principais sacerdotes, os líderes e o povo gritam num a só
voz (anakrazein): "Fora com este sujeito e solta-nos a Barrabás!"
João: "Os judeus" por sua vez tom aram a clam ar (kraugazein): "Que-
rem os Barrabás, não este".

(g) Incidentes posteriores


Marcos: Pilatos pergunta o que faria com "o Rei dos Judeus", e a multi-
dão grita que o crucificasse. Barrabás é solto enquanto Jesus é
sentenciado.
Mateus: O governador pergunta outra vez: "Qual dos dois quereis que eu
vos solte?" Eles dizem: "Barrabás". O restante é como em Marcos.
Lucas: Pilatos lhes fala outra vez, desejando soltar Jesus, m as eles gri-
tam que o crucificasse. Barrabás é solto, enquanto Jesus é sen-
tenciado.
João: Sequência diferente: Barrabás nunca é m encionado outra vez.

E n q u an to M ateu s é p ró x im o a M arcos, u su alm en te h á u m a porcen-


tag em d e d iferenças m aio r q u e o habitual. Q u a n d o co m p aram o s João
com os sinóticos, descobrim os que, em b o ra João concorde com Lucas
(23,14) n a d eclaração " n ão vejo cu lp a" q u e in tro d u z o episódio; p o r ou-
tro lad o , João co ncorda so m en te com Lucas em (b) e (f). O n d e M ateus
é d iferen te d e M arcos, João concorda com M ateus som ente em (d), e
m esm o q u e a sim ilarid ad e seja ap e n as parcial. João concorda com M ar-
cos em (a) e esp ecialm ente em (e). O relato q u e João faz d o episódio é o
m ais breve. V isto q u e certo efeito d ram ático é alcançado p ela b rev id ad e
1310 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

(veja abaixo), é b e m p ro v á v e l q u e João te n h a a b re v ia d o u m re la to


m ais an tig o , m ais afim com o p re se n te rela to d e M arcos.
O e p is ó d io d e B a rra b á s a p a re c e n a fo n te B d e M arco s, e a ssim
n ã o n o s s u rp re e n d e d e sc o b rir q u e B ultmann (H ST, p . 272) o carac-
te riz a co m o le n d á rio . T o d a v ia , v isto q u e o re la to jo a n in o e ta lv e z
o re la to lu c a n o p o d e m p ro c e d e r d e u m a tra d iç ã o in d e p e n d e n te d e
M arco s, p a re c e e x ig ir-se c a u te la . H á ra z ã o le g ítim a p a r a in c e rte z a
so b re o privilegium paschale (n o ta so b re 39), e a ssim se p o d e in d a g a r
se h o u v e e sco lh a e n tre Je su s e B arrab ás. M as c re m o s q u e a e v id ê n -
cia a p o n ta ao m e n o s p a ra a h isto ric id a d e d a s o ltu ra d e u m b a n d id o
c h a m a d o B a rra b á s n a ép o ca em q u e Je su s foi c o n d e n a d o . D e o u -
tro m o d o , é m u ito difícil e x p lic a r p o r q u e a h istó ria foi in v e n ta d a
e co m o ela a c h o u s e u c a m in h o , in d e p e n d e n te m e n te , n a s d iv e rs a s
tra d iç õ e s p ré-e v a n g élic a s.
Já m en c io n am o s a tese d e Bajsic d e q u e, u m a v e z q u e P ilato s d es-
co b riu q u e Jesu s e ra p o litic a m e n te in o fen siv o , b u sc o u a té o fim d o jul-
g a m e n to fazer com q u e o p o v o escolhesse Jesus e m v ez d e B arrab ás,
p o rq u e b e m sab ia q u e o ú ltim o e ra u m p e rig o so re v o lu c io n á rio . Se for
co rreta essa teo ria (a q u a l o b v ia m e n te d e p e n d e d a h isto ric id a d e d o
privilegium paschale), e n tã o o re la to d e João n ã o é tã o afim co m o q u e
aco n teceu co m o o é o rela to d e M arcos. A d escrição m a r c a n a /m a te a -
n a d e u m a m u ltid ã o s u b in d o p a ra solicitar a s o ltu ra d e u m p risio n e iro
se e n q u a d ra b e m a essa tese. P ilatos teria ta m b é m u m a m e lh o r c h an ce
d e fo rçar a esco lh a d e u m a m u ltid ã o d o q u e d a s a u to rid a d e s ju d a ic a s
q u e fig u ra m n o rela to d e João. É cru cial p a ra a tese d e B ajsic d e q u e
a d ecisão d e so lta r B arrabás n ã o a c o n te c eu a té o final d o ju lg a m e n to
(ig u a lm e n te o s trê s sinóticos). A ssim , a o o m itir q u a lq u e r m e n ç ã o ul-
terio r d e B arrab ás d e p o is d e 18,40 (veja n o ta so b re " to m o u " e m 19,1),
João p o d e te r o b sc u re c id o a m o tiv aç ã o p a ra o c o n tín u o esforço d e Pi-
lato s e m fav o r d e Jesus.
Se o re la to q u e João faz d o in c id e n te d e B arrab ás d e ix a a lg o a
d esejar d o a sp ec to d e c o m p le tu d e , su a b re v id a d e , n ã o o b sta n te , é d ra -
m ática. "O s ju d e u s " já a p re se n ta ra m Jesus a P ilato s co m o rev o lu c io -
n ário , u m p se u d o -re i; m as a g o ra a im p o s tu ra se to rn a e v id e n te . A in d a
q u a n d o P ilato s ach a Jesus in o cen te, "o s ju d e u s " p re fe riría m a s o ltu ra
d e a lg u é m q u e re a lm e n te é rev o lu cio n ário . João c a p ta a iro n ia d a si-
tu ação com a cáu stica observ ação : "B arrab ás e ra u m b a n d id o " . (João
p a rece e v o c ar im p lic ita m e n te o c o n tra ste q u e 10,1-10 fo rm o u e n tre
63 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 1-3) 1311

o b o m p a s to r, cu jas o v e lh a s o u v e m su a v o z [note o final d e 19,37], e o


la d rã o q u e e n tra so rra te ira m e n te n o aprisco).
A o m esm o tem p o , v em o s a fu tilid ad e d a ten tativ a d e P ilatos p a ra
e v ita r u m a d ecisão e n tre a v e rd a d e e o m u n d o . O m u n d o rep re sen ta d o
p o r "o s ju d e u s " n ã o está in teressad o em u m com prom isso: a v erd a-
d e d e v e ser ex term in ad a. Ironicam ente, ao d eix ar d e p ro p iciar justiça a
Jesu s e soltá-lo a p ó s d ec la ra d a su a inocência, Pilatos se v ê forçado a
fazer p seu d o -ju stiça, so lta n d o u m q u e é c u lp ad o . A o n ã o p ro te g e r os
in teresses d e Jesus, P ilatos ag o ra se v ê co m p elid o a a g ir contra seus
p ró p rio s interesses. Pilatos n ã o aceitou o desafio d e o u v ir a v o z d e Jesus
(v. 37; v eja nota); a g o ra ele o u v iría a v o z d e "o s ju d eu s" q u a n d o exigem
a so ltu ra d e u m b a n d id o . D ebilitado p o r seu fracasso em decidir, Pila-
to s se v ê r e d u z id o d e u m a posição o n d e p o d e ria ter o rd e n a d o a liberta-
ção d e Jesu s a u m a posição o n d e ele b a rg a n h a ria p o r ela.

[A B ibliografia p a ra esta seção está in clu sa n a B ibliografia n o fi-


n a l d o §64],
64. A NARRATIVA DA PAIXÃO:
- SEGUNDA SEÇÃO (EPISÓDIOS 4 7 ‫)־‬
(19,l16‫־‬a)

O julgamento de Jesus perante Pilatos (continuação)

Q u a rto e p isó d io

19 1E n tão P ilato s to m o u Jesus e o m a n d o u açoitar. 2E os s o ld a d o s te-


ceram u m a co roa d e e sp in h o s e a fix aram n a fro n te d e Jesus, e lhe
v e stira m co m u m m a n to d e p ú r p u ra régia. 3V ezes e m ais v e z es o ro-
d e a v am , d ize n d o : "S alve, ‫׳‬Rei d o s J u d e u s!' E d a v a m -lh e b o fe ta d a s.

Q U IN T O E PISÓ D IO

4U m a v e z m ais, P ilato s sa iu fora e lh es disse: "E is a q u i, v o -lo tra g o


p a ra fo ra p a ra q u e saib ais q u e n ã o ach o n e n h u m m o tiv o [co n tra ele]".
5 Q u a n d o Jesu s sa iu p o rta n d o a co ro a d e e s p in h o e o m a n to d e p ú r-
p u ra , P ilato s lh es disse: "E is o h o m em !" 6T ão logo o s p rin c ip a is sacer-
d o tes e os g u a rd a s d o te m p lo o v ira m , g rita ra m : "C ru cifica-o " C ru ci-
fica-o!" P ilato s lh es disse: "T o m ai-o v ó s m esm o s e crucificai-o; e u n ã o
acho n ele crim e n e n h u m " . 7"T em o s n o ssa p ró p ria lei", re p lic a ra m os
ju d e u s, "e s e g u n d o essa lei ele d e v e m o rre r, p o rq u e p re te n d ia se r Fi-
lho d e D eu s". 8Q u a n d o P ilatos o u v iu esse tip o d e p a la v ra , ficou a in d a
m ais a te m o riz ad o .

4: disse; 5: disse; 6: falou. N o tempo presente histórico.


64 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 4-7) 1313

SEXTO E PISÓ D IO

9V o lta n d o ao p re tó rio , d isse P ilato s a Jesus: "D e o n d e v ieste?" M as


Je su s n ã o lh e d e u resp o sta. 10"T u te rec u sa s falar-m e?" p e rg u n to u Pi-
latos. " N ã o sab es q u e te n h o p o d e r p a ra so lta r-te e p o d e r p a ra crucifi-
car-te?" 11Je su s re sp o n d e u :

" N ã o te ria s so b re m im n e n h u m p o d e r,
se n ã o te fosse d a d o d o alto.
P o r essa raz ã o , a q u e le q u e m e e n tre g o u a ti
te m m a io r c u lp a d e p e c ad o ".

SÉT IM O E PISÓ D IO

12D e p o is d is to P ila to s p ro c u ra v a soltá-lo; m as o s ju d e u s g rita v am :


"Se lib e rta re s e ste , n ã o és 'a m ig o d e C é sa r'. Q u a lq u e r q u e p re te n -
d a se r re i se to rn a riv a l d e C é sa r". 13A ssim q u e o u v iu o q u e esta-
v a m d iz e n d o , P ila to s tro u x e fo ra a Je su s e a sse n to u -se n a trib u n a
d o ju iz n o lu g a r c h a m a d o " P a v im e n to d e P e d ra " (se n d o seu n o m e
h e b ra ic o Gabbatha). (14E sse e ra o d ia d a P re p a ra ç ã o p a ra a P áscoa, e
a h o ra e ra cerca d e m eio -d ia ). E n tã o ele d iss e a o s ju d e u s: "V ed e, eis
a q u i o v o s s o rei!" 15N isto eles g rita ra m : "F o ra com ele! F o ra com ele!
C ru cifica-o !" " O q u e !", e x c la m o u P ilato s. " H e i d e c ru cificar o v o sso
rei?" O s p rin c ip a is sa c e rd o te s re p lic a ra m : " N ã o te m o s o u tro rei se-
n ã o C é s a r" . 16E n tã o , fin a lm e n te , P ila to s lh es e n tre g o u Je su s p a ra ser
cru c ific ad o .

9: disse; 10: exigiu-, 14: disse; 15: exclamou. No tem po presente histórico.

NOTAS

19.1. Então. Esta não é um a indicação exata d e tem po, m as estab elece um
contraste com o e p isó d io p reced en te (BDF, §4592).
tomou. A soltura d e Barrabás não foi m en cion ad a (e n os relatos sinóticos
ele n ã o é so lto até q u e Jesus fo sse sen ten ciad o), m as a lg u n s interpreta-
riam este verb o n o sen tid o d e Pilatos m anter Jesus en quanto ao m esm o
tem p o soltava Barrabás (A. M ahoney, CBQ 28 [1966], 29 716).
1314 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

0 mandou açoitar. Literalmente, o grego diz que Pilatos açoitou Jesus, m as o


v. 2 deixa claro que isto foi feito por outros sob sua ordem . Veja o em-
prego sim ilar em 19,19. Mc 15,15 e Mt 27,26 usam o verbo latinizado
fragelloun ("flagelar"), enquanto João usa mastigoun. (De acordo com
Lc 23,16.22, Pilatos entregou Jesus para ser castigado [paideuein]). Aqui
e no v. 3, a palavra escolhida por João ("esbofetear") pode refletir o vo-
cabulário de Is 50,6: "Eu dei m inhas costas aos açoites e m inha face às
bofetadas"; veja p. 1265 acima.
Os romanos usam três formas de castigo físico com varas ou chicotes: fus-
tigatio (fustigar), flagellatio (flagelar) e verberatio (açoitar) - em grau ascen-
dente. A flagelação era usada como um a punição em si m esm a corretiva,
m as punição mais severa, os açoites, fazia parte da pena capital.
2. os soldados. João deixa o núm ero indefinido, porém Mc 15,16 e M t 27,27 fa-
lam de "toda a escolta" (600 soldados!). Em João, nada se diz sobre onde
ocorreu o escarnecimento; m as visto que no v. 5 Jesus é conduzido fora
depois do escarnecimento, podem os presum ir que ele ocorreu do lado
de dentro. Isto é especialm ente afirm ado em Marcos e Mateus.
uma coroa de espinhos. Provavelm ente o escarnecimento tem por base a co-
roa como geralm ente representante de realeza, em bora alguns tenham
pensado mais especificamente em um escarnecimento da coroa de lou-
ros usada pelo im perador. E bem provável que o tipo de coroa fosse o
radiante diadem a que serve como adorno do governador em m uitas das
m oedas do tem po de Jesus (veja C ampbell Bonner, HTR 46 [1953], 47-48).
Diversos tipos de árvores poderíam ter fornecido os espinhos. Em RB 42
(1933), 230-34, E. H a-Reubeni sugere o arbusto com um Poterium spinosum
L. (heb. sTrãh, "arbusto espinhoso" - Is 34,13; para espinhos trançados,
veja N a 1,10). Em JTS N.S. 3 (1952), 66-75, L. St. John H art sugere a época
em que a palm eira tem espinhos próxim os às suas bases; e lem bram os
que os ram os da palm eira foram m encionados na cena da entrada de
Jesus em Jerusalém apenas cinco dias antes (todavia, veja nota sobre
12,13). E. R. G oodenough e C. B. W elles, HTR 46 (1953), 241-42, sugere
ser bem provável que a coroa fosse de acanto, e não de espinhos.
um manto de púrpura régia. Nesta cena, som ente João e M ateus m encionam
especificamente a roupa. Mt 27,28 menciona um clâmide verm elho ou
capa externa; isto era usado pelo im perador, por oficiais m enores e pelos
soldados. João usa a palavra himation, "roupa" em geral, ou, m ais preci-
samente, "roupa externa, túnica". João e Marcos (15,17) dão a cor como
sendo púrpura, a cor im perial (veja Ap 17,4; 18,16). Um genuíno m anto
de p ú rp u ra não teria sido tão facilmente adquirível como um m anto ver-
melho, pois a tinta p ú rp u ra obtida de moliscos era dispendiosa.
64 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 4-7) 1315

3. Vezes e mais vezes 0 rodeavam. O tem p o im p erfeito é u sa d o para indicar


repetição. MTGS, p. 66, cataloga isto entre o s e x em p lo s d e um im perfeito
u sa d o para fazer a narrativa con tín u a e interessante. A sentença é om i-
tida em a lgu m as testem u n h as im portantes, aparentem ente por m eio de
h o m o io teleu to n , p o is há d u as sen ten ças b reves com "e" em sequência.
Sauvel O s s o ld a d o s im itavam a sa u d a çã o "Ave Caesar" atribuída ao im -
p erador.
Rei. O n o m in a tiv o com o artigo é u sa d o por João (u so classificado com o
sem itizan te p ó BDF, §1473), en q u an to M arcos e M ateus usam o vocativo
m ais clássico. B arrett, p. 449, concorda com M oulton d e q u e o nom ina-
tivo tem aqui um a nuança apropriada: "Salve, tu, ó Rei!"
4. saiu. Em 18,38, P ilatos tinha saído. N ã o so m o s inform ad os q u e ele entrasse
outra vez; m as, ob viam en te, im plica p ressu p or que ele fez isso durante
o açoitam ento.
não acho nenhum motivo. P66 e o C od ex Sinaiticus rezam : "N ão acho acu-
sação". N o se g u n d o ju lgam ento, "nenhum a culpa" (nota sobre 18,38),
ocorre e m João d e p o is que Jesus foi escarnecido p elo s rom anos; o segu n -
d o e m Lucas (23,14) ocorre justam ente d e p o is q u e Jesus foi escarnecido
p e lo s so ld a d o s d e H erodes.
[contra ele]. Isto é o m itid o n o Sinaiticus, e s e encontra num a seq u ên cia dife-
rente em ou tro gru p o d e testem unhas.
5. portanto a coroa de espinho e 0 manto de púrpura. N o v. 2, João registrou "uma
coroa d e esp in h os" , que não é a m esm a exp ressão em pregada em Mt
27,29; aqui João u sa a exp ressão grega encontrada em M c 15,17. M arcos
e M ateus in d icam q u e, n o fim d o escam ecim en to , o s so ld a d o s tiraram
a roupa q u e puseram em Jesus e d evolveram su as próprias roupas; na-
turalm ente, n estes ev a n g elh o s o esca m ecim en to ocorre antes da cruci-
fixão e d e p o is da sentença de m orte. João indica q u e a coroa e o m anto
foram m an tid os durante a ú ltim a parte d o julgam ento e, d e fato, nunca
m en cion a q u e a Jesus se perm itiu usar outra v e z su as próprias roupas.
É e m razão da ev id ên cia d e João q u e na arte pop u lar o Jesus crucificado
é retratado co m o ainda u sa n d o um a coroa d e esp in h os.
Pilatos lhes disse: "Eis 0 homem!" Isto é om itid o por P66, OL e a C óptica
sub-achim im ic - um a im portante com binação. "Eis" é idou n o original, em
contraste com "Eis, aqui está v o sso rei!" no v. 14 abaixo, o qual em prega
ide. João usa ide quinze v ezes e idou som ente quatro vezes; em particular,
ide é com u m (seis v ezes) quando seg u e u m objeto n om inal - este é o único
caso d e idou em tal construção. G. D. Kilpatrick, JTS 18 (1967), 426, leria
ide. Em si, nada há d e particularm ente significativo sobre o u so de "o ho-
m em " (ho anthrõpos; cf. Pedro "não conheço o hom em " em M t 26,72.74),
1316 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

m as o con texto dram ático lh e confere certa im portância. B uscando a


in teligib ilid ad e d esta afirm ação co m o reportada d o s lábios d e P ilatos,
algu n s com entaristas interpretam o ecce homo co m o eq u iv a len te a "Eis
o pobre hom em !", ou , à m aneira d e provocar p ied a d e (Bernard), o u , à
m aneira d e enfatizar o ridículo d e levar a sério u m a figura tão d esa m -
parada (Bultmann), o u , à m aneira d e m en o sp rezo com o p ro p ó sito d e
incitar a m u ltid ão a exigir a soltura d e Jesus (Bajsic). Lohse, History, p. 93,
tom a isto com o um a indicação da forte im p ressão q u e Jesus ca u so u em
Pilatos: "Eis u m hom em !" O utros com entaristas estão in teressa d o s nas
im p licações teológicas d o pronunciam ento. A tese d e q u e o ev a n g elista
tem em vista enfatizar a encarnação é im p rovável. Barrett, p. 450, p en sa
n o s m itos judaicos e h elen istas d o h om em prim itivo; ele v ê tam bém u m
contraste entre o título "o hom em ", u sa d o aqui, e o títu lo o "Filho d e
D eus" o qual n os é d ito q u e Jesus reivin d icou (v. 7). T em -se p ro p o sto
um a equiparação com o "Filho d o H om em " o u co m o "h om em d e d o -
res" (o Servo d e Is 53,3). M ais p la u sív el é a su g estã o d e M eeks (pp. 70-71)
d e que "H om em " era u m título escatológico em Zc 6,12: "Eis um homem
[LXX: anêr] cujo n om e é R enovo... ele edificará o tem p lo d o Senhor". "O
Renovo" p assou a ser en ten d id o em term os m essiânicos; e n o TM d e Za-
carias a seg u n d a parte d o versícu lo evoca o oráculo d e N atã a Davi: "Ele
edificará um a casa para o m eu nom e" (2Sm 7,13). N a LXX, a p alavra para
"Renovo" é anatolê (d o verb o "levantar-se, aparecer", d a í "brotar"), e
isto é rem iniscente da form a na LXX d o oráculo "m essiânico" d e Balaão
(N m 24,17): "Um a estrela procederá [an atelein ] d e Jacó e 0 homem [ho
anthrõpos ] subirá d e Israel". A ssim , n o p en sa m en to d e João, P ilatos p o -
deria estar ap resen tan d o Jesus ao p o v o sob u m título m essiâ n ico . (N ota-
m os que n o s relatos m a rca n o /m a tea n o d a sessã o d o Sinédrio, a q u estão
se Jesus é o M essias se relaciona com a q u estão d e seu ato d e edificar d o
tem p lo - u m tem a tam bém encontrado em Zc 6,12).
6. os principais sacerdotes e os guardas do templo. A repetição d o artigo d efin i-
d o antes d o seg u n d o su b stan tivo preserva a sep aração d o s d o is g ru p o s
(MTGS, p. 182); juntos, con stitu em "os judeus" m en cio n a d o s n o versícu lo
segu in te. O b r a d o para crucificar, em M a rco s/M a teu s, v em da m ultidão;
e, em Lucas, v e m d e "os principais sacerd otes, d o s líd eres e d o povo" .
gritaram, (nota sobre 11,43); M a rco s/M a teu s u sam krazein; Lucas usa
epiphonein.
"Crucifica-0! Crucifica-o!" Literalm ente, "Crucifica! Crucifica!"; contras-
te o v. 15 o n d e o "o" é expresso. A q u i tam bém a lg u m a s testem u n h a s
têm su p rid o o "o", en q u an to outros leem so m en te u m "Crucifica!". Es-
tas são assim ilações d e cop istas às form as sin óticas d o grito: M c 15,13:
64 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 4-7) 1317

"Crucifica-o!"; M t 27,22: "Que seja crucificado"; Lc 23,21: "Crucifica, cru-


cifica-o!". O d u p lo clam or reflete in ten sid ad e; e o s d o is ev a n g elh o s que
trazem o d u p lo clam or n este prim eiro caso d e u m clam or por crucifixão
(cf. nota sobre 15 abaixo) apresentam o s in im ig o s d e Jesus co m o persis-
ten tem en te h ostis (veja Lc 23,23; Jo 19,12-15). N o s relatos sin ó tico s da
paixão, este clam or é a prim eira indicação d e q u e Jesus tem d e ser crucifi-
cado; em 18,32, João preparou o cam inho. N o s três ev a n g elh o s sinóticos,
o clam or se g u e b em d e perto a escolh a entre Jesus e Barrabás.
Tomai-o vós mesmos e crucificai-o. A lgu n s com entaristas entendem Pilatos
com o a oferecer seriam ente aos sacerdotes um a alternativa. Schlier, "Jesus",
p. 68, p en sa q u e o controle d e Pilatos está tão debilitado que seu desejo é
deixar aos judeus o ato d e crucificar Jesus, m esm o q uando v ê em Jesus um
inocente. Por este prism a, a afirm ação ou d ev e ser um a exceção, ou um a
contradição direta da afirm ação em 18,31, de que o s judeus n ão têm poder
para m atar ninguém . Parece incrível que o redator joanino não teria visto
um a contradição tão espalhafatosa, e assim parece m ais provável pensar
q u e Pilatos n ão fala a sério. (A lém d o m ais, dificilm ente João podería sig-
nificar q u e Pilatos p ensava que os líderes judeus p u d essem efetuar um a
crucifixão, p o is esta form a d e punição não era aceitável entre o s judeus -
veja nota sobre 18,32). A afirm ação é sim plesm ente um a expressão da exas-
peração d e Pilatos; ele está rechaçando "os judeus" e se recusando a ter
algo a ver com o ato d e crucificar Jesus, d izen d o-lh es que fizessem o que
am bas as partes sabiam ser im p ossível. N otam o s que "os judeus" entende-
ram que ele não falava a sério, porquanto não correram a apoderar-se de
Jesus e a executá-lo eles m esm os. A ntes, continuaram a pressionar Pilatos a
ordenar a execução, porquanto essa era a única m aneira dela ser efetuada.
Não acho nele crime nenhum. Este é o terceiro e ú ltim o p ronunciam ento "sem
culpa" em João (18,38; 19,4). O terceiro p ronunciam ento correspondente
em Lucas (23,22) tam bém se g u e im ed iatam en te o brado por crucifixão.
7 . Segundo essa lei ele deve morrer. O r í g e n e s (In Jo. 2 8 , 2 5 [ 2 0 ] ; GCS 1 0 : 4 2 3 ) sa-

lienta q u e este raciocínio ilustra Jo 1 6 , 2 : "Está ch eg a n d o a hora quando


o h o m em q u e v o s m atar pensará estar servin d o a D eus". A lei evocada
é Lv 2 4 , 1 6 , a qual im p õ e a p en a d e m orte por blasfêm ia; cf. Jo 1 0 , 3 6 que

associa a p reten são d e ser Filho d e D eu s com a blasfêm ia. Sobre nossa
incerteza acerca d as norm as relacionadas com a blasfêm ia n o s dias de
Jesus, veja vol. 1 , p. 6 8 9 .
porque pretendia ser Filho de Deus. Literalm ente, "se fez"; veja 5,18; 8,53. Em
to d o s os três relatos sin óticos d o ju lgam en to perante o Sinédrio, form u-
lo u -se a pergunta se Jesus era o Filho d e D eu s (em M c 14,61 e M t 26,63,
este título está em ap osição a "M essias"), e em M a rco s/M a teu s a resposta
1318 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

de Jesus acarreta um a acusação de blasfêmia e um a sentença de morte.


Mesmo quando o Q uarto Evangelho não registre este julgam ento (veja,
porém , vol. 1, pp. 68990‫)־‬, o evangelista reflete a tradição cristã com um
de que a reivindicação de Jesus da relação com Deus foi o fator decisivo
na hostilidade das autoridades para com ele. Aqui, "Filho de Deus" é
sem artigo, um fator que leva D odd, Tradition, p. 114, a negar que João
tomasse diretam ente dos relatos sinóticos do julgam ento, pois nestes o
artigo aparece antes de "Filho". (Literalmente, Mc 14,61 tem "o Filho
do Bendito").
8. ficou ainda mais atemorizado. Até então não ficou registrado que Pilatos ti-
vesse medo, e alguns acham prova aqui de que um relato m ais longo
foi abreviado (nota sobre 18,40, "tom aram a clamar"). Na verdade, esta
teoria não é necessária; Bultmann, p. 5115, está perfeitam ente correto em
observar um a insinuação de m edo na hesitação já exibida por Pilatos.
Além do mais, aqui o com parativo pode ter a função de um conclusivo e
indicativo, e não que ele teve m uito medo. A raiz do tem or intensificado
de Pilatos não é clara (veja P. P. Flourney, BS 82 [1925], 314-20). Pode
ser supersticioso; pois para um a m ente helenista "Filho de Deus" seria
traduzido em term os de um theos anêr, um hom em divino com poderes
mágicos de origem oculta (D odd, Tradition, pp. 113-14; Bultmann, p. 512'
- há na reação da esposa de Pilatos, em Mt 27,19, um a nota de supersti-
ção). O u a raiz do m edo pode ser política, se entenderm os "os judeus"
acusando-o de algo que poderia reportar-se a Roma, a saber, que ele es-
tava violando o costum e estabelecido no qual os adm inistradores pro-
vinciais rom anos respeitavam as práticas religiosas locais. A inda outra
possibilidade é que, tendo agora com preendido que "os judeus" estavam
determ inados a m atar Jesus por um a razão religiosa, e sabendo que nun-
ca abalaria a fanática determ inação deles, Pilatos foi tom ado pelo m edo
de não bem sucedido em seu plano de im pedir a soltura de Barrabás,
aplicando a Jesus a anistia.
9. Voltando ao pretório. No v. 4, Pilatos trouxera Jesus fora, m as ali não houve
menção de enviar Jesus de volta para dentro. Presum ivelm ente, deve-
mos pensar que ele assim se deparou com a frenética gritaria.
"De onde vieste?" É bem provável que o evangelista interpretasse esta per-
gunta à luz da reivindicação de Jesus de ser Filho de Deus; e assim seria
equivalente perguntar se Jesus vem do céu ou é hum ano. O silêncio de
Jesus seria então inteligível: se Nicodemos e os judeus não p uderam en-
tender como ele viera de cima, dificilmente se esperaria que um rom ano
entendesse. Todavia, em um estágio m ais antigo da tradição (ou em outro
nível da narrativa), a questão poderia ter representado a busca d e Pilatos
64 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 4 7 ‫)־‬ 1319

por um a saída jurídica. Em Lc 23,6, encontram os Pilatos indagando se


Jesus era galileu e usando esta informação para enviar Jesus a Herodes
sob cuja jurisdição Jesus estaria. Há em Josefo, War, 6.3; 305, um interes-
sante paralelo com este episódio, na interrogação ao profeta Jesus, filho
de Ananias, feita pelo procurador rom ano Albinus. Porque o profeta es-
tivera proclam ando a destruição de Jerusalém e do templo, o procurador
o trouxe e lhe perguntou quem ele era e de onde veio.
Mas Jesus não lhe deu resposta. Encontramos um a referência similar ao silên-
cio de Jesus em Mc 15,5 e Mt 27,14, porém não em Lucas. (O silêncio de
Jesus é m encionado tam bém pelos sinóticos nas interrogações perante
o Sinédrio [Mc 14,61; Mt 26,63[ e perante H erodes [Lc 23,9]). Em João, o
silêncio é m omentâneo, pois em 11 Jesus falará outra vez; nos três sinóti-
cos, Jesus perm anece calado durante todo o julgam ento, exceto para uma
resposta à pergunta de Pilatos sobre ser ele rei. O tema do silêncio ecoa o
tem a do Servo Sofredor em Is 53,7: "assim como um a ovelha, m uda pe-
rante seus tosquiadores, ele não abriu sua boca". Este tema é elaborado
em relação à m orte de Jesus em lP d 2,22-23.
10. poder. O u "autoridade"; veja nota sobre 1,12
11 .d o alto. Anõthen; veja nota sobre 3,3. Obviamente, isto não significa do
Im perador Tibério, e sim de Deus; cf. 3,27: "N inguém pode receber algo,
a m enos que do céu lhe seja dado". (At 4,2728‫ ־‬fala de Pôncio Pilatos
como um instrum ento de Deus). Q ualquer poder sobre Jesus tem de vir
de Deus, pois som ente o Pai é m aior que Jesus (14,28). A lógica deste ver-
sículo é difícil (cf. R. T hibaut, NRT 54 [1927], 20811‫)־‬. Alguns têm ainda
argum entado que as últim as duas linhas só fazem sentido se aqui Jesus
estiver dizendo que a Pilatos foi dado poder sobre ele por meio de "os
judeus" que o entregaram nas m ãos de Pilatos (18,35). Veja referências
em Bultmann, p. 5131.
aquele que me entregou a ti. O u "me traiu"; o tem po presente, em vez do aoris-
to, aparece em m uitos mss., um a variação que ocorre em outras passagens
joaninas onde esta expressão descreve Judas (notas sobre 6,64.71; 18,2).
Entretanto, aqui não há referência a Judas, mesmo quando ele entregasse
Jesus aos soldados romanos. João atribui à nação judaica e aos principais
sacerdotes, ou a "os judeus", a entrega de Jesus a Pilatos (18,3536‫)־‬. Não é
certo se o singular "aquele" deva ser tomado como um a referência a Caifás
(como representante de "os judeus") ou como um a referência geral a "os
judeus" (Bultmann, p. 5132). Von C ampenhausen, col. 390, cita Lc 17,1 onde
"aquele através de quem vem o escândalo" é genérico.
tem maior culpa de pecado. Já m encionamos a lógica difícil: porque Pilatos
não tem poder sobre Jesus exceto aquele que vem de Deus, aquele que
1320 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

entregou Jesus tem maior culpa de pecado. A implicação parece ser que,
visto que a Pilatos foi dado por Deus um papel na paixão, ele está agin-
do contra Jesus inconsciente ou involuntariamente, m as aquele que en-
tregou Jesus está agindo deliberadamente. Bultmann, p. 511, interpreta o
versículo em termos do Estado e do Mundo: o Estado pode brincar com
seu poder, porém age assim sem o ódio pessoal para com a verdade que
caracteriza o Mundo. Ao m atar Jesus, o Estado (Pilatos) está servindo ao
M undo ("os judeus", e culpa mais grave repousa sobre o M undo. Com um
propósito similar, Schlier, "Jesus", p. 71, escreve: "Q uando o poder político
age contra a verdade, ele é sempre menos culpado do que as forças intelec-
tuais e espirituais do m undo". Tais interpretações, contudo, realmente são
aplicações teológicas da ideia de João, e não um a exegese literal.
12. Depois disto. Literalmente, "desde isto". O significado parece ser tem po-
ral, m as pode ser causai ("por esta razão"). Pilatos é im plicitam ente re-
tratado como tendo saído fora outra vez, pois fala a "os judeus".
Pilatos procurava soltá-lo. O u "se esforçava"; o conativo im perfeito impli-
ca um a série de tentativas as quais "os judeus" vociferavam. H á em
Lc 23,20 um paralelo (ocorrendo após o episódio de Barrabás, m as an-
tes de "Crucifica, crucifica-o!"): "... desejando soltá-lo". Note tam bém
At 3,13: "... Jesus, o qual entregastes e negastes na presença de Pilatos,
quando ele decidira soltá-lo".
gritaram. Alguns mss. têm o imperfeito: "continuaram gritando".
este. O uso desprezível de houtos como em 18,30.
"amigo de César". Seria este um título que fora concedido a Pilatos ou sim-
plesmente um a expressão geral significando "leal ao Im perador"? Em em-
prego romano tardio, "amigo de César" era um título honorífico em reco-
nhecimento de serviço, mas Bernard, II, 621, diz que o título oficial não se
encontra antes do tempo de Vespasiano (69-79 d.C.). Outros argum ento
em prol de um uso mais antigo e pensam que aqui a referência é ao título
(assim BAG, p. 3%; D eissmann, LFAE, p. 378). E. Bammel, TL77 (1952), 205-10,
tem dispostos os argum entos em prol do último ponto de vista, e são im-
pressionantes. Nos tempos helenistas, os "amigos do rei" constituíam um
grupo especial honrado pelo rei pela lealdade e am iúde ele os investia com
autoridade (lM c 2,18; 3,38; 10,65; 3Mc 6,23; Josefo, Ant. 12,7.3; 298). No
amanhecer do Império, os "amigos de Augusto" form avam um a socie-
dade bem conhecida. As moedas de Herodes Agripa I (37-44 d.C.) mui-
tas vezes portavam a inscrição Philokaisar, "amigo de César", um a desig-
nação que também Filo (In Flaccum 6 ; 40) lhe dá. Sherwin-W hite, Roman
Society, p. 471, sustenta que durante o Principado ou antigos tem pos im-
periais o termo "amigo" é frequentemente usado pelo representante
64 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 4 7 ‫)־‬ 1321

oficial do Im perador, e ele com para o uso que João faz do termo ao uso
de F ilo. Assim, a objeção de que o título não foi usado no tem po de Pi-
latos é, ao contrário, fraca. Q uanto à probabilidade de que o título teria
sido outorgado a Pilatos, ele era da ordem equestre e, portanto, elegível
para tal honra. Além do mais, o todo-poderoso Aelius Sejanus parece ter
seu patrono em Roma; e T acitus (Annals 6 .8) diz: "Quem quer que fosse
associado a Sejanus tinha a pretensão de ter a amizade de César",
qualquer que. O "porque" introdutório que se encontra em algum as teste-
m unhas da tradição ocidental dá expressão à lógica implícita da sentença.
ser rei. N o Oriente, às vezes o Im perador era tido como rei. Júlio (Gaius
Julius Caeser) e o nom e adotado de A ugusto (sobrinho-neto por meio
do casam ento de Júlio) e dos sucessores de Augusto. Q uando "Caesar"
m uda de conotação de um nom e próprio para um título equivalente a
"Im perador"? Não pode haver dúvida de que a m udança ocorreu no
tem po de Vespasiano e dos im peradores flavianos que não tinham re-
lação fam iliar com Júlio, m as provavelm ente veio bem antes. Por exem-
pio, enquanto por adoção Tibério e Caligula eram descendentes legais de
A ugusto, e podiam reivindicar o título César, Cláudio não foi adotado
assim, e então em seu caso "Caesar" era mais um elem ento na titularida-
de do que um nom e familial. E deveras um uso ambivalente de "Caesar"
pode m uito bem retroceder ao tem po de Augusto. A cunhagem do pro-
curador (ou prefeito) da Judeia sob A ugusto já portava somente o nome
kaisaros e um a data - possivelm ente um reflexo de um a atitude em que
"Caesar" era considerado como o título de governador.
13. ouviu. Aqui o verbo akouein é seguido do genitivo (nota sobre "ouvir" em
18,38), um a construção que implica a com preensão de Pilatos e aceitar a
pressão das considerações de "os judeus". Em 19,8, akouein foi seguido
do acusativo: ele os ouviu, mas ainda estava disposto a fazer-lhes oposi-
ção. Agora, porém , sua oposição foi rom pida.
assentou-se. O verbo grego kathizein algum as vezes é transitivo (fez as-
sentar-se) e algum as intransitivo; e tem havido um vigoroso debate se
João tem em m ente que Pilatos fez Jesus assentar-se no banco ou que
Pilatos assentou-se. Estudiosos como V on H arnack, L oisy, M acgregor
e B onsirven têm argum entado em prol da tradução transitiva, um a po-
sição ora eloquentem ente defendida por I. de la P otterie, art. cit. Há
algum suporte antigo para a tradução transitiva no Evangelho de Pedro,
7, e em J ustino, Apologia 1,35.6, onde os judeus (note: não Pilatos) fazem
Jesus assentar na cadeira dos réus e escarnecem dele. Mas o argum ento
m ais forte p ara esta tradução procede de sua adequação na estrutura
da teologia joanina. Para João, Jesus é o verdadeiro juiz dos hom ens,
1322 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

pois ao condená-lo estão julgando a si m esm os; portanto, é justo que


ele esteja na tribuna do juiz.
N ão obstante, há dificuldades (veja J. Blinzler, M ü T Z 5 [19 5 4 ], especial-
m ente 175-82). Embora kathizein possa ser transitivo, esperaríam os que
ele fosse seguido de um objeto pronom inal se significasse "0 assentou".
(D e la P0TTER1E, pp. 2 2 3 -2 5 , se opõe a esta objeção, insistindo que o subs-
tantivo "Jesus", que vem entre os dois verbos "trouxe fora" e "assen-
tou-se", é o objeto de ambos). Mais im portante, o uso intransitivo de
kathizein com "banco do juiz, tribunal" é bem atestado. Por exemplo, a
mesma expressão que aparece em João (aoristo ativo de kathizein com
epi bêmatos) é usado na descrição que J osefo faz de Pilatos onde ele cia-
ram ente significa "ele assentou-se no tribunal" {War, 2 ,9 .3 ; 172). Final-
m ente, devem os perguntar-nos se João está continuando a apresentar
sua teologia em term os de um a narrativa histórica plausível. É m ais di-
fícil crer que o governador rom ano pusesse um prisioneiro na tribuna
do juiz - a seriedade da lei rom ana milita contra tal zombaria. E assim,
se a afirmação de João significa que Pilatos põe Jesus no banco d o juiz, o
evangelista abandonou seus esforços para apresentar-nos um a história
aceitável. Não podem os desconsiderar esta dificuldade tão facilmente
como faz M eeks, p. 75, que pensa que não há evidência de que o relato
joanino busca relacionar as ocorrências factuais como tais. Enquanto o
interesse prim ário de João indubitavelm ente está nas implicações teoló-
gicas da narrativa, tem as tido razão de crer que o evangelista respeitou
a tradição histórica que chegou até ele. Alguns buscaram escapar à di-
ficuldade neste versículo teorizando que o verbo kathizein visava a ter
um duplo significado: intransitivo no nível histórico, transitivo no nível
teológico. Entretanto, nos casos joaninos anteriores d e duplo significado
(vol. 1, p. 153), o fenômeno não tinha por base a am biguidade sintática,
nem é usual para o segundo significado ser o oposto do prim eiro.
na tribuna do juiz. D e la P otterie, que m antém a interpretação transitiva do
verbo, sugere que aqui o bêma sem artigo não é a tribuna do juiz, m as
outro assento na plataform a do m agistrado (todavia, veja a referência
de Josefo acima). Bêm a significa "plataform a", m as no contexto de um
julgam ento usualm ente ele se refere ao banco do juiz, como em M t 27,19.
O bêma ou sella curílis norm alm ente teria perm anecido no átrio da resi-
dência do procurador, elevado com degraus que levam a ele para que
o juiz pudesse visualizar os espectadores. O bêma do procurador Fio-
rus é assim descrito por Josefo, War, 2,1 4 .8 ; 301. N o relato de M ateus,
todo o julgam ento parece ter ocorrido com Pilatos assentado no banco do
juiz e Jesus em pé diante dele. Tal procedim ento teria sido norm al como
64 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 4-7) 1323

podem os ver dos relatos de julgamentos diante do governador Festus


(At 25,6.17) e Florus (Josefo, loc.cit.). Entretanto, não era absolutamente
necessário que o governador se assentasse no banco do juiz, enquanto
pronuncia a sentença, exceto no caso de sentenças capitais. Assim, o re-
lato de João não é necessariamente inexato, e M ateus poderia estar nos
dando um a generalização.
no lugar. Literalmente, "para [eis] o lugar". Caso se creia que esta frase
é um a sequência do verbo "levou fora", não há problema; no entanto,
de fato a frase segue o verbo sentar. J. O 'R ourke, CBQ 25 (1963), 124-26,
discute o problem a, salientando que num a série de dois verbos, quando
um a frase segue o segundo verbo, geralm ente deve ser construída com o
segundo verbo. É estranho que um a frase indicando m ovim ento seguisse
o verbo intransitivo "sentar", e alguns estudiosos evocam o uso de eis
aqui como um argum ento em prol da interpretação transitiva do verbo,
argum ento particularm ente persuasivo para D e la P otterie que crê que
em João eis sem pre tem o sentido de m ovim ento (uma convicção que, em
nossa opinião, requer traduções extraordinárias - veja nota sobre 1,18).
O problem a desaparece se reconhecermos que algum as vezes eis signi-
fica não m ais que en, "em, a" (BDF, §205). M eeks, p. 75, que também é
favorável à tese de D e la P otterie, caracteriza isto como o argum ento
m ais fraco em prol da tese, "já que kathizein é frequentem ente usado
abundantem ente com eis e o acusativo não só no grego helenista, mas
tam bém em poesia clássica".
"Pavimento de Pedra". B enoit, RB 59 (1952), 547, diz que lithostrotos é um
term o genérico aplicável a diferentes tipos de pavim entos de pedra, fi-
leiras de lajes simples e uniform es àquelas de mosaico fino. Uns pou-
cos estudiosos têm im aginado que aqui está implícito um pavim ento de
mosaico, em bora seja difícil visualizar um pavim ento artístico no átrio
de um palácio onde havia um grande movimento. J. A. Steele, ET 34
(1922-23), 562-63, argum enta que o bêma de um oficial rom ano às ve-
zes era fixado em um pavim ento transportável de tesselas ou cubos
coloridos intercalados em um desenho retratando os deuses. (E assim
ele vê a cena como um a confrontação entre Jesus e Júpiter!). Mais amiú-
de, estudiosos têm visualizado um pavim ento de pedras grandes. Por
exemplo, na LXX de 2Cr 7,3, lithostrotos descreve o pavim ento do tem-
pio de Salomão, um a construção m onum ental. Nos níveis inferiores da
fortaleza de Antônia, um dos dois candidatos para identificação como
o pretório (cf. nota sobre 18,28), tem-se escavado um átrio pavim enta-
do, cuja área central m ede cerca de 50 x 45 metros. Os blocos maciços
deste átrio m edem mais de um m etro quadrado e 30 cm de espessura.
1324 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

É bem provável que esse piso chegasse a ser famoso como "Pavimento de
Pedra". Não obstante, não estamos certos se o pavim ento escavado era
parte da fortaleza de Antônia nos dias de Jesus - K opp, HPG, pp. 37273‫־‬,
dá as razões arqueológicas para pensar que ele não fora posto ali até
cerca de 135 d.C.
Gabbatha. Isto não é o equivalente aram aico ("H ebraico" = aram aico; nota
sobre 5,2) de lithostrotos, e notam os que João dá os dois nom es sem
dizer que um é a tradução do outro. Tem-se sugerido m uitas interpre-
tações de Gabbatha, m as o m ais provável envolve derivações da raiz
gbh ou gb', "ser alto, projetar-se". Um a designação como "lugar ele-
vado, cume, protuberância" (significado dado a Gabbatha po r J osefo,
War, 5,2.1; 51) podería adequar-se a am bas as localizações sugeridas
pelo pretório. V incent tem dem onstrado que a fortaleza de A ntônia se
apoiava em um a elevação rochosa, e o palácio de H erodes ficava sobre
os altos da cidade superior. O term o pode tam bém referir-se à elevação
do bêma sobre um a plataform a recuada.
14. Dia da Preparação. Este é o sentido da palavra grega paraskeuê, em bora
a palavra semita a que provavelm ente ela representa (heb. ’ereb; aram .
’arubâ) tem um a conotação mais estrita de "vigília, dia anterior". O ter-
mo, que aparece em todos os evangelhos, estava associado na tradição
com o dia em que Jesus m orreu. Era aplicável à sexta-feira, dia anterior
ao sábado (Josefo, Ant. 16,6.2; 163), e esta é a m aneira como os sinóticos a
entenderam (Mc 15,42; Mt 27,62; Lc 23,54). Mas, para João, este é não só
dia anterior ao sábado, m as tam bém o dia anterior à Páscoa; e, em João,
"o Dia da Preparação para a Páscoa" reflete a expressão hebraica ‘ereb
pesah (StB, II, 834ss.). A teoria de T orrey (JBL 50 [1931], 227-41) de que
se deve entender a Páscoa como o período festivo de sete dias e que João
está falando de sexta-feira dentro da semana pascal tem sido refutada
por S. Z eitlin, JBL 51 (1932), 263-71.
meio-dia. Literalmente, "a hora sexta". Algumas testemunhas, inclusive o
Sinaiticus corretor, leem "à terceira hora" (as nove da manhã). A mmonius
(início do 3a século) tem esta redação; e S. Bartina, VD 36 (1958), 16-37, a
mantém com base em que, quando as letras eram usadas para números,
um antigo digam a original (= 3), pode ser que fosse confundido com o
sigma aberto ou episêmon (- 6). Embora tal confusão fosse possível (e, de
fato, tem-se apresentado outras explicações para a confusão), pensam os
ser mais provável que a redação "nove da m anhã" fosse um a harmoniza-
ção de copista com a afirmação de Mc 15,25, de que Jesus foi crucificado às
nove da manhã. Em tudo isto, presum im os que João estava com putando as
horas a partir do rom per da m anhã em vez de meia-noite (nota sobre 1,39),
64 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 4-7) 1325

de m odo que hora sexta era meio-dia, e não seis da manhã. Alguns têm
favorecido a últim a hipótese como um meio de conciliar a informação de
João com o horário de Marcos para a crucifixão. Mas Jesus dificilmente te-
ria sido levado a Pilatos ao rom per do dia (perto das seis da m anhã - nota
sobre 18,28), e tenha suportado um extenso julgamento, inclusive açoita-
m ento e escamecimento, e ainda ter recebido sua sentença às seis da ma-
nhã. (Para um a recente defesa de nossa compreensão da computação do
tem po feita por João, veja J. E. Bruns, NTS 13 [1966-67], 285-90).
Somente Marcos fixa a crucifixão às nove da m anhã. Visto a referência
de João ao meio-dia tem significação teológica (veja comentário), alguns
estudiosos têm rejeitado a ideia de que o julgam ento levou toda a m anhã
e têm aceitado o horário de Marcos como historicamente correto. Mas o
horário de M arcos significa um a m anhã incrivelmente tum ultuada, visto
que a (segunda) sessão do Sinédrio não é tida como tendo iniciada mais
ou m enos às seis da m anhã. Além do mais, os três evangelhos sinóticos
(Mc 15,33; M t 27,45; Lc 23,44) declaram que houve trevas sobre toda a
terra desde meio-dia até as três da tarde, um a afirmação que parecería
designar o período em que Jesus estava na cruz. (Teria Marcos incons-
cientem ente com binado duas fontes com as indicações contraditórias de
tempo?) A. M ahoney, CNQ 27 (1965), 292-99, tem tentado contornar a
dificuldade, explicando que a referência às seis da m anhã, em Marcos, se
aplica som ente ao lançar a sorte pelas roupas de Jesus que correu quando
Jesus foi despido para ser açoitado - obviam ente, um a hipótese que não
pode ser provada. Alguns têm pensado que Marcos estava com putando
períodos de três horas, de m odo que "à terceira hora" podería significar
o período que começa com a terceira hora, i.e., 9-12 da m anhã. E. L ipinski
(veja NTA 4 [1959-60], 54) observa que Mc 15,21 descreve Simão de Cire-
ne como vindo dos campos - um detalhe que favorecería meio-dia como
o tem po da crucifixão, pois todo o trabalho se interrom pia cerca de meio-
dia à véspera da Páscoa (exceto que, para Marcos, o dia já seja a própria
Páscoa).
O horário de meio-dia, no Dia da Preparação, era a hora de começar a ma-
tança dos cordeiros pascais. A antiga lei de Ex 12,6 exigia que o cordeiro
pascal fosse m antido vivo até ao dia 14 de Nisan e, então, fosse morto à
tarde (literalmente, "entre as duas tardes", frase às vezes interpretada
como significando entre o pôr do sol e o anoitecer). Nos dias de Jesus,
a m atança já não era feita em casa pelos chefes das famílias, e sim nos
recintos do tem plo pelas m ãos dos sacerdotes. Um grande núm ero de
cordeiros tinha de ser m orto para mais de 100.000 participantes da Pás-
coa em Jerusalém (cf. nota sobre 11,55), e assim a matança já não podia
1326 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

ser feita à noite, no sentido técnico de após o pôr do sol. Em term os ca-
suísticos, a "noite" era interpretada como sendo o início do meio-dia,
quando o sol começava a declinar, e assim os sacerdotes tinham toda
a tarde do dia 14 para a realização dessa tarefa. Veja Bonsirven, art. cit.,
para as citações rabínicas - ele salienta que a regra pela qual som ente o
pão asmo podia ser comido tam bém entrava em vigor ao meio-dia. A re-
ferência joanina parentética ao meio-dia provavelm ente esteja em pauta
para indicar o tem po para toda a ação descrita nos vs. 13-16, inclusive a
sentença de morte.
“Vede, eis aqui 0 vosso rei!" Isto traduz ide; veja nota sobre "Eis o hom em " no
v. 5. Alguns relacionariam esta proclamação zom beteira com a interpre-
tação transitiva do v. 13, de m odo que Pilatos, tendo feito Jesus sentar na
tribuna, aponta para ele entronizado como rei (embora dificilmente um
bêma seja um trono). N o entanto, a proclamação é perfeitam ente inteli-
gível sem esta interpretação; pois provavelm ente devam os pensar em
Jesus ainda usando a pseudo-insígnia da coroa de espinho e o m anto
de p ú rp u ra (v. 5) e, assim, apresentando um patético quadro de realeza.
Achamos im plausível a proposta de E. E. J ensen, JBL 60 (1941), 270-71, de
que o Pilatos joanino não está falando zom beteiram ente, m as tem reco-
nhecido como razoável a reivindicação de Jesus de ser rei em um sentido
espiritual e está buscando a aprovação judaica disto. Todavia, o evange-
lista pode ter visto no escárnio de Pilatos um a proclamação inconsciente
da verdade.
15. gritaram. Há um as poucas testemunhas textuais im portantes que trazem
"disseram", e é possível que esta redação menos dramática fosse original.
fora com ele! O "ele" não é expresso no grego. Um grito sem elhante, "Fora
com este hom em ", ocorre um a vez em Lc 23,18, no início do incidente de
Barrabás; veja também At 21,36.
Crucifica-o! A qui o "o" [ele] é expresso, diferente do v. 6 onde o grito
de crucifixão foi ecoado pela prim eira vez. Ao ter um segundo grito
por crucifixão, João concorda com M arcos e M ateus. Em bora Lc 23,23
afirm e que gritaram po r crucifixão um a segu nda vez, ele não fornece
as palavras do grito como fazem os outros evangelhos. A fraseologia
de João é a m esm a de Mc 15,14, enquanto M t 27,23 tem "que seja
crucificado".
"Não temos outro rei senão César". J. W. Doeve, V o x Theologica 32 (1961), 69-83,
argum enta que este grito pode m uito bem adequar-se com a atitude de
alguns judeus que estavam saturados de m ovim entos nacionalistas e
sublevações, e preferiam o dom ínio rom ano às lutas constantes dos tem-
pos hasm oneanos em que os judeus tinham um rei.
64 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 4-7) 1327

16a. entregou Jesus. Os quatro evangelhos usam este verbo para descrever a
ação final de Pilatos. O verbo visa a ter o valor judicial de um a conde-
nação, e isto se tom a mais claro nos evangelhos tardios. Por exemplo,
ambos, M ateus e João, têm Pilatos no banco do juiz quando faz isto, e
Lc 23,24 especifica que Pilatos pronunciou sentença (epikrimein). A forma
usual da sentença de m orte era: Ibis in crucem (Tu irás para a cruz - Pe-
tronius Saturae 137); a descrição indireta na literatura latina usualm ente
é: Iussit duci (Ele lhe ordenou que seguisse em frente - S herwin-W hite,
Roman Society, p. 27). De acordo com um a resolução prom ulgada em
21 d.C. tinha de haver um intervalo de dez dias entre um a sentença de
m orte pelo Senado e sua execução (T acitus, Annals 3,51; Suetônio, Tibe-
rius 75), m as isto não afetava um tribunal do governador onde a execu-
ção im ediata era frequente.
lhes. O últim o antecedente é "os principais sacerdotes". Mc 15,15-20 e
M t 27,26-31 têm Jesus sendo entregue aos soldados rom anos que o fia-
gelam e o escarnecem antes da crucifixão, mas nem João nem Lucas
contêm um a cena neste momento. Lc 23,25 registra que Pilatos "entre-
gou Jesus à vontade deles", com o últim o antecedente sendo "os prin-
cipais sacerdotes, os líderes e o povo" (v. 13). Em seguida, ambos os
evangelhos falam dos soldados rom anos que tomam parte na crucifixão
(Lc 23,36; Jo 19,23); não obstante, eles dão a im pressão inicial que Je-
sus foi entregue às autoridades judaicas para ser crucificado. Isto pode-
ria ser um descuido ou escrito displicente, porém mais provavelmente
reflita a tendência tardia de desculpar os rom anos e culpar os judeus
(pp. 1211-15 acima). Em At 2,36; 3,15; 10,39 encontram os o tema de que os
judeus crucificaram Jesus; e ele tem sequência em J ustino, Apologia 1,35.6;
PG 6:384B. Somos inform ados por T ertuliano, Apologia 21.18; CSEL 69:57,
que os judeus extorquiram de Pilatos um a sentença entregando Jesus ‫ ״‬a
eles para ser crucificado".
ser crucificado. Os evangelhos usam esse term o quando descrevem Pilatos
não só declarando Jesus culpado, m as tam bém como fixando sua pu-
nição exata. Nos julgam entos rom anos, em que prevalecia o ordo legal,
havia penalidades fixas para crim es específicos; m as nas províncias os
julgam entos eram extra ordinem, e a penalidade ficava reservada ao go-
vernador. L ietzmann discute que, se Pilatos aceitara a acusação religio-
sa judaica contra Jesus, ele o teria sentenciado para a execução na forma
judaica - por apedrejam ento. Todavia, S herwin-W hite, Roman Society,
p. 35, sustenta que, do que sabem os do procedim ento cognitio romano,
teria sido m ais incom um para o governador rom ano assinar um a puni-
ção não rom ana.
1328 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

COMENTÁRIO

C o m o tem o s in sistid o (p. 1294), os sete ep isó d io s d o ju lg a m e n to p e ra n -


te Pilatos fo rm am u m a c o m p acta u n id a d e d ram á tic a - n o ssa d iv isã o d a
cena em d u a s p a rte s rea lm e n te tem sid o u m a q u e stã o d e co n v en iên -
cia, p a ra n ão term o s tam b é m u m a longa seção so b re a q u a l co m en tar.
N ão o b stan te, a to n a lid a d e m u d a n o s ep isó d io s 4-7. A acu sação polí-
tica co n tra Jesus se d esv an ece ra p id a m e n te e p a ssa a s e g u n d o p lan o .
A g ora P ilatos sabe q u e Jesus n ã o é u m rev o lu c io n á rio p e rig o so , e "o s
ju d e u s " já n ã o te n ta m p e rsu a d i-lo se ria m e n te ao co n trário . E m 19,7,
confessam q u e a v e rd a d e ira acu sação c o n tra Jesus é d e c a rá te r religio-
so. D esistin d o d e c o n q u ista r P ilatos p a ra se u lad o , rec o rre m a u m tip o
d e ch an tag em q u e o force a a g ir co n tra se u ju lg a m e n to m ais a p u ra d o .
Pilatos d ev e tra ta r "os ju d e u s " n ão com o q u e re la n te s h u m ild e s e m u m
caso em q u e ele fica livre p a ra d ecid ir, m as com o a d v e rsá rio s q u e têm
o p o d e r d e d estru í-lo. Ele ten ta e stratég ia e m ais e stra té g ia p a ra d e rro -
tá-los, m as n o fim ele é v e n cid o e tem d e e n tre g ar-lh e s Jesus.

Quarto Episódio: Os soldados romanos açoitam e escarnecem de Jesus (19,1-3)

O s ev an g elh o s e stão em d iv erg ên cia so b re o c en ário e m q u e fo m e-


cem o(s) incidente(s). D e aco rd o com M arcos e M ateu s, h o u v e açoites
e escarn ecim en to d e Jesus n o final d o ju lg a m e n to : P ilato s e n tre g o u
Jesus p a ra ser aço itad o e crucificado, e os so ld a d o s ro m a n o s o leva-
ram p a ra o p re tó rio a fim d e escarnecê-lo. A se n te n ç a q u e Jesu s fosse
aço itad o (Mc 15,15) v em d a fonte m a rc a n a A o u o rela to p rim itiv o
d a p aix ão (p. 1207 acim a), e n q u a n to a d escrição d o e sca rn e cim e n to
(15,16-20) v em d a fonte m arc an a B. São d o is in cid e n te s e n v o lv id o s?
B ultm ann , HST, p. 272, co n sid e ra o e sca rn e cim e n to co m o u m a ela-
b o ração se cu n d á ria d a flagelação. T a ylo r , p. 584, rejeita isto co m o ca-
recen d o d e p ro v a s e afirm a q u e são d e scrita s d u a s ações d iferen tes.
O ú ltim o p o n to d e vista o b tém a lg u m s u p o rte em Lucas. De a c o rd o
com Lc 23,11, o escarn ecim en to d e Jesus o c o rre u n o p e rc u rso d o jul-
g a m e n to ro m a n o , m as foi o b ra d e H e ro d e s e seu s so ld a d o s. A p ó s Je-
su s re to rn a r d e H e ro d e s, P ilatos d isse d u a s v ezes (16,22) q u e aço itaria
Jesus e o lib eraria, m as n u n c a so m o s in fo rm a d o s q u e isto aco n teceu .
(Em L ucas, a ú n ica ação feita c o n tra Jesus p e lo s so ld a d o s ro m a n o s foi
escarn ecim en to d irig id o a ele q u a n d o já p e n d u ra d o n a c ru z [36-37]).
64 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 4-7) 1329

C o m o M arco s e M a te u s, João re g istra a m b o s os a ç o itam e n to s e u m es-


c a m e c im e n to feitos p e lo s so ld a d o s ro m a n o s; co m o L ucas, João coloca
o e p is ó d io n o c e n tro d o ju lg a m e n to .

G R Á F IC O C O M PA R A T IV O D O E SC A R N EC IM EN TO
D IR IG ID O PELOS SO LD A D O S A JESUS

Mateus 27,27-31 Marcos 15,16-20 Lucas 23,11 )030 19,1-3


1. Soldados Soldados rom anos; H erod es e seus Soldados romanos;
rom anos; toda a escolta soldados veja 18,3
toda a escolta
2. no pretório dentro do pátio na residência de presum ivelm ente,
[ou palácio], i.e., o H erodes dentro do pretório
pretório
3. tendo tecido fixaram -lhe um a tendo tecido uma
um a coroa coroa de espinhos coroa de espinhos,
d e espinhos, que tinham tecido puseram -na sobre
p useram ‫־‬na em sua cabeça
sua cabeça (coroa de espinho: 11)
4. puseram um a
cana em sua m ão
direita
5. tiraram suas
roupas
6. vestiram -no vestiram -no com vestido com roupas envolveram -no
com u m m anto p ú rp u ra esplêndidas com um manto
escarlate
7. ajoelhando-se dobrando seus trataram -no rodeavam -no
diante dele, 0 joelhos, prestavam - com desdém e o continuam ente
escarnecem lhe hom enagem escarneceram
8. "Salve [vocativo] "Salve [vocativo] Veja 23,37 q uando "Salve
Rei dos Judeus" Rei dos Judeus" Jesus está na cruz [nominativo] Rei
dos Judeus"
9. cuspiram nele cuspiram nele
10. esbofeteando-o, batiam -lhe na esbofeteavam-no
tom aram a cana cabeça com um a
e lhe bateram cana
na cabeça
11. despiram-lhe despiram -no Jesus continuou
do m anto e da púrp u ra e usando a coroa de
vestiram-no com vestiram -no com espinhos e 0 m anto
suas roupas suas roupas de p ú rp u ra (19,5)
1330 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

O gráfico acim a n o s cap acita a e s tu d a r em d e ta lh e s o escarnecí-


m en to . O relato lu ca n o p a re c e ser in d e p e n d e n te d o s o u tro s, e a q u i
João n ã o tem n e n h u m a a fin id a d e p a rtic u la r com L ucas. E m b o ra n ã o
sejam os a p to s a in d icá-lo n o gráfico, a lg u n s d o s d e ta lh e s e m M a te u s
estão em o rd e m d istin ta d a q u e le s em M arcos (M ateu s p õ e to d a s as
ações n ã o v io le n ta s a n te s d a s v iolentas); p o ré m , a lém d o m ais, os d o is
relato s são b e m sim ilares. T eria João d e p e n d id o d e u m o u d e am b o s?
B use , "Marcan", p. 218, d e a c o rd o com su a tese d e q u e João e x tra iu d a
fonte m arc a n a B, v ê g ra n d e sim ila rid a d e e n tre João e M arcos. N ã o
o b stan te, se to m a rm o s [3] n o gráfico co m o u m ex em p lo , o v o c a b u lá -
rio d e João d ife re d o d e M arcos e é q u a se lite ra lm e n te o m e sm o q u e
o d e M a te u s (em b o ra M a te u s c o lo q u e o c o ro a r d e e sp in h o s d e p o is
d o v e stir d o m an to , e n q u a n to João o p reced e). João d ife re d e M arco s
em 7, 10 e 11; João é se m e lh an te a M arcos, p o ré m n ã o to ta lm e n te o
m esm o em 1, 2, 3, 6 e 8. E assim n ã o é fácil estab elecer u m a tese em
p ro l d a d e p e n d ê n c ia jo an in a d e M arco s o u a fo n te m a rc a n a P. B o rg en ,
p. 252, su g e re q u e a q u i João "co n siste q u a se só d e co m b in açõ es e con-
c o rd ân cias com M a te u s e M arco s", e q u e em João a o m issã o d e d e ta -
lhes reflete re e s tru tu ra ç ã o red acio n al. É v e rd a d e q u e d o s se te ep isó -
d io s n o ju lg a m e n to d e P ilatos, este se p e n d e m ais p a ra u m a teo ria d e
d e p e n d ê n c ia jo an ina. T o d av ia, exceto p e lo s d e ta lh e s 3 e 8, João m os-
tra d iv erg ê n cia su ficien te p a ra q u e se p o ssa a rg u m e n ta r com ig u al
p la u s ib ilid a d e em p ro l d e u m a tra d iç ã o jo an in a in d e p e n d e n te .
P ro sseg u in d o ag o ra com a d iscussão à p a rte d o s d etalh es, q u ã o
p lau sív eis são os in cid en tes d o aço itam en to e escarn ecim en to d e Jesus
pelos so ld ad o s? P rim eiro, co n sid erarem o s a q u estão d a m o tiv ação e
en tão a q u estão d a sequência. P ara M arcos e M ateus, a flagelação e o
escarnecim ento são p a rte d a p u n içã o d e crucifixão. P ara Lucas, o escar-
necim ento é u m a ex p ressão d o m en o sp re zo d e H ero d es. É João q u e m
suscita o p ro b lem a, p o is aq u i o aço itam en to e a escarn ecim en to p a re -
cem ser p a rte d o p lan o b en ev o len te d e Pilatos p a ra a so ltu ra d e Jesus!
A ntes e d ep o is d este ep isódio, P ilatos afirm a q u e Jesus é isen to d e cul-
pa; p o rta n to , d ev em o s p re ssu p o r q u e P ilatos p re te n d e re d u z ir Jesus a
u m a fig u ra e n sa n g u e n ta d a e d ep lo ráv el a fim d e ap la c a r "o s ju d e u s " e
p ersu ad i-lo s d e q u e Jesus está e m ex trem o d e sa m p a ra d o p a ra ser consi-
d e ra d o com o u m a am eaça. H a en c h en , "Historie", p . 71, su g e re q u e João
to m o u o q u e era o rig in alm en te u m a ação h ostil co n tra Jesus e o elabo-
ro u co n fu sam en te e m seu q u a d ro d e u m Pilatos q u e p e sso a lm e n te está
64 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 4-7) 1331

in te ressa d o em Jesus. N o en tan to , d e v e m o s reconhecer q u e em p arte


a a p resen tação q u e Lucas faz d a m otivação d e Pilatos é b e m próxim o
a João: P ilato s oferece Jesus p a ra ser m altra ta d o an tes d e soltá-lo (cf. o
m esm o tra ta m e n to d o s ap ó sto lo s em A t 5,40). De fato, S herw in -W hite,
Roman Society, p. 27, salienta q u e o q u a d ro lu can o p o d e ser perfeita-
m e n te co rreto , v isto q u e espancamento (com o d istin to d o açoitam ento
m ais sério m en c io n ad o p o r João - veja n o ta sobre 19,1) e m si m esm o era
u s a d o co m o p u n ição ; ele cita u m exem plo d e C allistratu s o n d e os que
in stig av a m o p o p u la c h o fo ram e sp an cad o s e d esp ach ad o s. P ortanto,
esta in te rp re ta ç ã o benevolente, p o r m ais inv erossím el q u e pareça, não
é u m a criação original d o q u a rto evangelista, m as tin h a u m a circulação
m ais a m p la n o s círculos cristãos. Se h á alg u m a v e rd a d e n a teoria d e
B ajsic d e q u e P ilatos estava an sio so p o r v e r Jesus solto sim plesm ente
p a ra e v ita r a so ltu ra d e B arrabás, en tão se p o d e d a r o u tra interp retação
à violência física o u ao ultraje feito a Jesus: Pilatos estav a tom ando-o
co m o ex em p lo d a b ru ta lid a d e ro m a n a a fim d e irrita r o p o v o e levá-los
a p e d ir su a so ltu ra. M as isto p erm an ece n o cam p o d a m era especula-
ção, e h a v e ria q u e se p re ssu p o r q u e João o u su a trad ição pré-evangéli-
ca, c o n fu n d iu esp an c a m e n to com açoitam ento.
Se c re rm o s ser im p ro v á v e l a in te rp re ta ç ã o q u e João faz d a m oti-
v a ç ão d e P ilato s, com o v a m o s reso lv e r o p ro b le m a d a seq u ên cia em
q u e o a ç o ita m e n to e o esca rn e cim e n to o co rreram ? O aço itam e n to é
m ais b e m c o lo cad o com a seq u ên cia d a crucifixão co m o em M a rc o s/
M ateu s. A cru cifixão n ã o p re ju d ic a v a a p a rte v ital d o co rp o , e assim
a m o rte d a v ítim a se d a v a le n ta m e n te (d e sd e a sufocação, ab an d o n o ,
fad ig a, fom e, sede), às v ezes d e p o is d e m u ito s dias. P a ra a p re ssa r o
p ro ce sso - talv ez n o p re se n te caso, p o rq u e a P áscoa o u o sá b a d o se
a p ro x im a v a m - , o p risio n e iro c o stu m a v a ser se v e ra m e n te açoitado.
J osefo , War, 2,14.9; 306, cita u m e x e m p lo d e a ç o itam e n to an te s d a cru-
cifixão so b o p ro c u ra d o r F lorus.
O escarn ecim en to a p re se n ta u m p ro b lem a m ais grave. A lg u n s têm
d u p lic a d o a ev id ên cia m a rc a n a /m a te a n a , sa lien tan d o q u e h o u v e pres-
são p a ra q u e os p risio n eiro s fossem ex ecu tad o s e os co rp o s retirad o s
d a c ru z an te s d o p ô r d o sol, d e m o d o q u e d ificilm ente se teria perm i-
tido q u e os so ld a d o s g astassem tem p o se d iv e rtin d o com Jesus. B enoit
p e n sa q u e o escarn ecim en to é m ais típico d o s so ld a d o s d e H ero d es e
favorece a teo ria d e q u e, e n q u a n to se p rocessava o escarnecim ento em
m eio ao ju lg a m e n to (Lucas, João) n o átrio d e H ero d es (Lucas). Então
1332 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

teria h a v id o u m a ten d ên cia d e ju n ta r e c o n fu n d ir ações sim ilares q u e


lev aram M a rc o s/M a te u s a colocar eq u iv o c a d a m e n te o e scam ecim en to
n o final d o ju lg am en to e João, e q u iv o cad am en te, a colocar o aço itam en -
to n o m eio d o ju lg am ento. R eiterando, estam o s n a esfera d a conjetura.
A in d a o u tro s têm d esca rta d o o escam ecim en to d e Jesus p elo s
so ld ad o s co m o u m a d u p licata d o escam ecim en to d e Jesus p e ra n te as
a u to rid a d e s judaicas. W inter, Trial, p. 105, p e n sa q u e a in flu ên cia foi
vice-versa: o e scam ecim en to n o átrio o u palácio d o su m o sa cerd o te e ra
u m a trad ição secu n d ária. E n tretan to , em n o sso juízo, os d e ta lh e s d a s
d u a s cenas são co m p letam en te d iferen tes, e crem os q u e a tra d içã o p re-
serv o u d e sd e os tem p o s p rim itiv o s a h istó ria d e d o is d iferen tes escar-
n ecim entos d e Jesus. (N o tam o s q u e a m b o s os escarn ecim en to s estã o n a
fonte m arcan a B, d e m o d o q u e n ão p o d e m o s p ro p o r u m a d u p lic a ta re-
su ltan te d a co m b inação d e fontes). A g u a rd a d o tem p lo escarn eceu d e
Jesus an te s d e tu d o com o p rofeta; os s o ld a d o s (h ero d ian o s o u ro m an o s)
zo m b aram d ele com o rei. O paralelism o e n tre os d o is é in ten sificad o n o
Evangelho de Pedro, 7, o n d e os so ld a d o s dizem : "Julga com justiça, ó Rei
d e Israel" - co m p are M t 26,68: "P rofetiza-nos, ó M essias".
A o escarn ecer Jesus com o rei, tu d o in d ic a q u e os s o ld a d o s seg u is-
sem u m ritu a l estab elecid o , e a lg u m a s ações c o stu m e ira s e stã o e n v o i-
v id as. E n co n tram o s d e ta lh e s sim ila re s n o re g istro q u e F ilo faz d o es-
carn ecim en to q u e a p leb e lança c o n tra K arab as e m A le x a n d ria (nota
so b re "B arrab ás" e m 18,40): em estilo régio, u m h o m e m u s a v a e m su a
cabeça u m d ia d e m a d e p a p iro s e co m o cetro u m a can a d e ju n c o em
su a m ão; ele recebia h o m e n a g e m e n q u a n to a lg u n s o s a u d a v a m co m o
rei. F ilo salien ta q u e isto e ra u m a im itação d e p a n to m im a s fam iliares.
De m o d o se m elh an te, ao e scarn ecer d e Jesus, os so ld a d o s p ro v á v e l-
m en te e sta v a m im ita n d o p rática s q u e com fre q u ê n c ia e ra m v ista s n o
p alco d o s circos ro m a n o s (W inter , Trial, p. 103). M u ito s e stu d io so s
fazem a lu sã o ao jogo d e "sa lv e o rei" p ra tic a d o p o r so ld a d o s d u r a n te
a S a tu rn a lia R o m ana, e é in te re ssa n te q u e n o p a v im e n to d e p e d ra d a
fo rtaleza d e A n tô n ia (cf. n o ta so b re 19,13) h á d e se n h o s p e rtin e n te s a
este jogo feito p e lo s leg io n ário s ro m a n o s a q u a rte la d o s ali. N e n h u m
d esses p a ra lelo s é p e rfe ito , p o ré m in d ic a m q u e o e sc a m e c im e n to d es-
crito n o s e v a n g elh o s n ã o teria sid o e stra n h o .
Finalm ente, p o d e m o s volver-nos ao p a p e l p a rticu la r q u e o epi-
sódio exerce n o d esen v o lv im en to d o relato joan in o d o ju lg a m e n to
rom ano. E n carad o com o fracasso d e seu p rim eiro esforço e m co n seg u ir
64 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 4-7) 1333

a s o ltu ra d e Jesu s (T erceiro ep isó d io ), a g o ra P ilato s v o lta à ação. En-


q u a n to s u a s in ten çõ es são b o as, o sen so d e ju stiça d e P ilatos se tor-
n a m ais e m ais d e fo rm a d o . N o e p isó d io p re c e d e n te , ele fracasso u em
s o lta r Jesu s m esm o q u a n d o n ã o visse cu lp a n e n h u m a . A g o ra m a n d a
a ç o ita r o in o cen te Jesus. A fra q u e z a ex ib id a n a concessão d e P ilatos
s e rá rec o n h e c id a in stin tiv a m e n te p e lo s in im ig o s d e Jesus q u a n d o Pi-
lato s lh o tra z n o p ró x im o e p isó d io . Em u m n ív el teológico, o relato
a b re v ia d o d e João e a localização d o e scarn ecim en to fazem o tem a d a
rea lez a d e Jesu s m ais c e n tral d o q u e n o s rela to s sinóticos. N o tercei-
ro e p isó d io , P ilato s escarn ecera d o s p ro ce d im e n to s, fala n d o d e Jesus
co m o "o Rei d o s Ju d e u s" ; ag o ra, os so ld a d o s ro m a n o s re to m a m o es-
c a m e c im e n to . Jesu s já foi a c la m a d o rei; eles o co roarão. T alvez, ad m i-
tid a a in clin ação d e João p o r certo tip o d e iro n ia , o n d e os p ro ta g o n is-
tas falam a v e rd a d e ig n o ra d a p o r eles m esm o s, p o d e m o s v e r a q u i u m
sin al d e q u e o s g e n tio s fin a lm e n te c o n fessarão a rea lez a d e Jesus.

Quinto Episódio: Pilatos apresenta Jesus a seu povo; "os Judeus" bradam por
crucifixão (19,4-8)

B u ltm a n n , p . 5102, c o n sid e ra os vs. 1-7 com o u m e p isó d io contí-


n u o , e c e rta m e n te h á u m a e stre ita c o n tin u id a d e e n tre o escarnecim en-
to d e Jesu s e s u a a p re se n ta ç ã o a se u p o v o . E n tre tan to , crem o s q u e em
19,4 ("U m a v e z m ais, P ilato s sa iu fora e lhes d isse") o e v an g elista tem
em v ista co m e ç a r u m n o v o e p isó d io , d e m o d o q u e o início d o q u in to
e p isó d io é o m e sm o q u e o início d o terceiro e p isó d io (18,38b: "Pila-
tos sa iu o u tra v ez ao s ju d e u s e lhes falou"). D e m o d o sem e lh an te , as
p rim e ira s p a la v ra s d e P ilatos são as m esm as e m am b o s os episódios:
" N ã o a c h o n e n h u m m o tiv o [contra ele]". E ste p a ra lelism o está p e rd i-
d o , a m e n o s q u e 19,1-3 seja tra ta d o com o u m e p isó d io se p a ra d o - o
p o n to c e n tra l d o ju lg a m e n to (d ia g ram a p. 1294 acim a). Q u a n to a se o
q u in to e p is ó d io te rm in e n o v. 7 (B u ltm a n n ) o u n o v. 8 , n ã o tem o s cer-
teza. T o d a v ia, v isto q u e o terceiro e p isó d io te rm in a com o co m en tário
d o e v a n g e lista so b re B arrabás, o c o m e n tário d o e v an g elista so b re Pi-
lato s, n o v. 8, p o d e ter p re te n d id o co n clu ir o s e g u n d o ep isó d io . A lém
d o m ais, se o v. 9 co m eça o sexto e p isó d io , e n tã o as lin h a s iniciais d o s
e p isó d io s 2 e 6 (18,33; 19,9) são p aralelas.
O ú n ico asp ecto q u e este e p isódio p artilh a com o relato sinótico ge-
ral d o ju lg am en to ro m a n o é a gritaria p a ra q u e Jesus fosse crucificado.
1334 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

E n tre João e L ucas, c o n tu d o , h á u m a sim ila rid a d e ; p o is o in c id e n te


n o v. 4, o n d e P ilatos tra z Jesus fora a "os ju d e u s" e d iz q u e ele n ão
é cu lp ad o , lem b ra o in cid en te em Lc 23,13-16, o n d e, q u a n d o Jesus foi
trazid o d e v o lta d e H ero d es, Pilatos re ú n e os p rin c ip ais sace rd o te s e o
p o v o p a ra inform á-los d e q u e Jesus n ã o é cu lp ad o . A m b o s o s in cid en tes
seg u em im e d ia ta m e n te a p ó s Jesus ser rid ic u la riz a d o p elo s so ld ad o s.
Em João, o e p isó d io d e se n v o lv e o tem a d a rea lez a d e Jesus. Re-
c o n h ecid o p o r P ilatos co m o "o Rei d o s Ju d e u s" (terceiro ep isó d io ),
c o ro ad o e in v e stid o p e lo s so ld a d o s (q u a rto ep isó d io ), a g o ra Jesu s en-
fren ta o u tra cerim ô n ia n o ritu a l d e coroação: ele é tra z id o fora, reg ea-
m en te a d o rn a d o c om p ú r p u ra , é a p re s e n ta d o a se u p o v o co m a clam a-
ção. A os o lh o s d e João, a lo n g a e sp era d e Israel p o r se u rei m essiân ico
chega assim a u m c u m p rim e n to irônico.
O cen ário d ram á tic o d a a p re se n ta ç ã o d e Jesus a "o s ju d e u s " é tipi-
cam en te jo an in o , m as p o d e m o s p e rg u n ta r se o sen so criativ o d o e v a n -
gelista n ã o foi co n tro lad o p o r a lg u n s d e ta lh e s q u e e n c o n tro u e m su a
tradição. Se ele estivesse in v e n ta n d o com p le n a lib e rd a d e , e ste teria
sid o o m o m e n to p erfeito d e fazer P ilatos dizer: "Eis o Rei!" (com o n o
v. 14). Em vez disso, en co n tram o s o enigm ático "Eis o h o m em !" En-
q u a n to esta d esig n ação é passível d e ser e n te n d id a com o u m títu lo m es-
siânico (veja n o ta p a ra significados possíveis), é p o r d e m a is a m b íg u a
p a ra ser a óbvia escolha d e u m ev an g elista d o ta d o d e tão g ra n d e cria-
tivid ad e. É m ais p ro v áv e l q u e ele to m asse u m a ex p ressão d e d e sd é m
q u e e n tro u n a trad ição e a rein terp re to u com o u m títu lo d e exaltação.
T u d o o q u e P ilatos ten cio n av a com su a d e sig n ação d e Jesus, seu
e m p e n h o d e a p re se n tá -lo a "os ju d e u s " fracassa. Eles p e rc e b e ra m a
fraq u eza d e P ilatos n esta se g u n d a ten ta tiv a d e c h eg arem a u m aco rd o ,
e assim s a ú d a m se u rei com u m a e stra n h a aclam ação: "C rucifica-o!"
T alvez ao u s a r o v erb o "cla m a r", o ev an g elista deseja q u e n o s lem b re-
m os, à m an e ira d e c o n traste, q u e a p e n a s cinco d ia s a n te s o u tra m u i-
tid ão b rad o u : " H o sa n a L . B endito é o Rei d e Israel" (12,13). P o d e m o s
n o tar q u e n a teo ria d e B ajsic o b ra d o p e la crucifixão d e Jesu s n ã o é u m a
ex p ressão d o se n tim e n to p o p u la r c o n tra Jesus, e sim u m a rejeição d o
estratag em a d e Pilatos.
A irritada resposta d e Pilatos, "Tom ai-o v ós m esm os e crucificai-o"
(veja n o ta), lev a "o s ju d e u s " a co m e ç a re m u m a g u e rra psico ló g i-
ca co n tra ele. Se P ilato s n ã o ced esse ao d esejo e x p re sso d e le s, eles o
c a n sa ria m com u m tip o d e c h a n tag em : in sin u a ria m q u e su a c o n d u ta
64 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 4-7) 1335

n e ste caso o lev a ria ao d e sfa v o r d e R om a. O s e v a n g elh o s sinóticos


n u n c a ex p licam sa tisfa to ria m e n te p o r q u e P ilato s se re n d e u às im -
p o rtu n a ç õ e s d a m u ltid ã o e d o s sacerd o tes. M c 15,15 d iz q u e Pila-
to s d e seja v a sa tisfa z er a m u ltid ã o ; M t 27,24 d iz q u e P ilatos v iu q u e
n a d a lu cra v a e q u e e sta v a p a ra irro m p e r-se u m a sub lev ação ; Lc 23,23
sim p le s m e n te s u b lin h a a u rg ên c ia d a exigência p o r crucifixão. M as
e s ta s d escriçõ es d ificilm en te se h a rm o n iz a ria m com os rela to s d e Jo-
sefo so b re Pilatos: u m P ilato s q u e in te rro m p ia as su b lev açõ es e era

re n ite n te e m face d a s im p o siçõ es ju d aicas. O q u a d ro d e João d e u m


P ilato s p re o c u p a d o com o q u e se p o d e ria d iz e r em R om a tem u m a
b o a ch an ce d e ser histórico. S e g u n d o F ilo , Ad Gaium 38; 301-02, Pila-
to s era n a tu ra lm e n te inflexível e resistia o b stin a d a m e n te q u a n d o os
ju d e u s c la m a v a m c o n tra ele, até q u e m en cio n assem q u e o Im pera-
d o r T ib ério n ã o a p ro v a ria q u e ele v io lasse se u s co stu m es. "E ste era
o p o n to fin al q u e era p a rtic u la rm e n te certeiro, p o is ele tem ia que, se
a tu a lm e n te e n v ia sse m u m a e m b a ix ad a , tam b é m ex p o ria m o resto d e
s u a c o n d u ta d e g o v e rn a d o r" . (N ote, c o n tu d o , q u e a h isto ric id a d e d o
re g istro d e F ilo tem sid o q u e stio n a d a p o r P. L. M aier , H TR 62 [1969],
109-21). A lém d o m ais, n o ex ato m o m e n to em q u e Jesus e stav a d ia n te
d e P ilato s, é b e m p ro v á v e l q u e a p o sição d e g o v e rn a d o r fosse m ais
v u ln e rá v e l d o q u e co m o n u n c a a n te s em R om a. M u ito s teo riza m q u e
P ilato s d e v ia s u a d e sig n a ç ão n a P alestin a a A eliu s Sejanus; e foi no
a n o 31 q u e S ejan us p e rd e u seu fav o r p e ra n te T ibério. T alvez os tem o-
res q u e p re s s a g ia v a m a q u e d a d e S ejanus já e ra m se n tid o s p o r obser-
v a d o re s p o lític o s sen sív eis, e P ilatos tem ia q u e lo g o ele n ão m ais teria
p ro te to r n a corte. U m a s tu to p o lítico eclesiástico co m o C aifás estaria
b e m cien te d a v u ln e ra b ilid a d e d o p refe ito e se p r o p u n h a prová-lo.
(Esta su g e stã o é in certa, p o is n ã o sab em o s o a n o ex ato d a crucifixão
d e Jesus; ela o co rreu e n tre 27 e 33 d.C. Veja P. L. M aier, "Sejanus, Pilate,
and the Date of the Crucifixion", Church History 37 [1968], 3-13).
Em q u a lq u e r caso, é p re c isa m e n te so b re a q u e stã o d e P ilatos n ão
re sp e ita r os c o stu m e s locais q u e "os ju d e u s " d e sfe rem seu a ta q u e
ab erto . P ilato s d e sc o b riu q u e Jesus era in o ce n te e se recu sa a conti-
n u a r o ju lg a m e n to civil c o n tra ele, p o ré m tem ig n o ra d o o fato d e q u e
Jesu s, s e n d o o u n ã o rev o lu c io n á rio , tem v io la d o as leis religiosas ju-
d aicas. Sob esta a firm a ç ão está im p lícito q u e os a d m in istra d o re s ro-
m an o s, cara c te ristic a m e n te, re sp e ita v a m as p rá tic a s religiosas regio-
nais. Se esta tese fo r aceita, P ilato s se retira tem e ro so (veja n o ta sobre
1336 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

"m ais a te m o riz a d o " em 8). É irô n ico q u e o re p re s e n ta n te d a p o d e -


ro sa R om a a g o ra se v ê r e d u z id o a u m e sta d o d e a p re e n s ã o acerca
d e Jesus, sim ila r à q u e la q u e c a ra c te riz o u a lid e ran ç a d o S in é d rio e m
11,47-53. N o p e n sa m e n to d e João, n e n h u m líd er, se cu la r o u relig io so ,
p o d e esca p a r a o p o d e r d e Jesus. P ilato s te n to u ser n e u tro e m relação
à v e rd a d e , a v e rd a d e q u e lib erta os h o m e n s (8,32); e a g o ra ele se v ê
e scra v iz a d o p o r seu s p ró p rio s tem o res.
A s ú ltim as lin h as d e ste ep isó d io contêm , resp e c tiv a m e n te, im p li-
cação teológica e política p a ra a c o m p re en sã o d a n a rra tiv a . N o m ín im o ,
o m o tiv o real d e "os ju d e u s" em q u e re re m Jesus m o rto foi tra z id o à luz:
eles n ã o p o d e m to lerar ele "fazer-se" F ilho d e D eus. S herw in - W hite ,
Roman Society, p p . 46-47, acha ser p e rfe ita m e n te p o ssív el "n o c o stu m e
ro m a n o qu e, q u a n d o P ilatos rec u so u u m v ered icto a n te u m a acusa-
ção política, eles reco rreram a u m a acusação relig io sa a q u a l P ilatos
fin alm en te aceito u sob... p ressã o política". P ara João, esta acu sação só
é falsa n o se n tid o d e q u e Jesus n ão se fez F ilho d e D eu s - ele era o Filho
d e D eus. T em os a firm a d o n o ssa convicção (pp. 1216-21 acim a) d e q u e a
oposição ju d aica a Jesus era n ã o só política, m as tam b é m religiosa. João
sim p lesm en te d e u a esta oposição religiosa p o ste rio rm e n te u m a for-
m a d e ex p ressão m ais a p ro p ria d a p a ra o tem p o e su b stâ n c ia d a s lu ta s
acrim o n io sas e n tre a S inagoga e a Igreja. V im os q u e n o início d o m inis-
tério, em 1,35-51, à m e d id a q u e a fé d o s d iscíp u lo s crescia, eles fo ram
d a n d o títu lo s a Jesus (vol. 1, p p . 263); estes in clu íam F ilho d e D eu s, Rei
d e Israel e Filho d o H o m em . Já n o fim d e su a v id a, n u m crescendo d e in-
c re d u lid a d e , Jesus é ch am ad o , n o esp írito d e escárn io e in c re d u lid a d e ,
"o Rei d o s J u d e u s" (18,39), "o h o m em " (19,5) e "F ilho d e D e u s" (19,7).

Sexto episódio: Pilatos fala com Jesus sobre poder (19,9-11)

T em os salien tad o q u e este ep isó d io é m arc an te m e n te p a ra le lo ao


se g u n d o episódio. A m bos com eçam com o re to m o d e P ilatos a o p retó -
rio p a ra in terro g ar Jesus - sobre, resp ectiv am en te, acusações p olíticas e
reügiosas. São os ún ico s d o is ep isó d io s em q u e Jesus fala. E m c a d a u m , a
p rim eira p e rg u n ta d e P ilatos n ão co n seg u e q u a lq u e r resp o sta, e so m en -
te su a s e g u n d a e m ais excitante p e rg u n ta exige d e Jesus u m a explicação.
Em cad a caso, a explicação está n o solene estilo d id átic o e en fatiza q u e os
interesses d e Jesus se co n v erg em com o q u e é d e cim a, e n ão com o q u e é
d este m u n d o . Pilatos in terro g a em u m nível; Jesus re sp o n d e em o u tro -
64 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 4-7) 1337

u m a técnica m u ito parecid a à d a "in co m p reen são " (vol. 1, p. 153). Estes
são os d o is ep isó d io s n o ju lg am en to ro m an o em q u e a elaboração joanina
é a m ais ó bvia e p ro v av elm en te a m ais extensa. O sexto episódio só parti-
lh a com a trad ição sinótica o tem a d o silêncio d e Jesus (nota sobre v. 9), e
o b v iam en te este tem a significa m en o s p a ra João d o q u e p a ra os sinóti-
cos. B arrett , p. 451, observa: "A o p ro v o car a p róxim a p e rg u n ta , o silên-
cio d á seq u ên cia à conversação tão eficazm ente com o u m a resposta".
P re su m iv e lm e n te , o in te rro g a tó rio a q u e P ilato s sujeita Jesus
c o n s titu i o u tro d e s e s p e ra d o esforço p a ra e fe tu a r a so ltu ra d e Jesus,
m a s as in te n ç õ es d e Jesus são m en o s tra n sp a re n te s a q u i (nota so b re
"D e o n d e v ieste?"). T em -se a im p re ssã o d e q u e a ex asp eração d eix o u
o p re fe ito a g a rra n d o -se a p a lh a s, e q u e ele m esm o n ã o sab e com o p ro-
ced er. A g o ra ele e stá tra ta n d o com u m a acu sação relig io sa além d e
s u a c o m p re e n sã o . Iro n icam en te, o m e d o o leva a v o ciferar so b re seu
p o d e r, e é e v id e n te q u e P ilatos já p e rd e u a p aciên cia com o esp írito
n ã o c o o p e ra tiv ista d o h o m e m a q u e m está te n ta n d o p ro te g e r. (N ote a
d ra m á tic a c a ra cterização q u e João faz d e P ilatos). O s esforços p rév io s
d e P ilato s d e a c h a r u m m eio term o n a lu ta e n tre a v e rd a d e e o m u n d o
têm s id o fru s tra d o s p e la in tra n sig ê n cia d o m u n d o ; a g o ra ele se encon-
tra c o m a v e rd a d e , q u e tã o p o u c o e stá d isp o sta a se a co m o d ar. Ele está
fa la n d o co m u m Jesus q u e c o n siste n te m e n te tem re p e lid o p ro p o sta s
a in d a m ais sé ria s d e a m iz a d e o u a p ro v a ç ã o q u a n d o se e n co n trav a
co m falta d e fé (2,23-25; 3,2-3; 4,45-48).
O cern e d o ep isó d io é a afirm ação d e Jesus sobre o p o d e r o u au-
to rid ad e. Pilatos tem falado d e seu p o d e r físico sobre Jesus - ele p o d e
tirar a v id a d e Jesus. Este lhe fala em o u tro nível, o nível d a v e rd a d e e
d o "g e n u ín o " p o d e r. Q u e g en u ín o p o d e r d o alto Pilatos p o ssu i sobre
Jesus? A m aio ria d o s com entaristas in terp reta João à luz d e Rm 13,1,
o n d e P au lo insiste q u e os g o v ern an tes civis têm su a a u to rid a d e proce-
d e n te d e D eus. O s q u e p e n sam q u e Pilatos rep resen ta o E stado (p. 1298
acim a) v eem isto com o u m versículo-chave na in terp retação d a relação
en tre os p o d e re s legítim os d o E stado e as exigências d a v erd ad e. N ão
o b stan te, co n co rd am o s com V on C am penhausen , art. cit., d e q u e o Jesus
joan in o n ão está p relecio n an d o p a ra Pilatos sobre os direitos d o ofício
d o s p refeito s o u to rg a d o s p o r D eus, nem , a fortiori, sobre as relações de
Igreja e E stado. (A in terp retação d e João à luz d a ideia d e P aulo veio
m ais ta rd e d u ra n te o p e río d o d o n atista e foi d esen v o lv id a p o r A gosti-
n ho ). A o co n trário, d ev em o s e n te n d e r o d ito d e Jesus à lu z d e 10,17-18:
1338 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

n in g u ém p o d e tirar a v id a d e Jesus; som ente ele tem o p o d e r d e entre-


gá-la e retom á-la. E ntretanto, agora Jesus a d e n tro u v o lu n ta ria m e n te "a
h o ra" d e sig n ad a p o r seu Pai (12,27), q u a n d o en treg ará su a vida. P ortan-
to, no contexto d e "a h o ra", o Pai p erm itiu aos h o m en s o p o d e r sobre
a vida d e Jesus. E m bora Pilatos n ão o co m p reen d a, a razão d e ele ter o
p o d e r d e q u e se vangloria n ão é sim p lesm en te p o rq u e p o ssu i legioná-
rios à su a disposição. O p o d e r é seu p o rq u e D eus lhe d e sig n o u u m p a p e l
em "a h o ra". João declarou q u e C aifás p ô d e p ro fetizar q u e Jesus hav ia
d e m o rrer pela nação p o rq u e ele era o su m o sacerdote em "aq u ele a n o "
(11,51 - veja vol. 1, p p . 727-28); assim tam b ém P ilatos tem p o d e r sobre
Jesus p o rq u e ele é o p refeito da Judeia em "aquele ano".
P ilato s tem te n ta d o u s a r este p o d e r so b re Jesus p a ra libertá-lo. Ele
n ão será b e m su c ed id o , p o rq u e n ã o se con fio u to ta lm e n te à v e rd a d e
e em v ã o tem b u s c a d o a n e u tra lid a d e ; to d av ia , ele n ã o o d e ia in stin ti-
v a m e n te a v e rd a d e , e assim seu p e c a d o é m e n o r q u e o d e C aifás e "o s
ju d e u s " q u e q u e re m m a ta r Jesus. O in te resse rea l d o Jesus jo an in o n ã o
é ex p licar a cu lp a m e n o r d e P ilatos, e sim d e a c u sa r o s q u e re a lm e n te
são resp o n sáv eis. A cena d e M a te u s (27,24-25), o n d e P ilato s lav a as
m ão s d o sa n g u e d e Jesus co n té m m u ito d a m esm a im plicação.

Sétimo Episódio: Pilatos se rende à exigência judaica para a crucifixão de Jesus


(19,12-16a)

O e p isó d io final d e João só tem p a ra le lo s com os rela to s sin ó tico s


n o re ite ra d o cla m o r p o r crucifixão e n o re su lta d o p e lo q u a l Jesu s é
e n tre g u e p a ra a crucifixão. E m term o s gerais, o rela to q u e João faz d a
c o n d en ação é m ais d e ta lh a d o , m ais d ra m á tic o e m ais teológico. O ce-
n ário m eticu lo so d o e p isó d io n o "P a v im e n to d e P e d ra " , ao m eio-dia,
n ão só d á u m to q u e d ram á tic o , m as tam b é m é in d ic a tiv o d o in teresse
d o a u to r n o clím ax d o ju lg am en to . V isto q u e o n o m e d o lu g a r n ã o tem
sim b o lism o óbvio, é p o ssív el q u e seja histórico; o te m p o c o n stitu i u m
p ro b lem a m a io r (veja no ta). O ev a n g elista p o d e ser ta m b é m h isto ri-
cam en te a c u ra d o n a m o tiv aç ã o d a d a p a ra a d ecisão d e P ilato s, m as
seu rea l in teresse é teológico: c o n v e rteu a d ecisão em u m d ra m a d a
rejeição ju d aic a d a aliança d av íd ica.
Q u a n d o o e p isó d io se ab re, P ilato s ficou a tô n ito p e la acu sa ç ã o d e
Jesus d e q u e ele é c u lp a d o d e u s a r m al o p o d e r o u to rg a d o p o r D eus;
e assim ele ten ta o u tra v e z c o n seg u ir a so ltu ra d e Jesus. Isto im p ele
64 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 4-7) 1339

"os judeus" recorram de novo a chantagem política, lançando contra


ele, im plicitam ente, a ameaça de denunciá-lo a Roma. N o quinto episó-
dio vim os a reação terrificada de Pilatos à im plicação de que ele estava
exposto a culpa por não respeitar os costum es judaicos locais; agora
sua lealdade ao Imperador é fortem ente questionada. Se estão certos os
que sugerem que Pilatos detinha o privilegiado título de "amigo de Cé-
sar", então "os judeus" podem estar insinuando que seu título lhe será
tirado. Isto acarretaria severa punição, pois o Imperador era inclem ente
em tratar a deslealdade daqueles a quem ele favorecia. Seria compreen-
sível que Pilatos sentisse arriscada sua posição com o "amigo de César"
se, com o supram encionado, houvesse sinais da queda de seu patrono
Sejanus. (H aenchen, " H isto rie" , p. 74, descarta com convicção qualquer
com prom etim ento do evangelho com a bem -conhecida história sobre
as bases de que o evangelista certamente não esquadrinhou os detalhes
da política romana, e que este pano de fundo político não teria sido do
interesse dos leitores de João. M uito embora isso possa ser procedente,
aí perm anece a questão se a tradição histórica elaborada pelo evangelis-
ta reteve válidas as m em órias da situação política na Palestina em tom o
do ano 30 d.C, m esm o quando o evangelista não investigasse as im pli-
cações). Mas se não quiserm os depender excessivam ente do "amigo de
César" com o um título do qual Pilatos pudesse ser privado, a ameaça
de ser acusado de benevolência para com um rival do Imperador ain-
da tem verossim ilhança no reinado de Tibério. Aquele Imperador, re-
colhido em Capri durante a sua velhice, era hipersensível a crimes de
lesa majestade; e S uetônio, T ib e riu s 58, nos informa que ele reforçou a
lei contra eles com brutalidade. De acordo com Blinzler, T ria l, p. 213,
foi precisam ente de tal crime que Jesus deveria ser declarado culpado
- um a violação da le x Iu lia m a ie sta tis decretada por Augusto. Indepen-
dentem ente de João, tem os em At 17,7 uma indicação de que m esm o
em perigo menor os oficiais romanos reagiríam fortem ente a uma rei-
vindicação de realeza. Lemos ali que os judeus de Tessalônica arrasta-
ram alguns dos cristãos perante as autoridades da cidade, acusando-os
de agirem contra os decretos do Imperador, "dizendo que há outro rei,
Jesus"; e isto perturbava as autoridades.
Pilatos permanece convicto de que Jesus é inofensivo, mas "os ju-
deus" estão forçando sua mão. O prefeito que acabara de blasonar-se
diante de Jesus que tinha o poder de soltá-lo e o poder de crucificá-lo,
agora se vê privado do verdadeiro e livre exercício desse poder. Se uma
1340 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

acu sação d e lesa m aje sta d e fosse a rq u iv a d a em R om a c o n tra P ila to s


p o r h a v e r s o lta d o u m rei q u e é u m a p o te n c ia l am e a ç a a o Im p e ra d o r,
P ilato s seria e x a m in a d o e x a u stiv a m e n te e to d a s a s su a s d eficiên cias,
com o g o v e rn a d o r, v iría m à lu z. P o ssív el d e sg ra ç a é ta m b é m u m ele-
v a d o p reç o a p a g a r p e la defesa d a v e rd a d e . P ilato s se re n d e a o s "ju-
d e u s " e m o n ta o c en ário p a ra d e c la ra r a sen ten ça. A sse n ta d o n a ca-
d e ira d o ju iz, co m u m g e sto final d e d esafio e talv e z a té m e sm o com
u m a m ó rb id a esp era n ç a d e p o d e r o b te r clem ência, P ila to s exibe Jesu s
p a ra "o s ju d e u s " co m o se u rei. Q u a n d o p e rsiste m e m ex ig ir crucifi-
xão, P ilato s to m a su a v in g an ç a , h u m ilh a n d o o e sp írito n a c io n a lista
deles. Em se u p e d id o d e te r Jesus c o n d e n a d o , "o s ju d e u s " ex ib iram
u m to q u e d e le a ld a d e ao Im p e ra d o r - isso significa q u e re n u n c ia ra m
su a e sp eran ça n o rei e sp era d o ? N e n h u m p reç o é a lto d e m a is a p a g a r
n a lu ta d o m u n d o c o n tra a v e rd a d e : "o s ju d e u s " p ro n u n c ia m a s fatíd i-
cas p alav ras: " n ã o tem o s n e n h u m o u tro rei se n ão C é sa r". O v e rd a d e i-
ro ju lg a m e n to e stá c o n su m a d o , p o is n a p re se n ç a d e Jesu s "o s ju d e u s "
ju lg am a si m esm os; p ro n u n c ia m s u a p ró p ria sen ten ça.
Israel o rg u lh o sa m e n te co n fessav a q u e Ia h w e h e ra s e u rei (Jz 8,23;
IS m 8,7). D esd e o te m p o d a p ro m e ssa d e N a tã a D av i (2Sm 7,11-16),
d e aco rd o com a teologia d e Jeru salém , a rea lez a d e D e u s se fez vi-
sível n o g o v e rn o d o rei d a v íd ic o a q u e m Ele to m o u co m o s e u filho
(SI 2,7). N o s te m p o s pós-exüicos, u m a m ística se d e se n v o lv e u e m to r-
n o d o ú n ico rei u n g id o d a C asa d e D avi, o fu tu ro M essias, q u e h a v ia
d e v ir e estab elecer o g o v e rn o d e D eu s so b re a terra. S o m e n te a q u e le
e rg u id o p o r D eu s p o d e ria ser o v e rd a d e iro rei d o p o v o d e D e u s - n ã o
o p e rsa , n e m P to lo m e u , n e m sírio, n e m os s u se ra n o s ro m a n o s cujas
tro p a s m a rc h a v a m p ela terra. "Ó S en h o r D e u s n o sso , o u tro s se n h o re s
têm tid o d o m ín io so b re nós; p o ré m , p o r ti só, n o s le m b ra m o s d e te u
n o m e" (Is 26,13). A gora, p o ré m , ce n te n a s d e a n o s d e e sp e ra fo ra m
a b a n d o n ad o s: "o s ju d e u s " tin h a m p ro c la m a d o u m m eio lo u co ex ila d o
d e C a p ri co m o se n d o se u rei. P o r to d o o m in isté rio João d e sc re v e u
Jesus co m o a su b stitu ir as instituições judaicas, a s festas e o s costum es.
A gora, n a in te rru p ç ã o d a aliança pela q u a l D eus o u seu M essias era
o rei d e Israel, o m o v im en to d e su b stitu ição chega a u m clím ax, p o is
"os ju d eu s" ren u n c iara m seu sta tu s com o o p o v o d e D eus. A cena d e
João tem u m im p acto sim ilar à q u ele d e M t 27,25, o n d e to d o o p o v o diz:
"Seu sa n g u e caia so b re n ó s e so b re n o sso s filhos". O b v ia m e n te , aq u i
am b o s os e v a n g elh o s estã o refletin d o teo lo g ia a p o lo g ética, e não
64 · A narrativa da paixão: - Segunda seção (episódios 4-7) 1341

h istó ric a - eles e stã o to m a n d o o a u d itó rio d o ju lg a m e n to com o a v o z


d e u m a in te rp re ta ç ã o cristã d a h istó ria d a salv ação d o final d o I o sé-
culo. A tra g é d ia d a m o rte d e Jesus é co m p o sta co m o é v ista atra v és
d o v é u d a h o s tilid a d e e n tre a Igreja e a S inagoga d o s a n o s 80 e 90 (ver
vol. 1, p . 72). E a tra g é d ia será co m p o sta a in d a m ais a tra v é s d o s sécu-
lo s co m o a s a p re se n ta ç õ e s teológicas jo an in a s e m a te a n a s d a crucifi-
xão, tira d a s d e s u a s p e rsp e c tiv a s h istó ricas e a b so lu tiz a d a s, servirão,
re sp e c tiv a m e n te , d e acicate e d e escu sa p a ra o ó d io anti-judaico.
O te m p o e m q u e e sta re n ú n c ia fatal d o M essias o co rre é à v é sp era
d a P ásco a, a m esm a h o ra e m q u e o s sace rd o te s co m eçav am a m atan ça
d o s c o rd e iro s p a sca is n o s recin to s d o tem p lo . É u m to q u e irônico d o
escrito r jo a n in o ter "o s ju d e u s " re n u n c ia n d o a alian ça n o m o m en to
em q u e s e u s s a c e rd o te s estã o co m e ç a n d o as p re p a ra ç õ e s p a ra a festa
q u e a n u a lm e n te rec o rd a o liv ra m e n to q u e D eu s fez a seu p o v o . Pelo
s a n g u e d o c o rd e iro , ele os m arc av a p a ra q u e fossem p o u p a d o s com o
p e rte n c e n te s a Ele, e a g o ra n ã o co n h ecem n e n h u m rei sen ão o Im pe-
r a d o r ro m a n o . Q u a n d o citam a Haggadah d a P áscoa, q u ã o v azio soa-
rá o fre q u e n te lo u v o r ao so b e ra n o re in a d o d e D eus! P e n sa m n a Pás-
coa co m o u m te m p o tra d icio n a l p a ra o ju íz o d e D eu s so b re o m u n d o
(M ish n a h Rosh Hashanah 1 : 2 ) e n a v é sp e ra d a P áscoa eles têm ju lg a d o
a si m esm o s, c o n d e n a n d o a q u ele a q u e m D eu s e n v io u ao m u n d o , n ão
p a ra ju lg á-lo , e sim p a ra salv á-lo ( 3 , 1 7 - p a ra o u tra s referên cias possí-
v eis ao s tem a s d a P áscoa, n e sta cena, v e r M e e k s , p. 7 7 ) .
N o in ício d o e v a n g elh o , o B atista a p o n to u p a ra Jesus com o o C or-
d e iro d e D e u s q u e tira o p e c a d o d o m u n d o (1,29). À m an e ira d e in-
clu são , e sta p ro fecia ag o ra se c u m p re ; p o is n o m o m e n to em q u e os
c o rd e iro s p a sca is e stã o s e n d o m o rto s, o ju lg a m e n to d e Jesus tam b ém
ch e g a a o fim , e ele sai p a ra o G ó lg o ta a fim d e d e rra m a r o sa n g u e q u e
p u rific a rá d o p e c a d o d e seres h u m a n o s ( ljo 1,7). De fato, com o João
o vê, D e u s p la n e jo u "a h o ra " com to d o o c u id a d o .
1342 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

BIBLIOGRAFIA
(18,2 8 1 9 ,16‫־‬A)

Veja a Bibliografia geral sobre a N arrativ a d a Paixão no final d o §60.

BAJSIC, A., "Pilatus, Jesus und Barabbas", Bíblica 48 (1967), 7 2 8 ‫־‬.


BLANK, }., "Die Verhandlung vor Pilatus: Joh 18, 28-19, 16 im Lichte
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BONSIRVEN, J., "Hora Talmudica: La notion chronologique de Jean 19, 14,
Aurait-elle un sens symbolique?" Biblica 33 (1952), 511-15.
DE LA POTTERIE, I., "Jésus, roi et juge d'apres Jn 19, 13: ekathisen
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cols. 93-102. R eim presso em Gott und Mensch (Tübingen: M ohr, 1965),
pp. 144-576.
MOLLAT, D., "Jésus devant Pilate (Jean 18, 28-38)", BVC 39 (1961), 23-31.
SCHLIER, H ., "Jesus und Pilatus nach dem Johannesevangelium", in Die Zeit
der Kirche (Freiburg im Breisgau: H erder, 1956), pp. 56-74.
__________ "The State accordin to the New Testament", in The Relevance of
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SCHW ANK, B., "Pilatus begegnet dem Christus (18, 28-38a)", SeinSend 29
(1964), 100-12.
__________ "Der Dormengekrönte (18, 38b-19, 7)", SeinSend 29 (1964),
148-60.
__________ "Der königliche Richter (19, 8-16a)", SeinSend 29 (1964), 196-208.
VON CAM PENH AU SEN , H., "Zum Verständnis von Joh. 19, 11", TLZ 73
(1948), cols. 387-92.
65. A NARRATIVA DA PAIXÃO:
- TERCEIRA SEÇÃO (INTRODUÇÃO; EPISÓDIOS 14)
(1 9 ,1 6 b 3 0 ‫)־‬

A execução de Jesus na cruz

IN T R O D U Ç Ã O

19 16bgntg0 e !es assum iram a c u stó d ia d e Jesus; 17c a rre g a n d o ele m es-
m o a c ru z , sa iu p a ra o q u e é c h a m a d o "O L u g a r d a C a v e ira " (sen d o
seu n o m e em h eb raico , Golgotha). 18A li eles o cru cificaram ju n ta m e n te
co m o u tro s d o is - u m d e cad a la d o e Jesus n o m eio.

PR IM E IR O EPISÓ D IO

19O ra , P ilato s tam b é m h a v ia escrito u m letreiro e co lo cad o so b re a


cru z; ela c o n tin h a as p a la v ras:

JESUS O N A Z O R E A N O
O REI D O S JUDEUS

20E ste letreiro , q u e e sta v a e m h eb raico , latim e g reg o , e ra lid a p o r m ui-


to s ju d e u s , p o is o lu g a r o n d e Jesus foi c ru cificad o ficava b e m p ró x im o
à c id a d e .2021E e n tã o o s p rin c ip a is sace rd o te s d o s ju d e u s te n ta v a m d ize r
a P ilatos: " N ã o d eix es escrito: Ό Rei d o s Ju d e u s'; em v ez disso , escre-
ve: E ste h o m e m reiv in d ic o u ser " O Rei d o s Je su s'". 22P ilato s resp o n -
d e u : " O q u e escrevi, escrevi".
1344 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

SEGUNDO EPISÓDIO

23Assim que os soldados crucificaram Jesus, tomaram suas vestes e as


repartiram em quatro partes, uma para cada soldado. Havia também
sua túnica, mas esta túnica era tecida com uma só peça, de alto a bai-
xo, e não tinha costura. 24Então disseram uns aos outros: "Em vez de
rasgá-la, lancemos sorte para ver com quem ela fica". (O propósito
disto era para que a Escritura se cumprisse:

"Repartiram entre si minhas roupas,


e sobre minha vestidura lançaram sorte").
E isso é o que os soldados fizeram.

TERCEIRO EPISÓDIO

25Entrementes, em pé junto à cruz de Jesus estava sua mãe, a irmã de


sua mãe, Maria, esposa de Clopas, e Maria Madalena. 26Quando Jesus
viu sua mãe ali com o discípulo a quem ele amava, disse a sua mãe:
"Mulher, eis o teu filho". 27Em seguida, disse ao discípulo: "Eis a tua
mãe". E desde então, o discípulo a tomou sob seu cuidado.

QUARTO EPISÓDIO

28Depois disto, sabendo que tudo estava agora consumado, a fim de


conduzir a Escritura ao seu pleno cumprimento, Jesus disse: "Tenho
sede". 29Perto dali estava um jarro cheio de vinagre; então eles embe-
beram uma esponja deste vinho, em certo hissopo, e a ergueu até seus
lábios. 30Quando Jesus tomou o vinho, exclamou: "Está consumado";
e encurvando a cabeça, entregou o espírito.
26: disse; 27: disse; 28: disse. No tempo presente histórico.

NOTAS
19.26b. e le s a s s u m ir a m a c u s tó d ia d e J e su s . Em estrita sequência, o "eles", aqui
e no v. 18 ("eles o crucificaram"), se referiría ao últim o sujeito plural
65 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução; episódios 1-4) 1345

m encionado, a saber, os principais sacerdotes (v. 15). Não obstante, em


23 se torna claro que os soldados (romanos, sob a jurisdição de Pilatos:
vs. 31-32) foram os únicos que crucificaram Jesus. Para um a explicação,
veja a nota sobre "lhes" em 19,16a. Aqui, o aspecto abrupto do fraseado
levou algum copista à tentativa de m elhorar fazendo algum as adições: "e
lhe puseram a cruz"; "e o levaram " (a últim a é em imitação dos sinóticos,
particularm ente de Mt 27,31; Lc 23,26).
17. carregando ele mesmo a cruz. O pronom e heautõ usualm ente é entendi-
do como um dativo de proveito ("para si mesmo": BDF, §1882); mas D.
T abachovitz, Eranos 44 (1946), 301-5, argum enta que ele é um dativo
instrum ental, equivalente a di' heautou ("por ele mesmo"). O verbo é
bastazein-, presum ivelm ente, "a cruz" significa apenas a peça da cruz
ou viga transversal (patibulum), visto que a viga-mestra, com cerca de
três m etros de altura, usualm ente era deixada na posição como um per-
m anente aspecto no lugar da execução. Que o criminoso carregasse o
patibulum até o lugar da execução era plenam ente normal, e B ultmann,
p. 5174, nada vê de enfático ou simbólico em "por ele m esm o" (veja co-
mentário). Mc 15,21 e Mt 27,26 registram que os soldados compeliram
Simão a carregar (airein) a cruz; Lc 23,26 registra que a cruz foi posta
sobre Simão para que fosse levada (pherein) após Jesus. (Enquanto Lucas
podería ter sido um a tradição independente acerca de alguns dos inci-
dentes que ocorreram na via para o Calvário, V. T aylor, NTS 8 [1962],
333-34, considera esta descrição particular como sendo um a adaptação
de Marcos). A representação popular de Jesus carregando a parte dian-
teira da cruz e Simão carregando a parte traseira usa o vocabulário de
Lucas como um guia na combinação do quadro joanino e o de M arcos/
M ateus. O utra harm onização pressupõe que Jesus carregou a cruz en-
quanto tinha forças e então os soldados compeliram Simão a ajudá-lo.
Com entaristas do calibre de D odd e T aylor julgam a últim a solução uma
interpretação da evidência perfeitam ente razoável.
saiu. Que o lugar da crucifixão de Jesus de fato ficava fora da cidade é
afirm ado explicitamente no v. 20; está implícito nos prefixos adverbiais
dos verbos usados pelos quatro evangelhos, ao descreverem o proces-
so de levar Jesus ao Calvário (apagein, exagein, exerchesthai - veja tam-
bém M t 21,39; Hb 13,12). De acordo com os costum es israelitas, os ape-
drejam entos se davam fora do acam pam ento ou da cidade (Nm 15,35;
At 7,58) e, aparentem ente, este costum e era observado tam bém na cru-
cifixão. Certam ente, o lugar para os sepultam entos judaicos (Jo 19,41)
não teria sido na cidade. Marcos e Lucas m encionam que Simão estava
vindo do campo ou da zona rural quando se deparou com a procissão
1346 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

da cru cifixão; isto co n co rd a co m a in form ação n o v. 20 ab aixo d e que


o local d a execu ção ficava p erto d e onde a estrad a e n trav a na cid ad e.
J eremias, Golgotha, p. 3, p en sa que o local ficava tão p erto d a cid ad e, que
p odia ser visto pelas pessoas em p é sobre ós m u ro s da cid ad e.
A Igreja do Santo Sepulcro, contendo os locais tradicionalm ente vene-
rados como o lugar da crucifixão e o túm ulo, fica dentro dos m uros da
atual cidade. Isto tem levado alguns a rejeitar a identificação, porquanto
pensam que a linha nordeste dos m uros da atual cidade coincide estrita-
m ente com a linha dos m uros nos dias de Jesus (o segundo dos três m u-
ros da cidade, na enum eração que J osefo faz das defesas construída ao
longo da história de Jerusalém: War, 5,4.2; 142ss.). Outros teorizam que o
Segundo M uro ao Norte corria consideravelm ente para o sul dos atuais
m uros da cidade, de m odo que o Calvário podería ter ficado fora dos
muros, nos dias de Jesus, e, todavia, dentro dos m uros da atual cidade.
A última teoria é fortemente endossada pela recente escavação de Jeru-
salém feita por Miss K. K enyon (PEQ 96 [1964], 1416‫ ;־‬veja R. H . S mith,
BA 30 [1967], 74-90; E. W. H amrick, BASOR192 [1968], 21-25). A despeito
da evidência bíblica, M elito de Sardes, em sua homília da páscoa (72,94),
afirma que Jesus foi m orto no meio de Jerusalém, talvez porque, em seu
tem po (c. 170) o local tradicional do Calvário ficasse do lado de dentro
dos m uros de Aelia Capitolina, a cidade que A driano construiu acima de
Jerusalém (veja A. E. H arvey, JTS 17 [1966], 401-4).
0 que é chamado "O Lugar da Caveira" (sendo seu nome em hebraico Golgo-
tha). N ão há artigo definido antes de "Caveira", de m odo que se
pode traduzir "Lugar de um a Caveira", como faz NEB em Mt 27,33 e
Mc 15,22, porém não aqui. Há variantes textuais m enores, p. ex., Codex
Vaticanus e o Sahidic leem Golgoth. A palavra aram aica Gulgoltâ e a he-
braica Gulgõlet significam "caveira, crânio"; calvaria é o equivalente lati-
no. M arcos/M ateus falam de "um lugar cham ado Golgotha que significa
" Ό Lugar da Caveira'", dando aos term os aramaico e grego um a ordem
que é o inverso de João - note tam bém o duplo uso de "lugar". Lucas não
dá a forma aramaica do nome, porém fala de "o lugar que é cham ado
Ά Caveira‫"׳‬. J eremias, Golgotha, p. V, argum enta que o vocabulário de
João tam bém deve ser traduzido "ao lugar que é cham ado Ά C aveira"‫׳‬,
porquanto ele pensa que o genitivo funciona como apositivo (BDF, §167).
Isto é possível, e deveras é favorecido pela ordem da palavra em P66,
onde "lugar" precede "cham ado".
Usualmente, conjetura-se que o nom e provém da topologia do lugar, a
saber, que ele ficava em um a colina com um a tosca semelhança de cavei-
ra - talvez um a pedreira abandonada onde cavernas feitas pelo hom em
65 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução; episódios 1-4) 1347

eram usadas para sepultam ento. (Os árabes frequentem ente denom inam
um a colina de rãs, "cabeça", m esm o quando não haja qualquer seme-
lhança com um a caveira). Estritam ente, os evangelhos não mencionam
um a colina; m as os peregrinos do 4a século falavam de um monticulus ou
"pequeno outeiro" (o local venerado como o Golgotá na Igreja do Santo
Sepulcro fica cerca de dezesseis pés de altura). J eremias, Golgotha, p. 2,
argum enta que a topografia da área tem m udado tanto que se tom a di-
fícil form arm os algum juízo; porém adm ite que algum as vezes se usam
colinas, pois as execuções tinham o propósito de serem vistas. Outra ex-
plicação do nom e recorre à pia tradição atestada por O rígenes (In Matt.
27,33; GCS 38:265 e 41':226) de que Adão foi sepultado aqui. Um século
depois, o Pseudo-BASíuo menciona a caveira de Adão (In Isa. 5,1,14; PG
30:348C), e assim obtemos a imagem da cruz de Jesus tendo sido erigida
sobre a caveira de Adão. Embora alguns tenham argum entado ser possí-
vel que esta lenda seja pré-cristã, é m uito improvável que Pilatos tivesse
crucificado um criminoso em um local venerado pelos judeus. (Uma tra-
dição rival de que o corpo de Adão foi sepultado na área do tem plo ou na
caverna de Macpela tem m elhor chance de ser autenticam ente judaica).
Ainda outra explicação do nom e é que "Colina d a Caveira" era um lugar
de execução pública, onde as caveiras pudessem ser encontradas na ou
perto da superfície. A proxim idade do túm ulo de José (19,41) e a aversão
judaica por restos expostos tom am esta teoria tam bém improvável.
18. 0 crucificaram. Todos os evangelhos se contentam com esta descrição la-
cônica sem entrar em detalhes horripilantes. O prisioneiro condenado
foi pregado ou atado à transversal da cruz com seus braços estendidos; a
transversal era deixada no lugar sobre a viga vertical; os pés eram firma-
dos com pregos ou corda; o corpo se apoiava sobre um a cavilha (sedile)
que se projetava do poste. Josefo, War, 7,6.4; 203, chama a crucifixão de
"a mais miserável das m ortes"; e C ícero, In Verrem 2,5.64; 165, fala dela
como a "m ais cruel e terrível penalidade".
outros dois. M arcos/M ateus identificam estes como sendo bandidos (testai)·,
Lucas os denomina de criminosos (kakourgoi). Provavelmente devamos
pensar neles como prisioneiros pegos na mesma insurreição em que Bar-
rabás foi preso (Mc 15,7). Talvez Is 53,12, descrevendo o Servo Sofredor
como "contado entre os transgressores [anomoi]", exercesse influência na
preservação da memória destes prisioneiros parceiros de Jesus. (A pas-
sagem isaiana é citada no relato da última ceia de Lucas [22,37]). Somen-
te Lc 23,39-43 registra que Jesus tratou bondosamente um dos dois que
exibiu sinais de arrependim ento e de sentimentos nobres. Desde os últi-
mos tempos, ao menos quatro grupos diferentes de nomes têm sido dados
1348 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

aos dois; por exemplo, Dimas ou Titus para "o Bom Ladrão", e Gestas ou
Dumachus para o outro. Uma lei judaica tardia proibia a condenação de
dois homens no mesmo dia (StB, 1 ,1039), mas não sabemos se esta lei es-
tava em vigor nos dias de Jesus ou que ela fosse honrada pelos romanos.
O sumo sacerdote judeu Alexandre Janeus (88 a.C.) crucificou oitocentas
pessoas ao mesmo tempo (Josefo, War, 1,5.6; 97).
um de cada lado. Todos os evangelhos concordam sobre a posição relativa
dos três hom ens crucificados, em bora a tradição sinótica use diferentes
palavras: "um à direita e o outro à esquerda" (Mc 15,27 e par.). A ex-
pressão de João parece ser semítica (veja Nm 22,24). Os evangelhos po-
deriam estar evocando o SI 22,17(16): "um ajuntam ento de malfeitores
\poriêreuomenoi] me cercou".
19. Pilatos tinha também um letreiro escrito. Enquanto todos os evangelhos
mencionam a inscrição, som ente João a atribui à ordem de Pilatos. Temos
entendido o grego de João (literalmente "Pilatos escreveu") em um sen-
tido causativo, i.e., que ele obrigou outros a preparar o letreiro (cf. nota
sobre "açoitou" em 19,1). Mas alguns estudiosos pensam que João atribui
o escrito diretam ente a Pilatos, de m odo que, ao afirm ar vigorosam ente,
durante o julgamento, que Jesus não era culpado, agora, ironicam ente,
Pilatos compôs com sua própria mão o crime de que Jesus é culpado.
O term o que João usa para "letreiro" é titles, um latinismo que refle-
te titulus (ou latim vulgar titlus: BDF, §5'), a designação rom ana técnica
para a tábua que porta o nom e do condenado ou seu crime, ou ambos.
Aparentem ente, titulus podería tam bém referir-se à inscrição colocada
sobre a placa - veja F. R. M ontgomery H itchcock, JTS 31 (1930), 272-73.
Somente João (também v. 20) usa este term o técnico; Mc 15,26 fala de
um a "inscrição [epigraphs; tam bém Lc 23,38] gravada com seu crime";
Mt 27,37 fala sim plesm ente da acusação escrita. S uetônio, Caligula 32,
menciona a exposição pública do título indicando o crime do réu. Entre-
tanto, enquanto temos evidência de que o crim inoso porta o título pen-
durado em tom o de seu pescoço ou tendo-o levado diante de si rum o ao
lugar da execução, não temos evidência do costum e de afixá-lo à cm z.
sobre a cruz. Mc 15,26 não menciona onde a inscrição foi posta; M t 27,37
diz que foi colocada sobre a cabeça de Jesus (Lc 23,38; "acima dele") - é
à últim a informação que devem os a com um representação pictórica de
um a cruz em que a transversal é inserida ao com prido da viga vertical
(crux immissa), em vez de ser posta no topo da viga vertical (crux commissa).
Tudo indica que a crux immissa foi a forma mais comum.
continha as palavras. Literalmente, "foi escrito", um particípio passivo per-
feito em pregado tam bém por Mateus.
65 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução; episódios 1-4) 1349

Jesus 0 nazoreano, 0 Rei dos judeus. A formulação desta inscrição varia nos
quatro evangelhos - um a interessante atestação da liberdade do registro
evangélico, mesmo quando, supostam ente, todos eles estão recorrendo
à m em ória de algo escrito. (Julgamos fantasiosa a tese de P.-F. Regard,
Revue Archéologique 28 [1928], 95-105, de que M ateus preserva na tradu-
ção literal a forma hebraica da inscrição, que Lucas preserva a forma
grega e João, a forma latina). O fraseado é como segue:

M t 27,37: Este é Jesus, o Rei dos Judeus


Mc 14,26 (cf. Jo 19,21 abaixo): O Rei dos Judeus
Lc 23,38: Este é o Rei dos Judeus

M ateus e João partilham da peculiaridade de mencionar, respectivamente,


a pessoa e a acusação. A forma de Marcos é a mais breve, e o fato de que
ela aparece na segunda referência de João ao título pode significar que ela
é a forma original. Loisy, p. 484, por exemplo, pensa que o autor joanino
adicionou aqui "Nazoreano" como um toque irônico: os líderes judeus ha-
viam escarnecido do fato de que Jesus era da Galileia (equivalentemente,
Nazaré: Jo 7,41), e, no entanto, o homem de Nazaré é seu rei. Não obstan-
te, se "Nazoreano" significa "de Nazaré" (cf. nota sobre 18,5), João pode
simplesmente estar nos dando a identificação legal completa de Jesus, algo
que seria apropriado na afirmação de uma acusação criminal.
20. hebraico, latim e grego. Algumas testemunhas ocidentais trazem "grego" antes
de "latim", com o fim de dar ao idioma dos conquistadores romanos o lugar
de dignidade no final. Somente João menciona os idiomas da inscrição, em-
bora esta informação se encontre numa forma ligeiramente diferente numa
adição a Lc 23,38, que aparece em muitas testemunhas textuais. Inscrições
poliglotas não eram infrequentes na antiguidade (Barrett, p. 457), e lápides
judaicas em Roma algumas vezes eram inscritas nestes três idiomas. O túmu-
lo de Gordiano III, erigido por soldados romanos, estava inscrito em grego,
latim, persa, hebraico e egípcio a fim de que pudesse ser lido por todos.
próximo à cidade. Ver nota sobre "saiu" em 17.
21. os principais sacerdotes dos judeus. Isto é quase tautológico, posto que, para
João, "os judeus" norm alm ente significam as autoridades hostis em Jeru-
salém. "Dos judeus" seria um acréscimo para intensificar a ironia de que
Jesus foi intitulado "O Rei dos Jesus"?
tentaram dizer. O tem po imperfeito parece ter função conativa (BDF, §326).
Não 0 deixes escrito. O presente im perativo com mê tem o sentido de proibir
a continuidade de um ato (ZGB, §246). MTGS, p. 76, sugere a tradução:
"Altera o que escreveste".
1350 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

Este homem. Talvez um uso desdenhoso de ekeinos (MTGS, p. 46).


reivindicou ser '0 Rei dos Judeus'. Esta é a única vez que o título aparece em
João sem o artigo definido antes de "Rei", mas a diferença não é significa-
tiva. Seguindo a investigação que E. C. Colwell faz do uso do artigo com
determinados substantivos, ZGB, §175, m antém que a ausência do artigo,
aqui, é plenamente normal, porque o substantivo "Rei" precede o verbo.
22. "Tudo que temos determinado a vosso respeito permanece firme". Am bas as
formas verbais estão no tem po perfeito; o prim eiro perfeito é o equiva-
lente de um aoristo; o segundo conota um efeito duradouro (BDF, § 3 4 2 4).
Descobrimos em lM c 13,38 um a expressão sim ilar usada pelo rei selêu-
cida Demetrius, "As coisas que te tem os garantido fora garantidas" (veja
também StB, II, 573). B ernard, II, 6 2 8 -2 9 , enfatiza o respeito rom ano por
um docum ento escrito - o pedido judaico no tocante a um a decisão legal
não podia ser alterado.
23. os soldados. Ver nota sobre "a eles" em 19,16a. Estes são soldados sob a
jurisdição de Pilatos (19,31-32).
crucificaram Jesus. Enquanto isto pode ser entendido como tendo função con-
tinuativa, é um tanto tautológico depois do "eles o crucificaram" do v. 18.
(A tradução inglesa da SB evita a tautologia m ediante um a adição: "quan-
do os soldados terminaram de crucificar Jesus"). Bultmann, p. 515, detecta
aqui um sinal de que os vs. 20-22 constituem um a adição do evangelista
para sua fonte à qual ele agora retom a em continuação do v. 19.
tomaram suas vestes. Himatia se refere às roupas externas. Este despir pode
ter deixado Jesus nu, como era o tratam ento rom ano norm al do crucifica-
do; m as m uitos teorizam que na Palestina os rom anos teriam respeitado
a aversão judaica pela nudez e teriam deixado ao prisioneiro suas roupas
internas. (A M ishnah, Sanhedrin 6:3, registra um a disputa sobre se um
hom em que vai ser apedrejado ficaria com pletam ente despido). Todavia,
ou um a túnica, ou um calção era a veste interna usual e somos informa-
dos que Jesus usava um a túnica que lhe foi tirada. Na prática rom ana, os
soldados tinham o direito às roupas do prisioneiro como suas gratifica-
ções. M arcos/M ateus concordam com João em associar os incidentes da
inscrição no cimo da cruz e o despir, mas sua junção dos dois incidentes
é o inverso da de João.
repartiram-nas em quatro partes. João dá detalhes não m encionados pelos
evangelhos sinóticos que registram simplesmente: "Repartiram suas
roupas, lançando sortes sobre elas" (Mc 15,24 e par.). Alguns estudiosos
engenhosos tentaram identificar a roupa sobre o princípio de que cada
parte consiste de um item. Por exemplo, A. Edersheim, The Life and Times of
Jesus the Messiah (Nova York: Longmans, 1897), 1,625, e A. R. S. Kennedy,
65 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução; episódios 1-4) 1351

ET 24 (1912-13), 90-91, concorda que três das peças tinham de ser (a)
adornos da cabeça ou turbante; (b) um tallith, capa externa ou m anto
(veja Jo 13,4); e (c) um a faixa ou cinto. Discordam sobre se Jesus teria
usado sandálias (Edersheim) ou se teria cam inhado para a crucifixão des-
calço, de m odo que a quarta veste poderia ter sido um a camiseta (hãlüq )
usada debaixo d a túnica (Kennedy).
uma para cada soldado. Somente João especifica que a esquadra executora
era com posta de quatro [soldados]; e realm ente a distribuição em qua-
tro parece ter sido costum eira, pois A t 12,4 fala de quatro esquadras de
quatro. N ão sabemos se outras esquadras se ocuparam com a crucifixão
dos dois bandidos: Mc 15,27 parece atribuir aos m esmos soldados as ou-
tras crucifixões, enquanto M t 27,38 é m ais vago. Os evangelhos sinóticos
m encionam um centurião (Mc 15,39 e par.).
túnica. O chitõn era um a veste longa usada bem junto à pele (Colonel Re-
pond, "Le costume du Christ", Biblica 3 [1922], 3-14).
tecida como uma só peça... e não tinha costura. Um a roupa sem costura prote-
gia de qualquer risco de dois m ateriais serem m isturados, algo que era
proibido. Para um a discussão sobre a técnica de tecer usada para fazer
um a roupa sem costura, veja H.-T h . Braun, Fleur bleue, Revue des indus-
tries du lin (1951), pp. 21-28, 45-53. Esse tipo de roupa não era necessa-
riam ente u m item de luxo, pois podia ser tecida por um artesão que não
tivesse habilidade excepcional.
24. em vez de rasgá-la. Literalmente, "não a rasguem os". E interessante que
Lv 21,10 proíbe ao sacerdote rasgar suas vestes.
lancemos. Um elem ento coloquial é justificado pela situação visualizada na
passagem . A palavra grega, lagchanein, que com um ente significa "obter
por sorte", neste caso significaria "lançar sortes". Os sinóticos usam a
expressão m ais norm al para isto: ballein klêron (aparecendo na citação
que João faz do AT). O Evangelho de Pedro, 12, e Justino, Trifo XCVII; PG
6:705A, trazem ballein lachmon, que é um a combinação entre as expres-
sões joaninas e sinóticas.
O propósito disto era. Ver nota inicial sobre 18,9. A m esm a estrutura grama-
tical aparece na N arrativa M arcana da Paixão em 14,49.
a Escritura. O SI 22,19(18) é citado por João de conformidade com a LXX.
Embora os sinóticos não citem explicitamente o salmo em referência a
este incidente (umas poucas testemunhas textuais têm um a citação em
M t 27,36), seu palavreado do incidente é influenciado pelo salmo. Tem-
se sugerido que a citação explícita de João constitui um a tentativa de
aperfeiçoar a citação implícita nos sinóticos. Entretanto, D odd, Tradition,
p. 40, pensa que temos exemplificadas duas m aneiras independentes de
1352 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

usar o SI 22, o qual, juntam ente com Is 52-53, constituía a principal fonte
da qual a tonalidade do AT foi dada à N arrativa d a Paixão. (Para um a di-
ferença similar entre citação explícita e implícita, ver Jo 13,18 e Mc 14,18 -
p. 932 acima). Algum as testem unhas ao texto de João adicionam a cláu-
sula explanatória "que diz" depois de "Escritura".
Isso é 0 que os soldados fizeram. Para o uso conclusivo de men oun, ver MTGS,
p. 337. O fraseado deste sum ário tem sugerido a alguns que a intenção
de João era contrastar o que os soldados fizeram com o que os am igos
de Jesus estavam fazendo, o que será descrito nos vs. 2 5 -2 7 . Pensam os
ser isto inteiram ente improvável, pois não há evidência de que João pen-
sasse na ação dos soldados em dividir as roupas como sendo particular-
m ente hostil. D auer, p. 2 2 5 , vai consideravelm ente além d a evidência
quando afirma que o contraste entre os soldados e as m ulheres constitui
um caso da reação dualística produzida pelo Jesus joanino. Esta sentença
pode sim plesm ente significar este desfecho: "Lancemos sortes p ara ver-
mos quem ganhará", após a citação parentética d a Escritura. O u, caso se
refira à Escritura, enfatiza que os soldados inconscientem ente fizeram
exatamente como fora profetizado.
25. em pé junto à cruz. Somente após registrar a m orte de Jesus (e, portan-
to, m ais em relação ao sepultam ento), os três sinóticos (Mc 15,40 e par.)
mencionam a presença das m ulheres galileias. Afirm am claram ente
que as m ulheres tinham visto tudo a certa distância; de fato, Lc 23,49,
"Elas se puseram à distância", é quase um a contradição direta de João.
(Os escritores sinóticos não explicam como, sob estas condições, conje-
turam que as palavras de Jesus na cruz foram ouvidas e preservadas).
E possível harm onizar alegando que, durante a crucifixão, as m ulheres
se puseram junto à cruz (João), mas quando a m orte se aproxim ou elas se
viram forçadas a retirar-se (sinóticos). P. G aechter, Maria im Erdenleben
(Innsbruck, 1954), p. 210, supõe que os amigos de Jesus conseguiram
chegar junto à cruz (João) durante as trevas que cobriram a terra (si-
nóticos). O utros rejeitam a historicidade do relato joanino. Barrett,
p. 348, duvida que os rom anos tivessem perm itido que os amigos de
Jesus se aproxim assem da cruz; m as E. Stauffer, Jesus and His Story (Lon-
dres: SCM, 1960), pp. I l l , 1791, cita evidência no sentido de que o cru-
cificado às vezes era cercado po r parentes, am igos e inim igos durante
as longas horas desta agonizante pena. E digno de nota que o quadro
sinótico tem um a orientação rum o ao cum prim ento do SI 38,12(11):
"M eus parentes se põem longe de m im " (também SI 88,9[8]). Kerrigan,
p. 375, sugere que, para João, as m ulheres junto à cruz são testem unhas,
vendo e ouvindo o que acontecia; mas, na verdade, som ente a m ãe de
65 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução; episódios 1-4) 1353

Jesus exerce u m papel no episódio, e as testem unhas do Discípulo Ama-


do são suficientes (19,35).
sua mãe, e a irmã de sua mãe, Maria esposa de Clopas, e Maria Madalena. Quan-
tas m ulheres estão em pauta: duas, três, ou quatro? A tese de que duas
m ulheres se acham envolvidas significaria que lemos: "sua mãe e a irmã
de sua mãe, a saber, Maria de Clopas e Maria M adalena". A improba-
bilidade de que João identifica a m ãe de Jesus como sendo Maria de
Clopas faz desta interpretação do versículo a m enos plausível de todas.
A tese de que três m ulheres estão envolvidas significaria que lemos: "sua
m ãe, a irm ã de sua m ãe (Maria de Clopas) e M aria M adalena". Embora
gram aticalm ente isto seja possível, há algum a im probabilidade de que
M aria, m ãe de Jesus, teria um a irm ã tam bém cham ada Maria. A Siríaca
Peshita e Taciano pensam definidam ente em quatro m ulheres, pois in-
serem "e" entre a segunda e a terceira designações: "a irm ã de sua mãe
e M aria esposa de Clopas". Mesmo sem este esclarecimento, a estrutura
da sentença parecería favorecer quatro m ulheres: "A e B, C e D". (Então,
enquanto pensam os que estão em pauta quatro m ulheres, duvidam os
que houvesse um a tentativa deliberada da parte do evangelista de contras-
tá-las com os quatro soldados, vênia a H oskyns, p. 530; pois em cada caso
o fato de que há quatro só é indicado indiretam ente). Evidentemente, o
evangelista deixa sem nom e as prim eiras duas m ulheres, enquanto men-
ciona nom inalm ente as duas segundas. Uma explicação pode ser que a
m ãe de Jesus fosse bem conhecida entre os cristãos e não necessitasse
que seu nom e fosse m encionado, enquanto as duas últim as mulheres,
am bas p o rtando o nom e Maria, e por isso tinham de ser distinguidas
com m ais clareza ("de Clopas"; "M adalena"). No entanto, por que a irmã
da m ãe de Jesus não é m encionada nom inalm ente? Talvez seu nom e não
fosse dado na tradição, ou talvez ela fosse bem conhecida no círculo ao
qual o evangelista escreveu (veja abaixo para a sugestão de que ela era
Salomé, m ãe de João, filho de Zebedeu). Em qualquer caso, o fato de que
o evangelho, nos versículos subsequentes, se ocupará somente da mãe
de Jesus tom a im provável que a m enção das outras três m ulheres fosse
um a criação d o evangelista - sua presença era m encionada em sua tradi-
ção, m esm o quando fosse parte da(s) tradição(s) por trás dos evangelhos
sinóticos. (O fato de que cada um dos evangelhos sinóticos mencione
nom inalm ente três m ulheres sem m encionar Maria mãe de Jesus pode
ser usado como argum ento de que João se refere a quatro m ulheres in-
cluindo Maria).
C om parem os as três m ulheres m encionadas em João (além da mãe de
Jesus) às m ulheres m encionadas nos sinóticos. Mc 15,40 (ver 15,47; 16,1)
1354 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

e M t 27,56 dão os nom es de três m ulheres que se puseram à distância da


cruz; Lc 24,10 (ver 23,49.55) menciona três m ulheres que visitaram o tú-
mulo. A tábua abaixo segue a ordem m arcana/m ateana na listagem das
mulheres.

Mateus Marcos Lucas


1 M aria M adalena M aria M adalena M aria M adalena 23
2 M aria m ãe de Tiago M aria m ãe de Tiago M aria (mãe) de Tiago
e José________________e Joset__________________________________
3 A m ãe dos filhos de Salomé Joana
Zebedeu

N ão há problem a acerca do nom e na primeira posição, pois os quatro


evangelhos associam M adalena com o Calvário e o túm ulo vazio. Para
seu nom e "M aria", ver nota sobre 20,16. H á run pequeno problem a acer-
ca do nom e na segunda posição. Obviamente, Marcos e M ateus estão se
referindo à m esm a m ulher; é bem provável que fosse a m ãe de dois dos
"irm ãos" do Senhor, pois a variação que ocorre entre "José" e "Joset"
aparece tam bém na respectiva listagem dos "irmãos": M t 13,55 tem "Tia-
go e José e Simão e Judas", enquanto Mc 6,3 tem "Tiago e Joset e Judas e
Simão". (Visto que Maria, que é m ãe deles, certam ente não é M aria m ãe
de Jesus, há razão bíblica interna para se questionar a tese de que estes
"irm ãos" eram irm ãos uterinos de Jesus - ver nota sobre "irm ãos" em
2,12. Daí a objeção de Barrett, p. 459, de que Jesus não teria confiado
sua m ãe ao cuidado do Discípulo Am ado, quando um de seus próprios
irm ãos estivesse disponível como o protetor m ais óbvio, tam bém não é
persuasivo). Parece bem provável que a "M aria de Tiago" em Lucas seja
a m esm a m ulher cham ada Maria m encionada em M arcos/M ateus.
Q uanto ao nom e na terceira posição, adm itida a afinidade de M ateus e
Marcos, não é im provável que Salomé seja a m ãe dos filhos de Zebedeu
(Tiago e João). Mas Salomé não é a m esm a Joana, pois Joana, m encionada
somente no Evangelho de Lucas, é a esposa de Cuza, adm inistrador de
H erodes (8,3).
Seria "M aria de Clopas", m encionada por João, a m esm a M aria (mãe de
Tiago e Joset/José) m encionada na segunda posição em nosso quadro
sinótico? (Muitas das versões leem Cleopas, aparentem ente identifican-
do Clopas com o Cleopas de Lc 24,18, um dos discípulos de Jesus que
estavam na estrada para Emaús. N a verdade, os dois nom es são diferen-
tes: "Clopas" parece ter sido um nom e semítico, porém pode ter servido
65 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução; episódios 1-4) 1355

como equivalente ao genuíno nom e grego "Cleopas" [Cleopatros - BDF,


§ 1 2 5 2] ) . Se as duas M arias são um a só, então pode ser que dois dos "ir-

m ãos" do Senhor fossem os filhos de Clopas (e assim temos outro bom


argum ento contra a fraca tese que identifica Tiago o "irm ão" de Jesus
com Tiago filho de Alfeu, um dos Doze). H e g e s i p p u s ( c . 1 5 0 d.C.) diz que
Clopas era o irm ão de José, pai adotivo de Jesus ( E u s é b i o , Hist. 3 , 1 1 e
3 2 : 1 - 5 ; GCS 9 L 2 2 8 , 2 6 6 - 6 8 ) ; isto faria os dois "irm ãos" prim os de Jesus

p o r parte do pai da família. Temos assum ido que a frase "Maria de Cio-
pas" se refere à esposa de Clopas (BDF, § 1 6 2 4) ; m as E. F. B i s h o p , ET 7 3
( 1 9 6 1 - 6 2 ) , 3 3 9 , defende que isso significa "filha de Clopas" (BDF, § 1 6 2 ’ );

podería ainda significar "m ãe de Clopas" (BDF, § 1 6 2 3) .


Seria a irm ã da m ãe de Jesus, m encionada por João, a m esm a Salomé,
m ãe dos filhos de Zebedeu (uma combinação da informação marcana
e m ateana)? Isto significaria que Tiago e João, dois filhos de Zebedeu,
fossem prim os de Jesus (ver nota sobre "estava ali" em 2 , 1 ) , um a relação
que explicaria m elhor por que o Jesus m oribundo confiou sua mãe ao
Discípulo A m ado (presumivelm ente, João filho de Zebedeu). Assim, um
grupo de parentes de Jesus, seus "irm ãos", não teria crido nele (Jo 7 , 5 ) ,
enquanto outro grupo teria se constituído em m em bros dos Doze disci-
pulos! A íntim a relação dos filhos de Zebedeu com Jesus explicaria tam-
bém por que sua m ãe ou os próprios filhos esperassem favores especiais
(Mt 2 0 , 2 0 ; Mc 1 0 , 3 5 ) . Se a m ãe de João era irm ã de Maria, então a falha
do Q uarto Evangelho em dar o nom e pessoal da "irm ã da m ãe" de Je-
sus seria consoante com esta reticência do evangelho sobre mencionar
nom inalm ente os m em bros da família de Zebedeu. Em contrapartida,
alguns estudiosos identificariam a "irm ã da m ãe" de Jesus, m encionada
p o r João, com a m ulher m encionada na segunda posição no quadro si-
nótico, "M aria m ãe de Tiago e Joset/José", pois então ficaria m ais claro
de que m aneira Tiago e Joset/José eram "irm ãos" de Jesus, a saber, que
eram prim os da parte da m ãe d a família.
O bviam ente, m uito em bora tal especulação sobre a família e amigos de
Jesus seja interessante, é m uito incerta. Entretanto, nossa própria dificul-
dade em decidir se as m ulheres m encionadas por João são as mesmas
m ulheres m encionadas pelos sinóticos é eloquente argum ento contra a
tese de que a lista que João faz das m ulheres foi em prestada das listas
sinóticas.
26. 0 discípulo a quem ele amava. Para sua identidade, ver vol. 1, pp. 97-110. Esta
é a única vez que ele não aparece na companhia de Pedro. Lucas (23,49) é
o único sinótico a indicar a presença no Calvário da companhia feminina
de Jesus: "E todos os seus conhecidos, e as mulheres". A concordância
1356 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

de João e Lucas sobre este ponto deve ser avaliada à luz do fato de que
estes são os dois evangelhos que m encionam as aparições aos discípulos
em Jerusalém no sábado im ediatam ente após a sexta-feira da crucifixão.
Mc 14,50 e M t 26,56 registram que todos os discípulos fugiram quando
Jesus foi preso; correspondentem ente, Marcos e M ateus indicam que a
aparição do Jesus ressurreto aos discípulos ocorrería ou ocorreu n a Gali-
leia (ver pp. 1435-40 abaixo).
Mulher. Este discurso é om itido pelas versões cópticas e um ms. da OL. Ver
nota sobre 2,4.
Eis 0 teu filho. Ide aparece nas m elhores testem unhas gregas, m as há um
forte endosso para idou (ver nota sobre "Eis o hom em " em 19,5). B arrett,
p. 459, e D auer, p. 81, salientam a sim ilaridade a um a adoção de fórm u-
la; todavia, aparentem ente não há paralelo preciso onde a m ãe é abor-
dada primeiro. De fato, a adoção de fórm ulas que encontram os na Es-
critura geralm ente tem um padrão "tu és", diferente do "eis" em João
(SI 2,7: "Tu és o m eu filho; hoje te gerei"; ISm 18,21: "Hoje tu serás m eu
genro"; Tb 7,12 [Sinaiticus]: "D oravante és seu irm ão e ela é tua irm ã";
para o Código de H am urabi, ver R. de V aux, Ancient Israel [Nova York:
McGraw-Hill, 1961], pp. 112-13). L agrange, p. 494, comenta que, ordina-
riam ente, na antiguidade um a pessoa m oribunda recom endava sua m ãe
a outro com um a comissão ou incumbência direta: "Eu te deixo m inha
m ãe para que cuides dela".
27. desde então, 0 discípulo a tomou sob seu cuidado. Literalmente: "desde aquela
hora". Testem unhas textuais um pouco m enores trazem "dia" em vez de
"hora". Devemos com preender que a m ãe de Jesus e o Discípulo Ama-
do deixaram o Calvário im ediatam ente, antes de Jesus m orrer? É possí-
vel encontrar apoio gramatical para essa interpretação segundo J oüon
(B lack, p. 252) de que a expressão "daquela hora" é um aram aísm o fre-
quente nos escritos rabínicos, significando "naquele exato m om ento".
Não obstante, se à luz da teologia de João entenderm os "aquela hora"
como sendo a hora do retorno de Jesus ao Pai, não tem os que supor um a
indicação precisa de tem po para a partida do Discípulo. Mais adiante, no
v. 35, o Discípulo A m ado parece ainda estar presente. C eroke, pp. 132-33,
toma a frase "daquela hora" como a implicar a p erpetuidade d o cuidado
do Discípulo por Maria; m as isto é outra vez ler demais. A verdade em
tudo isto é que nesta m etade do versículo o escritor volta sua atenção do
Calvário para algo futuro (D odd, Tradition, p. 127) - som ente M ateus, en-
tre os sinóticos, interrom pe sem elhantem ente a sequência na Paixão para
conduzir à sua conclusão um a história sobre alguns dos personagens en-
volvidos (morte de Judas em 27,3-10; tam bém 27,52-53).
65 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução; episódios 1-4) 1357

sob seu cuidado. Literalm ente, "ao seu próprio [neutro]", um a frase usada
em o utro lugar em João (1,11: "ao seu próprio [país]"; 16,32: "dispersos,
cada u m p ara seu próprio"). Aqui tem a conotação "para sua própria
casa", como em Est 5,10; 3Mc 6,27; At 21,6. Todavia, a frase implica
tam bém cuidado. Em harm onia com o sentido am plo que sugerim os
acim a p ara "daquela hora", não carece que pensem os que o Discípu-
lo A m ado tivesse lar em Jerusalém para onde levar M aria do Calvário.
H oskyns, p. 530, vê um possível contraste entre o Discípulo A m ado que
tom a M aria "para si próprio" e os discípulos que se dispersaram "cada
u m p o r si próprio".
28. Depois disto. Para o problem a se meta touto é cronologicamente preciso,
como distinto de meta tauta, ver nota sobre 2,12. Por exemplo, K errigan,
p. 373, tom a meta touto como um a indicação de que este incidente seguiu
im ediatam ente o incidente anterior.
sabendo. Para a m esm a fraseologia, ver 13,1. A lgum as testem unhas me-
nores rezam "vendo"; P66 endossa a redação das testem unhas m ais im-
portantes.
tudo estava agora consumado. "A gora" é om itido em m uitas das versões, ou
é lida outra palavra ("eis"). O "tudo" significa tudo o que o Pai dera ao
Filho para fazer: "Deus lhe entregou todas as coisas" (13,3; tam bém 3,35;
15,15). A qui e no v. 30, o verbo em pregado é telein, "conduzir a um fim".
Tem a conotação de com pletude bem como a de sim ples término. Oca-
sionalm ente, tem implicações sacrificiais; e D odd, Interpretation, p. 437,
sugere um a conexão com o uso de "consagrado" em 17,19; a saber, se
naquele versículo (p. 1177 acima) Jesus aparece como um sacerdote a ofe-
recer-se como um a vítim a por aqueles a quem Deus lhe deu, aqui vemos
que sua m orte é a com pletude do sacrifício. N ão obstante, as conotações
sacrificiais de telein é um a tese frágil para servir de único suporte desta
interessante hipótese (que se adequaria m uito bem com nossa interpre-
tação do sim bolismo sacerdotal da túnica no segundo episódio - ver co-
m entário). Seguram ente, temos de relacionar telein com o telos de 13,1:
"com o havia am ado os seus, que estavam no m undo, amou-os até 0fim".
N o restante da cena da crucifixão verem os que João relaciona a consu-
m ação da obra e vida de Jesus com a com pletude do plano preordenado
de Deus dado na Escritura. É interessante que A t 13,29 use o verbo telein
para o cum prim ento da Escritura através da m orte de Jesus: "pediram a
Pilatos que ele fosse m orto [v. 28]. E, havendo eles cumprido todas as coi-
sas que dele estavam escritas...". Telein aparece no relato lucano da últi-
m a ceia em referência ao discípulo de posse de um a espada: "Eu vos digo
que a Escritura tem de se cumprir em m im ,... pois o que está escrito sobre
1358 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

m im tem de seu cum prir [ te lo s ] " (Lc 2237‫ ;׳‬ver tam bém 18,31; Ap 17,17).
P. Ricca, D ie E s c h a to lo g ie d e s V ie r t e n E v a n g e li u m s (Zurique: Gotthelf,
1966), pp. 63ss., vê aqui um a tentativa de relacionar a crucifixão com
"o princípio" m encionado no Prólogo: entre o princípio (Jo 1,1) e o fim
"21,28.30) se concretizou a carreira da Palavra que se fez carne. R icca su -
gere ainda um a conexão com 5,17 onde Jesus diz: "M eu Pai trabalha até
agora, e eu tam bém trabalho". Agora a obra está consum ada, e o sábado
que tem início após a m orte de Jesus (19,31) é o sábado do repouso eterno
(ver vol. 1, p. 441s.). Finalmente, p o r causa do frequente paralelism o en-
tre Jesus e Moisés no Q uarto evangelho, podem os cham ar a atenção para
Ex 40,33: "Assim Moisés com pletou a obra" - um a referência ao térm ino
do Tabem áculo (ver vol. 1, p. 209s.).
a f i m d e . Norm alm ente, um a cláusula final se relaciona a um verbo dom i-
nante que a precede; isto significaria que tudo o que "agora term inou a
fim de levar a Escritura ao seu cum prim ento pleno" inclui o incidente
anterior (terceiro episódio), onde Jesus dá sua m ãe ao Discípulo Am ado.
O. M. Norue, S im p li f i e d N e w T e s ta m e n t (Grand Rapids: Zondervan, 1961),
trad u z assim: "Jesus, sabendo que tudo havia sido feito para cum prir a
Escritura, disse...". Bampfyl.de, p. 253, tem um a tradução similar: "Jesus,
sabendo que agora tudo estava consum ado a fim de que a Escritura
fosse conduzida à fruição, disse...". Entretanto, a m aioria dos gram áti-
cos (BDF, §478; MTGS, p. 344) cita este versículo como exemplo onde a
cláusula final precede a cláusula principal, de m odo que o cum prim en-
to da Escritura se relaciona com o dito de Jesus "Tenho sede" (quarto
episódio). Pode ser que as duas possibilidades não sejam incisivam ente
separadas, e transform am os, deliberadam ente, nossa tradução em algo
ambíguo. Salientaremos no comentário possível pano de fundo bíblico
para ambos: terceiro e quarto episódios.
c o n d u z i r a E s c r itu r a a o s e u p le n o c u m p r im e n to . O verbo norm al no NT para
o cum prim ento da Escritura é p l ê r o u n , usado nos vs. 24 e 26. A qui João
em prega t e l e i o u n , um verbo usado não diferentem ente no NT em refe-
rência à Escritura (no entanto, notam os supra tal uso de te l e in , u m verbo
relacionado). C. F. D. M oule, NTS 14 (1967-68), 318, sugere que o em pre-
go joanino de t e l e i o u n em vez de p l ê r o u n é sim plesm ente um a variação
estilística. Em 17,4.23 João usa t e l e i o u n para a consum ação da obra de
Jesus (veja nota sobre 17,4); seu uso no presente versículo presum ível-
m ente implica que o cum prim ento da Escritura é conduzido à comple-
tude quando Jesus passa desta vida para o Pai. N a verdade, esta não é a
últim a referência joanina ao cum prim ento da Escritura n a vida e obra de
Jesus (veja vs. 36,37).
65 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução; episódios 1-4) 1359

"Tenho sede". Estas palavras são encontradas som ente em João. A últim a
vez que ouvim os que Jesus teve sede foi em 4,6 (veja nota ali) quando se
assentou junto ao poço de Samaria ao meio-dia (cf. 19,14).
29. um jarro. M encionado som ente em João.
vinho. O oxos, mencionado também nos relatos sinóticos da segunda bebida
oferecida a Jesus (ver comentário), foi posca, um vinho diluído, vinagre,
bebido p o r soldados e operários. Seu único propósito podería ter sido para
aplacar a sede, e não se deve confundir com o narcótico (?) um a mistura
de vinho (aims) e m irra ou fel, mencionado no relato m arcano/m ateano
da prim eira bebida oferecida a Jesus. Uma combinação confusa dos dois
é um eco que vem do Evangelho de Pedro, 16, e a Epístola de Barnabé 7,3.
Curiosamente, H oskyns p. 531, vê aqui um gesto de crueldade a agravar a
sede, enquanto o Evangelho de Pedro parece beber da m istura de fel e vinho
com um como um veneno para acelerar a m orte de Jesus.
eles. Os agentes não são definidos, m as provavelm ente devam os pensar
nos soldados recém-m encionados em 24. Em Lc 23,36, os agentes são
soldados; M t 27,47-48 fala de um dos expectadores, se 36a deva ser re-
lacionado com 35 (T aylor, Mark, pp. 594-95, nega a relação e sugere que
M arcos está se referindo a um soldado). N aturalm ente, som ente um in-
divíduo teria fornecido o vinho a Jesus, de m odo que o plural joanino
inclui os que sugeriram a ideia e ajudaram .
embeberam uma esponja deste vinho. Lucas não menciona esponja; Mc 15,36
tem alguém que "em bebe a esponja deste vinho"; algum as testem unhas
do texto de João trazem variantes influenciadas pela fraseologia m arcana
e m ateana.
em certo hissopo. M arcos/M ateus falam de um a cana, seguram ente um cau-
le forte e longo. O que João quer dizer com "hissopo"? Usualmente, o
hissopo bíblico (heb. ,êzõb; gr. hyssõpos ) é um a pequena planta copada
que pode crescer nas fendas dos m uros, planta essa que lR s 4,33 cias-
sifica como o m ais hum ilde dos arbustos (= Origanum Maru L.; Syriam
m arjoram ; um a planta da família das labiadas, relacionada com a hor-
telã e o tomilho). Enquanto a variedade palestinense de hissopo tem
um a haste relativam ente grande, os ram os são adaptados para aspergir
(Lv 14,4-7; N m 19,18), porém dificilmente podería suportar o peso de
um a esponja úm ida. Alguns têm sugerido que neste caso "hissopo" se
refere ao Sorgum Vulgare L. (a cana de M arcos/M ateus); e embora tal har-
m onização seja forçada, temos de adm itir que a identificação do hissopo
não é certa, pois tem-se sugerido ao m enos dezoito diferentes plantas
como correspondentes à sua descrição, e o term o bíblico pode cobrir di-
versas espécies (J. W ilkinson, ScotJT 17 [1964][, 77).
1360 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

Um ms. cursivo ( 4 7 6 ) do 1 1 a século trás hyssos, "javelin", p ara hyssõpos.


É interessante que, sem conhecer este ms., J. C a m e r a r i u s (d. 1 5 7 4 ) su-
geriu a em enda. Ele tem sido aceito po r L a g r a n g e , B e r n a r d e os edito-
res da NEB. H o s k y n s , p. 5 3 1 , propõe a possibilidade de que o próprio
evangelista, encontrando hyssos na tradição que lhe chegou às m ãos,
lhe trazia à m ente hyssõpos e introduziu essa palavra p ara propósitos
simbólicos. Em nossa opinião, o apoio textual para hyssos é m uito fra-
co, e quase certam ente estam os tratando de um a engenhosa tentativa
de copista de m elhorar um a redação difícil. (Q uando João fala de um a
arm a sem elhante à lança, ele usa logchê [v. 3 4 ] , não hyssos). Ao falar
de hissopo, João alterou a cena histórica em favor de sim bolism o (ver
comentário).
a ergueu. Lucas e João usam prospherein para descreverem a ação.
até seus lábios. Literalmente, "boca"; m encionado som ente em João.
30. tomou 0 vinho. Somente João nos inform a que Jesus aceitou a bebida pro-
duzida.
"Está consumado". Ver nota sobre "agora tudo estava consum ado" em 28.
M arcos/M ateus registram que antes de Jesus m orrer ele proferiu um
brado, porém não especificam o conteúdo. Lc 23,46 registra que as últi-
m as palavras de Jesus foram "Pai, em tuas m ãos confio [paratithenai] m eu
espírito" (do SI 31,6[5]).
curvando sua cabeça. Somente João m enciona este detalhe. Diversos autores
m odernos (p. ex., L isy, B raun) têm seguido A gostinho, In Jo. CXIX 6; PL
35:1952, ao com entar que esta é a ação de um hom em que está indo dor-
mir, e não a de um hom em que sofre a agonia da m orte - e assim a ação
simboliza o senhorio de Jesus sobre a morte. Esta é um a interpretação
mais im aginativa do que com base nos próprios dados.
entregou 0 espírito. O m esm o verbo paradidonai ("entregar, confiar") é usa-
do em 16a: "Pilatos lhes entregou Jesus para ser crucificado". Podem os
com parar o fraseado de João com o dos sinóticos: Mc 15,37: "Ele deu
seu últim o suspiro [ekpnein]"; M t 27,50: "Ele rendeu [aphienai] espírito";
Lc 23,46 é o mesmo que Marcos, m as veja o dito que Lucas atribui a Jesus,
citado duas notas acima. H ouve duas m aneiras tradicionais de descrever
a m orte de Jesus: (a) Ele deu seu últim o suspiro - Marcos, Lucas; (b) Ele
ren d eu /co n fio u /en treg o u seu espírito - M ateus, Lucas e João. N o uso
que João faz de paradidonai, B ernard, II, 641, vê um elem ento de doação
voluntária. E o verbo usado por Is 53,12 para descrever a m orte do Servo
Sofredor: "Sua alm a foi entregue à morte... e ele a entregou por causa dos
pecados deles". Notar-se-á que, diferente de Lucas que especifica que foi
nas m ãos de seu Pai que Jesus entregou o espírito; João não identifica ao
65 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução; episódios 1-4) 1361

receptor (ver comentário). N os Atos de João, oriundo do 2a século, a m orte


de João é descrita em term os que lem bram a descrição que ele mesmo faz
da m orte de Jesus.

C O M E N T Á R IO : G E R A L

A estrutura da cena

E n q u a n to a c e n a d e Je su s n a c ru z n ã o é tã o p re c isa o u d ra m a tic a -
m e n te o r g a n iz a d a c o m o a cen a d e Je su s d ia n te d e P ilato s, d e te c ta -
m o s ta m b é m a q u i u m p a d rã o q u ia sm á tic o , co m o in d ic a d o n o d ia-
g ra m a a b aix o .
A e s tr u tu r a q u e tem o s p ro p o sto rejeita im p lic ita m en te d o s p o n -
to s d e v ista c o rre n te s so b re o arra n jo d e sta cena. M eeks, p. 62, tra ta
19,17-22 co m o u m o itav o e p isó d io d a s relações e n tre P ilato s e Jesus,
e e n tã o co m o p e rte n c e n te à p ré v ia D iv isão d a N a rra tiv a d a Paixão.
É v e rd a d e q u e a fig u ra d e P ilato s é fo rte m e n te p ro e m in e n te nestes
v e rsíc u lo s, e q u e a in d a é p o ssív e l ter-se a im p re ssã o d e q u e Pilatos
e s ta v a n o C a lv á rio (p. 1371 abaixo).

Introdução (19,16b-18) = Conclusão (19,38-42)


A crucifixão. Sepultamento.
Elevação d e Jesus à cruz. ,sRetirada de Jesus da cruz.
Primeiro episódio (19,19-22) = Quinto episódio (19,31-37)
Inscrição: Jesus com o rei. Fluxo de sangue e água
(o Espírito)
Pilatos rejeita o pedido dos Pilatos atende ao pedido dos
judeus. judeus.
Segundo episódio (19,23-24) = / ' Quarto episódio (19,28-30)
Túnica inconsútil: Jesus como Sede d e Jesus; rendendo o
sacerdote(?). espírito.
Executores repartem as roupas Executores oferecem vinho a
de Jesus. ----- Jesus.
Terceiro episódio (19,25-27)
A m ãe de Jesus e o Discípulo Amado.
Provisão de Jesus p ara o futuro.

N ã o obstan te, a cena an terio r teve su a p ró p ria concordância quias-


m ática, sin to n iza d a ao m o v im en to d e P ilatos fora e d e n tro d o pretório.
1362 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

A in tro d u ç ã o e a d iç ã o d e u m e p isó d io q u e o c o rre u n o C a lv á rio eq u i-


v a le ría a ro m p e r to d a a o rg an ização . A lém d o m ais, a p re se n ç a d e
P ilato s n o q u e c o n sid e ram o s o p rim e iro e p isó d io d a cru cifix ão te m
im p o rtâ n c ia p a ra a o rg an iz aç ã o d a p re se n te D iv isão d a N a rra tiv a d a
P aixão, v isto q u e ela é e q u ilib ra d a p e la p re se n ç a d e P ilato s n o q u in to
e ú ltim o ep isó d io s d a crucifixão. O o u tro p o n to d e v ista q u e tem o s
rejeitad o é o d e J anssens de V arebeke (p. 1221 acim a), o q u a l u m a v e z
m ais in tro d u z u m p a d rã o d e sete e p isó d io s (ele ju n ta n o ssa in tro d u -
ção a o p rim e iro e p isó d io e se u s sexto e sé tim o e p isó d io s são c o n seg u i-
d o s p e la d iv isã o d o q u e c h a m a m o s a co n clu são ao s vs. 3 8 4 0 ‫ ־‬e 41-42).
É v e rd a d e q u e e m n o sso p ró p rio a rra n jo h á alg o co m o u m p a d rã o
sé tu p lo se a d ic io n arm o s a in tro d u ç ã o e c o n c lu sã o a o s cinco e p isó d io s.
O s e p isó d io s estão c e n tra d o s em to rn o d o sim b o lism o teológico; a
in tro d u ç ã o e a co n clu são n ã o tê m este sim b o lism o , ao m e n o s co m a
m esm a ex ten são , p o is se rv e m m ais p a ra e stab elecer a c en a (em c a d a
u m a se d escre v e o lu g a r o n d e Jesus foi cru cificad o - v s. 17-18a e 41).
O d ia g ra m a q u e a p re se n ta m o s realça o s p a ra le lo s m ais ó b v io s d a
e s tru tu ra q u iasm ática; n o te tam b é m q u e h á c erto p a ra le lism o n a s colu-
n as v erticais e n tre p rim e iro e se g u n d o e p isó d io s (co n cern en tes a o p a -
p el d e Jesus) e os q u a rto e q u in to e p isó d io s (concernentes ao E spírito).
O terceiro ep isó d io , n o q u a l Jesus m esm o fala em m aio r e x te n sã o d o
q u e n o s o u tro s e p isó d io s, é o e p isó d io central. H á q u e m te n h a s u g e rid o
u m a a lte m a ç ã o d e b o m e m a u tra ta m e n to d a d o a Jesus p o r to d a a cena
(bom , em 1 ,3 e a conclusão; m a u , n a in tro d u ç ã o , 2 e 5). N ã o o b stan te,
é difícil d e c id ir se o q u a rto e p isó d io (e in clu siv e o s e g u n d o ep isó d io ) é
m a u tra tam e n to . E m n o sso ju ízo , João n ã o c ateg o riza a ação d o s so ld a-
d o s co m o rea lm e n te h o stil a Jesus - "o s ju d e u s " são se u s in im ig o s. Fi-
n alm en te, p o d e m o s o b se rv a r q u e a lg u n s d o s e p isó d io s tê m in clu sõ es
in tern as: O p rim e iro e p isó d io com eça e term in a com o tem a d o escrito
d e Pilatos; o se g u n d o e p isó d io com eça e te rm in a co m u m a referên cia
aos so ld ad o s; o q u a rto e p isó d io com eça e te rm in a com o tem a d e tu d o
se n d o c o n su m ad o . H á certa u n id a d e e n tre o q u in to e p isó d io e a con-
clusão, p o is am b o s d escrev em o q u e aco n teceu a p ó s a m o rte d e Jesus;
o tem a d o D ia d a P re p ara ç ão q u e com eça n o q u in to e p isó d io te rm in a a
conclusão. N ão o b stan te, n o ssa d ecisão d e tra ta r a in tro d u ç ã o e o s epi-
só d io s 1-4 n a p re se n te seção, e n q u a n to re se rv am o s o q u in to e p isó d io
e a co n clu são p a ra a p ró x im a seção, é p rim a ria m e n te u m a q u e stã o d e
con v en iên cia d e te rm in a d a p e la extensão.
65 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução; episódios 1-4) 1363

Temas joaninos dominantes na cena da crucifixão

V im o s q u e o te m a d a re a le z a d e Jesus foi d o m in a n te em s e u jul-


g a m e n to p e ra n te P ilatos. V isto q u e u m a falsa reiv in d icação à realeza
foi a acu sa ç ã o p e la q u a l Jesus foi ju lg a d o e c o n d e n a d o , n a tu ra lm e n te
e ste te m a d o m in o u o in te rro g a tó rio . N o e n ta n to , m ais q u e isto, o tem a
d a re a le z a a fe to u o q u e foi feito a Jesus: ele foi a d o rn a d o com o rei e
s a u d a d o p e lo s so ld a d o s com escárnio; ele foi a p re s e n ta d o p o r Pilatos
a o p o v o co m o rei. N ã o s u rp re e n d e , p o is, a c h a r c erta c o n tin u id a d e d o
te m a n a c en a d a crucifixão. A p ró p ria crucifixão, d e scrita n a in tro d u -
ção, é u m a e n tro n iz a ç ã o d e Jesu s, co m o d eix a claro o p rim e iro epi-
só d io , q u a n d o s e u títu lo rég io é p ro c la m a d o em trê s id io m as e, p o r-
ta n to , in te rn a c io n a lm e n te . A lém d o m ais, o se p u lta m e n to d e Jesus,
d e sc rito n a co n clu são , te m a sp ec to s su g e stiv o s d e rea lez a (p. 1424
abaixo). É b e m p ro v á v e l q u e B. S ch w a n k esteja certo ao e n fa tiz a r q u e
os p rin c ip a is e p isó d io s d a crucifixão se o c u p a m d o s d o n s q u e o rei
e n tro n iz a d o d á ao s q u e a ceitam se u rein o , p o is c e rta m e n te estes epi-
só d io s tê m co m o te m a o q u e Jesus faz p e lo crente. A cena jo an in a d a
crucifix ão , d e c erta m a n e ira , se o c u p a m en o s com o d e stin o d e Jesus
d o q u e co m a significação d e sse d e stin o p a ra seu s se g u id o re s. A cru-
cifixão é o c u m p rim e n to d a p ro m e ssa d e Jesus e m 13,1 d e q u e em "a
h o ra " ele m o stra ria a té o fim se u a m o r p e lo s seu s. Jesus m o rre com o o
b o m p a s to r q u e re n u n c ia su a v id a p o r su a s o v e lh a s (10,11.14-15), isto
é, p o r a q u e le s q u e o u v e m s u a v o z e o conhecem .
T alvez fosse p ro v eito so re su m ir a q u i n o ssa c o m p reen são d as p rin -
cipais id éias e n c o n tra d a s n o s e p isó d io s d a cena d a crucifixão, p o is m ui-
tas d e la s são p ro p o sta s atra v és d e sim bolism o e n ão são im ed iatam en te
e v id e n tes a p rim e ira vista. (N o co m en tário d e ta lh a d o in d icarem o s os
g ra u s v a ria n te s d e p ro b a b ilid a d e com q u e estas in terp retaçõ es p o d e m
se r p ro p o sta s). O p rim e iro ep isó d io p ro clam a ao m u n d o in teiro civili-
z a d o a realeza d e Jesus. "O s ju d e u s" rejeitam esta reivindicação, m as
o g o v e rn a d o r gentílico insiste em su a p ro clam ação m u ltilíngue. O se-
g u n d o e p isó d io se o c u p a com o sim bolism o d a tú n ica inconsútil, u m a
v este sacerd o tal. Jesus é n ã o só rei, m as tam b é m sacerd o te cuja m o rte é
u m a ação o ferecida p o r o u tros. N a s p ró p ria s p a la v ra s d e Jesus: "é p o r
eles q u e e u m e c o n sag ro " (17,19). O terceiro e p isó d io é c en trad o n a pe-
ren e p reo c u p a ç ão d e Jesus p e la c o m u n id a d e d a q u e le s a q u e m ele deixa
p a ra trá s (ver tam b é m 17,9-19). À su a m ãe, o sím bolo d o n o v o Israel,
1364 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

foi n e g a d o u m p a p e l em C a n á p o rq u e a in d a n ã o h a v ia c h e g ad o a hora.
A go ra q u e su a h o ra já chegou, é-lhe d a d o u m p a p e l com o a m ãe d o
D iscípulo A m ad o , isto é, d o cristão. E stam os se n d o in fo rm a d o s fig u ra-
tiv am en te q u e Jesus se p re o c u p a v a p e la c o m u n id a d e d o s cren tes q u e
seriam a tra íd o s a ele ag o ra q u e seria e lev ad o d a te rra à c ru z (12,32).
O q u a rto e p isó d io m o stra a m o rte d e Jesus com o a co n su m ação d e tu d o
o q u e o Pai lh e d e u p a ra fazer, u m a tarefa d escrita d e a n te m ã o n a s Es-
crituras. Este ep isó d io term in a d escrev en d o a m o rte d e Jesus com o su a
en treg a d o esp írito - a p a re n te m e n te u m m o d o sim bólico d e in d ic a r q u e
o p ró p rio E spírito d e Jesus ag o ra c o n su m aria su a obra. "Se e u n ã o for,
o P arácleto n ão v irá a v ó s" (16,7). O q u in to ep isó d io d á se g u im e n to ao
sim bolism o p ro lép tico d a d o ação d o E spírito; p o is o flu ir d a á g u a tin-
g id a com o sa n g u e d o Jesus m o rib u n d o c u m p re a p ro m e ssa d e 7,38-39:
"N o d izer d a E scritura, 'd o s e u in terio r fluirão rios d e á g u a v iv a'. (A qui
ele estav a se referin d o ao Espírito...)". E m u m nível secu n d ário , o fluir
d e san g u e e ág u a, sim b o lizan d o a origem d o s sacram en to s d a Euca-
ristia e d o B atism o atrav és d a v id a d e Jesus, é c o m u n icad o ao cristão.
É im p o rtan te lem b rar que, d u ra n te este episódio, Jesus já está m o rto . N o
p en sam en to d e João, o d ra m a d a cru z n ã o term in a n a m o rte, e sim n o
fluir d a v id a q u e v e m d a m orte: a m o rte d e Jesus é o início d a v id a cristã.
O tem a d o c u m p rim e n to d a E sc ritu ra é ta m b é m m u i p ro e m in e n te
n a cena d a crucifixão. N o s e p isó d io s 2 e 5 são c ita d a s p a s sa g e n s esp e-
cíficas; e d eclara-se q u e o q u a rto e p isó d io o c o rre u p a ra q u e a E sc ritu ra
fosse le v a d a ao se u co m p le to c u m p rim e n to . O te m a M essias-rei d o
p rim e iro e p isó d io e o sim b o lism o d a M ãe d e Sião e a N o v a E v a d o ter-
ceiro e p isó d io são ta m b é m p le n a m e n te bíblicos. N e sta p re o c u p a ç ã o
com o p a n o d e fu n d o v e te ro te sta m e n tá rio p a ra a p a ix ã o , p ro v á v e l-
m e n te João esteja re fle tin d o a p re o c u p a ç ã o c ristã p rim itiv a g e ra l d e
m o stra r ao s ju d e u s q u e a crucifixão n ã o e lim in o u a p o s s ib ilid a d e d e
q u e Jesu s era o M essias p ro m e tid o , m a s a n te s c u m p riu as p a la v ra s d e
D eu s n a E scritu ra. N ã o o b sta n te , a seleção d a s p a ssa g e n s específicas
d o A T e o s tem a s co m o p a n o d e fu n d o p a ra a crucifixão p a re c e m ter
sid o fo rm u la d o s à lu z d o in te resse teológico jo an in o .

Comparação com os relatos sinóticos da crucifixão

É difícil d e te c ta r a lg u m a o rg an iz aç ã o o u p a d rã o teo ló g ico n a se-


q u ê n c ia d o c en ário sin ó tico d o C alvário. S o m en te n o e sc a m e c im e n to
65 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução; episódios 1-4) 1365

la n ç a d o e m Je su s q u e n o s p e rc e b e m o s a lg u m p la n e ja m e n to , p o is
ta n to e m M a rc o s /M a te u s co m o e m L u cas h á u m a se q u ê n c ia n a s
z o m b a ria s p e lo s v á rio s g ru p o s (cu rio so s, a u to rid a d e s , s o ld a d o s [Lu-
cas] e c rim in o so s c ru cificad o s). A lg u n s d o s d e ta lh e s q u e são n a r-
ra d o s p a re c e m s e r m e ra m e n te fa c tu a is e se m im p lic a ç ão teo ló g ica
ó b v ia. P o rta n to , João é s in g u la r n a o rg a n iz a ç ã o q u ia sm á tic a d o s epi-
s ó d io s e n a c o n c e n tra ç ã o e x c lu siv a n o s e p isó d io s d e im p lic a ç ão teo-
ló g ica. C a d a u m d o s q u a d ro s lite rá rio s jo a n in o s é c u id a d o s a m e n te
d e lin e a d o , e a n a rra tiv a é d e s p id a d e tu d o o q u e p o d e ría d istra ir.
É in te re s s a n te fa z e r u m a lista d o s d e ta lh e s d a s n a rra tiv a s sin ó ticas
não e n c o n tra d o s e m João:

S im ão d e C iren e (os três)


O la m e n to d a s m u lh e re s a c a m in h o d o C alv ário (Lucas)
O fe re c im e n to d e v in h o m is tu ra d o (M a rc o s/M a te u s)
O ra ç ão d e Jesu s p e lo p e rd ã o d e se u s e x ecu to res (Lucas)
Indicações d e tem po, p. ex., 9 h o ras (Marcos); m eio-dia às 3 (os três)
V ário s e sca m e c im e n to s (os três)
A rre p e n d im e n to d o " b o m la d rã o " (Lucas)
T re v as so b re a te rra (os três)
O b r a d o "E loi, Eloi, lam a sa b a c tá n i" (M a rc o s/M a te u s)
A su g e stã o d e q u e ele b u sc a liv ra m e n to d e E lias (M arco s/M ateu s)
O g rito fin al d e Jesu s (os três)
A s p a la v ra s "P ai, e m tu a s m ão s e n tre g o m e u e sp írito " (Lucas)
A c o rtin a d o te m p lo se ra sg a (os três)
O te rre m o to e a a b e rtu ra d o s tú m u lo s (M ateus)
R eação d o c e n tu riã o (os três)
A m u ltid ã o v o lta a rre p e n d id a p a ra casa (Lucas)
In v estig a ç ã o d e P ilato s p a ra c o n firm a r a m o rte d e Jesus (M arcos)
O c o rp o e n v o lto e m lin h o (os três)
A p re s e n ç a d a s m u lh e re s ju n to a o tú m u lo (os três)
C o m p ra d e e sp ec iarias p e la s m u lh e re s (Lucas)

T o d a s e sta s o m issõ es jo an in a s d ificilm en te p o d e m ser ex p licad as


co m o e lim in açõ es d e lib e ra d a s, p o is d e ta lh e s tais co m o o escarnecí-
m e n to d o s sa ce rd o te s, as tre v a s so b re a te rra e a c o rtin a d o tem p lo
s e n d o ra s g a d a te ria m se rv id o co m o v eícu lo s a d m irá v e is p a ra a teolo-
g ia jo an in a . O fato d e q u e a tra d iç ã o lu ca n a d a p a ix ã o , a p a re n te m e n te
1366 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

in d ep e n d e n te , o m ite d e ta lh es en co n trad o s em M a rc o s /M a te u s su g ere


a p o s s ib ilid a d e d e q u e ao m e n o s a lg u m a s o m issõ e s jo a n in a s p o d e m
se r e x p lic a d a s so b re a s b a se s d e q u e a tra d iç ã o in d e p e n d e n te so b re
a q u a l o Q u a rto E v a n g e lh o e s tá b a s e a d o fic o u se m c e rto s d e ta lh e s
e n c o n tra d o s n a s tra d iç õ e s p ré -sin ó tic a s. P o d e m o s n o ta r q u e João
o m ite d e ta lh e s ta n to d a fo n te m a rc a n a A co m o d o re la to m a rc a n o B,
e m b o ra n o q u e ele in clu i, João p o s s a se r u m ta n to m a is a fim a o r e la to
m a rc a n o A [com o e n te n d id o p o r B u ltm a n n , e n ã o p o r T a y l o r ]. João
m o s tra p o u c o c o n h e c im e n to d o m a te ria l p a rtic u la rm e n te lu c a n o .
Q u a n d o v o lta m o s a c o n s id e ra r os in c id e n te s q u e Jo ão in c lu i, h á
u m p a ra le lo s in ó tic o p a rc ia l p a r a a in tro d u ç ã o , a c o n c lu sã o e q u a tr o
d o s cinco e p is ó d io s; s o m e n te o q u in to e p is ó d io n ã o te m eco n a s
tra d iç õ e s sin ó tica s. T o d a v ia , p ra tic a m e n te e m to d o s e ste s c a so s, o
a sp e c to q u e Jo ão e n fa tiz a é a m e sm a p a r te d o in c id e n te q u e n ã o te m
c o n tra p a rte sin ó tica . N a in tro d u ç ã o , Jo ão c o n c o rd a c o m o s sin ó tic o s
so b re o lu g a r d a c ru c ifix ã o e a r e la tiv a p o s iç ã o d e Je su s e o s o u tro s
d o is h o m e n s c ru c ific ad o s; m a s o ú n ic o e le m e n to a q u i q u e se p re s -
ta ao in te re s s e teo ló g ic o jo a n in o é q u e Je su s c a rre g o u s u a p r ó p r ia
c ru z , e e s te é o ú n ic o p o n to e m q u e a in tr o d u ç ã o d e Jo ão d ife re d o s
re la to s sin ó tico s. N o p rim e iro e p is ó d io Jo ão c o n c o rd a c o m o s sin ó -
tico s s o b re o fato e o c o n te ú d o s u b s ta n c ia l d o títu lo n a c ru z ; m a s o
in te re s s e d e João e stá n o c a rá te r in te rn a c io n a l d a p ro c la m a ç ã o e n o
p a p e l d e P ila to s e m fa z e r e m a n te r a p ro c la m a ç ã o - p o n to s so b re
os q u a is o s s in ó tic o s m a n tê m silên cio . N o s e g u n d o e p is ó d io João
c o n c o rd a c o m os sin ó tic o s so b re o s s o ld a d o s r e p a r tin d o a s ro u p a s
d e Je su s p o r m e io d e so rte s; m a s o sim b o lism o d o e p is ó d io jo a n in o
p a re c e e s ta r c e n tra d o n a tú n ic a in c o n s ú til, u m a v e s te n ã o m e n c io -
n a d a p e lo s sin ó tico s. N o te rc e iro e p is ó d io Jo ão c o n c o rd a c o m os
sin ó tico s s o b re a p re s e n ç a d e m u lh e re s g a lile ia s ju n to a o C a lv á rio ;
m a s Jo ão e s tá p a rtic u la rm e n te in te re s s a d o n a s p a la v r a s d e J e su s à
s u a m ã e e a o D isc íp u lo A m a d o , e n a d a d iss o é m e n c io n a d o n o s
re la to s sin ó tico s. N o q u a rto e p is ó d io Jo ão c o n c o rd a c o m o s sin ó ti-
cos d e q u e se o fe re c e u v in h o a o Je su s c ru c ific a d o ; m a s Jo ão e n fa ti-
z a q u e a s e d e d e Je su s d e u c u m p rim e n to à s E s c ritu ra s e c o n d u z iu
s u a o b ra à c o n s u m a ç ã o , e e ste e le m e n to e s tá to ta lm e n te a u s e n te d a s
d e scriçõ e s s in ó tic a s d o in c id e n te . T a m p o u c o o s sin ó tic o s d e s c re v e m
a m o rte d e Je su s d e u m a m a n e ira q u e fa v o re ç a o d e s ta q u e d e João
d e q u e a o m o rre r Je su s tra n s fe riu s e u E sp írito p a r a s e u s s e g u id o re s .
65 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução; episódios 1-4) 1367

N a c o n c lu s ã o , Jo ão c o n c o rd a co m o s sin ó tic o s so b re a u rg ê n c ia n o
s e p u lta m e n to , s o b re o p a p e l d e José d e A rim a te ia e so b re o u so d e
u m n o v o tú m u lo ; m a s, se a q u i e x iste a lg u m a ê n fa se teo ló g ic a , ela
se c e n tra n a g r a n d e q u a n tid a d e d e m irra e alo é s tra z id a p o r N i-
c o d e m o s - u m a v e z m a is, o s sin ó tic o s m a n tê m silên cio so b re este
d e ta lh e . A ssim , m e sm o n o s in c id e n te s q u e tê m e m c o m u m , a s d ife-
re n ç a s e n tr e Jo ão e o s sin ó tic o s sã o m u ito su b sta n c ia is.
U m a s o lu ç ã o se ria q u e João e x tra iu d o s e v a n g e lh o s sin ó tico s,
o u d a s tra d iç õ e s p ré -sin ó tic a s, a lg u n s fato s b á sic o s e e n tã o e x p a n -
d iu e s te s a d ic io n a n d o d e ta lh e s q u e se p re s ta m à teo lo g iz a ç ã o jo an i-
n a. S u b s ta n c ia lm e n te , e sta é a a v a liaç ã o d e B a rrett (p. 455): " É b e m
p ro v á v e l q u e Jo ão d e p e n d a d e M arco s, m a s o u ele, o u a tra d iç ã o
im e d ia ta , m o d ific o u n o ta v e lm e n te s u a fo n te " . E n tre ta n to , h á d u a s
o b jeçõ es a e sta teo ria . P rim e iro , q u a n d o Jo ão te m m a te ria l em co-
m u m c o m o s sin ó tico s, a s d e scriçõ e s p a ra le la s fre q u e n te m e n te exi-
b e m n o tá v e is d ife re n ç a s e m v o c a b u lá rio ; p o r e x e m p lo , veja a n o ta
s o b re 19,25 a c erca d o s n o m e s d a s m u lh e re s p re s e n te s n o C alv ário .
A lé m d o m a is, n e ste m a te ria l c o m u m , a se q u ê n c ia n ã o é a m esm a.
A o rd e m m a rc a n a é: (1) a cru cifix ão , (2) a d iv isã o d a s ro u p a s , (3) a
in sc riç ã o , (4) a m e n ç ã o d o s d o is b a n d id o s ; a o rd e m lu c a n a d o s m es-
m o s e v e n to s é 1 ,4 ,2 , e d e p o is d e u m ín te rim , 3; a o rd e m jo a n in a é 1,
4, 3, 2. A s e g u n d a o bjeção é q u e é m u ito difícil d iz e r se o s d e ta lh e s
p r o p ria m e n te jo a n in o s c o n s titu e m a d iç õ e s im a g in a tiv a s o u sã o tra -
d ic io n a is. Se a p la u s ib ilid a d e fo r a lg u m g u ia , às v e z e s estes d e ta -
lh es jo a n in o s a p re s e n ta m u m q u a d ro tã o p la u s ív e l q u a n to faz e m os
d e ta lh e s d a tra d iç ã o sin ó tica c o n tra d itó rio s o u d ife re n te s. O q u e é
im p la u s ív e l s o b re a p o sse d e u m a tú n ic a in c o n sú til d e Je su s o u se u
g rito " te n h o s e d e " ? O s m a is p e c u lia re s d o s in c id e n te s p ro p ria m e n te
jo a n in o s , o flu ir d e s a n g u e e á g u a , é u m p e lo q u a l o a u to r re iv in d ic a
e n fa tic a m e n te o a p o io d e te s te m u n h o ocular! P o rta n to , a p a rtir d e
u m a c o n s id e ra ç ã o to ta l, ta n to d a s o m issõ e s jo a n in a s co m o d o p ro -
b le m a d o s p a ra le lo s sin ó tico s p a rc ia is n o s in c id e n te s d a cru cifix ão
q u e Jo ão n a rr a , c o n c o rd a ría m o s co m D odd ( Tradition , p p . 124-39) em
p r o p o r a e x istê n cia d e u m a tra d iç ã o jo a n in a in d e p e n d e n te , d e ix a n d o
a b e rta a p o s s ib ilid a d e d e q u e o e v a n g e lista c o m p le ta ra e ssa tra d iç ã o
m e d ia n te im a g in a ç ã o c ria tiv a .
1368 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

COMENTÁRIO: DETALHADO

Introdução: A caminho da cruz e a crucifixão (19,16b-18)

E stes v ersícu lo s se rv e m co m o u m a tra n siç ã o d o s e p isó d io s o n d e Jesus


é ju lg a d o p o r P ilato s ao s e p isó d io s q u e o c o rre m e n q u a n to Je su s e stá
n a cru z. E m b o ra te n h a m o s reje ita d o a su g e stã o d e q u e e sta In tro d u -
ção seria m ais b e m classificada co m o p a rte d o ju lg a m e n to d e Jesus
p o r P ilatos, reco n h ecem o s q u e João a to u a cru cifix ão a o ju lg a m e n to
m ais so lid a m e n te d o q u e q u a lq u e r o u tro ev a n g elista . O c a m in h o d a
c ru z é d e scrito laco n icam en te; e n ã o se p e rm ite n e n h u m a c e n a d e co-
m iseração , tal c o m o a e n c o n tra d a em Lc 23,27-31, q u e d istra ia o leitor.
U m m ín im o d e d e ta lh e é d a d o - o su ficien te p a ra p ô r a cen a p a ra o
P rim eiro e p isó d io o n d e P ilato s fala m ais u m a vez.
É m u i n o tá v e l q u e João n ã o p re se rv e rem in iscên cia d o p a p e l d e
S im ão d e C iren e u em c a rre g a r a v ig a d a c ru z , co m o re g is tra d o n o s
trê s e v a n g elh o s sinóticos. E m p a rtic u la r, M arco s (15,21) re v e la c o n h e-
cim en to esp ecial d e S im ão, a sab er, q u e ele e ra o p a i d e A le x a n d re
e R ufus, d o is h o m e n s q u e p o ssiv e lm e n te e ra m b e m c o n h e cid o s d a
c o m u n id a d e cristã e m R om a p a ra q u e m M arco s e sta v a e sc re v e n d o
(Rm 16,13?). E m b o ra a lg u n s e stu d io so s (p. ex., S. R ein a c h ) te n h a m
p ro p o sto q u e o p a p e l d e S im ão foi u m a d ra m a tiz a ç ã o im a g in a tiv a d o
d ito em M c 8,34, "Se a lg u é m deseja v ir a p ó s m im , q u e n e g u e a si m es-
m o, to m e su a c ru z e sig a-m e", h á m u ita ra z ã o p a ra se p e n s a r q u e a q u i
o s sin ó tico s te n h a m u m a tra d iç ã o confiável. A d m itid a m e n te , e ra n o r-
m al q u e o crim in o so c arreg asse, ele m esm o , a v ig a d a c ru z , m a s talv e z
o p ró p rio d esv io d o p a d rã o n o rm a l reforce a p ro b a b ilid a d e h istó rica.
Se o p a p e l d e S im ão n ã o for histó rico , p o r q u e s e u n o m e d e v a se r
le m b ra d o o u in tro d u z id o ? E n tão ele n ã o se rv e a n e n h u m p ro p ó sito
teológico óbvio.
Q u e se n tid o , p o is, d a ría m o s à afirm ação d e João d e q u e Jesus car-
re g o u p e sso a lm e n te a cru z? Se a c eita rm o s o u n ã o u m a h a rm o n iz a ç ã o
e n g e n h o sa n o s rela to s sin ó tico s (ver n o ta), a in d a d e v e m o s d e c id ir se
a om issão q u e João faz d e S im ão foi p o r su p re ssã o d e lib e ra d a o u p o r
ig n o rân cia. A s u g e stã o d e q u e foi p o r ig n o râ n c ia , p o rq u e a tra d iç ã o
q u e v eio às m ão s d o e v a n g elista n ã o m e n c io n av a S im ão, c o rre c o n tra
a objeção d e q u e a N a rra tiv a Jo an in a d a P aix ão d e p e n d e p ro fe ssa -
m en te d o te s te m u n h o d e u m a te ste m u n h a o c u la r q u e e sta v a ju n to ao
65 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução; episódios 1-4) 1369

C a lv á rio (19,35). N a tu ra lm e n te , é se m p re p o ssív e l re s p o n d e r q u e a


te s te m u n h a o c u la r n ã o v iu n e c essa ria m e n te o q u e aco n teceu n o cam i-
n h o p a ra o C a lv á rio o u q u e n ã o c o n sid e ro u su fic ie n tem e n te im p o r-
ta n te o p a p e l d e S im ão p a ra ju stifica r in clu são ; m as n e n h u m a d essas
re s p o s ta s é re a lm e n te satisfató ria.
A m a io ria d o s e stu d io so s p e n s a q u e h o u v e u m a su p re ssã o de-
lib e ra d a d a m e m ó ria d e Sim ão. A lg u n s têm e n c o n tra d o u m a raz ã o
teo ló g ica p a r a tal su p re ssã o e m u m a ap o lo g ética an ti-g n ó stica. I rineu
(Contra Heresia 1,24:4; PG 7:677) re g istra q u e os g nósticos d o 2a sé-
cu lo , e sp e c ia lm e n te B asilides , co m o p a rte d e s u a cristo lo g ia docética,
p ro p ô s q u e S im ão d e C iren e, e n ã o Jesus, foi crucificado. N o e n ta n to ,
n ã o te m o s c e rtez a so b re q u ã o fo rte fato r a n ti-d o cético jazia n o Q u a rto
E v a n g e lh o (vol. 1, p . 75) e e sta m o s lo n g e d e sa b er p o sitiv a m e n te q u e
tal in te rp re ta ç ã o d o p a p e l d e S im ão e sta v a e m circulação n o tem p o
em q u e o e v a n g e lh o foi escrito.
U m a ra z ã o m u ito m ais p ro v á v e l p a ra a o m issão d e S im ão é o
d esejo d e João d e c o n tin u a r o tem a d e q u e Jesu s se g u iu ru m o à su a
m o rte co m o o ú n ic o se n h o r d e se u p ró p rio d estin o . O u v im o s p rev ia -
m e n te q u e Jesu s e n tre g a ria s u a p ró p ria v id a e q u e n in g u é m a to m aria
d e le (10,18). Jesu s in s tru iu p e rm issiv a m e n te a Ju d a s q u e se a p re ssa sse
n a c o n c re tiz a çã o d a tra içã o (13,27). Jesus m o stro u q u e p o d ia ter resis-
tid o à p ris ã o , to rn a n d o se u s in im ig o s im p o te n te s (18,6), e p e rm a n e c e u
d e s te m id a m e n te a n te A n á s (18,20-23) e a n te P ilato s (19,9-11). A ssim
a g o ra ele se g u e ru m o ao C a lv á rio se m n e n h u m a a ju d a h u m a n a .
O u tra p o ssív e l r a z ã o teo ló g ica p a ra a ên fase d e João d e q u e Jesus
c a rre g o u s u a p ró p ria c ru z p o d e ría ter sid o o desejo d e in tro d u z ir a
tip o lo g ia d e Isa q u e q u e c a rre g o u a len h a p a ra seu p ró p rio sacrifício
(G n 22,6). E sta in te rp re ta ç ã o foi fre q u e n te e n tre os P a d re s d a Igreja,
p. ex., J o ão C risóstomo , In Jo. H orn. 85,1; PG 59:459. P o r certo q u e as
alu sõ e s v e te ro te s ta m e n tá ria s n o s rela to s e v an g élico s d a crucifixão são
fre q u e n te s, e o tem a d e Isa q u e e ra p o p u la r n o s círcu lo s ju d aic o s e ap a-
re n te m e n te ta m b é m n o s círculos cristão s (G lasson , p . 98, p e n sa q u e
R m 8,32 a lu d e à LXX d e G n 22,12; v e r ta m b é m H b 11,17-19; e n o te J. E.
W ood , "Isaac Typology in the New Testament", N TS 14 [1967-68], 583-89).
E s tu d o d e ta lh a d o d o d e se n v o lv im e n to p rim itiv o d o tem a d e Isaq u e
te m s id o feito p o r G. V ermes , Scripture and Tradition in Judaism (Leiden:
Brill, 1961), p p . 193-227, e p o r R. L e D éa u t , La nuit pascale (A nalec-
ta B iblica 22; R om e: P o n tifical Biblica In stitu te , 1963), esp ecialm en te
1370 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

p p . 198-207. N o I s2 sécu lo d.C ., Isa q u e e ra d e scrito co m o u m a d u lto


q u e v o lu n ta ria m e n te ac eito u a m o rte (u m a co m b in ação d o re la to e m
G n 22 co m o tem a d o S ervo S o fred o r d e Is 53). A lém d o m ais, esta-
b eleceu -se u m a relação e n tre o c o rd e iro p a sc a l (u m te m a jo a n in o n a
N a rra tiv a d a P aixão) e o sacrifício d e Isaq u e, v isto q u e o sacrifício foi
d a ta d o e m 15 d e N isan . V ermes , op. cit., p . 216, cita u m tex to d a M e-
k ilta d o R ab in o Ishm ael: "E q u a n d o e u v ir o sa n g u e , p a s sa re i so b re
v ó s [Ex 12,13] - e u vejo o sa n g u e d a a ta d u ra d e Isa q u e ". E m relação
à p a ssa g e m jo an in a q u e o ra c o n sid e ram o s, o c o m e n tá rio so b re Isa-
q u e c a rre g a n d o a len h a n a M id ra sh R ab b ah LVI 3 (u m a o b ra ta rd ia )
é m u ito in teressan te: "... com o a q u e le q u e carrega a cruz [o u e sta c a d e
execução] so b re o p ró p rio o m b ro ".
P o d e m o s n o ta r e n tre p a rê n te s e s q u e o sim b o lism o d e Isa q u e é
a p e n a s u m fa to r q u e n o s lev a a p e n s a r q u e Jo ão c o n te m p lo u Je su s
co m o u m a v ítim a sacrificial q u e m o rre u n o e x a to m o m e n to e m q u e o s
c o rd e iro s p a s c a is e s ta v a m s e n d o m o rto s n o te m p lo (v er p p . 1413-15
ab aix o ; ta m b é m l j o 2,2; A p 1,5). N ã o o b sta n te , re je ita m o s a te se d e
M iguen s , p p . 9-10, d e q u e Je su s e ra a v ítim a oferecida por Caifás q u e
e ra " s u m o sa c e rd o te n a q u e le a n o " (Jo 11,51; 18,14). N a te o lo g ia jo a-
n in a , Je su s re n u n c ia s u a p r ó p ria v id a (10,18) e se c o n s a g ra (17,19).
V erem o s n o c o m e n tá rio so b re 19,23 q u e Je su s c a m in h a p a r a s u a
m o rte v e s tid o d e u m a v e ste sim b o lic a m e n te s a c e rd o ta l - u m a tú n i-
ca in c o n s ú til re m in isc e n te d a v e ste d o s u m o sa c e rd o te . C o m o Isa-
q u e n o p e n s a m e n to ju d a ic o p o p u la r , ele é u m a v ítim a q u e o fere c e a
si m esm o .
A in d a o u tra su g e stã o p a ra p o r q u e João in siste q u e Jesu s carre-
g o u su a p ró p ria c ru z foi fo rm u la d a p o r D odd , Tradition, p p . 124-25.
Ele salien ta a s im ila rid a d e e n tre a a ção d e Jesu s co m o d e sc rita e m João
e o d ito re g is tra d o e m Lc 14,27: " A q u e le q u e n ã o lev a s u a p r ó p ria c ru z
e v e m a p ó s m im n ã o p o d e se r m e u d isc íp u lo ". N o e n ta n to , é difícil
p e n s a r q u e a cen a d e João é d e scrita co m o o c u m p rim e n to d e ste d ito ,
p o is o q u a d ro sin ó tico e m q u e S im ão c a rre g a a c ru z a p ó s Jesu s c u m -
p re -0 m ais litera lm e n te . A lém d o m ais, a fo rm a jo a n in a d o d ito (12,26;
v e r vol. 1, p . 771) n ã o m en cio n a o c a rre g a r a cru z.
Q u a n d o passam os d a descrição joanina d a trajetória d a cru z p a ra a
p ró p ria crucifixão, notam os q u e o evangelista faz m enção, m as n ão m os-
tra n e n h u m interesse no s dois hom ens q u e foram crucificados com Jesus.
Ele n ã o reg istrará q u e in su ltaram Jesus (Mc 15,32; e, d ife re n te m e n te ,
65 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução; episódios 1-4) 1371

Lc 2 3 ,3 9 4 3 ‫ ;)־‬ele o s m en c io n a a p e n a s p o rq u e fig u ra rã o n o ú ltim o epi-


só d io d a q u e b ra d a s p e rn a s (Jo 19,32).

Primeiro episódio: Pilatos e a inscrição régia (19,19-22)

O p rim e iro in c id e n te re a l n a crucifixão d e Jesu s m a n té m certa


c o n tin u id a d e co m o q u e aco n te c eu n o p retó rio ; p o is o s a n ta g o n ista s
n o ju lg a m e n to , o s líd e re s ju d e u s e P ilatos, se d e p a ra m o u tra v ez com
Jesu s. A m a n e ira d e d ra m a , e sta c o n fro n tação re s ta u ra a d ig n id a d e
d e P ila to s e se a d e q u a a o sim p á tic o p e rfil q u e o e v a n g elista traça d o
p refe ito . P ila to s tem -se m o stra d o fraco, p o ré m n ã o m ais se e n c u rv a rá.
Se P ila to s se v iu fo rçad o a re n d e r-se a " o s ju d e u s " n a q u e stã o d a cruci-
fixão, su a s p a la v ra s fin ais n o e v a n g elh o são p a la v ra s d e desafio. T eria
a lg u m d ra m a tu rg o d a d o a P ilato s u m c o n to rn o m ais eficiente o u u m
fin a l m a is im p re ssiv o ?
Q u a n d o se te n ta a v a lia r o e p isó d io co m o histó rico , ele e n c o n tra
d ific u ld a d e s. A lg u n s faz e m as d ific u ld a d e s q u a se in tra n sp o n ív e is,
p r e s s u p o n d o q u e João tem e m m e n te q u e P ilato s e scre v e u a inseri-
ção c o m s u a p ró p ria m ã o (ver n o ta so b re v. 19) e rea lm e n te foi ao
C a lv á rio p a ra te s te m u n h a r a crucifixão. A ú ltim a tese te m p o r b ase
o fato d e n ã o lerm o s q u e a lg u m a d a s d eleg açõ es q u e falam a P ilatos
fosse a ele (vs. 20,31,38), e a ssim ele e sta ria b e m p e rto . É b e m p ro v á v e l
q u e isto seja o m esm o q u e b a sea r-se d e m a sia d a m e n te em u m arg u -
m e n to d o silêncio. P o d e b e m ser q u e João esteja e m p re g a n d o o u tra
v e z a técn ica d o c e n ário d u p lo p a ra m o stra r o q u e e stá aco n tecen d o
s im u lta n e a m e n te e m d o is d ife re n te s lu g ares. U m a objeção m ais sé-
ria c o n tra a n a rra tiv a d e João se c e n tra n a m e n ta lid a d e d e "o s p rin -
cip ais sa c e rd o te s d o s ju d e u s " . E m M c 15,32 e M t 27,42 o s p ró p rio s
p rin c ip a is sa ce rd o te s c h a m a m Jesus d e "R ei d e Israel". P o r certo q u e
o e stã o rid ic u la riz a n d o ; m a s e sta tra d içã o m ilita c o n tra o fato d e q u e
se s e n te m p ro fu n d a m e n te p e rtu rb a d o s so b re o u so d o te rm o " O Rei
d o s J u d e u s n u m a afirm ação oficial d o crim e dele. D odd , Tradition,
p . 122, d iz q u e a s a p re se n ta ç õ e s sinóticas e jo an in as d e sta cen a refle-
te m a s te n d ê n c ia s d o s d ife ren te s c an ais d a tra d içã o , p o is elas p õ e m
e m re le v o a a m b iv a le n te reação d o ju d a ísm o oficial a n te s d a q u e d a d e
J e ru sa lé m às reiv in d ic a çõ e s m essiân icas p o p u la re s: a lg u m a s a u to rid a -
d e s ju d a ic a s fala m d a s reiv in d icaçõ es m essiân icas zo m b eteiram erite,
e n q u a n to o u tro s se n te m q u e a h o n ra n a c io n a l p ro íb e in te ira m e n te o
1372 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

u so d e títu lo s m essiân ico s p o r crim in o so s re v o lu c io n á rio s. Seja co m o


for, d ificilm en te p o d e m o s im a g in a r q u e o s sa ce rd o te s p e n s a s s e m q u e
p u d e s se m fo rçar o p refe ito ro m a n o a m u d a r u m a in scrição oficial q u e
m u ito s já h a v ia m v isto . B u l t m a n n e o u tro s reso lv e m o p ro b le m a le-
v a n d o e m co n ta so m e n te o v. 19 co m o v in d o ao e v a n g e lista d e s u a
trad ição , e n q u a n to os vs. 20-22 re p re s e n ta m u m a a m p lificação im ag i-
n a tiv a d o ev an g elista.
E m q u a lq u e r caso, o m o tiv o p rim á rio d o e v a n g elista , n e s te ep isó -
dio, é teológico. A q u e ix a d o s sa ce rd o te s r e in tro d u z o te m a d a re a le z a
tão p ro e m in e n te n o ju lg a m e n to . T o d o s o s e v a n g e lh o s c o n c o rd a m q u e
a acu sação d e se r u m p re te n d e n te rég io foi in scrito c o n tra Jesus; M a-
teu s e L ucas c o n c o rd a m com João d e q u e a a c u sação foi c o lo c a d a n a
cruz; M as so m e n te João c o n v e rte a a c u sação n u m a p ro c la m a ç ã o u n i-
v e rsa i d a en tro n iza ç ã o . A o d isc u tirm o s o ju lg a m e n to p e ra n te P ilato s,
rejeitam o s as teses d e q u e e m 19,13 João d e scre v e Je su s c o m o s e n d o
co lo cad o n a c a d eira d o ju iz co m o p a rte d a e n tro n iz a ç ã o ritu a l (ver
n o ta so b re o "assen to u -se")· A e n tro n iz a ç ã o re a l v e m a g o ra n a c ru z
q u a n d o a rea lez a d e Jesus é rec o n h e c id a p e la p ro c la m a ç ã o a rá u tic a
o rd e n a d a p o r u m re p re se n ta n te d o m a io r p o d e r p o lític o so b re a te rra
e e x p re ssa d a n o s id io m as sacro s e secu lares d o tem p o . A c o n fro n taç ã o
e n tre P ilato s e os sa ce rd o te s realça a p ro fu n d e z a e a s e rie d a d e d a p ro -
clam ação (m esm o co m o a co n fro n taç ã o e n tre Jesu s e P ila to s d u r a n te
o ju lg a m e n to re s sa lto u o re a l sig n ificad o d a rea lez a d e Jesu s - u m a
a d a p ta ç ã o d o u s o jo an in o d o d iálo g o p a ra reso lv e r u m m a l-e n te n d i-
do). A rec u sa d e P ilatos d e m u d a r o títu lo significa q u e a re a le z a d e
Jesu s é a firm a d a a d e sp e ito d e to d a s a s te n ta tiv a s d e "o s ju d e u s " d e
errad icá-la. D e fato, a in sistên cia d e P ilato s p o d e ser u m m o d o irô n ic o
d e in sin u a r q u e e v e n tu a lm e n te o s g e n tio s rec o n h e c erã o a re a le z a q u e
"o s ju d e u s " n e g a m (u m a su g e stã o q u e fizem o s p re v ia m e n te e m refe-
rên cia à p ro cla m a ç ã o q u e o s s o ld a d o s ro m a n o s fiz e ra m d e Je su s c o m o
rei d u ra n te o ju lg am en to ). E ste p o d e se r o p rim e iro e x e m p lo d e u m
tem a q u e e n c o n tra re m o s d iv e rsa s v e z e s n a n a rra tiv a d a crucifixão:
a g o ra q u e Jesu s foi le v a n ta d o d a te rra , ele e stá c o m e ç a n d o a a tra ir a
si to d o s o s h o m en s (12,32). C o m o o b se rv a D odd , Interpretation, p . 437,
o p e rfil q u e João fo rm a d o Jesus cru cificad o está e m h a rm o n ia co m a
fam o sa in te rp o la ç ão cristã n o SI 96,10: " O S en h o r re in a desde 0 lenho
[da cru z]" (u m a red a ç ã o n ã o e n c o n tra d a e m TM o u n a LXX, p o rém
co n h ecid a d e J ustino , T ertuliano e d a tra d iç ã o latina).
65 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução; episódios 1 1 3 7 3 (4‫־‬

Segundo episódio: Os executores repartem as roupas de Jesus; a túnica inconsútil


(19,23-24)

E m b o ra o s o u tro s e v a n g elista s m en c io n em o lan ç a r so rte p a ra


re p a r tir a s v e ste s d e Jesus, so m e n te João traça u m a d istin çã o e n tre
as r o u p a s (ex ternas) e a tú n ic a in co n sú til q u e n ã o h a v e ría d e ser di-
v id id a . A d istin ç ã o é v ista co m o o c u m p rim e n to d o SI 22,19(18). N a
v e rd a d e , a s d u a s lin h a s d o v ersícu lo d o salm o estã o em p a ralelism o
sin o n ím ic o p o é tic o o n d e a m e sm a coisa é d ita d u a s v e z es em dife-
re n te s p a la v ra s; p o is o salm ista, " d iv id in d o a s ro u p a s [TM: beged;
LXX: himatia]" e " la n ç a n d o so rte s so b re a r o u p a [lãbüs; h im a tism o s]"
c o n s titu iu u m a ação p e rtin e n te a u m c o n ju n to d e o rn am e n to . João,
p o ré m , te m e m m e n te d u a s ações d istin ta s (d iv id in d o ; lan ç a n d o
so rte s a fim d e n ã o d iv id ir) p e rtin e n te ao s ite n s se p a ra d o s d o orna-
m e n to (v estes ex tern as; tú n ic a in te rn a). E sta d iv isã o d e p a ra lelism o
sin o n ím ic o d o A T p a re c e ser ta m b é m a te s ta d a em M t 21,2-5 (ver n o ta
so b re 12,14). H á u m a leve p o ssib ilid a d e d e q u e u m ta rg u m e m ara-
m aico d o sa lm o p ro p ic io u m ais ju stificativ a à in te rp re ta ç ã o d e João
d o q u e o tex to h eb ra ico (em referên cia a e ste fen ô m en o , veja vol. 1,
p p . 336s, 576); p o is a tra d iç ã o d o ta rg u m ta rd io d á a s d u a s p a la v ra s
p a ra o rn a m e n to co m o lebüSâ, " ro u p a s " , e p e tãg â, " m a n to ".
M u ito s e s tu d io so s tê m p ro p o sto q u e o in c id e n te d a tú n ic a é o
p r o d u to d a in te rp re ta ç ã o fan ta sio sa o u e rrô n e a q u e o ev a n g elista faz
d o salm o , u m a referên cia ao q u e lh e v eio d a trad ição . E n tre tan to , p a-
rece m a is p ro v á v e l q u e a in te rp re ta ç ã o d o salm o se e ste n d e p a ra co-
b rir u m in c id e n te q u e o e v a n g elista e n c o n tro u e m su a tra d içã o , e n ão
v ice-v ersa. P o r e x em p lo , se o e v a n g elista e sta v a in v e n ta n d o com base
n o sa lm o , a sa b er, "la n ç a r so rte s" e m v e z d e " a rre m e ssa r" (ver nota).
A lé m d o m a is, co m o a se g u n d a p a la v ra p a ra o rn a m e n to n o salm o
(.lãbüs o u h im a tism o s) teria su g e rid o a tú n ic a (chiton, a q u a l n ã o tra-
d u z lãbüs, e sim k e tonet)7
N ã o im p o rta d e o n d e v eio a id eia d a tú n ica, este ite m é o cen-
tro d o sim b o lism o teológico n o e p isó d io . U m a su g e stã o p o p u la r é
q u e a tú n ic a in co n sú til tecid a e m u m a só p eça se d e stin a a lem b rar
o leito r d a v e s tim e n ta d o (sum o) sacerd o te, e assim p ro c la m a r q u e
Je su s m o rre u n ã o só co m o rei, m as ta m b é m co m o sacerd o te. Ex 28,4
e L v 16,4 u s a m chitõn (heb. k e tonet) em referên cia a u m a d a s ves-
tim e n ta s d o s u m o sacerd o te. A p a la v ra in co n sú til (arraphos) n ã o
1374 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

se e n c o n tra n a LXX; m a s J osefo , Ant. 3,7.4; 161, d e sc re v e a tú n i-


ca d o s u m o sa ce rd o te q u e d esce até o to rn o z e lo co m o s e n d o u m a
lo n g a ro u p a tecid a [de alto a baixo], n ã o c o m p o sta d e d u a s p eças.
Ex 39,27 (LXX: 36,35) fala d a tú n ic a d e lin h o d o s sa c e rd o te s co m o
" u m a p eça tecid a". O tem a d e q u e Jesus e ra sa c e rd o te e re i p a re c e
s u rg ir em A p 1,13, o n d e ele u s a as v e ste s d o s d o is ofícios. N a q u e la
p a ssa g e m se u s a p o d eres p a ra re tra ta r o m a n to lo n g o q u e v a i a té se u s
p és; e esta p a la v ra se e n c o n tra n a fo rm a a d je tiv a com chitõn n u m a
d escrição e m Ex 29,5 d a tú n ic a d o su m o sa c e rd o te q u e d e sce a té o
to rn o zelo . C e rta m e n te a id eia d e Jesus se e n c a m in h a n d o ru m o à su a
m o rte co m o sa ce rd o te era c o n h e cid a n o s te m p o s d o N T . Ela é p a rtic u -
larm e n te p ro e m in e n te em H e b re u s, u m a o b ra com m u ita s a fin id a d e s
jo an in a s (ver C. S picq , VÉpitre aux Hébreux [Paris: G a b a ld a , 1952], I,
109-38; ta m b é m "Vorigine johannique de la conception du Christ-prêtre
dans VEpítre aux Hébreux", e m Aux sources de la tradition chrétienne [Go-
g u el v o lu m e; N e u c h â te l, 1950], p p . 258-69). Q u e a tú n ic a in c o n sú til
d o su m o s a ce rd o te seria d e g ra n d e im p o rtâ n c ia n a s m e n te s d o p o v o
é s u g e rid o p e lo c u id a d o q u e H e ro d e s e os ro m a n o s, re sp e c tiv a m e n te ,
ex erciam em m a n te r o c o n tro le d a s v e stim e n ta s sa ce rd o ta is. Q u e n ã o
seria in c o m u m v e r u m sim b o lism o teológico n a tú n ic a é s u g e rid o p e la
aleg o ria q u e F ilo , de fuga 20; 110-12, c o n stró i em to rn o d o fato d e q u e
o sacerd o te n ã o p o d ia ra sg a r su a s vestes: a r o u p a sa c e rd o ta l le m b ra
u m d o s o rn a m e n to s q u e o logos faz p a ra si d a c o n te x tu ra d o u n iv e rso
(vol. 1, p . 813).
E n q u a n to q u e p a ra a lg u n s e s tu d io s o s o sim b o lism o s a c e rd o ta l
d a tú n ic a é p la u sív e l, q u e ele n ã o ex p lic a p le n a m e n te a c e n a jo a n in a ,
p o is ele n ã o oferece e x p licação p o r q u e o s s o ld a d o s n ã o d iv id ira m a
tú n ic a . P o rta n to , o u co m o u m s u b s titu to p a r a o sim b o lism o sa c e rd o -
tal o u em a d iç ã o a ele, a lg u n s d e seja m v e r u m a re fe rê n c ia sim b ó lic a
à u n id a d e d e Je su s e se u s s e g u id o re s. P o r e x e m p lo , C ipria n o , On
the Unity of the Catholic Church 7; CSEL, 3 /1 :2 1 5 , v ê n a s v e s te s q u e
fo ra m d iv id id a s e m q u a tro p a rte s u m sím b o lo d o s q u a tro c a n to s d a
te rra , e n q u a n to a tú n ic a in c o n sú til re p re s e n ta a Ig reja in d iv is a . Re-
c o rre n d o a u m a le itu ra d o v. 23 o n d e a tú n ic a "fo i te c id a d e s d e a
p a rte s u p e rio r to ta lm e n te se m c o s tu ra " , C ipria no in te r p re ta " d e s d e a
p a rte s u p e rio r" n o s e n tid o e m q u e a u n id a d e d a Ig reja v e m d e D e u s
e n ã o d e v e s e r d e s tr u íd a o u e lim in a d a p e lo s h o m e n s. Se C ipria n o
se re n d e a u m a teo lo g iz a ç ã o q u e v a i a lé m d o sig n ific a d o ó b v io d o
65 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução; episódios 1-4) 1375

te x to , n ã o o b s ta n te o te m a d a u n id a d e n ã o e sta ria fo ra d e lu g a r em
Jo ão (10,15-16; 1 1 , 5 1 1 7 , 1 1 . 2 1 - 2 3 ;5 2 ‫)־‬. H oskyns , p . 529, sa lie n ta q u e o
v e rb o g re g o " ra s g a r" , u s a d o n a c o n v e rsa ç ã o d o s s o ld a d o s, a p a re c e
e m o u tro lu g a r e m Jo ão e m re fe rê n c ia à d iv isã o d o p o v o e m fac-
çõ es (7,43; 9,16; 10,19 etc. - v e r ta m b é m a im p lic a ç ão sim b ó lica d o
ra s g a r d a s ro u p a s e m lR s 11,29-31). A o a v a lia r e sta in te rp re ta ç ã o
d e Jo ão , é m u ito d ifícil tra ç a r a lin h a e n tre e x eg ese e eiseg ese. Bult-
m a n n , p . 5 1 9 10, s a lie n ta a in d a a s p o s s ib ilid a d e s sim b ó licas u lte rio re s
à lu z d a id e ia ra b ín ic a d e q u e a m b o s, A d ã o e M o isés, rec e b e ra m
d e D e u s u m a tú n ic a in c o n sú til. B. M urmelstein, Angelos 4 (1932), 55,
le m b r a n d o q u e n o p e n s a m e n to ju d a ic o p o p u la r o p a tria rc a José
foi u m a fig u ra salv ífica, a p o n ta p a ra a lo n g a (?) tú n ic a d e José em
G n 3 7 ,3 .2 3 , d a q u a l ele foi d e s p id o e p e la q u a l se la n ç a ra m so rte s
(Midrash Rabbah 84,8). N a tu ra lm e n te , n ã o te m o s co m o sa b e r se tais
re fe rê n c ia s e s ta v a m n a m e n te d o e v a n g e lista .

Terceiro episódio: Jesus dá sua mãe ao discípulo amado (19,25-27)

Já re ssa lta m o s n a s n o ta s q u e n ã o só ao m en c io n a r a m ã e d e Jesus


e o D isc íp u lo A m a d o (vs. 26-27), m a s tam b é m ao listar a s m u lh e re s
n o v. 25, João d ife re sig n ific a tiv a m e n te d o s reg istro s sinóticos. P o rq u e
o s sin ó tico s n ã o m en c io n a m as m u lh e re s até o final d a cena d a cruci-
fixão, a p ó s a m o rte d e Jesus, a m b o s, B u ltm a n n , p p . 5 1 5 ,5 2 0 , e D auer ,
p p . 2 24-25, s u g e re m q u e o rig in a lm e n te a m en ção d a s m u lh e re s se in-
tro d u z iu em João m ais ta rd e , e q u e ela só foi a lte ra d a p a ra a n te s d a
m o rte d e Je su s q u a n d o se a d ic io n a ra m a s o b serv açõ es d e Jesus à su a
m ã e e a o D iscíp u lo A m a d o . C e rta m e n te , d e fato n ã o h á co m o d eterm i-
n a r isto , e s u a p la u sib ilid a d e d e p e n d e d e q u ã o e stre ita é a conexão q u e
fiz e rm o s e n tre o v. 25 e os vs. 26-27. P o r ex em p lo , a referên cia à " su a
m ã e " , in se rid a n a lista d a s m u lh e re s n o v. 25, foi feita p a ra facilitar a
a d iç ã o d o s v s. 26-27, o u e ra p a rte d a lista o rig in al? Se o e v an g elista es-
ta v a s im p le sm e n te e x p a n d in d o o v. 25 p a ra p r e p a ra r o c a m in h o p a ra
o s v s. 2 6-27, p o r q u e ele n ã o a d ic io n o u ta m b é m o D iscíp u lo A m ad o ?
E n q u a n to os vs. 2 6-27 c e rta m e n te são jo an in o s e m estilo e se p re s ta m à
teo lo g iz a ç ã o jo an in a , n e m to d o s os e stu d io so s os c o n sid e ra ria m com o
u m a in v e n ç ã o d o ev an g elista. B arrett , p. 455, p e n s a q u e o in te resse teo-
ló g ico d a cen a é frág il d e m a is p a ra a p re se n ç a d e M aria e d o D iscípulo
A m a d o te r s id o in se rid a p e lo e v a n g elista - e ra p a rte d e s u a tra d içã o
1376 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

m esm o q u a n d o n e ste caso a tra d iç ã o fosse in co rreta . L oisy , p . 387,


p e n s a q u e a p re se n ç a d e M a ria e d o D iscíp u lo A m a d o e ra p a rte d a
tra d içã o jo an in a tra d icio n a l, e n q u a n to o s n o m e s d a s d e m a is m u lh e re s
fo ra m a g re g a d o s p o r u m re d a to r p a ra d e ix a r João e m h a rm o n ia com
o s sin ó tico s (a d e sp e ito d o fato d e q u e os n o m e s d ife re m d o s n o m e s
sinóticos!). N o sso p o n to d e v ista p e sso a l é q u e M aria foi e sp ec ialm en -
te m e n c io n ad a n a tra d iç ã o q u e c h e g o u ao e v a n g elista , co m o v isto n o
v. 25, m a s q u e a referên cia ao D iscíp u lo A m a d o , a q u i co m o e m o u -
tro s lu g are s, é u m c o m p le m e n to à tra d içã o . (Se a c o m u n id a d e jo a n in a
reco rre a u m a tra d içã o q u e v eio d o D iscíp u lo A m a d o , s e u p a p e l e m
v á ria s cen as p o d e b e m se r q u e fosse p a rte d o c o n h e cim e n to g e ra l d a
c o m u n id a d e , m esm o q u a n d o , p o r u m tip o d e reticên cia, ele n ã o fosse
m en c io n ad o n a tra d iç ã o oficial p ré-e v a n g élic a , p re g a d a e m a is ta rd e
escrita - em o u tra s p a la v ra s, se a p re se n ç a d o D iscíp u lo A m a d o foi
a d ic io n a d a p e lo e v a n g elista a u m a c en a tra d ic io n a l n a q u a l ele n ã o e ra
m en c io n ad o , tal tra d iç ã o n ã o é n e c essa ria m e n te n ã o h istó rica). T o d o s
o s q u e n e g a m a p rese n ç a d e P e d ro n o p á tio d o su m o sa c e rd o te co m o
se n d o c o n tra d itó ria a M c 14,27 (ver p p . 1267-72 acim a) n e g a rã o a for-
tiori a p o s s ib ilid a d e d e q u e u m d isc íp u lo d e Jesu s estiv e sse p re s e n te
n o G ólgota. C o m o in d ic a m o s n a s n o tas, n ã o é c erto q u e o q u a d ro si-
n ó tico d a s m u lh e re s à d istâ n c ia d e v a se r p re fe rid o ao q u a d ro jo an in o .
E m b o ra a q u e stã o h istó ric a p ro v a v e lm e n te seja in so lú v e l, e sta -
m o s m u ito m ais in te re s s a d o s c o m a im p lic a ç ã o q u e o e p is ó d io te m
p a r a João. R e c e n te m en te , D a u er , art. cit., a rg u m e n to u q u e o p r in -
c ip al p ro p ó s ito d o e v a n g e lista e ra d e s ta c a r a im p o rtâ n c ia d o D is-
c íp u lo A m a d o , a te s te m u n h a p o r d e tr á s d o e v a n g e lh o . E le e ra tão
im p o rta n te , q u e Je su s o e rg u e u à p o siç ã o d e s e u p r ó p rio irm ã o . Isto
p o d e te r s id o u m te m a s u b s id iá rio n a m e n te d o e v a n g e lis ta , m a s d u -
v id a m o s q u e fo sse p rim á rio . A lg u m a s d a s p re s s u p o s iç õ e s d e D a u er
sã o a b e rta s a d ú v id a , p . ex., a q u e e x te n sã o "E is a q u i te u filh o " é
u m a fó rm u la d e a d o ç ã o (v er n o ta); co m o in d ic a re m o s a b a ix o , p e n s a -
m o s n isto m u ito m ais e n fa tic a m e n te co m o u m a fó rm u la re v e la tó ria .
T a m b ém q u e s tio n a m o s a a firm a ç ã o d e D a u er d e q u e o D isc íp u lo
A m a d o é m ais im p o rta n te n e s te e p is ó d io d o q u e a m ã e d e Jesu s.
D e p o is d e tu d o , a m ã e d e Je su s é a b o rd a d a p rim e iro ; e s e u fu tu ro ,
e n ã o o d o D isc íp u lo A m a d o , é c o n s id e ra d o n o fin a l d o v. 27. A lém
d o m ais, a in te rp re ta ç ã o d e D a u er s e p a ra d e s ta c e n a d e s d e a d o p ri-
m eiro s in a l e m C a n á , o n d e a m ã e d e Je su s a p a re c e u p re v ia m e n te ;
65 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução; episódios 1-4) 1377

e n fa tiz a re m o s q u e a s s im ila rid a d e s e n tre a s d u a s cen as são fortes


d e m a is p a r a se re m ig n o ra d a s.
O u tra ex p licação d a in te n ç ão d o e v an g elista, n e ste ep isó d io , tem
a v a n ta g e m d a sim p lic id a d e : o e v a n g e lista só está in te re ssa d o em re-
la ta r o fato d e q u e o Jesu s m o rib u n d o fez p ro v isã o p a ra a p ro te ç ão
d e s u a m ã e a p ó s s u a m o rte. M u ito s d o s P a d re s d a Igreja (A tanásio ,
E pifâ n io , H ilário ) a ssim in te rp re ta ra m o e p isó d io , u s a n d o esta inter-
p re ta ç ã o co m o u m a rg u m e n to p a ra p ro v a r a p e rp é tu a v irg in d a d e d e
M aria: se ela tin h a o u tro s filhos, e n tã o Jesu s n ã o a teria co n fiad o a
João, filh o d e Z e b e d e u , o D iscíp u lo A m a d o . A liás, u m a tra d iç ã o a in d a
e v o c a d a n o c u m e d a colina d e P a n a y a K a p u lu , n a m o d e rn a T u rq u ia,
u n s 5 k m d e S elçuk (Efeso), m a n té m q u e M aria, su b seq u e n te m e n te ,
re s id iu co m João, m e sm o q u a n d o ele se m u d o u p a ra Efeso. P o n d o d e
la d o o s d e s e n v o lv im e n to s a p o lo g ético s p o p u la re s , d u v id a m o s q u e a
so lic itu d e filial d e Jesu s seja a p rin c ip a l im p licação d a cen a joanina.
T al in te rp re ta ç ã o n ã o teológica faria d e ste e p isó d io u m tem a em m eio
ao s e p isó d io s a lta m e n te sim bólicos q u e o e n v o lv e m n a n a rra tiv a d a
crucifixão. A lém d o m ais, o e v a n g elh o d á v á ria s indicações d e q u e
alg o m a is p ro fu n d o está em m en te. O fra se ad o "Eis a q u i te u filho"
e "E is a q u i tu a m ã e " é o u tro ex em p lo d a fó rm u la rev elató ria q u e D e
G o edt te m d e te c ta d o e m o u tro s lu g a re s em João (vol. 1, p. 240). N esta
fó rm u la, a q u e le q u e fala está re v e la n d o o m istério d a m issão salvífica
esp ecial q u e o refe rid o e m p re e n d e rá ; assim , a filiação e a m a te rn id a d e
p ro c la m a d a s d e sd e a c ru z são d e v a lo r p a ra o p la n o d e D eu s e se re-
lac io n am co m o q u e está se n d o rea liz a d o n a elevação d e Jesus à cruz.
S u g ere-se ta m b é m u m sig n ificad o m ais p ro fu n d o p e lo v ersícu lo q u e
se g u e este e p isó d io e m João: "D e p o is d isto , [Jesus estava] sa b en d o q u e
tu d o e sta v a a g o ra c o n su m a d o " . A ação d e Jesus e m relação à su a m ãe
e ao D iscíp u lo A m a d o co m p le ta a o b ra q u e o P ai lh e d e u p a ra fazer e
c u m p re a E scritu ra (ver n o ta so b re " a fim d e " em 19,28). T u d o isto im -
p lica a lg o m ais p ro fu n d o d o q u e o c u id a d o filial (ain d a q u e, se a cena é
h istó rica, o c u id a d o filial p o d e ter sid o su a im plicação original).
A m a io ria d o s c o m e n ta rista s e n c o n tra u m a im p licação teológica,
ao in te rp re ta r a m ãe d e Jesus e o D iscíp u lo A m a d o co m o fig u ras re-
p re s e n ta tiv a s o u sim bólicas d e u m g ru p o m aio r. R. H . S trachan , The
Fourth Gospel (3 rd ed.; L o n d res: SCM , 1941), p . 319, p e n sa q u e M aria
re p re s e n ta a h e ra n ç a d e Israel q u e a g o ra está s e n d o co n fiad a ao s cris-
tão s (o D isc íp u lo A m a d o ). E. M eyer , art. cit., sa lie n ta q u e , ju sta m e n te
1378 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

com o os irm ã o s in c ré d u lo s d e Jesus (7,5) a g o ra c e d e ra m lu g a r a u m


n o v o irm ã o (o D iscíp u lo A m a d o ), a ssim o c ristia n ism o ju d a ic o e stá
se n d o su b s titu íd o p e lo c ristia n ism o g en tü ico . B ultmann , p . 521, p e n s a
em M aria co m o a c rista n d a d e ju d a ic a e o D iscíp u lo A m a d o co m o a
c ris ta n d a d e gentílica: o s ju d e u s cristão s e n c o n tra m u m lar e n tre os
cristão s g en tü icos. O rígenes, In Jo. 1,4(6); G C S 10:9, v ê n a cen a u m a
lição p a ra o cristão perfeito: "T o d o a q u e le q u e se to rn a p e rfe ito já
n ão v iv e su a p ró p ria v id a , m a s C risto v iv e n ele, "E is a q u i te u filho,
C risto ‫" ׳‬. O b v ia m e n te, n ã o p o d e m o s d isc u tir se ria m e n te tal riq u e z a
d e p o ssib ilid a d e s fig u ra tiv as. A p re se n ta re m o s ab aix o a in te rp re ta ç ã o
q u e p e n sa m o s se r a m ais p la u sív e l, e x tra in d o o s a rtig o s d e K oehler
e Langkammer p a ra in fo rm ação h istó rica, e d a s o b ra s d e B raun ,
G aechter e F euillet p a ra su g e stõ e s so b re o sim b o lism o .
H á p o u c a d ú v id a d e q u e n o p e n s a m e n to jo a n in o o D iscíp u lo
A m a d o p o ssa sim b o liz a r o cristão; O rígenes é u m a te s te m u n h a d a an -
tig u id a d e d e sta in te rp re ta ç ã o . O p ro b le m a re a l d iz re sp e ito a o v a lo r
sim bólico d a m ãe d e Jesus. H á n o 4“ século e v id ê n c ia d e q u e M aria,
ao p é d a c ru z , foi to m a d a co m o u m a fig u ra d a Igreja. E fraem , o sírio,
d e c la ra q u e, assim co m o M oisés d e sig n o u a Jo su é e m s e u lu g a r p a ra
c u id a r d o p o v o , a ssim Jesus d e sig n o u a João e m se u lu g a r p a ra c u id a r
d e M aria, a Igreja (K o eh ler , p . 124). N o O c id e n te , cerca d o m e sm o
tem p o , A mbrósio m a n tin h a q u e em M aria tem o s o m isté rio d a Igreja,
e q u e a c a d a cristão e q u e Jesu s p o d e d iz e r e m refe rê n c ia à Igreja: "E is
a q u i tu a m ã e " - ao v e r C risto v ito rio so n a c ru z , o c ristã o se to rn a u m
filho d a Igreja (In Luc. 7,5; PL 15:1700C). E sta in te rp re ta ç ã o d o 4a sécu-
lo a resp e ito d e M aria ao s p é s d a c ru z com o a Igreja p o d e rela cio n a r-se
à c o m p re en sã o d o 2a século (e m ais cedo) d e M a ria co m o a N o v a Eva
(vol. 1, p. 302s.). A g o ra te m o s d e in d a g a r d e n ó s m e sm o s q u ã o b e m
esta in te rp re ta ç ã o se a ju sta à m e n ta lid a d e jo an in a.
F a z e n d o u m p a rê n te se , a n te s d e se g u irm o s e m fre n te, te m o s d e
fazer d u a s o b serv açõ es p o r a m o r à clareza. P rim e iro , n ã o p re te n d e m o s
q u e a in te rp re ta ç ã o q u e v ê M aria ao s p é s d a c ru z co m o a Igreja seja a
exegese p re d o m in a n te d o 4Ωséculo o u m esm o d e sécu lo s su b se q u e n -
tes. S e g u n d o , e sta in te rp re ta ç ã o sim bólica d o p a p e l d e M aria é m u ito
d istin ta d a teo ria d e q u e M aria, co m o um indivíduo, se to m a a m ã e d e
to d o s o s cristão s. C o m o se d á c om o in c id e n te e m C an á, h á u m g ra n d e
v o lu m e d a lite ra tu ra cató lico -ro m an a q u e te m se p re o c u p a d o com a
cena ao p é d a c ru z , m u ita s v ezes b u s c a n d o n e ste e p isó d io a s bases
65 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução; episódios 1-4) 1379

p a ra a teo lo g ia d a m a te rn id a d e e sp iritu a l d e M aria. O s a rtig o s d e


C eroke e K errigan , c ita d o s n a B ibliografia, são ex em p lo s d e e stu d o s
sério s n e ste se n tid o (com o d istin to d o escrito m e ra m e n te p io e m ed i-
tativ o ). S o b re a s b a se s d e q u e as citações p a p a is d a p a ssa g e m consti-
tu e m u m a in te rp re ta ç ã o a u to rita tiv a , D. U nger , art. cit., m a n te ria q u e
a m a te rn id a d e e s p iritu a l é u m a doutrina m a ria n a cató lico -ro m an a. To-
d av ia, m u ito s ex egetas católicos, p o r exem plo, T illm ann , W ikenhauser
v e e m ta l in te rp re ta ç ã o co m o o fru to d e u m lab o r teológico ta rd io so b re
o tex to , u m a teo lo g ização q u e v a i c o n sid e rav e lm e n te a lém d e qual-
q u e r in te n ç ã o p ro v á v e l d o ev an g elista; e c e rta m e n te esse é o p o n to
d e v ista d o p re s e n te escritor. (C o m en ta rista s p ro te sta n te s, talv ez em
reação a o p e n s a m e n to católico, tê m v a ria d o b a s ta n te so b re d a r im p o r-
tân c ia à fig u ra d e M a ria n e sta p a ssa g e m jo an in a; H oskyns e T hurian
são ex ceções n o táv eis). M u ito e m b o ra a in te rp re ta ç ã o d e M aria com o
sím b o lo d a Ig reja seja b e m a n tig a , o conceito d a m a te rn id a d e espi-
ritu a l p e s so a l d e M aria faz su a a p a riçã o e m relação à cena ao p é d a
c ru z n o 9 2 sécu lo , n o O rien te , com J orge d e N ic o m e d ia (Jesus fez d e
M a ria a m ã e n ã o só d e João, m a s ta m b é m d o s d e m a is d iscíp u lo s) e n o
l l 2 sécu lo , n o O c id e n te , com o P a p a G regório VII (K o eh ler , art. dt.,
p p . 141-45; L ang kam m er , art. dt.).
V o lta n d o a g o ra à n o ssa b u sc a p e lo te m a d e João n o e p isó d io , p en -
sa m o s e s ta r claro q u e tu d o o q u e o s im b o lism o e n v o lv e e sta ria c entra-
d o n a m ã e d e Jesus e m v ir a ser a m ãe d o D iscíp u lo A m a d o . (Talvez
seja ta m b é m im p o rta n te a a b o rd a g e m "M u lh e r" ; v e r n o ta so b re 2,4).
S o licitam o s ao leito r q u e rec o rra ao q u e d isse m o s so b re o sim b o lism o
d a m ã e d e Jesu s em C a n á (vol. 1, p p . 302-04) e d a m u lh e r so b re d a r à
lu z e m 16,21 (p p . 1133-35 acim a). O e p isó d io a o p é d a c ru z te m estes
d e ta lh e s e m c o m u m com a cen a d e C an á; a s d u a s cen as são os ú n ico s
lu g a re s n o e v a n g e lh o em q u e a m ã e d e Jesu s ap arece; e m c a d a u m a
ela é a b o rd a d a co m o "M u lh e r" ; e m C a n á , su a in te rv en ç ã o é rejeitad a
so b re a s b a s e s d e q u e a h o ra d e Jesus a in d a n ã o h a v ia c h e g ad o , m as
a q u i e sta m o s n o c o n tex to d a h o ra d e Jesus (a " h o ra " é m e n c io n a d a n o
v. 27 - a ú n ic a v e z q u e a p a la v ra o co rre em se n tid o teológico n o s caps.
18-19); e m a m b a s a s cenas, os d isc íp u lo s d e Jesu s se fig u ra m p ro em i-
n e n te m e n te . A c en a a o p é d a c ru z te m estes d e ta lh e s em c o m u m com
16,21: o u s o d a s p a la v ra s " m u lh e r" e " h o ra " ; o te m a d a m a te rn id a d e ;
e o te m a d a m o rte d e Jesus. N o vol. 1, p . 302s., su g e rim o s q u e, se
a M a ria se re c u s o u u m p a p e l d u ra n te o m in isté rio d e Jesu s q u a n d o
1380 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

in iciad o e m C an á, fin a lm e n te ela rec e b e u s e u p a p e l n a h o ra d a p a ix ã o ,


m o rte e ressu rre içã o d e Jesus. N e sta h o ra c u lm in a n te , o s h o m e n s d e-
v e m ser re c ria d o s co m o filhos d e D e u s q u a n d o o E sp írito lh es so p ra
(pp. 1386,1482 abaixo). A d o lo ro sa cena a o p é d a c ru z re p re se n ta a s d o -
res d e p a rto p elas q u ais o esp írito d e salvação é p ro d u z id o (Is 26,17-18)
e e n tre g u e 0 o 19,30). A o to m a r-se a m ã e d o D iscíp u lo A m a d o (o cris-
tão), M aria, sim b o licam en te, ev o ca a Sião q u e , d e p o is d a s d o re s d e
p a rto , d á à lu z u m n o v o p o v o co m aleg ria (Jo 16,21; Is 49,20-22; 54,1;
66,7-11) - v e r F euillet , "Leds adieux", p p . 477-80; "L'heure", p p . 361-80.
Seu filho n a tu ra l é o p rim o g ê n ito d o s m o rto s (Cl 1,18), a q u e le q u e
tem a s c h a v es d a m o rte (A p 1,18); e o s q u e c re e m n e le são n a sc id o s d e
n o v o à su a im ag em . C o m o irm ã o s d e Jesus, eles a tê m p o r m ãe.
A m ã e d e Jesus é a N o v a E va q u e , e m im ita ç ã o d e s u a p ro tó -
tip a, a " m u lh e r" d e G n 2-4, p o d e dizer: " C o m o au x ílio d o S e n h o r
g erei u m h o m e m " (cf. G n 4,1 - F eu illet , "Les adieux ", p p . 474-77).
T alvez p o ssa m o s ta m b é m rela cio n a r M aria, N o v a E va, com G n 3,15,
u m a p a ssa g e m q u e d e scre v e u m a lu ta e n tre a p ro g ê n ie d e E v a e a
p ro g ê n ie d a se rp e n te, p o is "a h o ra " d e Jesus é a h o ra d a q u e d a d o
P rín cip e d e ste m u n d o 0 o 12,23.31). O sim b o lism o d o Q u a rto E v an -
g elh o tem certa se m e lh an ç a co m o d e A p 12,5.17, o n d e u m a m u -
lh er d á à lu z ao M essias n a p re se n ç a d o d ra g ã o sa tâ n ico o u a n tig a
s e rp e n te d e G ênesis; e, n o e n ta n to , te m o u tra p ro g ê n ie q u e é o a lv o
d a ira d e S atan ás d e p o is q u e o M essias fo r a rre b a ta d o p a ra o céu.
É in te re ssa n te q u e a p ro g ê n ie d a m u lh e r d o A p o c a lip se é d e sc rita
com o " o s q u e g u a rd a m o s m a n d a m e n to s d e D eu s"; p o is e m Jo 14,21-23
so m o s in fo rm a d o s q u e o s q u e g u a rd a m o s m a n d a m e n to s são a m a d o s
p elo P ai e p e lo F ilho, d e m o d o q u e o d isc íp u lo a m a d o é a q u e le q u e
g u a rd a o s m a n d a m e n to s.
À m a n e ira d e re su m o , p o is, p o d e m o s d iz e r q u e o q u a d ro jo an in o
d a m ãe d e Jesu s se to m a n d o a m ã e d o D iscíp u lo A m a d o p a re c e evo-
car os tem a s v e te ro te sta m e n tá rio s d e Sião d a n d o à lu z u m n o v o p o v o
n a era m essiân ica, e d e E va e s u a p ro g ên ie . E sta im a g e m n o s le v a à
im a g e m d a Igreja q u e g e ra filhos m o d e la d o s se g u n d o Jesu s, e a rela-
ção d o a m o ro so c u id a d o q u e d e v e ju n g ir o s filh o s à s u a m ãe. N ã o de-
sejam os fo rçar o s d e ta lh e s d e ste sim b o lism o o u p re te n d e r q u e ele seja
sem o b sc u rid a d e. M as h á su ficien tes co n firm açõ es p a ra d a r razo áv el
certeza d e q u e estam o s n a d ire ç ão certa. T al sim b o lism o to rn a inteli-
g ível a av aliação d e João (19,28) d e q u e este e p isó d io ao p é d a cru z é a
65 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução; episódios 1-4) 1381

c o n su m a ç ã o d a o b ra q u e o P a i d e u a Jesus p a r a fazer, n o con tex to d o


c u m p rim e n to d a E scritu ra. C e rta m e n te , o sim b o lism o q u e tem o s p ro -
p o s to é b íb lico (e a ssim este e p isó d io d a crucifixão se encaixa com os
o u tro s e p is ó d io s q u e e n fa tiz a m a E sc ritu ra com ta n to v igor). E v isto
q u e o sim b o lism o e stá c e n tra d o e m certas p re v isõ e s d e Jesus p a ra o
f u tu ro d o s q u e c re e m n ele, d e m u ita s m a n e ira s ele c o m p le ta s u a obra.
E le m o s tra a té o fim s e u a m o r p a ra co m o s se u s (13,1), p o is sim bólica-
m e n te ele a g o ra p ro v ê u m co n tex to d e a c o n ch e g a n te a m o r m ú tu o em
q u e v iv e rã o d e p o is q u e ele tiv e r p a rtid o . A fó rm u la rev e la tó ria "Eis
a q u i...", so b re a q u a l tem o s c o m e n tad o , é re a lm e n te a p ro p ria d a n e sta
cen a, v isto q u e a m ã e d e Jesus e o D iscíp u lo A m a d o estão se n d o esta-
b e le c id o s n u m a n o v a relação re p re se n ta tiv a d a q u e la q u e co n g raçará
a Ig reja e o cristão.
A m a n e ira d e ob serv açõ es co m p le m e n tárias, n o tam o s q u e aque-
les e s tu d io s o s q u e in te rp re ta m o e p isó d io jo an in o p rec e d e n te d a tú n ica
in co n sú til co m o sím bolo d a Igreja in d iv isa a c h am este tem a reforçado
n o sim b o lism o d a estre ita relação e n tre M aria e o D iscípulo A m ado.
N ã o a c h am o s p e rsu a siv a a objeção d e B ultm a nn , p . 521, d e q u e a m ãe
d e Jesu s n ã o p o d e re p re se n ta r a Igreja, p o is (no L ivro d o A pocalipse)
a Igreja é a n o iv a d e Jesus. O sim b o lism o é m u ito p lástico , especial-
m e n te n o s d ife ren te s contextos: em O s 2,18(16), Israel é a esp o sa d e
Ia h w e h , e n q u a n to e m 11,1 Israel é o filho d e Iah w eh . L oisy, p. 488, cap-
to u u m elem en to d e v e rd a d e n a co m p aração d o ep isó d io joan in o ao
p é d a c ru z co m o in cid e n te em M c 3,31-35, o n d e Jesus d iz q u e su a ver-
d a d e ira m ãe e seu s v e rd a d e iro s irm ão s são os q u e fazem a v o n ta d e de
D eus. A M aria foi n e g a d o u m p a p e l e m C an á q u a n d o ela in terv eio sim -
p le sm e n te co m o a m ãe biológica d e Jesus; ela é m ais v e rd a d e ira m e n te
su a m ã e n e sta " h o ra " d o p la n o d e D eu s q u a n d o g era filhos cristãos à
im a g e m d e se u filho. M en o s satisfatório é o p a ra lelo sinótico su g erid o
p o r B arrett , p. 459, a saber, o c u m p rim e n to d a p ro m e ssa d e q u e os cris-
tão s q u e d eix am casa e m ãe os receberão n a era p o r v ir (Mc 10,29-30).

Quarto episódio: Jesus grita de sede; os executores lhe oferecem vinho; ele
rende 0 Espírito (19,28-30)

P o d e m o s c o m eçar c om u m e s tu d o d a c o m p lex a relação d e ste epi-


só d io co m d o is in cid e n te s e n v o lv e n d o v in h o e n c o n tra d o n a n a rra tiv a
sin ó tica d a crucifixão.
1382 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

(1 ) 0 re la to m a rc a n o A e M a te u s, p o ré m n ã o L ucas, re g istra q u e
a Jesu s se o fereceu u m a b e b id a tã o lo g o ele c h e g o u n o G ó lg o ta e a n te s
d e se r crucificado. M arcos a d e scre v e co m o s e n d o v in h o (oinos ) co m
u m a m is tu ra d e m irra e d iz q u e Jesus n ã o o q u is b eb er. O c o n te x to
su g e re q u e a b e b id a v isa v a a se r a n estésico p a ra a ju d a r o c o n d e n a d o
a s u p o rta r a d o r d e ser p re g a d o n a c ru z (cf. StB, 1 ,1037, p a r a o c o stu -
m e d e d a r n arcó tico p a ra a liv ia r o so frim en to ). N ã o o b sta n te , n e m n o
fato n e m n o q u e sa b em o s d a farm aco lo g ia a n tig a a m irra se rv e co m o
a n ó d in o o u n arcótico. T alv ez a m irra fosse a p e n a s c o n d im e n to e o
p ró p rio v in h o v isa sse a e n to rp e c e r (v er P r 3 1 ,6 7 ‫)־‬. M t 27,34 d e sc re v e o
v in h o co m o u m a m is tu ra com fel (ch o lê ) e re g istra q u e Jesu s o p ro v o u
an te s d e recu sá-lo , e assim p a re c e n d o im p lic a r q u e Jesu s n ã o so u b e s-
se o q u e lh e e s ta v a s e n d o o ferecido. E m b o ra as d ife re n te s red a ç õ e s,
" m irra " e "fel", p o ssiv e lm e n te su rg isse m d e u m a c o n fu sã o (resp ecti-
v a m e n te , o s te rm o s h e b ra ico s são m õr e mãrãh ; o s te rm o s a ra m a ic o s
são m ü râ/m õrâ e m ãrâ), m ais p ro v a v e lm e n te M a te u s esco lh esse s u a
d escrição p a ra m o stra r a referên cia à LXX d o SI 69,22(21):

P a ra m in h a c o m id a m e d e ra m fel (ch o lê - alg o a m a rg o )


e p a ra m in h a se d e m e d e ra m vinagre (oxos - v in h o a z ed o )

O p a ra le lism o significa q u e o salm ista e stá d e sc re v e n d o a m e sm a


ação h o stil sob d o is asp ecto s; M a te u s, p o ré m , e v id e n te m e n te p e n s a
em d o is in cid en tes, n e n h u m d e le s re a lm e n te hostil: n e ste in c id e n te ele
m en cio n a cholê, e n o in c id e n te a se r d e scrito ab aix o ele m e n c io n a oxos.
(2) M arco s (relato A , se g u n d o T a ylo r ; re la to B, s e g u n d o B u lt -
m ann ) e M a te u s re g istra m q u e se o fereceu a Jesu s u m a s e g u n d a be-

b id a já n a c ru z , q u a n d o s u a m o rte se a p ro x im av a . D e p o is q u e Jesu s
p ro n u n c io u s u a s ú ltim a s p a la v ra s e m h e b ra ico o u ara m aic o , u m d o s
cu rio so s c o rre u e e n c h e u u m a esp o n ja d e v in h o c o m u m (oxos), a fi-
x o u n u m a can a (kalamos) e o o fereceu a Jesu s p a ra b e b e r (M c 15,36;
M t 27,48). N ã o so m o s in fo rm a d o s se d e fato Jesu s b e b e u . L u cas m en -
cio n a a p e n a s u m e p isó d io e n v o lv e n d o v in h o , u m e p isó d io q u e o co rre
e m m eio à n a rra tiv a d a crucifixão, a n te s d a s ú ltim a s p a la v ra s d e Jesus.
Lc 23,36 reg istra: "O s so ld a d o s ta m b é m o escarn eciam , a d ia n ta n d o -se
e o ferecen d o v in h o c o m u m (oxos) e d ize n d o : 'S e és o Rei d o s Ju d eu s,
salv a-te a ti m e sm o "'. E v id e n te m e n te , o m o tiv o é escarn ecer, m oti-
v o esse q u e n ão é claro n a d escrição m a r c a n a / m a te a n a o n d e a ação
65 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução; episódios 1-4) 1383

p o d e ria se r u m g e sto d e co m p a ix ão (cf. B lin zler , Trial, p . 25537). Em -


b o ra estejam e n v o lv id o s d ife ren te s a g e n te s (so ld a d o s vs. cu rio so s -
v e r n o ta so b re "ele s" n o v. 29), e e m b o ra L ucas n ã o m en cio n e u m a
esp o n ja , s e g u ra m e n te e sta m o s tra ta n d o com d u a s v e rsõ e s sinóticas
d o m e s m o in cid en te.
A n a rra tiv a jo a n in a n o s d á u m a terceira v e rsã o d e ste se g u n d o
in c id e n te . E s tra n h a m e n te , F reed , O T Q , p . 105, p a re c e relacio n á-lo com
o p rim e iro in c id e n te sin ó tico e o c a ra c te riz a com o " u m d o s ex em p lo s
m a is claro s d o u so c ria tiv o q u e o escrito r [joanino] faz d e su a s fontes
sin ó ticas". A lé m d o m ais, F reed p e n s a q u e João p o d e ria ter in v en ta-
d o to d a a cen a p o r se r o " p rim e iro in té rp re te d o s sin ó tico s a v e r em
M c 15,23 e p aralelo s u m a a lu são à E scritura d o A T " e a p ô r esta alusão
n o s láb io s d e Jesu s. C o n sid e ra m o s e sta tese d u p la m e n te im p ro v áv el.
P rim e iro , ta l p ro ce sso d e c o m p o sição teria p ro d u z id o u m a n a rra tiv a
m a is c la ra d o q u e o ra e n c o n tra m o s e m João (ver n o ssa d ific u ld a d e
ab aix o e m id en tifica r a p a ssa g e m ). S e g u n d o , a teo ria n ã o explica as
d ife ren ç a s e n tre a v e rsã o d e João e as d o s sinóticos. N a s n o ta s fazem o s
u m a c o m p a ra ç ã o d e ta lh a d a , m a s a q u i p o d e m o s resu m ir. João con-
c o rd a c o m o s e g u n d o in c id e n te e m M a rc o s /M a te u s c o n tra a v ersão
lu c a n a e m s itu a r o in c id e n te ju sta m e n te a n te s d a m o rte d e Jesus, em
m e n c io n a r a e sp o n ja e, talv ez, e m n ã o v e r o g esto com o escárnio. E m
c o n tra p a rtid a , Jo ão c o n c o rd a com L ucas c o n tra M a rc o s /M a te u s em
d e s c re v e r a p e n a s u m in c id e n te e n v o lv e n d o u m a b e b id a oferecida a
Jesu s, e m te r s o ld a d o s (ap a re n te m e n te ) fa z e n d o o g e sto e em n ã o as-
sociá-lo c o m u m d ito so b re Elias. João é o ú n ico a m en c io n ar o g rito d e
se d e, o ja rro , o h isso p o e o fato d e q u e Jesus b e b e u . R e alm en te desafia
a im a g in a ç ã o d e te c ta r u m p a d rã o o u m o tiv aç ã o n e ssa seleção e ad ição
d e d e ta lh e s (so m e n te a se d e e o h isso p o tê m sim b o lism o discernível).
A s v a ria ç õ e s sã o m a is c o n v in c e n te m e n te explicáveis se p ro p u se rm o s
u m a tra d iç ã o n ã o sin ó tica p o r d e trá s d o Q u a rto E vangelho.
Q u a n d o n o s v o lv em o s p a ra a im p licação teológica d o ep isó d io ,
e v o c am o s a o b se rv a ç ã o d e Loisv (p. 489): "P o d e m o s p re s u m ir q u e Jesus
re a lm e n te e stá se d en to ; m as e stá se d e n to so m e n te p o r s u a p ró p ria vo-
lição, p o r c a u sa d e s u a consciência d e q u e h á u m a p ro fecia a ser concre-
tiz a d a " . A e ste e p isó d io p re c e d e em João u m a o b serv ação in tro d u tó ria
"[Jesus era] cônscio d e q u e a g o ra tu d o e sta v a c o n su m a d o " , u m a afir-
m aç ã o e v o c ativ a d e 13,1, a lin h a inicial d o L ivro d a G lória: "Jesus estan -
d o c ie n te q u e c h e g ara a h o ra p a ra ele p a s sa r d e ste m u n d o p a ra o P ai".
1384 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

A ssim , o g rito d e se d e d e Jesu s e a o ferta d o v in h o d e v e m se r rela-


cio n ad o s co m a c o n su m a ç ão d a g ra n d e o b ra d e " a h o ra " . D e v e m se r
relacio n ad o s co m s u a m o rte q u e é o a to fin al d a o b ra q u e lh e foi con-
fia d a p e lo Pai, com o fica claro e m 3,16: "D e u s a m o u o m u n d o d e tal
m an e ira q u e d e u [i.e., p a ra a m o rte] o F ilho u n ig ê n ito " . N e ste contex-
to d o p e n s a m e n to , João d e scre v e d e tal m o d o a se d e d e Jesu s e o a to
d e b e b e r o v in h o q u e d eix a a im p re ssã o d e q u e Je su s n ã o m o rre ría a té
q u e fizesse isto. A ra z ã o a p a re n te é q u e e m s u a se d e e a re s p o s ta a ela
Jesus c u m p re a E sc ritu ra q u e p re d iz ia s u a m o rte (v er n o ta so b re "a
fim d e " n o v. 28). O a to q u e e n c erra ( telein) s u a o b ra tra z a E sc ritu ra a o
c u m p rim e n to ( teleioun), p o is ta n to s u a o b ra q u a n to o p la n o c o n tid o s
n a E scritu ra v ê m d e s e u Pai.
Q u e E sc ritu ra e stá e n v o lv id a ? T alv ez seja u m a q u e stã o d o teste-
m u n h o to ta l d o A T d o so frim e n to d o M essias (com o e n te n d id o p e la
c o m u n id a d e c ristã p rim itiv a e n ã o co m o e n te n d id o p e lo s p a d rõ e s crí-
ticos m o d ern o s). Lc 24,25-27 m a n té m q u e a E sc ritu ra p re d iz ia q u e o
M essias m o rre ría (ta m b ém A t 13,29). P a u lo te m a m e sm a id e ia e m
IC o r 15,3: " C risto m o rre u p o r n o sso s p e c a d o s e m c o n c o rd â n c ia co m
as E scritu ras". E m c o n tra p a rtid a , é p o ssív e l q u e Jo ão te n h a e m m e n te
u m tex to específico. N e ste caso, o SI 69,22(21), s u p ra c ita d o e m relação
ao p rim e iro in cid e n te m a rc a n o /m a te a n o , é o c a n d id a to m a is p ro v á -
vel. (É d ig n o d e n o ta q u e e sta p a ssa g e m seja ta m b é m c ita d a p e lo sal-
m ista d e Q u m ra n e m 1Q H 4,11). U m a objeção a e sta id en tifica ç ã o é
q u e a o ferta d e v in a g re o u v in h o a z e d o é, p a ra o sa lm ista, u m g esto
h o stil q u e ex p re ssa o ó d io d o s in im ig o s d o salm ista; e e sta n ã o p a re c e
ser a c o m p re en sã o q u e João te m d o m o tiv o d o s s o ld a d o s a o oferece-
rem a Jesu s v in h o co m u m . T o d a v ia, o N T a m iú d e u s a o A T d e u m a
m an e ira n ão literal. F a v o ráv e l a e sta id en tificação é o fato d e q u e o
SI 69 é c ita d o d u a s v e z es e m o u tro s lu g a re s n o Q u a rto E v an g elh o :
Jo 2,17 cita o v. 10(9) d o sa lm o e Jo 15,25 cita o v. 5(4). E m b o ra João
n ã o se d eix e e n re d a r n o e stra n h o d u p lo c u m p rim e n to d o SI 69,22(21
em M a te u s - co m o d isc u tid o acim a), a se u p ró p rio m o d o a n a rra tiv a
jo an in a c u m p re o v ersícu lo com ex atid ão ; p o is so m e n te Jo ão m en cio -
n a tan to a s e d e q u a n to o v in h o co m u m : " P a ra minha sede m e d e ra m
vinho azedo".
O u tro n o tá v e l c a n d id a to p a ra a id en tificação d e co m o a p a ssa -
gern b íblica ten c io n a d a p o r João é o SI 22,16(15), v e rsíc u lo d a fo n te
m ais b e m c o n h e cid a d o A T p a ra a N a rra tiv a d a P aixão: " M in h a lín g u a
65 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução; episódios 1-4) 1385

se m e a p e g a a o c é u d a boca; e m e p u s e s te n o p ó d a m o rte " . E n q u a n to


a q u i a s e d e só é e x p re ssa p e la c irc u n lo c u ç ã o d a lín g u a re sse q u id a , a
s e d e é e s tre ita m e n te ju s ta p o s ta c o m m o rte , co m o e m João. H oskyns ,
p . 531, s u g e re u m n ú m e ro d e o u tra s p a s sa g e n s d o sa lté rio (SI 42,3[2];
63,2[1]. B a m p fy l d e , art. cit., a rg u m e n ta a E sc ritu ra e m Jo 19,28 é aq u e-
la c ita d a p re v ia m e n te e m 7,37, a sa b e r, Z c 14,8 (em c o n ju n ç ã o com
E z 42), e re la c io n a s e u c u m p rim e n to c o m Je su s e n tre g a n d o o e sp írito
e m Jo 19,30 (v er abaixo). E su fic ie n te m a n te r q u e o g rito d e Jesus
" te n h o s e d e " c u m p re a E sc ritu ra , o u João a trib u i à fra se se u p ró -
p r io s im b o lism o ? L oisy , p . 489, v ê n e la u m a e x p re ssã o d o d esejo d e
Je su s d e ir a D e u s e a s s e g u ra r a sa lv a ç ão d o m u n d o . O u tro s v e e m
a q u i u m a e x p re s s ã o d a iro n ia jo an in a : Je su s, q u e é a fo n te d a á g u a
v iv a (7,38), g rita d e se d e - a ssim sig n ifica q u e ele m o rre ria a n te s q u e
a á g u a v iv a fo sse d a d a , e n o p ró x im o e p is ó d io d e s e u c o rp o flu irá
á g u a (19,34). T a lv e z o sim b o lism o m a is p la u s ív e l seja v in c u la r o epi-
s ó d io c o m 18,11: " A c a so n ã o b e b e re i e u d o cálice q u e o P ai m e tem
d a d o ? " O cálice e ra o d o so frim e n to e m o rte ; e a g o ra , te n d o c o n su -
m a d o s u a o b ra , Je su s te m s e d e d e b e b e r a q u e le cálice a té a ú ltim a
g o ta , p o is s o m e n te q u a n d o tiv e r p ro v a d o o a m a rg o v in h o d a m o rte ,
a v o n ta d e d o P ai se c u m p rirá .
A m en ç ã o d e h isso p o (ver n o ta so b re v. 29) p ro v a v e lm e n te d ev a
ser e x p lic a d a e m te rm o s d e sim b o lism o teológico. Ex 12,22 especifi-
co u q u e se u sa sse h isso p o p a ra a sp e rg ir o s a n g u e d o co rd e iro pascal
so b re o s u m b ra is d a s casas israelitas. A o d e scre v e r com o a m o rte d e
Jesu s ratifico u u m a n o v a afiança, H b 9,18-20 ev o ca o u so q u e M oisés
faz d e h iss o p o p a ra a sp e rg ir o sa n g u e d e a n im a is a fim d e selar a
p rim e ira afiança. (P recisam o s le m b ra r q u e e sta concepção q u e a epís-
to la fo rm u la d e Jesu s co m o sa c e rd o te p ro p ic io u u m p a ra lelo com o
sim b o lism o d a crucifixão n a se g u n d a E p ísto la d e João). A o d iscu tir-
m o s Jo 19,14, n o ta m o s q u e Jesus foi se n te n c ia d o à m o rte n a m esm a
h o ra e m q u e c o m eço u a m ata n ç a d o s c o rd e iro s p ascais n o s recin to s d o
tem p lo , e e n c o n tra re m o s ab aix o m ais sim b o lism o d o c o rd e iro pascal,
n o q u in to e p is ó d io d a crucifixão. A ssim , n o co n tex to d o p e n sa m e n to
jo an in o , a m en ç ã o d e h isso p o p o d e m u ito b e m ev o car sim b o licam en te
a m o rte d e Je su s co m o o c o rd e iro p a sca l d a n o v a afiança. N o Egito, o
s a n g u e d o c o rd e iro a sp e rg id o p o r m eio d e h isso p o p o u p o u os israe-
fitas d a d e stru iç ã o ; Jesu s m o rre co m o o " C o rd e iro d e D e u s q u e tira
o p e c a d o d o m u n d o " (vol. 1, p p . 245-47). C e rta m en te , h á diferença
1386 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

e n tre u s a r h isso p o p a ra a sp e rg ir sa n g u e e u s a r h isso p o p a r a su ste n -


ta r u m a esp o n ja e m b e b id a d e v in h o , m a s João m o stra c o n sid e rá v e l
im ag in ação n a a d a p ta ç ã o d e sím bolos. (D e certo m o d o , n ã o é m e n o s
im a g in a tiv o v e r u m a referên cia a o c o rd e iro p a sc a l n o fato d e q u e os
o ssos d e Jesu s n ã o fo ra m q u e b ra d o s, m a s Jo 19,36 n ã o h e sita e m fazer
a conexão). É difícil a p lic ar ao sim b o lism o lógica rig o ro sa.
O g rito "está c o n su m a d o " (v. 30), q u e c o n stitu i as ú ltim a s p a la -
v ra s d e Jesus em João, tem sid o com freq u ên cia c o n tra sta d o co m o ag o -
n iza n te "D eu s m e u , D e u s m eu , p o r q u e m e d e sa m p a ra ste ? " q u e cons-
titu i as ú ltim a s p a la v ra s d e Jesus em M a rc o s/M a te u s. (João e stá m ais
p ró x im o ao m en o s em to n a lid a d e com as ú ltim a s p a la v ra s r e g istra d a s
p o r Lucas: "P ai, e m tu a s m ão s e n tre g o m e u esp írito "). L oisy , p p . 489-90,
en fatiza q u e o Jesus jo an in o aceita d e lib e ra d a m e n te a m o rte , p o rq u e
ela co n stitu i a co n su m ação d o p la n o d e D eu s, e e n q u a n to a m o rte
n ã o v ier, ele significa su a p ro n tid ã o (ver 10,17-18). "A m o rte d o C ris-
to jo an in o n ã o é u m a cena d e so frim en to , d e ig n o m ín ia , d e d eso lação
u n iv e rsa l [com o n o s sinóticos] - é o com eço d e u m g ra n d e triu n fo " .
A ssim , p a ra L oisy e o u tro s, " está c o n su m a d o " é u m g rito d e v itó ria q u e
su b stitu i o g rito d e a p a re n te d e rro ta em M a rc o s /M a te u s . N o e n ta n to ,
u m a a b o rd a g e m co m o essa d e m a rc a as d iferen ças com e x tre m a incle-
m ência, n ã o faz e n d o ju stiça à n o ta im p lícita d e a g o n ia n o b ra d o d e
sed e d o Jesu s jo an in o (S pu rrell , art. cit., v ê isto c o m o p a rte d o te m a d o
M essias so fred o r), e talv ez e x a g e ra n d o o ele m en to d e d e rro ta n a cen a
sinótica. H oskyns, p . 531, re b a te e sta a b o rd a g e m , se b e m q u e u m tan to
ro m an ticam en te, rela cio n a n d o am b o s, o g rito m a rc a n o /m a te a n o e o
jo an in o , com o SI 22, e v e n d o u m e lem en to d e triu n fo e m am b o s. Ele
su ste n ta q u e, se M a rc o s /M a te u s citam as p rim e ira s p a la v ra s d o salm o,
o "está c o n s u m a d o " d e João su m a ria o sig n ificad o d e to d o o salm o;
p o is n o fin al d o salm o (v. 28[27]) o u v im o s q u e to d o s os confins d a terra
se v o lv erão p a ra o S enhor. N a teologia d e João, a g o ra q u e Jesu s consu-
m o u su a o b ra e é le v a n ta d o d a te rra à c ru z n a m o rte , a tra irá a si to d o s
os h o m en s (12,32). Se "está c o n su m a d o " é u m g rito d e v itó ria , a v itó ria
c p e ele p ro cla m a é a d e c u m p rir o b e d ie n te m e n te a v o n ta d e d o Pai.
É sim ilar a o "está feito" d e A p 16,17, p ro n u n c ia d o d o tro n o d e D e u s e
d o C o rd eiro , q u a n d o o sétim o anjo d e rra m a a taça fin al d a ira d e D eus.
O q u e D eu s d e c re to u foi co n su m a d o .
A s p ró p ria s p a la v ra s fin ais d o v. 30 são e x p rim id a s d e tal m o d o
q u e s u g e re m o u tro te m a n a teo lo g ia jo an in a. E m b o ra M a te u s e L ucas
65 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (introdução; episódios 1-4) 1387

ta m b é m d e s c re v a m a m o rte d e Jesus em te rm o s d e e n tre g a r o espíri-


to d e s u a v id a (ver n o ta), é co m o se João fizesse u so d a id eia d e q u e
Jesu s c e d e u o E sp írito (Santo) à q u e le s ao p é d a cru z, em p a rtic u la r à
s u a m ã e q u e sim b o liza a Igreja o u o n o v o p o v o d e D e u s e ao D iscípu-
lo A m a d o q u e sim b o liza o cristão. E m 7,39, João a firm o u q u e os q u e
c re sse m e m Jesu s h a v ia m d e rec e b e r o E sp írito a ssim q u e Jesus fosse
g lo rific ad o , e e n tã o n ã o seria in a p ro p ria d o q u e n e ste m o m e n to culm i-
n a n te , n a h o ra d a glorificação, h o u v e sse u m a referên cia sim bólica à
d o a ç ã o d o E sp írito . Se essa in te rp re ta ç ã o d e " e n tre g a r o e sp írito " tem
a lg u m a p la u s ib ilid a d e , e n fa tiz a ría m o s q u e esta referên cia sim bólica
é e v o c ativ a e proléptica, le m b ra n d o o leito r d o p ro p ó sito ú ltim o p a ra
o q u a l Je su s foi le v a n ta d o n a cru z. N o p e n sa m e n to jo an in o , a doação
re a l d o E sp írito n ã o v eio n a q u e le m o m e n to , m a s em 20,22 d e p o is d a
re ssu rre içã o .

[A B ibliografia p a ra e sta seção e stá in clu sa n a B ibliografia p a ra a


to ta lid a d e d e 19,16b-42, n o fin al d o §66].
66. A NARRATIVA DA PAIXÃO:
- TERCEIRA SEÇÃO (EPISÓDIO 5
E CONCLUSÃO)
(19,31-42)

A remoção e o sepultamento do corpo de Jesus

Q U IN T O E PISÓ D IO

19 31V isto se r o D ia d a P re p a ra ç ã o , os ju d e u s n ã o q u e ria m q u e os


c o rp o s ficassem n a c ru z d u r a n te o s á b a d o , p o is a q u e le s á b a d o e ra
u m so le n e d ia d e festa. E n tã o p e d ir a m a P ila to s q u e a s p e r n a s fos-
se m q u e b ra d a s e o s c o rp o s re tira d o s . 32P o r c o n s e g u in te , o s s o ld a d o s
v ie ra m e q u e b ra ra m a s p e rn a s d o s h o m e n s c ru c ific a d o s c o m Je su s,
p rim e iro d e u m , e e n tã o d o o u tro . 33M as q u a n d o v ie ra m a Je su s e
v ira m q u e já e s ta v a m o rto , n ã o q u e b ra ra m s u a s p e rn a s . 34E n tre -
ta n to , u m d o s s o ld a d o s tre s p a s s o u o la d o d e Je su s c o m u m a la n -
ça, e im e d ia ta m e n te jo rra ra m s a n g u e e á g u a . (35E ste te s te m u n h o
foi d a d o p o r u m a te s te m u n h a o c u la r, e se u te s te m u n h o é v e rd a -
d eiro . Ele e stá c o n ta n d o o q u e sa b e se r v e rd a d e iro , p a r a q u e ta m -
b é m te n h a is fé). 36E stes e v e n to s o c o rre ra m a fim d e q u e a E sc ritu ra
se c u m p risse :

" N e m se q u e r u m o sso h á d e ser q u e b ra d o " .

37E a in d a o u tra p a ssa g e m d a E sc ritu ra afirm a:

"E les v e rã o a q u e le q u e tre sp a ssa ra m " .


66 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (episódio 5 e conclusão) 1389

CO NCLUSÃ O

38D e p o is d isto , José d e A rim ateia, já q u e e ra u m d isc íp u lo d e Jesus


(em b o ra se c re ta m e n te p o r m e d o d o s ju d e u s), p e d iu p e rm issã o a Pi-
lato s p a ra re m o v e r o c o rp o d e Jesus. P ilato s o p e rm itiu , e e n tã o ele
v eio e le v o u o co rp o . 39N ic o d e m o s (aq u ele q u e a n te s v ie ra a Jesus d e
n o ite) ta m b é m v e io e tro u x e u m c o m p o sto d e m irra e aloés, p e sa n d o
cerca d e cem lib ras. 40E n tão le v a ra m o co rp o d e Jesus; e, em confor-
m id a d e co m o c o stu m e ju d aic o d e se p u lta m e n to , o e n v o lv e ra m em
faix as co m ó leos aro m ático s. 41O ra, n o lu g a r o n d e Jesu s foi crucifica-
d o h a v ia u m ja rd im , e n o ja rd im u m tú m u lo n o v o n o q u a l n in g u é m
h a v ia s id o s e p u lta d o . 42E assim , p o r ca u sa d o D ia d a P re p ara ç ão
d o s ju d e u s e p o rq u e o se p u lc ro e sta v a p ró x im o , s e p u lta ra m ali a Jesus.

NOTAS

19.31. Visto ser 0 Dia da Preparação. Aqui, o termo parece referir-se primaria-
m ente à véspera do sábado (c. das seis da tarde de quinta-feira até c. das
seis da tarde de sexta-feira), e não à véspera da Páscoa. Esta é um a ocor-
rência diferente do term o em 19,14 (ver nota ali). Bultmann, p. 5245, pensa
que este versículo reflete um a tradição em que Jesus m orreu no dia 15
de N isan (a posição sinótica - ver pp. 912-13 abaixo), de m odo que o dia
seguinte, um sábado, teria sido o dia 16 de Nisan, um dia particularm ente
solene, pois na tradição farisaica era o dia de ofertar o prim eiro feixe (cf.
Lv 23,6-14). Não temos como decidir sobre a base de um versículo isola-
do; m as observam os que no v. 36 há um a comparação da m orte de Jesus
com a condição do cordeiro pascal, de m odo que, plausivelmente, pode-
se m anter que esta cena ocorria no dia 14 de Nisan, dia em que os cordei-
ros eram mortos. Talvez a composição da frase sob discussão seja depen-
dente de Mc 15,42 (o qual introduz o incidente da solicitação do corpo
por José): "Visto ser 0 Dia da Preparação, isto é, o dia anterior ao sábado".
A despeito da diferença de contexto, esta frase constitui um a das raras
concordâncias verbais entre as narrativas joanina e m arcana da crucifixão.
N as diferentes testem unhas ao texto de João, a frase aparece em diferen-
tes lugares no versículo - algum as vezes um indício de adição redacional.
os judeus. N o v. 21, im ediatam ente após Jesus ter sido crucificado, "os
principais sacerdotes dos judeus" se dirigiram a Pilatos para protesta-
rem contra a inscrição colocada na cruz; evidentem ente, o m esmo grupo
1390 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

está envolvido aqui. Somente João tem um a confrontação entre Pilatos e


os líderes judeus nesta sexta-feira após o julgam ento m atutino. M t 27,62
tem os principais sacerdotes e os fariseus reunidos perante Pilatos no dia
seguinte em referência à guarda do túm ulo. O Evangelho de Pedro parece
ter um eco confuso deste episódio em João ou de alguns dos elem en-
tos que lhe foram introduzidos. N aquele relato, m esm o antes de Jesus
ser crucificado, José solicita de Pilatos o corpo do Senhor; enquanto que
Herodes reconhece a urgência de sepultar Jesus "posto que o sábado já
despontasse" (3-5; m as veja v. 27, onde este evangelho podería im plicar
um período mais longo entre a crucifixão e o sábado). Q uando "os ju-
deus" crucificam Jesus entre dois malfeitores, um dos malfeitores fala em
favor de Jesus, cham ando-o o "salvador dos hom ens". Isto enfurece os
judeus que ordenam que as pernas deste hom em não fossem quebradas
para que morresse em torm entos (10-14); a implicação parece ser que as
pernas de Jesus e do outro malfeitor fossem quebradas. Então, perto de
meio-dia, quando as trevas descem sobre a terra, começam a tem er que
o sol se ponha enquanto Jesus ainda está na cruz, então dão de beber a
Jesus o fel com vinagre (15-16). E então, depois de o Senhor ser "erguido"
(19), tiram os pregos de suas m ãos e deitam o corpo na terra. O sol brilha
outra vez, e se sentem felizes ao descobrirem que são apenas três da tar-
de. Entregam o corpo a José para o sepultam ento (21-23).
não queriam que os corpos ficassem na cruz. A prática rom ana era deixar o
cadáver na cruz como um aviso aos pseudo-crim inosos; m as F ilo, In
Flaccum 10, 83, menciona que às vezes, especialm ente durante as fes-
tas, os corpos eram descidos e dados aos parentes. A prática judaica era
governada por Dt 21,22-23 (Js 8,29) que preceituava que os corpos de
criminosos enforcados não perm anecem num a árvore durante a noite.
(O Evangelho de Pedro, 5, cita esta lei deuteronômica). J osefo, War, 4,5.2;
317, nos conta que os judeus estenderam a prática deuteronôm ica que se
cobrissem os crucificados cujos corpos fossem descidos antes do sol pos-
to. É interessante que G13,13 tam bém considera a lei acerca de criminoso
enforcado como aplicável a Jesus na cruz.
pois aquele sábado era um solene dia de festa. O 15 de N isan, o prim eiro dia
da Páscoa, era um dia santo (LXX de Ex 12,16), e o fato de que, neste
ano particular, ela caiu em um sábado ele veio a ser ainda m ais solene.
Não obstante, não tem os a atestação judaica prim itiva da palavra "so-
lene" (literalm ente, "grande") sendo usada para designar um sábado
que é tam bém um dia festivo (I. A brahams, Studies in Pharisaism and
the Gospel [Nova York: KTAV reim presso, 1968], II, 68). A designação
"grande sábado" para um sábado em fevereiro aparece no 2a século,
66 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (episódio 5 e conclusão) 1391

Martyriom of Polycarp 8,1/ m as talvez em dependência de João. B arrett,


p. 461, sugere que João podería ter entendido erroneam ente a proibição
sobre deixar os corpos na cruz d urante a noite e tenha pensado que a lei
só se aplicava p orque o dia seguinte era sábado. É m ais sim ples inter-
p retar João no sentido de que a im inência de um dia festivo duplam en-
te santo aum entava o desejo ordinário de se ter os corpos rem ovidos
antes de cair a noite (quando se começava o dia festivo) e ofereceram
um m otivo p ara que os rom anos respeitassem . E possível tam bém que
fosse p arte d a preocupação o perigo de violar a sacrossanta ordenança
sabática contra o trabalho.
pediram a Pilatos. N ão lemos que fossem a Pilatos, um a omissão enfatizada
pelos que pensam que, segundo João, Pilatos estava no Gólgota.
que as pernas fossem quebradas. Entre os evangelhos canônicos, somente
João m enciona isto; sua expressão katagnynai ta skelê se contrasta com
skelokopein do Evangelho de Pedro, 14, suscitando a questão se o relato con-
fuso no evangelho apócrifo tem um a fonte independente. O crurifragium
era feito com u m a m arreta pesada; usualm ente, som ente as pernas eram
quebradas, m as ocasionalm ente tam bém outros ossos. Originalmente,
p o r si só, a cruel punição capital, o crurifragium, a despeito d a crueldade,
era um ato de m isericórdia quando acom panhava a crucificação, pois
apressava a morte. E digno de nota que no caso dos restos esqueléticos
recém-descobertos de um hom em crucificado na Palestina, no l 2 século
(ver prim eira nota sobre 20,20), am bas as pernas foram quebradas. Visto
que o p edido de "os judeus" se aplica aos três corpos, aparentem ente
pensaram que Jesus ainda estava vivo; talvez devam os pensar que, en-
quanto Jesus ainda era m oribundo, deixaram o Gólgota e foram a Pilatos
e lhe apresentaram o pedido.
e os corpos retirados. Literalmente, estes term os dizem: "que suas pernas
sejam quebradas e que sejam retirados". A redação é estranha, pois
sintaticam ente o sujeito do segundo verbo é "suas pernas", embora
obviam ente João tenha em m ente os corpos. O verbo é airein, não o mais
técnico kathairein, "descer", encontrado em Mc 15,46 e Lc 23,53. Em par-
te algum a João descreve explicitamente a descida do corpo de Jesus
da cruz.
32. Por conseguinte. Está implícita a aquiescência de Pilatos.
primeiro de um, e então do outro. Por que Jesus foi om itido e os criminosos de
am bos os lados m encionados prim eiro? Talvez porque Jesus já aparen-
tasse estar m orto, e os soldados quisessem cuidar prim eiro dos crimino-
sos que obviam ente estavam vivos. Ou, mais provavelm ente, temos um
arranjo literário para realçar Jesus.
1392 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

33. viram. O Codex Sinaiticus, e as versões Cóptica e OL trazem "encontra-


ram ", e SB aceita esta redação.
já estava morto. Edê tethriêkota - a posição de êdê varia nas testem unhas
textuais. N o relato m arcano (15,44) do pedido de José pelo corpo de Je-
sus, Pilatos se adm ira de Jesus já estar m orto (palai apethanen) e intim a o
centurião que se assegure de que Jesus de fato está m orto. Entre os si-
nóticos, somente Marcos tem um soldado averiguando a m orte de Jesus
(o relato m arcano A, segundo T aylor; adição B, segundo B ultmann ). À s
vezes um a pessoa crucificada pendia na cruz por vários dias antes de
consumar-se a morte.
34. Este versículo aparece no final de Mt 27,49, no Sinaiticus, V aticanus e
algum as testem unhas textuais im portantes, provavelm ente copiado de
João por um antigo copista na tradição textual alexandrina (ver B ernard,
II, 644). Curiosam ente, esta localização do versículo em M ateus significa
que o arrem esso da lança vem antes da m orte de Jesus, no m esm o instan-
te que o transeunte ponha a esponja num a haste a oferecer vinho a Jesus!
Pode ser um golpe de misericórdia ou um ato final de hostilidade.
um dos soldados. O nom e Longinus lhe tem sido dado po r causa do logchê
(latim, lancea, "lança, espada longa e delgada) que ele usava. Já em vários
mss. dos Atos de Pilatos (cópias feitas no 52 e 6‫ ט‬séculos), o lanceiro de João
é identificado com o centurião da tradição sinótica que proclam ou Jesus
como inocente (Lc 23,47) e como Filho de Deus (Mc 15,39). M ichaels, art.
cit., leva a sério esta identificação.
trespassou. O verbo nyssein tem a conotação de picar ou espetar, algum as
vezes levemente (suficiente para despertar um hom em adorm ecido),
algum as vezes profundam ente (a ponto de causar um a ferida mortal).
A tradução inglesa com um "pierce" [penetrar] representa mais exata-
mente o verbo ekkentein do v. 37. A sequência da narrativa sugere que o
soldado deu um golpe exploratório a ver se o corpo aparentem ente mor-
to reagiría e, assim, ainda vivia; não há razão inteligível para ele querer
causar um a ferida se fosse positivo que Jesus já estava m orto. A V ulgata
e a Peshita trazem "abriu" em vez de "trespassou", provavelm ente re-
fletindo um a leitura errada do grego (ênoixen por enyxen); esta tradução
facilitou um a interpretação em que o Batismo e a Eucaristia, e inclusive a
Igreja, são vistos como produzidos do lado trespassado de Jesus. A gosti-
nho, In fo. 60,2; PL 35:1953, comenta: "Ele não diz 'perfurado', ou 'ferido',
ou algo assim, m as 'aberto', a fim de que a porta da vida fosse am pla-
m ente escancarada donde em anam os sacram entos da Igreja".
lado de Jesus. As versões etiópicas especificam que foi do lado direito, um a
especificação que aparece tam bém nas obras apócrifas (Atos de Pilatos)
66 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (episódio 5 e conclusão) 1393

e têm guiado a reprodução artística da cena. L agrange, p. 499, pensa em


um a ferida profunda alvejada no coração como um golpe mortal, mas
esta percepção do arrem esso d a lança favorecería localizar a ferida do
lado esquerdo, m ais próxim o ao coração. A palavra para lado, pleura, usa-
da aqui no singular, é mais com um no plural. Alguns, inclusive F euillet,
"Le Nouveau", p. 32833, tem sugerido que João está evocando o uso (sin-
guiar) em Gn 2,21-22, onde Deus tom a um a pleura de Adão para formar
a m ulher.
imediatamente. A posição em que esta palavra se encontra varia nas teste-
m unhas textuais.
sangue e água. A ordem "água e sangue", como em ljo 5,6.8, aparece em
um as poucas testem unhas textuais (a maioria das versões ou da patrísti-
ca; som ente um ms. grego), e tam bém na adição a M t 27,49 supramencio-
nada. Boismard, RB 60 (1953), 348-50, argum enta que podería ter sido ori-
ginal, m ais tarde vindo a ser transform ada por copistas na ordem mais
corrente, "sangue e água".
35. Em bora algum as testem unhas latinas om itam o versículo, não há dúvida
séria sobre sua autenticidade, a despeito da implicação em BDF, §2916.
O versículo é parentético, provavelm ente redacional, m as completa-
m ente joanino.
testemunha ocular. Dificilmente há dúvida de que na m ente do autor esta
testem unha fosse o Discípulo A m ado m encionado nos vs. 26-27. Em
21,24, que pode ser um esclarecimento deste versículo, o Discípulo Ama-
do é identificado como um a testem unha ocular cujo testem unho é verda-
deiro. M ichaels, p. 1038, argum enta que a sim ilaridade entre 19,35 e 21,24
não é conclusiva, porque a literatura joanina fala de outras testemu-
nhas verdadeiras além do Discípulo Amado; por exemplo, o escritor de
3Jo 12 diz: "Sabeis que o nosso testem unho é verdadeiro". Entretanto,
num a questão como esta, nosso argum ento deve restringir-se ao conteú-
do do evangelho. O Discípulo A m ado é o único seguidor m asculino de
Jesus mencionado como presente ao pé da cruz; ele é uma verdadeira tes-
tem unha ocular de quem o autor depende (21,24). Devemos pensar que
ao pé da cruz houvesse outro discípulo, outro não m encionado, que tam-
bém era um a verdadeira testem unha de quem o autor joanino depende
de um a m aneira especial?
seu testemunho é verdadeiro. Ele está contando 0 que sabe ser verdadeiro. O "seu"
é autou, enquanto o "ele" que dá início à próxim a sentença é ekeinos,
"aquele" (literalmente, "Aquele que sabe que o que diz é verdade"),
Gram aticalm ente, m uitos têm achado estranho que ekeinos se refira à tes-
tem unha ocular sobre quem o escritor já esteve falando; por exemplo,
1394 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

ekeinos se referiría a alguém m ais além d a tes-


B ultmann, p . 526, diz que
tem unha ocular. Entre as sugestões possíveis estão: (a) ekeinos é o autor
joanino (seja o evangelista ou o redator): "O autor sabe que a testem unha
ocular está dizendo a verdade". Esta tradução é favorecida po r m uitos
que desejam distinguir entre o autor joanino e o Discípulo A m ado. No
grego, temos exemplos em que um autor se refere a si m esm o como ekei-
nos‫׳‬, por exemplo, J osefo, War, 3,7.16; 202: "Tudo isto fizeram, não pos-
so pensar em ajudar, não porque lhe [ekeinos = J osefo] dessem de m á
vontade um a chance de segurança, m as porque pensavam em seus in-
teresses pessoais". (Para exemplos hebraicos de um a tendência similar,
ver Schlatter, p. 353). N aturalm ente, na m aioria desses casos, o contexto
ajuda a clarificar o significado peculiar de ekeinos - algo que não ocorre
em João. Uma variante desta teoria é a sugestão de T orrey de que ekeinos
reflete o aramaico hãhü gabrâ, "aquele hom em , um certo hom em ", que
serve como um a circunlocução de "Eu". Um a im portante objeção con-
tra a interpretação de ekeinos como um a referência ao autor é que em
21,24 alguém pode ver como um autor joanino realm ente escreveu de
si mesmo como distinto da testem unha ocular - ele não usou "aquele"
(ekeinos), e sim "nós": "É ele [o Discípulo Amado] que escreveu estas
coisas; e seu testem unho, bem sabemos, é verdadeiro", (b) ekeinos é Jesus
Cristo: "Jesus sabe que a testem unha ocular está dizendo a verdade".
E rasmus, Sanday, A bbott, L agrange, Strachan , H oskyns e B raun estão
entre os que seguem esta interpretação (ver E. N estle, ET 24 [1912-13],
92). O uso de ekeinos para Jesus é bem atestado em João (3,28.30; 7,11; 9,28),
m as usualm ente em um contexto onde a referência é clara, (c) ekeinos
é Deus: "Deus sabe que a testem unha ocular está dizendo a verdade".
O uso de keinos para Deus é igualm ente bem atestado em João (5,19; 6,29;
8,42), m as outra vez em casos esclarecidos pelo contexto.
Provavelmente, a m elhor explicação é que, a despeito da objeção, ekeinos
se refere à testem unha ocular. (Para facilitar isto, alguns têm tentado mo-
dificar a sentença, p. ex., N onnus de Panópolis [meados do 5“ século],
seguido por B ultmann, p. 526: "Nós o conhecemos [ékeinon, em vez de
ekeinos], que ele diz a verdade"; m as essa modificação não é necessária).
Ambos, BDF, §2916e MTGS, p. 46, reconhecem o uso anafórico de ekeinos,
significando sim plesm ente "ele". Devemos acrescentar que, se ekeinos é a
testem unha ocular e, subsequentem ente, o autor joanino está falando d a
testem unha ocular/D iscípulo Am ado, na terceira pessoa, isto não signi-
fica necessariamente que o autor e o Discípulo A m ado não sejam a mes-
m a pessoa, ainda que certam ente não estejam implícitos em 21,24. N o
vol. 1, p. 106, defendem os a tese de que realm ente eles não são o m esm o,
66 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (episódio 5 e conclusão) 1395

e que o Discípulo A m ado é a fonte da tradição que veio ao(s) autor(es)


joanino(s).
para que também tenhais fé. É bem provável que a frase final m odifique toda a
ideia no versículo, e não simplesmente o verbo mais próximo - a testemu-
nha ocular não só está dizendo a verdade para que tenhais fé; mais impor-
tante ainda, ele está dando testem unho do que viu para que vós tenhais fé.
O "tam bém ", om itido na tradição textual bizantina, significa que a própria
testem unha ocular é um crente e deseja, com seu testemunho, assegurar
que os leitores do evangelho sejam também crentes. Embora o subjuntivo
aoristo do verbo "ter fé" apareça em algum as testemunhas, o subjuntivo
presente tem a m elhor atestação (ver também 20,31); este tem po implica
um a continuação e aprofundam ento da fé, e não um a conversão. O objeto
im ediato da fé envolve a m orte de Jesus na cruz e seus efeitos - um a ver-
dade em que está subordinada toda a revelação de Jesus. Os leitores são
convidados não só a terem fé no que a testem unha ocular viu, mas tam-
bém em suas implicações teológicas (ver comentário).
36. Estes eventos. Logicamente, isto se refere a dois incidentes: que as pernas
de Jesus não foram quebradas (v. 33) e que seu lado foi trespassado por
um a lança (v. 34).
"Nem sequer um osso há de ser quebrado”. Literalmente, "Seu osso não será
quebrado"; com o fim de preservar a am biguidade do grego, não usamos
nenhum possessivo. Há diversos candidatos para a identificação que pas-
sagem bíblica João tem em m ente, candidatos que não são m utuam ente
exclusivos: (a) um a das descrições do cordeiro pascal: "nenhum osso dele
será quebrado" (LXX, Codex Vaticanus de Ex 12,10); "N ão quebrareis ne-
nh u m osso dele" (Ex 12,46); "Não quebrareis um osso dele" (Nm 9,12).
João está mais próximo à primeira forma desta norm a pascal (F reed, OTQ,
p. 113). Das várias passagens bíblicas citadas diretam ente no Relato Joa-
nino da Páscoa, esta seria a única extraída do Pentateuco. (b) SI 34,21(20):
"Ele [o Senhor] vela sobre todos os seus ossos [i.e., o hom em justo]; ne-
nhum deles será quebrado". Aqui o verbo passivo está próxim o da reda-
ção de João, m as "os ossos" (note o plural) não constituem diretam ente
o sujeito d o verbo "quebrar". Enquanto as citações do salmo são comuns
no Relato da Paixão, este salmo não é citado em outro lugar em relação
à paixão (cf. lP d 2,3; 3,10-12). B. W eiss, T orrey e D odd estão entre os que
têm argum entado em prol do salmo como sendo a fonte mais plausível
d a citação de João. B ultmann, p. 5248, pensa que na fonte de João a cita-
ção era do salmo, m as o evangelista viu nela um a referência a Ex 12,46.
B arton, art. cit., cita alguns paralelos egípcios sobre a proibição de se
quebrar os ossos de um cadáver.
1396 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

37. E ainda outra passagem da Escritura afirma. Schlatter, p. 355, salienta que
esta é um a fórmula rabínica fixa para introduzir outra citação.
"Eles verão aquele que trespassaram". Citação que João faz de Zc 12,10 não
segue verbalm ente ou o TM ou a redação da LXX mais com um . O TM
tem: "Olharão para m im a quem trespassaram ". N o contexto, o "m im "
é Iahweh; a implicação é estranha e p ode bem ser que o texto esteja cor-
rom pido, talvez explicando as tentativas de tradutor antigo para m elho-
rá-lo. Visto que todas as sentenças seguintes se referem a " o /e le", pelo
que tanto os copistas (quarenta e cinco dos mss. hebraicos confrontados
por K ennicott e D e R ossi) como os com entaristas têm lido "o /e le " por
"mim". O Codex Vaticanus e a m aior parte de outras testem unhas da
LXX leem: "Eles têm olhado para m im porque têm dançado insultuo-
sam ente [= escarnecido]", refletindo um a form a verbal d a raiz hebraica
dqr, "trespassar", lendo equivocadam ente como um a form a de rqd, "sal-
tar sobre/om itir". Todavia, há um a redação grega no Codex de Viena
(L) do 5C ou 6a século que é m uito m ais próxim o da tradução literal do
TM. Quase certam ente a redação do Códice de Viena oriunda de um a
recensão prim itiva (proto-teodociônico), conform ando a LXX ao que era
então (l2 século d.C.) conveniente ao texto hebraico padrão. Podem os
estar razoavelm ente certos de que a citação de João vem dessa recensão
grega prim itiva, talvez na sua form a abreviada, "O lharão para quem eles
têm trespassado". (Na verdade, no texto de João não há "o /e le " , m as
este é requerido pelo sentido; com pare a citação de Zacarias em Ap 1,7:
"Cada olho o verá, todos quantos o trespassaram "). Ver S. J ellicoe, The
Septuagint and Modem Study (Oxford, 1968), p. 87.
38. Depois disto. Este conectivo (meta tauta) é tão vago que Bernard, II, 653,
prefere a explicação de que a petição de José a Pilatos foi apresentada a
um só tem po com a petição de "os judeus". A interpretação m ais óbvia é
que um episódio seguiu ao outro. E bem provável que estejamos lidando
com um a ilação redacional entre dois itens independentes de tradição
(ver comentário).
José de Arimateia. Ele é m encionado em todos os quatro evangelhos em co-
nexão com o sepultam ento de Jesus, porém em nenhum a outra parte do
NT. Há m uita razão em se pensar que a rem iniscência de seu papel no
sepultam ento seja histórica, visto que não havia razão para inventá-la.
(Sem informação em contrário, teria sido natural pressupor-se que os pa-
rentes de Jesus o sepultaram , especialm ente já que, segundo João, sua
mãe estava presente). Arimateia, a qual Lc 23,50 cham a "um a cidade
dos judeus", era seu lugar de nascim ento ou a prim eira residência; m as
seu papel no Sinédrio e a informação que ele era proprietário do túm ulo
66 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (episódio 5 e conclusão) 1397

justam ente do lado de fora de Jerusalém (M ateus) sugerem que agora


era residente na C idade Santa. Pensava-se que A rim ateia fosse a Rama-
taim -zofim de ISm 1,1· E usébio fixa a localidade em Remftis ou Rentis,
u n s 15 km a nordeste de Lídia (lM c 11,34 associa Ram ataim e Lídia
como distritos); m as W. F l A lbright, ASSOR 4 (1922-23), 112-23, objeta
que esta localidade é longe dem ais de Silo, o destino da família de Sa-
m uel na n arrativa de 1 Samuel. Ele propõe identificação com Ramalla.
O utra sugestão é Beit Rimeh, a leste de Rentis e u ns 8 km a nordeste de
Betei. N enhum a dessas localizações fica na Galileia, de m odo que José
teria sido u m dos discípulos judaítas de Jesus (Jo 7,1; ver nota sobre
"Judas‫ ״‬em 6,71).
um discípulo de Jesus. U m a designação sim ilar de José, m as em grego di-
ferente, se encontra em M t 27,57, enquanto Mc 15,43 e Lc 23,51 o des-
crevem como aceitando o reino de Deus. A inform ação adicional sobre
os antecedentes de José, oferecida pelos sinóticos, são estas: (a) ele é
u m hom em rico, segundo M t 27,57; (b) ele é um respeitado mem bro
do concilio (Sinédrio), segundo Mc 15,43 e Lc 23,50; (c) ele é um bom e
piedoso hom em que não consentiu no que estava sendo feito a Jesus,
segundo Lc 23,50-51. João não traz nenhum a destas informações, em-
bora associe José com N icodem os que era m em bro do Sinédrio, talvez
em im plícita concordância com (b). O Evangelho de Pedro, 3, tem José
se d irigindo a Pilatos antes d a crucifixão para pedir o corpo de Jesus e
identifica José como am igo de Pilatos; m as isto é quase certam ente um a
dedução da tradição de que Pilatos acedeu ao p edido de José. O fato de
q ue João não identifica José como um hom em rico, como em (a), milita
contra a sugestão de L oisy, p. 497, que o sepultam ento pode ser outra
alusão ao tem a de o Servo Sofredor (Is 53,9: "puseram sua sepultura...
com o rico").
secretamente. Os discípulos secretos eram julgados duram ente e com des-
dém (12,42), m as, evidentem ente, a vinda de José para solicitar o cor-
po de Jesus chegou a conquistar a estima do autor joanino. (Mc 15,43
especifica que este foi um ato ousado). Ou, ainda, mais simplesmente,
João m enciona o detalhe m eram ente para explicar por que Pilatos acedeu
ao pedido: o prefeito rom ano dificilmente teria concedido favores a um
confesso seguidor de um hom em executado como revolucionário.
pediu permissão a Pilatos para remover 0 corpo de Jesus. Os evangelhos sinó-
ticos (Mc 15,43 e par.) descrevem José indo a Pilatos para pedir o corpo
de Jesus. Um a vez m ais (ver nota sobre "pediram a Pilatos" no v. 31), a
om issão que João faz de um verbo de m ovim ento tem sido citada para
provar que João retrata Pilatos como presente no Gólgota. Notam os que
1398 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

o vocabulário de João e dos sinóticos é diferente: o verbo "pedir", nos


sinóticos, é aitein, enquanto aqui e no v. 31 acima João usa erõtan.
Pilatos 0 permitiu. Reiterando, há diferença de vocabulário: M arcos usa
dõrein, "dar"; M ateus tem "ele ordenou que fosse dado" [apodidonai];
João usa epitrepein. João é mais próxim o de M ateus na sequência de
pedir e conceder, pois Mc 15,44-45 interrom pe esta sequência m ediante
um a descrição da tentativa de Pilatos de descobrir se realm ente Jesus
estava m orto (aparentem ente, um tem a apològético). Lucas não dá ne-
nhum a resposta da parte d e Pilatos.
então ele veio e levou 0 corpo. N enhum destes verbos (erchesthai , airein) é
usado nos relatos sinóticos paralelos; Marcos e Lucas se referem ao ato
de José "descê-lo" (kathairein ); M ateus ao seu ato de "levar [lambanein]
o corpo" (ver v. 40a abaixo para um paralelo joanino com M ateus). No
texto de João, verbos plurais ("vieram "; "levaram ") são lidos por Sinaiti-
cus, T aciano e alguns mss. o OL, Saídico, Siríaco e testem unhas arm ênias.
Sobre as bases de se preferir a redação m ais difícil, pode-se favorecer o
plural como original, como fazem SB e B ultmann. Entretanto, há várias
explicações possíveis de como um plural tenha sido introduzido no texto:
por exemplo, um a contam inação do verbo plural usado no v. 40; ou um
reflexo do v. 31, onde os soldados têm que levar o corpo. Se o plural for
aceito, quem seria o "eles"? Talvez José e Nicodemos - o últim o é m en-
cionado prim eiro no versículo seguinte. Talvez haja um eco da tradição
em Mc 15,47 e par. de que m ulheres galileias estavam presentes no sepul-
tamento. Talvez haja um a indicação implícita de que José não cum priu
a tarefa sozinho, m as cham ou servos e amigos. G aechter, "Begräbnis",
p. 222, argum ento que José e Nicodem os tiveram que usar escravos; pois
se conduzissem o corpo pessoalm ente, teriam sido ritualm ente im puros
durante sete dias (Nm 19,11) e, assim, incapacitados de celebrar a festa
pascal (cf. Jo 18,28) - um a dificuldade que João não leva em conta. Lite-
ralm ente, "o corpo" é "seu corpo"; algum as testem unhas textuais trazem
"o corpo de Jesus", provavelm ente em imitação da ocorrência desta frase
mais antiga no versículo; outras testem unhas trazem "o /ele".
39. Nicodemos. Ele é m encionado som ente em João (3,1; 7,50). N ão há razão
aparente para João ter inventado um papel para ele aqui, a m enos que a
tradição preservasse a m em ória de que um m em bro do Sinédrio se dei-
xou envolver, e o único m em bro do Sinédrio favorável a Jesus conhecido
do autor era Nicodemos. Tem-se sugerido que, já que Nicodem os era
fariseu, sua presença garantiría a exatidão do ritual d e sepultam ento.
(aquele que antes viera a Jesus de noite). Um lem brete identificador é o estilo tí-
pico joanino. Esse lem brete é com m uita frequência suprido para aquelas
66 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (episódio 5 e conclusão) 1399

figuras que são peculiares à tradição joanina ou que exercem um pa-


pel especial naquela tradição, p. ex., M aria de Betânia (11,2), Lázaro
(12,1), Filipe (12,21), N atanael (21,2), o Discípulo A m ado (21,20) - um a
exceção seria Judas Iscariotes (12,4). Em geral, estes lem bretes são mais
com uns em passagens que já consideram os como inseridas durante os
últim os estágios na redação do evangelho (11-12; 21). O lem brete ante-
rior sobre N icodem os em 7,50 foi sim plesm ente: "o hom em que foi ter
com Jesus".
veio e trouxe. Literalmente, "veio trazendo"; um as poucas testem unhas, in-
elusive o Sinaiticuss*, têm "veio trazendo". João quer que pensem os que
Nicodem os trouxe um a pequena porção deste composto, ou que ele já
tinha um a boa quantidade? B ernard, II, 654, favorece a prim eira [hipóte-
se], enquanto L agrange, p. 503, pensa que José e Nicodemos dividiram as
tarefas: u m foi a Pilatos, enquanto o outro foi com prar o necessário para
o sepultam ento. G aechter, "Begräbnis", pp. 221-22, propõe que as com-
pras foram feitas enquanto Jesus ainda estava na cruz - José comprou
as faixas, enquanto Nicodemos com prou as especiarias. Não obstante, é
bem provável que o problem a deva ser resolvido levando em conta o v.
39 como um a tradição que foi anexada aqui.
um composto. N a m aioria dos mss., lemos migma, em bora diversas testemu-
nhas im portantes, inclusive o Vaticanus e o Sinaiticus*, trazem heligma,
"pacote, rolo". O últim o constitui a redação mais difícil e pode bem ser
favorecida se realm ente fosse significativa. B ernard, II, 653, oferece uma
explicação de como podería ter ocorrido confusão ao copiar um smigma
original, redação esta encontrada em dois mss. cursivos.
de mirra e aloés. Esm im a ou "m irra" é um a resina odorífica usada pelos
egípcios em em balsam am ento (ver vol. 1, p. 736); aloê é um pó aromático
de sândalo usado para perfum ar roupas de cama ou vestim entas, mas,
norm alm ente, não para sepultam ento. (Por esta razão, m uitos pensam
que João tinha em m ente aloé am argo, um a planta usada pelos egípcios
p ara em balsam amento). E bem provável que o propósito do aloés fosse
am enizar odor desagradável e evitar deterioração. (Achamos a sugestão
de H oskyns, p. 536, um tanto forçada, dizendo que esta especiaria tem o
sim bolismo de fazer o sacrifício de Jesus um arom a suave). A combina-
ção de m irra e aloés aparece no Cântico dos Cânticos 4,14. N enhum dos
evangelhos sinóticos menciona que especiarias para embalsamamento
foram postas no túm ulo na sexta-feira; e, enquanto Marcos e Lucas (mas
não M ateus) m encionam especiarias em outro contexto, o vocabulário
não é o mesmo. Mc 15,1 diz que na m anhã da ressurreição m ulheres
trouxeram óleos aromáticos {aroma) para ungir Jesus. Lc 23,56 diz que
1400 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

sexta-feira, depois do sepultam ento, m ulheres prepararam óleos arom á-


ticos (,aroma) e perfum es (myron ); e Lc 24,1 diz que na m anhã da res-
surreição m ulheres vieram portando os óleos arom áticos que haviam
preparado. O Evangelho de Pedro, 24, diz que José lavou o corpo antes do
sepultam ento.
cerca de cem libras. A libra rom ana [peso] era cerca de 326 gram as, de m odo
que isto seria o equivalente de cerca 11 kg; essa quantidade é bastante
extraordinária. Sem evidência textual, L agrange, p. 503, suscita a possi-
bilidade de erro de copista. B arrett, p. 465, evoca a im ensa quantidade
de vinho em Caná (2,6); e D odd, Tradition, p. 1392, aponta para os 153
peixes em 21,11. Esta predileção joanina por núm eros extravagantes se
explica nos outros casos em term os de simbolismo, e que pode ser o caso
tam bém aqui (ver comentário).
40. Levaram 0 corpo de Jesus. Isto parece duplicata do final do v. 38, ainda quan-
do os verbos sejam diferentes (aqui se usa lambanein, como em M t 27,59).
em conformidade com 0 costume judaico de sepultamento. Literalm ente, "costu-
me para sepultar". É verdade que o verbo entaphiazein significa "prepa-
rar para sepultam ento", m as dificilmente o autor tem em vista que esti-
vessem preparando naquele m om ento um sepultam ento para três dias
depois, como defendem os que pensam que João descreve apenas um
sepultam ento provisório e que as m ulheres estavam vindo no dom ingo
para com pletar o que haviam começado. Ao sepultar, os judeus não evis-
ceravam o cadáver, como faziam os egípcios na m umificação. Ao contrá-
rio, os judeus sim plesm ente lavavam o corpo, ungiam -no com óleo e o
vestiam. 2Cr 16,14 descreve o sepultam ento do rei Asa: "E o sepultaram
em seu sepulcro, que tinha cavado para si na cidade de Davi, havendo-o
deitado na cama, que se enchera de perfum es e especiarias preparadas
segundo a arte dos perfum istas". Ver tam bém Jo 11,44, onde lem os das
mãos e pés sendo atados com tiras de linho, e o rosto envolto n um lenço.
0 envolveram. João usa dein-, Mc 15,46 usa eneilein ("enfaixar ou atar");
M t 27,59 e Lc 23,53 usam entylissein ("enrolar, envolver"). O últim o verbo
aparece em Jo 20,7 (ver nota ah) para descrever o pano que envolveu a
cabeça ferida de Jesus. O Evangelho de Pedro, 24, diz que José enfaixou
(eilein) o corpo de Jesus.
em faixas. Se deixarmos de lado Lc 24,12 (um versículo sobre o qual há al-
guma dúvida textual; ver pp. 1473-74 abaixo), somente João usa othonion
(no plural) ao descrever a indum entária fúnebre de Jesus. Somos infor-
m ados com frequência que othonion é um dim inutivo de othoriè, "rou-
pa de linho, camisa"; e crê-se que o uso do plural é indicativo de que
tiras de roupas ou bandagens eram envolvidas (BAG, p. 558, col. 1).
66 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (episódio 5 e conclusão) 1401

Entretanto, esta compreensão cria um duplo problema. Primeiro, não se


harm oniza com a descrição sinótica (e a do Evangelho de Pedro), onde le-
m os que Jesus foi enfaixado em um sindõn que José tinha levado. Sindõn
é um a grande peça de linho; em Mc 14,51 o jovem que fugiu no jardim
está usando um sindõn como sua única roupa. Segundo, a interpretação
de othonia como sendo tiras de linho apresenta um a dificuldade para mui-
tos estudiosos católico-romanos que aceitam a autenticidade do santo su-
dário de Turim como a veste fúnebre de Jesus. O sudário tem cerca de 4
m etros de com prim ento e m enos um m etro de largura. As manchas no
tecido possuem a qualidade de um negativo fotográfico; e quando foto-
grafado, produzem um a im agem positiva de um a forma hum ana. Uma
análise médica tem levado alguns a concluir que só por uns poucos dias o
sudário foi estendido por extenso sobre um corpo que fora sepultado com
aloés - um corpo que fora açoitado, coroado com espinhos, trespassado
com pregos como em crucifixão, e teve o coração aberto após a morte.
O linho do sudário pode ser rem ontado a 1353 e à igreja de Lirey em Tro-
yes, França, porém ouvimos de um sudário similar um século antes em
Constantinopla. Porque o sudário fez sua aparição na história registrada
em um tem po em que as cruzadas inundaram a Europa com relíquias
fraudulentas oriundas do Oriente, a priori ele é suspeito, especialmente
já que o Papa (ou anti-papa) C lemente VII perm itiu que ele fosse expos-
to ao público em 1389, unicam ente sob a condição de que se declarasse
abertam ente que ele não era o sudário real de Cristo. (Para um relato só-
brio, veja John W alsh, The Shroud [Nova York: Doubleday Echo, 1965];
para as objeções da crítica bíblica m oderna, veja J. M ichl, Theologische
Quartalschrift 136 [1956], 129-73, especialmente 142ss. - como B raun,
B linzler, G aechter e outros exegetas católicos contem porâneos, J. M ichl
rejeita a autenticidade do sudário; para um a discussão do sudário à luz
da evidência joanina, veja F.-M. B raun, NRT 66 [1939], 900-35,1025-46).
Um estu d o lexicográfico m uito cuidadoso do significado de othonion foi
feito por A. V accari, “Edêsan auto othoniois (Joh. 19,40)", em Miscellanea
biblica, p o r B. U bach (Montserrat, 1953), pp. 375-86, bem como por C. L a -
vergne in Sindõn 3, nos. 56 (1961), 1-58.0 resultado é que, m esmo quando
não sejamos com pelidos a harm onizar João com os sinóticos e não tenha-
m os o m enor interesse em defender o sudário de Turim, não podemos sal-
tar para a conclusão de que João tinha em m ente "bandagens". No grego
koinê, às vezes as form as dim inutivas não têm um a função realmente di-
m inutiva (BDF, §1113); e é ainda questionável se othonion é um diminutivo,
pois othone pode designar o m aterial e othonion pode denotar um artigo
feito desse m aterial. O plural pode ser um plural de categoria designadora
1402 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

não mais que um objeto, ou um plural de extensão que indica o tam a-


nho de um a peça (ver BDF, §141). A tradução de othonia como "tiras de
linho" ou "bandagens" é relativam ente m oderna (c. de 1879 em diante);
anteriorm ente, a palavra era entendida genericam ente como "roupas de
linho". Na verdade, não há papiros antigos que endosse a com preensão
do term o como se referindo a tiras de pano, e não há evidência de que os
judeus enfaixassem seus m ortos com faixas ou tiras sim ilares às usadas
pelas m úm ias egípcias. Alguns term os talm údicos com uns para vestes
fúnebres são sãdin ("camisa de linho") e tákrlkim (plural, "sudário"). H á
um papiro do 4a século d.C. na coleção de Rylans (vol. IV, n. 627) onde
othonion parece ser um a classificação geral sob a qual sindõn é um a espe-
ciaria. A dm itida a obscuridade do termo, seria preferível traduzirm os o
term o vagam ente como "invólucros de pano".
com óleos aromáticos. Aqui João usa aroma, palavra encontrada nas narrati-
vas m arcana e lucana sobre da tentativa das m ulheres de ungirem Jesus
(nota sobre v. 39 acima). A palavra pode significar "especiarias" em cujo
caso provavelm ente seja outra m aneira de descrever a m irra e aloés pre-
viam ente mencionados. Não obstante, era costum e dos judeus usarem
óleo, de m odo que um terceiro elem ento na preparação fúnebre pode
estar sendo introduzido.
Como João vê o uso das especiarias e do óleo? Eram usados separada-
m ente, por exemplo, a m irra e o aloés aspergidos entre os invólucros,
enquanto o óleo era friccionado no corpo ou derram ado sobre o cadáver
já enfaixado? O u eram combinados, de m odo que a m irra e o aloés pulve-
rizados eram m isturados no óleo vegetal neutro para criar u m unguento
líquido? O últim o concorda m elhor com a insistência sobre a unção nos
procedim entos judaicos para o sepultam ento.
41. no lugar onde Jesus foi crucificado. Somente João especifica que o túm ulo
ficava nas proxim idades do Gólgota. N a Igreja do Santo Sepulcro (ver
nota sobre "ele saiu" no v. 17), o local do túm ulo fica apenas a uns 38 me-
tros do Calvário. Teria sido um a conveniência óbvia m anter um local de
sepultura perto do local da execução (Mishnah Sanhedrin 6:5 especifica
que havería dois locais de sepultura para diferentes tipos de crim inosos
executados), e não é m uito difícil, se cavernas, em um a pedreira, eram
usadas para túm ulos. Todavia, os evangelhos deixam claro que Jesus não
foi sepultado em um túm ulo comum; e, naturalm ente, não estam os cer-
tos se o Gólgota era um lugar habitual para execução. N as proxim idades
do túm ulo, L oisy, p. 498, vê outro possível eco do tem a do cordeiro pas-
cal, pois Ex 12,46 enfatiza que o cordeiro tinha de ser comido no local e
nada da carne era levada - esta interpretação tem base m uito débil.
66 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (episódio 5 e conclusão) 1403

havia um jardim. Este term o (kêpos) foi usado em 18,1 para pom ar (bosque
d a oliveira?) onde Jesus foi preso; e aqui, como lá, alguns veriam um
jogo simbólico com o jardim do Éden, se bem que Gn 2,15 u sa paradeisos,
não kêpos. Os evangelhos sinóticos não designam o lugar de sepulta-
m ento como um "jardim "; m as esta descrição se encontra no Evangelho
de Pedro, 24, onde somos inform ados que José levou o corpo "para seu
próprio túm ulo, cham ado 'o jardim de José"' - um dos poucos casos em
que este evangelho apócrifo concorda com a informação encontrada so-
m ente em João. N ão estam os certos que tipo de jardim João tem em vista,
pois a lei judaica tardia desencorajava o plantio d e árvores frutíferas nas
proxim idades de um local de sepultura. Aqui, a menção do jardim deve
relacionar-se com a confusão que M aria M adalena fez de Jesus com o jar-
dineiro em 20,15, e é interessante que no 2“ século a apologética judaica
contra a ressurreição via este jardineiro como um cultivador de hortali-
ças (ver nota ali).
A inform ação de que o túm ulo ficava perto do Gólgota e em um jardim
concorda com a especulação de que o local da execução ficava um pou-
co fora (talvez 100-125 metros) do segundo m uro ao norte da cidade
(nota sobre 19,17, "ele saiu"); pois um dos quatro portões no m uro norte
era o Portão do Jardim ("Gennath": J osefo, War, 5,4.2; 147). Os túm u-
los d os sum os sacerdotes hasm oneos, João H ircano e A lexandre Janeus,
ficavam ao norte (War, 5,6.2 e 7.3; 259, 304), de m odo que poderia ter
sido um lugar prestigioso para sepultam ento. C irilo de Jerusalém (c. 350
d.C.) registra em Catechesis 14,5; PG 33:829B que em seu tem po os restos
de um jardim eram ainda visíveis, bem adjacentes à Igreja do Santo Se-
pulcro que C onstantino construíra recentem ente no local tradicional do
túm ulo de Jesus.
um túmulo novo no qual ninguém havia sido sepultado. O verbo é tithenai, "pôr,
depositar". Para "túm ulo", João usa mnêmeion, em pregado também
pelos três evangelhos sinóticos (Marcos e Lucas tam bém falam de um
mríêma). M arcos não faz referência ao até então prístino caráter do tú-
m ulo; M t 27,60 o denom ina de "um túm ulo novo"; Lc 23,53 faz referência
a ele como um túm ulo "onde ninguém ainda fora colocado [keimai]". Os
três sinóticos suprem a informação adicional de que o túm ulo foi talhado
da rocha. Somente M ateus, seguido pelo Evangelho de Pedro, extrai a infe-
rência de que ele era o túm ulo do próprio José.
42. dos judeus. O m itido pelo OL e algum as testem unhas siríacas.
Dia da Preparação. Aqui não fica claro se o term o se refere prim ariam ente
ao dia anterior ao sábado ou ao dia anterior à Páscoa (nota sobre v. 31
acima). Taclano e algum as testem unhas siríacas esclarecem a situação,
1404 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

lendo: "porque o sábado havia começado". Não se teria perm itido sepul-
tamento no sábado, embora o corpo pudesse ser lavado e ungido (Mishnah
Sabbath 23:4-5). Mc 15,42 menciona o Dia da Preparação no início da nar-
rativa do sepultamento; Lc 23,54 faz referência a ele mais ou m enos no
mesmo ponto da narrativa, onde se encontra a narrativa de João.

COMENTÁRIO

Quinto Episódio: Pilatos e a quebra das pernas de jesus; fluxo de sangue e


água (19,31-3 7)

C o m o tem o s sa lie n ta d o , este ú ltim o e p isó d io n a n a rra tiv a d a cru ci-


fixão c o rre s p o n d e ao p rim e iro . E m a m b o s "o s ju d e u s " faz e m u m a
solicitação a P ilato s c o n c ern e n te a Jesus n a cru z; se b e m q u e P ila to s
re c u so u a p rim e ira solicitação d e le acerca d a m u d a n ç a d o títu lo , ta-
c itam en te a te n te a esta solicitação so b re a re tira d a d o s c o rp o s. A d es-
p e ito d o fato d e q u e o e p isó d io com eça c o m e sta solicitação, ele n ã o se
in teressa co m a re tira d a d o co rp o , m as, a n tes, co m a o b se rv a ç ã o d o s
so ld a d o s d e q u e n ã o e ra n ecessário q u e b ra r a s p e rn a s d e Jesu s p o r q u e
ele já e stav a m o rto e com o s so ld a d o s c o m p ro v a n d o isso p e rfu ra n d o
o la d o d e Jesu s com u m a lança, o q u e flu i sa n g u e e á g u a .
E sta é a ú n ic a p a rte d a n a rra tiv a d a c rucifixão q u e a p a re n te m e n te
n ã o te m p a ra lelo , m esm o p a rc ial, n o s e v a n g e lh o s sin ó tico s. N ã o obs-
tan te, a lg u n s c o m e n tarista s d e te c ta m u m a e q u iv a lên c ia ; p o is a o d e s-
crev er o in te rlú d io e n tre a m o rte d e Jesus e o m o m e n to q u e s e u c o rp o
foi d escid o d a c ru z p a ra o se p u lta m e n to , to d o s o s e v a n g e lh o s n a rra m
os in cid en tes ilu s tra n d o u m a fé q u e te m s u a o rig e m n a m o rte d e Jesus.
N a tra d içã o sin ó tica (M c 15,38-39 e p a r.), o cen ário é n itid a m e n te m i-
raculoso: a co rtin a d o te m p lo se ra sg a d e alto a b a ix o (M a rc o s/M a -
teus; cf. Lc 23,45); ocorre u m te rre m o to q u e a b re tú m u lo s e lib e ra o s
co rp o s d o s sa n to s (so m en te M ateu s). A e x p re ssã o d e fé v e m d e u m
c e n tu riã o ro m a n o (e d e "aq u e le s q u e e sta v a m com ele": M t 27,54) q u e
p ro cla m a q u e Jesus e ra F ilho d e D e u s (M a rc o s/M a te u s) o u q u e e ra
in o cen te (Lucas). E m re s u lta d o , as m u ltid õ e s se a rre p e n d e m q u a n -
d o d e ix a m o G ó lg o ta (Lucas). O e p isó d io jo a n in o é b e m d ife ren te .
B ultm a nn , p p . 516, 523, o ca ra c te riz a co m o re la tiv a m e n te ta rd io , e m
p a rte p o rq u e n ã o se c e n tra n o c u m p rim e n to d a E scritu ra. T o d a v ia , o
66 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (episódio 5 e conclusão) 1405

e le m e n to n o to ria m e n te m ira cu lo so e stá a u se n te (em b o ra a lg u n s con-


s id e re m m ira c u lo so o fluxo d e s a n g u e e á g u a , co m o verem o s); e n ã o
h á co n fissão im p la u sív e l d e fé p o r p a rte d o s so ld a d o s ro m an o s. A q u i
o s s o ld a d o s tê m a tare fa m ais n a tu ra l d e te rm in a r a execução, ap res-
s a n d o a m o rte d o s crim in o so s a tra v é s d o crurifragium, u m a p rática
a te s ta d a . A fé q u e é fo rta le c id a p o r o u n a scid a d o e p isó d io jo an in o é a
fé d o D isc íp u lo A m a d o (n o ta so b re " te s te m u n h a o c u la r" em 35) e do s
leito re s d e João q u e a ceitam o te ste m u n h o d o D iscípulo.
A id e ia d e q u e João s u b s titu iu o e p isó d io sin ó tico com u m a d ra-
m a tiz a ç ã o q u e m e lh o r se a d a p ta s s e a o se u p ro p ó sito teológico n ã o só
v a i a lé m d a ev id ê n c ia , m as é im p lau sív e l, p o is e le m en to s tais com o o
ra s g a r-s e a c o rtin a d o te m p lo n a m o rte d e Jesus e a confissão d e fé d e
u m ro m a n o teria sid o b e m n o s m o ld e s d a teo lo g ia jo an in a. U m a tese
m a is m a tiz a d a é a d e M ich aels , art. cit., o q u a l p e n sa q u e M arcos e João
e stã o o fere c en d o d ife re n te s in te rp re ta ç õ e s d e u m m esm o co n ju n to d e
e v e n to s h istó ric o s q u e d e ra m o rig e m a a m b a s trad içõ es. Ele p e n sa q ue
o lan c e iro d e João é o m esm o c e n tu riã o m a rc a n o (n o ta so b re " u m d o s
s o ld a d o s " e m 34); e ao c o m b in a r Jo 19,34 e 1,34, M ichaels relacio n a o
v e rd a d e iro te s te m u n h o d a te s te m u n h a o c u la r co m tu n a confissão d e
q u e Je su s é o F ilh o d e D eus. V isto q u e p a ra João o c o rp o d e Jesus é
o te m p lo (2,21), u m a in te rp re ta ç ã o fig u ra tiv a d o a to m a rc a n o d e ras-
g a r a c o rtin a d o te m p lo p o d e relacio n ar-se com a a b e rtu ra d o lad o
d e Jesu s. E n tre ta n to , tais ralaçõ es são a lta m e n te e sp ec u lativ as, e m ais
p ro v a v e lm e n te o p r o d u to d a e n g e n h o sid a d e d o in té rp re te d o q u e d o
p la n o q u e tra ç o u o ev an g elista. O s e p isó d io s sin ó tico s e jo an in o s q u e
s e g u e m a m o rte d e Jesus p o s s u e m c erta sim ila rid a d e d e fu n ção teoló-
gica; m a s n ã o h á e v id ê n c ia rea l d e q u e u m foi s u b s titu íd o p e lo o u tro ,
o u q u e são reflex o s d istin to s d e u m ú n ico aco n tecim en to .
A n a rra tiv a jo a n in a a p re se n ta os se g u in te s p ro b lem as: a q u estão
d e ad iç õ e s re d a c io n a is n o s vs. 34-35; a h isto ric id a d e e sig n ificad o d o
flu x o d e s a n g u e e á g u a ; a ra z ã o p a ra a p e la r p a ra o te ste m u n h o no
v. 35; e a in te n ç ão teológica d o e scrito r a o citar d u a s p a ssa g e n s d a
E sc ritu ra n o s vs. 36-37.
C o m e c em o s co m a q u e stã o d e adições redacionais. B ultm a nn p e n sa
q u e , e m g eral, 31-37 v eio ao e v a n g elista m o d e la d o s já p o r u m a tra d i-
ção c o m u n itá ria , p o is n ã o h á tem a s teológicos p e c u lia rm e n te joaninos,
e o m o tiv o d o m in a n te é o c u m p rim e n to d a E scritu ra. (A o co n trário ,
tra ta re m o s o e p is ó d io com o d o m in a d o p o r tem a s teológicos joaninos)!
1406 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

Ele p ro p õ e q u e 34b ("e im e d ia ta m e n te flu íra m s a n g u e e á g u a " ) e 35


são u m a co n trib u iç ã o d o R e d a to r E clesiástico. (W ellh a u sen e L oisy
tra ta m ta m b é m 34a e 37 co m o red acio n ais). B u ltm a n n sa lie n ta q u e o
tem a d o fluxo d e s a n g u e e á g u a n ã o é in te rro m p id o n a s c itaçõ es bíbli-
cas d e 3 6 3 7 ‫־‬, p o is essas citações se rela cio n a m com os te m a s d e 33 (o
ato d e q u e b ra r as p e rn a s) e 34a (o a rre m e sso d a lança) - a ssim , a u m
só tem p o , 36-37 s e g u ira m im e d ia ta m e n te 33-34a. A a d iç ã o d e 34b é
a trib u íd a ao R e d a to r E clesiástico, e n ã o a u m a n o v a re d a ç ã o d o e v a n -
gelista, p o r ser o sa n g u e e á g u a u m a refe rê n c ia ao s sa c ra m e n to s d a
E u caristia e B atism o; e o e v a n g elista n ã o e sta v a in te re ssa d o e m sacra-
m en talism o . A a d ição d o v. 35 é a trib u íd a ao R e d a to r E clesiástico p o r
le m b ra r 21,24, e o ú ltim o é p a rte d e u m c a p ítu lo a n e x a d o p e lo re d a to r.
N o vol. 1, p p . l i s , in d ic a m o s n o ssa d ific u ld a d e so b re a c o m p re e n sã o
q u e B ultm a nn tem d a red ação ; em n o ssa o p in iã o , e m p a rte a lg u m a s u a
teo ria é m ais co lo cad a e m d ú v id a d o q u e aq u i. O b v ia m e n te , o v. 35
é u m a ad ição p a re n tética . N ã o o b sta n te , co m o S mith , p . 233, sa lie n ta ,
21.24 é m ais claro d o q u e 19,35, d e m o d o q u e é b e m p ro v á v e l q u e em
21.24 te n h a m o s u m m e lh o ra m e n to feito p e lo re d a to r v in d o d e u m a
o b serv ação feita p e lo e v a n g elista em 19,35. A a n á lise q u e B u ltm a n n
faz d e 34b é a in d a m ais p ro b le m átic a . Se a m en ç ã o d e s a n g u e e á g u a
tem referên cia sa cra m e n tal, em n o sso ju ízo isto n ã o é u m in d ic a d o r
in falív el d e q u e o re d a to r em e stev e em ação, p o is v e m o s n a o b ra d o
e v an g elista u m traço se c u n d á rio d e sa c ra m e n ta lism o (vol. 1, p . 122).
E co m resp e ito a 34b, co m o v e re m o s abaixo, q u a lq u e r re fe rê n c ia sa-
c ra m en ta l é se c u n d á ria a u m sim b o lism o teológico q u e está e m p e r-
feita h a rm o n ia com o p e n sa m e n to jo an in o . A lém d o m ais, p e n s a m o s
q u e a citação b íblica e m 37 é u m a referên cia à to ta lid a d e d e 34 (p. 1418
abaixo), e e n tã o 34b é u m a p a rte in te g ra n te d o e p isó d io .
Isto n o s lev a ao n o sso s e g u n d o p ro b le m a: a historicidade e signi-
ficado do fluxo de sangue e água. N ã o tem o s c o n firm ação p a ra e ste d e-
talh e n a tra d içã o sinótica; m esm o Lc 24,39, q u e m e n c io n a fe rid a s n as
m ão s e p é s d e Jesus, m a n té m silêncio so b re u m a fe rid a n o flanco. N ã o
o b stan te, n a d a h á in trin se c a m e n te im p ro v á v e l o u n o crurifragium o u
em p ro v a r se u m a p a re n te c a d á v e r está d e fato m o rto , e sp e c ia lm e n te
se a m o rte é p re m a tu ra . O s u rp re e n d e n te d e ta lh e é a in sistê n c ia d e
q u e sa n g u e e á g u a flu íra m d o c o rp o m o rto d e Jesus. É c o n h e cim e n to
c o m u m q u e c o rp o s m o rto s n ã o sa n g ra m , v isto q u e o c o ração já n ão
está b o m b e a n d o s a n g u e a tra v é s d o sistem a. E n fa tiz a n d o e ste p o n to ,
66 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (episódio 5 e conclusão) 1407

H ultkvist , op. cit., te m b u s c a d o m o stra r q u e Jesus n ã o e sta v a m o rto ,


e sim e m u m co m a re su lta n te d e sev era h e m o rrag ia . (Ele c o n tin u a a
te o riz a r q u e Jesu s re v iv e u n o tú m u lo , m a s q u e se u c o rp o a in d a esta-
v a a fe ta d o p e la s fe rid a s d o is d ia s d e p o is - eis p o r q u e [vs. 20,17] ele
d isse a M a ria M a d a le n a q u e n ã o o tocasse)! A m a io ria d o s m éd ico s
q u e tê m e s tu d a d o a q u e stã o (ver a s d isc u ssõ e s d e B arbet e S a v a ) n ão
e n c o n tra d ific u ld a d e p a ra u m a h e m o rra g ia tã o g ra n d e , p o is u m fluxo
d e s a n g u e e sta n c a d o a tra v é s d e u m a fe rid a re c e b id a logo d e p o is q u e
a m o rte já n ã o é p e rc e b id a , e sp ec ialm en te d e u m c a d á v e r q u e se acha
n a p o siç ã o v ertical. A rea l d ific u ld a d e se c e n tra n o fluxo d e á g u a d o
c a d á v e r. M e sm o q u e aceitem o s a su g e stã o c o m u m d e q u e " á g u a " é
u m a d escrição p o p u la r d o a u to r d e u m flu íd o físico in co lo r o u q u a se
in co lo r, p o r e x e m p lo , so ro , é difícil co n ceb er p o r q u e o sa n g u e e este
flu íd o e s ta v a m tão in cisiv a m en te se p a ra d o s.
P o d e m o s co m eçar com explicações q u e p re s s u p õ e m q u e João
e s tá d e s c re v e n d o alg o q u e re a lm e n te aco n teceu , seja n a tu ra l o u m i-
ra c u lo sa m e n te . O s m éd ic o s têm o ferecid o d iv e rsa s teo rias q u e expli-
c a m o flu x o d e s a n g u e e " á g u a " co m o fen ô m e n o n a tu ra l. E m 1847,
J. C. S troud , M .D ., p u b lic o u The Physical Cause of the Death of Christ
(ed. rev ., 1871), p ro p o n d o o q u e v eio a se r u m a tese clássica d e u m a
v io le n ta r u p tu r a d o co ração d e Jesus - u m a tese c o n v e n ie n te q u e d á
ao s p re g a d o re s a o p o rtu n id a d e d e e n fa tiz a r q u e , litera lm e n te , o Se-
n h o r m o rre u d e u m co ração tre sp a ssa d o . S troud te o riz o u q u e, a p ó s
u m a h e m o rra g ia p ro v e n ie n te d a p a re d e c a rd íac a n a b o lsa p e ricárd ica,
h o u v e u m c o á g u lo d e sa n g u e , se p a ra n d o -o d o soro. A lan ça a b riu a
b o lsa p e ric á rd ic a , lib e ra n d o as d u a s su b stân cias. A teo ria é m a n tid a
p o r p o u c o s hoje; d e p o u c o v ale a ex p eriên cia su b se q u e n te m e n te ad -
q u irid a d e q u e tais ru p tu r a s c ard íacas n ã o o co rrem e sp o n ta n e a m e n te
o u so b a p re s s ã o d e a g o n ia m e n ta l, m a s são o re s u lta d o d e u m a con-
d iç ã o p re v ia m e n te in fe c ta d a d o m ú sc u lo card íaco . A lém d o m ais, a
c o a g u la ç ão d o s a n g u e n o p e ric á rd io teria re q u e rid o m ais te m p o de-
p o is d a m o rte d o q u e o e v a n g elh o o a d m ite . A lg u m a s in v estig açõ es
m é d ic a s re c e n te s q u e a n a lisa m o s e v a n g e lh o s p re fe re m fala r d o fluxo
d e s a n g u e d o p ró p rio co ração (em v e z d a b o lsa p e ric árd ica ) e d o fluxo
d o líq u id o a q u o s o d a b o lsa p e ric á rd ic a (B arbet ) o u m esm o d o estô m a-
g o d ila ta d o p o r im p acto . N e sta tese, o a rre m e sso d a lança teria ab erto
a o m e s m o te m p o d o is ó rg ão s, e os d o is líq u id o s te ria m q u e p a ssa r
a tra v é s d e u m esp aç o re la tiv a m e n te g ra n d e , s e p a ra n d o esses ó rg ão s
1408 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

d a á re a d o c o rp o e a in d a sa ir se p a ra d a m e n te . S a v a , art. cit., te m p ro -
p o sto u m a teo ria m ais sim p les. Ele cita b o a e v id ê n c ia e m p ro l d a tese
d e q u e o a ç o itam e n to d e Jesus p o d e ria te r p ro d u z id o , v á ria s h o ra s
an te s d e s u a m o rte , u m a h e m o rra g ia n a c a v id a d e p le u ra l e n tre a s cos-
telas e os p u lm õ e s. Este flu íd o h e m o rrág ic o , q u e e m a lg u n s caso s é
d e v o lu m e c o n sid eráv el, p o d e ria ter s e p a ra d o e m flu íd o se ro so cia-
ro acim a e flu íd o v e rm e lh o e scu ro abaixo, u m a se p a ra ç ã o fav o re c id a
p e la p o sição ríg id a em q u e o c o rp o d e Jesu s foi m a n tid o n a c ru z (tão
ríg id o q u e a lg u n s p e n s a m q u e m o rre ra d e su fo cação re la c io n a d a c o m
falh a c ircu lató ria - v e r V. M arcozzi , Gregorianum 39 [1958], 440-62).
V isto q u e a c a v id a d e p le u ra l e stá p re c isa m e n te d e n tro d a a b e rtu ra d a
costela, m esm o u m fu ro c a u sa d o p e la lan ç a p o d e ria tê-la a b e rto e as
d u a s p a rte s d o s a n g u e teria sa íd o re la tiv a m e n te se m m istu ra . T o d a -
via, a p a re n te m e n te , o m áx im o q u e se p o d e co lig ir d e tais d isc u ssõ e s
m éd ic as é q u e a d escrição q u e João faz d o flu xo d e s a n g u e e á g u a n ã o
é im p o ssív el, e a ssim u m fen ô m e n o n a tu ra l n ã o p o d e se r d e sc a rta d o .
U m p o n to d e v ista m ais c o m u m , e m te m p o s p a s sa d o s , foi q u e
João p e n s a v a n o fluxo d e s a n g u e e á g u a co m o u m m ilag re , e e ssa é a
ra z ã o p o r q u e o te ste m u n h o d a te s te m u n h a o c u la r d o e v e n to é su b li-
n h a d o . O rígenes , T om ás de A quino , C ajetano , C o rn élio a L a pid e e L a -
grange estã o e n tre os q u e têm s u s te n ta d o e sta in te rp re ta ç ã o . T o d a v ia,

n a d a h á n a n a rra tiv a d o fluxo d e s a n g u e e á g u a q u e s u b e n te n d a o


m iracu lo so ; e, co m o v e re m o s, a ê n fase so b re o te s te m u n h o d a teste-
m u n h a o c u la r p o d e e sta r rela c io n a d a m ais com im p licação teo ló g ica
d a cena d o q u e com se u te o r m iracu lo so .
A n te s d e d isc u tirm o s a p o ssib ilid a d e d e q u e o e p isó d io seja
u m a criação fictícia, p o d e m o s m e n c io n a r u m a so lu ç ã o in te rm é d ia ,
a sab er, q u e Jo ão e stá d e sc re v e n d o alg o q u e re a lm e n te a c o n te c eu ,
m as e stá u s a n d o lin g u a g e m im a g in a tiv a p a ra o c o n seg u ir. A lg u n s
s u g e re m q u e ele e stá fala n d o à lu z d o c o n h e cim e n to m é d ic o d e se u
tem p o ; p o r ex em p lo , u m a o b ra ta rd ia , a M id ra sh R ab b ah 15,2 so b re
Lv 13,2ss., diz: " O h o m e m é to d o b e m e q u ilib ra d o : m e ta d e d e le é
á g u a , e a o u tra m e ta d e é s a n g u e " . O p e n s a m e n to g re g o d e H er á -
clito p a ra G alen o e n fa tiz a v a q u e as d e v id a s p ro p o rç õ e s d e s a n g u e

e á g u a n o h o m e m g a ra n tia a sa ú d e . A o d e sc re v e r a m o rte d o m ais


v e lh o d o s se te filhos, 4M c 9,20 re g istra q u e s e u sangue m a n c h o u a
ro d a e n q u a n to os fluídos d e se u c o rp o a p a g a v a m a s c h a m a s d o s car-
vões. A in d a o u tra teo ria é q u e , ao d e sc re v e r o s a n g u e e á g u a , João está
66 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (episódio 5 e conclusão) 1409

e n fa tiz a n d o a o rig e m d iv in a d e Jesus. H a v ia u m a a n tig a le n d a ho-


m é ric a d e q u e o s d e u se s n ã o tin h a m sa n g u e e m su a s veias, m as u m
tip o d e s a n g u e m is tu ra d o com á g u a ; p o r ex em p lo , so m o s in fo rm a d o s
q u e A fro d ite v e rte u s a n g u e linfático d ilu íd o com á g u a (ver P. H aupt ,
American Journal of^ Philology 45 [1924], 53-55; E. S ch w eizer , E vT h 12
[1952-53], 350-51). É in te re ssa n te n o ta r q u e e sta p o ssib ilid a d e foi ap re -
s e n ta d a já n o te m p o d e C elso ( c. d e 178 d.C .); p o is ele zo m b eteira-
m e n te in d a g a v a se Jesus tin h a o líq u id o d iv in o q u e e ra o sa n g u e do s
d e u se s, e O rígenes re s p o n d e u q u e o in c id e n te era u m m ilag re (Celsus
2,36; G C S 2:161-62). A p rin c ip a l objeção a essas teo rias é o versículo
p a re n té tic o 35: q u e m q u e r q u e a d ic io n o u esse v ersícu lo dificilm ente
te ria e n fa tiz a d o a im p o rtâ n c ia d o te ste m u n h o d a te ste m u n h a ocular,
se s o u b e sse q u e o q u e aco n te c eu n ã o e sta v a se n d o d e scrito com o d e
fato o co rreu .
O a p e lo a o te s te m u n h o d a te ste m u n h a o c u la r p e rm a n e c e u m sé-
rio a rg u m e n to ta m b é m c o n tra a s teses d e m u ito s e stu d io so s d e q u e
Jo ão sim p le s m e n te in v e n to u o in c id e n te d o sa n g u e e á g u a p a ra p ro -
p ó s ito s teo ló g ico s. N a tu ra lm e n te , se a lg u é m aceita o a rg u m e n to d e
q u e o v e rsíc u lo p a re n té tic o 35 n ã o p ro v é m d o e v an g elista, m a s d e u m
r e d a to r q u e n ã o sab ia q u e o ev a n g elista in v e n ta ra a cena, a objeção
é v e n c id a . A lg u n s a in d a tê m a rg u m e n ta d o q u e a p ró p ria necessida-
d e d e u m a p e lo ao te ste m u n h o d a te s te m u n h a o c u la r é in d ic a d o r d e
q u e o in c id e n te d o sa n g u e e á g u a é alg o n o v o acerca d o q u a l os ou-
v in te s d a m e n s a g e m e v an g élica p o d e ría m te r a lg u m a d ú v id a - u m a
c o m p re e n s ã o a lta m e n te d isp u tá v e l d a fu n çã o d o v. 35, co m o v e re m o s
ab aix o . E stas su g e stõ e s im p lic a m u m a m a n e ira d e e n te n d e r o m éto d o
d o e v a n g e lis ta e / o u d o re d a to r q u e ach am o s difícil d e v erificar em
o u tra s p a s sa g e n s d o ev an g elh o .
P a ra c o n c lu ir a d isc u ssã o d a h isto ric id a d e d e 19,34b, e n q u a n to
rec o n h e c e m o s a d ific u ld a d e d e to m a r a d escrição d e João em face d o
v a lo r, in d a g a m o s se n ã o é m ais p la u sív e l faz e r a ssim d o q u e ju lg a r
q u e a d escrição é u m a ficção d e Ü b e rad a m en te p re s s u p o s ta , cita n d o
falso te s te m u n h o o u testific a n d o q u e o a u to r n ã o sab ia ser v e rd a d e iro ,
m e sm o q u a n d o ele a firm o u d e o u tra m an e ira . B arrett , p . 461, fo rm u la
b e m o p ro b le m a: "P arece, se ju lg a rm o s p e lo c a rá te r d e sse e v a n g elh o
co m o u m to d o , im p ro v á v e l q u e João esteja sim p le sm e n te e la b o ra n d o
u m e v e n to p o r c a u sa d e s u a significação aleg ó rica" (ta m b ém D odd ,
Tradition, p . 143).
1410 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

T em o s a g o ra q u e v o lta r a o sig n ific a d o q u e Jo ão a trib u i a o in -


cid en te. É sim p le sm e n te u m m o d o d ra m á tic o d e m o s tra r q u e , se m
d ú v id a , Jesu s e sta v a m o rto q u a n d o s e u c o rp o foi d e sc id o d a c ru z
- p o ssiv e lm e n te c o n tra u m a teo ria q u e e x p lic aria a re s s u rre iç ã o e m
term o s d o d e s p e rta r d e u m co m a? O u tra in te rp re ta ç ã o a p o lo g é tic a é
s u g e rid a p o r D . D a u b e , The New Testament and Rabbinic Judaism (Lon-
d o n U n iv e rsity , 1956), p p . 325-29: n o p e n s a m e n to ju d a ic o , a d esfi-
g u ra ç ã o e ra u m o b stá c u lo à re ssu rre iç ã o , e essa é a ra z ã o p o r q u e
João é c u id a d o s o e m e n fa tiz a r q u e n e n h u m o sso foi q u e b ra d o . U m a
a p o lo g é tic a an ti-d o cé tic a foi p ro p o s ta (já p o r I rin eu , Contra Heresia
3, 22:2 e 4, 33:2; SC 34:376; 100:806). O s d o c e tista s q u e n e g a v a m q u e
C risto e ra re a lm e n te h u m a n o c o n s id e ra v a m a cru cifix ão u m a ilu sã o .
N o 2a sécu lo , e m Atos de João, 101, Jesu s é re p re s e n ta d o co m o n e g a n -
d o q u e o s a n g u e sa iu d e s e u c o rp o . C o n tra tal teo riza ç ã o , a a firm a ç ã o
d e João e m 34b se ria u m a refu taç ã o . E n tre ta n to , o d o c e tism o d o I a
sécu lo n ã o é b e m c o n h e cid o , e te m o s d e a d m itir q u e l j o 5,6 é m a is
c la ra m e n te a n ti-d o cé tic o d o q u e Jo 19,34b (v er ta m b é m v ol. 1, p . 74s).
A lém d o m ais, a p e c u lia rid a d e d o in c id e n te e v a n g é lic o n ã o é ta n to
q u e o s a n g u e e m a n o u d e Je su s (p o is s a n g u e é a sso c ia d o co m m o rte ),
m as q u e e m a n o u á g u a ; e o flu x o d e á g u a n ã o só n ã o p o s s u i te m a
a n ti-d o cético d isc e m ív e l, m a s p o d e ria in clu siv e o b sc u re c e r a h u m a -
n id a d e d e Jesus.
E m q u a lq u e r caso, o p ro p ó sito d e João n ã o é m e ra m e n te a p o io -
gético, p o is o v. 35 e n fa tiz a q u e o in c id e n te e stá s e n d o re g is tra d o a
fim d e a p ro fu n d a r a fé cristã ex isten te (n o ta so b re " p a ra q u e ta m b é m
ten h a is fé" e m 35). A referên cia a o te s te m u n h o c o n c e rn e n te a o sa n g u e
e á g u a co m o " v e rd a d e iro " (a lêth in os ) in d ic a q u e o v e rd a d e iro sig n i-
ficad o d a cen a n ã o e stá n o n ív el m a te ria l e v isív el, e sim n o q u e ela
n o s d iz d o m u n d o d o e sp írito (ver vol. 1, p p . 797-99). Se a te s te m u n h a
o c u la r d o v. 35 é o D iscíp u lo A m a d o d e 26-27, co m o c re m o s, e n tã o
n ã o d e v e m o s esq u ec e r q u e n o p rim e iro e p isó d io ele foi id e n tific a d o
com a fó rm u la rev e la tó ria "E is o te u filho". A q u i ele fala co m o u m a
te ste m u n h a d e u m a rev e laç ã o q u e é im p o rta n te p a ra to d o s o s c ristã o s
a q u e m ele sim boliza. A ssim , tem o s to d a a ra z ã o d e b u s c a r u m p ro -
fu n d o sim b o lism o teológico n o flu x o d e sa n g u e e á g u a .
T em -se su g e rid o m u ito p a n o d e fu n d o v e te ro te sta m e n tá rio co m o
g u ia d e p o ssív e l sim b o lism o . E m Is 53,12 so m o s in fo rm a d o s q u e
o S ervo S o fred o r derramou s u a a lm a n a m o rte (se e ssa é a im a g e m
66 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (episódio 5 e conclusão) 1411

im p líc ita n o h ip h il d e ‘rh ). M u ito s P a d re s d a Igreja (veja H oskyns ,


p p . 534-35) relacionam o incidente joanino com G n 2,21, o n d e Eva é
to m a d a d o la d o d e A d ão , e v e e m a q u i a em ergência d a N o v a Eva, a
Igreja. E sta in terp retação , q u e é a n te rio r ao 4a século (B raun , JeanThéol, 3,
1682), receb eu a ap ro v ação d o concilio d e V iena (1312 - o décim o q u in to
concilio ecu m ên ico n a co m p u tação católico-rom ana) o n d e, co n tra os er-
ro s d e P eter J ohn O livi, foi c o n firm ad o q u e C risto " p o rto u em seu lad o
a ferid a d a lança, d e m o d o q u e, com as afluências d e á g u a e sa n g u e q ue
flu íam , p ô d e fo rm a r u m a im a c u la d a e virg in al sa n ta M ãe Igreja, a espo-
sa d e C risto, ju sta m e n te com o d o lad o d o p rim e iro ho m em , en q u a n to
d o rm ia , foi fo rm a d a E va com o u m a p arceira m atrim o n ia l" (DB, §901;
e sta exegese to m o u com o alvo a d isp u ta d e q u e a v e rd a d e ira Igreja só
v eio à existência n a Id a d e M éd ia com o a d v e n to d o s espiritualistas).
N o s te m p o s m o d ern o s, esta in te rp re ta ç ã o tem sido e sp o sad a p o r L oisy,
p . 492. E n q u a n to ela se h a rm o n iza ria b e m com a lg u m d o sim bolism o
q u e su g e rim o s p a ra os vs. 26-27 (ver p p . 1378-80 acim a), ach am o s p o u -
ca ev id ê n c ia d e q u e o relato d o G ênesis estav a n a m en te d e João aq u i
(v er n o ta s so b re " tre sp a sso u " e " la d o " n o v. 34).
U m a ch av e p referív el ao significado d o sim bolism o jaz n o âm a-
g o d a s p ró p ria s o b ras joaninas. E m Jo 7,38-38, Jesus d t o u u m a passa-
g e m d a E scritura: "D e se u in te rio r fluirão rio s d e á g u a v id a". (N o vol.
1, p . 575, su g e rim o s q u e o p ro v á v e l p a n o d e fu n d o d a E scritura era
a cen a o n d e M oisés feriu a ro ch a e e m a n o u á g u a [N m 20,11]. É inte-
ressa n te q u e n o p e n sa m e n to ju d aico p o sterio r, com o exem plificado
e m M id ra s h R ab b ah 3,13 so b re Ex 4,9, era m a n tid o q u e ele feriu a ro-
ch a d u a s v ezes p o rq u e p rim e iram e n te ele p ro d u z iu sa n g u e e água).
O ev an g elista se in te rro m p e u p a ra o b serv ar q u e p o r á g u a Jesus esta-
v a se refe rin d o ao E spírito, q u e teriam q u e receber os q u e cressem em
Jesu s, p o is o E sp írito a in d a n ã o se m an ifestara, já q u e Jesus a in d a n ão
fo ra glorificado. C rem o s ser m ais p ro v á v e l q u e n este fluxo d e á g u a d o
lad o d e Jesu s (de se u interior), João v ê o c u m p rim e n to d a p ró p ria p ro -
fecia d e Jesus, o c o rren d o n a h o ra d a glorificação d e Jesus (cf. 12,32).
O p a re n té tic o v. 35 insiste triu n fa n tem e n te q u e isto realm en te acon-
teceu ju sta m e n te com o Jesus p red isse e q u e h o u v e u m a testem u n h a
o cu lar p a ra afirm á-lo. A ssim , p a ra João, o fluxo d e á g u a é o u tro sím -
b o lo p ro lé p tic o d a d o ação d o E spírito, rec o rre n d o a o tem a d o v. 30:
"E le e n tre g o u o esp írito ". Eis p o r q u e o v. 35 d iz q u e se d á testem u-
n h o d o in cid e n te " p a ra q u e tam b ém vó s ten h ais fé" - o in cid en te n ã o é
1412 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

m eram en te u m a d e m o n stra ç ã o d a e x atid ão d o p ré-co n h ecim en to d e Je-


sus, m as tam b é m p a ra a sse g u ra r ao cristão q u e rea lm e n te Jesus d e u o
E spírito q u e é a fonte d a fé. (É d ig n o d e n o ta q u e esta in te rp re ta ç ã o d a
á g u a q u e flu i d o la d o d e Jesus a p a re n te m e n te retro ced e ao 2a século:
Irineu , Contra Heresia 4,14:2; SC 100:544, d iz q u e e m m u ita s p a ssa g e n s
a á g u a rep re sen ta o E spírito d e D eus; v e r tam b é m 3,24:1; SC 34:400).
P a ra e n te n d e r p o r q u e o s a n g u e é tam b é m m en c io n ad o , p ro v áv e l-
m en te ten h a m o s d e v o lta r a l j o 5,6-8: "E ste é a q u e le q u e v eio a tra v é s
d a á g u a e sa n g u e, isto é Jesus C risto; n ã o só p o r á g u a , m a s p o r á g u a e
p o r san g u e. E o E spírito é o q u e te s tific a , p o rq u e o E sp írito é a v e rd a -
de... e estes três c o n co rd am em u m ". A lg u n s e stu d io so s, co m o B u lt -
m ann , fazem objeção ao u so d e 1 João p a ra in te rp re ta r João; p o rq u e as

d u a s o b ras n e m se m p re têm a m esm a ênfase teológica. M as tu d o in d ica


q u e tem o s a q u i d u a s p a ssa g e n s e stre itam e n te relacio n ad as d a m esm a
escola d e com p osição literária: p a rtilh a m os m esm o s tem a s d e á g u a
e san g u e, o E spírito e testem u n h o . Q u a n d o a b o rd a rm o s as E pístolas
jo an in as n o n o sso p ró x im o v o lu m e , d isc u tire m o s d e ta lh a d a m e n te o
significado d e l jo 5,6-8, m as u m a in te rp re ta ç ã o m u ito d ifu n d id a v e ria
a h u m co n traste e n tre o b a tism o d e Jesus, p o r João B atista, e a crucifi-
xão. O b a tism o p elo B atista n ã o c o m u n ico u o E spírito, p o is só b a tiz a v a
com á g u a (1,31); o v e rd a d e iro n a scim en to p o r m eio d e á g u a e o E spí-
rito (3,5) foi algo q u e n ão v iria até q u e Jesu s fosse g lorificado (7,39).
O E sp írito n ã o p o d e ría v ir até q u e Jesus p a rtisse (16,7), isto é, até q u e
ele d e rra m a sse seu san g u e. N a lin g u a g e m p o ética d a P rim e ira E pístola,
a á g u a tin h a d e m istu ra r-se com o sa n g u e d e Jesus a n te s q u e o E spírito
p u d e s se d a r testem u n h o : " n ã o só p o r á g u a , m as p o r á g u a e p o r san g u e.
E o E spírito é q u e testifica". A ssim , p arecería q u e n a descrição e v an g é-
lica d e u m fluxo d e sa n g u e e á g u a e m a n a n d o d o la d o d e Jesus, João está
d iz e n d o q u e ag o ra o E spírito p o d e ser d a d o , p o rq u e Jesus, o b v iam en te,
está m o rto e atrav és d a m o rte ele c o n q u isto u a g ló ria q u e e ra s u a an tes
q u e o m u n d o v iesse à existência (17,5). O E sp írito é o p rin c íp io d a v id a
q u e v e m d o alto, e ag o ra Jesus está d e c a m in h o p a ra h a b ita r com o Pai
n a s altu ras. A lança d o so ld a d o se d e stin a v a a d e m o n s tra r q u e Jesus
d e fato e stav a m orto; m as esta afirm ação d a m o rte é p a ra d o x a lm e n te
o p rin cíp io d a v id a , p o is d o h o m e m m o rto a h flu i á g u a v iv a q u e será
u m a fo n te d e v id a p a ra to d o s os q u e creem n ele em im itação d o Disci-
p u lo A m ad o . Bem o b se rv o u O rígenes q u e isto c o n stitu i u m n o v o tipo
d e h o m em m o rto (Celsus 2, 69; GCS 2:191). O fato d e q u e a tra v é s d o
66 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (episódio 5 e conclusão) 1413

d isc íp u lo o s efeitos d o fluxo d e sa n g u e e á g u a alcan çaram a to d o s os


q u e tê m fé significa q u e h á u m a d im e n sã o eclesiástica p a ra a p assagem ,
m e sm o sem d e p e n d e r d a ób v ia a lu são a E va se n d o to m a d a d o lad o de
A d ã o , e m G ênesis. ("P ois to d o s n ó s fom os b a tiz a d o s em u m E spírito",
d iz P a u lo e m IC o r 12,13). U m a v e z m ais, ao av aliarm o s 19,30, n ã o pen -
sa m o s q u e n e sta cena João e stá se refe rin d o à a tu a l d o ação d o Espíri-
to, p o is isso é especificam ente d escrito em 20,22. A q u i, o sim bolism o é
p ro lé p tic o e serv e p a ra clarificar q u e, e n q u a n to so m e n te o Jesus ressu r-
reto d á o E sp írito, esse d o m flui d e to d o o p ro cesso d a glorificação em
"a h o ra " d a p aix ão , m o rte, ressu rreição e ascensão.
M igu en s , p p . 1 3 1 6 ‫־‬, e F ord , art. cit., s u g e re m o u tro fa to r q u e
p o d e e x p lic a r p o r q u e João e n fa tiz a q u e o s a n g u e flu iu imediatamente
d a fe rid a d a la n ç a n o la d o d e Je su s (e d e q u e m e n c io n a o s a n g u e an-
te s d e á g u a ). Já v im o s q u e Jo ão p a re c e p e n s a r e m Je su s c a m in h a n d o
r u m o à s u a m o rte c o m o u m a v ítim a sacrificial (p p . 1369-70 acim a).
U m d o s re q u e rim e n to s e s trito s d a lei sacrificial ju d a ic a e ra q u e o
s a n g u e d a v ítim a n ã o fosse c o a g u la d o , m a s q u e flu ísse n o m o m e n to
d a m o rte , d e m o d o q u e p u d e s s e se r a s p e rg id o (M ish n a h P esa h im
5:3,5). M igu en s , p p . 17-20, a p o n ta a in d a p a ra a s im ila rid a d e e n tre
a id e ia d e q u e o s o ld a d o a b riu o la d o d e Je su s co m u m a lan ç a e a
in s is tê n c ia d a lei ju d a ic a d e q u e o sa c e rd o te d iv id is se o co ração d a
v ítim a e fiz e sse o s a n g u e b o rb o ta r (M ish n a h Tamid 4:2). A ssim , o
e p is ó d io fin a l n a c ru z p o d e ria d e s tin a r-s e a e n fa tiz a r o tem a d e q u e
Je su s m o rr e u co m o u m a v ítim a sacrificial.
A té a q u i tem o s d isc u tid o o sig n ificad o teológico p rim á rio d o flu-
xo d e s a n g u e e á g u a . A q u i h a v e ria ta m b é m u m sim b o lism o sacram en -
tal s e c u n d á rio ? (Ver S. T rom p , Gregorianum 13 [1932], 523-27, p a ra u m a
b re v e h istó ria d a exegese d este versículo). T ertuliano (De Baptismo 41,2;
SC 35:89), s e g u id o p o r C irilo d e A le x a n d ria e T omás de A quino , v ia em
João u m a refe rê n c ia ao s d o is d ife re n te s tip o s d e b atism o: b a tism o p o r
m eio d e á g u a e b a tism o p o r m eio d e s a n g u e (i.e., m a rtírio p e la fé). O u-
tra in te rp re ta ç ã o a n tig a , re c u a n d o ao 2a século, te m m e lh o r chance d e
e s ta r d e n tro d a in te n ç ão d o ev a n g elista , a sab er, q u e os d o is sacram en -
to s se re la c io n a m m u i e stre ita m e n te com a m o rte d o S enhor, o B atism o
e a E u caristia, são p re fig u ra d o s p e la á g u a e o san g u e. C u llm a n n a d o ta
e sta in te rp re ta ç ã o e m ECW , p p . 114-16; e B u ltm a n n , p . 525, d eclara q u e
o flu x o d e s a n g u e e á g u a c o n stitu i u m m ilag re q u e "d ific ilm e n te p o d e
te r a lg u m o u tro sig n ificad o se n ão q u e n a m o rte d e Jesus n a cru z os
1414 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

sa cra m e n to s d o b a tism o e d a ceia d o S e n h o r tê m s u a o rig e m ". T o d a v ia,


n ã o é fácil p ro v a r à lu z d a e v id ê n c ia in te rn a q u e João in te n ta v a u m a
referên cia ao s d o is sacram en to s. N ã o h á m u ita d ific u ld a d e so b re u m a
referên cia s e c u n d á ria ao b a tism o , co m o in d ic a to d a a n o ssa d isc u ssã o
a n te rio r d e á g u a e o E sp írito (ver vol. 1, p p . 346,394). M as, n o " sa n g u e "
h á u m a referên cia à E ucaristia? E v e rd a d e q u e a o u tra ú n ic a m e n ç ã o ao
sa n g u e d e Jesu s, e m João, é e m 6,53-56, a p a ssa g e m e u carística. Se h á
u m a referên cia se c u n d á ria à e u c a ristia e m C a n á (vol. 1, p p . 305s), en -
tão a p re se n ç a d a m ãe d e Jesu s ao p é d a c ru z p o d e c o n trib u ir p a ra a in-
terp re ta ç ã o sa cra m e n tal, e v o c a n d o a cen a d e C a n á à a te n ç ã o d o leitor.
1Jo 1,7 d iz q u e o sa n g u e d e Jesus n o s p u rific a d e to d o p e c a d o (v er ta m b é m
A p 7,14); m a s e sta c o n cep ção é m ais e m te rm o s d o ritu a l sacrificial ju -
d aico d o q u e e m te rm o s d e sa cra m e n ta lism o eu carístico . (E n tre ta n to , é
d ig n o d e n o ta q u e , se ev o c arm o s 1Jo 1,7, e n tã o am b o s, s a n g u e e á g u a , p o -
d e m sig n ificar o p o d e r p u rific a d o r d a m o rte d e Jesus. E m u m fra g m e n to
d u b ia m e n te a trib u íd o ao te m p o d e C laudius A po llin aris d e H ie rá p o lis
[c. 170 d .C ; v e r B ernard , II, 648], lem o s q u e " d e s e u la d o sa iu a s d u a s
p u rificaçõ es [katharsia ], á g u a e sa n g u e , p a la v ra e e sp írito "). A ssim , o
m u ito q u e p o d e m o s fazer é d a r u m a p ro b a b ilid a d e à d u p la re fe rê n c ia
s a cra m e n tal d e 19,34b (em u m n ív el se cu n d á rio ), co m m e lh o r p ro v a
p a ra a referên cia b a tism a l d o q u e à eu c arístic a (ver C osta , art. cit.).
A g o ra p a s sa m o s ra p id a m e n te a o u tro p ro b le m a n e ste e p isó d io : a
relação e n tre o fluxo d e sa n g u e e á g u a e m 34b e 0 apelo ao testemunho
no v. 35. É in te re ssa n te q u e l j o 5,6-8, o q u a l, co m o já v im o s, m e n c io n a
á g u a e sa n g u e , tam b é m e n fa tiz a o te ste m u n h o ; m a s ali é o E sp írito q u e
testifica, e n q u a n to e m Jo 19,35 é o D iscíp u lo A m a d o . M as, p a r a João,
o testificar d o E sp írito e o testificar d e u m d isc íp u lo d e Je su s co n sti-
tu e m d u a s facetas d a m e sm a rea lid a d e . E m 15,26-27, o te s te m u n h o
d o P arácleto e o te ste m u n h o d o s d isc íp u lo s são ju sta p o sto s, p o rq u e
é a tra v és d o s d isc íp u lo s q u e o P arácleto fala. A ssim , p o d e h a v e r u m a
ín tim a co n ex ão e n tre o fluxo d e sa n g u e e a á g u a e o d a r te s te m u n h o
g lorificado. Se e stiv e rm o s certo s e m m a n te r q u e e ste fluxo sim b o liza
p ro le p tic a m e n te a e fu são d o E sp írito m e d ia n te o Jesu s m o rto e glorifi-
cad o , e n tã o é o E sp írito q u e to rn a p o ssív e l ta n to ao D isc íp u lo A m a d o
testificar q u a n to à q u e le s q u e o o u v e m e creem .
L a n ç an d o m ão d e sim b o lism o a d icio n al, a lg u n s tê m p ro p o s to q u e,
se o D iscíp u lo A m a d o é João, filh o d e Z e b e d e u , h á u m a in clu sã o com
o início d o ev an g elh o . E m 1,19, o u v im o s d o te s te m u n h o d a d o p e lo
66 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (episódio 5 e conclusão) 1415

Batista e m p r o l d e Jesus; E m 19,35, o u v im o s d o te ste m u n h o d a d o p o r


João o D isc íp u lo A m a d o . P in to re s m e d ie v a is n ã o p e rd e ra m e sta p ossi-
b ilid a d e , p o is n o s tríp tic o s o s d o is Joães são fre q u e n te m e n te ap re se n -
ta d o s e m a m b o s os la d o s d a cru z. T o d a v ia, o fato d e q u e o D iscípulo
A m a d o n ã o seja n o m e a d o faz u m a in clu são com o B atista d e m an e ira
su til. Se h á a lg u m a in clu sã o com o B atista e m 34,35, é m ais p ro v á v e l
e m te rm o s d e u m a c o m p a ra ç ã o e n tre se u b a tism o com á g u a e o b atis-
m o c ristã o s im b o liz a d o p e la á g u a a c o m p a n h a d a d e san g u e.
N o sso ú ltim o p ro b le m a n o q u in to ep isó d io d iz resp eito às citações
bíblicas n o s vs. 36 e 37, as q u a is oferecem u m a inclusão m ais clara com
o início d o e v a n g elh o d o q u e as p ro p o sta s recém m en cio n ad as. N a n o ta
so b re v. 36 d iscu tim o s d u a s p o ssív eis identificações veterotestam en-
tárias p a ra a citação: " N e n h u m osso será q u e b ra d o ". U m a referência
às p ro v isõ e s d o co rd eiro pascal é a m ais p ro v áv e l d a s d u a s p o r causa
d e o u tra s alu sõ es ao tem a co rd eiro n a N a rra tiv a d a Paixão (a d a ta é a
v é sp e ra d a P áscoa; Jesus é sen ten ciad o p o r Pilatos n a h o ra v esperti-
n a q u a n d o tin h a início a m ata n ça d o s co rdeiros pascais; a m en ção d e
h isso p o e m 19,29). Q u a n to às p a ssa g e n s v ete ro te sta m e n tá ria s m encio-
n a d a s n a s n o tas, Miss G uilding , p . 170, salien ta q u e Ex 12,46 era lido
n o s lecio n ário s d a sin ag o g a n a Páscoa d o se g u n d o an o d o ciclo d e três
an o s, e N ú m e ro s 9,12 n o terceiro an o (ver vol. 1, p p . 518-21). A ssim ,
q u a lq u e r associação q u e João fizesse e n tre Jesus e o cordeiro pascal
n ã o seria tão e s tra n h a ao s leitores cristãos d o p a n o d e fu n d o judaico.
E stam o s in certo s se o tem a d o co rd eiro pascal tam b é m ecoa d e u m a
m a n e ira se cu n d á ria n a u rg ên c ia d e ter o corpo d e Jesus rem o v id o an-
tes d o d ia se g u in te (Páscoa, 15 d e N isan ) q u e com eçaria ao p ô r d o sol;
p o is, co m o já afirm am o s, e n q u a n to esta a titu d e era d ita d a p ela lei d e
D t 21,22-23, em Ex 12,10 se p re v ê tam b ém q u e, q u a n d o d esp o n tasse
o d ia seg u in te, n a d a d e v e ria resta r d o co rd eiro q u e fora m o rto "en tre
as d u a s ta rd e s " (i.e., à ta rd e q u e encerra o d ia 14 d e N isa n e inicia o
d ia 15). E m q u a lq u e r caso, a evocação d o tem a d o co rd eiro pascal em
Jo 19,36 fo rm a u m a excelente inclusão com o teste m u n h o d o Batista
d a d o n o início d o m in istério d e Jesus (1,29): "Eis o C o rd eiro d e D eus
q u e tira o p e c a d o d o m u n d o " . Pois esta é a h o ra e m que, n a s p ala v ras
d e l j o 1,7, "O sa n g u e d e Jesus, Seu Filho, n o s p u rifica d e to d o peca-
d o ". A lg u n s e stu d io so s têm su g e rid o tam b ém q u e, ao a p re se n ta r Je-
su s co m o o c o rd e iro pascal, João está a trib u in d o caráter sacrificial
à m o rte d e Jesus. C e rta m en te isto é p o ssív el, p o is salien tam o s acim a
1416 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

(p. 1369s) q u e, ao d escrev er Jesus c a rre g a n d o s u a p ró p ria c ru z , João


p o d e ria e sta r in tro d u z in d o a tip o lo g ia d e Isa q u e e n o a n tig o p e n sa -
m en to ju d aic o estabeleceu-se u m a relação e n tre o sacrifício d e Isa q u e
e o co rd eiro p ascal. A lém d o m ais, v im o s o tem a d e Jesu s co m o sacer-
d o te n o sim b o lism o d a tú n ic a n o se g u n d o ep isó d io . E m a d iç ã o à evo-
cação d o tem a d o sacrifício, o sim b o lism o d o c o rd e iro p a sc a l p o d e ria
tam b ém ev o car a id eia d e aliança, d a q u a l já e n c o n tra m o s tra ç o s n o
ú ltim o d isc u rso (pp. 9 8 5 ,1 0 2 2 ,1 0 3 5 ,1 0 6 2 ,1096s acim a).
A té a q u i, to m a m o s a citação " N e n h u m o sso se rá q u e b ra d o "
com o u m a a lu s ã o à s n o rm a s p a ra o c o rd e iro p ascal. M as n ã o p o -
d e m o s ex clu ir a p o ssib ilid a d e d e q u e seja também u m a a lu sã o ao
SI 34,21(20), u m sa lm o q u e tra ta d o s in o ce n tes se rv o s so fre d o re s d e
D eus. N o salm o , este v e rsíc u lo c o n stitu i u m a p ro m e s s a d e q u e D e u s
n ã o p e rm itirá q u e se u s o sso s fo ssem q u e b ra d o s; e assim , s e g u n d o
(o ú ltim o ?) o p e n sa m e n to ju d aic o , e v ita r u m a m u tila ç ã o q u e im p e ç a
a ressu rreição . D odd , Interpretation, p . 2341, asso cia estes sa lm o s d o
ju sto so fre d o r co m os p o e m a s d o S erv o S o fre d o r e m D e u te ro isaía s.
E a ssim é b e m p ro v á v e l q u e e m Jo 19,36 haja u m a d u p la in c lu sã o c o m
a referên cia ao C o rd e iro d e D e u s n o início d o e v a n g e lh o (1,29); p o is
n o vol. 1, p p . 240s, v im o s q u e o C o rd e iro d e D e u s refe ria -se n ã o só ao
c o rd e iro p ascal, m a s ta m b é m ao S ervo S ofredor. Jesu s é o in o ce n te
so fre d o r q u e to m a so b re si os p e c a d o s d e o u tro s; e m e sm o q u e ele
seja c o n d u z id o ao m a ta d o u ro co m o u m c o rd e iro (Is 53,7), D e u s n ã o
p e rm itirá q u e se u s o ssos sejam q u e b ra d o s e, assim , n ã o o p r iv a r á d a
v itó ria d a ressu rreição .
A s e g u n d a citação q u e João v ê c u m p rid a n e ste e p isó d io d a c ru z
se e n c o n tra n o v. 37: "E les v e rã o a q u e le q u e tre s p a ss a ra m " . E sta é
u m a v a ria n te d e Z c 12,10, e o s cap s. 9-14 d e Z a c a ria s c o n stitu e m u m a
im p o rta n te fo n te v e te ro te sta m e n tá ria p a ra a s citações s o b re Jesus. E m
Jo 7,37, o tem a d e c h u v a e á g u a exerce u m p a p e l n o q u e Je su s d iz n a
festa d o s T a b e m á c u lo s, e isto e stá rela c io n a d o co m a v isã o d e Z a c arias
d o q u e s u c e d e rá n a festa d o s T a b e rn á c u lo s n o s d ia s m essiân ic o s (cp.
14; v e r vol. 1, p p . 5 7 5 7 8 ,5 8 1 ‫)־‬. O te m a d o b o m p a s to r e m Jo 10 ta m b é m
se e n c o n tra e m Z c 11. Jo 12,15 cita Z c 9,9 acerca d a v in d a d o re i assen-
ta d o so b re u m ju m e n to (vol. 1, p p . 739, 751). N a n a rra tiv a d a p a ix ã o ,
M t 26,15 to m a d e Zc 11,12 a id e ia d e trin ta m o e d a s d e p ra ta , e n q u a n -
to M c 14,27, "F erirei o p a s to r e as o v e lh a s ficarão d isp e rs a s " (e apa-
re n te m e n te Jo 16,32), ecoa Z c 13,7. A p a ssa g e m q u e o ra a n a lisam o s,
66 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (episódio 5 e conclusão) 1417

Z c 12,10, é ta m b é m c ita d a e m A p 1,7 em relação à p a ro u sia : "Eis


q u e v e m c o m a s n u v e n s, e to d o o lh o o v e rá , a té os q u e o tra sp a ssa -
ra m ; e to d a s as trib o s d a te rra se la m e n ta rã o so b re ele. Sim . A m ém ".
(A p a ssa g e m é u s a d a d e u m a m an eira sin g u lar p o r J ustino, Apologia 1,52).
C o m o Jo ão in te rp re ta Z c 12,10? N o co n tex to d o A T, a v ista d a-
q u e le q u e é tra s p a s s a d o e stá a sso c ia d a co m u m e sp írito d e co m p ai-
x ão , d e m o d o q u e o s o b se rv a d o re s " la m e n ta m p o r ele, co m o q u e m
la m e n ta p o r u m p rim o g ê n ito , e c h o ra m a m a rg a m e n te so b re ele".
N o e p is ó d io n a c ru z , ta lv e z João e sta ria p e n s a n d o n o s o b se rv a d o re s
c o m o s e n d o "o s ju d e u s " d o v. 31 (e talv e z os so ld a d o s ro m a n o s d e
32-34) q u e , c o n te m p la n d o Je su s tre s p a ss a d o p o r u m a lan ça p o r ins-
tig a ç ão d e le s m e sm o s, se a rre p e n d e m e c h o ra m p o r ele? E m b o ra isto
c o n c o rd e c o m o c o n te x to d o A T e c o m o te m a d e Lc 23,48, n a d escri-
ção d e Jo ão n a d a h á q u e p r e s s u p o n h a a rre p e n d im e n to ; "o s ju d e u s "
c o n tin u a m s e n d o h o stis (19,38; 20,19). O u tra in te rp re ta ç ã o p o ssív e l
é q u e , a o u s a r u m v e rb o fu tu ro , "V e rã o ", João a lu d e à p a ro u s ia , jus-
ta m e n te c o m o faz o a u to r d o A p o calip se. E n tre o s q u e p e n s a m q u e,
e n q u a n to a citação n o v. 36 se re fe re ao q u e já a c o n te c eu , a citação d e
Z a c a ria s e m 37 n ã o se rá c o n c re tiz a d a a té a p a ro u s ia , p o d e m o s citar
L a g r a n g e , L oisy (h e sita n te m e n te ), W iken h au ser e S ch la tt er . O versí-
cu lo , p o is , se to rn a u m a am e a ç a d e ju íz o so b re o s q u e tre sp a ssa ra m
Jesus. E n tre ta n to , à lu z d a ê n fa se d o e v a n g e lh o so b re a escato lo g ia
re a liz a d a , é b e m p ro v á v e l q u e o a u to r estiv e sse p e n s a n d o n ã o em
u m a p a ro u s ia fu tu ra , e sim e m u m tip o d e ju íz o q u e já se co n cretiza-
ra. C o m a lg u m a h e sita çã o , su g e rim o s q u e o "ele s" q u e c o n te m p la m
Je su s c o m o tre s p a s s a d o c o n siste m d e d o is g ru p o s. P rim e iro , "o s ju-
d e u s " , q u e são s e u s in im ig o s, são d e rro ta d o s p e lo p ró p rio a to q u e
in stig a ra m ; p o is co m o c o n te m p la ra m o Je su s q u e m o rre u n a cru z,
d a li e m a n a , ju n ta m e n te co m o s a n g u e d e s u a v id a , u m m a n a n c ia l d e
á g u a q u e g e ra v id a . O s fa rise u s tin h a m d e c id id o m a ta r Jesu s p o rq u e
o m u n d o in te iro e sta v a c o rre n d o a p ó s ele (12,19); m as, iro n ic am e n te ,
ao cru cificá-lo , c u m p ria m s u a p ro fe c ia d e q u e, q u a n d o fosse lev an -
ta d o d a te rra , a tra iría a si to d o s o s h o m e n s (12,32). Eles fiz e ra m com
q u e ele fo sse le v a n ta d o n a c ru z; p o r s e u p e d id o a P ilato s, o c a sio n a ra m
q u e u m a lan ç a a b risse a fo n te d e á g u a v iv a. A g o ra e stá s e n d o d a d o
o E sp írito q u e g e ra rá h o m e n s (3,5) p a ra q u e sejam se g u id o re s d e Je-
su s, o m e s m o E s p írito /P a rá c le to q u e v in d ic a rá Jesu s c o n tra os q ú e
c ria m q u e o e s ta v a m d e s tru in d o (16,8-11). E n tre ta n to , u m se g u n d o
1418 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

g ru p o ta m b é m c o n te m p la o Je su s tre s p a ss a d o , já q u e n a p e s so a d o
D iscíp u lo A m a d o o s q u e tê m fé e m Je su s (19,35) c o n te m p la m a cena.
P a ra eles, a c o n fro n taç ã o n ã o é o casião d e c o n d e n a ç ã o , e sim d o d o m
d a v id a (3,18; 5,24). P a ra eles, Je su s e stá s u s p e n s o d a c ru z e m c u m p ri-
m e n to d e su a s p a la v ra s e m 3,14-15: "E a ssim co m o M o isés le v a n to u
a s e rp e n te n o d e se rto , ta m b é m o F ilh o d o H o m e m se rá le v a n ta d o ,
p a ra q u e ta n to s q u a n to s c re e m n e le te n h a m a v id a e te rn a " . A ssim ,
o Jesu s m o rto p e rm a n e c e s e n d o o p o n to focal d o ju íz o ju s ta m e n te
co m o fez o Jesu s vivo: ao p é d a c ru z p e rm a n e c e m o s q u e re je ita m a
lu z , e ta m b é m os q u e se d e ix a m a tra ir p o r e la (3,18-21). O s p rim e iro s
c o n te m p la m o Jesu s tre s p a ss a d o p a ra se re m c o n d e n a d o s; o s ú ltim o s
o c o n te m p la m p a ra se re m salvos.
N o tar-se-á q u e tem os co n ectad o in tim a m en te a citação d e Z c 12,10
com a to ta lid a d e d e Jo 14,34: n ã o só co m o g o lp e d a lan ça, m a s tam -
b é m co m o flu xo d e sa n g u e e á g u a . E sta foi u m a d a s ra z õ e s p o r q u e
rejeitam o s a tese d e B u ltm a n n d e q u e o v. 34b é u m a a d iç ã o , p o rq u a n -
to n ã o é c ita d a n o v. 37. E n c o n tra m o s ju stifica tiv a p a ra n o sso p ro -
c e d im en to n o co n tex to im e d ia to d a citação d e Z a c arias - a q u i co m o
e m o u tro lu g a r, o a u to r n e o te sta m e n tá rio e stá c ita n d o u m v e rsíc u lo
co m o ev o cativ o d e to d o u m co n tex to (ver ta m b é m vol. 1, p . 324). E m
Zc 12,10, ju sta m e n te a n te s d a s p a la v ra s c ita d a s p o r João, Ia h w e h diz:
"D e rra m a re i so b re a casa d e D av i e os h a b ita n te s d e Je ru sa lé m um
espírito d e co m p aix ão ". U n s p o u c o s v e rsíc u lo s d e p o is (13,1), Z a c arias
n o s fala d a p ro m e ssa d e D e u s d e a b rir u m a fo n te p a ra a casa d e D a v i e
p a ra Jeru salém , afim de purificar seus pecados. T o d o s o s te m a s italicad o s
têm fig u ra d o e m n o ssa in te rp re ta ç ã o d e Jo 19,34b co m o o c u m p rim e n -
to d e Jo 7,38-39. (T alvez p o ssa m o s a d ic io n ar m ais a d ia n te d e sc re v e em
Zc 14,8 as á g u a s v iv as e m a n a n d o d e Jeru salém p o d e m se r u m desen -
v o lv im en to d e Ez 42,1-12, o n d e o te m p lo é a fo n te d a á g u a q u e flu i d e
Jeru salém . T em os q u e le m b ra r q u e p a ra João o c o rp o d e Jesus s u b stitu i
o tem p lo d e Jeru salém [2,21]. O u tra o b ra jo an in a, A p 22, foi influ en -
ciad a, resp ectiv am en te, p o r Z c 13,1 e 14). E assim a citação d e João, no
v. 37, reflete to d a a so terio lo g ia e a cristologia, p re c isa m e n te co m o a
citação n o v. 36. Eis p o r q u e a s d u a s e stã o in trin se c a m e n te entrelaças.
N a n o ta so b re o v. 37 sa lie n ta m o s q u e o TM d e Zc 12,10 d ife re d a
citação feita e m João, p o is p a re c e falar q u e o p ró p rio Ia h w e h é tres-
p a s sa d o . P a ra e v ita r e sta d ific u ld a d e , e x tra ím o s aí u m a in te rp re ta ç ã o
m essiân ica, a sa b er, q u e o M essias seria tre s p a s s a d o e o s h o m e n s
66 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (episódio 5 e conclusão) 1419

o lh a ria m p a r a Ia h w e h . E m p a rtic u la r, o M essias d a trib o d e José foi


r e tr a ta d o e m a lg u m a s e sp ec u laç õ e s ju d a ic a s so b re este tex to (TalBab
Sukkah 52a; StB, II, 584; S. M owinckel, He That Cometh [N o v a York:
A b in g d o n , 1954], p . 291). Se e sta tra d iç ã o e ra c o n h e c id a n o s d ia s d e
Jo ão , n ã o é in im a g in á v e l q u e João e n c o n tro u n o c u m p rim e n to d e
Z c 12,10 u m a c o n firm a ç ão d e q u e Je su s e ra o M essias (cf. Jo 20,31).
A lg u n s re la c io n a ria m a fig u ra tre s p a ss a d a a n ô n im a d e Z c 12,10 com
o S erv o S o fre d o r d e Is 53,5.10, q u e foi e sm a g a d o e aço itad o . R eite-
r a n d o , se e sta co n ex ão foi feita n o te m p o d e João, é p o ssív e l q u e ele
c o n firm a sse q u e Jesu s era o S ervo, u m te m a q u e su g e rim o s com o
p o s s ív e l n a citação d o v. 36. E m c o n tra p a rtid a , reje ita m o s a su g e stã o
d e O 'R ourke, ScEccl 19 (1967), 441, d e q u e , v isto q u e n o TM o p ró p rio
Ia h w e h é tre s p a ss a d o , p o ssiv e lm e n te João esteja a p lic a n d o tex to a
Je su s p a ra sig n ific a r a s u a d iv in d a d e . O fato d e q u e João n ã o cita o
tex to d e a c o rd o co m o TM m o stra q u e ele n ã o e stá p e n s a n d o d e sta
m a n e ira .

Conclusão: O sepultamento de Jesus por José e Nicodemos (1 9 ,3 8 - 4 2 )

E m b o ra a d e p o s iç ã o d a c ru z n ã o seja e x p lic ita m e n te m e n c io n a d a


n e s te s v e rs íc u lo s , ela e stá im p líc ita n o re la to d o c u id a d o g a sto com o
c o rp o d e Jesu s; e a ssim a c o n c lu sã o d a cen a d a cru cifix ão e stá c o n tra p o s-
ta à In tro d u ç ã o o n d e fo m o s in fo rm a d o s q u e Je su s foi p o s to n a c ru z . V er
ta m b é m o te m a c o m u m d o lu g a r o n d e ele foi c ru c ific a d o e m 1 9 ,1 7 -1 8
e 4 1 . A o c o m p a ra r a c o n c lu sã o c o m os v á rio s e p isó d io s d a crucifixão,
H o skyn s , p . 5 3 6 , n o ta u m a in te re s s a n te p ro g re s s ã o n a s re s p o s ta s d e
P ila to s à s so lic ita çõ e s q u e rec e b e acerca d o Je su s cru cificad o : n o p ri-
m e iro e p is ó d io , ele re c u sa a p rim e ira so licitação d e " o s ju d e u s " d e
m u d a r o títu lo ( 1 9 ,2 2 ) ; n o q u in to e p is ó d io , ele a te n d e ta c ita m e n te a
s e g u n d a so lic ita çã o d e "o s ju d e u s " d e a p re s s a r a re m o ç ã o d o s cor-
p o s (o " P o r c o n s e g u in te " d e 1 9 ,3 2 ) ; a q u i, ele a te n d e e x p lic ita m e n te
a so lic ita ç ã o d o d isc íp u lo c la n d e s tin o d e Je su s d e re m o v e r o c o rp o
(v. 3 8 ) . E a s sim o ú ltim o a p a re c im e n to d e P ila to s n o e v a n g e lh o é d e
c a rá te r p o s itiv o .
Salientam os que, exceto a frase inicial, o q u into episódio não teve pa-
ralelos sinóticos. N a conclusão, com o n o restante d a n arrativa d a cru d íi-
xão com a exclusão d o q u into episódio, h á u m paralelo sinótico p a rc ial
(em b o ra, o sim b o lism o caracteristicam ente joanino n ã o seja co n stru íd o
1420 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

sobre os d e ta lh es q u e tem os p aralelo s sinóticos). João p a rtic ip a com


o s sin ó tico s d a solicitação feita p o r José d e A rim a teia a P ilato s, e o le-
v a r o c o rp o p a ra se p u ltá -lo e m u m tú m u lo a té e n tã o se m u so , p o rq u e
e ra o D ia d a P re p a ra ç ã o a n te s d e u m d ia sa n to q u e já se a p ro x im a v a
ra p id a m e n te . U m a c o m p a raç ã o d o q u in to e p isó d io e a c o n c lu sã o su s-
cita u m a d ific u ld a d e : em c a d a solicitação q u e a P ila to s se a p re s e n ta é
p a ra re tira r o co rpo; tac ita m en te , P ilato s a te n d e a p rim e ira so licitação
a "o s ju d e u s " e ex p lic ita m e n te co n ced e a José a se g u n d a solicitação;
p o ré m n a d a se d iz p a ra re so lv e r a d u p lic a ç ã o óbvia. (E stu d io so s co m o
Baldensperger tê m c o n ta d o com isto p a ra c o n s tru ir u m a teo ria d e u m
d u p lo s e p u lta m e n to d e Jesus: p rim e iro , p e lo s ju d e u s [ver A t 13,39]; e,
en tão , u m se g u n d o se p u lta m e n to p o r José. Essa te o ria te m s id o u s a d a
p a ra m o d ific a r o tú m u lo v a z io , a sab er, o p rim e iro tú m u lo ). C e rta m e n -
te, co m m u ita im ag in ação , a lg u é m p o d e h a rm o n iz a r, p o r e x e m p lo ,
a le g a n d o q u e a p rim e ira solicitação e m itiu u m a o rd e m ao s so ld a d o s
q u e a p re ssa sse m a m o rte e d escessem o s c o rp o s d a c ru z , e n q u a n to a
s e g u n d a solicitação le v o u a u m a p e rm issã o d e d isp o r o c o rp o u m a v ez
d escid o d ela. U m crítico tão c o m p e te n te c o m o B ultmann , p . 516, m an -
tém q u e a m b a s a s cen as e sta v a m la d o a la d o n a fo n te d e Jo ão e, conse-
q u e n te m e n te , n e n h u m a re p re se n ta u m a a d ição feita p e lo e v a n g e lista
(que só era re sp o n sá v e l p e lo v. 39a: o a p a re c im e n to d e N ico d em o s).
E n tre tan to , m u ito s d u v id a m q u e as d u a s cen as e ra m c o n sec u tiv a s n a
tra d içã o e p e n s a m q u e o escrito r r e u n iu v e rsõ e s v a ria n te s, p o ré m so-
b re p o n d o p a rc ialm en te , d e co m o P ilato s fez a d isp o siç ão d o c o rp o d e
Jesus - se n d o a p rim e ira v e rsã o (q u in to e p isó d io ) u m re la to in te ira -
m en te jo an in o , a s e g u n d a (a conclusão) re p re s e n ta n d o u m e m p ré sti-
m o d a tra d içã o sinótica. U m re fin a m e n to d e s ta a b o rd a g e m é a tese d e
LoiSY (p. 496) d e q u e os vs. 40a,41-42 em a lg u m m o m e n to fo ra m a con-
clusão d a p rim e ira v e rsã o , e q u e e sta v e rsã o foi a b so rv id a p e la a d iç ã o
d o v. 38 d a tra d içã o sinótica, e e n tã o a b so rv id a d e n o v o p e la a d iç ã o d o s
vs. 39 e 40b (o rela to d e N ic o d e m o s e as p re p a ra ç õ e s fú n eb res).
N e n h u m a so lu ção sim p les é p o ssív el. Se h á n a c o n clu são p a ra -
lelos sin ó tico s claros, n in g u é m p o d e m a n te r com s e rie d a d e se r p o s-
sível q u e to d a a n a rra tiv a d a co n clu são p o ssa re m o n ta r a o s sinóticos.
O relato d e N ic o d e m o s e a p re p a ra ç ã o d o c o rp o co m m irra e alo é s é
u m p ro b le m a m ais g rav e n a d iscu ssão . (Se o s "ó leo s a ro m á tic o s" d o
v. 40b [ver n o ta] n ã o são os m esm o s m irra e alo és d o v. 39, e n tã o se p o d e
p e n s a r q u e a referên cia a N ic o d e m o s c o n siste d e a p e n a s u m v ersícu lo ,
66 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (episódio 5 e conclusão) 1421

a s a b er, o v. 39, in se rid o n a n a rra tiv a d o se p u lta m e n to e a c o m p a n h a d o


d o v. 4 0a q u e se rv e co m o u m con ectiv o a o q u e se segue. O " em confor-
m id a d e c o m " d o v. 40b c o n tin u a ria a n a rra tiv a d o v. 38). O b v iam en te,
o re la to d e N ic o d e m o s é in d e p e n d e n te d a tra d içã o sinótica, p o is difi-
c ilm e n te ele se concilia com a afirm ação d e M c 16,1 e Lc 24,1, a saber,
q u e as m u lh e re s fo ra m ao tú m u lo d e m a n h ã com óleos aro m ático s
(p a ra u n g ir Jesu s, s e g u n d o M arcos). T em d e se reje ita r a teo ria d e har-
m o n iz a ç ã o q u e a s p re p a ra ç õ e s n a sexta-feira, d e scrita s p o r João, eram
p ro v is ó ria s e a s m u lh e re s fo ra m p a ra c o m p le ta r a tare fa n o d o m in -
go. Jo ão n ã o fo rn ece in d icação d e q u e h o u v e sse m ais p ro ce d im e n to s
fú n eb re s; e c e rta m e n te a im p re ssio n a n te q u a n tid a d e d e esp eciarias
e ó leo s u s a d o s n a sexta-feira to rn a v a d e sn ec e ssário tra z e r óleos no
d o m in g o . E m p a rtic u la r, a tra d iç ã o in d e p e n d e n te d e L ucas (23,55-56)
d e q u e a s m u lh e re s o b se rv a ra m o se p u lta m e n to d o co rp o n a sexta-
feira e e n tã o im e d ia ta m e n te fo ra m e c o m p ra ra m óleos aro m ático s e
p e rfu m e s é u m a c o n tra d iç ã o im p lícita d a tra d içã o d e João d e q u e o
c o rp o foi p re p a r a d o com ó leos a ro m á tic o s a n te s d o se p u lta m e n to .
A s u g e stã o d e L agrange (p. 504) d e q u e as m u lh e re s só v ira m o tú m u -
lo e n ã o o p ro c e sso d e se p u lta m e n to e, c o n se q u e n te m e n te , n ã o sab iam
o q u e José e N ic o d e m o s fiz e ra m é u m a h a rm o n iz a ç ã o a in d a m ais es-
tra n h a . U m a h a rm o n iz a ç ã o m ais su til e n tre João e os sin ó tico s é pos-
sív el caso se p o s tu le q u e a tra d iç ã o m a r c a n a /lu c a n a co m b in a d u a s
n a rra tiv a s in d e p e n d e n te s e u m ta n to c o n tra d itó ria s: uma narrativa do
sepultamento, a q u a l com se u silêncio so b re o te m a im p lícito d e q u e os
c o stu m e iro s p ro c e d im e n to s fú n e b re s fo ra m se g u id o s (e a ssim e stav a
e m c o n c o rd â n c ia c om a tra d iç ã o d e João), e uma narrativa de um "túmu-
10 vazio", a q u a l p r e s s u p u n h a q u e os c o stu m e iro s p ro c e d im e n to s fú-
n e b re s n ã o fo ra m s e g u id o s e o c o rp o d e Jesus n ã o foi u n g id o . A lg u ém
teria q u e p re s u m ir q u e M arco s n ã o v iu a c o n tra d iç ã o em c o m b in ar
essa s n a rra tiv a s d iv erg e n te s. Essa so lu ção é tão e sp ec u lativ a q u e p ro -
v a v e lm e n te seja p refe rív e l e n c a ra r o p ro b le m a d e d isc o rd â n cia e n tre
Jo ão e o s sinó tico s.
N ã o é fácil e stab elecer a q u e stã o q u a n to a q u a l d a s d u a s descrições
d o s rito s fú n e b re s é m ais p lau sív el: a a p re se n ta ç ã o (m a rc a n a /lu c a n a )
n o d o m in g o , o u a a p re se n ta ç ã o (joanina) n a sexta-feira. E m ra z ã o d a
e n o rm e q u a n tid a d e d e m irra e aloés e m Jo 19,39, m u ito s e stu d io so s
a p o ia m a a p re s e n ta ç ã o n o d o m in g o ; p o r ex em p lo , Bultmann , p. 516,
c a ra c te riz a o re la to d e João co m o u m a e d ifican te c o n stru ção len d ária.
1422 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

N o e n ta n to , B enoit, Passion, p . 225, a p o ia a a p re se n ta ç ã o n a sexta-fei-


ra. V isto q u e a a p re se n ta ç ã o n o d o m in g o e stá e stre ita m e n te v in c u la d a
com a h isto ric id a d e d a n a rra tiv a d o e n c o n tro d o tú m u lo v a z io , d eix a-
rem o s s u a s d ific u ld a d e s a té d isc u tirm o s Jo 2 0 ,1 .0 re la to q u e Jo ão faz
d a p re p a ra ç ã o fú n e b re n a sex ta-feira n ã o te m rela çã o co m a n a rra tiv a
d a ressu rreição ; aliás, u m s e p u lta m e n to tão e la b o ra d o n ã o m o stra a n -
tecip ação d e re ssu rre iç ã o im in en te . Se d e ix a rm o s d e la d o a q u a n ti-
d a d e d e esp eciarias, a m aio r d ific u ld a d e n a a p re se n ta ç ã o jo a n in a é a
a p a re n te c o n tra d iç ã o e n tre os e la b o ra d o s rito s fú n e b re s e a u rg ê n c ia
d ita d a p e la ap ro x im aç ã o d o d ia festivo. E n tre ta n to , n ã o d e v e m o s su -
b e stim a r a in sistên cia ju d a ic a d e q u e u m c o rp o te m d e se r p re p a r a d o
d e v id a m e n te p a ra o se p u lta m e n to . A M ish n a h Sanhedrin 6:5 d iz q u e
a in d a se p o d e p e rm itir q u e u m c o rp o m o rto p e rm a n e ç a d u r a n te a n o i-
te se m se p u lta m e n to caso se re q u e ira esse te m p o p a ra p r e p a r a r u m a
m o rta lh a o u u m caixão p a ra ele.
Se sairm o s d o relato d e N ico d em o s e as especiarias, q u e é u m m a-
terial p ec u liarm en te joanino, a in d a n o s d e p a ra m o s com u m p ro b le m a,
q u a n d o an alisam o s as o rig en s d o relato jo an in o d e José d e A rim a teia e
o tú m u lo . M esm o q u a n d o isto ten h a p aralelo s sinóticos, fica lo n g e d e
ser claro q u e João ten h a reco rrid o aos ev an g elh o s sinóticos e su a s fon-
tes; n as n o tas so b re os vs. 38,41-42 salien tam o s n u m e ro sa s d iferen ças d e
vo cab u lário e d etalhes. D odd , Tradition, p p . 138-39, p ro v a v e lm e n te está
certo e m in sistir u m a v ez m ais q u e João e stá rec o rre n d o a u m a tra d içã o
in d e p e n d e n te sim ilar àq u elas p o r d e trá s d o s e v an g elh o s sinóticos, e
n ão aos ev an g elh o s sinóticos o u às p ró p ria s trad içõ es pré-evangélicas.
Então, à m an eira d e resum o, o relato joanino d o q u e aconteceu ap ó s
a m o rte d e Jesus com bina m aterial d e dois tipos: prim eiro , m aterial q u e
não tem paralelos sinóticos nos vs. 31b-37 (quinto episódio) e os vs. 39-40;
se g u n d o , m ate ria l q u e é m ais afim co m a tra d iç ã o sin ó tica n o s vs.
31 a,38 e 41-42. E sta d iv isã o é sim ilar, p o ré m n ã o tã o e m o rd e m co m o a
d e B enoit, art. cit., p e la q u a l u m rela to jo an in o se m p a ra le lo s sin ó tico s
(31-37) se ju n ta a o u tro rela to o rig in a l com p a ra le lo s sin ó tico s (39-42)
p o r m eio d e u m v ersícu lo co n ectiv o (38) e m p re s ta d o d a tra d iç ã o sinó-
tica. (N a re a lid a d e , o v. 38 n ã o é m u ito p ró x im o d a tra d iç ã o sin ó tica
d o q u e são os vs. 41-42; e n ã o h á b o a ra z ã o p a ra p r o p o r d ife ren te s
o rig e n s p a ra estes versículos). O s sin a is d e q u e d o is tip o s d e m a te ria l
fo ram c o m b in a d o s são m ais claros: co m o m en c io n a d o , n ã o só o p e d i-
d o a P ilato s n o v. 38 d u p lic a o d o v. 31b, m as ta m b é m o re c e b im e n to
66 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (episódio 5 e conclusão) 1423

d o c o rp o d e Jesu s n o v. 38 é d u p lic a d o n o v. 40. T o d a v ia, n ã o h á evi-


d ê n c ia su ficien te q u e n o s ca p ac ite a e la b o ra r u m a teo ria ex ata so b re
co m o o u p o r q u e tal c o m b in ação oco rreu .
Q u al é o p ro p ó sito o u tem a d a conclusão, e sp ed a lm e n te d a s p artes
p ecu liarm en te joaninas? A lguns d o s d etalh es d a n arrativ a p o d e m ter tido
su as o rig en s n as exigências d a apologética (se o a u to r joanino as u so u o u
n ão apologeticam ente). B ultm ann , p. 5 2 7 10, p en sa q u e a ênfase sobre o
caráter d o tú m u lo até en tão n ã o u sa d o ("novo"; "n o q u al n in g u ém ain d a
fora se p u ltad o ") se p ro p õ e a su b lin h ar su a san tid ad e - o tú m u lo n u n ca se
p re s to u ao u so secular. Parece-nos m ais p ro v áv el q u e ele reflita apologé-
tica - n ã o h o u v e confusão n o registro d o tú m u lo vazio, pois Jesus não foi
se p u lta d o em u m tú m u lo co m u m o n d e seu corpo p u d esse m isturar-se
co m o u tro s, e o tú m u lo estava em u m lu g ar facilm ente identificável nas
p ro x im id a d e s d o b e m conhecido local d e execução pública.
H á a q u i a lg u m sim b o lism o teológico? H e sita m o s so b re se classi-
ficam o s 1 9 ,3 8 - 4 2 co m o sexto e p isó d io , n a n a rra tiv a d a crucifixão, o u
co m o a co n clu são . N o ssa d ecisão d e n ã o tra tá-lo co m o o u tro e p isó d io
tev e p o r b a s e o fato d e q u e n ã o p o d ía m o s v e r m a io r ên fase o u sim bo-
lism o teo ló g ico q u e colocasse a d escrição d o s e p u lta m e n to n u m p lan o
co m o s e p isó d io s 1 -5 . N a s n o ta s, rejeitam o s o q u e c o n sid e ram o s ten-
ta tiv a s fo rç a d a s p a ra ler-se sim b o lism o n e ste s versículos: p o r exem -
p io , re fe rê n c ia s a d ic io n ais a o c o rd e iro p a sca l o u S ervo S ofredor; u m
jo g o d e p a la v ra s so b re o J a rd im d o É den; e o tem a d e u m sacrifício d e
a ro m a su a v e. F ra n ca m en te , e sta m o s in certo s se a lg u m tem a teológico
su b lin h a u m a p o ssív e l co n ex ão e n tre a s p re p a ra ç õ e s p a ra o fu n era l
n o s v s. 3 9 - 4 0 e a in sistên cia d e João e m 1 2 ,3 .7 d e q u e M aria d e B etânia
já h a v ia u n g id o o c o rp o d e Jesu s p a ra o se p u lta m e n to (vol. 1, p. 7 4 4
- te ria se e s p e ra d o q u e d e p o is d e tal in sistên cia o Q u a rto E van g elh o
n ã o n a rra s s e q u a lq u e r p re p a ra ç ã o ad ic io n al p a ra o se p u lta m e n to , e,
to d a v ia , ele é o ú n ico e v a n g e lh o a faz e r isso). E stam o s tam b é m b e m
d u v id o s o s so b re a tese d e R. M ercúrio, CBQ 21 (1 9 5 9 ) , 5 0 -5 4 , d e q u e
a d e scriçã o q u e João faz d o se p u lta m e n to te m u m tem a b a tism a l es-
p ecial; p o r ex em p lo , o u so d e e sp eciarias é rem in isc en te d o b a tism o
co m o u n ç ã o p e lo E sp írito S anto, e a p rese n ç a d e N ic o d e m o s evoca o
tem a b a tis m a l d o d iálo g o n o cap. 3 (vol. 1, p p . 3 4 8 -5 1 ) .
M as aí re s ta m d u a s p o ssib ilid a d e s p a ra e n c o n tra r sim bolism o
teo ló g ico m e n o r n e ssa s p a ssa g e n s q u e são d ig n a s d e co n sid eração .
A p rim e ira é u m a c o n tin u a çã o d o tem a d e q u e Jesus, te n d o sid o
1424 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

le v a n ta d o , ele a tra i a si to d o s o s h o m e n s (12,32). V im os e ste te m a e m


ação n o q u in to e p isó d io , n o te s te m u n h o q u e o D isc íp u lo A m a d o d á
so b re o flu x o d e sa n g u e e á g u a , p o is esse te s te m u n h o foi d irig id o a
to d o s os q u e te n h a m fé e m Jesus. M as p o d e se r q u e n a c o n c lu sã o João
esteja v o lta n d o s u a ate n ç ã o p a ra o u tro tip o d e c ren te, e x e m p lific a d o
e m José e N ico d em o s. N a in tro d u ç ã o ao e v a n g e lh o (vol. 1, p . 71ss)
p ro p u se m o s q u e João tin h a e m m e n te ao m e n o s u m d u p lo a u d itó rio :
os q u e já e ra m p le n a m e n te cristão s cren tes, e o s q u e já e ra m cren -
tes em Jesu s m a s q u e a in d a p e rm a n e c ia m n a S in ag o g a, p o ré m n ã o
tin h a m co ra g e m d e p ro fe ssa r e sta convicção p u b lic a m e n te e a in d a es-
ta r em risco d e receb er a ex co m u n h ã o . Se o q u in to e p isó d io v isu a liz a
o p rim e iro g ru p o , re p re s e n ta d o p e lo D iscíp u lo A m a d o , a c o n c lu sã o
p o d e ria v isu a liz a r o se g u n d o . José e ra u m d isc íp u lo se cre to q u e ag o -
ra tev e a co ra g e m d e ex ib ir s u a a d e sã o , s e p u lta n d o o c o rp o d e Jesus.
N ico d em o s v e io se cre ta m en te a Jesus d e n o ite, m a s a g o ra tra z u m a
e n o rm e q u a n tid a d e d e e sp ec iarias com o fim d e p r e p a r a r o c o rp o d e
Jesu s p a ra o s e p u lta m e n to . (C om m e n o s c e rtez a p o d e ria m o s te o riz a r
q u e, já q u e Jesu s falo u a N ic o d e m o s so b re a n e c e ssid a d e d e se r g e ra d o
d a á g u a e d o e sp írito [3,5], a g o ra ele re a p a re c e p o r c a u sa d a d o a ç ão
d o E sp írito p re fig u ra d a n o fluxo d e á g u a d o la d o d e Jesus). P o d e ser
q u e João esteja in sin u a n d o q u e o s cre n tes d e s e u te m p o q u e a in d a
n ã o h a v ia m se d e slig a d o d a S in ag o g a se g u isse m o e x e m p lo d e José e
N ico d em o s.
O s e g u n d o sim b o ü sm o p o ssív e l é u m a c o n tin u a ç ã o d o te m a d e
q u e Jesu s é rei. O g ra n d e g a sto e m e sp ec iarias p o d e ria te r e m m e n te
su g e rir q u e a Jesus e ra d a d o u m fu n e ra l rég io , p o is te m o s conheci-
m en to d o s g asto s com o s reis. Josefo, Ant. 17,8.3; 199, n o s in fo rm a
q u e n o fu n e ra l d e H e ro d e s o G ra n d e q u in h e n to s se rv o s c a rre g a ra m
os óleos aro m ático s o u e sp ec iarias (arom a). H á u m a tra d iç ã o p re se r-
v a d a em u m " tra ta d o m e n o r" d o T a lm u d e (TalBab, Ebel Rabbathi o u
Semahoth, 8:6 - u m a o b ra m ed ie v al, p o ré m c o n te n d o m a te ria is m ais
antig o s) q u e n a m o rte d o R abi G amaliel o A n cião (p ro v a v e lm e n -
te c. d e 50 d.C .), o p ro sé lito Onkelos, q u e im o u m ais d e 36 k g d e es-
peciarias. Q u a n d o p e rg u n ta ra m p o r q u e , ele c ito u Jr 34,5 c o m o u m
ex em p lo o n d e se q u e im a ra m esp ec iarias n a m o rte d e reis, e a firm o u
q u e G amaliel era s u p e rio r a cem reis. A m en ç ã o d e u m ja rd im p o d e
a p o n ta r n a m esm a d ireção , p o is as referên cias d o A T a s e p u lta m e n -
to s em ja rd in s d iz e m re sp e ito ao s se p u lta m e n to s d o s reis d e Ju d á
66 · A narrativa da paixão: - Terceira seção (episódio 5 e conclusão) 1425

(2Rs 21,18.26). D o tex to n a LXX d e N e 3,16 a p re n d e m o s q u e o tú m u -


lo p o p u la r d e D a v i (ver A t 2,29) ficava e m u m ja rd im . O b v iam en te,
a e v id ê n c ia e s tá lo n g e d e p ro b a tó ria , e co n fessam o s in ce rte z a so b re
s e u v a lo r; m a s o te m a d e q u e Jesus foi s e p u lta d o com o rei conclui
a d e q u a d a m e n te u m a n a rra tiv a d a p a ix ã o q u a n d o Jesus é c o ro a d o e
a c la m a d o co m o rei d u r a n te s e u ju lg a m e n to e e n tro n iz a d o e aclam ad o
p u b lic a m e n te co m o rei n a cru z. T al p e n sa m e n to c o n c o rd a ria com a
o b se rv a ç ã o d e Bultmann d e q u e e m João o se p u lta m e n to n ã o é p ro -
p ria m e n te u m a tra n siç ã o o u p re lú d io p a ra a re ssu rre içã o , com o é no s
sin ó tico s o n d e as m u lh e re s o b se rv a m c u id a d o sa m e n te o tú m u lo p a ra
q u e p o s s a m v o lta r e u n g ir Jesu s a p ó s o sáb ad o . João n ã o m en cio n a o
fe c h a m e n to d o tú m u lo com u m a p e d ra , com o fazem M a rc o s /M a te u s
co m o p ro p ó s ito d e p re p a r a r p a ra a cen a d a P áscoa o n d e a p e d ra será
ro la d a d e v o lta . P a ra João, o se p u lta m e n to é o fim d a cerim ônia: os
q u e e s tã o p re s e n te s n ã o são m u lh e re s q u e d a rã o te ste m u n h o d o Se-
n h o r re s s u rre to n a P áscoa, e sim h o m e n s q u e a c eita ra m Jesus parcial-
m e n te d u r a n te se u m in isté rio , m a s q u e p o r s u a m o rte fo ra m lev a d o s a
m o s tra r s e u a m o r p a ra com ele. A ssim , se h á u m tem a teológico sim -
b o lic a m e n te o c u lto n a n a rra tiv a , este seria o estág io final d e u m tem a,
tal co m o rea lez a , q u e ex erceu u m a p a rte p ro e m in e n te n a crucifixão.

BIBLIOGRAFIA
(19,16B-42)

Ver a bibliografia geral sobre a N arrativ a d a Paixão no final do §60.

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1426 O Livro da Glória · Segunda Parte: A narrativa da paixão

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O LIVRO DA GLÓRIA

Terceira Parte: A Ressureição de Jesus


ESBOÇO

TERCEIRA PARTE: A RESSURREIÇÃO JESUS


(20,1-29)

A. 20,1-18: Primeira Cena: No túm ulo (§68)


(1-10) Primeiro episódio: Visitas ao túm ulo vazio.
1-2: Contexto: N o dom ingo bem cedo, M adalena encon-
tra o túm ulo aberto e notifica aos discípulos.
3-10: Ação principal: Pedro e o outro discípulo correm ao
túm ulo e veem as vestes fúnebres; o outro discípu-
lo crê.
(11-18) Segundo episódio: Jesus aparece a M adalena.
11-13: Transição: M adalena olha para dentro do túm u-
lo e vê anjos.
14-18: Ação principal: Jesus aparece a M adalena e é re-
conhecido com dificuldade; M adalena procla-
m a o Senhor aos discípulos.

B. 20.19-29: Segunda Cena: O lugar onde os discípulos estão reunidos. (§69)


(19-23) Primeiro episódio: Jesus aparece aos discípulos.
Contexto: No dom ingo à tarde Jesus aparece e
saúda os discípulos que se alegram ao ver o
Senhor.
Mensagem: Jesus envia os discípulos do mes-
m o m odo que ele foi enviado; sopra sobre eles
o Espírito Santo; dá-lhes poder para perdoa-
rem pecados.
(24-29) Segundo episódio: Jesus aparece a Tomé.
24-25: Transição: Tomé, que estava ausente, se recusa
a crer que os outros viram o Senhor.
26-29: Ação principal: No dom ingo seguinte, Jesus
aparece aos discípulos com Tomé presente e o
convida a tocá-lo. Tomé proclam a Jesus como
Senhor e Deus. A bem -aventurança dos que
creem sem ver.
67. A RESSURREIÇÃO:
OBSERVAÇÕES GERAIS

U m a a n á lis e c rític a d o N T m o s tra q u e a fé c ristã n a v itó ria d e Jesu s


s o b re a m o rte te m s id o e x p re s s a d e v á ria s m a n e ira s. E m H e b re u s
c a p . 9 te m o s u m a d e sc riç ã o d e Je su s c o m o s u m o sa c e rd o te q u e en-
tr o u n o s a n to d o s s a n to s c e le stia l co m s e u p r ó p rio s a n g u e q u e foi
d e r r a m a d o e m sa crifício - a ssim , a p a re n te m e n te , u m a p ro g re s s ã o
d ire ta d a c ru c ifix ã o à a sc e n sã o , se m u m e p is ó d io in te rm e d iá rio d e
r e s s u rre iç ã o (ta m b é m 4,14; 6,19-20). N ã o o b s ta n te , a re s s u rre iç ã o é
a m a n e ira m u ito m a is c o m u m n a q u a l a v itó ria d e C risto é d e sc rita .
E n q u a n to a re s s u rre iç ã o e m si n u n c a é r e tr a ta d a n o N T (ver, p o -
r é m , o Evangelho de Pedro, 39-42, o q u a l d e s c re v e c o m o Je su s s a iu d o
tú m u lo ), h á d o is tip o s d e m a te ria l m a is p e rtin e n te à re ssu rre iç ã o .
P rim e iro , h á fó rm u la s b re v e s , a m iú d e d e n a tu r e z a c o n fe ssio n a l,
o r iu n d a d a p re g a ç ã o , d a c a te q u e se e d a litu rg ia d a Ig reja p rim itiv a .
E s ta s fó rm u la s v a ria m e m e stilo ; a b a ix o d is c u tire m o s as fó rm u la s
e m A to s e e m I C o r 1 5 ,3 7 ‫־‬, m a s o le ito r d e v e c o n s u lta r ta m b é m o u -
tro s e x e m p lo s ta is c o m o R m 1,4 e M c 13,31. S e g u n d o , n o s e v a n g e -
Ih o s e A to s h á n a rr a tiv a s d e s e n v o lv id a s a o a c h a r-se o tú m u lo v a z io
e d a s a p a riç õ e s d o Je su s re s s u rre to . E m g e ra l, e s tu d io s o s a firm a m
q u e a s fó rm u la s n o s fo rn e c e m n o ssa in fo rm a ç ã o m a is a n tig a so b re
a re s s u rre iç ã o .
E m b o ra m u ito s c o m ecem s u a s a n á lis e s d e s ta s fó rm u la s em
I C o r 15,3-7, P. S eidensticker, TG I 57 (1967), 286-323, e sp ec ialm en -
te 289-90, d e fe n d e c o m b o n s a rg u m e n to s a tese d e q u e se p o d e
e x tra ir d o s s e rm õ e s e m A to s (2,23-24; 4,10; 5,30-31; 10,39-40) u m a
fo rm u la ç ã o m a is a n tig a c o n sistin d o d e d o is m e m b ro s. O p rim e iro
p ro c la m a a m o rte d e Je su s ("V ós o c ru c ific aste s"; "Jesu s a q u e m
1432 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

m a ta s te s p e n d u ra n d o - o e m u m m a d e iro " ); o s e g u n d o p ro c la m a q u e
D e u s o re s s u s c ito u d e n tr e os m o rto s. N o q u e rig m a p a u lin o re fle -
tid o e m I C o r 1 5 ,3 7 ‫( ־‬escrito c. d e 57 d .C .), p o ré m p r o v e n ie n te d e
u m a tra d iç ã o p rim itiv a e m m e a d o d o s a n o s trin ta - Jeremias EW J,
p p . 101-3), a fo rm u la ç ã o te m s id o e x p a n d id a p a r a q u a tr o m e m b ro s
o u d o is g ru p o s d e d o is: C risto m o rr e u e foi s e p u lta d o ; ele re s s u s -
c ito u e a p a re c e u (v e r a b a ix o p . 1442). T a m b é m se in c lu i u m a lista
d e a p a riç õ e s . A lg u n s a rg u m e n ta m q u e a s " a p a riç õ e s " e ra m o rig i-
n a lm e n te re v e la ç õ e s d a d a s p o r D e u s e m v e z d e m a n ife s ta ç õ e s d o
c o rp o d e Je su s. E n q u a n to u m a d isc u s s ã o d a n a tu r e z a d a s a p a riç õ e s
e stá a lé m d o e sc o p o d e s te c o m e n tá rio , s a lie n ta ría m o s q u e P a u lo ,
q u e se a p re s e n ta co m o te s te m u n h a d e u m a a p a riç ã o d e Je su s, d is-
tin g u e e n tre e sta a p a riç ã o e to d a s a s re v e la ç õ e s e v isõ e s s u b s e q u e n -
tes q u e lh e fo ra m c o n c e d id a s. E m q u a lq u e r caso , a s fó rm u la s n ã o
m e n c io n a m o tú m u lo v a z io e n ã o te n ta m lo c a liz a r a s a p a riç õ e s d e
Jesu s. E stes a s p e c to s só a p a re c e m n a s n a rr a tiv a s s u b s e q u e n te s p e r-
tin e n te s à re s s u rre iç ã o .
O fato d e q u e h á u m d e se n v o lv im e n to d e n tro d a s fó rm u la s e
tam b é m d a s fó rm u la s p a ra as n a rra tiv a s su rg e u m a q u e s tã o ó b v ia so-
b re a h isto ric id a d e d a s n a rra tiv a s. A o d isc u tir as n a rra tiv a s e m g eral
e, p o ste rio rm e n te , a o d isc u tir a s n a rra tiv a s jo an in a s e m p a rtic u la r, n o s
o c u p a re m o s d e iso lar o m a te ria l m ais a n tig o n e sta s n a rra tiv a s; m as
n ã o crem o s q u e n o ssa tarefa em u m c o m e n tário é ir a lé m e e sp e c u la r
so b re se a ressu rre içã o física é o u n ã o p o ssív el. O bjeções à possibilidade
d a ressu rre içã o tê m su a o rig e m n a filosofia e ciência e n ã o n a exegese,
a q u a l é tare fa no ssa. (N ão o b sta n te , n o ta m o s q u e tais objeções têm
su a força c o n tra u m a c o m p re e n sã o c ra ssa m e n te física d a re ssu rre iç ã o
q u e c o n sid e ra ria essa co m o u m a rea n im a ç ã o ; são m e n o s in siste n tes
c o n tra o tip o m ais re fin a d a d e e n te n d e r a re ssu rre iç ã o p ro p o s ta p o r
P a u lo em IC o r 15,42ss.: "S em eia-se c o rp o n a tu ra l, re ssu sc ita rá c o rp o
e sp iritu a l"). N ã o p o d e h a v e r d ú v id a d e q u e o s p ró p rio s e v a n g e lista s
p e n s a v a m q u e o c o rp o d e Jesus n ã o p e rm a n e c e u n o tú m u lo , m a s res-
su scito u p a ra a glória. T o d a v ia, m esm o q u e p o r m eio d e e x eg ese com -
p a ra tiv a re m o n te m o s esta id eia aos p rim e iro s te m p o s, n ã o p o d e m o s
p ro v a r q u e e sta c o m p re en sã o cristã c o rre s p o n d ia a o q u e re a lm e n te
acon teceu . A í já e n tra m o s n o te rre n o d a fé.
A n te s q u e p o ssa m o s tra ta r d a s n a rra tiv a s d o e v a n g e lh o so b re
a ressu rre içã o e su a s d iv erg ê n cia s, d e v e m o s esclarecer a o le ito r três
67 · A ressurreição: Observações gerais 1433

s u p o s iç õ e s d a c rítica b íb lica q u e a fe ta m n o ssa tare fa . Primeiro, os


v e rs íc u lo s q u e c o n c lu e m o E v a n g e lh o d e M arco s n a m a io ria d a s
b íb lia s (M c 16,9-20, c h a m a d o o A p ê n d ic e M a rc a n o o u a C o n c lu são
m a is L o n g a d e M arco s) n ã o e ra m a c o n c lu sã o o rig in a l d o e v a n g e-
lh o , s e n ã o q u e fo ra m a n e x a d o s p o r c a u sa d o fin al a b ru p to e m 16,8.
(O s e s tu d io s o s e stã o d iv id id o s so b re se M a rc o s te rm in o u o rig in a l-
m e n te e m 16,8 o u se h o u v e u m a n a rr a tiv a u lte rio r q u e se p e rd e u ;
é b e m p ro v á v e l q u e a ú ltim a seja a o p in iã o d a m a io ria , e m b o ra o
p r e s e n te e s c rito r se in c lin a p a r a a p rim e ira ). O A p ê n d ic e M arc a n o
e s tá a u s e n te n o s C ó d ic e s V a tic a n u s e S in aiticu s; d e fato , te ste m u -
n h a s te x tu a is m e n o re s d e M a rc o s p re s e rv a m p a ra n ó s o u tra s ten -
ta tiv a s d e c o m p le ta r o e v a n g e lh o . A d a ta d o A p ê n d ic e é difícil d e
d e te r m in a r c o m p re c isã o , m a s é p o s te rio r a o s re la to s d o e v a n g elh o .
A lg u n s e s tu d io s o s n ã o d ã o m u ita im p o rtâ n c ia à s u a e v id ê n c ia so-
b re a re s s u rre iç ã o , p o is a c re d ita m q u e se tra ta d e u m a re fu n d iç ã o
s e c u n d á ria d o m a te ria l já e n c o n tra d o n o s e v a n g e lh o s c a n ô n ic o s (ele
é m a is a fim a L u c a s e M a te u s). M as u m a e stre ita c o m p a ra ç ã o d e
v o c a b u lá rio s u g e re q u e , a o m e n o s e m p a rte , o a u to r d o A p ê n d ic e
p o d e te r re c o rrid o a fo n te s sim ila re s ao s e v a n g e lh o s c a n ô n ic o s e n ã o
a o s p r ó p rio s e v a n g e lh o s; e a ssim p e n s a m o s v a le r a p e n a , em n o ssa s
c o m p a ra ç õ e s , in c lu ir in fo rm a ç ã o to m a d a d o A p ê n d ic e . (A ssim , n o
q u e s e g u e , " M a rc o s" se re fe re a M c 16,1-8, e n o s re p o rta re m o s aos
v e rs íc u lo s re s ta n te s co m o o A p ê n d ic e M arcan o ).
Segundo, a N a rra tiv a d a R essu rreição , em Lc 24, c o n té m o s ver-
sícu lo s (3,6,12,36,40,51 e 52) q u e são te x tu a lm e n te d u v id o so s. E stes
v e rsíc u lo s se e n c o n tra m n a m aio ria d a s te ste m u n h a s tex tu a is im p o r-
ta n te s, m a s g e ra lm e n te estã o a u se n te s d o C o d ex B ezae e d a fo rm a
itálica d o O L - d u a s te s te m u n h a s o c id e n tais q u e u s u a lm e n te são ca-
ra c te riz a d a s p o r in te rp o la ç õ es o u ad iç õ e s e n ã o p o r om issões. A au -
sên cia d e s te s v e rsíc u lo s n o p ró p rio tip o d e te ste m u n h a s o c id e n tais
q u e se p o d e ría e s p e ra r co n tê-lo s tem g ran je a d o p a ra si a p e c u liar
d e sig n a ç ã o n e g a tiv a d e " N ã o In te rp o la ç õ es O c id e n ta is". E m b o ra n a
p rim e ira p a rte d o século fosse m o d a d e sc a rta r estes v e rsíc u lo s com o
a d iç õ e s d e c o p ista, s u a p re se n ç a n o re c e n te m e n te d esco b e rto P75 (vol.
1, p . 148) te m le v a d o m u ito s a re p e n s a re m e sta po sição . P o r exem -
p io , é p o ssív e l q u e estes v e rsíc u lo s fo ssem a d ic io n a d o s a L ucas p o r
u m re d a to r d o e v a n g e lh o , m a s fo ra m o m itid o s p e lo s c o p istas ociden-
tais p re c is a m e n te co m b a se n a id eia d e q u e p a re c ia m ser u m a adição.
1434 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

O
A S V A R IA N TES D A S N A R R A TIV A S D O E V A N G E L H O D A S A PA R IÇ Õ E S PÓ S-R ESSURR EIÇÃO

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67 · A ressurreição: Observações gerais 1435

E m q u a lq u e r caso, c o n sid e rare m o s os v ersícu lo s co letan d o evidências


so b re a ressu rre içã o , p o ré m m a n te n d o n a m em ó ria d o leito r o proble-
m a tex tu al.
Terceiro, te re m o s q u e a n te c ip a r n o ssas c o n clu sõ es n a s p p . 1570-86
ab aix o , p re s s u p o n d o q u e o cap. 21 d e João foi escrito p o r u m o u tro au -
to r, e n ã o p e lo e v a n g e lista q u e foi o re sp o n sá v e l p e lo c o rp o d o ev an -
g elh o . E le re p re s e n ta a tra d iç ã o jo a n in a a g re g a d a a o e v a n g elh o p elo
re d a to r, se u te s te m u n h o d a s a p a riçõ e s p ó s-re ssu rreiç ã o é d ife ren te e
in d e p e n d e n te d o te ste m u n h o p re s e rv a d o n o cap. 20. C o m o re su lta d o
d e s ta s su p o siç õ e s críticas, p o d e m o s falar d e seis rela to s d o ev an g elh o
c o m o fo n te s p a ra n o sso c o n h e cim e n to d a ressu rreição : M arcos, M a-
te u s, L u cas, Jo 20, Jo 21 e o A p ê n d ic e M arcan o . A o c o m p a ra rm o s os
g ráfico s, s u m a ria m o s as e v id ê n c ia s d e ste s rela to s em referên cia aos
d o is m o d e lo s d e n a rra tiv a s q u e d iscu tirem o s: a s n a rra tiv a s d a s ap ari-
ções p ó s -re s su rre iç ã o e as n a rra tiv a s d o tú m u lo vazio.

As narrativas das aparições pós-ressurreição

É to ta lm e n te ób v io q u e o s e v a n g elh o s n ã o c o n c o rd a m q u a n to
a o n d e e a q u e m Jesu s a p a re c e u a p ó s s u a ressu rre içã o . M arcos n ão
m e n c io n a n e n h u m a a p a riç ã o d e Jesus, e m b o ra 16,7 in d iq u e q u e P ed ro
e os d isc íp u lo s o v e rã o n a G alileia. M a te u s m en c io n a u m a ap a riçã o às
m u lh e re s e m Je ru sa lé m (28,9-10) q u e, a p a re n te m e n te , c o n tra d iz a ins-
tru ç ã o d e ir p a ra a G alileia o n d e Jesu s se rá v isto (28,7). P a ra M ateus,
a p rin c ip a l a p a riç ã o é n a G alileia, o n d e Jesus é v isto p e lo s o n z e disci-
p u lo s so b re u m m o n te (28,16-20). L ucas n a rra v á ria s a p ariçõ es n a área
h iero so lim ita n a : a d o is d isc íp u lo s n a e stra d a p a ra E m aú s (24,13-32), a
S im ão (34) e ao s o n z e e o u tro s re u n id o s em Je ru sa lé m (36-53). T odas
e sta s sã o d e s c rita s p o r L ucas co m o te n d o o c o rrid o n o m esm o d ia, n a
p r ó p ria P ásco a; e Jesus é re tra ta d o co m o fin a lm e n te p a rtin d o d e seu s
d isc íp u lo s (p a ra o c éu - N ã o In te rp o la ç ão O c id e n ta l d o v. 51) n a n o ite
d a P ásco a (co n tu d o , veja A t 1,3). E m Jo 20, co m o e m L ucas, en co n tra-
m o s a p a riç õ e s n a á re a h iero so lim itan a: a M aria M a d ale n a (20,1418‫)־‬,
a o s d isc íp u lo s se m T o m é (19-23) e a T om é u m a s e m a n a d e p o is (26-29).
F in a lm en te , n o A p ê n d ic e M a rc a n o h á u m g ru p o d e a p ariçõ es, to d as,
a p a re n te m e n te , n a á re a h iero so lim itan a: a M aria M a d ale n a (16,9), a
d o is d isc íp u lo s n o c a m p o (12-13) e a o s o n z e à m esa (14-19). N o final
d e s ta s Jesu s é le v a d o p a ra o céu. P o d e m o s re s u m ir isto assim :
1436 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

Aparições na área de Jerusalém (p rin c ip a lm e n te L ucas, Jo 20, A p ê n -


dice M arcano):
• a M aria M adalena: Jo 20, M ateu s (várias m u lh eres), A p ê n d ic e
M arcan o
• a P ed ro : L ucas, P a u lo (IC o r 15,5 - lu g a r n ã o especificado)
• a dois discípulos n o cantinho d e Em aús: Lucas, A pêndice M arcano
• ao s o n z e re u n id o s ju n to s: L ucas, Jo 20, A p ê n d ic e M a rc a n o

Aparições na Galileia (M arcos? M a te u s, Jo 21)


• ao s o n z e em u m m o n te (M ateus)
• a sete d isc íp u lo s ju n to ao M a r d e T ib e ríad e s (Jo 21)

É p o ssív e l q u e in d a g u e m o s co m o essas tra d iç õ e s d iv e rsa s, c a d a


u m a a p a re n te m e n te a lh e ia à o u tra , v ie ra m à existência. C o m p a re m o s
esta in fo rm ação a o q u e e n c o n tra m o s n o te ste m u n h o m a is a n tig o d e
IC o r 15,5-8:

Ele a p a re c e u (1) a Cefas;


(2) e n tã o ao s D oze;
(3) en tã o ap a re c eu a m ais d e q u in h e n to s irm ã o s ....
E n tão a p a re c e u (4) a Tiago;
(5) e n tã o a to d o s os ap ó sto lo s;
(6) d ep o is d e todos, ele a p areceu a m im [P a u lo ]....

E. B am m el , T Z 11 (1955), 401-19, a rg u m e n ta q u e a fó rm u la p a u lin a


rep re sen ta , e m p a rte , u m a co m b in ação d e d o is reg istro s d a s m e sm a s
aparições: u m reg istro foi q u e ele a p a re c e u a C efas e ao s D oze; o o u tro
foi q u e ele a p a re c e u a T iago e a to d o s o s apóstolos. N ã o o b sta n te , P a u -
lo foi b e m in fo rm a d o so b re o s p rin c ip a is p e rso n a g e n s d a igreja h iero -
so lim itan a e c e rtam e n te tin h a to d a c o n d ição d e sa b er se h a v ia u m a tra-
d ição d e q u e Jesus ap a re c era , re sp e c tiv a m e n te, a P e d ro e a T iago. N o
N o v o T estam en to e stá in d e p e n d e n te m e n te te s te m u n h a d o a a p a riç ã o a
P ed ro , e p ro v a v e lm e n te a lg u é m p o stu la ria u m a a p a riçã o a T iago, p a ra
ex p licar o fato d e q u e u m "irm ã o " in cré d u lo d o S en h o r (d esc ren te e m
Jo 7,5; M c 3,21 c o m b in ad o com 31) veio a ser se g u id o r d e Jesus. T odavia,
se tiv erm o s d ú v id a d e q u e estam o s tra ta n d o d e d o is reg istro s d a s mes-
mas aparições, B ernard e o u tro s p o d e m e sta r certos e m p e n s a r q u e a fór-
m u la d e P au lo rep re sen ta u m a com binação d e d o is reg istro s diferentes.
67 · A ressurreição: Observações gerais 1437

E sta p o s s ib ilid a d e n o s a d v e rte e m ac eita rm o s tã o facilm en te a id eia


d e q u e a lista p a u lin a é c ro n o ló g ica (V o n C a m pe n h a u se n , p. 456). A lém
d o m a is, s u g e re -se q u e v á ria s c o m u n id a d e s p re s e rv a ra m rem in iscên -
cias d e d ife re n te s g ru p o s d e a p ariçõ es, d e m o d o q u e p o ssiv e lm e n te a
Ig reja p rim itiv a n u n c a a c eito u u n iv e rsa lm e n te u m a lista seq u en cial d e
to d a s a s a p a riç õ e s d e Jesus. E a ssim q u e stio n a m o s a p re te n sã o d e V o n
C a m p e n h a u se n (p. 51) d e q u e a lista d e P a u lo exclui a u to m a tic a m e n te
a h is to ric id a d e d e u m a a p a riç ã o a M a d ale n a. P a u lo ev o ca a tra d içã o
d a s a p a riç õ e s d e Jesu s p a ra m o stra r q u e , m esm o fora d e te m p o e sen-
d o o ú ltim o d e to d o s, ele v iu o Jesu s re ssu rre to , p rec isa m e n te com o
o c o rre u a o s o u tro s a p ó sto lo s b e m co n h ecid o s. N ã o h á ra z ã o p a ra q u e
tal tra d iç ã o tiv e sse in c lu íd o u m a a p a riçã o a u m a m u lh e r q u e dificil-
m e n te p o d e ría se r a p re s e n ta d a co m o o u u m a te ste m u n h a oficial d a
re ss u rre iç ã o o u co m o u m ap ó sto lo . N o ta m o s a in d a q u e a lista p a u lin a
n ã o c o n té m in d ic a çõ e s so b re o n d e a s a p a riçõ e s o co rreram , tam b é m
p o rq u e c o n sid e raç õ e s g eo g ráficas n ã o e ra m p e rtin e n te s ao p ro p ó sito
p a ra o q u a l a lista foi c o m p o sta o u lem b rad a .
A s d ific u ld a d e s n a lista p a u lin a p o d e m a ju d a r a ex p licar as v aria-
ções e n tre as n a rra tiv a s d o e v a n g elh o , p o is n o s e v a n g elh o s tem o s p re-
s e rv a d a s rem in isc ên c ia s in d e p e n d e n te s d e c o m u n id a d e s in d iv id u ais.
V . T aylor , The Formation of the Gospel Tradition (L ondres: M acm illan,
1953), p p . 59-62, te m s a lie n ta d o p o r q u e o re la to d a ressu rre içã o tom a-
ria fo rm a d ife re n te m e n te d o re la to d a p a ix ã o e n ã o e m e rg iría necessa-
ria m e n te e m se q u ên c ia u n ifo rm e . O s d e ta lh e s d a p a ix ã o se ria m sem
s e n tid o a m e n o s q u e d e s d e o p o n to d e p a rtid a se a d e q u a sse m a u m a
se q u ê n c ia o rd e n a d a d a p risã o à crucifixão. D ificilm ente a lg u é m p o d e -
ria fala r d a p ris ã o d e Jesu s se m falar d o re su lta d o ; a sen ten ça tin h a d e
p re c e d e r à e x ecu ção etc. M as a s a p a riçõ e s d a ressu rre içã o fo ra m regis-
tra d a s p rim e ira m e n te p a ra r a d ic a r a fé c ristã n o Jesus re ssu rre to e jus-
tificar a p re g a ç ã o ap o stó lica. P a ra fazer isto, seria su ficien te reg istra r
u m a o u d u a s a p a riçõ e s d e Jesu s e se m n e c e ssid a d e d e fo rn ecer u m a
co n c ate n aç ã o se q u en c ial d e sta s ap ariçõ es. E, o b v iam e n te , a s ap ariçõ es
q u e fo ra m re g is tra d a s se ria m a q u e la s feitas às m ais im p o rta n te s figu-
ra s c o n h e c id a s d o s cristãos; p o r ex em p lo , P e d ro , os D o ze e T iago as
a p a riç õ e s a m u lh e re s e a d isc íp u lo s m en o re s se ria m in tro d u z id a s n o
p a n o d e fu n d o e n ã o fo rm a ria m p a rte d o q u e rig m a . A s im p o rta n te s
c o m u n id a d e s p a le stin ia n a s d e Je ru sa lé m e d a G alileia p o d e ría m re-
te r a m e m ó ria d e a p a riçõ e s com associações locais. Se n o estág io d a
1438 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

p reg a ç ã o e v o c a d o p o r P a u lo a localização g eo g ráfica d e u m a a p a ri-


ção n ã o era u m a q u e stã o im p o rta n te , este fato r se to m a ria im p o rta n te
q u a n d o o s e v a n g elista s te n ta ra m ju sta p o r a p a riçõ e s n u m a n a rra tiv a
c o n tín u a co m e ç a n d o com o tú m u lo v a z io e m Jeru salém . À s v e z e s o
rela to q u e c h e g o u a u m e v a n g elista p o d e te r tid o u m local fixo q u e
ele p re se rv o u ; e m o u tra s v ezes, p o d e te r a d a p ta d o o re la to e o fez
a p ro p ria d o p a ra u m local d ita d o p o r s e u p ro p ó sito e m escrev er. N ã o
é a c id e n ta l q u e L ucas e João cap. 20 fav o re ç am a tra d iç ã o d a s a p a ri-
ções em Jeru salém . João e n fa tiz o u Je ru sa lé m ao d e sc re v e r o m in isté rio
p ú b lico d e Jesus; e L ucas (9,51; 13,33) fez d e Je ru sa lé m o a lv o d a v id a
d e Jesu s e o lu g a r d e o n d e a m e n sa g e m cristã foi d ifu n d id a a o m u n d o
(24,47; A t 1,8).
A ssim , a d iv e rg ê n c ia q u a n to a o local e se q u ê n c ia e n c o n tra d o s
n a s n a rra tiv a s e v a n g élic a s d a s a p a riç õ e s d e Je su s p ó s -re s su rre iç ã o
n ã o é n e c e ssa ria m e n te u m a re fu ta ç ã o d a h isto ric id a d e d e s ta s a p a ri-
ções, m as p o d e se r o re s u lta d o d o m o d o co m o e o p r o p ó s ito p a r a o
q u a l os re la to s fo ra m c o n ta d o s e p re s e rv a d o s . P o d e m o s hoje o lh a r
p a ra trá s e v isu a liz a r as d iv e rg ê n c ia s e c o n s tru ir u m a se q u ê n c ia d e
a p ariçõ es, e a ssim re so lv e r o p ro b le m a se o rig in a lm e n te se im a g in o u
q u e Jesu s tiv esse a p a re c id o aos discípulos, p rim e ira m e n te n a G alileia
o u em Jeru salém ? O fato d e q u e u m re d a to r a d ic io n o u u m c a p ítu lo
d a s a p a riçõ e s g alileias (Jo 21) a u m c a p ítu lo d a s a p a riç õ e s h iero so li-
m ita n a s (Jo 20) c e rta m e n te g u io u a s te n ta tiv a s d e h a rm o n iz a ç ã o . V eio
a ser c o s tu m e iro p e n s a r q u e Je su s p rim e ira m e n te a p a re c e u a o s d o z e
(onze) e m Je ru sa lé m , q u e su b s e q u e n te m e n te fo ra m p a ra a G alileia
o n d e Jesu s lh es a p a re c e u o u tra v ez, e q u e , fin a lm e n te , v o lta ra m p a ra
Je ru sa lé m o n d e Jesu s lh es a p a re c e u m a is u m a v e z a n te s d e ascen -
d e r (A t 1). P o ré m essa se q u ê n c ia c a u sa e x tre m a v io lê n c ia à e v id ê n c ia
ev an g élica. Se a lg u é m se a v e n tu ra a ir a lé m d a e v id ê n c ia p a r a e sta b e -
lecer u m a se q u ê n c ia d e a p a riç õ e s ao s d isc íp u lo s, e n tã o p ro v a v e lm e n -
te co lo caria a s a p a riçõ e s n a G alileia a n te s d a s a p a riç õ e s e m Je ru sa lé m .
O p o n to d e v ista M a rc a n o /M a te a n o , ex p resso n a s p a la v ra s d o anjo às
m u lh eres ju n to ao tú m u lo , é q u e os d iscíp u lo s fossem p a ra a G alileia a
fim d e v e re m Jesu s (Mc 16,7; M t 28,7). T al o rd e m n ã o d e ix a e sp a ç o al-
g u m às a p a riçõ e s h ie ro so lim ita n a s im e d ia ta s. A lé m d o m a is, se Jesu s
a p a re c e u im e d ia ta m e n te ao s d isc íp u lo s e m Je ru sa lé m e o s co m issio -
n o u , p o r q u e e n tã o te ria m v o lta d o p a ra a G alileia e re a s s u m id o s u a s
o cu p açõ es n o rm a is (Jo 21,3)? E m c o n tra p a rtid a , se a d m itirm o s q u e a
67 · A ressurreição: Observações gerais 1439

d a ta ç ã o lu c a n a e jo a n in a d a s a p a riç õ e s h ie ro so lim ita n a s n o D o m in g o


d a P ásco a p ro v a v e lm e n te foi d ita d a p o r in te re sse s teológicos, n a d a
h á n a s p r ó p ria s a p a riç õ e s q u e m ilite c o n tra s itu a r e sta s a p ariçõ es
a p ó s a s a p a riç õ e s n a G alileia. Se Je su s p rim e ira m e n te c o m issio n o u os
d isc íp u lo s n a G alileia, b e m q u e eles p o d e ria m te r v o lta d o a Jeru salém
p a r a c o m e ç a r s e u m in isté rio d e p re g a ç ã o , e ali Jesu s ter-lh e s a p a re -
c id o u m a ú ltim a v ez. M as tal re c o n stru ç ã o é a lta m e n te e sp ec u lativ a
e re p re s e n ta u m in te re sse n ã o p a rtilh a d o p e lo s p ró p rio s e v a n g elista s
d e u m m o d o m arc a n te .
U m a a b o rd a g e m m ais bíblica é p re s s u p o r q u e u m a ap a riçã o bá-
sica su b lin h a to d o s os p rin c ip ais rela to s evan gélicos d a s ap ariçõ es aos
D o ze (O nze), n ã o im p o rta em q u e te m p o o u lu g a r as ap ariçõ es são
s itu a d a s p e lo s e v a n g elista s (A. D escamps , Biblica 40 [1959], 7 2 6 4 1 ‫)־‬.
D o d d , "Appearances", fez u m e stu d o d a crítica tex tu a l d as n a rra tiv a s
d a s a p a riçõ e s d e Jesus e n o to u p a d rõ e s co m u n s. Ele d istin g u e dois ti-
p o s g erais, a sab er, as n a rra tiv a s concisas e as n a rra tiv a s circu n stan -
ciais, ju n ta m e n te com n a rra tiv a s q u e c o n tê m características d e am bas.
(B e n o it p re fe re o u tra d e sig n a ç ão p a ra os d o is tipos: n a rra tiv a s q u e
co n tê m u m a m issão e n a rra tiv a s q u e co n tê m u m reconhecim ento).
(A) N a rra tiv a s concisas. A p re se n ta m u m e sq u e m a c o m p o sto d e
cin co elem en to s:

1. U m a situ a ç ã o é d e scrita e m q u e o s se g u id o re s d e Jesu s sofrem


s u a au sên cia.
2. A a p a riç ã o d e Jesus.
3. Ele s a ú d a ao s se u s se g u id o re s.
4. E les o reco n h ecem .
5. S u a p a la v ra d e o rd e m o u m issão.

C o m o m e ro s e x em p lo s d e sse tip o , D o d d classifica o s rela to s d a


a p a riç ã o às m u lh e re s q u a n d o d e ix a ra m o tú m u lo (M t 28,8-10), a ap a-
rição ao s o n z e e m u m m o n te n a G alileia (M t 28,16-20) e a ap a riçã o aos
d isc íp u lo s e m Je ru sa lé m n a m a n h ã d a P ásco a (Jo 20,19-21).

(B) N a rra tiv a s circunstanciais. E stas são n a rra tiv a s c u id ad o sam en -


te c o m p o sta s e d ram á tic as q u e serv em d e veículo p a ra reflexões sobre
o sig n ificad o d a ressurreição. O reco n h ecim en to d e Jesus é o p o n to
ce n tral d a n a rra tiv a , e às vezes n ã o h á u m a o rd e m clara. C o m o m ero s
1440 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

ex em p lo s d e ste tip o , D o d d classifica o s re la to s d a a p a riç ã o ao s disci-


p u lo s a c a m in h o d e E m a ú s (Lc 24,13-35) e a a p a riç ã o aos d isc íp u lo s n a
p ra ia d o M ar d e T ib eríad es (Jo 21,1-14).
(C) N a rra tiv a s m istas. E stas são b a sic a m e n te n a rra tiv a s concisas
com a lg u n s d e se n v o lv im e n to s e v o cativ o s d a s n a rra tiv a s c irc u n sta n -
ciais. A q u i, D o d d classifica a a p a riç ã o ao s o n z e e a o u tro s e m Jeru-
salém (Lc 24,36-49), e a a p a riç ã o a T o m é (Jo 20,26-29). D o d d a c h a a
a p a riçã o a M aria M a d a le n a em Jo 20,11-17 to ta lm e n te s in g u la r e difícil
d e classificar.

Se n o s c o n c en tra rm o s n a s ap a riçõ e s ao s d o z e (onze; d isc íp u lo s


com o g ru p o ), estã o to d a s in clu sa s n a s n a rra tiv a s concisas e m istas
com a exceção d e Jo 21,1-14. Isto significa q u e M a te u s, L ucas, Jo 20 e o
A p ê n d ic e M arcan o s e g u e m to d o s eles u m p a d rã o b ásico e m d e sc re v e r
e sta a p a riçã o d e Jesus ao s d o ze. Q u a n d o o s d isc íp u lo s se a c h a m reu -
n id o s, n ã o sem tem o r, Jesus a p a re c e e é rec o n h e c id o (a lg u m a s v ezes
d e p o is d e u m a sa u d a ç ã o inicial). E n tã o ele lh es d á u m so le n e m a n d a -
m e n to m issio n ário . E sta a p a riç ã o c o n té m m u ito m ais d o q u e a sseg u -
ra r ao s d isc íp u lo s a v itó ria d e Jesus so b re a m o rte ; ela os co m issio n a a
p re g a r, a b a tiz a r e a p e rd o a r p e c a d o s - e m su m a , a le v a r ao s h o m e n s
as b o as n o v a s d e Jesus e d a salv ação re a liz a d a p o r ele. (A id e ia d e q u e
a v isão d o Jesu s re ssu rre to é p a rte essen cial d o q u e c o n v e rte u m ho-
m em em a p ó sto lo é m u ito p a re c id a com a id eia v e te ro te s ta m e n tá ria d e
q u e u m a v isã o d a co rte celestial c o n v e rte u m h o m e m e m p ro fe ta , ca-
p a c ita n d o -o a fala r a p a la v ra d e D eus: Is 6,1-13; Jr l,4 ss.; lR s 22,19-22;
Ez 1-2). E a ssim faz p o u c o se n tid o c o n stru ir u m a série d e ssa s ap ari-
ções aos d o ze; c a d a te ste m u n h a ev a n g élic a e stá re g is tra n d o u m a ver-
são lig e ira m e n te d ife re n te d e u m a a p a riç ã o q u e e ra c o n stitu tiv a d a
c o m u n id a d e cristã.
D e ix a n d o d e la d o a a p a riç ã o a o s d o z e , q u e b a sic a m e n te é u m tipo
d e n a rra tiv a concisa, p o d e m o s c o n sid e ra r p o r u m m o m e n to a con-
v ersação e d e ta lh e s q u e a p a re c e m n a s n a rra tiv a s m ista s e circu n stan -
ciais e in d a g a r o q u e in sp iro u a a d iç ã o o u p re se rv a ç ã o d e tal m aterial.
P a rte d e sse m a te ria l ad ic io n al p ro c e d e d o s esfo rço s co m p o sicio n ais
d o ev a n g elista q u e fez u m a a p a riç ã o se rv ir d e v e íc u lo p a ra ênfases
teológicas. A ssim , o d iálo g o d e Jesus com d o is d isc íp u lo s d e cam i-
n h o p a ra E m aú s (Lc 24,13-35) e com os o n ze n a m esm a ta rd e (espe-
cialm en te 44-49) é q u a se u m a s u m a d o q u e rig m a L u cas d á m aio res
67 · A ressurreição: Observações gerais 1441
AS N A R R A TIV A S EV A N G ÉLIC A S V A R IA N TES D A VISITA D A S M U L H E R E S A O T Ú M U L O

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1442 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

d e ta lh es e m A tos. Jo 20,17 u sa as p a la v ra s d e Jesu s a M a d a le n a p a ra


e x p o r a tese d e q u e a ressu rre içã o d e Jesu s é p a rte d e s e u re to rn o ao
P ai q u e a g o ra g e ra rá os d isc íp u lo s co m o seu s p ró p rio s filhos, o u to r-
g a n d o o E sp írito a tra v é s d e Jesus. A afirm ação d e Jesu s a T o m é e m
Jo 20,29 reflete o in te resse jo an in o n a relação d a v isã o co m a fé. Se
p u d e rm o s tra ç a r tais e x p a n sõ e s à o b ra re d a c io n a l d o p ró p rio e v a n g e -
lista, h á o u tro s d e se n v o lv im e n to s, fre q u e n te m e n te d e n a tu re z a a p o io -
gética, q u e p o d e ria ter sid o p a rte d a s n a rra tiv a s q u a n d o c h e g a ra m ao
ev an g elista. A tra d içã o h ie ro so lim ita n a d e a p a riçõ e s p a re c e te r e n fati-
z a d o a r e a lid a d e d o c o rp o d e Jesu s, e isto a p a re c e d e d ife re n te s m an e i-
ras n o s d ife ren te s relatos: p o r ex em p lo , o Jesus re s s u rre to p o d ia co-
m e r (Lc 2 4 ,4 1 4 3 ‫ ;־‬A t 10,41) e s u a s ferid as p o d ia m se r v ista s (Lc 24,39;
Jo 20,20 - d e s e n v o lv id o e e x te n d id o n o s v s. 25 e 27). P o d e se r ta m b é m
q u e alg o d o d ra m a d o re c o n h e c im e n to n a s n a rra tiv a s c irc u n sta n c ia is
seja m ais o p r o d u to d e refle tid a recitação d o q u e d o p ró p rio g ê n io d o s
ev an g elistas. E m b o ra e stes d e ta lh e s e c o n v ersaçõ es a d ic io n ais te n h a m
o c asio n alm en te e n tra d o n a n a rra tiv a d a a p a riç ã o ao s d o z e (especial-
m e n te e m L ucas), c e rta m e n te foi d a d o u m p a p e l m ais im p o rta n te n a s
descriçõ es d a s a p ariçõ es q u e tin h a m m e n o s fu n çã o c o n stitu tiv a p a ra
a c o m u n id a d e cristã.

As narrativas de encontrar 0 túmulo vazio

H á ta m b é m a lg u m a s o b serv açõ es so b re e ste tip o d e n a rra tiv a


q u e são im p o rta n te s a n te s d e v o lta r a o n o sso c o m e n tá rio so b re João.
A n a rra tiv a d o tú m u lo se e n c o n tra n o s q u a tro e v a n g elh o s, m a s ob-
v ia m e n te n ã o n o a p ê n d ic e m arc a n o e Jo 21 q u e fo ra m a d ic io n a d o s
aos rela to s q u e já c o n ta m d o tú m u lo v azio . H á m ais u n ifo rm id a d e
n a s n a rra tiv a s d o e n c o n tro d o tú m u lo v a z io d o q u e h á n a s n a rra ti-
v a s d a s a p ariçõ es d e Jesus. N ã o o b sta n te , a m a io ria d o s c ríticos d esig -
n a a s n a rra tiv a s d o tú m u lo v a z io a u m ú ltim o e stra to d e tra d iç ã o d o
q u a l v e m as p rin c ip a is n a rra tiv a s d a s a p ariçõ es, e a lg u n s e stu d io so s
as c o n sid e ra m com o m e ra m e n te criações ap o lo g éticas. E m p a rte , esta
a titu d e p ro c e d e d o fato d e q u e n ã o h á m en ç ã o específica d o tú m u lo
v a z io n a s fó rm u la s p rim itiv a s; p o r ex em p lo , e m A to s o u e m IC o r 15.
A lém d o m ais, as n a rra tiv a s d o tú m u lo co m o o ra se e n c o n tra m con-
têm a sp ec to s tais co m o ap a riçõ e s an g élicas, q u e p o d e m re fle tir co n to s
p o p u la re s . Bultmann , HST, p p . 287-90, re d u z e m u m to d o s o s relato s,
67 · A ressurreição: Observações gerais 1443

a sa b er, o re la to b ásico d e M c 16,1-8; e ca ra c te riz a isto co m o u m a le n d a


a p o lo g é tic a c o n ta d a p a ra p r o v a r a re a lid a d e d a ressu rreição . Ele afir-
m a q u e só s e c u n d a ria m e n te o re la to d o tú m u lo se relacio n av a com as
fu tu ra s a p a riç õ e s d e Jesu s (na G alileia).
N o ju íz o d e o u tro s e stu d io so s se re q u e r m ais cautela. É in teressan -
te q u e n u m a recen te coleção d e a rtig o s so b re a ressu rreição (SMRFJC),
trê s d o s cincos escrito res, C. F. D. M o ule , U. W ilckens e G. D elling , n ão
e stã o a b so lu ta m e n te d isp o sto s a d e sc a rta r o rela to d o tú m u lo v azio o u
co m o m a is ta rd io o u m e ra m e n te apologético . V er tam b é m os artigos
d e W . N a u c k e H . v o n C a m pe n h a u se n p a ra u m a crítica d e ta lh a d a fa-
v o re c e n d o a h isto ric id a d e d o relato. T em os d e fazer d u a s im p o rta n te s
d istin çõ e s e m c o n sid eração d a ev id ên cia. P rim eiro , tem o s d e reconhe-
cer q u e u m a coisa é ju lg a r q u e o rela to d o tú m u lo v azio n ã o e ra p a rte
d a p re g a ç ã o p rim itiv a so b re a ressu rre içã o e o u tra coisa é aleg ar q u e
o fato d o tú m u lo v a z io n ã o foi p re ssu p o sto p o r esta p reg ação . Segun-
d o , tem o s d e d istin g u ir n o p ró p rio rela to e n tre a n a rra tiv a básica e os
acréscim o s p o ste rio re s d e stin a d o s a explicar a n a rra tiv a .
P o rta n to , n o ssa p rim e ira q u e stã o é se a p re g a ç ã o p rim itiv a p res-
s u p u n h a o u n ã o o fato d e q u e o c o rp o d e Jesu s já n ã o e sta v a n o tú -
m u lo . O a rg u m e n to m ais fre q u e n te m e n te c ita d o a in d a e stá em vigor:
co m o a p re g a ç ã o d e q u e Jesu s foi v ito rio so so b re a m o rte g ran jearia
c re d e n c ia is se s e u c a d á v e r o u e sq u ele to jazesse e m u m tú m u lo co-
n h e c id o d e to d o s? S eus in im ig o s c e rta m e n te te ria m a p re s e n ta d o isto
co m o objeção; to d a v ia , e m to d a a a rg u m e n ta ç ã o a n ti-re ssu rre iç ã o re-
fle tid a in d ire ta m e n te n o s e v a n g e lh o s o u n o s a p o lo g e tas cristão s d o
2Ωsécu lo n u n c a e n c o n tra m o s u m a afirm a ç ão d e q u e o c o rp o estives-
se n o tú m u lo . H á a rg u m e n to s c ristão s q u e d e m o n s tra m q u e o co rp o
n ã o foi ro u b a d o o u c o n fu n d id o e m u m se p u lta m e n to c o m u m , m as os
o p o n e n te s p a re c e m a c eita r o fato b ásico d e q u e o c o rp o n ã o m ais foi
e n c o n tra d o . M esm o n a le n d a ju d a ic a d e q u e u m ja rd in e iro c h a m a d o
J u d a s le v o u o c o rp o só p a ra trazê-lo d e v o lta m ais ta rd e , h á u m reco-
n h e c im e n to d e q u e o tú m u lo e sta v a v azio . A lé m d o m ais, a m em ó ria
c ristã d e José d e A rim a teia , q u e só com g ra n d e d ific u ld a d e p o d e ser
e x p lic a d a co m o u m a in v en ção , seria a n te s sem se n tid o a m en o s q u e o
tú m u lo q u e ele o fereceu tiv esse significação especial.
A lém d e sta con sid eração p rática, se p o d e p e rg u n ta r se o relato
d o tú m u lo v azio e ra m era m e n te d e o rig em apologética, com o tantós
tê m a leg ad o . R. H . F uller , BiRes 4 (1960), 11-13, s u g ere q u e h o u v e u m a
1444 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

e s tre ita rela çã o e n tre o re la to d o tú m u lo v a z io e o q u e rig m a p rim i-


tiv o . A fó rm u la p a u lin a e m IC o r 15,3-5 c o n siste d e d o is g r u p o s d e
d o is m em b ro s:

Ele m o rre u p o r n o sso s p e c a d o s s e g u n d o a s E scritu ras,


e foi se p u lta d o .
E ressu sc ito u a o terceiro d ia s e g u n d o a s E scritu ras,
e a p a re c e u (a C efas e o u tro s).

F uller a n a lisa o terceiro m e m b ro q u e é a n te c e d e n te à a p a riç ã o d e


Jesus, p re c isa m e n te com o s u a m o rte é a n te c e d e n te ao s e p u lta m e n to .
A s a p ariçõ es d e Jesu s a se u s d isc íp u lo s d e ra m o rig e m à co n fissão d e
q u e ele foi v isto , m a s q u e d e u o rig e m ta m b é m à co n fissão d e q u e ele
ressu scito u ? V isto q u e n o s e v a n g e lh o s é o re la to d o tú m u lo v a z io q u e
se relacio n a co m e sta p ro cla m a ç ã o (angélica), F uller p ro p õ e q u e este
relato n ã o tev e su a o rig e m e m a p o lo g e tas, m as co m o p a n o d e fu n d o
p a ra a fo rm u lação q u e rig m átic a , "E le re ssu sc ito u ". (P o d e m o s ad icio -
n a r d e p a s sa g e m q u e a c o n te n d a d e q u e o re la to foi fo rm a d o m era -
m en te p a ra p ro p ó sito s a p o lo g ético s é difícil d e se aceitar, p o is e n tã o
p o r q u e a lg u é m d e c id iría to m a r co m o te s te m u n h a s d o tú m u lo v a z io
mulheres cujo te ste m u n h o n a e stim a c o n te m p o râ n e a se ria d e m e n o s
v a lo r d o q u e o d e homens )? M u ito s a rg u m e n ta m q u e as referên cias
p a u lin a s ao sepultamento e à re ssu rre iç ã o ao terceiro dia ta m b é m p re s-
su p õ e o fato d o tú m u lo v azio . A e v id ê n c ia m ais a n tig a n ã o fornece
n e n h u m te m p o p rec iso p a ra a p ró p ria re ssu rre iç ã o (a q u a l n ã o é des-
crita); o p rim e iro te m p o fixado é m a n h ã d e d o m in g o q u a n d o a s m u -
lh eres fo ra m ao tú m u lo . Foi a d e sco b e rta d o tú m u lo v a z io , a o terceiro
d ia, q u e p ro v a v e lm e n te d e u o rig e m à ê n fase c ristã so b re trê s d ias,
u m a ên fase q u e foi tid a co m o im p o rta n te p o rq u e p o d ia se r relacio n a-
d a com a lg u m a s p a ssa g e n s v e te ro te sta m e n tá ria s. (A lg u n s e stu d io so s
e n c o n tram n o A T a o rig e m d a id eia d e trê s d ias, m a s as p a s sa g e n s são
v a g a s d e m a is p a ra ter se rv id o m ais q u e co n firm ação , u m a v e z q u e
a id eia s u rg iu d o s p ró p rio s e v e n to s pascais). Q u a n to à rela çã o e n tre
a m en ç ã o q u e P a u lo faz d o se p u lta m e n to e o fato d o tú m u lo v azio ,
isto tem a lg u m a força e m v irtu d e d a c o m p re e n sã o p a u lin a d a res-
su rre iç ã o e m IC o r 15,20ss. p re s s u p õ e a tra n sfo rm a ç ã o d e u m co rp o
q u e foi in tro d u z id o n a te rra e n ã o m e ra m e n te u m a v itó ria m etafísica
so b re a m o rte. H á ta m b é m a im a g e m d e Jesus co m o o p rim o g ê n ito
67 · A ressurreição: Observações gerais 1445

d o s m o rto s e m R m 8 ,2 9 . (Ver J . M á n e k , "The Apostle Paul and the Empty


Tomb", N o v T 2 [ 1 9 5 7 ] , 2 7 6 - 8 0 ) . V árias o u tra s referên cias n a p reg ação
a p o stó lic a d a re s su rre iç ã o q u e m en c io n a m o s e p u lta m e n to tê m sid o
ta m b é m in te rp re ta d a s co m o p re s s u p o n d o o tú m u lo v a z io (R m 6 ,4 ;
A t 2 , 2 9 - 3 2 ; 1 3 ,3 6 - 3 7 ) . E stes a rg u m e n to s n ã o e stã o d e stitu íd o s d e c ertas
falh as, p o ré m d e ix a m claro q u e o p ro b le m a d e co m o a id eia d e u m
tú m u lo v a z io se o rig in o u n ã o é facilm en te d e sca rta d o .
A s e g u n d a d istin ç ã o q u e faz e m o s d iz re sp e ito o p o n to c e n tral d o
re la to d o tú m u lo e se u s acréscim o s len d á rio s. O gráfico q u e a p resen -
ta m o s n a p . 1441, m o stra u m a c o n sid e ráv e l v a ria ç ã o n o s d e ta lh e s d o
q u e as m u lh e re s v ira m n o tú m u lo , e se p o d e a rg u m e n ta r p lau sív e l-
m e n te q u e a s v a ria d a s a p a riçõ e s a n g élicas e a s co n v ersaçõ es a ngélicas
re p re s e n ta m u m a d ra m a tiz a ç ã o d a im p licação d o tú m u lo vazio. H á
ta m b é m a sp e c to s a p o lo g é tic o s se cu n d á rio s; p o r e x em p lo , n a ten ta tiv a
d e M a te u s d e faz e r d e m u lh e re s te ste m u n h a s d a a b e rtu ra d o tú m u lo
e ta m b é m to d a a n a rra tiv a d e M a te u s so b re a g u a rd a d o tú m u lo . M as
p o r d e trá s d e s ta s v a ria çõ e s h á u m a tra d iç ã o básica d e q u e a lg u m a s
m u lh e re s s e g u id o ra s d e Jesu s fo ra m ao tú m u lo n a m a n h ã d a P áscoa
e o e n c o n tra ra m v a z io - u m a tra d iç ã o q u e é m ais a n tig a d o q u e qual-
q u e r d o s re la to s p re se rv a d o s.
A q u e s tã o d a a n tig u id a d e p o d e ser esta b e le c id a se p u d e rm o s de-
c id ir se o re la to d o tú m u lo v a z io e ra o rig in a lm e n te p a rte d o relato
p rim itiv o d a p a ix ã o (fonte m a rc a n a A à p . 1203). A m b o s, B u l t m a n n
e T aylor , n u tre m d ú v id a se M c 16,1-8, em s u a p re se n te fo rm a, era
p a rte d e A; m a s T aylor , p . 659, a firm a q u e o rela to d o se p u lta m e n to
e a lg u m a refe rê n c ia à ressu rre iç ã o p e rte n c e ra m à fo n te A. B u l t m a n n ,
H ST , p . 274, rec o n h e c e q u e o re la to d o s e p u lta m e n to é e m s u a m aio r
p a rte h istó ric a e se m traço s len d á rio s; to d a v ia , ele n ã o e stá certo em
q u e e stá g io ele se to rn o u p a rte d o re la to p rim itiv o d a p a ix ã o (p. 279).
Ele n e g a q u e a n a rra tiv a d o tú m u lo v a z io foi se m p re p a rte d e ste re-
la to p rim itiv o (p. 284). D o d d , Tradition, p . 143, p e n s a q u e o rela to tra-
d icio n a l d a p a ix ã o te ria te rm in a d o n o p a d rã o e n c o n tra d o em IC o r
15,3-5: m o rte , s e p u lta m e n to , e n c o n tro d o tú m u lo v a z io d e o n d e Jesus
re ssu sc ita ra , e a s a p a riçõ e s (com o ú ltim o d e ta lh e ex ib in d o m u ita va-
ria n te). W ilkens , SMRFJC, p p . 72-73, a rg u m e n ta q u e o rela to p rim i-
tiv o d a p a ix ã o c o n c lu iu com o re la to d o tú m u lo v azio , m as q u e não
tin h a o re la to d a s ap ariçõ es. W . K n o x , Sources of the Synoptic Gospels
(C a m b rid g e U n iv e rsity , 1953), 1 ,149, rec o n stró i u m a "fo n te d o s d o z e "
1446 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

p rim itiv a , alg o p a re c id o com o re la to A , o q u a l c o n tin h a o re la to d e


q u e as m u lh e re s e n c o n tra ra m o tú m u lo v a z io e n o tic ia ra m a o s o n z e
(a frase p a u lin a "ele re ssu sc ito u a o terceiro d ia " é u m s u m á rio d isto ).
A d iv e rs id a d e d e p o n to s d e v ista m o stra a d ific u ld a d e d a q u e stã o , e
p o d e se r q u e n ã o haja co m o reso lv ê-la, e m b o ra seja difícil co n ceb er
u m a n a rra tiv a c ristã b ásica q u e te rm in o u com a m o rte e s e p u lta m e n to
sem u m a c e rtez a ex p lícita d a v itó ria d e Jesu s so b re a m o rte . O fato d e
q u e os e v a n g elista s d iv e rg e m e m s u a s n a rra tiv a s d a s a p a riç õ e s é p ro -
v a su ficien te d e q u e n e n h u m a a p a riç ã o lo calizad a e ra p a rte d o re la to
p rim itiv o d a p aix ão . C o rre sp o n d e n te m e n te , o fato d e q u e c o n c o rd a m
em in fo rm a r-n o s q u e as m u lh e re s se g u id o ra s d e Je su s e n c o n tra ra m o
tú m u lo v a z io n a m a n h ã d e d o m in g o p re s s u p õ e q u e n o re la to p rim i-
tiv o d a p a ix ã o o re la to d o s e p u lta m e n to d e Jesu s foi s e g u id o p o r e sta
in d icação d e q u e o se p u lc ro n ã o e ra o fim p a ra ele. E n tã o se p o d e ria
fo rm u la r a teo ria q u e n o d e se n v o lv im e n to su b se q u e n te d o e v a n g e lh o
o re la to básico d o e n c o n tro d o tú m u lo foi e x p a n d id o p e la a d iç ã o d e
m ate ria l in te rp re ta tiv o se rv in d o p a ra clarificar o sig n ificad o d o tú -
m u lo v a z io (isto teria sid o feito u m ta n to d ife re n te m e n te n a tra d iç ã o
M a rc a n a /M a te a n a , n a L u can a e n a Joanina). F in a lm en te , n a rra tiv a s
d a s a p ariçõ es d e Jesu s te ria m sid o a n e x ad a s, com a d a p ta ç ã o c o rres-
p o n d e n te d o rela to d o tú m u lo . N e ssa teo ria, se p o d e ria p r o p o r q u e
M c 16,1-8, se n u n c a tev e u m fin al p e rd id o , re p re s e n ta (sem o v. 7) o es-
tág io a n te rio r à a d ição d a s n a rra tiv a s d a a p a riçã o , e, assim , a in d a q u e
e x p a n d id a , é m u ito fid e d ig n a a o esboço d o rela to p rim itiv o d a p aix ão .
E m s u m a , a aleg ação cristã d e q u e as m u lh e re s e n c o n tra ra m o
tú m u lo v a z io re a lm e n te n ã o se te m p ro v a d o se r d e o rig e m ta rd ia ; an-
tes, tal a leg ação p o d e ria te r s id o p re s s u p o s ta já n o p rim e iro m o m e n to
até o n d e p o d e m o s re m o n ta r à tra d iç ã o d a p ro c la m a ç ã o d e q u e Jesus
ressu scito u . E b e m p ro v á v e l q u e M o u le , SMRFJC, p . 10, esteja certo
em in sistir q u e a id eia d e q u e o c o rp o d e Jesus já n ã o se e n c o n tra no
tú m u lo , n ã o é a p e n a s u m d e ta lh e in te re ssa n te acerca d e s u a v itó ria so-
b re a m o rte , m as é essen cial p a ra se c o m p re e n d e r u m a sp ec to su p e rio r
n a teo lo g ia cristã, a sab er, q u e o q u e D eu s cria n ã o é d e s tru íd o , e sim
rec ria d o e tra n sfo rm a d o .

[A B ibliografia p a ra esta seção e stá in clu sa n a B ibliografia p a ra


to d o o cap. 20, n o fin al d o §69.]
68. A RESSURREIÇÃO DE JESUS:
- PRIMEIRA CENA
(20,1 ‫ ־‬18 )

No túmulo

20 1A o am anhecer d o prim eiro dia d a sem ana, enquanto ainda era


escuro, M aria M adalena foi ao túm ulo. Ela n oto u que a p e d ra foi re-
m ovida do túm ulo; 2então foi correndo avisar a Simão P edro e ao ou-
tro discípulo (aquele a quem Jesus am ava) e lhes disse: "T iraram o
Senhor do túm u lo , e nós não sabem os o n d e o puseram !"
3P edro e o ou tro discípulo saíram em direção ao túm ulo. 4Os dois fo-
ram correndo lado a lado; m as o ou tro discípulo, sendo m ais rápido,
u ltrap asso u P edro e chegou ao túm ulo prim eiro. 5E, abaixando-se, viu
os lençóis postos ali, porém não entrou. 6Im ediatam ente, Simão Pedro
veio após ele e foi diretam ente ao túm ulo. Ele observou os lençóis
postos ali, 7e a peça de ro u p a que cobria sua cabeça, não estava com
os lençóis, m as enrolada em u m lu g ar à parte. 8Então, p o r sua vez, o
outro discípulo que chegara ao túm ulo prim eiro tam bém entrou. Ele
v iu e creu. (9R ecordou que ain d a não en ten d era a Escritura de que
Jesus havia d e ressuscitar d en tre os m ortos). 10C om isto, os discípulos
voltaram p a ra casa.

11N esse ínterim , M aria estava em p é (do lado de fora) do túm ulo,
chorando. E nquanto chorava, abaixou-se p ara o túm ulo, 12e observou
dois anjos de branco, u m assentado à cabeceira e ou tro aos pés do

1: veio, viu -, 2 : foi correndo, disse; 5 : viu ; 6: veio juntamente, observou; 12: observou. N ô
t e m p o p r e s e n t e h is tó r ic o .
1448 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

lu g a r o n d e o c o rp o d e Jesu s fo ra p o sto . 13" M u lh e r" , p e rg u n ta ra m -lh e ,


" p o r q u e estás c h o ra n d o ? " Ela lh es re sp o n d e u : " P o rq u e le v a ra m m e u
S en h o r e e u n ã o sei o n d e o p u s e ra m " .
14Ela acabara d e d izer isso q u a n d o se v o lto u e v iu Jesus e m p é ali. T oda-
via, ela n ã o reconheceu q u e era Jesus. 15"M u lh er", p e rg u n to u -lh e , " p o r
q u e estás ch o rando? A q u e m estás bu scan d o ?" P en san d o q u e era o jard i-
neiro, ela lh e disse: "Senhor, se és u m do s q u e o levaram , dize-m e o n d e
o pu seste, e e u o levarei". 16Jesus lhe disse: "M aria!" Ela voltou-se p a ra
ele e d isse [em hebraico]: "R aboni!" (que significa "M estre"). 17"N ã o m e
d eten h as", disse-lhe Jesus, "p o rq u e ain d a n ã o su b i ao Pai. M as v a i ter
com m eu s irm ãos e dize-lhes: "E u esto u su b in d o p a ra m e u P ai e vosso
Pai, p a ra m eu D eus e vosso D eus!" 18M aria M ad alen a foi ter com o s dis-
cípulos. "E u v i o Senhor!", ela an u n cio u , rep etin d o o q u e ele lhe dissera.

13: perguntou , disse; 14: ergueu a vista; 15: perguntou ; 16: disse, disse; 17: falou ; 18: foi . N o
te m p o p r e s e n t e h is tó r ic o .

NOTAS

20.1. Ao amanhecer. O advérbio prõi, om itido em algum as testem unhas tex-


tuais m enores, se encontra tam bém em Mc 16,2 ("bem cedo") e no Apên-
dice M arcano (16,9). Para a possível posição do tem po, a saber, 3-6 da
m anhã, ver nota sobre 18,28. Falar dessas horas como no dia bem cedo
implica o cálculo rom ano das horas a partir da meia-noite, pois pela com-
putação judaica o dia começava com a noite do sábado após o pô r do sol.
do primeiro dia da semana. Esta expressão (tam bém v. 19 abaixo), mia
sabbatõn, em pregando tun num eral cardinal por um ordinal (semitis-
mo? BDF, §247’; MTGS, p. 187), ocorre nos quatro evangelhos com leve
variação: Lc 24,1 e João tem expressões idênticas. O Apêndice Marcano
(16,9) usa u m num eral ordinal; o Evangelho de Pedro, 50, fala de "o dia
do Senhor". N ote que aqui os evangelhos não em pregam a expressão
querigm ática "no terceiro dia" ou "depois de três dias", talvez porque a
indicação básica do tem po do encontro do túm ulo foi fixada na memória
cristã antes que se percebesse o possível sim bolismo na contagem dos
três dias. A expressão do evangelho é possível em grego, porque nesse
idiom a sabbatõn significa, respectivamente, "sem ana" e "sábado"; no
hebraico do AT sabbãt não significa "sem ana" (E. V ogt, Bíblica 40 [1959],
1008-11), ainda quando tenha esse significado no hebraico posterior.
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1449

enquanto era ainda escuro. Se a expressão "ao am anhecer" nos leva a pensar
no período entre três e seis da m anhã, os evangelistas não concordam
em fixar o m om ento exato em que as m ulheres foram ao túm ulo. Em ge-
ral, os evangelhos sinóticos favorecem um a hora quando já era dia claro.
Lc 24,1 fala de "prim eira aurora" (orthrou batheõs - o Evangelho de Pe-
dro, 50, usa apenas orthrou). Mc 16,1-2 registra que as m ulheres levaram
especiarias depois de acabar a noite de sábado e chegaram ao túm ulo
na m anhã de dom ingo "bem cedo... quando o sol despontava", sendo a
últim a frase quase um a contradição direta do registro de João. (Taylor,
pp . 604-5, considera esta frase m arcana como sendo um a corrupção da
indicação de tem po original, m as realm ente "quando o sol despontava"
não necessita m ais do que especificação de "bem cedo"). M t 28,1 tem a
difícil expressão: "Após o sábado [opse sabbatõn ] nos prim eiros raios de
luz do prim eiro dia da sem ana [sabbatõn outra vez]". (É bem provável
que opse sabbatõn não deva ser traduzido "depois do sábado"; cf. BDF,
§1644). Recorrendo ao hebraico da M ishnah, J. M. G rintz, JBL 79 (1960),
3 7 3 8 ‫־‬, interpreta M ateus no sentido de que as m ulheres foram ao túm ulo
de noite logo depois de term inado o sábado, m as a m aioria dos exegetas
entende M ateus como estando a referir-se à m anhã de sábado.
A lguns tentam harm onizar a discrepância sinótica-joanina m antendo
que M aria M adalena, a única m ulher m encionada por João, foi adiante
das outras m ulheres e chegou ao túm ulo enquanto ainda era escuro (as-
sim João), m as quando as outras m ulheres chegaram ali já era dia claro.
O utra interpretação veria tun m otivo teológico por detrás das respecti-
vas cronologias. N a tradição sinótica, "luz" é apropriada, pois as m ulhe-
res encontram um anjo (ou anjos) junto ao túm ulo o qual lhes comunica
boas notícias de que Jesus ressuscitara, e assim a luz triunfou sobre as
trevas do túm ulo (G. H ebert, ScotJT 15 [1962], 66-73). Em contrapartida,
"trevas" é um term o apropriado para João, pois tudo o que o túm ulo
vazio significa p ara M aria é que o corpo de Jesus fora roubado.
Maria Madalena. João menciona somente ela nom inalm ente (cf. Apêndi-
ce M arcano); M ateus m enciona nom inalm ente duas mulheres; Marcos,
três; e Lucas (24,10), três e m ais "as outras m ulheres". O Evangelho de Pe-
dro, 51, registra que M aria M adalena levou consigo ao túm ulo m ulheres
amigas. N otam os que, em bora os sinóticos mencionem nom inalm ente
outras m ulheres, M adalena é sem pre m encionada prim eiro. Bernard, II,
656, acha a tradição sinótica m ais plausível, pois é bem provável que
um a m ulher não fosse sozinha, ainda escuro, a um lugar de execução
fora dos m uros da cidade. Com a exceção de Lc 8,2, o qual coloca Ma-
dalena no m inistério galileu como um a m ulher de quem foram expulsos
1450 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

sete demônios, ela só é m encionada em relação à crucifixão e o túm ulo


vazio. O Evangelho de Pedro, 50, a cham a "um a discípula [mathêtria] do
Senhor". Seu sobrenome, provavelm ente, indica que ela era procedente
de M agdala (Tariqueia) no litoral noroeste do Lago da Galileia, cerca de
8 km a sudoeste de Cafam aum . Bernard, II, 657, é um dos poucos au-
tores m odernos a continuar identificando-a com M aria de Betânia nas
proxim idades de Jerusalém, e sugere que ela ficou g uardando o perfum e
para o dia do em balsam am ento de Jesus (12,3-7; ver vol. 1, pp. 739-41).
O OSsin omite "M adalena", aqui e em 18, deixando a am bígua "M aria".
Desde o tem po do Diatessaron de Taciano (2a século) há elem entos de
um a tradição entre os Padres da Igreja, especialm ente aqueles que escre-
vem em siríaco, que era M aria m ãe de Jesus que foi ao túm ulo. Por exem-
pio, Ephraem, On the Diatessaron 21,27; CSCO 145 (Armenian 2):235-36,
claram ente aplica o relato de João em 20,1-18 a M aria m ãe de Jesus. Loisy,
p. 504, pensa que tal referência pode ser original e que o relato pode ter
sido conform ado a M adalena na tradição dos sinóticos. Mas João nunca
fala da m ãe de Jesus como "Maria"; e, como Loisy o adm ite, 19,25-27
parece representar o aparecim ento final da m ãe de Jesus no evangelho.
foi ao túmulo. João não especifica po r quê. Marcos e Lucas indicam que
as m ulheres levaram óleos arom áticos e foram para ungir o corpo de
Jesus. M ateus apenas diz que foram ver o túm ulo - provavelm ente um a
modificação ditada pela lógica da narrativa de M ateus; pois M ateus
(foi o único que) registrou que o túm ulo era guardado, e assim não se
teria perm itido às m ulheres entrar no túm ulo para ungir um cadáver.
O Evangelho de Pedro, 50, diz que Maria foi porque até então ela não fize-
ra o que costum eiram ente as m ulheres faziam p o r seu defunto am ado,
aparentem ente para chorar e lam entar (52-54). Se alguém aceita ou não
a razão oferecida por Marcos e Lucas dependerá se considera como pro-
vável a tradição joanina de que o corpo de Jesus fora preparado para
o sepultam ento na sexta-feira. Se seguirm os a João, é de se pressupor
que o Evangelho de Pedro, 50, conjeturou corretam ente. O costum e de
prantear junto ao túm ulo é m encionado em Jo 11,31. A M idrash Rabbah
C 7 sobre Gn 1,10 registra um a disputa sobre se o pranto intenso po-
deria ser distribuído em dois dias e dá a opinião do Rabi Bar Kappara
(c. de 200 d.C.) de que o pranto atingia seu ponto m áxim o ao terceira
dia. Um tratado m enor de TalBab, Semahoth ou Ebei Rabbathi 8:1, diz
que alguém pode ir ao túm ulo e exam inar o corpo em um período de
três dias após a m orte sem ser suspeito de qualquer superstição. Se
aceitarmos a tradição sinótica de que as m ulheres foram para ungir o
corpo, então a omissão de João de tal detalhe provavelm ente fosse
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1451

deliberada, seguida da introdução (inexata) de um a unção antes do se-


pultam ento. Pouco crédito se deve dar à objeção de que em um país
quente ninguém iria ungir um corpo que já começara o processo de
putrefação. N a verdade, na m ontanhosa Jerusalém pode ser bem frio
no início da prim avera. Além do m ais, os que recontavam esses acon-
tecim entos presum ivelm ente conheciam a tem peratura e os costum es
locais, e dificilm ente teriam inventado um a explicação patentem ente
d isparatada.
a p e d r a . João escreve como se o leitor tivesse conhecimento desta pedra;
todavia, ao descrever o sepultam ento, João, juntam ente com Lucas, não
m encionou a selagem do túm ulo com um a pedra. Contraste Mc 15,46
com M t 27,60, onde somos inform ados que José fez rolar um a grande
p ed ra contra a abertura do túm ulo. A qui, o Q uarto Evangelho pode estar
preservando a fraseologia de um a tradição m ais antiga.
a p e d r a f o i r e m o v id a . Os sinóticos falam dela sendo "rolada". Em Marcos e
Lucas, isto foi feito antes que as m ulheres chegassem, presum ivelmen-
te pelos anjos que foram ali para saudar as mulheres; M t 28,2 é mais
específico: "Um anjo do Senhor desceu do céu e veio e rolou a pedra".
O E v a n g e lh o d e P e d r o , 37, registra que a pedra rolou sozinha e correu para
o lado. João não dá nenhum a indicação de como a p edra foi rem ovida.
d o tú m u l o . João usa e k , "de"; Lc 24,2 tem a m esm a frase com apo-, Mc 16,3
tem "de [ek ] a entrada do túm ulo"; um as poucas testem unhas textuais de
João têm a expressão m arcana com a p o . Provavelm ente devam os pensar
em um túm ulo em caverna horizontal, em vez de um túm ulo num a fen-
da vertical (ver nota sobre 11,38). A arqueologia palestinense nos m ostra
que a entrada desses túm ulos ficava no nível do chão através de um a
passagem pequena, usualm ente m enos de um m etro de altura, de m odo
que os adultos tinham que engatinhar (note "abaixando-se" no v. 5).
O túm ulo podia ser selado com a pedra grande rolada contra a entrada;
m as os túm ulos m ais elaborados tinham um a lâm ina de pedra na forma
de roda que era rolada num trilho p ara a entrada, tendo o efeito de um a
porta corrediça. (Mt 28,2 aparentem ente endossa um a grande pedra em
vez de um a na forma de roda; pois diz-se que o anjo rolou a pedra e
assentou-se sobre ela, e um a pedra na forma de roda teria sido rolada
de volta ao encaixe). Do lado de dentro, alguns túm ulos m aiores tinham
um a ante-câm ara, começando daí havia câmaras sepulcrais. Encontra-
m os diversos tipos básicos de acomodações sepulcrais. Havia k õ k l m ou
túneis, cortados em um arranjo de "com partim ento", cerca de uns dois
ou três m etros de profundidade na rocha, aproxim adam ente sessen-
ta centím etros de largura e de altura. O corpo era inserido começando
1452 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

pela cabeça, preenchendo o túnel. Segundo, havia a r c o s o lia ou nichos se-


mi-circulares, form ados pelo entalhe na lateral das paredes d a caverna
para um aprofundam ento de cerca de um m etro, a partir de um m etro
do nível do chão. O nicho era de tal m odo entalhado que deixava ou
um a saliência plana ou um cocho no qual ou ao qual um corpo pudesse
ser colocado. Terceiro, havia tam bém "túm ulos banco", onde o corpo
era posto em um banco que corria em tom o dos três lados da câm ara
sepulcral. Algum as vezes se usava sarcófagos. É interessante que na
Igreja do Santo Sepulcro (nota sobre 19,17, "ele saiu") o interior dos tú-
m ulos judaicos distantes uns 50 m etros do túm ulo de Jesus são do tipo
k õ k T m ; mas, nas proxim idades da área, um túm ulo familial d o tem po de
Jesus consistia de um a câm ara com túm ulos de gaveta a r c o s o lia de am bos
os lados. É bem provável que João pensasse no túm ulo de Jesus como
pertencente ao tipo a r c o s o liu m , pois no v. 12 ele descreve anjos senta-
dos na cabeceira e ao pés do lugar onde o corpo de Jesus fora colocado.
O sentar-se pode implicar tam bém um a gaveta em de um cocho, m as os
antigos peregrinos ao túm ulo de Jesus na Igreja do Santo Sepulcro viam
um cocho (Kopp, HPG, p. 393). A possibilidade de que a descrição de João
reflete um a tradição genuína palestinense é aum entada pelas observações
de G. Schille e J. Jeremias, como desenvolvidas por N auck, pp. 261-62.
Ele propõe que a com unidade cristã hierosolim itana pode ter ido ao tú-
m ulo de Jesus para celebrar a m em ória da ressurreição, de m odo que o
túm ulo vazio veio a ser um tipo de w e l i ou sacrário. Assim sua descrição
poderia ter sido conhecida das gerações posteriores.
2. e n tã o . N a lógica da presente sequência, somos levados a pensar que M aria
olhou para o túm ulo, ou ela deduziu pela ausência do corpo o fato de
que o túm ulo já não estava selado? Enquanto a prim eira hipótese é fre-
quentem ente pressuposta com base no senso com um , a segunda é pres-
suposta pela indicação de João de que ainda estava escuro e pelo registro
no v. 11 de que ela o percebeu no últim o m omento. M uitos resolvem a
dificuldade pela crítica literária, pressupondo que em certo tem po o v. 1
foi seguido pelo 11.
a S im ã o P e d r o . Podemos com parar esse dado com a m ensagem angélica às
mulheres junto ao túm ulo em Mc 16,7: "Ide dizer a seus discípulos e a
P e d ro " . Sugere-se com frequência que Maria foi ao encontro de Pedro por-
que ele era o líder dos discípulos de Jesus; porém , se deve lem brar mais
simplesmente que ele não fugiu com os outros e é registrado como estando
bem próximo durante a interrogação pelas autoridades judaicas (Jo 18,27).
e a o o u tr o d is c íp u lo (a q u e le a q u e m J e su s a m a v a ) . Ele tam bém é registrado como
estando presente durante a paixão (19,26-27). Os comentaristas têm notado
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1453

a repetição da preposição "a". Os que pensam que o Discípulo Am ado


não foi m encionado na forma original do relato encontram aqui o sinal
de um a adição. O utros teorizam que Pedro e o Discípulo A m ado não es-
tavam no m esm o lugar (todavia, veja o v. 19 onde os discípulos estavam
agrupados desordenadam ente); se é assim, este alojamento separado di-
ficilmente pode ser relacionado com 16,32 que fala dos discípulos como
sendo dispersos, "cada um para sua própria casa". G rass, p. 55, pensa
que os dois estavam juntos; pode ser que os outros discípulos estivessem
ali tam bém , m as som ente estes dois se propuseram ou ousaram ir. Em
qualquer caso, são retratados como que saindo do m esm o lugar, corren-
do lado a lado.
Em bora tenham os ouvido falar previam ente do discípulo a quem Jesus
am ava (13,23-26; 19,26-27), esta é a prim eira vez que o encontram os iden-
tificado com "o outro discípulo" (ver vol. 1, p. 91s; tam bém a nota sobre
"outro discípulo" em 18,15). As testem unhas textuais m ostram variação
na expressão "aquele a quem Jesus am ava"; é quase certam ente um a in-
serção redacional parentética, pois nos vs. 4 e 8 este hom em é chamado
sim plesm ente "o outro discípulo", a designação mais original. (Concor-
dam os, pois, com Boismard, RB 69 [1962], nota de rodapé, de que "o outro
discípulo" e "o Discípulo A m ado" representam a terminologia de dois
diferentes estágios de composição; m as não achamos qualquer evidên-
cia real para a afirmação de Boismard de que "o Discípulo A m ado" só
aparece em cenas joaninas que foram redigidas por Lucas). Bultmann,
p. 5303, não concorda que estes sejam dois títulos distintos; ele prefere ler
"a outro, a saber, o discípulo a quem Jesus am ava".
lh e s d is s e . Se os dois hom ens são retratados como estando em lugares dife-
rentes, isto deve ser entendido em term os de informação sucessiva.
T ir a r a m . A m enos que se especule sobre a identidade do "eles", pois a
terceira pessoa plural indefinida, usada assim , pode ser sim plesm en-
te equivalente ao passivo: "O Senhor foi levado" (cf. nota sobre "eles
escolheram " em 15,6). N esta época, o roubo a túm ulo era um crime
p ertu rb ad o r, como testificado em edito im perial da época. Este edito,
publicado pela prim eira vez por F. C umont, tem sido cuidadosam en-
te trad u zid o e estudado po r F. de Z ulueta, J o u r n a l o f R o m a n S t u d i e s 2 2
(1932), 184-97. (Para apenas um a tradução, ver C. K. Barrett, T h e N e w
T e s t a m e n t B a c k g r o u n d : S e le c t e d D o c u m e n t s [Londres: SPCK, 1956], p. 15).
Ele data do início do I a século d.C.; o "César" que o publicou pode
ter sido A ugusto, Tibério ou Cláudio. Em bora fosse adquirido entre as
an tiguidades em N azaré, não estam os certos de que a lâm ina de már-
m ore em que foi inscrito de fato perm aneceu nessa cidade. Portanto,
1454 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

qualquer conexão com os cristãos ou "nazarenos" e o sepultam ento de


Jesus é carente de base sólida.
0 S e n h o r . Taciano e a Siríaca Palestinense trazem "m eu Senhor", provável-
m ente sob a influência do v. 13. Em seu relato do ministério, João evitou
o uso de "o Senhor" como título (ver notas sobre 4,1; 6,23; 11,2), um uso
lucano comum. Talvez, agora que ele está descrevendo o período pós-res-
surreição, o evangelista se tom a m ais livre, reconhecendo que este título
veio a ser comum como expressão da fé da com unidade cristã. Podería
objetar-se que Maria ainda não crê em Jesus como o Senhor, m as esta
objeção tam bém se aplica ao uso de "m eu Senhor" no v. 13. H artmann,
p. 199, argum enta que o uso de "o Senhor", no v. 2, é um sinal de que este
versículo chegou ao evangelista da tradição (assim tam bém vs. 18,20 e 25).
n ó s n ã o s a b e m o s . O "nós" implica um a reminiscência de que outros estavam
envolvidos na visita ao túm ulo, como na tradição sinótica? (Taciano e al-
gum as outras versões leem um singular aqui, de novo, provavelm ente em
imitação do v. 13 que tem "eu não sei"). W ellhausen e Spitta pensam que
o "nós" constitui um a tentativa redacional para harm onizar João e os si-
nóticos; mas é estranho que, quando tantas diferenças foram deixadas em
João, tal harmonização m enor e sutil teria sido tentada. Bultmann, p. 529\
5303, que pensa ser o v. 2 um conectivo redacional, julga que o "nós" é um
m odo semítico de falar com análogos gregos. É possível encontrar apoio
para isto em G. D alman, G r a m m a ti k d e s jü d i s c h - p a l ä s t in i s c h e n A r a m ä i s c h
(Darmstadt, reim presso em 1960), p. 265: "No aramaico galileu, a prim ei-
ra pessoa do plural era frequentem ente usada para a prim eira pessoa do
singular". Então alguém indagaria por que o singular aparece no v. 13.
o n d e 0 p u s e r a m . O verbo é tith e n a i, traduzido como "sepultaram " em 19,41-42.
3. s a ír a m e m d ir e ç ã o . Literalmente, "Pedro saiu... e eles estavam vindo".
O verbo singular é salientado por H artmann, p. 200, como sinal de que
na forma original do relato, Pedro foi o único que acom panhou M aria de
volta ao túm ulo, de m odo que devem os entender que Pedro saiu, e ele
e M aria estavam vindo ao túm ulo. Se Maria era com panheira de Pedro,
sua presença no túm ulo, no v. 11, não propiciaria dificuldade.
a o tú m u lo . Literalmente, "para (e is ) o túm ulo". Se os vs. 46a foram adiciona-
dos no processo de redação tardia (ver comentário), então o significado
literal poderia ter sido pretendido - foram para o túm ulo. Mas, como a
narrativa ora se encontra, requer-se um a modificação, pois nos vs. 4-5
os dois discípulos ainda não estão dentro do túm ulo. Há quem tenha
proposto um túm ulo com um a antecâm ara na qual os discípulos teriam
entrado no v. 3. Isto é duvidoso, posto que nos vs. 11-12 M adalena pode
ver o lugar fúnebre a partir de sua posição fora do túm ulo - no máximo
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1455

isto perm itiría um a ante-sala pequena e aberta. (Schwank, " L eere G ra b " ,
p. 394, observa que o capítulo é com posto e propõe que, possivelmente,
nos vs. 3 8 ‫ ־‬e em llb-14a podem -se encontrar duas diferentes compo-
sições do túm ulo, com a últim a m enos exata). Mais sim plesm ente e is ,
"em ", é usado confusam ente p ara p r o s , "a, p ara", em grego koinê (ZGB,
§97). N otam os que e is é tam bém usado no v. 1 ("vieram ao túmulo"); e
aí é patente que M aria está do lado de fora, pois ela vê que a pedra foi
rem ovida d a entrada.
4. Os d o is f o r a m c o r r e n d o . Lc 24,12a, um a "não-interpolação ocidental", ofe-
rece o único paralelo sinótico, com pequena diferença de vocabulário:
"Pedro se levantou e correu ao túm ulo".
s e n d o m a is r á p id o , u ltr a p a s s o u . A expressão de João é tautológica (BDF,
§484), fato este que tem produzido algum as variantes dos copistas.
O "m ais rápido" deste discípulo tem contribuído para a descrição de
João como um jovem e Pedro como mais velho. Ishodad de M erv liga o
"m ais rápido" de João ao fato de que ele era solteiro!
c h e g o u a o tú m u lo . Literalmente, "veio para o túm ulo"; a preposição é e is
(ver v. 3 acima) como contrastado com e p i em Lc 24,12a.
5. a b a ix a n d o - s e , v i u o s le n ç ó is p o s t o s a li. Evidentemente, o autor im agina que
no m om ento havia luz suficiente para perm itir um a abertura pequena e
baixa para servir como a fonte de ilum inação para a câm ara sepulcral.
Já m encionam os o paralelo com o v. 3 em Lc 24,12a; a segunda parte
do versículo lucano diz: "[Pedro] encurvou-se e viu apenas os lençóis à
parte". Algum as testem unhas textuais de Lucas suprim em o "apenas",
enquanto algum as testem unhas de João o contêm. Os "lençóis" são os
o th o n ia de Jo 19,40 (ver nota ali). A m enção de o th o n ia em Lc 24,12 indica
que este versículo é um a adição, pois a narrativa lucana do sepultura se
referiu som ente a um s i n d õ n , "sudário".
A expressão "postos ali" traduz um a form a do verbo k e is th a i que, en-
quanto significa "deitar, reclinar", pode indicar m era presença sem qual-
quer ênfase sobre a posição (assim, "ali", em vez de "postos ali"). Em
qualquer caso, presum ivelm ente o "ali" é onde o corpo esteve, ou na pra-
teleira ou no cocho do a r c o s o liu m , em bora o fato de que os lençóis podem
ser vistos da entrada sugira que o evangelista está pensando num a prate-
leira. M uitas traduções vertem o grego como "jazendo no chão", m as isto
dá um a im agem errônea de onde o cadáver teria sido colocado. B alagué,
pp. 185-86, analisa k e is th a i e argum enta que a palavra significa que os
lençóis foram postos abertos ou afastados, um a vez o corpo sucumbido,
nada m ais continha nele. À m aneira de contraste, ele argum entaria que
no v. 7 o turbante, que "não estava com os lençóis" (nossa tradução),
1456 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

não estava aberto, e sim enrolado, m antendo certa consistência que o


destacava (sob o s i n d õ n que Balagué pressupõe ter coberto a totalida-
de). A uer, o p . c i t ., traça a história da tradução latina do grego, m antendo
que o OL p o s i ta , "colocado ali", era um a tradução deficitária e optou por
ja c e n t ia , "jazendo ali" - tudo isto em apoio da teoria de que os lençóis
preservaram a forma do corpo de Jesus.
p o r é m n ã o e n tr o u . No comentário, discutirem os a possível implicação teoló-
gica do ato de Pedro entrar antes do Discípulo Amado. M uitos intérpre-
tes oferecem explicações práticas: o Discípulo A m ado não entrou porque
ele estava surpreso, ou atem orizado, ou quisesse evitar a contam inação
ritual que vinha do toque de um cadáver. Tais explicações não estão em
harm onia com o perfil idealizado deste discípulo no evangelho.
6. a p ó s ele. Literalmente, "seguindo-o". Visto que "seguir" é terminologia joanina
para discipulado (vol. 1, p. 266), Barrett, p. 468, pensa que o autor podería
estar tentando subordinar Pedro ao Discípulo Amado (ver comentário).
f o i d ir e ta m e n te a o tú m u lo . Em Marcos (16,5 - m esm o vocabulário) e Lucas
as m ulheres entram no túm ulo; em João, som ente Pedro e o Discípulo
Am ado entram.
o b s e r v o u . Enquanto em 5 João usa b le p e in para descrever o Discípulo Ama-
do vendo os lençóis (também Lc 24,12), aqui ele usa t h e o r e m para a visão
de Pedro. Não se verifica nenhum a progressão enquanto ao significado,
como se o ver de Pedro fosse mais dem orado ou penetrante. T h e õ r e i n
será usado para a visão que Maria teve dos anjos no v. 12 (um a visão que
não a capacitou a entender por que estavam ah) e de sua visão de Jesus
no v. 14 (a quem confunde com o jardineiro). O verbo id e in será usado no
v. 8 onde o ver é acom panhado da fé. Ver vol. 1, p. 799s.
7. a p e ç a d e r o u p a q u e co b ria s u a cabeça. S o u d a r io n , palavra em prestada do grego,
é um a acomodação do latim s u d a r iu m , tecido usado para enxugar a trans-
piração (s u d o r ), algo parecido com nossa toalha. Como concebido aqui,
provavelmente o tamanho fosse de um a toalha pequena ou um guarda-
napo grande. Em Lc 19,20, o terceiro servo deposita seu dinheiro em um
so u d a r io n (ver também At 19,12 - todavia, a palavra em si não especifica o
tamanho, e A uer, pp. 30-32, identifica o s o u d a r io n com o s i n d õ n dos sinó-
ticos). Enquanto este tecido não foi mencionado na descrição que João faz
do sepultamento, era parte da vestimenta fúnebre de Lázaro: "seu rosto
envolto em um lenço" (11,44). Provavelmente passasse por baixo do queixo
e atado no alto da cabeça, para im pedir que a boca do m orto ficasse aberta.
n ã o e s t a v a c o m o s le n ç ó is , m a s e n r o la d o e m u m lu g a r à p a r t e . A tradução desta
descrição é grandem ente disputada, p. ex., Balagué a traduz: "não es-
tendido como os lençóis, mas, ao contrário, enrolado no m esm o lugar".
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1457

É preciso considerar quase cada palavra. Primeiro, a que se aplica a nega-


tiva? A negativa não precede im ediatam ente k e is th a i (ver nota sobre v. 5),
como implica a tradução de B alagué, m as a frase "com [m e ta ] os lençóis".
Em outras palavras, é possível que o s o u d a r io n ficasse "estendido", mas
não com as outras vestes fúnebres. B alagué, p. 187, observa que aqui m e ta
não significa "com", e sim "como" (como ocasionalmente sua contrapar-
te hebraica ‘im ) , de m odo que a comparação diz respeito à condição das
roupas, em vez de sua posição. A uer, pp. 3738‫־‬, propõe que m e ta signi-
fica "entre, no meio": o s o u d a r io n (que, para ele, cobria todo o corpo) já
não estava m isturado com as bandagens. As palavras que seguem são
a l i a c h õ r i s , que significam "m as separadam ente". Entretanto, B alagué e
L avergne sugerem que aqui a expressão se assemelha ao heb. l e b a d m i n
("à parte de, além de"), e que c h õ r i s só serve para enfatizar a adversativa,
daí a tradução "mas, ao contrário". As palavras e is h e n a to p o n significam
"em um lugar"; m as B alagué, p. 189, vê aqui um hebraísmo para "no
m esm o lugar". Esta é um a tradução possível (ver IC or 12,11; na LXX a
tradução de Ecl 3,20), mas, então, por que o autor mencionaria especial-
m ente o lugar do s o u d a r io n , se ele estava onde estavam as demais rou-
pas? Cremos que a frase deva ser traduzida à luz do c h õ r i s precedente,
e assim está implícito um lugar separado. Não nos impressionamos com
a tentativa de B alagué com r e d u c tio a d a b s u r d u m , a saber, seu argum ento
de que isto implica que o s o u d a r io n ficou do lado de fora do túm ulo - fi-
cou sim plesm ente em outra parte da câmara fúnebre. (Evidentemente,
alguns copistas antigos sentiram as mesmas dificuldades que encontram
estudiosos m odernos, pois testem unhas textuais menores omitem uma
ou outra palavra ou frase nesta descrição). Em último lugar, devemos no-
tar a expressão verbal "rolou". L avergne afirma que este significado para
e n t y l i s s e i n não é atestado antes do 4a século d.C. (o termo é refletido na
Vulgata in v o l u t u m ) . Em Lc 23,53 e Mt 27,59, o verbo constitui parte da des-
crição de como José enfaixou o corpo de Jesus em um sudário, e L avergne
entende João como significando que o s o u d a r io n estava "dobrado" com as
outras vestes fúnebres. Todavia, João pode simplesmente significar que
o s o u d a r io n estava enrolado em um a laçada oval, i.e., a forma que tinha
quando foi passado em tom o da cabeça do cadáver.
8. E n tã o , p o r s u a v e z . Para este uso de t o t e o u n , ver BDF, §4592.
E le v i u e c r e u . Isto é difícil em dois fatos. Primeiro, o "ele" não se harmo-
niza com a observação explicativa, " eles não entenderam ", no v. 9. Se-
gundo, o Discípulo A m ado, se veio à fé, não parece ter partilhado desta
fé com M adalena ou com os dem ais discípulos, pois nos vs. 11-13 ou 19
não se encontra nenhum eco de sua fé. Estas dificuldades têm deixado
1458 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

sua m arca, respectivamente, nas variantes textuais e nas diferentes inter-


pretações. O Codex Bezae (suppletor) traz a redação extravagante "ele
n ã o creu"; OSsin e uns poucos mss. gregos trazem "eles viram e creram ".
Visto que o verbo p is te u e i n , "crer", pode ter significado mais profano de
"aceitar como verdadeiro, ser convencido", A gostinho, seguido dos co-
m entaristas m odernos como O epke, V on D obschütz e N auck, afirma que
o Discípulo não chegou a crer na ressurreição, m as foi convencido de que
M adalena falou a verdade quando disse que o corpo já não estava ali. En-
tretanto, certam ente o evangelista não introduziu o Discípulo A m ado na
cena só para que ele chegasse a um a conclusão tão vulgar. Ao contrário,
ele é o prim eiro a crer no Jesus ressurreto (com pare a combinação de ver
e crer no v. 29). Para o uso de p i s t e u e i n em um sentido absoluto, sem um
objeto, ver vol. 1, p. 814; tam bém D odd, I n t e r p r e t a ti o n , pp. 185-86.
9. Umas poucas testem unhas textuais m enores colocam este com entário en-
tre parênteses depois do v. 11, provavelm ente para que o "eles" que não
entenderam pudesse incluir M aria M adalena, juntam ente com Pedro, e
assim não aplicar ao Discípulo Amado. Explicações parentéticas sobre o
efeito que a ressurreição/glorificação de Jesus exerceu sobre seus segui-
dores não são infrequentes no Q uarto Evangelho (2,22; 7,39; 12,16).
a in d a n ã o e n te n d e r a a E s c r i tu r a . A fim de conciliar isto com a afirmação no
v. 8 de que o Discípulo A m ado creu, Algum as testem unhas no OL tra-
zem "ele" (i.e., Pedro), em vez de "eles". Alguns intérpretes buscam ali-
viar a dificuldade, m antendo que o evangelho não está oferecendo um a
explicação de por que os dois discípulos falharam em crer na ressurrei-
ção, e sim por que correram ao túm ulo em perplexidade quando ouvi-
ram que o corpo de Jesus fora levado. Se isto é o que estava implícito, a
explicação foi inserida em um lugar m uito estranho. H artmann, a r t . c i t .,
pensa que "eles" originalm ente se referiam a Pedro e a M adalena, pois
H artmann m antém que na forma original do relato ela era com panheira
de Pedro. U m segundo problem a se ocupa ao que "a Escritura" se refere.
(Umas poucas testem unhas om item "a Escritura", e assim evitam o pro-
blema). A implicação de João de que som ente depois das aparições de
Jesus o teor das profecias do AT foi entendido concorda com Lc 24,25-27.
Isso corre contrário à tese dos evangelhos sinóticos de que Jesus fez três
predições detalhadas de sua ressurreição (vol. 1, p. 352s). Seria a "Es-
critura" em João um a referência geral sem elhante a IC or 15,4, "Ele res-
suscitou ao terceiro dia segundo as Escrituras"? João tem em m ente um
núm ero de passagens (ver p. 1384ss. acima em referência a 19,28)? O u
ele tem em m ente um a passagem específica, por exemplo, SI 16,10 (assim
B ernard, H oskyns), ou O s 6,2, ou Jo 1,17; 2,1? N ão podem os estar seguros
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1459

d a resposta; m as não acham os plausível um a terceira proposta feita por


F reed, OTQ, pp. 57-58, de que "Escritura" se refere às próprias palavras
de Jesus como escritas em outro evangelho (Lc 24,46). Não tem os evidên-
cia de que o autor ou redator joanino conhecia o evangelho escrito de Lu-
cas, nem que classificasse as palavras de Jesus como Escritura. Bultmann,
p. 530, considera o v. 9 como um a adição feita pelo Redator Eclesiástico,
em parte porque o interesse num a predição da ressurreição é um reflexo
d a teologia da com unidade. Mas não podem os assum ir que os prim eiros
estágios do evangelho eram desprovidos da influência da teologia da co-
m unidade. O versículo lem bra estreitam ente 12,14-16, o qual Bultmann
tom a como sendo original (ver Smith, p. 224).
h a v ia d e r e s s u s c i ta r d e n t r e o s m o r to s . A necessidade surge do fato de que a
ressurreição cum pre a vontade de Deus, pois a Escritura é um guia para
o plano de Deus. O verbo "ressuscitar" e a n is ta n a i. Bultmann, pp. 530 e
491, caracteriza isto como um a expressão não joanina, posto que João
fala m ais tipicam ente da ascensão ou partida de Jesus. Todavia, veja 2,22:
"depois de sua ressurreição [= ser levantado: ê g e r t h ê ] dos m ortos"; Bult-
mann, porém , atribui isto tam bém ao redator.
10. o s d is c íp u l o s v o lt a r a m p a r a c a s a . João nada diz da disposição m ental de-
les. A últim a parte do paralelo em Lc 24,12 nos informa que Pedro "foi
p ara casa, ponderando sobre o que acontecera". Lc 24,24 registra que os
discípulos que foram ao túm ulo descobriram que o corpo fora levado,
como as m ulheres disseram , porém não viram Jesus. Aqui, "casa" não é a
Galileia, m as onde estavam em Jerusalém quando M adalena os chamou.
O propósito real deste versículo é tirar os discípulos de cena e ceder o
palco a M adalena.
1 1 . M a r i a e s t a v a e m p é . O verbo m ais que perfeito sugere a L a g r a n g e , p. 5 0 9 ,

que M aria voltara com os dois discípulos e aguardava do lado de fora do


túm ulo até que se afastassem. Se for assim, por que o Discípulo Amado
não lhe com unicou sua percepção e fé? Além do mais, por que, quando
olha para dentro do túm ulo, ela vê anjos e não roupas fúnebres? Esta
estranheza é um sinal de que temos aqui um a conexão redacional de
episódios em outro tem po independentes.
[ d o la d o d e f o r a ] d o tú m u lo . As m elhores testem unhas têm p r o s com o dativo,
significando "perto em, de" (BDF, §2402). O Sinaiticus lê e n , "no túm ulo",
provavelm ente um resultado da im aginação de copista de que o túm ulo
tinha um a antecâm ara (ver nota sobre "ao túm ulo" no v. 3). E x õ , "lado
de fora", aparece na m aior parte das testem unhas, m as em posições di-
ferentes; é om itido por Sinaiticus*, Alexandrinus, OL, OSsin, a Peshita e
algum as testem unhas do D ia te s s a r o n . Pode bem ser um esclarecimento
1460 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

de copista. Mas, m esm o sem e x õ , é m uito evidente que M aria estava do


lado de fora do jardim. N a tradição sinótica (Mc 16,5; Lc 24,3), M aria
entrou no túmulo.
c h o r a n d o . Esta não era lam entação ordinária esperada de um parente do
sexo feminino ou de um amigo do falecido; ela chorava p orque pensava
que o corpo de Jesus fora roubado.
12. o b s e r v o u . Ver nota sobre este verbo no v. 6. Em João, a aparição angélica
não inspira em Maria tem or algum , nem espanto e nem prostração que
ouvimos nos relatos sinóticos das m ulheres junto ao túm ulo.
d o is a n jo s . O "dois" é om itido pelo Sinaiticus* e um ms. OL. Ver o gráfico
à p. 1441 para a variação no núm ero e designação dos anjos. O fato de
que Mc 16,5 e Lc 24,4 falam de hom ens, em vez de anjos levou os críticos
racionalistas m ais antigos a assum irem que originalm ente estavam en-
volvidos seres hum anos, e não anjos, m as um a aparição celestial está na
m ente de todos os evangelistas. O desenvolvim ento não foi de hom ens
para anjos; ao contrário, porta-vozes celestiais foram introduzidos para
esclarecer o significado do túm ulo vazio. O E v a n g e lh o d e P e d r o tem o qua-
dro mais complexo. Os céus se abriram e dois hom ens, resplandecentes
de luz, desceram e entraram no túm ulo que se lhes abriu. Os soldados
junto ao túm ulo viram esses dois emergirem, sustentando outro (Jesus)
cuja cabeça estava acima do céu (36-40). Enquanto os soldados discutiam
sobre isto, ainda outro hom em desceu do céu e entrou no túm ulo (44).
Presum ivelmente, ele era aquele a quem as m ulheres encontraram quan-
do vieram ao túm ulo (55). Q uanto ao p a r de anjos de João, este não era
um conceito incom um (2Mc 3,26; A t 1,10).
d e b r a n c o . Em Mc 16,5, o jovem (anjo) está vestido de um m anto branco;
em M t 28,3, o anjo do Senhor tem um a aparência como relâm pago e um a
veste branca como a neve; em Lc 24,4, os dois hom ens (anjos, de acor-
do com 24,23) usam indum entária reluzente; no E v a n g e lh o d e P e d r o , 55,
o atraente jovem que as m ulheres veem no túm ulo está vestido de um
m anto brilhante. Em geral, os visitantes celestiais se vestem de algo bran-
co ou brilhante, frequentem ente de linho (Ez 9,2; Dn 10,5; 1 E n o q u e 87,2;
2Mc 3,26; At 1,10) - tam bém o Jesus transfigurado em Mc 9,3.
u m a s s e n ta d o à c a b e c e ira e o u tr o a o s p é s . Para o arranjo do túm ulo implícito
aqui, ver nota sobre v. 1, "do túm ulo". João pode significar sim plesm ente
que havia um anjo em cada extremo da prateleira sepulcral; m as algu-
m as vezes a rocha era de tal m odo lavrada que fornecia um apoio p ara a
cabeça do cadáver, de m odo que o lugar da cabeça podia ser distinguido.
O gráfico à p. 1441 mostra as variações do evangelho quando descreve a
posição dos anjos; o E v a n g e lh o d e P e d r o , 55, tem o jovem celestial assentado
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1461

no m eio do túm ulo. O detalhe em João é o mais elaborado. B ernard, II,


664, lem bra a tese de W etstein de que os dois anjos, guardando o lugar
sepulcral, eram a contraparte dos dois bandidos pendurados de ambos
os lados do Jesus crucificado. O utro simbolismo proposto lembra os dois
querubins de cada lado da Arca da Aliança no Santo dos Santos.
13. " M u lh e r " . Para esta form a de saudação, ver nota sobre 2,4.
p o r q u e e s t á s c h o r a n d o ? Umas poucas testem unhas textuais ocidentais acres-
centam "O que estás buscando?" tom ado do v. 15. Enquanto a conversa-
ção angélica em João é bem diferente daquela nos sinóticos, em ambos,
Lucas e João, os dois anjos form ulam um a pergunta.
p o r q u e le v a r a m . A afirmação de M aria reproduz a do v. 2, com "m eu Se-
nhor" em vez de "o Senhor", e "eu" em vez de "nós".
14. v i u J e s u s . Para o verbo t h e õ r e i n , ver nota sobre "observou" em 6. B ernard,
II, 665, salienta que este verbo foi usado na prom essa de 14,19: "O m undo
não m e verá mais, m as v ó s m e v e r e is " . Entretanto, visto que Maria pensa-
va que o hom em que vira era o jardineiro, dificilmente esta é a visão que
Jesus prom eteu.
ela n ã o reco n h eceu q u e era Jesu s. Alguns comentaristas têm especulado o não re-
conhecimento à possibilidade de que Madalena não estava olhando direta-
m ente para ele (uma inferência da afirmação no v. 16 de que ela volveu-se
para ele) ou que ainda era m uito escuro para ver claramente (todavia, estava
sufidentemente claro para olhar dentro do túmulo). Outros veem um simbo-
lismo teológico; por exemplo, L ightkxit, p. 334, traz à memória que o Batista
não reconheceu Jesus em 1,26.31 (mas aquele incidente envolvia o tema espe-
d al do Messias oculto - ver vol. 1, p. 234s). O registro de João deve ser asso-
d ad o aos outros casos no evangelho da impossibilidade de reconhecer o Je-
sus ressurreto, por causa da transformação que ele sofrerá (ver comentário).
15. M u l h e r ... p o r q u e e s t á s c h o r a n d o ? Jesus repete as palavras dos anjos (13). De
m odo sem elhante, quando Jesus aparece aos hom ens em M t 28,9-10, ele
reitera a m ensagem dos anjos de 28,5.7.
A q u e m e s tá s b u s c a n d o ? Esta pergunta é um raro paralelo em João com a
tradição sinótica da conversação entre os anjos e as mulheres: "Estais
buscando Jesus" (M arcos/M ateus); "Por que buscais entre os mortos ao
que está vivo?" (Lucas).
P e n s a n d o q u e e ra 0 ja r d in e i r o . Evidentem ente, nada havia de espantoso em
sua aparência, e assim podem os rejeitar a tese de K astner, a r t. c i t ., de
que o Jesus ressurreto apareceu nu, tendo deixado no túm ulo suas ves-
tes fúnebres. B ernard, II, 666, pondera romanticamente: "Os olhos do
am or vestem a visão com vestim entas familiares" - um a solução frágil
para um pseudo-problem a. Este é o único exemplo bíblico de k ê p o u r o s ,
1462 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

"jardineiro", um a palavra não incom um nos papiros seculares. O relato


de João é consoante com a informação, peculiar a ele, de que o túm ulo de
Jesus ficava em um jardim . Presum ivelm ente, a tarefa do jardineiro teria
sido cuidar das árvores e frutos ou colheitas; não há razão para fazer
dele um vigia cuja presença pessoal tornaria auto-contraditório as visitas
ao túm ulo m encionadas por João. V on C ampenhausen, pp. 66-67, pen-
sa que João está escrevendo em termos apologéticos para refutar a ale-
gação judaica de que um jardineiro levou o corpo de Jesus. T ertuliano,
D e s p e c ta c u lis 30; PL 1:662a, nos fornece nosso prim eiro vestígio desta
lenda: o jardineiro agiu assim porque tem ia que as m ultidões, vindo ver
o túm ulo, pisoteassem seus repolhos. Form as posteriores do relato iden-
tificam o jardineiro como sendo Judas (confusão com Iscariotes?) e nos
informam que subsequentem ente ele trouxe de volta o corpo que então
fora arrastado pelas ruas de Jerusalém. O utros estudiosos acham igual-
m ente um a tênue explicação teológica para a menção que João faz do
jardineiro: o jardim é o Jardim do Éden (nota sobre 19,41) onde Deus
mesmo é o jardineiro (H oskyns, L ightfoot).
S e n h o r . K y r i e (nota sobre 4,11).
16. " M a r ia ! " Aqui, as m elhores testem unhas textuais trazem M a r i a m , em vez
de Maria, o que parece ser a forma norm al para Maria M adalena. Vis-
to que M a r ia m é m ais próxim o com o hebraico m assorético M i r y a m , há
quem proponha que João retrata Jesus como que falando a M aria "em
hebraico", m esm o quando João retrate M adalena como a responder a
Jesus "em hebraico". Mais precisam ente, Schwank , " L eere G r a b " , p. 398,
especifica que M a r ia m traduz o aramaico, e não o hebraico, precisam ente
como R a b b u n i reflete o aramaico. A teoria em seu todo é duvidosa por
vários motivos. P r im e ir o , as testem unhas textuais oscilam grandem ente
se leem M a r ia ou M a r i a m nos cinco exemplos do nom e de M adalena neste
evangelho. É bem provável que a form a M a r ia m deva ser lida tam bém no
v. 18 onde não há razão especial para João estar traduzindo a form a se-
mítica do nome. Resumimos os dados textuais abaixo: os itálicos indicam
a redação preferida no grego crítico do NT de N estle (23rd ed.), M erk
(7th ed.), T asker (NEB) e A lan (Synopsis); os códices são abreviados assim:
B=Vaticanus; S=Sinaiticus; A=Alexandrinus.

19,25 M a r ia B, A M a r ia m S
20,1 M a r ia B M a r ia m S, A
20,11 M a r ia B, A, P66‘ M a r ia m S, P66c
20,16 M a r ia A M a r ia m S, B
20,18 M a r ia A M a r ia m S, B, P66
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1463

Segundo, o problem a do original hebraico do prim eiro século subjacente


ao nom e "M aria" é complexo. É verdade que M r y m é a forma consonan-
tal encontrada no TM como o nom e da irm ã de Moisés; m as no tem po de
Jesus M r y h tam bém aparece em inscrições, de m odo que já não é correto
alegar que M aria é necessariam ente um a forma helenizada (BDF, §533).
"M aria" pode ter sido um a designação informal para m ulheres chama-
das "M ariam ". T e r c e ir o , a alegação de que M a r ia m representa M a r y a m ,
um a forma aram aica, em vez de M i r y a m , um a form a hebraica, é altamen-
te incerta. N o caso de nom es bíblicos, formas hebraicas foram frequen-
tem ente retidas em hebraico [aramaico]; assim, o T a r g u m O n k e lo s traduz
o nom e da irm ã de Moisés como M i r y a m , que corresponde a vocalização
m assorética. N o entanto, m ais pertinente, a vocalização é tardia e é o
resultado de um a dissimilação (tecnicamente cham ado q a tq a t para a dis-
similação q it q a t) . Esta dissimilação na pronúncia do hebraico não ocorreu
até após os tem pos do NT, de m odo que no tem po de Jesus o heb. M r y m
era pronunciado M a r y a m (como atestado na transliteração da LXX).
E la v o l t o u - s e p a r a e le . O uso do nom e M aria cham a sua atenção porque,
supõe-se que, o jardineiro a conhece pessoalmente. No entanto, Maria já se
voltara para este hom em (o m esm o verbo) no v. 14. Os que tentam ana-
lisar esta duplicação sem recorrer à crítica literária (i.e., a junção de rela-
tos um a vez independentes) usualm ente pressupõem que M aria tinha se
afastado nesse ínterim. Em conform idade com sua tese de que Jesus per-
m aneceu ali n u (o novo Adão), K astner, a r t. c i t ., propõe a decência como
o m otivo pela qual Maria se afastara! Um a explicação m ais com um é que
significa que Maria agora volveu sua plena atenção para Jesus (assim L a-
grange) e (B ultmann , com base no "N ão me detenhas"). O utros propõem
que o grego traduz parcam ente um original aramaico. O OSsin e T aciano
têm "reconhecido" (representando o ithpeel de s k l ) em vez de "voltou-se";
e B lack, pp. 189-90, sugere que a versão grega aceita leu equivocada-
m ente o aramaico. s k l como s h r sob a influência do v. 14 onde ocorreu
um a form a de s h r . B oismard, Ê v je a n , p. 47, anexa a evidência da versão
de A mbrósio e de G eorgiano em apoio desta teoria. Entretanto, a leitura
"reconheceu", que elimina a dificuldade, bem que pode representar um
m elhoram ento da lavra de copista.
[ e m h e b r a ic o ]. Estritam ente falando, a expressão referida, a saber, R a b b u n i,
é aramaico. Esta frase está faltando em um a interessante combinação de
testem unhas textuais: algum as das versões ocidentais, a tradição bizan-
tina, a Vulgata e mass, gregos da família Lake. Ela se encontra em refe-
rência a nom es aram aicos de lugar em 5,2; 19,13.17; e um copista podería
ter im itado o uso.
1464 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

" R a b b u n i! " A forma grega é r a b b o n i , com r a b b õ n i como um a variante oci-


dental; a palavra aparece tam bém em Mc 10,51. A literatura rabínica pos-
terior (p. ex., o T a r g u m O n k e lo s ) tem a forma vocalizada r i b b õ n i , usada
principalm ente ao dirigir-se a Deus. Em um a cópia do Targum pales-
tinense mais antiga do Pentateuco, B lack, p. 21, encontra a form a ara-
maica vocalizada r a b b ü n l (uma form a que pode ser usada ao dirigir-se a
um senhor hum ano). Embora o uso que João faz de um a transliteração
de r a b b ü m , em vez de r i b b õ n i , tenha sido citada como prova de que João
conhecia o uso palestinense do Ia século, J. A. Fitzmyer CBQ 30 (1968),
421, m ostra a falácia em tal argum ento. A forma targúm ica antiga teria
sido escrita sem a vocalização como r b w n y , que podería ser ou r a b b ü m ou
rib b õ n i·, e se argum entarm os partindo da forma vocalizada do Targum ,
somos induzidos consideravelm ente pela evidência tardia.
A forma R a b b u n i tem sido descrita como um a saudação carinhosa (W. F.
A lbright, BNTE, p. 158), i.e., um a forma dim inutiva de afeto: "M eu queri-
do Rabbi [senhor]". Muitos têm ponderado que seu uso expressa a afeição
de Maria por Jesus, um a afeição implícita ao longo de toda a cena. (Um
romântico como R enan retratou Jesus como o grande am or de Madalena,
deixando aberta a via para se interpretar o "Não me detenhas [ou toques]"
do v. 17 como um a indicação de que a relação prévia entre eles cessaria
- talvez sob a analogia de Mc 12,25!). Alega-se que R a b b u n i seria especial-
m ente significativo, pois em outras oito vezes João usa o simples R a b b i.
Entretanto, João traduz R a b b u n i para o grego como "Mestre", a mesma
tradução dada para R a b b i (1,38), de m odo que o autor não dá aos seus
leitores gregos nenhum a indicação do elemento afetivo. Há ainda menos
base para pressupor-se que o autor está deliberadamente usando um a for-
m a dirigida prim ariam ente a Deus, de modo que M adalena está fazendo
um a declaração de fé comparável à de Tomé, "Senhor m eu e Deus m eu"
(H oskyns, p. 543).
(q u e s ig n if ic a " M e s tr e " ). Talvez precisam ente por causa da sim plicidade do
discurso, algum as testem unhas ocidentais adicionam "Senhor" ou o subs-
titui por "Mestre". Não obstante, de fato "senhor" é um a tradução mais
literal de r a b b i do que "m estre" (ver nota sobre 1,38). Depois de "Mestre",
algum as testem unhas m enores acrescentam "e ela correu para tocá-lo".
Esta é um a tentativa de copista para fazer um a transição m ais fácil para o
v. 17. A ideia podería visar a retratar um a ação sim ilar àquela de M t 28,9,
onde as m ulheres correm, abraçam os pés de Jesus e o adoram .
17. " N ã o m e d e te n h a s " . O uso do im perativo presente ( m ê m o u o p t o u ) , lite-
ralm ente "Para de m e tocar", provavelm ente im plique que ela já está to-
cando-o e que desistisse; todavia, pode significar que ela esteja tentando
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1465

tocá-lo e ele lhe diz que não o fizesse (cf. BDF, §3363). Temos traduzido
o aspecto deste im perativo contínuo por "apegar-se" ou "segurar", de
m odo que Jesus está pedindo-lhe que não o agarre (ver BAG, p. 102, col. 1;
ZGB, §247 - talvez se deva dar o m esm o significado ao verbo a p te s th a i
em Lc 7,14). D odd, I n t e r p r e t a t i o n , p. 4432, afirma que é o aoristo deste
verbo que significa "tocar", enquanto o presente significa "deter, agar-
rar, segurar". B. V iolet, ZNW 24 (1925), 78-80, m ostra que duas vezes
na LXX a p te s th a i traduz form as do hebraico d ã b a q (d ã b ê q ) que signi-
ficam "apegar-se a". (É possível aceitar esta observação sem adotar a
teoria de V iolet de que o significado original, traduzido equivocada-
m ente em João, era "N ão m e sigas"; cf. F. P erles, ZNW 25 [1926], 287).
Lem bram os que na cena paralela em M t 28,9 as m ulheres abraçam
( k r a te in ) os pés de Jesus; e algum as vezes a p te s th a i é intercambiável com
k r a te in ; por exemplo, com pare M t 8,15 com Mc 1,31.
Os que argum entam em prol do significado "tocar" e que pensam que o
conceito que João tem da ascensão era o m esm o de Lucas, a saber, algo
que ocorrería em cerca de quarenta dias depois de um a série de apari-
ções, têm encontrado grandes dificuldades extraordinárias para explica-
rem a ordem de Jesus a M adalena. Não podem entender por que Jesus
a proibiría de tocá-lo, quando um a sem ana depois (e ainda antes de sua
ascensão) ele convidaria Tomé a tocar suas feridas. M. M iguens, " N o ta " ,
discute am bas as abordagens, patrística e m oderna, para este problema;
e J. M aiworm, T G I30 (1938), 540-46, cataloga doze diferentes tipos de ex-
plicações. N ão se sabe qual é pior: a explicação totalm ente banal de que
Jesus não quer ser tocado por que suas feridas ainda são sensíveis, ou a
tese fantasiosa de B elser de que, tendo ouvido da refeição eucarística da
noite de quinta-feira, M adalena vê Jesus ressurreto e está agarrando-se a
ele, rogando-lhe que lhe dê a santa comunhão! H. K raft, TLZ 76 (1951),
570, pensa que Jesus estava alertando M adalena contra a contaminação
ritual a que ela incorrería ao tocar um corpo m orto; porque, ainda que
redivivo, Jesus continuava em um estado de hum ilhação até que ascen-
desse ao Pai. C risóstomo e T eofilato estão entre os m uitos que pensam
que Jesus está pedindo a M aria que dem onstre mais respeito para com
seu corpo glorificado. Caso se suscite a objeção que um respeito simi-
lar não foi exigido de Tomé, alguns resolveríam a dificuldade, alegando
que a um hom em , e especialm ente um dentre os doze, se podia permi-
tir o que seria inconveniente a um a m ulher, especialmente um a m ulher
com passado pecaminoso. C. Spicq, RSPT 32 (1948), 226-27, recorrendo a
Hb 7,26, propõe que, quando Jesus tiver ascendido, ele será sumo sacerdo-
te, santo, imaculado, separado dos pecadores; e assim ele está dizendo a
1466 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

M adalena que não o m acule com contato ordinário. K astner, a r t . c i t .,


sempre fiel à sua tese de que o Jesus redivivo estava nu, pensa que ele
tem um a explicação óbvia por que o com portam ento de M aria fora ina-
propriado, até que ela tam bém se ascendesse ao céu e não mais incor-
resse nos perigos da tentação! Ainda outros pensam que M adalena está
sendo inform ada a não provar a realidade física do corpo de Jesus.
Uma abordagem ainda m ais frequente é corrigir o texto ou traduzir o
grego de um a forma incom um, evitando assim a dificuldade. B ernard,
II, 670-71, e W. E. P. C otter, ET 43 (1931-32), 46, defendem a tese de que
o original trás m ê p t o o u , "N ão tem as". O tem a do tem or se encontra nas
narrativas sinóticas das aparições de Jesus, e o verbo p to e i n ocorre em
Lc 24,37, onde os discípulos estão atem orizados. Entretanto, este ver-
bo não é usado na cena sinótica do túm ulo, onde as m ulheres m ostram
medo; em particular, o paralelo m ateano (28,10) a esta cena em João tem
o im perativo de não tem er nas palavras m ê p h o b e i s t h e . O utras em endas
(sem endosso textual) elim inam a negativa e leem m o u a p to u ou s y a p to u ,
"Toca-me". Entre as traduções não usuais, podem os notar a de F. X. P ölzl
e J. S ickenberger, proposta independentem ente por C otter, a r t . c i t ., a sa-
ber, que a frase significa: "N ão há necessidade de agarrar-se a m im , pois
não estou partindo im ediatam ente, m as estarei por perto por pouco tem-
po [quarenta dias] antes que eu parta". W. D. M orris, ET 40 (1928-29),
527-28, propõe que o grego significa: "N ão (temas) tocar-m e", já que a
ideia de tem or está implícita no ver run hom em m orto que voltou à vida.
L agrange, p. 512, e B arrett, p. 470, buscam evitar a dificuldade assim:
"Não insistas em tocar-me; é verdade que ainda não subi para o Pai, m as
estou para fazer isso". X. L éon-D ufour, É tu d e s d 'E v a n g i le (Paris: Seuil,
1965), p. 74, defende este uso concessivo de g a r , que significa "verda-
deiro". Por razão diferente, m as com o m esm o resultado prático, L oisy,
p. 505, considera as palavras "pois ainda não subi para o Pai" como um a
glosa, de m odo que o teor original era: "N ão m e toques, m as vou para
m eus irmãos; pois de m inha parte já estou subindo...". D e m odo seme-
lhante, ZGB, §476, defende a possibilidade gram atical de que o "porque"
que segue "Não m e toques" deve ser interpretado não com "ainda não
subi", m as com "vou para m eus irm ãos". N o comentário, tentarem os
discutir o texto sem em enda ou sintaxe não habitual.
s u b i p a ra 0 P a i. P66, OL, OSsin e a Vulg. trazem "meu Pai" - um a interessante
combinação de testemunhas. Todavia, é bem provável que a redação tenha
sido influenciada por "eu estou subindo para m eu Pai" no final do versículo.
v a i t e r c o m m e u s ir m ã o s . Um as poucas testem unhas im portantes om item
"meus". D odd, T ra d itio n , p. 147, sugere que os irmãos poderíam ser parentes
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1467

físicos de Jesus, pois em IC or 15,7 há registrado um a aparição de Jesus


a Tiago, um dos "irm ãos" (ver tam bém At 1,14). Recordemos ainda que
em Jo 7,8 foi a seus "irm ãos" ou parentes que Jesus disse: "N ão estou
subindo [ a n a b a in e in ] a esta festa, porque para mim o tem po ainda não
tem chegado"; e é possível entender que agora ele está dizendo a Mada-
lena que os informasse de que ele está subindo (a n a b a in e in ). Enquanto
não se pode excluir esta possibilidade para a tradição pré-evangélica,
certam ente o evangelista estava se referindo aos discípulos, como vemos
no v. 18. O uso do term o "irm ãos" para os discípulos se relaciona com a
ideia expressa m ais adiante na sentença de que agora o Pai de Jesus é o
Pai deles. Há um uso sim ilar de "irm ãos" em 21,23; cf. tam bém o paralelo
m ateano (28,9-10), onde Jesus diz às m ulheres que abraçavam seus pés:
"N ão temais; segui vosso caminho e dizei a m e u s ir m ã o s [Mt 28,7 se refere
aos discípulos] que estou indo para a Galileia".
e s t o u s u b i n d o p a r a m e u P a i. Todas as tentativas de fazer isto referir-se a um a
ascensão que ocorre m uito depois, de forma que as aparições em 20,19ss.
seriam anteriores as m esm as vai contra o significado óbvio do texto.
O tem po presente aqui significa que Jesus já se acha no processo da ascen-
são, m as que ainda não atingiu sua destinação (BDF, §3233). Com fre-
quência Jesus tem falado de ir para seu Pai Q iy p a g e in em 7,33; 16,5.10;
p o r e u e s th a i em 14,12.28; 16,28). O verbo a n a b a in e in é um dos vários usa-
dos no NT para descrever a ascensão, m as num a época posterior dos
credos veio a ser o term o por excelência.
m e u P a i... m e u D e u s . Isto quase corresponde à descrição paulina "o Deus e
Pai de nosso Senhor Jesus Cristo" (Rm 15,6; 2Cor 1,3 etc.). No v. 28, Tomé
cham ará Jesus de "Deus" (vol. 1, p. 199); todavia, João m ostra Jesus se
dirigindo ao Pai como seu Deus. Talvez tenham os aqui os ecos de vários
estágios no desenvolvim ento da cristologia.
18. No grego deste versículo há um a combinação de discurso direto e indireto
nada elegante, e as várias testem unhas textuais revelam traços de tenta-
tivas de copistas de amenizar. L agrange, p. 513, comenta que a pressa de
M aria combina com o estilo do escritor. Outros têm buscado um a explica-
ção literária: João está com binando o final da cristofania ("ela anunciou:
'eu vi o Senhor!‫ )"׳‬com a terminação original da cena que envolve os anjos
no túm ulo ("noticiando o que ele [originalmente, eles] lhe dissera"). L oisy,
p. 506, comenta que o v. 18 é um reescrito da angelofania em Mt 28,8.
f o i t e r c o m o s d i s c íp u l o s . O Apêndice M arcano (16,10) tam bém traz M adalena
indo aos discípulos depois da cristofania, porém usa p o r e u e s th a i em
contraste ao e r c h e s th a i de João para o verbo "ir" e chama os discípulos
"os que estavam com ele". João nada nos diz da reação dos discípulos.
1468 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

No Apêndice Marcano, estão lam entando e chorando quando Maria ehe-


ga; e "quando ouvem que ele estava vivo e fora visto por ela [th e a s th a i
- um verbo que João não usa para a visão do Jesus ressuscitado], não
creem". João não diz onde os discípulos estavam, m as, presum ivelm en-
te, estavam onde os encontram os no v. 19.
"E u v i 0 S en h o r!" O verbo é h o ra n , comparável a id e in usado no v. 9 (cf. p. 1516).
Para o uso pós-ressurreição de "o Senhor", ver nota sobre o v. 2. Com o
no v. 2, onde M adalena notifica o túm ulo vazio, João é o único evangelho
a d ar um a citação direta como parte de sua notícia.
ela a n u n c io u . A n g e ll e in , um derivativo, a p a n g e lle in , é usado em M t 28,8.10 e
Lc 24,9 para a mensagem que as m ulheres levam aos discípulos após sua
visita ao túm ulo vazio (cf. também o Apêndice M arcano 16,10).

COMENTÁRIO: GERAL

A e s tr u tu r a d e 2 0 ,1 -1 8

N a p. 1430 fo rn ecem o s u m esboço q u e m o stra o c u id a d o s o e q u ilíb rio


n este c a p ítu lo q u e tra ta d o p e río d o p ó s-re ssu rreiç ã o . N o ta m o s q u e a
n a rra tiv a d o Jesu s ressu sc ita d o é d iv id id a e m d u a s cen as a m b a s as
q u ais c o m eçan d o com u m cen ário d e te m p o (vs. 1 e 19). C a d a c en a
co nsiste d e d o is ep isó d io s. O p rim e iro e p isó d io e m c a d a cen a e n v o lv e
os d isc íp u lo s e a q u e estes creem . (E m b o ra re c o n h e ç am o s a p o ssib ili-
d a d e d e se s u b d iv id ir c a d a u m d e ste s p rim e iro s e p isó d io s, o c e n á rio
n o s vs. 1-2 é m ais d istin to d a p rin c ip a l ação e m 3-10 d o q u e o c e n ário
em 19-20 d a m e n sa g e m d e Jesu s e m 21-23). O se g u n d o e p isó d io em
cad a cen a tem co m o se u p o n to p rin c ip a l a a p a riç ã o d e Jesu s a u m in-
d iv íd u o , M a d ale n a e T om é, re sp e c tiv a m e n te. E n e ste s se g u n d o s e p i-
só d io s h á c o n sid e ráv e l a ten ção a co m o este in d iv íd u o c h e g o u a certi-
ficar-se d e q u e Jesu s re a lm e n te e sta v a ali (o rec o n h e c im e n to ). P o r s u a
v ez, a v in d a à fé d o s in d iv íd u o s se rela cio n a com u m a u d itó rio m aior:
M a d ale n a sai p a ra in fo rm a r ao s d iscíp u lo s; Jesu s d e p o is d e se d irig ir
a T om é, se refere à m assa d o s q u e n ã o v ira m , p o ré m creram .
D eixando a equilibrada e stru tu ra d o capítulo, d ev em o s o cupar-nos,
em particular, d e 20,1-18 onde, a despeito d a o rganização q u e a cabam os
d e expor, h á u m n ú m ero extraordinário d e inconsistências q u e d e latam a
m ão d e u m red a to r q u e efetuou a organização, c o m b in an d o m aterial he-
terogêneo. N o ta m o s as seguintes d ificuldades (para detalhes, v e r notas):
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1469

• N o v. 1, M a d a le n a v a i so z in h a ao tú m u lo , p o ré m n o v. 2 fala
co m o " n ó s" .
• N o v. 2, ela c o n clu i q u e o c o rp o foi ro u b a d o , m a s a p a re n te m e n -
te n ã o o lh a p a ra d e n tro d o tú m u lo até o v. 11.
• H á d u p lic a ç ã o n a d escrição d e P e d ro e d o D iscíp u lo A m ado:
- d u a s in d icaçõ es d e d ire ç ão " p r o s " n o v. 2;
- lite ra lm e n te , n o v. 3 " P e d ro saiu... e eles v iera m ";
- n o s v s. 5 e 6, a rep e tiç ã o e m q u e foi visto;
- n o v. 8, o c o n tra ste e n tre "ele v iu e c re u " e, n o v. 9, " n ã o en-
te n d e ra m .
• A co n v icção d o D iscíp u lo A m a d o n ã o tem efeito em M ad alen a
n e m n o s d isc íp u lo s em g eral (19).
• N o v. 11, n ã o fica claro q u a n d o o u co m o M a d ale n a v o lto u ao
tú m u lo .
• P o r q u e n o v . 12 e la v ê anjos n o tú m u lo , e m v e z d e v estes fúne-
b re s q u e P e d ro e o D iscíp u lo A m a d o v iram ?
• N o v. 13, s u a c o n v ersação com o s anjos n ã o d á q u a lq u e r avanço
à ação.
• Lem os d u a s vezes q u e ela se volveu p a ra olhar p ara Jesus (14 e 16).

A p o s s ib ilid a d e d e d e te c ta r a m ão d e u m re d a to r a u m e n ta q u an -
d o c o m p a ra m o s o m a te ria l em 20,1-18 com o q u e e n c o n tram o s no s
re la to s sin ó tico s (L indars , a r t . c i t . , fornece q u a d ro s c o m p a rativ o s d o
v o c a b u lá rio ). P o d e m o s d istin g u ir trê s tip o s d e m ateriais:

(1) M a te ria is c o m p a ra le lo s m ais e stre ito s com o s três ev a n g elh o s si-


n ó ticos:
v s. l 2 ‫־‬a: M a d a le n a v a i a o tú m u lo , e n c o n tra a p e d ra re m o v id a e
n o tifica a P ed ro .
vs. 11-12: M a d a le n a v ê d o is a n jo s n o tú m u lo . O d a d o , p o ré m
n ã o o c o n te ú d o , d a c o n v e rs a ç ã o n o v. 13 ta m b é m tem
p a ra le lo s .
(2) M a te ria is q u e se a sse m e lh a m a n o tícias m ais b re v e s d o s sinóticos:
p a r te d o s v s. 3-10, e sp e c ia lm e n te 3, 6 -7 ,1 0 : P e d ro v a i a o tú m u -
lo, e n tra , v ê o s len ç ó is fú n e b re s d e Jesu s e v o lta p a ra
c a sa , a p a re n te m e n te n ã o te n d o c h e g a d o à fé. Isto é se-
m e lh a n te à n ã o in te rp o la ç ã o o c id e n ta l em Lc 24,12 e a
Lc 24,24.
1470 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

p a rte s d o s vs. 14b-18: Jesus a p a re c e a M a d ale n a; ela se a b ra ç a a


ele; ele lh e p a ssa a m e n sa g e m p a ra os d isc íp u lo s; su b -
s e q u e n te m e n te , ela lh es a n u n c ia . Isto se a sse m e lh a a
M t 28,9-10.
(3) M ateriais p e c u liare s a João:
vs. 2b: A s p a la v ra s d o a n ú n c io d e M a d a le n a a P e d ro .
p a rte d o s vs. 3-10: O p a p e l d o D iscíp u lo A m a d o q u e
a c o m p a n h a P e d ro ao tú m u lo , v ê as v e ste s fú n e b re s e
p a ssa a crer.
v. 13: O c o n te ú d o d a c o n v ersação e n tre M a d a le n a e o s anjos.
p a rte d o s vs. 14b-18: Jesu s fala a M a d a le n a so b re su a
ascen são a seu P ai e su a s co n seq u ê n c ia s teológicas.

P o d ería fo rm u lar-se a teo ria d e q u e o r e d a to r c o m b in o u d ife ren te s


tip o s d e m ateriais d e d iv erso s tip o s e a d ic io n o u a lg u n s p e n sa m e n to s
teológicos p ro p ria m e n te seus. T o d av ia, c u rio sa m e n te , n o ta m o s q u e,
a d esp eito d a v a rie d a d e d e m ate ria is iso lad o s so b re a b a se d o s p a ra -
lelos sinóticos, n o tav e lm e n te, o ele v a d o n ú m e ro d e v e rb o s n o te m p o
p rese n te h istó rico p a re c e ser d istrib u íd o d e m o d o h o m o g ê n e o (com
alg u m a m en o r freq u ên cia no s m ate ria is d o tip o 2). Bernard, II, 665, co-
m e n ta a falta d e conectivos (tam b ém fre q u e n te em João) n o s v s. 14-18.

T e o r ia s s o b r e a c o m p o s iç ã o

O s e stu d io so s n ã o estã o d e m o d o a lg u m c o n c o rd e s so b re co m o
o co rreu a c o m p o sição o u red a ç ã o d o m ate ria l. U m e x am e d o s p o n -
tos d e v ista m ais a n tig o s to m a d e te c tá v e l c e rtas d ific u ld a d e s: p a ra
W ellhausen e A. Schwitzer, os vs . 2-10 são u m a in te rp o la ç ão ; o s vs.
2-11 constituem u m a interpolação p a ra H irsch; p a ra Spitta, os vs. llb -1 3 ;
e p a ra D elafosse, os vs . 5b, 6, 8 e 9. R e p o rta r-n o s-e m o s su c in ta m e n te
a a lg u m a s an álises m o d e rn a s q u e a c h am o s ser p ro v e ito sa s p a ra a for-
m ação d e n o ssa p ró p ria teoria.
Lindars, a r t . c i t . , ainda que não proponha uma teoria integral de
composição, ele v ê no cap. 20 um conjunto de relações sinóticas que
descobrimos ser especialmente de grande ajuda na reconstrução de
20,19-29. A d a p t a n d o suas observações, podem os distinguir nos relatos
sinóticos do que aconteceu no túmulo a seguinte sequência: (a) as mu-
lheres vão ao túmulo e encontram a pedra removida; (b) veem anjos
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1471

q u e lh es in fo rm a m q u e Jesu s ressu sc ita ra ; (c) a s m u lh e re s co rrem e


c o n ta m a o s d iscíp u lo s. P arecería q u e em João o m em b ro (b ) foi m u d a -
d o p a r a o fin al d a se q u ên c ia (2 0 ,1 1 1 8 ‫)־‬, e x p a n d id o e c o m b in a d o com
u m a cristo fan ia. S u a p rim e ira p o sição foi su b s titu íd a p o r o u tro relato
(P e d ro e o D iscíp u lo A m a d o co rre m a o tú m u lo ). Lindars identifica
u m a se q u ê n c ia se m e lh a n te n o s re la to s sin ó tico s d a a p a riç ã o d e Jesus
a o s d isc íp u lo s: (a) Jesu s a p a re c e ao g ru p o re u n id o ; (b) eles n ã o creem
e ele o s c e n su ra ; (c) ele lh es d á s u a co m issão ap o stó lica, d e scre v e n d o
a lg u n s d o s efeito s d e s u a m issão . U m a v e z m ais, em João o m em b ro
(1b ) foi m u d a d o p a ra o fin al d a se q u ên cia (20,24-29) o n d e é in d iv id u a -
liz a d o n o re la to d a in c re d u lid a d e d e T om é. S ua p rim e ira p o sição foi
s u b s titu íd a p e la d o ação d o E spírito em 20,22. Lindars conclui q u e p arte
d o m ate ria l d e João v e m d a s trad içõ es q u e jazem p o r d e trá s do s evan-
g elh o s sinóticos; o resta n te é c o m p o sto p o r João, e n ão extraído d e u m a
fo n te p ré-jo an in a, p o is seu v o cab u lário é in teiram en te joanino.
O u tro s e s tu d io so s p e n sa m q u e h á u m a n a rra tiv a básica subjacen-
te q u e foi a g re g a d a . Bultmann (ver Smith, p. 50) p ro p õ e u m b re v e re-
lato o rig in a l p o r d e trá s d e 20,1-18, c o n sistin d o d a to ta lid a d e o u p a rte
d o s vs. 1, 6, 7 ,1 1 ,1 2 e 13. M a d a le n a v a i a o tú m u lo , e n c o n tra a p e d ra
re m o v id a (e ta lv e z v ê as v e ste s fú n eb res). E n q u a n to ch o ra ju n to ao tú-
m u lo , o lh a p a ra d e n tro e v ê d o is a njos e c o n v e rsa com eles, in d a g a n d o
q u e m te ria le v a d o o c o rp o d o S enhor. A ssim , Bultmann re d u z o relato
o rig in a l p ra tic a m e n te ao m a te ria l em n o sso tip o (2). U m a d ific u ld a d e
n e s ta a b o rd a g e m é q u e a lg u n s d o s o u tro s m ate ria is p re su m iv e lm e n te
a c re sc e n ta d o s p e lo e v a n g elista dificilm en te é o re s u lta d o d e su a livre
co m p o sição . P o r ex em p lo , a n a rra tiv a d a v isita a o tú m u lo p o r P e d ro
e o D iscíp u lo A m a d o é fru to d e u m a co m p o sição p e sso a l (ver as in-
c o n sistên c ias q u e sa lie n ta m o s n o s vs. 3-10), e a ssim p ro p o ría m o s q u e
p a rte d e la c h e g o u ao e v a n g elista d a tra d iç ã o p ré-ev an g élica.
H artmann, a r t . c i t . , p ro p õ e u m rela to o rig in a l co n sid e rav e lm e n te
m a is lo n g o p o r d e trá s d e 20,1-18 (c o n tin u a d o em 19-29), co n sistin d o
d a to ta lid a d e o u p a rte d o s vs. 1 -3 ,5 , 7-11,14-18. M a d a le n a v ai ao tú-
m u lo , e n c o n tra a p e d ra re m o v id a e se re p o rta a P e d ro q u e a acom pa-
n h a a o tú m u lo e v ê a s v e ste s fú n eb res. P e d ro v o lta p a ra casa, sem crer
e x p lic ita m e n te , p o is n e m ele n e m M a d a le n a c h e g a ra m a c o m p re en d e r
a E scritu ra. M a d a le n a fica ju n to a o tú m u lo e e n c o n tra Jesus q u e lhe
fala. Ela o reco n h ece, cai a se u s p é s e receb e a m issã o d e n o tificar a seus
irm ã o s. E la c o n ta ao s d isc íp u lo s q u e v ira o S enhor. A rec o n stru ç ã o d e
1472 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

H a rtm an n , q u e c u id a d o sa m e n te re m o v e q u a se to d a s a s in co n sistê n -
cias q u e n o tam o s, n a re a lid a d e co n siste d e u m a b r a n d a co m b in a çã o
d e b o a p a rte d o m a te ria l em n o sso s m o d elo s (1) e (2). P o rta n to , a re d a -
ção teria c o n sistid o p rin c ip a lm e n te n o m a te ria l a d ic io n a d o d o m o d e lo
(3). A ú n ic a exceção seria q u e, p a ra H a rtm a n n , a v isã o d o s anjos e m
llb - 1 3 n ão e ra p a rte d o re la to o rig in al.
O u tra a b o rd a g e m é a p ro p o s ta d e q u e o r e d a to r /e v a n g e lis ta joa-
n in o c o m b in o u d u a s d ife re n te s n a rra tiv a s q u e lh e fo ra m tra n sm iti-
d a s, u m a n a rra tiv a d e " tip o sin ó tic a " e u m a n a rra tiv a n ã o sin ó tica.
P o r ex em p lo , d u a s n a rra tiv a s so b re v isita s ao tú m u lo v a z io p o d e m
ter sid o u n id a s , u m a re tra ta n d o a s m u lh e re s (M a d a len a ), a o u tra re-
tra ta n d o os d isc íp u lo s (P ed ro , o D isc íp u lo A m a d o ). U m a im p o rta n te
v aria çã o d e s ta teo ria foi o fere c id a p o r B enoit , ‫ ״‬M a r i e - M a d e l e i n e ‫יי‬, q u e
p e n s a em d u a s n a rra tiv a s, u m a tip ic a m e n te sin ó tica, a o u tra n ã o si-
n ó tica, u n id a s p o r v e rsíc u lo s to m a d o s d ire ta m e n te d a tra d iç ã o sin ó -
tica. P a ra B enoit , 20,1-10 é u m re la to jo a n in o se m p a ra le lo n a tra d iç ã o
sin ó tica (o p a ra le lo e m Lc 24,12 é tid o co m o s e n d o e m p re s ta d o d e
u m a fo rm a m ais a n tig a d a tra d iç ã o jo an in a). U m s e g u n d o re la to se
e n c o n tra e m 20,11a, 14b-18 (a c risto fa n ia a M a d ale n a). F o ra m u n id o s
p e lo s vs. llb - 1 4 a , e m p re s ta d o s d o s re la to s sin ó tico s d a v isã o a n g é li-
ca n o tú m u lo . L e m b ra m o s (p. 1421 acim a) q u e B en o it su s te n ta u m a
teo ria sim ila r so b re a c o n stru ç ã o d e 19,31-42; e e n q u a n to e n c o n tra -
m o s a lg u m a v e rd a d e n ela, ju lg a m o s q u e a te o ria a te n u o u a lg u m a s
d ific u ld a d e s. A q u i faz e m o s o m e sm o ju ízo . P o r e x e m p lo , vs. llb - 1 4 a
só têm s im ila rid a d e d ire ta com a tra d iç ã o sin ó tica n o fato d e q u e os
anjos estã o p re se n te s. E n o v. 1 q u e se tê m p a ra le lo s e m v o c a b u lá rio
com a tra d iç ã o sinótica.
É difícil av aliar to d as estas ab o rd ag en s. O ú n ico rela to básico
p ro p o sto p o r H a rtm an n ( o d e B u ltm a n n é sim p lific a d o d e m a is) é
a tra en te ; m a s n ã o é p o ssív e l q u e este ú n ico rela to fosse re s u lta d o d a
co m b in ação d e m ate ria is, d e m o d o q u e a lg u é m fin a lm e n te p u d e s se
rec o n stitu ir v á ria s n a rra tiv a s p o r d e trá s dele? S om os in c lin a d o s a
ac h ar p o r d e trá s d e 20,1-18 o s traço s d e trê s n a rra tiv a s: d u a s n a rra ti-
v as d e v isitas ao tú m u lo v azio , e a n a rra tiv a d e u m a a p a riç ã o d e Jesu s
a M ad alen a. Se estas fo ra m c o m b in a d a s p e lo p ró p rio e v a n g e lista (as-
sim B enoit ) o u c h e g a ra m a ele e m to ta l o u p a rc ial co m b in a çã o (assim
H artm ann ) so m o s in ca p a z es d e d izer. E n tre ta n to , o e v a n g e lista fez
su a p ró p ria co n trib u iç ã o em q u a lq u e r caso, p o is ele a d a p to u estas
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1473

n a rra tiv a s p a ra q u e se rv isse m d e v eícu lo p a ra s u a teo lo g ia so b re a fé


e so b re o sig n ific a d o d a ressu rreição .

A n á li s e d a s tr ê s n a r r a tiv a s b á s ic a s c o m b in a d a s e m João

(A) U m re la to d e q u e v á ria s m u lh e re s se g u id o ra s d e Jesus foram


a o tú m u lo n o d o m in g o d e m a n h ã , o e n c o n tra ra m a b e rto e r e to m a ra m
ao s d isc íp u lo s co m as n o tícias p e rtu rb a d o ra s . E m si m esm o , o fato
d o tú m u lo v a z io o rig in a lm e n te n ã o c o m u n ic av a a id eia d a ressu rre i-
ção; a s a p a riçõ e s s u b se q u e n te s d e Jesu s clarificaram o sig n ificad o d o
tú m u lo v azio . É b e m p ro v á v e l q u e e sta seja a ra z ã o p o r q u e o ach ar
o tú m u lo v a z io n ã o fosse p a rte d a p re g a ç ã o m ais a n tig a d a ressu rre i-
ção, m a s a p e n a s u m tra n s fu n d o im p lícito (v er p p . 1439-46 acim a), n o
se n tid o q u e a a u sên c ia d o c o rp o a ju d o u o s cristão s a e n te n d e re m algo
so b re o Je su s q u e a p a re c era . Q u a n d o o tú m u lo v a z io e n tro u explici-
ta m e n te n o re la to d a ressu rre iç ã o co m o u m a n a rra tiv a in d e p e n d e n -
te, o sig n ificad o d a d o a ela p e la s a p ariçõ es su b se q u e n te s d e Jesus foi
a n te c ip a d o e fez p a rte d a p ró p ria n a rra tiv a . Isto foi c o n seg u id o p e la
in se rç ão d e u m anjo in té rp re te q u e p ro c la m o u q u e Jesus ressu scitara
e n ã o e s ta v a m ais ali. U m d e se n v o lv im e n to u lte rio r se d e u q u a n d o a
n a rra tiv a d a v isita d a s m u lh e re s a o tú m u lo v a z io foi u n id o a o u , ao
m en o s, feito p a ra p re p a r a r p a ra a(s) n a rra tiv a (s) d a(s) ap arição (s) d e
Jesu s - o p o rta -v o z an g élico a g o ra tra n s m itiu u m a p ro m e ssa d e q u e
Jesu s seria v isto (p. ex., M c 16,7, p ro v a v e lm e n te u m a ad ição à form a
m a is a n tig a d a n a rra tiv a m arcan a).
O re la to d a v isita d a s m u lh e re s ao tú m u lo é p re se rv a d o e m João
n o s v s. 1-2 e 11-13. H á d u a s p o ssív e is m a n e ira s d e ex p licar esta sepa-
raç ã o d o s v ersícu lo s. P r i m e i r o , p o d e -se p ro p o r q u e João n o s d á d u a s
fo rm a s d o rela to , o s vs. 1-2 se n d o u m a fo rm a p rim itiv a e os vs. 11-13
s e n d o u m a fo rm a tru n c a d a p o ste rio r n a q u a l a v in d a a tu a l ao tú m u lo
foi in te rro m p id a p o r c a u sa d a se q u ên cia e m q u e o rela to foi colocado.
(C arece d e b a se p re s u m ir, co m o faz L oisy , p . 502, q u e 11-13 a p re se n ta
u m a fo rm a d o re la to e m q u e o tú m u lo foi e n c o n tra d o fechado). Se
a lg u é m aceita e sta p ro p o sta , os vs. 1-2 p re s e rv a ria m a fo rm a m ais an-
tig a d o re la to d o tú m u lo v a z io e n c o n tra d a e m to d o s ev an g elh o s. Sua
ú n ic a c aracterística n ã o p rim itiv a seria q u e o g ru p o o rig in a l d e m u lh e -
re s foi re d u z id o a M a d a le n a - e sta re d u ç ã o re d a c io n a l é u m ex em p lo
d a te n d ê n c ia jo a n in a d e in d iv id u a liz a r p a ra p ro p ó sito s d ram ático s,
1474 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

e se d e stin a ta m b é m a p r e p a ra r o c a m in h o p a ra a cristo fa n ia e m 1 4 1 8 ‫־‬.


N o s vs. 11-13, o re d a to r m u d o u o p ro p ó sito p a ra o q u a l o p o rta -v o z
angélico foi in tro d u z id o n o rela to d o tú m u lo v a z io (neste caso, d o is
anjos, u m a d u p lic a çã o q u e e m si m e sm a p o d e ser u m d e se n v o lv im e n -
to secu n d ário ). O s anjos n ã o in te rp re ta m o sig n ificad o d o tú m u lo va-
zio - isso é feito p e la cristo fan ia q u e se g u e - e o d iá lo g o e n tre M a ria
e os an jo s é m e ra m e n te u m a rep e tiç ã o d o v. 2 . T alv ez G rass , p . 5 5 ,
esteja c erto e m v e r u m a sp ec to a p o lo g é tic o n a p e rsiste n te ê n fa se so b re
o p e n s a m e n to d e M aria d e q u e o c o rp o fora ro u b a d o : q u a n d o e sta su -
g estão e ra feita p e lo s a d v e rsá rio s d a ressu rre içã o , os c ristã o s p o d ia m
aleg ar q u e eles m esm o s tin h a m p e n s a d o n e sta p o ssib ilid a d e , m a s n ã o
e ra p ro ce d e n te . A o faz e r q u e a cristo fan ia sirv a p a ra in te rp re ta r o tú -
m u lo v azio , João com eça u m p ro ce sso q u e c u lm in a n a E p i s t u l a A p o s -
t o l o r u m , 10, d o 2Ωséculo, o n d e a a n g e lo fan ia n o tú m u lo é in te ira m e n te
su b s titu íd a p o r u m a cristofania.
S e g u n d o , p o d e-se p ro p o r q u e João contém a p e n as u m a fo rm a d o re-
lato d a visita d e m u lh eres ao tú m u lo , visto q u e os vs. 1 e 11-13 iria m ori-
gin alm en te juntos. E ntão o v. 2 seria u m conectivo criad o p a ra p e rm itir
a inserção d a n a rra tiv a d a visita d e P ed ro ao tú m u lo (3-10). H artm ann ,
p. 197, objeta contra esta teoria com base e m q u e o v. 11 n ã o faz u m a b o a
sequência d ep o is d o v. 1; ele afirm a q u e a m era vista d o tú m u lo ab erto
n ão faz M ad alen a chorar. M as esta objeção tem p o u c a força, v isto q u e n a
p resen te sequência d e 1 e 2 a m era v ista d o tú m u lo a b erto leva M adale-
na a concluir q u e o corpo foi levado, d e m o d o q u e se p o d e tra ta r d e lógi-
ca ig u alm en te arriscada se o v. 2 o u o v. 11 seg u e o v. 1. U m a d ificu ld ad e
m ais g rav e d iz respeito ao fu n d am e n to lógico p o r d e trá s d a s u p o sta dis-
tribuição d e 1 e 11-13 a fim d e inserir 3-10. O e sq u em a d o c ap ítu lo seria
m eno s lógico se 3-10 tivessem seg u id o 1,11-13? M as p o d e-se co n jetu rar
q ue o re d a to r n ã o queria a visita d e M ad alen a ao tú m u lo a p o n to d e re-
m o v er d o relato d a aparição d e Jesus a ela em 14-18. A objeção m ais séria
a to d a esta tese está cen trad a n o v. 2 . Se esta é u m a c om posição liv re d o
red ato r, criad a p a ra p ro p ó sito s transicionais, p o r q u e o e stra n h o "n ó s"
n o v. 2 (ver nota)? Isso é m ais facilm ente explicável com o u m a rem inis-
cência d e u m relato original q u e m en cio n o u v árias m u lh eres.
P ara concluir, e n q u a n to a p rim e ira p ro p o sta d e q u e d u a s fo rm as
d o relato fo ram p rese rv ad a s parece com plexa, é m en o s q u estio n áv el d o
q u e a se g u n d a p ro p o sta, b a sea d a n a suposição d e q u e se te m desm em -
b ra d o u m a só fo rm a d o relato.
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1475

(B) U m relato d e q u e v ário s d iscíp u lo s (P edro, e m p articu lar) vi-


s ita ra m o tú m u lo d e p o is q u e o u v ira m a notícia d a s m u lh e re s e, en-
c o n tra n d o o tú m u lo v a z io , v o lta ra m confusos. C o m o tem o s n o tad o ,
h á tra ç o s d e s te re la to e m Lc 24,12 e 24. A n ã o in te rp o la ç ão o cid en tal
(p. 1435 acim a) e m 24,12 é o b v ia m e n te u m a a d ição à n a rra tiv a , m as
e m n o ssa o p in iã o u m a a d ição red a c io n a l, n ã o u m a in te rv en ç ã o ta rd ia
d e c o p is ta (J erem ias , EWJ, p p . 149-51, a d e fe n d e com o "o texto ori-
g in a l d e Lucas")· E m b o ra a lg u n s te n h a m p re s s u p o s to q u e Jo 20,3-10
e x p a n d iu a in fo rm a ç ã o e m Lc 24,12, B enoit , " M a r i e - M a d e l e i n e ", p . 143,
a rg u m e n ta c o n v in c e n te m e n te q u e a d e p e n d ê n c ia é n a d ireção opos-
ta. M u ito d a lin g u a g e m d e Lc 24,12 é d e estilo n ã o lu ca n o , e o red a -
to r p o d e ría tê-la e m p re s ta d o d e u m a fo rm a m ais a n tig a d a trad ição
jo a n in a (o n d e P e d ro foi m e n c io n ad o , e n ã o o D iscíp u lo A m ad o ). Se
isto fo r assim , e n tã o Lc 24,12 n ã o c o n stitu i u m a te ste m u n h a in d ep e n -
d e n te d o re la to d a v isita d o d isc íp u lo ao tú m u lo . O o u tro versículo,
Lc 24,24, é m a is im p o rta n te ; p o is e m b o ra a p a re ç a n o co n tex to d o re-
la to d e E m a ú s, ele é p a rte d e u m re su m o d e a co n tecim en to s p o sterio -
re s à re s s u rre iç ã o q u e p o d e m te r c h e g a d o a L ucas d e fo rm a parcial.
C e rta m e n te , o q u e ela d iz , "A lg u n s d o s q u e e sta v a m conosco fo ram
a o tú m u lo e o e n c o n tra ra m p re c isa m e n te c o m o as m u lh e re s d isseram ,
m a s n ã o v ira m Jesu s", é in d e p e n d e n te d o m ate ria l n o v. 12, " P e d ro
le v a n to u -s e e c o rre u ao tú m u lo ; e in clin o u -se e o lh o u p a ra d e n tro e
v iu o s len çó is p o sto s ali; e v o lto u p a ra casa in d a g a n d o "o q u e h av ia
a c o n te c id o ". D e v e ras, o v. 24 teria sid o p a rte d e Lc 24 a n te s q u e o
v. 12 fosse an e x ad o ; p o is o c o m p o sito r o rig in a l d o cap. 24 n ã o sabia
q u e " a lg u n s d o s q u e e sta v a m co n o sco " in clu ía S im ão P e d ro - ele d iz
q u e estes d isc íp u lo s q u e fo ra m ao tú m u lo n ã o v ira m Jesus, to d av ia
n o v. 34 ele d iz q u e o S en h o r a p a re c e u a Sim ão. V isto q u e n a d a h á n o
v. 24 q u e s u g ira q u e ele foi e m p re s ta d o d e João, este v ersícu lo consti-
tu i u m a te s te m u n h a in d e p e n d e n te d o re la to d e u m a v isita a o tú m u lo
v a z io feita p e lo s d iscíp u lo s. N o te m o s q u e , o n d e q u e r q u e tal relato
o co rre, s e m p re se g u e u m a referên cia à v isita d a s m u lh e re s a o tú m u lo .
P o rta n to , se falam o s d e d o is rela to s d e v isitas a o tú m u lo v azio , n ão
e sta m o s p e n s a n d o e m rela to s riv a is o u su b stitu to s; n a tra d içã o cris-
tã, o q u a n to p u d e rm o s rec u a r, a p rim a z ia n a d e sco b e rta d o tú m u lo
v a z io p e rte n c e à s m u lh e re s se g u id o ra s d e Jesus. Q u a n to à h isto ricid a-
d e d e u m a v isita a o tú m u lo , p e lo s d isc íp u lo s, a in d a q u e p u d é sse m o s
ter te s te m u n h a s in d e p e n d e n te s em Jo 20,3-10 e Lc 24,24, a m b a s são
1476 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

rela tiv a m e n te tard ias. T o d a v ia, a c e ita n d o o fato d e q u e as m u lh e re s


e n c o n tra ra m o tú m u lo v azio , m u i lo g ic a m e n te isso te ria p r o d u z id o
u m desejo e n tre os d isc íp u lo s d e v e re m p e sso a lm e n te.
A fo rm a jo an in a d o re la to so fre u c o n sid e rá v e l d e se n v o lv im e n to .
N a fo rm a p rim itiv a d o re la to fez d e P e d ro u m a fig u ra so litária? E sta
seria a im p licação ó bvia d a tese d e B enoit d e q u e Lc 24,12, o q u a l m en -
d o n a so m e n te P e d ro , foi e m p re s ta d o d e u m a fo rm a m a is a n tig a d a
tra d içã o jo an in a. T o d av ia, o re d a to r q u e in tro d u z iu Lc 24,12 p o d e te r
sim p lificad o , e m esm o n o e stá g io p rim itiv o d o re la to P e d ro p o d e ria
ter sid o a c o m p a n h a d o d o o u tro d isc íp u lo a n ô n im o . A p re se n ç a d e v á-
rio s d isc íp u lo s c o n c o rd a ria com Lc 24,24 q u e fala d e " a lg u n s d o s q u e
fo ram co n o sco ". A lém d o m ais, a o b serv ação p a re n té tic a e m Jo 20,9
p a rece s u p o r q u e h a v ia d iv e rso s d isc íp u lo s q u e v ira m e a in d a n ã o
e n te n d e ra m a im p licação d o tú m u lo v a z io (com o v e re m o s, o "ele s"
d o v. 9 d ificilm en te in clu ía o D iscíp u lo A m ad o ). E m q u a lq u e r caso,
a c o m p a n h ia h ip o té tic a d e P e d ro n a fo rm a o rig in a l d o re la to jo an i-
n o n ã o era im p o rta n te (e a ssim p ô d e ser n e g lig e n cia d o p o r Lc 24,12).
João, p o ré m , m u d o u o relato , id en tifica n d o -o co m o s e n d o o D isc íp u lo
A m a d o e d a n d o -lh e u m p a p e l m ais im p o rta n te ; ele co rre com P e d ro
ao tú m u lo ; ch eg a p rim e iro e o lh a p a ra d e n tro ; fin a lm e n te , a v ista d a s
ro u p a s fú n e b re s o leva a crer. (N ão significa q u e e x clu am o s a p o ssib i-
lid a d e d e q u e o a u to r jo an in o id en tifico u c o rre ta m e n te o c o m p a n h e i-
ro a n ô n im o d e P ed ro ; u m a a d ição ta rd ia n ã o te m q u e se r len d á ria ).
É esta in tro d u ç ã o d o D iscíp u lo A m a d o q u e te m c a u sa d o a s in co n -
sistên cias c a ta lo g a d a s acim a n a p . 1469. C o m o sa lie n ta m o s n a n o ta,
e n c o n tram o s v estíg io s d e in se rç ão n o v. 2: "o o u tro d isc íp u lo (aq u e le a
q u e m Jesu s a m a v a )"; e su g e rim o s q u e a m o d e sta d e sig n a ç ã o "o o u tro
d isc íp u lo " d e scre v ia o in co n sp íc u o c o m p a n h e iro d e P e d ro n a fo rm a
p rim itiv a d o relato. (Em 19,35 h á u m caso u m p o u c o p a ra le lo d a in tro -
d u ç ã o d o D iscíp u lo A m a d o e m u m a n a rra tiv a e m q u e o rig in a lm e n te
ele n ã o ap areceu ). O p a p e l d o D iscíp u lo A m a d o n o re la to d a v isita
d o d isc íp u lo a o tú m u lo é fu n c io n a lm e n te a m e sm a q u e o p a p e l d o in-
té rp re te an g élico n o re la to d a v isita d a s m u lh e re s ao tú m u lo , a sa b er,
ele é a q u e le q u e in d ica o q u e significa o tú m u lo v a z io , p o is ele v ê as
ro u p a s fú n eb re s e crê n o Jesus re ssu rre to . N a fo rm a o rig in a l d o rela to ,
P e d ro e se u c o m p a n h e iro n ã o c h e g am a c re r p o rq u e n ã o e n te n d e m
a in d a a E scritu ra em q u e se p re d iz q u e re ssu sc ita ria d e n tre o s m o rto s.
(Se a ex p licação p a re n té tic a n o v. 9 e ra o u n ã o p a rte d o re la to o rig in al,
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1477

ela in te rp re ta c o rretam en te a im plicação d a q u e le relato e ap aren tem en -


te foi a n e x a d o a n te s d a fig u ra d o D iscípulo A m a d o ser in tro d u zid a).
E a ssim , se e sta m o s certo s em p ro p o r a existência d e d o is relato s
c ristã o s so b re as v isita s a o tú m u lo , u m p e la s m u lh e re s e a o u tro pelos
d isc íp u lo s, p a re c e ría q u e e m s u a fo rm a m ais a n tig a n e n h u m relato
a le g o u q u e u m a v isita a o tú m u lo p r o d u z iu fé n o Jesus ressu rre to . In-
c id e n ta lm e n te , isso to rn a im p ro v á v e l q u e a m b o s fo ssem in v en ta d o s
m e ra m e n te p a ra p ro p ó sito s ap o lo g ético s. O fo rte ele m en to apologé-
tico a p a re c e n a s in serçõ es p o ste rio re s (o in té rp re te an g élico e o Disci-
p u lo A m a d o , resp e c tiv a m e n te).

(C) U m re la to d e u m a a p a riçã o d e Jesus a M aria M ad alen a. T raços


d e ste rela to só são e n c o n tra d o s e m te ste m u n h a s evangélicas relativa-
m e n te tard ias: Jo 20,14-18; M t 28,9-10; e o A p ê n d ic e M arcan o (16,9-11).
E ste fato lan ç a d ú v id a so b re se o relato re p re se n ta u m a trad ição p ri-
m itiv a . N ã o o b sta n te , a n te s d e tra ta rm o s d o s trê s relato s, p o d e v aler a
p e n a e v o c ar q u e n o ú ltim o século u m cético com o Renan d esse im p o r-
tân c ia e p rio rid a d e a este relato . Renan ale g o u q u e a v isão alucinató-
ria q u e M a d a le n a tev e e n q u a n to ch o ra v a in co n so lav elm en te p o r seu
a m a d o ju n to ao tú m u lo c o n stitu ía a fag u lh a rea l p a ra a fé cristã n a res-
su rreição . S eu a m o r fez o q u e a rg u m e n to lógico jam ais p o d e ría fazer:
ele ressu sc ito u Jesus. E assim foi a p a ix ã o d e u m a m u lh e r p e rtu rb a d a
(Lc 8,2) q u e d e u ao m u n d o u m S en h o r ressuscitado! N a v e rd a d e , u m a
ex plicação d ig n a d o ro m a n tic ism o francês d o século d ezen o v e.
P r i m e i r o , a n a rra tiv a em M t 28,9-10. Q u a n d o as m u lh e res saem
a p re s s a d a m e n te d o tú m u lo p a ra a n u n c ia r aos d iscíp u lo s o q u e elas ou-
v ira m e v ira m , Jesus as en co n tra e diz: "A legrai-vos!" C o rreram , abra-
ç a ra m seu s p é s e o a d o ra ra m . E ntão Jesus lhes diz: "N ã o tem ais. Ide e
a n u n c ia i a m e u s irm ão s q u e se d irijam p a ra a G alileia, e lá m e verão".
(A referên cia a "irm ã o s" é o ún ico v o cab u lário significativo paralelo
e n tre M a te u s e João). H á u m p ro b le m a so b re o contexto n o q u a l M a-
te u s coloca o relato. D epois d a orientação angélica às m u lh e res n o v. 7,
q u e d issessem aos d iscíp u lo s q u e fossem p a ra a G alileia o n d e v eríam
Jesus, n in g u é m teria e sp e ra d o u m a ap arição im e d ia ta d e Jesus. E o que
o Jesu s re ssu rre to d iz às m u lh e res sim p lesm en te reitera o q u e o anjo já
lh es dissera. Q u a n d o ad icio n am o s a estas d ificu ld ad es o fato d e q u e o
v. 8 e m M a te u s d ificilm ente p o d e ría ser v in cu la d o d ire tam e n te ao v. 11,
se to rn a raz o á v e l p re s s u p o r q u e a cristofania em 9-10 é u m a inserção
1478 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

p o sterio r à n arrativ a. E m bora com entaristas d o E van g elh o d e M ateu s


tais com o W . C. A llen e A. Plummer p e n sem q u e p o d e ría ter h a v id o u m a
aparição às m u lh eres n a conclusão p e rd id a d e M arcos, a m aio ria d o s
exegetas ju lg aria q u e M ateus n ão está reco rren d o a M arcos aq u i. Q u e o
núcleo d a inserção m ate an a teve su a o rig em e m trad ição in d e p e n d e n te ,
e n ão n a im aginação d o evangelista, é su g e rid o p e la e stra n h ez a d a p re-
sente sequência (vênia a N eirynck, p p . 182-84, q u e m a n té m q u e M a te u s
criou o relato p a ra p re p a ra r a ap arição aos d iscíp u lo s n a G alüeia).
S e g u n d o , a n a rra tiv a n o A p ê n d ic e M arc a n o ( 1 6 ,9 - 1 1 ). O re la to é
breve: "E Jesus, te n d o re ssu sc ita d o n a m a n h ã d o p rim e iro d ia d a s e m a -
n a , a p a re c e u p rim e ira m e n te a M a r i a M a d a l e n a , d a q u a l tin h a e x p u lsa -
d o sete d e m ô n i o s . E, p a rtin d o ela a n u n c io u -o à q u e le s q u e tin h a m esta-
d o co m ele, os q u a is e sta v a m tristes, e c h o ra n d o . E, o u v in d o eles q u e
v iv ia, e q u e tin h a sid o v isto p o r ela, n ã o o c re ra m ". E m b o ra o a u to r d o
A p ê n d ic e a lg u m a s v e z e s re c o rra ao s e v a n g elh o s c a n ô n ico s e m b u sc a
d e se u m a te ria l, a q u i ele n ã o p a re c e ser d e p e n d e n te d e M a te u s o u d e
João. A ú n ic a coisa q u e ele te m e m c o m u m com Jo 2 0 são a s p o u c a s
p a la v ra s q u e tem o s d e sta c a d o , e ele te m a in d a m e n o s em c o m u m co m
o rela to d e M a te u s d a a p a riçã o às m u lh e re s. (O A p ê n d ic e M a rc a n o
re c o rd a ria e m to d o caso n e ste s trê s v e rsíc u lo s a s p a ssa g e n s d e Lc 8 ,2 e
2 4 ,1 1 ). D odd , " A p p e a r a n c e s " , p . 3 3 , é q u a se certo e m c o n c lu ir q u e a q u i
o A p ê n d ic e M arc a n o é d e p e n d e n te d e u m a tra d iç ã o n ã o p re s e rv a d a
n o s e v a n g elh o s canônicos.
F i n a l m e n t e , a n a rra tiv a e m Jo 20,13-18. Se n o ssas ob serv açõ es an-
teriores são corretas, este relato m ais longo e m ais significativo cons-
titu i u m a terceira fo rm a in d e p e n d e n te d o relato d e u m a cristofania a
M aria M ad alen a. P o rtan to , a d e sp eito d e ser tard io essas teste m u n h a s,
som o s in clin ad o s a crer q u e a tra d içã o d a ap arição a M a d ale n a p o d e -
ria ser antiga. A au sên cia d e seu n o m e n a s listas d e aparições, citad as
p elos p rim eiro s p reg a d o re s, n a v e rd a d e n ã o su rp re e n d e (ver p . 1437
acim a). U m a rg u m e n to em favor d a a n tig u id a d e é a p rim a z ia q u e to d o s
os ev an g elh o s d ã o a ela e n tre as m u lh e res se g u id o ra s d e Jesus, se m p re
q u e são listadas; isso p o d e b e m ser p o rq u e ela foi a p rim e ira a v e r o Je-
su s ressu rreto . P o rtan to , p e n sam o s q u e João e o A p ê n d ic e M arcan o são
m ais co rreto s q u e M ateu s e m fazê-la a ú n ica te ste m u n h a d a cristofania.
Se João sim plificou o relato d a s m u lh e res in d o ao tú m u lo , m en cio n an -
d o so m en te M ad alen a, M ateu s co m plicou a cristofania, rela cio n a n d o
-a estreitam en te d em ais com a visita d a s m u lh e res ao tú m u lo e assim
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1479

fa z e n d o " a o u tra M aria", tan to q u a n to M a d alen a (M t 28,1), testem u-


n h a s. E m n o sso juízo, a tese d e N eirynck (.art. c i t . ) d e q u e João to m o u o
rela to d e M a te u s (que a in v en to u ) n ã o faz justiça às diferenças d e voca-
b u lá rio e o s d e ta lh e s e n tre os d o is relato s o u à a p a re n te in d ep en d ên cia
d a referên cia a esta ap arição n o A p ên d ice M arcano.
T al c o m o a p a re c e a g o ra o re la to e m Jo 20,14-18, p a s s o u p o r certo
d e s e n v o lv im e n to . A n e c e s s id a d e d e re la c io n a r a c risto fa n ia a o q u e
p re c e d e ex p lica o v. 14a: "E, te n d o d ito isto , v o lto u -se p a ra trá s".
O a to d e v o lv e r-se p a r a Je su s é to m a d o d o v. 16 a o q u a l p e rte n c e
(v e r n o ta so b re 16). Se n o s a te rm o s ao e s q u e m a q u e D odd d e te c to u
n a s N a rra tiv a s C o n c isa s d a s A p a riç õ e s (p p . 1439-43 acim a), p o d e -
m o s, p la u s iv e lm e n te , iso la r n a n a rra tiv a d e Jo ão estes e le m e n to s ori-
g in ais: M a d a le n a se n tiu -se d e sc o n so la d a p o rq u e cria q u e o co rp o
fo ra le v a d o d a li; Je su s lh e a p a re c e u , e q u a n d o lh e falo u ela o re-
c o n h e c e u ; ele lh e falo u q u e fo sse te r com se u s irm ã o s e ela o fez.
E sse p a d r ã o p o d e se r c o n firm a d o e m g ra n d e m e d id a à lu z d a s ou -
tra s fo rm a s d o re la to e m M a te u s e n o A p ê n d ic e M a rc a n o . S eu a to
d e a b ra ç a r s e u s p é s (cf. M t 28,9), s u g e rid o e m " N ã o m e d e te n h a s "
d e Jo ão , p o d e ta m b é m te r sid o p a rte d o re la to o rig in a l. A m b o s, o
te m p o e o lo cal d a a p a riç ã o , p o d e ría m te r s id o m e n c io n a d o s: n a m a-
n h ã p a s c a l, n a s p ro x im id a d e s d o tú m u lo . E m q u a lq u e r caso, com
re s p e ito à lo ca liz a ç ão q u e João d á d a a p a riç ã o ju n to a o tú m u lo e a
lo ca liz a ç ã o q u e M a te u s d á d e p o is q u e a s m u lh e re s d e ix a ra m o tú -
m u lo c o m o u m a v a ria n te se m im p o rtâ n c ia (c o m p a re as v ariaçõ es
n o re la to d o m ila g re q u e m e n c io n a C a fa rn a u m , s a lie n ta d a n o vol. 1,
p . 412). N a fo rm a m a is b re v e q u e M a te u s d á d o rela to , a s p a la v ra s
d e J e su s a M a d a le n a fo ra m s u b s titu íd a s , re ite ra n d o a s p a la v ra s d o
an jo ; m a s o J e su s jo a n in o te m u m im p o rta n te c o m e n tá rio a faz e r so-
b re o sig n ific a d o d a re s s u rre iç ã o e s u a s im p lic a ç õ es p a r a o s d isc íp u -
lo s (v er a b a ix o , p p . 1488-96). T a lv ez o re la to o rig in a l n ã o c o n tiv e sse
p a la v r a s sig n ific a tiv a s d e Jesu s, fato e ste q u e fo rç o u o e v a n g e lista a
p re e n c h e r c o m o p e n s a v a se r m e lh o r. E d ifícil ju lg a r a p ro c e d ê n c ia
d a in fo rm a ç ã o d e q u e M a d a le n a to m o u e q u iv o c a d a m e n te Jesu s p e lo
ja rd in e iro (v er n o ta). S o m o s in c lin a d o s a c o n sid e rá -la co m o d ra m a ti-
z a ç ã o jo a n in a ; m a s n ã o q u e re m o s d e s c a rta r s u m a ria m e n te a afirm a-
ção d e D odd ( " A p p e a r a n c e s " , p . 20) d e q u e h á " alg o in d e fin id a m e n te
d e p r im e ir a m ã o " so b re a n a rra tiv a jo a n in a d a a p a riç ã o e q u e p ó d e
te r v in d a d e u m a fo n te o rig in a l a tra v é s d e a lg u m c a n a l fo rte m e n te
1480 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

in d iv id u a liz a d o . É in te re s s a n te q u e D odd, T r a d i t i o n , p . 149, ju lg u e


a fo rm a jo a n in a d o re la to e stá m e lh o r p r e s e r v a d a d o q u e a fo rm a
m a te a n a m a is b rev e .
E m s u m a , p o rta n to , u m ju ízo q u a lific a d o so b re a a n tig u id a d e d o
c o n te ú d o d e Jo 20,14-18 é p re fe rív e l à tese d e Bultmann d e q u e a es-
tra n h a a n g e lo fan ia d o s vs. 11-13 v e io a João d e s u a fo n te, m a s 14-18
é u m a liv re criação d o ev an g elista. P e n sa m o s q u e o s v s. 11-13 co m o
u m a fo rm a ta rd ia d o rela to d a v isita d a s m u lh e re s a o tú m u lo v a z io ,
u m a fo rm a q u e é e stra n h a p re c isa m e n te p o rq u e foi p ro fu n d a m e n te
ree la b o ra d a p a ra se rv ir d e c o n ectiv o e n tre o s d o is re la to s e m o u tro
tem p o in d e p e n d e n te s q u e su b ja z e m n o s vs. 3-10 e 14-18.

COMENTÁRIO: DETALHADO

T en d o já tra ta d o d a e s tru tu ra e d e se n v o lv im e n to d a s p rin c ip a is p a s-


sag en s e m 20,1-18, a q u i n o s lim ita re m o s à significação e sp ec ial q u e
João tem d a d o a a lg u n s d e ta lh e s n a s n a rra tiv a s.

O p a p e l d o d is c íp u lo a m a d o e m 2 0 ,3 - 1 0 e m re la ç ã o a P e d r o

T em os su g e rid o q u e o relato d a v isita d o s d iscíp u lo s ao tú m u lo ter-


m in o u o rig in alm en te n a d eso rien tação deles a n te a au sên cia d o co rp o
d e Jesus e q u e João in tro d u z iu o D iscípulo A m a d o p a ra q u e s u a v in d a
à fé in terp retasse a significação d o tú m u lo vazio. E sta in tro d u ç ã o te m o
efeito secu n d ário d e c o n tra sta r o D iscípulo A m a d o com P e d ro q u e v ê a
m esm a evidência, p o ré m n ã o chega à crer. Isto n ã o se d e v e à d u re z a d o
coração d e P ed ro ; antes, a fé é p o ssív el p a ra o D iscípulo A m a d o p o rq u e
ele se to rn a ra m u ito sensível p a ra c o m Jesus a tra v és d o am o r. (P ara ser
p reciso, e n q u a n to o ev an g elh o enfatiza o a m o r d e Jesus p e lo D iscípu-
lo, som o s lev ad o s a p re ssu p o r q u e este a m o r era recíproco - d e o u tro
m o d o , o D iscípulo dificilm ente h a v e ría a d q u irid o ta n ta im p o rtâ n c ia n o
p e n sam e n to joanino, e m q u e se exige q u e o a m o r seja m ú tu o ).
M u ito s c o m e n ta rista s n ã o v e e m n e n h u m c o n tra ste , p o is ac re d i-
tam q u e o a u to r jo an in o tin h a e m v ista q u e P e d ro p o s s u ía a m e sm a
convicção d o D iscíp u lo A m a d o . Bultmann, p . 530, p o r e x e m p lo , a rg u -
m e n ta q u e d e o u tra m a n e ira o e v a n g elista teria d ito esp ecificam en -
te q u e P e d ro n ã o c re u (assim ta m b é m W illiam, a r t . c i t . ) . T o d a v ia, tal
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1481

esp ecificação só te ria sid o n e c essá ria se o a u to r q u ise sse o co n traste


p a ra d e n e g rir P e d ro . O p ro p ó sito d o a u to r n ã o é d e n e g rir P e d ro , e sim
e x a lta r o s ta tu s d o D iscíp u lo A m a d o . C o m o tem o s c o n stru íd o o relato
o rig in a l a cim a, P e d ro (e s e u c o m p a n h e iro ) n ã o c h e g a ra m a crer. Se o
a u to r q u ise sse m u d a r o relato , d e m o d o q u e P e d ro n ã o c h e g o u a crer,
ele n ã o te ria tid o m o tiv o d e in tro d u z ir o D iscíp u lo A m a d o . "E le v iu
e c re u " se refe re so m e n te ao D iscíp u lo A m a d o . A ch am o s u m estreito
p a ra le lo e m 21,4.7: q u a n d o Jesu s se p õ e à m a rg e m d o M a r d e Tibe-
ría d e s , o D iscíp u lo A m a d o é o p rim e iro a reconhecê-lo, e é ele q u e m
in fo rm a a P ed ro : "É o S en h o r". A lição p a ra o leito r é q u e o a m o r p o r
Je su s d á a p e s so a a p e rc e p ç ã o d e p e rc e b e r s u a p rese n ç a . O D iscípulo
A m a d o , a q u i c o m o e m o u tro o s e g u id o r id ea l d e Jesus, estabelece u m
e x e m p lo p a r a to d o s o s d e m a is q u e o seg u issem .
D e m o d o q u a se p a re n tético , c o m e n taríam o s so b re o tip o d e fé exi-
b id a p e lo D iscíp u lo A m a d o ju n to ao tú m u lo . É co m u m (p. ex., Bernard,
II, 661) v e r e m s u a fé u m a a n tecip ação d ra m á tic a d o q u e Jesus d irá a
T o m é e m 20,29b: " B e m -a v e n tu rad o s os q u e n ã o v ira m e, n o en tan to ,
tê m c rid o " - o D iscíp u lo A m a d o c re u n o Jesus re ssu rre to sem tê-lo
v isto . W . J. M oulton, ET 12 (1900-01), 382, tem id o lo n g e d em ais ao
s u g e rir q u e Jesu s o lh a v a p a ra o D iscíp u lo A m a d o e n q u a n to d izia essas
p a la v ra s. A lg u n s a d a p ta m este elogio ao D iscíp u lo A m a d o à su a tese
d e q u e o p ro p ó s ito re a l d o a u to r jo an in o e ra ree n fa tiza r as aparições
d e Jesu s e d e p re c ia r a fé q u e p ro c e d ia d e tais aparições. Q u estio n am o s
a v a lid a d e d e to d a e sta lin h a exegética. A o e s tu d a r 20,29 (p p . 1535-39
abaixo) te n ta re m o s d e m o n s tra r q u e o elogio d o s q u e creem sem ter
v isto Jesu s d e m o d o a lg u m im p lica u m a b e m -a v e n tu ra n ç a m e n o r do s
q u e tê m v isto e tê m crido. A q u i, p o r m ais crucial q u e seja, neg am o s
q u e o D iscíp u lo A m a d o estiv esse in clu íd o n o m acarism o d e 29b. N a
v e rd a d e , ele c re u se m te r v isto o Jesus ressu rre to ; m a s c re u so b re a base
d o q u e v iu n o tú m u lo , n ã o so b re a b a se d e o u v ir, com o os v isu alizad o s
e m 29b. O fato d e q u e o v. 8 a firm a c laram en te "E le v iu e c re u " faria
óbv io q u e ele n ã o é u m d o s " q u e n ã o v ira m e, to d av ia, creram ". (De fato,
O. C ullmann, S a l v a t i o n i n H i s t o r y [N ova York: H a rp e r, 1967], p . 273,
ev o ca e ste in c id e n te co m o p ro v a d e q u e em João fé se relacio n a intim a-
m e n te co m v e r, m a s q u e esse v e r so z in h o n ão p ro d u z fé: "A m b o s os
asp ecto s, a te s te m u n h a o cu lar e a in te rp re ta ç ã o d a fé, são en fatizad o s
e m s u a c o n e x ã o e d i s t i n ç ã o n ecessárias"). A qui, a lição é a d o p o d e r d o
a m o r e n ã o te m n a d a a v e r com o v a lo r relativ o d a s ap ariçõ es d e Jesus.
1482 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

V o ltan d o ao co n tra ste im p lícito com P e d ro , p e rg u n ta ría m o s se


este co n traste se m a n tê m p o r to d a a n a rra tiv a ; p o r ex em p lo , n o fato
d e q u e ele co rre m ais q u e P e d ro e, n o e n ta n to , P e d ro e n tra p rim e i-
ro. A q u e stã o d e ste co n tra ste tam b é m e n tra rá em n o sso c o m e n tário
so b re o cap. 21. Infelizm ente, m u ito d o q u e foi escrito so b re o te m a
leva a m arca d o d e b a te e n tre cató lico -ro m an o s e o re sta n te d o cristia-
n ism o so b re a p rim a z ia d e P e d ro e d e se u s su cesso res n a Sé R o m an a.
P o r ex em p lo , e stu d io so s católicos a m iú d e tê m a rg u m e n ta d o q u e , ao
e sp e ra r e p e rm itir q u e P e d ro e n tre n o tú m u lo p rim e iro , o D iscíp u lo
A m a d o e sta v a m o stra n d o d eferên cia ao líd e r d o s d o z e (e assim , taci-
tam en te, rec o n h e c eu a su p re m a cia p a p a l). E m c o n tra p a rtid a , a lg u n s
a n ti-ro m an istas têm e n c o n trad o n o a u to r jo an in o u m a a lm a co n g ên ere,
ao im a g in a re m q u e ele e stá e x a ltan d o o D iscíp u lo A m a d o c o m o p a rte
d e u m p ro te sto p rim itiv o c o n tra as reiv in d icaçõ es p e trin a s; p o r exem -
p io , ao fazer d o D iscípulo A m a d o o p rim e iro cren te, e n q u a n to P e d ro
p erm a n ec e n a ign o rân cia. (A lg u m as v ezes, in co n siste n te m e n te , e sta
c o n te n d a é a c o m p a n h a d a d o a rg u m e n to d e q u e, e m q u a lq u e r caso,
P e d ro n ã o tin h a p o sição especial e n tre os d o ze, co m o se o a u to r jo an i-
n o g astasse s e u te m p o c o n d u z in d o u m a p o lêm ica c o n tra u m h o m e m
o u u m sím bolo q u e tin h a im p o rtân cia). O u tro s in té rp re te s n ã o p erce-
b e m a riv a lid a d e em term o s d a q u e stã o p a p a l (a q u a l seria an acrô n ica),
m as e m term o s d e u m a q u e stã o in te rn a n a c o m u n id a d e jo an in a. Loisy,
p . 500, aleg a q u e P e d ro e n tro u n o tú m u lo p rim e iro co m o o re p re se n -
ta n te d a c o m u n id a d e ju d aica, e n q u a n to o D iscíp u lo A m a d o e n tro u p o r
ú ltim o co m o re p re se n ta n te d o cristian ism o g en tü ico d o ta d a d e u m a
v isão m ais p ro fu n d a (assim tam b ém , com m odificações, Bultmann,
p. 531). A in d a o u tro s p e n sa m e m P e d ro com o re p re se n ta n te d o cristia-
n ism o carn al (q u e n ã o se v ê c la ram e n te e m q u e consiste) e o D iscíp u lo
A m a d o co m o re p re se n ta n te d o cristian ism o e sp iritu a l. E m n o sso juízo,
to d as estas in terp retaçõ es en fatizam o co n traste a lém d o q u e o e scrito r
ten cio n av a. L em b ram o s q u e P e d ro e sta v a n a fo rm a o rig in a l d o relato;
e assim , e n q u a n to a in tro d u ç ã o d o D iscíp u lo A m a d o in ev ita v e lm e n te
crio u u m c o n traste, e m certa m e d id a esse c o n tra ste é a c id e n ta l e difi-
cilm en te é u m asp ecto m ais im p o rta n te d a p o lêm ica jo an in a. A lém d o
m ais, p a ra ser preciso, o D iscíp u lo A m a d o é p o sto n a c o m p a n h ia d e
P e d ro e n ã o é riv a l dele. A liás, p o r to d o o e v a n g elh o P e d ro e o Dis-
cíp u lo A m a d o são re tra ta d o s co m o am ig o s e n ã o co m o riv a is (vol. 1,
p . 97s). N a ú ltim a ceia, o D iscíp u lo A m a d o recebe sin ais d e P e d ro e
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1483

tra n s m ite a Jesu s a p e rg u n ta d e P e d ro (13,23-25). Se o D iscípulo A m ad o


é a fig u ra a n ô n im a e m 18,15-16, ele se d á ao tra b a lh o d e g ran jear p a ra
P e d ro a d m issã o n o p alácio d o su m o sacerdote. E e m 21,7 encontrare-
m o s o s d o is h o m e n s ju n to s p esca n d o . E n tão n o s escritos jo an in o s n ão
id en tifica m o s n e n h u m a a titu d e d e p re c ia tiv a a P edro; d e fato 21,15-17
p re s ta g ra n d e trib u to d e fazê-lo p a sto r d a s o velhas, p a p e l q u e o cap. 10
d á a o p ró p rio Jesus. M as P e d ro n ã o é o h e ró i p re fe rid o d o a u to r joanino.
O D iscíp u lo A m a d o tem esse p a p e l; e o a u to r to m a especial interes-
se e m m o s tra r a "p rim a z ia d o a m o r" d o D iscíp u lo A m a d o (assim M.
G oguel, H T R 25 [1932], 11). Q u a n to aos in cid en tes e m 20,3-10, a corrida
d o s d o is d isc íp u lo s ao tú m u lo é u m a ex p ressão d e su a p reo cu p ação em
a te n ta r p a ra a n otícia d e M ad alen a; tal p reo c u p a ç ão tan g e o a m o r tão
n a tu ra lm e n te q u e o D iscípulo A m a d o u ltra p a ssa P e d ro - ele a m a m ais
a Jesus. N ã o p o d e m o s excluir a p o ssib ilid a d e d e q u e h o u v esse algu-
m a d eferên cia p a ra com a m em ó ria d e P e d ro (p resu m iv elm en te, m o rto
q u a n d o o e v a n g elh o foi escrito) e m p e rm itir-lh e q u e e n tra sse p rim ei-
ro n o tú m u lo ; p o ré m , m ais p ro v av e lm e n te o a u to r quisesse o rg an izar
a cen a d e u m a m an e ira d ram á tic a, a tra z a n d o a e n tra d a d o D iscípulo
A m a d o , d e m o d o q u e seu v e r e crer viessem com o u m clím ax. N ão
v e m o s b a se p a ra to d as as in te rp re ta ç õ e s p o lêm icas e sim bólicas; o au-
to r e stá sim p lesm en te n o s in fo rm a n d o q u e o d iscíp u lo m ais ín tim o d e
Jesu s e m a m o r e ra o m ais ágil e m o lh ar p a ra ele e o p rim e iro a crer nele.

O que 0 d is c íp u lo a m a d o v iu : a s r o u p a s fú n e b r e s (20,5-7)

O D iscípulo A m a d o foi lev ad o a crer v e n d o os lençóis fúnebres de


Jesus jaz e n d o o n d e o co rp o estivera e o p ed a ço d e ro u p a q u e cobrira a
cabeça ( s o u d a r i o n ) , n ã o jazen d o com o s lençóis, m as en ro lad o s em u m
lu g a r p o r si p ró p rio s. P o r quê? T êm -se p ro p o sto dois tip o s d e solução.
P r i m e i r o , a m aio ria d o s e stu d io so s p e n sam q u e a p ró p ria presen ça das
ro u p a s fú n eb res n o tú m u lo lev o u o D iscípulo A m a d o a concluir que
o co rp o n ã o fo ra ro u b ad o . L adrões d e tú m u lo s n ã o teriam tido tem po
d e d e sen ro lar o corpo, e assim se d a d o ao trab alh o d e carregar u m ca-
d á v e r d u ro e n u , d e u m lad o p a ra ou tro . Esta é u m a explicação antiga.
G rass, p . 55, cita u m frag m en to apócrifo cóptico n o q u a l Pilatos é cham a-
d o p e la s a u to rid a d e s ju d aicas a v e r o tú m u lo d e o n d e o corpo d e Jesus
fora lev ad o , m as q u a n d o Pilatos v ê o s lençóis fúnebres, o bserva que, se
h o u v e sse sid o ro u b a d o o co rp o ig u alm en te o s lençóis seriam roubados.
1484 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

C risóstomo, I n Jo. H o m . 85,4; PG 59:465, fo rm u la b e m o a rg u m e n to :


"Se a lg u é m re m o v e ra o co rp o , esse n ã o o te ria d e s p id o p rim e iro ; n e m
teria tid o o tra b a lh o d e re m o v e r e e n ro la r o s o u d a r i o n e p ô -lo e m u m
lu g a r so zin h o ".
S e g u n d o , u m g r u p o m e n o r d e e stu d io so s o p in a m q u e foi a p o si-
ção o u a fo rm a d a s ro u p a s , e n ã o s u a m e ra p rese n ç a , q u e le v o u o D is-
cíp u lo A m a d o à fé. O s q u e s u s te n ta m e ste p o n to d e v ista tra d u z e m as
p a la v ras-c h av e s d a d escrição jo an in a e m te rm o s d ife re n te s (cf. n o ta s
so b re os vs. 5 e 7), m a s to d a s essa s tra d u ç õ e s su g e re m q u e Je su s d e
tal m o d o se d e s p re n d e u d e se u s lençóis fú n e b re s q u e fico u ó b v io q u e
as ro u p a s n ã o fo ra m m e ra m e n te tira d a s dele. (O p o n to d e v ista d e
q u e o c o rp o re s su rre to d e Jesus p a s so u a tra v é s d e s u a s r o u p a s fú n e-
b res d e u m a m a n e ira v o látil re c u a ao m e n o s a té o escrito r d o 5a sécu-
lo, A mmonius d e A lex an d ria). B alagué p e n s a q u e o s lençóis fú n e b re s
( o t h o n i a ) fo ra m se p a ra d o s e e ste n d id o s h o riz o n ta lm e n te , o s o u d a r i o n
foi en ro lad o o n d e a cabeça estivera e tu d o m ais foi coberto p elo s i n d õ n
m en c io n ad o n o s rela to s sinóticos, d e m o d o q u e as v e ste s p re s e rv a -
ra m as lin h a s irre g u la re s d a p o sição a n te rio r d o ca d áv e r. Isto le v o u o
D iscípulo A m a d o a p e rc e b e r q u e Jesus sim p le sm e n te p a s sa ra a tra v é s
d e su a s ro u p a s d e ix a n d o -as p a ra trás. A uer, o p . c i t . , d e d ic a to d o u m
livro, ilu s tra d o p o r d e sen h o s, p a ra p ro p o r a tese d e q u e a s b a n d a g e n s
( o t h o n i a ) , im p re g n a d a s com o óleo a ro m á tic o d e 19,40, p e rm a n e c e ra m
rig id a m e n te e retas d e p o is q u e o c o rp o as a tra v e sso u , q u a se co m o se
d e a lg u m a fo rm a a lg u é m d e sliz asse u m c o rp o d e s u a s faixas m ú m ic a s
e p re se rv a sse a fo rm a c o rp ó re a n a s faixas. A lém d o m ais, o s o u d a r i o n
(= s i n d õ n ) , u m a ro u p a g ra n d e q u e e n v o lv ia to d o o c o rp o d e n t r o d a s
b a n d a g e n s, a g o ra e sta v a c u id a d o s a m e n te e n ro la d o e m u m c a n to d o
lad o e s q u e rd o d o tú m u lo . P a ra v a ria çõ e s u lte rio re s d e s ta tese, v e r os
artig o s d e W illiam e L avergne; ta m b é m W . M cC lellan, CB Q 1 (1939),
253-55. T o d as estas a b o rd a g e n s são b a se a d a s n o q u e está, e m s u a m a io r
p a rte , im p lícito e m Jo 20,19, a sab er, q u e o c o rp o re s s u rre to d e Jesus
tin h a o p o d e r d e a tra v e ssa r objetos sólidos. Se o e scrito r jo a n in o d es-
crev eu a p o sição d a s ro u p a s fú n e b re s a p o n to d e d e ix a r im p líc ito q u e
o co rp o d e Jesu s as a tra v e sso u e as d e ix o u in ta ta s, te ria ele e sp e ra d o
tan to p a ra d e p o is in sin u a r su tilm e n te u m p o d e r tão in e sp e ra d o ? A lém
d o m ais, u m a tra d u ç ã o co m o a n o ssa, n a q u a l o s o u d a r i o n n ã o e stá com
as o u tra s faixas, m ilita c o n tra tal teo ria - Jesu s teria a tra v e s s a d o to d a s
as ro u p a s fú n e b re s ao m e sm o tem p o , d e ix a n d o -a s e m u m só lu g ar.
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1485

F in a lm en te , e ssa teo ria exige q u e P e d ro tam b é m p a ssa sse a crer; p o is


se a p o siç ã o d a s r o u p a s p re s e rv o u m ira c u lo sa m e n te a im a g e m o u lo-
calização d o co rp o , d ificilm en te P e d ro te ria p e rd id o a im p o rtân cia.
T o d a v ia, Lc 24,12 re g istra q u e P e d ro " v iu os lençóis co lo cad o s à p a rte ,
e v o lto u p a ra casa in d a g a n d o o q u e tin h a a co n tecid o ".
P o r cau sa d estas dificuldades, parece preferível aceitar a prim eira
teoria e n ã o a trib u ir q u a lq u e r im p o rtân cia especial à posição o u form a
d a s ro u p a s fúnebres. Se estas vestes fig u rad as n a form a prim itiva pré-
evangélicas d o relato, su a presen ça só p o d ia ter sido incidental, com o em
Lc 24,12 - com o p a rte do s detalhes q u e são d e se esp erar em u m relato
q u e trata d e ex p o r a m aterialid ad e do s fatos. M as q u a n d o o D iscípulo
A m a d o foi in tro d u z id o n o relato, o a u to r joanino p õ e em d estaq u e a pre-
sença d a s v estes fú nebres com o u m a explicação d o q u e levou o D iscípulo
A m a d o a crer. N ão estam os certos se o a u to r tam b ém tinha u m propósito
teológico em m encioná-las, a saber, foram deixadas p a ra trás sim bolizan-
d o q u e Jesus n ã o as u saria o u tra vez. "S endo C risto ressuscitado dentre
os m o rto s, jam ais m o rrerá o u tra vez" (Rm 6,9). L em bram os a sugestão de
q u e L ázaro e m e rg iu d o tú m u lo ain d a envolto em suas ro u p as fúnebres
p a ra sim bolizar q u e ele h avia d e m o rre r o u tra v ez (nota sobre 11,44).

M a r ia M a d a le n a reco n h e c e J esu s (20,15-16)

Jo ão d e d ic a g ra n d e p a rte d a n a rra tiv a cristo fan ia ao fato d e M a-


d a le n a n ã o rec o n h e c er Jesu s im e d ia ta m e n te e se u sú b ito reconhecí-
m e n to q u a n d o ele m e n c io n o u se u n o m e. A lg u n s têm e n c o n tra d o aq u i
u m a a d a p ta ç ã o d a cen a d e reco n h e c im e n to q u e ap a re c e n a s h istó rias
d o s d e u s e s g rec o -ro m a n o s q u a n d o a n d a v a m e n tre os h o m en s (M. Di-
BELius, B Z A W 33 [1918], 137). N o e n ta n to , D odd e stá certo em afirm ar
q u e u m re c o n h e c im e n to d e m o ra d o é c o m u m n a s n a rra tiv a s circuns-
tan c iais d a s a p a riçõ e s d e Jesus (p. 1439 acim a). O s d o is d iscíp u lo s d e
c a m in h o p a ra E m a ú s c a m in h a v a m e fala v am com Jesus p o r a lg u m
te m p o a n te s d e reco n h ecê-lo n o p a rtir d o p ã o (Lc 24,31.35). E m Jo 21
a c h a re m o s Jesu s em p é n a p ra ia d o M a r d e T ib eríad es e fala n d o com
s e u s d isc íp u lo s so b re a p esca, a n te s q u e , fin alm en te, o D iscípulo A m a-
d o o reco n h ecesse. R eco n h ecim en to s tão difíceis se m p re tê m u m p ro -
p ó s ito ap o lo g ético: m o stra m q u e os d isc íp u lo s n ã o e sta v a m c red u -
la m e n te d isp o s to s a reco n h ecer o Jesus ressu rre to . M as tam b é m têm
u m a d im e n s ã o teológica, e é isso q u e n o s d iz resp e ito aqui.
1486 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

U m im p o rtante tem a p o d ería ter sido o d e enfatizar q u e o Jesus res-


surreto tin h a sofrido u m a m u d an ça p ro fu n d a em relação ao Jesus d o
m inistério. O A p ên d ice M arcano (16,12) resu m e o relato (lucano) d a
aparição d e Jesus aos d o is discípulos n o cam in h o d e E m aús, d iz e n d o
q u e lhes a p areceu "em o u tra form a [ m o r p h ê ] " . P o d e ser q u e tal trans-
form ação seja su g e rid a n as N a rra tiv a s C oncisas p e la insistência d e
que, em b o ra os discípulos v issem Jesus, n ã o p o d e m crer q u e realm en te
era ele (M t 28,17; Lc 24,37). E m su a s reflexões sobre a ressu rreição em
IC o r 15,42ss., P aulo a p resen ta u m d u p lo aspecto d e c o n tin u id a d e e
transform ação: fala claram ente d a ressurreição d e u m co rp o q u e m o rre u
e foi sep u ltad o ; to d a v ia , esse c orpo é tran sfo rm ad o , d e m o d o q u e já n ão
é físico, e sim espiritual. A p aren tem en te, os relatos evangélicos p reser-
v a m o m esm o d u p lo aspecto: os relatos d o tú m u lo vazio e n fatizam con-
tin u id ad e, m as as cenas d e reconhecim ento e n fatizam transform ação.
A in d a o u tro m o tiv o teológico p o d e e sta r p re s e n te n a c e n a d e re-
co n h ecim en to e m João n o fato d e q u e M a d a le n a co n h ece Jesu s d e p o i s
d e s e r c h a m a d a p e l o n o m e . Ela te m b u sc a d o in c a n sa v e lm e n te p o r Jesus;
c o n su lto u os d isc íp u lo s, os anjos e o su p o sto ja rd in e iro so b re a rem o -
ção d e se u co rp o (vs. 2,13,15). T o d a v ia, q u a n d o v ê Jesus, ela n ã o o
reconhece. A e rrô n e a id en tificação d e Jesus co m o o ja rd in e iro p o d e ria
ser u m a fo rm a e m ação d e u m m a l-e n te n d id o jo an in o (B arrett, p . 469)
p a ra ilu s tra r q u e o v e r a Jesus re ssu rre to n ã o leva n e c e ssa ria m e n te a
co m p re en sã o o u a fé. T alv ez a m esm a lição se e n c o n tre n a n a rra tiv a
lu ca n a d o s d isc íp u lo s n o c a m in h o d e E m a ú s q u e só rec o n h e c em Jesus
n o p a rtir d o p ão . (C om resp e ito às su a s resp e c tiv a s se q u ê n c ia s tex-
tu ais, esta a p a riç ã o e m L ucas e a q u e la a M a d a le n a e m João tê m m u ito
em co m u m : a m b a s se g u e m v isitas ao tú m u lo p e la s m u lh e re s e p o r
P ed ro ; a m b a s p re c e d e m e in tro d u z e m a a p a riç ã o d e Jesu s ao g r u p o d e
d iscíp u lo s). L ucas p o d e e sta r d iz e n d o a seu s leito res c ristã o s q u e no
p a rtir eu carístico d o p ã o eles têm os m eio s d e rec o n h e c er s u a p re se n ç a
em seu m eio. Ig u alm en te , João p o d e e sta r d iz e n d o a se u s leito re s q u e
n a p a la v ra ex p re ssa p o r Jesus eles tê m os m eio s d e rec o n h e c e r su a
p resen ça. M a d ale n a, a o rec o n h e c er Jesus q u a n d o a c h a m a "M aria!",
exerce u m p a p e l a firm a d o em Jo 10,3: "A s o v e lh a s o u v e m s u a v o z
q u a n d o as c h a m a p e lo n o m e as q u e lh e p e rte n c e m ". O e p isó d io ilus-
tra a reiv in d ic a çã o d o B om P astor: "C o n h eço m in h a s o v e lh a s e elas
m e co n h ecem " (10,14, ta m b é m 27). M aria M a d a le n a p o d e ria serv ir
com o ex em p lo a o s cristão s d a c o m u n id a d e jo an in a n o c re p ú sc u lo do
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1487

I a sécu lo cujo c o n ta to com o Jesu s re ssu rre to se d á a tra v é s d o P arácle-


to q u e lh es d e c la ra o q u e receb era d e Jesu s (16,14).
F euillet, " L a r e c h e r c h e " , p p . 1 0 3 7 ‫־‬, su scita a p o ssib ilid a d e d e q u e a
c en a d a b u s c a d e M a d a le n a p o r Jesu s seja u m eco d o C ân tico d o s cân-
tico s cap. 3,1-4. N e ssa p a ssa g e m , a m u lh e r b u sc a p e lo h o m e m a q u e m
s u a a lm a a m a . Ela se le v a n ta ced o e sai a in d a g a r d o s v ig ias se p o rv en -
tu ra o v ira m . Q u a n d o o e n c o n tra, se a p o d e ra d e le e n ã o o d e ix a rá p a r-
tir. (V er ta m b é m M . C ambe, " L ' i n f l u e n c e d u C a n t i q u e d e s C a n t i q u e s s u r le
n o u v e a u T e s t a m e n t " , R T hom 62 [1962], 5-26). V isto q u e n a in te rp re ta ç ã o
d e F euillet a m u lh e r d o C ân tico é u m sím b o lo d e Israel b u sc a n d o p o r
Ia h w e h , e ste p a n o d e fu n d o su g e riría q u e a M a d a le n a jo an in a é rep resen -
ta n te d a c o m u n id a d e cristã o u m essiân ica b u s c a n d o p o r Jesus. F euillet
v e ria n a re s p o s ta d e Jesus a M a d a le n a u m a p ro m e ssa im p lícita d e su a
p re se n ç a p ó s-re ssu rre iç ã o , e a E ucaristia é u m a fo rm a d e sta presen ça.
A ssim , ele d á à c en a p o ssív e is d im e n sõ e s eclesiásticas e sacram en tais.
F icam o s n a d ú v id a so b re a d im e n sã o eclesiástica (M ad alen a m ais p ro -
v a v e lm e n te ex em p lifica a b u sc a in d iv id u a l p o r Jesus), e n ã o ach am o s
n e n h u m s u p o rte p a ra a in te rp re ta ç ã o e u carística - a a n a lo g ia com
a cen a lu c a n a d e E m a ú s n ã o p o d e se r le v a d a tão longe. Q u a n to ao
p o s s ív e l p a n o d e fu n d o v e te ro te sta m e n tá rio , Is 43,1 é ta m b é m citado:
" N ã o te m a s p o rq u e e u te rem i; ch am ei-te p e lo te u n o m e, tu és m eu ".
U m a o b serv ação final d iz resp e ito à re sp o sta d e M aria a Jesus
q u a n d o ela o c h a m a " R a b b u n i" o u " m e u [qu erido] R abbi" (ver nota).
N e ste e p isó d io , o v o c a b u lá rio re c o rd a s u rp re e n d e n te m e n te a cena em
1,38, o n d e Jesu s in d a g a d o s d isc íp u lo s so b re o B atista: "O q u e estais
b u s c a n d o ? " e lh e fala m com o "R ab b i". A ssim ta m b é m a q u i M aria lhe
fala c o m o R ab b i d e p o is q u e ele lh e p e rg u n to u : "A q u e m e stás b u scan -
d o ? " (20,15). O p a ra le lo sa lie n ta fo rç o sa m e n te a m o d é stia d o títu lo
q u e M a d a le n a d á ao Jesu s re ssu rre to , títu lo q u e é característico d o s
in ício s d a fé, e n ã o d e su a cu lm in ação . C e rta m en te , isso se e n q u a d ra
b e m à e x p re ssã o d e Tom é: " M e u S en h o r e m e u D e u s" em 28. T o m a-
se te n ta d o ra a id eia d e q u e, ao u s a r este "a n tig o " títu lo , a M a d alen a
jo a n in a e stá e x ib in d o su a in c o m p re e n sã o so b re a ressu rre içã o , cren d o
q u e a g o ra ela p o d e c o n tin u a r s e g u in d o Jesu s d a m e sm a m a n e ira q u e o
se g u ira d u r a n te o m in isté rio . (A baixo, v e re m o s q u e tal conceito p o d e
te r p o r d e trá s ela a p e g a n d o -se a ele e re te n d o su a p resen ça). T am b ém
se p o d e in d a g a r se s e u u s o d e u m títu lo in a d e q u a d o n ã o im p lica q u e
só q u a n d o o E sp írito fo r d a d o (v. 22) se rá p o ssív e l fé p le n a n o Jesus
1488 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

ressu rre to . E n tre tan to , ta l raciocínio se faz m e n o s p la u sív e l p e lo fato


d e q u e n o v. 18 M a d ale n a a n u n c ia ao s d iscíp u lo s: " E u v i 0 S e n h o r " ·, e
assim ela sabe q u e foi se u S en h o r, e n ã o m e ra m e n te s e u m e stre , q u e
tin h a d ia n te d e si.

A im in e n te a sc e n s ã o d e J e su s (20,17)

Já tem o s d e d ic a d o u m a ex te n sa n o ta às m u ita s m a n e ira s co m o


os c o m e n tarista s tê m te n ta d o ex p licar a lógica d a s p a la v ra s d e Jesu s,
"N ã o m e d e te n h a s" , q u a n d o a ên fase re a l e sta ria n a ú ltim a p a rte d o
v ersícu lo , o n d e se d eix a claro q u e Jesus e stá in d o p a ra o P ai c o m u m
p r o p ó s i t o s a l v í f i c o . Ele n ã o está in d o p a ra c o n te n ta r-se e m p r e p a r a r
h ab itaçõ es celestiais p a ra as q u a is u m d ia ele lev a ria se u s d isc íp u lo s
(14,2-3); a n te s, ele v o lta rá d e s e u P ai p a ra o s d isc íp u lo s a fim d e esta-
belecê-los e m u m a n o v a relação co m D eu s, d a n d o -lh e s o E sp írito .
G ra n d e p a rte d a d ific u ld a d e e stá n a c o m p a ra ç ã o q u e m u ito s co-
m e n ta rista s tê m feito e n tre a in stru ç ã o d e Jesus a M a d a le n a (fre q u en -
tem e n te tra d u z id o " n ã o m e to q u es") e s e u co n v ite p o s te rio r a T o m é
p a ra q u e o tocasse. N o ssa convicção é q u e as d u a s a titu d e s d e Jesu s
n a d a têm a v e r u m a com a o u tra , e q u e a in te n ç ão d o e v a n g e lista n ã o
era tra ç ar c o m p a raç ã o e n tre eles, co m o se T o m é estiv e sse s e n d o c onvi-
d a d o a fazer o q u e o q u e fo ra re c u sa d o a M a d ale n a. O s c o m e n ta rista s
é q u e têm c ria d o o c o n tra ste , fa la n d o co m o se T om é fosse c o n v id a d o a
"to car" Jesus; o v erb o "to car", u sa d o n a in stru çã o a M ad alen a, n ã o a p a -
rece n o e p isó d io d e T om é. Jesus d isse a M a d a le n a q u e n ã o o d etesse;
ele c o n v id o u T o m é a to ca r su a s fe rid a s - o q u e h á e m c o m u m e n tre
as d u a s ações? E a ssim rejeitam o s o c o m e n tá rio d e H oskyns (p. 543)
citad o fav o ra v e lm en te p o r m u ito s: "T ão ín tim a se rá a n o v a relação
com Jesu s q u e, e m b o ra M aria p o r e n q u a n to cessasse d e tocá-lo, p o r-
q u e ele a sce n d e ría e ela a n u n c ia ria s u a m e n sa g e m , to d a v ia , a p ó s a
ascen são , am b o s, ela e o s d isc íp u lo s, e sta rão c o n c re ta m e n te u n id o s
com ele, d e tal m o d o q u e re a lm e n te se p o d e d e sc re v e r co m o 'to c a r',
e d isto a ilu stra ç ão m ais p u n g e n te é o co m er d o c o rp o d o S e n h o r e o
b e b e r d e se u s a n g u e". N ã o só n ã o h á e v id ê n c ia d e u m a a lu sã o e u carís-
tica, p o ré m , m ais im p o rta n te , n ã o h á ra z ã o p a ra fala r d a n o v a relação
com o "to car". R ejeitam os ta m b é m a tese d e Bultmann (p. 533) d e q u e
o " n ã o m e to q u e s" é u m m o d o d ire to d e d iz e r-n o s q u e as a p a riç õ e s d o
Jesus re ssu rre to n ã o são tan g ív eis, d e m o d o q u e a q u i João c o n tra d iz a
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1489

im p re ss ã o c ria d a p o r Lc 24,38-43 e M t 28,9 (e p o r Jo 20,27!), p a ssa g e n s


q u e in d ic a m q u e o Jesu s re ssu rre to p o d e ria se r d e tid o e sen tid o . (Cre-
m o s q u e João n ã o e ra m ais "so fistica d o " d o q u e o s o u tro s ev an g elistas
q u e a c e ita ra m a ta n g ib ilid a d e d o Jesus re ssu rre to - o u tra q u e stã o b em
d ife re n te é s e eles e sta v a m o u n ã o certo s n o to ca n te a este p o n to d e
v ista). G rass, p p . 61-65, e stá certo e m ju lg a r q u e a q u i B ultmann está
le n d o s u a p ró p ria d em ito lo g iza ç ã o n a m e n te d o escrito r jo anino. Se
e stiv e rm o s c erto s e m p ro p o r q u e Jesus e sta v a d iz e n d o a M a d ale n a
q u e e la n ã o te n ta sse im p e d i-lo , su a s p a la v ra s n ã o tin h a m referên cia à
u m a ta n g ib ilid a d e a tu a l o u fu tu ra .
P o r q u e M a d a le n a te n ta ria d e te r Jesus, e p o r q u e ele lh e d isse q u e
n ã o o fizesse co m b a se n o fato d e q u e ele a i n d a n ã o asce n d e ra? (N ote
q u e ele disse: " p o rq u e a in d a n ã o su b i"; ele n ã o disse: " p o is e sto u p a ra
s u b ir" , co m o d ã o a e n te n d e r m u ita s explicações). A a titu d e d e M ada-
le n a p o d e se r in te rp re ta d a à lu z d a p ro m e ssa d e Jesus n a ú ltim a ceia:
"V o lta rei p a ra vós. A in d a p o u c o te m p o , o m u n d o n ã o m e v erá m ais;
m a s v ó s m e v e re is" (14,18-19). Q u a n d o M a d a le n a v ê Jesus, ela p e n sa
q u e ele v o lto u co m o p ro m e te ra e a g o ra ficará co m ela e se u s o u tro s
se g u id o re s, re a s s u m in d o as relaçõ es a n te rio re s. Ele d issera: "M as eu
v o s v e re i o u tra v ez, e v o sso s corações se reg o zijarão com u m júbilo
q u e n in g u é m v o s p o d e rá tira r" (16,22). M a d a le n a está te n ta n d o re te r a
fo n te d e s u a a le g ria , v isto q u e c o n fu n d e u m a a p a riçã o d o Jesus ressu r-
re to co m s u a p e rm a n e n te p re se n ç a com se u s discíp u lo s. A o d izer-lh e
q u e n ã o o d e tiv e sse , Jesus in d ic a q u e s u a p re se n ç a p e rm a n e n te não
é d e u m a m e ra a p a riçã o , m a s em c o n fo rm id a d e com o d o m d o Espí-
rito q u e só p o d e v ir d e p o is q u e ele a sc e n d e r ao Pai. (V erem os abai-
xo q u e e ste d o m e stá im p lícito ta n to n o conceito d e ascen são com o
n a refe rê n c ia a " m e u s irm ã o s" n o v. 17b). B ultmann , p . 533, fez u m a
p r o fu n d a o b se rv a ç ã o d e q u e o " a in d a n ã o " e o " e u a in d a n ã o su b i"
d e Jesu s re a lm e n te é ap licáv el ao d esejo d e M a d a le n a - ela a in d a n ão
p o d e te r a p re s e n ç a p e rm a n e n te d e Jesus. Em v ez d e te n ta r d e te r Jesus
(n a tu ra lm e n te , n ã o q u e ela re a lm e n te p u d e s se im p e d ir su a ascensão),
receb e a o rd e m d e ir e p r e p a ra r se u s d isc íp u lo s p a ra a q u ela v in d a d e
Jesu s q u a n d o o E sp írito fosse d a d o .
N o ssa in te rp re ta ç ã o d o v. 17 p re s s u p õ e q u e a co m p re en sã o q u e
João tin h a d a a scen são d e Jesus seria d istin ta d o conceito d e u m a as-
cen sã o a p ó s q u a re n ta d ia s e n c o n tra d a n o s L ivro d e A tos. P. Benoít,
" U A s c e n s i o n ", RB 56 (1949), 161-203, tem fo rm u la d o u m a d istin çã o útil
1490 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

e n tre a a scen são c o m p re e n d id a co m o a glorificação d e Jesu s n a p re -


sen ça d o P ai e a ascen são c o m p re e n d id a co m o u m a lev itação sim b o li-
z a n d o o té rm in o d a s a p a riçõ e s d o Jesus re ssu rre to . A t 1,3 o b se rv a q u e
Jesu s a p a re c e u d u ra n te q u a re n ta d ias, e e n tã o foi v isiv e lm e n te a rre b a -
ta d o d e se u s se g u id o re s p o r m eio d e u m a n u v e m . O s críticos tê m sid o
sev ero s e m se u s c o m e n tário s d e sta cena, m a s a av aliação m ais m a tiz a -
d a se e n c o n tra e m P.-H . M enoud , " L a P e n t e c ô t e l u c a n i e n n e e t Y h i s t o i r e " ,
R H PR 42 (1962), 141-47. L ucas n ã o n o s e stá d a n d o u m a d a ta d a glorifi-
cação d e Jesus; a p ró p ria m en ção d e " q u a re n ta d ia s" é in c id e n ta l, co m o
p a rte d a p re p a ra ç ã o lu c a n a p a ra a festa d e P e n tec o stes q u e é a d a ta
im p o rta n te . (Q u a n d o L ucas n ã o se o c u p a d o P e n teco stes, ele é p e rfe i-
ta m e n te a p to a d e scre v e r u m a a scen são n a m a n h ã d a P áscoa, co m o
em Lc 24,51, esp ec ialm en te se to d o o v e rsíc u lo for aceito). N a im a g e m
tra d icio n a l, L ucas está d ra m a tiz a n d o o fim d a s a p a riçõ e s te rre n a s d e
Jesus; e ele n ã o e stá so z in h o e n tre o s escrito res n e o te sta m e n tá rio s em
m a n te r q u e h o u v e u m a s é r i e d e a p a riçõ e s p ó s-re ssu rre iç ã o p o r u m p e -
río d o d e tem p o , e q u e esta série c h e g o u a o fim (q u e e stá im p líc ita em
IC o r 15,5-9). A g o ra João n ã o se o c u p a c om a a scen são c o m o o té rm in o
d a s a p a riçõ e s d e Jesus, m as, a n te s, com o té rm in o d e " a h o ra " q u a n d o
Jesus p a ssa sse d e ste m u n d o p a ra o P ai (13,1). W ellhausen a le g o u q u e
as a p ariçõ es d e Jesus em Jo 20,19-28 d e v e m se r se c u n d á ria s n o p la n o
jo an in o , p o is n ã o é p o ssív el h a v e r a p a riçõ e s d e p o is d a asce n sã o m en -
cio n a d a e m 20,17; m a s este é u m e x e m p lo d a in c a p a c id a d e e m faz e r a
d istin ção e n tre o s d o is conceitos d e ascensão.
É u m a c o m p re e n sã o b á sic a n e o te s ta m e n tá ria q u e o Jesu s re ssu r-
reto n ã o é re s ta u ra d o à v id a n o rm a l q u e p o s s u ía a n te s d a m o rte ; ele
p o s s u i v id a e te rn a e e stá n a p re se n ç a d e D eus. O te m p o e lu g a r q u e ca-
ra c te riz a m a e x istên cia te rre n a n ã o m ais se lh e a p lic a m e m s e u e s ta d o
escatológico; e a ssim n ã o p o d e m o s im a g in a r s u a h a b ita ç ã o e m a lg u m
lu g a r n a te rra p o r q u a re n ta d ia s e n q u a n to e stá fa z e n d o s u a s a p a riç õ e s
e a n te s d e s u a p a rtid a p a ra o céu. D e sd e o m o m e n to e m q u e D e u s res-
su scito u Jesu s, ele e stá n o cé u o u com D eus. Se faz a p a riç õ e s, e le ap a-
rece d o céu. " A sc en sã o " é m e ra m e n te o u so d e lin g u a g e m e sp ac ial
p a ra d e sc re v e r e x altação e g lorificação. M u ita s d a s p rim itiv a s a firm a -
ções n e o te s ta m e n tá ria s rec o n h e c e m a id e n tid a d e e n tre re ssu rre iç ã o e
ascen são (= glo rificação), co m o te m m o stra d o B enoit e o A rc e b isp o
A. M . Ramsey, " O q u e e ra a A scen são ?" e m H i s t o r y a n d C h r o n o l o g y i n
t h e N e w T e s t a m e n t (T heological C o llectio n s 6; L o n d re s, SPC K , 1965).
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1491

A t 2,32-33 reg istra : "D e u s re ssu sc ito u Jesus... S e n d o p o r isso ex a ltad o


à d e s tra d e D e u s..." (v er ta m b é m A t 5,30-31). E m R m 8,34, o u v im o s
d e Je su s C risto " q u e re ssu sc ito u d e n tre o s m o rto s, q u e e stá à d e stra
d e D e u s " (v er ta m b é m Ef 1,20). E m F1 2,8-9 o h u m ilh a r-se d e Jesus
a té a m o rte é c o n tra s ta d o com s e u e x a ltar su p re m a m e n te p o r D eus.
P e d ro fala d e " a re ssu rre iç ã o d e Jesu s C risto q u e foi p a ra o céu e está
s e n ta d o à d e s tra d e D e u s" ( lP d 3,21-22). Lc 24,26 te m Jesu s explican-
d o q u e e ra " n e c e ssá rio q u e o M essias so fresse e sta s coisas e e n tra sse
e m s u a g ló ria ". O Jesu s d e M t 28,16-20, q u e a p a re c e a p ó s a re ssu rre i-
ção, é u m Je su s a q u e m foi d a d o to d o o p o d e r n o c éu e n a terra. V er
ta m b é m o E v a n g e l h o d e P e d r o , 56, e a E p í s t o l a d e B a r n a b é 15,9 (citada
e m n o ssa n o ta so b re 20,26, " u m a se m a n a d e p o is").
E ste co n ceito n e o te sta m e n tá rio n o q u a l a ressu rre içã o d e n tre os
m o rto s e n v o lv e a scen são à p re se n ç a d e D e u s e exaltação à s u a d e stra
n o s c a p ac ita a e n te n d e r a d ra m a tiz a ç ã o d e João em 20,17. N a cru z, o
Jesu s jo a n in o já e n tra ra n o p ro ce sso d e exaltação e glorificação, p o is a
cru cifix ão é u m p a sso a v a n te n o c u rso d e ser e le v a d o ao P ai (12,32-33).
T a lv ez te ria sid o m ais lógico se João se ju n ta sse ao a u to r d a E pístola
ao s H e b re u s e m faz e r Jesu s ir d ire ta m e n te p a ra o P ai d e sd e a cruz,
p o is a re ss u rre iç ã o n ã o se a d e q u a facilm en te à teo lo g ia jo an in a d a cru-
cifixão. L e m b ra m o s q u e, e n q u a n to o Jesus sin ó tico p re d iz três v ezes
s u a re ssu rre iç ã o , o Jesu s jo an in o p re fe riu falar d e se r le v a n ta d o (vol. 1,
p . 359). E n o ú ltim o d isc u rso Jesu s n ã o d e sc re v e u s u a v itó ria em ter-
m o s d e re s s u rg ir d e n tre os m o rto s, e sim e m te rm o s d e s u a id a p a ra o
P ai (14,12.28; 16,5.28). N ã o o b sta n te , o Q u a rto E v an g elh o n ã o p o d e ria
p re s c in d ir d a re s su rre iç ã o q u e e ra u m a p a rte b a sta n te só lid a d a trad i-
ção cristã. C o n s e q u e n te m e n te , o e v a n g elista tev e d e se esfo rçar m u ito
p a ra a d e q u a r a re ssu rre iç ã o n o p ro ce sso d a p a ssa g e m d e Jesus d este
m u n d o p a ra o Pai. Se João re in te rp re ta a crucifixão d e m o d o q u e se
to rn e p a rte d a g lo rificação d e Jesu s, ele d ra m a tiz a a ressu rre içã o p a ra
q u e ela seja o b v ia m e n te p a rte d a ascensão. Jesus é le v a n ta d o n a cruz;
re ssu sc ita d e n tre o s m o rto s; e so b e p a ra o P ai - tu d o isso com o p a rte
d e u m a só a ção e u m a só " h o ra " .
O v e íc u lo p a ra e sta d ra m a tiz a ç ã o r e in te rp re ta tiv a d a ressu rre içã o
é a a p a riç ã o a M a d a le n a , u m re la to q u e v eio d e s d e o s te m p o s p rim iti-
v o s, m a s n ã o e ra p a rte d a p re g a ç ã o oficial. C o m o tem o s ex p licad o , ao
a g a rra r-s e a Jesu s M aria re p re se n ta a m á c o m p re e n sã o d e q u e o Jesus
q u e s a iu d o tú m u lo c u m p riu o p la n o d e D e u s e e stá p ro n to a re a ssu m ir
1492 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

a in tim id a d e d a relação te rre n a com se u s se g u id o re s. Jesu s re sp o n -


de, e x p lic an d o q u e a ressu rre içã o é p a rte d a ascen são , e s u a p re se n ç a
d u ra d o u ra n o E sp írito só p o d e se r d a d a q u a n d o ele a sc e n d e r ao Pai.
E assim , q u a n d o n a p ró x im a cen a ele a p a re c e r ao s d isc íp u lo s, e n tã o
é o Jesus g lo rificad o q u e d á o E sp írito (20,22 - se a ch a im p líc ita u m a
glorificação, p o is e m 7,39 a firm o u q u e n ã o p o d ia h a v e r d o m d o E spí-
rito até q u e Jesus fosse glorificado).
E ste u so d a ap a riçã o a M a d ale n a com o u m v eícu lo p a ra a rein ter-
p reta çã o teológica jo an in a cria a c id e n ta lm e n te u m p ro b le m a. João q u e r
d a r a e n te n d e r litera lm e n te q u e a ap a riçã o a M a d a le n a o c o rre u a n te s
d a ascensão, e n q u a n to a s o u tra s ap ariçõ es o c o rre ra m m ais ta rd e ? To-
m a d o e m su a d e v id a p ro p o rç ã o , e ssa in te rp re ta ç ã o n e g a ria p a ra d o x a l-
m en te q u e a ressu rreição é o m esm o q u e ascensão, p o is u m in te rv a lo
s e p ara ria as d u a s. A lém d o m ais, significaria q u e n ã o foi o S e n h o r glori-
ficado q u e a p a re c e u a M a d ale n a e a ssim lh e foi c o n c ed id o a p e n a s u m a
ap arição d e g ra u inferior. M u ito s a u to re s aceitam esta p re m issa . P a ra
S chwank, "L e e r e G r a b " , p . 398, o Jesus d a a p a riçã o a M a d a le n a é o terre-
n o e a P alav ra q u e se fez carne. P a ra K raft, TLZ 76 (1951), 570, o Jesus
d e sta ap arição a in d a n ã o está n o p ro ce sso d e se r a sc e n d id o , m a s está
n as p ro fu n d e z a s d e s e u a v ilta m e n to , p o is a in d a e stá d e p o sse d e se u
co rp o m o rto . P o d e m o s in d a g a r a in d a se, ao colocar a ascen são a n te s
d a ap arição aos d iscíp u lo s, João n ã o p re sc in d e d e u m té rm in o p a ra as
ap ariçõ es terren as; p o is n e n h u m a o u tra ascen são o u p a rtid a é d e scrita
n o Q u a rto E v an g elh o d e p o is d a s ap ariçõ es aos d isc íp u lo s e a T om é.
E m n o sso ju ízo , to d a s essas c o n clu sõ es fa lh a m e m e n te n d e r a
técnica d e João. Ele está a d a p ta n d o u m a teo lo g ia d a r e s s u rre iç ã o /
ascen são q u e , p o r d efin ição , n ã o te m d im e n sõ e s d e te m p o e e sp aç o
p a ra u m a n a rra tiv a q u e é n e c essa ria m e n te seq u en cial. C aso o p ro p ó -
sito seja e sq u ecid o , a te n ta tiv a d e d ra m a tiz a r e m cen as te m p o ra is o
q u e é s u b s p e c i e a e t e r n i t a t i s cria co n fu são . Q u a n d o o Jesu s re ssu rre -
to tev e q u e ex p licar a M a d a le n a q u e ele e stá p a ra a sc e n d e r, a ênfa-
se está n a id en tificação d a ressu rre içã o e d a ascen são , n ã o n o te m p o
acid en tal em atraso . N o p e n s a m e n to jo an in o só h á u m Jesus re ssu r-
reto , e ele a p a re c e em g ló ria e m to d a s as s u a s a p ariçõ es. M a d a le n a
q u e o v ê a p a re n te m e n te a n te s d a a scen são a n u n c ia " E u v i o S e n h o r"
(20,18), e n q u a n to os d isc íp u lo s q u e o v e e m d e p o is d a asce n sã o fazem
e x a ta m e n te a m e sm a p ro cla m a ç ã o (20,25). A ssim , e m n o ssa o p in iã o ,
a afirm ação " e u e sto u s u b in d o p a ra m e u P ai", e m 17b, n ã o é u m a
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1493

d e te rm in a ç ã o ex a ta d e te m p o e n ã o tem im p licação p a ra o e sta d o d o


Jesu s re s s u rre to a n te rio r à q u e la afirm ação. É u m a afirm ação teológi-
ca c o n tra s ta n d o a n a tu re z a p a ssa g e ira d a p re se n ç a d e Jesus em suas
a p a riç õ e s p ó s-re ssu rre iç ã o e a n a tu re z a p e rm a n e n te d e su a p rese n ç a
n o E sp írito . N a a p a riç ã o p a ra le la d e Jesus às m u lh e re s em M t 28,10,
ele in s tru i M a d a le n a e s u a s c o m p a n h e ira s a ire m e c o n ta re m aos dis-
c íp u lo s q u e ele lh es a p a re c e rá n a G alileia. E m v e z d e ssa afirm ação
c o n c e rn e n te ao fato d a re ssu rre iç ã o e a se q u ên cia e local d a s ap ari-
ções, Jo ão faz com q u e Jesus in stru a a M a d a le n a so b re o significado
d a ressu rre içã o . A d isp o siç ão d e n e g lig e n cia r im plicações tem p o rais
p a r a sig n ificação teológica n ã o é in c o m u m em João. S alien tam o s que,
a o d iz e r q u e o Jesu s m o rib u n d o e n t r e g o u se u E sp írito (19,30), é bem
p ro v á v e l q u e o e v a n g elista esteja fa z e n d o u m a referên cia sim bólica à
d o a ç ão d o E sp írito , m esm o q u a n d o o ev a n g elista n ã o q u isesse im pli-
c a r q u e e ste e ra o m o m e n to ex ato d o d o m (u m m o m e n to d escrito em
20,22). S e m elh a n te m en te , n a p ró x im a seção d e sco b rire m o s q u e T om é
n ã o e sta v a p re s e n te n o m o m e n to e m q u e o s a p ó sto lo s fo ra m com is-
s io n a d o s , e q u a n d o o E sp írito foi d a d o e c o n fe rid o o p o d e r d e p e rd o a r
p e c ad o s. Isso te m c o n fu n d id o os teó lo g o s q u e p a s sa ra m a e sp ecu lar
se m a is ta rd e Jesu s fav o re c eu T om é p riv a tiv a m e n te com estas graças.
É b e m p ro v á v e l q u e tal c o n sid e raç ã o n u n c a e stev e n o p e n sa m e n to
d o ev a n g elista . Ele tin h a p riv a d o T om é d a a p a riç ã o g eral p a ra q u e
T o m é p u d e s s e e x em p lificar a d ú v id a a p o stó lica; ele n ã o se p re o c u p o u
c o m a a c id e n ta l d e s ig u a ld a d e d a p o sição a p o stó lic a assim criada. Fi-
n a lm e n te , to m a m o s a m e sm a a b o rd a g e m g e ra l p a ra a tese d e q u e, ao
co lo car a s a p a riç õ e s d e p o is d a ascen são , João n ã o p ô s fim à s aparições
d e Jesu s. A q u i, a p a la v ra " d e p o is " n ã o te m sig n ificad o e strita m e n te
te m p o ra l. João e stá in te re ssa d o em m o stra r q u e o E sp írito foi d a d o
ao s d isc íp u lo s p e lo Jesu s re ssu rre to , e n ã o h á u m té rm in o p a ra a p re-
se n ça d o E sp írito . O b v ia m e n te, o e v a n g elista n ã o p o d ia ter p rev isto
q u e u m a g e ra ç ã o d e p o is, te n d o lid o A tos, p u d e s se co m eçar a in d a g a r
q u a n d o n a q u e le p e río d o d a d isp e n sa ç ã o d o E spírito, Jesus d eix o u d e
a p a re c e r ao s s e u s d iscíp u lo s.
D e ix a n d o d e la d o a g o ra o q u e c o n sid e ra m o s u m falso p ro b lem a,
g o sta ría m o s d e sa lie n ta r q u ã o sig n ificativ a é esta in te rp re ta ç ã o d o
v. 17 q u a n d o as p a la v ra s d e Jesu s são co lo cad as n o con tex to d e suas
a firm a ç õ es p ré v ia s e n o co n tex to d a teo lo g ia jo an in a co m o u m todo.
E m 6,62, q u a n d o se u s d isc íp u lo s p a re c ia m d u v id a r d e su a s p a la v ras,
1494 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

Jesus disse: " Q u e seria, p o is, se visseis o F ilho d o h o m e m s u b ir p a ra


o n d e p rim e iro e stav a? É o E sp írito q u e m d á v id a " . Ele e sta v a fa z e n d o
u m a co n ex ão ín tim a e n tre a a scen são d o F ilho d o H o m e m e a d o a ç ão
d o E spírito. A s p a la v ra s q u e Jesu s falo u n a ú ltim a ceia ta m b é m se to r-
n a m m ais claras. E m 16,7, ele d isse: "T o d a v ia d ig o -v o s a v e rd a d e , q u e
v o s c o n v ém q u e e u vá; p o rq u e se e u n ã o fo r o C o n so la d o r n ã o v irá a
vós; m as, q u a n d o e u for, v o-lo e n v ia rei". Isto p a re c e sig n ificar q u e a
v in d a d o P a rá c le to /E s p írito se g u iría im e d ia ta m e n te s u a m o rte - u m
sig n ificad o q u e é v e rific a d o e m 20,17 e 22, q u e associa a re ssu rre iç ã o ,
a ascen são e a d o a ç ão d o E spírito. A o fala r d e s u a asce n sã o e m 20,17,
Jesus n ã o e stá c h a m a n d o a a te n ç ã o p rim a ria m e n te p a ra s u a p ró p ria
g lorificação - esse p ro ce sso e sta v a em a n d a m e n to e m to d a " a h o ra " - ,
m ais a o q u e s u a g lorificação sig n ificaria a o s h o m e n s, a s a b er, a d o a ç ã o
d o E sp írito q u e os faria filhos d e D eus. D odd, I n t e r p r e t a t i o n , p . 442,
está certo q u a n d o o bserva: " N ã o é a ressu rre iç ã o co m o a p re te n s ã o
d e C risto à g ló ria celestial q u e n ecessita d e se r e n fa tiz a d a , e sim a res-
su rreição co m o a ren o v a ç ã o d e relaçõ es p e sso a is co m o s d isc íp u lo s" .
E stas relaçõ es e stã o em m e n te q u a n d o Jesus fala d o s d isc íp u lo s
com o " m e u s irm ã o s" e d e scre v e o a lv o d e s u a asce n sã o co m o " m e u P ai
e v o sso Pai, m e u D e u s e v o sso D eu s". A exegese tra d icio n a l, re p e tid a
a in d a p o r e s tu d io so s tão c o m p e te n te s co m o Loisy, B ernard, H oskyns
e L ightfoot, é q u e Jesus d iz " v o sso P a i" e " m e u P a i", e m v e z d e "n o s-
so P ai", p o rq u e ele q u e r m a n te r a d istin çã o d e s u a relação e sp ec ial
com o P ai (ele é o F ilho n a tu ra l) d a q u e la d e se u s se g u id o re s (filhos
ad o tiv o s). C atharinet, a r t . c i t . , te m p ro v a d o ju sta m e n te o o p o sto . P ara
e n te n d e r o p a d rã o " m e u P ai e v o sso P ai, m e u D e u s e v o sso D e u s" , é
p reciso ev o c ar R t 1,16. In sta d a p o r N o e m i a v o lta p a ra M o ab e, R ute
in siste q u e, m u ito e m b o ra n ã o fosse israelita, ela ira p a ra Isra e l com
N o em i; p o is d a q u e le m o m e n to e m d ia n te " te u p o v o se rá o m e u p o v o
e te u D eu s, o m e u D eu s". D e m o d o se m e lh an te , a a firm a ç ão d o Jesus
jo an in o é a d e id en tificação , e n ã o d e distin ção . Jesu s e stá su b in d o
p a ra s e u P ai q u e a g o r a s e t o r n a r á 0 P a i d e s e u s d i s c í p u l o s . N o p e n sa m e n to
jo an in o , eles são o s ú n ico s filhos d e D e u s q u e c re e m e m Jesu s (1,12) e
são g e ra d o s p e lo E sp írito (3,5). A a scen são d e Jesu s to rn a rá p o ssív el
a d o ação d o E sp írito q u e g e ra rá os d isc íp u lo s c re n tes c o m o filh o s de
D eu s - eis p o r q u e, e m an tecip ação , Jesu s a g o ra se refe re a eles com o
" m e u s irm ã o s". C o m o filh o s d e D eu s, se rã o e n v ia d o s co m o o F ilho foi
e n v ia d o (20,21) e terã o o p o d e r so b re o p e c a d o (20,23) q u e ele tin h a
68 · O Jesus ressurreto: - Primeira cena 1495

(ver Bouttier, " L a n o t i o n d e f r è r e s c h e z S a i n t J e a n " , R H PR 44 [1964], 17990‫־‬,


e sp e c ia lm e n te 187). E sta id eia d e q u e a re s s u rre iç ã o /a s c e n s ã o /E s p í-
rito -d o a ç ã o c o n stitu i os h o m e n s e m irm ã o s d e Jesus se e n c o n tra em
o u tro s lu g a re s n o N T; p o r ex em p lo , em R m 8,29, q u e caracteriza o
Je su s re s s u rre to co m o "o p rim o g ê n ito e n tre m u ito s irm ão s". D epois
d e fala r d a m o rte d e Jesus, H b 2,9-10 d iz q u e "ele c o n d u z iu m u ito s
filh o s à g ló ria". N a c ru z , Jesus fez d e su a m ãe a m ãe terren a , sim bo-
licam en te, a m ã e d o D iscíp u lo A m a d o , isto é, d o re p re se n ta n te da-
q u e le s d isc íp u lo s a q u e m ele teria n e sta terra. Sua ascensão to m a rá
p o ssív e l q u e se u P ai celestial seja o p a i deles. N o p e n sa m e n to gnós-
tico, a fig u ra re d e n to ra g u iaria seu s se g u id o re s d a te rra p a ra o céu;
d e p o is d e s u a ascen são ao Pai, o Jesus jo an in o re to rn a rá p a ra santifi-
car se u s s e g u id o re s e n q u a n to p e rm a n e c e m n a terra, e em seu E spírito
Jesu s se rá u m a p rese n ç a c o n tín u a e n tre eles. E m u m excelente artigo,
G rundmann m o stra q u e a referên cia ao Pai, e m 20,17, e a p ro m essa
im p lícita d e q u e u m a n o v a relação será estab elecid a p a ra o s discípu-
los p e la re s s u rre iç ã o /a s c e n s ã o e stá em h a rm o n ia n ã o só com o u tra s
p a s sa g e n s n e o te stam e n tá ria s (especialm ente a s q u e refletem pen sa-
m e n to cristão h elen ista, p . ex., Ef 2,18, "A tra v é s d e Jesus tem os acesso
ao P ai em u m só E spírito"), m as esp ecialm en te com o p e n sa m e n to d e
1 João q u e n o s m o stra co m o a p ro m e ssa se c u m p re . "V ed e q u ã o gran-
d e a m o r n o s tem co n c ed id o o P ai, q u e fôssem os c h a m a d o s filhos d e
D eu s. E, d e fato, eis o q u e rea lm e n te so m o s" ( ljo 3,1).
N o ta m o s q u e Jesu s d iz , resp e c tiv a m e n te, q u e se u P ai v irá a ser
o P ai d o s d isc íp u lo s e q u e s e u D e u s v irá a se r o D e u s deles. C om o
F euillet, " L a r e c h e r c h e " , p p . 101-2, tem sa lie n ta d o , a ú ltim a e x p ressão é
p a c tu a i. O P ai g e ra rá n o v o s filhos, e D e u s fará u m a n o v a alian ça com
u m n o v o p o v o , a sa b er, os q u e c reem e m Jesus. A o d e scre v e r a aliança
re n o v a d a , Jr 31,33 re ite ra a fó rm u la p e n ta te u c a : "E u serei se u D eu s e
eles se rã o o m e u p o v o " (Lv 26,12; v e r ta m b é m Ez 36,28).
A cristo fa n ia a M a d a le n a te rm in a com ela in d o p a ra os n o v o s ir-
m ã o s d e Jesu s (os d iscíp u lo s) e a n u n c ia n d o : " E u v i o S en h o r". M uitos
in té rp re te s tê m p ro p o sto q u e a q u i João tem e m m e n te u m v ersículo
d o m a io r d o s "S alm o s d a P aix ão " (SI 22,23[22]): " E u p ro c la m a re i o te u
n o m e a m e u s i r m ã o s 4, d ia n te d a co n g reg ação e u te lo u v a re i". A possi-
b ilid a d e se to rn a m ais in te re ssa n te q u a n d o refletim o s q u e "S en h o r"
Q c y r io s ) é n a v e rd a d e o n o m e d o Jesu s re ssu rre to , e q u e n a LXX k y r i o s
tr a d u z o te tra g ra m a Y H W H , q u e é o n o m e p ró p rio d e D eus.
1496 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

"A hora" anunciada em 13,1 p ara Jesus passar deste m u n d o p a ra o


Pai agora está com pleta; a oração de Jesus em 17,5 p a ra a glória com
o Pai agora está respondida; tu d o o que resta é que ele volte a p ar-
tilhar sua glória com seus discípulos. A prim eira m etad e do q u e ele
disse em 14,28, "V ou indo", se cum pre; agora nos volvem os à m e tad e
de sua prom essa "V ou e retorno".

[A Bibliografia p a ra esta seção está inclusa n a Bibliografia p a ra


todo o cap. 20, no final do §69.]
69. A RESSURREIÇÃO DE JESUS:
- SEGUNDA CENA
(20,19-29)

O lugar em que estão reunidos os discípulos

20 19A g o ra , c h e g a d a a ta rd e d a q u e le p rim e iro d ia d a sem an a, q u an -


d o , p o r m e d o d o s ju d e u s, os d isc íp u lo s co m a s p o rta s tra n c a d a s d o
lu g a r o n d e e sta v a m , Jesu s v eio e se p ô s d ia n te d eles e lh es disse. "P az
a v ó s". 20E q u a n d o ele d isse isto, lh es m o stro u s u a s m ão s e lado. A
v ista d o S en h o r, o s d isc íp u lo s se reg o zijaram . 21"P a z a v ó s", disse-lhes
ele s e g u n d a vez:

"C o m o o P ai m e e n v io u ,
assim e u v o s e n v io ".

22E q u a n d o ele d isse isto, s o p ro u so b re eles, com as p alav ras:

"R ecebei u m E sp írito santo.


23A q u e le s a q u e m p e rd o a rd e s o s p e c ad o s,
se u s p e c a d o s tê m sid o p e rd o a d o s;
a q u e m o s re tiv e rd e s,
eles se rã o re tid o s" .

24A conteceu q u e u m do s D oze, Tom é (este n om e significa "G êm eos"),


estava au sen te q u a n d o Jesus veio. 25Então os o utros discípulos continua-
ram , dizendo-lhe: "V im os o Senhor!" M as ele lhes respondeu: "Eu jam ais

19: disse; 22: com as palavras (= e disse). N o tempo presente histórico.


1498 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

crerei sem prim eiro exam inar a m arca do s pregos em su as m ãos, e p ô r


m eu d ed o direito n o lu g ar do s pregos e m in h a m ão em seu lado".
26O ra, u m a s e m a n a d e p o is, o s d isc íp u lo s d e Jesu s e sta v a m o u tra v e z
n a casa; d e s ta v e z T om é e sta v a com eles. M u ito e m b o ra a s p o rta s es-
tiv essem tra n c a d a s, Jesu s a p a re c e u e se p ô s d ia n te d eles. " P a z a v ó s",
d isse ele. 27E n tão falo u a Tom é: "E ste n d e te u d e d o e e x a m in a m in h a s
m ãos; e ste n d e tu a m ão e p õ e -n a e m m e u lad o . E n ã o p e rsista s e m tu a
in c re d u lid a d e , m as sê to rn a cren te". 28T o m é re s p o n d e u co m a s p a la -
vras: "M e u S en h o r e m e u D eu s!" 29Jesu s lh e disse:

"T u ten s c rid o p o rq u e m e v iste.


F elizes a q u e le s q u e n ã o v ira m e, n o e n ta n to , tê m crid o ".

26: veio -, 2 7 : falou ; 2 9 : falou . N o te m p o p r e s e n t e h is tó r ic o .

NOTAS

20.19. Agora. Oun representa a tentativa do autor de ligar esta narrativa com
a que precedeu. M adalena dissera aos discípulos que ela vira o Senhor;
agora são eles os que o verão.
chegada a tarde daquele primeiro dia da semana. Desta vez a indicação pode
ser tam bém um conectivo redacional, associando a aparição com Jerusa-
lém e o Dia da Páscoa. (D odd, Tradition, p. 197, aponta para a anotação
redacional em Mc 4,35: "Q uando chegou a tarde daquele dia..."). A apa-
rição paralela aos onze em Lc 24,3349‫ ־‬é tam bém retratada como ocor-
rendo à tarde daquele dia; pois já era quase noite quando Jesus ceou com
os dois discípulos de Emaús, e estes discípulos tom aram seu cam inho
de volta a Jerusalém antes que Jesus aparecesse. O Apêndice M arcano
(16,14) cataloga tuna aparição aos onze à m esa depois de um a aparição
aos dois discípulos em um a estrada rural, sem quaisquer indicações de
tempo. "Aquele prim eiro dia da sem ana" significa o m esm o prim eiro dia
m encionado no v. 1. No entanto, alguns têm visto aqui um a alusão do
conceito veterotestam entário do dia do Senhor, algum as vezes cham ado
"aquele dia"; por exemplo, "M eu povo conhecerá m eu nome; naquele dia
saberão que eu falei" (Is 52,6). Não seria absolutam ente im provável que
João considerasse este dom ingo como o dia escatológico no qual, através
do dom do Espírito, Jesus faz possível sua presença perm anente entre
seus seguidores; ver Jo 14,20: "Naquele dia reconhecereis que eu estou
69 · O Jesus ressurreto: - Segunda cena 1499

em m eu Pai e que vós estais em m im e eu em vós" (também 16,23.26).


Todavia, não podem os concordar com o A rquimandrite C assien, pp. 267,
276, de que o uso de João é m eram ente escatológico e não cronológico,
de m odo que não está se referindo ao dom ingo que encontraram o tú-
m ulo vazio, e sim ao Pentecostes, cinquenta dias depois! (Assim, C assien
harm oniza João e Atos com referência à doação do Espírito e também
explica por que os cristãos celebram o Pentecostes no domingo).
O fato de que João menciona o prim eiro dia da semana, no início de am-
bas as cenas neste capítulo, e que coloca a aparição a Tomé exatamente
um a sem ana depois (v. 26, sugere que sua apresentação poderia ter sido
influenciada pelo costum e cristão de celebrar a Eucaristia em "o prim eiro
da sem ana" (At 20,7; cf. IC or 16,2). Que o dom ingo teve um significado
na com unidade joanina pode ser visto à luz da datação da visão do vi-
dente em Ap 1,10 a "o dia do Senhor", presum ivelm ente domingo. L oisy,
p. 510, propõe que João tem retratado seu perfil da presença de Jesus
entre os discípulos reunidos a fim de antecipar a presença eucarística de
Jesus nas assembléias cristãs no domingo. B arrett, p. 477, vê vestígios
de um a liturgia em 20,19-29: "Os discípulos reunidos no Dia do Senhor.
A benção é im petrada: 'Paz a vós.' O Espírito Santo desce sobre os ado-
radores e a palavra de absolvição (cf. v. 23) é pronunciada. Cristo mesmo
está presente (isto pode sugerir a Eucaristia e a Palavra falada de Deus)
portando as m arcas de sua paixão; ele é confessado como Senhor e Deus".
Aliás, esta passagem em João tem sido citada como a prim eira evidência
de que a observância cristã do dom ingo surgiu de um a associação da-
quele dia com a ressurreição - um a ideia à qual logo depois Inácio deu
voz: "N ão m ais vivendo para o sábado, m as para o Dia do Senhor no
qual a vida raiou para nós através dele e de sua m orte" (M a g n e s ia n s 9,1).
N ão obstante, é bem provável que H. R iesenfeld esteja certo em alegar
que a associação do dom ingo e a ressurreição fosse um desenvolvimento
secundário (" S a b b a t e t J o u r d u S e ig n e u r " , em NTEM, pp. 210-17). Origi-
nalm ente, no dom ingo à noite depois de term inado o sábado (c. seis da
tarde), e assim, pela contagem judaica, quando já era dom ingo, os judeus
cristãos que tinham observado o sábado agora se encontram em suas
casas para partir o pão eucarístico (cf. A t 2,46), como um a prolongação
do sábado. Assim, parecería que as celebrações cristãs mais antigas em
"o prim eiro dia da sem ana" não se davam no dia de dom ingo, e sim no
térm ino da tarde d a véspera de domingo.
p o r m e d o d o s ju d e u s . Nos outros evangelhos, fala de m edo a propósito dos
guardas e das mulheres quando têm a visão angélica junto ao túmulo
(Mc 16,8; M t 28,4.5.8; Lc 24,5), e as mulheres e os discípulos quando veem
1500 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

Jesus (Mt 28,10; Lc 24,37)· Em João, são "os judeus" que causam o m edo
(também 7,13), não as visões sobrenaturais. Ambos, Bultmann e H artmann,
consideram esta referência a "os judeus" como adição do autor joanino à
narrativa que chegou a ele. Isto significaria que os discípulos receiavam que
fossem executados pelas autoridades judaicas como o foi Jesus? O u signi-
fica que, no despertar dos rumores da ressurreição eles fossem acusados
pelas autoridades judaicas de cumplicidade no roubo do corpo (Mt 28,13)?
O apócrifo E v a n g e lh o d e P e d r o , 26, registra um a busca pelos discípulos sob a
acusação de que eram malfeitores e que tentaram queim ar o templo.
c o m a s p o r ta s tr a n c a d a s . O evangelista quer que pensem os que as portas tran-
cadas visavam a ser um a barreira ao possível acesso da guarda envia-
da pelas autoridades judaicas para prenderem os discípulos? O u é um a
questão de ocultação do paradeiro dos discípulos e um a tentativa de evi-
tar que saibam o paradeiro deles? A despeito da razão explícita que João
dá para o trancar das portas (i.e., o m edo dos judeus), m uitos estudiosos
veem outro m otivo por detrás desta descrição, a saber, que João quer que
pensemos que o corpo de Jesus podia atravessar portas fechadas (ver co-
mentário). Tal interpretação recebe mais suporte se derm os função ad-
versativa à construção participial precedente: "M uito em bora as portas
estivessem trancadas, Jesus apareceu". Esse é o significado no v. 26, onde
não se menciona nenhum "m edo dos judeus"; m as não cremos ser esse
o significado aqui. Alguns encontrariam um paralelo para tal atribuição
espiritual ao corpo ressurreto de Jesus na descrição que Lucas faz de seu
súbito desaparecimento da vista dos discípulos em Emaús e sua súbita
aparição diante dos onze em Jerusalém (Lc 24,31.36), em bora Lucas não
mencione que os discípulos estivessem trancados. O relato do túm ulo
vazio pode refletir um a postura mais prim itiva ante as propriedades do
corpo de Jesus; pois a insistência de que a pedra foi rolada ou rem ovida
parece implicar que o corpo de Jesus surgiu através da entrada aberta.
d o lu g a r o n d e e s t a v a m . Algum as testem unhas textuais tardias anexam "reu-
nidos juntos" (em imitação de M t 28,20?). E bem provável que João tives-
se em m ente um a casa e m J e r u s a lé m (onde "os judeus" constituíssem um a
ameaça), presum ivelm ente o m esm o lugar onde os discípulos estavam
quando M adalena lhes veio ao encontro no v. 18. Lc 24,33 deixa bem claro
que a aparição se deu em Jerusalém. O ponto de vista popular de que isto
ocorreu em "sala do piso superior" provém da identificação deste lugar
não especificado com o cenáculo (h y p e r õ o n ) de At 1,13, onde os onze per-
m aneceram após a partida de Jesus para o céu, quarenta dias depois, e a
identificação ulterior deste com posto com o grande cenáculo (a n a g a i o n
m e g a ) , onde se realizou a últim a ceia (Lc 22,12). O A pêndice M arcano
69 · O Jesus ressurreto: - Segunda cena 1501

de que os onze se reclinavam à mesa, e um a refeição está tam bém ao


alcance no relato lucano da aparição.
J e s u s v e io e s e p ô s d ia n t e d e le s . Lc 24,36 tem quase a m esm a expressão sem
o "veio". O uso que João faz de "veio" pode ser acidental, m as muitos
com entaristas veem aqui um cum prim ento específico da promessa de
voltar em 14,18.28 (o m esm o verbo).
e lh e s d is s e : " P a z a v ó s " . Na não interpolação ocidental (p. 1436 acima) de
Lc 24,36 encontram os exatamente as mesmas palavras. A Vulgata e a Pe-
shita anexam à passagem de Lucas: "Sou eu, não temais", um a expres-
são encontrada no relato de Jesus caminhando sobre as águas (Jo 6,20;
Mc 6,50; M t 14,27). N o hebraico rabínico, "Paz [seja] a vós [convosco]" veio
a ser um a saudação padrão: no plural, é s ã l õ m ‘ã l ê k e m , menos frequen-
tem ente s ã l õ m , l e k e m . Somente no hebraico bíblico aparece a forma com
l e e frequentem ente em momentos m ais solenes, de m odo que o dicio-
nário hebraico K oehler (p. 974, col. 2) considera alguns casos de S ã l õ m
l e , um a fórm ula de revelação". Por exemplo, em Jz 6,23, quando Gideão
fica atem orizado quando vê o anjo do Senhor, o Senhor lhe diz: "Paz a
ti; não temas; não m orrerás". Gideão responde, construindo ali um altar,
intitulado "O Senhor é paz". De m odo semelhante, um a aparição angé-
lica tranquiliza Daniel am edrontado (10,19) com as palavras: "Paz a ti".
Obviamente, em Jo 20,19 estamos tratando também de um contexto solene
e não pressupom os que "Paz a ti" seja um a saudação ordinária. Pode ser
que, com esse pressuposto, m uitas traduções trazem "Paz seja a ti [con-
vosco]", tradução que implica o desejo de que a paz seja restaurada ou
granjeada. Neste m omento escatológico, contudo, as palavras de Jesus não
constituem um desejo, e sim um a afirmação de fato. W. C. van U nmik tem
feito um minucioso estudo da fórmula litúrgica similar: "O Senhor convos-
co" ou D o m i n u s v o b is c u m (em NTEM, pp. 270-305); e salienta (p. 283) que
(a) nos casos em que um verbo é suprido, a nota de certeza é mais forte do
que quando em prega o subjuntivo, que indica desejo ou possibilidade, e
(b) quando um verbo não é encontrado (como aqui), a frase é praticamente
"seja". E bem provável que a ideia de que o Jesus ressurreto trouxe paz
ecoe na saudação inicial das cartas paulinas onde o uso habitual de "paz"
seja m ais do que um a formalidade ou um a tradução de s ã l õ m das cartas
judaicas seculares (ver J. A. F itzmyer, T h e J e ro m e B ib lic a l C o m m e n ta r y [Co-
m entário Bíblico Jerônimo], ed. por R. E. B rown et al. [Englewood Cliffs,
N.J.: Prentice-Hall, 1968. Em português Paulus Editora, 2019], art. 47, §8A).
20. lh e s m o s tr o u s u a s m ã o s e la d o . A posição de "lhes" varia nas testem unhas
textuais. A não interpolação ocidental de Lc 24,40 tem um a redação
quase idêntica, com "m ãos e pés" em vez de "mãos e lado" de João;
1502 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

Lc 24,39 traz: "Vede m inhas m ãos e m eus pés". N o v. 25, João deixará cia-
ro que tem em m ente as m arcas do prego nas m ãos o u da lança do lado;
Lucas nunca especifica, m as presum ivelm ente tem em m ente as m arcas
do prego, respectivamente, nas m ãos e nos pés. Os quadros lucanos e
joaninos têm sido combinados na piedade cristã para produzirem devo-
ção para com "as cinco feridas" de Jesus (duas nas m ãos, duas nos pés e
um a no lado) e a convicção de que foram usados quatro pregos (em parte
um convencionalismo artístico) ou três pregos. (A segunda procede do
pressuposto de que as pernas foram trançadas e um só prego prendeu os
pés, um a descrição que se relaciona com a ideia de que havia na cruz um
s u p p e d a n e u m ou apoio para o pé). É difícil decidir qual é m ais original,
"mãos e lado" de João ou "m ãos e pés" de Lucas. M uitos propuseram
que João m udou "pés" para "lado" a fim de harm onizar com sua des-
crição de um a ferida de lança em 19,34; contudo, B enoit, P a s s i o n , p. 284,
argum enta em favor de João contra Lucas. Somos inclinados a concordar
com H artmann, p. 213, de que ambos, Lucas e João, nos apresentam um
desenvolvim ento e que a afirmação original m encionava som ente m ãos
- um desenvolvim ento que não é necessariam ente fictício.
Parenteticam ente, podem os discutir a alegação de que os dados de Lu-
cas são suspeitos, porque até então tem os tido pouco apoio confiável da
antiguidade para o costum e de pregar os pés na cruz. Enquanto no 2 a
século indica-se claram ente que os pés de Jesus foram pregados à cruz
(Justino, T r if o 47,3; PG 6:705A; e T ertuliano, A d v J u d a e o s 13; PL 2:635A),
as afirmações patrísticas relacionam especificamente este detalhe com o
cum prim ento do SI 22,17(16): "Eles perfuraram [LXX] m inhas m ãos e
pés". E então se pensa que Lucas tam bém pode ter adaptado a m em ória
da crucifixão ao salmo. Esta solução perm anece possível; m as a descrição
de Lucas de m arcas de prego nos pés de Jesus tem granjeado verossi-
m ilitude à luz da descoberta na Palestina de um ossuário do 1Qséculo
contendo os restos de um hom em crucificado, cujos am bos os pés foram
trespassados por um prego através dos ossos dos tornozelos. (Referência
a esta descoberta foi feita por V. T zaferis em um jornal [com um resum o
em inglês] dado no Congresso M undial de Estudos judaicos em Jerusa-
lém em 1969).
Se o relato original pré-evangélico da aparição de Jesus m encionava so-
m ente suas mãos, encontram os um problem a m enor: norm alm ente, ou
os braços eram atados à parte transversal, ou os p u l s o s eram pregados,
sendo o últim o m étodo adotado quando se desejava apressar a m orte,
como no caso de Jesus. A m enção de m arcas de prego nas m ãos seria
então um a inexatidão leve (influência do salmo?), pois os pregos que
69 · O Jesus ressurreto: - Segunda cena 1503

atravessavam as p alm as d a s m ãos n ão teriam su p ortad o o p e so d o corpo


na cruz. (Ver J. W . H ewtt, " T h e U s e o f N a i l s in C r u c if ix io n " , HTR 25 [1932],
2 9 4 5 ‫)־‬. N ã o é im p o ssív e l q u e a d ificu ld ad e seja criada p or u m a tradução
ex cessiv a m en te literal, v isto q u e am bas as palavras, hebraicas e gregas,
para "mão" ( y ã d , c h e i r ) algu m as v e z e s in clu em o braço.
À vista do Senhor. Literalmente, "tendo visto" (BDF, §415). Agora o pró-
prio autor joanino começa a usar "o Senhor", o título pós-ressurreição de
Jesus (ver nota sobre v. 2).
21. " P a z a v ó s " . A repetição (ver térm ino do v. 19) provavelm ente seja o resul-
tado de adições redacionais, em bora alguns comentaristas tenham pre-
sum ido que os discípulos necessitavam de mais segurança em razão do
m edo e d úvida (não mencionados).
e n v io u ... e n v io . Os verbos, respectivam ente a p o s te lle in (tempo perfeito) e
p e m p e i n (presente), estão aqui em paralelism o não com sinal visível de
distinção. N o paralelo mais estrito de, 17,18, "Como m e enviaste ao mun-
do, assim eu os enviei", a p o s te lle in é usado no aoristo em am bas as partes.
Em bora provavelm ente este versículo reflita o comissionamento dos dis-
cípulos, não pode ser usado para argum entar que somente os onze es-
tavam presentes, pois um a com preensão m ais antiga de "apóstolo" não
lim itava aquele term o aos doze.
22. s o p r o u s o b r e e le s . Para esta ação como evocativa do alento criador de Deus
em Gn 2,7, ver comentário. O TM e a LXX daquele versículo têm Deus
s o p r a n d o em Adão o s o p r o ( p n ó ê ) da vida, e alguns têm indagado se João
era dependente de um a form a da passagem que lê "espírito" (p n e u m a )
em vez de "fôlego". Por exemplo, Filo, Q u o d d e te r iu s 22; 80, parece ler
p n e u m a em Gn 2,7; todavia, em L e g u m a lle g o r ia 1,13; 42, Filo lê p n ó ê
neste versículo e ainda comenta sobre o uso desta palavra no lugar de
p n e u m a (ver tam bém D e o p if ic io m u n d i 46; 1 3435‫ ־‬onde se lê p n ó ê , mas é
interpretado como p n e u m a ) . Uns poucos comentaristas têm interpreta-
do a passagem joanina à luz da crença popular do Oriente Próximo de
que o fôlego de u m hom em santo tem poder sobrenatural; por exemplo,
a habilidade de curar ou imobilizar um a pessoa. Porque em João este
sopro é vinculado com o poder de perdoar pecados, que é um poder
sacram ental em grande parte do cristianismo (igrejas orientais e cato-
licismo rom ano), alguns têm pensado que aqui João reflete um rito de
ordenação cristã prim itiva (cf. G rass, p. 67). O utros têm visto na passa-
gern joanina como a origem para a prática posterior de ordenação por
insuflação. O exemplo mais famoso disto foi o costum e de encher um
odre com o sopro santo do Patriarca Cóptico de Alexandria, tentando
retê-lo e transportando-o até um rio da Etiópia onde ele foi liberado a
1504 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

alguém designado a ser o A buna ou cabeça da igreja etiópica. L ootfy L e -


vonian, T h e E x p o s ito r , 8th Series, 22 (1921), 149-54, discutindo tais crenças
e práticas em relação a Jo 20,22, diz (com segurança) acerca deste últim o
costume: "N inguém pode duvidar da sucessão apostólica quando ela
vem nesta forma". Finalmente, podem os m encionar que um a geração
posterior de teólogos ocidentais recorria ao v. 22 como prova de que den-
tro da Trindade o Espírito Santo procedia via inspiração e que o Filho
teve um papel não só na missão, m as tam bém na processão d o Espírito
(A gostinho, D e T r i n i t a t e 4,29; PL 42:908). A controvérsia não está morta;
o m oderno escritor ortodoxo russo C assien, pp. 264-65, encontra em João
evidência de que a processão do Espírito é exclusivam ente do Pai.
R e c e b e i u m E s p í r i t o s a n t o . Em bora nossa tradução preserve o fato de que
no grego não há artigo definido, devem os salientar que o artigo está
ausente em outros textos bíblicos que claram ente se refere ao Espírito
Santo na plena com preensão neotestam entária do term o (At 2,4). Ao
tentar harm onizar Jo 20,22 com o relato lucano do Pentecostes, alguns
têm tentado m ostrar, à luz da om issão de João do artigo, de que aqui
estava im plícito não m ais que um dom im pessoal do Espírito, enquanto
Lucas estava falando do Espírito pessoal (S wete, pp. 166-396). C assien,
pp. 156-59, com razão rejeita essa abordagem , tanto sobre bases filosó-
ficas como teológicas.
23. A q u e le s a q u e m p e r d o a r d e s o s p e c a d o s. O verbo é a p h ie n a i, "soltar, liberar".
Aqueles que supõem um pano de fundo semítico geralmente sugerem que
ele reflete o heb. n a é a ’ (o verbo grego tem um a conotação legal, enquanto
o verbo hebraico é mais cúltico). A partícula grega inicial a n , a qual não
se reflete em nossa tradução, pode traduzir-se de diferentes m odos sem
que isso suponha diferenças enquanto ao significado ("se", "quando";
(BDF, §107; M oule, IBNTG, p. 152), também pode ser traduzido: "Q uando
perdoardes..."; "cujos pecados sempre perdoardes...". Mais im portante é
o fato de que run subjuntivo aoristo é usado nesta cláusula, enquanto a
cláusula paralela, "se os retiverdes", tem um subjuntivo presente. O aoris-
to implica um ato que em um m om ento traz perdão, enquanto o presente
implica que o estado de reter ou recusar perdão continua (ZGB, §249). No
texto original se fala de "os pecados de alguns [plural]"; todavia, há bas-
tante base textual para ler um singular "de alguém".
s e u s p e c a d o s te m s i d o p e r d o a d o s . As testem unhas textuais diferem notável-
m ente na forma do verbo a ser lido aqui. As m elhores testem unhas têm o
passivo perfeito, m as tam bém há certa base para ler o futuro ou o presen-
te passivo. Em um artigo professam ente escrito para refutar as interpre-
tações sacramentais deste versículo. J. R. M antey JBL 58 (1939), 243-49,
69 · O Jesus ressurreto: - Segunda cena 1505

insiste que o tempo perfeito implica ação pretérita e que as redações no


presente e no futuro são tentativas de fazer o versículo adequar-se a uma
teologia sacramental. Portanto, o citado autor prefere traduzir como
"seus pecados tê m s i d o perdoados", com a implicação teológica de que
nesta passagem se declara o perdão dos pecados que já tem tido lugar.
M antey teve a resposta de H. J. C adbury, JBL 58 (1939), 251-54 que, em-
bora não professe interesse em defender a interpretação sacramental do
versículo, mostra que a compreensão de M antey do tempo perfeito não se
aplica a sentenças condicionais. Um tempo perfeito usado na apódose de
um a condição geral não se refere necessariamente a uma ação que é an-
terior à prótese; ao contrário, tal perfeito pode ter uma referência futura
(BDF, §344). Assim, as variantes textuais do v. 23 com tempos presente
e futuro (ver BDF, §323’) têm exatamente o mesmo significado que a re-
dação com o tempo perfeito, exceto que o tempo perfeito chama mais a
atenção para o caráter contínuo da ação: os pecados são perdoados e per-
manecem assim. O passivo é uma circunlocução para descrever a ação
de Deus, de forma que podemos parafrasear a primeira parte do v. 23,
assim: quando perdoardes os pecados dos homens, nesse momento Deus
perdoa esses pecados e permanecem perdoados. J. Jeremias, TWNTE, III,
753, acha aqui a ideia de que no último dia Deus confirmará a remissão,
e, ao contrário, os pecados não perdoados serão retidos até o dia do juízo.
a q u e m o s r e tiv e r d e s . O verbo é k r a te in , "segurar firme, manter, reter". No
lugar de "os", algumas testemunhas textuais leem um singular. Não fica
absolutamente claro se o objeto retido são os homens que cometeram os
pecados (assim, OSsin) ou os pecados deles. O último é mais provável
por razão de paralelismo com a primeira parte do versículo. A fraseolo-
gia "reter pecados" é estranha no grego, provavelmente, foi introduzida
como uma contraparte à imagem de liberá-los ou deixá-los ir (a p h ie n a i ).
Mc 7,8 contrasta os dois verbos: "Porque, d e ix a n d o o mandamento de
Deus (não o observando), retendes a tradição dos homens". Um possível
paralelo à ideia envolvida na expressão idiomática de João se encontra
no grego de Eclo 28,1: "Aquele que se vinga encontrará a vingança do
Senhor que pedirá minuciosa conta de [d i a f ê r e i n ] seus pecados".
24. u m d o s D o z e . Sem Judas, agora resta somente os onze, mas a designação
mais tradicional do grupo é mantida. Porque os doze têm um peque-
no papel no Evangelho de João, Bultmann, p. 537, mantém que o evan-
gelista teria encontrado esta frase na tradição pré-evangélica. Todavia,
certamente o evangelista conhecia e pôde ter imitado essa determinação
padrão; por exemplo, em 6-71 Judas é "um dos doze". O padrão é bem
similar a "um dos discípulos" (6,8; 12,4; 13,23).
1506 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

Tomé (este nome significa "Gêmeo"). A explicação desta designação pode ser
encontrada na nota sobre 11,5 - é bastante romântico afirm ar que o nom e
é aqui explicado a fim de p reparar para a "duplicidade" de Tomé ou um
papel daquele que duvida. Em ambos, 11,16 e 14,5, Tomé exibe um a ati-
tude cética, m as não há base para a conjetura de B ernard (II, 681) de que
o pessim ism o de Tomé o afastou da reunião dos discípulos na noite da
Páscoa. N a tradição apócrifa, Tomé se tom ou o recipiente de revelações
m aravilhosas. O Evangelho de Tomé, no v. 13, tem Tomé professando a Je-
sus: "M inha boca não é culpável de dizer a quem te assem elhas". Por sua
vez, Jesus elogia Tomé por ter bebido da fonte de Jesus e lhe pronuncia
três palavras inefáveis.
25. os outros discípulos. "O utros" é om itido po r um a pequena, m as im por-
tante, com binação de testem unhas.
continuaram, dizendo-lhe: Pode ser que o im perfeito seja conativo (BDF,
§326): trataram de lhe explicar o ocorrido.
jamais crerei. Na ordem da palavra grega, esta recusa de crer vem no final
da sentença; o padrão é: "Se eu não exam inar [literalmente, ver]... jam ais
crerei". A negativa é o ou m ê forte com o indicativo futuro (BDF, §365).
marca dos pregos... lugar dos pregos. "Marca" é typos‫׳‬, "lugar" é topos‫׳‬, e as tes-
temunhas textuais exibem um a confusão das duas palavras (e mesmo de
formas singulares e plurais). Embora muitos leem typos como original em
ambas as frases (assim SB, American Bible Greek NT), as redações variantes
são mais facilmente explicadas se o original tinha duas palavras diferentes.
e por 0 dedo direito. A tradução tenta captar o sentido do m ovim ento no
verbo ballein, "arrem essar".
26. uma semana depois. Literalmente, "oito dias depois"; como o OSsin dei-
xa explícito, João quer que entendam os isto como o segundo dom ingo
(ver nota sobre v. 19, "daquele prim eiro da semana"). Alguns encontram
aqui um exemplo da teologia cristã prim itiva sobre o oitavo dia (vol. 1,
p. 300). A Epístola de Barnabé 15,9 parece refletir a sequência joanina dos
acontecimentos no dom ingo da Páscoa, quando diz: "Celebram os com
alegria 0 oitavo dia quando Jesus tam bém ressuscitou dentre os m ortos
e apareceu e ascendeu ao céu". O utro possível sim bolismo é que no fim
do evangelho João colocou um a sem ana em paridade com a sem ana no
início do evangelho (vol. 1, pp. 299-300). As duas sem anas partilham o
tem a da criação (exemplificado em 20,22 no soprar criador do Espírito).
Interpretações tão imaginativas são difíceis d e se provar.
A sequência indicaria que João pressupõe um a presença contínua dos
discípulos em Jerusalém. Isto é difícil de conciliar com a perspectiva m ar-
cana/m ateana em que a m ensagem angélica instrui os discípulos a irem
69 · O Jesus ressurreto: - Segunda cena 1507

para a Galileia onde verão Jesus (ver pp. 1437-39). Consequentem ente,
alguns partidários da harm onização, por exemplo, Z ahn, pretendem co-
locar esta cena na Galileia para onde se supõe que os discípulos teriam
ido na sem ana interveniente; acrescentam o argum ento de que em 20,1
estão n a Galileia, e assim se explicaria a m udança. L agrange, p. 517, pre-
sum e que os discípulos perm aneceram em Jerusalém para a longa sema-
na de celebração da Páscoa/Pão Azímos (Dt 16,3), e agora se reuniram
prontos p ara p artir para a Galileia.
outra vez. Dá-se a im pressão de que não houve reuniões e daí nenhum a
aparição du rante a sem ana transcorrida.
na casa. Literalmente, "dentro", sem m enção específica de determ inada
câsa; veja, porém , o grego de Ez 9,6: "dentro, na casa".
Jesus apareceu. O uso do presente histórico aqui (como contrastado com
o aoristo na expressão similar no v. 1 9 ) sugere a B e r n a r d , II, 6 8 2 , tuna
implicação de que Jesus era esperado. N o v. 1 9 , Jesus teria sido menos
esperado, após as palavras no v. 1 7 ditas a M adalena? N ão há razão apa-
rente, aparte da estética para tais variações de tempo.
27. falou a Tomé. Jesus sabe o que Tomé dissera em sua ausência; mas não
estam os certos se tal conhecimento é um privilégio especial do Jesus res-
surreto, pois m esm o durante o m inistério o Jesus joanino fora extraordi-
nariam ente perceptivo (ver 1,48).
Estende teu dedo e examina minhas mãos. Literalmente, "Traze teu dedo aqui
e vê m inhas m ãos". Em Lc 24,39, tem, "Vê m inhas m ãos e m eus pés", é
sim ilar à segunda parte do convite de João.
estende tua mão e põe-na em meu lado. O fato de que o lado de Jesus podia
ser tocado é usado por K astner, art. cit., como prova para seu argum ento
de que o Jesus ressurreto estava nu; mas, à luz do fato de que Jesus não
diz "vê" ou "exam ina" m eu lado, como foi o caso com as mãos, outros
julgam que seu lado estava coberto com um a veste solta sob a qual se
podia alcançar (L oisy, p. 510). Dificilmente o evangelista tencionava for-
necer informação sobre artigos de vestuário apropriados para um corpo
ressurreto. L oisy qualifica como ingênua a ideia de que havia ainda uma
ferida supurando no lado do corpo, mas alguém indagaria se ele não te-
ria julgado tam bém ingênuo se o corpo ressurreto tivesse aparecido com
as feridas curadas.
E não persistas em tua incredulidade, mas sê torna crente. Literalmente, "E não
te faças [ginou] incrédulo, m as crente". W enz, p. 18, argum enta que a tra-
dução que B ultmann faz do "e" inicial é inexata, pois B ultmann faz disto
um a cláusula de propósito: "Para que não m ais sejas incrédulo". W énz
rejeita a implicação de que o ato de tocar e ver não faça parte da fé de Tomé.
1508 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

Mas, conquanto não aceitemos a interpretação geral que B ultmann faz


deste versículo (ver comentário), concordam os que a exigência de Tomé
no v. 25 certam ente não é representativa de fé, e se Tomé aceitou o con-
vite de Jesus para examiná-lo e tocá-lo, Tomé não teria sido crente, no
sentido joanino. O im perativo presente usado aqui é de duração; seu
uso em um a proibição implica que algo já existente há de interrom per-se
(BDF, §§335,3363); e assim Tomé está sendo instado a m udar sua atitude.
Portanto, não podem os concordar com B arrett, p. 476, que sugere que,
possivelmente, Tomé está sendo instado a portar-se como crente e não
como incrédulo, sem a implicação necessária de que ele fora incrédulo.
Não concordamos com L oisy, p. 511, que enfatiza que o verbo é "fazer-se,
chegar a ser" e m antém que Tomé, que é explicitamente firm e em sua
incredulidade, está sendo instado à fé. Aqui, ginesthai significa "ser, mos-
trar-se" (como implícito na redação variante encontrada no Codex Be-
zae: rriê isthi, "não sejas"). Tomé havia m anifestado incredulidade e está
sendo desafiado a m udar. Em João, este é o único exemplo dos adjetivos
apistos e pistos - João prefere o verbo pisteuein (vol. 1, pp. 802) - , m as se
usam contudo em Apocalipse. Em outros lugares, os adjetivos ocorrem
em Atos e em Paulo; e D odd, Tradition, p. 354, salienta que são contrasta-
dos em u m sentido ligeiram ente diferente na parábola do adm inistrador
fiel ou infiel (Lc 12,42-48).
28. "Meu Senhor emeu Deus". Contra a teoria de T eodoro de M opsuéstia, o Se-
gundo Concilio de Constantinopla (quinto concilio ecumênico, 553 d.C.)
insistiu que estas palavras eram um a referência a Jesus e não m eram ente
um a proclamação em honra do Pai (DB, §434). Não há tendência entre os
estudiosos m odernos de seguir a T eodoro. A expressão, como u sada em
João, combina evocativo e um a proclam ação de fé ("Tu és o m eu Senhor
e o m eu Deus"). D odd, Interpretation, p. 4302, sugere que "m eu Senhor"
se refere ao Jesus da história e "m eu Deus" é um a avaliação teológica de
sua pessoa; ele cita em favor a paráfrase de F. C. B urkitt: "Sim, é Jesus - e
ele é divino". Mas B ultmann, p. 538, está certo em insistir que em com-
binação com "Deus", "Senhor" deve ser tam bém um título cúltico (ver
comentário). O artigo é usado antes de "Deus"; lem bram os que ele não
foi usado no grego de 1,1 (vol. 1, p. 173). Entretanto, a diferença de signi-
ficado não deve ser frisada com dem asiada insistência, como se 1,1 fosse
um a afirmação m arcantem ente m enos exaltada (M oule, IBNTG, p. 116).
29. tens crido. Algum as testem unhas siríacas prefaciam isto com um "Agora".
A sentença é tomada como um a indagação em muitos mss. minúsculos e por
muitos estudiosos m odernos (W estcott-H ort, Bernard, L oisy, T illmann,
L agrange; ver MATGS, p. 345): "Tu creste porque m e viste?" Para outros
69 · O Jesus ressurreto: - Segunda cena 1509

exem plos onde a prim eira parte dessas comparações de dois m embros
constitui um a pergunta, ver 1,50; 4,35; 16,31-32. Temo-la aceito hesitante-
m ente como um a afirmação, já que essa é a redação mais difícil.
p o r q u e m e v i s t e . Alguns tom am isto neste sentido: "porque te alegraste em
m e ver m ais do que em m e tocar como te desafiei"; m as este não é o sig-
nificado óbvio.
F e lize s. Para a natureza de um a beatitude ou macarismo, ver nota sobre 13,17.
A outra única beatitude no NT concernente a crer está em Lc 1,45, onde
Isabel fala a Maria: "Feliz é aquela que creu que haveria um cumprimen-
to das palavras que lhe foram ditas da parte do Senhor". Uma referência a
Jo 20,29 como a nona beatitude, ainda que engenhosa, tem a infeliz implica-
ção de que o grupo de oito de Mateus (Mt 5,3-11) é um a coleção completa.
e , n o e n t a n t o , t ê m c r id o . M uitos tratam isto como um aoristo gnômico ou
atem poral, equivalente a um presente ("e, contudo, creem"). Mas o pre-
térito não é inapropriado, pois é bem provável que o evangelista estives-
se pensando em seu próprio tem po, quando por m uitos anos houve um
grupo que não vira, porém cria.

COM ENTÁRIO: GERAL

N a p . 1430 a p re s e n ta m o s o esb o ço d e s te e p isó d io , e n a p . 1468s a com -


p a ra m o s c o m a p rim e ira cen a (20,1-18) e n o ta m o s a s s im ila rid a d e s d e
o rg a n iz a ç ã o . T o d a v ia, a h istó ria d a c o m p o siç ão d a s e g u n d a cena p a-
rece te r s id o d ife re n te d a q u e la d a p rim e ira cena. Se a p rim e ira cena
foi u n id a p e la c o m b in a çã o d e trê s n a rra tiv a s u m a v e z in d e p e n d e n te s,
a s e g u n d a c e n a é u m a a m p lificação e reo rg a n iz a ç ã o d e u m a n a rra ti-
v a b á sic a c o n c e rn e n te à p rim e ira a p a riç ã o d e Jesu s ao s o nze. Lem -
b ra m o s (p. 1436 acim a) q u e d u a s te s te m u n h a s e v a n g élicas, a lé m d e
Jo 20, co lo cam e sta a p a riç ã o n a á re a d e Je ru sa lé m (L ucas e o A p ên -
d ice M a rc a n o ), e n q u a n to d u a s o u tra s te s te m u n h a s a colocam n a área
d a G alileia (M t; Jo 21). Jo 20 se a p ro x im a m ais n o s d e ta lh e s a os rela to s
d o g r u p o h ie ro so lim ita n o , e sp e c ia lm e n te a L ucas, m a s en c o n trare -
m o s u m a s im ila rid a d e o c a sio n a l ao s re la to s d o g ru p o galileu.

A n á lis e d a n a r r a tiv a d a a p a riç ã o a o s d is c íp u lo s (20,19-23)

A n tes acim a (p. 1445) tem os afirm ad o q u e as narrativ as d e apari-


ções n ã o fo ram originalm ente u n id a s às n arrativ as d e visitas ao túm ulo,
1510 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

e assim n ão ficam os su rp reso s d e en co n trar indícios d e q u e Jo 20,19-23


foi em o u tro te m p o u m rela to in d e p e n d e n te d o m a te ria l c o n tid o e m
20,1-18. A d e sp e ito d a te n ta tiv a n o v. 19 ("a g o ra"; " d a q u e le d ia , o p ri-
m eiro d a se m a n a ") d e e n la ç a r ju n to s os d o is rela to s, a n a rra tiv a d a
a p a riçã o aos d isc íp u lo s p o d e ría se g u ir d ire ta m e n te a n a rra tiv a d a p a i-
xão. Se o D iscíp u lo A m a d o c re u co m b a se n o q u e v iu n o tú m u lo v a z io
(v. 8), n ã o h á v estíg io d e s u a fé q u a n d o os d isc íp u lo s se re ú n e m à
p o rta s tra n c a d a s n o v. 19. N e m a fé d e M a d a le n a a fe to u n o ta v e lm e n te
este g ru p o , a d e sp e ito d e s u a m e n sa g e m n o v. 18.
O ep isó d io n o s vs. 19-23 tem as cinco características a trib u íd a s p o r
D odd às n a rra tiv a s concisas d e aparições p ó s-ressu rreição (p. 1439 aci-
m a), e m b o ra u m a o u o u tra característica esteja lig e ira m e n te o b scu -
recid a. A s i t u a ç ã o d e s o l a d a d o s se g u id o re s d e Jesu s é d e sc rita n o v. 19
n u m a fo rm a e x p a n d id a ; é b e m p ro v á v e l q u e e sta v a m c o m m e d o d e
"o s ju d e u s " fosse u m d e se n v o lv im e n to jo an in o d o m o tiv o d a s u rp re -
sa n u m a fo rm a m ais a n tig a d a n a rra tiv a . A a p a r i ç ã o e a s a u d a ç ã o n o
v. 19 são concisas; n ã o o b sta n te , " P a z a v ó s" reflete u m te m a teoló-
gico jo an in o , co m o v erem o s. O r e c o n h e c i m e n t o c o n se q u e n te d e Jesus
p o r se u s d isc íp u lo s n o v. 20 é u m p o u c o d e saje ita d o , p o is n ã o so m o s
in fo rm a d o s co m o os d isc íp u lo s re a g ira m à sa u d a ç ã o n e m se d á tu n a
raz ã o p o r q u e Jesus se se n tiu c o m p e lid o a m o stra r s u a s m ão s e lado.
(Ao a n a lisarm o s a a p a riç ã o a T om é, su g e rire m o s q u e a e x p re ssã o d e
d ú v id a q u e o ra é d ra m a tiz a d a n o re la to d e T o m é u m a v e z p re c e d e u o
v. 20 e d e u o casião p a ra a ação d e Jesus, co m o ta m b é m e m Lc 24,37-39).
O ele m en to d e c o m a n d o ap a re c e ex p lic ita m e n te n o v. 21, m a s é acom -
p a n h a d o d e d o is d ito s u m ta n to rela cio n a d o s n o s vs. 22 e 23.
Ju sta m e n te com o h o u v e d o is tip o s d e p a ra le lo s lu c a n o s co m o
rela to jo an in o d a visita d o s d isc íp u lo s ao tú m u lo (p p . 1474-76 acim a),
assim h á d o is tip o s d e p a ra le lo s lu ca n o s com a p re s e n te n a rra tiv a . U m
p a ra lelo d ire to com Jo 20 se e n c o n tra n a s n ã o -in te rp o la ç õ e s o cid en -
tais (p. 1436 acim a) d e Lc 24,36 e 40, a sa b er, " 'P a z a v ó s ', d isse ele" e
" q u a n d o d isse isto, m o stro u -lh e s su a s m ã o s e se u s p é s". E xceto p a ra
a referên cia ao s p é s (ver n o ta so b re v. 20), isto é q u a se lite ra lm e n te o
m esm o q u e o final d o v. 19 e o com eço d o v. 20 e m Jo 20. V isto q u e es-
tes v e rsíc u lo s são essenciais a o re la to d e João, m a s n ã o são tã o essen-
ciais a L ucas, p o d e m o s p re s s u p o r q u e n o ú ltim o e stá g io n a re d a ç ã o de
L ucas a lg u é m a g re g o u estas p a la v ra s to m a d a s d e u m a fo rm a p rim i-
tiv a d a tra d iç ã o lu can a. Se p u s e rm o s d e la d o e sta s n ã o -in terp o la ç õ e s
69 · O Jesus ressurreto: - Segunda cena 1511

o c id e n tais, p e rs is te u m a sim ila rid a d e e n tre o re la to lu ca n o b ásico d a


a p a riç ã o (24,36.39.41.47.49) e o re la to jo an in o básico; é b e m p ro v á v e l
q u e sejam d e s e n v o lv im e n to s in d e p e n d e n te s d a n a rra tiv a hierosolim i-
ta n a o rig in a l d a a p a riç ã o d e Jesus a se u s d iscíp u lo s. A m b o s descre-
v e m a a p a riç ã o co m o o c o rre n d o n a n o ite d e d o m in g o d a Páscoa. E m
c a d a u m Je su s v e m d e fo rm a re p e n tin a , e so m o s in fo rm a d o s q u e "se
p ô s d ia n te d e le s " (Jo 20,19; Lc 24,36). H á u m a ên fase sim ilar so b re
a re a lid a d e o u ta n g ib ilid a d e d o co rp o d e Jesu s, p o is e m c a d a relato
c h a m a -se a a te n ç ã o p a ra s u a s m ãos. A ale g ria d o s d isc íp u lo s é u m
te m a c o m u m ; e e m c a d a re la to h á u m tip o d e p a u s a o u tra n siç ã o a n tes
q u e o Je su s re s s u rre to e m ita s u a m e n sa g e m (cf. Jo 20,21 e Lc 24,44).
A m b o s o s e v a n g e lh o s m en c io n am o p e rd ã o d o s p e c a d o s (Jo 20,23;
Lc 24,47). E specificam ente, João se refere ao en v io d o s d iscíp u lo s (v. 21)
e a d o a ç ã o d o E sp írito S anto (22), e n q u a n to as referên cias lu ca n a s são
m a is su tis: "E e m m e u n o m e s e p r e g a s s e o a rre p e n d im e n to e a rem is-
são [p erd ã o ] d o s p e c ad o s, em to d a s a s nações, co m e ç a n d o d e Jerusa-
lé m " (24,47) e a " p ro m e ssa d e m e u P ai" (49). E sta c o m p a raç ã o com
Lc 24,33-53 n ã o re s u lta d e sfa v o ráv e l a João, p o is Jo 20,19-23 p re se rv o u
m e lh o r o e sq u e m a o rig in a l d a cena. João n ã o te m o d e sen v o lv im e n to
a p o lo g é tic o so b re a c a p a c id a d e d e c o m er q u e p o ssu i Jesus e n c o n tra d a
e m Lc 24,41-42 (cf. 10,41), n e m a lo n g a in stru ç ã o d e Lc 24,44-47, m u ito
d a q u a l te m p a ra le lo com o s se rm õ e s q u e rig m átic o s e m A tos. D e fato,
o re la to d e João só é u m p o u c o m e n o s conciso d o q u e o d a a p a riçã o n a
G alileia e m M t 28,16-20.
Q u a n d o c o n sid e ra m o s a m e n sa g e m d e Jesus e m Jo 20,21-23, é
m u ito d ifícil d e c id ir q u e e le m en to s são os m ais an tig o s. A rep etição d e
" P a z a v ó s " (o v. 21 d u p lic a n d o o fin al d o v. 19) e d e "E q u a n d o ele disse
isto " (o v. 22 d u p lic a n d o o com eço d o v. 20) p re s s u p õ e q u e u m a form a
m a is a n tig a d a m e n sa g e m p o d e te r sid o e x p a n d id a p e lo acréscim o d e
o u tro s d ito s tra d ic io n a is d e Jesus. A a b o rd a g e m m ais sim p les d o p ro -
b le m a seria p re s s u p o r q u e a n a rra tiv a o rig in a l te rm in a sse com a or-
d e m n o v. 21, e q u e o s vs. 22 e 23 sejam a d içõ es (assim D odd , T r a d i t i o n ,
p . 144; ta m b é m L oisy , p . 508, com a lg u m a h esitação so b re o v. 23).
E n tre ta n to , p o rq u e a s p a la v ra s n o v. 21 são jo an in a s e m estilo (com -
p a re o p a d rã o "[ju stam en te] com o..., a ssim " e m 6,57; 15,9 e 17,18.22),
e n q u a n to as p a la v ra s d o v. 23 n ã o o são, m u ito s p e n s a m ser o v. 21
(H a rtm a n n ) o u 21-22 (B u ltm a n n ) q u e re p re se n ta a e x p a n sã o e q u e o
v. 23 é o rig in al. S om os re lu ta n te s em ju lg a r sim p le sm e n te so b re a base
1512 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

d e q u e u m d e te rm in a d o v ersícu lo a p re se n te o u n ã o e stilo o u v o c a b u -
lário jo an in o ; p o is q u a n d o isso se to rn a o ú n ico c ritério p a ra se id e n ti-
ficar u m a am p lificação d o e v a n g e lista d e u m a tra d iç ã o m a is o rig in a l,
e n tã o se e stá fo rm u la n d o o p re s s u p o s to d e q u e a tra d iç ã o q u e v e io ao
e v an g elista e ra alh eia a o se u p ró p rio p e n sa m e n to e fo rm a s d e e x p re s-
são. T em o s tra b a lh a d o com a su p o siç ã o d e q u e q u a n d o o e v a n g e lista
ch eg av a a co n h ecer u m a tra d iç ã o q u e ele m e sm o n ã o h a v ia c ria d o
(vol. 1, p . 20, P rim e iro estágio), e sta tra d iç ã o p ro c e d ia d e s e u m e stre
cujos p e n s a m e n to s p a d rõ e s e e stilo in flu e n c ia ra m o e v a n g elista . A lé m
d o m ais, tem o s d isc u tid o q u e o p ró p rio e v a n g e lista p o d e te r tid o u m
im p o rta n te p a p e l n a fo rm a o ra l p ré-e v a n g élic a d e ste m a te ria l ( i b i d . ,
S e g u n d o estágio). T al av aliação d a s o rig e n s d o Q u a rto E v a n g e lh o v a i
co n tra qualcjuer ap licação d e m a sia d a m e n te m ecân ica d e o s c â n o n e s
estilísticos. A p a rte d o critério d e estilo, a q u i in sistim o s e m c o m p a ra r
os vs. 21-23 co m as p a la v ra s d e Jesu s e n c o n tra d a s n o s o u tro s rela to s
ev an g élico s d e su a a p a riç ã o ao s d isc íp u lo s a fim d e iso la r o s e le m en -
to s c o m u n s q u e têm a m e lh o r ch an ce d e p e rte n c e r à fo rm a m a is a n tig a
d a n a rra tiv a . T o m em o s os v e rsíc u lo s in d iv id u a lm e n te .
P r i m e i r o , a m issão o u envio d o s discípulos n o v. 21: "C o m o o P ai m e
enviou, assim e u v o s envio". E m M t 28,19 h á a ordem : "Ide, p o rta n to , e
fazei discípulos d e todas as nações, batizand o-as"; e, sem elhantem ente,
n o A pêndice M arcano d e 16,15 a o rd em é: "Ide ao m u n d o in teiro e p reg ai
o evangelho a to das as criaturas". E m Lc 24,47, o u v im o s q u e "se p re g u e m
o a rrep en d im en to e o p e rd ã o do s pecados, em seu n o m e [de C risto] a to-
d as as nações". P aulo relaciona o conceito d a existência d e apóstolos p a ra
u m a m issão d a d a pelo C risto ressu rreto em su as aparições aos h o m en s
(IC or 15,8-9; G 11,16). P ortanto, n ão h á razão p a ra se p e n sa r q u e o relato
d a aparição q u e veio ao Q u a rto E vangelista faltava u m a o rd e m m issio-
nária aos discípulos. D e fato, em Jo 20,21 a significativa o rd e m d o Senhor
é em si m ais breve. T odavia, a form ulação dela tem sid o rem o d elad a,
pois o p a ra d ig m a d a m issão é ag o ra a relação d o Filho com o Pai, tu n
tem a teológico joanino. P odem os com pará-la com 17,18: "P ois com o m e
enviaste ao m u n d o , tam b ém e u os enviei ao m u n d o ".
S e g u n d o , a in su flação n o v. 22 com as p a la v ras: "R ecebei u m Es-
p írito san to ". U m a m en ção a o E sp írito se e n c o n tra ta m b é m e m o u -
tro s relato s d a a p a riç ã o d e Jesus a se u s d iscíp u lo s. E m M t 28,19 ela
é in c o rp o ra d a n a s p a la v ra s d o q u e teria sid o u m a fó rm u la b a tism a l
re la tiv a m e n te tard ia: "B atizan d o -o s n o n o m e d o P ai e d o F ilho e d o
69 · O Jesus ressurreto: - Segunda cena 1513

E sp írito S a n to ". Lc 24,39 te m Jesu s d ize n d o : " E u e sto u e n v ia n d o so-


b re v ó s a p ro m e ssa d e m e u P a i" (= o E sp írito Santo; cf. A t 1 ,4 5 ‫)־‬, m as
a q u i se tra ta d e p re p a r a r a cen a d e P en teco stes n a rra d a e m A tos.
O m áx im o q u e se p o d e ría a rg u m e n ta r, à lu z d estas referências tard ias
ao E sp írito S an to, é q u e a tra d iç ã o p rim itiv a d a a p a riç ã o p o d e ria ter
c o n tid o u m a refe rê n c ia a u m d e rra m a m e n to d o E sp írito (ver Bult-
mann, p . 53Τ'2), u m a referência q u e o s o u tro s ev an g elh o s a d a p ta ra m d e
d ife re n te s m an e ira s. T o d av ia, d o s trê s d ito s d e Jesus em Jo 2 0 ,2 1 2 3 ‫־‬,
a m en ç ã o d a d o a ç ão d o E sp írito é a q u e m ais se relacio n a com o diá-
lo g o teo ló g ico jo an in o so b re o p ro p ó sito d a a scen são n o v. 17, e assim
o v. 22 p o d e ria m u ito b e m re p re s e n ta r a e x p a n sã o q u e o ev an g elista
faz d a n a rra tiv a p rim itiv a d a ap arição . N ã o a c h am o s co n v in cen te a
a firm a ç ão d e D odd (I n t e r p r e t a t i o n , p . 430) d e q u e a in su flação d o Espí-
rito é u m a im a g e m p o r d e m a is e s tra n h a ao p e n sa m e n to jo an in o e q u e
isso in d ic a ria q u e o e v a n g elista a rec e b e u d e s u a fonte. E sta im a g e m é
s im ila r à id e ia d o E sp írito com o v e n to e m 3,8 (D odd, T r a d i t i o n , p . 144,
m o d ific a n d o s u a o pinião).
T e r c e i r o , o p o d e r d e p e rd o a r p e c a d o s n o v. 23. N o s o u tro s relatos
ev an g élico s d a a p a riçã o d e Jesus aos d iscíp u lo s, e n co n tram o s u m a ten-
d ê n c ia p a ra especificar a m issão g eral d o s d iscípulos: em Lucas, a espe-
cificação é p re g a r o p e rd ã o d o s p ecad o s; em M ateu s é b atizar; n o A pên-
d ice M arcan o , é p re g a r o e v a n g elh o e b a tiz ar. N o Q u a rto E vangelho,
o v. 23 s u p re os elem en to s d e sta especificação. A fo rm u lação joanina é
e la b o rad a ; e d a p e rsp e c tiv a d a form a, só p o d e m o s d iz e r q u e Jo 20,23
é p a ra Lc 24,47 co m o o A p ên d ice M arcan o 16,16 é p a ra M t 28,19:

M t 28,19: "F azei d isc íp u lo s d e to d a s as n açõ es, b a tiz a n d o -o s" - a


s im p le s o rd e m p a ra b a tiz ar.
A p ê n d ic e M a rc a n o 16,16: "A q u e le q u e crer e for b a tiz a d o será
salv o ; m a s a q u e le q u e n ã o c re r s e rá c o n d e n a d o " - u m p ro g n ó s-
tico d a s fo rm a s co m o o b a tism o d iv id iría os h o m en s.
Lc 24,47: " O a rre p e n d im e n to e o p e rd ã o d o s p e c a d o s seria p re-
g a d o e m s e u n o m e a to d a s a s n a ç õ es" - a sim p les p ro clam ação
d o p e rd ã o .
Jo 20,23: "A q u e le s a q u e m p e rd o a rd e s os p e c ad o s, se u s p e c ad o s
te m sid o p e rd o a d o s; a q u e m os re tiv e rd e s, eles serão re tid o s" -
u m p ro g n ó stic o d a s fo rm a s co m o o p o d e r d o p e rd ã o d iv id iría
o s h o m en s.
1514 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

T o d av ia, o v o c a b u lá rio n ã o jo an in o e o p a ra le lism o d o v. 23 n o s


a d v e rte c o n tra p re s s u p o rm o s q u e a fo rm u la ç ã o e la b o ra d a seja a cria-
ção d o ev an g elista. D isc u tire m o s ab aix o a relação d e ste v e rsíc u lo com
o s d o is d ito s m a te a n o s sim ilares so b re lig a r e d e slig a r, e e sta com -
p a ra ç ã o n o s lev a a p e n s a r q u e João p re s e rv a u m a fo rm a m o d ific a d a
d e u m d ito d e Jesus m u ito a n tig o , u m d ito q u e p o d e p la u siv e lm e n te
relacio n ar-se c o m a s p rev isõ e s d o Jesus re s s u rre to p a ra a c o m u n id a d e
q u e ele d e ix o u a trá s d e si.
E ntão, so m o s in clin ad o s a p e n s a r q u e a n a rra tiv a p ré-e v a n g élic a
d a ap arição c o n tin h a o tem a d e p e lo m en o s d o is d o s trê s d ito s d e Jesus
n o s vs. 21-23 (a sab er, os d ito s e m 21 e 23). T o d av ia, a p re s e n te fo rm a
d o v. 21 re p re se n ta u m a a d a p ta ç ã o à teo lo g ia geral d o e v a n g elh o . Se
o v. 22 é a ad ição d o e v an g elista a o ep isó d io , e n tã o alg o d a e stra n h e z a
d a p rese n te seq u ên cia n o s vs. 21-23 p o d e se r ex p licad a, ao m e n o s em
p a rte , d a m esm a fo rm a o fato d e q u e o início d o v. 22 re p e te o início d o
v. 20. E stas co n clusões n ã o p a ssa m d e serem u m a m e ra te n ta tiv a .

A n á lis e d a n a r r a tiv a d a a p a r iç ã o a T o m é (20,24-29)

H á p ra tic a m e n te u m a u n a n im id a d e n o c a m p o d a e ru d iç ã o
d e q u e e sta n u n c a fo i u m a n a rra tiv a in d e p e n d e n te e p o r isso n ã o
é c o m p a rá v e l, p o r e x e m p lo , à n a rr a tiv a d e u m a a p a riç ã o a P e d ro .
O e sse n c ial d o r e la to d e T o m é se re la c io n a in tim a m e n te c o m a a p a ri-
ção m ais a n tig a a o s d isc íp u lo s e fa ria p o u c o s e n tid o se m a n a rra tiv a
p re c e d e n te . T o d a v ia , q u a n d o se lê p rim e iro os vs. 19-23, o m e sm o
n ã o e s p e ra u m a n o v a seção so b re u m d o s d isc íp u lo s q u e e s ta v a m
a u se n te s; e o a u to r te m d e in se rir o v. 24 p a r a u n ir as d u a s n a rra ti-
v as. C o m o p o d e a lg u é m c o n c ilia r e ste s fato s, e s p e c u la n d o s o b re a
o rig e m d o re la to d e T om é?
C o m a lg u m a hesitação, B u ltm ann p ro p õ e q u e o essencial d o rela-
to so b re T om é (q u e n ã o tem p a ra lelo s sinóticos) foi c ria d o p e lo evan-
g elista q u e to m o u e d ra m a tiz o u u m tem a d e d ú v id a q u e o rig in a lm en te
a p a re c eu n a n a rra tiv a d a ap a riçã o ao s d iscíp u lo s. N e n h u m o u tro rela-
to ev an g élico d e u m a ap a riçã o p ó s-re ssu rreiç ã o p re s ta ta n ta aten ção
co m o faz o rela to d e T om é a u m a a titu d e d e u m in d iv íd u o p a ra com o
Jesu s ressu rreto . Isso se d á p o rq u e T om é se to rn a a q u i a perso n ificação
d e u m a d e te rm in a d a a titu d e . (Ver vol. 1, p . 713, p a ra n o ssa su g e stã o de
q u e a p re se n te lo calização e u so d o m ilag re d e L ázaro re p re se n ta u m a
69 · O Jesus ressurreto: - Segunda cena 1515

in d iv id u a liz a ç ã o e d ra m a tiz a ç ã o u m ta n to sim ilares). Se v o lta rm o s p o r


u m m o m e n to à n a rra tiv a lu c a n a d a a p a riç ã o a o s o n ze, d e sco b rim o s
q u e , q u a n d o Je su s d e re p e n te se p õ e d ia n te d e le s (Lc 24,36 = Jo 20,19),
fic a ra m a tô n ito s , a te m o riz a d o s e a c h am q u e v ia m u m esp írito . A re-
ferê n c ia d e Je su s a o v e r s u a s m ã o s e p é s (Lc 24,39) se d e u e m resp o sta
a isto . O te m a d a in c re d u lid a d e ta m b é m e stá e m Lc 24,41 e se encon-
tra ta m b é m n o A p ê n d ic e M a rc a n o 16,14 e em M t 28,17. S o m en te João
n ã o fa z refe rê n c ia a d ú v id a n a n a rra tiv a d a a p a riç ã o ao s d isc íp u lo s,
e e ssa é a ra z ã o p e la q u a l a a firm a ç ão "E le lh es m o stro u su a s m ão s
e la d o " , e m 20,20, p a re c e ilógica. P ro p o m o s q u e e sta afirm ação , ori-
g in a lm e n te , foi p re c e d id a p o r u m a e x p re ssã o d e d ú v id a , co m o em
Lc 24,37-39, m a s q u e o e v a n g e lista tra n s fe riu e sta d ú v id a p a ra u m
e p is ó d io s e p a ra d o e o p e rso n ific o u e m T om é. (H artmann te m u m a
te o ria s im ila r, m a s p re s u m e q u e a d ú v id a foi e m re sp o sta à n o tícia d e
M a d a le n a , e n ã o e m re s p o s ta à a p a riç ã o d e Jesu s - assim , d e p o is d o
v. 28, e n ã o d e p o is d o v. 19). A d ú v id a o ra e x p re ssa p o r T om é é u sa-
d a p e lo e v a n g e lista co m o u m m eio a p o lo g é tic o d e e n fa tiz a r o c a rá te r
ta n g ív e l d o c o rp o d e Jesus, p re c isa m e n te co m o Lc 24,41-43 te m Jesus
d a n d o re s p o s ta à d ú v id a c o n tín u a d o s d isc íp u lo s, c o m e n d o . A d ú -
v id a d e T o m é c o n stitu i u m a in c o m p re e n sã o e sp ecificad a d o m esm o
m o d o q u e a in c a p a c id a d e d e M a d a le n a e m rec o n h e c er Jesus.
H á u m c a rá te r p a te n te m e n te se c u n d á rio e m b o a p a rte d o c en ário
q u e o e v a n g e lis ta tev e d e c ria r p a r a q u e T o m é p u d e s s e d ra m a tiz a r
a d ú v id a a p o stó lica. O v. 25 re c o rre a o v. 20, e o v. 26 p a ra fra se ia o
v. 19. O s trê s n o v o s e le m e n to s c o n stitu e m a o rd em : "E n ã o p e rsista s em
tu a in c re d u lid a d e , m a s se to m a u m c re n te " (27); a co n fissão d e Tom é:
" M e u S e n h o r e m e u D e u s" (28); e o m a c a ris m o o u b e m -a v e n tu ra n ç a
c o n c e rn e n te a " A q u e le s q u e n ã o v ira m e, n o e n ta n to , tê m c rid o " (29). O s
trê s re fle te m tem a s teo ló g ico s jo a n in o s d istin tiv o s e n ã o tê m p a ra le lo
n o s o u tro s re la to s e v a n g élic o s d a s a p a riçõ e s p ó s-fe ssu rreiç ã o . T alvez
a o r d e m n o v. 27 seja u m a fo rm a concisa d e u m d ito o rig in a lm e n te
a sso c ia d o a o m in isté rio d e Jesus. C o m o p a ra le lo s, D odd, T r a d i t i o n ,
p . 355, p õ e e m re le v o M c 4,40 ("P o r q u e sois tão tím id o s? A in d a n ã o
te n d e s fé?") e M t 14,31 ("H o m e n s d e p o u c a fé, p o r q u e d u v id a s-
tes?"). A co n fissão n o v. 28 se rv e a u m claro p ro p ó sito teológico b e m
d e lin e a d o : se T o m é v e io a se r o p o rta -v o z d a d ú v id a ap o stó lica, o
e v a n g e lis ta n ã o o d e ix a n e sse p a p e l n a d a in v ejáv el, m a s o a rra n ja d e
ta l m o d o q u e a ú ltim a p a la v ra d ita p o r u m d isc íp u lo n o e v a n g elh o
1516 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

c o n stitu i u m a p le n a e x p re ssã o d e fé cristã. A cristo lo g ia a lta m e n te


d e se n v o lv id a d e sta confissão n ã o p e rte n c e a o m ais a n tig o , e sim ao
e stra to m ais ta rd io d o p e n s a m e n to n e o te sta m e n tá rio . O d ito n o v. 29
reflete a in d a u m p ro b le m a teológico d a ú ltim a p a rte d o I a século,
q u a n d o as te s te m u n h a s o cu la res ap o stó lic a s fo ra m sa in d o d e cena; tal-
v ez p o d e ria c o n te r ree la b o ra d o , u m m ac a rism o m a is a n tig o (p p . 1535
abaixo). E a ssim n ã o h á m u ita p ro b a b ilid a d e d e q u e Jo 20,24-29 a p re -
sen te e le m en to s d e u m a n a rra tiv a p rim itiv a d e u m a a p a riç ã o d e Jesus.
O ú n ico fato b ásico q u e p o d e e sta r p o r d e trá s d e to d a a d ra m a tiz a ç ã o
é q u e T om é e ra u m d a q u e le s q u e in ic ia lm e n te d e sc re ra m q u a n d o Je-
su s a p a re c e u a o s d iscíp u lo s. (P re su m iv e lm e n te , ele e ra u m d o s disci-
p u lo s m e n c io n a d o s em 20,19, e m b o ra seja u m d o s d isc íp u lo s a q u e m
Jesu s a p a re c e em 21,2). A esco lh a d e T om é co m o o e le m e n to d e p e rso -
nificação d a d ú v id a é co n sisten te c om a cara c te riz a çã o d e le e m 11,16 e
14,5, e q u e n o s a tre v em o s em a firm a r q u e tal d escrição foi to ta lm e n te
o b ra d a h a b ilid a d e d o a u to r.
F inalm ente, d ev e m o s m en cio n ar a teoria d e M.-E. B oismard d e q u e
Jo 20,24-31 rep re sen ta u m a a d ição red acio n al a o Q u a rto E v an g elh o fei-
ta p o r L u c a s . Ele associa esta teoria estreitam en te com a afirm ação d e
q u e L ucas foi o re d a to r q u e a n ex o u 4,48-49,51-53 (u m a a firm ação rejei-
tad a n o vol. 1, p. 416), p o is ele v ê (corretam ente) u m a sim ila rid a d e e n tre
4,48-49 e 20,29. Seus o u tro s a rg u m e n to s tocam u m g ra n d e n ú m e ro d e
m acarism o s em L ucas 0 o 20,29b é u m m acarism o), e as p e c u lia rid a d e s
d o léxico d e L ucas q u e ele detecta n e sta seção d e João (ver ú ltim a n o ta
so b re v. 27, co n cernente a a p i s t o s e p i s t o s ) . E m n o ssa avaliação, n e n h u m
destes a rg u m e n to s é p a rticu la rm e n te c onvincentes; p a ra u m a ten ta tiv a
d e ta lh a d a d e refu tar Boismard, v e r E rdozáin, p p . 39-42.

COMENTÁRIO: DETALHADO

A a p a r iç ã o a o s d is c íp u lo s (20,19-20)

P or u m lad o , João p a rece s u p o r q u e o c o rp o d e Jesus p o ssu i p ro p rie -


d a d e s m ara v ilh o sas e im ateriais (a c a p a c id a d e d e a tra v e ssa r p o rta s
fechadas); p o r o u tro lad o , ele s u b e n te n d e q u e p o d e ser to ca d o e tem
d e n s id a d e c o rp ó re a ("ele lh es m o stro u su a s m ão s e lad o "). N ã o obs-
tan te, é difícil e sta r certo d e q u e, n estes p rim e iro s v ersícu lo s, João esteja
69 · O Jesus ressurreto: - Segunda cena 1517

u m o u o u tro a sp ec to d o c o rp o d e Jesus. A q u i, a possibili-


e n fa tiz a n d o
d a d e d e Je su s a tra v e ssa r p o rta s fec h a d a s é m e d ia n te in ferên cia (ver
n o ta so b re " tin h a m tra n c a d o as p o rta s " e m 19); so m e n te n a fo rm a de
r e d a ta r o v. 26 é q u e a in ferên cia fica clara. D e m o d o sem elh an te, no
v. 20 h á u m a im p licação d e q u e Jesus p o d e ser to cad o ; m as esta im -
p licação fica se m a m b ig u id a d e n o v. 27, o n d e m esm o o d iferen ciar o
ta m a n h o d a s d u a s ferid as é g ro sse ira m e n te d e sta c a d o (u m d e d o p o d e
c o m p ro v a r u m a ferid a d e p re g o , m a s a s m ão s p a ra a ferid a lateral).
A ssim , n o re la to d e T om é h á u m a co n cen tração m ais explícita so b re
a n a tu re z a d o c o rp o d e Jesus d o q u e h á n a n a rra tiv a d a ap a riçã o aos
d isc íp u lo s. E ste fato se a d e q u a à n o ssa tese d e q u e o re la to d e T om é é
u m a ela b o raç ã o se cu n d á ria .
T alv ez a significação p rim á ria d a ên fase so b re a s ferid as d e Jesus
n o v . 20 seja q u e elas estab elecem u m a c o n tin u id a d e e n tre a ressu rrei-
ção e a crucifixão. O Jesus re s s u rre to q u e se p õ e d ia n te d o s d iscíp u lo s
é o Je su s q u e m o rre u n a cru z, e a g o ra irã o receb er os fru to s d e su a
ex altação . E sta in te rp re ta ç ã o explicaria a ale g ria com q u e os d iscíp u -
lo s rec e b e m s e u c o n v ite p a ra q u e v ejam su a s m ão s e lad o .
A q u e le s a q u e m Jesu s a p a re c e n e sta cen a são c h a m a d o s p o r João
" o s d isc íp u lo s " . E x a ta m e n te a q u e m ele tem e m v ista? E sta q u e stã o é
m a is d o q u e in te re sse in c id e n ta l, p o is ela m a tiz a a d isc u ssã o d a q u e -
les a q u e m se c o n c e d e u o p o d e r d e p e rd o a r p e c a d o s (v. 23). S eq u er
p o d e h a v e r d ú v id a d e q u e v e io ao e v a n g e lista d e fo n te p ré-e v a n g éli-
ca e ra o re la to d e u m a a p a riç ã o a o s o n z e (os d o z e m en o s Ju d as). E ste é
u m fa to r c o m u m n o s v á rio s rela to s e v a n g élic o s d a a p a riç ã o (Lc 24,23;
M t 28,16; A p ê n d ic e M a rc a n o 16,14). P o d e ria ter h a v id o a lg u n s o u tro s
p re s e n te s a lé m d o s o n ze, co m o e m Lc 24,33 ("o s o n z e se re u n ira m e
o s q u e e s ta v a m com eles", m a is os d isc íp u lo s d e E m aús); m as n a tra-
d iç ã o d a s a p a riç õ e s so m e n te os o n z e e ra m im p o rta n te s , e as p a la v ra s
q u e Je su s fa lo u fo ra m d irig id a s a eles. T o d o s estes re la to s e la b o ram o
q u e P a u lo le m b ra c o n c isa m e n te e m IC o r 15,5: "E le a p a re c e u a C efas
e e n tã o a o s d o z e " .
Jo ão n ã o m e n c io n a os o n ze n a fo rm a a tu a l d a n a rra tiv a d a ap ari-
ção, e m b o ra s u a referên cia a T o m é com o " u m d o s d o z e " p o s s a evocar
a situ a ç ã o o rig in al. A lg u n s e stu d io so s tê m a rg u m e n ta d o q u e João evi-
to u d e lib e ra d a m e n te m en c io n ar os d o z e /o n z e p o rq u e q u e ria m ini-
m iz a r a im p o rtâ n c ia d eles o u era c o n tra u m a teo ria d a su cessão apos-
tólica. T o d a v ia, João m en cio n a os d o z e em 6,67 e 70 se m q u a lq u e r
1518 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

sin al d e d e sap ro v a ç ão , e re a lm e n te n ã o h á r a z ã o p a ra se p e n s a r q u e o
e v an g elista n ã o to m a sse p o r a d m itid o a im p o rtâ n c ia d o s d o z e e n e m
lh es d á o d e v id o resp eito . O u tra o b ra d a escola jo an in a , A p 21,14, m en -
cio n a n o m in a lm e n te o s fu n d a m e n to s d o m u ro d a Je ru sa lé m celestial
co m o s e n d o o s d o ze. A p e rsp e c tiv a c a ra c te ristic a m e n te jo a n in a n ã o
reb aix a o s d o ze, m as, a n te s, c o n v e rte estes d isc íp u lo s e sco lh id o s e m
re p re se n ta n te s d e to d o s o s cristão s q u e c re e m e m Jesu s p e la p a la v ra
d eles. E assim , a lg u m a s v ezes é m u ito difícil sa b e r q u a n d o João e stá
fala n d o d o s d isc íp u lo s e m s e u p a p e l h istó rico , co m o o s c o m p a n h e iro s
ín tim o s d e Jesu s, e q u a n d o e stá fa la n d o d e le s e m relação à fu n ç ã o sim -
b ólica q u e re p re s e n ta m . P o r ex em p lo , e m 6,66-67, os d o z e sã o d istin -
g u id o s d o r e s ta n te d o s d isc íp u lo s e m o stra u m a a d e sã o e sp ecial d e le s
a Jesus. A p a re n te m e n te , n a c en a d a ú ltim a ceia, o s d isc íp u lo s fo cad o s
são p rin c ip a lm e n te o s d o z e (n o ta so b re " d isc íp u lo s" e m 13,5); a tra v é s
d a m a io r p a rte d o ú ltim o d isc u rso , Jesus n ã o e stá fa la n d o s o m e n te a o s
q u e estã o p re se n te s, m as ta m b é m ao a u d itó rio m u ito m ais a m p lo q u e
eles rep re se n ta m . S o m en te e m 17,20 h á u m a clara te n ta tiv a , n o ú ltim o
d iscu rso , d e s e p a ra r o s a u d itó rio s p re se n te e fu tu ro .
A ssim , a q u i n o sso p ro b le m a re a l d iz re sp e ito à in te n ç ã o d o ev a n -
gelista. E n q u a n to a n a rra tiv a p ré-e v a n g élic a se refe ria ao s o n ze, a g o ra
a in ten ção d o e v a n g elista acerca d e ste s d isc íp u lo s é q u e eles re p re -
se n ta m u m a u d itó rio m ais a m p lo q u e ta m b é m se ria m rec ip ie n te s d a
m issão n o v. 21, d o E sp írito n o v. 22 e d o p o d e r d e p e rd o a r p e c a d o s n o
v. 23? A lg u n s a rg u m e n ta ria m , com b a se n o v. 21 q u e o s d isc íp u lo s
n ão p o d e m re p re se n ta r to d o s os cristãos, p o is este v e rsíc u lo se refere
a u m a m issão ap ostólica; e m esm o q u e h isto ric a m e n te a m issã o a p o s-
tólica fosse co n fiad a a u m g ru p o m a io r d o q u e o s d o z e , n ã o o b sta n te
to d o s o s cristão s n ã o e ra m a p ó sto lo s (v er IC o r 12,28-29). T o d a v ia, n o
v. 21 João m o d ific o u a m issã o ap o stó lica, fa z e n d o -a d e p e n d e n te d o
m o d elo d o P ai e n v ia n d o o Filho, e u su a lm e n te , p a ra João, a relação
Pai-Filho é m a n tid a p a ra q u e to d o s os cristão s a im item . P o d e m o s
e sta r certo s d e q u e João te m m e n te "C o m o o P ai m e e n v io u , a ssim e u
v o s e n v io " em u m se n tid o m ais re strito d o q u e q u a n d o d iz "C o m o o
P ai m e a m o u , a ssim e u v o s a m e i" (15,9)? N ã o o b sta n te , m e sm o q u e o
v. 21 d ê a lg u m s u p o rte à id eia d e q u e so m e n te o s d o z e /o n z e e stã o di-
re ta m e n te e m p a u ta , o v. 22 a p o n ta n a d ire ç ão o p o sta . C o m o v erem o s,
este v ersícu lo ev o ca G n 2,7 e se d e stin a a sim b o liz a r a n o v a criação q u e
Jesu s e fe tu a n o s h o m e n s co m o filhos d e D eu s p e lo d o m d o E spírito.
69 · O Jesus ressurreto: - Segunda cena 1519

C e rta m e n te , e sta re ‫־‬criação, e sta n o v a g eração , e ste d o m d o E spírito


se d e s tin a a to d o s os cristãos. T em o s su g e rid o (p. 1512 acim a) q u e o
v . 22 re p re s e n ta a a d iç ã o d o e v a n g e lista à n a rra tiv a o rig in a l d a ap ari-
ção; e ta m b é m a g o ra p o d e m o s s u p o r q u e, p e la a d iç ã o d e ste v ersícu lo
e p e la m o d ificação teológica in tro d u z id a n o v. 21 (m o d e la n d o a m is-
s ã o n a rela çã o P ai-F ilho), o e v a n g e lista e stá a m p lia n d o o h o riz o n te d a
c e n a d a a p a riç ã o o rig in a l p a ra in c lu ir n ã o só o s d o z e , m as tam b é m
a q u e le s a q u e m re p re se n ta m . N ã o o b sta n te , seria a rrisc a d o a ssu m ir
q u e e ste m e sm o h o riz o n te a m p lia d o e stá p re se n te n o v. 23, o q u a l é
u m a fo rm a m o d ific a d a d e u m a n tig o d ito d e Jesus. P a ra d e c id ir esta
q u e s tã o s e rá p re c iso e stu d á -la m ais d e tid a m e n te .
A n te s d e d e ix a rm o s o s vs. 1 9 2 0 ‫ ־‬d e v e m o s d a r a lg u m a aten ção
à p a z e a le g ria q u e a a p a riç ã o d e Jesus p ro p o rc io n a n o s d iscíp u lo s.
N a n o ta so b re o v. 19, sa lie n ta m o s q u e " P a z a v ó s" n ã o d e v e ser con-
f u n d id a c o m u m a sa u d a ç ã o o rd in á ria . C o m o n a s a p a riçõ e s d e "o anjo
d o S e n h o r" n o A T , e sta fó rm u la tra n q u iliz a o a u d itó rio q u e n a d a têm
a te m e r d a d iv in a m an ifestaç ã o q u e o ra estã o te ste m u n h a n d o . A lém
d isto , n o c o n te x to d a teo lo g ia jo an in a , o d o m d a p a z d o Jesus re ssu rre -
to é o c u m p rim e n to d a s p a la v ra s d ita s n o ú ltim o d isc u rso (14,27-28):
" 'P a z ' é m in h a d e s p e d id a a v ós. M in h a 'p a z ' é o m e u d o m a vós, e n ão
v o -la d o u co m o o m u n d o a d á . Q u e v o sso s corações n ã o se p e rtu rb e m
e n e m se a te m o riz em . V ós m e te n d e s o u v id o dizer-vos: 'E u e sto u p a r-
tin d o ', e 'e s to u v o lta n d o p a ra v ó s" '. E m o u tra s p a la v ra s, q u a n d o os
d isc íp u lo s ficaram a te m o riz a d o s n a ú ltim a ceia, Jesus lhes a sse g u ro u
q u e s u a d istrib u içã o d o d o m d a p a z n ã o seria efêm ero; e ele relacio n o u
e sta p a z co m a p ro m e ssa d e q u e v o lta ria p a ra eles. A g o ra q u e tem vol-
ta d o p a ra eles, ele co n ced e e sta p a z , p o is n o E spírito S an to (v. 22) eles
tê m a p e re n e p re se n ç a d e Jesus e o d o m d a d iv in a filiação q u e é b ase d a
p a z cristã. (N o te q u e o P arácleto h á d e ser e n v ia d o em n o m e d e Jesus).
O reg o zijo d o s d isc íp u lo s m e n c io n a d o n o v. 20 d e v e se r tam b é m
c o m p re e n d id o co m o o c u m p rim e n to d e u m a p ro m e ssa p ro n u n c ia d a
n o ú ltim o d isc u rso . E m 16,21-22, Jesu s c o m p a ro u a situ a ç ão d o s dis-
c íp u lo s à d e tu n a m u lh e r n o p ro ce sso d o p a rto q u e so fre in te n sa d o r,
m a s é re c o m p e n s a d a com ale g ria ao n ascer-lh e u m filho. "A g o ra estais
triste s; m a s v o s v e re i o u tra v ez, e v o sso s co rações se reg o zijarão com
u m a a le g ria q u e n in g u é m p o d e tira r-v o s". N o p e n sa m e n to ju d aico ,
p a z e a le g ria e ra m m arc as d o p e río d o escatoló gico q u a n d o a in terv én -
ção d e D e u s h a v e ria d e tra z e r a h a rm o n ia à v id a h u m a n a e ao m u n d o .
1520 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

João v ê este p e río d o c o n c re tiz a d o n o re to rn o d e Jesu s p a r a d e rra -


m a r o E sp írito so b re o s h o m en s. O u tra o b ra jo an in a , A p 19,7 e 21,1-4,
associa a aleg ria, p a z e o sen so d a p re se n ç a d iv in a escato ló g ico s co m
a se g u n d a v in d a - u m b o m e x e m p lo d e d o is tip o s d e p e rsp e c tiv a es-
catológica (vol. 1, p p . 126-35) n a m e sm a escola g e ra l d o p e n sa m e n to .

A m is s ã o a p o s tó lic a e 0 dom d o E s p ír ito (20,21-22)

P o r to d o o rela to d o m in isté rio d e Jesus, João te m e v ita d o d esig -


n a r os d isc íp u lo s com o a p ó sto lo s (os e n v ia d o s) e n ã o d e sc re v e u u m a
ocasião e m q u e fo ra m e n v ia d o s (cf. M c 6,7 e p a r.; to d a v ia , veja vol. 1,
p. 400, em referên cia a Jo 6,38). M as, n o v. 21, João ju n ta à tra d iç ã o
ev an g élica c o m u m d e q u e o Jesu s re ssu rre to c o n stitu iu a p ó sto lo s,
co n fian d o u m a m issão salvífica à q u e le s a q u e m a p a re c eu . A co n tri-
b u ição jo an in a esp ecial à teo lo g ia d e sta m issã o é q u e o a to d o P a i en -
v iar o F ilho serv e, resp e c tiv a m e n te, co m o o m o d e lo e o e m b a sa m e n to
p a ra o e n v io d o s d isc íp u lo s p e lo Filho. S u a m issã o v isa a c o n tin u a r a
m issão d o F ilho; e isto re q u e r q u e o F ilho lh es esteja p re s e n te d u r a n te
esta m issão. Jesu s disse: "E to d o a q u e le q u e m e v ê, e stá v e n d o A q u e -
le q u e m e e n v io u " (12,45); d e m o d o se m e lh an te , os d isc íp u lo s a g o ra
ex ib iríam a p re se n ç a d e Jesus p a ra q u e , a q u e le q u e v ê o s d isc íp u lo s,
esteja v e n d o a Jesus q u e os e n v io u . C o m o se e x p re ssa e m 13,20, "T o d o
a q u ele q u e receb e a a q u e le a q u e m e u e n v ia r, a m im m e recebe; e
aq u ele q u e m e recebe, receb e A q u e le q u e m e e n v io u " . Isto só se to rn a
p o ssív el a tra v é s d o d o m d o E sp írito S an to (v. 22), a q u e m o P ai e n v ia
n o n o m e d e Jesu s (14,26) e a q u e m Jesus m esm o e n v ia (15,26).
C o m o os te m a s d e p a z e a le g ria n o s vs. 19 e 20, o te m a d o en v io
d o s d isc íp u lo s n o v. 21 c a p ta u m a ssu n to q u e já a p a re c e u n o ú ltim o
d iscu rso . E m 17,17-19, Jesus o ro u p e lo s se u s q u e iria m ficar p a ra trá s
n o m u n d o : "C o n sa g ra -o s n a v e rd a d e - Ά tu a p a la v ra é a v e rd a d e ';
p o is co m o m e e n v ia ste a o m u n d o , ta m b é m e u o s e n v iei a o m u n d o .
E é p o r eles q u e e u m e consagro, p a ra q u e tam b é m sejam consagra-
d o s n a v erd ad e". Q u a n d o discutim os essa p assag em n a oração d e Jesus
(pp. 1172 acim a), v im o s q u e h o u v e u m a relação e n tre o c o n sa g ra r
e o to rn a r os d isc íp u lo s sa n to s e se re m e n v ia d o s. A n te s q u e fossem
e n v ia d o s, seriam tra n sfo rm a d o s p e la v e rd a d e , isto é, a tra v é s d a p a-
lav ra re v e la d o ra d e Jesu s e tam b é m , c e rtam e n te , a tra v é s d o E sp írito
d a V e rd a d e q u e é ta m b é m o E sp írito S a n t o . A ssim , u m a v e z m ais,
69 · O Jesus ressurreto: - Segunda cena 1521

h á u m a e stre ita relação e n tre a m issã o d o s d isc íp u lo s (21) e a d o ação


d o E sp írito (22), p o is é o E sp írito q u e os c o n sag ra o u o s to rn a santos,
d e m o d o q u e , c o n sa g ra d o s co m o Jesu s foi c o n sag ra d o , eles p o d e m ser
e n v ia d o s co m o Jesu s foi e n v ia d o s.
A reflexão so b re as p a ssa g e n s acerca d o P arácleto, n o ú ltim o dis-
cu rso , a carreta a in d a m ais a relação e n tre m issão e o E spírito. (N o
A p ê n d ic e V reco n h ecem o s q u e o conceito P arácleto teve u m a origem
u m ta n to d ife ren te d a q u e la d o conceito cristão m ais geral d o Espíri-
to S an to e tem su a p ró p ria conotação especial. N ã o obstante, o Q u arto
E v an g elh o fin alm en te identifica o P arácleto com o E spírito Santo, e as-
sim n ã o p o d e m o s d isso ciar a p ro m e ssa d e "o Parácleto, o E spírito San-
to ", em 14,26 d a s p a la v ra s "R ecebei u m E sp írito " em 20,22). Jesus disse
q u e s u a p a rtid a to rn a ria po ssív el o en v io d o P arácleto ao s discípulos
(16,7; tam b é m 14,26; 15,26). Este en v io d o P a rác leto /E sp írito é realiza-
d o a g o ra e m conjunção com o en v io p ó s-ressu rreição do s discípulos. Se
eles têm d e ir e d a r teste m u n h o , isso se d e v e p o rq u e o P arácleto /E sp íri-
to a q u e m receb em d a rá teste m u n h o (15,26-27). Em 14,17, o u v im o s q ue
o P arácleto é o E spírito d a V e rd a d e a q u e m o m u n d o n ã o p o d e receber;
m a s e n tã o Jesu s d iz aos discípulos: "R ecebei u m E spírito san to ", e os
e n v ia ao m u n d o . S ua m issão, p recisam en te com o a m issão d e Jesus,
tra z u m a o ferta d e v id a e salvação aos q u e creem (6,39-40.57), p o rq u e
já rec e b e ra m o E spírito q u e g era v id a (3,5-6) e, p o r su a v ez, p o d e m d ar
este E sp írito a o u tro s q u e desejam se to rn a r d iscíp u lo s d e Jesus.
Q u a n d o n o s v o lv em o s p a ra u m a d isc u ssã o d ire ta d o v. 22 e p a ra
a in su flaç ã o d o E sp írito , reco n h ecem o s q u e, p a ra João, e ste é o p o n to
m á x im o d a a tiv id a d e p ó s-re ssu rre iç ã o d e Jesus e q u e já d e v á ria s m a-
n e ira s a p a rte m ais a n tig a d e ste c a p ítu lo n o s tem p re p a ra d o p a ra este
m o m e n to d ram á tic o . A associação d a ressu rre içã o co m a ascensão,
n o v . 17, e a im p licação d e q u e a tra v é s d o re to rn o d e Jesus ao P ai os
h o m e n s v iria m a se r filhos d e D e u s d e sig n a d o s p a ra a o b ra d o Espíri-
to. P o d e se r q u e m esm o a referên cia so b re o la d o d e Jesus n o v. 20 se
d e s tin a ss e a le m b ra r s e c u n d a ria m e n te o leito r d o sa n g u e e á g u a q u e
flu íra m d a q u e le la d o e sim b o lizasse o E sp írito (pp. 1410-15 acim a).
A ntes d e Jesus dizer, "Recebei u m Espírito", ele so p ra sobre seus dis-
d p u lo s. O v erb o grego e m p h y s a n , "soprar", é u m eco d a LXX de G n 2,7,
a c e n a d a criação, o n d e so m o s in fo rm ad o s: " O S en h o r D eu s for-
m o u o h o m e m d o p ó d a te rra e so p ro u em su a s n a rin a s o fôlego
d a v id a " . O v e rb o é u s a d o o u tra v e z e m Sb 15,11, q u e p a ra fra se ia o
1522 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

rela to d a criação: "A q u e le q u e o fo rm o u e... lhe s o p ro u u m e sp írito


v iv en te ". E n tão , sim b o licam en te, João e stá p ro c la m a n d o q u e , p reci-
sa m e n te co m o n a p rim e ira criação, D e u s s o p ro u u m e sp írito v iv e n te
n o h o m em , ta m b é m ag o ra , n o m o m e n to d a n o v a criação , Jesu s so-
p ra seu p ró p rio E sp írito S an to n o s d isc íp u lo s, d a n d o -lh e s v id a eter-
na. (N o P ró lo g o 1,1-5, o e v a n g elh o se a b riu co m o te m a d a criação
- v e r tam b é m vol. 1, p . 200 - e o te m a d a criação v o lta n o final). N a
im p re ssio n a n te v isã o d o v a le d o s o ssos secos, D e u s f a la a E zeq u iel
co m o "filh o d o h o m e m " (37,3-5), o rd e n a -lh e q u e p ro fe tiz a sse a o s os-
sos secos: "O sso s secos, o u v i a p a la v ra d o SEN H O R ... Eis q u e farei
e n tra r e m v ó s o e sp írito , e v iv ere is". A g o ra , o u tro F ilho d o H o m e m ,
q u e acab a d e sa ir d a tu m b a , fala co m o o S e n h o r re s s u rre to e faz com
q u e o fôlego d e v id a e te rn a e n tre n o s q u e o u v e m s u a p a la v ra . A tra v é s
d o sim b o lism o b a tism a l se c u n d á rio d e Jo 3,5 os leito re s d o e v a n g e-
lh o são in fo rm a d o s q u e , p e la á g u a e p e lo E sp írito , são g e ra d o s co m o
filho s d e D eu s; a p re se n te cen a se rv e co m o o B atism o im e d ia to d o s
d isc íp u lo s d e Jesus e u m p e n h o r d o g e ra r d iv in o e m to d o s o s c re n tes
d e u m p e río d o fu tu ro re p re s e n ta d o p e lo s d isc íp u lo s. (N ão é d e e stra -
n h a r q u e o c o stu m e d e so p ra r so b re o n eó fito q u e é b a tiz a d o te n h a
e n c o n tra d o s u a v ia n o cerim o n ial batism al). A g o ra eles são re a lm e n -
te irm ã o s d e Jesus e p o d e m c h a m a r o P ai d e le d e P ai n o sso (20,17).
O d o m d o E sp írito é o "clím ax ú ltim o d a s relaçõ es p e sso a is e n tre Jesu s
e se u s d isc íp u lo s" (D odd , I n t e r p r e t a t i o n , p . 227).
T em o s c o m e n ta d o so b re a d o a ç ão d o E sp írito à lu z d o p e n sa -
m en to jo an in o , m a s m u ito s ex eg etas têm -se d e ix a d o in c o m o d a r p e lo
p ro b le m a d e co nciliar a d a ta ç ã o d e João d e ste e v e n to n a n o ite p a sc a l
co m o q u a d ro e m A t 2 d o d e rra m a m e n to d o E sp írito n o P e n tec o stes
c in q u e n ta d ia s d e p o is. N a a n tig u id a d e , v e m o s e ste p ro b le m a refleti-
d o n a ação d o S e g u n d o C oncilio d e C o n sta n tin o p la (q u in to concilio
ecu m ên ico , 5 5 3 d.C .), o q u a l c o n d e n o u o p o n to d e v ista d e T eodoro
d e M o p su éstia, d e q u e Jesus re a lm e n te n ã o d e u o E sp írito n a P áscoa,
m as a g iu a p e n a s fig u ra d a m e n te e à m a n e ira d e p ro m e ssa (DB, §434).
E m u m a p e s q u isa d o s p o n to s d e v ista c o n se rv a d o re s so b re a q u e stã o ,
S ch ö lte , o p . c i t . , e n c o n tra p o u c o s e stu d io so s, n o s sécu lo s m a is recen-
tes (p rin c ip a lm e n te G rotius e T h o lu ck ) q u e se g u e m os p a s so s d e T eo -
doro , re d u z in d o a cen a d e João ao m e ro sim b o lism o d e u m a fu tu ra

d o ação d o E sp írito. A m aio ria p e n sa q u e o E sp írito foi re a lm e n te d a d o


n a P ásco a, m as d e u m a m a n e ira d ife re n te d a d o a ç ão p e n te c o sta l.
69 · O Jesus ressurreto: - Segunda cena 1523

A lg u n s faz e m u m a d istin çã o q u a lita tiv a . U m a fo rm a d e ssa distin ção


já se e n c o n tra e m J oão C risóstomo (I n Jo. H o m . 86,3; PG 59:471), q u e
rela cio n a o d o m d o E sp írito e m Jo 20,22 ao p e rd ã o d e p e c ad o s, e o
d o m d o E sp írito e m A t 2 ao p o d e r d e o p e ra r m ilag re s e d e ressu sc ita r
m o rto s. F re q u e n te m e n te se d iz q u e o d o m p a sc a l d o E sp írito se ocu-
p a so m e n te d o in d iv íd u o e su a relação co m o P ai, e n q u a n to o d o m
p e n te c o s ta l é c a ra c te riz a d o com o eclesiástico o u m issio n ário . U ns
p o u c o s p ro p õ e m q u e o d o m p a sca l tev e a fu n çã o im e d ia ta e lim ita d a
d e c a p a c ita r os d isc íp u lo s a rec o n h e c ere m e a co n fessarem o S enhor
re s s u rre to (u m co n ceito b a se a d o e m IC o r 12,3: N in g u é m p o d e d izer
"Jesu s é S e n h o r" exceto p e lo E sp írito Santo). V er ta m b é m a n o ta so b re
"R ecebei u m E sp írito sa n to " n o v. 22 p a ra a d istin çã o e n tre u m d o m
im p e sso a l d o E sp írito n a P áscoa e u m d o m p e sso a l n o P entecostes.
O u tro g ru p o d e e stu d io so s faz u m a d istin çã o q u a n tita tiv a . O d o m d o
E sp írito n a P ásco a é tra n sitó rio o u a n te c ip a tó rio (B en g el fala d e u m
a r r h a o u p e n h o r), e n q u a n to o d o m n o P en teco stes é co m p le to e defini-
tivo. S w et e , p . 167, c h a m a u m d e p o te n c ia l e o o u tro d e atual.
M u ito s e s tu d io so s críticos a b o rd a m o p ro b le m a d ife ren te m e n te.
E les s a lie n ta m q u e n o E v a n g e lh o d e João n a d a h á q u e n o s leve a carac-
te riz a r o d o m d o E sp írito e m 20,22 co m o p ro v isó rio o u parcial; antes,
é o c u m p rim e n to to ta l d e p a ssa g e n s m ais a n tig a s d o e v a n g elh o q u e
p ro m e te ra m a d o a ç ão d o E sp írito o u a v in d a d o P arácleto. T am p o u co
o d o m e m 20,22 é m e ra m e n te p e sso a l o u in d iv id u a l; n o v. 21, ele está
e stre ita m e n te rela c io n a d o c o m o e n v io d o s d isc íp u lo s ao m u n d o . N ão
é b o a m e to d o lo g ia h a rm o n iz a r João e A to s, p re s s u p o n d o q u e u m tra-
ta d e u m d o m a n te rio r d o E sp írito e o o u tro , d e u m a d o a ç ão tard ia.
N ã o h á e v id ê n c ia d e q u e o a u to r d e a m b a s as o b ra s tiv essem ciên-
cia d e o u lev a sse e m co n ta a a b o rd a g e m q u e o o u tro fez d a qu estão .
E a ssim p o d e m o s m a n te r q u e, fu n cio n a lm e n te , c a d a u m está descre-
v e n d o o m e sm o ev en to ; u m o d o m ú n ico d o E sp írito ao s seu s segui-
d o re s p e lo S e n h o r re ssu rre to e a sc e n d id o ao céu. A s descrições são
d ife re n te s, re fle tin d o os in te resse s teológicos d iv erso s d o s resp ectiv o s
a u to re s; m a s n ã o tem o s o m esm o fen ô m e n o d e v a ria çã o e n tre as des-
criçõ es q u e o e v a n g e lh o d á d o m e sm o e v e n to n o m in isté rio d e Jesus?
E m p a rtic u la r, n ã o h á o b stá c u lo in tra n sp o n ív e l n o fato d e q u e João
e A to s d e s ig n a m u m a d a ta d ife re n te p a ra o d o m d o E spírito. C om o
te m o s rec o n h e c id o , a d a ta ç ã o q u e João faz d a p rim e ira ap a riçã o d e
Je su s a s e u s d isc íp u lo s é a rtificial, p o is a G alileia te m u m a p referên cia
1524 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

m elh o r q u e Je ru sa lé m p a ra se r o local o rig in a l d e s ta a p a riç ã o , e q u e ,


o b v iam en te, ex cluiría o d o m in g o d a P áscoa com o a d a ta d a a p a riç ã o
(p. 1438 acim a). M as h á ta m b é m m u ito q u e é sim bólico n a esco lh a
d e A to s d o P en teco stes, p o is L ucas e stá u s a n d o o p a n o d e fu n d o d a
v in d a d o E sp írito a sso ciad o com a q u e la festa e m s u a d escrição d a v in -
d a d o E sp írito (v er vol. 1, p . 426). T o d a v ia, n ã o d e sc o n sid e ra m o s a
p o ssib ilid a d e d e q u e L ucas p re se rv e u m a m e m ó ria cristã a u tê n tic a
d a p rim e ira m an ifestaç ã o carism ática d o E sp írito n a c o m u n id a d e n o
P enteco stes. O q u e é in te re ssa n te é q u e a m b o s os a u to re s colocam a
d o ação d o E sp írito d e p o is q u e Jesus a sc e n d e u a s e u P ai, a in d a q u e
tiv essem p o n to s d e v ista d ife ren te s d a ascen são. P a ra a m b o s, a ta re fa
d o E sp írito é a s su m ir o lu g a r d e Jesu s, e x e cu ta r su a o b ra e c o n tin u a r
su a p rese n ç a n o m u n d o . A ssim , com c erta ju stificativ a, p o d e m o s ju n -
tar-n o s a A rchim andrite C assien , a r t . c i t . , a o falar d e Jo 20,22 c o m o "o
p e n teco stes jo an in o ", m esm o q u a n d o n ã o te n ta m o s d a ta r e ste e v e n to
à festa d o p e n teco stes, com o ele faz.

O p o d e r so b re 0 p e c a d o (20,23)

O ú ltim o d ito d e Jesu s n a a p a riç ã o p ó s-re ssu rre iç ã o a se u s disci-


p u lo s às v e z es é c o n sid e ra d o co m o u m a fo rm a v a ria n te d o d ito reg is-
tra d o em M t 16,19 e 18,18 (ver D odd , T r a d i t i o n , p p . 347-49):

M a te u s João

"T u d o o q u e lig ares (d e in ) na "A q u e le s a q u e m p e rd o a rd e s


terra (a p h i e n a i ) o s p e c ad o s,
será lig a d o n o céu; seu s p ecad o s tem sid o p e rd o a d o s;
T u d o o q u e d e slig a re s (l y e i n ) n a a q u e m os re tiv e rd e s (k r a t e i n ),
terra
será d e slig a d o n o céu". eles são re tid o s" .

A co m p aração fica m ais significativa q u a n d o c o m p re e n d e m o s q u e


os tem p o s p assiv o s ("tem sid o p e rd o a d o s" ; "são retid o s") d e João, e a
referência q u e M ateu s faz ao céu co n stitu e m d u a s circunlocuções p a ra
d escrev er a ação d e D eus. G eralm en te se concede q u e, ao falar d e ligar
e deslig ar, M ateu s está tra d u z in d o u m a fó rm u la h e b ra ica '/a ra m aic a
b e m a te s ta d a n o s escrito s rab ín ico s ta rd io s co m os v e rb o s ’a s a r e n ã t a r
69 · O Jesus ressurreto: - Segunda cena 1525

o u s e r ã h . A e x p re ssã o d e João, " p e rd o a r p e c a d o s" , n ã o oferece p ro -


b lem a , m a s n ã o e sta m o s c erto s so b re o e q u iv a le n te h eb raico preciso
p a r a a e s tra n h a e x p re ssã o " re te r [p ecad o s]" ( § ã m a r o u n ã t a r ? ) . J. A.
E merton , JTS 13 (1962), 325-31, tem feito u m a in te re ssa n te su gestão.
Ele s a lie n ta q u e a referên cia à a ta r e d e sa ta r em M t 16,19 e stá n o con-
tex to e m q u e Jesu s d á a P e d ro as ch av es, e q u e to d a esta cena é u m
eco d o p e n s a m e n to e m Is 22,22, o n d e o sím b o lo d e a u to rid a d e régia,
a ch a v e d o p a lá c io , é p ro m e tid o a E liaq u im , a ssim o c o n stitu in d o p ri-
m e iro m in is tro d o rei: "A ch a v e d a casa d e D av i - ele a b rirá e nin-
g u é m fech ará; e ele fec h a rá e n in g u é m a b rirá " . E merson in d a g a se o
d ito o rig in a l d e Jesus n ã o foi m o d e la d o n a im a g e m isaiana: "T u d o o
q u e fech ares s e rá fech ad o ; e tu d o o q u e a b rires será a b e rto ". N essa hi-
p ó te se , a tra d iç ã o m a te a n a teria se c o n fo rm ad o ao d ito d e Jesus com o
s e n d o u m a fó rm u la ju d a ic a leg al b e m c o n h e cid a ("a b rir" v in d o a ser
" d e s a ta r" ; "fe c h a r" v in d o a ser " a ta r" ), e n q u a n to a tra d içã o jo an in a
te ria re m o d e la d o o d ito p a ra ap licar-se ao p e c a d o ("a b rir" v in d o a
se r " so lta r, p e rd o a r" ; "fe c h a r" v in d o a se r " re ter"). E m q u a lq u e r caso,
João faz s u rg ir u m a fó rm u la q u e ao s o u v id o s g reg o s n ã o era m ais in-
telig ív el d o q u e a fó rm u la m ate an a .
O c o n te x to d o d ito v a ria n o s d o is e v a n g e lh o s. E m João, ele é
p ó s -re s su rre iç ã o . M t 28,18 é d irig id o ao s d isc íp u lo s co m o u m g ru p o
(v er 18,1) e se a c h a e m u m c o n te x to d e co m o as a u to rid a d e s d e v e m
re s o lv e r a s d is p u ta s d e n tro d a c o m u n id a d e cristã. T o d o o c a p ítu -
lo r e p r e s e n ta u m a co leção m a te a n a d e m a te ria is q u e p u d e s s e m ser
a d a p ta d o s p a r a a a p lic aç ã o à v id a e m c o m u n id a d e s c ristã s b e m es-
ta b e le c id a s, e a ssim n ã o te m o s a q u i o c o n te x to o rig in a l p a ra o d ito
d e lig a r-d e s lig a r. M t 16,19 é p a rte d e u m a a d iç ã o m a te a n a esp ecial
(vs. 16b-19) à c e n a d e C e sa re ia d e F ilip e, u m a a d iç ã o c o n sistin d o
d e u m a co leção d e m a te ria is p e rtin e n te s a P e d ro , p a rte d e le s se n d o
p ó s -re s s u rre iç ã o (v er v ol. 1, p p . 548ss; ta m b é m p p . 1583-86 abaixo).
A ssim , a lo ca liz a ç ão q u e M a te u s d á a o d ito n ã o te m reiv in d ic a ç ã o
a u to r ita tiv a e, d e v e ra s , n ã o é p o ssív e l q u e o d ito fo sse o rig in a lm e n te
p ó s -re s s u rre iç ã o co m o e m João.
C o m o u m p o ssív e l g u ia p a ra o sig n ificad o d o d ito e m João, p o d e -
m o s in d a g a r o q u e significa o d ito em M ateu s. A fó rm u la rab ín ica d e
lig a r e d e s lig a r q u e M a te u s reflete se refere m u ita s v e z es à im p o sição
o u rem o ç ão d e u m a o b rig ação p o r u m a d ecisão d o u trin a i a u to ritati-
v a. O u tro sig n ificad o , m e n o s fre q u e n te , d e lig a r /d e s lig a r é im p o r o u
1526 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

rem over u m anátem a de excom unhão. Este seg u n d o significado d a


fórm ula afeta as pessoas diretam ente; o prim eiro significado as afeta
indiretam ente através de suas ações. O s estudiosos arg u m e n tam so-
bre qual dos dois significados se ad eq u em m elhor às passagens m a-
teanas. F. Büch sel , "deõ (lyõ)", TW NTE, II, 60-61, o p ta p ela excom u-
nhão. K. S t e n d a h l , The School of St. Matthew (Filadélfia: Fortress, 1968),
p. 28, argum enta que a prom ulgação de u m a obrigação se ajusta m e-
lhor com 18,18.0 fato d e que o dito m ateano p o d e ter diferentes sig-
nificados em diferentes contextos nos adverte d a possibilidade d e que
a form a v ariante do dito em Jo 20,22 p o d e ter ainda o u tro significa-
do. Só in d iretam ente se p o d e en ten d er a afirm ação d e João d e per-
doar e reter pecados com o relacionada ao po d e r de receber d e vo lta à
congregação o u expulsar dela; p o r exem plo, se a pessoa cujo pecado
é p erd o ad o está nesse m om ento fora da com unhão d a co m u n id ad e
(assim D o d d , Tradition, p. 348). A lém do m ais, p e rd o a r pecados parece
ir m ais além de sim plesm ente declarar que não há obrigação m oral
relacionada com certa ação. De m uitas m aneiras, a fórm ula joanina é
m ais querigm ática e talvez preserve m ais a essência original do dito
do que a fórm ula jurídica u sad a em M ateus.
O problem a do significado, alcance e exercício do p o d e r d e per-
doar pecados que se outorga em 20,23 tem sido elem entos decisivos no
cristianism o. Por exem plo, em relação aos reform adores protestantes,
o Concilio de T rento condenou a p ro p o sta de que este p o d e r d e p erd o a r
pecados foi oferecido a cada u m dos fiéis de Cristo; ao contrário, este
versículo deve ser enten d id o com o o p o d e r exercido pelo sacerdote or-
denado no sacram ento d a penitência e não sim plesm ente aplicado ao
p o d er da sua Igreja de p reg ar o evangelho (DB, §§1703,1710). M uitos
estudiosos m odernos católico-rom anos não pen sam que esta declara-
ção d a Igreja d iz respeito o u define necessariam ente o significado que
0 evangelista anexou ao versículo q u an d o o escreveu; a im plicação da
declaração é insistir contra a crítica de que o sacram ento d a penitência
é um exercício e especificação legítim os (m esm o que últim o) d o p o d er
de p erd ão conferido neste versículo. N ão obstante, a posição católico
-rom ana reflete u m a interpretação na qual o p o d e r m encionado em
20,23 diz respeito ao p erd ão de pecados com etidos depois d o batism o e
é d ad o a u m g ru p o específico, os onze, que o passam a ou tro s através
d a ordenação. Esta interpretação tem sido rejeitada p o r ou tro s cristãos
que m antêm que o p o d e r é dad o a u m gru p o m aior sim bolizado pelos
69 · O Jesus ressurreto: - Segunda cena 1527

discípulos e que é u m p o d e r de p reg ar o p erd ão de pecados concedí-


d o p o r D eus em C risto e / o u de adm itir pecadores ao batism o.
P rovavelm ente seja im possível resolver esta questão sobre bases
m eram ente exegéticas, pois algum as das pressuposições, de am bos
os lados, refletem preocupações pós-bíblicas. Já enfatizam os (p. 1517
acim a) que, en q u an to na tradição joanina pré-evangélica "os discípu-
los" a q u em o Jesus ressurreto fala eram os onze, não podem os estar
certos se o evangelista está falando deles com o u m gru p o histórico ou
com o sím bolos de todos os discípulos cristãos. Q uanto ao p o d e r de
p e rd o a r/re te r pecados, n ad a h á no p ró p rio texto n ad a que associe o
p e rd ã o com o u a pregação do evangelho ou adm issão ao batism o. Es-
tas idéias v êm d e u m a harm onização com outros relatos evangélicos
d a aparição do Jesus ressurreto aos onze. Por exem plo, Lc 24,47 tem
Jesus in stru in d o os onze (e os que estavam com eles), que "em seu
no m e se pregasse o arrependim ento e o p erd ão de pecados [kêryssein,
"proclam ar"] a todas as nações"; e o A pêndice M arcano 16,15 tem a
instrução d e p reg ar o evangelho. A relação do p erd ão com o batism o
é extraída em p a rte de u m a analogia com M t 28,19, o n d e Jesus diz a
seus discípulos que batizassem todas as nações e do A pêndice M arca-
no 16,16, o n d e o d u p lo efeito da m issão de batizar é específico: "Aque-
le q u e crer e for batizado será salvo, m as aquele que não crer será
condenado". M as a harm onização, porém , constitui u m pobre recurso
p a ra resolver o problem a do significado joanino do p o d e r de p erd o ar
justam en te com o tam bém pouco ajuda p ara resolver o que João tem
em m ente p o r "os discípulos". (C uriosam ente, m uitos que harm oni-
zam p a ra decidir o prim eiro problem a não se dispõem a harm onizar
p a ra resolver o segundo). H á pouco suporte interno na teologia joa-
nina p a ra in terp reta r o v. 23 com o u m p o d e r de p reg ar o p erdão dos
pecados. Essa ênfase é lógica em Lucas, pois A tos m ostra com o esta
pregação foi efetuada; m as, p o r essa m esm a razão, essa ênfase pode
bem ser atrib u íd a ao p ró p rio Lucas e não à tradição pré-evangélica.
H á m elhor su p o rte joanino interno p ara relacionar o p erd ão de peca-
d o s com a adm issão ao batism o, pois algum as das passagens joaninas
q u e têm u m sim bolism o batism al secundário tangem a questão do
pecado. Foi o Batista que proclam ou Jesus com o "o C ordeiro de D eus
q u e tira o pecado do m u n d o " (1,29). N o cap. 9, a ab ertu ra dos olhos do
cego (batism alm ente simbólica; vol. I, p. 655) é contrastada com a per-
m anência d o s pecados d o s fariseus (9,41). É im portante o fato que os
1528 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

P a d re s d a Ig reja d o s p rim e iro s trê s sé cu lo s e n te n d e s s e m Jo 20,23 e m


re fe rê n c ia ao p e rd ã o d e p e c a d o s; v e r ta m b é m a fó rm u la d o c re d o
" u m só b a tis m o p a r a o p e rd ã o d e p e c a d o s " . A falh a d e sse s e sc rito re s
a n tig o s e m re la c io n a r o v e rsíc u lo co m o p ro b le m a d o s p e c a d o s co-
m e tid o s d e p o is d o b a tis m o é a in d a m a is im p o r ta n te p o r q u e a q u e s-
tão se o s p e c a d o s p o d e ría m o u n ã o s e r p e rd o a d o s foi in te n s a m e n -
te d is c u tid a n a q u e le p e río d o (T. W o rd en , " T h e R e m i s s i o n o f S i n s " ,
S c rip tu re 9 [1957], 65-67).
N ã o o b stan te, d u v id a m o s se h á e m João e v id ê n c ia s u ficien te p a ra
d iz e r q u e o ev a n g elista p re te n d e s s e referir-se e x c lu siv am e n te ao p o -
d e r d e a d m itir o u n ã o a d m itir p re te n d e n te s a o b a tism o . N o co n tex to
im e d ia to , a ú n ica coisa q u e é re m o ta m e n te e v o c ativ a d o b a tism o é a
id eia d e q u e a d o a ç ão d o E sp írito ao s d isc íp u lo s é d e c erta fo rm a se u
b atism o . E m v e z d e te n ta r in te rp re ta r o v. 23 à lu z d o s p a ra le lo s n o s
relato s d o s o u tro s e v a n g elh o s e d e tê n u e s relaçõ es co m o sim b o lism o
b a tism a l se cu n d á rio , vejam os o q u e re su lta se o in te rp re ta rm o s à lu z
d o co n tex to im e d ia to e d o s tem a s m aio res d a teo lo g ia jo an in a.
O v. 23 d ev e relacionar-se com o v. 21. O s d iscíp u lo s p o d e m p er-
d o a r e im p u ta r o s p ecad o s d o s h o m en s p o rq u e o Jesus ressu rre to a g o ra
os en v ia com o o P ai o enviou. A ssim , o p e rd ã o e retenção d e p e c ad o s
seriam in te rp re ta d o s à lu z d a p ró p ria ação d e Jesus p a ra com o pecado.
Em 9,39-41, Jesus d iz q u e veio ao m u n d o p a ra juízo: p a ra q u e a lg u n s ve-
jam e cau sar cegueira e m outros. A cegueira d elib erad a significa p e rm a -
necer n o pecado; e, im plicitam ente, a indisposição d e v e r resu lta e m ser
en treg u e ao pecado. Jo 3,17-21 descreve u m a sep aração d a q u e le s cujas
v id as são d o m in a d a s pelo b e m e d aq u eles q u e lev am u m a v id a d o m in a-
d a p elo m al, e este processo discrim inatório se relaciona com o p ro p ó si-
to p a ra o q u al D eus e n v i o u o Filho ao m u n d o . E assim , se os discípulos
são e n v iad o s tam b ém com o o Filho foi en v iad o , eles c o n tin u a ria m o juí-
zo d iscrim in ató rio e n tre o b e m e o m al. Já m en cio n am o s q u e 20,21 é u m
eco d e 17,18 q u e tam b ém trata d o s d iscípulos com o e n v ia d o s ao m u n d o ,
e o contexto d esta ú ltim a p assag em m o stra q u e a p resen ça d o s discípu-
los p ro v o ca o ó d io d e a lg u n s ("o m u n d o " , 17,14), m as leva o u tro s a crer
(17,20). V em os, pois, q u e a escatologia realizad a e o d u a lism o joaninos
oferecem o p a n o d e fu n d o p a ra a co m p reen são d o p e rd ã o e a im p u tação
d o p ecad o em 20,23. O s discípulos, q u e r p ela ação q u e r p e la p alav ra,
levam os h o m en s a ju lg arem a si m esm os: alg u n s v ê m p a ra a lu z e rece-
b em p erd ão ; o u tro s se afastam e se e n d u recem em seus p ecados.
69 · O Jesus ressurreto: - Segunda cena 1529

O v. 23 d e v e rela cio n a r-se co m o v. 22. O s d isc íp u lo s p o d e m


p e r d o a r e re te r o s p e c a d o s d o s h o m e n s p o rq u e Jesu s já s o p ro u so-
b re eles o E sp írito S anto. E m s e u m in isté rio , Jesu s p e rd o o u p e c ad o s,
m a s co m o e ste p o d e r c o n tin u a a o p e ra r d e p o is d e s u a p a rtid a ? U m a
re s p o s ta c ristã se e n c o n tra e m l j o 2,1-2: Je su s C risto , n o sso interces-
s o r ju n to a o P ai, " é u m a e x p iação p a ra n o sso s p e c a d o s, e n ã o só p o r
n o sso s p e c a d o s , m a s ta m b é m p e lo s d o m u n d o in te iro " . E n tre ta n to , o
e v a n g e lh o se o c u p a m a is co m a a p licação d o p e rd ã o so b re a te rra , e
isto é e fe tu a d o e m e a tra v é s d o E sp írito q u e Jesu s e n v io u . Se evocar-
m o s a s p a s s a g e n s jo a n in a s d o P a rác leto , e n tã o a d o a ç ão d o P arácle-
to /E s p ír ito refo rça a id e ia d e q u e os d isc íp u lo s são o ó rg ã o d o ju ízo
d is c rim in a tó rio so b re o m u n d o (v er B ea r e , p. 98). O p e ra n d o a tra v és
d o s d isc íp u lo s , o P a rác leto , co m o Je su s a n te s d ele, d iv id e o s h o m en s
e m d o is g ru p o s: o s q u e creem e p o d e m reco n h ecê-lo e recebê-lo, e o
m u n d o q u e n ã o o rec o n h e c e n e m o v ê e q u e se rá c o n d e n a d o (14,17;
16,8). Se v o lta rm o s d a s p a s sa g e n s d o P a rác leto p a ra id éia s jo an in a s
m a is g e ra is so b re o E sp írito , e n tã o p o d e m o s re la c io n a r o p e rd ã o d e
p e c a d o s co m o d e rra m a m e n to escato ló g ico d o E sp írito q u e p u rific a
h o m e n s e o s g e ra p a r a u m a n o v a v id a (ver c o m e n tá rio so b re 1,33 e
3,5). E m 20,22, o sim b o lism o p rim á rio d a d o a ç ão d o E sp írito se o c u p a
d a n o v a criação , u m a c riação q u e e x p u rg a o m al, p o is o E sp írito S a n t o
c o n sa g ra h o m e n s e lh es o u to rg a , o p o d e r d e sa n tific ar a o u tro s. Em
u m a rtig o im p o rta n tís s im o , J. S ch m itt d e m o n s tro u co m o Jo 20,22-23
(a ju sta p o s iç ã o d o d o m d o E sp írito e o p e rd ã o d e p e c a d o s) p o d e re-
la c io n a r-se co m a id e ia d e Q u m ra n d e q u e D e u s d e rra m o u se u san-
to e s p írito so b re to d o a q u e le q u e é a d m itid o n a c o m u n id a d e : "Ele
s e rá p u rific a d o d e to d o s o s p e c a d o s p e lo e sp írito d e s a n tid a d e " (1QS
3,7-8). E sta p u rific a ç ã o escato ló g ica inicial d o s p e c a d o s, c o n firm a d a
e e v id e n c ia d a p e la s á g u a s d a p u rific a ç ã o d e Q u m ra n , n ã o exclui a
n e c e s s id a d e d o p e rd ã o c o n tín u o n a v id a d a c o m u n id a d e . O su p e r-
v is o r (m e b a q q ê r - e tim o lo g ic a m e n te o e q u iv a le n te d o e p i s k o p o s o u
b is p o cristão ) d e C D 13,9-10 d e v e a p ie d a r-se d o s q u e v iv e m so b seu
c u id a d o a s sim c o m o o p a i se a p ie d a d e se u s filhos, e a ele cabe tra z e r
d e v o lta a to d o s q u a n to s se e x tra v ia ram : "E le so lta rá to d a s a s a m a r-
ra s q u e o s p r e n d e m p a ra q u e n e n h u m seja o p rim id o o u q u e b ra n ta d o
e m s u a c o n g re g a ç ã o " . A. D u po n t -S om m er , T h e E s s e n e W r i t i n g s f r o m
Q u m r a n (C lev elan d : M e rid ia n , 1962), p . 1574, p e n s a q u e e sta é u m a
re fe rê n c ia à s a ta d u r a s d o p e c a d o , e q u e o su p e rv is o r e stá rec e b e n d o
1530 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

a o rd e m d e s o lta r essa s a m a rra s a fim d e q u e to d o s o s m e m b ro s d a


co n g reg ação , a n te rio rm e n te o p rim id o s p o r B elial e o p rim id o s p o r
s u a co n sciên cia d e p e c a d o , c o n h e ça m a lib e rd a d e e a a le g ria e sp i-
ritu a l. E. C o th en et , e m L e s T e x t e s d e Q u m r a n , ed . P o r J. C arm ign a c
(Paris: L eto u zey , 1963), II, 201, n e g a q u e n a p a s sa g e m d e Q u m ra n
esteja e n v o lv id a a ab so lv ição . A o c o n trá rio , o s u p e rv is o r, p e lo ex er-
cicio p a te rn a l d a a u to rid a d e e a o esta b e le c e r u m clim a d e ju stiç a e
fra te rn id a d e , p e rm ite q u e o s m e m b ro s rec e b a m o p e rd ã o d e D eu s.
Se in te rp re ta rm o s Jo 2 0 ,2 2 2 3 ‫ ־‬à lu z d e ste p a n o d e fu n d o d e Q u m ra n ,
p o d e m o s v e r co m o o p o d e r d e p e rd o a r p e c a d o s, re la c io n a d o co m
o d e rra m a m e n to d o E sp írito c ria d o r, p o d e e n v o lv e r, re sp e c tiv a m e n -
te, u m p e rd ã o in icial m e d ia n te a a d m is s ã o a o b a tis m o e o exercício
c o n tín u o d o p e rd ã o d e n tro d o s laços d a v id a d a c o m u n id a d e cristã.
A ssim , n o s ju n ta m o s a H oskyns , B arrett e D odd ( T r a d i t i o n , p . 3482)
e m n ã o a c h a r ra z ã o c o n v in c e n te p a ra lim ita r o p e rd ã o p a r a o s p e -
ca d o s c o m e tid o s a n te s d o b a tism o . Se Je su s é " a q u e le a q u e m D e u s
e n v io u " e " v e rd a d e ira m e n te ilim ita d o é s e u d o m d o E sp írito " (3,34),
en tã o , p re s u m iv e lm e n te , o m e sm o c a rá te r ilim ita d o m a rc a o d o m d o
E sp írito p o r p a rte d a q u e le s a q u e m Jesu s e n v io u . G rass , p p . 67-68,
e stá c erto e m in sistir q u e a q u i João n ã o v isu a liz a u m a situ a ç ã o m era -
m e n te m issio n á ria , m as, ao c o n trá rio , u m a c o m u n id a d e eclesiástica
estab elecid a. E ssa c o m u n id a d e n e c e ssita ria d o p e rd ã o n ã o só n o m o-
m e n to d a a d m issã o , m a s ta m b é m d e p o is d ela.
O v ersícu lo 23 d e v e relacio n ar-se com o q u e se g u e e m Jo 20, espe-
cialm en te co m 20,29. O relato d e T om é oferece u m a tra n siç ã o d o s dis-
cíp u lo s co m o te ste m u n h a s o cu lares a o s m u ito s c ristão s q u e c reem sem
ter visto. A ssim com o o E spírito Santo, so p ra d o p o r Jesus so b re os dis-
cíp u lo s, p o r su a v e z é d a d o a to d o s os cren tes a tra v és d o b atism o . Este
p a p e l d o p e rd ã o n a v id a d o s cristão s d e u m a e ta p a p o ste rio r é a te sta d o
em l j o 1,7-9, o n d e o a u to r in fo rm a ao s seu s c o m p a n h e iro s d e com u-
n id a d e q u e, q u a n d o sin ceram en te reco n h ecem q u e c o n tin u a m p ecan-
do, "E le p e rd o a o s n o sso s p e c a d o s e n o s p u rifica d e to d a a injustiça"
(ver tam b é m 2,12). O ra, o b v iam e n te isto se refere ao p e rd ã o d ire to dos
p e c ad o s co n ced id o p o r D eus; m a s a p o ssib ilid a d e d e q u e o s cristãos
exerçam u m p a p e l n o p e rd ã o d o s p e c a d o s d e a lg u m o u tro m em b ro ,
ao m en o s p o r m eio d a oração, é v isto em l j o 5,16-17, o n d e h á encora-
jam e n to à o ração p e lo p e rd ã o d e p e c a d o s q u e n ã o são p a ra a m orte,
p o ré m n ã o p o r p e c ad o s q u e são p a ra a m o rte. P o d e ria m o s in d a g a r se
69 · O Jesus ressurreto: - Segunda cena 1531

a lg u n s d e n tr o d a c o m u n id a d e jo a n in a fo r a m r e v e s tid o s c o m p o d e r
s o b r e o p e c a d o (v e r G rass , p . 6 8 ), p o r é m é d ifíc il e s ta r c e r to d isto .
E m s u m a , d u v id a m o s q u e haja ev id ên cia suficiente p a ra lim itar o
p o d e r d e p e rd o a r e re te r p e cad o s, c o n ced id o em Jo 20,23, a u m exercí-
cio específico d e p o d e r n a c o m u n id a d e cristã, seja isso a ad m issão ao
b a tis m o o u seja o p e rd ã o a tra v é s d o sa cram en to d a p en itên cia. Estas
são a p e n a s m an ifestaçõ es p arciais d e u m p o d e r m u ito m aio r, a saber,
o p o d e r d e iso lar, rep e lir e a n u la r o m al e o p ec ad o , u m p o d e r d a d o
p e lo P ai a Jesu s e m s u a m issão e, p o r s u a vez, d a d o p o r Jesus, atrav és
d o E sp írito , àq u e le s a q u e m ele com issiona. E u m p o d e r efetivo, não
m e ra m e n te d eclarató rio , c o n tra o p ec ad o , u m p o d e r q u e afeta os novos
e a n tig o s se g u id o re s d e C risto, u m p o d e r q u e d esafia os q u e se recu-
sa m a crer. João n ã o n o s in fo rm a com o o u p o r q u e m este p o d e r era
ex ercid o n a c o m u n id a d e p a ra a q u a l escrev eu , m as o p ró p rio fato d e
ele m en cio n á-lo m o stra q u e o m esm o era exercido. (N a c o m u n id a d e
d e M a te u s, o p o d e r so b re o p ec ad o , ex p resso n a frase a ta r /d e s a ta r ,
teria sid o e x ercid o n a s d ecisões fo rm ais so b re o q u e era p ecam in o so e /
o u e m ex co m u n h ão ). N o cu rso d o tem p o , este p o d e r tem tid o m u itas
d ife ren te s m an ifestaçõ es, com o as v á ria s c o m u n id a d e s cristãs especi-
ficav am leg itim am e n te ta n to a m an e ira com o os resp o n sá v e is p elo seu
exercício. T alv ez o silêncio d e João e m especificar p u d e sse serv ir com o
u m a orien tação : ex eg eticam en te, p o d e -se ev o car Jo 20,23 p a ra assegu-
r a r q u e o p o d e r d e p e rd ã o foi o u to rg a d o ; p o ré m n ã o se p o d e evocar
e ste tex to co m o p ro v a d e q u e o m o d o com o u m a c o m u n id a d e p articu -
la r ex erce e ste p o d e r n ã o esteja d e aco rd o co m a E scritura.

T o m é p a s s a d e in c r é d u lo a c r e n te (20,24-27)

C o m o in d ic a d o n o esboço (p. 1435 acim a), os vs. 24-25 fo rm am a


tra n siç ã o e n tre o s d o is e p isó d io s d a se g u n d a cena: o v. 24 se relaciona
c o m o p rim e iro e p isó d io , o q u a l explica a a u sên c ia d e Tom é; o v. 25
p r e p a r a p a ra o s e g u n d o e p isó d io , o q u a l explica a rec u sa d e T om é d e
c re r a m e n o s q u e e x a m in e fisicam en te o c o rp o d e Jesus.
O s o u tro s d isc íp u lo s têm v isto e têm c rid o n o S en h o r ressu rreto ,
m a s T o m é n ã o aceita a p a la v ra deles. S ua o b stin ação é rem in iscen te d e
s u a a titu d e n o re la to d e L á z aro (11,14-16): d e p o is d e in fo rm a r os dis-
c íp u lo s so b re a m o rte d e L ázaro , Jesus diz: "E u e sto u feliz, p o r a m o r
d e v ó s, d e q u e e u n ã o e stiv esse lá, p a ra q u e a c re d ite is"; to d av ia , T om é
1532 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

n ã o se im p re ssio n a u m m ín im o se q u e r p e la m an ifestaç ã o d e Je su s d e
co n h ecim en to à distân cia. Ele co n c o rd a em su b ir com Je su s p a ra a Ju-
d eia, m as in siste q u e estão su b in d o p a ra e n fre n ta re m a m o rte.
A o ex ig ir q u e se lh e d eix e e x a m in a r o c o rp o d e Jesu s co m o d e d o
e a m ão , T o m é p e d e m ais d o q u e se o fereceu ao s o u tro s d iscíp u lo s.
Jesus lh es m o stro u su a s m ão s e la d o (20), e se a le g ra ra m à v ista d o
S enhor. T om é, p o ré m , q u e r v e r e sen tir. L iteralm en te, ele diz: "Se e u
n ã o vir... e n ã o p u s e r m e u ded o ... n ã o c re re i" (25). P o d e m o s d iz e r q u e
o a u to r jo an in o re p ro v a a exigência d e T om é, p o is ele fo rm u la o v. 25
q u a se n o s m esm o s term o s u s a d o s p a ra a a titu d e q u e Jesus c o n d e n o u
em 4,48: "Se n ã o v ird e s sin ais e m ilag re s, n ã o crereis". W e n z , a r t . c i t . ,
a rg u m e n to u q u e n a d a h á d e re p re e n sív e l n o p e d id o d e T o m é d e exa-
m in a r a s ferid as d e Jesus com s u a m ão , p o is d e fato o e v a n g e lista p e n -
sa v a q u e o c o rp o d e Jesus e ra tan g ív el. E n tre ta n to , e n q u a n to o e v a n -
g elista ta m b é m p e n sa v a q u e o s m ilag re s d e Jesus e ra m v isív eis, a c h o u
rep re e n sív e l u m a a te n ç ã o ex clu siv a n a c o m p ro v a çã o d o m ira cu lo so
(2,23-25). D u as d ife ren te s a titu d e s p a ra com a a p a riç ã o d e Jesu s são
re p re s e n ta d a s p e lo s d isc íp u lo s e p o r T om é. Q u a n d o v e e m Jesu s, o s
d isc íp u lo s são lev a d o s a confessá-lo co m o S en h o r (v. 25); m a s T o m é
está in te re ssa d o e m e x a m in ar o m ira cu lo so co m o tal.
E assim p a re c e q u e T om é te m d e se r re p re e n d id o p o r d u a s ra-
zões: p o r se re c u sa r a ac eita r a p a la v ra d o s o u tro s d isc íp u lo s e p o r in-
sistir e m c o m p ro v a r o a sp ecto m a ra v ilh o so o u m ira c u lo so d a a p a riç ã o
d e Jesus.
E stu d io so s co m o B. W eiss, L agran ge e W en dt p e n s a m q u e foi p e lo
p rim e iro m o tiv o q u e Jesus o a c u so u d e se r in cré d u lo . E n tre ta n to , as
p a la v ra s d e Jesu s n o v. 27 d e safiam a T o m é so m e n te e m ra z ã o d o se-
g u n d o . C o m o tam b é m n o caso d o oficial rég io a q u e m é d irig id o 4,48,
T om é, a d e sp e ito d e su a s ten d ê n c ia s, é p a ssív e l d e d e ix a r-se le v a r à fé
efetiva; os vs. 26-28 d e scre v e m s e u a v a n ço efetiv o n a fé. Q u a n d o Jesus
a p arece e oferece u m ta n to sa rc a stica m e n te a T o m é a c rassa d e m o n s-
tração d o m ira cu lo so q u e ele exigia, e n tã o T o m é p a ssa a c re r se m a n e-
c e ssid ad e d e c o m p ro v a r as ferid as d e Jesus. C e rta m en te , e ssa é a im p li-
cação ó b v ia d o re la to d e João; p o is o e v a n g elista n ã o teria c o n sid e ra d o
a d e q u a d a a fé d e T om é se o d isc íp u lo tiv esse a c e ita d o o c o n v ite d e Je-
su s e jam ais teria p o sto n o s láb io s d e T om é a tre m e n d a co n fissão d e fé
d o v. 28. N a s p a la v ra s d o v. 27, T o m é n ã o p e rs is tiu e m s u a in c re d u lid a -
de, m a s se to rn o u c ren te, c a n d id a to q u a lific a d o a se r in clu so e n tre os
69 · O Jesus ressurreto: - Segunda cena 1533

o u tro s q u e v ira m e c re ra m (29a). E n q u a n to o ev a n g elista se satisfez


e m d e ix a r c laro q u e o c o rp o d e Jesus p o d i a se r to cad o , a g eração p o ste-
rio r d e a u to re s cristão s p e rd e ra m d e v ista a su tilez a d a d istin çã o q u e
Jo ão faz e n tre o s q u e e ra m b o n s e os q u e e ra m m a u s ao v e re m o m i-
racu lo so . C o n s e q u e n te m e n te , ali se d e se n v o lv e u u m a tra d içã o d e q u e
T o m é o u o s d isc íp u lo s re a lm e n te to c a ra m Jesus. I nácio , S m y r n a e a n s
3,2, d iz q u e Jesu s veio p a ra o s q u e e sta v a m com P e d ro e os co n v id o u
a a p a lp á -lo e v e r q u e ele n ã o e ra u m fan tasm a: "E im e d ia ta m e n te eles
o to c a ra m e c re ra m " . N a E p i s t u l a A p o s t o l o r u m , 11-12, d o 2a século, d iz
q u e P e d ro to co u a s m arc as d o p re g o n a s m ão s, q u e T om é to co u a feri-
d a c a u s a d a p e la lan ç a n o la d o e q u e A n d ré o lh o u p a ra as p e g a d a s q u e
Jesu s d e ix o u . In c id e n ta lm e n te , p o d e m o s o b se rv a r q u e n ã o h á b ase
re a l p a ra e ssa in te rp re ta ç ã o e rrô n e a d e João n a s p a la v ra s d e l j o 1,1
q u e fala m d e " o q u e c o n te m p la m o s e se n tim o s com n o ssas p ró p ria s
m ão s". A li, a referên cia é à re a lid a d e d a v id a e te rn a e n c a rn a d a o u o
q u e o P ró lo g o d o e v a n g e lh o d e n o m in a ria a P a lav ra se fez carne; a
p a s sa g e m n a d a te m a v e r com to car o Jesus ressu rre to .
Se a in ten ção dele era o u n ão fazer isso, o evangelista nos d e u nos
q u a tro e p isó d io s d o cap. 20 q u a tro exem plos lig eiram ente d istintos d e fé
n o Jesu s ressu rreto . O D iscípulo A m a d o creu dep o is d e ter v isto os len-
çóis fú n eb res, p o ré m sem ter v isto o p ró p rio Jesus. M adalena vê Jesus,
p o ré m n ã o o reconhece até q u e ele a ch am e pelo nom e. O s discípulos o
v ira m e creram . T o m é tam b ém o v ê e crê, p o ré m só d ep o is d e ter insisti-
d o teim o sam en te sobre o aspecto m arav ilh o so d a aparição. Esses q u atro
são ex em p lo s d o s q u e v ira m e creram ; o evangelista encerrará o evange-
lho e m 29b, v o lta n d o su a atenção p a ra os q u e c reram sem ter visto.

A c o n fis s ã o d e f é d e T o m é (2,28)

Q u a n d o , fin a lm e n te , ele crê, T o m é d á v o z à s u a fé n a confissão


d e fin itiv a: " S e n h o r M e u e D e u s m e u " . O Jesus q u e a p a re c e u a T om é
é o Jesu s q u e foi e x a lta d o n a crucifixão, ressu rre içã o e ascen são a seu
P ai e rec e b e u d o P ai a g ló ria q u e tiv e ra com Ele a n te s q u e o m u n d o
v iesse à ex istên cia (17,5); e a g o ra T om é p o s s u i a fé p a ra reco n h ecer
isso. T o m é p e n e tro u p a ra a lém d o asp ecto m ira cu lo so d a ap a riçã o e
v iu o q u e a re ssu rre içã o -asc e n são rev e la so b re Jesus. A resp o sta d e
Je su s n o v. 29a aceita co m o v á lid a a c o m p re en sã o q u e T om é tev e d o
q u e aco n teceu : "T u ten s crid o ".
1534 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

A co m b in ação d o s títu lo s " S e n h o r" e " D e u s" a p a re c e n a litera-


tu ra relig io sa p a g ã e é re p re s e n ta d a n o " D o m i n u s e t D e u s n o s t e r " p re -
te n d id o p e lo Im p e ra d o r D o m ician o (81-96 d.C .; v e r S uetô nio , D o m i -
d a n o , 13), q u e , p ro v a v e lm e n te , fosse o im p e ra d o r re in a n te q u a n d o o
e v a n g elh o e sta v a se n d o escrito e c o n tra cujas p re te n sõ e s o L iv ro d o
A p o calip se foi d irig id o . N ã o o b sta n te , h á c o n c o rd â n c ia e n tre o s es-
tu d io so s d e q u e a fo n te d e João p a ra os títu lo s é bíblica, c o m b in a n d o
os term o s u s a d o s p e la LXX p a ra tra d u z ir Y H W H (= k y r i o s ) e E lo h im
(= t h e o s ) . R ealm en te n a LXX a tra d u ç ã o u s u a l d a c o m b in a çã o Y H W H
E l o h ã y é "S en h o r, m e u D e u s" ( K y r i e , h o t h e o s m o u - B u ltm a n n ,
p . 5388); o m ais p ró x im o q u e c o n seg u im o s a sse m e lh a r à fó rm u la joa-
n in a é o SI 35,23: " M e u D e u s e m e u S en h o r".
Este, p o is, é o s u p re m o p ro n u n c ia m e n to cristo ló g ico d o Q u a rto
E v an g elh o . N o cap. 1, os p rim e iro s d isc íp u lo s d e ra m m u ito s títu lo s a
Jesus (vol. 1, p. 265), e tem o s o u v id o a in d a o u tro s a o lo n g o d o m in isté -
rio: R abi, M essias, P ro feta, R ei d e Israel, F ilho d e D eus. N a s a p a riç õ e s
p ó s-ressu rreição , Jesu s foi s a u d a d o p o r M a d a le n a e p e lo s d isc íp u lo s
em g ru p o co m o o S enhor. M as é T o m é q u e d e ix a claro q u e a lg u é m
p o d e d irig ir-se a Jesus com a m esm a lin g u a g e m q u e Israel se d irig ia a
Iah w eh . A g o ra se c u m p riu a v o n ta d e d o P a i "... q u e to d o s o s h o m e n s
h o n re m o F ilh o ju sta m e n te co m o h o n ra m o P ai" (Jo 5,23). O q u e Jesus
p red isse se co n cretizou: " Q u a n to le v a n ta rd e s o F ilho d o H o m e m , en-
tão c o m p re en d e re is q u e EU SO U " (8,28). T o d av ia, n o ta m o s q u e é e m
u m a c o n f i s s ã o d e f é q u e Jesu s é h o n ra d o co m o D eu s. T em o s in sistid o
(vol. 1, p. 199) q u e o u so q u e o N T faz d e "D e u s" p a ra Jesu s a in d a
n ã o é re a lm e n te u m a fo rm u la ç ã o d o g m átic a , m a s a p a re c e n u m con-
tex to litú rg ico o u cúltico. E u m a re sp o sta d e lo u v o r a o D e u s q u e tem
se re v e la d o em Jesus. A ssim , o "S en h o r m e u e D e u s m e u " d e T o m é
é e stre itam e n te p a ra le lo a "A P a lav ra era D e u s" n o v e rso in icial d o
h in o q u e foi p refix ad o ao Q u a rto E v an g elh o . Se B arrett e stá c e rto em
p e n s a r q u e a a p a riç ã o d e Jesus e m 20,19ss. evoca u m a litu rg ia cris-
tã p rim itiv a (ver n o ta so b re "aq u e le , o p rim e iro d ia d a s e m a n a " n o
v. 19), T om é p ro n u n c ia u m a doxologia em n o m e d a c o m u n id a d e cris-
tã. E n c o n tra m o s u m reflexo d e ssa aclam ação d a c o m u n id a d e n a cen a
d escrita p e lo a u to r d o A p 4,11, q u a n d o os an cião s se c u rv a m d ia n te
d o tro n o d e D eu s e n to a n d o : " D ig n o és tu , n o s s o S e n h o r e D e u s , d e re-
ceber g ló ria e h o n ra e p o d e r" . N o A p o calip se, a a clam ação é feita ao
Pai; em João, ela é feita ao F ilho; m a s o P ai e o F ilho são u m (Jo 10,30).
69 · O Jesus ressurreto: - Segunda cena 1535

N ã o s u rp re e n d e q u e a confissão d e T om é c o n stitu a a s p a la v ra s finais


d ita s p o r u m d isc íp u lo n o Q u a rto E v a n g e lh o (com o foi o rig in alm en te
c o n ceb id a, a n te s d a a d ição d o cap. 21) - n a d a m ais p ro fu n d o se p o d e -
ria d iz e r so b re Jesus.
T e n d o tra ta d o T om é, n o v. 28, co m o p o rta -v o z d a fé d a com uni-
d a d e c ristã e m re sp o sta a o q u e rig m a p ro c la m a d o n o e v a n g elh o , ag o ra
n o s e n c o n tra m o s n u m a p o sição p a ra e n te n d e r o asp ecto p a c tu a i d e
s u a confissão. C o m o sa lie n ta m o s (pp. 1494-95 acim a), 20,17 p ro m e te u
q u e , a p ó s a a sce n sã o d e Jesus, D e u s v iria a se r u m P a i ■para o s d i s c í p u l o s
q u e fo ssem g e ra d o s p e lo E sp írito , e ta m b é m , d e u m a m a n e ira espe-
ciai, v iria a se r 0 D e u s d e u m p o v o a d e rid o a ele p o r u m a n o v a aliança.
A s p a la v ra s q u e T o m é fala a Jesu s c o n stitu e m a v o z d e ste p o v o rati-
fic a n d o a alian ça q u e o P ai fez e m Jesus. C o m o O s 2,25(23) p ro m e te u ,
o p o v o q u e o u tro ra n ã o e ra p o v o , a g o ra diz: " T u és o m e u D eus".
E sta co n fissão tem sid o c o m b in a d a com a p ro fissã o b a tism a l "Jesus
é S e n h o r", u m a p ro fissã o q u e só p o d e ser feita q u a n d o o E sp írito for
d e rra m a d o (IC o r 12,3).

A b e m - a v e n tu r a n ç a d o s q u e n ã o tê m v is to , m a s tê m c r id o (2,29)

O te m a d e u m a n o v a alian ça p o d e c o n d u z ir-n o s à d isc u ssã o d a s


ú ltim a s p a la v ra s d e Jesus n o e v a n g elh o . A alian ça b ásica d o AT se
e sta b e le c e u n o S inai com o p o v o q u e M oisés tira ra d o Egito. C om o
a q u e la alia n ça in c lu iu as g eraçõ es su cessiv as d e Israel q u e n ã o tes-
te m u n h a ra m o e v e n to d o Sinai? S e g u n d o a M id ra sh T a n h u m a (u m a
o b ra h o m ilética ta rd ia , c ita d a e m StB, II, 586), R abi S im eon b e n L akish
(c. d e 250 d.C .) fez a se g u in te o b servação: " O p ro sé lito é m ais q u e rid o
d e D e u s d o q u e to d o s os isra e lita s q u e e stiv e ra m ju n to ao Sinai. Pois
se a q u e la s p e sso a s n ã o tiv e ssem te s te m u n h a d o o tro v ã o , as cham as,
o re lâ m p a g o , a m o n ta n h a tre m e n te e os so n s d e tro m b e ta , n ã o teriam
a c e ita d o a lei d e D eus. T o d av ia, o p ro sé lito q u e n ã o v iu n e n h u m a des-
sas co isas v e m e se re n d e a D e u s e a ceita a lei d e D eus. A caso p o d e h a-
v e r a lg u é m q u e seja m ais q u e rid o q u e este h o m em ? " A ssim tam b é m
o Je su s jo a n in o a g o ra elogia a m aio ria d o p o v o d a n o v a alian ça que,
m u ito e m b o ra n ã o o te n h a v isto , a tra v é s d o E sp írito o p ro cla m a com o
S e n h o r e D eu s. Ele a sse g u ra a estes se g u id o re s d e to d o s os tem p o s e
lu g a re s q u e ele p re v ê su a s itu a ç ão e os te m e m c o n ta c o m o p a rticip a n -
tes d o jú b ilo p ro c la m a d o p o r s u a ressu rre içã o .
1536 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

N o v. 29, a afirm ação v e m a p ro p ria d a m e n te n o fin al d o e v an g e-


Iho. S o m en te q u a n d o ele tiv e r re la ta d o o q u e foi v isto p e lo s d isc íp u lo s
(esp ecialm en te p elo D iscíp u lo A m ad o ), o a u to r se v o lv erá p a ra u m a
era q u a n d o Jesus n ã o m ais p u d e r ser v isto, m as p u d e r se r o u v id o . A té
este p o n to d a n a rra tiv a d o ev an g elh o , só foi p o ssív el u m tip o d e fé
g en u ín a, u m a fé cuja o rig e m se d e u n a p rese n ç a v isív el d e Jesus; m as,
com a in a u g u ra ç ã o d a p resen ça invisível d e Jesus n o E spírito, em erg e
u m tip o d e fé au tên tica. O im p o rta n te , com o a m b a s a s p a rte s d o v. 29
atestam , é q u e a lg u é m d e v e crer, n ã o im p o rta se essa fé v e m o u n ã o d o
ver. E m to d o o ev an g elh o , e m ais p a rtic u la rm e n te n o ú ltim o d isc u rso ,
n o q u a l o ev an g elista estiv era d e sc re v e n d o o c en ário d a P a lestin a d o
l 2 século, ele m a n tin h a e m m e n te u m a u d itó rio a sse n ta d o n o e scu ro
teatro d o fu tu ro , v e n d o silen cio sam en te o q u e Jesus e sta v a d iz e n d o
e fazen d o . D e c o n fo rm id a d e com as lim itações e lógica d o d ra m a n o
p alco im p o sto p e la fo rm a d o ev an g elh o , o Jesus jo an in o só p ô d e falar
àq u ele a u d itó rio in d ire ta m e n te a tra v é s d o s d isc íp u lo s q u e p a rtilh a ra m
d o p alco e d e ra m v o z aos se n tim e n to s e reações q u e fo ra m p a rtilh a d o s
tam b ém p e lo au d itó rio . A g o ra, p o ré m , com o a c o rtin a d o d ra m a n o
p alco está p re ste s a cair, as lu ze s n o tea tro d e re p e n te v o lta m a acen-
der. Jesu s v o lv e s u a aten ção d o s d iscíp u lo s n o p alco p a ra o a u d itó rio
q u e se to m o u v isív el e esclarece q u e su a p re o c u p a ç ã o ú ltim a é p o sta
neles - os q u e c h eg am a c rer nele a tra v és d a p a la v ra d e seu s d isc íp u lo s
(17,20). U n s p o u c o s v ersícu lo s a n te s (20,21), o u v im o s d a m issã o d o s
d iscípulos; ag o ra os q u e são o fru to d e ssa m issão são p o sto s n o p alco.
E n tão , a s d u a s p a rte s d o v e rsíc u lo 29 fo rm a m u m c o n tra ste e n tre
d u a s situações: a situ a ç ão d e v e r Jesus, e a d e n ã o v e r Jesus. (N o te q u e,
a d e sp eito d a s u p o siç ã o d e a lg u n s c o m e n tarista s, n e ste v e rsíc u lo n ã o
se traça n e n h u m c o n tra ste e n tre v e r e to car, o u e n tre v e r co m to ca r e
ver). N e ste c o n tra ste , T om é já n ã o é a q u e le q u e d u v id a d o v. 25, m as
o c ren te d o v. 28; co m o o s d isc íp u lo s se u s c o m p a n h e iro s, ele é u m q u e
v iu e c re u e, p o rta n to , é u m d o s b e m -a v e n tu ra d o s com a a le g ria d a
ressu rreição . E m b o ra o v. 29a n ã o te n h a u m a b e m -a v e n tu ra n ç a fo rm al
e n ão c h a m a "felizes" aq u e le s q u e v e e m e creem , s u a a le g ria é p re s-
su p o s ta d o v. 20. São aq u e le s p a ra q u e m Jesu s v o lto u a p ó s a m o rte
p a ra v e r o u tra v ez, tra z e n d o u m a ale g ria q u e n in g u é m lh es p o d e tira r
(16,22). E assim in te rp re ta m o s o c o n tra ste n o v. 29 co m o e x istin d o en-
tre d o is tip o s d e b e m -a v e n tu ra n ç a , n ã o e n tre b e m -a v e n tu ra n ç a (29b)
e u m e s ta d o in fe rio r (29a). T u d o o q u e h á d a a d v e rsa tiv a n o v. 29b é
69 · O Jesus ressurreto: - Segunda cena 1537

co m o in tu ito d e c o n tra d iz e r a id eia d e q u e so m e n te as teste m u n h a s


o cu lares, o u , d e u m a m an e ira m arc a n te m e n te m ais e lev ad a, p o ssu ía m
a ale g ria e as b ê n ç ão s d o Jesus ressu rreto . O ev an g elista deseja enfa-
tiz a r q u e, a d e sp e ito d o q u e se p o d e im a g in a r, os q u e n ã o v e e m são
ig u ais, n a e stim a d e D eus, ao s q u e v ira m e até m esm o são, d e certo
m o d o , m ais n o b res. (Lucas p a re c e te r u m a ênfase sim ilar n a cena d e
E m aús: o s d o is d iscíp u lo s v e e m Jesus, p o ré m só o reconhecem n o p a rti
d o p ã o - a c o m u n id a d e d e L ucas tem u m a o p o rtu n id a d e sim ilar d e re-
co n h ecer a p re se n ç a d o Jesus re ssu rre to n o p a rtir d o p ã o [24,30-31.35]).
Se a lg u é m in d a g a p e la situ ação existencial d e su a c o m u n id a d e q u e le-
v o u o q u a rto e v an g elista a e n fa tiz a r isto, p o d e m o s b e m im a g in a r q u e
foi u m a fo rm a m ais b ra n d a d a m esm a d ific u ld a d e refletid a n o cap.
21, a sa b er, a m o rte d a s te ste m u n h a s o cu lares e o d esap a re cim e n to d a
g eração ap o stó lica. (P ara a e stim a jo an in a p e la s te ste m u n h a s ocula-
res, v e r l j o 1,1-3). Q u ã o lastim áv el seja este m o m en to , o evangelista
p o d e ria e sta r d iz e n d o a seu s leitores: este n ã o é u m m o m e n to em q u e
a ce rtez a d a p rese n ç a c o n tín u a d o Jesus re ssu rre to está p e rd id a , pois
D e u s já ab e n ço o u a q u eles q u e n ã o v ira m , assim com o Ele ab ençoou
o s q u e v ira m . D odd , T r a d i t i o n , p p . 354-55, su g e re q u e o m acarism o o u
b e m -a v e n tu ra n ç a d e João, em 29b, é u m a reelab o ração d e u m a b em -a-
v e n tu ra n ç a m ais a n tig a refletid a n a tra d içã o sinótica: "Felizes são os
o lh o s q u e v e e m o q u e v e d e s" (Lc 10,23; M t 13,16). A fo rm a sinótica
teria s id o a p ro p ria d a d u ra n te o m in istério , q u a n d o Jesus p ro clam av a
a p re se n ç a escatológica d o reino; a fo rm a d e João re p re se n ta ria u m a
a d a p ta ç ã o d a p ro cla m a ç ã o d a b en ç ão escatológica à su a situ ação d a
Igreja p ó s-ressu rreição . V em os a ú ltim a situ a ç ão em l P d 1,8, u m a afir-
m aç ã o q u e lem b ra b e m d e p e rto Jo 20,29b e m p e n sa m e n to e expressão:
" n ã o o h a v e n d o v isto , am ais; n o q u a l, n ã o o v e n d o ag o ra, m as crendo,
v o s aleg rais co m g o zo in efáv el e g lorioso".
T em o s e n fa tiz a d o n o ssa co m p re en sã o d o v. 29 co m o u m contras-
te e n tre v e r e n ã o -v e r (assim tam b é m P rete , E rdozáin , W en z ) precisa-
m e n te co m o u m a rejeição d a te n ta tiv a d e e n c o n tra r n e ste v ersícu lo u m
c o n tra ste e n tre v e r e crer. A m b o s os g ru p o s, n o v. 29, rea lm e n te creem ;
e n ã o e n c o n tra m o s re s p a ld o p a ra a tese d e B u ltm a n n (p. 539) d e q u e
a fé e x p re ssa em 29a, a d e sp e ito d o fato d e q u e ela d e u ex p ressão
n a co n fissão "S e n h o r m e u e D e u s m e u " , n ã o é fid e d ig n a , p o rq u e v er
é p e rc e p ç ã o sen sív el e, assim , ra d ic a lm e n te o p o sta à fé. Este é o ü tro
e x e m p lo d a tese d e B u ltm a n n d e q u e João a p re s e n to u as a p ariçõ es d o
1538 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

Jesus ressu rre to a p e n a s p a ra m o strar s u a insignificância. (B u ltm ann


n ão crê q u e as aparições realm en te ocorreram ; são q u a d ro s sim bóli-
cos em q u e o P ai é tra z id o p a ra ju n to d o s seus). N e sta a b o rd a g e m , as
aparições d e Jesus são com o seus sinais, concessões à fra q u e z a d o s ho -
m ens; a p a la v ra d e Jesus d e v e ria ser suficiente, e n a v e rd a d e ira fé n ã o
h á com o reco rrer a sinais. E m n o sso juízo, este tip o d e exegese so b re
João reflete a teologia p esso al d e B ultm ann , e n ã o o p e n sa m e n to d o
ev angelista. E m João n ã o h á dico to m ia e n tre sin al e p a la v ra; a m b a s são
rev elató rias e p a la v ra aju d a a in te rp re ta r sinal. N o vol. 1, A p ê n d ic e III,
salien tam o s q u e a a titu d e joartina p a ra com o v a lo r d o s sinais e su a re-
lação com a fé é com plexa. H á d u a s diferen tes reações em v e r sinais e
am b as são d escritas com o fé. U m tip o d e fé é insuficiente, p o is o "cren-
te" se im p re ssio n a su p e rfic ialm en te p e lo m arav ilh o so . C o m re sp e ito
às ap ariçõ es d o Jesus re ssu rre to , T om é re p re se n to u esta a titu d e n o
v. 25 - ele creria se p u d e s se v e r p ro v a s tan g ív eis d o m ilag re e n v o lv id o .
O o u tro tip o d e fé é a d e q u a d a , p o is ele v ê u m a re a lid a d e celestial p o r
d e trá s d o m iracu lo so , a saber, o q u e Jesus rev ela so b re D eu s e ele m es-
m o. N o v. 28, T om é foi lev a d o a este estág io d e fé. E ste se g u n d o tip o
d e fé n ã o d e sca rta o sin al o u a a p a riçã o d o Jesus re ssu rre to , p o is o u so
d o visível é u m a c o n d ição in d isp e n sá v e l d a P a lav ra v ir a ser carne.
E n q u a n to Jesu s p e rm a n e c e u e n tre os h o m en s, h a v ia q u e c h e g a r à fé
atra v és d o visível. A g o ra, n o fin al d o e v an g elh o , o u tra a titu d e se to rn a
p o ssív el e n ecessária. E sta é a era d o E spírito o u a p rese n ç a in v isív el d e
Jesus (14,17), e a e ra d e sin ais e a p ariçõ es já p a sso u . A tra n siç ã o d e 29a
p a ra 29b n ã o é m era m e n te q u e u m a e ra p re c e d e a o u tra , m a s q u e u m a
leva à o u tra. "S enão se ch eg a a ser p o rq u e T om é e o u tro s ap ó sto lo s
v iam o C risto e n c arn a d o , n u n c a h a v e ría ex istid o a fé cristã " (B arrett ,
p . 477). O u , co m o o p ró p rio e v an g elista o fo rm u la e m 20,30-31, ele n a r-
ro u os sin ais p a ra q u e os d e m a is v iessem a crer - ce rtam e n te , isto n ã o
co n stitu i u m a rejeição d o v a lo r d o s sin ais p a ra a fé.
E n tre p a rê n te s e s , p o d e m o s m e n c io n a r o e s tra n h o eco d e s ta p a s-
sa g e m jo a n in a n a o b ra g n ó stic a o u se m i-g n ó stic a d o 2 a sé c u lo (?)
d e C heno bo skion (v er v ol. 1, p . 45s), T h e A p o c r y p h a l L e t t e r o f J a m e s :
"T en d es v isto o F ilho d o H o m e m e te n d e s fa la d o co m ele e o ten -
d e s o u v id o . A i d o s q u e (só) tê m v isto o F ilho d o H o m e m . F elizes
[ m a k a r i o s ] se rã o os q u e n ã o v ira m o h o m e m , n ã o tiv e ra m c o n ta to co m
ele, n ã o fa la ra m co m ele, e n ã o o u v ira m n a d a d a p a r te d e le " (3,13-24).
"F elizes se rã o a q u e le s q u e c h e g a re m a m e c o n h e ce r. A i d o s q u e
69 · O Jesus ressurreto: - Segunda cena 1539

o u v ira m e n ã o c re ra m . F elizes se rã o o s q u e n ã o v ira m , p o ré m [cre-


r a m ]12,38-13-1) ‫) ״‬.
É o p o rtu n o q u e as ú ltim a s p a la v ra s n o e v a n g elh o jo an in o origi-
n a l sejam p re c isa m e n te u m a s p a la v ra s d e Jesus - d o q u e n ã o se d iz
q u e d e s a p a re ç a d e e n tre os seu s. (A q u i João d ife re d a tra d içã o en-
c o n tra d a n o s o u tro s rela to s ev an g élico s d a s a p ariçõ es e m Jerusalém :
Lc 24,51; A t 1,9; e o A p ê n d ic e M arcan o 16,19 m e n c io n am explicita-
m e n te a p a rtid a d e Jesus). P a ra João, Jesus p e r m a n e c e p r e s e n t e n o Pa-
r á c le to /E s p írito q u e e sta rá com os d isc íp u lo s p a ra se m p re (Jo 16,19).
S u as ú ltim a s p a la v ra s o ste n ta m o c a rá te r p ró p rio d a P a lav ra a tem p o -
ra l q u e falo u a n te s q u e o m u n d o fosse criad o.

BIBLIOGRAFIA
(20,1-29)

(Em referência ao Espírito em 20,22, ver tam bém a Bibliografia p ara Ap. V).

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1540 O Livro da Glória · Terceira Parte: O Jesus ressurreto

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69 · O Jesus ressurreto: - Segunda cena 1541

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O LIVRO DA GLÓRIA

Conclusão: Declaração do propósito do autor


(20,30 ‫־‬31 )
70. DECLARAÇÃO DO PROPÓSITO DO AUTOR
(20,30-31)

30N a v e rd a d e , Jesus ta m b é m re a liz o u m u ito s o u tro s sin a is n a


p rese n ç a d e s e u s d isc íp u lo s, sin a is n ã o re g is tra d o s n e ste livro. 31M as
estes fo ra m re g istra d o s p a ra q u e te n h a is fé q u e Jesu s é o M essias, o
F ilho d e D eu s, e q u e a tra v é s d e sta fé te n h a is v id a em s e u n o m e.

NOTAS

20.30. N a v e r d a d e . Em João, m e n o u n aparece só aqui e em 19,24. A expres-


são ocorre vinte e seis vezes em Atos e é citada p o r Boismard com o um
exemplo do estilo lucano, como parte de sua discussão de que a últim a
parte de Jo 20 foi escrita por Lucas (p. 1486 acima). É difícil d ar um a
tradução exata destas partículas; W estcott, p. 297, parafraseia: " A s s i m ,
p o is , como se p odia esperar que qualquer leitor que haja seguido o cur-
so de m inha narrativa...".
m u ito s o u tr o s s in a is . O uso de k a i depois de p o lia para introduzir um segundo
adjetivo é mais característico do estilo lucano e joanino (Lc 3,18; At 25,7).
n a p r e s e n ç a d e . N o evangelho, E r í õ p i o n ocorre som ente aqui; e m p r o s th e n se
encontra na passagem paralela em 12,37. E n õ p i o n é com um em L ucas/
Atos, mas é bem frequente tam bém no Apocalipse (tam bém ljo 3,22);
pode representar a influência da LXX no NT.
s e u s d is c íp u l o s . As testem unhas textuais em geral estão divididas sobre se
se deve ou não ler "seus".
s in a is n ã o re g is tr a d o s . Literalmente, "escritos". A que outros "sinais" João se re-
fere? Hoskyns, p. 549, sugere que ele tem em mente outras aparições pós-res-
surreição. Bultmann pensa que esta afirmação em outro tempo fez parte da
Fonte dos Sinais que ele coloca no evangelho (vol. 1, p. 12s) e que a implica-
ção original era que o evangelista fizera um a seleção da fonte. Ele concorda
70 · Declaração do propósito do autor 1545

com F aure de que o contexto original do versículo vinha depois de 12,37:


"A inda que Jesus realizasse m uitos de seus sinais perante eles, se recu-
saram a crer nele". (Talvez houvesse então certa distinção entre sinais
realizados diante dos inimigos de Jesus, alguns dos quais João registrou,
e sinais diante dos discípulos, a m aior dos quais não foi registrada).
A sugestão de D odd, T r a d it io n , p. 2162, é mais geral, de que João está
se referindo a um a tradição prim itiva mais am pla sobre o ministério de
Jesus da qual ele extraiu; à pág. 429, D odd reconstrói as linhas gerais
desta tradição. Em particular, poderiam os tam bém pensar que, se o
evangelista escolheu de um corpo m aior de "sinal" (e outro?) m aterial
recorrente nos círculos joaninos, talvez parte do qual ele não incluísse
no evangelho original foi a que o redator anexou depois (vol. 1, p. 22s,
Q uinto Estágio). Finalmente, Loísy e B arrett estão entre os que pensam
que no todo ou em parte a referência fosse a m aterial sinótico.
31. e s t e s . O plural neutro t a u t a pode referir-se a "sinais" ou, mais geralmen-
te, a todas "as coisas" no evangelho. Schwank pensa que o últim o está
implícito, m as o contraste entre sinais não registrados e sinais que foram
registrados é igualm ente óbvio para não se levar em conta.
p a r a q u e te n h a is f é . Am bas, as testem unhas textuais e as edições críticas
do NT grego estão divididas entre um subjuntivo aoristo (assim Bezae,
A lexandrinus e a tradição bizantina; V on S oden, V ogels, American Bible
Society Greek NT) ou urn subjuntivo presente (assim Vaticanus, Sinai-
ticus*, provavelm ente P66; W estcott, B over, N estle, M erk, T asker NEB,
A land Synopsis). Alguns contendem que o presente tem sido traduzido
à m oda de conform idade com o subjuntivo presente na segunda parte
da sentença ("tenhais vida"); todavia, o presente aparece como a redação
m ais bem atestada em um a afirmação similar em 19,35. Além do mais,
Riesenfeld, ST 19 (1965), 213-20, argum enta que o uso norm al nas cláu-
sulas h in a joaninas de propósito é o tem po presente. Visto que aqui o
presente significaria "continuar crendo", implicaria que os leitores do
evangelho já são cristãos crentes. Riesenfeld pensa que João não está tra-
tando prim ariam ente de um a situação m issionária, m as sua intenção é
assegurar a perseverança; e cita como paralelo ljo 5,13: "Estas coisas vos
escreví, a vós os que credes no nom e do Filho de Deus, p ara que saibais
que tendes a vida eterna, e para que creiais no nom e do Filho de Deus".
O aoristo poderia ser traduzido "para virdes à fé", implicando que os
leitores ainda não são cristãos; todavia, o aoristo é tam bém usado no
sentido de alguém ter sua fé corroborada (Jo 13,15).
J e s u s é 0 M e s s ia s , 0 F ilh o d e D e u s . Em 11,27, M t 16,16,26,63 há um a justapO-
sição similar. As variantes textuais incluem: "Jesus [Cristo] é o Filho de
1546 O Livro da Glória · Conclusão: Declaração do propósito do autor

Deus". É bem provável que não haja ênfase especial sobre "Jesus", como
se o autor estivesse indicando que estes títulos não seriam dados a João
Batista (vol. 1, p. 64).
q u e a tr a v é s d e s ta f é te n h a is v id a e m s e u n o m e . Literalmente, "crendo". Um gran-
de núm ero de testem unhas trazem "vida eterna", m as é possível que isto
recebesse a influência de ljo 5,13. Esta sequência de "crer" e "vida em [en ]
seu nom e" não ocorre em outro lugar em João; e Bernard, II, 686, m udaria
isto para harm onizar-se com o tema em 1,12 e outros lugares que fé em
(e is , não e n , como aqui) o nom e de Jesus dá vida a alguém. Todavia, um a
variação similar da ideia modificada pela frase "em " ocorre em 3,15-16:
"... para que todo o que nele crê tenha a vida eterna em [e n ] ele", e : "... para
que todo o que crê em [eis] ele... tenha a vida eterna". "Em seu nom e"
pode modificar a esfera da salvação tanto quanto a esfera de crer, como
vemos à luz de 17,11-12, "Guarda-os a salvo com o teu nom e"; tam-
bém At 10,43, "... perdão de pecados através de seu nom e"; e IC or 6,11,
"... lavados... santificados... justificados no nom e do Senhor Jesus Cristo".
Ao prom eter vida no nom e de Jesus, João está ecoando a ideia de 16,23:
"Se pedirdes algo da parte do Pai, Ele vo-lo dará em m eu nom e".

COMENTÁRIO

O a r d e fin a lid a d e q u e e n v o lv e esses d o is v ersícu lo s, ju stifica serem


c o n sid e rad o s u m a co n clu são , a d e sp e ito d o fato d e q u e , n a p re se n te
fo rm a d o e v a n g elh o , se g u e to d o u m c a p ítu lo . Isto te m sid o reco n h e-
cido até m esm o p o r a lg u n s q u e n ã o c o n sid e ra m o cap . 21 co m o u m
ap ên d ice; p o r ex em p lo , L agrange , p . 520, e L. V a g a n a y , RB 45 (1936),
512-28, a rg u m e n ta q u e, já q u e 20,30-31 c o n stitu i u m a co n clu são , estes
v ersícu lo s u m a v ez e stiv e ra m n o final d o cap. 21 (d ep o is d e 21,23, se-
g u n d o L agran ge ; d e p o is d e 21,24, s e g u n d o V a g a n a y ) e fo ra m m u d a -
d o s p a ra cá q u a n d o a e x ten sa co n clu são d o cap. 21 foi a n e x ad a . N ã o há
e v id ên cia te x tu a l q u e e n d o sse esta tese. V a g a n a y , p . 515, c o n stró i um
a rg u m e n to co m b a se n o fato d e q u e, e m b o ra T ertulian o tiv e sse conhe-
cim en to d o cap. 21, ele fala d e 20,30-31 co m o a c o n c lu sã o (c l a u s u l a ) do
ev an g elh o ; m a s isto n ã o tem p o rq u e significar m ais d o q u e d iz e r que
T ertuliano a n te c ip o u à m o d e rn a cren ça d e q u e o cap. 21 foi an ex ad o
d e p o is q u e a p a re n te m e n te o e v a n g e lh o foi co n clu íd o . H oskyns , p . 550,
é u m d o s p o u c o s escrito res críticos m o d e rn o s q u e se re c u sa a inter-
p re ta r 20,30-31 co m o u m a conclusão. Ele se a p o ia n o fato d e q u e um
70 · Declaração do propósito do autor 1547

v e rsíc u lo sim ila r e m l j o (5,13) n ã o é o fin al d a carta; m a s a lg u m a s


o b serv açõ es a p ó s a conclusão d e u m a carta, são m ais fáceis d e explicar
d o q u e u m c a p ítu lo q u e se g u e u m a explicação q u e o a u to r d o ev an -
g e lh o d eseja ju stifica r p o rq u e ele n ã o in clu i o u tro s m ateriais. P ara as
d ific u ld a d e s lite rá ria s e h istó ric a s q u e são p e rsu a siv a s d o c a rá te r se-
c u n d á rio d o cap. 21, v e r p p . 1570-74 abaixo.
Se a c e ita rm o s 20,30-31 c o m o a c o n c lu sã o d a fo rm a o rig in a l d o
e v a n g e lh o , n o ta m o s q u e e n tre o s e v a n g e lh o s so m e n te João a p re se n -
ta u m a c o n c lu s ã o q u e a v a lia o q u e foi e scrito e s e u p ro p ó sito . Q u e
o fa to d e ta l c o n c lu sã o n ã o foi c a su a l, é in d ic a d o p e la p re se n ç a d e
u m a c o n c lu sã o sim ila r e m 21,24-25 e e m l j o 5,13. H á b o n s p a ra le lo s
n a lite r a tu r a s e c u la r (B u ltm a n n , p . 5403) e n o s liv ro s b íb lico s d e u te -
ro n ô m ic o s ta rd io s. A p ó s d e sc re v e r a o b ra c ria tiv a e p re s e rv a tiv a d e
D e u s n o u n iv e rs o , S ira q u e 43,28(27) te m u m a c o n c lu sã o p a ra u m a
se çã o d o liv ro : " N ã o c a re c em o s a d ic io n a r m a is q u e isto; q u e a ú lti-
m a p a la v r a seja: E le é tu d o e m to d o s" . C o m o e m João, a c o n c lu sã o
re g is tra q u e n ã o foi d ito tu d o e im p lic ita m e n te fo rn ece o p ro p ó sito
p a r a o q u e foi d ito . O v o c a b u lá rio d e lM c 9,22 é u m ta n to m ais p ró -
x im o d o v o c a b u lá rio d e João: " O ra , o re sto d o s feito s d e Ju d a s n ão
foi re g is tra d o ... p o is fo ra m m u ito s " . A o a n a lis a r a s ra z õ e s esp eciais
p o r q u e Jo ão a n e x o u o v. 30 co m o u m a c o n c lu sã o , h á q u e m p e n se
q u e o e v a n g e lis ta q u e ria d e ix a r b e m c la ro q u e ele n ã o e stá d a n d o u m
re la to h is to ric a m e n te c o m p le to o u b io g ráfico ; o u tro s tê m p e n s a d o
q u e ele e s ta v a te n ta n d o p ro te g e r-s e d a crítica d a q u e le s q u e co n h e-
c ia m a tra d iç ã o sin ó tica. B u ltm a n n , p o ré m , se g u ra m e n te e stá certo
e m in s is tir q u e o p ro p ó s ito p rim á rio e ra c h a m a r a a te n ç ã o p a ra as
in e x a u rív e is riq u e z a s d o q u e Je su s fiz e ra (v er ta m b é m 21,25). E m
q u a lq u e r c aso , n ã o e sta m o s c e rto s d a in te n ç ã o d o e v a n g e lista se fi-
x a rm o s u n ic a m e n te e m s u a a firm a ç ã o d e q u e e le n ã o re g is tra ra tu d o ;
a p r in c ip a l ê n fa se n a c o n c lu sã o e stá n o p ro p ó s ito d o q u e ele reg is-
tro u . E m im p o rtâ n c ia , o v. 30 é s u b o rd in a d o ao v. 31.
O q u e João tem em m en te q u a n d o fala d o s sinais q u e ele regis-
trara? E sta é u m a q u estão im p o rta n te p o rq u e ela afeta a perspectiva
d e a lg u é m so b re a co m p reen são jo an in a d e "sinal". L agrange e B ult -
m a n n estão e n tre os q u e p e n sa m q u e João se refere ao c o n te ú d o total

d o ev an g elh o , sinal e p alav ra. (P arte d o p ro p ó sito d e B ultm ann em es-


te n d e r o significado p a ra além d e sinais é q u e ele n ã o q u e r in te rp ré ta r
João n o se n tid o em q u e sinais m iracu lo so s p o d e m lev ar pesso as à fé -
1548 O Livro da Gloria · Conclusão: Declaração do propósito do autor

m ilag re s são m u le ta s p a ra o e n fe rm o , e é p rec iso c re r n a p a la v ra d e


Jesus). M u ito e m b o ra n ã o creiam o s q u e João tem e m v ista e x c lu ir d e-
lib e ra d a m e n te p a la v ra o u d isc u rso , e e m b o ra c o n c o rd e m o s q u e to d o
o e v a n g elh o teria o m esm o p ro p ó sito co m o o e n u n c ia d o p e lo s sin ais,
crem o s q u e João m en c io n a "sin a is" só p o r c a u sa d o c o n te x to e m q u e
esta co n clu são a p a re c e e n ã o h á p o rq u e m u d a r a afirm ação , in clu siv e
os d iscu rso s. E sta co n clu são n o fin al d e O L ivro d a G ló ria p re te n d e
estab elecer u m e q u ilíb rio com a co n clu são n o fin al d e O L iv ro d o s
S inais (12,37 - o u , talv ez, o p ro ce sso e q u iv a le n te e stiv esse n a o u tra
d ireção , se os caps. 11-12 fo ra m u m a a d ição ta rd ia a o ev a n g elh o ). A li
o a u to r se o c u p a v a com o fato d e q u e Jesus h a v ia re a liz a d o ta n to s
sin ais d ia n te d e "o s ju d e u s " , e, n o e n ta n to , se re c u sa v a m a c re r nele.
A q u i ele e stá se re fe rin d o ao s sin a is re a liz a d o s d ia n te d e s e u s d isc íp u -
los q u e le v a ra m à fé e m Jesu s co m o o M essias, o F ilho d e D eu s. K. H .
R engstorf , T W N T , VII, 253-54, te n to u a rg u m e n ta r q u e e m 20,30-31 o
e v an g elista e stá se re fe rin d o ao s sin ais re a liz a d o s n o c ap . 20. M as, p o r
q u e e n tã o o e v a n g elista p o ria e sta co n clu são a q u i e fala d e sin a is reali-
z a d o s "n a p rese n ç a d e se u s d isc íp u lo s"? A c o n clu são e m 12,37 é m u i-
to m ais a p ro p ria d a d o q u e 20,30-31 p a ra se rv ir co m o u m a d escrição
d e am b o s, o a u d itó rio e o re s u lta d o d o s sin ais n a rra d o s n a p rim e ira
m e ta d e d o ev an g elh o .
Em 20,30-31, é b e m p ro v á v e l q u e João n ã o tiv esse e m v ista ex-
clu ir os sin ais d e scrito s n o s caps. 1-12 (esp ecialm en te u m sin a l tal
com o o p rim e iro m ilag re e m C an á, o q u a l foi re a liz a d o d ia n te d e seu s
d isc íp u lo s p a ra q u e cressem n ele [2,11]), m a s tin h a e m v ista tam b é m
in clu ir as a p a riçõ e s aos d isc íp u lo s em 20,1-28 q u e os le v a ra m a con-
fessar Jesu s co m o S enhor. A sim ila rid a d e e n tre 20,25 e 4,48 (p. 1531
acim a) in d ica q u e João p e n sa n a s a p a riçõ e s co m o sinais. Isso n ã o se
d ev e p o r ele c o n sid e rá-lo s co m o reais), m a s p o rq u e são m ira cu lo so s
e são a p to s a re v e la r a v e rd a d e celestial so b re Jesus. E m n o sso juízo,
é im p o rta n te o fato d e q u e são m iracu lo so s; p o is, a d e sp e ito d e tan to s
e stu d io so s q u e a rg u m e n ta m ao c o n trá rio , re a lm e n te n ã o h á ev id ên cia
d e q u e João c h a m a u m sin al a tu d o o q u e n ã o é m ira cu lo so o u , a o m e-
n os, e x tra o rd in á rio . C o m o m ilag res, as a p a riçõ e s a p re s e n ta m o p se u -
d o -cren te com u m a esco lh a, co m o d ra m a tiz a d o n o re la to d e T om é, a
sab er, a esco lh a d e d e c id ir p e lo m a ra v ilh o so o u d e p e n e tra r a lé m dele
p a ra v e r o q u e ele revela. O s d isc íp u lo s q u e v ira m o Jesu s ressu rre to ,
in clu siv e o T o m é d e 20,28, esco lh em o s e g u n d o curso: eles p e n e tra m
70 · Declaração do propósito do autor 1549

a lé m d a s u rp re e n d e n te a p a riç ã o p a ra c re r q u e Jesus é S en h o r e D eus.


Jo ão r e g is tro u e s ta s a p a riçõ e s p a ra q u e o leito r q u e crê sem v e r o Jesus
re s s u rre to ta m b é m atin ja e ste p o n to s u p re m o d a fé. D ep o is d e tu d o ,
o s d isc íp u lo s m e n c io n a d o s n o v. 30 fo ra m co m issio n a d o s n o v. 21
p a r a le v a r o d e safio d e c re r aos q u e n ã o e ra m te ste m u n h a s oculares.
A ssim , m o v e n d o o s vs. 30-31 d o s sin ais o p e ra d o s d ia n te d o s disci-
p u lo s p a ra a fé d o leito r, João e stá rec o rre n d o à se q u ên c ia d e id éias
q u e e n c o n tra m o s e m 29a e 29b. O s sin a is q u e Jesu s re a liz o u d u ra n te
s e u m in isté rio re v e la ra m d e u m a m a n e ira a n te c ip a tó ria s u a g ló ria e
se u p o d e r d e d a r v id a e te rn a. O s sin ais d o p e río d o p ó s-re ssu rreiç ã o
re v e la m q u e a o b ra d a "a h o ra " foi c o m p le ta d a , q u e Jesus está glorifi-
c a d o e a g o ra d á v id a e te rn a. A m b o s, os q u e v ira m estes sin ais e os q u e
le ra m so b re eles, d e v e m c re r a fim d e receb er e sta v id a.
R equer-se u m a p a la v ra d e esclarecim ento. Se crem os q u e o evange-
lista p e n sa v a n as aparições p ós-ressurreição com o sinais, n ã o h á evidên-
cia d e q u e ele p e n sa v a n a p ró p ria ressurreição com o u m sinal, o u que
o s p rin c ip ais ev en to s d e O L ivro d a G lória, a paixão e a m o rte d e Jesus,
e sta v a m n o n ív el d e sinais. Q u estio n am o s a afirm ação d e L ightfoot,
p. 336, "S em d ú v id a , a crucifixão e ra p a ra João o m aio r sin al d e to d o s",
e a d e B arrett , p . 6 5 , "A m o rte e ressu rreição são o su p re m o s ê m e i o n " .
B arrett se p õ e n u m a b ase m u ito m ais sólida q u a n d o su sten ta q u e a m or-
te e ressu rreição n ã o são ch a m a d a s sinais p o rq u e n ã o são m eram en te
u m sin al d e algo d istin to d elas m esm as, m as são a coisa m esm a q u e sig-
nificam . D a n o ssa p a rte afirm am o s q u e em "a h o ra" d e seu re to m o p a ra
se u P ai Jesu s já n ã o está a p o n ta n d o sim bolicam ente p a ra su a glória, m as
e stá realm en te se n d o glorificado. Ele já p a sso u d a esfera d o sinal p a ra a
d a v e rd a d e em su a paixão, m o rte, ressurreição e ascensão. N o m áxim o,
a d m itiria m o s a p o ssib ilid ad e d e q u e os incidentes n a descrição deste
re to m o d e Jesus p a ra o P ai e ra m sinais; p o r exem plo, a p ossibilidade do
s u rp re e n d e n te fluxo d e sa n g u e e á g u a d o lad o d o Jesus m o rto estava n a
m e n te d e João com o u m sinal: é algo extraord inário, teste m u n h a d o p o r
u m discíp u lo , o q u a l e ra sím bolo d a d oação d o Espírito.
N a n o ta so b re " p a ra q u e te n h a is fé" n o v. 31, m en c io n am o s o p ro -
b le m a so b re o a u d itó rio d e leito res v isu a liz a d o s p e lo escritor: os q u e
já creem o u os q u e a in d a n ã o creem . U m p ro b le m a u m ta n to sim ilar
é re fle tid o n a d isc u ssã o d o s d o is títu lo s d a d o s a Jesus: "o M essias, o
F ilho d e D e u s". O s q u e p e n s a m n o e v a n g elh o com o p rim a ria m e n te
u m escrito m issio n á rio d irig id o ao s ju d e u s n ã o cren tes c o stu m a m
1550 O Livro da Glória · Conclusão: Declaração do propósito do autor

a rg u m e n ta r q u e a q u i "F ilho d e D e u s" é in te ira m e n te sin ô n im o d e


"M essias", e q u e João e stá sim p le sm e n te te n ta n d o m o stra r ao s ju d e u s
q u e Jesu s é o se u M essias p ro m e tid o . E m c o n tra p a rtid a , o s q u e m an -
têm q u e o e v a n g elh o é ta m b é m o u m e sm o d irig id o p rim a ria m e n te
aos g e n tio s o u ao s cristão s já c re n tes te n d e m d a r u m sig n ific a d o m ais
p ro fu n d o a "F ilh o d e D e u s", tra ta n d o -o o u co m o u m títu lo s e p a ra d o
d e "M essias" o u co m o u m a in te rp re ta ç ã o esp ecial d e "M e ssia s". E m
seu ju ízo , João e stá e n fa tiz a n d o n ã o só q u e Jesu s é o M essias (d av í-
dico) d a e x p ectativ a ju d aic a, m a s ta m b é m o F ilho u n ig ê n ito d e D e u s
e, p o rta n to , u m M essias d iv in o . (P arte d a d ific u ld a d e n e s ta q u e stã o
p o d e s u rg ir p re c isa m e n te d e ig u a la r M essias co m o M essias d a v íd ic o ,
com o tem s id o trad icio n al; rec e n te m e n te , M eeks , T h e P r o p h e t - K i n g ,
tem c o n v in c e n te m e n te d e m o n s tra d o q u e João reflete a lg u n s a sp ec to s
d a ex p ectativ a d e u m M oisés-M essias m ais m ístico q u e e m si te n d e
m ais facilm en te p a ra c a teg o rias " d iv in a s").
O m e lh o r c a m in h o p a ra so lu c io n a r e sta q u e stã o é c o n sid e ra r a
im ag em to tal d e Jesu s n o e v a n g elh o , e c e rta m e n te o e v a n g e lista n ão
ficou satisfeito e m a p re s e n ta r Jesus co m o o M essias e m q u a lq u e r sen-
tid o m in im alista. Se e m 11,27 M a rta co n fesso u Jesu s co m o "o M es-
sias, o F ilho d e D e u s" e m q u e se p u d e s se a p ro x im a r-se d e u m a com -
p re e n sã o tip ica m e n te ju d aic a d e m e ssia n id a d e , to d o o p ro p ó sito d o
s u b se q u e n te m ilag re d e L ázaro era m o stra r q u e tal c o m p re e n sã o n ão
era a d e q u a d a , p o is Jesu s tin h a p o d e r d iv in o p a ra d a r v id a e te rn a . P or
to d o o e v a n g elh o , João exige n ã o só a fé d e q u e Jesus é o M essias p re-
d ito p e lo s p ro fe ta s (isto é, co m o o s p ro fe ta s fo ra m c o m p re e n d id o s n o s
tem p o s d o N T ), m a s ta m b é m a fé d e q u e Jesus sa iu d o P a i co m o S eu es-
p ecial re p re s e n ta n te n o m u n d o (11,42; 16,27.30; 17,8), q u e Jesu s e o Pai
p a rtilh a m d e u m a p re se n ç a e sp ecial e n tre si (14,11) e q u e Jesu s p o rta o
n o m e d iv in o "E U S O U " (8,24; 13,19). D ep o is d e a p re s e n ta r T o m é reco-
n h e c e n d o Jesu s co m o S en h o r e D e u s à m o d o d e e x e m p lo d a s u p re m a
resp o sta à p re se n ç a d o Jesu s re s s u rre to a tra v é s d o E sp írito , o ev an -
gelista d ificilm en te p o d e ria ter a firm a d o e m 20,31 q u e e sc re v e u seu
e v a n g elh o p a ra g e ra r fé e m Jesu s sim p le sm e n te co m o o M essias. (En-
tre p a rê n tese s, n o ta m o s q u e tu n a c o m p re e n sã o p ró p ria d a u n ic id a d e
d e "F ilho d e D e u s" n o v. 31 a n u la o a rg u m e n to d e q u e o títu lo "D e u s"
d a d o a Jesu s n o v. 28 n ã o tem significação litera l p o rq u e João e screv eu
a p e n a s p a ra p ro v a r q u e Jesu s e ra o M essias. P ro v a v e lm e n te , p o rq u e
o títu lo "D e u s" p a ra Jesus e ra re la tiv a m e n te recen te, João p refe riu ,
70 · Declaração do propósito do autor 1551

e m s u a a firm a ç ão d o s e u p ro p ó sito , u s a r o m ais tra d icio n a l "F ilho d e


D e u s" ; m a s s u a a p ro v a ç ã o d a p ro fissã o "S e n h o r e D e u s" m o stra com o
ele e n te n d ia "F ilh o d e D eu s").
E n tão , p a ra concluir, a d m itim o s se r b e m p ro v á v e l q u e haja em
20,31 u m tem a a p o logético, v isto q u e João b u sca a tra v és d o s sin ais p ro-
v a r q u e Jesu s é o M essias e sp e ra d o p e lo s ju d e u s - n o te q u e d izem o s
ap o lo g ético , e m v e z d e m era m e n te m issio n ário , p o is n o vol. 1, p p . 68-71,
te m o s in sis tid o q u e o p rin c ip a l in te resse d e João com resp e ito aos ju-
d e u s e ra p r o v a r q u e e sta v a m e rra d o s e q u e ele n ã o n u tria n e n h u m a
e s p e ra n ç a re a l d e convertê-los. N ã o o b sta n te , a m a io r força d a afir-
m a ç ã o e m 20,31 reflete o desejo d o e v a n g elista d e a p ro fu n d a r a fé d o s
q u e já e ra m c ristão s, p a ra q u e v a lo riz a sse m a relação sin g u la r d e Jesus
co m o P ai. C o m o W . H . G. T hom as , " T h e P u r p o s e o f t h e F o u r t h G o s p e l " ,
BS 125 (1968), 256-57, salien ta, d e v e m o s a v a lia r a afirm ação d e p ro -
p ó s ito d o e v a n g e lista à lu z d o fato d e q u e ele relacio n a o c o n te ú d o
d o e v a n g e lh o co m o s sin a is re a liz a d o s n a p re se n ç a d o s d i s c í p u l o s .
A p a rá fra se q u e L oisy faz d o p e n sa m e n to d e João (p. 513) é b e m exata:
" A ex istên cia te rre n a de... C risto tem se rv id o co m o u m sin al o u com o
u m a série d e sin ais, aos q u a is os d isc u rso s d o e v a n g elh o têm sid o u m
c o m e n tá rio - o C risto jo an in o , re v e la n d o -se a si m esm o com o lu z e
v id a , e m se u e n s in o e em s u a ação. U m a v e z q u e C risto te n h a sid o co-
n h e c id o co m o o ú n ico re v e la d o r d e D eu s, o ú n ico q u e te m u m d ireito
a b s o lu to a o títu lo "F ilho d e D e u s", e u m a v e z q u e se te n h a reconhecí-
d o o P ai e m Jesu s, e n tã o esse m esm o e n te n d e p re c isa m e n te o q u e são
o n o m e e a q u a lid a d e d o F ilho e, n e sta c o m p re e n sã o q u e c o n stitu i a fé,
esse a lg u é m p o s s u i v id a e te rn a " .
É in te re s s a n te q u e a d ec la ra ç ã o d e in te n ç ão d e João n o v. 31 ter-
m in a co m u m a n o ta salvífica. E m b o ra o e v a n g elista p e d e algo eq u iv a-
le n te a u m a p o s tu ra d o g m átic a d a p a rte d o s leito res q u e p ro fe ssariam
Je su s co m o o M essias, o F ilho d e D eu s, ele n ã o faz isso sim p lesm en te
co m o u m teste d e o rto d o x ia in telectu al. Ele faz isso " p a ra q u e , a tra v és
d a fé, te n h a is v id a e m se u n o m e " . A m e n o s q u e Jesus seja o v e rd a d e i-
ro F ilh o d e D eu s, ele n ã o tem v id a d iv in a p a ra d a r. A m en o s q u e ele
p o rte o n o m e d e D eu s, n ã o p o d e c u m p rir p a ra com os h o m e n s a fu n -
ção d iv in a d e d o a d o r d e v id a . N e m a in sistê n c ia jo an in a so b re u m a
c o rre ta c o m p re e n sã o e a fé em Jesus se d e g e n e ra e m g n o sticism o , p ois
s e m p re h á a s u p o siç ã o d e q u e so m e n te o h o m e m q u e ag e em v e rd a d e
v irá p a r a a lu z (3,21).
IV
EPÍLOGO

U m r e la to a d ic io n a l d e um a a p a r iç ã o p ó s -r e s s u r r e iç ã o d e Jesu s na
G a lile ia , p a r a d e m o n s tr a r c o m o J e s u s p r o v ê a s n e c e s s id a d e s d a I g r e ja .
ESBOÇO
(CAP. 21)

A. 21,1-14: O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao M ar de Tibe-


ríades. (§71)
(1-8) A pesca.
(9-13) A refeição em terra.
(14) Um a observação parentética: esta foi a terceira vez que
Jesus se m anifestou aos discípulos.

B. 21.15-23:0 Jesus ressurreto fala a Pedro. (§72)


(15-17) Jesus reabilita Pedro no am or e o comissiona a pasto-
rear as ovelhas.
(18-23) Jesus fala dos destinos de Pedro e o Discípulo Amado.
18-19: Pedro seguirá Jesus para um a m orte de m ártir.
20-22: O discípulo am ado talvez perm aneça até Jesus
voltar.
23: Com entário feito pelo autor sobre o real
significado de Jesus.

C. 21.24-25: A (segunda) Conclusão. (§73)


(24) O testem unho autêntico do Discípulo Am ado.
(25) As outras m uitas obras de Jesus.
7 1 .0 JESUS RESSURRETO APARECE AOS
DISCÍPULOS JUNTO AO MAR DE TIBERÍADES
(21,1 ‫ ־‬14)

21 1D e p o is d isto , Jesus [o u tra vez] se m a n ife sto u ao s d isc íp u lo s ju n to


a o M a r d e T ib eríad es, assim foi co m o q u e isso o co rreu . 2E stav am re-
u n id o s S im ão P e d ro , T o m é (este n o m e significa "G êm eo "), N a ta n a e l
(aq u e le d e C a n á d a G alileia), o s filhos d e Z e b e d e u e o u tro s d o is dis-
c íp u lo s. 3S im ão P e d ro d isse ao s o u tro s: "E sto u in d o p e sca r". "Irem o s
c o n tig o " , re p lic a ra m eles; e a ssim to d o s se fo ra m e su b ira m a o barco.
E n tre ta n to , n a q u e la n o ite n a d a a p a n h a ra m . 4O ra, logo d e p o is d e já
ra ia r o d ia, Jesu s a p a re c e u n a p ra ia , m a s n e n h u m d o s d isc íp u lo s sabia
q u e e ra Jesus. 5"M o ço s", ele os c h a m o u , " A p a n h a ste s a lg u m a coisa
p a ra c o m e r, te n d e s alg o ?" " N ã o " , re s p o n d e ra m . 6"L an çai v o ssa red e
à d ire ita d o b a rc o " , su g e riu , " e ac h are is a lg u m a coisa". E e n tã o lança-
ra m a re d e , e o n ú m e ro d e p eix es era tão g ra n d e , q u e n ã o co n seg u iam
a rra stá -la . 7E n tã o a q u e le d isc íp u lo a q u e m Jesus a m a v a ex clam o u a
P ed ro : "É o S en h o r!" A ssim q u e o u v iu q u e era o S en h o r, S im ão P e d ro
p r e n d e u s u a r o u p a e x te rn a (pois ele e sta v a q u a se n u ) e sa lto u ao m ar.
8E n tre m e n te s, o s o u tro s d isc íp u lo s v ie ra m d e b a rc o , a rra s ta n d o a re d e
ch eia d e p eix e. D e fato, n ã o e sta v a m d ista n te s d a te rra - a p e n a s u n s
cem m etro s.
9A ssim q u e d e s c e ra m à te rra , v ira m ali carv õ es acesos, com u m peixe
so b re eles, e p ã o . 10"T ra z e i a lg u n s p eix es q u e a cab astes d e a p a n h a r" ,
d isse -lh e s Jesu s. 11[Então] S im ão P e d ro sa iu e p u x o u p a ra a p ra ia a
re d e c a rre g a d a co m g ra n d e s p eix es - cen to e c in q u e n ta e trê s deles!
T o d a v ia , a d e s p e ito d o g ra n d e n ú m e ro , a re d e n ã o se ro m p e u .

3: disse·, 5: ch am ou ; 7: exclam ou ; 9: viu ; 10: disse. No tempo presente histórico.


1556 IV · Epílogo

12" V in d e e c o m e i" , d iss e -lh e s Je su s. N e n h u m d o s d is c íp u lo s o u -


sa v a in q u irir: " Q u e m és tu ? " , p o is b e m s a b ia m q u e e ra o S e n h o r.
13Je su s c h e g o u -s e , p o is, to m o u o p ã o e lh o s d e u , e fez o m e s m o c o m
o p eix e.
(14O ra, e sta foi a terceira v e z q u e Jesus se re v e lo u ao s d isc íp u lo s d e-
p o is d e s u a ressu rre içã o d e n tre os m o rto s).

12: disse; 13: chegou-se, tomou, deu. N o tem po presente histórico.

NOTAS*

21.1. D e p o is d is s o . O vago m e ta ta u t a (ver nota sobre 2,12) é um conectivo


estereotipado usado convenientem ente para anexar elem entos heterogê-
neos. Depois da conclusão em 20,30-31, seu valor tem poral é m uito fraco;
contraste 20,26 com seu mais preciso "um a sem ana depois", relacionan-
do duas aparições pós-ressurreição.
[o u tr a v e z ] . Esta palavra joanina frequentem ente usada (quarenta e três ve-
zes) é atestada em todas as m elhores testem unhas gregas, m as em três
diferentes posições na sentença. Ela está ausente em OSsin, na Sahidic, e
em algum as testem unhas gregas menores.
s e m a n if e s to u . O verbo p h a r i ê r o u n , que é usado nove vezes no evangelho,
ocorre duas vezes neste versículo e um a vez no v. 14. Ele tem a conotação
geral de surgir da obscuridade, e para João envolve um a m anifestação
concreta do celestial na terra. O único outro exemplo deste verbo usado
para descrever um a aparição pós-ressurreição está no Apêndice Marca-
no (16,12.14).
a o s d is c íp u l o s . O term o "discípulos" tam bém descrevia os que testem unha-
ram a aparição pós-ressurreição em 20,19; e ali sugerim os que, ao m enos
na forma prim itiva do relato, ele se refere aos onze. O autor do cap. 21
implica que o m esm o grupo m encionado no v. 20 está envolvido aqui,
m as não sabem os que ele tivesse em m ente os discípulos do cap. 20 como
sendo os onze. Sete (ou cinco) discípulos serão listados no v. 2; e um
deles, N atanael, provavelm ente não era m em bro dos onze (notas sobre
1,45 e 6,60).

* Inusitadamente, prestaremos detida atenção às peculiaridades gramaticais ao discutir-


mos este capítulo em decorrência de sua importância em determ inar se ele foi escrito
pelo evangelista ou por um redator. B o b m a r d , art. cit., é muito valioso neste aspecto.
71 · O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao Mar de Tiberíades 1557

A preposição é e p i, a qual, nos escritos joaninos, go-


j u n t o a o M a r T ib e r ía d e s .
vem a, respectivamente, o acusativo e o genitivo sem aparente diferença
de significado (BDF, §2331); ver nota sobre 6,19 para esta frase usada no
sentido de "sobre o m ar". Em 6,1, o corpo de água designado "o Mar da
Galileia", é "de Tiberíades" (ver nota ali); o nome "Tiberíades" teria sido
mais aceitável para um auditório de fala grega do que "Genesaré", e talvez
seu uso seja um a m arca do redator. Não somos informados quando os dis-
cípulos voltaram de Jerusalém para a Galileia. O E v a n g e lh o d e P e d r o , 58-60,
que fornece um relato incompleto de um a aparição junto ao lago, diz que
os discípulos deixaram Jerusalém indo para casa no último dia do oitavo
dia da festa pascal. Relatos de peregrinos medievais associaram o local
desta aparição com o local da multiplicação dos pães, a única outra cena
do Q uarto Evangelho colocada junto ao m ar (ver também p. 1598 abaixo).
a s s i m f o i c o m o . Usualm ente, em João h o u t õ s se refere ao que precede; aqui,
se refere ao que segue.
o co rreu .L ite ra lm e n te , "se m a n ife s to u (a si m e sm o )"; L oisy, p . 515, se q u eix a
c o rre ta m e n te d a e s tra n h e z a d e s ta se n te n ç a in tro d u tó ria .
2. S im ã o P e d r o . O nom e duplo é tipicam ente joanino (nota sobre 1,40). Cinco
dos sete discípulos serão nom eados aqui; no E v a n g e lh o d e P e d r o , 60, três
são nom eados no relato da aparição pós-ressurreição junto ao m ar, a sa-
ber, Simão Pedro, A ndré e Levi de Alfeu (sie!) - somente Simão Pedro é
com um em am bas as listas.
T o m é ( e s te n o m e s i g n if i c a " G ê m e o " ). Sobre o nom e, ver nota de 11,16. Aqui,
ele é u m do grupo geral de discípulos; sugerim os que, originalmente,
ele era tam bém um do grupo em 20,19 que testem unhou a aparição, an-
tes de ser separado e feito o sujeito de um a segunda aparição em 20,26
(pp. 1509-10 acima).
N a ta n a e l (a q u e le d e C a n á d a G a lile ia ) . Embora o cham ado de Natanael fosse
descrito em 1,45-50, ali não fomos inform ados que ele fosse de Caná.
E difícil estar certo se esta informação representa conhecimento tradicio-
nal ou é um a dedução do conhecimento de N atanael da situação local da
Galileia em 1,46, com binado com 2,1.2. D ibelius sugeriu que esta narra-
tiva veio de u m círculo em que alguns relatos de N atanael circulavam;
todavia, o papel de N atanael aqui é mínimo.
o s f ilh o s d e Z e b e d e u . A palavra "filhos" é omitida no texto grego, enquanto
ela aparece regularm ente nas outras referências do NT à prole de Zebe-
deu (MTGS, p. 207, considera o frequente uso de h u io s , "filhos", como um
produto de influência semítica). Embora proem inentes nos evangelhos si-
nóticos, Tiago e João, os filhos de Zebedeu, não são mencionados nominal-
m ente em nenhum a outra parte do Quarto Evangelho. Lagrange, p. 523,
1558 IV · Epílogo

propõe que o texto original de João mencionaria somente cinco discípulos


e que esta frase era um a glosa m arginal m uito antiga identificando os "ou-
tros dois discípulos", um a glosa que achou seu caminho para o corpo do
texto. Isto se harm onizaria com a teoria de que João é o Discípulo Am ado
e que ele e seus parentes sempre são anônimos no evangelho. N a tradição
sinótica (Mc 1,16-20 e par.), o quarteto de pescadores entre os doze consiste
de Pedro, André, Tiago e João. No relato da pesca miraculosa em Lc 5,1-11,
mencionam-se Pedro, Tiago e João.
o u tr o s d o is d is c íp u l o s . O partitivo e k é tipicam ente joanino, bem com o é a
sequência das palavras (ver o grego de 1,35). Os discípulos anônim os
são tam bém um característico joanino: em 20,2.4.8, alude-se ao Discípu-
lo A m ado como "o outro discípulo"; e em 1,35 há um discípulo anôni-
mo, como tam bém "outro discípulo", conhecido do sum o sacerdote em
18,15. Caso não se aceite a tese de L agrange de que estes dois discípulos
são "os filhos de Zebedeu", os próxim os m elhores candidatos são Filipe
e André, am bos da vila de Betsaida, os quais aparecem juntos em 6,7-8
e 12,22. (Isto significaria que os discípulos m ais destacados no relato
joanino do m inistério de Jesus são explícita ou im plicitam ente m encio-
nados no Epílogo, porém num a ordem peculiar: Tomé e N atanael prece-
dendo os filhos de Z ebedeu e A ndré e Filipe sucedendo. N as listas sino-
ticas dos doze, os prim eiros quatro são sem pre Pedro e A ndré, Tiago e
João, em bora dentro do quarteto a ordem de nom es varia). Visto que em
seu relato da aparição junto ao m ar, o E v a n g e lh o d e P e d r o , 60, m enciona
A ndré e Levi, estes dois nom es têm sido tam bém propostos com o can-
didatos para os "outros dois discípulos", m as o E v a n g e lh o d e P e d r o não
m ostra dependência de Jo 21. N onnus de Panópolis, em sua paráfrase
rítmica do Q uarto Evangelho (c. de 450 d.C.), m enciona tam bém A ndré,
m as não como um dos dois discípulos anônim os (Pedro, A ndré, Nata-
nael e outros dois homens).
3. S im ã o P e d r o d is s e ..., " E s to u in d o p e s c a r " . No E v a n g e lh o d e P e d r o , 60, a inicia-
tiva é tam bém dele: "E eu, Simão Pedro, e André, m eu irm ão, tom am os
nossas redes de pescar e saímos ao mar...". O verbo "pescar" tem a forma
de um infinitivo de intenção que é raro em João (4,7; 14,2) é m ais frequen-
te em M ateus e Lucas; MTGS, pp. 134-35, registra que esta construção
ia se tom ando crescentemente popular no grego de c. de 150 a.C. em
diante. M c D owell, pp. 430ss., argum enta que o tem po presente do verbo
"ir" expressa mais que intenção momentânea: Pedro está voltando à sua
vida anterior e na qual pensa perm anecer. A intenção do relato, pois, é
que Jesus fez Pedro m udar de ideia, especialmente no v. 15: "Tu m e amas
mais do que estes [redes, barcos etc.]?" Isto é duvidoso.
71 · O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao Mar de Tiberíades 1559

" Ir e m o s c o n tig o " . A preposição é s y n , a qual ocorre somente duas vezes em


outro lugar em João { m e ta , por outro lado, é frequente), enquanto aparece
umas setenta e cinco vezes em Lucas/Atos. Loisy, p. 515, acha o diálogo
banal e pensa que ele ilustra a absurda tentativa do autor de criar uma
estrutura para o relato que está para narrar. Alguns estudiosos têm acha-
do uma inconsistência no fato de que o redator pensa que estes discípu-
los são pescadores, algo que o evangelista nunca menciona. Entretanto, é
temerário assumir que o evangelista não soubesse disto; algumas vezes
ele assume o conhecimento que um cristão tinha acerca de alguns de-
talhes, como quando fala sobre João sem primeiro chamá-lo de Batista
ou Batizador. Outros têm achado uma inconsistência em Natanael ter
se juntado na pesca, visto que ele era um homem do campo. Embora
nenhuma destas sejam objeções insuperáveis, no comentário propomos
que os nomes dos companheiros de Pedro não pertenciam originalmente
à narrativa da pesca.
s e f o r a m . Embora W estcott, Lagrange e Bernard estejam entre os que des-
cobrem no verbo e x e r c h e s th a i a implicação de que os discípulos saíram da
casa onde estavam em Cafamaum (de Pedro?) ou Betsaida, é mais pro-
vável que o verbo seja pleonástico e não tenha significado especial, como
amiúde se dá no estilo semítico. O E v a n g e lh o d e P e d r o , 60, supracitado,
usa a p e r c h e s th a i da mesma maneira.
0 b a rc o . O artigo, implica que este é o barco habitualmente usado para pesca
(ver nota sobre 6,17), não é necessariamente um sinal de que o autor é
dependente da tradição sinótica sobre o barco dos discípulos (Mc 4,1.36);
uma vez mais, ele pode estar recorrendo ao conhecimento em todos os am-
bientes cristãos. Aqui e no cap. 6 se usa p lo io n ; mas o diminutivo p lo ia r io n
ocorre no v. 8 - vimos uma variação similar no cap. 6: p lo io n foi usado nos
vs. 17,19,21,22,23(?); e p lo ia r io n em 22,23(?),24 (ver nota sobre 6,22). Em-
bora alguns dos comentaristas mais antigos levam em conta o diminuti-
vo, disto nada podemos dizer do tamanho do barco (para a dificuldade
de "diminutivos debilitados" no NT grego, ver D. C. S wanson, JBL 77
[1958], 134-51). Certamente, o uso das duas palavras não é prova de que
João concorda com o relato lucano da pesca miraculosa onde dois barcos
são mencionados especificamente (Lc 5,1-11; ambos são chamados p lo io n ,
embora uma variante textual tenha p lo ia r io n ) .
n a q u e la n o it e n a d a a p a n h a r a m . O verbo grego p ia z e in (aqui e no v. 10), o
qual aparece em João seis vezes em referência à prisão de Jesus, às vezes
não é usado para apanhar animais ou peixes (todavia, veja Ap 19,20).
Lc 5,5 diz, "Embora tenhamos trabalhado toda a noite, nada apanha-
mos". Aqueles que conhecem os costumes palestinos afirmam que no
1560 IV · Epílogo

lago da Galileia pescar à noite é usualm ente m elhor que pescar de dia; e
os peixes apanhados à noite podiam ser vendidos frescos de m anhã.
4. lo g o d e p o is d e j á r a ia r 0 d ia . Literalmente, "quando a aurora já estava rom-
pendo"; em algum as testem unhas im portantes da tradição textual oci-
dental está faltando o "já"; os Códices Sinaiticus e Bezae e a tradição
bizantina trazem "tinha já rom pido". P r õ i a , "aurora", nunca ocorre no
corpo do evangelho que tem p r õ i a duas ou três vezes.
J e su s s e p ô s n a p r a ia . As testem unhas textuais estão divididas sobre se leem
e p i ("sobre") ou e is ("para, para com"). É bem provável que a últim a al-
ternativa seja favorecida como a redação m ais difícil e como tendo sido
m udada por copistas que esqueceram que o verbo "ficar em p é" era um
verbo de m ovim ento no grego clássico e assim podia ser associado com
e is (ZGB, §103). Ele é usado com e is em 20,19 e 26, onde Jesus "se pôs
diante de" (no meio de) os discípulos. Na narrativa podem os im aginar
que, depois de não apanhar nada, os discípulos estão voltando à praia e
estão suficientemente perto para ouvir e ver alguém em pé ali. É prová-
vel que a súbita aparição de Jesus na praia pretendesse ser m isteriosa,
pois nas várias narrativas pós-ressurreição ele se m aterializa de repente.
Não há justificativa para o im aginativo contraste que W estcott, p. 300,
sugere entre Jesus em terra firme e os discípulos nas águas agitadas.
n e n h u m ... sa b ia q u e e ra J e su s . Os estudiosos que não consideram o cap. 21
como um apêndice, mas, antes, como um a continuação do cap. 20, têm
dificuldade em explicar a falha dos discípulos em reconhecerem Jesus
depois de o virem duas vezes antes. A distância e a im pressão causada
pela deficiência da luz m atutina são oferecidas como possíveis explica-
ções; todavia, no v. 12 há ainda a hesitação, m esm o quando ali os disci-
pulos o veem bem de perto e junto ao fogo. Quase certam ente estam os
tratando da prim eira aparição de Jesus a seus discípulos em um relato
independente do cap. 20, e este é outro exemplo da aparência transfor-
m ada do Jesus ressurreto (p. 1485-86 acima).
5. " M o ç o s" . Este é o plural de p a id i o n (um substantivo dim inutivo de p a is ,
"m enino"; ver nota sobre 4,49.51). No evangelho, ele é em pregado so-
m ente aqui como um a palavra dirigida aos discípulos; todavia, veja a
nota sobre 13,33, onde há um uso sim ilar de te k n io n (um substantivo di-
m inutivo de te k n o n , "menino"). Algum as vezes, te k n io n é considerado um
termo m ais tem o do que p a id i o n ; m as as duas palavras são aparentem en-
te intercam biáveis em ljo 2,12 e 14, onde am bos são m antidos distintos
de n e a n is k o s , "jovem". L agrange, p. 524, assum e que te k n io n era m ais ha-
bitual quando Jesus se dirigia aos discípulos e que aqui ele usou o p a id io n
m enos familiar para que não fosse reconhecido. N ão obstante, como
71 · O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao Mar de Tiberíades 1561

apoio de tal distinção teríam os que conhecer os equivalentes aramaicos


exatos; além do mais, te k n io n é usado no evangelho, m as só um a vez e
no contexto de um discurso de despedida onde a m enção de filhos é nor-
m al (p. 964s. acima); e assim dificilmente poderiam os estar certos sobre
o costum e do Jesus joanino. Q uanto a p a id i o n , a função dim inutiva pode
ser com pletam ente enfraquecida - um m atiz de dim inutivo de p a id a r io n
é usado em 6,9 para um menino; todavia, em 16,21 p a id io n é usado para
u m recém-nascido. A atmosfera paterna implícita no uso de p a id io n em
ljo 2,18 e 3,7 não é apropriada aqui, porque no m om ento alguém que é
presum ivelm ente estranho está falando aos discípulos. Assim, estamos
de acordo com B ernard (II, 696) que p a id io n tem um toque coloquial na
presente cena. Com o B ernard singularm ente o fraseia, "... podem os di-
zer 'm eus jovens' ou 'rapazes', se invocarmos um grupo de estranhos de
um a classe social inferior".
" a p a n h a s te s a lg u m a c o is a p a r a c o m e r ... te n d e s a lg o ? " "A panhastes" traduz o
verbo grego "ter"; m as B ernard, II, 696, cita um a anotação em Aristófa-
nes para m ostrar que esta é a m aneira de alguém perguntar idiomática-
m ente a um pescador ou caçador se ele teve algum sucesso. A pergunta
é prefixada p o r m ê e assim, m ediante norm as clássicas, antecipa um a
resposta negativa. Todavia, m uitos com entaristas evitam um a conotação
tão incisiva; por exemplo, B ultmann pensa que a pergunta foi form ulada
da perspectiva de quem abordava, o qual sabia que não tiveram êxito;
B arrett encontra um a leve insinuação de dúvida; a nota em BD F, §4272,
se a entendem os corretam ente, vê um implícito "por acaso" e segue C ri-
sóstomo, pressupondo um a oferta implícita de compra, se tivessem apa-
n hado peixes. M uito em bora estas interpretações sejam plausíveis, espe-
cialm ente a últim a, é bem provável que o autor tencionasse um tom de
ironia de que Jesus sabia do estado de desam paro dos discípulos quando
lhes deixou. É notável que nos evangelhos os discípulos nunca apanha-
vam peixes sem o auxílio de Jesus.
t e n d e s a lg o ? Em geral se m antém que p r o s p h a g i o n , um a palavra grega
helenista, originalm ente se referia a um a p arte do p rato que era de-
g lu tid a com p ão p ara dar-lhe sabor, e que, visto que 0 peixe às vezes
constituía este prato, a palavra veio a significar "peixe". (Uma explica-
ção sim ilar é proposta para o p s a r io n , usada nos vs. 9,10 e 13; ver nota
sobre 6,9). E ntretanto, J. H. M oulton e G. M illigan, T h e V o c a b u la r y o f
th e G r e e k T e s t a m e n t (G rand Rapids: Eerdm ans, 1949), p. 551, afirmam:
"Ao ju lg ar pela evidência dos p apiros p r o s p h a g io n é m ais bem entendí-
do d e algum artigo básico de alim ento do g ê n e r o peixe, e não de m ero
'sab o r'". N o relato lucano da pesca m iraculosa, Jesus não dirige um a
1562 IV · Epílogo

p erg u n ta aos discípulos sobre o êxito deles. Todavia, na aparição do


Jesus ressurreto, em Lc 24,41-43, ele lhes pergunta: "Tendes algum
alim ento aqui?" Respondem , dando-lhe um pedaço de peixe cozido
(ic h th y s ).
6. L a n ç a i v o s s a re d e . Em Lc 5,4, Jesus diz: "Faze-te ao m ar alto, e lançai vossas
redes para pescar". O verbo de João, "lançar" (b a lle in ) aparece no relato
m ateano (4,18) de como Pedro e A ndré estavam pescando quando Jesus
apareceu e os chamou. João usa d i k t y o n para "rede"; o relato pós-ressur-
reição no E v a n g e lh o d e P e d r o , 60, usa lin o n .
à d ir e it a d o b a rc o . Um a frase estranha no grego; esta especificação não apa-
rece no relato lucano paralelo da pesca m aravilhosa. O lado direito era o
lado da boa sorte (ver M t 25,33; tam bém exemplos em StB, 1,980); de fato,
Barrett, p. 482, salienta que um significado secundário de d e x io s , "di-
reita" era "afortunado". Todavia, certam ente o autor não pensava nisto
como um caso de sorte; tam pouco a sugestão de Bernard (II, 696) é acei-
tável, na qual Jesus poderia ter visto um braseiro com peixes e passou
a dirigir os discípulos para lá. João implica um conhecimento sobrehu-
m ano da parte de Jesus e o dever m oral correspondente de obedecer-lhe
exatam ente se alguém quer ser seu discípulo.
a c h a r e is a lg u m a c o is a . Depois destas palavras se encontra um a adição em um
grupo de testem unhas textuais (P66, Codex Sinaiticus corretor, Etiópico,
alguns textos latinos de descendência irlandesa e C irilo de Alexandria):
"Mas diziam, ,‫[׳‬Mestre], trabalham os a noite inteira e nada apanham os;
m as em teu nom e [palavra] lançarem os'". Este é um em préstim o feito
por copista de Lc 5,5.
E n tã o . O uso de o u n , neste capítulo, é tipicam ente joanino.
0 n ú m e r o d e p e ix e s e ra tã o g r a n d e . O grego deste versículo envolve tun uso
causativo de a p o não encontrado em outro lugar em João (que prefere
d ia - vinte e seis vezes), porém encontrado nove vezes em L ucas/A tos e
frequentem ente na LXX. Lc 5,6-7 tem um quadro sim ilar, m as expresso
em palavras diferentes: "A juntaram um a grande quantidade de peixes,
e suas redes se rom piam , de m odo que fizeram sinal aos seus sócios no
outro barco para que viessem ajudá-los".
n ã o c o n s e g u ia m . Esta é a única vez no evangelho que is c h y e in é usado no
sentido de "ser apto"; João prefere d y n a s t h a i (trinta e seis vezes).
a r r a s tá - la . Este verbo, usado aqui, no v. 11, e três vezes no corpo do evange-
lho, está sem pre na forma tardia h e lk y e in , em vez de h e lk e in .
7. a q u e le d is c íp u lo a q u e m J e su s a m a v a . Mesmo que sua presença pertença ao
último estrato do relato, é óbvio que" para o redator ele era um dos seis
companheiros de Pedro mencionados no v. 2 e, mais especificamente,
71 · O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao Mar de Tiberíades 1563

um dos dois filhos de Zebedeu ou um dos "outros dois discípulos".


O verbo a g a p a n é usado aqui e no v. 20, como em 13,23 e 14,26 (p h ile in é
usado em 20,2). "Aquele discípulo" pode ser comparado ao uso de e k e in o s
em 19,35 (ver nota ali; tam bém 13,25).
"É 0 S e n h o r ! " Um as poucas testem unhas ocidentais trazem "nosso Senhor".
Este título tem servido de confissão de fé ao Jesus ressurreto em 20,18.25
e 28. B arrett, p. 483, nota que " É " coincide com a fórm ula "Eu sou" (ver
vol. 1, p. 841).
A s s i m q u e o u v i u . Aparentem ente, ele ainda não podia reconhecer Jesus vi-
sualm ente; ver tam bém v. 12.
p r e n d e u s u a r o u p a e x te r n a (p o is e le e s ta v a q u a s e n u ) . Usualmente, a passagem
é traduzida desta maneira: "Pedro vestiu um a roupa, pois estava nu".
A ideia, pois, seria que Pedro estava trabalhando com um a roupa fina so-
bre o corpo (nudez total ofendería as sensibilidades judaicas e não se ade-
quaria a descrição dele trabalhando num a noite fria), mas, por causa da
m odéstia e reverência, ele vestiu sua roupa externa antes de nadar para
terra ao encontro de Jesus. Barrett, p. 483, salienta que as saudações eram
um ato religioso e não podia ser efetuado sem se estar vestido. Todavia, pa-
rece incrível que alguém se vestisse antes de se jogar na água e assim impe-
dir-se de n adar mais livremente. Reconhecendo esta dificuldade, Loisy,
p. 518, encontra aqui outro caso de confusão no redator. No entanto,
L agrange e M arrow sugerem um significado mais plausível para o grego,
um significado que remove m uito da dificuldade. O verbo d i a z õ n n y n a i ,
que significa "atar (roupas) em torno de si", se encontra no NT somente
em João (Lucas usa p e r i z õ n n y n a i que é a forma da LXX). Pode significar
vestir roupas, porém , m ais propriam ente, significa ajuntá-las e atá-las na
cintura, para que alguém possa ter liberdade de m ovim ento para fazer
algo. Em 13,4-5 o verbo é usado para Jesus atar um a toalha em tom o de
si a fim de usá-la enquanto lavava os pés dos discípulos. O item de roupa
envolvido na presente cena é um e p e n d y t ê s , um a roupa sobreposta sobre
as roupas íntimas. A palavra pode ser usada para descrever a roupa de
u m trabalhador, e neste caso provavelm ente fosse um a blusa de pesca-
d o r que Pedro estava usando na friagem da m anhã. O adjetivo g y m n o s ,
"n u ", p ode significar levem ente vestido, e M arrow pensa que, visto que
Pedro estava usando o e p e n d y t ê s , ele podia ser descrito como levemente
vestido. Aqui, preferim os a sugestão de Lagrange: o autor quer dar a
entender que Pedro estava n u debaixo do e p e n d y t ê s e que essa é a razão
p o r que ele não podia tê-lo tirado antes de saltar na água. Assim obte-
m os um quadro mais lógico: vestido apenas com sua roupa de pescador,
Pedro cingiu-o em sua cintura para que pudesse nadar mais facilmente e
1564 IV · Epílogo

m ergu lh ar na águ a. B ernard, II, 69798‫־‬, p arece d a r u m sign ificad o d u p lo


a d i a z õ n n y n a i , a saber, "v e stir e p re n d e r", m as en tão alg u ém se v ê ain d a
enfrentando o ab surdo d e co lo car ro u p as an tes d e n ad ar.
s a lto u a o m a r . Literalmente, "lançou-se". OSsi,< acrescenta: "e passou a na-
dar, pois não estavam longe da terra seca"; a últim a parte antecipa a
informação sobre distância encontrada no final do v. 8. É m ais provável
que devam os pensar nele nadando, e não vadeando, pois a terra desapa-
rece rapidam ente na m aior parte do lago.
8. v ie r a m d e b a rco . Estamos tom ando o dativo de p lo ia r io n (ver nota sobre "o
barco" no v. 3) instrumentalmente. L agrange o traduz como um dativo de
lugar ("no barco"), mas BDF, §199, nega a existência de tal dativo no NT.
a r r a s ta n d o a re d e . Em Lc 5,7, aparentem ente as redes são lançadas ao largo,
pois os dois barcos estão quase indo a pique com o peso dos peixes na
rede.
c e m m e tr o s . Literalmente, "duzentos cúbitos". O uso helenista de a p o com
o genitivo em lugar de um acusativo de distância é bem joanino (11,18;
Ap 14,20; ver BDF, §161’; ZGB, §71). Esta informação sobre a distância te-
ria vindo m ais naturalm ente no final do v. 7, como reconhecido por OSsin.
9. d e s c e r a m à te r r a . Em lugar de a p o b a in e in , tunas poucas testem unhas textuais
trazem a n à b a in e in , "foram para a costa", m as é bem provável que isto se
deve a um a confusão com o v. 11.
v ir a m a li c a r v õ e s a c e s o s . Para k e i m e n e n , "colocado ali", em alguns mss. do
OL parecem ter lido k a i o m e n ê n , "aceso". João dem onstra um a preferên-
cia para carvões acesos; a única vez que aparece, fora este episódio é na
negação de Pedro em Jo 18,18.
u m p e ix e ... e p ã o . Como em 6,9, o p s a r io n norm alm ente se refere ao peixe
defum ado ou em conserva; m as no próxim o versículo é u sado p ara des-
crever peixe apanhado recentem ente e, assim, para o redator joanino, ao
menos, é intercam biável com o ic h t h y s do v. 11 ( v ê n i a a BDF, §1113, que
tenta fazer um a distinção abrupta). É possível que, em parte, a variedade
do vocabulário joanino para "peixe", nos vs. 5-13 (p r o s p h a g io n , ic h t h y s ,
o p s a r io n ) reflita a combinação de dois relatos (ver comentário), com
ic h th y s sendo original no relato da pesca, e o p s a r io n no relato da refeição
de pescado com pão. Q uanto à m enção de pão, não fica claro se o pão
estava tam bém sobre os carvões acesos. O fato de que o singular é usado,
respectivamente, para peixe e para pão, como contrastado, por exemplo,
com o plural para peixes no v. 11, tem parecido significativo para alguns:
o autor queria ilustrar o tem a da unidade num a refeição sacra, referindo-
se a um peixe e um pão - m as de fato o autor não diz "um ". Isto tem leva-
do alguns à pressuporem que Jesus multiplicou miraculosam ente o único
71 · O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao Mar de Tiberíades 1565

peixe e o único pão para alim entar os sete discípulos (assim Lagrange,
p. 526). N ão podem os crer que tão im portante m ilagre teria apenas sido
sugerido indiretam ente. Deixamos em aberto a possibilidade d e que, de
fato, houve apenas um peixe ao fogo, visto que Jesus indaga por mais,
porém é provável que o pão implicasse coletividade.
10. T r a z e i . Este im perativo aoristo é estranho, pois no restante do NT se usa
sem pre o im perativo presente de p h e r e in (BDF, §3363); de fato, o presente
ocorre em 20,27 em um contexto pós-ressurreição.
a l g u n s p e ix e s . O uso partitivo de a p o se encontra somente aqui em João,
como contrastado com cinquenta e um usos do e k partitivo. Ao mesmo
tem po, o substantivo governado pela preposição, o p s a r io n , é peculiar-
m ente joanino no NT. Esta única frase, pois, é um exemplo prático de
quão difícil é decidir se o estilo do capítulo é ou não joanino.
11. [ E n tã o ] . Isto está ausente tanto nas testem unhas textuais ocidentais como
nas bizantinas.
s a iu . Literalm ente, "subiu" ou "adiantou-se". Z ahn e L oisy estão entre os
que suscitam a possibilidade de que Pedro só estava saindo na praia,
vindo de seu nado, e que os outros discípulos chegaram ali remando.
N ão obstante, visto que o autor nos informa que Pedro saiu primeiro,
certam ente ele teria m encionado que Pedro chegou prim eiro, se isso fos-
se o que tinha em m ente. Antes, tem os de pensar que Pedro estivesse na
praia, m esm o quando fosse estranham ente comedido, e que se põe em
ação ante a solicitação de Jesus. A ideia de que esteve prostrado aos pés
de Jesus e agora se le v a n t a é injustificada. (Como verem os no comentário,
a estranheza sobre o que Pedro esteve fazendo na praia tem por m otivo o
fato de que dois diferentes incidentes são combinados aqui e que a vinda
de Pedro a Jesus originalm ente propiciou a ocasião para o diálogo nos
vs. 15-17). B ultmann, p. 544, pensa que o verbo se refere ao ato de Pedro
f i c a r e m p é na m argem para puxar a rede. Entretanto, é m ais provável
que Pedro seja retratado como a sair do barco. O verbo a n a b a in e in pode
significar "subir" no sentido de embarcar, em bora os outros casos disto
no NT (Mc 6,51 = M t 14,32) sejam acom panhados no grego pela frase de
esclarecim ento "para o barco". A tradição oriunda de copista por detrás
do Codex Sinaiticus subentendia desta m aneira o pensam ento do autor;
pois ali é usado o verbo e m b a in e in , e isto significa claram ente que ele foi
para o barco. B ultmann diz que Pedro não poderia ter embarcado, pois a
rede cheia de peixes não estava no barco. Todavia, ela foi arrastada após
o barco, e Pedro poderia ter voltado ao barco encalhado para ajudar a
pu x ar a rede. L ightfoot, p. 342, vê na ação de Pedro um a manifestação
de sua liderança entre os discípulos; este simbolismo é possível, porém,
1566 IV · Epílogo

é m a is sim p le s c o n c o rd a r co m a explicação d e L oisy q u e a ló g ica d a c e n a é


q u e P e d ro a g iu d e u m a fo rm a m u ito p e re m p tó ria , p o r q u e e le e ra o d o n o
d o b a rc o (cf. Lc 5,3).
p u x o u p a r a a p r a ia . A despeito do tam anho e núm ero dos peixes, não está
implícita nenhum a proeza de força miraculosa; tal m ilagre teria sido es-
pecificado e salientado (Bultmann, p. 54811)·
g r a n d e s p e ix e s . A sugestão de que havia outros peixes m enores além dos 153
grandes é improvável. Na pesca dirigida por Jesus tudo é extraordinário.
c e n to e c in q u e n ta e tr ê s . Embora João frequentem ente qualifique seus nu-
merais com "cerca de" (1,39; 6,10; 21,8 etc.), aqui não se em prega o m ais
conveniente "cerca de 150". A ideia de que o autor podería ter tido um
propósito oculto e simbólico, em citar o num eral exato 153 tem levado
a um enorm e volum e de especulação - "tudo, desde a gem atria até a
progressão geométrica" (M arrow), m as sem aclarar definitivam ente em
nenhum caso o que A gostinho chama de "um grande m istério". Para
essas especulações, ver K ruse, a r t . c i t . Mencionemos algum as das teorias
mais significativas, (a) Em seu comentário sobre Ez 47,6-12 (PL 25:474C),
J erônimo nos inform a que os zoólogos gregos tinham registrados 153 di-
ferentes tipos de peixes; e assim, ao m encionar este núm ero, João podería
estar sim bolizando a totalidade e categoria da pesca dos discípulos e an-
tecipando simbolicamente que a m issão cristã incluiría todos os hom ens
ou, ao m enos, todos os tipos de homens. Poderiam os achar um paralelo
na parábola do reino, em M t 13,47, onde a rede lançada ao m ar ajunta pei-
xes "de todo tipo". N ão obstante, a interpretação de J erônimo supõe que
o autor joanino teria conhecido os resultados dos zoólogos gregos. Além
do mais, J erônimo cita como fonte de autoridade "o m ui erudito poeta"
entre os zoólogos opiano da Cilicia (c. de 180 d.C.); e como R. G rant, HTR
42 (1949), 273-75, tem m ostrado, a forma da H a l ie u t ic a de O piano que nos
tem alcançado não endossa à afirmação de J erônimo. O piano afirma que
há incontáveis tipos de peixes e de fato cataloga 157. P línio (N a t u r a l H i s -
t o r y 9,43) conhecia 104 variedades de peixes e crustácios. G rant sugere
que J erônimo estava interpretando a zoologia grega à m aneira de João.
(b) A gostinho, I n Jo. 72,8; PL 35:1963-64, nos dá o prim eiro exemplo de
um a abordagem m atemática para 153, na qual o núm ero é visto como
a soma de todos os núm eros de 1 a 17. O simbolismo que alguém pode
achar em 17 varia, e m uito do que é proposto pelos escritos eclesiásticos
é anacrônico para o evangelho (10 m andam entos e 7 dons do Espírito; 9
corais de anjos e 8 beatitudes). H oskyns, pp. 553-54, utiliza a ideia num a
direção diferente: 153 pode se dispor em um triângulo equilátero com 17
pontos de cada lado. N úm eros triangulares eram do interesse tanto dos
71 · O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao Mar de Tiberíades 1567

m atem áticos gregos como dos autores bíblicos (ver F. H. C olson, JTS 16
[ 1 9 1 4 6 7 - 7 6 ,[15‫)־‬. Assim, pode-se especular que 17, seu elemento básico,
é form ado p o r dois núm eros que sim bolizam com pletude, a saber, 7 e
10 - núm eros im portantes no pensam ento judaico contem porâneo (P ir q e
A b o t t 5,1-11). B arrett, p. 484, apoia esta sugestão, salientando que um
total de 7 discípulos foi m encionado no v. 2 (embora o autor não chame
a atenção para este total) e, que no Livro do Apocalipse, 7 é um núm ero
simbólico (ver vol. 1, p. 163). A conclusão de tudo isto seria que, para
João, o núm ero perfeito, 153, antecipou a plenitude da Igreja, (c) Uma
abordagem alegórica é proposta por C irilo de Alexandria (In Jo. 12; PG
74:745) que subdivide o núm ero em 100 e 50 e 3 .0 100 representa a pleni-
tu d e dos gentios; o 50 representa o rem anescente de Israel; o 3 representa
a Santa Trindade. Para Rupert de D eutz, o 100 representa as casadas; o
50 representa as viúvas; e o 3 representa as virgens. Estas alegorias refle-
tem os interesses teológicos de um período tardio; por exemplo, o autor
joanino dificilmente pensaria na Santa Trindade como tal. (d) A gematria
encontra alguns expoentes m odernos. K ruse, a r t. c i t ., enfatiza que 153
representa a soma do valor num érico das letras na expressão hebraica
para "a Igreja de am or", q h l h 'h b h . N ão se pode negar que a gematria
era conhecida da escola joanina dos escritores (p. ex., o 666 de Ap 13,18,
onde, não obstante, chama-se a atenção dos escritores para a gema-
tria), m as é um a m era especulação basear a gem atria em um a expressão
que nunca ocorre nos escritos joaninos. R. E isler (citado por Bultmann,
p. 5491) engenhosam ente salienta que o valor num érico de S i m õ n é 76
e o de i c h t h y s , "peixes", é 77. De m ais interesse é a gematria proposta
por J. A. Emerton, JTS 9 (1958), 86-89, baseada na passagem de Ez 47
m encionada como o tem a das observações na teoria de J erônimo (a ) aci-
m a, a saber, a descrição da nascente de água que flui do tem plo para
o vale do Jordão, que finalmente tem regado de água toda a terra da
Palestina. Esta passagem era conhecida nos círculos joaninos, pois ela
form a o pano de fundo de Ap 22,1-2 (o rio da vida que flui do trono do
Cordeiro) e talvez para Jo 7 ,3 7 (o rio de água viva que flui do interior
de Jesus - vol. 1, p. 577). Ora, em Ez 47,10 ouvim os que, depois que a
corrente tiver regado a terra e se proliferar de peixes de todo tipo, os
pescadores penetrarão o m ar de En-gedi até o En-eglaim, espalhando
suas redes. E merton observa que o valor num érico das consoantes he-
braicas de (En-)gedi é 17, e o de (En-)eglaim é 153! (Subsequentemente,
P. R. A ckroyd, JTS 10 [1959], 153-55, trabalhando com soletrações va-
riantes no ms. da LXX, propôs que, pela gem atria baseada no grego,
os nom es En-gedi e En-eglaim podem prod uzir um valor total de 153.
1568 IV · Epílogo

Isto foi contabilizado por E merton, JT S 11 [I960], 33536‫־‬, que objetou que
as duas soletrações dos nom es em que A ckroyd fez seus cálculos nun-
ca ocorrem juntas em qualquer ms. grego). Com o um apoio interessan-
te à proposta de E merton de que o segredo do núm ero 153 pode estar
em Ez 47, reportam o-nos a J. D aniélou, Ê tu d e s d 'e x é g è s e ju d é o - c h r é ti e n n e
(Paris: Beauchesne, 1966), p. 136. Ele observa que na arte cristã prim itiva
Pedro e João (os dois proem inentes discípulos em Jo 21) eram retratados
juntos a um m anancial de água fluindo do tem plo (que, po r sua vez,
pode ser conectado à rocha do sepulcro de Jesus).
Não se pode negar que algum as destas interpretações (que não se ex-
cluem m utuam ente) são possíveis, m as todas encontram a m esm a obje-
ção: não temos evidência de que algum a dessa com preensão complexa
de 153 fosse inteligível aos leitores de João. N ão sabemos de nenhum a
especulação ou simbolismo estabelecido relacionado com o núm ero 53
no pensam ento antigo. Sobre o princípio de que onde há fum aça há fogo,
devemos conceder às interpretações supram encionadas a probabilidade
de que o núm ero pode pretender sim bolizar a am plitude ou m esm o a
universalidade da m issão cristã. Mas somos inclinados a pensar que, vis-
to que este simbolismo não é im ediatam ente evidente, ele não propiciou
a invenção do núm ero; pois certam ente o autor, fosse ele decidir livre-
m ente, podería ter proposto um núm ero obviam ente m ais simbólico; por
exemplo, 144. É bem provável que a origem do núm ero esteja na direção
de um a ênfase sobre as testem unhas autênticas cujo caráter foi registrado
(21,24). O Discípulo A m ado está presente. Em 19,35, aparentem ente ele
era um dos que transm itiram o fato de que fluíram do lado de Jesus san-
gue e água; em 20,7, ele era a fonte para a descrição exata da posição dos
lençóis fúnebres; assim aqui pode ser que devam os pensar que ele este-
ja registrando o núm ero exato de peixes que os discípulos apanharam .
O núm ero teria sido retido no relato porque era m uito grande; e quando
o relato recebeu um a interpretação simbólica, o núm ero teria sido inter-
pretado como um a indicação figurativa d a m agnitude dos resultados da
missão dos discípulos. N úm eros grandes indicativos de abundância não
são estranhos aos escritos joaninos; por exemplo, cerca de 600 litros de
água que se transform aram em vinho em Caná (2,6) e os cento e quarenta
e quatro m il de Ap 7,4. Para concluir temos que expressar a reserva que
a explicação que oferecemos da origem do núm ero não constitui um a
solução para o problem a da historicidade.
0 g r a n d e n ú m e r o . Literalmente, "sendo tantos". Lc 5,6 registra que, depois
de arrastarem as redes, "reuniram um a grande m ultidão de peixes"; e 5,7
diz que havia o suficiente para encher am bos os barcos a ponto de quase
71 · O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao Mar de Tiberíades 1569

afundarem . Os que conhecem a Palestina dizem que no Lago da Galileia


há densos cardum es de peixes.
a r e d e n ã o s e r o m p e u . Lc 5,6 registra: "e a rede se rom pia", usando o ver-
bo d i a r ê s s e i n , enquanto João usa s c h i z e i n . Alguns autores como
Lagrange, H oskyns e Barrett pensam que na descrição de Lucas as redes
se rom peram , enchendo os barcos com peixes; m as ZGB, §273, interpreta
isto como u m exemplo do uso do tem po im perfeito para indicar um a
tentativa que não se realizou - as redes quase se rom peram .
12. v i n d e e c o m e i. O uso clássico de a r i s ta n está para a refeição m atutina que
conclui o jejum noturno; todavia, em Lc 11,37, o outro único exemplo
do verbo no NT, se refere a comer a refeição principal do dia (Lucas usa
sem elhantem ente o substantivo a r i s to n ) . A refeição consiste só de pei-
xe (singular ou coletivo?) e de pão já m encionados no v. 9; ou devemos
pensar que Pedro trouxera algum dos peixes recém apanhados, como foi
instruído a fazer no v. 10 e os adicionou? A últim a solução é mais fácil,
m as a m aioria dos intérpretes prefere a prim eira e apontam para a ordem
aparentem ente sem sentido no v. 10, como sinal de que duas narrativas
foram com binadas sem qualquer lógica: um a, onde Jesus fornece a re-
feição (miraculosamente?), e a outra onde a pesca feita pelos discípulos
constitui a refeição. L agrange, p. 527, explica que, já que a pesca recente
sim boliza os conversos resultantes da missão cristã, não podem ser de-
glutidos - seria um tipo d e canibalismo espiritual!
N e n h u m . H á considerável suporte textual para a adição de um a conjunção
adversativa.
o u s a v a in q u i r i r , " Q u e m é s tu ? " . Conquanto a aparição de Jesus seja estranha
(v. 4 ), reconhecem-no, porém se sentem confusos e inseguros. O Jesus
que conheciam passou po r transform ação depois de ser o Senhor res-
surreto. B ernard, II, 700, observa que a fam iliaridade dos dias antigos
passara, m as na verdade um a hesitação sim ilar sobre questionar Jesus se
encontra em 4,2 7 . B arrett, p. 4 8 4 , diz que, agora que Jesus se manifestava
aos seus, tais indagações são desnecessárias (16,23); m as, por que então a
hesitação dos discípulos? N o comentário, propom os que isto foi original-
m ente um a cena de reconhecim ento em um dos dois relatos de aparição
pós-ressurreição que foram fundidos no cap. 21 (a cena de reconhecí-
m ento no v. 7 pertencia à outro relato). O infrequente verbo e x e ta z e in ,
"inquirir" (algum as vezes "interrogar m inuciosam ente"), não ocorre em
nenhum outro lugar em João. A pergunta "Quem és tu?" foi form ulada
em 8 ,2 5 a Jesus por "os judeus".
e ra 0 S e n h o r . Com o no v. 7, este título expressa o reconhecimento de Jesus
pós-ressurreição.
1570 IV · Epüogo

13. Todos os verbos neste versículo estão no tem po presente his-


ch egou - s e .
tórico, como contrastado com os tem pos aoristos m uito sim ilar a 6,11.
O quadro é confuso, pois até agora alguém teria naturalm ente presum i-
do que Jesus estava em pé próxim o ao fogo que ele acendera. Todavia,
pode ser que o verbo seja pleonástico e realm ente não indica m ovim ento.
d e u . O Codex Bezae, OSsin e dois mss. OL acentuam a sem elhança com 6,11
ainda mais estreita, agregando "deu graças" (e u c h a riste in ). Visto que,
como salientarem os no comentário, o presente versículo contém sim-
bolismo eucarístico, a falta do verbo eu c h a riste in é notável. B ultmann,
p. 5502, explica que o Senhor ressurreto não deu graças como fizera o
Jesus d urante seu ministério.
14. Ora, e sta fo i a terceira v e z . Com vênia a B ernard, II, 701, dificilmente esta
seja um a tentativa de corrigir a tradição m arcana de que Jesus teria apa-
recido pela prim eira vez na Galileia. Constitui a tentativa d o redador de
ver juntos os caps. 19 e 26, fazendo esta aparição sequencial aos dois em
20,19 e 26. Note que o redator evidencia a perspectiva prim itiva, atestada
em IC or 15,5-8, onde as aparições às testem unhas apostólicas têm um a
categoria especial; ele conta apenas as aparições aos discípulos e ignora
M aria M adalena. Q uanto ao estilo, com parar "Este foi o segundo sinal"
em 4,54. G oguel, p. 25, acha a analogia entre os dois versículos tão estrei-
ta que form ula a hipótese que o relato da pesca m iraculosa originalm ente
não se d eu pós-ressurreição (não é pós-ressurreição em Lc 5,1-11) e foi
o terceiro sinal na Fonte dos Sinais em João depois dos dois milagres
em Caná. M uitos estudiosos têm pensado ser possível que este relato
em outro tem po pertenceu a um a coleção de sinais, m as dificilmente na
sequência im aginada por G oguel (Bultmann, p. 5461). A gourides, p. 129,
pensa que a terceira v e z é enfatizada porque nos vs. 15-17 haverá um a
tríplice indagação restabelecendo Pedro depois de três negações.
d ep o is d e su a ressu rre iç ã o . Literalmente, "após ser ele ressuscitado"; o uso do
passivo de eg e ire in para a ressurreição de Jesus, aqui e em 2,22 (ver nota
ali) pode ser contrastado com o único uso de a n is ta n a i em 20,9.

COMENTÁRIO

A n a tu r e z a e p r o p ó s ito d o c a p ítu lo 2 1

A p a rtir d a e v id ê n c ia tex tu a l, in c lu in d o a d e m a n u sc rito s a n tig o s tais


co m o P66 e T ertu lia n o , o e v a n g e lh o n u n c a c irc u lo u se m o cap. 21. (u m
m s. siríaco d o 5a o u 6a sécu lo s [B ritish M u se u m cat. A d d . N o . 14453],
71 · O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao Mar de Tiberíades 1571

q u e te rm in a e m Jo 20,25, a p a re n te m e n te p e rd e u os fólios finais). Isto


n o s d e ix a a in d a co m d u a s q u e stõ e s básicas. P rim e ira , o cap. 21 era
p a rte d o p la n o o rig in a l d o e v a n g elh o ? S e g u n d a , se n ã o , ele foi acres-
cid o a n te s d a "p u b lic a ç ã o " p e lo e v a n g elista , o u p o r u m re d a to r? C o m
L a g r a n g e e H oskyns , co m o n o tá v e is exceções, p o u c o s e stu d io so s m o-
d e rn o s d ã o u m a re sp o sta a firm a tiv a à p rim e ira q u estão . A s p rin c ip ais
ra z õ e s são estas: (a) o fin al claro e m 20,30-31, ex p lic an d o a ra z ã o d o
a u to r p a r a o q u e ele selecio n o u p a ra n a rra r, p a re c e ex clu ir q u a lq u e r
n a rra tiv a u lte rio r. É e m rec o n h e c im e n to d e sta d ific u ld a d e q u e L a -
g r a n g e te n ta m o v e r 20,30-31 p a ra u m a p o siç ã o d e p o is d e 21,23. (b) N o
cap. 20, a p ó s d e s c re v e r a s a p a riçõ e s d e Jesu s a se u s d iscíp u lo s, o a u to r
re g is tra u m a b e m -a v e n tu ra n ç a p a ra o s q u e n ã o v ira m (20,29). A ssim ,
é a lta m e n te im p ro v á v e l q u e ele p re te n d e s s e n a rra r m ais a p a riçõ e s aos
q u e v ira m , (c) O re la to n o cap. 21 se e n c o n tra n u m a seq u ên cia e stra n h a
d e p o is d o cap. 20, d e m o d o q u e é difícil crer q u e o s e v e n to s d o s dois
c a p ítu lo s estejam e m s u a o rd e m o rig in al. (E ntre p a rê n te se s d ire m o s
q u e , d e s c o b rim o s ser d ig n o d e n o ta q u e , a d e sp e ito d a s m u ita s teo rias
d e re a rra n jo s n o Q u a rto E v a n g e lh o [vol. 1, p p . 8-15], n ã o tem h a v id o
u m a c o rd o g e ra l d e reco lo car a a p a riç ã o p ó s-re ssu rre iç ã o d o cap. 21
a n te s d a s a p a riçõ e s d o cap. 20). D ep o is d e te re m v isto o Jesus res-
s u rre to e m J e ru sa lé m e d e te re m sid o co m issio n a d o s co m o ap ó sto lo s,
p o r q u e o s d isc íp u lo s v o lta ria m à G alileia e re a ssu m iría m sem p ro -
p ó s ito s u a s o c u p a çõ e s o rd in á ria s? D e p o is d e te re m v isto Jesus d u a s
v e z e s face a face, p o r q u e o s d isc íp u lo s fa lh a ria m e m reconhecê-lo
q u a n d o ele a p a re c e u o u tra vez?
E m d e fe sa d a id e ia d e q u e o a u to r p la n e jo u in c lu ir o cap. 21,
H osk y n s , p . 550, a rg u m e n ta q u e u m a c o n c lu sã o d o e v a n g e lh o in-
c lu iria n ã o só u m a a p a riç ã o d o S e n h o r re s s u rre to , m a s ta m b é m u m a
m is s ã o d o s d isc íp u lo s a o m u n d o p a ra s u a salvação. Ele a p o n ta p a ra
M c 16,20; M t 28,20; e o L iv ro d o s A to s q u e ele c o n sid e ra co m o o fi-
n a l v e rd a d e ir o d o E v a n g e lh o d e L ucas; e c o rre ta m e n te e n c o n tra u m a
re fe rê n c ia a ta l m issã o n o sim b o lism o d a p e sc a e m Jo 21. N ã o obs-
ta n te , s e u a rg u m e n to e m p ro l d a in clu sã o d o cap. 21 é e n fra q u e c id o
p e lo fa to d e q u e h á u m a refe rê n c ia a u m a m issã o em 20,21: "C o m o o
P a i m e e n v io u , ta m b é m e u v o s e n v io ". A u n iv e rs a lid a d e d a m issão
n ã o fica e x p líc ita n o cap. 20, m a s s e u a m p lo êxito é p o s tu la d o p e la
b e m -a v en tu ran ç a concernente aos q u e n ã o viram , m as têm crido (20,29).
Se o c ap . 21 n u n c a tiv e sse sid o c o m p o sto , p o d e m o s se g u ra m e n te
1572 IV · Epílogo

p re s u m ir q u e H oskyns n ã o te ria ju lg a d o c o m o in a d e q u a d a a co n clu -


são d o e v a n g e lh o n o cap. 20. E a ssim c o n sid e ra m o s ce rto q u e o cap .
21 é u m a a d iç ã o a o e v a n g e lh o , c o n sistin d o d a n a rra tiv a e m o u tro
te m p o in d e p e n d e n te d a a p a riç ã o d e Je su s a se u s d isc íp u lo s.
P a s s a n d o a g o ra à s e g u n d a q u e stã o , su scitam o s o p ro b le m a d o
n o m e a se r d a d o ao cap. 21. N ó s o d e n o m in a re m o s d e a p ê n d ic e , su -
p le m e n to o u ep ílo g o ? Se, tão a m iú d e d e fin id o , u m a p ê n d ic e é a lg o
n ã o rela c io n a d o c om a c o m p le tu d e d e u m a o b ra, esse n ã o é u m te rm o
ex ato p a ra o cap. 21. C e rta m e n te , e ste c a p ítu lo é m ais e stre ita m e n te
in te g ra d o ao p e n s a m e n to jo an in o d o q u e o " A p ê n d ic e M a rc a n o " se
in te g ra n o p e n s a m e n to m arc an o . V erem o s, p o r e x e m p lo , q u e o cap . 21
fo rm u la a lg u n s d o s tem a s d o e v a n g e lh o (n eg ação d e P e d ro ; o c u id a d o
d o p a s to r p o r s u a s o v elh as; o p a p e l d o D iscíp u lo A m a d o ) e m o stra s u a s
co n seq ü ên cias p a ra a Igreja. T a m p o u c o " su p le m e n to " é u m a b o a de-
sig n ação p a ra o cap. 21. U m su p le m e n to c o stu m a fo rn ecer in fo rm a ç ã o
a d q u irid a d e p o is, e v e re m o s q u e u m p o u c o d a in fo rm a ç ã o e m Jo 21
p o d e a n te d a ta r in fo rm a ç ã o n o cap. 21, ao m e n o s em o rig em . E m q u a l-
q u e r caso, ele c o n stitu i u m a d iferen ça d e foco eclesiástico q u e p a rte
d o cap. 21, e n ã o sim p le sm e n te u m a d ife ren ç a d e tem p o . C o m o in d i-
cad o n o vol. 1, p . 158s, p re fe rim o s " e p ílo g o " (assim ta m b é m M a r r o w ,
p p . 43-44) co m o o te rm o q u e te m a n u a n ç a in g le sa m ais e x a ta p a ra a
relação d o cap. 21 co m o e v an g elh o . U m b o m p a ra le lo é o ferecid o p e la
fo rm a d e ep ílo g o lite rá rio o n d e u m d isc u rso o u n a rra tiv a é a n e x a d a
d e p o is d a c o n clu são d e u m d ra m a p a ra c o m p le ta r a lg u m a s d a s lin h a s
d e p e n s a m e n to d e ix a d a s in co n clu sas n a p ró p ria p eça. A lém d o m ais,
ter ru n ep ílo g o n o fin al d o e v a n g elh o d á e q u ilíb rio à p re se n ç a d e u m
p ró lo g o n o início. Isto é m ais d o q u e u m a e x a tid ã o d e n o ssa classifi-
cação, p o rq u e , co m o in d ic a d o n o v ol. 1, p . 19, a m b o s fo ra m a n e x a d o s
p e la m e sm a m ão .
A ssim , so m o s lev a d o s à s e g u n d a q u estão : Q u e m c o m p ô s o epílo-
go? Foi a d ic io n a d o p e lo p ró p rio e v a n g e lista n u m a s e g u n d a e d iç ã o d e
se u e v a n g elh o , o u foi a d ic io n a d o p o r u m re d a to r q u e e x ib iu o u im ito u
a lg u m d o s característico s estilísticos p e c u lia rm e n te jo an in o s? D e sd e
o início, fica claro q u e em p e n s a m e n to e e x p re ssã o o cap . 21 p e rte n c e
ao g ru p o d e escrito s jo an in o s; e, fosse p re s e rv a d o s e p a ra d a m e n te n o
N T , to d o s te ria m rec o n h e c id o s u a s e stre ita s a fin id a d e s a o e v a n g elh o .
(A ssim , n ã o só e m a te staç ã o tex tu a l, m a s ta m b é m e m estilo , o c ap . 21
a p re se n ta u m p ro b le m a in te ira m e n te d ife re n te d o a p re s e n ta d o p e lo
71 · O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao Mar de Tiberíades 1573

relato d a m u lh er ad ú ltera em 7,53-8,11 - v er vol. 1, pp . 5 9 3 9 4 ‫)־‬. Se um


e stu d o d e estilo for o critério últim o de se o Epílogo foi com posto pelo
evangelista o u p o r u m redator, os resultados desse estu d o não vão
ficar sem am bigu idade; e am bas as respostas contam com im portan-
tes apoios p o r p a rte dos estudiosos. A questão é tão discutível, que
exegetas com o B auer (na 3a edição de seu com entário) e H oward têm
m u d a d o s suas opiniões no curso d e suas carreiras, finalm ente aceitan-
d o a au to ria d o evangelista.
É costum e catalogar os aspectos estilísticos nos quais o cap. 21
concorda com o corpo d o evangelho (aspectos que favorecem a au-
toria d o evangelista) e aqueles nos quais ele não concorda (aspectos
q u e favorecem a autoria do redator) - ver Bultmann , p. 542; Barrett,
p. 479; e, exaustivam ente, B oismard, art. cit. Todos adm item que algu-
m as d a s diferenças de estilo são insignificantes. Por exem plo, vinte e
oito p alav ras u sad as no cap. 21 não aparecem em ou tro lu g a r no evan-
gelho; todavia, visto que esta é a única cena d e pesca no evangelho, es-
p eram o s u m a porcentagem de vocabulário peculiar. O utras diferenças
p ro p o stas en tre o cap. 21 e o restante evangelho têm p o r base hipóte-
ses u m ta n to tendenciosas sobre o evangelho; p o r exem plo, B ultmann ,
p. 543, o b serv a q ue o D iscípulo A m ado é u m a pessoa real neste ca-
p ítu lo , e n q u a n to no corpo do evangelho ele é apenas u m sím bolo
(m u itos d isc o rd a m d a ú ltim a posição); ou, p o r sua vez, D odd , Inter-
pretation, p. 431, alega que 21,22 evidencia u m a in g ê n u a expectativa
d a se g u n d a v in d a não en co n trad a no evang elho (m uitos achariam a
ú ltim a afirm ação exagerada).
N as notas, fizem os u m esforço p a ra salientar os característicos
joaninos e não joaninos no capítulo, e aqui listarem os os m ais signi-
ficativos. N otavelm ente, os aspectos joaninos incluem : a designação
"M ar d e T iberíades", no v. 1; os nom es Sim ão P edro, Tom é o Gêmeo
e N atan a el de C aná, no v. 2; a p alav ra opsarion p ara peixe, em 6,9,11;
o D iscípulo A m ado e a interação com P edro, no v. 7; os carvões ace-
sos, no v. 9; a hesitante p erg u n ta, no v. 12; os ecos de 6,11 e 13; a nu-
m eração d as aparições, no v. 14; o nom e do pai de Simão, no v. 15;
alg u m as d as variações de vocabulário e a im agem de ovelhas de
15-17; o d u p lo "A m ém " e o obscuro sim bolism o, no v. 18; o parên-
tese explicativo, no v. 19; o D iscípulo A m ado, em 20-23; o tem a da
v erd ad e ira testem unha, no v. 24; a referência a outros feitos, no v. 25:
R uckstuhl, u m especialista em estilo joanino (ver vol. 1, pp. 153-155),
1574 IV · Epílogo

a c h a q u e a p re s e n ç a d e ta n to s c a ra c te rístic o s jo a n in o s c o m o p ro v a
s u fic ie n te d a a u to ria jo an in a ; d a m e s m a fo rm a C a s sia n o , a r t . c i t .
E n tre o s e s tu d io s o s q u e p a rtilh a m d e s te p o n to d e v is ta p o d e -s e lis-
ta r W estco tt , P lu m m er , S c h la tter , L a g r a n g e , B e r n a r d , K r a g e r u d e
W ilk en s . (A lg u n s e x c lu iría m o s v s. 24-25 d a a u to r ia d o e v a n g e lis-
ta). C a ra c te rístic o s q u e n o ta v e lm e n te n ã o se a d e q u a m a o e stilo d o
E v a n g e lh o J o a n in o in clu e m : m e n ç ã o d o s filh o s d e Z e b e d e u , n o v . 2;
a p re p o s iç ã o s y n , " c o m " , n o v. 3; a p a la v ra p a r a " a o ra ia r o d ia " , n o
v. 4; o c a u sa tiv o a p o e o v e rb o i s c h y e i n , " s e r a p to " , n o v. 6; o p a rtitiv o
a p o , n o v. 10; o v e rb o e p i s t r e p h e i n , " v o lta r" , n o v. 20. B o ism a r d , a r t .
c i t . , q u e n o s te m d a d o o e s tu d o e stilístic o m a is d e ta lh a d o d o capí-
tu lo , te m c o n c lu íd o , c o m b a se e m ta is d ife re n ç a s, q u e o e v a n g e lista
n ã o e s c re v e u o E p ílo g o . (A p rin c íp io , c o m o h ip ó te s e , e d e p o is com
m a io r c e rte z a , B o ism a r d te m a rg u m e n ta d o e m p r o l d a a u to r ia lu ca-
n a). E n tre o s e s tu d io s o s q u e p a rtilh a m d e s te p o n to d e v ista , p o d e -s e
lista r M ic h a e lis , W ik en h a u ser , K ü m m e l , B u l t m a n n , B a r rett , G o g u e l ,
D ibelius , L ig h t fo o t , D o d d , S t r a t h m a n n , S c h n a c k e n b u r g e K ä s e m a n n .
N e ste co m e n tário , tra b a lh a re m o s sob a h ip ó te se d a a u to ria d a
p a rte d e u m re d a to r, u m a c o n c lu sã o a lc a n ç ad a p o r o u tra s ra z õ e s além
d o critério in certo b a se a d o n o estilo. A p e la r p a ra u m re d a to r explica
m e lh o r p o r q u e a(s) ap arição (s) n o cap. 21, n a G alileia, foi (foram )
co m b in ad a(s) a rtificia lm e n te n a n a rra tiv a d a s a p a riç õ e s e m Jeru salém ,
n o cap . 20, e as fez se q u en ciais ("D ep o is d isso ", n o v. 1; " te rc e ira v e z ",
em 14). T em o s m a n tid o q u e as a p a riçõ e s q u e Jesu s fez n a G alileia aos
d isc íp u lo s p re c e d e ra m e m o u tro te m p o a s a p a riç õ e s e m Jeru salém .
A o re e d ita r o e v a n g elh o , o ev a n g elista teria sid o c a p a z d e in te rca lar
su tilm e n te (se co n h ecia a sequência); m ais p ro v a v e lm e n te , u m red a -
to r teria ad ic io n ad o . A lém d o m ais, m e sm o q u e o p ró p rio e v an g elis-
ta ad icio n asse u m n o v o g ru p o d e aparições, teria se se n tid o liv re p a ra
m o v er o u m o d ificar su a conclusão a n te rio r e m 20,30-31, e n q u a n to u m
re d a to r p o d e ría n ã o q u e re r a lte ra r o texto evangélico q u e ch e g ara a ele.

T o d a v ia, se a d m itirm o s q u e tu n r e d a to r e sc re v e u o c ap . 2 1 , dev e-


m o s le m b ra r ao leito r q u e e stu d io so s tê m co n cep çõ es m u ito d ife ren -
tes d e s se re d a to r. D e fato, o cap. 2 1 é a p rin c ip a l e v id ê n c ia p a r a fun-
d a m e n ta r u m a id e ia so b re e ste re d a to r; ele é " a c h a v e e fu n d a m e n to
p a ra q u a lq u e r teo ria re d a c io n a l" (S m ith , p . 2 3 4 ) . P e n sa m o s nele
co m o s e n d o d isc íp u lo jo a n in o q u e p a rtilh a v a d o m e sm o m u n d o d e
71 · O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao Mar de Tiberíades 1575

id é ia s q u e o e v a n g e lista e q u e d e seja v a m ais c o m p le ta r o e v a n g elh o


d o q u e a lte ra r s e u im p a c to . C o m o m e n c io n a m o s n o v ol. 1, p . 14s, n ão
c o n c o rd a m o s co m B u l t m a n n e m p e n s a r q u e o re d a to r im p ô s n o cap.
21 e e m o u tro s lu g a re s u m a p e rs p e c tiv a eclesiástica e sa c ra m e n ta l
e s tra n h a o u a in d a c o n trá ria a o p e n s a m e n to d o e v a n g elista . A o con-
trá rio , c re m o s q u e o re d a to r in c o rp o ro u a q u i a lg u m m a te ria l a n tig o
q u e n ã o in c lu ira n a p rim e ira re d a ç ã o d o e v a n g e lh o , in clu siv e o rela to
d a p rim e ira a p a riç ã o d e Jesu s a P e d ro p ó s-re ssu rre iç ã o . (H oje, p o u -
cos c o n c o rd a ria m co m a tese d e L oisy d e q u e o E p ílo g o é u m p a s t i -
c h e d e e le m e n to s e x tra íd o s d o s e v a n g e lh o s sinóticos). O fato d e q u e
e ste m a te ria l v e m d o m e sm o c o n te x to d a tra d iç ã o jo a n in a d o q u a l o
e v a n g e lis ta e x tra iu , m a is o fato d e q u e o e v a n g e lista e o re d a to r e ra m
d is c íp u lo s n a m e sm a escola d e p e n s a m e n to , ex p lica a s sim ila rid a d e s
d e e stilo e n tre o e v a n g e lh o e o cap . 21. O fato d e q u e o m a te ria l n o
c ap . 21 foi fo rm u la d o , e m su a fo rm a final, p o r o u tro a u to r d istin to d o
e v a n g e lis ta ex p lica a s d ife ren ç a s d e estilo.
U m m o tiv o im p o rta n te , p o is, p a ra a d ic io n ar o cap. 21 foi o desejo
d o re d a to r d e n ã o p e rd e r u m m ate ria l tão im p o rta n te. O ev an g elista
c o n c lu iu o e v a n g elh o , d iz e n d o q u e h o u v e m u ito s o u tro s sinais q u e n ã o
fo ra m in clu íd o s; a g o ra o re d a to r a p re se n ta u m d esses sinais, a saber,
a a p a riç ã o d e Jesu s p o r ocasião d e u m a p esca m iracu lo sa. (D iscutim os
acim a, p . 1547s, a p o ssib ilid a d e d e a p lic ar a id eia d e "sin al" a u m a ap a-
rição p ó s-ressu rreição ; "sin al" é a in d a m ais aplicável a q u i p o rq u e u m
m ila g re fo rm a o contexto d a aparição). A lém d o m o tiv o d e p re se rv a r
certo m ate ria l, a m aio ria d o s c o m e n tarista s su p õ e m q u e o cap. 21 foi
a c re sc en ta d o a o e v a n g elh o a fim d e en fa tiz a r tem as teológicos especí-
ficos. P o r e x em p lo , n a p esca d e 153 p eixes e n a o rd e m d irig id a a P e d ro
d e c u id a r d a s o v elh as v e m ao p rim e iro p la n o o tem a d e u m a m issão
a p o stó lic a q u e c o n d u z iría m u ito s h o m en s a Jesus e o s m an te ria ju n to s
co m o u m a c o m u n id a d e . V isto q u e P e d ro exerce u m p a p e l d o m in a n te
n a cen a d a p esca e tam b é m n o d iálo g o q u e seg u e a refeição (21,15-18),
a lg u n s tê m p e n s a d o q u e o re d a to r e sta v a in te ressa d o em c h a m a r a aten-
ção p a ra a reab ilitação d e P e d ro d e p o is d e su a n eg ação d e Jesus e à sua
s u b s e q u e n te p ro em in ên c ia n a Igreja. A in teração e n tre P e d ro e o Disci-
p u lo A m a d o n o s vs. 7 e 20-23 têm c h am ad o a atenção d e o u tro s com enta-
ristas q u e p ro p õ e m q u e o capítulo tin h a em vista clarificar as respectivas
po siçõ es n a Igreja d estes dois h om ens. D rum w right , p. 134, observa que,
e n q u a n to o Q u a rto E v an g elh o c o n stitu i u m a in te rp re ta ç ã o d e Jesus,
1576 IV · Epílogo

o E pílogo é m ais u m a in terp retação d o significado d o s d o is d iscíp u lo s,


d e m o d o q u e a explicação d o E pílogo e stá n o v a lo r p e sso a l d o m ate ria l
q u e ele contém . M ais p a rtic u la rm e n te , A gourides , p . 127, a rg u m e n ta
q u e o p o n to p rin c ip a l d o cap. 21 é re s p o n d e r a u m a p e rg u n ta q u e su r-
g iu d a c o m p a raç ã o d a s m o rte s d e P e d ro e d o D iscíp u lo A m a d o . C er-
tam en te, em 21,23 o re d a to r te n ta co rrig ir a in te rp re ta ç ã o e q u iv o c a d a
so b re a relação d a m o rte d o D iscíp u lo A m a d o e a s e g u n d a v in d a d e
Jesus. F in alm en te, a lg u n s e stu d io so s p e n sa m q u e o v e rd a d e iro a lv o d o
E p ílogo está e x p resso n o v. 24 q u e estabelece q u e o D iscíp u lo A m a d o ,
atra v és d o te s te m u n h o d e te ste m u n h a s ocu lares, e n d o ssa e verifica o
q u e o ev an g elista escrev eu e o re d a to r ag re g o u . A ssim , h á u m a v arie-
d a d e d e tem a s ao s q u a is o E pílogo p a re c e d irig ir-se, tem a s q u e serão
d isc u tid o s co m d e ta lh e m ais a d ia n te. P ro v a v elm en te , é u m a p e r d a d e
te m p o te n ta r d e te rm in a r a im p o rtâ n c ia rela tiv a d e ste s tem a s n o p e n sa -
m en to d o red a to r. O q u e é significativo n o ta r, co m o te m feito M a rro w ,
e n tre o u tro s, é q u e estes tem a s têm u m m o tiv o c o m u m , p o is to d o s eles
refletem a v id a d a Igreja. O s tem a s d a reab ilitação d e P e d ro , s e u p a p e l
co m o p a s to r d a s ov elh as, s u a m o rte com o m á rtir, o p a p e l d o D iscípulo
A m a d o , s u a m o rte, s u a relação com a se g u n d a v in d a - e sta s são ques-
tões q u e afe tara m a relação d a c o m u n id a d e jo a n in a c o m a Igreja em
geral. A an alo g ia n a q u a l o cap. 21 é p a ra o E v an g elh o d e João com o
o L ivro d e A to s é p a ra o E v an g elh o d e L ucas é in c o m p a ra v e lm e n te
forte, m as c e rtam e n te este é u m c a p ítu lo eclesiástico. Ele reflete tem as
p e rtin e n te s a o p e río d o e n tre a s a p ariçõ es d o Jesus re ssu rre to (vs. 1,14)
e su a s e g u n d a v in d a (vs. 22-23) - o te m p o d a Igreja. Se a co n cen tração
so b re a Igreja for m ais fo rte d o q u e o u tro s lu g a re s n o e v a n g elh o , isto
re p re se n ta u m d e sen v o lv im e n to d o q u e é, a o m en o s, s u b e n te n d id o n o
ev an g elh o (vol. 1, p p . 114-22), e m v e z d e a in tro d u ç ã o d e u m te m a que
é e stra n h o e até m esm o c o n trá rio ao ev an g elh o .

A e s tr u tu r a d o C a p ítu lo 2 1

D iferen te d o cap. 20 (p. 1468s acim a), o E p ílo g o n ã o te m u m a sé-


rie d e ap a riçõ e s q u e p o s s a m se r c o m b in a d a s e m e p isó d io s c u id a d o -
sa m e n te e q u ilib ra d o s. T o d a a ação d o cap. 21 se d e se n v o lv e n o curso
d e u m e n c o n tro com o Jesus re s s u rre to n a p ra ia d o M a r d e T iberíades.
N ã o o b sta n te , o p ró p rio a u to r in d ic a e stá g io s n a ação , d e m o d o q u e po-
d e m o s d is tin g u ir trê s su b d iv isõ e s d e n tro d o c a p ítu lo , co m o in d ic a d o
71 · O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao Max de Tiberíades 1577

n a p . 1554 acim a. D e ix a n d o d e la d o a terceira su b d iv isã o (21,24-25), a


q u a l é u m a c o n c lu sã o d o re d a to r, d e sco b rim o s q u e o c a p ítu lo consis-
te d e d u a s p a rte s p rin c ip a is, a sa b er, a p rim e ira su b d iv isã o (21,1-14)
d e s c re v e u m a a p a riç ã o d e Jesu s p o r o casião d e u m a p e sc a m iracu lo -
sa - u m a a p a riç ã o p e c u lia r n ã o a c o m p a n h a d a d e q u a lq u e r afirm a-
ção sig n ific a tiv a o u d iá lo g o teológico p ro lo n g a d o - e u m a se g u n d a
s u b d iv is ã o (21,15-23) c o n sistin d o in te ira m e n te d e d ito s d o Jesu s res-
s u rre to . G e ra lm e n te se m a n té m q u e os d ito s e m 15-23 in te rp re ta m a
a p a riç ã o e m 1-14 e s u p re m o e le m en to a u se n te d e m a n d a m e n to o u
d ire triz , m a s a relação d o d iálo g o com a a p a riç ã o é m ais tê n u e d o q u e
e m q u a lq u e r o u tra n a rra tiv a p ó s-re ssu rreiç ã o . N o ssa d isc u ssã o d a re-
laç ã o e n tre a s d u a s su b d iv isõ e s é co m p lex a p e lo fato d e q u e a m b a s as
s u b d iv is õ e s sã o e m si, p ro v a v e lm e n te , co m p o stas. A fim d e p ro sse -
g u ir e fe tiv a m e n te , d eix em o s até a p ró x im a seção (§72) o p ro b le m a d a
u n id a d e in te rn a d e 15-23 e d isc u ta m o s a q u i so m e n te os d o is p o n to s
d a e s tru tu ra : p rim e iro , a u n id a d e e n tre a n a rra tiv a e m 1-14 e o d iálo g o
e m 15-17; se g u n d o , a u n id a d e in te rn a d e 1-14.
E n tão , p r i m e i r o , o tríplice d iálo g o e n tre P e d ro e Jesus em 15-17 ori-
g in a lm e n te foi p a rte d o re la to d a p e sca e m 1-14? O p ró p rio re d a to r
te m d a d o m o tiv o s p a ra d u v id a r se isto foi in se rid o n o c o m en tário
p a re n té tic o n o v. 14 q u e su g e re q u e a n a rra tiv a d a a p a riçã o d e Je-
su s , e m 1-13, u m a v e z e m si fo rm a v a u m a u n id a d e . (N o te a in clu são
q u e ex iste e n tre o s vs. 1 e 14, os q u a is a firm a m q u e Jesus se rev elo u ).
A im p re ss ã o é re fo rç a d a p e lo fato d e q u e Lc 5,1-11, q u e é estre ita-
m e n te p a ra le lo co m Jo 21,1-14, n a d a c o n te n d o sim ila r a 15-17. Se sete
d isc íp u lo s fig u ra m n o e p isó d io d a p e sca d e 1-14, so m e n te P e d ro e o
D isc íp u lo A m a d o p a re c e m e sta r p re se n te s e m 15-23. T o d av ia, estes
a rg u m e n to s c o n tra a u n id a d e n ã o são to ta lm e n te conclusivos. A des-
p e ito d a in se rç ã o d o v. 14, d o re d a to r, e v id e n te m e n te ele p e n sa v a n as
d u a s s u b d iv is õ e s co m o p e rtin e n te s à m e sm a cena, p o is in tro d u z iu o
d iá lo g o d o v. 15 m e d ia n te u m a referên cia à refeição m e n c io n a d a n o
v . 12 ("D ep o is d e c o m erem "). O p a ra le lo e m L ucas d e v e se r tra ta-
d o c a u te lo s a m e n te co m o u m g u ia p a ra o c o n te ú d o o rig in a l d a cena
jo a n in a , v isto q u e , ao m o v e r o re la to p a ra u m n o v o co n tex to , com o
v e re m o s a b aix o , L ucas tev e q u e fazer m odificações. A a u sên c ia d o s
c o m p a n h e iro s d e p e sc a d e P e d ro e m 15ss. n ã o é tã o significativa, p o is
ta m p o u c o te m p a p e l im p o rta n te e m 1-14. A n tes, P e d ro é o e lem en to
u n ific a d o r e n tre a s d u a s su b d iv isõ e s, com o D iscíp u lo A m a d o com o
1578 IV · Epílogo

se u ú n ico c o m p a n h e iro im p o rta n te e m c a d a u m a delas. H á c erto p a -


ralelism o e n tre a fo rm a q u e S im ão P e d ro in icia a ação n a p rim e ira
su b d iv isã o , d irig in d o -se ao s d isc íp u lo s n o v. 3, e a fo rm a e m q u e Jesus
in icia o d iálo g o , n a s e g u n d a su b d iv isã o , d irig in d o -se a S im ão P e d ro
n o v. 15.
A liás, o p a p e l d e P e d ro e m 1-14 p a re c e in c o m p le to se m a lg u m
d iálo g o co n clu siv o tal co m o o e n c o n tra d o e m 15-17 (G rass , p . 82, re-
co n h ece isto , p o ré m p ro p õ e q u e o fin al o rig in a l d e 1-14, q u e e n v o lv e
u m a co m issão a P e d ro , foi s u b s titu íd o p e lo q u e a g o ra se e n c o n tra em
15-17). N o v. 7, P e d ro sa lta d o b a rc o p a ra a p ra ia e se a p re s s a a ir ter
co m Jesu s, e n o v. 11 ele re s p o n d e a o p e d id o d e Jesu s p o r m a is p eix e,
a rra s ta n d o p a ra a p ra ia o q u e h a v ia a p a n h a d o , m a s n e ste s v e rsíc u lo s
n ã o h á c o n fro n tação rea l e n tre P e d ro e Jesu s, n e n h u m e n c o n tro e d iá-
lo g o sig n ificativo. M u ito s e stu d io so s asso ciam a im p o rtâ n c ia d e Pe-
d ro n a Igreja p rim itiv a c om a a p a riç ã o d e Jesu s a ele (C u l l m a n n , P e t e r ,
p . 64), e d ificilm en te se p o d e im a g in a r q u e u m re la to p ó s-re ssu rre iç ã o ,
n a q u a l P e d ro é o c e n tro d a ate n ç ã o c h e g o u a u m fim a b ru p to sem
q u e Jesu s falasse a P e d ro e lh e d e sse u m a co m issão . E ssa c o m issão é
s u p rid a p o r 21,15-17. P o r o u tro lad o , v isto q u e estes v e rsíc u lo s p a re -
cem c o n te r m a te ria l an tig o , e m q u e o u tra o casião te ria m sid o p ro n u n -
ciad as essa s sen ten ças, se a g o ra n ã o e stã o e m s e u c o n te x to o rig in al?
A m aio ria d o s c o m e n ta rista s in te rp re ta a tríp lic e in te rro g a ç ã o so b re
o a m o r d e P e d ro p o r Jesus e m 15-17 co m o u m a re a b ilita ç ã o d e P e d ro
d e p o is d a tríp lice n eg ação , e tal rea b ilita ç ã o lo g ic a m e n te te ria ocorri-
d o p o r ocasião d a p rim e ira a p a riç ã o p ó s-re ssu rre iç ã o d e Je su s a Pe-
d ro , a q u a l é o q u e p a re c e te rm o s e m 21,1-14 (v er abaixo).
T alv ez o a rg u m e n to m ais fo rte c o n tra a u n id a d e d e 1-14 e 15-17 é
q u e o sim b o lism o d o s d o is é m u ito diferen te: u m fala sim b o licam en te
d e p eix e e o o u tro d e ovelhas. E n tre tan to , o sim b o lism o d e p eix e, m u ito
em b o ra b e m a d e q u a d o ao tem a d e u m a m issão cristã n o s vs. 1-14, di-
ficilm ente p o d e ria ter sid o a d a p ta d o ao tem a d o c u id a d o d o s fiéis,
q u e é a id eia c e n tral n a tríp lice o rd e m d e 15-17. (N o te q u e n ã o h á re-
d u n d â n c ia n o p a p e l d e sig n a d o a P e d ro n a s d u a s su b d iv isõ es: n o s vs.
1-14 ele e o s o u tro s d isc íp u lo s são im p lícita e sim b o lic a m e n te feitos
m issio n ário s p e sca d o re s d e h o m en s; em 15-17 lh e é d a d o o c u id a d o
p asto ral). A lg u é m p o d e p escar, m as p e sc a d o re s n ã o a s su m e m o cui-
d a d o d e p eix es à m o d a d e p a sto re s q u e c u id a m d e o v elh as. D a m esm a
fo rm a, é d ig n o d e n o ta q u e l P d 5,15 P e d ro esteja fa la n d o d e si m esm o
71 · O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao Mar de Tiberíades 1579

co m o u m d o s an cião s q u e d e v e m c u id a r d o reb a n h o , d e m o d o q u e a
associação d e P e d ro e o sim b o lism o d e p a s to r n ão é p e c u lia r a João e
p la u s iv e lm e n te p o d e ría te r se o rig in a d o e m conexão com a p rim e ira
a p a riç ã o d e Jesu s a P ed ro . E m su m a , p o is, n ã o se p o d e estabelecer com
ce rtez a a u n id a d e o rig in al d e 1-14 e 15-17, m as os a rg u m e n to s e m fa-
v o r d e la p a re c e m m ais c o n v in cen tes d o q u e os a rg u m e n to s co n tra ela.
Isto n o s lev a à s e g u n d a q u e stã o so b re a e stru tu ra : 1-14 é o re su lta d o
d a c o m p o siç ão d e cen as d iferen tes? E m b o ra a lg u n s ex eg etas se p reo cu -
p e m m ais q u e o u tro s e m s e g u ir a lógica d a ação n e ste s v ersícu lo s (ver
n o ta so b re " s u b iu " n o v. 11), to d o s rec o n h e c em as d ific u ld a d e s. N o
v. 5, Jesu s p a re c e n ã o te r peixe; to d a v ia , q u a n d o os d isc íp u lo s v ê m p a ra
a p ra ia e a n te s q u e a rra ste m s u a g ra n d e q u a n tid a d e d e p eixes, Jesus
já te m p r e p a r a d o u m b ra se iro com u m p eix e so b re ele (9). Jesus p e d e
q u e a lg u n s d o s p eix es recém a p a n h a d o s lh e sejam tra z id o s (10), m as
n ã o fica cla ro se eles se to rn a ra m p a rte d a refeição (12-13). O g ra n d e
v o lu m e d e p e ix e s lev a o D iscíp u lo A m a d o e d e p o is P e d ro a reco n h e-
cer Jesu s (7), m a s a se g u ir o s o u tro s d isc íp u lo s p a re c e m a in d a d u v id o -
so s so b re a id e n tid a d e d e Jesus (12). P o rta n to , n ã o su rp re e n d e q u e es-
tu d io s o s te n h a m p ro p o sto u m a h istó ria d e co m p o sição p o r d e trá s d e
1-14. LoiSY, p . 519, e x p re ssa b e m as a lte rn a tiv a s q u a n d o d iz q u e o u o
a u to r c o m b in o u d iv e rsa s tra d içõ e s o u e stev e fo rm u la n d o u m sim bo-
lism o a leg ó rico p a ra o q u a l ele sacrifico u o d e se n v o lv im e n to lógico d a
n a rra tiv a - o u , talv ez, ele e stev e fa z e n d o a m b a s a s coisas. W ellhausen
e B auer e stã o e n tre os q u e p ro p õ e m q u e d o is rela to s fo ra m en trelaça-
d o s , a sa b er, 1-8, q u e é o re la to d a p esca, e 9-13, q u e é o re la to d e u m a
refeição q u e , co m a lg u n s d e ta lh es, c o n stitu i u m a v a ria n te d o relato
d a m u ltip lic a ç ã o d o s p ã e s e p eix es (Jo 6,1-13). T o d a v ia, os vs. 10-11
p ro p ic ia m u m a d ific u ld a d e a e ssa an álise, p o sto q u e a p o n te m p a ra a
p e sc a , e a ssim a m a io ria d o s e stu d io so s o p ta m p o r u m a h istó ria m ais
co m p le x a d a co m p o sição . P o r ex em p lo , Loisy, p . 521, m a n té m q u e, ori-
g in a lm e n te , o v. 5 le v o u d ire ta m e n te a o v. 9 e, e n tã o , ao 12-13: q u a n d o
o s d isc íp u lo s n a d a a p a n h a ra m , Jesus fez p ro v isã o d e a lim e n to , e as-
sim o rec o n h e c era m . S chwartz, p . 216, e n c o n tra v estíg io s d e u m relato
o rig in a l e m 1-3, 4a, 9, 12-13, 15-17: o re la to p ó s-re ssu rreiç ã o d e u m a
refeição se m u m a p e sca m iracu lo sa. B ultmann , p p . 544-45, e n c o n tra
o re la to o rig in a l e m 2 -3 ,4a, 5-6, 8b-9a, 10-1 l a , 12: u m a n a rra tiv a m ais
c o m p le x a d o q u e a d e Schwartz; p o is, e n q u a n to ela in c o rp o ra a pesca,
e lim in a n ã o só a refeição p re p a ra d a e p ro n ta , m as tam b é m , em p a rte ,
1580 IV · Epílogo

o p a p e l esp ecial d e P e d ro (p. ex., su a p rim e ira v in d a p a ra a p ra ia ). P a ra


B ultmann, foi o re d a to r q u e in tro d u z iu o D iscíp u lo A m a d o e e n fati-
z o u o p a p e l d e P e d ro a fim d e p re p a r a r p a ra a a d iç ã o d o s vs. 15,23,
o n d e estes d o is d isc íp u lo s fig u ra ria m p ro e m in e n te m e n te .
E m n o sso ju ízo , estas an álises são c o rre ta s e m p o s tu la r u m a com -
b in aç ã o d e d u a s c o rre n te s d a s n a rra tiv a s, u m a se o c u p a n d o p rim a ria -
m en te d e u m a p esca e a o u tra d e u m a refeição. T o d a v ia, ficam o s em
d ú v id a so b re q u ã o b e m as n a rra tiv a s o rig in a is p o d e m se r re c o n stru í-
d a s p o r m eio d e m e ra crítica literá ria , o q u e a q u i é e m g ra n d e m e d id a
u m p ro ce sso d e u n ir in co n sistên cias e faz e r u m re la to se q u en c ial. Se
d u a s n a rra tiv a s fo ra m c o m b in a d a s, a ju n çã o n ã o foi n e c e ssa ria m e n te
feita p e lo r e d a to r, o q u a l, p o is, seria c u lp a d o d e d e ix a r as in co n sistê n -
cias ób v ias. A s d u a s n a rra tiv a s p o d e ría m te r c h e g a d o ao r e d a to r já
u n id a s e ele m esm o n ã o teria sid o a p to a re so lv e r a s in co n sistên cias.
T alvez tu d o o q u e p o d e m o s e s p e ra r d isc e rn ir p o r d e trá s d a n a rra tiv a
co m p o sta são esboços g erais d a s n a rra tiv a s o rig in a is q u e e ra m m a is
co m p lex as d o q u e p o ssa m o s re c o n stru ir. T e n tem o s s u p le m e n ta r o s
re su lta d o s d a crítica lite rá ria e c o rrig ir a lg u m a s d e s e u s p o n to s fracos,
a b o rd a n d o o p ro b le m a p a rtin d o d e o u tra d ire ç ão , a sa b er, a d o s p a -
ralelo s n e o te sta m e n tá rio s com o m a te ria l e n c o n tra d o e m 1-14 e 15-17.
T ra ta re m o s d o s p a ra le lo s com a n a rra tiv a d a p esca, d isc u tin d o a tra-
d ição d e q u e Jesu s a p a re c e u p rim e iro a P e d ro , e d isc u tire m o s o s p a -
ralelo s com a n a rra tiv a d a refeição, d isc u tin d o o q u e sa b e m o s d a p ri-
m eira a p a riç ã o d e Jesu s ao s d o z e n a G alileia.

A p e s c a e m J 0 2 1 e a tr a d iç ã o d e u m a a p a r iç ã o a P e d r o

A. A e v i d ê n c i a d i r e t a s o b r e a a p a r i ç ã o . N o ssa p rim e ira in fo rm ação


v e m d a tra d içã o q u e P a u lo cita e m IC o r 15,5 (ver p . 1436 acim a): a
p rim e ira d a s ap ariçõ es d e Jesus p ó s-re ssu rreiç ã o (i.e., a p a riçõ e s aos
q u e tin h a m a lg u m a reiv in d icação a se r c o n s id e ra d a s te ste m u n h a s o u
ap ó sto lo s co m issio n ad o s) foi a Cefas. P a u lo n ã o localiza a a p a riçã o ,
m as a m aio ria d o s e stu d io so s p re s s u p õ e m q u e ela o c o rre u o u e m Je-
ru sa lé m o u n a G alileia. (K. L ake a situ a e m B etânia, e n q u a n to B ur-
Km a situ a n a e stra d a d e Jeru sa lé m à G alileia - a ssim ta m b é m F uller,
p. 314, o q u a l su g e re q u e ela su b lin h a a le n d a d e o Q u o v a d i s ? ) .
O ap o io p a ra u m a localização e m Jeru salém v e m d e Lc 24,34: "O Se-
n h o r ressu scito u e ap a re c eu a Sim ão". C o m este a n ú n c io são receb id o s
71 · O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao Mar de Tiberíades 1581

o s d o is d isc íp u lo s q u e a c a b a ra m d e re to rn a r d e E m a ú s a Jerusalém ,
a im p lic a ç ão é q u e a a p a riç ã o se d e u n a á re a d e Je ru sa lé m n o d ia d a
P ásco a. (N ã o c o n sid e ra re m o s a p o ssib ilid a d e d e q u e S im ão e ra u m
d o s d o is d isc íp u lo s q u e fo ra m p a ra E m aú s; v e r J. H . C rehan, CBQ 15
[1953], 418-26). A su p o siç ã o d e q u e L ucas e P au lo estã o fala n d o acerca
d a m e sm a a p a riç ã o é razo áv el, já q u e su a descrição é b e m sim ilar e,
e m a lg u n s o u tro s casos, p o r ex em plo, a fó rm u la eucarística, d e p e n -
d e m d a m e sm a trad ição . N ã o o b stan te, e m b o ra a localização lucana
seja aceita p o r e stu d io so s com o Lohmeyer e B enoit, é su sp e ita precisa-
m e n te p o rq u e to d a a seq u ên cia lu ca n a d a s ap ariçõ es p ó s-ressu rreição
co m a p rio rid a d e d a d a a Jeru salém é d ú b ia (ver p p . 1437-38 acim a).
A m en ç ã o d a a p a riçã o a P e d ro é p a rtic u la rm e n te e stra n h a n a n a rra tiv a
lu c a n a , já q u e e m 24,12 (u m a n ã o -in terp o la ç ã o ocidental) L ucas nos
in fo rm a q u e P e d ro foi ao tú m u lo v azio e v o lto u confuso, o b v iam en te
se m te r v isto Jesus. A ssim , é p la u sív e l q u e L ucas n ã o so u b esse sob q u e
c irc u n stâ n c ia s o c o rre u a a p a riçã o a S im ão e q u e a m en c io n o u o n d e ele
n ã o tin h a n a m e m ó ria a d iferen ça d e q u e esta foi a p rim e ira d a s ap ari-
ções p ó s-re ssu rre iç ã o d e Jesus a se u s d iscípulos.
U m a a p a riç ã o a P e d ro n a á re a d e Je ru sa lé m é p ra tic a m e n te eli-
m in a d a p o r M c 16,7, o n d e o anjo in stru i as m u lh e re s a in fo rm a r aos
d isc íp u lo s e a P e d r o q u e Jesus e stá in d o a d ia n te d e le s p a ra a G alileia e
o v e rã o ali. M u ito s tê m su g e rid o q u e a ra z ã o p a ra P e d ro se r o m itid o
e ra q u e ele receb ería u m a a p a riç ã o e sp ecial n a G alileia. O E v a n g e l h o d e
P e d r o , 58-60, a in d a q u e in co m p leto , re té m a tra d iç ã o d e q u e a p rim ei-
ra a p a riç ã o d o Jesus re ssu rre to a P e d ro o c o rre u n a s p ro x im id a d e s d o
lag o d a G alileia c o n sid e ra v e lm e n te d e p o is d a P áscoa. (N ão p a re c e va-
le r a p e n a e n tra r n a e sp ecu lação d e q u e este e v a n g elh o ap ó crifo e Jo 21
re c o rre ra m a o q u e e sta v a o rig in a lm e n te n o fin al p e rd id o d e M arcos
- s e ria c o n je tu ra , e a p ró p ria ex istên cia d e u m final p e rd id o d e M arcos
é in certa). R e su m in d o os d a d o s , e n q u a n to n ã o se p o d e alcan çar ne-
n h u m a c o n c lu sã o só lid a, n a d a se d e s p re n d e d e u m a a n álise crítica d o
e v a n g e lh o q u e n o s o b rig u e a ac eita r o M a r d e T ib eríad es com o o local
d a p rim e ira a p a riç ã o d o Jesus re ssu rre to a P ed ro . P a ra u m a d iscu ssão
m a is d e ta lh a d a d a localização, v e r G ils, p p . 28-32.
O u tro a rg u m e n to q u e tem sid o a p re se n ta d o c o n tra a identifica-
ção d a cen a em Jo 21 com a p rim e ira a p a riçã o a P e d ro é q u e am bos,
P a u lo e L u cas, in d ic a m p r i m a f a c i e [a p rim e ira vista] d e q u e Jesus ap a-
re c e u so m e n te a P e d ro , e n q u a n to em Jo 21 P e d ro te m co m p an h eiro s.
1582 IV · Epílogo

T o dav ia, a in fo rm ação p a u lin a está lo n g e d e ser decisiva. E m IC o r 15,8


P au lo fala d a a p a riçã o d e C risto a ele m esm o: "E p o r d e rra d e iro d e
to d o s m e a p a re c e u ta m b é m a m im ". N ã o se d e v e p re s u m ir, co m b a se
n essa d escrição, q u e P a u lo estiv esse a c o m p a n h a d o p o r c o m p a n h e iro s,
co m o L ucas in d ic a trê s v e z es (A t 9,7; 22,9; 26,13). A ssim , n ã o se p o d e
excluir a p rese n ç a d e se m e lh an te s c o m p a n h e iro s "silen cio so s" n a a p a -
rição a P ed ro . E m Jo 21, se d eix a rm o s d e la d o o D iscíp u lo A m a d o q u e,
e v id e n tem e n te , é u m a a d ição jo an in a à n a rra tiv a , e se s e p a ra rm o s o re-
lato d a p esca d a q u e la d a refeição, o s c o m p a n h e iro s d e p e sca d e P e d ro
n ão têm p a p e l im p o rta n te n a a p a riçã o d e Jesus n o v. 7 e d e sa p a re c e
in te ira m e n te n o d iálo g o d e 15ss. E v e rd a d e q u e os m e n c io n a d o s são
d iscíp u lo s d o S en h o r (Tom é, N a ta n ae l, o s filhos d e Z e b e d eu ), p o ré m
su sp eitam o s q u e isto é u m a c o n ta m in a ç ã o o riu n d a d a c o m b in ação d o
relato d a p esca q u e se o c u p o u d e u m a a p a riçã o a P e d ro e o re la to d a
refeição q u e, o rig in alm en te, se o c u p o u d e u m a a p a riç ã o ao g r u p o d o s
discíp u lo s. K lein, p. 29, p ro v a v e lm e n te esteja certo e m a rg u m e n ta r
q u e, o rig in alm en te, os c o m p a n h e iro s d e P e d ro e ra m p e sc a d o re s an ô -
n im o s co m o a in d a o são e m Lc 5,7.9, d e m o d o q u e P e d ro fosse o ú n ico
d iscíp u lo id en tificad o n a n a rra tiv a (G rass, p . 76, d e ix a a b e rta a p o ssi-
b ilid a d e d e q u e o s filhos d e Z e b e d e u estiv essem ta m b é m e n v o lv id o s).
C aso se objete q u e esta su g e stã o d e c o m p a n h e iro s a n ô n im o s é tê n u e
d em ais, a in d a n ã o h á n e n h u m o b stácu lo in tra n sp o n ív e l e m se r P e d ro
a c o m p a n h a d o d e d isc íp u lo s d e sco n h e c id o s p o r ocasião d a p rim e ira
ap arição d o S en h o r re ssu rre to - o E v a n g e l h o d e P e d r o , 60, n e ssa o casião,
a p re se n ta P e d ro com A n d ré e Levi com A lfeu.
P o d e m o s a c re sc e n ta r q u e n a n a rra tiv a jo a n in a h á c e rto s a sp e c to s
q u e são m ais b e m e x p lic a d o s se e sta fo r a p r i m e i r a a p a riç ã o d e Jesus
a P e d ro . N o v. 3, P e d ro v o lta à s u a p ro fissã o co m o se n ã o tiv e sse
co n sciên cia d e u m a v o cação s u p e rio r - c e rta m e n te n in g u é m se su r-
p re e n d e ria se Jesu s p re v ia m e n te lh e a p a re c e sse e o e n v ia sse à m issã o
ap o stó lica. O a sp ec to d e rec o n h e c er Je su s n o s vs. 4-7 im p lic a q u e o Je-
su s re s s u rre to n ã o fo ra v isto a n te c ip a d a m e n te . A lé m d o m a is, com o
já m e n c io n am o s, a c e n a d a rea b ilita ç ã o n o s vs. 15-17, fo rm u la d a p a ra
c o rre s p o n d e r às n eg a çõ e s d e P e d ro , é m a is in te lig ív el n o c o n te x to d a
p rim e ira a p a riç ã o d e Je su s a P e d ro .

B. A e v i d ê n c i a i n d i r e t a s o b r e a a p a r i ç ã o . Se a e v id ê n c ia d ire ta p ro p i-
ciad a p o r P au lo , L ucas, M arco s e o E v a n g e l h o d e P e d r o n a d a faz p a ra
71 · O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao Mar de Tiberíades 1583

d e s a p ro v a r a tese d e q u e Jo 21 c o n té m u m a v e rsã o d a p rim e ira a p a -


rição d e Je su s a P e d ro , e v id ê n c ia c o n firm a tó ria v e m d e u m a análi-
se d e m a te ria is sin ó tico s d isp e rso s acerca d e P ed ro . O s sin ó tico s n ão
d e s c re v e m a q u e la p rim e ira a p a riçã o , m a s tem -se su g e rid o q u e o s ele-
m e n to s d o re la to d a a p a riç ã o foi p re s e rv a d o e m fra g m en to s d a d escri-
ção sin ó tica d o m in isté rio d e Jesus. D isc u tire m o s trê s cenas.
(1) P e d r o c a m i n h a s o b r e a s á g u a s ( M t 1 4 , 2 8 - 3 3 ) . D epois d e d escrever
a m u ltip lic a ç ão d o s p ã e s, M ateu s, M arco s e João a p re se n ta m u m a cena
n o tu rn a n a q u a l os d isc íp u lo s sa em p a ra o m a r em u m b arco e Jesus
v e m e m s u a d ire ç ão c a m in h a n d o so b re o m a r (vol. 1, p p . 486-87). So-
m e n te M a te u s a trib u i a P e d ro u m p a p e l especial n e sta cena. P e d ro se
d irig e a Jesu s d o b arco , "S en h o r, se és tu , m a n d a -te ir ter con tig o p o r
cim a d a s á g u a s" . Sob a p e rm issã o d e Jesus, P e d ro sai d o b arco e a n d a
so b re as á g u a s e m su a direção; m a s e n tã o ele se n te m e d o e com eça a
a fu n d a r. A o g rito lam e n to so d e P e d ro , "S enhor, salv a-m e", Jesus es-
te n d e s u a m ã o p a ra se g u ra r P e d ro , d izen d o : " Ó h o m e m d e p e q u e n a
fé, p o r q u e d u v id a ste ? " E n tão to d o s n o b arco a d o ra m a Jesus com o
o F ilho d e D eu s. C o m o ju lg a m o s este m ate ria l p e c u lia rm e n te m atea-
n o , p a re c e m ais p ro v á v e l q u e M a te u s o ad icio n asse d o q u e M arcos e
Jo ão p re s e rv a s s e m in d e p e n d e n te m e n te u m a fo rm a a b re v iad a d a cena.
D o d d , " A p p e a r a n c e s ", p p . 23-24, reconhece q u e n a p a rte d a cena q u e é
c o m u m ao s trê s ev a n g elh o s h á m u ito s asp ecto s a p ro p ria d o s à form a
literá ria d e u m a n a rra tiv a p ó s-re ssu rreiç ã o (p. 1437 acim a), e q u e o re-
lato p o d e ria te r se o c u p a d o o rig in a lm en te d e u m a ap arição d o Jesus
ressu rre to . A lg u m a hesitação so b re esta h ip ó te se é c a u sa d a pelo fato
d e q u e n o s trê s ev a n g elh o s o a to d e Jesus c a m in h a r so b re a á g u a é
so lid a m e n te v in c u la d o ao con tex to d a m u ltip licação d o s p ães, e esta
lo calização retro ce d e a u m p e río d o pré-evangélico. T o d av ia, m esm o
q u e o re la to g e ra l n ã o seja p ó s-ressu rreição , o in cid e n te q u e M ateus
a n e x o u so b re P e d ro p o d e ria ter sid o p ó s-ressu rreição . N o ta m o s algu-
m a s s im ila rid a d e s in te ressa n te s e n tre o m a te ria l m a te a n o e Jo 21: Pe-
d ro v ê Jesu s lo n g e d o b a rc o e h e sita n te m e n te o reconheceu; P e d ro se
d irig e a Jesu s co m o S en h o r e sai d o b arco p a ra ir ao seu e ncontro; Jesus
sa lv a P e d ro , d e p o is d e cen su rá-lo p e la falta d e fé. (O ú ltim o in cid en te
é p a ssív e l d e se r in te rp re ta d o com o u m a d ram a tiz aç ã o d a reabilitação
d e P e d ro d e p o is d e su a s n eg açõ es d e Jesus e, assim , p o d e ser p arale-
la e m te m a co m Jo 21,15-17). C e rtam en te, em João n ã o h á o m ilag re
d e P e d ro c a m in h a n d o so b re as ág u a s, se n ão q u e o elem en to p ecu liar
1584 IV · Epílogo

d e M ateu s n ã o p o d e ria d e v e r-se a o fato d e q u e o rela to foi c o lo cad o n o


co n tex to d e Jesus c a m in h a n d o so b re as á g u a s - a q u i, p ro v a v e lm e n te ,
João seja m ais p rim itiv o d o q u e M ateu s. A d m itim o s q u e a c o m p a raç ã o
e n tre M t 14,28-32 e Jo 21 e stá lo n g e d e ser p erfeita; m a s te m a lg u m a
força, p a rtic u la rm e n te à lu z d a p ró x im a p a ssa g e m a se r d isc u tid a , a
q u a l a ch arem o s m ais p ro v a s d e q u e o m a te ria l p e trin o , p e c u lia r a M a-
teus, p o d e te r sid o d e o rig e m p ó s-ressu rreição .
(2) P e d r o c o m o a r o c h a f u n d a m e n t a l d a I g r e j a ( M t 1 6 , 1 6 b - 1 9 ) . E n q u a n -
to M arcos, L u cas e M a te u s tê m u m a c en a d u r a n te o m in isté rio o n d e
S im ão P e d ro confessa Jesus co m o o M essias (Mc 8,27-29 e p a r.), so-
m e n te e m M a te u s essa co n fissão in clu i o títu lo F ilh o d e D eu s, o m es-
m o títu lo q u e M a te u s te m n a c en a p e trin a já d isc u tid a . P o r o u tro lad o ,
so m e n te e m M a te u s Jesu s lo u v a S im ão p o r p o s s u ir u m c o n h e cim e n to
q u e lh e teria sid o re v e la d o p e lo Pai. E n tão Jesu s p ro ss e g u e m u d a n d o
o n o m e S im ão p a ra P e d ro , a fim d e fazê-lo a ro c h a so b re a q u a l a Igre-
ja se rá ed ificad a, e d a r-lh e a s c h a v es d o rein o co m o p o d e r d e lig a r e
d eslig ar. H oje h á a m p la co n c o rd â n c ia e n tre o s e stu d io so s, in c lu siv e os
c ató lico -ro m an o s co m o o C a rd e a l A lfrink, B enoit, S tanley, S utcliffe
e J. S mith, d e q u e M a te u s a n e x o u este m a te ria l à cen a o rig in a l (p o r ra-
zõ es e xegéticas, v e r W . M arxsen, D e r F r ü h k a t h o l i z i s m u s i n N e u e n T e s t a -
m e n t [N eu k irch en , 1959], p p . 40-47). A í p e rm a n e c e a d isc o rd â n c ia so-
b re a u n id a d e d o m a te ria l e so b re s u a localização o rig in a l. C ullmann,
P e t e r , p p . 187-90, p e n s a q u e o m a te ria l p e trin o p o d e ria te r sid o origi-
n a lm e n te p o s to n o co n tex to d a ú ltim a ceia o n d e Lc 22,31-32 te m u m
d ito so b re P e d ro , p o ré m u m g ru p o m ais a m p lo d e e stu d io so s o p ta
p o r u m cen ário p ó s-re ssu rre iç ã o (ver F uller, a r t . c i t . ) . E m n o ssa opi-
n ião , h á u m a b o a ch an ce d e q u e o m a te ria l m a te a n o seja com posto;
p o rq u e, co m o salien tad o n o vol. 1, p . 548s, p aralelo s com M t 16,16b-19
se e n c o n tra m e sp a lh a d o s p o r to d o [o E v a n g e lh o de] João. T o d av ia,
é m u itíssim o p ro v á v e l q u e o p e río d o p ó s -re ssu rre iç ã o foi o cenário
o rig in al p a ra a lg u m a s d a s p a la v ra s d e Jesus n e sta p a s sa g e m m atea-
na; p o r ex em p lo, veja p p . 1524-26 acim a, o n d e c o m p a ra m o s o dito
d e lig ar e d e slig a r d e M t 16,19b com Jo 20,23. A q u i, n o sso interes-
se p a rtic u la r é M t 16,18-19a, o n d e P e d ro é feito a ro c h a so b re a q u al
a Igreja se rá e d ificad a, u m a Igreja c o n tra a q u a l a m o rte n ã o p rev a-
lecerá, e o n d e a P ed ro são d a d a s as chaves d o rein o d o céu. A últim a
m etáfora ecoa Is 22,22 (p. 1525 acim a) e certam en te im plica a id eia d e au-
to rid ad e. H á u m p aralelo d e p e n sam e n to en tre estas p a la v ra s dirigidas
71 · O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao Mar de Tiberíades 1585

a P e d ro e as p a la v ra s d e Jo 21,15-17, o n d e Jesus c o n stitu i P e d ro com o


p a s to r so b re o re b a n h o , c o m issio n an d o -o a c u id a r d a s o v elh as (para
a im p licação d e exercer a u to rid a d e n e sta s p a la v ras, veja n o ta so b re o
v. 15, " a p a s c e n ta o s m e u s co rd eiro s"). O s d o is d ito s n ã o são tão pareci-
d o s p a ra se re m c o n sid e ra d o s d u p lic a ta s, m a s p o d e m re p re se n ta r frag-
m e n to s d e u m a n a rra tiv a o rig in a l m ais lo n g a acerca d e u m a ap arição
p ó s-re ssu rre iç ã o a P e d ro n a q u a l lh e foi d a d a a u to rid a d e n a Igreja p ri-
m itiv a. (P ro v av elm en te, p o d e -se c o n sid e rar Lc 22,31-32 q u e, n o tam o s,
d á a P e d ro o p a p e l d e fortalecer seu s irm ã o s d e p o i s q u e reto rn asse, isto
é, a p a re n te m e n te d e p o is q u e se a rre p e n d e sse d e su a negação).
(3) O c h a m a d o d e P e d r o e a p e s c a m i r a c u l o s a ( L c 5 , 1 - 1 1 ) . E m M c 1,16-20
e M t 4,18-22, o c h a m a d o d o s p rim e iro s d isc íp u lo s é n a rra d o e m ter-
m o s m u ito sim p les. Jesus v ê as d u a s d u p la s d e irm ã o s q u e são pesca-
d o re s, P e d ro e A n d ré , T iago e João; ele in siste com eles: "S egui-m e, e
e u v o s fare i p e s c a d o re s d e h o m e n s" ; eles d e ix a m se u s b arco s e red e s
e o se g u em . O re la to e m Lc 5,1-11 é m ais com plexo. C o m o Jesus está
p r e g a n d o ju n to a o L ago d e G en esaré, os p e sc a d o re s d e d o is b arco s
e stã o la v a n d o s u a s red e s. Jesus e n tra n o b a rc o d e S im ão, se afasta
d a te rra e e n s in a o p o v o d o b a rc o (p ara le lo e m M c 4,1-2; M t 13,1-2).
Q u a n d o Je su s te rm in a , ele d iz a S im ão q u e fosse p a ra m a r alto e lan-
çasse as re d e s p a ra u m a p esca. S im ão p ro te s ta q u e tra b a lh a ra m to d a
a n o ite e n a d a a p a n h a ra m ; m as lan ça a re d e e a p a n h a tan to s peixes
q u e as re d e s e stã o a p o n to d e se ro m p e re m . Q u a n d o os p e sca d o re s
d o o u tro b a rc o v ê m e m socorro, a m b o s os b arco s ficam tão cheios q u e
e stã o a p o n to d e a fu n d a r. P e d ro cai d e jo elh o s d ia n te d e Jesus e diz:
"S e n h o r, afa sta-te d e m im , p o is e u s o u h o m e m p e c a d o r" ; e m resp o sta,
Je su s diz: " N ã o tem ais; d o ra v a n te sereis p e sc a d o re s d e h o m en s". Fi-
n a lm e n te , o s b a rc o s são tra z id o s p a ra a te rra e os p e sc a d o re s d eix am
tu d o e o se g u em . L ucas tem u m a fo rm a m ais c o m p le ta d o cham a-
d o d o s d isc íp u lo s d o q u e e n c o n tra m o s em M a rc o s /M a te u s , o u L ucas
a n e x o u a o c h a m a d o d o s d isc íp u lo s o u tra n a rra tiv a so b re P e d ro e u m a
p e sc a m ira cu lo sa? D e c erta m an e ira , o rela to lu ca n o é m ais lógico:
o m ila g re oferece u m a ra z ã o p o r q u e o s p e sc a d o re s d e ix a ra m tu d o
e s e g u ira m Jesus. T o d a v ia, h á in co n sistên cias reais n o rela to lucano.
O s d e ta lh e s d o s p e sc a d o re s n a p ra ia e o e n sin o d e Jesus a p a rtir d e
u m b a rc o são e n c o n tra d o s e m d ife ren te s lu g a re s e m M a rc o s /M a te u s
(M c 1,16-20 e 4,1-2) e é b e m p ro v á v e l q u e sejam artificialm en te u n id o s
e m L ucas. V isto q u e Jesu s p e d e a S im ão q u e saia d o m a r, d e v e m o s
1586 IV · Epílogo

p re s u m ir q u e o s o u tro s ficaram n a p raia ; m a s q u a n d o a p e sc a se con-


cretiza, a p a re n te m e n te o o u tro b a rc o e stá n o m ar. A ação d e S im ão
d e cair d e jo elh o s d ia n te d e Jesu s seria m ais a p ro p ria d a e m te rra d o
q u e em u m b arco , d e a c o rd o com su a s p a la v ras: " A fasta -te d e m im ".
F in alm en te, a tra n siç ã o d a reação d e S im ão ao c h a m a d o d o s d isc íp u -
los é e s tra n h a . E assim , e n q u a n to a e v id ê n c ia d e q u e a p e sc a é u m a
tra d içã o lu ca n a n ã o é tã o fo rte com o foi a e v id ê n c ia p a ra a s d u a s cen as
m a te a n a e p e trin a q u e a c ab a m o s d e v e r, a p a rtir u n ic a m e n te d e ra z õ e s
in te rn a s a teo ria d a a d iç ã o p e rm a n e c e co m o u m a b o a p ro b a b ilid a d e .
A tese d e u m a a d ição lu ca n a se to rn a m ais c o n v in c e n te q u a n d o
c o m p a ra m o s o re la to lu ca n o d a p e sca co m Jo 21. O s se g u in te s d e ta -
lh es são p a rtilh a d o s p o r am bos:

• O s d isc íp u lo s p e sc a ra m a n o ite in te ira e n a d a a p a n h a ra m .


• Jesu s lh es o rd e n a q u e lan ç a ssem a(s) red e(s) p a r a p e sca r.
• S u as o rd e n s são se g u id a s e se co n seg u e u m a q u a n tid a d e ex-
tra o rd in a ria m e n te g ra n d e d e peixes.
• M en cio n a-se o efeito so b re a s re d e s (v er n o ta so b re 11).
• P e d ro é a q u e le q u e re a g e à p e sc a (Jo 21 m e n c io n a o D iscíp u lo
A m a d o , m as e ssa é u m a a d ição c la ra m e n te jo an in a).
• Jesu s é c h a m a d o S enhor.
• O s o u tro s p escad o res to m a m p a rte n a p esca, p o ré m n a d a dizem .
• O te m a d e se g u ir Jesu s o co rre n o fin al (cf. Jo 21,19.22).
• A p e sca sim b o liza u m e m p re e n d im e n to m issio n á rio b e m suce-
d id o (esp ecialm en te e m L ucas; im p lic ita m e n te e m João).
• A s m esm a s p a la v ra s são u s a d a s p a ra la n ç a r ao larg o , a p o rta r,
re d e etc., a lg u m a s d a s q u a is p o d e m ser c o in cid en tes. O u so
m ú tu o d o n o m e "S im ão P e d ro " , q u a n d o re s p o n d e à p esca
(Lc 5,8; Jo 21,7) é sig n ificativ a, p o is e ste é o ú n ic o caso d o d u p lo
n o m e em Lucas.

H á d o is o u tro s p o n to s d e s e m elh an ça, m a s a li são d u v id o so s . Pri-


m eiro , Jo 21,2 m e n c io n a a p re se n ç a d o s filhos d e Z e b e d e u , co m o faz
Lc 5,10a. N ã o o b sta n te , e ste m eio v e rsíc u lo e m L ucas, q u e é p a re n té ti-
co e in te rro m p e a seq u ên cia, n ã o p o d e ría te r sid o u m a p a rte d o rela to
o rig in a l d a p e sca e p o d e ria p e rte n c e r ao co n tex to d o c h a m a d o d o s
d iscíp u lo s n o q u a l o re la to d a p e sc a foi in se rid o . A m en ç ã o d e T iag o e
João e m 10a p a re c e se r u m a d u p lic a ç ã o d a refe rê n c ia m a is a n ô n im a a
71 · OJesusressuxreto aparece aos discípulos junto ao Mar de Tiberíades 1587

"to d o s os que estavam com ele" no v. 9. Segundo, a afirm ação de Pe-


d ro em Lc 5,8, "Senhor, afasta-te de m im , p o rq u e sou pecador", é pas-
sível d e ser in terp reta d a com o u m a referência às negações de Pedro
e, assim , com o u m paralelo com a ideia d a reabilitação de P edro em
Jo 16,15-17. D e fato, m uitos com entaristas usam este versículo para
m o strar que o relato lucano não está em seu contexto original, pois
em seu prim eiro encontro com Jesus P ed ro n ão tinha razão algum a
de confessar-se pecador. Todavia, a exclam ação de Pedro não poderia
ser m ais que a expressão do senso d a in d ig n id ad e que experim enta
u m m o rtal ord in ário na presença d e alguém que acaba de o p erar um
m ilagre estupendo.
A s sem elhanças listadas acim a to rn am razoável concluir que,
in d ep en d en tem en te, Lucas e João p reserv aram form as variantes do
m esm o relato de m ilagre - dizem os independentem ente p o rq u e há
m u itas diferenças de vocabulário e detalhes. (Q ue o evento aconteceu
d u a s vezes não é u m a possibilidade tão séria, com vênia a P lummer,
L agrange, en tre outros; pois, caso alguém aceite o po n to d e vista his-
tórico p o r d etrá s dessa harm onização, esse ain d a teria que explicar
com o em Jo 21 P edro pod eria se encontrar pela seg u n d a vez na m es-
m a situação e participe em u m diálogo quase idêntico sem reconhecer
Jesus!). Q u al evangelho tem a versão m ais original do relato, e qual
tem o cenário m ais original? A qui nos ocupam os som ente d a m ais
antig a form a identificável d o relato, não com su a historicidade que
não p o d e ser cientificam ente determ inada. (Tentativas de m odificá-lo
inclui: a tese d e G oguel, pp. 23-24, d e que houve u m a bem sucedida
pesca supersticiosam ente in terp reta d a com o u m m ilagre; a sugestão
d e Bultmann [HST, p. 304] de que a ideia p o d e ter sido em prestada do
helenism o p agão, o u que u m relato de m ilagre p o d e ter-se desenvol-
v id o d e u m d ito [HST, p. 230]). Q ue a resposta a estas indagações de
originalidade não é sim ples se p o d e ver da oscilação de B ultmann : em
HST, p p . 217-18, ele conclui que João tem u m a versão posterior que,
d e alg u m a m aneira, deriva de Lucas; m as, em seu com entário sobre
João, pp . 545-46, ele acha João m ais original em alguns aspectos e em
localização. B. W eiss, V on H arnack e G rass favorecem a originalidade
joanina, en q u an to W ellhausen, G oguel, M acgregor favorecem a ori-
gin alid ad e lucana. Provavelm ente, não se p o d e d a r n en h u m a respos-
ta absoluta à questão sobre a form a original do relato: em certos de-
talhes, Lucas parece ter sofrido algum desenvolvim ento (redes quase
1588 IV · Epílogo

se ro m p e n d o ; d o is b a rc o s q u a se a fu n d a n d o ); e m o u tro s, João so fre u


d e se n v o lv im e n to (talv ez a m en ç ã o d e 153 peixes).
A q u e stã o d e localização é m ais im p o rta n te . P o d e -se a rg u m e n ta r
em p ro l d a lo calização lu c a n a q u e os d isc íp u lo s m a is p ro v a v e lm e n te
te ria m se e n g a ja d o n a p e sca a n te s q u e co m eçassem a se g u ir Je su s e
n ão d e p o is d a ressu rre içã o . N ã o o b sta n te , se tra ta rm o s Jo 21 co m o
a p rim e ira a p a riç ã o d o Jesu s re ssu rre to , e n tã o , d e p o is d e a c h a r o tú -
m u lo v azio , P e d ro p o d e ría te r v o lta d o à G alileia c o n fu so e d esen c o -
ra ja d o e teria re a ssu m id o s u a o cu p ação . O a rg u m e n to m a is c o n v in -
cen te e m fav o r d a localização jo an in a é q u e n ã o h á ra z ã o a p a re n te
p a ra u m p re g a d o r cristão to m a r u m rela to c o rre s p o n d e n te à e ta p a d o
m in istério d e Jesus e o situ a r d e p o is d a ressu rre içã o . C o m o sa lie n ta
K lein, p . 35, to d o s os n o sso s ex e m p lo s estã o n a o u tra d ire ç ão , a sa-
b er, retro sp e c to d o m a te ria l p ó s-re ssu rre iç ã o a o m in isté rio . E, d e v e -
ras, se o re la to d a p e sc a e n v o lv e u u m a a p a riç ã o d o Jesu s re s s u rre to
ju n to ao L ago d a G alileia, a tra d iç ã o lu c a n a d ific ilm e n te p o d e ria tê-lo
p re s e rv a d o co m o p ó s-re ssu rreiç ã o ; p o is Lc 24 c o n s tru iu u m a se q u ên -
cia o n d e to d a s as a p a riçõ e s d e Jesu s c o rre m e m Je ru sa lé m e Je su s as-
cen d e a o céu n a n o ite d a P áscoa. É p o ssív e l fo rm u la r a h ip ó te se q u e ,
ao re m e te r o re la to d a p e sca e a rea b ilitação d e P e d ro a o m in isté rio ,
L ucas p e n s a v a ser m ais a p ro p ria d o a n ex á-lo à n a rra tiv a sin ó tica co-
m u m d o c h a m a d o d o s p rim e iro s d isc íp u lo s e, assim , a sso c ia r o cha-
m a d o co m o a p o sto la d o p a ra o q u a l fin a lm e n te ele se d e se n v o lv e u .
P o rta n to , p e n s a m o s se r p la u sív e l q u e Lc 5 ,4 9 .1 0 ‫־‬b . l l a foi u m a v e z
p a rte d e u m re la to p ó s-re ssu rre iç ã o d a p rim e ira a p a riç ã o d e Jesus
a P e d ro (em q u e se u s c o m p a n h e iro s d e p e sca s se rv e m d e te ste m u -
n h a s, ju sta m e n te co m o e m Jo 21). É v e rd a d e q u e D odd, " A p p e a r a n c e s ",
p. 23, a n a liso u to d a a p e ríc o p e d e Lc 5,1-11 e d e sc o b riu q u e ela é in su -
ficiente n o s a sp ec to s d a crítica d a fo rm a d e u m a a p a riç ã o p ó s-re ssu r-
reição (p. 1438 acim a). M as, co m o ele co n je tu ra , a crítica d a fo rm a n ã o
é u m a fe rra m e n ta in te ira m e n te sa tisfa tó ria a q u i; p o is, ao rec o lo ca r o
in cid e n te n o m in isté rio , L ucas teria d e s u p rim ir a lg u n s d o s a sp ec to s
d a c aracterística p ó s-re ssu rreiç ã o ; p o r ex em p lo , a triste z a d o s d isc íp u -
los em v irtu d e d e Jesu s e sta r a u s e n te e a a p a riç ã o d e Jesus. U m traço
d o reco n h e c im e n to o rig in a l p o d e ria se r p re s e rv a d o n a ex clam ação
"S e n h o r" d e Lc 5,8, e n q u a n to o e q u iv a le n te d e u m a m issã o a p o stó lic a
se e n c o n tra em 5,10, " d o ra v a n te se rá s p e s c a d o r d e h o m e n s" . (E m v ir-
tu d e d e u m a afirm ação sim ilar, " e u v o s farei p e sca d o re s d e h o m en s",
71 · O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao Mar de Tiberíades 1589

a p a re c e r n o c h a m a d o m a rc a n o /m a te a n o d o s d isc íp u lo s, a m aio ria


d o s e s tu d io s o s m a n té m q u e esta co m issão p e rte n c e ao c h a m a d o , e
n ã o à p e sca , m a s Klein, p . 34, a rg u m e n ta q u e ela foi p a rte d a p esca e
o rig in a lm e n te d irig id a so m e n te a P ed ro . P o d e-se a c eita r e sta tese sem
a c e ita r a c o n clu são d e Klein d e q u e n ã o h o u v e c h a m a d o d e P e d ro
d u r a n te o m in is té rio d e Jesus). Ig u alm en te , o "N ã o te m a s" d e Lc 5,10
p o d e s e r u m eco d o cen ário o rig in a l p ó s-re ssu rreiç ã o o n d e o Jesus
re s s u rre to é re c e b id o co m te m o r (cf. M t 28,10; Lc 24,37-38).

P a ra c o n c lu ir n o sso e s tu d o d e Jo 21 à lu z d o s d a d o s d ire to s e
in d ire to s p e rtin e n te à p rim e ira a p a riç ã o d e Jesu s a P e d ro , su g e ri-
m o s q u e , n a tra d iç ã o , e sta a p a riç ã o o c o rre u e n q u a n to P e d ro p e sca v a ,
q u e ela e n v o lv e u u m a p e sc a m ira c u lo sa so b a o rd e m d e a lg u é m a
q u e m P e d ro p a s s o u a rec o n h e c e r co m o o S e n h o r re ssu rre to ; q u e Pe-
d r o s a lto u d o b a rc o p a ra sa u d á -lo ; q u e n o d iá lo g o re s u lta n te P e d ro
re c o n h e c e u s e u p e c a d o e foi re s ta u ra d o ao fav o r d e Jesus; e q u e Pe-
d r o re c e b e u u m a co m issão q u e lh e d a v a u m a a u to rid a d e d e sta c a d a
n a c o m u n id a d e . Jo 21 p r e s e rv o u u m a fo rm a ra z o a v e lm e n te fiel d e ste
re la to , co m a lg u m a s m esclas d e o u tra cen a, co m o v e re m o s abaixo.
(V isto q u e u m a d e sta s m esclas c o n fu sa s e n v o lv e u m a refeição d e p ã o
e p e ix e , é d ifícil certificar se o rig in a lm e n te a a p a riç ã o a P e d ro tam -
b é m c o n tin h a , co m o u m in c id e n te , u m a refeição c o n sistin d o d o q u e
tin h a s id o re c e n te m e n te p e sc a d o . É b e m p ro v á v e l q u e K lein, p . 32,
esteja c e rto e m n e g a r isto , p o is n ã o ex iste n e n h u m v e stíg io d e u m a
refe iç ã o e m q u a lq u e r u m a d e n o ssa e v id ê n c ia so b re a a p a riç ã o a Pe-
d ro . A p e s c a n ã o tev e c o m o s e u te m a a p ro v is ã o d e alim en to ; an tes,
ela p ro p ic io u a p o s s ib ilid a d e d o re c o n h e c im e n to d e Jesu s d a p a rte
d e P e d ro ). N o s d e ta lh e s d e co m o P e d ro re c o n h e c e u se u p e c a d o e foi
r e s ta u ra d o a o fa v o r d e Jesus, h á c o n sid e rá v e l v a ria n te n o m a te ria l
q u e te m o s e s tu d a d o (Lc 5,8; M t 14,30-31); e o q u e a g o ra e n c o n tra m o s
e m Jo 21,15-17 co m s u a tríp lic e p e rg u n ta e la b o ra d a so b re o a m o r po -
d e ria te r p a s s a d o p o r c o n sid e rá v e l d ra m a tiz a ç ã o , m e sm o q u a n d o era
p a r te d o re la to jo a n in o ao m á x im o q u e p o d e m o s re tro c e d e r. Q u a n to
à c o m issã o a u to rita tiv a d e P e d ro , te m o s m e n c io n a d o a p o ssib ilid a -
d e d e q u e a im a g e m d e p a s to r e m Jo 21,15-17 e a im a g e m d a ro ch a
fu n d a m e n ta l e m M t 16,18 c o n stitu e m fra g m e n to s d o q u e e m o u tro
te m p o foi u m d iá lo g o m ais e x te n so e q u e a m b a s re p re s e n ta m u m
d e s e n v o lv im e n to d e u m a s sim p le s m etá fo ra s.
1590 IV · Epílogo

A r e f e iç ã o e m J o 2 1 e a t r a d i ç ã o d a a p a r i ç ã o a o s d o z e n a G a l i l e i a

E m I C o r 15,5 P a u lo re g istra q u e , d e p o is d e Jesu s a p a re c e r a C efas,


ele a p a re c e u ao s d o ze. Já v im o s q u e u m g r u p o d e a u to re s n e o te sta -
m e n tá rio s situ a esta a p a riç ã o em Je ru sa lé m (pp. 1436-38 acim a) e q u e
a fo rm a jo an in a d a tra d iç ã o h ie ro so lim ita n a se e n c o n tra e m 20,19ss.
A trad ição m ais original, re g istra d a p o r M arcos (im plicitam ente) e p o r
M ateu s, lo caliza e sta p rim e ira a p a riç ã o n a G alileia, e a fo rm a jo a n in a
d a tra d içã o G alileia se e n c o n tra n o cap. 21. O ra , M t 28,16-20 te m a a p a -
rição se d a n d o so b re "o m o n te p a ra o q u a l Jesu s d isse q u e fo ssem ".
M u ito s e v e n to s n e o te sta m e n tá rio s estã o asso c ia d o s a u m " m o n te "
(o se rm ã o d o m o n te , a tra n sfig u ra ç ã o , a m u ltip lic a ç ã o d o s p ães); e
se h isto ric a m e n te a lg u n s d e ste s e v e n to s o c o rre ra m o u n ã o so b re u m
m o n te , p a ra os a u to re s d o N T "o m o n te " p a re c e te r a s su m id o u m va-
lo r sim b ó lico d e u m S inai C ristão. Isto su scita u m a q u e s tã o so b re a
p ro v á v e l lo calização d e M a te u s d a a p a riç ã o G alileia ao s d o ze. N ã o
h á ra z ã o lógica p a ra o s d isc íp u lo s tere m s u b id o a u m m o n te , e essa
é a ra z ã o p o r q u e M a te u s a d ic io n o u u m a c lá u su la e x p lic ativ a " p a ra
Jesus se d irig ir a eles" - u m a ação p a ra a q u a l n ã o h á o u tra e v id ê n c ia
n o e v a n g elh o , n e m m esm o em M ateu s. E m c o n tra p a rtid a , se os disci-
p u lo s d e ix a ra m J e ru sa lé m sem ter v isto o Jesu s re s s u rre to , e in clu siv e
a tô n ito s a n te o tú m u lo v a z io , n a tu ra lm e n te te ria m v o lta d o p a ra su a s
casas, e p a ra m u ito s isto sig n ificaria a v iz in h a n ç a d o lag o d a G alileia.
Q u e p e lo m en o s u m d e le s iria p a ra e sta v iz in h a n ç a e stá im p líc ito em
n o ssa rec o n stru ç ã o d a a p a riç ã o a P e d ro e n q u a n to ele p e sca v a . A ssim ,
p e lo m en o s é p o ssív e l q u e a a p a riç ã o G alileia ao s d o z e o c o rre u n as
v izin h a n ça s d o L ago, e n ã o e m u m m o n te , e tal localização a ju d a ria a
ex p licar p o r q u e a n a rra tiv a d e sta a p a riç ã o foi c o n fu n d id a c o m a d e
u m a a p a riçã o a P e d ro n a p ra ia d o lago.
Q u ais fo ram a s circu n stân cias e os d e ta lh es d a a p a riçã o n a G alileia
ao s d o ze? M a te u s n ã o d á p ra tic a m e n te n e n h u m a in fo rm a ç ã o , e assim
v ale a p e n a su scitar a p e rg u n ta se Jo 21 p o d e o u n ã o re te r v estíg io s
d e s ta ap arição . S om os in clin a d o s a a trib u ir à a p a riç ã o a P e d ro os de-
talh es d o cap. 21 co m o a a tiv id a d e p e s q u e ira feita p o r P e d ro e co m p a-
n h e iro s a n ô n im o s, a p e sca m ira cu lo sa e o su b s e q u e n te reco n h ecim en -
to d e Jesu s c o m o o h o m e m n a p ra ia , le v a n d o d a p e sc a à te rra seca, e o
d iálo g o e m 1 5-17.0 q u e re sta é a m en ç ã o n o m in a l d o s d isc íp u lo s (v. 2)
e o rela to d a refeição q u a n d o esses d isc íp u lo s re c o n h e c e ra m Jesus
71 · O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao Mar de Tiberíades 1591

(9b, 1 2 1 3 ‫)־‬. A lg u n s e stu d io so s rela cio n a ria m ta m b é m o v. 5a ao relato


d a refeição: v isto q u e o s d isc íp u lo s n a d a a p a n h a ra m p a ra com er, Jesus
lh e s o fere c eu u m a refeição; m a s isto p re s s u p õ e q u e a refeição o co rreu
n a p ra ia d o lag o - se foi a ssim , n ã o e sta m o s certos. E n q u a n to os d a d o s
são in su ficie n te s, so m o s te n ta d o s a re c o n stru ir a n a rra tiv a p ré-e v a n -
g élica assim : e m a lg u m lu g a r n a reg ião d o lago, u m h o m e m c o n v id o u
o s d isc íp u lo s fam in to s a u m a refeição d e p eix e e p ã o a q u a l foi p re p a -
ra d a so b re u m b ra se iro ; e m b o ra ele p a re c e sse fam iliar, ficaram hesi-
ta n te s e, to d a v ia , n ã o o u sa v a m fazer n e n h u m a p e rg u n ta ; fin alm en te,
s o u b e ra m q u e e ra o S en h o r q u a n d o ele lhes d e u p ã o e p eix e d a m esm a
m a n e ira q u e d is trib u ira p ã o e p eix e a p ó s a m u ltip lic a ç ão n e sta m esm a
re g iã o (v er a b a ix o so b re as sem e lh an ç a s e n tre 21,13 e 6,11). Tal n a rra -
tiv a te ria q u a tro d o s cinco a sp ec to s q u e D o d d e n c o n tra, característico
d a s a p a riç õ e s p ó s-re ssu rre iç ã o , p o ré m n ã o te m a co m issão apostólica,
ta lv e z p o rq u e n a se q u ên c ia final ela foi su b s titu íd a p e la com issão q u e
p e rte n c e u a o re la to d a a p a riç ã o a P e d ro (21,15-17).
H á a lg u m a p o io n e o te sta m e n tá rio p a ra u m a n a rra tiv a p ó s-res-
su rre iç ã o ? N a s tra d içõ e s lu c a n a s d a s a p ariçõ es h iero so lim itan as,
refeiçõ es fig u ra m com to d a p ro em in ên c ia. E m Lc 24,41-43, Jesus
a p a re c e ao s d o z e n u m a refeição n a q u a l se se rv e p eix e (ver tam -
b é m A t 10,41; A p ê n d ic e M arc a n o 16,14). N ã o o b sta n te , este d e ta lh e
é u s a d o p o r L u cas a p o lo g e tic a m e n te p a ra m o stra r q u e Jesus p o d ia
c o m e r e co m isso se p ro v a q u e ele n ã o e ra u m fan tasm a. M ais p er-
tin e n te a u m a c o m p a ra ç ã o com Jo 21 é o p a p e l d a refeição n a a p a ri-
ção d e Je su s ao s d o is d isc íp u lo s n a e s tra d a p a ra E m a ú s (Lc 24,30-31):
"E a c o n te c eu q u e, e s ta n d o com eles à m esa, to m a n d o o p ão , o aben-
ç o o u e p a rtiu -o , e lh o d e u . E n tão se lh es a b rira m os o lh o s, e o co-
n h e c e ra m , e ele d e sa p a re c e u -lh e s". E in te re ssa n te q u e em u m frag-
m e n to d o E v a n g e l h o s e g u n d o o s H e b r e u s (Jerônimo, D e v i r i s i l l u s t r i b u s 2;
PL 23:613) so m o s in fo rm a d o s q u e Jesu s a p a re c e u a T iago (IC o r 15,7)
e m u m a refeição: "E le to m o u o p ã o , ab en ço o u -o e o d e u a T iago, o
Ju sto , e d isse-lh e: 'M e u irm ã o , co m e te u p ã o , p o is o F ilho d o H o m e m
re ss u s c ito u d e n tre a q u e le s q u e d o rm e m " ‫ ׳‬. Q u a se c a d a d e ta lh e d a n ar-
ra tiv a q u e sa lie n ta m o s d e Jo 21 a p a re c e e m u m a o u o u tra d e sta s n ar-
ra tiv a s lu c a n a s e ap ó crifas p ó s-ressu rreição .

P o d e m o s re s u m ir n o ssa s o b serv açõ es so b re a o rig e m d o m ate-


ria l c o n tid o e m Jo 2 1 ,1 1 4 ‫ ־‬e ta m b é m n o s vs. 15-17, o ferecen d o u m a
1592 IV · Epílogo

h ip ó te se u m ta n to e sp ec u lativ a. E sta p a rte d o c a p ítu lo p o d e co n sistir


d e u m a co m b in ação d o re la to d a p rim e ira a p a riç ã o a P e d ro e m u m a
cen a d e p esca e o re la to d a p rim e ira a p a riç ã o n a G alileia d e Je su s aos
d o z e e m u m a refeição d e p ã o e peixe. E m b o ra a d ic io n a d o a o ev an -
g elh o e m se u ú ltim o estág io , Jo 21 a p a re n te m e n te rec o rre a o m esm o
m a te ria l a n tig o d a tra d içã o galilaica d a s a p a riçõ e s p ó s-re ssu rreiç ã o .
A d e sp e ito d a ree lab o ra ç ão p e lo q u a l os m a te ria is p a s s o u e a e stra n h e -
z a p ro d u z id a p e la co m b in ação , estes d o is re la to s g alilaicos p a re c e m
ter so b re v iv id o e m Jo 21 n u m a fo rm a m ais c o n sec u tiv a d o q u e em
q u a lq u e r o u tro lu g a r n o N T , p o is a a p a riç ã o a P e d ro d e o u tro m o d o
foi fra g m e n ta d a e se u s e le m en to s a p a re c e m d isp e rso s n o s re la to s sinó-
ticos d o m in isté rio d e Jesu s, e a a p a riç ã o a o s d o z e , e m u m a refeição, só
é c o n h e cid a a tra v é s d e se u s p a ra le lo s n a tra d iç ã o lu c a n a d e Jeru salém .
(Estes p a ra le lo s em L ucas são im p o rta n te s, p o is e n c o n tra m o s m u ita s
sim ila rid a d e s e n tre João e L ucas n a s n a rra tiv a s p ó s-re ssu rreiç ã o ). D os
d o is relato s, o d a p e sc a é m u ito m ais b e m p re s e rv a d o e m Jo 21 d o q u e
o d a refeição. E stes re la to s já tin h a m sid o c o m b in a d o s m u ito a n te s d e
c h e g are m às m ão s d o re d a to r resp o n sá v e l p e lo cap. 21. N o c u rso d a
tra n sm issã o d a n a rra tiv a c o m b in a d a , e ste c o m p o sto a d q u ir iu u m sim -
b o lism o eclesiástico e sa c ra m e n ta l (a se r d isc u tid o abaixo), sim ila r ao
sim b o lism o a d q u irid o p e lo m a te ria l n o p ró p rio e v a n g e lh o , m a s com
u m a o rien tação lig e ira m e n te d istin ta . O re d a to r q u e a n e x o u a n a rra -
tiv a a o e v a n g elh o p o d e te r sid o re sp o n sá v e l p o r in tro d u z ir a fig u ra
d o D iscíp u lo A m a d o ao v. 7 (e ta m b é m p o r a p e n s a r a s p a la v ra s de
Jesu s p e rtin e n te s a o s d e stin o s d e P e d ro e d o D iscíp u lo A m a d o n o s vs.
18-23 - v e r §72 abaixo). C o m re sp e ito ao D iscíp u lo A m a d o co m o u m a
ad ição ta rd ia , n ã o ju lg a m o s a p o ssib ilid a d e d e q u e ele p u d e s s e ter-se
fig u ra d o a n o n im a m e n te n o s re la to s o rig in a is co m o u m d o s co m p a-
n h e iro s silen cio sos d e P e d ro o u co m o u m d o s d o z e e q u e , p o rta n to ,
su a p re se n ç a a q u i n ã o c o n stitu i m e ra ficção.

A lc a n c e e s im b o lis m o e c le s iá s tic o d o r e la to e m 2 1 ,1 - 1 4

A té a q u i tem o s a n a lisa d o estes v ersícu lo s, d e te c ta n d o os relatos


o rig in ais q u e o s su b lin h a m . N ã o o b sta n te , o re d a to r n ã o n o s d e u os
rela to s o rig in ais, e sim u m a n a rra tiv a c o m b in a d a co m s u a p ró p ria se-
q u ên cia e im p licação teológicas. É p a ra este p r o d u to fin al q u e ag o ra
n o s v o lv em o s. A n te s d e refletirm o s so b re s u a im p licação , d e v e m o s
71 · O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao Mar de Tiberíades 1593

d iz e r u m a p a la v ra so b re s u a fo rm a literária. D odd , "A p p e a r a n c e s ",


p p . 14-15, classifica Jo 21 co m o u m e x e m p lo d o rela to circu n stan cial
p ó s -re s su rre iç ã o (p. 1439 acim a), com u m a a b u n d â n c ia d e d e ta lh es,
d ra m a tiz a ç ã o e d iálo g o s v iv id o s. "O c en tro d e in te resse é o reconhe-
c im e n to d o S e n h o r re ssu rre to ; a q u i, p o ré m , o rec o n h e c im e n to n ão é
im e d ia to , m a s se d ifu n d e a o lo n g o d e u m p e río d o n o tá v e l d e tem -
p o " . E m b o ra e m si m e sm o ele n ã o in c o rp o re p a ssa g e n s d id áticas,
co m o o re la to c irc u n sta n c ia l e m Lc 24,13-35, é feito p a ra p re p a ra r o
c a m in h o p a r a o sig n ificativ o d iálo g o n o s vs. 15-17. N ã o o b sta n te , en-
q u a n to D odd p o d e e sta r certo n e sta classificação, M arrow, p p . 13-14
d e s u a d isse rta ç ão , e stá co rre to em sa lie n ta r q u e os cinco a sp ecto s do s
re la to s co n ciso s a p a re c e m em Jo 21, d e m o d o q u e p o d e se r m ais d e
u m a fo rm a h íb rid a d o q u e D odd q u e r q u e p en sem o s.
F ix a n d o -n o s a g o ra n o alcance d e ste s v ersícu lo s, p o d e m o s com e-
ç a r co m a e x p re ssã o "Jesus se m a n ife sto u " n o s vs. 1 (ver n o ta) e 14,
o s q u a is c ria m u m v ín c u lo e n tre a a tiv id a d e d o Jesus re ssu rre to e d o
Je su s d o m in isté rio . O v e rb o é e m p re g a d o d u a s v ezes em l j o 1,2, q u e
s u m a ria a a tiv id a d e te rre n a d e Jesu s e m te rm o s d a m a n i f e s t a ç ã o v isível
d a v id a: " v o s a n u n c ia m o s a v id a e te rn a , q u e e sta v a com o P ai, e no s
foi m a n ife s ta d a " . N o e v a n g elh o cap. 1,31, o B atista a firm o u q u e to d o
s e u p ro p ó s ito e m v ir e b a tiz a r e ra p a ra q u e a q u e le q u e v eio se m a n i f e s -
t a s s e a Israel. D e p o is q u e o B atista in d ic o u Jesus aos d isc íp u lo s com o
o C o rd e iro d e D eu s, o p ro ce sso inicial d e rev elação se co m p letasse
p a ra estes d isc íp u lo s em C a n á , q u a n d o Jesu s o p e ro u o p rim e iro d e
s e u s sin a is e lh es r e v e l o u su a g ló ria (2,11). E m 9,3, fo m o s in fo rm a d o s
q u e a c u ra o p e ra d a p o r Jesu s n o cego v isa v a a faz e r co m q u e a glória
d e D e u s se rev e lasse nele. Q u a n d o Jesus se re v e lo u a o s h o m e n s atra-
v é s d e s u a s o b ras, ele e sta v a re v e la n d o D e u s a os h o m en s: "M anifestei
te u n o m e ao s h o m e n s q u e m e d este, e o s tire i d o m u n d o ; e ra m teus,
e tu m o s d e ste , e g u a rd a ra m a tu a p a la v ra " (17,6). A ressu rre içã o é a
rev e laç ã o fin al, p o is ela cap acita os h o m e n s a v e r Jesu s co m o Senhor.
" N isto se m a n ife sta o a m o r d e D eu s p a ra conosco: q u e D e u s e n v io u
s e u F ilh o u n ig ê n ito ao m u n d o , p a ra q u e v iv a m o s p o r ele" ( ljo 4,9), e é
o Je su s re s s u rre to q u e d á o E sp írito q u e é a fo n te d a v id a. E a ssim a ta-
refa d o B atista a n u n c ia d a n o p rim e iro c a p ítu lo d o e v a n g elh o foi leva-
d a à c o m p le tu d e n o ú ltim o : Jesu s se re v e lo u p le n a m e n te a Israel, isto
é, à c o m u n id a d e d e c re n tes re p re s e n ta d a p e lo s d isc íp u lo s. Isso p o d e
te r-se d a d o c o m a in te n ç ã o d e eco ar o p rim e iro c a p ítu lo q u e o re d a to r
1594 IV · Epílogo

n o s d e u aq u i, isto é, u m g ru p o d e d iscíp u lo s re p re se n ta n d o os cinco


d iscíp u lo s q u e fig u ra ra m em Jo 1. E n tre eles está N a ta n ae l, o israelita
em q u e n ã o h á d o lo (1,47), q u e a g o ra p o d e ser tid o com o se n d o as coisas
m aio res q u e lh e fo ram p ro m e tid a s (1,50). Se o v e rb o " m a n ife sta r" vin-
cuia a ap arição d o Jesus ressu rre to com o q u e ele fez d u ra n te o m in isté-
rio, tam b ém an tecip a o fu tu ro , p o is e m l j o 2,28 a v in d a final é e x p ressa
em term o s d e su a auto-revelação (ver tam b é m l j o 3,2; l P d 5,4; C l 3,4).
A cen a d e p esca p ro v ê a ocasião p a ra q u e Jesus se a u to m an ifeste.
A p ó s a m o rte d e Jesus, P e d ro re to rn o u à o c u p a çã o q u e m e lh o r co n h e-
cia; co m o p ro fe tiz a d o e m Jo 16,32, ele e se u s c o m p a n h e iro s se d isp e rsa -
ra m c a d a u m p a ra su a casa. H oskyns, p . 552, d escrev e a cena c o m o u m a
ap o sta sia to tal, m as é a n te s u m a a tiv id a d e sem objetivo e m p re e n d id a
em d esesp ero . A p esca é m alsu c ed id a , p o is se m Jesus n a d a p o d e m fa-
zer (15,5). É n e sta a tm o sfera q u e Jesus v e m e se m an ifesta. A p e sca
m ara v ilh o sa lev a a o reco n h ecim en to - q u e o u tro , se n ão Jesus, p o d e ría
o p e ra r tal sinal? A im plicação d a p esca p o d e te r sid o m ais ó b v ia d o q u e
su sp eitam o s, p o is o T e s t a m e n t o d e Z e b u l o m 6,6 im p lica q u e u m a p esca
a b u n d a n te e ra tid a co m o u m sin al d o fav o r d e D eus. N o re la to origi-
n al d a a p a riçã o a P e d ro , p ro v a v e lm e n te foi P e d ro q u e m rec o n h e c eu
Jesus, m as e sta h o n ra ag o ra p e rte n c e ao D iscípulo A m a d o q u e , v isto
estar in tim a m en te v in c u la d o a Jesus p e lo a m o r, e stá m ais c a p a c ita d o a
reconhecê-lo. (Ele foi m ais p e rc e p tiv o q u e P e d ro ta m b é m n o re la to d o
tú m u lo v a z io - p p . 1480-83 acim a). C o m o c o rre r d o tem p o , co m o ve-
rem o s m ais a d ia n te, a p esca, q u e p rim a ria m e n te foi a o casião p a ra re-
co n h ecim en to , v eio a se c o n v e rter n o v eícu lo d e u m sim b o lism o ; m a s é
m en o s certo q u e u m sig n ificad o sim bólico esteja v in c u la d o à v ig o ro sa
ação d e P e d ro n a d a n d o p a ra a p raia. O sig n ificad o ó b v io é q u e o im p e-
tu o so P e d ro n ã o p o d e e sp e ra r p a ra s a u d a r se u m estre; e a ssim ele cor-
re p a ra a p ra ia , ju sta m e n te co m o se a p re sso u p a ra o tú m u lo a o o u v ir
as n o tícias d e q u e e sta v a v a z io (20,3-4). E n tre tan to , A gourides, p . 128,
e n tre o u tro s, v ê tu n significado m ais p ro fu n d o : a n u d e z d e P e d ro n o
b arco sim b o liza s e u e sta d o e sp iritu a l d e p o is d e se u a to d e n e g a r Je-
sus; seu a to d e v e stir ro u p a s tem sid o in te rp re ta d o co m o s u a con v er-
são, e se u m e rg u lh o n a á g u a , co m o su a purificação. A gourides in d ag a:
"O m erg u lh o n a á g u a p o rv e n tu ra n ão in sin u a u m eco d a c o n v e rsa en-
tre Jesus e P e d ro con cern en te a o lav ar-se e p u rificar-se e m 13,9-11?"
N ó s d u v id a m o s disso. C e rtam en te A gourides v ai lo n g e d e m a is q u a n d o
ten ta ac h ar n o s 200 co d o s (100 m etros; v. 8) u m sim b o lism o rela cio n a d o
71 · O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao Mar de Tiberíades 1595

a o a rre p e n d im e n to d e P ed ro . É v e rd a d e q u e F ilo (Q u a e s t i o n e s e t s o -
lu tio n e s in G e n . 1, §83) tra ta o n ú m e ro 200 sim bolicam ente; en tretan -
to , João n ã o v in cu la esse n ú m e ro ao n a d a r d e P ed ro , e sim ao rem a r
d o s d iscíp u lo s.
O sig n ific a d o sim bólico q u e se d e se n v o lv e u em to rn o d a pesca
e m Jo 21 é o m e sm o q u e e m Lc 5,10: sim b o liza a m issã o ap o stó lica
co m o " p e s c a d o re s d e h o m e n s" . V isto q u e este sim b o lism o é n itid a-
m e n te ó b v io , p o d e ría ter-se d e se n v o lv id o in d e p e n d e n te m e n te n as
d u a s trad içõ es; e m q u a lq u e r caso, su sp e ita m o s q u e K lein, p . 34, esteja
c e rto e m m a n te r q u e L ucas o e n c o n tro u já p re se n te q u a n d o ele conhe-
c eu esse rela to . B ultmann, p p . 544-45, p e n sa n a aleg o rização d o relato
co m o s e n d o o b ra d o re d a to r final, m as K lein , p p . 30-31, c o rre ta m en te
a rg u m e n ta q u e ele a n te d a ta o re d a to r e c e rta m e n te a n te d a ta a intro-
d u ç ã o d o sim b o lism o sa c ra m e n ta l (ver abaixo), p o is os d o is n ão se
h a rm o n iz a m . P o d e ser q u e o sim b o lism o d a m issão seja co n cretizad o
e m Jo ão m a is d o q u e e m L ucas. C o n c o rd a m so b re o g ra n d e n ú m e ro a
s e r in tro d u z id o p e la m issão ap o stó lica, m as so m e n te João (21,11) m en -
cio n a o n ú m e ro 153 p eix es e e n fa tiz a o fato d e q u e a re d e n ã o se rom -
p e u . O n ú m e ro 153 (ver n o ta) significaria, p o r m eio d e u m sim bolis-
m o m ín im o , p re te n d e r sim b o liz a r o c a rá te r to d o u n iv e rsa l d a m issão.
O e s ta d o in te g ra l d a re d e significa q u e a c o m u n id a d e cristã n ã o é rom -
p id a p e lo cism o , a d e sp e ito d o s g ra n d e s n ú m e ro s e d ife ren te s tip o s d e
h o m e n s c o n d u z id o s a ela. O v e rb o q u e tra d u z im o s n o v. 11 p o r "ro m -
p e r" é s c h i z e i n , rela c io n a d o co m o c i s m a o u d iv isã o so b re Jesus q u e se
faz re fe rê n c ia e m 7,43; 9,16; 10,19. Foi ta m b é m u s a d o e m 19,24, q u a n -
d o o s s o ld a d o s d e c id ira m n ã o ra sg a r a tú n ic a d e Jesus, e n tre te c id a em
u m a só p eça d e alto abaixo - a p aren tem en te o u tro sím bolo d e u n id a d e
A lg u n s le v a m o p e d id o jo an in o p o r u n id a d e a p o n to d e p e n s a r q u e
a tra d iç ã o jo an in a s u p rim iu os d o s b a rc o s e n c o n tra d o s n o rela to lu-
c a n o d a p e sc a e m fav o r d e u m s ó b arco , m as isto a tin g e o lim ite d a
fan ta sia . M ais p la u sív e l é a su g e stã o d e q u e d e v e m o s relacio n ar o
u s o d o v e rb o h e l k e i n (h e l k y e i n ), " a rra s ta r" , n o s vs. 6 e 11 ao s exem -
p io s n o e v a n g e lh o n o s q u a is ele é u s a d o p a ra a atra çã o d e h o m en s a
Jesu s (p a ra o p a n o d e fu n d o n o A T , v e r n o ta so b re 6,44). P articu lar-
m e n te p e rtin e n te é 12,32: " Q u a n d o e u for le v a n ta d o d a te rra , a t r a i -
r e i to d o s o s h o m e n s a m im ". N o p e n sa m e n to jo an in o , a ressu rreição
p e rte n c e a o p ro c e sso d e exaltação d e Jesus a se u Pai, e o Jesus res-
s u rre to c u m p re s u a p ro fe c ia d e a tra ir to d o s os h o m en s a si m esm o
1596 IV · Epílogo

a tra v é s d o m in isté rio ap o stó lico sim b o liz a d o p e la p e sc a e o a rra s ta r


p a ra a p raia . A lg u n s a u to re s a c h a m e m h e l k e i n u m a su g e stã o d e q u e
a m issã o e n c o n tra resistên cia q u e d e v e se r v e n c id a p e lo a rra s tã o n a
p esca, m as p o d e m o s e sta r certo s d e q u e n u m a m issã o g u ia d a p o r Je-
su s os d isc íp u lo s v en c erã o q u a lq u e r resistên cia n a tu ra l. N o ta m o s q u e
é P e d ro q u e a s su m e a lid e ra n ç a e m a rra s ta r as r e d e s p a ra a p ra ia . Se o
a u to r jo an in o d e u a o D iscíp u lo A m a d o a p rim a z ia d o a m o r e d e sen si-
b ilid a d e em reco n h ecer Jesus, ele d e ix o u a P e d ro o p rim e iro lu g a r n o
m in istério ap ostólico.
O sim b o lism o b ásico d a p esca, a té e n tã o d isc u tid o , é a m p la m e n te
aceito p o r e stu d io so s, m as h á o u tra s in te rp re ta ç õ e s sim b ó licas p ro -
p o s ta s q u e sã o m e n o s certas. H oskyns, p . 552, sa lie n ta q u e a p e sc a
o co rre n a G alileia d o s g en tio s (Is 9,1), u m c e n ário a p ro p ria d o p a r a o
sim b o lism o d e u m a m issã o b e m a m p la . J. M ánek, "F i s h e r s o f M e n " ,
N o v T 2 (1957), 138-41, p e n s a q u e o p a n o d e fu n d o p a r a a id e ia d e
p e sc a d o re s d e h o m e n s d e v e se r b u s c a d a e m Jr 16,16 (n ão o b sta n te ,
o n d e o sim b o lism o se refejre à p e rse g u iç ã o hostil). P o r o u tro la d o , ele
p e n s a q u e a á g u a d a q u a l os p eix es são tira d o s re p re s e n ta o lu g a r
d e p e c a d o e m o rte , u m a im a g e m fre q u e n te n a s c o sm o g o n ia s sem i-
ticas an tig as; c o n se q u e n te m e n te , o p e s c a d o r d e h o m e n s é a lg u é m
q u e re sg a ta h o m e n s d o p e c a d o . E m u m a in te rp re ta ç ã o q u a se o p o sta ,
a lg u n s tê m p e n s a d o n o s p eix es co m o a q u e le s q u e são sa lv o s p e la s
á g u a s d o b a tism o , d e m o d o q u e a á g u a te m sig n ificad o sa cra m e n tal.
E sta im a g e m é u m p o u c o sim ila r ao p e n s a m e n to d e T ertuliano ( D e
B a p t i s m o 1,3; SC 35:65): "M as n ó s, p eix es p e q u e n o s, q u e so m o s a ssim
c h a m a d o s n a im a g e m d e n o sso s i c h t h y s , Jesu s C risto , n a sc e m o s n a
á g u a , e so m o s salv o s so m e n te q u a n d o p e rm a n e c e m o s n a á g u a " .
Já n o ta m o s q u e em 21,1-14 n ã o h á p a la v ra s p a ra a m issã o a p o sto -
lica (u m asp ec to e ssen cial d e u m a a p a riç ã o p ó s-re ssu rre iç ã o ao s disci-
p u lo s) e q u e e sta a u sên c ia só é p re e n c h id a p a rc ia lm e n te p e la co m issão
a P e d ro n o s vs. 15-17. N ã o o b sta n te , o sim b o lism o q u e se d e sen v o l-
v e u e m to rn o d a p e sca a g o ra s u p re o e le m en to d a m issão . N ã o é u m
g ra n d e e x ag ero d iz e r q u e a p e sca é o e q u iv a le n te d ra m á tic o d a o rd e m
d a d a n o relato m atean o d a ap arição n a Galileia: "Ide, p o rta n to , fazei dis-
cíp u lo s d e to d a s a s n açõ es" (M t 28,19). A ssim , e m b o ra a c e n a co m p o s-
ta q u e n o s v e m d e Jo 21,1-14 re p re se n te u m a re e la b o ra ç ã o ta rd ia d o
fo rm a to d a s a p a riçõ e s p ó s-re ssu rreiç ã o , a s e u p ró p rio m o d o te m p re -
s e rv a d o a im p licação c o m u m b ásica às o u tra s n a rra tiv a s d a ap arição :
71 · O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao Mar de Tiberíades 1597

Jesus ressu scito u v erd ad eiram en te e foi visto p o r testem unhas que, p o r
s u a vez, fo ram en v iad as a proclam á-lo a o u tro s hom ens. Se devem os levar
o u n ã o a ideia d e m issão apostólica à refeição d os vs. 9b,12-13 não é certo.
H á in térp retes q u e p en sam n o convite à refeição com o u m ato im plícito
d e p e rd ã o q u e se to m a necessário pelo fato d e que os discípulos haviam
a b a n d o n ad o a Jesus (16,32), m as este significado não é claro n o relato.

O s i m b o l i s m o e u c a r í s t i c o d a r e f e iç ã o e m 2 1 , 1 9 b . l 2 - 1 3

O rig in alm en te, e m u m d o s relato s q u e jaz p o r d e trá s d e 21,1-14, a


refeição d e p ã o e p e ix e q u e Jesu s o fereceu a se u s d isc íp u lo s os lev o u
a reco n h ecê-lo co m o o Jesus ressu rre to . U m ele m en to d isto a in d a se
e n c o n tra n o v. 12, p o ré m a te n u a d o p e lo fato d e q u e u m reconhecí-
m e n to d e Jesu s p e lo D iscíp u lo A m a d o e P e d ro e stá re g istra d o n o v. 7.
N a p re s e n te se q u ên c ia, o s e g u n d o rec o n h e c im e n to h e sita n te reflete
o te m o r q u e os d isc íp u lo s se n te m p e lo Jesus re ssu rre to e p re ssu p õ e
o m isté rio d e s u a a p a rê n c ia tra n sfig u ra d a . N o e n ta n to , m u ito s p en -
s a m q u e a refeição a ssu m iu ta m b é m u m sim b o lism o sa cra m e n tal e
p a s s o u a se r e v o c ativ a d a eu caristia. A q u i se d e v e e n fa tiz a r q u e n ão
e s ta m o s su s c ita n d o a q u e stã o se a refeição e ra o u n ã o u m a eu caristia
re a l, p o is n ã o h á co m o reso lv e r isso. T a m p o u co h á a lg u m a m an e ira
d e a v e rig u a r a afirm ação d e G ray, p p . 696-97, d e q u e o a u to r jo an in o
e stá d e s c re v e n d o u m a refeição á g a p e , co m o p eix e s u b s titu íd o p ela
refeição d o á g a p e p a u lin o . C. V ogel, R e v u e d e s S c i e n c e s R e l i g i e u s e s 40
(1966), 1-26, te m e s tu d a d o c u id a d o sa m e n te a e v id ê n c ia p e rtin e n te às
s a g ra d a s refeiçõ es cristãs p rim itiv a s com peixe; e conclui q u e n ã o se
re la c io n a v a m d ire ta m e n te com a e u caristia, e sim com as refeições ju-
d a ic a s co m p e ix e q u e tin h a m u m a im p licação escatológica, a lg u m a s
v e z e s e n v o lv e n d o a im a g e m d o L ev iatã v e n c e d o r, m o n stro m a rin h o
p rim o rd ia l. Q u e stõ e s tais co m o se h a v ia e u c aristia q u e tiv esse peixe
e m v e z d e v in h o e stá a lé m d e n o sso in te resse a q u i, co m o tam b ém
o sim b o lism o p ro p o s to p o r A gostinho e m referên cia a Jo 21 ( I n J o h .
73; PL 35:1966): " O p eix e co z id o é C risto q u e so freu , e ele é o p ã o
q u e d e s c e u d o c éu ". N o ssa q u e stã o é m ais m o d esta: A q u e ex ten são a
d e scriçã o d e s ta refeição se d e stin a v a a le m b ra r o leito r d a eu c aristia e
lev á-lo a a sso c ia r a e u c aristia co m a p re se n ç a d o C risto re ssu rre to n a
c o m u n id a d e cristã? E m u m e s tu d o su c in to d o sim b o lism o eucarístico
d e refeiçõ es re a liz a d a s co m a p re se n ç a d o Jesus re ssu rre to , J. P otin ,
1598 IV · Epílogo

B i b l e e t T e r r e S a i n t e 13 (M arço 1961), 12-13, sa lie n ta q u e tais refeições


p o d ia m ter s id o u s a d a s p e d a g o g ic a m e n te p a ra m o stra r q u e Je su s de-
sejava p a rtilh a r a in tim id a d e d e s e u b a n q u e te m essiân ic o c o m to d o s
os cre n tes d u ra n te to d a a e ra p ó s-re ssu rre iç ã o a té q u e v iesse o u tra
v ez p a ra co n v id á-lo s ao b a n q u e te celestial. O s re la to s d a s refeições
p ó s-re ssu rreiç ã o são q u a se d ra m a tiz a ç õ e s d a o rd e m v in c u la d a à ins-
titu ição eu carística em IC o r 11,25 e Lc 22,19: "F azei isto e m m e m ó ria
d e m im ".
O sim b o lism o eu carístico em Jo 21 é in trin c a d o p e la h istó ria d a
co m p o sição q u e tem o s p ro p o sto p a ra o c a p ítu lo . O sim b o lism o q u e
se d e s e n v o lv e u n a n a rra tiv a d a p e sca n a q u a l o s p e ix e s re p re s e n ta m
o s c o n v e rso s q u e te m p a re c id o a a lg u n s e stu d io so s co m o a e x c lu ir a
p o ss ib ilid a d e d e u m sim b o lism o eu carístico p a ra a refeição d e p ã o e
p eix e (ver n o ta so b re " v in d e e c o m ei" n o v. 12). C o n tu d o , m a is p ro v a -
v e lm e n te , o s p eix es n a refeição é u m d e ta lh e d e o u tro re la to d ife re n te
d a q u e le d a p esca, e o sim b o lism o sa c ra m e n ta l v in c u la d o a ele v e m
d a n a rra tiv a c o m b in a d a n u m p e río d o m a io r d o q u e o sim b o lism o
m issio n ário v in c u la d o à pesca.
H á b o n s a rg u m e n to s e m p ro l d a ex istên cia d e u m sim b o lism o
eu carístico n a refeição e m Jo 21. A d escrição d e sta refeição n o v. 13, n a
q u a l Jesu s " to m o u o p ã o e lh o s d e u , e fez o m esm o com o p e ix e " , ecoa
a descrição d a refeição re a liz a d a a p ó s a m u ltip lic a ç ão d o s p ã e s e pei-
xes n o v. 6,11: "E n tã o Jesus to m o u os p e d a ç o s d e p ã o , d e u g raç a s e os
p a sso u ao s q u e e sta v a m se n ta d o s ali; e fez o m e sm o co m o s p eix es".
(A s im ila rid a d e é tão e stre ita q u e W ellhausen c o n s id e ro u a refeição
e m Jo 21 co m o se n d o u m a v a ria n te d a refeição n a m u ltip licação ).
O fato d e q u e as cen as em 6 e 21 são a s ú n ic a s n o Q u a rto E v an g elh o
a o c o rre r ju n to ao M a r d e T ib e ríad e s c e rta m e n te a ju d a o le ito r a fazer
u m a co n ex ão e n tre as d u a s refeições. N o vol. 1, p p . 479-80, e o g ráfico à
p. 472, sa lie n ta m o s q u e e m to d o s o s e v a n g e lh o s o re la to d a refeição n a
m u ltip lic a ç ão se c o n fo rm o u ao re la to d a s açõ es d e Je su s n a ú ltim a ceia,
co m o re s u lta d o d e q u e se fez u m a conexão e n tre a refeição n a m u lti-
p licação d o s p ã e s e a e u caristia. E m p a rtic u la r, o re la to q u e João faz d a
refeição n a m u ltip lic a ç ão h o u v e d iv e rso s d e ta lh e s p e c u lia re s evocati-
v o s d a eu caristia. P o r isso d u v id a m o s q u e u m a refeição tã o sim ila r à
refeição n a m u ltip lic a ç ão p u d e s s e se r d e scrita e m Jo 21 se m le m b ra r
a c o m u n id a d e jo an in a d a eu caristia. P o r o u tro la d o , já c h a m a m o s a
aten ção p a ra a se m e lh an ç a e n tre a refeição e m Jo 21 e a refeição q u e
71 · O Jesus ressurreto aparece aos discípulos junto ao Mar de Tiberíades 1599

Lc 24,30-31.35 d escrev e n o relato d a ap arição d e Jesus a o s d o is discípu-


lo s n a e stra d a d e E m aús. A insistência d e L ucas d e q u e o s d iscíp u lo s re-
c o n h eceram Jesus n o p a rtir d o p ã o é às v ezes to m a d a com o u m ensino
eu carístico d e stin a d o a in stru ir a c o m u n id a d e d e q u e p o d ia m tam bém
e n c o n tra r o Jesu s ressu rre to e m seu ato eucarístico d e p a rtir o pão.
A in te rp re ta ç ã o eu carística d e Jo 21 co n ta com o ap o io e x tern o q u e
s u p õ e a afirm ação d e C ullmann, EC W , p p . 15-17, d e q u e as c o m u n id a-
d e s p rim itiv a s faziam u m a conexão d ire ta e n tre su a s refeições eucarís-
ticas e as refeições d o Jesus re ssu rre to com seu s d iscíp u lo s. C ertam en te,
n a ico n o g rafia p rim itiv a , as refeições d e p ã o e peix e (em v e z d e p ã o e
v in h o ) e ra m os sím bolos pictó rico s co m u n s d a eucaristia. N a tu ra lm e n -
te, à s v e z es é im p o ssív e l e sta r certo se o a rtista tin h a em m en te a refei-
ção d a m u ltip lic a ç ão d o s p ã e s o u em Jo 21. G ray, p . 699, salien ta u m
in te re s s a n te e sq u e m a artístico em q u e n as refeições d e p ã o e peixe s e t e
h o m e n s são p a rtic ip a n te s, fre q u e n te m en te reclin ad o s a n te u m a m esa.
É te n ta d o r e n c o n tra r a q u i u m a rem iniscência d o s sete d iscíp u lo s m en-
c io n a d o s e m Jo 21,2, m as o u tro s h isto ria d o re s d a a rte a leg am q u e o uso
d e sete p a rtic ip a n te s c o n stitu ía u m a conv en ção n a iconografia rom a-
na. G ray m en cio n a u m a a n tig a p in tu ra d e u m a refeição eu carística em
q u e Jesu s e M aria, e cinco h o m en s, e stão reu n id o s, a p a re n te m e n te u m a
c o m b in a çã o d a refeição d e p ã o e peixe n a cena d e C a n á (cinco disci-
p u lo s são c h a m a d o s no s d ias p re c e d e n te s à festa em C aná). N o vol. 1,
p p . 305-06, su g e rim o s a p o ssib ilid a d e d e u m sim b o lism o eucarístico
s e c u n d á rio n o relato d e C aná. H á q u e m te n h a b u sc a d o e m p re sta r su-
p o rte litú rg ic o à in te rp re ta ç ã o eu carística d o cap. 21, sa lie n ta n d o q u e
e sta cen a, q u e se situ a d a ao a m a n h e c e r c o n stitu iría u m a leitu ra ideal
n a s v ig ílias q u e se celebrava a eu caristia, d esco n h ecem o s a existência
d e p ro v a s a fav o r d e u m u so a n tig o d o cap. 21 n e ste sentido.
Se a c e ita rm o s a p la u sib ilid a d e d o sim b o lism o e u carístico p ro p o s-
to , e n tã o o Je su s re ssu rre to d o cap. 21 exerce alg o d o m esm o p a p e l
q u e e x erceu n o cap. 20. E m 20,19-23, ele e ra o d e sp e n se iro d o s d o n s,
e sp e c ia lm e n te d o E sp írito , a fo n te d a v id a e tern a. A q u i ta m b é m o
Je su s r e s s u rre to o u to rg a v id a: "e o p ã o q u e e u d a re i é a m in h a p ró p ria
c a rn e p a ra a v id a d o m u n d o " (6,51).

[A B ibliografia p a ra esta seção e stá in clu sa n a B ibliografia p a ra


to d o o cap . 21, n o fin al d o §73.]
7 2 .0 JESUS RESSURRETO FALA A PEDRO
(21,15-23)

21 15D ep o is d e co m erem , Jesu s se d irig iu a S im ão P ed ro : "S im ão , fi-


lh o d e João, tu m e a m a s m ais d o q u e estes?" "Sim , S e n h o r", d isse ele,
" tu sab es q u e e u te a m o ". D isse-lhe Jesus: "E n tã o , a p a sc e n ta os m e u s
co rd eiro s".
16Jesu s p e rg u n to u o u tra vez: "S im ão, filho d e João, tu m e a m a s? "
"Sim , S en h o r", d isse ele, " tu sab es q u e e u te a m o ". D isse-lh e Jesus:
"E n tão , c u id a d e m in h a s o v elh as".
17Jesu s p e rg u n to u p e la terceira vez: "S im ão, filho d e João, tu m e
am as?" P e d ro ficou triste p o r Jesus lh e p e rg u n ta r p e la terc eira vez:
"T u m e a m a s? " P o r isso, ele lh e disse: "S en h o r, tu sa b es tu d o ; tu b e m
sab es q u e e u te a m o ". D isse-lhe Jesus: "E n tã o , a p a sc e n ta as m in h a s
o v e lh in h a s".

18" V e rd a d e ira m e n te , e u te a sse g u ro ,


q u a n d o tu e ra s jovem ,
tu p re n d ia s te u p ró p rio cin to
e saias p a ra o n d e q u erias.
M as, q u a n d o fores v elh o ,
tu e s te n d e rá s as tu a s m ão s,
e o u tro p re n d e rá o c in to e m to rn o d e ti
e te lev a rá a o n d e n ã o q u e re s ir".

(19O q u e ele d isse in d ic a v a o tip o d e m o rte p e la q u a l P e d ro esta-


v a p a ra g lo rificar a D eus). D ep o is d e sta s p a la v ra s , Je su s lh e disse:
"S eg u e-m e".
72 · O Jesus ressurreto fala a Pedro 1601

20E n tã o P e d ro se v iro u e n o to u q u e o d isc íp u lo a q u e m Jesu s a m av a


e s ta v a s e g u in d o (aq u ele q u e reclin o u -se n o p e ito d e Jesus d u ra n te a
ceia e disse: "S en h o r, q u e m é q u e está p a ra trair-te?"). 21V endo-o, Pe-
d ro se p ro n tific o u a p e rg u n ta r a Jesus: "M as, S enhor, e q u a n to a ele?"
22R ep lico u Jesus: "Se e u q u e ro q u e ele p e rm a n e ç a até q u e e u v en h a,
q u e te im p o rta ? Q u a n to a ti, se g u e-m e". 23É d e v id o a esta p a la v ra q u e
c irc u lo u e n tre to d o s os irm ã o s, q u e este d isc íp u lo n ã o m o rre ría. N a
re a lid a d e , Jesu s n u n c a lh e d isse q u e ele n ã o m o rre ría; o q u e ele disse
foi: " S u p o n h a s q u e e u q u e ira q u e ele p e rm a n e ç a até q u e e u v e n h a [o
q u e te im p o rta ]?"

NOTAS

21.15. D e p o is d e c o m e r e m . M uitos estudiosos não tom am isto como um a in-


dicação real de tem po, m as como um a tentativa artificial de fazer um a
conexão entre 15-17 e 12-13; notam que os discípulos ("eles") já não exer-
ciam nenhum papel na cena. N ão obstante, quando o autor joanino dese-
ja fazer um a conexão vaga, usualm ente em prega "algum tem po depois",
como no v. 1.
S im ã o , ß h o d e João. A qui a palavra grega para "filho" não é usada como
o foi em 1,42 (ver nota ali). Somente no Q uarto Evangelho o nom e do
pai de Pedro é dado como João. ( S c h w a n k , " C h r is ti" , p. 532, sugere que
o autor poderia estar jogando com a ideia de que Pedro é um discípulo
e daí um filho espiritual de João Batista; isto é m uitíssim o improvável).
A lguns estudiosos, por exemplo, L i g h t f o o t , p. 340, têm im aginado que o
m otivo de Jesus dirigir-se ao apóstolo como "Simão P e d r o " é um indício
de que Pedro já não goza de seu favor depois de negar Jesus; entretan-
to, exceto Lc 22,34 e o caso em que Jesus m uda o nom e de Simão, Jesus
não se dirige a Simão ou como "Pedro" ou como "Simão Pedro" em ne-
nhum dos evangelhos. Mais plausível é a tese de que, ao dirigir-se a Pe-
dro com o patroním ico usado quando se encontraram pela prim eira vez
(Jo 1,42), Jesus está tratando-o m enos fam iliarm ente e, assim, pondo a
prova sua amizade.
t u m e a m a s ? ... e u t e a m o . U m a variação extraordinária no vocabulário
grego aparece nos três versículos repetitivos, 15, 16 e 17. Respectiva-
m ente, há dois verbos diferentes para "am ar", para "conhecer" e para
"apascentar ou cuidar", e dois ou três substantivos diferentes para
ovelhas. Com a exceção parcial de O r í g e n e s , o s grandes com entaristas
1602 IV · Epílogo

gregos de outrora, com o C risóstomo e C irilo de A lexandria, e os es-


tudiosos do período da Reform a, com o Erasmo e G rotius, não viram
diferença real de significado nesta variação de vocabulário; m as os
estudiosos ingleses do últim o século, com o Trench, W estcott e P lu-
mer, observaram m atizes sutis de significado. A nalisarem os suas
teses, po rém notam os que a m aioria dos estudiosos têm defendí-
do a antiga ideia de que as variações não constituem p ecu liarid ad e
estilística de sentido (ver M oule, IBNTG, p. 198; E. D. Freed, " V a -
n a t i o n s in th e L a n g u a g e a n d T h o u g h t o f J o h n " , ZN W 55 [1964], espe-
cialm ente 192-93). Por que em o utro lugar não se in tro d u z consisten-
tem ente a variação perm anece um enigm a; p o r exem plo, no cap. 10
João usa a m esm a palavra para ovelhas quinze vezes, e em 13,34 e
14,21 João usa o m esm o verbo "am ar" (a g a p a n ) três e q u atro vezes
respectivam ente.
Para o verbo "am ar", nas perguntas e respostas de 21,15-17, as variações
são estas:

15: a g a p a s m e ... p h ilo s e


16: a g a p a s m e ... p h ilo s e
17: p h ile is m e ... p h ilo s e

Como salientado no vol. 1, p. 794, este é o texto prova para aqueles que
desejam distinguir entre a g a p a n e p h il e in , um a distinção que retrocede ao
tem po de O rígenes. Todavia, como vimos de nosso parecer da interpre-
tação de 15-17 oferecida por Trench, W estcott e Evans, os que defendem
a distinção entre os verbos não estão concordes sobre as nuanças de sig-
nificado. Acaso Jesus está solicitando de Pedro um a form a m ais nobre
de am or (a g a p a n ) e então fixando a forma inferior de am izade (p h il e in )
a qual é tudo o que Pedro pode dar? Estaria Jesus pedindo um amor
(a g a p a n ) reverente e então concedendo a Pedro a expressão de afeto (p h ilein )
pessoal e fervoroso? O u ainda vice-versa? M cD owell, pp. 425-38, insiste
sobre a distinção que flui do uso clássico de a g a p a n ("estim ar, prezar,
preferir"): prim eiram ente, Jesus pergunta a Pedro se ele prefere a estes
(barcos, pesca) - estaria ele querendo que eles se tom em pescadores de
homens? A resposta de Pedro é não só em term os de estim a o u preferên-
cia, m as de sentim ento (p h ile in ) real. Em sua obra, A g a p e in th e N e w T e s-
t a m e n t, III, 95, C. Spicq escreve com plena segurança: "Os com entaristas
estão divididos sobre o respectivo valor dos dois verbos, m as, os que os
tom am como sinônim os, ou ignoram a semântica de ágape ou minimi-
zam a im portância da cena".
72 · O Jesus ressurreto fala a Pedro 1603

A despeito do perigo de ser culpado de um desses dois crimes, o presen-


te autor é obrigado a aceitar a tese dos estudiosos antigos (os tradutores
do OL e A gostinho) e m odernos (Lagrange, Bernard, M offatt, Strachan,
Bonsirven, Bultmann, Barrett, entre outros) que não encontram distinção
clara de significado na altemação de a g a p a n e p h ile in nos vs. 1517‫־‬. As ra-
zões para isto são: (a) parece haver um a intercambialidade geral dos dois
verbos em João; ver vol. 1, p. 794; também Bernard, II, 702-4. (b) Em he-
braico e aramaico há um verbo básico para expressar os vários tipos de
am or, de m odo que toda a sutileza de distinção que os comentaristas en-
contram no uso dos dois verbos dos vs. 15-17 dificilmente expressa o su-
posto original semítico. Notamos que a LXX faz uso de ambos os verbos
para traduzir o heb. ’ã h ê b , embora a g a p a n seja vinte vezes mais frequente
que p h ile in . N as traduções siríacas dos vs. 15-17, usa-se somente um verbo,
(c) Pedro responde "Sim" às perguntas form uladas com o verbo a g a p a n ,
m esm o quando ele expressa seu am or em termos de p h ile in e, assim, não
m ostra a consciência de que está respondendo a um requerimento de um
tipo racional mais elevado ou mais espiritual de am or (a g a p a n ) com um
oferecimento de um a forma inferior ou mais fervorosa de am or (p h ile in ).
m a is q u e e s te s . Para o comparativo "mais", aqui se usa p le o n , enquanto em ou-
tros quatro casos em João aparece a forma alternativa p l e i õ n . Esta diferença
não é tão importante, pois ela ocorre também em Lucas e em Atos; há um
caso de p le o n em cada [ocorrência] como contrastado com oito e dezoito
usos, respectivamente, de p l e i õ n . Aqui e em Jo 7,31 um genitivo segue o
comparativo; em 4,1 segue a partícula ê (BDF, §185’)· É digno de nota que
esta cláusula comparativa aparece somente na primeira das três perguntas
sobre o am or de Pedro. A referência exata a "estes" não é certa. Bernard
e M cD owell estão entre os que tratam "estes" como o equivalente de um
complemento neutro do verbo: "Tu me amas mais do que amas estas coisas
(i.e., barcos, pesca)?" Como apoio para esta tradução, lembramos que, no
final da pesca miraculosa em Lc 5,1-11, Pedro estava entre os discípulos
que deixaram todas as coisas para seguir Jesus. Entretanto, seria normal
repetir o verbo em tal construção como proposto acima (ver 8,31); e, além
do mais, pelos padrões joaninos, a escolha assim oferecida a Pedro entre
coisas materiais e o Jesus ressurreto seria antes ridícula, por mais real e di-
fídl que fosse historicamente tal escolha. Outra interpretação é dada por A.
Fridrichsen, S v e n s k E x e g e tis k A r s b o k (1940), pp. 152-62, que entende "estes"
como o complemento masculino do verbo: "Tu me amas mais do que amas
a estes outros discípulos?" Reiterando, é difícil pensar que o autor joanino
apresentasse seriamente a oferta de escolha entre os outros discípulos e o
Jesus ressurreto. A maioria dos estudiosos toma o "estes" como o sujeito
1604 IV · Epílogo

masculino de um verbo implícito: "Tu me amas mais do que fazem estes


outros discípulos?" (Compare o grego de 4,1)· Esta tradução também não é
isenta de dificuldade, pois normalmente se esperaria o grego enfático "tu"
não é à maneira de contraste com o "estes". Tem-se proposto que aqui existe
certa ironia: Jesus está testando Pedro que se vangloriou na última ceia de
um amor maior que o dos outros discípulos. Entretanto, esta vangloria não
foi expressa em João, e sim nos relatos sinóticos (Mc 14,29; Mt 26,33: "Ain-
da que todos se escandalizem, eu não o farei"), a menos que o fato de que
somente Pedro afirmara sua lealdade em Jo 13,37 seja equivalente a um a
vangloria de um amor maior. A dificuldade real é que um a questão poderia
parecer estimular rivalidade entre os discípulos, algo que Jesus rejeita por
toda parte (Mc 9,34-35; 10,42-44). Em geral, esta objeção é respondida, ale-
gando-se que se esperaria amor maior da parte de Pedro do que da parte
dos demais, porque ele estava sendo perdoado de um a negação mais séria
(Lc 7,42-47), ou porque lhe estava sendo oferecida um a liderança como pas-
tor de quem se requeria um a preeminência em amor. Todavia, no Quarto
Evangelho é inconcebível que Pedro pudesse ser mantido como o exemplo
de um amor maior - que é a prerrogativa do Discípulo Amado. Talvez a
melhor solução seja aquela oferecida por B u l t m a n n , p. 5511, a saber, que as
implicações da frase não deveríam ser consideradas de um a forma tão séria,
pois trata-se unicamente de um recurso redacional para introduzir os outros
discípulos nesta cena e, assim, estabelecer um nexo entre os vs. 15-17 a 1-13.
No OSsi", esta frase está ausente na prim eira perg u n ta (tam bém em al-
gum as testem unhas gregas m enores no OL). Baseando-se nisso, J. A.
B e w e r , B ib lic a l W o r l d 17 (1901, 32-34, fez um a interessante tentativa de

reorganizar as perguntas (e as respostas) de m odo que haja progressão:


Tu me amas? Tu m e am as m uito? Tu m e am as m ais do que estes? N ão
obstante, qualquer progressão no diálogo não faz p arte d a fraseologia,
m as da repetição.
" S im , S e n h o r , ... t u b e m s a b e s q u e e u te a m o " . A resposta de Pedro não tem em
conta ao "m ais do que estes" da pergunta - talvez um a confirmação de
que a frase com parativa não é tão im portante. A m esm a resposta básica
será dada outra vez no v. 16 e, com algum a elaboração, no v. 17; as duas
prim eiras vezes o verbo "saber" é e id e n a i (o id a ), enquanto a últim a vez é
g i n õ s k e i n , que traduzim os "bem sabes", em bora o id a apareça tam bém
no v. 17 na frase "tu sabes tudo". A parentem ente, não há distinção de
significado (vol. 1, p. 814s). Nestas três respostas, o pronom e grego, "tu"
aparece explícito, e isto é um sinal de ênfase.
" a p a s c e n ta o s m e u s c o r d e ir o s " . Nos três casos da ordem de Jesus a Pedro, há
um a considerável variedade de vocabulário:
72 · O Jesus ressurreto fala a Pedro 1605

15: "Apascenta os m eus cordeiros" = b o s k e in a m i o n


16: "C uida de m inhas ovelhas" = p o im a in e in p r o b a te n
17: "Apascenta as m inhas ovelhinhas" = b o s k e in p r o b a tio n

Q uanto ao verbo, na LXX ambos, b o s k e in e p o im a in e in traduzem o heb.


e assim podem os ter certa dúvida sobre as tentativas de encontrar
r ã ‘ã h ,
um a distinção incisiva entre eles (a Vulgata nos vs. 15-17 usa p a s c e r e para
traduzir ambos). Todavia, se são em grande parte sinônimos, p o im a in e in
abarca u m cam po bem mais am plo de significado. B o s k e in é usado tanto li-
teral quanto figuradam ente (Ez 34,2) para apascentar animais. P o im a in e in
inclui deveres para com o rebanho tais como guiar, guardar e apascentar,
seja literalm ente (Lc 17,7) ou figuradam ente (Ez 34,10; At 20,28; lP d 5,2;
A p 2,27; 7,17); equivalentem ente, ele pode significar "liderar, governar"
(2Sm 7,7; SI 2,9; Mt 2,6). Uma sentença de F i l o , Q u o d d e te r iu s 8 , §24, capta
a nuança dos dois verbos: "Os que apascentam [b o s k e in ] proveem nutri-
ção..., m as os que cuidam [ p o im a in e in ] têm o poder de líderes ou gover-
nadores". Com binados, os dois verbos expressam a m elhor redação no
v. 15, porém há incerteza sobre qual deve ser lido nos vs. 16 e 17:

16: p r o b a t i o n 17 ,‫׳‬: p r o b a tio n : Codex Vaticanus, N estle, A lan d Synopsis,


B a rrett, B u ltm a n n .

16: p ro b a te n -, 17: p r o b a to n : Codex Sinaiticus, M erk, Bible Societies' NT,


L agran ge.

16: p r o b a tio n ; 17: p r o b a to n : L o i s y , B u r k i t t , B e r n a r d .


16: p r o b a to n ; 17: p r o b a tio n : Codex A lexandrinus, Z a h n .

Parece que um versículo se deve ler p r o b a tio n ; a palavra não ocorre em


nenhum outro lugar no NT, e um copista não o teria introduzido para
substituir o p r o b a t e n m ais com um (quinze vezes só em Jo 10). É possí-
vel que p r o b a t io n ocorresse em ambos os versículos, e os exemplos de
p r o b a t e n constituem tentativas de copista para introduzir um a palavra
m ais comum. Todavia, enquanto é compreensível que um copista substi-
tuísse p r o b a tio n por p r o b a te n em ambos os versículos, descobrimos ser mais
difícil de ver p o r que ele teria feito isto som ente em um versículo. Temos
seguido o Codex Alexandrinus, e sugiro que as redações no Vaticanus e
no Sinaiticus são tentativas de copista de conferir conform idade nos dois
versículos. As versões exibem m uita variedade, e não podem os estar cer-
tos quão literalm ente seguiram as variações do grego. Algum as testemu-
nhas latinas têm um a só palavra nos três versículos, correspondendo ao
Codex Bezae que tem p r o b a to n em todo ele. O utras testem unhas latinas e
1606 IV · Epílogo

a Vulgata em pregam dois substantivos, porém não necessariam ente na


m esm a ordem . As testem unhas siríaca, arábica e arm ênia tendem a ter
três substantivos diferentes, com as d uas últim as usando a palavra para
"ovelhas" (F. M acler, R e v u e d e V H i s to i r e d e s R e l i g i o n s 98 [1928], 17-19).
Em qualquer caso, aqui som os tam bém inclinados a tratar os substanti-
vos gregos variantes como sinônim os e a variação como estilística, ser-
vindo em geral como ênfase de que o rebanho inclui todos os fiéis (L oisy,
p. 524). A lguns interpretam os três substantivos como referências a três
diferentes grupos na Igreja; p o r exemplo, os três grupos m encionados
em ljo 2,12-14, ou (interpretação patrística) a laicidade, os sacerdotes
e bispos. Mas o fato de que possivelm ente há nos vs. 15-17 três pala-
vras p ara ovelhas não é m ais significativo do que haver nos vs. 5-13 três
diferentes palavras para peixes (p r o s p h a g io n , i c h t h y s , o p s a r io n ). N em há
m uita plausibilidade na tese de que os dim inutivos devem ser tom ados
literalm ente e, assim, há um a progressão no tam anho das ovelhas; por
exemplo, a r n i o n , p r o b a t io n , p r o b a t o n (Bernard), com a im plicação simbó-
lica de que o rebanho inclui tanto os m ais jovens como os m ais velhos,
ou tanto aqueles de fé m ais incipiente e aqueles de fé m ais m adura.
A dificuldade de avaliar os dim inutivos do grego neotestam entário é
notória, e, por outro lado, a r n io n não implica nenhum a m atiz de debili-
dade se puderm os julgarm os por Ap 6,16 e 17,14. N ão im porta que fun-
ção dim inutiva possa haver, dificilmente é significativa em referência à
constituição do rebanho ou à m ansidão a ser esperada d o pastor (contra
S picq, III, 236).
16. J e su s p e r g u n t o u o u tr a v e z . Literalmente, "ele lhe disse outra vez um a se-
gunda vez". O p a li n d e u te r o n , um tanto tautológico, ocorre tam bém em
4,54 (ver nota ali); ambos, ele e sua alternativa m enos estranha e d d e u te r o u
(9,24) correm na LXX. Achamos im plausível a sugestão de que p a li n se
refere ao perguntar de novo, enquanto d e u te r o n enfatiza que a indagação
se centra em um a g a p a n pela segunda vez. Essa tese implica que a escolha
do verbo é im portante.
17. J e su s p e r g u n t o u p e la te r c e ir a v e z . Enquanto não havia artigo usado com
d e u te r o n , "outra vez", o artigo definido aparece antes de t r i t o n , "a tercei-
ra vez", com valor enfático. S picq, III, 2344, quer traduzi-lo "esta terceira
vez" Pedro se sentira triste em função dessa terceira vez pelo fato de que
desta vez Jesus perguntou em term os de p h ile in , ainda quando Pedro já
afirmara duas vezes seu am or em termos de p h ile in . De m odo semelhante,
W estcott, p. 303, com enta que Jesus parece estar em dúvida sobre o afeto
( p h ile in ) hum ano de Pedro para com ele. A ideia de que a tristeza se re-
laciona com a m udança de verbo rem onta até O rígenes (I n P r o v e r b , 8,17;
72 · O Jesus ressurreto fala a Pedro 1607

PG 17:184CD). Entretanto, G a e c h t e r , p. 329, insiste m ais plausivelm ente


que a ênfase real não está no uso de p h ile in , e sim em to t r i t o n : "Jesus
pergunta ainda um a terceira vez" - um a tradução que implica a caráter
sinoním ico das perguntas.
P e d r o f i c o u t r i s t e . É notável que depois de Pedro sentir-se triste, Jesus não
p ergunta outra vez - a cena é dram aticam ente bem construída. Embora a
tristeza seja baseada em ter ele perguntado três vezes, alguns intérpretes
rem ontariam a tristeza de Pedro tam bém ao fato de que, por suas nega-
ções, ele dera a Jesus m otivo de duvidar dele. Um interessante paralelo
aparece em Mc 14,72 e par. onde, depois do canto do galo, que marca a
terceira negação de Pedro, somos inform ados que Pedro chorou (amar-
gamente).
t u s a b e s t u d o . O verbo é o i d a , enquanto g i n õ s k e i n aparece na frase se-
guinte: "tu bem sabes" (ver nota sobre "tu sabes que eu te am o" no v. 15).
O "tu " p o d e ser enfático. Que tipo de conhecimento se atribui ao Jesus
ressurreto aqui? Mesmo durante o m inistério de Jesus João insiste no co-
nhecim ento sobrehum ano de Jesus (2,25), e em 16,30 isto é expresso em
boa m edida na m esm a linguagem como aqui: "Agora sabemos que sabes
tudo". N o contexto desta cena, como a reabilitação de Pedro depois de
suas negações de Jesus, alguns têm im aginado que, por estas palavras,
Pedro estava reconhecendo que Jesus sabia profeticamente que Pedro o
negaria três vezes antes do galo cantar (13,38). O u Pedro está simples-
m ente apelando para a fam iliaridade que Jesus tinha para com ele? Ele já
não poderia dizer para si mesmo: se Jesus não sabe que Pedro o ama, o
que Pedro poderia dizer para se garantir? Com o L a g r a n g e , p. 530, obser-
va, tal protesto é m uito brando para um caráter tão apaixonado.
18. V e r d a d e ir a m e n te , e u te a s s e g u r o . O cap. 21 preserva a mais joanina das ex-
pressões, o duplo "Am ém " (nota sobre 1,51); naturalm ente, este é um
traço estilístico que poderia ser facilmente imitado. Foi dirigido a Pedro
em 13,38 quando Jesus predisse as negações de Pedro. Seu uso aqui tem
sido citado como um argum ento em prol da estreita relação entre os vs.
15,17 e os vs. 18-23; todavia, há no evangelho casos em que se usa como
m ero recurso para estabelecer um certo nexo (nota sobre 10,1).
e r a s j o v e m . . . q u a n d o f o r e s v e lh o . O m esm o contraste de idade se encontra no
SI 37,25. Usa-se o com parativo n e õ t e r o s , "m ais jovem"; mas, em razão da
natureza tradicional da comparação como o caráter vago dos compara-
tivos do grego coinê (ZGB, §150), não podem os deduzir, com base nisto,
acerca da idade de Pedro, exceto que ele estava entre a prim eira juven-
hide e a velhice. Seria exagero concluir com L o i s y , p. 525, que, partindo
do ponto de vista do autor, Pedro já era idoso, mas tratava-se de levar
1608 IV · Epílogo

em conta o cenário fictício do dito, que se supõe haver sido pronunciado


quando Pedro era m ais jovem.
p r e n d ia s te u p r ó p r io c in to . O verbo z õ n n y n a i ou z õ n n y e i n (BDF, §92), usado
duas vezes neste versículo, literalm ente é "cingir", isto é , atar o cinto ou
em torno da cintura para que as roupas fiquem livres, de m odo que se
possa m over e agir sem estorvo. As vezes ele tem o sentido de vestir-se,
aqui, porém , neste caso, se refere a um a acepção m ais literal a fim de que
o m esm o verbo seja aplicável ao ato d e cingir u m idoso no versículo 6.
t u e s te n d e r á s a s tu a s m ã o s , e o u tr o p r e n d e r á 0 c in t o e m t o m o d e t i e t e le v a r á s
Um sujeito plural ("outros") para a segunda e terceira
a o n d e n ã o q u e r e s ir .
frases se encontra num as poucas testemunhas. Com o salienta M arrow,
há quatro itens na comparação: (a) jovem-velho; (b) p render teu próprio
cinto - outro prenderá o cinto; (c) ir - ser levado; (d) O nde querias -
aonde não queres ir. Para o ato de estender os braços do velho não há
ação contrastante com o jovem. A linguagem é m uito vaga; por exemplo,
Schlatter, p. 371, m antém que os braços estendidos se referem à posição
assum ida na oração; e m uitos pensam que um a afirmação m ais geral so-
bre o futuro de Pedro tem-se aplicado subsequentem ente e p o s t e v e n t u m
à m orte de Pedro (v. 19). Em si m esm a, a comparação não precisa impli-
car mais do que, diferente de um jovem, um idoso é ajudado e precisa
ser vestido e guiado por outro (embora o "aonde não queres ir" seja es-
tranho). Diversos estudiosos têm suscitado a possibilidade de que um
provérbio ou máxima bem notória subjaz à com paração joanina; p. ex.,
"o jovem vai aonde bem quer; e o idoso perm ite ser levado" (Cullmann,
P e te r , pp. 88-89). Mas, o que significaria esse contraste em relação ao fu-
turo de Pedro? S chwartz, p. 217, pensa que algum tipo de em enda se faz
necessário para se obter o significado original. Ele propõe esta compara-
ção: Q uando tu eras jovem, te cingias e andavas po r onde querias, mas
agora eu te cinjo e te levarei aonde eu quero. A ideia é que, tendo sido
cham ado para o apostolado nos vs. 15-17, Pedro já não é seu próprio
senhor e se destina a servir Jesus. N ão satisfeito com tal reconstrução,
outros pensam que a com paração prediz que, quando fosse velho, Pe-
dro seguiria Jesus no sofrimento e prisão (um ideal encontrado, opor-
tunam ente, em lP d 2,21-23). A im agem de ser cingido com o cinto seria
apropriada; pois, quando Jesus foi preso, ele foi atado (18,12,24); e Agabo
representou o dram a de atar suas m ãos e pés com o cinto de Paulo a fim
de predizer a prisão deste (At 21,11-12).
Fica claro que o v. 19 aplica a comparação no v. 18 à m orte de Pedro;
e a expressão "o tipo de m orte pela qual Pedro havia de glorificar a
Deus" se refere, em particular, à m orte por m artírio (ver a nota seguinte).
72 · O Jesus ressurreto fala a Pedro 1609

N ão é raro encontrar em João predições vagas e obscuras form uladas por


Jesus que seja possível entender o todo senão depois dos acontecimen-
tos preditos (2,19 ; 3 ,1 4 ; 11,50). Não há paralelos claros nos sinóticos para
predições sobre a m orte de Pedro, a m enos que Lc 22,3 3 seja interpretado
ironicam ente como um a predição inconsciente: "Senhor, estou pronto a
ir contigo p ara a prisão e para a m orte". M uitos intérpretes têm proposto
que, ainda m ais especificamente, a comparação joanina no v. 18 se refere
à m orte por c r u c ifix ã o . A frase-chave para esta interpretação é "tu estende-
rás as tuas mãos"; pois passagens no AT se referindo ao ato de estender
as m ãos foram interpretadas pelos escritores cristãos prim itivos como
prefigurando a crucifixão (E p ís to la d e B a r n á b é 12,4, e os escritos de J ustino,
Irineu e C1PR1AN0, como citados em B ernard, II, 709). Q ue este simbolismo
era com um fora dos círculos cristãos é sugerido por E pictetus (D is c o u r s e s
3 , 2 6 ,2 2 ): "Tu te estendeste à m aneira dos Crucificados". Infelizmente, o
uso idiom ático de "ser cingido ou preso com cinto" como um a alusão ao
cingir-se de um criminoso não é atestado, m esm o quando os que endos-
sam a interpretação da crucifixão tenham assum ido que "outros prende-
rão u m cinto em torno de ti e te levarão aonde não desejas ir" seja uma
referência a atar o criminoso e levá-lo para o lugar de execução. Se isto
é assim , a sequência norm al do procedim ento de execução foi reservada
no v. 18, visto que a crucifixão (estender os braços) é m encionada antes
de atar (prender o cinto). Bauer tenta resolver o problem a, propondo que
o estender dos braços não é a crucifixão real, m as o ato de o prisioneiro
estender os braços para ser atado à transversal que tinha de ser carrega-
da para o lugar da execução. Entretanto, esta explicação rom pe a única
p arte do sim bolismo da crucifixão para a qual temos algum a evidência
clara. É preferível sugerir que, por um tipo de h y s t e r o n p r o t e r o n [inversão
d a ordem ] o autor joanino colocou o ato de estender os braços prim eiro
na ordem a fim de cham ar a atenção p ara ele, precisam ente porque essa
era a chave p ara toda a interpretação. Se o v. 18 se refere à crucifixão de
Pedro, ele constitui nossa evidência mais antiga para esse incidente. Uma
referência ao m artírio de Pedro se encontra em l C l e m e n t e 5 ,4 , porém não
se especifica a m aneira. A tradição da crucifixão de Pedro aparece em
c. de 211 d.C. em T ertuliano, S c o r p ia c e 15; PL 2:151B , que faz referência
clara a Jo 21,18: "O utro prendeu Pedro com um cinto quando ele foi ata-
do à cruz" (ver tam bém E usébio, H i s t . 2 , 2 5 :5 ; GCS 9 1:176). O detalhe de
que Pedro foi crucificado de ponta cabeça, o que E usébio, H i s t . 3 ,1 :2 - 3 ;
GCS 9 1:188, aparentem ente atribui a O rígenes, é um a elaboração tardia.
19. in d i c a v a 0 t i p o d e m o r te p e la q u a l P e d r o e s t a v a p a r a g lo r if i c a r a D e u s . As úl-
tim as palavras ecoam a term inologia cristã para m artírio ou um a morte
1610 IV · Epílogo

sofrida p o r am or a Cristo (ver lP d 4,16; M a r t y r d o m o f P o l y c a r p 14,3,19,2);


e m uitos estudiosos, por exemplo, W e s t c o t t , L o i s y pensam que nada
mais específico está implícito. A ideia de que o v. 19 se refere à crucifi-
xão vem do paralelism o deste versículo com 12,33 e 17,32, onde um a ex-
pressão sim ilar ("indicava o tipo de m orte que ele estava para m orrer")
interpreta o simbolismo do ato de Jesus ser levantado da terra como um a
alusão à sua crucifixão.
" S e g u e -m e " . Posto que o versículo seguinte pareça retratar Jesus como a
cam inhar lado a lado com Pedro e o Discípulo A m ado, o significado li-
teral de "seguir" não precisa ser excluído. N ão obstante, as dim ensões
figurativas do seguir cristão estão tam bém implícitas, a saber, seguindo
no discipulado e para a morte. Ver comentário.
20. E n tã o . Enquanto as testem unhas textuais estão uniform em ente divididas
sobre se se deve ou não ler d e , um "então" está implícito pelo fluxo do
pensam ento.
s e v ir o u . Q uatro vezes em outros lugares João em prega o verbo sim ples
s tr e p h e in (ver 1,38); aqui se usa o e p is tr e p h e i n composto. Am bos os verbos
ocorrem em M ateus e em Lucas m ais ou m enos com igual frequência.
e s t a v a s e g u in d o . Isto é om itido em algum as testem unhas textuais. É bem
provável que é a Jesus, e não a Pedro, que o Discípulo A m ado está se-
guindo; porém duvidam os que o autor tem em m ente subentender que o
Discípulo A m ado já esteja fazendo espontaneam ente o que Pedro foi in-
form ado que fizesse. N ão vemos aqui, a f o r t i o r i , nenhum a alusão de que
o Discípulo A m ado tam bém está seguindo Jesus para a m orte ( B a r r e t t ,
p. 488). B u l t m a n n , p. 5535, está certo em sua afirmação, dizendo que não
se deve dar força dem asiada ao "seguindo", pois ele foi inserido prin-
cipalmente para suprir um antecedente para a cláusula relativa. N ão se
joga com a ideia de que tanto Pedro como o Discípulo A m ado estivessem
seguindo; o contraste é que Pedro há de seguir Jesus enquanto o Disci-
pulo A m ado há de ficar aqui. Para fazermos um a ideia da cena, devem os
im aginar que, enquanto Jesus disse a Pedro que o seguisse, eis aqui o
Discípulo Am ado cam inhando junto; e então Pedro, naturalm ente, pen-
sa no Jesus ressurreto como a agir da m esm a m aneira que fez durante o
ministério, cam inhando lado a lado com seus discípulos.
(a q u e le q u e r e c lin o u - s e a o p e it o d e J e s u s d u r a n t e a ce ia e d is s e : " S e n h o r , q u e m é
Esta referência é um mosaico form ado a p artir de
q u e e s tá p a r a tr a ir - te ? " ) .
13,2 ("durante a ceia"); 13,21 ("Jesus declarou: 'U m de vós m e trairá'");
e especialm ente 13,25 (o discípulo a quem Jesus am ava "reclinou-se ao
peito de Jesus e lhe disse: 'Senhor, quem é?"'). Lembretes entre parênte-
ses são próprios de João (ver nota sobre 19,39); todavia, é curioso que a
72 · O Jesus ressurreto fala a Pedro 1611

identificação seja suprida com a s e g u n d a menção do Discípulo Am ado


em vez de em 21,7. Seria este um sinal de que o redator atuou com m aior
liberdade que nos vs. 2023‫ ־‬do que nos vs. 1-13?
21. V e n d o - o . Aqui, o verbo é e id e in ; em 20 ("notou") foi b le p e in . Não achamos
nenhum a distinção particular (vol. 1, pp. 794801‫)־‬.
" M a s ... q u a n to a e le ? " O grego h o u to s d e t i é elíptico (BDF, §2992); comenta-
ristas suprem vários verbos; por exemplo, "que há de ser dele" ( g in e ta i
- L agrange).
22. E se . Literalmente, "se"; BDF, §373’, salienta que esse tipo de cláusula
condicional poderia apontar para algo que se espera que aconteça no
futuro, m as no v. 23 o autor rejeita essa interpretação.
e u q u e r o . É difícil estar seguro se aqui th e le in tem a simples conotação de
desejo, "quero" (assim nossa tradução) ou a implicação mais soberana de
"propósito, vontade", pois esse é o verbo usado para expressar a vontade
de Deus.
p e r m a n e ç a . O verbo m e n e in pode significar "ficar vivo", como em IC or 15,6,
e essa é a ideia aqui; porém é incerto se algum dos significados teológicos
joaninos d e m e n e in (vol. 1, pp. 81113‫ )־‬seja aplicável - "ficar vivo unido a
m im em am or". E. Schwartz, ZNW 11 (1910), 97, propôs a arriscada tese
de que m e n e in significa "perm anecer no túm ulo", que originalm ente o
dito nada tinha a ver com o não m orrer do discípulo, e que o v. 23 é um a
interpretação errônea em sua totalidade.
a t é q u e e u v e n h a . M esmo sem a evidência do v. 23, dificilmente esta seja um a
referência à vinda de Jesus na m orte, pois todo cristão deve perm anecer
até que Jesus o visite na morte. M uito embora M arrow sugira a possi-
bilidade de hipérbole ("suponhas que eu queira que este discípulo viva
perenem ente"), a m aioria dos comentaristas encontram neste dito um a
expectativa de que a segunda vinda de Jesus aconteceria dentro de um
curto tem po após a ressurreição. A palavra h é õ s , traduzida "até que",
pode significar tam bém "enquanto" (assim J. H uby, R e v u e a p o lo g é tiq u e 39
[ 1 9 2 4 8 9 ‫־‬25], 688‫ ;־‬e assim alguns traduziríam assim: "enquanto eu vou"
(todo o tem po de m inha partida) ou "enquanto estou indo" (W estcott,
p. 305: a vinda é um a realização lenta e contínua). Traduções como essas
podem ser m otivadas por um desejo de evitar im putar algum equívoco
à segunda vinda.
q u e te im p o r t a ? Literalmente, "o que para ti?"; esta expressão, t i p r o s , com
u m pronom e é clássica (BDF, §1273) e é próxim a à expressão usada em
2,4 (onde faltou o p r o s ) . E tam bém usado em M t 27,4, onde, depois que
Judas se reconhece culpado em trair Jesus, os sum os sacerdotes respon-
deram : "O que isso nos im porta?"
1612 IV · Epílogo

Q u a n to a t i , s e g u e - m e .Literalmente, "Tu m e segues". N a ordem sim ilar


em 19, não se usa o pronom e grego "tu", de m odo que seu aparecim ento
aqui é enfático, para contrastar Pedro com o Discípulo A m ado que não
seguirá Jesus até a m orte d a m esm a m aneira que Pedro o seguirá.
23. É d e v id o a e s ta p a la v r a q u e c ir c u lo u . Literalmente, "Então esta palavra saiu";
em Mc 1,28 há um fraseado sim ilar ("Se divulgou a notícia [ a k ó ê ] " ) ,
e há quem pense que ela é um aram aísmo. L o g o s , "palavra", é com fre-
quência usada para um dito de Jesus em João (2,22; 4,50 etc.). Em linha
com a tese na nota sobre "perm aneça", em 22, S chwartz pensa que esta
explicação, quase um parêntese, constitui um a adição tardia ao evange-
lho. N ão há evidência textual que apoie esta sugestão, e o versículo já era
conhecido de T ertuliano (D e a n im a , 50; PL 2:735B).
o s ir m ã o s . Em 20,17, vim os este term o aplicado aos discípulos im ediatos
de Jesus, porque seriam gerados como filhos de Deus através do dom
do Espírito e, assim , se tornariam irm ãos de Jesus. Aqui, ele se apli-
ca aos cristãos da com unidade joanina (provavelm ente com a m esm a
com preensão teológica), um uso atestado tam bém em 3Jo 5, e em outras
passagens do NT (um as cinquenta e sete vezes em Atos; M t 5,22-24;
18,15 etc.).
n ã o m o r r e r ía . As tradições fantasiosas aum entaram sobre João, identificado
como o Discípulo Am ado; por exemplo, que ele havia d e peregrinar pelo
m undo através de todos os séculos, ou que dorm e em seu túm ulo em
Efeso e o m ovim ento na superfície da terra, acima dele, atesta sua respi-
ração (A gostinho I n Jo. 64,2; 35:1970).
N a r e a lid a d e . O d e (bem atestado, porém não certo) tem um a posição inco-
m um para o grego joanino (A bbott, JG, §2075), e lhe temos dado força.
A tradição bizantina e alguns mss. do OL leem k a i no lugar. C om entários
reflexivos não são incom uns em João (2,22; 12,16).
[0 q u e te im p o r t a ] . Isto se encontra nas m elhores testem unhas textuais, mas
pode ser um a imitação de copista com base no v. 22.

C O M E N T Á R IO

"Tu m e am as?" - r e a b ilita ç ã o d e P e d r o (vs. 15-17)

Em §71 p ro p u s e m o s a tese d e q u e u m a d a s d u a s n a rra tiv a s q u e fo ra m


c o m b in a d as p a ra c o m p o r o s vs. 1-14 d iz ia re sp e ito à p rim e ira a p a ri-
ção d o Jesu s re s su rre to a P e d ro e q u e e sta n a rra tiv a c o n c lu íd a co m a
72 · O Jesus ressurreto fala a Pedro 1613

rea b ilita ç ã o d e P e d ro e ser-lh e c o n c ed id o u m lu g a r d e a u to rid a d e n a


c o m u n id a d e cristã. A fo rm a jo an in a d e s ta reab ilitação e com issão se
e n c o n tra n u m a fo rm a d ra m á tic a n o s vs. 15-17 - u m a fo rm a q u e p o d e
re p re s e n ta r u m a c o n sid e ráv e l ree lab o ração d o d iálo g o o rig in al d a
cen a, e s p ec ialm en te n a ad o ç ão d e u m tríp lice e sq u em a d e p e rg u n ta ,
re s p o s ta e reação , u m e sq u e m a q u e p o d e refletir in flu ên cia litúrgica.
É in teressan te n o tar que, e n q u an to p o r diferentes razões, n e m B ultmann
e n e m G rass p e n s a m q u e a conexão d o s vs. 15-17 com 1-14 é original,
a m b o s co n c o rd a m q u e o s vs. 15-17 r e p ro d u z m aterial tradicional e n ão
é a criação d o re d a to r. (B u ltm a n n p e n sa q u e o acréscim o d o s vs. 15-17
c a u so u ên fase artificial so b re P e d ro n a n a rra tiv a d e 1-14; G rass p e n sa
q u e a p re se n ç a o rig in a l d e P e d ro e m 1-14 c a u so u a ad ição d e 15-17
n o final). A asso ciação d a im a g e m d e p a s to r com P e d ro se en co n tra
in d e p e n d e n te m e n te e m l P d 5,1-4.
A m aio ria d o s c o m e n tarista s tem e n c o n tra d o n a tríp lice e reite-
r a d a p e rg u n ta d e Jesus "T u m e am a s? " e n o tríp lice "T u sab es q u e eu
te a m o " u m a a n u la ç ã o sim bólica d a tríp lice n e g a çã o q u e P e d ro faz d e
Jesus. C o n s e q u e n te m e n te , eles v e e m e m 15-17 a reab ilitação d e P e d ro
a o d is c ip u la d o a p ó s s u a q u e d a . (É p refe rív e l falar d e reab ilitação ao
d is c ip u la d o d o q u e d e ap o sto la d o : a n te s ele era d iscíp u lo ; ag o ra ele
é re a b ilita d o co m o d isc íp u lo e se to rn a a p ó sto lo - v e r n o ta so b re 2,2).
A p e rg u n ta d e Jesu s v isa v a a estab elecer q u e P e d ro tiv esse o am o r
d e d ic a d o q u e é d a essên cia d o d isc ip u la d o . O a rre p e n d im e n to d e Pe-
d ro e s ta ria im p lícito e m s u a p a té tic a in sistên cia so b re seu a m o r e n a
triste z a q u e a tríp lic e e re p e tid a p e rg u n ta lh e c a u sa (v. 17). E m vez
d e g lo riar-se d e q u e a m a a Jesu s m ais d o q u e o u tro s (15), u m P ed ro
re a b ilita d o d eix a s u a c a u sa n o co n h e cim e n to d e Jesus d o q u e está em
s e u co ração (v. 17).
S pitta , G o guel e B u ltm a n n estã o e n tre os q u e n ã o in te rp re ta m a
cen a co m o u m a rea b iü tação . B u ltm a n n , p. 5518, a p o n ta p a ra o fato de
q u e n ã o h á n o N T o u tro v estíg io rea l d a id eia d e q u e P e d ro experi-
m e n to u a reab ilitação . E n tre tan to , d ificilm en te isto é p ro v á v e l preci-
s a m e n te p o rq u e , fo ra d e Jo 21, o re la to d a p rim e ira a p a riçã o d e Jesus
a P e d ro tem s id o p re s e rv a d o so m e n te e m p a rte e em fra g m en to s dis-
p e rso s. P o r o u tro la d o , se e stiv e rm o s certo s em a firm a r q u e Lc 5,1-11
é u m d e ste s fra g m en to s, e n tã o o "A fasta-te d e m im , S enhor, p o is so u
p e c a d o r" (v. 8) d e P e d ro e o " N ã o tem as; d o ra v a n te serás p e sc a d o r d e
h o m e n s " (v. 10) d e Jesus p o d e r í a m se r in te rp re ta d o s com o u m a cena d e
1614 IV · Epílogo

a rre p e n d im e n to , p e rd ã o e reabilitação. D a m esm a m a n e ira lem o s q u e


o clam o r d e P ed ro , "S enhor, salv a-m e", e a re sp o sta d e Jesu s, " Ó ho-
m em d e p e q u e n a fé, p o rq u e d u v id a ste ? " , q u a n d o Jesu s sa lv a P e d ro em
M t 14,30-31. T am b ém e m Lc 22,31-34 se p o d e d e d u z ir u m a reab ilitação
o n d e, n o co n tex to d e u m a referência às n eg açõ es d e P e d ro , Jesus p re-
d iz q u e, q u a n d o P e d ro se c o n v e r t e s s e , fortalecesse se u s irm ão s. A lém
d isso, em 21,9 h á existe a lg u m a s e v id ên cias in te rn a s q u e le m b ra m o
fato d e q u e h a v ia c arv õ es em b ra sa n a cena d o p á tio o n d e P e d ro n e g o u
Jesus (18,18). N ã o confiam os d e m a sia d a m e n te n o a rg u m e n to d e q u e
n o v. 18 h o u v e trê s n eg açõ es e q u e n o cap. 21 h á trê s p e rg u n ta s e res-
p o stas, m a s d e fato estes são a p e n a s trê s g ru p o s d e trê s rela cio n a d o s a
P e d ro n o Q u a rto E v angelho. E m 21,19.22, P e d ro receb e d u a s o rd e n s
p a ra se g u ir Jesu s n o co n tex to d e u m d ito re fe re n te à m o rte d e Jesus
(18-19). Isto é q u a se u m a c o n tra p a rte d o d iá lo g o asso c ia d o à p re d iç ã o
d e Jesu s d a tríp lice n e g a çã o d e P e d ro e m 13,36-38. A li, e m referên cia
à s u a p ró p ria m o rte , Jesus disse: " P a ra o n d e e s to u in d o , tu n ã o p o d e
seg u ir-m e ag o ra; m a s m e se g u irá s d e p o is" . P e d ro p ro te sto u : " P o r
q u e n ã o p o sso se g u ir-te ag o ra? P o r ti e sto u p ro n to a d a r m in h a v id a " .
A isto Jesu s rep lico u q u e , em v e z d e m o rre r p o r ele, P e d ro o n e g a ria
três v ezes. N o cap. 21, se e n te n d e rm o s o s vs. 15-17 co m o rea b ilitação
d e P e d ro , e n tã o Jesu s p re d iz a m o rte d e P e d ro e in sta c o m P e d ro q u e
o sig a a té o p o n to d e sta m o rte (crucifixão?). P o r fim as p a la v ra s d e
P e d ro em 13,37 irã o se to m a r rea lid a d e : ele d a rá s u a v id a p o r Jesus.
T alv ez seja b o m m e n c io n a r a teo ria d e G lom biza , a r t . c i t . , d e q u e,
q u a n d o Jesu s c o n v id o u P e d ro , ju n ta m e n te co m os d e m a is d isc íp u lo s,
à refeição em 21,12, ele o fereceu tu n g esto d e a m iz a d e q u e p re s s u p õ e
o u e n v o lv e p e rd ã o . E n q u a n to p o ssa h a v e r a lg u m a v e rd a d e n a id eia
d e q u e a q u e stã o so b re o a m o r d e P e d ro n ã o d e v e d iv o rc iar-se d o p a n o
d e fu n d o d a refeição co m o u m g esto d e a m iz a d e , ficam os h e sita n te s
so b re asso ciar p e rd ã o com a refeição; p a re c e u m a a lu sã o su til d e m a is.
A lém d isso , n a h istó ria d a co m p o sição d o c a p ítu lo , o rig in a lm e n te a
refeição p e rte n c ia a o u tro re la to d ife re n te d a q u e le d a a p a riç ã o a Pe-
d ro , e o p a p e l d e P e d ro n a refeição p e rm a n e c e d e m a s ia d a m e n te in-
sig nifican te p a ra c o n stitu ir u m a reab ilitação c o rre s p o n d e n te à fran ca
n eg ação q u e P e d ro fez c o n tra Jesus.
D os q u e in te rp re ta m psicologicam ente a cena evangélica, a lg u n s
ach am trivial e até m esm o m esq u in h o q u e Jesus desafiasse o a m o r d e Pe-
d ro três v ezes a fim d e lem brá-lo q u e ele o n e g a ra três vezes. Se a lg u é m
72 · O Jesus ressurreto fala a Pedro 1615

a ceita e s ta p e rs p e c tiv a d u v id o sa , e sse te rá q u e se r co n sisten te, sa-


lie n ta n d o q u e as n eg açõ es d e P e d ro n ã o são a p re s e n ta d a s com o q u e
o c o rre n d o c a su a lm e n te o u e m u m m o m e n to d e fra q u e z a , e sim com o
p re d ito e se p ro d u z ira m d u ra n te u m c erto lap so d e tem p o , e, p o rta n -
to , reflete u m a d e b ilid a d e rad ical. A lém d o m ais, Jesus se m o stra com -
p a ssiv o : a d e s p e ito d a traição d e P e d ro , assim q u e ele p ro fe ssa seu
a m o r, Jesu s lh e co n ced e u m a p o sição d e co n fian ça e a u to rid a d e . M as,
p o r c erto q u e a m e lh o r a b o rd a g e m é a b ste r-se d e e sp ec u laç ã o psicoló-
g ica e se p o s ic io n a r p e la ênfase d o p ró p rio texto. Só in d ire ta m e n te os
vs. 15-17 se refe re m à s n eg açõ es e reab ilitação d e P ed ro ; a im plicação
d ire ta d a tríp lic e p e rg u n ta e re sp o sta n ã o é ta n to q u e Jesus d u v id e d e
P e d ro , m a s q u e o a m o r d e P e d ro p a ra com Jesus seja p ro fu n d o .

"A p a s c e n t a m e u s c o r d e i r o s " - C o m is s ã o d e P e d r o (vs. 15-17)

A s trê s p e rg u n ta s e re sp o sta s so b re o a m o r são a c o m p a n h a d a s p o r


u m m a n d a d o re ite ra d o trê s v ezes q u e P e d ro a p a sc e n ta sse o u c u id asse
d a s o v elh as. G e ra lm en te se su p õ e q u e o m a n d a d o é d a d o trê s v ezes à
m o d a d e estilo artístico d e c o n tra p o r as três p e rg u n ta s e resp o stas, cujo
n ú m e ro foi d e te rm in a d o p e la s trê s negações. N ã o o b stan te, G aechter ,
a r t . c i t . , e la b o ra u m a in te re ssa n te tese, c o n sid e ra n d o se p a ra d a m e n te o
tríp lice c a rá te r d o m a n d a d o . Ele d á ex em p lo s, an tig o s e m o d ern o s, d o
c o s tu m e n o O rien te P ró x im o d e d iz e r alg o trê s v ezes d ia n te d e teste-
m u n h a s , a fim d e d a r so le n id a d e ao q u e se afirm a, especialm en te no
caso d e c o n tra ste s q u e co n firam d ire ito s e d e d isp o siçõ es legais. N esta
a n a lo g ia ju d ic ia l e c u ltu ral, G a ech ter p ro p õ e q u e o tríp lice m a n d a d o
d e Jesu s co n fere a u to rid a d e e im p o rtâ n c ia e speciais ao p a p e l d e P ed ro
co m o p a s to r (assim tam b é m B ultm a nn , p. 5515).
A caso este m a n d a d o d e v a ser in terp retad o com o o equivalente d a
m issão apostólica conferida aos o u tro s discípulos nas aparições pós-res-
su rreição d o s o u tro s ev an g elh o s, o u a q u i estaríam o s tra ta n d o d e u m a
co m issão a u to rita tiv a p e c u liar a P edro? N o p a ssa d o , a resp o sta a esta
q u e stã o foi m a tiz a d a p elas d isp u ta s e n tre católico-rom anos e protes-
tan te s o u o rto d o x o s so b re a a u to rid a d e d o p a p a q u e p re ssu p õ e auto-
rid a d e esp ecial d e P e d ro n a Igreja p rim itiv a. H oje h á m aio r tendência
d e te n ta r in te rp re ta r a E scritura in d e p e n d e n te m e n te d a s d isp u ta s do u -
trin ais p o sterio res, e já n ã o é u m a tese p e cu liarm en te católico-rom ana
d e q u e P e d ro exerce u m p a p e l especial n o s tem p o s neotestam entários.
1616 IV · Epílogo

Dois estudiosos protestantes d e tendências diferentes, com o C ullm ann


e B ultm ann , são b e m firm es e m in te rp re ta r o m a n d a d o d o s vs. 1 5 1 7 ‫ ־‬em
term o s d e u m a com issão a u to rita tiv a co n fiad a a P e d ro , p o n to d e v ista
esse já d e fe n d id a p o r V on H arnack , W . B auer , L oisy, e n tre o u tro s. De
fato, B u ltm ann , p . 552, a rg u m e n ta q u e a com issão a P e d ro rep re sen ta
u m estra to m ais an tig o d o p e n sa m e n to jo an in o d o q u e a q u ele rep resen -
tad o p e la m issão m ais a m p la d a d a aos d iscíp u lo s em 20,21.
P esso alm en te, n ã o crem os q u e a lin h a e n tre a m issão ap o stó lica e
com issão a u to rita tiv a especial necessite d e ser tra ç ad a tão exclusiva-
m ente. C u llm ann , P e t e r , p. 65, ex p ressa co n tu n d e n tem e n te : " O m an -
d a d o d e a p a sc e n ta r a s o v e lh a s in clu i d u a s a tiv id a d e s q u e te m o s m os-
tra d o ser as ex p ressõ es su cessiv as d o a p o sto la d o d e P ed ro : lid e ra n ç a
d a Igreja p rim itiv a em Je ru sa lé m e p re g a ç ã o !m issionária". E m o u tra s
p a la v ras, h á , resp e c tiv a m e n te, m issão o u d isc ip u la d o a p o stó lic a geral
e co m issão a u to rita tiv a esp ecial n o m a n d a d o d e P e d ro . P o r ex em p lo ,
h á u m a fo rte ê n fase so b re a m i s s ã o a p o s t ó l i c a n o c o n te x to q u e prece-
d e (o sim b o lism o d a p esca), e n q u a n to q u e , n o c o n te x to q u e se g u e, a
in stru ç ã o re ite ra d a trê s v e z e s "S e g u e-m e" (19 e 22) é a lin g u a g e m d o
d isc ip u la d o (Jo 1,37.43; 10,27; 12,26; A p 14,4; M c 1,18; 2,14; etc.). Se
estam o s certo s e m p e n s a r q u e m u ito d e Lc 5,1-11 fo rm a p a ra le lo com
Jo 21 e o rig in a lm e n te e ra p a rte d e u m a a p a riç ã o p ó s-re ssu rre iç ã o a
P ed ro , é in te re ssa n te o b se rv a r q u e a cen a te rm in a n a n o ta d e P e d ro
e seu s c o m p a n h e iro s se g u in d o Jesus. E sta n o ta p o d e ría te r p erten cí-
d o ao c h a m a d o d o s p rim e iro s d isc íp u lo s, m a s p o d e se rv ir a u m d u -
p io d e v e r d e e x p re ssa r o tem a d e m issã o ap o stó lica. E m p a rtic u la r,
N . A rvedson , co m o re g istra d o e m N T A 3 (1958-59), 77, e n c o n tra u m
p a ra lelism o e n tre Jo 21,15ss. e a p resc riç ã o p a ra o d isc ip u la d o em
M c 8,34 e p ar.: "Se a lg u é m deseja v ir a p ó s m im , q u e n e g u e a si m es-
m o, to m e s u a c ru z e sig a-m e". A rvedson su g e re q u e o a m o r d e Jesus
exig id o d e P e d ro e m 21,15-17 é e q u iv a le n te à n e g a çã o d e si m esm o ; o
ca rre g ar a c ru z é in sin u a d o n a p ro fe c ia d a m o rte d e P e d ro e m 18-19;
e a o rd e m d e se g u ir se to rn a ex p lícita n o v. 19 e n o v. 22. C o n c lu in d o ,
p o d e m o s ac re sc en ta r q u e o a m p lo p a n o ra m a q u e à s v e z e s é p a rte d a
m issão a p o stó lic a n a s a p a riçõ e s p ó s-re ssu rre iç ã o p o d e e sta r im plícito
n o m a n d a d o a P e d ro em d e c o rrê n cia d a n o ção jo a n in a d e q u e o reba-
n h o co n tém o v e lh a s d e m ais d e u m a p risc o (10,16).
Se h á u m e le m en to d e m issã o o u d isc ip u la d o a p o stó lic o n o m an-
d a d o a P e d ro d e a p a sc e n ta r o u c u id a r d a s o v elh as, h á ta m b é m e até
72 · O Jesus ressurreto fala a Pedro 1617

m e sm o m ais c la ra m e n te u m a c o m i s s ã o a u t o r i t a t i v a . A im a g e m d o p as-
to r n o s te m p o s b a b ilô n io s (H a m m u rab i), q u e v e m a tra v é s d o p e río d o
v e te ro te s ta m e n tá rio , im p lica a id eia d e a u to rid a d e . S h eeh a n , a r t . c i t . ,
ilu s tra o tem a d o c u id a d o d o re b a n h o q u e fo rm a o p o v o com a u to rid a-
d e n o caso d e Ju izes ( lC r 17,6) e d e D av i e S aul (2Sm 5,2). C u id a r d o re-
b a n h o sig n ifica g o v e rn a r so b re ele (ver o b serv açõ es so b re p o i m a i n e i n
n a n o ta so b re " a p a sc e n ta m e u s c o rd e iro s" e m 15); e já q u e D eus m es-
m o é o P a s to r d e Israel (G n 49,24; O s 4,16; Jr 31,10; Is 40,11; SI 80,2[1]),
e sta fu n çã o so b re o re b a n h o d e Israel é u m a a u to rid a d e d iv in a m e n te
d e le g a d a . S h e e h a n , p . 27, re su m e a ssim a situação: "A fig u ra [do pas-
tor] é u s a d a e m situ a ç õ es q u e e n fa tiz a m q u e os líd e res d e Israel p a r-
tilh a m d a a u to rid a d e d iv in a e a g e m co m o d e le g a d o s d e D eu s n o uso
d e s sa a u to rid a d e " . A lém d o u so v e te ro te sta m e n tá rio d a im a g e m d o
p a s to r p o d e m o s a g o ra re c o rre r ao p a n o d e fu n d o c o n te m p o râ n e o d o
N T , a sa b er, o u s o q u e Q u m ra n fez d e sta im a g e m p a ra d e scre v e r a ta-
re fa d o m e b a q q ê r o su p e rv iso r q u e a tu a co m a u to rid a d e (CD 13,9-10)
q u e tin h a o p o d e r d e ex a m in ar, e n sin a r e c o rrig ir o s m em b ro s d a co-
m u n id a d e . A lu z d e tu d o isto, é m u ito c o m p re en sív e l q u e Jo 21,15-17
fosse in te rp re ta d o com o a concessão a P e d ro d e, resp e c tiv a m e n te, a
re s p o n s a b ilid a d e p e lo re b a n h o e a a u to rid a d e so b re ele, q u e p e rte n -
d a m a o p ró p rio Jesus com o o b o m p a sto r (cap. 10). N a aparição pós-res-
su rreição d e 20,21 e n c o n tra m o s Jesus, o e n v ia d o p e lo Pai, e n v ia n d o
o s d isc íp u lo s p re c isa m e n te co m o ele m esm o foi e n v ia d o ; d e m o d o se-
m e lh a n te , n e sta a p a riç ã o e n c o n tra m o s Jesus, o b o m p a sto r, fazen d o
P e d ro u m p a s to r p a ra d a r assistên cia ao reb a n h o . E v e rd a d e q u e u n s
p o u c o s e s tu d io so s, p o r e x em p lo , L oisy, p . 523, têm q u e stio n a d o a rela-
ção d e 21,15-17 c om a im a g e m d o p a s to r n o cap. 10 e têm a le g a d o q u e
o re d a to r e ra m ais d e p e n d e n te d a im a g e m sin ó tica d o p a sto r; C assian ,
a r t . c i t . , p o ré m , m o stra a ín tim a relação d a s d u a s p a ssa g e n s joaninas,
a s q u a is são o s ú n ico s casos d a im a g e m d o p a s to r n o Q u a rto E van-
g elh o . É p a rtic u la rm e n te sig n ificativ o q u e u m a referên cia à m o rte d e
P e d ro (21,18-19) sig a im e d ia ta m e n te o m a n d a d o d e c u id a r d a s ove-
lh as; p o is e n tre to d o s os e m p re g o s n e o te sta m e n tá rio s d a im ag em d o
p a s to r, s o m e n te Jo 10 especifica q u e u m a d a s fu n çõ es d o b o m p a sto r é
d a r s u a v id a p e la s o v elh as (vol. 1, p . 676).
A in te rp re ta ç ã o d e 2 1 ,1 5 1 7 ‫ ־‬em term o s d e u m a a u to rid a d e especial
c o n ferid a a P e d ro conta tam b é m com o ap o io q u e su p õ e o fato d e que
essa p a ssa g e m é c o n sid e rad a freq u en tem en te p a ra lela d e M t 16,16b-19
1618 IV · Epílogo

q u e, co m o tem o s v isto (cf. p . 1584-85) p ro c e d e ría d a m e sm a a p a riç ã o


a P e d ro q u e p o ssiv e lm e n te foi a c a u sa d e q u e o n o m e d e ste encabece
a lista d o s a p ó sto lo s. E m M t 16,19 se e m p re g a a im a g e m d a e n tre g a
d a s ch av es q u e c o n v e rte a P e d ro n o p rim e iro m in istro d o rein o , q u e
id eo lo g icam en te n ã o se a fasta m u ito d a im a g e m d e c o n v e rte r-lh e em
p a s to r d o reb an h o .
Q u e tip o d e a u to rid a d e P e d ro p o ssu i co m o p a sto r? M u ito s com en-
taristas, p o r ex em plo, S picq , III, 233-36, p ro p õ e m q u e Jesus p rim e iro
q u e stio n o u o a m o r d e P ed ro , p o rq u a n to a tarefa d e P e d ro c o m o p a sto r
teria d e ser ex ercida com a m o r p a ra com o reb an h o . A mbrósio , I n L u c .
10,175; PL 15:1848B, observa: "E le n o s e sta v a d e ix a n d o P e d ro co m o o
v ig ário d e se u a m o r". S picq o b serv a q u e Jesus confia à q u e le s a q u e m
ele a m a alg u é m q u e o a m a, e o c u id a d o p a sto ra l d e P e d ro é a d e m o n s-
tração d o a m o r d e P ed ro . N ã o o b stan te, e n q u a n to n in g u é m q u e stio n a
q u e o c u id a d o p a sto ra l en v o lv e a m o r, n ã o e sta m o s certo s d e q u e isto
p o d e d e riv a r-se d a conexão n o s vs. 15-17 e n tre a q u e stã o so b re o a m o r
d e P e d ro e o m a n d a d o d e c u id a r d a s ovelhas. O a m o r ex ig id o d e P e d ro
é p a ra co m Jesus, e n ã o ex p licitam en te p a ra com o reb a n h o ; é u m a m o r
d e c o m p leta a d e sã o e serviço exclusivo (cf. D t 6,5; 10,12-13). A conexão
lógica com o m a n d a d o d a d o a P e d ro é q u e , se ele se d e d ic a r to ta lm e n te
a Jesus, e n tã o Jesus p o d e confiar-lhe s e u re b a n h o co m a c e rtez a d e que
P e d ro aq u iescerá à v o n ta d e d e Jesus (cf. Is 44,28). O tríplice m a n d a d o
d e c u id a r d a s o v elh as p õ e m en o s ên fase n a s p re rro g a tiv a s q u e a d v ê m
a P e d ro d o q u e em se u s deveres: e n fatiza su a o b rig ação d e c u id a r d as
ovelhas. N a d escrição d o p a s to r n o cap. 10 n ã o h á ên fase n a po sição
s u p e rio r d o p a sto r, m as, antes, e m s u a fam ilia rid a d e com a s o v elh as e
su a to tal d ed icação ao re b a n h o até m esm o e n v o lv e n d o a p ró p ria m or-
te. E c e rtam en te isto e staria e m h a rm o n ia com a a titu d e p ro fé tic a do
AT p a ra co m o s p a sto re s g o v e rn a n te s d e Israel: h á u m a d u r a conde-
n ação d a q u e le s p a sto re s q u e fazem o re b a n h o servi-los, e h á a n e lo p o r
p a sto re s se g u n d o o p ró p rio co ração d e D e u s q u e se são c a p az e s d e se
d o a re m com sa b ed o ria e d e d ic a ç ão p e lo re b a n h o (Ez 34; Jr 3,15). Se
1 P e d ro foi escrita p e lo a p ó sto lo o u p o r a lg u m d isc íp u lo p e trin o des-
co n h ecid o , o P e d ro q u e fala ali d o p a sto re io n ã o é d e sle a l p a ra com o
id eal jo an in o . Ele ex o rta o s d e m a is anciãos: " A p a sce n ta i o re b a n h o de
D eus, q u e está e n tre v ó s, te n d o c u id a d o [ e p i s k o p e n ] d ele, n ã o p o r força,
m as v o lu n ta ria m e n te ; n e m p o r to rp e gan ân cia, m a s d e â n im o p ronto;
n e m com o te n d o d o m ín io so b re a h e ra n ç a d e D eus, m a s se rv in d o de
72 · O Jesus ressurreto fala a Pedro 1619

e x e m p lo ao re b a n h o " ( lP d 5,2-3). A lém d o m ais, n o tam o s q u e em


Jo 21,15-17 o fato d e q u e o m a n d a d o d e c u id a r d a s o v elh as seg u e a rea-
b ilitação d e P e d ro , d eix a claro q u e ao fazer d e P e d ro o p a sto r, isso não
se d e v e q u e h o u v e sse d e su a p a rte m érito especial. A escolha d e P ed ro
é u m a d e m o n stra ç ã o d a o p eração d e D e u s a tra v és d a s coisas fracas
d e ste m u n d o . (As o u tra s d u a s p a ssa g e n s d o ev an g elh o q u e têm refe-
rên cia à p o sição esp ecial d e P ed ro , M t 16,16b-19 e Lc 22,31-32, estão no
co n tex to d e u m a re p rim e n d a a P e d ro p o r su a s falhas).
C o m o p a s to r, a a u to rid a d e d e P e d ro n ã o é ab so lu ta. Jesus é o
b o m p a s to r a q u e m o P ai co n fio u as o v elh as e n in g u é m p o d e to m á
-las d ele. E las p e rm a n e c e m s u a s até m esm o q u a n d o ele confia a Pe-
d ro o c u id a d o delas: "A p a sc e n ta a s m in h a s o v elh as". A gostinho , I n
J o h . 73,5; PL 35:1967, p ara fra se ia : " C u id a d a s m in h a s com o m in h as,
e n ã o co m o tu a s" . A ssim , n in g u é m p o d e p e n s a r em to m a r o lu g ar
q u e Je su s d e u a P e d ro co m o o p a s to r d a s o v elh as. U m a v e z m ais,
1 P e d ro (5,2-4) e stá e m h a rm o n ia com o p e n sa m e n to jo an in o so b re o
p a sto ra d o : o re b a n h o d e D e u s foi e n tre g u e à in cu m b ê n cia d o s anciãos
c ristã o s q u e são p a sto re s so b re ele, m a s Jesus p e rm a n e c e o p rin c ip al
p a s to r (v er ta m b é m l P d 2,25).
Seria P e d ro o ú n ico p a s to r a q u e m Jesus d esig n a? E v id en tem en te,
e m o u tro s lu g are s n o N T a im a g e m d o p a s to r se aplica a v ário s tipos
d e líd e res c ristão s (M t 18,12-14; A t 2 0 ,2 8 2 9 ‫ ;־‬l P d 5,1-5), m as n o s ocupa-
m o s co m o te o r d e Jo 21,15-17. A lg u n s a u to re s tê m a leg ad o q u e P ed ro
é o re p re s e n ta n te d e to d o s os d iscíp u lo s e q u e o m a n d a d o d e c u id ar
d a s o v elh as, d irig id o a ele, se d e stin a a eles tam b ém . N o ssa d ú v id a se
d e v e ao fato d e q u e n o ssa reco n stru ção d a h istó ria d o c a p ítu lo o n d e os
vs. 15-17 se rv e m com o a co n clu são d e u m a ap a riçã o a P ed ro , acom pa-
n h a d a só d e a lg u n s p e sca d o re s a n ô n im o s, ap a riçã o esta q u e é d istin ta
d a a p a riç ã o ao s d oze. M esm o n a m escla d e ap ariçõ es q u e ora existe
n o cap. 21, e n q u a n to os o u tro s d iscíp u lo s fig u ra m em certa extensão
n a cen a d a p esca e sim b o licam en te se to rn a m p esca d o re s d e h o m en s,
so m e n te P e d ro é a b o rd a d o n a lin g u a g e m d o p a sto ra d o . O s discípulos
d e sa p a re c e m n e ste contexto e são m e n c io n ad o s so m e n te p o r c o n t r a s t e
a P ed ro : "T u m e a m a s m a i s d o q u e e s t e s ? " D e fato, n e m se q u er se chega
a su g e rir q u e o D iscíp u lo A m a d o seja p a sto r. P arecería q u e a id eia d e
10,16 p ro ss e g u e n o cap. 21: u m só reb a n h o , u m só p asto r.
T odavia, se pensarm os que som ente a P edro é d a d o o m an d ad o de
apacentar ao rebanho, não concordam os com os q u e vão ao o utro extrem o,
1620 IV · Epílogo

in te rp re ta n d o os vs. 15-17 n o se n tid o d e q u e P e d ro é e x p lic ita m e n te


feito p a s to r so b re os d e m a is d isc íp u lo s o u so b re o s d e m a is m em b ro s
d o s d o ze. A s o v elh as m e n c io n a d a s n o s vs. 15-17 são in d u b ita v e lm e n -
te os cristão s cre n tes in tro d u z id o s n o a p risc o p e lo s esforços m issio-
n á rio s sim b o liz a d o s p e la p esca. É m u ito d u v id o so q u e João q u isesse
in clu ir os m issio n á rio s n a im a g e m d o reb a n h o . C o m o M t 16,16b-19,
esta p a s sa g e m d iz re sp e ito à relação d e P e d ro co m a Igreja e m geral,
n ã o in terrelaçõ es e n tre P e d ro e os o u tro s d isc íp u lo s e m q u e stõ e s d e
a u to rid a d e . A frase c o m p a ra tiv a em "T u m e a m a s m ais d o q u e a es-
tes?" n ã o p o d e ser u s a d a p a ra e stab elecer q u e , p o sto q u e P e d ro am a-
v a m ais (q u e e m si m esm o é in certo ), e n tã o ele p o s s u i m ais a u to rid a -
de. O P rim e iro C oncilio V atican o e m 1870 c ito u Jo 21,15-17 ju n to com
M t 16,16-19 em relação à su a d efin ição d o g m átic a d e q u e " P e d ro , o
ap ó sto lo , foi c o n stitu íd o p o r C risto , o S en h o r, co m o c h e f e d e t o d o s o s
a p ó s t o l o s e co m o cabeça v isível d a Igreja n a te rra " (DB, §§3053-55; itáli-
cos n ossos). Isto é fre q u e n te m e n te c ita d o co m o u m d o s p o u c o s exem -
p io s e m q u e a Igreja C ató lica R o m an a se te m c o n sig n a d o so le n e m en te
o s e n tid o literal d e u m texto bíblico, isto é, so b re o q u e o a u to r tin h a
em m e n te q u a n d o o escrev eu . T o d a v ia, e sta a v a liação te m sid o p o sta
em d ú v id a p o r V. B etti, L a c o n s t i t u z i o n e d o m m a t i c a ' P a s t o r a e t e m u s ' d e i
C o n c i l i o V a t i c a n o I (R om a, 1961), p . 592: "A in te rp re ta ç ã o d e ste s dois
textos co m o p ro v a d o s d o is d o g m a s m e n c io n a d o s [p rim a z ia p e trin a;
su cessão ro m a n a a essa p rim a zia ] n ã o se en caix a p e r s e so b definição
d o g m átic a - n ã o só p o rq u e n ã o se faz q u a lq u e r m en ç ã o d e le s n o câ-
n o n [a fo rm u la ç ã o ex ata d o d o g m a , c o n d e n sa d a a p a rtir d a exposi-
ção], m as ta m b é m p o rq u e n ã o h á v estíg io d e u m d esejo n o C oncilio
d e d a r u m a in te rp re ta ç ã o a u tê n tic a d e le s n e ste se n tid o " . Se B etti está
certo, V aticano I n ã o e sta v a n e c essa ria m e n te d e fin in d o p a ra o s católi-
cos o sig n ificad o lim ita d o q u e a p a ssa g e m b íb lica tin h a p a ra s e u a u to r
n o m o m e n to e m q u e ela foi e scrita, m as, a n te s, o sig n ific a d o m ais am -
p io q u e ela tin h a p a ra a Igreja à lu z d e u m a tra d içã o v iv a e d a h istó ria
eclesiástica. E m n o sso juízo, o s ex eg etas q u e p e n s a m q u e P e d ro tin h a
a u to rid a d e so b re os o u tro s d isc íp u lo s n ã o p o d e m c o n c lu ir isto a p a rtir
d e Jo 21,15-17 t o m a d o i s o l a d a m e n t e , m a s d e v e m re c o rre r a o contexto
m ais a m p lo d o N T re fe re n te à s a tiv id a d e s d e P ed ro .
Q u ã o d u ra d o u ro foi o p a p e l d e P e d ro co m o p a s to r d o reb an h o ?
C u llm a n n , P e t e r , p . 214, a rg u m e n ta a p a rtir d a m en ç ã o d a m o rte de
P ed ro , em 18-19, q u e este p a p e l n o m áx im o te ria sid o lim ita d o à v ida
72 · O Jesus ressurreto fala a Pedro 1621

te rre n a d e P e d ro . B enoit , P a s s i o n , p . 307, a rg u m e n ta q u e, se Jesus sen-


tia q u e o p a p e l d o p a s to r era tão im p o rta n te q u e d e sig n o u P e d ro com o
o v ig á rio -p a s to r, p o r a n alo g ia P e d ro teria, n a m o rte, p o r s u a vez, q u e
tra n s fe rir a fu n çã o a o u tro . O b v ia m e n te, estas o p in iõ e s são m o ld a -
d a s p e la s d iv erg ê n cia s so b re a reiv in d icação ro m a n a à su cessão , u m a
q u e s tã o q u e v a i a lé m d o h o riz o n te e strito s d o texto bíblico. U m a rg u -
m e n to lógico b a s e a d o n a s im p licaçõ es d a lin g u a g e m fig u ra d a é sem -
p r e p ro b le m átic o . U m a á re a m ais fru tífe ra d e d iscu ssão , n a q u a l n ão
p e n s a m o s e m a d e n tra r, seria a q u e stã o d e p o r q u e e ra im p o rta n te que
o r e d a to r jo an in o (e, resp e c tiv a m e n te, p a ra M a te u s e L ucas) le m b ra r a
c o m u n id a d e d e q u e o p a p e l d a a u to rid a d e p a sto ra l foi d a d o a P ed ro ,
q u a n d o , p re s u m iv e lm e n te , P e d ro já h a v ia m o rrid o cerca d e v in te o u
trin ta an o s. Isto e ra a p e n a s u m fato in te ressa n te , o u a a u to rid a d e pas-
to ra l d e P e d ro c o n serv a v a a lg u m a im p o rtân cia?

P r e d iç õ e s s o b r e o s d e s tin o s d e P e d r o e d o D is c íp u lo A m a d o (vs. 18-23)

O s vs. 18-23 p e rte n c ia m ta m b é m às a p a riçõ e s d e Jesus a P ed ro , o u


fo ra m a n e x a d o s p o ste rio rm e n te ? A lg u n s e stu d io so s c o n sid e raria m
ao m e n o s 19b ("D ep o is d e sta s p a la v ra s, Jesus lh e disse: "S egue-m e")
co m o o rig in a lm e n te p e rte n c e n te a os 15-17 e, a ssim , ao rela to d a a p ari-
ção. M as B u ltm a n n , p . 5524, é re p re se n ta n te d e u m g ru p o m ajo ritário
ao classificar a to ta lid a d e d o s vs. 18-23 com o u m a adição. N o ssa o u tra
e v id ê n c ia d o e v a n g e lh o p e rtin e n te à a p a riçã o d e Jesus a P e d ro n ão
faz m en ç ã o d e s u a m o rte , tal co m o o ra e n c o n tra d a em Jo 21,18-19 (a
m e n o s q u e a id eia e m M t 16,18 seja q u e o H a d e s [a m orte] n ã o p rev a -
lecerá c o n tra a Igreja d a q u a l P e d ro é o fu n d a m e n to ). P ro v av elm en te,
o fato d e q u e os vs. 15-17 tra te d o fu tu ro d e P e d ro to rn o u a p ro p ria d a
a a d iç ã o d e u m d ito in d e p e n d e n te acerca d a m o rte d e P ed ro . Já salien-
ta m o s acim a (p. 1614) q u e se p o d e tam b é m fazer u m a conexão e n tre
o te m a d a rea b ilita ç ã o d e P e d ro d e p o is d a s trê s n eg açõ es e a d e su a
d e te rm in a ç ã o d e se g u ir Jesu s a té a m o rte . A m o rte d e P e d ro é a p ro v a
d a s in c e rid a d e d e s u a tríp lice p ro fissã o d e a m o r p a ra com Jesus, p o is
" N in g u é m te m m a io r a m o r d o q u e este, d e d a r a lg u é m s u a v id a p elos
s e u s a m ig o s" (15,13).
Seria o rig in a l a conexão e n tre os vs. 18-19 e os vs. 20-23? A b rev e
cen a n o v. 20 v in cu la d o is d ito s so b re o d e stin o d e P e d ro e o d o Dis-
cíp u lo A m a d o ; m as a s u tu ra p a rece artificial, p o is a sú b ita ap arição
1622 IV · Epflogo

d o D iscíp u lo A m a d o p a ra se g u ir a Jesus é e stra n h a . (T alvez a con-


caten ação d e id éia s q u e a c ab am o s d e m e n c io n a r sig a in flu e n c ia n d o
aqui: a p a re n te m e n te foi o D iscíp u lo A m a d o ["o u tro d isc íp u lo " , em
18,15] q u e in tro d u z iu P e d ro n o p a lá c io d o su m o sa c e rd o te o n d e Pe-
d ro n e g o u Jesu s trê s vezes). Já q u e o a u to r jo an in o e stá p rim a ria m e n te
in te re ssa d o n o p ro b le m a d a m o rte d o D iscíp u lo A m a d o , o d ito so b re
a m o rte d e P e d ro p o d e te r sid o in se rid o co m o u m a tra n siç ã o conve-
n ien te ao d ito m ais im p o rta n te so b re o D iscíp u lo A m a d o . É v e rd a d e
q u e n a m e sm a cen a Jesus p o d e ría te r fala d o d e a m b a s as m o rte s (em
u m tip o d e " ú ltim o te sta m e n to " tra ta n d o d o d e stin o d e se u s se g u id o -
res - p . 967 acim a), p o ré m m ais p ro v a v e lm e n te d o is d ito s in d e p e n -
d e n te s tra n s m itid o s n a tra d içã o jo an in a te n h a m sid o u n id o s u m ao
o u tro e a n e x ad o s à n a rra tiv a p ó s-re ssu rreiç ã o .
B ultm ann afirm a q u e o m aterial con tid o n o s vs. 18-23 foi com posto
p elo red ato r. Em nosso juízo, em b o ra o re d a to r seja o resp o n sáv el pela
junção d o s d itos, estes em si são antigos, p o is n e n h u m se p re sta facil-
m en te à in terp retação q u e lhe foi d a d a . E m u m a n o ta so b re o v. 18 m os-
tram o s a d ificu ld ad e d e a ch ar n a lin g u ag em v ag a d esse v ersículo a pre-
dição d e u m a m o rte p o r m artírio (ou m esm o crucifixão), com o foi feito
n o v. 19. P o r certo que, se a afirm ação fosse fo rm u la d a à lu z d a m o rte de
P edro, o vocab ulário n ão teria sid o tão am bíguo. D e m o d o sem elhante,
n o caso d o v. 22, o p ró p rio fato d e q u e o a u to r alega q u e o d ito foi incom -
p ree n d id o to m a crível q u e o d ito tin h a sid o in v e n ta d o recentem ente,
pois neste caso sim plesm ente teria sido negado. A m b o s estes d ito s eram
b em conhecidos e tradicionais, e n ão p o d e ría m ser reelab o rad o s p ara
favorecer as in terpretações desejadas. O d ito sobre o D iscípulo A m ado
p o d e rep re sen ta r u m a especificação d e u m tip o d e d ito geral en co n trad o
nos ev angelhos sinóticos, p red iz e n d o q u e a v in d a d o F ilho d o H o m em
ocorrería an tes q u e a g eração d o s d iscípulos d e Jesus desaparecesse; po r
exem plo, M t 16,28: "E m v e rd a d e vo s d ig o q u e a lg u n s h á, d o s q u e aqui
estão, q u e n ã o p ro v a rã o a m o rte até q u e vejam v ir o Filho d o H o m e m no
seu rein o " (tam bém M t 10,23; M c 13,30; 14,62; lT s 4,15). N o A p ên d ice V,
enfatizarem os q u e a m o rte d a geração apostólica cau so u u m a crise nas
expectativas d a Igreja sobre a p aro u sia, e p a ra a c o m u n id a d e d o Disci-
p u lo A m ad o p arece ter sid o o final d a geração apostólica.
Se os d ito s básicos n o s vs. 18 e 22 são a n tig o s, n a ép o c a e m q u e o
re d a to r e sta v a e scre v e n d o p ro v a v e lm e n te a m b o s, P e d ro e o D iscípulo
A m a d o , já h a v ia m m o rrid o , e e ste fato m a tiz a a s in te rp re ta ç õ e s d a d a s
72 · O Jesus ressurreto fala a Pedro 1623

a o s d ito s. N o v. 19 fica claro q u e o re d a to r sab e q u e P e d ro já m o rre ra


co m o m á rtir e ta lv e z in clu siv e q u e P e d ro tiv esse sid o crucificado n a
co lin a d o V atican o (p ara a e v id ê n c ia p a ra o ú ltim o d e ta lh e, v e r C u ll -
m a n n , P e t e r , p . 156; D. W . O 'C onn o r , P e t e r i n R o m a [N ova York: C o lu m -

b ia U n iv e rsity , 1969]). E m ais difícil e sta r certo q u e o v o c a b u lá rio d o


v. 23 m o stre q u e o D iscíp u lo A m a d o já h o u v e sse m o rrid o . V isto q u e o
re d a to r é tã o e n é rg ico e m n e g a r q u e Jesus tiv esse e m m e n te q u e o D is-
c íp u lo A m a d o n ã o m o rre ria a n te s d a s e g u n d a v in d a , é raz o á v e l p re-
s u m ir q u e e sta in te rp re ta ç ã o v eio a ser im p o ssív e l p e la m o rte d o Dis-
cíp u lo . M as W estcott , Z a h n , T illm a n n , B ernard , H oskyns e S ch w a nk
e stã o e n tre os m u ito s e stu d io so s q u e n ã o estã o d e aco rd o e n tre si.
U m a v a rie d a d e d e o u tra s explicações é o ferecida. G o guel , p . 1716, su-
p õ e q u e o D iscíp u lo A m a d o p o d e ría te r d e ix a d o o lu g a r o n d e resid ia
e d e s a p a re c id o ; en tã o , q u a n d o n a d a m ais se o u v ira d ele, p o d e ria ter
s u rg id o a e sp ec u laç ã o d e q u e e sta v a e sco n d id o n u m lu g a r d ista n te até
a s e g u n d a v in d a . M u ito s tê m su g e rid o q u e o D iscíp u lo e sta v a a p o n to
d e m o rre r. O u tro s têm d u v id a d o in clu siv e d isto e p e n sa m q u e , com o
o D isc íp u lo A m a d o c h e g ara à velhice, ele q u e ria d e te r o ru m o r q u e
e s ta v a se d ifu n d in d o e clarificar u m d ito d e Jesus. E m n o ssa op in ião ,
e s ta s teo rias n ã o fazem ju stiça ao a m b ie n te d e crise n o v. 23. E difícil
c re r q u e o a u to r ch eg asse a tal e x tre m o , a p o n to d e e m p re g a r u m tipo
d e casu ística, se a in d a h o u v e sse a p o ssib ilid a d e d e q u e o D iscípulo
A m a d o v iv esse a té a p a ro u sia . A lém d o m ais, a su g e stã o d e q u e o D is-
c íp u lo A m a d o já estiv esse m o rto é fre q u e n te m e n te p a rte d a tese d e
q u e o D iscíp u lo A m a d o fosse o e v a n g elista o u o a u to r d o ev an g elh o ,
in clu siv e d o cap . 21 - u m a tese q u e c o n sid e ram o s co m o in d efen sáv el
p o r o u tra s ra z õ e s (vol. 1, p . 106ss).
G. M . L e e , JTS N.S. 1 (1950), 62-63, te m d e m o n stra d o q u e a aplica-
ção d o se n tid o c o m u m ao s vs. 20-23 realça g ra n d e m e n te o q u e sabem os
so b re o D iscíp u lo A m a d o . N o p e n sa m e n to d o re d a to r e d a c o m u n id a-
d e p a ra q u e m ele escrev eu , o D iscíp u lo A m a d o era u m a p e sso a real; é
p o ssív e l q u e fosse id e a liz a d o , p o ré m n ã o e ra u m id ea l a b stra to o u m ero
sím b o lo , p o is n in g u é m se a n g u stia p e la m o rte d e u m ideal. B u ltm ann ,
p . 554, a d m ite q u e e sta foi a m e n ta lid a d e d o re d a to r, p o ré m p e n sa
q u e o re d a to r se e q u iv o c o u em id en tifica r a lg u m p e rso n a g e m m ui-
to id o so co m o s e n d o o D iscíp u lo A m a d o . Esse tip o d e tese só é de-
fen sá v e l se p re s u m irm o s q u e o re d a to r tin h a p o u c o c o n h ecim en to d o
e v a n g e lh o , q u e n ã o tev e associação com o ev a n g elista o u com o u tro s
1624 IV · Epílogo

discípulos joaninos, que estava escrevendo p ara u m a com u n id ad e


não fam iliarizada com o v erdadeiro pensam ento d o evangelista e que
estava criando artificialm ente u m a crise sobre a m orte de u m hom em
que não era im portante p ara a com unidade joanina (a m enos q u e se
queira p resu m ir que realm ente não existia n en h u m a co m u n id ad e joa-
nina o u que o red ato r fosse u m deliberado falsificador). Exige-se m ui-
to m enos d a credibilidade d e alguém p en sar que o re d a to r registra
um a d ata histórica q u an d o im püca que a com u n id ad e sentia-se per-
turb ad a pela m orte de outro g rande m estre já que não esperava que
ele m orresse. O fato de que no pensam ento d a com u n id ad e hav ia um a
sentença de Jesus aplicável ao D iscípulo A m ado significa que ele ti-
nha de ser u m hom em de quem Jesus p u d esse ter feito tal senten-
ça e, portanto, u m dos com panheiros de Jesus. Se ele chegou a viver
até um a id ad e avançada q u an d o todos os o utros notórios discípulos
de Jesus já haviam m orrido, a ideia de que ele não m orrería pode-
ria ter granjeado veracidade. Já m encionam os no vol. 1, p. 101, a tese
de que Lázaro era o D iscípulo A m ado, e D rumright, p. 132, salienta
ser bem provável que se esperasse que Lázaro não m orresse ou tra
vez. Entretanto, ao p ô r o D iscípulo A m ado no barco com P edro em
21,7, o redator indica que ele identifica o D iscípulo com u m dos seis
com panheiros de P edro m encionados no v. 2, e, m ais especificam ente,
com u m dos filhos d e Z ebedeu o u u m dos "outros dois discípulos", a
m enos que estes dois g rupos fossem o m esm o (nota sobre o v. 2). To-
davia, Loisy, S chwartz, entre outros, não estão certos q u a n d o alegam
que o principal propósito do red ato r é identificar o D iscípulo A m a-
do com João, filho d e Z ebedeu, pois obviam ente não se faz n enhum a
identificação bem definida. N ossa tendência pessoal é p re ssu p o r que
a inform ação sobre o D iscípulo A m ado que nos é d a d a pelo red ato r é
genuína, já que pensam os no red ato r com o u m discípulo joanino (ver
tam bém pp . 1633-34 abaixo); e assim não po d em o s escapar d a im pli-
cação de que u m a figura venerável apostólica viv eu em íntim a relação
com a com unidade p ara a qual o Q u arto Evangelho foi escrito.
A gora tem os de retroceder aos vs. 20-21, os versículos conectivos
entre os ditos sobre Pedro e sobre o Discípulo A m ado. Já indicam os
que pensam os nisto com o um a conexão artificial. N ão obstante, diante
da pergunta que Pedro faz sobre o Discípulo A m ado no v. 21 e a re-
cusa im plícita que ele recebe de Jesus no v. 22, m uitos estudiosos têm
encontrado aqui um a rivalidade sobre a im portância dos dois homens.
72 · O Jesus ressurreto fala a Pedro 1625

A lg u m as v ezes a riv alid ad e é vista em term os d a s m ortes que sofreram .


B acon, p. 72, afirm a q u e P ed ro teria sido h o n rad o com o u m m ártir que
d e u teste m u n h o "v erm elh o " d e C risto, e q u e é possível q u e o au to r joani-
n o quisesse insistir q u e o D iscípulo A m ad o , q u e não sofreu u m a m o rte de
m ártir, era tam b ém u m a testem u n h a (o tem a d e seu testem unho aparece
n o v. 24). P ara fazer isso o red a to r registra q u e d a m esm a form a q u e Jesus
p ro fetizo u a m o rte d e P ed ro com o m ártir, assim ele fez u m a predição
so b re o d estin o d o D iscípulo A m ado. P o r conseguinte, a m orte d o Disci-
p u lo A m a d o q u a n to m u ito era p a rte d o d ito d e Jesus com o o foi a m orte
d e P edro; a m b as d e ra m glória a D eus, p o rém d e u m m o d o diferente.
O u tro s c o m e n ta rista s lev a m a riv a lid a d e a lé m d e u m a co m p a-
ra ç ã o d o tip o d e m o rte q u e os d o is h o m e n s so freram , e p e n sa m q u e
o p a p e l d o D iscíp u lo A m a d o n o s vs. 20-23 d e v e ser c o m p a ra d o n ã o
só co m o s vs. 18-19, m as ta m b é m com o s vs. 15-17 e o p a p e l d e P e d ro
co m o p a s to r. P o r e x e m p lo , B u ltm a n n , p . 555, p ro p õ e q u e o p rin c ip al
te m a d o s vs. 15-23 é m o stra r q u e a a u to rid a d e eclesiástica d e P ed ro
fo i tra n s fe rid a a o D iscíp u lo A m a d o a p ó s s u a m o rte. A gourides , p . 132
(ta m b é m " P e t e r a n d J o h n i n t h e F o u r t h G o s p e l " , StEv IV, 3-7), p e n sa q u e
a fig u ra d o D iscíp u lo A m a d o c o n tra p õ e u m a h o n ra o u a u to rid a d e
e x a g e ra d a a trib u íd a a P e d ro d e n tro d e certo s círcu lo s cristão s n a Pro-
v ín cia d a Á sia. E sta é u m a tese p o p u la r, q u a s e ao p o n to d o D iscípulo
A m a d o to m a r-s e o h e ró i a n c estra l d e to d o s o s p ro te sto s su b seq u e n te s
c o n tra as u s u rp a ç õ e s d a Sé R o m an a. E m c o n tra p a rtid a , p o ré m com o
m e s m o re ss e n tim e n to su b jacen te, L oisy , p . 524, a rg u m e n ta q u e o red a -
to r, d ife re n te d o e v a n g elista , e n tro u em c o n ta to com a p ro p a g a n d a e
p re s s ã o ro m a n a s e, c o n se q u e n te m e n te , a p re s e n to u o D iscíp u lo A m a-
d o c o m o s u b o rd in a d o a P e d ro . M u ito s e stu d io so s cató lico -ro m an o s
p e n s a m q u e o cap. 21 foi escrito p o r u m d isc íp u lo q u e tev e d e a d m itir
h o n e s ta m e n te q u e se u m estre , o D iscíp u lo A m a d o , n ã o e ra a fig u ra
d o m in a n te n a Igreja. S ch w a n k , " C h r i s t i " , p . 540, p ro p õ e q u e a p as-
sa g e m foi escrita e n q u a n to o D iscíp u lo a in d a v iv ia a fim d e en sin a r
à c o m u n id a d e jo a n in a q u e s e u afeto p o r s e u m e stre n ã o d e v e ria ce-
g á-lo s p a ra o fato d e q u e é a P e d ro e a se u s su cesso res q u e foi d a d a a
a u to rid a d e d e p a s to r. S ch w a n k in d a g a se a ação d e C lem en te d e R om a
(tid o co m o o terceiro p a p a ), ao e screv er à igreja d e C o rin to , c. d e 95
d .C ., n ã o p ro v o c o u u m a d isc u ssã o re q u e re n d o e sta classificação.
D u v id a m o s d e q u e p o ssa levar-se até os vs. 18-23 o tem a pastoral.
C u llm a n n , P e t e r , p. 31, está certo q u a n d o alega q u e em João os p ap éis
1626 IV · Epílogo

s in g u la rm e n te im p o rta n te s fo ra m d e s ig n a d o s a a m b o s, P e d ro e o
D isc íp u lo A m a d o , m a s q u e o s resp e c tiv o s p a p é is sã o d ife re n te s e
q u e o p a s to r é P e d ro . T o m a r a p e rg u n ta d e P e d ro so b re p o r q u e o
D isc íp u lo A m a d o e sta v a s e g u in d o Je su s (v. 21) c o m o b a s e d e to d a
u m a te o ria d e a u to r id a d e c o n flita n te é e x tra v a g a n te . Já re je ita m o s
u m a teo ria s e m e lh a n te m e n te e x a g e ra d a d o c o n flito e m re la ç ã o a
20,3-10 (p p . 1481-83 acim a). A q u i p o d e h a v e r u m eco d o p o ssív e l
d esejo d a c o m u n id a d e jo a n in a d e m o s tra r q u e a m o rte n a tu r a l d e
se u a p ó s to lo e sp ec ial n ã o v a lia m e n o s d o q u e fo i o m a rtírio d e P e d ro
co m o u m a te s te m u n h a d e Jesus. A c o n sta n te asso c ia çã o d o D isc íp u -
lo A m a d o co m P e d ro , a q u i e e m o u tro s lu g a re s , p o d e b e m p r e te n d e r
e n fa tiz a r q u e a s e u p r ó p rio m o d o o D isc íp u lo n ã o e ra m e n o s im -
p o rta n te d o q u e P e d ro , o m a is b e m c o n h e c id o d o s d isc íp u lo s o rig i-
n a is d e Jesu s. N o m áx im o , p o d e m o s o u v ir u m eco d a r iv a lid a d e n ã o
m e n o s fra te rn a d a s c o m u n id a d e s c ristã s p rim itiv a s , a s so c ia n d o su a
h istó ria co m fig u ra s p ro e m in e n te s d o s d ia s p rim e v o s n a s q u a is se
se n tia m o rg u lh o sa s. M as n ã o h á u m ú n ic o in c id e n te n e s te e v a n g e lh o
o n d e o D isc íp u lo A m a d o é a p re s e n ta d o c o m o u m a fig u ra c o m a u to -
rid a d e d o m in a n te so b re a Igreja o u so b re u m a ig reja; s u a a u to r id a d e
é co m o te s te m u n h a . E m n o ssa o p in iã o , to d a s a s te n ta tiv a s d e in te r-
p r e ta r a p re s e n ç a d o D isc íp u lo A m a d o la d o a la d o co m P e d ro n e sta
cen a co m o p a r te d e u m a a p o lo g é tic a c o n t r a o u p r ó às re iv in d ic a ç õ e s
d a p rim a z ia p e tr in a o u ro m a n a c o n s titu e m eiseg ese.
A n te s d e p a ssa rm o s à co n clu são d o E pílogo, h á u m a s p o u c a s
o b serv açõ es d isp e rsa s q u e são fo rm u la d a s so b re p o n to s n o s vs. 18-23.
N o v. 19, a afirm ação so b re "o tip o d e m o rte p e la q u a l P e d ro h av ia
d e glo rificar a D e u s" é, co m o m e n c io n ad o , a lin g u a g e m c ristã p a d rã o
p a ra o m artírio . N ã o o b sta n te , ela te m c erta fa m ilia rid a d e c o m o p en -
sarn en to jo an in o so b re a m o rte d e Jesus n a q u a l Jesus m e sm o se glo-
rificou e ex ib iu a g ló ria d e D e u s ao s h o m e n s (7,39; 12,23; 17,4-5). A o
im ita r Jesu s, s e g u in d o -o até a m o rte (in clu siv e m o rte d e cru z), P e d ro
reco n h ece a g ló ria d e D eus. T em h a v id o c o n sid e ráv e l e sp ec u laç ã o so-
b re a m o tiv aç ã o d e P e d ro n o v. 21 q u a n d o ele p e rg u n ta so b re o Dis-
cíp u lo A m a d o . S ch w a n k , " C h r i s t i " , p p . 538-39, p e n s a q u e P e d ro está
m o stra n d o p re o c u p a ç ã o p o r se u a m ig o e desejo so d e q u e Je su s in clu a
o D iscíp u lo A m a d o e m seu p la n o p a ra o fu tu ro . M as, à lu z d a a p a re n te
ce n su ra n o v. 22, a m aio ria d o s e stu d io so s p e n s a m q u e P e d ro e ra ciu-
m e n to o u im p ru d e n te m e n te in q u isitiv o . B. W eiss in te rp re ta a resp o sta
72 · O Jesus ressurreto fala a Pedro 1627

d e Jesu s a P e d ro com o u m a indicação d e q u e a p e rg u n ta d e P ed ro


e ra in ju stificad a o u in tru sa , p o ré m n ão d ig n a d e c en su ra o u culpável.
P. N . B ushill , ET 47 (1935-36), 523-24, p e n sa n a p e rg u n ta d e P ed ro
co m o m e ra m e n te u m a ten ta tiv a d e m u d a r u m a co nversação q u e se
to rn a ra d e m a s ia d a m e n te p esso al em su a referência à m o rte (com pa-
re a m a n o b ra d a m u lh e r sa m a rita n a em 4,19-20 d e p o is d e Jesus falar
d e s e u "m arid o ")· T alvez n ã o d ev éssem o s lev ar essas especulações
p sico ló g icas a sério d e m a is se to d o o esq u em a d e p e rg u n ta e respos-
ta é u m a s a tu ra se cu n d á ria e n tre d ito s in d e p e n d e n te s sobre P ed ro e
o D iscíp u lo A m ad o . É in te ressa n te q u e S mith , p p . 236-37, seg u in d o
E. S ch w eizer , in te rp re ta o v. 23 com o d irig id o a o s cristãos e m conjunto:
N ã o te d e v e s p re o c u p a r q u e v e n h a s a m o rre r o u sofrer o m artírio en-
q u a n to o u tro v iv a a té a p a ro u sia ; te u c h a m a d o é p a ra m e seguires, n ão
im p o rta a o n d e esse se g u ir te leves. B ernard , II, 711, tem n o ta d o q u e
a s ú ltim a s p a la v ra s d o Jesus re ssu rre to (v. 22) são a s d e su a d ire triz
d a a P ed ro : "A ti cabe se^u ir-m e"; e, d e p o is d e tu d o , esse é o conceito
essen cial d a v id a cristã. A m an e ira d e in clu são e n tre os caps. 21 e 1,
p o d e m o s o b se rv a r q u e os d iscíp u lo s in iciaram seu co n tato com Jesus
n a o rd e m d e seg ui-lo (1,37), e q u e esses m esm o s co n tato s se fecham
co m a m esm a o rd em .
D odd , I n t e r p r e t a t i o n , p . 431, observa: "A in g ê n u a co ncepção d o
s e g u n d o a d v e n to d e C risto e m 21,22 n ã o se p a re c e a n e n h u m a ou-
tra co isa n o in te rio r d o Q u a rto E v an g elh o ". M as, e sta concepção seria
tã o ra d ic a lm e n te d ife re n te d a q u e lem o s e m 5,27-29 e 14,3? H oskyns,
p . 559, p e n sa q u e, a d esp eito d o d e sm e n tid o d o re d a to r n o v. 23, p o d e ria
h a v e r u m asp ecto a in d a v álid o d a im o rta lid a d e d o D iscípulo A m ado:
"T alv ez seja arrisc a d a a o p in ião d e q u e o leitor tin h a q u e e n te n d e r q u e
o d isc ip u la d o p erfeito d o q u a l o D iscípulo A m a d o é o tip o e origem que
n u n c a h a v e rá d e faltar à Igreja". E n q u a n to a in terp retação d e H oskyns
rea lm e n te n ã o en co n tra resp ald o , n o A p ên d ice V enfatizarem o s que
a resp o sta jo an in a ao v azio d eix ad o p ela m o rte d o D iscípulo A m ado,
a te ste m u n h a p o r excelência, é q u e o P arácleto q u e d a v a testem u n h o
a tra v é s d ele e n ele p erm a n ec e c om to d o s o s crentes (14,7; 15,26-27).

[A B ibliografia p a ra e sta seção e stá in clu sa n a B ibliografia p a ra


to d o o cap . 21, n o fin al d o §73.]
73. A (SEGUNDA) CONCLUSÃO
(21,24-25)

21 24E ste é o d isc íp u lo q u e é a te ste m u n h a d e sta s coisas; ele é q u e m


escrev eu estas coisas; e s e u te ste m u n h o , n ó s sa b em o s, é v e rd a d e iro .
25T o d av ia, a in d a h á m u ita s o u tra s coisas q u e Jesu s fez. C o n tu d o , se
elas fo ssem c o n tín u a e d e ta lh a d a m e n te escritas, d u v id o q u e h a v e ria
esp aço su ficien te n o m u n d o in te iro p a ra os liv ro s q u e as re g istra sse m .

NOTAS

21.24. q u e é a te s te m u n h a ... e le é q u e m e s c r e v e u . As m elhores testem unhas tex-


tuais gregas coordenam um presente e um particípio aoristo. Literalmen-
te, "que dá testemunho... e que escreveu". O aoristo "escreveu" implica
que a tarefa foi completada; e pode ser que, ao fazer a prim eira forma
verbal pretérita ("deu testem unho"), o OSsin pode significar não mais
que isso - todavia, pode ser que o pretérito reflita a ideia de que a teste-
m unha já estivesse m orta (ver pp. 1621-22 acima). Em contrapartida, o
presente não significa que ele ainda estivesse vivo, m as apenas que seu
testem unho é venerado como um a realidade presente no evangelho que
ele escreveu.
Os estudiosos estão divididos sobre como interpretar "escreveu". F. R.
M ontgomery H itchcock, JTS 31 (1930), 271-75, tem argum entado de forma
decisiva que testemunhos antigos favorecem a implicação de que ele es-
creveu com sua própria mão. Bernard, Π, 713, é um dos m uitos que enten-
dem o verbo no que poderiamos cham ar um sentido causativo moderado:
"Ele tem feito que se escreva estas coisas", conquanto as ditasse a um escri-
ba ou, ao menos, dirigido cuidadosamente a escrita. (O exemplo-habitual
para esse sentido causativo está em Jo 19,19, onde parece que Pilatos não
73 · A (segunda) conclusão 1629

escreveu a acusação contra Jesus com sua própria m ão - mas, mesmo


assim, é difícil de provar). No entanto, outros pensam que "escreveu"
p o d e incluir autoria em um sentido m uito m ais remoto. G. Schrenk,
" g r a p h õ " , TWNTE, I, 743, pergunta se este versículo de João "não pode
sim plesm ente significar que o Discípulo A m ado e suas reminiscências
estivessem por detrás deste evangelho e constituem a ocasião de sua es-
crita. Este é um ponto de vista bastante provável contanto que não enfra-
queçam os indevidam ente o segundo aspecto. Aliás, seria difícil de im por
a fórm ula para im plicar mais do que um a asserção de responsabilidade
espiritual para o que está contido no livro". Seguindo a últim a interpre-
tação, em nossa teoria da composição do evangelho (vol. 1, pp. 19-26)
atribuím os ao Discípulo A m ado somente o prim eiro dos cinco estágios, a
saber, que ele foi a fonte da tradição histórica que se junta ao evangelho.
d e s t a s c o is a s . Literalmente, estas coisas; D odd, "N o t e " , sugere que esta frase
se refere às palavras de Jesus em 20-23 e à sua interpretação correta, de
m odo que o autor está corroborando para sua afirmação de que uma
notícia inexata foi divulgada entre os irmãos. Entretanto, D odd admi-
te a possibilidade de que todo o cap. 21 está incluso sob a frase, ponto
de vista este m antido por m uitos dos que sustentam que o capítulo foi
acrescentado ao evangelho como um apêndice. Um ponto de vista mais
am plam ente m antido é que o v. 24 é um tipo de colofón indicando a pers-
pectiva do autor sobre a fonte (no sentido amplo) de todo o evangelho.
O v. 25 implicaria que "estas coisas" do v. 24 incluíam todos os feitos
registrados realizados por Jesus.
s e u te s te m u n h o , n ó s s a b e m o s , q u e é v e r d a d e ir o . Quem é representado por "nós"
nesta afirmação? D odd, " N o te " , é propenso a interpretá-lo indefinidamen-
te, reduzindo "sabem os" a "como bem se sabe" ou "é um a questão de co-
nhecim ento popular". (A m aneira de ilustração, ele contrasta o o i d a m e n
sim ilarm ente indefinido de Jo 9,31 com o h ê m e i s o i d a m e n definido de
9,29, m as não consideramos 9,31 como um autêntico paralelo com a pre-
sente passagem). No entanto, a maioria dos comentaristas atribui ao "nós"
um a referência definida. Um ponto de vista em épocas passadas opinava
de que o próprio Discípulo A m ado (ainda vivo) usou o "nós" redacional.
(De um m odo m uito interessante, C risóstomo lia "eu sei" - provavelmen-
te tom ando o i d a m e n como o i d a m e n , ou outra leitura por meio de har-
m onização com o uso de "eu" no próximo versículo). Esse tipo de teoria
enfrenta a séria objeção de que o Discípulo Am ado estaria se referindo
a si próprio na m esm a sentença breve tanto na terceira pessoa singular
("seu") como na prim eira pessoa plural ("nós"). Chapman, a r t. c i t ., tem
recolhido im pressionante núm ero de provas de que os autores joaninos
1630 IV · Epílogo

frequentemente em pregavam a prim eira pessoa plural, espedalm ente em


referência à testem unha ou testem unho; m as ele não apresenta nenhum
exemplo de sua combinação com um a terceira pessoa singular, como aqui.
Se o Discípulo A m ado estava falando de si m esm o num a circunstância
como esta, esperaríam os algo próxim o com o que acham os em 19,35: " E le
está dizendo o que bem sabe ser verdadeiro". Um a tentativa de ignorar
esta dificuldade tem sido propor que o Discípulo A m ado usou a terceira
pessoa singular para expressar seu testem unho pessoal, isto é, o que ele
mesmo viu e ouviu, m as que ele usou a prim eira pessoa plural quando se
associou com outros e se tom ou o porta-voz de um testem unho coletivo.
No presente caso, tem-se sugerido que o Discípulo A m ado estava se as-
sociando ou com a com unidade joanina ou com os apóstolos do Senhor.
O segundo ponto de vista (H oskyns, pp. 559-60) reflete a tradição en-
contrada no fragm ento m uratoriano em C lemente de Alexandria, de que
João, o Discípulo Am ado, se encarregou de escrever por causa dos outros
apóstolos que aprovaram sua obra. Há quem até m esm o especificaria
que dois apóstolos estavam envolvidos com João no "nós" deste versícu-
lo, a saber, A ndré e Filipe, que aparecem várias vezes no Q uarto Evange-
lho. Todavia, esta tradição da aprovação apostólica, em bora possa conter
indiretam ente um elem ento de verdade, a saber, que diversos hom ens
estavam envolvidos na composição do Q uarto evangelho, é excessiva-
m ente sim plista e provavelm ente representa um a tentativa im aginativa
de aplicar ao evangelho o ideal da sua autoria apostólica.
Pensamos ser mais realista excluir o Discípulo Am ado do "nós" e deixá-lo
ficar como o objeto (falecido) da afirmação feita pelo "nós". Entre as pos-
sibilidades para o "nós" estão os líderes da com unidade joanina (algumas
vezes chamados os anciãos de eféso), os autores e pregadores joaninos, e
inclusive a própria com unidade joanina que m uitas vezes ouviram a men-
sagem do evangelho. Ao avaliarmos estas sugestões, ficamos hesitantes
sobre o conceito de que o "nós" representa um grupo autoritativo que não
tomou parte na composição, mas agora está adicionando um selo de apro-
vação. Não sabemos de nenhum testemunho cristão antigo que fale da prá-
tica de adicionar tais colofóns no escrito cristão, ao menos antes do 5a sécu-
10. Mais provavelmente, o autor é parte do "nós". É notável que em 3Jo 12,
o Ancião, que em outro lugar escreve como "eu", diz a Gaio, a quem está
se dirigindo: "Tu sabes que o nosso testem unho é verdadeiro" - aparen-
temente porque, neste caso, ele fala revestido de certa representatividade.
Em conformidade com a nossa teoria da composição do evangelho (vol. 1,
p. 42) o "nós" representa o escritor joanino responsável pela adição do cap.
21 e seus co-discípulos joaninos. Não achamos convincente o argum ento
73 · A (segunda) conclusão 1631

de Goguel e Bultmann de que o "nós" não pode representar um grupo


fixo, já que, se eram desconhecidos do leitor, não faria bem mencioná-los,
e se eram conhecidos, não haveria necessidade de mencioná-los. Pre-
cisamente porque um dos autores joaninos assum iu a responsabilidade
de adicionar o material a um evangelho já escrito, podería ter sido bem
apropriado, a ele e aos seus co-discípulos, garantir aos leitores que o novo
material não era m enos autoritativo do que o antigo e tudo o que se origi-
nou d o Discípulo Am ado cujo testem unho era verdadeiro. Além do mais,
visto que o testemunho do Discípulo Amado, tom ado isoladamente, não
era legalmente suficiente (ver nota sobre 5,31), o testemunho adicional dos
discípulos joaninos imprime status à sua obra.
A ênfase tanto sobre o testem unho (testem unha) como sobre sua verdade
é caracteristicamente joanina. A palavra para "verdadeiro", no presente
versículo, é a l ê t h ê s , enquanto que, no paralelo em 19,35, foi a l ê t h i n o s .
Em bora haja um a nuança de distinção entre as duas palavras (vol. 1,
pp. 797-99), nem sempre ela é observada. Aliás, G. Kilpatrick, JTS12 (1961),
27273‫־‬, vê a diferença como gramatical: a l ê t h ê s é usada predicativamente, e
a l ê t h i n o s , atributivamente. Um pequeno grupo de mss. cursivos da Família
Lake coloca o relato da m ulher Adúltera depois do v. 24 (vol. 1, pp. 593-94).
25. A conjetura de alguns estudiosos antigos é que este versículo é um a adi-
ção anotada na m argem preservada em um comentário grego escrito an-
tes do 8“ século (C hapman, pp. 386-87). T ischendorf pensava que este ver-
sículo foi om itido pelo copista original do Codex Sinaiticus. Todavia, um
exame ultra-violeta deste codex, depois que foi adquirido pelo M useu
Britânico em 1934, tem clarificado a situação (H. J. M. M ilne e T. C. S keat,
S c r ib e s a n d C o r r e c to r s o f th e C o d e x S in a i ti c u s [Londres: British Museum,
1938], p. 12). A princípio, o copista original levou o evangelho a um a con-
clusão com ο ν. 24, como significado por coronis (floreio de caligrafia) e
um a subscrição. N o entanto, posteriorm ente o mesmo copista lavou o
pergam inho lim po e adicionou o v. 25, repetindo o coronis e subscrição
em um a posição mais abaixo na página. A omissão no prim eiro caso teria
sido um ato de displicência, ou o copista estava copiando de um ms. que
não continha o v. 25 (o qual subsequentem ente ele obteve de outro ms.)?
M esmo que seja o segundo caso, a evidência textual para tratar o v. 25
como glosa do copista é m uito duvidosa.
a in d a . Aqui se usa a partícula d e , enquanto o paralelo em 20,30 tem m e n o u n .
h á . Este term o se perdeu em algum as testem unhas ocidentais e em
C risóstomo.
A expressão é meia ríspida em grego a l i a p o l i a ; em 20)30,
m u ita s o u tr a s co isa s.
a expressão é mais graciosa: p o l i a k a i a l i a s ê m e i a , "muitos outros sinais".
1632 IV · Epílogo

Presum ivelmente, a conclusão em 20,30-31 (extraída da Fonte dos Si-


nais?) foi obra do evangelista, enquanto esta conclusão é obra do redator.
f o s s e m c o n tín u a . Literalmente, "as quais coisas fossem continuam ente"; esta
construção, envolvendo o relativo indefinido no plural não se encaixa
com o estilo joanino, e a relação do relativo com o sentença condicional
que a segue é estranha (BDF, §2945).
d e ta lh a d a m e n te . Literalmente, "um a por um a" (cf. BDF, §305); este distribu-
tivo k a ta não se encontra em outro lugar em João, exceto no relato (não
joanino) da m ulher Adúltera.
d u v id o . Literalmente, "não creio"; entendem os o negativo o u d e como um
modificador do verbo principal, em vez do infinitivo do discurso indi-
reto, "não haveria espaço suficiente" (um infinitivo norm alm ente seria
negado por m ê ; BDF, §429). Em João, o verbo o im a i só é usado aqui. Se os
vs. 24 e 25 vêm da m esm a m ão, o "eu" do v. 25 pode refletir um comentá-
rio mais pessoal do que o "nós" do v. 24, caso esse "nós" seja redacional,
coletivo ou geral. A lguns observam que isto é a única reflexão pessoal de
um escritor joanino no evangelho, m as a sentença como um todo tem um
caráter retórico.
n ã o h a v e r ia e s p a ç o s u f ic ie n te . A parentem ente, c h õ r e s e i n é um exemplo de
um infinitivo de futuro, extrem am ente raro no NT (BDF, §350); todavia,
podería ser um infinitivo de aoristo com um a term inação de presente.
M uitas das testem unhas bizantinas (seguidas pela Bible Societies' G re e k
N e w T e s ta m e n t ) o têm corrigido para um infinitivo de aoristo regular.
0 m u n d o in te ir o . Aqui sim plesm ente o universo, e não, como é frequente em
João (vol. 1, pp. 809-10), um a esfera hostil a Jesus.
q u e a s r e g is tr a s s e m . No final do versículo, a tradição textual bizantina e a
Vulgata trazem a adição litúrgica "Amém".

COMENTÁRIO

A lg u n s e stu d io so s (H o w ard , R u ckstuhl , W ilkens ) q u e a trib u e m o cap.


21 ao ev a n g elista , e n ã o a u m re d a to r, a d m ite m q u e os vs. 2 4 2 5 ‫ ־‬foram
escrito s p e lo re d a to r, em p a rte e m d e c o rrê n cia d a d ific u ld a d e d o " n ó s"
n o v. 24 (ver n o ta). G e ra lm en te , estes v e rsíc u lo s são c o n sid e ra d o s com o
u m a co n clu são se c u n d á ria so b re o m o d e lo d e 20,30-31, a co n clu são
o rig in al d o e v an g elh o ; to d a v ia , e sta c o m p re e n sã o d e v e se r m atiz a d a .
O s d o is v e rsíc u lo s q u e te rm in a m o cap. 20 fo rm a m u m b lo co u n itá rio
e fo rn ecem d o is a sp ec to s d e u m a m e sm a im ag em . N ã o ex iste u m a
73 · A (segunda) conclusão 1633

co n ex ão e stre ita e n tre 21,24 e 25. O v. 24 lem b ra 19,35, e so m en te o


v. 25a te m u m a sim ila rid a d e d e tem a co m 20,30-31 (e d e fato p o d e ría ser
u m a im ita ç ã o p o b re dele). H á leve e v id ê n c ia tex tu a l p a ra a o m issão d o
v. 25, m a s a p ró p ria p o ssib ilid a d e d a o m issão m o stra q u e a conexão
co m o v. 24 é im p recisa. U m a h ip ó te se e n g e n h o sa , p o ré m im p lau sív el,
é a d e L. S. K. F ord , T h e o l o g y 20 (1930), 229, o q u a l p e n sa q u e h o u v e
é p o c a q u e o v. 25 p re c e d e u o v. 24, p o rq u e o v. 25 é a reflexão d o Dis-
c íp u lo A m a d o d e p o is q u e o e v a n g elh o foi relid o p a ra ele, e n q u a n to
o v. 24 é a v e rd a d e ira co n clu são a c re sc en ta d a p e lo s an cião s efesinos.
L e m b ra m o s q u e L agrange p e n s a v a q u e 20,3031‫ ־‬o rig in a lm e n te estav a
o n d e 21,24-25 o ra se en c o n tra, e q u e so m e n te q u a n d o 20,30-31 foi m o-
v id o p a r a s e u lu g a r a tu a l é q u e se a d ic io n o u 21,24-25. V a g a n a y , a r t .
c i t . , m o d ific a a tese d e L agrange , s u g e rin d o q u e o v. 24 foi original-
m e n te p a rte d e 21,1-23 e q u e a p o sição o rig in a l d e 20,30-31 era d ep o is
d o v. 24, d e m o d o q u e so m e n te o v. 25 c o n stitu i u m a adição. V aganay
te m tid o p o u c o s se g u id o re s, m a s s u a p ro p o sta n o v a m e n te ilu stra a
co n ex ão im p re cisa e n tre 24 e 25, e tam b é m o fato d e q u e o v. 24 se re-
lacio n a e s tre ita m e n te com 21,1-23 (m ais e stre itam e n te , e m n o ssa opi-
n ião , d o q u e 20.30-31 é co m se u contexto im e d ia ta m e n te p reced en te).

O te s te m u n h o v e r d a d e ir o d o D is c íp u lo A m a d o (v. 24)

O D isc íp u lo A m a d o , cuja m o rte foi d isc u tid a e m 21-20-23, ag o ra


é id e n tific a d o p e lo re d a to r com o a te ste m u n h a q u e ja z p o r d e trá s d a
tra d iç ã o jo a n in a - e sta é a av aliação m ín im a d a afirm ação d e q u e ele
é a te s te m u n h a d e "esta s co isas" e as "esc rev e u " (ver notas). A n tes d e
d isc u tirm o s os p o n to s d e v ista so b re p o r q u e o v. 24 p õ e esta ênfase
n o D isc íp u lo A m a d o , rec o rd e m o s a p a ssa g e m sim ila r em 19,35: lite-
ra lm e n te , "E ste te ste m u n h o foi d a d o p o r u m a te ste m u n h a ocular, e
s e u te s te m u n h o é v e rd a d e iro E ele (e k e i n o s ) e stá c o n ta n d o o q u e sabe
se r v e rd a d e iro " . A rg u m e n ta m o s q u e o d isc íp u lo -te ste m u n h a m encio-
n a d o n a q u e le v e rsíc u lo era o D iscíp u lo A m a d o ; e c o n c o rd a m o s com
S m ith , p . 223, c o n tra B u ltm a n n , q u e a s d ife ren ç a s e n tre 19,35 e 21,24
sã o tais q u e a m b o s os v ersícu lo s n ã o fo ra m escrito s p elo re d a to r (o
p rim e iro n ã o m e n c io n a o D iscíp u lo A m a d o e tem o g ram a tic alm en te
e s tra n h o " a q u e le q u e sabe"). A n tes, p ro v a v e lm e n te 21,24 seja a ten tati-
v a d o re d a to r d e re e sc re v e r co m m ais c lareza a m e n sa g e m d e 19,35. Se
e stiv e rm o s c erto s so b re 19,35, e n tã o a tese d e q u e o D iscíp u lo A m a d o
1634 IV · Epílogo

jaz p o r d e trá s d o e v a n g elh o com o su a a u to rid a d e n ã o é p e c u lia r ao


re d a to r, m a s foi ig u a lm e n te p a rtilh a d o p e lo ev a n g elista . N a v e rd a -
de, so m e n te o r e d a to r tem a trib u íd o e s c r i t o ao D iscíp u lo A m a d o ; m as,
com o tem o s in te rp re ta d o " esc rev e u " (v er n o ta), e sta a trib u iç ã o signi-
fica n ã o m ais q u e a aleg ação d e q u e o D iscíp u lo A m a d o é a q u e le q u e
d e u o te s te m u n h o reflete n o e v a n g elh o escrito.
E m u m in teressan te e stu d o , D. E. N ineham , " E y e - W i t n e s s T e s t i -
m o n y a n d t h e G o s p e l T r a d i t i o n , I I I " , JTS 11 (1960), 254-64, salien ta que,
en q u a n to a d e p e n d ên c ia d o teste m u n h o d a te ste m u n h a o c u la r d a s
aparições d o Jesus ressu rre to é a te stad a n o s p rim e iro s escritos d o N T
(IC o r 15,5-8), a reivindicação d e ter te ste m u n h a o c u la r n a re ta g u a rd a
p a ra u m relato d o m in istério d e Jesus só ap arece em o b ras tard ias, com o
Lucas, A tos, João e 2 P ed ro . E ntão, n a tu ra lm e n te su rg e u m a q u e stã o
q u a n to a q u e extensão a reivindicação d o te ste m u n h o d a teste m u n h a
o cular tem sid o ex ag erad a n e ste ú ltim o p e río d o a fim d e fav o recer os
apologetas. E m p articu lar, a reivindicação em Jo 21,24 te m constituí-
d o u m desafio, a m iú d e so b a p resu n ç ã o d e q u e so m en te o re d a to r, e
n ão o ev an g elista, fez isso. E. M eyer , a r t . c i t . (acim a à p. 1426), p . 161,
p e n sa q u e o a u to r d o evangelho, se g u id o d o re d a to r, e stav a te n ta n d o
in tro d u z ir u m a n o v a concepção d e C risto, u m a q u e rejeitava a tradi-
ção sinótica. A fim d e g ran jear aceitação, ele p re te n d ia q u e o evange-
lho fosse b a se a d o n o teste m u n h o o cu lar d o D iscípulo A m a d o , a saber,
João, filho d e Z eb ed eu . (Em ap o io a esta tese tem o s d e a d m itir q u e as
co m u n id a d es cristãs d o 2a século e lab o raram reivindicações fictícias o u
ex ag erad as d a o rig em o u p atro cín io apostólico p a ra su a s o bras; p . ex.,
as o b ras ju d aico cristãs associadas a Tiago). M eyer a firm a q u e o p ró p rio
a u to r jo an in o era a teste m u n h a ; visto, p o rém , q u e ele sentisse q u e seu
teste m u n h o era g u iad o p elo P arácleto, e n tã o p e n s o u q u e tin h a o d ireito
d e afirm ar q u e o ev an g elh o co n tin h a te ste m u n h o v e rd a d e iro . B acon ,
p p . 7 5 8 0 ‫־‬, tam b ém afirm a q u e o a u to r está te n ta n d o o b ter credencial
p a ra u m a n o v a trad ição q u e ele está in tro d u z in d o : "É a ad ição d o
A p ên d ice [Epílogo] fez q u e João salv ara a d istân cia q u e existe e n tre o
ser ig n o ra d o e o ser tid o , m ais p recisam en te, n a m ais a lta estim a". H á
m u itas v ariaçõ es d e sta a b o rd ag em ; m as q u e stio n a m o s s u a tese fu n d a-
m ental, p rim e iro p o rq u e d e fato o Q u a rto E van g elh o p re se rv a alg u m a
trad ição realm en te a n tig a so b re Jesus; e, se g u n d o , p o rq u e d u v id a m o s
se o ev an g elista e o re d a to r, q u e resp ectiv am en te e sta v a m en v o lv id o s
n a red ação d e sta o b ra e q u e a m b o s escrev eram e m m o m e n to s d istintos
73 · A (segunda) conclusão 1635

n o 1Ωséculo, p u d e sse m tere m tid o êxito ao fo rm u la rem essa reivindica-


ção to ta lm e n te fictícia. D eve-se ter e m m en te que, n e ste caso, estam os
tra ta n d o d e u m a reivindicação so b re u m a teste m u n h a o cu lar q u e havia
m o rrid o a p o u c o tem p o , e que, p resu m iv e lm e n te, e stav a v iv a q u a n d o
a p rim e ira ed ição d o e v an g elh o foi finalizada p e lo evangelista. Parti-
cu la rm e n te, ach am o s fraca a p re te n sã o d e que, v isto q u e o D iscípulo
A m a d o é d e ix ad o a n ô n im o n o Q u a rto evangelho, p ro v av e lm e n te ele
n ã o te n h a sid o u m a fig u ra histórica, e a in d a m en o s p ro v áv e l q u e te-
n h a sid o co n v in cen te com o teste m u n h a , já q u e o teste m u n h o anô n im o
ra ra m e n te é aceitável. C o m p a ra n d o o D iscípulo A m a d o com o M es-
tre d e Justiça d e Q u m ran , J. R oloff , N TS 15 (1968-69), 129-51, salienta
q u e, p a ra a c o m u n id a d e, a ú ltim a figura, a d esp eito d e seu an o n im ato
n o s escrito s sectários, é o p rin c ip al in té rp re te d o s feitos d e D eus e seu
te ste m u n h o é a ltam en te reverenciado. O fato d e q u e ele é conhecido
p o r u m títu lo , e n ã o p o r u m n o m e pessoal, im p rim e ênfase ao fato d e
q u e ele tin h a n o p la n o d e D eu s u m p a p e l d esig n ad o . O consequente
v a lo r sim bólico q u e o M estre a ssu m e n o p e n sa m e n to d a c o m u n id ad e,
esp ecialm en te a p ó s su a m o rte, n ã o lança d ú v id a sobre a histo ricid ad e
d a p a rte q u e ele exerceu n a edificação d a c o m u n id a d e. H á m u ita razão
d e se p re s u m ir q u e tan to p a ra as c o m u n id a d es d e Q u m ra n com o p a ra
as jo an in as o a n o n im a to d e seu s respectivos h eró is é a p e n as literário e
sim bólico - a s p esso as n o in terio r d a s d u a s c o m u n id a d es conheciam
p e rfe ita m e n te b e m a id e n tid a d e d e seus heróis.
Se u m ap o lo g eta fictício n ã o for razão suficiente p a ra u m apelo a
u m a teste m u n h a ocular n o v. 24, q u e o u tras razões a explicariam ? F. W.
G rosheide , e m u m a b rev e n o ta em G e r e f o r m e e r d T h e o lo g i s c h T i j d s c h r i f l 53
(1953), 117-18, salienta ser b e m p ro v áv e l q u e Jo 21 rep resen te o lim iar d o
p e río d o d a fo rm ação d o cânon. C o m a p a ssag em d a geração apostólica,
d a q u a l o D iscípulo A m a d o p o d e ría ter sid o u m d o s ú ltim o s m em bros
p ro em in en te s, p arece ter su rg id o n a Igreja o desejo d e p rese rv ar u m tes-
te m u n h o q u e jam ais seria d a d o o u tra vez; e foi este desejo q u e lev o u à
coleção d e escritos associados (certo o u erron eam ente) com a geração
apostólica. O p ro p ó sito d o red a to r ao acrescentar ao evangelho um a
m iscelân ea d e m aterial joanino reflete u m in ten to preservativo, e sua
insistência q u e a o b ra reflete o teste m u n h o d e u m a testem u n h a ocular
d o m in istério d e Jesus reflete a m en ta lid a d e p o r d etrás d a form ação do
cânon. C. M asson , " L e t é m o i n a g e d e J e a n ", R e v u e d e T h é o lo g i e e t d e P h il o -
S o p h ie 38 (1950), 120-27, lem bra-nos q u e a to talid ad e d o E vangelho d e
1636 IV · Epílogo

João prefere a linguagem da testem unha ou testem unho (m artyrein) à


de proclam ação (kêryssein; ver Mc 1,4; M t 3,1; Lc 3,3) o u d a evangeliza-
ção ([euangelizesthai; Lc 3,18) a fim de descrever o que Jesus estava fa-
zendo. Já vim os que este uso era parte d e u m uso m aior d a term inologia
jurídica (vol. 1, p. 223); e M asson com enta que essa preferência está em
conform idade com a situação cristã n a era joanina. Os tem pos missio-
nários prim itivos haviam passado; já não era m ais suficiente proclam ar
o evangelho; pois agora o evangelho era sistem aticam ente desafiado
pela Sinagoga e outros, e não havia m ais rem édio senão defendê-lo. Se o
Q uarto Evangelho realm ente tinha u m a base na tradição histórica, essa
base agora seria expressa em term os d e testem unho de u m a figura real-
m ente im portante na Igreja prim itiva (o Discípulo A m ado = João, filho
de Zebedeu?). Levaria m uito peso e acharia am pla aceitação, especial-
m ente se ela disputasse com outra form a da tradição já bem estabelecí-
da, a saber, a tradição subjacente aos evangelhos sinóticos.
M esm o que a reivindicação do v. 24 seja levada a sério, não de-
vem os deixar que as exigências históricas m o d ern as nos distraiam da
com preensão teológica joanina d o testem unho v erdadeiro. O teste-
m u n h o é verd ad eiro não só p o rq u e ele finalm ente se origina d e u m a
testem unha ocular, m as tam bém p o rq u e ele diz respeito a Jesus que
é a v erd ad e (14,6) e cujo testem unho pessoal era v erd ad e iro (5,31-32).
Ela é testemunha não só p o rq u e v em de u m que estava lá, m as tam bém
porque o Parácleto se expressa nas recordações e nas reflexões teoló-
gicas que se encontram no evangelho (15,26; v er A p. V). A noção joa-
nina do testem unho v erdadeiro v ai além d o registro d a testem unha
ocular do que aconteceu exatam ente; ele inclui a adaptação do que
aconteceu, de m o d o que su a veracidade p o d e ser vista e ser signifi-
cativa p ara as gerações subsequentes. O Parácleto é a testem u n h a de
Jesus p o r excelência, visto que ele é a presença d e Jesus e tem estado
ativo não só no prim eiro estágio do evangelho (a tradição histórica
pela qual o D iscípulo A m ado era responsável), m as tam bém nos está-
gios 2 a 5 (a tarefa do evangelista e do red ato r - vol. 1, p. 19).

Os muitos outros feitos de Jesus (v. 25)

Salientam os acim a que não h á conexão estreita entre 21,24 e 25.


Aliás, alguns têm in d a g ad o se o v. 25 não p o d eria te r sido adicionado
p o r algum ou tro além do redator, p o r causa das m uitas peculiaridades
73 · A (segunda) conclusão 1637

estilísticas d o versículo (ver notas) e p o r causa d a m u d an ça d e "nós", no


v. 24, p a ra "eu ". A acum ulação d e finais no s livros bíblicos n ão são ra-
ras (Dn 12,11 e 12). N ã o obstante, o im plícito "eu " n o "d u v id o " d o v. 25
p ro v av elm en te seja explicável com o u m recurso retórico p ró p rio d e u m a
hip érb o le literária; e ficam os relutantes sem p ro v a real p a ra postular, além
d o red ato r, ain d a o u tro au to r joanino q u e p u d esse ter adicionado o ver-
sículo (não h á d a d o s suficientes p a ra se p en sar em u m a adição posterior
feita p o r u m copista d e m anuscrito). Parece preferível, pois, olhar p a ra o
v. 25 com o o ú ltim o pen sam en to d o redator, su a reflexão final u m a vez
concluída a obra.
A p rim e ira p a rte d o v. 25, " H á m u ita s o u tra s coisas q u e Jesus
fe z " , re p e te d e m o d o m u ito e stra n h o 20,30: " C e rta m e n te, Jesus tam -
b é m re a liz o u m u ito s o u tro s sin ais n a p re se n ç a d e seu s d iscíp u lo s, si-
n a is n ã o re g is tra d o s n e ste liv ro ". P o r q u e ta l rep etição ? T alvez o red a -
to r se n tisse q u e a rep e tiç ã o d e u m a co n clu são d eix asse claro q u e ele
a g o ra e stá le v a n d o à co n clu são s u a a d ição pesso al. O u talv ez ele d e u
a s u a s a s p a la v ra s d o v. 25a o v a lo r d e u m a auto-justificação: o q u e
ele fiz e ra foi a d ic io n a r u m a seção d a s m u ita s coisas n ã o in clu sas n o
e v a n g elh o .
A s e g u n d a p a rte d o v. 25 é u m a h ip érb o le p a ra explicar p o r q u e n ão
se fez n e n h u m a te n ta tiv a d e in c lu ir to d a s a s d e m a is coisas q u e Jesus fi-
z e ra . A lg u n s c o m e n ta rista s têm se in c o m o d a d o s com e v id e n te exage-
ro q u e s u p õ e a firm a r q u e n ã o cab ería n o m u n d o in te iro - a b iblioteca
q u e se ria p ro d u z id a se fosse re g istra d o s to d o s os feitos d e Jesus. M ais
p ro v á v e l é q u e isto fosse u m se n tim e n to d e q u e e sta sen ten ça n ã o era
v e rd a d e ira e, p o rta n to , n ã o p e rte n c ia à E sc ritu ra o fato q u e explicaria
o s e scasso s te s te m u n h o s tex tu a is d e q u e a lg u n s p re fe rira m o m itir este
v e rsíc u lo . N o e n ta n to , h oje se reco n h ece a m p la m e n te q u e esse tip o d e
h ip é rb o le tã o c h a m a tiv a e ra u m a c o n v en ção literá ria aceita n a épo-
ca, ta n to n a lite ra tu ra gen tílica q u a n to ju d aica. O E clesiastes (1 2 ,9 1 2 ‫)־‬
te rm in a co m a n o ta d e q u e h a v ia m u ito s o u tro s en sin o s d o P rega-
d o r, m a s q u e , e m b o ra fosse ú til p o s s u ir u m a coleção d o s d ito s d e u m
p a s to r, "fa z e r liv ro s é u m tra b a lh o sem fim ". N o tra ta d o talm ú d ico
m e n o r, S o p h e r i m 16:8, re g istra -se q u e o R abi Jo h a n a n b e n Z ak k ai (c. d e
80 d.C .) h a v ia d ito : "Se to d o s o s céus fo ssem fo lh as d e p a p e l, e to d as as
á rv o re s fo ssem p e n a s p a ra escrever, e to d o s os m are s, tin ta, tu d o isso
n ã o se ria su ficien te p a ra c o m p o r a sa b e d o ria q u e e u recebi d e m eu s
m estre s; e, to d a v ia , n ã o recebi d a sa b e d o ria d o s sábios m ais d o que
1638 IV · Epílogo

faz um a m osca q u an d o se afu n d a no m ar e sorve tu n a tên u e gota".


Ao falar das com unicações d e D eus aos hom ens, F ilo, De posteritate
Caini 43,144, observa: "Fosse Ele querer exibir suas riquezas, m esm o
to da a terra, com o m ar convertido em terra seca, não as caberíam "
(tam bém De ebrietate 9,32; De vita Moysis 1,38; 213).
Em bora o que o au to r joanino diz é tecnicam ente inexato, talvez
O rígenes (Peri archõn 2,6,1; PG 11:210A) não estivesse longe d e in-
terpretar o verd ad eiro p ropósito d o autor, aplicando o dito não a um
registro dos feitos de Jesus, m as a u m a tentativa escrita d e explicar
o significado de Jesus: "N ão é possível colocar p o r escrito todos os
porm enores que pertencem à glória d o Salvador". Portanto, Jo 21,25
deveria expressar figurativam ente a m esm a m ensagem encontrada
em Cl 2,3: C risto é aquele "em quem estão ocultos to d o s os tesouros
d a sabedoria e conhecim ento".
Em qualquer caso, te n d o adicionado ou tro longo com entário à
já am pla bibliografia sobre o Q uarto evangelho, e ain d a sentindo que
m uito foi deixado sem registro, o presente au to r não se inclina sequer
u m m ínim o a cavilar sobe a exatidão d a queixa do red ato r joanino de
que n en h u m volum e d e livros exauriría o tem a.

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(CAP. 21)

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73 · A (segunda) conclusão 1639

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A PÊN D IC ES
APENDICE V: O PARACLETO

N o N T, a p alav ra p a r a k t ê t o s é peculiar à literatura joanina. Em ljo 2,1,


Jesu s é u m p a r a k l ê t o s (en te n d id o n ã o com o u m título), se rv in d o com o
u m in tercesso r celestial ju n to ao Pai. E m cinco p a ssa g e n s em João
(14,15-17.26; 15,26-27; 16,7-11.12-14) o títu lo p a r a k l ê t o s é d a d o a al-
g u é m q u e n ã o é Jesus, n e m u m intercessor, n e m se localiza n o céu.
A tra d içã o cristã te m id en tificad o esta fig u ra com o sen d o o E spírito San-
to, m a s e stu d io so s com o S pitta , D elafosse , W endisch, S asse, B ultm ann e
B etz tê m d ú v id a se esta identificação é g e n u ín a p a ra com a im agem
o rig in a l e têm su g e rid o q u e o P arácleto foi e m o u tro tem p o u m a figura
salvífica in d e p e n d e n te , m ais ta rd e c o n fu n d id a com o E spírito Santo.
P a ra verificar esta alegação, com eçarm os iso lan d o , sob q u a tro tópicos,
a in fo rm ação q u e João d á n a s p a ssa g e n s d o P arácleto, m a n te n d o o qu a-
d ro re su lta n te d istin to d o q u e lem os n o N T so b re o E spírito Santo.

(a) A v in d a d o P arácleto e a relação d o P arácleto com o P ai e o Filho:


• O P a rác leto v i r á (m as só q u a n d o Jesus p a rtir): 15,26; 16,7.8.13.
• O P a rác leto p r o c e d e d o Pai: 15,26.
• O P ai d a r á o P arácleto e m ate n ç ã o ao p e d id o d e Jesus: 14,16.
• O P a i e n v i a r á o P arácleto e m n o m e d e Jesus: 14,26.
• Jesus, q u a n d o p artir, e n v i a r á o P arácleto d a p a rte d o Pai: 15,26; 16,7.

(b) A id en tificação d o P arácleto:


• Ele é ch a m a d o " o u tro P arácleto": 14,16 (ver n o ta correspondente).
• Ele é o E sp írito d a V erd ad e: 14,17; 15,26; 16,13.
• Ele é o E sp írito Santo: 14,26 (v er n o ta c o rre sp o n d en te ).

(c) O p a p e l q u e o P a rác leto exerce e m relação ao s d iscíp u lo s:


• O s d isc íp u lo s o reconhecem : 14,17.
1642 Apêndices

• Ele e s ta rá co m os d isc íp u lo s e p e rm a n e c e rá co m eles: 14,17.


• Ele e n sin a rá tu d o aos d iscíp u lo s: 14,26.
• Ele g u ia rá os d isc íp u lo s ao lo n g o d e to d o o c a m in h o d a v e rd a -
de: 16,13.
• Ele receberá d e Jesus o q u e h á d e d eclarar aos discípulos: 16,14.
• Ele g lo rificará a Jesus: 16,14.
• Ele d a rá te ste m u n h o e m fav o r d e Jesus, e o s d isc íp u lo s tam b é m
d e v e m d a r teste m u n h o : 15,26-27.
• Ele lem b rará os d iscíp u lo s d e tu d o o q u e Jesus lhes en sin o u : 14,26.
• Ele falará so m en te o q u e o u v e e n ã o d irá n a d a p o r s u a conta:
16,13.

(d) O p a p e l q u e o P arácleto exerce em relação ao m u n d o :


• O m u n d o n ã o p o d e ac eita r o P arácleto: 14,17.
• O m u n d o n ã o v ê n e m reco n h ece o P arácleto: 14,17.
• Ele d a rá te ste m u n h o d e Jesus fre n te a o ó d io d o m u n d o q u e p e r-
se g u irá os d iscíp u lo s: 15,26 (cf. 15,18-25).
• Ele co n v encerá o m u n d o d o p ecad o , d a justiça e d o juízo: 16,8-11.

A ssim , as fu n çõ es b á sic a s d o P arácleto são d u p la s: ele v e m aos


d iscíp u lo s e h a b ita n eles, g u ia n d o -o s e e n sin a n d o -o s so b re Jesu s, m as
ele é h o stil a o m u n d o e p õ e o m u n d o e m ju ízo.
D ev em o s s u p le m e n ta r a in fo rm a ç ã o d a d a acim a co m m a te ria l to-
m a d o d o co n tex to g e ra l d a s cinco p a ssa g e n s d o P arácleto n o ú ltim o
d iscu rso . O p ró p rio fato d e q u e a p a re c e m co m o p a rte d a d e s p e d id a
q u e Jesu s faz a se u s d isc íp u lo s refo rça a co n ex ão e n tre a p a rtid a d e
Jesu s e a v in d a d o P arácleto.

A n á lis e d o títu lo p a r a k l e t o s

O q u e o n o m e d a d o a esta fig u ra salvífica n o s in fo rm a so b re ela?


O s e s tu d o s m ais d e ta lh a d o s n ã o têm sid o c a p az e s d e a p o n ta r u m
térm in o h eb raico o u a ram aico d o q u a l p a r a k l e t o s é c la ra m e n te u m a
tra d u ç ã o . (M ê l l s , "in térp rete", u m a sugestão frequente e m hebraico,
p . ex., J ohnson , p. 3 2 ). A liás, a b u sca p o d e ría ser v ã, p o is p r q l y t aparece
com o u m e m p réstim o linguístico do s escritos judaicos d o 2 a século d.C.
(P i r q e A b o t h 14,11); e assim o p a r a k l e t o s d e João p o d e ría te r sid o sim -
p le sm e n te a re tro v e rsã o d e u m e m p ré stim o d o g re g o e m v e z d e ser a
Apêndice V: O parácleto 1643

tra d u ç ã o d e u m te rm o heb raico . Q u a lq u e r q u e seja n o ssa an álise d o


sig n ific a d o d o term o , te m d e se r b a se a d o n a p a la v ra g rega.
P o d e m o s d is tin g u ir d u a s in te rp re ta ç õ e s d e p a r a k l ê t o s q u e têm
n u a n ç a fo re n se e d u a s in te rp re ta ç õ e s n ã o forenses.

(a) P a r a k lê to s co m o u m a fo rm a p a ssiv a d e p a r a f k a l e i n em se u s e n tid o


e le m e n ta r (" c h a m a r ao la d o d e "), sig n ifican d o " a lg u é m c h a m a d o
p a ra a ju d a r o u tro " , a ssim u m a d v o g a d o (O L a d v o c a t u s ) o u ad v o -
g a d o d e d efesa. H á q u e m a p o n te p a ra o p a p e l d o E sp írito S anto
co m o d e fe n s o r d o s d isc íp u lo s q u a n d o são p o sto s à p ro v a (M t 10,20;
A t 6,10); m a s e ste n ã o coincide com a d escrição d o q u a d ro joani-
no . Seja c o m o for, o p a p e l d o P arácleto é o d e u m a d v o g a d o q u e
se g u e p r o v a n d o q u e o m u n d o é c u lp a d o . A lém d o m ais, n o s p ro -
c e d im e n to s fo re n se s ju d aic o s a p e n a s h á lu g a r p a ra u m a d v o g a d o
d e d e fe sa , já q u e e ra o ju iz q u e d irig ia o in te rro g a tó rio e a defesa
c o n ta v a n o m áx im o com a lg u m a s te ste m u n h a s. Se o P arácleto tem
u m a fu n ç ã o forense, e n tã o seria a d e te s te m u n h a (15,26).
(b ) P a r a k l ê t o s e m u m s e n tid o a tiv o , d e riv a d o d e p a r a k a l e i n e m seu
sig n ific a d o d e " in te rc e d e r, ro g a r, a p e la r a " , e a ssim u m in terces-
so r, u m m e d ia d o r, u m p o rta -v o z . E v id e n te m e n te , e ste é o signi-
fic a d o e m 1J0 2,1, m a s n o e v a n g e lh o o P a rác leto n ã o in te rce d e
p e lo s d isc íp u lo s o u p o r Jesus. T a m p o u c o ele é u m p o rta -v o z em
d e fe s a d o s d isc íp u lo s co m o e m M t 10,20; a n te s, ele fala a tra v é s
d o s d isc íp u lo s (15,26-27) e m d e fe sa d o Jesu s a u se n te . R elacio-
n a d o a e s ta in te rp re ta ç ã o é o sig n ific a d o su g e rid o d e p a r a k l ê t o s
c o m o " a ju d a d o r, a m ig o " . E m p a rte , e sta c o m p re e n sã o d o te rm o
se re la c io n a c o m a teo ria d a s o rig e n s d o p ro to m a n d e a n a s q u e se-
rã o m e n c io n a d a s m a is a d ia n te . É v e rd a d e q u e o P a rác leto a ju d a
o s d isc íp u lo s , m a s isto é g e ra l d e m a is p a ra se r d e m u ito valor.
A lé m d o m ais, " a ju d a d o r" n ã o faz ju stiça a o p a p e l d o P arácleto
e m rela çã o c o m o m u n d o . P o d e m o s m e n c io n a r a in d a a tese d e
H . F. W oodhouse , B i b l i c a l T h e o l o g y 18 (1968), 51-53, d e q u e p a r a k -
l ê t o s d e v a s e r tra d u z id o co m o " in té rp re te " .
(c) P a r a k l ê t o s e m u m se n tid o ativo, relacio n ad o com p a r a k a l e i n , em seu
sig n ificad o d e "co n so lar", p o rta n to u m c o n fo rtad o r o u con so lad o r
(OL c o n s o l a t o r ; T r ö s t e r e m Lutero). E m bora D avies ten h a a rg u m en -
ta d o e m p ro l d e sta tra d u ç ã o co m b a se n o u so q u e a LXX faz d e p a r a -
k a l e i n (u m v e rb o q u e João n ã o usa), n e n h u m a p a ssa g e m a p re se n ta o
1644 Apêndices

P arácleto n a fu n çã o d e co n so lar os d isc íp u lo s. O e le m e n to d e con-


so lação se con fin a ao contexto; p o r ex em p lo , 1 6 ,6 7 ‫ ־‬q u e a n te c e d e
u m a p a ssa g e m so b re o P arácleto.
(d) P a r a k l ê t o s co m o rela c io n a d o com p a r a k l ê s i s , o s u b s ta n tiv o u sa -
d o p a ra d escrev er a exortação e en co rajam en to e n c o n tra d o s n a
p reg ação d a s te ste m u n h a s apostólicas (lT s 3,2; R m 12,8; H b 13,22;
A t 13,15 - v e r L emmonyer, a r t . c i t . ) . A t 9,31 fala d a Igreja co m o
c a m in h a n d o n a p a r a k l ê s i s d o E sp írito S anto. O a rg u m e n to é en-
fra q u e c id o p e lo fato d e q u e João n ã o u sa p a r a k l ê s i s , m a s e sta in-
terp re ta ç ã o c o n c o rd a co m Jo 15,26-27, o n d e o P a rác leto d á teste-
m u n h o a tra v é s d o s d iscíp u lo s. (Em A t 2,40, " d a n d o te s te m u n h o "
e " e x o rta n d o " são co m b in ad o s). M ussner, a r t . c i t . , m o stra co m o as
v á ria s fu n çõ es a trib u íd a s ao P arácleto sã o re a liz a d a s n o m in isté-
rio d o s ap ó sto lo s. B arrett, a r t . c i t . , te m a firm a d o q u e o P a rác leto é
o E sp írito q u e falav a n a p a r a k l ê s i s ap o stó lica, e c e rta m e n te e sta é
u m a d a s fu n çõ es d o P arácleto.

A m o d o d e resu m o , d ire m o s q u e n e n h u m a tra d u ç ã o d e p a r a k l ê t o s


ca p ta a c o m p le x id a d e d a s fu n çõ es fo re n se s o u o u tra s q u e e sta fig u ra
tem . O P arácleto é u m a t e s t e m u n h a e m d efesa d e Je su s e u m p o r t a - v o z
q u e fala e m se u n o m e q u a n d o é ju lg a d o p o r s e u s in im ig o s; o P arácleto
é u m c o n s o l a d o r d o s d isc íp u lo s, p o is ele a ssu m e o lu g a r d e Je su s e n tre
eles; o P arácleto é u m m e stre e g u ia d o s d isc íp u lo s e, assim , s e u a j u d a -
d o r . A o tra d u z ir a p a la v ra g reg a p a ra o latim d a V u lg a ta , Jerônimo fez
u m a esco lh a e n tre essas tra d u ç õ e s q u e oferecia o O L c o m o a d v o c a t u s
e c o n s o l a t o r , e o c o stu m e d e sim p le sm e n te tra n s lite ra r o te rm o com o
p a r a c l e t u s . N o ev an g elh o , ele a ssu m iu o se g u n d o rec u rso (a d v o c a t u s
ap a re c e e m 1 João), o m esm o c a m in h o ta m b é m se g u id o n a s tra d u ç õ e s
d a S iríaca e C ó p tica. P ro v a v e lm e n te seria sáb io ta m b é m n o s tem p o s
m o d e rn o s e stab elecer p a ra " P a rá c le to ", u m a tra n slite ra ç ã o a p ro x im a-
d a q u e p re s e rv a a u n ic id a d e d o títu lo e n ã o e n fa tiz a a p e n a s u m a d as
fu nçõ es e m d e trim e n to d a s o u tra s.

P a n o d e f u n d o d o c o n c e ito

N o início deste século, a tentativa d a Escola d a H istória d a s Religiões,


especificam ente W . Bauer, W indisch e Bultmann, d e achar as origens do
Parácleto n o g n o stid sm o p ro to m an d ean o d esfru to u d e certo prestígio.
Apêndice V: O parácleto 1645

A tese d e Bultmann é q u e o P arácleto é u m a a d a p ta ç ão d o Y aw ar M an-


d e a n o (o q u e ele tra d u z p o r " A ju d ad o r"), u m e n tre os v ário s revelado-
res celestiais n o p e n sa m e n to m an d e a n o . M ichaelis e B ehm têm subm etí-
d o e sta teo ria a u m a d u r a crítica, e hoje ela tem p o u c o s seg u id o res. (Para
u m re s u m o d o s a rg u m e n to s, v e r Brown, " P a r a c le t e " , p p . 119-20). Pos-
tu la ‫־‬se e m term o s m ais g erais u m p a n o d e fu n d o judaico. M owinckel
e Johansson fo ram fortes d efen so res d isto m esm o a n tes d a s descobertas
d e Q u m ra n , e F. M. C ross (T h e A n c i e n t L i b r a r y o f Q u m r a n [N ova York:
D o u b le d a y A n c h o r ed., 1961], p p . 213-15) te m salien tad o u m forte
ap o io q u e estes d esco b rim en to s d e ra m às teses d o p a n o d e fu n d o judai-
co. B etz, o p . c i t . , tem d esen v o lv id o o tem a d a s c ontribuições d e Q u m ra n
n e ste sen tid o . A p o ian d o -se n o s d a d o s d o A T, d o s A pócrifos e d o s rolos
d e Q u m ra n p o d e m o s selecionar os q u a tro seg u in tes p o n to s q u e contri-
b u e m p a ra u m a m elh o r c o m p reen são d o Parácleto.

(a) N o A T a c h am o s ex em p lo s d e u m a relação su cessiv a n a q u a l u m a


fig u ra p rin c ip a l m o rre e lev a o u tra a a ssu m ir s e u lu g a r, c o n tin u a
s u a o b ra e in te rp re ta s u a m en sa g e m ; p o r ex em p lo , M o isé s/Jo su é
e E lia s /E lis e u (B ornkamm , a r t . c i t . , a crescen ta o B a tista/Je su s). C o-
m u m e n te , a s e g u n d a fig u ra é e stre ita m e n te p a d ro n iz a d a n a p ri-
m eira. O c o n ceito d o e sp írito e n tra n e sta relação: D t 34,9 d escrev e
Jo su é co m o e s ta n d o ch eio d o e sp írito d e sa b e d o ria q u a n d o M oisés
e s te n d e a m ã o so b re ele; E liseu recebe u m a d u p la p a rticip a çã o n o
e s p írito d e E lias (2Rs 2,9.15); João B atista a tu a co m o in stru m e n to
n a v in d a d o E sp írito so b re Jesus.
(b) N o A T , 0 e s p í r i t o d e D e u s v e m so b re os p ro fe ta s p a ra q u e falem aos
h o m e n s a s p a la v ra s d e D eu s; n o q u a d ro q u e L ucas traça d o P ente-
c o stes e m A t 2, a v in d a d o E sp írito d e D e u s c o n v e rte os p re g a d o -
re s e m ap ó sto lo s. E ste conceito d o e sp írito p ro fé tic o p o d e oferecer
u m p a n o d e fu n d o p a ra o P arácleto co m o o m e stre d o s d iscíp u lo s
q u e o s im p u ls io n a a d a re m teste m u n h o .
(c) A an g elo lo g ia ju d aica ta rd ia oferece o m elh o r p a ra lelo p a ra o cará-
te r fo ren se d o P arácleto joanino. (N os liv ros apocalípticos, os anjos
ta m b é m tê m fu n çõ es did áticas, p o is g u ia m os visio n ário s à v erd a-
de. O v e rb o a n a n g e l l e i n u sa d o em relação ao P arácleto e m Jo 16,13-14
é u s a d o n estes livros p a ra d escrev er o d e sv e n d a r d a v era c id a d e d e
u m a visão; v e r n o ta so b re 16,13, " in te rp re ta rá "). L em brem o-nos d e
q u e o s anjos são fre q u e n te m en te c h a m a d o s "esp írito s". D a antiga
1646 Apêndices

im a g e m d o s anjos q u e fo rm a m a c o rte celestial e m e rg iu d a li a


fig u ra d e u m an jo o u e sp írito e sp ec ial q u e p ro te g e z e lo sa m e n te
os in te re sse s d e D e u s n a te rra , e rra d ic a n d o o m a l (o s a tã d e Jó
1,6-12 e d e Zc 3,1-5). M ais tard e , sob o im p a c to d o d u a lism o , h o u v e
u m a b ifu rcação d e sta fig u ra: o sa tã se to m o u o te n ta d o r m a l, en-
q u a n to u m an jo " b o m " a s su m iu a ta re fa d e p ro te g e r o s in te re sse s
d e D e u s e d o p o v o ; p o r e x e m p lo , M ig u e l e m D n 10,13. In clu siv e
n o liv ro d e Jó, a lé m d o sa tã q u e coloca a p ro v a Jó, h á refe rê n -
cias d isp e rsas e u m ta n to ob scu ras a u m p o rta -v o z ( m a V a k m ê l T s )
an g élico q u e se p õ e ao la d o d o ju sto (33,23), u m a te s te m u n h a ce-
lestial (16,19) q u e d e p o is d a m o rte d e Jó p ro m o v e rá a ju stiç a d a
c a u sa d e Jó (19,25-27). O ta rg u m m e d ie v a l, o u tra d u ç ã o a ra m a ic a
d e Jó lê p r q l y t ’ e m d iv e rsa s p a rte s n e s ta s p a ssa g e n s. N o ta m o s
q u e o P a rác leto jo a n in o ex erce u m p a p e l sim ila r e m rela çã o a
Jesus. E m Q u m ra n , o d u a lis m o an g élico é a lta m e n te e la b o ra d o ,
e o E s p í r i t o d a V e r d a d e lev a os a d e p to s e m s u a lu ta c o n tra a s for-
ças d o m a l q u e e stã o so b o E sp írito d a M e n tira . A lite ra tu ra d e
Q u m ra n (cf. ta m b é m o T e s t a m e n t o d e J u d á 20,1-5) fo rn e c e o s ú n i-
cos ex e m p lo s p ré -c ristã o s d o títu lo "E sp írito d a V e rd a d e " q u e
João u s a co m o sin ô n im o d e "P a rá c le to ". Se o E sp írito d a V e rd a d e
é u m an jo , tem -se a im p re ssã o q u e " e s p írito d a v e rd a d e " p o d e
ta m b é m refe rir-se a u m m o d o d e v id a o u a lg o q u e p e n e tr a o p ró -
p rio se r d o h o m em . P o r e x em p lo , e m 1QS 4,23-24 o u v im o s: "A té
a g o ra o s e s p írito s d a v e rd a d e e d a m e n tira lu ta m n o s co raçõ es
d o s h o m e n s , e c a m in h a m , re sp e c tiv a m e n te , n a s a b e d o ria e n a
lo u c u ra ". A ssim ta m b é m o P a rác leto jo a n in o h a b ita o in te rio r d o
h o m em . In d u b ita v e lm e n te , o c o n ceito d o e sp írito a n g é lico (o a njo
p o rta -v o z e p ro m o to r, o E sp írito d a V e rd a d e ) e ra o rig in a lm e n te
u m co n ceito d ife re n te d a q u e le d o e sp írito d e D e u s d a d o ao s p ro -
fetas, co m o d isc u tid o em (b ) acim a. M as e sta d istin ç ã o p o d e ter
c o m e ç a d o a d e s a p a re c e r n o p e n s a m e n to ta rd io . E m Sb 1,7-9, o
e s p írito d o S e n h o r te m q u a se a fu n çã o fo re n se d o s a tã celestial,
já q u e p e rs e g u e o m al n o m u n d o e o c o n d e n a . E m J u b i l e u s 1,24, o
p e rv e rs o B elial é o p o sto n ã o p o r u m anjo, m a s p e lo e s p írito sa n to
d e D e u s n o in te rio r d o s h o m en s. Se o s a d e p to s d e Q u m ra n e ra m
h o m e n s q u e c a m in h a v a m n o c a m in h o d o E sp írito d a V e rd a d e ,
ta m b é m e ra m h o m e n s q u e fo ra m p u rific a d o s p e lo e s p írito sa n to
d e D e u s q u e o s u n iu à v e rd a d e d e D e u s (1QS 3,6-7).
Apêndice V: O parácleto 1647

(d) A fig u ra d a S a b e d o ria p e rso n ific ad a , q u e oferece u m p a n o d e fun-


d o m u ito im p o rta n te p a ra o Jesu s jo an in o , ta m b é m oferece u m
c o n te x to p a ra o P arácleto (que é m u ito fam iliar a Jesus, com o ve-
rem o s). A S a b ed o ria v e m d e D e u s p a ra h a b ita r o in te rio r d o s esco-
lh id o s d o S e n h o r (Sir 24,12) e tra z e r-lh e s o d o m d o d isc e rn im en to
(26-27). A S a b ed o ria d iz (33): " D e rra m a re i o e n sin o co m o p rofecia
e a d e ix a re i a to d a s a s g eraçõ es fu tu ra s" - u m p a p e l n ã o diferen -
te d a q u e le d o P arácleto jo an in o q u e "v o s d e c la ra rá as coisas p o r
v ir" 0 o 16,13). 1 E n o q u e 42,2 m e n c io n a a rejeição d a S ab ed o ria pe-
los h o m e n s , e isto p o d e se r c o m p a ra d o co m a afirm ação d e João
(14,17) d e q u e o m u n d o n ã o p o d e ac eita r o P arácleto. Já v im o s n o
c o m e n tá rio u m a relação p a rc ia l e n tre a fu n çã o d o P a rác leto e m Jo
15,26-27 e o d o E sp írito e m M c 10,19-20, o E sp írito d o P ai d a d o aos
d isc íp u lo s p a ra q u e falassem p e ra n te os trib u n a is h o stis. N a p a s-
sa g e m p a ra le la e m Lc 21,14-15 é a sa b e d o ria (não p erso n ificad a)
q u e lh es é d a d a . (O p re se n te escrito r é d e v e d o r a R. L. Jeske p o r
v á ria s d e s ta s su gestões).

E m su m a , e n c o n tra m o s d isp e rso s n o p e n sa m e n to ju d aic o os ele-


m e n to s b ásico s q u e a p a re c e m n a im a g e m jo a n in a d o P arácleto: u m a
rela çã o e m série p e la q u a l u m a se g u n d a fig u ra, q u e se c o n fig u ra n a
p rim e ira , c o n tin u a a o b ra d a p rim e ira ; a p a ssa g e m d e se u esp írito p e la
p rin c ip a l fig u ra salvífica; a concessão d iv in a d e u m e sp írito q u e capa-
c ita ria o re c ip ie n te a e n te n d e r e in te rp re ta r feito e p a la v ra d iv in o s d e
u m a m a n e ira a u to rita tiv a ; u m esp írito p e sso a l (angélico) q u e g u iaria
o s e sco lh id o s c o n tra as forças d o m al; e sp írito s p e sso a is (angélicos)
q u e e n s in a m o s h o m e n s e o s g u ia m à v e rd a d e ; a S ab ed o ria q u e v em
ao s h o m e n s d a p a rte d e D eus, h a b ita n eles e os en sin a, p o ré m é rejei-
ta d a p o r o u tro s h o m en s. E n a s p a ssa g e n s q u e d e scre v e m estas v á ria s
relaçõ es e e s p írito s d iv e rso s h á a b u n d a n te v o c a b u lá rio d o testem u -
n h a r, e n s in a r, g u ia r e a c u sa r q u e a p a re c e m n a s p a ssa g e n s d o Parácle-
to jo an in o , in clu siv e o títu lo "E sp írito d a V e rd a d e".

A c o m p r e e n s ã o jo a n in a d o P a r á c le to

A com binação destes diversos aspectos em u m a im ag em consis-


ten te e d e n sa d o conceito d o E spírito Santo em co nform idade com esse
q u a d ro são o q u e no s tem d a d o a apresentação joanina d o P arácleto.
1648 Apêndices

D ev em o s e x a m in a r e sta a p re se n ta ç ã o m ais d e ta lh a d a m e n te . N o ssa


tese é q u e João a p re se n ta o P arácleto co m o s e n d o o E sp írito S an to em
u m a fu n ção esp ecial, a sab er, co m o a p re se n ç a p e sso a l d e Jesu s no
cristão e n q u a n to Jesus e stiv e r co m o Pai.
Isto significa, a n te s d e tu d o , q u e a im a g e m jo a n in a d o P arácleto
n ã o é in co n siste n te co m o q u e é d ito n o p ró p rio e v a n g e lh o e n o s ou-
tro s liv ro s d o N T so b re o E sp írito S anto. E v e rd a d e q u e o P arácleto é
m ais c la ra m e n te p e sso a l d o q u e é o E sp írito S an to e m m u ita s p a ssa -
g en s n e o te sta m e n tá ria s, p o is fre q u e n te m e n te o E sp írito S an to , com o
o e sp írito d e D e u s n o A T, é d e scrito co m o u m a força. T o d a v ia , certa-
m e n te h á o u tra s p a ssa g e n s q u e a trib u e m características q u a s e pes-
so ais a o E sp írito Santo; p o r ex em p lo , a s p a ssa g e n s triá d ic a s e m P au lo ,
o n d e o E sp írito é p o s to la d o a la d o co m o P ai e o F ilho, e o E sp írito
rea liz a ações v o lu n tá ria s (IC o r 12,11; R m 8,16). Se o P ai d á o P arácle-
to a o p e d id o d e Jesus, o P ai d á o E sp írito S an to ao s q u e lh e p e d e m
(Lc 11,13; ta m b é m Jo 3,24; 4,13). E m T t 3,6 lem o s q u e D e u s d e rra m o u
o E sp írito a tra v é s d e Jesu s C risto. Se a m b o s, o P ai e Jesus, ao e n v ia r o
P arácleto , o E sp írito S an to é d e u m m o d o v a ria d o c h a m a d o o E sp írito
d e D e u s (IC o r 2,11; R m 8,11.14) e o E sp írito d e Jesu s (2C or 3,17; G 14,6;
F11,19). Jo 4,24 lem o s q u e "D e u s é E sp írito ", sig n ific a n d o q u e D e u s se
rev ela ao s h o m e n s n o E sp írito , e Jo 20,22 te m Jesu s d a n d o o E sp írito
aos h o m en s. A ssim , n a d a se d iz so b re a v in d a d o P a rác leto o u so b re a
relação d o P arácleto com o P ai e o F ilho q u e re a lm e n te seja e s tra n h o à
im a g e m n e o te s ta m e n tá ria d o E sp írito Santo.
Se o P arácleto é c h a m a d o o " E sp írito d a V e rd a d e " e lem o s q u e
ele d á te s te m u n h o em fav o r d e Jesus, em l j o 5,6(7) so m o s in fo rm ad o s:
"E o E sp írito é o q u e testifica, p o rq u e o E sp írito é a v e rd a d e " . Se o tes-
te m u n h o d o P arácleto é d a d o a tra v é s d o s d isc íp u lo s, e n tã o e m A tos
a v in d a d o E sp írito S an to é o q u e m o v e os d isc íp u lo s a d a re m teste-
m u n h o d a re ssu rre iç ã o d e Jesus. E m te rm o s d e co n ceito , e m A t 5,32
h á u m p a ra le lo m u ito estre ito com Jo 1 5 ,2 6 2 7 ‫־‬: "S o m o s te ste m u n h a s
d e sta s coisas, e ig u a lm e n te o E sp írito S an to a q u e m D e u s te m d a d o
ao s q u e lh e o b e d e ce m " (ver Lofthouse, a r t . c i t . ) . Se o P a rác leto h á d e
e n sin a r os d isc íp u lo s, Lc 12,12 a firm a q u e o E sp írito S an to o s en sin a-
rá (v er tam b é m e s tu d o so b re l j o 2,27). Se o P arácleto te m u m a fun-
ção fo ren se ao p ro v a r a m a ld a d e d o m u n d o , o E sp írito e m M t 10,20 e
A t 6,10 ta m b é m têm u m a fu n çã o fo ren se, a sa b er, a d e d e fe n d e r os
d isc íp u lo s a n te os trib u n a is.
Apêndice V: O parácleto 1649

Isto n ã o significa q u e o P arácleto seja id en tificad o sim p lesm en te


co m o E sp írito Santo. A lg u m as d a s fu n çõ es básicas d o E sp írito San-
to , ta is co m o reg e n e raç ã o b atism al, n o v a criação, p e rd ã o d e p ecad o s
0 o 3,5; 20,22-23), elas n u n c a são p re d ic a d o s d o P arácleto. A liás, ao
e n fa tiz a r a p e n a s certo s asp ecto s d a o b ra d o E spírito e ao colocá-los
n o co n tex to d o ú ltim o d isc u rso e a p a rtid a d e Jesus, o a u to r joan in o
c o n ceb eu o E sp írito d e u m a m a n e ira a lta m e n te d istin tiv a, tão dis-
tin tiv a q u e ju sta m e n te d e u ao re su lta n te re tra to u m títu lo especial:
" o P arácleto ". N ã o o b stan te, d e v e m o s e n fa tiz a r q u e a identificação
d o P arácleto co m o se n d o o E sp írito S anto, em 14,26, n ã o co n stitu i u m
eq u ív o c o red a c io n a l, p o is as sim ila rid a d e s e n tre o P arácleto e o E spíri-
to se e n c o n tra m e m to d a s as p a ssa g e n s rela tiv a s a o Parácleto.
A p e c u lia rid a d e d o p e rfil jo an in o d o P a rá c le to /E sp írito , e este é
o n o sso s e g u n d o p o n to d e n o ssa an álise, se c e n tra e m to rn o d a sem e-
lh a n ç a d o E sp írito com Jesus. P ra tic am e n te , tu d o o q u e te m sid o d ito
acerca d o P arácleto , e m o u tro s lu g a re s n o e v a n g e lh o te m sid o d ito
acerca d e Jesu s. C o m p a re m o s o P a rác leto e Jesus sob os q u a tro tópicos
q u e u s a m o s p a ra classificação n o início d e ste A p ên d ice:

(a) A v in d a d o P a rác leto . O P a rá c le to v i r á ; a ssim ta m b é m Jesu s v eio


a o m u n d o (5,43; 16,28; 18,37). O P a rá c le to v e io (e k p o r e u e s t h a i )
d a p a rte d o P ai; a ssim ta m b é m Je su s v e io (e x e r c h e s t h a i ) d o Pai.
O P a i c o n c e d e rá o P a rá c le to a o p e d id o d e Jesu s; a ssim ta m b é m o
P a i d e u o F ilh o (3 ,1 6 .0 P a i e n v i a r á o P a rác leto ; a ssim ta m b é m Je-
s u s foi e n v ia d o p e lo P ai (3,17 e p a s s i m ) . O P a rá c le to se rá e n v ia d o
n o n o m e d e J e s u s ; a ssim ta m b é m Je su s v e io n o n o m e d o P ai (5,43
- d e m u ita s m a n e ira s , o P a rá c le to é p a ra Jesu s o q u e Je su s é p a ra
o Pai).
(b) A id en tificação d o P arácleto. Se d o P arácleto se d iz q u e é " o u tro
P a rác leto ", isto im p lic a q u e Jesus e ra o p rim e iro P arácleto (m as
e m s e u m in isté rio te rre n o , n ã o n o c éu co m o e m 1J0 2,1). Se o P ará-
cleto é o E sp írito d a V e rd a d e, Jesu s é a v e rd a d e (14,6). Se o P ará-
cleto é o E sp írito S an to , Jesu s é o S an to d e D e u s (6,69).
(c) A fu n ç ã o q u e o P a rác leto ex erce em rela çã o ao s d isc íp u lo s. A os
d isc íp u lo s se c o n c e d e rá o p riv ilé g io d e c o n h e ce r o u reco n h ecer
o P arácleto ; a ssim ta m b é m é u m p riv ilé g io e sp ec ial co n h e ce r o u
rec o n h e c e r Je su s (14,7.9). O P a rác leto h á d e e sta r n o in te rio r d o s
d isc íp u lo s e p e rm a n e c e rá com eles; a ssim ta m b é m Jesu s h á d e
1650 Apêndices

p e rm a n e c e r e m e co m o s d isc íp u lo s (14,20.23; 15,4.5; 17,23.26). Se


o P a rác leto h á d e g u ia r o s d isc íp u lo s n o c a m in h o d e to d a a v e rd a -
d e , Jesu s é ta n to o c a m in h o co m o a v e rd a d e (14,6). Se o P a rác leto
h á d e e n s in a r o s d isc íp u lo s, Je su s ta m b é m e n s in a o s q u e q u e re m
escu tá -lo (6,59; 7,14.18; 8,20). Se o P a rác leto d e c la ra a o s d isc íp u lo s
as co isas p o r v ir, Jesu s se id en tifica co m o o M essias p o r v ir q u e
a n u n c ia o u d e c la ra to d a s a s coisas (4 ,2 5 2 6 ‫)־‬. Se o P a rá c le to d a rá
te s te m u n h o , a ssim ta m b é m Jesu s d á te s te m u n h o (8,14). A lé m d o
m ais, n o ta m o s q u e João e n fa tiz a q u e to d o o te s te m u n h o e e n sin o
d o P a rác leto são acerca d e Jesu s, d e m o d o q u e o P a rá c le to glo-
rifica Jesus. 0 e s u s te m a m e sm a fu n çã o e m rela çã o a o Pai: 8,28;
12,27-28; 14,13; 17,4).
(d) A fu n çã o q u e o P arácleto exerce e m relação ao m u n d o . O m u n d o
n ã o p o d e a c eita r o P arácleto ; a ssim ta m b é m o s h o m e n s m a u s n ã o
p o d e m a c eita r Jesus (5,43; 12,48). O m u n d o n ã o v ê o P arácleto ; as-
sim ta m b é m o s h o m e n s são in fo rm a d o s q u e lo g o p e rd e rã o Jesus
d e v ista (16,16). O m u n d o n ã o co n h ece o u rec o n h e c e o P arácle-
to; assim ta m b é m os h o m e n s n ã o c o n h ecem Jesus (16,3; cf. 7,28;
8,14.19; 14,7). O P arácleto d a rá te s te m u n h o e m m eio ao ó d io d o
m u n d o ; assim ta m b é m Jesu s d á te s te m u n h o c o n tra o m u n d o (7,7).
O P arácleto c o n v en cerá o m u n d o d e s e u e rro c o n c e rn e n te a o jul-
g a m e n to d e Jesus, u m ju lg a m e n to q u e m a tiz a to d a a im a g e m q u e
João traça d o m in isté rio d e Jesus.

A ssim , a q u e le a q u e m João c h a m a " o u tro P a rác leto " v e m a ser


o u tro Jesus. V isto q u e o P arácleto só p o d e v ir q u a n d o Jesu s p a rtir, o
P arácleto é a p re se n ç a d e Jesus q u a n d o este e stiv e r a u sen te . A s p ro -
m essas d e Jesu s d e m o ra r e m se u s d isc íp u lo s se c u m p re m n o P arácle-
to. N ã o é p o r a c id e n te q u e a p rim e ira p a ssa g e m c o n te n d o a p ro m e ssa
q u e Jesu s faz d o P arácleto (14,16-17) é se g u id a im e d ia ta m e n te p elo
v ersícu lo q u e diz: "E u v ire i a v ó s". N ã o p rec isa m o s se g u ir E. F. S cott
e Ia n S impson a firm a n d o q u e João e stá c o rrig in d o o co n ceito e rrô n e o
d e q u e o E sp írito S anto é d istin to d e Jesus. João in siste q u e Je su s esta-
rá n o cé u co m o P ai e n q u a n to o P arácleto e stá n a te rra n o s d iscíp u lo s;
e assim os d o is têm fu n çõ es d istin ta s. E m c o n tra p a rtid a , o in teresse
d e João n ã o e stá p o s to n a f u tu ra teo lo g ia trin itá ria , n a q u a l o p rin c ip a l
p ro b le m a se rá m o stra r a d istin ç ã o e n tre Jesu s e o E sp írito ; João está
in te re s s a d o n a sim ila rid a d e e n tre o s dois.
Apêndice V: O parácleto 1651

O " S itz im L e b e n " p a r a o s c o n c e ito s jo a n in o s d o P a r á c le to

O q u e le v o u a tra d içã o jo an in a a p ô r ênfase, n o ú ltim o d iscu rso ,


so b re o E sp írito c o m o o P arácleto, isto é, com o a c o n tín u a p rese n ç a pó s
-re ssu rre iç ã o d e Jesus com se u s d iscíp u lo s, e n sin a n d o -o s e p ro v a n d o -
lh es q u e Jesu s h a v ia v e n c id o e o m u n d o e stav a eq u iv o cad o ? Sugeri-
m o s q u e a im a g e m d o P a rá c le to /E sp írito re s p o n d e u a d o is p ro b le m as
p ro e m in e n te s n o te m p o d a com p o sição final d o Q u a rto E vangelho.
(N o co m e n tário , p p . 1092-1095, n o ta m o s q u e p o d e ter h a v id o p ro m es-
sas d o E sp írito n a s fo rm as p rim itiv a s d o ú ltim o d iscu rso , m as q u e a
tra n sfo rm a ç ã o d e sta s, n a s p a ssa g e n s relativ as ao P arácleto, foram
c a ta lisa d a s p e la in tro d u ç ã o ao ú ltim o d isc u rso d o m ate ria l q u e ago-
ra a p a re c e e m 15,18-16,4a. Este m aterial, tra ta n d o d a p e rse g u içã o do s
d isc íp u lo s p e lo m u n d o , tem p a ra lelo s com M t 10,17-25, o n d e [10,20]
o E sp írito exerce u m a fu n ção forense. E p o ssív el q u e a reflexão sobre
e sta fu n çã o fo ren se p o d e ter d a d o o rig e m à fo rm u lação d o conceito
P a rá c le to /E s p írito , conceito este q u e seria p ró p rio ao s ú ltim o s estágios
re d a c io n a is d o ú ltim o discurso).
O p rim e iro p ro b le m a foi a c o n fu são c a u sa d a p e la m o rte d a s tes-
te m u n h a s o c u la res apostólicas, q u e fo rm a v am u m a cad eia v iv a en tre
a Igreja e Jesu s d e N azaré. A tese d e m u ito s c o m e n tarista s é q u e u m
d o s p ro p ó s ito s d o Q u a rto E v an g elh o era m o stra r a au tê n tic a conexão
ex isten te e n tre a v id a d a igreja d o final d o I a século e o já d ista n te Jesus
d e N a z a ré (vol. 1, p. 87). P a ra a q u ela m e n ta lid a d e , a m o rte d a s teste-
m u n h a s o cu lares ap o stó licas c o n stitu iu u m a tra g é d ia , v isto q u e o elo
v isív el e n tre a Igreja e Jesus e stav a se n d o desfeito. P rev iam en te, estes
h o m e n s tin h a m sid o a p to s a in te rp re ta r o p e n sa m e n to d e Jesus em face
d a n o v a situ a ç ão e m q u e a Igreja se en co n trav a. Sem d ú v id a , o im p acto
d a p e rd a d a s te s te m u n h a s o cu lares foi se n tid o e x a ta m e n te n o p e río d o
a p ó s o an o 70, m as, p a ra a c o m u n id a d e jo an in a, o im p a c to com pleto
n ã o v e io até a m o rte d o D iscíp u lo A m a d o , a te ste m u n h a o cu lar p o r
e x c e l ê n c i a (19,35; 21,24), u m a m o rte q u e, a p a re n te m e n te , o co rreu ju sta-
m e n te q u a n d o se e stav a a p o n to d e d a r ao e v a n g elh o su a fo rm a final.
E sta m o rte o u s u a n o tó ria im in ên cia teria a p re se n ta d o à c o m u n id a d e
jo a n in a o a n g u s tia n te p ro b le m a d e su a sobrevivência sem o ap o io d e
se u p rin c ip a l n ex o v iv o com Jesus.
O co n ceito d o P a rá c le to /E s p írito é u m a re sp o sta a e ste p ro b lem a:
Se a te s te m u n h a o c u la r h a v ia g u ia d o a Igreja e se o D iscíp u lo A m a d o
1652 Apêndices

h a v ia d a d o te s te m u n h o d e Jesu s n a c o m u n id a d e jo a n in a , n ã o foi
p rim a ria m e n te p o r c au sa d a m em ó ria q u e p e sso a lm e n te c o n serv a v a m
d e Jesus. D ep o is d e tu d o , eles h a v ia m v isto Jesus, p o ré m n ã o o com -
p re e n d e ra m (14,9). S o m en te o d o m d o E sp írito S an to o s e n sin o u o sig-
nificad o d e tu d o q u e tin h a m v isto (2,22; 12,16). S eu te ste m u n h o foi o
te ste m u n h o d o P arácleto q u e falava a tra v és deles; a p ro fu n d a rein ter-
p reta çã o d o m in istério e d a s p a la v ra s d e Jesu s e fe tu a d a s sob a d ire triz
d o D iscíp u lo A m a d o e ag o ra e n c o n tra d a s n o Q u a rto E v a n g e lh o era
o b ra d o P arácleto. (A qui co n co rd am o s, ao m en o s e m p rin c íp io , com
os m u ito s e stu d io so s, com o L oisy, S asse, K ragerud e H oeferkamp, q u e
v eem n o D iscíp u lo A m a d o a "en c a rn aç ã o " d o P arácleto). E o P arácleto
p o r o u tro lad o , n ã o cessa d e a tu a r q u a n d o estas te ste m u n h a s oculares
se v ão , p o is ele h a b ita o in te rio r d e to d o s o s cristão s q u e a m a m Jesus
e g u a rd a m seu s m a n d a m e n to s (14,17). (M ussner, p p . 67-70, n ã o está
m u ito certo e m su g e rir q u e a h ab itação d o P arácleto é o p riv ilé g io do s
d o z e e cesso u ju n ta m e n te com o ofício apostólico). O s cristão s d e úl-
tim a h o ra n ã o estã o m ais lo n g e d o m in isté rio d e Jesus d o q u e o s m ais
antig o s, p o is o P arácleto h a b ita neles co m o h a b ito u n a s te ste m u n h a s
oculares. E ao e v o car e d a r n o v o sig n ificad o ao q u e Jesus disse, o P ará-
cleto g u ia c a d a g eração p a ra e n fre n ta r n o v a s situações; ele d e c la ra as
coisas q u e estã o p o r v ir (16,13).
O s e g u n d o p ro b le m a e ra a a n g ú stia c a u sa d a p e la d e m o ra d a se-
g u n d a v in d a. N o p e río d o a p ó s 70 d.C ., a ex p e cta tiv a d o re to rn o de
Jesu s co m eço u a en fraq u ecer. S eu re to rn o fo ra a sso c ia d o co m o ter-
rív el ju ízo d e D e u s so b re Je ru sa lé m (Mc 13), a g o ra , p o ré m , Jerusa-
lém e sta v a d e s tru íd a p e lo s exércitos ro m a n o s e Jesus a in d a n ã o reto r-
n ara. E m p a rtic u la r, o re to rn o d e Jesu s fo ra e s p e ra d o n o s lim ites d a
v id a te rre n a d e a lg u n s d o s q u e fo ra m se u s c o m p a n h e iro s (M c 13,30;
M t 10,23). C e rta m en te , a c o m u n id a d e jo a n in a tin h a e s p e ra d o s e u re-
to m o a n te s d a m o rte d o D iscíp u lo A m a d o (Jo 21,23); m a s e sta m o rte
a cab ara d e aco n tecer o u e sta v a a c o n te c en d o e Jesu s a in d a n ã o h a v ia re-
to rn a d o . Q u e e sta d e m o ra c a u so u c erto ceticism o é v isto e m 2 P d 3,3-8,
o n d e se d á a re sp o sta u m ta n to in g ê n u a : n ã o im p o rta q u ã o lo n g o seja
o in te rv alo , a v in d a o c o rre rá logo, p o is p a ra o S e n h o r u m d ia é com o
m il an o s. A re s p o sta jo a n in a é m ais p ro fu n d a . O e v a n g e lista n ã o p er-
d e a fé n a s e g u n d a v in d a , m a s e n fa tiz a q u e m u ito s d o s a sp ec to s asso-
ciad o s à s e g u n d a v in d a já são re a lid a d e s d a v id a c ristã (juízo, filiação
d iv in a , v id a etern a). E d e u m a m a n e ira b e m real, Jesu s te m v o lta d o
Apêndice V: O parácleto 1653

d u r a n te a v id a te rre n a d e se u s c o m p a n h e iro s, p o is ele te m v in d o em


e a tra v é s d o P arácleto . (B o rnkam m , p . 2 6 , salien ta q u e o conceito d o
P a rác leto d e m ito lo g iz a v á rio s te m a s ap o calíp tico s, in clu siv e o jul-
g a m e n to d o m u n d o , p . ex., 1 6 ,1 1 ). O s cristão s n ã o v iv e m com se u s
o lh o s c o n s ta n te m e n te fitos p a ra o céu d o n d e o F ilho d o H o m e m h á
d e v ir; p o is, co m o o P arácleto , Jesu s e stá p re s e n te n o in te rio r d e to d o s
o s cren tes.

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(1933).
ÍN D ICES
INDICE DOS PRINCIPAIS AUTORES CITADOS

(Este é prim ariam ente um índice que cataloga a prim eira ocorrência do livro
ou artigo de um autor. Em uns poucos exemplos, faz-se referência a m ais de
um a afirmação das idéias de particulares do autor).

Abbott, E. A. 1047,1181,1235,1247, Bajsic, A. 1291,1296,1310,1316,


1394,1612 1331,1334
Abrahams, I. 1209,1214,1390 Balagué, M. 1455,1456,1457,1484
Ackroyd, P. R. 1567,1568 Baldensperger, G. 926,1420
Agostinho 907,917,994,995,1002, Ballard, J. M. 1146
1019,1028,1037,1044,1063,1066, Bammel, E. 1210,1320,1436
1094,1109,1110,1112,1125,1130, Bampfylde, G. 1358,1385
1163,1249,1282,1285,1337,1360, Barbet, P. 1407
1392,1458,1504,1566,1597,1603, Barrett, C. K. 906,909,
1612,1619 910,928,951,978,993,1019,1031,
Agourides, S. 1154,1570,1576, 1035,1044,1050,1069,1078,1084,
1594,1625 1085,1092,1100,1102,1103,1106,
Aland, K. 1168,1545,1605 1107,1115,1121,1126,1129,1144,
Albright, W. F. 1231,1397,1464 1148,1168,1173,1183,1239,1247,
Alfrink 1584 1282,1295,1315,1316,1337,1349,
Allen, W. C. 1478 1352,1354,1356,1367,1375,1381,
Ambrósio 908,994,1037,1378, 1391,1400,1409,1453,1456,1466,
1463,1618 1486,1499,1508,1530,1534,1538,
Ameisenowa, Z. 1058 1545, 1549, 1561-1563, 1567, 1569,
Aquino, T. de 994,1109,1121, 1573,1574,1603,1605,1610,1644,
1154,1227,1408,1413 Bartina, S. 1233,1242,1324
Arvedson, N. 1616 Bauer, W. 904,906,917,919,926,
Atanásio 1036,1377 936, 965, 994, 1045, 1055, 1188,
Auer, E. G. 1456,1457,1484 1209,1573,1579,1609,1616,1644
Beare, F. W. 1529
Bacon, B. W. 992,1202,1207,1625,1634 Behler, G.-M. 976,1188
índice dos Principais Autores Citados 1657

Behm, J. 1055,1645 Bonner, C. 1314


Belser 1282,1465 Bonsirven, J. 1163,1321,1326,1603
Bengel 994,1017,1523 Borgen, P. 1008,1037,1206,1240,
Benoit, P. 913,1206,1212,1228, 1330
1235,1240,1249,1253,1260,1261, Borig, R. 1043,1051,1053,1055,
1267,1276,1281,1287,1305,1323, 1057,1064,1066,1069
1331,1421,1422,1439,1472,1475, Boris 1069
1476,1489,1490,1502,1581,1584, Bornkamm, G. 1645,1652
1621 Bouttier, M. 1191,1495
Bernard, J. Η. 908,916,947,976, Bover 1545
1016,1018,1019,1031,1044,1045, Boyd, W. J. P. 948
1078,1079,1081,1103,1114,1118, Brandon, S. G. F. 1219
1121,1122,1124,1126,1144,1149, Braun, F.-M. 994,1103,1360,1378,
1183,1188,1232,1255,1284,1285, 1394,1401,1411
1316,1320,1350,1360,1392,1396, Braun, H.-Th. 1351,1401
1399,1414,1436,1449,1450,1458, Bream, Η. N. 1126
1461,1466,1470,1481,1494,1449, Brown, R. E. 913,1186,1501,1645
1450, 1458, 1461, 1466, 1506-1508, Brownlee, W. H. 1134
1546,1559,1561,1562,1564,1569, Bruns, J. E. 1140,1325
1570,1574,1603,1605,1606,1609, Büchler, A. 1209,1279,1276
1623,1627,1628, Buchsei, A. 1106
Berrouard, M.-F. 1094,1109 Büchsel, F. 1055,1281,1526
Berry, T. S. 991 Bultmann, R. 904,906,916,918,
Betti, V. 1620 919, 938, 940, 941, 948, 976, 981,
Betz, O. 1641,1645 986, 987, 994, 996, 997, 998, 1007,
Bewer, J. A. 1604 1018,1020,1021,1026,1032,1038,
Bickermann 1212 1050,1051,1054,1055,1059,1064,
Billerbeck 914,1209 1071,1079,1086,1101,1102,1103,
Bishop, E. F. 911,1355 1106,1114,1121,1125,1126,1129,
Black, M. 11 l, 1231,1356,1463, 1134,1143,1144,1147,1148,1149,
1464 1150,1151,1156,1158,1161,1163,
Blank, J. 1292,1299,1302,1306 1166, 1168, 1170, 1181, 1188,
Blinzler, J. 913,1209,1210,1214, 1204-1206, 1232, 1234, 1237, 1239,
1228,1249,1254,1281,1282,1288, 1246,1247,1249,1251,1252,1256,
1290,1322,1339,1383,1401 1261-1263, 1266, 1267, 1271, 1286,
Boismard, M.-E. 908,918-920,923, 1293,1297,1298,1300,1302,1305,
936, 939, 963, 992, 997, 998, 1001, 1310, 1316, 1318-1320, 1328, 1333,
1020-1022, 1033, 1051, 1146, 1147, 1345,1350,1366,1372,1375,1378,
1181,1207,1292,1393,1453,1463, 1381,1382,1389,1392,1394,1395,
1516,1544,1556,1573,1574 1398, 1404-1406, 1412, 1413, 1418,
Boman, T. 1238 1420,1421,1423,1425,1442,1445,
1658 índices

1453,1454,1459,1463,1471,1472, Cullm ann, O. 917,1060,1151,1239,


1480,1482,1488,1489,1500,1505, 1413,1481,1578,1584,1599,1608,
1507,1508,1511,1513,1514,1534, 1616,1620,1623,1625
1537,1538,1544,1547,1561,1565- Cum ont, F. 1453
1567, 1570,1573-1575, 1579, 1580,
1587, 1595, 1603-1605, 1610, 1613, Dalman, G. 1062,1249,1454
1615, 1616, 1621-1623, 1625, 1631, Damascene), J. 1037
1633 Danby, H. 1214,1280
Burkitt, F. C. 1206,1281,1508,1580, Daniélou, J. 1568
1605 Daniels, B. L. 1019
Burney, C. F. 997,1168 Daube, D. 1410
Buse, I. 1205,1206,1240,1251,1330 Dauer, A. 1352,1356,1375,1376
Bushill, P. N. 1267 Davies, P. E. 1220,1643
Bussche, H. van den 916,994,1053, de la Potterie, I. 994,998,1003,
1060,1064,1086 1006, 1100, 1103, 1105, 1226,
1321-1323
Cadbury, H. J. 1505 Deeks, D. 944
Caird, G. B. 975,976 Deissmann, A. 1289,1320
Calmes 1245 Delafosse 1470,1641
Cambe, Μ. 1487 Delling, G. 1443
Cam erarius, J. 1360 Descamps, A. 1439
Carmignac, J. 1530 Deutz, R. de 1194,1567
Cassiano 1574 Dibelius, M. 1069,1071,1128,1206,
Cassien, A. 1499,1504,1524 1209,1261,1485,1557,1574
Catharinet, F.-M. 1494 Dodd, C. H. 910,926,930,932,
Cerfaux, L. 979,980 933, 938, 949, 951, 961, 963, 969,
Ceroke, C. P. 1356,1379 988, 993, 994, 1012, 1039, 1044,
Charlesworth, J. H. 1055 1056,1078,1085,1086,1106,1127,
Chavel, C. B. 1289 1139,1150,1153,1154,1248,1266,
Chyträus, D. 1152 1271,1286,1292,1296,1297,1298,
Cipriano 927,1374,1609 1318,1345,1351,1356,1357,1367,
Colson, F. H. 1567 1370-1372, 1395, 1400, 1409, 1416,
Colwell, E. C. 1350 1422,1439,1440,1445,1458,1465,
Conzelmann, H. 1238 1466,1478,1479,1480,1485,1494,
Costa, M. 1414 1498,1508,1510,1511,1513,1515,
Cotter, W. E. P. 1466 1522,1524,1526,1530,1537,1545,
Crehan, J. H. 1581 1573,1574,1583,1588,1591,1593,
Crisóstomo, J. 916,936,995,1121, 1627,1629,
1126,1151,1369, 1465,1484,1523, Doeve, J. W. 1326
1561,1602,1629,1631 Döllinger 1283
Cross, F. Μ. 1189,1190,1645 Dom browski, B. W. 1190
índice dos Principais Autores Citados 1659

Dreyfus, P. 925 Gächter, P. 913,1352,1378,1398,


D rum , W. 1248 1399,1401,1607,1615
D rum w right, H. L. 1575,1624 Gärtner, B. 1007,1232
D upont-Som m er, A. 1529 George, A. 1153
D urand, A. 1245 Giblet, J. 1156
Gils, F. 1581
Earwaker, J. C. 1181,1182 Glasson, T. F. 1369
Easton, B. S. 1206 Glombiza, O. 1614
Edersheim , A. 1253,1350,1351 Goedt, D. 1377
Eisler, R. 1567 Goguel, M. 917,1212,1239,1267,
Eltester, W. 937 1281,1483,1570,1574,1587,1613,
Em erton, J. A. 1525,1567,1568 1623,1631
Engel, F. G. 1062 Goldstein, M. 1210
Ephraem 1450 Goodenough, E. R. 1314
Epifânio 1037,1231,1377 Grant, R. 1566
Erdozáin, L. 1516,1537 Grass, H. 1453,1474,1483,1489,
Eusébio 1103, 1212,1242,1285, 1503,1530,1531,1578,1582,1587,
1355,1397,1609 1613
Evans, T. E. 1602 Gray, A. 1597,1599
Evdokim ov, P. 1176 Grelot, P. 917
Grintz, J. M. 1449
Fascher, E. 1140 Grobei, K. 1105
Feldm an, L. H. 1210 Grosheide, F. W. 1635
Feuillet, A. 1058,1120,1121,1133, Grossouw, W. 904,918,919,925,927
1134,1156,1378,1380,1393,1487, G rundm ann, W. 964,1103,1250,
1495 1495
Field 1124 Guilding, A. 1226,1234
Filo 1000,1020,1044,1049,1120, G undry, R. H. 1002
1276,1278,1291,1295,1320,1321,
1332,1335,1374,1390,1503,1595, Haenchen, E. 1230, 1233,1264,1285,
1605,1637 1292,1294,1300, 1303,1330,1339
Filson, F. V. 1085 Ham m an, A. 1188
Fitzm yer, J. A. XII, 911,1464,1501 Ham m er, J. 948,949
Flourney, P. P. 1318 Hamrick, E. W. 1346
Ford, L. S. K. 1413,1633 Ha-Reubeni, E. 1314
Foster, J. 1045 Häring, B. 908,927,1187
Freed, E. D. 932,981,1080,1170, H arris, J. R. 905
1233,1383,1395,1459,1602 H artm ann, G. 1454,1458,1471,
Fridrichsen, A. 927,1603 1472,1474,1500, 1502,1511,1515
Fuller, R. H. 1220,1443,1444,1580, H aupt, P. 1409
1584 Hebert, G. 1449
1660 índices

Heinz, D. 1077 Jeske, R. L. 1647


Hewtt, J. W. 1503 Jocz, J. 1080
Hilário 1036,1377 Johansson, N. 1645
Hingston, J. H. 1232 Jones, A. M. 1278
Hirsch, E. 918,1128,1470 Josefo 905,936,965,1061,1083,
Hirschfeld, D. 1278 1126,1210,1216,1229,1234,1244,
Hoeferkamp, R. 1652 1245, 1252, 1276-1278, 1280-1284,
Holtzm ann 1188,1206 1291, 1295, 1319, 1320, 1322-1324,
Hoskyns 917,921,964,1065,1081, 1331, 1335, 1346-1348, 1374, 1390,
1082,1082,1085,1085,1106,1111, 1394,1403,1424
1121,1129,1134,1140,1151,1184, Joüon, P. 908,1104,1245,1356
1283,1353,1357,1359,1360,1375, Juster, J. 1281
1379,1385,1386,1394,1399,1411, Justino 1049,1083,1210,1321,1327,
1419,1458,1462,1464,1488,1494, 1351,1372,1417,1502,1609
1530,1544,1546,1566,1569,1571,
1572,1594,1596,1623,1627,1630 Käsemann, E. 965,1147,1153,1158,
H ow ard, W. F. 1573,1632 1159,1186,1188,1190,1193,1574
However 912 Kästner, K. 1461,1463,1466,1507
Huby, J. 1168,1611 Kennicott 1396
Huffmon, Η. B. 1107 Kenyon, K. 1346
Hultkvist, G. 1407 Kerrigan, A. 1134,1352,1357,1379
H um phries, A. L. 993 Kilpatrick, G. D. 1315,1631
H usband, R. W. 1280,1289 Klein, G. 1267,1582,1588,1589,
H utton, W. R. 1017 1595
Inácio 906,1058,1069,1077,1180, Knox, W. 928,1445
1499,1533 Koehler, T. 1378,1379,1501
Irineu 992,1000,1045,1160,1369, Koester, H. 1020
1410,1412,1609 Koffmahn, E. 1190
Kopp, C. 1249,1276,1324,1452
Jacobs, L. 1071 Kosmala, H. 1255
James, J. C. 991 Kraft, H. 1465,1492
Jaubert, A. 913,1055,1056,1058 Kragerud, A. 1574,1652
Jellicoe, S. 1396 Krieger, N. 1234
Jensen, E. E. 1216,1326 Kruse, H. 1566,1567
Jeremias, J. 904,907,908,909,912, Kuhn, K. G. 935,1238
913, 927, 929, 938, 940, 941, 985, Kümmel 1261,1574
1008,1204,1205,1206,1215,1231,
1255,1262,1263,1278,1281,1282, Lagrange, M.-J. 914,916,951,960,
1346,1347,1432,1452,1475,1505 976,978,994,996,997,1020,1043,
Jerônimo 977,1181,1291,1566, 1045,1046,1050,1062,1078,1079,
1567,1591,1644 1080,1086,1103,1107,1108,1119,
índice dos Principais Autores Citados 1661

1121, 1123, 1126-1129, 1144, 1152, 1473,1482,1494,1499,1507,1508,


1154,1212,1226,1233,1234,1245, 1511,1545,1551,1557,1559,1563,
1249,1250,1254,1287,1356,1360, 1565,1566,1575,1579,1605,1606,
1393,1394,1399,1400,1408,1417, 1607,1610,1616,1617,1624,1625
1421,1459,1463,1466,1467,1507, Lutero 1126,1245,1643
1508, 1532, 1546, 1547,1557 ‫־‬1560,
1563-1565, 1569, 1571, 1574,1587 , Macgregor, G. H. C. 917,1321,1587
1603,1605,1607,1611,1633, Macler, F. 1606
Lagrange, P. 1255 M ahoney, A. 1254,1313,1325,
Langkam m er, H. 1378,1379 Maier, J. 1190
Lattey, C. 1255 Maier, P. L. 1278,1335
Laurentin, A. 1146,1155,1170,1222 M aiworm, J. 1465
Lauterbach 1209 M aldonatus 994,1085,1092,1109
Lavergne, C. 1401,1457,1484 Mánek, J. 1445,1596
Le D éaut, R. 1369 M antey, J. R. 1504,1505
Leal, J. 1066,1103 Marcozzi, V. 1408
Lee, G. M. 1623 M arrow, S. B. 1563,1566,1572,
Lem monyer, A. 1644 1576,1593,1608,1611
Léon-Dufour, X. 1204,1206,1210, M artinez Pastor, M. 976
1466 M artyn, J. L. 1083
Levonian, L. 1504 Massaux, E. 1101
Lietzm ann, H. 1206,1212,1281, Masson, C. 1267,1635,1636
1327 McCasland, S. V. 1004
Lightfoot, R. H. 1126,1461,1462, McClellan, W. 1484
1494,1549,1565, 1574,1601 McDowell, E. A. 1558,1602,1603
Lindars, B. 1469,1470,1471 McL. Wilson, R. 1162
Linnem ann, E. 1267 Meeks, W. A. 1263,1288,1322,1323,
Linton, O. 1221 1341,1361,1550
Lipinski, E. 1325 Mein, P. 1232,1233
Lisy 1360 M enoud, P.-H. 1490
Lofthouse, W. F. 1648 Mercúrio, R. 1423
Lohfink, N. 1023 Merk 1462,1545,1605
Lohmeyer, E. 917,918,926,1581 Merlier, O. 1287
Lohse, E. 1239,,1276,1305,1316 Merx 919
Loisy, A. 917,936,938,977,979, Meyer, E. 1267,1377,1634
1013,1036,1081,1085,1106,1109, Michaelis, W. 994,1003,1103,1574,
1111,1113,1114,1120,1121,1134, 1645
1138,1151,1154,1206,1226,1239, Michaels, J. R. 1392,1393,1405
1267,1291,1321,1349,1376,1381, Michel, O. 965
1383,1385,1386,1397,1402,1406, Michl, J. 916,924,925,1401
1411,1417,1420,1450,1466,1467, Miguens, M. 1370,1413,1465
1662 índices

Milligan, G. 1561 Plínio 1566


Milne, H .J. M. 1631 Plum m er, A. 1249,1478,1574,1587
Moffatt 947,1266,1603 Poelman, R. 1151
Mollat, D. 1103,1147 Pollard, T. E. 1180,1187
Mommsen, T. 1209,1280 Pölzl, F. X. 1466
M ontgom ery Hitchcock, F. R. 1348, Porter, C. L. 1019
1628, Potin, J. 1597
Moor, J. C. de 1190 Prat, F. 935
Moore, G. F. 1231 Prete, B. 1537
Morris, W. D. 1466
Morrison, C. D. 1154,1175 Quispel, G. 1020,1162
Moule, C. F. D. 911,1358,1443,
1446,1504,1508,1602 Ramsey, A. M. 1490
M oulton, J. H. 1315,1561 Randall, J. F. 1180,1188,1190
M oulton, W. J. 1481 Rau, G. 1308
Mowinckel, S. 1109,1419,1645 Reid,J. 1172
Munck, J. 965 Reinach, S. 1368
M urmelstein, B. 1375 Rengstorf, K. H. 1291,1548
M urphy, R. E. 1160,1169 Reynen, H. 1228
M ussner, F. 1644,1652 Ricca, P. 1358
Richter, G. 917,919-921,926,927,
Nauck, W. 1443,1452,1458 931,933,953, 1241
Neher, A. 1190 Rieger, J. 1017,1018
Neirynck, F. 1478,1479 Riesenfeld, H. 1181,1499,1545
Nestle, E. 1397, 1462,1545,1605 Riggs, H. A. 1289,1291
Nineham , D. E. 1634 Robinson, B. P. 1227
Norlie, Ο. M. 1358 Robinson, J. A. 929
Roloff, J. 1635
O'Rourke, J. J. 911,1323,1419 Rossi, D. 1396
Oepke 1458 Ruckstuhl, E. 913,1573,1632
Olivi, P. J. 1411 Runes, D. 1208
Origenes 907,916,936,976,991,
1027,1036,1180,1210,1241,1291, Sanday 1394
1317,1347,1378,1408,1409,1412, Sandvik, B. 1060
1601,1602,1606,1609,1638 Sasse, H. 1641,1652
Osty, E. 1206,1207 Sava, A. F. 1407,1408
Schaeder, Η. H. 1232
Perles, F. 1465 Schaefer, O. 1002
Perry, A. M. 1206 Schlatter, A. 926,994,1044,1118,
Phillips, C. A. 905 1138,1170,1188,1247,1394,1396,
Platão 1048,1252 1417,1574,1608
índice dos Principais Autores Citados 1663

Schlier, H. 1284,1285,1286,1288, Stand, K. A. 914


1300,1317,1320 Stanley, D. M. 1048,1060,1227,1584
Schmitt, J. 1529 Stanton, A. H. 1100
Schnackenburg, R. 926,1574 Stauffer, E. 965,1283,1352
Schneider, J. 951,963,964,978, Steele, J. A. 1323
1151,1245 Stendahl, K. 935,1526
Schniew ind 1267 Strachan, R. H. 1050,1085,1126,
Scholem, G. 1162 1188,1377,1394,1603
Schölte, F. 1522 Strathm ann, H. 994,1086,1106,
Schrenk, G. 1629 1188,1574
Schulz, S. 1055 Strauss, D. F. 928,1253
Schürer, E. 1209,1230,1276 Strecker, G. 1211
Schwank, B. 917,924,985,1018, Streeter 1206,1245
1033,1085,1107,1138,1166,1173, Stroud, J.C . 1407
1184,1194,1363,1455,1462,1492, Suetônio 1327,1339,1348,1534
1545,1601,1623,1625,1626 Suggs, M. J. 1019
Schwartz, E. 1579,1608,1611,1612, Sutcliffe 1245,1584
1624 Swanson, D. C. 1559
Schweizer, E. 1055,1231,1409,1627 Swete, Η. B. 1504,1523
Schwitzer, A. 1470
Scott, E. F. 1650 Tabachovitz, D. 1345
Seidensticker, P. 1431 Taciano 1077,1103,1124,1168,
Sheehan, J.F. 1617 1171, 1249-1251, 1289, 1353,1398,
Sherwin-W hite, A. N. 1275,1280, 1403,1450,1454,1463
1286,1294,1297,1303,1320,1327, Talmon, S. 1190
1331,1336 Tasker 1462,1545
Sickenberger, J. 1466 Taylor, V. 994,1204-1206,1234,
Sidebottom, E. M. 1057 1256,1261,1266,1267,1328,1345,
Simonis, A. J. 1123 1359,1366,1382,1392,1437,1445,
Simpson, I. 1650 1449,
Skeat, T. C. 1631 Temple, S. 1205
Smalley, S. S. 981 Tertuliano 908,927,1036,1212,
Smith, C. W. F. 948,1298,1406, 1327,1372,1413,1462,1502,1546,
1459,1471,1574,1627,1633 1570,1596,1609,1612
Smith, J. 1584 Thibaut, R. 1319
Smith, R. H. 1346 Tholuck 1522
Spicq, C. 905,1047,1048,1183, Thomas, W. H. G. 1551
1374,1465,1602,1606,1618 Thurian, M. 1379
Spitta 919,998,1126,1206,1266, Thüsing, W. 976,981
1454,1470,1613,1641 Tillmann 994,1379,1508,1623
Spurrell, J. M. 1386 Tindall, E. A. 1247
1664 índices

Tischendorf 1631 Weiss, B. 994,1126,1188,1206,


Tödt, Η. E. 1210 1395,1532,1587,1626
Tomoi, K. 1015 Weiss, J. 1267
Torrey, C. C. 1324,1394,1395 Welles, C. B. 1314
Trench, R. C. 1602 W ellhausen, J. 919,1107,1128,
Tromp, S. 1413 1246,1406,1454,1470,1490,1579,
Twomey, J. J. 1291 1587,1598
Tzaferis, V. 1502 W enger, E. J. 1187
W enz, H. 1507,1532,1537
Ubach, B. 1401 W estcott, B. F. 991,994,1046,1103,
Unger, D. 1379 1104,1121,1126,1151,1175,1250,
1544,1545,1559,1560,1574,1602,
Vaccari, A. 1401 1606,1610,1611,1623
Vaganay, L. 1546,1633 W estcott-Hort 1287,1508
van Unmik, W. C. 1501 W ikenhauser, A. 1021,1114,1379,
Vanhoye, A. 1146,1222 1417,1574
Varebeke, J. de 1222,1236,1292, Wilckens, U. 1443
1293,1362 Wilcox, M. 935,938,939
Vaux, R. de 1356 Wilkens, W. 1151,1445,1574,1632
Vawter, B. 1057 W ilkinson, J. 1359
Verdam, P. J. 1215,1279,1282 William, F. M. 1480,1484
Vermes, G. 1369,1370 W indisch, H. 1092,1114,1641,1644
Vincent, L.-H. 1324 W inter, P. 1206,1209,1210,1212,
Vincent, P. 1276 1214,1228,1230,1232,1235,1239,
Violet, B. 1465 1244,1246,1251,1281,1282,1283,
Vogel, C. 1597 1288,1291,1298,1308,1332
Vogels, H. 1545 W ood, J. E. 1369
Vogt, E. 1448 W oodhouse, H. F. 1643
von Cam penhausen, H. 1300,1319, W orden, T. 1528
1337,1437,1443,1462 W uellner, W. 1248
von Dobschiitz 1209,1458
von H am ack 1321,1587,1616 Yadin, Y. 1277
von Soden 1545 Young, F. W. 1105,1161
Vosté 1245
Zahn 1249,1507,1565,1605,1623
Walsh, J. 1401 Zeitlin, S. 1209,1324
W ansbrough, H. 1216 Zerwick, M. 1127,1288
Weir, T. H. 908 Zim m erm ann, H. 953,1039
Weiser, A. 918 Zulueta, F. de 1453
ÍNDICE DE CITAÇÕES BÍBLICAS

Gênesis 22,28 1253


24,16 1195
1,10 1450 25,8 1028
2-3 1227 28,4 1373
2-4 1380 28,41 1175
2,7 1503,1518,1521 29,5 1374
2,15 1403 29,45 1195
2,21-22 1393 33,11 1072
3,15 911,1380 33,13.18 1027
3,15-16 1133 33,18 1008
3,16 1120 34,6 1145
4,1 1120,1380 36,35 1374
22,6 1369 39,27 1374
22,12 1369 40,13 1176
32,27 1037 40,33 1358
37,3.23 1375
47,29-49,33 965 Levítico
49,24 1617
8,30 1176
Êxodo 11,44 1175
14,2 1175
3,13-15 1163 13,2ss. 1408
4,9 1411 14,4-7 1359
12,6 1325 15,19-24 1276
12,10 1395,1415 16/4 1373
12,13 1370 16,11-17 1156
12,16 1390 19,18 984,985
12,22 1385 20,26 1175
12,46 1395,1402,1415 21,10 1351
19,5 1146 23,5 912
20,1 1020 23,6-14 1389
21,2 924 24,16 1284,1317
22,2-21 1162 26,12 1495
1666 índices

N úm eros 18,18-19 1091


18,20 1220,1263
2-7 961 21,22-23 1390,1415
8,10 1050 21,23 1283
9,6‫ ־‬12 1277 23,14 1195
9,12 1395,1415 23,19[18] 1169
11,20 1195 25,1 1102
15,35 1345 30,16 967
18,20 925 31,8 1036
19,7 1277 31,23 968
19,11 1277,1398 31,24 905
19,16 1277 34,9 1645
19,18 1359 34,10-12 1009
19,19 927
20,11 1411 Juizes
22,24 1348
24,17 1316 6,23 1501
25,13 1084 8,23 1340
27,18 1050 13,4 1146
31,19 1277 13,5 1231
35,25 1245
35,31 1292 Rute

D euterôm io 1,16 1494


2,14 940
1,29 1000
1,33 1000 1 Sam uel
5,5.22 1020
6,5 1023,1618 1,1 1397
7,21 1195 8,7 1340
7,5.21 1162 12,22 1078
7,6-8 985 18,21 1356
10,12-13 1618
12,12 925 2 Sam uel
13,2-6 1263
13,5 1220 4,6 1249
14,27 925 5,2 1617
15,19 1176 7,7 1605
16,3 1507 7,11-16 1340
16,4 1277 7,13 1316
16,7 1226 7,25 1146
18,15 1288 15,12 910
18,18 1009,1164 15,23 1226
índice de Citações Bíblicas 1667

1 Reis Salm os

1,17 1032 7,1 1080


2,37 1227 2,2 1299
4,33 1359 2,7 1340,1356
8,27ss 1028 2,9 1133,1605
11,29-31 1375 9,11[10] 1161
15,13 1226 13[12] 1056
22,19‫־‬22 1440 16,10 1458
16,11 1004
2 Reis 22 1352,1386
22,2 1233
2,9.15 1645 22,16(15) 1384
3,11 907 22,17(16) 1348,1502
21,18.26 1425 22,19(18) 1351,1373
22,23(22) 1161,1495
1 C rônicas 25,5 1032
25,11 996
17,6 1617 27,12 1213
28-29 965 28,6 909
29,11 1035
2 C rônicas 31,6[5] 1360
34,21(20) 1395,1416
5,11 1176 35,4 1233
6,32 1078 35,19 1080
7,3 1323 35,23 1534
16,14 1400 38,12(11) 1352
41,10(9) 910,911,932,1169
N eem ias 42,3[2] 1385
42,6(5) 939
3,16 1425 56,10(9) 1242
63,2[1] 1385
Ester 69 1091,1384
69,5(4) 1080,1091
5,10 1127,1357 69,10[9] 1091
69,22 1384
Jó 69,22(21) 1091,1382,1384
69,26(25) 1169
1,6-12 1646 80 1057
16,19 1646 80,2[1] 1617
19,25-27 1646 80,9(8)ss 1056
33,23 1646 80,9[8] 1056
86,11 1003
1668 índices

88,9[8] 1352 22,22 1525,1584


96.10 1372 26,13 1340
109,8 1169 26,17 1118
110,1 935 26,17-18 1133,1380
113.10 1113 26,20 1118
116.5 1184 27,2-6 1055
119,4.25.28 1020 28,13b 1232
119,30 1003 32,5 1285
119,137 1184 34,13 1314
119,142 1171 37,20 1145
119,161 1080 40,8 1066
40,11 1617
Provérbios 41,8 1049
42,6 1232
5,6 1005 42,10 1105
6.23 1005 43,1 1487
8,2-3 1251 43,10 933
8.23 1161 44,7 1105
9.3 1251 44,28 1618
10,17 1005 45,19 1105
14,35 1285 48,5 911
15.24 1004 49,6 1232
18.10 1174 49,20-22 1380
24,22a 1170 50,6 1265,1314
31,6-7 1382 52,6 1163,1498
52,7 1035
Eclesiastes 52,13 980,981
52-53 1352
3,20 1457 53 1114,1370
12,9-12 1637 53,3 1265,1316
53,5.10 1419
Isaías 53,7 1265,1319,1416
53,9 1397
5.1-7 1055, 1062 53,12 1347,1360,1410
5,15-16 1111 54,1 1380
6.1- 13 1440 55,10-11 1138
7,14 1023 55,13 1161
9.5 [6] 1133 57,4 1170
9.6 1035 57,19 1035
10.25 977 62,2 1161
11,1 1232 63,3 1127
11.3 1004 63,14 1113
14,19 1252 65,15-16 1161
índice de Citações Bíblicas 1669

66,14 1121,1133 34 1618


66,7-10 1133 34,2 1605
66,7-11 1380 34,10 1605
36,28 1495
Jerem ias 37,3-5 1522
37,26 1035
l,4ss 1440 42 1385
1,5 1176 42,1-12 1418
2,21 1062 47,6-12 1566
3,15 1618 47,10 1567
5,10 1055,1063
6,9 1056 D aniel
10,10 1175
12,1 1184 2,2.4.7.9 1105
12,10-11 1055 2,46 1242
14,21 1078 3,46 1285
16,16 1596 8,18 1242
21,8 1004 10,13 1646
22,10 1120 10,19 1501
24,7 1008,1160 10,5 1460
26,6.11.20-23 1219 12,1 1134
31,10 1617 12,11 e 12 1637
31,31-34 985
31,33 1495 O seias
31,33-34 1160
31,34 1008 2,18(16) 1381
32,6-15 1169 2,25(23) 1535
34,5 1424 4,16 1617
51 [28] 33) 977 6,2 1458
10,1 1056
Ezequiel 13,13 1133
13,14 1008
3,7 1089 14,8(7) 1056
5,13.15 1031
9,2 1460 Joel
9,6 1507
15,1-6 1056 3,2.12 1109
15,4-6 1066
17,5-10 1056 Amós
17,7ss 1063
19,1-14 1056 3,7 1072
19,12 1066 6,10 1107
24,24 933
1670 índices

M iqueias Zacarias

4,9-10 1133 2,12-13(8-9) 1182


5,2(3) 1133 2,14 [10] 1028
3,1-5 1646
Naum 6,12 1316
9,9 1416
1,10 1314 9,10 1035
11,6 1234
H abacuque 11,12 1416
11,12-13 1169
2,14 1160 12,10 1396,1416-1419
3,16 1135 13,1 e 14 1418
13,7 987,1127,1139,1416
Sofonias 14,4 1227
14,8 1385,1418
1,14-15 1134

N O V O TESTAMENTO

M ateus 7,13 1169


7,24 931
2,6 1605 7,28 1031
2,13 1016 8,12 1067
2,22 911 8,15 1465
2,23 1231,1232 8,25-26 999
3,1 1636 9,22 1119
3,8 1063 10 920,931
3,10 1046 10,2 930
3,11 970 10,3 1019
4,18-22 1585 10,5 1088,1172
5,3-11 1509 10,5.16.40 930
5,11 1175 10,14 1089
5,16 1068 10,17 1096
5,22-24 1612 10,17-25 946,952,961,1085,
5,44 984,1173 1086,1651
5,44-45 1071 10,19-20 1093
6,8 1126 10,20 961,970,1093,1094,1643,
6,13 1170 1648,1651
6,24 1076 10,23 1622,1652
7,7 1011 10,24-25 930,933
7,8 1011 10,37 1023
índice de Citações Bíblicas 1671

10,40 933, 1089 21,22 1012,1052


11,1 1031 21,28-32 1055
11,27 1007, 1160 21,39 1345
12,25 1119 21,43 1061
13,1-2 1585 22,2 1254
13,10 1067 22,34-40 984
13,16 1537 24,9-10 1086,1141
13,30 1067 24,10 1449
13,41 1067 24,13-32 1435
13,47 1566 24,25 911,970
13,53 1031 24,27.30.37.39 970
13,55 1019, 1354 24,45-51 969
14,27 1501 24,46 931
14.28- 32 1584 24-25 969,1086
14.28-33 1583 25,31-46 969
14,30-31 1589, 1614 25,33 1562
14.31 1270, 1515 25,41 1067
14.32 1565 26,1 1213
16,16 1545 26,2 1031
16,16-19 1620 26,6 1218
16,16b-19 1584,1617,1619, 1620 26,6.48 1228
16,18 1589, 1621 26,15 1416
16,18-19a 1584 26,17 1278
16,19 1525, 1618 26,20 907
16,19b 1584 26,21 939
16,27-28 970 26,22 939
16,28 1622 26,23 915,937,940
18,1 1525 26,25 937
18,3 976 26,26-27 937
18,12-14 1619 26,29 1000,1059
18,15 1612 26,29.64 912
18.19 1012, 1013 26,30 1226
19,1 1031 26,30-35 986,1140
19,14 976 26,31 915, 1082,1085,1095,1139
19.17 1015 26,31-35 978
20,1-16 1055 26,33 915,1604
20.18 1212 26,36 1227,1228
20.20 1355 26,45 1229
20,20-28 1248 26,46 1231
21,2-5 1373 26,47 1229,1230
21,11 1231 26,50 937,1235
21,19 1052 26,51 1217,1234,1235
21,21 1010 26,52-54 1240
1672 índices

26.53 1285 27,29 1315


26.54 1233 27,31 1345
26.55 1236 27,33 1346
26.56 1139,1356 27,34 1382
26.57 1244,1246 27,36 1351
26.58 1248,1250,1265 27,37 1348,1349
26.63 1317 27,38 1351
26.63 1319 27,42 1371
26.63 1545 27,45 1325
26.64 1262 27,46 1140
26.64 1287 27,47-48 1359
26,66 1212 27,48 1382
26,66 1279 27,49 1392,1393
26.67 1253 27,50 1360
26.68 1332 27,54 1404
26,69-75 1265 27,56 1354
26.71 1231 27,57 1397
26.71 1249 27,59 1400,1457
26,72.74 1315 27,60 1403,1451
27.1 1256,1274 27,62 1230,1324,1390
27.2 1278 28,1 1449,1479
27,3-4 1247 28,2 1451
27,3‫ ־‬10 1169 28,3 1460
27,4 1611 28,4.5.8 1499
27,11 1239,1279 28,5.7 1461
27.14 1319 28,7 1435,1438,1467
27.15 1288 28,8 1467
27,15-21 1308 28,8.10 1468
27.16 1291 28,8-10 1439
27.17 1290 28,9 1464,1465,1479,1489
27,19 1275,1277,1318,1322 28,9-10 1435,1461,1470,1477
27,19.24-25 1211 28,10 1493,1500,1589
27.22 1317 28,13 1500
27.23 1326 28,16 1517
27.24 1335 28,16-20 1435,1439,1491,1511,1590
27,24-25 1338 28,17 1038,1486,1515
27.25 1208,1340 28,18 1159,1525
27.26 1314,1345 28,18-19 923
31 -27.26 1327 28,19 1512,1513,1527,1596
27.27 1275,1279,1314 28,20 1026
31 -27.27 1329 28,20 1500
27.28 1314 28,20 1571
índice de Citações Bíblicas 1673

Marcos 9,43 1067


10,19-20 1647
1,4 1636 10,29-30 1381
1,9 1231 10,32 1279
1,16-20 1558, 1585 10,32-45 929
1,18 1616 10,33 1212,1256
1,20 1248 10,33-34 1211,1239
1,28 1612 10,34 961,970
UI 1465 10,35 980,981,1355
2.14 1616 10,35-45 1248
3.14 1081 10,37 935
3,18 1019 10,40 1000
3,21 1436 10,42-44 1604
3,31‫־‬35 1381 10,42-45 929,946
2 -4.1 1585 10,45 961
4,1.36 1559 10,51 1464
4.6 1067 11,12-14 1063
4.11 1123 11,22-24 991
4,17 1135 11,24 1012
4.34 1123 12,lss 1043
4.35 1498 12,1-11 1053,1055,1061
4.40 1515 12,14 1004
5.12 937 12,25 1464
5,30 1119 12,28-31 984
5,35-36 999 13 952,1086
6,3 1019, 1354 13,3-4 1227
6.7 1520 13,9 1096
6.50 1501 13,9-11 961
6.51 1565 13,9-13 961,1086
5 -7.1 926 13,11 1093
7.8 1505 13,19.24 1135
8,27-29 1584 13,23 970
8,29 962 13,26 1115,1131
8,29-31 1218 13,26-27 969
8,31 961,970,1211,1239 , 1256 13,30 1622,1652
33 -8.31 925 13,31 1431
33 -8.32 1270 13,32 1018
8,34 1368, 1616 13,43 1229
9,3 1460 14,8 911
9,31 961,970,1211 , 1239 14,10-11 906,922,941
9,34-35 1604 14,12 912,1278
9,37 933 14,12-16 914,938
9.41 1013 14,14-15 906
1674 índices

14,17 907 14,65 1220,1253,1265


14,17-21 922 14,66 1248
14,18 915,932,939,1352 14,66-72 1265
14,19 915,939 14,67 1231,1250
14,20 915,937,940 14,68 1249
14,21 932 14,72 1607
14,23-25 914 15,1 1213,1230,1254,1256,1274,
14,24 915,983,1049 1275,1399
14,25 915,1059 15,2 1239,1279,1302,1305
14,26 1150,1226,1349 15,2-5 1302
14,26-31 986,1140 15,3 1305
14,27 915,1095,1127,1139, 15,3-5 1302,1305
1270,1376,1416 15,5 1319
14,27-31 978 15,6 1288
14,29 1604 15,6-11 1308
14,29-31 915,1267 15,6-15 1211
14,32 1227,1228 15,7 1217,1229,1289,1291,1347
14,32-42.433.44-46 1205 15,8 1275,1279
14,34 939 15,9 1290
14,34-36 1153 15,13 1316
14,35 1139 15,14 1306,1326
14,35-36 952 15,15 1314,1328,1335
14,36 961,1183,1235 15,15-20 1327
14,41 1229 15,16 1228,1275,1276,1279,1314
14,42 961,1039,1231 15,16-20 1329
14,42.44 1228 15,17 1315
14,43 1230 15,21 1345,1368
14,44 1232 15,22 1346
14,47 1234,1235 15,23 1383
14,48 1218,1236,1279 15,24 1350
14,48-49 1251 15,25 1324
14,49 910,1240,1264 15,26 1348
14,49-51 1240 15,27 1348,1351
14,50 1139,1270,1356 15,32 1370,1371
14,51 1401 15,33 1325
14,53 1244,1275 15,34 1140
14,54 e 67 1251 15,36 1091,1359,1382
14,54 1248,1250,1251,1265 15,38-39 1404
14,55 1214 15,39 1158,1351,1392
14,58 1218,1261 15,40 1352,1353
14,61 1317,1318,1319 15,40-41 907
14,62 971, 1131,1262,1287,1622 15,42 912,1324,1389,1404
14,64 1212,1279 15,43 1397
índice de Citações Bíblicas 1675

15,44-45 1398 5,5 1559,1562


15,46 1235, 1391, 1400, 1451 5,6 1568,1569
15,47 1353, 1398 5,6-7 1562
16,1 1353, 1421 5,7 1564,1568
16,1-2 1449 5,7.9 1582
16,1-8 1433, 1443, 1445 5,8 1586 1587-1589
16,2 1448 5,10 1588, 1589,1595
16,10 1120, 1467, 1468 5,10a 1586
16,11 1025 6,13 1073
16,12 1486 6,15 1216
16,14 1498, 1515, 1517 6,16 1019
16,15 1512, 1527 6,40 930
16,16 1513, 1527 7,14 1465
16,17-18 1010 7,39-40 1119
16,20 1571 7,42-47 1604
16,3 1451 8,2 1449, 1477,1478
16,5 1456, 1460 8,30 937
16,7 1435, 1438, 1452, 1473, 1581 9,32 1158
16,8 1433, 1499 9,51 922,1438
16,9 1448 10,1 1172
16,9-11 1477, 1478 10,3 1050
16,9-20 1433 10,16 933
18,28 1448 10,17 1073
19,7 1279 10,21-22 1154
27,2 1278 10,22 1007,1160
10,23 1537
Lucas 10,25-28 984
10,29-37 984
1,2 1082 10,41 1511
1,45 1509 10,48 933
3,1 1278 11,9 1011
3,2 1244 11,9-13 1023
3,3 1636 11,10 1011
3,18 1544, 1636 11,13 970,1648
4,21 910 11,17 1119
4,29-30 1232 11,28 931
4,38 1124 11,37 1569
4,48-49 1516 12,4 1049
5,1-11 1558, 1559, 1570, 1585, 12,12 1648
1603, 1613, 1616 12,37 907,924
5,3 1566 12,42-48 1508
5,4 1562 12,50 941
5,4-9.10b.lla 1588 12,7 1082
1676 índices

13,1 1216,1278 22,31-34 915,986,1614


13,6-9 1056 22,32.36 1172
13,33 1438 22,33 1609
14,26 1023 22,34 1601
14,27 1370 22,37 1347,1358
16,9 1000 22,38 1217,1235
17,1 1319 22,39 1226
17,7 1605 22,42 1039
17,8 907 22,44 1227
17,10 1072 22,47 1308
18,31 1358 22,48 1228
18,31-33 1213 22,49 1240
19,20 1456 22,50 1234,1235
19,47-20,1 1308 22,51 1235
20,29 1516 22,52 1229,1230,1260
20,6.19.26.45 1308 22,53 942,1039,1084
21,12-17 1086 22,54 1236,1244,1260,1275
21,14-15 1647 22,54.66 1249
21,15 1093 22,54-55 1248
21,22 910 22,55 1250
21,37 1228 22,56 1250
21,38 1308 22,61 1032,1266
22,3 923,941 22,63 1253,1265
22,12 1093,1500 22,63-64 1253
22,14 907 22,63-65 1260
22,15 1278 22,66 1275
22,19 1598 22,66-70 1213
22,19a 932 22,67.70 1262
22,20 983,985,1049 22,71 1213
22,21-23 937 22.54-62 1265
22,21-38 950 23,1 1275
22,22-23 914 23,2 1263,1279,1302,1305
22,23 939 23,3 1305
22,24 1027 23,4 1308
22,24-26 929,946 23,4.14.22 1211,1288
22,24-27 915 23,6 1319
22,24-29 930 23,6-12 1292
22,24-34 969 23,9 1319
22,27 915,928,929 23,11 1328,1329
22,28-29 929 23,13 1285,1308
22,29-30 1000 23,13.35 1230
22,30 915,925,1184 23,13-16 1334
22,31-32 1267,1270,1584,1585,1619 23,14 1315
índice de Citações Bíblicas 1677

23,16.22 1314 24,12 993, 1455,1456,1459,1469,


23.17 1288 1472,1475,1476,1485
23.18 1326 24,12a 1455
23,18-19 1308 24,13-35 1440,1593
23,19 1217,1229,1289, 1291 24,18 1354
23,20 1320 24,19‫־‬20 1308
23,21 1317 24,20 1230
23,22 1306, 1317 24,20-21 1038
23,23 1317,1326, 1335 24,23 1460,1517
23,24 1327 24,24 1459,1469,1475,1476
23,25 1327 24,25-27 1384,1458
23,26 1345 24,26 1491
23,27 1120 24,27 1135
23,27.35.48 1308 24,30-31 1591
23,27-31 1368 24,30-31.35 1537,1599
23,34 1090, 1173 24,31.35 1485
23,36 1327,1359, 1382 24,31.36 1500
23,38 1348, 1349 24,33 1500,1517
23,39-43 1347, 1371 24,33-49 1498
23,43 925 24,33-53 1511
23,44 1325 24,34 1580
23,45 1404 24,36 1501,1510,1511,1515
23,46 1360 24,36-49 1440
23,47 1392 24,37 1466,1486,1500
23,48 1417 24,37-38 1589
23,49 1352, 1355 24,37-39 1510,1515
23,49.55 1354 24,38-43 1489
23,50 1396, 1397 24,39 1406,1442,1502,1507,
23,50-51 1397 1513,1515
23,51 1397 24,40 1501
23,53 1391,1400,1403, 1457 24,41 1515
23,54 1324, 1404 24,41-42 1511
23,55-56 1421 24,41-43 1442,1515,1562,1591
23,56 1399 24,44 910,1511
24,1 1400,1421,1448, 1449 24,44-47 1511
24,2 1451 24,46 1459
24,3 1460 24,47 1438,1511-1513,1527
24,4 1460 24,48 1081
24,5 1025, 1499 24,49 1016
24,9 1468 24,51 1490,1539
24,10 1354 28,10 1466
24,11 1478
1678 índices

João 1,47 1056,1594


1,48 1507
1,1 896,1124,1146,1161,1285, 1,50 1010,1509,1594
1358,1508 1,51 1262,1607
1,1.18 1145 2,1 1355,1458
1,3 1045 2,1.2 1557
1,4 1185 2,1-2 1184
1,5 942,1302 2,2 909,1613
1,9 1120 2,4 1134,1356,1379,1461,1611
1,9,20 1156 2,6 1400,1568
1,10 896,1182,1185 2,9,24 1156
1,11 1357 2,11 1139,1158,1167,1192,
1,11-13 1474 1548,1593
1,12 1158,1319,1494,1546 2,12 908,1354,1357,1530,1556
1,12-13 1108 2,13-14 1112
1,13 1170 2,14 1252
1,13-14 1184 2,16 1002
1,14 896,1158,1192,1195 2,17 1091,1384
1,17 1145,1233,1458 2,19 1261,1609
1,18 896,940,1006,1146,1323 2,19-22 1002
1,19 1414 2,21 1060,1405,1418,1113,1135
1,19-12,50 896 2,22 924,1458,1570,1612,1652
1,23.31 1005 2,23 1017
1,26.31 1461 2,23-3,1 1247
1,29 1303,1341,1415,1416,1527 2,23-24 1034
1,30 1076,1255 2,23-25 937,1337,1532
1,31 1412 2,24-25 1119
1,33 1529 2,25 1607
1,34 1405 2,28 1533
1,35 940,1558 2,29 1535
1,35-51 1336 2,30 1255,1255
1,37 1627 3,1 1398
1,37.43 1616 3,2-3 1337
1,38 1242,1464,1487 3,3 1193,1306,1319
1,39 1324,1566 3,3.5 897
1,40 1247 3,3-6 1170
1,41-42 962 3,3-6,31-32 1137
1,41.45.49 1139 3,5 1027,1108,1412,1417,1424,
1,42 1601 1494,1522,1529,1649
1,43 995 3,5-6 1521
1,45 1231,1556 3,6 1010
1,45-50 1557 3,8 1513
1,46 1557 3,10.17.18 907
índice de Citações Bíblicas 1679

3,11-12 985 4,24 1006,1648


3,12 1145 4,25 1105,1114
3,13 896,1288 4,25-26 1114,1650
3,13-24 1538 4,27 1569
3,14 1609 4,27-28 1519
3,14-15 1211,1418 4,29 1250
3,15-16 1546 4,34 1033,1145,1183,1195
3,16 1047, 1168,1173,1183, 4,35 1127,1509
1384,1649 4,35-38 1064
3,16.21 941 4,36 1070
3,17 1102,1341,1649 4,38 1172
3,17-21 1528 4,45-48 1337
3,18 1418 4,46-54 1091
3,18-19 1173 4,48 1532
3,18-21 1418 4,48 1548
3,19 896,942,1110,1145 4,49.51 1560
3,19-20 1090 4,50 1612
3,19-21 1306 4,54 1570,1606
3,20 1109 5,1-11 1010
3,21 1186,1551 5,2 1324,1463
3,24 1648 5,4-5 1112
3,27 1319 5,11,21 1156
3,28.30 1394 5,17 1358
3,29 1070 5,18 1110,1317
3,31 905,1145 5,19 906,1104,1288,1394
3,31-36 920 5,19-25 960
3,34 1530 5,19-30 1024
3,35 906,923, 1047,1184,1357 5,20 1010,1047
3,36 1110 5,21 1183
4,1 1454,1603,1604 5,23 1534
4,4 1112 5,24 905,1007,1157,1418
4,6 936,1359 5,25 1127,1146
4,7 1558 5,26 1007,1026
4,9.22 1284 5,27 1144,1158
4,10 1211 5,27-29 1627
4,11 1462 5,28-29 971,1193
4,13 1027,1648 5,29 1067
4,14 927,1431 5,30 1183,1211
4,17-18 1119 5,31 1631
4,18 1562 5,31-32 1636
4,21.23 1127 5,32 1076
4,21-24 1028 5,33 1287
4,23 1146 5,36 1091,1146
1680 índices

5,37 1090 6,59 1252,1650


5,38 1044 6,60 1556
5,42 1048 6,61 1082
5,43 1649,1649,1650 6,63 1007,1065,1144,1187
5,44 1145 6,64 906,1099
6,1 1557 6,64.71 1228,1319
6,1-13 1579 6,66-67 1518
6,6 1231 6,67 1517
6,7-8 1558 6,68 924
6,8 1505 6,68-69 962
6,9 1561,1564 6,69 1125,1175
6,9,11 1573 6,70 907,910,1073,1169
6,10 1566 6,70-71 1170
6,11 1570,1573,1591 6,71 906,1397
6,12-13 1045 7,1 1397
6,15 1264,1287 7,4 1027
6,17 1559 7,5 1355,1378,1436
6,19 1557 7,7 1088,1109,1307,1650
6,19-20 1431 7,8 1467
6,20 1501 7,11 1394
6,22 1559 7,12 1110
6,23 1454 7,14.18 1650
6,26 1151,1157 7,14.28 1252
6,29 1394 7,15 1264
6,32 1061 7,15-19 1220
6,33 1183 7,16 1021,1147
6,35 1046,1058 7,17 1104
6,35-50 921,960 7,19 1080,1208
6,37 1077 7,26 1251
6,37.39 1090 7,28 1090,1650
6,38 1520 7,30.44 1232
6,39 923,1168,1234 7,31 1603
6,39.40.44.54 1018 7,32 1229
6,39-40.57 1521 7,32.45 1229
6,44 1595 7,33 976,977,982,1100,
6,51 932,1060,1599 1118,1467
6,51-58 910,920,931,932, 7,33-34 982,983,1112
1060,1152 7,34 982,1183,1184
6,53-56 1414 7,35 1003
6,54.56 971 7,37 1385,1416,1567
6,56 1044,1060 7,38 1385
6,57 945, 1026,1043,1060,1069, 7,38-38 1411
1171,1183,1189,1511 7,38-39 1144,1364,1418
índice de Citações Bíblicas 1681

7,39 1018, 1100,1108,1111, 8,51 1020,1147


1387,1412,1458 8,53 1317
7,39 1492 8,54-55 1090
7,41 1349 8,54-58 1090
7,41.52 1231 8,55 1033,1185
7,43 1375,1595 8,56 1070
7,50 1398,1399 8,58 1147
7,53-8,11 1573 9,3 1033,1080,1593
7,58-60 1083 9,4 942
8,3 1354 9,7.11 908
8,3-5 1282 9b,12-13 1591
8,5 1284 9,16 1375,1595
8,14 1157,1650 9,18 1091
8,14.19 1650 9,20 1157
8,15 1144 9,22 1082
8,16 1128 9,24 1110,1606
8,17 1080 9,28 1394
8,18 1094 9,29 1629
8,19 995,1007,1090 9,31 1204,1629,1629
8,20 1252,1650 9,34.40 1010
8,20.59 1232 9,39 1287
8,21 977,982,983,1112,1184 9,39-41 1528
8,22 1003 9,41 1091,1110,1527
8,23 1088,1288 9,47-53 1217
8,24 1550 10,1 1122,1607
8,25 1569 10,1-5 1051,1054
8,26 1104,1288 10,1-10 1310
8,27-28 1211 10,1-18 1054
8,28 932,1009, 1163,1534,1650 10,1-21 1051
8,29 1048,1114,1128 10,2 1151
8,30 1161 10,3 1186,1288,1486
8,31 1204 10,6 1123
8,31-32 1114 10,7-18 1051
8,32 1159,1171,1336 10,8 1054
8,35 1002 10,9 1006
8,38 1006 10,10 1007
8,42 1022, 1124,1149,1394 10,11 978,987,1048,1177
8,43 1288 10,11.14-15 1363
8,44 1208 10,11.15.18 907
8,45-46 1100 10,14 1486
8,46 1100,1253 10,14-15 1171,1185
8,47 1125,1288 10,15-16 1375
8,50 1157 10,16 1016, 1064,1186,1189,1619
1682 índices

10,17 1047 11,27 1545,1550


10,17-18 976, 1177, 1304, 1337, 1386 11,31 1450
10,17-25 1086 11,33 934,991
10,18 897,922 ,941, 1038, 1071, 11,38 1451
1140, 1241, 1369, 1370 11,41 1143
10,19 1375, 1595 11,41-42 1154
10,23 1252 11,42 1181,1550
10,24 1137, 1252 11,43 1316
10,24-25. 33.36 1262 11,44 1400, 1456,1485
10,27 1616 11,47-53 1261,1336
10,27-28 1145 11,47.57 1229
10,28 1007, 1035, 1168 11,48 1305
10,29 923 11,49 1245,1246
10,30 1037, 1081, 1090, 1180, 1534 11,49-52 1284
10,33 1110, 1284 11,50 1100, 1246, 1303,1609
10,33-34 1204 11,51 1177, 1338,1370
10,34 1080 11,51-52 1375
10,36 1172, 1175, 1176, 1317 11,52 1045, 1186,1190
10,37-38 995 11,53 1304
10,38 1009 11,54 1251
10,39 1232 11,55 905, 1226,1325
10,42 922 12,1 905,1399
11,1 968, 1226, 1381 12,1-8 921
11,2 1399, 1454 12,2-3 1083
11,3 1049 12,3.7 1423
11,2-5 1126 12,3-7 1450
11/4 1263 12,4 1399,1505
11,4.40 1158 12,6 935,938
11,5 1049, 1126, 1506 12,9-12 1637
11,7 1125 12,12-16 1287
11,10 942, 1241 12,12.36 905
11,11 1049 12,13 1314,1334
11,12 1145, 1151 12,14 1264,1373
11-12 1399 12,14-15 1169
11,12,21-23 1177 12,15 1416
11,14 1137 12,16 908,924, 1113, 1135,1458,
11,14-16 1531 1612,1652
11,15 1070 12,19 1263,1417
11,16 993, 1020, 1506, 1516, 1557 12,20-22 980,981
11,18 1564 12,21 1399
11,21-23 1157 12,22 1558
11,25 1194 12,23 1099,1127, 1143, 1158,1238
11,25-26 1007 12,23.27-29 939
índice de Citações Bíblicas 1683

12,23.28-29 980,981 13,2-5 941


12,23.31 1380 13,2-10 953
12,24 1060,1064,1120 13,2.11.21 1228
12,24-26 1099 13,2.27 911,1039,1150
12,26 1184,1370,1616 13,2.27.30 1063,1169
12,27 939,1143,1338 13,3 1150,1357
12,27-28 1154,1650 13,4 1351
12,28 1068,1158 13,4-5 1563
12,30 1255 13,5 1111,1166,1518
12,31 999,1033,1112,1173 13,7 1113,1135
12,32 897,980,981,1193,1283, 13,8 929
1364,1372,1386,1411,1417, 13,8-11 1123
1424,1595 13,9-11 1594
12,32-33 1304,1491 13,10 1064,1065
12,33 1283,1610 13,10a 927
12,34 1080 13,12 907
12,35 976,1118,1241 13,12-17 915
12,36 1232 13,12-20 920,932
12,37 896,1110,1544,1545,1548 13,13 1072
12,38 910,911 13,14 927
12,38-13-1 1539 13,15 930,1545
12,38-39 1091 13,16 920,930, 1037,1052,1072,
12,38ss. 932 1077,1086,1123
12,40 1100 13,16.20 920
12,42 1214,1397 13,17 1148,1509
12,43 1157 13-17 898
12,44 999,1090 13,18 907,915,920,932,939,1033,
12,44-50 920 1052,1073, 1080,1150,1169,
12,45 1017,1520 1170,1352
12,47 931 13,18-19,21-30 914
12,48 1065,1187,1650 13,19 1033 1034,1169,1550
12,48-49 1028 13,20 933,1089,1520
12,49 1104,1104 13-20 944
12,49-50 1009 13,21 939,991,1226,1610
12,50 1076 13,22 915,939
13,1 896,905,922,945,977,983, 13,23 1505,1563
1069, 1127,1143,1144,1146,1149, 13,23.25 898
1150, 1231,1357,1363,1381,1383, 13,23-25 1483
1418,1490,1496 13,23-26 1247,1453
13,1-20 903,914 13,25 1563,1610
13,1-20,31 896 13,26-27 915
13,1.34 1051 13,27 941,980,981,1034,1038,
13,2 937,941,1610 1241,1369
1684 índices

13,27.30 1241 14,4 1032


13,30 1 0 1 9 ,1 3 0 2 14,4b -33 978
13,31 9 4 4 ,9 5 3 ,9 8 0 ,9 8 1 14,5 960, 1107, 1 5 0 6 ,1 5 1 6
13,31a 948 14,6 1 0 04-1006, 1056, 1 0 5 8 ,1 1 0 3 ,
13,31-14,31 9 4 6 ,9 5 1 -9 5 3 ,9 6 0 -9 6 4 , 1114 1176, 1288, 1 6 3 6 ,1 6 5 0
1 0 8 6 ,1 0 9 4 ,1 1 0 6 ,1 1 0 6 14,6ss 950
13,31-17,26 9 1 4 ,9 5 0 14,6-11 9 6 3 ,1 1 3 8
13,31-32 1 0 5 1 ,1 0 6 8 ,1 1 4 3 ,1 1 4 9 14,7 1007, 1034, 1 1 0 8 ,1 1 8 5 ,
13,31-38 950, 9 5 1 ,9 7 4 ,9 7 8 ,9 7 9 ,9 9 6 1 6 2 7 ,1 6 5 0
13,33 9 6 6 ,9 8 2 ,9 8 3 ,1 0 1 8 ,1 0 2 5 , 14,7.9 1 1 4 8 ,1 6 4 9
1 0 3 2 ,1 1 1 8 ,1 5 6 0 14,7.10 978
13,33.36 9 9 2 ,1 1 0 0 14,9 1008, 1037, 1 0 7 9 ,1 0 8 1 ,
13,34 9 1 5 ,9 6 7 ,9 8 3 ,9 8 5 ,1 0 1 6 ,1 0 5 2 , 1 0 9 0 ,1 6 5 2
1069, 1 0 7 0 ,1 1 4 4 ,1 1 9 5 ,1 6 0 2 14,10 1079, 1 0 9 1 ,1 1 0 4
13,34-35 1189 14,11 1550
13,35 1183 1 4,11-12 1188
13,36 946, 9 4 7 ,9 6 0 ,9 7 8 ,9 8 6 ,9 8 7 , 14,12 966
9 9 3 ,1 1 0 7 ,1 1 1 3 14,12.28 1 4 6 7 ,1 4 9 1
13,36-37 1001 14,13 975, 1010, 1 0 5 1 ,1 0 6 8 ,
13,36-38 978 1 1 2 3 ,1 6 5 0
13,37 9 8 3 ,1 0 5 2 ,1 2 3 4 ,1 6 0 4 14,13.14 968
13,38 9 1 5 ,9 7 8 ,9 9 0 ,1 1 2 7 ,1 6 0 7 14,13.14. 26 964
14,1 9 7 8 ,9 9 0 , 1 0 3 2 ,1 0 3 4 ,1 1 0 0 ,1 1 0 7 , 14,13-14 9 6 0 1012, 1013, 1 0 5 1 ,1 1 3 6
1121 14,14 1 0 1 0 ,1 1 2 2
14,1-3 978 14,15 e 21 963
14,1-4 950 14,15.21 967
14,1-10 997 14,15 1 0 4 7 ,1 0 4 8
14,1.11 1021 14 ,1 5 -1 7 1132
14,1-13 990 14,15-17. 26 1641
14,1-14 989 14,15.21. 23-24 1 0 4 8 ,1 0 5 2
14,1.27 9 6 6 ,1 0 6 4 1 4 ,15.23-24 1069
14,1-31 9 6 0 ,9 7 8 ,9 7 9 14,15-23 963
14,2 1002, 1 0 3 4 ,1 1 0 0 ,1 1 6 7 ,1 5 5 8 14,15-24 1 0 1 4 ,1 0 2 1
14,2.3.12 28 1100 14,16 e 26 960
14,2-3 9 1 5 ,9 6 3 ,9 6 6 ,1 0 0 0 ,1 0 0 1 , 14,16 966, 1034, 1054, 1 0 9 3 ,1 1 3 8 ,
1025, 1 1 1 1 ,1 1 3 2 ,1 1 9 3 ,1 1 9 4 , 1 1 6 6 ,1 6 4 1
1 2 8 5 ,1 4 8 8 1 4,16-17 1023, 1 0 3 4 ,1 6 5 0
14,2-4 962 14,16-18,26 963
14,3 9 2 5 ,9 6 1 ,9 7 1 ,1 0 0 1 ,1 0 3 2 , 14,17 9 7 1 , 1031, 1092, 1 0 9 4 ,1 1 0 3 ,
1 0 3 4 ,1 0 7 9 ,1 1 8 4 ,1 6 2 7 1104, 1109, 1111, 1 5 2 1 ,1 5 2 9 ,
14,3-4 1032 1538, 1641, 1 6 4 7 ,1 6 5 2
14,3.18 966 14,18 9 4 5 ,1 0 3 2
14,3.20-22 1051 14,18ss 963
índice de Citações Bíblicas 1685

14,18-19 1489 15,4.5 1650


14,18.28 1501 15,4.5(7) 971
14,19 976,1017,1022,1102, 15,5 1060,1594
1132,1461 15,5-6 1189
14,19-20 963 15,6 947,1191
14,20 971,1046,1121,1498 15,6.7 971
14,20.23 1650 15,7 1010,1011,1052,1136
14,21 1015,1051,1175,1602 15,7.16 951
14,21.23 1124 15,7-17 951,1051,1059
14,21-23 1380 15,9 1069,1171,1183,1283,
14,22 1118 1511,1518
14,23 967,968,971,982,991,1002, 15,10 e 12 1016
1046,1053,1147,1148 15,10 1015,1070
14,25 1034,1052,1070,1082 15,10.14 967
14,25-26 1137 15,11 966,970,1031,1035,1136,1170
14,26 966, 1016,1038,1080,1092, 15,12 e 17 983
1093, 1095,1097,1100,1104, 15,12 967,983
1105, 1112, 1114,1121,1122,1148, 15,12.17 915,1189
1176, 1194,1520,1521,1563, 15,12-13 930,1064
1641,1642,1649 15,13 905,923,945,961,977,1048,
14,27 966,968,990,1048,1141 1060,1177,1621
14,27.50 1270 15,15 1072,1077,1113,1148,
14,28 1037,1070,1108,1319,1496 1286,1357
14,29 911,969,1141 15,15.20 920
14,30 1112,1140,1173 15,16 e 19 952
14,30 e 31 947 15,16 920,968,996,983,1010,
14,30-31 946-948,960,1174 1089,1122
14,31 948,951,952,953,961,1048, 15,16-20 1328
1070 1071,1150,1226,1236 15,17 1314
14,34 1418 15,17-17 1024
14,49 1351 15,18 e 25 1085
14,53.55-64 1205 15,18 999,1075,1085
14,62 1232 15,18.20 968
15,1 1060,1256 15,18-16,2 920
15,1-6 915,947,949,951, 15,18-16,11 1085
1051-1054,1150 15,18-16,15 1085
15,1-16,4a 962 15,18-16,4a 946,949,951,961,969,
15,1-17 897,951,1041,1050,1060, 1086,1092,1094,1099,1150,
1072,1085,1095 1173,1651
15,2 1066 15,18-19 1170
15,3 917,927,1064,1065,1067, 15,18-21 1088,1095
1171,1176 15,18-25 1085,1642
15,4 1052 15,18-27 1085
1686 índices

15,19 905 1052,1147,1170,1183 16,6 1107, 1120, 1170


15,20 1020,1052,1072,1086 16,6.22 990
15,21 1084 1088,1090,1091,1096 16,6-7 1644
15,21,23 1021 16,6-7.22 966
15,21,23-24 1022 16,7 960, 1001, 1016, 1018, 1031,
15,22 1102 1036, 1108, 1364, 1412, 1494,
15,22‫־‬24 1110 1521, 1641
15,22-25 1088 16,7-8 971
15,25 911, 1085,1091,1092,1233, 16,7.8.13 1641
1253,1283,1384 16,7.8.13 14 1017
15,26 1016, 1017,1031,1093,1094, 16,7-11.12-14 1641
1100, 1103,1124,1520,1521, 16,8 1101, 1104, 1529
1636,1641,1642 16,8.11 1010
15,26-27 961, 1085,1088,1092,1093, 16,8-11 999, 1038, 1092, 1173,
1097, 1115,1186,1414,1521, 1417, 1642
1627,1641,1642-1644,1647,1648 16,8.15 1132
15,27 1073,1085,1099,1109 16,9 1079, 1435, 1448
15,28 910 16,10 971
15,44 1392 16,11 1173, 1653
16,1 1085,1092 16,12 1034, 1049
16,1-17 1123 16,12.14 1556
16,1.25 1031 16,12-13 1148, 1252
16,1.33 970 16,12-28 1106
16,1-4a 1088,1092,1095 16,13 967, 1006, 1016, 1031, 1032,
16,1.4a 1084 1104, 1105, 1121, 1194, 1641,
16,1.43.6.25.33 1031,1052 1642 1645, 1647, 1652
16,2 1127,1317 16,13-14 1034, 1095, 1645
16,2-3 968 16,13-15 1022, 1123, 1135
16,3 1078, 1088,1091,1096,1128, 16,14 1487, 1591, 1642
1185,1650 16,14-15 966
16,4 911,1086 16,15 1106, 1167
16,4a 1075,1081,1086 16,15.15 964
16,4a.33 1031 16,15-17 1587
16,4b-15 1098,1106 16,16 1018, 1132, 1650
16,4b-33 946,952,953,960-963, 16,16ss 1130
978,979,997,1023,1086, 16,16-33 1116
1094,1106,1106 16,17-19 1132
16,5 946,947,960,978,992,1107, 16,19 1539
1113,1125,1167 16,20 921,968
16,5.10 1467 16,20-22.24.33 1130
16,5.18 1148 16,20-24 1070
16,5.28 1491 16,21 1123, 1133, 1134, 1379,
16,5-33 1106 1380, 1561
índice de Citações Bíblicas 1687

1 6 ,2 1 -2 2 1519 1 7 ,6 9 6 8 ,1 1 6 1 ,1 1 6 3 ,1 5 9 3
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1 4 8 9 ,1 5 3 6 1 7 ,8 1 1 2 4 ,1 2 3 3 ,1 5 5 0
1 6 ,2 3 9 9 6 ,1 0 1 0 ,1 0 1 3 ,1 1 6 6 , 1 7 ,9 1173
1 5 4 6 ,1 5 6 9 1 7 ,9 ‫ ־‬1 9 1 1 6 5 ,1 3 6 3
1 6 ,2 3 .2 4 .2 6 964 1 7 ,1 0 1 1 7 6 ,1 3 0 6
1 6 ,2 3 .2 6 1 0 1 8 ,1 4 9 9 1 7 ,1 0 .2 2 1192
1 6 ,2 3 -2 4 9 6 0 ,1 0 1 2 1 7 ,1 1 9 4 5 ,9 4 9 ,1 0 1 9 ,1 1 6 3 ,1 2 3 4
1 6 ,2 3 - 2 4 .2 6 1051 1 7 ,1 1 -2 1090
1 6 ,2 3 b -2 4 1136 1 7 ,1 1 -1 2 9 6 8 ,1 1 5 8 ,1 1 6 3 ,1 5 4 6
1 6 ,2 4 9 7 0 ,1 0 1 0 ,1 0 1 1 ,1 1 7 0 1 7 ,1 1 .1 2 1035
1 6 ,2 4 .2 6 968 1 7 ,1 1 .1 5 1150
1 6 ,2 5 9 9 5 ,1 1 2 7 ,1 1 3 7 1 7 ,1 1 .1 6 1285
1 6 ,2 6 1 0 1 1 ,1 1 1 5 ,1 1 3 8 ,1 1 6 6 1 7 ,1 1 .2 1 - 2 3 9 6 7 ,1 3 7 5
1 6 ,2 7 1 0 2 2 ,1 0 2 3 ,1 0 2 6 1 7 ,1 2 8 9 7 ,9 1 1 ,1 1 5 0 ,1 1 5 0 ,1 1 6 9 ,
1 6 ,2 7 -2 8 1080 1 2 3 3 ,1 2 3 4 ,1 2 4 2
1 6 ,2 7 .3 0 1 1 4 8 ,1 5 5 0 1 7 ,1 3 1035
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1 6 ,3 1 -3 2 1509 1 7 ,1 7 .1 9 1152
1 6 ,3 2 9 1 5 ,9 7 8 ,9 8 7 ,1 0 9 5 ,1 1 4 0 , 1 7 ,1 7 -1 9 1520
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1 6 ,3 3 9 6 1 ,9 6 8 ,9 9 9 ,1 0 3 5 ,1 0 3 8 ,1 0 8 6 1 7 ,1 9 1 1 5 1 ,1 1 7 6 ,1 1 7 7 ,1 3 5 7 ,1 3 6 3 ,
17 1 1 7 7 ,1 1 8 2 ,1 1 8 7 ,1 1 9 0 1370
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1 7 ,4 -5 1037 1 7 ,3 2 1610
1 7 ,4 .2 3 1358 1 8 ,1 9 0 6 ,9 4 6 , 9 4 7 ,1 1 5 0 ,1 2 3 6 ,
1 7 ,5 8 9 6 ,9 7 6 ,1 1 1 5 ,1 1 5 0 ,1 1 6 1 , 1 2 3 6 ,1 2 3 6 ,1 4 0 3
1 1 8 4 ,1 4 1 2 ,1 4 9 6 ,1 5 3 3 1 8 ,1 -1 2 1225
1688 índices

18,1-27 1222, 1236 1 8 ,3 7 1006,1007,1297,1300,1649


18,2 1319 18,38 1297,1315,1317,1321
18.4 922 18,38a-40 1308
18.5 1349 18,38b-40 1307
18,5-8 1174 18,39 1336
18.6 1369 18,39‫־‬19,6 1298
18,7 1231 18,39-40 1301
18,9 911,1283, 1351 18,40 1294,1310,1332
18,10 924, 1217 18-19 898,961
18,10-11 1286 18-21 1027
18,11 1385 19,1 1310,1331,1348
18,12,24 1608 19,1-3 1265,1328,1329,1333
18.12- 27 1244 19,1-6 1301
18.13- 27 1243 19,1-7 1293
18,13.28 1275 19,l-16a 1312
18,14 1370 19,4 1317,1333
18,15 1453, 1558 19,4.6 1288,1297
18.15- 16 1483 19,4.9.12 1293
18.15- 18 1266 19,4-8 1333
18,17-18.25-27 978 19,5 1293,1336,1356
18,18 1526, 1564 19,6 1275,1290
18,18-21 994 19,7 1111,1328,1336
18,19 1218 19,7-8 1212
18,20 1240,1264, 1298 19,8 1294
18,20-23 1369 19,8-16 1293
18,22 1260 19,9 1296,1302,1333
18,24 1256 19,9-11 1336,1369
18,26 1235 19,10-11 1299
18,27 1452 19,11 1038,1242
18,28 912,941 , 1257,1323,1325, 1398 19,12-13 1162
18.28- 19,7 1293 19,12-15 1317
18.28- 19,16 1212 19,12-16a 1338
18.28- 19,163 1222 19,13 1276,1296,1332,1372
18.28-32 1302 19,13.17 1463
18.28-40 1273 19,14 912,914,941,1274,1277,
18,30 1320 1293,1359,1385,1389
18,31 1215,1294,1302, 1317 19,14-15 1301
18.32 1233, 1317 19,15 1290
18.33 1333 19,16a 1350
18,33-38a 1305 19,16b-18 1368
18,35 1319 19,16b30‫־‬ 1343
18,35-36 1319 19,16b42‫־‬ 1222
18,36 1173,1295, 1300 19,16b-42 1387
índice de Citações Bíblicas 1689

19,17 1403,1452 20,1‫־‬18 1447,1450,1468,1469,


19,17-18 1419 1471,1472,1480,1509,1510
19,17-22 1361 20,1-28 1548
19,19 1231,1314,1628 20,1-29 898,1430
19,19-20 897 20,2 1247,1563
19,19-22 1371 20,2.4.8 1558
19,21 134119 20,2-10 1247
19,22 1419 20,3-4 1594
19,23 1327,1370 20,3-10 1475,1480,1483
19,23-24 1373 20,5-7 1483
19,24 1544,1595 20,7 1400,1568
19,25 1367 20,9 1476,1570
19,25-27 1134,1134,1247, 20,9.24-28 1135
1375,1450 20,10 993
19,26-27 1139,1452,1453 20,11a 1472
19,27 1127 20,11-17 1440
19,28 922,1146,1377,1380, 20,11-18 1471
1385,1458 20,13-18 1478
19,28-30 1381 20,14-18 1435,1477,1479,1480
19,29 914,1091,1415 20,15 1403,1487
19,30 905,1380,1385,1413,1493 20,15-16 1485
19,31 912,1358 20,16 1354
19,31-32 1350 20,17 897,1006,1108,1442,1488,
19,31-37 1404 1490,1491,1494,1495,1522,
19,31-42 1388,1472 1535,1612
19,32 1371,1419 20,18 1492
19,34 984,1385,1405,1502 20,18.25 1563
19,34b 1410,1414,1418 20,19 e 26 1570
19,35 898,940,1186,1353,1369, 20,19 1139,1417,1484,1501,1511,
1393,1406,1414,1415,1418, 1515,1516,1556,1557,1560
1476,1545,1563,1568,1630, 20,19-20 1516
1631,1633,1651 20,19-21 1048,1439
19,36 914,1386,1415,1416 20,19-23 1509,1510,1511,1599
19,37 1311 20,19-28 1490
19,38 1417 20,19-29 1470,1497,1499
19,38-42 1419,1423 20,19ss 1467,1534,1590
19,39 1247,1421,1610 20,20 1135,1226,1391,1442,1515
19,40 1455,1484 20,20.21.26 1130
19,41 1345,1347,1462 20,21 1177,1494,1511,1512,
19,41-42 1227,1454 1528,1536
20,1 942,1422,1507 20,21 1571
20,1-5 924 20,21-22 1172,1520
20,1-10 1472 20,21-23 1010,1511,1513
1690 ín d ic e s

2 0 ,2 2 8 9 7 ,9 7 1 ,1 1 0 8 ,1 1 5 8 ,1 1 7 7 , 2 1 ,1 5 - 1 9 9 8 7 ,1 0 0 1
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1 5 2 9 ,1 6 4 8 2 1 ,1 8 1609
2 0 ,2 2 -2 3 1 5 2 9 ,1 5 3 0 ,1 6 4 9 2 1 ,1 8 -1 9 1621
2 0 ,2 3 1 4 9 4 ,1 5 1 1 ,1 5 1 3 ,1 5 2 6 ,1 5 2 8 , 2 1 ,1 9 .2 2 1586
1 5 3 1 ,1 5 8 4 2 1 ,1 9 b .l2 - 1 3 1597
2 0 ,2 4 993 2 1 ,2 0 1399
2 0 ,2 4 -2 7 1531 2 1 ,2 2 1 0 0 0 ,1 5 7 3 ,1 6 2 7
2 0 ,2 4 - 2 9 1 4 7 1 ,1 5 1 4 ,1 5 1 6 2 1 ,2 3 9 8 4 , 1 1 8 7 ,1 4 6 7 ,1 5 4 6 ,1 5 7 1 ,
2 0 ,2 4 -3 1 1516 1 5 7 6 ,1 6 5 2
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2 0 ,2 6 1 4 9 1 ,1 5 5 6 ,1 5 5 7 2 1 ,2 4 e 2 5 1636
2 0 ,2 6 -2 9 1440 2 1 ,2 4 8 9 8 ,9 4 0 ,1 3 9 3 ,1 3 9 3 ,1 3 9 4 ,
2 0 ,2 7 1 0 2 6 ,1 4 8 9 ,1 5 6 5 1 4 0 6 ,1 5 4 6 ,1 5 6 8 ,1 6 3 3 ,
2 0 ,2 8 1 0 0 8 ,1 1 4 5 ,1 1 9 5 ,1 5 4 8 1 6 3 4 ,1 6 5 1
2 0 ,2 9 9 1 0 ,1 1 1 1 ,1 1 3 2 ,1 4 4 2 ,1 5 0 9 , 2 1 ,2 4 -2 5 1 5 4 7 ,1 5 7 7 ,1 6 2 8 ,1 6 3 3
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2 0 ,3 0 1 6 3 1 ,1 6 3 7 2 2 ,1 9 931
2 0 ,3 0 -3 1 8 9 8 ,1 5 3 8 ,1 5 4 4 ,1 5 4 6 ,1 5 4 7 , 2 2 ,2 3 (? ),2 4 1559
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2 0 ,3 1 9 2 1 ,9 5 3 ,1 1 8 6 ,1 3 9 5 ,1 4 1 9 , 2 2 ,3 2 1270
1 5 5 0 ,1 5 5 1 2 2 ,6 6 1260
21 1399 2 3 ,1 4 1309
2 1 ,1 1 1 4 0 0 ,1 5 9 5 2 3 ,1 6 .2 2 1212
2 1 ,1 -1 4 1 4 4 0 ,1 5 5 5 ,1 5 7 7 ,1 5 7 8 , 2 3 ,2 6 1132
1 5 9 1 ,1 5 9 2 ,1 5 9 6 ,1 5 9 7 ,1 6 3 3 2 3 b - 2 4 ,2 6 1 1 3 0 ,1 1 3 6
2 1 ,2 1 3 9 9 ,1 5 1 6 ,1 5 8 6 ,1 5 9 9 2 4 ,1 2 1581
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2 1 ,4 -7 1135 2 7 ,5 2 -5 3 1356
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2 1 ,7 .2 0 - 2 3 1247 3 4 ,3 5 1415
2 1 ,8 1566 4 3 ,1 7 -1 8 1105
2 1 ,1 3 1591 4 8 ,1 4 1105
2 1 ,1 5 s s 1616
2 1 ,1 5 .1 6 1022 A to s
2 1 ,1 5 -1 7 1 1 9 1 ,1 2 7 2 ,1 4 8 3 ,1 5 7 8 ,
1 5 8 3 ,1 5 8 5 ,1 5 8 9 ,1 6 1 7 ,1 6 1 7 , 1 ,2 1073
1 6 1 9 ,1 6 2 0 1 ,3 1 0 2 5 ,1 4 3 5 ,1 4 9 0
2 1 ,1 5 -1 8 1575 1 ,4 -5 1513
índice de Citações Bíblicas 1691

1,8 1081, 1438 7,58-60 1282


1.9 1539 8,1 1083
1.10 1460 8,20 1016
1.13 1019, 1500 8,31 1114
1.14 1467 9,2 1005
1,16-20 1169 9,4 1077
1,21 1082 9,7 1582
2,1 971 9,31 1644
2,4 1504 10,1 1229
2,23 1301 10,28 1276
2,23-24 1431 10,38 1231
2,29 1123, 1425 10,39 1283,1327
2,29-32 1445 10,39-40 1431
2,32-33 1491 10,40-41 1025,1027
2,33 1016, 1147 10,41 1442,1591
2,34-36 1134 10,43 1546
2,36 1158, 1327 10,45 1016
2,38 1016 11,17 1016
2,40 1644 11,19 1135
2,46 1499 11,26 1228
3.13 1278,1301, 1320 12,4 1351
3,13-14 1238 12,13 1249
3,15 1327 13,15 1644
3,17 1091 13,28 1213,1238,1278,1301
4,6 1244 13,29 1357,1384
4,10 1431 13,36-37 1445
4.13 1248 13,39 1420
4,13.29.31 1123 13,47 1049
4,25-26 1299 15,9 1065
4,27 1238, 1278 15,28 1094
4,27-28 1319 17,7 1339
5,22-24.26 1229 18,14-15 1304
5,30 1283 19,9.23 1005
5,30-31 1431, 1491 19,12 1456
5,31 1158 20,7 1499
5,32 1094, 1648 20,17-38 965
5,33-39 1217 20,27 1105
5.40 1331 20,28 1605
5.41 1090 20,28-29 1619
6,10 1094,1643, 1648 21,6 1357
7,55 1111, 1147 21,11-12 1608
7,57-58 1284 21,36 1326
7,58 1345 22,4 1005
1692 índices

22,9 1582 11,26 1096


22,16 926 12,8 1644
22,30 1254, 1282 13,1 1337
23,20 1282 15,6 1467
23,28-29 1304 16,13 1368
23,33-35 1275
24,14.22 1005 1 C oríntios
25,6.17 1323
25,7 1544 1/3 1032
25,9-11 1282 2,11 1648
26,9 1083 2,14 1017
26,13 1582 6,11 926, 1184, 1546
28,31 1123 7,19 1015
9,7 1051
Rom anos 10,16-17 1060
11,20 906
1,1 1072 11,20-22 917
1,4 1431 11,23 932,938
1,7 1032 11,23-26 1059
2,9 1135 11,25 983, 1598
3,3 1077 11,29 936
3,26 1184 12,3 1523, 1535
4,17 1049 12,4-6 1021
5,3 1069 12,11 1457, 1648
5,5 1016, 1195 12,13 1413
5,8 1048 12,28-29 1518
5,10 1026 12,29 1114
6,4 1445 13,12 1160
6,9 1485 14,21-33 1114
8,11.14 1648 15,3 1384
8,16 1648 15,4 1458
8,17 1184 15,6 948, 1611
8,18 1192 15,5 1270,1436, 1580, 1590
8,29 1445, 1495 15,3-5 1444, 1445
8,30 1182 15,3-7 1431, 1432
8,32 1177, 1369 15,5 1517
8,33 1072 15,5-8 1436, 1570, 1634
8,34 1152, 1491 15,5-9 1490
8,39 1185 15,7 1467, 1591
9,1 1100 15,8 1582
9,4 1083 15,8‫־‬9 1512
10,14 1179 15,20ss 1444
11,17 1063 15,22 1026
índice de Citações Bíblicas 1693

15,42ss 1432, 1486 F ilipenses


15,51-57 1194
15,57 1128 1,19 1648
16,2 993, 1499 1,23 1193
16,22 1023 2,7 1158
2,8-9 1491
2 C o rín tio s 2,9 1158,1164
3,12 1182
1/3 1467
3,5 1045 C olossenses
3.17 1648
3.18 1192 2,3 1638
5,1 1001 3,4 1594
5,8 1193 3,12 1072
13,13 1021 3,15 1032

G álatas 1 T essalonicenses

1.4 1174 1,6 1175


1,13-14 1083 1,9 1145
1,16 1512 2,14-15 1211
3.13 1283, 1390 2,14-16 1208
4.6 1648 3,2 1644
4.7 1072 4,13-17 1194
4,15 1622
E fésios 4,16-17 1001
5,19-20 1114
1/4 1184
1,20 1491 2 T essalonicenses
2,2 1102
2.4 1185 2,3 1169
2,18 1136, 1495 2,13 1176
2,19-21 1005
4.3- 6 1191 1 T im óteo
4.3.13 1168
4.4- 6 1021 1,3 1191
4,11 1114 1,3-7.18-20 1191
5.1 1180 1,10 1191
5.2 1048 1,11 910
5,26 926 2,1 1173
6,22 1102 2,7 1100
6,24 1022 3,15 1191
3,16 1111
1694 índices

6.3 1191 1 Pedro


6.3- 5 1191
6.13 1296 1,3-4 926
6,15 910 1,8 1023,1537
1,20 1184
2 T im óteo 1,23 1065
2,3 1395
1.13 1191 2,4 1072
2,11 1184 2,5 1005
3,1-4,8 965 2,6-8 1233
4.3 1191 2,21 1005
4.3- 5 1191 2,21-23 1608,1319
2,25 1619
Tito 3,10-12 1395
3,21-22 1491
2.14 926 4,3-4 1089
3,5 926 4,12 1096
3,7 926 4,14 1090
4,16 1610
H ebreus 4,17 1005
5,1-4 1613
2,3-4 1179 5,1-5 1619
2.9- 10 1495 5,2 1605
2,10 1006 5,2-3 1619
2. 10- 11 1177 5,2-4 1619
2,12 1161 5,4 1594
2.14 1102 5,15 1578
6,20 993, 1006
7,26 1465 2 Pedro
9,1.6 1083
9,12-14 1177 2,2 1004
9,18-20 1385 3,3-8 1652
9.22 926
10,10 1177 1 João
10.22 926
11,17-19 1369 1,1 1533
13,12 1345 1,1-3 1537
13,22 1644 1,2 1095,1593
1,2.3 1105,1123
Tiago 1,3 971,1159
1,3.6.7 1189
2,23 1049 1,4 1135
4,4 1174 1,5 1105
índice de Citações Bíblicas 1695

1,7 926, 1189,1341,1414,1415 3,16 1071


1,7-9 1530 3,18 1172
1,9 1184 3,18-19 1288
2,1 1016,1023,1138,11530,1641, 3,21-22 1011, 1137
1643,1649 3,22 1544
2,1-2 1529 3,22-23 1048
2,1.29 1102 3,22-24 1015
2,2 1370 3,23 983
2,3-4 1015 3,24 1022
2,5 1020,1182 4,2 1145
2,7-8 985 4,2-3 1186
2,7-9 983 4,2-3.15 1191
2,10 1082 4,5-6 1089
2,12 1078,1560 4,6 1078, 1191
2,12-13 1109 4,8 1159
2,12-14 1606 4,9 1593
2,13 1007,1102 4,12.17.18 1182
2,13.14 1140 4,12-16 1022
2,13-14 1170,1171 4,13-14 1081
2,13.14.24 1082 4,14 1095
2,14(13) 1185 4,19 1071
2,15-17 1167,1174 4,20-21 1022
2,17 1102,1173 4,21 983,985
2,18 1561 5,2-3 983, 1022
2,18-19 1063 5,3 1015, 1159
2,18.20 1169 5,4 999, 1140, 1306
2,19 1067,1191 5,4-5 1141, 1173
2,22-23 1159 5,6(7) 1016, 1648
2,22-24 1191 5,6.8 1393
2,23 999,1090 5,6-8 1109, 1412, 1414
2,23-25 1145 5,10 1191
2,24 1044 5,13 1545, 1546, 1547
2,27 1032,1121,1648 5,14-15 1011, 1137
2,28 1594 5,16 928
3,1 1495 5,16-17 1530
3,2 1192,1594 5,18-19 1170
3,7 1102,1561 5,19 1102, 1170, 1173
3,11 1105 5,20 971
3,11-12 985 6,69 1649
3,12 1170 13,1 953
3,13 1088 14,6 1649
3,14 905,984 17,6-26 953
1696 índices

2 João 12,10 1159


13,8 1091
1/3 1172 13,18 1567
5 983 14,4 1616
10 1187 14,13 1114
14,20 1564
A pocalipse 16,1 1091
16,5 1184
1,5 984,1134, 1370 16,16 1174
1,7 1396, 1417 16,17 1386
1,10 1499 17,4 1314
1,13 1374 17,8 1091, 1169
1,17 1242 17,11 1174
1,18 1025, 1380 17,14 1128, 1606
2,3 1078 17,17 1358
2,7 1114, 1227 18,16 1314
2,9 1082, 1096 19,7 1520
2,17 1162, 1605 19,10 1114
3,5 1091 19,12-13 1164
3,9 1082, 1096 19,20 1559
3,10 1171 20,2 1112
3,12 1162 20,2-3 1102
3,20 1001 20,6 925
3,21 1141 20,10 1112
4,11 1534 21,1 1193
5,5 1128 21,1-4 1520
6,2 1128 21,8 925, 1032
6,10 1145 21,14 1073, 1518
6,16 1606 22,1-2 1567
7,4 1568 22,2 1058
7,14 926,1135, 1414 22,5 1241
7,17 1103, 1605 22,5.7-12 1112
12,2-5 1133 22,17 1114
12,5 1134 22,19 925
12,5.17 1380 22,53 1241
12,8 993
índice de Citações Bíblicas 1697

OUTRAS FONTES CITADAS

1 Macabeus 87,2 1460


91ss 965
2,18 1320 91,1 967
3,38 1320 92,2 966
9,22 1547 94,5 967
10,65 1320 95,7 967
11,34 1397 98,13 968
13,38 1350 100,7 968
103,3 968,970
2 Macabeus
2 Enoque
3,26 1460
14,36 1167 41,2 991

3 Macabeus Josué

2,2 1167 8,29 1390


6,23 1320 9,6 1146
6,27 1127,1357 22-24 965
24,14 1146
4 Macabeus
Jubileus
9,20 1408
20,2 967
2 Baruque 21,5 967
21,25 968
39,7ss 1057 22,23 966
78,4 967 22,24 968
22,28-30 968
2 Esdras 35,27 966
36,1 966
5,23 1056 36,3-4 967
7,80 1000 36,17 966,967
14,28-36 965
Pedro
1 Enoque
4,19-20 1627
39,4 1000 6,69 1139
41,2 1000 7,39 1626
42,2 1647 10,16 1616
45,3 1000 12,23 1626
1698 índices

13,36-38 1140 T obias


13,37 1614
16.5 986 1,3 1003
17,4-5 1626 7,12 1356
18,18 1614 14,3-11 965
20,3-10 1626
20,21 1617 D idaquê
21,12 1614
21,15-17 1616 9,2 1059
21,18-19 1617 9,3 1152
21,19.22 1614 9,5 1151
21,7 1624 9-10 1151,1152
21.9 1614 10,2 1151,1152,1167
10,5 1152
Sabedoria 16,5 1082

1/2 1027 Eclesiástico


1,7-9 1646
3.1.3 1036 24,17-21 1058
5,6 1003 28,1 1505
6,4 1285 39,3 1123
6,12 1026 45,4 1175
6,14.16 1251 49,7 1176
6,18 1026
7,25 1161 1 C lem ente
7,27 1072
9.11 1113 5,4 1609
10.5 1168
10.10 1113
15.11 1521
15.3 1160

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