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Carlos G i 1 Arbiol

CoLrÇÂO BmuA c H1 TôRJA


• Culto t> l'o111tsr<·io imperiai no apocalipse de Joilo - J. '\ elson /va) bill
• Je-.u .. e\Orri la; e tudo ex.egético e hen11en~ulÎC'o de J\k 3.20-30 -
lrincu }. Rub~ke
• \lt>lodologio dl!' ext>g~ brblica - Cds.sio lfurilo DiaJ. da il1 a
• 0 projf'to do ~\Odo - lfauhias Cren:er
• ()., f'\O ngt'lho.., -.m6lil·o,,: fonna~·ào. redaçilo. teologia - Benito 1/af'('o11cin1
• o., n-1 rt'fonnadorf'...: c-ulto e sociedade no Judit do Pnmt'iro Templo -
NA ORIGEM DO CRISTIANISMO
Rirliard Il. IJJu ery
• Para t•ompw •nder o lh ro do Gêne,,is - .Wdrés l bafle.: lrana
• Profoti mo e irL>-tiluiçilo no <'ri tianj.,mo primüi' o - Cu) Bonneau

Sftm \hm11
Blblloteca Padre Vaz
• \ mort\• do ~t t> ...i.ias: comentruio das narrntj, a:. da Paixlio no quatro c, angelho,,


(2 'ol.,.) - Ram1ond E. Bnm n
.\njo::. e \l t>-. ...illl>: me.,,,ianismos juùai<'o- e origt>m da cri-,wlogiJ - Luigi • Irian>
ID 1 IDI 11
20190075
• En1r1• o t•tsu t• u lerra. comentario ao -Senuao da \lontanho.. (\ h 5-7)- Paulo na ongem do cristianismo
Frmu Zeilu1g1•r
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• Tohio..i., t' Juditt' - }osl 1((chez l!lldez
• Paulo na origem do t·ri tianismo - Carlos Cil Arbiol
Dad0!! ln1ttn.IC'.'Îo<l.a d,. C.1tkit:açio n:a Publkario (OP)
(Cimata Brasikira do U.-ro. -p. B~il)

(;il .\rlMul. tarit>- J . 1Q71).


PaulonaonF'"fDdo~ ICaric>o Cil \it>i..I : 1...Juç. . PMllo
F \.J&KL -:.io P...Jo : P..WU..... 2018 - !Bibl.. '" hütdna. ~ _ ,

Tîtulo onpmil: Pablo m d .......m.. cn.u.nwno


Bibb~
1:-B \ 'J78..85..356..Ll<JS.~

1 Ûbllam•mo • Oni:rm 2. IP"l"Jll • HL-«lna 3 Paulo. \pdololo.. °'Gllo


1 Trolopa 1 Tu.OO li '<'nt'.

18-1-1.WJ CUD-2i0.tm

lnditt para c:aUloge ii>k""''-


1. Paulo. Ap&\tolo : Crultamsmo Ori~m H1>16na 270 092

Toulo original: Pablo tn ri 1UU'11mlt crù1wnumo


C Edi1orial \'erbo Divmo. {Navami). Espalla. 2015.

J• ..diçio-2018
Oireçio-gcral! Fldlia Rt~Ml/O
Coosdho editorial.; Dr. A1llOOAo Fruncuco ulo
Dr. Joao Okio POllOS
~(aria Comt1 tk OliPiro
Dr. UaUliuu l:«n:.tr
Dro. l tnr /m!IJR Bomllooolto
Ecfüores respons4,eis: lm lt~ Bomhona110
t .tflllthÙls Crtnur
Traduçao: PaUÛ> F. l aUrio
Copida!que: \t6nu:a E1mM C. Ja Colla
Coonlenaçio de l'e\ÎllAO: \farina Mvidollfa
R..-isio: Sandra in:aJo
Cerente de produçio: Ftlfcw Caltgaro tlo
Capa e diagramaçAo: Twgo FJu

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por q\lolllqu<:r fOl'mll rloo qu.Wiqurr - (dotn!nic<> ou 111<dnirn.
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P...W..
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C» 110-020 -Siio Paulo- ~P (Bn11ul)
TrL (Il ) 2 l2S-3500
Para Lucas e para Clara:
hup://ww.pauhnauom.br- fefi1or1W"i-l1na. rœi.br para Nico e para Pablo.
·rtt..matl~.. "C: 0800-7010081
0 Pla :-.,c....i...i., f il'- de S... Paulo - :'>JD p..,fo.. 2018
Su ma rio

Apresentaçâo ................................................................................................................... 11
lntroduçâo ........................................................................................................................ 15

P1mn·11t\ P\RTI.
Cu1110 dwgamos alé aqui ?

Capltulo 1 ·Corno Ier Paulo, hoje .................................................................................... 19


1. Perspectivas atuais nos escritos paulinos.................................................................. 20
2. Corno Ier Paulo hoje ................................................................................................. 35
Bibliografia .................................................................................................................. 39

• ·H,l \U \ P\RTF
Quai ... :-âo o... a:-pt'C'lo:- C'f'nlrai. do Lema?

Capftulo 2· Avocaçâo de Paulo e a origem de sua vocaçâo ........................................ 45


1. 0 judafsmo de Paulo ................................................................................................. 45
2. Os judeus messiânicos (helenistas) de Damasco ....................................................... 49
3. Encontro de Paulo corn os helenistas de Damasco .................................................... 52
4. Cronologia ................................................................................................................ 59
Bibliografia .................................................................................................................. 60

Capftulo 3 ·A cosmovisâo de Paulo ................................................................................ 63


1. 0 judaismo de Paulorelido apartir de Damasco ....................................................... 63
2. Anovidade teo16gica que a morte de Jesus traz para ojudafsmo ............................. 67
3. As consequências desta nova visào teol6gicapara a identidade judaica ................... 78
4. 0 olhar retrospectivo e prospectivo de Paulo ............................................................ 82
Bibliografia .................................................................................................................. 84
Capitula 4 • 0 inlcio da ekklêsia....................................................................................... 87 4. Paulo como modelo da lgreja no inrcio do segundo século ..................................... 186
Condusâo................................................................................................................... 190
1. Apreparaçâo de sua missâo ..................................................................................... 88
Bibliografia ................................................................................................................ 191
2. 0 inicio da ekklêsio ................................................................................................... 94
Bibliografia ................................................................................................................ 103
Qt \IH\ l'\IHI
Para aprofundar
Capitula 5 ·A identidade da ekklêsia ........................................................................... 105
1. Primeiros conflitos e desafios da ekklêsio ............................................................... 105 Capitula 9. Relevância atual de Paulo e sua tradiçao ................................................ 195
2. Anova identidade na ekklêsio ................................................................................ 109 1. Oprojeto de Paulo no marco do judaismo de seu tempo edo cristianismo nascente ....... 197
3. 0"gênio" de Paulo .................................................................................................. 125 2. Arelaçâo de Paulo eseu projeto corn o lmpério eo mundo .................................... 101
4. Arelaçâo da ekklêsio paulina corn outros ............................................................... 127 3. Aestratégia da autoestigmatizaçâo ea imagem de Deus....................................... 105
Bibliografia ................................................................................................................ 132 Bibliografia ................................................................................................................ 208

ÎEHCEIR \ P \lffF Bibliografia comentada ................................................................................................. 109


Que~lôe~ abertas ao clebate atual

Capftulo 6 ·A pseudoepigrafia e o corpus paulino ...................................................... 135


1. Aatividade literaria na ekklêsia paulina ................................................................. 135
2. Arecopilaçao das cartas originais de Paulo ............................................................ 150
3. 0 nascimento do corpus paulino ............................................................................. 158
Bibliografia ................................................................................................................ 161

Capitula 7 ·Paulo e a mem6ria de Jesus ...................................................................... 163


1. Paulo e Jesus em seu(s) tempo(s) ........................................................................... 164
2. 0 conhecimento que Paulo teve de Jesus ............................................................... 169
3. lmportância de Jesus na historia de Paulo .............................................................. 173
Bibliografia ................................................................................................................ 175

Capitulo 8 ·A reconstruçao de Paulo no cristianismo nascente ................................. 177


1. Os silêncios de Lucas sobre Paulo............................................................................ 177
2. As coincidências eas discrepâncias sobre Paulo em suas cartas e nos Atos ............. 179
3. Areconstruçâo de Paulo ......................................................................................... 182
Apresentaçao

Por mai::. que se lenha pe::.qui ado. inquirido. escrito e debaLido sobre Paulo,
sua pes oa. ua formaçào. uas ideias. seu papel no cristianismo na cente e a
di\ersa interpretaçôe de · u e·crito mulLiplicam- ·e corn incrfrel \eloridade.
Gil rbiol. ap6 ano de ime tigaçào sobre a figura paulina. oferece-110 · uma
obra um tanto di,er a de outras corn a::. quais e ·tamo habituado ·. Primeiramente,
sua obra integra uma pre~ tigiow coleçào e panhola clenominada Qué se sabe de.... ··o
que e sahe de.. .'', publicada por Editorial Verbo ÜÎ\'Îno. 0 e copo de a coleçào é
oferecer livros que de cortincm o e tudos bfblico· e hi t6rico-blblicos mai rcc·cnte::;
a um publico nào espe ·ializado: portanlo, traLa-se de uma obra de divu lgaçào que
·era util lanto ao mai · iniC'iado · no e tuclo bfblico quanto àquele que clesejam
obtn uma visào geraJ de como e ·e a ·unlo é compreend ido no tempo atuai .
Em egundo lugar. Arbiol nào e concentra em temas propriamente teol6gi-
cos de Pau lo: seu ol>jelÎ\O é oulro. Em eu li\TO. ele demonstrara que a lgreja. lai
como se organizou a partir da de trujçào de Jerusalém em ïO d.C .. nào era aquela
imaginada e pregada pelo ap6 ·tolo do gentio , como licou conhecido. 0 projeto
hi t6rico de Paulo era renO\'ar o judalsmo. emertando nele norn ramo nao judai-
co . confom1e exprime em Rm 11.16-24. Algo. alias. muito pr6ximo ao pretendido
Lambém por Je u de ~a1,aré. 'o entanto. Paulo nào logrou êxito corn ·eu projeto.
Dois fatore foram cleterminante . ~ egundo Arbiol: ..a progressiva e. à reze . trau-
matica penetraçào do crente em Cri to na e truturas do lmpério [romano)... e
seu progres ivo di tanciamenlo do judafsmo rabfnico. cnuiLo meoo pro el iti La que
duranle o perfodo helenf tico... E · e fatore , aliado à necessidade de encontrar
uma idenLiclacJe para o cri Lian ismo, levararn o cri tao a recorrer ao escrito de
Paulo, ma nào da maneira como e te teria pretendido.
0 cri tiani mo urgira. e pecialmente ap6s o Edito de Te alônica por parte
do imperadorîeocl6sio (380 d.C.). como uma nova religiào. algo bem di lanle claquilo
que desejara Paulo. l ·so fara corn que a obra paulina eja utilizada peJo~ cri tao •
especialmenle pelo Padre da lgreja. como antaaoni La ao judaf mo: ..os cri tào
criam na graça como condiçào de sa l\'açào e no indi,~fduo como ujeito receptor
11
Paulo na origem do cristfanismo Apresentay1o

desse dom divino inalcançaveJ de outro modo: os judeus criam no esforço e no mérito Paulo é a paradoxal cenlralidade da cruz, do Crucificado, diante de outras imagen
pr6prios. as im como o povo de Israel como sujeilo colet:ivo dos favores divi no-.,_ de Jesus (cf. FI 2,6-8); a revelaçâo ocupa lugar central emsua "teologia'": 1) utilizar
Lutero. corn sua reforma, aprofundara e .a perspecti\•a opondo justiça humana à outras abordagen além da Leol6gica. como a hi L6rica, a ocio16gica etc.
gratuidade da justiça divina. Nascera, daî, uma opo içào: lej (Tora • judafsmo) e Nes e sentido, o aulor deste livro deixa claro que nào adotara um ponto
Evangelho (graça • cri tiani ~mo). Essa caricatura da teologia paulina redundara de vista doutrinal, mas afirma que u ara ·'as pergunlas e recursos conceiluais do
em uma interprelaçâo ridfcula do judafsmo e bloqueara as consequências que es a método hist6rico-crftico e. sub idiariamenle, de outras disciplinas ( ociologia, an-
teologia poderia ter para o pr6prio cri tiani mo. I so durou. con tala Arbiol. alé tropologia cultural, psicologia. ..). incluindo a Leol6gica, que nos dara instrumenlos
o séculos XIX e X. para de cobrir tanto as imagens de Deus que aparecem nas caria de Paulo como
Porlanto. este Üvro que agora chega às mâo do e tudio o brasiJeiro bus- a propo la que Paulo faz ao leitor de seu tempo".
cara recolher a contribuiçôes que foram dadas pelas diferenles formas de abordar Carissimo leitor, você tem em mâos um Üvro que o respeita e busca forne-
Paulo e seus escrito : a "perspectiva tmdicional" (BAUR, WEBER, BOU SET. cer-lhe o instrumento nece sârios para ler e compreender Paulo em seu tempo.
BULTMANN. BORNKAMM el aJ.): a "nova perspectiva'" (SA DER , DUNN et em sua religiao, em suas aspiraçoes e projeto . Obviamente, Paulo pode nos dizer
al.); a "nova perspecti\ a radical"" (STENDAHL, GA TON, THOM ON, NA ·os.
1
muito nos tempo atuais, nos quais vivemos desorientado por uma globalizaçiio
STOWER . EI E BAUM et aJ.); a abordagem "p6s-coloniaJ"' (HORSLEY, GEOR- que provocou uma cri e nas idenlidades nacionais e étnicas. fazenda res urgir o
G!. KOE TER. FlORE ZA, ELLlOIT et al.): e a abordagem levando em conta as apetite nacionalista e tribalista, bem como di tanciou o centros de deci ao do
ciências ociai , como a anlropologia cultural, a sociologia. a p icologia ocial etc. cidadào comun . que Loma o poder algo mais abstrato e sem um rosto. mas aem
(ELUOTI. THEi EN. MEEK , E LER et al.). egundo Arbiol. todas as formas por i so menos opressor e repre sor. Por isso. mais do que nunca. Paulo é bem-vi ndo
de abordagem lrazem ua contribuiçào e ajudam, de um modo ou outro. a melhor para no fazer compreeader que a fé nasce do vazio de garantias e é a sensibiU-
conhecer a pessoa, o pensarmmto e a atuaçâo de Paulo. Conludo, o leitor de Paulo dade pan1 de cobrir o sentido de no sa existência. Deus é graça e dom a um povo
devera empre e collier de qual perspectiva desejarA interpretar o pensamento que busca fugir do mal para iniciar uma nova vida (BAGETTO, Luca. cm Paolo:
paulino. Um lugar hermenêutico é fondamental. poi na~existe leitura i enla de um l'interruzione della legge, 2018, p. 14).
determinado ponto de vi ta, ou eja. coma preten âo de total objetividade. lnclusive.
A Associaçâo Brasüeira de Pesqui a Bîblica (ABIB) é honrada por poder
de Laca Arbiol. ··nao ha leituras in6cuas: Iodas têm consequências, algumas mais
contar com a presença de Carlo Gil Arbiol ern seu VTTT Congresso lnternacional
que outras (e mais profundas)"'.
de Pesquisa Bfblica (27-30 de ago to de 2018, PUC-Parana, Curitiba). bem como
Por is o. Arbiol detecta ei critério que lhe parecem uteis para alguém por promover a pubüca~lio desla ua primei ra obra em no o pafs.
e ituar criticamente <liante da hist6ria da interpretaçâo de Paulo: a) ·uperar a
oposiçâo judaf mo-cri Liani mo, compreendendo melhor o judafsmo do tempo pau- Sao Paulo. 8 de março de 2018
lino: b) ituar Patùo em seu lugar, como alguém que intentava renovar o judafsmo e Dia lntemacional da Mulher
nâo fundar uma nova religiao: c) aceitar a ambiguidades e incoerências de Paulo. Pe. Dr. Telmo José Amaral de Figueiredo
afinal. 0 e-crilo dele siio •. iluacionai ,., dependem do conlexto: d) nierarquizar Pre idenle da ABIB
as afümaç0es. ideias e opçôes de Patd.o: é bom recordar que as cartas paulinas sào
apenas uma parte. talvez nem a mais importante, de eu projeto me siânico; por-
taato, nem tudo aquilo que Paulo diz em suas cartas lem valor igual: e) enquadrar
o dado em uma vi âo leol6gica correta: talvez aquilo que eja mai "origi nal" em

12 13
lntroduçao

Paulo de Ta~ é uma da 6guras mai contradit6rias. influente e arredia


da hi t6ria da humanidade: e uma <las mai incompreeudidas. Ele teve pape! in-
-ub Litufvel na origem do cristiani mo. ma foi interpretado frequentemente como
um e pelho do preconceito~ e de ejo de eus intérpretes. que o apre entaram.
às veze , ou como o fundador do cristiani ·mo ou como traidor do judafsmo: outras
\'e'te , como revoluciorn1rlo romano: oulra veze aincla, como grande pen ador,
fil6 ofo ou te6logo; e outras mais. C'Omo um mi 6gino digno de o traci mo. A maioria
de- a imagens e apoia em algum dado hi t6rico, mas lambém deixa Iran parecer
pre supo lo que apena. permilem rcr a complexidade e a riqueza. a genialidade
e a limitaçao. o êxito e o fracas. o de alguém que sonhou um mundo n O\'O em um
tempo di ffci 1.
Corno e percebe no tftulo. e. te livro nào se concentra na figura hi t6rica de
Paulo, mas principalmenle em ua contribuiçào para o momento conturbado que lhe
coube \'i\·er. Paulo foi urn judeu de eu tempo que prelendeu restaurar o judafsmo
voltando a ua rafze , lai como o hmia de ·coherto no paradoxal aconlecimenlo da
morte de oulro judeu. Je u. de azaré. 0 sentido que Paulo conferiu àquela morte
na cruz foi teol6gico: Iahweh re\ela,a-·e de modo novo. E as consequências foram
polilicas. ociai e religiosas ( em que e po_san1 separar umas da outra ): renornr
o judaI mo medianle a Iran formaçao da relaçôe sociais e perante a inùnência
do final da hi t6ria. o entanto, ,eu projeto. concretizado na criaçao da ekklêsia.
sofreu uma profunda Iran formaçao depoi de ua morte. de modo que nem l rael
aceitou sua propo la nem o tempo chegou a seu .fim. E ta reconslruçâo ~ o que
deu lugar. juntamenle com outra série de acontecimenlos, à origem do cri Liani mo
como religiào.
E te livro pretende oferecer uma leitura historic.amenle plausfvel e teologi-
camente coerenle da contribuiçào de Paulo para o urgimenlo do cri Liani mo. c da
transformaçào de eu legado ap6 • ua morte. âo di cule. portanto, algun temas
que mereceriam atençào. ca o e lratas e de um Livro somenle oLre ele. como
~ ua cri tologia. por exemplo. 0 primeiro capftulo oferece uma visâo de conjunlo
da perspecti"a e correnle que mais inRuenciaram na pe qujsa hi t6rica atuaJ
15
Paulo na origem do cnsoanismo

sobre Paulo de Tarso. o ~ quatro capflulo seguintes (2. 3. 4 e 5), agrupados sob
o lftulo dos ru pecto centrais do lerua. desenvolvem o projeto de Paulo. enraizado
em ua pr6pria experiência religiosa e de dobrado em uma estratégia de criaçào de
assembleias de fiéi . 0 três capftulos uhsequentes (6. 7 e 8/. dentro do paragrafo
de que lôe abertas, mostram o desenvolvimenlo e a Lransformaçào daquele projeto
paulino, aparenlemenle fracassado, mediante a reconstruçâo de ua mem6ria. de
ua imagem e de eu texto ·. Por 1im. o dois Ultimos capftulo (9 e IO) oferecerem
reflexôe sobre a importância atuaJ de aJguns temas desenrolvidos no livro. assim
como uma selcçào bibliografica comentada para aprofundar.

PRIMEIRA PARTE

Corno chegamos até aqui?

16
Capítulo 1
Como ler Paulo, hoje

A figura de Paulo de Ta r o revela- e uma da mais paradoxai . atraente


e e quiva da hi tória da humanidade, não tanto pela personagem hi tórica, ma
pela leitura e interpreLaçõe que e fizeram dele, por eu eguidore e detra-
tore . que con truíram uma imagem caleido cópica de infinidade de core , mai
do que um retrato reconhecível. A eu re peito, Friedrich Nielz che e creveu que
era ·'uma das alma mai ambicio as e inoportunas. de mente tão upersticio a
quanto astula··, um homem ··muito atormentado e mi eráve~ tão de agradável para
o outro quanto para i me mo·'. O paradoxo de Paulo. tal como o capta Nietz che.
é que, de um lado. ·· em e ta hi tória ingular, em o de vario e arroubo de
uma cabeça emelhante. de uma alma a im. não existiria o cri tiani mo: apena
Leríamos tido noticias de uma pequena eita judia, cujo mestre morreu na cruz·'.
No entanto, continua. " e e tive e lido (Paulo]. e tive e ido realmente lido...,
há muito tempo leria de aparecido o cri tiani mo'· (Aurora, 68). A linguag m
exagerada de Nietz che não no d ve impedir de ver a porção de verdade que ua
leitura contém: Paulo teve um papel de monumental importância na origen do
cri tiani mo, ma foi lido dema iada veze como um espelho do preconceito e
do de ejo de eu intérprete .
Um do livro recente obre Paulo que a pira a er um manual de referência
(WESTERHOLM. 2011) abriga, em ua introdução, uma opinião extremi ta: que
a exege e histórico-crítica que dominou a interpretação bíblica no último éculo
e meio fi ndou por tornar irrelevante a Bíblia. de modo geral , e particularmente
Paulo. porque di tanciou da preocupaçõe do leitor o ignificado do texto . De te
diagnó tico deriva uma e pécie de retorno à preocupaçõe teológicas da leitura de
Paulo. perceptívei . como veremo , em diversas obras atuai . Entretanto, curio a-
menle, faz- e um diagnó tico radicalmente diferente a partir de in Lância meno
teológicas (MATE, 2006): no momento em que e regata Paulo do confinamento
dogmático no qual algun teólogo o enclau uraram. é pos ível de cobrir a impor-
tância de eu pen amento e de ua visão. De cobre- e tal influência na dimen ão
19
Pli!MeaA FW ·Como chegamos até aqui? Como ler Paulo, hoje

filo ófica e política de ua luta para enconlrar a relação enlre a ju tiça e a lei, de teria feito do ano que e egufra!11 à ua morte. mas não resta dúvida de que a
ua bu ca da ho pitalidade e do uni\'ersali mo ele. De modo. muito recuperaram gradativa eparação entre o judaf mo rabíruco e o crentes em Cri to, juntamente
a relevância de Paulo também hoje. com o po terior urgimento do cri Liani mo como religião ante o judaí mo, está muito
di Lante de corre ponder ao onho de Paulo. É preciso bu car outro atore hi tó-
rico , muito ano depoi , para entender como e tran formou a memória de Paulo.
1. Perspectivas atuais nos escritos paulinos
Primeiramente Tertuliano de Cartago (160-220 d.C.) e, po leriormente,
No proce o de criação de identidade do que creem em Cri to que e 1ruc1ou
go Linho de Hipona (354-430 d.C.) a entaram as bases para uma leitura de Paulo
no fi m do éculo I de no a era, foi deci ivo o recurso à figura de Paulo. Quando
marcada por um antagoni mo: o cristão acreditavam na graça como condição de
este conjunto de fiéi uperou a cri e da e perada parú ia, que não chegou depoi
alvação e no indivíduo como ujeito receptor de e dom divino inalcançável de
do ano 70 d.C., começou a crescer exponencialmente e mudou radicalmente de
outro modo; os judeu acreditam no e forço e no mérito próprio , as im como no
e lratégia: de um conjunto de grupo de re i tência pa ou a er uma organização
povo de Israel como ujeito coletivo do favore ruvino . A djsputa de Ago tinho com
cada vez mai in Litucionalizada, que foi penelrando pouco e pouco nas estruturas
Pelágio, que defendja er po ível viver uma \rida em pecado porque as pe oa
do Império Romano, em um proces o de mútua influência, marcado pela acolhida
estavam dotadas de liberdade e de vontade. determinou para os éculo po teriores
e rejeição mútua .
a leitura hegemônica de Paulo, principal argumento de Ago tinho para defender
E ta ituação e viu afetada definitivamente por um fenômeno em grande que todas as pe oas ão pecadoras e que omenle Deus detem1ina quem é alvo
medida inverso: a deterioração da imagem do judeu depoi da duas guerra e quem não. A partir de e momento. Paulo foi lido como o apó tolo da graça que
perdidas (ano 67 e 135 d.C.) fez diminuir o número de pagãos intere ado no deu identidade ao cri Liaru mo diante do judaí mo que e apoiava em ua própria
e tilo de vida judajco. Ambo o proce o - a progre iva e à vezes traumática forças e e tava de tinado à perdição.
penetração do crente em Cri Lo na e !rutura do Império, de um lado, e eu
Quando Lutero entra em cena no éculo XVI, a ituação não havia mudado
di tanciamenlo gradual do judaísmo rabínico. muito meno pro el itista do que du-
muito. Sua leitura de Paulo, especialmente de algumas passagen como Rm 1,17
rante o período helenf lico, de outro - criaram uma ituação ab oluLamenLe nova,
("Oju to viverá pela fé"). permitiu-lhe e tabelecer um princípio básico: a graça de
que mudou para empre a configuração do mundo conhecido, e que as enLaria a
Deus é primeira, gratuita; a açõe boa vêm depoi , como consequência daquela,
ba e da con lrução da Europa ( AND. 2011). Em fin do éculo IV de no a era.
nunca como condjção para ganhá-la. E la interpretação leve em Lutero um forte
ambo o proce o e haviam concluído: com o Edito de Te a.Iônica, por parte de
componente biográfico. Parece-me bastante e clarecedor permitir que Lutero fale um
Teodó io (380 d.C.). confirma-se a nova religião. o cri tiani mo. única religião oficial
momento: no prólogo da erução latjna de uas obras completa escreveu o eguinle:
do Império. Durante e e ano , as interpretaçõe de Paulo foram fundamentai no
proces o de identificação da origem do cri tiani mo djante do judaí mo rabínico.
enli-me in Ligado por um e tranho desejo de conhecer Paulo na carta ao Ro-
Contudo. este não foi o propó iLo de Paulo, cujo projeto era renovar a árvore do mano ; minha dificuJdade radicava- e não no cerne. mas em uma só palavra que
judaí mo, enxertando nela novo- ramo não judaico (cf. Rm 11,16-24). Poderíamo se encontra no capítulo primeiro: "A ju tiça de Deu e-tá revelada nele". Odiava
dizer, portanto, que o cri lianj mo, como religião. foi. contrariamente à opinião maj a expressão ··ju liça divina". que empre havia aceitado. seguindo ou o e oco -
difu a, a con equência do fraca o do projeto hi tórico de Paulo, como veremo ao lume de todo o doutore . em um enlido filo ófico da chamada "ju tiça formal e
longo de ta página . Aqueles ramo de oliveira ilve lre enxertado na oliveira ativa". em virtude da quaJ Deu é justo e castiga o pecadores e inju to . Ape ar
cultivada para mo Lrar o projeto de Deu (uma árvore na qual haveria ramo de de minha vida monacal er irrepreen fvel. entia-me pecador diante de Deu , com
qualquer procedência). não lograran1 eu objetivo. 1 ão abemo que balanço Paulo a con ciência mai perturbada. e minhas satisfações revelavam- e incapaze de

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PillMBF..1 pgft • Como chegamos até aqui?
Como ler Paulo, hoje

conferir-me a paz. 1ão o amava. ma dele lava cada \ez o Deu ju lo. ca tigador iniciativa de Deu . que pede urna aceitação sem condiçõe . Para defender e la
de pecadore . Indignava-me contra e e Deu . alim nlando ecrelamente e não leitura de Paulo com o brilhanti mo n e ário. preci ava- e de um pano de fundo
uma bla fêmia. pelo meno uma violenta murmuração (.. .). ob curo, de um contexto no qual contra tas e uficientemente: a im, cultivou- e
lé que. enfim, por piedade divina. e depoi de meditar noite e dia. percebi a no ambientes acadêmico cri tão uma vi ão implificada e di torcida do judaf mo.
concatenação das duas passagen : .. justiça d Deu ·e revela nele-...corúorme E ta leitura via o judaf mo como uma religião do passado e. talvez. do futuro,
e tá escrito: o ju to vive da fé... Comecei a dar-m conta de que a ju tiça de Deu ma não do pre ente. Para a teologia Liberal. Deu havia intervindo no pas ado atra-
não é outra enão aquela pela qual o ju lo vive o dom de Deu . ou seja. da fé, vé da muitas açõe com a quai tinha mo trado ao povo de I rael eu projeto de
e que o ignilicado da frase era o eguinle: por meio do E\1angelho e revela a alvação que e cumpriria em um futuro que ainda não havia chegado. O pre ente.
ju liça de Deu , i lo é, a ju Liça pas iva, em virtude da qual Deu mi ericordio o de acordo com e ta per pectiva, revelava- e um parênte e que ó tinha entido
no ju lifica pela fé. conforme e lá e crito: ..o ju lo vive da fé'·. enti-me, enlão, como uma e pera na qual Deu recompen ava a obra de ju Liça: a pe oa devia
um homem rena ciclo e vi que e me haviam aberto as comporta do paraf o. A alcançar a fidelidade de Deu e a e perança de e lar, no final, entre o eleito . E te
E critura inteira apareceu-me com aspecto novo (L TERO: EGIDO, 2001. p. 370). judaí mo hav; a ub tituído a piedad por um i tema legali ta de controle, fazendo
com que a vida cotidiana e tive e dominada por conceitos totalmente anacrônico
Este te temu nho mo Ira-no tanto a paixão de Lutero em ua interpretação que. longe de oferecer o que prometiam, redundavam ridículo . Adernai . dado que
de Paulo como a parcialidade com a qual o leu: a opo ição entre a impo ível toda a e perança dependia do cumprimento de cada crente. e toda pe oa fiel é
ju Liça humana (baseada no de cumprimento da Torá judaica) e a gratuila ju Liça falível e continuamente transgride o preceito de Deus. o único destino de quem
divina (oferecida no Evangelho d Cri to). Para Lutero, que ni to é devedor de uma punha ua esperança neste i tema religio o era a morte. Agindo a im. cada crente
tradição herdada a função da Torá lm ria ido temporal, até à vinda de Cri lo, que e convertia em uma ofen a ao próprio projeto de Deu . A conclu ão óbvia de ta
e tabeleceu o verdadeiro mecani mo de alvação: o Evangelho. De tarte. a contra- leitura era que o judaí mo é uma religião inferior, uma preparação para a religião
po ição entre lei (Torá) e Evangelho (graça) determinará a opo ição entre judaísmo e ab oluta, perfeita, que é o cri tiani mo.
cri tiani mo. Lnfeliz e urpreendentemenle, e la leitura de contextualizada de Paulo
Neste pano de fundo ob curo. a "per pectiva tradicional" permitia de tacar
tornou- e hegemônica até há muito pouco tempo e, entre outra con equências. fez
Paulo como um relâmpago na noite. Paulo de cobriu e mo trou em ua cartas
do judaí mo uma caricatura, wna religião ridícula e impo ível.
que a Torá (e. portanto. a obra de ju Liça) apena dão conhecimento do pecado,
da própria limitação da pe oa. E ta interpretação de Paulo ublinhava, além do
1.1. As perspedivas tradicionais esuas alternativas mai . que a Torá. em vez de alcançar a vida, conduz e. inclu ive. incita ao pecado,
A im chegamo ao éculo XIX e XX na hi lória da interpretação de Paulo. à tendência da pe oa ao mal e à morte. e ta ituação. Paulo afuma que omente
a qual e chegou a chamar de '"perspectiva tradicional,., defendida por autore como a fé em Cri to liberta de tal amarra. mo trando a vontade salvífica de Deu : a
Ferdinand Chri tian Baur, Ferdinand Weber. Wilhelm Bou sel. Rudolf Bultmann e ju tificação pela fé, pela confiança em ua ação redentora. Cri to oferece uma
Gunther Bornkamm. entre outro (cf. ZETIERHOLM , 2009). Bultmann propô - e. nova aliança no Evangelho que deixa antiquada e caduca a anterior. a da lei. E ta
no marco da teologia li beral da primeira metade do éculo XX, libertar a fé cri lã nova aliança permite o ace o a Deu de um povo que tran cende a fronteira de
de eu mito e milagres, de tudo aquilo que a tornava irracional e inaceitável para l rael. Trata- e de uma oferta de caráter universal. med iante a prorne a gratuita do
a compreensão liberal. Parte importante deste programa de "de mitologização., era Evangelho para todo . Portanto, Paulo aparece, ne la perspectiva, fora do judaf mo;
livrar- e da obra ju las como condição n ce ária para a alvação, de modo que ua propo ta do Evangelho mostrn- e como contrária à Torá. Paulo. o "convertido
fica e evidente, com toda a ua radicalidade. a "ju tificação pela fé". a gratuita do judaf mo'·. é o "fundador do cri Liani mo".

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PICME.IRA PARTI · Como chegamos até aqui? Como ler Paulo, hoje
Mesmo que eu tenha feito uma apresentação simplificada, pois, obviamente, Como tenho confiado em tua bondade,
esta perspectiva oferece muito mais nuances, o leitor percebeu claramente o pro-
e esperado tua graça (hasadim),
blema fundamental desta leitura de Paulo: precisa defender uma visão negativa e
.,.. assim me libertaste de minhas calamidades
equivocada do judaísmo. Isto é o que desmoronou com o trabalho de um exegeta
que mudou o panorama dos estudos paulinos, dando início à chamada "nova pers- conforme tua misericórdia;
pectiva" (citada geralmente em inglês como "new perspective"). e em minha aflição me confortaste

Ed Parish Sanders estudou o judaísmo do tempo de Paulo e apresentou um porque me apoiei em tua misericórdia (GARCÍA MARTÍNEZ, 2000, p. 390).
resultado surpreendente (SANDERS, 1977): compreende-se melhor o judaísmo
Neste pano de fundo judaico, muito menos obscuro do que aquele mostrado
quando concebido como uma religião centrada na aliança, não na lei. A teologia
pela "perspectiva tradicional", a contribuição de Paulo também se mostra diferente.
da aliança permite acessar o núcleo da identidade judaica do tempo de Paulo:
Longe de descobrir o "fracasso" do judaísmo, Paulo compreendeu o tempo em que
Deus havia feito com seu povo uma aliança por iniciativa própria, gratuitamente.
vivia: o tempo final (eschaton, em grego). Os acontecin1entos vividos (a morte do
Ou seja, esta perspectiva mostrava que a aliança não era senão uma amostra da
Messias, assim corno sua exaltação à direita de Deus) faziam-no pensar que Deus
graça do Deus de Israel que havia decidido oferecer a um povo a salvação por pura
havia antecipado o final prometido para o tempo presente: Paulo estava vivendo o
misericórdia (hesed ou hasadim, em hebraico). Neste contexto, o cumprimento da
final da história. A tradição pós-exílica contida no Segundo e no Terceiro Isaías
Torá para um judeu era a resposta agradecida a Deus ao aceitar essa oferta gra-
(até os séculos VI e V a. C.) havia concebido o projeto de salvação de Deus como
tuita, misericordiosa. A lei, as obras de justiça, não obtinham nada para o crente
um projeto inclusivo ao qual estavam chamadas todas as nações no tempo final:
judeu, apenas o mantinham dentro da aliança que Deus oferecia gratuitamente,
'·As nações caminharão na tua luz, e os reis, no clarão do teu sol nascente. Ergue
por graça. Logicamente, esta perspectiva contava também com a possibilidade das
os olhos em torno e vê: todos eles se reúnem e vêm a ti. Teus filhos vêm de longe,
transgressões, falhas e injustiças; por isso mesmo, a lei incluía um sistema de sa-
tuas filhas são carregadas sobre as ancas ..." (Is 60,3-4). Visto que Paulo acreditava
crifícios que devolvia ao crente o caminho da aliança. Sanders citou uma multidão
que o tempo final se antecipara, a morte de Jesus devia significar a união de judeus
de textos do judaísmo do tempo de Paulo que provavam a centralidade da graça
e pagãos, a destruição das fronteiras entre uns e outros, a abertura das portas de
(Mekiltá Bahodesh 5-6.9; Mixná Berakot 2,2; lQM col. XI,3-5; lQH coLIV, 11-12;
Jerusalém para todos os que acreditaram na nova oferta. A lei, portanto, que havia
col. V,19-25; coL IX,7-33, etc.). Cito um dos hinos encontrados em uma coleção de
servido para conservar na aliança os judeus (e somente os judeus), fora superada por
Qumrã (lQH col. XIX,29-32):
um novo acontecimento: o Evangelho oferecido a todos por Cristo em sua morte. A
Torá, nesta visão de Paulo, era sinônimo de exclusivismo e etnocentrismo, situações
Bendito ejas,
abolidas com a morte de Cristo. A nova marca de identidade dos que aceitavam
ó Deus de misericórdia e compaixão, esta nova aliança não era a lei, mas a fé em Cristo (DU N, 2005).
pela força de teu poder
Esta "nova perspectiva" ofereceu, portanto, uma nova visão do Deus da
e pela grandeza de tua verdade. aliança, assim como da história da salvação, tal como se havia visto até então. A
e pela multidão de tua graça (hasadim) criação, a partir desta leitura, é percebida como um dom de Deus, que fez bem a
e por todas as tuas obras! terra e tudo o que ela contém ("muito bom", Gn 1,31). No entanto, apesar disso,
algo saiu errado, porque o ser humano não respondeu ao plano inicial e truncou a
Que se aJegre a alma de teu servo com tua verdade.
vontade de Deus, deixando à mostra sua tendência à desobediência {Gn 3). Deus,
limpa-me com tua justiça.
uma vez mais, gratuitamente, ofereceu a Abraão uma aliança que queria evitar esta
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PRiMeRA PWI ·Como chegamos até aqui? Como ler Paulo, hoje

tendência da pe oa ao mal; entretanto, também de ta vez algo deu errado porque acima de tudo, Deu benruto pelo éculo " (Rm 9.4-5). E te autores e propõem
o povo eleito de obedeceu e não re pondeu à lei (Ex 32). Em vez de obediência à a ler o texto de Paulo obre a lei. buscando uma coerência com e la afirmaçõe .
lei, o povo utilizou-a como motivo de orgulho, de elitismo. de separação do restante A ideia-chave de la perspectiva é que Paulo continuou pen ando toda a vida
dos povos: foi idolatrada. Perante e te novo erro, Deu decidiu intervir gratujtamente que a Torá conduzia à ju tificação todo aquele que e mantinham oba aliança.
outra vez, de ta feita de modo definitivo, e e·crever o último capítulo da história todo o circuncidado . Como o pagão não estavam dentro da aliança, Paulo
na morte e res urreição de Je us, renovando a aliança de modo inclu ivo, sem ne- ru rigiu- e a ele para oferecer-lhe um caminho alternativo de alvação. 1o entan-
nhuma condição étnica que eparasse judeus de pagão . A partir desta leitura, a to, não podia pedir-lhe o cumprimento da lei (a não er que e circuncidas em),
contribujção paulina pode erre umida como a redefin ição da identidade judaica porque Deu a havia dado omenle para eu povo eleito (Rm 3,19). ao pa o que
e da eleição em torno de um novo critério: Cri to, a fé nele (WRlGHT, 2005). para o demai se convertia em instrumento de condenação (Rm 9.22-23): i to é o
Embora eja verdade que esta ·'nova perspectiva" e tenha generalizado e que, egundo e la perspectiva. Paulo chama ' as obra da lei' que levam à morte
estendido obre a leitura tradicional. ela merece dua considerações. Em primeiro (Rm 3.20). Portanto, Paulo criou uma alternativa para o pagão (a ju Lificação
lugar, e ta nova Leitura de Paulo provocou certa reação em algun exegetas que e pela fé), e omente para ele , vi lo que o judeu já tinham o modo de alvar- e
reafumam na leitura traruciona l, oferecendo dela vi ões renovada (por exemplo: (con ervando- e no cumprimento da lei). De e modo, Paulo entende que Cristo
GATHERCOLE, 2002). Em egundo lugar, e la vi ão não acaba de livrar- e de ofereceu, egundo e la leitura, uma olução para o dilema do pagão : o judeu
determinado preconceito are peito do judaísmo que, na opinião de muüo estu- tinham a lei e o pagão , a fé em Cri to.
ruoso ' continua padecendo de uma visão dominada pelos pressupostos cristão . E ta "nova per pectiva radical" entende que Paulo permaneceu dentro do
Precisamente por i o, urgiu uma per pectiva que quer corrigir esta limi- judaf mo de eu tempo e que rurigiu ua mi ão omenle aos pagãos. Por con e-
tação. a chamada ' nova perspectiva radical" (citada em inglê como "radical new gujnte. é preciso entender eu texto como dirigido a estes, e não a judeus; nada
per pective"). Boa parte do promotore de ta leitura de Paulo (não todo , porém) do texto de Paulo deveria afetar, poi , o modo de compreender o judaí mo de
provém de tradiçõe judajca (Krister tendahl, Lloyd Gaston, Peter J. Thom on. eu tempo, que, con oante e ta per pectiva, não oferece nenhum problema para
Mark D. Nano . Stanley K. Stowers, Pamela Ei enbaum). o que explica a ensibi- ele. De a maneira, Paulo aceitou sem problemas os judeus crente em Cristo,
lidade para corrigir os preconceitos mencionados e, como direi em seguida, talvez oh ervante da lei; eu problema era esclarecer o lugar do crentes em Cri to não
também a tendência a fazer leituras paulina condicionada por vi õe moderna judeu dentro de I rael.
do judaí mo (em e panhol e podem ler EI ENBA M, 2014, e EGOVIA, 2013).
E te ponto é o que apre enta mai dificuldades em uma leitura crítica de ta
O ponto de partida para compreender esta leitura é colocado, geralmente, em per pectiva, uma vez que Paulo parece enfatizar a adoção dos batizados como fi lhos
alguns textos de Paulo nos quais ele afuma categoricamente a vigência e a vai idade de Abraão (Gl 3) e o enxerto do ramo pagãos no tronco de Israel (Rm 11). 1 to
da Torá e nos quais valoriza a perspectiva judaica da aliança com grande apreço: obrigaria a uma reflexão profunda obre o alcance destas in1agens na cosmovisão
"Que vantagem há então em er judeu? E qual a utilidade da circuncisão? Muita e de Paulo: é po ível afirmar que Paulo não modificou o mecani mo de manuten-
de todo os ponto de vi ta. Em primeiro lugar, porque foi a ele que foram confiado ção na aliança para o judeus, quando a identidade de 1 rael é transformada tão
os oráculos de Deus" {Rm 3,1-2); "Então eJjmi namos a Lei através da fé? De modo profundamente (tornando os pagão filho de Abraão)? E ta perspectiva tende a
algum! Pelo contrário, a con olidamos" (Rm 3.31): "De modo que a Lei é anta e ignorar ou omitir aquele textos no quai Paulo fala da justificação pela fé: neles,
anlo, justo e bom é o preceito" (Rm 7,12); "São o israelitas, ao quais pertencem sistematicamente, Paulo rurige- e a judeus e pagãos: 'Agora, porém, independen-
a adoção filial, a glória, a aliança , a legi lação, o culto a promes a , ao quai temente da Lei, se manifestou a justiça de Deu , te temunhada pela Lei e pelos
pertencem o patriarcas, e do quais descende o Cristo, segundo a carne, que é, Profetas, ju tiça de Deus que opera pela fé em Jesu Cri to, em favor de todos o

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PR:NIJRA PAR!l ·Comochegamos até aqui? Como ler Paulo, hoje

que creem - pois não há diferença, visto que todos pecaram e todos estão privado para formar uma coleção de "textos completo de Paulo". Re peitar a ambiguidade
da glória de Deus" (Rm 3,21-22); "pois há um só Deus, que justificará os circun- (e. inclu ive. a arbitrariedade). que alguns ociólogos e historiadores explicaram
cisos pela fé e também os incircuncisos através da fé" (Rm 3,30). No pen amento como parle do carisma de certos líderes, é requi ito fundamental para evitar ana-
de Paulo, não parecem caber dois mecanismos de justificação ou dua aliança : cron ismos. exageros ou apologia suti .
circunci os e incircuncisos são justificados do mesmo modo. 4. Hierarquizar as afirmações, ideias e opçõe de Paulo. Talvez por uma
Em minha opinião, poder-se-iam fazer algumas considerações em torno leitura excessivamente apres ada ou preocupada com atualizar a cartas de Paulo,
destas três perspectivas em seu conjunto; cada uma, separadamente, contribuiu, às vezes com um interesse moralizador, tomaram- e as cartas de Paulo como um
por certo, para melhor conhecimento de Paulo, destacando aspectos de enorme compêndio de princípio apienciais, eclesiológicos ou político , descuidando-se
valor; por outro lado, porém, também mostram limitações que favoreceram visões o contexto literário e ócio-hi tórico no qual e encontravam. Em minha opinião,
parciais, distorcidas ou exageradas de alguns aspectos das cartas de Paulo. Talvez re ulta muito saudável lembrar que as cartas de Paulo são apenas uma parte (tal-
se possam extrair de tudo quanto foi dito até agora alguns critérios que permitam vez não a mais importante) de seu projeto messiânico; Paulo acre centava-lhes sua
ao leitor situar-se criticamente diante da tarefa de compreender o projeto de Paulo e presença pessoal, a de seus colaboradores enviados, o conhecimento em primeira
interpretar melhor seus textos. A seguir, enumero os seis critérios que me parecem mão da situação de seus destinatários. a estratégia dos lídere locais etc. em tudo
mais úteis para situar-se criticamente diante da história da intepretação de Paulo: o que Paulo diz em suas cartas tem o mesmo peso, nem tudo tem o mesmo valor:
1. Superar a oposição judaísmo-cristianismo. Este tem sido (e continua sendo) há afirmações imprescindíveis que servem de sustento a todo o arcabouço de seu
o ponto de partida e o horizonte em muitos estudos de Paulo: mostrar a distância pensamento e missão, assim como outras menores, muito limitadas a determinadas
entre judaísmo e cristianismo (o valor do segundo acima do primeiro) ou, com outras circunstâncias particulares ou que se chocam com aquelas, e que devemos matizar,
palavras, desligando Paulo de seu contexto original. É preciso rigor e respeito às e clarecer ou atualizar. Não devemos absolutizar o texto para compreender o projeto
fontes, evitando que os preconceitos (sejam eles indignos ou louváveis) condicionem e a missão de Paulo; é fundamental referi-lo a seu contexto e a sua vida.
o resultado. Devolver à Torá seu lugar no judaísmo do tempo de Paulo e apresentar 5. Situar os dados em uma visão teológica correta. As três perspectivas
uma visão rigorosa da chamada "História sagrada" são condições fundamentais que vimos {tradicional, nova e radical) convivem atualmente nos estudos sobre
para não forçar nossa compreensão de Paulo. Paulo; não é difícil encontrar representantes das três nas estantes de novidades
2. Situar Paulo em seu lugar. Os estudos recentes sobre a figura histórica de de livrarias especializadas. As três enquadram-se entre as abordagens teológicas
Jesus têm dado como resultado, entre outros, a recuperação do projeto histórico de que estudam Paulo procurando descobrir sua originalidade teológica, seja esta a
Jesus no marco do judaísmo de seu tempo, como um projeto de renovação intrajudaico "justificação pela fé", a "nova aliança", o "lugar da lei no novo Israel'', ou o ' vi-
(AGUIRRE et al., 2009). Nesse mesmo contexto, salvando as diferenças, devemos ver em Cristo". Como veremos posteriormente, não é fácil responder à pergunta
situar Paulo: seu projeto nasce como uma tentativa de renovar o judaísmo, de dar a acerca da "originalidade teológica" de Paulo, supondo-se que exista uma resposta
Israel toda a dimensão que adquire, aos olhos de Paulo, depois do acontecimento satisfatória para tal pergunta. Em todo caso, como desenvolverei nos capítulos
histórico de Jesus. subsequentes, creio que essa busca deve levar em conta a paradoxal centralidade
3. Aceitar a ambiguidade e imprecisão de Paulo. Um dos erros mais comuns da cruz, do Crucificado, ante outras imagens de Jesus (Fl 2,6-8) e, portanto, creio
na hora de estudar Paulo é querer fazer com que seu pensamento e seu projeto que se deve buscar a "novidade teológica" de Paulo na imagem de Deus que ele
sejam lógicos e coerentes conforme os parâmetros do pesquisador. No entanto, suas descobre na cruz (2Cor 3,12-4,6). A "teologia de Paulo", se se pode falar de tal
cartas não têm essa pretensão: são "cartas de situação", escritas a destinatários coisa, deve estar marcada pela centralidade da ' revelação" (apocalypsis) de Deus e
diferentes, em situações diversas, sem a ambição de que um dia fossem reunidas de sua atuação na história, que se explica como reconciliação gratuita (2Cor 5,19),

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PJlwap..1 M E· Como chegamos atêaqui? Como ler Paulo, hoje
não como reconciliação expiatória. e te me mo entido. dever- e-á entender seu cultura é mi lura de tradições e de que não existem cultura ou povo pw·o . O
projeto ele "con trução da ekk/,êsia" (!Cor 14,4), bem como a urgência e catológica ca o é que esta reflexões trouxeram uma conclu ão de concertante: a Bíblia foi
e sua cosmovi ão apocalíptica, que conferiram a e~ e projeto uma radical novidade utilizada como instrumento de colonização e de dominação; fora u ada como arma
ru tórica (Gl 3,28). ralaremo a re peito de tudo is o mai adiante. contra todo "pagani mo'', como ferramenta da "mi ão cri tã" que entendeu e ta
6. Recorrer a outra análi e (históricas, ociai ...), além da teológica. Uma mis ão, ao meno em parte, como contribuição à "civilização" do "Oriente".
leitura atualizada e justa de Paulo não pode limitar-se, como fazem preferente- Diante de te diagnóstico, urge a leitura pó -colonial que bu ca atingir
mente a três per pectiva dominantes hoje, ao aspecto teológico . É importante vário objetivo : em primeiro lugar, pretende de construir leitura , ideologias,
uperar as vi õe luteranas e antiluteranas, as perspectivas novas, tradicionais ou prática , ímbolos etc., dominante na cultura (talvez seja neces ário esclarecer
radicais que impeçam de cobrir outros aspecto igualmente importante de Paulo que "desconstruir" não é "destruir", mas desmontar cognitivamente os elementos
de Tarso. de sua mis ão, de ua maneira de er no mundo, de eu projeto, de seu que contribuíram para a aceitação acrítica daquelas ideologias, a fim de estudar
diálogo cultural, de ua forma de enfrentar problema cotidianos, de sua relação po ibilidades inéditas); em segundo lugar, lenta deslegitimar a relaçõe de
com o dinheiro, com a minorias ociai , com a natureza, com o poder e a autori- poder entre dominadores e dominado e, a im, tratar o dominado como ujei-
dade etc. Entre e tas novas abordagens, é oportuno destacar dua : a pó -colonial, Lo hi tórico , capaze de oferecer a própria voz ao proces os de con trução da
que inclui contribuiçõe da perspectiva de gênero ou da filosófica, e a abordagem ociedade; em terceiro lugar, procura rejeitar todos o dualismo ou "binari mo "
ociocienúfica, que inclui várias di ciplinas. Vejamos alguns traços. po sibilidades que estabelecem fronteiras artificiais entre o de dentro e o de fora, e resguardar
e limite de ambas as abordagen . a hibridação ou eja, defender as realidade múltiplas, complexas, que contêm
empre muitas outras possibilidades e virtualidades do que as que os instrumentos
1.l. Aabordagem pós-colonial de controle estabelecem; em quarto lugar, além dessas técnicas de deslegitimação
e de de con trução, de eja também oferecer e tratégias de libertação do povo
A abordagem pó -colonial itua-se no fim da época colonial e HO início de colonizado , favorecendo alianças entre grupo diferente ou opo to e reabilitando
uma reflexão que upere a consequências fatais que deixou na bistória. Acade- origen de legitimada ou marginalizada ; e em quinto lugar, à guisa de projeto
micamente, tem ua origem em uma obra já clás ica de Edward aid ( AID 1990; profilático, a pira a elaborar um discurso de resi tência contra todo imperiali mo.,
original inglês de 1978), na qual, baseando- e nos trabalho de Michel Foucault eja do passado (que deixou vesúgio no presente), eja do futuro. Todo estes
obre o poder, sua legitimação e a construção do "outro", mo trava como o Ocidente objetivo cri talizam frequentemente a criação de uma linguagem coerente com
elaborou uma imagem do "Oriente'' determinada pelo princípio de dominação (deve e te princípio que permita compreender adequadamente conceito e termos como
haver alguém que imponha ua autoridade e alguém que e submeta para que o ·'império' "raça" e "etnicidade", "diáspora ', "marginalidade ' ou "hibridação" ele.
equilíbrio e mantenha). Para uperar esta ideia da dependência, Homi Bhabha (cf. STA LEY, 2011).
elaborou. em 1985. um trabalho obre os mecanismo que determinam a relação No estudo sobre Paulo de Tarso, tal abordagem está sendo utilizada a
entre o colonizado e o colonizador, e mostrou que e ta relação não é omente de partir de duas perspectivas diferentes, ainda que não excludentes. A primeira
dominado e dominador, mas está marcada por três características: em primeiro lugar, busca recuperar as chaves paulinas de determinada posição diante do Império
a ambivalência ou eja, a relaçõe entre colonizado e colonizador são marcadas, Romano, ou seja, pergunta-se como Paulo agiu perante o Império e como resi tiu
imultaneamente, pela atração e pela repulsa, pela re i tência e pela cumplicida- (ou desafiou) às uas intenções de a imilá-lo culturalmente e como con eguiu
de; em segundo lugar, o mimeti mo, isto é, o colonizado tende a intemalizar e a manter uma identidade que abriu caminho ao oferecer uma alternativa que e pode
replicar a cultura do colonizador, mesmo que frequentemente inclua a zombaria; recuperar hoje. Esta primeira corrente tem em Richard Horsley seu representante
e, em terceiro lugar. a hibridação ou me tiçagem isto é, a convicção de que toda mais famo o (HORSLEY, 1997), embora po sarno citar também Dieter Georgi,
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PRLIW PAm • Como chegamos até aqui? Como ler Paulo, hoje

Helmut Koe ter. Elisabeht chü ler Fiorenza (e la última, por sua vez, faz uma maneira. concluem o eguidore de ta abordagem. nem Paulo d ixou o Império
leitura crítica desta perspectiva) etc. Todo eles, de um modo ou de outro, deixaram como o encontrou. nem vice-versa. E La perspectiva mai matizada evita projetar
em evidência a limitação do enfoque tradicionai ("perspectiva tradicional" ou em Paulo a imagem de um rebelde moderno ou a que o próprio exegeta quer dele.
"nova perspectiva") e pleitearam di tanciar- e do debate agostino-luterano. a fim que podem ser leitura utilmenle apologética de Paulo. para torná-lo atual e re-
de uperar o duali mo judaísmo-cri tiani mo que dominou a leitura teológica de levante. Entretanto. também mo tra que. combinando todo o fato de ubmi ão.
Paulo e deslocar o foco de atenção para o Império. De e modo. mo traram que aceitação. adaptação e con trução alternativa de e paço noro . o texto de Paulo
alguns conceito paulinos, estudados a partir do ponto de vi la exclu ivamente adquirem uma luz nova, que ilumina ituaçõe pa ada e pre ente .
teológico, mostram- e como empréstimos culturais que têm origem na teologia
imperial (Evangelho, cruz, salvação, senhorio, parúsia, ekklêsia etc.). 1.3. Aabordagem apartirdas ciências sociais
A segunda per pectiva as ume o objetivos da abordagem pós-colonial para Ao lado de ta perspectiva pó -colonial, go Laria de mencionar brevemente a
ituar- e em um contexto hermenêutico de comunidades atualmente marginalizada abordagem a partir das ciência ociai (antropologia cultural. ociologia. p icologia
ou que se encontram sob o poder colonizador, com o fito de oferecer resistência ao ocial etc.), vi to que produziu, como a anterior, notáveis fruto que ajudaram a
domínio cios novo impérios; em outras palavra , defende um deslocamento decidido captar melhor dua dimensõe das cartas de Pau lo.
a partir do enfoque hi tórico-crftico até o hermenêutico. O lema que orienta e ta De um lado, a abordagem a partir das ciência ociai mo lrou com mai cla-
interpretação poderia er este: para que Paulo seja libertador, é preci o libertá-lo reza o mundo social em que na ceram estes texto , bem como a inter-relação que seu
de seu enclau uramento na antidade (ELLIOTT, 1994). O melhor contexto para autores e leitor originai tinham com ele. A carta de Paulo foram crita como
ler Paulo é, portanto, o geopolítico, aquele que parte de determi nada realidade: o lexto de ituação. i to é, como respo Las concretas às circunstâncias de determinado
aumento da distância entre ricos e pobres, a guerras políticas (amiúde legitimadas de tinalários que vivem problemas e pecffico , que e faziam pergunta particu-
religiosamente), as políticas imperiali tas dos paf es podero os, as relações de poder lare , que tinham, enfi m, nece idade própria . Diante de a ituação particular.
e de dominação (de pes oas, pafse , culturas ele.). Portanto, esta abordagem lê PauJo cada carta de Paulo está de enhada para enfrentar tais neces idade . pergunta e
de construindo leituras coloniai , mostrando as interpretações que justificaram a problemas peculiare , e oferece respo la a e a ituação, e não a outra (ELLIOT,
opressão de determinado grupo humano e buscando estratégias de resistência 1995, p. 11-56). Para compreender e ta per pectiva, foram e pecialmenle útei o
aos novos impérios (SCOTT, 2003; original inglês de 1990). trabalho hi tórico e ociai que revelaram o contexto e as circun Lância no quai
No entanto, os teórico da abordagem pó -colonial (SUGIRTHA RAJAH, e iniciaram e e desenvolveram o grupo que Paulo formou em alguma cidade
da co ta norte do Mediterrâneo (THEI E l, 1985). Foram de utilidade e pecial
2009) ublinharam um aspecto que estas perspectivas mencionadas ocasionalmente
o estudos obre in tituiçõe e e !rutu ra do Império Romano (a ca a/família, a
esqueceram: a hibridação (ou me tiçagem). Tal como vimos antes, colonizados e
associações voluntárias, o culto mi térico . a organização da inagoga na diáspora,
colonizadores tendem a misturar suas visõe e legitimações, de modo que fica difícil
o culto ao imperador etc.), bem como o e tudo obre valore , prática e crença
estabelecer uma linha divisória. No caso de Paulo, i lo igni.fica que também ele teve
domi nante na área do Mediterrâneo (honra e vergonha, sacrifício , relação patrão
de compartilhar tal ambiguidade: nenhuma po tura nem opção de Paulo é somente
e cliente, personalidade corporativa ele.). Tudo i o permitiu interpretar a carta
anti-imperial e pró-imperial : dá-se uma combinação de re i tência e submissão {ou
de Paulo em seu contexto original e evitar a leitura anacrônicas (MEEK , 1988).
inculturação), um proce o de criação de uma identidade "intermediária" (lúbrida-
ção) que, no entanto, pode alterar o statu quo. Esta mestiçagem situa Paulo entre Por outro Lado, a abordagem das ciências ociai pennitiu compreender me-
a opre ão e a oportunidade (e aí se cria uma transformação mútua), permitindo lhor a função que tiveram as carta de Paulo (a sim como ua viagens e vi itas, o
que tanto colonizado quanto colonizador po am gerar novas realidades. De a envio de colaboradores, a coleta etc.) no proce o de con trução do mundo ocial a

32 33
P~MW ~ ·Como chegamos até aqui? Como ler Paulo, hoje

que pertencem o autor e os destinatários originais. Um dos objetivos da missão de 2. Como ler Paulo hoje
Paulo, quando não o mais importante do ponto de vista sociológico, foi elaborar uma
Diante deste panorama plural e complicado, cabe perguntar-no como
identidade coerente. unificada e satisfatória para aqueles que faziam parte dos grupo
podemos ler hoje os texto cuja paternidade paulina (real ou suposta) remonta ao
que criou; i to upôs um processo de desconstrução parcial das identidades passadas
primeiro século de nossa era, um tempo e um lugar que não no são absolutamente
e de construção de uma nova identidade que integrasse a pluralidade em uma visão
familiares. Todas as perspectivas e abordagens que vimos nas páginas anteriores
de conjunto coerente. Do mesmo modo que, hoje. se pode observar o processo de
oferecem pistas e dados úteis, assim como limitações. O leitor deve e colher uma
desmoronamento da identidade de pessoas em crise, que vivem conflitos de vários
perspectiva, um lugar hermenêutico, porque não se pode interpretar levando-se em
tipos, também acontecia (po to que de modo diferente) que muitos dos destinatários
conta todas as perspectivas. Esta pode ser a primeira consequência importante do
das cartas de Paulo tinham sua valorização pessoal e grupal sob séria ameaça, geran-
que foi dito até agora: todo leitor é responsável por e colher o ponto de vista sob o
do-se mecanismo de segregação e marginalização. Paulo não era ignorante de tudo
qual ler as cartas de Paulo. Geralmente, esta tarefa é feita inconscientemente, mas
isso, e se pode descobrir em suas cartas e tratégias de construção de identidades
empre se faz: todo exegeta, intérprete ou leitor adota um ponto de vista, um lugar
pessoais satisfatórias que buscavam elevar a própria valorização de cada indivíduo
a partir do qual interpretar Paulo; não se pode não fazer (e quem acredita não optar
(aos olhos de Deus e dos demais) e eliminar ten ões internas e externas, mitigar por nenhum lugar hermenêutico, que é totalmente objetivo, adota acriticamente o
confrontos, refazer relações mediante a proposta de uma identidade corporativa ponto de vista hegemônico em seu contexto). Por isso, ao longo da história, houve e
capaz de integrar a diferença em uma visão sublimada do grupo (ESLER, 2006). haverá tantas leituras diferentes de Paulo. Isto significa que só é válido um ponto
São duas perspectiva diferentes que o leitor atual pode adotar ao usar as de vista? Não o creio, tampouco. Contudo, este debate, geralmente em âmbitos
ciências ociais para interpretar os textos; ambas têm ferramentas e metodologias eclesiásticos e não limitado a Paulo, mas abrangendo toda a Bíblia, deu ensejo a
diversas, mas podem ser úteis na medida em que se ajustem ao objeto de estudo e acalorados confrontos e a poucas conclusões.
respeitem sua idiossincrasia. Uma das críticas que se têm feito a esta abordagem é Uma segunda consequência do que foi visto nas páginas anteriores é que
o perigo de projetar no texto esquemas mentais, teorias ou ideias próprias do intér- não há leituras inócuas; todas têm consequências, algumas mais que outras (e
prete moderno, que são alheais ao objeto de estudo. o entanto, o risco de forçar o mais profundas). Embora a objetividade do estudioso seja desejável acima de todo
texto para que se encaixe no modelo do intérprete é comum a todas as abordagens, posicionamento ideológico, sabemos que isto é impossível (PESCE, 2011, p. 25-29).
inclusive as mais tradicionais, como a teológica (que por vezes constrangeu o sentido Por isso, é crucial o ponto de vista que alguém adota, o horizonte hermenêutico em
dos textos de acordo com a visão teológica pessoal do intérprete) ou a literária (que que se situa; este exercício não está desprovido de responsabilidade ética. Não é a
fragmentou ou manipulou ocasionalmente as cartas para que se inserissem no mo- mesma coisa ler os textos paulinos a partir da comodidade de uma poltrona de um
delo de evolução de fontes e de tradições que se pressupõem nelas). Não obstante, gabinete de universidade ou de uma empresa, e lê-los no penoso solo de um campo
convém levar em conta este perigo, e o melhor modo de evitá-lo é interpretar as de refugiados ou sob a ameaça de condenação ou marginalização por ser diferente.
cartas de Paulo fazendo um esforço prévio para explicitar os pressupostos com os No primeiro caso, lê-se Paulo pensando que a explicação vai ser lida por colegas
quais são lidas, o lugar social e histórico a partir do qual são interpretadas, o ho- que examinarão a qualidade do texto, a exatidão da tenninologia, a amplitude das
rizonte hermenêutico e o objetivo ou fim a que tal leitura serve. Levando em conta citações e referências bibliográficas ou a justificação dos argumentos. Isto é per-
essa limitação, a abordagem das ciências sociais permitiu descobrir a importância feitamente legítimo e produz um tipo de resultado. No segundo caso, lê-se Paulo
atual de textos antigos que mostram uma grande capacidade de adaptação a um pensando que a explicação que se faz de seus textos vai ser lida por pes oas que
ambiente complexo, enquanto trazem a própria visão da realidade e sua proposta experimentaram o abuso e a opressão (legitimada, às vezes, com textos paulinos}
de um mundo melhor. e buscam libertar-se de estigmas e recuperar a dignidade e a identidade; ou por
34 35
PrMw m •Como dlegamos até aqull Corno Ier Paulo, hoje

pe soa que lutam pela ju Liça e que examinarào a po ibiliclade de ua carias Cri to. o que da ideia de ·eu valor como teslemunho do nascimenlo de alguma
para ~erem criativa e pensar noramente a realidacle buscando possibilida<les comunidades urbana no ocidente da Pale Lina. Excetuando-se a Carta ao Hebreu ,
inédita : ou por fiéi que bu cam um ro to crfrel de Deus. mesmo sabendo que a que ja ninguém considera paulina. a outra 13 se dividem em uma margem de
\'erdad ·empre e encontra mai além. Isto. tamhém. é perfeitamenle legftimo e aproximadamente 80 ano, da ~cgu inte maneira:
procluz outro tipo de re ultado.
Aqui é onde o leitor de Paulo. nâo somente o autor de te li' ro. ma: todo a. Carta origi nai de Paulo: rn . Cl, l Cor, 2Cor. Fl. Fm e Rm.
leitor de Paulo. lem uma pala\ ra inescapa,~et. uma respon~ abi l idade ética; cJe,e e crilas na década do ano cinquenta do primeiro século.
pergunlahe: quai .ào as con equências e efeito de minha leitura? Inclu·i,e o b. Carta ' deuleropaulinas: Cl. Ef e 211 • e cri ta na década do
exegeta ou hi toriadores mais receo o deste princfpio (em benefrcio da upo ta ano oitenta do primeiro século.
objetividade) lerào de reconhecer que sua interpretaçào de Paulo produz alguns c. Carta pa torai : 1Tm, 2Tm e Tt, e cri tas em algum momen-
resultado e efeito que convém avaliar. E le ponto. em minha opiniâo. é crucia l to da primeira metade do egundo éculo.
na exege e bfblica. porque erve como critério de discernimento. Uma boa leitura
eria a rea liu1da a partir de Dt 30.19: ·'Eu te propu a vida ou a morte, a bênçào 2. Nece idade de conlextua lizar. A cartas paulina (tanto a ong10a1
ou a maldiçào. E colhe, poi , a vida, para que vivas tu e a tua descendência''. a ' quanto as pseudoepfgrafas) forarn composta· para ser lidas (e cutada ) na circun -
pagina que e eguem. portanlo. vou combinar. da melhor maneira po fvel. uma tância hi t6ricas e sociai do de tinatario imediatos, e nlio por outro destinatario
aplicaçiio rigorosa da metodologia cnlica corn uma preocupaçào igualmente e:Ugente nào previ Los por PUS aulore . 1 Lo obriga o leitor atual a fazer um esforço para
corn as con equências de no sa leitura. recuperar aquela situaçào original e de cobrir a estratégia corn a quai querern
enirentar aquelas circun tância . " ituaçào" e "e tratégia"' sào dois conceito utei
Quanto à metodologia (a ferramenlas e di ciplina a erem utilizada ). para distinguir o dado que aparecem na cartas.
neste livro nào adotarei um ponto de vista doutrinaL ainda que legftimo; usarei
3. Teologia ern ituaçào. A carta originai de Paulo (em menor medida as
basicamente as perguntas e recurso conceituais do método hi t6rico-crflico e. ub-
deuteropaulinas e pastorai ). como dis emo . foram escritas em razâo de determi-
idiariamente. de outra disciplinas (sociologia. antropologia cultural. psicologia ...),
nadas circunstâncias hi t6ricas que podemo identificar corn baslante egurança.
incluindo a teol6gica. que no dara ferramentas para descobrir Lanto as imagens de
Paulo desenvoJve uas ideia teol6gicas conectando-as estreitamente corn e a
Deus que aparecem nas carias de Paulo quanlo a propo ta que Paulo faz ao leitor
circunstância . Longe de er um te61ogo i tematico (o que nào equivale a renun-
de eu tempo. Trata- e. porlanto. de urn ponto de vi ta aherto. que nilo pre ~upôe
ciar a uma busca de coer€ncia em seu pen amento). Paulo foi desenvolvendo uas
re ultado e que nào se fecha à propo ta que Paulo faz ao leitor.
respostas em relaçao dialélica corn ·eu ambienle. A ideias leol6gicas que nelas
f to e concret iza em uma éria de pressupo~ tos e opçôes metodol6gicas aparecem, portanto, niio cafram do céu. mas foram e formulando para aquelas
que estâo de de o começo deste livro su tentando-lhe as paginas, e que nilo po so circunstâncias. nâo para outra quaisquer.
explicar detalhadamenle agora, conquanto espere que e ju tifiquem na coerência
4. Uso das dência sociai e hi t6ricas, juntamente corn as teol6gica, .
do conjunlo. Fazem parte do que considero um crescente con en o em torno do
Para enfrenlar os desa fio colocados nos três pontas anteriores, ha um crescente
estudo de Paulo (que nunca é total e é. em algum ponto, inclu ive que tionado. mas,
consenso em torno da conveniência de combinar diversas disciplinas na exegese
no geral, cada vez mai aceito). Ern concreto, sâo cinco pressuposto :
das carias de Paulo. A leituras exclusivamente leol6gicas ou exdusivamente
1. Três geraçoes de cartas. 0 conjunto de catorze escrito atribufdo a Paulo literario-hjsL6ricas têm mai limitaçôes do que as perspectivas interdisciplinares
sào. na realidade, um corpus compo Io, ao longo de três geraçôes. de crenles em (mesmo que estas tenham, como dis emos antes. seus pr6prios problemas). Por
36 37
PRllW Pl.RlI ·Como chegamos até aqui?
Como ler Paulo, hoje
is o, mostra-se mais rico incorporar, com prudência e perspectiva crítica, as identidades até então excludentes. Assim, Paulo viu-se na necessidade de redefinir a
ferramentas e princípios das ciências sociais {antropologia cultural, p icologia identidade judaica incorporando o acontecimento histórico de Cristo, o que o levou a
social, sociologia, etc.) e históricas (história, arqueologia, papirologia etc.), além abrir-se culturalmente ao helenismo até certos limites nunca antes apresentados por
das literárias e teológicas. um judeu. Foi um projeto an1bicioso que não se circunscrevia às ideais religiosas,
S. Peso da tradição e das leituras de Paulo. Todo leitor, como dissemos, tem mas abarcava sua concepção do mundo, de Israel, do Império Romano, do futuro.
seus próprios pressupostos de leitura; no caso das imagens de Paulo, dada a sua das relações pessoais, do exercício da autoridade e da liberdade etc.
popularidade e importância na configuração do cristianismo do Ocidente, elas têm 3. Uma opção inicial marginal e minoritária. Este projeto foi , inicialmente,
um peso ainda maior. Além da imagem lucana (que aparece no livro dos Atos dos um projeto marginal no contexto do nascente movimento de seguidores de Jesus
Apóstolos), santo Agostinho, Lutero e uma ampla lista de intérpretes marcaram o (crentes em Cristo). Poucos seguidores de Jesus da primeira geração aceitaram e
imaginário dominante da figura de Paulo. As duas imagens de Paulo mais influen- apoiaram este ambicioso projeto de reformular Israel como o fez Paulo. No entanto.
tes e ainda presentes na arena das discussões acadêmicas e eclesiásticas (como com a ajuda de circunstâncias histórias alheias a este processo, paulatinamente foi
apontei nas páginas anteriores) são a de Paulo judeu e a de Paulo cristão. Neste ganhando adeptos até o ponto de converter-se, com as modificações que introduziram
livro assumimos um princípio {por outro lado, óbvio) ainda surpreendente para os discípulos de Paulo (os autores das cartas deuteropaulinas) e Lucas, no modelo
alguns: Paulo não foi cristão. Paulo foi judeu toda a sua vida; sua vocação o levou hegemônico do cristianismo emergente.
a viver uma forma de judaísmo diferente da que ele havia recebido e vivido, mas, 4. As consequências que teve sua compreensão particular do acontecimento
em sua opinião, um judaísmo mais radical (de raiz). O cristianismo como religião histórico de Jesus. o núcleo deste projeto está sua vocação e o significado que
se define muitos anos depois da morte de Paulo. Portanto, embora a missão e o Paulo lhe conferiu (a identidade daquele crucificado). o entanto, as necessárias
legado literário e teológico de Paulo tenham sido fundamentais para o nascimento consequências teológicas, históricas e sociais a que isso o levou obrigaram-no a
do cristianismo, seria um erro metodológico grave retroprojetar em Paulo a definição revisar profundamente grande parte de seus próprios pressupostos. Assim, como
da identidade cristã, que se alcançou mais tarde. O cristianismo, como indiquei, é veremos no capítulo terceiro, teve que redefinir o papel da Torá no passado, o que
muito mais resultado do fracasso do projeto histórico de Paulo. Para finalizar, quero provocou profundas repercussões no devir da tradição a que ele deu início. Mesmo
indicar quatro características que nos ajudam a situar Paulo no lugar que ocupa que seja um tema muito discutido, a relação da fé com a lei, reflexão iniciada por
nas origens do Cristianismo, a entender a que se deve sua importância e por que ele, continua sendo um ponto em torno do qual se têm acaloradas discussões e se
foi sempre objeto de tanta controvérsia e estudo. definem identidades excludentes.
1. A vocação. O acontecimento histórico da vida de Paulo que mais influen- Com isso concluímos nossa primeira etapa. Nos capítulos seguintes vamos
ciou no devir do cristianismo é, sem dúvida, o de sua vocação, tanto porque Lucas ver os temas centrais para entender a figura histórica de Paulo de Tarso: o aconte-
fez dele um relato memorável {At 9) quanto porque marcou biográfica, ideológica e cimento de sua vocação, sua cosmovisão (a visão de mundo que teve de formular
praticamente sua vida. No entanto, Paulo, diferentemente de Lucas, não fez deste a partir dela), o projeto que surgiu dali e, por último, a estratégia que adotou para
episódio um modelo de conversão; ele, que jamais descreve o fato, referiu-se às con- construir uma identidade de crente em Cristo coerente com sua própria experiência
sequências históricas e teológicas que teve para ele e para o judaísmo de seu tempo. e com o contexto no qual se encontrava.
2. O diálogo criativo entre helenismo, judaísmo e sua própria experiência de
ambos. Aquela experiência mencionada no tópico anterior foi o fator desencadeador Bibliografia
de uma reflexão que levou Paulo a reformular grande parte de seus próprios pressu-
AGUIRRE, Rafael; BERNABÉ UBIET~ Carmen; GIL ARBIOL, Carlos, ) eslis de Nazaret,
postos religiosos, culturais e históricos, obrigando-o a pôr em diálogo realidades e Verbo Divino, EsteUa, 2009.
38 39
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40 41
SEGU DA PARTE

Quais são os aspectos


centrais do tema?
Capítulo 2
Avocação de Paulo eaorigem
de sua vocação

Como indiquei na seção anterior, a vocação de Pau lo é. indubitavelmente, o


acontecimento de ua biografia que mais con equências Leve, não 6 em sua vida,
mas no devi r do grupos que ele criou. Dificilmente e pode exagerar o impacto
de te acontecimento no cri Liani mo na cente. Entretanto, onde melhor e entende
ua vocação não é no marco do cristianismo, mas no complexo entrelaçamento de
circunstâncias hi tórica em que aconteceu: um judeu fariseu aparece em cena para
Lentar anular a ameaça que outra corrente de judeu repre entaria para a identidade
comum e para o futuro de Israel. Esta outra corrente judia era um grupo heleni ta
(de língua grega) e mes iânico, porque acreditava que Jesu , crucificado por Pilatos,
era o Messias de lahweh, o Filho de Deu . A partir daí, este grupo propunha uma
érie de con equências que ameaçavam olapar o piJare da identidade judia, não
Lanto por eu caráter me iânico, ma por que tionar o valor de alguma de suas
in tituiçõe . e diluir a fronteiras étnica de Israel.
Apre enLarei a vocação de Paulo ne ta circun tância hi Lóricas; para isso.
veremo , em primeiro lugar, a característica do judaí mo de Paulo e, em egundo
lugar, a do judaí mo dos helenistas me siânicos. Isso no permitirá imaginar o
cenário em que acontece a vocação de Paulo e poderemo , em terceiro lugar, ex-
plicar o ignificado e as con equência que teve para a vida de Paulo e para eu
projeto de renovação de Tsrael.

1. Ojudaísmo de Paulo
Paulo declara- e fariseu em uma pas agem polêmica da Carta aos Filipen-
es (Fl 3.5). AJgun e peciali tas con ideram que FJ 3.1-4.1 é um texto posterior.
acrescentado depoi da morte de Paulo; e assim for, sua identificação com um

45
S!aD l'ARrE • Quais são os aspectos centrais do tema? Avocação de Pauloeaorigem de sua vocação

fariseu perderia parte de eu fundamento, dado que, além dis o, alguns duvidam identidade judaica no período de Paulo: a aliança a justiça e a misericórdia são
da presença de fari eus na diáspora ( IDAL, 2007, p. 38). Entretanto, também dons que Deus concede a cada membro de seu povo, inclusive, antes de nascer;
Flávio Josefo. judeu originário da Galileia, de envolveu sua vida fora da Palestina dons, portanto, independentes de suas obras. A este respeito, podem-se ler textos
e se declara fari eu (FLÁVIO JOSEFO, Autobiografia, p. 2) mo trando que era rabínicos e es ênios muito ilu trativo , corno o citado no capítulo anterior (leia-se
po sível identificar- e como tal na diá pora. O problema é, em minha opinião, o também: GARCf A MARTÍNEZ, 2000, p. 355-397).
alcance que e dá à pertença ao partido fariseu, seja a de Flávio Josefo, seja a de 3. A resposta que se esperava de todo judeu crente era a aceitação, a incor-
Paulo. Se e considera o farisaísmo deles no sentido de que haviam realizado todas poração voluntária e comprometida na dinâmica da aliança mediante o cumpri-
as prova de admi ão (que requeriam aproximadamente três anos) e se haviam mento da vontade de Deus expressa na Torá. Todo o partidos desejavam espaço
filiado para erem "membro efetivos" do partido fariseu , dever-se-ia dizer que não para a liberdade (uns com mais ênfase do que outros, inclusive o es ênio, o mais
o eran1; e, ao contrário. entende-se o farisaísmo deles como uma afinidade. urna "determinista"). Portanto, a parte prática que assumia todo judeu neste programa
sintonia ou uma atração pela cosmovisão e pela forma de viver dos fariseus, então de restauração da identidade judia era o apreço ao valor da lei, o cuidado pelo
não há maiores dificuldades (isto é o que. de fato, sugere a frase original de Flávio cumprimento rigoroso de todos o aspectos concretos que determinavam a vida
lo efo: ' Fiz-me eguidor do partido fariseu"). Com efeito, a maioria dos judeu do de um judeu; tudo isso como resposta à eleição gratuita de Deus. O cumprimento
tempo se sentia vagamente vinculada a um partido ou outro, sem necessariamente da lei não obtinha nada que o judeu já não tivesse ganhado: era sua decisão livre
entrar nas fileiras de nenhum deles. Em grande parte, o farisaísmo nesse tempo manter-se no povo da aliança.
compartilhava as práticas e as crenças mais importantes com os judeu de outro
4. Até os judeus mais piedoso e esforçados cometiam tran gressões; al-
partido ; e tas características comuns faziam do judaísmo, apesar de sua grande
gumas involuntárias, outras voluntárias (a diferença entre elas não é muito clara,
pluralidade, uma realidade reconhecível (é o que alguns têm chamado "judaísmo
mas recebem tratamentos diferentes na Torá). No entanto, essas transgressões
comum"; cf. SA DERS, 1977, p. 419-428; COLLINS, 2000, p. 62-63 e 273-275).
não afastavam para sempre o judeu do povo (salvo em casos excepcionais); se se
Além destas particularidades comuns que apresentarei em eguida, os fari eus
arrependia e oferecia os sacrifícios requeridos como sinal de que aceitava de novo
distinguiam-se por um apreço à "Torá oral ', ou eja, "a tradições dos pais' que,
a oferta incansável de Deus para permanecer na aliança, voltava a recuperar a
embora não estivessem contidas explicitamente na lei escrita de Moisés, vinham
santidade e a justiça originais que Deus lhe havia conhecido. Consequentemente,
sendo cultivadas como um modo de fortalecer a santidade do povo, a pureza do
a lei contemplava a possibilidade da transgressão e oferecia mecanismos possíveis
templo e os sacrifícios, e a eparação dos judeus (MEIER, 2003, p. 303-348).
e viáveis para a reintegração sem perda de privilégios.
Por conseguinte, as características do judaísmo que Paulo partilha com a
5. Tudo o que foi dito tinha um marco de compreensão determinado: nesse
maioria de seus contemporâneos podem er resumidas em seis:
tempo se havia estendido extraordinariamente certa expectativa diante da possível
1. Já havia algum tempo, o judaísmo vinha sofrendo uma crise de identidade intervenção definitiva de lahweh para fazer justiça quanto à corrupção e à iniqui-
devido ao proces o de helenização iniciado com a conquista de Alexandre Magno e dade reinantes e para mudar definitivamente o curso da hi tória (diretamente ou
intensificado por Antíoco IV Epífanes. Muito judeus viviam a dominação romana, através de um messias). Esta visão apocalíptica se havia generalizado e integrado
e os problemas derivados dela, como uma consequência dessa crise de identidade. com a obediência à lei, de modo que o cumprimento da Torá não apenas mantinha
2. Movimento piedosos (como o fariseu, talvez o mais popular) pretendiam o judeu no povo da aliança durante sua vida, mas, além disso, assegurava-lhe uma
superar es a crise mediante o fortalecimento da aliança, a oferta que Deu , por salvação na vida para além da morte, como se percebe no Segundo Livro de Baruc
pura iniciativa de sua liberdade, havia concedido ao povo de Israel como sinal de ou no Quarto Livro de Esdras (BOER, 2013). Esta inovação (não aceita igualmente
sua graça e misericórd ia. Este aspecto é, provavelmente, o rnai importante da por todos) generaliwu a ideia do juízo final como o mecanismo que determinaria

46 47
S!QJICI. MI • Quais são os aspectos centrais do tema 1 Avocaçãode Pauloeaorigem de sua vocação

quem eriam o fiéi a obter o prêmio eterno anunciado por Deu : o que haviam zelo por parte de Paulo (ou e eram todas ela juntas). Atrevo-me a ugerir, pelo
cumprido ua vontade expre sa na lei (o tran rrre ores eriam castigado com conjunto do que abemo a re peito dele em uas cartas e por ua provável impatia
uma condenação eterna). com o partido Cari eu. que era o valor central da Torá (oral e e crita). Para ele. o
6. Por fim. a aliança que Deu oferecia tinha como objeto exclu ivamente o cumprimento da lei tinha um duplo sentido: de um lado, era o inal da identidade
povo de 1 rael. o entanto. e te. por ua vez, devia converter- e em farol que atrairia judia e do status que o povo de I rael ti nha no plano de Deu : de outro. tinha um
todas a naçõe para que reconhece em Lahweh e começa em a fazer parte do papel alvífico no momento final da hi tória, quando e julgarão a todo em função
único povo no final dos tempo . A atividade pro eliti la do judaí mo da diáspora de ua fidelidade a ela. Como veremo . dificilmente e pode explicar a ansiedade
no tempo de Paulo dá conta da importância de te a pecto mis ionário, po to que de Paulo para expor o novo status da Torá depoi de ua vocação, e aquela não
nem todo o judeu o aceitas em com a me ma cordialidade, de modo que havia tive e já. antes desta. um pe o "exagerado".
grupo mai ectário e exclusivi ta que outro .
A imagem de Deus e da hi tória da alvação que e depreende desta visão é 2. Os judeus messiânicos (helenistas) de Damasco
a de um Deu ju to. De de o início da hi tória, Deu decide criar o mundo gratui- oltemo o olhar agora para Jeru além. ano 30 d.C. Pouco tempo depoi da
tamente, por ua mi ericórdia, e faz um mundo '·muito bom" (Gn 1.31). Contudo. morte de Je us. eu di cípulo voltaram a reunir- e na Cidade anta com a certeza
a pe oa criada de obedece a eu criador e. em eu afã por alcançar o lugar de de que ua morte não havia acabado em fraca o. porque Deu o havia res u citado.
lahweh ( er como Deu ). finda matando eu próprio irmão (Gn 3-4). Para e\ritar que dando início. a im. ao momento final da hi tória tão esperado por todo o judeu :
o homen e matem entre i, Deu , de novo movido por ua mi ericórdia, liberta o juízo final iniciar- e-ia em breve. E judeu eguidore de Je u eram galileu
o homem da e cravidão (Ex 15) e Lhe oferece a Torá com a qual o orienta para em ua maioria, de língua aramaica, como Je u . Propu eram- e. poi , congregar
evitar a morte (Ex 20). Todavia. mai uma vez a pessoa e rebela contra lahweh e em Jeru além o maior número de judeu que tive sem aceitado a men agem de
decide fabricar-'e um deus à ua imagem e emelhança (Ex 32) provocando a ira Je u ou que cre em que Deu o havia reivindicado, entronizando-o no lugar a
de Iahweh. Deu , porém, por ua mi ericórdia. oferece a eu povo a po ibilidade partir do qual haveria de julgar toda as naçõ . E a urgência e inten idade não
de voltar à aliança mediante o arrependimento e o sacriffcio (Lv 16). Nenhuma e limitaram ao judeu de língua aramaica. Havia em Jerusalém, tan1bém, judeu
outra avaliação de ta hi tória é compatível enão a da ju Liça de Deu : Deu e teve vindo da diá pora que fa lavam grego e ti nham, por i o. ua própria inagogas
continuamente cuidando e conduzindo eu povo. onde e reuniam. E te tinham vindo eja para celebrar a Pá coa. eja para oferecer
E la apre entação. nece ariamente e quemática e impli1icada, pode er- ·acrifício no templo. eja para pa sa r eu últ imo dias e er enterrado al i. l ão
vir-no para fazermo uma ideia do judaí mo que Paulo compartilhava com a maior é difícil imaginar algum encontro entre un e outro que faria e palhar a notícia
parte do demai judeus. Nem todas a caracter( tica tinham o mesmo valor para de de o judeus de língua aramaica até o de língua grega. Luca narra-o de modo
todo o judeu ; inclu ive. algumas delas eram praticamente ignoradas por algun fantástico. quando relata que certas chama de fogo e pousaram obre o Doze. e
grupo , que as uh tituiam por outras. O judaf mo do tempo de Paulo era. como o e te começaram a falar em línguas diferente , de modo que "cada qual o ouvia
é hoje, muito plural. No entanto, ape ardi o, podemo pen ar que Paulo afirmava, falar em eu próprio idioma.. (At 2.1-13). Trata-se. obviamente, de um texto teológico
ainda que com matizes. esses sei grande princípio que con tituíam sua identidade que quer re ponder à penru nta obre como a notícia de Jesus pas ou de um grupo
como judeu. É provável que defende e algun dele com maior zelo, vi to que afu- a outro. Ore ultado, em todo caso foi que, dentre o judeu vindo da diá pora,
ma que era e pecialmente "zelo o pela tradiçõe paternas", que era '·exagerado.., urgiu um grupo de crentes em Je u Mes ias (Christos, em grego), ou eja, que
·· uperando e levando vantagem sobre muito · compatriota " (Gl 1,13-14; cf. Fl 3.6; acreditaram que o projeto de Jesu de renovação judaica era o de Deu e que, por
At 9,1-2). Fica difícil determinar qual de as caracterf tica era objeto de maior i o, o havia re u citado e a entado à ua direita.
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SrQn PAB!l • Quais são os aspectos centrais do tema? AVO<ação de Paulo eaorigem de sua YOGJção

Os dados que remontam a este grupo aparecem coligidos, com matizes, tiveram conhecimento dele ("Pelo seu conhecimento, o justo, meu Servo justificará
nos capítulos de seis a onze do Livro dos Atos. Lucas compendiou recordações a muitos ...", Is 53,11), a esperança de Isaías (Is 2,1-2; 56,8; 60,1-4 etc.) de uma
destes judeus messiânicos (que vamos chamar "helenistas", tal como os denomina abertura da salvação a todos os povos se tomava realidade em o pré-requisito de
Lucas em At 6,1) e os incorporou em seu relato, mesclando-os com as lembranças um cumprimento prévio da lei. Em tal caso, que papel tinha a Torá, cuja função
dos de língua aramaica (que Lucas chama "hebreus" em At 6,1). Depois de um havia sido conservar na aliança os membros de Israel, se esta alianç.a parece que
trabalho crítico com estas fontes, podemos recuperar as características mais im- se abre a todos os que aceitam o Messias crucificado?
portantes dos helenistas e trazer em grandes linhas sua evolução e desenvolvimento
A interpretação da paixão e morte de Jesus a partir da perspectiva do servo
(SCHENKE, 1999).
de Isaías tinha resultado em uma série de consequências inesperadas e surpreen-
Sua história começa emJerusalém, assistindo as sinagogas dos demais judeus dentes, que estavam em conexão com a ideia de que o final estava se aproximando:
vindos da diáspora, aos quais, provavelmente, queriam tornar participantes de sua Deus, perante o final iminente, oferecia um modo de justificação (e, com o passar do
boa notícia: que Deus havia enviado o Messias para anunciar o fim iminente e o tempo, de salvação) universal. Esses judeus helenistas crentes em Jesus não viram
havia feito, como havia anunciado Isaías, na forma do servo sofredor (Is 52- 53). Esta esta situação como uma mudança de sua identidade, mas como uma possibilidade
identificação entre o messias (Filho de Deus: cf. SI 2,7; 2Sm 7,12-16) e o servo ou de abertura do judaísmo a todos os povos; viram sua identidade judia sob o prisma
o justo que é rejeitado já aparecia em textos veterotestamentários (cf. Sb 2,12-20; do momento escatológico inaugurado por Jesus: o final que se aproximava havia
3,1-12; 5,1-5; Zc 12,8-11; SI 69,25-27 etc.) e nos da comunidade de Qumrã (4Q491 feito Deus mudar as regras do jogo, introduzindo um "manto" sob o qual se podiam
frag. 11 col. l); posteriormente, terá eco em um texto tardio do rabinismo (Pesikta acolher muitos. Perante esse final, os privilégios de Israel eram postos em dúvida.
Rabba 36-37), que reflete a ideia de um messias sofredor que assume sobre si os
Não é difícil de imaginar a reação da maioria dos judeus (tanto fiéis e piedosos
pecados de Israel e se deixa enviar ao mundo (HENGEL, 1978, p. 99; KNOHL,
quanto judeus normais, identificados com seus costumes). De fato, parece muito
2004, p. 25-46). É possível que a identificação de Jesus com o servo de Isaías
provável que os problemas começaram, precisamente, entre os outros helenistas que
não seja algo original dos helenistas; talvez naquele encontro com os hebreus já
haviam acorrido a Jerusalém em razão de sua particular devoção ao templo (cf. At
lhes tenha sido sugerida a identificação da história de Jesus com a daquela figura
6,8-9; 9,29), aqueles que não tinham chegado a tal questionamento do tempo ou
profética. No entanto, foram os helenistas que aproveitaram teologicamente este
da lei; estes veriam sua piedade e identidade seriamente comprometidas. Tampouco
modelo para desenvolver sua fé em Jesus em uma linha que os hebreus não haviam
é difícil imaginar a reação de Paulo; dele temos dito que provavelmente dava um
feito (cf. At 8,26-40).
peso especial à Torá; para ele, era um traço da identidade judaica e do status que
As consequências teológicas de ler a paixão e a morte de Jesus através destes tinha o povo de Israel no plano de Deus, e possuía um papel salvífico no momento
cristais (Is 53,3-11) podem ser resumidas da seguinte maneira: se, efetivamente, final da história, quando se julgariam a todos em função de sua fidelidade à lei.
a morte de Jesus na cruz (a quem consideravam desprezado por Deus, segundo a O que diziam os judeus helenistas crentes em Cristo entrava em colisão direta
interpretação de Dt 21,22-23), suas feridas e humilhações foram o castigo que os com os pilares sobre os quais muitos outros judeus se apoiavam, e as reações não
judeus pecadores mereciam (todos o haviam sido, em algum momento), já não havia se fizeram esperar: desencadeou-se uma perseguição contra esses helenistas que
por que esperar castigo algum de Deus no juízo final que se aproximava. Ainda mais, provavelmente vitimou alguma vida (Lucas narra a lapidação de Estêvão por esta
se a paixão e morte de Jesus na cruz serviam aos mesmos fins que os sacrifícios no razão: At 7,1-60) e que obrigou esse grupo judaico de crentes em Jesus a fugir de
templo, que missão teria, pois, o templo, cuja função religiosa fundamental tinha Jerusalém para as cidades da costa e do norte (Jope, Cesareia, Damasco, Antioquia
sido oferecer sacrifícios para o perdão dos pecados? Além disso: se na paixão e etc.). Não foi uma hostilidade por causa da fé no Messias Jesus, pois os judeus de
morte de Jesus, Deus estava revelando sua vontade de justificar a todos aqueles que língua aramaica, crentes em Jesus (os "hebreus" que mencionamos) continuaram a
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~ PMlt • Quais são os aspectos centrais do tema? Avocação de Paulo eaorigem de sua vocação

viver emJeru além em e a opo ição durante ba lantes ano : foi sim uma rivalidade certeza da ressurreição de Je u . mas no movemo em terreno muito incerto. Há uma
em razão das con equência que aquele judeu crente em Je us tiravam de ua dimensão inacessível que devemo reconhecer e re peitar a fim de evitar afirmações
fé nele. E le acontecimento, de fato, dividiu o crente em Cri lo em doi grupo : anacrônicas, etnocêntricas ou racionalistas ( HANTZ, 2009). Portanto. vamos
o heleni ta e o hebreus, o quai . além da língua. e diferençavam principal- concentrar-no na análi e do dado que temo , levando em conta que o encontro
mente por uma interpretação diferente das con equência teológicas e práticas do com o helenista não se reduz a choque pontuai e e porádicos: o acontecimento
acontecimento hi tórico de Je u . de Damasco prolongar-se-á durante uns três anos, tempo que Paulo pa ou com os
heleni tas ante de dirigir- e para Tar o (cf. GI 1,17-18). Tudo o que e egue quer
3. Encontro de Paulo com os helenistas de Damasco explicar, pois. um longo proces o, complexo e cheio de matizes.
A vezes, o silêncio ão mais eloquentes do que a palavras. O encontro
Do ponto de vi la hi Lórico, Paulo aparece em cena a caminho de Dama co.
dialético de Paulo com o heleni ta , deixando de Lado a violência que teria gerado
E te dado, diferentemente de outros que Luca oferece. e lá confirmado pelo
não e concentrou na validade ou invalidade da Torá, nem em ua função no tempo
le lemunhos que Paulo dá em suas cartas (Gl 1,17: 2Cor 11.32: cf. At 9,1-2). E é
fi nal que se aproximava, vi to que Paulo, ano depois. ainda continua a mo lrar
um dado ignificativo porque permite ituar Paulo. como di emo , em um contexto
apreço e valor pela lei, inexplicávei se o helenista o tive em convencido da
preci o: Dama co, ano trinta do primeiro éculo, onde aparecem algun heleni -
ubstiluição da Torá por Cri to. A im, em fins do ano cinquenta, afirma: ··A Lei
la fugido de Jeru além pela ho tilidade mencionada (Al 9,10-25). Paulo, zelo o
é anta, e anlo, justo e bom é o preceito" (Rm 7,12). Paulo teve de demon trar
defen or da "tradições paternas" (GI 1.13-14). viu nes e grupo uma ameaça ao
toda a sua capacidade exegética e teológica nas carta aos gálatas e ao romano ,
pilares de ua própria identidade judaica e, provavelmente, um de afio para todo o
judaf mo tal como o entendia a maioria; era nece sário re i Lir-lhe. Embora Luca mediante argumento muito bem elaborado e cuidado , para convencer( e) de que
enfatize a parte violenta da estratégia (At 8.1-3), devemo dar mai valor ao de ejo a Torá continua a ter o me mo valor de sempre. só que este era diferente de como
de Paulo de "desmantelar", "de organizar'', '·de truir" (portheô em Gl 1,13.23) e te se interpretava tradicionalmente, e de como ele mesmo havia interpretado. Ape ar
grupo. desfazendo o argumentos obre o quais se apoiava. mais do que castigando de, no próximo capítulo, devermo deter-no obre e te a sunto, ju tificando-o com
com violência. A aparição de Paulo em Dama co deve e lar relacionada. poi , a mais detalhes. vale recordar agora que, muito ano mai tarde. Paulo ainda defende
uma e tratégia que bu cava extirpar e desfazer um tumor no corpo do judaísmo. com força a vigência da Torá e dos demais dons de Deus a Israel (Rm 9,3-5). l to
ugere que o encontro de Dama co tran correu por outro rumo .
Nada resta daquele encontro que leve ignificado vocacional: nenhuma crôni-
ca nem relato confiável (At 9 é uma reconstrução teológica ba eada em um modelo O que não é um silêncio, mas um clamor em todas as sua cartas, é a cen-
grego muito difu o que se pode ver em 2Mc 3); nem sequer as alu õe do próprio tralidade que alcançou a cruz para referir- e ao impacto de Jesu em sua vocação.
Paulo permitem recon truir o fato (cf. Gl 1,15-16; Fl 3,4-12: l Cor 15,3-10). visto Paulo deve ter ficado profundamente impres ionado pelo descobrimento da cruz de
que ão referência polêmicas e apologética contra eu oponente , mai centrada Jesus, uma vez que fez dele o centro de ua men agem: "Poi não foi para batizar
no enlido teológico do que no fato . Por outro lado, nenhuma abordagem histórica que Cri to me env:iou, mas para anunciar o Evangelho, em recorrer à abedoria da
pode dar conta da experiência pe soal ubjetiva. nem do entido religio o que uma linguagem, a fim de que não e torne inútil a cruz de Cri to. Com efeito, a linguagem
pes oa como Paulo pôde dar a uma experiência de caráter espiritual. Paulo recorre da cruz é loucura para aquele que e perdem, mas para aqueles que e alvam, para
a lermo genérico ("revelação··, em GI 1,16; "aparição", em lCor 15,8 etc.): even- nós, é poder de Deus" (lCor 1,17-18); "nós. porém, anunciamos Cristo crucificado.
tualmente, apela a experiências espirituai (como a referida em 2Cor 12,1-10) que que para o judeus é e cândalo, para o gentio é Loucura" {l Cor 1.23); "Eu me mo,
alguém hoje poderia catalogar como um estado alterado de con ciência, ma que quando fui ter convo co, irmão , não me apresentei com o pre tígio da palavra ou
não ajuda para no a interpretação. É po ível identificar e a experiência com a da sabedoria para vos anunciar o mistério de Deu . Pois não qui saber outra coi a
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SEwNn.I PArn ·Quais são os aspectos centrais do tema? Avocação de Paulo eaorigem de sua YOG1ção

entre vós a não er Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado'' (lCor 2,1-2); 'Ógálata finalmente, é que impôs a identidade do Crucificado segundo os helenistas: aquele
insensatos, quem vos fascinou, a vós ante cujos olhos foi desenhada a imagem de a quem Paulo considerava um maldito de Deus era, de fato, o Messias de Deus (o
Jesus Cristo crucificado?" (Gl 3,1); ' Cristo estaria assim dividido? Paulo teria sido messias, rei, era considerado filho de Deus: cf. SI 2,7; 110,1-4; 2Sm 7,12-14), fazia
crucificado em vosso favor?" (lCor 1,13); 'Quanto a mim, não aconteça gloriar-me parte do plano de salvação de Deus e constituía um acontecimento de tal envergadura
senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado que anunciava o fim da história. Esta visão do Crucificado é fundamental porque
para mim e eu para o mundo" (Gl 6,14; leia-se também: lCor 2,8; 2Cor 13,4; Gl legitimava, a partir do âmago de tradições judaicas inquestionáveis, a identificação
5,24 etc.). Demonstra-se esmagador o peso que Paulo concedeu ao acontecimento de Jesus com o messias, apesar (ou precisamente por causa) da cruz.
da morte de Jesus na cruz, sobre a qual houve a reivindicação de Deus, suares- Para entender por que Paulo deu este passo e aceitou a identificação do
surreição e sua entronização como juiz. Estas últimas certezas são assumidas por Crucificado com a do justo sofredor que a sume nossos pecados (não obstante
Paulo como condição prévia (talvez como parte de uma experiência espiritual) que todas as suas resistências iniciais justificadas em Dt 21,22-23), é útil recorrer a
o obrigou a fixar-se no que parece a origem de tudo isso: o acontecimento da cruz. um testemunho seu que nos revela um dado importante. Em Rm 7,7-25, Paulo faz
Esta conclusão é confirmada pelo perfil dos helenistas de Damasco. A respeito uma descrição ambígua (inclusive crflica) que podemos entender como uma refle-
deles, dissemos que baseavam seu questionamento do tempo e da lei no significado xão obre a condição humana, corroborada por sua própria experiência (PENNA,
teológico da morte de Jesus na cruz; para eles, o significado desta morte mudou os 2013, p. 549-559):
parâmetros a partir dos quais se compreendia a identidade judaica. Tudo aponta
para a centralidade da cruz e seu significado. Que diremos, então? Que a Lei é pecado? De modo algum! Entretanto, eu não co-
Portanto, é plausível e coerente com as fontes afirmar que o encontro com os nheci o pecado senão através da Lei, pois eu não teria conhecido a concupiscência
helenistas de Damasco, para além de choques violentos e de experiências místicas, se a Lei não tivesse dito: Não cobiçarás. Mas o pecado, aproveitando da situação,
leve como centro o descobrimento do significado da cruz de Jesus por parte de Paulo. através do preceito engendrou em mim toda espécie de concupiscência: pois, sem
Talvez "de cobrimento" não seja o melhor termo, porque sugere um esforço de bu ca a Lei, o pecado está morto. Outrora eu vivia sem Lei; mas, sobrevindo o preceito,
ou pesquisa que Paulo não reconhece; ele fala de "revelação" (Gl 1,16; lCor 2,10; o pecado reviveu e eu morri ... (Rm 7,1-10).
Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte? (Rm 7,24).
2Cor 12,1), o que insinua algo preferentemente inesperado ou surpreendente, ou
tudo isso junto. No capítulo seguinte explicarei com mais pormenores este ponto.
Este texto não fala do Messias Jesus nem do significado de sua morte; fala
Portanto, o acontecimento de Damasco foi, para Paulo, uma revelação {que exigiu
da experiência pessoal de qualquer judeu (também de Paulo) que descobre o que
uns três anos, como dissemos, para ser ' digerida"}, cujo conteúdo estava centrado pode ou não pode fazer o cumprimento da lei no horizonte da salvação. A fonte deste
no significado da morte de Jesus na cruz. conhecimento não é sua vocação, mas a experiência de cumprimento e descumpri-
O encontro entre Paulo e o helenistas de Damasco foi um debate claramente mento da própria lei ("Entretanto, eu não conheci o pecado senão através da Lei ... ',
intrajudaico. Tratava-se de esclarecer se aquele crucificado, executado com a co- Rm 7,7). Paulo, sem dúvida, tornou-se consciente desta experiência depois de sua
nivência das autoridades judaicas e romanas, era um maldito de Deus, como dizia vocação, quando tinha uma ideia de conjunto mais clara. Ora, se no final de sua
a Torá (Dt 21,22-23: "Se um homem, culpado de um crime que merece a pena de vida (Paulo escreve a Carta aos Romanos em fins dos anos cinquenta do primeiro
morte, é morto e suspenso a uma árvore, seu cadáver não poderá permanecer na éculo) lhe é tão claro que a fonte deste conhecimento é a experiência do que a lei,
árvore à noite; tu o sepultarás no mesmo dia, pois o que for suspenso é um maldito tal como ele entendia seu cumprimento, pode ou não pode fazer, indubitavelmente
de Deus") ou o mes ias humilde, ervo de Iahweh segundo outras tradições judai- está falando de sua própria experiência, antes e depois de sua vocação, mesmo que
cas (Is 53; Sb 2,12-20; 3,1-12; 5,1-15 etc., citados anteriormente). A "revelação", esta seja inconsciente.

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SEG.ta Pl.RII ·Quais são os aspectos centrais do tema?
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º
que e te texto no confirma é que Paulo era um e forçado cumpridor Com esta experiência de fundo. pode- e entender melhor por que a identi-
da lei, à qual dá valor e reconhece em nenhum ob táculo (cf. GI 1.13-14; cf. Fl ficação hi tórica do ervo ofredor de I aía com aquele crucificado (cf. Lc 14,27)
3,6). Para ele. a lei tem wn fim bom: alvar o homem de ua tendência ao mal. cau ou nele um efeito tão contundente: abriu-lhe o olho {cf. At 9.18). de cerrou
à morte; ma faJha. não porque a lei eja má, ma porque e mo tra impotente o véu que lhe ocultava a vi ão (cf. 2Cor 3.12-18), mo trou-llie a verdade de i me -
conlra uma força maior do que ela. ..a lei do pecado··, como veremo com mai mo (cf. Fl 3.12), a identidade do Crucificado (cf. Gl 1,16) e, principalmente. como
detal he no próximo capítulo. Paulo u a um exemplo contundente: o último do veremo no próximo capítulo, de Deu (cf. FI 2.6: 2Co 4,4).
mandamento (cf. Ex 20.17: " ão cobiçará a ca a do teu próximo. Não cobi-
Podemo imaginar-no , agora. com mai clareza, o efeito que Leve para Paulo
çará a mulher de teu próximo. nem o eu e cravo. nem a tua e crava, nem o
a identificação do ervo ofredor, de crito em I 53,3-111, com Je u crucificado:
eu boi, nem o eu jumento. nem coi a alguma que pertença a teu próximo''). A
cobiça (epizimia) era interpretada com radica lidade por algun judeu , entre o
Era de prezado e abandonado pelo homen . um homem ujeito à dor, familiarizado
quai e encontram o eguidore de Je u da Judeia. como e pode apreciar na
com a enfermidade, como uma pessoa de quem todo escondem oro to: desprezado,
egunda da antíte e que e la tradição põe na boca de Je u {cf. ML5.27-28).
não fazíamo caso nenhum dele. E, no entanto. eram a no a- enfermidade que
Para Paulo, como para todo judeu, a lei mo tra o caminho para Deus e. portanto.
ele levava sobre i, a nossa dore que ele carregava. Mas nó o tfnhamo como
o que o <li tancia do dano e a morte. A lei pede-lhe que deixe de cobiçar, ma
vítima do castigo, ferido por Deu e humilhado. Mas ele foi tre pa·sado por cau a
quem pode deixar de cobiçar?
das no as transgre õe . esmagado em virtude da no sas iniquidades. O castigo
ão é difícil imaginar o esforço de um judeu fiel e zelo o como Paulo para que havia de trazer-no a paz, caiu obre ele, im, por uas feridas forno curado ...
cumprir e te preceito da Torá, a im como a fru lração ao con talar que a cobiça Apó o trabalho fatigante da ua alma ele verá a luz e e fartará. Pelo eu conheci-
e tá sempre aí, espreitando para altar obre qualquer presa que se apresente. Talvez mento, o justo, meu ervo. ju li ficará a muito e levará sobre i as uas transgressõe .
eja po- fvel não cobiçar uma coi a em um momento, ma é impo ível deixar de
cobiçar inteiramente, para empre. Quanto do zelo exce sivo (talvezfanatismo) de Durante o tempo em que e teve em Dama co, e te le~1o (e outro semelhan-
Paulo tinha ua fonte ne ta experiência fru lrante? Paulo acreditava firmemente te que mencionamo acima: b 2,12-20; 3,1-12; 5,1-5; Zc 12,8-11: 169,25-27)
que a lei U1e pedia para deixar de cobiçar, ma não lhe oferecia nenhuma ferra- deve ter deixado nele um inal indelével; o pe o que teve o profeta l aías em eu
menta para não cobiçar: colocava diante dele ua própria condição cobiço a como pen amento comprova e La influência, me mo que não haja nenhuma citação
impo ihilidade de aproximar- e de Deus. Na Carta ao Gálata , di-lo de outro explícita de te texto em ua carta . De fato, a partir de então. orientou ua vida
modo: Ora, as obras da carne são manifesta : fornicação, impureza, libertinauem, como uma imitação de te modelo que de cobriu no Crucificado, cuja rejeição e
idolatria, feitiçaria, ódio, rixas, ciúme·, ira, di cu õe . di córdia. divisões. invejas, de prew revelarani- e ua força maior (cf. 2Cor 12,1-12). Significava que aquele
bebedeiras. orgia e coisa emelhantes ...: contra e Las coi a não existe lei'' (Gl a quem Paulo considerou '·de prezado, marginalizado'·, "açoitado. ferido por Deu
5.19-23; cf. Cl 2,20-23). O grito final destapas agem ('Infeliz de mim! Quem me e humilhado" (nisto coincidem Dt 21,22-23 e l 53.3-4) tinha uma missão da
libertará de te corpo de morte?"', Rm 7,24) parece justilicado. O problema, no parte de Deus: levar obre i o castigo da rebeldias e transgres õ para trazer a
entanto, não é a lei, mas o que impede que a lei cumpra seu bom objetivo: a cobiça paz. A legitimação que o heleni tas fizeram do Crucificado permitiu que Paulo
(o que Paulo chama de sarx. em grego. que se traduz por "carne". ou mellior. por identificas e ua morte com a função do servo de 1 afas: "Pelo seu conhecimento.
"condição humana". do que falaremo no capítuJo ubsequente). Em outras palavras, o ju to, meu ervo, justificará a muito e levará obre si as ua tran gressões".
o encontro de PauJo com e ta nova vi ão lhe mo trou uma incongruência: que o Para PauJo, e le final do hino cumpriu-se no encontro com os heleni tas (cf. lCor
pri ncípios e o horizonte de ua própria tradição fari aica não eram confirmados por 11,23-27; 15,3-8). O conhecimento do Crucificado conferiu-lhe novo modo de
ua experiência vital; esta o de mentia. entender a ju Lificação que tanto havia perseguido durante a vida: endo inju to.
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S!GNlA MI · Quais sãoosaspectos centrais dotema?
Awcação de Paulo eaorigem desua wcação

rebelde, cobiçoso, Deus justificava-o independentemente de sua condição legal ou graças à mudança de identidade daquele crucificado que Paulo considerava um
moral· Deus mostrou-lhe que lhe concedia a dignidade, a justiça que lhe permitia maldito; quando reconheceu nele o Messias de lahweh, descobriu quem é Deus e
olhá-lo face a face, sendo ainda injusto, cobiçoso. Anos mais tarde, ele o dirá de como age: que Deus não estava esperando a moralidade ou a justiça de cada judeu
forma contundente: "Mas Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo para acolhê-lo como digno de si, mas que ele o tomava digno de si ao amá-lo tal como
ter morrido por nós quando éramos ainda pecadores" (Rm 5,8). era independentemente de sua condição legal ou moral. Esta revelação adquiria
tal importância que exigia nova concepção do tempo presente: Deus havia decidido
Este é, provavelmente, o núcleo mais genuíno da experiência vocacional
antecipar o tempo final (eschaton) para o tempo de Paulo. Tudo isso, indicado aqui
de Paulo, a de saber-se justificado por Deus em uma ituação de imoralidade e
sumariamente, veremos mais desenvolvido no capítulo seguinte.
ilegalidade egundo sua interpretação da lei; aceitar-se reconciliado independen-
temente de sua condição legal ou moral. Seu esforço por deixar de cobiçar para
reconciliar-se com Deus, como lhe pedia a lei não havia dado, até então, senão 4. Cronologia
frutos pontuais, visto que a cobiça sempre estava ali, sempre reaparecia. No entanto,
Para guiar-nos pelas páginas que se seguem, pode mostrar-se útil uma refe-
o que descobriu na cruz foi um modo de agir de Deus que não se ajustava com a
rência cronológica. A que apresentamos está baseada naquela sugerida por Senén
exigência do cumprimento da lei que ele havia herdado: Deus não levava em conta
Vidal {1996, p. 22-23) e está dividida em 6 etapas; junto ao fato biográfico referido
as transgressões e agia com liberdade em relação a elas, reconciliando-se, por
aparece o ano (sempre "depois de Cristo", d.C.). Quando for lido o capítulo sexto
iniciativa própria, com todos os que aceitaram esse modo de ser de Deus (cf. Rm
sobre a pseudoepigrafia e o corpus paulino, entender-se-á melhor a distribuição das
5,1.10-11; 2Cor 5,19). Assim, para Paulo, Iahweh recuperava aquele rosto que havia
cartas; por enquanto, o mais útil pode ser fazer-se uma ideia dos acontecimentos
mostrado a Abraão. fazendo-lhe uma promessa e abençoando-o antes de pedir-lhe
para cumprir a lei (GI 3,14-18). Este rosto de Deus fora ocultado a Paulo por causa mais significativos.
de wna intepretação errônea da Torá; contudo, aquele revelado na cruz de Jesus lhe
abriu os olhos (cf. 2Cor 3,12-18): Deus não era somente justo (que pedia justiça), 1. Nascimento de Paulo em Tarso 4-7?
mas, fundamentalmente, justificador (que não rejeita o imoral, o injusto, o malvado Morte de Jesus 30
Morte de Estêvão e dispersão dos "helenistas" 33
segundo a lei, mas que o torna justo; cf. Rm 3,26). A lei, portanto, como diziam os
Vocação de Paulo e estada na Arábia e Damasco 34
helenistas, devia ser reinterpretada; e assim o fez Paulo nos anos sucessivos ("Cristo
Primeira visita a Jerusalém (a Pedro, em privado; Gl 1,18) 37
nos resgatou da maldição da Lei, tornando-se maldição por nós, porque está escrito: Começo da atividade no norte da Síria e Cilfcia 38
Maldito todo aquele que é suspenso ao madeiro ', Gl 3,13).
Podemos concluir este capítulo dizendo que a experiência vocacional de 2. Paulo em Antioquia (2Cor 12,1-5?) 40-45
Mis.5ão de Barnabé (At ll,25ss) antes de 48
Paulo, entendida como um processo histórico acontecido em Damasco e mediado
Segunda visita a Jerusalém: assembleia dos apóstolos 48/49
pelo encontro com os helenistas, teve seu centro em uma revelação que exigiu a Visita de Pedro a Antioquia 49
transformação da imagem que Paulo tinha de Iahweh: de uma ideia de Deus me- Paulo abandona Antioquia 49
diada pelo cumprimento da Torá (que distanciava de Deus todo aquele que fosse
impuro, imoral, injusto ...) a outra na qual Deus tomava a iniciativa de aproximar-se 3. Primeira viagem missionária independente, passando pela
do impuro, do imoral, do injusto para acolhê-lo como digno de si. Esta mudança na Galácia, Filipos e Tessalônica, para chegar a Corinto (At 16- 18) 49
imagem de Deus não rompia em absoluto o marco das tradições dos pais, porque Permanência fundacional em Corinto (primeira visita) 50-51
+Primeira Carta aos Tessalonicenses (lTs) 50
se enraizava em outas correntes, talvez minoritárias (as de um messias rejeitado,
Paulo perante Galião (At 18,12-17) 51
sofredor, humilhante), mas judias, no final das contas. Tudo isso pôde acontecer
58 59
SlW'tllA IVIE ·Quais são os aspectos centrais do tema? Avocação de Paulo eaorigem de sua vocação

C RC{ MARTÍNEZ. Florentino. Textos de Qumrán. Trotta. Madrid. 22000.


4. egunda viagem: Visita à Galácia (Gl) 51
E tada em Éfeso e na Ásia 51-54 HE1 GEL. Martin. E/ hijo de Dios: e/ origen de La cristologia r La historia de la religi6n
Carta ao Gálata 52 judeo-helenfstica. ígueme. alamanca 1978.
Perigo segundo lCor 15.32 52/53 K OHL 1 rael. El mes(a.s antes de }esús: el ien:o sufriente de los manuscritos dei Mar
+Cor A (1Cor6.l-ll: 10,1-22: 11.2-34: 15,1-58; 16.13-18) 52 J1uerto. Trolla. Barcelona. 2004.
+Cor B (lCor 1.1-5.13: 6,12-9,27: 10,23-11,1; 12.1- 14,40; MEIER. John P.. Unjudro marginal: nuera visi6n dei }e.sú.s hist6rico. l. 3. Compaíieros )'
16.1-12.19-24) 53 competidore.s. erbo Di\'ino. E tella. 2003.
+Cor C (2Cor 2,14-7.4) 53
PE A. Romano, Carta a los Romanos: introducci6n. uersi6n ycomentario, erbo Divino
1
egunda vi ita a Corinto (visita intermediária)
E tella. 2013.
(não e lá no Ato ) 53
1DER . Ed Pari h. Paul and Palestinian }udaism: a comparison ofpattems ofreligion,
+Cor D. "Carta lacrimosa'" (2Cor 10,1- 13.13) 53
Cativeiro/perigo de morte 53-54 Fortre Pre~ . Minneapoli . 1977.
+Fl A, Carta de agradecimento (FI 4,10-20) 53 CHE:1 KE. Ludger. la comunidad primitiva: historiar teologra. fgueme, alamanca
+Carta a Filêmon 54 1999.
+Fl B. "Carta do cativeiro- (Fl 1.1-4.9.21-23) 54 HA 'T'l. Colleen. Paul in ecsta.sy: the neurobiology of the apostle s life and thought,
Cambridge Uni\'ersity Pre . Cambridge. 2009.
5. Terceira viagem: de Éfeso. passando por Trôade e ~1acedônia,
IDAL nén. las cartas originales de Pablo, Trotta, Madrid. 1996.
a Corinto (''viagem da coleta"')
(At 18-21) 54/55 _ _. Pablo: de Tarso a Roma. a1 Terrae. antander, 2007.
+Cor E. "Carta de reconciliação.,
(2Cor 1,1-2,13; 7.5-8.24) 54
+Cor F, (2Cor9,l-15) 54
Terceira visita a Corinto (uns três meses) 55
Carta aos Romanos (Rm A e B) 55

6. Viagem de Corinto com a coleta a Jerusalém 56


Terceira visita a Jerusalém (visita da coleta)
(At 21-28) 56
Viagem de Paulo preso a Roma (AI 28ss) 58/60
Estada em Roma e morte 60/65 60/65

Bibliografia
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R. (ed.), Apocalyptic Paul: cosmos and anthropos in RomansS-8, Baylor University
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COLLINS, John J., Between Athens and }erusalem: }ewish identity in the Helleni.stic
Diaspora, William B. Eerdmans Pub., Grand Rapids, MI, 22000.
60 61
Capítulo 3
Acosmovisão de Paulo

A experiência de Damasco, que vimos no capítulo anterior, provavelmente


precisou de vários anos para amadurecer e adquirir sentido. Este processo consis-
tiu, basicamente, em pôr a morte de Jesus na cruz no centro de sua nova cosmo-
visão, um acontecimento paradoxal, flagelante que, não obstante, depois da nova
compreensão, oferecia uma perspectiva esperançosa de sua própria identidade, de
seu passado e de seu futuro. Dizem os estudos da religião, a partir das ciências
cognitivas, que uma ideia ou tradição religiosa tem mais garantias de ser aceita e
persistir quando contém um elemento paradoxal ou inesperado ("counterintuitive";
BOYER, 2001). A morte de Jesus na cruz era um acontecimento desafortunado
e vergonhoso; contudo, se esta morte tinha um significado teológico positivo (a
revelação de um novo mecanismo de reconciliação), convertia-se em uma morte
paradoxal, estigmatizante, mas redentora.
Isto obrigou Paulo a modificar sua vinculação ou filiação dentro do judaísmo.
Se, até o momento, havia sentido-se próximo à cosmovisão dos fariseus, como vimos
no capítulo anterior, agora, vai-se vincular aos helenistas, judeus da diáspora crentes
em Jesus. Talvez seja necessário repetir uma vez mais: Paulo não se converteu do
judaísmo ao cristianismo; Paulo continuou sendo, depois da experiência de Damas-
co, tão judeu quanto antes, mesmo que este fato lhe tenha mudado a cosmovisão
judaica. Neste capítulo, faço uso do termo cosmovisão para explicar a compreensão
particular que um judeu tinha de sua pertença ao judaísmo, um conjunto de crenças
e práticas, sua forma de explicar o mundo, seu sentido etc., dentro do judaísmo; ou
seja, considero que existem cosmovisões diferentes dentro do marco amplo e plural
do judaísmo do tempo de Paulo (cf. OLMO LETE, 2010, p. 177-194).

1. Ojudaísmo de Paulo relido apartir de Damasco


Há um texto da segunda Carta aos Coríntios (2Cor 3,12-18) que me parece
muito ilustrativo para entender esta dupla situação: a continuidade de sua identidade

63
S!GJ'«IA MI · Quais são os aspectos centrais dotema? Acosmovisão de Paulo

judaica e a mudança de co movi ão que antecipamo no capítulo anterior. A com- temem olhar o brilho de Deu no ro lo de Moi é porque. como Iahweh havia dito,
binação de ambas as realidade . continuidade e novidade, é um do a peclo mai ··o homem não pode ver-me e continuar vivendo·· (Ex 33,20). No entanto. e lra-
difícei para entender Paulo: no entanto. é um lema-chave. amo ler o texto em nhamente, Moi és fala-U1e em nenhum e crúpulo nem proteção. com o ro to
primeiro lugar. de coberto (Ex 34.31-32). e coloca um véu obre a face omenle quando terminou
de tran milir ludo o que lahweh lhe havia dito (Ex 34,33). O narrador diz que
Fortalecido por tal esperança, temo plena confiança: não fazemo como Moí és. e ta era a prática habitual de Moi é : quando falava com lahweh, retirava o véu
que colocava um réu sobre a ua face para que o filho de Israel não percebe em Ex 34.34), que mantinha afa lado quando tran mitia tudo ao i raelita , até que
o fim do que era tran itório... Ma o eu e-pírito e tomaram ob curecido . im; termina e, e omenle então e cobria com o véu. Então, e o véu não tinha a fun-
até hoje, quando leem o ntigo Te lamento, este mesmo véu permanece. Não é ção de evitar que o i raelita morre em ao contemplar a glória de lahweh. como
retirado. porque é em Cri lo que ele de aparece. im; até hoje. todas as veze que era eu temor, qual era o objetivo do véu? Que entido tem que Moi é o colocas e
leem Moi és, um véu está sobre o seu coração. ·'É somente pela conversão ao enhor quando terminava de falar ao povo. quando já não havia perigo de matar ninguém?
que o véu cai:' Poi o enhor é o E pírito, e onde e acha o E pfrito do enhor aí E ta parece er a pergunta que Paulo e faz e a ela re ponde no texto que
e Lá a liberdade. E nó todo que. com a face de coberta, refletimo como nu m citamo (2Cor 3.12-18). E ua re po ta é. certamente, original: o véu não preten-
e pelho a glória do enhor, somo lran figurado nessa m ma imagem, cada vez dia proteger o povo de lahweh (porque de Deu não é preci o proteger- e, parece
mai- re plandecenle, pela ação do enhor. que é E pfrito. ·ugerir}; o véu ó evitava que e vi e a caducidade do resplendor, a míngua do
brilho. a perda do reflexo. ua decadência e oca o. Com o tempo. o brilho do
Ne te fragmento da carta. Paulo está expl icando ua mi ão, tal como ele ro lo de Moi é ia- e apagando, até que voltava a ver labweh e eu ro to voltava
a entende, como o anúncio de uma ..nova aliança". Explicaremo mai adiante o a iluminar- e. E te brilho provinha, única e exclu ivamente. da luz que captava
alcance desta expressão para evitar inlerpretações errônea ; por enquanto, basta-no de lahweh. Moisé não tinha luz própria: apena refletia a de Deu . I to é o que
dizer que Paulo con idera nece ário remontar até Moi és para explicar a origem de Paulo queria dizer com e a e lranha fra e: Moi é ··colocava um véu obre a ua
ua mi ão e mo lrar que e ta · novidade" não é enão a correção de uma série de face para que o filho de r rael não percebe em o fim do que era lran itório"
erro de interpretações que têm origem em Moi és e que com Cristo e remedeiam. (2Cor 3,13). E la expressão meta fórica, '·o fim do que era tran itório", é uma crí-
Para i o, Paulo recorre a uma pa agem importante da hi tória bíblica, encontrado tica à tradição egundo a qual o brilho e a luz provinham de Moisés e da própria
em Ex 33-34. ela, Moi és pede a Deu : " Rogo-te que me mo tre a Lua glória', e lei, não de lahweh. a medida em que a Torá é ]jda como autônoma, como fonte
Iahweh lho concede: '·Farei passar diante de li toda a minha beleza, e diante de ti de luz própria. é como cobrir- e com um véu que impede de ver a realidade: e la
pronunciarei o nome de Iabweh. Terei piedade de quem eu qui er Ler piedade e terei parece era conclu ão de Paulo.
compaixão de quem eu qui er ler compaixão··. E acre cenlou: ··Não poderá ver a
Dissemo . no capítulo anterior, que a leitura mai generalizada da lei no tem-
minha face, porque o homem não pode ver-me e continuar vivendo" (Ex 33,18-19).
po de Paulo era a que a con iderava como um caminho de permanência na aliança,
O texto, portanto, apresenta a questão da contemplação de Iahweh: o que e pode
uma re po ta ao dom de Deu . o entanto. exi Liam correntes de tradição, e Paulo
ver de lahweh, o que implica vê-lo e como e lran mite tal vi ão: i lo é o que Paulo
parece provir de uma a im, de que haviam exagerado o valor da lei. esquecendo
apre enta também no final do fragmento citado (2Cor 3,18).
eu entido original. Haviam ficado olhando o dedo que indica Deu e e esquecido
O encontro de Moisés com lahweh no inai ··durante quarenta dias e quarenta de Deu . Este é, para Paulo, o problema da aliança de Moi és: foi mal interpretada
noites" teve duas consequências: a primeira é que Moi é copiou pela egunda ("até hoje, todas as vezes que leem Moi és, um véu está sobre o seu coração", 2Cor
vez a tábulas da lei que havia quebrado (Ex 34,28); a egunda é que "seu ro lo 3,14). A lei outra coisa não pretende senão refletir "toda a bondade de Iahweh"
resplandecia porque havia fal ado com ele" (Ex 34,39). Aarão e seus companheiros (Ex 33,19); contudo, somente a reflete, não tem luz própria. A Torá deve remeter- e
64 65
~~ ·Quais são os aspectos Cffitrais do tema? Acosmovisão de Paulo

continuamente a lahweh para con ervar eu brilho, ua glória. seu valor. ~a medida confunde ao mo trar um brilho que parece próprio, consegue-o quem olha para a
em que um ó dia deixa de voltar a olhar para lahweh, perde- e e não reflete ua cruz e de cobre como Deu o olha e o conhece (FI 3,12: Gl 4.0: l Cor 13,12). Aí
bondade e mi ericórdia; então, pode- e converter em fonte de extravio ou de morte. não há véu que sirvam: é a tran parência e a liberdade (2Cor 3,17).

Paulo de cobriu e te problema. como vimo no capítulo anterior, quando Paulo revela aqui, com metáfora e releitura bíblicas, eu novo olhar obre
compreendeu o ignificado da morte de ]e u na cruz. Para ele, omente nes e fato a tradiçõe que recebeu. E te é o objetivo último de citar Moi é : mo trar que o
hi tórico "cai o véu'' que impede ver a dependência que a lei tem de Deus. que foi de coberto na cruz de ]esu não é uma novidade que o obrigue a abandonar
uas tradições, ma voltar ao mai radical e genuíno delas ao melhor judaf mo. ao
omente no Crucificado e pode de cobrir o que não e vê com clareza no da origens de Moi é {e de Abraão ou Adão, em outro texto ). Paulo, é preci o
relato de Ex 34: a cruz não tem nada brilhante; nada há nela que possa confundir repeti-lo muita veze , continua endo tão judeu quanto ante , inclusive mai , com
o crente. que o faça ficar de lumbrado diante dela, porque não tem luz, porque é e ta reflexão. Nada do que foi dito aqui Lira Paulo de ua tradição judaica {nem
o mais vergonhoso, ob curo, indigno, desprezível que exi te; é o mais di tanciado a ideia da "nova aliança" que é de ]eremia ); i o, im. o obriga a reinterpretar
do brilho e da glória de Deu . Por i o, não há problema algum com a cruz: nin- novamente elemento importantes que o levam a ua verdadeira origem e entido
guém pode confundir- e com ela, ninguém pode querer a cruz esvaziada de eu fundacional. O projeto de Paulo depoi de ua vocação {que ele entende como a
entido teológico. que é o único que a converte em outra coi a, ninguém de eja o do antigos profetas Isafa ou Jeremia ) é recuperar o judaí mo de de uas raízes.
ofrimento e a humilhação. a não er porque trazem um bem maior. A cruz, por i No entanto. esta tentativa obrigava a mudar alguma práticas e crenças que muitos
só, é ofensiva e humilhante; não tem nem pode ter brilho próprio; ninguém pode não e lavam di po to a aceitar, e Paulo entrará em conflito com outras correntes
fascinar- e ou maravilhar- e diante dela. Por i o. diante do Crucificado, não exi te do judaí mo de seu tempo, algumas delas liderada por crentes em ]e us, como a
,·éu: Deu af tran parece. onde nenhum brilho pode desviar a atenção da única de Tiago, "o irmão do enhor" (cf. Gl 1.19; 2,11-14).
origem de bondade e misericórdia (MOLTMAN . 2010). Nem a lei nem a cruz,
este capítulo, vamo fixar-no em como o acontecimento de Damasco fez
por i mesma , ervem para nada, ma , no Crucificado, Paulo viu o que não vira
Paulo olhar para trá e para frente; primeiro, corno releu sua próprias tradições,
na lei: porque não esconde nem ob curece (''É omente pela conversão ao enhor
reinterpretando-as ou incorporando novo elemento ; egundo, como deu entido à
que o véu cai", 2Cor 3,16). ua vida, a eu futuro, como projetou sua missão de acordo com a nova co movisão.
Paulo termina ua particular interpretação da passagem de Moisés e qui- Para a primeira tarefa, foi fundamental sua incorporação à tradição dos helenistas.
vando- e do fi nal do relato do f;xodo. Moi és não havia sido capaz de refletir enão Paulo e teve em Damasco cerca de trê ano (aproximadamente do ano 33 ao ano
um brilho efêmero, decadente; no entanto, eu objetivo, que era ver a glória de Deu 36 d.C.); posteriormente. durante doze ano esteve entre Tarso e Antioquia (apro-
(Ex 33,18), pode ser alcançado de outro modo. Não bu cando a glória de Deu ximadamente do ano 36 ao ano 49 d.C.). E ta etapa soma un 15 anos no quais
em objetos que a refletem mal, parcialmente ou de modo incompleto (cf. lCor 13, compartilhou missão e visão com os heleni tas de Dama co e de Antioquia (veja-se
9-12), mas em um espelho fiel. Para Paulo, não há lugar ou acontecimento que reflita a Cronologia à p. 59). Paulo herdou muitas coisas deles que, corno ele, eram judeus
melhor a verdade de Deus do que aquele que meno pode distrair ou confundir: o e queriam compreender- e como tais, incorporando em sua fé judaica o ignificado
Crucificado. A sim, di-lo depois da passagem citada: "Porquanto Deus, que disse: da morte de ]e u .
Do meio das trevas brilhe a luz!, foi ele mesmo quem reluziu em nossos corações,
para fazer brilhar o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de 2. Anovidade teológica que amorte de Jesus traz para ojudaísmo
Cristo" (2Cor 4,6). A pessoa que contempla o Crucificado e de cobre a verdade de
Deus sem véus nem distrações, diz Paulo, pode converter-se, ela mesma, em espelho O ponto central obre o qual gira a releitura do judaísmo de Paulo é a
emelhante (2Cor 3,18; Rm 8,29; FI 3,21). O que a lei não pode consegufr, porque incorporação do Me sias crucificado à sua co movisão. Quem é o Crucificado,

66 67
SEGilll.I P1.ill •Quais são os aspectos centrais dotema? Acosmovisão de Paulo

que função tem na hi tória, corno influencia na identidade judaica, como deve E ta é a ideia germinal que Paulo herda e a partir da qual na ce sua releitura
entender- e na condição do judeu depoi do acontecimento de ]eru além do ano do judaísmo: a vida, morte e re urreição de Jesu fazem parle do plano de Deus e
30 d.C.? E ta ão alguma pergunta que iniciaram a releilura que Paulo faz têm um entido teológico. Em Dama co. havia escutado que Tahweh tinha previsto
de ua própria tradiçõe : aquele a quem ele havia considerado um maldito de que seu ervo morreria de modo humilhante para que ua ferida , ua rejeição
Deu (Dt 21,22-23) era, na realidade. como o ervo ofredor de l afa O 53). o e ua morte ervi em como ca tigo alternativo {vicário) àquele que o povo mere-
que havia levado obre i as culpa e o ca tigo de todo , o Me ia de Iahweh cia pela acumulação de eu pecado . É certo que a lei já continha mecani mo
(Christos). Lucas apre enla e la leitura, como vimo • como própria da tradição expiatório ( acrifício de expiação) para perdoar as transgre sões do crente ;
heleni la repre entada por Filipe (At 8,26-40). Paulo não cita explicitamente o no entanto. não fica claro, egundo o Levítico, quai rnecani mo de purificação
cântico do ervo de l aía (Is 42: 49; 50; 53), mas alude a ele de modo implícito cada comportamento requeria, visto que un afetavam a pureza ritual e outro , a
em lugare de ua caria no quai ele diz que recolhe e transmite uma tradição pureza moral (MILGROM. 2004). Em todo caso, o que pru-ece mai claro é que
que recebeu. ou em pa agens que o e peciali la reconhecem como fórmula a "abominaçõe " mai grave (como o a as inato, a idolatria ou a tran gre õe
tradicionais. como por exemplo, !Cor 15.3: Fl 2,6-11; Rm 4.24-25 (HAY , 1989, sexuai ). considerada impureza moral. tinham éria consequência que podiam
p. 63). 1 to ugere que, efetivamente, a identificação de Jesu com o ervo de incluir castigo {expulsão da terra de I rael) e pena (entre elas. a pena capital). Para
1 aía não é original de Paulo, mas uma herança que ele recebeu de seu tempo. algun caso , cabia a expiação. uma érie de acrifício no templo que recuperavam
compartilhando com o heleni ta em Dama co e na Antioquia. Embora Is 53 o e tado inicial do tran gre or (como o caso daquele que tem relações sexuai
tenha tido um pe o importante em ua vocação, vimo • no capítulo anterior, que com uma serva de outro: Lv 19,20-22); para outros casos. no entanto só restava
as con equências teológicas que Paulo tirará a partir daí o aconselharão a uti- ser apedrejado até à morte (como oca o de adultério: Lv 20,10) ou ser expulso para
lizar outra imagen e metáforas que veremos mai adiante neste capítulo: daí sempre de J rael (como oca o de idolatria: Lv 20,6); muita situaçõe , não ob tanle,
ua re i tência em citar explicitamente e es texto . Vamo agora mostrar como tinham um tratamento ambíguo e eu de enlace dependia de quem o interpretava.
esta herança nuclear (que podemo conden ar a im: Je u morreu como o ervo
Ne te cenário, a leitura que o helenista faziam mostrava-se enormemente
ofredor de l aía e Deu o res uscitou) desencadeou uma tran formação de ua
sugestiva e atraente. Deu havia aceitado a morte de ]e us como uma expiação total
cosmovi ão como judeu. do pecados, incluídos os que a lei e seu mecanismos sacrificais não expiavam ou
Vimo que Paulo concede importância singular e paradoxal ao aconteci- não faziam com clareza. Vimos, no capítulo anterior. que esta leitura ofereceu a Pau-
mento da morte na cruz de ]esu . Isto não ignifica que não considere importante lo, pessoalmente, um modo de re olver algumas incongruências de sua cosmovi ão
a res urreição: parece inegável que Jesu , para Paulo, atua como Messia à direita anterior, como o fato de descobrir que Deu o havia feito cobiço o (de carne) e lhe
do trono de Deus. esperando o momento do juízo final (lCor 15,20-28). A fórmula pedia simultaneamente para deixar de ser cobiçoso (de carne) para reconhecê-lo
de fé que Paulo diz aceitar em !Cor 15,3-8 afirma a morte, a sepultura, a ressur- digno de si (cf. Rm 7,10-25). Resolveu o dilema quando compreendeu que Deu o
reição e as aparições ao líderes mais de tacados, entre os quais figura ele próprio. havia reconhecido digno e o havia amado tal como era, cobiço o (de carne), antes
Creio que não há controvérsia sobre e te ponto: a certeza da ressurreição de Jesus de nada fazer para deixar de sê-lo (Rm 5,8). Esta identificação de Jesus com o
faz parte da co movisão de Paulo; acreditava na ressurreição dos mortos no último servo de Isaías (Is 53) permitiu-lhe incorporru- a morte de Jesus no plano de Deus:
dia. A novidade está em que se antecipou e se verificou em alguém totalmente esta morte, apesar de seu caráter estigmatizante e desabonador (ou talvez por isso)
ine perado: um crucificado. Por isso, Paulo dá tanta importância ao fato da cruz. falava de lahweh, de eu modo de ser e de agir e, portanto, exigia um olhar teoló-
Convém recordar que, nesta fórmula de fé herdada, o caráter redentor do aconte- gico novo sobre a história. E te olhar teve, de fato, duas con equências imediatas:
cimento de Jesus reside em sua morte ("morreu por no sos pecados", l Cor 15,3) e em primeiro lugar, a convicção de que, com a morte de Jesus, havia-se iniciado
não em sua ressurreição. a contagem regressiva para o tempo final (eschaton) e, em segundo lugar, que era
68 69
~PARI! ·Quais são os aspectos centrais do tema? AcosmoYisão dePaulo
preciso ver a Deus a partir de parâmetro diferente ou, com outras palavras. que pecado de Israel e como o outro bode cujo sangue a pergia a arca para purificar
Deus e revelava na morte de Jesus de modo novo e transparente. o templo do pecado do povo. O texto de I aía não fala de um acrifício, nem de
A primeira consequência é a que desencadeou em Paulo uma enérgica e sangue derramado, nem de vítimas ... Fala somente de humilhação e rejeição, de
ampla missão para congregar ante do tempo final o maior grupo pos ível de judeus feridas que curam e de golpes que trazem a paz; de castigo que um recebe no
crentes, dispo to a reconhecer a novidade acontecida na morte e na ressurreição lugar de outros. Lv 16, sim. fala de vítimas e de sangue derramado para o perdão
de Jesus. A convicção da iminência do tempo final explica, por exemplo, por que dos pecados. do sacrifício do dia da expiação (yom kippur). Por is o, provavelmente,
algun dos que e cutaram Paulo nem equer pen aram que havia tempo para que em pouco tempo misturam- e na tradição helenista essas duas tradições (a do servo
alguém morre e ante que chegas e esse final (cf. 111 4,13-18). Paulo, corno o de Is 53 e a do dia da expiação de Lv 16), porque e complementavam muito bem
demais eguidores de Jesu . pensavam estar presentes aos acontecimentos finais, para dar sentido teológico à morte de Jesus e para responder a todas as perguntas.
quando lahweh tomaria posse de sua terra, e o Messias julgaria a todos, judeu e não Podemos dizer, portanto, que desde cedo se viu a morte de Jesus como
judeus. E a urgência, manife ta em vários fragmentos de uas cartas (cf. lTs 4,17; um sacrifício para o perdão dos pecado , unindo- e esta dua tradiçõe (1 53 e
l Cor 7,29-31; 15,51-52; 16,22 etc.), obrigou-o a elaborar uma apressada estratégia Lv 16). Paulo mesmo parece utilizar Lv 16 para falar da morte de Jesus em Rm
de congregação de fiéis. A isto dedicaremos os dois capítulos eguintes, porque 3,24-26, um texto no qual ressoa urna tradição prévia a ele (SCHE KE, 1999, p.
exige certa delonga. Por enquanto, basta dizer que foi essa iminência escatológica, a 208-214). No entanto, seja este texto, eja outros em que Paulo fala de "entrega"
profunda convicção de que o tempo histórico havia chegado a seu fim, que estimulou (apodidômi) ou de "resgate" (apolytrôsis), devem ser interpretados corretamente a
Paulo (e outro ) a viver cada dia do tempo presente corno se fo se o penúltimo. De partir do sentido que os sacrifícios tinham em seu tempo. Um sacrifício pelo pecado
outro modo, é difícil explicar a energia e o trabalho que dedicou a seu projeto e não era uma satisfação ou paga a Deus; não era uma compen ação pelo dano cau-
o impulso que lhe deu. Paulo não pensou em uma estratégia de longo prazo, em sado; não era uma substituição pela própria vida devida, que é uma intepretação
um plano que perdurasse, mas em uma solução de compromisso que tinha sentido moderna (GIRARD, 2005; HAMERTON-KELLY 1987, p. 73-78): em tal caso,
apenas no curto prazo. como preparar a noiva para as bodas iminentes (2Cor 11,2). Deus apareceria como um ser que precisa de vítimas humanas para aplacar sua
A primeira segunda consequência não teve menos repercussões: Paulo teve ira. Esta é uma imagem antropomórfica de Deus, uma projeção de traço humanos
de modificar sua imagem de Deus. Para entender bem isso devemos recordar o sobre Deus. O sacrifício no tempo de Paulo era algo diferente: uma imitação de
sentido do sacrifício e remontar-nos às interpretações da morte de Jesus anteriore Deus (KLAWANS, 2006).
a Paulo. Vimo que a morte de Jesus entendida como a do servo sofredor (Is 53) Os sacrifícios não se faziam para provocar uma reação em Deus, mas para
havia permitido compreender, no marco do tempo final , que Deus havia decidido imitar Deus; buscavam reproduzir nos participantes do ritual os mesmos valores e
oferecer uma estratégia de perdão de todos os pecados e de todas as pessoas, judeus comportamentos que se identificavam com Deus. Cada grupo enfatizava determi-
ou não (Rm 3,29-30). Mas como tinha acontecido o perdão? Como podia a morte de nadas características de Deus e destacava certos traços acima de outros; os rituais
Jesus con eguir o perdão de Deus? Que mecanismo ou sistema religioso permitia sacrificais tentavam reproduzir tais características, buscavam provocar nos parti-
entender o que havia acontecido na morte de Jesus? Is 53 oferecia uma resposta cipantes do ritual esses mesmos valores e comportamentos ideias que identificam
ao quem (lahweh, através do servo Jesus) e ao porquê da morte de Jesus (evitar a com Deus. Era como partilhar a mesa com a divindade, para o que se requeria uma
morte merecida dos transgressores), mas não ao como. Por isso, logo cedo se lançou disposição, uma preparação, uma purificação (tal como Moisés se preparava para
mão de outro texto que permitia entender esse "como": Lv 16. Este texto permitia ' ver labweh"). Assim, por exemplo, no imaginário do judaísmo do segundo templo,
explicar a morte de Jesus corno um sacrifício expiatório pelo perdão dos pecados, uma das características mais sobresselentes de Iabweh era sua vida eterna e seu
corno o bode que era expulso para o deserto depois de ter sido carregado com os poder sobre a vida. Isto era, de fato, o que mais diferença''ª labweh das pessoas;
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S!GJHtll. PARJI ·Quais são os aspectos centrcJis do tema? Acosmovisão de Paulo

esta morriam, ao pas o que lahweh não: estas nece itavarn da relações exuai como uma janela. como um foco que ilumina uma realidade obscura e ambígua:
para perpetuar- e no tempo e mitigar a caducidade de cada vida, enquanto Iah- a identidade de lahweh. eu er e agir na hi tória, e a realidade do mundo. Isto é
web não precisava dela . Dizem o e tudio o que e ta é a razão fundamental por o que Paulo enfatiza. como um leilmotiv, ao longo de ua carta , com diferentes
que o que apresentavam uma oferenda diante do altar deviam abster- e de todo expre õe , ma e pecialmente com quatro imagens.
contato com a morte (cadáveres e imilares) e do exo (relações ou flu ido exuai ).
Em primeiro lugar, quando diz que Jesus é "Filho de Deu " ("Quando,
Nos sacrifícios, a pes oa oferente imitava Deu , reproduzia a imagem que o grupo
porém. aquele que me eparou desde o seio materno e me chamou por ua graça,
humano projetava em Deus (JAY, 1992).
houve por bem revelar em mim eu Filho ...". Gl 1,15-16), Paulo está aludindo à
A imagem de Deus que e tá por trás da co movisão fari aica que Paulo concepção difu a de que o filho é imagem do pai ("O pai morre. é como e não
compartilhava antes de ua vocação era, tal como vimos no capítulo anterior, a morre e porque deixa depoi de i alguém emelhanle a ele", Eclo 30,4); "Tende
de um Deus justo que queria justiça e antidade para relacionar- e com ele. Para feito bem imitando os deu es e emulando vo o pais ao trazer filho ao mundo
poder ser justo, Deus havia oferecido um caminho de ju liça: a Torá. No entanto, do mesmo modo que vo o pais fizeram convo co ... Um filho é imagem devo so
e a morte de Je u for compreendida como "sacrifício" e entendida como imitação, corpo e alma até o ponto de que e converte em vo o eu" (in CASIO Dion, Hist6ria
como a reprodução da imagem de Deus que Jesus tinha, que imagem de Deus se Romana L I 3,1; também em Mt 5,44-45; Lc 6,35-36). E ta imagem não se devia
depreende des a morte de Jesus? a nenhuma qualidade extraordinária de Jesus, mas que o era tendo "na ciclo de
Este ponto é, sem dúvida, o núcleo teológico mai importante da releitura mulher'' (Gl 4,4). De e modo Paulo afirma que era a humanidade de Je u que
que Paulo faz do judaísmo e sua contribuição mais original e inaudita: Jesus imitava refletia a divindade de Deu , e pecialmenle o aspecto mai humilhante e vergonho-
Deus na morte na cruz; Deus revelava- e na cruz de Je us. Deus continua sendo o de ua humanidade: a morte na cruz. Em Rm 5,10, Paulo afirma: " ... quando
justo, mas não pede justiça para relacionar-se com ele; ao contrário, ele justilica éramo inimigo forno reconciliados com Deus pela morte do seu Filho" e em Gl
por sua própria iniciativa para tomar todas as pe oa dignas de si, em levar em 2,20: ' Já não ou eu que vivo, ma é Cri to que vive em mim. Minha vida presente
conta ua condição legal ou moral. Ademais, se Deus é como Jesus na cruz, aceita a na carne, vivo-a pela fé no Filho de Deu . que me amou e se entregou a i me mo
rejeição daquele a quem mostrou eu amor. Deus não despreza nem castiga na cruz por mim". A im, de todo o acontecimentos da vida de Jesu , o que revela com
os que matam Jesus, nem os condena por suas transgressões, cobiças ou mortes; ma1 tran parência e la identidade do Pai é ua morte na cruz.
em vez di o, oferece-lhe urna oportunidade de reconciliação, mesmo que rejei- Em egundo lugar. quando Paulo diz que Je u é "imagem de Deus' ("se
tada (lTs 5,24; lCor 1,9). O Deus na cruz não desencadeia sua ira para aniquilar o nosso Evangelho permanece velado. e tá velado para os que se perdem, para os
o verdugos de Jesu , mas lhes oferece nesse mesmo momento uma oportunidade: incrédulo , do quai o deu deste mundo ob cureceu a inteligência, a fim de que
endo assa sinos, faz deles objeto de amor (Rm 5,8). Deus, na cruz, mo tra que não vejam brilhar a luz do Evangelho da glória de Cri to, que é a imagem de Deu ",
considera digno de si, justos, inclusive o mais malvado ; é um Deus não omente 2Cor 4,4), ele o faz aludindo paradoxalmente à cruz de Je us, como o faz em outro
justo, mas justilicador (Rm 3,26). lugares de uas carta , relacionando abedoria de Deu e cruz (lCor 1,18.24; 2,2
Esta revelação está na raiz da vi ão apocalíptica da história que Paulo tem: a etc.) ou glória de Deu e cruz (l Cor 2,7-8 e Gl 6,14). Jesus na cruz se converte
\rida, a história, os acontecimentos, as pessoas têm uma aparência que não coincide para Paulo em imagem, ícone de Deu , de eu ser e de seu agir. Isto explica por
com sua realidade profunda (BOER, 1998). Paulo explica esta situação no texto com que Paulo diz, de modo urpreendenle, que "não qui aber outra coisa entre vó
o qual começamos este capítulo (2Cor 3,12-18): todo judeu, ele. inclusive, traz um a não er Jesus Cristo, e Je us Cri to crucificado" (lCor 2,2), porque de cobre af
véu sobre o rosto que o impede de ver com clareza, e este véu cai na cruz de Jesus que Deu "reluziu em no os corações, para fazer brilhar o conhecimento da glória
(como o véu do templo cai na morte de Jesus, segundo Me 15,39). A cruz teveJa- e de Deus. que resplandece na face de Cristo" (2Cor 4,6).
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~MI· Quais são os aspectos centrais do tema? Acosmovisão de Paulo

Em terceiro lugar, quando Paulo diz que Jesu é "forma de Deus" ("Ele, re u citá-la e outorgar-lhe um status maior do que o que detinha antes. O poder
estando na forma de Deus não usou de eu direito de er tratado com um deus. mas convencional (o da impo ição, coerção, domínio ...) não é o que Deus utiliza para
e de pojou, tomando a forma de e cravo. Tornando- e emelhante ao homen e manife Lar ua presença; o lugare e situações que são aparentemente ausência
reconhecido em eu aspecto como um homem, abaixou- e, tornando- e obediente de Deu (como a cruz, as vítimas inocentes ...) ão aqueles no quai , paradoxal-
até a morte, à morte sobre uma cruz", Fl 2,6-7), está afirmando que a morte de mente, se pode de cobrir eu mi tério profundo ("A nós, porém, Deu o revelou
Je u na cruz expre a e revela, me mo que eja de modo ambíguo, a forma de ser pelo Espírito. Pois o Espfrito onda toda a coisas, até mesmo as profundidades
e de agir de Deu na história. Não importa e aqui Paulo e tá aludindo a Adão ou de Deus". lCor 2,10). Mas como es e silêncio e aparente impotência pode ser mai
ao ervo de 1 aías que mencionamo · o fato é que Paulo de cobre a "forma de Deu ,. forte do que o poder convencional?
na primeira parte do hino, na qual e descreve o "esvaziamento", a "servidão" e
A força que Paulo descobre no ilêncio e na humilhação de Deus na cruz de
a "morte na cruz" de Jesus, e não na egunda, em que aparecem a exaltação do
Je u está em íntima relação com a experiência da cobiça e do desejo, do quai
'·nome acima de todo nome" e o reconhecimento universal. Portanto, a igualdade e
falamo no capítulo anterior. Em Rm 7,7-8, Paulo havia colocado a cobiça como
a forma de Jesus com Deus se descobrem quando morre como um escravo na cruz.
exemplo da impotência da lei: nenhuma norma pode impedir que a pe oa humana
E em quarto lugar, quando Paulo diz que a boa noúcia que anuncia é '·poder de eje, cobice. O pano de fundo de te texto (Rm 7,7) não eram as pequenas cobiça
de Deu " ("a linguagem da cruz e loucura para aquele que se perdem, mas para da quais fala o decálogo mas a grande cobiça que e descobre no relado de Adão
aqueles que e alvam, para nó , é poder de Deu ", lCor 1,18.23-24), está contra- e Eva, a de querer ser como Deu ("A serpente disse então à mulher: 'Não. não
pondo doi tipo de força: a que predomina na mente da maioria das pessoas e a de morrerei ! Mas Deu sabe que, no dia em que dele comerdes, vo so olho e abrirão
Deu . E se poder paradoxal de Deus parece referir- e ao modo de agir de Deus na e vó erei como deu e versado no bem e no mal'. A mulher viu que a árvore
hi tória, ua forma peculiar de fazer-se presente. a cruz se tornaram explícito o era boa ao apetite e formo a à vi la, e que essa árvore era desejável para adquiri r
re ultado de as duas forças: a força do homens (do poder e dos podero o ) que discernimento. Tomou-Lhe do fruto e comeu", Gn 3,4-6). Neste relato, Adão e Eva
matou Jesus e conseguiu silenciá-lo e anulá-lo; e a força de Deus que silenciou, repre enlam a irrefreável a piração de toda pe oa a conhecer tudo, a impor ua
aguentando a rejeição e a humilhação que lhe faziam em Jesus ( eu Mes ias e eu própria vontade sobre o mundo, a dominar a criação, a exercer o poder sobre todas
Filho) e que transforma esse ódio em oferta de encontro e de reconciliação. Dua as coi as, inclusive, obre a vida ... Ou eja, ser como deuses. Neste relato, Deu é
"forças" enfrentada que parecem propor uma pergunta ao ouvinte dessas tradiçõe : quem conhece tudo, quem vive empre, quem domina tudo.. . Por is o Adão e Eva
qual força é, afinal, mais forte? querem er como ele. Entretanto, o final de sa aspiração vem a ser a vergonha e a
Paulo de cobre no Crucificado que Deu age egundo princípio diferentes expulsão do paraíso (depois virá a morte de Caim: Gn 4).
do que ele acreditava próprio de lahweh, porque o Deu de Je us aceita as limi- a referência à morte de Je u na cruz (por exemplo, no texto citado de Fl
Laçõe e obrigações históricas assumindo um lugar ilencio o na hi tória. inclu ive. 2,6-11), Paulo oferece a inversão desta história: Jesus, podendo exercer o poder e o
quando sua presença ou proposta (a men agem e a vida de Jesu entendidas como domínio sobre a criação e obre as pessoas, renuncia a ele, escolhendo o silêncio,
Evangelho de Deus) é rechaçada violentamente, gerando vítima inocentes. Deu a vulnerabilidade o rebaixamento diante dos outro ; por isso Jesus é ' forma de
não age intervindo para mudar o curso da história arbitrariamente; Deu não in- Deus" ou "igualdade a Deus"; neste esvaziamento se parece com Deu , como Deu
tervém matando os carrascos de Jesus nem nenhum algoz de nenhuma vítima da de Jesu . E um Deus as im, quem o pode desejar? Somente invertendo a imagem
hi tória. A cruz de Je us revela que Deus aceita essas limitações e que eu modo hegemônica, poderosa, imposiLiva de Deus se corrige o desastre da cobiça. omente
de er é o silêncio, não, porém, um silêncio estéril, mas o mais eficaz e produtivo, de te modo o irreprimível de ejo de er como Deus é corrigido, orientado e proje-
porque e coloca do lado da vítima para acolhê-la, reivindicá-la, fazer-lhe justiça. tado para um fim que dá a vida ao invés de tirá-la. Toda pessoa cobiça er como
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m111 PAATE ·Quais são os aspectos centrais do tema? Acosmovisão de Paulo

Deu ·este de ejo é incontrolável e nenhuma lei. ética ou exército con eguirá jamai afuma que a pes oa deva tomar a iniciativa, ma que Deu , o upo to ofendido
anulá-lo. Contudo, e o objeto de cobiça já não é o deu que exerce eu poder e seu pela tran gre õe do homen . tomou a iniciativa para restaurar a relação que
donúnio, que impõe sua vontade e intervém a eu talante, mas o Deu vulnerável o ofen or rompeu (FITZGERALD. 2001). De tarte, Paulo mostra como e põe
e ferido. entregue e ilencioso, que oferece amizade e perdão a eus verdugo , a em jogo o abaixamento ou a humilhação de Deus para aproximar- e da pe oa.
cobiça radical de er como Deu e converte em um mecanismo de fraternidade, me mo que e ta não e Lenha movido de ua po ição, po to que não tenha feito
de olidariedade e, em definitivo, em um caminho de alvação. e toda a pe oas nada para merecer tal reconciliação, ainda que continue sendo '·má" ou inimiga
a pira em a ser como o Deu da cruz, a cobiça (a carne) já não seria de prezível ("Mas Deu demon tra eu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por
nem afa taria de Deu , ma eria a ferramenta de que Deus se serve para realizar nó quando éramo ainda pecadores'·, Rm 5,8): "quando éramo inimigo forno
na história um projeto de vida. não de morte. reconciliado com Deu pela morte do eu Filho'', Rm 5,10). Deu reconcilia o
Aqui e radica, como dis e, a maior novidade da releitura paulina de ua tran gre or ante que este tenha feito algo para aproximar-se de Deus. para ar-
tradição judaica: e te novo ro to de Deu . E de La novidade, Paulo tira uma con- repender- e ou pedir perdão.
equência não meno importante: que seu antigo conceito de pecado (quando era E a iniciativa de Deu não exige. portanto, nenhuma petição de perdão
fari eu) carece também de uma profunda releitura. Onde melhor se descobre esta nem arrependimento; tampouco exige do ofen or algum ge to de desagravo ou de
coo equência é no textos nos quais Paulo fala de como Deu se reconcilia com as reparação ou de compen ação. Paulo diz que na cruz de Jesus "era Deus que em
pes oas: 2Cor 5,16-21 e Rm 5, 10-11. Leiamo o pnmeuo: Cri to reconciliava o mundo con igo, não imputando ao homens uas falta e pondo
em nó a palavra da reconciliação" (2Cor 5,19). E te é o modo concreto pelo qual
Por i lo, doravante a ninguém conhecemo egundo a carne. 1e mo e conhece- Deu anula a di tância entre ambo : "não imputa (mê logizêlai) nenhum pecado"
mo Cri to segundo a carne, agora já não o conhecemo a sim. e alguémestá em (Rm 4.8) ou "deixando em punição (dia ten paresin) os pecados" (Rm 4,7), ou
Cri to, é nova criatura. Pas aram- e as coisas antigas; eis que e fez uma realidade eja, eliminando o que o separava. E ta iniciativa de Deu funciona graças à sua
nova. Tudo isto vem de Deus, que no reconciliou con igo por Cri lo e no confiou magnanimidade, à ua tolerância, à ua compreensão, ao e quecimenlo da tran -
o minjstério da reconciliação. Poi era Deus que em Cristo reconciliava o mundo gres ão que a pe soa cometeu, não a algo que a pe soa faça para encurtar es a
consigo. não imputando ao homen as uas faltas e colocando em nó a palavra di tância. O supo tamente ofendido renuncia à ofensa, ignora-a, não a leva em conta;
da reconciliação. endo assim, em nome de Cri to exercemos a fu nção de embai- prefere deixá-la de lado porque o impediria de aproximar- e do tran gre or, que é
xadores e por no o intermédio é Deu mesmo que vo exorta. Em nome de Cri to a prioridade do Deus que se revela na cruz de Jesu . Paulo justifica eu argumento
uplicamo-vo : reconciüai-vos com Deu . Aquele que não conhecera o pecado, Deus nos capítulo 5 a 8 da Carta ao Romano .
o fez pecado por cau a de nós, a fim de que, por ele, no tornemos ju Liça de Deus.
Aquele conceito de pecado que Paulo havia recebido da tradição fari aica
Em todo o caso nos quais Paulo utiliza a palavra ·'reconciliação" ne te egundo a qua l as tran gres õe à lei di lanciavam Deu do crente, agora deve
texto (verbo ou substantivo), recorre a um termo grego (katallassô, katallagê) que modificar-se, porque a imitação que Jesus faz de Deus na cruz, esse sacrifício
não provém da teologia, mas das relações diplomáticas ou matrimoniais (BREY- de imitação, mostra que Deus é capaz de passa r por cima de qualquer ofen a,
TENBACH. 2010). De fato, Paulo emprega-o no segundo entido em l Cor 7,11, agravo ou pecado para oferecer perdão e reconciliação, para refazer a relação
para falar da reconciliação do marido e da esposa depoi que e ta dele e eparou, rompida. Com efeito, quando Paulo fala, na Carta aos Romanos, do pecado no
e para pedir que a parte que ofendeu e abandonou a outra (ela) torne a iniciativa entido farisaico. no entido a11tigo. ele o faz até o capítulo 8 (ne ses oito capítulos
de voltar a unir- e com a parle ofendida (ele). o entanto, a nova imagem de aparece cerca de 46 veze em ua diver a forma ); contudo uma vez que afuma
Deus obriga a mudar este paradigma de reconciliação. Em 2Cor 5.19, Paulo não categoricamente que ·'a Lei do Espírito da vida em Cri to Jesu te Libertou da lei

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SEQll'!ll. PAATE • Quais são os aspectos centrais do tema? Acosmovisão de Paulo

do pecado e da morte'" (Rm 8,2). não volta a falar dele, porque é coisa do passado. o fato é que ua releitura teológica da memória coletiva teve con equências para
Uma vez que a pe oa confia, crê no Deus que e revela no Crucificado, no Deu a identidade de todo judeu. O Deus que se revelou no Crucificado era lahweh. o
que não leva em consideração o pecados. aquele conceito farisaico de pecado Deu de I rael, e i to não apenas dizia respeito aos crentes em Cristo mas a todo
de aparece para dar lugar a uma nova realidade: a imitação de Deus, que constitui o crente em Iahweh. E esta mudança não afetava unicamente aos privilégios de
aba e de eu novo programa de vida. E te erá o único novo mandamento que Israel em relação ao plano de Deu , mas também aos parâmetros mediante os quai
tem sentido: amar como Deus ama no acontecimento da cruz de Jesus (cf. lCor um judeu e identificava como tal.
8,1-13; Rm 14-13-15). Concretamente, e ta releitura afetou ua relação com Deu , a relação com
eu antepa ado e a relação com seu contemporâneo . Em outras palavras, e ta
3. As consequências desta nova visão teológica para aidentidade judaica releitura alterou sua vi ão do judaísmo a partir da origem. não somente a função
do judaísmo no tempo final. No geral, Paulo não se entregou a esta tarefa de modo
O judaísmo da diá pora, onde Paulo vivia, definira sua identidade basean- i temático ou como quem realiza um trabalho acadêmico tranquilo, mas com uma
do-se em um conjunto de marcadores que estabelecem as fronteiras do judaí mo e, urgência à qual e entia impelido (cf. lCor 9,16-23). Entretanto, sua reflexão sobre
portanto, o que definia um judeu diante de um gentio. Os mais claros, porque eram o papel da Torá, não somente no presente, mas em toda a história, foi excepcional.
externos e porque faziam parte da vida cotidiana dos judeu , eram a circunci ão Este é o aspecto que Paulo pensou, elaborou e concretizou mais em uas cartas e
do varões, ob ervância do sábado e o consumo de alimentos puro (k.osher). onde se percebe a tríplice mudança que acabo de apontar: a mudança na relação
No entanto, talvez mais importante do que eles, ao menos no que diz res- de todo judeu com Deus, com sua própria tradição e com seus contemporâneos.
peito à consciência individual de cada judeu, era a pertença a uma "comunidade A lei, como dissemos, era uma marca externa de identidade do judeu: seu
de memória", a um povo cuja hi lória tinha ido iniciada e determinada por uns cumprimento indicava a pertença ao povo da aliança (cf. OLIVER, 2013, p. 1-18).
patriarcas que geraram uma ampla descendência de filhos aos quais e ornava Paulo mesmo, como vimos no capítulo anterior, havia-se distinguido antes de sua
cada crente, cuja identidade estava determinada pelas características corporl}tivas vocação por considerar que o cumprimento da lei, inclusive das tradições orais
do grupo. Cada judeu entendia a própria biografia a partir da de eu povo até fun- as ociadas a ela, era o vínculo da pessoa com a aliança que Iahweh havia feito com
di-la e diluí-la nela, de modo que passasse a representá-lo: já não era fulano ou seu povo. No entanto, o descobrimento da nova imagem de Deus no Crucificado
sicrano de tal, mas filho de Abraão, de Isaac, de Jacó (I rael). Esta característica obrigou-o a repensar profundamente essa função. Duas circunstâncias ajustaram- e
é, embora menos vi ual do que as outra , a mais determinante na identidade de perfeitamente como parte de uma revelação: Deus havia-o justificado consigo sendo
um judeu, porque configurava domai profundo quem ele era; as normas externas injusto (sem cumprir as condições que a lei pedia: cf. Rm 5,8) e a própria lei o
não passavam de expressão, manifestação de la identidade (HALBWAC HS, 2005, fizera ver que não podia oferecer o que sua tradição farisaica lhe havia prometido:
p. 65-88; COLLINS, 2000, p. 62-63 e 273-275). a ansiada ju tificação (cf. Rm 7,7-25). Ambas as certezas, como dua face de uma
mesma moeda, fortaleceram- e para obrigá-lo a perguntar- e o que de mal havia
A revelação e a reformulação da imagem de Deu , juntamente com a con-
em sua própria tradição e que função tinha a lei no plano de Deus, na aliança feita
cepção escatológica do mundo presente, obrigaram Paulo a reinterpretar as carac-
com seu povo.
terf ticas fu ndamentais da memória coletiva que determinava a pertença de um
judeu ao povo de 1 rael. Em outras palavras: Paulo leve de adaptar ua identidade A julgar pela atenção que dedicou a este lema em uas cartas (a cartas aos
judaica aos novos tempos. Este projeto de Paulo foi o que mais lhe causou problemas gálatas e aos romanos estão pervagadas por e te tema), foi uma de suas preocupações
com outro judeu , incluindo- e entre este os eguidores de Je u vinculado a intelectuais dominantes e um dos maiore problema que teve para fazer- e entender,
Jerusalém. Paulo não omente reformulou a identidade do judeu crente em Jesu ; especialmente por outros judeus crente em Cristo que não compartilhavam com

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Sffil.INllil P!RTt ·Quais são os aspectos centrais do tema? Acosmovisão de Paulo

ele sua visão obre a lei. ua respo ta repete determinado padrão, um e quema havia, depositado demasiada e peranças na Torá, elevando-a a uma categoria
que no ajuda a entender eu próprio raciocínio. eu ponto de partida. para além que não tinha inicialmente no plano de Deus. Deu não havia pedido a Abraão
da experiência vocacional aludida. que e tá no fundo de eu argumento. parte da ua circunci ão enão como inal ou recordação de ua fé em Deu , para que
revi ão da figura de Abraão (cf. Gl 3,6 ; Rm 4,1 ; 2Cor 11,22). E ta volta ao nunca decaí e em seu propó ito de confiar nele (cf. Rm 4.18-22). Igualmente.
pai da fé judaica já revela um aspecto importante: o acontecimento vocacional e a Deu não havia dado a Moi é a Torá para que a adora e ou exalta e como e
novidade de Jesus obrigaram-no a volLar ao pa ado, especialmente às figuras de ela pude e dar-U1e a liberdade que ornente Deu podia dar-lhe, ma para que
entido que ofereciam modelo de identificação. Paulo não se de prendeu de eu ajudas e o povo a refletir a glória de Deu , para imitar o que haviam recebido
pa ado, ma o integrou em ua experiência atual; releu-o a partir do pre ente. dele (cf. 2Cor. 3,18).
A volta a Abraão tem um denominador comum: a prome a que Deu lhe faz (cf. Como Paulo aju ta em uma vi ão coerente o fato de que Deu tenha feito o
Gn 12,1-3) não exige dele o cumprimento de nenhum preceito ou lei. mas única homem cobiço o, violento, tran gres or, de obediente... e, além dis o. que a lei
e exclu ivamente a confiança em Deu (Gn 15,6). Para u ar as palavras de Paulo: eja incapaz de oferecer a ju Liça que a pe oa não tem e que Deu lhe promete?
"Para Abraão a fé foi levada em conta de ju tiça. Ma como Lhe foi levada em con- Ambos o fato parecem mo trar, de preferência, que a criação é um fraca o e
ta? E tando circuncidado ou quando ainda incircunci o? 1ão foi quando eslava que Deus não tem um plano de salvação compreensível. Para Paulo, no entanto,
circuncidado, ma quando ainda era incircunciso; e recebeu o inal da circunci ão a Torá havia tido, de de eu início até o momento final da hi Lória, no qual ele
como elo da ju Liça da fé que ele tinha quando incircunciso. A sim ele e tornou julgava encontrar- e, uma função determinada: fazer o crente de cobrir que nem
pai de Lodos aquele que creem. em erem circuncidado ... e pai do circuncisos'' ozinho nem com a ajuda de algum mecanismo religio o pode o homem obter a
(Rm 4.9-12). A releitura de Abraão. portanto, e tá ba eada na prioridade de sua vida (a salvação) que omente Deu pode dar de modo gratuito, imerecido, ines-
confiança em Deu acima de ua aceitação da lei. Contudo e a prioridade poderia perado ("Deu encerrou todo na de obediência para a todo fazer mi ericórdia".
er ub crila por muitos outro judeu (talvez não fari eu como Paulo, que punham Rm 11,32). Toda a história pas ada de I rael repre enta para Paulo um modelo,
um pe o especial na importância da Torá para significar sua fidelidade à aliança). um exemplo para o momento presente (cf. l Cor 10,1-13), mediante o qual Deus
como os que citamo no início do capítulo anterior, que antepunham a eleição e a insistentemente quer mostrar ao crentes que devem confiar omente nele (cf. Rm
mi ericórdia de Deu à obra da lei. o entanto, Paulo foi mai longe. 3,20). A lei havia tido uma função ética que Paulo aceita de bom grado: "De fato,
A tradição judaica, tanto na diá pora como na Pale tina, defendia, ape ar o preceito : ºão cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás,
da preeminência da eleição (o dom da aliança. a mi ericórdia de Iahweh), que a e todo o outro e resumem nesta entença: Amarás o teu próximo como a ti
lei era igualmente um dom de Deus, concedido ao povo como caminho de vida, mesmo. A caridade não pratica o mal contra o próximo. Portanto, a caridade é a
como o único modo de corrigir a tendência à tran gre são, ao pecado e à morte plenitude da Lei" (Rm 13.9-10: cf. lCor 13.1-13; GI 5.13-26). Contudo. não tem
que domina a pe oa de de ua criação (cf. Gn 2-4; Ex 19-20: 24; 32- 34). No nenhuma função na vontade gratuita e incondicional de Deus de ju tificar todas
entanto, Paulo chegou a uma dupla convicção. Em primeiro lugar, de cobriu que as pe oa , boa ou má , cumpridora ou não, puras ou impura : "porque, e é
a lei nada podia contra a cobiça (a epizimia, a sarx). porque residia em urna zona pela Lei que vem a justiça, então Cristo morreu em vão" (GI 2,21; cf. Rrn 5,8). A
da pessoa à qual a vontade não con egue chegar (pelo meno em ua totalidade Torá, portanto. pretendia orientar a vida do judeu. ma não alvá-lo. A lei oferece
ou de modo permanente). de modo que a pes oa não pode optar por não cobiçar orientaçõe éticas válida , mas não serve de nada contra a tendências aniquila-
(cf. Rm 7,7-25); ne Le âmbito, a lei é inútil (cf. Gl 5,19-23). Em egundo lugar. dora mai arraigada da pe oa; contra i Lo omente re ta aceitar que Deu ama
como vimo na leitura que fizemo de 2Cor 3,12-18, Paulo chegou à convicção de a pe oa tal como é, incluindo e a tendências aniquiladora . Deu não faz com
que a lei e convertera em um véu que encobria mai do que em um e pelho que que desapareçam, ma que e equilibrem com a experiência do amor gratuito (cf.
reAetia, vi to que muito judeus. especialmente os de tradição farisaica. como ele, Rm 11,32; GI 3.22).
80 81
Sffa11uv11 •Quais são ornpectos centrais do tema1 Acosmovisão de Paulo

Esta ideia básica obrigou Paulo a reconsiderar a circuncisão, o sábado e alternativa, fez com que Paulo revisas e muitos de seus pressupostos como judeu.
as norma de pureza ritual (kosher) e sua função no tempo escatológico que havia Teve de lançar um olhar retrospectivo, a fim de reconstruir seu passado em coerência
chegado. A lei era um caminho moral que exigia de todos os crente em Iahweh com a novidade do acontecimento histórico de Jesus, que supunha uma mudança
uma responsabilidade à altura das circunstâncias. Aqueles preceitos que davam radical de perspectiva no modo de entender a relação com Deus, com as próprias
supostamente um status privilegiado uma po ição vantajo a como sinal do povo tradições e com o presente-futuro. Para Paulo, a identidade judaica revelava-se na
eleito, não serviam senão para exigir de seu portadores maior responsabilidade no cruz de Jesus, o que constituía uma blasfêmia para outros muitos judeus.
momento fi nal (cf. Rm 3 1-20). Nem a circuncisão nem os demais indicadores da
A partir desta descoberta, Paulo propôs-se reconstruir Israel no tempo final
identidade judaica serviam para reconhecer os destinatários da aliança de Deus,
que vivia. Deu , perante a cegueira (o véu: 2Cor 3,12-18) de boa parte do povo
porque Paulo descobriu no Crucificado que lahweh havia oferecido sua promessa
que punha sua confiança de futuro na lei, em vez de pô-la nele, em sua salvação
a Abraão como pai de todo o que confiaram em Deus, independentemente de sua
gratuita e incondicional. havia decidido revelar-se sem nenhum véu, totalmente.
condição ritual, legal e, inclusive, moral.
A promessa de um messias que anunciaria a salvação a Israel se havia cumprindo
Segundo esta releitura que Paulo fazia, o judaísmo permanecia aberto à em Jesus, revelando em sua vida morte e ressurreição quem é Deus e como age
incorporação dos que acreditassem em Iahweh (como judeus ou como crentes em na história: bastava confiar em lahweh. Contudo, assim como o exemplo de Abraão
Cristo) e, aos olhos de muitos judeus, exposto à desintegração e à dissolução. To- podia mostrar-se ambíguo porque muitos judeus, entre eles alguns crentes em Cristo
davia, nem sequer a resistência da esmagadora maioria dos judeus fez Paulo mudar (cf. Tg 2,20-26), pensavam que sua justificação havia acontecido em obediência à
eu plano. A Carta aos Romanos, mais moderada e matizada em muitos destes ordem de Deus de sacrificar seu filho (cf. Gn 22,1-14) e não no gesto de confiança
aspectos, se a compararmos com a Carta aos Gálatas, deixa bem claro seu projeto absoluta nele, o caso de Jesus mostrava-se totalmente transparente, caso se enten-
de um Israel de Deus para além dos circuncidados, um lsrael transbordado, no desse sua morte como o fazia Paulo: como imitação de Deus.
qual se incorporaram gentios crentes em Cristo porque cumprem em igualdade de
Paulo afumou, como vimos, que a morte de Jesus na cruz foi o modo como
condições o único requisito que Deus impôs a Abraão: confiar em lahweh. A partir
Deus mostrava sua justiça,justificando (considerando dignos de si: Rm 3,26) todos,
da perspectiva dos gentios, o que Paulo fez foi abrir as portas de par em par, para
inclusive os carrasco que mataram Jesus. A morte de Jesus na cruz era a prova
que os que haviam sido excluídos por leituras sectárias, elitistas ou etnocêntricas
de que Deus não quer vítimas, mas as ressuscita; era a prova de que Deus não
da Sagrada Escritura entrassem agora em igualdade de condições em relação aos
aniquila os assassinos ou rebeldes, mas lhes perdoa; era prova de que Deus aceita
que haviam tido o privilégio exclusivo durante séculos. O resultado foi esmagador:
em silêncio o desprezo pela sua proposta de vida; era prova de que, apesar dessa
o número de pagãos que aceitou a oferta de Paulo deve ter sido muito grande. E
rejeição, Deus continua a confiar em que as pessoas aceitarão livremente seu amor
Paulo deparou-se com outros problemas que o obrigaram a redefinir as fronteiras da
gratuito; era prova de que nenhuma ação, obra ou esforço, por mais justos e louváveis
identidade do crente: as resistências de outro judeus à incorporação de gentios e os
que sejam, podem modificar sua vontade de justificar a todos, sem exceção; era
conflitos cotidianos de viver no mundo com uma vi ão escatológica da história. E ta
prova de que se havia aberto o momento final da história em que Deus se revela
é a tarefa que desenvolverá na con trução da ekklêsia e que veremos nos capítulos
sem véus e se faz acessível a todos, sem privilégios de nenhum tipo, nem morais,
subsequentes. Antes disso, façamos uma síntese do que foi visto neste capítulo.
nem rituais, nem legais, nem étnicos.
Esta é a razão de eu projeto de restaurar Israel de acordo com suas raízes
4. Oolhar retrospectivo e prospectivo de Paulo
(cf. Rm 9,1-6). Na prática, onde Paulo creu que se descobria melhor este projeto
A novidade do Deus que e revelava no Crucificado, que não tirava desforra era a incorporação de gentios, não circuncidados, a Israel, como um enxerto à
aniquilando os assassinos, mas reivindicava e acolhia a vítima para oferecer uma oliveira milenar (cf. Rm 11,16-24). Este projeto, a que chama de 'Israel de Deus"

82 83
Si.wm41'Wl ·Quais são os aspectos centrais do tema? Acosmovisão de Paulo

(GI 6,16), Paulo o foi realizando de modo mu ito peculiar em ua mi ão em torno MILGRO 'I, Jacob. Leuiticus: a book of ritual and ethics. Fortres Pres . 'linneapoli .
do mar Egeu. Ali experimentou as dificuldade de um projeto que o apaixonou. M . 2004.
de lumbrou-o e desgastou-o a ponto de qua e acabar com ua vida (cf. Fl 1,12-26: MOLTMAN . Jürgen, El Dios crucificado la cruz de Cristo como base r cr(tica de la
2Cor 1.8-11 etc.). Ali comprovou quão difícil é forma r grupo que re pondam à teología cristiana. fgueme. atamancam, 3 2010.
novidade do tempo e catológico. que e organizem uficienlemente em ucumbir OLI ER, 1 aac W., Toráh pra.ris after 70 CE: reading Matthew and luke-Acts as Je1cish
texts, Mohr iebeck. Tubinga. 2013.
ao cao , que e orientem eticamente em deixar- e levar pelo intere se pes oai .
OLMO LETE, G. dei, Origen ypersistencia deljudafsmo, erbo Divino. E tella, 2010.
que integrem a pluralidade requerida no tempo que viviam, que e incorporem em
eu contexto para atrair e tran formar ele. E le é o desafio que Paulo enfrenta em CHE KE, Ludger., La comunidad primitiva: hist()ria y teología, ígueme, alamanca. 1999.
eu projeto de construção da ekklêsia.

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84 85
Capítulo 4
Oinício da ekklêsia

Tal como dis emos no capítulo anterior, Paulo quis reconstruir Israel a partir
da revisão que ele fizera da identidade judaica depoi do acontecimento da morte
de Jesu na cruz. Ali de cobriu uma nova imagem de Deus que o obrigou a rever
o pas ado (o papel de Abraão e de Moi és, a função da Torá, a missão de Israel
na hi tória) e o pre ente (como tempo escatológico que dava início à última etapa
da história), além de lançá-lo à urgente missão de congregar o Israel de Deus para
apresentá-lo "como noiva" (cf. 2Cor 11,2) no momento final que se aproximava. A
característica mais destacada do "I rael de Deu " (Gl 6,16; cf. Rm 9,6-8) é que
devia er constituído, diferentemente do "I rael da carne•· (l Cor 10,18), por crentes
de toda origem étnica üudeus e gregos; c( Rm 9,6-7; 11,1-15 etc.). A isso dedicou
Paulo todo seu esforço (cf. Gl 1,16), ainda que nessa nova integração desapare-
cessem também as demais diferenças que e tabeleciam separação entre pes oas:
a de mulhere e homens, a de escravos e livres, a de cidadãos e estrangeiros ... A
di olução, no tempo final, das linhas que egregavam todas as pessoas em função
de sua origem étnica, eu gênero e sua condição social marcou o horizonte de seu
projeto, da ekklêsia: "Não há judeu nem grego, não há e cravo nem livre, não há
homem nem mulher; poi Lodos vó sois um ó em Cristo Jesus" (Gl 3.28).
Neste capítulo. vamos ver como Paulo se arranjou para levar adiante esta
mi ão de con truir a ekklêsia, cujo selo de identidade, mais ainda do que a igual-
dade de mulheres e homen , ou de escravo e livre , por er revolucionária, foi a
igualdade entre judeus e grego , dado que repre entava para ua tradição o maior
inal da novidade de Jesu . Este encargo, ao qual se sentiu impulsionado desde
o momento de ua vocação. passou por diversas fases nas quais foi crescendo em
definição, claridade e em objetivo . Em um primeiro momento, Paulo desenvolveu
este projeto adotando um papel ecundário, enquanto teve como companheiro a
Barnabé em Antioquia (entre o anos 38 e 49 d.C.): em um egundo momento, Paulo
iniciou sua missão independente. como líder indiscutível de seu próprio projeto ao
redor do mar Egeu (entre os anos 50 e 58): por fim. Paulo empreendeu uma última
87
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a!_ _ _ _ _ _ _ __ Oinicio da ekklêsia

viagem qu o levaria de Corinto a Jeru além e a Roma. ne la última parte pre o e à O êxito foi total. e este grupo cre ceu muito em pouco tempo (cf. LÕNI G. 1993).
e pera do julgamento (entre 5 e 9 ano ). De tas trê etapa , amai importante para Entretanto. esse rápido e amplo cre cimento foi a principal cau a de eu fracas o.
o tema que no concerne é a egunda; antes de tratar dela. quero indicar algun
O problema não proveio de dentro da comunidade. Pelo que abemo . todo
acontecimento que no ajuda rão a entender melhor uas deci õe po teriore . o membro de te grupo de crente em Cri to de Antioquia (tanto judeu quanto
temente a Deu grego ) tinham aceitado e La ituação inédita. Era. em dúvida.
1. Apreparação de sua missão uma vantagem para o grego . que não preci avam romper com ua \rida pública nem
egregar- e de eu ambiente: no entanto. exigia do judeus um acriffcio: deviam
Depoi da experiência vocacional de que falamo doi capítulo ante . tran gredir as práticas de pureza e de separação ritual que haviam diferençado o
Paulo incorporou- e a uma tradição judia marcada pela fé em Cri to: a dos judeu judeu de todos o demai . O cu Lo, por as ini dizer, de La comen alidade aberta,
heleni-1a me iânico . iveu cerca de Lrê ano em Dama co (cf. Gl 1,15-21: pagaram-no fundamentalmente os de origem judaica. Todavia, parece que o fizeram
2Cor 11.32-33), no quai , em dúvida. amadrneceu a própria vocação, o ignifi- de bom grado; para eles. devia er o melhor inaJ de mudança de época. O problema
cado que aquela revelação havia tido para a identidade judaica e o caminho que veio, antes. de fora, de outro crentes em Cri to, procedente de Jeru além, que
devia empreender a partir de então. Apó e te tempo. fixou- e na rnis ão liderada chegaram a Antioqu ia e viram e ta ituação como uma tran gre ão inju tificada
por Barnabé em Antioquia. com a convicção de que a boa notícia do que havia da fronteira do judaí mo (cf. At 15,1-2; Gl 2.4-5.12).
acontecido em Jeru além (e em Dama co) com Je u não e podia limitar ao
O crentes em Cri to de Jeru além, o que temo chamado hebreu no ca-
judeu , ma devia er anunciada também ao gentio . Como con equência de La
pítulo anteriores. porque ua língua era o aramaico (cf. At 6,1), viviam ua fé em
convicção. Antioquia di Linguiu- e por uma clara abertura ao gentio . a ponto de
]e u em coerência com as tradições judaicas, incluída as normas de eparação
e e judeu aceitarem não judeu em ua refeiçõe . criando uma comensalidade ritual (sacrifício no templo. circunci ão, alimento kosher. sábado ...), porque de-
aberta. ju tificada teologicamente. que teve uma magnífica acolhida entre o grego fendiam a ideia de que ]e u não havia feito enão aprofundar e radicalizar o modo
daquela cidade (cf. ZETIERHOLM, 2003). A uces ão do acontecimento e ua de entender a Torá (cf. Mt 5.17-19). Para algun destes, o que e Lava acontecendo
cronologia não é egura porque a fonte (o livro do Ato e a Carta ao Gálata ) em Antioquia em nome de Je u era intolerável: ia contra a lei e contra Je u ; os
não ão coincidente , o que tem provocado recon truçõe do fatos muito variada pagão deviam circuncidar- e, se quisessem er herdeiros das promes a de Abraão
(cf. MYLLYKO Kl. 2006); eguiremo a mais aceita. (cf. At 15,1). E te problema provocou uma reunião em Jeru além, na qual delegado
Muito do que se juntaram ao grupo de crente em Cri to de Antioquia de amba a comunidade tentaram re olver o problema. O as unto a re olver
haviam ido "temente a Deu ··. grego que haviam aceitado o monoteí mo. a ética eram muito e diffcei : todo em Jerusalém pen avam a mesma coi a que o que
elevada e a religião anicônica ( em imagen ) imple do judaí mo. mas não tinham haviam causado o problema, ou e tes eram apenas um grupo i olado? Um grego
dado o pas o rumo à incorporação Lotai a 1 rael mediante a circuncisão. E te último podia fundamentar sua pertença à nova comunidade e sua salvação na fé em Jesu .
pa o Linha con equências ociai que pouco e lavam di po to a aceitar, como a ou devia, ademais, cumprir as exigências da lei? Podiam duas comunidades de
eparação de grande parle da atividade cívica . que incluíam o culto ao impera- crente em Cristo ter respo Las diferente a e La pergunta, reconhecendo- e irmã ?
dor ou a outro deuse . Para muito , as vanlagen de er judeu não compen avam Devia- e ou não circuncidar o gentio que acreditavam em Cri to? Quem devia
as de rnntagen : era preciso pagar um preço demasiado alto. No entanto. quando re olver este problema em ca o de não e chegar a acordo ? Indagar as respo Las
a e La pergunta no levaria ba lante tempo: para no o argumento. apenas no
cutaram o que diziam o judeu crente em Cri to de Antioquia, reagiram po i-
interes a um aspecto desta as embleia: o resultado a que chegaram.
Livamente. porque ba icamenle era a me ma men agem, mas com uma diferença
crucial: ele não pediam a circunci ão dos gentios porque queriam realizar a egundo Lucas (cf. At 15,22-29), a deci ão foi não pedir a circunci ão,
prome a de 1 aía (cf. ls 65.1-25) que haviam visto cumprida na morte de Je u . mas, im, exigir que os gentio e abstive em de determinada práticas que e
88 89
SEGnltll. PARJE ·Quais são os aspectos centraisdo tema? Oiníào da ekklêsia

mostravam inaceitávei para um judeu, as que e pediam no judaísmo da diáspora 2,11-13). ua chegada u cita bastante pergunta : e haviam dividido os campos
para aceitar a convivência de judeu e gregos {normas tirada de Gn 9.1-11 - o de mi ão, o que Pedro fazia em território de Paulo? E, e Pedro já estava ali, por
chamado mandamento noáquico - e de Lv 17-18- as lei para os estrangeiro que o delegado de Tiago obrigam Pedro a comportar- e de modo contrário à sua
em Israel). No entanto, Paulo diz explicitamente que nes a a sernbleia "nada me própria vontade? Paulo não conta as razões da viagem de Pedro a Antioquia. nem
acrescentaram" (Gl 2,6). ao entender que "aquele que operava em Pedro para a da chegada do delegado de Tiago em seguida, mas podemo relacioná-la com uma
mi são dos circunci os operou também em [Paulo] em favor do gentios" (Gl 2,8). E érie de acontecimento ucedido no ano quarenta em Jerusalém e na Judeia.
acrescenta: "Nós ó nos devíamo lembrar do pobres, o que. aliás, tenho procurado Pelo que abemos, entre o ano 41 (morte de Calígula) e 44 d.C. (morte de
fazer com solicitude" (GL 2,10). Embora ambas as versões sirvam a interesses que Agripa), houve um aumento do fanati mo judaico e da esperança messiânica que
puderam modificar os dados, aceita-se geralmente como mais próxima dos fatos a fez cre cer a ho tilidade contra o eguidores de Jesus em Jerusalém; a primeira
versão do próprio Paulo, que é testemunha de primeira mão. Lucas, como veremos
con equência foi a morte de Tiago Maior (At 12,22). Is o en ejou a que, no anos
a seguir, parece unir em um mesmo relato dois acontecimentos diferentes, com o
seguinte , por volta do final do ano quarenta, o grupo de seguidores de Jesus em
fito de mitigar o conflito que este tema cau ou durante o primeiros anos. Portanto,
Jerusalém se visse entre a espada e a parede, ou seja entre a identidade judaica
vamos seguir fundamentalmente a versão paulina (cf. HARRILL, 2012).
partilhada com seu concidadãos e a fé em Jesu Messias, que os fazia objeto de
Desse modo, a assembleia serviu para aceitar tacitamente duas coisas: crescente hostilidade por não compartilhar o mes iani mo político que dominava a
primeira, que a postura dos que haviam criado problemas em Antioquia não era a cidade. Este pode ser o cenário da fuga de Pedro e da per eguição que se de enca-
opinião majoritária do de Jeru além nesse momento (At 15,24); e, segunda, que deou posteriormente, até o ano 48 (Josefo, Antiguidades 20.5.2-6.3; Guerra 2.12.1-7
e aceitava a chegada de gentios à comunidade de Antioquia sem pedir-Lhes a § 223-245). Em fins dos anos quarenta, além dis o, houve um ano sabático, e a
circuncisão. Além do mais, nessa reunião (provavelmente em privado), tomaram- e situação econômica se agravara. Lucas também relaciona este três dados: a menção
duas deci ões que terão grande importância para entender a missão de Paulo em da coleta econômica de Antioquia para Jerusalém, a morte de Tiago, o irmão de
sua fase independente. Em primeiro lugar, concordaram com que Paulo enviasse João, e o reconhecimento por parle de Pedro da autoridade de Tiago, "o irmão do
dinheiro periodicamente para atenuar a escassez econômica das comunidades de Senhor" (embora ele os anteponha alguns anos: At 11,27- 12,19).
crentes em Cristo da Judeia (GL2,10), submetidas a secas, anos sabáticos e em um
contexto de crescente tensão sociopolítica. Em segundo lugar dividiram o campos Por conseguinte, o acontecimentos político em Jerusalém, que se seguiram
de mis ão: Pedro eria o líder da mi ão ao '·circunciso '', e Paulo o da mis ão à assembleia de fins dos anos quarenta e que obrigaram Pedro a fugir, puderam
"ao gentio " (Gl 2,9). Não ficou claro se esta divisão era étnica Uudeus e pagãos), forçar uma mudança dos equilíbrios alcançados na Assembleia e uma radicaliza-
geográfica (Judeia e diáspora), linguística (hebreus e gregos) ou uma combinação ção das posturas do crentes em Cristo de Jeru além (cf. POPKES, 2005). Os que
de tudo isso (PAINTER, 1999). Paulo parece não duvidar quando o menciona, mas Paulo chama de "falsos irmãos" (Gl 2,4) e Lucas "antigos fariseus ' (At 15,5), que
o que acontece em seguida dá conta da ambiguidade dessa solução salomônica. alguns anos antes, em Antioquia, causaram problemas e na assembleia de Jerusalém
não puderam impor sua opinião de circuncidar os pagãos e fazê-los cumprir a lei
Durante certo tempo, a comunidade de Antioquia pôde desenvolver sua
encontraram no novo clima da Cidade Santa apoio para defender sua própria visão
missão sem interferências. Inclusive, com a posterior chegada de Pedro, manti-
da fé em Jesus e conseguiram convencer mais crentes entre os hebreus: parece que
veram-se os co tumes, e ele mesmo se integrou de bom grado à comensalidade
sua postura se impôs, e Tiago a aceitou.
aberta, incorrendo em impureza com os demais judeus de Antioquia; mostrou,
assim, que aceitava os acordos de Jerusalém tal como os haviam entendido os Por outro lado, o acordo a que haviam chegado os "notáveis" de Jerusalém
de Antioquia. Entretanto, o horizonte cobriu-se de nuvens no momento em que (Tiago, Pedro e João) com os delegado de Antioquia {Barnabé, Paulo e Tito), pro-
chegaram a Antioquia delegados de Tiago que obrigaram Pedro a retificar-se (Gl vavelmente, havia sido feilo privadamente, não em assembleia geral (da qual Paulo

90 91
SEaNol. PA.QJI • Qua~ são os aspectos centrais do tema? Oinício da ekklêsi.i

nada diz): endo as im, deixava- e aberta a po ibilidade de que e e acordo não egundo Paulo. impor qualquer preceito da lei a um pagão. por mai excepcional e
fo e reconhecido pela nova maioria do crente de Jeru além. Adernai , como di - pequeno que fo e. para con iderá-lo membro do povo eleito, era não reconhecer a
emo , e e acordo não deixava claro o critério da eparação das mi õe . Paulo novidade da morte de Jesu que obrigava. como vimo no capítulo anterior. a revi ar
(e tah·ez Pedro) teve de interpretar a divi ão em termo geográfico (Pedro dedicar- o pilare da identidade judaica. a im como o lugar e a função da lei na hi tória.
- e-ia ao judaíta - judeus da Judeia - e Paulo. ao da diáspora) ou linguí tico
A olução petrina p rmaneceu em ntioquia até o tempo da compo ição do
(Pedro dirigir- e-ia ao hebreu e Paulo, ao grego). Tiago, quando é mencionado
Evangelho de Mateu . no ano oitenta do primeiro éculo. Paulo, por ua vez. foi- e
como único dirigente de Jerusalém depoi da as embleia. liderando agora e ta nova
embora dali acompanhado unicamente por ilvano. As im começou uma nova etapa
vi ão da ituação meno permi iva com os pagão . teve de interpretar o acordo em
em ua vida. a mais produtiva ob qualquer ponto de vi ta que e oh erve, na qual
termo étnico : Pedro orientar-se-ia para o judeu (de língua grega ou hebraica da
teve como único objetivo levar adiante. tal como o entendia e em impedimento .
Judeia ou da diá pora). ao pa o que Paulo e dirigiria exclusivamente aos pag~o
o projeto e catológico de I rael.
(cf. RIT CHL. 1.857). egundo e ta interpretação de Tiago, o que e Lavam fazendo
em Antioquia violava o acordo de Jerusalém, porque Paulo não e limitava ao pa- O que havia acontecido em ntioquia en inou muitas coisa a Paulo, como
gão , e a comen alidade aberta fazia com que o judeu de sa cidade incorres em vamo ver na próxima eção. Quanto a nó . erve-no para con talar a dificuldad
em con lante de cumprimento da lei. Em todo ca o, o certo é que em Antioquia e por que atraves aram no começo o seguidore de Je u para definir- e em contexto
produziu outro conflito. que e re olveu, novamente. do modo parcial. diferente e conceber- e de modo plurai . r esta primeira etapa preparatória da
mi ão de Paulo. debateram- e trê projeto dentro do judaísmo, três modo de er
O delegado de Tiago. demonstrando grande autoridade que todo reco-
judeu e de entender I rael. não trê modo de er cri tão : de um lado, o de Tiago,
nhecem. obrigaram Pedro e todo os judeu de Antioquia a observar a lei e, como
que defend ia que 1 rael con ervava plena \rigência como povo e e deviam con er-
con quência, rompeu- e a comensalidade que havia caracterizado esta comunida-
de. Paulo. que não aceitou esta ituação, confrontou- e com Pedro por ceder ante var a fronteira étnicas mantidas mediante as normas de pureza ritual; de outro,
e ta exigência que, con oante ua interpretação, upunha uma violação dos acordo o de Paulo, que defendia que Israel havia ultrapa ado a fronteiras étnica do
~e Jeru além (GI 2.11-14). Pedro talvez reconhecendo implicitamente que Paulo judeu e que se deviam incluir em igualdade de condiçõe o gentio , anulando- e
tmha razão ne te ponto. ofereceu uma solução alomônica que, segundo muitos a fronLeiras rituais; e, por fim. o de Pedro, que quis conciliar ambos com uma
e tudio o , é a que Lucas apre enta em At 15,23-29, tal como dissemos antes. olução de compromi o que fo e aceita por toda a parte , ma não o con eguiu
De acordo com e ta propo ta, aceitava-se que o judeu deviam cumprir a Torá, no longo prazo, visto que u modelo não e e tendeu a outro lugare . O modelo
enquanto o pagão unicamente uma série de preceito que lhes permitiriam não antagônicos de Tiago e Paulo coi ncidem. não ob lante. na novidade acontecida no
incorrer em impureza ao comer com estes (aquela impurezas contempladas na lei tempo e catológico: o gentio vi rão adorar a lahweh e ele o acolherá. O ponto em
mosaica que mencionamo antes: cf. Gn 9,1-11; Lv 17-18). Desse modo, sublinha- que não coincidem ão a consequências que i o teve para a validade ou não da
vam, de um lado. a vigência da normas de pureza para os judeus e. de outro, a normas rituais de separação e para a identidade de I rael. A nova mi ão que Paulo
pert~nça do pagão ao novo Israel escatológico. Era uma olução de compromi so, começa agora deverá re ponder a pergunta dillcei : que relação ua mi ão devia
a meio caminho entre o de Jeru além e os de Antioquia, que queria conciliar duas manter com o re to das comunidade de crentes em Cri to? Que identidade comum
~o lura opo tas, mas não o conseguiu. Aceitaram-na quase todos em Antioquia. na unidade, acima das diferença ? Como combinar a diversidade com a unidade?
mclufdo Barnabé e Pedro. Paulo, no entanto, negou- e porque acreditou que se Mesmo que Paulo tenda a falar de ekklêsia quando e refere a este projeto
tratava de um retroces o nos acordos de Jerusalém, uma cessão inaceitável ante a {nem sempre, no entanto: na Carta ao Romanos. não a menciona), não podemos
postura mai radical entre os crentes em Cristo e uma traição da morte de Jesus: contrapô-la nem identificá-la com ua ideia de Israel. Esta relação (ekklêsia - Israel)
'porque, e é pela Lei que vem a justiça, então Cristo morreu em vão" (GI 2,21). tem sido muito debatida; a ideia mai difu a é que Paulo entendia a ekklêsia como
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S!GMDA PAATE ·Quais são os a5pectos centraisdo tema? Oinícioda ekklêsia

uma criação histórica a caminho rumo à plena realização do projeto de Deus, que que existe entre homens e mulheres, ou entre escravos e livres (ou entre cidadão
incluiria a renovação de Israel tal como o compreendia a partir da morte de Jesus e estrangeiro ), vai er o objetivo que explica melhor alguma da característica
(cf. ZOCCALI, 2010). Paulo, portanto, foi criando as embleias (ekklêsiai) que de- da construção da ekküsia.
viam mo trar, já no presente, o que 1 rael estava chamado a ser no futuro imediato,
A segunda ideia é a de ler realizado sua missão em um território que abarca
quando Deus triunfaria definitivamente e começaria seu reino escatológico (lCor
desde Jerusalém até a Ilíria; o sul desta região limitava com a Macedônia e era o
15,24.50). Estas assembleias, de que vamos falar agora, deviam ser as primícias
final das vias de comunicação que Paulo havia percorrido durante este período que
que mostrariam a todas as nações (incluindo Israel: Gl 6,16; Rm 2,29; 11,26) o que
levavam da Judeia até Roma, para onde agora se dirigia. Como se esta etapa fosse
deviam ser. Como veremos mais adiante, as dificuldades e problemas com que se
sua graduação, agora se considera legitimado para dar um passo a mais, o último.
depararam, tanto ele quanto, principalmente, seus discípulos depois da destruição
Paulo mostra que, desde muito cedo, tinha bastante clareza de que seu horizonte
de Jerusalém no ano 70 d.C., substituíram o plano inicial (a ekklêsia a serviço do
era todo o mundo conhecido, o Império Romano e sua capital, Roma. O projeto de
reino escatológico) por um novo (o reino escatológico será a idealização da Igreja;
Paulo é ambicioso, atrevido, desafiador: tem como horizonte que todo o Império
cf. Ef 1,22-23).
reconheça o senhorio de Jesus crucificado.
A terceira ideia é que durante esta etapa fez questão "de anunciar o Evan-
2. Oinício da ekklêsia gelho onde o nome de Cristo ainda não era conhecido". Depois dos problemas que
No final de sua etapa independente, quando está preparando sua última teve durante sua primeira etapa em Antioquia, esta ideia parece lógica; Paulo
viagem que o levará a Jerusalém e, depois, a Roma, Paulo explica as ideias que queria evitar a todo custo que se repetisse o mesmo conflito que não tinha podido
haviam governado sua tarefa todo esse tempo: resolver ali. Is o não significa que Paulo se dirigiria exclusivamente aos gentios,
mas que o mais característico de sua missão era a incorporação de gentios a lsrae~
sem torná-los judeus, ou seja, sem circuncidá-los, respeitando sua identidade pagã.
Tenho, portanto, de que me gloriar em Cristo Jesus, naquilo que se refere a Deus,
Alguns autores, no entanto, interpretam esse dado no sentido de que Paulo se vol-
pois eu não ousaria falar de coisas que Cristo não tivesse realizado por meio de
tou exclusivament.e para israelitas residentes entre gentios (cf. MALINA; PILCH,
mim para obter a obediência dos gentios, em palavra e ações, pela força de sinais
2006), embora, como veremos, suas cartas reflitam uma composição mais plural.
e prodígios, na força do Espírito de Deus: como, desde Jerusalém e arredores até
a llfria, eu levei a termo o anúncio do Evangelho de Cristo, fazendo questão de Paulo tem, portanto, um projeto relativamente definido: reconstruir Israel
anunciar o Evangelho onde o nome de Cristo ainda não era conhecido, para não mediante a incorporação de todas as nações (cf. Rm 11,16-32), talvez simbolizado
con truir sobre alicerces lançados por outros, mas, conforme está escrito: Vê-lo-ão na ideia de que Roma aceite Jesus como Senhor. Contudo, uma coisa é saber o
aqueles a quem não foi anunciado, e conhecê-lo-ão aqueles que dele não ouviram que se quer, e outra bem diferente é saber como se pode realizar. Paulo havia
falar (Rm 15,17-21). aprendido muitas coisas durante o tempo que passou com Barnabé e os demais
em Antioquia; tinham iniciado uma missão para convencer gentios de que podiam
Três ideias marcam o programa de Paulo neste texto: a primeira é a cons- sentar-se à mesma mesa que os judeus sem circuncidar-se, mas aquele projeto se
ciência de ser "apóstolo dos gentios" (cf. Rm 11,13) e de ter orientado sua missão havia truncado, como vimos. Agora devia começar do zero, sem alicerces antigos,
para eles. Paulo remete esta autoidentificação ao momento de sua vocação (Gl 1,16) sem preconceitos sem ideias preconcebidas, sem censuras ... , com liberdade. Esta
e a vê con.fumada no acordo de Jerusalém, que repartia a missão (Gl 2,9). Paulo liberdade que Paulo alardeia, às vezes de modo apaixonado ("É para a liberdade
vai pôr urna ênfase incomparável na reconstrução de Israel, de modo que reflita que Cristo nos libertou'', Gl 5,1), é a que vai guiar esta etapa e a que dá ideia de
o final da separação entre judeus e gentios; pôr fim a essa divisão, mais do que à sua ambição.
94 95
SíG.lCll ME • Quais seio os aspectos centrais do tema? Oinício da ekklésia

A fonte para conhecer como PauJo de envolveu e te projeto ão, ba ica- egundo lugar, Paulo diz ao te alonicen e que. ··partindo de YÓ • divulgou a
menle. uas carta ; conta- e, ademai , com o Ato dos Apó tolo . Contudo. amba Palavra do enhor. não apena pela Macedônia e caia, ma propagou- e por toda
as fonte apre enlam dificuldade . O Livro do Alo . como di emo no egundo parte a fé que tende em Deu ... l'n 1.8). Me mo que provavelmente o "por toda
capftulo. foi e crilo cerca de ci nquenta ano- depoi do acontecimento narrado , parte'' configure um exagero. o modo como e comunicava a boa not ícia do Deu
tem uma agenda teológica muito definida (diferente da de Paulo) e não é uma crônica de Je u não era atravé de grande di curso perante multidõe reunida . ma de
do fato , mas uma intepretação. Devemo , poi . u á-lo contra tando-o empre com boca em boca, de uma p oa a outra.
a carta originai de Paulo. E tas cartas. por ua vez, tampouco ão uma crônica
À parte as carta . a arqueologia e a hi tória também trazem dado útei .
do acontecimento , mas a respo ta que Paulo envia à as embleias que criou: ou
e cavaçõe arqueológica do último decênio . não somente inter sada no edifí-
eja. refletem não o momento inicial, a primeira fa e de ua mi ão. mas a con er-
cio mai importante e luxuo o , ma também no modo de morada mais comun ,
vação do que foi criado, a segunda fa e (PE CE. 1994). Devemo upor que Paulo
quando chegava pela primeira vez a uma cidade omo Filipo , Tes alônica. Corinlo descobriram que a maior parle da população na cidade que Pau lo vi itou vivia
ou Éfe o. não dizia o que con ervamo em ua cartas. Não ob lante, a partir do em bloco de moradia que o arqueólogo chamam de insulae (ilha ). con truída
dado que no dão ambas a fonte e do que outra fonte hi tórica , juntamente obre uma primeira planta, onde ficava a casa do dono do olar. a moradia mai
com a arqueologia no têm revelado, podemo recon truir com ba lante garantia luxuo a. A partir da egunda planta e conforme a altura e elevava. a qualidade e o
o cenário no qual transcorreu o início da mi ão paulina ao redor do Egeu. preço do aluguel do quarto d eia (entre outras razõe , porque. quanto mai alto.
mai difícil era escapar do frequente incêndio ). AJém des as pequena moradias
O autor do livro do Ato no diz que, quando Paulo chegava a uma cidade
de aluguel. na planta baixa, rodeando a moradia do dono, arrendavam- e também
pela primeira vez, geralmente bu cava a inagoga para encontrar- e com o judeu
lenda ou ateliê (tabernae), que tinham um pequeno cubículo obre ele para
que houve e ali; pregava-Lhes o Evangelho ma , segundo Luca , ele rechaça-
dormir durante a noite: durante o dia, a famíl ia trabalhava e vendia eu produto
vam-no. razão por que Paulo lhe lançava no ro to ua dureza de coração e lhe
na lenda. O arqueólogo mo lraram também que o indicato tinham tendência
anunciava que o pregaria ao- gentio (veja- e. por exemplo. Al 17,1-9). Em outra
de agrupar- no me mo bairro (LAURENCE: WALLACE-HADRILL. 1997).
oca iõe , dirigia- e à ágora e ali pronunciava eloquente e convincente di curso
Deverfamo , pois, imaginar Paulo bu cando o indicato do fornecedore quando
que logravam grande atenção (veja- e At 17,16-34). Nenhuma d a notícia pode
chegava a uma cidade, pondo- e a trabalhar durante o dia, enquanto lhe falava do
er confirmada pela cartas de Paulo (que, por outro lado, tampouco as negam);
Deu de Je u que o havia res uscitado depoi da morte na cruz e que em breve ia
ambas, no entanto. refletem a intenção teológica de eu autor: mo trar Paulo como
um sábio eloquente, à altura do mai famo o filó ofo , e explicar que o anúncio vir para inaugurar o tempo final. E ta notícia. à med ida que penetrava fundo em
do Evangelho ao gentio foi uma con equência da rejeição de l rael, que Deus algun do que o e cutavam, corria de boca em boca e re oaria por toda a cidade.
abriu a boa notícia da aJvação a todo o povo porque o judeu a recu aram. Por fim uma notícia do hi toriador Celso. que viveu em meado do éculo
A cartas de Paulo, por ua vez, ofer cem dado de uma e tratégia bem li, confirma que este cenário de crito era ainda o que perdurava em muitas a -
diferente. Em primeiro lugar, Paulo escreve. em diferentes oca iões, que e pô a embleia de crente :
trabalhar com sua mão tão logo chegou a TessaJônica (l'J: 2,9; 4,11) ou a Corinto
1
(lCor 4,12). E te dado, im, coincide com a de crição que Lucas faz de Paulo em as casas privadas. vemo também tecedores de lã. sapateiro remendões. lavadores
At 18,1-4, em que se diz que era fabricante de tenda ou tecedor de lonas e couro de roupa e o mai iletrado e to o do campo, que não e atreveriam a dizer nada
(skênopoios), e que, em Corinto, e pô a erviço de un pequeno empresários diante de eu me tres mai velho e mai inteligente ; mas tão logo se apoderam,
chegado de Roma, Priscila e Áquila. O próprio Paulo diz que e ta era a ocasião em privado, de alguma crianças e, com elas, de alguma mulhere estúpidas, estes
para anunciar o Evangelho, "enquanto trabalhava'' com suas mão (11 2.9). Em iletrado começam a pronunciar algumas afirmações urpreendentes ... Dizem [ao

96 97
SEGD m •Quais são os aspe<tos centrais do tema? Oinício da ekXJesia

joven-] que e quiserem [o EvangelhoJ, podem deixar seu pai e mestres para ir resto do magnífico Sebasteion, da cidade de Afrodi ia. também perto de Éfe o,
com a mulhere e as crianças pequenas à tenda do tecedore de lã. ou às ten- dão conta di o: cf. CRO A ; REED, 2006).
das do apateiro remendõe ou do lavadore . de modo que po am aprender a
Portanto, quando Paulo lhe contava, enquanto eslava cosendo no ateLiê com
perfeição (ORÍGE E , Contra Celso 3,55).
o demais, que a verdadeira boa notícia era a vida de Jesu , contra quem o podere
Portanto, embora as notícia de Lucas pud em e Lar certas em algum de repre são e dominação de Roma haviam de carregado toda ua força, e a quem
lugar. o dado mai firme esboçam um cenário diferente no qual Paulo iniciou lahweb havia reivindicado porque não havia re pondido com violência e havia as-
sua mj ão: o dos aleLiê de artesão que faziam correr a voz. na medida em que urrúdo a humilhação e o de prezo até à morte de modo verdadeiramente honorável,
e convenciam dis o, de que havia um novo pregador que tinha uma boa notícia mostrando como age, sem vingar-se nem castigar. mas dando outra oportunidade
{Evangelho) impactante, inaudita, e peranço a... E te contexto enfatiza, mais do para construir seu mundo..., quando Paulo lhe contava is o, que efeito causaria
que a eloquência de Paulo, o impacto que o anúncio do Crucificado deixava na vida em quem conhecia de perto o medo e a con equência do "evangelho" de César?
daqueles artesão que, como ele, estavam aco tumados ao "evangelho' do imperador. ão é difícil imaginar o que aquele" enhor crucificado", ressuscitado por Deus,
Quando aqueles arte ão escutaram Paulo falar de "evangelho", de ··saJvação.., de foi capaz de suscitar em muitos que haviam experimentado a con equências do
·'perfeição", de "esperanças·', de '· enhor", de "filho de Deu " etc., a maioria deles 'evangelho" da submis ão, impo ição e hurrúlhação: paz, proximjdade, identifica-
o relacionava com outro contexto diferente, o da propaganda imperial. ção, solidariedade ..., e perança. Com estes vime é que Paulo começou eu cesto.
Parece-me importante ubLinhar este entusiasmo na hora de descrever o início
Vi to que a providência. que ordenou divinamente no sa exi tência. aplicou ua da ekklêsia, uma vez que somente a e tratégia, por mai genial que eja. creio que
energia e zelo. e deu vida ao bem mai perfeito em Augu to. a quem colmou de não explica o êxito de grupo que começaram de modo mai discreto e imples,
virtudes para benefício do gênero humano outorgando-o a nó e a no os des- mas que cresceram muito e e e tenderam rapidan1ente. a origem de las a sem-
cendentes como salvador - ele que pô fim à guerra e tudo ordena - , César, que bleias, há um impacto que tem tran cendência para a identidade pes oaJ, para o
mediante ua epifania excedeu a esperanças do que anteciparam o Evangelho ... sentido e esperança da vida, para a compreen ão do tempo presente e futuro, para
e dado que o aniversário do deu trouxe o Evangellw ao mundo que se fez por as relações das pessoas entre i, para compreender o alcance do poder do Império
ele ... , por e sa razão. com boa orle e egurança, o gregos da Ásia [decidfram ou das autoridades ..., para mudar o olhar, a perspectiva, o horizonte.
que o ano novo deve começar em toda as cidade no dia 23 de etembro, o dia
do aniversário de Augusto). Que fez Paulo quando havia um pequeno grupo de pes oas locada por
este novo Evangelho que queriam saber mais, como viver de acordo com ele, como
Este texto pertence a uma in crição achada na cidade de Priene, perto de cultivá-lo e amadurecê-lo? A e ta altura do livro, o leitor ou leitora não precisa de
Éfeso, e datada do ano 4 a.C. O "evangelho' que aqueles conheciam era o do impe- que eu lhe recorde que Paulo não criou uma nova religião; Paulo criou determj-
rador, e con i tia, basicamente, na convicção de que ele mantinha a paz mediante nados grupos ou assembleias (ekklêsia~ nas quais cabiam pessoas de diferentes
a impo ição de seu poder a toda a criação (pe~ oas, naçõe , natureza, tempo...}; procedências {étnicas, religiosas, geográficas, sociais etc.). Os sociólogo dizem que
era o evangelho da luta, da vitória e da dominação. A ideia do poder da divindade o que Paulo fez re ponde ao modelo de "culto", descrito como um "movimento inte-
residia em sua força para impor-se, para submeter, para humilhar o inimigo; a di- grador, amiúde sincretista, que se importa eficazmente (por translado ou mutação}
vindade definia-se pela capacidade de exercer sua força sobre os outros: as vítimas, para outro sistema cultural religiosamente definjdo, com o qual busca sintetizar
os submetido , tão necessários para a manutenção da pax romana. A iconografia sua nova visão simbólica do mundo" (WHITE, 2007, p. 170). Este modelo ajuda a
dos monumentos que decoravam as cidades colonjzadas por Roma transmitia essa captar o caráter integrador da proposta de Paulo: o que cria não são apenas laços
ideia político-teológica: o senhorio do César garantia a paz e dava esperança {os e relações entre pessoas, ou uma nova identidade pessoal (conquistas já, por si,
98 99
Oinído da ekklêsia

memorávei ). ma Lambém wna nova co movi ão que re ulLa do pôr em diáloP'o relaçõe e o inLercârnbio ocia l era a das as ociaçõe voluntária em torno de uma
ua própria concepção judaica de crente em Je u com a realidade comple..x.a da caracterí Lica comum parLilhada por Lodo o u membro · e-ta podia ser a lrmrua,
vida da pól i no Império Romano. Paulo a ertou na combinação de identidade e a origem éLnica. o indicaLo. a divindade ou palrão benfeitor etc. Tinham reuniõe
imporlância. de pertença e aberLura. de eparação e inte!!fação. de diferenç-,a e periódica nas quai e con umia comida com uma obrem a. cultivavam- e a
emelhança, que fez de ua a emhleia algo idenLificá\'el e com identidade. e. ao relaçõ ociai . fomentava- e a olidariedade econômica. fortaleciam- e o laço
me mo tempo. algo exequível e aceito pela maioria. O caracterísLico Linha ua raiz de pertença à cidade, recordavam- e o defunto . honravam- e o benfeitores etc.
na boa nolícia da cruz de Je u (e e paradoxo!): o exequível ba eava- e em uma (HARLAND. 2003). E ta e trutura popular ajudou Paulo a organizar ua a em-
organização reconhecível e de ejável, porque oferecia muita vanLagen ociai . bleias, dando-lhe e tabilidade utilidade: reuniam- e periodicamente (lCor 11,18),
Para a organização de ua a embleia , Paulo a umiu vário modelo do cultivavam a olidariedade econômica (l Cor 16,1-2), consumiam uma refeição com
ambiente, facilmente reconhecíveis e de ejávei : a ekklêsia da cidade, as associaçõe obreme a (lCor 11,2-34). recordavam o morto (lCor 15.35-53), ofereciam culto
,·oluntária , a ca a-família. a religiõe mi téricas ou a inagoga (MEEK . 1988, p. ao patrão benfeitor (lCor 11,23-26; 15,3-8) ele. Diferentemente daquela , Paulo
131-148). De todo e Le modelo Lirou algo, mas não a imilou totalmenle nenhum imprimiu em uas as embleia um caráter mai ab orvente e exigente. com uma
dele . criando uma e trutura com idenLidade. mas exequível. O termo ekklêsia identidade em torno de Je u mai definida do que outra a sociaçõe .
não era invenção paulina (Lampouco do heleni ta ). Entre o judeu da diáspora. Quando Paulo trabalha no ateliê do fornecedore que U1e davam trabalho,
este termo era a tradução grega de uma expre são hebraica (qehal Yahweh) que pa ava a fazer parte da ca a do dono; com ele , comia, dormia e vivia, além de
e utilizava para referir- e à assembleia de Lodo o povo de 1 rael; e ta CÃl>Te são trabalhar. A família era, fundamentalmente. uma unidade de produção; a ela
hebraica também era traduzida em grego por synagôgê ( inagoga). que e uLilizou pertenciam todo o que contribuíam para eu patrimônio material (dinheiro ou
para de ignaro grupo de judeu na diá pora. U ando o termo ekklêsia, o cren- propriedades) ou imaterial (honra ou pre lfgio). Ma era também un1 lugar de cultivo
te em Cri to, como Paulo, podiam identificar- e plenamente com o judeu . o das relações afetiva , e pecialmente entre irmão e irmã , Lalvez o vínculo que
entanto, a maioria do arte ão ao quai Paulo falava abia pouco desta tradição e perdurava durante mai tempo na vida de um habiLanle das cidade mediterrânea
de eu enLido; para eles, a ekklêsia era a as embleia do cidadão , varões e livres naquele tempo. Provavelmente por i o. muito utilizavam a linguagem familiar,
de ua cidade. A ela não podiam pertencer a mulhere , nem o e cravos, nem o fraterna, para esLimular a relaçõe afetiva . de confiança e de acolhimento. o caso
e trangeiro re identes. Em uas reuniõe e honrava o imperador (por quem e de Paulo, a linguagem fam iliar tem uma pre ença e magadora, a ponto de parecer
ofereciam acriffcio ou übaçõe ). além de e deliberar obre as unto da cidade. que Paulo tives e tentado uma re ocialização do membro de uas as embleias
Era, em definiLivo, urna in LiLuição de caráter político, a repre entação ou man i- para que deixassem para trá alguns laço fam iliares e e vinculas em ao demai
fe lação da identidade polrLica da póÜ . Paulo Lambém utilizou o termo politeuma crenle em Cri to como eu verdadeiro irmão e irmãs, formando uma família
("Mas a no a cidade e tá no céus"'. Fl 3.20) que fazia referência a organizaçõe onde já não haveria um pai enão o Deu de Jesus (ou, ocasionalmente, ele me mo:
com certa independência e autonomia, como a inagoga, alienlando que suas a - lCor 4,15-16). Isto fazia da ekklêsiai uma espécie de famílias de uh tituição,
embleia (ekklêsiai) Linham certo caráter alternativo (HOR LEY, 1997). Paulo. mesmo que nada patriarcai . porque nela devia haver uma igualdade revolucio-
portanto, organizou suas as emhleias como organizações livres e autônomas, embora nária entre homen e mulheres, entre escravos e livres, entre judeus e pagão (Gl
também tenha buscado outras caracterí tica diferentes. 3,28). Como veremos mais adiante, i to teve profundas implicações para o devir
Muitos do habiLantes das cidades, especialmenle entre os artesãos com o dessas assembleia .
quais Paulo se relacionava, eram estrangeiro ou procedentes de outros lugares, com O imperador, como mencionei antes, exercia função político-teológica, con-
pouco contatos sociais. Uma das plaLaformas mai e tendidas para favorecer as servando a ordem na terra e no cosmo. Os cidadãos colaboravam com a manutenção
100 101
SEQ#l!lA PAATE ·Quais são os aspectos (entrais do tema? Oinício da ekklêsia
desta ordem, entre outras formas, mediante o culto ao imperador (com acriffcios, confrontadas ou opostas à sinagoga (RUNES ON: BINDER; OLSSON, 2008, p.
libaçõe ou reconhecimento público). Es es ato de devoção (políticos e religio os ao 4), ma como convites a entender como deve er Israel. Ou eja, Paulo não pensava
mesmo tempo), não impediam a participação em outros cultos permitidos, nos quais que a ekklêsia tivesse rompido com a inagoga e que era a verdadeira herdeira do
o indivíduo cultivaria uma relação mai pessoal ou espiritual com uma divindade. povo eleito; aliás, acreditava que a ekklêsia devia mostrar à sinagoga qual era a
Estes cultos (chamados de religiões mistéricas, porque incluíam uma dimensão verdadeira identidade do judeu: acreditar em Iahweh tal como se mo trava na morte
oculta aos não iniciados) podiam oferecer resposta a interrogações existenciais de Jesus (cf. Rm 11,16-32).
como o sentido da vida ou da morte, a esperança de uma vida para além da morte,
Tudo o que foi dito lança algumas conclusões: Paulo assumiu modelos de
o porquê da dor ou da perda ... Baseavam-se em rituais (acompanhados de relatos
seu ambiente para dar forma às suas assembleias, mas não a converteu em algo
núticos) que permitiam ao iniciado uma relação pessoal com a divindade e, por
igual a eles, mas combinou de modo original o particular com o emelhante, o
ela, uma revelação de sentidos ocultos, rnistéricos, da vida e da morte. Com certa
próprio com o comum, a novidade com o conhecido. Em algumas coisas, sua ekk-
frequência, es e rituai permitiam também a criação de espaços alternativos nos
lêsia assemelhava-se a muitas estruturas se que demonstravam bem-sucedidas e
quais se uspendiam temporalmente as hierarquias e laços ociais e políticos, e se
ofereciam benefícios de diverso tipos, mas tinha diferenças surpreendentes. Era
criavam novas relações e possibilidades com a ideia de mitigar tensões sociais e
uma estrutura fundamentalmente privada (como a casa), mas com uma vocação
introduzir mudanças nos modelos hegemônicos (As Bacantes, de Eurípides, é um
pública muito atraente (como a ekklêsia)· era uma organização mista e plural (corno
exemplo extremo). Paulo pôde ver também nesses cultos um modelo com o qual criar
as associações voluntárias), mas com uma alteração dos papéi hegemônicas (como
e paços alternativo que permitissem construir outras relações entre o membros em alguns cultos rnistéricos); cultivava fortes vínculos afetivos (como a casa), mas
("pois todos vós que fostes batizados em Cristo, vos vestistes de Cristo. Não há judeu não renunciava a uma dimensão supralocal (como a sinagoga ou as associações);
nem oITTego' não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós criava um espaço de oração e de recolhimento (como a sinagoga ou os cultos), mas
sois um só em Cristo Jesus", Gl 3,28) e uma relação pessoal com a divindade; ao desafiava os valores hegemônicos dominantes a partir do sentido da cruz, exigindo
mesmo tempo, lograva-se um sentido para a vida e consolo diante da desgraça ou recriar as relações pessoais e sociais etc. No capítulo seguinte, vamo ver como
da contingência. No entanto, Paulo deu às suas assembleias uma dimensão ética e Paulo se arranjou para conseguir que os crentes em Jesus, os membros destas
comprometida com os irmãos e irmãos que tais cultos não possuíam. assembleias, fossem adquirindo consciência da própria identidade, conferindo-Lhe
Por fim, como dissemos antes, o próprio termo ekklêsi,a remetia também à conteúdo distinto, peculiar, que os fazia parecidos mas diferentes.
me ma origem de outra assembleia que os judeus tinham construído na diáspo-
ra: a sinagoga (LEVINE, 2000). Este termo referia-se ao grupo de pessoas que Bibliografia
tinham espaços de reunião aos quais chamavam proseuchê, "lugar de oração";
neles, celebravam-se rituais, liam-se os textos sagrados traduzidos para o grego (a CROSSAN, John Dominic; REED, Jonathan L, En busca de Pablo: el Imperio de Roma
y el Reino de Dios frente a frente en una nueva visi6n de las palabras y el mundo
Septuaginta ou tradução dos LXX) comentavam-se e discutiam-se outras tantas
dei ap6stol de Jesús, Verbo Divino, Estella, 2006.
questões atinentes à vida cotidiana. A sinagoga tinha uma organização mais ou
HARLAND, Philip A., Associations, synagogues and congregatwns: claiming a place in
menos estável, como chefes (archisynagôgoi) e anciãos (presbyteroi), além de outros
Ancient Mediterranean Society, Fortress, Minneapolis, 2003.
cargos. Parece fora de dúvida que as assembleias de Paulo seguiram também o
HARRILL, James Albert, Paul the Apostl.e: his life and legacy in their Roman contexl,
exemplo da sinagoga da diáspora 0eitura das Escrituras, explicação e aplicação a Cambridge University Press, Camhridge-New York, 2012.
situações concretas, educação, julgamentos internos, hospitalidade.. .). Para Paulo,
HORSLEY, Richard A, I Corinthians: A case study of Paul's assembly as an altemative
o sentido veterotestamentário que mencionamos anteriormente devia ser muito society, in HORSLEY, R. A. (ed.), Paul and Empire: Religion and Power in Roman
importante e em nenhum momento dá mostras de pensar suas assembleias como Imperial Society, Trinity Press Intemational, Rarrisburg, PA, 1997, p. 242-252.
102 103
~ PWI • Quais são os aspectos centrais do tema?

LA RE CE. Ray: WALLACE-HADRJLL ndrew. Domestic space in the Roman world:


Pompeii and beyond. JRA. Portsmouth. RI. 1997. Capítulo 5
LE 1. E. Lee 1., The ancient s_ynagogue: the first thou and years. Yale niversity Pres .
'ew Haven. 2000.
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. o capítulo anterior. vimo como Paulo começou este projeto de con trução
MEEKS, Wayne A., L-Os primeros cristianos urba1ws: el mundo ocial dei apó lol Pablo,
da ekldêsia, corno deu início à ua tarefa, que e tratégia as umiu ao chegar a cada
fgueme, alamanca, 1988.
cidade, qual era o núcleo de ua men agem, que modelo de eu ambiente tomou
MYLLYKO KJ, Matti, James lhe Ju t in hi tory and lradition: Perspective of past and
como referência e que a peclo eram diferente e originai . Tudo i sono deu uma
pre enl cholarship (Part 1), Currents in Biblical Research 5.1 (2006) 73-122.
ideia do início. do momento fundacional, com ua emelhança e diferença em
P I TER, John. Just James. The brotherof Je u in hi lory and tradilion, Fortres Pre .
relação a tudo o que conhecia no lrnpério Romano. Que providência Paulo
Minneapoli , 1999.
tomou. a partir do momento em que a a embleia e ba,riam con tituido e e
PE CE. Mauro, Le duefasi delta predicazione di Paolo: daU'evangelizzazione aUa guida
delle comunilà, Dehoniane. Bolonha, 1994.
reuniam uma egunda vez? Como con eguiu oferecer urna identidade própria, que
pude e interiorizar- e para oferecer e tabilidade? amo fixar-no no concreto
POPKE . Wiard, Leadership: )ame , Paul. and their conlemporary background, in
CHILTO , B. O.; EVAN , C. . (ed.), Missions of James, Peter, and Paul, BrilJ, do dia a dia de uma a embleia paulina, em como organizou ua compo ição, ua
Leiden-Boston, 2005. p. 323-354. e !rutura interna, eu confüto , a autoridade, a ética etc. Paulo. já o di erno , não
RJTSC HL, Albrecht, Die Entstehung der Altkatholischen Kirche: eine Kirche und Dog- organizou a ekklêsia a longo prazo: não de enhou uma in tiluição para que perma-
menge chichlliche Monographie, A. Marcu & E. Weber, Bonn, 1857. nece e inalterável no tempo. Paulo foi re olvendo o dia a dia do melhor modo que
R NE O , Anders; BCNDER, Donald D.; 01.S ON, Birger. The ancientsynagoguefrom pôde, pen ando no final que e aproximava; contudo. e sa re postas de ituação
its origins to 200 C.E.: a ource book, Brill, Leiden-Bo ton, 2008. oferecem-no muito dado obre a identidade que ele acreditava que a ekklêsia de
WHJTE, L. Michael. De Jeszís ai cristianismo: el uevo Te lamento y la fe cristiana, un Deu devia ter {cf. CAMPBELL. 2008).
proceso de cualro generacione , Verbo Divino, E tella, 2007.
ZETIERHOLM. Magnu , The formation of Chri.stianity in Antioch: a ocial- cientific 1. Primeiros conflitos e desafios da ekklêsio
approach to Lhe separation between Judai mand Chri tianity, Roulledge, London, 2003.
ZOCCALJ, Chri lopher, Whom God has caUed: the relationship of church aru.l lsrael in A combinação peculiar do que era novidade com o conhecido, como vimo ,
Pauline interpretation, 1920 to the present, Pick\\~ck, Eugene. OR, 2010. deu ao grupo de Paulo uma identidade definida e cada vez mai reconhecível.
Aquele que e entu ia maram com a men agem da cruz podiam. além domai .
ver as vanlagen ociai e a oferta de entido que trazia o fazer parte de a as em-
bleia que e iam constituindo. Entre o que e incorporavam. havia. em dúvida,
algun judeu ; havia também algun do que temo chamado '·temente a Deu ",
gentio crentes em lahweh; contudo, fundamentalmente. havia gentio . muito dele
arte ão ou de eu círculo ociai . que participavam regularmente de alguma
as ociação voluntária. talvez também de algum culto mi térico, que tinham ua

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SmnalA PWE ·Quais são os aspectos centrais do tema? Aidentidade da ekklésia

vinculações e pertenças em diferentes âmbitos. A incorporação à ekklêsia oferecia como Paulo havia começado uma tarefa em Éfeso que não podia deixar (lCor 16,8),
muitas das vantagens que estas instituições já possuíam, mas mostrava-se mais e creveu uma carta {à qual pertence l Cor 10,1-22) com instruções para resolver
exigente, ou seja não era fácil combinar a pertença à ekklêsia com outras perten- este problema. Nela, dá razão aos que consideram que participar de sa refeições
ças (a um culto, à sinagoga, a determinadas associações voluntárias ...). Um ca o é idolatria, é como entrar em comunhão com deuses falsos ("ídolo ", "demônios'',
particular, acontecido em Corinto por volta do ano 52 d.C., pode ilustrar muito bem l Cor 10,19-20), e lhes responde firmemente: "Não quero que entreis em comunhão
as dificuldade para sublinhar a novidade e conservar a proximidade (a complexa com o demônios. ão podeis beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônio .
sequência cronológica dos textos será vista no capítulo sexto; agora só nos intere sa Não podeis participar da mesa do Senhor e da mesa dos demônios. Ou queremos
o conflito e o que ele revela). provar o ciúme do Senhor? Seríamos mais forte do que ele?" (l Cor 10,20-22).
Uma das ocasiões em que se podiam experimentar e desfrutar as vantagen de Esta respo La Laxativa e sem rodeios deve ter sido como um balde de água fria
viver na cidade (fo e um cidadão ou estrangeiro acolhido) era a das festas nas quais para o que pen avam que podiam participar dessas refeições, talvez estimulados
se organizavam comidas populares para consumir parte dos animais oferecidos em pelo valor social que Linha para eles; abster-se de participar podia supor um duro
sacrifício à divindade que patrocinava o evento, que podia ser também o imperador revés econômico e uma perda de prestígio social . No entanto, a história não acabou
(FOTOPOULOS, 2003). Essa carne acrificada e consumida era, ritualmente, um aqui. Este grupo, insatisfeito com a resposta, voltou à carga enviando a Paulo uma
sinal de comunhão de cada pessoa com a divindade e de todos os participantes entre carta com várias perguntas, entre as quais uma sobre as razões da peremptória
si (fossem estes a cidade inteira ou os membros de uma associação particular). Era proibição e na qual deviam expor seus próprios argumentos para participar de tais
também uma excelente ocasião para o cultivo das relações sociais, para a exibição refeiçõe . A julgar pela resposta de Paulo, que a menciono em seguida, as razões
do prestígio (simbolizado, por exemplo, no lugar resen 1ado na mesa pública) ou para dos coríntio eram contundentes e estavam muito bemjustificadas teologicamente, a
melhorar de status na complexa trama de clientelismo que estruturava cada cidade ponto de obrigarem Paulo, se não a mudar sua ideia inicial, pelo menos a matizá-la
(MALINA, 1995). Ninguém queria perder tais oportunidades, exceto os poucos e a argumentar com mais cuidado e fundamento. Eles baseavam-se em um princípio
que tinham algum tipo de incompatibilidade por causa de seu próprio culto, como muito imples: o monoteísmo. Afirmavam que, como provavelmente Paulo mesmo
muitos judeus (nem todos os judeus, mas os que viam incompatível o monoteísmo Lhes havia dito, Deus somente é único e. portanto, tudo mais não pode ser deus
e as comidas sacrificais). Os que tinham problemas de consciência, abstinham-se nem ter valor sagrado, mesmo que alguns o queiram admitir por ignorância (l Cor
de participar de tais eventos, com as consequências decorrentes: receios, rotulação, 8 1-6). Quando Paulo lê este argumento, não pode senão admiti-lo, e e creve-Lhes
hostilidade ou segregação. aceitando-o (l Cor 8,4): só há um Deus, o Pai, como só existe um Senhor, Jesus. Por
coerência com este fundamento, a participação nas comidas fica dessacralizada e,
Quando Paulo chegou a Corinto no ano 51 d.C. e se pôs a trabalhar como
portanto, legitimada porque carece de sentido teológico para os que creem no Pa i
artesão, surgiu uma pequena assembleia de crentes em Cristo. Ao cabo de pouco
como único Deus e em Jesus como único Senhor. Com esta resposta de Paulo, os
mais de um ano, quando Paulo tinha saído em viagem a Éfeso, deu-se a ocasião
destinatários daquela carta podiam participar dessas refeições, quer fossem na
de pôr à prova o entido de pertença: alguns crentes tiveram a oportunidade de
casa de um não crente (lCo 10,27), quer fo sem em um templo de deuse pagão
participar de uma comida sacrifical, provavelmente convidados por uma pes oa
(l Cor 8,10).
que não era crente (l Cor 10,1-22). Isto provocou diversa posturas, tensões e mur-
murações de uns contra os outros: uns queriam participar e assim o justificavam: No entanto, o problema ainda sofreu outra guinada, porque Paulo se reservou
outro , porém, não queriam nem aceitavam que aqueles o fizessem; para e tes, uma condição para aceitar este argumento: que não prejudicasse a consciência de
comer a carne sacrificada aos deuses era idolatria. Alguns coríntios, entre ele outro membro da ekklêsia que não tem o conhecimento ou a formação para pen-
Estéfanas, Fortunato e Acaico (l Cor 16,17), foram contar a Paulo o que acontecia e, ar com essa Liberdade (l Cor 8,1-9). Ou eja, a participação nessas festas estava
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~ PAm ·Quais são os a5pectos centrais dotema? Aidentidade da ekklêsia

p rmiLida e legilimada exceto no caso em que tal parlicipação feri e a con ciência 2. Anova identidade na ekklêsia
daquele a quem Paulo chama '·fraco ·•. o que não têm o conhecimento ou a for-
mação nece ária. E te . egundo Paulo. não ão judeu radicai , ma indivíduo Paulo leve que empregar uma enorme quanlidade de energia para con eguir
'·habituado ao culto do ídolo .. (l Cor 8.7). aquele que comeram com frequências . te grau de idenlilicação da maioria com ua ideia da ekklêsia. l to é o que o
n as oca iões com um entido de comunhão com a divindade patrocinadora; ão. ociólogo chamam de proce o de r ocialização ou "alternação·· (BERGER,
portanto. antigo devoto do culto . que ainda não formaram totalmente ua con - 1976. p. 81-96), que permitem à con ciência ubjetiva do indivíduo adotar nova
ciência de crente em Cri to. E te . ao ver que outro mai formado ou forte de identidade (ou parte dela). A identidade pe oal não é uma realidade fechada e
con ciência participam, podiam precipitar- e a fazer o me mo em e tar preparado inamovível. mas um conjunto de pertença . vinculaçõe ou eliquela com a quai
no identificamo : eslas e tão hierarquizada em no a con ciência. A im, uma
e podiam confundir- e ou perder- e (lCor 8,10-12). Por i o, po to que dê razão ao
"forte "ou "livre .,, obriga-o igualmente a levar em conta outro critério , além do pe soa pode idenli ficar- e mai com um judeu do que com o cidadão romano (ou ver
ambas a pertença em conflito), mai como crente em Cri to do que adorador de
da força da razão: concretamente, o cuidado com o fraco. E le argumento de Paulo é
muito util: não omente obriga o forte a pen ar também no fraco como também
f i (ou ver ambas em conflito), mai como homem ou e cravo do que como p oa
etc. A mudanças na vida das pe oa implicam mudança ne a vinculaçõe ou
obriga a todo , forte e fraco . a pen ar no plural, em comum. a tomar con ciência
pertenças que configuram a idenlidade ou a hierarquia delas (HA LBWACH . 2004).
da importância da con trução comum da ekklêsia.
Tai transformaçõe geralmente dão no marco de proces o de re ocialização,
Pode parecer um argumento com o qual quer dar razão a todo . "agradando em ambiente controlado .
grego e troiano ..: no enlanlo. não é as im. Na verdade. reflete uma caracterí tica
Diferente texto das carta de Paulo, que co tumam chamar--e ··bali mai ··.
muito p culiarda co1rtrução da as embleia paulina . Paulo não pretende proibir
têm como objelivo. preci amente. j to: re- ocializar o crente . Em Gl 3.23-4,7,
a participação na comidas sacrificai . ma formar con ciência forte e livres, criar
Paulo expõe uma érie de argumento muito elaborado que têm eu centro em
laço de coesão e fortalecer a con trução da ekh-lêsia acima do conflito e benefício
uma afirmação-chave: "Todo vó , que fo te batizado em Cri to, vo ve ti te
pe oai . Limitando a liberdade do forte e livres. obriga-o a pen ar no fraco ;
de Cri lo. ~ão há judeu nem grego, não há e cravo nem livre, não há homem nem
contudo, dando razão ao forte e livre , impele o fraco a olhar para além de ua
mulher. poi todo vó oi um ó em Cri lo Je u ··, GI 3,27-28). A parlicipação na
debilidade e a formar em i con ciência mai forte , ma i livres.
ekklê ia do crente em Cri to ex ige cond icionar uma érie de caracterf Lica da
E te epi ódio, portanto. en ina-no vária coi as. Primeiro. reflete um do própria identidade (gênero, elas e ocial. etnia ou nação ...) a outra ( er crente em
muito conflito d vido à pluralidade do crente em Cri to durante o primeiro Cri to). que deve funcionar como critério úllimo de governo da nova identidade.
ano e a tendência centrífugas que foi preci o enfrentar. egundo, e le ca o no Até e e momento. por exemplo. muito do novo crentes aceitavam em que tio-
mo tra que Paulo levou a ério o confüto . oube reconhecer algun erro e apro- nar determinada diferença hierárquica qu davam preeminência ao homen
fundou a bu a de razõe coerente com o princípio teológico da cruz. Terceiro, e te obre a mulhere . ou ao livre obre o e cra\'O . ou ao judeu obre o pagão .
conflito enfaliza a importância capital que leve para Paulo a primazia do enlido ou cidadão obre o e trangeiro . ou ao culto obre o inculto etc. A part ir
da morte de Je u ('· m irmão pelo qual Cri to morreu!", l Cor 8.11), acima de da incorporação à ekklêsia. apa rece um critério uperior que obriga a modificar
outras ideia teológicas e da lran cendência da coe ão de todo para vi ibilizá-La. a valoração de sas divi õ : na a embleia não e pode e Limar mai ao judeu
E quarto, e te epi ódio res alta que. ante de mai nada, Paulo tinl1a ba tanle do que ao grego. nem ao homem do qu à mulher, nem ao rico do que ao pobre
claro que a coe ão ou a comunhão em torno do entido teológico da cruz deviam etc. O bati mo devia funciona r como um verdadeiro rito de pa agem que, de um
realizar- por meio de medidas e deci õe prálica coerente com aquele. me mo lado, dei.xaria para trás a e trutura pe oai e ociai que não refleti em a nova
que e mo Ira em complexa , paradoxai ou urpr endente . identidade de crente em Cri to e. de oulro. as umiria nova estrutura , ralore ,
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Sfwu PMTE • Quais são os aspectos centrais do tema? Aidentidade da ekklêsia

crenças. prática ... que fo em coerente com o princípio teológico da cruz. Paulo também de experiência cari mática . como diz em lCor 2.3) devia reorganizar a
realiwu omente em parte esta tarefa titânica. próprias hierarquias de valores con oante es e novo princípio. e Deu e havia
manife tado surpreendente e paradoxalmente em um crucificado. humilhado.
l .1. Acomposição eaorganização da ekklêsia de prezado ... , o que acreditavam ne e Deu deviam tomá-lo vi frel também
em sua vida. em suas relaçõe ociai , no modo de organizar-se. na hierarquia de
E te interes e de Paulo por tornar coerente a vi ibilização da ekklêsia com a
valores que regiam todo o aspecto da vida ... Ou eja, deviam parecer- e. imitar,
novidade teológica da cruz pode er percebido claramente em dua caracterí ticas
refletir o Deus da cruz (2Cor 3,12-18). Em tal ca o, a melhor fonna de fazê-lo era
que e mo tram surpreendentes e estranhas, e tomadas i oladamente: a cornpo ição mo Irar-se não como uma a embleia podero a, culta, influente, eliti ta, patriarcal
e a organização interna da ekklêsia. Pode- e perceber a primeira em lCor 1,26-28: ou etnocênlrica, ma precisamente como um grupo aparentemente vulnerável,
débil torpe, marginal ou inde ejável, porque assim mostravam o rosto do Deu em
ede, poi . quem oi . irmão , vó que recebe t o chamado de Deu ; não há quem acreditavam.
entre vó muito ábio egundo a carne, nem muito poderoso , nem muito de
Esta é a razão que explica a e tranheza do texto anterior. Construir grupo
família prestigio a. Mas o que é loucura no mundo, Deu o escolheu para confundir
com tais critério de pertença, no quai o que predominam são o néscio , débeis,
o~ ábio : e. o que é fraqueza no mundo, Deus o escolheu para confundir o que
plebeus, desprezívei . o que nada valem nem contam.... é uma estratégia absurda
é forte; e, o que no mundo é vil e de prezado. o que não é, Deus escolheu para
e uicida: um grupo que bu ca o mais idiotas e meno capazes não obrevive.
reduzir a nada o que é.
Contudo, Paulo não procurava a obrevivência da ekklêsia; como já di e, ele es-
O que Paulo oferece ne ta reflexão, que provavelmente não se deve tornar perava o fim da história de modo iminente. Ele queria refletir. imitar, mo Lrar no
como uma declaração univer al, ma entender no contexto e pecífico de eu tempo presente esse rosto de Deus descoberto na cruz de Jesus, e a ekklêsia devia
de tinatário , é uma revi ão radical da hierarquias ociai a partir da pertença à ser esse rosto na hi tória que revela e quem e como é Deus, até que chega e o
ekklêsia de Deus; para Paulo, essa vinculação devia uperar e modincar as demais. tempo final, em que suas as embleias eriam apresentadas a Deus como uma noiva
A compo ição real das a embleias (ao meno em Corinto) não respondia ao padrões que o pai entrega ao noivo nas bodas (2Cor 11,2). De modo que Paulo não busca
hegemônico : a maioria era gente simples, artesão , não muito cultos, não muito na construção da ekklêsia os mais capazes para levar adiante um projeto hi tórico;
rico . não muito prestigio os etc. (HOLMBERG, 1995, p. 37-103). No entanto, e a tampouco o mai influentes, que podiam garantir sua boas relações: Paulo busca
realidade, talvez fonte de conflito ou de vergonha para muito (o mai culto , rico que as assembleias reflitam algo do ro to de Deus, sua identidade paradoxal eu
e pre tigio o entre o crente ). é apre entada por Paulo como inal e reflexo ocial ab urdo modo de estar na hi tória, eu contraditório projeto para restaurar I rael.
do princípio teológico da morte de Jesu com o qual introduz o parágrafo que lemo : A ekklêsia deve er, a im. paradoxal, para provocar a pergunta e o chamado em
·· ó . porém, anunciamo Cri to crucificado, que para o judeu é escândalo, para quem olhar para ela.
o gentio é loucura. mas para aqueles que ão chamado~. tanto judeu corno grego . Acontece a me ma coi a com a egunda característica mencionada: Paulo
é Cri to. poder de Deu e abedoria de Deu ,. (lCor 1.23-24). oferece orientações para a organização dentro das as embleias em l Cor 12,12-27.
Fazer parte da ekklêsia upunha, principalmente, aceitar o fato de que a Provavelmente, como no ca o anterior, e te texto re ponde a uma ituação confü-
morte na cruz de Jesus era o acontecimento mai importante da hi tória, porque tiva, cuja resposta não podemo generalizar; no entanto, reflete, como empre, as
nele e revelava Deus como é, sem véu que o ocultas em: Deus era assim. Aceitar e tratégias de Paulo e seu próprio critério de con trução da ekklêsia. Ne te texto,
is o, pre um ia, con equentemente, uma nova identidade, ou eja, que quem assim Paulo utiliza a metáfora do corpo humano, como faziam muitos em eu tempo, com
aceitava e experimentava a Deus (não era uma que tão omente de palavras, ma a ideia de oferecer um modo de coe ão e de unidade na diver idade ( EYREY,

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~ PA.'llf • Quais sãoos aspectos centrais dotema? Aidentidade da ekklêsia

1986). O mai urpreendente é como hierarquiza o membro do corpo humano vimo : propor o modelo teológico de Deu tal como e descobre no acontecimento da
para oferecer um protótipo adequado à sua identidade: cruz de Je us, para gerar forças de coe ão e diminuir as im as ten ões provocado
por protagoni mo , prerrogativas ou ambiçõe pe oa i , ublinhando e antepondo o
Ma Deu di pô cada um do membro no corpo. egunclo a ua vontade (...). O intere e do outro ao próprio (" ... nada fazendo por competição e vanglória, mas
membro do corpo que parecem mai fraco são os mai nece ário . e aqueles que com humildade, julgando cada um o outros uperiore a i me mo. nem cuidando
parecem meno digno de honra cio corpo ão o que cercamo ele maior honra. e cada um ó do que é eu. ma também do que é do outro . Tende em vó o mesmo
no o mem bro que são meno decente , nó o tratamos com mai decência; o enLimento de Cri to Je u ", Fl 2,3-5). O modelo, conforme di e, é o da divindade
que ão decente não preci am de tais cuidado . Ma Deu di pô o corpo de modo que e de cobre no Crucificado:
a conceder maior honra ao que é meno nobre ... (l Cor 12,18.22-24).
[Je u Mes ias] e tando na forma de Deu ,
Como no ca o anterior, um grupo cuja organização e hierarquia ão presididas não u ou de eu direito ele er tratado como um deus.
pelos membro con iderado mai vi e de onro o não pode aspirar a uma vida mas e despojou.
longa; e tá condenado ao fraca o ocial. e na assembleia paulinas e dava maior
tomando a forma de e cravo.
honra aos membros que todos consideravam mai torpes, né cios e de prezívei , não
tornando- e emelhante ao homen .
é difícil imaginar o cao interno e o conflito que e criariam; e Lavam fadadas ao
desastre. No entanto. como vimo antes. Paulo não busca (pelo meno omente) uma e reconhecido em eu a pecto como um homem.
organização interna eficaz. mas refletir o princípio teológico que confere identidade abaixou- e,
ao grupo. E a medida, como a anterior, não pretende organizar a ekklêsia de modo tornando- e obediente até a morte,
eficaz e permanente, mas refletir ua identidade, mostrar quem ão em todo o à morte obre uma cruz.
aspectos de ua vida. É a identidade de Deu que dá a identidade da ekklêsia; é a Por i o Deus oberanamente o elevou
vida cotid iana da ekklêsia que dá te temunho de Deu no contexto histórico em que e lhe conferiu o nome que está acima de todo nome.
vive. E te é o critério último que parece re ultar da e tratégia de Paulo: a criação
a fim de que ao nome de Je u todo joelho e dobre,
de seus grupo tinha como objeli\10 fundamental e primeiro refletir o Deu de Je u .
no céu , obre a terra e ob a terra,
e que toda língua proclame que o enhor é Je u Cri lo
2.2. Os conflitos eaestratégia de resolução
para a glória de Deu Pai (FI 2,6-11).
Os conflitos internos (ten ões entre crentes ou entre líderes locai ). a legiti-
mação da autoridade e o comportamento de viado (aquele que Paulo con ide- O exemplo de Je u crucificado é tomado ne te texto como ju tificação da
rava que e de viavam da identidade da ekklêsia) refletem também e La e lratégia exortação que citei ante (''. .. não fazendo nada por competição ... Tende em vós o
paradoxal. Enquanto Paulo e lava no cárcere em Éfe o. recebeu notícias de um me mo enlimento de Cristo Jesu "). Je us na cruz. mais do que na res urreição.
conflito entre dua mulheres que lideravam. cada uma, a embleia domé Licas em reflete quem e como é Deus (como vimos pormenorizadamente no capítulo terceiro):
Filipo : Evódia e Síntique (Fl 4.2-3). Paulo con idera-as 'auxiliare "ou "colega ' um Deus que e e vazia, e humilha, e entrega ... E te é o modelo que Paulo coloca
(synergoi). termo que se re erva ao mais próximo na mi ão da construção da diante do filipen e quando tem de re olver um conflito criado pela defe a do
ekklêsia. E te conflito aconteceu no âmbito de uma cri e, provavelmente comum próprio intere es, entimento ou opiniõe . Não e trata de que e te ejam maus.
em outra as embleias, provocada por divi õe , criação de subgrupo e ameaça inadequado ou heterodoxo . Paulo não avalia i o; o que diz é que o membro
de fragmentação (Fl 2,1-4: cf. l Cor 1.11-12). A e Lratégia de Paulo é a me ma que da ekklêsia não podem antepor eu intere es ou ideia pes oais porque. de e
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5EQl!llA 1mt • Quais são os aspectos centrais do tema? Aidentidade da ekklêsia

modo, não agem como Deus. Para Paulo, é assim tão simple : antepor as próprias que mostrava Deus criando o homem e a mulher iguais, ambos imagem de Deu ,
ideias, práticas, concepções, convicçõe ou interes es con trói uma assembleia ambo tendo autoridade obre a criação e exercendo o mandato divino de cuidar
que pode er muito eficaz socialmente, bem organizada. integrada. prestigiosa ou e ervir- e da terra.
interes ante, mas que não é a ekklêsia tou Theou, a assembleia do Deus de Jesus.
Paulo trata deste conflito de modo ambíguo, ao meno aparentemente. É
Paulo não é um homem que pense a longo prazo, pelo menos em Lermos de eficácia;
preci o levar em conta doi dado para entender a questão: primeiro, a dupla i-
não re olve os conflitos pensando na sobrevivência da ekklêsia. Ele o faz com uma
tuação que acabo de descrever, o enfrentamento entre dois grupos; e. segundo, que
fixação na cabeça: que tudo reflita quem é Deu .
Paulo não responde à pergunta sobre os papéis de gênero, mas ao conflito de dois
Outro exemplo de tratamento do conflito (Paulo teve muitos) é o caso dos grupos anlagoni tas que ameaça romper a ekklêsia. Paulo não toma o partido de
papéis dos homens e das mulheres nas assembleias, tal como vemos em lCor 11,2- uns ou de outros, nem se põe a discutir suas razões; ele já havia deixado clara sua
16. Este assunto mostrava-se muito complexo em Corinto no ano 51 d.C., a ponto postura alhures (Gl 3,28) e também a manifestará aqui, mesmo que indiretamente.
de o próprio Paulo ter consciência de que o conclui em firmeza, sem consen o; Paulo trata do que era, para ele, o verdadeiro problema: a divisão e a ameaça de
as im termina o tema: "Se, no entanto, alguém quiser contestar, não temos este desintegração. Ele vê dois grupos confrontados, ambos com razões válidas e com
co lume, nem tampouco as Igrejas de Deus" (lCor 11.16). Parece que, tal como
legitimidade para defender suas po turas, mas com o risco de que e sas ideias, visões
em outras associações e cultos. havia uma grande divisão na ekklêsia de Corinto
e decisões, sendo corretas individualmente, redundem mortais para a ekklêsia. É o
obre a funções que os homens e as mulheres podiam exercer, quando se reuniam
mesmo problema que vimos no exemplo anterior (Fl 2,1-11) e a mesma solução: a
todo para celebrar a refeição comunitária, a ceia do Senhor {cf. l Cor 11,17-21).
defesa dos próprios interesses, quando está em jogo a identidade da ekklêsia, não
Uns defendiam o modelo da família patriarcal para organizar estas refeições com
é o modo de visibilizar o Deus de Je us. Este é o princípio que Paulo apresenta no
sobremesa, o que supunha que somente os homens podiam dirigir a palavra em
início de sua argumentação também neste caso: tudo está subordinado à imagem
público e, portanto, somente eles podiam orar e profetizar enquanto a assembleia
de Deus que se desvela em Jesus {lCor 11,2-3). Por isso, independentemente da
estava reunida. Para visibilizar essa situação, pediam que as mulheres usas em
legitimidade e da verdade dos argumentos de uns e outros, o que conta, para Paulo,
um véu que lhes cobrisse a cabeça, como era o costume, significando assim seu
no tempo presente (o tempo escatológico, não o esqueçamos), é a construção da
lugar subordinado na assembleia patriarcal {lCor 11,4-6.14-15). Para legitimar
ekklêsia, ao que tudo está subordinado. Por isso, para aproximar ambas as posturas,
e tapo lura, além de apelar aos valores hegemônicos culturais (cf. l Cor 11,14-15),
não lhe ocorre melhor estratégia do que utilizar o argumentos de uns contra o
citavam o egundo relato da criação {Gn 2,7.18-25), que mostrava que Deus havia
outros, e vice-versa, acrescentando, talvez, uma boa dose de confusão.
criado primeiro o homem e, em segundo lugar, havia criado a mulher, dando a ele
a autoridade de impor um nome a ela. Outro , no entanto, defendiam a ideia de Assim, aos que pediam subordinação e silêncio para a mulher, juntamente
que tanto homens quanto mulheres podiam exercer funções públicas. como era com o véu, recorda-lhes que "a natureza" {podíamos traduzir, sem forçar o sentido
também co lume em muitas cidades do Império durante a primeira metade do original, "a cultura" ou 'a tradição") já oferece, na cabeleira feminina, o modo
éculo I, quando a mulher havia conqui Lado certa colas de autonomia que desa- cultural adequado de presença e, portanto, o véu está sobrando. Aos que pediam
parecerão com a chegada do imperadore Flávio (ano 70 d.C.). Para vi ibilizar a igualdade de homem e mulher para orar e profetizar na assembleia mediante o
esta igualdade, decidiram adotar uma prática comum em outros cultos populares travesti mo, lembra-lhes de que resulta em "afronta", em desonra {cultural), eles
em Corinto, que consistia em revestir (ou Lravestir) o homens como mulheres e as vestirem-se de mulher (deixando crescer a cabeleira ou usando peruca) ou elas de
mulheres como homens, significando, a sim, o caráter cultural e, portanto, alte- homem (cortando o cabelo). Além do mais, lembra a uns e a outros que os textos
rável do papéis sociais de gênero. Para legitimar e La postura, além da novidade bíblicos que utilizavam para justificar suas posturas são válidos, embora deixe ver
da fé em Cristo (cf. Gl 3,28), citavam o primeiro relato da criação (Gn 1,26-30), que se inclina para o de Gn 1,26-27, já que este parece coincidir melhor com a
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Sl<.iJu i.m • Quais são os aspectos centrais do tema! Aidentidade da ekklésia

novidade de Cri to: '·Por con eguinte. a mulher é in eparável do homem e o homem uma palavra à assembleia congregada e que e ta fo- e reconhecida como palavra
da mulher. diante do enhor. Poi , e a mulher foi tirada do homem. o homem autorizada (cf. lCor 14.26-33). E La ideia erá uma das que mai tran formarão
na ce pela mulher. e tudo vem de Deu ·· (lCro 11.11-12): eu olhar crente obre o di cípulo de Paulo apó ua morte, como veremo no capítulo exlo e oita,·o.
a tradição de autoriza a po ibilidade de utilizar qualquer texto para ju tificar a T to revela uma e Lralégia complicada. ma coerente: qua e todo o con-
ubordinação da mulher. flito que Paulo reporta em ua carta (para não dizer todo ) ão tratado como
Com i o, Paulo pretende mitigar as forças centrífuga que germ•am os grupo problema de coe ão. que é o me mo que dizer problemas de fé. e ocorrem e a
opo to . criando forças de coe ão que compen em aquela mediante o reconhe- dificuldade é porque não e tão pondo em prática o princípio geral: imitar o Deu de
cimento da razão e da legitimidade do outro no conflito que o epara. Mai uma Je u . l to é um problema d fé, que e concretiza em uma falta de coe ão entre o
vez, Paulo aplica aqui o me mo princípio teológico que vimo ante . me mo que crentes. Embora Paulo não dê igual valor a toda as opiniões e demon Lre que tem
não o explicite tanto como no ca o da Carta ao Fi lipen e : o modelo de entrega e uma ideia muito clara do que é coerente "no enhor", ua e Lratégia particular para
de humilhação própria de Je u na cruz revelava não omente como Deu é, ma re olver o conflito e compreende melhor como aquela que bu ca fazer com que
como devem imitá-lo. vi ibilizá-lo na hi Lória aquele que acreditaram nele. sim toda a ekklêsia vi ibilize o Deu de coberto na cruz de Jesu . Paulo e tá pen ando
endo, no conflito pelo papéi de gênero, Paulo não procura e clarecer quai ão: em conjunto. no plural: nada e entende em e te princípio.
o que era preocupante para ele é que haja "divi õe e di córruas" em vez de "um
me mo falar'', "num me mo modo de pen ar e no me mo enlimento''. que é o que 2.3. Aautoridade da cruz (aautoestigmatização)
llle havia ruto no início da carta (l Cor 1,11: como em FI 2.2). Devem coo iderar. Entre o conflito que Paulo te,·e de enfrentar. um de especial ignificado para
também ne le ponto. o outro como alguém diante do qual abaixar- e, alguém que entender a identidade da ekklêsia foi o que Linha como centro a própria autoridade e
merece maior e Lima do que a própria pes oa (cf. Rm 12.3); não porque o outro reconhecimento. Em repetidas oca iõe e por diversas pe oa . viu- e desautorizado
tenha razão, ma porque. desse modo, e con Lrói uma ekklêsia que vi ibilize o ou de acreditado em ua deci õe ; alguma ve-L.e porque não estavam de acordo
Deu de Je u . com ua e tratégia de mi ão (l Cor 9.1-23), outra porque tinham ideai teológico
Não ob lante, uLil e indiretamente, Paulo deixa claro que. para eJe. nem diferente (GI 2,1-14), oulra tanta porque diziam que não Linha pre enç..a nem
todo argumento lemo me mo pe o: porque, me mo que utilize razõe de ambo o eloquência (2Cor 11,6), outra ainda porque havia outro que po uíam maiore
grupo com o intuito de criar coe ão. e cite o doi lexlo de Gêne is (Gn 1.26-27 contato e recomendaçõe (2Cor 3,1-2) etc. Parece que empre exi Lia alguma razão
e 2.18-25), não pode evitar ubli nhar que lhe parece mai coerente "no enhor'' a para que tionar ua autoridade (como e questionava a autoridade d lfdere de ua
vi ão de Gn 1,26-27 e que está mai de acordo com o que pedem a igualdade de a embleias; cf. lT: 5,12). No entanto. o mai peculiar de Paulo foi o modo pelo qual
papéi e de funçõe na ekklêsia do que com o que pedem o ilêncio. De fato. deixa enfrentou e es problemas de autoridade. Em vário texto . podemo descobrir uma
bem claro ao tratar o tema que "todo homem que ore ou profetize de cabelo longo me ma estratégia para fazer frente ao de crédito, d envolvida progre ivamente:
de onra ua cabeça. Mas toda mulher que ore o profetize com a cabeça de coberta uma e tratégia que algun chamaram de auloestigmatização (GIL A RBIOL, 2003).
desonra a ua cabeça: é o me mo que ler a cabeça ra pada" (lCor 11.4-5): ou eja. Pouco depoi de deixar a ekklêsia de Corinto. um tanto à força. e dirigir- e a
embora ambo devam mo trar- e como o que ão (ele , como e ve tem o homen : Éfe o (por volta do ano Sl d.e.), chegou ao ouvido de Paulo que haviam urgido
elas, como e ve tem a mulhere ). ambo podem e d vem de empenhar exatamente divi õe na as embleia porque un pouco mai- culto e educados desprezavam a
a me mas fu nçõe . orar e profetizar. como também diz em oulro .lugare (" ó maioria, inculta e pouco formada (cf. l Cor 1.11-12). Paulo, em sua urpreendente
todo podei profetizar. mas cada um a eu turno. para que todo ejam in trufdo e tralégia, identifica- e com o inculto e incapazes e demon tra-l he que ua
e encorajado ". l Cor 14,31). E la funçõe implicavam a autoridade para dirigir debilidade e incapacidade não ão algo a er de prezado, ma bem ao contrário.
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SEanB PAATE • Quais são os aspectos centrais do tema! Aidentidadeda ekklésia

Eu me mo. quando fui ter convo co, irmão , não me apresentei com o prestígio da Algun meses mais tarde. por volta do ano 52 d.C., Paulo recebeu notícia
palavra ou da sabedoria para vo anunciar o mistério de Deus. Pois não qui saber de que haviam chegado a Corinto algu ns missionários que o acusavam, entre outras
outra coi a entre vó a não er Je u Cristo, e Jesus Cri to crucificado. E Live entre coisas. de não estar credenciado nem de er uficientemente capaz de levar adiante
vós cbeio de fraqueza, receio e tremor: minha palavra e minha pregação nada tinham uma tarefa que, de maneira clara e patente, superava-o. Quando Paulo foi informado
da persuasiva linguagem da sabedoria, mas eram uma demon lração de E pírito dis o, escreveu algumas cartas que se conservaram em 2Cor 2,4- 7,4, e que enviou
e poder, a fim de que a vossa fé não se baseie sobre a sabedoria do homens, ma com seus informantes quando da volta dele . Ai oferece outro argumento surpreen-
sobre o poder de Deus (l Cor 2,1-5). dente, de envolvendo o que acabamos de ver: a debilidade e a incapacidade são,
precisamente, prova do carisma de Jesus, de sua autoridade. Reporto suas palavras
O conteúdo paradoxal da pregação de Paulo requer urna estratégia igualmente porque são muito eloquentes:
paradoxal. Este modo de pen ar é muito peculiar também a Jesus, que anunciava o
reino de Deus com palavras e fatos que faziam o conteúdo desse anúncio evidente Trazemos, porém, este lesouro em vaso de argila, para que esse incomparável
e claro, para além de explicações ou definições. Assim o faz também Paulo: não é poder seja de Deus e não de nó . Somos alribulados por todos o lados, mas não
possível explicar qual é o conteúdo do "mistério de Deus", o sentido do acontecimento esmagados; postos em extrema dificuldade, ma não vencidos pelo impa ses:
da cruz de Jesus, e não for de modo coerente com es e mistério. Deve- e entender perseguido , mas não abandonado ; pro trados por terra, mas não aniquilado .
com os olhos (sinais ou metáforas) mais do que com os ouvidos (discursos ou expli- lnce antemente e por toda parte trazemos em no o corpo a agonia de Jesus. a
cações); deve- e ver mais do que ouvir ("Gálatas in ensatos! Quem vos fa cinou, a fim de que a vida de Jesus seja também manifestada em nosso corpo (2Cor 4,7-10).
vós ante cujos olhos foi desenhada a imagem de Jesus Cristo crucificado?", Gl 3,1).
Tal como na primeira vez em que o desafiaram em Corinto porque o con-
Portanto, a torpeza ou a incapacidade de Paulo não são uma limitação que deva
sideravam inculto, Paulo defende a debilidade, a incapacidade e a torpeza não já
ser compensada, mas um modo de apresentar um paradoxo. Paulo converte-as em
como estratégias úteis para pôr em evidência a força da mensagem da cruz, mas
sinal, em metáfora que e pode ver e captar para além do discursos. Se o anúncio
como situações idôneas para visibiJizar o conteúdo mesmo desta mensagem, do
do mistério de Deus, descoberto na cruz, revelou-se impactante {como de fato o foi
mistério de Deus. e captar a força transformadora que encerra. Paulo intensifica
para aquele que então liam a carta de Paulo), não e devia à edução ou retórica
ua argumentação, aprofundando-a e mo trando que essa fraqueza ou incapacidade
de Paulo, mas à verdade e à força que esse mistério tinha. Paulo desvia o olhar de
também contém uma força insuspeitável. paradoxal, surpreendente: assim como a
seus leitores para essa força da boa notícia de Deu , usando sua torpeza ou inca- morte (a vulnerabilidade e a humilhação) de Jesus é o modo como Deu se mostrou
pacidade como prova de que ele não tem nenhum mérito no que eles acreditaram. e agiu, amando o inimigo, as im também a debilidade e a incapacidade de Paulo
Sendo assim, Paulo subverte a acusação de incapacidade ou de falta de eloquência, é um inal, uma marca de sua fidelidade. de seu compromisso, de sua autoridade.
mostrando-as como a melhor forma de visihilizar a força de Deus e de ua boa no- Trata- e da egunda característica da autoe tigmatização, o modelo teológico que
tícia. E ta é a primeira característica daquilo a que chamamo autoe tigmatização: Paulo utiliza para tran formar a de qualificação e o de prezo em algo positivo: da
Paulo assume um rótulo negativo (neste caso o de ser pouco eloquente e não er me ma maneira que a morte de Jesus parecia a exposição da vulnerabilidade, da
uma pes oa muito culta) e o e vazia de eu entido negativo, descobrindo outra impotência, da incapacidade, na realidade, porém, revelava a presença silencio a
possibilidades inéditas nele (neste caso sua capacidade para revelar a força que tem de Deus acolhendo a vítima, assim também a impotência de Paulo se converte, para
em i mesmo a men agem da cruz); por con eguinte, converte-o em algo po itivo e todos os que creem no Deus de Jesus, a melhor carteira de identidade do apóstolo
desejável ("a linguagem da cruz é loucura para aqueles que se perdem. mas para des e Deus. Uma vez mais, Paulo esvazia o sentido negativo de ua incapacidade e
aqueles que e alvam, para nó , é poder de Deu ··, lCor 1,18). apresenta-a como sinal e identidade do apó tolo autorizado por Deus, a quem imita.
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S!Gn MI · Quais são os aspe<tos centrais dotema? Aidentidade da ekklêsia

o entanto. e la carta (2Cor 2.14-7.4) não foi bem acolhida e a ituação debilidade de um Crucificado. Ali, a morte de cruz de Jesu parecia a expo ição
piorou: a de autorização de Paulo cre ceu. Ele viu- e forçado a fazer uma viagem- da vuln rabilidade e da impotência: na realidade. porém, revelava a verdadeira
-relâmpago de Éfeso a Corinlo para lentar re olver um do problema mai agudo força de Deu . a que de preza a ira ou a vingança, e a ub Lilui pela oferta da
e difícei de eu ano como mi ionário independente. Pelo que podemo deduzir reconciliação; e La é a força de D u que omenle ele abe demon lrar. Portanto, a
de ~eu texto po leriore , e a vi ita revelou- e um fracas o absoluto. a ponto de ter impotência de Paulo - concretamente: ua rejeição à força convencional, à coação
piorado ainda mai a relação. com confronto pes oai e alguém o desautorizando em ou a impo ição - converte- e para todo o que creem no Deu de Je u em per-
público. Paulo voltou para Éfe o com a en ação de que ua relação com a ekklêsia manente oferta de liberdade. re peito e reconciliação por parte de Deus. E Le é o
de Corinto e tava a ponto de romper- e. Depoi de breve tempo, Paulo e creveu, terceiro traço caracterf tico da auloestigmalização: Paulo descobriu em si mesmo que
··com o coração angu tiado e em meio a muita lágrima ., {2Cor 2.4), uma carta a forma de agir de Deu (nele e em lodo ) não é a da impo ição ou da dominação,
que dirigiu à a embleia de Corinto, con ervada em 2Cor 10-13. Ai escreve um mas a da acolhida e da liberdade. eu próprio modo de agir. como a de qualquer
parágrafo obre o tema que no ocupa, no qual dá uma guinada em ua particular crente, deve er inal de ta forn1a de er de Deu : não e pode impor, coagir ou
legitimação da autoridade. manipular; a renúncia a e a tendência da "carne" exige a maior fortaleza interna:
er fraco (diante do outro, em impor- e, nem exercer a violência, inclu ive quando
Já que e as revelaçõe eram extraordinárias. para eu não me encher de soberba, pareça ju ti ficada) é, na realidade, er forte (imitar a verdadeira força de Deu , que
foi-me dado um aguilhão na carne - um anjo de ataná para me espancar - a oferece reconciüação quando poderia exigir vingança e violência).
fim ele que eu não me encha ele oberba. A e e re peito lrê veze pedi ao enhor E sa estratégia e tá no fundo, como e tamo vendo, de muitas da ativi-
que o afa tas e de mim. Re pondeu-me. porém: '·Basta-te a minha graça. poi é dade de Paulo. o caso da autoridade. aparece talvez com mai clareza e reflete
na fraqueza que a força manifesta todo o eu poder··. Por conseguinte. com todo o muito bem que compreendeu que o paradoxo teológico da cruz exigia e tratégia
ânimo prefiro gloriar-me da minhas fraquezas, para que pou e obre mim a força de comunicação e de atuação igualmente paradoxai . A autoe tigmatização, ou
de Cri to. Por i to, eu me comprazo nas fraquezas, no opróbrio . na nece idade . seja, a as unção de valores e comportamento considerado negativo , ua inversão
nas perseguiçõe . nas angú tia por cau a de Cri to. Poi quando ou fraco. então simbólica e sua oferta como valores po itivo , foi uma delas, eventualmente amai
é que ou forte (2Cor 12,7-10). ignificativa. Ela permitiu-lhe olhar a realidade, e pecialmenle a ituações ne-
gativas (próprias e alheias). bu cando empre outra per pecLiva inédita. uma nova
E las frases (..é na fraqueza que a força manife la Lodo o eu poder'', "poi
possibilidade que refletiria o olhar de Deu ; permitiu-lhe, igualmente, oferecer um
quando ou fraco, então é que ou forte" ele.) re oaram na tradição cristã e fora
critério de exercício e de legitimação da autoridade na ekklêsia que acolhe e e ta
dela como chavões. algumas vez com fundamento. outras não. Afirmaçõe a im
novidade; e, por último, permitiu-lhe também mo Lrar o mais original de Deu ,
Lão paradoxais revelan1- e Lão opaca quanto lumino a , caso e de cubra a chave
imitando eu modo de agir na hi tória, em impo içõe nem coação, para revelar
que a decifra. Para Paulo, e para o que o de qualificavam. ua debilidade era
toda a ua força, ua oferta de liberdade e de reconciliação.
óbvia. E la Linha diversa origen : de um lado. a idade (por es e tempo. con ide-
ra- e Paulo um ancião: cf. Fl 1.9); por outro, as cre cente dificuldade com a
autoridade locais, e pecialmenle em Éfe o (cf. 2Cor 1,8-9; 11.23-29): adernai , a
2.4. Aética para aekk/êsia
enfermidade. que ocasionalmente o afligia (cf. Gl 4.12-15): e, não meno pe ado . Pode-se dizer o me mo quanto às exortações de caráter ético. Aqui pode-
eu embate com alguns do crente de ua as embleia (cf.2Cor2,5-7; 10,12-15 mos de cobrir um do maiore mal-entendido obre Paulo. A leitura fragmentada
ele.). E a iluação tornava impo fvel negar a evidência. Paulo, no entanto. não faz na liturgia cristã, o intere e moralizante de pregadores durante éculo , sua
i o; impl mente indica outras face da realidade: a força de Deu mo Lrou- e na falta de formação, a e cas a atualização do estudo paulioo , muito centrado
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SEGlb l'MlI • Quais são os aspectos centrais do tem.i 1 Aidentidade da ekklêsia

em a pecto como a '·justificação pela fé'" (veja- e o primeiro capítulo). entre de frute de eu amo : a relações sexuai e tabeleciarn papéi pas ivo e ativos
outra razõe , fizeram do texto de Paulo um compêndio de remédio morai muito definido pelo exercício do poder. o entanto, este princípio se estendia a
que não podem deixar de er antiquados, anacrônico . etnocêntricos, androcên- qua e todas as relaçõe exuais, que se converteram em um modo de e tabelecer
tricos etc. A ética paulina não foi pen ada para hoje (de fato, não foi pensada e con ervar {ou alterar, em eu caso) o lugar ocial (RICHLIN, 1983).
enão para o de tinatário concreto em eu tempo e lugar): mas, o que é
Vemo- o primeiro exemplo em lCor 6,12-20: o crente que aem com
mais importante. nem sequer foi pen ada como ética pe oal. ma comunitária
pro titulas. Paulo apre enta o tema oferecendo-nos uma referência para entender
(HORRELL. 2005).
o problema: o que aem com pro titula ão citado por Paulo como exemplo
Há muita exortaçõe que parecem dar orientaçõe morais pessoa i : do que pensam que "tudo me é lícito" (lCor 6,12). Parece que alguns crentes
comportamento sexuais inadequados {lTs 4,1-8; l Cor 5,1-13; 6,12-20), abu o entenderam que a ideia paulina de que a lei não tinha valor em i me ma, se não
e extorsões econômica (l Cor 6,1-8). problemas matrimoniais ou de ca ais (lCor remetia à bondade de Deu (ver o capítulo terceiro), era preciso interpretá-la como
7,1-14), outro comportamento de viado (Gl 6.19-21; Fl 2,14-16: l Cor 6.9-11), o fim de toda lei, ou seja, que já não era nece sário cumprir nenhuma lei porque
ou oca o comentado das carnes sacrificadas aos ídolo (lCor 8.1-13). o entanto, Deus e lava acima de todas ela . oferecendo alvação independentemente de seu
e se leem com atenção, todas ela e tão orientadas não à antidade do indiví- cumprimento. Em todo ca o, é uma interpretação compreensível e bastante lógica.
duo, não à imitação pe soal de Deu . ma à sua importância na construção da que Paulo teve de de montar em repetidas oca iõe (cf. lTs 4,1-8; Gl 5,13-26 etc.).
ekklêsia. Todo e ses comportamentos são importante porque cada indivíduo, Estes, como prova da novidade do Deus de Je us, mostravam sua pertença à ekklêsia
como cada parte do corpo humano, é membro do corpo social (a ekklêsia), que mediante a transgressão de alguns valores e comportamentos sexuais que a maioria
é, por sua vez, reflexo do corpo teológico, o corpo de Cri to: "Vós sois o corpo de considerava respeitávei . Para aqueles, segundo e depreende deste texto, sair com
Cri to e oi o eu membro , cada um por sua parte" (lCor 12,27). A preocu- prostitutas refletia a ruptura das limitações morais, o fim da qualificação moral das
pação de Paulo não é a individualidade de cada crente ( ua alma, diria a leitura pes oa em função do cumprimento das leis. A prova disso era que, endo membros
tradicional), ma ua identidade como membro da ekklêsia; e ta deve representar, da ekklêsia, tinham relações sexuais com pro titulas sem que isso repercutisse
em sua totalidade, ua ident idade teológica, parecer- e com o Deus de Jesus. negativamente em seu status diante de Deus. Deus continuava a amá-los. A partir
Contudo, deve fazê-lo em seu conjunto: "todos os membros do corpo, apesar de do ponto de vista do fundamento teológico que fundamenta a cosmovisão paulina,
erem muito , formam um ó corpo. A sim também acontece com Cristo (... ). e a visão não era totalmente incorreta.
O corpo não se compõe de um ó membro, mas de muito . Se o pé di er: 'Mão
Paulo depara-se com um problema mai sério do que parece, que não é se
eu não sou, logo não pertenço ao corpo', nem por isso deixará de fazer parte do os crentes podem ou não podem air com pro titulas; o que está ob suspeita é
corpo"' (l Cor 12,12.14-15).
a novidade do Deus de Jesus e a identidade da ekklêsia que o visibiliza. Por isso
Algun exemplos ilustram isso com clar~ ambos tratam de comportamento Paulo trata do tema com uma estratégia acurada: não como um problema de um
sexuais inadequado (o que Paulo chama de "porneia"), tradicionalmente conside- membro do corpo (o indivíduo), mas como um problema do corpo inteiro ("Não sa-
rados casos de moral pessoal. Antes de apresentá-los. talvez seja oportuno lembrar beis que os vossos corpos são membros de Cristo?", lCor 6,15). Não é um assunto
que, para entender estas passagens, deve-se levar em conta a estreita relação que de pureza ou impureza pessoal, mas um problema de fé, de identidade do conjunto
existia naquele tempo entre a sexualidade e o poder ou, com outras palavras, a dos crentes ("Não sabeis que aquele que se une a uma prostituta constitui com ela
valoração das relações sexuais de acordo com o exercício do poder e da dominação, um só corpo? Pois está dito: Serão dois em uma só carne. Ao contrário, aquele que
usando-se como critérios a idade e a posição social (CROSSAN; REED, 2006, p. se une ao Senhor, constitui com ele um só e pírito". lCor 6,16-17). Paulo separa a
287-415). Um dos sinais mais claros era o abuso dos escravos e escravas para o relação do crente com uma prostituta de sua dimensão pessoal e a vincula ao ent:ido
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SlGJ!õl PMIE · Quais são os aspectos centrais do tema? Aidentidade da ekklêsia

ocial e público: o corpo que e relaciona com a pro tituta não é o corpo do crente, que e comportou mal (o que Leria ido mai imple ), ma obrigar a a embJeia
ma o corpo de Cri to, a ekklêsia (" oi membro de Cri to'', ''não pertencei a vó a convocar uma reun ião de todo e expulsar o indivíduo. De e modo, força a as-
mesmo ". ·' oi tempo do E pírito".. .). Paulo obriga os que e julgavam livre de embleia a pôr em evidência o lídere que deviam ter evitado a ituação e não o
norma morais a ver- e não como indivíduo "fortes'' ou "livres'' (cf. l Cor 8,1-13), fizeram. Paulo pretende que toda a ekklêsia lhe dê uma lição de moral; por i o,
mas como parte de um todo que tem uma identidade definida (que provém do Deu cen ura-lhes o envaidecimento e o ubmete à autoridade da a embleia e à sua
de Je u ) e que não pode er alterada ou traída pela cobiça, pelo egoísmo ou pela própria. Em terceiro lugar, a expulsão não é, como pode parecer à primeira vista,
liberdade de um de eu membro : "Ou não abeis que o vosso corpo é templo do um castigo individual '·para perda da ua en ualiclade" (literalmente "carne":
E pfrito anto, que e tá em vó e que recebe te de Deu ?... e que, portanto, não l Cor 5.5). mas para que "um pouco de fermento não levede toda a ma sa" (l Cor
pertenceis a vó me mo ? Alguém pagou alto preço pelo vosso resgate: glorificai, 5.6), ou eja, para que o comportamento inadequado de um não afete a identidade
portanto, a Deus em vos o corpo·· (l Cor 6,19). da ekklêsia, não uceda que, olhando-a. alguém não de cubra a "nova ma a"
devido à cobiça. ao intere se ou benefício des e indivíduo. A raiz do problema,
ão é difícil imaginar que, tal como no ca o do que participavam das
poi . não é o mau comportamento do ince tuo o, mas o de vanecimento do que,
comidas sacrificai . prejudicando a consciência débil de alguns irmãos, neste comportando- e imoralmente, antepondo eu próprio intere e ou prazer, julgam
caso também algun poderiam enlir-se lesados na própria identidade de crentes, que destarte e tão refletindo o ro to do Deu de Je u , fazendo da ekklêsia um
confundido pelos comportamentos daqueles. O que frequentavam pro titulas e pelho de deu e fal o . ma vez mai nos defrontamo com um problema ocial,
não estavam sozinhos (metaforicamente); levavam também consigo seu ser crente, de identidade da ekklêsia. não de moral pe oaL Es e indivíduo e tá prejudicando
ua pertença à ekklêsia, que se via afetada por um comportamento dominado pelos a imagem pública da a embleia porque reflete um ro to de Deu que não é o de
intere ses dele . Por outro lado, para não fazer leituras anacrônicas, é importante Je u : e tá antepondo sua cobiça (" ua carne") à entrega. ao e vaziamento e à
recordar o dito obre a relação entre sexualidade e exercício do poder: ter intimidade humilhação de Deu na cruz.
com pro titulas não era uma relação entre iguai , mas o exercício da posse e do
Daqui e pode tirar uma conclu ão importante para compreender e ta
domínio de uns obre os outro . Os que assim agiam em Corinto não reproduziam
estratégia paulina: o objetivo teológico é uperior ao eclesiológico. Paulo não e
o valores do Deus da cruz. Em síntese: Paulo não lida com esse comportamento
propõe con Lruir a ekklêsia como um fim em si mesma, ma como uma estrutura
exual como se fos e um caso de moral pessoal. mas como um caso de traição da
que vi ibiliza o Deu de Je us, uma mediação, um espelho, um dedo que aponta
identidade da ekklêsia· em vez de refletir o rosto do Deus de Jesus, refletem oro to
para Deu ; se Paulo tives e feito da ekklêsia o me mo que ua tradição fari aica
de um deu que bu ca eu próprio interesse ou benefício, exercendo o domínio obre
fizera com a Torá. teria cometido o mesmo erro que tanto criticou (tão vi ceral e
o fraco, e is o é idolatria. A ética paulina é uma ética coletiva, orientada não para
belico amente). Seus di cípulo é que, em uma situação po terior muito diferente,
o status ou qualidade moral do ujeito individual, mas à identidade da ekklêsia, ao
de locaram o olhar para o dedo, para a ekklêsia, porque acreditavam que se havia
objetivo de visibilizar no mundo o rosto do Deus de Jesus.
fundido com o projeto de Deus para a hjstória. que a ekklêsia era "a plenitude da-
Encontramos o segundo exemplo em lCor 5,1-13, quando Paulo trata o caso quele que pJenifica tudo em tudo" (cf. Ef 1,23). Veremo isto no capítulo posterior.
de um crente que vive com a mulher de seu pai. Poderia parecer que se trata, de
novo, de um caso de desvio, de infidelidade ou de debilidade pessoal; no entanto, 3. Ougênio"de Paulo
os dado do texto apontam em outra direção. Em primeiro lugar, Paulo nunca se
dirige a ele, mas aos responsáveis pela assembleia a que pertence; eles deviam A biografia de Paulo. ou pelo menos os dados que temos de como se compor-
ter resolvido atisfatoriamente o assunto, mas, em vez disso, ficaram "cheios de tava e o que dizia, revela-se ambígua e paradoxal no que tange a esta estratégia de
orgulho". Em segundo lugar, a solução que Paulo adota não é expulsar aquele criação de identidade. De um Lado, Paulo repele, em numerosas ocasiões, que ua
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SEQlllll Nll • Quais são os aspectos centrais do tema? Aidentidade da ekklêsia

atuação com todas as assembleias tem sido esta: antepor o interesses da ekklêsia 4. Arelação da ekklêsia paulina com outros
aos seus próprios: ''Terá sido falta minha anunciar-vos gratuitamente o Evangelho
de Deu humilhando-me a mim mesmo para vos exaltar?" {2Cor 11,7); 'Ainda que Para terminar este capítulo, go Laria de reunir algumas ideias que nos pemu-
livre em relação a todos, fiz-me o servo de todos, a fim de ganhar o maior número tem entender a relação do "gênio" de Paulo e uas assembleias com outro círculo
possível. .." (lCor 9,19); ' ... ainda que nós, na qualidade de apóstolo de Cristo, de eguidores de Jesu . Já vimo no capítulo anterior que, embora incialmente
pudéssemos fazer valer a nossa autoridade. Pelo contrário apresentamo-nos no meio Paulo tenha feito parte ativa e destacada da tradição a que chaman10 helenista,
de vós cheio de bondade, como uma mãe que acaricia os filhinhos. Tanto bem depois do chamado confüto de Antioquia, em fins dos anos 40 d.C., foi-se embora
vos queríamos que desejávamos dar-vos não somente o Evangelho de Deus, mas dali por não aceitar o novo rumo da comunidade, o que ele interpretava como um
até a própria vida, de tanto amor que vos tínhamos" (lTs 2,7-8) etc. Atreve-se a retrocesso. Isso fez com que sua vinculação com o resto dos seguidores de Jesu ,
repetir-lhes, inclusive, que sejam seus imitadores (lTs 1,6; l Cor 4,16; 11,2 etc.), durante a etapa independente, ficas e marcada por um sinal de interrogação. Muito
porque ele imita a Jesus na cruz (Gl 6,14-17). pensavam diferentemente de Paulo, principalmente a respeito das consequências
que e derivavam do acontecimento de Jesus e que Paulo cristalizou em eu projeto
Por outro lado, no entanto, Paulo age em muitas ocasiões com uma liberdade de ekldêsia, tal corno vimos. Des es, alguns tiveram uma atitude hostil e beligerante
e autonomia tais que parecem autoritarismo ou imposição. O caso do indivíduo que em relação ao projeto de Paulo e o demonstraram de muitos modos. Parece que em
vive com a mulher de seu pai (lCor 5,1-13), como vimos, parece um exemplo de várias assembleias fundadas por Paulo, quando ele ia embora, chegavam outro
coação, visto que obriga a assembleia a tomar a decisão que ele já havia tomado. crentes em Cristo que queriam desfazer ou refazer seu trabalho (cf. SUMNEY,
Tema discutidos nas assembleias, como o dos papéis de gênero (!Cor 11,2-16) ou 1999; PORTE, 2005).
outras funções (!Cor 14,29-33.36-38), trata-os com uma atitude que deixa pouco
Talvez o melhor modo de compreender este conflito seja buscar uma razão
e paço para a dissenção ("Se, no entanto, alguém quiser contestar, não Lemos este
que explique essa hostilidade e aparente perseguição a Paulo por parte de outros
co Lume, nem tampouco as Igrejas de Deus", !Cor 11,16). Em questões como a
seguidores de Jesus. Um dado da autodefesa que Paulo faz em Corinto nos revela
do sustento (se devia deixar-se manter pelas assembleias ou trabalhar com suas
a possível razão do problema. Quando escreve aos coríntios para resistir à ofensa,
mãos para ganhar o pão), Paulo mostra-se inflexível, antepondo sua própria ideia
diz: "Quanto a nós, não nos gloriaremos além da justa medida ... Não nos estende-
e visão à de boa parte da ekklêsia, inclusive à de outros líderes (lCor 9,1-18). Esta
mos indevidamente... Não nos gloriamos desmedidamente, apoiados em trabalhos
atitude intransigente foi o que o afastou da comunidade de Antioquia, como vimos
alheios ... sem entrar em campo alheio para nos gloriarmos de trabalhos lá reali-
no capítulo anterior, para levar adiante sua própria missão (cf. Rm 15,17-21).
zados por outros" (2Cor 10,13-16). Como vimo no capítulo anterior, na assembleia
O que é paradoxal no caso é que, em todas estas situações (e em outras se- de Jerusalém, não havia ficado suficientemente clara a divisão da missão depois
melhantes) nas quais parece antepor de modo autoritário ou unilateral sua própria dos primeiros confütos entre Antioquia e Jerusalém. Paulo compreendeu-a como
ideia ou visão, Paulo diz estar defendendo não suas convicções ou decisões, mas uma separação fundamentalmente geográfica (Pedro e os demais dedicar-se-iam à
as de Deus. Paulo apela uma e outra vez à vocação recebida (Gl 1,15-16), à missão terra de Israel e ele, à diáspora), enquanto os hierosolimitanos, com Tiago à frente,
imposta por Deus (lCor 9,16-17), como se fosse algo que nada tivesse a ver com entenderam-na de modo mais étnico (eles se dedicariam aos judeus circuncisos,
suas próprias convicções ou desejos (ou que pelo menos estivesse acima deles). É ao passo que Paulo se voltaria para os não circuncisos). Paulo, de acordo com
provável que, para ele, as posturas e decisões que nos parecem autoritárias fossem sua interpretação, propôs-se cumprir o acordo dedicando-se aos gentios (cf. Rm
um exemplo de negação e de renúncia dos próprios interesses e de aceitação generosa 15,17-21), mas não deixou de lado os circuncidados, porque considerou que seu
do projeto de Deus. Este tema dá ideia da complexidade (do "gênio" em seu duplo projeto era integrar os gentios ao lsrael de Deus (cf. Rm 11,16-32). Contudo, os
entido de "genialidade" e de "caráter") de Paulo de Tarso. de Jerusalém, chefiados por Tiago, puderem entender que estavam cumprindo sua
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~ PARlf · Quais são os aspectos centrais do tema?
Aidentidade daekklêsia
parte do acordo ao dirigir- e ao circuncidados da assembleias que Paulo formava. anta. lenha uavizado po luras: e o rivai de Paulo tinham conexão com Jeru a-
pedindo-lhe . fundamentalmente. que guarda em a Torá. Me mo que Paulo chegue lém ou eram oriundo de lá. o fato de arrecadar dinheiro e de levá-lopes oalmente
a in ultá-lo . tratando-o como "fal o apó tolo " ou "enviado de Sataná " (2Cor era uma e pécie de exame ou revaüdação para Paulo (l Cor 16.4: Rm 15.30-32). A
11 12-25). não sabemos o que e le pen avam ou prelendiam. de modo que parece aprovação dela perm itiria que ele continua se a de envolver ua mi ão para além
ju to conceder-lhe o benefício da dúvida. do território explorado até agora.
Por outro lado, do ponto de vi ta da maioria do eguidores de Je us, Paulo a Galácia, a ituação é diferente porque Paulo diz que eus oponente e
era um crente em Cri to marginal, alfpico, independente, imprevi ível. .. , "genial" dirigem ao gentio ped indo-lhes a circuncisão, argumentando que é o que Paulo
(no duplo sentido), que facilmente provocava amores apaixonado ou ódio viscerai . faz em outro lugare (cf. Gl 5.11-12). Também em F'ilipo enconlramo algum
ua po ição no início de ua atividade independente (começo do ano 50 d.C.), re quício desta opo ição em lermos emelhantes ao da Galácia: a parle mais dura
quando partiu de Antioquia, era absolulamenle minoritária: ninguém o acompa- da carta (Fl 3.2-4.1) é um avi o contra o "cães" que bu cam a "mutilação", em
nhou, à exceção de Silvano. lão é difícil entender o receio da maioria diante clara referência à circunci ão (Fl 3,2-3). E ta situação não é comparável à que u-
de alguém que ia por i, que apelava para revelaçõe pes oais que o demais não pu emo em Corinto: aqu i o oponente de Paulo pretendem circuncidar o gentios,
partilhavam (ou pelo menos não totalmente) e criava a sembleias de acordo com transgredindo claramente o acordo de Jeru além. Por i o, mesmo que are posta
elas. Em todo caso, a relação de Paulo com o resto dos eguidores de Je us varia de Paulo pareça mai contida do que em 2Cor 10-13, na realidade revela- e mais
da colaboração cordial ao confronto e de qualificação franca e sem atenuante , dura, porque o exclui da aliança (cf. Gl 5,21-31). Posto que Lucas, ano mai tarde,
passando por diferentes graus de receio e de ho tilidade; e e rivais no deixaram apresente Tiago opondo- e aos que pedem a circunci ão do pagão (cf. At 15,24),
algun vestígios em Corinto, na Galácia e em Filipos. Paulo o vincula à liderança de Tiago em Jeru além mediante a eloquente po ição
Em Corinto, pouco depoi da ida de Paulo para Éfeso, chegaram em-vário da "Jeru além terrena" (liderada por Tiago no anos cinquenta) e "a Jeru além
ceie te" (a que Paulo a pira) em Gl 4,25-26.
momento oulro crentes em Cri lo que, diferentemente de Paulo, Lraziam cartas de
recomendação de Jerusalém (2Cor 3,1; 10,12) que os credenciavam como verdadeiro Há outra relaçõe não polêmica de Paulo com crente em Cri lo proce-
apó tolo (2Cor 11,7-13), aceitavam er mantido economicamente pelas a embleias dentes de outro lugare e com outra vi õe que ele parece aceitar ou. inclusive.
(2Cor 12,11-15), tinham grande capacidade de persuasão (2Cor 11,5-6) e eram integrar dentro de eu projeto. O exemplo mai claro é o de Apolo. um judeu
capazes de realizar sinais (visõe , revelações curas ...) que alraíam e arrastavam originário de Alexandria, bem versado na E critura e tão eloquente que con e-
os coríntios (2Cor 12,11-12). Paulo não diz que eles pretenderiam circuncidar o gu iu congregar um grupo de adeptos entre os crente de Corinto (At 18,24; l Cor
gentios, ma que a chegada deles, com diferentes estratégia de mi são e projeto 1.12). Sua chegada a es a cidade aconteceu à margem da mi ão de Paulo, talvez
diferente, estava criando confu ão, divisão, além de desautorizar seu Lrabalbo e a por iniciativa do de Éfe o (At 18,27-28), e gerou divisões; no entanto Paulo fala
ele próprio. A razão do ataque deles está na preten ão de Paulo de defender urna dele com cordialidade e em tom polêmico (l Cor 16,12). Apolo é um ca o claro
"nova aliança" (2Cor 3,1-18) que e lhes afigurava uma pretensão inju tiçada e para da capacidade (mesmo que limitada) de Paulo de integrar diferentes modelos e
além do horizonte mesmo de Jesus (2Cor 5.16-21). É provável que a relação de Paulo e tratégias em eu próprio projeto.
com eles se estivesse deteriorando progressivamente devido à consequência que O caso de Pedro é emelhante. Aparece mencionado nas cartas de Paulo
a desautorização de Paulo como apó tolo e lava provocando na ekklêsia de Corinto. várias veze , geralmente de modo po itivo (Gl 2,9· l Cor 1,12; 9,5), embora também
No final, parece que a tensão se mitigou graças à intervenção de Tito (2Cor 2,12-13 de modo polêmico (Gl 2,11). A relação destes dois líderes foi mai difícil do que a
e 7,5-7), que permitiu a acolhida de Paulo em Corinto e o recolhimento da coleta memória cri Lã recordou; eu projeto de con Lrução da ekklêsia eram diferente
para Jerusalém. É possível que a decisão de levar, ele próprio, a coleta à Cidade e suas estratégias, diver a . Enfrentaram- e duramente em Antioquia por volta do
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S!Gm m.rr ·Quais sãoos aspectos centrais do tema? Aidentidade da ekklêsia

ano 50 d.C. e tiveram uma relação tensa a partir des e momento (cf. lCor 1,12; Jerusalém: "Depoi de muitos anos, vim trazer e mola para o meu povo e também
9.5). mas Paulo nunca dá mo tras de ruptura ou de eparação. Sua relação reflete a apre entar ofertas '. Então, por que não diz nada obre o dinheiro. se o aceitaram ou
pluralidade de modelo e de e tratégia que, conquanto em ten ão. fazem parte de não? Talvez seja preci o ler na entrelinha . Lucas diz que, quando Paulo chegou a
uma visão de conjunto que uperava a missão de cada um. Esta ideia, como vamo Jerusalém, falaram-lhe imediatamente do êxitos da mi ão entre o judeus e dos
ver. foi da máxima importância para Paulo. receios e acusaçõe que havia contra ele e ua mi ão. porque falava contra a lei e as
tradições (At 21,20-21). Para evitar todo mal-entendido, propõem-lhe que "pague"
4.1. Oprojeto universal de Paulo pelos votos que tinham de fazer algun deles no templo. E ta é a única alusão de
Lucas à aceitação da coleta. Se devemos detectar o entido implícito, parece que
Apesar de tas opo içõe , como digo, Paulo concebeu eu projeto como parte
a aceitação de e dinheiro esteve condicionada a uma demonstração pública, da
de uma realidade mai ampla com a qual se sentia profundamente unido. Prova
parte de Paulo, de que ele não renunciava à Torá nem às tradições do antigos (At
disso é wn dos textos mai emotivo . apaixonados e, inclusive, angustiados de Paulo.
21,24). Segundo Lucas, Paulo aceitou e pagou (At 21,26). A avaliação histórica
ante de empreender a última viagem que o levaria a Jerusalém com uma ajuda
desta informação obre Paulo é difícil, porque Lucas, como sabemos, tem grande
econômica recolhida na a embleia da Macedônia e da Acaia: Rm 15,25-32. E ta
tendência a apresentar os conflitos do modo meno polêmico possível. Seja como
ideia de enriar dinheiro tem sua origem na assembleia de Jerusalém por volta do fim
for, não é surpreendente a solução que Lucas traz: Paulo pôde entender que esse
do ano 40 d.C., quando pediram a Paulo que colaboras e economicamente com a
era um preço justo para conseguir a comunhão de toda a ekklêsia, o reconhecimento
neces idade dos crentes da Judeia, submetido a eca , e cas ez e ten ões políticas
de sua missão e, o que ne se momento mais importava, a possibilidade de seguir
e militares (GI 2,10). Paulo cumpriu este encargo em vários momentos, enviando desenvolvendo ua missão para além de Roma.
dinheiro da Galácia (cf. lCor 16.1) e, no fi nal. levando-o ele próprio. Este último
envio era a contribuição mai genero a e ele se ofereceu pessoalmente para levá-la. Outros inais ressaltam a importância que tinha para Paulo a comunhão entre
Me mo que o objetivo inicial fosse mitigar a penúria do que pas avam necessidade assembleias. Além da solidariedade econômica entre umas e outras (especialmente
na Judeia, Paulo assumiu a tarefa como algo muito mais importante para ele: era as da diáspora com as da Judeia), Paulo fomentou muito a hospitalidade, o envio
o sinal de sua vinculação com a origem da ekklêsia, o inal de sua comunhão e, de colaboradores e de apóstolos, o conhecimento e a relação afetiva do crentes
ainda mais importante, o exame que poria à prova a aceitação, por parte dos de mediante a saudações, as orações comuns nas quais uns pediam pelos outros, o
envio de notícias de uns para outros mediante as cartas etc. Paulo construiu uma
Jerusalém, de sua mis ão e da das assembleias que ele havia criado. Paulo sabia
verdadeira rede de relações que superava em muito as próprias de cada cidade;
que sua presença em Jerusalém iria encontrar forte oposição (Rm 15,31) e que
para ele, a ekklêsia não se limitava aos mais próximos, mas tinha uma dimensão
estava em jogo não somente seu status entre os seguidore de Jesus, mas também
supralocal, quase univer ai. Este aspecto era característico de estruturas como a
o de suas assembleias. Esse dinheiro era valioso para os pobres de Jerusalém, mas
sinagoga ou algumas associações voluntárias, que serviram a Paulo como modelos
o era ainda mais para ele, para selar a comunhão entre as assembleias daqui e de
parciais. No entanto, a importância que essas redes supralocais foram adquirindo
lá: simbolicamente, aceitar esse dinheiro significava uma aliança (quase) universal.
depois de Paulo reflete, melhor ainda, o acerto desta estratégia, que não era de
Não sabemos que destino teve o dinheiro, porque Paulo não nos conta o modo algum exclusiva de Paulo. Pode parecer que esta ideia entre em choque com
que aconteceu; a Carta aos Romanos é a última que escreveu. Deste episódio só a iminência escatológica que tanto pesava na cosmovisão de Paulo; entretanto. esta
temos o testemunho de Lucas em At 21,17-26, mas não nos diz o que aconteceu rede que dava uma dimensão quase universal da ekklêsia não tinha como objetivo
com a maior preocupação de Paulo ao fazer esta viagem. Poder-se-ia desculpar a duração temporal, mas a fidelidade teológica, a visibilização da identidade de
Lucas dizendo que ele não tinha conhecimento da coleta, mas não é certo; em At Deus e de seu modo de fazer história que não estabelecia fronteiras e se propunha
24,17, diz que Paulo explica ao procurador Félix qual seria a causa da viagem a a todos, sem distinção.
130 131
SEwNnA PI.Ili! · Quais são os aspectos centrais do tema?

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132
Capítulo 6
Apseudoepigrafia eocorpus paulino

No capítulo anteriores, vimo o que podemos qualificar como a mi são de


Paulo, o projeto histórico-teológico da con trução da ekklêsia ou a restauração de
I rael mediante a inclusão de gentio e a autoestigmatização para visibilizar oro to
de Deus descoberto na cruz de ]e u . A e ta altura do livro, o Leitor Lerá percebido
que e te projeto não era a fundação do cri tiani mo {Lermo que evitei con tante-
mente para referir-me ao Lempo de Paulo), que urgirá como religião mai Larde; o
cri tianismo, de certo modo, pode ver- e como resultado do fracasso daquele projeto
hi tórico de restauração de Israel. O que Paulo pretendia (tal como o descreve em
Rm 11.16-29) malogrou hi loricamenle: 1 rael inteiro não acreditou que o Cruci-
ficado fosse o messias de Deu . A con equências deste insuce o permitiram o
nascimento do cristianismo, duas ou três geraçõe mai tarde.
esla nova eção ("Que Lõe aberta ao debate atual''), vamo ver alguns
temas de difícil consen o, que e tão na ba e de muitas discus õe e de vi ões bem
diferentes de Paulo. Um destes lemas é o da literatura paulina. Incluo aqui as ques-
tões sobre a autoria, a unidade literária e a formação do corpus paulino. As opções
que e tomam diante destas perguntas condicionam outras tantas respostas sobre
Paulo de Tarso; de fato, na introdução de te livro, já apresentei algumas opçõe que
guiam a apresentação de Paulo que temo visto até agora. Portanto, quero apresentar
questões discutidas, evitando a lista de posições diferentes e justificando a postura
que me parece mais adequada ao dado históricos que temo , insistindo, uma vez
mais, em que são questões cuja re posta é incerta.

1. Aatividade literária na ekk/êsia paulina


No processo de surgimento do cristianismo durante os dois primeiros séculos,
houve alguns textos que tiveram um papel crucial, graças aos quais se constituiu
um corpus considerado sagrado pelos crentes em Cristo; através deles, o cristia-
nismo nascente começou a ler identidade religiosa própria. As cartas de Paulo,

135
T11m..1 FWI • Questões abertas ao debate atual Apseudoepigrafia eocorpus paufino

egundo a opinião da maioria do e peciali ta . e tão na ba e do urgimento do [ o não quer dizer que não houve _ limites; o plágio também ex i tia no tempo
cânone cri tão por volta do final do egundo éculo (GAMBLE. 1985). o entanto, de Paulo (EHRMA I . 2011). ignifica. ante . que havia ituaçõe nas quai apre-
e e te é outro do paradoxo que rodeiam Paulo. a caria que ele e creveu não entar um texto como de outro autor não era considerado plágio ou fal idade, mas
foram oriainalmente pen adas para permanecer no tempo; foram carta para us- o contrário. im. por exemplo. quando autore anônimo e cre\"eram depoi da
tar problema conjunturai . para re pondera pergunta amigas ou inimigas. para morte de Paulo o chamado Quarto Livro d E dra (4 E d). ninguém provavelmente
con truir, em cada cidade e em cada momento. eu projeto da ekklêsia. diferente e lava pen ando que e trata e de uma fa l ificaç1io ou de um livro originalmente
tanto em Corinto quanto na Galácia, tanto em Te alônica quanto em Roma. .. o e crito no éculo Vl a. C., tal como diz o próprio livro. O mai provável é que e te
entanto, contra todo prognó tico, permaneceram no tempo e, ainda mai , cresceram, texto popular fos e lido como um livro que recordava uma figura importante da
multiplicaram- e e, alguma , morreram e desapareceram. l o entanto, um corpus identidade judaica em tempo de cri e. E te modelo ervia como oportunidade para
cre cente de texto atribuído a Paulo começou a circular pela comunidades de apre entar a pergunta mai aguda e inqu ietante que impregnavam o ambiente
crente em Cri to de todo o Mediterrâneo, funcionando como carteira de identidade depoi da egunda de truição do templo de Jeru além pelo romano no écuJo 1
(BARBAGLIO, 1989. p. 229-367). No capítulo oitavo, falaremo um pouco desta (DÍEZ MACHO: . A ARRO. F ENTE.1984, p. 250-258). O mesmo e pod dizer
hi tória. Agora vamo deter-no em esclarecer, primeiramente. que cartas dentre do livros de Enoque. do Te lamento de Adão e Eva etc. Podem- e con iderar obra
essa foram compo tas por ele e quai foram e critas por eu discípulo depoi de que honram ou desenvolvem a memória de alguém dopa ado que in pirou o texto.
ua morte; em egundo lugar. quantas cartas Paulo escreveu e como e conservaram No caso das cartas p udoepfgrafas de Paulo. podemo pen ar a mesma coisa.
e e agruparam: e em terceiro lugar, como e e corpus de cartas atribuídas a Paulo Quando Paulo e Lava vivo. e creveu qua e toda as ua carta juntamente com
foi adquirindo identidade e autonomia. outro coautores que aparecem entre os remelenl . Geralmente não no lembramo
dele e atribuímo todo o mérito ou are ponsabilidade a Paulo; no entanto. ilvano,
1.1. Apseudoepigrafia Timóteo e ó Iene , entre outro . devem ler tido papel importante na compo ição
de a carta ; do contrário, não teriam ido nominado . A que tão é que, apó
Hoje há um con enso muito amplo em reconhecer como indi cutivelmente
a morle de Paulo, muita coi a ficaram por fazer: a parú ia não havia chegado.
paulina ele das catorze cartas atribuídas a Paulo: lTs, GI, lCor, 2Cor, Fl, Fm e como Paulo pen ava. e a a embleias e lavam ainda em seu primeiro pa o .
Rm. 1 o não quer dizer que as outras ete não o ejam, mas que não há consenso Aquele colaboradore de Paulo e depararam com muito problema para o quai
uficienle entre o e tudio o para afirmá-lo e co tumam er qualificadas como era preci o dar uma re po ta e. ao que parece. tomaram a deci ão de continuar
carta p eudoepfgrafa : 2Ts, Cl, Ef, lTm, 2Tm, Tt e Hb. E te termo não prejulga de_envolvendo a me ma tarefa real izada até então. com a única diferença de que
eu valor nem upõe uma de qualificação de nenhum tipo; unicamente e refere Paulo não e taria fi icamente pre ente na redação das cartas. E te detalhe. não
à opinião majoritária entre o estudio o que con ideram que e as cartas foram ob lante. não precisava alterar a tradição: ele já haviam e crito com ele e tinham
escrita por di cípulo de Paulo '·em eu nome". E ta eria, talvez, a melllor expli- a legitimidade necessária para continuar a fazê-lo: podiam continuar escre,·endo
cação para entender a p eudoepigrafia: "e crito em nome de outro". em eu nome, com ua '·coautoria virtuar'. poderíamo dizer. desenvolvendo. ex-
e hoje um e critor copia um texto de outro e não o diz, de modo que o pandindo e adaptando o projeto qu haviam começado com ele. tornando-o pre ente
apresente como eu, todo con ideram que comete plágio, porque e apropria atravé de ua cartas. Levando em conta que o de tinatário destas carta não
indebitamente do trabalho ou das ideia de outro. e i o acontece, o livro em eram um grupo homogêneo, ma plural, alguns e tudio os atuai acreditam que o
questão é reti rado do mercado e o autor pode enfrentar um proces o judicial e o di cípulo de Paulo contavam com e a diferença entre o Jeitore de ua carta ,
despre tfgio social. No tempo de Paulo, a situação era diferente; não exi tia este pen ando que os de maior cultura e formação entenderiam melhor as utileza da
entido da propriedade das ideias ou do textos; as fronteira eram maü. fluidas. p eudoepigrafia, ao pas o que outro . com meno formação e cultura, poderiam

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TlllW PAI!! · Questões abertas ao debate atual Apseudoepigrafia eocorpus paulino

pensar que eram cartas autêntica (KLAUCK; BAILEY, 2006, p. 395-406). De de muito crente em Cristo devido ao atraso da parúsia e evitar a apostasia, o
todo modo. trata- e de um fenômeno difícil de avaliar. abandono, mediante o entusiasmo novo pelo culto a Cristo como sinal de identidade
( ANHOYE. 1978).
O fato de a p eudoepigrafia apresentar um cenário para compreender o
corpus paulino como um conjunto de catorze e crito pertencente a dua ou trê
gerações de seguidores de Jesus, e te cenário é um consen o crescente, embora 7.2. As cartas deuteropaulinas
não e possa tomar como um dado inque tionável. Hoje, a maioria dos estudio os As cartas deuteropaulina (2Ts, Cl e E1) são cartas discutidas no que tange
considera que a catorze cartas atribuída a Paulo foram e critas entre o ano 50 à autoria. Uma maioria cre cente inclina-se a considerá-las carta pseudoepígra-
d.C. e 140 d.C., como datas extremas, dividindo-se em três períodos diferentes, fas, escritas, em todo caso, em estreita relação com as cartas originais de Paulo.
tal como apresentei no capítulo primeiro, seguindo as convenções mais amplas Desenvolvem algumas ideias pre entes nas anteriores, adaptando-as, ampliando
(HARRILL, 2012): alguns detalhe , concretizando ou aplicando ideias paulinas a novas situações. Por
i o, re ulta difícil ua avaliação; é possível defender a ideia de que Paulo mesmo
1. Cartas originais de Paulo: escritas, aproximadamente, entre tenha desenvolvido, no final de sua vida, seu próprio pensamento nestas cartas.
os anos 50 e 60 d.C. São: lTs, Gl, lCor, 2Cor, Fl, Fm e Rm. Seja como for. seguindo a opinião majoritária, apresentarei as razõe por que e
situam cronologicamente depois da morte de Paulo como cartas escritas por seus
2. Cartas deuteropaulinas: escritas, aproximadamente, na dé-
discípulos. A três cartas formam dois grupos: Cl e Ef são um díptico muito coerente,
cada dos anos 80 d.C. São: 2Ts, CI e Ef.
claramente composto de duas partes de um projeto editorial: 2Ts não tem conexão
3. Cartas pastorais: escritas, aproximadamente, nos começos direta com elas e está composta como resposta a lTs.
do segundo século. São: 1Tm, 2Tm e Tt.
A segunda Carta aos Tessalonicen e é um e crito polê1nico diante de
A Carta aos Hebreus fica fora desta classificação, pois, de maneira unânime, uma situação que podemos considerar como degeneração da de lTs: um entu-
já não é considerada representante da tradição paulina, apesar da nota de caráter sia mo escatológico que e tava criando demasiada confusão e uma alteração da
biográfico com que se conclui (Hb 13,22-25). Trata-se de um discurso teológico organização comunitária (MALHERBE, 2000, p. 456). Alguns defendiam, ainda
que reflete a situação do final do primeiro século (não do tempo de Paulo), quando depois da destruição do templo de Jerusalém pelos romanos no ano 70 d.C., que a
o novo culto a Cristo se apresenta como a ideia central. Tomando como modelo parúsia estava perto, uma ideia que aparece, de fato, em lTs 4,13-18. o entanto,
o sacrifício expiatório da Bíblia Hebraica (especialmente LV 16) mostra a vida o que no ano 51 d.C. era uma ideia reconfortante e aceita, muitos anos mais tar-
morte e ressurreição de Jesus como um sacrifício novo que supera aquele, dado de mo trava-se errônea e perigo a, porque podia desmotivar aJguns, fazendo-os
que o me mo acerdote é vítima e oferente sem pecado. O lugar que Cristo ocupa pensar que não era necessário continuar a desenvolver o anúncio do Evangelho
depoi da ressurreição na cosmovisão do autor da carta sugere a ideia de que os (2Ts 2,1-12)· i so é o que parece esta r acontecendo entre os destinatários desta
sacrifícios expiatórios foram superados para sempre. Para isso, o autor, provavel- carta. Por outro lado, o problemas de organização interna que apareciam em
mente um judeu helenista crente em Jesus faz uma leitura alegórica e tipológica lTs (fa lta de liderança reconhecida, abu os sexuais entre alguns, sincretismo...)
de pa sagen -chave da Sagrada Escritura judaica, a fim de mo trar a novidade de haviam de encadeado uma espécie de corrida por cargos de poder entre eles, com
Jesus (tem semelhanças com o trabalho de Fílon, outro judeu helenista alexandrino a esperança de poder viver desse serviço sem precisar trabalhar como arte ão
(2Ts 3,10-12).
de época anterior). O texto é extremamente acurado em sua forma, com um estilo
e solenidades que sugerem um contexto litúrgico de compo ição. Espelha uma Os autores desta carta (falo no plural para sublinhar a indeterminação da
reflexão madura, posterior à de Paulo, que tem como objetivo superar o cansaço autoria) conheciam outras carta anteriores de Paulo e as mencionam continuamente
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Tem>. l'MIE • Questões abertas ao debate atual Apseudoepigrafia eocorpus paulino

(21: 2,2.lS; 3.17), ma de modo polêmico, provavelmente para corrigir interpre- A im. o autore de CI e encontraram diante de uma ituação que o
taçõe con ideradas errôneas. Ao me mo tempo, imitiam deliberadamente estilo, obrigou a de envolver a cri tologia paulina. Fizeram-no de modo polêmico diante
vocabulário e expre õe de l'U . talvez para mo trar sua conexão temática e indicar de certa ameaça de caráter ideológico (o que chamam de "vã fi lo ofia" em Cl
a origem do problema apre entado . Entretanto, existem diferenças dificilmente 2.8.16). E te de afio têm um perfil increti ta (duaLi ta e a cético), contra o que
conciliávei com o conteúdo de rn , e pecialmente o atra o do final da história. o autore ão muito duro (Cl 2,20-23). Parece que algun do de tinatário esta-
au ente na cartas originai de Paulo. Parece, poi . que e es autores e crevem com vam deixando persuadir- e pela popu laridade de determinada prática ascéticas,
a intenção de corrigir ou de mitigar uma tendência "ultrapaulina" que recuperou em mortificaçõe a ociadas a vi ões, fe La e culto '·ao anjo ' ou a '·elementos do
momento pouco adequado uma ideia de Paulo e aplicou à vida cotidiana. criando mundo". que ofereciam algum con olo diante das contingência da vida e uma
intranquilidade e confu ão em muito crentes. ano depois da morte de Paulo.2T: con ciência eLiti ta. É provável que o que a im fazian1 imita em a inculturação
é um bom exemplo de como, já na egunda geração, algun ~ eguidore de ]e u e de Paulo, o e forço de a umir determinado modelos do ambiente para dar forma
deram conta de que a leitura literal e descontextualizada de algun texto redundava à ekklêsia. I o entanto, o que no tempo de Paulo mo trou- e válido, agora e lava
em grave erro e em falsi.ficação do entido dele . criando confu ão e mal-e tar.

A Carta ao Colo en e e a Carta ao Efé io ão duas carta e treitamente O autore de ta carta re ponderam, preci amente, de envolvendo a cri to-
Ligada , provavelmente compo tas como um díptico que de envolve duas ideias logia com a e perança de anular tai ameaça . Por e La fonna. pu eram-se ampliar
teológica que exigiam atualização ano depoi da morte de Paulo: a cri tologia e a ideias teológica de Paulo. oferecendo nova cosmovisão na qual Cristo apareceria
a eclesiologia. ão carta enraizadas em ideias próprias de Paulo, mas ampliada como o primogênito de toda a criação, aquele que está entado no upremo trono e
para além do que Paulo havia dito, a fim de adaptá-la aos novo tempo . Paulo a quem tudo e ubmete: ''Trono . oberanias. Principado , Autoridade . tudo foi
tinha sua própria co movisão teológica. mas nunca a istematizou. entre outra criado por ele e para ele ... : é o Princípio... : pois nele aprouve a Deu fazer habitar
coi a porque a iminência da parú ia o tornou de necessário. Quando a maioria do toda a Plenitude e reconciliar por ele e para ele todo o ere .. :· (CI 1,15-20).
eguidores de Je u . incluídos o di cípulo de Paulo, começaram a convencer- e E ta cri tologia elevada oferecia uma forma de entender. de um lado, toda a criação
desse retardamento, foi preciso adaptar muita coisas ao novo tempo , também dominada e ubmetida a Cri to, e, de outro, a cada pe oa como já entronizada
aquela cosmovisão. Por outro lado. ocre cimento da a embleias paulinas supu- com ele (CI 2,12). Portanto, qualquer prática ou culto que levas e em conta outro
nha um de afio e erigia uma nova organização. A sim, estes autores favoreceram ·'elemento do mundo" provava- e inferior e vão; o elitismo ficava anulado. Não é
o patriarcado para organizar a as embleias, mediante o recurso ao chamado uma carta que PauJo não pudes e ter e crilo: de fato. no que e refere ao desenvol-
'·códigos domé tico ", um gênero literário que con i tia em oferecer orientação vimento teológico, poderia tê-lo feito. Contudo, tal de dobramento, juntamente com
e pecífica ao membros da ca a egundo o lugar que ocupavam nela, de acordo o vocabulário e o e tilo. diferente e mai pe ado, culto e aprimorado do que o da
com uma e trutura imple , formada por pare desiguais 01omem e mulher, pais e cartas originais de Paulo, apontam na direção da p eudoepigrafia (ou deuterografia).
filho , enhore e e cravo ), em que um era o dominante e o outro, o ubordinado e la e tratégia e orna o u o do código domé tico que e centra em pedir
(AGUIRRE, 2009, p. 115-162). Fílon de Alexandria ou Flávio ]o efo, amho judeu ao escravo crente que não criem problema · na a embleias e ejam exemplo
qua e contemporâneos de Paulo, utilizaram e te gênero literário para abrandar as de obediência e ubmissão (CI 3,22-25): ademais. pede ao senhore que o tratem
ten ões que e criavam entre as comunidade judaica da diáspora e o contexto com ju tiça e equidade (Cl 4.1). Comparado com o tratamento que o e cravo e
gentio, provocada por eus diferentes estilos de vida. O discípulos de Paulo uti- ua ituação têm nas carta originai de Paulo ("não vos tornei e cravo do ho-
lizaram também e ta e tratégia e, comi o. di tanciaram- e claramente de Paulo. mens'', l Cor 7.21-23; "não há e cravo nem livre'', Gl 3,28; · [Oné imo, o e cravo]
que havia ido muito reticente com relação ao u o da ca a patriarcal como modelo retirado de ti por um pouco de tempo, a fim de que o recupera e para empre,
para a ekklêsia. não mai como e cravo, ma bem melhor do que um e cravo, como irmão amado".
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Tem.A PA.m ·Questões abertas ao debate atual Apseudoepigrafla eocorpus paulino

Fn 1,15-16), - e código domé tico mo tra- e utilmente alterado. Parece que a afirmar que a presença de Cri to na hi tória e realiza na totalidade do crentes.
Liberdade e a autonomia de que gozaram o cravo na ekklêsia durante a primeira uma a embleia onde o mai fraco ão o que melhor refletem a pre ença de
geração provocou uma imagem ocial negativa na egunda metade do primeiro Cri to. Em Ef. no entanto. eu autores e tabelecem uma sutil diferença entre a
éculo. A dura exortação que Inácio de Antioquia dirige ao e cravo alguns ano cabeça do corpo, que é Cri to, e o restante do corpo, que é o conjunto do crentes;
mai tarde para que ejam ubmi o e não bu quem a liberdade revela o me mo amba a partes, cabeça e corpo, formam a ekklêsia (Ef 1.22-23). a cabeça é que
problema (Inácio, Policarpo 4,2-3). O autore de Cl queriam uavizar a relação e de cobre fundamentalmente a presença de Cri lo, não nos membro mai fracos
com o ambiente, Limitando aquela liberdade e autonomia que o e cravo haviam ou vi do corpo, que aqui não ão objeto de atenção. E ta nova metáfora é muito útil
tido nas as embleia de Paulo. quando e trata de estabelecer mecanismo de controle e de autoridade; todo o
membros devem estar unido à cabeça para poder alimentar-se e receber dela os
O autore da Carla aos Efé io . talvez os mesmo da carta anterior. viram
movimento e ocre cimento, a identidade: "A im não eremo mai crianças...,
também a nece idade de expandir a eclesiologia de Paulo. Ne te caso, a refe-
cresceremo em tudo em direção àquele que é a Cabeça. Cristo. cujo Corpo, em sua
rências à ituação dos de tinatário ou a uma ameaça concreta e esfumaram e é
inteireza, bem aju lado e unido por meio de toda junta e ligadura, com a operação
difícil determinar o contexto. Ef incorpora várias coi as de Cl: a elevada cri tolo-
harmoniosa de cada uma da suas partes, realiza o eu crescimento para ua própria
gia (Ef 1,20-23). a entronização do crente com Cri to (Ef 2,6). o u o dos código
ediEcação no amor" (Ef 4.15-16: Lambém Cl 2,18-19). O princípio de autoridade
domé tico (Ef 5,21-6.9) etc. A e te dados compartilhado com a carta anterior
que vimos nas cartas originai de Paulo, no capítulo quinto. a autoe tigmatização,
acrescenta-se uma reflexão obre o status da ekklêsia na nova situação depoi do
aqui e diluiu, endo ub titufdo por outro modo de governo mai convencional. Nas
ano 70 d.C., con equência direta da cri tologia:
carta originais, para vi ibilizar Deus, era preci o humilhar-se e cuidar. e elevar
o membros mais débei : na cartas deuteropaulinas, é preci o e tar ubmi o à
Conforme a ação do eu poder eficaz. que ele [Deu ] fez operar em Cri to, re -u -
cabeça e receber dela a coe ão.
citando-o de entre o morto e fazendo-o as entar à ua direita no céu , mujto
acima de qualquer Principado e Autoridade e Poder e oberania e de todo nome Outra imagem de la util eparação da cabeça e do corpo aparece no código
que e pode nomear não 6 ne te éculo, ma também no vindouro. Tudo ele pô doméstico da Carta ao Efé io , que trata com especial atenção a relação entre ho-
debaixo do eu pé . e o pô , acima de Ludo. como Cabeça da Igreja, que é o eu mem e mulher, utilizada. precisamente, como metáfora da relação de Cristo com a
Corpo: a plenitude daquele que plenifica tudo em tudo (Ef 1.20-23). ekklêsia (Ef 5,21-6,9). Aqui e produz uma cuidado a tran po ição de significados:
o modelo patriarcal (culturalmente hegemônico) da relação entre marido e esposa é
A ekklêsia. que nas cartas de Paulo tinha fundamentalmente uma concreção utilizado como protótipo para ilustrar a relação entre Cri to e a ekklêsia, e vice-versa:
local ou upralocal, ou eja. as embleias com pessoas e problema concreto . agora a compreen ão desta relação hierárquica erve de protótipo para a relação entre
tem uma acentuada dimensão e mi são tran cendente , nas quai as referência con- o marido e a mulher crente (Ef 5,21-33). Con idera- e a espo a como o corpo do
cretas à ituação do destinatário e e fumou: o conceito de ekklêsia foi abstraído. marido, que e te deve cuidar, alimentar e amar, como Cri to à ekklêsia (Ef 5,29-30).
Uma metáfora ilu tra e ta evolução melhor do que uma explicação: a metáfora do A reciprocidade entre marido e mulher, tão original e inédita em Paulo (1Cor7.l-5).
corpo. Em l Cor 12,12-27, para explicar o que era a ekklêsia. Paulo utilizou a imagem de apareceu aqui: entretanto. põe- e ênfase em evitar o abuso ("poi ninguém
de un1 corpo humano completo. com todo o seus membro que ão imagem de jamai quis mal à sua própria carne. antes a alimenta e dela cuida .. .''. Ef 5,29).
cada crente, no qual a parte mai débei ou '·vis" ão tratadas com maior honra: E la e tralégia tão cuidado a erve a dois propó ilo . De um lado. como di emo ,
es e corpo qua e invertido era a melhor imagem do corpo de Cri to, da ekklêsia: atenua a tensões que exi liam entre o contexto cultural e a as embleia de cren-
"Ora, vó oi o corpo de Cristo e oi o seus membro , cada um por sua parte" te , porque as mulhere tinham liberdade, autonomia e liderança de u adas para
(l Cor 12.27). Paulo. como vimos no capítulo anterior. utilizou esta imagem para a maioria do grupo durante a egunda metade do primeiro éculo (coincidindo
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TOOF.1. WJE ·Questões abertas ao debate atual Apseudoepigrafia eocorpus paulino

com a chegada da djna tia Flávia ao Império). Integrando o modelo hegemônico da casa patriarcal: "Entre este e encontram o que e introduzem na ca a e
que afinnava a ubordinação da mulher ao marido , evitava- e a acu ação de con eguem cativar mulherzinha carregada de pecado. po uídas de toda orle
corromper a moraJ e as traruçõe que a ekklêsia padecia devido ao comportamento de desejo , empre aprendendo, ma em jamais poder atingir o conhecimento da
livre da mulhere crente (MACDONALD. 2004). Por outro lado. es a estratégia verdade.. (2Tm 3.6-7; leia- e 3.1-4.5).
con trói uma imagem da ekklêsia que responde melhor ao de afio da egunda Para fazer frente a este perigo . desenvolveram uma e tratégia de proteção ou
metade do primeiro éculo (crescimento, vi ibilidade pública. de vio doutrinaIB, fortalecimento da e trutura fom1ais e in Litucionai . O modelo patriarcal da ca a.
organização...). com um modelo hierárqwco ordenado. no qual a autoridade e o que no tempo de Paulo e teve limitado e re trito pelo princípio de iguaJdade em
controle ão colocado nas mão de homen com pre Lfgio, capazes de conh·olar Cri to (GI 3.28), e na carta deuteropaulinas e incorpora com matize e limite .
melhor o de afio interno de de vio, um modelo que e revele meno imprevi fvel ne te momento. em começo do egundo éculo, é adotado com cautela . Des a
do que os da primeira geração. forma. a autoridade é colocada na mãos de bomen , dono de casa. pe oa com
pre úgio e ben materiai uficiente para cumprir a tarefa de ho pitalidade. Pa-
1.3. As cartas pastorais ralelamente, limita- e apre ença pública da mulheres, apre entada como a porta
A cartas pa torai formam um corpo homogêneo quanto à temática, à forma fraca pela quai entram doutrinas estranha e aberrante . A ekklêsia organiza-se
e ao e tilo (2Tm tem forma de testamento e difere um pouco da outra dua no como uma ca a patriarcaJ, com cargo definidos (bi po , diácono /ruaconi a . an-
que concerne ao e Lilo): chamam- e "pastorai " porque e dirigem a pa tores de ciãos/ã . viúvas ...) e e chama pela primeira vez "casa de Deu ,. {lTm 3,15; cf. 3,5).
comunjdade . Algun e tudjo o creem que eus autores apenas utilizaram o nome A linguagem e o tema teológico desta Lrê carta também diferem
de Paulo por re peito, ma que não e e forçaram em imjtar eu e tilo, porque o ba lante do das carta originai de Paulo. De taca a importância do conceito
de tinatário abiam perfeitamente que não eram carta de Paulo: a e te fenômeno de "depósito'' em vez do de "tradição", que é mai flexível; o depósito exige er
e chamou alografia (allonymity) ou e crever em nome de outro em pretender er con ervado, protegido, não desenvolvido ou interpretado (2Tm 1.12-13). obre ai
ele, para dj Lingurr da deuterografia (deuteronymity). ou e crever como di cípulo também a evolução para forma in titucionalizada de lransmi ão de autoridade,
de outro. como exten ão de outro, o que corre ponderia à carta deuteropaulina como a impo ição de mão (2Tm 1,6). Entre a ideia teológica de ta carta ,
(MAR HALL. 1999, p. 83-92). As três cartas pa torais estão endereçada a pes oas de taca- e, de um lado, a mudança de centro teológico: a morte e a re surreição de
concreta , Timóteo e Tito, doi do mai próximo colahoradore de Paulo durante Jesu cedem o protagoni mo à ua "epifania". ideia que se provava mai popular
ua vida. e que ão apre entado agora como delegado legitimado por Paulo, ao entre o de tinatário da men agem de Jesus dos começo do egundo éculo (lTm
quais e concede. mediante e tas carta , completa autoridade sobre as as embleias. 3.16); por outro lado. obre ai- e a ideia de que o de tinatário da Torá não eram
todo o judeu , ma omente o inju to (lTm 1,9). Além ru o. chama a atenção
A ituação e a e tratégia que e tas carta e pelham não ão as me mas da
a ausência da caracterf tica tfpica do e tilo oraJ da cartas originais de Paulo.
carta originai de Paulo ou das carta deuteropaulina : evoluíram. O autore
mo tram- e e peciaJmente preocupado com a de ordem, a ameaças externas e E tas carta refletem um avançado proce o de in titucionalização, compa-
interna , o de vio doutrinai e morai , o exercício da autoridade. a imagem ex- radas com as carta originai de Paulo e com as deuteropaulina , bem como uma
terior da ekklêsia etc. De tacam e pecialmente a ameaça do que " e opõem à ã progres iva tensão com o ambiente circundante. De um lado, e ta a embleias. que
doutrina" (lTm 1,10; 2Tm 4.3). O perfil deles, curio amente, não e tá tanto definido ão cada vez mai vi fvei e e abem ob ervada , que cre cem em número e já não
pelo conteúdo de ua doutrina (me mo que e diga que ele "proíbem oca arnento, e peram o finaJ da história de modo imü1ente. devem elaborar uma identidade que
exigem a ab Linência de certo alimentos". lTm 4.3) quanto por seu comportamento, lhes dê egurança e e tahilidade. devem fixar fronteira culturai que as definam
qualificado de imoraJ e relacionado com a alteração da ordem, e peciaJmente o e a eparem suficientemente do mundo para que não e diluam. De outro lado, no

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TEmA MI • Questões abertas ao debate atual Apseudoep~rafia eocorpus paullno

entanto. têm consciência de estar em um mundo ao qual pertencem, que querem Deuem ficar submissas, como diz também a lei. ~ e desejam instruir-se sobre
conqui lar ( imbolicamente). no qual querem er relevantes e no qual desejam algum ponto, interroguem os maridos em casa; não é conueniente que a mulher
atrair, ser atraentes, conquistar adepto . É a tensão entre a coesão e o proselitismo. fale na assembleia. 36Porventura, a palavra de Deus tem seu ponto de partida em
Adotaram modelo hegemônico do ambiente, como o modelo patriarcal, talvez com vó ? Ou fo tes vó o único que a recebe tes? 37 e alguém julga ser profeta ou
a ideia de con ervar a proximidade, a abertura que o tomaria acessíveis. Todavia, in pirado pelo E pfrito, reconheça, na coi as que vo escrevo, um preceito do
e ta estratégia teve algun custo , como a mencionada impo ição do silêncio ao enhor (lCor 14,33-37).
membro subordinados segundo o modelo patriarcal (mulheres, jovens, escravos,
estrangeiros...): utilizar o modelo da relação hierárquica entre homem e mulher para O fenômeno da p eudoepigrafia não e limita à compo ição de novas cartas,
ilustrar a relação de Cri to com a Igreja legitimava a subordinação das mulheres ma também se percebe no exercício estendido de introduzir pequenas ou grandes
aos homen também na ekklêsia. O modelo hierárquico imperante (Cristo é cabeça seções de texto, glosas, com o fi m de esclarecer, matizar ou corrigir o que o texto
original dizia. Esse é um fenômeno amplamente aceito como tal; são muito di cuti-
do homem, o varão é cabeça da mulher), partilhado tanto por Paulo como por seus
dos, no entanto, quais fragmentos devem ser considerados glosas e quais não. o
discípulos. levou estes a tirar consequências eclesiais totalmente diferentes das de
caso em que se conservou alguma cópia antiga, sem o texto discutido, pode- e
Paulo: enquanto ele sublinhou que o homem não é dono de seu corpo, mas a mulher
defender com mais facilidade seu caráter adventício, mas isto acontece muito poucas
(e vice-versa, l Cor 7,4), para afirmar a igualdade radical de todas as pessoas na
vezes. as demais, a avaliação é feita em função de critérios internos: ruptura da
ekklêsia, a raiz da novidade de Jesus, seus discípulos reduziram a mulher a uma
sequência epistolar, vocabulário estranho ou com significado diferente, intenção
po e do homem, a corpo do homem (Ef 5,28-30), embora com limites (Ef 5,33).
dirersa, situação posterior... Em todos o casos, trata-se de avaliações difíceis.
E ta situação degradou-se na terceira geração, quando outro di cfpulos dos come-
ços do segundo século privaram as mulheres (e demais membros subordinados) da O caso de lCor 14,34-35 não é exceção. No entanto, estes dois versículos são
presença pública: invisibilizaram-nas e silenciaram-nas na ekkl.êsia, submetendo-as considerados geralmente uma glosa por várias razões (PAYNE, 2009). A primeira é
à autoridade e ao ensinamento do maridos (lTm 2,9-15). que rompe a sequência epistolar. o que se percebe com clareza lendo-se 14,31-33
e passando-se a 14,36-38: fala-se da ordem na assembleia quando se está profeti-
Talvez o leitor ou leitora se faça uma pergunta: como é possível, então, que
zando (como em 11,4-5). A segunda razão é que não é coerente com outros textos
convivam na mesma tradição, no mesmo cânone, tradições tão diversas, opostas,
indiscutivelmente paulinos, como lCor 11,4-5 e 14,31, onde se diz explicitamente
inclusive. a respeito deste tema? Como pode haver texto atribuídos a Paulo que
que "todos vós podeis profetizar... para que todos sejam instruídos", não omente
deem liberdade, autonomia e autoridade às mulheres na ekklêsia, enquanto há
os homens. E a terceira razão é que nem todos os manuscritos antigos que contêm
outros texto também atribuídos a Paulo que re tringem tudo isso e as relegam ao
cópias de lCor 14,33-37 trazem esses versículos.
silêncio e à invisibilidade? Isso se pode explicar com um exemplo.
Um deles, talvez o mais significativo, é o Codex Fuldensis (chamado as im
1.4. As glosas, um exemplo porque foi conservado na cidade de Fulda, Alemanha). Este códice do século VI
pertenceu ao bispo de Cápua (na Itália) e conserva a versão latina da Bíblia chama-
lCor 14,34-35 pode ilu trar are po ta a essa perguntas. Colocado em seu da "Vulgata". O bispo Vfctor tinha uma impressionante biblioteca porque go lava
contexto literário, o texto diz assim: de ler e comparar manuscritos da Bíblia, fazendo anotações sobre uas leitura .
No dia 2 de maio do ano 546, quando leu a passagem que estamos comentando
32
0 e píritos dos profetas estão ubmi o ao profeta . 33Pois Deus não é Deus (lCor 14,33-36), indicou um erro: a presença de dois versículos (14,34-35) que
de desordem, mas de paz. Como acontece em toda a Igreja do santo , 3-lestejam não estavam em outras cópias que ele manejava. Como considerou que o erro era
caladas as mulheres nas assembleias, pois não lhes é permitido tomar a palavra. do copista, pediu que o corrigisse; contudo, não era costume apagar ou riscar o
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TOOJ>.AME ·Questões abertasaodebateatual Apseudoepigrafia eocorpus paulino

texto agrado. de modo que aquele pô um inal no fi nal d 14.33 para que o A me ma coi a acontece em outro manu crilo. o Code:r, Boernerianus. do
leitor ignora e o que e eguia e salta e dali para o novo texto que ele copiou à éculo IX, que contém o texto da cartas de Paulo em grego e latim interlinear, ou
margem. do qual havia eliminado o- ver fculo 34-35. Na imagem. vi ualiza- e eja. uma linha em grego e imediatamente outra Linha com a ver ão latina. Quando
a página em que tão. chegamo a l Cor 14.31-33. o texto pula diretamente para 14.36-37. omitindo o
versículo 34-35. Em ambo o ca o . o copi La. ao chegar ao ,·ersfculo 33. faz uma
chamada. um inal à margem, que indica leituras variante na cópias que tinha
diante de i. o doi caso , copiou o ver fculo 34-35 ao concluir o capítulo 14.
depoi de 14.40. como e fo em um apêndice. uma glo a.

Codex Fuldensis (a Aecha. o círcuJo e o enquadramento fora m acrescentado )

Outro exemplo é encontrado no chamado Mimísculo 088, pergaminho do


éculo V. que contém o texto em grego. com letra minú cuia , de vária parte da
carta de Paulo. este caso. pode- e ler uma ver ão do texto que no ocupa com
e ta equência: lCor 14,31-33.36-37: os versículo 34-35 não e tão ali.
Codex Boernerianus (o enquadramento foram acre centados)

O que se pode ler no último doi exemplo é o seguinte: "Mas o e pfrito


do profetas estão ubmi o ao profetas. 33 Poi Deu não é Deus de desordem, ma
de paz. Como digo [ou ensino] em toda a Igrejas do santo . 36Porventura. a palavra
de Deu tem seu ponto de partida em vó ? Ou fo te vó o único que a recebes! -?
31
e alguém julga er profeta ou in pirado pelo E pfrito. reconheça. na coisas que
; ~~i&US!~~~~ .-~ vo crevo, um preceito do enhor". E la é. prova,·elmenle. a versão original de te
• texto de Paulo. Como e por que foi modificado coma inserção de La glosa (14.34-35)?
Ourante a primeira geração. a pre ença e liderança de mulheres na a -
embleia de Paulo foram cotidiana : podiam orar e profetizar como o homen
(l Cor 11.4-5). Conforme a comunidade cre ciam e a parúsia não chegava. esta
ca racterí Lica criou problema de imagem externa, ten ões e ho Lilidade com o
Minú culo 088 (o círculo e o enquadramento fora m acrescentado ) ambiente: para mitigar e as ten õe . organizaram- e as a embleia de acordo com

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T1m.1 MI • Questões abertas ao debate atual Apseudoep~rafia eocorpus paulino

o modelo da ca a patriarcal, reduzindo a pre ença pública, a palavra e a liderança também a questão da integridade das cartas originai . Es a integridade e expli-
das mulheres (Ef 5.21-33). Mais tarde, provavelmente porque a ituação não havia cita em uma pergunta: as ele cartas que con ideramo originai de Paulo foram
melhorado uficientemente. adotou- e o modelo patriarcal com mai radicalidade, escritas tal como as con ervarno ou sofreram algum proces o de recopilação que
proibindo- e explicitamente às mulhere a participação pública. obrigando-as a agrupou cartas originalmente independente em unidades literárias mai ampla ?
permanecer em ilêncio e a perguntar em casa a eu marido , os únicos que po- A origem deste que Lionamento e Lá, em primeiro lugar, nos numero o indício
diam intervir nas a embleia (lTm 2,9-15). Entremente , e ta medida encontrou de recopilação que e encontram nesta cartas e, em segundo lugar, no conhecido
muitas re i tências. A im, por exemplo, em 2Tm 3,1-9 e alerta a re peito do co lume de conservar texto breve de um mesmo autor em unidades literária mais
que dão protagoni mo a mulheres que querem aprender e ter maior autonomia e ampla (casos conhecido são a corre pondência de Policarpo de Esmirna, a Carta a
liberdade na a embleia, mostrando- e que a propo ta restritiva de lTm não era Diogneto, as Apologias de Justino ou a própria tradição sinótica, para não mencionar
eguida por algun . E tes e estas podiam apelar às cartas originais de Paulo para o numerosos ca o de material veterote tamentário). O indícios de recopilação
reclamar sua palavra na assembleia, especialmente aquela fra e de Paulo: "todo ão, geralmente, a ruptura da equência epistolar, as contradiçõe ou inconsistên-
vós podei profetizar. mas cada um a seu turno, para que todo ejam instruído ... ' cias entre fragmentos da mesma carta, os dado biográficos ou cronológicos que
(lCor 14.31). De modo que os autores da terceira geração que haviam compo to a e apre entam deslocado ou de ordenado , repetições de ideias emelhante (à
cartas pastorai , concretamente lTm 2,9-15, pegaram duas frases deste fragmento vezes com entido diferentes) etc. Encontraram- e indício de recopilação em l Cor.
e compu eram doi versículos que in eriram entre lCor 14,33 e 14,36. O lugar é 2Cor, Rm e Fl, que sugerem a ideia de que cada uma destas quatro cartas é, na
e tratégico. porque onde antes se dizia "se alguém julga ser profeta ou inspirado pelo realidade, a união de duas ou mai que Paulo e creveu de modo independente e que
E pírito, reconheça, na coi as que vo escrevo, um preceito do enhor", aplicado à após sua morte foram reunida (PERVO 2012, p. 71-83; VIDAL, 1996, p. 14-22).
desordem quando todo queriam profetizar em respeito o próprio turno (14,31-33).
uma vez in erido os versículo 34-35, esta fra e de avi o fica referida ao ilêncio 2.1. Primeira Carta aos Coríntios
das mulhere : se alguém se julga profeta... deve con iderar o ilêncio das mulhere
como um mandato do Senhor. A transformação do texto de Paulo foi concluída. A Primeira Carta aos Coríntio oferece vário destes indícios que apontam,
como vamos ver, para dua po síveis carta independentes (BETZ; MITCHELL,
E te exemplo mostra a realidade de alguns texto vivos que ainda não se
1992). O primeiro encontra- e em lCor 5,9. em que Paulo menciona alguns compor-
haviam fixado nem tinham uma consideração canônica inamovível: era preciso
tamentos inaceitáveis e alude a uma carta anterior que havia sido mal interpretada
adaptá-lo às novas circun tância , era nece ário torná-lo relevantes para o
pelos coríntio : ' Eu vos escrevi em minha carta que não tivésseis relaçõe com im-
novo tempo . Como a linha que se impô na e cola paulina foi, ne te tema, a do
pudico . ão me referia, de modo geral, ao impudicos deste mundo ou aos avarento
modelo patriarcal para a organização da assembleias, eu di cípulos decidiram
ou ao ladrões ou aos idólatras ... Não. escrevi-vo que não vos associeis com alguém
adaptar Paulo para fazê-lo mai patriarcal do que ele mesmo e uas assembleias
que traga o nome de irmão, e não ob Lante, eja impudico ou avarento ou idólatra
haviam ido. o entanto, a contemplação desta hi tória não legitima a con agração
ou injurioso ou beberrão ou ladrão.. : '. Curiosan1ente. em lCor 6,9-11, encontramo
do me mo modelo patriarcal, mas a nece idade de adaptar- e ao tempo . Falarei
uma descrição de conduta inadequada semelhante: "Não vo iludai ! Nem o im-
di o no penúltimo capítulo, sobre a relevância atual.
pudico • nem os idólatras, .. . nem o ladrões, nem o avarento , nem o bêbado ...
herdarão o Reino de Deu ". A emelhança de ambo os fragmento logo u citou a
2. Arecopilação das cartas originais de Paulo hipóte e: erá que Paulo e refere a 6,9-10 quando menciona outra "carta" em 5,9?
Além da pergunta a respeito de quai são as crutas originai de Paulo e O segundo indício afeta, preci amenle. o fragmento l Cor 6.1-11. que trata
qua1 foram e critas po teriormente por eus di cípulo em -eu nome, apresentou- e do julgamentos entre crentes. De te texto, dfa- e que rompe a sequência epi tolar
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l ~ m •Questões abertas ao debate atual Apwloepigrafia eocorpus paufmo

de l Cor 5.1-13 a 6,12.-20. E. efetivamente. e e lê o anterior e o po terior. igno- por parte de algun e a neces idade de oferecer razõe coerente com ua própria
rando- e 6,1-11, percebe- e a unidade temática {relações exuai inadequadas) co movi ão o obrigaram a matizar e corrigir ua po lura, permitindo e a refeiçõe
que fica interrompida com o tema do julgamento entre crente . A conexão parece de de que não cau assem problemas a outro (8.7-13). Por conseguinte, l Cor 10.1-22
re-tabelecida pela r petição do termo ··julgamento·· {o que e co tuma chamar de pertence a uma carta anterior, e 8,1-9.27 e 10.23-11.1 a uma po terior: 10.1-22
··palavra-gancho''. um mesmo termo que conecta dua eções diferente ) em 5,12-13 pode er contemporânea do fragmento que apontamo acima (6.1-11). como veremo .
e 6.2-3. No entanto, uma leitura atenta mo Lra que. me mo endo o me mo lermo,
O quarto indício afeta outro texto que parece romper a equência epi tolar:
eu ignificado e u o ão diferente . Em 5,12-13. Paulo critica o destinatário no
l Cor 11.2-34. A partir de lCor 7,1. Paulo começa a dar re po ta a uma carta que
ntido de que ele e entem melhore do que o de fora e o julgam. enquanto
lhe trazem pe oa da ca a de Cloé (citada em 1,11): '·Pa semo ao pontos obre
ignoram algun comportamento inaceitávei de eu irmão~; por i o lhe recorda
o quai me escreveste ... (peri de hôn egrapsate.. .)". Esta fórmula e repete ba i-
que devem limitar- e ao discernimento moral do de dentro, porque do de fora Deu
camente em outro cinco lugare : 7.25: 8.1; 12,1; 16,l e 16.12. onde e re pond
e encarrega. Em 6.2-3. porém, Paulo diz-lhe que ele (o ''ju to ") ão chamado
à perguntas que o coríntio lhe haviam e crito. Contudo, este fragmento (11.2-34)
a julgar o de fora, inclu ive ""o anjo ··. De modo que. enquanto no primeiro caso
muda de tema. abordando de orden da celebração da ceia do enhor. em responder
lhe pede que deixem de julgar o de fora porque a ele Deus o julga. no egundo
a nenhuma pergunta. Por outro lado, ao terminar (11,34), deixa o tema inconclu o
caso lhe diz que erão eles a exercer o papel de jufze , não Deu . O contra te urge
para tratá-lo com vagarem uma próxima visita que Paulo havia planejado: entretanto,
preci amente quando e colocam junto ambo o texto : caso ejam eparado e
é tratado com detalhe em 12.1-14,40. que, efetivamente, começa com a fórmula
colocado em ituaçõe diferente . de aparece a contradição. Con equentemente.
anterior (peri de ...). Portanto, parece que Paulo tratou do tema do modo correto de
parece que l Cor 6.1-11 não e lava originalmente onde e encontra; e dada a
celebrar a ceia do enhor de modo breve em 11,2-34, porque pen ava e clarecer
repetiçõe mencionada de 5.9-10 e 6,9-10, é provável que 6,1-11 faça parte da
tudo pe oalmente em uma próxima viagem. Como tal viagem atrasou, o coríntio
carta anterior. referida em 5.9.
e creveram-lhe pedindo e clarecimenlo obre a ordem das as embleia . ao que
O terceiro indício pode er vi to em l Cor 10.1-22. O texto oferece uma re pondeu em 12,1-14,40. Porcon eguinte, é provável que 11.2-34 pertença a uma
r po ta negativa e taxativa à po si bilidade de participar das comida em que e carta anterior, e 12,1- 14,40, a uma po terior.
partilha carne acrificada ao ídolo : " ão podei beber o cálice do enhor e o
Percebe- e o quinto indício em lCor 15 1-58. dedicado ao tema da r -
cálice do demônio . Ou queremo provocar o ciúme do enhor?'' (l Cor 10.21-22).
surreição dos morto . E te fragmento não é respo la a nenhuma das perguntas
Entretanto. o contexto literário no qual e encontra e te fragmento (l Cor 8.1-11.1)
apresentada . nem vem introduzido pela fórmula peri de: parece que Paulo foi in-
oferece uma respo La afirmativa muito mais matizada à mesma pergunta, como vimo
formado omenle de forma oral (15.12). E te fragmento, ademai , tem continuidade
no capítulo cinco. A im, em 8,4-6, Paulo reconhece que o monotef mo des acraliza
lemática e formal em 16.13-18. que pertenceria à me ma carta. Tratar- e-ia, poi .
qualquer carne oferecida ao que não e con idera deu e. portanto. não tem valor
religio o: e alguém quer participar de tai comida . pode fazê-lo em problema de um fragmento que fa ria parle, com o anteriores mencionado . da carta citada
por Paulo em 5,9.
de con ciência. inclu ive. me mo que eja no templo de uma divindade pagã (8,10).
O me mo acontece em 10.27: Paulo aceita que um crente participe de qualquer Por fim, o exto indício ajuda a compreender o anteriores e e refere à menção
refeição na casa de um não crente. Deparamo-no . poi . de 8.1 até 11,1. com uma de dois grupo independentes de informante : em 16.17-18. Paulo cita E téfanas.
eção tematicamente coerente, mas na qual Paulo oferece re po La diferente . A Fortunato e Acaico, que o vi ilaram e do quai diz que "tranquilizaram o meu
hipóte e mai lógica para resolver e te problema é con iderar 10,1-22 parte de uma espírito e ovo o"; em 1,11. no entanto, Paulo menciona outro , "o da ca a de Cloé",
carta anterior. na qual Paulo re pondia negativamente e em nuance à po ibilidade que Lhe informam a re peito de algumas divi õe e problema de comportamento
de participar a fim de evitar problema : contudo. a resi tência a esta re po la sexuai inadequado e lhe trazem uma carta com algumas perguntas da parte da
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TEm.A ME • Questões abertasaodebate atual Apseudoepigrafia eocorpus paulino

comunidade (a que ele responde a partir de 7,1). Bem pode tratar- e de referências com Cor C, que e tá ar in erida por meio da palavra-gancho "tribulação·'. que e
a doi momento diferente : primeiro. E téfana e eu acompanhante levaram-lhe repete em 7.4 e 7,5; o fragmento que e inicia com uma referência ao "triunfo" de
oralmente informação sobre a comunidade. e Paulo re pondeu com uma primeira Cri to (2.14) parece explicar a tribulaçõe das viagens de Paulo como parte de
carta (chamada geralmente de Cor A. que compreendia lCor 6.1-11: 10.1-22: 11.2- eu triunfo paradoxal.
34; 15.1-58; 16,13-18): depoi chegaram o da ca a de Cloé com mai informação
O indício eguinte é uma repetição chamativa. Em 9.1-15, Paulo reitera o
e uma mis iva com ei pergunta : a tudo i o re ponde em uma egunda carta
me mo tema e as mesma ideia que no versículo anteriores (8,1-24), criando uma
(chamada Cor B, que continha ore to de l Cor, ou seja: lCor 1,1-5.13; 6,12- 9,27;
de neces ária ensação de déjà vu. O capítulo 8 é uma carta de recomendação de
10,23-11,1; 12.1-14,40; 16.1-12.19-24). O recopilador que reuniu ambas as car-
Tito (e de outro irmão), que Paulo e creve ao coríntio para estimular sua genero-
tas para formar a atual lCor dividiu a carta originais em fragmentos segundo os
idade e que lhe entreguem o dinheiro da coleta que erá enviada a Jeru além. O
a unto de que tratavam e o uniu todos de novo, agrupando-o tematicamente;
capítulo 9 é a mesma carta de recomendação. com mínimas variante . que Paulo
is o faz com que ore ultado tenha coe ão temática, mas ten ões internas.
envia para animar a coleta das demais comunidade da Acaia (9.2) e que expede
através do mesmo emi sário anteriore (Tito e o "irmão"). Não tem muito entido
2.2. Segunda (arta aos Coríntios que Paulo tives e e crito ambo o fragmento na mesma carta: o que parece mai
O caso da egunda Carta ao Coríntio é. e po sível, mai complicado. provável é que alguém os uniu mais tarde em uma única carta.
porque a amálgama de cartas originalmente independente , agrupadas em 2Cor. Por último. encontramo-no com um alto abrupto no tema e, acima de
é difícil de esclarecer. Existe um con en o muito amplo que reconhece que Paulo tudo, no tom em 10.1-13,13, em que a ironia, o arca mo, o insulto e a ameaça
não compôs esta carta tal como a conservamo : ela é o resultado do agrupamento dão ideia da intensidade com que Paulo e creve este fragmento; está escrito com
de pelo meno quatro (embora o número de tas varie de um estudio o a outro), muita paixão, com dor no coração e emoção, como se escre\'esse ' com o coração
enviadas em momento diferente (BETZ, 1992). A razão mais importante é a angustiado. em meio a muita lágrimas" (2Cor 2,3-4). Vejamos um exemplo: "O
confü ão cronológica das in formaçõe que Paulo oferece em 2Cor sobre ua que faço, continuarei a fazê-lo a fim de tirar todo pretexto àqueles que procuram
viagens ou projetos de viagem e do envio de colaboradore ; essas referências são algum para se gloriarem do mesmos títulos que nós. Esses tais são falsos apóstolo ,
impo ívei de ordenar e se toma como uma carta unitária. Ademais, são também operários enganadores, disfarçados de apóstolos de Cristo..." (2Cor 11,12-13). Estes
indício a rupturas na equência epi tolar ou o tom e o teor diferentes dos distintos três capítulos formariam uma carta independente, a mencionada em 2,3-4 e 7,8,
fragmento ; vamo ver alguns. escrita po teriormente a Cor C, em um momento no qual a tensão com os coríntios
O primeiro indício, como em lCor, é uma dupla referência a uma carta havia chegado a seu momento mai crítico pela intervenção dos que Paulo chama,
anterior que fora escrita "com o coração angustiado, em meio a muitas lágrimas'' ironicamente, "eminentes apó tolo ".
(2Cor 2,3-4; 7 8); no entanto, uma carta assim não coincide nem com Cor A. nem
Estes indício , reduzidos aqui quase a dado telegráficos, apontam para a
com Cor B, que compõem 1 Cor. Como na referência de l Cor 5,9, podemos supor
existência de quatro cartas, como dissemo , originalmente independentes e 8t,anJ-
que e trata de uma carta contida na atual compo ição que forma 2 Cor.
padas posteriormente na atual 2Cor: Cor C (2Cor 2,14- 7,4) é uma carta de caráter
O fragmento que com mais clareza rompe a sequência epistolar desta carta é apologético na qual Paulo se defende diante de uns recém-chegado a Corinto que
2Cor 2,14- 7,4; se pularmos estes versículos e lermos seguidamente 2,12-13 e 7,5-7, põem em dúvida sua missão; Cor D (2Cor 10,1- 13,13) é uma carta muito dura,
o fragmento mencionado tem sua própria unidade e coerência em forma e conteúdo; escrita com lágrimas e dor no coração, na qual Paulo enfrenta dialeticamente os
parece uma apologia de Paulo diante de alguns opositores que não o consideram que ele chama de "eminentes apóstolos", porque desqualificam a ele e a sua missão;
capaz para a missão que ele mesmo se propõe; estes capítulos foram identificados Cor E (2Cor 1,1-2,13; 7,5- 8,24) é uma carta de reconciliação, escrita uma vez que
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TEmA PMTl • Questões abertas ao debate atual Apseudoepigrafia eotorpus paulino

a len ão com o corilltio~ e re olveu graças à intervenção de Tito: é muito mai 2.4. Carta aos Romanos
amável e afetiva. e nela retoma o tom e a proximidade das primeiras cartas: Cor F
Me mo que tenham apre entado mai po fvei fragmento independente
(2Cor 9.1-15) é uma credenciaJ para recolher a coleta das demai. as embleias da
(o capítulo 15. por exemplo). o texto mai di cutido de la carta é. em dúvida. o
Acaia, quase uma cópia da que havia enviado em Cor E ao da cidade de Corinto.
capítulo 16 (FITZMYER. 1993, p. 57: DOi\rRrED: MAN O\, 1977). O indí-
uma vez que já e haviam reconcifüdo. A recopilação realizou- e tomando- e a
cio de recopilação ão fundamentalmente doí : de um lado. o final da carta. que
ba e de Cor E. a carta de reconciliação, à qual e acre centaram as demai , co-
aparece em Rm 15.33. com a fórmula com que Paulo frequentemente termina ua
locando-a onde melhor e encaixavam pelo conteúdo e lema, a fim de conferir ao
mi iva . ugerindo que a carta acabava originalmente aí; de outro, o conteúdo
conjunto um entido coerente.
de e capítulo, no quaJ e de tacam vário detalhe e tranho , que apontam para
outro de tinatários diferente do romano .
23. Carta aos Filipenses
Em primeiro lugar, e lá a atrevida petição a uma comunidade com a quaJ
A unidade literária de Fl afeta, fundamentalmente, o fragmento Fl 4,10-20, Paulo não havia tido relação pe oal. para que acolha uma pe oa (a diaconisa
que e con idera uma breve mi iva de agradecimento pela ajuda recebida; Fl Febe: 16.1-2). E ta petição revela- e e tranha. além domai , pela forma· Paulo dá
3.1-4.1 apre enta dúvida de autenticidade paulina, i to é, muitos e perguntam por upo to não omenle que vão recebê-la. mas que vão ajudá-la em tudo de que
e e trata de uma glo a ou não. ma pouco defendem que se trate de um frag- nece ite. Chama a atenção e a liberdade e confiança quando ele mesmo e creve
mento original e independente de Paulo, colocado po teriormente af (KOE TER, com muita cautela e re peito ao pedir-lhe que o acolham a caminho da E panha
1988. p. 645-647). A razão mai importante para con iderar a independência de (15.24): pareceria que. ne te versículo . Paulo e dirige a uma a embleia conhe-
4,10-20 é a diferente ituação a que faz referência: ne te fragmento, Epafrodito cida. com a qual tem uficiente confiança para tal pedido.
acaba de entregar a Paulo uma ajuda econômica enquanto se encontra no cárcere,
Em egundo Lugar. Paulo menciona nominalmente várias pe soas cujas locali-
em Éfeso; e te breve texto parece escrito para agradecer imediatamente a ajuda
zaçõe e tão mai perto de Éfe o do que de Roma. As im, por exemplo. Paulo aúda
recebida e ser enviado com o próprio Epafrodito de volta a Filipos. No entanto,
Pri ca e Áquila, do quai diz que expu eram sua cabeças para salvá-lo (16,4) e
em 2,25-30, descobrimos uma situação posterior: Paulo escreve aos filipenses
a quem agradece o trabalho, tanto em nome pe oal corno no das ·'a sembleia da
para anunciar-lhe a volta de Epafrodito, que e havia demorado mais do que o
gentilidade ', em referência a toda a que fundou. Adernai , aúda a ·'a embleia
e perado porque teve que recuperar-se de uma grave enfermidade. Da situação
que e reúne em ua ca a', como cumprimentando um grupo que ele conhece
de crita em 4,10-20 à descrita no resto da carta e refletida em 2,25-39, trans-
pe oalmente. A última notícia (ante de la carta) que lfnhamo de te ca aJ e da
correram alguns mese .
as embleia que e reúne em ua ca a e tá em lCor 16.19. que no itua em Éfe o.
1 to ugeriu a ideia de duas cartas: Fl A (FI 4,20-20) seria uma carta de Ali também os itua Luca quando o menciona em At 18.18.26. Em Rm 16,5,
agradecimento que Paulo enviou a Filipos (ou pretendeu enviar) ao receber a ajuda Paulo menciona Epéneto. de quem diz que ão "primícias da Ásia para Cri to".
econômica que lhe mandavam no início de ua e tada no cárcere; Fl B (1,1-4,9; para recordar que foi um do primeiro que acreditaram em Cristo na Ásia. ou eja,
4,21-23) foi e crita depois da convalescência de Epafrodito, que já podia voltar; em Éfeso. a capital. Em 16,7, diz que Andrônico e Júnia, além de erem exímio
aproveitando esta circunstância, Paulo tenta resolver aJguns problemas de divi ão entre os apó tolos, foram companheiro de pri ão; esta pri ão foi a que teve de
interna. confrontos e falta de identidade que ameaçam a assembleia de Filipos. suportar em Éfeso. O resto da amplf ima lista de saudaçõe , a lista mais longa de
O recopilador pôs no final de Fl B a carta de agradecimento (Fl A) para ressaltar todas as cartas de Paulo. está cheia de referências íntimas. com nomes e episódios
a generosidade dos filipenses e sublinhar a estreita relação que essa assembleia compartilhados, alguns colaboradores íntimo na criação de assembleias, com um
manteve com Paulo durante sua vida. grande conhecimento das circunstância pes oais. Tudo isso apresentou muitas
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TEmA PMll • Questões abertas ao debate atual Apseudoepiqrafia eoCOIJlUS paulino

dúvidas obre o de tinatários originai : como é possível que Paulo conheces e de Laodiceia. Lede vó também a que escrevi aos de Laodiceia". Igualmente, em
em uma cidade que jamais havia vi itado tantas pes oas por eu nomes, algun 2Ts 2,2.15; 3,17, os autores dizem conhecer outras cartas de Paulo, entre as que
colaboradores e tantos dados pessoais? Por que essas referências pessoais e os dado obviamente estaria lTs. Em ambo os caso , trata-se de cartas deuteropaulinas,
circunstanciais apontam para a a embleia de Éfeso? Não será que Rm 16 era, na escritas durante a egunda geração por discípulos de Paulo. Este dado aponta para
realidade, uma breve missiva para Éfe o, na qual pedia que acolhessem Fehe e na uma primeira conclusão: parece que depois da morte de Paulo, quando se corria o
qual aproveitava para enviar saudações à comunidade na qual havia passado mais risco de perder sua memória, apresentou- e o intercâmbio de cartas entre assem-
tempo, ante de empreender a viagem mais delicada de sua missão independente? bleias e a recopilação delas.
Isto sugere que a atual Carta aos Romanos é formada por duas cartas Fora do corpus paulino, a referência mais clara a uma coleção de cartas de
originalmente independentes: Rm A (Rm 16,1-23) é uma carta breve, dirigida às Paulo é 2Pd 3,15-16: "Considerai a longanimidade de nosso Senhor como a nos a
assembleias de Éfeso, na qual Paulo recomenda Febe e envia saudações com o fim salvação, conforme também o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a
de sentir-se apoiado perante a viagem a Jerusalém com a coleta. na qual estava em sabedoria que lhe foi dada. Isto mesmo faz ele em toda as cartas, ao falar nelas
jogo sua comunhão com as assembleias da Judeia; Rm B (Rm 1,1-15,33), por sua desse tema. É verdade que em uas cartas se encontram alguns pontos difíceis de
vez, é uma carta de preparação de sua viagem a Roma, na qual quer apresentar-se entender, que os ignorantes e vacilantes torcem como fazem com as demais E cri-
e expor sua missão a fim de ser acolhido cordialmente antes de empreender sua turas, para a própria perdição". Este texto, provavelmente compo to nos começo do
viagem rumo ao Ocidente. O recopilador pôde colocar Rm A no final de Rm para segundo século, é uma baliza na história das cartas de Paulo, uma vez que indica
apresentar Paulo em estreita relação com as influentes comunidade de Roma, uma que e começa a considerá-las como "Escritura". Esta alusão coincide cronologi-
vez que se estavam convertendo em assembleias com um peso crescente. camente. tal como dissemo , com a mudança transcendental que se realizou entre
os seguidores de Jesus depois da conquista de Jerusalém e da destruição do templo
no ano 70 d.C., e aponta para a segunda conclusão: o afã por recopilar, agrupar e
3. Onascimento do corpus paulino
conservar as cartas de Paulo coincide com o esfriamento da espera da parúsia e
As cartas originais de Paulo e as atribuídas a ele ou pseudoepígrafas forma- com o deslocamento do centro de atenção para a permanência e o entendimento
ram um corpus de textos que tiveram muita influência na construção do Ocidente e com o Império.
na tradição cristã. A formação deste conjunto de cartas que, como dissemos, está Em 2Tm 4,13, os autores desta carta, em nome de Paulo, pedem que lhes tra-
na base da formação do cânone cristão, revela-se um processo complexo e dillcil gam ·'os livros [bihlia], especialmente os pergaminl1os [membranas]', provavelmente
de concretizar, porque temos poucos dados. em referência a um códice. Este dado foi interpretado como prova da preferência
Um primeiro passo importante foi o que descrevemos no tópico anterior, dado dos crentes em Cristo do segundo século pelo códice como melhor forma material
pouco tempo depois da morte de Paulo: o processo de recopilação e de agrupação de agrupar os textos considerados sagrados. Em todo caso, esta alusão coincide
de cartas originalmente independentes, enviadas aos mesmos destinatários em temporalmente com o início dos primeiros restos materiais conservados dos segui-
uma cidade. Assim, quando o processo de criação do corpus paulino começa, já dores de Jesus (papiros, pergaminhos, códices), que datam do segundo século em
se haviam reunido as cartas originais de Paulo em sete cartas. Essa concentração diante: o Papiro 46 (Chester Beatyy Il), o Papiro 30 (Oxirrinco 1598), o Papiro 92
local depois da morte de Paulo deu início à tendência de agrupar mais cartas, (Madinet Madi 69.39a e 69.229a), o Cânone de Muratori etc.
mesmo que tivessem sido dirigidas a outra cidade. A notícia mais antiga de um Além disso, por volta do final do primeiro século, encontramos alusões mais
intercâmbio epistolar entre destinatários de diferentes cidades aparece em Cl ou menos diretas a coleções de cartas de Paulo em Inácio de Antioquia, Policarpo
4,16: "Depois que e ta carta tiver sido lida entre vós, fazei-a ler também na Igreja de Esmirna e Clemente de Roma, que dão sinais de conhecer uma indetemtinada
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TEmA w.RTE ·Questões abertas ao debate atual Apseudoepigrafia eocorpus paulino

coleção de carta de Paulo. Por volta do ano 140 d.C .. Marcião realiza ua própria Há certo indício que apontam para po ibilidade de que Paulo tenha con-
coleção. na qual agrupa dez das carta atribuídas a Paulo. A partir dessa data. o tado com que suas carta fo em er lida no contexto da Ceia do enhor (cf. l Cor
te temunho e multiplicam. endo talvez o mai ignificalivo o de Clemente de 11.17-34) e que ua fórmula inicial e conclu iva lenham ido pen ada com e te
lexandria e Tertuliano de Cartago. por volta do final do egundo século. que ão fim (..A graça e a paz e tejam convo co··, "A graça de no o enhor. Je u Me ia .
te temunha de uma coleção de carta na quai aparecem toda as atribuída a e teja convo co .. :'). Por outro lado. me mo que ua autoridade lenha ido muito
Paulo no atual cânone cri tão, meno Hebreu . E te dado ão uma prova clara di cutida. como vimo em capítulo anteriore . não resta dúvida de que muito do
da agrupaç,ão d la carta desde o começo do egundo éculo. talvez no final do membro das a embleia que ele criou o tinham por apó tolo com autoridade. ua
primeiro éculo (HURT DO. 2010, p. 47-49). e apontam para uma terceira conclu- morte ignificou para ele , como para o colaboradore mai íntimo , uma perda
são: a carta de Paulo. conforme e foram agrupando. adquiriram um ignificado. in ub tituível: o que re lava dele, além de ua assembleia , era ua memória em
uma autoridade e uma inAuência cada vez maior.
forma de carta às comunidade . Mo tra- e plausível pen ar que tudo i o con-
O contexto mai plausível para e a tarefa "e colar" {a recopilação, agru- tribuiu para um afã por con ervar e sa cartas como e fo em eu te lamento.
pação, adaptação e ampliação da carta de Paulo) é a cidade de Éfe o. Não ua herança à ekklêsia. ua forma de manter viva ua memória. e a coisa estão
omenle é a cidade na qual pas ou mai tempo durante ua etapa de mi ionário a im. a celebraçõe na quai e continuava a ler contribuíram enormemente
independente, mas também porque ali eycreveu boa parte de uas carta originai . para o aumento de ua e lima. autoridade e influência, favorecendo, primeiramen-
Além di o. Luca diz que co tumava reunir-ve ali, na e cola de Tirano (Al 19,9). te. a di tintas recopilaçõe e agrupamento de uas cartas e, em egundo lugar.
A pre ença de eu- colaboradore ne ta cidade. juntamente com o eguidores de a ampliação delas com outras e crila em eu nome. Uma última conclu ão de ta
Je u de outro círculo , logo cedo e faz patente em Éfe o. ão é garantido que ituação é que a interpretação de uas cartas e generalizou. ah traiu- e. ou eja.
ali con ervaram cópia originai da ca rta , vi to que Paulo não e perava que elas adquiriram um caráter universal porque e perdeu a peculiar conexão entre a
permanece em no tempo; todavia, mo Lra- e plau fvel que em cada as embleia
ituação original do de tinalário e a tratégia de Paulo para enfrentá-la. Agora.
local tenham agrupado a correspondência que tinham de Paulo, uma vez que e la-
"Paulo ' escrevia nelas a todo o crente de qualquer tempo e lugar. Paulo, o apó -
va morto e a parú ia demorava, como di emo . E t primeiro agrupamento , a
tolo e missionário, tran formou- e em um corpus que leve um pe o incomparável,
partir de carta originalmente independente , foram po to em circulação para que
dando à ua figura e memória uma importância maior do que a que tinha tido. no
chega em a outra a embleias de outras cidade . Em Éfe o, podemo upor que
conjunto do cristiani mo na cente. ua própria mis ão.
e juntou uma (primeira?) coleção de toda a carta originai . E la coleção (que
algun chamaram ecumênica) eria a base para a po lerior ampliação mediante o
acré cimo de novas cartas {p-eudoepfgrafa ) e de glosa . Bibliografia
Todo e e proce o e a primeiras avaliaçõe apresentam que tões inte- G IRRE. Rafael, Del movimiento de }esús a La lglesia cristiana: Ensayo de exége i
ressantes: que valor tinham as carta de Paulo em ua origem e como evoluíram? ociológica dei cri tiani ·mo primitivo, Verbo Divino, E tella, 2009.
Que autoridade tinha seu autor em vida e como mudou depoi de ua morte? Em BARBAGLIO. Giu eppe. Pablo de Tarso y los orfgenes cristianos. fgueme. alamanca.
que contexto e começaram a recopilar, agrupar. tran formar e ampliar a cartas 1989.
de Paulo? Que con equência leve para ua interpretação a incorporação de uma BETZ, Han Dieter, Corinthian , cond Epi tle to the, in FREEDMA . D. 1• (ed.), The
coleção na qual e podiam ler todas? Como modificou a interpretação das originais Anchor Bible dictionary. Douhleday. ew York, 1992, p. 1:1148-1154.
a criação, difu ão e ju tapo ição das cartas po teriore p eudoepfgrafa ? De que BET'Z, Hans Dieter: MITCHELL. Margarel M.. Corinthians. First Epi tle to lhe, in
maneira afetou a fé em Jesu e e proces o de recopilação crescente de cartas FREEDMA , D. . (ed.). The Anclwr Bible dictionary. Doubleday. ew York. 1992,
originai , p eudoepígrafas, glo as... ? p. 1:1139-1148.

160 161
TEmA PAK1I • Questões abertas ao debate atual

DíEZ MACHO, AJejandro et al., Apócrifos dd Antiguo Testamento. lntroducción general


a lo apócrifo dei Antiguo Testamento, t. 1, Cristiandad, Madrid, 1984. Capítulo 7
DONFRIED, Karl P.; MA ON, Thomas Walter. The Romans d.ebate, Augsburg, Min-
neapolis, 1977.
EHRMAN, Bart D., Forged: wri-ting in the name of God. Why the Bible's authors are not
Paulo e amemória de Jesus
who we thínk they are, HarperOne, New York, 2011.
FlílMYER, Joseph A., Romans: a new lranslation with introduction and commenlary,
Doubleday, New York-London, 1993. Nunca se conheceram pessoalmente, mas sua relação tem sido cau a de
GAMBLE, Harry Y., The ew Testament canon: its making and meaning, Fortress Press, acalorado debates na história; Jesu de Nazaré e Paulo de Tarso protagonizaram
Philadelphia, 1985.
curio os encontros virtuais, tanto na memória dos primeiros seguidores de Je u
HARRILL, James Albert, Paul the Apostle: his life and legacy in their Roman context,
quanto na do cristianismo, uma vez que e desenvolve como religião. A memória
Cambridge University Press, Cambridge-New York, 2012.
que do primeiro o segundo conservou e a fidelidade ou inEdelidade do segundo
H RTADO, Larry W., ÚJs primitivos papiros cristianos: un estudio de los primeros testi-
em relação ao projeto do primeiro estimularam os debates teológicos e históricos
monios materiales dei movimiento de Jesús, Sfgueme, Salamanca, 2010.
durante muitos séculos. Que conhecimento teve Paulo de Jesus e da tradição de
KLA UCK, Hans-Josef; BAILEY, Daniel P., Ancient l.ellers and the ew Testament: a guide
seus ditos e feitos? Quem conservou e desenvolveu e ta tradição? Que atitudes
to context and exegesis, Baylor University Press, Waco, TX, 2006.
Paulo tomou em relação a ela? Que lugar ocupa Paulo na história começada pelos
KOESTER, Helmut, lntroducción al Nuevo Testamento, Sfgueme, Salamanca, 1988.
seguidores de Jesus? Que imagem teve Paulo de Je us e como influenciou na do
MA CDONAI.D, Margaret Y., Las mujeres en e/ cristianismo primitivo y la opin ión pagana,
outros seguidores? Como Paulo influenciou na(s) cristologia(s) do nascimento do
Verbo Divino, Estella, 2004.
MALHERBE, Abraham J., The letters to the Thessalonians: a new translation with intro-
cristiani mo e depois?...
duction and commentary, Doubleday, New York, 2000. A complexidade deste tema é dada não unicamente pela escassez e ambigui-
MARSHALL, L Howard, A critical and exegetical commentary on the Pastoral Epistles, dade dos dados sobre Jesus e Paulo, mas também pelo caráter de ambas as pessoas
T & T Clark, Edimburgo, 1999. históricas. Concentrar-me-ei, por razões de brevidade e clareza, em três desta
PAYNE, Philip B., Man and woman, one in Christ: an exegetical and theological study perguntas com a ideia de expor os problemas e con equências que estão em jogo, e
of Paul's Letters Zondervan, Grand Rapids, MI, 2009. oferecer algumas pistas para entendê-las melhor. Em primeiro lugar, quero indicar
PERVO, Richard 1., Pablo después de Pablo: Cómo vieron los primeros cristianos al a importância de situar Jesus e Paulo em seu tempo e lugar. destacando tanto o que
apóstol de los gentiles, Sfgueme, Salamanca, 2012. os une nesse sentido como o que os diferencia; em egundo lugar, apresentarei o
ANHOYE, Albert, El mensaje de la carta a los hebreos, Verbo Divino, Estella, 1978. problema do conhecimento que Paulo teve de Jesus e de sua tradição, assim como
VIDAL, Senén, Las cartas originales de Pablo, Madrid: Trotta, 1996. suas consequências; e em terceiro lugar, à guisa de conclusão, sintetizarei alguns
traços da contribuição paulina para o surgimento e o de envolvimento da memória
de Jesu no cristianismo na cente.
A Crítica da Redação (conhecida pelo termo alemão Redaktionsgeschichte)
generalizou. em meados do século XX a ideia de que cada evangelista havia uti-
lizado e modelado a tradição de Je u para formar uma imagem definida e pes oaJ
dele, de modo que e di tinguisse de outras. De acordo com e ta ideia, antes da

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TEm.A PARJE ·Questões abertasao debate atual Paulo eamemória de Jesus

redação do Evanuelho inótico , a partir do ano 70 d.C., a traclição de Je u Jerusalém (crentes "hebreu "): em terceiro lugar. os grupo de crente em Cri to
não Linha o grau de coerência que adquiriria depoi , e era objeto de diferente e, da diáspora (o crente "heleni la "); em quarto lugar e tão o círculo joaneu .
inclu ive. contraditória interpretações. Esta tradição pré-sinótica apresentava e se que tiveram uma trajetória particular; inclui. adernai , toda a corrente internas
ro to ambíguo e contraditório porque Je u não havia demonstrado intere e em diferentes dentro de cada uma destas quatro grandes tracliçõe (AGUIRRE, 2010).
dar-lhe coerência (CO ZELMANN, 1974). E tudo interdi ciplinares po Leriores Não seria, portanto nem justo nem rigoro o e quecer a contribuição de outro
confirmaram a ideia de que a traclição de Je u dependia fundamentalmente de seu muito crentes anônimo durante a primeira geração. De todos estes círculo , a
cari ma. e e le é, por definição. arbitrário (SANDERS. 1998). A arbitrariedade, conexão hi tórica mais importante entre Jesus e Paulo é a tradição dos chamado
ou eja, o recur o ao paradoxo e contradiçõe , juntamente com as inesperadas "helenistas", aquela que primeiro e tendeu a memória e o culto de Jesus para
mudanças de direção na men agem e na vida de um cari mático, contribuem para além das fronteiras geográficas de Israel. Dela Paulo herdará uma compreen ão
aumentar seu cari ma. porque mantêm por mais tempo a autoridade nele me mo particular do acontecimento da morte de Jesus, que desenvolverá por ua conta e
(ao er imprevisível, evita que outros u urpem sua autoridade) e atrasam o proce - será a base da tradição chamada "pagão-cristã". Este elo, que contém influências
o de in titucionalização. Portanto, a coerência, a partir de determinado ponto de de outras tradições, determina o lugar e a originalidade de Paulo em relação aos
vista, já não e mostra útil para julgar a historicidade dos ditos de Jesus e de Paulo. demais crentes em Jesus e, e pecialmente, com respeito ao próprio Jesus.
Outro tanto aulore e tudaram, igualmente, a coerência e a lógica de
Paulo em ua caria (cf. MAYORDOMO-MARfN, 2005), chegando a resultado 1.1. Analogias entre Jesus ePaulo
muito plurais, mesmo que a maioria reconheça, de início, problemas similares ao
Paulo compartilha com Jesus uma série de perspectivas, enfoques e visões
apre entado por Sander : que Paulo não mostra especial preocupação por parecer
do mundo que e di tanciam das perspectivas, enfoque e vi õe que o crente em
coerente ou consistente. Esta é uma da dificuldades para aproximar-no e conhecer
Cristo desenvolveram a partir do ano 70 d.C. Dito diferentemente, para além das
a figura hi Lórica de Je u e de Paulo: eu cari ma. Portanto, vamo apresentar
divergências evidentes que vamos resumir posteriormente, as analogias entre Jesu
o cenário histórico da primeira geração de eguidores de Jesus (do ano 30 ao ano
de Nazaré e Paulo de Tarso sobressaem- e ao contemplar estas duas personagen
70 d.C.), levando em conta que ua tradição carecia da coerência que adquirirá
hi tóricas no proces o de construção do cristianismo nascente, desde a morte de
com a redações do relato evangélico (e de outro ) e favorecia o urgimento de
Jesus até lrineu, aproximadamente entre o ano 30 e o ano 190 d.C. Estes pontos
tradições divergentes, conflito entre grupos e posiçõe diversa .
partilhados são, fundamentalmente, três: a perspectiva escatológica, a concepção
política da religião e o horizonte da renovação de J rael, ao quais se deveria ornar
1. Paulo eJesus em seu(s) tempo(s) o mencionado fato de que ambas as personagens históricas tiveram, cada uma a seu
modo, uma personalidade carismática única (BARBAGLJO, 2009).
As cartas originais de Paulo, e crita na década do ano cinquenta, ão a
fonte hi tórica mais antiga para conhecer a tradiçõe pré-paulinas e o cri tiani mo Em primeiro lugar, ambos compartilharam uma perspectiva mais escato-
primitivo da primeira geração (30-70 d.C.), mas não é a única. Entre Je u e Paulo, lógica do que apocalíptica. Estes termo se disfarç,am muitas veze e se utilizam
encontramo uma complexa rede de círculos de seguidores parcialmente ocultos ou frequentemente como sinônimos, mas não o ão. A perspectiva apocalíptica era muito
interconectado . seja por dependência, eja por opo ição, cuja tradição se cristali- popular no tempo de Jesus e de Paulo, e vem determinada por um esquema dualista
zou na egunda geração (70-110 d.C.) em uma miríade de texto apostólico , do da história que opunha o mundo presente ao futuro: o presente estava corrompido e
quai con ervamo a maior parte. E a complicada rede de círculos de eguidore era necessária (e garantida) uma intervenção de Deus, que faria justiça. Tanto Jesus
inclui, em primeiro lugar, o grupo de eguidore de Jesus na Galileia (o movi- quanto Paulo estavam sob a influência desta cosmovisão hegemônica e popular. No
mento apiencial ou crente galiJeus): em egundo lugar, os círculo da Judeia e de entanto, não é o que domina sua visão do mundo; ambos, diferentemente dessas
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TBIWP..l PWE • Questões abertas aodebate atual Paulo eamemória de lesu5

visõe radicalmente apocalípticas, compreendiam o tempo presente como um tempo Em terceiro Lugar, tanto Jesus quanto Paulo tinham em seu horizonte a
de po sibiLidades, de e perança, de novidade; acreditavam que o presente era um renovação de Israel, embora de modos diferentes. Enquanto Jesus deu início a um
momento decisivo que abria possibilidades novas para todas as pessoas, indepen- movimento de restauração intrajudaico, cujo confins eram provavelmente as fron-
dentemente de sua condição. Jesus, por um lado, proclamou com seus dito e feitos teiras de I rael (cf. Mt 10,5-6), Paulo pretendeu a transformação do judaísmo por
que o reino de Deus já havia começado (cf. Me 1,15: Lc 11,20) e que se instauraria meio da incorporação de pagãos ao povo eleito (cf. Rm 9-11). Entretanto, ambos
completamente na futura intervenção de Deus. Paulo, por outro lado, acreditou estão unidos pela ausência de interesse por fundar uma religião (entendida esta
que essa intervenção decisiva de Deus havia acontecido já no acontecimento da como um sistema organizado de valores, ritos e normas eparado dos que existem
morte e ressurreição de Jesus, e que se completaria com a chegada iminente do em seu ambiente). Ambos, portanto, partilham suas profundas raízes judaicas e
Senhor para julgar. Esta pequena defasagem provocará uma perspectiva diferente, sua vontade de dar pleno sentido ao povo de Deus, assentando as bases para esse
que sublinharei adiante, mas não esconde o fato de que ambos compartilharam a processo de reconstrução; com o tempo, depois da segunda e terceira gerações, essa
convicção de uma intervenção de Deu no presente, no transcurso de suas vidas. construção se definirá diante do judaísmo e demais cultos como uma nova religião.
Essa confiança gerou em ambos um estilo de vida e uma estratégia de missão que
compartilhava a intensidade, a urgência e a entrega ao momento histórico que 7.2. Diferenças entre Jesus ePaulo
viviam como se fosse o definitivo. Mais tarde, os seguidores de Jesus da segunda
No entanto, ressaltadas as analogias entre Jesus e Paulo, é necessário in-
e, especialmente, da terceira geração suavizarão essa urgência, ao mesmo tempo
que estabelecerão instituiçõe para organizar a agitação e canalizar a intensidade dicar alguns dos pontos nos quais se distanciam um do outro, em grande medida
inicial em modos históricos que pudessem durar no tempo. devido à diferença de origem. Desse modo, em primeiro lugar, Jesus foi um judeu
galileu, rural; seu mundo transcorria nas pequenas aldeias (sem aproximar-se das
Em segundo lugar, Jesus e Paulo partilham uma mesma compreensão da grandes cidades como Séforis ou Tiberíades) e utilizava imagens e linguagem pró-
religião que poderíamos chamar "religião política", no sentido aristotélico de religião prias do ambiente rural da Galileia. Paulo, por sua vez, foi um judeu da diáspora,
do âmbito público, da pólis. Nenhum dos dois pretendeu oferecer orientações unica- urbano, que visitou unicamente as cidades mais importantes do Império e se movia
mente para os aspectos pe oais da relação do crente com Deus, nem se Limitaram entre elas através das grandes vias de comunicação, utilizando a linguagem e as
ao âmbito da casa como horizonte de sua missão; ao contrário, compreenderam e
imagens próprias deste novo contexto urbano. Essa deslocação supôs, entre outras
anunciaram cada um a seu modo e com estratégias diferentes, que Deus quer um
consequências, um desenraizamento palestino do Evangelho e um enraizamento
mundo novo, um novo modo de todas as pessoas relacionarem-se entre si, um novo
greco-romano, que se concretizou não somente na tradução para o grego das tradi-
modo de se relacionarem com Deu , de acordo com o rosto de Deus que ambos
ções aramaicas sobre Jesus, mas na utilização de modelos culturais greco-romanos
pregavam. Em outros termos, o objetivo de ambos não era unicamente transformar a
para uma exposição relevante do Evangelho. Exemplos destes modelos, como vimos
casa como âmbito privilegiado de relação com Deus, mas transformar toda a cidade,
no capítulo quarto, são as associações voluntárias ou a ekklêsia da cidade, além do
os espaços e as relações públicas para que tudo isso se adaptasse ao Deus do Reino;
uso da retórica, imagens urbanas etc. (cf. l Cor 9,24-27).
por isso, entraram em conflito com muitas das estruturas e instituições básicas da
cultura mediterrânea oriental do primeiro século. Posteriormente, os discípulos de Uma ulterior consequência desse desenraizamento é o que alguns têm cha-
Paulo da segunda geração que escreveram as cartas deuteropaulinas (Cl e Ef) e os mado de "desnacionalização da restauração judaica", ou seja, ampliar o projeto
da terceira geração que escreveram as cartas pastorais (lTm, 2Tm e Tt), adotaram a de Jesus para além das fronteiras nacionais ou étnicas de Israel (FREDRIKSEN,
casa patriarcal como estratégia básica de inserção na sociedade, o que supôs uma 2000, p. 174-175). Portanto, enquanto os ouvintes de Jesus eram exclusivamente
mudança decisiva na prática de Jesus e de Paulo, e significou a assunção da casa palestinos (judeus da Galileia e da Judeia) e mal sentiam a influência da religião
como estrutura básica da ekklêsia e o deslocamento para uma "religião doméstica". oficial do Império, os ouvintes de Paulo eram predominantemente pagãos (não
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Tl!WllRAl'Mlt · Questões abertas ao debate atual Paulo eamemória de Jesus

judeu e judeus da diáspora). aco-tumado à pluralidade e à competitividade de culturaJ. De acordo com e te modelo. Paulo e uas a sembleias. a fi m de resolver
cuJto , e ao onipresente cuJto imperiaJ, com ua teologia do poder e da uhmi ão. e tas len ões, intensificaram a emelharn:,a e relativizam as diferenças. de modo
lgualmente. enquanto Jesu não utilizou o di curso teológico para convencer que terminaram inserindo- e no mundo greco-romano. me mo em diluir- e total-
eu ouvinte , ma bu cou suscitar a imaginação com parábolas, mover a vontade mente. con ervando a original idade.
com breves histórias, criar ade ão ao reino de Deu , Paulo, por ua vez, pô mai E te doi modo de e lar no mundo a partir da fé em Je u gerarão, adi-
ênfa e em ativar a inteligência e a compreen-ão de eu ouvintes. em pensar a cionalmente. muita len õ interna entre o diferentes círculo do cri tiani mo
real idade a partir de nova chave de interpretação e, a im, mo trar o Reino com na cente e no mo Lram a diferenças prática mai clara entre a tradição judaíta
convicção e argumentação teológica. Je u preferiu a parábola e a metáfora ao di - e tradição pauJina.
cur o, à retórica ou à exortação, ao pas o que Paulo privilegiou estes últimos e não
a primeiras. E ta diferenças fazem com que, para aJém das coincidências iniciai ,
2. Oconhecimento que Paulo teve de Jesus
Jesus e Paulo apareçam na primeira metade do primeiro éculo como personagens
ma1 di tanciados do que realmente estiveram. Vamo fixar-no agora na egunda da perguntas a que no propu emo
re ponder: que conhecimento PauJo teve de Je u e de eu dito e feito ? Em 2Cor
Em egundo lugar, e como con equência do precedente, outra diferença
5.16. Paulo afirma categoricamente: "Por i o. doravante a ninguém conhecemos
di tancia Paulo de Jesu e de seus di cípulo judafta Uudeu da Judeia), contem-
egundo a carne. Também e conhecemo Cri Lo egundo a carne, agora já não o
porâneo de PauJo, que continuaram o e tilo de vida de Je u . Assim, enquanto
conhecemo as im··. PauJo parece defender- e diante do coríntio da acu ação de
estes último a unúram corno forma ociaJ de er no mundo a " eita" (hairesis).
não ter conhecido Je u pe oalmente e, portanto. de não ler uficiente autoridade
Paulo as umiu o modelo de "culto" (WHITE, 2007, p. 170).
para interpretar ua tradição e apre entar- e em eu nome. Sem dúvida, para a
O modelo de eita é definido por sociólogo como um "movimento de regene- prelen ão apostóUca de PauJo, que algun negavam (cf. lCor 9,2), esta era uma
ração eparatisla - ou carismático - que urge dentro de um i terna estabelecido e enorme dificuldade. ua relação com a tradição de Je us era de segunda mão: não
religio amente definido, com o quaJ partilha uma vi ão simbólica do mundo". Este havia vivido com ele, nem havia ido testemunha direta de ua vida, morte e re -
é o que a sumiram Je u e eu eguidore na Pale tina. E es eguidores judaftas surreição (cf. At 9,1-19). Como e não ba la e, algun do que tinham vivido com
ão judeus crente em Jesu com um horizonte nacional. E a dupla realidade, Je u e te temunhado ua morte e re urreição opu eram- e a ele e o enfrentaram
ua identidade judaíla e sua fé em Jesu , gerou grande ten ões em eu ambiente (cf. Gl 2.11-14). Paulo teve que defender- e de todas estas acusaçõe , que tinham
cultural, as quais ele resolveram intensificando as diferenças e relativizando as uma base real.
emelhanças, de modo que findaram por er expul o da sinagoga. Algumas tra-
A defesa que Paulo faz de ua di tância com o Je u da hi tória é surpreen-
diçõe , como a recolhida no Evangelho de Mateu ou na carta de Tiago. refletem a
dente, na linha do que descrevemo como autoestigmalização: nega explicitamente a
permanência de te modelo na egunda geração.
necessidade e, inclu ive, a utilidade do conhecimento de '·Cri to segundo a carne'.
Por ua vez, um "cuJto" é descrito corno um "movimento integrador, amiúde Para Paulo, bastava ua experiência (ver o capítulo egundo) e o ignilicado teológico
sincreti ta, que é importado eficazmente - por traslado ou mutação - para outro da morte e da re urreição de Jesu ; a i o ele e referirá constantemente. Parece
istema cultural religiosamente definido, com o qual bu ca intetizar ua inédita que pouco da vida de Jesu ervia a Paulo ne ta tarefa teológica. Foi, portanto,
visão simbólica do mundo". Paulo. como os judaflas, era judeu crente em Jesus, de inleres e ou de conhecimento? Paulo de prezou, de propósito, a hi tória de
porém, diferentemente deles, tinha um horizonte greco-romano, uma vontade inter- Je u ( eus ditos e feito ), ou o fato é que não a conhecia e teve de elaborar uma
nacional, o que criaria outras ten ões marcadas pela diferença com esse contexto cristologia que justificas e ua ignorância?
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TOOf.I mn • Questões abertas ao debate atual Paulo eamemória de Jesus

Esta que tão foi apresentada há muito tempo de modo crítico (WEDDER- modificando-os e adaptando-o a novas circunstâncias ("Julgo que também eu
BU R . 2004). empre chamou a atenção que. apó omente vinte anos da morte po uo o Espírito de Deus·', diz em lCor 7,40; cf. 7,25). Em conclusão: mesmo que
de Je u , Paulo mencione tão pouco dado de ua vida e que apenas cite seus ditos o estudiosos divirjam muito na hora de avaliar estes dados, parece que Paulo teve
ou feito . Parece conhecer, não ob lante, alguma notícia gerai : ua descendência certo conhecimento do en inarnento de Je u , mas que não influenciou muito em
davídica (Rm 1,3). o nascimento '·de mulher'º e .. oba leiº' (Gl 4,4), sua clemência ua mi são. Corno é pos ível explicar e te fato? Vamos ver algumas respo Las e o
e bondade para não comprazer- e em i me mo (2Cor 10,1: Rm 15,3), a vinculação problemas que apresentam.
de Je u com o grupo do Doze e Pedro (lCor 9,5; 15,5; Gl 2,7-8), a existência de
Em primeiro lugar, é neces ário recordar que não conhecemos todo o
irmão de Jesu , especialmente de Tiago (Gl 1.19). a celebração da última ceia
conteúdo do ensinamento de Paulo, mas somente aquele contido em suas cartas.
com eu discípulos (lCor 11,23-26), ua mort e epuhamento (l Cor 15,4). Cita
Como expôs, há algum tempo, Mauro Pe ce, as cartas fazem parte da estratégia de
apena quatro veze algum dito de Je u : obre o divórcio (lCor 7,10-11, cf. Me
conservação das assembleias (resolver conflitos e enfrentar novas situações), não
10.9-11), sobre o viver do trabalho apo tólico (l Cor 11,24-25, cf. L 22,19-20) ou
da de criação (pôr as bases para constituir a ekklêsi.a), que é algo anterior (PESCE,
o modo de dirigir- e a lahweh como "Abbá" (Gl 4,6: Rm 8.15, cf. Me 14 36). Em
1994, p. 7-34). Não sabemos o que Paulo dizia sobre Jesus quando anunciava pela
outro lugares (por exemplo, U 4,15), Paulo alude a "palavras do enhor'', mas sem
primeira vez o Evangelho ao chegar a uma cidade. Logicamente, é bem po sível que
paralelo claro. À vezes também menciona ideias comun com o en inamento ético
falasse dele e contasse notícia de ua vida, de seus feitos e ditos, mas revela- e
de Je u (especialmente da tradição marcana). que recolhe em algumas exortaçõe
certamente estranho que em ua cartas apenas recorde alguma dessas notícias. Ao
de ua cartas (cf. lTs 5.13 e Me 9,50: r:n 5,15 e Mt 5,38-48: Rm 12.14.17 e Lc
contrário, o que Paulo sublinha é a irrelevâncias de tais dados: .. Por isso, doravante
6,27-28; Rm 13,7 e Me 12,17; Rm 13,9 e Me 12,28-31; Rm 12,13 e Me 9.42; Rm
a ninguém conhecemos egundo a carne. Também e conhecemos Cristo segundo
14,14 e Me 7,15).
a carne, agora já não o conhecemo as im" (2Cor 5,16).
Entretanto, o centro da pregação do tarsiano não é a ética nem a correta
Em segundo lugar, o contexto helenístico em que Paulo anunciou o Evangelho
interpretação da lei. como faz o nazareno, ma o anúncio do entido da morte e
necessitada de categorias adequadas para ser compreendido. Se Paulo, como disse-
re surreição de Je us e o lugar da lei no plano de Deu (embora também ressalte
mos antes, apresentou a fé em Jesus como um culto, era provavelmente necessário
ua con equências éticas). Caberia acrescentar a e ta breve informação a escassez
utilizar urna linguagem cultuai ("Senhor", 'Filho de Deus") para referir-se a quem
de referências ao núcleo do anúncio de Jesus, o reino de Deu , e, especialmente, o
era objeto de culto (DUNN, 2011). Isto poderia explicar a falta de interesse pela
deslocamento de entido: enquanto em Jesu o reino de Deus tem dupla dimensão -
história de Jesus, pouco relevante para o culto e, o que é mais importante para
pre ente e futura-, em Paulo é apenas futura. Por outro lado, à parte a tradição da
Paulo, equívoco para os destinatário do Evangelho, que podiam confundir Cri to
ceia do nhor (l Cor 11,23-26), as dua citações de dito de Jesus são reportadas por
com um homem de prodígios ou um sábio (theios aner). Parece que Paulo queria
Paulo para corrigi-las ou introduzir variações. O dito sobre o divórcio é modificado
apresentar a divindade de Cristo, não sua humanidade; no entanto. como explicar,
por Paulo com uma exceção que matiza e adapta a novas circun tãncias o entido
então, a centralidade da cruz, das dificuldades e dos sofrimentos de Jesus, na
original do dito de Jesu : para ele, é po ível o divórcio no caso de que não se possa
mensagem de Paulo?
manter a paz (l Cor 7,15-16; cf. Me 10,9-11). lgualmente, Paulo modifica o dito sobre
viver do próprio trabalho (l Cor 9,14; 10,7; cf. Mt 10,10), que era interpretado como Em terceiro lugar, não podemos esquecer o convite a olhar para o futuro
direito a que a comunidade hospede e mantenha o discípulo itinerante. Para Paulo, imediato, feito pelo anúncio do Evangelho e pela missão dos discípulos de Jesus
a liberdade de viver de seu trabalho arte anal e não ser mantido pela comunidade é durante a primeira geração; o centro da pregação são as consequências imediatas
mais importante. Estes exemplos mostram, de um lado, que Paulo conhecia alguns dos acontecimentos escatológicos iniciados com sua morte e ressurreição. Portanto,
dados da tradição de Jesus e, por outro, que os interpreta com grande liberdade, parece lógico que Paulo não volte o olhar para a história passada de Jesus, porque
170 17 1
lEmA Pl.Rll •Questões abertas aodebate atual Paulo eamemória de Jesus

o urgente era projetar as consequências daquilo no futuro imediato e preparar o a ua própria (baseada em ua experiência e conhecimento de Jesu crucificado),
crente Uudeu e pagão ) para ele. A preocupação pelo pa sado erá uma caracle- redunda e-lhe pouco útil além de ter tido casso impacto em ua mi ão, de modo
rí tica da egunda geração, devido ao retardo da parú ia, quando começam a morrer que pemlitiu mudá-la. como era o caso da tradição obre o divórcio (lCor 7.15-16)
as te temunhas da vida de Jesu e a comunidade e defrontam com problemas e o dlieilo a er conservado (lCor 9.14). A im. podemo entender melhor o texto
oriundo do esquecimento da história de Je u . o entanto. outras tradições, como citado no início (2Cor 5,16): Paulo afirma que o conhecimento do acontecimento
as da Galileia ou da Judeia, conservaram, im, ua memória, e mantinham, ao e catol6g1co da morte de Je u upera o do demai acontecimento de ua vida e e
me mo tempo, uma forte esperança e calológ1ca durante a primeira geração. Por erige em eu critério hermenêutico (BOYARI 1, 1994, p. 39). I to é o que lhe permite
que Paulo não? desenvolver a cri lologia e a ecle iologia para além da cri tolog1a implícita: para
Em quarto lugar, a afirmação de 2Cor 5,16 ("Também se conhecemos Paulo, Deu havia falado na cruz de )e u mai do que no dito e feito de ua vida.
Cri lo egundo a carne, agora já não o conhecemos a sim,.) está em um contexto De acordo com Ludo i o. a continuidade e a de continujdade entre Paulo e
muito polêmico contra outro crentes em Jesu que haviam chegado a Corinto e Je u podem ser formulada em lermo de experiência religio a: enquanto a que
e Lavam emeando a de confiança a respeito da autoridade e da legitimidade de )e u teve de Deu Pai foi direta e imediata, a de Paulo foi indireta e mediada pelo
Paulo. E ta situação repetiu-se em várias de uas comunidades como mencionamos Crucificado. Ambo , entretanto, coincidiam no aspecto radicai : em primeiro
no capítulo cinco. Paulo vincula esses adversários a Jerusalém e à Judeia (cf. GI lugar. na imagem de um Deu de amabilidade e everidade. cuja mi ericórdia mo -
2,4-5), chama-o ironicamente de "eminentes apó tolo" (2Cor 12,11-12), diz que trava- e ofensiva e inda ificável para muito (cf. ML 20.1-16: 22.1-10 e Rm 9,6-13:
vêm com carta de recomendação (cf. 2Cor 3,1) e que ão representantes de outras 11.22): e. em egundo lugar. na consequência de ta experiência: a predileção pelo
tradições de crentes em Cristo. vinculadas à Lei e às tradiçõe judaicas (como a excluído ociais e religio o .
circunci ão ou as lei de pureza; cf. Gl 2,12; 6,12-13; Fl 3,2-3) etc. Parece que
Paulo adaptou muito a peclo da men agem de Jesu (explícita ou implici-
algun rivai de Paulo lembravam dito e feito de Je u para sublinhar a validade
tamente); foi con ciente de eu próprio ca ri ma, da po e do E pfrilo que o levou
da lei e a normas de pureza (cf. Tg 2,14-26; Ml 5,17) ou a missão (exclusiva?) ao
a de envolver o Evangelho de Je u para além do que este provavelmente pen ou.
judeus (cf. Mt 10,5-6). Portanto, se os dito e feitos de Jesus eram utilizado por
Contudo, identificou- e com ele e oube colocá-lo no centro de sua mi ão, recriando
adversário de Paulo para defender posturas divergente , e até opo las às suas, não
com liberdade eu Evangelho; oube captar a autoe tigmatização de ua vida e,
é difícil concluir que lhe resultava muito problemático apoiar- e nes a tradição de
e pecialmente. de ua morte na cruz: tomou e sa vida de autoentrega como modelo
Je u para defender eu projeto do Israel de Deu , especialmente quando ele não
da própria e apre enlou arnba como paradigma de transformação religio a.
conhecia de primeira mão aqueles djto .
E la ideia e confirma ao comprovar a total au ência de referências à vida
de Je us no debate que Lucas recolhe no Alo obre a incorporação de pagão à 3. Importância de Jesus na história de Paulo
comunidade de crentes, sem exigir-lhes a circunci ão; ninguém cita ditos ou feito A partir de tudo o que e di e anteriormente, não e pode concluir que
de Je u para defender a abertura aos pagãos. Parece que esta postura, defendida Paulo lenha desprezado a hj lória de )e u por irrelevante ou desimportante. O fato
incialmente pelo helenistas e depois por Paulo, não leve apoio no dilo e feito de que Pau lo apena a cite porque era utilizada contra ele por eus oponentes não
de Jesu . denota meno prezo. eu foco de atenção repou a no acontecimento hi tórico da
Con equentemente, podemos aceitar a tese de que Paulo adquiriu certo morte do Crucificado, que era talvez o que meno enfatizavam os outro apó tolo .
conhecimento da vida de Jesus durante os anos de Damasco e Antioquia (40-49 De fato, parece que Paulo já não tem olho senão para olhar para Jesus na cruz,
d.C.), embora, dado que a interpretação predominante naquele momento co.~tradfaia porque ali de cobre a ação redentora de Deus na ru tória.
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T001R.1 ME · Questões abertasao debateatual Paulo eamemóriade Jesus

Paulo olhava para o Crucificado, de acordo com sua própria tradição, como morte e ressurreição de Cristo, que obscmeceram a vida histórica de Jesus. Para isso,
um maldito de Deus (cf. Dt 21,22-23). A partir da interpretação que os helenistas Paulo esforçou-se para que os modo de falar de Cristo e a imagem que mostrava
faziam da morte de Jesus com o modelo do Servo de lahweh (cf. Is 53,3-4), Paulo dele estivessem mais enraizados na experiência pre ente de viver "em Cristo' do que
contemplou a cruz não como o sinal da condenação de Deus daquele crucificado, no passado de Jesus de Nazaré. Paulo é, portanto, um desses seguidores de Jesus
mas como o modo de Jesus dizer como é Deus. Jesus aceitou o terrível final na que disseram mais coisas a respeito dele do que as que ele dissera de si mesmo.
cruz sem reservar para si a vida porque foi isso o que descobriu e aprendeu de Em conclusão, podemos dizer que a imagem que Paulo tem e oferece de
Deus. Deus tinha sido assim com ele. Jesus, definitivamente, revela quem é Deus Jesus, seus traços e características, está condicionada por três fato significativos.
imitando-o totalmente na cruz (cf. lCor 2,1; Rm 1,16). Isto, logicamente, ajudou
Paulo a relativizar o uso que seus opositores faziam da tradição de ditos e feitos de Primeiro, tal como vimos, a tradição de ditos de Jesus foi utilizada por outros
Jesus contra sua missão. discípulos de Jesus, aqueles que negavam a Paulo o título de apóstolo, para afirmar
a permanente vigência da lei mosaica e das prerrogativas étnicas de Israel, que
Por outro lado, Paulo também contribuiu para o desenvolvimento do culto Paulo questionava.
a Cristo, tal como aparece nos testemunhos que traz sobre as invocações que as
assembleias de crentes lhe faziam sob a ação do Espírito (cf. !Cor 12,3; 16,22; Segundo, em sua experiência pessoal, especialmente no acontecimento de
Rm 10,13). No entanto, é importante notar que, além de uma total ausência de sua vocação, os ditos e feitos de Jesus desempenharam um papel menor, ao passo
cultos sacrificais para Jesus e liturgias de adoração como Deus, suas orações são que o acontecimento decisivo foi a interpretação de sua morte na cruz e a posterior
reivindicação por parte de Deus.
dirigidas ao Pai (seja como ação de graças, seja como súplica ou louvor). Inclusive,
os chamados hinos cristológicos não são hinos a Cristo, mas sobre Cristo (cf. Fl Terceiro, essa reivindicação (a ressurreição) significou, do ponto de vista da
2,6-11); do mesmo modo, as orações não são "a Cristo' , mas "por meio de Cristo" cosmovisão de Paulo, a entronização de Jesus como Senhor do mundo seu reco-
(cf. lTs 5,23-25). Foram os discípulos de Paulo, como vimos no capítulo anterior, nhecimento como Filho de Deus e protótipo de uma nova criação e de uma nova
que desenvolveram sua cristologia. Estas matizações impedem tirar consequências humanidade (Rm 1,3-4), que se verificava na congregação de todos os chamados
precipitadas, como às vezes se tem feito, na hora de afumar que Paulo declarou em condição de igualdade Qudeus e pagãos, escravos e livres, homens e mulheres;
que Jesus é Deus (H URTADO, 2008). Gl 3,28). Isto é, o que o Jesus da história esperava para o futuro, Paulo considera-o
já presente pela ação do Ressuscitado. Este último ponto explica, ulteriormente,
Paulo utilizou categorias hebraicas e helenistas para desenvolver a imagem
a desestima de Paulo pela tradição de Jesus, visto que não respondia totalmente
de Jesus: a imagem de Senhor (Kyrios, mais importante no âmbito helenista) e de
ao projeto de Deus, que só podia ser posto em prática depois da entronização de
Cristo (Mesiah, mais utilizado no meio judeo-palestino) se uniram à de Filho de
Cristo como Senhor da história.
Deus. Paulo é herdeiro e impulsionador dessas imagens que oferecem um conjun-
to peculiar. A contribuição de Paulo para a imagem de Jesus não reside, porém,
na combinação destes títulos, mas no significado que, em sua opinião, o próprio Bibliografia
Jesus lhes deu por meio de sua vida e de sua morte. Jesus foi o homem cuja morte
AGUIRRE, Rafael, (ed.), As( empez6 el cristianismo, Verbo Divino, E tella, 2010.
reflete melhor do que nenhum outro acontecimento histórico quem e como é Deus:
BARBAGLIO, Giu eppe, ]esú.s de Nazaret y Pablo de Tarso. Confrontación histórica.
crucificado. A ressurreição de Jesus foi a confirmação, da parte de Deus, da total ecretariaclo Trinitario, Sfgueme, Salamanca, 2009.
identificação com ele como Filho e de sua exaltação à categoria de Senhor.
BOYARIN, Daniel, A radical kw: Paul and the politics ofidentity, niversity of Califomia
Essa contribuição paulina parte da necessidade de dar nome às experiências Pre , Berkeley, CA, Londres, 1994.
pessoais que ele havia tido, centradas quase exclusivamente no acontecimento da CONZELMANN, H.. El centro del Tiempo, Fax, Madrid. 1974.
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TOOJ11..1 !'kl!ll • Questões abertasaodebate atual

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l
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t.hrough ome "aporias'' in theJe u tradit.ion. ew Test.ament tudies 44 (1998) 1-25. dúvida. o que mai colaborou para a imagem que ficou no imaginário cri tão e
\"'\' EDDERB RN. lexander J. M.. Paul and Jesus: Collected essays, T & T Clark, Lon- cultural do ··apó tolo do gentio ... Ne ta imagem. de tacam-se vário Lraço : ua
don- ew York. 2004. encarniçada e exten a perseguição ao cri tão ; ua queda do cavalo a caminho
WHITE. L. Michael. De ]esús ai cristianismo: el Nuero Testamento y Laje cristiana. un de Dama co (po to que não haja nenhuma cavalgadura no texto. as represenlaçõe
proce o de cuatro generaciones. Verbo Divino, E tella. 2007. renascenti ta determinaram a imagem daquele relato, ba eado no modo literário
heleni ta que aparece em 2Mac 3): ua decidida mi ão universal para anunciar
o Evangelho de Cri to, primeiro ao judeu~ e, em eguida. ao pagão devido à
rejeição daquele : a coragem e a abedoria com que apre enla o Evangelho a
Lodo , e pecialmente à autoridades locai e imperiai com a quai e encontra;
ua incan ável mi ão por todo o Mediterrâneo para expandir o EvangeU10; eu
ofrimento e contratempo que, em vez de freá-lo, e timulan1-no; eu anúncio
levado até Roma; o le temunho. enfim. de uma vida a erviço do Evangelho que,
graça a eu empenho e ao con lante apoio do E pírito, abriu a porta do mundo
para a boa notícia de Cri to (MARGUE RAT. 2008).

1. Os silênáos de Lucas sobre Paulo


Paulo é a personagem que. de longe, Luca dedica mai páginas em ua obra
(Ato do Apó tolo ) e vai magi trai e progre ivamente concentrando a narrativa
nele. Começa com uma presença casual na morte de E têvão, guardando a roupa
do que o Lapidam (AL 7,58-8.3); em eguida, introduz ua vocação, apresentando-a
com tintas legendária e fantá Licas (9,1-31}; e quase de imediato, apresenta-o em
plena atividade mi ionária em Antioquia, acompanhado de Barnabé (13-14).
E a atividade como mj ionário ubalterno dura pouco, porque em seguida pa a
à primeira linha de ação depois da as embleia de Jerusalém (15); e, a partir daqui,

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TOOJM Pl.RIE • Ouestões abe.rtas aodebateatual Areconstrução dePauto no cristianismo nascente

de envolve toda a ua atividade independente, como Líder eminente e indiscuLível, pensam a me ma coisa, a realidade deve ler ido mai complicada. porque não e
de modo que aparece sozinho e confrontado com as autoridade judaicas e romana re olveram o problemas, como vimo no capítulo quarto.
(22-28), até converter-se em herói da hi tória.
O terceiro de novo con equência do anteriore , aconteceu também em
E ta apre entação progre iva e tá amparada pela pre ença de outra Antioquia, entre Paulo e Pedro, influenciado este por Tiago (cf. Gl 2.11-14). que
per onagen que vão introduzindo Paulo no relato e que protagonizarão algun queria impor aos pagãos determinada prática judaicas que Paulo não aceitou; a
do conflito mais importante da hi lória. A im. Paulo aparece em cena pela respeito deste conflito, nada diz Lucas nos Ato .
mão de Barnabé, ma também de E têvão. de Fi li pe, de Pedro ou de Tiago,
O quarto e último que menciono aqui também não é reportado por Lucas,
me mo que ele eja protagonista da maior parte do relato. Com todo eles, Paulo
pelo menos não explicitamente. Como con equência do conflito anterior, Paulo
terá e lreila e cordial inlonia que lança um manto de paz e de entendimento,
havia saído de Antioquia e criado comunidade de maioria gentia. Ao fim de a1-
ainda que, entretanto, e mostre artificial. Conforme veremo , Lucas uaviza, gun anos de missão independente, apresentou- e, por fim, em Jerusalém para que
disfarça ou ilencia boa parte dos conflito que tiveram os primeiros seguidore Tiago aceitasse o dinheiro que levava e, de passagem, a obra que havia feito com
de Je u , embora. na realidade. tenha ido o que permitiu levar o Evangelho os não judeus. Lucas omite claramente toda referência a e te conflito, mesmo que
para além da fronteiras da Judeia. Entre e te , convém mencionar quatro, em dele estivesse bastante consciente, uma vez que o menciona em At 24,17. Falamos
grande medida relacionados. também di so no capítulo quarto.
O primeiro foi protagonizado pelo chamado '·hebreu " e "heleni ta ,. de Nestes quatro conflitos, Paulo teve grande protagonismo, mas o que Lucas diz
Jeru além (Al 6,1-7) e teve razões mai profunda do que a inocente falta de aten- a respeito dele não coincide com as demais fontes que temos. Tudo isso apresenta
ção à viú a que Luca menciona. O autor de Ato introduz, na equência de te uma série de problemas que se podem re umir em uma constatação: o relato de
conflito, o di curso de E têvão, que lhe cu tará a morte por lapidação e que dará Lucas, contando com dados hi tórico (alguns explícitos e outros implícito ), não
início à expul ão do helenistas para fora de Jeru além. ho til idade que não afetou é uma crônica da vida e da mi são de Paulo. O evangelista construiu um relato e
o de língua hebraica de Jerusalém. E te , provavelmente, viram os acontecimento algumas personagens a serviço de uas intenções e interesses teológico .
com preocupação, ma não punham em dúvida a fu nção do templo e da lei como
con equência de sua fé em Jesu . como aquele , e i to criou uma di tância entre
ambo o grupo . Portanto. foi a len ão provocada entre os crentes em Jesus de 2. As coincidências eas discrepâncias sobre Paulo em suas cartas enos Atos
origem heleni ta e os demai heleni ta não crentes em Jesus, e não a atenção às Vamos aprofundar a apresentação que Lucas faz de Paulo nos Ato , fixan-
viúvas. o qu realmente dividiu a mi ão do seguidore de Jesu emdoi âmbito tão do-nos nas coincidências e di crepâncias que podemos detectar entre as diversas
diverso . como vimos no capítulo quarto. O crente em Cri to de origem heleni la fontes, fundamentalmente as cartas originai de Paulo e Atos, mas levando em
fugiram da Judeia e e dedicaram de corpo e alma à mis ão ao pagãos. ao passo conta também as cartas deuteropaulinas, as pastorais e o Ato Apócrifo de Paulo
que o crentes em Jesu de origem hebraica ficaram na Judeia e desenvolverem a e Tecla (cf. PrNERO SÁE ; CERRO CALDERÚ , 2004, 2005). l o no levará
mi são ao judeus. Paulo aparece ao longe na cena lucana. a uma conclusão inevitável: a apre enlação de Paulo no Atos e em uas carta
O egundo foi consequência do primeiro, o acontecido entre a missão do reflete dois projetos teológico diferentes.
helenistas de Antioquia, que aceitavam pagão sem circuncidá-los, e a percepção Entre os pontos de conexão, podemo descobrir várias coincidências biográ-
que tinham daquela missão os crentes em Je us que ficaram em Jerusalém (At ficas. A sim, por exemplo tanto em suas carta como em Atos. Paulo aparece em
15,1-7), e que provocou uma assembleia para re olver o conflito (At 15,6-29 e Gl cena após determinado período de ho tilidade com o grupo do heleni la fora de
2,1-10). Embora Lucas a descreva como um mar de tranquilidade no qual todos Jerusalém (Gl 1,13; At 9,21). Em amba a fonte , vem caracterizado como zelo o e
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T001BA Pl.m • Questões abertas ao debate atual Areconstrução de Paulono aistianismo nascente

fanálico defen or da tradiçõe de eu antepa ado . que incluem o cumprimento


Paulo temconflito com uas a embleia . PauJo não tem conflito com uas comu-
da lei (GI 1,14: F'I 3,6; At 22,3): também em ambas, as palavras de Je us em ua e seus adversário teológico são outro nidade nem com outro lfdere , e os ad-
úlLima ceia ão muito emelhante entre i e diferente do demai te temunho crente em Cristo. inclu rve líderes (lCor versários são judeus não crente emJesus.
inótico (l Cor 11,23-26; Lc 22,14 ). Cu rio amente, também em amba Paulo 8; 10: 15 ...).
aparece como curandeiro (2Cor 12.12: At 13,9-11 ; 14.8-10: 16,16-18; 19,11-12; Paulo não e tá ubordjnado a Jerusalém Paulo aparece vinculado e subordinado
20.7-12; 28.7-8). uma caracterí tica que e desenvolverá muito na lileratura apócrifa. e mantém uma relação tensa com os dali. a Jeru além.
Respeitante à referência hi tórica , amha a fontes coincidem, por exemplo, na
Paulo diz que nada lhe impu eram para Aassembleia de Jerusalém conclui-se com
menção da fuga de Dama co pela muralha. pouco tempo depoi de ua vocação o pagão na as embleia (GI 2.5-10). além quatro impo ições ao gentios (15.20.29).
(2Cor 11,33: At 9.25). Tem- e dito que o trecho e crito na 11 pe oa do plural da coleta.
("nós") em Ato , nos quais o autor refere- e a ele e Paulo. refletem uma fonte de
A ju tjficação que Je u oferece é ·· em Paulo cumpre a lei e re peita as tradiçõe
Luca muito próxima de Paulo. ma i to é incerto. a obras da lei·· (Rm 3.20); a lei não tem de eu antepa ado (18.18; 21.23-26;
No entanto, no que tange ao pensamento, ao projeto e a detalhe de ua função na ju tiça de Deus (Rm 7.7-25). 28.17).
nu ão, a di crepâncias é que adquirem um protagoni mo ineludível. Centralidade da cruz no querigma paulino Centralidade da ressurreição no querig-
(lCor 1.17-18.22-25: 2.1-2: Gl 3.1...) ma tucano (2.22-36: 3.15-21; 13.26-39;
Apre entarei em uma tabela a divergências obre a figura de Paulo, eu
23.6-9; 26,6-8).
pen amento. horizonte e lugar entre os eguidores de Je u , tal como aparecem em
A morte de Jesus tem sentido redentor (Rm Lucas não atribui uma dimensão redentora
ua cartas e no relato de Lucas (PERVO. 2012. p. 347).
3,24-26; lCor 15.3...). na medida emque. à morte de )e u : toda a ua vida. não so-
mais do que qualquer outro acontecimen- mente ua morte. tem dimensão redentora
Paulo em suas próprias cartas Paulo em Atos to, revela a ação de Deu . (2,22: 3,26; 10,36-39: 13.23-26). A morte
e tá marcada pela fórmula de contra te:
Paulo atribui- e o título de Apó tolo e er Luca nega-lhe o título de Apó tolo e de
à ação de morte do homem corresponde a
testemunha direta da ressurreição (cf. lCor ter '\ isto'" o Re suscitado (cf. At 9).
ação alvadora de Deu (5.30).
9,l : 15.3-9: GI 1.1. ..).
Em Paulo. a escatologia é iminente (lTs A e catologia não é iminente (1.6-11 ...).
Paulo é o mis-ionário do gentio . ao pas o Pedro a ume po lura paulina para
4.17: lCor 15,51-52...).
que Pedro é o do judeu (Gl 2.9-10). aparecer como o primeiro mi ionário ao
gentio (At 10: 15). O debate obre a função da lei (e o en- Odebate obre a lei já foi uperado. Lucas
tido da hi tória agrada) é a primeira quer apre entar Paulo (aos seguidores de
Paulo e rebela contra a circunci ão do Paulo circuncida Timóteo. que é pagão
con equência teológica do acontecimento ]esu ~como o herdeiro da tradição judaica.
crente em Cri to de origem pagã (GI (16.3).
da cruz. da prom a feita aos pai .
5.1-12).
Paulo defende a salvação de Israel e espera Paulo, no Atos, já não e pera a incor-
Paulo é orador pobre (lCor 2,4; 2Cor Luca apre enla-o como o oradore anti-
sua incorporação ao 1 rael do E pírito (Rm poração de Israel e renunciou a ela (AI
10,10). gos. com di cursos brilhante (At 13: 14:
9.1-5): Paulo aparece totalmente inserido 28.23-28): Paulo (o eguidores de Je u )
17: 20: 22; 26).
no judaí mo plural de eu tempo. di tanciou- e da corrente hegemônica
Paulo prega o Evangelho na casa e cria Paulo realjza discurso público no quai judaica do tempo de Luca .
a sembleias que mantém com carta . faz exegese dos texto agrados e da histó-
ria sagrada: não é fundador de assembleias E ta tabela apre enta um re ultado de concertante: o Paulo da carta
nem e creve cartas.
originai e o do livro do Ato parecem dua p oa com ru tória e projeto
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TOOJA 1W1 • Questões abertas ao debate atual Are<onstrução de Paulono cristianismo nascente

irreconciliáveis. Para além da pergunta, não oportuna, agora, obre a possibilidade Em egundo lugar, Lucas utiliza a personagem "Paulo" como fio condutor de
de conciliação de duas visões tão diferentes dentro do cânone, convém interrogar-se eu relato. O herói desta hi tória aparece de modo tímido, mas vai conqui tando o
a re peito de Lucas e das razões para propor uma imagem de Paulo tão diferente. protagoni mo e a hi tória e vai concentrando progressivamente nele: começa, como
Por que faz uma apresentação aparentemente tão distorcida de Paulo? Lucas não <li emo . com uma presença ocasional na morte de Estêvão {At 7,58-8,3): ante
conhecia as cartas de Paulo? Os destinatários dos Ato não conheciam essas cartas, de atrair o foco da trama, Paulo aparece como uma personagem cruel, ambicio a.
a ponto de não perceberem a divergência? Como se explica esta evolução do Paulo implacável contra o crentes em Jesus de origem helenista (At 8,3; 9.1-2); emerge
de suas cartas originais para o Paulo do Ato ? Como chegamos do Paulo histórico pela primeira vez como protagoni la na cena da vocação, posto que necessite da
e do projeto de Paulo tal como aparece em suas cartas, ao Paulo dos Atos e ao a sistência de outros crentes, como Ananias, para que a mudança e complete (At
projeto de Lucas, refletido em sua obra? Apresentarei os traços mais importantes da
9,1-31); ganha ainda mais protagonismo, mas não o papel principal, durante sua
atividade em Antioquia como companheiro e assistente de Barnabé (At 13-14); por
reconstrução que Lucas faz de Paulo cerca de quarenta anos depoi de sua morte
fim, passa à primeira linha de ação a partir do capítulo 15, depois da assembleia
e, em seguida, explicarei as razões desta reconstrução.
de Jeru além, e é o protagonista principal até a viagem a Jerusalém (At 21)· antes
de terminar, nos capítulo fi nais, aparece ozinho e confrontado com as autoridades
3. Areconstrução de Paulo judaicas e romanas (At 22-28), de modo que se converte no herói da hi tória; para
concluir, Lucas não narra ua morte, como quem quer deixar ua presença para
A tabela anterior oferece-nos alguns dos traço distintivos da imagem de
empre em Roma. Desse modo, Luca transforma Paulo de judeu cruel no início da
Paulo nos Atos. Estas e outras características fazem parle de uma estratégia nar-
fé em Jesus em herói ao estilo romano, fruto da ação do Espírito e exemplo do que
rativa e teológica de Lucas, na qual a reconstrução da figura de Paulo demonstra
Deus é capaz de fazer com qualquer um, por mais abjeto que seja. Esta progre -
ser uma peça-chave. No entanto Lucas não foi o único que transformou a memória
siva apre entação, muito acurada, cria uma tensão narrativa que ajuda o leitor a
de Paulo em fins do primeiro século e durante o egundo século. As cartas pseu-
identificar-se com o destino do protagonista: de perseguidor dos crentes em Cristo,
doepígrafas ou os Atos Apócrifos de Paulo e Tecla (escritos, estes últimos, durante converte-se no maior propulsor.
o segundo e o terceiro séculos) .fizeram também a mesma coisa. Mencionarei cinco
características desta estratégia de reconstrução de Paulo. Em terceiro lugar, Lucas interessa-se muito em separar o tempo dos Doze (At
1- 6) do tempo de Paulo (At 13-28), mediante o recurso a figuras intermediárias:
Em primeiro lugar, como vimos, "Paulo", nos Atos, tem uma formação Estêvão (At 6- 7), que provoca urna crise em Jerusalém e a expulsão dos helenistas;
retórica helenista que impressiona e convence com seus discursos (At 14,8-18; Filipe (At 8), que anuncia o Evangelho além da Judeia; Barnabé (At 9), que introduz
17,22-33); tem também uma educação judaica fari aica elitista (At 22,3-5; 23,6; Paulo na missão de Antioquia; e Pedro que se converte no primeiro missionário aos
26,10); possui a cidadania romana herdada, não adquirida (At 22,25-28); ostenta gentios e que recebe a legitimação para seu desenvolvimento na casa de Comélio
qualidades taumatúrgicas impressionantes que fazem com que até sua roupa (At 10). Paulo aparece, na realidade, como herdeiro da missão de Pedro e, assim,
tenha poder sanativo (At 13,6.12; 19,l-7·.11-12) etc. Tudo is o busca a atração como herdeiro e continuador da única missão que funda suas raízes em Israel e
narrativa a espetaculosidade. Lucas quer apresentar o protagonista de seu relato se prolonga até à igreja nascente do tempo de Lucas. Dessa forma, quando Paulo
com determinadas qualidades elevadas e elitistas; por i so, o caracteriza segundo se apresenta em Roma e acolhe os judeus e os pagãos, o faz como o nexo de união
o que se espera do herói de uma história impre ionante. Com seu relato das entre Israel e o cristianismo nascente (apesar da rejeição de Israel com a qual se
origens da fé em Jesus. Lucas busca a acolhida entre pessoas cultas; para isso, conclui o relato de At 28). Esta ideia é uma das mais importantes para Lucas:
reveste o portador da fé em Jesus até Roma daquelas qualidades que fazem dele Paulo concentra em sua pessoa o projeto eclesial dos começos do segundo século,
um modelo honorável. que é a herança de Israel.

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lEm.AMI ·Ouestões abert_as_ao_de_ba_te_atua
_ I - - - - - - - - - - -- - - - - - - Areconstrução de Paulono cristianismo nascente

A carta deuteropauüna de envolvem a me ma ideia de um Paulo inclu- um caminho que levará à veneração de Paulo no egundo éculo: Paulo deixa de
ivo. me mo que não entre Israel e a ekklêsia (que era o projeto que encontramo erodi cfpulo ou o apó tolo para er o anlo. o mediador e o protetor. pre enta- e
na carta originai de Paulo: Gl 3.28: Rm 3.22-12: 10.12-13). ma entre judeu identificado com Cri to: de pregador pa sa a pregado (fonte da revelação): não é
e pagão , para além de 1 rael. Em outras palavra , enquanto Paulo qui intCoorar meramente portador da men agem de alvação. ma é também figura redentora na
o pagão dentro de 1 rael. mas fraca ou, eu di cfpulo irmanaram na ekklêsia medida em que faz parte de e anúncio redentor.
judeu e pagão crent em Cri to. fazendo dela o verdadeiro objeto da mi ão de as carta pa torai . dá- e algo parecido: Paulo aparece como único autor e
Je u (Ef l.23). Em Ef 2,15-16, eu autore explicam como a cruz upô a recon- omente ele recebe o título de apó tolo; converte- e no primeiro protótipo de crente
ciliação de judeu e pagão ·'em eu corpo", que é a ekklêsia. não Israel, cujas ·'lei e fundador da ekklêsia (lTm 1,15: 2Tm 1.13; o contraste com lCor 15.8-9 é claro);
e mandamento " foram "anulado ". e ta egunda geração, o "Paulo" das cartas ele e tá na origem da tradição, do depó ito, que ""Timóteo" deve proteger (2Tm 1,14).
deuteropaulina anuncia o' mi Lério ' e condido que é a criação da ekklêsia. Paulo Com as orientaçõe para a organização da comunidade que "Paulo" U1e dá. Timóteo
já não é omente o anunciador, o mi ionário, o con lrutor; converte- e em parte estabelece a casa patriarcal greco-romana como o modelo de referência da ekklêsia.
integrante do anúncio do Evangelho e do mi tério (CI 1,24-26).
De igual modo. no Ato Apócrifo e de Paulo e Tecla. Paulo apre enta- e
Em quarto lugar. no Ato , Lucas realiza uma uperpo ição da figura de re u citado. como Cri to. diante do imperador para er te temunha do Evangelho
Paulo à de Cri to (PERVO, 2012, p. 249-253): ambo começam ua história com em Roma (ALApPL 14.6). lgualmente. Tecla, coprotagoni ta com Paulo neste relato.
um bati mo e com a recepção do Espírito (At 9.17-18; Lc 3.20-21); ambo estão vê Paulo como Cri to que Uie aparece (ALApPL 3,21). E te desenvolvimento aproveita
acompanhado pelo cumprimento da profecia do AT (At 9.15-16: Lc 1,30-35); a ambiguidade das próprias carta de Paulo para ampliar algun aspecto de
ambo contam com precursore (E têvão, Barnabé e Pedro, e João Bati La); ambo acordo com o devir dos eguidore de Je u no éculos egundo e terceiro.
iniciam ua mi ão como me tre itinerante e a caminho; ambo ão reconhecido
Em quinto lugar, o ofrimento de Paulo converte- e em figura do ofrimento
como in Lrumentos ·'escolhido "por Deu (At 9,15. Lc 9,35); ambos de envolvem
do eguidore da Igreja na cente, como Cri to era modelo de Paulo (11: 1,6; l Cor
ua mi são como de ígnio de Deu para com uma cidade que repre enta o centro 11,1). Em At 9,16.23, Paulo e tá, de de o momento de ua vocação, determinado
de ua vi ão (Roma e Jeru além); ambo padecem uma paixão com o mesmo a ofrer em nome de Cristo e a enfrentar a ameaça de morte: todo o relato de ua
ingrediente : predição (At 20,23-25: 21,4.11-13 e Lc 9,22.34; 18,31), discurso vocação (At 9,1-30) tem como objetivo mo lrar a mudança de perseguidor a teste-
final {At 20,17-35; Lc 22.14-38), di cus ão com o aduceu obre are urreição munha perseguida. O paralelo que Luca e tabelece entre a paixão de Cri to e
(At 23,6-10; Lc 20,27-39), bofetada por parte do ervidores do umo acerdote (At o ofrimento de Paulo ublinham e ta leitura. A im, Lucas legitima o lugar que
23.l-2; Lc 22,63-64). julgamento perante o inédrio {At 22,30-23,10; Lc 22,66- de eja que Paulo tenha na memória do crente de eu tempo: o ofrimento pela
71), julgamento diante do governador romano (At 21.1-22: Lc 23,1-5). julgamento Igreja é uma garantia de que eu projeto e Lá validado por Deus. Com i o, também
diante do rei herodiano {At 26: Lc 23,6-12), novamente julgamento diante do go- apresenta o destino de todo crente: a ho til idade e o conflito com as autoridade vão
vernador romano (At 26,6-12; Lc 23,13-25), ambo ão declarados inocentes pelas er con Lantes entre o egujdore de Je u no egundo éculo; no entanto, ape ar
autoridade romana {At 23.29· 25,25; 26.31; Lc 23.14.15.47), ambo ão objeto di o. a Igreja nascente uperará o ob táculo- porque Deu e Lá com ela, como
do de ejo de morte da multidão {At 22,22; Lc 23,18). e Lava na mi ão de Paulo.
Resulta um trabalho de simetria as ombro o, que tem um claro objetivo: A cartas deuteropaulinas desenvolvem também esta ideia para explicar
Lucas apresenta a história de Paulo como uma espécie de Evangelho, um modelo de o sofrimento de Paulo como colaboração para a missão da Igreja univer a1: é
vida que erve para tran mit:ir a boa noticia de Je u , como e qui e e apresentar participação dos sofrimento de Cristo (Cl 1,24; Ef 3,1); nela ainda se mantém o
em Paulo a figura de Cri tores uscitado (MATTILL, 1975, p. 145). Lucas inicia fundamento cri tológico do apó tolo. A cartas pa torai , entretanto, demon tram
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TOOJM Pl.Rll • Questões abertas ao debate atual Areconstru\ào de Paulo no cristianismo nascente

que o sofrimento de Paulo. sua paixão. são em benefício da igreja (2Tm 2,8-13); a Antioquia. Policarpo de Esmirna ou Marcião) conheciam a existência de coleções
referência a Cristo se esfuma. No Ato Apócrifos de Paulo e Tecla, o anúncio do de cartas de Paulo que circularam para além de sua assembleias, fazendo dele
martírio de Paulo é feito pelo próprio Cri to, que afirma: "Serei crucificado uma um apó tolo muito autorizado.
segunda vez'' (AlApPI 13,2).
Em terceiro lugar, aproveitando e te fenômeno de popularização da figura de
Em conclusão, podemo dizer que o "Paulo" do egundo éculo distanciou- Paulo, eu di cípulo começaram a escrever cartas em seu nome para difundir o
- e do Paulo de sua cartas originais: deixou de ser o Paulo de Tar o que viveu que ele havia dito, aquilo que e podia derivar de ua tradição, ainda que apenas
nos anos cinquenta para ser uma personagem. o protagonista de certos relatos estivesse em suas cartas originais. Assim, nos ano oitenta e compuseram as cartas
narrados a partir de começo do egundo éculo, um pilar-chave do processo de chamadas deuteropaulina (Cl: Ef: 2T ) e, no início do segundo éculo (contempo-
con trução da identidade do cri tiani mo nascente. Esta personagem ganhou em râneas, talvez, do livro do Atos), as chamadas cartas pa torais (lTm, 2Tm e Tt).
autoridade; eu status dentro da pluralidade de crente já não é posto em <li - Estes dois grupos de carta p eudoepfgrafa de envolveram o pensamento de Paulo
cussão. É uma personagem autorizada, legitimada pelo erviço à Igreja nascente em aspectos fundamentais que ele apenas havia iniciado, como a eclesiologia ou
e pelo sofri mento que suportou para fazer da ekklêsia o que ela é no início do a ética. Em todo caso, refletem a imagem que o cristianismo nascente foi fazendo
egundo século. de Paulo e o uso de sua tradição para estabilizar e dar identidade ao progre sivo
conjunto de crente do egundo éculo.
Quai ão as razõe que movem Luca e os discípulos de Paulo a apresen-
tá-lo deste modo? O que acontece entre a compo ição da cartas de Paulo (nos Em quarto lugar, o livro dos Atos desenvolve, principalmente, um aspecto de
ano cinquenta) e a fi nalização do livro do Ato {cinquenta ano mais tarde) que Paulo: sua atuação, sua missão, sua identidade como missionário ativo no anúncio
explique esta recon trução? do evangelho até Roma; narram-se os feitos mais significativos do "missionário das
nações". Por último, os Atos Apócrifos de Paulo e Tecla desenvolvem ainda mais
este aspecto, convertendo-se em uma hagiografia muito popular a partir do final
4. Paulo como modelo da Igreja no início do segundo século
do século segundo e durante todo o século terceiro.
Como indicamos antes. há um consenso atual entre os exegetas para datar Esta brevíssima revisão das diferentes transformações da memória de Paulo
o livro dos Atos entre fina l do primeiro século e início do segundo. Lucas realiza
revela que sua Jembrança foi transmitida através de diferentes canais, não somente
sua tarefa praticamente ao mesmo tempo que os discípulos de Paulo recopilam mediante suas cartas originais, mas também nas reconstruções que seu diversos
suas carta originais, compõem novas em seu nome e começam a fazer circular
discípulos, Lucas ou os autores dos Atos Apócrifos fizeram (para não mencionar
wn corpus crescente de textos paulino . Entre a data de composição das cartas
as intepretações que dele fizeram os Padres, Marcião etc.). Isto foi possível, entre
originais de Paulo e a do livro dos Atos devemos situar uma série de acontecimentos
outras razões, porque o cânone das cartas de Pau lo estava longe de completar-se e a
que marcam estes quarenta ou cinquenta anos de intervalo.
tradição oral era muito mais viva e eslava mais autorizada e difusa do que os textos.
Em primeiro Lugar, tal como vimos no capítulo sexto, é provável que em
Lucas, portanto, quando compôs o livro dos Atos, não precisou ter acesso às
algumas cidades se tenha começado imediatamente a recopilar as cartas originais
cartas de Paulo para saber a respeito dele; leve também aces o à memória oral de
de Pau lo, como o testemunha 2Cor 10,10, no caso de Corinto. Depois de sua morte,
Paulo, à lembrança atualizada que suas assembleias foram compondo para renovar
este intercâmbio continuou e se multiplicou, como aparece em Cl 4,16.
sua memória e torná-lo relevante em cada etapa. Lucas serviu-se desta memória
Em segundo lugar, após a morte de Paulo, suas cartas adquiriram um valor para reconstruir a vida do apóstolo, seu pensamento e doutrina paralelamente ao
cada vez maior, fazendo dele uma personagem sempre mais conhecida fora das crescimento do corpus paulino. Isto quer dizer que a memória de Paulo evoluiu
comunidades que fundou. Vários autores {como Clemente de Roma, Inácio de não somente em uma direção, mas em muitas, permitindo o desenvolvimento de
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lEmA PMl! •Questões abertas ao debate atual Areconstrução de Paulo nocristianismo nascente

diver a faceta de ua figura. m a pecto era o de Paulo e critor e teólogo. que inque Lionável) e eu ofrimento como instrumento de legitimação e autorização
e de envolveu fundamentalmente nas carta deuteropau lina (principalmente CI ou empoderamento. l lo exemplinca o alcance de La grande transformaçlío: e, no
e Ef): outro era o de mi ionário e animador de comunidades. que e desenvolveu ano cinquenta. Paulo não passava de uma personagem marginal que repr entava
acima de tudo na carta pastorai (lTm, 2Tm e Tt); outro. o de taumaturgo e uma corrente minoritária, no cri tiani mo na cente do início do egundo éculo
pregador. que e de enrolveu fundamentalmente no lo Apócrifo : e outro era já havia pa ado para o centro, havia ido reabilitado de ua marginalidade para
o mai canônico (no entido normativo, quando não formativo) que conservava eu repr entar correntes hegemônicas. E te de locamento para o centro aconteceu por
ca ráter modelar, ua autoridade, eu e forço e eu ofrimenlo que legilimaram o duas razões: primeiramente. porque uas comunidades deixaram de er minoritárias
movimento do crente em Cri Lo. um grupo cada vez mai di lante das corrente devido a eu grande cre cimento; em egundo lugar, porque, graça ao trabalho do
hegemônica judaica . E Le é o aspecto que Luca mai enfatiza no Alo e é o uces ore de Paulo (que e crevem a cartas p eudoepígrafas) e de autore como
que ficou no imaginário cri tão. A memória de Paulo, portanto, erviu como ponto Luca , ua figura se descolou de algu n traço radicai , e ele foi apresentado de
de apoio para o desenvolvimento plural do cri Liani mo em um tempo novo; re- modo que todos pude em aceitá-lo como modelo.
con truiu- e ua vida. ua carta e ua doutrina com o objet ivo de fazer de Paulo E ta tarefa de de rad icalização. de atualização de Paulo. centrou- e em
uma referência egura na con Lrução da identidade do crente em Cri Lo do egundo vário ponto do quai reporto apena Lrê .
éculo (WHITE. 2014).
Em primeiro lugar, compen ou-se a teologia da cruz (que fazia repou ar na
Luca e o~ demais autore de La tran formação bu caram. com ua recons- morte de Je u o poder redentor do projeto de alvação de Deu ) com a teologia
trução de Paulo. uperar a cri e de identidade do crente do início do egundo da alvação. mai equilibrada (a redenção de Deu e realiza em toda a vida de
éculo. A memória de Paulo. melhor do que a de nenhum outro. legitimava o que Je us: encarnação. vida. men agem. feito . morte, re surreição, a cen ão e doação
queriam er. porque ele começou anunciando o Evangelho ao judeus. mas e te do Espírito).
o rejeitaram majoritariamente; no entanto, não e truncou af a prome a de Deu ,
porque Paulo o pregou em egu.ida aos pagão , a egurando. a im, a continuidade Em egundo lugar, uavizou- e (e inclu ive e eliminou) a re i lência de
da prome sas de Deu . O paraleli mo entre Pedro e Paulo no relato lucano Lem Paulo em adotar o modelo patriarcal para a organização das assembleias de crentes
também esta função: 1110 trar que a mi ão que e fez entre o judeu e entre o (que se foram assimilando cada vez mai aos modelos hegemônico greco-romano
gentio é a me ma. esta linha, Clemente Romano. no ano 96, fará desta dupla e, assim, conseguiram "dome Licar" Paulo).
·o doi apó tolo " de Cri to (BARBAGLIO, 1992, p. 257-267). E ta múltipla re- Em terceiro lugar. de colou- e Paulo de ua radical resi tência ao cumpri-
con trução, portanto recupera Paulo como fmbolo de unidade; ele aglutina em i mento da lei mosaica para alcançar a "ju Liça" de Deus, e foi apresentado muito
me mo a duas grandes tendências que ainda exi Liam no segundo século: a tradição mai flexível com ela (inclu ive. circuncidando um de seu companheiros de missão).
mai judaizante, que não e havia desprendido (nem queria) dos co tumes e práti- A afirmaçõe de Paulo obre o relativo valor da lei agora e mo travam perigo as,
ca judaica , e a traição mai helení Lica. formada fundamentalmente por pagão porque podiam incitar comportamento antinômico (rebeldes) que e revelariam
que jamai haviam praticado a Torá. Con equentemente, Paulo aparece como uma fatais nas novas circunstância , de modo que eu conceito de "justiça" (que era a
personagem capaz de criar comunhão, como referência a que todos podiam recorrer, atuação gratuita de Deus para con iderar justos a todo ) chegou a significar, predo-
inclu ive mai do que Pedro, que não representava, como Paulo, o universali mo a minantemente, "fazer o corretoº', "comportar- e segundo as leis": Paulo converteu- e
que a piravam Luca e a maioria dos crentes em Cristo do segundo século. em guia e mestre da ética para o segundo século.
esta história. destacam-se dois a peclos de Paulo que evoluíram no- ão poucos autores, como já dis e no capítulo sexto, defendem de um modo
tavelmente: seu status no cristianismo nascente (que se elevou até tornar-se ou outro que o corpus paulino foi o núcleo, o embrião que aglutinou em torno de si
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TOOJRA PAHJt • Questões abertas ao debate atual Areconstruç.io de Paulo no cristianismo nascente

um conjunto crescente de textos considerados escritura sagrada para o crentes em me siânico do crente em Cri to de Jerusalém). A ruptura com a inagoga (talvez
Cristo. Es e núcleo terminaria, ao fim de vários éculo . formando o cânone cri tão a ituação na qual se encontra sua comunidade) não ignifica para ele ruptura com
de 27 texto (além da Bíblia Hebraica). No entanto, isto ó foi possível graça a esse a tradição judaica nem com as promessas de Deus no AT.
trabalho de desradicafoação, de desmarginalização e de centralização, feito tanto
Esta mudança tem explicação, ademais nas transformações da primeira ge-
pelos discípulos de Paulo, mediante as cartas pseudoepígrafas, quanto por Lucas,
ração (Paulo) à segunda e à terceira (Lucas e pseudoepígrafas). Em primeiro lugar,
através do relato dos Ato . Eles recuperaram Paulo para a Igreja nascente e o con-
a escatologia iminente já havia sido abandonada e era necessário um novo enfoque
verteram no embrião do cristianismo que estava urgindo (DUNN, 2011, p. 147).
que justifica se o er di cípulo de Je u sem renunciar a um projeto hi tórico. Em
O que Lucas fez com Paulo não foi uma exceção; na realidade, podemos segundo lugar, a relação com o Império agora se via em outra perspectiva, que deixava
dizer que também ele fez o mesmo com o Evangelho de Marcos. Este, como Paulo, de lado a visão apocalíptica que havia dominado a primeira geração. Lucas adota
representava uma corrente de crentes em Jesus polêmica e distanciada de deter- uma visão muito mais possibilista, de diálogo e de negociação com a autoridade ,
minadas tradições e instituições judaicas que, no tempo de Lucas, já haviam sido com os modelos sociais (como o patriarcado). Em terceiro lugar, o grupo eguido-
superadas. No início do segundo século, Lucas percebe um risco potencial para a res estão começando a organizar-se e a gerir a autoridade segundo e tes modelo e
identidade da Igreja nascente naquelas tradições que polemizam demasiado com não segundo o mais equívocos de Paulo. Em quarto lugar, o pensamento teológico
a herança judaica e defendem renúncia à sua herança. Paulo e Marcos ão, talvez, também e está de envolvendo em outras linhas inexistentes até então, como a teo-
os que melhor representavam essa postura crítica em relação às tradições judaicas. logia da história de Lucas. Estas novas circun tância exigiram de Luca e de outro
Por i so, Luca atualizou ambos, reescrevendo o Evangelho de Marcos no Evangelho um novo modo de apresentar as origens e seus protagonista , especialmente Paulo.
de Lucas, e a cartas de Paulo no livro dos Atos dos Apóstolos. Até certo ponto, os oponentes de Paulo, que lhe negavam o título de apóstolo
e defendiam uma postura mais moderada do que a dele em relação à vigência do
Conclusão preceito rituais (Gl e 2Cor) haviam triunfado no final do primeiro éculo. O Paulo
do anos cinquenta estava defasado, parado em um tempo escatológico que já não
Podemos concluir dizendo que Lucas (como os demais autores que trans- o era, com opções radicais que já não atraíam a muitos, com ideias carismáticas e
formaram sua memória) recuperou Paulo para a grande Igreja na terceira geração, ambíguas que não conferiam estabilidade, com uma teologia rudimentar, exigindo
mas transformando-o: fez dele o cumpridor da lei, o que representava como nin- elaboração ... Lucas viu-se na obrigação de recuperar Paulo para salvá-lo do es-
guém a raiz judaica dos crentes em Cristo, que havia sabido adaptá-la às novas quecimento e do ostracismo, mesmo que não se tenha limitado a isto, mas o tenha
circunstâncias, criando comunidades mistas, complexas, abertas, respeitosas e transformado: converteu-o no herói, no modelo, no santo que dava identidade aos
dialogantes com o Império Romano. Lucas não mostra especial interesse biográfico, crentes do começo do segundo século e que oferecia soluções para os problemas
histórico ou doutrinal por Paulo. Para ele, não é uma autoridade doutrinal; não tem de uma Igreja com vocação universal, aberta ao mundo e herdeira de Israel, ainda
interesse por seu pensamento, nem por suas cartas. O autor dos Atos não é pro- que para isso tivesse que mudar o próprio Paulo, como fez com o Jesus de Marcos.
priamente paulini ta. Lucas está interessado em justilicar a chegada do Evangelho
de Jerusalém a Roma; em mostrar a relação entre Israel e a Igreja através de uma
Bibliografia
figura autoriz.ada das origens do cristianismo; em fundamentar a nova realidade
de seus destinatários, uma comunidade marcadamente pagã, com raízes judaicas; BARBAGLIO, Giuseppe, Pablo de Tarso r los ongenes cristianos, Sfgueme, Salamanca,
2
em Legitimar esta abertura mediante a autoridade e a missão de Pedro e de Paulo. 1992.
Lucas está interessando em mostrar a continuidade histórico-salvífica de Israel até DUNN, James D. G., Jesus, Paul, and th.e Gospel.s, W. B. Eerdmans Pub. Co., Grand
à Igreja, apesar da descontinuidade com o judaísmo, centrado na Torá (e o judaísmo Rapids, MI, 2011.
190 191
Tsm.uw1 •Questõe.sabertasao debate atual

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QUARTA PARTE
Para aprofundar

192
Capítulo 9
Relevância atual de Paulo e
sua tradição

Chegando ao final do caminho, vamo voltar o olhar obre o percurso que


fizemos, os resultado obtido , o lugares a que nos levou etc. É o momento de fazer
o balanço e avaliar tanto o resultado , a vi ão de conjunto que e te livro oferece,
quanto ua utilidade.
Um modo de avaliar no so percurso é lembrar os primeiro re ultado que
extraímo de no o breve olhar obre a hi tória da pesquisa em torno de Paulo no
capítulo primeiro. Ali concluíamo que a leitura de eus textos deve er feita levan-
do- e em conta uma série de critério que evitem os problemas que prejudicaram o
olhar obre Paulo no éculo precedente e permitam recuperar ua originalidade e
ua importância. intetizado . eram estes ei : (1) uperar a opo ição judaf mo-cri -
tiani mo; (2) ituar Paulo em eu lugar; (3) aceitar ua ambiguidade e incoerência;
(4) hierarquizar suas afirmações, ideia e opções; (5) emoldurar os dados em uma
vi ão teológica correta; (6) utilizar outra anáJises (históricas, ociai ...), além da
teológica. Os ei critério foram aparecendo explícita ou impl icitamente ao longo
de La páginas; a tarefa do leitor ou da leitora é avaliar sua utilidade e sua correta
aplicação aqui.
De sa primeiras conclu ões surgiram também alguns pre uposto e
opções metodológica que no guiaram e que também podemo avaliar agora,
perguntando-nos se foram unido logicamente de modo uficiente em uma vi ão
de conjunto e e, portanto, e ju Li.ficaram ou e teríamo necessidade de outro .
Eram e te cinco: (1) o corpu~ pau lino é um conjunto de cartas e crita ao longo de
trê gerações; (2) é neces ário contextualiza r corretamente tanto Paulo como uas
carta na complexa rede de ituaçõe hi tóricas do judaísmo do primeiro éculo;
(3) as ideias e afirmaçõe teológica de uas cartas são fruto de um diálogo com
a circunstâncias hi tóricas, uma "teologia de situação"; (4) as ciência oc1iu e
195
Ou.wA PWE • Para aprofundar _ _ __ _ __ _ _ __ ___::Rel
=e~ nàa atual de Paulo esua tradição
vâ=
- - -- --
hi lórica ajudam o leitor aluai a evitar anacronj mo e elnocentri mo , quando e contrário a todo cu to. agenda anticlericai que d qualificam qualquer pe quisa
interpretam o texto de Paulo: (5) é nece ário levar em conta o pe o da tradição feita por crente ... Creio qu uma re po ta negativa à pergunta pela utilidade de
e da imagen hegemónicas de Paulo para evitar projetar no texto o que "já abe- um e tudo obre Paulo como o que apre entei aqui enfraqueceria profundamente
mo ... Cabe também ao leitor ou leitora avaliar agora ua adequação e ju tificação todo e le Ü\rro, o trabalho de elaboração de minha parle e o de leitu ra de ua parle,
na vi ão de conjunto. leitor ou Leitora. A avaliação final e Lá em ua mão .
A pergunta mai importante ne le momento. não ob lante. não é em que De minha parte. quero oferecer alguma pi ta que ajudem a formar uma
medida cumpri o que me havia propo to ou e o leitor ou leitora aprova a opçõe opinião obre a utiJjdade e a relevância atuai de tudo o que foi dito. Para e te ob-
pré\'ia e a vi ão de conjunto. Do ponto de vi La hi tórico-crílico. que é o que ado- jetivo, e colhi trê de as conlribuiçõe paulina : (1) o projeto de Paulo no marco
tamo principalmente. uma avaliação de te tipo eria correta e útil. ão cabe ao do judaí mo de eu tempo (projeto hi tórico e teológico): (2) a relação de Paulo e
hi toriador nem julgar nem atualizar texto ou vidas pas ada ; ba la-lhe er rigoro o eu projeto com o Império e com o mundo (re i lência e ubmi ão; cidadania e
com os dado , incero em eu pres upo lo e claro em ua expo içõe . Contudo. universali mo: me tiçagem); (3) a estratégia de autoe tigmatização e a imagem de
dis e no primeiro capflulo. que todo pe qui ador que olha para o pas ado. incluída Deus (e ua con equência para o modo de entender a redenção). Pode er que não
a figura de Paulo. pode perguntar- e legitimamente a partir de onde e itua. por ejam nem equer a mai relevante de Paulo e de seu di cípulo , mas ão boas
janelas que permitem de cobrir algumas de ua contribuiçõe (ideai . opçõe .
que e coloca determinada pergunta e outra não; o que lhe cau a indignação e
circun Lância . e lratégia . confüto~ etc.) e perguntar por eu entido original e
o que o atrai em eu objeto de e tudo ... 1 o resulta útil para ficar con ciente do
pelo de envolvimento que tiveram. anali ar até que ponto eu u o hoje e mo Lra
preconceito incon ciente . Por outro lado, como Lodo e tudio o da ciências huma-
coerente com aquele. ugerir po ibilidades inédita ele.
nas abe. a pe qui a ne te campo (tanto faz e a ru lória, a filo ofia, a teologia,
a exege e, a ociologia...) não oferece re ultado exato . de modo que o e tudo
qua e empre tran corre por território que deixam uma margem ao explorador 1. Oprojetode Paulo no marco do judaísmo deseutempo edocristianismonascente
para orientar-se e decidir por qual caminho enveredar.
PauJo foi judeu ante e depoi de ua vocação; na ceu e morreu judeu. A
Portanto. todo pe qui ador pode (deve?) avaliar também o efeito de ua r velação do Crucificado (outro judeu) não debilitou ua identidade judaica, ma
pe qw a. as con equências. consciente ou incon ciente . que se derivam da escolha aprofundou-a. radicalizou-a (no entido de voltar à raízes). er crente em Je u
de determinado pre upo to . da seleção do dado , da apresentação do re ultado , ignificou para ele recuperar a raíze judaica . aprofundar o entido da aliança,
da vi ão de conjunto que oferece: pode p rgunlar- e pela utilidade de eu trabalho. relacionar- e com lal1weh face a face ... O cri tiani mo. como religião urgida a partir
pelas po ibi lidade que eu e tudo oferece ao incero an eio por um mundo do final do egundo éculo. não foi resultado do projeto hi tórico de Paulo. ma . ao
ju lo, pacificado, olidário e fraterno ... l ão fazê-Lo não é er mai objetivo ou tomar contrário. de eu fraca o. Ele pretendia que todo o L rael aceita o verdadeiro
dj tãncia do objeto de e tudo; é er incon ciente, ignorante ou, pior ainda, mani- ro lo de lahweh, que e de cobria no acontecimento hi lórico de um crucificado
pulador. Creio que e La é uma tarefa urgente da exegese e da teologia (tanto como pelo Império Romano com a conivência da autoridade hiero olimitana e que,
da hi tória). da quaJ provavelmente não afrão mwto favorecida . porque há muita como con equência, reinterpretaria e repo icionaria algumas tradições e in tiluiçõe
apologética encoberta. muitas agendas teoló!!"icas que querem legitimar uma imagem judaica . Paulo foi um reformador do judaí mo com um projeto inlrajudruco (ne te
de Deu , ou um modelo ecle iaJ, ou uma visão do mundo. ou determinado interesses entido. igual a Je u ).
particulares. A im, a prelen a objetividade não pa a de projeção do próprio Ma fracas ou. Paulo não con eguiu que J rael acredita e que aquele cruci-
desejo . ilu ões ou medo (do que, talvez, e te livro não e lá i ento}. Também é fácil ficado era o Me sias de lahweh; eu projeto da ekklêsia como exemplo do que devia
encontrar ataque camuflado de objetividade. de ejo de de montar argumento er todo o 1 rael. como antecipação do futuro do povo eleito. fru Lrou- e. A mruor
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Qu.w.t. PARI! • Para aprofundar Relevância atual de Paulo esuatradição

parte do judeus de eu tempo continuou a acreditar que aquele crucificado não era o ro to de Deus que o Crucificado mo trou). Creio que dema iadas veze e dá por
Messia e a considerar a lei como uma marca da eleição que eparava os circunci o pre upo ta esta conexão, o que leva a grave erro , di torções e traiçõe . Caberia,
dos gentio . algo exigível a todo aquele que aspiras e a entrar na aliança, a olhar poi , perguntar ao cri tiani mo de hoje (ao cristão de hoje) e ele pode apelar,
face a face o Deu verdadeiro, sem cair fulminado por eu olhar. A guerra judaica para sua legitimação e continuidade, à fidelidade às ideias teológicas fundacionais.
por volta do final do anos essenta do primeiro século. a conquista de Jerusalém Neste mesmo sentido, eria também oportuno perguntar- e pelas conse-
e a destruição do templo, ocorridas depois da morte de Paulo, traçaram outro mapa quências daquela transformação da primeira à segunda e à terceira geraçõe , pelas
de rota para o judaí mo, que e viu em terra e sem templo. A tradição farisaica, mudanças que supôs nas intuições originai de Paulo: penso, por exemplo. em sua
muito apoiada na importância ela lei para restaurar a aliança, foi a mais bem ituada ideia de relativização da lei. 1 to é, para dar-Lile estabilidade e continuidade, os
para enfrentar esta profunda crise de identidade, e a proposta paulina de renovar crentes em Cristo depoi de Paulo foram dotando- e de crenças e de práticas (que
o judaísmo a partir da fé em Je us ficou relegada à marginalidade. afloram com nitidez na segunda e terceira gerações, conforme visto) que permitiam
Teria ficado à margem e reduzida a uma minoria se os discípulos de Paulo ao seguidores de Jesus entender a si mesmos e a próprias experiências de acordo
e o evangelista Lucas não tive em recuperado e transformado seu projeto para com esse marco de interpretação. No entanto, graças aos mesmos mecanismos pelos
oferecê-lo como aglutinante de um crescente grupo de crentes em Cri to que tinham quais o judaísmo havia convertido a lei em inal de identidade e não de relação com
também uma profunda cri e de identidade (como grupo, não eram judeus, não eram Deus, a Igreja nascente fez repou ar nes as práticas e crenças próprias a fronteira
pagão : eram amba a coisa e nenhuma dela ...). E a recuperação do projeto de pertença e os sinais de identidade do crente (RIVAS REBAQUE, 2010). Já não
da ekklêsia e ua transformação para apre entá-la como herdeira da promes as de se podia ser crente em Jesu em afirmar o conjunto de crenças que faziam parte
1 rael e com vocação univer ai, tirou Paulo e eu projeto intrajudaico do o traci mo do depó ito; não e podia ser crente sem realizar o rituais e demais práticas (e
e lhe deu nova vida, mas de ligando-o de seu caráter imanente ao judaísmo e à do modo como se realizavam). Esse conjunto de crença e práticas que serviram
hi tória caduca, para dar-lhes um horizonte novo, para além de Israel e da história para dar identidade ao cristianismo e constituí-lo como religião ante outras reli-
do homen . A ekklêsia que, no projeto de Paulo, era um meio (caduco) para o fim giões (ao judaísmo por exemplo), transformou- e, para muitos, em algo similar ao
iminente da chegada do reino de Deus (perene) instalou- e na hi tória com uma que Paulo havia criticado profundamente: a exaltação da lei (a norma, o dogma,
dimen ão tran cendente que fez dela um fim em si me ma, a umindo aquele ca- o sacramento ...) ao status de critério de di cernimento daqueles que Deus quer e
ráter perene do reino de Deu que ficou relegado como motivo teológico. De certo acolhe. ·ão aceitar estas práticas e crença do cri tianismo que surgia equivalia
modo, poder-se-ia dizer que, embora Paulo tenha fracas ado hi toricamente, não o a uma condenação à perdição eterna.
fez teologicamente. no entido de que seu projeto teológico de visibilizar o Deus do Esta descrição imperdoavelmente abreviada e caricaturada pode, não obs-
Crucificado teve continuidade neste projeto, posto que profundamente transformado tante, servir como exercício de reflexão. Paulo teve de crer no Crucificado apesar
para adaptar- e à nova circun tâncias históricas. das interpretações predominantes em sua própria tradição, que o consideravam
De e modo do ponto de vista hi tórico o cri tiani mo não é o resultado nem um maldito. Este dado parece uma característica fundamental da fé em Jesus: nas
da mi ão de Je u nem da de Paulo, ma de um proce o complexo e prolongado origens, o descobrimento e a aceitação do rosto de Deu revelado no Crucificado
durante quatro gerações, em que o di cípulo da egunda e da terceira geraçõe supunham uma profunda transformação do contexto cultural e religio o em que
souberam dar àquela primeira missão uma dimen ão nova, uperando suas Ümi- essa experiência se dava. E não parece um dado conjuntural; ou seja, não se deve
tações históricas e conjunturais. Isto não equivale a dizer que o cri tianismo não unicamente às circunstâncias hi tóricas ou às características reügiosas (supostas
pode apelar a seu enraizamento na missão de Jesu e de Paulo· de fato creio que limitações) do judaísmo. Parece, ao contrário. um dado genuíno da experiência reli-
pode e deve fazê-lo legitimamente, empre e quando for suficientemente coerente giosa do Deu de Jesus: urna constante. Is o equivale a dizer que hoje a experiência
com a dimen ão teológica daquela mi ão de Je u e de Paulo (a apre entação do de confiança no Deus de Je us deveria com~dar todo crente a revisar, discernir e

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Quw PARTE • Para aprofundar - - - - - - - Relevância atual de Paulo esua tradição

tran formar a in 1j1uições e tradiçõe às quai pertence e na quai tem lugar es a nO\~dade. Em tempo como estes. de grande oferta religio a, dá- e o ca o em que
experiência: de\'eria. entre outra coisa . levá-lo a perguntar- e acerca da acomoda- a pertença à maioria da religiõe in titucionaJizadas (entre ela a Igreja Católica)
ção das e !rutura ao fin pela adequação da linguagem, das formas, das relações e tá ba eada em ,,inculaçõe forte a crença e práticas que oferecem egurança
pe oaj e da organização interna à imagem do Deu de Je u . Exercitar e La atitude ao crentes, entre outra coi a : no entanto. nem empre e ta forma de vincular- e
crítica não deveria er vi to pelo que detêm re pon abilidade na igrejas como uma e enraíza em experiência pe oaj que lran formam a identidade do crente. Por
crítica (com perdão da redundância) ou infidelidade: deveria fomentar- e para que a outro lado. as experiências religio a que maj enfatizan1 a relação pe oal com
in Lituição e de prenda de estrutura caduca . de linguagen exi ta ou raci ta . Deu e põem meno ênfa e na e trutura , crença e práticas co tumam atrair
de relaçõe de dominação e de ubmj ão, de bu ca ou manutenção de vantagens outro tipo de crentes que não bu cam tanto a egurança. mas a experiência que
ociai ... e da legitimação teológica de tudo i o. Não fazê-lo eria, na realidade, impre iona (WHITEHO U E. 2004). Paulo favoreceu um modo de vinculação
o pior erviço ao futuro do cri tiani mo. Quem prefere a luta pela obrevivência e a ba eado na experiência gratuita, imerecida. inesperada de um ro to de Deus que
defe a in titucionaJ perante upo ta agre õe laici las, ou a afirmação imobili ta acolhia e amava, em levar em conta ab olutamente a condição da pe oa. Paulo
de modelo e e lruturas do pas ado, à depuração, à renovação e à adaptação ao pô a fé no Deu de Je u , na aceitação de ua acolhida e amor gratuito . acima da
tempo para visibilizar o Deu de Je u . deveria er vi to como inimigo do futuro lei. como traço de identidade do crente em Cri to. Hoje é freq uente ver que o que
do cri tiani mo (GONZÁLE R lZ, 2000). e djzem herdeiro do projeto de Paulo parecem colocar a Jej ecle iá ticas acima
da fé paradoxal no Deu do Crucificado, e colocam mai ênfase em condições e
Façamo umas perguntas retórica . O que aconteceria e Paulo nasce e
exigências de caráter moral ou religio o do que na experiência pe oaJ. gratuita,
hoje no eio. rugamo . da Igreja Católica e dj e e que havia tido uma revelação
de encontro com o Deus de Je u .
de Deu que o impul ionava. contrariamente à opinião de eu bj po e de todo o
demai bi po . a chamar homo exuai . divorciado , mulhere que praticaram o
aborto etc., e convidá-lo a formar a embleia , em pedir-lhe que antes pas as- 2. Arelação de Paulo eseu projeto com oImpério eomundo
em pelo confe ionário. com o fim de mo trar a toda a Igreja Católica o que devia
Outra caraclerf tica marcante da mi ão de Paulo foi eu modo peculiar de
tornar- ? O que aconteceria e. no eio da m ma Igreja, Paulo insultas e os que
confrontar-se com o de afio de exi tir no lmpério, com a vocação de conquj -
e creem com autoridade porque têm nomeaçõe ou e tão bem conectado com
tá-lo (ao meno teologicamente). No entanto, como vimo no primeiro capítulo, o
Roma, dizendo-lhe que são ··enviado de ataná '', porque agem impondo ua
e tudio o ituado na perspectiva pó -colonial evidenciaram que não existe uma
autoridade. obrigando a batjzar ou confe ar o que ele acolheu em perur-lhe
clara linha ruvi ória entre a cultura do dominador e a do dominado, ma que e a
nenhuma condjção legal moral ou prévia? Não ão ituaçõe comparávei . efetiva-
relação e tá marcada tanto pela atração corno pela repulsa: tanto pelas re i tência
mente, nem pretendo que o ejam; ão pergunta para ajudar a pen ar o impacto
quanto pela cumplicidade. e que o colonizado tende a internalizar e replicar a cul-
que teve a mi são de Paulo em eu tempo e a dificuldades e po ibilidade que
tura do colonizador, me mo que eja de modo irônico ou ridiculo. I to quer dizer
têm uas intuiçõe para erem relevante hoje.
que é difícil. do ponto de vi ta do valore culturai . identificar a relação entre o
e te entido, Paulo poderia. talvez, ajudar o cri tão de boje a revisar lmpério e Paulo como a do colonizador e do coloruzado. porque toda cultura e Lá
o fundamento de ua própria fé e de ua pertença. Não e trata de duplicar ou me clada de tradiçõe . e não exi tem a culturas ou o povo puros. Neste caso.
de mimetizar ua experiência e uas opçõe . ma de valorizar a pos ibiJidade portanto. o lmpério e Paulo foram imultaneamente colonizadore e colonizado .
inéditas que oferecem para dar re po ta hoje à exigência da fé no Deu de Je- I to permite entender melhor o fato de que ambo e influenciaram mutuamente.
u . Paulo poderia ajudar um cri tão de hoje a perguntar- e. por exemplo. quanto aceitando ideias ou modelo , fazendo com que a ekklêsia se parecesse cada vez
há, em ua pertença à Igreja. de ade ão a certa crenças e práticas, e quanto mai com uma instituição imperia l. e que o lmpério as umisse alguns valores da
de experiência marginal, contracultural, de provida de abrigo in tjtucionaJ. de fé em ]e us. tudo i o ao me mo tempo em que e repe]jam e se atraíam.
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Q...llLI PAm • Para aprofundar Relevância atual de Paulo esua trad~

É muito diffcil determinar, quando contemplamo o re ultado final de um de parto interminávei . Além de ua visão escatológica, Paulo partilhava algumas
processo hi tórico longo e complexo, o que provém de um e o que provém do outro, caracterí ticas da concepção apocalíptica, como o dualismo de poderes que atuam
porque, provavelmente, muitas características não têm uma origem identificável, na hi tória e o diagnó tico oh curo obre o presente que, não ob lante, era de pro-
mas ão resultado de muitas mistura , cujo ingredientes perderam sua primeira funda esperança no futuro imediato. De sa maneira. eu modo peculiar de ver a
referência. No entanto, em no so percurso, pudemo identificar algumas caracterís- realidade, mesmo que bastante condicionado por e as circun tância , deixou em
ticas que tinJrnm origem mais clara e determinada. Uma delas é a decidida as un- herança uma série de conceitos e perspectivas que ajudaram pen adores po teriores
ção do modelo patriarcal depois da morte de Paulo a fim de organizar a ekklêsia. a con iderar o mundo de forma diferente.
Em seu momento - eu não me atreveria a ju tificar o contrário-, provavelmente ma delas é a pergunta pelas po ibilidades de nosso mundo, e outro mundo
erviu para dar estabilidade, solidez e futuro ao anúncio da boa notícia de Deus. é po ível, ou cabe apenas pensar no esgotamento do presente. o.éculo x_x
:oi,
As assembleias organizadas carismaticamente por Paulo tinham poucas po sibili- em dúvida, um período especialmente de olador para a humanidade: mJlhoes
dades de sobreviver para além de sua morte, se não tivessem encontrado fórmulas de morto por razões étnicas, religiosas ou políticas, milhões de migrante pelas
de institucionalização adequadas. Gerd Theissen explicou este desenvolvimento me mas razões, empre com interes es econômico de fundo (uns poucos se enri-
como "patriarcalismo de amor", o intercâmbio de benefícios mútuos neste processo queceram com tais morticínios), violência, fome, desigualdade, marginalizaçã~. · · O
(THEISSEN, 1985, p. 39-40). balanço para as esperanças humanas de construir outro mundo no qual não existam
No entanto, eria conveniente fazer uma avaliação do que este modelo supôs esta situações é demolidor. O começo do século XXI não tem sido melhor. E te
para a história do cristianismo. Por exemplo, um crente de hoje e pode pergun- momento ainda acrescenta um grau maior de de e perança, porque parece que se
tar quanto o modelo patriarcal ajudou aos seguidore de Jesus a desenvolver sua esgotam as reservas de humanidade no mundo. Paulo não viveu obviamen~e ~ tas
missão do anúncio do Evangelho e quanto a reforçar ou perpetuar determinadas situações, mas conheceu outra não menos desumanizadora , para as quaJs Lmha
instituições históricas. Poderia interrogar-se, igualmente, sobre o balanço do que um olhar específico, que deixou ve Lígios em pensadores posteriores. Sua convicção
po ibilitou e do que silenciou; caberia inclusive, a possibilidade de perguntar-se escatológica estava dominada pela certeza de uma justiça que ultrapas ava a capa-
se continua sendo, hoje, um bom modelo para organizar as igrejas ou demonstrar cidade da injustiça humana e que lhe permitia afirmar que, por maior que fosse a
se um peso que impede precisamente o que pretendeu propiciar: a relevância atual transgressão, 0 prejuízo ou a de truição maior seria a reconciliação e a reparação.
da fé no mundo. Um olhar como o que lançamo legjtimaria um que tionan1ento E ta leitura, que poderia muito bem ser descartada como ilusória, foi precisamente
profundo daquelas e truturas ("empréstimos" culturais, diria alguém) que, embora um enorme estímulo em sua luta pela justiça e pela construção de uma realidade
tenham sido úteis em seu momento, hoje estão impedindo o encontro do mundo com que se apresentas e como alternativa à injustiça dominante. Acre~itar qu_e ~. taria
a boa notícia que os discípulo de Jesus anunciam. Além do modelo patriarcal, nascendo uma nova humanidade, mesmo entre dores de parto, foi a possibilidade
poderíamos incluir nesta categoria o modo de governo medievais, as estruturas real de criar um ensaio de mundo novo. grupos humanos que fo sem reflexo do
democráticas, as linguagens esclero adas. as liturgias opacas, a vinculação com futuro, que visibilizas em as po ibilidades ainda inéditas de er pessoa segundo
as elites do poder político ou econômico etc. Deus, a ekklêsia. Porque acreditou nis o, tornou-o possível; ua fé nisso o tomou
Por outro lado como fruto de e intercâmbio de valore , Paulo contribuiu po ível. Se não tive e acreditado ni o, provavelmente o mundo teria co~eci~o
decisivamente na construção de algun conceito fundamentais do pensamento maiores cotas de inumanidade. Me mo que ainda hoje continue parecendo 1lusóno
do Ocidente. Não é fácil entender como a ideias de alguém que acreditava que acreditar que outro mundo é po sível, gerá-lo na imaginação, alimentá-lo com o
o mundo estava chegando ao fim tenham podido contribuir para pensá-lo, preci- de ejo e a vontade, dedicar todas as energias a ele é o único modo para que nasça
amente, no tempo, na contingência de uma história que se prolonga como dores quando chegar eu tempo.
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Qtu.ru PAATE • Para aprofundar Relevância atual de Paulo esua tradição

Também não é difícil enconlrar hoje aquele que têm um olhar radicalmenle de uma identidade que somaria toda as identidade individuai ou coletiva , apa-
oposto ao anleriore , o adoradore do progre o, aque1 que veem no conflito gando a diferenças de toda elas. de modo que er crente em Cri to con i ti ria em
e crises as melhores po ibilidade de cre cimento, de enriquecimento. de explo- er, ao me mo tempo, judeu e pagão. homem e mulher, escravo e livre. Tampouco
ração, seja de te planela. eja do que no rodeian1; aquele que descobrem nas consi tia (pelo meno não ó) em descobrir uma qualidade comum que pudes e
nece idades do demai a oportun idade para uma progre ão de eu resulLado e tar na base de toda as identidades (pes oa, humanidade) e elevá-la à categoria
fi nanceiro ... Pau lo tinha e e outro olhar apocalíptico, que o fazia dar- e conla de traço determinanle da identidade da nova humanidade. Ao contrário, con i tia
da aparência da coi a . de que o que e vê nem empre é a verdade profunda, que na di criminação ou marginalização daquela identidades ou traço de identidade
há uma djnâmica interna na h_i tória que transformará o re uJtado de un e de que eparam em vez de unir, que desagregam em vez de criar. eu univer aü mo
outro ... PauJo acreditava que o podere , principado e pote tade de te mundo era o resultado de um acontecimento histórico cuja irrupção havia Lran formado o
eriam derrolado , que "o mundo pas a··. ma vez mai , acreditar que aquele modo de e verem as pe oa e no qual todo o membro do corpo deviam e Lar
que triunfam agora. à cu ta da inju tiça ou da opre ão. não erão o verdadeiro con ciente de ua nova função no tempo pre ente: fazer parte de um todo, de uma
triunfadore na hora defi nitiva é o que lhe permjtiu empreender uma tarefa paten- humanidade nova, cidadão do mundo de Deu (oikoumenê). Paulo não anula a
temenle impos ível, de comunal para a pe oa: a de enfrentar o mal imperante. diferenças entre pagão e judeu (ou entre homen e mulheres, ou entre escravo e
Acreditar ni o é que lhe po sibilitou começar a reaJjzá-lo. Paulo também pode ljvre ): faz com que Lodo descubram em seu er pagão ou judeu, mulher ou homem,
ajudar hoje a imaginar po ibilidade ajnda inéditas, me mo que e mostrem cla- e cravo ou ljvre, eu insub tituível lugar na nova humanidade. e falta uma mão. o
ramente irrealizávei . corpo está lesado; se falta o 01J10, o corpo não vê ... Paulo não dilui e as identidade ,
mas as torna indi pen ávei : obriga cada um a olhar o outro como indi pen ável,
Ne Le entido. uma das heranças de Paulo é o pensar a vida ··desapo ada- preci amenle por ua diferença. A construção, hoje, de um universali mo as im
menLe". "como se não fo e própria"; pen ar o mundo como e já não fo e ex_i tir. poderia trazer uma série de benefício , porque permitiria limar e mitigar eliti mos,
E ta ideia, que desenvolverej um pouco mais na seção po terior ( ob o título de 'A etnocentri mo , nacionali mo .. ., quando upõem prerrogaliva ou privilégio de
e tratégia da autoestigmatização e a imagem de Deu "). reflete um dos olhares mai uns obre outros. Ao me mo lempo, permitiria enlender a neces idade que cada
ugestivo que influenciaram aulore como ~ren Kierkegaard, Walter Benjamin povo e cuJlura, cada pessoa tem do outro para a formação de uma oiJuJUmenê
ou Giorgio Agamben, e apre enta o modelo de messian ismo que Paulo defende em que permitiria reduzir muitos conflito atuais. Obviamente se trata de uma utopia
termo de de pojamento. de confu ão da própria identidade com a do mundo, de que nem Paulo me mo pôde cumprir. Contudo, es a vocação ainda chama à porta
auloentrega acrilical por sua transformação. de exercício do poder em po uí-lo, de muito , de algun dos que continuam a crer no Deu de Je us e de outro que
de respeito à caducidade e aparência do mundo em relação à ua própria vocação; e cutam e se chamado em outra ágora igualmente válida.
não um novo mundo fruto da de trujção do atual. ma a tran formação do pre ente
em sua melhor versão po sível (MATE 2006).
3. Aestratégia da autoestigmatização eaimagem de Deus
Também entre a contribuiçõe de Paulo e lá ua ideia de con trução de
um mundo em fronteira . o que algun chamaram de univer ali mo, po to que E ta intuição é uma daquela caracterí tica própria do cari ma de Paulo,
eja um conceito que e preste a mal-entendido . principalmente quando reflele a na qual podemos ver uma coincidência surpreendente com a de Jesus. Por i so
ideia de que é uma vi ão do mundo que e e tende acima das outra , anulando as também é muito difícil compreender e formular em termos de relevância atual.
diferença . E ta ideia, que eslá na ba e de muito debates atuai obre imjgração. Apena reunirei algumas ideia ugeridas nos capítulos e proporei alguma reflexão.
globaüzação. direito humano . cidadania .. .. é uma tarefa pendente de no o mundo. Quando de autorizaram PauJo como apó tolo por ua upo ta incapacidade,
A ideia de Pau lo de um mundo em fronteiras (GI 3,28) não con i tia na criação incuJtura, falta de legitimação .. ., ele não e defendeu negando nada di o, ma
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Relevância atual de Paulo esua tradição

afirmando-o paradoxalmente e dando-lhe um entido po itivo. Vimos que, de te Por último. go taria de as inalar uma con equência do que foi dito: a lran -
modo, PauJo con eguira. em primeiro lugar, e vaziar de conteúdo negativo aque- formação da ideia de redenção. Introduziu-se em no a cultura uma ideia particular
las etiqueta que pretendiam marginalizá-lo e invisibilizá-lo, de cobrindo outra de redenção, que afirma a necessidade do acrifício voluntário de uma vida inocente
po sibilidade inéditas nela : ua capacidade para revelar a força que tem em i para alvar outra. Recente obra literária ou cinematográfica de grande êxito de
mesma a men agem do Crucificado. Em egundo lugar, converteu esses traço público e com grande influência no modo de conceber valores cívico atuais têm
estigmatizante . preci amente por ua imitação do enlido teológico da cruz. em em comum, preci amenle, e ta ideia: Guerra das galáxias, Matrix, Harry Potter,
inaj de identidade que aspiravam a definir o membro da nova oikoumenê. E em O enhor dos anéis etc. Todas elas propõem um modo de entender o mundo que
terceiro lugar, a aceitação da marginalização e da negação que o rótulo negativo tem como ideia-ba e o combate da força do bem e do mal; oferecem um relato de
que lhe foram impo to supunham, apre entou-a como inal da renúncia de Deu caráter intemporal, que bu ca repensar o mundo em que vivemos (talvez oferecendo
a exercer o poder e a impo jção, a ira, a vingança ou o ca Ligo {mesmo que pare- visõe alternativas). e apresentam uma imagem do herói profundamente marcada
ce se merecido). As umjndo e tes rótulo negativos. Paulo convertia- e em sinal e por ua debilidade inicial e vulnerabilidade, por eu caráter messiânico, carismá-
con equência da imagem de Deu descoberta no Crucificado, em oferta para ver o tico, defensor do princípio do bem. e por seu acrifício final, a redenção que se
mundo e o demai com o olho de e Deu , em con Lrutor de e projeto de Deu . obtém mediante sua vida entregue para con eguir um novo mundo, livre de todas
as ameaças que o haviam acossado, até quase de Lruí-lo (a ideia de re urreição
E ta ideia de Paulo não foi unicamente estratégica ou retórica; fazia parte tampouco está ausente). ão relato messiânico modernos. que revelam não somente
nucleal de seu anúncio, de seu Evangelho. Não e podia compreender verdadeira- a influência de motivo bíblicos (mesmo que não exclusivamente), mas também a
mente a identidade de e Deus falando dele como outro faziam, com abedoria, nece idade desta figura em no sa cultura pó -moderna.
com retórica, com palavras ou inai podero o que cativavam por i mesmo ;
o entanto, o modelo de redenção que Paulo ublinhou ao olhar o Crucificado
isso confundia a men agem porque podia pa ar uma imagem de um Deu que
não é este. Ne tas imagens, é fundamental a ideia da morte acrifical do herói em
e impunha. E e modo de viver a um indo po itivamente (com entido) valores e
uma batalha final com as forças do mal. que acabam vencidas com sua morte. E ta
comportamento con iderados negativo já era um anúncio não verbal de Deu e do
vi ão é mai apocalíptica do que a do próprio Paulo, que integrava uma profunda
mundo futuro. Valia mai renunciar à própria ideia {me mo que e la fosse melhor.
vi ão escatológica po itiva. A morte de Je u não foi consequência das forças do
mais ortodoxa), e i o ajudasse um irmão a não desligar-se do projeto comum; era
Mal (entendido como princípio upremo re ponsável por todo mal); quem matou
preferível a incorporação de gente marginal, inútil ou de prezível à do culto , efi- Je u foram as autoridade romanas em conivência com as hiero olimitanas. Tam-
caze e podero o , e i o logras e despertar con ciência e tran miLir a imagem de pouco morreu vítima de Deu , como e este preci a e de ua vida para aplacar a
Deu e do mundo que ele quer; era mai importante dar autoridade ao considerado ira ou compensar- e do dano causado por outro . Je u morreu na cruz porque não
idiotas ou inútei do que ao doutore e perito , e assim e fortaleces e a identidade renunciou a viver como havia vivido, nem no fi nal. Morreu do me mo modo que
comum, con Lruída obre o valor do oulro acima de suas capacidade : era preferível havia vivido: retratando com ua palavras e ge to , com sua vida, como é Deu Pai.
renunciar aos modo convencionai de poder e de imposição, inclu ive à defe a do ua morte é redentora porque reflete um Deu que não leva em conta o pecado
próprio direito legftimo , e de te modo e alcanças e a reconcil iação. o aber- e (que o crente con ideravam di tanciamento de Deu ). ma que o ignora, como
descoberto por dentro em er rechaçado, o saber- e olhado na face em er de pre- ignora a rejeição e o desprezo, a fim de con ervar incólume sua liberdade para amar
zado nem aniquilado. A propo ta de Paulo, que e conecta tão radicalmente com a em nenhwna condição nem condicionamento. E ta forma de entender a redenção
de Je u , demon lra- e hoje uma utopia irrenunciável. e a humanidade perde este da morte de Jesu põe a ê1úa e mais na nova imagem amoro a de Deus do que
horizonte. talvez a contribuição mai genuína do cri tiani mo à humanidade. a fé no modo acrifical ou ofredor da morte de Je u ; mai na cosmovi ão po itiva de
em Je us, perde eu entido, e a humanidade, eu horizonte de alvação. um mundo governado unicamente pelo amor benévolo de Deus do que na negativa
206 207
QbARrJ. M.m ·Para aprofundar
~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

de um mundo em contínua batalha de princípio antagônico : mai na vantagen


ética e ociai que e derivam de um modo de vida que iga e e modelo do que
no ofrimento e pena lidades que todo egwdor de Je u deve assumir: mai .
Bibliografia comentada
enfim, na vida do que na morte.

Bibliografia Quero apresentar uma breve eleção de obra obre Paulo e obre o tema
de que tratamo ne te livro. O conteúdo e a perspectivas ão inapreensfvei .
GO ZÁLEZ R IZ. lo é Maria, la ena en Pablo: su eclip e hist6rico. antander: al
e toda eleção exige critério que fazem do re ultado uma li La nece ariamente
Terrae. 2000.
incompleta. in uficiente e inju la; espero que, além di so. seja útil. O critério
MATE, Reye • uevas teologías políticas: Pablo de Tarso en la co1zstrucci6n de Occidente,
Anthropo , Rubf, 2006. que utilizei para elaborar a li la ão ei : (1) e colher unicamente dez obras; (2)
RI REBAQ E. Fernando. EI nacimienlo de la Gran lgle ia, in AGUTRRE Monas- que todo o livro citado ejam livro em e panhol, quer originai , quer tradu-
terio R. (ecl.). As( empez6 e/ cristianismo. Verbo Divino, E tella, 2010, p. 426-480. ções; (3) que tenham supo to alguma contribuição em eu âmbito (ou que sejam
THE E1 . Gerei. Estudios de sociolog(a del cristianismo primitivo, fgueme, atamanca, representantes de alguma corrente que o tenha feito); (5) que lenham deixado uma
1985. pegada reconhecível nas página precedente ; (6) que sejam obras com a quais o
WHITEHOlJ E. Harvey. Jfodes ofreligiosity: a cognit ive theory ofreligious transmission, leitor que decidir lê-las aprenda algo.
Altamira Pre . _ ew York. 200-l.

• 1. enén VIDAL, las cartas originales de Pablo (Madrid: Trotla, 1996).

E te é o único livro original em ca telhano que cito nesta li ta e está por


mérito próprio . eu autor é, provavelmente, o melhor expoente em castelhano
dos exegetas que trabalham em primeira mão. uas obras sobre Paulo mereceriam
mais espaço ne La li ta; por exemplo, El proyecto mesiánico de Pablo (Salamanca,
2005), talvez ua obra mai i temática obre a co movisão paulina, ou Pablo: de
Tarso a Roma (Santander, 2007), muito equil ibrada enlre o rigor e a divulgação.
No entanto. considero que a que menciono acima Lraz uma originalidade maior ao
panorama dos estudos paulino em ca telhano. Trata- e de uma edição bilfngue
(grego e ca telhano) das carta indi cutivelmente paulina , mas apresentadas tal
como Paulo as escreveu originalmente, emelhantemente a como de crevi no capí-
tulo ei . Traz uma cronologia convincente, algumas breves mas bem argumentadas
razões para a reorganização da carta e algun ucintos comentários no rodapé
delas. O texto das carta se apresenta tal como Paulo pôde escrevê-las, encaixadas
nas circun tâncias histórias em que nasceram, de sorte que o leitor pode lê-las de
um modo novo e elaborar uma ideia de seu entido original. Este livro teve uma
edição po terior com o útuJo las cartas auténticas de Pablo (Bilbao. 2012), mas
208 209
Paulo na origem do cristianismo
Bibliografia comentada
a má di lribuição do texto e a e ca a quaJidade da ed ição não compen am a mal algun dado . Ne le livro, conforme sua leitura avança, 0 argumento vai
melhoras introduzidas no conteúdo daqueJa primeira de 1996. perdendo força até que. no úllimo capítulo , o leitor crítico, que recorda outros
texto de Paulo não citado pela autora, a i te a uma perda de credibilidade do
• 2. John Dominic CRO AN e Jonalhan L. REED, En busca de Pablo: el argumento fundamental: que Paulo manteve a Torá para os judeus crentes em
Tmperio de Roma y el Reino de Dios frente a frente en una nueva vi ión de Je u e ofereceu a fé em Cristo para o gentio . ão ob Lante, o livro merece ser
la palabras y el mundo del apó tolde Je ús ( erbo Divino, E tella. 2006). lido e se pode aprender muito com ele.
[Tradução em português: Em busca de Paulo: como o ap6stolo de Jesus opôs
o Reino de Deus ao Império Romano. ão Paulo, Paulina , 2007). • 4. Richard 1. PER O, Pablo después de Pablo: como vieron los primeros
cristianos al ap6stol de los gentiles {Sígueme. alamanca. 2012).
E te livro. cujo original foi publicando em inglês em 2004, tem a peculia-
ridade de ser e crito por um exegeta {CRO AI ) e um arqueólogo (REED); esta Com um título mais eloquente do que o que foi dado ne ta tradução (The
convergência de diferentes metodologias e perspectiva , a im como de perguntas Making ofPaul: Constructions ofLheApostle in Early Christianity), o autor escreveu
diversa , faz do livro um bom exemplo das po ibilidade da interdi ciplinaridade. em 2010 um do melhores livro obre a '·con trução" da memória de Paulo no
Está muito bem escrito e e lê com facilidade e agilidade. Ao longo de ele capí- séculos subsequentes à ua morte, como vimos no capítulo oitavo. Ao longo de seis
tulos {mais prólogo e epàogo) e quinhenta páginas, o autores vão debulhando capítulos e algo mais de quatrocentas páginas, Pervo vai mo lrando, racional e
as po ibilidade de colocar o texto de Paulo (a cartas originais) no contexto convincentemente, as diferentes imagen que os crentes em Cri to foram fazendo
cultural em que na ceram, pondo em evidência seu caráter alternativo, sua de Paulo, tal como ficaram refletidas na literatura cristã do quatro primeiro sé-
novidade e sua coragem em muito a pecto . O capítulo cinco ("Deus, deusas e culos. O autor apresenta Paulo (e suas carta ) como pedra de Loque do nascimento
evangelho ")pode redundar e pecialmente útil para o leitor. uma vez que, a partir do cristiani mo (e do cânone), e vai mo lrando como e recon truiu ua memória
dos re to arqueológicos, apresentam-se a dimen ões e a ideologia do conceito no restante dos e crilos canônicos e no apócrifos, bem como na literatura apo -
de poder, e como e repre entava em público; ajuda também na compreen ão da tólica e patrístjca. Mesmo que alguma partes ejam mais áridas de ler, a leitura
relações exuais. O texto de Paulo, lido com este pano de fundo, iluminam-se do conjunto compen a.
com novos signi ficados.
• 5. Wayne A. MEEKS, los primeros cristianos urbanos: el mundo social del
• 3. Pan1ela EISENBAUM, Pablo no fue cristiano; el mensaje original de un apóstol Pablo (Sígueme, alamanca, 1988).
ap6stol mal entendido (Verbo Divino, Estella, 2014). Este livro, cujo original inglês é de 1983, converteu- e em um clá sico·
A autora, de tradição judaica, é profes ora de Origens do Cri tianismo na prova disso é que o autor publicou recentemente uma egunda edição. na qual não
universidade cri lã. Este livro é um representante {quase único em castelhano) acre centou senão um suplemento bibliográfico de seis páginas (2ª edição espanhola
da chamada' nova perspectiva radical" (como descrevemos no primeiro capítulo). de 2012). Foi um dos primeiros e melliores exercícios de exegese sócio-histórica
O livro tem catorze capítulo e cerca de quatrocentas páginas. É bem escrito e das cartas de Paulo, em que o autor utiliza o conhecimentos do contexto social do
se lê com facilidade. Boa conhecedora do tema que anal i a e do pano de fundo Império Romano urbano (extratos ociais, institujções, relações e dependências, va-
judaico, entre seus méritos e Lá o de ajudar a corrigir excessos na história da lores culturais ...) para apresentar o melhor cenário no qual compreender a estratégia
intepretação de Paulo, como o que dá título a seu livro e, principalmente, a evitar paulina de criação da ekklêsia. Nesse conte>..io social, apresenta de modo original e
as leituras anlis emitas que dele se fizeram com frequência. No entanto, como convincente o processo de formação das a embleias paulinas em estreita conexão
acontece reiteradamente, as posturas "radicais" tendem a ignorar ou interpretar com o modelos existentes, de tacando a função das práticas e crenças próprias

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Paulo na origem do cristianismo Bibliografia comentada

ne le proce so. Foi um do e ludo mais influentes para mo trar a importância de • 8. Margarel Y. MACDONALD. l as comunidades paulinas (Sígueme. a-
contextualizar corretamente o texto paulino a fim de evitar anacroni mo . lamanca. 1994).
E te livro contém a le e doutoral que a autora defendeu em 1986 em
• 6. Giuseppe BARBAGLIO, Pablo de Tarso J' los orígenes cristianos (Sígueme. Oxford (e publicou em 1988). ua originalidade re ide em apre enlar o corpus
Salamanca. 1989). paulino. de modo i Lemático, como um conjunto de e crilo pertencente a Lrê
Embora este livro lenha já trinta ano (original italiano de 1985), repre- geraçõe , tal como hoje e aceita geralmente. Para i o, a autora utiliza um mo-
enla muito bem a exege e italiana obre Paulo (da qual é também bom expoente delo sociológico de in Litucionalização que explica o proces o por que alraves a
um grupo que na ce e e desenvolve atravé das gerações ub equenle , e tu-
Romano Penna) e pode er coo iderado. como o livro comentado anteriormente.
dando quatro a pecto : ua atitude ante o mundo, ua estruturas de liderança.
um clá sico. Elaborado egundo a exege e hi tórico-crítica, o autor é um grande
ua forma rituais e ua crença . Com e te modelo, que Macdonald explica
conhecedor da literatura greco-romana e sabe interpretar Paulo com acuidade
no primeiro capítulo. a autora vai mo trando no trê capítulo restante como
e originalidade. Po to que a apresentação de conjunto de Paulo se situe mai na
cada uma da geraçõe de carta atribuídas a Paulo {originais, deuteropaulinas
per pectiva tradicional (da que falamos no primeiro capítulo), o resultado é de
e pa torai ) evoluíram em relação à ua atitude diante do mundo. da estr utura
qualidade. O autor va i repa ando todos os temas da biografia, da missão, da
de liderança, da forma rituai e da crença . Conquanto, à vezes, a leitura
criação de comunidade , e, em uma última parte, de qua e duzentas pági na , o
e mostre árida e difícil, o conjunto constitui uma das obras mais originais e
de envolvimento da memória de Paulo nas carta atribuídas a ele e no resto da
alvi sareiras do e tudo paulino de fin do éculo XX. Contribuiu enormemente
literatura cri tã. Foi um do melhores trabalho para pensar a importância de
para o crescente con en o que con idera a carta de Paulo pertencente a três
Paulo nas origens do cristianismo e o fenômeno das diferentes reconstruções que
gerações de crentes.
e fizeram depoi de ua morte.

• 9. James D. G. DUNN, El cristianismo en sus comienzos II. Comenzando


• 7. Jurgen BECKER. Pablo. El ap6stol de los paganos (Sfgueme, Salamanca, desde Jerusalén (2 vol .) (Verbo Divino, E tella, 2012).
1996).
E te livro é a segunda parte de um projeto grandio o ("El cri tiani mo en
Originalmente publicado em alemão, em 1989 e reeditado em 1992, é um sus comienzo ,.) que o autor começou em 2003 e do qual a terceira parle está
bom representante daquela a que chamamos no primeiro capítulo de 'leitura tra- prestes a er publicada. Busca apre entar a hi tória da origens do cristianismo
dicional ' de Paulo. Trata-se de um livro de claro estilo alemão, muito prolixo em durante os doi primeiro éculos, e e ta egunda parle, que agora comento
explicações e detalhes, no qual o autor mal cita outro estudioso. É uma obra de (publicada em espanhol em dois volumes), abarca o período do ano 30 ao ano
fnte e e de maturidade. Focalizado como exercício de exegese histórico-crítica, o 70 d.C. O livro está centrado na figura de Paulo, em sua missão e no nascimento
autor concentra-se em apresentar o desenvolvimento do pensamento de Paulo bem das primeira assembleia de crenle em Cri to fora da Pale tina. Aí está seu
conectado com a criação das as emhleias, e vai mostrando, passo a passo, o conteú- mérito e seu limite, porque, concentrando- e tanto na mis ão paulina, deixa pouca
do das cartas originais de acordo com a situação de sua composição. Embora seja margem para que o leitor se faça uma ideia da grande pluralidade de projetos e
uma tentativa (não convincente, em minha opinião) de síntese de teologia paulina, de missões desta primeira geração. Entretanto, para além de alguma limitação
o maior mérito é expor seu pensamento contextualizado em sua biografia. Trata-se como esta, a obra é um trabalho de maturidade de um do maiores peritos em
de um trabalho sério, muito bem escrito e detalhado, apesar de nem todas as quase Paulo vivos, na qual faz uma análi e histórica detalhada da expansão da missão
ei centas páginas compensarem de igual modo a leitura. paulina, sempre a parlir do ponto de vista histórico-crítico. Dunn foi um dos

2 12 2 13
Paulo na origem do aistianismo

iniciadores da '·nova perspectiva" que mencionamos no primeirn capítulo e e la


é ua obra mai ignificativa em ca telhano, embora em inglês suas obas ejam
qua e incontávei .

• 10. Richard A. HORSLEY e Neil A her ILBERMAN, La revoluci6n dei


reino: c6mo }esús y Pablo transformaron el Mundo Antigu-0 (Sal Terrae,
anlander, 2005).
O último livro que apresento é, também, fruto da colaboração de outro exegeta
(HORSLEY) com outro arqueólogo ou historiador da arqueologia (SILBERMAN). O
primeiro é o protagonista no desenvolvimento do argumento e o que mais deixa sua
marca no enfoque. Horsley disti nguiu-se por fazer histórica social do cristianismo
primitivo e, ultimamente, por incorporar a perspectiva pós-colonial, da qual falamos
no primeiro capítulo. este livro, ainda não se percebe com clareza a segunda,
me mo que o interesse por mostrar os mecanismos de resistência e sobrevivência
em um ambiente ho til atravesse todas as suas páginas. O livro é uma apresentação
do primeiro século do processo de nascimento do cristianismo a partir desta pers-
pectiva. Praticamente a segunda metade do livro é dedicada à missão de Paulo no
contexto do Império Romano, e destaca precisamente a inter-relação entre ambos
e a obrevivência da ekklêsia, mediante a continua adequação entre a tendência à
resistência e à submissão. Ainda que apresente algumas hipóteses que ele finde
por não provar e a análise teológica dos temas paulinos seja amiúde superficial, o
livro é bem escrito, lê- e com facilidade, e o conjunto resulta sugestivo.

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BIBLIOTECA PADRE VAZ.
FACULDADE JESUITA DE FILOSORA E TEOLOGIA C.FAJE
ESTE LIVRO DEVE SER DEVOLVIDO NA
ÚLTIMA DATA INDICADA

n '1 U3~ iQ1 '1


of 1 1 201;

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