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INTRODUÇÃQ

À TEOLOGIA
PATRÍSTICA

LUIGI PADOVESE

Edições Loyola
uem não sabe que um anão, ao estar nos om bros
de um gigante, tem um horizonte m ais vasto e
vê m ais longe do que o próprio gigante?”
Assim escrevia Jean Daillé, em 1632, co n clu in d o que,
obviam ente, “a m aior parte dos conhecim entos do anão
deve-se ao próprio gigante”. Era um a form a original de
justificar a necessidade dos estudos patrísticos, aqueles
gigantes sobre cujos om bros se desenvolveu toda a reflexão
teológica posterior.
O livro de Luigi Padovese, agora traduzido p o r O rlando S.
M oreira, quer ho n rar esses gigantes, destacando a grande
contribuição destes para a fé cristã, com relação à doutrina,
à vida eclesial e à m odalidade do anúncio m issionário.
O livro traz anexo um valioso quadro cronológico editado
pelo padre Gervais Dumeige, S.J.

Luigi Padovese, ofm cap, nasceu em Milão em 1947, é professor de His­


tória da Espiritualidade e leciona no Instituto de Espiritualidade do Pon­
tifício Ateneu Antonianum, do qual é diretor, e na Pontifícia Universidade
Gregoriana.
Entre suas últimas publicações, merecem destaque Turquia. I luoghi delle
origini cristiane, Casale, Piemme, 1978, Lo scandalo delia croce. La pole­
mica anticristiana nei prim i secoli, Bolonha, Dehoniane, 1988; Massimo
di Torino, Sermoni, Casale, Piemme, 1989; 1 sacerdoti dei prim i secoli,
Casale, Piemme, 1992.
INTRODUÇÃO ÀS DISCIPLINAS TEOLÓGICAS
Coleção organizada por Rino Fisichella e realizada pelos
professores da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma

1. Jared Wicks, Introdução ao método teológico, 4a ed.


2. Luigi Padovese, Introdução à teologia patrística, 3a ed.
3. Paul Gilbert, Introdução à teologia medieval
4 . Rino Fisichella, Introdução à teologia fundamental, 5a ed.
5. John O ’Donnell, Introdução à teologia dogmática, 2a ed.
6. Jacques Dupuis, Introdução à cristologia, 5a ed.
7. Salvador Pié-Ninot, Introdução à eclesiologia, 8a ed.
8. Luis F. Ladaria, Introdução à antropologia teológica, T ed.
9. Philip J. Rosato, Introdução à teologia dos sacramentos, 2a ed.
10. Klaus Demmer, Introdução à teologia moral, 2a ed.
11. Jos Vercruysse, Introdução à teologia ecumênica
12 . Mihály Szentmártoni, Introdução à teologia pastoral, 3a ed.
13. Charles André Bernard, Introdução à teologia espiritual, 3a ed.
14. Mareei Chappin, Introdução à história da Igreja
15. Gianfranco Ghirlanda, Introdução ao direito eclesial
LUIGI PADOVESE

INTRODUÇÃO
À TEOLOGIA
PATRÍSTICA

Tradução
Orlando Soares Moreira
Título original:
Introduzione alia teologia patrística
© 1992 - Edizioni PIEMME Spa, Casale Monferrato (AL), Itália
ISBN 88-384-1784-9

Preparação: Silvana Cobucci


Capa: Amanda Ap. Cabrera
Diagramação: Paula R. R. Matheus
Revisão: Maurício Balthazar Leal

Edições Loyola Jesuítas


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04216-000 São Paulo, SP
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pode ser reproduzida ou transmitida p o r qualquer forma e/ou
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gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados
sem permissão escrita da Editora.

ISBN 978-85-15-01855-0
3a edição: junho de 2015
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 1999
SUMARIO

Introdução.............................................................................................................. 9

P r im e ir a P a r t e
DISCIPLINA

I. NASCIM ENTO E DESENVOLVIM ENTOS


DA D ISCIPLINA PATRÍSTICA...............................................................17
Pai, Padres da Igreja: origem e desenvolvimento de um te r m o ............... 17
Patrologia............................................................................................................. 21
Transmissão dos textos patrísticos.................................................................. 24
Os Padres da Igreja hoje: o sentido de um serviço......................................34

S e g u n d a P arte
D O U TRIN A

II. OS PADRES E A C R IST O L O G IA .......................................................... 45


As primeiras heresias: ebionismo, marcionismo, gnosticism o...................45
Referências à cristologia de Inácio, Melitão, Ireneu e dos apologistas.....47
A heresia adocionista e o modalismo do século I I I .....................................50
A cristologia de Tertuliano e O ríg en es...........................................................51
O arianismo e o apolinarismo ..........................................................................53
A cristologia de Atanásio e dos antioquenos................................................. 54
Nestório e o Concílio de Efeso (431) ............................................................56
O monofisismo de Eutiques e o Concílio de Calcedônia (4 5 1 )............... 57
III. OS PADRES E A D O U TR IN A TR IN ITÁ R IA .................................... 61
A reflexão trinitária no século I I ...................................................................... 63
As primeiras heresias trinitárias: adocionismo, modalismo,
sabelianism o................................................................................................. 66
A reflexão trinitária de Tertuliano e O rígenes.............................................. 67
O Concílio de Nicéia ( 3 2 5 ) ............................................................................. 70
A doutrina trinitária de Mário Vitorino, Hilário e A gostinho................... 71
IV. OS PADRES E A P N E U M A T O L O G IA ................................................75
Breve apanhado d o u trin al................................................................................. 7 5
A catequese patrística sobre o Espírito Santo: algumas referências........ 80
V. OS PADRES E A ESCA TO LO G IA ...........................................................85
VI. OS PADRES E A E C L E SIO L O G IA ....................................................... 95
A eclesiologia nos Padres A postólicos............................................................. 95
A eclesiologia de Ire n e u ....................................................................................98
A eclesiologia de Tertuliano e C ipriano..........................................................99
A eclesiologia de O ríg en es............................................................................. 101
A eclesiologia de O ptato de Milevise A gostinho..................................... 103
VII. OS PADRES E A M A R IO L O G IA ...................................................... 107
Os elementos mariológicos da primeira pregação da Ig re ja ...................... 107
A verdadeira maternidade de Maria nos autores cristãosdo século II ... 109
Maria, mãe de D eu s...........................................................................................112
A virgindade de M a ria ......................................................................................112
A santidade de M a ria ....................................................................................... 1 1 3

T erceira P arte
VIDA

VIII. OS PADRES E A M O R A L ..................................................................119


O lugar “ordinário” dos ensinamentos m orais............................................121
As motivações básicas ou “intencionalidades” no ensinamento
moral dos P adres........................................................................................122
C onfronto entre ética natural e ética c ristã ................................................. 130
Considerações conclusivas .............................................................................. 134
IX. OS PADRES E A ESPIR ITU A LID A D E............................................ 137
Sinais de espiritualidade nos escritos dos Padres Apostólicos.................. 137
A experiência religiosa nos apologistas.........................................................140
A espiritualidade do m artírio nos primeiros séculos.................................. 142
Nascimento e primeiros desdobram entos do m onaquism o ..................... 145
Q uarta P a r te
A N Ú N C IO

X. OS PADRES E A IN C U L T U R A Ç Ã O ................................................. 151


Ambiente judaico e comunidade cristã primitiva...................................... 152
A diáspora judaica no mundo helenístico.................................................. 155
Helenismo e anúncio cristão.........................................................................158
Aspectos da inculturação cristã na antiga polis...........................................160
Considerações conclusivas ............................................................................ 164
XI. OS PADRES E O PROBLEMA DAS LÍN G U A S.............................167
Línguas e evangelização................................................................................. 167
O nascimento da língua cristã...................................................................... 176
XII. OS PADRES E A PRIMEIRA MISSÃO CRISTÃ .......................... 179
O judaísmo da era cristã ................................................................................180
A missão cristã no m undo helenista.............................................................182
Igreja subapostólica e m issão ........................................................................185
Os apologistas do século II e a evangelização do m undo “culto” ....... 187
IN D IC A Ç Õ ES BIBLIOGRÁFICAS
D e c a r á t e r g e r a l p a r a u m a p r i m e i r a a p r o x im a ç ã o d o s
ASSUNTOS TRATADOS ...................................................................................191

ÍN D IC E DE N O M E S ....................................................................................195
MAPA DOS PADRES DA IG R EJA ............................................................201
INTRODUÇÃO

N
O exórdio de sua História eclesiástica, Teodoreto de Ciro declara:
“Os pintores, ao representar na tela ou na parede as histórias pas­
sadas, não apenas alegram os olhos de quem as contempla, mas também
conservam viva por m uito tem po a memória dos eventos que já se foram.
Por sua vez, os que escrevem história e utilizam livros em lugar de telas,
adotando em substituição às tintas as cores do discurso, oferecem-nos
uma recordação m uito mais duradoura e firme da gesta passada. Sabemos
que a obra dos pintores acaba-se com o tem po. Por essa razão, decidi
deixar por escrito o que falta à História Eclesiástica. Considero injusto
permanecer indiferente à idéia de ver relegados ao esquecimento a glória
de fatos tão célebres e o fruto de suas proveitosas narrativas” 1.
A preocupação que Teodoreto transmite com essas palavras não é
a do esteta da história interessado em admirar seus diferentes aspectos
com o se admirasse um quadro.
A imagem do afresco ou da tela à qual recorre concentra-se antes
no conceito de memória: é preciso salvar a memória, impedir que des­
bote fazendo desaparecer tam bém a lição da história. Teodoreto reafirma
essa idéia no Prefácio de A história dos monges da Síria: “uma vez que
o tem po tanto danifica o corpo com a velhice e a m orte como, pelo
esquecimento, estende um véu sobre as ações dignas de louvor, ninguém
terá razão ao me recriminar por deixar por escrito a conduta de homens
que se enamoraram de Deus. Assim com o os que têm a missão de curar
os corpos preparam os remédios, combatem o mal e dão alívio aos que
sofrem, assim o em penho em escrever representa um salutar remédio,

1. TEODORETO, História eclesiástica 1 ,1 .


que combate o esquecim ento e alimenta a m emória”2. Para Teodoreto,
a indiferença em relação ao passado chega a ser uma imperdoável forma
de injustiça3. Se é a memória que garante a própria identidade, tanto
pessoal com o coletiva, a perda dessa memória com porta uma perda de
identidade.
Ao contrário, reapropriar-se do passado significa entender-se melhor,
ampliar os limites de escolha, realizando aquela catarse histórica que nos
livra de nosso inconsciente sociológico, pois bem sabemos que “o conhe­
cimento da causa passada modifica o efeito presente”4. Nessa perspectiva,
negar-se a dialogar com quem nos precedeu — numa falsa idéia de que o
recente, o atual, não pode esperar resposta do que já se foi no tempo —
representa uma perigosa regressão. Somos o fruto de nosso passado. Não
podemos esquecê-lo senão com prejuízo do próprio homem.
Com atenção ao ininterrupto transformismo técnico que se projeta
sempre no futuro, no novo, no inédito, no mais sofisticado, e contra o
individualismo das ciências, que isola o homem no presente, tornando-o
“unidimensional” — inteligente instrum ento despersonalizado em que a
memória está cada vez mais a serviço da técnica e é cada vez menos
memória sui — , recorrer à herança do passado e ouvi-lo é, portanto, uma
forma de preservar a identidade e a liberdade do homem.
Os acontecimentos destes últimos anos nos países do ex-bloco so­
cialista constituem uma confirmação de que, mais cedo ou mais tarde,
estará destinada à falência toda ideologia que deliberadamente romper
com o passado, renegando ou coarctando a memória histórica do h o ­
mem e os valores culturais a ela relacionados. A história nos confirma que
todas as tentativas de remover a memória de um grupo fracassam. N o
código genético de um povo, como no de cada indivíduo, estão depo­
sitadas as expressões culturais e religiosas que só aparentemente podem
ser removidas e, de qualquer forma, jamais de m odo definitivo.
Sob esse ponto de vista, a lição da história recente é um^ solicitação
a não ignorar a história passada, que, de certo m odo, representa uma
profecia de futuro. E é assim pelo postulado da “única realidade”, com
base no qual “todos os acontecimentos históricos são, por princípio,
análogos”5.

2. Id., História dos monges da Síria, prcfácio.


3. Cf. id., ibid.
4. H.-I. MARROU, La conoscenza storica, trad, do francês, Bolonha, II Muüno,
1969, p. 279.
5. Cf. M. HENGEL, La storiografiaprotocristiana, trad, do alemão, Brescia, Paideia,
1985, p. 168.
Foi por um acaso, não obstante significativo, que a Instrução da
Congregação para a Educação Católica (CEC) sobre o Estudo dos “Pa­
dres da Igreja” foi publicada em 10 de novem bro de 1989, um dia
depois da queda do m uro de Berlim. O convite que a Instrução faz de
voltar às fontes coincide cronologicamente com a destruição tão inespe­
rada quanto repentina daquela cortina de segregação, que não se m an­
teve porque ia contra a história. Esses últimos acontecimentos, de certo
m odo, confirmam o em penho de conhecim ento histórico solicitado pela
recente Instrução sobre os Padres. Pode-se ler esse docum ento com o um
convite a recuperar ou a levar na devida consideração o princípio e o
sentido da Tradição que, diferentem ente do tradicionalismo, não adora
o passado, mas o venera, “não oprime, mas incentiva a caminhar”6.
Trata-se de “uma força propulsora, não de um freio”7. E o retorno aos
Padres, “testemunhas privilegiadas da Tradição”8, não objetiva — como
lembra o m encionado docum ento da CEC — “ligar-se materialmente a
seus escritos, desprezando a tradição viva da Igreja e considerando a
Igreja pós-patrística até hoje como em progressiva decadência”9. Na certeza
de que a Tradição é fidelidade e não lamentação por um passado que se
julga melhor que o presente, “ser fiel à tradição não significa repetir e
transmitir literalmente teses filosóficas ou teológicas que se presume te­
rem sido subtraídas ao tem po e às contingências históricas, mas sim
imitar a atitude de íntima meditação e o corajoso esforço criativo de
nossos Pais na fé” 10. A recordação deles não tem por finalidade levar-nos
ao passado, mas trazer o passado ao presente. Tam pouco se deve
“instrumentalizar o dado histórico, atualizando-o de modo arbitrário,
sem levar em conta o legítimo progresso e a objetividade da situação” 11.
E o que observa com muita razão H. Crouzel: “Se o teólogo sacrifica a
própria inserção na tradição e sua fidelidade a ela, cedendo demasiada­
mente à mentalidade de nossa época, seu trabalho não é mais o de um
teólogo, nem sequer o de um cristão. Mas o outro perigo não é menos
grave. Se teima em conservar as formulações teológicas na forma do
passado, que a nós se tornou ininteligível, para não correr o risco ineren­
te a toda busca de novas formulações, sendo obrigado a proceder às
apalpadelas, com todas as ambigüidades e até perigos de erro que isso

6. H. HOLSTEIN, La Tradizione nella Chiesa, trad, do francês, Milão, 1968, p.


297.
7. Id., ibid., p. 302.
8. Instrução CEC, O estudo dos Padres da Igreja na formação sacerdotal, II, p. 18.
9. Ibid., III, 55.
10. H. U. VON BALTHASAR citado por H. HOLSTEIN, op. cit., p. 305.
11. Instrução CEC, cit., III, 55.
(
com porta, o teólogo com prom ete a própria tarefa de evangelizar, que é
a missão primeira da Igreja” 12. Excluídos os perigos provenientes de um
fundamentalismo acrítico ou preconceituoso, o recurso aos Padres se
m ostra de uma utilidade primordial, ainda que subordinada em relação
ao hic et nunc do cristão de hoje. Os autores cristãos dos primeiros
séculos nos fornecem exemplos de escuta e de reproposição atualizada da
palavra de Deus; oferecem-nos modelos de tradução cultural de sua
experiencia de fé. E se suas respostas aos problemas contingentes do
hom em podem parecer diferentes das nossas, em relação aos porquês
fundamentais que acompanham toda existência, a palavra dos Padres
m antém uma persistente atualidade, fruto de uma longa escuta da alma
hum ana semper idem. Basta pensar no eterno sucesso de um livro com o
as Confissões de Agostinho, escrito há cerca de dezesseis séculos.
N o entanto, os Padres continuam a ter um papel subsidiário, jamais
substitutivo. Eles “não nos dirão o que Deus espera agora de nós, não
nos eximirão da decisão que nos é exigida diante da Revelação, não nos
libertarão de nossa liberdade m uito pessoal”13. Aliás, não é essa a ajuda
que podem os esperar deles.
O vínculo com eles se justifica quando se tem um conceito cristão
de história, entendida com o âm bito no qual se deslinda e se desenrola
o fio da salvação. A revelação de Deus não tem caráter pontual, fechado,
mas, a partir da encarnação de Deus, ou melhor, em relação a ela,
acompanha as vicissitudes do hom em . A introdução de Cristo no rio da
história e do tem po m udou a qualidade da água. A história da Igreja é
a história do agir de Deus com o hom em , por meio dele, apesar dele, e
às vezes contra ele, mas jamais sem ele. O retorno à tradição patrística
tem , por isso, a finalidade de oferecer a verificação de um dado de fato,
assumido pela fé, mas que precisa de confirmação histórica.
Além disso, um motivo eclesiológico ulterior liga-nos aos Padres.
N o Credo, o artigo sobre “a com unhão dos santos” vem com o uma
conseqüência e um esclarecimento do anterior: “creio na Igreja una,
santa, católica” . Ora, essa Igreja indefectível, ou melhor, indefectível
enquanto constitui o nós dos cristãos, é solidariedade, troca, é ambiente
vital onde fluem e circulam as experiências, as riquezas e até as limitações

12. H. CROUZEL, “La patrologia c il rinnovamcnto degli studi patristici”, in R.


VANDER G UCHT e H. VORGRIMLER (orgs.), Bilancio delia teologia del XXsecolo, III,
Roma, Città Nuova, 1972, p. 565.
13. A. BENOIT, A ttualità dei Padri della Chiesa, trad, do franccs, Bolonha, II
Mulino, 1970, p. 79.
de seus membros. Apropriarmo-nos de tudo isso, inclusive por meio do
conhecim ento do passado, significa encarar com seriedade a communio
sanctorum, mas, em substância, é uma necessidade de ser aquilo em que
afirmamos crer: “Igreja una, santa, católica e apostólica” .
N o tratado Sur Pemploy des Saincts (sic) Pères, publicado em Gene­
bra, em 1632, o autor, Jean Daillè, recorria à seguinte comparação para
justificar a consulta aos Padres: “Quem não sabe que um anão, ao estar
nos om bros de um gigante, tem um horizonte mais vasto e vê mais longe
do que o próprio gigante? Ficaria coberto de ridículo quem concluísse
que o que o anão descobre não é real, sob o pretexto de que o gigante
não o tinha visto! E não seria mais sábio quem acusasse o anão de
presunção, sob o pretexto de que ele relata coisas das quais o gigante
nada dizia, uma vez que se deve ao próprio gigante a maior parte dos
conhecimentos do anão!” Uma comparação simples, mas expressiva, e ao
mesmo tem po um convite a subir nos om bros desse gigante, mais ainda,
um convite implícito a fazer dele um amigo e a amá-lo, uma vez que,
com o nos lembra Agostinho, “nem o nisi per amicitiam cognoscitur”14.

14. Sobre 83 questões diversas, 71,5.


rm m a ,

D I™
NASCIMENTO E DESENVOLVIMENTOS
DA DISCIPLINA PATRÍSTICA

Pai, Padres da Igreja: origem e desenvolvimento de um termo

palavra “p ad re/p ai” * (do latim pater, derivada do sânscrito pitar)


A encontrou diversos âmbitos de aplicação. Na Bíblia, o term o aparece
referido a Deus e exprime temor, am or e confiança no “Ser supremo” .
Em sentido natural, indica quem gerou um filho e, mais amplamente, os
antepassados segundo a carne até Adão (Sb 10,1: “Adão, o pai do mundo,
o primeiro hom em formado por Deus” ). N o judaísmo, é atribuído aos
antigos beneficiários e testemunhas das promessas e da aliança sinaítica
de Deus (o Deus de nossos pais), a começar por Abraão.
O vocábulo “pai” também é utilizado em sentido metafórico, por
exemplo, em relação ao autor de alguma coisa (Jó 38,28), ao iniciador de
certo m odo de vida (Gn 4,20-21), a quem faz o papel de conselheiro e
de m estre1 e a quem cuida paternalmente de um outro, como no caso de
Paulo, que, ao pregar o Evangelho, se torna pai de todos os que
evangelizara (“ ...porque, ainda que tenhais dez mil pedagogos em Cristo,

*Em várias línguas, é a mesma para o significado de padre e de pai: pater em latim,
padre em italiano e em espanhol, père em francês, father em inglês. Em português há hoje
distinção nítida entre padre e pai, mas o sentido original da palavra é o de pai (até não
muitos anos atrás dizíamos “padre nosso que estais no céu...”). Referindo-nos aos Padres
da Igreja, usaremos o termo padre ou eventualmente o termo pai, dependendo do contex­
to, mas sempre lembrados do sentido original da palavra. [N. do T.]
1. O sentido de “pai” como mestre e guia dotado de autoridade está certament
subentendido nas duras expressões de Jesus destinadas aos fariseus e mestres da lei. “Mas vós
não vos deixeis chamar de ‘mestre’... Nem chameis ‘pai’ a ninguém na terra porque um só
é vosso Pai, aquele que está nos céus. Nem vos façais chamar ‘doutores’...” (Mt 23,8-10).
não teríeis muitos pais, pois quem vos gerou em Cristo pelo Evangelho
fui eu”, IC o r 4,14-15). Em lT m 5,1 o term o é atribuído aos anciãos.
O fato de considerar a iniciação e a instrução na fé uma real pater­
nidade espiritual levou a atribuir o título de “p ad re/p ai” aos bispos,
como já se fizera anteriorm ente com os apóstolos (lC lem 62,2).
Na época subapostólica, a aproximação entre ensino e paternidade
encontra-se no M artyrium Polycarpi 12,2, onde aparece pela primeira
vez o term o “p ad re/p ai” em referência a Policarpo de Esmirna (“Eis o
doutor da Ásia, o pai dos cristãos” ). Por sua vez, Ireneu esclarece que
“o que foi instruído por um outro pela palavra se diz filho de quem o
instruiu, sendo aquele chamado seu pai” ( Contra as heresias IV, 41,2).
Em 177, o term o reaparece na carta dos cristãos de Lião a Eleutério,
bispo de Roma (Eus. H E , V 4,2). Sob a forma de “papa” * é usual na
titulação de algumas cartas endereçadas a Cipriano2. O fato de estar
presente muitas vezes nos cabeçalhos exprime honra e respeito, mas é
utilizado em outras partes com o mesmo caráter de deferência3. A partir
do século IV, o uso do term o se estendeu a todos os que, mesmo não
sendo bispos, eram considerados representantes autorizados da tradição
eclesiástica. Em seguida, foi aplicado também aos iniciadores e legislado­
res da vida monástica e aos ascetas. N o plural, passou a designar os bispos
reunidos em concílio, dotados de autoridade na transmissão e no escla­
recimento da fé4. Assim são identificados os cerca de trezentos bispos
presentes no Concílio de Nicéia. A partir daí, nas controvérsias teológi­
cas, a autoridade dos Padres conciliares e de cada “ bispo” dotado de
autoridade teológica constituirá uma referência constante. A ortodoxia
ou a heresia de uma doutrina será avaliada de acordo com seu ensinamento.
Na carta que Capréolo de C artago endereçou aos bispos reunidos no
Concílio de Efeso (431), lemos: “Para exemplo da posteridade, é preciso
que se preserve o que já foi definido pelos Padres. Com efeito, quem
deseja perpetuar o que foi decretado sobre o sistema católico deve fun­
damentar sua opinião não na própria autoridade, mas no voto dos Anciãos”

*Do grego pápas = pai. [N. do T.]


2. Ao que parece, tal título costumava ser atribuído aos bispos metropolitas nesse
período. Para Cipriano, cf. as Cartas 8, 23, 30, 31.
3. PRUDENCIO, no hino XI, 128 do Peristephanon sobre Hipólito mártir, dirigin­
do-se ao bispo Valeriano, o chama de “optime papa”. GAUDÊNCIO DE BRESCIA, no
Sermão sobre a vida e morte do beato bispo Filástrio, o chama de “bem-aventurado pai
nosso Filástrio”. Posteriormente o termo será reservado apenas ao bispo de Roma.
4. O costume de chamar de “Padres” os bispos reunidos em concílio é retrospec­
tivamente ampliado aos sínodos anteriores ao de Nicéia. CIRILO DE ALEXANDRIA fala
dos “padres ortodoxos, dos quais há 160 anos foi excomungado Paulo de Samósata” (E.
SCHWARTZ, ACO I, I, lOls.).
(D ocum ento 61: Schwartz I, 2,60). O conceito de “Padre”, seja em
sentido particular, seja em sentido coletivo, que se imporá na Igreja dos
primeiros séculos refere-se, pois, àqueles que, no nível da fé ou da dis­
ciplina, cunharam a vida da com unidade católica. Quando, no Commo-
nitorium {Memorial, c. 435), o m onge Vicente de Lérins ( | antes de
450) se pergunta “se existe um m étodo seguro universalmente válido e,
por assim dizer, constante, que me permita distinguir a verdadeira fé
católica das mentiras da heresia” ( Comm. 2), a resposta, positiva, será
alicerçada em três “notas” fundamentais: “ ... perseverar em tudo aquilo
que foi crido por toda parte, sempre, por todos’’’ (Comm. 2). Com base
nesse princípio, o recurso aos Padres é fundamental. Mas, nesse caso, será
preciso esclarecer quem deverá ser considerado “Padre” , e Vicente dirá
que “Padres” “são aqueles que constantem ente ensinaram e sempre
permaneceram na fé; que morreram fiéis a Cristo ou que tiveram a sorte
de m orrer por ele” (Comm. 28). N o Comm. 3, Vicente os distingue por
antiguidade, ortodoxia da doutrina, santidade de vida e aprovação por
parte da Igreja na qual viveram e morreram.
A perspectiva pela qual são vistos já nos primeiros séculos é predo­
m inantem ente a dogmática e doutrinal, como testemunham as Atas do
Concílio de Éfeso (431), às quais estão anexados trechos de textos dos
“santíssimos e devotíssimos Padres e Bispos, bem com o de diversos
m ártires” (doc. 54-59, in Schwartz 1,2). Agostinho também recorrerá
muitas vezes ao testem unho doutrinal dos Padres, sobretudo por ocasião
da disputa com os donatistas e com os pelagianos (cf. a respeito Obra
incompleta contra, Juliano, I, 7, 34, 59; IV, 72 etc.).
Nessa linha de evocação, mas também de fixação e de delimitação da
categoria “Padre” , desempenhará notável papel o decreto De libris
recipiendis et non recipiendis, prom ulgado no início do século VI e falsa­
m ente atribuído ao papa Gelásio I. Além da lista dos livros canônicos e
dos concílios ecumênicos, o decreto apresenta também a relação dos
autores aceitos na Igreja católica, ou a primeira lista dos que devem ser
reconhecidos como “Padres” . Esse docum ento espúrio exercerá notável
influência na Idade Média, sobretudo em relação à transmissão dos textos.
A definição de “Padre” dada por Vicente de Lérins, que se manteve
“clássica” durante séculos (ortodoxia, santidade, aprovação da Igreja,
antiguidade), presta-se a diversas críticas. Se se considera que o conceito
de “ortodoxia” foi elaborado num a época posterior àquela em que vive­
ram muitos Padres, é anti-histórico e anacrônico aplicar a eles uma nor­
ma ou “cânon” im posto somente mais tarde. Sobre esse tema, é famoso
o exemplo de Orígenes, que não mereceu o título de “Padre” porque
alguns de seus defensores e adversários, ignorando o caráter dialético de
(
sua “teologia de pesquisa” , isolaram, assumiram e absolutizaram certos
aspectos de seu pensam ento, ou ainda porque critérios de ortodoxia que
só se firmaram mais tarde foram aplicados ao pensamento do alexandrino.
Não menos anacrônico é o critério de aprovação por parte da Igre­
ja, uma vez que impõe estruturas posteriores nem sempre homogêneas
a um determ inado período. Com efeito, fora do m undo greco-latino
houve Padres sírios, persas, coptas e armênios quase ignorados. A nota
da “antiguidade”, enfim, mostra-se não menos discutível que as prece­
dentes: de fato, com o avaliar e a partir de quando aplicar essa norm a, que
é histórica e não teológica? O caráter de opinião das notas fixadas por
Vicente de Lérins, juntam ente com o critério introduzido pela Reforma
protestante de considerar os Padres a partir de sua atenção às Escrituras
e conformidade com elas, levou a rever a definição que lhes diz respeito.
Entendem-se assim as diversas tentativas de dotar de novas bases a cate­
goria “Padres” . Assim, F. Overbeck ( Über die Anfänge der patriotischen
L iteratur, Hist. Zeitschr. 48 [1882] 418) passou a considerá-los sob o
ponto de vista “histórico-literário” , mais atento à história dos estilos e
das formas. A. M andouze, no Terceiro Congresso Internacional de Es­
tudos Patrísticos de Oxford (1959), redefinirá os “Padres” com o “os
autores dos primeiros séculos cristãos universalmente invocados como
testemunhas diretas ou indiretas da doutrina cristã ou da vida da Igreja
num a determ inada época” . O estudioso protestante A. Benoit aplica a
categoria de “Padres” “aos exegetas do período no qual a Igreja estava
unida, ou seja, das origens ao cisma do O riente..., testemunhas da com ­
preensão que os primeiros séculos cristãos tiveram da Sagrada Escritu­
ra”5. A perspectiva bíblica aqui referida pode dar a impressão de obscu­
recer o papel dos Padres, considerados “testemunhas privilegiadas da
Tradição” (Instrução sobre o estudo dos Padres da Igreja na formação
sacerdotal— Congregação para a Educação Católica II, 18). Essa dificul­
dade será superada quando as duas fontes da Revelação, Escritura e
Tradição, deixarem de ser entendidas em sentido restrito e dualista. Nesse
caso, o conceito de exegese deverá com preender um m odo não apenas
de ler e de interpretar a Escritura, mas também de pregá-la e de tomá-
-la com o base para formular a doutrina e a moral cristãs. Por outro lado,
o sentido de Tradição não deverá ser visto no acréscimo de “novas
verdades” às que são ensinadas pela Escritura, mas no oferecimento da
chave de leitura e até no ser o princípio de compreensão, o “clima
eclesial” em que ler a Escritura. Com esses esclarecimentos, a definição

5. In A ttualità dei Padri delia Chiesa — La patrística come liberazione dalle ipotech
delia falsa teoloßia, pp. 70-71.
dos “Padres” com o os exegetas da Igreja ainda unida ou como testem u­
nhas privilegiadas da Tradição distingue-se somente pelo acento num ou
noutro aspecto. Em ambos os casos, preserva-se a centralidade da “pa­
lavra de Deus”, que os primeiros autores cristãos assumiram para “ava­
liar” a vida cristã, mas que tam bém procuraram “inculturar” e desenvol­
ver na aplicação às mais diversas situações, inaugurando assim a “ciência
teológica” (cf. Instrução II, 2).

Patrologia

O term o, originário da palavra “Pai” , é utilizado pela primeira vez


na obra póstum a do teólogo protestante alemão J. Gerhard ( j 1637)
(Patrologia seu de prim itivae ecclesiae christianae doctorum vita ac lucu-
brationibus opus postummum, Jena 1653). Trata-se de um vocábulo sur­
gido num contexto apologético e indica a “procura nos Padres da Igreja
de testem unhos a favor das crenças contestadas pelos Reformadores e
como resposta ‘ao apelo à antiguidade’ por parte dos próprios Refor­
m adores”6.
Convencionalmente, o âmbito da patrologia chega a Gregório Magno
( t 604) ou a Isidoro de Sevilha ( | 636), para os autores latinos, e a João
Damasceno ( | 749), para os gregos.
O interesse histórico-literário pelos Padres, próprio da patrologia
que a recente Instrução sobre o estudo dos Padres define como a disciplina
“que tem por objeto a vida e os escritos dos Padres” e que “se move
mais no nível da pesquisa histórica e da informação biográfica e literária”
(III, 50), nasce já na Igreja antiga e corresponde à necessidade tanto de
mostrar a antiguidade e a continuidade da fé cristã como de conservar
a lembrança dos escritores cristãos ilustres.
M ovido por essa urgência, Eusébio de Cesaréia, inaugurando um
novo gênero historiográfico marcado pela apresentação de documentos
originais, deixa-nos, em sua História eclesiástica, numerosos testemunhos
sobre a vida e as obras de autores cristãos. Será, todavia, Jerônim o que,
com a intenção de manifestar a m aturidade cristã em âmbito literário e
aludindo à obra de Suetônio De viris illustribus, escreverá o seu De viris
illustribus (393), com pendiando em 135 capítulos dados biográficos e
uma relação das obras produzidas pelos escritores cristãos ali lembrados.

6. Cf. F. BOLGIANI, “Patrologia e storia della Chiesa antica”, in Problemi di stor


delia Chiesa — La Chiesa antica secc. II-IV, Milão, Vita e Pensiero, 1970, p. 288.
(
O critério de Jeronim o para inseri-los em sua relação é literário-bíblico.
O u seja, trata-se de “escritores da Igreja... que deixaram com o memória
alguma coisa a respeito das Sagradas Escrituras” (Praefatio 1). Esse es­
clarecimento explica por que a obra de Jerônim o inclui também escrito­
res considerados heréticos (por exemplo, Tertuliano, Taciano, Novacia-
n o ...). Depois dele, outros continuarão seu projeto: Genádio de M ar­
selha ( t início séc. VI), Isidoro de Sevilha ( | 636), Ildefonso de Toledo
( t c. 667).

Evidentemente, a perspectiva histórico-literária de aproximação dos


Padres não é a única, uma vez que neles devem ser considerados também
os primeiros exegetas e pregadores da Escritura, os primeiros teólogos e
pensadores cristãos.

Os diversos pontos de vista a partir dos quais podem ser conside­


rados explicam a distinção funcional introduzida a seguir entre patrologia
e patrística, correspondente aos diferentes interesses com que se analisam
os Padres e suas obras. Trata-se de uma distinção que nos conteúdos —
não na terminologia, de cunho relativamente recente — já encontra
correspondência na Igreja antiga, na qual três obras, a De viris illustribus
de Jerônim o, a De doctrina chnstiana de Agostinho e a Commonitorium
de Vicente de Lérins, constituíram-se respectivamente como três aproxi­
mações diferentes dos mesmos autores: uma histórica, uma literária e
uma dogm ático-doutrinal.
Essa tríplice divisão pouco a pouco se perdeu. Assim, a patrística,
no m undo protestante, tornou-se “história dos dogm as” e, tanto no
âm bito católico com o no protestante, alguns identificaram a patrologia
com a história da literatura cristã (Harnack) ou com a “história da lite­
ratura eclesiástica” (Bardenhewer), ou ainda com a “história da literatura
cristã antiga” (Lazzati, Simonetti).
Na origem da superação do conceito de patrologia entendida em
sentido estrito e de sua identificação com a “história da literatura cristã
antiga” estiveram duas considerações:
1. por causa de sua origem “apologética”, a patrologia, tanto no âmbito
católico com o no protestante, perdeu o estatuto de disciplina autô­
nom a e passou á ser considerada subalterna da teologia e até em
função dela e sua subsidiária;
2. pela mesma razão, o estudo dos Padres limitou-se aos autores or­
todoxos por excelência, sem considerar os autores heréticos. É cla­
ro, porém , que, “se desejamos que esse estudo seja cientificamente
válido, não podemos mais fazer distinção entre ortodoxia e here­
sia..., não compreenderíamos nada da cultura cristã dos séculos II
e III se não a vinculássemos ao gnosticismo, pois os gnósticos
foram os maîtres à penser do cristianismo da época, seja sob o
aspecto teológico, seja sob o aspecto exegético”7.
A exatidão dessas observações levou a ressaltar a autonomia da
patrologia com o ciência histórica e refletiu-se também nas suas definições
mais recentes (por exemplo, o estudo da literatura cristã antiga sem
exclusão de autores e, portanto, estendida a todos os documentos do
cristianismo primitivo que chegaram até nós, sejam eles assinados, anô­
nimos ou pseudo-epigráficos — Crouzel). O problema ainda em debate
diz respeito ao caráter “teológico” dessa disciplina.
Considerando-a dessa forma, garante-se realmente sua autonomia
científica ou, ao contrário, volta-se a correr o risco de fazer dela uma
ancilla theologiae com simples função de apoio?8
O docum ento sobre o Estudo dos Padres confirmou “a autonomia
da patrística-patrologia, como disciplina à parte” (III, 50), com um método
próprio e aberto às contribuições interdisciplinares. Por outro lado, o
docum ento evidencia o caráter teológico dessa ciência que nasce da fé e
está a seu serviço.
A patrologia permite duas diferentes abordagens, que ainda não se
ajustaram:
— um a delas a considera “a ciência que estuda historicamente a antiga
literatura cristã e que não faz parte da teologia, independente dos
serviços que ela pode prestar a esta e dos conhecimentos teológicos
que são indispensáveis ao estudioso da patrologia”9;

7. M. SIMONETTI, “Intervista al prof. M. Simonetti”, por E. DAL COVOLO, R T


2 (1991), p. 142. A partir das observações expostas, Simonetti julga que a distinção entre
patrística, patrologia e literatura cristã antiga deve ser considerada superada, ibid., p. 141.
8. Será que a distinção presente no Documento entre patrística, que se ocupa do
pensamento teológico dos Padres, patrologia, que estuda a vida deles, e os escritos e a
literatura cristã antiga, que estudam os aspectos estilísticos e filológicos dos escritores cris­
tãos antigos, pode ser tomada em sentido tão nítido, considerando isoladamente os diversos
pontos de vista? Como ressalta E. DAL COVOLO, “fica por perguntar se na aproximação
dos escritos patrísticos ‘os aspectos estilísticos e filológicos’ podem ser separados do estudo
histórico-literário e da especulação sobre os conteúdos doutrinais”, “Fra letteratura cristiana
antica e teologia: lo studio dei Padri”, R T 2 (1991), p. 48.
9. H. CROUZEL, “La patrologia e il rinnovamento degli studi patristici”, in R.
VANDER GUCHT e H. VORGRIMLER (orgs.), Bilancio delia teologia dei X X seeolo, III,
Roma, Città Nuova, 1970, p. 544.
!
— a outra, em bora reconheça ter a patrologia o caráter de ciência
histórica, prefere defini-la, mediante conceitos “teológicos” , com o
a “disciplina que estuda ‘os Padres da Igreja’, ou seja, os escritores
eclesiásticos da Antiguidade cristã que a Igreja considera e invoca
com o seus Pais, testemunhas legítimas e avalistas autorizados da
Tradição, mestres da encarnação do Evangelho nas culturas de seu
tem po e ‘da teologia da Igreja não-separada’” 10.

Transmissão dos textos patrísticos

Em IC o r 1,26 Paulo nos oferece um “perfil” social da comunidade


cristã primitiva, na qual “não há muitos sábios segundo a carne, nem
muitos poderosos, nem muitos nobres” . Essa constatação não deixou de
ter reflexos concretos na vida dos primeiros núcleos cristãos e até encon­
tra confirmação na própria escolha do material de escrita com o qual são
fixadas e transmitidas as primeiras expressões escritas da “nova” mensa­
gem cristã. Com efeito, “não foi o público do rolo e das bibliotecas que
deu vida às primeiras comunidades cristãs, mas, sabemos, foi a gente
simples, sem nenhum papel político, de poucos recursos econômicos e de
modesta formação intelectual. Naquela plcbs, um livro de verdade, o rolo,
era coisa raríssima, mas certamente era corrente o livro não-oficial, ba­
rato, o códice” 11.
A Antiguidade conheceu duas formas livrescas diferentes: o rolo e
o códice, feitos de papiro ou de pergaminho. Este, originariamente
chamado de “m em brana” (cf. 2Tm 4,13), era pele tratada de ovelha,
cabra ou novilho. O papiro provinha de uma planta palustre cujo miolo,
cortado em tiras, era justaposto até formar uma rede. Juntando-se diver­
sas folhas, constituía-se um rolo em forma de cilindro, com aproxima­
dam ente 2,90m de com prim ento. Na época imperial surgiu o códice,

10. Assim sc expressa C. CORSATO, “L’insegnamento dei Padri delia Chiesa


nell’ambito delle discipline teologiche: una memoria feconda di futuro”, in Seminarium 3
(1990), pp. 461-462. Além disso, não faltam fórmulas de “compromisso” como a oferecida
por J. QUASTEN, para quem “A ‘patrologia’ é a parte da história da literatura cristã que
se refere aos autores da Antiguidade que trataram de teologia. Ela abraça ao mesmo tempo
escritores ortodoxos e heréticos: aplica-se, porém, de preferência aos que representam a
doutrina eclesiástica tradicional, os Padres e os Doutores da Igreja. Pode-se, portanto,
definir a Patrologia como a ciência dos Padres da Igreja”, in Patrologia I, trad. do inglês,
Casale Monferrato, Marietti, 1967, p. 1.
11. G. CAVALLO, Libri, editori e pubblico nel mondo antico — Guida storica e
critica, Bari, Laterza, 1977, p. 84.
um conjunto “quaterno” — quatro folhas duplas presas a um mesmo
dorso12.
O papiro, material relativamente raro e caro, era reservado à elite
culta e abastada, com óbvias conseqüências para a cultura, que se tornava
apanágio de poucos. Em comparação com o rolo, o códice não passava de
um caderno barato para rascunho e anotações. Quais as implicações e o
significado da passagem do rolo para o códice, que se firmou no século IV?
Já nos referimos à utilização do códice por parte dos cristãos, con­
dicionada por vários elementos: a pobreza das primeiras comunidades, o
baixo custo, a facilidade de encontrar os textos13, a forma mais fácil para
as celebrações litúrgicas e talvez o antagonism o com relação às com uni­
dades judaicas que utilizavam o rolo14, além de sua maior capacidade de
conteúdo que permitia reunir obras volumosas como a Escritura. O códice
pergamináceo, mais resistente do que o rolo de papiro, adaptava-se bem
à literatura cristã, que desde o início teve um caráter popular e funcional.
Em antagonismo com as letras, que na época imperial tinham assumido
um caráter de obrigação e de exercício, as expressões literárias e artísticas
assumiram na comunidade cristã um caráter funcional, ligado às neces­
sidades concretas dessa comunidade. “A ampla acessibilidade de tais códices
e, em suma, o seu caráter popular foram direta ou indiretam ente deter­
minados por sua funcionalidade às expressões da cultura cristã.15” De
fato, até o final do século III os códices mantiveram o seu caráter de
livros de qualidade inferior das camadas médias e baixas16. Foi por meio
da afirmação do cristianismo e da camada média a ele ligada que o códice
adquiriu dignidade e se emancipou na manufatura. Assim, o que fora um
humilde vetor da mensagem cristã entre as .camadas mais baixas tornou-
-se, no século IV, o instrum ento privilegiado de comunicação da religião
que deixara de ser uma “religião vulgar” .

12. Cf. C. GIARRATANO, “Linguistica e filologia”, in W .AA., Introduzione alio


studio delia cultura classica, Milão, Marzorati, 1984, pp. 673-676.
13. Cf. L. KOEP, Buch /: RAC 2, 683.
14. A propósito da transmissão dos textos, M. HENGEL, depois de ter observado
que “até os limites concernentes à extensão dos quatro Evangelhos ou dos Atos dos
Apóstolos explicam-se, afinal, pela vontade consciente de não ir além de um rolo de
papiro”, acrescenta que “as comunidades cristãs primitivas eram pobres e não dispunham
de grandes bibliotecas... e o difícil manuseio do rolo no uso litúrgico e a atitude de clara
antítese em relação à comunidade-mãe judaica levaram depois com grande rapidez, talvez
já no início do século II d.C., a passar do rolo ao códice, que... era muito mais prático
do que o tradicional rolo de papiro”, La storiografia protocristiana, trad. do alemão,
Brescia, Paideia, 1985, p. 23.
15. M. SIMONETTI, Cristianesimo antico e cultura jjreca, Roma, Borla, 1983, p. 11.
16. Cf. G. CAVALLO, op. cit., pp. 89, 108.
(
Ao tema do material utilizado (códice pergamináceo) liga-se o p ro ­
blema da transcrição dos textos. Quem realizou tal transcrição? Com
base em que critérios? Até a segunda m etade do século II, o pequeno
grupo cristão passou despercebido ou despertou pouco interesse. Visto
com o uma corrente “subcultural” , só encontrou escassas referências na
literatura pagã da época. C oncorreu para mantê-lo nesse estado sua cren­
ça paradoxal no “Sofista crucificado”, com o Luciano de Samósata define
Cristo17, mas tam bém a linguagem singela e incompreensível de seus
escritos, ligada à “novidade” do anúncio18, e, não em último lugar, a
pouca circulação destes, vinculada ao problema da transmissão dos tex­
tos. Em bora as oficinas livreiras já estivessem plenamente desenvolvidas
no primeiro século da era cristã, a primeira comunidade cristã não pôde
servir-se delas. E não o fez ora pelo ônus econômico, pelo tem or de
olhares indiscretos e “pela disciplina do arcano” — pelo menos a partir
de determ inada época19 — , ora pelo risco de averiguações e suspeitas por
parte da polícia imperial20.
O meio normal de comunicação dos escritos cristãos foi, por isso,
a transcrição particular, evidentemente com um nível técnico quase sem­
pre bastante baixo, de amadores21.
Esse fato da transcrição particular, determinada por interesses par­
ticulares, teve óbvias conseqüências. Era natural que, na reprodução dos
textos, se recorresse em muitos casos à abreviação, à síntese, aos extratos.
Esse fenomeno, segundo M. Hengel, já se encontra nos Evangelhos. “A

17. Cf. Sobre a morte de Peregrino, 11. Igual acusação dc “sofista” encontramos em
JUSTINO, I Apologia, 14. Sobre essa e outras acusações contra a fé cristã nos primeiros
séculos, remeto a meu estudo: L. PADOVESE, Lo scandalo delia croce — La polemica
anticristiana nei primi secoli, Roma, Dehoniane, 1988.
18. Como observa G. LAZZATI, para os primeiros escritos cristãos, a língua grega,
meio de expressão, “representa apenas uma passagem obrigatória e dc modo algum assume
o espírito grego... O cristão sente a verdade e a nobreza dc ser ‘nova criatura’ c tudo nele
se tinge dessa novidade, até a literatura. A tal ponto que quem passa da literatura grega à
a cristã fica abalado, chegando a desprezar esta última como fruto de iletrados e de igno­
rantes, que não pode se equiparar à maturidade de um pensamento e de uma requintada
beleza que séculos de sofrida experiência contam a favor deles”, “Problemi e orientamenti
di letteratura cristiana antica greca”, in Introduzione alio studio delia cultura classica, Milão,
Marzorati, 1988, pp. 592-593.
19. Como observa O. PERLER não existem até agora testemunhos de uma “dis­
ciplina do arcano” para os dois primeiros séculos cristãos. A partir do momento em que
se impõe, porém, ela considera também os livros que continham os “mistérios”. Cf.
“Arkandisziplin”, R A C I, pp. 667-676.
20. Cf. J. DE GHELLINCK, Patristique et moyen age II, Bruxelas-Paris, 1947 pp
188.
21. Cf. G. CAVALLO, op. cit., pp. 107-108.
necessidade de limitar-se, no que dizia respeito ao espaço, a um só rolo
foi provavelmente a causa fundamental que levou tanto Mateus como
Lucas a abreviar, às vezes de m odo considerável, o texto de Marcos que
lhes servia de modelo.'”22 Assim, a transcrição e a transmissão dos escritos
cristãos parece estar ligada a motivos de ordem prática, econômica ou
também à variedade dos interesses teológicos da comunidade. Muitos
textos cristãos se perderam , inclusive devido aos cortes feitos pelos
compendiadores ou compiladores de extratos, mas “a maior parte se
perdeu inteiramente, seja porque o estilo e conteúdo não agradavam
mais às gerações seguintes, seja por causa de numerosos eventos fortuitos
ocorridos no decurso da história demasiado longa da transmissão dos
textos”23. As conseqüências desse estado de coisas são evidentes, uma vez
que a fragmentação ou pelo menos o caráter incompleto dos textos da
literatura cristã dos primeiros séculos pode levar, entre outras coisas, a
uma representação simplificada do passado24. U m exemplo disso é a lite­
ratura “apologética” do século II. Se observarmos os chamados “Padres
apologistas” no contexto de sua época e com base no que Eusébio fala
deles na História eclesiástica, perceberemos que se trata de personagens
que se interessaram não só pela apologética. Todavia, por diversas vicis­
situdes, eles se fixaram nessa imagem. De m odo análogo, seu período, de
130-140 a 180-190, foi considerado o período apologético da Igreja
cristã. Mas, na realidade, “essa definição estereotipada que terminou
condicionando a maneira de ver o desenvolvimento de sua doutrina e
atividade é, no mínimo, inadequada”25. Esse exemplo de simplificação
histórica atesta a importância do estudo sobre a transcrição e a transmis­
são dos textos da Igreja antiga para um enfoque mais correto do proble­
ma historiográfico26.
Levando em consideração essas observações, podem os lançar um
rápido olhar sobre as modalidades de transmissão dos primeiros textos
cristãos. Um fato é evidente: o cristianismo primitivo preferiu o gênero
literário epistolar: dos 27 escritos do cânon neotestam entário, 21 são
cartas, muitas das quais atribuídas a Paulo. Provavelmente a coleção de
suas cartas foi iniciada após a m orte do apóstolo em C orinto ou em
Efeso, e term inou no final do século I com o corpus de treze cartas27.

22. M. HENGEL, La storiografia..., op. cit., p. 23.


23. Id., ibid., p. 26.
24. Cf. id., ibid., pp. 168-169.
25. F. BOLGIANI, op. cit., p. 301.
26. Cf. id., ibid., pp. 302-303.
27. Cf. J. SCHNEIDER, “Brief”, R A C I, pp. 574-576.
í

O exemplo de Paulo torna-se norm ativo na Igreja primitiva, na qual o


gênero literário epistolar acaba por ser o preferido. Basta pensar nas sete
cartas de Inácio, na carta de Policarpo aos Filipenses, na Carta de C le­
m ente aos Coríntios, bem com o na Carta de Barnabé, que, de fato, é um
pequeno tratado teológico, na 2 a Carta de Clemente, que é uma homilia,
ou em alguns Atos de mártires editados como cartas (Martírio de Policarpo,
M artírio dos mártires de Lião e Vienne).
À preferência do gênero epistolar para o anúncio e a instrução da
com unidade vincula-se o problema dos apócrifos, muitos dos quais com ­
postos em forma de cartas (a troca de cartas entre Paulo e Sêneca, outras
cartas de Inácio de Antioquia, a Epistola apostolorum...)2S.
Foram sobretudo as comunidades cristãs que reuniram as cartas e
as transmitiram com o expressão de com unhão e de um “patrimônio
com um ” a ser compartilhado: cartas de uma Igreja à outra de teor pre­
dom inantem ente dogm ático ou eclesial, ou às vezes cartas de ilustres
personalidades cristãs. Assim, Policarpo de Esmirna reuniu as cartas de
Inácio e enviou-as à com unidade de Filipos29. O Pastor de Hermas infor­
ma-nos que Clemente (Rom ano) tinha o encargo de enviar seu livro às
outras comunidades30. Eusébio de Cesaréia recorda uma vasta atividade
epistolar de Dionísio, bispo de Alexandria, “que se tornou m uito útil a
todos com a composição das Cartas católicas que endereçou a diversas
Igrejas”31. O próprio Dionísio lamenta depois que algumas de suas cartas
tenham sido alteradas: “Alguns irmãos me haviam pedido para lhes escre­
ver cartas e eu as escrevi. Mas eis que os ministros do diabo as rechearam
de cizânia, mutilando-as aqui, interpolando-as ali”32. Com o era de espe­
rar, com as cartas enviadas e recebidas fizeram-se coleções nas diversas
Igrejas. Eusébio declara que irá com por o VII livro da História eclesiás­
tica inspirando-se no epistolário deixado por Dionísio de Alexandria33. E
igualmente conhecida a coleção de mais de cem cartas de Orígenes34 e
a das cartas de Cipriano35.
A transcrição dfsses textos sempre foi realizada por membros da
comunidade cristã. E, quanto mais famoso era o seu autor, tanto maior

28. Cf. id., ibid., pp. 576-578.


29. Carta aos Filipenses 13.
30. Cf. O Pastor — Visão II, 8.
31. História eclesiástica IV, 23,1.
32. Ibid., pp. 23,13.
33. Cf. ibid. VII, Introdução.
34. Cf. ibid. VI, 36.
35. Cf. J. SCHNEIDER, art. cit., pp. 580-581.
o núm ero dos escritos a ele falsamente atribuídos para angariar maior
atenção, mais ampla difusão ou — no caso de doutrinas heterodoxas
um crédito que de outro m odo não teriam.
O mesmo fenômeno de falsificação aüngiu, nos primeiros séculos,
tam bém o gênero de homilias que constitui boa parte da produção lite­
rária dos Padres, os quais, por não colecionarem seus sermões, acabaram
fazendo o jogo dos interpoladores e dos falsários36. Os primeiros autores
cristãos, em boa parte bispos e presbíteros, transmitiram muitas de suas
reflexões por meio da pregação, na qual eram abordados muitos assuntos
posteriorm ente reunidos em obras escritas. A pregação, pois, geralmente
bastante breve, mas praticada com freqüência, mantinha o povo a par dos
problemas relativos à comunidade e aos debates teologicos do momento.
Em essência, a pregação supria a ignorância de quem não tinha acesso
aos textos escritos.
A maior parte dos Padres improvisava. Suas homilias, anotadas por
amigos, admiradores ou taquígrafos, com o consentim ento ou, às vezes,
sem que o próprio pregador soubesse, eram depois divulgadas37. E sig­
nificativo a esse respeito o testem unho de Gaudêncio, bispo de Brescia
nos primeiros anos do século V. A tendendo a solicitação do amigo
Benívolo, Gaudêncio lhe enviou alguns sermões, acrescentando: “Com
relação aos sermões que, pelo que sei com certeza, algumas pessoas, por
um interesse supérfluo e preparando secretamente estenógrafos, tiveram
a presunção de colecionar, sem dúvida de forma fragmentária e incom ­
pleta, não tenho por eles o m enor interesse, pois já não são mais os
meus, uma vez que sabemos terem lacunas devido a excessiva pressa dos
que os montavam a partir de minhas palavras. Todavia, tem o que eles,
sob o título do meu discurso, dissimulem conceitos inimigos da fé au­
têntica, oriundos de um engano de outros, e se tornem responsáveis por
um erro sem fim por causa de um a im prudente presunção 38.
Gaudêncio lamentava não ter podido rever suas homilias. E diferen­
te o caso de Orígenes, a cuja disposição o amigo e mecenas Ambrósio
deixara taquígrafos, que anotavam suas homilias, em boa parte improvi
sadas39. O trabalho destes era completado pelo dos escribas, que trans­
formavam em escrita comum o que havia sido taquigrafado. Os calígrafos,

36. Cf. A. G. HAMMAN, “Jacques-Paul Migne — Le rétour aux Pcres de l’Église”


in Le point theologique, Paris, Beauchesne, 1975, pp. 11.
37. Cf. id., ibid., pp. 12-13.
38. GAUDÊNCIO DE BRESCIA, Tratados — prefácio, 11.
39. Cf. a informação de EUSEBIO, Historia eclesiastica VI, 23,2.
enfim, passavam a limpo o texto que, nas fases intermediárias, Orígenes
tinha ocasião de rever e de corrigir40.
As homilias de pregadores ilustres, como Ambrósio, João Crisóstomo
e Agostinho, tambem eram anotadas por estenógrafos e geralmente re­
vistas depois pelos próprios Padres41.

Em bora a homilia tenha sido o gênero literário privilegiado da


literatura cristã dos primeiros séculos, não se pode esquecer que muitos
textos que hoje temos em mãos foram elaborados especialmente para
publicação. A maior parte, porém , também passou pela transcrição par­
ticular. Em bora no século IV, com o reconhecim ento oficial do cristia­
nismo, os livreiros fossem solicitados a produzir cópias de obras cristãs,
e em bora as diversas Igrejas (Roma, Alexandria, Jerusalém, Cesaréia...)
possuíssem, para uso interno, scriptoria, anexos às bibliotecas episcopais,
constata-se, contudo, que a via normal de difusão dos textos era a trans­
crição particular42. Para determ inar isso deve ter contribuído tanto o
costume precedente, pouco dispendioso, como também uma razão in­
trínseca: “o cristianismo criara entre o escrevente e seu público uma
relação de estrita simpatia, na qual se exortava, pregava-se e se ensinava
a ponto de o autor assimilar-se àqueles a quem se dirigia, mostrando-se
unidas nos escritos cristãos a acusação e a auto-acusação, a severidade e
a humildade, a superioridade doutrinal e a fraternidade. Por isso, melhor
do que qualquer outra forma de aquisição de livros, a transcrição parti­
cular, individual, conservava e exaltava aquela relação”43. Sabemos que
boa parte dos livros que formavam a biblioteca de Jerônim o haviam sido
transcritos pessoalmente por ele44. Norm alm ente as novas obras eram
confiadas pelo autor a algum amigo, que conservava o manuscrito-mo-
delo e tinha permissão para mandar tirar cópias dele a pedido dos inte­
ressados45. É o caso do De civitate Dei, em que Agostinho, escrevendo
a um certo Fírmio, diz: “Peço-te que a todos que solicitarem dês de boa
vontade toda a facilidade para deles tirar cópias. N ão os darás a um
grande num ero, mas somente a um ou dois, quando m uito, e eles mes­
mos, por sua vez, os darão a outros”46.

40. Cf. J. DE GHELLINCK, Patristique..., II, pp. 214-217.


41. Cf. id., ibid., pp. 219-221.
42. Cf. G. CAVALLO, op. cit., pp. 114-119.
43. Id., ibid., p. 121.
44. Sobre esse assunto da transcrição privada, cf. J. DE GHELLINCK, op. cit pp
191-199.
45. Cf. G. CAVALLO, op. cit., p. 119.
46. In PLS II, 1374.
Além de Agostinho, serviram-se dessa técnica de edição Basílio,
Jerônim o, Sulpício Severo, Cesário de Aries... Em relação à transmissão
e conservação dos textos patrísticos, é preciso mencionar as traduções
que se impuseram, sobretudo quando o conhecim ento do grego se tor­
nou cada vez mais reduzido no Ocidente. Nessa situação, a intervenção
de tradutores — às vezes mais “editores” que mudavam o teor dos textos
— é fundamental. Com efeito, as traduções nos conservaram obras que
de outra forma estariam destinadas a desaparecer com a perda do origi­
nal47. Basta pensar em Contra as heresias, de Ireneu de Lião, que chegou
inteira até nós num a tradução ladna, ou em De principiis, de Orígenes,
que chegou até nós apenas na tradução declaradamente infiel de Rufino,
que, movido por preocupações doutrinais, suprime algumas passagens,
acrescenta, modifica e esclarece.
O patrim ônio da tradição patrística não teria sido conservado se já
nessa mesma época não houvesse um grande interesse por tudo o que
cada autor havia composto. Basta lembrar o conselho que Jerônimo dá
a Leta de com o educar a própria filha: “Tenha sempre em mãos” —
escreve a ela — “os opúsculos de Cipriano, folheie, sem medo de trope­
çar, as cartas e os livros de Hilário. Aprecie os autores em cujos livros a
devoção e a fé não vacilam”48.
A consciência de que “os Padres” são autoridade no âmbito da fé
e da vida espiritual está bem presente no monaquismo, que será um fator
determ inante na transmissão dos textos patrísticos. Se, em sua origem,
esse fenômeno cristão de estrutura predominantemente leiga tem cono­
tação acultural49, com o passar do tem po não poderá prescindir de um
conhecimento das letras, necessárias para ler a Sagrada Escritura. Na Regra
de Pacômio (c. 320-340) se estabelece que o indivíduo que ingressa no
mosteiro e não sabe ler empregue três horas por dia nesse aprendizado.
“E no m osteiro não haja ninguém que não saiba ler e não se lembre de
alguma coisa da Escritura; no mínimo, o Novo Testamento e o Saltério”50.
O caráter acentuadamente cultural da vida monástica é observado sobre­
tudo no Ocidente, onde a lectio divina é elemento constitutivo do ins­
tituto monástico e onde se imporá, conseqüentem ente, a presença de
bibliotecas. Basta mencionarmos o mosteiro da ilha de Lérins, perto de
Cannes, im portante centro de estudos a partir do início do século V. Um
outro m osteiro de cunho acentuadamente humanista foi aquele fundado

47. Cf. J. DE GHELLINCK, op. cit., pp. 232-234.


48. JERÔNIMO, Carta CVII, 12.
49. Cf. H.-I. MARROU, Storia dell’educazione.. op. cit., pp. 431-432.
50. Regra de Pacômio, 139-140.
por Cassiodoro, em Vivarium, na Calábria, onde era im posto aos monges
o trabalho intelectual (estudo e cópia de livros)51.
A legislação monástica acolheu essa exigência de formação espiritual
e de leitura, à qual se deve vincular a criação de scriptoria e de bibliotecas
nos diversos conventos.
Na Regra. dos Servos de Deus, composta por Agostinho, afirma-se a
existência de uma biblioteca da qual se podem retirar livros para o estu­
do, que deve ocupar da sexta à nona*52.
Sulpício Severo informa que os monges de M artinho de Tours co­
piavam manuscritos53. Informação análoga nos dá Cesário de Aries, autor
de uma outra regra para mulheres, na qual consta a obrigação de duas
horas de leitura por dia54. Vinculado a esse compromisso está o outro,
de transcrição de manuscritos55.
A Regra de são Bento (c. 525) não faz mais que retom ar essas
normas, dando instruções precisas sobre a leitura, que se torna com ponen­
te essencial na vida do m onge56. Com efeito, as grandes estruturas m o­
násticas, juntam ente com as bibliotecas das Igrejas catedrais, irão con­
servar e transm itir o patrim ônio dos Padres. Evidentemente, m uita coisa
se perdeu. Alguns fatores, porém , permitiram a conservação e trans­
missão dos textos que possuímos: os guias de leituras recomendadas, ou
a lista dos escritores cristãos mais significativos, com o os que encontra­
mos, por exemplo, no De viris illustribus de Jerônim o, a utilização cada
vez mais ampla dos textos patrísticos sob a forma de homiliários (cole­
ção de homilias de um ou mais Padres ordenadas segundo o ciclo
litúrgico), florilégios (antologia de trechos escolhidos precursores das
“sentenças” da Idade M édia), as éclogas ou catenas (coleção de com en­
tários patrísticos sobre a Escritura) e as coleções canônicas nas quais os
Padres figuram, junto com as Escrituras, com o auctoritates*7. A frag­
mentação dos textos, fruto de suas diversas utilizações e típica do perío­
do medieval, se era, de um lado, adequada para o aprofundam ento de
determ inados temas, não permitia, de outro, o conhecim ento exaustivo

51. Cf. CASSIODORO, Institutiones divinarum littem rum I, 30.


- *Do meio-dia às quinze horas. [N. do T.]
52. Cf. Carta CCXI, 3.
53. Cf. SULPÍCIO SEVERO, Vida de Martinho de Tours, 10,6.
54. CESARIO DE ARLES, Regra para as virgens 19,1: “Em todas as estações
dediquem-se à leitura por duas horas, ou seja, do nascer do sol até a segunda hora” .
55. CESÁRIO DE ARLES, Vit I 58,320.
56. Cf. Regra de São Bento 42,3-7; 48,14-19; 53,9.
57. Cf. J. DE GHELLINCK, op. cit., pp. 246-298.
de cada um dos Padres. Não é de admirar, por isso, que tenha fatalmente
acabado num conhecim ento cada vez mais reduzido do rico patrimônio
patrístico. Paradoxalmente, a Idade Média ocidental conservou e trans­
mitiu os textos dos Padres, mas — salvo algumas obras — não os utilizou
em profundidade.
Com o Renascimento, aliado ao surgim ento da imprensa, e com a
recuperação e valorização da Antiguidade por ele promovida, haverá uma
reviravolta da situação. Essa volta ao passado — preparada em parte pelas
ordens mendicantes em sua instância de retorno à Igreja primitiva, mas
também com o reação perante a tradição e a autoridade — impôs uma
atenção maior às letras antigas e aos escritos dos Padres, que passaram a
ser estudados com acentuado sentido histórico-crítico e mediante novos
recursos da filologia. Nascem assim as primeiras coleções das obras com ­
pletas dos Padres mais conhecidos, com o Agostinho, Cipriano, Hilário,
Ambrósio, Ireneu, João Crisóstomo.
Por sua vez, a Reforma, ao questionar a razão teológica e todo o
edifício dogmático tradicional, produziu uma renovação dos estudos pa-
trísticos. “A Reforma não rejeita os Padres ct priori, mas passa a submetê-
-los a um critério, a um princípio crítico: a Bíblia. Fator de capital impor­
tância para os estudos patrísticos. De agora em diante, não bastará citá-
los mecânica e arbitrariamente... A Reforma introduz assim uma exigên­
cia de crítica teológica na patrística... mas não de crítica histórica ainda
(que só se desenvolverá em seguida)”58. A anti-romanidade da Reforma
não se constituiu, pois, num a recusa ao protocristianismo59. Juntamente
com o humanismo, cultor do classicismo, a Reforma provocou um pro­
cesso de atenção aos Padres também no âmbito católico. E claro que, de
ambas as partes, o veículo dessa atenção será a polêmica, embora esta
tenha ao menos a vantagem de utilizar, com especial propriedade, todos
os novos recursos filológicos e históricos da época. Nascem assim os
A nais de Barônio ( | 1607), como resposta às Centúrias de Magdeburg.
Nos séculos XVII-XVIII, a utilização do tema patrístico do ponto de vista
polêmico pouco a pouco diminui. Já o interesse pelos Padres aumenta,
sobretudo graças à historiografia católica, que, pesquisando as bibliotecas
dos conventos e das igrejas, exumará textos patrísticos, dando origem às
prim eiras grandes coleções de tais textos. Nesse im enso trabalho
historiográfico devem ser lembrados Denys Petau ( t 1652), Jean Bolland

58. A. BENOIT, Attualità ic i Padri délia Chtesa, p. 25.


59. Cf. J. BOISSET, “La réforme et les Pères de l’Église”, in E. MANDOUZE-J.
FEUILERON (orgs.), Mignc et le renouveau des études patristiques, Paris, Beauchesne,
1985, p. 39.
( t 1665), D u Cange ( | 1688), Le Nain de Tillem ont ( f 1698), os
beneditinos de San M auro (maurinos), e, para o século XVIII, Ludovico
M uratori ( | 1750), Assemani (f 1768), Mansi (f 1769).
O estudo dos Padres terá progresso ainda maior no século XIX,
graças às grandes edições de A. Mai, de G. B. Pitra e sobretudo ao
colossal trabalho de J. P. M igne, com a Patrologia latina (221 volumes)
e grega (162), que abrangerá os trabalhos anteriores dos maurinos e de
outros. Seguem-se, depois, as edições críticas do CSEL (Corpusscriptorum
ecclesiasticorum latinorum ) (Viena 1866 ss.), os Texte und Untersuchungen
zu r Geschichte der altchristlichen L ite ra tu r (L eipzig 1882 ss.), o
Griechischen Schriftsteller der drei ersten Jahrhunderten (Berlim 1897 ss.),
a Patrologia orientalis (Paris 1903 ss.), os Texts und Studies (1891 ss.),
o Corpus christianorum (T urnhout 1954 ss.), as Sources chrétiennes (Paris
1949 ss.)*. Todas essas coleções atestam o crescente interesse pelos Pa­
dres cultivado com agudeza crítica e sempre enriquecido com novas
edições. Mas de onde vem tanto interesse? É o que vamos procurar
com preender nas páginas que se seguem.

Os Padres da Igreja hoje: o sentido de um serviço

H á cerca de duzentos anos, num pequeno livro sobre O estudo da


teologia, Schleiermacher apresentava alguns postulados para um estudo
proveitoso dessa matéria e dentre eles incluía o seguinte: “antes de mais
nada, é essencial para todo teólogo uma visão exata da relação das diver­
sas partes da teologia entre si e do valor específico de cada uma delas para
o objetivo comum. Sucessivamente, o conhecim ento da organização in­
terna de cada disciplina e das partes mais im portantes na relação com o
todo. Além disso, o conhecim ento dos instrum entos para obter imedia­
tam ente os conhecimentos que se fizerem necessários. Enfim, preparo e
segurança na utilização das medidas de precaução necessárias para usar
do m elhor m odo e com maior exatidão o trabalho dos outros”60.
Uma aplicação desses princípios ao presente estudo implica essen­
cialmente:

*No âmbito do mundo italiano, não pode faltar uma referência às versões em língua
vulgar publicadas pela editora UTET, de Turim, na coleção I classici delle relijjioni - La
religione cattolica, à Collana di testi patristici (Roma, Città Nuova), às Letture cristiane dei
primo millennio (Milão, Paoline), às Letture cristiane delle origini (Roma, Paoline), à Bi­
blioteca patrística (Florença, Nardini, 1988), à Traditio christiana (Turim, SEI).
60. SCHLEIERM ACHER, Lo studio della teologia, trad, do alemão, Brescia
Queriniana, 1978, p. 18.
1. que se conheça a relação intercorrente entre a teologia patrística e
as outras disciplinas;
2. que se tenha da teologia dos Padres um conhecim ento profundo e
capaz de se integrar com as outras disciplinas em vista de uma
síntese;
3. que se conheçam as chaves hermenêuticas para chegar a um traba­
lho de aprofundam ento no âmbito dessa disciplina;
4. enfim, que nos movamos com segurança no uso dos resultados já
adngidos por outros.
Ao nos dar esses critérios, Schleiermacher leva em consideração
teólogos que são também clérigos e nos quais “tanto o interesse eclesiás­
tico com o o espírito científico devem estar unidos”61.
Ninguém contesta a importância da patrística na ciência teológica,
que nos últimos decênios passou de um enfoque sistemático-especulativo
a um enfoque histórico. Nesse mesmo tempo cresceu também a especia­
lização por setores, com o conseqüente perigo de o “perito” numa área
particular, por exemplo em teologia sistemática, não possuir um conheci­
m ento de “primeira m ão” da patrística62. O hiato que se criou pode ser
superado mediante uma interdisciplinaridade cada vez mais estreita, prece­
dida, porém, por uma formação patrística mais cuidadosa, à qual quis dar
significativo impulso o Docum ento da Congregação para a Educação ca­
tólica sobre O estudo dos Padres da Igreja na formação sacerdotal.
Mas qual é a contribuição que a patrística oferece ao saber teológico
em suas diversas expressões?
As páginas que seguem querem oferecer uma sumária idéia a res­
peito, mas suficiente — esperemos — ao menos para fazer nascer o
desejo de saber mais. Considere-se que o florescimento patrístico —
preparado por estudiosos com o De Lubac, Von Balthasar, K. Rahner,
Danielou — encontrou estímulo no Concílio Vaticano II: no m étodo
“genético” por ele prom ovido63 e no em penho de com preender os Pa­
dres, em vez de simplesmente utilizá-los em perspectiva demonstrativo-

61. Id., ibid., p. 12.


62. Esse estado de coisas é bem evidenciado por M. SIMONETTI, in “U n’intervista
a! Prof. Manlio Simonetti” por E. DAL COVOLO, in R T 2 (1991), pp. 139-144.
63. O decreto sobre a formação sacerdotal Optatam totius esclarece no n. 16 que
os estudantes de teologia, depois de terem sido introduzidos ao estudo da Sagrada Escri­
tura, devem adquirir um conhecimento da Tradição: “ilustrem-se aos alunos a contribuição
dos Padres da Igreja oriental e ocidental na fiel transmissão e no esclarecimento de cada
uma das verdades, bem como a ulterior história dos dogmas...” .
í

-apologética64. Eles são o referencial privilegiado com que cada época


deve se comparar. Com efeito, com os Padres atingiram-se algumas metas
basilares na estrutura doutrinal e eclesial do cristianismo que é preciso
pelo menos referir:
1. o esclarecimento dos fundamentos da fé expressa nos primeiros
quatro concílios (Nicéia 325; C onstantinopla 381; Éfeso 431;
Calcedônia 451);
2. Vinculado ao primeiro aspecto, a tentativa de dar à fé forma e
expressão num discurso hum ano, criando novos conceitos e a lín­
gua “católica” que ainda hoje falamos;
3. a fixação do cânon neotestamentário;
4. a passagem da improvisação litúrgica a normas e modos estáveis de
celebração (a partir da metade do século IV), substancialmente pra­
ticados ainda hoje65.
Além disso, há alguns traços que “caracterizam” a reflexão dos
Padres e que o teólogo deve ter sempre presentes e, em certo sentido,
saber transferir para o m om ento atual. Em primeiro lugar, o sentido de
novidade e originalidade cristãs que se abre e se estende a todas as áreas
da vida humana. “E necessário” — escrevia Hilário de Poitiers, expres­
sando o sentim ento com um dos Padres — “que os regenerados (pelo
batismo) tenham um novo m odo de pensar.”66 A teologia dos Padres é,
aliás, concentração no essencial, ao contrário da reflexão escolástica pos­
terior, que, em uma análise lógico-discursiva dos conteúdos da fé, “acres­
centava muitas questões periféricas ao essencial... e construía em bases
que não eram as mais imediatamente fundamentais, procedendo a racio­
cínios, análises e a um m étodo de ‘questões’ que se afastavam fatalmente
do centro”67. Sob esse ponto de vista, é lícito afirmar que a época patrística
conheceu e praticou o que chamamos de hierarquia das verdades, reco­
nhecendo o que é essencial para o cristão e rem etendo-o a esse núcleo.
Com efeito, no credo batismal da Igreja antiga exigia-se a adesão às
verdades essenciais do cristianismo. Em tal perspectiva, o testem unho
patrístico adquire um valor ecumênico de primeira importância. Além
disso, a teologia dos Padres se nos apresenta com o uma teologia de

64. Cf. R. FARINA, “L’insegnamento della patrologia: preparazione, obicttivi, mezzi


didattici”, in Lo studio dei Padri delia Chiesa oggi, Aug (Roma, 1977), pp. 100-101.
65. Cf. id., ibid., p. 117.
66. De Trinitate liber I, 18.
67. Y. CONGAR, La traduzione e le tradizioni, trad, do francês, Roma, Paoline,
1965, pp. 387-388.
pesquisa em referência a uma síntese e não a um sistema, que, como se
verifica para a heresia, “suprime o caráter antitético e paradoxal da ver­
dade, deixando perder-se um dos elem entos”68. E justamente o caráter
de pesquisa presente na teologia patrística que permitiu o desenvolvi­
m ento do que hoje chamamos de pluralismo teológico. Esse caráter já se
m ostra na primeira afirmação da teologia “asiática” e “alexandrina”, na
presença na própria Igreja das escolas teológicas antioquena e alexandrina
e até mesmo nas diversas liturgias que devem ser consideradas diferentes
modalidades de aproximação ao mistério de Deus. Nessa ótica, um “re­
torno aos Padres” “revela uma pluralidade de tradições, até conflitantes,
nas quais se encarnou a mensagem revelada e... sugere que a pluralidade
é uma riqueza eclesial, que a diversidade não é incompatível com a única
fé, e que o mistério divino não se exaure, mas se ilumina nas muitas
formas expressivas da fé”69.
Os Padres, aliás, tiveram um sentim ento vivo desse mistério. A
“porta estreita” da encarnação e do “escândalo da cruz” os mantém
num a atitude de respeito em relação à incompreensibilidade de Deus,
jamais redutível a um sistema de lógica hum ana70. Com expressões só
aparentem ente antiintelectualistas, mas que por certo exaltam o papel
fundamental da fé, João Crisóstomo declara que, “antes, podíamos nos
servir da razão e recorrer à filosofia — desde que esta tomasse como guia
a criação — ; agora, porém, se não nos tornarm os tolos e se não puser­
mos de lado todo raciocínio e toda sabedoria humana, confiando-nos à
fé, não mais poderemos nos salvar”71.
O sentido de mistério que os Padres possuem, a sua consciência da
transcendência de Deus leva-os, portanto, a preferir uma teologia de sím ­
bolos, mais que de conceitos. “O perigo inerente a uma teologia dos
conceitos está na ilusão de que ela permitiria chegar adequadamente às
verdadeiras realidades. Uma teologia de símbolos, e de símbolos bíblicos,
evita esse perigo, pois o símbolo é por demais transparente em sua re­
presentação e em seu antropom orfism o para que o espírito possa se
enganar... Além disso, ele tem em si um a ressonância afetiva que o torna
especialmente capaz de esclarecer o conteúdo espiritual da teologia.”72 E

68. H. CROUZEL, art. cit., p. 566.


69. C. CORSATO, “L’insegnamento dei Padri delia Chicsa nell’ambito delle disci­
pline teologichc: una memória feconda di futuro”, in Seminarium 3 (1990), pp. 484-485.
70. Sobre este assunto, remeto a meu livro Lo scandalo delia eroce — La polemica
anticristiana nei primi secoli, Roma, Dehoniane, 1988.
71. Comentário sobre ICoríntios — Homilia V,2.
72. H. CROUZEL, op. cit., p. 567.
!
evidente que a valorização do símbolo feita pelos Padres só podia nascer
de um contato com a Escritura, cuja unidade fundamental eles percebem,
pois tem Deus por autor. Sua teologia é, por isso, uma teologia bíblica.
Evidentemente, não se trata de aceitar sempre métodos e resultados aos
quais eles chegam ao se aproximarem do texto sagrado; o que se pede
é que aprendamos a ler a Escritura no espírito dos Padres, buscando nela
o “sentido espiritual” . A exegese alegórica por eles realizada pode causar-
-nos algum incôm odo, mas não nos deve faltar um sentido de respeito
pelo trabalho de mediação que os Padres pretenderam realizar. Não
devemos esquecer, enfim, que a leitura espiritual do texto bíblico (a
doutrina dos quatro sentidos) constituiu uma exigência de atualização.
Sob este ponto de vista, os Padres “lêem a Bíblia à luz da experiência
cristã e com o fonte da experiência cristã da vida”73. Com o testemunhava
Tertuliano, “(nós cristãos) nos reunimos para ler as Escrituras Sagradas,
para ver se as condições dos tempos atuais nos levam a ter de fazer
previsões a partir delas, ou a reconhecer a verdade de certas coisas já
acontecidas e já preditas por aquelas Escrituras”74.
Por ser construída sobre a Palavra de Deus e lida com referência à
vida, a reflexão patrística alimentou uma espiritualidade que nasce da fé,
exprime a fé e conduz a um aprofundam ento dela. O “teólogo”, na
acepção dos Padres, é o místico75, que tem com o protótipo o discípulo
João, o qual fala porque escutou, viu e tocou (cf. l j o 1,1). O conceito
que têm eles de teologia é entendido sobretudo com o experiência de
Deus, mais do que com o palavra sobre Deus. Seja com o for, trata-se de
uma experiência ou de uma espiritualidade que, como lembrava Y. Congar,
“tem esta particularidade: não se separa nem sequer se distingue de sua
(dos Padres) contemplação dogmática, também esta ligada à sua m edi­
tação das Sagradas Escrituras”76. Há, pois, nos Padres um desejo ardente
de não perder de vista a peculiaridade da mensagem cristã, mas há tam ­
bém a necessidade de aproximá-la dos homens. Justam ente esse aspecto
determ ina o caráter pastoral de sua teologia, que não nasce com o espe­
culação acadêmica, não possui caráter e linguagem esotéricos, mas se
afirma no interior de um a atividade de serviço pastoral e procura
corresponder às exigências concretas da comunidade. A este propósito é

73. M. PELLEGRINO, “I Padri della Chiesa hanno qualcosa da dire all’uomo


d ’oggi”, Augustinw num 1 6 /1 7 (1977), p. 458.
74. TERTULIANO, Apologético XXXIX.
75. Cf. T. SPIDLIK, “La spiritualité de l’Orient chrétien”, II, in Orientalia Christiana
analecta, 230, Roma, 1988, pp. 206-207.
76. Y. M. CONGAR, op. cit., pp. 383-384.
conveniente lembrar que, segundo os Padres, a principal atividade do
sacerdote não é a cultural, mas o ministério do anúncio. O ministro do
culto cristão é, antes de mais nada, o anunciador da Palavra e, uma vez
que esta se fez carne, o anúncio se estende a todos os aspectos concretos
da vida hum ana e deve iluminar a todos. Não é de admirar, pois, que a
teologia dos Padres fale a língua dos cristãos comuns e conserve uma
instância pastoral tão clara, ou melhor, nasça e se desenvolva a partir
dessa instância.
Diante de tanta riqueza aqui parcialmente esboçada, o recurso à
tradição patrística é uma imposição necessária. Deve ser feito, porém, de
acordo com algumas regras. Um a delas consiste em “pôr com muita
clareza o problema se se deseja interpretar uma fonte ou se, ao invés, o
que se deseja é dem onstrar uma asserção... O estudo das fases anteriores
do desenvolvimento dogmático, em teologia, tem a função de fornecer
modelos de pensamento que nos ajudarão a encontrar o nosso m odo de
pronunciar o mesmo dogm a”77.
Trata-se, em essência, de “dialogar” com os Padres, assumindo em
sentido real a expressão “diálogo” com o o esforço de um entendim ento
recíproco e não de uma apresentação de perguntas para confirmar opi­
niões próprias já consolidadas. Descartado esse equívoco de instru­
mentalizar o pensamento patrístico em vez de tom á-lo com o parâmetro,
é preciso levar em conta três princípios que regem o procedim ento
hermenêutico para uma utilização correta dos textos dos Padres78.
O primeiro é este: um docum ento do passado, que surgiu num
meio cultural diferente, deve ser sempre interpretado e “não pode ser
lido com o se fosse produzido na linguagem do próprio am biente”79. A
interpretação não tem a finalidade de “libertar uma doutrina de todo
condicionamento histórico, pessoal e comunitário (o que é impossível),
mas de procurar reconhecer as características subjetivas como tais e ex­
pressar a mensagem das fontes nas próprias categorias históricas, pessoais
e comunitárias”80. O segundo princípio afirma que todo texto pode ser
entendido e expresso também em outros contextos culturais81. A tarefa

77. Z. ALSZEGHY-M. FLICK, Come si fa la teologia —Introduzione alio studio


della teologia dogmatica, Alba, Paolinc, 1974, pp. 70-71.
78. Para as considerações a seguir, remetemos ao supracitado estudo de Z.
ALSZEGHY-M. FLICK, Come se fa la teologia...
79. Id., ibid., p. 74.
80. Id., ibid.
81. Cf. id., ibid., p. 75.
(
do teólogo consiste em “exculturá-lo”, preservando a mensagem que
contém . O terceiro princípio faz referência ao sujeito do “recurso ao
passado” para a hermenêutica teológica. Ora, o verdadeiro sujeito desta
é a com unidade, uma vez que o estudioso, sozinho, somente pode ad­
quirir um conhecim ento articulado dos textos patrísticos quando se serve
da contribuição especializada de outros. Segue-se daí que “a nova teo ­
logia implica essencialmente não apenas noções adquiridas, mas a arte de
se servir criticamente dos resultados das pesquisas de outros com o ins­
trum entos de trabalho, e de pôr as próprias pesquisas à disposição dos
demais, para que assim possam ser julgadas, utilizadas e superadas”82.
Em essência, a compreensão dos textos patrísticos exigirá um esfor­
ço interpretativo em três níveis: filológico, histórico e dogm ático83.
Nessa interpretação histórica e teológica dos escritos patrísticos deverá
ficar evidente, além disso, o seu duplo aspecto de fontes históricas
antiqüíssimas e, ao mesmo tem po, o seu caráter de testem unhos de fé
cristã.

Nessa perspectiva, o estudo dos textos dos Padres — para além de


seu valor claramente teológico — constitui ocasião para o início de um
diálogo entre os cultores das ciências histórico-literárias e filológicas de
diversas correntes e os teólogos. Deve-se praticar, enfim, uma interdisci-
plinaridade na investigação de um patrim ônio que pertence a todos: os
Padres são de todos. Na introdução aos Tractatus super psalmos, Hilário
de Poitiers compara todo o livro do Saltério a uma bela e grande cidade
com muitas casas de chaves diferentes. Se se juntassem todas as chaves,
misturando-as, quem quisesse abrir uma porta encontraria grande dificul­
dade. N um caso desses, somente a familiaridade com o molho de chaves
ou uma procura m uito cansativa permitiria encontrar a chave certa para
abrir a porta desejada84.

Esta imagem simples e eloqüente utilizada pelo bispo de Poitiers


para dem onstrar a especificidade de todo salmo pode ser aplicada à rea­
lidade dos Padres. Devemos crer que eles têm, ainda e sempre, experiên­
cias, idéias, solicitações a transmitir, mas só poderá captá-las quem souber
usar as “chaves certas”, ou quem estiver disposto a se esforçar, quem

82. Id., ibid., p. 76. Em seu O estudo da teologia, p. 19, SCHLEIERMACHER já


ressaltava com outras palavras que “quem quiser se apropriar de uma só disciplina em seu
todo deve assumir como objetivo o esclarecimento e o aperfeiçoamento do que nela já foi
feito”.
83. Cf. id., ibid., pp. 76-80.
84. Cf. Instructio psalmorum, 24.
tiver a familiaridade com os instrum entos exigidos e a ânsia de conhecer
e de conservar o patrim ônio transmitido. A este propósito merece ser
citado João Mosco, o qual fala no Prado a respeito de seu encontro com
o Pai \abba\ Cosme na laura de Fara. “Ao me falar sobre a salvação da
alma” — escreve João — “aconteceu de Cosme citar santo Atanásio,
arcebispo de Alexandria. ‘Q uando te deparares com um pensamento de
santo Atanásio’, disse-me o ancião, ‘e não tiveres uma folha à mão,
escreve-o em tua roupa!’ Tal era o amor daquele velho por nossos pais
e mestres.”85

85. JOÃO MOSCO, O prado, 40.


OS PADRES E A CRISTOLOGIA

s
certo que a comunidade primitiva não teria realizado um programa
E de expansão missionária se não tivesse alimentado a consciência de
possuir crenças específicas. Se os primeiros cristãos são anunciadores é
porque têm a consciência de ter um anúncio “novo” . Mas em que con­
siste esse “novo”? O u, em outras palavras, qual é o elemento essencial da
mensagem evangélica? “A questão se reveste de um interesse vital para
toda a teologia cristã, uma vez que dela depende a definição com tanta
freqüência discutida da essência do cristianismo.”1 Os textos de que
dispomos para estabelecer isso são os do NT, que se configuram como
uma “coleção de textos com função missionária”2. É óbvio que os pri­
meiros missionários cristãos que trabalhavam especialmente em Israel ou
entre os fiéis da diáspora não precisavam proclamar a fé em um Deus
único. O caráter cristológico será, portanto, o cerne do anúncio cristão,
o que lhe é “próprio”, o elemento específico e que o diferencia: “a fi­
liação divina de Jesus Cristo e a sua elevação à dignidade de Kyrios, em
decorrência de sua m orte e de sua ressurreição, são os dois elementos
essenciais na maior parte das confissões do primeiro século”3.

As primeiras heresias: ebionism o, marcionismo, gnosticism o

Evidentemente, o que foi o elem ento específico do cristianismo


primitivo será também o objeto da contestação que se verificou tanto no

1. O. CULLMANN, La fede e il culto delia Chiesa primitiva, trad, do francês, Roma,


AVE, 1974, p .’107.
2. Cf. J. N. D. KELLY, I simboli di fede delia Chiesa antica — nascita, evoluzione,
uso dei credo, trad, do inglês, Nápoles, Dehonianc, 1987.
3. O. CULLMANN, op. cit., p. 115.
âmbito pagão com o no judaico, mas também no interior do próprio
cristianismo, no qual a fé em um Deus crucificado não deixou de parecer
problemática e escandalosa, im pondo, ao menos no m undo judaico, um
difícil problema de “exculturação” . Era preciso começar a crer que a
salvação não estava ligada nem à estirpe nem à lei de Moisés, mas uni­
camente à fé em Cristo m orto e ressuscitado (cf. Rm 4,23-25), diante de
quem judeu e gentio estão no mesmo plano.
A dificuldade de quebrar o vínculo com o meio cultural-religioso
judaico explica o surgimento do movimento ebionita, uma corrente de
pensamento judeu-cristã que negava a divindade de Jesus, reconhecendo-
-o como simples homem. Os defensores dessa doutrina seriam os judeus
de tendência cristã, talvez essênios convertidos que permaneceram fiéis aos
costumes da Lei, mas hostis ao templo. Orígenes refere-se a eles no Con­
tra Celso 11,1, ressaltando que “ebion em hebraico significa ‘pobre’” . Depois
de acrescentar que “eles aceitam Jesus, mas querem viver ainda segundo
as leis judaicas”, especifica que existem duas seitas de ebionitas: “aqueles
que, como nós, aceitam que Jesus nasceu de uma virgem e os que, ao
contrário, crêem que não nasceu desse m odo, mas como todos os h o ­
mens”4. O ponto de partida dessa primeira heresia cristã foi a dificuldade,
mais religiosa que filosófica, de conciliar a divindade de Cristo com o
dogma bíblico da unidade e da unicidade de Deus. O monarquianismo
que o movimento ebionita professa pode, por isso, ser considerado a
heresia típica da alma judaica do cristianismo. Nele é mais fácil falar de um
Cristo profeta, escolhido por Deus para levar ao conhecimento perfeito da
Lei, a única capaz de levar à salvação. O judaísmo aceitou, portanto, o
anúncio espiritual de Jesus, mas rejeitou a transcendência de sua pessoa.
Se o ebionismo não consegue cortar o cordão umbilical que o liga
ao judaísmo, o marcionismo, ao contrário, realizou um corte nítido,
inclusive em nível de pensam ento, em relação à matriz judaica. Com
efeito, Marcião, nascido em Sinope nos primeiros anos do século II e
fundador da seita que leva seu nom e e que existiu até a m etade do século
V, com eçou a proclamar a redenção realizada por Jesus por misericórdia
de Deus Pai. A constatação de que o Deus veterotestamentário não
apresentava os traços de misericórdia do Deus anunciado por Jesus levou
Marcião a distinguir o Deus benévolo e pai de Cristo, que salva livremen­
te e por amor, do Deus do Antigo Testamento, senhor deste m undo, que
estabelece um vínculo mediante o tem or e a lei. Em conformidade com
essa orientação antijudaica, o herético rejeitou todos os livros do Antigo
Testamento e tam bém alguns do Novo, por considerar que continham

4. Contra Celso V, 61.


interpolações dos judaizantes. Assumiu, em bora com emendas, Lucas e
Paulo, produzindo assim o primeiro cânon de escritos neotestamentários.
Uma outra heresia com a qual o cristianismo primitivo teve de se
defrontar foi o docetismo gnóstico, que afirmava que Jesus não recebeu
nada de corpóreo, pois não nasceu de Maria, mas através de Maria. As
premissas desse docetismo, no qual se encontram associados marcionitas,
valentinianos, Apeles e outros, devem ser buscadas num a antropologia
que só conhece o hom em espiritual e nega todo valor à realidade carnal
que Cristo, evidentemente, não pôde assumir por ser elemento não pas­
sível de salvação. Para os gnósticos, que fundamentavam sua concepção
sobre a carne de Jesus em IC o r 15,47 e em Rm 8,3, a única realidade
é a do m undo divino, a ponto de considerarem uma coisa tanto mais real
quanto menos material.

Referências à cristologia de Inácio, M elitão, Ireneu


e dos apologistas

Contra esse docetismo, de tendência judaizante porém, já presente


em l j o 1,1-3; 4,1-3; 2Jo 7, tom ou posição Inácio de Antioquia ao
insistir no caráter realíssimo da humanidade de Jesus ressaltada por um
significativo verdadeiramente-, “verdadeiramente nasceu, comeu, bebeu;
verdadeiramente sofreu sob Pôncio Pilatos; verdadeiramente foi crucifi­
cado e m orreu... verdadeiramente ressuscitou dos m o rto s...”5. O reco­
nhecim ento da humanidade de Jesus caminha simultaneamente com o
reconhecim ento da sua divindade, que ele vê expressa de m odo supremo
e definitivo a partir da ressurreição. O tema da unidade de humanidade
e divindade em Cristo está expresso por Inácio na seguinte passagem de
Efesinos 7,2, onde lemos:
“não há senão um único médico
carnal e espiritual
gerado e não-gerado
feito na carne Deus
na m orte vida verdadeira
(nascido) de Maria e de Deus
antes passível e agora impassível
Jesus Cristo Nosso Senhor” .
Com o em Inácio, o tema da unidade de Cristo, homem-Deus,
também constitui o eixo da teologia do bispo do século II Melitão de

5. Inácio, Carta aos Tralianos, 9.


Sardes, grande expoente da teologia asiática. Em conflito com o gnos-
ticismo doceta, o bispo de Sardes dá especial destaque à encarnação6.
Contra Marcião, que negava o nascimento de Jesus, fazendo-o aparecer
no m undo já adulto, Melitão afirma que Jesus é “hom em perfeito” . Suas
duas naturezas são designadas, com o em Inácio, com os termos “corpo
= natureza humana + espírito = natureza divina” . Melitão é o primeiro
que, a propósito do duplo com ponente de Cristo, fala de duae substantiae,
fórmula que se tornará clássica em cristologia. De acordo com essa dou­
trina das duas substâncias, ele aplicará a chamada “comunicação dos
idiomas” ao afirmar, p or exemplo, que Deus é “assassinado”7, ou que “o
impassível sofre e não se vinga”8. Trata-se de expressões ortodoxas que,
no entanto, podem levar a mal-entendidos e efetivamente prepararão o
terreno para a heresia monarquianista. Seja como for, não se pode d u ­
vidar da extraordinária contribuição dada por Melitão não só à cristologia,
mas também à terminologia teológica, que com ele se enriqueceu de
termos com o “substância”, “encarnação” , “perfeito hom em ” .
Também a cristologia de Ireneu parte de preocupações apologéticas
contra o gnosticismo e o marcionismo. Sem estar movido por objetivos
cosmológicos, com o os apologistas, ele se apresenta antes como um fiel
intérprete da Tradição e da regula fid ei dela recebida. E o primeiro
pensador cristão a apresentar de m odo amplo a obra de Cristo no inte­
rior de um a “história da salvação” que se desenrola desde o Antigo
Testam ento até o retorno escatológico. Conseqüentem ente, a teologia
de Ireneu, em contraposição aos dualismos gnósticos, será uma teologia
da unidade de Deus e do plano divino de salvação, unidade do homem
e unidade de Cristo.
A unidade do plano divino de salvação é expressa pelo conceito
paulino de recapitulação: por meio dela, Cristo assume a humanidade e
toda a sua história, a partir de Adão9. Nessa perspectiva, o papel da
encarnação é central, uma vez que somente um hom em pode recapitular
em si a humanidade. Cristo — declara Ireneu — é “salvação porque é
carne” 10. Por outro lado, a iniciativa dessa salvação só poderia partir de
Deus. Com o lemos em Contra as heresias III 18,7: “se o adversário do
hom em não tivesse sido derrotado pelo próprio hom em , o inimigo não

6. Cf. R. CANTALAMESSA, “Meliton dc Sardes — Une christologie antignostique


du II siède”, in R SR 37 (1963), pp. 1-26.
7. Cf. MELITÃO, Sobre a Páscoa, 96.
8. Id., Fragmento 13.
9. Cf. J. LIEBAERT, Christologie. Von der Apostolischen Zeit bis zum Konzil von
Chalcedon (451): HDG III/Ia , 31.
10. IRENEU, Contra as heresias III, 10,3.
teria sido vencido verdadeiramente. Por outro lado, se não tivesse sido
Deus a nos dar a salvação, não a teríamos recebido de m odo perm anen­
te... o M ediador de Deus e dos hom ens, graças ao seu parentesco com
ambos, devia levá-los à amizade e à concórdia e fazer com que Deus
assumisse o homem e o hom em se oferecesse a D eus” . A intenção antig-
nóstica e antiadocionista dessas palavras é clara. N o ensinamento teoló­
gico de Ireneu, sobretudo ensinamento de redenção, o principal axioma
deve ser buscado na dupla composição de Cristo: “enquanto o Verbo de
Deus era hom em ... o espírito de Deus repousava nele... enquanto era
Deus não julgava segundo a aparência nem condenava segundo os boa­
to s...” 11. Embora Ireneu adote um rico vocabulário para expressar a
unidade de Deus com o hom em , em geral este é composto de fórmulas
que, precisamente pelo contexto soteriológico em que aparecem, não se
referem à unidade ontológica da palavra feita carne, mas exprimem a
união de Deus com a geração hum ana realizada em e por Cristo12. Seja
com o for, Ireneu se pôs o problema da unidade de Deus, em conflito
com os gnósticos, que distinguiam um Cristo incapaz de sofrer e um
Jesus passível.
Rejeitando esse dualismo, ele apresentará um ensinam ento das
proprietates de Cristo, distinguindo o que é “próprio de Deus” 13 do que
é “próprio do hom em ” 14.
Considerando, enfim, que o gnosticismo rejeita a carne do homem
por ser “incapaz de salvação” , entende-se por que Ireneu, para uma
resposta segura, lê a história de Cristo em explícita relação com a carne
cardo salutis. “Por mais solenes que sejam as suas palavras, todos os
heréticos chegam afinal de contas a isto: a blasfemar contra o Criador e
a opor-se à salvação da criatura de Deus que é a carne, pela qual, como
já demonstramos de vários modos, o Filho de Deus realizou toda a sua
economia”15.
Neste ponto, é imperioso lembrar o papel considerável da reflexão
cristológica dos apologistas. Partindo de premissas medioplatonicas*, eles

11. Id., ibid., 9,3.


12. Cf. J. LIEBAERT, Christologie..., 33.
13. Cf. IRENEU, Contra as heresiasIII, 21,4.
14. Cf. id., ibid., 21,2.
15. Id., ibid., IV, prefácio, 4.
*Da “Média Academia” — há também a“Nova Academia” — grega dos seguidores
de Platão. Graças a representantes desse “platonismo medio”, especialmente por obra de
Fílon Hebreu, o platonismo pôde abrir-se ao cristianismo, revivendo de forma mais aces­
sível, sincretista e sistemática. [N. do T.]
)
assumiram o esquema m edioplatonico do real, que distinguia três pla­
nos: Deus-universo-hom em . O elo interm ediário que preenchia o abis­
m o entre Deus e o universo era reconhecido no Logos, que tinha, por
isso, uma função criadora cosmológica. O discurso dos apologistas se
tornará propriam ente cristológico na identificação do Logos universal
com o hom em Jesus. N um a concepção dessas, contudo, não estava
ausente o perigo de reduzir Cristo ao nível de um deus menor, não
obstante o em penho de Justino em afirmar que o Logos é distinto, mas
não separado do Pai. Foi esse perigo, percebido por vários, que deu
vitalidade ao pensam ento monarquianista.

A heresia adocionista e o m odalism o do século III

A luta que se travou no século II contra o gnosticismo e o marcio-


nismo levou a um ajuste dos fundamentos da fé: Escritura e Tradição.
Novas divergências doutrinais, todavia, surgiram por volta do final da­
quele século, alimentando não só a polêmica, mas também a reflexão
teológica sobre o mistério de Cristo, Deus-homem.
O adocionismo encontra suas raízes no judeu-cristianismo hetero­
doxo, do qual é uma revivescência teologicamente mais elaborada. Se­
gundo essa doutrina, tam bém denom inada monarquianismo adocionista,
Cristo seria — de acordo com as tendências — um anjo adotado por
Deus com o Cristo (Engelchristologie), ou um simples hom em (Jesus)
que, graças a seus méritos, foi livremente adotado por Deus no m om ento
do batismo, por meio da descida de Cristo nele sob a forma de pomba.
Esta segunda tendência foi proposta em Roma por um certo Teódoto de
Bizâncio, no final do século II. Sua condenação não reduziu a força da
heresia, que encontrou expoentes notáveis em Teódoto, o “banqueiro”,
Asclepiódoto e Ártemas. Vestígios desse adocionismo serão encontrados
mais tarde em Paulo de Samósata, Fotino de Sírmio e Marcelo de Ancira.
U m a outra heresia do seculo II é denom inada modalismo devido
a seu conteúdo, ou seja, por sustentar que o único Deus se manifesta
a nós de diversos “ m odos” : Pai, Filho e Espírito Santo. Foi N oeto,
presbítero de Esmirna, quem difundiu o pensamento modalista (fim do
seculo II). Para ele, “o próprio Cristo é o Pai; foi o Pai quem se
encarnou, quem sofreu e m orreu” 16. Une-se a essa concepção modalista
ou patripassiana (= é o Pai que sofre) uma cristologia pneum ática, que

16. H IPÓLITO , Contra Noeto, 1.


fazia distinção entre Jesus (Filho) e Cristo (Pai). Com o nos confirma
Tertuliano no Contra Praxéias 27,1: “eles (os modalistas) procuram
distinguir, embora no âmbito de uma mesma pessoa, um e outro, o Pai
e o Filho, ao dizerem que o Filho é a carne, ou seja, o hom em , isto é,
Jesus; mas que o Pai é o Espírito, ou seja, Deus, isto é, Cristo” . Tratava-
se, evidentemente, de uma distinção de natureza, não de pessoa.

A cristologia de Tertuliano e Orígenes

Um matizado quadro heterodoxo com o o do século III é o que


enfrenta o cartaginês Tertuliano, o qual, embora não tenha elaborado
um sistema de pensamento, esclareceu pontos essenciais do mistério de
Cristo, fornecendo à teologia latina os primeiros conceitos básicos para
um léxico dogm ático17.
Com o Ireneu, Tertuliano insiste na unidade de Deus, de Cristo,
unidade do homem e unidade do plano de salvação.
Em relação à cristologia, afirma as duas “naturezas” ou duas “subs­
tâncias” em Cristo: “Pensamos que Cristo se manifestou exatamente como
Deus e hom em ... sendo com certeza, sob todos os aspectos, Filho de
Deus e filho do homem, sem dúvida segundo uma e outra substância,
diferentes em suas peculiaridades, pois o Verbo não é outra coisa senão
Deus, e a carne não é outra coisa senão o hom em ... Vemos esse duplo
estado, não confuso, mas unido numa só pessoa, Jesus, Deus e hom em ”18.
O cuidado em ressaltar a unidade em Cristo caminha lado a lado
com o de distinguir as “propriedades” das duas substâncias, superando
assim a opinião modalista de uma mudança da Palavra na carne, mas
superando igualmente a idéia de uma mistura entre Deus e o hom em que
produzisse um tertium quid, nem carne nem Espírito. Com o Tertuliano
esclarece, “(em C risto)... é preservada a peculiaridade de uma e outra
substância, pois nele o Espírito executou suas operações, ou seja, os seus
milagres, as suas obras e os seus sinais, e a carne experimentou suas
paixões, a fome com o diabo, a sede... as lágrimas... a angústia... a
m orte... Uma vez que ambas as substâncias agiam distintamente, cada
qual conforme sua natureza, por esse mesmo motivo elas encontraram
suas obras e suas conclusões”19.

17. Cf. J. LIEBAERT, op. cit., pp. 42-43.


18. TERTULIANO, Contra Praxéias, 27, 10-11.
19. Id., ibid., 11-13.
O antidocetismo de Tertuliano reflete-se na consideração das rela­
ções entre alma e corpo, ambas plenamente assumidas pelo Verbo. “O
que recebera Cristo do Pai, senão aquilo de que se revestira? Sem dúvida
o hom em , composição de carne e de alma”20. Essa distinção entre alma
e Espírito divino eximiu Tertuliano da tentação de atribuir ao Espírito o
papel de alma, fazendo-o sujeito das passiones-, “Esse grito (ou seja, ‘Meu
Deus, por que me abandonaste?!’) da carne e da alma, ou seja, do
hom em (não do Verbo nem do Espírito, ou seja, não de Deus) irrom peu
para dem onstrar que não estava subm etido à paixão aquele Deus que
abandonou o Filho ao entregar à m orte a sua substância hum ana” (C on­
tra Praxéias 30,2 )21.
Diante do que foi exposto, pode-se afirmar o caráter predom inan­
temente bifisista da cristologia de Tertuliano. “O interesse de sua cristologia
é infinitamente superior do ponto de vista da distinção das duas nature­
zas que do ponto de vista da unidade da pessoa... (Ele), sem dúvida,
contribuiu para criar no Ocidente, e talvez na própria escola antioquena,
a mentalidade bifisista que deveria provocar a reação indignada contra os
excessos do monofisismo. E esse o mérito principal de sua cristologia”22.
N ão m enor m érito no âm bito teológico deve-se reconhecer ao
alexandrino Orígenes, o primeiro a oferecer uma síntese (não um siste­
ma) do pensamento cristão, desenvolvendo uma teologia de pesquisa ou
de “hipótese de trabalho” de caráter dialético.
Diferentem ente dos apologistas, que, com seu esquema tripartite
(Deus-cosm o-hom em ), atribuíam ao Logos uma função cosmológica in­
termediária, Orígenes dá um passo adiante procurando a relação transcen­
dência/im anência ou divindade e humanidade no próprio Cristo, mais
precisamente na sua alma. Verifica-se, por isso, este deslocamento:

Deus — Logos — cosmo


I
alma
I
corpo

A união entre Logos e alma, já realizada na preexistência, torna-se


na encarnação, por interm édio da alma, união entre Logos e carne. A

20. Id., Sobre a ressurreição dos mortos, 34,10.


21. Cf. J. LIEBAERT, op. cit., p. 46.
22. Cf. R. CANTALAMESSA, “La cristologia di Tertulliano”, in Paradosis XVIII,
Friburgo i.Br., 1962, pp. 195-196.
alma, p ortanto, tem uma função essencial na cristologia do mestre
alexandrino. Para ela confluem as realidades que constituem o Verbo
encarnado. A união que entre elas se produz é bem mais que uma união
moral. Orígenes chega a afirmar que alma e corpo, em contato com o
Verbo, divinizam-se: “Dizemos que o seu corpo mortal e a alma humana
que nele reside adquiriram a maior excelência não apenas pela com u­
nhão, mas também pela união e fusão com ele e que, participando de sua
divindade, transformaram-se em D eus”23.
É evidente o risco numa tal concepção: o de absorver a humanidade
na divindade até privá-la de suas prerrogativas normais.
Na síntese de Orígenes, todavia, dois pontos parecerão ambíguos a
todos os que, depois dele, esquecerem o caráter dialético de sua reflexão:
1. a natureza do Logos, que, de acordo com a orientação mediopla-
tônica, tinha função intermediária e subordinada;
2. a afirmação da preexistência das almas.

O arianismo e o apolinarismo

O sentido da controvérsia ariana deve ser buscado na solução do


prim eiro ponto supracitado m ediante a afirmação da plena divindade
do Verbo e de sua consubstancialidade com o Pai.
O autor da nova heresia foi Ário (256-336), presbítero da Igreja de
Alexandria. Retom ando as antigas posições medioplatônicas do demiurgo
sem relacioná-las totalmente à teologia dialética de Orígenes, ele passou
a afirmar que só o Pai é não-gerado e sem princípio e, por isso, o único
e verdadeiro Deus. Em relação a ele, o Filho havia sido criado antes do
tem po e, portanto, lhe era inferior. A filiação divina, que Ário não nega­
va, permanecia, não por natureza porém , mas por adoção ou por graça.
D o ponto de vista estritamente cristológico, o arianismo chegava a
negar a alma de Cristo, que acabava por ser totalm ente supérflua, uma
vez que a presença do Verbo num corpo hum ano já era suficiente para
se falar de encarnação e para constituir realmente um hom em 24.
Essa concepção se enquadra bem com a doutrina da inferioridade
do Verbo. Com efeito, o fato de o Verbo tom ar o lugar da alma humana

23. ORÍGENES, Contra Celso, III, 41.


24. Cf. J. LIEBAERT, op. cit., pp. 60-62.
impõe, conseqüentem ente, que todas as paixões e fraquezas humanas
recaiam sobre ele. Essa doutrina ariana que atribui ao Verbo as funções
e fraquezas da alma hum ana leva à afirmação de um monofisismo fun­
damental, pois se entendeu a união do Verbo com a sua carne como
unidade de alma e corpo. U m símbolo atribuído a Eudóxio de C onstan­
tinopla ( t 369) exprime claramente essa doutrina: “C rem os... num único
Senhor Jesus C risto... encarnado, que não se tornou hom em , pois não
assumiu nenhum a alma humana, mas se tornou carne...; não duas natu­
rezas, pois ele não era perfeitamente hom em , mas Deus na carne em vez
de na alma, totalm ente uma só natureza devido à conjunção; passível
com base no plano da salvação, pois o sofrimento de uma alma ou de um
corpo não tinha o poder de salvar o m undo”25.
A negação da alma hum ana de Cristo constituiu também a base da
reflexão teológica de Apolinário de Laodicéia, o qual, porém , em anta­
gonismo com o arianismo, manteve a fé “nicena” na consubstancialidade
do Verbo com o Pai. A posição desse pensador baseia-se no princípio da
autonom ia essencial de toda natureza espiritual.
C om o declara no Fragmento 2: “É impossível que duas (essências)
espirituais e dotadas de vontade coabitem no mesmo, porque senão uma
se oporia à outra devido ao próprio querer e tam bém à própria ativida­
de. C onseqüentem ente, a Palavra não assumiu uma alma hum ana” . Essa
negação da alma hum ana levou Apolinário a um monismo cristológico,
no qual o corpo figura com o instrum ento e o Verbo com o o agente: “O
instrum ento e o agente” — declara no Fragmento 117 — “fundam en­
tam de m odo natural uma única atividade; e se uma única atividade,
então tam bém uma única natureza. Tornou-se, portanto, uma única
natureza da Palavra e do instrum ento” . Trata-se, aliás, de uma natureza
intermediária entre Deus e o hom em que, de fato, “não é nem inteira­
m ente hom em nem (inteiram ente) Deus, mas um misto de Deus e de
hom em ”26.

A cristologia de Atanásio e dos antioquenos

Um dos presentes no Concílio de Nicéia, Atanásio foi nos decênios


seguintes firme defensor do “consubstanciai” . C ontudo, no nível cris­
tológico, parece ignorar o problem a da relação que liga o Verbo a seu

25. Id., ibid., p. 64.


26. Fragmento 113.
corpo. Parte, antes, do princípio soteriológico de que só o que foi assu­
m ido pode ser salvo e daí chega a estabelecer a assunção da alma hum a­
na, embora não mencione expressamente a função da alma e do intelecto
em Cristo.
A cristologia atanasiana é do tipo “Palavra-carne”, na qual carne —
com o esclarece no escrito Contra os arianos 3,30 — indica, segundo o
uso da Escritura, a humanidade toda de Cristo. Atanásio preocupa-se
tam bém em afirmar que a Palavra não se tornou hom em , porque assumiu
um hom em ; que não se tornou carne porque veio para uma carne27. Com
relação à doutrina ariana, o bispo insiste no omoousios. O Deus que entra
em contato com o hom em produz assim a divinização deste. Persiste,
porém , um problema ao qual Atanásio não deu suficiente atenção: aquele
que se encontra nesse Cristo divinizado é verdadeira e plenamente um
homem?
A essa interrogação responderão os teólogos antioquenos, como
D iodoro de Tarso e Teodoro de Mopsuéstia, os quais, seja contra o
apolinarismo, seja contra o arianismo, afirmarão a perfeita humanidade e
a plena divindade de Cristo. Nele, os elementos hum ano e divino, mes­
m o depois da união, permanecem inconfúsos e inalterados em suas pro­
priedades. N o pensamento antioqueno chega-se, portanto, a afirmar uma
nídda separação em Cristo entre o Filho de Deus e o Filho de Maria.
D iodoro de Tarso assegurava, todavia, que essa distinção não significava
afirmar “dois filhos”28, mas não explicou suficientemente essa unidade.
Teodoro de Mopsuéstia, por sua vez, deu um passo além em re­
lação ao mestre D iodoro. Ensinou a unidade inseparável das duas natu­
rezas na única pessoa de Cristo: “Não foi som ente Deus, nem sequer
som ente hom em , mas verdadeiramente ele está por natureza ‘nos dois’,
Deus e hom em ”29. E, na H omilia catequética VI 3, declara: “Em sua
profissão de fé, os nossos ditosos Padres (de Nicéia) escreveram... que
seguiam os Livros sagrados que falam diferentem ente das naturezas,
ensinando haver uma só pessoa (prosopon) por causa da exata conjunção
que aconteceu...” . Teodoro de M opsuéstia deu à cristologia um im pul­
so que será retom ado pelo Concílio de Calcedônia. E, sobretudo, o
pleno reconhecim ento da hum anidade de Cristo o levou a desenvolver
o papel ativo que, por meio da obediência, essa hum anidade exerceu ao
realizar a salvação.

27. Cf. A Epicteto, 2.


28. Adversus Synousiastas — fragm. 30s.
29. Homilia catequética VIII, 1.
Pode-se, todavia, contestar Teodoro por não possuir a verdadeira
noção de communicatio idiom atum que um outro antioqueno, Nestório,
também deixará de empregar.

N estório e o C oncílio de Éfeso (4 3 1 )

N estório, que se to rn o u patriarca de C onstantinopla (428), tem e­


roso de ver misturadas as duas naturezas em Cristo, m ostrou-se con­
trário ao costum e, já com um desde o século IV, de chamar Maria de
theotokos (mãe de Deus). Por distinguir nitidam ente as propriedades
hum anas e divinas em C risto, ele preferia falar de Maria com o “mãe de
C risto” . Além disso, julgava que tal expressão era mais adequada para
garantir a integridade da natureza hum ana de Cristo, entendida com o
personalidade com pleta. E difícil definir os limites doutrinais exatos do
erro de N estório, um a vez que ele defende tanto o mistério da perfeita
hum anidade e divindade de C risto, com o a unidade indissolúvel da
Palavra encarnada, não pregando — com o lhe era contestado — “dois
C ristos” . A cristologia de N estório revelou-se, todavia, infeliz, por ser
desprovida de instrum entos conceituais adequados. Se professava a uni­
dade de C risto, não tirou todas as conseqüências de tal convicção.
M ostrou que recusava a chamada communicatio idiom atum , ou seja, a
atribuição ao hom em dos atributos do Filho de Deus e vice-versa por
força do prim ado ontológico da pessoa em Cristo. O Concílio de
Éfeso de 4 3 1 , presidido pelo patriarca Cirilo de Alexandria, defensor
de um a cristologia alexandrina que falava de unidade de natureza,
unidade de hipóstase em C risto, condenou Nestório. A nteriorm ente,
Cirilo havia transm itido a ele um a carta do papa Celestino à qual
acrescentara 12 anatem atism os seus nos quais se formulava uma cris­
tologia alexandrina tão radical que nenhum antioqueno jamais teria
podido subscrever.
Em Éfeso, Nestório foi condenado e deposto, não obstante a au­
sência dos bispos sírios, os quais, guiados por João de Antioquia, con­
vocaram um anticoncílio em que renegaram a obra de Cirilo e dos outros
bispos. Após os tum ultos surgidos, o imperador depôs Nestório e Cirilo,
o qual conseguiu, porém , fazer-se reabilitar. Nestório, por sua vez, reti-
rou-se para um mosteiro de Antioquia. Mesmo depois do concílio, con­
tinuou a ter fortes defensores, que levaram o seu ensinam ento às últimas
conseqüências, sustentando a coexistência em Cristo de duas naturezas e
duas pessoas (hum ana e divina), sem união hipostática.
O m onofisism o de Êutiques
e o Concílio de Calcedônia (4 5 1 )

O term o indica a doutrina que considera Cristo o resultado da


composição das duas naturezas (hum ana e divina) que não subsistem
separadamente. Os adeptos do monofisismo consideravam que uma única
natureza passou a existir após a encarnação. Conseqüentem ente, o corpo
de Cristo não era com o o nosso, mas divinizado. Essa doutrina, presente
em germe no ensinamento da escola teológica de Alexandria, que ressal­
tava a iniciativa divina em detrim ento da contribuição do hom em (“o
Verbo se fa z carne” ), foi divulgada por Êutiques. De acordo com esse
m onge de Constantinopla, defensor de Cirilo no Concílio de Éfeso de
431, a união da natureza divina com a humana em Cristo comportava
a absorção desta última na primeira, de forma que só se podia fazer
referência a uma única natureza, precisamente a divina (“Confesso que
Nosso Senhor era ‘de duas naturezas’ antes da união, mas, depois da
união, confesso ‘uma só natureza” ’)30. Evidentemente, o monofisismo de
Êutiques menosprezava a humanidade de Cristo.
Fortalecido pelo apoio do patriarca de Alexandria, D ióscoro, e
afastados todos os seus adversários, Êutiques e seu ensinam ento leva­
ram a m elhor no concílio convocado em 449, em Éfeso, conhecido
com o “latrocínio efésio” . De nada valeram as queixas e os convites do
papa Leão ao im perador Teodósio II para a convocação de um novo
concílio. A m orte repentina do im perador (450) m udou a situação.
Pulquéria e Marciano, os sucessores de Teodósio, convocaram um sínodo
em Éfeso que, devido a uma guerra em andam ento, foi transferido para
Calcedônia. N o concílio lá realizado (451), a doutrina de Êutiques foi
condenada, não sem resistências por parte de alguns bispos. Nessa as­
sembléia prevaleceu o ensinam ento expresso anteriorm ente pelo papa
Leão ao bispo Flaviano de C onstantinopla (“Tom o a Flaviano” 449).
Nesse docum ento, Leão esclarecia que, com a encarnação, as duas
naturezas em C risto, preservadas as respectivas propriedades, unem-se
num a única pessoa. Cristo, portanto, é perfeito tanto na natureza humana
com o na divina. A teologia cristã que então se expressava “conseguiu
encontrar o justo meio entre pura transcendência divina e imanência,
que não adm ite elevação”31. Falar das duas naturezas não-separadas e

30. In ACO II,1,1, 143,10-11.


31. A. GRILLMEIER, Gesú il Cristo nella fede della Cbiesa, I, II, trad, do alemão,
Brescia, Paideia, 1982, p. 980.
não-confusas significa que a natureza hum ana ou a assunção da hum a­
nidade p or parte de Jesus pode ser realm ente levada a sério. “ O h o ­
mem Jesus não está na som bra do Filho de Deus, mas sob sua luz.”32
Em últim a análise, em bora com fórmulas aparentem ente obscuras com o
as de Calcedônia, esse concílio atestou o escândalo da fé cristã, sem
m edir Deus pela m edida hum ana. C om o declara Hilário de Poitiers em
Sobre a Trindade 1,13: “ Ela (um a fé sólida) não concebe Deus segun­
do as idéias que caracterizam a opinião com um e não julga Cristo
segundo os princípios do m undo, pois nele reside realm ente a pleni­
tude da divindade... Deixou-se crucificar... sofreu na natureza hum a­
na. Deus realizou essas coisas, que ultrapassam os limites do entendi­
m ento próprios da natureza hum ana e não estão sujeitas à percepção
natural de nosso intelecto, pois um a obra eterna e infinita exige uma
capacidade de entender igualm ente infinita” . O m érito de Calcedônia
está em ter afirm ado essa fé e em haver construído barreiras contra o
adocionism o, o m onarquianism o, o arianismo, o apolinarismo, o nesto-
rianismo e o monofisismo. C ontudo, a pesquisa sobre o mistério de
Cristo não pára ali.

P o s iç ã o d o s P roblem as R e p o s iç ã o d o s P roblem as

Nicéia (325) Calcedônia (451)


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C/3 II III IV V

í/i Ebionismo Gnosticismo Ário “N estório”


<L> Adocionismo (Modalismo) Apolinário Eutiques
<U Gnosticismo Paulo de de Laodicéia
X
Samósata

Inácio de Tertuliano Atanásio Cirilo de


Antioquia Orígenes Capadócios Alexandria
C/3
V Melitão de Antioquenos Nestório
0
*-» Sardes (D iodoro de
< Apologistas Tarso
Ireneu T eodoro de
Mopsuéstia)

32. Id., ibid., p. 979.


P o s iç ã o d o s P roblem as R e p o s iç ã o d o s P roblem as

Nicéia (325) Calcedônia (451)

ü II III IV V
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í/5
I a fase: 1- fase: I® fase: A unidade e a
Divindade de Hum anidade Divindade dualidade de
Cristo no de Cristo de Cristo Cristo
</i diálogo com contra Ario
4V
-> judeus e gregos 2 - fase: As duas
£ Divindade de 2 - fase: cristologias
2 a fase: Cristo contra Hum anidade patrísticas
Ê
o Hum anidade de Paulo de (alma
t3
5/5 Cristo contra o Samósata. humana) de
S gnosticismo Primeira Cristo.
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3 síntese com Início do
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Cristo

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OS PADRES E A DOUTRINA TRINITÁRIA

UANDO observamos os primeiros tempos da Igreja percebemos


Q que a doutrina trinitária não é fruto de uma especulação sobre
Deus, mas nasce antes da tentativa de reelaborar experiências históricas.
Trata-se de m anter a fé na divindade de Cristo e afirmar, ao mesmo
tem po, a unidade de Deus, sem sair do sistema m onoteísta herdado da
Escritura e defendido contra o paganismo1. Só no Concílio de Constan­
tinopla (381) a fórmula do único Deus existente em três pessoas iguais
será formalmente ratificada. O em penho dos primeiros pensadores cris­
tãos consistirá em encontrar uma linguagem adequada e fiel para expri­
mir o conceito de uma pluralidade de pessoas divinas profundamente
enraizado na tradição apostólica, na fé popular e já expresso no culto da
Igreja.
Observou-se que essa fé num a pluralidade de pessoas divinas cami­
nha simultaneamente com uma evolução semântica dos títulos de Deus
e prepara o terreno para o personalismo trinitário2.
Assim, o título de “Pai” deixa de qualificar a natureza ou o ser
divino (Pai = Deus) ou de ter caráter metafórico (Pai de Israel) e logo
se torna título de pessoa, com o significado de “Pai do Senhor nosso,
Jesus Cristo” (Rm 15,6). O mesmo acontece com aghennetos (não-gera-
do), que de início é propriedade essencial da natureza divina, mas a
seguir se tornará propriedade do Pai.

1. Cf. G. PRESTIGE, Dio nelpensiero dei Padri, trad, do inglês, Bolonha, II Mulino,
1969, p. 97.
2. Para as reflexões que seguem, reporto-me a R. CANTALAMESSA, “L’evoluzione
del concetto di Dio personale nella spiritualità cristiana”, Concilium 3 (1977), pp. 430-
442.
Evolução semântica análoga se encontra para “Filho de Deus”, que
da qualificação do cosmo (Platão) ou de um povo (Israel) se torna nom e
de pessoa: “o Filho unigénito que está no seio do Pai” (Jo 1,18). A
personalização mais forte diz respeito, porém, ao conceito de Espírito,
que, em bora usado para significar a Terceira Pessoa divina, não anulou
as acepções precedentes (Espírito como natureza divina e, numa acepção
cristológica, com o com ponente divino de Cristo: carne e espírito).
Deve-se observar que para realizar a passagem para o personalismo
trinitário concorreu a exegese prosopográfica de algumas passagens bíblicas,
que consistiu em ressaltar a existência de um diálogo no interior do
próprio Deus (ex.: Gn 1,26: “façamos o hom em ...”, SI 109,1: “Disse o
Senhor a meu Senhor, senta-te...” . O m onoteísmo personalista da Bíblia
tende assim a se transformar num m onoteísmo trinitário.
Sabemos que não se encontra no N T um “credo” estereotipado. O
que ali se encontra, sim, são três tipos de profissão de fé: em Jesus
Messias; na unidade de Deus e em Jesus; em Deus, em Jesus e no
Espírito Santo3. A passagem do anúncio cristão do m undo semítico ao
helenista com portou um predom ínio deste último esquema de fé triádico
(P ai/F ilh o /E sp írito Santo) sobre o primeiro tipo (menção apenas de
“Cristo Senhor” ). De fato, se os hebreus já acreditavam no único Deus
e tinham conhecim ento do Espírito Santo (cf. At 2,14-41), o querigma
aos pagãos exigia a explícita menção de ambos. O objeto central da fé
continua a ser, todavia, a pessoa de Cristo. Justam ente “porque crê em
Cristo Kyrios, o fiel do século I crê em Deus e no Espírito Santo”4.
O. Cullmann encontra diversos âmbitos ou m om entos de condens
ção das fórmulas de fé: batismo e catecumenato, culto regular (liturgia
e pregação), exorcismos, perseguições, polêmica contra os heréticos5. E,
porém, a circunstância do batismo que melhor nos atesta a fé trinitária
da Igreja. Nela, de fato, sobre o batismo originário administrado no ou
em nome de Cristo (cf. G1 3,27) afirmar-se-á a fórmula triádica presente
em M t 28,19 (“ide... batizando-as em nom e do Pai e do Filho e do
Espírito Santo” ), que já aparece na Didaché 7 e se encontrará depois em
Justino (cf. 1 Apologia 61, 3) e em Ireneu (cf. Demonstração 3). Com
base nesse material oferecido pelo N T e pela liturgia, os primeiros teó­
logos deverão dar vida a formulações mais elaboradas do mistério trinitário.

3. Cf. H. A. WOLFSON, La filosofia dei Padri della Chiesa, trad, do inglês, Brcscia,
Paideia, 1978, p. 133.
4. O. CULLMANN, La fede e il culto delia Chiesa primitiva, trad, do francês, Roma,
AVE, 1974, p. 110.
5. Cf. id., ibid., pp. 77-92.
A reflexão trinitária no século II

Deve-se ter presente que no interior do judeu-cristianismo já se


procedera a uma interpretação da nova lei — de m odo diferente, mas
não menos interessante com relação à elaboração sucessiva da teologia
em categorias metafísicas — com base nas categorias do judaísmo con­
tem porâneo e, mais particularmente, nas extraídas da apocalíptica do
judaísmo tardio6. Percebe-se um elem ento significativo dessa teologia
arcaica na utilização da terminologia angelológica para designar o Verbo
e o Espírito. E aceito que o título de “anjo” atribuído a Cristo não
implica que ele o fosse. Essa linguagem, sobretudo fora do contexto
judeu originário, mostrava-se ambígua e alguns ebionitas realmente a
tomaram em sentido estrito para significar a inferioridade de Cristo com
relação a Deus. C ontudo, “o term o” — com o observa J. Danielou —
“representa a forma semítica da designação do Verbo e do Espírito Santo
com o substâncias espirituais, como ‘pessoas’. Mas estes últimos termos
só serão introduzidos na teologia m uito mais tarde; anjo é seu equiva­
lente arcaico”7. Não é de admirar, porém, que o caráter subordinacionista
ligado a esse título (os anjos com o “ mediadores” de Deus) determine seu
rápido declínio8.
Os textos dos Padres Apostólicos, apesar da heterogeneidade de
autores, de temas e de ambientes, nos remetem a um meio judeu-cristão
que ainda tem dificuldades de se desvencilhar do ventre originário. O
primeiro testem unho dessa dificuldade é Clemente Romano, o qual, se
recorre algumas vezes a fórmulas trinitárias9, revela uma concepção
cristológica ainda judaizante, uma vez que jamais atribui a Cristo o título
de Deus e não enfatiza a sua preexistência. Esta, porém , aparece afirmada
pelo Pastor de Hermas, obra redigida em várias etapas, que se vale de
expressões adocionistas e binitárias. Inserido na tradição judeu-cristã,
Hermas apresenta o Cristo preexistente como “anjo” (Engelchristologie)1°.
Em algum as passagens identifica o Filho com o E spírito Santo
( Geistchristolo£[ie)n . E, se “o define corretam ente com o Filho de Deus,
jamais afirma nem dá a entender que foi gerado realmente pelo Pai e não
lhe concede o título de Deus. Em suma, concebe-o com o um persona­

6. Para esse assunto remeto a J. DANIELOU, La teologia deigiudeo cristianesimo,


trad. do francês, Bolonha, II Mulino, 1974.
7. Id., ibid., p. 217.
8. Id., ibid.
9. Cf. Carta de Clemente aos Coríntios, 46,6; 58,2.
10. Cf. Visão V, 2; Semelhança 7,1; 8,1,2 etc.
11. Cf. Semelhança 5,5,2; 5,6,5.
gem de dignidade e natureza transcendentes às humanas, sem ser, porém,
divinas, colaborador de Deus na criação e no governo do m undo, mas'
num plano de nítida inferioridade”12. Em Inácio é afirmado o caráter
cnstológico de seu pensamento. Se a fórmula triádica é utilizada pelo
menos três vezes, a menção de Pai e de Cristo é mais freqüente. A este
o bispo antioqueno reserva o título de “Deus” : “deixem que eu imite a
paixão do meu D eus”, escreve na C arta aos Romanos 6,3. Trata-se, p o ­
rém, de expressões que podem ser facilmente interpretadas em sentido
teopasquita. Um ponto em que o pensamento de Inácio é claro é o que
se refere à filiação divina de Cristo que tem início com a encarnação. E
a partir dela que há uma Trindade de Deus, Cristo e Espírito Santo.
“Antes desse nascimento (ou seja, de Cristo), havia somente Deus e um
Cristo preexistente, que é chamado de Logos ou Espírito Santo.”13 Ana­
lisando também os outros Padres Apostólicos, H. A. Wolfson pode decla­
rar que, passada a época destes, “não existia a crença num a Trindade
preexistente. Para eles, a Trindade de Deus, Cristo e Espírito Santo teve
início com o nascimento de Jesus e continuou após a sua ressurreição e
ascensão. Antes de seu nascimento, havia somente dois seres preexistentes,
Deus e o Espirito Santo, esté ultimo identificado com o Cristo preexistente,
e o term o Logos, quando ocorre, pode ser identificado com o Espírito
Santo” 14. Será com os apologistas que se dará a distinção entre o Espírito
Santo preexistente e o Logos preexistente. Nesse caso, a Trindade já existe
■anteriorm ente ao nascimento de Jesus e até precede a criação do m undo.
Embora m antendo a fe no monoteísmo bíblico, esses autores do século
II, influenciados tanto pela filosofia da época (medioplatonismo) como
pelo judaísmo helenista, particularmente por Fílon, estabeleceram uma
ordem em Deus. Com o declara Justino: “Vemos em Jesus Cristo o Filho
do verdadeiro Deus, que colocamos em segundo lugar, reservando o
terceiro para o Espírito profético, que reverenciamos como o Logos” 15.
Em relação ao Logos, apologistas com o Justino, Atenágoras e Teófilo
distinguirão dois estados na sua preexistência: um com o Logos imanente
ou pensamento do Pai e outro subseqüente, vinculado à criação, como
Logos proferido pelo Pai. “Uma vez que Deus tinha o próprio Verbo
imanente no próprio coração” — declara Teófilo —, “gerou-o juntamente
com sua sabedoria, em anando-o antes de todas as outras coisas.”16 Trata-

12. M. SIMONETTI, “II problema dell’unità di Dio a Roma da Clemente a Dionigi”


in RSLS 22, 3 (1986), p. 446.
13. H. A. WOLFSON, La filosofia..., p. 173.
14. Id., ibid., pp. 177-178.
15. JUSTINO, I Apologia XIV, 3.
16. TEÓFILO, I I Livro a Autólico, 10. Cf. também id., ibid., 22, sobre os dois
“estados” do Logos, cf. JUSTINO, I I Apologia VI,3.
-se de uma geração espiritual ou repartição produzida pela vontade do Pai
(= Deus), que “não produz deficiência alguma naquilo de que provém” ,
precisamente como o fogo que não diminui o da tocha do qual é tirado17.
Em suma, Deus, “ao gerar o Verbo, não ficou privado de seu Verbo” 18.
Esses autores recorrem, pois, à doutrina filoniana, joanina e estóica
do Logos tanto para com preender a sua preexistência no Pai (= Deus)
como para expressar o sentido de sua manifestação. Todavia, esse seu
m odo de ver a criação, se preserva a distinção das pessoas, favorece —
inclusive em razão de uma terminologia pouco apropriada — o subordi-
nacionismo: enquanto Deus permanece transcendente, incognoscível,
invisível, o Logos proporciona-se com o mundo: “Deus, Pai de todas as
coisas, é irreprimível e não se encontra em nenhum lugar... Mas o seu
Verbo, por meio do qual criou todas as coisas... caminhava no jardim na
pessoa de Deus e falava com Adão”19.
Ao contrário dos apologistas, Ireneu de Lião evita a teoria dos dois
estágios do Logos e prefere concebê-lo com o ser gerado, desde sempre
coexistente com Deus20. Rejeita, por isso, as tentativas de explorar o
processo de geração ou emanação do Verbo21. Deus, enquanto racional,
teve sempre o seu Logos e, enquanto espiritual, teve sempre o seu Es­
pírito. Ambos, Filho e Espírito, são as suas “ mãos”, ou os meios de sua
auto-revelação. C ontudo, Ireneu exclui nesta toda subordinação, uma
vez que as três pessoas, por sua natureza, são igualmente inacessíveis, mas
se revelam por graça22. Certam ente, a imagem de Deus como um h o ­
mem dotado de funções intelectuais e espirituais, que expressa o m ono­
teísmo cristão e é útil para evidenciar as reais distinções em Deus, ofus­
cava a posição de “pessoa” do Filho e do Espírito antes de sua geração.
Pode-se falar, portanto, de um “trinitarismo econôm ico”23, “definição
adequada e conveniente desde que não se admita que, ao reconhecer a
Trindade revelada na ‘economia’ e preocupar-se por ela, Ireneu ficava
impossibilitado de reconhecer também o misterioso ser três-em-um da
vida interior da Divindade”24.

17. TACIANO, Discurso aos gregos, 5.


18. TEÓFILO, II Livro a Autólico, 22.
19. Id., ibid.
20. Contra as heresias II, 30,9.
21. Isso acontece com base cm Is 55,8: “generationem eius quis enarrabit?!...”, in
Contra as heresias II, 28,5.
22: Cf. Contra as heresias IV, 38,1.
23. Cf. J. N. D. KELLY, IIpensiero cristiano delle origini, trad, do inglês, Bolonha,
II Mulino, 1972, pp. 134-135.
24. Id. ibid., pp. 134-135.
As primeiras heresias trinitárias:
adocionism o, m odalism o, sabelianismo

A heresia trinitária monarquianista (ou monarquianismo) difundida


nos séculos II e III, e que consistia em negar às três Pessoas divinas uma
existência própria e distinta, em favor de um m onoteísmo radical, tem
origem no judeu-cristianismo heterodoxo. Esse erro assumiu uma dupla
forma: adocionista e modalista. Segundo o monarquianismo adocionista
ou “dinâm ico” difundido em Roma por Teodoto (c. 190), Cristo teria
sido um simples hom em adotado por Deus no nível de Filho de Deus.
Por volta da m etade do século III, distinguiu-se com o expoente desse
pensamento o bispo de Antioquia, Paulo de Samósata, condenado no
sínodo de Antioquia de 268 por bispos de tendência origenista, defen­
sores da idéia de três Pessoas eternas e subsistentes. Paulo não tinha
dificuldade em usar a formula trinitaria, mas parece que dava o nom e de
Deus ao Pai, o de Filho ao hom em Jesus e o de Espírito Santo à graça
infundida nos apóstolos25. Filho e Espírito eram apenas nomes. Daí a
insistência do sínodo antioqueno em reafirmar que o Verbo era uma
substância.

Para o m onarquianismo modalista, o único Deus se manifestava a


nós de diversos “m odos” . Essa orientação de pensamento encontrou
repercussão tam bém nos ambientes eclesiásticos oficiais, especialmente
em Roma. Ele parecia realmente preservar a unidade de Deus e a divin­
dade de Cristo e se opunha à teologia do Logos, de origem erudita e
aberta à influência inovadora e sempre suspeita da filosofia grega26.
Os modalistas acreditavam que, para preservar a unidade de Deus,
lhes bastava rejeitar a distinção entre o Pai e o Filho. Tal concepção foi
possível não só pela ausência de distinção entre os conceitos de natureza
e de pessoa, mas tam bém porque, na linguagem religiosa comum e até
entre os cristãos do século II, o título de “Pai”, antes de se tornar nom e
“próprio” de uma pessoa divina (= Pai de Jesus Cristo), constituía um
sinônimo de “D eus”, atributo da natureza divina. N oeto de Esmirna
difundiu o pensamento modalista (fim do século II). Para ele, “o próprio
Cristo é o Pai; o Pai é aquele que se encarnou, que sofreu e que m or­
reu 11. C ondenado pelos presbíteros de sua cidade, Esmirna, N oeto
encontrou um discípulo em Epígono, que propagou sua doutrina em
Roma.

25. Cf. id., ibid., pp. 147-148.


26. Cf. M. SIMONETTI, II problema..., op. cit., pp. 470-473.
27. H IPÓLITO , Contra- Noeto I.
A partir dos primeiros decênios do século III, o monarquianismo
modalista recebeu também o nom e de “sabelianismo” devido ao herético
originário da Líbia, Sabélio, que, condenado pelo papa Calisto (c. 220),
difundiu essa doutrina no Egito e na Líbia. Defensor de um rígido
m onoteísmo, Sabélio considerava a divindade uma mônada que se ma­
nifestava (ou que se ampliava) em três operações diferentes: Pai no AT,
Filho na encarnação, Espírito Santo em pentecostes. Com essa concep­
ção, Sabélio foi inovador em relação ao modalismo elementar de seus
precursores, pois introduziu o Espírito Santo na economia da salvação e
evitou falar de encarnação e de paixão do Pai. Essa “heresia da união ’
considerava o Pai, o Filho e o Espírito Santo um só prosopon e uma só
hipóstase. É difícil precisar a extensão e a duração do sabelianismo, que,
para salvaguardar rigidamente o princípio da monarquia divina, se con­
trapôs à Logostheologie.

A reflexão trinitária de Tertuliano e Orígenes

N ão se pode negar que os grandes teólogos do século III, como


Tertuliano, H ipólito, Novaciano, Clem ente e Orígenes, em sua elabora­
ção científica da fé, tiveram de enfrentar o m au-hum or dos “simples” ,
temerosos de que a proclamação de uma tríade introduzisse duas ou três
divindades. Diz Tertuliano a respeito deles: “C om o a mesma regra de
fé nos faz passar do politeísmo do m undo pagão ao unico e verdadeiro
Deus, todas as pessoas mais simples (para não dizer as mais inexperientes
e menos inteligentes), que são sempre a maioria dos fiéis, não com preen­
dem que se deve crer que Deus é único, mas tem sua própria economia
e, por isso, assustados com tal econom ia..., andam dizendo por aí que
pregamos duas ou três divindades. Consideram-se adoradores de um
único Deus, com o se não constituísse uma heresia o m onoteísmo irracio­
nalmente restrito e não fosse uma verdade a trindade racionalmente
difundida”28.
Tertuliano defende-se das acusações, insistindo que a Trindade re­
velada na economia não é incompatível com a monarquia de Deus, mas
a consolida. É a analogia com o único poder imperial exercido por vários
agentes que fortalece sua tese: “ ... pelo simples fato de se referir a uma
única pessoa, a monarquia não obriga aquele que a possui a não ter
tam bém um filho ou a não gerar um filho ou a não exercer o seu império
monárquico por meio daqueles que desejar... Deves pensar” — continua

28. Contra Praxéias, 3,1.


— “que se tem o fim da monarquia somente quando se sobrepõe uma
outra dominação, dotada de condições próprias e de natureza própria,
inimiga portanto, e quando se introduz outra divindade contra o criador
ou mais divindades”29.
Ele rejeita a idéia de que a distinção entre os Três seja uma sepa­
ração. E, antes, uma distinção, espelhada na imagem da unidade que
existe entre raiz-arvore-fruto ou sol-raio-ponta do raio ou raiz-tronco-
fruto30. M esmo então — explica Tertuliano — , “nada é tirado da matriz
da qual extrai suas propriedades. Assim a Trindade, através de uma série
de degraus cruzados e interligados, descende do Pai e não se opõe à
monarquia, mas protege a natureza da economia”31. Sob esse ponto de
vista, Tertuliano supera Ireneu na procura em exprimir melhor a unicidade
da substância divina da qual os Três eram expressão ou formas e na
definição destes com o “pessoas”, entendidas como “a apresentação con­
creta de um indivíduo enquanto tal”32.
É sobretudo na obra Sobre os princípios que encontramos a exposi­
ção da reflexão trinitária de Orígenes, que constitui reinterpretação da
norma de fe nos termos do medioplatonismo. O pensador alexandrino
põe com o vértice de seu sistema Deus, único não-gerado, bondade per­
feita que sempre deve ter tido alguém a quem dirigi-la: um m undo de
seres espirituais, ou almas, com ele coeternos33. Com o term o de contato
entre estas e o Pai está o Verbo, gerado num a geração contínua e eterna,
que garante a coeternidade do Filho em relação ao Pai e assegura de
igual m odo a ausência de qualquer princípio de caráter temporal34. D e­
vido a essa geração, o Filho participa de todas as prerrogativas divinas do
Pai, que levam a reconhecer a sua divindade35. Todavia, o fato de ele agir
como “m inistro” do Pai o põe num nível subordinado36. Essa subordi­
nação se estende depois ao Espirito Santo, de natureza e caráter divinos,
o único que com o Filho conhece o Pai37, “o mais honrado de todos os
seres trazidos à existência através do Verbo e o primeiro de todos os seres
originados do Pai através de Cristo”38. Evidentemente, a subordinação de

29. Ibid., 3,2.6.


30. Cf. ibid., 8,5-7.
31. Ibid., 8,7.
32. J. N. D. KELLY, op. cit., p. 144.
33. Cf. Os princípios I, 2,10.
34. Cf. ibid., 2,6.9.11; IV, 4,1.
35. Cf. ibid., I, 2,10.
36. Cf. ibid., prefácio, 4; I, 2,13; IV, 4,8.
37. Cf. ibid., I, 3,4.
38. Comentário sobre Jo, 2,10.75.
que tratamos “é conceito que Orígenes compartilha com todos os repre­
sentantes da Lojjostheolojjie, uma vez que, até por efeito da influência de
certos esquemas filosóficos platônicos (‘segundo Deus de Num enio etc.),
a função intermediária do Logos entre Deus Pai e a criação é assumida
com o expressão de inferioridade. Esse aspecto e evidente na doutrina
origenista das cpinoiai. O conceito de que o ser emanado de Deus
supremo caracteriza-se pela multiplicidade em relação a unidade daquele
é m u ito d ifu n d id o na época de O ríg en es”39. N ão o b stan te esse
subordinacionismo, Orígenes afirmou o hiato que divide a realidade criada
da Trindade. “De fato, somente na Trindade, que é criadora de tudo, o
bem existe de m odo substancial: os demais seres o possuem de forma
acidental e de tal m odo que pode vir a faltar.”40
O subordinacionismo, presente na teologia de pesquisa do doutor
alexandrino, é retomado por seu aluno, Dionísio, bispo de Alexandria, o
qual, numa polêmica com o sabelianismo, presente na Pentápole líbia,
acentuou de m odo infeliz a distinção entre Pai e Filho. O recurso, por
parte do grupo sabeliano, a Dionísio de Roma induziu o bispo alexandrino
a formular melhor o seu pensamento e a formular com precisão a insepara­
bilidade de Pai, Filho e Espírito Santo, bem como a eternidade do Filho.
A respeito da acusação de não ter adotado o term o omoousios, Dionísio
respondeu que, embora tal termo não se encontrasse na Escritura, ele o
aceitava desde que tivesse o significado de “partícipe da mesma natureza
O utro episódio significativo do século III diz respeito aos dois
sínodos realizados em Antioquia, nos quais Paulo, bispo da cidade, foi
incriminado e deposto sob a acusação de adocionismo. Ao que parece,
ele defendia uma teologia unitária na qual o Logos não passava de uma
faculdade operativa divina, desprovida de subsistência. As qualificações de
Filho e Espírito Santo eram meros nomes que indicavam respectivamente
o hom em Jesus e a graça concedida por Deus aos apóstolos. Paulo não
questionava a fórmula trinitária, mas retirara todo o seu conteúdo. Daí
a sua condenação por parte de bispos origenistas, fieis a ideia das tres
pessoas eternas subsistentes.
Essa oposição nos dá uma idéia de duas linhas diferentes de pensa­
m ento, que se opunham até se chocar: “O trinitarismo ocidental... fora
por longo tem po marcado por um preconceito monarquianista; os teó­
logos que o representavam tinham uma idéia claríssima: a da unidade

39. M. SIMONETTI, Introduzione a I principi, Turim, U tet 1979, p. 49.


40. Os princípios I, 6,2.
41. Cf. J. N. D. KELLY, op. cit., pp. 166-169.
divina. M esm o plenam ente convencidos da realidade das distinções no
âm bito de tal unidade, consideravam-nas tão misteriosas que apenas
começavam, com hesitação e tim idez, a considerá-las ‘Pessoas’. N o
O riente, onde o clima intelectual estava im pregnado de idéias neo-
platônicas sobre a hierarquia do ser, estabelecera-se uma visão com ple­
tam ente diferente e explicitamente pluralista. A discordância fundam en­
tal era, p o rtan to , teológica e haveria de se manifestar novam ente no
século seguinte”42.

O C oncílio de Nicéia (3 2 5 )

A pergunta fundamental que determina e orienta esse concílio é de


tipo trinitário: que significa para os cristãos a Tríade divina? Em resumo,
é preciso voltar a disputa entre Ario (256-336), presbítero da Igreja de
Alexandria, e seu bispo, Alexandre. A reflexão de ambos se reduz ao
pensamento de Orígenes. Ário, todavia, com base no medioplatonismo
e num contexto de polêmica anti-sabeliana, radicalizou o subordina-
cionismo presente no mestre alexandrino. A idéia de que o Filho, por ser
gerado, não pode ser coeterno com o Pai revelou-se um dos pontos
centrais de seu pensamento. A exclusão da coeternidade caminhava si­
multaneam ente com a afirmação de que o Filho não é gerado pela subs­
tância (ousia) do Pai, mas criado antes do tem po e em vista da criação.
Para Ario, a consubstancialidade comportaria a divisão da substância divina
em duas partes, reduzindo a divindade a categorias físicas. C onseqüen­
tem ente, a filiação divina de Cristo subsiste, não por natureza porém ,
mas por adoção e por graça. Alexandre, por sua vez, afirma a geração ab
aeterno do Filho e, portanto, sua coeternidade com o Pai. Não é, por
isso, criatura. Para afastar a objeção ariana de que a geração é semelhante
à geração corpórea, o bispo alexandrino esclarecerá que ela se deu de
m odo inexplicável, sem divisão ou por eflúvio. Segundo Alexandre, a
única nota que distingue o Filho do Pai é o fato de ser gerado. Q uanto
ao mais, o Filho é imagem e marca perfeitíssima dele, reproduzindo em
tudo, em relação ao modelo, uma semelhança total. Se, em suas afirma­
ções, Alexandre demonstra não possuir uma linguagem técnica para definir
a união do Pai e do Filho, na polêmica com Ário, porém , preserva a
condição de Cristo, verdadeiro Filho e verdadeiro Deus.
O conflito doutrinal entre Ário e Alexandre atingiu sobretudo o
Oriente, onde as diversas tendências doutrinais foram levadas ao Concílio

42. Cf. id., ibid., p. 169.


de Nicéia na pessoa de alguns bispos importantes: ao lado de Ario e
Alexandre, respectivamente expoentes de um origenismo radical e de um
m oderado, aparece, com o figura intermediária, Eusébio de Cesaréia,
defensor do conceito teológico, mas tam bém político, de “monarquia” .
Ao ressaltá-la, Eusébio acentuará também a subordinação do Filho, sem
o excluir, porém — nem a ele nem ao Espírito Santo — , do m undo da
Divindade. O utro personagem-chave do Concílio de Nicéia é Marcelo de
Ancira, defensor resoluto de um m onarquianismo econômico com base
no qual Deus é uma mônada indivisível e o Logos uma faculdade operativa
deste, desprovida de real subsistência. N o m om ento da encarnação, a
mônada ter-se-ia dilatado — mas sem distinção de pessoas — em díade
e, com o envio do Espírito Santo, em tríade. Trata-se, porem, de uma
fase de passagem ligada à economia (criação e redenção) e, ao seu tér­
mino, a tríade seria reabsorvida na mônada originária.
Em Nicéia, Eustáquio de Antioquia defenderá um monarquianismo
moderado. U ne-o a Marcelo a aversão ao subordinacionismo de Ario e
à doutrina das três hipóstases, que lhe parecia uma forma de triteísmo.
Com essas diversas posições doutrinais chegou-se no Concílio de
Nicéia a uma fórmula de fé na qual se especificava: “Creio no Senhor
Jesus Cristo, filho de Deus, único gerado pela essência do Pai, Deus de
Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não
criado, consubstanciai ao Pai” . N o Concílio, o term o consubstanciai
(omoousios) foi imposto sem que fosse estranha a influência de Constantino.
O uso que os monarquianistas já faziam dele, bem com o a ambigüidade
de significados e a conotação materialista que podia assumir, justifica por
que, depois de Nicéia, foi deixado de lado, inclusive pelos antiarianos.
Será recuperado por Atanásio, depois de 355, sobretudo no Ocidente.
N o Oriente, todavia, as polêmicas sobre esse term o só se abrandarão
devido ao papel esclarecedor de Basílio de Cesaréia e de Gregório de
Nazianzo, que interpretaram ousia (substancia) no significado de subs­
tância divina comum às três hipóstases. Será o Concílio de Constantinopla
de 381 que, recusando toda expressão de subordinacionismo, sancionará
o reconhecim ento da consubstancialidade também para o Espírito Santo.

A doutrina trinitária de Mário Vitorino,


H ilário e Agostinho

São poucas as informações sobre Mário Vitorino (c. 280-depois de


362), retórico e filósofo neoplatônico convertido já adulto ao cristianis­
mo. O pensamento platônico e joanino por ele cultivado ajudou-o a
elaborar uma reflexão trinitária que, pelo caráter altamente filosófico e
técnico, não obteve consideração mais atenta43. Mário Vitorino concebe
a Trindade como uma dupla díade: P ai/Filho e C risto/E spírito Santo.
Na primeira, a relação P ai/Filho é entendida com o autodelimitação do
Pai infinito: o Filho é o Pai que se autodelimita, capacidade de pensa­
m ento que se delimita como pensamento, ser em potência (Pai = esse)
que se torna ser em ato (Filho = sic esse). Essa passagem é uma autogeração
na qual a sucessão é lógica, não cronológica. Há, portanto, uma absoluta
igualdade entre Pai e Filho, que são unum , não pela unidade de dois
seres antecedentes, mas pela simplicidade que fundamenta a sua união.
A distinção entre eles baseia-se no conceito do predomínio que leva um
aspecto a se destacar sobre outros: assim, o Pai é mais esse, potentia,
substantia, o Filho é mais motus, actio, vita. Conclui-se daí que Pai e
Filho são idem, não ipse, uma vez que a identidade não exclui a alteridade.
Posta a díade Pai/Filho, Mário Vitorino distingue uma segunda díade no
Filho: C risto/E spírito Santo, ou m ovimento dirigido para fora (Cristo,
ser e vida) e movimento dirigido para dentro (Espírito Santo, sabedoria,
inteligência). O Filho manifesta-se com o Espírito Santo somente depois
de Cristo ter concluído a sua obra com a ascensão. Por isso, enquanto
Cristo deriva do Pai, o Espírito Santo deriva de Cristo com uma relação
análoga e, em última análise, o próprio Espírito Santo deriva do Pai. Esse
desdobram ento do motus (Filho) em vida (Cristo) e inteligência (Espírito
Santo) é entendido como um processo de descida/subida no qual o
Espírito Santo age como copula, pois reúne ao Pai o Filho que dele se
afastara. Com esse m odo de ver, Mário Vitorino defende o princípio do
consubstanciai. Além disso, “com base nessa interpretação platonizante
da Trindade, a relação entre as três pessoas divinas é entendida como
identidade propriam ente dita, na qual cada uma delas, porém , tem
potentiam suam (personalidade, individualidade) graças às diversas
operationes, que a faaem ser outra em relação às outras devido ao ato
específico inerente à sua potentia”44.
C ontem porâneo de Mário Vitorino, Hilário de Poitiers, nos doze
livros do De Trinitate, tentou sintetizar o pensamento trinitário em pers­
pectiva anti-sabeliana e antiariana. Afirmada a unidade de natureza e a
distinção de pessoa no Pai e no Filho, Hilário vê essa unidade como uma
total compenetração de um no outro. O que os diferencia é a relação de
origem: o Pai realmente gerou o Filho sem diminuição ou alteração de

43. Cf. M. SIMONETTI, La crisi ariana nel IV secolo, pp. 287-298.


44. Id., “Mário Vitorino” (verbete), in DPAC II, 2124.
sua natureza e o Filho recebe e contém em si tudo o que é do Pai, sendo
assim totalmente igual a Ele45.
A originalidade de pensamento e de formulações presentes em Mário
Vitorino e em Hilário prepararam terreno para a reflexão trinitária de
"Agostinho, iniciada em 399 e concluída vinte anos depois. Ele “não
chega à doutrina da Trindade seguindo as suas origens históricas:
encarnação do Filho, experiência na primeira comunidade do Espírito;
ele parte... ‘filosoficamente’ da eterna existência da divindade em si
mesma”46. Esse modo de ver mostra indiscutíveis vantagens porque ex­
plica como o mistério da Trindade transcende toda representação hum a­
na e esclarece que toda tentativa hum ana de entendê-lo conserva sempre
alguma coisa de simbólico. Ao pôr em primeiro plano a unidade da
Trindade, esse enfoque exclui toda forma de subordinacionismo. Enfim,
partindo do alto e valendo-se nisso da filosofia neoplatônica, pode “su­
perar determinadas fraquezas do materialismo da antiga linguagem figu­
rada, qualificando as coisas de um m odo mais preciso do que antes”47.
Pardndo dessas considerações, Agostinho esclarece que a essência
ou substância divina não é “uma espécie de quarta pessoa”48. Cada uma
das três Pessoas divinas, do ponto de vista da substância, é idêntica às
outras. Tudo o que pertence à natureza divina, que é única, deve ser
expresso no singular. Não há, por isso, três infinitos, três onipotentes etc.
Enfim, na base de uma única substância, há uma única ação indivisível,
uma única atividade e uma única vontade. C ontra a impressão de ofuscar
os papéis ad extra, das três Pessoas divinas, Agostinho explica que cada
uma das Pessoas possui a natureza divina numa maneira particular e,
portanto, parece correto atribuir a cada uma, na sua ação ad extra, o
papel que lhe é próprio em virtude de sua origem. Na verdade, é a
relação de origem que distingue as Pessoas divinas: o Pai é Pai porque
gera, o Filho, porque é gerado, e o Espírito, porque é “dado” por
ambos. N o pensamento agostiniano, as três Pessoas tornam-se assim três
relações reais e subsistentes. “Em bora não seja a mesma coisa ser Pai e
ser Filho, todavia a substância não é diferente, porque esses epítetos não
pertencem à ordem da substância, mas da relação; relação que não é
acidental porque não é mutável.”49

45. Cf. id., “Hilário dc Poitiers” (verbete), in ibid., 1749-1750.


46. Cf. H. VON CAMPENHAUSEN, “Agostino”, in I Padri delia Chiesa latina,
trad, do alemão, Sansoni, pp. 232-233.
47. Id. ibid.
48. Cf. Carta CXX, 3,13-17.
49. Sobre a Trindade V, 5,6.
Em relação ao Espírito Santo, o doutor de H ipona procura explicar
o que seja a processão e com o ela se diferencia da geração do Filho. Ele
reconhece que o Espírito procede do Pai e do Filho50. Principalmente,
porém , do Pai, que concedeu ao Filho expirá-lo51. Ele procede como
Amor e, por isso, não é gerado, uma vez que o amor não é imagem, mas
dom e com unhão. N ão há, portanto, “dois filhos” . O aspecto mais ori­
ginal oferecido à teologia trinitária por Agostinho deve ser reconhecido
na explicação “psicológica” da Trindade. Na procura de uma realidade
criada que ofereça uma certa analogia com o mistério trinitário, Agosti­
nho a encontra na alma “feita à im agem ” . Ele chega assim a afirmar que
na alma se tem um a “trindade mais evidente”52. Com efeito, a análise da
alma mostra um esquema ternário: ser, conhecer, querer. A alma, que é,
faz-se uma imagem de si mesma e, graças a essa imagem, ama a si mesma.
Na aplicação que Agostinho faz à Trindade, o Pai conhece a si mesmo,
faz uma imagem de si mesmo que lhe é igual e que é Pessoa (Filho), ama
a sua imagem, a qual, sendo pessoa, por sua vez o ama. Esse amor é
também Pessoa: o Espírito Santo.
Evidentem ente, a explicação “psicológica” é totalm ente analógica e
tem limites que Agostinho é o primeiro a reconhecer, mas fiindamenta-
-se na Escritura: na designação de Cristo como “imagem de Deus invi­
sível” (Cl 1,15), com o Verbo (cf. Jo 1,1), como “espelho da glória de
Deus, a imagem perfeita do que Deus é” (H b 1,3). De outra parte, nas
cartas paulinas, o Espírito figura como relacionado ao am or (cf. Rm 5,5;
15,30 etc.). A aplicação de Agostinho, portanto, não é arbitrária.
C ertam ente, tanto a teoria elaborada pelo bispo de H ipona como
as outras aqui examinadas exprimem os condicionamentos culturais, so­
ciológicos, religiosos de seus autores. E im portante tom ar consciência
disso para não aceitar com espírito de dogmatismo a sua reflexão, que se
torna testem unho estimulante no m om ento em que é enquadrada histo­
ricamente.

50. Cf. ibid., 5, 14.15.


51. Cf. ibid. XV, 17.29.
52. Ibid. XV, 3,5.
OS PADRES E A PNEUMATOLOGIA

Breve apanhado doutrinal

REMOS também no Espírito Santo, que é Senhor e dá a vida, que


__procede do Pai; que com o Pai e com o Filho deve ser adorado e
glorificado e que falou por meio dos profetas.” 1 Nestes termos se expres­
sou o I Concílio de Constantinopla, de 381, a respeito do Espírito
Santo. De modo solene e pela primeira vez reconheceu-se a sua plena
divindade, contestada pelo grupo dos macedonianos ou pneumatômacos.
Com o se vê, na determinação “dogm ática” da figura e dos papéis do
Espírito — como também de outros artigos do Credo — há uma situa­
ção de polêmica. E isso não deve ser esquecido, uma vez que, nesse
contexto, se ressalta o que Ele é e que outros negam, mas não se diz
tudo a seu respeito. Acentuam-se alguns aspectos, ao passo que outros
são negligenciados.
Ficaríamos ainda mais admirados ao constatar que não apenas os
pneumatômacos e antes ainda os arianos consideram o Espírito Santo
subordinado ao Filho, um anjo2, mas que até um autor de grande pro­
fundidade e de indiscutível fé ortodoxa com o Hilário de Poitiers jamais
fala de “pessoa divina”, mas apenas de dom , de res da natureza divina3.
Realmente, a fé no Espírito Santo como “pessoa divina” se afirma bas­
tante tarde. É compreensível, pois, que se pergunte se não existe uma
certa dissonância entre os símbolos de fé triádicos e a teologia. Que

1. G. ALBERIGO (org ), ‘Concílio Constantinopolitano I — Símbolo”, in Decisioni


dei concili ecumenici, Turim, Utet, 1978, p. 117.
2. Cf. C. KANNENGIESSER, “Constantinopla” (verbete), in DPAC I, 814.
3. Cf. M. SIMONETTI, “La crisi nel IV secolo”, in Studia Ephemeridis “Augusti-
nianum” 11, Roma 1975, p. 309.
sentido teria, enfim, e com o interpretar a disposição presente em M t
29,19 de batizar “todos os povos em nom e do Pai e do Filho e do
Espírito Santo”, fórmula que se imporá sobre a outra segundo a qual o
batismo era conferido som ente em nom e de Jesus? (cf. At 2,38; 8,16;
10,48; IC o r 1,13; G1 3,27 etc.). Justam ente conform e.o adágio de
Mateus, em todos os símbolos batismais que constituem o lugar prim á­
rio de condensação do credo sucessivo, a menção do Espírito Santo
jamais faltará. Isso não significa, contudo, que desde o início idéias e
linguagem inerentes à Terceira Pessoa divina e à sua ação fossem sempre
claras e aceitas por todos. Se é verdade que “a crença do Espírito Santo
não é peculiar do cristianismo, mas uma das crenças herdadas do juda­
ísm o”4, é igualm ente verdade que ela, no cristianismo, teve de m udar5
e trouxe diversos problemas. Um deles diz respeito sobretudo ao “m odo”
e à “form a” da revelação do Espírito, hum anam ente não tão fáceis de
com preender com o a figura do Filho em Jesus e a do Pai. Não sem
razão se falou de uma kenosis do Espirito Santo, que se dá a conhecer
"somente pelo que realiza em nós6. Um outro problem a diz respeito à
própria noção de “ Espírito” , que na Escritura não é unívoca e aparece
com três acepções: — Espírito còm o natureza divina ( “Deus spiritus
est” , Jo 4,24); — Espírito de Deus, com o com ponente divino do Filho
(cf. Rm 1,3-4); — Espírito Santo, com o Terceira Pessoa.
N ão admira que essa linguagem tenha originado alguns equívocos
ou, pelo menos, interpretações diferentes (por exemplo, a identificação
de Cristo preexistente com o Espírito Santo7, ou o fato de, mesmo no
século IV, diversos escritores considerarem o Verbo, e não o Espírito
Santo, o agente da encarnação8). Uma ulterior dificuldade de ordem
doutrinal consistirá depois em integrar intelectualmente a doutrina mono-
teísta com os dados mais recentes da revelação cristã. Em outros termos,
se o cristianismo deseja defender o m onoteísmo veterotestamentário,
como pode harmonizá-lo com a tríplice manifestação do Pai, Filho e
Espírito Santo do NT? Talvez se trate apenas de três “máscaras” da única
realidade divina p o r si incognoscível? A Trindade da economia salvífica é
idêntica à Trindade imanente? Será Deus como Ele se nos revela ou se
transforma para adaptar-se à nossa capacidade de percepção? E, quando
oramos, entram os realmente em contato com Ele ou será antes com as

4. H. A. WOLFSON, La filosofia..., op. cit., p. 134.


5. Cf. id., ibid., p. 153.
6. Cf. Y. CO N G A R Der heilige Geist, Friburgo i.Br., Herder Verlag, 1982 p 11
7. Cf. H. A. WOLFSON, op. cit., p. 175:
8. Sobre este tema, cf. L. PADOVESE, “La cristologia di Clemente Aurelio
Prudcnzio”, in Analecta gregoriana 219, Roma, 1980, pp. 130-131.
“máscaras” que Ele assume? A história da Igreja mostra que os axiomas
fundamentais da fé trinitária se “decantaram ” no confronto com duas
orientações doutrinais antitéticas: de um lado, o monarquianismo em sua
dupla forma de adocionismo e de modalismo, e, de outro, o subordina-
cionismo, que considerava o Filho inferior ao Pai e o Espírito inferior ao
Filho.
E preciso recordar que a clareza teológica que pouco a pouco foi
obtida nos embates com o m onarquianismo e o subordinacionismo re-
fere-se sobretudo às relações P ai/Filho e ao problem a da divindade deste
último. Pelo menos até o século IV o problema da divindade do Espírito
Santo despertou pouco interesse. De fato, admitindo-se que a divindade
não era unitária, era tão fácil pensar em três pessoas quanto em duas.
C ontudo, não se deve cair no equívoco de pensar que o pouco
interesse doutrinal a respeito do Espírito Santo tenha significado desin­
teresse in toto sobre sua presença e sua ação.
Ao contrário, Ele foi percebido como uma força divina historica­
m ente operante. Cabia aos teólogos a tarefa de reelaborar teologicamen­
te e com uma linguagem nova essa experiência divina do Espírito, já
reconhecida e fixada no material “b ru to ” da pregação e do culto da
Igreja. Deve-se, contudo, rejeitar a idéia de que, na Igreja dos primeiros
séculos, o Espírito Santo não tenha sido reconhecido em seu agir. E até
difícil encontrar uma outra idéia que tenha exaltado tanto a consciência
escatológica e o sentido da comunidade da Igreja como a persuasão do
Espírito Santo dado pelo Pai e comunicado por meio do Cristo. A.
Harnack chega a afirmar que um traço peculiar e talvez mais caracterís­
tico do cristianismo primitivo “é o fato de que cada cristão, movido pelo
Espírito Santo, é posto numa relação vital e personalíssima com o próprio
D eus”9. Não sem razão João Crisóstomo, olhando para a Igreja primi­
tiva, observa que, se “os Evangelhos são a história das coisas que Cristo
disse e fez, os Atos, por sua vez, são a história das coisas que o outro
Paráclito disse e fez” 10. A Ele cabe guiar a comunidade cristã, Ele está na
origem das decisões que se tomam (cf. At 15,28), fortalece a Igreja (cf.
At 9,31), escolhe os anunciadores do Evangelho (cf. At 13,2), guia-os
(cf. At 8,26-40), chega a determ inar os âmbitos geográficos da ação
deles (cf. At 16,6-7) etc. E viva nos cristãos a impressão de que eles
“receberam o Espírito e agem por meio dele: isso significa uma indepen­

9. Cf. A. HARNACK., Vessenza dei cristianesimo, trad. do alemão, Brescia, Queriniana,


1980, 171.
10. JOÃO CRISÓSTOMO, Homilia I sobre os Atos, 5.
dência e uma proximidade do sentir religioso e da vida, bem com o um
íntim o contato com D eus”11. Entendeu-se, enfim, que o proprium da
mensagem de Jesus era dado por uma relação direta, vital, filial com
Deus, que se tornou possível justam ente pelo Espírito que operava em
cada um. Isso explica a euforia que marcou os primeiros passos da Igreja
e tam bém a disputa entre “carisma” e “instituição” que logo se fez sentir
nas comunidades cristãs12. Um exemplo dessa disputa que, indiretam en­
te, explica a importância primária que se reconhecia ao Espírito Santo e
a seus carismas nos é dado pelo m ontanismo ou m ovimento da “nova
profecia” .
Surgida na Frigia na segunda metade do século II com M ontano,
ex-sacerdote pagão aberto aos cultos extáticos, essa orientação, que foi
definida com o a “crise mais perigosa do primeiro catolicismo”13, parece
ter se originado do descontentam ento de alguns cristãos com uma vida
cristã em que o anseio escatológico e o fervor espiritual dos primeiros
tempos parecia ter dim inuído14. O montanismo se afirmou então —
embora de m odo latente no início — com o uma contestação da Igreja
católica na qual os carismas e o Espírito profético pareciam sufocados. O
movimento assumiu as características de um conservadorismo revolucio­
nário expresso no desejo de voltar às origens, ou a uma Igreja guiada
pelo Espírito, que vivesse na expectativa da parusia e se submetesse a uma
ascese perpassada pela idéia do fim próxim o15. Sabe-se que a “nova p ro ­
fecia” , passando de orientação de pensamento a grupo fechado, acabou
por desm oronar “devido à pretensão que se arrogara e que contrastava
com a exigência da Igreja de garantir a tradição (normas canônicas,
profissão de fé, oficio)” 16. Seja com o for, esse rápido apanhado sobre o
m ontanism o é suficiente para explicar um fato: o Espírito Santo, justa­
mente pela efusão de seus carismas, constitui a garantia de que, com o já
acontecia nos primórdios, é ele quem guia a Igreja.

11. A. HARNACK, op. cit., p. 171.


12. Basta pensar no contraste entre chefes da comunidade cristã e profetas, atestado
na Ascensão de Isaias, escrito de origem síria possivelmente dos primeiros decênios do
século II. Sobre o tema, cf. A. ACERBI, “L’ascensione di Isaia — Cristologia e profetismo
in Siria nei primi decenni del II secolo”, in Studia patrística mediolanensia 17, Milão, Vita
e Pensiero, 1989. Análogo contraste parece estar na base da 1' Carta de Clemente Romano
aos Coríntios.
13. C. ANDRESEN, Die Kirchen der alten Christenheit, Stuttgart, Verlag W.
Kohlhammer, 1971, p. 110.
14. Cf. B. ALAND, “Montano-montanismo” (verbete), in DPAC II, 2299.
15. Cf. C. ANDRESEN, op. cit., pp. 110-112.
16. B. ALAND, “Montano” (verbete), in DPAC II, 2300.
Ele garante a continuidade entre a Igreja das origens e a que se
segue. A doutrina do montanismo poderia ser resumida assim: “ubi
carismata, ibi Spiritus, ubi Spiritus ibi vera Ecclesia” . O erro da “nova
profecia” foi, todavia, o de não reconhecer que também na grande Igreja
(Igreja dos psíquicos) o Espírito Santo continuava a operar. Com o que
se vangloriando de exclusividade sobre o Espírito, o montanismo se
esqueceu de que não apenas os dons extraordinários da profecia, do falar
em línguas e da realização de curas provinham do Espírito, também os
dons de governar a comunidade, de lhe dar assistência e até de corrigi-
-la deviam ser atribuídos a Ele. De resto, bispos como Inácio de Antioquia,
Policarpo de Esmirna, Melitão de Sardes, Cipriano de Cartago eram
autênticos “carismáticos” e em sua época era possível constatar a efusão
de carismas “extraordinários” . Ireneu, por volta de 150, declara: “ ...o u ­
vimos que também muitos irmãos da Igreja têm carismas proféticos,
falam todas as línguas graças ao Espírito, manifestam os segredos dos
homens para benefício deles e explicam os mistérios de Deus” 17. Orígenes,
por sua vez, por volta de 240, escreve que “ainda hoje se conservam os
traços daquele Espírito Santo que foi visto em forma de pomba; os
cristãos expulsam os demônios, curam diversas doenças e vêem também
alguns acontecimentos futuros por vontade do Verbo”18. E ao mesmo
tem po ficamos sabendo que Cipriano de Cartago é às vezes impelido a
agir pelas visões que teve19. N o século IV é ainda vivíssima a consciência
de terem recebido o “dom ” do Espírito Santo no qual estão contidos
todos os demais dons20: Zenão de Verona fala dos charismata difundidos
entre o povo cristão21. João Crisóstomo, por sua vez, reconhece que
todo cristão possui um dom especial do Espírito22. De outra parte, p o ­
rém, declara que recebemos o Espírito “não para realizar prodígios, mas
o suficiente para levar uma vida honesta e santamente com prom etida”23.
Considera, enfim, que a concessão dos “carismas extraordinários” é fun­
cional e não estritamente necessária. “Mesmo que se adm ita” — escreve
— “que hoje tenha diminuído o carisma dos milagres, isso não nos pode
prejudicar nem poderemos utilizá-lo como desculpa quando tivermos de
prestar contas de nossas obras. De fato, não é pelos milagres que estamos

17. IRENEU, Contra as heresias V, 6,1.


18. ORÍGENES, Contra Celso I, 46.
19. CIPRIANO, Carta XI, 3; Carta XVI, 4, Carta LVII, 1; etc.
20. Sobre o “dom ” do Espírito no qual estão todos os outros dons, cf. JOÃO
CRISÓSTOMO, Comentário sobre Romanos V,lss. — Homilia IX.
21. Cf. ZENÃO DE VERONA, Tratado I, 33, 16-20.
22. Cf. A. MONACI CASTAGNO, “Carismas” (verbete), in DPAC I, 590-591.
23. JOÃO CRISÓSTOMO, A verdadeira conversão, 8.
acostumados a admirar os santos... mas porque deram prova de vida
angélica.”24

A catequese patrística sobre o Espírito Santo:


algumas referências

Depois desta digressão sumária, vamos considerar agora alguns as­


pectos da catequese patrística sobre o Espírito Santo para chegar a uma
tentativa de atualização.
Dada a amplitude do tema, nosso estudo só pode ser bastante
circunscrito. Limitamo-nos, portanto, a algumas referências a respeito da
catequese de Ireneu de Lião.
Desenvolve ele uma teologia “funcional” do Espírito Santo25. Não
diz m uito sobre sua origem e natureza, mas o apresenta continuam ente
em ação na história26. Para entender essa sua ação, é preciso dizer que,
na antropologia de Ireneu, o hom em feito à imagem e semelhança de
Deus, ou o hom em potencialmente perfeito, era formado por alma, corpo
e Espírito Santo27. E nquanto a imagem impressa no corpo o tornava
semelhante ao Cristo que teria encarnado, a semelhança vinha da presen­
ça nele do Espírito Santo. A finalidade de tal presença era levar o homem
a “amadurecer”, a progredir em direção à divinização. O pecado de Adão
privou o homem dessa semelhança e enfraqueceu o progressivo processo
de assimilação em Deus. A redenção deve ser vista, pois, como uma
restituição do Espírito realizada por Cristo com referência a um processo
de divinização que o pecado fez esmorecer, mas não impediu. Cristo, em
sua carne m ortal, tornou-se o m odelo de como o Espírito pode agir no
hom em , transformando-o. Com o observa um famoso estudioso de santo
Ireneu, A. Orbe, “era preciso que o Espírito Santo se habituasse à hum a­
nidade de Jesus, ou seja, que, entre o Jordão e a ressurreição, fosse
assimilando à sua qualidade — à form a Dei — a carne do Salvador; ou
que, vice-versa, a carne fosse perdendo pouco a pouco suas qualidades
normais de carne e sangue até se solidarizar completamente com o Es­
pírito na propriedade divina”28. Naturalmente Ireneu não vê em Cristo

24. Id., ibid., pp. 49-50.


25. Cf. J. LEBRETON, Histoire du dogme de la Trinité II, Paris 1938, p. 561.
26. Cf. IRENEU, Exposição da pregação apostólica, 6.
27. Cf. id., Contra as heresias V, 9,1.
28. A. ORBE, “El hombrc idcal en la teologia de S. Ireneo”, in Gregorianum XLII
(1967), pp. 461-461.
apenas o “portador exemplar” do Espírito, mas também aquele que o dá,
restituindo assim a semelhança com Deus comprometida pelo pecado.
Trata-se, de qualquer m odo, de uma semelhança germinal, que deve ser
incrementada e modificar também a carne e a alma do homem.
Nessa edificação do hom em espiritual, perfeito, o Espírito desem­
penha, pois, um papel único, determ inante. A sua ação, porém, encontra
na fé uma premissa indispensável. “ O hom em que não recebe a inserção
do Espírito que se realiza com a fé permanece no estado de antes, ou
seja, carne e sangue, e, em conseqüência, não pode herdar o reino de
D eus.”29 Ireneu ressalta também que a ação do Espírito no homem não
modifica sua estrutura íntima, mas a qualidade dos frutos: “o homem
que é enxertado por meio da fé e recebe o Espírito de Deus não perde
a substância de sua carne, mas modifica a qualidade de seus frutos, que
são as obras...”30. Ser homem “espiritual”, para Ireneu, não significa
existir ou tender para um espiritualismo desencarnado que renegue ou
despreze a dimensão corpórea. Significa, antes, ter o Espírito, que, ao se
apoderar progressivamente do homem , no decurso da história salvífica de
cada um, o purifica e o eleva à vida de Deus31. Em outras palavras, pode-
-se afirmar que a função do Espírito consiste em tornar o homem seme­
lhante a Cristo. “Ireneu não vê em nossa união com o Espírito Santo o
term o do desenvolvimento, mas, ao contrário, a obra do Espírito Santo
deve ser vista com o a última fase de nosso ser transformado, à semelhan­
ça do Logos.”32 É pela semelhança com ele que devemos esperar a
incorruptibilidade, ou a divinização, a assimilação a Deus. O Espírito tem
assim a função de nos predispor a ela; é seu selo, sua garantia “dinâmi­
ca” . “Agora” — escreve Ireneu — , “recebemos apenas uma parte de seu
Espírito para estarmos predispostos e preparados para a incorruptibilidade,
habituando-nos pouco a pouco a portar D eus... Mas se agora, tendo
recebido a garantia do Espírito, gritamos ‘Abba , P a i, o que acontecera
quando, ressuscitados, o virmos face a face?... Se a garantia, abarcando
o hom em todo, o faz dizer ‘Abbá’, ‘Pai’, o que fará a graça toda do
Espírito quando for dada aos homens de Deus? Tornar-nos-á semelhan­
tes a Ele e levará a term o a vontade do Pai, porque fará o hom em à
imagem e semelhança de Deus.”33 Desse e de outros textos3 pode-se

29. IRENEU, Contra as heresias V, 10,2; cf. tambcm ibid., V, 8,3, ctc.
30. Id., ibid., 10,2.
31. Id., ibid., 9,2.
32. G. JOPPICH, Salus carnis. Eine Untersuchung in der Theologie des hl. Irenäus
von Lyon, Münsterschwarzach, Vier Türme Verlag, 1965, p. 123.
33. IRENEU, Contra as heresias V, 8,1.
34. Cf. Id., ibid., V, 13,4.
inferir, sem dúvida, que Ireneu considera o Espírito Santo o princípio da
esperança semeado em nosso corpo.
Vale a pena ressaltar que, ao apresentar as tarefas do Espírito, o
bispo de Lião enfatiza sobretudo a relação entre a Terceira Pessoa divina
e a carne do hom em . Sabe-se que era justam ente essa carne que o
gnosticismo da época desprezava e considerava incapaz de salvação. E é
exatamente p o r isso que Ireneu, atento às solicitações do m om ento, não
se limita a apresentar a obra do Espírito, mas faz um discurso ad hominem;
encarna a sua pneum atologia, que fica assim marcada pela polêmica em
curso. A m eu ver, esse fato demonstra que um estudo sobre o Espírito
Santo pode e até deve passar pelas circunstâncias do m om ento. N o caso
de Ireneu, a pneum atologia aparece inserta num discurso de salvação
integral em que a carne encontra seu reconhecimento. É uma pneum a­
tologia lida no interior de uma história de salvação que se refere tanto
à hum anidade com o a cada um, que também tem sua historia salutis.
Parece-me também que Ireneu evita um discurso da “graça” dada pelo
Espírito e considerada uma realidade estática, coisificada, um “depósito”
que não deve ser perdido. Segundo Ireneu, não recebemos essa graça
para conserva-la, mas para faze-la crescer. Ela é com o os talentos, que
devem ser negociados, e e idêntica ao Espírito, o dom que contém todos
os dons e que no hom em desenvolve todas as potencialidades de bem,
em bora respeitando a realidade e a liberdade de cada um. O Espírito,
enfim, constitui aquele ferm ento de incorruptibilidade acrescentado à
massa hum ana para fazer com que aum ente até a completa maturação no
reino celeste.

Depois destas observações sobre a pneumatologia de Ireneu, vamos


dirigir a nossa atenção para um bispo pouco conhecido do século IV,
Zenão de Verona, perguntando-lhe com o entende a figura e o papel do
Espírito Santo no nível da pregação popular.

Zenão tam bém não está m uito preocupado com especulações


doutrinais. Parte da premissa de que a realidade de Deus não pode ser
totalm ente compreendida pelo intelecto hum ano. Não se pode dizer,
contudo, que ele parta de posições antiintelectualistas ou que — apelan­
do ao “m istério” — dissimule uma ignorância doutrinal. Ele certamente
dá importancia aqueles aspectos do Espírito que mais interessam à vida
cristã e à da Igreja. A respeito da primeira, Zenão vê a inserção do
Espírito a partir do batismo e julga a Terceira Pessoa divina causa instru­
mental da mudança ontológica do homem. Ao receber o Espírito Santo
no batismo, o cristão “deixa de ser o que era e começa a ser o que não
era” . Inserto no hom em com o o “sêmen do Pai”, o Espírito não cons­
titui um princípio inerte, mas, ao ser posto na carne, a torna fecunda,
predispondo-a para a ressurreição, que constitui a obra do Espírito e é
a conseqüência natural do fato de que o Espírito — princípio teofórico
— tom ou posse. Em resumo, a ressurreição está ligada ao batismo. E sua
conseqüência. Não podem os nos deter com mais profundidade na d o u ­
trina pneumatológica de Zenão. Mas creio que, em nível de atualização,
podem ser lembrados dois aspectos presentes tanto em seu pensamento
com o em toda a tradição patrística. O primeiro vem da fortíssima ligação
do batismo com o Espírito Santo. As vicissitudes históricas que no Oci­
dente levaram a separar o sacramento do renascimento e a confirmação
(originariamente um único sacramento) relativizaram de algum m odo o
papel do Espírito Santo, deslocando a ênfase para a remissão dos pecados
e para a regeneração.
N ão há dúvida de que essa mudança — ao menos na Igreja latina
— redim ensionou e “transferiu” o papel do Espírito Santo para o sacra­
m ento seguinte da confirmação. Mas será que não se deveria recuperar
a idéia de que a filiação divina é efeito do Espírito? Não se deveria
resgatar a convicção de que o Espírito, o Paráclito, o consolador, o
com panheiro de viagem, começa a estar conosco desde o início de nosso
caminho? Sem dúvida, é este o ensinam ento do N T (cf. At 1,5; 9 ,1 7s.
etc.). A respeito dessa efúsão batismal do Espírito, o testem unho auto­
biográfico de Cipriano é significativo: “Eu estava preso por muitíssimos
vícios de minha vida passada e jamais poderia acreditar que conseguiria
me libertar deles... Mas sobreveio a ajuda da água que regenera. A
corrupção da vida anterior foi apagada e do alto se difundiu um a luz em
meu espírito purificado e limpo. Recebi do céu o Espírito e, por meio
de um segundo nascimento, tornei-m e um hom em novo. Depois desse
acontecim ento, de um m odo que eu não saberia descrever, o que estava
tom ado pela dúvida transformou-se repentinam ente em certeza... C om ­
preendia eu que começava a pertencer a Deus o que o Espírito Santo
já anim ara... N o usufruto dos dons de Deus, não há nenhum a medida
ou limite, com o, ao contrário, acontece com os benefícios terrenos. O
espírito se expande com abundância e não fica preso a nenhum limite
nem é represado por barreiras que o detêm e bloqueiam dentro de
seguros espaços limitados. O Espírito brota continuam ente, flui com
abundância. É preciso apenas que o nosso coração tenha sede e se
abra... O Espírito que recebemos age com seu poder, pois participamos
de uma nova vida”35.

35. CIPRIANO, A Donato IV-V.


O u tro aspecto que merece ser ressaltado a partir de uma leitura de
Padres com o Ireneu e Zenão diz respeito à relação Espírito Santo e
ressurreição. Esses autores, representantes de uma comprovada tradição
patrística, ressaltam que a ressurreição da carne constitui o fruto e a
conseqüência de uma longa coabitação com o Espírito. Em outras pala­
vras, o “Creio na ressurreição da carne” reduz-se no fundo ao “Creio no
Espírito Santo, que é Senhor e dá a vida” . Para usar uma imagem patrística,
a m orte — esse m onstro voraz — engolir-nos-á a todos, mas nos cuspirá
fora depois de ter constatado que a nossa carne, transformada pelo Es­
pírito, não é mais comestível.
Poderíamos ir longe nesta resenha de poderes que os Padres atri­
buem ao Espírito Santo. Deveríamos, por exemplo, ressaltar o seu papel
em relação à Igreja. Falando por meio de imagens, os Padres insistem na
importância da função do Espírito como princípio de coesão, de elevação
e de condução da com unidade cristã.
Para os pregadores cristãos dos primeiros séculos os artigos de fé do
C redo referentes à história da salvação encontram na Terceira Pessoa
divina sua explicação última: é o Espírito o fundamento da Igreja una,
santa, católica, da com unhão dos santos, da remissão dos pecados e —
com o já vimos — da ressurreição da carne. E ainda ele o autor da
salvação fora do cristianismo naquela Igreja que — segundo Agostinho
— tem início com Abel e compreende todos os homens justos. Um
diálogo com as religiões não-cristãs e até com os não-crentes deve ter
bem presente que o Espírito encontra a oportunidade de se expressar
também no meio deles. H á um criptocristianismo que é obra do Espírito
Santo e deve ser reconhecido. Com o os Atos atestam e Padres como
Clem ente, Agostinho e Basílio pregam, o dom do Espírito é dado tam ­
bém aos pagãos (At 10,45: “E os fiéis de origem hebraica que tinham
vindo com Pedro ficaram perplexos porque o dom do Espírito Santo
tinha sido derramado também sobre os pagãos” ). A ação do Espírito
antecede a ação evangelizadora do homem. Dos Padres, portanto, chega
até nós a convicção de que a fé no Espírito Santo, que “é Senhor e dá
a vida” , é bem mais do que um enunciado doutrinal: trata-se de uma
profissão de esperança e de confiança no Deus trinitário, que não deixa
pela m etade o “projeto” homem.
OS PADRES E A ESCATOLOGIA

ABE-SE que o discurso sobre as “coisas úítimas”, quando existe, apa­


S rece nos livros de dogmática com o apêndice. Mas não é menos ver­
dade que “a pregação de Jesus e da Igreja primitiva procede do centro
focal da escatologia” 1. Não estaria, portanto, fora de lugar “uma revisão
dos conceitos teológicos a partir de uma exegese do N T centrada na
pregação do Reino que deve vir”2.
Sob este ponto de vista, é im portante a contribuição que os Padres
da Igreja nos podem oferecer, uma vez que eles, embora em contextos
e épocas diferentes, mantiveram a fé nesse dado recebido da tradição
apostólica e fundamental na pregação de Jesus, centrada no Reino.
O tem a do Reino, do Senhorio de D eus, presente uma centena
de vezes nos evangelhos sinóticos, avalia o próprio conceito de dis-
cipulado.
Jesus exige de seus discípulos um seguim ento incondicional que só
pode ser com preendido com “com base em seu singular m andato de
anunciador do im inente Reino de Deus. Considerando a proximidade
prem ente desse Reino, não se deve mais perder tem po. O seguimento
deve então se dar sem atraso e com prévia renúncia a qualquer recon­
sideração e a qualquer vínculo hum ano”3. O entusiasmo missionário do

1. P. RICOEUR, II conflito delle interpretazioni, trad. do francês, Milão, Jaca Book,


1977, p. 417.
2. Id., ibid., p. 417.
3. Estas considerações de M. HENGEL estão fundamentadas no loghion de Jesus
presente em Mt 8,22 (“que os mortos enterrem seus mortos” ) e que — segundo o
estudioso alemão — exprimem uma severidade ligada à urgência do momento, ou à apro­
ximação do Reino. Sequela e carisma, trad. do alemão, Brescia, Paideia, 1990, p. 36.
cristianismo primitivo4 e a rapidez de sua expansão dem onstram o quan­
to foi frutuoso esse seguim ento de Jesus vivido nessa perspectiva esca-
tológica.
N o anúncio apostólico (Paulo, A tos...), porém , assiste-se a uma
certa mudança: o tema do Reino ou do Senhorio está quase ausente e
é substituído pelo anúncio do Kyrios Christos. O motivo dessa mudança
é evidente: Cristo proclam ou o Reino, a com unidade cristã anuncia
Cristo e sua ressurreição com o primícia desse Reino. P ortanto, em sua
realização, o Senhorio de Deus continua a ser um bem futuro, mas em
seus prim órdios já está presente no Senhorio de Cristo ressuscitado.
Apesar dessa certeza do Cristo vivo depois da m orte, o anúncio da
“parusia”5, ou a proclamação da esperança na volta do Senhor, parece
pouco freqüente nas primeiras confissões de fé. A resposta a esse dado de
fato é fornecida por O. Culmann quando escreve: “Os cristãos da prim ei­
ra geração crêem na vitória escatológica de Cristo porque crêem que Ele
já obteve a vitória agora. Eles crêem no futuro Reino de Deus porque
crêem no Reino atual de C risto... Por isso as primeiras sínteses de fé não
precisam m encionar a esperança: ela está implícita na certeza de que
Cristo está reinando agora, Kyrios Christos”6. Por outro lado, afirmar
que Ele está m orto e ressuscitado e unir esse fato — com o fazem os
escritores do N T — à nossa existência pessoal mediante um pro nobis
propter iustificationem nostram, pro peccatis nosíris, significa envolver o
hom em naquela experiência: fazê-lo passar do papel de espectador ao de
co-protagonista. Nesse caso, a vitória de Cristo se torna a vitória do
cristão, e o seu Reino, o nosso reino. E o que ressalta a Carta aos
Hebreus ao dizer que os cristãos “já saborearam o dom celestial, já
participaram do Espírito Santo, já experimentaram a doçura da palavra de
Deus e os prodígios do m undo vindouro” (6,4-6). De m odo semelhante,
na Carta aos Colossenses, Paulo declara: “Agradecei a Deus Pai, que vos
tornou capazes de participar da herança dos santos no reino da luz. Que
nos livrou do poder das trevas e transportou ao reino do seu Filho
am ado” (1,12-13). Todavia, o sinal do evento escatológico já em curso
está na efusão do Espírito Santo sobre todo cristão, com o nos atesta At

4. Cf. M. HENGEL, op. cit., p. 154. Esse autor observa ainda que “o chamado,
por parte do próprio Jesus, de cada discípulo ao serviço do senhorio de Deus iminente
representa no fundo um primeiro ponto de partida para a formação da tradição de Jesus,
que encontrará nos evangelhos sua concretização escrita”, ibid., pp. 154-155.
5. O conceito de parusia provém do mundo helenístíco c indica a chegada de um
soberano ou de um ilustre personagem que e recebido e saudado solenemente.
6. O. CULLMANN, Le prime confessioni di fede..., op. cit., p. 59.
2,16: “(Pedro falou): cumpre-se aqui o que foi dito pelo profeta Joel:
‘Acontecerá nos últimos d ia i — diz Deus — ‘que derramarei meu Espí­
rito sobre toda criatura hum ana’" .
Com base nestas e em outras afirmações7, pode-se considerar que o
cristianismo primitivo vive num clima de “escatologia realizada” em que
o “já” da salvação realizada por Cristo adquire — às vezes perigosamen­
te8 — mais destaque do que o “ainda não” que falta para completar.
Não há dúvida de que, no primitivo anúncio cristão, escatologia e
ética estão estreitamente ligadas. Com o observa Paulo: “A noite vai
adiantada, o dia está bem próximo. Rejeitemos, pois, as obras das trevas
e revistamos as armas da luz. C om portem o-nos honestam ente, como em
pleno dia, não vivendo em orgias e bebedeiras, em concubinato e liber­
tinagem, em rixas e ciúmes” (Rm 13,12-13).
É preciso notar que o sentim ento escatológico das primeiras gera­
ções cristãs passou por certa mudança em relação ao tem po da manifes­
tação definitiva desse Reino. Com o interpretar o fato de que ele tarda em
se realizar? A idéia da presença de Cristo “vivo” entre os seus e a per­
cepção do Espírito como o “dom ” já conferido induzem a considerar
que tal adiamento não tenha produzido uma crise na comunidade primi­
tiva9. Procuram-se, porém, as razões dele. Encontramos uma resposta em
2Pd 3,3-4.9: “(Caríssimos...) deveis saber que nos últimos dias virão
zombadores cheios de escárnio, levados por suas paixões pessoais, e di­
rão: ‘Que é feito da promessa de sua vinda? Pois, desde que morreram
os pais, tudo permanece igual desde o princípio da criação’... O Senhor
não retarda o cum prim ento de sua promessa, com o alguns pensam, mas
usa de paciência para convosco. Não deseja que ninguém pereça. Ao
contrário, quer que todos se arrependam ” . Esta interpretação exprime
uma mudança no sentir dos cristãos, os quais, com o passar do tem po,
deixarão de se considerar os redimidos pelo batismo, os santos que es­
peram a parusia próxima, para considerar-se aqueles que são continua­
m ente convidados à conversão para estarem preparados no último dia. O
tem po presente configura-se então como o espaço, que nos foi dado

7. Cf., por exemplo, Rm 8,15; G1 4,6 etc.


8. A respeito, basta pensar na contestação que Paulo faz aos cristãos “pneumáticos”
de Corinto, que, compreendendo mal o sentido da escatologia em andamento e sentindo-
se já ressuscitados com Cristo (cf. Ef 2,6; Cl 2,12-13), sentiam-se livres das “leis” da terra
e proclamavam a sua liberdade de consciência, não levando em conta os mais “frágeis”
presentes na comunidade (cf. IC or 4-6).
9. Cf. E. LOHSE, Grundriss der neutestamentliehen Theologie, 4. ed. Stuttgart,
Verlag W. Kohlhammer, 1989, pp. 60-61.
como preparação, entre a primeira e a segunda vinda de Cristo. É o
espaço da penitência.

E inegável, porém , que a dem ora da parusia leva a acreditar numa


vinda do fim não imediata, mas certamente bastante próxima.
A consciência escatológica dos cristãos, enfim, não se perdeu com
o adiam ento do fim esperado. Antes, é justam ente essa persistência do
sentir escatológico que terá notável influência na origem da ascese
cristã.

A idéia de não se encontrar longe do fim determina a própria vida,


eleva seu nível, introduz novos critérios de avaliação dos bens temporais.
Na realidade, se observarmos os escritos dos Padres Apostólicos, notare­
mos que a menção dos últimos acontecimentos quase nunca é uma
afirmação atemporal ou um convite à inércia (como antes se verificara em
Tessalônica), mas aparece muitas vezes unida a recomendações de caráter
ético. E o que se observa, por exemplo, na Carta de Barnabé, na qual
lemos: “sabeis quem podeis ajudar, não deixeis de fazê-lo. Está próximo
o dia no qual tudo se transformará em ruínas juntam ente com o inimigo
malvado. O Senhor está próximo com sua recompensa” (21). Significa­
tivo tam bém é o testem unho do Pastor de Hermas: “Deu um grito e me
interpelou assim: Insensato’! não ves que a torre (= Igreja) está ainda em
construção? Q uando esta tiver term inado, então chegará o fim... Mas é
preciso ainda pouco tem po para que seja edificada a última parte... Basta!
Não me perguntes mais nada. Que este aviso seja suficiente para ti e para
os santos para que vos renoveis no espírito!... Cuidado com o juízo já
iminente: vós, que tendes posses, procurai os pobres enquanto a torre
está em construção, pois quando estiver terminada desejareis ardente­
mente fazer boas obras, mas não haverá lugar para elas” (16-17). Para
Inácio, o apelo aos últimos dias está unido a um convite a respeitar e
tem er a paciência de D eus10.

Nos textos ligados à parusia, contudo, um fato é evidente: os pri­


meiros cristãos não encaram os acontecimentos últimos como um fato
predeterm inado e inelutável; eles devem até apressá-lo e viver na tensão
de que isso ocorra. A hora do fim, em resumo, depende de nós: deve ser
realizada com a nossa vida, deve ser pedida na oração. O autor da Didaché
tem em mente esse conselho quando escreve: “Que venha a tua graça e
que este m undo passe... M aranatha”11.

10. Cf. INÁCIO, Carta aos Efésios, 11.


11. Didaché, 10.
Com o apressar a irrupção plena do Reino de Deus? Com a prática
da ascese. Com o declara E. Peterson ao examinar alguns Atos apócrifos
antiqiiíssimos, “essa ascese está estreitamente ligada à fé escatológica:
trata-se de apressar o evento do reino de D eus”12. Mas de que modo?
Pondo fim ao processo de geração. “Enquanto as mulheres continuarem
dando à luz reinará a m orte; o Reino de Deus vira quando a distinção
dos sexos for superada...” N o final — escreve ainda Peterson a con­
sistência do m undo presente depende da m ulher que dá à luz; por isso
se dizia: “A virgindade da mulher é ouro; a continência do homem é
prata” 13. Ao que parece, o autor da 2 a C arta de Clemente aos Conntios
concorda com tal m odo de ver quando escreve: “A expressão ‘entre
hom em e mulher, nem homem nem m ulher’ quer dizer que, quando um
irmão vê uma irmã, não deve considerar o sexo feminino, nem ela deve
pensar no sexo masculino. Se agirdes assim — quer ele dizer virá o
Reino do meu Pai”14.
Essa interpretação que vincula a ascese à escatologia também está
ligada à tradição neotestamentária. Com efeito, a escolha celibatária de
Jesus — não por desprezar a mulher ou por sentir repulsa pelo m atrim ô­
nio ou pela sexualidade — deve ser relacionada à sua consciência profé­
tica e parece coerente com a sua escatologia (“H á os impotentes que
assim se fizeram a si mesmos por am or do reino dos céus” , M t 19,12).
O m atrimônio não é proscrito (cf. IC o r 9,5), contudo — justam en­
te a partir da pregação de Jesus — apresenta-se um elem ento novo: a
emergente e agora predominante realidade do Reino relativiza todas as
coisas, até o sexo e o m atrim ônio15. Todavia, uma observação cuidadosa
dos textos do período apostólico supracitados revela o aum ento de uma
sensação de mal-estar em relação ao matrim ônio e isso justamente a
partir da escatologia: se se deve apressar o advento do Reino mediante
a castidade, o m atrimônio perde seu valor ou até acaba sendo despreza­
do. Não é difícil perceber que diversos elementos contribuíram para essa
mudança: o primeiro de todos foi o rigorismo judeu-cristão em que
abstinência, pobreza e vegetarianismo andavam de mãos dadas16.

12. “L’origine delPascesi cristíana”, Euntes docetc I / I I (1948), p. 203.


13. E. PETERSON, L'origine..., op. cit., p. 203.
14. 2“ Carta de Clemente aos Coríntios, 12.
15. Cf. R. CANTALAMESSA, Cristianismo e valori terreni, Milão, Vita e Pensiero,
1976, p. 8.
16. Cf. P. F. BEATRICE, “Continenza e matrimonio nel cristianesimo primitivo”,
in R. CANTALAMESSA (org ), Etica sessuale e matrimonio nel cristianesimo delle origini,
Milão, Vita e Pensiero, 1976, p. 65.
O período im ediatamente posterior ao dos Padres Apostólicos evi­
dencia uma m udança em relação à escatologia. Com efeito, enquanto nos
escritos dos Padres Apostólicos percebemos que a expectativa do fim
próximo é ainda bastante viva e até deve ser apressada pelos cristãos, no
testem unho dos apologistas se diz que o m undo sobrevive devido à
súplica dos cristãos17. Justino declara que os cristãos, se não temem a
m orte, nem por isso procuram o suicídio, pois “se todos nos matásse­
mos, truncaríamos, no que depende de nós, a geração, e ninguém mais
teria a instrução dos ensinamentos divinos: impediríamos a continuação
do gênero hum ano e, assim fazendo, agiríamos contra a vontade de
D eus”18. Pouco adiante, Justino acrescenta: “Deus demora em desfechar
a catastrofe e a dissolução de todo o m undo com a destruição dos anjos
maus, dos demônios e dos homens, graças ao sêmen dos cristãos em cuja
geração encontra motivo desse adiam ento”19.
Para Tertuliano, finalmente, o fim do m undo acontecerá com a
dissolução do império rom ano. Os cristãos rezam então “para que esses
acontecimentos sejam adiados e para que o poder do império romano
continue”20,

Com base nesses textos (sempre “parciais” porque endereçados a


um público pagão, que não poderia ficar aterrorizado ou perturbado com
a idéia de fim próximo), a fé escatológica dos cristãos passa por uma
mudança: torna-se mais “personalizada” . Em resumo, a idéia de um re­
torno de Cristo e de uma assembléia universal convocada para o julga­
m ento de todos é substituída pela idéia do fim certo de cada um e de sua
confrontação imediata com Cristo, e adquire maior espaço um sentimento
de “tem or” relacionado com a certeza do “trem endo” juízo divino. So­
mente com as boas obras e possível sair imune desse juízo. Na consciência
cristã de então, o tem or do castigo reservado a quem peca constitui um
incentivo para fazer boas obras e para superar as lisonjas do m undo, bem
como as ameaças dos perseguidores. A esse respeito é bastante pertinente
a observação de A. Harnack, para quem , “no cristianismo do século II,
o ‘tem or’ tinha uma área de atuação mais vasta e esse campo se ampliou
ainda mais com a extinção da vivacidade original e com a progressiva
afirmação do processo de homologação do m undo”21. O m edo do juízo
e do castigo começa, enfim, a ganhar cada vez mais espaço.

17. Cf. ARISTIDES, Apologia, 16,7.


18. JUSTINO, I I Apologia, 4,3.
19. Id., ibid., 7,1.
20. TERTULIANO, Apologético, 32.
21. A. HARNACK, L ’essenza del cristianesimo, trad, do alemão, Brescia, Queriniana
1980, p . 203.
O caráter em inentem ente escatológico da mensagem evangélica não
podia deixar de se refletir também num a série de doutrinas relativas ao
além, que mostram com o o cristianismo — mesmo sem abandonar sua
vocação escatológica — esteve aberto a “influencias culturais diferentes,
em parte aceitas, em parte rejeitadas.
A esse propósito merece atenção o chamado “milenarismo” ou
quiliasmo (do grego kiliás = mil).
Nascida no âm bito judeu-cristão e desenvolvida sob a influencia de
alguns textos bíblicos e apócrifos22, essa doutrina professava a existência
de um reino terrestre de Cristo antes do final dos tempos, ou seja, entre
a ressurreição e o juízo final. Nesse reino viveriam os santos na expec­
tativa da completa transformação e da entrada na vida incorruptível (cf.
IC o r 15,25; lT s 4,17; Ap 20,13). Mas nada se diz sobre a natureza e
a duração desse reino. Ao lado desse primitivo milenarismo, expressão da
doutrina comum, foi se desenvolvendo um outro, heterodoxo, excessiva­
mente materializante, nascido no âm bito do ebionismo e condenado
pelos Padres23.
É entre essas duas correntes que se situa o milenarismo propriamen­
te dito. Desenvolve a doutrina do retorno e do Reino de Cristo, asso­
ciando às categorias da apocalíptica judaica os temas cristãos da parusia,
da ressurreição, do Reino de Cristo, ja presentes em são Paulo .
Um dos principais defensores desse pensamento foi Ireneu de Lião,
que, por quatro vezes, evoca os Presbíteros e Papias de Hierápolis como
avalistas desse ensinam ento que receberam de João, o qual, por sua vez,
afirmava que o recebera do Senhor25.
O testem unho subapostólico a respeito do milenarismo é, para
Ireneu, a m elhor prova da sua authentía, a ponto de ele suspeitar serem
heréticos os que não o professam. Para o bispo de Lião, o milenarismo
se enquadra m uito bem na sua concepção de “ história da salvação” ,
que se desenvolve progressivamente.
Nessa história, o quiliasmo constitui, a seu ver, a etapa final, na qual
o hom em — e mais particularmente a carne hum ana — ficará preparado
para receber a incorruptibilidade que provém da visão de Deus.

22. Cf. Ez 36-40; 1 Henoc; IV Esdras; Apoc. de Baruc 39,4; Ap 19-20; lTs 4 etc.
23. Cf. EUSÉBIO, História eclesiástica III, 28,2; 7,25,2s.
24. Cf. J. DANIELOU, Théologie du judéo-christianisme, pp. 190s.
25. Cf. IRENEU, Contra as heresias V, 33,3; V, 33,4; V, 36,1, etc.
J
A ênfase dada p o r Ireneu à doutrina milenarista26 possui um cará­
ter de reação e de polêmica contra os gnósdcos que “não aceitam a
salvação de sua carne”27 e “desconhecem as ‘economias’ de Deus, o
mistério da ressurreição dos justos e do reino, que será o prelúdio da
incorruptibilidade...”28. N o século III, a reação antim ontanista e a afir­
mação da cultura espiritualista alexandrina contra a orientação teológica
asiática marcará progressivamente a decadência do milenarismo, cujos
traços sobreviverão, com o expressões de arcaísmo teológico, em alguns
autores ocidentais.
N o período seguinte e até na época da Igreja “constantiniana”, o
sentido escatológico permanece uma “intencionalidade” ou carga que
contribuiu para determ inar a moral e a ascese. Com efeito, a impressão
de se encontrar na iminência do fim determina a vida, eleva seu nível,
introduz novos critérios de avaliação dos bens temporais.
Para o século III, vejamos o testem unho bastante catastrófico de
Cipriano, que escreve no A Demetria.no: “em primeiro lugar, deves saber
que o m undo envelhece e não tem aquelas forças que possuía antes nem
aquela segurança e aquele vigor com que tinha surgido... o próprio mundo
o demonstra e com a decadência das próprias realidades atesta que o fim
se aproxima. D urante o inverno não chove para fazer germinar a messe,
no verão não há mais aquele calor que antes fazia amadurecer os frutos...
ninguém deve se surpreender com o fato de tudo perecer, pois o próprio
m undo está prestes a acabar”29.
Com base nessas e em outras considerações, o cristão deve aceitar
sua presença no m undo, mas deve aspirar a sair dele. Se esta, pois, é a
atitude a ser tom ada, parece pelo menos incongruente o com portam ento
de quem , de um lado, pede que se apresse a vinda do Reino (“venha o
vosso Reino” ) e, de outro, encontra-se m uito bem aqui na terra.
“Por que rezamos e pedimos que venha o Reino dos céus se nos
agrada permanecer prisioneiros na terra? Por que repetimos tantas vezes
em nossas orações e por que pedimos que se apresse o dia de seu Reino
se os nossos maiores desejos e os nossos melhores votos consistem em
servir o diabo aqui na terra, mais que reinar com Cristo?”30

26. Cf. id., ibid., 31-36.


27. Id., ibid., 31,1.
28. Id., ibid., 32,1.
29. A Demetriano, 3-4.
30. A peste, 18.
Ainda no século IV, aparece insistente na pregação dos Padres o
apelo ao fim do m undo, não tanto, todavia, para incutir medo e mais
raramente ainda — com o no caso de Cipriano — para induzir à fuga da
realidade.
Segundo Hilário de Poitiers, uma das principais tarefas do b isp o /
pregador é a de manter o cristão aberto ao futuro31, numa atitude de
espera. Trata-se de arrancar os cristãos da tentação de viver apenas para
o “hoje” , que os faz recair no paganismo no qual os homens vivem “sem
pensar no futuro”32. Com o estamos próximos do fim — declara ainda
Hilário de Poitiers — , “precisamos trabalhar com em penho, uma vez que
a paz do grande sábado deve ser preparada” e isso inclusive “mediante
as obras de bondade”33.
Ao explicar o sentido desse apelo freqüente à escatologia, o autor
do Opus imperfectum in M atthaeum declara: “E útil conhecer o tempo
do fim, pois um homem que volta de viagem, quanto mais se aproxima
de sua casa, tanto mais se apressa. Q uando a estrada é longa, até os
homens velozes caminham com calma; mas, quando a estrada é curta, até
os lentos caminham rápido”34.
Por isso, o confronto com um futuro agora iminente ou o reiterado
apelo aos “ novíssimos” na pregação dos Padres é utilizado para julgar o
presente, para dirigi-lo, para modificá-lo, mas sobretudo para demonstrar
toda a sua precariedade. E essa concepção não leva ao afastamento do
m undo, mas até marca toda a ética social cristã dos primeiros séculos.
Com efeito, bispos dos séculos IV-V, com o H ilário, Basílio, João
Crisóstomo, Ambrósio e Agostinho — para citar apenas os mais conhe­
cidos — entenderam que a superação das injustiças de que se ressente a
sociedade de sua época nasce da modificação interior do hom em , de uma
relação diferente com o m undo e não de uma simples mudança das
estruturas, na qual nem sequer pensam. N enhum desses Padres, por
exemplo, luta para. a abolição da escravatura, mas a esvaziam de conteúdo
ao insistirem na fraternidade universal, na paternidade de Deus, na co-
-responsabilidade de cada um em relação a seu próximo.
Esses bispos — embora com diferentes matizes — defendem ainda
aquela tensão escatológica que constitui uma das peculiaridades do anún­

31. Comentário sobre M t 27,2.


32. Assim sc expressa ZENÃO DE VERONA, Tratado II, 1,16.
33. Tratado sobre o salmo C XVIII, 10.
34. Opus imperfectum in M t — Homilia 48,3.
cio evangélico. Em virtude dela é que pastores como os que citamos
acima reconhecem que o cristão se encontra no centro de um bipolarismo
entre um “já” e um “não ainda” . Com isso bem presente, consideram
que o compromisso do cristão no m undo consiste em viver no presente
com uma forte consciência da relatividade do todo e do futuro para o
qual está encaminhado. Esse anseio pelo futuro, todavia, não legitima a
fuga da realidade, pois o presente também é tempo de Deus e o pobre
que hoje encontram os é Cristo.
OS PADRES E A ECLESIOLOGIA

A eclesiologia nos Padres Apostólicos

S escritos do N T apresentam “eclesiologias” diferentes, pois abor­


O dam o mistério de Cristo sob diferentes pontos de vista1.
Trata-se de uma diversidade que não renega um fato: a consciência
das comunidades cristãs de terem com o único fundam ento o anúncio de
Jesus, que se torna perceptível por meio de diferentes imagens. “A
Igreja de que se dá testem unho no N T é Igreja de Jesus Cristo somente
por esse motivo, pois o seu único desejo é o de se preocupar em que
o anúncio salvífico de Jesus, ampliado no quadro da missão a toda a
terra, com unique, por interm édio dEle, a salvação a todos os hom ens.”2
É, portanto, impensável uma adesão a Cristo que prescinda da com u­
nidade. Por estar edificada sobre o “alicerce dos apóstolos e dos profe­
tas” e por ter Cristo com o pedra angular (cf. E f 2,20), a Igreja é, então,
“algo constitutivo para a existência cristã... Não há fé em Cristo, com u­
nhão com Cristo, vida em Cristo senão no seio da com unidade crente
unida a seu Senhor”3.

1. Basta pensar no Evangelho e nos Atos de Lc, que consideram a Igreja o espaço
do Senhorio de Deus; em Mt, para quem a Igreja é o “verdadeiro Israel”; em Paulo, que
apresenta a Igreja como o novo povo de Deus, fundamentado na promessa antiga e na tc
em Cristo. Nas cartas pastorais a Igreja assume um aspecto cada vez mais institucionalizado
c se mostra como o fundamento da verdade que detém o ensinamento apostolico. No IV
Evangelho prevalece o aspecto “de comunhão” da nova realidade de Igreja, enquanto no
Apocalipse esta se apresenta como o verdadeiro Israel escatológico.
2. J. FINKENZELLER, Von der Botschaft Jesu zur Kirche Christi, Munique, Don
Bosco Verlag, 1974, p. 36.
3. Para estas e outras reflexões, cf. R. SCHNACKENBURG, La Chiesa nel NT,
Brescia, Morcelliana, 1975, pp. 14-25.
Essa certeza é expressa por A. Harnack quando escreve: “o simples
fato de que, praticam ente a partir do início do cristianismo, os cristãos
se dedicaram a refletir e a especular não somente sobre Deus e Cristo,
mas tam bém sobre a Igreja, indica quão profundam ente a consciência
cristã estava marcada pela idéia de ser um novo povo, ou seja, o povo de
Deus”4. Na verdade, uma parte das reflexões do judeu-cristianismo já se
dedicava a aprofundar o mistério da Igreja como entidade teológica5.
Dois elementos concorreram para essa reflexão:
1. inicialmente, a reflexão bíblica sobre o povo de Israel e a que foi
desenvolvida pelo essenismo e pela apocalíptica, que serão assumi­
das pelo grupo judeu-cristão6;
2. as condições socioculturais nas quais o crisuanismo se encontrava
no período subaspostólico.
O desenvolvimento da eclesiologia no século II deveria ser vincu­
lado, por isso, à compreensão que os cristãos tinham de si mesmos e que,
com base em alguns textos da época, pode ser definida como um “ser-
-estranho-ao-m undo”7. É o que defende a 2 - C arta de Clemente, que
apresenta o ser do cristão no m undo como “estraneidade” (paroikía) ou
“existência de em igrante” (epidemia) por causa da inimizade vigente
entre este m undo e o do futuro8. Na Carta a Diogneto essa estraneidade
reaparece, mas é mitigada por um sentido de responsabilidade do cristão
em relação ao m undo. “A alma” — lemos — , “embora habitando no
corpo, não é do corpo; e os cristãos, embora habitando no m undo, não
são do m u n d o ... A alma está presa no corpo, mas é ela que sustenta o
corpo, e os cristãos estão no m undo com o num a prisão, mas são eles que
sustentam o m undo.”9 Teófilo, por sua vez, apresenta as comunidades
cristãs com o comunidades de diáspora, ou como ilhas que salvam das
vagas do m undo: “Deus proporcionou... lugares de reunião, chamados
santas igrejas, nas quais... há os ensinamentos da verdade; nelas se refu­
giam aqueles que querem se salvar” 10.

4. A. HARNACK, Storia del dogma I, trad, do alemão, Mcndrisio, 1903, p. 172.


5. Cf. J. DANIELOU, La teologia delgiudeo cristianesimo, trad, do francês, Bolo­
nha, II Mulino 1974, p. 399.
6. Cf. id., ibid., pp. 399-400.
7. Cf. as observações de C. ANDRESEN, às quais farei referência, Die Kirchen der
alten Christenheit, Stuttgart, Verlag W. Kohlhammer, 1971, pp. 17-29.
8. Cf. I a Carta de Clemente, 5-6.
9. Discurso a Diogneto, 6.
10. TEÓFILO, A Autólico — II livro, 14.
Da eclesiologia neotestamentária de teor escatológico presente nos
próprios títulos atribuídos aos cristãos (“eleitos” , “santos”, “chamados” ,
“fiéis” , “irmãos” ...) passou-se a uma eclesiologia de estraneidade, na
qual, todavia, a marca do cristianismo primitivo era indelével11.
Com Inácio de Antioquia assistimos à afirmação de uma eclesiologia
transcendental. Utilizando o esquema protótipo-tipo em sentido a-mítico,
o bispo de Antioquia insinua uma “reflexão teológica sobre a Igreja
como com unhão de amor, na compreensão básica de que a Igreja daqui
da terra, em sua vida, em suas relações internas e em suas operações, não
é outra coisa que o reflexo e a reproposição terrestre de seu Arquétipo
celeste, o Deus uno e trino em sua vida íntima e em suas misteriosas
inter-relações” 12. Essa convicção está presente em diversos textos13. A
propósito, na Carta aos Magnésios 6, Inácio convida a manter a unidade
“com o bispo e com os vossos chefes a fim de ser uma demonstração e
uma representação viva da eterna incorruptibilidade” .
Nessa perspectiva, compreende-se por que, entre os pecados mais
graves, Inácio enumera os cismas, pois impedem à Igreja terrena ser a
reproposição da Igreja celeste.
Ao lado da eclesiologia transcendental defendida por Inácio, deli-
neia-se, ainda no século II, uma eclesiologia histórico-salvíftca presente na
I a Carta de Clemente aos Coríntios14. Fundamenta-se na idéia de eleição,
que, se por um lado está apoiada na vontade de Deus, exige, por outro,
a responsabilidade comum de todos os fiéis15. A convicção de constituir
um “povo santo” 16 está ligada a um desenvolvimento histórico que parte
da Antiga Aliança e chega até o povo cristão. Não há solução de conti­
nuidade e isso permite entender por que o autor da carta se reporte ao
AT para justificar a articulação da comunidade em sumo sacerdote, pa­
dres, levitas e leigos17.

11. Cf. C. ANDRESEN, Die Kirchen..., op. cit., pp. 28-29.


12. L. SCIPIONI, Vescovo e pofolo, Milão, Vita e Pensicro, 1977, p. 10.
13. Cf. Carta aos Efésios, 5; Carta aos Magnésios, 7.13; Carta aos Tralianos, 3; etc.
14. De orientação histórica é também a eclesiologia presente no Pastor de Hermas,
para o qual a Igreja constitui seja uma realidade que transcende a história por ter sido criada
antes de todas as coisas (cf. Visão II, 4,1), seja uma realidade escatológica: uma torre em
construção, ou uma senhora anciã que rejuvenesce até se apresentar como “mulher casada”
(cf. Visão III, 2,4; 3,5; II, 4,1; IV, 2,1-2).
15. Cf. I a Carta de Clemente aos Coríntios, 59,2.
16. Cf. ibid., 30.
17. Cf. ibid., 40,4.
Tanto aqui com o a propósito do Pastor de Hermas e da A Autólico,
movemo-nos no âm bito de uma eclesiologia que tem muitos traços em
comum com a teologia da diáspora do judaísmo tardio18.

A eclesiologia de Ireneu

Deve-se ler a obra de Ireneu no interior de um contexto polêmico


preciso em confronto com o gnosticismo que no século II propagava-se
na Gália. Todavia, a sua eclesiologia — ao menos exteriormente — pa­
rece despida de caráter polêmico e até reproduz o sentido da Tradição,
da qual Ireneu se mostra fiel transmissor19.
Um prim eiro aspecto a ser ressaltado no pensamento eclesiológico
do bispo de Lião vem da importância que ele atribui à difusão do
cristianismo na terra e à unidade de fé (a única regula fidei) que se
m antém por toda parte20: “Tendo recebido essa mensagem e essa fé, a
Igreja, em bora espalhada por todo o m undo, as guarda com solicitude
com o se habitasse num a só casa; do mesmo m odo, crê nessas verdades,
com o se tivesse uma só alma e o mesmo coração; de pleno acordo,
proclama, ensina e transmite essas verdades, com o se tivesse uma só
boca”21. Ela já está prenunciada nas Escrituras pelo mesmo Espírito22
que a anima.
N o livro IV do Contra as heresias, Ireneu declara que a verdade,
para ser conhecida, precisa de testemunhas. Entre as que são “autoriza­
das”, a última é a Igreja. “Fizemos conhecer a verdade” — escreve — “e
manifestamos a pregação da Igreja que os profetas fizeram... Cristo a
com pletou, os apóstolos a transmitiram e somente a Igreja, depois de tê-
-la recebido deles, a guarda com fidelidade e a transmite a seus filhos.”23
Profundam ente convencido disso, Ireneu ensina que “não se deve pro­
curar em outros a Verdade, que é fácil receber da Igreja, pois os após­
tolos acumularam nela, com o num rico tesouro, do m odo mais pleno,

18. Cf. C. ANDRESEN, Die Kirchen..., op. cit., pp. 35-40.


19. Cf. J. DANIELOU, “Introduzione” a P. BATIFFOL, La Chiesa nascente e il
cattolicesimo, trad. do francês, Florença, Vallecchi, 1971, p. XXVI.
20. Para a eclesiologia de Ireneu, cf. P. V. DIAZ, “Kirche in der Schrift und im 2.
Jahrhundert”, H DG III, 3a, pp. 158-165.
21. Contra as heresias, I, 10,2.
22. Cf. Contra as heresias, III, 6,1. Sobre o AT como prefiguração das coisas que
estão na Igreja, cf. ibid., IV, 32,2.
23. Ibid., V, prefácio, e também II, 30,9.
tudo o que diz respeito à Verdade, a fim de que todo aquele que desejar
busque junto dela a bebida da Vida. Pois é ela a entrada da vida, enquan­
to ‘todos’ os outros ‘são ladrões e saqueadores”’.24
Ireneu observa que, se na Igreja se distribuem os diferentes carismas,
nela deve residir necessariamente o Espírito25. “Ora, o Espírito é Verda­
de. Por isso, aqueles que dele não participam não se nutrem dos seios
da Mãe (Igreja) para a vida... eles se afastam da fé da Igreja para não
ser desmascarados e rejeitam o Espírito para não ser instruídos.”26 E n­
fim, não estar na Igreja significa não ter aquilo que a anima: o Espírito.
E estar desprovido dele significa não possuir a verdade que somente Ele
concede. Ao contrário, estar na Igreja “nos perm ite ver que uma só e
mesma é a fé de todos, porque todos crêem num só e mesmo Deus Pai,
admitem a mesma economia da encarnação do Filho de Deus, reconhe­
cem o mesmo dom do Espírito, meditam nos mesmos preceitos, obser­
vam a mesma form a de organização da Igreja, aguardam a mesma vinda
do Senhor, e esperam a mesma salvação do hom em todo, ou seja, da
alma e do corpo”27.
Baseados nessa enumeração “catequética” da verdade cristã, pode­
mos afirmar que existe verdadeira esperança de salvação onde existe uma
fé íntegra. E esta assim será se estiver fundamentada na Tradição que se
cultiva na Igreja28.

A edesiologia de Tertuliano e Cipriano

Se até depois da primeira metade do século II a unidade de medida


para a autocompreensão da Igreja eram as comunidades judaicas da
diáspora, a partir dessa época o crescimento numérico da Igreja e a sua
estruturação mais institucionalizada fazem com que a autocompreensão
eclesial seja plasmada e modificada inclusive pelo confronto cada vez mais
denso com o paganismo e as suas instituições. Desaparece a edesiologia

24. Ibid., III, 4,1.


25. Cf. ibid., 24,1.
26. Ibid., 24,1.
27. Ibid., V, 20,1.
28. A este respeito, na Carta endereçada a um certo Florino, presbítero da Igreja,
o qual passara para a heresia, Ireneu afirma: “estas (tuas) opiniões não estão de acordo com
a Igreja e jogam na maior impiedade aqueles que delas compartilham... não foram essas
as opiniões que os presbíteros que viveram antes de nós e que freqüentaram os apóstolos te
transmitiram.", in EUSÉBIO DE CESAREIA, História eclesiástica V, 20.
da estraneidade e é resgatado o conceito lucano de “apostolicidade”
missionária29.
Não se diferenciando m uito de Ireneu, Tertuliano apresenta a Igreja
com o o nós dos cristãos: “Nós somos um corpo unido pelo vínculo da
piedade, pela unidade da disciplina e pelo pacto da esperança”30. A
imagem da Igreja com o “corpo”, mas também com o “esposa” , “vir­
gem ”, “m ãe” trai a influência paulina sobre o autor africano. A seus
olhos é o batismo que torna a Igreja “m ãe”31. Fora dela não acontece
nenhum batismo verdadeiro32.
Tertuliano dem onstra ter uma consciência altamente teológica da
Igreja e, todavia, por causa dos heréticos que combate é levado a acen­
tuar mais o aspecto visível, institucional da Igreja, destacando sobretudo
a unidade com o a primeira propriedade essencial da comunidade cristã33.
Trata-se de uma unidade que vincula as diversas Igrejas entre si e que
rem onta ao próprio Deus: “o que as Igrejas receberam dos apóstolos, os
apóstolos receberam de Cristo e Cristo, de Deus”34. Com o afirma no
tratado Sobre o batismo, a Igreja não é apenas o corpo de Cristo, mas
também o “corpo dos três” , ou seja, a imagem terrena da unidade di­
vina35.
A passagem de Tertuliano para o montanismo, por volta de 207,
implicou uma mudança tam bém em sua concepção de Igreja, que será
entendida sobretudo com o sociedade carismática. Ele passa, portanto, da
Igreja com o “corpo da Trindade” à Igreja como “ Espírito”, na qual a
diferença entre clero e leigos desaparece e a função de perdoar os peca­
dos não é confiada estritam ente à hierarquia, mas ao hom em que possui
o Espírito36.
A predileção de Tertuliano pela imagem da Igreja “mãe” e pela
nota da unidade encontra um firme adepto em Cipriano, o maior teó­
logo da Igreja do século III, que, pouco depois do ano 250, teve de se
defrontar com o cisma de Novato em Cartago.

29. Cf. C. ANDRJESEN, Die Kirchen..., op. cit., pp. 129-131.


30. Apologético, 39,1.
31. Sobre o batismo, 20.
32. Cf. ibid., 15.
33. Cf. P. T. CAMELOT, “Die Lehre von der Kirche — Väterzeit bis ausschliesslich
Augustinus”, HDG III, 3b, 14.
34. Sobre a prescrição contra os hereges, 21,3.
35. Sobre o batismo, 6,2: “Pois onde estãos os três, Pai, Filho e Espírito Santo, aí se
encontra também a Igreja, que é o corpo dos três”.
36. Sobre a pudicícia, 21.
Segundo Cipriano, a Igreja é mãe porque, com o esposa fecunda de
Cristo, nos carrega em seu seio, gera-nos pelo batismo e nos alimenta
com o leite da doutrina e dos sacramentos37. Segue-se daí que “não pode
ter Deus por Pai quem não tem a Igreja por m ãe”38, mas outra conse­
qüência também é que “fora da Igreja não há salvação”39. Uma adminis­
tração dos sacramentos fora da Igreja não tem efeito. Para o bispo
cartaginês, de fato, o sacramentum unitatis da Igreja pode ser atribuído
à unidade de Deus, ao mistério da unidade na Trindade. Com o lemos no
tratado sobre a Oração do Senhor 23, a Igreja é “o povo reunido que
provém da unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo” . O cisma será,
portanto, o delito mais terrível porque constitui um atentado à unidade
de Cristo e do próprio Deus.
Esse m odo de ver leva a outra conseqüência: a Igreja é a única que
possui o Espírito Santo. Por isso, qualquer ato sacramental fora da Igreja
não tem efeito algum40.
Diferentemente de Tertuliano, Cipriano sublinha o caráter hierár­
quico da comunidade cristã, que é o povo em união com seu bispo, sinal
e fundamento da unidade. “Se alguém não está com o bispo não está na
Igreja.”41 O que o bispo representa para cada comunidade o episcopado
inteiro representa para a Igreja universal. Sinal e em certo sentido origem
dessa unidade da Igreja formada pela unidade do episcopado é Pedro,
que, cronologicamente, foi chamado por primeiro, embora todos os demais
apóstolos gozem dos poderes a ele concedidos42. Nessa perspectiva, o
bispo de Roma representa para a Igreja o que Pedro era para o colégio
dos apóstolos: sinal e fundamento. A eclesiologia da comunidade de
Cipriano não vai além, sob este ponto de vista.

A eclesiologia de Orígenes

N o De principiis, Orígenes esclarece que “são muitos os que acre­


ditam com preender a verdade de Cristo e alguns deles estão em oposição
aos outros, mas está em vigor o ensinamento da Igreja transmitido pelos
apóstolos por ordem de sucessão e até hoje conservado nas Igrejas”43.

37. Cf. A conduta das virgens, 3.


38. A unidade da Igreja católica, 6. Cf. também Carta LIII, 2.
39. Carta LXXIII, 21.
40. Cf. Carta LXX, 3; Carta LXXI, 1.
41. Cf. Carta LXVI, 8.
42. Cf. A unidade da Igreja católica, 4.
43. Sobre os princípios, I, prefácio, 2.
Esse apelo à tradição apostólica e eclesiástica, sempre presente a partir de
Ireneu, não induz, todavia, o Alexandrino a mostrar a lista das sucessões
de bispos. N o entanto, é claro que para Orígenes são os bispos que
protegem a tradição apostólica e isso o leva a exigir deles um teor de vida
irrepreensível porquanto constituem os primeiros mestres da comunidade.
Orígenes fala com freqüência das Igrejas particulares dispersas por
toda a terra e, todavia, a esse respeito, mais que num fundamento his­
tórico e num órgão visível dessa unidade, ele pensa na unidade espiritual
que reúne todas as comunidades particulares.
Essa única Igreja é ao mesmo tem po terrena e celeste, visível e
invisível, hierárquica e pneumática. Essa sua estrutura sacramental é aná­
loga à do Logos encarnado.
Isso explica por que Orígenes gosta de falar da Igreja como “corpo
de Cristo” . C om o declara no Comentário sobre o Salmo X X X I 1, “ (Cris­
to) reúne em si todos nós: é ele m esm o” — diz — “que em nós sofre
a fome, que tem sede em nós, que está nu e doente, é hóspede e está
encarcerado; e qualquer coisa que seja feita a um de seus discípulos ele
a considera feita a si” .
Ao falar de Cristo-cabeça ou “alma” e de nós, seus membros, o
doutor alexandrino desenvolve as aplicações presentes nessa imagem
paulina. Quais as implicações do fato de sermos “corpo de Cristo”? Que
Cristo agora participa e sofre na experiência de seus membros; que a sua
alegria não estará ainda completa enquanto seu corpo não estiver pacífica
e totalm ente formado na vida futura. “Se uma parte do corpo nos p re­
judica” — escreve — “ ...ninguém diz: ‘passo bem, mas o estômago me
dói’, mas sim ‘não passo bem, pois o estômago me dói’... O apóstolo diz
que somos corpo de Cristo e seus membros, cada um fazendo sua parte.
Cristo, portanto, de quem todo o gênero hum ano, ou melhor, a to ta­
lidade da criação, é corpo e nós seus membros, cada qual fazendo sua
parte, se algum de nós, que somos chamados seus membros, está mal e
sofre por algum pecado, isto é, se arde pela mancha de algum pecado e
não está sujeito a Deus, diz-se com razão que ele, Cristo, não está ainda
submisso, pois são seus membros aqueles que não estão submetidos a
D eus.” De m odo semelhante, na Homilia V II sobre o Levítico 2, retorna
a im agem do corpo para significar que C risto ainda se encontra
“inacabado” : “Se a ti, que és m em bro, a alegria não te parece perfeita
se te falta algum m em bro, quanto mais o nosso Senhor e Salvador, que
é a Cabeça e o autor de todo o corpo, julgará que para ele não há
perfeita alegria enquanto vir que falta a seu corpo alguma coisa de seus
m em bros”44. As passagens citadas e outras que se poderiam apresentar45
justificam em profundidade os interesses eclesiológicos de Orígenes, que
se orientam mais num a perspectiva escatológica do que com o reflexão
sobre as estruturas eclesiais. C ontinuando na visão do doutor alexandrino,
que apresenta a comunidade com o “corpo”, a vida celeste estará com ple­
ta quando todos se encontrarem na unidade. Essa explicação do “corpo
místico” de Cristo nos diz também por que a alegria dos apóstolos e dos
santos não é ainda completa: “Nem os apóstolos” — escreve — “con­
seguiram sua alegria, uma vez que nem os santos, ao partir daqui, con­
seguem o prêmio completo de seus méritos, mas esperam também por
nós, ainda que hesitantes, ainda que ociosos. Não têm eles alegria per­
feita enquanto não lamentarem os nossos erros e chorarem por nossos
pecados... Repara que Abraão espera ainda para conseguir o estado per­
feito. Esperam também Isaac e Jacó, e todos os profetas nos esperam
para receber juntam ente conosco a felicidade perfeita... De fato, um só
é o corpo que espera ser justificado; um só é o corpo (cf. Rm 12,5) do qual
se fala que ressurgirá no juízo... Portanto, terás alegria ao partires desta
vida se tiveres sido santo. Então será a alegria plena, quando não faltar
nenhum m em bro a teu corpo. Pois que também esperarás outros, do
mesmo modo que foste esperado”46.

A eclesiologia de O ptato de Milevis e Agostinho

Antes de Agostinho, foi o bispo africano O ptato de Milevis que


esboçou uma eclesiologia original, levado a isso pela comparação com
Parmeniano, bispo donatista de Cartago. Nos sete livros de A verdadeira
Igreja, O ptato se esforça por dem onstrar que as Igrejas donatistas não
são verdadeiras, uma vez que existe uma única Igreja. Prova de sua
verdade é a referência à única cathedra que — diferentemente de Cipriano
— não é mais apenas a cátedra do bispo local, mas a cathedra Petri.
Partindo de Pedro, O ptato relaciona a sucessão dos bispos até o atual
“Sirício, o qual é agora nosso colega. Com ele todo o m undo está de
acordo, juntam ente conosco, para uma união de colegialidade por meio
da relação constituída pela troca de cartas de com unhão”47. A ligação
com o bispo de Roma torna-se, para O ptato, a garantia da com unhão e

44. Cf. também a profunda passagem do comentário sobre Mt 26,29 in Homilia VII
sobre o Levítico, 2.
45. Cf. Sobre os princípios — livro I, 6,2.
46. Homilia V II sobre o Levítico, 2.
47. A verdadeira Igreja II, 3.
da unidade e exprime a verdadeira e única Igreja. Ele exige depois um
outro sinal da verdadeira Igreja: o seu caráter universalista, ou a catolicidade
geográfica. Fortalecido com esse argum ento, O ptato reduz facilmente ao
silêncio o seu adversário: “Vós, irmão Parmeniano, andastes dizendo que
a Igreja existe som ente onde estais vós, se não talvez porque, com vossa
soberba, presumis atribuir-vos uma santidade totalmente única, a ponto
de pretender que a Igreja esteja onde quereis e não esteja onde não
quereis. Mas então, mesmo que se admita que ela possa se encontrar
num a parte restrita da África, num canto de uma pequena região, por
que não poderia estar conosco e em outra parte da África? Por que não
poderia estar na Espanha, na Gália, na Itália?”48
Na edesiologia que O ptato desenvolve têm lugar também interes­
santes considerações sobre os sacramentos. A propósito, o bispo de Milevis
tem o mérito de ter m ostrado que a eficácia sandficante dos sacramentos
não depende da santidade do ministro, mas somente de Deus: “Vós
mesmos” — escreve — “podeis ponderar como os que batizam são
somente ministros, e não árbitros dos sacramentos, e com o os sacramen­
tos são santos por si mesmos e não por obra dos hom ens... Deixai a
Deus o direito de conceder o que é seu. De fato, esse dom não pode ser
concedido pelo hom em , pois é divino”49. A seguir, O ptato passa a dis­
tinguir entre potestas e m inisterium, entre sacramento e graça, entre
validade e valor salvífico: distinção que será desenvolvida por Agostinho.
Também para o bispo de Hipona, a controvérsia donatista é a ocasião
principal para um aprofundam ento da edesiologia. C om o O ptato, Agos­
tinho reconhece que os sacramentos da Igreja são de Cristo: Ele os
instituiu, deles é o ministro principal e por seus méritos são o que são.
“O batismo” — declara — “é batismo não pelos méritos daqueles aos
quais é administrado, mas pela santidade e verdade próprias, por causa
daquele que o instituiu.”50 Portanto, “seja quem for o hom em que o
administra, ainda que Judas, é sempre Cristo quem batiza”51. Ter o
verdadeiro batismo, porém , não significa estar ainda na Igreja, que não
é som ente “com unhão dos sacramentos” , mas “com unhão dos santos” .
Com essas afirmações se apresenta a doutrina de Agostinho, para a qual
a recepção do sacramento pode ser válida sem, contudo, ser frutuosa.
Pode-se, portanto, receber o sacm m entum sem a virtus sacramenti.

48. íbid., II, 1.


49. Ibid., V, 4.
50. Contra Crescónio, 4, 16,19.
51. Comentário sobre Jo, Tr. 6,7.
N o sistema eclesiológico de Agostinho tem um papel fundamental
a idéia de “com unhão dos santos” . Ele vê a Igreja como um povo a
caminho da imortalidade, na qual as divisões existentes referem-se não à
qualidade dos membros, mas ao papel que desempenham em proveito
dos outros.
Há, pois, dois m om entos da mesma Igreja: a futura, “sem m ancha” ,
e a presente, na qual os fiéis bons e maus são como o trigo e a palha
misturados na eira52. Trata-se do “corpus Christi m ixtum ’ 53. Consideran­
do a Igreja presente à luz da Igreja futura, Agostinho não duvida de que
os pecadores estejam realmente na comunidade, mas que, na verdade,
não estão, uma vez que é verdadeiro m em bro somente quem o é pela
eternidade54.
O utro tema central no pensamento agostiniano é a imagem da
Igreja com o corpo místico de Cristo. O Espírito constitui a alma desse
corpo55, e, com o a alma não vivifica os membros que não estão no corpo,
assim ninguém é vivificado pelo Espírito Santo senão dentro da Igreja,
ou em seu corpo místico. “ ... Queres viver do Espírito de Cristo? Deves
estar no corpo de C risto... Q uem quer viver tem de onde viver, tem de
que viver. Que se aproxime, creia, passe a fazer parte do C orpo e será
vivificado. Que não desconsidere pertencer ao conjunto dos membros,
que não seja um m em bro infectado a ser am putado, que não seja um
m em bro disforme de que precise se envergonhar”56.
A inserção e a persistência no corpo da Igreja se efetua mediante a
caridade57. Essa união do Cristo total permite depois uma espécie de
communicatio idiomatuni entre o corpo e os membros e serve de base
a toda a doutrina da graça. Esse m odo de ser na Igreja, ou seja, juntos
na unidade e na caridade, é o m odo perfeito. Agostinho conhece, porém,
dois outros tipos imperfeitos de pertença a ela: o primeiro é o dos
pecadores, os quais estão em seu interior, mas sem caridade, e um outro,
próprio dos justos fora da Igreja, que consiste em ter a caridade, mas não
a unidade58.

52. Cf. Comentário sobre o Salmo X X V — Sermão 2,5


53. Sobre a doutrina cristã III, 32,45.
54. Cf. Sobre a correção e sobre a graça 9, 20-23.
55. Cf. Sermão CCLXVII, 4.
56. Comentário sobre Jo, Tr. XXVI, 13.
57. No Comentário sobre Jo, Tr 7, 8, lemos: “Recebemos também nós o Espírito
Santo se amamos a Igreja, se nos unimos através da caridade, se nos alegramos no nome
da fé católica. Estejamos certos, irmãos, que cada qual tem o Espírito Santo na medida em
que ama a Igreja de Cristo”.
58. Cf. Sobre o batismo V, 26-38.
Essa concepção revela o amplo fôlego da eclesiologia agostiniana,
aberta a uma perspectiva universalista que envolve todos os homens de
boa vontade: “Nós somos o C orpo daquela Cabeça! Será que somente
nós o somos e não o foram também os que viveram antes de nós? Todos
aqueles que, desde o início dos séculos, foram justos têm Cristo com o
cabeça. Creram de fato que viria Aquele que nós cremos já ter vindo”59.
Este rápido apanhado da eclesiologia de alguns Padres pode ser útil
para com preender que, para os autores dos primeiros séculos, a Igreja é
sobretudo o “nós” dos cristãos e não uma realidade suprapessoal, uma
instituição em que se buscam meios de salvação. Ela é solidariedade,
troca, comunicação de um com o outro. O u — como notava Y. Congar
num livro a respeito da Igreja da época protopatrística — com unhão
fraterna, unanimidade que ora, ambiente de conversão, participação da
cruz, com unidade de testemunhas. “Nela, os que são melhores carregam
os medíocres, e os santos, os pecadores. Com o escrevia M etódio de
Olimpo: ‘Q uanto àqueles que são ainda imperfeitos, que apenas se ini­
ciam nos ensinamentos da salvação, são os mais perfeitos que os formam
e os dão à luz, com o se fosse por uma m aternidade’.”60
H á, pois, um serviço “ m aterno” da comunidade cristã bastante
ressaltado pelos Padres. “A M ater Ecclesia certamente foi mais im portan­
te para os cristãos da época das perseguições do que é para nós. Ela os
consolou e os protegeu. Em seu seio, eles encontraram a vida eterna e
a protegeram com suas m ãos... Ela foi o seio em que se sentiam seguros
de toda necessidade... (Essa imagem) pode contribuir, em questões cer­
tam ente não secundárias, para uma reflexão teológica sobre a pastoral
hodierna da Igreja. De fato, também nos dias de hoje — uma vez que
os cristãos vivem novamente na Diáspora e se vêem ameaçados por forças
múltiplas — uma compreensão mais profunda da Igreja na imagem de
mãe poderia levar a uma grande segurança.”61

59. Comentário sobre o Salmo X X X V I — Discurso, 3,4.


60. Cf. Y. CONGAR, “Prefazione” a K. DELAHAYE, Per un rinnovamento delia
pastorale — ha comunità, madre dei credenti negli scritti dei Padri delia cbiesa primitiva,
trad. do alemão, Bari, Ecumênica, 1974, p. XXIV. A citação de Metódio de Olimpo é
tomada do Simpósio III, 8.
61. K. DELAHAYE, Per un rinnovamento..., op. cit., pp. 266-267.
OS PADRES E A MARIOLOGIA

ARA a história da mariologia, os séculos I e II foram decisivos.


P Naquela época, apenas grandes autores falaram de Maria, mas tam ­
bém diversos escritos apócrifos, produzidos, ao menos em parte, para
satisfazer a necessidade popular de conhecer a vida de Cristo e de Maria.
É significativo, a esse propósito, “Natividade de Maria” (fim do seculo II),
também denominado “Proto-evangelho de Tiago”, que teve grande influên­
cia tanto nas lendas sucessivas da virgem com o nas artes figurativas1.
Em seu conjunto, os textos dos séculos I e II relativos a Maria não
são muitos e — em nível teológico — não podem os esperar deles uma
tematização orgânica sobre a pessoa e o papel salvífico de Maria.

Os elementos m ariológicos da primeira pregação da Igreja

N o século I, o centro do anúncio cristão é constituído pela fé em


Cristo Filho de Deus, elevado à categoria de “Senhor” depois de sua
m orte e ressurreição. É um anúncio concentrado no essencial, baseado
num a série de eventos, mediante os quais Cristo realizou a salvação, e
vinculados à vida de cada um (pro nobis)2.

1. No que se refere às lendas, depois incorporadas pela tradição cristã, grega e


ocidental, basta pensar no nascimento milagroso de Maria da estéril Ana c de Joaquim; a
apresentação e permanência de Maria no templo, a escolha do “ancião” José como seu
esposo c guarda; o nascimento de Jesus numa gruta; a presença de uma parteira etc... Cf.
L. MORALDI, Introduzione a Apocrifi dei Nuovo Testamento, Milão, TEA, 1991, p. 65.
2. Cf. R. CANTALAMESSA, “Dal Cristo dei NT al Cristo delia Chiesa: tentativo
di interpretazione delia cristologia patrística”, in II problema cristologico oggi: Atas do V
Congresso nacional A.T.I., Assis, Cittadella, 1972, pp. 144-146.
Na época subapostólica, acrescentar-se-á ao credo cristológico do
N T a menção de que Cristo nasceu de Maria virgem, que a partir daí
aparecerá sempre nas profissões de fé3. Com o lemos no Símbolo da Traditio
apostolica (c. 215) de H ipólito, pergunta-se ao catecúmeno que está
prestes a ser batizado: “Crês em Cristo Jesus, filho de Deus, que por meio
do Espírito Santo nasceu da virgem Maria...'?" (21).
Neste com o em outros símbolos, Maria será sempre apresentada e
citada em sua relação com Jesus por dois aspectos:
a) a verdadeira m aternidade (natus ex M aria...)
b) a virgindade (yirgine)
Trata-se fundamentalmente de afirmações bíblicas assumidas por Lc
e M t, ausentes de outros escritos neotestamentários4. Nelas se baseia a
primitiva doutrina mariológica, que se firmará na luta em duas frentes
opostas: o judeu-cristianismo heterodoxo e o gnosticismo. Para o primei­
ro — ao m enos para uma certa linha de “ebionitas”5 — , Jesus nasceu de
Maria e de José ou de um certo Pantera6. Nessa perspectiva, nega-se a
virgindade de Maria; de sua parte, o gnosticismo concorda com a fé da
Igreja em reconhecer a concepção e o parto virginal, mas, ao atribuir a
Jesus um corpo fantasmático ou não-material, com prom ete irremedia­

3. Convém lembrar aqui que para a constituição das fórmulas de fé primitivas


concorreram diversas circunstâncias ou situações (batismo e catecumenato; liturgia e prega­
ção; exorcismos; perseguições; polêmica contra os heréticos). Cf. a respeito O. CULL-
MANN, La fede e il culto delia Chiesa primitiva, trad. do francês, Roma, AVE, 1974, pp.
77-92. E num contexto de exorcismo que JUSTINO nos confirma o credo primitivo:
“todo demónio é exorcizado, vencido e submetido no nome daquele que é o Filho de
Deus e primogênito de toda criatura, nascido por meio de uma virgem e que se tornou
homem sujeito ao sofrimento, crucificado sob Pôncio Pilatos pelo vosso povo, morto e
ressuscitado dos mortos e elevado aos céus”, Diálogo com Trifão 85,2.
4. A este respeito Mc nada diz sobre o que precede o batismo de Jesus e Jo parece
não demonstrar particular interesse por esses aspectos da realidade humana de Jesus. Por
seu lado, no texto de G1 4,4 (“ ...que nasceu de uma mulher” ), Paulo parece revelar que
a kenosis de Cristo comporta uma participação no destino dos homens.
5. Tanto destes como de outros judaizantes fala ORIGENES cm Contra Celso V, 61,
em que observa que “ ... estes formam as duas seitas de ebionitas, ou seja, daqueles que
admitem, como nós, que Jesus nasceu de uma virgem, e daqueles que, ao invés, crêem que
não nasceu desse modo, mas como todos os demais homens” .
6. Retomando esses boatos, o pagão Celso apresenta Maria como uma mulher
adúltera, expulsa pelo artesão por causa do adultério e engravidada por um soldado de
nome Pantera. Ela — comenta Celso — “não era nem uma mulher nobre nem de estirpe
real, pois ninguém a conhecia, nem mesmo os vizinhos. Expulsa pelo marido e perambulando
em estado miserável, deu à luz às escondidas. Foi seu filho Jesus quem depois inventou
toda a história do nascimento de uma virgem, mas era tudo ao contrário”. Contra Celso
I, 28.
velmente a verdadeira m aternidade7. O compromisso dos autores o rto ­
doxos em relação à mariologia consistirá em salvaguardar as duas prer­
rogativas recebidas do querigm a primitivo. Não é de admirar, então, que
até o século II e contra o gnosticismo, mas tam bém contra o paganis­
m o, o nascimento virginal e a figura de Maria sejam vistos num a pers­
pectiva dogm ático-apologética8. A partir do final do século II e por
influência de crescentes tendências ascéticas, inclusive dentro da Igreja,
observa-se, porém , um outro fenômeno: o nascimento virginal, na sua
santidade, é assumido com o contra-imagem da atividade sexual natural,
e Maria, mãe virgem, aparece com o a imagem primordial de pureza. O
primeiro docum ento que considera o nascimento virginal e a figura de
Maria nesses term os é o já citado Proto-evangelho de Tiago, cujo des­
conhecido autor, sem ser movido por orientações teológicas ou polêm i­
cas, quer apenas glorificar Maria, ressaltando o ideal ascético da virgin­
dade9. A expansão de tendências encratistas na Igreja acentuará ainda
mais esse ideal a po n to de ler — com o fara o pseudo-Justino o
nascimento virginal de Jesus com o a superação da geração, que devia ser
entendida como algo m au10. Em sua oposição ao gnosticismo e ao
m ontanism o, bem com o às tendências ascéticas radicais, a comunidade
cristã não aceitou essa “leitura” do nascimento virginal, mas não se pode
ignorar que ela permaneceu latente na mariologia sucessiva11.

A verdadeira maternidade de Maria nos autores


cristãos do século II

Entre os “Padres Apostólicos” , Inácio de Antioquia é o único que


fala de Maria e de sua m aternidade virginal. Em oposição às tendências

7. Cf. A. ORBE, Cristologia gnostica I, BAC, 1976, 425-432.


8. No que diz respeito ao mundo pagão, é totalmente inaceitável a idéia de Deus
ter nascido de uma mulher. “Se Deus” — escreve a respeito o pagão Celso — “queria fazer
nascer um espírito dele, que necessidade tinha de soprá-lo no seio de uma mulher? Ele
tinha o poder de plasmar os homens, de forjar um corpo sem jogar o próprio espírito numa
semelhante fossa. Neste caso, ele teria até evitado a incredulidade dos homens se tivesse
sido gerado diretamente do alto” (Contra Celso VI, 73).
9. Cf. H. VON CAMPENHAUSEN, Die Jun#frauen#eburt in der Theologie der
alten Kirche, Heidelberg, C. Winter Universitãtsverlag, 1962, pp. 40-41.
10. A persistência nesse modo de entender reflete-se num texto anônimo do século
IV, o Opus imperfectum in Mattheum, no qual, entres outras coisas, lemos: “haec ipsa
coiunctio maritalis malum est ante Dcum; non dico peccatum, sed malum. Nam quantum
ad naturam rei ipsius, peccatum est, concessione autem Dei fàctum est, ut non sit peccatum...
Licentia, dico, facta est, non iustitia. Nam etsi propter necessitatem rei peccatum esse desiit,
tamen iustitia esse non meruit (incipit)” , Homilia I.
11. Cf. H. VON CAMPENHAUSEN, op. cit., pp. 43-44.
docetas presentes na Ásia M enor, Inácio ressalta a verdadeira m aternida­
de de Maria mediante a qual Jesus é tido com o pertencente à estirpe de
Davi ( C arta aos Trahanos 9; Esmirnenses 1). Gerado por ela (Efesinos 7),
Jesus é levado em seu seio “com o Deus tinha estabelecido” (Efesinos 18).
N o contexto apologético em que escreve, Inácio considera o realismo do
nascimento de Jesus o aspecto mais im portante. Para ele, esse nascimento
pertence à tradição da Igreja, que se movimenta entre dois aspectos
paradoxais: Deus que recebe a carne de uma mulher virgem, e que sofre
a paixão e m orre na cruz12. Com Justino, as referências a Maria não são
propostas num a perspectiva antidoceta, mas visam salvaguardar o caráter
divino de Jesus contra pagãos e judaizantes que o consideravam fruto de
um m atrim ônio normal. Daí a insistência maior na m aternidade virginal,
que confirma a precisão das profecias (“a virgem conceberá...” : Is 7,14)13.
Para valorizar a sua argumentação, Justino não hesita em recorrer à
mitologia, que conhecia episódios de partenogênese: “Ao dizer que o
Verbo... nasceu sem relação humana e que foi crucificado, não dizemos
nada de novo em relação àqueles dentre vós que falam dos filhos de
Z eu s...” (Apologia 7, 21,1). Esse apelo à mitologia, se podia ser facil­
mente entendido pelo m undo pagão, foi, porém, evocado em âmbito
hebraico para difamar o nascimento virginal como uma lenda14.
Ireneu, por sua vez, em contraposição ao docetismo de matriz
gnóstica, acentua a realidade hum ana da maternidade de Maria, mas dá
início tam bém a uma reflexão na qual ressalta o papel “voluntário” que
ela teve no nascimento de Jesus.
O que influencia a doutrina mariana de Ireneu é a idéia de “reca­
pitulação” : “o que estava perdido (ou seja, A dão)” — escreve — “tinha
carne e sangue, pois Deus plasmou o hom em apanhando barro da terra,

12. Na Carta aos Efisios 19, lemos: “Permanece escondida ao príncipe deste mundo
a virgindade de Maria, e também o seu parto; e igualmente a morte do Senhor. São estes
os três mistérios extraordinários que se realizaram no silêncio de Deus”.
13. Cf. Diálogo com Trifão 66-67, em que JUSTINO assume a Septuaginta em
relação a Is 7,14 (“a virgem conceberá um filho”), mais que a tradução literal de Aquila
(“a jovem conceberá um filho”). O caráter de “sinal” da profecia, segundo JUSTINO,
desapareceria se não se tratasse de algo excepcional. “Se, do mesmo modo que todos os
primogênitos, também este devesse nascer de uma relação carnal, por que Deus teria dito
que desejava estabelecer um ‘sinal’, que não é próprio de todos os primogênitos?” (ibid.,
84,1). Cf. também 84,2-3.
14. Assim no Diálogo com Trifão 67,2: “De resto, nas lendas dos gregos se narra que
Perseu nasceu de Dânae, que era virgem... Deveríeis ter vergonha de andar contando as
mesmas coisas que os gregos! Para vós seria melhor reconhecer que este Jesus é um homem
nascido de homens e... não ter a desfaçatez de inventar prodígios. Se é que não quereis
passar por loucos como os gregos!” Cf. também TERTULIANO, Contra Marcião IV, 10.
e para ele foi estabelecida toda a economia da vinda do Senhor. Também
ele, pois, teve carne e sangue para recapitular em si não uma outra obra,
mas a obra plasmada inicialmente pelo Pai, para procurar o que estava
perdido” ( Contra as heresias V, 14,2). A aproximação que Ireneu —
baseado em Paulo — estabelece entre Adão e Cristo estende-se a Eva e
Maria. Aos “passos errados” dos progenitores contrapõe-se o novo com ­
portam ento da dupla Cristo-Maria.
N o paralelismo entre Eva e Maria, esta última é contraposta à
“primeira mulher” por causa da obediência, que não se limita à anunciação,
mas tem início a partir daquele m om ento. Ireneu observa que Maria,
“mediante a sua obediência, foi causa de salvação para si e para todo o
gênero hum ano... O nó da desobediência de Eva teve solução graças à
obediência de Maria. O que Eva amarrou com sua incredulidade Maria
desatou por sua fé” ( Contra as heresias III, 22,4). Ambas intervêm res­
ponsavelmente, carregando todo o peso de sua escolha, que é prenhe de
conseqüências para si próprias e para os outros e merece condenação ou
apreço justamente por ser escolha livre15. Para Ireneu, como o pecado se
aninha na livre vontade do hom em e os progenitores recusaram livre­
m ente seu assentimento a Deus, a redenção deverá configurar-se como
um retorno à perfeita obediência, da qual Cristo nos dá um exemplo.
Nessa perspectiva, a tensão volitiva torna-se fundamental. É o co­
ração que conta, e é este que Cristo busca tanto em seus discípulos
como, sobretudo, em sua mãe (cf. Lc 11,28; M t 12,50).
Deve-se acrescentar que, não obstante as reflexões tipológicas e o
paralelismo Eva/M aria, Ireneu não considera esta última num plano
supra-histórico, não a afasta da realidade humana. Pelo contrário, justa­
m ente por causa de sua obediência, Maria é a junção entre Cristo e a
Igreja, tornando-se figura e m odelo tanto para a com unidade dos cren­
tes com o para cada um em particular. O seu significado religioso “femi­
nino e inaugural” consiste em ser a mãe eleita de Jesus, mas tam bém a
nova mãe da hum anidade. Esboça-se assim a idéia da m aternidade uni­
versal de Maria. Todavia, seria inútil buscar na Igreja antiga uma inter­
pretação mariológica da “m ulher vestida de sol” (Ap 12). O mesmo se
diga tam bém para a profecia de Gênesis 3,15 sobre a descendência da
m ulher que esmagará a cabeça da serpente, sempre referida a Cristo,
jamais a M aria16.

15. Cf. J. A. DE ALDAMA, Maria en la patrística de los siglos I y II, BAC, Madri,
1970, p. 284.
16. Cf. H. VON CAMPENHAUSEN, op. cit., p. 33.
Maria, mãe de Deus

D o século III ao V, a reflexão mariológica concentra-se em quatro


aspectos: o reconhecim ento de Maria “mãe de Deus”, a sua virgindade
in partu e post p a rtu m , a sua santidade. Em relação à maternidade di­
vina, o reconhecim ento de Maria theotokos é fartamente atestado a partir
do Concílio de Nicéia. O primeiro testem unho seguro nos é dado pelo
bispo Alexandre de Alexandria ( f 325) em carta endereçada a Alexandre
de Constantinopla, na qual esclarece que o Senhor Jesus “não teve ape­
nas a aparência, mas tinha carne de verdade recebida da Theotokos
M aria”17. E provável que a expressão não tenha sido cunhada por Ale­
xandre18. N ão há dúvida, porém , que a partir dessa época os testem unhos
sobre a “deípara” se encontram em autores pertencentes a diferentes
orientações doutrinais: Eusébio de Cesaréia, Atanásio, Dídimo, o Cego,
mas tam bém em Efrém, o Sírio, nos Capadócios, Cirilo de Jerusalém,
Apolinário de Laodicéia, Teodoro de Mopsuéstia, João Crisóstomo, bem
com o nos autores latinos desde a metade do século IV19. A controvérsia
no Concílio de Efeso (431) a respeito do título de theotokos contestado
por N estório, que preferia falar de “mãe de Cristo” ou de “mãe do
H om em ” , foi precedida por um século no qual esse título se impusera
sem contestações. Isso justifica por que os Padres do concílio efesino,
concílio mais cristológico que mariológico, puderam apelar, a propósito
desse ponto, aos “ Padres” anteriores20.

A virgindade de Maria

A afirmação da virgindade de Maria in partu e post partum encon­


tra vozes discordantes na Igreja dos primeiros séculos. Reconhecida por
autores com o Ireneu e Orígenes, ela tem, contudo, opositores naqueles
que, com o Tertuliano e Elvídio, tiveram de enfrentar a instrumentalização

17. Epistula ad Alexandrum Constantinopolitanum XII: PG, 18,568.


18. Se a oração Sub tuum praesidium eonfugimus sancta Deijjenitrix..., comprovada
pelo papiro 470 da John Rylands, remonta ao fim do século III, teríamos um testemunho
ainda mais antigo do uso da theotokos do que o texto de Alexandre de Alexandria (perten­
cente, todavia, à mesma área cultural): Veja “Enc. Catt.” 11, 1468.
19. Para a presença de referências à theotokos nos autores mencionados, remeto ao
Enchiridion marianum, org. por D. CASAGRANDE, Roma, 1974.
20. É significativo a esse propósito o testemunho presente na Carta de João de
Antioquia a Nestório 4, em que se explica que o título theotokos “foi concebido, dito e
escrito por muitos Padres... Não há perigo algum em dizer e pensar as mesmas coisas
daqueles doutores que na Igreja tiveram um bom nome” (doc. 14, Schwartz I, 1, 95).
dessas prerrogativas. Com efeito, a virgindade in partu encontrava apoio
no docetismo gnóstico, que atribuía a Cristo um nascimento aparente.
A virgindade post p a rtu m era defendida pelo maniqueísmo, que nela
encontrava um apoio ao desprezo pelas realidades materiais e, no caso,
pelo m atrim ônio. Era preciso desvincular a virgindade in partu e post
p a rtu m dos falsos princípios aos quais estava ligada, mas deviam igual­
m ente ser conciliadas, em âm bito cristão ortodoxo, duas exigências da
fé por si inconciliáveis: a m aternidade física, completa, de Maria e a sua
virgindade física, completa. A resposta dos Padres parte da cristologia e
não representa um panegírico dos “privilégios” de Maria. Está, antes,
ligada à idéia do nascimento de Deus, que não anula ou renega a carne,
mas lhe comunica o penhor de sua renovação escatologica. Com o d e­
clara Ambrósio: “N o próprio (Cristo) encontrarás muitas coisas de acor­
do com a natureza e acima dela..., mas sobretudo o fato de que a
virgem concebeu e gerou para que tu cresses que era Deus que renovava
a natureza e era hom em aquele que, de acordo com a natureza, nascia
do hom em ” {De Incarnatione 54). Com o sustentáculo da virgindade in
partu e post p a rtu m concorreu a idéia, presente nos Padres, dos três
nascimentos do Verbo: nascim ento do Pai, nascim ento da virgem, nas­
cim ento no cristão. O segundo nascimento participa de ambos: do pri­
meiro, que atesta e repete tem poralm ente, do terceiro, do qual se torna
penhor e exemplar. M aternidade e virgindade se tornam assim o ideal
do cristão.

A santidade de Maria

Superando a idéia quase mágica de uma santidade por contato,


alguns Padres ressaltam que apenas a maternidade divina não seria de
grande valor, uma vez que Deus espera uma resposta livre e responsável.
“Se de nada teria servido a Maria” — observa João Crisóstomo — “ter
dado à luz o Cristo se não fosse interiorm ente rica em virtude, muito
menos nos ajudará...”21. Nessa perspectiva de resposta livre e responsável
a Deus, as palavras de Jesus: “todo aquele que fizer a vontade do Pai...
é meu irmão e minha irmã e minha m ãe” (M t 12,50) referem-se prin­
cipalmente a Maria e enfatizam o que é im portante para Cristo: o paren­
tesco espiritual constituído pela com unhão das vontades. “Ela (M aria)”
— comenta Agostinho — “fez a vontade do Pai e a fez totalmente; e,

21. Comentário sobre Jo — Discursa XXI, 3. Cf. também AGOSTINHO, De virginitate


por isso, vale mais para Maria ter sido discípula de Cristo do que mãe de
Cristo 22. Essa adequação, se em nível de disponibilidade parece total
desde a anunciação, revela-se cada vez mais consciente com o passar do
tem po e segue um caminho de progressividade que, de acordo com
alguns Padres, com o Orígenes23, Basílio24 e João Crisóstomo, com porta
a presença e a superação de imperfeições humanas, com o a vanglória, a
incerteza e a presunção. “Se Cristo” — observa João Crisóstomo — “se
preocupava com os outros e não descurava nada para que tivessem dele
uma opinião adequada, com maior razão devia se com portar assim com
sua m ãe.”25

Também essa prerrogativa da “santidade” tornar-se-á de certo modo


objeto de polemica no seculo V. Foi o monge irlandês Pelágio quem a
iniciou. Reagindo ao pessimismo maniqueu, passou a afirmar a bondade
natural do homem não comprometida pelo pecado original. Contra Pelágio
interveio Agostinho, que, em bora sem negar a santidade de Maria, reco­
nheceu, porém , seu caráter excepcional26. A posição de Pelágio foi ulte­
riorm ente aprofundada pelo bispo Juliano de Ecland. Contestava ele a
doutrina agostiniana segundo a qual o ato gerativo jamais está isento de
pecado p or causa da concupiscentia que o acompanha. Cristo, portanto,
não podia nascer senão de uma m ulher “virgem” . Nessa visão, os m oti­
vos cristológicos com base na mariologia primitiva pareceriam fundidos
com os ascéticos, originariamente distintos e pelos quais a virgindade de
Maria não parece tanto prova da “excepcionalidade” de Jesus quanto
expressão de uma latente desestima pela realidade sexual.
Não é de admirar que Juliano, bispo casado, tenha reagido, defen­
dendo a bondade natural do matrimônio e da concupiscência e negando
a existência do pecado original. Nesse contexto, Maria surgiu como
exemplo de criatura não manchada pelo pecado original.
A afirmação da “imaculada conceição” defendida por Juliano, con­
tra Agostinho, que insistia mais no domínio universal do pecado original,
explica as dificuldades que essa doutrina encontrará para se afirmar na
Igreja medieval do O cidente, fortemente marcada pelo pensamento do
bispo de Hipona.

22. Sermão LXXII A 7. Cf. também De virjjmitate 5,5.


23. Para este aspecto do pensamento de ORÍGENES, cf. C. VAGAGGINI, “Maria
nelle opere di Origene”, in Orientalin Christiana Analecta 131, Roma, 1942, p. 173.
24. BASÍLIO apresenta Maria tomada de dúvidas e escandalizada no momento da
paixão. Cf. Carta CCLX, 9.
25. Comentário sobre Jo — Discurso XXI, 2.
26. Cf. De natura et gratia 42.
Este breve apanhado dem onstra que as atribuições marianas —
justamente por sua ressonância doutrinal — tiveram um caminho difícil
que obrigou a uma reflexão teológica. Por isso, também em relação à
mariologia, pode-se afirmar que a polêmica, em boa parte, levou a um
notável aprofundam ento, em bora a tenha fixado em pistas que não são
as únicas. De qualquer m odo, o recurso aos Padres nesse âm bito —
com o mostrou a encíclica Redemptoris M ater — é obrigatório27.

27. Cf. a respeito L. PADOVESE, “Prospettive delia tradizione patrística nel


‘Redemptoris mater’”, in Redemptoris mater — contenuti e prospettive dottrinali e pastorali
(Atas) sob a coordenação da Pont. Acad. Mariana Intcrnac., Roma, 1988, pp. 89-103.
OS PADRES E A MORAL

Instrução da Congregação para a Educação Católica sobre o Estu­


do dos Padres da Igreja na formação sacerdotal esclarece que seguir
a Tradição da qual os Padres são testemunhas privilegiadas “não significa
agarrar-se ao passado como tal, mas aderir à linha da fé em busca de
segurança e com liberdade de movimentos, sem perder de vista o funda­
mento: o que é essencial, o que perdura e não muda. Trata-se de uma
fidelidade absoluta... em relação ao dogma e àqueles princípios morais e
disciplinares que demonstram a sua função insubstituível e a sua fecun­
didade justamente nos m om entos em que coisas novas vão abrindo ca­
m inho” (II, 22d).
Lembra o docum ento, além disso, que “uma das tarefas históricas
mais importantes dos Padres foi dar vida à ciência teológica” (11,25), mas
pode-se acrescentar que eles deram origem também a uma nova antro­
pologia.
Com efeito, “a imposição do problema de Deus e de Cristo Deus-
-homem ao pensamento hum ano tornou-se estímulo de conhecimentos
essenciais sobre o hom em ”1.
Só para exemplificar, o sentido de “pessoa” e de sua dignidade, o
conceito de interpersonalidade ou de comunicação pessoal, a idéia de
“diálogo” , o chamado compromisso de “encarnação” etc. seriam expres­
sões vazias se não tivessem encontrado sua primeira aplicação em teolo­
gia, tornando-se num segundo m om ento objeto da antropologia.

1. Cf. A. GRILLMEIER, Ermeneutica moderna e cristologia antica, trad, do alemã


Brescia, Queriniana, 1973, p. 114.
A atividade dos Padres é marcada por algumas características —
lembradas pelo supracitado docum ento (II, 25) — que também hoje
devem ser consideradas:
a) o recurso contínuo à Sagrada Escritura e o sentido da Tradição;
b) a consciência da originalidade cristã, mesmo no reconhecimento das
verdades contidas na cultura pagã;
c) a defesa da fé com o bem supremo e o aprofundam ento contínuo do
conteúdo da Revelação;
d) o sentido do mistério e a experiência do divino.
Evidentemente, a função dos primeiros autores cristãos em relação
a nós é de suporte, de apoio, não uma função substitutiva.
Suas respostas — num esforço de encarnação do Evangelho — aos
cristãos de seu tem po devem ser recuperadas, repensadas, mas não nos
dispensam da decisão e da criatividade. Sua presença não é tão dominadora
que impeça uma reflexão autônom a e obrigue a repetir o que já foi dito.
Por meio deles, pode-se, ao contrário, chegar a um justo relativismo, sem
correr o risco de considerar “tradição” “o que surgiu anteontem e que
no decurso do tem po passou por inúmeras mudanças”2, ou de cair no
“tradicionalismo” com base no qual todo compromisso do presente está
em se reportar aos modelos passados, imitando-os.
Essa convicção — mesmo no âm bito da teologia moral — , elimina
toda “criatividade” do cristão de hoje e esconde um m edo íntim o do
futuro, com o se Deus fosse o Senhor somente do passado e não de toda
a história, com o se o Espírito tivesse guiado a Igreja de ontem , mas não
conhecesse a de hoje, com o se o hom em fosse um ser estático e imutável
e não um ser espiritual aberto a um horizonte que, justamente graças à
história e ao progresso cultural, se revela cada vez mais amplo3.
D o ponto de vista da moral, não devemos levar em conta o m odo
prático com o os Padres resolveram este ou aquele problema, pois o que
interessa é algo mais amplo: sua visão global da vida cristã, suas motiva­
ções básicas ou — com o se diz hoje em teologia moral — as “intencio-
nalidades” . E a estas que devemos buscar para responder a interrogações

2. Y. CONGAR, “La storia della Chiesa come ‘luogo teologico’”, in Concilium 7


(1970), p. 107.
3. Cf. J. M. AUBERT, “Pour une herméneutique du droit naturel” , Rech. Sc. Rel.
59 (1971), pp. 477-478.
que várias vezes se apresentaram no decurso destes anos: em nosso m undo
pluralista, no qual os ideais de justiça, de fraternidade, de paz e de
dignidade da pessoa hum ana se tornaram um bem compartilhado com os
não-crentes ou com os crentes de outras religiões, onde está o proprium
do cristianismo? H á uma ética especificamente cristã? “Com o cristão, que
tenho eu de diferente ou, se preferirmos, mais do que os outros? Os
‘leigos’ e os comunistas não fazem muitas vezes melhor do que eu? Se
a única contribuição do cristianismo é um discurso idealista e atividades
de culto, o que muda na ação concreta?”4

O lugar “ordinário” dos ensinamentos morais

C om o se sabe, as reflexões morais dos Padres em geral nascem num


contexto de pregação e constituem uma parte do ensinamento batismal
e eucarístico5. Basta pensar nas Catequeses mistagógicas de Cirilo de
Jerusalém e nos Sermões de Agostinho. Nos primeiros séculos não há
nenhum tipo de teologia moral em sentido estrito e tam pouco teólogos
moralistas na acepção atual, mas apenas pregadores que mostram e lem ­
bram as conseqüências do fato de ser “nova criatura em Cristo . O
ensinamento moral dos Padres, portanto, está vinculado ao m om ento
litúrgico. Por isso, o ponto de partida de sua reflexão é o querigma e não
uma compreensão abstrata da natureza humana.
Esse aspecto já é esclarecedor, uma vez que, segundo os Padres, “a
Palavra e os sacramentos são a fonte e a origem de toda a vida moral
realmente cristã”6. Para eles, anúncio da Palavra e celebração dos sacra­
mentos não representam primordialmente instrum entos para o desenvol­
vimento da vida cristã, suportes adicionais, mas são a fonte da qual
brotam novos comportamentos7. Com o ressalta Máximo de Turim, “quem
renasceu mediante o batismo deixou de ser o que foi e começou a ser
o que não era”8.
O ponto de partida da vida cristã é, por isso, a experiência sacra­
mental, na qual o cristão se percebe com o uma “nova criatura em Cris­

4. Y. CONGAR, “Réflexions et propos sur l’originalité d ’une éthique chrétienne”,


Studia Moralis 15 (1977), p. 32.
5. Cf. B. HÄRING, “Moraltheologie”, in Sacramentum Mundi 3, Friburgo i.B r./
Viena/Basel, Herder Verlag, 1969, pp. 622-623.
6. K. DELAHAYE, Per un nnnovamento délia pastorale — La eomunità, madré dei
eredenti, Bari, Ecumênica, 1974, p. 257.
7. Cf. id., ibid., pp. 256-258.
8. Sermão 111, 39-40.
to ” (2C or 5,17). Um aspecto típico e recorrente em muitos Padres é
justam ente esse apelo à novitas christiana. E sobretudo a partir dela,
mais que de considerações de ética natural, que se produzem como
conseqüência as norm as com portam entais. A mudança ontológica, no
ser, produz tam bém uma mudança deontológica, no dever ser. Se a
regra genérica da moral é “ser nós mesmos” ou realizar a própria estru­
tura, a regra genérica da ética cristã é “ser nós mesmos enquanto cris­
tãos” . Ora, não há dúvida de que os Padres não com preenderam a
própria função com o obra de moralização. Ao contrário, seus escritos
revelam que não visaram a um m ero aprim oram ento dos costumes, a um
ideal perfeccionista por si só, mas com prom eteram -se a proteger e
increm entar a novitas christiana. Com o observa Hilário de Poitiers, “é
necessário que os regenerados (no batismo) tenham um novo m odo de
pensar”9. Em outra passagem ele declara que, mediante o batismo Deus
nos “renovou com uma vida nova e nos transform ou num hom em
novo” 10. Agora “tudo é novo: uma nova liberdade, novos filhos e uma
alegria eterna” 11.
Por sua vez, Agostinho lembra aos neófitos que estão regenerados
e iniciaram uma vida nova e que “o que antes podia ser lícito para vós
agora não o é m ais...” 12. “Vós vos chamais fiéis: vivei com o fiéis!
Conservai-vos fiéis a vosso Senhor, no vosso coração e na vossa condu­
ta!” 13 “C onduzi uma vida boa de m odo que do grande sacramento que
recebestes possais tirar incentivos para o bem .” 14

As motivações básicas ou “intencionalidades”


no ensinamento moral dos Padres

Depois de aludir ao contexto predom inantem ente catequético-litúr-


gico das reflexões morais dos Padres, é preciso identificar agora as
intencionalidades, as motivações básicas ou fundamentos de seu ensina­
m ento moral.
Antes de mais nada é preciso observar que, no NT, Jesus não se põe
como um legislador moral que inova por meio da originalidade de suas

9. De Tnnitate liber I, 18.


10. Tratado sobre o salmo CXXV, 6.
11. Tratado sobre o salmo U I, 20.
12. Sermão CCLX, 1.
13. Sermão CCLX D, 2.
14. Sermão CCLV A, 2.
prescrições. Ele lembra ao povo as exigências fundamentais da Aliança.
Não suprime a lei, mas lhe restitui o espírito, sem o qual ela degenera,
perdendo seu caráter original (cf. M t 5,38-42; 19,1-9). Jesus faz, portan­
to, uma releitura da tradição do AT. Seu objetivo é animar a atividade
humana para elevá-la a um nível superior, e ele o realiza mediante o
anúncio do Reino: agora o Reino é prem ente e, por isso, agora se impõe
a conversão. Aí reside a novidade do ensinamento de Jesus.
A questão moral se põe a partir da prática dessa conversão: como
viver, aqui e agora, do Espírito do Enviado do Pai? que normas são
incompatíveis com esse Espírito? com o os filhos podem e devem viver do
Espírito do Filho dado pelo Pai?15. Por isso, as comunidades do N T se
viram obrigadas a concretizar em diferentes situações as exigências éticas
provenientes da mensagem de Jesus.
E o que constatamos ao observar que grande parte das cartas do
N T descrevem sobretudo a vida dos primeiros cristãos e são apenas
advertências de caráter moral subordinadas a necessidades práticas e es­
pecíficas da vida16. Os primeiros cristãos efetivamente concebem a nova
religião “não como uma doutrina à qual aderir, mas como um com por­
tam ento, um estilo de vida a ser adotado”17.
Resta-nos perguntar se no NT, mesmo na variedade das situações
apresentadas, existem arquétipos ou idéias-mestras em torno das quais se
aglutina todo discurso moral sucessivo. Em outras palavras, qual é a
contribuição concreta do N T no plano da doutrina moral que encontra­
remos na época patrística?18
N um estudo sobre A moral no pensamento cristão primitivo, E.
O sborn identifica quatro arquétipos, modelos, valores prioritários ou
intencionalidades em que se baseia a moral cristã. Esses paradigmas morais
do N T seriam a fé, a justiça, a condição de discípulo e o amor.
Deve-se ressaltar que cada um desses quatro modelos, num deter­
minado m om ento da história, foi considerado adequadamente represen­
tativo do conjunto da moral neotestamentária19. Basta pensar na priori­

15. Cf. P. VALADIER, “Morale” , in DS 10, pp. 1712-1713.


16. Cf. A. HOLDEREGGER, “Per una fondazione storica dell’ctica”, in Vita nuova
in Cristo, 1, Queriniana, 1983, p. 178.
17. S. LYONNET, “Non una dottrina ma uno stile di vita”, in I documenti di rinas-
cere, p. 15.
18. Cf. E. OSBORN, La morale dans la pensée chrétienne primitive, Paris, Beauchesne,
1984, p. 44.
19. Cf. id., ibid., pp. 6.
dade conferida por Tertuliano à novidade do Evangelho; na importância
central do conceito de “ágape” em Clemente; na leitura da vida cristã
como sequela Christi, segundo Cipriano; no tema da ordo amoris em
Agostinho etc.
Em relação à fé , é preciso observar em primeiro lugar que o com ­
portam ento do cristão depende estritamente do conhecim ento que ele
tem de Deus. Com efeito, a teologia se reflete na antropologia. Assim,
por exemplo, um discurso sobre um Deus que não se mistura a este
m undo é a premissa para uma antropologia de separação e de desprezo
das realidades criadas. Ora, o Deus de Jesus Cristo é um Deus para os
homens: próximo, feito história, um Deus trinitário e encarnado. Não é
de admirar, pois, que a ética cristã primitiva, mais do que adequação a
uma norm a, se configure com o resposta na fé a esse Deus entendido
com o parceiro. C ontudo, é justam ente essa concepção de Deus que os
pagãos rejeitam. “Quantas m onstruosidades e extravagâncias não inven­
tam os cristãos!” — declara o interlocutor pagão no Otávio de Minúcio
Félix (10). — “Aquele único Deus deles, que não podem nem mostrar
nem ver, perscruta escrupulosamente a conduta e as ações, as palavras e
os pensamentos íntimos de todos, chega a qualquer lugar e está presente
por toda a parte; fazem-no insuportável, inquieto e descaradamente
curioso, presenciando todas as ações e voltando-se para todos os lados;
ocupado por toda a parte, não pode se interessar pelos indivíduos e,
ocupando-se de cada um, não pode a todos bastar.”
A fé nessa contínua atenção de Deus em relação ao hom em tem
conseqüência imediata na concepção do culto, que não pode restringir-
-se a alguns m om entos nem pode estar circunscrito a certos lugares.
N enhum a área da vida hum ana pode subtrair-se a esse culto. Por essa
razão, todo pecado — seja ele qual for — é sempre uma culpa religiosa.
Ao apresentar todos os batizados com o “um reino de sacerdotes”
(Ap 1,6; 5,10), “sacerdotes de Deus e de Cristo” (Ap 20,6), o N T já
ressaltara que o culto, a liturgia, o sacrifício que eles devem oferecer não
é cultual ou ritual. A matéria da oferta sacerdotal do cristão é a sua
própria vida. O seu corpo é o tem plo do Espírito Santo (IC o r 6,19).
Uma vez que “Deus manifestou a nós a sua misericórdia” , justam ente
por essa razão — declara Paulo — “eu vos exorto... a vos oferecerdes
vós mesmos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus. Este será o
vosso culto espiritual” (Rm 12,1). Nessa perspectiva, o agir ético do
hom em , fundado na fé num Deus pessoal e próximo, é entendido como
ato de culto ou com o resposta religiosa. Consciente disso, M inúcio Félix
pergunta se “não é m elhor oferecer a Deus um santuário em nossa
m ente... Uma conduta boa, uma consciência pura, um sentim ento ín­
tegro, eis a vítima que Ele aceita. A retidão é oração a Deus, e a justiça,
sacrifício; quem se abstém do mal torna-o propício; quem salva seu
irm ão do perigo lhe faz a imolação da mais bela vítima. Eis os nossos
sacrifícios, eis os nossos ritos: quem é mais justo é por nós considerado
mais religioso”20.
Um a outra motivação com portamental ou arquétipo da moral cristã
deve ser reconhecida na idéia neotestamentária de justiça, à qual está
ligado o conceito de pecado e de graça. A justiça, categoria que resume
a teologia de Paulo, é o poder gratuito de Deus mediante o qual Ele
reconcilia a si os homens e os torna livres, desafiando-os a se tornarem
eles mesmos justos21. Com o já salientamos, no conceito de justiça está
implícita a idéia de pecado, que deve ser entendido não em sentido
ritual, cultual ou moral, mas teológico-comunicativo: pecado com o o
não reconhecer a Deus enquanto Deus e, portanto, não reconhecer
verdadeiramente o hom em enquanto hom em . Trata-se de uma alteração
no âm bito das relações. Se Jesus anuncia a remissão dos pecados e Paulo
fala da justiça como dom gratuito de Deus, com isso não se deve enten­
der o afastamento da culpa, mas m uito mais: a criação de uma nova
relação com Deus e com os homens.
Todas as reflexões sobre a novitas vitae lembradas no início em
relação à pregação moral dos Padres encontram aqui o seu fundam ento,
ou seja, na concepção de Deus que gratuitam ente justifica, retom ando
o diálogo com um hom em que se tornou nova criatura. Evidentemente,
a consciência dessa novidade cristã tem repercussões na vida concreta.
Ao se tornar “nova criatura em Cristo” (2C or 5,17), o cristão m udou
seu m odo de ser, de pensar e até os próprios valores. A realidade atual
não é má, mas tornou-se “estreita” e agora seu sentido últim o não está
mais nela mesma, mas no que a ultrapassa e que Cristo revelou. O bser­
vando a pregação moral do século IV, notam os que os bispos anunciam
com muita freqüência que, para um cristão, a ética, os m odos de se
com portar e os ideais não coincidem totalm ente com os vigentes na
sociedade. Isso significa, em última análise, que o cristão não deve estar
ligado de m odo indissolúvel e irreversível a nenhum a estrutura terrena,
talvez chegando a identificar com ela o próprio m odo de ser cristão. Em
relação ao m undo, o discípulo de Cristo, enquanto participante de seu

20. M INÚCIO FÉLIX, Otávio 32. Cf. tambcm ARISTIDES, Apologia XV, 1;
ATENÁGORAS, Súplica pelos cristãos XIII.
21. Cf. E. OSBORN, op. cit., pp. 44-46.
Reino que “não é deste m undo” (Jo 18,36), deve manter-se presente,
construtivo, mas sempre livre e crítico. A parresia, ou a força crítica, a
capacidade de falar francamente, é o bem que o cristão adquire ao se
sentir co-responsável por este m undo, sem jamais confundir-se totalm en­
te com ele.

O utro paradigma do N T que dom ina toda a moral dos Padres é


a condição de discípulo22. C ondição essencial do ser cristão é a sequela
Christi. Nesse caso, “a ética cristã não é determ inada som ente pela
referência a uma norm a material, mas é a de um discípulo que segue o
m odelo de seu mestre. Ela engloba uma relação viva com esse mestre,
uma obediência a seus apelos... Um a ética cristã, portanto, só existe
quando relacionada à ação de Deus, que constitui o cristão, e à pessoa
de Jesus Cristo, aos seus apelos e ao seu Espírito”23. Em tal perspectiva,
“a literatura protocristã caracteriza-se pela argumentação tipológica: Cristo
é apresentado com o a figura normativa, com o o m odelo de conduta
para o indivíduo e para as comunidades cristãs” . Para confirmar isso
basta observar que os cristãos das primeiras gerações vêem suas vidas
sobretudo com o resposta a Cristo. O que im porta para eles é viver de
m odo digno dele, estar unidos a ele, louvá-lo. “ É m uito bom ” — d e­
clara Inácio — “que glorifiqueis de todos os m odos Jesus Cristo, que
vos glorificou.”24 Agora, na vida, som ente ele conta. “Com o podem os
nós viver sem ele...?”25; “fora dele nada me serve” — observa ainda
Inácio26. Usando uma categoria de síntese, poderíamos dizer que a
protopatrística tem com o meta a aquisição do sensus Christi: olhar para
ele, referir-se a ele.
Uma passagem de Lactâncio ilustra bem esse fundam ento “crístico”
do compromisso moral do cristão. “Se por um acaso” — declara ele —
“um discípulo dissesse: ‘tu (mestre) prescreves coisas impossíveis’, o mestre
poderia responder: ‘sim, mas eu mesmo as pratico’; ‘mas eu sou revestido
de carne à qual pertence o pecado’; ‘também eu tenho a mesma carne
e, todavia, o pecado não tem dom ínio sobre mim ’; ‘... não posso, por
causa da justiça, suportar nem a dor nem a m orte, pois sou frágil’; ‘sim,
a dor e a m orte também têm poder sobre mim, mas consigo vencer essas
coisas que são objeto de teu tem or para te permitir vencer a dor e a
morte; eu sou o primeiro a enfrentar aqueles sofrimentos que, para excusar-

22. Cf. id., ibid., pp. 51ss.


23. Y. CONGAR, Réflexion..., op. cit., pp. 36-37.
24. Carta aos Efésios 2.
25. Carta aos Magnésios 9,1.
26. Carta aos Efésios 11.
-te, apresentas como intoleráveis: se não podes seguir-me com o mestre,
segue-me como guia’.”27
A convicção de que os cristãos devem viver orientados para a pessoa
de Cristo e não por “doutrinas” que a Ele se reportavam está bem
presente na mente dos perseguidores, os quais exigiam dos mártires que
renunciassem ao cristianismo maldizendo Cristo.
Com o vemos no M artírio de Poli carpo 9, esta foi a experiência do
velho bispo de Esmirna. “O chefe o constrangia, dizendo: ‘Jura e te
ponho em liberdade. Amaldiçoa Cristo’. Ele respondeu: ‘H á oitenta e
seis anos o sirvo e não me fez mal algum. Com o posso blasfemar contra
meu rei, meu salvador?” ’
A figura de Cristo com os temas anexos de seguimento e de imi­
tação transmite, portanto, as reflexões morais dos Padres. E da relação
com Ele que foram tirados os motivos do com portam ento cristão.
Isso também se aplica ao último dos arquétipos fundamentais da
moral patrística: a categoria do amor. Sua novidade provém do “amai-vos
com o eu vos amei” . O amor cristão é original por ser enriquecido de
novos conteúdos. Não se apóia em simples razões filantrópicas, mas
fúndamenta-se no fato de Deus ser Pai de todos e de sermos todos
irmãos; de no outro estar presente Cristo (“o que tiverdes feito a um
destes pequeninos é a mim que o fizestes” ...); de a união de amor entre
hom em e mulher, por exemplo, estar investida, dinamizada por um novo
significado: oferecer uma imagem da união entre Cristo e a Igreja. A
nova fraternidade ou o am or recíproco torna-se assim outro elemento
que caracteriza o grupo cristão, bem como outra fonte de moralidade.
A esse propósito impressiona a observação de que, na pregação
social dos Padres do século IV, o convite à partilha dos bens, à justiça
social, à esmola não costuma apoiar-se na consideração de que a terra é
de todos nem principalmente em motivos filantrópicos. Ao que parece,
a doutrina social dos Padres não se fundamenta em razões puramente
humanas.
Esta se apóia, antes, em solicitações predom inantem ente cristãs.
Assim, posse e riqueza são entendidas com o instrum entos em referência
à vida futura, meios que devem ser repartidos com eqüidade não tanto
para responder a exigências de justiça distributiva quanto sobretudo “por
causa de Cristo”, “por amor de Cristo” e em nome da nova e mais

27. Instituições Divinas IV, 24.


profunda fraternidade que Deus constituiu, e segundo a qual todos os
que já são nossos companheiros no gozo da graça celeste e dos mistérios
devem participar conosco dos dons presentes28. “De que coisa devemos
nos lam entar” — declara Máximo de Turim num a homilia — “quando
vemos que um patrão cristão deixa de mostrar compaixão por seu escravo
cristão, esquecendo-se de que, em bora escravo por estado social, é seu
irmão por graça? Com efeito, reveste-se de Cristo do mesmo m odo,
participa dos mesmos sacramentos e tem com Deus Pai a tua mesma
familiaridade. Por que não o tratas com o irmão?”29 Para confirmar o que
estamos dizendo é interessante o que João Crisóstomo afirma numa
homilia: “Queres honrar o corpo de Cristo? Pois bem, não toleres que
ele fique nu; depois de tê-lo honrado com tecidos de seda, não permitas
que lá fora ele morra de frio por sua nudez. Aquele que disse ‘este é o
meu corpo’... disse também: ‘vistes-me sofrer fome e não me destes de
com er’ e ‘o que não tiverdes feito a um destes pequeninos foi a mim que
não o fizestes’. O corpo de Cristo que está sobre o altar não precisa de
mantos, mas de almas puras; mas aquele que está lá fora precisa de muitas
atenções... O culto mais agradável que podemos prestar àquele que
desejamos venerar é o que ele mesmo quer, não o que nós pensamos...
Q ue vantagem pode ter Cristo se a mesa dele está coberta de vasos de
ouro, enquanto ele próprio morre de fome na pessoa dos pobres? Começai
a saciar aquele que tem fome e em seguida, se tiverdes ainda dinheiro,
ornai tam bém o altar. Tu lhe ofereces um cálice de ouro e não lhe dás
um copo de água fresca? Procuras cobrir o altar de véus bordados a ouro
e a ele não ofereces a roupa necessária. O que ele ganha com isso?... Se,
ao vê-lo coberto de trapos e tiritando de frio, deixas de dar-lhe uma
roupa para, ao invés, ergueres colunas douradas, dizendo que fazes isso
em sua honra, não achas que ele haveria de considerar isso um deboche
de tua parte e o maior insulto?... Deus jamais condenou alguém por não
ter dado a seus templos ricos ornamentos, mas ameaça até com o infer­
no, com o fogo inextinguível e com o suplício junto com os demônios
se houver incúria em ajudar os pobres. Por isso, enquanto enfeitas a casa,
não desprezes o irm ão que está na aflição: ele é um tesouro m uito mais
precioso que o o u tro ”30.
Apoiando-nos nessa passagem (e poderíamos citar tantas outras),
podem os concluir que o am or cristão é algo mais do que a simples

28. Cf. a propósito L. PADOVESE, L’orij)inalità cristiana — 11pensiero etico/sociale


di alcuni vescovi norditaliani dei IV secolo, Roma, Laurentianum, 1983.
29. Sermão XXXVI, 3.
30. Comentário sobre M t — Discurso L, 3-4.
filantropia, pois está carregado de conteúdos que esta não conhece. Um
ato com o a esmola, que pode ser feito como um gesto de autoproteção,
em benefício próprio, por solidariedade, por compaixão, encontra no
cristianismo uma outra motivação: no pobre está presente Cristo; em
todo homem que sofre é Ele quem sofre. Coerentem ente com esse
m odo de pensar, Orígenes afirma: “Vejo que Cristo todos os dias oferece
suas costas aos flageladores”31. E ainda: “Jesus é sempre posto na cruz
juntam ente com os malfeitores na pessoa de seus discípulos verdadeiros
e sofre a mesma pena de outrora entre os hom ens”32.
O sentido escatológico, ainda m uito forte no século IV, constitui
outra intencionalidade ou carga que tam bém contribuiu para determinar
a moral do período patrístico. A impressão de estar na iminência da
parusia determina a vida, eleva seu nível, introduz novos critérios de
avaliação dos bens temporais. A tensão escatológica teve extraordinárias
conseqüências no plano ético33.
Chegados a este ponto, é lícito tirar uma primeira conclusão. A
apresentação dos quatro modelos ou arquétipos de fé, justiça, discipulado
e amor não exclui outros. Mas os quatro supracitados, muitas vezes
fundidos entre si — juntam ente com o sentido escatológico — , tiveram
im portância primordial na fundamentação do discurso moral cristão,
conferindo-lhe certa homogeneidade.
Com base nas observações feitas, à interrogação inicial sobre a
existência de uma ética cristã deveríamos responder afirmativamente, pois
os seus critérios, as suas motivações ou “intencionalidades” são estrita­
mente cristãs. Assim, quando repreende os coríntios, Paulo não diz:
“Evitai a fornicação porque é um mal, porque vai contra o direito natu­
ral” . Recorre, antes, a esta intencionalidade: “O vosso corpo não vos
pertence... sois tem plo do Espírito Santo” (IC o r 6,19). Essa é a m oti­
vação que encontramos na tradição patrística34, em que, conseqüente­
m ente, se anuncia que a pudicícia deve ser “mais gloriosa”35 para os
cristãos do que entre os pagãos ou se afirma que certas virtudes, como
a castidade, o jejum, só têm sentido quando consideradas num a perspec­
tiva evangélica.

31. Sobre Jeremias — homilia X V III, 12.


32. Contra Celso II, 44.
33. Para a incidência da cscatologia no plano ético, cf. pp. 88, 92-94.
34. Basta lembrar aqui GAUDÊNCIO DE BRESCIA, Tractatus 15, 21: “ ...ne
immunditiis fornicationum corpora nostra, quae templa dei sunt, violcmus” .
35. ZENÃO, Tractatus I, 1.
Por isso, quando um bispo como Cromácio de Aquiléia convida ao
jejum, afirma que ele “não pode ajudar o homem sem o conhecim ento
da verdade, ou seja, sem a fé do nome de Cristo”36 e acrescenta que deve
ser feito, sim, “segundo a novidade da graça espiritual e de acordo com
a tradição evangélica”37.

Q uando um pregador com o Zenão de Verona fala dos deveres


sociais, contesta o cristão que diz: “ ‘É justo que eu m antenha os meus
bens e não procure os dos outros’. Mas isso” — continua Zenão —
“costumam dizer também os pagãos. Na realidade, veremos como isso é
injusto diante de D eus”38.

Analogamente, o desconhecido homiliasta do Opus imperfectum in


M atthíieum ressalta a diferença entre com portam ento cristão e não-cris-
tão nos termos opostos da lei e da graça: “A lei” — declara — “consiste
em que não tomes do que é do outro, mas que não dês também do que
é teu. A graça, ao invés, em não drares o que é do outro e em dares o
que é teu ”39.

O que é específico, pois, é a nova fundamentação de fé conferida


ao agir hum ano; é uma perspectiva nova para fazer a mesma coisa que
os outros; é um estilo particular que não altera a fenomenologia, o
conteúdo objetivo do agir, mas certamente diferencia a conduta do cris­
tão da de quem não o é40. Aqui reside a originalidade da moral cristã,
que, conseqüentem ente, é sempre teologal: teocêntrica e cristocêntrica.

Confronto entre ética natural e ética cristã

As intencionalidades cristãs de que se falou acima são gerais e nem


sempre sugerem escolhas imediatas de vida. Assim, não é de admirar que,
em busca de um a visão orgânica do m undo em bases cristãs e de uma
norm a concreta a respeito das diversas esferas da vida humana, a Igreja
antiga, aberta ao m undo helénico e condicionada cada vez mais por
novos questionam entos oriundos de sua expansão, tenha recorrido a
sistemas éticos preexistentes e a uma linguagem moral já constituída pela
reflexão filosófica. De fato, na reflexão moral ninguém pode ser conside­

36. Tratado XLVI, 8-9.


37. Ibid., 54-55.
38. Tratado II, 1.
39. Homilia XII, 41.
40. Cf. Y. CONGAR, Refléxion..., op. cit., pp. 39-40.
rado iniciador absoluto41. Conclui-se que, apesar de sua originalidade,
“toda a moral dos Padres carrega a marca do ambiente popular e culto
em que eles viveram”42. O que acontece com a teologia dogmática ve­
rifica-se também com a moral, que se plasma e se estrutura em contato
com o m undo greco-rom ano e não de m odo independente dele.
As correntes de pensamento que marcaram de m odo mais incisivo
a reflexão ética cristã foram o estoicismo e o platonismo.
Chegou-se a afirmar que “sem o encontro com o Pórtico*, o de­
senvolvimento espiritual do cristianismo seria incompreensível”43. Falou-
-se mesmo de uma “influência múltipla e profunda”44 e “capital”45 do
estoicismo sobre o cristianismo.
Com efeito, o que liga ambos os movimentos, ao menos formal­
m ente, é uma forte afinidade espiritual.
Sabemos que o estoicismo deteve uma posição fundamental na
reflexão filosófica até a metade do século III, ou no período em que a
doutrina cristã se consolidava com o sistema orgânico46. Mais que de uma
filosofia, trata-se de uma coletânea de doutrinas de fundo prático, com
elementos tomados de Platão, Aristóteles e Epicuro. Os mestres estóicos,
portanto, multiplicam-se consideravelmente no campo ético, tornando-
-se de certo m odo seus especialistas47.
Para os estóicos, o hom em se constitui de corpo e alma ou de
corpo, alma e espírito. O corpo é realidade inferior ou até um obstáculo
ao desenvolvimento da alma, na qual habita a razão. O esforço do ho­
mem consistirá em libertar a alma das paixões do corpo mediante a
virtude, vivendo segundo a razão ou segundo a natureza, que é regulada
pela razão universal. O hom em chega à felicidade desvinculando-se das
paixões, ou conquistando a apathia, que o torna semelhante a Deus:
autônom o. O ideal estóico é, por isso, a sabedoria da autonomia48 ou a

41. Cf. E. OSBORN, La morale..., op. cit., p. 283.


42. M. SPANNEUT, Le Stoïcisme des Pères de l’Église, Paris, Seuil, 1957, p. 266.
*Stoa paikile, Pórtico ornado, onde o filósofo grego Zenão, estóico, ensinava a seus
discípulos. [N. do T.]
43. M. POHLENZ, La Stoa, trad. do alemão, Florença, La Nuova Italia, 1967, p. 397.
44. Cf. M. SPANNEUT, op. cit., p. 266.
45. Id., ibid., p. 257.
46. Cf. id., ibid., p. 53.
47. Cf. M. SPANNEUT, “Les normes morales du stoïcisme chez les Pères de
l’Église”, in Studia Moralia 19 (1981), p. 153. Cf. também E. OSBORN, op. cit., pp.
29-31.
48. Cf. E. OSBORN, op. cit., pp. 32-33.
liberdade. E a vida moral é vista como assimilação a Deus e com o im ita­
ção de Deus. “Se a divindade é fiel” — declara o estóico Epicteto — “(o
hom em ) deve ser fiel também ele; se livre, livre também ele; se bondosa,
bondoso também ele; se generosa, generoso também ele, e assim por
diante; é com o im itador de Deus que deve fazer e dizer todas as coisas.”49
A esse ideal todos sao indistintamente chamados: livres e escravos,
homens e mulheres, uma vez que em todos está hospedado aquele Logos
spermatikos ou aquele princípio de racionalidade que é fonte de igualdade
entre os hom ens e os transforma em cidadãos da única cidade que é o
m undo ou — com o também se afirmava — parte uns dos outros ou
membros do único corpo.

A influência estóica sobre os Padres é evidente e pode ser percebida


claramente nos ensinamentos morais referentes ao livre-arbítrio, às pai­
xões, à atividade virtuosa, à igualdade entre os homens.
De m odo mais especial, pensemos na idéia estóica de natureza, de
ordo nattirae; na idéia de uma lei natural, universal e imutável, impressa
por Deus no cosmo.

A partir dessa idéia os Padres darão início a uma moral universal e


imutável, num plano racional50, com conseqüências imagináveis.
Evidentem ente, em bora apresente pontos positivos, a influência
estóica tam bém conhece zonas de sombra. Entre os “limites” , basta
pensar no uso as vezes ridículo da lei natural ou da conformidade com
a natureza, invocada para impedir os homens de se barbearem ou para
convencer as mulheres a não usarem maquiagem; na idéia de corpo como
de um incóm odo; no conceito de pecado, entendido com o a falta de
controle do logikon sobre a esfera instintiva do homem; na ausência de
pecado percebido como uma apathia desencarnada; na negação dos valores
afetivos do hom em considerados não conformes à razão; na atribuição da
procriação com o único objetivo da união matrimonial; na idéia de virtu­
de vista com o construção do próprio indivíduo, da qual a graça de Deus
está totalm ente ausente. A história da Igreja nos confirma até que ponto
o ideal do cristão perfeito foi às vezes moldado sobre o do sábio estóico.
Apesar desses limites, não se pode dizer que o estoicismo tenha
dom inado a originalidade do cristão capaz de transformar o que era
contrário à sua natureza.

49. Dissertações — Diatriba II, 14, 10-13.


50. Cf. E. OSBORN, op. cit., pp. 259-260.
“O cristianismo derrotou o Pórtico com o vigor de sua idéia reli­
giosa, mas essa vitória foi favorecida porque o cristianismo extraiu do
adversário suas idéias mais profundas e fascinantes. Boa parte do antigo
patrim ônio do pensamento helénico penetrou assim na nova religião
graças à mediação do Pórtico.”51
As intencionalidades a que nos referimos permitiram separar o
proprium do cristão de tudo o que pertence ao estóico. P ortanto, se
determ inados aspectos da ética estóica ou até platônica se encontram na
moral cristã primitiva, seu significado não é mais o mesmo, pois são
utilizados de m odo diferente52. Assim, se estoicismo e cristianismo pre­
gam uma redenção, para o prim eiro é o hom em quem redime a si
mesmo por meio de sua razão, ao passo que, no cristianismo, o homem
se deixa redimir por Deus no abandono da fé; no cristianismo é Deus
quem salva os hom ens, enquanto para o estoicismo é o hom em quem
salva a si mesmo; o estoicismo crê nas virtudes humanas, enquanto para
o cristão todas elas malogram sem a graça. Em resumo, podem os n o ­
vam ente ressaltar que “a ética cristã se caracteriza pelo fato de ter Deus,
o Deus vivo que veio até nós em Cristo, com o primeiro e decisivo
parceiro”53.
Todavia, justam ente graças ao estoicismo, o cristianismo pôde trans-
formar-se de doutrina de salvação numa visão orgânica do m undo54.
Esse encontro foi essencial porque permitiu destacar que entre cria­
ção e redenção, lei natural e lei cristã, não há ruptura, mas continuidade.
“A moralidade hum ana já é parcialmente cristã porque, onde há uma
moralidade autêntica, Deus já está agindo no Cristo-Logos.”55
Sabe-se que essa ligação foi realizada pelos apologistas e, de modo
mais completo, por Clemente de Alexandria, o qual, no Pedagogo, nos
oferece o primeiro tratado de teologia moral56. Influenciados pelo estoi­
cismo, os apologistas e também Clemente ressaltaram que não existe
ruptura entre pensamento hum ano e pensamento cristão, mas o primeiro
se completa no segundo. Pelo mesmo motivo, quem viveu “segundo a
razão” ou “segundo o Verbo” pode ser considerado cristão. “Aqueles
que viveram segundo o Verbo” — afirma Justino — “são cristãos, ainda

51. M. POHLENZ, La Stoa II, p. 400.


52. Cf. E. OSBORN, op. cit., p. 34.
53. Y. CONGAR, Réflexion..., op. cit., p. 38.
54. Cf. M. POHLENZ, op. cit., p. 400.
55. A. HOLDEREGGER, Per una fondazione storica..., op. cit., p. 180.
56. Cf. CAFFARRA, “Teologia morale (Storia)”, in Diz. enc. Teol. Mor., 1095.
que tenham sido considerados ateus, com o entre os gregos Sócrates e
Heráclito e todos os que foram semelhantes a eles... Assim, os que
nasceram antes, vivendo sem o Verbo, foram maus e inimigos de Cristo
e responsáveis pela m orte dos que viviam segundo o Verbo; mas os que
tinham vivido e continuam a viver segundo o Verbo são cristãos.”57
Essa interpretação da história é fundamental porque mostra que o
fato de se tornar cristão não faz com que um grego tenha de renegar a
própria tradição, mas implica uma passagem das verdades parciais para a
verdade total que é Cristo.
Os apologistas, portanto, faziam bem em dizer: Tudo o que tiverdes
descoberto conservai também na nova religião. Não esperai perdas, mas
crescimento ulterior. Crescimento que imporá uma novitas também sob
a regra de conduta.
A influência do estoicismo continuará também a seguir, mesmo
com a superioridade do platonismo. É m érito indiscutível de Agostinho
ter realizado a mediação — até em nível ético — entre platonismo e
cristianismo. Com esse Padre da Igreja, o discurso ético cristão transfor­
ma em tema-chave a reflexão, inclusive platônica, sobre a vontade e a
consciência. Mas ele também consolida as bases teológicas da ética cristã,
pois acredita num a instância fundamental: “a moralidade cristã pode ser
compreendida somente na fé e a partir da fé. Por isso, a conduta cristã
é o desdobram ento da vida de fé”58.
Evidentemente, essa afirmação não ignora os tributos do discurso
agostiniano sobre a moral sexual, herdados tanto do neoplatonismo como
de doutrinas encratistas e revigorados num clima de polêmica.

Considerações conclusivas

Estes últimos aspectos nos remetem ao fato de que a teologia moral


vive e respira sempre o ar de seu tem po. Isso nos faz lembrar que muita
coisa em nossa tradição cristã — mesmo em relação à moral — é fruto
da antiga assimilação ao m undo circunstante.
Recorrendo aos Padres, percebemos que “cada época tem a tarefa
de interpretar autenticamente, com o olhar voltado para a origem da
revelação, a instância moral no contexto da fé”59.

57. I Apologia I, 46, 3-4.


58. A. HOLDEREGGER, op. cit., p. 187.
59. Id., ibid., p. 175.
Ao utilizar a “lei da natureza” proveniente do estoicismo, os Padres
mostram que acreditam na continuidade entre natureza e graça. No
âmbito do com portam ento, não pode haver, portanto, uma esquizofrenia
ou uma “dupla moral” . A lei natural é um pressuposto da lei de Cristo.
Por outro lado, o uso indevido dessa lei natural por parte de alguns
Padres nos diz que precisamos ter cuidado ao falar dela, uma vez que,
com base na ordo naturae, justificou-se a escravidão, condenou-se o
empréstimo com juros, depreciou-se o m atrim ônio, a sexualidade e a
mulher. Todos esses aspectos nos impõem grande prudência.
E preciso dizer, porém, que os Padres não se referiram exclusiva­
mente à lei natural, com o acontecerá em épocas posteriores, nas quais os
moralistas limitaram-se a expor e a defender essa lei60 como um sistema
de regulamentação destinado a um ser considerado estático e imutável.
Devido a sua essência espiritual — criado à imagem e semelhança de
Deus — , o homem é uma realidade que deve levar a term o as suas
potencialidades. O direito natural, portanto, “não deve ser concebido
com o dado de uma vez por todas, em nome de uma ontologia estática.
Até o conhecim ento do direito natural não é dado dessa maneira, e isso
por um duplo motivo: seja em razão do caráter tendencial e, portanto,
evolutivo do dado hum ano individual, seja em razão da historicidade do
hom em , que, no decurso do tem po, evolui e desenvolve as suas
virtualidades sociais. Conclui-se que o direito natural deve desenvolver
ao máximo os dados das ciências humanas (biologia, psicologia, história,
etnologia...) para melhor conhecer o hom em , as suas tendências profun­
das, as suas interdependências...”61. O problem a do pluralismo no âm ­
bito moral evidentemente provém daí. De fato, quem fala de ciências
positivas fala quase que obrigatoriamente de possibilidade de diferentes
interpretações da realidade hum ana e social e, portanto, de divergências
no âm bito das conclusões de direito natural.
Nesse pluralismo, o papel do magistério certamente encontra-se
numa posição delicada. Sua atitude só pode orientar-se por um critério
prudencial ou pastoral, mas, ainda que adote posições de segurança, não
pode impedir a pesquisa.
O utro aspecto que se percebe nos Padres consiste em atribuir os
com portamentos éticos à ontologia da fé.
Sua insistência na novidade do ser cristão é um convite a agir como
eles e considerar que o compromisso primeiro do anúncio é de ordem

60. Cf. E. OSBORN, op. cit., pp. 262-263.


61. J. M. AUBERT, Pour une herméneutique..., op. cit., p. 479.
religiosa e não moral. Trata-se, em suma, de lembrar aos cristãos a pró­
pria identidade, e nos o fazemos quando nos negamos a praticar “um
tipo de pastoral em que os homens se limitam a preencher os quadros
de um esquema já traçado, com o se o seu papel consistisse em dar vida
a um sistema e, se possível, fazê-lo prosperar”62. Mais do que isso, trata-
-se sobretudo de “ter o objetivo de estabelecer atos espirituais ou fazer
com que frutifiquem, de levar ao encontro de D eus”63. Isso acontecerá
mais facilmente se insistirmos que o agir ético é uma resposta religiosa
e deixarmos claro que a vida deve ser considerada um ato de culto em
que os cristãos são convidados “a uma existência melhor, sob pena de ver
sua crença rejeitada, com razão, pelo m undo”64. E justam ente na real
situação de pluralismo cultural e religioso em que nos encontramos que
ainda temos condições de aprender com os Padres o que afirmamos há
pouco, ou seja, que, acerca do problema moral, “é preciso ressaltar que
o religioso não contradiz nem destrói o hum ano, mas o conserva, o
purifica e lhe dá um sentido mais profundo. E que, pelo fato de pôr o
fundam ento último e a justificação suprema em Deus, uma moral ‘reli­
giosa’ não destrói a moral ‘hum anista’ baseada na razão e na dignidade
do hom em e tam pouco elimina o seu valor, mas, ao contrário, a forta­
lece, tornando-a sólida e impedindo-a de cair primeiramente no relativismo
moral e, depois, no libertarismo radical e no niilismo ético”65. C ontudo,
mesmo percebendo os nexos que unem a moral humanista à moral cristã,
não devemos esquecer que o cristianismo prega, apesar de tudo, uma
paradoxos politéia — com o diria o autor de A Diogneto 5,4 — ou uma
conduta paradoxal, assim com o é paradoxal a sua fé num Deus feito
homem.

62. Y. CONGAR, in K. DELAHAYE, Per un rinnovcimento..., op. cit., p. XXI


63. Id., ibid., p. XXI.
64. Cf. E. OSBORN, op. cit., p. 309.
65. J. M. AUBERT, Pour une erméneutique..., op. cit., p. 461.
OS PADRES E A ESPIRITUALIDADE

Sinais de espiritualidade nos escritos dos Padres Apostólicos

O observar de perto as obras dos Padres Apostólicos, percebemos


A a heterogeneidade de temas e de ambiente, bem como a diferença
de formação e de capacidade dos respectivos autores. Nesses textos,
docum entos de excepcional importância para a época (fim do século I,
primeiros decênios do século II), verificam-se profundas transformações
que fixarão alguns aspectos decisivos no cristianismo posterior, dos quais
temos poucas informações. Eles estão preocupados com a afirmação do
ministério eclesial, a problemática inerente aos heréticos, a ordem na
Igreja, a ascese e o martírio, o valor da Bíblia, a introdução da segunda
penitência etc.
A estrutura espiritual do cristianismo subapostólico conservada nesses
escritos geralmente é uma síntese entre tradição judeu-helenista e anún­
cio cristão. Assim, os textos dos Padres Apostólicos nos remetem a um
ambiente judeu-cristão e à dificuldade deste em desvincular-se de suas
origens. Nessas obras não faltam elementos para uma reconstrução da
espiritualidade cristã da época.
U m primeiro aspecto nos vem do fato de conceberem o cristão
com o uma “criatura nova” (cf. 2C or 5,17). Todo o discurso ético pre­
sente nos escritos dos Padres Apostólicos pressupõe essa novidade ou
alteridade freqüentem ente lembrada, sobretudo por quem tende a se
distanciar do judaísmo. O autor do Discurso a Diogncto 2-3, solicita:
“Purifica-te dos preconceitos, despoja-te dos hábitos que te seduzem,
torna-te no teu âmago um homem novo para te fazeres discípulo da
doutrina nova, com o a chamas” 1. Associada ao tema da novidade do
cristão está a convicção de possuir um novo conhecim ento de Deus
obtido por meio de Jesus, a “boca infalível” mediante a qual o Pai nos
falou2. Esse conhecim ento é, antes de mais nada, revelação da paternida­
de de Deus. “Cristo” — diz-se na 2a Carta de Clemente 3 — “fez em
relação a nós uma grande obra de misericórdia: não oferecemos sacrifí­
cios aos deuses m ortos... mas conhecemos o Pai da verdade.”3 É comum
a idéia de que só o próprio Deus pode comunicar-nos sua verdadeira
imagem. “Q uem dentre os hom ens” — escreve o autor de A Diogneto
10 — “sabia o que era Deus antes de Ele vir? Acaso queres dar crédito
às afirmações vazias e tolas dos filósofos sabichões?... nenhum homem
jamais viu nem conheceu a Deus, mas Ele mesmo é que se revelou a
nós... Se desejas essa fé, procura em primeiro lugar conhecer o P ai...”
Essas expressões demonstram que a fé primitiva considera a revelação do
Pai um ponto fundamental4. E Ele que entra na vida cristã e nela desempe­
nha um papel principal. A Ele os primeiros cristãos dirigem, “por” ou
“em ” Cristo, a sua oração5: esta passa através do Senhor e, do mesmo
m odo, é através dele, que é a porta, que se tem acesso ao Pai6. A própria
aspiração ao m artírio que Inácio de Antioquia nutre é justificada com o
um caminhar para o Pai: “O meu amor (isto é, ‘eros’) está crucificado
e não há mais em mim fogo terreno, mas uma água viva é que brota em
mim e me diz por dentro: ‘Vai até o Pai’”7. Essas reflexões corroboram
a convicção de que a espiritualidade dos Padres Apostólicos é “cristoló-
gica”, especialmente por reconhecer o lugar que Cristo reserva ao Pai na
vida, na oração e até na m orte. Evidentemente, no centro do jovem
movimento cristão está a pessoa de Cristo, como uma imagem bem-
-definida. A polarização de interesses em sua pessoa, muitas vezes veicu­
lada graças a erros doutrinais que questionavam ora o aspecto hum ano
do Salvador (docetismo, gnosticismo), ora a sua divindade (ebionismo,
adocionismo), em bora conduza a um reconhecimento cada vez mais

1. Sobre o tema da “novidade”, cf. também INÁCIO, Carta aos Tralianos 8; Carta
aos Efesios 9.19.20; Carta aos Magnésios 9.10; Carta de Barnabé 2.5.6.7.13.15.16; Pastor
de Hermas — Visão III, 21.
2. Cf. INÁCIO, Carta aos Romanos 8.
3. Cf. também Martírio de Poliearpo 14.
4. A confirmação aparece também na simples observação estatística das vezes em
que é citado. Somente nas cartas de Inácio, o termo “Padre” aparece não menos que 43
vezes.
5. Veja-se Didaché 8-10; 1“ Carta de Clemente 59-61; Martírio de Poliearpo 14; 2“
Carta de Clemente 20; INÁCIO, Carta aos Efésios 4; Carta aos Romanos 2; Carta aos
Tralianos 13.
6. Cf. INÁCIO, Carta aos Filadelfienses 9.
7. Carta aos Romanos 7.
m aduro de sua realidade divina, não o separa do hom em , mas revela
quando m uito o real significado de encarnação, paixão, salvação. E o que
pensa o anônimo redator da 2‘ Carta de Clemente, para quem “devemos
estar convencidos dc que Jesus Cristo é Deus e é juiz dos vivos e dos
m ortos; somente assim não valorizaremos demasiadamente pouco a nossa
salvação, pois, se tivermos dele um conceito m esquinho, igualmente
mesquinho será o objeto de nossa esperança. Quem ouve essas coisas e
pouco as estima peca; e também nós pecamos, se não levamos em conta
quem nos chamou, de onde e para qual destino nos chamou, e também se
não consideramos as dores que Jesus Cristo quis sofrer por nós”8. A
afirmação da divindade de Cristo não diminui as exigências de seguimen­
to; ao contrário, une mais estreitamente a Ele9.
Os cristãos dos dois primeiros séculos não podem esquecer que o
seu Deus, o Kyrios glorificado, foi tam bém o hom em das dores que
“aprendeu a obediência por meio dos sofrim entos que teve” (H b 5,8).
A idéia da Paixão, por isso — e tam bém devido à situação particular
da com unidade cristã provada por perseguições — , é uma das bases da
espiritualidade dos Padres Apostólicos. Pode-se até afirmar que a força
do ideal de vida cristã proposto por eles provém de um a contínua
reflexão sobre os sofrimentos do S enhor10. Bastante impressionados
por esse am or transbordante que “escandaliza” e subverte a tradicional
concepção de Deus, os cristãos das origens entenderão sua vida antes de
tudo como um a resposta a Cristo. O que conta para eles é viver de m odo
digno dEle11 e Lhe prestar honras12. Na vida, agora, som ente Ele im ­
porta: “Fora dEle” — declara Inácio — “nada me serve; é por Ele que
eu carrego estas correntes, minhas pedras preciosas espirituais” 13. A
aspiração do bispo de A ntioquia é imitá-lo até se identificar com Ele.
N a imitação até o m artírio, o cristão realiza sua plena identificação com
Cristo: “N enhum a coisa visível ou invisível me impeça de chegar a
Jesus Cristo. O fogo, as feras, a cruz... os mais ferozes torm entos do

8. I a Carta de Clemente 1.
9. Que a divindade de Cristo e o seguimento de Cristo não estão cm antítese na
consciência dc nossos autores é o que se conclui de algumas expressões de Inácio de
Antioquia, que aspira a poder imitar a paixão de seu Deus ( Carta aos Romanos 6) e se
alegra com os fiéis da Trália “autênticos imitadores de Deus” (Carta aos Tralianos 1).
10. Cf. a respeito 1' Carta de Clemente 2.7.21.49; INÁCIO, Carta aos Efésios 1.10;
Carta aos Esmirnenses 1.4; Carta aos Romanos 6 etc.; Carta de Poliearpo 1.2.7.8.9.; Carta
de Barnabé 5.7; 2 ' Carta dc Clemente 1.
11. Cf. 1‘ Carta de Clemente 3.
12. INÁCIO declara: “É bom que glorifiqueis dc todas as maneiras Jesus Cristo, que
vos glorificou”, Carta aos Efésios 2.
13. Carta aos Efésios 11.
dem ônio venham sobre mim, desde que eu alcance Jesus C risto... que
eu imite a paixão de m eu D eus”14.
Se a espiritualidade dos Padres Apostólicos se alimenta no fogo da
paixão de Cristo, não se pode ignorar o papel que nela teve a fé na sua
ressurreição. Eles dem onstram crer num “vivente”. Policarpo convida a
ter fé na ressurreição de Cristo, que se mostra garantia segura da nossa15.
Por sua vez, Inácio se declara disposto a enfrentar a m orte, pois “som en­
te quando o m undo não vir mais nada de meu corpo é que serei verda­
deiro discípulo de C risto... Busco aquele que m orreu por nós, quero
aquele que p or nós ressuscitou” 16.
Podem os afirmar que a paixão e ressurreição de Cristo, com o são
os eventos básicos da fé na Igreja primitiva, constituem os fundamentos
da espiritualidade cristã.
Esta está marcada pela idéia da parusia agora iminente. Essa convic­
ção terá extraordinária influência na origem da ascese, que, “no início,
nada tem a ver com a filosofia grega nem com um dualismo metafísico:
ela está estreitamente ligada à fé num próximo advento do reino de
Deus. Esse reino não é algo completamente futuro... mas é realidade
presente, uma vez que o parto virginal de Maria e a ressurreição de
Cristo dos m ortos são uma autêntica realidade... A ascese cristã é, pois,
um elem ento inseparável da própria fé cristã”17.

A experiência religiosa nos apologistas

E nquanto os escritos dos Padres Apostólicos voltam-se para a co­


munidade cristã, as obras dos apologistas, destinadas à difusão e à defesa
do cristianismo, consideram também os leitores não-cristãos. Isso se re­
flete no m odo com o apresentam temas de vida espiritual acessíveis tam ­
bém a um público pagão.
O caminho para o verdadeiro Deus. Em alguns apologistas, o p ro ­
blema do conhecim ento de Deus parece estar estreitamente relacionado
com o conhecim ento de si mesmos. Na realidade, o aprofundam ento do
próprio conhecim ento e dos próprios fins abre caminho ao problem a de

14. INÁCIO, Carta aos Romanos 5-6.


15. Carta de Policarpo 2. Cf. também 1“ Carta de Clemente 24.42.
16. Carta aos Romanos 5-6. Cf. também Carta aos Esmirnenses 3.
17. E. PETERSON, “L’origine d d l’ascesi cristiana”, in Euntes docete I / I I , 1948, p.
Deus. Por outro lado, consideram que uma noção precisa de Deus per­
mite um bom conhecim ento próprio18. Mas com o pode o homem vir a
conhecer Deus? A resposta que os apologistas oferecem é esta: levando
uma vida moralmente irrepreensível. “Se me dizes” — escreve Teófilo a
um hipotético interlocutor pagão — ‘“ mostra-me o teu D eus’, também
eu poderia responder-te: ‘M ostra-me o teu homem e eu te mostrarei o
meu Deus’... Deus é visto por aqueles que o podem ver, ou seja, por
aqueles que têm os olhos da alma bem abertos.” 19 O hom em deve estar
em penhado, pois, sobretudo em elevar o teor moral da própria vida para
alcançar uma “visão” ou o conhecim ento de Deus.
Tributários da doutrina estóica e do otimismo religioso por ela
divulgado, os apologistas mostram-se conscientes da benévola proximida­
de de Deus, que “não só está perto de nós como também dentro de
nós... não só vivemos sob seu olhar como também em seu seio”20. Essa
consciência de sua onipresença garante que aquele cristão manterá um
culto espiritual, não limitado a alguns m om entos nem a simples ofertas
de coisas: “Uma conduta boa, uma consciência pura, um sentimento
íntegro, eis a vítima que Ele aceita. A retidão é oração a Deus, e a justiça,
sacrifício... Eis os nossos sacrifícios, eis os nossos ritos: quem é mais justo
é por nós considerado mais religioso”21.
Tal espiritualização do culto cristão certamente provém do conhe­
cimento profundo de Deus que os apologistas julgam possuir. C ontudo,
suas reflexões, mais que ressaltar seu aspecto “novo” de Pai de Jesus
Cristo e Pai nosso, acentuam a idéia de Deus com o Pai do cosmo, como
Senhor e juiz de tudo. Daí decorre a ausência daquela inspiração mística
observada em autores com o Inácio de Antioquia. Mas não podemos
esquecer que os apologistas se dirigem a um público pagão. C ontudo,
não faltam neles expressões de espiritualidade. E podem os encontrá-las
sobretudo nos testem unhos sobre a vida cristã. E comum nos apologistas
a fortíssima aspiração à vida eterna e a conseqüente superação do medo
da m orte22. Até a fé escatológica passa por uma mudança: torna-se mais
“personalizada” . Não há mais um confronto com a idéia de um retorno

18. Cf. M INÚCIO FÉLIX, Otávio 17; TACIANO, Discurso aos gregos 26.
19. A Autólico — livro I, 2. Cf. também TERTULIANO, Apologético XVII.
20. M IN Ú C IO FÉLIX, Otávio 32-33. Concepção análoga encontramos em
TEÓFILO, A Autólico — livro I, 5; ARISTIDES, Apologia 5.
21. M INÚ CIO FÉLIX, Otávio 32. Em termos análogos se expressa também
ARISTIDES, Apologia XV, 1; ATENÁGORAS, Súplica pelos cristãos 13; TERTULIANO,
Apologético 30; JUSTINO, 1 Apologia 13.
22. Cf. ARISTIDES, Apologia XV, 9; XVI, 3; ATENÁGORAS, Súplica pelos cristãos
12.13.31.33; JUSTINO, I Apologia 57 etc.
de Cristo e de uma assembléia universal convocada para o juízo de todos.
Prevalece antes a idéia do fim certo de cada um e de seu confronto
imediato com Cristo e ganha mais espaço um sentim ento de “tem or”
vinculado à certeza do “trem endo” juízo divino23. Todavia, é mais fácil
encontrar elementos de espiritualidade no âmbito da sexualidade, das
posses e da vida comunitária. Em relação ao primeiro, é recorrente a
convicção de que o m atrim ônio só se justifica para a procriação24. “(Nós
cristãos)” — com enta M inúcio Félix — “mantemos de bom grado os
vínculos de um só m atrim ônio unicamente pelo prazer de ter filhos e
nada mais.”25 Em tal perspectiva, assume lugar de destaque a prática da
castidade com fins ascéticos, confirm ada por Justino, A tenágoras,
Tertuliano, M inúcio Félix, Teófilo26. Com relação às posses, temos tes­
tem unhos de uma partilha de bens que, embora não praticada por todos
de igual m odo e mesmo sem ser obrigatória27, apresenta um aspecto
“ascético” : sua finalidade é não sobrecarregar o hom em fazendo-o es­
quecer o seu destino final28. H á, enfim, testem unhos de uma vida com u­
nitária intensa na qual toda forma de divisão em classes é superada29. A
fraternidade cristã chega a ser tão forte que provoca a censura e as
suspeitas dos pagãos, que não crêem que se possa querer bem de m odo
tão gratuito e desinteressado30. Certam ente essas observações dos pagãos
só podem ter fundam ento se se tom ar com o pressuposto a existência de
uma intensa vida comunitária entre os cristãos, no seio daquelas “santas
igrejas” semelhantes a tantas outras ilhas no mar borrascoso do m undo31.

A espiritualidade do martírio nos primeiros séculos

D o mesmo m odo que Cristo, a mensagem evangélica foi sinal de


contradição e de escândalo para muitos (cf. M t 13,57; Mc 14,29; G1

23. Cf. TERTULIANO, Apologético 45; ATENÁGORAS, Súplica pelos cristãos


12.31.36; ARISTIDES, Apologia 17,8 ctc.
24. Cf. ATENÁGORAS, Súplica pelos cristãos 33; JUSTINO, I Apologia 29.
25. Otávio 31.
26. Cf. JUSTINO, I Apologia 15.29; ATENÁGORAS, Súplica pelos cristãos 33,
TERTULIANO, Apologético 9; M INÚ CIO FÉLIX, Otávio 31; TEOFILO, A Autólico —
livro III, 15.
27. “Os abastados e os que estão cheios de boa vontade dão espontaneamente o que
querem’’, JUSTINO, I Apologia 67. Cf. TERTULIANO, Apologético 39.
28. Cf. M INÚ CIO FELIX, Otávio 36.
29. Cf. ATENÁGORAS, Súplica pelos cristãos 32; ARISTIDES, Apologia 15,4;
JUSTINO, I Apologia 19.67; M INÚCIO FÉLIX, Otávio 31.
30. Cf. TERTULIANO, Apologético 39.
31. Cf. TEÓFILO, A Autólico — livro II, 14.
5,11; lP d 2,8 etc.). A conseqüência de maior vulto daí resultante foram
justamente as perseguições, que devem ser consideradas uma participação
da comunidade cristã na sorte de seu M estre (cf. M t 5,11; Jo 15,20). Até
os primeiros anos do século IV, os cristãos conviveram com uma “espada
de Dâmocles” sobre a cabeça, sempre passíveis de ser julgados, proscritos
e condenados, embora isso nem sempre tenha ocorrido de fato. Ser
cristão então significava correr riscos. É bom lembrar que, na Igreja
antiga, todo cristão era missionário, em penhado em defender e testem u­
nhar a própria identidade. Por isso não é errado afirmar que a Igreja
antiga foi, em sentido amplo, “Igreja dos mártires” por causa de seu
ím peto missionário. Com efeito, “o trabalho missionário leva ao martírio
e o martírio se torna missão”32.
Os testem unhos da Igreja dos mártires chegaram até nós por meio
de diversos docum entos, de maior ou m enor confiabilidade:
1. as Acta: textos oficiais do martírio compilados pela autoridade civil
ou religiosa (por exemplo, A tas de Justino e companheiros, escritas
por volta de 165; A tas dos mártires cilitanos, por volta de 180,
primeiro docum ento escrito da literatura cristã latina).
2. As Paixões-, relatórios dos que presenciaram o martírio (por exem­
plo, M artírio de Policarpo, por volta de 156; a Paixão de Perpétua,
Felicidade e companheiros, em 202).
3. Documentos posteriores constituídos por obras históricas, didáticas,
homiléticas ou poéticas compostas por quem não presenciou o
martírio. Esses escritos são também chamados de Gesta ou Legenda
uma vez que deviam ser lidos quando os cristãos estavam reunidos.
Neste grupo de docum entos a fantasia às vezes se mistura à reali­
dade.
Ao examinar esses textos, notam os que é freqüente a idéia de que
o m ártir é chamado a se tornar semelhante a Cristo, a imitá-lo33. Na
imitação de Cristo, o mártir atualiza e representa em si a própria paixão
do Senhor34 e, ao mesmo tem po, repropõe o paradoxo da aparente
impotência de Deus. Com o os judeus diziam a respeito de Cristo: “ ...
se for o Messias de Deus, o Eleito, salve-se a si m esm o” (Lc 23,35) e:
“Vejamos se Elias vem tirá-lo daí” (Mc 15,36), assim alguns, bastante

32. H. VON CAMPENHAUSEN, “Das Martyrium in der Mission”, in Die alte


Kirche, Munique, 1974, p. 71.
33. Cf. 1' Carta de Clemente aos Corintios 16; INÂCIO, Carta aos Romanos 6.
34. Cf. Martírio de Policarpo 1.
amargurados, diziam a respeito dos mártires: “Onde está o Deus deles?
Q ue vantagens tiraram da religião pela qual deram a vida?”35 Se eram
estes alguns dos sentimentos comuns em relação aos mártires, estes se
consideravam felizes por poder testem unhar seu amor a Cristo na imi­
tação cruenta36. Portanto, relacionados com o martírio, encontramos
com freqüência testem unhos de alegria por aquilo que é considerado um
dom de Deus37.
U m outro aspecto emergente da literatura martirológica consiste
em considerar o m artírio o meio mais seguro para a união com Cristo.
E o que pensa Cipriano quando escreve: “Aquele que venceu a m orte
uma vez pode vencê-la em cada um de nós”38. Realmente parece que, no
mártir, é Cristo quem luta, quem sofre39 e vence40. Essa presença se
destina a vencer o dem ônio, considerado a causa das perseguições41.
A presença de Jesus no mártir o habilita para o combate, conferin­
do-lhe o próprio poder de Cristo. Por essa presença do Senhor nele, o
m ártir torna-se, em certo sentido, intermediário entre Deus e os outros
fiéis. Esta parece ser a razão pela qual, segundo a Tradição apostólica de
H ipólito, quem esteve no cárcere e sofreu pelo nom e do Senhor não
precisa da imposição das mãos para ser ordenado diácono ou sacerdote,
uma vez que já possui o Espírito do Senhor42.
Essa mesma convicção que considera os mártires particularm ente
próximos de Cristo sustenta o culto dos santos que se desenvolverá em
seguida. Com esse culto se exprime a idéia de que o martírio é a per­
feição e o ideal que todo cristão deve buscar. “Aos m ártires” — lê-se no
M artírio de Policarpo 17 — “rendem os apenas o justo tributo de nosso
afeto pelo am or imenso que dem onstraram ao seu rei, ao seu mestre.
Q ue nos seja perm itido participar de sua sorte e nos tornarm os seus
condiscípulos.” Cipriano, por sua vez, ressalta: “Se os mártires cristãos
são em núm ero tão grande, com o se vê, ninguém deve considerar árduo

35. Martírio de Potino e dos outros mártires de Lião, 15.


36. Cf. Martírio dos santos Carpo, Pápilo, Agatonica 41; Martírio das santas Perpé­
tua, Felicidade e de seus companheiros 18.
37. Martírio de Policarpo 2; Martírio de Carpo, Pápilo e Agatonica 36-39; Martírio
de Potino e dos outros mártires de Lião 10.14; Martírio das santas Perpétua, Felicidade e de
seus companheiros 6.18 etc.
38. Carta X,3.
39. Cf. Carta dos mártires de Lião 1,23.
40. Cf. Martírio das santas Perpétua, Felicidade e de seus companheiros 15; Martírio
de Potino e dos outros mártires de Lião 11.
41. Sobre o tema, cf. JUSTINO, II Apologia 1.
42. Cf. H IPÓLITO , A Tradição apostólica 9.
e difícil ser m ártir”43. De outra parte, porém , ninguém deve se apresentar
levianamente aos próprios algozes quando isso pode ser evitado. Tal
com portam ento, que a direção da Igreja sempre viu com suspeita, pode­
ria pôr em perigo a própria comunidade. Além disso, o cristão, como
missionário, tem responsabilidade direta em relação a seu perseguidor,
que não deve ser espiritualmente prejudicado por uma procura egoísta de
um bem, ainda que seja um bem espiritual com o o de ser mártir44. Com o
declara Orígenes, “para os nossos perseguidores que ainda não fizeram
derramar o nosso sangue, não queremos ser ocasião de pecarem e de se
tornarem ainda mais ímpios. Por isso os evitamos, quanto nos é possível.
D o contrário, eles ficariam com uma culpa ainda maior e teriam um
castigo ainda mais duro toda vez que nós, em nosso egoísmo, pensásse­
mos somente em nosso benefício e nos deixássemos matar, mesmo quan­
do isso não fosse estritamente necessário”45. O pensamento missioná­
rio” deve, portanto, proteger o cristão, evitando que ele considere o
m artírio como algo egoísta. Aliás, o próprio martírio às vezes se torna
um “fiasco”, um insucesso no m étodo pedagógico-missionário e indica
a incapacidade em conseguir se afirmar num determ inado ambiente46. Ao
m undo que solicita continuam ente mudança de convicções e de vida, a
resposta do m ártir é fundamentalmente a que Segunda deu ao procônsul
que a interrogava: “Q uero ser o que sou!”47, mas com o mesmo ânimo
de Cristo, que pedia por seus perseguidores: “Pai, perdoai-os...” .

Nascim ento e primeiros desdobramentos do monaquismo

A expressão monakós (= único, só) tem uma longa historia que


rem onta a Platão. N o âm bito cristão, o term o é encontrado no Evange­
lho de Tomé (c. 150), onde tem um caráter filosófico. Provavelmente na
mesma época surgiu nas comunidades da Síria uma denominação de
igual significado para designar os ascetas: o ihidaya, o único, o particular,
o discípulo ao qual é atribuído o mesmo titulo de Cristo: monoghenes.
Jesus é o monoghenés, e o discípulo que vive os trópous Kyríou (= os
modos de vida do Senhor) torna-se tam bém ele “único” .
Por volta de 330, pela primeira vez Eusébio atribui aos monges o
título de monoghenéis, o mesmo de Cristo (Com. sobre o Salmo 68,7). São

43. A Fortunato, 11.


44. Cf. H. VON CAMPENHAUSEN, “Das Martyrium...”, art. cit., p. 82.
45. ORÍGENES, Comentário sobre Jo X X V III, 18.
46. Cf. H. VON CAMPENHAUSEN, art. cit., pp. 81-83.
47. Atas dos mártires scillitanos, 9.
eles os que vivem na total semelhança com Cristo. Evidentemente, no
início não existiam Ordens ou estruturas constituídas.
A primeira expressão de vida “monástica” é a do eremita ou anacoreta.
C om o declara Jerônim o, “são anacoretas os que vivem sozinhos nos
desertos e recebem esse nom e pelo fato de terem se retirado para longe
dos hom ens” ( C arta 22,34). Originariamente, o verbo grego anakoréo
(= retirar-se) significa a fuga para o deserto por parte dos devedores
insolventes. Mas Jerônim o atesta um uso agora “batizado” da palavra.
Em bora se possam docum entar vestígios de anacoretismo já por
volta de meados do século III, parece que essa forma ascética desenvol­
veu-se graças à contribuição das conversões maciças ao cristianismo, tí­
picas do século IV, com a conseqüente diminuição do fervor espiritual e
a necessidade de fugir das seduções de uma sociedade que a nova religião
não transformara. Observa-se no anacoretismo cristão uma tendência de
reação e uma necessidade de fuga das cidades, consideradas lugar de
pecado.
Os anacoretas distinguiam-se por seu isolamento quase total, por
abstinência sexual, penitências, trabalho manual e ausência de um superior.
Para Jerônimo, “quem instituiu esse tipo de vida foi Paulo, quem lhe deu
brilho foi Antão e, indo mais para trás, seu prom otor foi João Batista”
( Carta 22,36). À parte estas afirmações, a questão sobre a origem da vida
anacorética permanece insolúvel por falta de fontes. É possível demonstrar,
porém, a rápida difusão dessa forma ascética no Egito, na Palestina, na
Síria e na Àsia Menor. Fase primitiva do monaquismo cristão ao qual se
seguirá a vida cenobita ou associada, o anacoretismo carrega a marca da
terra de origem e assume formas comportamentais diferentes. Os diversos
gêneros desse tipo de vida encontraram adeptos não apenas entre os
homens, mas também entre as mulheres. Teodoreto de Ciro, na História
dos monges (29-30), lembra três delas: Marana, Cira, Domina. Sabe-se que
o anacoretismo exerceu grande influência sobre a espiritualidade sucessiva,
inclusive por causa do caráter “heróico” de suas expressões.
Já ressaltamos que, cronologicamente, a experiência de isolamento
precedeu a cenobítica (koinós bíos = vida comum). Esta passou a se impor
depois, com o conseqüência do fato de que a um anacoreta famoso se
associaram discípulos, desejosos de partilhar sua vida.
Considerando ós riscos inerentes a uma vida solitária e as vantagens
provenientes de uma vida associada, Pacômio (c. 292-347), depois de
uma experiência pessoal de vida eremítica, criou o cenobitismo, caracte­
rizado pela convivência na total partilha dos bens e na oração comum,
na observância da mesma regra, no trabalho manual e na obediência
absoluta ao abade.
Ele fundou a primeira com unidade em 323, em Tabennesis, no
Alto Egito. Em pouco mais de vinte anos, as fundações pacomianas,
regidas por uma Regra de 194 artigos, compreendiam nove conventos
masculinos e dois femininos. A experiência inovadora de Pacômio, em ­
bora animada pela moderação e pela prudência, não era imune aos riscos
inerentes a comunidades numericamente cada vez maiores.
Não podemos esquecer aqui a pessoa de Antão ( | c. 355), que,
depois de um período de vida anacorética, tornou-se “pai” de alguns
pequenos mosteiros que a ele se ligavam. Sua biografia, escrita pelo bispo
Atanásio de Alexandria, passou a valer com o norm a nas expressões sub­
seqüentes de vida monástica.
As formas cenobíticas já existentes seriam corrigidas e aperfeiçoadas
por Basílio de Cesaréia (c. 330-379), que se valeu das experiências
monásticas anteriores. Convencido de que somente a vida cenobítica
garantia o exercício da caridade, ele assentou a convivência comunitária
num tipo de relação de amizade. “Coabitar” — declarará nas Regulae
fusius tm ctatae VII, 4 — “constitui um campo de prova, um belo cami­
nho de progresso, um contínuo exercício, uma ininterrupta meditação
dos preceitos do Senhor. E o objetivo dessa vida comum é a glória de
D eus... Esse gênero de vida comum está de acordo com o que levavam
os santos lembrados nos Atos dos Apóstolos: os fiéis mantinham-se unidos
e possuíam tudo em com um .”
De acordo com essa visão, Basílio limitou o núm ero dos monges
que viviam juntos e fez com que os mosteiros tivessem maior participa­
ção no contexto social e eclesial, agregando a eles escolas, asilos e orfa­
natos. Redimensionou tam bém o compromisso de trabalho manual,
garantindo mais tem po para a oração e o estudo.
As experiências cenobíticas orientais encontraram rápida e ampla
difusão no Ocidente nos séculos IV e V. Foi Jerônim o (c. 347-419)
quem propagou essa forma de ascese. Mas não devemos esquecer as
contribuições originais oferecidas por M artinho de Tours, que, mesmo
sendo bispo (370-371), manteve vida comum com os seus discípulos.
Situação análoga nos apresenta o bispo Eusébio de Vercelli (f c.
370), fundador de um cenóbio para clérigos. Afirma-se assim uma forma
de cenóbio episcopal que, privilegiando a vida comum do clero, anuncia
o nascimento dos cônegos regulares.
Na Africa, Agostinho fundou um mosteiro episcopal (395) que
seguia uma Regra preparada por ele ( C arta 211). Por volta de 400,
H onorato instituiu o célebre mosteiro de Lérins, e João Cassiano (360-
c. 4 3 0 ), que com suas obras pôs o O cidente em contato com o
cenobitismo oriental, criou dois mosteiros em Marselha.
O assentamento diversificado dessas formas cenobíticas no O ciden­
te encontrará uma síntese original na Regra de são Bento ( | c. 547), que,
assimilando o pensam ento pacomiano e a experiência basiliana, acabará se
im pondo sobre as outras formas de vida religiosa associada com a defi­
nição dos papéis de cada um, a sólida organização interna e a inserção
na Igreja local.
Depois dessa breve exposição do quadro histórico, podem os per­
guntar se existe uma “espiritualidade monástica originária” . G. M.
Columbas declara a respeito: “Os grandes Padres, legisladores teóricos da
vida monástica em suas origens e em seu desenvolvimento, não indicaram
a seus discípulos outro objetivo de santidade senão o indicado a todos
os cristãos pela Igreja nem mostraram outro caminho para chegar a ele
senão o do Evangelho”48.
Não se trata de uma espiritualidade reservada a uma elite, nem os
monges querem ser um grupo esotérico, uma espécie de gnósticos. A
vocação monástica só pode ser entendida como uma confirmação e um
aprofundam ento consciente das promessas batismais que o monge decide
observar de m odo radical.
Se não há uma perfeição reservada aos monges, mas a única perfeição
evangélica é apontada para todos, sejam eles leigos ou monges, é claro que
a estes se dirige o duplo preceito do amor de Deus sobre todas as coisas
e o do am or do próximo sobre si mesmos. No interior desse ideal há,
porém, arquétipos ou “idéias-força” que exerceram maior ou menor influ­
ência sobre as diversas formas de vida monástica e sobre a sua espirituali­
dade. Basta lembrar o ideal da vida como imitação de Cristo, como imi­
tação da primitiva comunidade apresentada nos Atos (2,44-45); 4,32-34),
a assunção da vida ascética como substituta do martírio, a vida monástica
como batalha contra o demônio, a migração ascética e o êxodo espiritual,
a imitação da vida angélica, o retorno à inocência de Adão, a espera
vigilante da parusia, a vida como ideal filosófico. Esses diversos arquétipos
mostram a rica variedade do ideal monástico; uma diversidade que não
altera absolutamente a unidade essencial: o monge é aquele que, sob di­
ferentes formas, busca o conhecimento, a adoração e o serviço de Deus.

48. G. M. COLUMBAS, El monacato primitivo, II, BAC, Madri 1975, 3.


OS PADRES E A INCULTURAÇÃO'

palavra “inculturação” , antes de ser um program a, exprime um


A dado de fato: a realidade de um cristianismo que, no decurso dos
séculos, procurou expressar-se em diferentes linguagens, mesmo defen­
dendo um axioma difícil de aceitar, tanto internam ente como no diálogo
ad extra, ou seja, “a salvação vem dos judeus” (Jo 4,22).
Não há dúvida de que esse cristianismo não teria reunido, nos
primórdios do século IV, mais de 10% da população do império se ca­
recesse da força interior para fazer-se “tudo para todos” (IC o r 9 ,2 2 )2.
A própria história ensina que a “inculturação” se tornou um com ­
promisso consciente e, como tal, foi objeto de particular atenção na
recente encíclica Redemptoris missio, na qual, de m odo descritivo, ela é
definida com o “a íntima transformação dos autênticos valores culturais
m ediante a integração no cristianismo e o enraizam ento do cristianismo
nas diversas culturas”3.
Na realidade, esse processo — para além do term o técnico, um
tanto recente4 — é coextensivo a toda a história da Igreja. E muito

1. Para o tema que se segue, reporto-me em boa parte a meu trabalho anterior
“Alcune considerazioni su ‘cristiancsimo dellc origini e inculturazione’”, Seminarium, XXX
3 (1990), pp. 413-438.
2. Cf. H. VON CAMPENHAUSEN, “Das Martyrium in der Mission”, in Dte alte
Kirche, Munique, Kaiser, 1974, p. 72. Cf. também Y. CONGAR, “Souci du salut des
payens et conscience missionaire dans le christianisme postapostolique et preconstantinien”
in Kyriakon — Festschrift Johannes Quastm I, Miinstcr in W., Verlag Aschendorff, 1970,
p. 3.
3. Carta encíclica Redemptoris missio (RM) V, 52.
4. A primeira vez que a palavra “inculturação” aparece num documento da Igreja
é na Mensagem do Sínodo sobre a catequese realizado em 1977. Como observa J. LOPEZ
natural, por isso, que a encíclica remeta às experiências da comunidade
primitiva5 ou — de m odo mais amplo — àquelas experiências positivo/
negativas registradas nos dois milênios de cristianismo6, buscando nelas
— justam ente pelo caráter especular da história — termos de compara­
ção, de diferenciação, que sirvam para iluminar o presente e orientar para
o futuro. O recurso à história cumpre assim a insubstituível função de
nos fazer sair do particular e de nos libertar do peso dessa mesma his­
tória, tornando a inculturação uma inteligente e experiente inserção da
mensagem cristã em diferentes áreas.
Ao usar o neologismo “inculturação” , a encíclica RM pressupõe um
conceito de cultura não restrito ao cultivo noético ou apenas à perfeição
mental do homem. Entende-o, antes — como já o fazia a G audium et
spes — em sentido socioantropológico, ou seja, extensivo a todo o
patrim ônio de experiências próprias de um grupo social7. Portanto, o
processo de inculturação deve ser entendido como extensivo a todo o
“universo simbólico” dos diferentes povos com os quais o Evangelho
entra em contato.

Feitas essas observações, vamos considerar como o cristianismo dos


primeiros dois séculos se adaptou ao ambiente que viu seu nascimento
e seus primeiros desenvolvimentos em formas diversificadas.

Am biente judaico e com unidade cristã primitiva

“A Igreja é missionária pelo próprio fato de existir.”8 Nesta frase A.


Harnack condensou a situação da comunidade primitiva que, consciente
da própria identidade e do “novo” de que é portadora, percebe a neces­
sidade de comunicar a própria experiência. “Sereis minhas testem unhas...”
(At 1,8; cf. também At 2,32; 3,15; 10,39; Jo 3,11; l j o 1,3 etc.). O

GAY, o uso preferencial desse termo parece que então se impôs “porque põe cm evidência
a analogia com a Encarnação do Verbo. Além disso, enquanto o termo ‘aculturação’ fica
reservado para o encontro de culturas diferentes ou para o primeiro contato do cristianismo
com as culturas, a ‘inculturação’ quer significar o processo dinâmico, profundo, de inserção
da Igreja na cultura, que envolve o homem com todos os seus valores”, “Pensiero attuale
delia Chicsa sull’inculturazione”, in Inculturazione. Concetti, problemi, orientamenti, Roma,
Centro Ignatianum Spiritualitatis, 1979, p. 24.
5. A respeito, cf. RM III, 24.
6. Cf. RM V, 53.
7. Cf. Gaudium et spes II, 53.
8. Citação de H. HARNACK apud E. MOLLAND, “Besass die alte Kirche ein
Missionsprogram?”, in Die alte Kirche, Munique, Kaiser, 1964, 63.
movimento cristão das origens é, portanto, missionário não porque ins­
tigado por um “dever”, mas simplesmente porque vive da certeza de que
“Jesus é o Senhor” (IC o r 12,3). O testem unho dos primeiros cristãos é
apenas a demonstração do fato que fundam entou seu m odo de ser e de
pensar. Nessa perspectiva, é justo afirmar que a Igreja baseia-se na missão
e deve ser entendida a partir dessa missão.
Mas, para com preender melhor os seus primeiros m om entos, é
preciso ter presente que ela, em bora constituída em torno do núcleo do
evento pascal, não dispõe de um m undo simbólico coerentem ente
estruturado e constituído9. Toma forma, por isso, um cristianismo ex­
presso em categorias semíticas, que fala a linguagem do judaísmo pales­
tino, recusando determinados costumes e assumindo outros, num p ro ­
cesso concomitante de “ex”-“in”-culturação.
Nessa assunção crítica é preciso não esquecer a “variabilidade” dos
que traziam o anúncio e dos que o recebiam. A inculturação é um fato
histórico e não uma aproximação de princípios atemporais. Ela não se
verifica entre sistemas ou ideologias, mas entre pessoas e se ressente da
realidade destas: experiências passadas, cultura, tipo de vida...
Ora, o movimento cristão, nascido no meio palestino como movi­
m ento de renovação, reunia e integrava em si pessoas que pertenciam a
diferentes grupos e camadas sociais. A presença de pessoas como Levi, o
publicano, e Simão, o zelote, entre os que acompanhavam Jesus; o con­
flito desencadeado na com unidade de Jerusalém entre cristãos hebreus e
helenistas (cf. At 6 ,lss.); a afirmação da passagem de numerosos sacer­
dotes para a fé (cf. At 6,7), tudo isso confirma implicitamente a existên­
cia de diferentes m odos de sentir.
Não admira que o processo de inculturação do anúncio pascal
tenha ficado marcado pelos grupos em que se realizou. Pode-se aplicar
aqui o axioma: “quidquid recipitur ad m odum recipientis recipitur” . O
surgim ento de várias heresias na Igreja da circuncisão é uma prova de
que a inculturação às vezes aconteceu perifericamente ou foi apenas
parcial porque a exculturação que a fé no Crucificado exigia não fora
completa ou não acompanhara o desenvolvimento doutrinal subseqüen­
te. Essa exculturação comportava a superação do orgulho nacionalista
judeu: era preciso começar a crer que a salvação não estava ligada nem
à estirpe nem à lei de Moisés, mas unicamente à fé em Cristo m orto e

9. Cf. G. THEISSEN, Sociologia dei cristianesimo primitivo, trad. do alemão, Gên


va, Marictti, 1987, p. 61.
ressuscitado (Rm 4,23-25), diante do qual judeu e gentio estão no
mesmo plano.
Mas com o se pôr no mesmo nível dos pagãos, quando a própria
Torá que Deus havia dado a Israel estabelecia a separação?
Paulo reconhecera que a Lei havia servido de “pedagogo” (cf. G1
3,24s) até a vinda de Cristo. Mas, entre os judeus que aceitaram a
ressurreição, quantos estavam dispostos a aceitar esse pedagogo? “Não
era melhor que os pagãos passassem pelo pedagogo, caminhando para
Cristo depois de terem se tornado eles mesmos judeus? Esta era a pre­
tensão do orgulho racista dos hebreus.”10
O Concílio de Jerusalém, que contestou essa pretensão, não proi­
biu aos judeu-cristãos a observância da Lei mosaica. Com o tem po,
porém , “a rígida e total observância da Lei mosaica passou a impedir a
observância daquele am or fraterno que Jesus apresentara com o o novo
m andam ento (Jo 13,3 4)”11. Justino, no Diálogo com Tnfão 47,2-3, teste­
m unha quão real era esse com portam ento. Escreve ele: “os da tua raça,
Trifao, que afirmam crer neste Cristo e usam de todos os meios para
obrigar a viver segundo a Lei os crentes em Cristo provenientes dos
gentios..., ou que não aceitam estar em com unhão de vida com eles,
nem eu os aceito” .
As dificuldades observadas por Justino, inerentes à inculturação e
ao pluralismo dela decorrente, não devem levar-nos a m enosprezar o
esforço que a Igreja primitiva teve de realizar a esse respeito. Basta pensar
na teologia judeu-cristã, que buscou suas categorias no pensamento ju­
daico contem porâneo e por meio delas — de diversos modos, mas que
tiveram o mesmo êxito que a elaboração sucessiva da teologia em cate­
gorias metafísicas — , recorrendo a uma linguagem corrente e partindo
do acontecim ento de Cristo, preparou a tentativa de uma visão de con­
junto.
Se considerarmos a reflexão cristológica, teremos de nos defrontar
com categorias extraídas da apocalíptica do judaísmo tardio12. Os termos
para qualificar o Verbo e o Espírito e para exprimir a sua transcendência
provêm do vocabulário utilizado pela angelologia. Até a consciência da
própria identidade de Igreja é alimentada com a utilização de símbolos

10. L. RANDELLINI, La Chiesa dei jjtudco cristiani, Brcscia, Paideia, 1968, p. 70.
11. Id., ibid., p. 70.
12. Sobre este assunto e sobre os que se seguem, cf. J. DANIELOU, La teologia dei
giudeo cristianesimo, trad. do francês, Bolonha, II Mulino, 1974.
elaborados primeiramente pelo profetismo e depois pela apocalíptica. As
próprias instituições, como os ritos de iniciação, a eucaristia, a catequese,
as práticas ascéticas, a organização da com unidade e até a literatura
edificante cristã (evangelhos, apocalipses apócrifos) carregam a inconfun­
dível marca do ambiente de origem.
Tais elementos, que nos limitamos a mencionar, deixam pelo menos
perceber que o processo de inculturação assumido na comunidade cristã
primitiva se estendeu a todas as áreas. Tratou-se, basicamente, de dotar
todo um universo simbólico de novas bases, partindo de um ponto focal
diferente: Jesus de Nazaré, M essias/Senhor.

A diáspora judaica no m undo helenístico

Tem sido pouco observado que a mensagem de Jesus — diferencian-


do-se da de outros movimentos judaicos contemporâneos — suscitou
particular interesse entre os judeus de língua grega da diáspora residentes
em Jerusalém13.
Disseram que ela “demonstrava desde o início uma inclinação pelo
universal m undo de língua grega e talvez até por alguns motivos do
pensamento grego” 14. O que tornava totalm ente unânimes Jesus e seus
primeiros discípulos de fala grega da diáspora era sem dúvida a contes­
tação do culto do templo e da Torá.
A m orte de Estêvão e a perseguição de que foram objeto, se de um
lado os obrigaram a abandonar a Judéia, de outro os fortaleceram em sua
oposição ao templo e à lei, determ inando “uma mudança de rota em
seus esforços missionários” 15 e a abertura a núcleos periféricos do judaís­
mo, com o os samaritanos16 e “os tementes a D eus”17. Além disso, era
natural que a relativização da Lei, defendida pelos “helenistas”, com por­
tasse uma relativização e, em seguida, a derrubada das barreiras erguidas
pela Lei18, inaugurando assim aquela tendência universalista atestada pelas

13. Sobre as possíveis explicações desta “simpatia” dos judeus de fala grega pelo
anúncio de Jesus, cf. M. HENGEL, La storiografia protocristiana, trad.do alemão, Brescia,
Paideia, 1985, pp. 99-102.
14. Id., ibid., p. 101.
15. Id., ibid., p. 104.
16. Sobre a missão samaritana, ou em território judaico não-ortodoxo, cf. B. KOT-
TING, “Christentum I (Ausbreitung)”, in R A C II, 1139. Sobre esse assunto, também M.
HENGEL, op. cit., p. 109.
17. Cf. id., ibid., p. 104.
18. Cf. G. THEISSEN, Sociologia..., op. cit., p. 187.
cartas de Paulo. Ao se dirigir aos dissidentes do judaísmo oficial, aos
outros judeus da diáspora e aos “tementes a Deus” , os “helenistas”
podiam contar com um background culturalmente (religiosamente) se­
melhante.
Foi Paulo quem se encarregou de transferir para os pagãos o anún­
cio (cf. G1 1,16)... levando “às últimas conseqüências teológicas o enfoque
antinomista iniciado por Jesus e pelos ‘helenistas’”19.
Para entender essa passagem e o enorme esforço de inculturação
que ela supôs, convém lembrar o quadro do judaísmo da diáspora.
É quase possível constatar “arqueologicam ente” que nos lugares em
que a missão cristã chegou, nos séculos I e II — tanto no Oriente como
no O cidente — , existia ao menos uma sinagoga20.
Acerca da difusão do judaísmo no tem po do império, as zonas de
maior densidade numérica, além da Palestina, foram o Egito, a Síria, a
Ásia M enor e a Babilônia.
Na base dessa dispersão existiam fenômenos de deportação, de
implantação voluntária ou de colonização, determinados muitas vezes
por razões de ordem demográfica ou econômica21. “Vivendo segundo a
lei de seus Pais”, os judeus se im punham por toda a parte com seu teor
de vida (tribunais especiais, governadores e conselho próprio, lugares de
reunião, mercados especiais, festas...). Na estrutura das cidades antigas,
divididas internam ente em “tribos” , o direito/dever do culto cívico —
além de expressão religiosa — era também expressão de “lealdade” para
com a própria pátria. Mas com o poderia um judeu entrar num a tribo
pagã da cidade e venerar com ela os seus deuses?22 A igualdade de direi­
tos, mas não de deveres, nas cidades habitadas pelos judeus explica o
anti-semitismo que se atribuía ao particularismo destes, aos privilégios
obtidos de fora e num m om ento em que as cidades se mostravam tão
ciosas de suas autonomias, enfim ao desprezo deles pelas divindades23.
Excetuando-se os fluxos recorrentes de anti-semitismo, a com uni­
dade judaica da diáspora conseguira conquistar diversas pessoas, sensíveis
a formas religiosas elevadas.

19. M. HENGEL, op. cit., p. 114.


20. Cf. K. ANDRESEN, Die Kirchen..., p. 18.
21. Cf. F. BLANCHETIÈRE, “Le juif et l’autre: la diaspora asiate”, in Études sur
le judatsme hellénistique, Paris, Du Cerf, 1984, pp. 47-48.
22. Cf. J. A. FESTUGIERE-P. FABRE, Il mondo greco romano al tempo di Gesù
Cristo, trad. do franccs, Turim, SEI, 1955, pp. 36-37.
23. Cf. F. BLANCHETIÈRE, art. cit., p. 52.
Em contato com o m undo helenístico, o judaísmo realizara uma
primeira “tradução” do anúncio bíblico em categorias gregas, dando
origem a um judaísmo helenizado. M ediante seu anúncio, esse judaísmo
helenizado, aberto ao diálogo e ao confronto com o m undo pagão,
soube conquistar homens e mulheres em busca de um guia e de uma
resposta religiosa para sua vida.
A esse respeito, deve-se observar que justam ente no início da era
cristã ele experimentou um forte impulso missionário. O judeu da diáspora
sentia possuir uma mensagem para toda a humanidade: dessa consciência
nascia o dever da missão24. O trabalho “norm al” de propaganda era o
contato pessoal25. O centro da atividade missionária foram as sinagogas,
abertas a todos26. Nelas se celebrava um culto na própria língua do lugar
(predom inantem ente em grego), o qual girava em torno de uma leitura
da Torá acompanhada de uma pregação e de algumas orações e ditos
sapienciais27. Às vezes efetuavam-se reflexões expressas em formas estilísticas
(por exemplo, a diatribe) tomadas da cultura helenística28.
C om o observa Harnack, a adesão dos pagãos “convertidos” ao
judaísmo da diáspora “passou por todos os graus possíveis, da aceitação
supersticiosa de alguns ritos à completa identidade”29.
Tal adesão acontecia com o ingresso na categoria dos “prosélitos”
ou na dos “tementes a D eus” .
Os primeiros missionários judeu-cristão-helenísticos — com exce­
ção dos “falsos irmãos” mencionados por Paulo (cf. G1 2,4) — deixaram
de insistir na circuncisão, na observância ritual da lei e em normas ali­
mentares, aspectos agora considerados irrelevantes para a salvação final30.
Acentuando a abertura universal da mensagem cristã31 — diferentemente

24. Cf. H. HARNACK, Missione..., op. cit., pp. 7-8.


25. Cf. L. GOPPELT, Die apostolische..., op. cit., A 56.
26. Sobre o nosso tema é importante o testemunho que nos fornece FLAVIO
JOSEFO a propósito da comunidade judaica de Antioquia: “Os judeus atraíam continua­
mente a seus ritos religiosos uma grande quantidade de gregos, fazendo deles, de certo
modo, uma parte de sua comunidade”, A guerra judaica VII, 3,3.
27. Cf. G. A. WEWERS, Testi giudaici per lo studio dei N.T., trad. do alemão,
Brescia, Paidcia, 1987, p. 205. Cf. também L. GOPPELT, op. cit., A 56; M. SIMON,
Giudaismo..., op. cit., p. 35.
28. Cf. L. GOPPELT, op. cit., A 56.
29. H. HARNACK, Missione..., op. cit., p. 9. Cf. também id., ibid., p. 2, onde se
faz referencia a fenômenos de sincretismo entre cultos locais e judaísmo (culto do “Deus
supremo” e do deus “Sabatiste” ).
30. Cf. M. HENGEL, La storiografia..., op. cit., pp. 120-121.
31. Mais claramente se percebe aqui a importância de Paulo. Quando, em Corinto,
será levado diante do governador Galião, a acusação que alguns judeus lançam contra ele
)
do judaísmo — , conseguiram reunir numerosos “tem entes” , separando o
elemento religioso do elem ento nacional32. Atingindo sobretudo estes
últimos, os missionários os integravam plenamente à comunidade assim
que recebiam o batismo33. Por isso pode-se afirmar que “a missão cristã
conquistava justam ente os que sustentavam o judaísm o”34.

H elenism o e anúncio cristão

A atração que o movimento cristão exerceu principalmente sobre os


“tem entes” deveu-se à capacidade de “exculturação” que o marcou em
sua passagem do ambiente palestino para o helenístico.
Convém lembrar o papel aglutinador desempenhado pelo helenismo
no Im pério, ao conseguir irmanar povos de diferentes raças, religiões e
estruturas políticas e sociais na mesma língua e cultura e generalizar
a estrutura da polis grega. Evidentem ente, esse processo não ocorrera
em todos os lugares com a mesma intensidade e com os mesmos resul­
tados. Apesar dessas variantes, que influenciaram a evangelização subse­
qüente, pode-se afirmar que a missão cristã no m undo greco-rom ano foi
“missão interna” , uma vez que evangelizados e evangelizadores possu­
íam a mesma história, a mesma língua, a mesma terra35.
Quais as implicações da passagem da mensagem cristã, nascida no
ambiente rural economicamente atrasado da Palestina, para esse m undo
predom inantem ente “urbano” e de cultura bastante homogênea?
Transplantando-se para Antioquia e, pouco a pouco, para outros
centros, ela assumiu caráter m etropolitano36 e citadino. Nas cidades do
Império nas quais predominantemente se expandiu “faltavam aquelas con­
tradições estruturais que, ao contrário, caracterizavam a ordem política da
Palestina. Por isso, não é de admirar que o m om ento teocrático-radical
do primitivo movimento cristão tivesse desaparecido totalm ente”37.

é “a de persuadir os ouvintes a prestar culto a Deus de modo contrário à lei” (At 18,13).
Parecia, em resumo, que desvalorizava o judaísmo. Na realidade, dera a ele aquela abertura
que o desvinculava das malhas do nacionalismo.
32. Cf. G. BARDY, La conversione al cristianesimo nei primi secoli, trad. do francês,
Milão, Jaca Book, 1975, p. 116.
33. Cf. W. GRUNDMANN, Geschichte..., 456.
34. G. THEISSEN, Sociologia..., 236.
35. Cf. H. VON SODEN, “Die christiche Mission in Altertum und Gegenwart”, in
Die alte Kirche, Munique, Kaiser, 1974, pp. 22-23.
36. Cf. M. HENGEL, La storiografia..., op. cit., p. 133.
37. G. THEISSEN, op. cit., p. 187.
O fato de Paulo não ter anunciado o Reino de Deus, com o o
faziam os carismáticos itinerantes palestinos38, é mais uma implicação
dessa passagem. Nas comunidades helenísticas, o ethos afamiliar e apátrida
de Jesus não teria encontrado espaço vital, uma vez que não poderia ser
praticado39.
A conseqüência disso está nas cartas do cristianismo primitivo, que
m uito raramente se reportam às palavras do “M estre” . Se estas se con­
servam na fonte dos loghia e dos Evangelhos é sob a condição de mudar
seu caráter, convertendo o radicalismo prático ali presente em radicalis­
mo especulativo ou gnóstico40.
O radicalismo ético afamiliar, de difícil atuação num contexto socio-
cultural-econômico-ecológico diferente, é substituído por “um patriarca-
lismo de amor de cunho familiar que atribui grande importância à obe­
diência de mulher, filhos e escravos” (cf. IC o r 7,21; 11,3-16; as cartas
deuteropaulinas e pastorais)41.
Trata-se de traição da mensagem de Jesus ou é apenas uma forma
de encarnar a mensagem cristã num contexto diferente do original? De
fato, esse patriarcalismo não arrancava ninguém de seu próprio ambiente,
aceitava as diferenças sociais existentes e até assumia sem reservas a es­
trutura política (cf. Rm 13,lss.), mas atenuava todas as diferenças de
classe, obrigando a um amor recíproco.
Com o ressalta G. Theissen, foi justam ente esse patriarcalismo, “com
seu m oderado conservadorismo social, que deu ao cristianismo um cu­
nho duradouro”42 e garantiu sua sobrevivência e sua difusão.
Já observamos que o nascimento desse novo m odo de ser cristão
em geral aconteceu nas cidades e, nestas, predom inantem ente entre as
camadas médias e as inferiores da população, ou seja, entre aqueles que,
por serem mestiços, operários ou escravos, escapavam às malhas do sis­
tema político-religioso da polis, que mantinha e atava todo cidadão, do
nascimento até a m orte43. Para corroborar o caráter urbano da nova
religião — além da presença mais marcante da diáspora judaica nos cen­
tros habitados — , houve o concurso do conservadorismo camponês, dos
fortes vínculos entre famílias e grupos, que tornavam mais fácil o contro­

38. Cf. id., ibid., p. 187.


39. Cf. id., ibid., pp. 238-239.
40. Cf. id., ibid., pp. 92-93.
41. Id., ibid., p. 188.
42. Id., ibid., p. 239.
43. Cf. J. A. FESTUGIERE, II mondo greco romano..., op. cit., p. 18.
le sobre cada indivíduo, e também de uma religiosidade de fundo natu­
ralista e mágico, mais ligada à natureza e a seus fenômenos44. Há, de
outra parte, o fato de que, enquanto nas cidades helenizadas se falava o
grego da koiné, no campo persistiam as línguas vulgares e os dialetos45.
A experiência de Paulo, que, ao chegar a Listra, ouviu o povo falar
em licaônio (cf. At 14,11), não deve ter sido uma novidade para o
apóstolo.

Aspectos d a inculturação cristã na antiga polis

O processo de inculturação da mensagem cristã na cidade antiga de


língua grega realizou-se sob vários aspectos, de diversas maneiras, em
muitas etapas, e teve conseqüências positivas e negativas que simplesmen­
te me limito a mencionar. Para evitar simplificações que levam para outro
rum o, é preciso lembrar ao menos o elemento imponderável, mas sempre
condicionante, da variabilidade dos que anunciavam e recebiam a m en­
sagem e que estavam necessariamente ligados a seu passado e às próprias
particularidades46.
N o m undo helenístico, o prim itivo anúncio seguiu o trilho da
analogia/contraposição, que, enquanto afirmava os pontos de contato,
confirmava tam bém os elem entos de diferenciação e de especificidade
da própria mensagem. Mas, para tanto, os missionários precisavam
adotar a língua e a linguagem dos ouvintes, expressando-se em term os
e categorias compreensíveis. Tratava-se de reform ular a fé cristã adap­
tando-a ao novo m undo e traduzindo-a m ediante novos conceitos e
experiências.
Adaptação em nível lingüístico-conceitual. A esse respeito, a passa­
gem do anúncio cristão do âmbito lingüístico aramaico ao grego signi­
ficou também uma mudança no âm bito dos conteúdos e representações.
A term inologia que expressa bem esse fenômeno de inculturação é
a cristológica: o título “Messias” ( Christós, U ngido), por não ter signi­
ficado para os gregos, tornou-se o sobrenome de Jesus: Jesus o Messias
se transform ou em Jesus Cristo. A palavra Kyrios, usada para indicar

44. Cf. C. ANDRESEN, Die Kirchen..., op. cit., p. 21.


45. Cf. K. HOLL, “Kultursprachc und Volksprache in der altchrisdichen Mission”,
in Die alte Kirche, Muniquc, Kaiser, 1974, pp. 389-390.
46. Cf. A. KEHL, “Antike Volksfrömmingkeit und das Christentum”, in Die alte
Kirche, Munique, Kaiser, 1974, p. 315.
Deus, tanto pela Septuaginta como pelo m undo pagão, foi aplicada a
Jesus. Também “a difusão do conceito de Sotér caminhou paralelamente
à separação do cristianismo de sua terra de origem, bem com o à apro­
ximação ao universo cultural helenístico”47. Em resumo, num m undo
carregado de religiosidade com o era a cidade helenística, a proclamação
de Cristo “Senhor” só podia acontecer se a ele fossem atribuídas as
propriedades que a piedade pagã reservava a seus deuses. O que os
homens buscavam em suas religiões — a força, a justiça, a santidade — ,
tudo isso lhes era oferecido na realidade histórica de Cristo. Sobretudo
a enorme necessidade de “redenção”, vigorosamente expressa pelas reli­
giões mistéricas, encontrava nele resposta adequada.
Foi exatamente a existência dessas respostas religiosas dadas ao
hom em antigo que estimulou a pregação cristã primitiva a estruturar o
próprio conceito de fé em formas que fossem de algum m odo com pre­
ensíveis ao ambiente. Com o observa P. Stockmeier, esse confronto, “ape­
sar do esforço de salvaguardar o conteúdo específico da mensagem de
Cristo, levou também a uma interpretação religiosa do cristianismo, ou
seja, a assimilar conceitos e categorias que em parte eram até estranhas
à mentalidade do Novo Testam ento”48.
Diante da necessidade de “se legitimar” e de desmentir a acusação
do m undo pagão, que o julgava uma superstitio, o jovem movimento
cristão foi pouco a pouco se afirmando com o religio vera. Mas, eviden­
tem ente, isso supôs a assunção de estruturas religiosas49 e, com elas, a
criação de um novo universo simbólico. A airesis, a superstitio cristã
tornara-se progressivamente christianismós em oposição ao iudaismóí50 e
se legitimara com o religio vera em contraposição à religio pagã.
O processo de adaptação/transform ação aqui atestado e produzido
nos séculos I / I I teve lugar não apenas em relação a categorias estrita­
m ente religiosas (fundamentação “religiosa” ), mas se estendeu também
à filosofia (fundamentação “científica” ).
Na aproximação desta, o tema neotestamentário fundamental da
“fé” (cf. At 11,26; Rm 10,8) — dificilmente aceitável para um grego —

47. P. WENDLAND, La cultura..., op. cit., p. 288.


48. P. STOCKMEIER, Fede e religione nella Chiesa primitiva, trad. do alemão,
Brcscia, Paideia, 1976, p. 63.
49. Cf. P. STOCKMEIER, Fede..., op. cit., p. 138.
50. P. STOCKMEIER observa ainda que na contraposição que Inácio de Antioquia
faz entre judaísmo e cristianismo (Magnésios 10,3) este último figura como uma entidade
constituída, com normas éticas e cultuais próprias. Cf. Fede..., op. cit., pp. 37-38.
foi substituído pelo conceito de “gnose”51. Este foi o compromisso pri­
meiro dos apologistas, os quais, carregando consigo um patrimônio cultural
inesquecível, procuraram fazê-lo conviver com a “fé abraçada”, levados
a isso por uma tríplice exigência de ordem psicológica (esclarecer a si),
apologética (esclarecer aos outros) e polêmica (contestar as acusações e
rebatê-las).

Nesse em penho de aproximação ao m undo pagão culto, já precedi­


do pela literatura missionária judeu-helenística ligada sobretudo a Fílon
e da qual serão extraídos alguns temas, parece predom inante a forma do
“diálogo” .

A esse respeito é significativo o que escreve Atenágoras: “Antes que


comece a falar, solicitar-vos-ei, grandíssimos imperadores, que me perdoeis
se os meus discursos são de acordo com a verdade: não é minha intenção
condenar os ídolos, mas, para fazer desaparecer as calúnias, apresento
explicações de nossas escolhas”52. H á um esforço, enfim, dos cristãos de
dar as razões da própria fe, adequando-se aos destinatários.
Tal aproximação terá sucesso por basear-se na avaliação positiva do
pensamento hum ano, considerado capaz de procurar e de conhecer a
verdade. Partindo da conhecida teoria dos logoi spermatikor’i , Justino
sustenta que viver de acordo com a razão já é viver de acordo com Deus,
embora de m odo parcial, uma vez que a Razão divina apareceu em toda
a sua plenitude em Cristo.

A relação entre filosofia grega e doutrina cristã é a mesma que


existe entre o que é im perfeito e parcial e o que é perfeito e total. Não
há, p o rtan to , ruptura entre pensam ento hum ano e cristão, mas o pri­
meiro se com pleta no segundo. Por isso, quem viveu “de acordo com
a razão” ou “segundo o Verbo” pode ser considerado cristão: “Aqueles
que viveram segundo o Verbo” — afirma Justino — “são cristãos,
ainda que tenham sido considerados ateus, como entre os gregos Sócrates
e H eráclito e todos os que foram semelhantes a eles; entre os bárbaros
Abraão, Ananias, Azarias, Misael, Elias e m uitos o utros... Assim, os
que nasceram antes, vivendo sem o Verbo, foram maus e inimigos de
C risto e responsáveis pela m orte dos que viviam segundo o V erbo”54.

51. Sobre este assunto os Padres Apostólicos oferecem diversos testemunhos. A


respeito, o meu artigo “Spiritualità e preghiera nella testimonianza dei Padri Apostolici”,
in Simposio Cristiano, Milão, Istituto di Studi Teologici Ortodossi S. Gregorio Palamas
1989, pp. 28-29.
52. ATENÁGORAS, Súplica para os cristãos 18,2
53. Cf. JUSTINO, I I Apologia, 8,1.
54. JUSTINO, I Apologia, 46, 3-4.
É interessante observar a interpretação da história que se desenvol­
ve a partir desta tese: o conflito entre cristianismo e paganismo (primeiro
na perseguição de Sócrates e de outros, depois na dos cristãos) não é
novo, mas expressão do eterno conflito entre o Verbo de Deus e os
demônios, autores da idolatria. H á, portanto, continuidade entre os sá­
bios gregos e hebraicos e os cristãos.
As conseqüências ligadas a esta tese são fundamentais para o suces­
sivo processo de inculturação:
a) renegar a idolatria, adotar o cristianismo não significa, para um
grego, renegar a sua tradição;
b) o cristianismo é a manifestação plena de uma revelação precedente.
Portanto, a herança da filosofia, como a do AT, não deve ser rejei­
tada, mas lida no interior de uma revelação progressiva, e como tal
deve ser acolhida;
c) a conversão ao cristianismo não é, portanto, outra coisa que “a
passagem das verdades parciais à verdade total, que é Cristo”55.
Nesse caso, o recurso à “sabedoria grega” é legitimado: esta não é
irreconciliável com o cristianismo, embora este não abdique a sua
consciência de exclusividade56.
Sempre nessa reelaboração do querigma primitivo realizada tanto
por necessidade pessoal como por “filantropia”57, os apologistas desenvol­
veram alguns aspectos do pensamento filosófico-teológico que tiveram
melhor acolhida entre os leitores pagãos. Na apresentação de Cristo, por
exemplo, ampliam “o componente cosmológico, originariamente secun­
dário no dado neotestamentário... (Ele) tende até a ultrapassar a dim en­
são soteriológica fundamental e, por isso, histórica, centrada no fato da
encarnação. O deslocamento do centro de gravidade da mensagem” —
observa M. Simonetti — “é o tributo que a teologia da segunda metade
do século II teve de pagar à exigência de sair do isolamento e de estabe­
lecer o diálogo com o m undo da cultura, ou seja, da filosofia grega”58.
Afirmação da “novidade cristã”. Seria um erro julgar que a busca
de contato entre helenismo e cristianismo tenha significado uma fusão de

55. Cf. J. DANIELOU, Message évangélique et culture hellénistique, Paris, Dcsdée,


1961, pp. 14-15.
56. Cf. H. DÖRRIE, “Das Gebäude spätantiker Bildung mit seinen religiösen Zügen”,
in Die alte Kirche, Munique, Kaiser, 1974, pp. 260-261.
57. Cf. JUSTINO, I Apologia 10,1; 14,3; 57,1.
58. M. SIMONETTI, Cristianismo..., op. cit., p. 42.
ambos, privando este último de sua especificidade e alterando-o. O u
melhor, a Igreja dos primeiros dois séculos, por meio da heresia gnóstica,
conheceu tam bém esse fenômeno de inculturação malsucedida, quando
a identidade cristã foi cancelada e, com ela, os seus caracteres de univer­
salidade e de voluntarismo, que não podiam ser encontrados em grupos
de elite, constituídos a partir de um “conhecim ento secreto” . Prescindin­
do desses desvios, nos primeiros dois séculos os pontos distintivos da fé
cristã mostram-se bem protegidos, “sobretudo a historicização do Logos
enquanto feito carne, a criação do m undo ex nihilo, a ressurreição final
dos corpos, a dependência absoluta da graça divina para a salvação”59.
Não se pode, contudo, ignorar que, para a missão cristã do século
II realizada pelos apologistas, o problema central não foi a assimilação ao
m undo, mas justam ente a necessidade de se diferenciar. Com o observa
H. von Soden, “para a antiga cristandade o perigo não era a estraneidade,
mas o parentesco. Este ameaçava conduzir à neutralização da peculiari­
dade histórica e religiosa do cristianismo”60.
Ainda a esse respeito — por mais que possa parecer estranho —
pode-se afirmar que judaísmo e paganismo, ressaltando sempre o “para­
doxo” e o “escândalo” do anúncio cristão, o salvaram de interpretações
deformantes, m antendo-o dentro da história e de seu núcleo: a fé no
Crucificado ressuscitado.

Consideraçoes conclusivas

À margem das reflexões feitas, é conveniente dizer algumas palavras


sobre certos aspectos relacionados com o processo de inculturação do
cristianismo no m undo helenístico.
O que com portou, na realidade, a sua conotação predom inante­
mente urbana e a assunção do grego com o língua própria? Não há
dúvida de que a edificação da Igreja baseada na polis tornou possível a
assunção da antiga cultura ligada justam ente à cidade. C om o fenômeno
colateral assistiu-se, porém , ao desinteresse mais ou menos amplo pela
evangelização do campo.
Ao assumir as “línguas cultas” da cidade (grego, latim), o cristianis­
m o assumiu tam bém os limites dos que as falavam61. Uma confirmação

59. Id., ibid., p. 23.


60. H. VON SODEN, art. cit., p. 26.
61. Cf. K. HOLL, “Die Missionsmethode der alten and die mittelalterlichen Kirche”,
in Die alte Kirche, Munique, Kaiser, 1974, pp. llss.
disso vem da observação de que não se tem notícia de que um grego
cristão tenha aprendido um dialeto estrangeiro ou tenha traduzido a
Bíblia para facilitar a difusão do cristianismo62. Para converter-se à reli­
gião cristã era necessário saber grego ou latim!
Observamos o efeito negativo da concentração urbana do cristianis­
mo e da conseqüente pouca atenção pelas línguas locais ao examinar o
fenômeno das seitas. Foram estas que reuniram o maior núm ero de
adeptos entre o povo que falava línguas locais. Os grupos da dissidência
cristã realizaram assim um grande esforço de inculturação, usando as
línguas populares, aproximando-se do povo e assumindo seus traços
característicos. Basta recordarmos aqui o montanismo, que falava o frígio
e obteve enorme sucesso ao assimilar as estruturas devocionais da religio­
sidade frigia anterior, de traços ao mesmo tempo entusiásticos e rigoristas63.
Sob a perspectiva da teologia missionária, a Igreja montanista ofe­
rece em seus primórdios o exemplo de uma total “indigenização” do
anúncio cristão no ambiente popular frígio a ponto de a vida de fé, a
liturgia e até a organização eclesiástica serem cunhadas sobre ela64.
O que se disse até aqui, de m odo genérico e fragmentário, pode
talvez ser suficiente para nos fazer intuir a riqueza dos ensinamentos que
a história cristã contém em relação ao processo de “inculturação”, mas
revela também a complexidade dos problemas a ele ligados.

62. Cf. id., “Das Fortlcbcn der Volkssprachen in Kleinasicn in nachchristlicher Zeit”,
in Gesammelte Aufsätze zur Kirchengeschichte — Der Osten II, Tübingen, 1928, p. 245.
63. Cf. K. HOLL, “Das Fortleben...”, art. cit., p. 248.
64. Cf. A. STROBEL, Das heilige Land der Montanisten — Eine religionsgeographische
Untersuchung, Berlim, W. de Gruyter, 1980, pp. 294-295.
OS PADRES E O PROBLEMA DAS LÍNGUAS

Línguas e evangelização

A Bíblia, a diversidade das línguas não significou tanto “a riqueza


intelectual do gênero hum ano” quanto uma conseqüência do peca­
do, que cria divisão e se expressa na incapacidade de entendim ento. A
experiência de Babel (cf. Gn 11) dem onstrou que, quando Deus é dei­
xado de lado, desabam também a ordem e a unidade nas relações hum a­
nas: não nos entendem os mais.
Ao contrário, a experiência de pentecostes, narrada nos Atos (At
2,1-13), significa a abertura universal da Igreja e a superação da divisão:
“os homens serão reconciliados pela linguagem única do Espírito, que é
caridade” 1. Agora partos, medos e elamitas, habitantes da Judéia e da
Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frigia e da Panfília, do Egito e de
Cirene, de Creta, da Arábia e de Roma ouvem anunciar, “cada qual na
sua língua, as grandezas de Deus” (At 2 ,9 -l l ) 2.
Todavia, a realidade da glossolalia que acompanha os primeiros
passos da Igreja primitiva não exclui absolutamente a dificuldade que os
apóstolos e os primeiros missionários cristãos devem ter encontrado ao
se depararem com ambientes de cultura e de língua diferentes. E ela um
milagre destinado a não mais se repetir3. Pedro, por exemplo, para pregar

1. P. DE SURGY, “Língua” (verbete), in Diz. teol. biblica, Turim, Marietti, 1972, p. 612.
2. L. GOPPELT traduz At 2,4 não com “eles começaram a falar cm outras línguas,
mas ‘eles começaram a falar com outras línguas’, ou com uma nova língua, conforme o
tempo salvífico”, “Die apostolische und nachapostolische Zeit”, in Die Kirche in ihrer
Geschichte I/A , Göttingen, Vandenhocck & Ruprecht, 1966, A15.
3. Cf. G. BARDY, La question des langues dans l’Ecflise ancienne, Paris, Beauchesne,
1948, p. 2.
deverá se servir de Marcos com o tradutor4. Não sem razão João Crisós­
tom o vê um “milagre” no fato de que o anúncio do Evangelho se faz
“por meio de onze hom ens iletrados, sem pátria, sem eloqüência, sem
arte retórica... Nem sequer eram versados na mesma língua de seus
ouvintes, mas num a língua pobre e diferente da deles, ou seja, na língua
hebraica”5.

Esta consideração “apologética” identifica um dos problemas mais


sérios que o cristianismo das origens conheceu em seu esforço de expan­
são: precisamente o das línguas.
É um fato que o cristianismo se configura desde o início com o uma
“religião citadina” . Apenas dois testem unhos o apresentam com o um
fenômeno que (desde o início) atinge também o campo: a Carta de
Plínio ao im perador Trajano, por volta de 111, na qual declara que “não
só as cidades, mas até os burgos e os campos estão infectados pelo
contágio dessa superstição (= cristianismo)”6, e a I a C arta de Clemente
aos Coríntios, que faz referência a uma pregação dos apóstolos feita “pelos
campos e pelas cidades”7.
Para além dessas duas referências, o cristianismo constitui um “fe­
nôm eno amplamente urbano” e isso por diversas razões. De um lado se
põe o conservadorismo dos camponeses, os fortes vínculos entre famílias
e grupos com os conseqüentes e mais fáceis controles sobre os indiví­
duos, além de uma religiosidade de fundo naturalista e mágico, mais
ligada à natureza e a seus fenômenos8. De outro lado, o fato de que,
enquanto nas cidades helenizadas se falava o grego da koiné, que se
tornara a língua dos comerciantes9, no campo persistiam as línguas vul­
gares e os dialetos10. O latim — como se sabe — era a língua dos

4. Cf. id., ibid., p. 4. O testemunho provém de Papias de Hierápolis (primeira


metade do século II) e se encontra cm EUSEBIO, História eclesiástica III, 39,15.
5. JOÃO CRISÓSTOMO, Contra os judeus e os pagãos — Que Cristo seja Deus 12:
PG 48, col 830.
6. Carta X, 97.
7. Carta de Clemente aos Coríntios 42,4.
8. Cf. C. ANDRESEN, Die Kirchen..., op. cit., p. 21.
9. Cf. id., ibid., p. 17.
10. Cf. K. HOLL, “Kultursprachen und Volkssprachen in Kleinasien in nachchristlicher
Zeit”, in Gesammelte Aufsätze zur Kirchengeschichte — Der Osten II, Tübingen, 1928, pp.
389-390; G. THEISSEN, Sociologia dei cristianesimo primitivo..., 90-91. A este propósito
G. BARDY observa que somente as grandes cidades estão helenizadas. E, ainda que a gente
simples que nelas habita seja capaz de se expressar em grego, normalmente é mais fiel ao
idioma da terra. Quanto mais se adentra pelo campo, tanto mais as línguas autóctones se
impõem, La question..., op. cit., p. 2.
funcionários rom anos11. Existe, portanto — para usar a expressão de K.
H oll — um a Kultursprache (língua culta) em antagonism o a uma
Volkssprache (língua popular). Para entender a seriedade dessa contra­
posição, é preciso conhecer a difusão das línguas populares ou autócto­
nes. N o Ocidente, predominava, na Galícia e nas Gálias, a língua celta,
que, com base nos testem unhos de Ireneu de Lião, era amplamente
falada12, situação que permaneceu até o século IV13. Com grande proba­
bilidade o cristianismo foi anunciado nas Gálias em língua grega no
trajeto das estradas do comércio que unia as cidades meridionais das
Gálias com a Ásia M enor14. Na Africa, as pessoas simples falavam o
púnico, que, segundo Agostinho15, era amplamente falado na Numídia
até o século IV e primórdios do século V16. Não sendo língua culta, o
púnico e a cultura a ele ligada foram facilmente suplantados pela civili­
zação e pela língua latina, que — m uito mais do que o grego — se
firmou com o língua das classes superiores ou romanizadas17. Por sua vez,
na África setentrional, “as massas autóctones continuavam, tenaz e sig­
nificativamente, suas tradições lingüísticas; ‘púnico’ e ‘berbere’ continu­
avam afinal a desempenhar seu papel, ao lado do latim ”18. Por essa razão
assistir-se-á no século IV a um significativo fenômeno: a religiosidade
“católica”, expressa em latim, será a das classes superiores, dos burocra­
tas, do governo central, ao passo que o donatism o — movimento cristão
de protesto — afirmar-se-á com o fenômeno “provincial” no campo, nas
camadas inferiores das cidades, assumindo a língua das massas. “C onse­

11. Cf. G. BARDY, op. cit., p. 1.


12. Ireneu, com efeito, na introdução ao Contra as heresias, declara: “Não exigirás
de nós, que vivemos entre os celtas c normalmente nos expressamos na língua bárbara, a
arte da palavra...”.
13. Cf. K. HOLL, “Kultursprache...”, cit., p. 390.
14. De fato, observe-se que, na segunda metade do século II, o bispo e mártir de
Lião, Potino, é originário da Ásia. Como ele, também é asiático seu sucessor, Ireneu, que,
ao escrever uma carta às comunidades da Ásia e da Frigia em nome da Igreja de Lião e
Vienne nos dá a conhecer os nomes dos cristãos martirizados no tempo de Marco Aurélio.
Ora, vários deles têm nomes gregos e outros, nomes latinos. É interessante observar que
na lista de Ireneu e na que é fornecida por Gregório de Tours na História dos Francos
(1,31) não há nenhum nome propriamente celta. Cf. G. BARDY, op. cit., pp. 115-121.
15. Cf. Carta LXVI, 2; 84,2; 108,14; Sermão CLXVII, 4 etc.
16. Interessante a observação de AGOSTINHO na Carta LXXXIV, 2: “a pregação
do evangelho em nossas regiões encontra dificuldades pela falta de quem fale a língua
púnica”.
17. Cf. M. MAZZA, Lotte sociali e restaurazione autoritaria nel II I sec. d.C., Bari,
Laterza, 1973, pp. 475-476; C. ANDRESEN, que ressalta que o bilingüismo (latim /
púnico) neutralizava o efeito da pregação, Die Kirchen..., op. cit., p. 20.
18. M. MAZZA, op. cit., p. 476.
qüentem ente, a oposição à Igreja católica constituiu o fulcro da oposição
social a Roma e a seus m étodos de governo.”19
Com grande clareza, G. Bardy assim identifica a situação acima
exposta, esclarecendo também por que uma das cristandades mais prós­
peras, com o foi a da África, desapareceu totalm ente com o advento do
islamismo. “À primeira vista, a ruína do cristianismo na África poderia
parecer um fenômeno inexplicável. Perguntam o-nos com o uma Igreja
tão forte, tão rica em episcopados e em mosteiros pôde desaparecer tão
rapidamente e de m odo tão completo. As causas dessa ruína são certa­
mente numerosas. Entre elas não há talvez uma tão im portante quanto
o caráter rom ano do cristianismo nessa região. Todos os que a Igreja
conquistara eram essencialmente romanos de língua latina: desde o início
seus bispos e seus padres tinham sido latinos; sua liturgia fora latina; sua
Bíblia fora latina e jamais se sonhou em traduzi-la para o púnico, embora
tenha havido — parece — uma literatura púnica. Q uando m uito houve
a preocupação de proporcionar aos autóctones o benefício de uma pre­
gação em púnico, mas os bispos e padres capazes de falar essa língua
foram sempre m uito poucos para fazer conquistas de grande alcance...
talvez não passando de simples partido de oposição nacionalista ao im ­
pério. Assim, não é de admirar que, a partir das grandes invasões árabes,
a Igreja da África não tarde a ser liquidada: culpada por não ter plantado
raízes suficientemente profundas nas populações autóctones, ela acaba
por definhar e m orrer.”20 Em relação à Espanha, parece que nem sequer
se fez a tentativa de utilizar com fins cristãos as chamadas línguas “ibé­
ricas”21. Pelo contrário, “em nenhum a província na época imperial a
romanização foi favorecida de cima para baixo com maior força do que
na Espanha... Não se tem quase exemplos na Espanha de m onum entos
da época imperial com escrita autóctone”22.
No Oriente, onde o helenismo se afirmara antes e de m odo mais
profundo, a relação entre línguas cultas e línguas populares era funda­
m entalm ente a mesma.
N o Egito, a língua comum era o copta. Nessa região “de estatuto
especial”, o grego e a cultura greco-romana não se firmaram. De fato,

19. Id., ibid., p. 477.


20. G. BARDY, 72. Tambcm para K. HOLL o feto de as línguas cultas (greg o /
latim) terem penetrado apenas superficialmente na África encontra confirmação na surpre­
endente rapidez com que desapareceram na época da invasão do islamismo. “Kulturs-
prachc...”, p. 390.
21. C. ANDRESEN, op. cit., p. 20.
22. Assim MOMMSEN, citado por A. HARNACK, Missione..., op. cit., p. 538.
também lá, tanto para o camponês do Nilo com o para o egípcio das
classes cultas, “a cultura helenístico-romana... escondia na realidade o
rosto rapace e ameaçador da exploração econômica, da opressão política
e social, do exclusivismo cultural”23. N o século III, assiste-se, por isso, a
um renascimento da cultura autóctone egípcia que encontrou aliados em
“religiões de salvação como o cristianismo e o maniqueísmo, que, por
sua própria natureza, se punham fora da paidéia clássica”24 e contestavam
a religiosidade da classe opressora. “O produto desse encontro (entre
cultura egípcia autóctone e cristianismo) foram a literatura e a arte copta,
no plano cultural; o m onaquismo e a formação de uma potente organi­
zação eclesiástica, com suas especiais características, no plano religioso;
cisma, todavia, e secessão, no plano político.”25 Somente para nos limitar
a considerar o problema religioso, é preciso notar que o egípcio, ao
acolher a nova fé, “combatia por sua vitória, que significava, ao contrário,
a derrota da cultura hegemônica. O seu problema era o de criar uma
nova, como alternativa, na qual pudesse exprimir mais adequadamente a
própria fé e as próprias convicções religiosas. Foi assim que a Igreja cristã
se tornou no Egito o vetor mais poderoso dessas aspirações”26. Nasceu
assim o copta literário adotado com o meio de comunicação para evange­
lizar as massas que ignoravam o grego. Com efeito, já no final do século
I I — sobretudo no campo e com fins missionários — , deu-se início à
tradução da Escritura na língua copta. Em 300, toda a Escritura já estava
traduzida. Aparecem nesses anos as Vidas dos Santos de Pacomio que,
escritas em copta para as massas não atingidas pela cultura greco-romana,
utilizam o patrim ônio cultural do passado antigo27. Nesses escritos, “so­
brevivem, entre os antigos mitos, sobretudo aqueles que tratam da vida
no além ... Sobrevivem os antigos terrores e os antigos medos, incorpo­
rados em narrativas que têm uma veste cristã... As lutas com os espíritos
malignos, por exemplo, têm muitas vezes sua motivação na superstição
popular dos camponeses”28. O fenômeno que melhor expressa a rejeição
da cultura greco-romana é o monaquismo, que — em antagonismo a ela
— se impõe com o centro da cultura nacional egípcia. Deve-se observar
que os monges provinham em geral das classes inferiores e, portanto,
menos helenizadas29. Com o eles, também os heréticos e os cismáticos

23. M. MAZZA, Lotte sociali..., op. cit., p. 483.


24. Id., ibid., p. 485.
25. Id., ibid., p. 483.
26. Id., ibid., pp. 485-486.
27. Cf. id., ibid., p. 489.
28. Id., ibid., p. 488.
29. Antão, por exemplo, que é o pai do monaquismo egípcio, fala exclusivamente
copta e precisa de intérpretes para falar ou escrever em grego. De modo semelhante,
que o Egito conhecerá (maniqueus, melecianos...) exprimir-se-ão predo­
m inantem ente em copta30. Não está, portanto, deslocada a definição do
copta com o “língua da dissensão” . Mas, neste caso, “uma coisa é certa:
essa oposição à cultura e à organização estatal do império passava subs­
tancialmente pela perspectiva de classe”31.
O lugar onde a língua e a cultura gregas encontraram maior difusão
foi na Asia Menor. Segundo I. M arrou, “do fim do século I d.C. e
durante todo o século II, a Ásia é o lugar de eleição da cultura gre­
ga”32. Todavia, essa mesma terra apresenta — em relação às línguas — a
máxima variedade33. A experiência de Paulo, que, ao chegar a Listra, ouviu
o povo falar em licaônio (cf. At 14,11), não deve ter sido uma novidade
para o apóstolo. Com efeito, a população autóctone e da região — Lídia,
Cária, Lícia, Isauria, Licaónia, Capadócia — falava dialetos bem variados
que se apresentavam com o algo particular em relação ao grego. A persis­
tência desses dialetos é atestada até os séculos V e VI. Nessa época, eles
não tinham mais a divulgação primitiva, todavia — como sustenta K. Holl
— “em certos territórios eram ainda línguas vivas do povo”34.
Por sua vez, o dialeto celta falado pelas populações da Galácia
sobreviveu até o final do século IV35. Em certos lugares da Capadócia
firmara-se igualm ente o armênio. Também o maguseu, língua de origem
persa, era falado nessa região. De m odo semelhante, o gótico tinha sido
introduzido na Frigia no século IV pelos godos da Criméia36.
Para as regiões da Frigia e da Bitínia confirma-se também uma
língua local, que, em bora parecida com o grego, não era imediatamente
compreensível. Este, com o língua do povo, estende-se até o século V
d.C .37. Dela se valeu o m ontanismo em seu processo de expansão nas
zonas rurais da Frigia.
Tendo presente esse quadro lingüístico, K. Holl chega à conclusão
de que, “mesmo sem contar os dialetos, não são menos de seis as línguas

Pacômio, o grande legislador do monaquismo, escreve as suas regras em copta e sempre


se expressa nessa língua. O mesmo vale para Shenouti, abade ilustre que, mesmo sabendo
o grego, jamais o usa. Cf. G. BARDY, op. cit., pp. 45-47.
30. Cf. M. MAZZA, Lotte sociali..., op. cit., pp.490-492.
31. Id., ibid., p. 493.
32. I. MARROU, Storia dell’educazione neWantichità, trad. do francês, Roma,
Studium, 1971, p. 290.
33. Cf. K. HOLL, “Kultursprache...”, cit., pp. 391-392.
34. Id., “Das Fortleben...”, cit., p. 4.
35. Cf. id., “Kultursprache...”, cit., p. 391.
36. Cf. id., “Das Fortleben...”, cit., p. 244.
37. Cf. id., ibid., pp. 343-344.
com as quais o grego teve de se confrontar para ter o predomínio na Ásia
M enor”38.
Passando da área da Ásia M enor para a sírio-palestina, observa-se
também a persistência do aramaico no campo e nas camadas inferiores39.
O grego, que se firma com o língua de cultura, língua de administração
e, por isso, das classes superiores urbanas, não consegue se impor, não
extrapola os muros das cidades40. Por sua vez, “o camponês sírio, o
proletariado antioqueno ou edesseno fala a sua língua nativa, adota seus
esquemas de cultura autóctone justam ente na medida em que é excluído
da língua e da cultura helenístico-romana das classes superiores”41. O
siríaco, pois — em antagonismo ao grego e ao latim — torna-se “um
centro ideal, um núcleo ideológico” para os povos aramaicos e “um
embrião de unidade nacional”42. Por um processo semelhante ao obser­
vado para o copta, também o siríaco encontrará uma sistematização lin­
güística e a uma utilização mais ampla graças ao cristianismo que o
assumirá na comunicação com as massas camponesas, que ignoravam o
grego43. Todavia, entre os cristãos que falam o grego e os que usam o
siríaco, o hiato é enorme: é, no fundo, o abismo entre a sociedade greco-
cristã, impregnada pelos princípios da filosofia grega e integrada nessa
cultura considerada “não-evangélica”, e a sociedade rural, simples, não
comprometida com o m undo. Se olharmos bem, portanto, não se trata
de uma separação de línguas, mas de “classes” sociais44. Isto se observa
claramente num a homilia de João Crisóstomo feita em Antioquia, na
qual o bispo convida os cristãos dessa cidade a não desprezar os cristãos
dos campos à volta. “Eles são nossos irmãos” — declara Crisóstomo —
“e membros do corpo da Igreja... Não vamos nos prender ao m odo de
falar que usam em relação ao nosso: vamos cuidar, antes, de procurar a
sabedoria de suas almas. Não vamos nos prender à língua bárbara que
usam ... Eles procuram pôr em prática estes preceitos, eles falam uma
língua mais eloqüente que os discursos... Não vamos reparar somente no
seu m odo exterior de vestir e na língua que falam, desprezando muito
rápido a virtude deles.”45

38. Id., ibid., pp. 391-392.


39. Cf. id., “Kultursprachc...”, cit., p. 391.
40. Cf. M. MAZZA, Lotte soeia l i . op. cit., pp. 493-494.
41. Id., ibid., p. 497.
42. Id., ibid., pp. 494-495.
43. Cf. id., ibid., p. 496.
44. Cf. id., ibid., p. 500.
45. JOÃO CRISÓSTOMO, Catequese batismal VIU, 2-4.
Nessas palavras, Crisóstomo deixa transparecer os sentimentos dos
cristãos antioquenos de língua grega: sentimentos de superioridade e de
desprezo em relação à massa camponesa malvestida, grosseira e incapaz
de falar uma língua “civilizada” .
Mas quais terão sido os sentimentos destes pelos cristãos de Antioquia
que os olhavam com altivez e indiferença? Não é difícil imaginar.
Ao fazer um balanço do problema lingüístico na Igreja dos primei­
ros séculos, chegamos a resultados bem distintos, todos vinculados aos
ambientes nos quais o cristianismo penetrou.
Um a observação prévia nos remete ao caráter “citadino” da nova
religião, que produziu assim um cristianismo helenizado, que sempre se
expressou nas línguas cultas (grego e latim)46 e assumiu a sua riqueza. Se
considerarmos bem, o vínculo do cristianismo ao grego e depois ao latim
protegeu a Igreja da fragmentação e do em pobrecim ento47. Com efeito,
“a passagem do anúncio cristão de um âm bito lingüístico para outro
significa m uito mais do que uma mudança formal. Carrega consigo uma
mudança decisiva do conteúdo do anúncio, a ponto de, por isso, a
unidade da Igreja no m undo ser posta em questão”48. Q uanto isso é
verdade o atestam as incompreensões lingüístico-doutrinais surgidas en­
tre a cristandade oriental e a ocidental49, mas também “as divergências
doutrinais nascidas a seguir entre a Igreja greco-bizantina e as Igrejas
orientais, (as quais) não são senão o desdobram ento natural das diferen­
ças significadas desde o início pela diversidade das línguas”50.

46. Sobre o fato de a Igreja ter utilizado o grego em assuntos de ordem adminis­
trativa e nas expressões literárias, litúrgicas e artísticas, cf. K. HOLL, “Das Fortleben...”,
cit., pp. 245-246.
47. Cf. K. FIOLL, “Kultursprache...”, cit., pp. 394-395. Voltaremos em seguida a
falar da importância que línguas “evoluídas” como o grego e o latim tiveram na criação do
patrimônio lingüístico e conceituai do cristianismo.
48. W. SCHNEEMELCHER, “Das Problem der Sprache in der alten Kirche”, in
Gesammelte Aufsätze zum Neuen Testament u n i zur Patristik “Analecta Vladaton” 5,
Thessaloniki, 1974, 7.
49. A este propósito G. BARDY se pergunta se a oposição entre Oriente e Ocidente
não se deve, ao menos em parte, à crescente ignorância do grego no Ocidente c do latim
no Oriente. “Aucun facteur d’unité n ’est plus puissant que la langue: on cesse de s’entendre
lorsqu’on ne parle plus la même langue. Bien des malentendus entre les deux parties de
l’Eglise chrétienne auraient peut-être été évités si l’unité linguistique avait pu être maintenue”,
La question..., op. cit., p. 79. Analogamente, W. SCHNEEMELCHER observa que a
separação entre Igrejas ocidentais e orientais se torna compreensível se se considera também
a diversidade lingüística, ou as diferenças do pensamento e do mundo das representações.
A separação começa cm 342, quando as duas partes do império começam a se separar
também sob o ponto de vista lingüístico. Cf. “Das Problem...”, cit., p. 69.
50. A. HARNACK, Missione..., op. cit., p. 568.
As vantagens inerentes à assunção das línguas “cultas” com o vetor
privilegiado de comunicação do pensamento cristão são contrabalançadas
por desvantagens que convém recordar. E ainda K. Holl que, com seus
diferentes estudos, nos lembra algumas delas. Em primeiro lugar, a exi­
gência de conhecer o grego ou o latim para alguém ser cristão. Mas,
então, quantos milhares de hom ens ficaram afastados dessa possibilida­
de?51 Não m enor peso teve o fato de que, ao assumir as “línguas cultas”,
o cristianismo assumiu os limites dos que as falavam, particularmente o
orgulho típico dos gregos e dos romanos. Para confirmar esse fato, basta
observar que não se tem notícia de que um grego cristão tenha apren­
dido um dialeto estrangeiro ou tenha traduzido a Bíblia com a finalidade
de difundir o cristianismo52. M esmo a seguir, quando os bárbaros entra­
ram na Igreja, ficarão sempre em posição subordinada: cristãos de segun­
da categoria53.
Observamos outro efeito negativo da pouca atenção do cristianismo
às línguas quando examinamos o fenômeno das seitas. Estas, de fato,
reuniram o maior núm ero de adeptos entre o povo que falava línguas
locais. Parece que foram os grupos da dissidência cristã que realizaram
um esforço maior de inculturação, usando as línguas populares e apro-
ximando-se do povo, assumindo seus traços característicos (por exemplo,
o montanismo e o caráter entusiasta e rigorista, típico do ambiente frígio)54.
A contraprova dessa constatação é fornecida por K. Holl quando —
considerando o ambiente da Ásia M enor — observa que a terra na qual
as seitas persistem é exatamente onde as línguas populares ainda estavam
vivas. O estudioso estende essa observação à permanência do paganismo
e conclui que tanto as seitas com o o paganismo encontraram apoio nas
línguas populares55.
É preciso considerar, enfim, um outro elemento. O cristianismo dos
que o haviam aceito sem um grande conhecim ento de suas línguas orien­
ta-se preferencialmente para os símbolos da religião. Q uando a língua
não é instrum ento de comunicação, nasce a necessidade de comunicar
mediante símbolos e fórmulas. Mas é bem claro — como observa K.
Holl — que, num cristianismo desse tipo, muitos elementos do paganis­
m o poderiam continuar a existir. Essa vinculação é comprovada pela
própria constatação de que as mais grosseiras expressões de superstição

51. Cf. K. HOLL, “Kultursprache...”, cit., pp.394-395.


52. Cf. id., “Das Fortleben...”, cit., p. 245. Aqui K. HOLL observa que as tradu­
ções da Bíblia feitas nos primeiros séculos remontam a cristãos autóctones.
53. Cf. id., “Kultursprache...”, cit. p. 395.
54. Cf. id., “Das Fortleben...”, cit., p. 248.
55. Cf. id., ibid., pp. 247-248.
dentro da Igreja encontram -se justamente nas regiões nas quais a intro­
dução da “língua culta” encontrou os maiores obstáculos56.
A esta altura, que dizer das línguas nacionais? Para definir bem o
assunto, deve-se distinguir entre Oriente e Ocidente.
N o O riente, o grego só raramente se tornou a língua do povo. Era
a língua dos que detinham o poder, fosse ele político ou religioso. Não
se deu uma helenização dos povos que tinham língua diferente da grega,
mas, ao contrário, foi precisamente a Igreja a defensora dos idiomas
copta, siríaco, arm ênio...57.
P ortanto, ao lado de um cristianismo que falava o grego e estava
ligado ao im pério bizantino, afirma-se um cristianismo das minorias
étnicas e lingüísticas. Não é de admirar que, após a decadência do
prim eiro, estas tenham adquirido mais poder. Todavia, essa mesma frag­
mentação, ou a afirmação dos nacionalismos, terá efeitos negativos: ates-
ta-o o confronto doutrinal entre a Igreja oriental e a Igreja greco-
bizantina, bem com o o nascimento das escolas teológicas nacionais58.
Mas isso não é tudo. De fato, “se com a ajuda da Igreja esses povos
(orientais) tivessem podido se helenizar, teria sido diferente o curso da
história e provavelmente o islamismo não teria ultrapassado os limites da
Arábia”59.

O nascimento da língua cristã

Q uando o autor do Discurso a Diojjneto define que os “cristãos não


se distinguem dos outros hom ens nem pelo território, nem pela língua
que falam... não usam um a linguagem particular”60, exprime uma ver­
dade, destinada a se transform ar exatamente a partir das próprias pre­
missas de seu Discurso, onde a relação cristã é apresentada com o um
m ovim ento com um “novo estilo de vida”61. Exorta, por isso, a se
tornar “em seu íntim o mais profundo homem novo, para se tornar dis­
cípulo da nova doutrina"62. E, de fato, a formação de uma língua p ró ­
pria está implícita na afirmação da novidade cristã, ou na própria neces­

56. Cf. id., “Kultursprache...”, cit. p. 395.


57. Cf. A. HARNACK, op. cit., p. 5.
58. Cf. id., ibid., pp. 568-569.
59. Id., ibid., p. 567.
60. Discurso a Diogneto 5.
61. Ibid., 1.
62. Ibid., 2.
sidade do grupo cristão de tom ar consciência de sua identidade, de se
diferenciar, de reapropriar-se da tradição judaica anterior dando-lhe uma
interpretação diferente, bem com o nos fenômenos de assunção, trans­
formação e síntese da bagagem cultural e religiosa do m undo antigo63.
Com efeito, a criação de uma term inologia que expressasse a novidade
cristã constituiu uma das primeiras tarefas da com unidade primitiva. Isso
aconteceu com base no grego da koiné, língua corrente no O riente, mas
tam bém no Ocidente, onde era falada por um numerosíssimo proleta­
riado oriental, junto ao qual a nova religião reuniu muitos de seus
adeptos64. Serão estes, mais que os primeiros missionários ou os tradu­
tores da Bíblia — se pensarmos no latim cristão — os verdadeiros cria­
dores da língua especial que, portanto, terá um caráter popular e será
rica em elementos lingüísticos estrangeiros, por causa do caráter inter­
nacional das primeiras comunidades65. E preciso, todavia, observar que
a koiné da cristandade primitiva sofreu a influência da Septuaginta e dos
judeu-helenistas.
A esse propósito o cristianismo de língua grega, para se expressar,
recorreu não apenas ao uso de neologismos, com o, aliás, já fizera o
judaísm o da diáspora, mas tam bém a toda a bagagem cultural do
helenismo, assumindo dele tanto uma term inologia considerada “neu­
tra” (basta pensar em vocábulos com o ecclesía, ctné, katholikós, sacculum
etc.) com o a da linguagem filosófico-ética (áiresis, apátheia, askésis,
enkráteia etc.) ou religioso-mistérica (eusebéia, theoscbéia, consecratio,
orare, sanctus etc.), carregando-a totalm ente ou em parte de novas sig­
nificações66. A propósito dos term os técnicos da religião pagã, pode-se
constatar, todavia, uma firme exclusão67, uma vez que — com o observa
C. M ohrm ann — os term os religiosos, com o todos os termos técnicos,
dificilmente perdem seu significado. O medo do sincretismo levou, por

63. A propósito do nascimento das iinguas cristãs, são fundamentais os trabalhos de


JOS. SCHRIJNEN, e os seguintes de C. MOHRMANN, aos quais me refiro aqui. Con-
crctamcntc, cf. “Altchristlichcs Latein — Entstehung und Entwicklung der Theorie der
altchristlichen Sondersprache”, in Études sur le latin des chrétiens, I, Roma, Storia e
Lettcratura, 1961, pp. 3-19.
64. Cf. C. MOHRMANN, “Le latin langue de la chrétienté occidentale”, in Études
sur..., I, op. cit., pp. 52-53.
63. Cf. id., ibid., pp. 65-66.
66. Cf. B. J. M. BARTELINK, “Umdeutung heidnischer Termini im christlichen
Sprachgebrauch”, in Die alte Kirche, cit., pp. 397-418.
67. São exceções alguns termos assumidos em sentido exclusivamente antitético, a
partir de Clemente de Alexandria. Cf. C. MOHRMANN, “Le problème du vocabulaire
chrétien — Expériences d’evangelisation paléo-chrétiennes et modernes”, in Études sur...,
I, op. cit., p. 114.
isso, à renúncia de uma bagagem terminológica já constituída68. Haverá,
ao inves, uma tal utilização com o declínio do paganismo e com a vitória
da nova religião69.

T udo o que destacamos de m odo bastante sumário abre ao menos


uma fresta sobre toda essa problemática, da qual os Padres são a primeira
fonte. C om o ressalta, num a visão de conjunto, C. M ohrm ann, “os
primórdios do idioma dos cristãos foram realmente revolucionários: re­
novação do vocabulario, tanto do técnico com o do geral, introdução de
um grande núm ero de termos tomados de empréstimo, mudanças de
significado, introdução de polissemia, tendências vulgares, diferenciação
sintática, enfim, todos os âmbitos da língua foram submetidos a m odi­
ficações e a renovações. Essa revolução lingüística, que se realizou quan­
to aos elementos essenciais no decurso de algumas gerações, é o teste
mais eloqüente da revolução espiritual produzida pelo cristianismo no
m undo antigo. N enhum a seita, nenhum a religião oriental jamais realizou
uma diferenciação tão profunda”70.

68. Cf. C. MOHRMANN, “Le problème...”, art. cit., pp. 114, 120.
69. Cf. id., ibid., p. 121.
70. C. MOHRMANN, “Le latin...”, art. cit., p. 65.
OS PADRES E A PRIMEIRA MISSÃO CRISTA

A R A o cristianismo a “missão” não é um compromisso induzido de


P fora nem um “serviço” ao lado de tantos outros. Ela é uma neces­
sidade de quem não pode se calar, pois ouviu, viu, tocou (cf. l j o 1,1-
3): “ ...o que ouvimos, o que vimos... e nossas mãos apalparam... nós
tam bém vos anunciam os...” . A missão cristã pressupõe, por isso, uma
experiência tão forte e alegre que deve ser anunciada. E sob essa luz que
se com preende com o a história dos prim órdios do cristianismo é história
da missão. A Igreja primitiva, enfim, é missionária não porque deva sê-
-lo, mas simplesmente porque vive. Aliás, quanto mais vive, mais é
missionária. O fato de “ser missionária”, portanto, não é uma das “n o ­
tas” características que a acompanham, mas é, antes, constitutiva de sua
essência de continuar a espalhar o anúncio do Reino. A Igreja, enfim,
baseia-se na missão e deve ser com preendida a partir dessa missão. E
interessante observar que a com unidade cristã dos primeiros séculos não
dispõe de organizações, de meios de ajuda, de institutos e de escolas de
missiologia. Ela ignora projetos missionários, não conhece uma “prega­
ção missionária” voltada para os pagãos e nem aparece em público —
depois que o Estado passou a com batê-la1. O mais im portante fator de
cristianização é o contato pessoal. C ertam ente não faltaram, ao menos
no início, missionários de profissão, mas ao longo do tem po tornar-se-
-ão cada vez mais raros e, mais, “não se deve entender absolutamente
que a difusão do cristianismo no m undo antigo seja obra deles. O
Evangelho era mais transm itido de hom em a hom em , de comunidade
em com unidade, graças às relações interpessoais: mediante a família, a
casa, a amizade, os negócios. M ediante — e não obstante — a partici­

1. Cf. K. HOLL, Die Missionsmethode der alten und die mittelalterlichen Kirch
Munique, Kaiser, 1974, pp. 5-7.
pação de não-batizados na parte da liturgia que lhes era acessível, em
vista da impressão suscitada pelos mártires, da maravilha das curas mila­
grosas, do exemplo do com portam ento cristão...”2. A Igreja, enfim,
cumpre a missão com uma vida que sempre consegue ser mais eloqüente
do que as palavras. Antes, predispõe ao acolhimento delas: enche-as de
conteúdo, carrega-as de autoridade.

O judaísm o da era cristã:


pressupostos para a ação missionária da Igreja

“Saulo passou alguns dias com os discípulos de Damasco. E logo


se pôs a pregar nas sinagogas que Jesus é o Filho de D eus” (cf. At 9,10-
20). Essa afirmação vale com o princípio universal de com portam ento do
cristianismo primitivo, que, tendo surgido como m ovimento de renova­
ção dentro do judaísmo, terá com o alvo em primeiro lugar as com uni­
dades judaicas da diáspora3. A densa rede de sinagogas espalhadas por
todo o império será, portanto, o centro originário da propaganda cristã4.
Acerca da difusão do judaísmo no tem po do império, as zonas de maior
densidade, além da Palestina, foram o Egito, a Síria, a Ásia M enor e a
Babilônia. Por seu padrão de vida, os judeus se impunham por toda a
parte. E o fato de gozarem de privilégios especiais, de terem tribunais
próprios, governadores e conselho próprio (sinédrio), bem com o, conse­
qüentem ente, de não se integrarem plenamente nas cidades em que
habitavam explica as explosões de anti-semitismo, que foram bastante
freqüentes. Todavia, à parte esses episódios, a religião judaica, que, em
contato com o helenismo, traduzira o anúncio bíblico em categorias
gregas, atraiu a atenção de diversas pessoas, sensíveis a formas religiosas
elevadas. Ela se im punha pelo rigoroso m onoteísmo apoiado também
pela difusa imagem do m undo dada pelo estoicismo e ensinado por
grandes filósofos. Para chegar ao conhecimento do verdadeiro Deus, o
judaísmo helenístico, em bora reconhecendo o cosmo com o sua revela­
ção, fazia apelo à história de Israel. Deus, que criou o hom em , desde
sempre o guiou e guia, antes na pessoa dos Pais e depois por meio da
Torá (Lei), entendida com o manifestação da vontade de Deus. A missão
do judaísmo helenístico é anunciar essa Lei.

2. H. VON SODEN, “Die christliche Mission in Altertum und Gegenwart”, in Die


alte Kirche, Munique, Kaiser, 1974, p. 27.
3. Para a pregação, que inicialmente ocorria sempre nas sinagogas, cf. At 13,5.14-
15; 14,1-2; 17,1-2; 18,4.19.26; 19,8-9.
4. Cf. L. GOPPELT, Die apostolische und nachapostolische Zeit, op. cit., A 55.
N o início da era cristã, o judaísmo da diáspora experimentou um
forte impulso missionário. O judeu sabia que possuía uma mensagem
para toda a humanidade: dessa consciência nascia o dever da missão5.
A rigor, porém , as comunidades judaicas da diáspora não enviavam
missionários. Essa tarefa era antes confiada à iniciativa privada, análoga
à dos fariseus em busca de prosélitos (cf. M t 23,15). O trabalho “nor­
mal” de propaganda era o contato pessoal6. O centro da atividade mis­
sionária foram as sinagogas, abertas a todos. A utilidade do culto na
sinagoga para a propaganda religiosa do judaísmo é de algum m odo
confirmada pelo historiador Flávio Josefo, que — a propósito da com u­
nidade judaica de Antioquia — escreve: “Os judeus atraíam uma grande
quantidade de gregos para seus serviços divinos e acabavam de certo
m odo por considerá-los com o seus” (De bello judaico VII 3,3). Ao lado
das celebrações litúrgicas, tam bém a literatura judaica representou uma
ocasião de aproximação à religião de Israel. Todos os que por ela eram
conquistados distinguiam-se em duas categorias: prosélitos e tem entes a
Deus. Os primeiros se integravam totalm ente à com unidade judaica
mediante a circuncisão, um banho ritual (“ batismo dos prosélitos” ), a
apresentação de uma oferta no tem plo e a observância integral da Torá.
Ao mesmo tem po caíam todos os vínculos dos prosélitos tanto em
relação à família com o em relação ao próprio povo. Ao lado dessa ca­
tegoria existia a outra, bem mais num erosa, dos “tem entes a D eus” , que
se caracterizavam com o “simpatizantes” . Estes, em bora aderissem ao
judaísmo, não tinham aceito todas as conseqüências mais pesadas dele:
circuncisão, observância integral da Lei e desenraizamento de suas famí­
lias e de seu povo. Observavam alguns m andam entos, certos ritos, eram
fiéis ao sábado, mas julgava-se que ocupassem um nível subordinado
diante de Deus7. N o entanto, foram os que se mostraram mais bem
preparados para acolher o cristianismo. Eles, de fato — com o no caso
de Lídia (cf. At 16,14ss), do centurião de Cafarnaum (Lc 7,5) ou do de
Cesaréia (At 10,lss) — “já se tinham desvinculado de suas tradições e
religiões pátrias. Encontravam -se na linha divisória entre diferentes
âmbitos culturais e estavam, portanto, particularm ente abertos à fé cris­
tã, que superava os limites étnicos e religiosos e conferia uma identidade

5. Cf. A. HARNACK Missione e propagazione del cristianesimo nei primi tre secoli,
op. eit., pp. 7-8.
6. Cf. H. HEGERMANN, “Das hellenistische Judentum”, in J. LEIPOODT e W.
GRUNDMANN (orgs.), Umwelt des Urchristentum I, Berlim, Evangelische Verlagsanstalt,
1966, pp. 311-312.
7. Cf. A. HARNACK, op. eit., p. 9.
independentem ente das tradições recebidas: algo que o judaísmo não
podia fazer uma vez que negava plenos direitos aos ‘tem entes a D eus’.
O cristianismo, ao contrario,... oferecia a adesão ao m onoteísm o, uma
ética superior e plenos direitos religiosos, e isso sem circuncisão, sem
m andam entos rituais, sem limitações que pudessem ter efeitos negativos
sobre o status social deles. Isso torna mais compreensível o conflito
entre judaísmo e crisdanismo: a missão cristã conquistava justam ente
aqueles que sustentavam o judaísm o”8. Por causa da abertura universal
que possuía diferentem ente do judaísmo — o cristianismo conseguira
agregai' os pagaos, separando o elem ento religioso do elem ento nacio­
nal9. Além disso, impressionava a massa dos “tem entes a D eus” e os
integrava plenam ente à com unidade assim que recebiam o batismo. E é
indiscutível que o proselitismo judeu, assim com o abriu caminho para a
missão cristã, tam bém teve de sucum bir diante dela, em bora de m odo
não definitivo.

A missão cristã no m undo helenista

Os Atos transmitiram duas formas diferentes do processo de difusão


do cristianismo primitivo: por meio da missão, surgiram centros de con­
centração (Palestina, Ásia M enor) ou, acompanhando os pontos mais
im portantes do tráfego nas estradas de então (Antioquia, Éfeso, Tessalô-
nica, C orinto, Roma), formaram-se nas grandes cidades centros de irra­
diação do cristianismo10.

Para preparar a gradual e maciça difusão da nova religião concor­


reram elementos de diversas origens. Em primeiro lugar o processo de
helenização iniciado por Alexandre M agno e continuado pelos selêucidas.
Estes, herdeiros de um império que reunia povos de diferentes raças,
religiões, línguas, estruturas sociais e políticas, consideraram que a única
forma de unificação possível era a oferecida pelo helenismo, vale dizer,
pela prom oção da mesma língua e cultura grega e pela progressiva afir­
mação de estruturas da polis grega, embora com o respeito das autono­
mias locais. Unidades e estabilidades políticas garantidas a seguir por
Roma com portaram uma ampliação do sistema viário, a eliminação de
alfândegas internas, um conseqüente progresso comercial e um bem-estar
econômico extraordinário.

8. G. THEISSEN, Sociologia dei cristianesimo primitivo, op. cit., pp. 235-236.


9. Cf. G. BARDY, La conversione al cristianesimo nei primi secoli, op. cit., p. 116.
10. Cf. C. ANDRESEN, Die Kirchen der alten Christenheit, op. cit., p. 17.
A prosperidade econômica caminhava simultaneamente com a cir­
culação das idéias, das convicções religiosas, dando assim origem a fe­
nôm enos de cosmopolitismo político e de sincretismo religioso. P ortan­
to, quando o cristianismo se apresentar ao m undo poderá apoiar-se
num a conjuntura econômica própria, num a unidade política criada por
Roma e num pluralismo de pensam ento expresso tam bém no âm bito
religioso.
Os elementos aqui lembrados permitem algumas considerações: a
“missão” cristã se desenvolve em geral dentro do Império e num terreno
culturalmente já cultivado. Ela não é “portadora de cultura”, mas se
exprime e se vale da cultura helenística preexistente. E, por isso, uma
“missão interna” , uma vez que evangelizadores e evangelizados possuem
a mesma história, a mesma língua, a mesma terra11.
Os Atos atestam que a “missão”, além de ter sido confiada aos
discípulos de Jesus, também o foi aos missionários itinerantes, encarre­
gados pelo Espírito ou pela comunidade. Na Palestina, receberam o
nom e de “apóstolos” e na área paulina, um pouco mais tarde, o de
evangelistas12. Os títulos de “apóstolos”, bem com o o de “profetas” e de
“doutores”, característicos dos primeiros missionários cristãos, têm pre­
cedentes no judaísmo13. Trata-se de missionários carismáticos itinerantes
que, sem estar vinculados a determinada com unidade e sem ocupar fun­
ções de direção, andavam de Igreja em Igreja, tornando-se assim instru­
m entos de unidade entre os crentes em Cristo14. Estes punham em prá­
tica os modos de vida do Senhor (trópoi tou kyriou: Did 11,8). Com
efeito, foi justamente “a existência itinerante de Jesus e seu apelo ao

11. Cf. H. VON SODEN, “Die christlichc Mission...”, art. cit., pp. 22-23.
12. Nos textos neotestamentários, as designações “missão”, “missionário” estão to­
talmente ausentes, mas sem dúvida deveriam traduzir missão com apostolé, missionário com
“apóstolos” ou euanghelistes, e o adjetivo missionário com apostolikós. No NT ressalta-se a
tendência em delimitar o conceito de “apóstolos” aos doze (cf. 2Pd 3,2; Jd 17; Ap 21,14).
Depois de 200 essa designação referir-se-á somente aos “doze” ou a Paulo, e quando se
falar de “sucessores dos apóstolos”, “sucessão apostólica” não se pensará em missionários
que continuarão a obra deles, mas nos herdeiros da autoridade dos “doze” . De modo
semelhante, quando se falar em “Igreja apostólica” não se entenderá mais “Igreja missionária”,
mas Igreja construída sobre o fundamento dos apóstolos. Nos primeiros séculos, portanto,
o termo “apóstolo” perdeu sua característica original de “missionário”. Cf. E. MOLLAND,
“Bcsass die alte Kirche ein Missionsprogramm und bewusstc Missionsmethoden?”, in Die
alte Kirche, Munique, Kaiser, 1974, pp. 56-57.
13. Cf. A. HARNACK, Missione..., op. cit., pp. 247-250.
14. Cf. id., ibid., pp. 257-258, cm que se ressalta que o gênero das “cartas apos­
tólicas” do NT se entende bem como obra desses profetas itinerantes que se sentem
escolhidos a serviço de toda a Igreja.
seguim ento que puseram as bases da forma de vida dos carismáticos
itinerantes do cristianismo primitivo”15. Uma característica desses missio­
nários, que devem ter constituído um fenômeno bastante comum no
cristianismo primitivo, era a radicaJidade expressa na ruptura dos vínculos
familiares, na obrigação da vida apátrida e na pobreza16. Sua obra mis­
sionária teve com o alvo sobretudo a região rural sírio-palestina, mas o
movimento cristão, devido ao trabalho dos missionários judeu-helenistas
(cf. At 11,20), logo ultrapassou as fronteiras da Galiléia, da Judéia e da
Samaria, passando das zonas atrasadas da Palestina para o próspero m undo
citadino do M editerrâneo. As conseqüências não tardaram a se manifes­
tar: o radicalismo ético afamiliar que não encontrava espaço nas cidades
foi substituído por “um patriarcalismo de amor de cunho familiar que
atribui grande importância à obediência da mulher, dos filhos e escra­
vos” 17 (cf. IC o r 7,21; 11,3-16; as cartas deuteropaulinas e pastorais).
Esse patriarcalismo produzido por missionários como Paulo pode ser
considerado um m odo de encarnar a mensagem cristã em situações
socioculturais diferentes. Não separa do ambiente em que se vive, aceita
as posições sociais, a estrutura política, mas atenua as diferenças de classe
em nom e da “novidade cristã” e do am or recíproco.
A breve apresentação dos missionários do cristianismo primitivo não
deve fazer esquecer que, na Igreja das origens, cada batizado era, para
seu ambiente, uma testemunha. Este fato ajuda a com preender o porquê
da rápida difusão do cristianismo. Tratava-se, evidentemente, de uma
atividade missionária ocasional, não organizada. A confirmação provém
indiretam ente de Suetônio ( Vita Glaudii 25), que escreve que no ano 49
Cláudio expulsara os judeus de Roma porque eles, “impulsore C hristo”,
tinham entrado em choque uns com os outros. Em Roma, portanto,
cristãos anonimos tinham defendido o Evangelho no âm bito da sinago­
ga, provocando um aberto conflito18. Serão exatamente estes que conti­
nuarão a obra de penetração do Evangelho, sobretudo quando os mis­
sionários itinerantes — do século II em diante — se reduzem até de­

15. G. THEISSEN, Sociologia..., op. cit., p. 15.


16. Como observa G. THEISSEN, os relatos de vocação, de seguimento, as instru­
ções sobre a missão, a renúncia aos meios de autodefesa, o convite a não se preocupar com
o dia seguinte, as palavras de ameaça ou de elogio para quem recebe os itinerantes carismáticos
pressupõem a situação social destes, que assumiram ao pé da letra e não “de modo alegó­
rico” as palavras de Jesus e justamente por isso as transmitiram. Cf. G. THEISSEN,
Sociologia..., op. cit., pp. 74-78.
17. Cf. id., ibid., p. 188.
18. Cf. M. SIMON, Giudaismo e cristianesimo, trad. do francês, Bari, Laterza 1978
p. 74.
saparecer19. Com o observa H. von Soden, a atividade missionária da
Igreja antiga não era organizada, mas orgânica e leiga, uma vez que cada
cristão, independente de sua classe, sentia-se investido da função mis­
sionária exercida em primeiro lugar no contato pessoal. A propósito, é
significativo que os mais influentes representantes “literários” do cristia­
nismo não tinham um cargo eclesial, mas eram livres escritores e mes­
tres20. Até as pessoas simples se sentiam investidas do “dever missionário” .
O pagão Celso ironiza os trabalhadores de lã, sapateiros e lavandeiros que
se transformaram em mestres e “lançam sentenças assombrosas”21.
Qual terá sido o anúncio destes? Considerando a realidade dos que
anunciavam o cristianismo, pode-se pensar que o anúncio tenha se con­
centrado no essencial, ou seja, na pessoa de Jesus e nos acontecimentos
mediante os quais ele realizou a salvação: paixão, m orte e ressurreição. Há
mais, porém: esses eventos tinham sido lidos com apoio na vida de cada
um mediante a observação de que aconteceram pro nobis, propter peccata
nostra. Se na religiosidade antiga é o hom em que tem necessidade de
Deus e vai em busca de Ele, no anúncio cristão é ao contrário: Deus, por
meio de Cristo, procura o homem para salvá-lo. E este o núcleo do credo
cristão. Mas este é também o elemento central da atividade missionária
primitiva que se apresenta como concentração no essencial11.

Igreja subapostólica e missão

Na primeira metade do século II, o cristianismo ainda é constituído


por minorias que vivem numa situação geográfica de isolamento entre si.
Essa situação, agravada pelas primeiras perseguições por parte de judeus
e pagãos, contribuiu para manter viva a consciência de não pertencerem
a este m undo e produziu uma edesiologia de “estraneidade”23 bastante
diferente da edesiologia anterior, de nítida tendência escatológica. Seria,
todavia, um erro julgar que esse afastamento do m undo tenha significado
exclusão de qualquer interesse missionário. Se os chamados “Padres Apos­
tólicos” nos dão a impressão de m anter distância em relação aos pagãos24

19. Cf. H. VON SODEN, “Dic christliche Mission...”, cit., p. 27.


20. Id., ibid., p. 28.
21. ORÍGENES, Contra Celso III, 55.
22. Cf. H. VON SODEN, “Dic christiche Mission...” , cit., p. 30.
23. Os textos que, embora com cnfàses diferentes, apresentam essa edesiologia de
estraneidade são a 2“ Carta de Clemente, a Carta a Diogneto, o escrito A Autólieo de
Teófilo de Antioquia.
24. Cf. a propósito Pastor de Hermas — Alegoria VIII, 75; Preceito X,40; Carta de
Barnabé 4,10.18.
e de não desejar convertê-los a qualquer preço25, deixam, porém ,
transparecer indícios de um indiscutível interesse pelos que estão “de
fora” .

Testem unho disso é antes de tudo a consciência de que Cristo,


mediante seu sangue, “mereceu a graça da conversão para todo o m un­
do 2b. Segundo Inácio, o que deve m anter o cristão num a atitude de
incessante oração pelos outros homens é a esperança: “neles há esperança
de conversão a fim de que cheguem a D eus”27. O mesmo pensamento
e retom ado tam bém pelo Pastor de Hermas: “para os pagãos, a conversão
( metánoia) é possível até o último dia”28.
Com base nisso é possível com preender por que o autor da 2 -
C arta de Clemente declara até que nós cristãos “temos o preceito de
afastar os pagãos de seus ídolos e de catequizá-los na fé”29.
Mas com o é possível isso num m undo hostil que, mediante o des­
prezo e a perseguição, alimenta a eclesiologia de estraneidade supracitada?
Em primeiro lugar, graças a uma abertura “psicológica” que se
apóia no preceito evangélico do amor pelos inimigos. “Orai também
pelos que vos odeiam e vos perseguem ” — exorta Policarpo — “e não
vos esqueçais de orar pelos inimigos da cruz.”30 Na invocação que encon­
tramos na I a C arta de Clemente 59, o fiel ora para que “todos os povos
conheçam que tu és o único Deus e que Jesus Cristo é o teu filho e nós
somos teu povo e as ovelhas de teu rebanho” .
Passando agora a considerar os modos concretos mediante os quais
o cristão desenvolve a atividade de “testem unha/m issionário”, os Padres
Apostólicos exprimem a consciência de serem objeto da atenção dos
pagãos31. A primeira prova de credibilidade que lhes é oferecida é o
testem unho de uma vida coerente: “perm iti” — escreve Inácio - “que
aprendam com vosso exemplo... Por nossa bondade mostrem o-nos como
seus irmãos, esforçando-nos por imitar o Senhor”32.

25. Cf. W. H. C.FREND, “Der Verlauf der Mission in der alten Kirche bis zum 7.
Jahrhundert”, in Die alte Kirche, Munique, Kaiser, 1974, p. 32.
26. 1“ Carta de Clemente aos Corintios 7.
27. Carta aos Eßsios 10.
28. Visão II, 6.
29. 2“ Carta de Clemente aos Corintios 17.
30. Carta aos Filipenses 12. Na oração cristã o interesse pelos não-crentes permane­
ce, portanto, vivo. Cf. Didaché 1; INÁCIO, Carta aos Eßsios 10.
31. Cf. INÁCIO, Carta aos Tralianos 3; POLICARPO, Carta aos Filipenses 10; 1“
Carta de Clemente 47; 2“ Carta de Clemente 13.
32. Carta aos Efisios 10.
A tarefa do cristão é salvaguardar o “bom nom e” de Cristo33, mostrar
que a mensagem ou o cristianismo não é uma “utopia” . E isso se ma­
nifesta antes de mais nada pelo tipo de relações dentro da comunidade
cristã.
Por mais paradoxal que possa ser, pode-se afirmar que a ação
missionária da comunidade daquele tem po consiste principalmente em
ter uma intensa vida interior que exclui divisões, inimizades. E, enfim, o
grupo que, vivendo intensamente, dá testem unho da missão, ou que,
inversamente, oferece um contratestem unho que afasta34.
Daí os apelos à coesão e à paz, que devem ser lidos não apenas em
sentido intra-eclesial, mas também em relação à “missão” e à responsa­
bilidade do grupo cristão com referência ao m undo. “Que ninguém
nutra rancor algum contra o próxim o” — escreve Inácio — “e que não
deis, por causa das tolices de poucos, pretexto de calúnias à multidão que
vive em D eus.”35
Trata-se de mostrar que entre fé e vida não existe dissonância.
“Q uando os pagãos” — afirma o desconhecido autor da 2 a Carta, de
Clemente 13 — “ouvem de nossos lábios as palavras de Deus admiram
a beleza e a grandeza destas; mas quando, depois, dão-se conta de que
as nossas obras não correspondem às nossas palavras começam, então, a
blasfemar, dizendo que o cristianismo é apenas mito e engodo.”
Com o conclusão, parece que podem os reafirmar que a eclesiologia
da estraneidade acima lembrada não significa desinteresse ou fuga do
m undo. O grupo cristão, de fato, parece responsável pelo “ bom nom e”
de Cristo diante dos pagãos. Está presente a idéia de que a Igreja tem
a tarefa de transmitir as palavras de Jesus e de demonstrar, por meio da
vida interior, a credibilidade de tais palavras. Neste caso, o acento está
mais em ser testem unha do que em ser missionário, mas, evidentemente,
o “testem unho” é o primeiro m odo de fazer missão.

Os apologistas do século II e a evangelização do m undo “culto”

Presumivelmente por volta de 178 d .C., o pagão Celso compôs


uma obra anticristã com o título O discurso verídico. Foi uma das primei-

33. Cf. 2* Carta de Clemente 13; POLI CARPO, Carta aos Filipenses 10.
34. Cf. Y. CONGAR, “Souci du salut des païens et conscience missionaire”, in
Kyriakon — Festschrift Johannes Quasten I 4.
35. Carta aos Tralianos 8.
ras confiitações sistemáticas contra o cristianismo e tornou-se fonte para
todos os polemistas pagãos posteriores36. Entendemos o porquê desse
escrito quando observamos a atenção generalizada que o pequeno grupo
cristão suscitava no decurso do século II. Até aquele m om ento deixa as
pessoas indiferentes ou desperta pouco interesse. Prova disso são as es­
cassas referências que dele permanecem na literatura pagã até a metade
do século II. A partir desse período, porém, o grupo emerge, mesmo
porque impressiona as classes cultas, em que encontra pessoas capazes de
justificá-lo e de defendê-lo, inclusive pela atividade literária. Testemunhas
dessa ação de defesa e de propaganda do cristianismo no século II são
os chamados “apologistas” .
Hom ens com o Justino, Atenágoras, Aristides, M inúcio Félix sen­
tem possuir uma verdade que os espíritos mais cultos em torno deles não
podem atingir. Mas com o fazê-la chegar até eles? Em primeiro lugar
procurando uma base com um com os pagãos aos quais se dirigiam e
usando uma linguagem que pudessem compreender. “Percebia-se a exi­
gência de apresentar a mensagem cristã, ao menos no plano de cultura
média, de forma que fosse em parte familiar ao ouvinte pagão. Assim,
quando um conceito cristão encontrava correspondência na filosofia,
sobretudo platônica e também estóica... era boa política estabelecer a
ligação.”37

Nesse esforço de aproximação, os apologistas usaram a forma do


“diálogo” , em que o esforço das partes em causa é em primeiro lugar o
“de m útuo entendim ento, ao invés de perguntas com a única finalidade
de confutação”38. Adequando-se a seus leitores, eles se esforçam em
explicar a própria fé, m ostrando que a pistis (fé) cristã não está despro­
vida de loghismos (bom senso).
Convém lembrar que o trabalho desses apologistas teve preceden­
tes: 1) na literatura missionária judeu-helenística ligada sobretudo ao
nom e de Fílon e da qual serão tom ados alguns temas da propaganda
cristã (caráter original do m onoteísmo, crítica da idolatria etc.); 2) na
pregação missionária do cristianismo primitivo, como se vê, por exemplo,
no discurso de Paulo em Listra (At 14,11-17) e no que fez no Areópago;

36. Cf. P. DE LABRIOLLE, La réaction payenne — Étude sur la polemique


anticbrétienne du I ao VI siècle, Paris, 1934, p. 112.
37. Cf. M. SIM ONETTI, Cristianesimo antico e cultura greca, Roma, Borla, 1983,
p. 36.
38. W. JAEGER, Cristianesimo primitivo e paideia greca, trad, do inglês, Florença,
La Nuova Italia, 1970, p. 36.
3) na imitação do Protréptico de Aristóteles, ou no convite a desprezar
o m undo, voltando-se para a filosofia39.
Sobre essas bases os apologistas construíram suas obras, que cons­
tituem a literatura missionária do século II e que se caracteriza por
alguns aspectos que devem ser lembrados. Em primeiro lugar, deve-se
ressaltar o respeito, o apreço e o destaque de tudo o que lhes parece
bom no m undo pagão. Eles sublinharam tam bém o parentesco de mi­
tos, doutrinas e ritos cristãos com os paralelos helenísticos. Não se escan­
dalizaram com as semelhanças encontradas, mas, pelo contrário, basea­
ram nelas a sua propaganda, ainda que depois se esforcem por “manter
as distâncias” e não deixem de criticar a m itologia com o uma macaquice
diabólica40.
Para irem ao encontro de seus interlocutores eles souberam igual­
mente reelaborar o querigma primitivo, não apenas revestindo-o com a
língua culta do tem po, mas ampliando alguns de seus aspectos que en­
contravam mais receptividade entre os leitores pagãos. Na apresentação
de Cristo, por exemplo, eles ampliam o “com ponente cosmológico, ori­
ginariamente secundário no dado testam entário... O deslocamento do
centro de gravidade da mensagem é o tributo que a teologia da segunda
metade do século II teve de pagar à exigência de sair do isolamento e
estabelecer o diálogo com o m undo da cultura, ou seja, da filosofia
grega”41. Seria, todavia, um erro julgar que essa busca de contatos entre
helenismo e cristianismo tenha significado uma fusão de ambos, privando
este último de sua característica e alterando-o. Os pontos que distin­
guiam a fé cristã, de fato, parecem bem protegidos, “sobretudo a in­
terpretação histórica do Logos enquanto feito carne, e depois a criação
ex nihilo, a ressurreição final dos corpos, a dependência absoluta da graça
divina para a salvação”42. Não se pode, todavia, ignorar que, para a
missão cristã do século II realizada pelos apologistas, o problema central
não foi a assimilação ao m undo, mas exatamente a necessidade de se
distinguir dele. Nessa adaptação era grande o perigo de perder a própria
identidade. Vemos, contudo, que esse cristianismo “casado” com o
helenismo foi também capaz de lhe pôr limites, salvaguardando assim a
própria autonomia.

39. Cf. J. DANIELOU, Message évangélique et culture hellénistique, Paris, Desclée,


1961, pp. 13-15.
40. Cf. a respeito JUSTINO, 1 Apologia 21,1; 22,5-6; 66,4.
41. M. SIMONETTI, Cristianesimo antico..., op. cit., p. 42.
42. Id., ibid.
Para além de todas essas considerações, o mérito indiscutível dos
apologistas e de Justino em particular deve ser posto na “assimilação” da
mensagem cristã ao ambiente circunstante. A propósito, H. von Soden,
inspirando-se nessa lição histórica, ressaltava que “nós estamos autoriza­
dos e obrigados a assimilar o cristianismo ao terreno em que o planta­
mos, aos homens aos quais o levamos... Justamente a recordação da
Igreja antiga não deve deixar de nos lembrar que muita coisa em nossa
tradição cristã é fruto da antiga assimilação... trata-se de exterioridades
e de aparências em que o bem eterno de nossa fé teve de se proteger para
viver naquele tem po; mas ele não pode continuar a se esconder atrás
dessas exterioridades e aparências”43.

43. H. VON SODEN, “Die christliche Mission...”, cit., p. 31.


INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS
DE CARÁTER GERAL PARA UMA PRIMEIRA

APROXIMAÇÃO DOS ASSUNTOS TRATADOS

Primeira parte: Disciplina

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Quarta Parte: Anúncio

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V v .A a ., Die alte Kirche, Munique, Kaiser, 1974.
ÍNDICE DE NOMES

A Apeles 47
Apolinário de Laodicéia 54, 112
Abel 84 Apologistas 5, 6, 7, 27, 47, 48, 49,
Abraão 17, 103, 162 50, 52, 64, 65, 90, 133, 134,
Acerbi, A. 78 140, 141, 162, 163, 164, 187,
Adão 17, 65, 80, 112, 113, 153 188, 189, 190
África 104, 148, 170, 171 Áquila 110
Agostinho 6, 12, 13, 19, 22, 30, 31, Arábia 167, 176
32, 33, 71, 73, 74, 84, 93, 103, Ário 53, 70, 71
104, 105, 113, 114, 121, 122, Aristides 90, 125, 141, 142, 188, 202
124, 134, 148, 169, 202 Aristóteles 131, 189
Aland, B. 78 Ártemas 50
Alberigo, G. 75 Ascensão de Isaías 78
Aldama, J. A. de 111, 193 Asclepiódoto 50
Alexandre de Alexandria 112 Ásia Menor 110, 146, 156, 172, 173,
Alexandre de Constantinopla 112 175, 180, 182
Alexandre Magno 182 Assemani, J. S. 34
Alexandria 18, 28, 30, 41, 53, 65, Atanásio de Alexandria 147
66, 75, 76, 112, 123, 140, 156, Atenágoras 64, 125, 141, 142, 162,
177, 203 188, 202
Alszeghy, Z. 39 Aubert, J. M. 120, 135, 136
Ambrósio de Milão 29, 30, 33, 93, Azarias 162
113, 202
Ana 107
Ananias 162 B
Andresen, C. 78, 96, 97, 98, 100,
156, 160, 168, 169, 170, 182 Babel 167
Antão 146, 147, 171 Babilônia 156, 180
Antioquia 28, 47, 56, 66, 69, 71, 79, Balthasar, H. U. von 11, 35
97, 109, 112, 138, 139, 141, Bardenhewer, O. 22
157, 158, 161, 173, 174, 181, Bardy, G. 158, 167, 168, 169, 170,
182, 185, 203 172, 174, 182, 194
Baronio, C. 33 Cláudio 184
Bartelink, G. J. M. 177 Clemente de Alexandria 133, 177
Basílio de Cesaréia 71, 147 Clemente Romano 63, 78, 202
Batiffol, P. 98, 192 Columbas, G. M. 148
Beatrice, P. F. 89 Concílio de Calcedônia 5, 55, 57
Benívolo 29 Concílio de Constantinopla 61, 71,
Benoit, A. 12, 20, 33, 191 75
Bento 32, 148, 202 Concílio de Éfeso 5, 18, 19, 56, 57,
Berlim 11, 34, 165, 181 112
Bitínia 172 Concílio de Nicéia 6, 18, 54, 70, 71,
Blanchetière, F. 156 112
Boisset, J. 33 Congar, Y.-M. 36, 38, 76, 106, 120,
Bolgiani, F. 21, 27, 192 121, 126, 130, 133, 136, 151,
Bolland, J. 33 187, 192
Constantino 71
Corinto 27, 87, 157, 182
C Corsato, C. 24, 37, 191
Cosme 41
Cafarnaum 181 Creta 167, 202
Calábria 32 Cromácio de Aquiléia 130
Calisto 67 Cr ouzel, H. 11, 12, 23, 37, 191
Camelot, P. T. 100 Cullmann, O. 45, 62, 86, 108
Campenhausen, H. von 73, 109, 111,
143, 145, 151, 193
Cannes 31 D
Cantalamessa, R. 48, 52, 61, 89, 107
Capadócia 167, 172, 203 DaiUè, J. 13
Capadócios 112 Dal Covolo, E. 23, 35, 191
Capréolo de Cartago 18 Damasco 180, 203
Cária 172 Davi 110
Carta de Barnabé 28, 88, 138, 139, Delahaye, K. 106, 121, 136, 193
185 Diaz, P. V. 98
Cartago 18, 79, 100, 103, 202 Didaché 62, 88, 138, 186
Casagrande, D. 112, 193 Dídimo 112
Cassiodoro 32 Diodoro de Tarso 55
Cavallo, D. 24, 25, 26, 30 Dionísio de Roma 69
Celestino 56 Discurso a Diogneto 96, 137, 176
Celso 46, 53, 79, 108, 109, 129, 185, Domina 146
187 Dõrrie, H. 163
Cesaréia marítima 203 Du Cange 34
Cesário de Aries 31, 32
Cipriano 6, 18, 31, 33, 79, 83, 92,
93, 99, 1 0 0 ,1 0 1 ,1 0 3 ,1 2 4 ,1 4 4 , E
202
Cira 146 Éfeso 5, 18, 19, 27, 36, 56, 57, 112,
Cirilo de Alexandria 18, 56 182, 203
Cirilo de Jerusalém 112, 121 Efrém 112, 203
Eleutério 18 Gerhard, J. 21
Elias 143, 162 Ghellinck, J. de 26, 30, 31, 32, 191
Elvídio 112 Giarratano, C. 25
Epicteto 55, 132 Goppelt, L. 157, 167, 180
Epicuro 131 Gregorio de Nazianzo 71
Epígono 66 Gregorio de Tours 169
Epistola apostolorum 28 Gregorio Magno 21, 202
Espanha 104, 170 Grillmeier, A. 5 7 ,1 1 9 ,1 9 2
Estêvão 155 Grundmann, W. 158, 181
Eudóxio 54
Eusébio de Cesaréia 21, 28, 71, 99,
112 H
Eusébio de Vercelli 147
Eva 111 Hamman, A. G. 29, 191, 193
Evangelho de Tomé 145 Häring, B. 121
Harnack, A. von 22, 77, 78, 90, 96,
152, 157, 170, 174, 176, 181,
F 183, 194
Hegermann, H. 181
Fabre, P. 156, 194 Hengel, M. 10, 25, 26, 27, 85, 86,
155, 156, 157, 158
Fara 41
Heráclito 134, 162
Farina, R. 36, 191
Hilário de Poitiers 36, 40, 58, 72, 73,
Feuileron, J. 33
75, 93, 122
Filipos 203
Hipólito 18, 50, 66, 67, 108, 144,
Fílon de Alexandria 49, 64, 162, 188 202
Finkenzeller, J. 95 Hipona 74, 104, 114, 202
Fírmio 30 Holderegger, A. 123, 133, 134, 193
Flaviano de Constantinopla 57 HoU, K. 160, 164, 165, 168, 169,
Flávio Josefo 157, 181 170, 172, 174, 175, 179
Flick, M. 39 Holstein, H. 11
Florino 99 Honorato 148
Fotino de Sírmio 50
Frend, W. H. C. 186
Frigia 78, 167, 169, 165, 172 I

Ildefonso de Toledo 22
G Inácio de Antioquia 28, 47, 79, 97,
109, 138, 139, 141, 161
Galácia 172 Ireneu de Lião 31, 65, 80, 91, 169
Gália 98, 104 Isidoro de Sevilha 21, 22
Galião 157 Itália 104
Galícia 169
Galiléia 184
Gaudêncio de Brescia 18, 29, 129 J
Gelásio I 19
Genádio de Marselha 22 Jacó 103
Genebra 13 Jaeger, W. 188, 194
Jerônimo 21, 22, 30, 31, 32, 146, Lídia 172, 181
147, 202 Liebaert, J. 48, 49, 51, 52, 53, 193
Jerusalém 30, 112, 121, 153, 154, Listra 160, 172, 188
203 Lohse, E. 87
João Batista 146 Lubac, H. de 35
João Cassiano 148 Lucas 27, 47
João Crisóstomo 30, 33, 37, 77, 79, Luciano de Samósata 26
93, 112, 113, 114, 128, 168, Lyonnet, S. 123
173, 203
João Damasceno 21, 203
João de Antioquia 56, 112 M
João Mosco 41
Joaquim 107 Mai, A. 34
Joel 87
Mandouze, A. 20, 33
Joppich, G. 81
Mansi, G. D. 34
Jordão 80
Marana 146
José 107, 108
Marcelo de Ancira 50, 71
Judéia 155, 167, 184
Marciano 57
Justino 26, 50, 62, 64, 90, 108, 109,
Marcionitas 47
110, 133, 141, 142, 143, 144,
Marco Aurélio 169
154, 162, 163, 188, 189, 190,
Marcos 27, 168
202
Maria 6, 47, 55, 56, 107, 108, 109,
110, 111, 112, 113, 114, 140,
K 193
Mário Vitorino 6, 71, 72, 73
Kannengiesser, C. 75 Marrou, H.-I. 10, 31, 172
Kehl, A. 160 Martírio de Policarpo 28, 127, 138,
Kelly, J. N. D. 45, 65, 68, 69, 191, 143, 144
192, 193 Mateus 27, 76
Koep, L. 25 Maurinos 34
Kötting, B. 155 Máximo de Turim 121, 128
Mazza, M. 169, 171, 172, 173
Melitão de Sardes 47, 79
L Metódio de Olimpo 106
Migne, J. P. 29, 33, 34
Labriolle, P. 188 Minúcio Félix 124, 125, 141, 142,
Lactâncio 126, 203 188
Lazzati, G. 22, 26 Misael 162
Leão Magno 202 Moisés 46, 153
Lebreton, J. 80, 192 Molland, E. 152, 183
Lião 18, 28, 31, 65, 80, 82, 91, 98, Mommsen, Th. 170
144, 169, 202 Monaci Castagno, A. 79
Líbia 67, 69, 202 Montano 78
Licaônia 172 Moraldi, L. 107
Lícia 172 Muratori, L. 34
N Pentápole 69
Perler, O. 26
Nestörio 5, 56, 112 Peterson, E. 89, 140
Nilo 171, 203 Pitra, G. B. 34
Noeto de Esmirna 66 Platão 49, 62, 131, 145
Novaciano 22, 67 Plínio 168
Novato 100 Pohlenz, M. 131, 133
Numidia 169, 202 Policarpo de Esmirna 18, 28, 79
Pôncio Pilatos 47, 108
Ponto 10, 20, 26, 30, 33, 36, 38, 46,
O 47, 49, 52, 53, 64, 68, 73, 85,
86, 9 1,101, 1 0 4 ,109,112,120,
Opus imperfectum in Matthaeum 93, 121, 129, 132, 138, 155, 165,
130 167, 174
Orbe, A. 80, 109, 192 Prestige, G. 61, 192
Origenes 5, 6, 19, 29, 30, 31, 46, 51, Prudêncio 18
52, 53, 67, 68, 69, 70, 79, 101, Pulquéria 57
102, 103, 108, 112, 114, 129,
145, 185, 203
Osborn, E. 123, 125, 131, 132, 133,
135, 136, 193
Q
Overbeck, F. 20
Quasten, J. 24, 151, 187
Oxford 20

R
P
Rahner, U. 35, 193
Pacômio 31, 146, 147, 171, 172
Randellini, L. 154
Padovese, L. 2, 3, 26, 76, 115, 128,
Ricoeur, P. 85
194
Padres Apostólicos 6, 63, 64, 88, 90, Roma 12, 18, 23, 25, 26, 30, 34, 36,
95, 109, 137, 138, 139, 140, 37, 38, 45, 50, 62, 64, 66, 69,
162, 185, 186 75, 76, 1 0 1 ,1 0 3 ,1 0 8 ,1 1 2 ,1 1 4 ,
Panfília 167 115, 128, 152, 167, 170, 172,
Pantera 108 177, 182, 183, 184, 188, 191,
Parmeniano 103, 104 192, 193, 194, 202
Pastor de Hermas 28, 63, 88, 97, 98,
138, 185, 186
Paulo 17, 18, 24, 27, 28, 47, 50, 66, S
69, 86, 87, 95, 108, 111, 124,
125, Sabélio 67
129, 146, 154, 156, 157,
159, 160, 172, 183, 184, 188 Samaria 184
Paulo de Samósata 18, 50, 66 Saulo 180
Pedro 84, 87, 101, 103, 167 Schleiermacher, F. 34, 35, 40
Pelágio 114 Schnackenburg, R. 95
Pellegrino, M. 38 Schneemelcher, W. 174
Schneider, J. 27, 28 Teófilo de Antioquia 185
Schrijnen, J. 177 Tertuliano 5, 6, 22, 38, 51, 52, 67,
Schwartz, E. 18, 19, 112 68, 90, 99, 100, 101, 110, 112,
Scipioni, L. 97 124, 141, 142, 202
Selêucidas 182 Tessalônica 88, 182, 202
Sêneca 28 Theissen, G. 1 5 3 ,1 5 5 ,1 5 8 ,1 5 9 ,1 6 8 ,
Simão 153 182, 184
Simon, M. 157, 184 Trajano 168
Simonetti, M. 22, 23, 25, 35, 64, 66,
69, 72, 75, 163, 188, 189, 192
Síria 9, 10, 78, 145, 146, 156, 180, V
203
Sirício 103 Vagaggini, C. 114
Sócrates 134, 162, 163 Valadier, P. 123
Soden, H. von 158, 164, 180, 183,
Valentinianos 47
185, 190
Valeriano 18
Spanneut, M. 131, 193
Vander Gucht, R. V. 12, 23, 191
Spidlik, T. 38
Vicente de Lérins 19, 20, 22
Stockmeier, P. 161, 194
Viena 34, 121, 202
Strobel, A. 165
Suetônio 21, 184 Vorgrimler, H. 12, 23, 191
Sulpício Severo 31, 32, 202
Surgy, P. de 167
W

T Wendland, P. 161, 194


Wewers, G. A. 157
Tabennesis 147 Wolfson, H. A. 62, 64, 76, 192
Taciano 22, 65, 141, 203
Teodoreto de Ciro 9, 146
Teodoro de Mopsuéstia 55, 112 Z
Teodósio II 57
Teódoto 50 Zenão de Verona 79, 82, 93, 130
Teódoto de Bizâncio 50 Zeus 110
MAPA DOS PADRES DA IGREJA
ARMÊNIA
T rapezus

C O N S T A N T IN O P L A
C E S A R É IA D E - T A P A q
F llipos N IC O M É D IA
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