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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe.

João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

Faculdade Católica de Belém – 2022

Introdução à Teologia
Ad usum privatum

Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas

1- Teologia
“Por sua natureza a fé se apela à inteligência, porque desvela ao homem
a verdade sobre o seu destino e o caminho para o alcançar. Mesmo sendo

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a verdade revelada superior a todo o nosso falar, e sendo os nossos


conceitos imperfeitos frente à sua grandeza, em última análise insondável
(cf. Ef 3, 19), ela convida, porém, a razão — dom de Deus feito para colher
a verdade — a entrar na sua luz, tornando-se assim capaz de
compreender, em certa medida, aquilo em que crê. A ciência teológica,
que respondendo ao convite da verdade, busca a inteligência da fé, auxilia
o Povo de Deus, de acordo com o mandamento do Apóstolo (cf. 1 Pd 3,
15), a dar razão da própria esperança, àqueles que a pedem”
(CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Instrução sobre a vocação eclesial do
Teólogo [IIa parte, n. 6], São Paulo 1990, 7).

1.1- Um pouco de história


Para os antigos gregos, a palavra “Teologia” (teólogo, etc.) era
utilizada com uma razoável frequência no paganismo, servindo para
designar, por exemplo, os relatos dos poetas Homero (+ 898 a.C.) e
Hesíodo (VIII século a.C.), que se referiam aos deuses. O termo parece ter
surgido no âmbito do Orfismo tardio, por esta razão, Orfeu era chamado
de “teólogo” por excelência1.

Para Platão (427-347 a.C) o termo teologia significava o estudo crítico


da mitologia. “Teologia seria, pois, uma mito-logia rigorosamente racional,
uma hermenêutica filosófica dos mitos”2. Aristóteles (384-322 a.C) usa o
termo com o mesmo significado de Platão, mas em um texto da sua obra
Metafísica (VI, I, 1025a), afirma que a filosofia teórica se divide em três
partes: matemática, física e teologia. O termo Teologia é usado como
sinônimo de metafísica, para indicar a reflexão sobre o “ser supremo” ou
“Deus”3.

Os filósofos estóicos do II século a.C., ampliaram o conceito de


Teologia, para indicar as explicações relativas aos deuses que foram
elaboradas no mundo intelectual, estas explicações podem ser de ordem
poética, mitológica, cultual ou filosófica4.

1
Cf. J. Morales, Introducción à la Teología, EUNSA: Pamplona, 2008, 25.
2
C. BOFF, Teoria do Método Teológico, Vozes : Petrópolis, 1998, 549.
3
Cf. BOFF, Teoria do Método Teológico, 551.
4
Cf. Morales, Introducción à la Teología, 25.

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Com o advir do cristianismo, os pensadores cristãos foram


modificando o sentido do termo Teologia. São Justino, por exemplo,
designava com esse termo, a exegese cristã dos textos bíblicos 5. Clemente
de Alexandria usa o termo no sentido empregado por Platão, quando
escreve ao estóico Cleantes e opõe uma verdadeira teologia às teogonias
(a Teologia se opõe às mitologias). Para Orígenes, Teologia é a reta
doutrina sobre Deus e sobre Cristo, considerado como Salvador 6. Eusébio
de Cesareia escreve uma obra com o título de Teologia Eclesiástica, na
qual o termo Teologia se aproxima muito da definição de Orígenes.

Santo Atanásio introduz o termo conhecimento teológico e refere-se


à perfeição e ao caráter completo da Teologia entendida como ciência do
Deus Trino7. São Basílio é o primeiro Padre da Igreja que distingue
“Teologia” (theologia) e “Economia” (oikonomia), enquanto Teologia
designa a doutrina sobre Deus, Economia indica a história da salvação, ou
seja, o operar (revelador) de Deus na história. O cume da história da
Salvação é Jesus Cristo8.

Evágrio Pôntico, escritor asceta do final do IV século, ensina que o


Cristianismo é a doutrina de Cristo salvador, que se compõe de prática, de
física e de teologia. A prática se ocupa da purificação da alma, a física da
contemplação dos seres criados e a teologia da contemplação infusa de
Deus (Três etapas da vida espiritual).

Para os escritores cristãos dos primeiros séculos, o Teólogo é aquele


que contempla diretamente os mistérios de Deus, mistérios que se propõe
ao seu espírito por graça extraordinária. Teólogo é aquele que goza de
uma contemplação mística de Deus9. Para Orígenes, o teólogo por
excelência é Jesus Cristo, que anunciou aos seus discípulos a verdade
sobre Deus10. João Evangelista também é chamado de Teólogo 11. Santo
Atanásio se refere aos hagiógrafos (autores humanos da Sagrada

5
Justino, Diálogo com Trifão 113,2.
6
Orígenes, Contra Celso 6,18.
7
Atanásio, Orationes tres contra Arianos, in: PG 26,48-49.
8
Basílio, Epístola 8,3. Cf. também Adversus Eunomium, in: PG 29,577.
9
Cf. Morales, Introducción à la Teología, 26.
10
Orígenes, Contra Celso 71.
11
Orígenes, Fragmenta in Evangelium Joannis, fram. 1,14.27.

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Escritura), como Teólogos, pois receberam uma sabedoria infusa para


cumprir a sua missão.

Entre os autores latinos, podemos recordar que o uso do termo


Teologia é tardio (III século), Mário Vitorino fala de cognitionem
theologiae (conhecimento da teologia), como sendo o conhecimento de
Deus e de Cristo, de Deus em si mesmo, de sua vinda ao mundo e de tudo
o que se relaciona com esse saber12.

Santo Agostinho emprega cerca de oitenta vezes os termos Teologia


e Teólogo, quase sempre com o mesmo sentido empregado pelo autor
latino Varrón (+27 a.C.). Este autor distinguia entre teologia natural
(interpretação filosófica da mitologia), poética (mitologia) e política (culto
sagrado). Entretanto, Agostinho reivindica um “saber sagrado” mais fiel ao
objeto divino13. Fala de uma sagrada scientia que gera, alimenta, defende,
fortalece a fé soberanamente salutar14. Para Agostinho, a fé exige um
aprofundamento racional, solicita o esforço da razão humana, em busca
de uma compreensão sempre mais profunda. A teologia seria o fruto de
uma relação frutuosa entre a fé e a razão (Fides quaerens intellectum). Ele
está convencido de que o homem só pode chegar ao conhecimento
perfeito de Deus pela fé no Cristo (credo, ut intellegam), mas também
recorda a importância do caráter racional da fé cristã (intellego, ut
credam)15. Agostinho acena ao labor do teólogo, ao confessar que
“escreve fazendo progresso e progride escrevendo” 16. Vale a pena
recordar que por ocasião de sua ordenação presbiteral, nota-se uma
verdadeira reviravolta no seu modo de fazer teologia, pois Agostinho se
viu obrigado a aprofundar o seu conhecimento da Sagrada Escritura, em
virtude do seu ministério pastoral.17 Pode-se notar na teologia de
Agostinho o desejo implícito de uma construção sistemática e racional do
mistério cristão no seu tratado sobre a Trindade e nos seus escritos sobre
a encarnação redentora.

12
Mário Vitorino, In Epistolam Pauli ad Ephesios liber primus, in: CSEL83,1.
13
Cf. G. Madec, Theologia. Note augustino-èrigènienne, in: From Augustine to Eriugena, Washignton
1991, 117s.
14
Cf. De Trinitate XIV, 3 (BA 16, p. 348).
15
Cf. N. Cipriani, Teologia, in: A. Fitzgerald (org.), Agostinho através dos tempos. Uma enciclopédia,
Paulus: São Paulo 2019, 917.
16
Epístola 143,2.
17
Cf. Epístola 21,3-4.

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Agostinho distingue entre a ciência (natural) e a ciência da fé,


fundamentada no estudo da Sagrada Escritura. Também fala da diferença
entre ciência e sabedoria: “à sabedoria pertence o conhecimento
intelectual das realidades eternas, à ciência, por outro lado, o
conhecimento racional das realidades temporais” 18. A ciência e a
sabedoria são tipos de conhecimento diferentes, mas estreitamente
unidos, porque: “nossa ciência é Cristo e também nossa sabedoria é
Cristo. É ele que semeia em nós a fé nas realidades temporais; ele que nos
revela a verdade das realidades eternas”19.

Agostinho conclui o seu tratado De Trinitate explicando o que buscou


realizar ao longo de sua obra: “Dirigindo os meus passos segundo esta
regra de fé, eu te procurei quanto pude; eu desejei ver pela inteligência, o
que possuía pela fé”20.

Para João Escoto Eriúgena (Século IX), a teologia era principalmente a


Palavra de Deus confiada aos homens na Sagrada Escritura. É a parte
primeira e superior da Sabedoria, permite ao homem aproximar-se de
Deus por meio de afirmações e negações. Um conhecimento mais
carismático do que discursivo21.

Abelardo (+1142) foi o primeiro que utilizou o temo no sentido


hodierno, ou seja, como o conjunto da doutrina cristã22.

Na Idade Média, durante o século XIII, a Teologia era chamada de


“Sacra doctrina” (Sagrada doutrina), “Ciência Divina”, “Sacra Fidei”,
“Intellectus Fidei” ou “Sacra (ou Divina) pagina”. Abelardo, como
dissemos, já usa o vocábulo Theologia no sentido técnico de um estudo
argumentado da doutrina cristã. Mas, Santo Tomás de Aquino expressa
algumas reservas quanto ao uso desta palavra, pois não deseja confundir a
Teologia (Sacra Doctrina) decorrente da revelação cristã, com a parte da
filosofia, que Aristóteles chama de Teologia (cf. S. Theol. I q. 1 a. 1, r.2).
Atualmente, chama-se de teologia natural ou teodiceia a parte da filosofia
que trata da questão de Deus).
18
De Trinitate XII,25.
19
De Trinitate XIII,24
20
De Trinitate, XV,28.
21
João Escoto Eriúgena, Periphysion II, in: PL 122,553D.555B.568B.631D.
22
Cf. Morales, Introducción à la Teología, 27.

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Uma mesma palavra pode ter diferentes significados, um exemplo é


o termo Teologia. Os medievais distinguiam entre res (= realidade) e vox (=
nome), isto nos ajuda a compreender como uma mesma palavra (vox)
pode ter significados diferentes (res), do mesmo modo como palavras ou
expressões diferentes (voces) podem ter o mesmo significado (res).

Com o nascimento das Universidades (século XII) e com o florescer


dos cursos de Teologia, nascem as grandes Sumas Teológicas, na busca de
uma apresentação sistemática da doutrina cristã23.

Para aprofundar: a Sacra Doctrina segundo Santo Tomás de Aquino.

Na Suma Teológica, Tomás usa muitas vezes a expressão “sacra


doctrina” (cf. por exemplo S. Theol. I, q. 1), mas em alguns textos usa o
termo Teologia para se referir a uma disciplina concreta que se ocupa de
analisar racionalmente o dado revelado (Cf. por exemplo In Boethii de
Trinitate 2,3,7; Contra Gentes 4,2).

“O termo sacra doctrina tem significação extensa. Pode-se mencionar


uma dezena de sentidos que não se correspondem exatamente, mas que
podem ser reduzidos a dois campos maiores: ao sentido objetivo (o que se
ensina), que se aplica primeiramente à verdade cristã como corpo de
doutrina, e isso numa acepção muito ampla, que dai da Escritura à
teologia; e ao sentido ativo (a ação de ensinar), que designa todos os atos
pelos quais a verdade cristã chega até nós: o ensinamento de Deus que se
faz conhecer pela revelação, a Tradição, a pregação da Igreja (aí
compreendida a catequese) e naturalmente o ensino teológico […]

Para santo Tomás, a sacra doctrina engloba tudo isso, e ele não se
sentia certamente menos teólogo no púlpito do pregador do que na
cátedra do professor. Mas, para nos mantermos na forma mais elaborada
como ele a pratica, podem-se discernir aí três linhas mestras.
Primeiramente, a linha especulativa, pela qual é justamente respeitado, a
do intellectus fidei propriamente dito: o esforço de compreensão pela
razão do objeto da fé […] Tomás seguiu outra linha, que chamaríamos
histórico-positiva. O anacronismo se encontra apenas nas palavras,
porque é exatamente disso que se trata: durante toda a sua vida, Tomás
23
Cf. B. Sesboué, Introdução à teologia. História e inteligência do dogma, Paulinas: São Paulo 2020, 19.

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foi um comentarista [comentador] da Escritura – a primeira forma de seu


magistério – e sempre se manteve informado a respeito dos Padres da
Igreja e da história dos Concílios. Essa orientação não foi muito explorada
por seus discípulos […] Há, enfim, uma terceira linha que se pode dizer
‘mística’, mas num sentido que se deve precisar, e que se encontra no
caráter ‘prático’ que Tomás reconhece à Teologia (o que nos habituamos a
chamar de ‘teologia moral’).

Essas três orientações maiores que Tomás convergia para a unidade


da sacra doctrina não tardaram a se separar depois dele […] contribuiram
para que o observador seja obrigado a falar de uma dispersão do saber
teológico em diversas especializações e mesmo de sua fragmentação […]
Na verdade, somos herdeiros de um processo de desagregação iniciado há
séculos”24.

1.2- O que é Teologia (sentido cristão)?


A Teologia (etimologicamente: “discurso sobre Deus” ou “ciência de
Deus”) pode ser definida como o “intelecto” ou o “saber da fé”, segundo a
concepção agostiniana (e anselmiana), acolhida por Tomás de Aquino.
Antes da teologia existe o “mistério” e a “fé”.

O “Mistério” se revelou ao homem (Revelação). Revelação invoca a


ideia de tirar o véu que impedia a visão, ou seja, Deus ao revelar-se retira
o véu do que estava “escondido”, ou seja, do que estava for a do alcance
do conhecimento natural do homem.
Revelar-se não significa apenas transmitir um conjunto de verdades
às quais o homem deve aderir pela fé. Mas, significa à luz do pensamento
de São Boaventura e do Concílio Vaticano II, uma auto-comunicação de
Deus (o que inclui uma série de verdades às quais o homem deve aderir).
Quando Deus se revela, Ele se autocomunica ao homem, Ele se oferece, se
derrama (graça).
Deus se revela livremente, por amor… não se pode falar de uma
necessidade da revelação, pois isto significaria negar a sua gratuidade.
A acolhida do Mistério que se revela na vida do homem solicita uma
resposta de todo o seu ser, solicita uma entrega, um ato de confiança e de

24
J.-P. Torrel, Santo Tomás de Aquino. Mestre Espiritual, Loyola: São Paulo 2006, 14-16.

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abandono. A fé é a resposta positiva do homem ao Mistério que se revela.


Resposta que significa: acolhida do mistério e entrega de vida.
Dei Verbum n. 5: “A Deus que revela é devida a ‘obediência da fé’ (Rom.
16,26; cfr. Rom. 1,5; 2 Cor. 10, 5-6); pela fé, o homem entrega-se total e
livremente a Deus oferecendo ‘a Deus revelador o obséquio pleno da
inteligência e da vontade’ e prestando voluntário assentimento à Sua
revelação. Para prestar esta adesão da fé, são necessários a prévia e
concomitante ajuda da graça divina e os interiores auxílios do Espírito
Santo, o qual move e converte a Deus o coração, abre os olhos do
entendimento, e dá ‘a todos a suavidade em aceitar e crer a verdade’.
Para que a compreensão da revelação seja sempre mais profunda, o
mesmo Espírito Santo aperfeiçoa sem cessar a fé mediante os seus dons”

O Mistério, uma vez acolhido, solicita todas as faculdades do homem,


envolve o homem por inteiro. Isto inclui o seu intelecto. A Revelação
prepara o homem para acolhê-la, através da graça preveniente (uma graça
atual que visa iluminar a inteligência do homem e bem dispor a sua
vontade, para que ele possa livremente aderir ao Deus que se revela). O
Mistério que se revela convida e induz à fé. Se Deus “se comunica” ao
homem, por meio da Revelação, o homem que crê, “se entrega” a Deus,
cria-se assim uma “comunhão de vida” sobrenatural ente o Deus que se
revela e o homem que crê, esta “comunhão de vida” não acrescenta nada
a Deus, mas possui um efeito santificante ou divinizante (Os orientais
chamam este efeito de Théosis) para o homem, faz com que o homem
percorra um caminho ascensional rumo à bem-aventurança eterna.

1- Revelação =
Deus
autocomunicação

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Comunhão de vida (amor),


que santica-eleva o homem

Homem (+graça
2- Fé = entrega de vida,
preveniente)
abandono confiante

A fé é uma resposta pessoal e ao mesmo tempo eclesial


(comunidade-povo).
Pessoal

Eclesial

Na teologia escolástica há duas expressões utilizadas para mostrar


dois aspectos diversos da fé que se tornaram clássicas: a)“Fides quae
creditur” (A fé que se crê) = O que se crê. É o objeto, o conteúdo da fé (fé
passiva). Relaciona-se com o credere Deum e o credere Deo; b) “Fides qua
creditur” (A fé pela qual se crê) = É a fé pela qual a pessoa acolhe a graça e
volta-se para Deus em quem crê. Relaciona-se com o Credere in Deum.
O vocábulo mystérion parece derivar de “myein”, fechar a boca, calar.
O significado comum deste vocábulo é realidade secreta (segredo), seja no
sentido de uma realidade incompreensível, seja no sentido de uma
realidade indizível (inefável) ou que não deve ser revelada25.
Este termo aparece na literatura neotestamentária: uma vez em
Marcos (4,11); uma vez em Lucas (8,10) e uma vez em Mateus (13,11),
quatro vezes no Apocalipse (1,20; 10, 7; 17, 5.7). Na literatura Paulina
aparece 20 ou 21 vezes. A idéia presente nas Cartas do cativeiro (Col. e Ef.)
é que o mistério de Deus consiste no projeto salvífico que se realiza
plenamente em Jesus Cristo. Podemos resumir em quatro pontos a
concepção paulina de Mystérion:
 Mistério escondido (1 Cor 2,7; Rm 16,25; Col 1,26 e
Ef 3,9) - Deus manteve o mistério escondido no seu Coração
até a plenitude dos tempos;

25
Cf. C. ROCCHETTA, Sacramentaria Fondamentale, Dal “Mysterion” al “Sacramentum”, EDB: Bologna,
2007, 191-220.

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 Revelação - treze textos paulinos associam o mistério à


revelação. Aquilo que era secreto desde toda a eternidade foi
revelado em Jesus Cristo: Ele é o cumprimento e o centro do
mistério. Ele é o Mistério que o Pai quis nos revelar
(Cf. Rm 16,26a; Col 1,26b; Ef 3,5.10)
 Conhecimento/manifestação - a Igreja recebeu a revelação
deste mistério. Ela possui a missão de viver e de anunciar este
mistério ao mundo. Nesta missão, os Apóstolos têm um papel
fundamental (Cf. 1 Cor 2,1; Rm 16,26; Col 1,27-28).
 A consumação do mistério ocorrerá no futuro - Parusia
(escathon, cf. Cl 1,27; Rm 5,2; 1 Cor 2,7).
Podemos dizer que na Teologia cristã o termo mystérion está
associado à ideia da Salvação (em Cristo).
O Mistério que se revela e a fé são os necessários pressupostos de
uma verdadeira teologia. Pode-se dizer que o Mistério e a Fé produzem a
Teologia.

Revelação do Mistério

Mistério – que é Jesus Cristo

Acolhido na fé

Capaz de gerar um saber que é singular: Teologia.
A Teologia nasce do esforço amoroso do homem que crê. Este
homem pensa o mistério, deseja compreende-lo, deseja dizê-lo... A
teologia nasce da fé e conduz ao amadurecimento da fé. “Sem a fé, a
teologia não teria justificação alguma, nem mesmo objeto. Compreende-
se facilmente isso, uma vez que somente a fé permite ao teólogo entrar
na posse de seu objeto”26. Segundo Santo Tomás, no momento em que
São Tomé cai de joelhos aos pés do ressuscitado que lhe mostra as suas
chagas, o incrédulo torna-se de imediato um bom teólogo27.
Teologar significa refletir sistematicamente com a razão iluminada
pela fé (lumen fidei) sobre o evento e conteúdo da Revelação.

Fé Teologia

26
Torrel, Santo Tomás de Aquino. Mestre Espiritual, 18.
27
Cf. In Joannem 20, lect. 6, n. 2562.

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O Mistério divino é o fundamento, a fonte de onde jorra a teologia,


sua “res” (objeto de reflexão).
À luz de tudo o que foi dito, compreendemos por que a Igreja não
pode não ser teóloga. Os teólogos na Igreja encarnam este
apaixonamento pelo mistério. São Tomás de Aquino os compara aos olhos
da Igreja28. O que gera os teólogos é o amor pelo Mistério. O teólogo se
sente chamado a consagrar a sua vida na contemplação amorosa do
Mistério divino, para colocar a serviço da Igreja os frutos de seu labor.

A Teologia não nasce da mera iniciativa do homem, não é um êxito


da razão humana, mas isto não significa que não se possa fazer um
discurso religioso de matriz natural, isto é, pautado apenas sobre a razão
natural do homem. Sim, pode-se falar de um discurso teológico natural
(natureza filosófica), fruto apenas do intelecto humano. Este tipo de
discurso pode ser útil para o discurso teológico cristão. Por exemplo, se
não existisse o conceito “Deus”, não poderíamos nem mesmo afirmar que
“Deus fala ao homem”. Segundo Santo Tomás, o discurso (Teológico)
sobre Deus é o vértice a atividade intelectual do homem, ápice de todo o
conhecimento humano. Do mesmo modo, pode-se afirmar que o ápice da
metafísica é a teologia natural, compreendida como especulação
filosófica. A teologia natural busca refletir sobre Deus, definindo-o como
máxima perfeição, ato puro, motor imóvel. O Concílio Vaticano I recorda
que o homem pode através da luz da razão, por meio das coisas criadas,
conhecer a Deus uno e verdadeiro, criador de todas as coisas e Senhor

Constituição Dei Filius, in: DH 302629: “Se alguém disser que o Deus uno e
verdadeiro, criador e Senhor nosso, não pode ser conhecido com certeza
pela luz natural da razão humana, por meio das coisas criadas: seja
anátema”.

Aprofundando: qual a diferença entre intelecto e razão?


O intelecto é a faculdade pela qual um ser espiritual conhece o
universal, o imaterial, a própria essência das coisas. O intellectus pode
significar também o simples e imediato olhar da inteligência (uma espécie
de intuição ou intuitus: segundo Tomás, intuitus significa a capacidade de
28
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Super Primam Epistolam ad Corinthios Lectura, cap. 12, lect, 3, in: Super
Epistolas S. Pauli Lectura, Taurini-Romae 1953, p. 375 (n.739).
29
Neste nosso trabalho, utilizaremos a sigla DH para nos referirmos ao Compêndio dos Símbolos,
definições e declarações de fé e moral (Organizado por H. Denzinger), Paulinas: São Paulo 2006.

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englobar por um ato único a totalidade do objeto) 30. O intelecto humano


é uma faculdade espiritual do homem, uma potência espiritual (cf. S.
Theol. I q. 79 a. 1 co), que tem como objeto a quididade (essência) das
coisas sensíveis31. O termo “inteligência” (Intelligens é um particípio
presente de intellegere) é usado por Tomás de Aquino, para designar a
atividade (ato) do intelecto (potência espiritual). Em alguns textos, Santo
Tomás se refere aos anjos como as Inteligências, pois eles possuem um
intelecto em ato.
A palavra ratio possui dois significados ao mesmo tempo
inseparáveis e diferentes. Ou se trata da faculdade de pensar (raciocinar),
ou, então, se trata da própria realidade, aquilo pelo qual ela é aquilo que
ela é32.
No primeiro sentido, a razão se distingue do intelecto. O Intelecto
possui duas funções, ele vê e busca compreender as realidades. A razão
indica a segunda atividade, ela coincide com a função discursiva do
intelecto humano, diferente da função intuitiva (primeira atividade)
própria do intelecto. Pela razão o homem avança de uma verdade a outra
por um enquadramento denominado raciocínio (compor, dividir, passar
do universal ao particular e vice-versa, dedução, indução, demonstrar, cf.
S. Theol. I q. 79 a. 8; q. 85 a.5). O conhecimento do homem é construído
através de argumentos, de conexões, de silogismos.... é um processo que
precisa de tempo para se realizar. Na ratio do homem se manifesta a
humildade do intelecto humano, que não compreende tudo de uma só
vez, mas que precisa de tempo e de esforços para chegar a compreensão
das realidades. Devemos nos lembrar que a razão humana pode se
enganar, ela não é perfeita. Tomás de Aquino retoma uma terminologia
agostiniana quando distingue a razão superior da razão inferior (S. Theol. I
q. 79 a. 9 co), a primeira se orienta a comtemplar e a conhecer as
realidades eternas, enquanto a segunda se orienta para as realidades
temporais. Lembre-se que para Tomás, as realidades temporais são um
meio para que se chegue ao conhecimento das realidades eternas.
O homem teológico (homo theologicus) é aquele que raciocina no
âmbito da fé.

Pode-se dizer que a Teologia é graça, na medida em que não é o


homem que retira o véu do mistério, mas é o próprio Deus quem se revela

30
Cf. M.-J. NICOLAS, Vocabulário da Suma Teológica, in: TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica (vol. I),
Loyola: São Paulo, 2001, p. 86.
31
Cf. H.-D. Gardeil, Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino (Vol. I- Psicologia, Metafísica),
Paulus: São Paulo, 2013, 110.
32
Cf. NICOLAS, Vocabulário da Suma Teológica, p. 96.

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e convida o homem à fé. Deus revela o seu segredo, a sua intimidade...


Quando se diz que Teologia é graça, exclui-se a possibilidade de que ela
seja um dever ou um direito do homem. Já que o objeto da teologia não é
proporcional ao intelecto natural do homem.

Deus se revelou livremente, neste sentido, os teólogos dizem que a


revelação não era uma necessidade. A teologia é, então, um fruto de uma
decisão livre de Deus de revelar-se:

Dei Verbum n. 2: “Aprouve a Deus. na sua bondade e sabedoria, revelar-


se a Si mesmo e dar a conhecer o mistério da anselmsua vontade (cf. Ef
1,9), segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado,
têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza
divina (cfr. Ef. 2,18; 2 Ped. 1,4). Em virtude desta revelação, Deus invisível
(cfr. Col 1,15; 1 Tim 1,17), na riqueza do seu amor fala aos homens como
amigos (cfr. Ex 33, 11; Jo 15,1415) e convive com eles (cfr. Bar 3,38), para
os convidar e admitir à comunhão com Ele. Esta ‘economia’ da revelação
realiza-se por meio de ações e palavras intimamente relacionadas entre si,
de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na história da salvação,
manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas
palavras; e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o
mistério nelas contido. Porém, a verdade profunda tanto a respeito de
Deus como a respeito da salvação dos homens, manifesta-se-nos, por esta
revelação, em Cristo, que é, simultaneamente, o mediador e a plenitude
de toda a revelação”.

Na sua relação com o mistério revelado, a razão humana deve


conservar o sentido do mistério, no exercício da sua atividade, a razão
deve reconhecer a transcendência do objeto da teologia e seus próprios
limites, deve contemplar com respeito e amor este objeto, pode-se falar
de uma razão orante, adorante ou contemplativa, como o ideal para a
teologia. O grande inimigo da razão, no teologar, é a presunção, “mater
erroris”33. A razão presunçosa se apresenta como medida da realidade e
referência para a verdade, ela já possui a verdade, não precisa busca-la
humildemente.
33
Summa contra Gentiles, I, 5: “(praesumptio), quae est mater erroris”. Cf. também I. BIFFI, Il mistero
dell’esistenza cristiana: conformi all’immagine del Figlio, Milano 2002, p. 21.

12
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Pela teologia, a razão não se torna Senhora ou patroa do mistério,


não toma posse do mistério, o mistério continua tal, transcendente,
inefável, mesmo que ele se deixe tocar pela razão humana, iluminada pela
fé. O mistério se revela, mas mantém sempre o seu rosto velado.

Santo Tomás, na Suma contra os Gentios (I, 8, 4), cita Santo Hilário de
Poitiers:

“Começa tu crendo nisto, prossegue, persiste. Mesmo sabendo que


não chegarei, contudo, alegrarme-ei por ter progredido. Quem
piedosamente busca a verdade infinita, mesmo que algumas vezes não a
alcance, progride sempre na sua busca. Mas, não queira penetrar naquele
mistério, nem mergulhar no arcano da geração eterna, presumindo
compreender a suprema inteligência: saibas, que há coisas
incompreensíveis (II Sobre a Trindade 10; PL 10,58C-59A)”

Podemos afirmar que a Teologia é uma expressão da vida teologal,


uma atividade em que as virtudes da fé, da esperança e da caridade são
exercidas plenamente. Se Tomás de Aquino, por exemplo, sublinha a
importância da fé para a Teologia, é porque ele a entende, à luz da
Sagrada Escritura, não meramente como uma simples adesão intelectual
ao conjunto das verdades das quais se ocupa o teólogo, mas como a
adesão vital de toda a pessoa ao Deus que se revela 34, uma adesão que se
manifesta concretamente também na adesão intelectual a certas
formulações que indicam o conteúdo central do mistério revelado.

1.3- Cristo e a Revelação


Cristo é ápice da revelação divina. Depois de ter dito (no n. 2) que
Cristo é simultaneamente o mediador e a plenitude da revelação
(mediator et simul plenitudo totius revelationis), a Constituição conciliar
Dei Verbum afirma (no n. 4) que Jesus Cristo, especialmente pela sua
morte e ressurreição, completa e consuma a Revelação:

Dei Verbum n. 4: “Depois de ter falado muitas vezes e de muitos modos


pelos profetas, falou-nos Deus nestes nossos dias, que são os últimos,
através de Seu Filho (Hb 1, 1-2). Com efeito, enviou o Seu Filho, isto é, o
Verbo eterno, que ilumina todos os homens, para habitar entre os
34
Cf. Torrel, Santo Tomás de Aquino. Mestre Espiritual, 17.

13
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homens e manifestar-lhes a vida íntima de Deus (cf. Jo 1, 1-18). Jesus


Cristo, Verbo feito carne, enviado ‘como homem para os homens’, ‘fala,
portanto, as palavras de Deus’ (Jo 3,34) e consuma a obra de salvação que
o Pai lhe mandou realizar (cf. Jo 5,36; 17,4). Por isso, Ele, vê-lo a Ele é ver
o Pai (cfr. Jo 14,9), com toda a sua presença e manifestação da sua pessoa,
com palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e
gloriosa ressurreição, enfim, com o envio do Espírito de verdade,
completa totalmente e confirma com o testemunho divino a revelação, a
saber, que Deus está conosco para nos libertar das trevas do pecado e da
morte e para nos ressuscitar para a vida eterna.
Portanto, a economia cristã, como nova e definitiva aliança, jamais
passará, e não se há de esperar nenhuma outra revelação pública antes da
gloriosa manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo (cf. 1 Tm 6,14; Tt
2,13).
Como Deus se revela? Através de palavras e gestos (“voces et res”), a
revelação não é sinônimo apenas de revelação não é sinônimo apenas de
transmissão de ideias e conceitos, mas ele acontece também através de
gestos simbólicos. Deus se revela na história, em acontecimentos
concretos, perceptíveis na história da salvação. Os Padres gregos afirmam
que Deus se revela mediante a “economia” da história salvífica.

Cristo é o objeto e o sujeito da revelação Divina. Ele é a Palavra que


Deus quis dirigir à humanidade, Palavra viva, eterna e divina.

Aprofundando: A Palavra de Deus. A Palavra (dabar), no AT, não é


apenas um som emitido pelo homem e que possui um significado, não
significa apenas um conceito abstrato, mas é uma expressão do “coração”,
isto é, do centro unitário da pessoa. O termo tem um valor dinâmico,
porque manifesta os pensamentos, as intenções, as ideias, o ser e a
personalidade de quem fala. Quando Deus pronuncia a sua palavra (o seu
dabar), esta se torna criativa e eficaz (Sl 147,15); de um certo modo,
irreversível (cf. Is 55,11). A Palavra de Deus tem o poder de realizar o que
ela significa-diz: por exemplo, quando Cristo diz que uma pessoa está
curada, que ela pode se levantar e andar, junto com a sua palavra, ele
oferece a graça da cura e a força necessária para que a pessoa coloque em
prática o que ele disse. Pode-se dizer que a Palavra de Deus possui, como
dizia santo Agostinho, uma estrutura de tipo sacramental, matéria (palavra

14
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material, elemento sensível-visível) e graça (significado divino- eficácia –


poder divino, elemento suprassensível-invisível).

“Dabar” significa ao mesmo tempo “logos” (pensamento, palavra) e


“pragma” (fato, ação). Tudo isso que dissemos, vale tanto para o homem,
quanto para Deus.

A Palavra divina é uma palavra viva e eficaz, exprime a ação criativa de


Deus, por exemplo: "Pela Palavra de Deus foram feitos o os céus " (Salmo
33,6; cf. também a primeira narração da criação em Gn 1,1-2,4a). Ela é
mediadora da ação e da revelação de Deus. Alguns textos bíblicos parecem
indicar que a Palavra de Deus é um ser pessoal. No salmo 147,15, lemos
que: "Manda sobre a terra a sua palavra, o seu mensageiro corre veloz". A
palavra de Deus não parece se identificar completamente com Deus, mas
“possui” o seu poder. Podemos afirmar que progressivamente a Palavra de
Deus vai sendo compreendida como mediadora da criação, no sentido de
que é por meio dela, que Deus confere o “ser” (existir) à criação e a ordena.

Esta ideia chegará ao seu ápice com a Encarnação do Logos, da Palavra


de Deus.

Revelação é comunicação, quando dizemos que Deus se revelou,


dizemos que Deus se auto-comunicou, ele não apenas oferece um
conjunto de verdades, mas ele se oferece ao homem, para que o homem
o experimente, através da sua Palavra, dos seus gestos, para que o
homem entre em relação de comunhão com Ele, através da fé.

A teologia afirma que toda a Revelação é Cristológica, pois o dar-se a


conhecer de Deus, o seu revelar-se, realiza-se por meio do Verbo
(Palavra), inclusive antes da Encarnação. A Revelação entendida deste
modo, seria uma manifestação progressiva do dom de Cristo, da graça de
Cristo.

Hb 1,1s: “Muitas vezes e de muitas formas, Deus falou no passado a


nossos pais por meio dos profetas. Nesta etapa final nos falou por meio do
Filho, a quem nomeou herdeiro de tudo, por quem criou o universo”

15
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1.4- Os dois caráteres da Teologia


A teologia acontece na fronteira entre o silêncio e o discurso
amoroso. Podemos falar de dois caráteres da Teologia35:

- Caráter catafático ou positivo: expressa tudo o que pode ser dito,


transmitido acerca de Deus. Normalmente o caráter catafático se
manifesta quando se fala dos atributos divinos revelados (amor,
misericórdia) e às manifestações de Deus no mundo (O Verbo se fez carne,
Deus fez uma aliança com Abraão);

- Caráter apofático36 ou negativo: exprime tudo o que Deus não é, já


que ele supera tudo o que o homem pode compreender... Exemplo: Deus
é imortal = Deus não é mortal; Deus é infalível = Deus não falha, não tem
defeitos.... e assim por diante.

Caráter Onde Fundamento


Riscos que Qualidades
prevalece? teológico
ameaçam o requeridas
teólogo
Catafático Ocidente Encarnação do Orgulho- Humildade
Verbo Presunção
Apofático Oriente Transcendência Preguiça Labor
divina
Quanto mais a teologia se aproxima de Deus, mais ela cresce na
consciência da diferença infinita que existe entre Deus e o criado
(incluindo o homem), isto a convida ao silenciar, mas ao mesmo tempo,
quanto mais ela se depara com Deus, mas ela necessita dizê-lo. Esta
situação paradoxal, é evidenciada por Tomás de Aquino no seu
comentário ao De Trinitate de Boécio (cf. Super De Trinitate pars 1 q. 2 a. 1
arg 6), quando afirma que “a Deus se deve a honra, esta honra se presta
conservando o Seu segredo, isto é, o que foi revelado”; o pseudo-Dionísio,
na mesma linha escreve: “honramos com o segredo, aquilo que está acima
de nós”; São Jerônimo: “O Deus, com o silêncio te louvo”. Todas estas
afirmações parecem ir contra a possibilidade de um discurso teológico.
Santo Tomás, combate este pensamento, afirmando que o não refletir

35
No Oriente cristão prevalece uma teologia que poderia ser chamada apofática ou negativa, que tenta
preservar ao máximo a áurea do mistério. No Ocidente, prevalece uma teologia que poderia, ser descrita,
especialmente a partir da teologia escolástica, como uma teologia catafática ou positiva.
36
Cf. Y. SPITERIS, Apofatismo, in: Lexicon – Dicionário Teológico Enciclopédico, São Paulo 2003, 41-
42.

16
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sobre Deus, o não teologar, seria um sinal de descaso, de indiferença, com


Deus. O Silêncio teológico deve ser entendido como sendo a consciência
que o teólogo deve possuir, de que por mais que ele se esforce, tudo o
que ele possa compreender e dizer a respeito de Deus, é como uma gota
de água, diante do oceano da verdade divina. Nunca chegaremos a
compreender inteiramente a Deus (só o próprio Deus pode compreender-
se inteiramente).

Para aprofundar: A diferença entre compreender e entender em


Santo Tomás de Aquino: Santo Tomás afirma que comprehendere
significaria quase um tomar posse de uma verdade (prendere = tomar
posse, tomar posse, aprisionar). Compreender uma verdade (ou um ser)
significaria, então, ser capaz de explicá-la em todos os seus aspectos.
Neste caso, um homem pode compreender Deus? Não. Mas, o homem
pode entender Deus. Entender provém do latim “intendere”: “in” (em,
dentro) + “tendere” (tender, ir). O termo “intellectus” deriva de
“intendere” e significa intus legere, “intus” (dentro) + “legere” (ler), ler o
que está dentro, ou “intus ire”, ir ao interior da realidade e conhecê-la.

Deus não se revela de um modo que o homem possa compreendê-


lo inteiramente: a distância entre Deus e o homem é infinita, mesmo o
homem no céu, o beato, não chegará jamais ao final da contemplação de
Deus; Deus será sempre, de um certo modo, uma novidade para ele, o
homem não se cansará de surpreender-se na contemplação divina, neste
sentido, podemos dizer que o céu será uma eterna surpresa. Eternamente
o homem se surpreenderá com Deus, contemplará o Senhor e encontrará
nele a sua bem-aventurança eterna.

Mas, apesar do que acabamos de dizer, devemos nos recordar que


Deus e o seu mistério não é “indizível” (inefável). Deus quis se revelar ao
homem, com uma linguagem compreensível ao homem, com gestos que
pudessem ser entendidos pelo homem...

Para aprofundar: Santo Tomás de Aquino fala de dois modos de


conhecimento de Deus.

17
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Existe um saber teológico que acontece per modum cognitionis (pelo


modo cognitivo), que é obtido per studium (pelo estudo)37. Os princípios
deste modo de conhecimento de Deus, provém da Revelação (cf. S. Theol.
I , q. 1, a. 6, arg. 3 e ad. 3). Este tipo de saber, exige a graça da fé e um
grande esforço do homem, que através do estudo teológico, participa da
luz da auto-contemplação divina. Através da fé, o teólogo busca a face de
Deus. Por isso, pode-se dizer que a teologia precede, tende para a visão
beatífica. Pela teologia explica-se, com todos os limites humanos e
científicos, a verdade, que será contemplada perfeitamente na visão
beatífica (cf. 3 Sent. 25, 2, 1, 3 c).

Existe também um segundo modo de saber teológico (cf. S. Theol. I,


q. 1, a. 6, ad. 3) que acontece per modum inclinationis38 (por uma
inclinação, pela divinização ou pela santificação pessoal), através do qual o
sujeito vai crescendo na “sintonia de vida” com o objeto do saber
teológico (Deus). Esta teologia-sabedoria é um dom divino, dom do
Espírito Santo, caracteriza, segundo a doutrina de Paulo, o homem
espiritual (santo). O conhecimento não provém do simples “aprender”
(fruto do estudar), mas do experimentar. Este conhecimento deriva do
amor e é mais intrínseco ao homem e mais perfeito do que o
conhecimento adquirido per studium.

O ideal da vida cristã, é percorrer o caminho do conhecimento de


Deus por meio do estudo e da mística. Uma verdadeira teologia convida o
homem à oração, uma verdadeira vida de oração convida o homem a
refletir sobre o mistério de Deus (Teologar). Autores como J. Ratzinger e
H. U. von Balthasar insistem no fato de que uma verdadeira teologia é
uma teologia feita de joelhos, ou seja, orante/contemplativa.

O estudo teológico requer a mesma fé que a vida cristã ou a oração


e, ainda que sejam atividades diferentes, é uma mesma fé que nelas se
exprime39. “Oração contemplativa ou especulação teológica serão
variedades especificamente diferentes em sua articulação psicológica; mas
37
Cf. INOS BIFFI, Teologia in San Bernardo e in San Tommaso, in: Aa. Vv., Sapere e contemplare il
mistero. Bernardo e Tommaso (Atti di inaugurazione della Cattedra Benedetto XVI di teologia e
spiritualità cisterciense – Abbazia di Santa Croce in Gerusalemme – Angelicum – 8 a 10 novembre
2007), Milano 2008, pp. 22-27.
38
Cf. INOS BIFFI, Teologia in San Bernardo e in San Tommaso, pp. 27-29.
39
Cf. Torrel, Santo Tomás de Aquino. Mestre Espiritual, 31.

18
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em sua estrutura teologal têm o mesmo objeto, o mesmo princípio, o


mesmo fim”40.

A encarnação de Cristo é o fundamento teológico do discurso


teológico (catafático), Deus se fez homem, assumiu uma natureza
humana, falou a língua dos homens, e através da sua humanidade, realiza-
se a plenitude da Revelação.

A Razão humana não deve buscar uma desculpa na infinita diferença


entre Deus e o homem, para não pensar o mistério, para não refletir sobre
o mistério revelado. Só uma razão preguiçosa ou arrogante, se fecha à
“revelabilidade” de Deus. Revelando-se Deus, continua envolto na esfera
do mistério.

Pode-se dizer que contemplar = ver a Deus com os olhos de Cristo


(amor filial). No caso do homem, mesmo participando deste olhar, não
pode compreender a Deus, como Deus compreende a si mesmo, caso
contrário o homem seria Deus. Esta realidade não ocorrerá nem mesmo
na eternidade beata, quando o intelecto humano será glorificado pela
graça. O beato, como dissemos, viverá imerso em um estupor eterno, ele
se maravilhará eternamente com a grandeza, beleza, bondade... de Deus.
“O Espírito explora tudo, inclusive as profundidades de Deus (...) Ninguém
conhece o próprio de Deus senão o Espírito de Deus” (1 Cor 2,10-11).

Aprofundando: A fé, entendida como uma luz de conhecimento,


chegará à sua plenitude e ao mesmo tempo ao seu fim, na visão beatífica
(céu). A fé tende para a visão do mistério crido (cf. 1 Jo 3,2: “Amados,
agora, somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que haveremos
de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a
ele, porque haveremos de vê-lo como ele é”).

Se de um lado nós temos Deus que se revela, se comunica


(comunica-se, revelando-se, e, revela-se, comunicando-se, através da sua
Palavra e de sinais-gestos na história concreta), do outro, nós temos o
homem como seu interlocutor, como ouvinte, capaz de acolher esta
revelação. Podemos entender esta capacidade do homem em dois níveis:

40
M.-D. Chenu, La foi dans l’intelligence, Paris 1964, 134.

19
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- o homem é capaz (capacidade natural) de conhecer naturalmente


através da sua razão, a partir da criação (Revelação natural). Neste
sentido, pode-se dizer que o Homem é ouvinte de Deus (ordem natural),
por meio da natureza, das criaturas, da sua própria consciência;

- o homem é capacitado pela graça de Deus (capacidade


sobrenatural) a acolher e aderir à Revelação (Revelação sobrenatural), e a
aderir pela fé, à Revelação.

Rufino (IV século) já afirma que a alma humana é capaz de Deus


(Anima capax Dei). Agostinho cunha a expressão Homo capax Dei,
partindo do fato de que o homem foi criado à imagem e semelhança de
Deus (Cf. De Trinitate XIV,8,11). São Boaventura cita Santo Agostinho no
seu comentário ao livro das sentenças de Pedro Lombardo (cf. II Sent. D.
16 a. 1 q. 1 c). Para Agostinho e Tomás de Aquino a fórmula significa tanto
a capacidade de conhecer a Deus, quanto a capacidade de experimentar a
bem-aventurança eterna (fruir Deus no Céu)41.

Não devemos confundir a revelação natural com a revelação


sobrenatural: o homem não tem o direito de receber a graça, não pode
exigi-la, ela é sempre dom gratuito de Deus, manifestação da sua bondade
infinita.

Para aprofundar42: os escolásticos distinguiam 3 tipos de luzes que podem


iluminar a razão humana: 1- Lumen rationis (luz da razão): é a luz natural
que permite à razão humana o conhecimento natural da realidade; 2-
Lumen fidei (luz da fé): é a luz sobrenatural que permite à razão humana
adentrar no objeto da revelação; 3- Lumen gloriae (luz da glória): trata-se
da luz beatífica que permitirá à razão humana ver a face de Deus no céu.

Todos os homens são chamados por Deus à salvação. Deus chama o


homem à salvação através do seu Verbo, através da graça do seu Verbo
encarnado. Mesmo que o homem não conheça o nome de Cristo, se ele
busca sinceramente a Deus, não lhe faltará certos raios da luz de Cristo,

41
Cf. De Civ. Dei 9,14; S. Theol. II-II q. 25 a. 12 ad 2; III q. 9 a. 2 ad 3.
42
Cf. R. FISICHELLA, Lumen Fidei (Gloriae, Rationis), in: Lexicon – Dicionário Teológico Enciclopédico,
São Paulo 2003, 450-451.

20
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para que ele possa chegar à salvação. Só Cristo salva, mesmo sabendo que
Deus pode conduzir os homens à salvação por muitas estradas, a salvação
é sempre em Jesus Cristo, mesmo que o homem não o conheça
explicitamente (pode-se dar um conhecimento implícito de Deus, pela
ação da graça divina. Quem busca a verdade, recebe do Pai uma “luz
crística”). O Cristão não salva ninguém, só Cristo salva, mas ele (cristão)
deve anunciar Jesus Cristo, como único Salvador.

Instrução Dominus Iesus da Congregação para a Doutrina da Fé (2001) n.


14: “Deve, portanto, crer-se firmemente  como verdade de fé católica que a
vontade salvífica universal de Deus Uno e Trino é oferecida e realizada de
uma vez para sempre no mistério da encarnação, morte e ressurreição do
Filho de Deus”.

1.5- Deus, objeto ou sujeito da Teologia?


A linguagem filosófica emprega o termo objeto para tratar de Deus
na Teologia Natural (Teodiceia). Tomás de Aquino utiliza o termo sujeito
para falar de Deus na Sacra Doctrina (Teologia).

Para o santo domenicano o termo sujeito designa a realidade viva e


operante de que trata a teologia. É a realidade da qual se busca conhecer
e explicar os predicados e atributos a partir de sua essência. Ao contrário
do objeto das outras ciências, Deus só pode ser estudado pela teologia por
ter querido se revelar e por nos ter oferecido a graça necessária para
aderirmos pela fé ao seu amor. Deus não é o simples objeto da teologia,
mas a teologia se fundamenta na sua revelação e na sua graça
(preveniente), que interpelam e capacitam o homem a uma resposta de
fé.

Para Tomás, Deus é o sujeito da Teologia:

“Na sacra doctrina, tudo é considerado do ponto de vista de Deus


[sub ratione Dei]: ou porque se trata do próprio Deus ou de algo que a Ele

21
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se refere como a seu princípio ou a seu fim. Segue-se, então, que Deus é
verdadeiramente o sujeito desta ciência”43.

Este modo de indicar Deus, coloca em relevo a sua transcendência.


Quando o teólogo pensa sobre Deus, ele acolhe-elabora em seu intelecto,
uma série de ideias (conceitos) que expressam o sujeito de seu teologar.
Os conceitos são o que se pode chamar o objeto da ciência teológica. O
objeto da ciência seria o conjunto de conclusões que ele consegue
estabelecer a respeito do sujeito. Deus (sujeito) é sempre mais do que
possamos conhecer (ideias-conceitos) dele. Na vida teológica, o teólogo
deve buscar a Deus (sujeito) como fim, o objeto (conjunto de ideias-
conceitos-conclusões a respeito de Deus) tem um valor instrumental.
Existe sempre uma inadequação entre o objeto e o sujeito
(transcendência), afinal de contas a inteligência humana, apesar da graça,
continua a ser criatural e finita.

“Falar de Deus como sujeito é dizer que ele não se reduz a um objeto
– nem sequer ao mesmo objeto mental purificado que o teólogo pode
conhecer. Um sujeito é uma pessoa que se conhece e que se ama (porque
se deu a conhecer e a amar), que se invoca e que se encontra na
oração”44.

O teólogo não pode esquecer que ele acolhe a verdade revelada, que
no fundo é a ciência que Deus tem de si mesmo, oferecida ao homem.
Deus no seu amor, oferece ao homem uma participação na sua ciência
divina, uma participação mediada pela ciência do Cristo. O teólogo é
capacitado pela graça a acolher o conhecimento da revelação, só pela
graça ele pode fazer teologia. Isto significa que o teólogo participa da
ciência divina e vai sendo introduzido pela fé no âmbito da ratio divina. O
raciocínio teológico busca colher a lógica ou as razões. O pensar teológico
é no fundo uma participação na inteligência humana de Cristo, lugar da
perfeita e plena revelação de Deus ao homem. O pensar teológico é
crístico, como já dissemos.

Na primeira questão da S. Theol. I, Tomás ensina que a teologia,


apesar de ser superior a todas as outras ciências humana (naturais), é uma
43
S. Theol. I q. 1 a. 7 co.
44
Torrel, Santo Tomás de Aquino. Mestre Espiritual, 24.

22
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ciência “subalterna”, na medida em que não possui a evidência de seus


princípios, mas precisa de uma outra ciência (principal) que lhe oferece os
princípios necessários pela certeza de suas demonstrações (Assim a óptica
com os princípios que lhe oferece a geometria, e a música com as leis
matemáticas45). A ciência que tem a evidência das verdades das quais
trata a teologia é o conhecimento que Deus tem de si mesmo e de seu
desígnio de salvação para a humanidade. Esta ciência é comunicada pela
graça da união hipostática à humanidade de Cristo (revelador), depois aos
bem-aventurados na pátria, que gozam da visão beatífica, graças à lumen
gloriae, e também, graças à lumen fidei, aos homens, que ainda
peregrinam neste mundo, rumo à pátria definitiva.

Pode-se dizer que na penumbra da fé se articulam a ignorância do


homem e a ciência divina.

Pelo fato da teologia ser uma ciência subalterna (em relação à ciência
divina), Tomás escreve:

“é por uma mesma ciência que Deus se conhece e realiza tudo o que
faz, ela será, entretanto, mais especulativa do que prática, porque se
refere mais às realidades divinas do que aos atos humanos. Ela não trata
dos atos humanos, se não na medida em que é por eles que o homem se
orienta ao perfeito conhecimento de Deus, no qual consiste a bem-
aventurança”46.

À luz de seu ensinamento, devemos recordar que Tomás não


conhece a distinção que se tornou tão familiar para nós entre teologia
dogmática e teologia moral. O saber teológico ordena-se para o agir, a
teologia é principalmente especulativa, mas abraça todo o agir humano
(moral, pastoral). Para o Angélico, a Sacra Doctrina engloba tudo, por isto
ele está apto a oferecer à Igreja, uma verdadeira e grande síntese do
saber teológico.

Quando Tomás afirma que a Deus mesmo é o sujeito da teologia, isso


significa que:

45
Cf. S. Theol. I q. 1 a. 2 co.
46
S. Theol. I q. 1 a. 4 co.

23
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

“é preciso voltar até Deus para encontrar a chave explicativa de


todas as outras perspectivas unicamente descritivas. Não mais que a
criação, a redenção não se explica unicamente em termos de obra
realizada; deve-se recorrer ao sujeito que teve a iniciativa dela, Deus
mesmo em seu amor misericordioso. De modo algum a Igreja pode
explicar-se por si mesma, deve-se voltar-se para Aquele que é a sua
Cabeça, Cristo, e ele em sua humanidade é o enviado do Pai e da
Trindade. Em tudo o que se ocupa, o teólogo é remetido sem cessar até a
origem primeira que é o Amor em sua fonte trinitária. Concretamente,
Tomás conclui, isso quer dizer que tudo em teologia, absolutamente tudo,
deve ser considerado em relação a Deus; é dele que procedem todas as
coisas, é para ele que se encaminham todas as criaturas”47.

A teologia experimentará um verdadeiro drama que a conduzirá a


um verdadeira decadência, quando se deixar levar pelo conceito de
ciência como habitus das conclusões e esquecida da distinção entre
sujeito e objeto, propuser como seu fim não mais o conhecimento do
sujeito, mas do objeto.

J.-P. Torrel ensina que a teologia não é estranha ao movimento do


ser cristão em busca de Deus, ao contrário, situa-se no caminho que vai da
trajetória da fé à visão beatífica. O teólogo, ao contrário dos sábios de
outras ciências, não precisa abandonar a sua ciência para encontrar a
Deus, mas deve-se deixar conduzir até o fim na busca de sua ciência, até o
fim último desta, que coincide com o fim último de sua vida de fé: o
próprio Deus48.

Para aprofundar: A fé como habitus da teologia.

A fé desempenha na teologia o papel que o habitus dos primeiros


princípios desempenha em nosso conhecimento natural. Na linguajar de
Tomás, habitus (em grego: hexis) é, ao contrário do nosso entendimento
atual (hábito: mecanismo fixo, rotina), uma capacidade inventiva,
perfectiva da faculdade na qual ela se enraiza (inteligência, vontade, etc) e
à qual dá uma perfeita liberdade em seu exercício. Vejamos dois
exemplos: a habilidade de um artista é um habitus, o saber de um
47
Torrel, Santo Tomás de Aquino. Mestre Espiritual, 25.
48
Cf. Torrel, Santo Tomás de Aquino. Mestre Espiritual, 22.

24
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cientista também. A fé reside no homem, em forma de habitus, de um


aperfeiçoamento especial que eleva a capacidade natural de conhecer à
altura de um novo objeto, ou melhor, sujeito, isto é, Deus e o mundo das
realidades divinas. Torrel49 acrescenta que o sensus fidei seria a
capacidade de entender “naturalmente” as realidades sobrenaturais como
um amigo compreende seu amigo, sem que seja necessário um discurso 50.

A fé torna possível o nascimento e o desenvolvimento da do saber


teológico ao pôr em continuidade o saber humano natural com o saber
que Deus tem de si mesmo51.

2- Teologia Sistemática
Em 1 Pd 3,15 o cristão é exortado a oferecer as razões da sua fé e da
sua esperança ao mundo. Em outras palavras, o autor da carta afirma que
a fé cristã pode ser apresentada de forma racional.

49
Torrel, Santo Tomás de Aquino. Mestre Espiritual, 27.
50
Cf. S. Theol. III q. 1 a. 6 ad 3.
51
Torrel, Santo Tomás de Aquino. Mestre Espiritual, 31.

25
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1 Pd 3,15: “santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando


sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da
esperança que há em vós”.

Por esta razão, desde o II século, muitos teólogos (Aristides, Justino,


Taciano, Atenágoras) buscaram na filosofia um instrumento para
apresentar de modo racional a fé cristã. A primeira apresentação da fé
cristã que poderíamos chamar de sistemática, foi realizada por Santo
Irineu de Lyon († por volta do ano 200) na sua obra Adversus haereses
(Contra as heresias), composta por volta do ano 180. Nesta obra, Irineu
compara o conteúdo e a forma da fé católica com a gnose valentiniana.
Ele foi definido por muitos, como o fundador da teologia dogmática52.

Nos primeiros séculos não havia uma divisão da Teologia em diversas


disciplinas, como hoje. Uma certa estrutura sistemática da Teologia nasce na
idade média (Adágio: Distinguir, mas não dividir). Por volta da metade do
século XII acontece a separação do Direito Canônico (Decretum Gratiani,
Bologna, 1142?). Na idade média a missão do professor de teologia era
comentar a Sagrada Escritura, iluminado pelos Padres da Igreja (Tradição) e
pelas decisões conciliares (Magistério). Um exemplo deste trabalho pode ser
apreciado na obra de Pedro Lombardo: Liber sententiarum. O ideal do
teólogo era a construção de um Summa Theologica, o que fez Santo Tomás
de Aquino.

Nos séculos XVI e XVII, o avanço da ciência histórica e da filologia, faz


com que se separem da teologia a História da Igreja e a Exegese. Por volta
do século XVII surge a expressão “teologia dogmática (e escolástica)”
dividida em dois âmbitos a dogmática positiva (descrição dos dogmas) e a
dogmática especulativa (explicação sistemática dos dogmas). No século XVII-
XVIII surge a Teologia Moral como disciplina central da Teologia prática
(Tudo indica que foi o teólogo luterano Georg Calixt, † 1656, que concebeu
pela primeira vez a teologia dogmática como uma disciplina autônoma e a
distinguiu da Teologia Moral). No século XIX surge a teologia apologética,
mais tarte conhecida como Teologia fundamental (cujo objetivo é
fundamentar a possibilidade de uma revelação definitiva de Deus na

52
Cf. M. SCHULZ, Dogmatica, Lugano 2002, p. 23.

26
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história. O iluminismo criticava a possibilidade mesma de uma revelação


divina de Deus na história).

A dogmática possuía dois grandes métodos: histórico (dogmática


positiva) e filosófico ou especulativo (dogmática especulativa). Depois do
Concílio Vaticano II, em vista de um ensino mais didático da Teologia,
solicita-se que os professores de teologia não isolem a doutrina da história.

Optatam Totius (Documento sobre a formação sacerdotal) n. 16: “A


teologia dogmática ordene-se de tal forma que os temas bíblicos se
proponham em primeiro lugar. Exponha-se aos alunos o contributo dos
Padres da Igreja oriental e ocidental para a Interpretação e transmissão
fiel de cada uma das verdades da Revelação, bem como a história
posterior do Dogma tendo em conta a sua relação com a história geral da
Igreja. Depois, para aclarar, quanto for possível, os mistérios da salvação
de forma perfeita, aprendam a penetra-los mais profundamente pela
especulação, tendo por guia Santo Tomás, e a ver o nexo existente entre
eles. Aprendam a vê-los presentes e operantes nas ações litúrgicas e em
toda a vida da Igreja. Saibam buscar, à luz da Revelação, a solução dos
problemas humanos, aplicar as verdades eternas à condição mutável das
coisas humanas e anuncia-las de modo conveniente aos homens seus
contemporâneos”.

A Teologia sistemática é o refletir sobre o mistério, buscando


articular os diversos aspectos e conteúdos deste mistério, segundo as suas
conexões lógicas.

Constituição Dei Filius, Concílio Vaticano I, DH 3016: “Decerto, a razão,


iluminada pela fé, quando busca diligente, pia e sobriamente, consegue,
com a ajuda de Deus, alguma compreensão dos mistérios, e esta
frutuosíssima, quer pela analogia das coisas conhecidas naturalmente,
quer pela conexão dos próprios mistérios entre si e com o fim último do
homem; nunca, porém, se torna capaz de compreendê-los como
compreende as verdades que constituem o seu objeto próprio. De fato, os
mistérios divinos por sua própria natureza excedem de tal modo a
inteligência criada, que, mesmo depois de transmitidos por revelação e
acolhidos pela fé, permanecem ainda encobertos com o véu da mesma fé
e como que envoltos em certa escuridão, enquanto durante esta vida

27
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mortal “somos peregrinos longe do Senhor, pois caminhamos guiados pela


fé e não pela visão” [2Cor 5,6s]”.
A Teologia Sistemática nasce do esforço de identificar as razões de
Deus, a lógica contida no ato e no conteúdo da Revelação de Deus. A
Sistemática busca individuar o “Ordo” (Ordem) do Mistério revelado na
história. Examinando e refletido sobre cada momento, não pode perder
de vista o todo. O todo da revelação é Cristológico, pois tudo Deus se
revelou ao homem através do seu Logos.

Observações sobre a noção de Sistema.

Sistema= É um conjunto de elementos interdependentes de modo a


formar um todo organizado. Uma característica comum de um sistema é
que normalmente existe um fluxo de informação-energia-matéria entre os
órgãos do sistema.

Sinergia é a boa integração do sistema.

A teologia sistemática é um sistema de tipo conceitual (e não físico).

O caminho de reflexão parte da Sagrada Escritura (alma da teologia),


percorre a história da teologia identificando os elementos da Sagrada
Tradição (Padres, Doutores da Igreja, fontes litúrgicas, etc.) e o
ensinamento do Magistério. Une-se, neste itinerário o método histórico
ao especulativo.
Toda a teologia é cristológica ou crística. Cristo é a Palavra (Logos)
que o Pai quis dirigir ao homem53.

Teologia = Reflexão sobre o Mistério revelado = Cristo

A partir do Mistério de Cristo é que podemos “subir” na direção da


Trindade (Cristo nos revela o Pai e o Espírito). A partir de Cristo podemos
compreender a antropologia teológica (cf. Gaudium et Spes n. 22), pois é
Ele quem revela ao homem a sua verdadeira identidade.
A Teologia Sistemática é o refletir sobre o mistério revelado,
buscando articular os diversos aspectos e conteúdos desse mesmo

53
Cf. INOS BIFFI, Grazia, Ragione e Contemplazione. La teologia: le sue forme, la sua storia, Milano
2000, pp. 22-23.

28
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mistério, segundo as suas conexões lógicas (ordo), examinando e


refletindo sobre cada parte, sem jamais perder de vista o todo.

3- Os Tratados da Dogmática Católica


A teologia sistemática organizou a reflexão teológica em tratados 54,
eles nos ajudam a compreender os nexos lógicos o Mistério revelado. Os
54
Cf. M. SCHULZ, Dogmatica, Lugano 2002, pp. 32-33.

29
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tratados não são percursos paralelos, mas se entrelaçam. Os tratados


estão intimamente interligados.
Entre os tratados, podemos dizer que os dois primeiros são o Tratado
da Trindade (Revelada e compreendida à Luz de Cristo) e o tratado da
Cristologia (da qual podemos “ascender” na direção da Trindade). A partir
destes tratados podemos entender todos os demais: sacramentos (brotam
de Cristo), eclesiologia (a Igreja é fundada por Cristo e espelho da
comunhão trinitária no mundo), antropologia teológica (contida
implicitamente na Cristologia), etc...
Em cada tratado existem diversas verdades, que estão interligadas.
Existe uma hierarquia entre as verdades, ou seja, existem verdades
teologicamente mais importantes do que outras.
Toda ciência, incluindo a teologia sistemática, é determinada por um
objeto formal, isto é, por uma perspectiva pela qual se observa a realidade
ou uma das suas partes. Muitas vezes, o nome da própria ciência, indica o
objeto formal dominante: a genética, por exemplo, considera a realidade
vivente sob o aspecto da sua estrutura genética (DNA, etc.).
Objeto material  é o objeto concreto de que se ocupa uma determinada
ciência, considerando-o em sua totalidade fenomênica, enquanto objeto
formal  consiste na perspectiva (ou ponto de vista ou faceta) a partir da
qual se investiga essa "totalidade" (daí ser denominado, às vezes,
de objeto de investigação). O que caracteriza cada ciência é, portanto, seu
objeto formal, tendo em vista que o objeto material pode ser comum a
várias ciências (O homem é o objeto material de diversas ciências:
psicologia, medicina, filosofia, etc.). Do objeto material formal e material
deriva o método de uma ciência.
A Teologia também inclui uma perspectiva universal. A Teologia
indaga sobre a realidade total que se refere à autocomunicação do Deus
Uno e Trino ao homem. É possível que surjam alguns aparentes conflitos
entre a Teologia e outras ciências no que concerne certos objetos
materiais comuns: a estrutura (“programação”) genética do homem pode
colocar em dúvidas o conceito filosófico-teológico de liberdade, a religião,
por exemplo, poderia ser vista apenas como uma espécie de estratégia
para a sobrevivência dos genes humanos (Tese presente no bestseller
Sapiens, de Yuval N. Harari). Outros exemplos interessantes: a) teologia da

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criação e evolução, são inconciliáveis? Não se pode pensar a uma obra


criadora com mecanismos intrínsecos de evolução (aperfeiçoamento)?; b)
a teologia da criação e a astrofísica (origem do universo): a teoria do big-
bang (criada por um sacerdote matemático Georges Lêmaitre) não
poderia ser um modelo matemático-físico que explica o poder do ato
criador divino? Interessante é o fato de que a matemática e a física não
sabem explicar o que havia antes do instante 10 -37segundo (ponto de
singularidade) do início do universo.
O objeto formal da Teologia Dogmática é a perspectiva da Revelação,
enquanto o seu objeto material é o próprio Deus. Para fundamentar a
possibilidade de uma Revelação, é importante apresentar uma
demonstração55 racional da existência de Deus (por exemplo: as cinco
vias-provas da existência de Deus, de Santo Tomás de Aquino), bem como
expor os atributos divinos que devem ser pressupostos na
autocomunicação de Deus (Inteligência divina, liberdade, etc.). Neste
contexto de reflexão, também se pode tematizar a natureza analógica da
linguagem teológica sobre Deus. Também é necessário refletir sobre a
possibilidade do homem receber uma Revelação divina, o home é capaz
da transcender? A paleoantropologia vê nos cultos funerários uma das
mais seguras demonstrações de que o homem desde os seus primórdios,
possui uma relação ativa com a sua própria finitude (representada pela
morte), ele é capaz de colher o limite da sua própria finitude, e refletir
sobre o que pode haver do lado de lá do mundo finito (refletir sobre o
infinito)56. O homem se revela um ser de fronteira entre o finito e o
infinito, entre o imanente e o transcendente… por isso ele é capaz de
jejuar, de se sacrificar, de dar a vida por uma pessoa, um grupo ou uma
causa, por exemplo.
Do ponto de vista Teológico ou Ontológico (e lógico), o primeiro
tratado é o da Trindade. Deus se revela como um Deus Uno e Trino ou
como uma Triunidade. Esta revelação se torna explícita com a Encarnação
do Verbo, o Filho Eterno revela a Pessoa do Pai e a sua Filiação divina, ao
anunciar o reino de Deus (cf. Mc 1,15). A Teologia trinitária se ocupa do

55
As demonstrações no âmbito da teologia, possuem uma natureza diferente daquelas próprias das
ciências naturais, que podem ser obtidas, por exemplo, em laboratórios. Uma demonstração da existência
de Deus, não obriga à fé, mas mostram o quão plausível ou racional possa ser a existência de Deus.
56
Cf. Schulz, Dogmática, 58-59.

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mistério da Trindade ad intra (Trindade imanente) e ad extra (Trindade


econômica).
Em Lc 10,21-22, podemos ver como o evangelista atribui a Jesus uma
autoconsciência trinitária:
Naquela mesma hora, ele exultou no Espírito Santo e disse: “Eu te
louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste essas coisas
aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai,
assim foi do teu agrado. 22 Tudo me foi entregue por meu Pai, e
ninguém conhece o Filho, a não ser o Pai; e ninguém conhece o Pai,
a não ser o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar”.
As primeiras fórmulas trinitárias do NT (Mt 28,19; 2 Co 13,13; Ef 4,4-
6), retomam a convicção eclesial de que Jesus Cristo revelou o Ser divino
como Trinitário (Mesmo que o termo Trindade tenha sido cunhado apenas
com Tertuliano, +220).
Do ponto de vista da história do dogma trinitário, as etapas mais
importantes foram os Concílios de Niceia (325) e de Constantinopla (381).
O primeiro combateu o arianismo, que ensinava que o Logos, Filho de
Deus, era criado. Contra este erro, Niceia cunhou a fórmula o Filho é
hómoousios (consubstancial) ao Pai. No segundo, o Espírito Santo foi
apresentado como Kyrios, indicativo de sua natureza divina. Desde o
século XVII, a profissão de fé proveniente destes dois concílios foi
chamada de Símbolo Niceno-Constantinopolitano57.
A Teologia trinitária vai ter que elaborar, em diálogo com a filosofia,
uma série de conceitos importantes: substância, natureza, pessoa,
relação, etc.
Agostinho e Tomás de Aquino vão propor uma analogia entre o ser
trinitário e o espírito humano, o segundo é um reflexo do primeiro
(Imagem e semelhança): Pai, Filho e Espírito Santo  Memória,
Inteligência e Vontade.
Ricardo de São Vítor (+1173), no seu tratado sobre a Trindade, vai
refletir à luz de 1 Jo 4,8 sobre a conveniência teológica do ser trinitário de
Deus, o ser divino communio personarum faz com que se compreenda que
Deus é amor, não se tornou amor apenas com a criação.

57
Cf. Schulz, Dogmática, 62.

32
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A Trindade está na origem da Igreja, é o seu modelo de vida e


corresponde ao seu fim último.
Vamos falar um pouco da Teologia da Criação (Protologia) e da
Antropologia Teológica. Em strictus sensus, Tomás de Aquino ensina que
só um Deus trinitário pode ser o Criador livre de um homem livre (Cf. S.
Theol. I q. 32 a. 1 ad. 3). Criar significa construir estabelecer uma relação
com o aquele que recebe a existência. Somente um Deus que seja, em si
mesmo, relação, um Deus no qual exista a noção de “Outro”, de
alteridade. Podemos dizer que, em Deus, o “Outro” é o Filho, a Palavra
eterna. Ele é a imagem e a forma originária de todo e qualquer outro tipo
de alteridade, de tudo o que existe no mundo criado (Cf. Jo 1,1-4; Col
1,15-19; Hb 1,2).
O conceito de criação aponta para o fato de que Deus criou o
universo ex nihilo (“a partir do nada”). Deus não plasmou o universo a
partir da matéria eterna (como ensina Aristóteles). Na língua hebraica,
usa-se o verbo barah, para se indicar o que só Deus pode realizar, “criar” a
partir do nada (2 Mc 7,28; Rm 4,17), o verbo em questão (barah) só aceita
Deus como sujeito.
Na Idade Média, os teólogos defendiam a existência dos anjos, à luz
do testemunho da Sagrada Escritura e da concepção de um Universo,
como sendo um reflexo de Deus e dos seus atributos, assim sendo, era
conveniente que existissem seres no universo criado, que fossem um
reflexo da realidade espiritual pura de Deus. Os anjos são seres espirituais,
dotados de liberdade e capazes de aderir ou rejeitar os planos salvíficos de
Deus.
Quanto a criação do homem, o livro do Gênesis coloca em relevo
como o homem foi criado à Imagem e semelhança de Deus. Dotado de
corpo e alma, o homem é um ser de fronteira, enquanto corpo, participa
do mundo visível e material, mas enquanto espírito, participa também do
mundo dos seres espirituais. É possível harmonizar a ideia de Deus como
causa eficiente (ou primeira) do homem e a noção de evolução, a criação
pode incluir um dinamismo evolutivo, querido e instituído por Deus.
No âmbito da Antropologia Teológica, também se estuda a doutrina
do pecado original (peccatum originale originans), do pecado original
hereditário (peccatum originale originatum; peccatum haereditarium),

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

bem como aquela do pecado pessoal: hamartiologia (hamartía= erro,


pecado). Estuda-se ainda a Doutrina da Graça (graça incriada, graça criada,
graça santificante, graça atual, graça suficiente, ou da Justificação.
Ao longo da história da teologia, tanto a hamartiologia, quanto a
doutrina da graça, encontraram o seu ponto de partida sistemático na
salvação universal operada por Cristo. A salvação universal corresponde
ao estado universal de pecado e à danação universal.
Para quem deseja estudar a Teologia Dogmática em perspectiva
ecumênica, de aprofundar sobretudo a doutrina do pecado original e da
justificação, pois esta é, segundo a concepção evangélica-protestante é o
primeiro e fundamental artigo de fé, como recorda os Artigos de
Esmalcalda (Schmalkaldische Artikel II,1), escritos pelo próprio Lutero, em
1537. Sobre este assunto, deve-se recordar a publicação de Declaração
conjunta sobre a doutrina da justificação, da federação mundial luterana e
da Igreja Católica (1999).
Ao lado da teologia trinitária, a Cristologia constitui o baricentro da
Teologia Dogmática. A pergunta a qual a cristologia busca responder é a
mesma que lemos em Mc 8,29: “E vós, que dizeis que eu sou?”. Uma
resposta conveniente a esta pergunta, se torna possível para os discípulos
de Cristo e para o Novo Testamento, somente a partir da Páscoa de Jesus
e do Pentecostes.
O professor M. Schulz afirma que a cristologia dogmática nasce
quando os discípulos, iluminados pelo Espírito Santo, compreendem que o
Ressuscitado é o Crucificado. Esta identidade é o dogma originário, do
qual depende todo o resto: a fé inteira (cf. 1 Co 15,17-19). A cristologia
dogmática nasce assim, no domingo de Páscoa, sob o influxo espiritual da
luz da Ressurreição, sob o influxo do Espírito do Ressuscitado.
A partir desse dogma originário, os discípulos “teologam”… Quem é o
Ressuscitado, nele brilha a glória de Deus, mas é humano (duas
naturezas), o que ele ensinou, o que fez antes de sua crucificção? Como
nasceu?
Um dos desafios da história da cristologia se encontra no modo como
estão unidos em Cristo, o ser divino e o ser humano. O Concílio de Éfeso
(431) vai sublinhas a unidade do sujeito Cristo: Ele é o Deus que se fez
homem, por isso Maria não é mãe apenas de sua humanidade, ela é mãe

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do Deus que se fez homem. Em 451, o Concílio de Calcedônia vai declarar


que o Senhor Jesus Cristo é o único e mesmo Filho eterno de Deus que se
fez homem, ele é plenamente Deus e plenamente humano (alma e corpo),
consubstancial a Deus, enquanto Deus, consubstancial aos homens,
enquanto homem. O Concilio de Calcedônia é um marco importantíssimo
da história da cristologia dogmática. Pode-se dizer que ele nos ajuda a
compreender se uma cristologia é ou não ortodoxa.
Em torno de Jesus, nasce uma outra pergunta essencial: o que Jesus
realizou? Chega-se assim ao tema da salvação. A Soteriologia se ocupa
desta pergunta: o que Jesus fez por nós?
Em 1098, foi publicado um verdadeiro bestseller da soteriologia
cristã, chamado Cur Deus homo (Porque Deus se fez homem), de Santo
Anselmo, de Aosta. Nesta obra, o autor defende que só Deus encarnado
poderia realizar a salvação da humanidade, pois enquanto homem, ele
podia cumprir a justiça, ou seja, era justo que um homem oferecesse a
reparação devida a ofensa contra Deus, que caracteriza o pecado da
humanidade. Enquanto Deus, a sua oferta era capaz de satisfazer a ofensa
contra a honra divina. Lembre-se que na época, à luz do direito
germânico, a satisfação deveria ser proporcional à honra do ofendido, ou
seja, quanto maior a honra do ofendido, maior deveria ser a oferta em
vista da satisfação. No caso do próprio Deus, cuja honra for a ofendida, a
oferta deveria ter um valor infinito. Só a oferta da vida do Filho divino
poderia satisfazer a honra divina ofendida pelo pecado humano.
Tanto a doutrina do pecado original, quanto a soteriologia, nos
recordam algo fundamental, no projeto divino existe um chamado a uma
solidariedade e unidade universal de todos os homens entre si e com
Deus. O fundamento desta solidariedade universal ou comunhão, é o Deus
Uno e Trino, a unidade substancial e relacional-pessoal do Pai, do Filho e
do Espírito Santo. O homem que foi criado à imagem e semelhança de
uma Deus Uno e Trino, é por vocação, um ser chamado a uma vida
comunional.
A Eclesiologia nasce a partir da Cristologia, nasce a partir da
compreensão de que Cristo fundou uma Igreja (cf. Mt 16,18), para ser o
seu corpo místico (cf. 1 Co 12,12-31), sua esposa (cf. Ef 5,21-33),

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sacramento da sua presença e do seu atuar salvífico no mundo. A


eclesiologia é, portanto, subordinada à cristologia.
A Igreja também pode ser vista como o novo povo de Deus, que
percorre a história, buscando viver e anunciar o Evangelho a todos os
homens, ela caminha na direção da eternidade bem-aventurada!
Os atributos (ou notas) da Igreja estão descritos no Credo Niceno-
Constantinopolitano: Una, Santa, Católica e Apostólica.
O Espírito Santo está presente na Igreja, como se fosse a sua alma,
Ele a vivifica e a unifica, lhe concede os seus dons, dons hierárquicos (ou
ministeriais: episcopado, presbiterato, diaconato) e dons carismáticos
(que também contribuem para a edificação da Igreja e para o bom
cumprimento de sua missão).
A constituição dogmática conciliar Lumen Gentium, trata da
Mariologia, na sua eclesiologia. Maria é apresentada como imagem
originária da Igreja (LG 52-69). Ela é a pessoa humana que mais
perfeitamente respondeu o seu “sim” a Deus, por isso é o modelo para
cada discípulo do Senhor. O Catecismo da Igreja Católica, no n. 972, a
apresenta como Ícone escatológico da Igreja:
“Depois de termos falado da Igreja, da sua origem, missão e destino, não
poderíamos terminar melhor do que voltando a olhar para Maria, a fim de
contemplar nela o que a Igreja é no seu mistério, na sua ‘peregrinação da
fé’, e o que será na pátria ao terminar a sua caminhada, onde a espera, na
‘glória da santíssima e indivisa Trindade» e «na comunhão de todos os
santos’, Aquela que a mesma Igreja venera como Mãe do seu Senhor e
como sua própria Mãe: ‘Assim como, glorificada já em corpo e alma, a
Mãe de Jesus é imagem e início da igreja que se há de consumar no século
futuro, assim também, brilha na terra como sinal de esperança segura e
de consolação, para o povo de Deus ainda peregrino’”.
A mariologia gravita em torno de quatro dogmas: a Imaculada
Conceição, a Virgindade perpétua, a Maternidade Divina e a Assunção.
Desde o período patrístico, os cristãos refletem sobre a participação
de Maria na obra redentora de seu filho Jesus Cristo. Irineu de Lião, por
exemplo, apresentou Maria como a nova Eva, assim como o pecado
entrou na história da humanidade pela desobediência da antiga Eva, assim
também a salvação entrou no mundo, pela obediência santa da Virgem

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Maria. Gn 3,15 foi interpretado pelos Padres da Igreja, como o primeiro


anúncio da salvação humana (proto-evangelho). Neste texto, emerge o
papel da mãe do salvador.
A presença de Maria aos pés da Cruz de seu filho (cf. Jo 19,25-37),
também deixa claro que Maria coopera como mãe e discípula, com a obra
redentora de Jesus. A Lumen Gentium a apresenta como cooperadora da
obra redentora de Jesus Cristo (Cf. LG 53, 56 e 61).
A doutrina geral dos Sacramentos (Sacramentária Geral ou
Sacramentologia Geral) explica como os sete sacramentos da Igreja
encontrem o seu fundamento na vida e na morte de Cristo, de que modo
eles foram instituídos por Ele e a relação deles com a vida humana e
cristã. Este tratado também tem uma importância ecumênica, na medida
que uma parte significativa do protestantismo reconhece apenas dois
sacramentos, o batismo e a ceia. Na Idade Média também, nós
encontramos uma certa distinção entre os sacramentos fundamentais,
batismo e eucaristia, e os demais sacramentos.
Um outro argumento importante da teologia sacramental é o tema
da modalidade operativa objetiva do sacramento, a partir da sua própria
natureza (ex opere operato), a disposição subjetiva daquele que o recebe
(sujeito do sacramento) em vista de um recebimento fecundo e frutuoso,
a importância do ministro e de sua intenção, a diferença entre os
sacramentos e os sacramentais.
Chama-se de Sacramentária Especial o estudo teológico de cada um
dos sete sacramentos. Alguns sacramentos também são objeto do estudo
de outras disciplinas teológicas, por exemplo, o matrimônio pode e deve
ser estudado no âmbito da Teologia Moral e do Direito Canônico também.
O Sacramento da Ordem pode e deve fazer parte de uma eclesiologia
católica. O Batismo, a Confirmação e a Eucaristia podem ser estudados no
âmbito da Espiritualidade, do Direito Canônico e da Pastoral.
A vida cristã nesta terra termina? O que vem depois da morte? A
Escatologia se ocupa destas questões. Ela se ocupa do fim da vida pessoal,
da história da humanidade e do cosmos. A morte não é o último capítulo
da aventura humana, pode-se dizer que seja o penúltimo ou o
antepenúltimo. O sentido da vida inclui a morte. Depois da morte, o
julgamento particular conduz a alma a um destino, que é objeto da

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doutrina dos novíssimos: Céu, purgatório e inferno. Com a vinda gloriosa


de Jesus, a Parusia, haverá a ressurreição de todos os mortos, o
julgamento universal e o prêmio ou castigo eternos. Aqueles que
ressuscitarem para a vida gloriosa, viverão para sempre na bem-
aventurança divina de corpo e alma.

Trindade

Cristologia

Igreja,
Sacramentos

Antropologia
Teológica

[..]
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4- As Fontes da Teologia
A teologia fundamental apresenta os fundamentos da Teologia,
indicando as fontes da teologia e descrevendo o fato de que estas fontes,
são testemunhas de uma única revelação, que atingiu o seu ápice em
Cristo58.
As fontes da teologia são a Sagrada Escritura, a Sagrada Tradição
(tradições antigas, orações, liturgia, arte, espiritualidade, escritos de
santos e doutores da Igreja) e o Magistério da Igreja.

Dei Verbum nn. 9-10: “. A Sagrada Tradição, portanto, e a Sagrada


Escritura relacionam-se e comunicam estreitamente entre si. Com efeito,
ambas derivando da mesma fonte divina, fazem como que uma coisa só e
tendem ao mesmo fim. A Sagrada Escritura é a palavra de Deus enquanto
foi escrita por inspiração do Espírito Santo; a Sagrada Tradição, por sua
vez, transmite integralmente aos sucessores dos apóstolos a palavra de
Deus confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos apóstolos, para
que, com a luz do Espírito de verdade, a conservem, a exponham e a
difundam fielmente na sua pregação; donde acontece que a Igreja não tira
a sua certeza a respeito de todas as coisas reveladas só da Sagrada
Escritura. . Por isso, ambas devem ser recebidas e veneradas com igual
afeto de piedade.
10. A Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição constituem um só depósito
sagrado da palavra de Deus, confiado à Igreja; aderindo a este, todo o
povo santo persevera unido aos seus pastores na doutrina e na comunhão

58
Cf. SCHULZ, Dogmatica, p. 24.

39
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dos apóstolos, na fração do pão e nas orações (cf. At 8,42 gr.), de tal modo
que na conservação, atuação e profissão da fé transmitida haja uma
singular colaboração dos pastores e dos fiéis.
Porém, o múnus de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita
ou contida na Tradição, foi confiado só ao magistério vivo da Igreja, cuja
autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo. Este magistério não está
acima da palavra de Deus, mas está a seu serviço, não ensinando senão o
que foi transmitido, enquanto, por mandado divino e com assistência do
Espírito Santo, a ouve piamente, guarda santamente e expõe fielmente,
haurindo deste único depósito da fé todas as coisas que propõe à fé como
divinamente reveladas.
É claro, portanto, que a Sagrada Tradição, a Sagrada Escritura e o Sagrado
Magistério da Igreja, segundo o sapientíssimo plano da Deus, de tal
maneira se relacionam e se associam que um sem os outros não se
mantém, e todos juntos, cada um a seu modo sob a ação do mesmo
Espírito Santo, colaboram eficazmente para a salvação das almas”.
Lendo os textos do Concílio Vaticano II, podemos dizer que as fontes
da teologia são na verdade uma só: a Revelação (a Escritura recebida na
Tradição e interpretada pelo Magistério).

3.1- Sagrada Escritura


No projeto de revelação de Deus, ele quis inspirar alguns homens a
escrever o que nós chamamos de Bíblia. O Concílio Vaticano II afirma que
o autor principal (primário) da Escritura Sagrada é Deus. Mas, recorda que
os autores humanos também são verdadeiros autores das Escrituras.

DV 11: “As coisas reveladas por Deus, que se encontram escritas na


Sagrada Escritura, foram inspiradas pelo Espírito Santo. Com efeito, a
santa Mãe Igreja, por fé apostólica, considera como sagrados e canônicos
os livros inteiros tanto do Antigo como do Novo Testamento com todas as
sua partes, porque, de terem sido escritos por inspiração do Espírito Santo
(cf. Jo 20,31; 2Tm 3,16; 2Pd 1,19-21; 3,15-16), têm Deus por autor e como
tais foram confiados à própria Igreja. Todavia, para escrever os livros
Sagrados, Deus escolheu e serviu-se de homens na posse das suas
faculdades e capacidades, para que, agindo ele neles e por meio deles,
pusessem por escrito como verdadeiros autores, tudo aquilo e só aquilo
que ele quisesse.
E assim, como tudo quanto afirma os autores inspirados ou hagiógrafos
deve ser considerado como afirmado pelo Espírito Santo, por isso mesmo
se deve acreditar que os Livros da Escritura ensinam com certeza,

40
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

fielmente e sem erro a verdade que Deus, causa da nossa salvação, quis
que fosse consignada nas sagradas Letras. Por isso, ‘‘toda a Escritura
divinamente inspirada é útil para ensinar, para argüir, para corrigir, para
instruir na justiça: para que o homem de Deus seja perfeito,
experimentado em todas as obras boas’’ (2Tm 3,16-17 gr.)”.
Neste texto encontramos uma definição de inspiração importante:
“para escrever os livros Sagrados, Deus escolheu e serviu-se de homens na
posse das suas faculdades e capacidades, para que, agindo ele neles e por
meio deles, pusessem por escrito como verdadeiros autores, tudo aquilo e
só aquilo que ele quisesse”.
Outro conceito que vem à tona, é o de “inerrância” (sem erros): no
que concerne às verdades relevantes para a salvação, a Escritura Sagrada
não possui erros.

Os Sentidos da Sagrada Escritura (Catecismo da Igreja Católica nn.


115-119):
Segundo uma antiga tradição, podemos distinguir dois sentidos da
Escritura: o sentido literal e o sentido espiritual, subdividindo-se este
último em sentido alegórico, moral e anagógico. A concordância profunda
dos quatro sentidos assegura a sua riqueza à leitura viva da Escritura na
Igreja:
O sentido literal. É o expresso pelas palavras da Escritura e
descoberto pela exegese segundo as regras da recta interpretação.
«Omnes sensus (sc. Sacrae Scripturae) fundentur super litteralem» –
«Todos os sentidos (da Sagrada Escritura) se fundamentam no literal».
O sentido espiritual. Graças à unidade do desígnio de Deus, não só o
texto da Escritura, mas também as realidades e acontecimentos de que
fala, podem ser sinais.
1. O sentido alegórico. Podemos adquirir uma compreensão mais
profunda dos acontecimentos, reconhecendo o seu significado em Cristo:
por exemplo, a travessia do Mar Vermelho é um sinal da vitória de Cristo
e, assim, do Batismo.
2. O sentido moral. Os acontecimentos referidos na Escritura podem
conduzir-nos a um comportamento justo. Foram escritos «para nossa
instrução» (1 Cor 10, 11).
3. O sentido anagógico. Podemos ver realidades e acontecimentos no
seu significado eterno, o qual nos conduz (em grego: «anagoge») em
direção à nossa Pátria. Assim, a Igreja terrestre é sinal da Jerusalém
celeste.

41
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Um dístico medieval resume a significação dos quatro sentidos:


«Littera gesta docet, quid credas allegoria. Moralis quid agas, quo tendas
anagogia». «A letra ensina-te os factos (passados), a alegoria o que deves
crer, a moral o que deves fazer, a anagogia para onde deves tender».
«Cabe aos exegetas trabalhar, de harmonia com estas regras, por
entender e expor mais profundamente o sentido da Sagrada Escritura,
para que, mercê deste estudo, de algum modo preparatório, amadureça o
juízo da Igreja. Com efeito, tudo quanto diz respeito à interpretação da
Escritura, está sujeito ao juízo último da Igreja, que tem o divino mandato
e o ministério de guardar e interpretar a Palavra de Deus»: «Ego vero
Evangelio non crederem, nisi me catholicae Ecclesiae commoveret
auctoritas» – «Quanto a mim, não acreditaria no Evangelho se não me
movesse a isso a autoridade da Igreja católica» (Santo Agostinho).
Vamos apresentar agora, o método de leitura orante mais tradicional
da Igreja. Ele se encontra sistematizado na obra A Escada dos Monges59,
escrita por Guigo II, abade da grande Cartuxa, no século XII. O autor
apresenta uma escada com quatro degraus que conduzem o monge à
união com Deus, inspirado na imagem sugestiva da escada de Jacó. Os
quatro degraus são a lectio, a meditatio, a oratio e a contemplatio. O autor
escreve: a leitura busca, a meditação percebe, a oração pede e a
contemplação saboreia.
Vejamos como o Papa Bento XVI, apresenta a importância da Lectio
Divina para a vida da Igreja:

Leitura orante da Sagrada Escritura e «lectio divina» (Exortação


apostólica pós-sinodal Verbum Domini, Bento XVI):
86. O Sínodo insistiu repetidamente sobre a exigência de uma abordagem
orante do texto sagrado como elemento fundamental da vida espiritual de
todo o fiel, nos diversos ministérios e estados de vida, com particular
referência à lectio divina. Com efeito, a Palavra de Deus está na base de
toda a espiritualidade cristã autêntica. Esta posição dos Padres sinodais
está em sintonia com o que diz a Constituição dogmática Dei Verbum:
Todos os fiéis «debrucem-se, pois, gostosamente sobre o texto sagrado,
quer através da sagrada Liturgia, rica de palavras divinas, quer pela leitura
espiritual, quer por outros meios que se vão espalhando tão
louvavelmente por toda a parte, com a aprovação e estímulo dos pastores
da Igreja. Lembrem-se, porém, que a leitura da Sagrada Escritura deve ser

Cf. Guigues II le Chartreux, Lettres sur la vie contemplative (L’échelle des moines) – Douze
59

Méditations (SC 163), Paris 2019.

42
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acompanhada de oração». A reflexão conciliar pretendia retomar a grande


tradição patrística que sempre recomendou abeirar-se da Escritura em
diálogo com Deus. Como diz Santo Agostinho: «A tua oração é a tua
palavra dirigida a Deus. Quando lês, é Deus que te fala; quando rezas, és
tu que falas a Deus». Orígenes, um dos mestres nesta leitura da Bíblia,
defende que a inteligência das Escrituras exige, ainda mais do que o
estudo, a intimidade com Cristo e a oração; realmente é sua convicção
que o caminho privilegiado para conhecer Deus é o amor e de que não
existe uma autêntica scientia Christi sem enamorar-se d’Ele. Na Carta a
Gregório, o grande teólogo alexandrino recomenda: «Dedica-te
à lectio das divinas Escrituras; aplica-te a isto com perseverança.
Empenha-te na lectio com a intenção de crer e agradar a Deus. Se durante
a lectio te encontras diante de uma porta fechada, bate e ser-te-á aberta
por aquele guardião de que falou Jesus: “O guardião abrir-lha-á”.
Aplicando-te assim à lectio divina, procura com lealdade e inabalável
confiança em Deus o sentido das Escrituras divinas, que nelas amplamente
se encerra. Mas não deves contentar-te com bater e procurar; para
compreender as coisas de Deus, tens necessidade absoluta da oratio.
Precisamente para nos exortar a ela é que o Salvador não se limitou a
dizer: “procurai e encontrareis” e “batei e ser-vos-á aberto”, mas
acrescentou: “pedi e recebereis”».
A este propósito, porém, deve-se evitar o risco de uma abordagem
individualista, tendo presente que a Palavra de Deus nos é dada
precisamente para construir comunhão, para nos unir na Verdade no
nosso caminho para Deus. Sendo uma Palavra que se dirige a cada um
pessoalmente, é também uma Palavra que constrói comunidade, que
constrói a Igreja. Por isso, o texto sagrado deve-se abordar sempre na
comunhão eclesial. Com efeito, «é muito importante a leitura comunitária,
porque o sujeito vivo da Sagrada Escritura é o Povo de Deus, é a Igreja. (…)
A Escritura não pertence ao passado, porque o seu sujeito, o Povo de Deus
inspirado pelo próprio Deus, é sempre o mesmo e, portanto, a Palavra
está sempre viva no sujeito vivo. Então é importante ler a Sagrada
Escritura e ouvi-la na comunhão da Igreja, isto é, com todas as grandes
testemunhas desta Palavra, a começar dos primeiros Padres até aos
Santos de hoje e ao Magistério atual».
Por isso, na leitura orante da Sagrada Escritura, o lugar privilegiado é a
Liturgia, particularmente a Eucaristia, na qual, ao celebrar o Corpo e o
Sangue de Cristo no Sacramento, se atualiza no meio de nós a própria
Palavra. Em certo sentido, a leitura orante pessoal e comunitária deve ser
vivida sempre em relação com a celebração eucarística. Assim como a

43
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adoração eucarística prepara, acompanha e prolonga a liturgia


eucarística, assim também a leitura orante pessoal e comunitária prepara,
acompanha e aprofunda o que a Igreja celebra com a proclamação da
Palavra no âmbito litúrgico. Colocando em relação tão estreita lectio  e
liturgia, podem-se identificar melhor os critérios que devem guiar esta
leitura no contexto da pastoral e da vida espiritual do Povo de Deus.
87. Nos documentos que prepararam e acompanharam o Sínodo, falou-se
dos vários métodos para se abeirar, com fruto e na fé, das Sagradas
Escrituras. Todavia prestou-se maior atenção à lectio divina, que «é
verdadeiramente capaz não só de desvendar ao fiel o tesouro da Palavra
de Deus, mas também de criar o encontro com Cristo, Palavra divina
viva». Quero aqui lembrar, brevemente, os seus passos fundamentais:
começa com a leitura (lectio) do texto, que suscita a interrogação sobre
um autêntico conhecimento do seu conteúdo: o que diz o texto bíblico em
si? Sem este momento, corre-se o risco que o texto se torne somente um
pretexto para nunca ultrapassar os nossos pensamentos. Segue-se depois
a meditação (meditatio), durante a qual nos perguntamos: que nos diz o
texto bíblico? Aqui cada um, pessoalmente mas também como realidade
comunitária, deve deixar-se sensibilizar e pôr em questão, porque não se
trata de considerar palavras pronunciadas no passado, mas no presente.
Sucessivamente chega-se ao momento da oração (oratio), que supõe a
pergunta: que dizemos ao Senhor, em resposta à sua Palavra? A oração
enquanto pedido, intercessão, ação de graças e louvor é o primeiro modo
como a Palavra nos transforma. Finalmente, a lectio divina conclui-se com
a contemplação (contemplatio), durante a qual assumimos como dom de
Deus o seu próprio olhar, ao julgar a realidade, e interrogamo-nos: qual é
a conversão da mente, do coração e da vida que o Senhor nos pede? São
Paulo, na Carta aos Romanos, afirma: «Não vos conformeis com este
século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, a fim de
conhecerdes a vontade de Deus: o que é bom, o que Lhe é agradável e o
que é perfeito» (12, 2). De facto, a contemplação tende a criar em nós
uma visão sapiencial da realidade segundo Deus e a formar em nós «o
pensamento de Cristo» (1 Cor 2, 16). Aqui a Palavra de Deus aparece como
critério de discernimento: ela é «viva, eficaz e mais penetrante que uma
espada de dois gumes; penetra até dividir a alma e o corpo, as junturas e
as medulas e discerne os pensamentos e intenções do coração» (Hb 4, 12).
Há que recordar ainda que a lectio divina não está concluída, na sua
dinâmica, enquanto não chegar à ação (actio), que impele a existência do
fiel a doar-se aos outros na caridade.

44
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Estes passos encontramo-los sintetizados e resumidos, de forma sublime,


na figura da Mãe de Deus. Modelo para todo o fiel de acolhimento dócil
da Palavra divina, Ela «conservava todas estas coisas, ponderando-as no
seu coração» (L c 2, 19; cf. 2, 51), e sabia encontrar o nexo profundo que
une os acontecimentos, os atos e as realidades, aparentemente
desconexos, no grande desígnio divino.
Para concluirmos este ponto de nosso estudo relativo à Sagrada
Escritura como fonte da teologia, propomos a leitura do capítulo 6 da
Constituição Dei Verbum:

CAPÍTULO VI- A SAGRADA ESCRITURA NA VIDA DA IGREJA


A Igreja venera as Sagradas Escrituras
21. A Igreja venerou sempre as divinas Escrituras como venera o próprio
Corpo do Senhor, não deixando jamais, sobretudo na sagrada Liturgia, de
tomar e distribuir aos fiéis o pão da vida, quer da mesa da palavra de Deus
quer da do Corpo de Cristo. Sempre as considerou, e continua a
considerar, juntamente com a sagrada Tradição, como regra suprema da
sua fé; elas, com efeito, inspiradas como são por Deus, e exaradas por
escrito duma vez para sempre, continuam a dar-nos imutavelmente a
palavra do próprio Deus, e fazem ouvir a voz do Espírito Santo através das
palavras dos profetas e dos Apóstolos. É preciso, pois, que toda a
pregação eclesiástica, assim como a própria religião cristã, seja alimentada
e regida pela Sagrada Escritura. Com efeito, nos livros sagrados, o Pai que
está nos céus vem amorosamente ao encontro de Seus filhos, a conversar
com eles; e é tão grande a força e a virtude da palavra de Deus que se
torna o apoio vigoroso da Igreja, solidez da fé para os filhos da Igreja,
alimento da alma, fonte pura e perene de vida espiritual. Por isso se
devem aplicar por excelência à Sagrada Escritura as palavras: «A palavra
de Deus é viva e eficaz» (Hebr. 4,12), «capaz de edificar e dar a herança a
todos os santificados», (Act. 20,32; cfr. 1 Tess. 2,13).
Traduções da Sagrada Escritura
22. É preciso que os fiéis tenham acesso patente à Sagrada Escritura. Por
esta razão, a Igreja logo desde os seus começos fez sua aquela tradução
grega antiquíssima do Antigo Testamento chamada dos Setenta; e sempre
tem em grande apreço as outras traduções, quer orientais quer latinas,
sobretudo a chamada Vulgata. Mas, visto que a palavra de Deus deve
estar sempre acessível a todos, a Igreja procura com solicitude maternal
que se façam traduções aptas e fiéis nas várias línguas, sobretudo a partir
dos textos originais dos livros sagrados. Se porém, segundo a
oportunidade e com a aprovação da autoridade da Igreja, essas traduções

45
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se fizerem em colaboração com os irmãos separados, poderão ser usadas


por todos os cristãos.
Investigação Bíblica
23. A esposa do Verbo encarnado, isto é, a Igreja, ensinada pelo Espírito
Santo, esforça-se por conseguir uma inteligência cada vez mais profunda
da Sagrada Escritura, para poder alimentar contìnuamente os seus filhos
com os divinos ensinamentos; por isso, vai fomentando também
convenientemente o estudo dos santos Padres do Oriente e do Ocidente,
bem como das sagradas liturgias. É preciso, porém, que os exegetas
católicos e os demais estudiosos da sagrada teologia, trabalhem em íntima
colaboração de esforços, para que, sob a vigilância do sagrado magistério,
lançando mão de meios aptos, estudem e expliquem as divinas Letras de
modo que o maior número possível de ministros da palavra de Deus possa
oferecer com fruto ao Povo de Deus o alimento das Escrituras, que
ilumine o espírito, robusteça as vontades, e inflame os corações dos
homens no amor de Deus. O sagrado Concílio encoraja os filhos da Igreja
que cultivam as ciências bíblicas para que continuem a realizar com todo o
empenho, segundo o sentir da Igreja, a empresa felizmente começada,
renovando constantemente as suas forças.
Importância da Sagrada Escritura para a Teologia
24. A sagrada Teologia apoia-se, como em seu fundamento perene, na
palavra de Deus escrita e na sagrada Tradição, e nela se consolida
firmemente e sem cessar se rejuvenesce, investigando, à luz da fé, toda a
verdade contida no mistério de Cristo. As Sagradas Escrituras contêm a
palavra de Deus, e, pelo facto de serem inspiradas, são verdadeiramente a
palavra de Deus; e por isso, o estudo destes sagrados livros deve ser como
que a alma da sagrada teologia. Também o ministério da palavra, isto é, a
pregação pastoral, a catequese, e toda a espécie de instrução cristã, na
qual a homilia litúrgica deve ter um lugar principal, com proveito se
alimenta e santamente se revigora com a palavra da Escritura.
Leitura da Sagrada Escritura
25. É necessário, por isso, que todos os clérigos e sobretudo os sacerdotes
de Cristo e outros que, como os diáconos e os catequistas, se consagram
legìtimamente ao ministério da palavra, mantenham um contacto íntimo
com as Escrituras, mediante a leitura assídua e o estudo aturado, a fim de
que nenhum deles se torne «pregador vão e superficial da palavra de
Deus. por não a ouvir de dentro», tendo, como têm, a obrigação de
comunicar aos fiéis que lhes estão confiados as grandíssimas riquezas da
palavra divina, sobretudo na sagrada Liturgia. Do mesmo modo, o sagrado
Concílio exorta com ardor e insistência todos os fiéis, mormente os

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religiosos, a que aprendam «a sublime ciência de Jesus Cristo» (Fil 3,8)


com a leitura frequente das divinas Escrituras, porque «a ignorância das
Escrituras é ignorância de Cristo». Debrucem-se, pois, gostosamente sobre
o texto sagrado, quer através da sagrada Liturgia, rica de palavras divinas,
quer pela leitura espiritual, quer por outros meios que se vão espalhando
tão louvàvelmente por toda a parte, com a aprovação e estímulo dos
pastores da Igreja. Lembrem-se, porém, que a leitura da Sagrada Escritura
deve ser acompanhada de oração para que seja possível o diálogo entre
Deus e o homem [fazer o link com a Lectio divina]; porque «a Ele falamos,
quando rezamos, a Ele ouvimos, quando lemos os divinos oráculos».
Compete aos sagrados pastores «depositários da doutrina apostólica»,
ensinar oportunamente os fiéis que lhes foram confiados no uso recto dos
livros divinos, de modo particular do Novo Testamento, e sobretudo dos
Evangelhos. E isto por meio de traduções dos textos sagrados, que devem
ser acompanhadas das explicações necessárias e verdadeiramente
suficientes, para que os filhos da Igreja se familiarizem dum modo seguro
e. útil com a Sagrada Escritura, e se penetrem do seu espírito.
Além disso, façam-se edições da Sagrada Escritura, munidas das
convenientes anotações, para uso também dos não cristãos, e adaptadas
às suas condições; e tanto os pastores de almas como os cristãos de
qualquer estado procuram difundi-las com zelo e prudência.
Influência e importância da renovação escriturística
 26. Deste modo, pois, com a leitura e estudo dos livros sagrados, «a
palavra de Deus se difunda e resplandeça (2 Ts 3,1), e o tesouro da
revelação confiado à Igreja encha cada vez mais os corações dos homens.
Assim como a vida da Igreja cresce com a assídua frequência do mistério
eucarístico, assim também é lícito esperar um novo impulso de vida
espiritual, se fizermos crescer a veneração pela palavra de Deus, que
«permanece para sempre» (Is 40,8; cf. l Pd 1, 23-25).

3.2- Sagrada Tradição60


A Sagrada Escritura não afirma que ela seja a única fonte e a
testemunha exclusiva da Revelação. Uma afirmação desta natureza não
seria possível, pois sabemos que a Bíblia é fruto da inspiração divina, mas
também de uma história que viu a formação dos textos sagrados, ser
precedida por um processo de testemunho e de transmissão não escrita
do Evento Cristo.

60
Resumo de um artigo: J. P. de M. DANTAS, Em busca do significado teológico da “Sagrada
Tradição”, in: Atualidade Teológica (2012), 488-502.

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Como se sabe, a exegese afirma que o primeiro livro do Novo


Testamento – na forma como conhecemos hoje – foi redigido por volta do
ano 5161 (ou 52) d. C. Isso significa que os apóstolos e a igreja primitiva
anunciavam e viviam a Palavra de Deus que lhes foi confiada, antes que
fosse colocada por escrito: “Traditio prior Sanctae Scripturae”.

A própria Escritura confirma esta precedência de uma transmissão


oral da Revelação de Cristo, quando recorda a missão de anúncio que
Cristo confiou a seus Apóstolos e discípulos (cf. Mt 28,18-20 e textos
paralelos; Jo 17,18). Paulo nos oferece um texto contundente sobre a
importância da transmissão oral da Revelação, que precede a composição
do texto escrito do Novo Testamento: “A vós, de fato, transmiti
[pare,dwka], antes de mais nada, o que eu mesmo recebi [pare,labon]” (1
Cor 15,3). O apóstolo dos gentios escrevendo ao seu discípulo Timóteo,
fala do necessário procedimento de transmissão oral da Revelação,
próprio do período apostólico e do período pós-apostólico: “O que
aprendeste de mim na presença de numerosas testemunhas, transmite-o
[para,qou] a homens fiéis, que, por sua vez, que por sua vez, serão capazes
de ensiná-lo a outros mais” (2 Tm 2,2). Em outro texto encontramos o
termo tradição (parádosis): “irmãos, ficai inabaláveis e guardai
firmemente as tradições [parado,seij] que vos ensinamos, de viva voz ou
por carta” (2 Ts 2,15).

R. Fisichella escreve que:

“Jesus de Nazaré (...) revelador e revelação (...), na Tradição, se torna de


novo, sujeito e conteúdo. Ele está na origem histórica na Tradição, a sua
pessoa é o conteúdo essencial que deve ser transmitido. O Espírito que na
Revelação permitia a Cristo estar em sintonia com o projeto original do
Pai, na transmissão da Revelação, se torna o princípio fundamental.
Desenvolvimento da Tradição, compreensão do seu significado mais
profundo e atualização da sua potencialidade, são obras do Espírito (...)
Kyrios Christós tradit seipsum per apostolum in Spiritu santo” 62.

61
S. CIPRIANI, Le lettere di Paolo, Assisi 1999, 53: “... verso la fine del 51 o agli inizi del 52”. Cf.
também M. ORSATTI, Introduzione al Nuovo Testamento, Lugano 2005, 252 e R. F. COLLINS, La prima
lettera ai Tessalonicesi, in: R. E. BROWN- J. A. FITZMEYER- R. E. MURPHY, Nuovo Grande Commentario
Biblico, Brescia 2002, 1010.
62
R. FISICHELLA, La rivelazione: evento e credibilità. Saggio di teologia fondamentale, Bologna 1989,
111.

48
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

L. Scheffczyk recorda que o conteúdo desta Tradição, consiste na


transmissão da verdade recebida de Cristo, que possui uma dimensão
didática e inclui uma série de instruções sobre a fé e os costumes (cf. Ef.
5,21-33). Na carta aos Romanos, lemos que: “a fé vem da pregação, e a
pregação é o anúncio da palavra de Cristo” (Rm 10,17). O cristianismo
jamais se apresentou somente como uma religião do livro, mesmo
consciente do valor essencial da Sagrada Escritura63.

O princípio da Tradição foi reconhecido na sua essência no período


dos padres apostólicos e apologistas, num período em que, por causa da
falta de uma formação conclusiva do cânone, os testemunhos
neotestamentários ainda não podiam ser chamados de (a) “Escritura”. A
primeira carta de Clemente, Inácio de Antioquia e S. Justino referem-se ao
anúncio oral dos Apóstolos64. A Igreja primitiva não considera que o
testemunho apostólico se limite aos documentos escritos provenientes
dos apóstolos ou a eles atribuídos. A tradição oral existe antes da
Escritura, e esta última surge, de certo modo, para conservar a primeira.

Durante o segundo e o terceiro séculos, se observa uma crescente


evolução do conceito de tradição. O princípio da Tradição era válido para
S. Irineu (†202) 65 e a sua luta contra as tradições secretas 66. Contra os
gnósticos, Irineu formula o critério da regula fidei, cujo conteúdo coincide
com a totalidade da tradição apostólica67. Esta não inclui apenas o
Querigma, mas se expande até indicar também a interpretação eclesial da
Escritura68. Contra a heresia de Marcião, Irineu apresenta a Escritura e a
Tradição como dois momentos para a transmissão do Evangelho; a
Tradição (parádosis), que até então, indicava toda a transmissão da
revelação, agora significa somente a transmissão oral do ensinamento dos
apóstolos.

O quarto e o quinto séculos, marcados pela doutrina dos padres da


Igreja e pela celebração dos primeiros concílios ecumênicos determinaram
63
L. SCHEFFCZYK, Fondamenti del dogma. Introduzione alla dogmatica, Città del Vaticano 2010, 115.
64
SCHEFFCZYK, Fondamenti del dogma, 115-116.
65
Cf. H. HOLSTEIN, La tradition des âpotres chez St. Irénée, in: Recherches de Science Religieuse 36
(1949), 229-270.
66
SCHEFFCZYK, Fondamenti del dogma, 116. Cf. também J. RATZINGER, Primato, Episcopato e
Successio Apostolica, in: K. RAHNER-J. RATZINGER, Episcopato e Primato, Brescia 2007, 53-57.
67
Cf. Y. CONGAR, La tradizione e le tradizioni, I, Roma 1964, 45.
68
FISICHELLA, La rivelazione: evento e credibilità, 112.

49
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substancialmente o conceito de transmissão da revelação divina. O termo


Tradição passará a incluir as explicitações e as interpretações dos Padres
da Igreja, concernentes à Sagrada Escritura e à Tradição apostólica. A.
Franzini recorda que na época, a importância dos Padres era tal, que se
desenvolveu o hábito de compilar listas de citações das obras dos Padres,
que gozavam de uma autoridade indiscutível, listas que eram lidas até no
início de certas sessões conciliares69.

Um monge chamado Vincent de Lerins (†antes de 450) apresentou a


Tradição como instância interpretativa da Sagrada Escritura, quando
declarou que esta última necessitava de uma atestação eclesial e
católica70. Na sua obra Commonitorium, ele ensina que a Sagrada Tradição
tem uma natureza divino-apostólica, seu conteúdo é universal, consensual
e perene: “quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est” 71.
“Além da apostolicidade, apareceu como propriedade essencial da
verdadeira tradição, a catolicidade [entendido como consenso sincrônico
e diacrônico]” 72.

A Igreja se apresenta consciente do fato de ser portadora de uma


mensagem objetiva, mas que pode ser atualizada e interpretada na
dinâmica da história73.

Durante o período da Escolástica, apesar de uma forte adesão à idéia


de Tradição ligada aos Padres da Igreja, o conceito de Tradição, em quanto
tal, não é muito aprofundado74.

69
A. FRANZINI, Tradizione e Scrittura, Brescia 1978, 71.
70
Commonitorium II, 4, in: Corpus Christianorum, series latina 64, 149.
71
Commonitorium II, 5, 149.
72
H. J. POTTMEYER, Tradição, in: R. LATOURELLE- R. FISICHELLA (org.), Dicionário de Teologia
Fundamental, Petrópolis-Aparecida 1994, 1017.
73
FISICHELLA, La rivelazione: evento e credibilità, 113.
74
Cf. FISICHELLA, La rivelazione: evento e credibilità, 114. SCHEFFCZYK, Fondamenti del dogma, 116:
“Tommaso d’Aquino sa sicuramente che ‘gli apostoli hanno trasmesso molte cose che non sono state
scritte nel canone’ (In Sent. III d. 9 q. 1 a.2 sol 2 ad 3), ma considera le tradizioni religiose
prevalentemente ecclesiali come la venerazione delle icone. Nel fondamento della fede, la Sacra Scrittura
assume per antonomasia il ruolo di fonte della fede, in modo che la sacra doctrina e la sacra scriptura
sono messe quasi sullo stesso piano. È conosciuta la questione concernente la Tradizione che p. Es. viene
alla luce nell’assegnare la materia della cresima alla traditio ecclesiae, come pure le molte parole non
scritte che hanno origine ex familiari Apostolorum traditione (S. Th. III q. 64 a. 2 ad 1). Nella questione
ottiene una conferma soprattutto l’elemento di autorità della Chiesa. Nell’orientamento biblico-ecclesiale
della scolastica, la ‘Tradizione’ non è ancora divenuta un tema ricorrente”.

50
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

No período que antecede a “Reforma”, se observa uma tendência a


identificar uma série de definições e usos eclesiásticos de origem não
apostólica, como parte da Sagrada Tradição75. Lutero se rebela contra
aquelas tradições que não são autorizadas pela Escritura, com o escopo de
recolocar, segundo ele, novamente em luz o puro evangelho. Mas,
posteriormente, evoca o princípio da “sola Scriptura”, rejeitando a
Sagrada Tradição (Lutero chama a Tradição de um abusus, pois se tratava
apenas de “estatutos humanos”76).

“Ao fazer isto, permanece prisioneiro da controvérsia da Idade Média


tardia: pois a igreja de seu tempo ameaça esquecer o primado da sagrada
Escritura e subordinar a normatividade material do querigma apostólico à
normatividade formal da tradição eclesiástica; a Escritura, em Lutero,
torna-se como uma exata contraposição, a única norma material e formal
(‘Sacra Scriptura sui ipsius interpres’- ‘A Sagrada Escritura é sua própria
intérprete’)” 77.

Com o Concílio de Trento, a Igreja se posiciona diante dos ataques


dos “reformadores”. O decreto sobre os Livros sagrados e a Tradição
(Sessão IV, 8 de abril de 1546) afirma que:

“Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, primeiro promulgou por sua
própria boca, e depois mandou que fosse pregado a toda criatura (cf. Mt
28,19-20; Mc 16, 15ss) por meio de seus Apóstolos, como fonte de toda a
verdade salvífica e de toda a disciplina de costumes. E vendo o concílio
perfeitamente que esta verdade e disciplina estão contidas nos livros
escritos e na Tradições que, recebidas pelos Apóstolos da boca do próprio
Cristo, ou transmitidas como que de mão em mão (cf. 2 Ts 2,14), pelos
próprios Apóstolos, sob a inspiração dos Espírito Santo, chegaram até nós,
segundo os exemplos dos Padres de comprovada ortodoxia, com igual
sentimento de piedade e igual reverência recebe e venera todos os Livros,
tanto os do Antigo como os do Novo Testamento (...) e também as
próprias Tradições que pertencem à Fé e à Moral, quer tenham sido
oralmente [recebidas] do próprio Cristo, quer tenham sido ditadas pelo
Espírito Santo, e, por sucessão contínua, conservadas na Igreja Católica” 78.

75
Cf. POTTMEYER, Tradição, 1017. Cf. também Fisichella, La rivelazione: evvento e credibilità, 115.
76
Cf. Confessio Augustana art. XV, 3.
77
POTTMEYER, Tradição, 1017.
78
CONCÍLIO DE TRENTO, Decreto sobre o cânon (sess. IV – 8.4.1546), in: J. COLLANTES, A Fé Católica.
Documentos do Magistério da Igreja. Das origens aos nossos dias, Anápolis-Rio de Janeiro 2003, 155-
156 (DS 1501).

51
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

Esta formulação confirma o fato de que a Revelação não se reduz à


Sagrada Escritura. O Concílio oferece uma uma concepção viva e dinâmica
da Revelação, sublinhando o seu aspecto pneumatológico79.

Trento supera a contraposição luterana entre Escritura e Tradição,


identificando a fonte da Revelação, não em apenas uma das duas, mas no
Evangelho80, isto é, no evento Cristo. Ele constitui a garantia da
continuidade da Revelação. Escritura e Tradição são entendidas como
mediações da única Revelação81.

O conceito dogmático de Tradição se concentrou sobre a transmissão


da fé e da ordem moral. A definição dogmática de Tradição, recorda, antes
de mais nada, a sua origem oral, quando diz que: “Jesus Cristo, Filho de
Deus, primeiro promulgou por sua própria boca, e depois mandou que
fosse pregado a toda criatura (...) por meio de seus Apóstolos, como fonte
de toda a verdade salvífica e de toda a disciplina de costumes”. O conceito
de Tradição inclui as tradições82 que são de “origem apostólica”, que
reguardam “a fé e a moral”, e que “chegaram até nós” “transmitidas como
que de mão em mão”.

O texto define também a necessidade da mediação do serviço


magisterial na transmissão e na interpretação da inteira Tradição.
Fisichella nota que a expressão “Spiritu Sancto dictante” é a garantia do
agir divino e da inspiração ou interpretação da Tradição, e o “como que de
mão em mão até nós” é a garantia da veracidade da Tradição, pois esta se
dá na sucessão apostólica83.

Destacamos também o fato de que o decreto conciliar afirma a


normatividade da Tradição, pois esta também contém elementos
essenciais e normativos para fé e para os costumes.

Por fim, a Tradição deve ser aceita e venerada com a mesma


“piedade” e a mesma “reverência” com que aceitamos e veneramos a
Sagrada Escritura.
79
LORIZIO, Tradizione, 1453.
80
Cf. CONGAR, Tradizione e tradizioni, I, 209.
81
FISICHELLA, La rivelazione: evento e credibilità, 118-119.
82
Cf. O uso do plural “tradições” não indica uma diferença em relação à Tradição, cf. SCHEFFCZYK,
Fondamenti del dogma, 117 (nota 14).
83
Cf. FISICHELLA, La rivelazione: evento e credibilità,119.

52
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

O Concílio Vaticano I retoma literalmente a definição de Revelação,


contida “nos livros escritos e nas Tradições não escritas” 84.

Na década que precedeu o Concílio Vaticano II, depois da


proclamação do dogma da Assunção (1 de novembro de 1950) e da
discussão posterior, reguardando a relação entre a Sagrada Escritura e a
Tradição, surgiram três teorias diferentes que trouxeram à tona o tema da
Tradição85:

1- Teoria das duas fontes (H. Lennerz): interpretando o Concílio de


Trento, esta teoria afirma que a Escritura e a Tradição são duas
fontes distintas que transmitem (cada uma, uma parte) a Revelação.
Nenhuma delas contém toda a Revelação;
2- Teoria da suficiência da Escritura (J. R. Geiselmann): A Escritura
transmite a o material da Revelação, a Tradição tem um escopo a
explicação-interpretação do conteúdo da Escritura;
3- Teoria da suficiência relativa da Escritura (J. Beaumer): tentativa de
síntese. A Tradição contém de modo formal toda a verdade
revelada e a Escritura de modo substancial.

A “Tradição” segundo o Concílio Vaticano II

O Concílio Vaticano II em continuidade com o Concílio de Trento,


apresenta o Evangelho como única fonte de toda verdade salutar 86.
Declara que a Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura brotam da mesma
fonte divina e formam uma unidade orgânica 87. L. Scheffczyk nota a
importância da influência de J. A. Möhler (século XIX) nesta visão expressa
pelo Concílio Vaticano II88.

Segundo Pottmeyer a relação entre a Escritura e a Tradição é


apresentada num sentido mais propriamente modal: “na tradição
entendida como transmissão da palavra de Deus no ato de expor a

84
DH 3006. Cf. também J. R. GEISELMANN, Tradição, in: H. FRIES (org.), Dicionário de Teologia.
Conceitos fundamentais da teologia atual (Vol. V), São Paulo 1971, 353.
85
Cf. FISICHELLA, La rivelazione: evento e credibilità, 121-122.
86
Cf. Dei Verbum no 7.
87
Cf. Dei Verbum no 9.
88
Cf. SCHEFFCZYK, Fondamenti del dogma, 118-119. Cf. também J. H. MÖHLER, Simbolica, Milano
1984, 295-296.

53
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

Escritura, ‘as próprias Letras Sagradas são mais profundamente


compreendidas e se tornam ininterruptamente operantes’ (DV 8)” 89.

Scheffczyk afirma que se pode definir a Tradição como sendo a


transmissão de toda a Revelação divina através do testemunho da Palavra
de Deus escrita e dos testemunhos não escritos que, desde o período
apostólico, foram transmitidos “como que de mão em mão” até os dias de
hoje. Sendo assim, ela não se limita ao “não escrito”, pois depois da
fixação por escrito da Palavra de Deus, ela inclui uma série de documentos
escritos, como é o caso da literatura dos Padres, de certos textos
litúrgicos, das profissões de fé e dos decretos conciliares 90.

Os nos 7 e 8 da Dei Verbum oferecem uma harmoniosa visão e


descrição da Tradição: esta está intimamente ligada à Revelação,
pertecence à sua economia e participa das suas notas características.
Progredindo, em relação ao Concílio de Trento, o Vaticano II acrescenta
uma certa determinação relativa ao conteúdo da Tradição: esta é formada
pelas palavras, exemplos, comportamentos, decisões, de tudo o que
constituiu a relação vital entre Jesus e os apóstolos; de tudo o que os
apóstolos aprenderam sob o influxo do Espírito Santo; a Tradição
compreende o âmbito da doutrina, da vida (costumes), do culto (incluindo
os sacramentos) e do governo moral da comunidade cristã91.

A Constituição também menciona que mediante “a mesma Tradição,


conhece a Igreja o cânon inteiro dos livros sagrados” 92. Segundo alguns
teólogos, esta afirmação conciliar não precisa ser entendida como se
apresentasse um conteúdo específico da Tradição (o cânon da Bíblia): “a
seleção dos livros canônicos encontra, sim, uma explicação no exame de
sua canonicidade conteudística adquirida pela igreja na familiaridade com
estes livros” 93. Mas, outros defendem que esta formulação, poderia ser
interpretada como uma prova da insuficiência material da Escritura 94.
Como se sabe, nos textos originais da Sagrada Escritura, não se encontra a
89
POTTMEYER, Tradição, 1018.
90
Cf. SCHEFFCZYK, Fondamenti del dogma, 122.
91
Cf. FISICHELLA, La rivelazione: evento e credibilità, 126 e R. LATOURELLE, Teologia della rivelazione,
Assisi 1967, 336.
92
Dei Verbum no 8.
93
POTTMEYER, Tradição, 1018.
94
B. SESBOÜÉ (org.), História dos dogmas IV – A Palavra da Salvação (séculos XVIII-XX), São Paulo
2006, 441.

54
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

relação de todos os livros canônicos, ou seja, o elenco dos livros canônicos


seria um dado da Sagrada Tradição. Esta teria sido a responsável pelo
reconhecimento da inspiração e da canonicidade de cada livro que faz
parte da Sagrada Escritura e “chamou” de apócrifos muitos outros escritos
que almejavam ser reconhecidos como parte do cânon bíblico.

No final do no 9 da Dei Verbum, lemos que: “resulta assim que a


Igreja não tira só da Sagrada Escritura a sua certeza a respeito de todas as
coisas reveladas. Por isso, ambas devem ser recebidas e veneradas com
igual espírito de piedade e reverência”95. Este texto permite duas
interpretações. Se há apenas complementariedade qualitativa (modal)
entre os dois canais de transmissão, é normal que a Sagrada Escritura não
baste para gerar certeza. Mas o texto, que reprende o Concílio de Trento,
pode ser entendido também no sentido: 1- da insuficiência material da
Escritura; 2- da confirmação de uma fórmula reinvindicada até o fim dos
trabalhos conciliares por uma minoria de Padres: “A Tradição tem uma
extensão maior do que a Escritura” 96. Esta certa ambiguidade de
formulação permite legitimar as duas interpretações teológicas, mesmo
que a Dei Verbum pareça indicar uma complemetariedade qualitativa
(formal) entre a Escritura e a Tradição.

A relação entre a Tradição e o Magistério da Igreja, é tratada no n o 10


da Constituição. O Magistério exerce a sua missão “em nome de Jesus
Cristo Senhor”; este Magistério não está acima da Palavra de Deus, mas a
seu serviço; o Magistério ensina “apenas o que foi transmitido, enquanto,
por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, a ouve
piamente, a guarda religiosamente e a expõe fielmente, haurindo deste
depósito único da fé tudo quanto propõe à fé como divinamente
revelado”97.

A Dei Verbum afirma que a Tradição Apostólica é conservcada pela


Sucessão Apostólica, mas relembra também que todos os fiéis participam
da missão de viver e transmitir a Sagrada Tradição. Sendo a Sagrada
Tradição o “Evangelho vivo , anunciado pelos apóstolos na sua

95
Dei Verbum no 9.
96
SESBOÜÉ, História dos dogmas IV, 441.
97
Dei Verbum no10.

55
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

integridade”98 e transmitido fielmente a seus sucessores (tendo em vista o


conservar-se no tempo da Sagrada Tradição), a Igreja afirma que a traditio
exige a sucessio99.

J. Ratzinger nos ajuda a compreender a relação intrínseca entre a


Sagrada Tradição e a Sucessão Apostólica:

“A palavra na perspectiva do Novo Testamento é uma palavra escutada e,


enquanto tal, palavra pregada, não apenas uma palavra lida. Isso significa
que, se a successio apostolica está na palavra, essa não se limita
simplesmente a um livro, mas, sendo uma successio verbi deve ser uma
successio praedicatium, esta, por sua vez, não pode acontecer sem uma
‘misão’, ou seja, sem uma continuidade pessoal a partir dos apóstolos.
Exatamente por causa da Palavra, que na nova aliança, não é letra morta,
mas viva vox, faz-se necessária uma viva successio (...) Sucessão Apostólica
é, segundo a sua essência, a presença viva da Palavra na forma pessoal do
testemunho. A ininterrupta continuidade das testemunhas- apóstolos e
seus sucessores – no tempo, deriva da essência da palavra que é
auctoritas e viva vox” 100.

O mesmo teólogo afirma de modo lapidário: “Tradição apostólica e


sucessão apostólica se definem reciprocamente. A sucessão é a forma da
tradição e a tradição é o conteúdo da sucessão” 101.

Não devemos esquecer que o Espírito Santo é o guardião tanto da


autenticidade da Sagrada Tradição quanto da sacramentalidade da
Sucessão Apostólica.

A contribuição recente de Bento XVI

Em 2006, o Papa Bento XVI, que foi professor de teologia


fundamental e de teologia dogmática, e que trabalhou, em qualidade de
teólogo, na elaboração da Constituição Dei Verbum, ofereceu a toda a
Igreja duas ricas catequeses sobre a Tradição Apostólica nos dias 26 de
abril e 3 de maio.

98
J. A. MÖHLER, L’unità nella Chiesa. Il principio del cattolicesimo nello spirito dei Padri della Chiesa
nei primi tre secoli, Roma 1969, 51.
99
Cf. P. GOYRET, Dalla Pasqua alla Parusia. La successione apostolica nel “tempus Ecclesiae”, Roma
2007, 358.
100
RATZINGER, Primato, Episcopato e Successio Apostolica, 59-61.
101
RATZINGER, Primato, Episcopato e Successio Apostolica, 58.

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Na sua primeira catequese, o Papa explica que a Sagrada Tradição


garante a igreja de hoje, uma continuidade histórica com a fé da igreja
primitiva:

“A Tradição é a comunhão dos fiéis à volta dos legítimos Pastores no


decorrer da história, uma comunhão que o Espírito Santo alimenta
garantindo a ligação entre a experiência da fé apostólica, vivida na
originária comunidade dos discípulos, e a experiência atual de Cristo na
sua Igreja. Por outras palavras, a Tradição é a continuidade orgânica da
Igreja, Templo santo de Deus Pai, erigido sobre o fundamento dos
Apóstolos e reunido pela pedra angular, Cristo, mediante a ação
vivificante do Espírito: ‘Portanto, já não sois estrangeiros nem imigrantes,
mas sois concidadãos dos santos e membros da casa de Deus, edificados
sobre o alicerce dos Apóstolos e dos Profetas, tendo por pedra angular o
próprio Cristo Jesus. É nele que toda a construção, bem ajustada, cresce
para formar um templo santo, no Senhor. É nele que também vós sois
integrados na construção, para formardes uma habitação de Deus, pelo
Espírito’ (Ef 2,19-22). Graças à Tradição, garantida pelo ministério dos
Apóstolos e dos seus sucessores, a água da vida que saiu do lado de Cristo
e o seu sangue saudável alcançam as mulheres e os homens de todos os
tempos. Assim, a Tradição é a presença permanente do Salvador que vem
encontrar-se conosco, redimir-nos e santificar-nos no Espírito mediante o
ministério da sua Igreja, para glória do Pai” 102.

Usando a imagem de um “rio vivo”, o Papa ensina como a tradição


deve ser para toda a Igreja uma fonte de vida que nos conduz ao “porto
da eternidade”:

“a Tradição não é transmissão de coisas ou palavras, uma coleção de


coisas mortas. A Tradição é o rio vivo que nos liga às origens, o rio vivo no
qual as origens estão sempre presentes. O grande rio que nos conduz ao
porto da eternidade. E sendo assim, neste rio vivo realiza-se sempre de
novo a palavra do Senhor, que no início ouvimos dos lábios do leitor: ‘E
sabei que Eu estarei sempre convosco até o fim dos tempos’ (Mt 28, 20)”
103
.

Na segunda catequese o Papa ensina que a Sagrada Tradição é um


elemento imprescindível para a fé e a teologia católicas, na medida em
102
BENTO XVI, A comunhão no tempo: a Tradição (Audiência Geral do 26 de abril de 2006), in:
L’Osservatore Romano (Edição semanal em Português) n. 17 (1897), 29 de abril de 2006, 12.
103
BENTO XVI, A comunhão no tempo, 12.

57
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

que se constitui um elemento vital para a comunhão da Igreja no decorrer


do tempo:

“a Tradição é a história do Espírito que age na história da Igreja através da


mediação dos Apóstolos e dos seus sucessores, em fiel continuidade com
a experiência das origens. É quanto esclarece o Papa São Clemente
Romano nos finais do século I: ‘Os Apóstolos, escreve ele, anunciaram-nos
o Evangelho, enviados pelo Senhor Jesus Cristo, Jesus Cristo foi enviado
por Deus. Cristo vem portanto de Deus, os Apóstolos de Cristo: ambos
procedem ordinariamente da vontade de Deus... Os nossos Apóstolos
chegaram ao conhecimento por meio de Nosso Senhor Jesus Cristo que
teriam surgido contendas acerca da função episcopal. Por isso, prevendo
perfeitamente o futuro, estabeleceram os eleitos e deram-lhe, por
conseguinte, a ordem, para que, quando morressem, outros homens
provados assumissem o seu serviço’ (Ad Corinthios, 42.44: PG 1, 292.296).
Esta corrente do serviço continua até hoje, continuará até ao fim do
mundo. De fato, o mandato conferido por Jesus aos Apóstolos foi por eles
transmitido aos seus sucessores. Além da experiência do contato pessoal
com Cristo, experiência única e irrepetível, os Apóstolos transmitiram aos
Sucessores o envio solene ao mundo recebido do Mestre” 104.

Na sua exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini (2010),


Bento XVI, após ter recordado o ensinamento do Concílio Vaticano II sobre
a relação Tradição-Escritura, escreve, no no 18, que:

“através da obra do Espírito Santo e sob a guia do Magistério, a Igreja


transmite a todas as gerações aquilo que foi revelado em Cristo. A Igreja
vive na certeza de que o seu Senhor, tendo falado outrora, não cessa de
comunicar hoje a sua Palavra na Tradição viva da Igreja e na Sagrada
Escritura. De facto, a Palavra de Deus dá-se a nós na Sagrada Escritura,
enquanto testemunho inspirado da revelação, que, juntamente com a
Tradição viva da Igreja, constitui a regra suprema da fé”105.

A fé e a teologia católicas não podem prescindir do testemunho da


Sagrada Tradição, que é fruto da ação do Espírito do Ressuscitado,
guardião da integridade da Verdade na vida da Igreja (cf. Jo 16,13).

104
BENTO XVI, A Tradição Apostólica (Audiência Geral do 03 de maio de 2006), in: L’Osservatore
Romano (Edição semanal em português) n. 18 (1898), 06 de maio de 2006, 12.
105
BENTO XVI, Exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini, São Paulo 2010, 41.

58
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Aprofundando: A teologia protestante não aceita a Sagrada Tradição


como fonte da revelação. Ela defende que só a Sagrada Escritura é fonte
da Revelação (Sola Scriptura). A teologia sistemática protestante (clássica)
se propõe como uma teologia da Palavra de Deus, mas reconhece o valor
teológico dos primeiros concílios ecumênicos da cristandade, que
serviram para que a fé cristã fosse formulada. Ela também tem grande
consideração por alguns escritos confessionais da época da reforma
protestante, por exemplo a Confessio Augustana (1530), escrita por um
discípulo de Lutero. Como vemos, a teologia protestante não é priva de
uma tradição.

3.3- Magistério da Igreja


O Magistério não está acima da revelação (como temia Lutero), mas
a serviço da mesma (cf. DV n. 10).
O serviço que o Magistério presta é o de interpretar autenticamente
o depósito da fé. Somente o Magistério que exerce a sua missão em nome
de Cristo, foi confiada a missão de interpretar com autoridade a palavra
de Deus, escrita ou transmitida. O magistério recebe de Cristo, um carisma
permanente para cumprir a sua missão.
R. Latourelle afirma que:
“a) O Magistério ouve piedosamente a voz viva do Evangelho que
ressoa continuamente a seus ouvidos, pois o Magistério, enquanto tal,
também vive na fé, sendo o primeiro a prestar ouvidos à palavra de Deus.
Como a Virgem piedosamente recolhia as palavras dos lábios de Cristo,
assim também o Magistério está atento à palavra de Deus.
b) O Magistério guarda santamente a palavra de Deus. Esta
expressão tomada ao Vaticano I, é tradicional e encontra-se
frequentemente nos documentos do Magistério, com forma idêntica ou
equivalente. Guardar santamente o depósito da palavra de Deus significa
nada perder, nada subtrair, nada acrescentar. Assim como nada se pode
acrescentar à Escritura, assim também nada se pode tampouco
acrescentar à Tradição. O esforço para perscrutar as Escrituras não
pretende enriquecer o tesouro das Escrituras. Assim também a Tradição
viva da Igreja, que se exprime sob formas diversas através dos tempos,
não pretende enriquecer o tesouro da Tradição recebido dos apóstolos. O

59
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

que se aperfeiçoa não é a revelação, mas a compreensão que dela temos,


as explicitações sucessivas com as quais procuramos manifestar as suas
inesgotáveis riquezas para iluminar as sucessivas gerações; aperfeiçoam-
se, finalmente, as formulações que multiplicamos para traduzir em termos
humanos todo esse esforço de assimilação da palavra de Deus. Da função
de custos ou guardião da revelação segue-se a função de proteger a
palavra de Deus contra os desvios, deslizes e heresias.
c) O Magistério deve também expor fielmente a palavra de Deus, poi
a função da Igreja não é apensa de guardar e defender a palavra: deve
propô-la aos homens de todos os tempos. Isto significa declarar o seu
sentido autêntico, esclarecendo e explicando o que for obscuro. A
exposição fiel da palavra é a meta total da missão de ensinar que a Igreja
recebeu e que exerce por seu Magistério ordinário e extraordinário.
d) Finalmente, diz o concílio, o Magistério haure dessa fonte viva da
palavra de Deus tudo quanto propõe à fé como divinamente revelado.
Nada propõe que já não esteja contido no único depósito de fé. O
desenvolvimento dogmático, que é um esforço para propor e formular, de
modo fiel, mas preciso e mais rico, a palavra de Deus, realiza-se sempre no
interior do objeto da fé” 106.

Aprofundando: O senso sobrenatural da fé (sensus fidei).

Catecismo da Igreja Católica nn. 91-93: “Todos os fiéis participam da


compreensão e da transmissão da verdade revelada. Receberam esta
unção do Espírito Santo, que os instrui e os conduz à verdade em sua
totalidade.
‘O conjunto de fiéis ... não pode enganar-se no ato da fé. E manifesta esta
sua peculiar propriedade mediante o senso sobrenatural da fé de todo o
povo, quando, ‘desde os bispos até o último dos fiéis leigos’, apresenta um
consenso universal [sincrônico e diacrônico] sobre questões de fé e
costumes’.
‘Por este senso da fé, excitado e sustentado pelo Espírito da verdade, o
Povo de Deus, sob a direção do sagrado magistério, (...) adere
indefectivelmente à fé ‘uma vez para sempre transmitida aos santos’; e,
106
R. LATOURELLE, Teologia da Revelação, São Paulo 1985, 397-398.

60
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

com reto juízo, penetra-a mais profundamente e mais plenamente e aplica


na vida’”.

Antes de concluirmos este ponto de nosso curso, é importante que


vejamos o que o Catecismo da Igreja Católica (nn. 888-891) fala sobre o
carisma da infalibilidade, com o qual Cristo dotou o Sumo Pontífice e o
Colégio Episcopal.

Os Bispos (e seus colaboradores presbíteros) tem como primeira


tarefa anunciar o Evangelho de Deus a todos os homens, segundo a ordem
do Senhor (Mt 28,18-20).

Para manter a Igreja na pureza da fé transmitida pelos apóstolos,


Cristo quis oferecer à sua Igreja uma participação em sua própria
infalibilidade, ele que é a Verdade. Pelo ‘sentido sobrenatural da fé’, o
povo de Deus se atém indefectivelmente à fé, sob a guia do Magistério
vivo da Igreja.

A Missão do Magistério está ligada ao caráter definitivo da Nova


Aliança, instaurado por Deus em Cristo com o seu povo. O ofício
magisterial deve estar ordenado para que o povo permaneça na verdade
que liberta. Para realizar este serviço, Cristo dotou os pastores da sua
Igreja com o carisma da infalibilidade em matéria de fé e de costumes
(moral). O exercício deste carisma pode assumir vária modalidades.

Sujeitos deste carisma: Sumo Pontífice e Colégio episcopal unido à


sua cabeça (Papa).

O Papa goza de infalibilidade quando, por força de seu cargo, na


qualidade de pastor e doutor supremo de todos os fiéis e encarregado de
confirmar seus irmãos na fé, proclama, por um ato definitivo, um ponto de
doutrina que concerne à fé ou aos costumes.

Do mesmo modo esta infalibilidade reside no corpo episcopal


(colégio episcopal) quando exerce o seu magistério supremo em união
com o Sucessor de Pedro, sobretudo em um Concílio Ecumênico.

61
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

Quando por seu magistério supremo a Igreja propõe alguma coisa a


crer sendo revelada por Deus e como ensinamento de Cristo, é preciso
aderir na obediência da fé a tais definições.

5- O Método Teológico
5.1- O Método de Tomás de Aquino
O Método Filosófico de Tomás de Aquino: “É mérito de Tomás de Aquino
a inovadora hermenêutica filosófica. Não se pode aproximar-se de sua
filosofia sem dar conta da importância do seu método. O Aquinate
procede do estudo de casos mais simples e concretos para chegar à
análise dos mais complexos e abstratos. Quando chega aos conceitos, sua
exposição é por meio de argumentos demonstrativos e prováveis e
recorre, no caso da filosofia, aos livros dos filósofos e no caso da teologia,
à autoridade, na verdade de fé. Como que sempre buscando um diálogo
com o mundo, sua pesquisa, seja filosófica, seja teológica, parte da análise
das realidades sensíveis, na medida em que busca chegar, a partir disso, à
análise das realidades imateriais. Neste sentido, o seu método começa por
compreender o ente sensível, sua causa próxima e seus princípios, para ir

62
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

ascendendo ao ente supra-sensível, na consideração de sua causa remota.


Quase toda investigação do Aquinate é segundo este procedimento. De
fato, este modus operandi se faz onipresente às suas exposições. Não
obstante, apesar de tudo isso, para o Aquinate, o método não passa de
um instrumento que serve à filosofia, que por sua vez, serve à teologia.
Por isso, para o Aquinate, o método é, por excelência, instrumento da
razão humana para melhor conhecer a verdade das coisas e, por analogia,
aceder às de Deus, posto que as que Deus nos revela, são por infusão. Em
qualquer caso, a sistematização de seu método gerou uma obra quase
inabarcável. Duas são as fontes da metodologia tomista: a lógica
aristotélica e a o método escolástico. Da lógica aristotélica herdou o modo
argumentativo e demonstrativo e da escolástica o modo expositivo das
questões. Além desta herança, desenvolveu o seu próprio método: a
linguagem analógica, um método filosófico com aplicação teológica, que
se fundamenta em duas doutrinas - a doutrina do ato de ser e a da
participação. O Aquinate analisa as questões que trata e as expõe
comentando, criticando, sempre partindo das ideias mais simples às mais
complexas, pautando os seus argumentos nos princípios invioláveis da
razão e comparando-as analogamente, afirmando o que há de verdadeiro,
negando o que há de falso e corrigindo o que seja passível de correção.
Comumente, como já dissemos, o Aquinate parte da análise das coisas
simples para chegar à consideração das mais complexas. Podemos dizer
que o método tomista, no geral, é indutivo, ou seja, por via de indução,
isto é, aquele que vai da consideração do particular à consideração do
universal. Analisam- se, primeiramente, as coisas singulares e procura
extrair delas o que seja comum de todas. Em linhas gerais, a indução pode
ser compreendida como a ida dos efeitos à causa. O processo pelo qual se
extrai dos singulares o que é comum de muitos é denominado abstração.
O intelecto abstrai dos singulares o que é comum de todos, que por ele é
considerado. Fundamentado nos princípios retos que o constituem, ou
seja, os primeiros princípios intelectivos, como o da não contradição, o
intelecto, mediante a sua aplicação nas coisas singulares que conhece,
comparando-as entre si, formula e concebe um conceito, uma noção
universal que se diz, predica comumente de todos os singulares
considerados antes pelo intelecto. Uma vez estabelecido tais conceitos, o

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intelecto quando os predica das coisas, julga-os, deles fazendo um juízo de


veracidade ou falsidade, de acordo com a adequação ou não com o real
singular. Daí em diante, entra em vigor a via dedutiva, ou a dedução, em
que o intelecto pela análise e crítica do conceito em sua aplicação e
predicação, julga-o e examina-o segundo a adequação ou inadequação
com o real. Até aqui temos o procedimento básico do método tomista,
que não erraríamos se o denominássemos de método gnosiológico, por
pertencer naturalmente ao modo como o nosso intelecto conhece a
realidade e como, por abstração, forma os conceitos”107.

O Método Escolástico em Tomás de Aquino: “Este método era


constituído por duas práticas essenciais: a lectio e a disputatio. Na
primeira, o mestre lia e analisava com seus alunos os textos das
autoridades. Um princípio fundamental era o da autoridade, que eram os
autores considerados excelentes em determinadas áreas do saber, como
Aristóteles em filosofia e as Sagradas Escrituras em teologia. Na
disputatio, essência da Universidade medieval, temas relevantes para a
sociedade eram levantados e discutidos à luz das autoridades e sob uma
perspectiva dialética. A disputatio se estruturava do seguinte modo:
primeiro firmava-se o problema a ser resolvido; em seguida estabelecia-se
uma hipótese; depois apresentavam-se objeções que corroboravam a tese
pré-estabelecida; após as objeções eram formuladas contra-objeções; em
quinto lugar, o mestre respondia a questão, procurando respeitar as
arguições levantadas; por fim o mestre respondia cada objeção feita,
quando necessário. Tomás de Aquino, na Suma Teológica como um todo,
apresenta as questões normalmente divididas em vários artigos, que são
os problemas a serem solucionados com relação à questão”108.

A Suma nasce da experiência da lectio e da disputatio.

Como ler uma questão da Suma Teológica? (Padrão internacional: usado pelo site
de referência www.corpusthomisticum.org
Exemplo: S. Theol. Ia q. 55 a. 1 co.
1 2 3 4 5 6 7
S. Theol. é Ia  Prima q.  55 a.  1éo co.  corpus
a Pars (Primeira quaestio (número articulus número da questão
abreviatura Parte). (questão) da (artigo é do (Resposta do
107
http://www.aquinate.com.br/wp-content/uploads/2016/11/Faitanin-1.pdf
108
http://www.ppe.uem.br/jeam/anais/2008/pdf/p012.pdf

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

da obra questão) uma artigo Mestre, na


Summa Outras subdivisão qual ele
Theologiae possibilidades: da apresenta a
(Suma questão). sua tese).
Teológica) Ia IIae Prima
Secundae Outras
(Primeira possibilidades:
parte da
Segunda s.c.  sed
Parte) contra

IIa IIae arg. 1 


Secunda argumentos
Secundae contrários
(Segunda (logo depois
parte da da sigla vem o
Primeira número do
Parte) argumento)

IIIa Tertia ad. 1 


Pars (Terceira réplica aos
Parte). argumentos
contrários. O
mestre deve
responder a
cada
argumento
contrário.
Em cada questão (q.) e artigo (a.), nós temos uma pergunta de base. As perguntas de cada
artigo estão enunciadas (na ordem) no início de cada questão da Suma. Exemplo (S. Theol. I
q. 55: Dos meios do conhecimento angélico (q. 55), que podemos traduzir sob forma de
pergunta, ou de questão  Quais os meios para o conhecimento angélico?): Em seguida
trataremos dos meios do conhecimento angélico. E, sobre este assunto, três artigos se
discutem: 1. Os anjos conhecem todas as coisas através de sua própria substância? (Artigo
1= a. 1); 2. Os anjos conhecem por meio espécies derivadas das coisas? (Artigo 2= a. 2); 3.
Os anjos superiores conhecem por espécies mais universais que os inferiores? (Artigo 3= a.
3).
Estrutura geral de um artigo:

S. Theol. I q. 55 a. 1: Os anjos conhecem todas as coisas através de sua própria substância


(Pergunta= artigo)?

Parece que não (Tomás apresenta agora os argumentos contrários a sua tese)…

Argumento 1 (a. 1)

Argumento 2 (a. 2)

Argumento 3 (a. 3)

Sed contra (s.c. = em contrário… Santo Tomás apresenta uma afirmação que provenha de

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

uma grande autoridade teológica, Bíblia ou Padre da Igreja, por exemplo, que abra caminho
para um raciocínio diferente do que foi exposto até agora = argumentos contrários)

Corpus (co. é a resposta do Mestre, neste ponto Santo Tomás desenvolve a sua tese. Se o
artigo começa dizendo que “parece que não”, então a tese de Tomás conduz na direção do
sim, da afirmação. Se o artigo começa dizendo que “parece que sim”, então a tese de Tomás
conduz na direção do não, da negação).

Contra argumento 1 (ad. 1 –> réplica ao a. 1)

Contra argumento 2 (ad. 2 –> réplica ao a. 2)

Contra argumento 3 (ad. 3 –> réplica ao a. 3)

Itinerário de estudos teológicos no século XIII 


Leitura e comentário (à luz dos Padres da Igreja e dos melhores autores do
século XII: Hugo de São Vítor, São Bernardo de Claraval, etc.) da Sagrada
Escritura; leitura e comentário do Livro das Sentenças, de Pedro
Lombardo.

Sugestão para aprofundamento: assistir o vídeo que se encontra no


link: https://www.youtube.com/watch?v=a0WMc_QkYlg

Trata-se de um pequeno vídeo de 9 min. no qual o famoso professor


Jean-Pierre Torrel explica o método de Santo Tomás de Aquino (Existem
legendas em português disponíveis para este vídeo).

5.2- Mechor Cano, OP (1509-1560)


Melchor Cano escreveu De Locis Theologicis109, em Salamanca, no ano
de 1563. Nesta obra estabeleceu as dez fontes (lugares), a partir das quais
um teólogo deve partir para construir uma reflexão ou demonstração
teológica:

1- Escritura Sagrada (Locus princeps);


2- Tradição Apostólica110;
3- A Autoridade da Igreja Católica (Universal; Magistério da Igreja);
4- A Autoridade dos Concílios (especialmente os Ecumênicos);
109
MELCHOR CANO, De Locis Theologicis, BAC: Madrid, 2006.
110
Como reconhecer a Tradição apostólica? 1) Primeira forma: é a Tradição apostólica que sempre tem
sido mantida na Igreja (a sua origem é Cristo e os Apóstolos), para que sua origem seja reconhecida
historicamente apostólico; 2) Segunda via: o testemunho unânime dos Padres sobre uma verdade vem da
Tradição Apostólica; 3) Terceira via: Tradição apostólica é o que o consenso unânime de os fiéis hoje
resistem sem poder ser estabelecidos por uma força humana; 4) Quarta via: é de Tradição apostólica o que
o Magistério da Igreja indica como tal.

66
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

5- A Autoridade da Igreja Romana (Sumo Pontífice);


6- A Doutrina dos Padres da Igreja;
7- A Doutrina dos doutores e teólogos escolásticos;
8- A Verdade racional humana;
9- A Doutrina dos filósofos;
10- A história.

1e2
(Fundamentais)
3
(Principais) 4, 5, 6 e 7
(Próprias)
8, 9 e 10
(Impróprias)

Os primeiros sete são considerados próprios, os três últimos


impróprios. Apenas os dois primeiros são fundamentais: Escritura e
Tradição. Portanto, os outros desempenham apenas uma função
explicativa: “Então damos o número de lugares teológicos em dez,
levando em consideração que há uns que diminuem o número e outros
aumentam”.
A Escritura Sagrada é o locus princeps, graças à Inspiração, que lhe
garante a Inerrância.

Ele atribuiu um lugar de relevo entre os lugares teológicos à Tradição


Apostólica, por quatro razões: a Igreja é mais antiga que as Escrituras e,
portanto, a fé e a religião podem existir sem as Escrituras; nem toda a
doutrina cristã, incluindo aquela contida na Sagrada Escritura, foi
formulada com clareza; muitas coisas que pertencem à doutrina cristã não
são encontradas de forma clara nem obscura na Sagrada Escritura; os
apóstolos transmitiram algumas coisas por escrito e outras de boca em
boca.

No capítulo XII, o teólogo dominicano ensina como o teólogo deve


utilizar os locis theologicis na prática.

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

5.3- À luz do Concílio Vaticano II e da Donum Veritatis (1990)


Decreto Conciliar Optatam Totius n. 16: As disciplinas teológicas sejam
ensinadas à luz da fé e sob a direção do  magistério da Igreja, de tal forma
que os alunos possam encontrar com exatidão a doutrina católica na
Revelação divina, a penetrem profundamente, façam dela alimento da
vida espiritual e se tornem capazes de a anunciar, expor e defender no
ministério sacerdotal.

Os alunos sejam formados com particular empenho no estudo da Sagrada


Escritura, que deve ser como que a alma de toda a teologia. Depois da
conveniente introdução, iniciem-se cuidadosamente no método da
exegese, estudem os temas de maior importância da Revelação divina e
encontrem na leitura e meditação dos Livros sagrados estímulo e
alimento.
A teologia dogmática ordene-se de tal forma que os temas bíblicos se
proponham em primeiro lugar. Exponha-se aos alunos o contributo dos
Padres da Igreja oriental e ocidental para a Interpretação e transmissão
fiel de cada uma das verdades da Revelação, bem como a história
posterior do Dogma tendo em conta a sua relação com a história geral da
Igreja. Depois, para aclarar, quanto for possível, os mistérios da salvação
de forma perfeita, aprendam a penetra-los mais profundamente pela
especulação, tendo por guia Santo Tomás, e a ver o nexo existente entre
eles. Aprendam a vê-los presentes e operantes nas ações litúrgicas e em
toda a vida da Igreja. Saibam buscar, à luz da Revelação, a solução dos
problemas humanos, aplicar as verdades eternas à condição mutável das
coisas humanas e anuncia-las de modo conveniente aos homens seus
contemporâneos.
De igual modo, renovem-se as restantes disciplinas teológicas por meio
dum contacto mais vivo com o mistério de Cristo e a história da salvação.
Ponha-se especial cuidado em aperfeiçoar a teologia moral, cuja
exposição científica, mais alimentada pela Sagrada Escritura, deve revelar
a grandeza da vocação dos fiéis em Cristo e a sua obrigação de dar frutos
na caridade para vida do mundo. Na exposição do direito canónico e
da história eclesiástica, atenda-se ao mistério da Igreja, segundo a
Constituição dogmática De Ecclesia promulgada por este sagrado Concílio.
A sagrada Liturgia, que deve ser tida como a primeira e necessária fonte
do espírito verdadeiramente cristão, ensine-se segundo o espírito dos
artigos 15 e 16 da Constituição De sacra liturgia.

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

Tendo em consideração as condições locais, sejam os alunos levados a


conhecer mais perfeitamente as igrejas e comunidades eclesiais separadas
da Sé Apostólica de Roma, para que possam concorrer para a restauração
da unidade de todos os cristãos, segundo as normas deste sagrado
Concílio.
Sejam ainda iniciados no conhecimento das outras religiões mais
espalhadas em cada região, para que melhor possam conhecer o que de
bom e de verdadeiro têm, segundo a disposição de Deus, aprendam a
refutar os seus erros e possam comunicar a plena luz da verdade àqueles
que não a têm.

A Teologia nasce, como vimos no primeiro capítulo, do Mistério que


se revela e da fé (pessoa eclesial; Fides quae et fides qua).

Suas fontes são a Sagrada Escritura (Dei Verbum afirma que é a


alama da teologia), a Sagrada Tradição e o Magistério da Igreja. Seu
método possui uma dimensão especulativa e uma dimensão histórica.
Pode-se usa também a indução, a dedução e a analogia (baseada na
doutrina do ser e da participação). A reflexão teológica une no seu
discurso o elemento catafático ao elemento apofático, na busca de um
equilíbrio que respeite contemporaneamente a veracidade da Revelação e
a transcendência do Mistério.

O Teólogo, como membro da Igreja, deve estar inserido na vida


sacramental, comunional e pastoral da Igreja. Existe uma profunda e
tradicional relação entre o método teológico e a lex orandi (a liturgia da
Igreja: oração pública). A Tradição litúrgica da Igreja deve iluminar a
reflexão teológica católica. A Tradição da Igreja conservou esta verdade
com o adágio lex orandi, lex credendi.

Ciências auxiliares(-afins): filosofia, ciências históricas (história,


arqueologia), ciências humanas (direito, sociologia, etc), línguas (hebraico,
grego, latim etc), outras ciências (biologia, astrofísica, etc). Vale a pena
recordar aqui o ensinamento do documento da Congregação para a
Doutrina da Fé, Donum Veritatis n. 10: “é importante sublinhar que a
utilização pela teologia de elementos e instrumentos conceituais oriundos
da filosofia ou de outras disciplinas, exige um discernimento cujo princípio
normativo último é a doutrina revelada. É ela que deve fornecer os

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

critérios para o discernimento destes elementos e instrumentos


conceituais, e não vice-versa”.

A importância do contexto e a universalidade científica: a reflexão


teológica concreta parte de fontes comuns para toda a teologia, mas
acontece num contexto histórico, sociocultural e eclesial específico. Este
contexto vai influenciar as questões, o método de reflexão e a linguagem
teológicos.

Dois exemplos: a) América Latina, anos 70: a pobreza, a injustiça


social e os regimes ditatoriais criaram um contexto propício para o
desenvolvimento de uma teologia que reflete sobre a figura do pobre e o
seu lugar no Reino de Deus. Reflete-se também sobre a relação Igreja,
Sociedade humana e Reino. Enfatiza-se a humanidade de Cristo, como
causa exemplar para os homens que sofrem; b) Mundo Ocidental, a partir
de 1968: a revolução sexual, a ciência a serviço da contracepção, da
fertilização humana e do “aborto seguro”, o reconhecimento das uniões
homoafetivas e a ideologia de gênero, desafiam a teologia moral (bioética)
e o Magistério a, na fidelidade ao Evangelho, darem respostas racionais
aos cristãos e à humanidade em geral diante de tantas questões difíceis e
delicadas.

Não se pode esquecer que a Teologia hoje deve levar em


consideração tanto a dimensão ecumênica da vida eclesial, quanto o
diálogo inter-religioso. O diálogo respeitoso não se opõe a missão
evangelizadora da Igreja (Anúncio), a Igreja é chamada a dialogar e
anunciar!

5.4- A questão do Método da Teologia da Libertação


A defesa por parte do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé
(G. Müller) da teologia de Gustavo Gutiérrez e a centralidade dos pobres
no pontificado do Papa Francisco recolocaram a Teologia da Libertação 111
(TdL) no panorama teológico atual.
Depois da Conferência de Aparecida, Clodovis Boff, considerado por
muitos o teólogo responsável por haver dado à TdL um consistente
Para uma leitura crítica sobre a TdL: B. KLOPPENBURG, Libertação Cristã, EDIPUCRS: Porto
111

Alegre, 1999; AA. VV. La Teología de la Liberación a la luz del Magisterio, CEDIAL-TRIPODE:
Bogotá-Caracas, 1988; R. VEKEMANS (org.), Teología de la Liberación (Dossier alrededor de la
Libertatis Conscientia), CEDIAL-TRIPODE: Bogotá-Caracas, 1988; F. AQUINO (org.), Teologia da
Libertação, Cléofas: Lorena, 2003.

70
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

fundamento epistemológico e um método 112 bem delineado, escreveu um


artigo, no qual questionava o fundamento da TdL.
Segundo A. Brighenti113, a maioria dos teólogos não havia constatado
até então a distância entre a concepção de TdL codificada na tese doutoral
de C. Boff (Teologia e Prática, de 1976) e a introduzida em suas
publicações entre 1986 e 1990 (Como fazer Teologia da Libertação;
Retrato dos 15 anos da Teologia da Libertação, de 1986; Epistemología y
método de la teología de la liberación, de 1990). Em sua tese doutoral, a
libertação é um tema que faz da TdL uma teologia parcial, uma teologia do
Político. Mais tarde, Clodovis irá dizer que a libertação é uma ótica, a
partir da qual se relê a globalidade da revelação, o que faz da TdL uma
teologia global, inteira, total.

Primeira fase do pensamento de C. Boff (a Teologia da Libertação


como Teologia do Político, Tese doutoral, 1976): A TdL é uma teologia do
genitivo.

“a TdL ‘deve ser entendida como um caso de uma espécie determinada de


Teologia’. Ele parte do pressuposto da existência de duas teologias no seio
do órganon teológico como um todo: a Teologia 1, que se ocupa das
realidades especificamente ‘religiosas’, denominada por ele de
Teologia ‘tradicional’ ou ‘clássica’; e a Teologia 2, que se ocupa das
realidades "seculares", uma teologia temática, de genitivos, como a
teologia ‘da’ esperança, ‘da’ morte de Deus, ‘da’ ação, ‘da’ revolução
ou a teologia política, englobadas todas, dentro do que ele denomina,
Teologia do Político. Consequentemente, sua obra, segundo suas próprias
palavras, ‘versa sobre o estatuto teórico da Teologia do Político em geral e
da Teologia da Libertação em particular’”114.
Para C. Boff, apresentar a TdL como um todo totalmente orgânico,
seria transforma-la em uma ideologia. Ela reflete sobre o tema da
Libertação. Os elementos que compõe o modelo metodológico da TdL
são: a) o ponto de partida é a práxis (horizonte teológico do pobre, que
deve ser escolhido-vivenciado pelo teólogo); b) a mediação socio-analítica
(MSA), que oferece à TdL o seu objeto teórico (matéria prima de sua
reflexão); c) a mediação hermenêutica (MH), que oferece à TdL a sua
112
Sobre o método da TdL, vale a pena ler: F. de A. JÚNIOR, Teoria teológica- Práxis teologal. Sobre o
método da Teologia da Libertação, Paulinas: São Paulo, 2012.
113
Cf. http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/P.2175-
5841.2013v11n32p1403/5843
114
http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2013v11n32p1403/5843
(Página 5)

71
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

identidade propriamente teológico-católica; d) o método deve conduzir a


uma nova práxis ou a uma práxis enriquecida pela reflexão teológica.
Os pontos “a” e “b” fazem com que o teólogo contemple o lado do
mundo, enquanto o ponto “c” permite que ele contemple o mundo a
partir da perspectiva de Deus. Note-se a primazia da práxis sobre o
momento teórico.
Método da TdL (C. Boff)
1-Escolha prévia 2- Mediação Socio- 3- Mediação 4- Mediação
de natureza analítica (é a mais Hermenêutica Prático-Pastoral
política, ética e importante do (Mais importante
evangélica ponto de vista do ponto de vista
(Praxis) lógico- teológico)
cronológico)

Segunda fase do pensamento de C. Boff115 (a libertação como


perspectiva de uma teologia global; 1986-1990): a TdL agora é concebida
como uma teologia global, na medida em que abarca a totalidade dos
temas teológicos (corresponde ao itinerário material das publicações da
TdL no Brasil e na América Latina, L. Boff, por exemplo, publicou uma
cristologia116, uma eclesiologia117, obras sobre os sacramentos118, teologia
trinitária119, teologia da graça120, etc.), entretanto ela não se detém detém
numa "visão genérica e abstrata da fé, mas aprofunda-desenvolve
sempre o sentido histórico libertador do Evangelho, por isso possui
uma ótica particular, fazendo a teologia inteira (em todos os seus
tratados), aterrissar em temas específicos, libertadores. A TdL é "a
teologia da libertação integral, com ênfase na libertação histórica". A
originalidade da TdL, segundo C. Boff, não reside no método, mas "na
raiz do método": o quel he atribui uma nova maneira de utilizar o
método é a "experiência de Deus no pobre.

115
Entre a primeira fase e a segunda fase de seu pensamento, foram publicados dois documentos da
Congregação para a Doutrina da Fé sobre a Teologia da Libertação: Instrução sobre alguns aspectos da
Teologia da Libertação (1984) e Libertatis Conscientia (1986).

116
Cf. L. BOFF, Jesus Cristo libertador, Vozes: Petrópolis, 1974.
117
Cf. L. BOFF, Eclesiogênese: A reinvenção da Igreja, Vozes: Petrópolis, 1977; Id., Igreja, carisma e
poder, Vozes: Petrópolis, 1981.
118
Cf. L. BOFF, Os sacramentos da vida e a vida dos sacramentos, Vozes: Petrópolis, 1975.
119
Cf. L. BOFF, A Trindade e a Sociedade, Vozes: Petrópolis, 1999; Id., A Santíssima Trindade é a
melhor comunidade, Vozes: Petrópolis, 2004.
120
Cf. L. BOFF, A graça libertadora no mundo. Vozes: Petrópolis, 1976 (Mais tarde recebeu outro título:
A graça e experiência humana).

72
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

Seu objeto, por um lado, é a "fé", todo o "depósito da fé", na medida


em que tira dele toda sua significação libertadora, por outro lado, é a
"história", o processo de opressão/libertação, interpretado à luz da fé.
A TDL não veio para substituir a Teologia Patrística e a Teologia
Escolástica, mas para complementa-la de maneira crítica. Ela é uma nova
etapa da teologia, na medida em que atualizaria as teologias anteriores,
confrontando-as com a problemática dos oprimidos. Em outras palavras,
a TdL “é uma teologia integral, ainda que dê uma ênfase particular à
dimensão social da fé”. A TdL seria um novo modo de Teologizar.
Terceira fase do pensamento de C. Boff (a Teologia da Libertação
como libertação “na” Teologia; 1998- até hoje): Aparentemente esta nova
fase se inaugura com a publicação de um artigo logo depois da
Conferência do Celam de Aparecida (Teologia da Libertação e volta ao
fundamento, 2007), entretanto, no artigo citado, o autor retoma ideias
que foram amadurecendo ao londo de quase uma década (Teoria do
método teológico, 1998; Como vejo a teologia trinta anos depois, 2000).
As reações negativas ao seu artigo de 2007, fizereram com que o teólogo
escrevesse: Volta ao fundamento: réplica (2008).

“No artigo, Clodovis congratula-se com o Documento de Aparecida121 que,


segundo ele, rompe com o método ver-julgar-agir e faz uma
‘articulação correta entre fé e ação libertadora’, diferente da TdL, ‘que
partiu de um princípio equívoco, para não dizer errôneo’ (BOFF, 2007, p.
1012). Para ele, ‘a TdL parte do pobre e encontra Cristo; Aparecida parte
de Cristo e encontra o pobre’ (BOFF, 2007, p. 1012). O texto tem um tom
de retratação de posicionamentos seus, assumidos anteriormente” 122.
Na prática, a sua crítica concerne ao fato de que o “pobre” é o
princípio fundamental da TdL, enquanto, na verdade, é o Cristo, o
verdadeiro princípio fundamental da Teologia. Na prática teórica da TdL
acontece uma inversão do primado epistemológico: não é mais Deus, mas
o pobre, o primeiro princípio operativo da teologia

121
Esta interpretação de Aparecida se deve ao fato do Documento iniciar com um capítulo cristológico,
colocado antes do olhar sobre a realidade sócio-eclesial (Ver).
122
http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2013v11n32p1403/5843
(página 21).

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6- Duas funções da Teologia


As duas grandes funções da Teologia: toda ciência possui dois tipos
de funções123. Por um lado, ela deve constatar os dados que são objetos
do seu “saber”, por outro lado, ela deve ser capaz de explicitar o que estes
dados contêm.
a- Constatar os dados (teologia das fontes): é a primeira etapa da
teologia. A teologia deve buscar “tomar posse” do seu objeto de estudo,
ou seja, deve tentar identificar a verdade contida na Revelação.
Um exemplo: A definição dogmática da Assunção de Maria (Pio XII,
1950). A definição propriamente dita, afirma que: “ao final da sua vida
terrestre, a Imaculada Mãe de Deus, Maria sempre Virgem, foi levada ao
céu de corpo e alma para a Glória”.

123
Cf. B.-D. DE LA SOUJEOLE, Introduction au Mystère de l’Église, Toulouse 2006, pp. 14-17.

74
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

Quem fala: o Papa, em virtude da sua autoridade de Pontífice


supremo da Igreja.
Qual o contexto? Trata-se de uma declaração dogmática solene, ou
seja, de uma decisão irreformável, através da qual, o Papa invoca a sua
autoridade de Vigário de Cristo, em matéria de fé, fazendo uso do seu
carisma de infalibilidade.
Qual a intenção? Oferecer à fé dos fiéis uma luz a mais sobre um
ponto importantíssimo de nossa fé.
O que se diz? Maria está atualmente presente de corpo e alma na
Glória do seu filho Ressuscitado.
O que não se diz? Quando isso aconteceu exatamente (antes ou
depois da sua morte? Ela foi preservada da morte?). Como isso aconteceu
exatamente (ela foi levada ao céu como Jesus subiu ao céu, na sua
ascensão?). Estes pontos, não entram na definição dogmática. Por esta
razão, continuam a ser objeto da discussão teológica atual.
Esta etapa do trabalho teológico é importantíssima, caso contrário a
segunda etapa da teologia poderá sofrer graves desvios.
Pode-se cometer graves erros, mas normalmente o erros podem ser
classificados em: erros por excesso (exemplo: acentuar excessivamente a
humanidade de Jesus) e erros por insuficiência (exemplo: negligenciar a
divindade de Jesus). Erros no âmbito da Cristologia (cf. exemplos dados),
vão conduzir a uma eclesiologia e a uma teologia dos sacramentos
defeituosas.
b- Explicitar e ordenar os dados (Teologia especulativa): nesta etapa,
o teólogo não pode se limitar a perguntar-se se a verdade em questão é
revelada ou não. Ou interrogar-se quanto ao contexto no qual a verdade é
afirmada. É necessário aprofundar a questão.
O teólogo se pergunta nesta etapa, diante de tudo o que Deus nos
disse no decorrer da história, o que significa cada verdade revelada em si
mesma? Qual a sua importância em si mesma (não se preocupa com o
contexto histórico, linguístico, cultural, sociológico, etc... isto faz parte da
primeira etapa) e qual a sua importância no contexto global da revelação?
Com a sua inteligência iluminada pela fé, o teólogo busca as relações
entre as verdades reveladas, os seus pontos de contato, as suas conexões,
o lugar de cada uma das verdades no “grande mosaico da Revelação”. Ele

75
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

busca a “ordem” (hierárquica) das verdades. Qual (quais) é (são) a


verdade primeira (as verdades primeiras)? Ao redor da qual as outras se
organizam (Exemplo: esta verdade pode ser comparada ao sol, ao redor
do qual giram os planetas do sistema solar) as demais verdades.
O método teológico será o da análise racional (iluminada pela fé) e o
da demonstração.

Neste ponto de nosso curso precisamos apresentar a idéia de


analogia, tão importante para a teologia 124: 1- Para falar e ser
compreendido pelos homens, Deus utiliza a linguagem humana e
exemplos tirados do mundo visível; 2- Pode-se dizer também que o
mundo criado participa do ser de Deus (o mundo recebe o seu ser de
Deus). Por isso a beleza que o homem encontra no mundo pode ajuda-lo a
compreender que Deus é a beleza incriada (muito superior àquela criada,
que é um pálido reflexo da incriada); 3- fazendo uma analogia, podemos
dizer que Deus é belo, o dizemos, a partir da experiência que fazemos com
a beleza criada (limitada) e com o entendimento e os sentimentos que
percebemos em nós, no âmbito desta experiência. Mas, o conceito de
analogia na teologia, recorda que o que existe de semelhante entre o
mundo criado e Deus é infinitamente menor do que a diferença abissal
que os separam. A analogia é u recurso importantíssimo para a linguagem
teológica. A analogia permite à teologia falar de Deus, mas sem o perigo
de querer enquadrá-lo em conceitos e fórmulas hermeticamente
fechados. A analogia está aberta à contínua transcendência divina, Deus
sempre excede o que somos capazes de dizer (positivamente ) a seu
respeito. No livro da Sabedoria (escrito em grego), lemos que: “através da
grandeza e da beleza das criaturas, vê-se (qewrei/tai - teoreitai: vê-se
teoricamentepor analogia (avnalo,gwj – analógos) o criador” (Sb 13,5).

A Síntese de Tomás de Aquino se apresenta como um excelente


exemplo de organização sistemática do conteúdo da reflexão teológica. A
organização da Suma Teológica é extremamente simples, pois Tomás
parte do objeto primeiro e principal da teologia: Deus (uno e trino). A
partir de Deus, ele considera todas as outras verdades reveladas, mas
sempre nas suas relações com o objeto principal da teologia. Estas
relações, segundo Tomás, são fundamentalmente duas: Deus é o princípio
de todas as coisas (criador de tudo – pela sua providência ele guia tudo) e

124
Cf. NICOLAS, Vocabulário da Suma Teológica, pp. 73-74.

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

Deus é o fim último de todo o criado (elas foram criadas para retornar a
ele).
Este duplo movimento das criaturas – elas provêm de Deus e
“caminham” para Deus – é chamado tradicionalmente de exitus e
redditus.
O esquema de Tomás125:
 Deus (em si mesmo).
 Deus na sua relação com a sua criação Como princípio

Como fim último

Na Suma Teológica, este esquema vai ditar a organização da síntese


teológica do Aquinate126:

I a pars: a- Deus e seu mistério (q. 2-43).

b- Deus, princípio das coisas criadas e da sua ordem (q. 44-


119).

IIa pars e III pars: Deus, fim último das criaturas

a- O fim último: a bem-aventurança (I-IIae q. 1-5)


b- O retorno para Deus: a ação humana (Princípios
gerais: Ia-IIae, q. 6-114; Princípios particulares:
IIa-IIae, q. 1-170)
c- O caminho concreto, a salvação (Cristo
Redentor: IIIa, q. 1-59; Sacramentos: IIIa, q. 60-
90 e Suppl. q. 1-68; Realização final do retorno e
novíssimos: Suppl. q. 69-99).

125
Cf. SOUJEOLE, Introduction au Mystère de l’Église, pp. 18.
126
Cf. SOUJEOLE, Introduction au Mystère de l’Église, pp. 18-19.

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7- Dogma e dogmas
A palavra dogma provém do verbo grego dokéin = (a) aparecer ou (b)
pensar-crer, no sentido de julgar bom, parecer o melhor. Dokéin poderia
ser traduzido como sendo aquilo que aparece justo ou verdadeiro127.
Na antiguidade grega, havia o termo doxa = simples opinião, e o
termo dogma = (a) parecer, opinião (no sentido de doutrina filosófica) ou
(b) decisão-decreto (no sentido jurídico). Na tradução da Setenta, o termo
dogma aparece com o sentido de decreto ou prescrição legal (sentido
jurídico), tanto no domínio profano, quanto no domínio religioso.
Lucas usa o termo dogma para indicar os decretos imperiais (Lc 2,1 e
At 17,7). Em At 15,28, se afirma que os apóstolos edoxen (decidiram). Em
At 16,4, são chamadas dogmata, as deliberações do concílio dos
apóstolos.
127
Cf. SCHULZ, Dogmatica, p. 36.

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

Nos escritos paulinos, Ef 2,15 e Col 2,14, se usa o termo para indicar
as prescrições da Lei.
O termo aparece uma vez na Didaqué (11,3: os dogmas do
Evangelho), uma vez em Clemente Romano (I Ep. aos Coríntios 27,5)
Mais tarde, Santo Inácio de Antioquia (início do II século) usará o
termo dogmas como sinônimo de ensinamento de Cristo e dos apóstolos
(cf. Carta aos Magnésios 13,1). Justino, Clemente de Alexandria e
Orígenes usam o temo no sentido de posição doutrinal de uma escola
filosófico-teológica. Eusébio de Cesareia (III século) empregará o termo
para designar também o ensinamento e as deliberações eclesiásticas.
Segundo B. Sesboué, a expressão grega dogma não se encontra nos
autores latinos Tertuliano, Cipriano, Ambrósio, Agostinho, Leão Magno e
Gregório Magno, mas está presente nos escritos de Jerônimo, Rufino,
Vicente de Lerins (33 vezes na obra Commonitorium) e Genado (autor da
obra Liber de ecclesiasticis dogmatibus, V século)128.
Na Idade Média, a palavra dogma não possui uma função decisiva na
teologia, usa-se mais expressões como artigo de fé (articulus fidei) ou
verdade católica (veritas catholica)129.
Foi graças ao conflito com a teologia reformada, que pouco a pouco
se afirma no âmbito católico o entendimento atual que temos de dogma
(o conjunto dos ensinamentos oficiais da Igreja). Nesta época se
redescobre a obra Commonitorium. Para os padres conciliares de Trento,
os cânones votados eram dogmata fidei (dogmas de fé), mas com isso ,
segundo Sesboué, não entendiam que cada cânon fosse a expressão de
uma doutrina irreformável130. O termo é usado em abundância nas
discussões do Concílio de Trento, mas raramente nos decretos,
normalmente se usa a expressão doutrina131.
Em sentido amplo, dogma significa a fé universal da Igreja. Em um
sentido estreito, dogma significa uma proposição de fé definida.
Nesse segundo caso, somente a unanimidade era requerida, pois
passa-se de uma concepção global do dogma eclesial a uma concepção
mais precisa e específica, como afirmação doutrinal pertencente à
revelação. Vejamos a definição do teólogo franciscano Felipe Neri

128
Cf. Sesboué, Introdução à Teologia, 63-68.
129
Cf. SCHULZ, Dogmatica, p. 36.
130
Cf. Sesboué, Introdução à Teologia, 69.
131
O termo aparece duas vezes nos documentos do Concílio de Trento, cf. DH 1505 e 1525.

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Chrismann (+1810): “Um dogma de fé nada mais é que uma doutrina e


verdade divinamente revelada, doutrina e verdade que o julgamento
público da Igreja propõe à crença da fé divina, de modo que seu contrário
é condenado pela mesma Igreja como doutrina herética”132.
Segundo o Concílio Vaticano I (Constituição Dei Filius), dogma é “tudo
o que está contido na palavra de Deus escrita ou transmitida, e que pela
Igreja, quer em declaração solene, quer pelo Magistério ordinário e
universal, nos é proposto a ser crido como revelado por Deus” (DH 3011).
Vejamos um exemplo: contra o modo com o qual os reformadores
entendiam a presença de Cristo na Eucaristia, o Concílio de Trento insistiu
sobre a presença real de Cristo nos dons durante a celebração eucarística.
Falou-se de uma transformação da substância do pão na substância do
corpo de Cristo e da substância do vinho na substância do sangue de
Cristo, utilizando-se o conceito de transubstanciação (mudança de
substância). Este conceito era o mais apto para exprimir o que o Concílio
queria ensinar (cf. DH 1642 e 1652). Entretanto, o Concílio não quis
dogmatizar o conceito enquanto tal, mas a idéia contida no conceito. È
possível então, substituí-lo por um outro, desde que o novo conceito seja
capaz de exprimir o conteúdo de transubstanciação. Alguns teólogos
propuseram o conceito de transignificação e outro o de transfinalização
(cf. DH 4010-4013). Paulo VI, na encíclica Mysterium Fidei (1965), deixa
claro que estes novos conceitos não são capazes de descrever o que é
expresso pelo conceito de transubstanciação.

8- Breve história da Teologia

A Teologia dos Padres da Igreja (“Intellige ut credas, crede ut


intelligas”133).
Os Santos Padres não separam formalmente a reflexão sobre a fé da
vivência da fé na Comunidade eclesial. Eles são verdadeiros “educadores da
fé”134, e como tal desenvolvem uma reflexão teológica profundamente
ligada à vida eclesial concreta, à liturgia, à espiritualidade, ao combate às
heresias e à missão evangelizadora da Igreja no mundo.
Nota-se na reflexão patrística uma “intelecção amorosa do mistério”135,
uma linguagem simbólica136 e um claro e profundo enraizamento bíblico.
132
W. Kasper, Dogme et Évangile, 35.
133
“Crer para entender e entender para crer”, este axioma ilumina a nossa compreensão global do período
patrístico.
134
H. C. J. MATOS, Estudar teologia. Iniciação e método, Petrópolis 2005, 42.
135
MATOS, Estudar teologia. Iniciação e método, 42.
136
A linguagem simbólica não significa uma linguagem metafórica, mas uma linguagem que se reconhece
inadequada (limitada) na sua missão de “pensar” e “dizer” o mistério. Eles usam a linguagem simbólica

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A patrística também foi marcada pela inculturação da fé cristã no


helenismo, em vista da expansão do Evangelho. Sem trair o dado bíblico, os
Padres se apropriaram de categorias e esquemas filosóficos (estoicismo,
neoplatonismo, etc.) que se apresentavam como possíveis instrumentos
para a reflexão e o anúncio da verdade cristã.
O material patrístico hoje disponível provém de diversas fontes: cartas,
sermões, tratados, comentários bíblicos, textos litúrgicos, textos
catequéticos...
A partir do século III formam-se “escolas teológicas”:
“As mais conhecidas foram as de Antioquia e de Alexandria, rivais entre
si. Enquanto a primeira tendia à exegese literal, na segunda predominava o
sentido alegórico-espiritual”137.
Nos Padres, se encontra a seguinte distinção138:
- Teologia: a reflexão sobre Deus ad intra;
- Economia: a reflexão sobre o operar divino ad extra.

A Teologia medieval139.

Séculos VIII-X: Dadas as invasões bárbaras no Ocidente e o advento do Islão


no Oriente cristão, a Igreja e a sociedade Ocidental evoluem pouco. O
trabalho teológico se limita à compilações e reproduções feitas em
mosteiros ou bispados. A teologia limita-se à leitura e ao comentário da
Sagrada Escritura, com o auxílio de textos patrísticos recolhidos e
selecionados140.
Deve-se recordar que durante o período carolíngio141, multiplicam-se as
escolas142 ligadas a grandes paróquias (nascem a partir do século V,
normalmente possuíam um caráter elementar), catedrais (as escolas
episcopais eram escola superiores, quase sempre confiadas a clérigos-
cônegos regulares) ou episcópios e mosteiros. Originalmente, as escolas
para falar de verdades sublimes.
137
J. B. LIBANIO- A. MURAD, Introdução à Teologia. Perfil, enfoques, tarefas, São Paulo 2014, 104.
138
Cf. Catecismo da Igreja Católica n. 236. Cf. também BOFF, Teoria do Método Teológico, 554.
139
Sobre a teologia medieval: M.-D. CHENU, La Teologia nel XII secolo. Milano: Jaca Book 1983; J.
PELIKAN, Croissance de la Théologie Médiévale 600-1300. Paris: PUF 1994. Coleção Storia dela
Teologia (EDB, Bologna): E. DAL COVOLO (org.), Storia dela Teologia I. Dalle origini a Bernardo di
Chiaravalle. Bologna: EDB 2015; G. OCCHIPINTI (org.), Storia dela Teologia II. Da Pietro Lombardo
a Roberto Bellarmino. Bologna: EDB 1996. Coleção Figure del Pensiero Medievale (Direção I. Biffi e C.
Marabelli): AA. VV., La fioritura dela dialettica (X-XII secolo). Milano-Roma: Jaca Book-Città Nuova
2008; AA. VV. Il mondo delle scuole monastiche (XII secolo). Milano-Roma: Jaca Book-Città Nuova
2010; AA. VV., La nuova razionalità (XIII secolo). Milano-Roma: Jaca Book-Città Nuova 2008.
140
Cf. LIBANIO- MURAD, Introdução à Teologia. Perfil, enfoques, tarefas, 112.
141
Sobre as “escolas” no período de Carlos Magno, cf. J. H. NEWMAN, Origem e progresso das
Universidades. São Paulo: Cultor de Livros 1951, 176-189.
142
Sobre o ensino na Idade Média: P. RICHÉ, L’enseignement au Moyen Âge. Paris: CNRS 2016. Sobre
os livros na Idade Média: S. CASSAGNES-BROUQUET, La Passion du Livre au Moyen Âge. Lilles-
Rennes: Editions Ouest-France 2015.

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

paroquiais e episcopais foram constituídas com o escopo de formação


clerical, mas com o desaparecimento das escolas públicas, passaram a
receber outros alunos.
Carlos Magno escolheu Alcuíno como chefe de sua escola palatina. Alcuíno
vai promover uma verdadeira reforma no programa de formação da escola
do palácio de Carlos Magno, introduzindo o estudo do Trivium e do
Quadrivium (ou seja, das sete artes liberais), que servirá de modelo para
todas as escolas do Império.
O trivium abraçava as disciplinas formais: gramática, retórica, dialética,
esta última desenvolvendo-se, mais tarde, na filosofia;
o quadrivium abraçava as disciplinas reais: aritmética, geometria,
astronomia, música, e, mais tarde, a medicina.
Séculos X-XII: Surgem novas cidades, corporações, ordens religiosas
unificadas, movimentos das ordens mendicantes (franciscanos,
dominicanos). Entre o final do século XI e o início do século XIII surgem
importantes universidades, quase sempre a partir de importantes escolas já
existentes. Em Bolonha, a Universidade surge (1088) graças a um período
caracterizado pela renovação dos estudos do direito canônico. Graças a
Graciano distinguiu-se o direito canônico da Teologia (A faculdade de
Teologia de Bolonha surge oficialmente apenas no século XIV), mais tarde,
mais tarde o direito civil seria separado das outras artes, junto com as quais,
até então, for a ensinado143. A Universidade de Paris nasce em torno dos
estudos das Artes e da Teologia. Salerno e Montpellier já possuem desde o
século XII tradicionais escolas de medicina. Estas escolas serão reconhecidas
como Universidades no século XIII. Do mesmo modo, a Universidade de
Oxfor nasce oficialmente no início do século XIII, mas desde o século XII
estuda-se as Artes, a Teologia e o Direito em diversos conventos e Igrejas da
cidade. No século XIII surgem também Universidades em Palência
(Espanha), Nápoles e Toulouse (França).
“Pode-se dizer, grosso modo, que o ensino básico das universidades – o das
artes – durava seis anos para alunos entre os 14 e os 20 anos; isso é que
prescreviam em Paris os estatutos de Robert de Courson […] Medicina e
Direito eram cursos para as idades seguintes, entre 20 e 25 anos. Os
primeiros estatutos da Faculdade de Medicina de Paris prescreviam seis
anos de estudos”144.
A Teologia propunha um longo caminho para os seus discípulos. por fim,
exigia grande fôlego. Cerca de 5 a 6 anos para a obtenção do bacharelado,
cerca de 8 anos (Nos últimos dois anos, o jovem teólogo podia começar a a

143
R. A. da C. NUNES, História da Educação na Idade Média. São Paulo: Kyrion 2018, 227-228.
144
J. LE GOFF, Os intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro: José Olympio 2016, 105.

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

ler a sagrada Escritura e fazer pequenos comentários, para os alunos do


bacharelados de teologia. Recebia o título de bacharel bíblico: sua missão
era realizar a leitura cursiva da Sagrada Escritura) para que um teólogo
pudesse receber uma nomeação e começar a ler e a explicar as Sentenças
de Pedro Lombardo (Bacharel sentenciário), como assistente de algum
Mestre de Teologia (Os estatutos da Universidade de Paris previam 29 anos
de idade para esse encargo, Tomás de Aquino o assumiu com apenas 27). A
carreira de um professor de teologia chegava ao seu cume com o título de
licentia docendi, acompanhada pelo convite para que pronunciasse uma
aula inaugural. O professor era então chamado de Magister, sua principal
missão era ler e explicar minuciosamente a Sagrada Escritura (Magister in
Sacra Pagina). Os estatutos da Universidade de Paris estabeleciam a idade
mínima de 35 anos para este título (Tomas o recebeu com apenas 31).
No século XII, Pedro, o cantor definiu assim a missão de um Magister de
teologia da época: “legere, disputare, praedicare”145. Ler = comentar
minuciosamente a Bíblia. Esta era a primeira tarefa do Mestre em Teologia.
Disputar = promover a disputatio, forma regular de ensino, aprendizagem e
pesquisa, presidida pelo Mestre, caracterizada por método dialético que
consiste em introduzir ou examinar argumentos da razão e de autoridade
que se opõem em torno de um problema teórico ou prático e são fornecidos
pelos participantes. Possuia duas formas: a disputatio privata, que se
realizava no interior da escola, e a disputatio publica, que deveria ser
organizada periodicamente (alunos de outras escola e até Mestres, podiam
participar destas disputas).
Predicare= sermões, serviço teológico de tipo pastoral, que fazia parte da
missão acadêmica do Mestre em teologia. Os estatutos da Universidade de
paris, previa que uma comissão designasse os sermões que cada Mestre
deveria pronunciar durante o ano.
Entre 1120 e 1160 “descobrem-se os escritos aristotélicos que fornecem
uma teoria crítica do saber e da demonstração” 146. Em Paris, a partir da
metade do século XIII pode-se ensinar a totalidade das obras de Aristóteles,
na faculdade de Artes.
Usa-se o método dialético que propõe o confronto entre as opiniões
diferentes, entre a negação e a afirmação, como via para o esclarecimento
da verdade. O método em questão desafia a teologia monástica147 (São

145
Cf. J.-P. TORREL, Iniciação a santo Tomás de Aquino. Sua pessoa e obra. Loyola. São Paulo: Loyola
2011, 65.
146
LIBANIO- MURAD, Introdução à Teologia. Perfil, enfoques, tarefas, 112.
147
Para conhecer mais sobre a Teologia Monástica, cf. J. LECLERQ, O Amor às letras e o desejo de
Deus, São Paulo 2012 (especialmente o capítulo 9, pp. 229-278).

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

Bernardo de Claraval, Hugo de São Vítor, etc.) que, de um certo modo,


prolongava linhas importantes da teologia patrística.
Uma obra importante que consolida o método dialético é o Livro das
Sentenças de Pedro Lombardo.
Santo Anselmo une a teologia monástica de matriz agostiniana, favorável à
absoluta suficiência da fé, ao pensamento dialético, buscando passar da
simples verdade crida à verdade sabida, pensada e expressa, uma fé em
busca de inteligência (“fides quaerens intellectum”)148:
“Não pretendo, Senhor, penetrar a tua profundidade, porque de forma
alguma a minha razão é comparável a ela; mas, desejo entender de certo
modo a tua verdade, que o meu coração crê e ama. Não busco, com efeito,
entender para crer, mas crer para entender [credo ut intelligam]”
(Proslogion, Proem.).
Séculos XIII-XV: Escolástica. Com o nascimento das Universidades, pratica-se
a teologia nas “escolas” vinculadas aos grandes centros urbanos. Ensina-se a
Sacra Doctrina no horizonte de outras ciências e artes. Os professores e os
teólogos exercitam uma análise metódica e crítica e o raciocínio dialético 149.
Difundem-se as obras de Aristóteles. Estabelece-se pouco a pouco uma
certa autonomia do profano em relação ao sagrado, da filosofia 150 e de
outras ciências em relação à teologia, distingue-se o “crer” do
“compreender”.

O nome mais importante da idade de ouro da Escolástica (séc. XIII) é o


dominicano Tomás de Aquino151, mas não se deve esquecer também a
importância do franciscano Boaventura.
Vejamos agora os seis elementos que compunham o modelo de ensino
escolástico: 1- Lectio: explicação do mestre; 2- Commentarium: exegese das
grandes obras do passado; 3- Quaestio: desenvolvimento dialético,
submetendo determinada afirmação à elaboração crítica; 4- Disputatio:
estudantes e mestres discorrem juntos sobre determinados temas e
pensamentos ligados a um certo autor ou obra; 5- Quodlibet152: extensão da

148
Cf. LIBANIO- MURAD, Introdução à Teologia. Perfil, enfoques, tarefas, 113.
149
Cf. LE GOFF, Os intelectuais na Idade Média, 104-135.
150
Sobre a filosofia medieval: J.-I. SARANYANA, A Filosofia Medieval. Das origens patrísticas à
escolástica barroca. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio 2006; F. C.
COPLESTON, Filosofia Medieval. Uma introdução. Curitiba: Editora Danúbio 2017; S. V. ROVIGHI,
Storia della Filosofia Medievale. Dalla patristica al secolo XIV. Milano: Vita e Pensiero 2011.
151
Cf. M. D. CHENU, San Tommaso d’Aquino e la teologia. Torino: Piero Gribaudi 1977; J.-P.
TORREL, Iniciação a santo Tomás de Aquino. Sua pessoa e obra. Loyola. São Paulo: Loyola 2011; P.
PORRO, Tomás de Aquino. Um perfil histórico-filosófico. São Paulo: Loyola 2014; F. COPLESTON,
Tomás de Aquino. Introdução à vida e à obra do grande pensador medieval. São Paulo: Ecclesiae 2020.
152
Neutro de quilibet. Literalmente  Quod: o que; libet: agrada.

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disputatio (discussão livre sobre assuntos afins); 6- Sententiae: preparam-se


as sumas de teologia153.

Para aprofundar: A Teologia católica entre o século XVI e XIX


O “giro cartesiano” da razão, o individualismo emergente e a reforma
protestante golpeia duramente a unidade da catolicidade na Europa.
A Teologia dos séculos XVI-XVII é marcada por um cunho apologético
(Francisco Suárez, Luiz Molina e R. Belarmino) e por um renovado fervor
espiritual (Santa Teresa d’Ávila, São João da Cruz e Santo Inácio de
Loyola)154.
A partir do século XVIII o iluminismo (e a Revolução Francesa), o
idealismo alemão (Kant, Hegel), o marxismo-socialismo, a psicanálise, o
Darwinismo e o nascimento dos estados modernos se apresentaram como
novos desafios para a teologia católica.
Uma boa parte da teologia católica buscou responder (séculos XVIII-
XIX) aos novos desafios com a proposta de uma nova teologia escolástica
(neo-escolástica e neotomismo).
Obs 1: a importância da Escola de Tubinga (Alemanha). Nascida em
1817, tenta dialogar com o Romantismo, questionando o racionalismo do
idealismo alemão. O Romantismo fala, por exemplo do espírito do povo
(Volksgeist), que se manifesta ao longo da história (revela a identidade), a
Escola de Tubinga apresenta o Espírito Santo como o Espírito da Igreja (Povo
de Deus). Propõe um movimento de volta às fontes (Sagrada Escritura,
Padres da Igreja e grande Escolástica), valoriza a dimensão histórica da
Revelação e do cristianismo e compreende a Igreja como um
prolongamento da vida e da missão de Cristo (Igreja é Corpo de Cristo e não
apenas uma instituição jurídica). Principais expoentes: J. A. Moehler (A
unidade da Igreja, 1825) e J. S. Drey.
Obs 2: A importância da Escola Romana. No Colégio Romano,
professores como C. Passaglia e C. Schrader e J. B. Franzelin aprofundam os
estudos dos Padres a partir das línguas antigas e da crítica textual,
interagem com as mais recentes descobertas arqueológicas e interagem
com a escola histórica alemã. Os principais membros desta escola vão ser os
grandes teólogos do Concílio Vaticano I (Eclesiologia somática).
Obs 3: Um autor original que sofre o influxo tanto da Escola de
Tubinga, quanto da Escola Romana, é M. J. Scheeben (1835-1888): Os

153
Cf. LIBANIO- MURAD, Introdução à Teologia. Perfil, enfoques, tarefas, 113-114.
154
Cf. LIBANIO- MURAD, Introdução à Teologia. Perfil, enfoques, tarefas,118-119.

85
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

mistérios do cristianismo, As maravilhas da graça de Deus e A Mãe do


Senhor.
A Teologia no século XX155.
Nota-se um verdadeiro despertar da teologia católica no início do século
XX, especialmente no campo positivo, com os estudos de exegese,
patrologia, história das religiões, história dos dogmas e história da Igreja.
Na França, por exemplo, surgem novos e importantes dicionários, bem
como, novas revistas.
Encorajado pelo papa Leão XIII surge o neotomismo, que tenta dialogar
com algumas questões da modernidade, sem trair a teologia tradicional da
Igreja. Como representantes desta escola, podemos citar: J. Maréchal; J.
Maritain; E. Gilson e M. D. Chenu.
Na primeira década do século XX surge também o “movimento
modernista”, que visava adaptar o catolicismo tradicional ao pensamento
moderno, à custa de uma certa descontinuidade com a teologia e o
ensinamento magisterial precedente. Influenciado pelo protestantismo
liberal, também se vê sob o influxo do agnosticismo, do neokantianismo e
do neohegelianismo, do panteísmo e do evolucionismo. Um representante
importante desta tendência teológica foi A. Loisy (1857-1940), professor
do Instituto Católico de Paris. Pio X condenará o modernismo em
documentos importantes: Lamentabili (DH 2001-2065) e Pascendi (DH
2071-2109), em 1907.
Entre a primeira e a segunda guerra mundial, temos as importantes
contribuições de: J. M. Lagrange no âmbito da exegese (suas contribuições
abrirão o caminho para a encíclica Divino afflante Spiritus de Pio XII); J.
Mersch e S. Tromp156 propõe uma bem fundada eclesiologia do corpo
místico (tal contribuição será acolhida no magistério de Pio XII com a
encíclica Mystici corporis, 1943); H. de Lubac157 e J. Daniélou iniciam a
famosa coleção Sources Chrétiennes (Fontes cristãs: edição crítica de
textos patrísticos no original e em francês) e encabeçam junto com Y.
Congar158 e M. D. Chenu159 um movimento teológico que ficou conhecido
155
Sobre a teologia do século XX cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX, São Paulo 2002; Id., Breve
história da teologia do século XX, Aparecida 2010; B. MONDIN, Os grandes teólogos do século XX (2
volumes), São Paulo 1987; R. V. GUCHT - H. VORGRIMER, Bilan de la Théologie du XXe siècle (4
volumes), Paris 1970.
156
Para conhecer melhor o pensamento teológico de S. Tromp cf. J. P. de M. DANTAS, In Persona
Christi Capitis. Il ministro ordinato come rappresentante di Cristo capo della Chiesa nella discussione
teologica da Pio XII ad oggi, Siena 2010, 133-160.
157
Para conhecer melhor o pensamento teológico de H. de Lubac cf. MONDIN, Os grandes teólogos do
século XX (vol. 1), 177-205.
158
Para conhecer melhor o pensamento teológico de Y. Congar cf. MONDIN, Os grandes teólogos do
século XX (vol. 1), 153-176.
159
Para conhecer melhor o pensamento teológico de H. de Lubac cf. MONDIN, Os grandes teólogos do
século XX (vol. 1), 123-151.

86
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

como Nouvelle Théologie (Nova Teologia), que propunha uma volta às


“fontes” (bíblicas, patrísticas, medievais), a aplicação do método histórico-
crítico, a valorização do aspecto evolutivo dos dogmas, o diálogo católico
com as principais correntes do pensamento moderno, a integração da
teologia com a vida comum dos cristãos, etc.
Diante de tamanha novidade, a primeira reação do magistério pontifício
foi de desconfiança, através da encíclica Humani generis (1950), o papa
Pio XII condenou algumas teses da Nouvelle théologie.

O Concílio Vaticano II foi preparado por uma série de movimentos


teológicos: movimento litúrgico, movimento ecumênico, movimento
bíblico, movimento patrístico, nouvelle théologie, etc.
A teologia posterior ao Concílio Vaticano II 160 pode ser largamente
apresentada a partir de duas tendências contrastantes:
a) Tendência a sublinhar a descontinuidade entre a doutrina do
Concílio a Tradição precedente, a partir de uma particular
interpretação de um suposto espírito do Vaticano II que seria o
fundamento da radical novidade (teológica, litúrgica, pastoral, etc.)
do ensinamento conciliar (H. Küng, E. Schillebeeckx161);
b) Tendência a sublinhar a continuidade com a Tradição precedente, a
partir de um estudo atento dos textos oficiais do Concílio e das atas
conciliares, sem que por isso, sejam esquecidas as novidades
pontuais do Vaticano II. A teologia busca se enriquecer a partir das
indicações do Concílio. Vaticano II (H. U. von Balthasar162, J.
Ratzinger163, Y. Congar).

160
Para um estudo aprofundado das correntes teológicas posteriores ao Concílio Vaticano II cf. A.
MARRANZINI (org.), Correnti teologiche post-conciliari, Roma 1974.
161
Para conhecer melhor o pensamento teológico de E. Schillebeeckx cf. MONDIN, Os grandes teólogos
do século XX (vol. 1), 237-268.
162
Para conhecer melhor o pensamento teológico de H. U. von Balthasar cf. MONDIN, Os grandes
teólogos do século XX (vol. 1), 207-235.
163
Para conhecer melhor o pensamento teológico de J. Ratzinger cf. T. ROWLAND, A Fé de Ratzinger. A
Teologia do Papa Bento XVI, São Paulo 2013; S. MADRIGAL (org.), El pensamento de Joseph
Ratzinger. Teólogo y Papa, Madrid 2009.

87
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9- Linguagem teológica
Quanto à linguagem, nos recorda C. Boff, a tradição clássica distingue
três espécies de linguagem:
a) Unívoca: “Exprime coisas segundo o mesmo sentido. É a
linguagem que adere como que imediata e direta à realidade.
Refere-se a conceitos adequados, proporcionados à realidade
que representam, embora esta desborde sempre os conceitos,
que são sempre aproximativos (menos talvez na matemática,
etc.)”164. O autor prossegue e acrescenta que este tipo de
linguagem não serve para nos referirmos a Deus, pois este se
encontra em outro nível ontológico. Um termo tem um
significado unívoco, quando o empregamos exatamente no
mesmo sentido e com o mesmo significado para nos referirmos a
coisas distintas (por exemplo, homem aplicado a Júlio César, a

164
BOFF, Teoria do Método Teológico, 300.

88
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Napoleão e João Paulo II)165. Uma tentativa de aplicar a


linguagem unívoca a Deus se encontra no discurso teológico de
caráter antropomórfico;
b) Equívoca: Quando “se predica de realidades totalmente
diferentes entre si segundo o mesmo sentido” (S. Theol. I q. 13 a.
5). Quando se atribui o mesmo nome a duas realidades
essencialmente diferentes, como quando damos o nome de
animais às constelações e aos seres vivos terrestres. Um termo
tem um significado equívoco se o empregamos em distintos
casos com sentidos e conteúdos diferentes (por exemplo:
“banco” para sentar-se, ou “banco” para guardar dinheiro). A
teologia reconhece os limites da linguagem humana para tratar
de seu objeto específico, mas afirma que a linguagem humana
não é puramente equívoca (exterior e arbitrária), pois Deus se
revelou usando a linguagem humana. O agnosticismo é o erro
dos equivocistas166;
c) Analógica: “Efetivamente, para falar de Deus se podem
empregar termos de nossa linguagem humana, indicando por
uma parte, o que no Mistério ‘bate’ com seu sentido e, por
outra, o que não ‘bate’. É isso precisamente o que faz a
linguagem analógica (...) A analogia é, com efeito, uma espécie
de semelhança. Mas, não é mera semelhança, como a do filho
com o pai. Essa é uma semelhança unívoca. A semelhança
analógica é uma semelhança unida a uma dessemelhança, que é
sempre maior. Trata-se, pois, de uma ‘dessemelhança
semelhante’. Na analogia se vê mais o diferente que o
semelhante, como, por exemplo, a vida na planta e no
homem”167. Um termo tem um significado analógo quando o
empregamos em um sentido e com um significado em parte
igual e em parte distinto (por exemplo, “sadio”, aplicado a
alimentos, ao esporte, à mente, à atitude…).

O termo “analogia”, provém do termo latino analogia, que por sua


vez provém do grego analoghía, que significa proporção, semelhança,
correspondência), derivado do verbo analéghein, que significa reunir,
recolher, coletar. Derivado deste verbo, temos o termo análogo
(proporcionado, relacionado, parecido).

165
Cf. D. BOROBIO, História e Teologia comparada dos sacramentos. O princípio da analogia
sacramental. São Paulo: Ave-Maria – Loyola, 2017, 11.
166
Cf. BOFF, Teoria do Método Teológico, 307.
167
BOFF, Teoria do Método Teológico, 309.

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“A analogia funda-se na possibilidade de estabelecer relações


entre seres que mantém algumas semelhanças mesmo sendo
substancialmente distintos. A analogia não implica igualdade,
pois os conceitos que aproxima tem semelhanças e
diferenças”168.
A analogia constitui uma das três formas de raciocínio mais comuns,
junto com a dedução e a indução, visto que nos permite estabelecer
relações entre aspectos diferentes da realidade, seja para ilustrar uma
tese, seja para nos aproximarmos do conhecimento desconhecido169.
“O conceito por excelência de analogia é o de ‘ser’, já que sendo
universal, podemos aplica-lo a tudo o que existe, sem distinção
de gênero ou espécie, de Deus para o menor. Pode ser
considerado em si mesmo (que é Deus enquanto Uno,
Verdadeiro, Bom ou Belo) ou relativamente em relação aos
outros seres criados (que são seres por participação), existindo
uma relação analógica entre aquele que é e tudo aquilo que
existe por ele e for a dele”170.
Uso teológico da analogia:
“A analogia teológica compõe uma linguagem que arranca da
experiência do mundo e, nela apoiada, aponta para o que está
para além do mundo – o Mistério de Deus”171.
Francis Bacon († 1626) escreveu:
“A natureza se revela à inteligência como um raio direto; Deus
como um raio refratado através das criaturas; o homem se
manifesta a si mesmo como um raio reflexo”172.

Exemplos ilustrados de analogia:


Exemplo 1 – Ser.

168
BOROBIO, História e Teologia comparada dos sacramentos. O princípio da analogia sacramental,
10.
169
Cf. BOROBIO, História e Teologia comparada dos sacramentos. O princípio da analogia
sacramental, 12.
170
BOROBIO, História e Teologia comparada dos sacramentos. O princípio da analogia sacramental,
13-14.
171
BOFF, Teoria do Método Teológico, 314.
172
F. BACON, De dignitate et argumentis scientiarum, I. III, cap. 1, apud BOFF, Teoria do Método
Teológico, 314.

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Exemplo 2 - Paternidade

O IV Concílio de Latrão (1215) declarou:


“Entre o Criador e a criatura não se pode colocar uma semelhança maior
do que a dessemelhança” (DH 806).
Santo Tomás de Aquino nos ensina que podemos falar de dois tipos
de analogia: analogia de proporcionalidade e analogia de atribuição. A
primeira ocorre quando um conceito se aplica a diversos objetos em razão
de semelhança de relações que existe entre eles. Por exemplo, diz-se “luz
da verdade”, indicando que a verdade é para a inteligência o que a luz do
sol é para os olhos. Quando falamos “bondade de Deus” e “bondade do
homem”, destacamos a sua semelhança, mas também as suas diferenças
essenciais. A analogia de atribuição é aquela na qual um termo ou
conceito de modo próprio ou principal, é chamado analogatum princeps.
Assim sadio pode aplicar-se à mente, ao animal, ao clima ou à dieta… mas,
de um modo diverso, segundo a sua diversidade ou graduação na ordem
do ser ao analogado principal. Na analogia de atribuição, a perfeição
existe primária e plenamente no analogado principal, e só
secundariamente por relações de razão nos analogados secundários173.
As três vias da linguagem analógica:

173
Cf. BOROBIO, História e Teologia comparada dos sacramentos. O princípio da analogia
sacramental, 12.

91
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1- Via da afirmação: Inclui todas as proposições que predicam algo de


Deus de modo afirmativo. Atribuem-se a Deus perfeições puras,
abstraídas transcendentalmente das criaturas: sabedoria, bondade,
beleza, simplicidade, permanência, poder, etc.
De si mesmas, essas ideias não possuem limites conceituais. Em seu
conteúdo formal são abertas ao infinito. Por isso podem ser predicadas
formalmente de Deus. Essa é a linguagem própria sobre Deus” 174; Esta via
consta de enunciados com conteúdo negativo: Deus é in-corpóreo; não
gerado, in-finito, ab-soluto. Para
2- Via da remoção (negativa): “Esta via consta de enunciados com
conteúdo negativo: Deus é in-corpóreo; não gerado, in-finito, ab-soluto”.
Para Tomás de Aquino, essa via é a via real do conhecimento de Deus:
“Deve-se usar, principalmente, na consideração da substância divina a via
da negação [via remotionis]” (S. contra os Gentios I cap. 14).
Santo Agostinho afirma: “Deus se sabe melhor dessabendo; Se
compreendes a Deus não é ele! Ser chegaste ao fim, não é Deus” 175.
No seu comentário ao tratado da Trindade de Boécio, Tomás ensina:
“Quanto mais negações se conhecem de Deus tanto menos confuso se faz
o conhecimento em nós” (In Boetium... q. 6, a. 3).
3- Via da eminência: “Esta forma de predicação é constituída de
afirmações relativas aos Mistérios, enquanto levadas ao grau supremo.
Exemplo: Deus é boníssimo, Deus é a sabedoria por excelência, Cristo é o
Senhor dos senhores, etc.
(...) A via da eminência, em si mesma, não diz nada de circunscrito
em Deus. Ela é apenas abertura de uma qualidade ao infinito. Nesse
sentido, ela é o corretivo de toda a afirmação, elevando esta ao
nível da transcendência. Tal elevação não acontece pela via do
aumento, mas pela via do salto ao infinito, o qual define justamente
a via da eminência”176.
São Bernardo afirmava: “Por mais alto que o pensamento avance,
Deus está para além” (De Consideratione V, 7, 16).

174
BOFF, Teoria do Método Teológico, 340.
175
C. Boff (p. 342) cita Y. CONGAR, Langage des spirituels et langage des théologiens, in: AA. VV., La
mystique rhénane. Colloque de Strasbourg (16-19/05/61), Paris 1963, 17-23.
176
BOFF, Teoria do Método Teológico, 344.

92
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10- O Teólogo e o Magistério


Em 24 de maio de 1990, a Congregação para a Doutrina da Fé
publicou uma instrução sobre A vocação eclesial do teólogo (Donum
veritatis). A clareza e o embasamento teológico de tal documento
contrastou as críticas que o mesmo recebeu por parte de teólogos da
Alemanha e da América Latina177.

Na apresentação da referida instrução, o então prefeito da


Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger, recordou que
177
Cf. por exemplo L. Boff, La missión del teólogo en la Iglesia, Madrid 1991.

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depois do Concílio Vaticano II, a importância do teólogo e da teologia para


toda a comunidade de crentes passou a ser visível de uma maneira nova
para todos os crentes178.

A teologia gerada pelos movimentos litúrgico, bíblico ecumênico e


mariano, contribuiu decididamente para a fecundidade do Concílio
Vaticano II. Durante o referido Concílio, os próprios bispos se deixaram
guiar de boa vontade em suas decisões pelo parecer de insignes teólogos.

Infelizmente, depois do Concílio, notou-se que alguns teólogos


passaram a sentir-se mais e mais como os verdadeiros mestres da Igreja,
os mestres inclusive dos bispos. Sob o influxo de alguns importantes meios
de comunicação, a opinião pública passou a exaltar o ensinamento de
alguns teólogos, apresentando-os como sinônimo de progresso, enquanto
o magistério da Santa Sé passou a ser considerado como expressão do
fracassado autoritarismo centralizador romano179.
O documento se propõe a refletir sobre o verdadeiro papel eclesial
do teólogo.
O documento está dividido em 4 partes. Na primeira se fala do
sujeito comunitário da fé, ou seja, a Igreja. A verdade é um dom de Deus
para o seu povo! Na segunda parte, trata-se da vocação do teólogo. Na
terceira parte, o documento apresenta o Magistério da Igreja. Na última
parte da Instrução, se reflete sobre a relação entre o teólogo e o
magistério.
Apresentaremos brevemente a segunda e a quarta parte da
Instrução:
11- A Vocação do Teólogo.
O Teólogo é portador de um chamado, sua vocação consiste em
adquirir, em comunhão com o Magistério, uma compreensão sempre mais
profunda da Palavra de Deus contida na Escritura inspirada e na Tradição
viva da Igreja (n. 6). O cardeal Ratzinger em sua apresentação, já
mencionada, recorda ainda que a teologia possui a sua origem em duas
raízes: o dinamismo da fé (que busca a verdade e a compreensão) e o
dinamismo do amor (que busca conhecer melhor a quem ama) 180.
O documento afirma que “o empenho teológico exige um esforço
espiritual de retidão e de santificação” (n. 9).
Na busca de sua missão específica (compreender o sentido da
Revelação), o teólogo precisa adquirir ferramentas filosóficas sólidas que
178
Cf. J. RATZINGER, Natureza e missão da teologia, Petrópolis 1993, 87.
179
Cf. RATZINGER, Natureza e missão da teologia, 88.
180
Cf. RATZINGER, Natureza e missão da teologia, 90.

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

lhe forneçam um sólido e harmônico conhecimento do homem, do mundo


e de Deus, do mesmo modo as ciências históricas são igualmente
necessárias, dada natureza histórica da própria Revelação. Deve-se ainda,
ensina a Instrução, recorrer às ciências humanas para melhor
compreender a verdade revelada sobre o homem e sobre as normas
morais de seu agir.
Mas, “é importante sublinhar que a utilização pela teologia de
elementos e instrumentos conceituais oriundos da filosofia ou de outras
disciplinas, exige um discernimento cujo princípio normativo último é a
doutrina revelada. É ela que deve fornecer os critérios para o
discernimento destes elementos e instrumentos conceituais, e não vice-
versa” (n. 10).
No n. 11, lemos que o teólogo exercita a sua missão no interior da fé
da Igreja. “Por conseguinte, a teologia, enquanto ’serviço muito
desinteressado à comunidade dos fiéis, comporta essencialmente um
debate objetivo, um diálogo fraterno, uma abertura e uma disponibilidade
para modificar as próprias opiniões’” (n. 11).
O cardeal Ratzinger, em sua apresentação, observa que para o
teólogo, além do rigor metódico, duas coisas são necessárias: a filosofia,
ciências históricas e humanas, mas também a participação ativa na vida da
Igreja (fé, oração, meditação, vida cristã autêntica, etc.)181.
“Na teologia (...) [a] liberdade de investigação inscreve-se no interior
de um saber racional cujo objeto é dado pela Revelação, transmitida e
interpretada na Igreja sob a autoridade do Magistério, e acolhida pela fé.
Descurar estes dados que têm valor de princípio, seria equivalente a
deixar de fazer teologia” (n. 12).

Vejamos agora a quarta parte da Instrução:

4. Magistério e Teologia
Esta quarta parte se divide em dois pontos: a) as relações de
colaboração; b) o problema da dissensão.
a) As relações de colaboração (nn. 21-31)
“O Magistério vivo da Igreja e a teologia, mesmo tendo dons e
funções diferentes, têm em última análise o mesmo fim: conservar o Povo
de Deus na verdade que liberta fazendo dele, assim, a ‘luz das nações’.
Este serviço à comunidade eclesial põe em relação recíproca o teólogo
com o Magistério. Este último ensina autenticamente a doutrina dos
Apóstolos, e beneficiando-se do trabalho teológico, refuta as objeções e
181
Cf. RATZINGER, Natureza e missão da teologia, 91.

95
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

as deformações da fé, propondo além disso, com autoridade recebida de


Jesus Cristo, novos aprofundamentos, explicitações e aplicações da
doutrina revelada. A teologia por sua vez adquire, reflexivamente, uma
compreensão sempre mais profunda da Palavra de Deus, contida na
Sagrada Escritura e transmitida fielmente pela Tradição viva da Igreja sob
a guia do Magistério, procura esclarecer o ensinamento da Revelação
diante das instâncias da razão, e enfim lhes confere uma forma orgânica e
sistemática” (n. 21).
O n. 22 acrescenta:
“A colaboração entre o teólogo e o Magistério se realiza de maneira
especial quando o teólogo recebe a missão canónica ou o mandato de
ensinar. Essa se torna então, em certo sentido, uma participação da obra
do Magistério, ao qual um vínculo jurídico a une. As normas de
deontologia que derivam por si mesmas e com evidência do serviço à
Palavra de Deus são corroboradas pelo compromisso contraído pelo
teólogo aceitando o seu trabalho e emitindo a Profissão de fé e o
Juramento de fidelidade.
Desde aquele momento ele é investido oficialmente do dever de
apresentar e ilustrar, com toda a exatidão e na sua integridade, a doutrina
da fé” (n. 22).
No n. 25, encontra-se um ensinamento muito importante para os
teólogos:
“Ainda quando a colaboração se desenvolve nas mais propícias condições,
não é impossível que nasçam entre o teólogo e o Magistério certas
tensões. O significado que a elas é dado e o espírito com que são
encaradas não são indiferentes: se as tensões não nascem de um
sentimento de hostilidade e de oposição, podem representar um fator de
dinamismo e um estímulo que impele o Magistério e os teólogos a
cumprir as suas respectivas funções praticando o diálogo.
26. No diálogo deve dominar uma dupla regra: quando está em questão a
comunhão de fé vale o princípio da ‘unitas veritatis’; quando persistem
eventuais divergências que não põem em risco esta comunhão,
salvaguardar-se-á a ‘unitas caritatis’.
27. Ainda que a doutrina da fé não esteja em questão, o teólogo não
apresentará as suas opiniões ou as suas hipóteses como se se tratasse de
conclusões indiscutíveis. Esta discrição é exigida pelo respeito à verdade,
assim como pelo respeito pelo Povo de Deus (cf. Rm 14, 1-15; 1 Cor 8, 10.
23-33). Pelos mesmos motivos ele renunciará a uma expressão pública e
intempestiva delas” (n. 25).

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O teólogo não deve se sentir dono ou juiz da verdade, mas um


humilde servo da mesma.
b) O problema da dissensão (nn. 32-41).
“O fenômeno da dissensão pode ter diversas formas, e as suas causas
remotas ou próximas são múltiplas. Entre os fatores que podem influir
remota ou indiretamente, deve-se recordar a ideologia do liberalismo
filosófico182, do qual está impregnada também a mentalidade da nossa
época (...) O peso de uma opinião pública 183artificiosamente orientada e
dos seus conformismos, exerce também a sua influência (...) Enfim,
também a pluralidade das culturas e das línguas, que em si mesma é uma
riqueza, indiretamente pode conduzir a mal-entendidos, motivo de
sucessivos desacordos” (n. 32).
“A dissensão pode revestir-se de diversos aspectos. Na sua forma mais
radical, ela tem em mira a transformação da Igreja de acordo com um
modelo de contestação inspirado naquilo que se faz na sociedade política”
(n. 33).
“A justificação da dissensão se apoia, em geral, sobre diversos
argumentos, dos quais dois têm caráter mais fundamental. O primeiro é
de ordem hermenêutica: os documentos do Magistério não seriam nada
mais que o reflexo de uma teologia opinável. O segundo invoca o
pluralismo teológico, levado às vezes até um relativismo que coloca em
questão a integridade da fé: as intervenções magisteriais teriam a sua
origem em uma teologia entre muitas outras, enquanto nenhuma teologia
particular pode ter a pretensão de impor-se universalmente” (n. 33).

Como conclusão desta breve apresentação da Instrução relativa à


missão eclesial do Teólogo, propomos o seguinte trecho:
“Mesmo sendo a teologia e o Magistério de natureza diversa, e ainda
tendo missões diversas, que não podem ser confundidas, trata-se,
contudo, de duas funções vitais na Igreja, que devem compenetrar-se e
enriquecer -se reciprocamente para o serviço do Povo de Deus” (n. 40).

182
“Daqui provém a tendência a considerar que um juízo tem valor tanto maior quanto mais provenha do
indivíduo que se apoia sobre as suas próprias forças. Assim se opõe a liberdade de pensamento à
autoridade da tradição, considerada causa de escravidão” n. 32.
183
“Com frequência os modelos sociais difundidos pelos ‘mass-media’ tendem a assumir um valor
normativo; se difunde, em particular, a convicção de que a Igreja não deveria se pronunciar, a não ser
sobre problemas considerados importantes pela opinião pública, e no sentido que convenha a esta”, n. 32.

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Bibliografia
1- Magistério da Igreja
Concílio Vaticano I, Constituição Dei Filius.
Concílio Vaticano II, Constituição Dei Verbum.
Concilio Vaticano II, Decreto Optatam Totius.
CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Instrução sobre a vocação eclesial do
Teólogo, São Paulo 1990.
ID., Instrução Dominus Iesus, São Paulo 2000.

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

Catecismo da Igreja Católica.


BENTO XVI, Exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini, São Paulo 2010.
ID., A comunhão no tempo: a Tradição (Audiência Geral do 26 de abril de 2006),
in: L’Osservatore Romano (Edição semanal em Português) n. 17 (1897), 29
de abril de 2006, 12.
ID., A Tradição Apostólica (Audiência Geral do 03 de maio de 2006), in:
L’Osservatore Romano (Edição semanal em português) n. 18 (1898), 06 de
maio de 2006, 12.

2- Outros livros e artigos:


I. BIFFI, Alla scuola di Tommaso, Milano 2007.
ID., Il mistero dell’esistenza cristiana: conformi all’immagine del Figlio, Milano
2002
ID., Grazia, ragione e contemplazione. La teologia: le sue forme, la sua storia,
Milano 2000.
ID., Teologia in San Bernardo e in San Tommaso, in : ID. (org.), Sapere e
contemplare il mistero. Bernardo e Tommaso, Milano 2008, 21-40.
C. BOFF, Teoria do Método Teológico, Petrópolis 1998.
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Suplemento 1: S. Theol. I q. 1
Autor: Santo Tomás de Aquino

Obra: Suma Teológica I q. 1.

Art. 1 — Se, além das ciências filosóficas, é necessária outra doutrina.


(IIa IIae., q. 2, a. 3, 4; I Sent., prol., a. 1; I Cont. Gent., cap. IV, V; De Verit., q. 14, a. 10).
 
O primeiro discute-se assim — Parece desnecessária outra doutrina além das
disciplinas filosóficas.

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1. — Pois não se deve esforçar o homem por alcançar objetos que ultrapassem a
razão, segundo a Escritura (Ecle. 3, 22): Não procures saber coisas mais dificultosas do
que as que cabem na tua capacidade. Ora, o que é da alçada racional ensina-se, com
suficiência, nas disciplinas filosóficas; logo, parece escusada outra doutrina além das
disciplinas filosóficas.
 
2. — Ademais, não há doutrina senão do ser, pois nada se sabe, senão o verdadeiro,
que no ser se converte. Ora, de todas as partes do ser trata a filosofia, inclusive de
Deus; por onde, um ramo filosófico se chama teologia ou ciência divina, como está no
Filósofo1. Logo, não é preciso que haja outra doutrina além das filosóficas.
 
Mas, em contrário, a Escritura (2 Tm 3, 16): Toda a Escritura divinamente inspirada é
útil para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir na justiça. Porém, a
Escritura, divinamente revelada, não pertence às disciplinas filosóficas, adquiridas pela
razão humana; por onde, é útil haver outra ciência, divinamente revelada, além das
filosóficas.
 
SOLUÇÃO. — Para a salvação do homem, é necessária uma doutrina conforme à
revelação divina, além das filosóficas, pesquisadas pela razão humana. Porque,
primeiramente, o homem é por Deus ordenado a um fim que lhe excede a
compreensão racional, segundo a Escritura (Is 64, 4): O olho não viu, exceto tu, ó Deus,
o que tens preparado para os que te esperam. Ora, o fim deve ser previamente
conhecido pelos homens, que para ele têm de ordenar as intenções e atos. De sorte
que, para a salvação do homem, foi preciso, por divina revelação, tornarem-se-lhe
conhecidas certas verdades superiores à razão.
Mas também naquilo que de Deus pode ser investigado pela razão humana, foi
necessário ser o homem instruído pela revelação divina. Porque a verdade sobre Deus,
exarada pela razão, chegaria aos homens por meio de poucos, depois de longo tempo
e de mistura com muitos erros; se bem do conhecer essa verdade depende toda a
salvação humana, que em Deus consiste. Logo, para que mais conveniente e segura
adviesse aos homens a salvação, cumpria fossem, por divina revelação, ensinados nas
coisas divinas. Donde foi necessária uma doutrina sagrada e revelada, além das
filosóficas, racionalmente adquiridas.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora se não possa inquirir pela razão
o que sobrepuja a ciência humana, pode-se entretanto recebê-lo por fé divinamente
revelada. Por isso, no lugar citado (Ecle 3, 25), se acrescenta: Muitas coisas te têm sido
patenteadas que excedem o entendimento dos homens. E nisto consiste a sagrada
doutrina.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — O meio de conhecer diverso induz a diversidade das
ciências. Assim, o astrônomo e o físico demonstram a mesma conclusão, p. ex., que a
terra é redonda; se bem o astrônomo, por meio matemático, abstrato da matéria; e o
físico, considerando a mesma. Portanto, nada impede que os mesmos assuntos,
tratados nas disciplinas filosóficas, enquanto cognoscíveis pela razão natural, também
sejam objeto de outra ciência, enquanto conhecidos pela revelação divina. Donde a

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teologia, atinente à sagrada doutrina, difere genericamente daquela teologia que faz
parte da filosofia.

Art. 2 — Se a doutrina sagrada é ciência.


(IIa IIae., q.1, a. 5, ad 2; I Sent., prol., a. 3. q a. 2; De Verit., q. 14 a. 9, ad 3; in Boet., De
Trin., q. 2, a. 2)
 
O segundo discute-se assim — Parece não ser ciência a doutrina sagrada.
 
1. — Pois toda ciência provém de princípios por si evidentes, ao passo que procede a
doutrina sagrada dos artigos da fé, inevidentes em si, por serem não universalmente
aceitos; porque a fé não é de todos, diz a Escritura (2 Ts 3, 2). Logo, não é ciência a
doutrina sagrada.
 
2. — Ademais, do indivíduo não há ciência. Mas a doutrina sagrada trata de fatos
individuais, como sejam os feitos de Abraão, Isaac, Jacó e semelhantes. Logo, não é
ciência a doutrina sagrada.
 
Mas, em contrário, Agostinho: A esta ciência só aquilo se atribui com que se gera,
nutre, defende e corrobora a fé salubérrima1. Ora, a nenhuma ciência pertence tal,
senão à doutrina sagrada. Por onde, é ciência a doutrina sagrada.
 
SOLUÇÃO. — A doutrina sagrada é ciência. Porém, cumpre saber que há dois gêneros
de ciências. Umas partem de princípios conhecidos à luz natural do intelecto, como a
aritmética, a geometria e semelhantes. Outras provém de princípios conhecidos por
ciência superior; como a perspectiva, de princípios explicados na geometria, e a
música, de princípios aritméticos. E deste modo é ciência a doutrina sagrada, pois
deriva de princípios conhecidos à luz duma ciência superior, a saber: a de Deus e dos
santos. Portanto, como aceita a música os princípios que lhe fornece o aritmético,
assim a doutrina sagrada tem fé nos princípios que lhe são por Deus revelados.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Os princípios de qualquer ciência, ou
são por si mesmos evidentes, ou se reduzem à evidência de alguma ciência superior. E
tais são os princípios da doutrina sagrada, como dissemos.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Na doutrina sagrada, os fatos individuais não são tratados
principalmente, senão apenas introduzidos a título de exemplo prático, como nas
ciências morais; ou também no intuito de apurar a autoridade dos homens que nos
transmitiram a revelação divina, na qual se funda a Sagrada Escritura ou doutrina.

Art. 4 — Se a doutrina sagrada é ciência prática.


(I Sent., prol. a. 3, q. 1)
 
O quarto discute-se assim — Parece que a doutrina sagrada é uma ciência prática.
 
1. — Pois, segundo o Filósofo, no livro II da Metafísica, o fim do saber prático é o
operar; e a doutrina sagrada à operação se ordena, conforme a Escritura (Tg 1,

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22): Sede, pois, fazedores da palavra, e não ouvintes tão somente. Logo, é ciência
prática.
 
2. Demais — A doutrina sagrada abrange a lei antiga e a nova. Ora, a lei respeita à
ciência moral, que é prática. Donde, é ciência prática a doutrina sagrada.
 
Mas, em contrário, toda ciência prática tem por objeto as coisas factíveis pelo homem;
v.g. a moral, os atos humanos e a arquitetura, os edifícios. Ora, a doutrina sagrada tem
por objeto principal Deus, de quem, pelo contrário, são obras os seres humanos. Por
onde, não é ciência prática, mas, antes, especulativa.
 
SOLUÇÃO. — A doutrina sagrada, sendo uma única ciência, como dissemos antes (a. 3
ad 2), contém os objetos de várias disciplinas filosóficas pelo aspecto formal, que neles
considera, de serem cognoscíveis à luz divina. Donde, embora nas ciências filosóficas,
seja uma a especulativa, e outra, a prática, a sagrada doutrina compreende o objeto de
ambas; bem como Deus, pela mesma ciência, conhece o próprio ser e suas obras.
Contudo, é mais especulativa que prática, por conhecer antes das coisas divinas que
dos atos humanos, tratando destes enquanto o homem, por eles, se ordena ao
conhecimento perfeito de Deus, essência da felicidade eterna.
 
Donde resultam claras as respostas às objeções.

Art. 5 — Se a doutrina sagrada é mais digna que as outras ciências.


(IIa IIae, q. 66, a. 5, ad 3; I Sent., prol., a.1; II Cont. Gent., cap. IV)
 
O quinto discute-se assim — Parece não ser a doutrina sagrada mais digna que as
outras ciências.
 
1. — Pois é digno o saber enquanto certo; e as demais ciências, que partem de
princípios indubitáveis, parecem mais certas que a doutrina sagrada, cujos princípios,
ou artigos de fé, são sujeitos à dúvida. Donde, as outras ciências parecem mais dignas
que ela.
 
2. Demais — a ciência inferior aproveita-se da superior; assim, do aritmético, o músico.
Ora, a doutrina sagrada recebe algo das disciplinas filosóficas, pois, diz Jerônimo1, os
doutores antigos de tal modo encheram os livros de doutrinas e sentenças dos
filósofos, que não sabemos o que mais seja neles de admirar: se a erudição secular ou
a ciência das Escrituras. Logo, a doutrina sagrada é inferior às outras ciências.
 
Mas, em contrário, as demais ciências são chamadas escravas desta, segundo a
Escritura (Pr 9, 3): Enviou as suas escravas a chamar à fortaleza.
 
SOLUÇÃO. — A dita ciência, por ser especulativa a um respeito e a outro, prática,
sobreleva a todas as demais, tanto especulativas como práticas. Pois, das ciências
especulativas, uma é considerada mais digna que outra, quer pela certeza, quer pela
nobreza do assunto; e, de ambos os pontos-de-vista excede esta ciência às outras
especulativas. Quanto à certeza, porque as outras a têm pelo lume natural da razão

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humana, que pode errar, e a possui esta pela luz da ciência divina, que se não pode
enganar. Quanto à nobreza do assunto, porque esta versa principalmente sobre
matérias que, pela sua profundeza, ultrapassam a razão; considerando as outras só
aquilo que se pode alcançar racionalmente. — Das ciências práticas, mais digna é
aquela que não é subordinada a um fim ulterior; assim, a civil supera a militar, pois o
bem do exército se subordina ao do Estado. Ora, o fim da doutrina sagrada, enquanto
prática, é a eterna felicidade, para a qual se ordenam, como ao fim último, todos os
outros fins das ciências práticas. Por onde, é manifesto que, a todas as luzes, é mais
digna que as outras.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Nada impede ser o mais certo, por
natureza, menos certo, pelo que nos toca, por causa da fraqueza do nosso intelecto,
que está para as coisas mais evidentes como os olhos da coruja para a luz do sol, como
diz Aristóteles. Donde, a dúvida de certos sobre os artigos da fé não provém da
incerteza do assunto, senão da fraqueza do intelecto humano; se bem o mínimo
conhecimento que pudermos adquirir das coisas altíssimas é mais desejável que o
conhecimento certíssimo de coisas mínimas, conforme o Filósofo.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Esta ciência pode receber auxílio das filosóficas, não por lhe
serem indispensáveis, mas para maior clareza dos assuntos de que trata. Porém, das
outras ciências não recebe os seus princípios, senão de Deus, por imediata revelação.
Nem, portanto, recebe das outras ciências como de superiores, senão que delas usa
como inferiores e servas, como as arquitetônicas, das auxiliares e a civil, da militar. E
esse mesmo usar delas não é por defeito ou insuficiência sua, e sim por imperfeição do
nosso entendimento, que das coisas conhecidas pela razão natural (donde procedem
as outras ciências) mais facilmente é levado para aquelas que a sobrepujam e são o
objeto desta ciência.

Art. 6 — Se esta doutrina é sabedoria.


(I Sent., prol., a. 3, qI, 3; II Cont. Gent., cap. IV)
 
O sexto discute-se assim — Parece que esta doutrina não é sabedoria.
 
1. Pois nenhuma doutrina que receba de outra os seus princípios, merece o nome de
sabedoria, cabendo ao sábio ordenar e não ser ordenado, como diz Aristóteles1. Ora,
esta doutrina recebe de outra os seus princípios, como do sobredito aparece (a. 2).
Logo, não é sabedoria.
 
2. Demais — À sabedoria compete provar os princípios das outras ciências, por onde é
chamada cabeça das demais, como se vê no Filósofo2. Ora, não justifica esta doutrina
os princípios das outras ciências, nem é, portanto, sabedoria.
 
3. Demais — Adquire-se esta doutrina pelo estudo, mas recebemos a sabedoria por
infusão, e, por isso, se conta entre os sete dons do Espírito Santo, como se vê na
Escritura (Is 2,2). Logo, esta doutrina não é sabedoria.
 

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Mas, em contrário, a Escritura (Dt 4, 6): Porque nisto mostrarei a vossa sabedoria e


inteligência aos povos.
 
SOLUÇÃO. — De toda a sabedoria humana, é esta doutrina a mais alta, não relativa,
mas absolutamente. Pois sendo próprio do sábio ordenar e julgar, e, pela causa mais
alta, considerar as inferiores, sábio se chama, em qualquer gênero, quem lhe atende à
altíssima causa. Assim, no tocante à construção, o artífice que traça a planta da casa é
chamado sábio e arquiteto, em relação aos operários inferiores, que aplainam a
madeira e preparam as pedras; donde o dito da Escritura (1 Cor 3,10): Lancei o
fundamento como sábio arquiteto. Também, no que respeita à vida humana em
conjunto, é o prudente chamado sábio, enquanto ordena os atos humanos ao fim
obrigatório; donde outro dito da Escritura (Pr 10, 23): A sabedoria é, para o homem,
prudência. Quem, portanto, considera a causa absoluta mais alta do universo, que é
Deus, deve ser chamado sábio por excelência. Pelo que também se define a
sabedoria conhecimento das coisas divinas, como se vê em Agostinho. Ora, o próprio
da sagrada doutrina é considerar a Deus, causa altíssima, não só enquanto cognoscível
por meio das criaturas — o que souberam os filósofos, como diz a Escritura (Rm 1,
19): O que se pode conhecer de Deus lhes é manifesto — senão também naquilo que só
ele de si mesmo conhece e foi aos outros revelado e comunicado. Por isso, tal doutrina
em sumo grau merece o nome de sabedoria.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Não recebe a sagrada doutrina os seus
princípios de nenhum saber humano, senão da ciência divina, a qual regula todo o
nosso conhecimento, a título de suprema sabedoria.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Os princípios das demais ciências ou são por si evidentes, e
não podem ser provados; ou se demonstram noutra ciência por algum motivo natural.
Porém, o conhecimento próprio desta ciência assenta na revelação, e não em
premissas naturais. Donde, não lhe cabe provar os princípios das outras ciências, mas
só julgá-las; porque tudo o que nelas repugnar à verdade desta, condena-se, de vez,
como falso, segundo o Apóstolo (2 Cor 10, 4-5): Derribando os conselhos e toda a
altura que se levanta contra a ciência de Deus.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Por ser o juízo próprio do sábio, e por haver dois modos de
julgar, deve a sabedoria ter dois sentidos. O primeiro modo de julgar é por inclinação:
por exemplo, quem tiver bons costumes, por atração da virtude, pode com acerto
julgar dos atos que se devem praticar moralmente. Por isto está em Aristóteles: o
virtuoso é medida e regra dos atos humanos4. — O segundo modo é pelo
conhecimento: como o instruído na ciência moral poderia julgar dos atos de virtude,
mesmo se a não tivesse. Ora, o primeiro modo de julgar as coisas divinas pertence à
sabedoria enquanto dom do Espírito Santo, segundo a Escritura (1 Cor 2,15): O
espiritual julga todas as coisas; e Dionísio: Hieroteu é douto, não só por aprender mas,
antes, por sentir as coisas divinas5. O segundo modo de julgar é próprio desta
doutrina, enquanto se adquire por estudo, embora sejam os princípios recebidos pela
revelação.

Art. 7 — Se Deus é o objeto desta ciência.

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(I Sent. Prol., a. 4; in Boet., De Trin., q. 5, a. 4).


 
O sétimo discute-se assim — Parece não ser Deus o objeto desta ciência.
 
1. — Pois é necessário, em qualquer ciência, supor a essência do objeto, segundo o
Filósofo1. Ora, esta ciência não supõe a essência de Deus, pois, diz Damasceno: É
impossível assinalar a essência divina2. Donde, não é Deus o objeto desta ciência.
 
2. Demais — abrange o objeto da ciência tudo o que ela trata. Porém, na sagrada
doutrina, há muitos outros assuntos além de Deus, p. ex.: as criaturas e os costumes
humanos. Logo, não é Deus o objeto desta ciência.
 
Mas, em contrário, objeto da ciência é o assunto nela principalmente tratado. Ora,
Deus é o assunto principal desta ciência, pois é chamada teologia ou tratado de Deus.
Logo, Deus é o objeto desta ciência.
 
SOLUÇÃO. — Deus é o objeto desta ciência, porque o objeto está para a ciência como
para a potência ou hábito. Ora, propriamente, é considerado objeto de potência ou
hábito aquilo sob cujo aspecto se lhes refere qualquer coisa. Donde, referindo-se à
vista, enquanto coloridos, o homem e a pedra, é a cor o objeto próprio da vista. Ora, a
sagrada doutrina tudo trata com referência a Deus, por tratar ou do mesmo Deus ou
das coisas que lhe digam respeito, como princípio ou fim. Pelo que, é Deus,
verdadeiramente, o objeto desta ciência — o que também se demonstra pelos
princípios da dita ciência, ou artigos da fé, de que Deus é objeto. Ora, idêntico objeto
têm os princípios e toda a ciência, por estar a última, total e virtualmente, contida nos
princípios. — Certos, porém, atendendo às matérias tratadas e não ao ponto-de-vista,
a esta ciência assinalaram outro objeto; como, a realidade e os símbolos, ou as obras
da reparação; ou todo Cristo, i.é., a cabeça e os membros. E, com efeito, são
consideradas nesta ciência todas essas matérias, se bem com relação a Deus.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora seja impossível conhecermos a
essência divina, contudo nesta doutrina, lhe usamos do efeito, no domínio natural ou
da graça, em vez da definição da causa, para daí tirar as conclusões da ordem divina,
consideradas na mesma doutrina. Assim como, em certas ciências filosóficas, pelo
efeito se demonstra algo da causa, tomando aquele em lugar da definição desta.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Todos os demais assuntos tratados na doutrina sagrada
estão incluídos em Deus, não como partes, espécies ou acidentes, mas como a ele de
certo modo ordenados.

Art. 8 — Se esta doutrina é argumentativa.


(IIa IIae, q. I, a. 5, ad 2; I Sent., prol., a. 5; I Cont. Gent., cap. IX; in Boet., De Trin., q. 2,
a. 3; Quodlib., IV, q. 9, a.3)
 
O oitavo discute-se assim — Parece que esta doutrina não é argumentativa.
 

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1. — Pois, diz Ambrósio: Deixa os argumentos quando se procura a fé1. Ora, por esta
doutrina procuramos principalmente a fé, pelo que diz a Escritura (Jo 20, 31): Foram
escritos estes (prodígios) afim de que vós creais. Logo, a doutrina sagrada não é
argumentativa.
 
2. Demais — se for argumentativa, há de sê-lo pela autoridade ou pela razão. Se pela
autoridade tal não lhe parece caber à dignidade, pois fragilíssimo é o argumento de
autoridade, conforme Boécio. Se pela razão, isso não lhe convém ao fim, porque,
segundo Gregório, não tem mérito a fé onde a razão fornece a prova3. Donde, não é
argumentativa a doutrina sagrada.
 
Mas, em contrário, diz a Escritura (Tt 1, 9) a respeito do bispo: Que abrange a palavra
fiel, que é segundo a doutrina, para que possa exortar conforme à sã doutrina e
convencer aos que o contradizem.
 
SOLUÇÃO. — Como as outras ciências não argumentam para provar os seus princípios,
mas, com estes, raciocinam para demonstrar outros pontos, assim também, não
argumenta esta doutrina para provar os seus princípios ou artigos da fé, senão que
destes procede para mostrar outra verdade. Assim é que o Apóstolo (1 Cor 15)
argumenta com a ressurreição de Cristo para provar a de todos os homens.
Cumpre, no entanto, considerar que as ciências filosóficas inferiores nem provam os
seus princípios, nem disputam contra aqueles que os negam, mas isto deixam para a
ciência superior. Porém, dentre elas, a suprema, a saber, a Metafísica, discute contra
quem lhe nega os princípios, se o adversário concede algum ponto; mas, se nada
concede, não se pode com ele discutir, bem que se lhe possam refutar as objeções. Da
mesma forma, a sagrada doutrina, por não ter nenhuma superior, disputa contra quem
lhe nega os princípios, com argumentos, se o adversário conceder algum ponto
revelado; e assim, com as autoridades da doutrina sagrada, discutimos contra os
hereges e, por um artigo da fé, contra os negadores de outro. Se, porém, o adversário
não acredita em ponto algum da revelação divina, já não há meio para lhe provar com
razões os artigos da fé, mas, sim, para lhe refutar as objeções contra esta, porventura
assacadas. Porque, assentando a fé na verdade infalível, e sendo impossível
demonstrar o contrário da verdade, claro está que as razões dirigidas contra a fé não
são demonstráveis, senão argumentos refutáveis.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora não tenham cabimento, para
provar os pontos da fé, os argumentos da razão humana, todavia, com os artigos da fé,
esta doutrina argumenta para provar outras verdades, segundo o sobredito.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Muitíssimo próprio a esta doutrina é o argumentar por
autoridade, sendo-lhe os princípios obtidos pela revelação; pelo que é mister acreditar
na autoridade daqueles a quem a revelação foi feita. Nem isso derroga à dignidade de
tal doutrina; pois, embora fragilíssima a autoridade fundada na razão humana,
eficacíssima é, contudo, a quem assenta na revelação divina.
Apesar disso, a doutrina sagrada também usa da razão humana, não, por certo, para
provar a fé, o que lhe suprimiria o mérito, senão para manifestar, de algum modo,
ensinamentos seus. Pois, como a graça não tolhe, mas aperfeiçoa a natureza, importa

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que a razão humana preste serviços à fé, assim como a inclinação natural da vontade
está às ordens da caridade. No mesmo sentido julga a Escritura (2 Cor 10,5): Reduzindo
a cativeiro todo o entendimento para que obedeça a Cristo. Donde provém que a
doutrina sagrada até lança mão da autoridade dos filósofos, nos assuntos em que pela
razão natural puderam conhecer a verdade. Assim, Paulo alega a palavra de Arato (At
17, 28): Como disseram ainda alguns de vossos poetas: Que somos linhagem divina.
 Porém, de tais autoridades se aproveita a doutrina sagrada como de argumentos
estranhos e prováveis, ao passo que emprega as autoridades dos escritores canônicos
como argumentos próprios e necessários. Quanto às autoridades dos outros doutores
da Igreja, delas usa como argumentos próprios mas de valor provável. Porque a nossa
fé se apoia na revelação feita aos Apóstolos e Profetas, que escreveram os livros
canônicos; não, porém, na revelação porventura feita aos demais doutores. Donde o
dizer Agostinho: Somente aos livros da Escritura, chamados canônicos, aprendi a
deferir a honra de crer firmissimamente que nenhum dos seus autores erraram, que os
escreveram. Os outros escritores, porém, por mais eminentes que sejam na santidade
ou na doutrina, eu os leio de modo a não ter por verdadeira uma sentença só porque
foi por eles aceita ou escrita4.

Art. 9 — Se a doutrina sagrada deve usar de metáforas.


(I Sent. Prol., a. 5; dist. XXXIV, q. 3, a. 1.2; III Cont. Gent., cap. CXIX; in Boet.  De Trin., q.
2, a. 4)
 
O nono discute-se assim — Parece não dever a doutrina sagrada usar de metáforas(...)
 
SOLUÇÃO. — É conveniente à Sagrada Escritura transmitir as coisas divinas e
espirituais por comparações metafóricas com as corpóreas. Pois, provendo Deus a
todos, segundo a natureza de cada um, e sendo natural ao homem chegar, pelos
sensíveis, aos inteligíveis — pois todo o nosso conhecimento começa pelos sentidos —
convenientemente, a Sagrada Escritura nos transmite as coisas espirituais por
comparações metafóricas com as corpóreas. E é isto o que diz Dionísio: É impossível
alumiar-nos o raio divino sem ser circumvelado pela variedade dos véus sagrados1.
Também convém à Sagrada Escritura, comumente proposta a todos, segundo o
Apóstolo (Rm 1, 14) — Eu sou devedor a sábios e a ignorantes — propor as coisas
espirituais por comparações com as corpóreas para que, ao menos assim, as
compreendam os rudes, não idôneos para conceber os inteligíveis em si.

Art. 10 — Se na Sagrada Escritura uma mesma letra tem vários sentidos: o histórico
ou literal, o alegórico, o tropológico ou moral e o anagógico.
(I Sent., prol., a. 5; IV, dist XXI, q.1, a.2, qa 1, ad 3; De Pot., q. 4, a. 1; Quodlib., III, q. 14,
a. 1; VIII, q. 6; ad Gal., c. IV, lect. VII)
 
O décimo discute-se assim — Parece que na Sagrada Escritura, uma mesma letra não
tem vários sentidos: o histórico ou literal, o alegórico, o tropológico ou moral e o
anagógico.
 

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

1. — Pois a multiplicidade dos sentidos, num escrito, gera a confusão e o engano e


obsta à segurança da argüição. Donde, não resulta nenhuma argumentação da
multiplicidade de proposições, causa esta, antes, de sofismas. Ora, a Escritura Sagrada
deve ser eficaz para mostrar a verdade, sem nenhuma falácia. Logo, nela não deve
haver, numa mesma letra, vários sentidos.
 
2. Demais — diz Agostinho: A Escritura chamada Antigo Testamento transmite-se
quadriformemente: pela história, pela etiologia, pela analogia e pela alegoria1. Ora,
essas quatro formas são completamente diferentes das quatros supra enumeradas.
Logo, não é admissível que a mesma letra da Escritura Sagrada se exponha nos quatro
sentidos preditos.
 
3. Demais — além dos sentidos preditos, há o parabólico, não contido nos quatro.
 
Mas, em contrário, Gregório: A Sagrada Escritura, pelo modo mesmo da sua locução,
transcende todas as ciências; pois, com a mesma expressão, assim narra o feito como
expõe o mistério2.
 
SOLUÇÃO. — O autor da Sagrada Escritura é Deus, em cujo poder está dar significação
não só às palavras, o que também o homem pode fazer, mas ainda às próprias coisas.
Por isso, além do que se dá com todas as ciências, nas quais as palavras têm
significação, esta ciência tem de próprio que as coisas mesmas significadas pelas
palavras, por sua vez, também significam. Ora, a primeira significação, pela qual as
palavras exprimem as coisas, é a do primeiro sentido, que é o histórico ou literal. E a
significação pela qual as coisas expressas pelas palavras têm ainda outras significações,
chama-se sentido espiritual, que se funda no literal e o supõe. Mas, este sentido
espiritual tem três subdivisões. Pois, como diz o Apóstolo (Hb 7, 19), a lei antiga é
figura da nova e esta, por sua vez, como diz Dionísio, o é da glória futura3; e, demais,
na lei nova, as coisas feitas pelo chefe são sinais das que nós devemos fazer. Ora,
quando as coisas da lei antiga significam as da nova, o sentido é alegórico; quando as
realizadas em Cristo, ou nos que o que significam, são sinais das que devemos fazer, o
sentido é moral; e quando significam as coisas da glória eterna, o sentido é anagógico.
Mas como o sentido literal é o que o autor tem em vista, e o autor da Sagrada Escritura
é Deus, cuja inteligência tudo compreende simultaneamente, não há inconveniente,
como diz Agostinho, se, mesmo no sentido literal, uma expressão da Sagrada Escritura
tem vários sentidos.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A multiplicidade de tais sentidos não
gera o equívoco nem nenhuma outra espécie de multiplicidade; pois, como já se disse,
esses sentidos se multiplicam, não por ter uma palavra muitas significações, mas
porque as próprias coisas significadas pelas palavras podem ser sinais de outras coisas.
Donde o não haver nenhuma confusão na Sagrada Escritura, por se fundarem todos os
sentidos em um, o literal, com o qual somente se pode argumentar, e não com o
sentido alegórico, como diz Agostinho. Mas, nem por isso, nada se perde da Escritura
Sagrada; pois, não há nada de necessário à fé, contido no sentido espiritual, que ela
não explique manifestamente, alhures, no sentido literal.
 

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

RESPOSTA À SEGUNDA. — A história, a etiologia, a analogia pertencem a um mesmo


sentido literal. Pois, como expôs o próprio Agostinho, a história propõe algo pura e
simplesmente; a etiologia assinala a causa de uma expressão, como quando o Senhor
assinalou a causa por que Moisés deu licença de repudiar as mulheres, isto é, pela
dureza do coração dos hebreus; a analogia mostra que a verdade de um passo da
Escritura não repugna à de outro. Ora, dentre as quatro divisões propostas, só a
alegoria abrange os três sentidos espirituais. E, assim, Hugo de São Vitor compreende,
no sentido alegórico, também o anagógico, admitindo somente três sentidos: o
histórico, o alegórico e o tropológico.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — O sentido parabólico se contém no literal, pois as palavras
têm uma significação própria e outra figurada; e nem é o sentido literal a figura, mas o
figurado. Pois, quando a Escritura se refere ao braço de Deus, o sentido literal não é
que, em Deus, há esse membro corpóreo, mas o que é por tal membro significado, i.e,
a virtude operativa.
Por onde se vê que nunca pode haver falsidade no sentido literal da Escritura Sagrada.

Suplemento 2: Instrução sobre alguns aspectos da


Teologia da Libertação (Congregação para a Doutrina da
Fé)
INTRODUÇÃO

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

O Evangelho de Jesus Cristo é mensagem de liberdade e força de libertação. Esta


verdade essencial tornou-se, nos últimos anos, objeto da reflexão dos teólogos, com
uma nova atenção que, em si mesma, é rica de promessas.
A libertação é antes de tudo e principalmente libertação da escravidão radical do
pecado. Seu objetivo e seu termo é a liberdade dos filhos de Deus, que é dom da graça.
Ela exige, por uma consequência lógica, a libertação de muitas outras escravidões, de
ordem cultural, económica, social e política, que, em última análise, derivam todas do
pecado e constituem outros tantos obstáculos que impedem os homens de viver segundo
a própria dignidade. Discernir com clareza o que é fundamental e o que faz parte das
consequências, é condição indispensável para uma reflexão teológica sobre a libertação.
Na verdade, diante da urgência dos problemas, alguns são levados a acentuar
unilateralmente a libertação das escravidões de ordem terrena e temporal, dando a
impressão de relegar ao segundo plano a libertação do pecado e portanto de não atribuir-
lhe praticamente a importância primordial que lhe compete. A apresentação dos
problemas por eles proposta torna-se por isso confusa e ambígua. Outros, com a
intenção de chegarem a um conhecimento mais exato das causas das escravidões que
desejam eliminar, servem-se, sem a suficiente precaução crítica, de instrumentos de
pensamento que é difícil, e até mesmo impossível, purificar de uma inspiração
ideológica incompatível com a fé cristã e com as exigências éticas que dela derivam.
A Congregação para a Doutrina da Fé não pretende tratar aqui o vasto tema da liberdade
cristã e da libertação em si mesmo. Propõe-se fazê-lo num documento posterior, no qual
porá em evidência, de maneira positiva, toda a sua riqueza, tanto para a doutrina como
para a prática.
A presente Instrução tem uma finalidade mais precisa e mais limitada: quer chamar a
atenção dos pastores, dos teólogos e de todos os fiéis, para os desvios e perigos de
desvio, prejudiciais à fé e à vida cristã, inerentes a certas formas da teologia da
libertação que usam, de maneira insuficientemente crítica, conceitos assumidos de
diversas correntes do pensamento marxista.
Esta advertência não deve, de modo algum, ser interpretada como uma desaprovação de
todos aqueles que querem responder generosamente e com autêntico espírito evangélico
à « opção preferencial pelos pobres ». Nem pode, de maneira alguma, servir de pretexto
para aqueles que se refugiam numa atitude de neutralidade e de indiferença diante dos
trágicos e urgentes problemas da miséria e da injustiça. Pelo contrário, é ditada pela
certeza de que os graves desvios ideológicos que ela aponta levam inevitavelmente a
trair a causa dos pobres. Mais do que nunca, convém que grande número de cristãos,
com uma fé esclarecida e decididos a viver a vida cristã na sua totalidade, se
empenhem, por amor a seus irmãos deserdados, oprimidos ou perseguidos, na luta pela
justiça, pela liberdade e pela dignidade humana. Hoje mais do que nunca, a Igreja
propõe-se condenar os abusos, as injustiças e os atentados à liberdade, onde quer que
eles aconteçam e quaisquer que sejam seus autores, e lutar, com os seus próprios meios,
pela defesa e promoção dos direitos do homem, especialmente na pessoa dos pobres.
I - UMA ASPIRAÇÃO
1. A poderosa e quase irresistível aspiração dos povos à libertação constitui um dos
principais sinais dos tempos que a Igreja deve perscrutar e interpretar à luz do
Evangelho.[1] Este fenómeno marcante de nossa época tem uma amplidão universal,
manifesta-se porém em formas e em graus diferentes conforme os povos. È sobretudo
entre os povos que experimentam o peso da miséria e entre as camadas deserdadas que
esta aspiração se exprime com vigor.
2. Esta aspiração traduz a percepção autêntica, ainda que obscura, da dignidade do
homem, criado « à imagem e semelhança de Deus » (Gên 1, 26-27), rebaixada e

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

menosprezada por múltiplas opressões culturais, políticas, raciais, sociais e económicas,


que muitas vezes se acumulam.
3. Ao revelar-lhes a sua vocação de filhos de Deus, o Evangelho suscitou no coração
dos homens a exigência e a vontade positiva de uma vida fraterna, justa e pacífica, na
qual cada pessoa possa encontrar o respeito e as condições da sua auto-realização
espiritual e material. Esta exigência encontra-se, sem dúvida, na raiz da aspiração de
que falamos.
4. Por consequência, o homem já não está disposto a sujeitar-se, passivamente ao peso
esmagador da miséria, com suas sequelas de morte, doenças e depauperamento. Sente
profundamente esta miséria como una intolerável violação da sua dignidade original.
Muitos fatores, entre os quais é preciso incluir o fermento evangélico, contribuíram para
o despertar da consciência dos oprimidos.
5. Já não se ignora, mesmo nos segmentos da população ainda dominados pelo
analfabetismo, que, graças ao maravilhoso progresso das ciências e das técnicas, a
humanidade, em constante crescimento demográfico, seria capaz de assegurar a cada ser
humano um mínimo de bens exigidos pela sua dignidade de pessoa.
6. O escândalo das gritantes desigualdades entre ricos e pobres – quer se trate de
desigualdades entre países ricos e países pobres, ou de desigualdades entre camadas
sociais dentro de um mesmo território nacional – já não é tolerado. De um lado, atingiu-
se uma abundância jamais vista até agora, que favorece o desperdício; e, de outro lado,
vive-se ainda numa situação de indigência, marcada pela privação dos bens de primeira
necessidade, de modo que já não se conta mais o número das vítimas da subnutrição.
7. A falta de equidade e de sentido de solidariedade nos intercâmbios internacionais
reverte de tal modo em benefício dos países industrializados, que a distância entre ricos
e pobres aumenta sem cessar. Daí o sentimento de frustração, entre os povos do
Terceiro Mundo, e a acusação de exploração e de colonialismo económico lançada
contra os países industrializados.
8. A recordação dos estragos causados por um certo tipo de colonialismo e de suas
consequências aviva muitas vezes feridas e traumatismos.
9. A Sé Apostólica, na linha do Concílio Vaticano II, bem como as Conferências
Episcopais, não têm cessado de denunciar o escândalo que constitui a gigantesca corrida
armamentista que, além das ameaças que faz pesar sobre a paz, absorve enormes somas,
uma parcela das quais seria suficiente para acudir às necessidades mais urgentes das
populações privadas do necessário.
II - EXPRESSÕES DESTA ASPIRAÇÃO
1. A aspiração pela justiça e pelo reconhecimento efetivo da dignidade de cada ser
humano, como qualquer outra aspiração profunda, exige ser esclarecida e orientada.
2. Com efeito, é um dever usar de discernimento acerca das expressões, teóricas e
práticas, desta aspiração. Pois existem numerosos movimentos políticos e sociais que se
apresentam como porta-vozes autênticos da aspiração dos pobres e como habilitados,
mesmo com o recurso a meios violentos, a realizar as transformações radicais que
poriam fim à opressão e à miséria do povo.
3. Deste modo, a aspiração pela justiça encontra-se muitas vezes prisioneira de
ideologias que ocultam ou pervertem o seu sentido, propondo à luta dos povos para a
sua libertação objetivos que se opõem à verdadeira finalidade da vida humana e
pregando meios de ação que implicam o recurso sistemático à violência, contrários a
uma ética que respeite as pessoas.
4. A interpretação dos sinais dos tempos à luz do Evangelho exige pois que se perscrute
o sentido da aspiração profunda dos povos pela justiça, mas, ao mesmo tempo, que se

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

examinem, com um discernimento crítico, as expressões teóricas e práticas que são


componentes desta aspiração.
III - A LIBERTAÇÃO, TEMA CRISTÃO
1. Considerada em si mesma, a aspiração pela libertação não pode deixar de encontrar
eco amplo e fraterno no coração e no espírito dos cristãos.
2. Assim, em consonância com esta aspiração, nasceu o movimento teológico e pastoral
conhecido pelo nome de « teologia da libertação »: num primeiro momento nos países
da América Latina, marcados pela herança religiosa e cultural do cristianismo; em
seguida, nas outras regiões do Terceiro Mundo, bem como em alguns ambientes dos
países industrializados.
3. A expressão « teologia da libertação » designa primeiramente uma preocupação
privilegiada, geradora de compromisso pela justiça, voltada para os pobres e para as
vítimas da opressão. A partir desta abordagem podem-se distinguir diversas maneiras,
frequentemente inconciliáveis, de conceber a significação cristã da pobreza e o tipo de
compromisso pela justiça que ela exige. Como todo movimento de ideias, as « teologias
da libertação » englobam posições teológicas diversificadas; suas fronteiras doutrinais
são mal definidas.
4. A aspiração pela libertação, como o próprio termo indica, refere-se a um tema
fundamental do Antigo e do Novo Testamento. Por isso, tomada em si mesma, a
expressão « teologia da libertação » é uma expressão perfeitamente válida: designa,
neste caso, uma reflexão teológica centrada no tema bíblico da libertação e da liberdade
e na urgência de suas incidências práticas. A convergência entre a aspiração pela
libertação e as teologias da libertação não é pois fortuita. O significado desta
convergência não pode ser compreendido corretamente se não à luz da especificidade da
mensagem da Revelação, autenticamente interpretada pelo Magistério da Igreja.[2]
IV - FUNDAMENTOS BÍBLICOS
1. Uma teologia da libertação corretamente entendida constitui, pois, um convite aos
teólogos a aprofundarem certos temas bíblicos essenciais, com o espírito atento às
graves e urgentes questões que a atual aspiração pela libertação e os movimentos de
libertação, eco mais ou menos fiel dessa aspiração, põem à Igreja. Não é possível
esquecer, por um só instante, as situações de dramática miséria de onde brota a
interpelação assim lançada aos teólogos.
2. A experiência radical da liberdade cristã[3] constitui aqui o primeiro ponto de
referência. Cristo, nosso Libertador, libertou-nos do pecado e da escravidão da lei e da
carne, que constitui a marca da condição do homem pecador. Ê pois a vida nova da
graça, fruto da justificação, que nos torna livres. Isto significa que a mais radical das
escravidões é a escravidão do pecado. As demais formas de escravidão encontram pois,
na escravidão do pecado, a sua raiz mais profunda. É por isso que a liberdade, no pleno
sentido cristão, caracterizada pela vida no Espírito, não pode ser confundida com a
licença de ceder aos desejos da carne. Ela é vida nova na caridade.
3 As « teologias da libertação » recorrem amplamente à narração do Livro do Êxodo.
Este constitui, de fato, o acontecimento fundamental na formação do Povo eleito. É
preciso não perder de vista, contudo, que a significação específica do acontecimento
provém de sua finalidade, já que esta libertação está orientada para a constituição do
povo de Deus e para o culto da Aliança celebrado no Monte Sinai.[4] Por isso a
libertação do Êxodo não pode ser reduzida a uma libertação de natureza
prevalentemente ou exclusivamente política. É significativo, de resto, que o
termo libertação seja ás vezes substituído na Sagrada Escritura pelo outro, muito
semelhante, de redenção.

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4. Jamais se apagará da memoria de Israel o episódio que originou o Êxodo. Ele é o


ponto de referência quando, após a destruição de Jerusalém e o Exílio de Babilónia, o
Povo eleito vive na esperança de uma nova libertação e, para além dessa, na expectativa
de uma libertação definitiva. Nesta experiência, Deus é reconhecido como o Libertador.
Ele estabelecerá com seu povo uma nova Aliança, marcada pelo dom do seu Espírito e
pela conversão dos corações.[5]
5. As múltiplas angústias e desgraças experimentadas pelo homem fiel ao Deus da
Aliança servem de tema para diversos salmos: lamentações, pedidos de socorro, ações
de graças referem-se à salvação religiosa e à libertação. Neste contexto, a desgraça não
se identifica pura e simplesmente com uma condição social de miséria ou com a sorte de
quem sofre opressão política. Ela inclui também a hostilidade dos inimigos, a injustiça,
a morte e a culpa. Os salmos nos remetem a uma experiência religiosa essencial:
somente de Deus se espera a salvação e o remédio. Deus, e não o homem, tem o poder
de mudar as situações de angústia. Assim, os « pobres do Senhor » vivem numa
dependência total e confiante na providência amorosa de Deus.[6] Aliás, durante toda a
travessia do deserto, o Senhor nunca deixou de prover à libertação e à purificação
espirituais de seu povo.
6. No Antigo Testamento, os profetas, desde Amos, não cessam de recordar, com
particular vigor, as exigências da justiça e da solidariedade e de formular um juizo
extremamente severo sobre os ricos que oprimem o pobre. Tomam a defesa da viúva e
do órfão. Proferem ameaças contra os poderosos: a acumulação de iniquidades
acarretará necessariamente terríveis castigos. Isto porque não se concebe a fidelidade à
Aliança sem a prática da justiça. A justiça em relação a Deus e a justiça em relação aos
homens são inseparáveis. Deus é o defensor e o libertador do pobre.
7. Semelhantes exigências encontram-se também no Novo Testamento. Ali são até
radicalizadas, como demonstra o discurso das Bem-aventuranças. Conversão e
renovação devem operar-se no mais íntimo do coração.
8. Já anunciado no Antigo Testamento, o mandamento do amor fraterno estendido a
todos os homens constitui agora a suprema norma da vida social.[7] Não há
discriminações ou limites que possam opor-se ao reconhecimento de todo e qualquer
homem como o próximo.[8]
9. A pobreza por amor ao Reino é exaltada. E na figura do Pobre, somos levados a
reconhecer a imagem e como que a presença misteriosa do Filho de Deus que se fez
pobre por nosso amor.[9] Este é o fundamento das inexauríveis palavras de Jesus sobre
o Juízo, em Mt 25, 31-46. Nosso Senhor é solidário com toda desgraça; toda desgraça
leva a marca de sua presença.
10. Contemporaneamente as exigências da justiça e da misericórdia, já enunciadas no
Antigo Testamento, são aprofundadas a ponto de revestirem no Novo Testamento uma
significação nova. Aqueles que sofrem ou são perseguidos são identificados com Cristo.
[10] A perfeição que Jesus exige de seus discípulos (Mt 5, 18) consiste no dever de
serem misericordiosos « como vosso Pai é misericordioso » (Lc 6, 36).
11. É à luz da vocação cristã ao amor fraterno e à misericórdia que os ricos são
severamente admoestados para que cumpram o seu dever.[11]São Paulo, perante as
desordens na Igreja de Corinto, acentua vigorosamente a ligação que existe entre tomar
parte no sacramento do amor e repartir o pão com o irmão que se encontra em
necessidade.[12]
12. A Revelação do Novo Testamento nos ensina que o pecado é o mal mais profundo,
que atinge o homem no cerne da sua personalidade. A primeira libertação, ponto de
referência para as demais, é a do pecado.

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13. Se o Novo Testamento se abstém de exigir previamente, como pressuposto para a


conquista desta liberdade, uma mudança da condição política e social, é sem dúvida,
para salientar o caráter radical da emancipação trazida por Cristo, oferecida a todos os
homens, sejam eles livres ou escravos politicamente. Contudo a Carta a Filêmon mostra
que a nova liberdade, trazida pela graça de Cristo, deve necessariamente ter repercussão
também no campo social.
14. Não se pode portanto restringir o campo do pecado, cujo primeiro efeito é o de
introduzir a desordem na relação entre o homem e Deus, àquilo que se denomina «
pecado social ». Na verdade, só uma adequada doutrina sobre o pecado permitirá insistir
sobre a gravidade de seus efeitos sociais.
15. Não se pode tampouco situar o mal unicamente ou principalmente nas « estruturas »
económicas, sociais ou políticas, como se todos os outros males derivassem destas
estruturas como de sua causa: neste caso a criação de um « homem novo » dependeria
da instauração de estruturas económicas e socio-políticas diferentes. Há, certamente,
estruturas iníquas e geradoras de iniquidades, e é preciso ter a coragem de mudá-las.
Fruto da ação do homem, as estruturas boas ou más são consequências antes de serem
causas. A raiz do mal se encontra pois nas pessoas livres e responsáveis, que devem ser
convertidas pela graça de Jesus Cristo, para viverem e agirem como criaturas novas, no
amor ao próximo, na busca eficaz da justiça, do auto-domínio e do exercício das
virtudes.[13]
Ao estabelecer como primeiro imperativo a revolução radical das relações sociais e ao
criticar, a partir desta posição, a busca da perfeição pessoal, envereda-se pelo caminho
da negação do sentido da pessoa e de sua transcendência, e destroem-se a ética e o seu
fundamento, que é o caráter absoluto da distinção entre o bem e o mal. Ademais, sendo
a caridade o princípio da autêntica perfeição, esta não pode ser concebida sem abertura
aos outros e sem espírito de serviço.
V - A VOZ DO MAGISTÉRIO
1. Para responder ao desafio lançado à nossa época pela opressão e pela fome, o
Magistério da Igreja, com a preocupação de despertar as consciências cristãs para o
sentido da justiça, da responsabilidade social e da solidariedade para com os pobres e os
oprimidos, relembram repetidamente a atualidade e a urgência da doutrina e dos
imperativos contidos na Revelação.
2. Limitamo-nos a mencionar aqui apenas algumas destas intervenções: os
pronunciamentos pontifícios mais recentes, Mater et Magistra e Pacem in
terris, Populorum progressio e Evangelii nuntiandi. Mencionemos ainda a carta ao
Cardeal Roy, Octogésima adveniens.
3. O Concílio Vaticano II, por sua vez, tratou as questões da justiça e da liberdade na
Constituição pastoral Gaudium et spes.
4. O Santo Padre insistiu em diversas oportunidades neste tema, particularmente nas
encíclicas Redemptor hominis, Dives in Misericórdia e Laborem exercens. As
numerosas intervenções que relembram a doutrina dos direitos do homem tocam
diretamente nos problemas da libertação da pessoa humana em face dos diversos tipos
de opressão de que é vítima. É preciso citar, especialmente neste contexto, o discurso
proferido diante da XXXVI Assembleia geral da ONU, em New-York, no dia 2 de
outubro de 1979.[14] No dia 28 de janeiro do mesmo ano, João Paulo II, ao abrir
a Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, em Puebla, havia
recordado que a verdade completa sobre o homem é a base da verdadeira libertação.
[15] Este texto constitui um documento de referência direta para a teologia da
libertação.

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5. Por duas vezes, em 1971 e 1974, o Sínodo dos Bispos tratou de temas que se referem
diretamente à concepção cristã da libertação: o tema da justiça no mundo e o tema da
relação entre a libertação das opressões e a libertação integral ou a salvação do homem.
Os trabalhos dos Sínodos de 1971 e de 1974 levaram Paulo VI a esclarecer, na
Exortação apostólica Evangelii nuntiandi, a relação que existe entre a evangelização e a
libertação ou a promoção humana.[16]
6. A preocupação da Igreja pela libertação e pela promoção humana traduziu-se também
no fato da constituição da Pontifícia Comissão Justiça e Paz.
7. Numerosos Episcopados, de acordo com a Santa Sé, têm lembrado também eles a
urgência e os caminhos para uma autêntica libertação humana. Neste contexto convém
fazer menção especial dos documentos das Conferências Gerais do Episcopado Latino-
Americano de Medellin, em 1968, e de Puebla, em 1979. Paulo VI esteve presente
na abertura de Medellin, João Paulo II na de Puebla. Ambos os Papas trataram do tema
da conversão e da libertação.
8. Seguindo as pegadas de Paulo VI, insistindo na especificidade da mensagem do
Evangelho,[17] especificidade que deriva da sua origem divina, João Paulo II, no
discurso de Puebla, lembrou quais são os três pilares sobre os quais deve assentar una
autêntica teologia da libertação: a verdade sobre Jesus Cristo, a verdade sobre a Igreja
e a verdade sobre o homem.[18]
VI - UMA NOVA INTERPRETAÇÃO DO CRISTIANISMO
1. Não se pode esquecer a ingente soma de trabalho desinteressado realizado por
cristãos, pastores, sacerdotes, religiosos e leigos que, impelidos pelo amor a seus irmãos
que vivem em condições desumanas, se esforçam por prestar auxílio e proporcionar
alívio aos inumeráveis males que são frutos da miséria. Entre eles, alguns se preocupam
por encontrar os meios eficazes que permitam pôr fim, o mais depressa possível, a uma
situação intolerável.
2. O zelo e a compaixão, que devem ocupar um lugar no coração de todos os pastores,
correm por vezes o risco de se desorientar ou de serem desviados para iniciativas não
menos prejudiciais ao homem e à sua dignidade do que a própria miséria que se
combate, se não se prestar suficiente atenção a certas tentações.
3. O sentimento angustiante da urgência dos problemas não pode levar a perder de vista
o essencial, nem fazer esquecer a resposta de Jesus ao Tentador (Mt 4, 4): « Não só de
pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus » (Dt 8, 3).
Assim, sucede que alguns, diante da urgência de repartir o pão, são tentados a colocar
entre parênteses e a adiar para amanhã a evangelização: primeiro o pão, a Palavra mais
tarde. É um erro fatal separar as duas coisas, até chegar a opô-las. O senso cristão, aliás,
espontaneamente sugere a muitos que façam uma e outra.[19]
4. A alguns parece até que a luta necessária para obter justiça e liberdade humanas,
entendidas no sentido económico e político, constitua o essencial e a totalidade da
salvação. Para estes, o Evangelho se reduz a um evangelho puramente terrestre.
5. É em relação à opção preferencial pelos pobres, reafirmada com vigor e sem meios
termos, após Medellin, na Conferência de Puebla[20] de um lado, e à tentação de
reduzir o Evangelho da salvação a um evangelho terrestre, de outro lado, que se situam
as diversas teologias da libertação.
6. Lembremos que a opção preferencial, definida em Puebla, é dupla: pelos pobres e
pelos jovens.[21] É significativo que a opção pela juventude seja, de maneira geral,
totalmente silenciada.
7. Dissemos acima (cf. IV, 1) que existe uma autêntica « teologia da libertação », aquela
que lança raízes na Palavra de Deus, devidamente interpretada.

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8. Mas sob um ponto de vista descritivo, convém falar das teologias da libertação, pois a


expressão abrange posições teológicas, ou até mesmo ideológicas, não apenas
diferentes, mas até, muitas vezes, incompatíveis entre si.
9. No presente documento tratar-se-á somente das produções daquela corrente de
pensamento que, sob o nome de « teologia da libertação », propõem uma interpretação
inovadora do conteúdo da fé e da existência cristã, interpretação que se afasta
gravemente da fé da Igreja, mais ainda, constitui uma negação prática dessa fé.
10. Conceitos tomados por empréstimo, de maneira a-crítica, à ideologia marxista e o
recurso a teses de uma hermenêutica bíblica marcada pelo racionalismo encontram-se
na raiz da nova interpretação, que vem corromper o que havia de autêntico no generoso
empenho inicial em favor dos pobres.
VII - A ANÁLISE MARXISTA
1. A impaciência e o desejo de ser eficazes levaram alguns cristãos, perdida a confiança
em qualquer outro método, a voltarem-se para aquilo que chamam de « análise marxista
».
2. Seu raciocínio é o seguinte: uma situação intolerável e explosiva exige uma ação
eficaz que não pode mais ser adiada. Uma ação eficaz supõe uma análise científica das
causas estruturais da miséria. Ora, o marxismo aperfeiçoou um instrumental para
semelhante análise. Bastará pois aplicá-lo à situação do Terceiro Mundo e
especialmente à situação da América Latina.
3. Que o conhecimento científico da situação e dos possíveis caminhos de
transformação social seja o pressuposto de uma ação capaz de levar aos objetivos
prefixados, é evidente. Vai nisto um sinal de seriedade no compromisso.
4. O termo « científico », porém, exerce uma fascinação quase mítica; nem tudo o que
ostenta a etiqueta de científico o é necessariamente. Por isso tomar emprestado um
método de abordagem da realidade é algo que deve ser precedido de um exame crítico
de natureza epistemológica. Ora, este prévio exame crítico falta a várias « teologias da
libertação ».
5. Nas ciências humanas e sociais, convém estar atento antes de tudo à pluralidade de
métodos e de pontos de vista, cada um dos quais põe em evidência um só aspecto da
realidade; esta em virtude de sua complexidade, escapa a uma explicação unitária e
unívoca.
6. No caso do marxismo, tal como se pretende utilizar na conjuntura de que falamos,
tanto mais se impõe a crítica prévia, quanto o pensamento de Marx constitui uma
concepção totalizante do mundo, na qual numerosos dados de observação e de análise
descritiva são integrados numa estrutura filosófico-ideológica, que determina a
significação e a importância relativa que se lhes atribui. Os a priori ideológicos são
pressupostos para a leitura da realidade social. Assim, a dissociação dos elementos
heterogéneos que compõem este amálgama epistemologicamente híbrido torna-se
impossível, de modo que, acreditando aceitar somente o que se apresenta como análise,
se é forçado a aceitar, ao mesmo tempo, a ideologia. Por isso não é raro que sejam os
aspectos ideológicos que predominem nos empréstimos que diversos « teólogos da
libertação » pedem aos autores marxistas.
7. A advertência de Paulo VI continua ainda hoje plenamente atual: através do
marxismo, tal como è vivido concretamente, podem-se distinguir diversos aspectos e
diversas questões propostas à reflexão e à ação dos cristãos. Entretanto, « seria ilusório
e perigoso chegar ao ponto de esquecer o vínculo estreito que os liga radicalmente,
aceitar os elementos da análise marxista sem reconhecer suas relações com a ideologia,
entrar na prática da luta de classes e de sua interpretação marxista sem tentar perceber o
tipo de sociedade totalitária à qual este processo conduz ».[22]

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8. É verdade que desde as origens, mais acentuadamente porém nestes últimos anos, o
pensamento marxista se diversificou, dando origem a diversas correntes que divergem
consideravelmente entre si. Na medida, porém, em que se mantêm verdadeiramente
marxistas, estas correntes continuam a estar vinculadas a um certo número de teses
fundamentais que não são compatíveis com a concepção cristã do homem e da
sociedade. Neste contexto, certas fórmulas não são neutras, mas conservam a
significação que receberam na doutrina marxista original. É o que acontece com a « luta
de classes ». Esta expressão continua impregnada da interpretação que Marx lhe deu e
não poderia, por conseguinte, ser considerada, como um equivalente, de caráter
empírico, da expressão « conflito social agudo ». Aqueles que se servem de semelhantes
fórmulas, pretendendo reter apenas certos elementos da análise marxista,, que de resto
seria rejeitada na sua globalidade, alimentam pelo menos um grave mal-entendido no
espírito de seus leitores.
9. Lembremos que o ateísmo e a negação da pessoa humana,, de sua liberdade e de seus
direitos, encontram-se no centro da concepção marxista. Esta contém de fato erros que
ameaçam diretamente as verdades de fé sobre o destino eterno das pessoas. Ainda mais:
querer integrar na teologia uma « análise » cujos critérios de interpretação dependam
desta concepção ateia, significa embrenhar-se em desastrosas contradições. O
desconhecimento da natureza espiritual da pessoa, aliás, leva a subordiná-la totalmente
à coletividade e deste modo a negar os princípios de uma vida social e política em
conformidade com a dignidade humana,
10. O exame crítico dos métodos de análise tomados de outras disciplinas impõe-se de
maneira particular ao teólogo. É a luz da fé que fornece à teologia seus princípios. Por
isso a utilização, por parte dos teólogos, de elementos filosóficos ou das ciências
humanas tem um valor « instrumental » e deve ser objeto de um discernimento crítico
de natureza teológica. Em outras palavras, o critério final e decisivo da verdade não
pode ser, em última análise, senão um critério teológico. É à luz da fé, e daquilo que ela
nos ensina sobre a verdade do homem e sobre o sentido último de seu destino, que se
deve julgar da validade ou do grau de validade daquilo que as outras disciplinas
propõem, de resto, muitas vezes à maneira de conjectura, como sendo verdades sobre o
homem, sobre a sua história e sobre o seu destino.
11. Aplicados à realidade económica, social e política de hoje, certos esquemas de
interpretação tomados de correntes do pensamento marxista podem apresentar, à
primeira vista, alguma verosimilhança na medida em que a situação de alguns países
oferece analogias com aquilo que Marx descreveu e interpretou, em meados do século
passado. Tomando por base estas analogias, operam-se simplificações que, abstraindo
de fatores essenciais específicos, impedem, de fato, uma análise verdadeiramente
rigorosa das causas da miséria, mantêm as confusões.
12. Em certas regiões da América Latina, a monopolização de grande parte das riquezas
por uma oligarquia de proprietários desprovidos de consciência social, a quase ausência
ou as carências do estado de direito, as ditaduras militares que conculcam os direitos
elementares do homem, o abuso do poder por parte de certos dirigentes, as manobras
selvagens de um certo capital estrangeiro, constituem outros tantos fatores que
alimentam um violento sentimento de revolta junto àqueles que, deste modo, se
consideram vítimas impotentes de um novo colonialismo de cunho tecnológico,
financeiro, monetário ou económico. A tomada de consciência das injustiças é
acompanhada por un pathos que pede muitas vezes emprestado ao marxismo seu
discurso, apresentado abusivamente como sendo um discurso « científico ».
13. A primeira condição para uma análise é a total docilidade à realidade que se
pretende descrever. Por isso, uma consciência crítica deve acompanhar o uso das

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hipóteses de trabalho que se adotam. É necessário saber que elas correspondem a um


ponto de vista particular, o que tem por consequência inevitável sublinhar
unilateralmente certos aspectos do real, deixando outros na sombra. Esta limitação, que
deriva da natureza das ciências sociais, é ignorada por aqueles que, à guisa de hipóteses
reconhecidas como tais, recorrem a uma concepção totalizante, como é o pensamento de
Marx.
VIII - SUBVERSÃO DO SENSO DA VERDADE E VIOLÊNCIA
1. Esta concepção totalizante impõe assim a sua lógica e leva as « teologias da
libertação » a aceitar um conjunto de posições incompatíveis com a visão cristã do
homem. Com efeito, o núcleo ideológico, tomado do marxismo e, que serve de ponto de
referência, exerce a função de princípio determinante. Este papel lhe é confiado em
virtude da qualificação de científico, quer dizer, de necessariamente verdadeiro, que lhe
é atribuída. Neste núcleo podem-se distinguir diversos componentes.
2. Na lógica do pensamento marxista, a « análise » não é dissociável da praxis e da
concepção da história à qual esta praxis está ligada, A análise é pois um instrumento de
crítica e a crítica não passa de uma etapa do combate revolucionário. Este combate é o
da classe do Proletariado investido de sua missão histórica.
3. Em consequência, somente quem participa deste combate pode fazer uma análise
correta.
4. A consciência verdadeira é pois uma consciência « partidarista ». Pelo que se vê, é a
própria concepção da verdade que aqui está em causa e que se encontra totalmente
subvertida: não existe verdade – afirma-se – a não ser na e pela praxis « partidarista ».
5. A praxis e a verdade que dela deriva, são praxis e verdade partidaristas, porque a
estrutura fundamental da história está marcada pela luta de classes. Existe pois uma
necessidade objetiva de entrar na luta de classes (que é o reverso dialético da relação de
exploração que se denuncia). A verdade é a verdade de classe – não há verdade senão
no combate da classe revolucionária.
6. A lei fundamental da história, que é a lei da luta de classes, implica que a sociedade
esteja fundada sobre a violência. À violência que constitui a relação de dominação dos
ricos sobre os pobres deverá responder a contra-violência revolucionária, mediante a
qual esta relação será invertida.
7. A luta de classes é pois apresentada como uma lei objetiva e necessária. Ao entrar no
seu processo, do lado dos oprimidos, « faz-se » a verdade, age-se « cientificamente ».
Em consequência, a concepção da verdade vai de par com a afirmação da violência
necessária e, por isso, com a do amoralismo político. Nesta perspectiva, a referência a
exigências éticas, que prescrevam reformas estruturais e institucionais radicais e
corajosas perde totalmente o sentido.
8. A lei fundamental da luta de classes tem um caráter de globalidade e de
universalidade. Ela se reflete em todos os domínios da existência, religiosos, éticos,
culturais e institucionais. Em relação a esta lei, nenhum destes domínios é autónomo.
Em cada um esta lei constitui o elemento determinante.
9. Quando se assumem estas teses de origem marxista é, em particular, a própria
natureza da ética qui é radicalmente questionada. De fato, o caráter transcendente da
distinção entre o bem e o mal, princípio da moralidade, encontra-se implicitamente
negado na ótica da luta de classes.
IX - TRADUÇÃO « TEOLÓGICA » DESTE NÚCLEO IDEOLÓGICO
1. As posições aqui expostas encontram-se às vezes enunciadas com todos os seus
termos em alguns escritos de « teólogos da libertação ». Em outros, elas se deduzem
logicamente das premissas colocadas. Em outros ainda, elas são pressupostas em certas
práticas litúrgicas (como por exemplo a « Eucaristia » transformada em celebração do

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povo em luta), embora quem participa destas práticas não esteja plenamente consciente
disso. Estamos pois diante de um verdadeiro sistema, mesmo quando alguns hesitam em
seguir a sua lógica até o fim. Como tal, este sistema é uma perversão da mensagem
cristã, como esta foi confiada por Deus à Igreja. Esta mensagem se encontra pois posta
em xeque, na sua globalidade, pelas « teologias da libertação ».
2. Não é o fato das estratificações sociais, com as conexas desigualdades e injustiças, é
a teoria da luta de classes como lei estrutural fundamental da história que é recebida por
estas « teologias da libertação », na qualidade de princípio. A conclusão a que se chega
é que a luta de classes, entendida deste modo, divide a própria Igreja e em função dela
se devem julgar as realidades eclesiais. Pretende-se ainda que afirmar que o amor, na
sua universalidade, é um meio capaz de vencer aquilo que constitui a lei estrutural
primária da sociedade capitalista, seria manter, de má fé, uma ilusão falaz.
3. Dentro desta concepção, a luta de classes é o motor da história. A história torna-se
assim uma noção central. Afirmar-se-á que Deus se fez história. Acrescentar-se-á que
não existe senão uma única história, na qual já não é preciso distinguir entre história da
salvação e história profana. Manter a distinção seria cair no « dualismo ». Semelhantes
afirmações refletem um imanentismo historicista. Tende-se deste modo a identificar o
Reino de Deus e o seu advento com o movimento de libertação humana e a fazer da
mesma história o sujeito de seu próprio desenvolvimento como processo da auto-
redenção do homem por meio de luta de classes. Esta identificação está em oposição
com a fé da Igreja, como foi relembrada pelo Concílio Vaticano II.[23]
4. Nesta linha, alguns chegam até ao extremo de identificar o próprio Deus com a
história e a definir a fé como « fidelidade à história », o que significa fidelidade
comprometida com uma prática política, afinada com a concepção do devir da
humanidade concebido no sentido de um messianismo puramente temporal.
5. Por conseguinte, a fé, a esperança e a caridade recebem um novo conteúdo: são «
fidelidade à história », « confiança no futuro », « opção pelos pobres ». É o mesmo que
dizer que são negadas em sua realidade teologal.
6. Desta nova concepção deriva inevitavelmente uma politização radical das afirmações
da fé e dos juízos teológicos. Já não se trata somente de chamar a atenção para as
consequências e incidências políticas das verdades de fé que seriam respeitadas antes de
tudo em seu valor transcendente. Toda e qualquer afirmação de fé ou de teologia se vê
subordinada a um critério político, que, por sua vez, depende da teoria da luta de
classes, como motor da história.
7. Apresenta-se por conseguinte o ingresso na luta de classes como uma exigência da
própria caridade; denuncia-se como atitude desmobilizadora e contrária ao amor pelos
pobres a vontade de amar, de saída, todo homem, qualquer que seja a classe a que
pertença, e de ir ao seu encontro pelas vias não-violentas do diálogo e da persuasão.
Mesmo afirmando que ele não pode ser objeto de ódio, afirma-se com a mesma força
que, pelo fato de pertencer objetivamente ao mundo dos ricos, ele é, antes de tudo, um
inimigo de classe a combater. Como consequência, a universalidade do amor ao
próximo e a fraternidade transformam-se num princípio escatológico que terá valor
somente para o « homem novo », que surgirá da revolução vitoriosa.
8. Quanto à Igreja, a tendência é de encará-la simplemente como uma realidade dentro
da história, sujeita ela também às leis que, segundo se pensa, governam o devir histórico
na sua imanência. Esta redução esvazia a realidade específica da Igreja, dom da graça de
Deus e mistério da fé. Contesta-se, igualmente, que a participação na mesma Mesa
eucarística de cristãos que, por acaso, pertençam a classes opostas, tenha ainda algum
sentido.

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9. Na sua significação positiva, a Igreja dos pobres indica a preferência, sem


exclusivismo, dada aos pobres, segundo todas as formas de miséria humana, porque eles
são os prediletos de Deus. A expressão significa ainda que a Igreja, como comunhão e
como instituição, assim como os membros da mesma Igreja, tomam consciência, em
nosso tempo, das exigências da pobreza evangélica.
10. Mas as « teologias da libertação », que têm o mérito de haver revalorizado os
grandes textos dos profetas e do Evangelho acerca da defesa dos pobres, passam a fazer
um amálgama pernicioso entre o pobre da Escritura e o proletariado de Marx. Perverte-
se deste modo o sentido cristão do pobre e o combate pelos direitos dos pobres
transforma-se em combate de classes na perspectiva ideológica da luta de classes.
A Igreja dos pobres significa então Igreja classista, que tomou consciência das
necessidades da luta revolucionária como etapa para a libertação e que celebra esta
libertação na sua liturgia.
11. É necessário fazer uma observação análoga a respeito da expressão Igreja do povo.
Do ponto de vista pastoral, pode-se entender com essa expressão os destinatários
prioritários da evangelização, aqueles para os quais, em virtude de sua condição, se
volta primeiro que tudo o amor pastoral da Igreja. É possível referir-se também à Igreja
como « povo de Deus », ou seja, como o povo da Nova Aliança realizada em Cristo.[24]
12. As « teologias da libertação », a que aqui nos referimos, porém, entendem
por Igreja do povo a Igreja da luta libertadora organizada. O povo assim entendido
chega mesmo a tornar-se, para alguns, objeto de fé.
13. A partir de semelhante concepção da Igreja do povo, elabora-se uma crítica das
próprias estruturas da Igreja. Não se trata apenas de uma correção fraterna dirigida aos
pastores da Igreja, cujo comportamento não reflita o espírito evangélico de serviço e se
apegue a sinais anacrónicos de autoridade que escandalizam os pobres. Trata-se, sim, de
pôr em xeque a estrutura sacramental e hierárquica da Igreja, tal como a quis o próprio
Senhor. São denunciados na Hierarquia e no Magistério os representantes objetivos da
classe dominante, que é preciso combater. Teologicamente, esta posição equivale a
afirmar que o povo é a fonte dos ministérios e portanto pode dotar-se de ministros à sua
escolha, de acordo com as necessidades de sua missão revolucionária histórica.
X - UMA NOVA HERMENÊUTICA
1. A concepção partidarista da verdade, que se manifesta na praxis revolucionária de
classe, corrobora esta posição. Os teólogos que não compartilham as teses da « teologia
da libertação », a hierarquia e sobretudo o Magistério romano são assim
desacreditados a priori, como pertencentes à classe dos opressores. A teologia deles é
uma teologia de classe. Os argumentos e ensinamentos não merecem pois ser
examinados em si mesmos, uma vez que refletem simplesmente os interesses de uma
classe. Por isso, decreta-se que o discurso deles é, em princípio, falso.
2. Aparece aqui o carácter global e totalizante da « teologia da libertação ». Por isso
mesmo, deve ser criticada não nesta ou naquela afirmação que ela faz, mas a partir do
ponto de vista de classes que ela adopta a priori e que nela funciona como princípio
hermenêutico determinante.
3. Por causa deste pressuposto classista, torna-se extremamente difícil, para não dizer
impossível, conseguir com alguns « teólogos da libertação » um verdadeiro diálogo, no
qual o interlocutor seja ouvido e seus argumentos sejam discutidos objetivamente e com
atenção. Com efeito estes teólogos mais ou menos conscientemente, partem do
pressuposto de que o ponto de vista da classe oprimida e revolucionária, que seria o
mesmo deles constitui o único ponto de vista da verdade. Os critérios teológicos da
verdade, vêem-se, deste modo, relativizados e subordinados aos imperativos da luta de
classes. Nesta perspectiva substitui-se a ortodoxia como regra correta da fé pela ideia

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da ortopráxis, como critério de verdade. A este respeito, é preciso não confundir a


orientação prática, própria à teologia tradicional, do mesmo modo e pelo mesmo título
que lhe é própria também a orientação especulativa, com um primado privilegiado,
conferido a um determinado tipo de praxis. Na realidade esta última é
a praxis revolucionária que se tornaria assim critério supremo da verdade teológica.
Uma metodologia teológica sadia toma em consideração, sem dúvida, a praxis da Igreja
e nela encontra um de seus fundamentos, mas isto porque essa praxis é decorrência da
fé e constitui uma expressão vivenciada dessa fé.
4. A doutrina social da Igreja é rejeitada com desdém. Esta procede, afirma-se, da ilusão
de um possível compromisso, próprio das classes médias, destituídas de sentido
histórico.
5. A nova hermenêutica inserida nas « teologias da libertação » conduz a uma releitura
essencialmente política da Escritura. É assim que se atribui a máxima importância ao
acontecimento do Êxodo, enquanto libertação da escravidão política. Propõe-se
igualmente una leitura política do Magnificat. O erro aqui não está em privilegiar uma
dimensão política das narrações bíblicas; mas em fazer desta dimensão a dimensão
principal e exclusiva, o que leva a uma leitura redutiva da Escritura.
6. Quem assim procede, coloca-se por isso mesmo na perspectiva de um messianismo
temporal, que é uma das expressões mais radicais da secularização do Reino de Deus e
de sua absorção na imanência da história humana.
7. Privilegiar deste modo a dimensão política, é o mesmo que ser levado a negar
a  radical novidade do Novo Testamento e, antes de tudo, a desconhecer a pessoa de
Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, bem como o caráter
específico da libertação que Ele nos traz e que é fundamentalmente libertação do
pecado, fonte de todos os males.
8. Aliás, pôr de lado a interpretação autorizada do Magistério, denunciada como
interpretação de classe, é afastar-se automaticamente da Tradição. É, par isso mesmo,
privar-se de um critério teológico essencial para a interpretação e acolher no vazio
assim criado, as teses mais radicais da exegese racionalista. Retoma-se, então, sem
espírito crítico, a oposição entre o « Jesus da história » e o « Jesus da fé ».
9. Conserva-se, sem dúvida, a letra das fórmulas da fé, especialmente a de Calcedônia,
mas atribui-se a essas fórmulas uma nova significação, que constitui uma negação da fé
da Igreja. De um lado, rejeita-se a doutrina cristológica apresentada pela Tradição, em
nome do critério de classe; e de outro lado, pretende-se chegar ao « Jesus da história » a
partir da experiência revolucionária da luta dos pobres pela sua libertação.
10. Pretende-se reviver uma experiência análoga à que teria sido a de Jesus. A
experiência dos pobres lutando por sua libertação, que teria sido a de Jesus, e só ela,
revelaria assim o conhecimento do verdadeiro Deus e do Reino.
11. É claro que a fé no Verbo encarnado, morto e ressuscitado por todos os homens, a
Quem « Deus fez Senhor e Cristo »[25] é negada. Toma o seu lugar uma « figura » de
Jesus, uma espécie de símbolo que resume em si mesmo as exigências da luta dos
oprimidos.
12. Propõe-se assim uma interpretação exclusivamente política da morte de Cristo.
Nega-se desta maneira seu valor salvífico e toda a economia da redenção.
13. A nova interpretação atinge assim todo o conjunto do mistério cristão.
14. De um modo geral, ela opera o que se poderia chamar de inversão dos símbolos.
Assim, em lugar de ver no Êxodo com São Paulo, uma figura do batismo,[26] se tenderá
ao extremo de fazer deste um símbolo da libertação política do povo.
15. Pelo mesmo critério hermenêutico, aplicado à vida eclesial e à constituição
hierárquica da Igreja, as relações entre a hierarquia e a « base » tornam-se relações de

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dominação que obedecem à lei da luta de classes. A sacramentalidade, que está na raiz
dos ministérios eclesiásticos e que faz da Igreja uma realidade espiritual que não se
pode reduzir a uma análise puramente sociológica, é simplesmente ignorada.
16. Verifica-se ainda a inversão dos símbolos no domínio dos sacramentos. A
Eucaristia não é mais entendida na sua verdade de presença sacramental do sacrifício
reconciliador e como dom do Corpo e do Sangue de Cristo. Torna-se celebração do
povo na sua luta. Por conseguinte, a unidade da Igreja é radicalmente negada. A
unidade, a reconciliação, a comunhão no amor não mais são concebidas como um dom
que recebemos de Cristo.[27] É a classe histórica dos pobres que, mediante o combate,
construirá a unidade. A luta de classes é o caminho desta unidade. A Eucaristia torna-se,
deste modo, Eucaristia de classe. Nega-se também, ao mesmo tempo a força triunfante
do amor de Deus que nos é dado.
XI - ORIENTAÇÕES
1. Chamar a atenção para os graves desvios que algumas « teologias da libertação »
trazem consigo não deve, de modo algum, ser interpretado como uma aprovação, ainda
que indireta, aos que contribuem para a manutenção da miséria dos povos, aos que dela
se aproveitam, aos que se acomodam ou aos que ficam indiferentes perante esta miséria.
A Igreja, guiada pelo Evangelho da Misericórdia e pelo amor ao homem, escuta o
clamor pela justiça[28] e deseja responder com todas as suas forças.
2. Um imenso apelo é assim dirigido à Igreja. Com audácia e coragem, com
clarividência e prudência, com zelo e força de ânimo, com um amor aos pobres que vai
até ao sacrifício, os pastores, como muitos já fazem, hão-de considerar como tarefa
prioritária responder a este apelo.
3. Todos aqueles, sacerdotes, religiosos e leigos que, auscultando o clamor pela justiça,
quiserem trabalhar na evangelização e na promoção humana, fá-lo-ão em comunhão
com seu bispo e com a Igreja, cada um na linha de sua vocação eclesial específica.
4. Conscientes do carácter eclesial de sua vocação, os teólogos colaborarão lealmente e
em espírito de diálogo com o Magistério da Igreja. Saberão reconhecer no Magistério
um dom de Cristo à sua Igreja[29] e acolherão a sua palavra e as suas orientações com
respeito filial.
5. Somente a partir da tarefa evangelizadora, tomada em sua integralidade, se
compreendem as exigências de uma promoção humana e de uma libertação autênticas.
Esta libertação tem como pilares indispensáveis, a verdade sobre Jesus Cristo, o
Salvador, a verdade sobre a Igreja, a verdade sobre o homem e sobre a sua dignidade.
[30] É à luz das bem-aventuranças, da bem-aventurança dos pobres de coração em
primeiro lugar, que a Igreja, desejosa de ser no mundo inteiro a Igreja dos pobres, quer
servir a nobre causa da verdade e da justiça. Ela se dirige a cada homem e, por isso
mesmo, a todos os homens. Ela é a « Igreja universal. A Igreja do mistério da
encarnação. Não é a Igreja de uma classe ou de uma só casta. Ela fala em nome da
própria verdade. Esta verdade é realista ». Ela leva a ter em conta « cada realidade
humana, cada injustiça, cada tensão, cada luta ».[31]
6. Uma defesa eficaz da justiça deve apoiar-se na verdade do homem, criado à imagem
de Deus e chamado à graça da filiação divina. O reconhecimento da verdadeira relação
do homem com Deus constitui o fundamento da justiça, enquanto regula as relações
entre os homens. Esta é a razão pela qual o combate pelos direitos do homem, que a
Igreja não cessa de promover, constitui o autêntico combate pela justiça.
7. A verdade do homem exige que este combate seja conduzido por meios que estejam
de acordo com a dignidade humana. Por isso o recurso sistemático e deliberado à
violência cega, venha essa de um lado ou de outro, deve ser condenado.[32] Pôr a
confiança em meios violentos na esperança de instaurar uma maior justiça é ser vítima

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de uma ilusão fatal. Violência gera violência e degrada o homem. Rebaixa a dignidade
do homem na pessoa das vítimas e avilta esta mesma dignidade naqueles que a
praticam.
8. A urgência de reformas radicais que incidam sobre estruturas que segregam a miséria
e constituem, por si mesma, formas de violência, não pode fazer perder de vista que a
fonte da injustiça se encontra no coração dos homens. Não se obterão pois mudanças
sociais que estejam realmente ao serviço do homem senão fazendo apelo
às capacidades éticas da pessoa e à constante necessidade de conversão interior.
[33] Pois na medida em que colaborarem livremente, por sua própria iniciativa e em
solidariedade, nestas necessárias mudanças, os homens, despertados no sentido de sua
responsabilidade, crescerão em humanidade. A inversão entre moralidade e estruturas é
própria de uma antropologia materialista, incompatível com a verdade do homem.
9. É pois igualmente ilusão fatal crer que novas estruturas darão origem por si mesmas a
um « homem novo », no sentido da verdade do homem. O cristão não pode desconhecer
que o Espírito Santo que nos foi dado é a fonte de toda verdadeira novidade e que Deus
é o senhor da história.
10. A derrubada, por meio da violência revolucionária, de estruturas geradoras de
injustiças não é pois ipso facto o começo da instauração de um regime justo. Um fato
marcante de nossa época deve ocupar a reflexão de todos aqueles que desejam
sinceramente a verdadeira libertação dos seus irmãos. Milhões de nossos
contemporâneos aspiram legitimamente a reencontrar as liberdades fundamentais de que
estão privados por regimes totalitários e ateus, que tomaram o poder por caminhos
revolucionários e violentos, exatamente em nome da libertação do povo. Não se pode
desconhecer esta vergonha de nosso tempo: pretendendo proporcionar-lhes liberdade,
mantêm-se nações inteiras em condições de escravidão indignas do homem. Aqueles
que, talvez por inconsciência, se tornam cúmplices de semelhantes escravidões, traem
os pobres que eles quereriam servir.
11. A luta de classes como caminho para uma sociedade sem classes é um mito que
impede as reformas e agrava a miséria e as injustiças. Aqueles que se deixam fascinar
por este mito deveriam refletir sobre as experiências históricas amargas às quais ele
conduziu. Compreenderiam então que não se trata, de modo algum, de abandonar uma
via eficaz de luta em prol dos pobres em troca de um ideal desprovido de efeito. Trata-
se, pelo contrário, de libertar-se de uma miragem para se apoiar no Evangelho e na sua
força de realização.
12. Uma das condições para uma necessária retificação teológica é a revalorização
do magistério social da Igreja. Este magistério não é, de modo algum, fechado. É, ao
contrário, aberto a todas as novas questões que não deixam de surgir no decorrer dos
tempos. Nesta perspectiva, a contribuição dos teólogos e dos pensadores de todas as
regiões do mundo para a reflexão da Igreja é hoje indispensável.
13. Do mesmo modo, a experiência daqueles que trabalham diretamente na
evangelização e na promoção dos pobres e dos oprimidos é necessária à reflexão
doutrinal e pastoral da Igreja. Neste sentido é preciso tomar consciência de certos
aspectos da verdade a partir da praxis, se por praxis se entende a prática pastoral e uma
prática social que conserva sua inspiração evangélica.
14. O ensino da Igreja em matéria social proporciona as grandes orientações éticas. Mas
para que possa atingir diretamente a ação, ele precisa de pessoas competentes, do ponto
de vista científico e técnico, bem como no domínio das ciências humanas e da política.
Os pastores estarão atentos à formação destas pessoas competentes, profundamente
impregnadas pelo Evangelho. São aqui visados, em primeiro lugar, os leigos, cuja
missão específica é a de construir a sociedade.

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

15. As teses das « teologias da libertação » estão sendo largamente difundidas, sob uma
forma ainda simplificada, nos cursos de formação ou nas comunidades de base, que
carecem de preparação catequética e teológica e de capacidade de discernimento. São
assim aceitas, por homens e mulheres generosos, sem que seja possível um juízo crítico.
16. É por isso que os pastores devem vigiar sobre a qualidade e o conteúdo da catequese
e da formação que devem sempre apresentar a integralidade da mensagem da
salvação e os imperativos da verdadeira libertação humana, no quadro desta mensagem
integral.
17. Nesta apresentação integral do mistério cristão, será oportuno acentuar os aspectos
essenciais que as « teologias da libertação » tendem especialmente a desconhecer ou
eliminar: transcendência e gratuidade da libertação em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e
verdadeiro homem; soberania de sua graça; verdadeira natureza dos meios de salvação,
e especialmente da Igreja e dos sacramentos. Tenham-se presentes a verdadeira
significação da ética, para a qual a distinção entre o bem e o mal não pode ser
relativizada; o sentido autêntico do pecado; a necessidade da conversão e a
universalidade da lei do amor fraterno. Chame-se a atenção contra uma politização da
existência, que, desconhecendo ao mesmo tempo a especificidade do Reino de Deus e a
transcendência da pessoa, acaba sacralizando a política e abusando da religiosidade do
povo em proveito de iniciativas revolucionárias.
18. É frequente dirigir aos defensores da « ortodoxia » a acusação de passividade, de
indulgência ou de cumplicidade culpáveis frente a situações intoleráveis de injustiça e
de regimes políticos que mantêm estas situações. A conversão espiritual, a intensidade
do amor a Deus e ao próximo, o zelo pela justiça e pela paz, o sentido evangélico dos
pobres e da pobreza, são exigidos a todos, especialmente aos pastores e aos
responsáveis. A preocupação pela pureza da fé não subsiste sem a preocupação de dar a
resposta de um testemunho eficaz de serviço ao próximo e, em especial, ao pobre e ao
oprimido, através de uma vida teologal integral. Pelo testemunho de sua capacidade de
amar, dinâmica e construtiva, os cristãos lançarão, sem dúvida, as bases desta «
civilização do amor » de que falou, depois de Paulo VI, a Conferência de Puebla.
[34] De resto, são numerosos os sacerdotes, religiosos ou leigos, que se consagram de
um modo verdadeiramente evangélico à criação de uma sociedade justa.
CONCLUSÃO
As palavras de Paulo VI, na Profissão de fé do povo de Deus, exprimem, com meridiana
clareza, a fé da Igreja, da qual ninguém pode afastar-se sem provocar, juntamente com a
ruína espiritual, novas misérias e novas escravidões.
« Nós professamos que o Reino de Deus iniciado aqui na terra, na Igreja de Cristo, não
é deste mundo, cuja figura passa, e que seu crescimento próprio não se pode confundir
com o progresso da civilização, da ciência ou da técnica humanas, mas consiste em
conhecer cada vez mais profundamente as insondáveis riquezas de Cristo, em esperar
cada vez mais corajosamente os bens eternos, em responder cada vez mais ardentemente
ao amor de Deus e em difundir cada vez mais amplamente a graça e a santidade entre os
homens. Mas é este mesmo amor que leva a Igreja a preocupar-se constantemente com
o bem temporal dos homens. Não cessando de lembrar a seus filhos que eles não têm
aqui na terra uma morada permanente, anima-os também a contribuir, cada qual
segundo a sua vocação e os meios de que dispõem, para o bem de sua cidade terrestre, a
promover a justiça, a paz e a fraternidade entre os homens, a prodigalizar-se na ajuda
aos irmãos, sobretudo aos mais pobres e mais infelizes. A intensa solicitude da Igreja,
esposa de Cristo, pelas necessidades dos homens, suas alegrias e esperanças, seus
sofrimentos e seus esforços, nada mais é do que seu grande desejo de lhes estar presente
para os iluminar com a luz de Cristo e reuni-los todos nele, seu único Salvador. Esta

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solicitude não pode, em hipótese alguma, comportar que a própria Igreja se conforme às
coisas deste mundo, nem que diminua o ardor da espera pelo seu Senhor e pelo Reino
eterno ».[35]
O Sumo Pontífice João Paulo 11, no decorrer de uma Audiência concedida ao Cardeal
Prefeito que subscreve este documento, aprovou a presente Instrução, deliberada em
reunião ordinária da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, e ordenou que a
mesma fosse publicada.
Roma, Sede da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, 6 de Agosto de 1984, na
Festa da Transfiguração do Senhor.
Joseph Card. Ratzinger
Prefeito
SB Alberto Bovone
Arcebispo tit. de Cesárea de Numidia
Secretário

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Suplemento 3: Instrução Libertatis Conscientia


(Congregação para a Doutrina da Fé)
INTRODUÇÃO
Aspirações à liberdade
1. A consciência da liberdade e da dignidade do homem, conjugada com a afirmação
dos direitos inalienáveis da pessoa e dos povos, é uma das características predominantes
do nosso tempo. Ora, a liberdade exige condições de ordem económica, social, política
e cultural que tornem possível o seu pleno exercício. A viva percepção dos obstáculos
que a impedem de se desenvolver e ofendem a dignidade humana encontra-se na origem
dás fortes aspirações à libertação que hoje fermentam em nosso mundo.
A Igreja de Cristo faz suas tais aspirações, ao mesmo tempo em que exerce seu
discernimento à luz do Evangelho que, por sua própria natureza, é mensagem de
liberdade e de libertação. Com efeito, essas aspirações assumem, às vezes, nos níveis
quer teórico quer prático, expressões nem sempre conformes com a verdade do homem,
tal como esta se manifesta à luz da sua criação e da sua redenção. Por isso, a
Congregação para a Doutrina da Fé julgou necessário chamar a atenção para « desvios,
ou riscos de desvios, prejudiciais à fé e à vida cristã ». 1 Longe de terem perdido valor,
aquelas advertências mostram-se cada vez mais pertinentes e oportunas.
Finalidade da Instrução
2. A Instrução « Libertatis Nuntius » acerca de alguns aspectos da teologia da
libertação anunciava que a Congregação tencionava publicar un segundo documento,
que poria em evidência os principais elementos da doutrina cristã acerca da liberdade e
da libertação. A presente Instrução responde a esse intento. Entre os dois documentos
existe uma relação orgânica. Devem ser lidos um à luz do outro.
Sobre o tema deles, presente na medula da mensagem evangélica, o Magistério da Igreja
tem se manifestado em numerosas ocasiões.2 O atual documento limita-se a indicar os
seus principais aspectos teóricos e práticos. Quanto às aplicações que dizem respeito às
diversas situações locais, compete às Igrejas particulares, em comunhão entre elas e
com a Sé de Pedro, providenciá-las diretamente.3
O tema da liberdade e da libertação tem uma evidente dimensão ecuménica. Com efeito,
ele pertence ao património tradicional das Igrejas e comunidades eclesiais. Por isso
mesmo o presente documento pode ajudar o testemunho e a ação de todos os discípulos
de Cristo, chamados a responder aos grandes desafios do nosso tempo.
A verdade que nos liberta
3. A palavra de Jesus: «A verdade vos libertará » (Jo 8, 32) deve iluminar e guiar, neste
terreno, todas as reflexões teológicas e todas as decisões pastorais.
Essa verdade, que vem de Deus, tem o seu centro em Jesus Cristo, Salvador do
mundo.4 D'Ele, que é « o Caminho, a Verdade e a Vida » (Jo  14, 6), a Igreja recebe
aquilo que ela oferece aos homens. No mistério do Verbo encarnado e redentor do
mundo, ela vai buscar a verdade sobre ó Pai e seu amor por nós como a verdade sobre o
homem e sobre a sua liberdade.
Por sua cruz e ressurreição, Cristo realizou a nossa redenção: esta é a liberdade em seu
sentido mais forte, já que ela nos libertou do mal mais radical, isto é, do pecado e do
poder da morte. Quando a Igreja, instruída por seu Senhor, eleva a sua oração ao Pai: «
livrai-nos do mal », ela está suplicando que o mistério da salvação se manifeste, com
potência, na nossa existência de cada dia. Ela sabe que a cruz redentora é,
verdadeiramente, a fonte da luz e da vida e o centro da história. A caridade que a
inflama faz com que proclame a Boa-Nova e, através dos sacramentos, distribua os seus
frutos vivificantes. É de Cristo redentor que partem o seu pensamento e a sua ação,
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quando, diante dos dramas que dilaceram o mundo, ela reflete sobre o significado e os
caminhos da libertação e da verdadeira liberdade.
A verdade, a começar pela verdade sobre a redenção, que está no âmago do mistério da
fé, é, pois, a raiz e a regra da liberdade, fundamento e medida de qualquer ação
libertadora.
A verdade, condição da liberdade
4. A abertura à plenitude da verdade impõe-se à consciência moral do homem; este deve
este deve procurá-la e estar pronto para acolhê-la, quando ela se manifesta.
Segundo a ordem de Cristo Senhor,5 a verdade evangélica deve ser apresentada a todos
os homens, e estes têm o direito de que ela lhes seja apresentada. Seu anúncio, na
potência do Espírito, comporta o pleno respeito da liberdade de cada um e a exclusão de
qualquer forma de coação e de pressão.6
O Espírito Santo introduz a Igreja e os discípulos de Cristo Jesus na « verdade plena »
(Jo  16, 13). Ele dirige o curso dos tempos e « renova a face da terra » (Sl 104, 30). É
Ele que se faz presente no amadurecimento de uma consciência mais respeitosa da
dignidade da pessoa humana.7 O Espírito Santo encontra-se na origem da coragem, da
audácia e do heroísmo: « Onde se acha o Espírito do Senhor, aí está a liberdade » (2
Cor  3, 17).
CAPÍTULO I
A SITUAÇÃO DA LIBERDADE NO MUNDO DE HOJE
I. Conquistas e ameaças do processo moderno de libertação
A herança do cristianismo
5. Revelando ao homem a sua qualidade de pessoa livre, chamada a entrar em
comunhão com Deus, o Evangelho de Jesus Cristo provocou uma tomada de
consciência das profundidades – até então inimagináveis – da liberdade humana.
Assim, a busca da liberdade e a aspiração à libertação, que se encontram entre os
principais sinais dos tempos do mundo contemporâneo, têm sua raiz primeira na
herança do cristianismo. Esta afirmação é válida, mesmo quando elas assumem formas
aberrantes, chegando a se oporem à visão cristã do homem e do seu destino. Sem essa
referência ao Evangelho, a história dos séculos recentes, no Ocidente, permaneceria
incompreensível.
A época moderna
6. Desde a aurora do mundo moderno, na Renascença, pensava-se que o retorno à
Antigüidade em filosofia e nas ciências da natureza deveria possibilitar ao homem a
conquista da liberdade de pensamento e de ação, graças ao conhecimento e ao controle
das leis da natureza.
Por outro lado, Lutero, a partir da sua leitura de São Paulo, pretendia lutar pela
libertação do jugo da Lei, representada, a seus olhos, pela Igreja do seu tempo.
Mas é sobretudo no Século das Luzes e na Revolução Francesa que o apelo à liberdade
ressoa com toda a sua força. Desde então, muitos vêem a história por vir como um
irresistível processo de libertação que deve conduzir o homem a uma era em que, enfim
totalmente livre, ele poderá gozar a felicidade, já a partir desta terra.
Rumo ao domínio sobre a natureza
7. Na perspectiva de uma tal ideologia de progresso, o homem pretendia tornar-se
senhor da natureza. A servidão, que até então era a sua, baseava-se na ignorância e nos
preconceitos. Extraindo da natureza os seus segredos, o homem submetê-la-ia ao seu
serviço. Dessa forma, a conquista da liberdade era a meta que se buscava através do
desenvolvimento da ciência e da técnica. Os esforços despendidos alcançaram sucessos
notáveis. Embora o homem não esteja isento das catástrofes naturais, muitas das
ameaças da natureza foram afastades. O alimento é assegurado a um número crescente

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de indivíduos. As possibilidades de transporte e de comércio favorecem o intercâmbio


dos recursos alimentares, das matérias-primas, da força de trabalho, das capacidades
técnicas, de sorte que se pode razoavelmente prognosticar uma existência na dignidade
e livre da miséria para os seres humanos.
Conquistas sociais e políticas
8. O movimento moderno de libertação propunha-se uma finalidade política e social.
Ele deveria pôr um fim à dominação do homem sobre o homem e promover a igualdade
e a fraternidade de todos os homens. Que, nesse campo, tenham sido alcançados
resultados positivos, é um fato inegável. A escravidão e a servidão legais foram
abolidas. O direito de todos à cultura fez significativos progressos. Em numerosos
países, a lei reconhece a igualdade entre homem e mulher, a participação de todos os
cidadãos no exercício do poder político e os mesmos direitos para todos. O racismo é
rejeitado como contrário ao direito e à justiça. A formulação dos direitos do homem
significa uma consciência mais viva da dignidade de todos os homens. Comparando-se
com os sistemas anteriores de dominação, as conquistas da liberdade e da igualdade, em
numerosas sociedades, são inegáveis.
Liberdade de pensar e de querer
9. Enfim e sobretudo, o movimento moderno de libertação deveria trazer ao homem a
liberdade interior, sob a forma de liberdade de pensar e liberdade de querer. Ele
pretendia libertar o homem da superstição e dos medos ancestrais, percebidos como
outros tantos obstáculos ao seu desenvolvimento. Era seu propósito dar ao homem a
coragem e a audácia de se servir da sua razão, sem que o temor o detivesse diante das
fronteiras do desconhecido. Dessa forma, especialmente nas ciências históricas e nas
ciências humanas, desenvolveu-se um novo conhecimento do homem, destinado à
ajudá-lo a se compreender melhor, no que diz respeito ao seu desenvolvimento pessoal
ou às condições fundamentais da formação da comunidade.
Ambigüidades do processo moderno de libertação
10. Quer se trate da conquista da natureza, da vida social e política ou do domínio do
homem sobre ele mesmo, em plano individual e coletivo, todos podem constatar que
não somente os progressos realizados estão longe de corresponder às ambições iniciais,
mas também que novas ameaças, novas servidões e novos terrores surgiram, à medida
em que se ampliava o movimento moderno de libertação. É um sinal de que graves
ambiguidades acerca do sentido mesmo da liberdade, já desde a sua origem, corroíam
por dentro esse movimento.
O homem ameaçado por seu domínio da natureza
11. Foi assim que, na medida em que se libertava das ameaças da natureza, o homem
passou a sentir um medo crescente diante de si mesmo. A técnica, subjugando sempre
mais a natureza, corre o risco de destruir os fundamentos de nosso próprio futuro, de
modo que a humanidade de hoje torna-se a inimiga das gerações futuras. Ao reduzir à
servidão, com um poder cego, as forças da natureza, não se está destruindo a liberdade
dos homens de amanhã? Que forças podem proteger o homem da escravidão de sua
própria dominação? Torna-se necessária uma capacidade de liberdade e de libertação
totalmente nova e que exige um processo de libertação inteiramente renovado.
Riscos da potência tecnológica
12. A força libertadora do conhecimento científico concretiza-se nas grandes realizações
tecnológicas. Quem dispõe das tecnologias, possui o poder sobre a terra e sobre os
homens. Daí nascem formas de desigualdade, até então desconhecidas, entre os
detentores do saber e aqueles que simplesmente utilizam a técnica. A nova potência
tecnológica está ligada ao poder económico e leva à sua concentração. Dessa forma, no
interior dos povos e entre os povos, formaram-se relações de dependência que, nos

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últimos vinte anos, deram ocasião a uma nova reivindicação de libertação. Como
impedir que a potência tecnológica não se torne um poder de opressão de grupos
humanos ou de povos inteiros?
Individualismo e coletivismo
13. Na área das conquistas sociais e políticas, uma das ambigüidades fundamentais da
afirmação da liberdade, no século das Luzes, está ligada à concepção do sujeito dessa
liberdade como indivíduo que se basta a si mesmo e tendo com fim a satisfação de seu
interesse próprio no gozo dos bens terrestres. A ideologia individualista inspirada por tal
concepção do homem favoreceu, nos inícios da era industrial, a desigual repartição das
riquezas, a um ponto tal que os trabalhadores viram-se excluídos do acesso aos bens
essenciais, para cuja produção tinham contribuído e aos quais tinham direito. Daí
nasceram pujantes movimentos de libertação da miséria mantida pela sociedade
industrial.
Cristãos – leigos e pastores – não deixaram de lutar por um reconhecimento equitativo
dos legítimos direitos dos trabalhadores. Em favor dessa causa, o Magistério da Igreja
elevou a sua voz, em diversas ocasiões.
Muito frequentemente, porém, a justa reivindicação do movimento operário conduziu a
novas servidões, por inspirar-se em concepções que, ignorando a vocação transcendente
da pessoa humana, atribuíam ao homem um fim meramente terrestre. Algumas vezes,
ela voltou-se para projetos coletivistas, que gerariam injustiças tão graves quanto às que
pretendiam pôr um fim.
Novas formas de opressão
14. Dessa forma, a nossa época viu nascer os sistema totalitários e formas de tirania, que
não teriam sido possíveis em épocas anteriores à expansão tecnológica. Por um lado, a
perfeição tecnológica foi aplicada em genocídios. Por outro lado, praticando o
terrorismo, que causa a morte de inúmeros inocentes, minorias pretendem derrotar
inteiras nações.
O controle, hoje, pode insinuar-se até no interior dos indivíduos; e mesmo as
dependências criadas pelos sistemas de prevenção podem representar potenciais
ameaças de opressão. Uma falsa libertação das coações da sociedade é procurada no
recurso à droga, que, no mundo todo, leva muitos jovens à autodestruição, lançando
famílias inteiras na angústia e na dor.
Riscos de destruição total
15. Torna-se cada vez mais débil o reconhecimento de uma ordem jurídica como
garantia do relacionamento dentro da grande família dos povos. Quando a confiança no
direito não parece mais oferecer uma proteção suficiente, busca-se a segurança e a paz
em uma ameaça recíproca, que se torna um risco para toda a humanidade. As forças que
deveriam servir ao desenvolvimento da liberdade servem para aumentar as ameaças. Os
instrumentos de morte que se opõem, hoje, são capazes de destruir toda a vida humana
sobre a terra.
Novas relações de desigualdade
16. Entre as nações dotadas de poderio e as que dele são privadas instalaram-se novas
relações de desigualdade e de opressão. A busca do interesse próprio parece ser a regra
das relações internacionais, sem que se leve em consideração o bem comum da
humanidade.
O equilíbrio interno das nações pobres é rompido pela importação das armas,
introduzindo nelas um fator de divisão que conduz ao domínio de um grupo sobre outro.
Que forças poderiam eliminar o recurso sistemático às armas, restituindo ao direito a
sua autoridade?
Emancipação das nações jovens

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17. É no contexto da desigualdade das relações de força que apareceram os movimentos


de emancipação das nações jovens, geralmente nações pobres, ainda recentemente
submetidas ao domínio colonial. Muito frequentemente, porém, o povo é privado de
uma independência duramente conquistada, por regimes ou tiranias sem escrúpulos, que
tripudiam impunemente sobre os direitos do homem. Dessa forma, o povo, reduzido à
impotência, apenas mudou de dono.
Permanece, no entanto, como um dos maiores fenómenos do nosso tempo, em escala de
inteiros continentes, o despertar da consciência do povo que, esmagado pelo peso da
secular miséria, aspira a uma vida na dignidade e na justiça e está pronto a bater-se por
sua liberdade.
A moral e Deus obstáculos para a libertação?
18. Com relação ao movimento moderno de libertação interior do homem, deve-se
constatar que o esforço para libertar de seus limites o pensamento e a vontade chegou ao
ponto de considerar que a moralidade como tal constituía um limite irracional que o
homem, decidido a se tornar senhor de si mesmo, devia ultrapassar.
Mais ainda: para muitos, é o próprio Deus que seria a alienação específica do homem.
Entre a afirmação de Deus e a liberdade humana haveria uma radical incompatibilidade.
Rejeitando a fé em Deus, o homem, enfim, tornar-se-ia livre.
Questões angustiantes
19. Aqui se encontra a raiz das tragédias que acompanham a história moderna da
liberdade. Por que essa história, apesar de grandes conquistas que, aliás, permanecem
sempre frágeis, experimenta frequentes recaídas na alienação e vê surgir novas
servidões? Por que movimentos de libertação, que suscitaram imensas esperanças, vão
desaguar em regimes para os quais a liberdade dos cidadãos,8 a começar pela primeira
delas, que é a liberdade religiosa,9 é o primeiro inimigo?
Quando o homem pretende libertar-se da lei moral e tornar-se independente de Deus,
longe de conquistar a sua liberdade, ele a destrói. Fugindo da medida da verdade, ele
torna-se presa do arbitrário; entre os homens, as relações fraternas são abolidas, para dar
lugar ao terror, ao ódio e ao medo.
O profundo movimento moderno de libertação permanece ambíguo, porque foi
contaminado por erros mortais acerca da condição do homem e da sua liberdade. Ele
carrega, simultaneamente, promessas de verdadeira liberdade e ameaças de mortais
servidões.
II. A liberdade na experiência do Povo de Deus
Igreja e liberdade
20. Porque consciente dessa mortal ambigüidade, a Igreja, pelo seu Magistério, elevou a
sua voz, ao longo dos últimos séculos, alertando para os desvios que ameaçam
desvirtuar o élan libertador, transformando-o em amargas decepções. Naqueles
momentos, muitas vezes, ela foi incompreendida. Com o recuo do tempo, torna-se
possível reconhecer a exatidão do seu discernimento.
Foi em nome da verdade sobre o homem, criado à imagem de Deus, que a Igreja
interveio.10 Entretanto, acusam-na de ser um obstáculo no caminho da libertação. Sua
constituição hierárquica opôr-se-ia à igualdade; seu Magistério iria contra a liberdade de
pensamento. Certamente, houve erros de julgamento ou omissões graves, de que, ao
longo dos séculos, os cristãos foram responsáveis. 11 Mas tais objeções desconhecem a
verdadeira natureza das coisas. A diversidade dos carismas no povo de Deus, que são
carismas de serviço, não é contrária à igual dignidade das pessoas e à sua comum
vocação à santidade.
A liberdade de pensamento, como condição de busca da verdade em todos os domínios
do saber humano, não significa que a razão humana deva fechar-se às luzes da

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Revelação, cujo depósito Deus confiou à sua Igreja. Abrindo-se à verdade divina, a
razão criada encontra um desabrochamento e uma perfeição que constituem uma forma
eminente de liberdade. Por outro lado, o Concílio Vaticano II reconheceu plenamente a
legítima autonomia das ciências,12 como também das atividades de ordem política.13
A liberdade dos pequeninos e dos pobres
21. Um dos principais erros que contaminou gravemente o processo de libertação, desde
o Iluminismo, consiste na convicção largamente difundida de que os progressos
realizados no campo das ciências, da técnica e da economia, deveriam servir de
fundamento para a conquista da liberdade. Desconhecia-se, dessa forma, a profundidade
da mesma liberdade e das suas exigências.
Essa realidade profunda da liberdade, a Igreja sempre a experimentou, sobretudo através
da vida de uma multidão de fiéis, especialmente entre os pequeninos e os pobres. Na sua
fé, eles sabem que são objeto do amor infinito de Deus. Cada um deles pode afirmar: «
Vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim » (Gl 2,
20b). Tal é a sua dignidade, que nenhuma das potências lhes pode arrancar; tal é a
alegria libertadora neles presente. Sabem que a eles é dirigida também a palavra de
Jesus: « Não mais vos chamo servos, pois o servo não sabe o que seu amo faz; mas eu
vos chamo amigos, pois tudo o que ouvi do Pai eu vos dei a conhecer » (Jo 15, 15).
Essa participação no conhecimento de Deus é a sua emancipação com relação à
pretensão de dominação por parte dos detentores do saber: « Todos possuís a ciência ...
e não tendes necessidade de que alguém vos ensine » (1 Jo 2, 20b. 27b). Eles têm
consciência também de participarem do conhecimento mais elevado a que a
humanidade é chamada.14 Sabem-se amados por Deus como todos os outros e mais que
todos os outros. Vivem, assim, na liberdade que provém da verdade e do amor.
Recursos da religiosidade popular
22. O mesmo sentido da fé do povo de Deus, na sua devoção cheia de esperança à cruz
de Jesus, percebe a força contida no mistério de Cristo redentor. Longe, pois, de
desprezar ou querer suprimir as formas de religiosidade popular que essa devoção
assume, é preciso, ao contrário, destacar e aprofundar toda a sua significação e todas as
suas implicações.15 Ela constitui um fato de dimensão teológica e pastoral fundamental:
são os pobres, objeto da predileção divina, que melhor compreendem – e como que por
instinto – que a libertação mais radical, que é libertação do pecado e da morte, é aquela
que foi realizada pela morte e ressurreição de Cristo.
Dimensão soteriológica e ética da libertação
23. A força dessa libertação penetra e transforma em profundidade o homem e sua
história, em sua atualidade presente, e anima o seu élan escatológico. O sentido primário
e fundamental da libertação que assim se manifesta é o sentido soteriológico: o homem
é libertado da escravidão radical do mal e do pecado.
Nessa experiência da salvação, o homem descobre o verdadeiro sentido da sua
liberdade, já que a libertação é restituição da liberdade. Ela é também educação da
liberdade, isto é, educação para o reto uso da liberdade. Dessa forma, à dimensão
soteriológica da libertação acrescenta-se a sua dimensão ética.
Uma nova fase da história da liberdade
24. Em graus diversos, o sentido da fé, que se encontra na origem de uma experiência
radical de libertação e da liberdade, impregnou a cultura e os costumes dos povos
cristãos.
Hoje, porém, de um modo totalmente novo, por causa dos terríveis desafios que a
humanidade deve enfrentar, torna-se necessário e urgente que o amor de Deus e a
liberdade na verdade e na justiça imprimam a sua marca nas, relações entre os homens e
entre os povos e animem a vida das culturas.

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Pois onde faltam a verdade e o amor, o processo de libertação leva à morte de uma
liberdade que terá perdido qualquer base de apoio.
Abre-se diante de nós uma nova fase da história da liberdade. As capacidades
libertadoras da ciência, da técnica, do trabalho, da economia e da ação política, só darão
frutos se encontrarem sua inspiração e medida na verdade e no amor mais fortes do que
o sofrimento, revelados aos homens por Jesus Cristo.
CAPÍTULO II
VOCAÇÃO DO HOMEM À LIBERDADE E DRAMA DO PECADO
I. Primeiras abordagens da liberdade
Uma resposta espontânea
25. A resposta espontânea à pergunta: « O que é ser livre?», é a seguinte: é livre aquele
que pode fazer unicamente o que quiser, sem ser impedido por coação externa e que,
por conseguinte, goza de plena independência. O contrário da liberdade seria, assim, a
dependência de nossa vontade à uma vontade estranha.
Mas o homem sabe sempre o que quer? Pode tudo o que deseja? É conforme à natureza
do homem limitar-se ao próprio eu, separando-se da vontade de outrem?
Frequentemente, a vontade de um momento não é a vontade real. E no mesmo homem
podem coexistir vontades contraditórias. Mas, sobretudo, o homem defronta-se com os
limites da sua própria natureza: ele sempre quer mais do que pode. Dessa forma, o
obstáculo que se opõe ao seu querer nem sempre provém de fora, mas dos limites do seu
ser. Por isso, sob pena de se destruir, o homem deve aprender a conciliar a sua vontade
com a sua natureza.
Verdade e justiça, regras da liberdade
26. Além disso, cada homem é orientado para os outros homens e tem necessidade da
sua sociedade. Somente aprendendo á pôr de acordo a sua vontade com a dos outros, em
vista de um bem verdadeiro, ele fará o aprendizado da retidão do querer. É, pois, a
harmonia com as exigências da natureza humana que torna humana a vontade. Com
efeito, esta exige o critério da verdade e uma relação justa com a vontade dos outros.
Verdade e justiça são, assim, a medida da verdadeira liberdade. Afastando-se desse
fundamento, o homem, ao tomar-se por Deus, cai na mentira e, ao invés de se realizar,
destrói-se.
Longe de cumprir-se em uma total autonomia do eu e na ausência de relações, a
liberdade só existe verdadeiramente quando laços recíprocos, regidos pela verdade e
pela justiça, unem as pessoas. Mas para que tais laços sejam possíveis, cada um,
pessoalmente, deve ser verdadeiro.
A liberdade não é liberdade de fazer não importa o quê; ela é liberdade para o Bem, o
único em que reside a Felicidade. O Bem é também a sua finalidade. Por conseguinte, o
homem torna-se livre na medida em que tem acesso ao conhecimento do verdadeiro e
que este último conhecimento, e não qualquer outra força, guie a sua vontade. A
libertação em vista de um conhecimento da verdade que – única – dirige a vontade é
condição necessária para uma liberdade digna desse nome.
II. Liberdade e libertação
Uma liberdade de criatura
27. Em outras palavras, a liberdade que é controle interno de seus próprios atos e é auto-
determinação, implica imediatamente uma relação com a ordem ética. Ela encontra seu
verdadeiro sentido na escolha do bem moral. Manifesta-se, então, como um resgate em
relação ao mal moral.
Por sua ação livre, o homem deve tender para o Bem supremo, através dos bens
conformes às exigências da sua natureza e de acordo com a sua vocação divina.

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Exercendo a sua liberdade, ele decide sobre si mesmo e se forma. Nesse sentido, o
homem é causa de si mesmo. Mas ele o é a título de criatura e de imagem de Deus. Tal
é a verdade do seu ser, que manifesta, por contraste, o que têm de profundamente
erróneo as teorias que crêem exaltar a liberdade do homem ou a sua « praxis histórica »,
fazendo dela o princípio absoluto do seu ser e do seu devir. Essas teorias são expressões
do ateísmo, ou tendem ao ateísmo, por sua lógica própria. O indiferentismo e o
agnosticismo deliberado vão na mesma direção. É a imagem de Deus, no homem, que
fundamenta a liberdade e a dignidade da pessoa humana.16
O apelo do Criador
28. Ao criar o homem livre, Deus imprimiu nele a sua imagem e semelhança. 17 O
homem ouve o apelo do seu Criador, na inclinação e aspiração da sua natureza para o
Bem, e mais ainda na Palavra da Revelação, que foi pronunciada de uma maneira
perfeita em Cristo. Ele recebe, dessa forma, a revelação de que Deus o criou livre, para
que ele pudesse, por graça, entrar em amizade com Ele e comungar de sua vida.
Uma liberdade participada
29. O homem não tem a sua origem na sua própria ação individual ou coletiva, mas no
dom de Deus que o criou. Tal é a primeira confissão da nossa fé, que vem confirmar as
mais elevadas intuições do pensamento humano.
A liberdade do homem é uma liberdade participada. Sua capacidade de se realizar não é,
de forma alguma, suprimida pela sua dependência de Deus. É próprio do ateísmo,
justamente, crer em uma posição irredutível entre a causalidade de uma liberdade divina
e a da liberdade do homem, como se a afirmação de Deus significasse a negação do
homem, ou como se a sua intervenção na história tornasse vãs as tentativas deste último.
Na realidade, é de Deus e com relação a Ele, que a liberdade humana adquire sentido e
consistência.
A opção livre do homem
30. A história do homem desenrola-se a partir da natureza que ele recebeu de Deus, na
livre realização dos fins para os quais o orientam e o impelem as inclinações dessa
natureza e da graça divina.
Mas a liberdade do homem é finita e falível. Seu desejo pode voltar-se para um bem
aparente: optando por um falso bem, ele falta à vocação da sua liberdade. O homem, por
seu livre arbítrio, dispõe de si mesmo, realizando, dessa forma, a sua vocação régia de
filho de Deus. « Pelo serviço de Deus, ele reina ». 18 A autêntica liberdade é « serviço da
justiça », enquanto, ao contrário, a escolha da desobediência e do mal é « escravidão do
pecado ».19
Libertação temporal e liberdade
31. A partir dessa noção de liberdade, torna-se mais clara a dimensão da noção de
liberdade temporal: trata-se do conjunto dos processos quem têm o objetivo de
proporcionar e garantir as condições exigidas pelo exercício de uma liberdade humana
autêntica.
Portanto, não é a libertação que, por si mesma, produz a liberdade do homem. O senso
comum, confirmado pelo sentido cristão, sabe que, mesmo submetida a
condicionamentos, a liberdade nem por isso é completamente destruída. Homens que
sofrem terríveis coações conseguem manifestar a sua liberdade e se movimentar pela
própria libertação. Um processo de libertação que atingir o seu termo pode apenas criar
condições melhores para o exercício efetivo da liberdade. Da mesma forma, uma
libertação que não levar em consideração a liberdade pessoal daqueles que por ela
combatem, está de antemão condenada ao fracasso.
III. A liberdade e a sociedade humana
Os Direitos do Homem e as «liberdades»

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32. Deus não criou o homem como um «ser solitário », mas o quis « ser social ». 20 A
vida social, portanto, não é algo de exterior ao homem: este não pode crescer e realizar a
sua vocação senão em relação com os outros. O homem pertence a diversas
comunidades, familiar, profissional, política, e é no seio destas que deve exercer a sua
liberdade responsável. Uma ordem social justa oferece ao homem uma ajuda
insubstituível para a realização da sua personalidade livre. Ao contrário, uma ordem
social injusta é uma ameaça e um obstáculo que podem comprometer o seu destino.
Na esfera social, a liberdade se exprime e se realiza em ações, estruturas e instituições,
graças às quais os homens comunicam-se entre si e organizam a sua vida comum. O
desenvolvimento de uma personalidade livre, que é um direito e um dever de todos,
deve ser ajudado e não obstaculizado pela sociedade.
Trata-se de uma exigência de natureza moral, que encontrou a sua expressão na
formulação dos Direitos do Homem. Entre eles, alguns têm por objeto o que se
convencionou chamar « as liberdades », isto é, maneiras de se reconhecer a cada ser
humano o seu caráter de pessoa responsável por ela mesma e por seu destino
transcendente, como também de reconhecer a inviolabilidade da sua consciência.21
Dimensões sociais do homem e glória de Deus
33. A dimensão social do ser humano assume ainda uma outra significação: somente a
pluralidade e a rica diversidade dos homens podem exprimir algo da riqueza infinita de
Deus.
Enfim, essa dimensão é chamada a encontrar a sua realização no Corpo de Cristo, que é
a Igreja. Por isso, a vida social, na variedade das suas formas e na medida em que é
conforme à lei divina, constitui um reflexo da glória de Deus no mundo.22
IV. Liberdade do homem e domínio da natureza
Vocação do homem: «dominar» a natureza
34. Juntamente com a sua dimensão corporal, o homem tem necessidade dos recursos
do mundo material para a sua realização pessoal e social. Nesta vocação de dominar a
terra, submetendo-a ao seu serviço pelo trabalho, pode-se reconhecer um traço da
imagem de Deus.23 Mas a intervenção humana não é « criadora »; ela depara-se com
uma natureza material que, como ela, tem a sua origem em Deus Criador e da qual o
homem foi constituído « nobre e sábio guardião ».24
O homem, senhor de suas atividades
35. As transformações técnicas e econômicas repercutem sobre a organização da vida
social; elas não deixam de influir, em uma certa medida, sobre a vida cultural e sobre a
própria vida religiosa.
No entanto, por sua liberdade, o homem permanece senhor de sua atividade. As grandes
e rápidas transformações da época contemporânea apresentam-lhe um dramático
desafio: o do domínio e controle, mediante a razão e a liberdade, sobre as forças que ele
desencadeia ao serviço das verdadeiras finalidades humanas.
Descobertas científicas e progresso moral
36, Compete, pois, à liberdade bem orientada fazer com que as conquistas científicas e
técnicas, a procura de sua eficácia, os produtos do trabalho e as próprias estruturas da
organização económica e social, não sejam submetidos a projetos que os privem de suas
finalidades humanas, fazendo-os voltarem-se contra o próprio homem.
A atividade científica e a atividade técnica comportam, cada uma, exigências
específicas. Entretanto, elas só alcançam o seu significado e o seu valor propriamente
humanos, quando subordinadas aos valores morais. Essas exigências devem ser
respeitadas; mas querer atribuir-lhes uma autonomia absoluta e obrigatória, não
conforme à natureza das coisas, é entrar em um caminho que leva à ruína a autêntica
liberdade do homem.

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V. O pecado, fonte de divisão e de opressão


O pecado separação de Deus
37. Deus chama o homem para a liberdade. Em cada homem é viva a vontade de ser
livre. E, no entanto, tal vontade quase sempre leva à escravidão e à opressão. Qualquer
empenho pela libertação e pela liberdade supõe, pois, que se tenha enfrentado esse
dramático paradoxo.
O pecado do homem, isto é, a sua ruptura com Deus, é a razão radical das tragédias que
marcam a história da liberdade. Para compreendê-lo, muitos de nossos contemporâneos
deverão, primeiramente, redescobrir o sentido do pecado.
No anseio de liberdade do homem esconde-se a tentação de renegar a sua própria
natureza. Na medida em que deseja tudo querer e tudo poder, esquecendo-se, assim, de
que é finito e criado, ele pretende ser um deus. « Sereis como Deus » (Gn 3, 5). Essa
palavra da serpente manifesta a essência da tentação do homem; ela comporta a
perversão do sentido da sua própria liberdade. Tal é a natureza profunda do pecado: o
homem separa-se da verdade, impondo-lhe a sua vontade. Querendo libertar-se de Deus
e ser, ele mesmo, um deus, engana-se e se destrói. Aliena-se de si mesmo.
Neste querer ser deus e tudo submeter a seu prazer pessoal esconde-se uma perversão da
ideia mesma de Deus. Deus é amor e verdade na plenitude do dom recíproco das
Pessoas divinas. O homem é chamado a ser como Deus, é verdade. Entretanto, ele se
torna semelhante a Deus não no arbitrário do seu querer, mas na medida em que
reconhece a verdade e o amor como o princípio e a finalidade da sua liberdade.
O pecado, raiz das alienações humanas
38. Ao pecar, o homem mente a si mesmo e separa-se da sua verdade. Buscando a total
autonomia e a auto-suficiência, ele nega Deus e nega-se a si mesmo. A alienação com
relação à verdade do seu ser de criatura amada por Deus é a raiz de todas as outras
alienações.
Negando, ou tentando negar Deus, seu Princípio e seu Fim, o homem altera
profundamente a sua ordem e o seu equilíbrio interior, os da sociedade e até mesmo os
da criação visível.25
É em conexão com o pecado que a Escritura considera o conjunto das calamidades que
oprimem o homem em seu ser individual e social.
Ela mostra como todo o curso da história mantém uma ligação misteriosa como agir do
homem que, desde a origem, abusou da sua liberdade erguendo-se contra Deus e
procurando alcançar os seus fins fora d’Ele.26 No caráter penoso do trabalho e da
maternidade, no domínio do homem sobre a mulher e na morte, o livro do Génesis
indica as consequências do pecado original. Os homens privados da graça divina
herdaram, dessa forma, uma natureza comum mortal, incapaz de se fixar no bem, e
inclinada à cobiça.27
Idolatria e desordem
39. A idolatria é uma forma extrema da desordem gerada pelo pecado. A substituição da
adoração do Deus vivo pelo culto da criatura falseia as relações entre os homens e
arrasta consigo diversas formas de opressão.
O desconhecimento culpável de Deus desencadeia as paixões, causas de desequilíbrio e
de conflitos no íntimo do homem. Daí derivam inevitavelmente as desordens que afetam
a esfera familiar e social: licenciosidade sexual, injustiça, homicídio. É assim que São
Paulo descreve o mundo pagão, levado pela idolatria às piores aberrações que arruínam
o indivíduo e a sociedade.28
Já antes dele, os Profetas e os Sábios de Israel viam nas desgraças do povo um castigo
do seu pecado de idolatria, e no « coração cheio de maldade » (Ec 9, 3),29 a fonte da
radical escravidão do homem e das opressões que ele inflige aos seus semelhantes.

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Desprezar Deus e voltar-se  para as criaturas


40. A tradição cristã, nos Padres e Doutores da Igreja explicitou esta doutrina da
Escritura acerca do pecado. Para ela, o pecado e desprezo de Deus (contemptus
Dei).  Ele comporta a vontade de fugir da relação de dependência do servidor para com
seu senhor ou, mais ainda, do filho para com seu Pai. Pecando, o homem pretende
livrar-se de Deus. Na realidade, ele torna-se escravo. Pois, ao recusar Deus, quebra o
impulso da sua aspiração ao infinito e da sua vocação à participação da vida divina. É
por isso que seu coração fica entregue à inquietação.
O homem pecador que recusa de aderir a Deus, é conduzido, necessariamente, a se ligar
à criatura, de um modo falacioso e destruidor. Neste voltar-se para a criatura (conversio
ad creaturam), ele concentra sobre essa o seu insatisfeito desejo de infinito. Mas os
bens criados são limitados; por isso mesmo, seu coração corre de um para outro, sempre
em busca de uma paz impossível.
Na realidade, quando atribui às criaturas um peso de infinitude, o homem perde o
sentido do seu ser criado. Ele pretende encontrar o seu centro e a sua unidade em si
mesmo. O amor desordenado de si é a outra face do desprezo de Deus. O homem
pretende, então, apoiar-se em si mesmo somente; ele quer realizar-se a si mesmo,
bastando-se na sua própria imanência.30
O ateísmo falsa emancipação da liberdade
41. Isto torna-se mais particularmente manifesto quando o pecador julga só poder
afirmar a sua liberdade própria, quando explicitamente negar Deus. A dependência da
criatura para com o Criador ou a da consciência moral com relação à lei divina seriam,
para ele, intoleráveis servidões. O ateísmo é, pois, aos seus olhos, a verdadeira forma de
emancipação e de libertação do homem, enquanto a religião ou mesmo o
reconhecimento de uma lei moral seriam alienações. O homem quer, então, decidir
soberanamente acerca do bem e do mal, ou acerca dos valores, e, com um mesmo
movimento, rejeita ao mesmo tempo a ideia de Deus e a ideia de pecado. É através da
audácia da transgressão que ele pretende tornar-se adulto e livre. Ele reivindica tal
emancipação não apenas para si, mas para a humanidade inteira.
Pecado e estruturas de injustiça
42. Tornando-se seu próprio centro, o homem pecador tende a se afirmar e a satisfazer
seu desejo de infinito, servindo-se das coisas: riquezas, poderes e prazeres, em
menosprezo dos outros homens que ele despoja injustamente e trata como objetos ou
instrumentos. Assim, contribui, por sua parte, para a criação daquelas estruturas de
exploração e de servidão que, por outro lado, ele pretende denunciar.
CAPÍTULO III
LIBERTAÇÃO E LIBERDADE CRISTÃ
Evangelho, liberdade e libertação
43. A história humana, marcada pela experiência do pecado, levar-nos-ia ao desespero,
se Deus tivesse abandonado sua criatura a ela mesma. Mas as promessas divinas de
libertação e o seu vitorioso cumprimento na morte e ressurreição de Cristo são o
fundamento da « alegre esperança » na qual a comunidade cristã busca a força para agir
resoluta e eficazmente ao serviço do amor, da justiça e da paz. O Evangelho é uma
mensagem de liberdade e uma força de libertação 31 que realiza a esperança de Israel,
fundada sobre a palavra dos Profetas. Esta apoiava-se na ação de Javé que, antes mesmo
de intervir como « goél »,32 libertador, redentor, salvador do seu Povo, escolhera-o
gratuitamente em Abraão.33
I. A libertação no Antigo Testamento
O Êxodo e as intervenções libertadoras de Javé

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44. No Antigo Testamento, a ação libertadora de Javé, que serve de modelo e referência
a todas as outras, é o Êxodo do Egito, « casa de servidão ». Se Deus arranca seu Povo de
uma dura escravidão económica, política e cultural, é para fazer dele, através de Aliança
do Sinai, « um reino de sacerdotes e uma nação santa » (Ex 19, 6). Deus quer ser
adorado por homens livres. Todas as libertações ulteriores do Povo de Israel tendem a
conduzi-lo a essa liberdade em plenitude que ele só pode encontrar na comunhão com o
seu Deus.
O acontecimento principal e fundacional do Êxodo tem, portanto, um significado ao
mesmo tempo religioso e político. Deus liberta o seu Povo, dá-lhe uma descendência,
uma terra, uma lei, mas dentro de uma Aliança e para uma Aliança. Não se poderia,
portanto, isolar o aspecto político, atribuindo-lhe um valor por si mesmo; é necessário
considerá-lo à luz do desígnio de natureza religiosa no qual ele se integra.34
A Lei de Deus
45. Em seu desígnio de salvação, Deus deu sua Lei a Israel. Juntamente com os
preceitos morais universais do Decálogo, ela continha também normas cultuais e civis,
que deviam regulamentar a vida do povo escolhido por Deus para ser sua testemunha
entre as nações.
O amor de Deus acima de todas as coisas35 e do próximo como a si mesmo36 já constitui
o centro desse conjunto de leis. Mas a justiça, que deve presidir as relações entre os
homens, e o direito, que é a sua expressão jurídica, pertencem também à trama mais
característica da Lei bíblica. Os Códigos e a pregação dos Profetas, como também os
Salmos, referem-se constantemente a ambas, frequentemente unido-as. 37 É em tal
contexto que deve ser apreciado o cuidado da Lei bíblica pelos pobres, os desprovidos, a
viúva e o órfão: a eles é devida a justiça, segundo o ordenamento jurídico do Povo de
Deus.38 Já existem, portanto, o ideal e o esboço de uma sociedade centralizada no culto
do Senhor e fundada na justiça e no direito animados pelo amor.
O ensinamento dos Profetas
45. Os Profetas não cessam de lembrar a Israel as exigências da Lei da Aliança. Eles
denunciam no coração endurecido do homem a fonte das repetidas transgressões e
anunciam uma Nova Aliança, na qual Deus transformará os corações, gravando neles a
Lei do seu Espírito.39
Anunciando e preparando essa nova era, eles denunciam com vigor a injustiça
perpetrada contra os pobres; em favor destes, fazem-se porta-vozes de Deus. Javé é o
supremo recurso dos pequeninos e dos oprimidos. Será missão do Messias defendê-
los.40
A situação do pobre é uma situação de injustiça contrária à Aliança. Por isso a Lei da
Aliança protege-o com preceitos que refletem a própria atitude de Deus ao libertar Israel
da servidão do Egito.41 A injustiça para com os pequeninos e os pobres é um grave
pecado, que quebra a  comunhão com Javé.
Os «pobres de Javé»
47. A partir de todas as formas de pobreza, de injustiça sofrida e de aflição, os « justos »
e os « pobres de Javé », nos Salmos, fazem subir até Ele as suas súplicas. 42 Eles sofrem
em seus corações pela servidão â que foi reduzido, por causa de seus pecados, o povo
«de dura cerviz ». Suportam a perseguição, o martírio e a morte, mas vivem na
esperança da libertação. Acima de tudo, põem a sua confiança em Javé, a quem
recomendam a própria causa.43
Os « pobres de Javé » sabem que a comunhão com Ele 44 é o bem mais precioso, no qual
o homem encontra a sua verdadeira liberdade. 45 Para eles, o mal mais trágico é a perda
dessa comunhão. É por isso que o seu combate contra a injustiça assume o sentido mais
profundo e a sua eficácia na vontade de ser libertados da servidão do pecado.

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No limiar do Novo Testamento


48. No limiar do Novo Testamento, os « pobres de Javé» constituem as primícias de um
« povo humilde e pobre », que vive na esperança da libertação de Israel.46
Personificando essa esperança, Maria ultrapassa o limiar do Antigo Testamento. Ela
anuncia com alegria o acontecimento messiânico e louva o Senhor que se prepara para
libertar o seu Povo.47 Em seu hino de louvor à divina misericórdia, a humilde Virgem,
para quem o povo dos pobres volta-se espontaneamente e com tanta confiança, canta o
mistério da salvação e a sua força de transformação. O senso da fé, tão vivo nos
pequeninos, sabe reconhecer imediatamente toda a riqueza do Magnificat, ao mesmo
tempo soteriológica e ética.48
II. Significação cristológica do Antigo Testamento
A luz de Cristo
49. O Êxodo, a Aliança, a Lei, a voz dos Profetas e a espiritualidade dos « pobres de
Javé » não atingem a sua plena significação a não ser em Cristo.
A Igreja lê o Antigo Testamento à luz de Cristo morto e ressuscitado por nós. A Igreja
vê a sua própria prefiguração no Povo de Deus da Antiga Aliança, encarnado no corpo
concreto de uma nação particular, política e culturalmente constituída, que se inseria na
trama da história como testemunha de Javé diante das nações, até c término do tempo da
preparação e das figuras. Na plenitude dos tempos, vinda com Cristo, os filhos de
Abrãao foram então chamados com todas as nações a entrar na Igreja de Cristo, para
formar com elas um só Povo de Deus, espiritual e universal.49
III. A libertação cristã
A Boa-Nova anunciada aos pobres
50. Jesus anuncia a Boa-Nova do Reino de Deus e chama os homens à coversão. 50 «Os
pobres são evangelizados » (Mt 11, 5): retomando a palavra do Profeta,51 Jesus
manifesta a sua ação messiânica em favor daqueles que esperam a salvação de Deus.
Mais ainda, o Filho de Deus que se fez pobre por nosso amor, 52 quer ser reconhecido nos
pobres, naqueles que sofrem ou são perseguidos: 53 « o que fizestes a um desses meus
irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes » (Mt 25, 40).54
O Mistério Pascal
51. Mas é, antes de tudo, pela força do seu Mistério Pascal que Cristo nos libertou. 55 Por
sua obediência perfeita na Cruz e pela glória da sua resurreição, o Cordeiro de Deus
tirou o pecado do mundo e abriu-nos o caminho da libertação definitiva.
Por nosso serviço e nosso amor, mas também pelo oferecimento de nossas provações e
sofrimentos, nós participamos do único sacrifício redentor de Cristo, completando em
nós « o que falta das tribulações de Cristo pelo seu Corpo, que é a Igreja » (Cl 1, 24), na
expectativa da ressurreição dos mortos.
Graça, reconciliação e libertade
52. A medula da experiência cristã da liberdade encontra-se na justificação pela graça
da fé e dos sacramentos da Igreja. Essa graça liberta-nos do pecado e nos introduz na
comunhão com Deus. Pela morte e ressurreição de Cristo, o perdão nos é oferecido. A
experiência da nossa reconciliação com o Pai é fruto do Espírito Santo. Deus revela-se a
nós como o Pai de misericórdia, diante de quem podemos apresentar-nos com uma
confiança total.
Reconciliados com Ele56 e recebendo aquela paz de Cristo que o mundo não pode
dar,57 somos chamados a ser, entre os homens, construtores de paz.58
Em Cristo, podemos vencer o pecado e a morte não nos separa mais de Deus; ela será
finalmente destruída por ocasião da nossa ressurreição semelhante à de Jesus.59 O
próprio « cosmos », cujo centro e vértice é o homem, espera ser « liberto da escravidão
da corrupção para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus » (Rm 8, 21). Desde

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já, Satã é derrotado; ele, que detém o poder da morte, foi reduzido à impotência pela
morte de Cristo.60 Recebemos alguns sinais que antecipam a glória futura.
Luta contra a escravidão do pecado
53. A liberdade, trazida por Cristo no Espírito Santo restituíu-nos a capacidade, de que o
pecado nos privara, de amar a Deus acima de todas as coisas e de com Ele permanecer
em comunhão.
Somos libertados do amor desordenado de nós mesmos, que é a fonte do desprezo do
próximo e das relações de domínio entre os homens.
No entanto, até o retorno glorioso do Ressuscitado, o mistério de iniquidade está sempre
em ação no mundo. São Paulo advertiu-nos: « É para a liberdade que Cristo nos libertou
» (Gl 5, 1). É preciso, pois, perseverar e lutar para não recair sob o jugo da escravidão.
Nossa existência é um combate espiritual pela vida segundo o Evangelho e com as
armas de Deus.61 Mas recebemos a força e a certeza da nossa vitória sobre o mal, vitória
do amor de Cristo ao qual nada pode resistir.62
O Espírito e a Lei
54. São Paulo proclama o dom da Lei Nova do Espírito, em oposição à lei da carne ou
da cobiça que inclina o homem ao mal e torna-o incapaz de escolher o bem. 63 Essa falta
de harmonia e essa fraqueza interior não abolem a liberdade e a responsabilidade do
homem, mas comprometem o seu exercício em vista do bem. É isso que faz o Apóstolo
exclamar: « Não faço o bem que eu quero, mas pratico o mal que não quero » (Rm 7,
19). Com razão, ele fala da « servidão do pecado » e da « escravidão da lei », pois ao
homem pecador, a lei, que ele não pode interiorizar, aparece como opressora.
No entanto, São Paulo reconhece que a Lei conserva seu valor para o homem e para o
cristão, porque « ela é santa, e santo, justo e bom é o preceito » (Rm 7, 12).64 Ele
reafirma o Decálogo, pondo-o em relação com a caridade, que é a sua verdadeira
plenitude.65 Além disso, ele sabe muito bem que uma ordem jurídica é necessária para o
desenvolvimento da vida social.66 Mas a novidade que ele proclama, é que Deus nos deu
seu Filho « a fim de que o preceito da Lei se cumpra em nós » (Rm  8, 4).
O próprio Senhor Jesus enunciou os preceitos da Nova Lei, no Sermão da Montanha;
pelo seu sacrifício oferecido sobre a Cruz e por sua ressurreição gloriosa, ele venceu as
forças do pecado e obteve-nos a graça do Espírito Santo, que torna possível a perfeita
observância da lei de Deus67 e o acesso ao perdão se recairmos no pecado. O Espírito
que habita em nossos corações é a fonte da verdadeira liberdade.
Pelo sacrifício de Cristo, as prescrições cultuais do Antigo Testamento tornaram-se
obsoletas. Quanto às normas jurídicas da vida social e política de Israel, a Igreja
apostólica, enquanto Reino de Deus inaugurado na terra, teve a consciência de não ser
mais ligada a elas. Isso fez compreender à comunidade cristã que as leis e os atos das
autoridades dos diversos povos, embora legítimos e dignos de obediência, 68 não
poderiam nunca, enquanto promanam dessas mesmas autoridades, ter a pretensão de
assumir um caráter sagrado. À luz do Evangelho, muitas leis e estruturas parecem,
antes, trazer consigo a marca do pecado, prolongando a sua influência opressiva na
sociedade.
IV. O Mandamento novo
O Amor, dom do Espírito
55. O Amor de Deus, derramado em nossos corações pelo Espírito Santo, implica o
amor do próximo. Relembrando o primeiro mandamento, Jesus acrescenta
imediatamente: « O segundo é semelhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti
mesmo. Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas » (Mt 22, 39-40).
E São Paulo diz que a caridade é o pleno cumprimento da Lei.69

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O amor do próximo não conhece limites, estende-se aos inimigos e aos perseguidores.
Imagem da perfeição do Pai, a perfeição à qual deve tender o discípulo reside na
misericórdia.70 A parábola do Bom Samaritano demonstra que o amor cheio de
compaixão, que se põe a serviço do próximo, destrói os preconceitos que sublevam os
grupos étnicos ou sociais uns contra os outros. 71 Todos os textos do Novo Testamento
apresentam, com uma riqueza inesgotável, todos os sentimentos de que é portador o
amor cristão pelo próximo.72
O amor do próximo
56. O amor cristão, gratuito e universal, recebe a sua natureza do amor de Cristo que
deu a sua vida por nós: « Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros » (Jo 13,
34-35).73 Tal é o « mandamento novo » para os discípulos.
À luz desse mandamento, São Tiago lembra severamente aos ricos o seu dever 74 e São
João afirma que quem possui riquezas deste mundo e fecha o seu coração a seu irmão
que passa necessidade, não pode ter o amor de Deus vivendo nele. 75 O amor do irmão é
a pedra de toque do amor de Deus: « Quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus, a
quem não vê, não poderá amar » (1 Jo 4, 20). São Paulo sublinha, com energia, o laço
existente entre a participação no sacramento do Corpo e Sangue de Cristo e a partilha
com o irmão que se encontra em necessidade.76
Justiça e caridade
57. O amor evangélico e a vocação de filho de Deus, à qual todos os homens são
chamados, têm como consequência a exigência, direta e imperativa, do respeito de cada
ser humano em seus direitos à vida e à dignidade. Não existe distância entre o amor do
próximo e a vontade de justiça. Opor amor e justiça seria desnaturar a ambos. Mais
ainda, o sentido da misericórdia completa o da justiça, impedindo a esta última de se
fechar no círculo da vingança.
As desigualdades iníquas e todas as formas de opressão, que hoje atingem milhões de
homens e de mulheres, estão em aberta contradição com o Evangelho de Cristo e não
podem deixar tranquila a consciência de nenhum cristão.
A Igreja, na sua docilidade ao Espírito, avança fielmente pelos caminhos da libertação
autêntica. Seus membros têm consciência de suas falhas e de seus recuos nessa busca.
Mas uma multidão de cristãos, desde o tempo dos Apóstolos, tem comprometido suas
forças e sua vida pela libertação de todas as formas de opressão e pela promoção da
dignidade humana. A experiência dos santos e o exemplo das inúmeras obras ao serviço
do próximo constituem um estímulo e uma luz, em vista das iniciativas libertadoras que
hoje se impõem.
V. A Igreja, Povo de Deus na Nova Aliança
Rumo à plenitude da liberdade
58. O Povo de Deus na Nova Aliança é a Igreja de Cristo. Sua lei è o mandamento do
amor. No coração dos seus membros, o Espírito habita como em um templo. Ela é aqui
na terra, germe e começo do Reino de Deus, que receberá a sua realização definitiva no
final dos tempos, com a ressurreição dos mortos e a renovação de toda a criação.77
Possuindo, dessa forma, o penhor do Espírito,78 o Povo de Deus é conduzido à plenitude
da liberdade. A nova Jerusalém que, com fervor, nós esperamos, é chamada, com razão,
cidade da liberdade, em seu sentido mais alto. 79 Então, « Deus enxugará toda lágrima
dos seus olhos, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem clamor, e nem dor haverá
mais. Sim! As coisas antigas se foram » (Ap 31, 4). A esperança é a expectativa certa
dos « novos céus e nova terra, onde habitará a justiça » (2 Pd  3, 13).
O encontro final com Cristo
59. A transfiguração da Igreja, chegada ao termo da sua peregrinação, é realizada pelo
Cristo ressuscitado e não anula, de forma alguma, o destino pessoal de cada um, ao final

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da própria vida. Cada homem, se julgado digno diante do tribunal de Cristo por ter
usado bem o seu livre arbítrio na graça de Deus, alcançará a bem-aventurança. 80 Tornar-
se-á semelhante a Deus, pois vê-lo-á tal como Ele é. 81 O dom divino da bem-
aventurança eterna é a exaltação da mais alta liberdade que possa conceber.
Esperança escatológica e empenho pela libertação temporal
60. Esta esperança não enfraquece o esforço pelo progresso da cidade terrestre, más,
pelo contrario, dá-lhe sentido e força. Convém, certamente, distinguir cuidadosamente
progresso terrestre e crescimento do Reino, que não são da mesma ordem. Entretanto,
tal distinção não é uma separação; pois a vocação do homem à vida eterna não suprime
e sim confirma a sua missão de pôr em obra as energias e os meios que recebeu do
Criador para desenvolver a sua vida temporal.82
Iluminada pelo Espírito do Senhor, a Igreja de Cristo pode discernir, nos sinais dos
tempos, os que trazem consigo promessas de libertação e outros, que são enganadores e
ilusórios. Ela convoca os homens e as sociedades a vencer as situações de pecado e de
injustiça, e a estabelecer as condições de uma verdadeira liberdade. Ela tem consciência
de todos estes bens – dignidade humana, união fraterna, liberdade – que constituem o
fruto de esforços coerentes com a vontade de Deus. Encontrá-los-emos « lavados de
toda mancha, iluminados e transfigurados, quando Cristo apresentará ao Pai o reino
eterno e universal »,83 que é um reino de liberdade.
A espera vigilante e ativa da vinda do Reino é também a de uma justiça enfim perfeita,
para os vivos e para os mortos, para os homens de todos os tempos e de todos os
lugares, que Jesus Cristo, como Juiz supremo, instaurará. 84 Uma tal promessa, que
ultrapassa todas as possibilidades humanas, diz respeito diretamente à nossa vida neste
mundo. Pois uma verdadeira justiça deve estender-se a todos, respondendo à imensa
soma de sofrimentos suportados por todas as gerações. Na realidade, sem a ressurreição
dos mortos e o julgamento do Senhor, não há justiça, no sentido pleno desse termo, A
promessa de ressurreição vem gratuitamente ao encontro do anseio de verdadeira
justiça, que reside no coração humano.
CAPÍTULO IV
A MISSÃO LIBERTADORA DA IGREJA
A Igreja e as inquietudes do homem
61. A Igreja tem o firme propósito de responder à inquietude do homem
contemporâneo, marcado por duras opressões e desejoso de liberdade. A gestão política
e económica da sociedade não entra diretamente na sua missão.85 Mas o Senhor Jesus
confiou-lhe a palavra da verdade, capaz de iluminar as consciências. O amor divino, que
é a sua vida, leva-a a se fazer realmente solidária com cada homem que sofre. Se seus
membros permanecerem fiéis a essa missão, o Espírito Santo, fonte de liberdade,
habitará neles e produzirão frutos de justiça e de paz em seu ambiente familiar,
profissional e social.
I. Pela salvação integral do mundo
As Bem-aventuranças e a força do Evangelho
62. O Evangelho é força da vida eterna, dada desde agora àqueles que o acolhem. 86 Mas,
ao gerar homens novos,87 essa força penetra na comunidade humana e na sua história,
purificando e vivificando, assim, as suas atividades. Por isso, ela é « raiz de cultura ».88
As Bem-aventuranças proclamadas por Jesus exprimem a perfeição do amor evangélico.
Elas não cessaram de ser vividas, ao longo da história da Igreja, por numerosos
batizados e, de uma maneira eminente, pelos santos.
As Bem-aventuranças, a partir da primeira, a dos pobres, formam um todo que não deve
ser separado do conjunto do Sermão da Montanha. 89 Neste, Jesus, novo Moisés,
comenta o Decálogo, a Lei da Aliança, dando-lhe seu sentido definitivo e pleno. Lidas e

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interpretadas na totalidade do seu contexto, as Bem-aventuranças exprimem o espírito


do Reino de Deus que vem. Ms, à luz do destino definitivo da história humana assim
manifestada, aparecem, ao mesmo tempo, com uma mais viva clareza, os fundamentos
da injustiça na ordem temporal.
Pois, ao ensinar a confiança que se apoia em Deus, a esperança da vida eterna, o amor
da justiça, a misericórdia que chega até o perdão e a reconciliação, as Bem-aventuranças
permitem situar a ordem temporal em função de uma ordem transcendente que, longe de
eliminar sua própria consistência, confere-lhe a sua verdadeira medida.
À luz das Bem-aventuranças, o necessário empenho nas tarefas temporais a serviço do
próximo e da comunidade dos homens é, ao mesmo tempo, exigido com urgência e
mantido na sua justa perspectiva. As Bem-aventuranças preservam da idolatria dos bens
terrestres e das injustiças que a sua busca desenfreada traz consigo. 90 Elas preservam da
busca de um mundo perfeito, utópica e causadora de ruína, pois « a figura deste mundo
passa » (1 Cor 7, 31).
O anúncio da Salvação
63. A missão essencial da Igreja, prolongando a missão de Cristo, é uma missão
evangelizadora e salvífica.91 Ela encontra o seu élan na caridade divina. A
evangelização é o anúncio da salvação, dom de Deus. Pela palavra de Deus e pelos
sacramentos, o homem é libertado, antes de tudo, do poder do pecado e do poder do
Maligno que o oprimem, e é introduzido na comunhão de amor com Deus. Nas pegadas
do seu Senhor, « que veio ao mundo para salvar os pecadores » (1 Tim 1, 15), a Igreja
deseja a salvação de todos os homens.
Nessa missão, a Igreja ensina o caminho que o homem deve percorrer neste mundo,
para entrar no Reino de Deus. Sua doutrina abrange, pois, toda a ordem moral e,
principalmente a justiça que deve regular as relações humanas. Tudo isso faz parte da
pregação do Evangelho.
Mas o amor que faz a Igreja comunicar a todos a participação gratuita na vida divina,
leva-a também, pela ação eficaz de seus membros, a buscar o verdadeiro bem temporal
dos homens, ir ao encontro de suas necessidades, prover a sua cultura e promover uma
libertação integral de tudo aquilo que impede o desenvolvimento das pessoas. A Igreja
quer o bem do homem em todas as suas dimensões: em primeiro lugar, como membro
de cidade de Deus; em seguida, como membro da cidade terrestre.
Evangelização e promoção da justiça
64. Quando, pois, se pronuncia sobre a promoção da justiça nas sociedades humanas, ou
leva os seus fiéis leigos a nelas trabalharem segundo a vocação própria deles, a Igreja
não excede a sua missão. Ela toma cuidado, no entanto, para que essa missão não seja
absorvida pelas preocupações concernentes a ordem temporal nem a estas últimas se
reduza. Por isso, ela presta grande atenção em manter, clara e firmemente, tanto a
unidade como a distinção entre evangelização e promoção humana: unidade, porque ela
busca o bem do homem todo; distinção, porque essas duas tarefas, sob títulos diversos,
integram a sua missão.
Evangelho e realidades terrestres
65. Procurando, pois, realizar a sua finalidade própria é que a Igreja ilumina, com a luz
do Evangelho, as realidades terrestres, de modo que a pessoa humana seja curada de
suas misérias e elevada na sua dignidade. A coesão da sociedade segundo a justiça e a
paz é, assim, promovida e reforçada.92 Por isso mesmo, a Igreja é fiel à sua missão
quando denuncia os desvios, as servidões e as opressões de que os homens são vítimas.
Ela é fiel à sua missão quando se opõe às tentativas de instauração de uma forma de
vida social da qual Deus esteja ausente, seja por uma oposição consciente, seja por uma
negligência culposa.93

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Por fim, ela é fiel à sua missão quando exerce seu julgamento a respeito de movimentos
políticos que pretendem lutar contra a miséria e a opressão segundo teorias e métodos
de ação contrários ao Evangelho e opostos ao próprio homem.94
É verdade que a moral evangélica, com as energias da graça, traz ao homem novas
perspectivas e exigências novas. Mas ela vem aperfeiçoar e elevar uma dimensão moral
que já pertence à natureza humana e pela qual a Igreja se preocupa, sabendo que tal
dimensão constitui uma património que pertence a todos os homens enquanto tais.
II. O amor preferencial pelos pobres
Jesus e a pobreza
66. Cristo Jesus, sendo rico, fez-se pobre para nos enriquecer por meio de sua
pobreza.95 São Paulo fala, aqui, do mistério da Encarnação do Filho eterno, que veio
assumir a natureza humana mortal para salvar o homem da miséria na qual o pecado o
tinha mergulhado. Mais ainda, na condição humana, Cristo escolheu um estado de
pobreza e de despojamento,96 a fim de mostrar em que consiste a verdadeira riqueza a
ser buscada, a da comunhão de vida com Deus. Ele ensinou o desapego das riquezas da
terra para que se deseje as riquezas do céu.97 Os Apóstolos que escolheu também
tiveram que abandonar tudo e participar do seu despojamento.98
Anunciado pelo Profeta como o Messias dos pobres, 99 é entre eles, os humildes, os «
pobres de Javé » sedentos da justiça do Reino, que ele encontrou corações capazes de
acolhê-lo. Mas quis também estar perto daqueles que, mesmo ricos dos bens deste
mundo, eram excluídos da comunidade, como «publicanos e pecadores », pois ele tinha
vindo chamá-los à conversão.100
É uma tal pobreza, feita de desapego, de confiança em Deus, de sobriedade, da
disposição à partilha, que Jesus declarou bem-aventurada.
Jesus e os pobres
67. Mas Jesus não trouxe apenas a graça e a paz de Deus; ele também curou inúmeros
enfermos; teve compaixão da multidão que não tinha o que comer, alimentando-a; com
os discípulos que o seguiam, praticou a esmola. 101. A Bem-aventurança da pobreza que
proclamou não significa, pois, absolutamente, que os cristãos podem desinteressar-se
dos pobres desprovidos do necessário à vida humana neste mundo. Fruto e
consequência do pecado dos homens e da sua fragilidade natural, essa miséria é um mal
de que é preciso, tanto quanto possível, libertar os seres humanos.
O amor preferencial pelos pobres
68. Sob as suas múltiplas formas – extrema privação material, opressão injusta,
enfermidades físicas e psíquicas e, por fim, a morte – a miséria humana é o sinal
manifesto da condição nativa de fraqueza na qual o homem se encontra após o primeiro
pecado e da necessidade de uma salvação. É por isso que ela atrai a compaixão de
Cristo Salvador, que quis assumi-la sobre si,102 identificando-se com os « mais
pequeninos entre os seus irmãos » (Mt 25, 40. 45). É também por isso que todos aqueles
que ela atinge são objeto de um amor preferencial por parte da Igreja que, desde as suas
origens, apesar das falhas de muitos dos seus membros, não deixou nunca de se esforçar
por aliviá-los, defendê-los e libertá-los. Ela o faz através de inúmeras obras de
beneficência, que continuam a ser, sempre e por toda a parte, indispensáveis. 103 Depois,
através da sua doutrina social que se esforça por aplicar, ela procurou promover
mudanças estruturais na sociedade, a fim de se alcançar condições de vida dignas da
pessoa humana.
Pelo desapego das riquezas, que possibilita a partilha e abre ao Reino, 104 os discípulos
de Jesus testemunham; através do amor aos pobres e aos infelizes, o próprio amor do
Pai, que se manifestou no Salvador. Esse amor vem de Deus e leva a Deus. Os

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discípulos de Cristo sempre reconheceram nos dons depositados sobre o altar um dom
oferecido ao próprio Deus.
Amando os pobres, enfim, a Igreja testemunha a dignidade do homem. Ela afirma
claramente que este vale mais pelo que é do que pelo que possui. Ela testemunha que
essa dignidade não pode ser destruída, seja qual for a situação de miséria, de desprezo,
de rejeição e de impotência a que o homem foi reduzido. Ela mostra-se solidária com
aqueles que não contam para uma sociedade da qual se vêem espiritual e às vezes até
mesmo fisicamente rejeitados. De modo particular, a Igreja volta-se com afeto materno
para os filhos que, por causa da maldade humana, nunca virão à luz, como também para
as pessoas idosas, sós ou abandonadas.
A opção privilegiada pelos pobres, longe de ser um sinal de particularismo ou de
sectarismo, manifesta a universalidade do ser e da missão da Igreja. Tal opção não é
exclusiva nem excludente.
É por essa razão que a Igreja não pode exprimi-la com a ajuda de categorias
sociológicas e ideológicas redutoras, que fariam de tal preferência uma opção partidária
e de natureza conflitiva.
Comunidades de base e movimentos eclesiais
69. As novas comunidades de base e outros grupos de cristãos, formados para serem
testemunhas deste amor evangélico, são um motivo de grande esperança para a Igreja.
Se viverem verdadeiramente em unidade com a Igreja local e a Igreja universal, serão
uma autêntica expressão da comunhão e um meio de se construir uma comunhão mais
profunda.105 Serão fiéis à sua missão na medida em que tiverem o cuidado de educar os
seus membros na integralidade da fé cristã, pela escuta da Palavra de Deus, pela
fidelidade ao ensinamento do Magistério, à ordem hierárquica da Igreja e à vida
sacramental. Sob tais condições, sua experiência, radicada em um empenho pela
libertação integral do homem, torna-se uma riqueza para a Igreja inteira.
A reflexão teológica
70. De maneira semelhante, uma reflexão teológica desenvolvida a partir de uma
experiência particular pode constituir uma contribuição muito positiva, já que permite
pôr em evidência aspectos da Palavra de Deus cuja riqueza total ainda não tinha sido
plenamente percebida. Mas para que tal reflexão seja verdadeiramente uma leitura da
Escritura e não uma projeção sobre a Palavra de Deus de um sentido que ela não
contém, o teólogo estará atento a interpretar a experiência, da qual ele parte, à luz da
tradição e da experiência da própria Igreja. Essa experiência da Igreja brilha, com uma
luminosidade singular e em toda a sua pureza, na vida dos santos. Compete aos Pastores
da Igreja, em comunhão com o Sucessor de Pedro, discernir a autenticidade de tais
experiências.
CAPÍTULO V
A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA: POR UMA PRAXIS CRISTÃ DA
LIBERTAÇÃO
A praxis cristã da libertação
71. A dimensão soteriológica da libertação não pode ser reduzida à dimensão socio-
ética, que é uma sua consequência. Restituindo ao homem a verdadeira liberdade, a
libertação radical realizada por Cristo atribui ao mesmo homem uma tarefa: a praxis
cristã, que é a execução do grande mandamento do amor. Este último é o princípio
supremo da moral social cristã, fundada sobre o Evangelho e sobre toda a tradição desde
os tempos apostólicos e a época dos Padres da Igreja até às recentes intervenções do
Magistério.
Os consideráveis desafios de nossa época constituem um apelo urgente para se pôr em
prática esta doutrina de ação.

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I. Natureza da doutrina social da Igreja


Mensagem evangélica e vida social
72. O ensinamento social da Igreja nasceu do encontro da mensagem evangélica e de
suas exigências, resumidas no mandamento supremo do amor,106 com os problemas que
emanam da vida da sociedade. Ele constituiu-se como uma doutrina, usando os recursos
da sabedoria e das ciências humanas, diz respeito ao aspecto ético desta vida e leva em
consideração os aspectos técnicos dos problemas, mas sempre para julgámos do ponto
de vista moral.
Essencialmente orientado para a ação, esse ensinamento desenvolve-se em função das
circunstâncias mutáveis da história. É por essa razão que, com princípios sempre
válidos, ele comporta também juízos contingentes. Longe de constituir um sistema
fechado, ele permanece constantemente aberto às questões novas que não cessam de se
apresentar; requer a contribuição de todos os carismas, experiências e competências.
Perita em humanidade, a Igreja oferece, em sua doutrina social, um conjunto
de princípios de reflexão,  de critérios de julgamento,107 como também de diretrizes de
açao,108 para que sejam realizadas as mudanças profundas que as situações de miséria e
de injustiça estão a exigir e isso de uma maneira que sirva ao verdadeiro bem dos
homens.
Princípios fundamentais
73, O mandamento supremo do amor conduz ao pleno reconhecimento da dignidade de
cada homem, criado à imagem de Deus. Dessa dignidade decorrem direitos e deveres
naturais. À luz da imagem de Deus, a liberdade, prerrogativa essencial de pessoa
humana, manifesta-se em toda a sua profundidade. As pessoas são o sujeito ativo e
responsável da vida social.109
Ao fundamento, que é a dignidade do homem, estão intimamente ligados o princípio de
solidariedade e o princípio de subsidiariedade.
Em virtude do primeiro, o homem deve contribuir, com os seus semelhantes, para o bem
comum da sociedade, em todos os seus níveis. 110 Sob este ângulo, a doutrina da Igreja
opõe-se a todas as formas de individualismo social ou político.
Em virtude do segundo, nem o Estado, nem sociedade alguma, jamais devem substituir-
se à iniciativa e à responsabilidade das pessoas e das comunidades intermediárias, no
nível em que essas possam agir, nem destruir o espaço necessário à liberdade das
mesmas.111 Por este lado, a doutrina social da Igreja opõe-se a todas as formas de
coletivismo.
Critérios de julgamento
74. Esses princípios estabelecem critérios para efetuar um julgamento acerca
das situações, das estruturas e dos sistemas sociais.
Assim, a Igreja não hesita em denunciar as situações de vida que lesem a dignidade e a
liberdade do homem.
Tais critérios permitem também julgar o valor das estruturas. Estas são o conjunto das
instituições e das práticas que os homens já encontram em ação ou criam, em plano
nacional e internacional, e que orientam ou organizam a vida económica, social e
política. Em si necessárias, elas tendem, frequentemente, a se fixarem e enrijecerem em
mecanismos relativamente independentes da vontade humana, paralizando ou
pervertendo assim o desenvolvimento social e gerando a injustiça. No entanto, elas
dependem sempre da responsabilidade do homem, que pode modificá-las, e não de um
pretenso determinismo da história.
As instituições e as leis, quando são conformes à lei natural e ordenadas ao bem
comum, são a garantia da liberdade das pessoas e da sua promoção. Não se pode
condenar todos os aspectos coercitivos da estabilidade de um estado de direito digno

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desse nome. Pode-se falar, portanto, de estruturas marcadas pelo pecado, mas não se
pode condenar as estruturas enquanto tais.
Os critérios de julgamento dizem respeito também aos sistemas econômicos, sociais e
políticos. A doutrina social da Igreja não propõe algum sistema particular, mas à luz dos
seus princípios fundamentais, permite ver em que medida os sistemas existentes são ou
não conformes às exigências da dignidade humana.
Primado das pessoas sobre as estruturas
75. A Igreja tem certamente consciência da complexidade dos problemas que as
sociedades devem enfrentar e das dificuldades de se encontrar soluções adequadas. No
entanto, ela pensa ser necessário, antes de tudo, apelar para as capacidades espirituais e
morais da pessoa e para a exigência permanente de conversão interior, se se quiser obter
mudanças económicas e sociais que estejam realmente ao serviço do homem.
O primado atribuído às estruturas e à organização técnica e não à pessoa e às exigências
da sua dignidade, é a expressão de uma antropologia materialista, contrária à edificação
de uma ordem social justa.112
Entretanto, a prioridade reconhecida à liberdade e à conversão do coração não elimina,
de forma alguma, a necessidade de uma mudança das estruturas injustas. É, portanto,
plenamente legítimo que aqueles que sofrem opressão por parte dos detentores da
riqueza ou do poder político ajam, por meios moralmente lícitos, a fim de obter
estruturas e instituições nas quais os seus direitos sejam verdadeiramente respeitados.
A verdade, porém, é que as estruturas instauradas para o bem das pessoas, por si
mesmas são incapazes de realizá-lo e de garanti-lo. Prova-o a corrupção que, em certos
países, atinge dirigentes e burocracia de Estado, destruindo qualquer vida social
honesta. A retidão dos costumes é condição indispensável para a saúde da sociedade. É
preciso, pois, trabalhar, ao mesmo tempo, pela conversão dos corações e pela melhoria
das estruturas, pois o pecado que se encontra na origem das situações injustas é, em
sentido próprio e primário, um ato voluntário que tem sua origem na liberdade da
pessoa. É só em um sentido derivado e secundário que ele é aplicado às estruturas e que
se pode falar de « pecado social ».113
Por outro lado, no processo de libertação, não se pode fazer abstração da situação
histórica da nação, nem atentar contra a identidade cultural do povo. Por conseguinte,
não se pode aceitar passivamente – e menos ainda ativamente apoiar – grupos que, pela
força ou pela manipulação da opinião, apoderem-se do aparelho estatal para impor
abusivamente à coletividade uma ideologia importada, oposta aos verdadeiros valores
culturais do povo.114 A esse propósito, convém recordar a grave responsabilidade moral
e política dos intelectuais.
Diretrizes de ação
76. Os princípios fundamentais e os critérios de julgamento inspiram diretrizes de ação:
uma vez que o bem comum da sociedade humana está ao serviço das pessoas, os meios
de ação devem ser conformes à dignidade do homem e favorecer a educação da sua
liberdade. Este é um critério seguro de julgamento e de ação: não haverá verdadeira
libertação se, desde o princípio, não forem respeitados os direitos da liberdade.
É preciso denunciar, no recurso sistemático à violência apresentado como caminho
necessário da libertação, uma ilusão destruidora, que abre estrada a novas servidões.
Deve-se condenar, com o mesmo vigor, a violência contra os pobres, exercida pelos que
têm posses, o arbítrio policial, como também toda forma de violência transformada em
sistema de governo. Nesses campos, é preciso saber aprender das lições de trágicas
experiências que a história do nosso século conheceu e conhece ainda. Não se pode
tampouco admitir a culpável cumplicidade dos poderes públicos nas democracias em
que a situação social de um grande número de homens e mulheres está longe de

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corresponder ao que exigem os direitos individuais e sociais constitucionalmente


garantidos.
Uma luta pela justiça
 77 . Quando encoraja a criação e a ação de associações como os sindicatos, que lutam
pela defesa dos direitos e dos interesses legítimos dos trabalhadores e pela justiça social,
nem por isso a Igreja admite a teoria que vê na luta de classes o dinamismo estrutural da
vida social. A ação que ela preconiza não é a luta de uma classe contra outra, em vista
de obter a eliminação do adversário; ela não procede da submissão aberrante a uma
pretensa lei da história. Trata-se, antes, de uma luta nobre e ponderada, visando a justiça
e a solidariedade sociais.115 O cristão preferirá sempre a via do diálogo e do acordo.
Cristo deu-nos o mandamento do amor aos inimigos. 116 No espírito do Evangelho, a
libertação é, portanto, incompatível com o ódio pelo outro, considerado individual ou
coletivamente, inclusive com o ódio ao inimigo.
O mito da revolução
78. Situações de grave injustiça requerem a coragem de reformas em profundidade e a
supressão de privilégios injustificáveis. Porém, os que descrêem do caminho das
reformas em proveito do mito da revolução, não apenas alimentam a ilusão de que a
abolição de uma situação iníqua basta por si mesma para criar uma sociedade mais
humana, mas ainda favorecem o advento de regimes totalitários. 117 A luta contra as
injustiças só tem sentido se ela for conduzida para a instauração de uma nova ordem
social e política conforme às exigências da justiça. Esta deve determinar as etapas da
sua instauração, já desde o início. Existe uma moralidade dos meios.118
Um recurso extremo
79. Esses princípios devem ser aplicados especialmente no caso extremo do recurso à
luta armada, indicado pelo Magistério como remédio último para pôr fim a uma «
tirania evidente e prolongada, que atingisse gravemente os direitos fundamentais das
pessoas e prejudicasse perigosamente o bem comum de um país ». 119 Entretanto, a
aplicação concreta desse meio não pode ser encarnada, senão após uma análise muito
rigorosa da situação. Com efeito, por causa do contínuo desenvolvimento das técnicas
empregadas e da crescente gravidade dos perigos implicados no recurso à violência, o
que hoje vem sendo chamado de « resistência passiva » abre um caminho mais
conforme aos princípios morais e não menos prometedor de êxito.
Jamais poder-se-ia admitir, nem por parte do poder constituído nem por parte dos
grupos sublevados, o recurso a meios criminosos como as represálias feitas contra a
população, a tortura, os métodos do terrorismo e a provocação calculada para acarretar a
morte de pessoas durante manifestações populares. São igualmente inadmissíveis as
odiosas campanhas de calúnia, capazes de destruir uma pessoa, psíquica e moralmente.
O papel dos leigos
80. Não compete aos Pastores da Igreja intervir diretamente na construção política e na
organização da vida social. Tal tarefa faz parte da vocação dos leigos, agindo por sua
própria iniciativa, juntamente com seus concidadãos.120 Eles devem realizá-la,
conscientes de que a finalidade da Igreja é difundir o Reino de Cristo para que todos os
homens sejam salvos e que, por eles, o mundo seja efetivamente ordenado a Cristo.121
A obra da salvação aparece, pois, indissoluvelmente unida à missão de melhorar e
elevar as condições da vida humana neste mundo.
A distinção entre ordem sobrenatural da salvação e ordem temporal da vida humana
deve ser vista ao interno de um único desígnio de Deus, o de recapitular todas as coisas
em Cristo. É por isso que, em um e outro campo, o leigo, ao mesmo tempo fiel e
cidadão, deve deixar-se guiar constantemente pela consciência cristã.122

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A ação social, que pode comportar uma pluralidade de caminhos concretos, terá sempre
em vista o bem comum e será conforme à mensagem e ao eninamento da Igreja. Evitar-
se-á que a diferença de opiniões prejudique o sentido da colaboração, conduza à
paralisia dos esforços ou produza desorientação no povo cristão.
A orientação dada pela doutrina social da Igreja deve estimular a aquisição das
competências técnicas e científicas indispensáveis. Ela estimulará também a busca da
formação moral do caráter e o aprofundamento da vida espiritual. Fornecendo princípios
e conselhos de sabedoria, essa doutrina não dispensa a educação para a prudência
política, indispensável para o governo e gestão das realidades humanas.
II. Exigências evangélicas de transformações em profundidade
Necessidade de uma transformação cultural
81. Um desafio sem precedente é hoje lançado aos cristão que se esforçam por realizar
aquela « civilização do amor » que reúne toda a herança ético-social do Evangelho. Essa
tarefa exige uma reflexão nova sobre aquilo que constitui a relação entre mandamento
supremo do amor e ordem social, comprendida em toda a sua complexidade.
Finalidade direta de tal reflexão em profundidade é a elaboração e atuação de programas
de ação audaciosos, em vista da libertação socioeconómica de milhões de homens e
mulheres, cuja situação de opressão económica, social e política é intolerável.
Essa ação deve começar por um imenso esforço de educação: educação para a
civilização do trabalho, educação para a solidariedade, acesso de todos à cultura.
Evangelho do trabalho
82. A vida de Jesus em Nazaré, verdadeiro « Evangelho do trabalho », oferece-nos um
vivo exemplo e o princípio da radical transformação cultural indispensável para resolver
os graves problemas que nossa época deve enfrentar. Aquele que, sendo Deus, fez-se
semelhante a nós em tudo, durante a maior parte de sua vida terrena entregou-se a um
trabalho manual.123 A cultura que nossa época espera, será caracterizada pelo pleno
reconhecimento da dignidade do trabalho humano, que aparece em toda a sua nobreza e
fecundidade à luz dos mistérios da Criação e da Redenção. 124 Reconhecido como
expressão da pessoa, o trabalho torna-se fonte de sentido e esforço criador.
Uma verdadeira civilização do trabalho
83. Dessa forma, a solução da maioria dos gravíssimos problemas da miséria encontra-
se na promoção de uma verdadeira civilização do trabalho. De certa forma, o trabalho é
a chave de toda a questão social.125
É, pois, no campo do trabalho que deve ser empreendida, prioritariamente, uma ação
evangelizadora na liberdade. Uma vez que a, relação entre pessoa humana e trabalho é
radical e vital, as formas e modalidades que regulamentam tal relação exercerão uma
influência positiva, em vista da solução do conjunto de problemas sociais e políticos que
se apresentam a cada povo. Relações de trabalho justas prefigurarão um sistema de
comunidade política apto a favorecer o desenvolvimento integral de toda a pessoa
humana.
Se o sistema das relações de trabalho, posto em funcionamento pelos protagonistas
diretos, trabalhadores e empregadores, com o indispensável apoio dos poderes públicos,
consegue dar origem a uma civilização do trabalho, produzir-se-á, então, na maneira de
ver dos povos e até nas bases institucionais e políticas, uma profunda revolução
pacífica.
Bem comum nacional e internacional
84. Uma tal cultura do trabalho deverá supor e pôr em ação um certo número de valores
essenciais. Ela reconhecerá que a pessoa do trabalhador é princípio, sujeito e fim da
atividade laboriosa. Afirmará a prioridade do trabalho sobre o capital e a destinação
universal dos bens materiais. Será animada pelo senso de uma solidariedade que não

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comporta apenas direitos a reivindicar, mas também deveres a cumprir. Implicará a


participação, visando promover o bem comum nacional e internacional e não apenas a
defesa de interesses individuais ou corporativos. Ela assimilará o método do confronto
pacífico e do diálogo franco e vigoroso.
De sua parte, as autoridades políticas torna-se-ão sempre mais capazes de agir no
respeito às legítimas liberdades dos indivíduos, das famílias, dos grupos subsidiários,
criando assim as condições necessárias para que o homem possa alcançar seu bem
verdadeiro e integral, inclusive o seu fim espiritual126.
O valor do trabalho humano
85. Uma cultura que reconheça a eminente dignidade do trabalhador, evidenciará a
dimensão subjetiva do trabalho.127 O valor de cada trabalho humano não se deduz, em
primeiro lugar, do trabalho realizado; ele tem o seu fundamento no fato de que quem o
executa é uma pessoa.128 Trata-se, portanto, de um critério ético, cujas exigências são
evidentes.
Assim, todo homem tem direito ao trabalho, direito esse que deve ser reconhecido de
forma prática, através de um efetivo empenho em vista de se resolver o dramático
problema do desemprego. É intolerável que este mantenha em uma situação de
marginalização amplas parcelas da população, e, notadamente, da juventude. Por isso, a
criação do postos de trabalho é uma tarefa social primordial, que se impõe aos
indivíduos e à iniciativa privada, mas igualmente ao Estado. Como regra geral, aqui
como em outros campos, o Estado tem uma função subsidiária; mas frequentemente ele
pode ser chamado a intervir diretamente, como no caso de acordos internacionais entre
diversos Estados. Tais acordos devem respeitar o direito dos emigrantes e de suas
famílias.129
Promover a participação
86. O salário, que não pode ser concebido como uma simples mercadoria, deve permitir
ao trabalhador e à sua família terem acesso a um nível de vida verdadeiramente humano
na ordem material, social, cultural e espiritual. É a dignidade da pessoa que constitui o
critério para julgar o trabalho, e não o contrário. Seja qual for o tipo de trabalho, o
trabalhador deve poder vivê-lo como expressão da sua personalidade. Daí decorre a
exigência de uma participação que, muito mais que uma partilha dos frutos do trabalho,
deveria comportar uma verdadeira dimensão comunitária em nível de projetos, de
iniciaivas e de responsabilidades.130
Prioridade do trabalho sobre o capital
87. A prioridade do trabalho sobre o capital faz com que os empresários tenham o dever
de justiça de considerar o bem dos trabalhadores antes do aumento dos lucros. Eles têm
a obrigação moral de não manter capitais improdutivos, e de procurar, nos
investimentos, antes de tudo, o bem comum. Este último exige que se busque, como
prioridade, a consolidação ou a criação de novos postos de trabalho, na produção de
bens realmente úteis.
O direito à propriedade privada não é concebível sem seus deveres para com o bem
comum. Ele é subordinado ao princípio superior da destinação universal dos bens.131
Reformas em profundidade
88. Esta doutrina deve inspirar reformas, antes que seja tarde demais. O acesso de todos
aos bens requeridos por uma vida humana, pessoal e familiar, digna desse nome, é uma
exigência primária da justiça social. Sua aplicação deve abranger a área do trabalho
industrial e, de um modo todo especial, a do trabalho agrícola. 132 Com efeito, os
camponeses, sobretudo no Terceiro Mundo, formam a massa preponderante dos
pobres.133
III. Promoção da solidariedade

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Uma nova solidariedade


89. A solidariedade é uma exigência direta da fraternidade humana e sobrenatural. Os
graves problemas socio-econômicos, que hoje se apresentam, só poderão ser resolvidos
se novas frentes de solidariedade forem criadas: solidariedade dos pobres entre si;
solidariedade com os pobres, para a qual os ricos são convocados; solidariedade dos
trabalhadores e com os trabalhadores. As instituições e organizações sociais, em
diferentes níveis, como também o Estado, devem participar de um movimento geral de
solidariedade. Ao fazer este apelo, a Igreja sabe que também ela encontra-se envolvida
nele de um modo todo particular.
A destinação universal dos bens
90. O princípio da destinação universal dos bens, juntamente com o da fraternidade
humana e sobrenatural, impõe aos países mais ricos deveres para os países pobres.
Deveres que são de solidariedade na ajuda aos países em vias de desenvolvimento; de
justiça social, mediante uma revisão, em termos correios, das relações comerciais entre
Norte e Sul e pela promoção de um mundo mais humano para todos, onde cada um
possa dar e receber, e onde o progresso de uns não seja mais um obstáculo ao
desenvolvimento de outros, nem um protexto para a sua sujeição.134
Ajuda ao desenvolvimento
91. A solidariedade internacional é uma exigência de ordem moral. Ela não se impõe
unicamente nos casos de extrema urgência, mas também como ajuda ao verdadeiro
desenvolvimento. Trata-se de uma obra comum, que requer um esforço convergente e
constante para se encontrarem as soluções técnicas concretas, mas também para criar
uma nova mentalidade nos homens deste tempo. A paz mundial, em grande parte,
depende disso.135
IV. Tarefas culturais e educativas
Direito à instrução e a cultura
92. As desigualdades, contrárias à justiça, na posse e no uso dos bens materiais são
acompanhadas e agravadas pelas desigualdades igualmente injustas no acesso à cultura.
Cada homem tem direito à cultura, que é o modo específico de uma existência
verdadeiramente humana, à qual ele tem acesso pelo desenvolvimento de suas
faculdades de conhecimento, de suas virtudes morais, de suas capacidades de
relacionamento com seus semelhantes, de suas aptidões para criar obras úteis e belas.
Daí advém a exigência da promoção e da difusão da educação, que é um direito
inalienável de cada um. Sua primeira condição é a eliminação do analfabetismo.136
Respeito pela liberdade cultural
93. O direito de cada homem à cultura não é assegurado, se não for respeitada a
liberdade cultural. Muito frequentemente, a cultura é pervertida em ideologia e a
educação transformada em instrumento ao serviço do poder político ou económico. Não
compete à autoridade pública determinar a cultura. Sua função é promover e proteger a
vida cultural de todos, inclusive a das minorias.137
A função educativa da família
94. A tarefa educativa pertence fundamental e prioritariamente à família. A missão do
Estado é subsidiária: seu papel é o de garantir, proteger, promover e suprir. Quando o
Estado reivindica o monopólio escolar, ele excede os seus direitos e ofende a justiça. É
aos pais que compete o direito de escolher a escola à qual enviarem seus próprios filhos,
de criar e manter centros educacionais de acordo com suas próprias convicções. O
Estado não pode, sem injustiça, contentar-se em tolerar as chamadas escolas privadas.
Estas realizam um serviço público e têm, por conseguinte, o direito de serem ajudadas
economicamente.138
As «liberdades» e a participação

151
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95. A educação, que possibilita o acesso à cultura, é também educação para o exercício
responsável da liberdade. É por isso que só existe autêntico desenvolvimento em um
sistema social e político que respeite as liberdades, favorecendo-as pela participação de
todos. Uma tal participação pode assumir formas diversas; ela é necessária para garantir
um justo pluralismo nas instituições e nas iniciativas sociais. Notadamente pela
separação real entre os poderes do Estado, ela assegura o exercício dos direitos do
homem, protegendo-os igualmente contra possíveis abusos por parte dos poderes
públicos. Dessa participação na vida social e política, ninguém pode ser excluído por
motivo de sexo, de raça, de cor, de condição social, de língua ou de religião. 139 Manter o
povo à margem da vida cultural, social e política, constitui, em muitas nações, uma das
injustiças mais estridentes do nosso tempo.
Ao regular o exercício das liberdades, as autoridades políticas não devem usar como
pretexto as exigências da ordem pública e da segurança para limitar sistematicamente
essas mesmas liberdades. Nem o pretenso princípio da « segurança nacional », nem uma
visão estritamente económica, nem uma concepção totalitária da vida social podem
prevalecer sobre o valor da liberdade e sobre os seus direitos.140
O desafio da aculturação
96. A fé é inspiradora de critérios de julgamento, de valores determinantes, de linhas de
pensamento e de modelos de vida, válidos para toda a comunidade humana. 141 É por
essa razão que a Igreja, atenta às angústias de nossa época, indica o caminho de uma
cultura na qual o trabalho seja reconhecido segundo a sua plena dimensão humana e
onde cada ser humano encontre a possibilidade de se realizar como pessoa. Ela o faz em
virtude da sua abertura missionária pela salvação integral do mundo, respeitando a
identidade de cada povo e nação.
A Igreja, comunhão que une diversidade e unidade, por sua presença no mundo inteiro,
assume em cada cultura o que aí encontra de positivo. Todavia, a aculturação não é
simples adaptação externa; é uma íntima transformação dos autênticos valores culturais
pela sua integração no cristianismo e pelo enraizamento do cristianismo nas diversas
culturas humanas.142 A separação entre Evangelho e cultura é um drama, cuja triste
ilustração são os problemas mencionados. Impõe-se, portanto, um generoso esforço de
evangelização das culturas. Estas serão regeneradas, no seu encontro como Evangelho.
Mas tal encontro supõe que o Evangelho seja verdadeiramente proclamado. 143 Iluminada
pelo Concílio Vaticano II, a Igreja quer consagrar-se a tal esforço com todas as suas
energias, a fim de provocar um imenso impulso evangelizador.
CONCLUSÃO
O Canto do Magnificat
 97. « Bem-aventurada aquela que acreditou » ... (Lc 1, 45). À saudação de Isabel, a
Mãe de Deus responderá deixando efundir o seu coração no canto do Magnificat. Ela
nos mostra que é pela fé e na fé que, a seu exemplo, o Povo de Deus torna-se capaz de
exprimir em palavras e de traduzir em sua vida, o mistério do desígnio de salvação e
suas dimensões libertadoras no plano da existência individual e social. Com efeito, é à
luz da fé que se percebe como a história da salvação é a história da libertação do mal
sob a sua forma mais radical e a introdução da humanidade na verdadeira liberdade dos
filhos de Deus. Totalmente dependente d'Ele e para Ele toda orientada pelo élan de sua
fé, Maria é, ao lado do seu Filho, a imagem mais perfeita da liberdade e da libertação da
humanidade e do cosmos. É para ela, pois, que a Igreja, da qual ela é Mãe e Modelo,
deve olhar para compreender, na sua integralidade, o sentido de sua missão.
É notável como o senso da fé dos pobres, ao mesmo tempo em que possui uma aguda
percepção do mistério da cruz redentora, leva a um amor e uma confiança indefectíveis
para com a Mãe do Filho de Deus, venerada em numerosos santuários.

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O «sensus fidei» do Povo de Deus


98. Os Pastores e todos aqueles que, frequentemente em condições muito duras,
dedicam-se à evangelização e à promoção humana integral, sacerdotes e leigos,
religiosos e religiosas, devem encher-se de esperança pensando nos extraordinários
recursos de santidade que estão contidos na fé do povo de Deus. É necessário fazer com
que essas riquezas do sensus fidei possam desabrochar plenamente e frutificar com
abundância. Eis a nobre missão eclesial que se pede ao teólogo: graças a uma meditação
profunda sobre o plano da salvação, tal como ele se desenrola aos olhos da Virgem
do Magnificat, ajudar a fé do povo a se exprimir com clareza e a se traduzir na vida.
Assim, uma teologia da liberdade e da libertação, como eco fiel do Magnificat de Maria
conservado na memória da Igreja, constitui uma exigência do nosso tempo. Mas seria
uma grave perversão captar as energias da religiosidade popular com o fim de desviá-las
a um projeto de libertação meramente terrena, que se revelaria, muito cedo, uma ilusão
e causa de novas servidões. Os que cedem dessa forma às ideologias do mundo e à
pretensa necessidade da violência não são mais fiéis à esperança, à sua audácia e
coragem, tais como as enaltece o hino ao Deus de misericórdia, que a Virgem nos
ensina.
As dimensões de uma autêntica libertação
99. O senso da fé percebe, em toda a profundidade, a libertação operada pelo Redentor.
É do mal mais radical, do pecado e do poder da morte, que Ele nos libertou, para libertar
a própria liberdade e para lhe mostrar a sua estrada. Esse caminho é traçado pelo
supremo mandamento, que é o mandamento do amor.
A libertação, em sua significação primordial, que é soteriológica, prolonga-se, assim,
em missão libertadora, em exigência ética. Aqui encontra o seu lugar a doutrina social
da Igreja, que ilumina a praxis cristã ao nível da sociedade.
O cristão é chamado a agir segundo a verdade 144 e, dessa forma, trabalhar pela
insturação daquela « civilização do amor » de que falou Paulo VI. 145 O presente
documento, sem pretender ser completo, indicou algumas das direções em que é urgente
empreender reformas profundas. A tarefa prioritária, que condiciona o êxito de todas as
demais, é de ordem educativa. O amor, que guia o compromisso, deve desde agora dar
nascimento a novas formas de solidariedade. Todos os homens de boa vontade são
convocados a tais tarefas que, de um modo imperioso, impõem-se à consciência cristã.
A verdade do mistério da salvação, em ação no « hoje » da história para conduzir a
humanidade resgatada rumo à perfeição do Reino, dá seu verdadeiro significado aos
necessários esforços de libertação de ordem económica, social e política e os impede de
submergir em novas servidões.
Uma tarefa diante de nós
100. É verdade que, diante da amplidão e da complexidade da tarefa, que pode exigir
mesmo o dom de si até o heroísmo, muitos são tentados pelo desânimo, pelo ceticismo
ou pela aventura desesperada. Um formidável desafio é lançado à esperança, teologal e
humana. A Virgem magnânima do Magnificat, que envolve a Igreja e a humanidade
com a sua oração, é o firme apoio da esperança. Nela, com efeito, contemplamos a
vitória do amor divino que nenhum obstáculo pode reter. Nela descobrimos a que
sublime liberdade Deus eleva os humildes. Pela estrada por ela traçada, deve avançar,
com grande ímpeto, a fé que opera pela caridade.146
No decurso de uma audiência concedida ao Prefeito abaixo-assinado, Sua Santidade o
Papa João Paulo II aprovou esta Instrução, adotada em reunião ordinária da
Congregação para a Doutrina da Fé, e ordenou a sua publicação.
Roma, na sede da Congregação, aos 22 de março de 1986, na solenidade da
Anunciação do Senhor.

153
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Joseph Card. Ratzinger


Prefeito
Alberto Bovone
Arcebispo tit. de Cesaréia de Numídia
Secretário

Suplemento 4: Instrução Donum Veritatis


CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ
INSTRUÇÃO DONUM VERITATIS SOBRE A VOCAÇÃO ECLESIAL DO TEÓLOGO
INTRODUÇÃO
1. A verdade que liberta é um dom de Jesus Cristo (cf. Jo 8, 32). A busca da verdade é
inerente à natureza do homem, enquanto a ignorância o mantém em uma condição de
escravidão. Com efeito, o homem não pode ser verdadeiramente livre se não é
iluminado quanto às questões centrais da sua existência, em particular sobre a
questão de saber de onde vem e para onde vai. Torna-se livre quando Deus a ele se
doa como um Amigo, segundo a palavra do Senhor: « não vos chamo mais de servos,
porque o servo não sabe o que o seu senhor faz; mas eu vos chamo amigos, porque
tudo o que ouvi do Pai eu vos dei a conhecer » (Jo 15, 15). A libertação da alienação do
pecado e da morte se realiza para o homem quando Cristo, que é a Verdade, se torna
para ele também o « caminho » (cf. Jo 14, 6).
Na fé cristã, conhecimento e vida, verdade e existência são intrinsecamente unidas. A
verdade doada na revelação de Deus ultrapassa, evidentemente, as capacidades de
conhecimento do homem, mas não se opõe à razão humana. Pelo contrário, ela a
penetra, eleva e apela à responsabilidade de cada um (cf. 1 Pd 3, 15). Por isso, desde
os primórdios da Igreja, a « norma da doutrina » (Rm 6, 17) tem sido, com o batismo,
vinculada ao ingresso no mistério de Cristo. O serviço à doutrina, que implica a crente
busca da compreensão da fé, isto é, a teologia, é, portanto, uma exigência à qual a
Igreja não pode renunciar.
Em todas as épocas, a teologia é importante para que a Igreja possa dar uma resposta
ao desígnio de Deus, « que quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao
conhecimento da verdade » (1 Tim 2, 4). Em tempos de grandes mudanças espirituais e
culturais, ela é ainda mais importante, mas também exposta a riscos, devendo
esforçar-se para « permanecer » na verdade (cf. Jo 8, 31) e ao mesmo tempo ter em
consideração os novos problemas que interpelam o espírito humano. No nosso século,
particularmente durante a preparação e a realização do Concílio Vaticano II, a teologia
em muito contribuiu para uma mais profunda « compreensão das realidades e das
palavras transmitidas », mas também experimentou, e ainda experimenta, momentos
de crise e de tensão.
A Congregação para a Doutrina da Fé julga pois, oportuno dirigir aos bispos da Igreja
católica e através deles aos teólogos, a presente Instrução, cujo fim é iluminar a missão
da teologia na Igreja. Após tomar em consideração a verdade como dom de Deus ao
seu povo (I), descreverá a função dos teólogos (II), detendo-se em seguida sobre a
missão particular dos Pastores (III), e propondo enfim algumas indicações a respeito da

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justa relação entre uns e outros (IV). Ela pretende assim servir para o crescimento no
conhecimento da verdade (cf.Col 1, 10), que nos introduz naquela liberdade por cuja
conquista Cristo morreu e ressuscitou (cf. Gal 5, 1).
I. A VERDADE, DOM DE DEUS AO SEU POVO
2. Impelido por un amor sem medida, Deus quis fazer-se próximo ao homem que
busca a própria identidade, e caminhar com ele (cf. Lc 24, 15). Ele também o libertou
das insídias do « pai da mentira » (cf. Jo 8, 44), e abriu-lhe o acesso à sua intimidade
para que ali encontrasse, em abundância, a sua plena verdade, e a verdadeira
liberdade. Este desígnio de amor, concebido pelo « Pai das luzes » (Tg 1, 17; cf. 1 Pd 2,
9; 1 Jo 1, 5) e realizado pelo Filho vencedor da morte (cf. Jo 8, 36) é atualizado
continuamente pelo Espírito que conduz « à verdade plena » (Jo 16, 13).
3. A verdade tem em si uma força unificante: liberta os homens do isolamento e das
oposições em que estão aprisionados pela ignorância da verdade e, abrindo-lhes o
caminho para Deus, os une entre si. Cristo destruiu o muro de separação que havia
tornado os homens estranhos à promessa de Deus e à comunhão da aliança (cf. Ef 2,
12-14). Ele envia ao coração dos fiéis o seu Espírito, por meio do qual todos nós, nele,
somos « um só » (cf. Rm 5, 5; Gal 3, 28). Assim, graças ao novo nascimento e à unção
do Espírito Santo (cf. Jo 3, 5; 1 Jo 2, 20. 27), tornamo-nos o único e novo Povo de Deus,
que com vocações e carismas diversos, tem a missão de conservar e transmitir o dom
da verdade. Com efeito, a Igreja toda, como « sal da terra » e « luz do mundo »
(cf. Mt 5, 13s), deve dar testemunho da verdade de Cristo que liberta.
4. A este chamamento o Povo de Deus responde « sobretudo por meio de uma vida de
fé e de caridade, e oferecendo a Deus um sacrifício de louvor ». No que toca mais
especificamente à « vida de fé », o Concílio Vaticano II precisa que a « totalidade dos
fiéis que receberam a unção do Espírito Santo » (cf. 1 Jo 2, 20. 27) não pode enganar-
se na fé, e manifesta esta sua peculiar propriedade mediante o senso sobrenatural da
fé de todo o povo quando, "desde os bispos até os últimos fiéis leigos", apresenta um
consenso universal sobre questões de fé e de costumes ».
5. Para exercitar a sua função profética no mundo, o Povo de Deus deve
continuamente despertar ou « reavivar » a própria vida de fé (cf. 2 Tm 1, 6),
particularmente por meio de uma reflexão sempre mais aprofundada, guiada pelo
Espírito Santo, sobre o conteúdo da própria fé e através do esforço de mostrar a sua
racionabilidade àqueles que lhe perguntam pelas razões (cf. 1 Pd 3, 15). Em vista desta
missão o Espírito de verdade dispensa, entre os fiéis de toda ordem, graças especiais
dadas « para a utilidade comum » (1 Cor 12, 7-11).
II. A VOCAÇÃO DO TEÓLOGO
6. Entre as vocações suscitadas na Igreja pelo Espírito, distingue-se a do teólogo, que
em modo particular tem a função de adquirir, em comunhão com o Magistério, uma
compreensão sempre mais profunda da Palavra de Deus contida na Escritura inspirada
e transmitida pela Tradição viva da Igreja.
Por sua natureza a fé se apela à inteligência, porque desvela ao homem a verdade
sobre o seu destino e o caminho para o alcançar. Mesmo sendo a verdade revelada
superior a todo o nosso falar, e sendo os nossos conceitos imperfeitos frente à sua
grandeza, em última análise insondável (cf. Ef 3, 19), ela convida, porém, a razão —
dom de Deus feito para colher a verdade — a entrar na sua luz, tornando-se assim
capaz de compreender, em certa medida, aquilo em que crê. A ciência teológica, que
respondendo ao convite da verdade, busca a inteligência da fé, auxilia o Povo de Deus,

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de acordo com o mandamento do Apóstolo (cf. 1 Pd 3, 15), a dar razão da própria
esperança, àqueles que a pedem.
7. O trabalho do teólogo responde assim ao dinamismo interno da própria fé: por sua
natureza a Verdade quer comunicar-se, já que o homem foi criado para perceber a
verdade, e deseja no mais profundo de si mesmo conhecê-la para nela se encontrar e
para ali encontrar a sua salvação (cf. 1 Tm 2, 4). Por isto o Senhor enviou os seus
apóstolos para que fizessem « discípulas » todas as nações e as ensinassem (cf. Mt 28,
19s.). A teologia, que busca a « razão da fé » e que àqueles que procuram oferece esta
razão como uma resposta, constitui parte integrante da obediência a este
mandamento, porque os homens não podem tornar-se discípulos se a verdade contida
na palavra da fé não lhes é apresentada (cf. Rm 10, 14s.).
A teologia oferece, portanto, a sua contribuição para que a fé se torne comunicável, e
a inteligência daqueles que não conhecem ainda o Cristo possa procurá-la e encontrá-
la. A teologia, que obedece ao impulso da verdade que tende a comunicar-se, nasce
também do amor e do seu dinamismo: no ato de fé, o homem conhece a bondade de
Deus e começa a amá-lo, mas o amor deseja conhecer sempre melhor aquele a quem
ama. Desta dúplice origem da teologia, inscrita na vida interior do Povo de Deus e na
sua vocação missionária, deriva o modo pelo qual ela deve ser elaborada para atender
às exigências da sua natureza.
8. Visto que o objeto da teologia é a Verdade, o Deus vivo e o seu desígnio de salvação
revelado em Jesus Cristo, o teólogo é chamado a intensificar a sua vida de fé e a unir
sempre pesquisa científica e oração. Será assim mais aberto ao « senso sobrenatural
da fé » do qual depende e que se lhe apresentará como uma segura norma para guiar
a sua reflexão e verificar e exatidão das suas conclusões.
9. No decorrer dos séculos a teologia constituiu-se progressivamente em verdadeiro e
próprio saber científico. E, portanto, necessário que o teólogo esteja atento às
exigências epistemológicas da sua disciplina, às exigências do rigor crítico, e
consequentemente à verificação racional de todas as etapas da sua pesquisa. Mas a
exigência crítica não se identifica com o espírito crítico, que nasce, pelo contrário, de
motivações de caráter afetivo ou de preconceito. O teólogo deve discernir em si
mesmo a origem e as motivações de sua atitude crítica e permitir que o seu olhar seja
purificado pela fé. O empenho teológico exige um esforço espiritual de retidão e de
santificação.
10. Mesmo transcendendo a razão humana, a verdade revelada se harmoniza
profundamente com ela. Isso supõe que a razão seja naturalmente ordenada à
verdade, de modo que, iluminada pela fé, ela possa penetrar o significado da
Revelação. Contrariando as afirmações de muitas correntes filosóficas, mas em
consonância com um reto modo de pensar confirmado pela Escritura, deve-se
reconhecer a capacidade da razão humana de atingir a verdade, assim como a sua
capacidade metafísica de conhecer a Deus a partir da criação.
A tarefa própria à teologia de compreender o sentido da Revelação exige, portanto, o
uso de aquisições filosóficas que forneçam « um sólido e harmónico conhecimento do
homem, do mundo e de Deus », e possam ser assumidas na reflexão sobre a doutrina
revelada. As ciências históricas são igualmente necessárias aos estudos do teólogo,
antes de mais nada pelo caráter histórico da própria revelação, que nos foi
comunicada em uma « história de salvação ». Deve-se enfim recorrer, também, às «
ciências humanas », para melhor compreender a verdade revelada sobre o homem e

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sobre as normas morais do seu agir, colocando em relação com ela os resultados
válidos destas ciências.
Nesta perspectiva, é tarefa do teólogo assumir da cultura do seu ambiente elementos
que lhe permitam melhor iluminar um ou outro aspecto dos mistérios da fé. Uma tal
tarefa é certamente árdua e comporta riscos, mas é em si mesma legítima e deve ser
encorajada.
A este respeito, é importante sublinhar que a utilização pela teologia de elementos e
instrumentos conceituais oriundos da filosofia ou de outras disciplinas, exige um
discernimento cujo princípio normativo último é a doutrina revelada. É ela que deve
fornecer os critérios para o discernimento destes elementos e instrumentos
conceituais, e não vice-versa.
11. O teólogo, não esquecendo jamais que também ele é membro do Povo de Deus,
deve nutrir-lhe respeito, e esforçar-se por dispensar-lhe um ensinamento que não
venha a lesar, de modo algum, a doutrina da fé. A liberdade própria da pesquisa
teológica, é exercitada no interior da fé da Igreja. A ousadia, portanto, que com
frequência se impõe à consciência do teólogo, não pode dar frutos e « edificar », se
não é acompanhada pela paciência da maturação. As novas propostas avançadas pela
compreensão da fé « não são senão uma oferta feita a toda a Igreja. São necessárias
muitas correções e alargamentos de perspectiva, em um diálogo fraterno, antes que
chegue o momento em que toda a Igreja possa aceitá-las ». Por conseguinte, a
teologia, enquanto « serviço muito desinteressado à comunidade dos fiéis, comporta
essencialmente um debate objetivo, um diálogo fraterno, uma abertura e uma
disponibilidade para modificar as próprias opiniões ».
12. A liberdade de investigação, que é justamente estimada pela comunidade dos
homens de ciência como um dos seus bens mais preciosos, significa disponibilidade
para acolher a verdade tal como ela se apresenta ao fim de uma investigação, na qual
não tenha interferido qualquer elemento estranho às exigências de um método que
corresponda ao objeto estudado.
Na teologia esta liberdade de investigação inscreve-se no interior de um saber racional
cujo objeto é dado pela Revelação, transmitida e interpretada na Igreja sob a
autoridade do Magistério, e acolhida pela fé. Descurar estes dados que têm valor de
princípio, seria equivalente a deixar de fazer teologia. Para bem precisar as
modalidades desta relação com o Magistério, torna-se agora oportuno refletir sobre o
papel deste último na Igreja.
III. O MAGISTÉRIO DOS PASTORES
13 « Deus dispôs com suma benignidade que aquelas coisas que ele revelara para a
salvação de todos os povos permanecessem sempre íntegras e fossem transmitidas a
todas as gerações ». Ele deu à sua Igreja, mediante o dom do Espírito Santo, uma
participação da própria infalibilidade. O Povo de Deus, graças ao « senso sobrenatural
da fé », goza desta prerrogativa, sob a orientação do Magistério vivo da Igreja, que
pela autoridade exercida em nome de Cristo é o único intérprete autêntico da palavra
de Deus, escrita ou transmitida.
14. Como sucessores dos Apóstolos, os Pastores da Igreja « recebem do Senhor... a
missão de ensinar a todos os povos e pregar o evangelho a toda criatura, a fim de que
todos os homens... alcancem a salvação » A eles é, portanto, confiada a tarefa de
conservar, expor e difundir a Palavra de Deus, da qual são servidores.

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A missão do Magistério é a de afirmar, em coerência com a natureza « escatológica »


própria do evento de Jesus Cristo, o caráter definitivo da aliança instaurada por Deus,
através de Cristo, com o seu povo, tutelando este último contra desvios e perdas, e
garantindo-lhe a possibilidade objetiva de professar sem erros a fé autêntica, em
qualquer tempo e nas diversas situações. Daí segue que o significado do Magistério e o
seu valor, são compreensíveis somente em relação com a verdade da doutrina cristã e
com a pregação da verdadeira Palavra. Assim, a função do Magistério não é algo de
extrínseco à verdade cristã nem de sobreposto à fé; ela emerge diretamente da
própria economia da fé, enquanto o Magistério, no seu serviço à Palavra de Deus, é
uma instituição positivamente desejada por Cristo, como elemento constitutivo da
Igreja. O serviço prestado pelo Magistério à verdade cristã é, por isso, em favor de
todo o Povo de Deus, chamado a entrar naquela liberdade da verdade que Deus
revelou em Cristo.
15 Para que possam cumprir plenamente a tarefa a eles confiada de ensinar o
evangelho e de interpretar autenticamente a Revelação, Jesus Cristo prometeu aos
Pastores da Igreja a assistência do Espírito Santo. Ele os dotou em particular do
carisma de infalibilidade no que concerne a matéria de fé e de costumes. O exercício
deste carisma pode apresentar modalidades diversas. Exerce-se particularmente
quando os bispos, em união com o seu chefe visível, através de um ato colegial, como
no caso dos Concílios ecuménicos, proclamam uma doutrina, ou quando o Pontífice
romano, exercendo a sua missão de Pastor e Doutor supremo de todos os cristãos,
proclama uma doutrina «ex cathedra».
16 A tarefa de guardar escrupulosamente e de expor fielmente o depósito da divina
Revelação implica, por sua natureza, que o Magistério possa propor « de modo
definitivo » enunciados que, mesmo não estando contidos nas verdades de fé, são de
tal forma ligados a elas que o caráter definitivo de tais afirmações deriva, em última
análise, da própria Revelação.
Aquilo que se refere à moral pode ser objeto de Magistério autêntico já que o
Evangelho, que é Palavra de vida, inspira e dirige todo o âmbito do agir humano. O
Magistério tem assim, a tarefa de discernir, mediante juízos normativos para a
consciência dos fiéis, os atos que são em si mesmos conformes às exigências da fé e
que promovem a sua expressão na vida, e aqueles que, pelo contrário, por sua malícia
intrínseca, são incompatíveis com tais exigências. Por causa da ligação que existe entre
a ordem da criação e a ordem da redenção, e por causa da necessidade de conhecer e
observar toda a lei moral em vista da salvação, a competência do Magistério se
estende também ao que diz respeito à lei natural.
Por outro lado, a Revelação contém ensinamentos morais que de per si poderiam ser
conhecidos pela razão natural, mas aos quais a condição do homem pecador torna
difícil o acesso. É doutrina de fé que estas normas morais podem ser infalivelmente
ensinadas pelo Magistério.
17. A assistência divina é dada, além disso, aos sucessores dos Apóstolos, que ensinam
em comunhão com o sucessor de Pedro e, de uma maneira particular, ao Romano
Pontífice, Pastor de toda a Igreja, quando sem chegar a uma definição infalível e sem
pronunciar-se de « maneira definitiva », no exercício do seu magistério ordinário,
propõem um ensinamento que conduz a uma melhor compreensão da Revelação em
matéria de fé e de costumes, e diretivas morais derivantes deste ensinamento.

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Deve-se, pois, ter em consideração qual o caráter próprio de cada uma das
intervenções do Magistério e a medida na qual é envolvida a sua autoridade, mas
também o fato de que todas derivam da mesma fonte, isto é, de Cristo, que deseja que
o seu Povo caminhe na verdade plena. Pelo mesmo motivo, as decisões magisteriais
em matéria de disciplina, mesmo não sendo garantidas pelo carisma da infalibilidade,
não são desprovidas da assistência divina, e exigem a adesão dos fiéis.
18. O Pontífice romano cumpre a sua missão universal ajudado pelos organismos da
Cúria romana e em particular pela Congregação para a Doutrina da Fé, no que se
refere à doutrina sobre a fé e sobre a moral. Consequentemente, os documentos desta
Congregação, aprovados expressamente pelo Papa, participam do magistério ordinário
do sucessor de Pedro.
19. Nas Igrejas particulares compete ao bispo guardar e interpretar a palavra de Deus e
julgar com autoridade aquilo que seja ou não de acordo com ela. O ensinamento de
cada bispo, tomado em particular, se exercita em comunhão com o do Pontífice
romano, Pastor da Igreja universal, e com os outros bispos, dispersos pelo mundo ou
reunidos em Concílio ecuménico. Esta comunhão é condição da sua autenticidade.
Membro do Colégio episcopal graças à sua ordenação sacramental e à comunhão
hierárquica, o bispo representa a sua Igreja, assim como todos os bispos em comunhão
com o Papa, representam a Igreja universal no vínculo da paz, do amor, da unidade e
da verdade. Convergindo na unidade, as Igrejas locais, com o seu património próprio,
manifestam a catolicidade da Igreja. Por sua vez, as Conferências episcopais
contribuem para a realização concreta do espírito (« affectus ») colegial.
20. A tarefa pastoral do Magistério, cujo escopo é vigiar para que o Povo de Deus
permaneça na verdade que liberta, é, portanto, uma realidade complexa e
diversificada. O teólogo, na sua dedicação ao serviço da verdade, deverá, para
permanecer fiel à sua função, levar em conta a missão própria do Magistério e
colaborar com ele. Como se deve entender esta colaboração? Como se realiza
concretamente, e que obstáculos pode encontrar? É o que agora se deverá examinar
mais de perto.
IV. MAGISTÉRIO E TEOLOGIA
A. AS RELAÇÕES DE COLABORAÇÃO
21. O Magistério vivo da Igreja e a teologia, mesmo tendo dons e funções diferentes,
têm em última análise o mesmo fim: conservar o Povo de Deus na verdade que liberta
fazendo dele, assim, a « luz das nações ». Este serviço à comunidade eclesial põe em
relação recíproca o teólogo com o Magistério. Este último ensina autenticamente a
doutrina dos Apóstolos, e beneficiando-se do trabalho teológico, refuta as objeções e
as deformações da fé, propondo além disso, com autoridade recebida de Jesus Cristo,
novos aprofundamentos, explicitações e aplicações da doutrina revelada. A teologia
por sua vez adquire, reflexivamente, uma compreensão sempre mais profunda da
Palavra de Deus, contida na Sagrada Escritura e transmitida fielmente pela Tradição
viva da Igreja sob a guia do Magistério, procura esclarecer o ensinamento da
Revelação diante das instâncias da razão, e enfim lhes confere uma forma orgânica e
sistemática.
22. A colaboração entre o teólogo e o Magistério se realiza de maneira especial
quando o teólogo recebe a missão canónica ou o mandato de ensinar. Essa se torna
então, em certo sentido, uma participação da obra do Magistério, ao qual um vínculo
jurídico a une. As normas de deontologia que derivam por si mesmas e com evidência

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do serviço à Palavra de Deus são corroboradas pelo compromisso contraído pelo


teólogo aceitando o seu trabalho e emitindo a Profissão de fé e o Juramento de
fidelidade.
Desde aquele momento ele é investido oficialmente do dever de apresentar e ilustrar,
com toda a exatidão e na sua integridade, a doutrina da fé.
23. Quando o Magistério da Igreja se pronuncia infalivelmente, declarando
solenemente que uma doutrina está contida na Revelação, a adesão exigida é a de fé
teologal. Esta adesão se estende ao ensinamento do Magistério ordinário e universal
quando propõe que se creia uma doutrina de fé como sendo divinamente revelada.
Quando ele propõe « em modo definitivo » verdades que tocam questões de fé ou de
costumes que, mesmo não sendo divinamente reveladas, são, porém, estreita e
intimamente conexas com a Revelação, estas devem ser firmemente aceitas e
conservadas.
Quando o Magistério, mesmo sem a intenção de emitir um ato « definitivo », ensina
uma doutrina para ajudar a uma compreensão mais profunda da Revelação e daquilo
que melhor explicita o seu conteúdo, ou para evocar a conformidade de uma doutrina
com as verdades de fé, ou enfim para prevenir contra concepções incompatíveis com
estas mesmas verdades, é exigida uma religiosa submissão da vontade e da
inteligência. Esta não pode ser puramente exterior e disciplinar, mas deve colocar-se
na lógica e sob o estímulo da obediência da fé.
24. Enfim o Magistério, para servir da melhor forma possível o Povo de Deus,
particularmente alertando-o contra opiniões perigosas que podem conduzir ao erro,
pode intervir em questões debatidas nas quais estão implicados, ao lado de princípios
firmes, elementos conjecturais e contingentes. E com frequência, somente depois de
um certo tempo se torna possível distinguir entre aquilo que é necessário e aquilo que
é contingente.
A vontade de submissão leal a este ensinamento do Magistério em matéria em si não
irreformável, deve ser a regra. Pode acontecer porém, que o teólogo se coloque
interrogações concernentes, de acordo com os casos, à oportunidade, à forma, ou
também ao conteúdo de uma intervenção. Tal conduzi-lo-á, antes de mais nada, a
verificar acuradamente qual seja a autoridade destas intervenções, assim como ela
emerge da índole dos documentos, da frequente proposição de uma mesma doutrina,
ou da própria maneira de se exprimir.
Neste âmbito, de intervenções de tipo prudencial, aconteceu que alguns documentos
magisteriais não fossem isentos de carências. Os Pastores nem sempre colheram
prontamente todos os aspectos ou toda a complexidade de uma questão. Mas seria
contrário à verdade se, a partir de alguns casos determinados, se inferisse que o
Magistério da Igreja possa enganar-se habitualmente nos seus juízos prudenciais, ou
não goze da assistência divina no exercício integral da sua missão. De fato, o teólogo,
que não pode exercitar bem a sua disciplina sem uma certa competência histórica, é
consciente da decantação que acontece com o tempo. Isso não deve ser entendido no
sentido de uma relativização dos enunciados da fé. Ele sabe que alguns juízos do
Magistério podiam ser justificados na época em que foram pronunciados, porque as
afirmações tomadas em consideração continham em modo inextrincável asserções
verdadeiras e outras que não eram seguras. Somente o tempo fez com que fosse
possível efetuar um discernimento e, depois de aprofundados estudos, chegar a um
verdadeiro progresso doutrinal.

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25. Ainda quando a colaboração se desenvolve nas mais propícias condições, não é
impossível que nasçam entre o teólogo e o Magistério certas tensões. O significado
que a elas é dado e o espírito com que são encaradas não são indiferentes: se as
tensões não nascem de um sentimento de hostilidade e de oposição, podem
representar um fator de dinamismo e um estímulo que impele o Magistério e os
teólogos a cumprir as suas respectivas funções praticando o diálogo.
26. No diálogo deve dominar uma dupla regra: quando está em questão a comunhão
de fé vale o princípio da « unitas veritatis »; quando persistem eventuais divergências
que não põem em risco esta comunhão, salvaguardar-se-á a « unitas caritatis ».
27. Ainda que a doutrina da fé não esteja em questão, o teólogo não apresentará as
suas opiniões ou as suas hipóteses como se se tratasse de conclusões indiscutíveis.
Esta discrição é exigida pelo respeito à verdade, assim como pelo respeito pelo Povo
de Deus (cf. Rm 14, 1-15; 1 Cor 8, 10. 23-33). Pelos mesmos motivos ele renunciará a
uma expressão pública e intempestiva delas.
28. O ponto que precede tem uma aplicação particular no caso do teólogo que
encontrasse sérias dificuldades, por razões que lhe parecessem fundadas, em acolher
um ensinamento magisterial não irreformável.
Um tal desacordo não poderia ser justificado se fosse fundado somente sobre o fato
que a validez do ensinamento dado não é evidente, ou sobre a opinião que a posição
contrária seja mais provável. Assim também não seria suficiente o juízo da consciência
subjetiva do teólogo, porque a mesma não constitui uma instância autónoma e
exclusiva para julgar a validade de uma doutrina.
29. De qualquer maneira, jamais poderá arrefecer uma atitude de fundo de
disponibilidade para acolher lealmente o ensinamento do Magistério, como convém a
todo fiel, em nome da obediência da fé. O teólogo se esforçará, portanto, para
compreender este ensinamento no seu conteúdo, nas suas razões e nos seus motivos.
A este fim ele consagrará uma reflexão aprofundada e paciente, pronto a rever as suas
próprias opiniões e a examinar as objeções que lhe fossem feitas pelos seus colegas.
30. Se, apesar de um leal esforço, as dificuldades persistem, é dever do teólogo fazer
saber às autoridades magisteriais os problemas suscitados pelo ensinamento em si
mesmo, pelas justificações que lhe são propostas, ou ainda pela maneira com a qual é
apresentado. Ele o fará com um espírito evangélico, com un profundo desejo de
resolver as dificuldades. As suas objeções poderão contribuir, então, para um real
progresso, estimulando o Magistério a propor o ensinamento da Igreja de uma
maneira mais aprofundada e melhor argumentada.
Nestes casos o teólogo evitará recorrer aos « mass-media » ao invés de dirigir-se à
autoridade responsável, porque não é exercendo, dessa maneira, pressão sobre a
opinião pública, que se pode contribuir para o esclarecimento dos problemas
doutrinais e servir a Verdade.
31. Pode ainda ocorrer que, ao final de um exame sério do ensinamento do Magistério,
e conduzido com uma vontade de escuta sem reticências, a dificuldade permaneça,
porque os argumentos em sentido oposto parecem ao teólogo prevalecer. Diante de
uma afirmação, à qual sinta não poder dar a sua adesão intelectual, o seu dever é de
permanecer disponível para um exame mais aprofundado da questão.
Para um espírito leal e animado pelo amor à Igreja, uma tal situação pode certamente
representar uma prova difícil. Pode ser um convite a sofrer, no silêncio e na oração,

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com a certeza de que, se a verdade está de fato em questão, ela terminará


necessariamente por impor-se.
B. O PROBLEMA DA DISSENSÃO
32. Em várias oportunidades o Magistério tem chamado a atenção sobre os graves
inconvenientes trazidos para a comunhão da Igreja por aqueles comportamentos de
oposição sistemática, que chegam até mesmo a constituir-se em grupos
organizados. Na Exortação apostólica Paterna cum benevolentia Paulo VI propôs um
diagnostico que ainda conserva toda a sua pertinência. Trata-se aqui em particular
daquele comportamento público de oposição ao magistério da Igreja, chamado
também « dissensão », e que é necessário distinguir claramente da situação de
dificuldade pessoal, já tratada mais acima. O fenómeno da dissensão pode ter diversas
formas, e as suas causas remotas ou próximas são múltiplas.
Entre os fatores que podem influir remota ou indiretamente, deve-se recordar a
ideologia do liberalismo filosófico, do qual está impregnada também a mentalidade da
nossa época. Daqui provém a tendência a considerar que um juízo tem valor tanto
maior quanto mais provenha do indivíduo que se apoia sobre as suas próprias forças.
Assim se opõe a liberdade de pensamento à autoridade da tradição, considerada causa
de escravidão. Uma doutrina transmitida e aceita de um modo geral, é « a priori »
suspeita e a sua veracidade é contestada. Em última análise, a liberdade de juízo
entendida desta forma seria mais importante que a própria verdade. Trata-se,
portanto, de algo totalmente diverso da exigência legítima da liberdade, no sentido de
uma ausência de constrições, como condição exigida para uma leal investigação da
verdade. Em virtude desta exigência a Igreja sempre defendeu que « ninguém pode ser
obrigado a abraçar a fé contra a sua vontade ».
O peso de uma opinião pública artificiosamente orientada e dos seus conformismos,
exerce também a sua influência. Com frequência os modelos sociais difundidos pelos «
mass-media » tendem a assumir um valor normativo; se difunde, em particular, a
convicção de que a Igreja não deveria se pronunciar, a não ser sobre problemas
considerados importantes pela opinião pública, e no sentido que convenha a esta. O
Magistério, por exemplo, poderia intervir nas questões económicas e sociais, mas
deveria deixar para o juízo individual aquelas que dizem respeito à moral conjugal e
familiar.
Enfim, também a pluralidade das culturas e das línguas, que em si mesma é uma
riqueza, indiretamente pode conduzir a mal-entendidos, motivo de sucessivos
desacordos.
Neste contexto um discernimento crítico bem ponderado e um real domínio dos
problemas são necessários ao teólogo, se ele quiser cumprir a sua missão eclesial e
não perder, conformando-se ao mundo presente (cf. Rm 12, 2; Ef 4, 23), a
independência de juízo que deve ser a dos discípulos de Cristo.
33. A dissensão pode revestir-se de diversos aspectos. Na sua forma mais radical, ela
tem em mira a transformação da Igreja de acordo com um modelo de contestação
inspirado naquilo que se faz na sociedade política. Com maior frequência se sustenta
que o teólogo seria obrigado a aderir ao ensinamento infalível do Magistério
enquanto, pelo contrário, adotando a perspectiva de um certo positivismo teológico,
as doutrinas propostas sem que intervenha o carisma da infalibilidade não teriam
caráter obrigatório algum, sendo deixada ao indivíduo plena liberdade de aderir a elas
ou não. O teólogo seria dessa forma totalmente livre para pôr em dúvida ou refutar o

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ensinamento não infalível do Magistério, particularmente em matéria de normas


morais particulares. E mais, com esta oposição crítica ele contribuiria para o progresso
da doutrina.
34. A justificação da dissensão se apoia, em geral, sobre diversos argumentos, dos
quais dois têm caráter mais fundamental. O primeiro é de ordem hermenêutica: os
documentos do Magistério não seriam nada mais que o reflexo de uma teologia
opinável. O segundo invoca o pluralismo teológico, levado às vezes até um relativismo
que coloca em questão a integridade da fé: as intervenções magisteriais teriam a sua
origem em uma teologia entre muitas outras, enquanto nenhuma teologia particular
pode ter a pretensão de impor-se universalmente. Em oposição e em concorrência
com o magistério autêntico surge assim uma espécie de « magistério paralelo » dos
teólogos.
Uma das tarefas do teólogo, é certamente a de interpretar corretamente os textos do
Magistério, e para isso ele dispõe de regras hermenêuticas, entre as quais figura o
princípio segundo o qual o ensinamento do Magistério — graças à assistência divina —
vale mais que a argumentação, que às vezes é tomada de uma teologia particular, da
qual ele se serve. Quanto ao pluralismo teológico, este não é legítimo a não ser na
medida em que é salvaguardada a unidade da fé, no seu significado objetivo. Os
diversos níveis, que são a unidade da fé, a unidade-pluralidade das expressões da fé e
a pluralidade das teologias estão, com efeito, essencialmente ligados entre si. A razão
última da pluralidade é o insondável mistério de Cristo, que transcende toda a
sistematização objetiva. Isto não pode significar que sejam aceitáveis conclusões que
lhe sejam contrárias, e nem põe em questão, de forma alguma, a verdade das
asserções por meio das quais o Magistério se pronunciou. Quanto ao « magistério
paralelo », ele pode causar graves danos espirituais, opondo-se ao dos Pastores.
Quando, de fato, a dissensão consegue estender a sua influência até inspirar uma
opinião comum, ela tende a se tornar regra de ação, o que não pode deixar de
perturbar gravemente o Povo de Deus e levar a um menosprezo da verdadeira
autoridade.
35. Às vezes a dissensão recorre também a uma argumentação sociológica, segundo a
qual a opinião de um grande número de cristãos seria uma expressão direta e
adequada do « senso sobrenatural da fé ».
Na realidade as opiniões dos fiéis não podem ser pura e simplesmente identificadas
com o « sensus fidei ». Este é uma propriedade da fé teologal, a qual sendo um dom de
Deus, que faz aderir pessoalmente à Verdade, não pode enganar-se. Esta fé pessoal é
também fé da Igreja, porque Deus confiou à Igreja a guarda da Palavra, e,
consequentemente, o que deve crer o fiel é aquilo que a Igreja crê. O « sensus fidei »
implica, portanto, por sua natureza, a conformação profunda do espírito e do coração
com a Igreja, o « sentire cum Ecclesia ».
Se, portanto, a fé teologal enquanto tal não se pode enganar, o fiel pode, ao contrário,
ter opiniões erróneas, porque nem todos os seus pensamentos procedem da fé. Nem
todas as ideias que circulam entre o Povo de Deus são coerentes com a fé, tanto mais
que podem facilmente sofrer a influência de uma opinião pública veiculada pelos
modernos meios de comunicação. Não é sem motivo que o Concílio Vaticano
II sublinha a relação indissolúvel entre o « sensus fidei » e a orientação do Povo de
Deus por parte do magistério dos Pastores; as duas realidades não podem ser
separadas uma da outra. As intervenções do Magistério servem para garantir a

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unidade da Igreja na verdade do Senhor. Ajudam a « permanecer na verdade », frente


ao caráter arbitrário das opiniões mutáveis, e são a expressão da obediência à Palavra
de Deus. Mesmo quando pode parecer que limitem a liberdade dos teólogos, elas
instauram, por meio da fidelidade à fé que foi transmitida, uma liberdade mais
profunda, que não pode provir senão da unidade na verdade.
36. A liberdade do ato de fé não pode justificar o direito à dissensão. Na realidade esta
não significa, de forma alguma, a liberdade em relação à verdade, mas o livre
autodeterminar-se da pessoa em conformidade com o seu dever moral de acolher a
verdade. O ato de fé é um ato voluntário, porque o homem, resgatado por Cristo
Redentor e chamado por ele à adoção filial (cf. Rm 8, 15; Gal 4, 5; Ef 1, 5; Jo 1, 12), não
pode aderir a Deus a não ser que, « atraído pelo Pai » (Jo 6, 44), lhe faça a oferta
racional da sua fé (cf. Rm 12, 1). Como recordou a Declaração Dignitatis
humanae,  autoridade humana alguma tem o direito de interferir, com coações ou
pressões nesta opção, que supera os limites da sua competência. O respeito do direito
à liberdade religiosa é o fundamento do respeito à totalidade dos direitos humanos.
Não se pode, portanto, recorrer a estes direitos humanos, para opor-se às
intervenções do Magistério. Um tal comportamento desconhece a natureza e a missão
da Igreja, que recebeu do seu Senhor o dever de anunciar a todos os homens a
verdade da salvação, e o realiza caminhando sobre as pegadas do Cristo, sabendo que
« a verdade não se impõe senão pela força da própria verdade, que penetra nas
mentes suavemente e, ao mesmo tempo, com vigor ».
37. Em razão do mandato divino que lhe foi dado na Igreja, o Magistério tem a missão
de propor o ensinamento do Evangelho, velar sobre a sua integridade, e proteger
assim a fé do Povo de Deus. Para isto, às vezes pode ser levado a tomar graves
providências, como por exemplo quando retira a um teólogo que se afasta da doutrina
da fé, a missão canónica, ou o mandato do ensinamento que lhe havia confiado, ou
ainda quando declara que alguns escritos não estão de acordo com esta doutrina.
Agindo dessa forma, o Magistério entende ser fiel à sua missão, porque defende o
direito do Povo de Deus a receber a mensagem da Igreja na sua pureza e na sua
integridade, e assim, a não ser perturbado por uma perigosa opinião particular.
O juízo expresso pelo Magistério em tais circunstâncias, ao final de um acurado exame,
conduzido em conformidade com os procedimentos estabelecidos, e depois de ter sido
concedida ao interessado a possibilidade de dissipar eventuais mal-entendidos sobre o
seu pensamento, não toca a pessoa do teólogo, mas as suas posições intelectuais
expressas publicamente. O fato que estes procedimentos possam ser aperfeiçoados,
não significa que eles sejam contrários à justiça e ao direito. Falar neste caso de
violação dos direitos humanos não tem sentido, porque se estaria desconhecendo a
exata hierarquia desses direitos, como também a natureza da comunidade eclesial e
do seu bem comum. Além disso, o teólogo que não está em sintonia com o « sentire
cum Ecclesia », se põe em contradição com o compromisso livre e conscientemente
assumido por ele, de ensinar em nome da Igreja.
38. Enfim, a argumentação que alude ao dever de seguir a própria consciência não
pode legitimar a dissensão. Antes de tudo, porque este dever se exerce quando a
consciência ilumina o juízo prático em vista de uma decisão a ser tomada, enquanto
aqui se trata da verdade de um enunciado doutrinal. Além disso, porque, se o teólogo
deve, como qualquer fiel, seguir a sua consciência, ele é também obrigado a formá-la.
A consciência não é uma faculdade independente e infalível, ela é um ato de juízo

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moral que se refere a uma opção responsável. A reta consciência é uma consciência
devidamente iluminada pela fé e pela lei moral objetiva, e supõe também a retidão da
vontade na busca do verdadeiro bem.
A reta consciência do teólogo católico supõe, portanto, a fé na Palavra de Deus, cujas
riquezas ele deve penetrar, mas também o amor à Igreja, da qual ele recebe a sua
missão e o respeito pelo Magistério divinamente assistido. Opor ao magistério da
Igreja um magistério supremo de consciência, é admitir o princípio do livre exame,
incompatível com a economia da Revelação e da sua transmissão na Igreja, assim
como com uma concepção correta da teologia e da função do teólogo. Os enunciados
da fé não resultam de uma investigação puramente individual e de um livre exame da
Palavra de Deus, mas constituem uma herança eclesial. Se alguém se separa dos
Pastores que velam por manter viva a tradição apostólica, é a ligação com Cristo que
se encontra irreparavelmente comprometida.
39. A Igreja, derivando a sua origem da unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo,  é
um mistério de comunhão, organizada segundo a vontade do seu fundador, em torno
de uma hierarquia estabelecida para o serviço do Evangelho e do Povo de Deus, que o
vive. A imagem dos membros da primeira comunidade, todos os batizados, com os
carismas que lhes são próprios, devem tender de coração sincero a uma harmoniosa
unidade de doutrina, de vida e de culto (cf. At 2, 42). Esta é uma regra que brota do
próprio ser da Igreja. Portanto, não se podem aplicar a ela, pura e simplesmente,
critérios de conduta que têm a sua razão de ser na sociedade civil ou nas regras de
funcionamento de uma democracia. Menos ainda se podem inspirar as relações no
interior da Igreja à mentalidade do mundo circunstante (cf. Rm12, 2). Indagar à opinião
da maioria, o que convém pensar e fazer, recorrer à revelia do Magistério à pressão,
exercida pela opinião pública, aduzir como pretexto um « consenso » dos teólogos,
sustentar que o teólogo seja o porta-voz profético de uma « base » ou comunidade
autónoma que seria, assim, a única fonte de verdade, tudo isto revela uma grave perda
do sentido da verdade e do sentido da Igreja.
40. A Igreja é « como que o sacramento ou o sinal e instrumento da íntima união com
Deus e da unidade de todo o gênero humano ». Por conseguinte, buscar a concórdia e
a comunhão é aumentar a força do seu testemunho e da sua credibilidade; ao
contrário, ceder à tentação da dissensão, é deixar que se desenvolvam « fermentos de
infidelidade ao Espírito Santo ».
Mesmo sendo a teologia e o Magistério de natureza diversa, e ainda tendo missões
diversas, que não podem ser confundidas, trata-se, contudo, de duas funções vitais na
Igreja, que devem compenetrar-se e enriquecer -se reciprocamente para o serviço do
Povo de Deus.
Compete aos Pastores, em razão da autoridade que lhes deriva do próprio Cristo, vigiar
sobre esta unidade, e impedir que as tensões que nascem da vida, degenerem em
divisões. A sua autoridade, indo além das posições particulares e das oposições, deve
unificá-las todas na integridade do Evangelho que é « a palavra da reconciliação »
(cf. 2 Cor 5, 18-20).
Quanto aos teólogos, em razão do seu próprio carisma, cabe também a eles participar
da edificação do Corpo de Cristo na unidade e na verdade, e a sua contribuição, mais
do que nunca, é necessária para uma evangelização a nível mundial, que exige esforços
do inteiro Povo de Deus. Se, como pode acontecer, encontrarem dificuldades por
causa do caráter de sua investigação, eles devem procurar solucioná-las mediante o

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diálogo confiante com os pastores, no espírito de verdade e de caridade, que é o da


comunhão da Igreja.
41. Ambos terão sempre presente que Cristo é a Palavra definitiva do Pai (cf. Heb 1, 2)
no qual, como observa São João da Cruz, « Deus nos disse tudo junto, e de uma só vez
», e que, como tal, ele é a Verdade que liberta (cf. Jo 8, 36; 14, 6). Os atos de adesão e
submissão à palavra confiada à Igreja sob a guia do Magistério, em última instância se
referem a Ele, e introduzem no âmbito da verdadeira liberdade.
CONCLUSÃO
42. Mãe e perfeito ícone da Igreja, a Virgem Maria foi proclamada bem-aventurada
desde os primórdios do Novo Testamento, em razão de sua adesão de fé imediata e
sem incertezas à Palavra de Deus (cf. Lc 1, 38. 45), que continuamente conservava e
meditava no seu coração (cf. Lc 2, 19. 51). Ela tornou-se assim, para todo o Povo de
Deus, confiado à sua materna solicitude, um modelo e um apoio. Ela lhe indica o
caminho do acolhimento e do serviço da Palavra, e ao mesmo tempo o fim último que
jamais se pode perder de vista: o anúncio para todos os homens, e a realização da
salvação trazida ao mundo pelo seu Filho, Jesus Cristo.
Concluindo esta Instrução, a Congregação para a Doutrina da Fé convida
calorosamente os bispos a manter e a desenvolver com os teólogos relações
confiantes, na partilha de um espírito de acolhimento e de serviço à Palavra, e em uma
comunhão de caridade, em cujo contexto poderão mais facilmente ser superados
alguns obstáculos inerentes à condição humana sobre a terra. Deste modo, todos
poderão ser sempre mais servidores da Palavra e servidores do Povo de Deus, para
que este, perseverando na doutrina de verdade e de liberdade, ouvida desde o início,
permaneça também no Filho e no Pai, e alcance a vida eterna, realização da Promessa
(cf. 1 Jo 2, 24-25).
O Sumo Pontífice João Paulo II, no decorrer de uma Audiência concedida ao Cardeal
Prefeito que subscreve este documento, aprovou a presente Instrução, deliberada em
reunião plenária da Congregação para a Doutrina da Fé, e ordenou que a mesma fosse
publicada.
Roma, Sede da Congregação para a Doutrina da Fé, 24 de maio de 1990, na solenidade
da Ascensão do Senhor.
 
Joseph Card. Ratzinger
Prefeito
+ Alberto Bovone
Arcebispo tit. de Cesaréia de Numidia
Secretário

166
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Suplemento 5: A importância da Teologia no mundo pós-moderno


Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas (FTL e FCB)

O diálogo em sentido próprio não se refere apenas a alguma coisa


que pode ser conhecida, a habilidades ou a coisas exteriores. Na verdade,
quando falamos de diálogo verdadeiro, referimo-nos a uma troca de
palavras em que se manifesta algo do próprio ser ou algo da própria
pessoa de cada um dos interlocutores, de modo que podemos dizer que o
diálogo não apenas favorece o aumento do que se sabe ou do que se pode
saber, mas enriquece o sujeito que dialoga, pois ele é, de certo modo,
tocado, é purificado e cresce184.
A Teologia nasce exatamente de uma Palavra que, uma vez dita pelo
Mistério divino, se oferece (se entrega) ao homem, solicitando-o de um
modo real e objetivo, diria o teólogo E. Schillebeeckx185, ao acolhimento da
mesma e ao estabelecimento de uma experiência de relação que para o
homem resulta transformante. Na tradição judaico-cristã, a Revelação é
compreendida como a comunicação de uma Palavra, cujo status divino
nos indica que a mesma pode ser entendida como auto-comunicação ou
dom de si de Deus ao homem.
Essa “entrega” solicita o homem a uma resposta análoga, ou seja,
solicita o homem a uma entrega confiante e amorosa Àquele que, sendo
amor, se dá com incomparável generosidade.
A Fé é a resposta positiva do homem ao Deus-Mistério que se revela
por meio de sua Palavra. Resposta que significa acolhida do mistério e
entrega de vida186. Resposta que lança o homem em uma comunhão com
184
Cf. RATZINGER, J. A Natureza e a Missão da Teologia. Petrópolis: Vozes, 2008, p.29.
185
Cf. SCHILLEBEECKX, E. Dio, il futuro dell’uomo. Roma: Paoline, 1970, p.52.
186
Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Dei Verbum n.5.

167
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Deus que gradualmente o transforma ou, poderíamos dizer com a tradição


cristã oriental, diviniza-o.
A Teologia nasce desse diálogo, do Mistério que se revela através da
sua Palavra, e do homem, que solicitado por tal evento diz o seu Sim ou o
seu Fiat voluntas Tua Àquele que o interpela. A Teologia é diálogo por
natureza, é diálogo teândrico187, para parafrasear o teólogo suíço Charles
Journet.
É preciso que tenhamos sempre presente esta inefável
e realíssima relação de diálogo, que Deus Pai nos
propõe e estabelece conosco por meio de Cristo no
Espírito Santo, para entendermos a relação que nós,
isto é, a Igreja, devemos procurar restabelecer e
promover com a humanidade.188
Em um momento histórico em que relativismos e absolutismos
marcam, em um contexto cultural pluralista, de um modo tão nítido o
cenário da vida humana, o tema do diálogo se revela de grande interesse
para a Teologia cristã, na medida em que está ligado à sua própria
identidade.
Nesse ponto de nossa apresentação, poderíamos introduzir uma
primeira contribuição da Teologia ao mundo de hoje: a Teologia é
chamada a auxiliar a Fé para apresentar as suas razões a um mundo em
que o ateísmo cresce, mas nem sempre se mostra respeitoso e tolerante
com a Fé e com os crentes. A Teologia precisa, através de uma linguagem
compreensível ao homem de hoje, apresentar a credibilidade da
Revelação e da Fé, para tanto, deve estar atenta às interrogações do
homem de hoje, que vive mergulhado no complexo universo da pós-
modernidade, em que ao lado da indiferença religiosa convive uma busca,
às vezes desorientada, por um sopro de espiritualidade.
A Teologia pode ajudar os que não creem a compreender a
plausibilidade e a racionalidade da Fé em um Deus que livremente se
revela ao homem189. Mas, ao mesmo tempo, pode ajudar os que creem a
compreenderem melhor que a Revelação respeita radicalmente o livre-
arbítrio humano. Por esta razão, a resposta do homem, que se vê
interpelado pelo Mistério, pode ser positiva ou negativa. Diante desse

187
Cf. JOURNET, C. O Caráter Teândrico da Igreja, fonte de tensão permanente. In: BARAÚNA, G
(Org.). A Igreja do Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1965, p.384-395.
188
PAULO VI, Encíclica Ecclesiam Suam n. 42. Disponível em:
http://w2.vatican.va/content/paul-vi/pt/encyclicals/documents/hf_p-vi_enc_06081964_ecclesiam.html
189
Sobre a racionalidade da fé cristã, cf. SPAEMANN, R. La Ragionevolezza della fedein Dio. In: AA.
VV., Dio oggi. Com Lui o senza di Lui cambia tutto. Cantagalli: Siena, 2010, p.57-76.

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fato, o crente deve respeitar o não crente, dialogar, propor, testemunhar


sim, mas reconhecer respeitosamente a dignidade de sua condição.
A partir do que foi dito, poderemos entender como a Teologia pode
colaborar para o incremento do respeito e do diálogo entre os que creem
e o que não creem, criando uma esfera propícia à busca da Verdade
acerca de Deus e do homem.
1. A Trindade: escola de amor que dialoga
Nos últimos anos, temos sentido novas e ferrenhas críticas ao
monoteísmo. Há quem veja o monoteísmo como uma verdadeira “base
ideológica para o autoritarismo e a centralização” e um “aniquilador do
pluralismo e da diversidade”190. A tal tipo de acusação, gostaríamos de
responder com as palavras do papa Bento XVI:
[...] em fecundo diálogo com a filosofia, a teologia
pode ajudar os fiéis a tomar consciência e a
testemunhar que o monoteísmo trinitário nos mostra
a verdadeira face de Deus, e este monoteísmo não é
fonte de violência, mas fonte de paz pessoal e
universal [...] no mistério trinitário ilumina-se inclusive
a fraternidade entre os homens.191
Como bem recordou o Papa, a Teologia cristã se fundamenta sobre o
fato de que coube ao Filho de Deus encarnado revelar o que poderíamos
definir analogicamente como a intimidade de Deus, ou seja, o seu ser
Trinitário. Um dos desafios da Teologia hodierna é de, juntamente com a
vida dos fiéis, restituir a evidência feliz e cristalina do impacto da
Revelação trinitária sobre a vida humana.
Em um tempo em que os conflitos étnicos e religiosos no mundo
tendem a tornar mais difícil a aceitação da singularidade da fé e do pensar
cristão, a Teologia precisa colocar em relevo como a Trindade, mistério
central da fé e da vida cristã192, se apresenta como uma Escola de diálogo,
pois na vida intradivina contempla-se um movimento eterno de amor, de
doação e de acolhimento, que fazem do Pai, do Filho e do Espírito Santo
um único Deus em três pessoas. Vale destacar aqui que a Teologia afirma
190
Cf. VASCONCELOS, J. L. G. Apresentação. In: DANTAS, J. P. de M. Deus Uno e Trino: uma
introdução à Teologia Trinitária. Fortaleza: Edições Shalom, 2013, p.11. O autor se refere entre outros ao
professor e teólogo indiano Felix Wilfred, conhecido por sua crítica ao monoteísmo.
191
BENTO XVI, Discurso à Pontifícia Comissão Teológica Internacional (02/12/2011). Disponível em:
https://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2011/december/documents/hf_ben-
xvi_spe_20111202_comm-teologica.html.
Cf. também COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Dio Trinità, unità degli uomini. Il
monoteismo cristiano contro la violenza. Disponível em:
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/rc_cti_20140117_monoteismo-
cristiano_it.html.
192
Cf. Catecismo da Igreja Católica n.324.

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que cada Pessoa trinitária é tal pela relação própria que tem com as
demais. De modo que Tomás de Aquino, iluminado por Agostinho, define
o conceito de pessoa na Trindade como relação subsistente193.
A Teologia deve, à luz de tão belo mistério, colocar em relevo como a
fé cristã é trinitária por natureza, não apenas pelo fato de crer em um
Deus trinitário, mas também pelo fato de ser uma participação na vida e
no amor trinitário, uma participação que convida contemporaneamente
cada cristão e todos os cristãos a um estilo de vida que poderíamos
chamar de trinitário, ou seja, um estilo de vida marcado por um amor
capaz de acolher e de se doar, capaz de gerar relações, capaz de ver na
diferença não uma ameaça à unidade, mas uma possibilidade de relação
interpessoal que nos propõe um caminho de unidade, um estilo de vida
capaz de dialogar, de aprender e de ensinar, capaz de amar e ser amado e
de, reconhecendo o que nos une e o que nos distingue, nunca se cansar
de buscar a unidade.
O mencionado estilo de vida vai, ao mesmo tempo, nos aproximando
mais e mais do próprio Deus e nos fazendo cada vez mais autênticas
pessoas. Um caminho divinizante, humanizante e personificante.
As expressões invocadas nos lançam no próximo ponto de nossa
reflexão.
2. Jesus Cristo: a Palavra eterna faz-se homem para se dirigir ao homem
A Encarnação do Verbo recorda, de um lado, a possibilidade histórica
da experiência com a Verdade; por outro lado, traz à tona a problemática
da interpretação e da formulação da verdade 194, que exige em uma
perspectiva antropológica uma redefinição da relação entre a pessoa e a
Verdade.
O desafio metafísico da Encarnação do Verbo não deve obscurecer o
sentido de tal Evento para a relação entre Deus e os homens. Através de
Cristo, Deus abraça ou, se quisermos usar um linguajar caro aos místicos,
desposa a humanidade e repropõe de um modo radical a beleza do ser
pessoal de Deus e a dignidade do ser pessoal do homem.
Em Cristo, compreende-se como uma relação entre Deus e o homem
— que desafia o plano ontológico — pode respeitar, por um lado, a
transcendência de Deus, ensinando que Deus não é uma mera projeção
do homem, mas por outro proteja a natureza humana que não se vê
esmagada ou desrespeitada por uma relação de tipo religiosa com Deus,

193
Cf. S. Theol. I q. 28 a.2 co.
194
Cf. GIRARDI, G. Dialogo: strategia, cedimento o esegenza della fede? In: Esperienza e Teologia 4
(1997), p.5-12.

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

mas, pelo contrário, se percebe respeitada tanto na sua imanência, como


na sua dimensão transcendente de pessoa.
À luz do que foi dito, entendemos melhor como a Teologia pode no
mundo de hoje colaborar para o desabrochar de uma cultura
antropocêntrica, não mais em oposição ao teocêntrico, mas uma cultura
em que a centralidade do homem se fundamenta e é iluminada pelo seu
horizonte teocêntrico. O que foi dito, pode soar estranho, mas a Teologia
cristã propõe a não contradição entre uma verdadeira concepção
antropocêntrica e uma necessária e sadia concepção teocêntrica da
realidade, algo possível graças à centralidade de Cristo, verdadeiro Deus e,
ao mesmo tempo, verdadeiro homem.
3. Uma antropologia transcendente
O Concílio Vaticano II ensina que
Na realidade, o mistério do homem só no mistério do
Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. Adão,
o primeiro homem, era efectivamente figura do
futuro, isto é, de Cristo Senhor. Cristo, novo Adão, na
própria revelação do mistério do Pai e do seu amor,
revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua
vocação sublime. Não é por isso de admirar que as
verdades acima ditas tenham n'Ele a sua fonte e n'Ele
atinjam a plenitude195.
A Teologia pode também oferecer ao mundo a sua reflexão cristão
sobre o homem. Em um tempo marcado por uma crise da reflexão
filosófica de caráter metafísico e por uma ditadura do relativismo 196, a
Teologia pode oferecer ao homem uma antropologia que não reduz o
homem à matéria e ao imanente, mas que mantenha viva em seu coração
a chama da transcendência, para que o homem não seja sufocado pelo
imanentismo, mas também não perca a sua verdadeira identidade na
busca de uma transcendência que não respeite a sua própria natureza.
A afirmação da centralidade do homem se apresenta como um
antídoto contra as sutis estratégias de certas linhas de pensamentos que
tendem a enfraquecê-lo, obrigando-o a viver uma lenta agonia: o início e o
final de sua vida vão sendo desrespeitados, seu corpo e sua identidade
sexual são questionados, sua liberdade e sua racionalidade se sentem
desacreditadas e até a sua condição de pessoa é denunciada como um

195
CONCÍLIO VATICANO II, Constituição pastoral Gaudium et Spes n. 22.
196
Cf., por exemplo, BENTO XVI, Audiência Geral (05/08/2009). Disponível em:
http://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/audiences/2009/documents/hf_ben-xvi_aud_20090805.html

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

anacronismo e uma abstração em relação aos processos condicionantes


que delineiam a sua vida197.
A Teologia precisa ajudar o homem, à luz da força revolucionária da
memória de Deus, a redescobrir a sua própria identidade a suas potências
e o seu horizonte transcendente, para que ele possa retomar a sua missão
de ajudar a construir um futuro verdadeiramente mais humano 198, que
não está em contradição com um horizonte escatológico.
Esta colaboração da Teologia pode ser individuada na proposição de
uma adequada antropologia teológica da pessoa 199, em que podem ser
propostas algumas linhas interpretativas200: a) O reconhecimento da
finitude humana como hermenêutica do sair de si para o ser em si; b) a
afirmação da importância fundamental da proximidade e da
reciprocidade; c) o horizonte da responsabilidade contra a força
destruidora do egoísmo e do egocentrismo, que não raramente
desrespeita o mundo criado e explora o seu próximo, ferindo a sua
dignidade em nome de certa lógica de mercado; d) a experiência da
liberdade como um convite à contemplação de um estado de liberdade
ainda mais perfeito possível graças à experiência comunional com Deus.
Pode-se acrescentar que a antropologia teológica da pessoa pode
oferecer a sua contribuição para: a) uma crescente valorização da vida
humana em todas as suas fases e condições, incluindo as mais frágeis aos
olhos da cultura hodierna tão marcada pelo utilitarismo; b) uma
compreensão unitária do homem que inclua harmoniosamente tanto a
sua dimensão espiritual como a sua dimensão material; c) uma
redescoberta da dignidade do corporalidade humana em que este não
seja visto nem como inimigo e nem como apenas um instrumento da
pessoa humana, mas que seja entendido, como tão bem recordou o papa
João Paulo II, como uma espécie de sacramento da pessoa humana201.
Uma autêntica antropologia teológica da pessoa ajudará o homem
de hoje a compreender que o ser-pessoa significa o ser-estar em relação, o
que vale para Deus e para o homem. Por essa razão, o ato religioso

197
Cf. PAVAN, A; MILANO, A (edd). Persona e personalismi, Napoli: Dehoniane, 1987;
MELCHIORRE, V (ed.). Lídea di persona. Milano: Vita e Pensiero, 1998.
198
Cf. METZ, J. B. Dov’è finito Dio, e dove l’uomo? Sulla capacità di futuro del cristianesimo
occidentale europeo. In: KAFMANN, F. X.; METZ, J. B (edd.) Capacità di futuro. Movimenti di ricerca
nel cristianesimo, Brescia: Queriniana, 1988, p.135-136; 138-139.
199
Cf. CODA, P. Personalismo Cristiano, crisi nichilista del soggetto e della socialià e intersoggettività
trinitária. In: Lateranum 58 (1992), p.181-205. LADARIA, L. F. Antropologia Teologica. Roma: GBP,
2011, p.146-165.
200
Resumimos uma parte do artigo de DOTOLO, C. La relazione tra teologia e post-modernità: problemi
e prospettive. In: Antonianum 76 (2001), p.651-685.
201
Cf. por exemplo JOÃO PAULO II, Audiência Geral (20/02/1980). In: Teologia do Corpo: o amor
humano no plano divino. São Paulo: Ecclesiae, 2014, p.93-95.

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fundamental não consiste tanto em uma imersão individual na


profundidade do ser absoluto com o escopo de encontra-se sozinho com o
absoluto, mas consiste em uma difícil e obediente resposta (perspectiva
histórica) à interpelação que lhe chega da parte do Deus que se fez
homem, que o convida a viver uma relação com Ele e, através d’Ele, com
todas as pessoas criadas. Na vivência desta última relação, o homem se vê
convidado a assumir uma responsabilidade que nasce do amor por todas
elas que engaja a sua própria vida na busca de que todos vivam a sua
existência como pessoas dotadas de uma dignidade inalienável 202. Este
percurso religioso duplamente humanizante, e ao mesmo tempo
divinizante, é que conduzirá o homem a um destino escatológico em que
viverá eternamente no amor divino em comunhão com o seu próximo:
quando Deus será tudo em todos! (1 Co 15,28).
4. Mariologia: uma mulher como modelo para todos os homens
No dia 15 de agosto de 1988, o papa João Paulo II dedicou uma Carta
Apostólica às mulheres203, em que recordava que a dignidade e a vocação
da mulher foram objeto constante da reflexão humana e cristã, e afirmava
que o Concílio Vaticano II, em continuidade com o magistério precedente,
quis reconhecer com alegria e esperança a beleza dessa vocação e de sua
influência no mundo hodierno204.
Não sendo esse o lugar para repercorrer a complexa história da
mulher ao longo dos séculos — história marcada, infelizmente, na maioria
das culturas, pela injustiça e pela humilhação —, gostaríamos de recordar
a força atrativa que o cristianismo exerceu sobre as mulheres nos
primeiros séculos da Igreja: “As mulheres cristãs eram tão numerosas que
os romanos chegaram a desprezar o cristianismo por considerá-lo uma
religião para mulheres”205. Tal atração provinha, em boa medida, do fato
de que a Igreja santificava o matrimônio — elevado à categoria de
sacramento — e proibia o divórcio. O filósofo R. Philips destacou assim a
importância do cristianismo para a autonomia das mulheres:
As mulheres encontraram proteção nos ensinamentos
da Igreja e foi-lhes permitido formar comunidades
religiosas dotadas de governo próprio, algo inusitado
em qualquer cultura do mundo antigo [...]. Basta
repassar o catálogo dos santos, repleto de mulheres.
Em que lugar do mundo, a não ser no catolicismo, as
202
Cf. GRESHAKE, G. Il Dio Unitrino. Teologia Trinitaria. Brescia: Queriniana, 2000, p.590.
203
Cf. JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Mulieris dignitatem n.1-2.
204
Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição pastoral Gaudium et Spes n. 8, 9 e 29.
205
WOODS JR, T. E. Como a Igreja Católica construiu a Civilização Ocidental. São Paulo: Quadrante,
2008, p.200.

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mulheres podiam dirigir as suas próprias escolas,


conventos, hospitais e orfanatos? 206
A historiadora R. Pernoud ensina que a situação das virgens e viúvas
na Igreja primitiva merece uma atenção especial 207, na medida em que
eram estados respeitados e reconhecidos como verdadeiros carismas
eclesiais. Tais estados de vida femininos colaboraram para que os cristãos
compreendessem o valor da mulher como pessoa, independente da sua
condição familiar de esposa e mãe, e a sua missão eclesial no âmbito da
caridade, da educação208, da saúde209, da vida monástica210 etc. Pernoud
resume a situação da mulher no cristianismo dos primeiros séculos e do
medievo afirmando que a mesma foi liberada pelo Evangelho211.
Na Teologia católica, a reflexão sobre a mulher sempre foi estimulada
e iluminada pela figura da mulher mais importante para a história da
salvação: Maria. Do mesmo modo, podemos afirmar que a Mãe de Jesus
foi desde o início do cristianismo proposta às mulheres como modelo de
feminilidade.
Infelizmente, deve-se reconhecer que leituras parciais da figura, das
palavras e da missão de Maria, muitas vezes foram usadas para reduzir a
mulher a um papel de silêncio e de submissão ao homem 212. Entretanto, a
figura de Maria foi, na verdade, protagonista de uma grande missão,
idealizada por Deus, em favor de todos os homens. Maria é um exemplo
para todos os seres humanos, homens e mulheres, na medida em que
cumpriu com perfeição o papel mais importante já confiado a uma
criatura na história da salvação.
A Mariologia deve continuar iluminando o caminho que conduzirá a
mulher a viver de um modo pleno a sua dignidade e a sua missão ad intra
e ad extra da Igreja213.
A Teologia, iluminada pela protologia, cuja recente contribuição de
João Paulo II merece um destaque especial 214, também deve aprofundar o
206
PHILIPS, R. Last Things First, apud WOODS JR, 2008. Sobre o tema das mulheres na Igreja antiga,
cf. PERNOUD, R. A Mulher no tempo das Catedrais. Lisboa: Gradiva, 1984.
207
Cf. PERNOUD, R. A Mulher no tempo das Catedrais. Lisboa: Gradiva,1984, p.25.
208
Cf. PERNOUD, p.49-72.
209
Cf. PERNOUD, p.26.
210
Cf. PERNOUD, p.31-48.
211
Cf. PERNOUD, p.26.
212
Cf. ESPAGNET, C. R. La dignità della donna (Mulieris dignitatem – 1988). In: BORGONOVO, G;
CATTANEO, A. (edd.). Prenderei l largo con Cristo. Esortazioni e lettere di Giovanni Paolo II. Siena:
Cantagalli, 2005, p.182-183.
213
Merece destaque em língua portuguesa a obra de C. BOFF, Mariologia Social: o significado da
Virgem para a Sociedade. São Paulo: Paulus, 2006.
214
Referimo-nos particularmente às famosas catequeses de João Paulo II sobre o amor humano
(05/09/1979 a 28/11/1984): cf. JOÃO PAULO II. Teologia do Corpo. O amor humano no plano divino.
São Paulo: Ecclesiae, 2014.

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fato de que a diferença e a complementariedade sexuais façam parte do


ser imagem e semelhança de Deus da humanidade 215 (cf. Gn 1,27). O
homem e a mulher, em igual medida, foram criados à imagem e
semelhança do Deus pessoal216, mas ao mesmo tempo a communio
personarum do casal primordial também é parte do ser imagem e
semelhança de um Deus que é comunhão de Pessoas. Tal visão nos ajuda
a entender como existe uma paridade e uma reciprocidade entre os dois
sexos, e ambos, com suas qualidades específicas, devem colaborar para o
desenvolvimento harmônico da família, do mundo e do projeto salvífico
de Deus217.
No que concerne à mulher, a Teologia precisa, à luz do paradigma
bíblico da mulher — com um particular destaque à Teologia da criação, e
de uma sólida Mariologia, com todas as suas conexões com a Cristologia e
com a Eclesiologia — contribuir para que o gênio feminino, para
parafrasear João Paulo II218, floresça cada vez mais e enriqueça o mundo
no pleno cumprimento de sua missão.
5. Eclesiologia: comunidade divinizante e humanizante
Em um mundo que parece dizer “Cristo Sim, Igreja Não!”219, e que ao
mesmo tempo parece exigir uma reforma eclesial radical, é necessário
repropor e aprofundar a reflexão bíblico-histórica sobre a origem, a
natureza e a missão da Igreja, sublinhando-se o seu nexo indissolúvel com
Cristo (dimensão cristológica da Igreja) e com o seu Espírito (dimensão
pneumatológica da Igreja). Para que se possa renovar a Igreja, sem que se
corra o risco de enveredar pelo caminho de uma ação cega e destruidora,
deve-se conhecer a essência da realidade sobre a qual se pretende agir. O
“ethos da Igreja só poderá ser correto se se deixar iluminar e conduzir
pelo logos da fé”220.
A Teologia deve tentar apresentar a Igreja com toda a sua força
profética para o homem, força que deriva do fato de ser o lugar

215
Note-se que a Teologia feminista parece muitas vezes incapaz de reconhecer a diferença complementar
que existe entre o homem e a mulher. Sobre a teologia feminista, cf. HAUKE, M. God or goddess?
Feminist Theology: What is it? Where does it lead? San Francisco: Ignatius, 1995. Sobre as diferenças
entre homens e mulheres, cf. HAUKE, M. Women in the priesthood? A Systematic Analysis in the light of
the Order of Creation and Redemption. San Francisco: Ignatius, 1988, p.85-120; DANTAS, J. P. de M.
In Persona Christi Capitis. Il ministro ordinato come rappresentante di Cristo capo della Chiesa nella
discussione teológica da Pio XII fino ad oggi. Cantagalli: Siena 2010, p.311-338.
216
JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Mulieris dignitatem n.6.
217
Cf. ESPAGNET, La dignità della donna (Mulieris dignitatem – 1988), p.184.
218
Cf. JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Mulieris dignitatem n. 30-31.
219
Cf. PIO XII, Discurso aos homens da Ação Católica (12/10/1952). Disponível em:
https://w2.vatican.va/content/pius-xii/it/speeches/1952/documents/hf_p-xii_spe_19521012_uomini-
azione-cattolica.html
220
RATZINGER, J. Compreender a Igreja hoje. Vocação para a Comunhão. Petrópolis: Vozes, 1992,
p.7.

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privilegiado de diálogo entre a Trindade e a humanidade.


Numa sociedade marcada pela emotividade das sensações, pela
gratificação da experiência vivida e pela individualização do sentimento
religioso, a experiência comunional dos fiéis é chamada a repropor o
mistério esponsal da Igreja221, no qual a fé expressa a novidade da
convivialidade das diferenças (unidade na diversidade). O eu fragmentado
do homem pós-moderno pode vir a compreender como a morfologia da
experiência comunitária eclesial pode vir em seu socorro para ajudá-lo a
reencontrar e a recompor a sua própria identidade, em um ambiente em
que a unidade e o diferente não são inimigos, mas se requerem, pois a
Igreja, ensina B de Margerie, encontra a sua origem e causa na Trindade,
tem como modelo de vida o mistério trinitário e caminha na direção do
seu destino escatológico: a Trindade222.
A comunidade eclesial protege cada homem do necessário, mas nem
sempre fácil encontro (ou desencontro) dialógico com a cultura,
apresentando-se aos seus membros e ao mundo como um sinal de
esperança e de testemunho dos valores humanos e evangélicos, e assim
lutando para manter aberto ou reabrir o tecido humano da sociedade à
relação com Deus.
Destaco que entre as lutas que a Igreja trava, às vezes contra tudo e
contra todos, mas sempre em favor do homem, aquela contra o
individualismo é de suma importância, principalmente porque o escopo
não é atrapalhar a busca por uma justa autonomia pessoal, mas recordar
sempre a dimensão relacional essencial da pessoa humana. A Teologia
pode ajudar o homem de hoje a compreender que a Igreja não é apenas o
lugar da divinização, mas também da humanização em vários aspectos.
A comunidade cristã é um espaço na história e na
sociedade, no qual aquilo que ainda se encontra
presente [utopia] encontra o seu lugar. A comunidade
cristã se apresenta assim como um lugar, um topos da
“práxis do céu”.223

Concluindo este ponto, creio que vale a pena insistir que a dimensão
estética do discurso eclesiológico precisa ser repensada, de modo a
oferecer uma via pulchritudinis que convide o homem de hoje a
reconhecer que a Igreja, não obstante os pecados de seus membros, está
unida de tal modo a Cristo, como o corpo à sua cabeça (cf. Col 1,18), que
221
Cf., por exemplo, MILITELLO, C. Per uma eclesiologia sponsale. In: Ricerche Teologiche 1 (1990),
p.121-141.
222
Cf. B. de MARGERIE, La Trinité chrétienne dans l’histoire. Paris: Editions Beauchesne, 1975, p.304.
223
Cf. ZULEHNER, P. M. Gemeinde. In: EICHER, P. (ed.). Neues Handbuch theologischer
Grundbegriffe II. München: Kösel-Verlag GmbH & Co, 1985, p.174.

176
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

se pode dizer que prolonga a vida e a missão de Cristo no tempo e no


espaço, na esperança do que virá.
6. Escatologia: semear esperança por um mundo melhor
Ao longo da Idade Antiga e Média, a dimensão escatológica da vida
humana era bem presente na literatura, na arte, na arquitetura, na
religião e na teologia.
No final do século XVI e especialmente na primeira metade do século
XVII, o notável progresso científico e tecnológico estabeleceu um novo
paradigma sobre a relação entre o homem e natureza. A correlação entre
experiência e método permitiu ao homem interpretar a natureza
conforme as suas leis. Francis Bacon sublinha a importância dessa
mudança epocal, afirmando que a nova correlação entre ciência e prática
parece devolver ao homem o domínio sobre a criação, dado ao homem
por Deus e perdido224.
Tal afirmação insinua que a redenção do homem não provém da fé
em uma figura como Jesus Cristo, mas provém da nova correlação entre
ciência e prática225. A esperança cristã parece ceder o seu lugar à fé no
progresso científico. “Esta visão programática determinou o caminho dos
tempos modernos, e influencia inclusive a atual crise da fé que,
concretamente, é sobretudo uma crise da esperança cristã” 226.
No centro da ideia de progresso, desenvolveu-se a ideia de que este
deveria conduzir ao crescente domínio da razão, vista a partir de um
prisma ingenuamente otimista como um caminho do bem para o bem.
Mas, ao lado da razão, o progresso também deveria conduzir a superação
de todos os tipos de dependências, de modo a possibilitar o exercício
perfeito da liberdade humana. Para que este progresso ocorresse era
necessário revisar todos os vínculos estatais e religiosos, pois uma nova
comunidade humana perfeita era, na verdade, o bom fruto do progresso
incondicional da razão e da liberdade humana.
A Revolução Francesa tentou encarnar tal concepção, mas a
ingenuidade otimista, relativa à razão e à liberdade humanas, deparou-se
violentamente com uma realidade muito diferente daquela sonhada, o
que levou a uma nova onda de reflexão sobre a razão e a liberdade227.
No século XIX, o progresso técnico e a industrialização criaram uma
situação social nova: nasceu o proletariado industrial, cujas terríveis

224
Cf. BACON, F. Novum Organum I, 129.
225
BENTO XVI, Encíclica Spes Salvi n. 17.
226
BENTO XVI, Encíclica Spes Salvi n. 17.
227
Por exemplo, cf. KANT, E. Das Ende aller Dinge. In: Werke VI (W. Weischedel ed.). Darmstadt:
Buchges, 1964, p.190.

177
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

condições de vida deram vida ao pensamento de F. Engels e K. Marx.


Propôs-se uma nova revolução: a do proletariado. Enquanto Kant e o
Iluminismo criticavam o céu e a teologia, a dita esquerda hegeliana
criticava o mundo e a política. Fruto de tal vitalidade de ideia foi a
Revolução Russa em 1917.
Tal revolução, porém, não tardou em deparar-se com a sua
incapacidade em alcançar a Nova Jerusalém nesta terra. O grande erro foi
subestimar justamente a liberdade do homem, que pode orientar-se para
o bem e para o mal, que pode escolher o bem comum ou o bem
exclusivamente pessoal, que pode submeter-se a ideias de um partido ou
dar a sua vida contra elas... As revoluções não impedem o homem de
continuar homem.
A visão materialista do home se revelou errônea, porque o home não
pode ser curado apenas por condições econômicas mais justas e
favoráveis. As revoluções mostram que o homem continua precisando de
redenção.
Tais fracassos históricos citados, as duas grandes guerras mundiais, o
horror das armas nucleares, o terrorismo, a fome, a injustiça social
crescente, a corrupção endêmica, os muros que se levantam por todos os
lados, parecem ter enfraquecido a fé do homem no progresso humano. É
necessário um humilde exame de consciência sobre o conceito moderno
de esperança, para que o homem possa continuar a percorrer o seu
caminho iluminado pela estrela da esperança. O progresso técnico e
político tem que ser acompanhado por um autêntico progresso ético.
A Teologia cristã pode enriquecer tal reflexão com a sua visão de
homem, de consciência, de razão e liberdade, de sociedade, de valores
éticos, de ecologia e, por fim, com a racionalidade de sua esperança
escatológica. Além disso, a Teologia pode ajudar a comunidade dos fiéis a
superar a sua desconfiança em relação à fé no progresso humano nesta
terra e a melhor compreender como tal progresso não se conflita com a
perspectiva escatológica cristã. A esperança cristã pode como um bom
fermento ajudar a restaurar a esperança humana no progresso integral da
humanidade, pois a graça não exclui a justiça.
As experiências humanas com o amor e com a justiça abrem os seus
corações para a dimensão da vida eterna; a primeira, se verdadeira, não
consegue se satisfazer com o limite da temporalidade, a segunda, nos faz
aprender desde cedo que não se encontra na vida presente a perfeita
justiça, e nos faz olhar para o alto na espera de uma justiça que
transcenda o tempo e a própria morte:

178
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

Estou convencido de que a questão da justiça constitui


o argumento essencial – em todo o caso o argumento
mais forte – a favor da fé na vida eterna. A
necessidade meramente individual de uma satisfação
– que nos é negada nesta vida – da imortalidade do
amor que anelamos, é certamente um motivo
importante para crer que o homem seja feito para a
eternidade; mas só em conexão com a impossibilidade
de a injustiça da história ser a última palavra, é que se
torna plenamente convincente a necessidade do
retorno de Cristo e da nova vida228.
7. A Teologia e a Universidade: uma história e um futuro a redescobrir
Como se sabe, as Universidades nasceram no século XII, em boa
parte a partir do desenvolvimento das escolas catedrais229 que, desde o
período carolíngio230, ofereciam aos seus alunos o ensino das sete artes
liberais (trivium231 e quadrivium232). Ao lado da Faculdade de Artes
Liberais, cujos estudos eram considerados como propedêuticos para as
demais Faculdades, havia a Faculdade de Direito, a de Medicina e a de
Teologia233. Percorrendo um itinerário acadêmico baseado na lectio, na
quaestio e na disputatio, os discentes podiam ter acesso a três graus de
formação: o bacharelado, a licença (ou licenciatura) e o doutorado.
Na concepção medieval, berço das universidades, buscava-se manter
em evidência a unidade do saber, mesmo que se reconhecesse a cada
disciplina o seu estatuto próprio, vigorava o adágio: distinguia-se, mas não
se separava.
À Teologia era reconhecido um papel privilegiado, mas tal papel não
implicava em uma hegemonia cultural e organizativa234.
Com os ares da Reforma, as Universidades enfrentaram,
primeiramente na Alemanha e depois na Inglaterra, um período em que
se acentuou o caráter nacionalista e confessional das mesmas. Em várias
Universidades, como em Oxford e Cambridge, foram suprimidas as
cátedras de Direito Canônico e de Teologia. No âmbito católico, as
disciplinas eclesiásticas presentes nas universidades percorreram o
228
BENTO XVI, Encíclica Spes Salvi n. 43.
229
Cf. HUBERT, R. História da Pedagogia. São Paulo: Companhia Editora Nacional: 1976, p.26
230
Cf. NEWMAN, J. H. Origem e progresso das Universidades. São Paulo: s.c.e., 1951, p.175-189.
231
Gramática, retórica e dialética.
232
Aritmética, geometria, música e astronomia.
233
PASSOS, J. D. Para o diálogo com a Universidade. São Paulo: Paulus, 2016, p.257.
234
No final do século XIV, existiam cerca de cinquenta universidades, apenas na metade existia
Faculdade de Teologia, cf. TANZELLA-NITTI, G. Breve storia dell’Università. Disponível em:
http://antonellamartini.weebly.com/uploads/1/4/1/4/1414797/breve_storia_universit.pdf, 4

179
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

caminho da controvérsia. Ocultou-se assim o espírito original da


universidade: a busca pela universalidade.
As mudanças epocais do século XVIII causaram um forte impacto na
concepção de universidade e no ordos studiorum : a) o rápido
desenvolvimento da pesquisa científica e as novas descobertas
provocaram um movimento de crescente especialização dos estudos
universitários; b) as ciências humanas também percorreram um caminho
sensível de diferenciação disciplinar, inspiradas pelo pensamento
filosófico de Kant e Hegel, pelo desenvolvimento da filologia e da exegese,
pela nova organização das ciências sociais.
A lectio foi substituída por exposições de caráter sistemático; as
disputationes foram substituídas por seminários e experiências práticas.
No que concerne à Teologia na Universidade, dois modelos se
desenvolveram na Europa continental ao longo do século XIX: o francês e
o alemão. O primeiro modelo buscava submeter ao placet, às vezes
autoritário do Estado, os ensinamentos teológicos, o que conduziu (por
volta do final do século XIX) ao nascimento de Universidades Católicas que
propiciaram à Teologia a autonomia necessária. O segundo — que deve
ser entendido à luz do fato de que os grandes pensadores alemães eram
professores universitários, decanos ou reitores — buscava defender a
liberdade de pensamento e o apreço pelas disciplinas especulativas,
preservando deste modo o lugar e a autonomia da Teologia (católica e
protestante) na Universidade.
Na Inglaterra e na Escócia, a tradição empirista conduziu as
universidades pelo caminho de uma concepção sempre mais pragmática.
Vale a pena mencionar que contra essa maré encontramos Oxford e a sua
tradição de ensinamento humanista. As Universidades nos Estados Unidos
foram desde o início marcadas por uma maior flexibilidade, uma forte
influência da iniciativa privada e uma relativa autonomia legislativa. Desde
o início, a Teologia não encontrou dificuldades para tomar o seu lugar na
Universitas.
Atualmente, pode-se dizer que em países como os Estados Unidos,
Alemanha, Suíça e Irlanda, a Teologia tem reconhecido o seu lugar na
Universidade, mas em muitos outros países, como no Brasil 235, onde
prevaleceu o modelo francês236, ela encontra o seu lugar apenas nas
Universidades que têm ao menos uma inspiração confessional.

235
Sobre a situação do curso superior de teologia no Brasil, cf. BACELAR, J. A. F. Breve histórico da
Educação Teológica Superior: da Antiguidade aos dias atuais. Belém: Paka-Tatu, 2013, p.145-166.
236
Cf. PASSOS, Para o diálogo com a Universidade, p.256.

180
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

A Constituição Ex corde Ecclesiae, de João Paulo II, afirma que nas


Universidades católicas237: a) é necessário conjugar o aprofundamento de
cada ciência com o diálogo entre elas (cf. n. 15); b) a teologia e a filosofia
devem guiar as demais disciplinas na busca de uma unidade superior de
conhecimento, capaz de corresponder à sede de verdade que existe no
coração do homem (cf. n. 16), e estimular, em vista do bem autêntico dos
indivíduos e da sociedade humana, a dimensão ética das ciências e das
tecnologias (cf. n. 7).
A Teologia hoje busca o seu lugar na Universidade238, mas o grande
obstáculo para que ela retome o seu lugar histórico na Universitas é uma
certa concepção limitada de razão, sob o influxo de Kant, e de ciência, sob
o influxo das ciências naturais.
Segundo o papa Bento XVI, o conceito moderno de razão baseia-se
numa síntese entre platonismo (cartesianismo) e o empirismo, confirmado
pelo sucesso técnico: por um lado, é pressuposta uma estrutura
matemática da matéria, ou seja, uma racionalidade intrínseca, que torna
possível compreendê-la e usá-la na sua eficácia operacional (elemento
platônico); por outro lado, utiliza-se de um modo funcional a natureza, em
processos que exigem, em vista de uma certeza decisiva, a experiência
como instrumento para controlar a verdade ou a falsidade das teorias
(elemento empírico)239.
Nesse contexto, acrescenta o Papa, parece que só o tipo de certeza
que deriva da sinergia entre matemática e experiência nos permite falar
de cientificidade, e tudo o que queira obter o estatuto de ciência deve
confrontar-se com este critério. As ciências humanas (história, sociologia,
psicologia e filosofia) procuram reexaminar o seu estatuto epistemológico
buscando aproximar-se deste cânone da cientificidade240.
A tentativa de conservar o caráter científico da teologia, segundo a
referida perspectiva, reduziria o cristianismo a um mero fragmento 241. O
teólogo americano David Tracy propõe que no âmbito da academia exista
um lugar reservado apenas para a teologia fundamental, capaz de dialogar

237
Cf. PASSOS, Para o diálogo com a Universidade, p.259-260.
238
Sobre as diferentes tentativas que estão em curso, cf. PASSOS, Para o diálogo com a Universidade,
p.273-274.
239
BENTO XVI, Discurso aos representantes das Ciências na aula magna da Universidade de
Regensburg (12/09/2006). Disponível em:
http://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2006/september/documents/hf_ben-
xvi_spe_20060912_university-regensburg.pdf, 6. Cf. também SPAEMANN, R. Benedetto XVI e la luce
della ragione. In: AA. VV., Dio salvi la ragione. Cantagalli: Siena 2007, p.143-169.
240
BENTO XVI, Discurso aos representantes das Ciências na aula magna da Universidade de
Regensburg (12/09/2006), 6.
241
BENTO XVI, Discurso aos representantes das Ciências na aula magna da Universidade de
Regensburg (12/09/2006), 6.

181
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

com as demais ciências sobre as temáticas hermenêuticas, metodológicas


e teóricas242.
E mais grave ainda: se a ciência no seu conjunto é
apenas isto, desse modo então o próprio homem sofre
uma redução. Porque nesse caso as questões
propriamente humanas, isto é, “donde venho” e “para
onde vou”, as questões da religião e do ethos não
podem ter lugar no espaço da razão comum, tal como
a descreve uma «ciência» assim entendida, devendo
ser transferidas para o âmbito do subjetivo. O sujeito
decide, com base nas suas experiências, o que lhe
parece religiosamente sustentável, e a “consciência”
subjetiva torna-se em última análise a única instância
ética. Desta forma, porém, o ethos e a religião perdem
a sua força de criar uma comunidade e caem no
âmbito da discricionariedade pessoal. Trata-se duma
condição perigosa para a humanidade: constatamo-lo
nas patologias que ameaçam a religião e a razão –
patologias que devem necessariamente eclodir
quando a razão fica a tal ponto limitada que as
questões da religião e do ethos deixam de lhe dizer
respeito.243
Em um tempo marcado pelo medo difuso por causa do
fundamentalismo religioso e de suas horrendas manifestações, em um
tempo que os fluxos migratórios desafiam os povos e culturas,
compreendemos a importância das palavras de Bento XVI, que convida ao
alargamento do conceito de razão e do seu uso, na medida em que se
experimenta contemporaneamente a alegria face às possibilidades do
homem, e a preocupação crescente com a dimensão ética do progresso
humano244.
A solução dessas questões vitais para a humanidade poderia ser mais
facilmente buscada se fosse superada a limitação autodecretada da razão
ao que é verificável apenas pela experiência, em vista de uma nova
amplitude. “Neste sentido, a teologia não só enquanto disciplina histórica
e humano-científica, mas como verdadeira e própria teologia, ou seja,
242
O mesmo autor defende que a Teologia prática encontre o seu lugar na relação entre a Igreja e a
sociedade, enquanto a teologia sistemática deveria ser entendida como uma realidade intraeclesial, cf.
TRACY, D. A imaginação analógica apud PASSOS, Para o diálogo com a Universidade, p.278.
243
BENTO XVI, Discurso aos representantes das Ciências na aula magna da Universidade de
Regensburg (12/09/2006), 6-7.
244
BENTO XVI, Discurso aos representantes das Ciências na aula magna da Universidade de
Regensburg (12/09/2006), 7.

182
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

como indagadora da razão da fé, deve ter o seu lugar na Universidade e


no amplo diálogo das ciências”245.
Em uma Universitas com um conceito mais amplo de razão e,
consequentemente, de ciência, encontraríamos o lugar adequado para um
verdadeiro e necessário diálogo das culturas e das religiões.
A exclusão do divino, do religioso e da teologia do horizonte
universitário tende a repelir a religião para o âmbito das subculturas,
revelando assim o quanto um conceito limitado de razão possa torná-la
incapaz de inserir-se no diálogo entre as culturas246.
Na verdade, a razão moderna deveria reconhecer como seu
pressuposto metodológico uma certa visão platônica da realidade, que a
transcende. As ciências naturais deveriam, consequentemente, confiar a
outros níveis e modos de pensar (filosofia e teologia) a questão do porquê
da racionalidade do mundo real247.
Em uma busca autêntica da verdade, deve-se refletir sobre a
plausibilidade e as potencialidades que podem derivar de um prudente
alargamento do atual conceito dominante de razão e de uma respeitosa
escuta das grandes tradições religiosas da humanidade, entendidas como
fonte de conhecimento. Tais questões relevantes e atuais sem dúvidas
fazem parte da grande tarefa da Universidade, que deve sempre repensar-
se!
Do mesmo modo, uma (re)inserção da Teologia na Universidade
convidando-a a exercer sem complexos a sua vocação ao diálogo
constante com as ciências naturais e sociais, com as artes e a filosofia,
com as diferentes correntes culturais e religiosas, ajudaria os fiéis e o
Magistério a crescerem na estima e na compreensão da importância das
evoluções, acontecimentos e tendências da história humana. Tal
experiência enriquecedora poderia auxiliar a Igreja a repensar-se
continuamente, sem abrir mão de sua identidade própria, pois ela poderá
pelo diálogo rejuvenescer e assim melhor viver a sua missão no mundo.
Um critério da teologia católica é que ela
deve estar em constante diálogo com o
mundo. Ela deve ajudar a Igreja a ler os
sinais dos tempos, iluminados pela luz que

245
BENTO XVI, Discurso aos representantes das Ciências na aula magna da Universidade de
Regensburg (12/09/2006), 7.
246
Cf. BENTO XVI, Discurso aos representantes das Ciências na aula magna da Universidade de
Regensburg (12/09/2006), 8.
247
Cf. BENTO XVI, Discurso aos representantes das Ciências na aula magna da Universidade de
Regensburg (12/09/2006), 8.

183
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

vem da revelação divina, e nisso fazer


ganhar em sua vida e missão.248

Suplemento 6: A Teologia no Brasil, entre História e Perspectivas


Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas (FTL e FCB)
Geralmente, quando se fala de teologia no Brasil, particularmente
no exterior, nota-se que a grande maioria das pessoas interessadas neste
assunto conhecem, ao menos superficialmente, a importância da

248
COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Teologia Hoje. Disponível em:
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/rc_cti_doc_20111129_teologia-
oggi_po.html.

184
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

referência à Teologia da Libertação (TdL) e ao seu mais conhecido


expoente, Leonardo Boff.
Partindo desta premissa, a finalidade do nosso artigo é apresentar
um resumo esquemático das principais etapas da história do pensamento
teológico no Brasil, para poder contextualizar o nascimento e o
desenvolvimento da TdL no período sucessivo ao Vaticano II, com uma
particular referência às contribuições cristológicas e eclesiológicas de Boff.
À luz desta história, ofereceremos uma breve reflexão sobre as
perspectivas da teologia brasileira no início deste terceiro milênio.
1. Um breve resumo da história da teologia no Brasil
Segundo Riolando Azzi, a história da teologia no Brasil pode ser
dividida em cinco períodos249:
a) A Teologia do período colonial (1500-1759);
b) A Teologia da época da Independência (1759-1840);
c) A Teologia na Reforma Católica (1840-1920);
d) Teologia da Restauração Católica (1920-1960);
e) Teologia da Libertação (1960-).
Nesta primeira parte do nosso artigo apresentaremos as primeiras
quatro etapas, enquanto que a quinta, dada a sua importância e
complexidade, será o objeto da segunda parte do nosso trabalho.
1.1 A Teologia do período colonial (1500-1759)
Uma vez que o Brasil era considerado como um prolongamento do
Reino português, a Santa Sé tinha confiado aos reis portugueses a obre de
evangelização das colônias. Criou-se assim um modelo (Padroado 250,
“Patrocínio”) em que o chefe da Igreja no Brasil era de fato o rei de
249
Cfr. AZZI, R. A Teologia no Brasil. Considerações históricas. In: AA.VV. História da Teologia na
América Latina. São Paulo, 1991, 21.
250
Sobre o Padroado no Brasil, cfr. MATOS, H.C.J. Nossa História. 500 anos de presença da Igreja
Católica no Brasil. Vol. I Período Colonial. São Paulo, 2015,97-111; HOORNAERT, E. História da
Igreja no Brasil. Primeira Época-Período Colonial. Petrópolis, 1977, 160-168.

185
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

Portugal. Cabia a ele erigir paróquias e dioceses, construir igrejas,


catedrais e conventos, nomear párocos e bispos. Ao Papa restava a função
de confirmar as principais decisões tomadas pelo monarca.
Foi criado o Ministério do culto que se ocupava da fé e da
organização eclesiástica. Tal Ministério tinha o privilegio de receber a
décima eclesiástica e em contrapartida providenciava a manutenção do
clero e das obras religiosas.
À diferença da política espanhola, que havia providenciado a
construção dos centros universitários de primeiro nível nas colônias da
América, Portugal não havia estabelecido Centros Universitários no Brasil,
talvez porque assim era mais fácil exercitar o seu domínio sobre o povo
colonial, ou talvez porque não tinha encontrado culturas indígenas
desenvolvidas como no México e no Peru251.
Os jesuítas fundaram alguns Colégios no Brasil, em 1556 em
Salvador e em 1567 no Rio de Janeiro, onde em 1649 nasceu a primeira
Faculdade de Filosofia do Brasil, afiliada à Universidade de Coimbra. A
Faculdade adotou a Summa Theologiae e o famoso Cursus Conibrencis, um
comentário à filosofia aristotélica em oito volumes, escrito por Pedro da
Fonseca e por outros jesuítas de Coimbra252.
Na segunda metade do século XVII, os jesuítas pediram à Coroa
portuguesa para reconhecer o Colégio de Salvador como a primeira
Universidade brasileira, mas o pedido foi recusado pelas autoridades.
Apesar da falta de um reconhecimento civil, o Colégio era organizado

251
Cfr. SARANYANA, J.I. (ed.). Teología em América Latina, Vol. 1 Desde los Orígenes a la Guerra de
Sucesión (1493-1715). Madrid, 1999, 393.
252
Cfr. SARANYANA, J.I. (ed.). Teología em América Latina, 395-396. O mesmo autor recorda que A.
Vieira escreveu um manual de filosofia, que não sobreviveu à expulsão dos jesuítas do Brasil (1759) e à
perseguição que a partir daí se seguiu. No século XVII foram escritos no Brasil uma Summa universae
Philosophiae (1652), por Baltasar Teles, e um Cursus philosophicus (1687), por Domingos Ramos, cfr.
ibid., 396.

186
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

segundo o modelo da Universidade de Évora, fundada em 1559 pelos


jesuítas253.
Até a metade do século XVIII, no Brasil não havia seminários. As
vocações seculares eram formadas de uma maneira informal por alguns
sacerdotes mais cultos ou pelos jesuítas, faltavam os professores, os
meios materiais e a coragem episcopal para colocar em prática as
orientações do Concílio de Trento em matéria 254. Alguns eclesiásticos iam
para a Universidade de Coimbra para realizar seus estudos seminarísticos.
De um modo geral, o clero secular era pouco instruído, enquanto os
religiosos eram poucos e não podiam aceitar noviços sem a autorização do
governo civil, por isso o seu número permanecia sempre exíguo255.
A teologia da Igreja entendida como Cristandade. O tradicional
princípio “Fora da Igreja não há salvação” era entendido como “fora da
cristandade lusitano-brasileira não há salvação”.
À luz deste princípio, as conquistas e as usurpações dos portugueses
eram legitimadas como uma expressão do desígnio de Deus em favor da
edificação da Cristandade.
Ser cristão par os índios e escravos africanos significava dever
abandonar inteiramente a cultura original deles para integrar-se na
cultura da civilização lusitana.
O movimento de colonização foi definido por alguns como
“messianismo guerreiro dos portugueses”256.

253
Cfr. MOURA. L. D. A educação católica no Brasil: passado, presente e futuro. São Paulo, 2000, 54-
55.
254
Cfr. SCHERER, I. R. Concílio Plenário do Brasil. História da Igreja no Brasil de 1900 a 1945. São
Paulo, 2014, 22-13.
255
Cfr. ibid., 23.
256
Cfr. HOORNAERT, E. Formação do Catolicismo Brasileiro 1550-1800. Petrópolis, 1974, 31-58.

187
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

Os primeiros missionários jesuítas tentaram respeitar diversos


elementos da cultura indígena257, mas este movimento foi vencido mais
tarde pela ação do primeiro bispo do Brasil, mons. Pedro F. Sardinha 258
(1551-1556), que queria a plena integração dos índios na cultura
portuguesa. Cristianizar significava impor o domínio cultural do Reino
lusitano.
A teologia do exílio. Enquanto a teologia da cristandade era
difundida pelos prelados e clérigos ligados diretamente à Coroa, os
missionários difundiam em toda parte uma teologia ascético-mística que
pode ser chamada teologia do exílio. À luz de uma filosofia platônico-
agostiniana e da doutrina do pecado original, a terra era concebida como
um lugar de exílio e de expiação, um vale de lagrimas onde vivem os
“exilados filhos de Eva”, na espera da partida para a pátria eterna. A falta
de valor da vida presente servia para justificar as situações injustas do
mundo presente, a injustiça era vista como um simples fruto do pecado
original. Todo cristão era convidado a aceitar de modo pacifico a sua
sorte, expressão da vontade divina.
Desde o século XVI, muitos jesuítas tinham aceitado a ideia da
servidão dos índios como meio para facilitar a conversão e salvação 259
deles. Numa obra publicada em 1705, o jesuíta Jorge Benci afirmava que a
escravidão e o servilismo eram consequências do pecado original 260. No
257
Sobre a evangelização dos índios realizada pelos jesuítas, cfr. MATOS, H. C. J. Nossa História. 500
anos de presença da Igreja Católica no Brasil. Vol. I Período Colonial. São Paulo, 2015, 115-130.
258
Nascido em Évora (Portugal), P. Sardinha morreu em 1556 nas mãos de uma tribo de índios
antropófagos, os Caetés.
259
Cfr. BARBOSA, M. DE F. M. As letras e a cruz: pedagogia da fé e estética religiosa na experiência
missionária de José de Anchieta, S. I. (1534-1597), Analecta Gregoriana, 298, Roma, 2006, 81-88;
AZZI, R. A teologia no Brasil. Considerações históricas. In: AA.VV., História da Teologia na América
Latina. São Paulo, 1991, 24.
260
Cfr. BENCI, J. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos (Livro brasileiro de 1700). São
Paulo, 1977, 77. Cfr. também OLIVEIRA, N. de A. Jorge Benci e a escravidão: percepções de um
jesuíta italiano em uma sociedade escravista. In: Anais do XV Encontro Regional de História da
ANPUH-RIO, 2012, Rio de Janeiro. Disponível em:
http://www.encontro2012.rj.anpuh.org/resources/anais/15/1338255954_ARQUIVO_Artigo-Anpuh.pdf.

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mesmo rastro de pensamento Nuno Pereira publicou em 1728 o seu


“Compendio Narrativo del Pellegrino nell’America”. Nesta obra, o autor
reconhece a escravidão dos africanos como meio para a conversão deles
ao cristianismo e futura salvação, não obstante tenha a coragem de
criticar a violência com que eram tratados, violência que feria a dignidade
dos escravos dos patrões261. Neste contexto, a rebelião dos escravos
contra os seus patrões era vista como um pecado grave.
Entre os religiosos que se opuseram à escravidão dos índios e dos
africanos262, podem-se recordar os jesuítas Manuel da Nóbrega263, Serafim
Leite264 e Miguel Garcia265. Alguns autores contemporâneos veem neles os
primeiros teólogos que refletem segundo a ótica dos oprimidos 266.
Teologia popular dos santos e da Paixão de Cristo. Em
continuidade com a Idade Média se nota, no Brasil colonial, uma teologia
popular que tende a destacar a importância do papel dos santos e das
devoções conexas, como uma espécie de atalho para alcançar a salvação.
A tradição popular mais importante, influenciada pela espiritualidade dos
jesuítas e franciscanos, é a devoção ao Senhor Bom Jesus 267, centrada na
contemplação da sua Paixão e Morte. Multiplicaram-se ao longo dos anos
as capelas e as confrarias para promover a devoção. Entre os momentos
mais importantes da Semana Santa havia as procissões do Senhor dos

261
Cfr. RODRIGUES, A. M. M. Compêndio Narrativo do Peregrino da América, de Nuno Marques
Pereira. Estudos Filosóficos 7, 2011, 30-36; PAIM, A.; JUNQUEIRA, C. (Eds.). Moralistas do século
XVIII. Rio de Janeiro, 1979, 25-26. Para o texto original cfr. http://purl.pt/30238/3/#/52-53.
262
Cfr. SANTIN, W. Vozes proféticas de religiosos diante da escravidão negra no Brasil, Studium 2,
2008, 67-79. Cfr. também MATOS, H. C. J. Nossa História. 500 anos de presença da Igreja Católica
no Brasil. Vol. II Período Imperial e Transição Republicana. São Paulo, 2010, 108-124.
263
MALHEIROS, A. M. P. A escravidão no Brasil: ensaio histórico-jurídico-social, vol. 2. Rio de
Janeiro, 1867, 169.
264
Cfr. LEITE, S. História da Companhia de Jesus no Brasil, vol. II. Rio de Janeiro, 1938, 227.
265
Cfr. ibid., 228-229.
266
Cfr. HOORNAERT, E. Formação do Catolicismo Brasileiro 1550-1800. Petrópolis, 1974, 58-60.
267
Sobre a importância do culto ao Bom Jesus, cfr. MATOS, H. C. J. Nossa História. 500 anos de
presença da Igreja Católica no Brasil. Vol. I Período Colonial. São Paulo, 2015, 205-206.

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Passos (Quinta-feira) e do Senhor Morto (Sexta-feira), cuja participação


popular geralmente superava a das celebrações sacramentais.
Esta particularidade é explicada à luz do fato que, para os cristãos
brasileiros de então, a ressurreição parecia apenas uma promessa
escatológica.
Se de um lado existem aqueles que avaliaram tal devoção como
uma espécie de “ópio do povo”, do outro não se pode negar que o povo
contemplava o Cristo sofredor e morrente como seu aliado, um
companheiro que sofria com ele e contemporaneamente era fonte de
consolação, de paz e de coragem para enfrentar sem desespero as
adversidades da vida presente268.
Um fenômeno interessante, que se encontra associado à devoção
popular aos santos, é o dos eremitas-pregadores269. Eram leigos que
viviam uma vida muito austera dedicada à oração e à penitencia, à
pregação e à caridade. O primeiro de quem conhecemos a biografia foi o
frei franciscano Pedro Palácio, que chegou ao Brasil em 1558, e fundou o
Santuário de Nossa Senhora da Penha, em Vila Velha. O fenômeno se
intensificou ao longo dos séculos XVII-XVIII: Antonio Caminha funda a
Igreja de Nossa Senhora da Glória, no Rio de Janeiro; Félix da Costa funda
o Santuário de Macaúbas, uma associação de virgens consagradas e uma
escola270; Feliciano Mendes (†1765) constrói um santuário ao Bom Jesus
em Matosinho271; o irmão Lourenço (†1819), terciário franciscano, erige
um Santuário para honrar Nossa Senhora, Mãe dos Homens, em Caraça,

268
Cfr. TORRES, J. C. de. História das ideias religiosas no Brasil. São Paulo, 1968, 57-58.
269
Cfr. HOORNAERT, E. História da Igreja no Brasil. Primeira Época-Período Colonial. Petrópolis,
1977, 240-241.
270
Cfr. MATOS, H. C. J. Nossa História. 500 anos de presença da Igreja Católica no Brasil. Vol. I
Período Colonial. São Paulo, 2015, 238-240.
271
Cfr. ibid.

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na Diocese de Mariana, que vê surgir em torno a si uma fraternidade de


eremitas272.
A figura mais importante deste período é sem dúvida o português
Padre António Vieira (1608-1697).
Trata-se do jesuíta mais conhecido da história do Brasil uma figura
poliédrica e complexa, missionário, diplomático, pregador e teólogo. A sua
teologia-homilética, na qual se uniam uma vastíssima cultura e uma
extraordinária erudição, pode ser apresentada como messiânica 273, na
medida em que se trata de uma síntese grandiosa e biblicamente bem
fundada (cfr. Dn. 2, 27ss; 7,27; Zc 6,1-8), do messianismo de Gonçalo
Annes Bandarra e da lenda de Ourique. Bandarra profetizou na sua obra
Trovas (1530), o advento de um rei que teria se tornado o rei do mundo, e
em cujo império o verdadeiro Deus teria sido adorado por todos. A lenda
de Ourique atribuía ao próprio Cristo, que apareceu a Alfonso I, em
Ourique, a fundação de Portugal. Portugal teria sido o quinto Império, um
reino de paz, definitivo e universal274.
Em 1640, quando João, o Conde de Bragança, se tornou rei de
Portugal, depois de sessenta anos de dominação dos espanhóis, muitos
acreditavam que a profecia de Bandarra e a lenda de Ourique se
concretizariam. Vieira chegou em Lisboa em 1641 e as suas obras,
sobretudo “História do Futuro”, “Clavis Prophetarum” e “Defesa perante o
Santo Ofício”, exprimem uma teologia messiânica entusiasta275.

272
Cfr. ibid., 242-243.
273
Cfr. LEITE, S. Profetismo e messianismo na obra de Antônio Vieira, Brotaria, 72, 1961, 56-59;
MONDIN, B. Storia della Teologia, vol. III, Epoca Moderna. Bologna, 1996, 408-411.419.
274
Cfr. HOORNAERT, E. Teologia e ação pastoral em Antônio Vieira SJ: 1652-1661. In: AA. VV.
História da Teologia na América Latina. São Paulo, 1991, 64.
275
Cfr. por exemplo DE BIE, J. God in de sermonen van padre Antônio Vieira. Louvain, 1970, 318; 320;
426-427.

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Defendeu o Padroado até o ponto de reconhecer o rei português


como o vigário de Cristo na América, o superior direto dos bispos e o
chefe da obra de evangelizadora no novo continente276.
Vieira na sua segunda estadia na Cidade Eterna, participou de
algumas negociações entre os representantes da Coroa Portuguesa e a
Santa Sé, que tinha instituído a Congregação da Propaganda Fidei para
combater o Padroado, em vista das nomeações dos novos bispos do Brasil.
Naquela ocasião se opôs ao jesuíta francês Lachaise que defendia o direito
papal de realizar as referidas nomeações277.
Para Vieira o principal direito dos índios era o direito à salvação,
todos os outros direitos (liberdade, matrimônio, etc.) eram secundários e
orientados a este primeiro direito. Por outro lado, o primeiro dever (de
caridade e de justiça) dos portugueses era o de propor e estimular a
conversão dos nativos. À luz destas duas premissas, Vieira constrói os seus
raciocínios teológicos que visam pacificar as consciências diante dos
abusos cometidos em nome da evangelização278.
Do ponto de vista pastoral, Vieira é um grande pregador, cujos
dotes lhe renderam a nomeação de pregador da Corte em Lisboa. A sua
palavra é vista como uma espada que enfrenta os interesses escravistas
dos cidadãos portugueses no Brasil e, em contrapartida, defende a
dignidade dos nativos e promove os assentamentos missionários, que
eram como um estado no interior do Estado279.

1.2 A Teologia da época da Independência (1759-1840)


276
Cfr. HOORNAERT, E. Teologia e ação pastoral em Antônio Vieira SJ: 1652-1661. In: AA. VV.
História da Teologia na América Latina. São Paulo, 1991, 61.
277
Cfr. HAUBERT, M. L’Eglise et la défense des “sauvages”: Le père Antoine Vieira au Brésil.
Bruxelles, 1964, 149.
278
Cfr. ibid., 47.59.83.
279
Cfr. HOORNAERT, E. Teologia e ação pastoral em Antônio Vieira SJ: 1652-1661. In: AA. VV.
História da Teologia na América Latina. São Paulo, 1991, 74.

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Depois da expulsão dos jesuítas (1759) das colônias e de Portugal, e


a consequente reforma da Universidade de Coimbra, o iluminismo de
matriz francesa contribuiu para difundir não só uma concepção científica,
mas também algumas novas ideias filosóficas e políticas. Os jovens
brasileiros que estudavam em Portugal ou na França voltavam para o
Brasil fascinados por estas novas ideias e fomentavam o nascimento de
círculos políticos independentistas. Entre estes, podemos elencar uma
parte do clero urbano de posição liberal. Este clero tomará parte em todos
os movimentos regionais que tiveram como finalidade a independência
política. Influenciados pelas novas ideias do século XVIII, colocam em
dúvida a legitimidade do sagrado poder real e se tornam arautos da
liberdade e da independência do povo.
A ideia de uma Igreja mais nacional, em contraposição a um
reivindicado ultramontanismo romano, chega da França no Brasil. Alguns
seminários adotam o manual “Lugdunensis” (Institutiones philosophicae
auctoritate d. d. archiepiscopi Lugdunensis), publicado em 1780, pelo
oratoriano Joseph Valla, a pedido do bispo de Lion, Antoine Montazet, e o
“Catecismo de Montpellier”. O liberalismo radical se dirige contra a
autoridade do Rei e da Santa Sé.
Depois da independência do Brasil (1822) e a renuncia do seu
primeiro regente (1831), o presbítero Diogo A. Feijó 280 se tornou o novo
ministro da justiça e se empenhou para que a Igreja Católica no Brasil se
adequasse ao espírito e aos hábitos do povo brasileiro, uma necessária
encarnação do catolicismo na vida nacional. Por exemplo, este ministro
propunha o fim da lei eclesiástica do celibato.

280
Cfr. MATOS, H. C. J. Nossa História. 500 anos de presença da Igreja Católica no Brasil. Vol. II
Período Imperial e Transição Republicana. São Paulo, 2010, 51-56.

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Muitos eclesiásticos militaram em favor de uma Igreja que não fosse


um instrumento de dominação lusitana e viam a fé cristã como aliada da
libertação do povo brasileiro: “Deus é liberdade”, repetiam281.
A teologia deste período se contrapõe àquela do período anterior,
na medida em que destaca a importância do povo, da índole nacional e do
caráter libertador da fé cristã. Por esta razão, Leonardo Boff afirma que
neste período se elabora uma primeira teologia da libertação no Brasil e
na América Latina282.

1.3 A Teologia na Reforma Católica (1840-1920)


O episcopado deste período percorreu o caminho de abandono do
modelo da Cristandade para colocar em ato um modelo de vida eclesial
mais inspirado na reforma que o Concílio de Trento queria.
Os bispos convidaram os clérigos a se afastarem dos movimentos
políticos e a viver com seriedade e amor o celibato eclesiástico 283.
Empenharam-se em promover uma renovação da vida eclesial através do
ensinamento do Catechismo Romano e a valorização da vida sacramental
em detrimento das devoções populares. Afirma-se no Brasil o conceito
eclesial de “Sociedade Perfeita”, única onde se encontra a salvação.
Do ponto de vista teológico podemos falar de uma “teologia que
coloca em destaque a importância primordial do poder espiritual da Igreja
e da hierarquia”.
Do modelo unitário da Cristandade, se passa a um modelo em que a
vida dos cristãos é orientada por duas sociedades distintas, a do Estado ou

281
Cfr. AZZI, R. A Teologia no Brasil. Considerações históricas. In: AA.VV. História da Teologia na
América Latina. São Paulo, 1991, 28.
282
Cfr. BOFF, L. O reverso da história. In: VILAR, G. C. A liderança do clero nas Revoluções
Republicanas: 1817-1824. Petrópolis, 1980, 11-12.
283
Cfr. MATOS, H. C. J. Nossa História. 500 anos de presença da Igreja Católica no Brasil. Vol. II
Período Imperial e Transição Republicana. São Paulo, 2010, 56-58.

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

sociedade civil e a da Igreja ou sociedade eclesiástica: a primeira se ocupa


dos interesses temporais do homem, enquanto a segunda se ocupa dos
interesses espirituais da pessoa.
Para poder desenvolver dignamente a sua missão espiritual, a Igreja
defende a sua plena liberdade e autonomia. Os bispos não se consideram
mais como dependentes do poder civil e destacam o seu direito de guiar
as atividades pastorais da Igreja. Os bispos são compreendidos como
príncipes da Igreja e o Papa como o seu chefe supremo.
Os melhores seminaristas são enviados ao Colégio Pio-Latino
Americano para estudar as ciências sagradas. Muitos deles mais tarde
receberiam a nomeação episcopal284.
O crescimento da consciência do próprio poder espiritual fez com
que alguns bispos285 se recusassem a submeter-se à autoridade estatal. Em
1872, o bispo Vital M. Gonçalves de Oliveira proibiu uma missa em
comemoração ao aniversario de um templo maçônico e ordenou a
expulsão dos maçons das confrarias de Recife. Mons. Vital recebeu o
apoio do bispo de Belém, Antônio de Macedo Costa, mas muitos prelados
preferiram calar diante da reação da coroa que se bandeou em defesa dos
interesses maçons. Depois de terem sido condenados e aprisionados
(1873-1874), foram anistiados (1875). Apesar destes episódios históricos,
a concepção prática da relação Estado-Igreja permaneceu a mesma: a
Igreja difundia contemporaneamente a sua autonomia em matéria
pastoral e a colaboração entre o trono e o altar, em vista da manutenção

284
Cfr. ibid., 93.
285
Mons. Antônio Viçoso (Mariana), Mons. Antônio Joaquim de Melo (São Paulo), Mons. Romualdo
Antônio de Seixas (Bahia), Mons. Antônio de Macedo Costa (Pará) e Sebastião Laranjeira (Rio Grande
do Sul) e Mons. Vital de Oliveira (Olinda).

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da ordem estabelecida. Devemos, porém, observar que a influência do


governo no interior da Igreja diminuiu de modo nítido286.
Para evitar o crescimento de um clero brasileiro urbano de
pensamento político liberal, os seminários foram confiados a religiosos
europeus que promoveram uma reforma na formação sacerdotal no
Brasil. Tal reforma visava repropor a beleza e a importância do celibato
eclesiástico e suscitar uma atitude clerical em mataria política e social que
de algum modo se afastasse das expectativas do povo brasileiro de então,
uma atitude que tivesse como finalidade uma atuação meramente
espititual-religiosa.
De 1840 a 1889 não se vê a influencia eclesial nos grandes eventos
políticos no Brasil, como a abolição da escravatura em 1888 e a
proclamação da República em 1889, que foram associados principalmente
à burguesia urbana liberal e à maçonaria.
Com o advento da República, merece ser recordado o sacerdote
Júlio Maria287 (1850-1916) que propôs à Igreja uma nova cruzada. Ela devia
romper sua aliança com o poder e colocar-se do lado do povo para
defender o seu interesse. Segundo o autor, sobre a terra existem somente
dois poderes, o eclesial e o do povo, que unidos seriam invencíveis 288.
Defendia a independência da Igreja como fundamento de toda forma
autentica de catolicismo e pregava a importância de cristianizar a
democracia diante de uma forte tendência positivista 289 e maçônica de
construir “um Brasil sem Deus”290. Segundo ele a Igreja podia contribuir

286
Cfr. SCHERER, I. R. Concílio Plenário do Brasil. História da Igreja no Brasil de 1900 a 1945. São
Paulo, 2014, 34.
287
Cfr. MATOS, H. C. J. Nossa História. 500 anos de presença da Igreja Católica no Brasil. Vol. III
Período Republicano e Atualidade. São Paulo, 2011, 19-24.
288
Cfr. MARIA, J. O Catolicismo no Brasil. Rio de Janeiro, 1950, 244.
289
Depois da proclamação da República, a bandeira brasileira incorporou uma frase de A. Comte: “Ordem
e Progresso”.
290
MARIA, J. Brasil sem Deus, Pátria, 12/08/1894, 350.

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para construir uma nação sobre a ordem que brota das consciências, uma
ordem que respeita a razão humana e a sua dignidade, mas que promove
contemporaneamente o exercício da liberdade e o respeito pelas
instituições, pelas hierarquias sociais e pelo governo legítimo. Os católicos
não eram os verdadeiros inimigos da republica como alguns pregavam,
mas podiam tornar-se os melhores amigos. Os verdadeiros inimigos são,
na realidade, aqueles que querem uma sociedade sem religião 291. O
grande perigo que ameaça a Igreja na sociedade liberal entre o século XIX
e XX é o de ser excluída da vida pública, social e política, devendo
acontentar-se de uma presença limitada nos lares e nas consciências.
A Igreja devia assegurar o seu papel na vida concreta dos homens e
da sociedade tornando-se uma Igreja em saída, ou seja, não se limitando a
dispensar os sacramentos, mas saindo das sacristias e andando ao
encontro de todas as classes sociais, os operários, os patrões, os iletrados,
os intelectuais, etc. Não se deveria esperar que o Estado oferecesse à
Igreja o papel dela, mas a Igreja deveria conquistá-lo e influenciar o Estado
e a legislação através da difusão social dos princípios cristãos 292. É
destacada a importância de pregar às classes dirigentes e à burguesia a
fraqueza e as contradições do liberalismo, do positivismo e do
cientificismo, para poder repropor a racionabilidade e a conveniência da
integralidade da fé cristã.
Podemos dizer que o pensamento teológico de Padre Júlio é
devedor do magistério de Leão XIII 293 e, de certo modo, prepara a Igreja no
Brasil para acolher o ensinamento do Concílio Vaticano II sobre a relação
ente a Igreja e o mundo.

291
Cfr. ibid.
292
BEOZZO, J. O. Pe. Júlio Maria, Uma Teologia liberal-republicana numa Igreja monarquista e
conservadora. In: AA. VV. História da Teologia na América Latina. São Paulo, 1991, 121.
293
Cfr. ibid., 110.

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Além das preocupações a respeito da relação entre a Igreja e a


política, o redentorista desenvolveu nas suas conferencias e nos seus
artigos uma apologia científica da fé para combater as heresias modernas
(racionalismo, ateísmo, socialismo, liberalismo moral, reencarnação, etc.)
e ir ao encontro da elite intelectual, demonstrando a racionalidade e a
coerência da fé católica294.
Durante este período se nota uma tendência encorajada pelos
clérigos regulares provenientes da Europa a desenvolver uma teologia de
caráter ascético e uma consequente pastoral centradas no mérito
(Teologia do mérito).
Em analogia com o valor transitório da vida político-econômica, em
que o sucesso de alguém é medido segundo os acúmulos (de dinheiro, de
bens materiais, de conhecimentos) obtidos ao longo de sua vida, a vida
espiritual do cristão é encorajada a acumular méritos em vista da salvação
eterna. O valor da vida terrena parecia limitar-se à oportunidade de
adquirir virtudes e méritos para obter o prêmio salvífico.
As santas missões têm frequentemente como tema: “Salva a tua
alma”, o trabalho pastoral da Igreja é avaliado segundo os números das
confissões, das comunhões, dos batismos, dos casamentos, etc.
A vida presente, embora subordinada à eterna, não parece
encontrar o seu valor em si mesma, e a vida cristã não parece orientada
para Cristo, para transformar o mundo presente em vista do seu futuro
escatológico.
Novas devoções populares se difundem de modo impressionante: a
novena perpétua de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro (Redentoristas),

294
Cfr., por exemplo, MARIA, J. A minha pregação. In: Pátria, 14/10/1894, 120-122. Para um resumo
sobre o tema cfr. BEOZZO, J. O. Pe. Júlio Maria, Uma Teologia liberal-republicana numa Igreja
monarquista e conservadora. In: AA. VV. História da Teologia na América Latina. São Paulo, 1991,
112-117.

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o culto ao Sagrado Coração de Jesus (Jesuítas), através do Apostolado da


Oração, e ao Coração Imaculado da Virgem Maria.
Difunde-se uma visão que pode ser entendida como de matriz
maniquéia, em que de um lado se encontra o liberalismo, os heréticos e os
malvados católicos, enquanto do outro lado se encontra Jesus, prisioneiro
do tabernáculo, e os seus devotos, os bons católicos que lutam contra os
poderes do mal. Os verdadeiros católicos devem reparar os pecados
cometidos pelos malvados, através das comunhões, das adorações e dos
outros exercícios espirituais. As famílias devem participar desta cruzada
reparadora através da entronização da imagem do Sagrado Coração de
Jesus nas suas casas (Teologia da reparação).
1.4 Teologia da Restauração Católica (1920-1960)
Diante de uma liderança política pouco atenta à catolicidade da
grande maioria da população, parecia urgente que a fé retomasse o seu
papel na vida pública, que a fé reencontrasse a sua capacidade de
influenciar a esfera política. “O nosso país é católico, mas os princípios, as
leis e os órgãos que regem a vida política não o são”, afirmava Mons.
Sebastião Leme295 (bispo de Olinda), e acrescentava: “nos tornamos
católicos de clausura, a nossa fé parece limitar-se aos oratórios e aos
corredores das igrejas [...] a nós católicos é dada apenas a permissão de
existir”296.
O objetivo que pretendia o futuro cardeal do Rio de Janeiro era que
a Igreja retomasse o seu papel social e político, através dos políticos e das
leis católicas.

295
Cfr. MATOS, H. C. J. Nossa História. 500 anos de presença da Igreja Católica no Brasil. Vol. III
Período Republicano e Atualidade. São Paulo, 2011, 45-49.
296
LEME, S. Carta pastoral. Petrópolis, 1916, 5.16-17.

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

No Rio de Janeiro, o cardeal Leme procurou conquistar a elite dos


intelectuais, dos agnósticos e dos ateus. Um dos frutos deste apostolado
foi a conversão de Jackson de Figueiredo Martins, um intelectual de
grande valor, que de inimigo da Igreja e iconoclasta, tornou-se um
apóstolo do laicato.
Em 1921, com a ajuda de um grupo de amigos de Figueiredo, é
fundada a revista “A Ordem” com o objetivo de difundir a doutrina cristã e
combater os erros dos seus inimigos (liberalismo e comunismo). É
fundado em 1922 o centro D. Vital que reunia intelectuais que debatiam
sobre as grandes questões da época 297; o neotomismo era a teologia
dominante neste período. Depois da morte de Figueiredo, tomou o seu
lugar Alceu A. Lima, que se converteu ao catolicismo em 1928, depois de
um debate com Figueiredo. Alceu foi um filosofo de grande valor, um
discípulo autêntico de Jacques Maritain.
Em 1938, o Papa Pio XI confiou ao cardeal Leme a tarefa de fundar a
primeira Universidade Católica no Brasil. Três anos depois, com a ajuda do
filósofo-teólogo Leonel Franca SJ (1893-1948), nasce a atual Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, que é confiada aos jesuítas298.
Outro filósofo e teólogo que merece ser recordado é Maurílio
Teixeira-Leite Penido, brasileiro de família rica, crescido em Paris, onde
conhecera Bergson. Depois da ordenação sacerdotal estudou em Roma,
Lovanio e Friburgo, onde depois de ter obtido o doutorado em Filosofia,
ensinou de 1927 a 1938. Autor de numerosos livros e artigos sobre
Bergson, Newman e sobre a importância da analogia para a Teologia, em

297
Cfr. MATOS, H. C. J. Nossa História. 500 anos de presença da Igreja Católica no Brasil. Vol. III
Período Republicano e Atualidade. São Paulo, 2011, 66.
298
Cfr. SARANYANA, J. I. Cem anos de Teologia na América Latina (1899-2001). São Paulo, 2005, 35-
36.

200
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1938 voltou ao Brasil e ensinou filosofia na Universidade Federal e na


Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro299.
Neste período se pode falar de uma “Teologia da
neocristandade”300, em que se recorda o nascimento do país sob o Sinal da
Cruz e a forte religiosidade do povo como elementos que fundam o papel
espiritual da Igreja Católica em favor do Estado e do povo brasileiros. Os
bispos, entendidos como representantes do Papa, o Vigário de Cristo, são
os responsáveis em conduzir a nação para redescobrir a sua identidade
essencialmente católica.
Também se desenvolvem, com a ajuda das principais revistas
católicas (“Vozes”, dos franciscanos, “Mensageiro”, dos jesuítas, e “Ave
Maria”, dos claretianos), uma literatura e um discurso apologético de
matriz antiprotestante301 e antiespiritista. Os protestantes estão
associados a interesses estrangeiros contrários aos autênticos valores do
povo brasileiro.
É destacado publicamente, por exemplo, em grandes Congressos
Eucarísticos Nacionais, que o Brasil é a maior nação católica do mundo:
“Creio em ti, hóstia santa, até a morte; quem não crê em ti, brasileiro não
é”, assim canta o refrão do Congresso Eucarístico de 1939.
O número das dioceses cresce, em 1920 são 58, em 1930 são 88 e
em 1940 são 100.
Em 1931 é inaugurada a grande estátua do Cristo Redentor e, diante
do presidente da República, o cardeal Leme consagra o Brasil ao Sagrado

299
Cfr. LEPARGNEUR, H. A Teologia Católica Romana no Brasil. In: AA.VV. Tendências da Teologia
no Brasil. São Paulo, 1981, 73.
300
Cfr. DUSSEL, E. Hipóteses para uma história da teologia na América Latina. In: AA.VV. História da
Teologia na América Latina. São Paulo, 1991, 175-178; MATOS, H. C. J. Nossa História. 500 anos de
presença da Igreja Católica no Brasil. Vol. III Período Republicano e Atualidade. São Paulo, 2011, 59-
61.
301
Cfr. MATOS, H. C. J. Nossa História. 500 anos de presença da Igreja Católica no Brasil. Vol. III
Período Republicano e Atualidade. São Paulo, 2011, 99.

201
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

Coração de Jesus, a fim de que o reconhecesse como Rei e Senhor para


sempre. Em 1939 sob a presidência do cardeal Leme, foi celebrado o
Concílio Plenário da Igreja no Brasil302, cujos decretos foram aprovados por
Pio XII em 1940303. Em 1955 se reuniu a Conferência Geral do Episcopado
Latino-americano no Rio de Janeiro.
A Ação Católica se apresenta como um braço da hierarquia para
exercitar um influxo sobre a sociedade civil e sobre o mundo político, os
leigos são encorajados a desenvolver a sua missão em todos os ambitos
sociais e políticos. Desenvolve-se um “discurso teológico sobre a Ação
Católica” para fundar o papel laical na instauração da nova cristandade. D.
Castro Neri descreveu assim a Ação Católica: “A união de todos os
católicos, religiosamente formados sob a direção eclesiástica para a
recristianização da sociedade”304. A sua missão é a de restaurar o Reino de
Cristo, nas casas e nas escolas, na imprensa e nos escritórios, entre os
eleitores e na legislação305.
Associada a um discurso teológico sobre a Nova Cristandade e sobre
a Ação Católica, emerge uma “Teologia que coloca em relevo a Realeza de
Cristo”, cuja festa é proposta a toda a Igreja pelo Papa Pio XI. Depois de
um período em que a Igreja se viu privada do seu poder temporal, depois
da assinatura do Tratado de Latrão, os papas Pio XI e Pio XII tentaram
repropor a importância da presença cristã na sociedade, uma vez que a
figura teológica do Cristo Rei afirma o domínio divino sobre a história e a
sociedade humana, e a autoridade conexa da sua Igreja. No Brasil, além da

302
Cfr. SCHERER, I. R. Concílio Plenário do Brasil. História da Igreja no Brasil de 1900 a 1945. São
Paulo, 2014, 95-119; MATOS, H. C. J. Nossa História. 500 anos de presença da Igreja Católica no
Brasil. Vol. III Período Republicano e Atualidade. São Paulo, 2011, 84-87; SARANYANA, J. I. Cem
anos de Teologia na América Latina (1899-2001). São Paulo, 2005, 42-46.
303
Cfr. SCHERER, I. R. Concílio Plenário do Brasil. História da Igreja no Brasil de 1900 a 1945. São
Paulo, 2014, 121-122.
304
NERI, C. Programa de Ação Católica. Rio de Janeiro, 1936, 137.
305
Cfr. ibid.

202
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

inauguração do Cristo Redentor, sobre o monte Corcovado, no Rio de


Janeiro, os católicos fizeram uma verdadeira e própria cruzada vitoriosa
para entronizar o Crucifixo nos lugares públicos de reunião (parlamento,
tribunais, escolas, etc.) e os bispos assumiram um lugar de destaque ao
lado das autoridades civis em todas as manifestações de caráter público.
Por outro lado, os políticos e militares participavam de todas as grandes
reuniões religiosas, como os Congressos Eucarísticos Nacionais. O povo
brasileiro era visto como um exército a serviço de Cristo: “Levantem-se
soldados de Cristo, avante, corram, avante, voem rumo à vitória. Abram a
bandeira da glória, o pendão de Jesus Redentor” (Canto popular).
Dos anos 50 em diante se nota um crescimento da sensibilidade
eclesial para com os pobres que se multiplicam, dado que o
desenvolvimento econômico do país parece privilegiar apenas uma
pequena parte da população, com o consequente crescimento da injustiça
social.
Com os anos 60 e o Concílio Vaticano II, novas perspectivas se
abrem para a vida eclesial e para a teologia no Brasil.

Período histórico Características teológicas Personagens


1. Período colonial - Teologia da Cristandade - Pe. Antônio Vieira
(1500-1759) (messiânica);
- Teologia do Exílio;
- Teologia da Paixão.
Observação: atitude
teológico-pastoral de
defesa dos índios (pobres)

203
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

2. Período da - Teologia influenciada - Pe. Feijó


independência pelo galicanismo e pelo
(1760-1840) jansenismo, de quem se
nutre o sonho da
independência ou da
libertação do domínio
colonial.
3. Período da - Teologia do Poder -Pe. Júlio Maria
Reforma Católica ou espiritual da Igreja
Romanização (Hierarquia);
(1840-1920) - Teologia do Mérito;
- Teologia da Reparação.
4. Período da - Teologia da - Cardeal Leme;
Restauração Católica Neocristandade - Jackson de
(1921-1960) (Apologética); Figueiredo
- Teologia da Ação Católica
(laicato, Igreja, mundo);
- Teologia da Realeza de
Cristo

Segundo R. Azzi, L. Boff306 e outros uma leitura atenta da história da


teologia no Brasil oferece elementos que preparam profeticamente o
advento da TdL: do primeiro período emergem a teologia do exílio, a
teologia da paixão e a atitude teológico-pastoral dos jesuítas em defesa
dos índios; do segundo, uma teologia marcada pelo desejo de
independência que estimula a um empenho de ordem religiosa e política
306
Cfr., por exemplo, BOFF, L. O reverso da história (introdução). In: CARVALHO, G. V. A liderança
do clero nas revoluções republicanas:1817-1824. Petrópolis, 1980, 11-12.

204
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

em vista de uma maior autonomia da Igreja no Brasil e da independência


da nação do domínio colonial; do terceiro, o dinamismo teológico-pastoral
da devoção popular, ligado à teologia do mérito; do quarto, o empenho
social e político dos cristãos em vista da recristianização da sociedade.
2. A Teologia da Libertação (1960-)
Esta segunda parte da nossa investigação será dividida em duas
partes: na primeira apresentaremos as linhas gerais e os principais autores
da TdL no Brasil, na segunda estudaremos a contribuição cristológica e
eclesiológica de L. Boff, em função da sua importância para a teologia no
Brasil e no mundo.
2.1 Para um olhar geral
Durante o Concílio Vaticano II, a Revista Eclesiástica Brasileira (REB),
dirigida pelo teólogo Boaventura Kloppenburg, acompanha com atenção
todos os movimentos e as tendências conciliares, realizando um
formidável trabalho de difusão das principais intuições conciliares.
Guilherme Baraúna, discípulo de Kloppenburg, coordena a publicação de
um importante comentário internacional à Lumen Gentium, traduzido em
outras línguas e ainda válido307.
Durante os anos 60 e 70, muitos países Latino-americanos
experimentando por um lado o perigo das revoluções comunistas,
segundo o modelo de Cuba, e por outro o golpe de estado dos militares,
que sob o pretexto de proteger a democracia contra o comunismo
revolucionário, tinham assumido o poder e instaurado um regime de
matriz ditatorial.
A Igreja no Brasil no início sustenta os militares contra o perigo
comunista. Em 1964 os militares com a autorização do parlamento
307
Cfr. BARAÚNA, G. (ed.). La Chiesa del Vaticano II: studi e ommenti alla Costituzione dogmática
“Lumen Gentium”. Firenze, 1965.

205
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

afastam o presidente da república e nomeiam um general como


presidente ad ínterim. Mas no momento em que o regime militar se
radicaliza e deixa entender que teria prolongado o seu governo à custa da
democracia e dos direitos individuais dos seus opositores, os bispos
repensam a posição deles. Em 1969 a Conferência Episcopal Brasileira
(CNBB), encorajada pela publicação da encíclica Populorum progressio308
(1967) e pela Conferência Episcopal Latino-americana de Medellín (1968),
se pronuncia oficialmente contra o governo militar ilegítimo309.
No Brasil não houveram, como em outros lugares da América Latina,
sacerdotes participantes de grupos revolucionários comunistas. Mas com
o crescimento da desigualdade social, muitos cristãos se deixaram seduzir
pelas promessas do socialismo e se empenharam em promover grupos
que pretendiam fomentar, através de diferentes meios, uma verdadeira
cruzada social em vista da defesa dos mais pobres e marginalizados. Eis a
situação política em que nasce e se difunde a Teologia da Libertação no
Brasil.
Segundo os estudiosos, a Teologia da Libertação (TdL) se
desenvolveu em três ou quatro etapas:
A preparação (1962-1968): do Vaticano II à conferência de Medellín,
que é entendida pela TdL como a interpretação Latino-americana do
Concílio;
A formulação (1968-1975): de Medellín à Conferência “Theology in
the Americas” (Detroit 1975). Desenvolvem-se as grandes linhas
teológicas da TdL e na Conferência de Detroit os principais representantes
da TdL se encontram junto aos representantes da teologia feminista e da

308
Como se lê no preâmbulo, a Encíclica Populorum progressio foi pensada como uma palavra profética
do magistério para iluminar em particular a América Latina e a África.
309
Cfr. MATOS, H. C. J. Nossa História. 500 anos de presença da Igreja Católica no Brasil. Vol. III
Período Republicano e Atualidade. São Paulo, 2011, 194-196.

206
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

teologia negra, e se começa a falar de Teologias da Libertação (TdLs). Este


período é dividido em dois por E. Dussel 310 e R. Gibellini311: até 1972 há a
formulação verdadeira e própria da TdL e de 1972 em diante, quando a
referida teologia perde o seu entusiasmo inicial e passa a refletir sobre o
cativeiro e o exílio. A obra de referência é Teologia do cativeiro e da
libertação (1975), de L. Boff;
A sistematização (a partir de 1976): a TdL reflete sobre o seu próprio
método e aprofunda a reflexão sistemática em particular no âmbito da
cristologia, da eclesiologia e da escatologia. Em 1976, é constituída a
Associação Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Mundo 312 (EATWOT), e
assim a TdL passa a integrar o contexto mais amplo da teologia do
Terceiro Mundo.
O primeiro esboço da TdL foi apresentado pelo peruano G.
Guttiérrez em 1968313, poucas semanas antes de Medellín, e publicada em
1969 (“Hacia uma teología de la liberación”). Dois anos mais tarde as suas
ideias foram aprofundadas e ampliadas na obra “Teología de la
Liberación” (1971).
A palavra “libertação” é correlativa à palavra “dependência”,
provem das ciências sociais e da pedagogia. Em 1961, o escritor
martinicano Frants Fanon publica em Paris, com uma prefação de Jean-
Paul Sartre, a obra “I dannati della terra” [Os condenados da terra], um
verdadeiro manifesto contra o colonialismo europeu, que proclama a
descolonização já em ato, ou seja, a libertação das nações oprimidas314.
310
Cfr. DUSSEL, E. Hipóteses para uma história da teologia na América Latina. In: AA.VV. História da
Teologia na América Latina. São Paulo, 1991, 180-184.
311
Cfr. GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX. São Paulo, 1998, 348.
312
Cfr. TORRES, S.; EAGLESON, J. (orgs). The emergent Gospel Theology from the Underside of
History (Papers from the Ecumenical Dialogue of Third World Theologians, Dar-es-Salaam, August 5-
12, 1976)
313
Cfr. SARANYANA, J. I. Cem anos de Teologia na América Latina (1899-2001). São Paulo, 2005, 35-
88.
314
Cfr. GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX. São Paulo, 1998, 351.

207
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

No âmbito das ciências sociais na América Latina, se observa uma


tendência, nos anos 60, de ir além da “teoria do desenvolvimento”,
segundo a qual a América Latina era vista como uma região em atraso que
dependia de um sistema orgânico de ajuda dos países desenvolvidos para
encontrar o caminho do desenvolvimento. É, então, elaborada e difundida
por diversos autores, entre eles três brasileiros (Theotonio dos Santos,
Celso Furtado e Fernando Henrique Cardoso), a “teoria da dependência”,
a qual sustentava que o subdesenvolvimento dos países Latino-
americanos era na realidade uma consequência estrutural do
desenvolvimento dos países ricos. O desenvolvimento não chegará sem
uma ruptura (libertação) da relação de dependência existente entre os
países pobres e aqueles ricos315. A teoria da dependência dará depois
origem a uma sociologia da libertação e a um modelo econômico a ela
relacionado316.
No âmbito pedagógico as obras do brasileiro Paulo Freire, “A
educação como prática da liberdade” (1967) e “A pedagogia dos
oprimidos” (1971), formulam uma teoria em que a finalidade da educação
é apresentada como a formação da consciência em vista da plena
libertação do homem. Nasce no Brasil um modelo de educação, ainda em
vigor, que poderia ser chamado pedagogia da libertação.
No Brasil as duas obras que marcam o início de uma TdL brasileira
são “Jesus Cristo libertador” (1972), de L. Boff, e “Opresión-Liberación.
Desafío a los cristianos” (1971), que será reelaborada e publicada em 1973
sob o título de “Teologia desde la praxis de la liberación” (1973), de H.
Assmann.

315
Cfr. ibid., 352.
316
Cfr. AMIN, S. L’accumulation à l’échelle mondiale. Paris, 1970.

208
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

Os dois autores provém do sul do Brasil, mas Boff descende de uma


família de italianos e Assmann pertence a uma família alemã. Ambos
estudaram na Europa, Boff na Bélgica e na Alemanha, Assmann na Itália e
na Alemanha. Assmann, convidado pelos amigos K. Rahner e J. B. Metz,
ensinou Teologia Latino-americana em Munster (1969-1970), depois que
deixou o ministério sacerdotal e se casou, se transferiu para Montevidéu,
onde fez amizade com outro grande nome da TdL, J. L. Segundo. Viveu e
ensinou teologia e sociologia na Bolívia, Chile e Costa Rica, antes de voltar
ao Brasil em 1981, onde ensinou por muitos anos na Universidade
Metodista de Piracicaba. Boff, por sua vez, depois de ter obtido em 1970 o
doutorado em teologia em Mônaco na Baviera, voltou ao Brasil, onde
assumiu um papel teológico capital, tornando-se o mais famoso teólogo
brasileiro. Em 1984, depois de ter sido advertido em relação aos limites e
aos erros da sua eclesiologia, pelo então prefeito da Congregação para a
Doutrina da Fé, o cardeal Joseph Ratzinger, abandonou a ordem
franciscana e o sacerdócio ministerial, para conviver com sua ex-secretária
e consagrar-se, como teólogo leigo, à teologia, à espiritualidade e à
eco(teo)logia.
No âmbito protestante da TdL brasileira, merece ser recordado o
teólogo, pedagogo e letrado presbiteriano Rubem Alves, que depois de ter
obtido o doutorado em teologia em Princeton (1968), publicou a sua tese
em 1969 com o título “Teologia da Esperança Cristã”, em que criticava
severamente a “Teologia da Esperança” de Moltmann. Afirma que a
linguagem teológica tradicional é de natureza metafísica e meta-histórica,
enquanto assinala o nascimento de novas comunidades cristãs cuja
linguagem teológica se apresenta como de tipo histórico e concreto.

209
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

Alguns teólogos associaram a TdL à “Teologia da Revolução” (TdR),


que foi formulada pela primeira vez em 1966, em ocasião da Conferência
sobre a Igreja e a Sociedade, promovida pelo Conselho Ecumênico das
Igrejas (CEI) em Genebra. O americano R. Shaull no rastro do “Social
Gospel”317, de W. Rauschenbusch, e do Socialismo religioso 318 dos suíços H.
Kutter e L. Ragaz (“Sie müssen”, 1903), propôs uma reflexão sobre a
relação entre vocação cristã e a participação na luta revolucionária. Mais
tarde, o debate se enriqueceu com a relação entre o conceito de
revolução e Reino de Deus.
H. Assmann observa que apesar do influxo que a TdR teve sobre a
TdL, a TdR trata do tema de modo abstrato ou genérico, longe dos fatos,
enquanto a TdL é um ato segundo (= momento teórico de uma prática-
práxis prévia), que se baseia sempre sobre a “práxis da libertação”,
sinônimo de uma escolha política, ética e evangélica do teólogo em favor
dos pobres319. Nascida da práxis, a TdL gera uma práxis libertadora, ou seja
se apresenta como um motor de transformação ou de libertação para a
realidade concreta da América Latina.
O belga, radicado no Brasil, Joseph Comblin retomou o tema da
relação entre TdR e TdL nas suas obras “Théologie de la révolution” (1970)
e “Théologie de la pratique révolutionnaire” (1974). Segundo o autor, que
ajudou a fundar em 1969 a “Teologia da Enxada” no Brasil, a TdL é mais
ampla que a TdR, mas ao mesmo tempo a TdL não poderá realizar a sua
missão de gerar uma nova práxis pastoral se não houver uma revolução
que leve ao superamento do domínio imperialista dos países

317
Cfr. RUBBOLI, M. (ed.). Social Gospel. Il movimento del Vangelo sociale negli USA. Gli scritti
essenziali (1880-1920). Torino, 1980.
318
Cfr. DERESCH, W. (Ed.). La fede dei sociallisti religiosi. Antologia di testi (1972). Milano, 1974.
319
Cfr. ASSMANN, H. Teologia della Prassi della Liberazione. In: AA. VV. Dibattito sulla Teologia
della Rivoluzione. Brescia, 1969, 79-94. Cfr. Também MARCHESI, G. Puebla e la Teologia della
Liberazione, La Civiltà Cattolica, 131, 1980, 130.

210
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

desenvolvidos. Segundo Comblin, a libertação Latino-americana seria um


dos aspectos da desejada revolução mundial da sociedade
contemporânea, que conduz rumo a uma sociedade unitária capaz de
abraçar todas as nações320. A grande maioria dos teólogos da libertação
não veem com simpatia a Teologia da Revolução. H. Assmann e Leonardo
Boff, por exemplo, afirmam que ela é fruto de uma sociedade rica, um
modo com o qual os cristãos desta sociedade procuram compensar o
vazio da incidência do cristianismo na história321.
Teólogos europeus e latino-americanos associaram o nascimento da
TdL à Teologia Política322 de J. B. Metz. Por um lado é verdade que se pode
dizer que todas duas convergem para uma orientação política da Teologia
nos anos 60, por outro existem diferenças relevantes. Enquanto a Teologia
Política com uma conferência de Metz no Convênio de Toronto, durante o
verão de 1967, a TdL nasce, como dissemos, no verão de 1968, de uma
conferência de Gutiérrez no Peru. As duas teologias são praticamente
contemporâneas e nascidas em ambientes muito diversos, todavia parece
superficial a opinião de quem vê a TdL como uma versão latino-americana
da Teologia Política, apesar das afinidades e os influxos recíprocos que
podem ter havido. Na realidade estas duas teologias se enfrentaram, por
assim dizer, durante o Convênio de Genebra, em 1973, organizado pelo
Conselho Ecumênico das Igrejas, e, mais tarde, com a polêmica carta de J.
Moltmann ao teólogo argentino J. M. Bonino (1975) 323. Em 1877, no
Mexico324, numa atmosfera mais relaxada e serena, ocorre outro encontro
320
Cfr. COMBLIN, J. Théologie de la pratique révolutionnaire. Paris, 1974, 16.
321
Cfr. BOFF, L. Eine kreative Rezeption des II. Vatikanums aus der Sicht der Armen: Die Theologie der
Berfreiung. In: KLINGER, E.; WITTSTADT (eds.). Glaube im Prozess. Christsein nach dem II.
Vatikanum. Freiburg-Basel, 1984, 632-633. Boff cita um texto de H. Assmann.
322
Sobre a Teologia Política cfr. ARDUSSO, F. La teologia política. In: MARRANZINI, A. Correnti
Teologiche Postconciliari. Roma, 1974, 35-53.
323
Cfr. MOLTMANN, J. Lettera aperta a José Miguez Bonino. In: GIBELLINI, R. (Ed.). Ancora sulla
teologia politica: il dibattito continua. Brescia, 1975, 202-217.
324
Cfr. PIXLEY, J.; BASTIAN, J. B. (eds.). Praxis cristiana y producción teológica. Salamanca, 1977.

211
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

entre os teólogos da libertação e os representantes da Teologia Política,


no qual se conseguiu destacar sejam as diferenças, sejam as semelhanças
entre a TdL e as teologias europeias e norte-americanas, inclusive a
Teologia Política (= TP).
Resumimos esquematicamente o modo com que Gutiérrez vê a
diferença entre a TdL e a TP:

TP TdL
Enfrenta o desafio da Tem como interlocutor o pobre, o
racionalidade crítica e da liberdade homem esquecido da América
individual no âmbito de uma Latina que deve tornar-se o sujeito
sociedade burguesa. da libertação integral.
Enfrenta os problemas da Analisa as bases históricas
modernidade, mas não questiona concretas da América Latina.
as bases históricas concretas do
mundo moderno.
Teologia feita por intelectuais. Teologia feita pelos
marginalizados, pelos pobres, em
vista de uma nova compreensão da
fé e da vida cristã.

A TdL e a TP, de qualquer modo, teriam o mérito de reivindicar o nexo


entre fé, teologia e práxis, e de despertar as consciências dos cristãos pra
a responsabilidade social do cristianismo325.
Um teólogo brasileiro, tornou-se internacionalmente conhecido
graças à sua reflexão sobre o método da TdL: o servita C. Boff, irmão mais

325
ILLANES, J. L.; SARANYANA, J. I. Historia de la Teologia. Madrid, 2002, 398.

212
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

jovem de L. Boff. No seu importante ensaio “Teologia e Pratica. Teologia


del Politico e delle sue mediazioni” (1978)326, o autor afirma que a
peculiaridade epistemológica da TdL é a assunção da mediação sócio
analítica, necessária para a interpretação da realidade social. Diante desta
mediação sócio analítica, são possíveis três atitudes que caracterizam três
modos de fazer teologia327:
1. Teologia tradicional: C. Boff afirma que a teologia tradicional ou
teologismo ignora a importância da mediação sócio analítica, porque tem
a pretensão de poder dizer tudo, como e a Teologia não tivesse
necessidade de outras ciências. Por esta razão, o “teologismo”, segundo o
autor, substitui a mediação sócio analítica da teologia;
2. Teologia política: esta teologia sofreria de uma espécie de
esquizofrenia metodológica, que o autor chama metaforicamente
bilinguismo, na medida em que faria duas leituras sinóticas da realidade,
uma teológica outra sócio analítica, duas leituras justapostas e não
articuladas. As consequências são: a) uma linguagem em que convivem
misturados dois gêneros linguísticos e semânticos, ou sociológicos ou
teológicos; b) a mediação sócio analítica não está em grau de condicionar
a hermenêutica teológica e a prática pastoral;
3. TdL: atua frutuosamente a mediação sócio analítica, em vista da
reflexão teológica.
Resumamos esquematicamente:
Teologia tradicional ou Teologismo Ignora a mediação sócio política.
Teologia política Atua a mediação sócio analítica
justaposta à mediação teológica.

326
Cfr. MONDIN, B. Storia della Teologia, vol. IV, Epoca Contemporanea. Bologna, 1997, 737.
327
Resumamos BOFF, C. Teologia e Pratica. Teologia do político e suas mediações. Petrópolis, 1978,
335-353.

213
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

TdL Atua a mediação sócia analítica.

C. Boff evita o termo marxismo para referir-se à mediação sócio


analítica da TdL. Este ponto levantou algumas polemicas também no
interior da TdL. Por exemplo, para Gutierrez, a análise marxista da
realidade é um elemento necessário, enquanto para o argentino L. Jera,
não é. No Brasil, prevaleceu a opinião que a análise marxista é importante
para uma verdadeira compreensão da realidade Latino-americana e tal
atitude foi de qualquer modo preparada pelo método “ver, julgar, agir”
promovido pela Juventude Operária Católica, movimento ligado à Ação
Católica, nascido na Bélgica (1923), que chegou no fim dos anos 40 no
Brasil. O referido método “jocista”, proposto por João XXIII no n. 217 da
encíclica Mater et Magistra (1961) como instrumento válido para a
reflexão teológica sobre a doutrina social da Igreja, se torna um método
que é assumido pelo CELAM e pela Conferência Episcopal Brasileira
(CNBB) quase como obrigatório nas próprias assembleias e nos próprios
documentos328. Na sua versão mais pastoral e popular, a mais difundida no
Brasil, a TdL uniu a análise marxista ao método “jocista”: a referida análise
se torna um instrumento de leitura da realidade, um critério de juízo e
uma luz orientadora para a práxis.
Ao lado da mediação sócio analítica, segundo C. Boff, se encontram
outras duas mediações que são a mediação hermenêutica e a mediação
prático-pastoral. Ambas se encontram presentes também no discurso
teológico tradicional.

328
Segundo C. Boff, a Conferência de Aparecida rompeu com o método ver-julgar-agir no esboço do seu
documento final, na medida em que parte de um primeiro capítulo cristológico, para depois analisar a
realidade do homem latino-americano. Cfr. BOFF, C. Teologia da Libertação e volta ao fundamento,
Revista Eclesiástica Brasileira, 268, 2007, 1001-1022. Cfr. também BRIGHENTI, a. A epistemologia e
o método da teologia da libertação no pensamento de Clodovis Boff, Horizonte, 32, 2013, 1403-1435.

214
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

A TdL exige uma renovada hermenêutica, um novo método de


interpretar a Sagrada Escritura e as outras fontes teológicas, não de um
modo abstrato ou metafísico, mas à luz da situação política e social
concreta, inclusive graças à mediação sócio analítica. Por exemplo: a
mediação hermenêutica, segundo C. Boff, é capaz, “através do conceito
teológico de salvação”, de “transformar o conceito sociológico de
libertação, de modo a produzir uma proposição teológica como ‘libertação
é salvação’”329.
A tendência à práxis, característica da TdL exige uma mediação
prático pastoral, fruto das mediações sócio analítica e hermenêutica. As
três mediações correspondem a um esquema tripartido: análise dos fatos
(ver), reflexão teológica (julgar) e sugestões pastorais (agir), normalmente
presente nos documentos eclesiásticos ligados à TdL330.

Método da TdL (C. Boff)


1. Escolha prévia de 2. Mediação sócio 3. Mediação 4. Mediação
natureza política, analítica hermenêutic prático-
ética e evangélica (sociologia ancilla a pastoral
theologiae)
Prática prévia Teoria Prática ou
práxis
libertadora

Na realidade se poderia dizer que na concepção de C. Boff, a teoria


seria um momento da prática (primado da práxis): Prática prévia  Teoria

329
Cfr. BOFF, C. Teologia e Pratica. Teologia do político e suas mediações. Petrópolis, 1978, 171.
330
Cfr. GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX. São Paulo, 1998, 356.

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(mediação sócio analítica + mediação hermenêutica)  Prática ou práxis


libertadora.
Os estudiosos frequentemente se referem ao fato que podem se
classificar as correntes existentes no interior da TdL segundo a natureza
da práxis pastoral que as caracteriza331: a) Teologia a partir da práxis
pastoral da Igreja. Trata-se de uma TdL em sentido largo, cuja finalidade é
promover uma libertação de tipo pastoral e espiritual. Esta é a ótica de
Medellín e de muitos documentos da Conferência Episcopal Brasileira
(CNBB); b) Teologia a partir da práxis dos povos latino-americanos 332. É a
linha de alguns teólogos argentinos (L. Gera e J. C. Scannone), que
privilegiam os aspectos culturais do ethos popular e não os sociopolíticos;
c) Teologia a partir da práxis histórico-cultural. Trata-se do modelo mais
científico e difundido na literatura teológica latino-americana (G.
Gutierrez, L. Boff, J. Sobrino, etc.). a finalidade é a libertação integral do
homem (político-social e ético-religiosa). Geralmente quando se fala de
TdL, se pensa nesta corrente; d) Teologia a partir da práxis política
revolucionária (Frei Beto, Pastoral da Terra, Inter-eclesial das CEBs).
Cultivada por alguns grupos cristãos de vanguarda, que operam a
metodologia marxista de um modo frequentemente acrítico. A linguagem
é sociologicamente cristã à serviço da luta – elitista – de classe.
No Brasil, prevaleceram as correntes da TdL que parte da prática
pastoral e a que parte da práxis histórica. Nem sempre é fácil distinguir as
fronteiras entre estas correntes nas obras teológicas.

331
Cfr. SCANNONE, J. C. La teologia della liberazione: caracterizzazione, correnti, tappe. In:
NEUFELD, K. (ed.). Problemi e prospettive di teologia dogmatica. Brescia, 1983, 393-424. Cfr.
também ID. ,Teología de la liberación y praxis popular. Aportes críticos para uma teología de la
liberación. Salamanca, 1976; GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX. São Paulo, 1998, 357;
SARANYANA, J. I. Cem anos de Teologia na América Latina (1899-2001). São Paulo, 2005, 94.
332
Cfr. SARANYANA, J. I. Cem anos de Teologia na América Latina (1899-2001). São Paulo, 2005,
110-113.

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Como lembrou J. Ratzinger, o conceito bíblico de “pobre” foi o


ponto de partida para a confusão entre a imagem bíblica de história e a
dialética marxista. O conceito foi interpretado como sinônimo de
proletariado, no sentido marxista, e serviu para justificar o marxismo
como hermenêutica legítima para a compreensão da Sagrada Escritura 333.
O problema é que aqueles que defendem tal hermenêutica tendem a
afirmar que qualquer outra interpretação da história da salvação, também
aquela do magistério, é uma expressão do esforço da classe dominante
para conservar o próprio poder.
A ideia que a Bíblia raciocina exclusivamente em torno da noção de
história da salvação foi usada contra o magistério e a teologia tradicional
que raciocinam de um modo metafísico, ou seja, permanente, o que se
oporia à história. Uma teologia de tipo metafísico seria contra a história da
salvação e contra o dinamismo libertador da história, que em alguns
autores parece assumir o papel do próprio Deus334.
É evidente como a TdL tenha se ocupado do temam”lugar
teológico”335. Segundo alguns, a característica principal da TdL seria aquela
de basear-se sobre a práxis, entendida como lugar teológico. Na teologia
brasileira criou-se o termo “praxiologia” para designar o ponto de partida
da TdL e o seu modo original de teologizar. Ao lado da práxis, são
apresentados como lugares teológicos privilegiados da TdL os pobres e a
causa da libertação336.

333
RATZINGER, J. Diálogos sobre a fé. Entrevistas realizadas por Vittorio Messori. Lisboa, 2005, 150.
334
Cfr. ibid., 152
335
Cfr. ELLACURÍA, I. Los pobres, ‘lugar teologico’ en la América Latina, Misión abierta, 4-5, 1981,
225-240; LIBÂNIO, J. B. Gustavo Gutierrez. Brescia, 2000; COSTADOAT, J. El “lugar teológico” en
Jon Sobrino, Theologica Xaveriana, 181, 2016, 23-49.
336
Cfr. OLIVEROS, R. História de la Teologia de la Liberación. In: ELLACURÍA, I.; SOBRINO, J.
(eds.). Mysterium Liberationis. Conceptos fundamentales de la teologia de la liberación. Madrid, 1990,
28-29.

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É necessário destacar que os autores da TdL, como L. Boff e C. Boff,


não entendem a expressão “lugar teológico” no sentido de locus
theologicus cunhado por Melchor Cano337. O lugar teológico, segundo a
TdL é a luz (objeto formal quo338) sob a qual se contempla o objeto
material da reflexão teológica, enquanto o lugar teológico caniano se
aproxima da noção de objeto material. Segundo Cano, o locus é objeto
estudado, onde a revelação divina se oferece ao homem.
Em 1984, L. Boff escreve “Do lugar do pobre” 339, uma obra em que
desenvolve o tema do pobre como locus teologicus340. Em 1990, seu irmão
publica um artigo em espanhol, em que resume e aprofunda este tema 341.
“A TdL é uma teologia integral, que abraça toda a positividade da fé sob
uma perspectiva particular: o pobre e a sua libertação” 342. Segundo os
irmãos Boff, esta característica da TdL seria uma revolução copernicana no
modo de entender e de fazer teologia.
A TdL não parte metodologicamente de textos do passado, mas da
presença atual do Senhor nos pobres e na situação histórica deles. Indo
além das indicações do n. 4 da Gaudium et Spes, cuja expressão “os sinais
dos tempos” é entendida no sentido eclesial-pastoral, os autores da TdL
entendem esta expressão em sentido teológico-sacramental, como sinais
autênticos da presença e dos planos de Deus na história 343.

337
Cfr. CANO, M. De locis theologicis. Madrid, 2006.
338
“O objeto formal quo” poderia ser definido como o meio com o qual é estudado o “objeto material”,
enquanto o “objeto formal quod” seria o aspecto sob o qual é estudado o “objeto material”, cfr.
DANNA, V. Percorsi d’intelligenza: un viaggio nella filosofia con Bernard Lonergan. Torino, 2003,
66.
339
Cfr. BOFF, L. Do lugar do pobre. Petrópolis, 1984,
340
Para uma séria crítica desta obra cfr. ILLANES, J. L. Teología de la Liberación. Análisis de su
método, Scriptura Theologica, 17, 1985, 743-788.
341
Cfr. BOFF, C. Epistemologia y método de la teología de la liberación. In: ELLACURÍA, I.;
SOBRINO, J. (eds.), Mysterium Liberationis, 79-113.
342
BOFF, C. Epistemologia y método de la teología de la liberación. In: ELLACURÍA, I.; SOBRINO, J.
(eds.), Mysterium Liberationis, 79.
343
Cfr. SCANNONE, J. C. Situación de la problemática del método teológico em América Latina,
Medellín, 78, 1994, 257.

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Apesar da difusão de um estilo de vida eclesial-pastoral em sintonia


com as ideias promovidas pela TdL, podemos dizer que a sua produção
teológica permaneceu presa nas Faculdades de Teologia, nos seminários e
nos centros de formação teológica para os leigos, enquanto o povo das
paróquias e das Comunidades de Base (CEBs) não conheceram se não uma
versão muito simplificada da TdL, através dos opúsculos bíblicos, que
animavam os círculos bíblicos, e das homilias e dos cursos pastorais que
pretendiam animar e formar os cristãos em viste de um empenho social e
religioso em defesa dos pobres e da libertação deles.
Este empenho libertador promoveu o nascimento de estruturas
pastorais em defesa dos índios, dos camponeses, dos operários, etc.
Alguns grupos procuraram um empenho político mais militante e, de
qualquer modo, abandonaram os quadros ordinários da vida pastoral.
Observou-se que a grande maioria dos católicos marcados por um
catolicismo popular tradicional se demonstrou naturalmente resistente à
perspectiva da TdL que propunha um discurso às vezes muito agressivo 344
– em claro contraste coma humildade e mansidão do Sagrado Coração de
Cristo –, em que o diálogo com a realidade, a história e a sociedade
tomavam o lugar do diálogo com Deus. As celebrações eucarísticas que
deveriam ser o coração das comunidades cristãs às vezes eram
apresentadas e vividas como se fossem apenas uma preparação “mística”
para as reuniões de ordem político-social da comunidade cristã345.
A TdL tendia a descrever o homem pobre latino-americano, no
rastro de Rousseau, como um homem bom e cordial, enquanto o sistema
em que ele vive é malvado e opressor, uma visão simplória e pouco

344
Cfr. LEPARGNEUR, H. A Teologia Católica Romana no Brasil. In: AA.VV. Tendências da Teologia
no Brasil. São Paulo, 1981, 109.
345
Cfr. ibid., 108.

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objetiva, mas necessária para fomentar à luz do socialismo idealista o


germe da libertação346.
Análises recentes sobre o crescimento do protestantismo de matriz
pentecostal e neopentecostal no Brasil, nos últimos 30 anos, revelam um
paradoxo: a Igreja que escolheu os pobres, foi abandonada por eles.
Muitos, em particular os mais pobres e menos instruídos, abandonaram
uma versão política demais e pouco devota do cristianismo que lhes foi
proposta, por um cristianismo mais simples, em que a oração, a conversão
espiritual e o Evangelho vivido na simplicidade da família e do trabalho
oferecem o necessário para uma autentica vida cristã.
Uma última observação geral: nota-se na TdL no Brasil, e em L. Boff
em particular, nos rastros do marxismo e do princípio da esperança de E.
Bloch, uma tendência acentuada a propor uma escatologia imanente e
reduzida, de tipo sociopolítico, em que o Reino de Deus, apesar do
vocabulário bíblico e teológico empregado, se confunde com uma
sociedade utópica liberada do domínio de todas as formas de opressão. A
influência do materialismo no pensamento de Boff é tão determinante
que é totalmente evidente que ele se deixe levar pela tradição scotista e
por uma tendência teológica desplatonizante à ideia que a morte atinge o
homem integral e, por esta razão, não haveriam os novíssimos, mas o
homem morto ressuscitaria imediatamente no fim do mundo (parusia)347.
2.2 Leonardo Boff e a sua contribuição cristológica e eclesiológica
O brasileiro Leonardo Boff348 (1938-) é um dos teólogos latino-
americanos mais conhecidos, influentes349 e discutidos, considerado como
346
Cfr. ibid., 110.
347
BOFF, L. Hablemos de la outra vida. Santander, 1978, 43-44.
348
Para um panorama sobre a biografia e a obra de L. Boff cfr. CARBALLO, J. M. V. Trinidad y
Sociedad. Implicaciones éticas y sociales em el pensamiento trinitário de Leonardo Boff. Salamanca,
2008, 29-331.
349
Segundo B. Mondin, enquanto G. Gutierrez foi o pai da teologia da libertação, Leonardo Boff foi o
seu mais eficaz propagandista, cfr. MONDIN, B. Storia della Teologia, vol. IV, Epoca

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um dos maiores expoentes da teologia da libertação. Boff nos últimos


quarenta e cinco anos publicou mais de oitenta livros e numerosos artigos
e ensaios, muitos dos quais traduzidos em diversas línguas. Os seus livros
são até hoje referimentos bibliográficos quase obrigatórios para as
Faculdades de Teologia e as publicações teológicas no Brasil.
Apresentaremos brevemente a sua cristologia e a sua eclesiologia
que exerceram um forte influxo sobre a teologia no Brasil até o final dos
anos 90350.
2.2.1 Uma Cristologia da Libertação
Na sua obra cristológica de 1972, “Jesus Cristo Libertador” 351, o
autor brasileiro declara o seu programa teológico, no qual não quer
renunciar a fazer tesouro das interpretações atuais, mas pretende
construir pretende construir uma cristologia pensada e vivida na América
Latina352, nitidamente em contraposição ao eurocentrismo teológico. No
interior de um horizonte específico (a América Latina), o teólogo propõe o
primado da ortopráxis sobre a ortodoxia 353. Nesta obra, revela os seus
conhecimentos dos teólogos europeus, em particular dos alemães, e a sua
familiaridade com a exegese liberal, a crítica histórica e a “Jesuologia”. A
abordagem de Boff ao discurso teológico é muito influenciada pela
teologia transcendental de K. Rahner.

Contemporanea. Bologna, 1997, 719. Sob a influência teológica de L. Boff cfr. CONGREGAZIONE
PER LA DOTTRINA DELLA FEDE. Notificatio de scripto P. Leonardo Boff, Ofm, “Chiesa:
Carisma e Potere”. In: Enchiridion Vaticanum n. 9. Bologna, 1987, n.1421.
350
Resumamos DANTAS, J. P. de M. Lo spirito santo “anima” del Corpo Mistico. Radici storiche ed
esempi scelti dell’ecclesiologia pneumatologica contemporânea. Siena, 2017, 452-481.
351
Cfr. BOFF, L. Jesus Cristo Libertador. Ensaio de cristologia crítica para o nosso tempo. Petrópolis,
1972 (tradução italiana Gesú Cristo Liberatore. Assisi, 1975). Neste volume se nota uma abordagem
tipicamente rahneriana (cristologia transcendental) do discurso teológico.
352
Cfr. BOFF, L. Jesus Cristo Libertador. Ensaio de cristologia crítica para o nosso tempo. Petrópolis,
1972, 56. Cfr. também ibid., 57-61.
353
Cfr. MONDIN, B. I teologi della liberazione, 117.

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Boff afirma que a sua cristologia tem como finalidade definir não o
Cristo, mas os latino-americanos, não o mistério mas a posição do povo
latino-americano diante do mistério354.
Estabelece uma nítida separação entre Jesus Cristo, a Igreja e o
Reino de Deus. Jesus Cristo não veio anunciar a si mesmo ou a Igreja, mas
o Reino de Deus que é a realização da utopia fundamental do coração
humano, da total transfiguração deste mundo, uma transfiguração que
significa a libertação da dor, do pecado e da morte355.
O teólogo não parece aceitar que Jesus mesmo seja a boa nova 356, o
Reino em meio a nós (cfr. Lc 17,21), e que a Igreja, por Ele fundada, seja o
germe do Reino (cfr. Lumen Gentium n. 5), ou seja, o início do
cumprimento da promessa escatológica. Esta separação proposta por Boff
tornou-se um ponto de referência para numerosos autores da TdL, como
J. Sobrino por exemplo357.
No capítulo dez do seu ensaio, Boff, depois de ter apresentado a
fórmula calcedoniana, faz próprias as críticas movidas contra ela pela
teologia contemporânea358. Neste capítulo emergem os limites metafísicos
da sua reflexão teológica, um verdadeiro calcanhar de Aquiles do seu
pensamento. Uma fragilidade que coloca em dificuldade a sua
compreensão da união hipostática359 e da obra redentora de Cristo.

354
Cfr. BOFF, L. Jesuscristo Liberador. In: BOFF, L. Jesuscristo y la liberación del hombre. Madrid,
1981, 82.
355
Cfr. ibid., 83.
356
Cfr. JOÃO PAULO II. Encíclica Redemptoris Missio, n. 13.
357
Cfr., por exemplo, SOBRINO, J. Jesús em América Latina. Su significado para la Fe y la cristologia.
Burgos, 1982, 129-206.
358
Cfr. FAUS, J. I. G. Las formulas de la dogmática cristologica y su interpretación actual, Estudios
Eclesiásticos, 46, 1971, 339-367.
359
Em alguns trechos da sua cristologia, Boff se aproxima do Nestorianismo, cfr. BOFF, L. Jesuscristo
Liberador. In: BOFF, L. Jesuscristo y la liberación del hombre. Madrid, 1981, 211.

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Em 1977 é publicado “Paixão de Cristo, paixão do mundo” 360, nesta


obra se apresenta a centralidade cristológica e soteriológica da teologia
boffiana361. Trata-se de uma tentativa de pensar o mistério da obra
redentora de Jesus Cristo, no “lugar social” 362 da opressão-resistência-
libertação (horizonte da teologia da libertação) 363. Destaca-se a figura do
Jesus da história em relação ao Cristo da fé, pelo fato que, segundo o
autor, existe um isomorfismo estrutural entre as situações da época de
Jesus e as do presente latino-americano364. L. Boff, no rastro de uma certa
exegese, tende a fazer de Jesus um apocalíptico, inflamado pelo desejo e
pela espera de uma irrupção iminente do Reino 365. A paixão e a morte na
cruz de Jesus são apresentadas como ato humano-divino de solidariedade
e de amor para com todos os crucificados. Apesar do absurdo da cruz, ela
pode ser o caminho de uma grande libertação366.
Além de uma certa paixão por uma determinada
tendência exegético-histórica, com os desequilíbrios
360
Cfr. BOFF, L. Paixão de Cristo, paixão do mundo. O fato, as interpretações e o significado ontem e
hoje. Petrópolis, 1977 (tradução italiana Passione di Cristo, passione del mondo. Il fatto, Le
tinterpretazioni e il significato ieri e oggi. Assisi, 1978)
361
Sobre o significado da morte e ressurreição de Cristo na teologia de L. Boff cfr. SILVA, L. C. da.
Morte e Ressurreição de Jesus Cristo como chave de libertação humana. Estudo analítico crítico a
partir das cristologias de Leonardo Boff e Jon Sobrino (Pars dissertationis ad doctoratum Theologiae
dogmaticae – Pontificia Universitas Gregoriana). Roma, 1992.
362
Segundo os teólogos da libertação, a práxis se apresenta como um “lugar teológico-social”. Sobre
este tema cfr. LEHMANN, K. Problemas metodológico-hermenêuticos de la “Teología de la
Liberación”, Medellín, 4, 1978, 3-26.
363
Cfr. BOFF, L. Paixão de Cristo, paixão do mundo. O fato, as interpretações e o significado ontem e
hoje. Petrópolis, 1977, 9-10.
364
Cfr. BOFF, L. Jesus Cristo, Libertador da condição humana, Grande Sinal, 25, 1971, 99-101[99-
110]. À luz da ressurreição, Boff afirma a continuidade entre o Jesus histórico e o Cristo da fé, cfr.
BOFF, L. Jesus Cristo Libertador. Ensaio de cristologia crítica para o nosso tempo. Petrópolis, 1972,
154. No que se refere ao isomorfismo estrutural entre a sociedade de Jesus e a sociedade latino-
americana, podemos perceber como seja importante na reflexão teológica do autor a análise
sociopolítica de matriz marxista, cfr. MONDIN, B. Teologia della Liberazione: rassegna bibliográfica.
In: Anuario de Historia de la Iglesia, 3, 1994, 250. Sobre a relação entre teologia da libertação e
marxismo cfr. COTTIER, G. La théologie de la libération et le marxisme, Nova et Vetera, 60, 1985,
66,73.
365
Cfr., por exemplo, BOFF, L. Paixão de Cristo, paixão do mundo. O fato, as interpretações e o
significado ontem e hoje. Petrópolis, 1977, 79-90. Cfr. também MARSON. Il método della teologia
della liberazione in Gustavo Gutiérrez, Leonardo e Clodovis Boff, Juan Luis Segundo, 242.
366
Cfr. BOFF, L. Paixão de Cristo, paixão do mundo. O fato, as interpretações e o significado ontem e
hoje. Petrópolis, 1977, 158. Boff indica a morte de Jesus Cristo na cruz como causa exemplar, mas
não parece colocar em relevo que a morte de Jesus é causa instrumental eficaz de salvação humana;
do mesmo parecer MONDIN, B. I teologi della liberazione, 126.

223
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consequentes, e além de uma efetiva carência de


dimensão trinitária [...] o limite fundamental é talvez
encontrado numa mentalidade fracamente sensível ao
problema ontológico [...] o plano ontológico não é
nunca diretamente tematizado: num certo sentido se
pressupõe ele, ou então o se faz deduzir pela narração
da história extraordinária de Jesus367.
2.2.2 Uma nova eclesiologia?
As obras eclesiológicas mais importantes de L. Boff são as suas teses
de doutorado “Die Kirche als Sakrament im Horizont der Welterfahrung”
(A Igreja como sacramento no horizonte da experiência do mundo, 1972),
“Eclesiogênese”368 (1977 e “Igreja: carisma e poder”369 (1981).
A sua tese, orientada por L. Scheffczyk, foi publicada em 1972. Em
seu trabalho de pesquisa, Boff com a ajuda de noção teológica de
“sacramento”, procura elaborar uma imagem da Igreja que seja capaz de
abraçar, sem separar, o humano e o divino, e possa legitimar diante do
mundo contemporâneo a sua existência e missão. Apesar da importância
desta obra, podemos dizer que nela não emerge ainda a originalidade do
pensamento eclesiológico boffiano, cuja importância é fundamental para a
teologia da libertação na América Latina370.
Boff, no rastro de uma certa exegese371, afirma que o Jesus pré-
pascal não fundou a Igreja, mas pregou o Reino de Deus numa perspectiva
de escatologia iminente. Jesus faliu na sua intenção de instaurar o Reino e
depois de um confronto político-religioso foi crucificado, mas apesar da
367
MARSON. Il método della teologia della liberazione in Gustavo Gutiérrez, Leonardo e Clodovis
Boff, Juan Luis Segundo, 245.
368
Crf. BOFF, L. Eclesiogênese. As comunidades eclesiais de base reinventam a Igreja. Petrópolis,
1977. A partir de 2008, a obra em português é publicada com o título: Eclesiogênese: a reinvenção da
Igreja. Rio de Janeiro, 2008.
369
Crf. BOFF, L. Igreja: carisma e poder. Petrópolis, 1981. Cfr. também CONGREGAZIONE PER LA
DOTTRINA DELLA FEDE. Notificatio de scripto P. Leonardo Boff, Ofm, “Chiesa: Carisma e
Potere”. In: Enchiridion Vaticanum n. 9. Bologna, 1987, n.1421-1432.
370
Para um breve olhar na eclesiologia da teologia da libertação cfr. MONDIN, La Chiesa primizia del
Regno, 182-186.
371
Boff cita autores como A. Loisy, P. V. Dias, A. Vögtle e H. Küng. Cfr. BOFF, L. Ecclesiogenesi, 78-
79.

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falência consciente (cfr. Mc 15, 34) nunca se desesperou e entregou sua


vida e o mundo ao Pai. Deus “cumpriu a expectativa de Jesus: na sua
pessoa construiu o reino”372. A morte (falência) de Jesus torna possível a
Igreja, enquanto a sua ressurreição é o fundamento da fé da comunidade
primitiva e é garantia da realidade do seu Reino 373. Por essa razão,
segundo Boff, “pode-se falar de Igreja somente a partir da fé na
ressurreição [depois da ascensão e de Pentecostes]” 374. O Jesus pré-pascal
deu à Igreja as bases preliminares de fundo, todavia na sua forma
concreta e histórica ela se refaz à decisão dos Apóstolos, iluminados pelo
Espírito Santo (cfr. At 15,28). A tradição sempre ensinou que a Igreja nasce
no dia de Pentecostes: “Por esse critério ela tem um fundamento
cristológico e um pneumático. Esta constatação é de grande importância,
porque explica que o elemento carismático tem, desde o início, um
caráter institucional e não fortuito e superficial”375.
O fundamento pneumatológico da Igreja a torna sempre missionária
ente os pagãos, aberta à novidade do momento histórico e cultural, capaz
de anunciar com uma linguagem compreensível a mensagem libertadora
do Reino376.
Mundo e Reino são duas coordenadas necessárias para a
compreensão da Igreja. O mundo, atualmente marcado pelo pecado, é o
lugar da realização histórica do Reino. O Reino constitui a utopia 377
realizada no mundo, “é o final feliz da totalidade da criação finalmente
libertada em Deus por toda perfeição e compenetrada pelo divino que a

372
BOFF, L. Ecclesiogenesi. Le comunità di base reinventano la Chiesa, 89.
373
Cfr. ibid., 90.
374
Ibid., 79.
375
Ibid., 95.
376
Cfr. ibid., 96.
377
Observa-se na obra de Boff um certo primado do elemento utópico (ligado ao futuro e à esperança)
sobre o fatual, cfr. MONDIN, B. I teologi della liberazione, 116.

225
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realiza de modo absoluto”378. A Igreja é a parte do mundo que, na força do


Espírito, acolheu o Reino de forma explícita na pessoa de Jesus Cristo. “A
Igreja não é o Reino, mas o seu sinal (concretização) e instrumento
(mediação) do seu cumprimento no mundo” 379. Na Igreja, o Reino se
antecipa “mais densamente” no mundo.
Relendo a história da Igreja, Boff afirma que esta última nos
primeiros três séculos era mais movimento que instituição, mas com a paz
constantiniana teria se adequado à estrutura do poder romano e depois
do feudal380. Segundo o mesmo autor, ao longo da sua história, a Igreja-
instituição não superou a prova do poder 381. Num mundo em que o
cristianismo vai se fazendo menos indispensável como ideologia da
sociedade moderna secular, num tempo em que a consciência cristã está
percebendo o profundo “impasse” relativo às instituições eclesiásticas,
tudo parece indicar que a experiência da Igreja como poder “esteja
apressando-se ao suspirado ocaso”382. Reconhecendo o seu passado
pouco vivificante, a Igreja-instituição, que apesar dos seus limites tornou
presente e pregou Jesus Cristo Libertador 383, é chamada, segundo o
teólogo brasileiro, a colaborar com o nascimento de uma nova Igreja,
gerada no coração da antiga: “comunidade de base, na periferia da
cidade, igreja dos pobres, feita de pobres, inserimento de bispos, padres e
religiosos nos ambientes marginalizados, centros de evangelização,
realizações levadas à cumprimento pelos leigos” 384. A Igreja se encontra
marcada por um real conflito de classes385 (hierarquia-religiosos x leigos;
378
BOFF, L. Chiesa: carisma e potere, 8.
379
Ibid., 9.
380
Cfr. ibid., 86-91. Cfr. também COLON, E. Teologia della Liberazione. In: Dizionário di
Ecclesiologia, 1426 [1426-1420].
381
Crf. BOFF, L. Chiesa: carisma e potere, 100.
382
Ibid., 101.
383
Cfr. ibid., 103.
384
Ibid., 109.
385
Cfr. ibid., 188-198.

226
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

classes dominantes x classes subalternas; conservadores x comunidades


de base). Esta situação pode ser superada com o retorno às fontes, ao
projeto original de Jesus Cristo, a uma Igreja em que a koinonia seja o
coração da verdadeira vida eclesial e a exousia (da Igreja-instituição)
apenas o fundamento da humilde diaconia386. A Igreja-instituição é
comparada a Sara, aquela que era estéril, que não acredita na
possibilidade de conceber. Enquanto ri, uma Igreja nova está nascendo387.
Em 1977, Boff publica a sua obra “Eclesiogênese” em que apresenta
a experiência das comunidades de base (CEBs) como um novo modo de
ser Igreja. As CEBs dão origem a uma nova eclesiologia e desenvolvem
novos conceitos da teologia (primado da “práxis”) 388. Segundo A. G,
Montes, na obra de Boff o novo critério da autenticidade da eclesialidade
não é mais o ministério de origem apostólica (conceito teológico
tradicional), mas a comunidade como verdadeiro agente de libertação
(conceito sociológico-teológico)389.
O teólogo da libertação afirma a prioridade da Igreja universal em
relação à Igreja particular390 e se põe a pergunta: a comunidade de base é
verdadeira Igreja ou simplesmente contem elementos eclesiais? 391 Depois
de ter apresentado uma série de opiniões na matéria, Boff propõe a sua
reflexão que o leva a afirmar que a fé constitui a realidade mínima
formadora da Igreja particular. Uma vez que esta fé se exprime na
comunhão, todo cristão, por motivo da sua fé vivida comunitariamente, é

386
Cfr. ibid., 107-109.
387
Cfr. ibid., 113.
388
Cfr. BOFF, L. Ecclesiogenesi. Le comunità di base reinventano la Chiesa, 8-9.
389
Cfr. MONTES, A. G. Teología política contemporânea. Historia y sistemas. Salamanca, 1995, 169-
170.
390
Cfr. BOFF, L. Ecclesiogenesi. Le comunità di base reinventano la Chiesa, 39.
391
Cfr. ibid., 25.

227
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

já presença da Igreja universal392. Portanto, conclui o teólogo, as CEBs “são


verdadeiramente autêntica Igreja universal que se atua na base”393.
Na sua obra “Igreja: carisma e poder”, o teólogo brasileiro afirma
que o empenho fundamental da Igreja deve ser a luta pela justiça e a
libertação dos oprimidos, considerada como dimensão essencialmente
constitutiva da evangelização a não só como elemento integrante 394. “A
opção pelos pobres se torna assim o empenho primário e principal da
Igreja”395. Esta opção (missão) se torna o verdadeiro princípio de unidade
da Igreja396.
Boff afirma que a eclesiologia tradicional católica poderia ser
resumida segundo o esquema (vertical-monárquico-piramidal)397:

Deus

Cristo

Apóstolos

Bispos

392
Cfr. ibid., 39-40.
393
Cfr. ibid., 46.
394
Crf. BOFF, L. Chiesa: carisma e potere, 37-54. Cfr. também COLON, E. Teologia della Liberazione.
In: Dizionário di Ecclesiologia, 1426.
395
MONDIN, B. Teologia della Liberazione: rassegna bibliográfica. In: Anuario de Historia de la
Iglesia, 3, 1994, 250 [247-263]. Cfr. também COLON, E. Teologia della Liberazione. In: Dizionário
di Ecclesiologia, 1426.
396
Crf. BOFF, L. Chiesa: carisma e potere, 206. Boff afirma que as divisões na Igreja (da América
Latina), normalmente, não se têm no plano da fé, dos sacramentos e da direção, mas no do empenho
com a realidade (missão). Cfr. também COLON, E. Teologia della Liberazione. In: Dizionário di
Ecclesiologia, 1427.
397
Cfr. BOFF, L. Ecclesiogenesi. Le comunità di base reinventano la Chiesa, 51 e BOFF, L. Chiesa:
carisma e potere, 224.

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022


Padres

Fiéis
Nesta eclesiologia, a hierarquia é comparada à categoria de “classe
dominante”398: enquanto bispos e presbíteros possuem tudo, o fiel leigo
não tem nada. A hierarquia produz os valores religiosos e o povo os
consume399. Para Boff, a hierarquia é o resultado da “férrea necessidade
de ter que si institucionalizar”, “uma mundanização”, no “estilo romano
feudal”400.
O novo modo de ser Igreja, vivido nas CEBs, poderia ser
apresentado segundo o seguinte esquema:
Cristo-Espírito Santo

Comunidade – Povo de Deus

Bispos – padres - coordenadores

Neste novo modelo, se valoriza principalmente a dimensão


pneumatológica da Igreja, todos os serviços são dados ao Povo de Deus:
primeiro vem a comunidade e depois os serviços. O estilo de vida é
fraterno-comunitário (koinonia). Os serviços são flexíveis, nascem segundo
as necessidades401. Neste modelo o ministério ordenado é visto de um
modo reduzido, parece ser somente um princípio de unidade para a Igreja,
um princípio de natureza prevalentemente sociológica402.
398
BOFF, L. Ecclesiogenesi. Le comunità di base reinventano la Chiesa, 51.
399
Cfr. BOFF, L. Chiesa: carisma e potere, 224.
400
Cfr. ibid., 70.
401
Cfr. ibid., 224.
402
Cfr. ibid., 223. BOFF, L. Ecclesiogenesi. Le comunità di base reinventano la Chiesa, 219-223. Cfr.
também COLON, E. Teologia della Liberazione. In: Dizionário di Ecclesiologia, 1427.

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

A Igreja é entendida como uma comunidade que recebe do Espírito


Santo todos os carismas de que tem necessidade. Entre eles se encontram
também os carismas hierárquicos, todavia L. Boff não aprofunda a sua
reflexão sobre a ontologia do ministério ordenado da Igreja. Que ultimo
parece ser apenas um carisma entre tantos. Coerente com o seu modo
unilateral de ver o ministério ordenado, Boff se revela favorável ao
sacerdócio feminino403 e propõe a hipótese que uma comunidade sem
presbíteros possa celebrar em algumas ocasiões validamente a Ceia do
Senhor404.
Segundo o teólogo brasileiro, a Igreja se apoia sobre duas colunas: o
Senhor Ressuscitado e o Espírito Santo. O polo cristológico representa,
pode-se dizer, a dimensão de continuidade ligada ao mistério da
Encarnação. O polo pneumatológico, ao invés, indica a emergência de um
novo elemento que introduz, no interior da criação, uma descontinuidade:
“O Espírito é criatividade e irrupção do novo no meio do grupo, não porém
no sentido individualista ou para a autopromoção da pessoa, mas sempre
em vista do potenciamento da comunidade nas suas necessidades”405.
No décimo segundo capítulo (Uma visão alternativa: a igreja
sacramento do Espírito Santo406) da sua controversa obra “Igreja: carisma
e poder”, Boff, no rastro de autores como H. Mühlen e Y. Gongar, propõe
em alternativa ao modelo da Igreja-instituição (marcada pelo domínio da
hierarquia sobre os fieis leigos), caracterizado pela sua referência
cristológica, uma visão da Igreja como sacramento do Espírito Santo 407, em
contraposição ao modelo eclesiológico somático, entendido como

403
Cfr. BOFF, L. Ecclesiogenesi. Le comunità di base reinventano la Chiesa, 115-158
404
Cfr. ibid., 101-114. Neste caso o coordenador seria um ministro extraordinário da Eucaristia, Cfr.
ibid., 112-114.
405
BOFF, L. Trinità e Società, 245.
406
Cfr. BOFF, L. Chiesa: carisma e potere, 238-253.
407
Cfr. ibid., 238.

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

deficitário e restrito, porque não leva em consideração o fato decisivo da


ressurreição de Cristo.
Com a ressurreição o corpo de Cristo [...] se realizou e
se libertou absolutamente de toda espécie de
limitações, espaciais e temporais [...]. Com a
ressurreição caiu o encapsulamento que restringia o
Jesus carnal reportado numa porção limitada de
espaço e de tempo. Inaugurou-se uma relação global
com toda a realidade. O Ressuscitado se fez o Cristo
cósmico de que falam as Cartas aos Efésios e aos
Colossenses [...] disso resulta que o corpo de Cristo
ressuscitado e pneumático (espiritual) não se pode
considerar como uma grandeza física definida, sobre a
qual se possa traçar os limites da igreja corpo408.

Segundo o teólogo da libertação, quando Paulo utiliza a imagem de


corpo místico de Cristo, pensa ao corpo espiritual (pneumático) do
Ressuscitado. Por esta razão chega a identificar o Ressuscitado com o
Espírito (2Cor 3,17409). Boff conclui:
[...] a igreja deve ser pensada não tanto a partir do
Jesus na carne, quanto e principalmente a partir do
Jesus ressuscitado, identificado com o Espírito. A
Igreja não tem apenas uma origem cristológica, mas
também e especialmente pneumatológica (Pneuma =
Espírito). E enquanto tem origem do Espírito Santo,
que é o espírito de Cristo, ela tem uma dimensão
dinâmica e funcional, que a define em termos de
energia, carisma, construção do mundo410.

408
Ibid., 240
409
A interpretação de Boff, que vê uma identidade entre o Espírito e o Cristo Ressuscitado, não está em
acordo com a exegese atual; cfr. MANZI, F. (ed.). Seconda Lettera ai Corinzi. Nuova versione,
introduzione e commento. Milano, 2002, 165-167; CARREZ, M. La Deuxième Épitre de Saint Paul
aux Corinthiens (Commentaire du Nouveau Testament, deuxième sèrie, VIII). Genève, 1986, 100-
101; BARNETT, P. The Second Epistle to the Corinthians (The New International Commentary on
the New Testament). Grand Rapids-Cambridge, 1997, 199-203; HARRIS, M. J. The Second Epistle to
the Corinthians (The New International Greek Testament Commentary). Grand Rapids, 2005, 309-
313.
410
BOFF, L. Chiesa: carisma e potere, 240-241.

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Segundo Boff, nos seus elementos essenciais, a Igreja foi pré-


constituída pelo Jesus histórico (a mensagem, os Doze, o Batismo, a
Eucaristia), todavia na sua configuração concreta e histórica se apoia
também sobre a decisão dos Apóstolos, inspirados pelo Espírito Santo. O
fato que a tradição tenha sempre acreditado que a Igreja tenha nascido no
dia de Pentecostes, confirma que a Igreja possui um fundamento tanto
cristológico, quanto pneumatológico411.
Ao destacar a importância das decisões tomadas pelos apóstolos
(inspirados pelo Espírito) para o nascimento da Igreja, Boff quer afirmar
que a Igreja prosseguirá a viver na fidelidade à sua missão se os cristãos
continuarem a renovar esta decisão e encarnarão a Igreja nas situações
novas que se apresentam em cada tempo412.
A Igreja é pensada à luz do Cristo Ressuscitado, “que agora existe na
forma de Espírito”413, e do Espírito Santo, “não tento como terceira pessoa
da Santíssima Trindade, como força e modo de atuação pelo qual o Senhor
permanece presente na história e continua a sua obra de inauguração de
um novo mundo”. A Igreja poderia ser definida como o sacramento do
Cristo Ressuscitado, isto é, do Espírito414.
No raciocínio de Boff se nota uma certa confusão entre o Cristo
Ressuscitado e o Espírito, parece que queira destacar uma certa
identidade entre os dois para apresentar um só princípio como
fundamento da Igeja.
Uma análise atenta da eclesiologia de Boff nos permite concluir que
o modelo pneumatológico-carismático, por ele proposto, é unilateral e

411
Cfr. ibid., 242.
412
Cfr. ibid., 243.
413
Ibid., 247.
414
Cfr. ibid., 248.

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

insuficiente para dizer a totalidade do mistério da Igreja em harmonia com


a Escritura, a Tradição e o Magistério.
Concluímos este ponto do nosso trabalho com uma referência à
crítica que a eclesiologia de L. Boff recebeu do seu ex-mestre e amigo B.
Kloppenburg415, único teólogo brasileiro que tomou parte nos trabalhos
teológicos do Concílio Vaticano II. Em 1977, Kloppenburg publicou em
espanhol a obra “Iglesia Popular”, na qual afirmava que a proposta da TdL
de uma “igreja popular” em contraposição a uma Igreja hierárquica,
propunha o nascimento de uma nova seita 416. A posição de Kloppenburg
reflete uma tímida reação católica aos autores da TdL no Brasil que
ganhou força nos anos 80.
A grande dificuldade enfrentada pelas vozes divergentes da TdL em
matéria teológica era a de ser preventivamente acusadas de estar à
serviço das forças conservadoras da Igreja e da sociedade, à serviço da
opressão teológica e sociopolítica. Além disso, as editoras católicas
normalmente não ofereciam espaço para este tipo de literatura crítica à
TdL.
Em 1981, a comissão para a doutrina da fé da arquidiocese do Rio
de Janeiro, presidida pelo bispo auxiliar suíço K. J. Romer, critica
severamente a obra “Igreja: carisma e poder”.
Em 1982, L. Boff envia para a Congregação para a Doutrina da Fé
(CDF) a sua defesa contra as presumidas acusações que a sua obra havia
recebido da comissão arquidiocesana do Rio de Janeiro.

415
Para um olhar na figura e na obra de Kloppenburg, cfr. SILVA R. G. de A. Fray Boaventura
Kloppenburg, OFM. Los caminos de la Ecclesiología em Brasil. Tese de Doutorado. Facultad de
Teología de Navarra. Pamplona, 2010. A crítica dirigida por Kloppenburg à Teologia da Libertação se
encontra na obra KLOPPENBURG, B. Libertação cristã. Seletos ensaios teológicos. Porto Alegre,
1999.
416
Cfr. KLOPPENBURG, B. Iglesia Popular. Bogotá, 1977, 63. Cfr. também, KLOPPENBURG, B. A
Eclesiologia Militante de Boff, Communio, 1, 1982, 126-147.

233
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

Em 1984, o jesuíta J. E. M. Terra escreve o opúsculo “Frei Boff e o


neogalicanismo da Igreja” em que dirige uma severa crítica a L. Boff e à
sua eclesiologia dirigindo-lhe a acusação de repropor um neogalicanismo
com a finalidade de dividir a Igreja417.
Em 7 de setembro de 1984, L. Boff é recebido pelo Cardeal prefeito
da CDF, J. Ratzinger, para discutir sobre os problemas eclesiológicos da sua
obra “Igreja: carisma e poder”. No final da conversa, foram recebidos pelo
Cardeal prefeito dois cardeais prefeitos brasileiros que pretendia defender
as posições teológicas de L. Boff: Aloisio Lorscheider (Fortaleza) e Paulo
Evaristo Arns (São Paulo).
A CDF publicou duas instruções sobre a TdL, “Libertatis nuntius”418,
em 1984, e “Libertatis conscientia”419, em 1986. Enquanto a primeira
mantém um tom sereno de crítica sobre alguns pontos metodológicos e
doutrinais da TdL, a segunda, melhor acolhida pelos teólogos latino-
americanos, reconhece a contribuição da TdL, mas demanda um
aprofundamento dos princípios, da práxis relacionada e oferece algumas
sugestões interessantes em vista disso.
Em 1984, depois da publicação da primeira instrução da
Congregação da Doutrina da fé um grupo de teólogos latino-americanos,
inclusive alguns brasileiros (B. Kloppenburg e Estevão Bittencourt), assina
e publica uma declaração de apoio à referida instrução magisterial e
formula uma série de criticas contra a TdL420.

417
TERRA, J. E. M. Frei Boff e o neogalicanismo da Igreja brasileira. São Paulo, 1984.
418
CONGREGAZIONE PER LA DOTTRINA DELLA FEDE. Libertatis nuntius. In: AAS, 76, 1984,
876-899.
419
Ibid., 554-591.
420
Para o texto da referida declaração, cfr. AQUINO, F. (ed.). Teologia da Libertação. Lorena, 2003,
120-128.

234
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Em 1985, a CDF publica uma nota crítica sobre a obra “Igreja:


carisma e poder”421, em que adverte que certas opções do autor resultam
insustentáveis, em particular aquelas que se referem à estrutura da Igreja,
à concepção do dogma, ao exercício da sacras potestas e ao caráter
profético da Igreja.
3. Perspectivas para a Teologia no Brasil
Apresentamos no final da nossa pesquisa uma espécie de esboço
com algumas observações e algumas proposições que se referem à
Teologia católica no Brasil no início do terceiro milênio.
3.1 O ensino da Teologia no Brasil
A graduação em Teologia foi reconhecida pelo Estado brasileiro
somente em 1999, quase quinhentos anos depois da chegada dos
portugueses. Mas a grande maioria dos estudantes de teologia no Brasil
são seminaristas e religiosos que intraprendem percursos de formação
filosófico teológica em seminários guiados por professores que
frequentemente não tem o título do doutorado.
Os bispos responsáveis pelos seminários, geralmente, sob o influxo
do discurso “praxiológico” dos últimos 50 anos, defendem esta práxis
afirmando que a formação teológica de ser de matriz prático-pastoral. Em
algumas dioceses brasileiras, durante os anos 70 e 80, em nome de uma
certa orientação pastoral da formação seminarística, os seminários
diocesanos foram fechados e os seminaristas confiados a sacerdotes à
serviço das comunidades de base. Tal modalidade de formação foi
chamada Teologia da Enxada. O nível geral da formação teológica é baixo,
também porque a maior parte das vocações provém das classes sociais

421
Cfr. CONGREGAZIONE PER LA DOTTRINA DELLA FEDE. Notificatio de scripto P. Leonardo
Boff, Ofm, “Chiesa: Carisma e Potere”. Disponível em:
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_1985031_noti
f-boff_it.html.

235
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

mais baixas e menos instruídas, e as bibliotecas são pobres. Nota-se uma


tendência (fruto de um pragmatismo anti-intelectualista) a desvalorizar a
teologia sistemática422 e as línguas antigas (latim, grego, hebraico), e em
enriquecer o ordo studiorum com cursos de sociologia, sociologia da
religião, economia, contabilidade, antropologia cultural e psicologia. A
sociologia, geralmente, oferece aos estudantes de teologia os
instrumentos necessários para a mediação socioanalítica que é operada
metodologicamente pela TdL. Não se estuda a história da Teologia no
Brasil.
Existe um destaque entre as faculdades de teologia, pertencentes às
Universidades Católicas, e os seminários diocesanos. A autonomia
concedida à Universidade cria situações paradoxais, em que a vos dos
pastores não parece ter uma verdadeira incidência sobre a vida e as
decisões acadêmicas. Por esta razão, não raramente, os seminaristas de
uma diocese não estudam filosofia e teologia nas Universidades Católicas
locais, mas sim, como dissemos, nos seminários diocesanos.
As Universidades Católicas que possuem faculdades de teologia
estão quase todas em mãos de religiosos (Jesuítas, Maristas, etc.) ou de
dioceses (São Paulo e Belo Horizonte). Os salários dos docentes são
baixos, não existem concursos e se nota em geral entre os docentes uma
atitude teológica de tipo liberal e um pertencimento ou, ao menos, uma
simpatia explícita pela TdL. Paradoxalmente, entre os docentes de
teologia reina, de modo quase dogmático, a convicção que o valor da
teologia acadêmica se encontre na práxis que ela promove.

Cfr. LEPARGNEUR, H. A Teologia Católica Romana no Brasil. In: AA.VV. Tendências da Teologia
422

no Brasil. São Paulo, 1981, 118.

236
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

Quanto aos sacerdotes, a maioria daqueles que prosseguem os seus


estudos depois do percurso seminarístico ou do bacharelado em teologia,
estudam em Roma e vivem no Pontifício Seminário Pio-Brasileiro.
Aqueles que seguem a formação teológica nas Universidades
Católicas brasileiras são geralmente padres (mestrado e doutorado) e
religiosos católicos, pastores e missionários protestantes, e leigos
católicos. Quase todos os estudantes de mestrado e doutorado em
teologia têm bolsas de estudo, graças ao fato que outras faculdades da
Universidade ajudam a sustentar, do ponto de vista econômico, a
faculdade de teologia. Os endereços de especialização são indicativos,
geralmente são de matriz bíblica ou de matriz prático-pastoral, quase não
se utilizam os termos dogmático e moral.
Os custos e as exigências da legislação brasileira em matéria não
encorajam a criação de novas faculdades de teologia no Brasil. Existem
amplas extensões territoriais no Brasil, em particular no nordeste e no
norte do país, desprovidas de faculdades de teologia. A primeira faculdade
de teologia da Amazônia brasileira nasceu somente em 2016.
Não existem associações de teólogos ou convênios e simpósios
teológicos de caráter nacional significativos no Brasil. A Conferência
Episcopal Brasileira, liberal em confronto do exercício da função teológica,
não conseguiu promover uma pesquisa e um discurso teológico que
fossem à altura das suas numerosas e eficazes ações promotoras da vida
pastoral no Brasil423.
A teologia produzida hoje no Brasil é decididamente de ordem
prática e, frequentemente, pastoral, muito atenta à figura teológica do
pobre. Nota-se um desenvolvimento da teologia feminista, da teologia

423
Cfr. ibid., 70.

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

negra e, mais recentemente, de uma teologia do gênero. Raras são as


contribuições dos brasileiros no âmbito mais especulativo da teologia 424, e
geralmente a sua produção teológica é mais apreciada no exterior do que
no Brasil.
3.2 A TdL hoje
Depois dos documentos da Congregação para a Doutrina da Fé
sobre a TdL; os primeiros passos da redemocratização nacional; o
incremento do individualismo e do relativismo, com o consequente
crescimento da falta de interesse sociopolítico e de esperança quanto ao
futuro425; os novos âmbitos de interesse (ecologia, orientalismo, diálogo
inter-religioso) de alguns teólogos da libertação; a diminuição dos
números e dos membros das CEBs; a enorme difusão de movimentos e de
novas comunidades de matriz mais conservadora em matéria teológica e
portanto, desfavoráveis aos discursos e às práxis da “Libertação”, a TdL
começou a perder a sua popularidade e a sua incidência na vida eclesial e
social no Brasil. Alguns falam de um tempo fecundo e importante de
autocrítica426.
Outro fator importante é constituído pela mudança do perfil das
vocações à vida religiosa e sacerdotal. Enquanto nos anos 70 e 80 as
vocações se concentravam nas congregações religiosas e nos seminários
ligados à TdL, dos anos 90 até hoje nota-se uma clara inversão de rota. Os
acima citados seminários e congregações se encontram em dificuldade
vocacional, enquanto as novas comunidades, as congregações e os

424
Cfr. ibid., 119.
425
Cfr. GUTIÉRREZ, G. Situação e tarefas da teologia da libertação. In: GIBELLINI, R. (ed.).
Perspectivas Teológicas para o Século XXI. Aparecida, 2005, 88.
426
Cfr. SILVA, R. M. da. Caminhos da teologia latino-americana: algumas lições do passado e desafios
atuais. In: AA. VV. A Teologia Contemporânea na América Latina e no Caribe. São Leopoldo, 2008,
14.

238
Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

seminários mais tradicionais e conservadores, geralmente desfavoráveis à


TdL, conhecem um contínuo crescimento vocacional.
Na realidade, os exageros no uso impróprio da doutrina e do
vocabulário marxista, a excessiva politização da vida e das estruturas
eclesiais, os experimentos litúrgico-sacramentais, lidos pela maioria dos
católicos como uma falta de decoro e de respeito para com a sacralidade
litúrgica e um discurso contrário a qualquer outra forma de espiritualidade
e de teologia, criou um sentimento e uma consciência eclesial
desfavorável à TdL.
Na primeira década do terceiro milênio, alguns acreditavam que se
poderia declarar a morte da TdL no Brasil. Com o surgir de um novo
quadro socioeconômico, o pensamento da TdL parecia anacronista e
inadequado427.
Com a eleição do Papa Francisco (2013), cuja sensibilidade para com
os pobres é notável e cujos gestos proféticos frequentemente são
instrumentalizados ideologicamente, e com a surpreendente publicação
em 2013 de um livro sobre a TdL 428 (“Do lado dos pobres. Teologia da
libertação, teologia da Igreja”) do então prefeito da Congregação para a
doutrina da fé, G. Müller e por G. Gutiérrez, a voz da TdL se fez ouvir
novamente, com a reorganização de Simpósios Teológicos, novas
publicações e um renovado esforço em promover o renascimento das
CEBs.
Hoje se pode dizer que são poucos os teólogos no Brasil que se
apresentam como adeptos da TdL, mas muitos são filhos de um tempo em
que a teologia experimentava o seu valor na medida em que propunha um

427
Cfr. ibid., 16.
428
MÜLLER, G.; GUTIÉRREZ, G. Dalla parte dei poveri. Teologia della liberazione, teologia della
Chiesa. Padova, 2013. Cfr. também MÜLLER, G. Povera per i poveri. La missione della Chiesa.
Città del Vaticano, 2014.

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Introdução à Teologia – Prof. Dr. Pe. João Paulo de Mendonça Dantas – Ad usum privatum – FCB 2022

discurso profético e crítico, capaz de refletir sobre as causas históricas e


promover a libertação do pobre. Este contexto de formação nos ajuda a
entender porque exista uma verdadeira e própria ditadura da teologia
prático-pastoral no Brasil e porque seja paradoxalmente difundida entre
os teólogos brasileiros uma atitude anti-intelectual. Além disso, não
parecem totalmente superados os complexos antieuropeu e antirromano.
Por outro lado, nota-se entre os teólogos católicos uma ambiance geral
favorável aos encontros e ao diálogo ecumênico, uma vez que a TdL se
desenvolveu num dialogo fecundo entre católicos e protestantes latino-
americanos.
A partir da análise social do presente e de um alargamento do
conceito de “pobre”, emergem novos desafios para a Teologia no Brasil, se
desenvolvem uma ecoteologia, uma teologia feminista, uma teologia
negra, uma teologia das religiões populares e, mais recentemente, uma
teologia do gênero.
3.3 Perspectivas
De modo esquemático tentaremos agora apresentar algumas
perspectivas para a teologia no Brasil.
3.3.1 De uma “teologia popular” à “popularização da teologia”
A TdL tentou elaborar uma teologia popular, mas na realidade os
teólogos da libertação pertenciam à “elite” intelectual e acadêmica. O
povo, com efeito, apenas consumiu alguns subprodutos da TdL, através
dos opúsculos e dos cursos que lhes foram oferecidos.
Ao lado da rede de emissoras de TV (TV Aparecida, TV Nazaré, Rede
Vida), de estações de radio e de centros de formação catequética e
teológica para os leigos, sustentada pela Conferência Episcopal, pelas
dioceses e pelas paróquias, os novos movimentos (Focolarinos,

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Neocatecumenais, Renovação no Espírito) e as novas comunidades


(Shalom, Canção Nova) criaram uma outra rede de emissoras de TV (TV
Canção Nova), de estações de radio e de centros de evangelização e de
formação, contribuindo para suscitar nos leigos o desejo de conhecer a
beleza da tradição teológica católica. Uma série de novas casas editoras
católicas (Cultor de Livros, Ecclesiae, Malokai, Cléofas, Canção Nova,
Shalom) nascem no Brasil por iniciativa dos leigos, de matriz mais
conservadora, e entre os livros de teologia mais vendidos no Brasil se
encontram títulos de Tomás de Aquino, Agostinho, Bernardo de Chiaraval,
Ratzinger, Newman e Chesterton. Nas redes sociais, se difundem canais de
formação teológica (Felipe Aquino, Olavo de Carvalho, Pe. Paulo Ricardo)
cuja popularidade é surpreendente.
Existem os meios mediáticos e eclesiais para levar adiante um
movimento de formação teológica do povo de Deus, que seja capaz de
superar um sentimento contrário à teologia acadêmica que se
desenvolveu entre os leigos, por causa das orientações teológicas e
ideológicas das Faculdades de Teologia e dos seminários.
Uma parceria entre as Faculdades de Teologia, a Conferência
Episcopal do Brasil e as novas realidades eclesiais poderia conduzir a uma
experiência, desejável e de suma importância, de formação teológica
massiça dos leigos no Brasil em vista de ajudá-los a viver com maior
consciência a sua vocação de discípulos e missionários de Cristo.
3.3.2 Do exclusivismo a um panorama teológico mais eclético
Parece necessário e urgente que haja uma passagem de uma
atitude teológica que encontra as raízes do seu método e dos seus
conteúdos na TdL – e que se mostra frequentemente oposto à história da
teologia, à teologia dogmático-especulativa, vista como uma espécie de

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intelectualismo inútil à serviço das forças anti libertadoras, e à teologia


moral clássica, entendida muitas vezes como simples moralismo ou como
instrumento de dominação do magistério sobre as consciências individuais
– para um panorama mais rico e eclético, ou seja mais católico, em que a
diversidade teológica não seja vista como um inimigo da fé, mas como
uma oportunidade para um diálogo franco e enriquecedor. Deste modo,
as Faculdades de Teologia voltariam a ser verdadeiras e próprias
academias do saber teológico e não apenas um “clube” de uma qualquer
corrente teológica.
3.3.3 Estimular os novos movimentos e as novas comunidades a
teologizar a sua experiência em vista do enriquecimento teológico
eclesial
No Brasil existem centenas de movimentos e de novas
comunidades429, a sua importância eclesial e pastoral é reconhecida pela
Conferência Episcopal Brasileira. Um olhar para a história da Igreja nos
ajuda a compreender como as novas realidades eclesiais ao longo da
história (beneditinos, franciscanos, dominicanos, jesuítas,...) ofereceram a
sua contribuição não só à espiritualidade cristã, mas também à teologia.
Quase todas as novas realidades eclesiais tem consciência da
importância de uma sólida formação doutrinal, espiritual e humana, por
isso criaram estruturas formativas para os seus membros (centros de
formação, escolas de liderança, escolas de teologia, casas editoras, etc.).
Por que, então, não estimular uma produção teológica por parte
destas novas realidades eclesiais brasileiras? Poderiam oferecer a sua
contribuição por exemplo no âmbito da pneumatologia, da teologia do
laicato,da eclesiologia, da teologia pastoral, etc.
429
No Brasil existem cerca de 500 novas comunidades reconhecidas pelos seus bispos diocesanos ou
pelo Pontifício Conselho para os Leigos.

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3.3.4 Do preconceito à integração da Teologia Dogmática


É necessário superar a atitude de matriz maniquéia e luterana 430, em
que se tende a opor a Teologia prática à dogmática. Esta oposição não
parece respeitar nem a antropologia católica nem o estatuto
epistemológico da Teologia. A retomada séria dos estudos e das pesquisas
no âmbito da Teologia dogmática pode e deve ajudar no renascimento e
no florescer de uma nova e firme teologia pastoral e de novas atitudes
pastorais mais inteligentes e contemporaneamente conforme à tradição e
ao espírito do povo brasileiro.

Oggi: Futuro:

T. Prática x T. Dogmática T. Dogmática T. Prática

3.3.5 Da análise histórica em vista da teologia à história da teologia


A TdL colocou as bases de um ambiente teológico em que a história
goza de um grande prestígio e a análise histórica da realidade social é vista
como uma das mediações necessárias do método teológico. Mas ao
mesmo tempo, parece que exista uma leitura da história da teologia
marcada de um lado por uma espécie de preconceito que lê o Concílio
Vaticano II e o período pós-conciliar em nítida ruptura com a teologia
anterior, por outro lado, parece que exista uma tendência de matriz
protestante a desvalorizar o papel de fontes teológicas da Sagrada
Tradição e do Magistério. Por estas razões, é práxis difundida que o ensino
dos tratados teológicos singularmente nas Faculdades de Teologia trate
430
Lutero afirmava que vera theologia est practica, cfr. ZWETSCH, R. E. Prefácio à terceira edição. In:
AA. VV. Teologia Prática no contexto da América Latina. São Leopoldo, 1998, 7.

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depois dos seus fundamentos bíblicos e, às vezes patrísticos, a


contribuição do Vaticano II e a sucessiva contribuição magisterial e
teológica em matéria, como se não houvesse uma história da teologia, de
onde emergem elementos essenciais para a correta compreensão
teológica de um tratado.

3.3.6 Do silêncio ao debate sobre os grandes desafios modernos


A TdL no Brasil, graças à sua afinidade com as ciências sociais,
conquistou um lugar para a teologia nos debates acadêmicos sobre as
grandes temáticas sociais, políticas, econômicas, jurídicas, étnicas e
ecológicas, de modo que a teologia brasileira moderna, depois de alguns
anos de silêncio, se sente necessariamente estimulada a oferecer a sua
contribuição específica nos novos debates que animam a vida pública no
Brasil, como por exemplo a teologia do gênero, as discussões a respeito do
aborto e da eutanásia, o debate sobre a natureza, o papel social e os
limites da arte, o pluralismo religioso, nestes debates, a teologia deve
nutrir um espírito de fidelidade criativa à tradição, estar atenta ao homem
e à sua realidade circunstante, mas também ser consciente da sua missão
eclesial e social.

3.3.7 Aprofundar a espiritualidade


Inspirado na obra “Une école de théologie: le Saulchoir”, de M.-D.
Chenu, o qual afirma que por trás de qualquer inteligência da fé se
encontra um modo de seguir Cristo, G. Gutiérez afirma que se deve
aprofundar a espiritualidade ligada à TdL, uma vez que, segundo ele, “a
nossa metodologia é a nossa espiritualidade” 431. Metodologia teológica e

431
GUTIÉRREZ, G. La fuerza historica de los pobres. Lima, 1978, 176.

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espiritualidade são o caminho sobre o qual a teologia na América Latina


deve avançar. Gutiérrez recorda que a escolha preferencial pelos pobres é
ligada a uma experiência profunda e determinante do amor gratuito de
Deus. Uma experiência de amor que nos comunica a vida sobrenatural e
que estimula os fiéis para a recusa de qualquer injustiça e opressão. A
teologia latino-americana deve reler a experiência espiritual do seu povo,
escutar e teologizar o encontro entre o Senhor Crucificado e Ressuscitado
com o homem concreto da América Latina432.
O povo da América Latina não pode ser olhado apenas sob o prisma
da política e da economia, mas faz parte da sua natureza uma fé viva,
essencial para a sua exata compreensão.
Um aprofundamento da dimensão espiritual da fé do homem e do
povo latino-americano pode ajudar a Teologia a libertar-se da influência
de um olhar, às vezes demais ideológico, sociopolítico, em que não é
respeitada nem a natureza do homem e da Igreja, nem a própria natureza
da Teologia.

3.3.8 Reler para repartir...


Depois de quase 50 anos do nascimento da TdL, é necessário reler
de um modo justo e crítico a herança deste movimento teológico
complexo que por cerca de 35 anos foi sinônimo de teologia no Brasil.
Por uma lado é necessário, com serenidade e sem um espírito de
revanchismo, reconhecer que a TdL colaborou para um claro crescimento
da consciência eclesial e teológica da responsabilidade social e histórica
do cristianismo. Uma teologia indiferente à realidade circunstante e ao
sofrimento humano correria o risco de escorregar no cinismo. Como se
432
Cfr. GUTIÉRREZ, G. Situação e tarefas da teologia da libertação. In: GIBELLINI, R. (ed.).
Perspectivas Teológicas para o Século XXI. Aparecida, 2005, 98-99.

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pode no discurso sobre o Deus da vida esquecer o homem, objeto do seu


amor redentor433? A TdL colocou em destaque a necessária coerência
entre a vida do teólogo e a sua teologia, a importância do diálogo entre a
Teologia e as outras ciências humanas, e o papel essencial da práxis.
A TdL, além disso, inspirou movimentos populares que obtiveram
vitórias sociais contra situações de injustiça social e política. Promoveu nas
CEBs e em muitas paróquias o nascimento dos círculos bíblicos, embora
propusesse frequentemente uma leitura politizada da Bíblia.
Por outro lado, é preciso também a coragem e a liberdade
necessária para fazer uma adequada crítica aos erros metodológicos,
conteudistas e praxiológicos da TdL, junto com a capacidade de identificar
no hoje da Igreja no Brasil os conteúdos e as práticas derivantes destes
erros do passado, a serem corrigidos.
A partir do ano 2000, C. Boff propôs esta releitura crítica da TdL e se
afastou do núcleo de tal movimento teológico. Infelizmente poucos
seguiram o seu exemplo, já que parece que no Brasil ainda seja um tabu
teológico a criticar a TdL.
Uma releitura teológica correta e crítica é necessária para relançar a
teologia no Brasil, para indicar os méritos dela, mas também os exageros e
os erros. Estes últimos colocarão em guarda a teologia no Brasil dos riscos
que pode correr (“o sábio aprende com seus erros”). Os méritos
encorajarão os teólogos brasileiros a produzir uma teologia que esteja
atenta ao contexto em que se encontram, sem perder a sua catolicidade.
O maior país católico do mundo merece produzir uma teologia de
qualidade que enriqueça toda a cristandade. Que Nossa Senhora
Aparecida interceda pela Teologia no Brasil. Amém.

433
Cfr. BOFF, L. Teologia da Libertação, 993.

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Sumário
1- Teologia...............................................................................................................................1
1.1- Um pouco de história...................................................................................................1
1.2- O que é Teologia (sentido cristão)?..............................................................................6
1.3- Cristo e a Revelação...................................................................................................13
1.4- Os dois caráteres da Teologia.....................................................................................16
1.5- Deus, objeto ou sujeito da Teologia?.........................................................................21
2- Teologia Sistemática..............................................................................................................26
3- Os Tratados da Dogmática Católica......................................................................................30
4- As Fontes da Teologia............................................................................................................39
3.1- Sagrada Escritura.............................................................................................................40
3.2- Sagrada Tradição.............................................................................................................47
3.3- Magistério da Igreja........................................................................................................58

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5- O Método Teológico..........................................................................................................62
5.1- O Método de Tomás de Aquino......................................................................................62
5.2- Mechor Cano, OP (1509-1560)........................................................................................66
5.3- À luz do Concílio Vaticano II e da Donum Veritatis (1990)..............................................67
5.4- A questão do Método da Teologia da Libertação............................................................70
6- Duas funções da Teologia..................................................................................................74
7- Dogma e dogmas...............................................................................................................78
8- Breve história da Teologia.................................................................................................80
9- Linguagem teológica..........................................................................................................88
10- O Teólogo e o Magistério..............................................................................................93
Bibliografia.................................................................................................................................98
Suplemento 1: S. Theol. I q. 1..................................................................................................100
Suplemento 2: Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação (Congregação para
a Doutrina da Fé).....................................................................................................................110
Suplemento 3: Instrução Libertatis Conscientia (Congregação para a Doutrina da Fé).........126
Suplemento 4: Instrução Donum Veritatis..............................................................................153
Suplemento 5: A importância da Teologia no mundo pós-moderno.....................................166
Suplemento 6: A Teologia no Brasil, entre História e Perspectivas........................................185

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