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Teologia de Santo Agostinho

(Parte 1)
Prof. Dr. Pe. João Paulo de M. Dantas
Conteúdo
1- Teologia Trinitária;
2- Cristologia;
3- Eclesiologia;
4- Mariologia
1- Teologia Trinitária
1.1 A relação entre a Fé, o conhecimento e a experiência no itinerário de Santo
Agostinho (De Trinitate)

• O método de Agostinho na sua obra De Trinitate pode nos ajudar a compreender


o itinerário que deve ser seguido no estudo do Tratado da Trindade. Durante
quase vinte anos (tempo necessário para que ele escrevesse o seu tratado sobre
a Trindade), Agostinho percorreu um itinerário marcado por três momentos que
se interpenetram e que deixam entrever uma continuidade lógica entre eles.
• a) Regula fidei: parte-se do seguro, da verdade na qual a Igreja Católica crê, a
verdade que ela recebeu pela revelação, verdade articulada e condensada no
Símbolo de Fé (Por exemplo: Credo Niceno-Constantinopolitano), verdade que
ela vive e celebra, verdade que ela anuncia ao mundo. Essa verdade pode ser
resumida do seguinte modo: Deus é Uno e Trino — Pai, Filho e Espírito Santo.
b) Intelligentia fidei: na medida do possível, a inteligência iluminada
pela fé (Lumen fidei) busca compreender melhor a verdade crida.
Recordemos o episódio narrado pela tradição hagiográfica, no qual
Agostinho encontrava-se à beira do mar, refletia sobre a Trindade,
quando um menino apareceu, e depois de ter cavado um pequeno
buraco na areia da praia, corria para o mar e voltava para o buraco,
trazendo sempre um pouco de água. O garoto desejava trazer para o
pequeno buraco toda a água do oceano. Santo Agostinho
compreendeu, então, que só o Espírito Santo poderia nos ajudar na
impossível tarefa de acolher em nós o mistério infinito do Deus Uno e
Trino.
c) Experientia fidei: para Agostinho, não bastava “ver”, era preciso “tocar”,
experimentar (vemos isso, especialmente a partir do livro VIII do tratado).
Deus é Amor (1Jo 4,16); sendo assim, o caminho para experimentar Deus é o
caminho do “ágape”9.
“Se Deus é Amor, por que caminhar e correr às alturas dos céus ou às
profundezas da terra à procura daquele que está junto de nós, se quisermos
estar junto dele?”10. Amar a Deus com inteligência, bem como amar o
próximo, só é possível pela ação do Espírito Santo; só Ele pode nos fazer
reconhecer Jesus como Senhor (1Cor 12,3) e o Pai, como o “nosso Pai” ou
nosso “Papai” (Gl 4,6). A experiência com o Espírito me capacita a amar Jesus
Cristo e o Pai, mas, ao mesmo tempo, devemos recordar que o Espírito foi
efuso (derramado) pelo Pai e pelo Filho.
Agostinho recorda que a via caritatis passa obrigatoriamente pelo amor
fraterno, vivido na sua radicalidade evangélica.
Uma frase de Santo Irineu pode nos iluminar a compreender melhor o
ensinamento de Agostinho: “Sem o Espírito não é possível ver o Verbo
de Deus; sem o Filho, não se pode ter acesso ao Pai: pois o
conhecimento do Pai e do Filho acontece através do Espírito Santo,
doado pelo Filho, a quem e como o Pai deseja”.
Para concluirmos este ponto de nosso estudo, vejamos o que nos dizem
dois teólogos contemporâneos renomados no âmbito da teologia
trinitária: a) Piero Coda: “O conhecimento de Deus Trindade é, então,
na sua essência, um evento trinitário, isto é, uma participação real à
vida da Trindade”; b) G. Emery: “A teologia trinitária propõe um
exercício de sabedoria contemplativa e um trabalho de purificação da
inteligência, para esta poder se aproximar do mistério de Deus. Essa
purificação da inteligência se baseia sobre o acolhimento da revelação
de Deus pela Fé (é a “fé que busca a inteligência”). Ela é inseparável da
purificação do coração, que acontece pela oração comunitária e
pessoal”
1.2- O ensinamento de Agostinho (De Trinitate)
No que concerne à doutrina trinitária, Santo Agostinho (†430) é o
teólogo latino mais importante da antiguidade cristã. Ele levou cerca de
20 anos para escrever o seu tratado sobre a Trindade (concluído em
torno do ano 420).
M. Schmaus chamou esta obra de o monumento literário mais
impressionante no que tange à especulação teológica sobre a Trindade.
A. Trapè afirma que “o De Trinitate é a obra de síntese, a primeira do
gênero, ao menos no que diz respeito à profundidade e à sua
amplitude, na história da teologia trinitária”.
O tratado se divide em 15 livros. Sugerimos o seguinte esquema (P.
Coda):
a. Os primeiros 4 livros apresentam o conteúdo da Sagrada Escritura
que diz e ilumina o mistério trinitário, oferecendo à Igreja a regula fidei
(a aceitação fiel do Credo, assim como a Igreja o professa). O autor
sublinha a unidade e a igualdade entre as três Pessoas divinas.
Apresenta largamente as teofanias e explica o conceito de missão
(operação ad extra, livros 2, 3 e 4) que é contribuição mais importante
desta primeira parte da obra;
B- Nos livros 5, 6 e 7 são apresentados o aspecto interno do mistério
trinitário e a doutrina das relações (5 e 6). Trata-se do momento de
aprofundamento especulativo: a inteligentia fidei. Tal aprofundamento
se realiza graças a dois instrumentos: a) a análise lógico-dialética dos
nomes e dos conceitos relativos a Deus; b) a reflexão de caráter
metafísica, que serve para esclarecer em que sentido os conceitos
bíblicos expressam o ser de Deus;
C- A partir do livro 8, Agostinho fala do modo místico com o qual Deus
se dá a conhecer ao homem. Trata-se da experientia fidei. Agostinho
investiga os atributos divinos da verdade, da bondade, da justiça e da
caridade. Neste contexto, encontra-se, do livro 9 ao livro 14, uma
contribuição importante e original de Agostinho à Teologia: ele afirma
que o espírito humano é como um “rastro” da Trindade; no espírito
humano se encontram as “digitais” do Deus Uno e Trino. No livro 15,
Agostinho oferece um resumo da obra, e aprofunda a reflexão sobre a
processão do Verbo e do Espírito, como o amor entre o Pai e o Filho.
Dois, entre tantos, são os temas centrais do itinerário agostiniano: a) a
elaboração da linguagem teológica da “relação” (livros 5 e 6); b) a
análise da imagem do Deus Trindade no espírito do homem (livros 9 a
14).
Mesmo possuindo um valor apologético (contra o subordinacionismo e o
arianismo) e pastoral (ajudar os cristãos a entenderem mais
profundamente a doutrina trinitária, objeto de nossa fé), a obra De
Trinitate foi escrita por um duplo motivo: teológico (Agostinho deseja, a
partir da fé e do amor, aprofundar a compreensão teológica da doutrina
trinitária, por estar convencido que o conhecimento gera amor) e
místico (ele deseja buscar, com humildade, fé e profundo respeito pelo
mistério, o conhecimento vivo, experimental, do Deus que é Uno e
Trino).
1.1.1- O conceito de missão

A elaboração do conceito de missão se encontra em um contexto antiariano. Os


arianos se perguntavam: como o Filho e o Espírito são iguais ao Pai, se são
enviados por Ele? A missão não significa que eles têm um ser
“menor”/“inferior”ao Pai?
“[...] os adversários apresentam outro argumento dizendo: Aquele que envia é
maior do que o enviado; portanto, o Pai é maior do que o Filho [...]. E também
é ele maior do que o Espírito Santo [...]. E o Espírito Santo é inferior a ambos,
porque o Pai o envia [...] e o Filho também o envia [...]”.
Agostinho ensina que o fato de que o Filho e o Espírito tenham no Pai a sua
origem eterna, não significa que sejam “inferiores” a Ele (natureza divina).
• Agostinho define assim o conceito de missão: “sair do Pai e vir a este
mundo, isto significa ser mandado”. A missão divina indica ao mesmo
tempo o proceder de uma pessoa em relação a outra, e um novo modo de
ser desta pessoa no tempo.
• As três Pessoas divinas são, por natureza, onipresentes, mas a missão (do
Filho e do Espírito) constitui um novo modo de ser presente no mundo
(nova modalidade de presença).
• O Filho foi enviado de dois modos: manifestou-se visivelmente na
encarnação e invisivelmente na justificação, sua presença salvífica nas
almas. A encarnação não muda a divindade do Filho, mudanças acontecem
somente no âmbito da natureza humana de Jesus, na natureza humana que
se uniu para sempre à pessoa do Verbo.
A missão do Espírito Santo também é dupla, visível (no dia de
Pentecostes) e invisível (na justificação). É enviado pelo Pai e pelo Filho,
porque procede de ambos, e como um dom dos dois, Ele é recebido na
alma. O Espírito é eternamente “dom”, mas temporalmente “doado”. É
enviado porque é dom em Deus e porque é doado no tempo. O Espírito já
tinha sido dado antes da encarnação do Verbo, mas não do mesmo modo
e com a mesma intensidade, próprios da Nova Aliança.
Comentando as teofanias do Antigo Testamento, Agostinho conclui que as
três pessoas da Trindade são inseparáveis na sua ação ad extra, mas
separáveis nas suas manifestações
1.1.2- A doutrina sobre as relações
Enquanto a doutrina sobre as missões mostra a unidade entre as
Pessoas divinas e a sua obra salvífica, a doutrina sobre as relações
mostra como se articula a diferença entre as três pessoas. O termo
relação é o conceito mais perfeito para descrever a diferença entre as
Pessoas divinas, sem ameaçar ou destruir a unidade da essência.
Gregório de Nazianzo já tinha utilizado este termo (schésis em grego),
mas foi Agostinho que o utilizou no âmbito de uma concepção
teológica sistemática.
• O que é “relação”? A relação, segundo Aristóteles, descreve a ordem
de um ser em relação a outro. Aristóteles descreve a relação como
um acidente, que precisa de uma substância como portadora e de
outra substância, à qual a substância portadora está ordenada, por
causa da relação. Exemplo: os estudantes de uma faculdade X
possuem uma relação com esta faculdade, na medida em que nela
estudam. Esta relação não pode ser pensada sem os estudantes, que
são os “portadores” da relação de estudo. O ser estudante, tratando-
se da pessoa humana, ao menos do ponto de vista filosófico, é um
acidente; isto quer dizer que o ser estudante não coincide com a
substância da pessoa que estuda. Ou seja, a relação é um acidente,
não faz parte da substância.
No que concerne à relação entre o Pai e o Filho, Agostinho esclarece que não se
trata de um acidente em Deus. Um acidente é, por definição, algo variável, que
pode mudar sem alterar a substância, isso não pode acontecer na essência
divina. Deus sempre será Pai, Filho e Espírito Santo. Em Deus, a relação de ser
Pai, Filho e Espírito Santo é invariável e eterna.
“[...] em Deus, nada se diz no aspecto de acidente, pois nele nada é mutável;
mas nem tudo é dito conforme a substância. Usa-se dizer certas coisas de Deus
segundo a relação, como: o Pai diz relação ao Filho, e o Filho ao Pai. Entretanto,
isso não é acidente, pois o Pai é sempre Pai e o Filho é sempre Filho [...] não é
uma relação acidental, porque o ser Pai e o ser Filho é neles eterno e imutável.
Portanto, ainda que seja diferente ser Pai e ser Filho, não significa que haja
diferença de substância, mas, sim, segundo uma relação. E a relação não é
acidental, pois não é mutável” (De Trinitate V,5,6).
Com este conceito, Agostinho transforma a tabela de categorias de
Aristóteles, para falar do mistério trinitário. A noção de “relação”
permite a Agostinho falar da “diferença” entre o Pai e o Filho,
explicando que esta diferença não é de tipo substancial.
O Bispo de Hipona explica que enquanto o conceito de relação é, de
certo modo, implícito no nome do Pai (que aponta para uma relação
com o Filho) e do Filho (que aponta para uma relação com o Pai), não o
é, ao menos aparentemente, no que concerne à pessoa do Espírito
Santo. Entretanto, Agostinho recorda que em At 8,20 (cf. também Jo
4,10), o Espírito é chamado de “dom de Deus”; esta verdade indicaria
que o Espírito Santo seria o dom do Pai e do Filho:
• “Essa relação [do Espírito com o Pai e o Filho], porém, não aparece claramente
nesse nome [Espírito Santo], mas sim sob o nome de “Dom de Deus” (At 8,20),
pois é Dom do Pai e do Filho, visto que procede do Pai (Jo 15,26), como afirma o
Senhor. E quando o Apóstolo diz: Quem não tem o Espírito de Cristo, não
pertence a Ele (Rm 8,9), está se referindo evidentemente ao Espírito Santo [...].
Portanto, o Espírito Santo é como uma comunhão inefável do Pai e do Filho”.

• Agostinho distingue claramente os atributos essenciais de Deus (sabedoria,


justiça, bondade, caridade). Natureza, substância e essência são sinônimos nos
seus escritos. O termo mais adequado para indicar o comum às três Pessoas
divinas é essência. No âmbito das “relações” encontramos o que concerne a
especificidade de cada uma das três Pessoas divinas: o Pai é o Pai, na medida em
que gera o Filho; o Filho é o Filho na medida em que é gerado pelo Pai; o Espírito
é o Espírito na medida em que procede do Pai e do Filho. “Nenhuma pessoa
divina é Pai ou Filho por si mesma, mas cada pessoa o é em relação à outra”.
Em Jo 10,30 lemos: “Eu e o Pai somo um só”; Agostinho ensina que
“um só” refere-se à essência, e que “Eu e o Pai” refere-se à relação.
Esta dupla relação é descrita por Agostinho de um modo brilhante: em
Deus tudo é uno “exceto o que é dito de cada uma das pessoas em
relação às outras” (De Civitate Dei XI,9,10).
O fato de que Agostinho tenha sublinhado a importância do termo
“relação” fez com ele utilizasse menos em suas explicações teológicas
o termo pessoa. Este segundo termo é aceito por Agostinho como
correspondente à noção de hypostasis grega; mas o seu significado
precisaria ser aprofundado, no que concerne à vida trinitária
“[...] dizemos de preferência: uma essência ou substância e três pessoas.
Assim se exprimiram muitos escritores latinos, dignos de crédito, que
explanaram esses assuntos, já que não encontraram outra expressão mais
adequada para enunciar em palavras o que sem palavras compreendiam.
De fato, como o Pai não é o Filho, o Filho não é o Pai, e o Espírito Santo,
denominado também dom de Deus, não é o Pai nem o Filho, então são
três [...]. ‘O que são os três?’, teremos que reconhecer que a linguagem
humana mostra a sua extrema indigência. Dizemos porém, ‘três pessoas’,
não como se pretendêssemos nos expressar com precisão, mas para não
nos calarmos”.
Ele fala de trindades no homem exterior (De Trinitate XI) e no homem
interior (De Trinitate IX), até chegar ao espírito humano.
Vejamos alguns exemplos:
1.1.3- Os nomes próprios das Três pessoas
Para a primeira pessoa da Trindade, Agostinho apresenta três nomes: “Pai”,
“Princípio” e “Ingênito”. O primeiro é bíblico, enquanto os outros dois provêm
da Tradição e indicam duas propriedades do Pai: ser o princípio da outras duas
pessoas e não proceder de nenhum outro. Os dois primeiros nomes são
relativos, enquanto o terceiro não o é.
Os nomes da segunda pessoa também são três: “Filho”, “Verbo” e “Imagem”.
Os três são bíblicos e exprimem a relação entre a segunda pessoa e a primeira:
“Filho” expressa a relação com o Pai; “Verbo”, a relação com a “Mente”;
“Imagem”, a relação com o “Exemplar primeiro”, do qual ela é expressão. Em
todas essas expressões a relação é com o Pai, mas não são aplicáveis ao Pai.
Do mesmo modo, falando da terceira pessoa da Trindade, Agostinho
emprega três nomes: “Espírito Santo”, “Dom” e “Amor”. “Espírito Santo” é
um nome comum que poderia ser aplicado ao Pai ou ao Filho, ou mesmo
a toda a Santíssima Trindade, pois descreve uma realidade comum às três
pessoas: o ser espírito e o ser santo. Este fato é um primeiro indício que
aponta para o fato de que o Espírito Santo seja a comunhão pessoal entre
o Pai e o Filho. O momento relativo, ao contrário, expressa-se com o
termo dom, muitas vezes atribuído pelo Novo Testamento ao Espírito
Santo (cf. por exemplo Jo 4,10; At 2,38). O Espírito Santo é dom do Pai e
do Filho. O maior e melhor dom de Deus é o Amor, derramado em nossos
corações por meio do Espírito Santo (cf. Rm 5,5). O Amor é um termo
absoluto, que pertence à essência divina, mas que pode ser atribuído de
modo particular ao Espírito Santo, para expressar a sua missão de unir o
Pai e o Filho (e de unir Deus aos homens e os homens a Deus).
“O Espírito Santo, conforme as Escrituras, não é somente o Espírito d“O
Espírito Santo, conforme as Escrituras, não é somente o Espírito do Pai,
nem somente Espírito do Filho, mas de ambos. E essa certeza insinua-
se a nós acerca dessa caridade mútua com que o Pai e o Filho se amam
mutuamente” (De Trinitate XV,17,31).
1.1.4- A “doutrina psicológica” da Trindade
Uma das características mais agostinianas da doutrina trinitária é, sem
dúvida, a sua descrição da Trindade a partir da alma humana. O
fundamento bíblico desta doutrina é Gn 1,26: Deus criou o homem a
sua imagem e semelhança. Já a tradição anterior a Agostinho tinha
notado o plural na narrativa bíblica: “façamos o homem a nossa
imagem...”, que poderia ser um vestígio trinitário na narração da
criação. Diz ainda que o amor com que o Deus criou todas as coisas foi
o Espírito Santo.
Agostinho busca no homem interior uma série de tríades que ele crê
serem “sinais” ou “digitais” da Trindade que criou o homem
Trindade Observação

Homem a) Objeto visto, visão e atenção do Os termos que compõem as


exterior espírito (sentidos externos); trindades do homem
b) Memória, visão interior e vontade exterior não possuem uma
(sentidos internos). mesma substância.

a) Mente, conhecimento e amor; A segunda trindade do


Homem b) Memória, inteligência e vontade (esta homem interior possui um
interior segunda trindade se situa no espírito do duplo objeto: o
homem); Memória de Deus, inteligência conhecimento de si e o
de Deus e vontade de Deus (implica uma conhecimento de Deus, por
relação explícita e consciente da mente isso Agostinho a divide em
ao divino). duas.
Amor Amante, amado e amor

O Bispo de Hipona recorda que existe uma diferença fundamental entre a


Trindade Divina e a humana: as três potências são aliquid animae. Sed non sunt
anima . Ou seja, a memória, a inteligência e a vontade são no homem e do
homem, mas elas não são o homem; o mesmo não se pode dizer no que
concerne a Trindade Divina. Não se pode afirmar que a Trindade esteja em Deus
ou seja algo de Deus, pois ela é Deus.
1.1.5- Breve avaliação da doutrina de Agostinho
em relação à teologia grega e à escolástica
No que concerne à teologia precedente, em particular referente ao
Oriente cristão, é necessário lermos Agostinho em continuidade com
autores como Atanásio e os Padres Capadócios. Como eles, Agostinho
também luta contra os arianos e contra os pneumatômacos. O Bispo de
Hipona parte da fé de Niceia que ensina a consubstancialidade entre as
Pessoas divinas; defende a fórmula de Tertuliano e dos Capadócios de
uma substância (ousía) em três pessoas (hypostásis); como Basílio,
Agostinho sublinha a inseparabilidade da ação divina ad extra. Por todas
estas razões, podemos dizer que encontramos os elementos essenciais
da teologia grega em Santo Agostinho.
Vejamos agora algumas informações que nos ajudarão a compreender a
novidade do pensamento de Agostinho em matéria de teologia
trinitária.
A. Trapè afirma que para entendermos a grandeza teológica e espiritual da
obra De Trinitate de Santo Agostinho, é preciso recordar que ela é uma obra de
síntese, provavelmente a primeira, no que concerne a profundidade e
amplitude da história da teologia trinitária. Trata-se de uma obra que nasce de
uma longa e profunda meditação dos diversos aspectos do mistério (bíblico,
dogmático e místico), uma tentativa confiante e serena de conduzir a razão
humana pelas veredas do mistério trinitário e convidar o homem à comunhão
com a Trindade (dimensão contemplativa do mistério). O mesmo autor indica a
originalidade da obra agostiniana em cinco pontos: o estudo bíblico sobre a
unidade das três Pessoas divinas, a doutrina das relações, as propriedades
pessoais do Espírito Santo, a explicação psicológica do mistério trinitário e a
relação entre a vida sobrenatural do homem e a Trindade.
Agostinho, iluminado pela Sagrada Escritura, sublinha mais a unidade da
essência do que os Padres do Oriente, e praticamente não desenvolve um
pensamento que possa ser classificado como um monarquianismo funcional.
Ele também é o primeiro a desenvolver de um modo sistemático a doutrina da relação
no âmbito da teologia trinitária. Entre os Padres, ele é o primeiro a falar do Espírito
Santo como amor pessoal, o que lança uma luz importante sobre compreensão do
mistério trinitário e sobre a natureza da salvação humana. Partindo do ensinamento
bíblico da criação do homem à imagem e semelhança de Deus, Agostinho oferece
aquela que talvez seja a sua contribuição mais original à teologia trinitária: sua doutrina
“psicológica” da Trindade, que ilumina sem dissolver o mistério trinitário e revela a
natureza do espírito humano.
A Escolástica se moverá pela estrada do pensamento de Agostinho. Do beato Boécio a
Santo Anselmo, de Pedro Lombardo a Tomás de Aquino, todos se deixarão guiar pelas
principais linhas do pensamento trinitário agostiniano. Harnack chega a afirma que “não
se possa pensar a Escolástica medieval sem esta obra [De Trinitate], porque esta já
contém a Escolástica”. A precedente afirmação indica a importância fundamental dessa
obra agostiniana para a reflexão sobre a Trindade na Idade Média. Mas, isto não
significa, como veremos mais adiante, que a Escolástica, no âmbito da teologia trinitária,
não tenha o seu valor original: os teólogos escolásticos vão aprofundar o conceito de
pessoa e distinguir de modo mais preciso a expiração do Espírito Santo da geração
eterna do Filho.
• Trapè observa, porém, que entre os três aspectos profundamente
conexos em Agostinho, isto é, o bíblico, o dogmático e o místico,
somente o segundo será aprofundado pela teologia escolástica. Esta
crítica não parece, entretanto, levar em consideração o valor dos
comentários bíblicos de Tomás de Aquino para a sua teologia
trinitária.
2- Cristologia
2.1- O Cristo profeta...
Heres D. de O. Freitas, Cristo profeta, rei, sacerdote em Agostinho de Hipona: algumas
considerações, in: TQ 33 (2018/1) 31-58.

• O termo propheta , normalmente lido em relação – ainda que não direta ou


explicitamente – com o verbo praenuntiare (prenunciar), aparece na obra de
Santo Agostinho geralmente empregado de dois modos, um amplo e outro
restrito. No primeiro caso, aplica-se a todo o povo e ao reino de Israel ou a
qualquer figura que prenunciasse algum mistério acerca da vida de Cristo e da
Igreja. No segundo, àqueles personagens escriturísticos específicos que
conhecemos como profetas . Mas aparece também de um terceiro modo,
referido diretamente a Cristo. Não por acaso, Agostinho é uma das bases da
reflexão sobre o múnus profético de Cristo. Dos milhares de vezes em que
ocorre no corpus augustinianum, somente em algumas o termo profeta é
usado explicitamente como designativo de Cristo. Mas três delas despertam a
atenção, pois o Hiponense parece censurar quem O reconheça como profeta.
• No Sermão (s.) 136 (de 418-420), o Bispo de Hipona, comentando a cura
do cego de nascença de Jo 9, afirma sermos todos, devido à herança da
culpa original, cegos de nascença, mas cegos de coração (ou de cegueira
mental). Em seguida, dirigindo-se a seus ouvintes, diz-lhes que viram o
fato bíblico da cura do cego, mas o viram com os olhos da fé, e ouviram
que o cego errava ao considerar Cristo profeta (cf. Jo 9,17),
desconhecendo que era Filho de Deus, e ao dizer que Deus não ouve os
pecadores (cf. Jo 9,31). Quanto a este último erro, mediante os
argumentos litúrgico (o “ato penitencial”) e bíblico (as orações do
publicano e do fariseu de Lc 18,10-14), Agostinho assegura a seus
ouvintes: “certamente Deus ouve os pecadores”. Em seguida, diz que,
mesmo com a vista curada, a graça não havia ainda agido e o coração
daquele homem permanecia cego, passando a ver somente ao estar em
íntimo contato com Cristo, ao lavá-lo na verdadeira Siloé, Cristo, o Filho
de Deus enviado ao mundo
• O Bispo de Hipona não volta à questão da consideração de Cristo como
profeta, e a exposição continua em um paralelismo que podemos sintetizar
em lei e graça: os judeus têm a visão dos olhos, mas não a do coração,
possível somente mediante o encontro com Cristo, com a graça. Curado
fisicamente, portanto, na melhor das hipóteses, o que aquele que era cego
pode ver é Cristo como profeta, mas, sem a fé, sem a graça, não o Filho de
Deus – que criou olhos e coração e a ambos curou. Assim, o cego que passa
a ver, e vê somente o Cristo profeta, é figura da lei, sem a graça; com a
graça, porém, o cego que passa a ver, e vê o Cristo Filho de Deus, é figura
daquele que vê com um coração curado pelo encontro com o Filho de Deus.
Porém, mesmo o coração de quem está próximo de Cristo também precisa
de melhor instrução.
• Na Oitava da Páscoa, entre os anos 400 e 423, Agostinho fala, em
duas pregações (s. 232 e 234), da razão de se ler, no referido período,
relatos da ressurreição17, antes de comentar, em ambas as homilias,
sobre a incredulidade dos discípulos de Emaús, segundo o relato de Lc
24. Tal reflexão é “para que compreendamos o grande benefício que o
Senhor nos prestou ao dar-nos crer no que não vimos” e aumente
nossa fé na ressurreição18. Indica, então, feitos de nosso Senhor na
presença dos discípulos e a relação Eva–morte, mulher–vida19 e
passa a dedicar-se aos discípulos de Emaús.
• Os dois caminhavam condoídos, comentando os acontecimentos da morte de
Cristo, desconhecendo sua ressurreição. Cristo lhes aparece e põe-se a caminhar
em amigável conversação com eles, que não o podem reconhecer, “pois era
necessário que seu coração fosse mais bem instruído”. Por isso, Cristo adia o ser
reconhecido e lhes pergunta sobre o que acontecera. Os discípulos, admirados de
seu desconhecimento dos fatos evidentes, respondem, contando-lhe de “Jesus de
Nazaré, que foi um profeta poderoso em feitos e palavras” (Lc 24, 19). Agostinho,
então, pergunta: “É isso mesmo, discípulos? Era profeta o Cristo, senhor dos
profetas? Chamais vosso juiz de pregoeiro!”. Os discípulos de Emaús, diversamente
do caso precedente, não precisam que sua visão física seja curada, eles veem e
podem narrar fatos evidentes (“de re clara et manifesta”). Embora tenham visto a
morte de Jesus de Nazaré, o profeta, ignoravam, todavia, o Cristo, Filho do Deus
vivo, Senhor dos profetas. O conhecimento ou reconhecimento de Cristo, aqui, é
equivalente ao da visão do coração no s. 136. Mas Agostinho parece não importar-
se tanto com o fato de ignorarem o Cristo, quanto com o de serem discípulos a
ignorá-lo, pois falam dele a seu interlocutor como se não fossem discípulos, já que
o identificam como os estranhos ao discipulado: ele era profeta.
• Para demonstrar, então, como o discípulo reconhece Cristo como o Filho de Deus,
mais que profeta, portanto, o Hiponense interpreta a resposta lucana dos discípulos
de Emaús à luz das duas respostas de Mt 16,13-19, acerca de quem é o Filho do
Homem: os homens reconhecem-no, além de como Elias ou João Batista, como um
dos profetas; Pedro, como Cristo, o Filho do Deus vivo. E o Bispo de Hipona explica a
diferença entre as respostas: a dos discípulos de Emaús é a dos estranhos
(opiniones alienas, uerba alienorum non discipulorum) e a de Pedro, a dos
discípulos (discipuli uerba, unus pro omnibus); mas com um acréscimo importante.
• Ao introduzir a pergunta de Jesus a seus discípulos quanto a quem ele era,
Agostinho diz que Jesus, tendo ouvido as opiniones alienas, queria saber em que
acreditavam os discípulos, qual era sua fé. A fé, acolhida da revelação divina (Mt
16,17) na resposta do discípulo, permite a identificação correta de quem seja o
Cristo, que é “não qualquer um dos profetas, mas o Filho do Deus vivo, quem realiza
as profecias”. Os olhos dos discípulos de Emaús não reconhecem o Cristo porque
decaíram de sua esperança e, assim, de sua fé. Fé, discipulado e identificação
correta do Filho de Deus – como alguém maior que um profeta –, então, estão
associados para Agostinho.
• “Ouvidas” as exposições agostinianas precedentes, então, podemos
concluir que, para Agostinho, não seja adequado falar de Cristo como
profeta, ou de múnus profético de Cristo, já que isso seria considerá-
lo inferior ao que é? O Contra Adimantum – a partir daqui: c. Adim. –,
obra composta em 394, oferece a resposta. Em c. Adim. 9, o
Hiponense contesta a afirmação maniqueia da contradição entre o
Deus invisível de Jesus Cristo (Jo 1,1830; 5,37- 38) e o Deus visível do
Antigo Testamento (Gn 3,4). Nessa questão, Jo 1,18 e 5,37-38 são
textos-chave da argumentação maniqueia, e é da primeira dessas
passagens que parte a contra-argumentação agostiniana.
• O versículo 18 de Jo 1, de fato, não implica, exclusiva e necessariamente, a identificação
do Filho com o Verbo encarnado a anunciar o Pai, como o entendem os maniqueus. Por
isso, imediatamente, é ampliado o período de anúncio do Verbo, passando-se, portanto,
do Verbo encarnado ao Verbo eterno, “pois o próprio Filho, que é o Verbo de Deus, não só
nos últimos tempos, quando se dignou aparecer na carne, mas também antes, desde a
criação do mundo, anunciou a respeito do Pai”. Feita essa ampliação, Agostinho expõe: a)
o nexo Verbo-Verdade, b) a divindade, coeternidade e imutabilidade do Verbo e do Pai, e
c) as manifestações divinas mediante criaturas nas Escrituras (Gn 18,1-2; 32,24-30; Ex 3,2;
19,3; At 3,30ss). Essa tríplice exposição explica sua afirmação anterior quanto ao tempo de
anúncio do Pai por parte do Verbo: o Verbo-Verdade, o Cristo pré-existente e, portanto,
invisível, só podia ser visto mediante as criaturas – que ele escolhia quando queria –, de
modo que se pode afirmar que, ao se manifestarem tais criaturas quanto à verdade, é
Deus quem fala por elas. Então, “como o Verbo de Deus está no profeta, e [por isso]
justamente se afirma ‘disse o profeta’, igual e justamente se afirma ‘disse Deus’, pois o
Verbo de Deus, que é Cristo, diz a verdade no profeta”. Mas o Verbo a diz também
mediante outras criaturas. Agostinho estabelece, assim, duas modalidades de
manifestação divina anteriores à encarnação: uma no profeta, por quem Deus fala
habitando-o (ex persona inhabitantis Dei), e outra mediante as criaturas, pelas quais fala
servindo-se delas (ex persona seruientis creaturae)
• Na conclusão da exposição do milagre da multiplicação dos pães (Jo 6,1-14),
pelos anos 414-420, na grande obra homilética que são os Comentários ao
Evangelho de João, Agostinho diz que uma sabedoria carnal considera Cristo
um profeta (Jo 6, 14)49 e – com expressões que já conhecemos – continua:
Mas ele era Senhor dos profetas, realizador das profecias (impletor
prophetarum), santificador dos profetas, mas era profeta [...]. O Senhor é
profeta, o Senhor é o Verbo de Deus; e nenhum profeta profetiza sem o Verbo
de Deus; o Verbo de Deus está com os profetas, e o Verbo de Deus é profeta.
Os tempos passados tiveram profetas inspirados e cheios com o Verbo de
Deus. Nós temos o próprio Verbo de Deus como profeta (prophetam ipsum
Verbum Dei). [...] Se Cristo não profetizasse, não seria chamado profeta.
Exorta-nos à fé e a apegarmo-nos à vida eterna; anunciou realidades
presentes, predisse realidades futuras. Pelas coisas presentes que anunciou é
[chamado] anjo, pelas futuras que predisse é [chamado] profeta. Porque é o
Verbo de Deus feito carne, é Senhor dos anjos e dos profetas.
• A última citação de Agostinho é suficiente para fechar a questão. No entanto,
há algo a ser explicitado. A leitura agostiniana de Cristo a falar no (in) ou pelo
(per) profeta – não parece haver distinção a esse respeito, ainda que
Agostinho pareça ter privilegiado esta última fórmula depois do c. Adim. 9 –
não restringe a atividade profética de Cristo a antes de sua encarnação; se o
Hiponense a restringisse, talvez cometeria um erro hermenêutico dos
maniqueus. Pelo contrário, na unidade dos Testamentos – Antigo e Novo –,
Cristo jamais deixa de falar, como tampouco o profeta, ou quem quer que
tenha uma função profética. Mas, se o Novo Testamento é realização das
profecias do Antigo, como dizer que Cristo seja profeta? Nas homilias da
primeira parte desta seção, pregações do episcopado de Agostinho, ele não
nos oferece uma definição de profeta, mas a temos em c. Adim. 9, obra do
seu presbiterado. O profeta não é, aqui, como costumeiramente se poderia
pensar, alguém que simplesmente anuncia o futuro, o profeta é quem anuncia
a verdade. Assim, com maior razão, Cristo é profeta, pois é a Verdade a
manifestar-se do Pai desde sempre.
Quanto às homilias a que acabamos de nos referir, é preciso considerar
– supérfluo dizê-lo – que Agostinho dirige-se a fiéis e, na Oitava da
Páscoa, particularmente a recém- batizados, que o Hiponense
pretende, nutrindo-os com as Escrituras, fortalecer na fé no único e
verdadeiro Deus. Em tal contexto, as afirmações agostinianas acerca do
Cristo mais que profeta – afirmações de todo corretas – não
contradizem as afirmações quanto a Cristo ser, de fato, profeta –
afirmações, igualmente, de todo corretas. Ao se tratar de questões
específicas em determinados textos agostinianos, é necessário pensar
Agostinho no quadro mais amplo das obras e do pensamento do
próprio Agostinho. Isoladamente, os textos podem ser desviantes, e
levar-nos aonde Agostinho não gostaria que fôssemos.
2.2- O rei e sacerdote
• Antes de assumir o episcopado, Agostinho, em uma das respostas a 83
questões variadas que lhe tinham sido postas por seus coirmãos, dedica
amplo espaço a tratar do Cristo rei e sacerdote, em um contexto que talvez
soe estranho ao leitor contemporâneo. Com efeito, a pergunta feita a
Agostinho vertia sobre algo acerca da multiplicação dos pães de Jo 6,9-13,
talvez sobre o significado dos cinco pães e dos dois peixes. Concluída a breve
explicação sobre os cinco pães, passa aos dois peixes, que significam os dois
ungidos que governavam os judeus, o rei e o sacerdote, que “são figura
(praefigurabant) de nosso Senhor, pois só ele assumiu (sustinuit) a ambos, e
só ele os realiza (impleuit), não de modo figurado (figurate), mas realmente
(proprie)”. E Agostinho diz imediatamente em seguida por que Cristo é rei:
ele é condutor (dux) que dá o exemplo da luta e da vitória,
tomando, na carne mortal, nossos pecados; resistindo às tentações – às
sedutoras e às intimidatórias – do inimigo [...] e triunfando sobre elas em
si mesmo. [...] Com esse mesmo rei esperamos ser introduzidos na
Jerusalém celeste, [...] e ser guardados por ele como rei (regnante) e
pastor (custodiente). Assim nosso Senhor Jesus Cristo se mostra como
nosso rei.
• E então, porque é sacerdote:
Ele é nosso sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedec [cf.
Sl 109,4]; Ele ofereceu a si mesmo em holocausto pelos nossos pecados
e recomendou que se celebrasse a renovação de seu sacrifício em
memória de sua paixão, de modo que aquele que Melquisedec ofereceu,
ora o vejamos oferecido na igreja de Cristo por toda a terra
A exposição agostiniana prossegue dando razões da realeza de Cristo em sua
genealogia segundo Mt 1, 1-17 e do seu sacerdócio na genealogia segundo Lc 3,
21-38. Na primeira, Agostinho lê a realeza indicada de modo descendente, de
Abraão até a estirpe real de Davi, na assunção da carne por parte de Cristo; e, na
segunda, o sacerdócio indicado de modo ascendente, partindo do batismo do
Senhor até Deus, pois a purificação – significada no batismo – é própria do
sacerdote. Agostinho, sem mais considerações a esse respeito, volta-se à
multiplicação dos pães e a outras questões.
Essa explicação da realeza e do sacerdócio de Cristo reaparece poucos anos mais
tarde. Por volta do ano 400, respondendo a objeções quanto às divergências dos
Evangelhos, o Hiponense compõe o De consensu euangelistarum (cons. eu.) – e,
no início da obra, ao apresentar pontos comuns entre os evangelistas (como sua
autoridade e por que quatro), retoma os títulos de Cristo como apresentados no
parágrafo anterior, em que expusemos a abordagem agostiniana de diu. qu. 61,2:
Mateus se ocupa da descendência régia enquanto Lucas da ascendência
sacerdotal.
• Embora reconheça que “Cristo aparece como rei e sacerdote em
muitos outros testemunhos das divinas Escrituras”, Agostinho quase se
limita a praticamente repetir a resposta de diu. qu. 61,2: Cristo é rei
para nos governar (regendos) e sacerdote para nos purificar
(expiandos); antes da encarnação, exercia ambas as funções em
indivíduos distintos, mas agora as exerce juntas em si . Acrescenta,
porém, que a profecia se vê realizada no Novo Testamento: quanto à
realeza, o que fora predito pelo Sl 74, 167 se verifica na inscrição (Mc
16, 26; Lc 23, 3868) mantida (Jo 19, 2269) sobre a cruz; quanto ao
sacerdócio, além da repetição da oferta e do recebimento do
sacrifício...
de Cristo e do Sl 109,470, anota que Davi, ponto comum nas genealogias de Mt e de
Lc, também era figura (figurauit) do sacerdócio, “pois comeu dos pães da
proposição, que não era lícito comer senão os sacerdotes [Mt 12, 3-4]”, e
acrescenta, de Lc 1, 36, o parentesco entre Isabel e Maria, colocando esta última
numa descendência sacerdotal (cf. Cons. eu. 1,5).
À parte estes acréscimos documentais, há outro decisivo para o objetivo destas
páginas:
“Tendo Mateus chamado a atenção para a figura do rei e Lucas para a do sacerdote,
ambos lembram principalmente a humanidade de Cristo. Certamente é em sua
humanidade que Cristo se fez rei e sacerdote, a quem Deus deu o trono de Davi, seu
pai [cf. Lc 1, 32-33], para que seu reino não tenha fim e para que interceda por nós
o mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo [cf 1Tm 2, 5]” (Cons. eu.
1,6).
Se, então, os títulos de sacerdote e rei concentram-se no Cristo encarnado, e é em
sua humanidade que Cristo se faz mediador, convém considerar a mediação e sua
relação com os referidos títulos.
• Continuação na Cópia do Capítulo XI, de: F. MARIONES, Teologia de
Santo Agostinho, Paulus: São Paulo 2022, 218-234.
3- Eclesiologia
3.1- Linhas Gerais
Não é segredo que a concepção ocidental da Igreja foi, sem dúvida,
substancialmente delineada haurindo temas agostinianos.
“Podemos afirmar que Cristo e a Igreja são o cerne do pensamento teológico do
bispo de Hipona, mais ainda, poderíamos acrescentar, da sua própria filosofia,
pois ele recrimina os filósofos de terem feito filosofia ‘sine homine Cristo’. A Igreja
é inseparável de Cristo. Ele reconheceu no momento da conversão e aceitou com
alegria e gratidão a lei da Providência que pôs em Cristo e na Igreja ‘a autoridade
mais excelsa e a luz da razão’ com a finalidade de recriar e reformar o gênero
humano” (João Paulo II, Carta apostólica Augustinum Hipponensem
(26/08/1986), in EV 10, Bolonha 1987, 605).
Segundo Yves Congar, Agostinho elaborou uma eclesiologia por três razões
fundamentais: 1. A necessidade de explicar, partindo da Escritura, o mistério de
Cristo e da sua Igreja aos fiéis; 2. Responder às questões levantadas pelo
donatismo; 3. Assumir numa eclesiologia as exigências da sua teologia da graça.
• A concepção eclesiológica de Agostinho parece não ter sofrido grande
evolução desde a sua ordenação sacerdotal (391). A eclesiologia
agostiniana, como por outro lado todo o seu pensamento, é
incompreensível sem uma aproximação autobiográfica. Há quem fale
de uma autêntica eclesiologia em chave autobiográfica. Quem o faz
afirma por exemplo que a Igreja materna se concretizou na vida de
Agostinho na figura de sua mãe Mônica. Nessa linha, Ratzinger chama
a atenção para a importância de dois a priori do conceito de Igreja em
Agostinho: a sua própria filosofia e a teologia norte-africana.
• Podemos afirmar que são duas as principais imagens que sintetizam a
contribuição eclesiológica desse teólogo: civitas Dei e corpus Christi. A
primeira imagem amadurece na defesa que Agostinho faz da Igreja em
relação às críticas oriundas do paganismo, que após o saque de Roma viu na
“virada constantiniana”, e em seus frutos, a causa do mal que se abateu sobre
todo o Império. Com o objetivo de responder a essa crítica, Agostinho parte
do conceito político comum de civitas, com todos os elementos aí
compreendidos, mostrando sucessivamente que tais elementos — em sua
totalidade, mesmo se assumem significado e valor diferentes — estão
presentes também na civitas Dei.
• Já a imagem da Igreja entendida como corpus Christi mysticum, que tem
origem em São Paulo e largamente desenvolvida por Tertuliano, é
amplamente usada por Agostinho na luta contra graves heresias,
especialmente o donatismo.
• A eclesiologia de Agostinho, assim como a dos Padres, é desejadamente
simbólica. Tratando-se de mistério muito profundo, a linguagem simbólica é
a que melhor consegue captar todas as tonalidades do afresco que é a
Igreja.
• Santo Agostinho faz autêntica releitura cristológica do AT e do seu trabalho
emergem imagens de rara beleza, como aquela na qual reflete sobre a
relação vital entre a Igreja e Jesus Cristo, em chave esponsal:
• “Enquanto Adão dormia, foi-lhe tirada uma costela e formou-se Eva.
Assim o Senhor, enquanto dormia na cruz, foi-lhe traspassado o lado
com a lança e daí jorraram os sacramentos com os quais se constituiu a
Igreja. Com efeito, também a Igreja, esposa do Senhor, tem sua origem
no seu lado, como Eva havia sido tomada do lado [de Adão]. E como
esta foi tirada do lado do homem adormecido, assim também a Igreja
não teve outra origem a não ser o lado de Cristo morto. Portanto, o teu
Senhor, não ressurgiu a não ser após a morte; e tu desejarias pretender
uma glorificação antes que termine a vida presente?”.
• Dessa imagem proposta acima já podemos entrever que a eclesiologia
de Agostinho nos apresenta sempre a Igreja como mistério que “jorra”
e nos “conduz” ao mistério de Cristo. Chegando a este ponto,
percebemos logo quão pobre é a consideração da Igreja como mera
instituição externa. “Certa sociologia que associa o organismo eclesial
sic et simpliciter às instituições humanas é totalmente estranha ao
pensamento de Agostinho: a Igreja é certamente um lugar humano,
porém no qual o Cristo se torna manifesto, que por sua vez torna visível
o próprio Deus”.
• Von Balthasar diz que para Agostinho essas três realidades (Igreja,
Cristo e Deus) não podem ser entendidas como se estivessem uma ao
lado da outra sem autênticas relações: “Ao contrário, formam um só
tudo, uma unidade inseparável. Não se descobre Deus e não é acessível
a nós a não ser na Igreja”.
3.2- A Igreja, Casa-Templo de Deus
• Dado o objetivo do nosso trabalho de pesquisa, pareceu-nos um
dever apresentar brevemente as conclusões da tese de doutorado
(Povo e casa de Deus em Santo Agostinho) do então jovem J.
Ratzinger sobre o tema da Igreja como Casa-Templo de Deus na
teologia do bispo de Hipona.
• Segundo Ratzinger, no pensamento de Agostinho, o mundo de Deus
no alto dos céus é descrito como a “casa de Deus” e essa casa é a
meta que o homem deve procurar e alcançar; para permitir ao
homem alcançar sua morada, Deus levantou sua tenda na terra, isto
é, a Igreja.
• “Essa tenda oferece uma forma provisória do ser-um com Cristo e em
seguida conduz para além de si mesma até a casa. Tanto para a Igreja,
num sentido amplo, como para o indivíduo, o corpo constitui a tenda
que o torna consciente da provisoriedade da sua condição. Essa tenda
da Igreja é todavia erguida mediante a tenda do corpo de Cristo
[Eucaristia], no qual ao mesmo tempo consiste essa inteira tenda”
(Ratzinger, Popolo e casa di Dio, 248).
• Na realidade, para Agostinho, há uma única comunidade que tem um
único centro (no céu), esse centro atrai a comunidade inteira que
caminha para ele a fim de alcançar a plenitude da vida.
• Não o edifício sagrado, mas a comunidade cristã viva é o equivalente
cristão do Templo de Jerusalém (ou também do templo pagão).
“Objetivamente com o conceito ‘templo’ toca-se dupla série de
pensamentos: a da adoração cultual de Deus e a da inabitação
(inhabitatio) de Deus” (Ratzinger, Popolo e casa di Dio, 329). A Igreja
como Templo de Deus se apresenta como um modo mediante o qual
Agostinho procura explicar mais pormenorizadamente o seu ser povo de
Deus. “Conexa é a concepção cristológica do termo templo a partir do
corpo de Cristo. A Igreja na condição de corpo sacrifical de Jesus Cristo é
templo, ou seja, morada, sacrifício vivente para Deus” (Ratzinger, Popolo
e casa di Dio, 256).
• Na teologia de Agostinho se observa uma graduação histórico-salvífica
indicada pela noção de construção do Templo. O termo (1) aedificatio é
usado para apresentar o processo de conjunto do surgimento de uma
comunidade de Deus. A expressão (2) renovatio domus, “prefigurada na
reconstrução do templo após o cativeiro babilônico, significa a
transformação da comunidade de Deus veterotestamentária na do Novo
Testamento”(Ratzinger, Popolo e casa di Dio, 252). (3) Dedicatio domus
seria a transformação definitiva escatológica do templo de Deus, já
antecipada na Cabeça do corpo, Jesus Cristo ressuscitado.
• Cristo é o fundamento e a pedra angular da Igreja; essa concepção se
desenvolveu no pensamento de Agostinho numa direção dupla: 1. Cristo é
fundamento da cidade, ou seja, da Igreja universal634; 2. Cristo é o
fundamento da fé de cada cristão (casa interior).
• Segundo Ratzinger, na teologia de Agostinho, o termo domus se apresenta
como um conceito que pode substituir o de corpus636. Surgia uma
dificuldade quando se tratava de definir a posição de Cristo num conjunto
assim apresentado: para a noção eclesiológica de Domus-Templo, Cristo é o
fundamento, ao passo que para a eclesiológica somática, Cristo é a Cabeça.
Agostinho soluciona o problema recordando a natureza da força
gravitacional. O peso seria uma força interior que conduz as realidades
materiais ao seu lugar no cosmo. Na casa de Deus, a Igreja, o peso se dirige
ao alto. Lá é o lugar das suas pedras vivas (os homens crentes). O
fundamento da Igreja está no alto, em Cristo-Cabeça.
3.3- A Igreja, Corpo de Cristo
• Agostinho retomou da eclesiologia paulina a ideia de uma união
mística entre Cristo e a sua Igreja como corpus Christi; esse modelo
“somático” serve, frente aos donatistas, para defender a unidade da
Igreja, por força da incorporação de todos os cristãos em Cristo: para
esse teólogo, a unidade profunda da Igreja, e podemos dizer a
communio Ecclesiae, depende dessa relação vital, mais ainda, dessa
imanência dos fiéis em Cristo.
• A ligação da cabeça com o corpo é possível graças à caridade que une
Cristo à Igreja:
“A Cabeça é aquele Salvador do Corpo que já subiu ao céu; o Corpo, ao
contrário, é a Igreja que se afadiga na terra. Se esse Corpo não estivesse
unido à sua Cabeça com o vínculo da caridade, de sorte a fazer um da
Cabeça e do Corpo, não teria dito do Céu, recriminando certo perseguidor:
Saulo, Saulo, por que me persegues?” (En. in Ps. 30, II, 1, 3).
Agostinho nunca interpreta os termos cabeça e corpo, atribuídos a Cristo e
à sua Igreja nas epístolas paulinas, como se fossem simplesmente uma
imagem ou mera comparação, mas usa-os sempre num sentido “literal”
para expressar uma realidade misteriosa e designar o organismo vivente
formado por Cristo e por sua Igreja.
Agostinho reconhece tanto a unidade entre a “cabeça” e o seu “corpo”
quanto a diferença que há entre eles:
“Se há muita diferença em teus membros entre a cabeça e os outros
membros, certamente todos os membros formam um só corpo e todavia
muito difere a cabeça dos outros membros. De fato, nos outros membros
não sentes a não ser com o tato: portanto, nos outros membros somente
tocando é que sentes. Na cabeça, ao contrário, também vês, ouves,
cheiras, saboreias e tocas. Se na cabeça há tanta superioridade em relação
aos outros membros, quanta superioridade haverá na Cabeça de toda a
Igreja, isto é, naquele Homem desejado por Deus como Mediador entre
Deus e os homens?”(En. in Ps. 29, II, 2 ).
Na eclesiologia somática de Agostinho, o termo caput tem claramente
seus dois principais significados: por um lado indica a “autoridade” de
Cristo sobre a Igreja, e por outro apresenta Cristo como aquele que
“vivifica” seus membros com sua vida sobrenatural.
• A doutrina do “Cristo Total” “é uma das mais caras para o bispo de Hipona e
também uma das mais fecundas da sua teologia eclesiológica”. Segundo Clerici e
Rossé, há um discurso de Agostinho (que remonta ao ano 419) de importância
fundamental para a compreensão dessa doutrina, na qual Agostinho nos fala dos
três modos de compreender e nomear o Senhor Jesus Cristo:
• “Irmãos, nosso Senhor Jesus Cristo, por aquilo que pudemos entrever nas Páginas
santas, (ou seja) quando é anunciado na Lei ou nos Profetas ou nas Cartas dos
Apóstolos ou quando se mostra pela fé nos fatos históricos que conhecemos pelo
Evangelho, é visto e assim é proclamado de três modos. O primeiro modo é na
condição de Deus por aquela divindade pela qual é igual e coetâneo ao Pai, antes de
assumir a condição humana. O segundo modo é quando, assumida a natureza
humana, nós lemos e entendemos que o mesmo que é Deus é também homem, e o
mesmo que é homem é também Deus, e, por essa extraordinária característica de
superioridade, não fica no nível dos homens, mas é mediador e cabeça da Igreja. O
terceiro modo é, em algum sentido, o modo do Cristo Total na plenitude da Igreja,
ou seja, na condição de Cabeça e Corpo segundo o homem perfeito no qual cada
um de nós é membro” (Serm. 341, 1, 1).
• Quando Agostinho diferencia o segundo modo de nomear Cristo (Deus-
homem) do terceiro (Cristo Total: cabeça e corpo), percebemos que ele se
afasta de assumir a posição de puro realismo quanto à encarnação coletiva
de Cristo. Segundo o doutor da gratia, o autêntico modo com o qual o
homem entra em relação com Cristo, passando a tornar-se “um” com Ele, se
realiza na recepção do Espírito Santo por meio da fé. “Em lugar da unidade
ôntica do sistema determinado em sentido gnóstico, entra aqui a unidade
que se cumpre na fé [...] o nosso ser (habitare) em Cristo é real na nossa
fé”(Ratzinger, Popolo e casa di Dio, 212).
• À luz dessa imagem somática, podemos dizer que, para o doutor, Cristo é a
única “fonte”, o único “princípio”, a única “cabeça” de onde deriva para nós
toda a vida cristã. A Igreja é santa, por ser corpo de Cristo, e recebe sua
santidade de Cristo; é por causa de Cristo que a Igreja pode fazer
resplandecer a vida de Cristo em toda a terra, possuir em si mesma tudo o
que há de belo e bom.
• A encarnação parece ser para Agostinho a origem do “corpo de Cristo”: “O
Verbo se fez carne para tornar-se cabeça da Igreja. Por si mesmo, com
efeito, o Verbo não é parte da Igreja, mas para ser cabeça da Igreja
assumiu a carne” (En. in Ps. 148, 8).
• Cristo é “cabeça” da Igreja por causa da sua natureza divina ou humana?
Sem em nenhum momento negar a divindade de Cristo, Agostinho
atribuiu à humanidade de Cristo o fato que possa ser “cabeça” da Igreja.
• “O Senhor Jesus Cristo, homem perfeito em sua totalidade, é cabeça e
corpo. Reconhecemos a cabeça naquele homem nascido de Maria Virgem,
padeceu sob Pôncio Pilatos, foi sepultado, ressuscitou, subiu ao céu e está
sentado à direita do Pai, de onde esperamos venha para julgar os vivos e
os mortos. Ele é a cabeça da Igreja” (En. in Ps. 90, 2, 1).
• A união do Verbo com sua carne se deu no tálamo nupcial que é o seio
virginal de Maria, e essa união é o fundamento da união com a Igreja. Essa
união entre Cristo e sua Igreja é tão profunda e íntima que o bispo de
Hipona afirma que a união da “cabeça” e do “corpo” forma “um só homem”
(cf. Ef 4,13):
• “E o que é a Igreja? O corpo de Cristo [cf. 1Cor 12,27; Ef 1,22- 23].
Acrescenta-lhe a cabeça, e se torna um só homem. A cabeça e o corpo, um
só homem [cf. Ef 4,4]. Quem é a cabeça? Aquele que nasceu da Virgem
Maria, assumiu a carne mortal sem pecado, foi maltratado pelos judeus,
flagelado, vilipendiado, crucificado: aquele que foi condenado à morte por
causa dos nossos delitos e ressurgiu para a nossa justificação. Ele é a cabeça
da Igreja, ele é o pão que procede daquela terra. E o seu corpo quem é? A
sua esposa, ou seja, a Igreja. Com efeito, os dois serão um só corpo. Este
sacramento é grande: digo-o em relação a Cristo e à Igreja [Ef 5,31-32]”
(Serm. 45, 5).
• Agostinho compara o nascimento de Eva do lado de Adão com o nascimento
da Igreja do lado de Cristo. No nascimento de Eva se prefigura a “criação” da
Igreja. Assim, a Igreja aparece como originada do corpo “histórico” de Jesus
Cristo:
• “Enquanto Adão dormia, foi-lhe tirada uma costela e formou-se Eva. Assim o
Senhor. Enquanto dormia na cruz, foi-lhe traspassado o lado com a lança e
daí jorraram os sacramentos com os quais se constituiu a Igreja. Com efeito,
também a Igreja, esposa do Senhor, tem sua origem no seu lado, como Eva
havia sido tomada do lado [de Adão]. E como esta foi tirada do lado do
homem adormecido, assim também a Igreja não teve outra origem a não ser
o lado de Cristo morto. Portanto, o teu Senhor não ressurgiu a não ser após
a morte; e tu desejarias pretender uma glorificação antes que termine a vida
presente?” (En. in Ps. 126, 7. Cf. também En. in Ps. 103, 4, 6; In Io. Ev. tr. 120,
2 e Serm. 5, 3).
• Na sua pregação, o bispo de Hipona recorda reiteradas vezes que a “cabeça”
da Igreja se encontra no céu. Cristo ressuscitado reina à direita do Pai,
enquanto a Igreja, intimamente unida a Ele, espera unir-se a Cristo no céu
como o “corpo” à sua “cabeça”: “o Cristo integral é Cabeça e Corpo. A
Cabeça é aquele Salvador do Corpo que já subiu ao céu; o Corpo, pelo
contrário, é a Igreja que se afadiga na terra. Se esse Corpo não estivesse
unido à sua Cabeça pelo vínculo da caridade, de sorte a fazer um da Cabeça
e do Corpo, não teria dito do Céu recriminando certo perseguidor: Saulo,
Saulo, por que me persegues?”(En. in Ps. 30, II, s. 1, 3).
• O termo “Igreja” frequentemente indica a realidade última e escatológica, a
Igreja “sem mancha nem ruga ou qualquer coisa semelhante” de São Paulo
(Ef 5,27). Tal uso é determinado tanto pelo texto paulino quanto pela
doutrina da predestinação. O texto da carta aos Efésios induziu Agostinho a
esclarecer contra os donatistas a distinção entre a Igreja presente,
necessitada de conversão e perdão, e a Igreja futura, composta somente de
santos.
• Agostinho sublinha incisivamente a relação entre Cristo e a Igreja até à
identidade: para ele, ela é Cristo; a Igreja e Cristo parecem ser duas
realidades inseparáveis: “E o que é a Igreja? O corpo de Cristo...
Acrescenta-lhe a cabeça, e se torna um só homem. A cabeça e o corpo,
um só homem... Quem é a cabeça? Aquele que nasceu da Virgem
Maria [...]. Ele é a cabeça da Igreja, ele é o pão que procede daquela
terra. E o seu corpo quem é? A sua esposa, ou seja, a Igreja” (Serm. 45,
5. Cf. também: En. in Ps. 44, 20; 47, 1-3; 69, 1-3; 72, 1; 108, 5; 142, 3).
• Desse texto que acabamos de citar nota-se outro ponto importante:
Agostinho, nas pegadas de São Paulo, frequentemente se refere à
Igreja, corpo de Cristo, como esposa de Cristo, e assim a relação entre
os dois assume caráter de tipo “pessoal”, autêntica communio
personarum.
• Para o doutor, a imagem esponsal sugere ainda o estado de “pecado”
no qual se encontrava a humanidade antes de ter sido purificada por
Cristo (cf. Ef 5,26-27):
• “Aquele esposo fez-se feio para a sua esposa feia para torná-la bela.
Como pode ser isso, ele que era belo, fez-se feio? […]. O que há de mais
belo que Deus? O que mais deformado que o Crucificado? [...]. Eis, pois,
esse esposo belo acima dos filhos dos homens, que se fez deformado
para tornar bela a sua esposa; a esposa à qual é dito: Ó belíssima entre
as mulheres!”(Serm. 95, 4-5).
• O Espírito Santo é o princípio, o “dom” nupcial da “cabeça-Cristo” ao
“corpo-Igreja”, dom que vivifica e unifica os diferentes membros entre si
e com Cristo. Agostinho o compara à alma, comparação que mais tarde
se tornará clássica na eclesiologia.
3.4- Eclesiologia Eucarística
• Recordamos que na teologia de Agostinho a Eucaristia é sacramentum da Igreja
como corpus Christi. Isso significa que, para Agostinho, Igreja visível e eucaristia
são uma espécie de sinônimos, pois a relação entre sinal e realidade significada
(res) é extraordinariamente estreita, de sorte que se pode falar de sinal como se
ele fosse a própria realidade.
• Henri de Lubac afirma que há entre a eucaristia e a Igreja uma relação como a
relação entre causa e efeito, entre meio e fim: “Este é o sacrifício dos cristãos:
Muitos e um só corpo em Cristo. A Igreja celebra esse mistério com o
sacramento do altar, conhecido aos fiéis, porque nele a ela é revelado que
naquilo que oferece ela própria é oferta”. Em seu comentário ao Evangelho e à
primeira carta de são João, Agostinho nos oferece autêntico tratado sobre a
relação Eucaristia-Igreja. Comentando Jo 6,51, ele nos oferece uma homilia que
nos revela um aspecto muito constante na sua doutrina eucarística: corpo de
Cristo é entendido, ao mesmo tempo, qual pão eucarístico e qual Igreja, criando
entre eles unidade dificilmente compreensível quando se quer pensar as duas
componentes distintas e divididas.
3.5- O Espírito e a Igreja
• Comentando a ação do Espírito Santo em cada cristão, Agostinho afirma:
“Portanto, é o Espírito Santo, do qual ele nos deu, que faz com que nós
permaneçamos em Deus e ele em nós: isso é obra do amor. É portanto o Espírito
Santo o Deus amor”. É o Espírito que difunde em nossos corações o Amor, pois
ele próprio é Amor, constitui a comunhão de todos os fiéis na Igreja porque é a
comunhão.
• Sendo “ineffabilis quaedam Patris Filiique communio”, o Espírito Santo é na
Igreja o princípio que une os fiéis entre si e com a Trindade, fazendo de todos
uma só coisa:
• “Pois bem, por meio daquilo que é comum ao Pai e ao Filho, quiseram que nós
fôssemos unidos [comunhão] entre nós e com eles, e por intermédio desse dom,
nos reunirmos na unidade, mediante o único dom que eles têm em comum, isto
é, por meio do Espírito Santo, Deus e dom de Deus” (Serm. 71, 12, 18).
Mais adiante, Agostinho nos oferece uma ideia central para o nosso trabalho: “[O
perdão dos pecados e] a comunhão da unidade da Igreja de Deus, fora da qual
não se dá o mesmo perdão dos pecados, são, por assim dizer, obras próprias do
Espírito Santo com o qual agem juntos o Pai e o Filho, pois de alguma forma o
mesmo Espírito é o laço que une o Pai e o Filho” (Serm. 71, 20, 33).
B. de Margerie sublinha a importância da doutrina de Agostinho que vê o Espírito
Santo como laço de amor (comunhão) na vida intratrinitária e,
consequentemente, como laço de amor (comunhão) na vida eclesial:
• “Mesmo que o brilhante Bispo de Hipona não tenha sido o primeiro a referir-se
a ela, pode-se afirmar que foi o primeiro a elaborar sistematicamente a doutrina
teológica que considera o Espírito como o vínculo de amor entre o Pai e o Filho.
Para a maioria dos Padres gregos, era o Pai que realizava a unidade da Trindade,
ou então, o Filho era considerado como um elo entre o Pai e o Espírito: assim,
por exemplo, pensava São Cirilo de Alexandria, que morreu pouco depois de
Santo Agostinho” (B. de Margerie, La doctrine de saint Augustin sur l’Esprit Saint
comme communion et source de communion, in Augustinianum 12 (1972), 107).
• Agostinho relaciona a unidade social da Igreja com a “sociedade
trinitária”. Por unidade social da Igreja entende a Igreja como
realidade unitária, visível e invisível. Trapè nos recorda que em
Agostinho é preciso sempre distinguir e unir, como faz o doutor, sem
perder assim a visão eclesial unitária.
• No encerramento de um discurso profético seu, pronunciado por
ocasião da festa de Pentecostes, Agostinho comenta os vários dons do
Espírito Santo e conclui lembrando-nos que a medida da ação desse
Espírito em nós é o amor que nutrimos pela Igreja:
• Baseados no que foi dito até agora, parece-nos legítimo afirmar que
Agostinho compreenda a communio eclesial como autêntica
participação da communio trinitária. Essa afirmação voltou à tona
depois do Concílio Vaticano II e é enfrentada como um ponto focal da
eclesiologia contemporânea.
• “A definição do Espírito como communio, que Agostinho deriva desse
modo da expressão ‘Espírito Santo’, tem para ele [...] um sentido
fundamentalmente eclesiológico, abre a pneumatologia sobre a
eclesiologia e, vice-versa, manifesta a ligação da eclesiologia à teologia:
tornar-se cristãos significa tornar-se communio e, com isso, entrar no
modo de ser do Espírito Santo” (Ratzinger, La comunione nella Chiesa,
37-38).
• Para Agostinho, o Espírito é o princípio realizador da Igreja, guardião da
unitas, por meio da caritas. “Também para Agostinho as operações
salutares [salvíficas] têm por princípio o Espírito Santo e, a nível
eclesial, a unitas”(Congar, L’Église de saint Augustin, 17). Congar nos
recorda que por meio do “dom” muitos outros dons são distribuídos à
communio eclesial: a infalibilidade, a maternidade espiritual etc.
• Segundo o Doutor da Graça, na communio eclesial temos tudo: a vida,
o amor, Cristo, a ação do Espírito; por isso precisamos amá-la e recear
de estar fora dela.
• Desse ensinamento pneumatológico, chega a nós a tese dogmática: a
Igreja é caritas, “na condição de corpo do Senhor edificado pelo Espírito
que, além disso, se torna corpo do Senhor justamente pelo fato que o
Espírito torna os homens aptos à communio”(Ratzinger, La Comunione
nella Chiesa, 49).
• Ratzinger sustenta que para Agostinho o Espírito Santo não ligaria
diretamente o crente a Cristo, mas sempre unicamente mediante a
inserção no corpo de Cristo, na Igreja. “Isso é portanto o modo
autêntico com o qual o homem se torna um com Cristo, ou seja, um
com a Igreja”. Se lermos o texto seguinte de Agostinho, veremos
confirmada essa ideia:
• “Pois bem, queres tu viver do Espírito de Cristo? Deves estar no corpo
de Cristo. Acaso o meu corpo vive do teu espírito? Não, o meu corpo
vive do meu espírito, e o teu do teu. O corpo de Cristo não pode viver
senão do Espírito de Cristo. É aquilo que diz o Apóstolo, quando nos
fala desse pão: Visto que há um só pão, nós, embora sendo muitos,
somos um só corpo (1 Cor 10,17). Mistério de amor! Símbolo de
unidade! Laço de caridade! Quem quer viver, tem onde viver, tem do
que viver. Aproxime-se, creia, entre a ser parte do Corpo, e será
vivificado. Não desdenhe de pertencer à composição dos membros,
não seja um membro infectado que é preciso amputar, não seja um
membro deformado do qual se deva enrubescer. Seja belo, seja válido,
seja sadio, permaneça unido ao corpo, viva de Deus para Deus; suporte
agora a fadiga na terra para reinar depois no céu” (In Io. Ev. tr. 26, 13).
• A relação entre o Espírito Santo e a Igreja pode ser sintetizada na famosa frase de
Agostinho: “E aquilo que a alma é para o corpo, o Espírito Santo é para o corpo de
Cristo que é a Igreja” (Serm. 267, 4).
• Pertence a Agostinho a comparação entre a função da alma no corpo humano e do
Espírito Santo na Igreja. Essa doutrina do Doutor da Graça é capital e podemos
afirmar que se encontra na base de toda a teologia latina referente à relação entre o
Espírito Santo e a Igreja. Tal doutrina, que faz a comunhão intraeclesial descender da
comunhão intratrinitária, segundo A. Trapè, encontra sua expressão mais
amadurecida no sermão 71, que provavelmente é do ano 417, quando Agostinho
estava concluindo o tratado De Trinitate:
• “Além disso, por esse motivo, segundo o que nos é concedido, na medida da nossa
capacidade intelectual, ver essas realidades como num espelho e confusamente,
especialmente a pessoas que somos nós mesmos, no Pai nos é mostrada a
autoridade, no Filho o nascimento, no Espírito Santo a comunhão do Pai com o Filho,
nas três Pessoas a igualdade. Pois bem, por meio disso que é comum ao Pai e ao
Filho, quiseram que nós fôssemos unidos entre nós e com eles, e mediante esse dom
reunirmo-nos na unidade mediante o único dom que eles têm em comum, isto é, por
meio do Espírito Santo, Deus e dom de Deus” (Serm. 71, 12, 18).
• Em outro trecho desse longo discurso, Agostinho apresenta o Espírito como
verdadeiro princípio de unidade (na diversidade) da Igreja: “A ele [Espírito
Santo] com efeito compete a ação de unir juntos, em virtude da qual nos
tornamos o único corpo do único Filho de Deus. É por isso que está escrito: Se
portanto há uma exortação procedente de Cristo, um conforto derivante da
caridade. Uma comunhão formada pelo Espírito. Em virtude dessa comunhão,
aqueles sobre os quais o Espírito desceu pela primeira vez, falaram na língua
de todos os povos. E isso porque a convivência civil do gênero humano se
cimenta por meio das línguas e assim era necessário que essa comunhão,
prestes a realizar-se entre os filhos de Deus e os membros do Cristo no seio de
todos os povos, fosse simbolizada mediante as línguas de todos os povos. Isso
aconteceu porque, da mesma forma que então era evidente que recebera o
Espírito Santo quem falasse as línguas de todos os povos, assim agora
reconheça ter recebido o Espírito Santo aquele que permanece estritamente
unido à paz da Igreja difundida entre todos os povos. Por isso o Apóstolo diz:
Buscai conservar, mediante a paz que vos une, a unidade que vem do Espírito
[Ef 4,6]” (Serm. 71, 17, 28).
• À luz da noção do Espírito como alma da Igreja, podemos contemplar
a proximidade teológica entre a imagem somática da Igreja e a do
Templo do Espírito (ou de Deus).
• Podemos concluir este ponto do nosso trabalho com uma observação
de B. de Margerie, que sublinha como a eclesiologia agostiniana
encontra seu fundamento na sua doutrina trinitária. Além disso
ressalta-se a ligação entre a vida intratrinitária, as missões (do Verbo
e do Espírito) e as dimensões cristológica e pneumatológica da Igreja:
• “O Espírito eterno do Pai e do Filho, a sua comunhão e o seu dom recíproco,
torna-se assim o Espírito da Igreja no tempo, o dom temporal que lhe foi
concedido pelo Pai e pelo Filho. O Sopro do Amor divino torna-se a Alma da
Igreja universal, o Corpo de Cristo. O princípio da comunhão entre os cristãos
se identifica com a comunhão consubstancial entre o Pai e os filhos, no Filho
unigênito. Um exemplo perfeito desta síntese agostiniana, encontra-se nos
vários comentários que o santo fez sobre o sopro do Ressuscitado e as
palavras que o acompanham [Jo 20,22] [...] Assim Jesus anunciou, por meio de
um sinal duplo e único, verbal e real, a missão do Espírito como uma espécie
de extensão de sua processão eterna, ele [Cristo] se apresentou como aquele
que sopra eternamente o Espírito, mas também como aquele que doa
temporalmente o Espírito, que ele soprava sobre as criaturas de carne, que se
tornaram ‘espíritos’, por terem renascido do Espírito e da água, que jorraram
com o Espírito, do seu lado transpassado (cf. Jo 3,6; 6,63; 19,34)” (Margerie, La
doctrine de saint Augustin sur l’Esprit Saint, 116). 

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