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Título original: Die Christologie des Ne11e11 Testaments

O Texto en inglês recebeu o primeiro prêmio de 1955 da Christian Researclz


Fo1111datio11 de Nova York. 3. JESUS O "VERDADEIRO PROFETA", NA CONCEPÇÃO
Supervisão editorial:
JUDAICO-CRISTÃ TARDIA
Daniel Costa
Na história da solução do problema cristológico - e fora esta
Layout e arte final: parte do povo que considerava Jesus como João regressado à vida,
Comp System - (11) 3106-3866
como Elias ressuscitado - só uma facção cristã viu verdadeira­
Diagramação: mente em Jesus o profeta por excelência: foi a do judeu-cristianis­
Pr. Regino da Silva Nogueira mo. Sua desaparição assinala a extinção desta antiga concepção
cristológica. Encontramo-la primeiro no Evangelho dos Hebreus,
Capa:
James Cabral Valdana em uso - segundo sabemos - entre os judeu-cristãos. Infelizmen­
te, não possuímos deste documento mais do que alguns fragmen­
tos. 84 A passagem conservada no Comentário de Isaías de São
Cullmann, Oscar Jerônimo (extraída do fim do relato do batismo de Jesus) 85 mostra
Die Christologie des Neuen Testaments
que neste evangelho apócrifo a concepção cristológica fundamen­
l ª ed. 1957 tal era a de profeta. O Espírito diz aqui a Jesus: "Eu te esperei em
(Cristologia do Novo Testamento) todos os profetas, a fim de que tu viesses e que eu pousasse em ti".
Editora Custom Ltda - São Paulo - 2004 Sem dúvida, as palavras, dirigidas pelo Espírito a Jesus, se esten­
Tradução: Daniel de Oliveira e Daniel Costa diam ainda mais neste evangelho.
No entanto, a lacuna que nosso conhecimento deste evange­
ISNB: 85-89818-03-9 lho apresenta é preenchida por um antigo documento judeu-cris­
tão, os Kerygmata Petrou, que nos foi conservado no romance
pseudoclementino. 86 Neste texto Jesus leva, primeiramente, o título
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer forma ou meio eletrônico
e mecânico, inclusive através de processos xerográficos, sem permissão expressa da
editora (Lei nº 9.610 de 19.2.1998). s; Reunidos por E. KLOSTERMANN, Apoc1)'pha Il (Kl. Texto nº 8, 3' ed., 1929), p. 5 s.
85 Cf. acima, p. 35, nota 17.
86 Cf. a tradução alemã de H. WAITZ (H. V EIL), em HENNECKE, Neutestamentliche
Apokryphen, 2" éd., 1924, p. 153 ss. e 215 ss. - a qual não pôde ainda tomar por base
Todos os direitos reservados à uma edição crítica do texto. (Porém, 3ª ed. em prep.) Existe uma elas Homilias, na
coleção dos Griech. Christl. Schrzftsteller: Die Pse11dokleme11ti11e11. 1. Homilien,
ed. por B. REHM, I 953. Para os estudos relativos aos escritos pseudoclementinos.
cf. H. WAITZ, Die PseudoK!ementinen, Homilien und Rekog11itio11e11, l 904:
O. CULLMANN, Le probleme litéraire et historiq11e d11 roman pse11doclé111e11ti11,
CRISTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO 63
62 Oscar Cullmann _:

de "verdadeiro profeta", ó à,11,11811<; npocp1Í't1l<;; e toda a cristologia Desde o primeiro capítulo os Kerygniata Petrou se ocupam
está orientada para este título. Porém, a antiga noção de Jesus como do verdadeiro profeta. Compara-se o mundo, com seus pecados e
o profeta encontra aí um desenvolvimento novo, a saber: a con­ erros, a uma casa cheia de fumaça. Aqueles que nela estão inten­
cepção escatológica primitiva passa, mais ou menos, para segun­ tam em vão captar a verdade; porém, esta não pode entrar. Só o
do plano, para dar lugar a um elemento especulativo e gnóstico. verdadeiro profeta pode abrir a porta e fazer entrar a verdade. Este
É isto o que já indica o adjetivo "verdadeiro", à.11,11811<;, que acom­ profeta é o Cristo, que apareceu pela primeira vez no mundo na
panha constantemente o substantivo "profeta". Segundo a antiga pessoa de Adão. Adão já é, pois, o verdadeiro profeta e como tal
crença, o profeta apareceria essencialmente para inaugurar o fim anuncia o mundo futuro. Em nosso capítulo sobre o Filho do
dos tempos e consumar, assim, a obra dos antigos profetas; aqui, Homem, veremos que os judeu-cristãos associaram assim a noção
ele é antes de tudo aquele que leva a sua consumação e perfeição a de profeta à de Filho do Homem.88 Desde a criação do mundo, o
verdade anunciada por todos os profetas. Percebe-se aqui um cer­ verdadeiro profeta corre os séculos trocando de nome e de aparên­
to parentesco com o Evangelho de João, que também apresenta o cia, encarnando-se sempre de novo: em Enoque, Noé, Abraão,
Cristo, antes de tudo, como o Logos, o portador da verdadeira Isaque, Jacó e Moisés. Este renovou a lei eterna que Adão já havia
revelação, e que mostra um interesse particular pelo título cristoló­ proclamado. Por concessão ao endurecimento de Israel, e a fim de
gico de "profeta". Porém, no Evangelho de João esta concepção se evitar piores abusos, autorizou os sacrifícios. Porém, esta autori­
insere em uma cristologia autenticamente bíblica, enquanto que zação não era senão provisória, já que o próprio Moisés anuncia
com os Kerygmata Petrou nos encontramos na presença de uma um profeta futuro (Dt 18.15). Da mesma forma que nos demais
especulação tipicamente gnóstica. A obra inteira tem aliás um textos judaicos em que se trata do "profeta", esta passagem de Deu­
caráter gnóstico bem acentuado.87 teronômio desempenha um grande papel. Porém, aqui se atribui
ao verdadeiro profeta a missão particular de proibir os sacrifícios
É falso considerar a teologia judaico-cristã e o gnosticismo como autorizados por Moisés. Este é um ponto ao qual os judeu-cristãos
duas doutrinas opostas entre as quais se teria desenvolvido a teologia da dão muita importância. Esta proibição é, pois, segundo eles, uma
igreja antiga. Tem-se o costume de opor a cristologia judaico-cristã à das funções essenciais do profeta. 89
cristologia gnóstica e docética. Na realidade, as fontes nos mostram que o
mais antigo gnosticismo cristão, aquele cujas primeiras marcas achamos
Na pessoa deste profeta futuro, o verdadeiro profeta encon­
no Novo Testamento, tem vinculação judaico-cristã. As primeiras indica­ tra, afinal, o repouso, como no fragmento já citado do Evangelho
ções precisas sobre o docetismo, que devemos a Inácio de Antioquia, não dos Hebreus. 90 Ele é o Cristo. Pela abolição dos sacrifícios ele
deixam lugar a dúvidas sobre a origem judaico-cristã desta heresia. realiza e corrige ao mesmo tempo a obra de Moisés. Uma linha
direta conduz, pois, de Adão a Jesus, e esta linha é a do profeta, de
quem Jesus é a encarnação perfeita.
1930; H. J. SCHOEPS, Theologie 1111d Geschichte eles Judenchristentums, 1949
(sobre este último livro, cf. as resenhas críticas de G.BORNKAMM em Zeitsc/11: f
Kirchengesch. 1952-53,p. 196ss.e deBULTMANN,emG11omo11, 1954, p.177ss.). 88 Cf. abaixo, p. 195 s.
87 H. J. SCHOEPS busca, é verdade, demonstrar que, contrariamente à nossa tese, não
89 A questão é tratada um pouco diferentemente - embora a orientação seja a mesma -
haveria aí gnosticismo. Porém, trata-se sem dúvida de uma simples questão de pala­
vras, pois Schoeps parece ter uma concepção demasiado estreita do gnosticismo. na Epístola de Bamabé. Nela o autor polemiza contra os sacrifícios judaicos, rcfc­
Na realidade, as recentes descobertas de Qumran proporcionam uma nova prova da nndo-se ao sentido verdadeiro dos antigos profetas. Estes já são pois ·•verdadeiros
existência de um gnosticismo judaico. Por outro lado, Schoeps revisou posterior­ profetas", pela boca dos quais o Senhor fez conhecer sua vontade.
!XI Cf. acima, p. 35, nota 17.
mente sua opinião; cf. abaixo, p. 193, nota 315.
CRISTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO
64 Oscar Cullmann --------------------------=65

Segundo esta curiosa teoria judaico-cristã, uma segunda próprio Batista. O quarto Evangelho combatia somente a quem
linha se desenvolve paralelamente, ao longo de toda a história, a do tinha João Batista por Cristo ou por "profeta"; não combatia a
falso profeta. Considera-se assim o bem e o mal sob o ângulo da pessoa de João; porém, desmentia em troca, pelas próprias pala­
verdadeira e da falsa profecia. Vemos aqui até que ponto toda a vras do Batista, a idéia errônea que alguns faziam dele. Assim, no
soteriologia está subordinada à noção profética. A história inteira se curso da polêmica contra os discípulos do Batista, o juízo acerca
desenvolve sob o signo de uma espécie de dualismo, simbolizado da pessoa de João Batista sofre um desenvolvimento: nos sinópticos
por pares antagônicos (auÇuyím), cujo primeiro membro, chama­ ele é ainda considerado como o profeta; no quarto Evangelho, este
do também esquerda, representa a falsa profecia, enquanto que o título lhe é negado. Nos escritos pseudoclementinos ele aparece
segundo, chamado também direita, representa a verdadeira. Esta finalmente como o falso profeta. Estes mesmos escritos conside­
oposição é dirigida, em particular, contra a seita dos discípulos de ram a Elias, sem dúvida identificado com João Batista, como o
João Batista, também combatida implicitamente no Evangelho de representante da falsa profecia. 92
João. Esta comunidade, antes de sua fusão com os mandeus,91 deve
ter representado, no fim do primeiro e começos do segundo século, Notar-se-á também que esta teoria judaico-cristã dos syzygies permite
uma concorrência particularmente perigosa para o cristianismo pri­ combater o argumento cronológico segundo o qual o Batista seria superior a
mitivo, e muito especialmente para o judeu-cristianismo. Jesus por ser de maior idade. Encontramos marcas desta discussão já no Evan­
Recordemos que os discípulos de João viam em seu mestre o gelho de João (cf. acima, p. 49 s.). Porém, enquanto este responde afirmando a
preexistência de Jesus (daí sua prioridade absoluta), os autores dos Kerygmata
profeta definitivo dos últimos tempos. Nas exposições da doutrina Petrou procedem de outro modo. Reconhecem sem mais a prioridade de João
pseudoclementina, não se tem prestado suficiente atenção ao fato de sobre Jesus, porém, reconhecem nesta mesma prioridade a prova de que se
que todo o sistema destes pares antagônicos é concebido em oposição trata de um falso profeta: é que, a partir da segunda syzygie, sempre o primeiro
a esta doutrina. Segundo as especulações judaico-cristãs, reaparecem membro do par representa a falsa profecia. Caim vem antes de Abel, Ismael
sem cessar na história humana tais "syzygies"; nestes pares cada um antes de Isaque, Esaú antes de Jacó, Aarão antes de Moisés, João Batista antes
dos membros encarna, por assim dizer, em estado puro, a verdadeira e do Filho do Homem; Paulo, o apóstolo entre os pagãos, antes de Pedro; o
a falsa profecia. A teoria gnóstica dos syzygies, que opõe os princí­ Anticristo antes do Cristo da parusia.93
pios do bem e do mal, é posta assim inteiramente a serviço da espe­
culação acerca do "profeta". É assim que, no primeiro par, Adão, pri­ Esta doutrina judaico-cristã está, pois, inteiramente domina­
meiro representante da verdadeira profecia, se opõe a Eva, princípio da pela idéia de "profeta", tanto em seu aspecto positivo como em
da falsa profecia; a !saque, o verdadeiro profeta, se opõe Ismael, o seu aspecto polêmico. O caráter escatológico inerente a esta idéia
falso profeta; ao verdadeiro profeta Jacó se opõe o falso profeta Esaú. no judaísmo, como também no Novo Testamento, passa, é verda­
Igualmente, Moisés aparece como o verdadeiro profeta frente a Aarão. de, a segundo plano. No entanto, lidamos aqui com a única cristo­
Tudo isto para poder, finalmente, opor Jesus, o verdadeiro profeta por logia um pouco desenvolvida que descansa nesta antiga crença de
excelência, a João Batista, o falso profeta por excelência.
Vemos como neste escrito herético judaico-cristão a polêmi­ n Hom. II, 17, 1. Ele é, assim, posto no mesmo nível que os profetas cujos livros são
ca contra os discípulos do Batista degenera em polêmica contra o conservados pelo Antigo Testamento, e que são igualmente rejeitados como os fal­
sos profetas pelos Ke1:vg111ata Petro11.
93 Hom. II, 16-17; Rec. III, 61. Sobre a reconstituição da lista, cf. O. CULLMANN, Le
91
Cf. acima, p. 47 s. prob/eme historiq11e e/ litéraire du roman pseudo-c/émentin, 1930, p. 89.
66 Oscar Cullmann CRISTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO 67

um retorno do profeta. É também, sem dúvida alguma, uma das que na época de Jesus,. ao menos
,.i:e1to ,
é1-- .
nos meios dirigentes· do
mais antigas que podemos encontrar. '
vo, se esperava que o Messias realizasse um programa pol1t1co:
O porvir, no entanto, não pertence a esta cristologia, mas, às �uta e a vitória contra os inimigos de Israel, a restauração de
outras explicações da pessoa e da obra de Cristo. A solução "profe­ : Jerusalém como capital de um reino puramente tempor�l etc.; o
tológica" dos Kerygmata Petrou desapareceu junto com o judeu­ abertamente o papel que Jesus se auto-assmalava.
cristianismo. Ela não exerceu quase nenhuma influência no desen­ g,ue contradiz . .
A função do profeta escato1'og1co · consiste acima de tudo,
volvimento dogmático do cristianismo. Por outro lado, exerceu segundo os textos judaicos, e� prepararyor sua pregaç�o o P_?V�
uma poderosa influência sobre outra religião: o Islã, na qual o pro­ de Israel e o mundo para a vmda do Remo de Deus; e isto nao a
feta ocupa também uma posição central. 94 maneira dos profetas do Antigo Testamento, mas de um modo muito
Veremos, ademais, que mesmo fazendo abstração das espe­ mais direto: como precursor imediato do advento deste Reino. Ele
culações gnósticas judaico-cristãs, a idéia de profeta escatológico vem armado de uma autoridade escatológica que lhe é privativa.
é demasiado estreita para abarcar, em toda a sua riqueza, a pessoa Seu chamado ao arrependimento é absoluto e exige uma decisão
e a obra de Cristo, e isto nos leva a nossa última questão. definitiva, o que dá à sua pregação um caráter final, absoluto, que
nem mesmo a palavra dos antigos profetas possuía no mesmo grau.
4. "JESUS O PROFETA" COMO SOLUÇÃO DO PROBLE­ Segundo a forma em que se reage frente a este profeta, já se é
MA CRISTOLÓGICO DO NOVO TESTAMENTO julgado, segundo diz o Evangelho de João (3.18). Temos visto que
este evangelho dá muita importância à cristologia do "profeta";
Que vantagens e que inconveniências apresenta a crença que quando o tpxóµEvoç, o profeta que há de vir, toma a palavra, tra­
acabamos de estudar quando se trata de estudar o caráter original e ta-se de uma palavra final, da última oportunidade de salvação
único da pessoa de Jesus, tal como ele nos aparece segundo o tes­ oferecida aos homens. Pois só sua palavra indica já a iminente
temunho da fé primitiva? chegada do Reino. Esta função corresponde plenamente à maneira
As vantagens são incontestáveis. Por um lado, ela explica o em que Jesus compreendeu e viveu efetivamente sua missão terrena.
caráter único da pessoa e da obra de Jesus, já que em sua pessoa
A autoridade, a Éçoucría., com a qual Jesus anuncia Seu evange­
trata-se, se não da aparição final do próprio Senhor, ao menos da
lho, não é a de um profeta qualquer, mas a do profeta por excelên­
aparição decisiva do profeta escatológico. Por outro lado, ela dá
cia: "Mas eu vos digo" (Éyoo oE ÀÉyro uµtv). O conteúdo de sua
conta do caráter humano de Jesus: é um homem que os judeus
pregação correspondia, aliás, a esta autoridade escatológica: "Arre­
esperavam como o profeta dos últimos tempos.
pendei-vos porque o Reino dos Céus se aproxima". Tal é o ponto
Se consideramos agora a missão deste profeta, será necessá­
rio convir que ela corresponde perfeitamente a todo um aspecto da de partida de sua pregação: quer preparar os homens para a entra­
obra de Jesus, e, em todo caso, que não contém nada que se opo­ da no Reino que vem. O caráter escatológico de sua pregação é
nha à essência e à finalidade desta obra, tal qual nô-la representam incontestável.
os evangelhos. Deste ponto de vista, a noção de profeta apresenta A noção de "profeta" explica, pois, perfeitamente a atividade
de Jesus como pregador, assim como também a autoridade com a
certas vantagens em comparação com a de Messias. Veremos, com
qual atua e fala.
Temos que assinalar ainda que ela se associa muito facilmen­
94 Cf. abaixo, p. 74 s. te a outras noções cristológicas essenciais: à de Messias, no senti-
68 Oscar Cullmann CRISTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO
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do que este também deve aparecer no fim dos tempos para prepa­ fazer milagres, deve restabelecer as tribos de Israel, vencer as potên­
rar a vinda do Reino de Deus; à idéia joanina do Logos, que une a cias deste mundo e lutar contra o Anticristo. 96 No entanto, não se
obra do profeta e sua pessoa identificando-os, por assim dizer: o trata aí da missão específica do profeta, mas antes, de elementos
próprio Jesus sendo o Verbo. Pode-se recordar a este respeito o vindos de outra parte- talvez da noção de Messias - e transferidos
começo da Epístola aos Hebreus, onde se expressa um pensamen­ ao profeta dos últimos tempos. Ora, a obra terrena de Jesus Cristo,
to análogo (embora o assunto não seja exatamente o mesmo que o tal qual a compreenderam os primeiros cristãos, não se limita à
do prólogo de João): "Depois de haver em outros tempos, de muitas pregação escatológica; ela não encontra sua consumação senão
maneiras e em diversas ocasiões, falado a nossos pais pelos profe­ na remissão dos pecados e, antes de tudo, no ato que coroa esta
tas, Deus, nestes últimos tempos, nos tem falado pelo seu Filho". obra redentora: sua morte expiatória. É assim que, segundo o tes­
Aqui a idéia de profeta está ligada à de Filho de Deus. Já ternos temunho dos evangelhos, o próprio Jesus entendeu sua obra, e nes­
visto também que existe um elo direto entre a noção de profeta e a ta perspectiva também a igreja nascente compreendeu Sua pre­
de servo, do Ebed lahweh, sofredor, já que o sofrimento é parte gação.
integrante da missão do profeta escatológico. É verdade que temos constatado um elo entre a pessoa do
Enfim, não podemos esquecer um fato sobre o qual já ternos profeta e a do Servo de Deus. No entanto, o sofrimento e a morte,
chamado a atenção: 95 de todos os títulos atribuídos a Jesus pelo cris­ no sentido de urna substituição consciente e voluntária, não são
tianismo primitivo, o de profeta dos últimos tempos é o único que especificamente parte da função do profeta escatológico. Para o
permite, ao menos em princípio, falar de urna dupla vinda de Jesus profeta, o sofrimento não é mais do que urna conseqüência inevi­
sobre a ten-a, que autoriza, portanto, a que se aspire o seu retorno. tável de sua pregação; ele não é, propriamente falando, sua niis­
Estas vantagens são incontestáveis. Há, no entanto, graves são, como o é no caso do Servo Sofredor. O profeta não é, em
inconvenientes em reduzir a explicação da pessoa e obra de Jesus suma, mais do que o pregador que se levanta no fim dos tempos
àquela de profeta do fim dos tempos. Pode-se classificá-las em para chamar os homens ao arrependimento. Tudo o que concerne,
quatro grupos: 1) do ponto de vista da vida terrena, passada de adernais, à sua pessoa e obra desaparece frente a esta função
Jesus; 2) do ponto de vista do Cristo presente, elevado à destra de essencial. Ora, na vida de Jesus é justamente o contrário: sua pre­
Deus; 3) do ponto de vista do Cristo por vir, o Cristo da parusia e gação e seu ensinamento decorrem inteiramente do fato dele ter
4) do ponto de vista do Cristo preexistente. consciência de que lhe é necessário sofrer e morrer por seu povo.
Acabamos de ver que a idéia de profeta permite, em muitos Por isso, não é tanto a noção de profeta mas a de Ebed Jahweh que
sentidos, compreender perfeitamente a vida terrena de Jesus, e caracteriza essencialmente a vida terrena de Cristo, e isto - volta­
que nisto reside justamente sua vantagem. No entanto, mesmo deste remos a tocar nessa questão - aos olhos do próprio Jesus. Não é
ponto de vista, é insuficiente quando, com efeito, insiste demasia­ senão vinculando estreitamente a noção de profeta à de Ebed
do vigorosamente sobre um só aspecto desta vida: sobre a ativida­ lahweh que aquela pode, a rigor, explicar a vida terrena de Cristo.
de de Jesus corno pregador escatológico, desequilibrando o papel De outro modo, ele não seria só insuficiente, mas ainda daria urna
que os evangelhos dão ao Cristo terreno. É certo que os textos falsa imagem da pessoa e da obra de Jesus tal qual a descreve o
judaicos nos falam de outras atividades do profeta: deve também Novo Testamento.

95 Cf. acima, p. 35 e 59 s. 96 Cf. acima, p. 43.


70 Oscar Cullmann CRISTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO 71

Porém, a insuficiência de uma cristologia centrada inteira­ A discussão sobre a "escatologia conseqüente" deveria, pois, tratar
mente sobre a noção de profeta se torna mais patente se tentamos do verdadeiro lugar do "adiamento da parusia"; deve ele ser considerado
explicar a obra presente e futura de Cristo. Não há lugar algum como um motivo teológico com alcance decisivo para o cristianismo pri­
mitivo97 - (é o que pensam A. Schweitzer e seus discípulos, corno tam­
para uma função presente do profeta, pois a idéia de profeta não
bém mais recentemente, R. B ultmann98 ) - ou não marca ele, antes, preci­
prevê um intervalo temporal entre sua atividade terrena, já escato­ samente a fronteira que separa o judaísmo do evangelho de Jesus?
lógica, e seu retorno. Temos constatado, é verdade, que o profeta A escatologia de Jesus não é nem "realizada" (Dodd) nem "somente
esperado pelos judeus da época de Jesus era considerado como futura" (A. Schweitzer). A tensão existe já no ensinamento do próprio
já tendo vivido antes sobre a terra. Esta doutrina pode, pois, ter Jesus. O adiamento da parusia na igreja nascente tem, quando muito, por
preparado os espíritos para a idéia de uma dupla vinda de Jesus. conseqüência uma insistência maior sobre o "já realizado". 99 As pala­
vras já mencionadas dos evangelhos sinópticos provam que o próprio
Porém, há uma diferença: segundo a crença judaica, a primeira
Jesus admitiu um tempo de realização já cumprido durante sua vida, sem
vinda do profeta não tinha um caráter escatológico, enquanto que deixar de esperar com intensidade a consumação final, muito próxima;
para a fé da igreja primitiva tratava-se, em ambos os casos, de porém, que chegaria somente depois de sua morte. 100
uma aparição escatológica de Jesus. Segundo a esperança judaica,
o Reino de Deus se estabeleceria com poder a partir do momento A posição central que o Cristo presente e glorificado ocupa
em que o profeta retornado à terra completasse seu chamado ao na fé da igreja nascente basta para mostrar que o título de profeta
arrependimento. Não se prevê que ele deva seguir exercendo sua não contribui para uma solução satisfatória do problema cristoló­
função posteriormente. Por esta razão, a noção de profeta não pode gico. Para o judaísmo tardio, o profeta esperado já viveu uma vez
aplicar-se à obra do Cristo glorificado, do Kyrios que a igreja con­ sobre a terra; porém, a consumação de sua missão escatológica,
fessa. Ou seja, uma das funções escatológicas mais importantes quando voltar, marcará o termo definitivo de sua ação. Não há,
para o Novo Testamento é estranha ao conceito de profeta. pois, lugar nesta concepção para uma atividade prolongada até o
Colocando-se no ponto de vista escatológico judaico de presente. Seu papel é exclusivamente preparatório, o que torna,
então pode-se e deve-se falar, a propósito do cristianismo, de um de início, impossível uma prolongação de sua missão.
"adiamento da parusia". Há, com efeito, um verdadeiro adiamento
da realização esperada; porém, sobre a base de uma fé em um 97 Não contestamos, no entanto, que a Igreja nascente tenha constatado um adiamento
cumprimento antecipado neste mundo que não está ainda liberto posterior da parusia. Porém, afirmamos que o esquema cronológico da história
do pecado e da morte. A convicção de que "o Reino de Deus já da salvação não provém desta postergação: existia desde o princípio. A Entescha­
tolo gisienmg consiste em diminuição da tensão entre o presente e o futuro.
veio até vós" (Mt 12.28), que "Satã caiu do céu como um raio" (Lc E. GRASSER, Das Problem der Parusieverzogemng in den synoptischen Evan.gelien
10.18), e que "os cegos vêem, os aleijados andam, os leprosos são llnd der Apostelgeschichte (B ZN W, 22), 1957, tenta juntar todos os textos à sua tese
purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, e a boa nova segundo a qual a igreja nascente não só teria crido em uma presença então atual do
porvir escatológico pelo fato da parusia não se ter produzido. Já refutamos esta tese
é anunciada aos pobres" (Mt 11.5), é um elemento novo no evan­ em nosso artigo "Parusieverzõgung und Urchristentum" (ThLZ, 83, 1958, col. I ss).
gelho que o distingue do judaísmo e até das formas mais elevadas 98 Cf. seu artigo em NTS, 1, 1954, p. 5 ss.
99 Cf. a este respeito nossa discussão com F. BURI no artigo: "Das wahre durch die
do profetismo judaico. Desde que se considere o tempo presente
nesta perspectiva, o processo escatológico admitido nesta época ausgebliebene Parusie gestellte neutestamentliche Problem" (ThZ, 3, 194 7, p. 177
ss. e 422 ss.).
pelo judaísmo deve, necessariamente, ser modificado, porque aí se ' Ver a este respeito: W. G. KÜMMEL, Verheissllng und E1fiil/1111g, 2" edição, 1953.
00

insere, então, uma época - por certo breve - de realização parcial. Cf. igualmente abaixo, p. 303 s.
72 Oscar Cullmann CRISTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO 73

Também, não se pode, a partir da noção de profeta, entender a que não abrange a ação pós-pascal do Cristo "vivo". Ora, esta
tampouco a terceira fase, o período futuro e escatológico da obra de ação - voltaremos a isso - representa para a comunidade primiti­
Jesus. Segundo a crença judaica, o papel do profeta acaba quando va O acontecimento cristológico por excelência, o qual deu um
começa o Reino de Deus. A vinda do profeta é, por certo, objeto de impulso decisivo a toda a cristologia do Novo Testamento.
esperança e ele é, inclusive, uma figura puramente escatoló­ Enfim, não se pode relacionar diretamente à noção de profeta
gica. Porém, ele é esperado como precursor e não como executor da a preexistência do Cristo, da qual falam diferentes passagens do
consumação, pois esta, por definição, não entra no âmbito de sua Novo Testamento. Quando muito, se poderia sustentar que o pro­
missão. Aqui aparece uma vez mais a dificuldade que se experi­ feta já aparecera sobre a terra sob formas diferentes, e que isto
menta ao querer reduzir a este título a cristologia dos primeiros cris­ pressupõe a existência de uma espécie de "protótipo" do profeta e,
tãos. Só os que esperavam o advento do Reino de Deus durante a portanto, uma certa forma de preexistência. Porém, esta é profun­
vida de Jesus é que não tinham necessidade de considerar uma pro­ damente diferente da que, no Novo Testamento, atribui-se a Jesus,
longação de sua missão, e podiam contentar-se em ver nele o profe­ onde se trata de uma existência eterna junto a Deus. Somente admi­
ta dos últimos tempos. Por outro lado, a fé cristã primitiva, tal qual tindo-se uma relação entre o Logos joanino, o "Verbo que no prin­
está atestada por todos os escritos do Novo Testamento, parte da cípio estava com Deus", e o profeta - o qual é essencialmente a
morte e ressuneição de Jesus e se dirige ao Cristo presente e àquele personificação do Verbo Divino - se poderia, rigorosamente, con­
que há de voltar. Pode-se, ademais, demonstrar que o próprio Jesus templar, com base nesta relação, a possibilidade de uma certa iden­
contou com uma prolongação - muito breve sem dúvida - de sua tificação entre o profeta e Jesus.
obra de mediador antes de vir o fim dos tempos. 1 º 1 Para concluir diremos, pois, que a noção de profeta dos últi­
Se o título de "profeta do fim dos tempos" não pôde impor-se mos tempos é demasiado estreita para dar conta da fé primitiva em
para explicar a pessoa e a obra de Jesus, deve-se isto, sem dúvida, Jesus Cristo. Esta noção não alcança plenamente mais que um
aspecto da vida terrena de Jesus; necessita ser completada por
101
ALBERT SCHWEITZER emitiu, como se sabe, a opinião de que Jesus havia crido, outras noções mais centrais, como a de Servo de Deus. Por outro
antes de tudo, que o Reino de Deus viria durante sua vida e que só mais tarde lado, ela não pode concordar com os títulos cristológicos que se
pensou que o advento do Reino coincidiria com sua morte. É esta uma hipótese relacionam ao Senhor presente, pois exclui a idéia de um intervalo
que deve ser levada em consideração e que tem exercido uma influência fecun­
da sobre os estudos neotestamentários. Porém, não é mais que uma hipótese e entre a ressurreição e a parusia. É, por conseguinte, incompatível
A. SCHWEITZER é um sábio demasiado sério para não ter-se dado conta disso. com a perspectiva a partir da qual o Novo Testamento inteiro con­
Em todo caso, hoje já nenhum especialista do Novo Testamento a defende sob a sidera o evento da salvação, isto é, a vinda, morte e ressurreição
forma que ele lha deu; e ela foi pelo menos seriamente enfraquecida, em particular
por W. G. KÜMMEL, Verheissung wul e,füllung, 2ª ed., 1953. Porém, isto não de Jesus como o ponto central, divisor do tempo. A teologia do
impede os discípulos de Berna e de Basiléa de A. SCHWEITZER, os representantes "profeta" não pode acomodar-se a esta perspectiva, já que por sua
da escatologia chamada "conseqüente" (entre os quais não se encontra nenhum própria natureza o profeta não pode desempenhar senão um papel
especialista do Novo Testamento) de aderir a ela com singular dogmatismo, acusan­
do de improbidade científica ("recurso a escapatórias") ou de tendências católicas preparatório. Se Jesus é só o profeta, então o evento decisivo da
àqueles que não admitem esta hipótese e admitem que Jesus tenha pensado que o história ainda não se produziu; neste caso não há lugar para uma fé
Reino de Deus não viria senão depois de sua morte, mesmo se ele tivesse crido que o no Cristo-Kyrios atualmente presente. Pois, para o Novo Testa­
intervalo não fosse de longa duração. Cf. a este respeito F. BURI, ''Das Problem der
ausgebliebene Parusie" (Schweiz. Theol. Umschau, 1946, p. 97 ss.) e nossos artigos
mento, a fé no Cristo atualmente presente, como a fé em seu retor­
da ThZ e da ThLZ citados mais acima, p. 45 cf. Também abaixo, p. 270 s. e 303 s. no, pressupõe a certeza de que a decisão soteriológica foi incluída
74 Oscar Cullmann.

na pessoa do Jesus encarnado, mesmo quando a manifestação des-


ta decisão seja ainda algo esperado. . . .
Não é, pois, surpreendente que na cristologia �o JUdeu-cn�tia­
nismo, regida pela idéia de profeta, a morte de Cnsto - ou seja, o
acontecimento central da história da salvação - careça de grande
importância teológica.

***
Temos visto que nem Jesus nem seus discípulos imediatos
aplicaram a noção de profeta a Sua pessoa e a Sua obra. Tr�t�-se
antes de uma opinião popular sobre Jesus. Os elementos vahdos
que ela encerra foram retomados pelo Evangelho de João e pela
Epístola aos Hebreus, para serem incorporados a outras concep­
ções cristológicas. O único sistema cristológico inteiramente fun­
dado sobre a crença no "profeta" é o dos judeu-cristãos, tal como
o encontramos nos Kerygmata Petrou - portanto, em um ramo
herético do cristianismo antigo. O futuro pertencia a outras solu­
çõe�. No entanto, se reservava a esta cristologia o desempenhar,
mais tarde, um papel histórico não já no cristianismo, mas, no Islã. 1 º2
Sabemos hoje que a religião muçulmana se constituiu sob a
influência do judeu-cristianismo difundida nos países sírios. A figu­
ra do "profeta" revive aí sob uma forma nova. Há ainda, no enta�­
to, muitas investigações por fazer a propósito dos elos intermedi-
ários que unem a religião do Islã ao judeu-cristiani�1:1º·
.
Na dogmática posterior, não encontramos vest1g1os da cristo­
logia do "profeta", a não ser na idéia demunus propheticum Christi.
E ainda assim, sob uma forma bem diferente.

102 Cf. W. RUDOLPH, Die Abhéingigkeit des Korans von Judentum lllld Christe11tw11,
1922· A. J. W ENSINCK, "Muhammed und die Prophetie" (Acta orienta/ia II, 1924);
TOR,ANDRAE, "Der Ursprung des lslams und das Christentum" (Kyrkohistorisk
Arsskrift, 1923-25); J. HOROVITZ, Qoranische U11tersuch11n�e'.1, 1926; W.
_
HIRSCHBERG, Jiiclische und christliche Lehren un vorund fruhisla 1111schen
Arabien, 1939; H. J. SCHOEPS, Theologie wzd Geschichte des Judenschristentwns,
1949, p. 334 ss.

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