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Capítulo VI

DISCÍPULOS, SEGUIMENTO, ESTILO DE VIDA

Com sua mensagem Jesus dirige-se ao público, ao povo em geral. Mas para ele
o estar voltado para o povo ainda não era bastante. Nos evangelhos vemos um grupo
de pessoas que lhe eram mais próximas. Este fato que observamos é esclarecedor
para conhecermos sua personalidade, pois mostra que ele queria estar perto das
pessoas, que não queria percorrer seu caminho como um grande solitário. Se
tomarmos como referência as experiências que estão ao nosso alcance, isto faz-nos
lembrar a categoria da amizade. Mas as tradições sobre Jesus nos desapontam jus­
tamente quando nos interrogamos pelos contextos psicológicos e emocionais que
mais intensamente despertam nosso interesse. Teremos, em lugar disto, que restrin­
gir-nos a perguntar como foi que surgiu este círculo mais restrito em torno dele,
que imp01tância ou que tarefa lhe foi atribuída por ele, que significado ele tinha para
estas pessoas. Ser-nos-á possível focalizar nossa atenção, mesmo que som.ente num
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) episódio característico, numa particularidade, numa ocorrência, que por um mo­
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) mento que seja ilumine, como que num lampejo, para um ou outro componente
Gnilka, Joachim, 1928-
desse círculo, a face que se oculta nas sombras da história?
Jesus de Nazaré : mansagem e história/ Joachim Gnilka; tradução de Carlos Almeida No caminhar lado a lado com seus companheiros Jesus se igu ala a outros
Pereira - Petrópolis, RJ : Vozes, 2000. 1
homens que marcaram a humanidade . Também Buda, Sócrates, Confúcio, reuni­
Título original: Jesus von Nazaret.
ram em torno de si pessoas que pensavam como eles. Filósofos fundaram escolas.
Bibliografia
ISBN 85.326.2339-5 Mais próximos de Jesus encontramos João Batista ou os escribas judeus da época,
como Hillel e Shamai, que vemos também rodeados de adeptos. Não podemos, nem
1. Jesus Cristo - Biografia - Vida pública 2. Jesus Cristo - Ensinamentos 1. Título. é conveniente, aprofundar aqui esta comparação. Limitar-nos-emos a lançar um
rápido olhar sobre seus contemporâneos judeus mencionados por último. Pois o
que é significativo para nós é o que é próprio de Jesus. Comparações podem fazer
com que o que é característico dele venha a desaparecer ou a esmaecer-se no
torvelinho de um quadro geral. Mas já que Jesus vivia em comunidade com estes
00-0979 CDD-232.901 seus companheiros e adeptos, é preciso que façamos uma tentativa de descobrir
alguma coisa sobre seu estilo de vida, sua maneira de viver.
Índices para catálogo sistemático:
1. Jesus Cristo: Mensagens: Cristologia 232.901
2. V ida de Jesus : Cristologia 232. 901
1. A expressão é tomada de K.Jaspcrs.

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1. Discipulado e seguimento
judeus, onde era o discípulo quem escolhia seu mestre, por via de regra aquele de
De acordo com o que os evangelhos apresentam - Lucas, de certa forma, quem esperava aprender mais, podendo também passar para outro, e comoJesus se
constitui uma exceção-, Jesus inaugura sua atividade reunindo discípulos em torno de deixa associar à idéia profética do seguimento. Não é porque Jesus fosse um rabino
si (Me 1,16-20;Mt4,18-22;Jo 1,35-51)2 ,A narração cristã criou aqui uma forma especial conhecido que o seguimento se inicia e se torna possível, mas porque ele chama na
de histórias de chamamento dos discípulos, que se revela dependente da história da plenitude do seu poder carismático. O caráter único deste seguimento se expressa
vocação de Eliseu pelo profeta Elias. Isto se torna tanto mais evidente porquanto no em que no caso de Elias não é o profeta quem chama mas em última análise é Deus,
Antigo Testamento não existe nenhuma outra história de vocação semelhante. Quando o que é representado pelo ato simbólico de lançar o manto sobre quem é chamado.
colocamos os textos lado a lado, a dependência torna-se patente: Em Jesus falta um símbolo deste tipo. Ele chama por sua palavra. Os lógia de segui­
"E enquanto caminhava ao longo do már da Galiléia ele viu Simão e André, mento que nos foram transmitidos confirmam este poder.
seu irmão, lançando a rede ao mar, pois eram pescadores. E Jesús lhes disse:· Ao tentarmos reconstituir os inícios da atividade de Jesus no que diz respeito à
V inde comigo! E eu farei de vós pescadores de gente. E imediatamente formação de um grupo de discípulos, vez por outra se tem considerado se no
deixaram as redes e o seguiram. início ele não atuou sozinho durante algum tempo, sem estar acompanhado por
Indo um pouco mais adiante, viu Tiago filho de Zebedeu eJoão, seu irmão, discípulos6. Não podemos sem mais nem menos descartar esta possibilidade. Mas
consertando as redes no barco. E logo os chamou. E eles deixaram o pai Zebedeu isto teria que ter ocorrido durante um curto período, levando em conta o tempo
no barco com os empregados e partiram, seguindo Jesus (Me 1,16-20)". bastante restrito de sua atividade. O chamado de Jesus aos discípulos não foi
"Quando ele (Elias) partiu de lá, encontrou Eliseu, o filho de Safat, lavrando feito por uma pessoa desconhecida7. Devemos estar lembrados que alguns
com doze juntas de bois à sua frente; conduzia ele mesmo a duodécima junta. dos homens que Jesus chamou pertenciam antes ao círculo dos discípulos de
Elias chegou perto dele e lançou sobre ele o seu manto. Então Eliseu largou João Batista (c(Jo 1,35ss). Estes, possivelmente,já haviamconhecidoJesusjunto
os bois e correu atrás dele, gritando: Deixa-me primeiro beijar meu pai e minha ao Batista. Jesus formou seu círculo de discípulos na Galiléia, onde também desen­
mãe, e em seguida vou acompanhar-te. Elias lhe respondeu: Vai e volta! Pois volveu a maior parte de sua atividade8.
o que te fiz eu?3 ... Em seguida se levantou e seguiu a Elias, pondo-se a seu
serviço" (1Rs 19,19-21). Ao contrário da história de chamamento de Elias, no caso de Jesus é imposta
uma tarefa: "Farei de vós pescadores de homens". Sua originalidade se manifesta no
Os elementos estruturais marcantes são, em ambos os casos, a impressão
adaptar-se à profissão anterior destes homens, o que pôde conscientizá-los de que
propositadamente deixada de tratar-se do primeiro encontro entre quem chama e
eles deveriam ser "pescadores" numa outra esfera. Para a imagem dos pescadores
quem é chamado, o fato de ser chamado ao seguimento enquanto se dedica ao seu
ou caçadores de homens também só conseguimos encontrar paralelos negativos,
trabalho diário, e a imediata obediência; a superação de um obstáculo, que é dado 9
de modo que Jesus, ao aludir a isto, estaria introduzindo o emprego positivo .
com a despedida dos pais4.
Mais provável é que a imagem tenha sido criada espontaneamente em vista da
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Apesar de conscientemente moldada como uma cena ideal , a tradição permite­ profissão destes homens. Com isto dispomos de um sentido básico para o
nos perceber alguns detalhes pertencentes ao fundo histórico. Deste fazem parte os seguimento de Jesus. Mais uma vez ele nos leva ao centro de sua atividade, a
nomes das pessoas chamadas e de seu pai, sua profissão, mas sobretudo o chama­ proclamação do domínio de Deus. Pois as pessoas precisam ser "pescadas" para o
mento feito por Jesus. Para ingressar no número de seus seguidores o que é decisivo
não é a decisão do discípulo mas sim a vontade e a escolha deJesus. É ele quem toma
a iniciativa. Nisto ele se distingue da relação mestre-discípulo entre os rabinos
6. Hcngcl, Nacl,folge, 80, observa que na tradição mais antiga Jesus muitas vezes aparece como alguém que atua
sozinho.
7. Se Lc antepõe ao chamamento outras perícopes, sobretudo também a observação de que os que haveriam de ser
2. O relato correspondente, Lc 5,1-11, é antecedido por narrativas sobre o ensinamento e a atuação de Jesus cm chamados já tinham tido antes ocasião de ouvir a pregação de Jesus (5,1 e 5,4), é porque ele há de ter sentido
Nazaré e Cafarnaum (4,14-44). Mas Lucas nada aprcscnta dc novo cm relação a Marcos, que lhe serve de modelo, também a dificuldade de haverem atendido ao chamado de um desconhecido. Cf. acima nota 2.
apenas ele altera a ordem das perícopes correspondentes (cf. Me 6, 1-6a; 1,23-38). A rejeição de Jesus cm Nazaré
é programaticamente ampliada e transferida para o início. 3. Não se pode falar de uma conquista dos discípulos do Batista por parte de Jesus. Estes homens, man ifestamcnte,
também haviam regressado para a Galiléia e reassumido sua profissão.
3. Na versão original da história Elias não permite a despedida. Cf. G. Fohrer. Elia (AT hANT 31), Zurique, 1957, 21s.
1, Jr 16, 16; 1 QH 5,7s; 3,26 (a rede de arrasto dos ímpios). Lc 5,10 transmite o lógion de uma forma modificada: "De
4. A esquematização é confirmada por Me 2,14ps, a vocação do publicano. agora cm diante serás pescador de homens". Hcngcl, Nachfolge, 85, faz isto remontar a uma variante de tradução
5. Termo de Bultmann, Geschichte, 27. no aramaico. A pesca de homens não é uma palavra helenística, como acha Hacnchen, 1.-Jkg, 82, com base num
paralelo muito duvidoso de Aristipo.

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domínio de Deus, ser envolvidas pela salvação que lhes é oferecida. Jesus reuniu à palavra com que é designado o aluno (talmid) do rabino. Mas no relacionamentó
discípulos em torno de si a fim de que o apoiassem em sua própria atividade 10. O entre os discípulos e Jesus não en�ontramos nenhuma atmosfera de instituição de
b
ser discípulo deJesus está voltado para fora, para as pessoas. ensino ou de atividade acadêmica .
Mas está voltado também para dentro, paraJesus. Esta orientação é expressa pela A respeito do seguimento foram-nos conservadas palavras de Jesus que exigem
palavra "seguir", da qual devemos admitir que era empregada por ele da mesma o máximo de decisão. Em parte encontramo-las em cenas anedoticamente <lescritas
maneira como a palavra discípulo. Merece atenção que na passagem onde na história nas quais, ao contrário das histórias de vocação, estão ausentes indicações mai�
de Elias se diz que Eliseu se tornou seu servo, se lê no evangelho que eles o seguiram. precisas sobre as pessoas que se encontram com Jesus, como o nome e a profissão,
Com isto Jesus aponta uma qualidade essencialmente nova do ser discípulo. Na e o centro de interesse é unicamente a posição tomada por Jesus (Lc 9,57-62p).
relação rabínica entre discípulo e mestre era coisa corriqueira que o aluno servisse Ouvimos a respeito de um homem a quem ele chama para segui-lo, masque objeta
seu mestre, o que é ilustrado pelo seguinte provérbio: "Todos os trabalhos que um. . que primeiro desejaria ir sepultar seu pai. Muito por alto a objeção lembra a vocação
escravo presta a seu senhor, deve o discípulo prestar a seu mestre, com exceção de de Eliseu, só que lá tratava-se unicamente de despedir-se de pessoas vivas (1Rs
desatar as sandálias" (bKeth 96a)11.Jesus, porém, diz: "Pois quem é o maior, quem 19,20). A respeito da resposta que ele ouve deJesus se tem dito que como nenhuma
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está sentado à mesa ou quem serve? Não é quem está sentado à mesa? Pois eu estou outra ela ofende a lei, a piedade e os bons costumes : "Segue-me e deixa que os
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no meio de vós como quem serve" (Lc 22,27) . mortos enterrem os seus mortos" (Mt 8,22). Lc 9,60, em lugar da repetição do
chamado, apresenta a exigência: "Tu, porém, vai e anuncia o domínio de Deus!" É
Devemos, aliás, fazer uma cuidadosa distinção entre a relação discípulo-mestre
possível que isto seja secundário, mas não faz muita diferença, pois no seguimento
entre os rabinos e o seguimento deJesus. Os pontos de contato existentes são apenas 17
deJesus o homem não deve fazer outra coisa senão divulgar a "basileia" •
superficiais. Porém muitos contemporâneos já podem então ter deixado de perceber
em que consistia o ponto específico. De fato Jesus e seus discípulos podem ter O ponto crucial desta palavra aparece com plena nitidez quando se atenta que
apresentado o mesmo aspecto externo de qualquer escriba com seu círculo de alunos. se está falando aqui de mortos em dois níveis de compreensão diferentes. Uma vez
O rabi andava na frente e seus discípulos vinham atrás dele. Na verdade não raro o são os fisicamente mortos, como o pai que o filho deseja sepultar. Da outra são os
mestre judeu usava um animal de montaria. A equiparação realizada pelos que espiritualmente mortos, que morreram porque não se dispuseram ou não se dispõem
olhavam de fora é sugerida pelo tratamento de rabi (literalmente: meu grande, meu para receber a mensagem salvífica de Jesus. Ao avaliar estas duas espécies de
senhor), empregado pelo povo simples em relação aJesus. Certamente trata-se aqui morte, para Jesus a segunda é mais grave. Por isso o jovem homem deve fazer o
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de uma reminiscência correta conservada pelos evangelhos (Me 10,Sl;Jo 3,2.26) • que é mais necessário, e isto sem demora. Desta resposta não se deve inferir que
Nessa época, no entanto, o tratamento de rabi ainda não se havia transformado em se tratasse de uma posição deJesus contra os laços familiares, ou que ele se tivesse
título para os escribas ordenados. Este uso restritivo só se impôs pelo final do século manifestado contra um culto exagerado dos mortos, à maneira dos filósofos
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I d.C., de modo que do tratamento de rabi também não se pode inferir que Jesus cínicos ("O fedor há de me enterrar" ). Também não se deve diluir a resposta
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tenha antes freqüentado a escola de um rabino . Também o fato de os companheiros alegando, por exemplo, que no Oriente um enterro durava oito dias 19. Aqui, pelo
mais íntimos deJesus serem chamados de µa011-rm (alunos, estudantes, discípulos) contrário, como em muitos outros casos, a posição deJesus é concreta, voltada para
pode haver dirigido a compreensão para este sentido. Esta denominação corresponde a situação e para as pessoas individualmente. Estaríamos errados se de uma tal ins­
trução pretendêssemos desenvolver toda uma sistemática. Mas a pessoa em questão
entende perfeitamente o que se está exigindo dela.

10. Esta maneira de ver é com razão enfatizada por Hengcl, Nad'!folge,passi111.
11. Em Billerbeck I, 121.
12. Hcngel, Nadifolge, 57s, mostrou que "seguir", nos textos rabínicos, freqüentemente deve ser entendido no sentido 15. O esquema, cunhado por Marcos, da instrução dos discípulos em casa relaciona-se com circunstâncias mais
concreto de andar atrás do mestre, e sempre expressa, sem maior profundidade, o papel subordinado do discípulo tardias da comunidade, retratando mais exatamente a catequese comunitária, talvez também já a comunidade
em relação ao mestre. doméstica. Cf. Me 7,17; 9,28; 10,10.
13. No grego, em lugar de rabi, é usado o tratamento de 111estre (Me 9,17; 10,17.20; 12,12.19.32 e alhures). 16. Cf. Hcngcl, Naclifolge, 16.
14. Uma tradição rabínica segundo a qual Jesus teria sido discípulo de Jehoshua bcn Perakhia não tem qualquer 17. Cf. Gnilka, Matthiittsevangeliu111 !, 310.
fundamento. Já por razões cronológicas ela é insustentável, pois transfere Jesus para o tempo do Rei Iannai. Um 18. Luciano, Demonax, 65.
julgamento crítico desta tradiçãojá se encontra cm Klausner,Jesus, 25-29. Segundo Jo 7,15 os judeus acusam Jesus
de não haver estudado. 19. Schwarz, Undjesus sprach, 96.

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Igualmente concreto e referido à situação é o apelo dirigido ao homem rico para de um colocar em segundo plano. Também Jesus teve que enfrentar a discórdíí;l
segui-lo, quando Jesus exige que ele venda tudo quanto possui e dê aos pobres (Me com seus parentes. Esta experiência confirma a autenticidade do dito, que por
10,21ps). Também aqui não se expressa um princípio ou uma condição para seguir fazer referência aos pais deixa entrever que o grupo dos discípulos se compunha
a Jesus, válida para todos os casos, embora ele tenha conhecimento dos grandes de pessoas jovens, como também Jesus, ao tempo de sua atuação, era um homem
perigos da riqueza e tenha falado a respeito deles com toda clareza (Me 10,25). com apenas trinta e poucos anos. Aliás, também os rabinos colocavam a obediência
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Se para Jesus o objetivo primário de reunir os discípulos consiste em que estes à Torá acima da obediência aos pais .
devem apoiá-lo em sua própria atividade, uma conseqüência imediata é que eles A palavra sobre o seg uimento na cruz faz referência ao início de um caminho:
sejam enviados. Contestar este envio dos discípulos lembrando, por exemplo, que "E quem não toma a sua cruz e não me segue, não pode ser meu discípulo" (Mt
as instruções missionárias levam em conta exigências de uma atividade missionária 10,38/Lc 14,27)22 . Também esta palavra pode pleitear autenticidade. Ela não nos fala
pós-pascal é esquecer que, em sua decisão e radicalidade, o cetne destas instruções · ainda da cruz de Cristo, embora após a Páscoa não pudesse ser entendida senão em
deve remontar a Jesus, embora mais tarde elas certamente tenham sido interpretadas vista da cruz de Jesus, porém anteriormente era entendida em sentido metafórico,
e adaptadas. Como tais instruções dizem respeito sobretudo ao estilo de vida, ainda . . -
no sentido da cruz propna , 1o: "Quem nao tomasua cruz... "23 - Desd e
' . de cada d 1scipu
deveremos retornar a elas. É natural e evidente que o que ocup;tva o centro da o tempo dos Macabeus, e sobretudo sob os governadores romanos, a experiência
atividade dos enviados era a "basileia": "O domínio de Deus está próximo" (cf. Mt concreta dos inúmeros crucificados que tinham de carregar sua cruz até o lugar do
10,7). Esta oferta de salvação não admitia nem delongas nem rejeição. Aos que a suplício constituía uma experiência infausta e corriqueira. A metáfora empregada
rejeitassem, o gesto de sacudir a poeira dos pés haveria de servir de sinal para o juízo por Jesus podia perfeitamente ser entendida24 . Embora inclua a prontidão para o
que agora os ameaça (10,14). A linguagem deste gesto foi compreendida, pois martírio, ela não fica limitada a isto. Inclui também hostilidade, desprezo, restrições,
tradicionalmente ele significava a quebra da comunhão. sofrimento. Embora fosse uma palavra de alerta, permite concluir que já no tempo
Neste sentido o segu imento implica em perigos e acarreta conflitos. Chama de Jesus, e mais precisamente então, o seguir a Jesus não colocava a pessoa numa
atenção que justamente no contexto do segu imento se fale destes perigos e conflitos, estrada triunfal. Neste sentido a imagem esboçada sobretudo na parte inicial dos
de que se esteja pronto para sofrer e morrer. Se seus discípulos devem apoiá-lo em evangelhos, apresentando-nos Jesus rodeado por incontáveis multidões, necessita
sua atuação, o seg uimento significa ir a pú_blico, discutir com as pessoas, tentar de de uma correção, e não deve nos iludir sobre o fato de que ele encontrou mais
uma maneira pessoal conquistá-las para a 'ibasileia'\ A discussão começava na própria incompreensão do que aceitação. Não obstante, só pouco a pouco é que os discípulos
família. Quem estava consciente de ter siâó · chamado por Jesus e aceitava este devem ter compreendido o pleno sentido desta palavra de advertência, que haveria
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chamado não podia contar com que seus parentes se deixassem convencer da mesma de tornar-se a expressão clássica da idéia do segu imento .
maneira. É a esta situação que se dirige o dito: "Se alguém vem a mim e não odeia A parênese de Jesus sobre o martírio ganha uma importante complementação
seu pai e sua mãe, não pode ser meu discípulo". através de um lógion. de estrutura antitética que trata de ganhar a vida e perder a vida.
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Com isto estamos reconstruindo em sua presumida forma original uma palavra Em suas diferentes variantes esta palavra preservou seu dinamismo dialético:
que foi transmitida diferentemente em Lc 14,26 e Mt 10,37. Em Lucas a lista Quem quiser salvar sua vida há de perdê-la; quem a perder há de salvá-la, embora
daqueles de quem eventualmente será necessário separar-se é manifestamente os verbos - com exceção de perder - possam ser substituídos por outros: achar,
secundária, tendo sido penosamente ampliada com a inclusão de mulher, filhos,
irmãos, irmãs, e da própria vida. Mateus atenua: "Quem ama o pai ou a mãe mais
do 9iue a mim, não é digno de mim", porém conserva a orientação concisa para os 21. Provas em Billerbeck I, 587.
pais 0• Para a compreensão deste dito, que nos parece duro, deve-se levar em 22. O "tomar a cruz" de Mateus é mais original do que o "carregar a cruz" de Lucas. Ao invés, a formulação lucana
consideração que o conflito já era previsto. Neste caso, mas também só neste caso, "não pode ser meu discípulo" deve ser preferida à de Mateus "não é digno de mim". Mt favorece a palavra "digno".
aquele que foi chamado deve preferir o seguimento de Jesus. Este é mais importante, Sobre a reconstrução, cf. Gnilka, Matthii11sevangeli11111 I, 393s.
é, num sentido eminente, mais importante para a vida. A dura palavra "odiar" não 23. Cf. Bultmann, Geschichte, 173.
tem aqui o significado de um separar-se carregado de emoção, mas sim de um pospor, 24. A interpretação de Dinklcr, Kreuztragen, segundo a qual a cruz se refere a um sinal marcado, como uma espécie
de tatuagem, é muito artificiosa.
25. Objetivamente aparentada, mas de significado meramente ético, é a idéia de Platão, Rep. 361 d a 362 a, de que o
justo deve esperar uma vida pior do que o injusto. Platão, que está pensando cm Sócrates, chega mesmo a sustentar
que o justo deve contar ser enforcado, crucificado.
20. C( Gnilka, Matthâi,sevangeliwn I, 393. 26. Mt 10,39/Lc 17,33; Me 8,35/Mt 16,25/Lc 9,24; cfJo 12,25.

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procurar, salvar. A forma mais aproximada- "Quem perder a vida por causa de mim, Visão panorâmica
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há de salvá-la" -deve ser considerada como um elemento antigo , pois demonstra que
o lógion é uma palavra de Jesus. Em Me 8,35 foi acrescentado o componente pós-pascal Seguir a Jesus e ser discípulo de Jesus continuam a ser os elementos essenciais
"e por causa do evangelho". Após a Páscoa o evangelho ocupa de certa forma o lugar de do ser cristão. Na situação pós-pascal, no entanto, depois de Jesus haver concluído
sua vida terrena, a compreensão destes elementos tinha que passar por uma mudan­
Jesus, por cuja causa antes da Páscoa a vida dos discípulos corria perigo. A meta última
do seguimento, do decidido empenho, da prontidão para a renúncia e o martírio, é ça. Para os adeptos de Jesus, a denominação de discípulos só permanece ainda nos
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ganhar a vida (em grego: \!f'UXrJ/ . A dialética da palavra se demonstra como particular­ Atos dos Apóstolos. Fora dos evangelhos, a palavra seguir só aparece em seu sentido
mente aguda no tocante à questão do sentido. Noutras palavras, isto sign ifica: Quem específico no Novo Testamento em Ap 14,4. Paulo desenvolve a idéia da imitação
acha que pode realizar sua vida com auXJ1io de falsas seguranças, de metas egoístas, de de Cristo (cf 1Cor 11,1; 1Ts 1,6). A força carismática de sua vocação, os primeiros
realizações, posses terrenas e coisas semelhantes,· este não encontra o sentido de sua . cristãos experimentaram-na ao saberem-se chamados e reunidos pelo Espírito Santo.
vida. Quem, ao invés, estrutura sua vida no seguir a Jesus e no voltar.:se para á sua Mas a literatura evangélica criou de maneira intencional e conceitua! o permanente
palavra, este poderá conferir-lhe pleno sentido, mesmo que aconteça defrontar-se convite a comprometer-se com o caminho de Jesus que leva a Jerusalém e a segui-lo.
com adversidades, ou até mesmo com a perda da vida. A vida que deve ser ganha e BIBLIOGRAFIA: A. OEPKE. Nachfolge und Nachahmung Christi im NT: AELKZ 71
que é prometida aqui ultrapassa, além disso, os limites da morte e resume toda a (1938) 850-857, 866-872; T. SÜSS. Nachfolge Jesu: ThLZ 78 (1953) 129-140; E. DIN­
existência humana numa grande plenitude de sentido. KLER.Jesu Wort vom Kreuztragen: Ntl Studien für R. Bultmann, BZNW21, Berlim, 21957,
Se procurarmos mais uma vez obter uma visão do conjunto que envolve o ser 110-129; A. SCHULZ. Nachfolgen und Nachahmen, StANT 6, Munique, 1962; H.D.
BETZ. Nachfolge und NachahmungJesu Christi im NT: BFChTh 37. Ttibingen, 1967; M.
discípulo e o seguir aJesus, concluiremos que sua característica primordial é o incluir
HENGEL. Nachfolge und Charisma: BZNW34, Berlim, 1968;]. GNILKA. Martyriums­
os discípulos em sua atividade, fazê-los participar do anúncio do domínio de Deus. paranese und Sühnetod in synoptischen und jüdischen 11-aditionen: Die Kirche des Anfangs
Devemos observar, no entanto, que aqui os discípulos estão na inteira dependência (Festschrift H. Schürmann). Leipzig, s/d, 1978, 223-246.
de Jesus, que eles não atuam em seu próprio nome mas sim em comunhão com ele.
Sem ele o anúncio da "basileia" perde sua força29 . Nesta "escola" não se chegou a
nenhum ensino sistemático nem a criar nenhuma tradição bem elaborada, mas 2. O estilo de vida de Jesus e de seus discípulos
apenas a um primeiro esboço não-sistemático de conteúdos da pregação. Mas Jesus vivia voltado para as pessoas, enquanto durou o tempo de sua atuação
também não nos devemos imaginar os discípulos como se eles percorressem as pública ele viveu na comunidade dos que chamou para seguirem-no e que atende­
aldeias e cidades impelidos por uma ardente expectativa, por uma pressa incansável. ram ao seu chamado. Viveujunto com seus discípulos. Mas esta comunidade de vida
O tempo, de certo, era urgente, mas também era suficiente. não levou a uma forma de vida contemplativa e silenciosa. Pelo contrário, vemos
Além do mais não podemos deixar de lado o aspecto pessoal do seguimento. O esta pequenina multidão peregrinando, caminhando de um lugar para outro, sem
seguimento estava dirigido para Jesus. O seguir a Jesus faz com que a pessoa se, torne lugar fixo. Pode-se afirmar com certeza que o centro da atuação de Jesus estava na
seu discípulo. Este já é um elemento pertencente ao aspecto "reino de Deus". E dado Galiléia, na região próxima ao Lago de Genesaré e a Cafarnaum. Mas ele e seus
pelo fato de que a "basileia", como algo futuro e presente, está ligada a Jesus. Devemos discípulos renunciaram a ter uma pátria fixa, ou deixaram-na para trás.
lembrar-nos da forma carismática do chamamento dos discípulos. Na parênese dos De grande interesse para o estilo de vida do grupo de discípulos são as instruções
discípulos e do martírio entra sobretudo o lado pessoal da condição de discípulo. Esta que Jesus lhes deu para o caminho. Das quatro variantes das instruções dadas para
parênese atinge retroativamente também o convívio de Jesus com seus discípulos. Aqui a missão (Me 6,8-11; Mt 10,5-15; Lc 9,2-5; 10,2-12) 3°, para as quais devemos admitir
o fato de ser discípulo se transforma literalmente em seguimento. Não se pode falar de influências de práticas missionárias posteriores, vamos nos ocupar agora apenas com
forma alguma de uma igu aldade entre Jesus e os discípulos. Em sua pessoa e em seu as regras que se referem às necessidades pessoais dos discípulos. Em sua clareza e
caminho Jesus passa a ser o modelo que se conservará na memória. radicalidade, que em parte já haviam passado por correções e atenuações dentro da
tradição dos sinóticos, elas não podem remontar a ninguém senão a Jesus. O que

27. Se a determinação está ausente cm Lc 17,33, isto é condicionado pelo contexto tucano, que trata não do
_
'seguimento mas sim do terror escatológico. 30. Lc transmite uma missão dos doze apóstolos e uma missão de 72 discípulos. Existe consenso de que Mt e Lc
28. Dautzenbcrg, Sein Lebe11 bewahren, 51-82, esclareceu o significado de psyche nos lógia usuais da tradição sinótica. hauriram as instruções de Me e Q. Lc distribui as duas fontes de que dispõe por suas duas missões, enquanto Mt
as combina. Em última análise as instruções em Q e Me devem remontar a uma tradição comum anterior. Cf
29. É elucidativa a história do exorcista desconhecido, Me 9,38-41. Sobre isto cf Gnilka, Markus II, 58-62. Gnilka, Matthá"useva11gelium 1, 359-362; Hahn, Missio11, 33-36.

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provoca admiração é que estas regras, em lugar de dizerem o que se deve levar, dizem tológica, porém por trás da renúncia à posse e à comunhão dos bens se encontram
exatamente o contrário, o que não é para ser levado: nada de bastão, nada de pão, nada idéias cúltico-rituais e a preocupação daí resultante de não se contaminar com este
de saco, nada de moedas de cobre no cinto, nada de sandálias, nada de duas túnicas31. mundo34. O círculo dos discípulos de Jesus não é nenhum grupo monástico.
Me 6,8s concede secundariamente que se leve bastão e sandálias. E quando diz que o
Os discípulos vivendo sem recursos e dependendo de ajuda são como que uma
discípulo enviado não deve usar duas túnicas, isto também poderia ser uma atenua­
ilustração do domínio de Deus, anunciado por Jesus e por eles. Ela introduz uma
ção, comparada à instrução de que não se deve ter duas túnicas (Mt 10,10; Lc 9,3).
nova ordem, que não deve mais ser a ordem da propriedade, do lucro, da riqueza e
O renunciar a provisões - é neste sentido que deve ser entendido "pão" - e a do desprezo das pessoas. Seu estilo de vida como sinal da "basileia" podia tanto
moedas de cobre faz deles pessoas inteiramente sem recursos. Já é esclarecedor que melhor ser compreendido quando podemos admitir que eles, ou pelo menos algu ns
sejam mencionadas aqui as moedas de cobre; as de menor valor. Quando Mt_ 10,9 deles, viviam anteriormente em condições econômicas regulares. Sem recursos, sem
os proíbe de adquirir moedas de ouro, prata ou cobre, provavelinente·isto já é uma nenhuma defesa e sem qualquer exigência, eles sabiam-se - ou deviam considerar-se -
alusão a abusos que se haviam introduzido nas comunidades. A renúncia ao saco entregues a este Deus que estava prestes a estabelecer seu domínio. Também chamava
pretende impedir que eles façam reservas com as esmolas recebidas. A renúncia ao atenção o silêncio que deviam guarda�, o fato de não deverem responder à saudação de
bastão, às sandálias e a uma segu nda túnica faz com que apareçarr.i como pessoas ninguém pelo caminho (Lc 10,4bt. Isto devia dirigir a atenção para a palavra da
pobres. Andar descalço era considerado como expressão de grande pobreza. A "basileia", que deviam tratar como um presente valioso e que só deveria ser
renúncia ao bastão talvez também tenha a ver com sua mensagem de paz. Pois o proclamada no final da viagem, onde importava que a mensagem fosse transmitida.
bastão também podia ser usado como arma.
� Podemos pressupor que a falta de meios que Jesus exigia de seus discípulos
Podemos fazer uma comparação entre esta ausência de meios imposta aos também caracterizava o estilo de sua própria vida. Também ele andava pela terra sem
discípulos e o estilo de vida dos pregadores itinerantes dos filósofos morais. De mantimentos, sem dinheiro, sem saco de esmolas, descalço e sem bastão, como
Antístenes, um discípulo de Sócrates, foi transmitido que ele ficava satisfeito com alguém que não tem pátria. Neste sentido o sinal do domínio de Deus era sobretudo
um bastão, um saco e um único manto, que o caracterizava como filósofo. Crates, ele. Os discípulos apenas o imitavam. Um lógion da tradição dos ditos, a que talvez
um discípulo de Aristóteles, teria renunciado publicamente às suas posses com uma só secundariamente o título de Filho do Homem tenha sido acrescentado, aponta
36
fórmula de libertação de escravos, doando-as a seus concidadãos ou - de acordo com para sua falta de recursos e de pátria : ''As raposas têm tocas e os pássaros do céu,
32
uma versão diferente - jogando-as ao mar . - Aqui existem pontos de contato ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça" (Mt 8,20/Lc 9,58).
também com outras religiões. De Buda sabemos que ele, o filho de príncipes, que Em sua forma atual o lógion tira sua força do contraste entre os animais e o Filho do
havia renunciado a toda espécie de posse, diariamente fazia sua caminhada com a Homem. Em seu colorido teológico, o não possuir morada do Filho do Homem tem
tigela na mão para esmolar, sem pronunciar um único pedido, de olhos baixos, como causa a hostilidade e a rejeição por parte dos homens. Caso a palavra realmente
33
esperando que alguém espontaneamente lhe desse um pouco de alimento . - tenha sido formulada na primeira pessoa, o contraste com as raposas e os pássaros
Dentro do judaísmo contemporâneo, os monges essênios de Qumran haviam-se manifestar-se-ia ainda com mais intensidade, e seu não-ter-morada apareceria como
obrigado a uma rigorosa pobreza e a não terem posses pessoais. uma extrema insegurança existencial. Qualquer que tenha sido em detalhe a origem
37
Se nos interrogarmos pelo sentido abrangente da ausência de recursos que é histórico-tradicional da palavra , ela de qualquer forma conservou a lembrança histo­
exigida dos discípulos, esta se destaca claramente das outras situações análogas aqui ricamente verdadeira do não-ter-pátria como sendo o estilo de vida de Jesus.
mencionadas. Não é a tranqüilidade interior da indiferença, característica dos filósofos Compreende-se que a extraordinária maneira de vida de Jesus podia servir de
em seu distanciamento do mundo e dos bens do mundo, que deve determinar os ocasião de atrito com seus parentes. O próprio Jesus foi vítima disto, como o con-
discípulos, tampouco a superação do mundo, que Buda exigia de seus monges no
caminho da meditação e da mortificação. Também Qumran não pode ser considerado
como modelo. É verdade que também aí encontramos a expectativa apocalíptico-esca-
34. Cf. H.-J Klauck, Giite1ge111ei11sduift in der klassischen Antike, in Q11111ra11 und im NT: Ge111ei11de-A1111-Sakra111ent,
Würzburg, 1989, 69-100.
35. Só Lc transmite este /6gion, que deve ter constado cm Qe remontar aJesus. Mt talvez não o tenha mais entendido,
ou então ele deve ter-lhe pare cido inadequado. A instrução deve incluir a idéia de que nada deve fazer com q ue
31. No texto grego fala-se de chiton. Esta é a túnica feita de lã ou de linho usada diretamente sobre o corpo. os discípulos se atrasem no desempenho de sua tarefa.
32. Provas em Hengel, Nachfolge, 31s. 36. É o que diz Hoffmann, St11die11, 182.
33. C( Jaspers, Die massgebe11de11 Menschen, 109. 37. C( a esse respeito Gnilka, Matthii11seva11geli11111 l, 309s.

164 165
firmam diversos vestígios na tradição. A cena, de difícil interpretação por causa de Mais uma vez o estilo de vida que se distancia do costumeiro está voltado ,pà11a
sua brevidade, de que seus parentes teriam vindo para pegá-lo e levá-lo para casa, o reino de Deus. A renúncia ao casamento e à família não se dá por causa de um
38
dizendo: Ele está fora de si (Me 3,21), na verdade carrega uma forte dose redac-ional , ideal ascético, nem também para se alcançar o domínio de Deus, mas sim para
mas a incompreensão, o distanciamento de seus irmãos, constitui um sólido com­ indivisamente e com todas as suas forças poder atuar em favor da "basileia". Ela se
ponente da tradição (Me 3,31-35p; Jo 7,3-9). Após a Páscoa em parte isto se dá por causa das pessoas. Jesus dá o seu amor justamente também àqueles por quem
modificou. De qualquer modo, vemos então T iago, o irmão do Senhor, a quem ninguém se apaixonava.
segundo 1Cor 15,7 foi dado ter uma aparição própria do Senhor ressuscitado, como· Sobre as condições mais exatas das famílias dos discípulos nós não possuímos
dirigente da comunidade de Jerusalém (At 12,17; 15,13; 21,18; Gl 1,19; 2,9.12). informações. Só a respeito de Simão Pedro ficamos sabendo que ele era casado em
Jesus viveu celibatário, renunciou a fundarurna família própria, a ter mulher e _Cafarnaum e que morava aí - provavelmente em casa dos sogros. Me 1,29-31ps
filhos. Dentro do judaísmo contemporâneo este comportamento não podia deixar . · relata a cura da sogra de Simão na casa onde moravam ele e também seu irmão André.
de parecer chocante. Estabelecer família e gerar filhos era considerado quase co�9 A mulher de Pedro não é mencionada.
um dever e uma obrigação. Isto com base em Gn 1,28: "Sede fecundos e rriuTi:-;pli­ Exatamente aqui se evidencia também que os evangelhos não estão interessados
cai-vos!" No judaísmo rabínico um celibatário podia ser considerado como alguém 42
em biografia . Quando noutra passagem é mencionada uma casa em Cafarnaúm
39
que verte sangue. Só em Qumran existiam monges que viviam celibatariamente • (Me 2,1), é perfeitamente possível que se esteja pensando na casa de Simão.Jesus,
Ora, em Mt 19,12 nos foi transmitido um lógion que com toda probabilidade portanto, teria entrado ali ocasionalmente - ou com freqüência. A casa pode ter
refere-se ao celibato de Jesus. Em conexão com a instrução ao povo sobre o 3
permanecido propriedade da família4 •
matrimônio,Jesus ensina sobre a possibilidade do celibato: "Pois há eunucos porque
assim nasceram do ventre da mãe; há eunucos que assim foram feitos pelos homens, Para uma melhor determinação do ambiente e uma melhor caracterização dos
e há eunucos que assim se fizeram por amor da "basileia" dos céus. Quem puder ouvintes de Jesus ou daqueles que estavam mais dispostos a prestar-lhe ouvidos,
40
entender, que entenda" . A palavra construída segundo uma "regra-de-três" - são pode ser-nos de ajuda a introdução das chamadas instruções aos discípulos. Trata-se
mencionados três tipos de eunucos - chega à sua culminância numa "regra-de-dois". certamente de uma introdução redacional, já na fonte dos ditos. Fazemos referência
Uma vez é usado o conceito desprezível de eunuco, que designa o castrado, o aqui unicamente às três bem-aventuranças introdutórias em Lc 6,20s:
incapacitado para o matrimônio. A castração, segundo Dt 23,2ss, Lv 22,24, era uma "Felizes sois vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus.
abominação para Israel. Por outro lado, no dito ocorre uma modificação de valor. Se Felizes os famintos de agora, porque sereis saciados.
nos dois primeiros casos fala-se daqueles que por uma falta de sorte exterior foram Felizes os tristes de agora, porque haveis de rir".
levados à lamentável condição da infecundidade corporal, no terceiro "eunuco" passa Esta forma das bem-aventuranças pode ser considerada como a mais antiga em
a ser uma metáfora para uma vida celibatária voluntariamente assumida. Mas como relação à passagem paralela de Mt 5,3-10. Para a situação de Jesus também devemos
ficou conservado o conceito de eunuco, de conotação ofensiva, com razão se tem abstrair da quarta bem-aventurança, que fala dos que são perseguidos por causa do
41
presumido que estaríamos aqui diante de um ataque contraJesus . Por causa de sua Filho do Homem. Através dela as bem-aventuranças são aplicadas aos discípulos44.
vida celibatária ele é insultado pelos adversários como eunuco, da mesma forma
como por sua comunhão de mesa com publicanos, meretrizes e pecadores ele foi Jesus dirige-se aos pobres. A quem se refere ele mais precisamente ao falar "dos
45
insultado como "comilão e beberrão" (Mt 11,19p). pobres"? Do ponto de vista lingüístico o grego 7t'tCDX;o<; quer dizer aquele que deve
curvar-se e inclinar-se (de mrocrcrctv), no hebraico aquele que está na situação de

38. Cf Gnilka, Markus !, 144s. -Contra Sócrates fora levantada a acusação de que ele teria levado seus discípulos a
obedecer a ele mais do que a seus pais. Musônio faz referência ao mesmo conflito. Cf Hcngel, Nadifolge, 32.
39. Sobre o problema, cf H. Hübner, Zolibat in Qumran?: NTS 17, 1970nl, 153-167. No Antigo Testamento 42. Quando cm At 1,14 depois dos apóstolos se fala das mulheres que se reuniram cm Jerusalém na sala superior
Jeremias permanece celibatário por causa de sua missão profética Or 16,2). para orar, devemos, com J. Roloff, Die Apostelgesc/1ichte (NTT 5), Gõttingcn, 1981, 28, pensar no grupo das
discípulas de Jesus, não nas mulheres dos apóstolos. O códex D, pelo contrário, diz: com as mulheres e filhos.
40. Numa forma apenas ligeiramente modificada e manifestamente independente de Mateus o lógion é transmitido
emjustino,Apo/. 1,15,4. 43.Jo 21,lss prcssupôc que Simão e os outros, depois da Sexta-Feira Santa e antes da nova reunião dos discípulos
no acontecimento da Páscoa, voltaram a ocupar-se com sua profissão de pescadores.
41. Com Blinzlcr: ZNW 48, 1957, 269. Também Braun, Radikalismus II, 112, nota 3, constata que o /ógion não se
enquadra na moldura judaica e se comprova como uma autêntica palavra de Jesus. Cf J. Gnilka. Mann und 44. Cf Schürmann, L11kaseva11geliw11 I, 326-332.
Frau nach dem NT: in: P. Gordan (ed.). Goll sc/nif den Mensc/1en ais Mann und Fra11. Graz, 1989, 185-205,
45. Cf. Hauck-Bammcl, 711WNTVI, 885s;J. Dupont. Les Béari111des I, Paris, 21969, II (21969), III ( 1973);]. Maicr.
2
particularmente 191-193.
Die Texte vom Tote11 Meer II. Munique, 1960, 83-87.

166 167
ter que responder, o que ouve ('anij, de 'anah). Mas este conceito possm uma h1stóna possessos, os epilépticos, os cegos, pessoas, portanto, que não conseguem realizar
prévia, sem a qual a bem-aventurança de Jesus não poderá ser compreendida. sua vida plenamente e que têm necessidade de ajuda. São os que se tornaram
No Antigo Testamento, problemas sociais e pobreza ocorreram · com mais devedores, os publicanos, os suspeitos, os desprezados, os postos à margem, aqueles
que em sua vida vieram a cair, os que não enxergam mais saída, os que estão
intén'sid.ade no tempo dos reis, quando se separaram as camadas sociais dos pobres
e dos ricos, dos oprimidos e dos dominantes. A crítica profética voltou-se contra desesperados. Isto não quer dizer que só para estes sua mensagem fosse adequada,
mas certamente seu destmo os tornava mais abertos à palavra. Mas é claro que
esta situação e declarou Deus o protetor dos pobres. Ela entrou em cena em favor
qo direito dos pobres, que era calcado aos pés, e que foi equiparado ao direito de também estes não estavam livres do egoísmo nem de planos interesseiros. Porém
foram estas pessoas que vieram a ser a expressão da salvação que se inicia e que
Deus. Deus há de intervir em seu favor e de restaurar seus direitos. O pobre,
desafiaram os outros a se interessarem por elas, e desta maneira a segui-lo. É sobre
pois, que sabe disto, entrega sua causa a Deus. Ele se inclina à vontade de Deus,
este pano de fundo que temos que ver a missão imposta por Jesus aos discípulos,
ao contrário dos usurários e dos ricos, que orgu lhosamente colocavam-se acimà
de cur�r os enfermos e expulsar os demônios (Lc 10,9; Me 6,7). Para Jesus 0
dos direitos de Deus. Ser pobre significa, portanto, também uma atitúde éin.
relação a Deus, ou mesmo, numa época de expectativa da próxima chegada da convívio com estas pessoas espoliadas, duvidosas e carregadas de dúvidas não
sur?e de m:1a predi�eção pelo submundo nem de uma paixão que não conse�uiria
intervenção de Deus, ser pobre é a única atitude com que alguém pode ir ao encontro _
mais respeitar os limites entre o bem e o mal. A culpa não é desculpada. Mas a
de Deus. A espiritualidade dos pobres surge em expressões particularmente impres�
naturalidade com que ele aceita estas pessoas que precisam dele, e com isto rompe
sionantes no Dêutero e no Trito-Isaías:
também as fronteiras em vigor, é capaz de restaurar a autoconfiança perdida e de
"(O Senhor) enviou-me para levar uma boa-nova aos pobres, preparar as transformações interiores47.
medicar os homens de coração quebrantado,
proclamar aos cativos a libertação Julgar a familiaridade de Jesus com os pecadores baseando-se sobretudo em con.siderações
e aos prisioneiros a abertura do cárcere, sociológicas não atinge o âmago dos seus anseios, ao mesmo tempo que corre o risco de
para proclamar o ano da mercê do Senhor deformar grosseiramente a situação. Assim, para K. Kautsky, o grupo dos discípulos de Jesus
e o dia da vingança para nosso Deus; é um grupo de mendigos sem família nem lar, sempre a andar de um lugar para outro, e também
para dar conforto a todos os que estão de luto, capaz de praticar atos de violência (alusão a Lc 9,51-56)48. Aqui a idéia da falta de recursos
para alegria dos enlutados de Sião" (Is 61,1-3; cf 58,7; 66,2). livremmte �ceita-como quer que tenham sido em detalhe as condições de posse dos discípulos
- ficou mteiramente de fora, aqui perdeu-se por completo o sentido para o seguimento de Jesus
Também em muitos salmos está cristalizada a piedade dos anawirn: "Um infeliz e a expectativa do domínio de Deus, que determina essencialmente a condição do discípulo.
gritou; o Senhor o ouviu e o salvou de todos os perigos" (Sl 34,7; c( 9,llss; 14,6;
22,25ss; 37,21ss etc.). Não resta dúvida que a salvação deJesus prometida aos pobres A ausência de posses e de recursos de Jesus tem uma profunda base teológica.
se encontra dentro desta tradição teológica. Quando ele declara bem-aventurados Reportamo-nos a um texto que pode ser originalmente considerado como uma
também os que têm fome e os que choram, com isto dirigindo-se ao mesmo grupo instrução aos discípulos, e cuja provável reconstrução poderia ser a seguinte:
de pobres, o que figu ra em primeiro plano é mais uma vez a consideração da
necessidade concreta. Mas é claro que os pobres que são declarados bem-aventura­ "Não vos preocupeis com vossa vida, com o que comereis, nem com o corpo,
com o que vestireis. Não será a vida mais do que o alimento e o corpo mais
dos mantiveram o coração aberto para sua mensagem. A bem-aventurança não se do que as vestes? Olhai os pássaros: não semeiam nem colhem , não têm
dirige à pobreza nem à miséria- supérfluo é dizê-lo. Ela dirige-se aos pobres, porque
Deus lhes promete sua salvação e sua "basileia". Nesta passagem encontramo-nos
não apenas em meio aos que entre os ouvintes de Jesus têm o coração aberto, mas
também no centro do seu anúncio da "basileia"46• 47. Cf. BornkammJesus, 72s. Não se pode identificar sem mais nem menos os desclassificados com osamme-ha-aretz.
Co� este conceito, que significa o mesmo que "povo comum", são designados aqueles que não se preocupavam
Quem é que encontramos preferencialmente na companhia de Jesus? Quem ma,s, ?u q�e pouco se preocupavam com a lei, sobretudo com as prescrições relativas ao dízimo e à pureza. O
vemos aí? Os evangelhos conservaram-nos a memória disto. São os doentes, os conceito �ao aparece nos evangelhos, apenas Jo 7,49 apresenta uma conceituação que se aproxima dele. A
Oppenhe,mer, The 'At11-Ha-Are1z (ALGHL 8), Lciden, 1977, empenha-se, por isso, cm demonstrar que entre os
an1111e-ha-aretz também se encontravam membros das camadas sociais mais elevadas, e vice-versa, que também
entre os que se encontravam em nível social mais baixo havia quem se empenhasse por viver na fidelidade à lei.
Mas o problema torna-se candente quando um pobre não consegue mais observar as prescrições religiosas por
causa de sua condição de pobreza.
J�.,,Sr.h�r���n, Lukasevangelium I, 332, ocupa-se com a forma primitiva da pregação de Jesus sobre o reino e acredita 48._Der Urspnmg des Christentums, 111921, 404s. Em Thcissen, Studien, 96s, que defende a opinião de que também o
· iq1;1e Hnphce bem-aventurança teria sido sua pregação inaugural em público. Julgamento de Kautsky era uma expressão da difundida rejeição da marginalidade.

168 169
despensa nem celeiro, mas Deus os alimenta. Não valeis vós muito mais do da Galiléia, não apenas por suas palavras mas também por sua existência eles dão
que os pássaros! E por que vos preocupais com as vestes? Observai como testemunho do reino de Deus, fazem brilhar sua presença que quer produzir uma
crescem os lírios do campo: não trabalham nem fiam. Mas eu vos digo que nova ordem. Deixaram suas famílias a fim de ficarem livres para a obra de Deus.
nem Salomão com toda a sua glória se vestiu como um deles. Se Deus veste Entre os pobres da terra encontram ouvidos atentos, os espoliados e prejudicados
assim a erva do campo, que hoje cresce e amanhã será lançada ao fogo, quanto
reúnem-se em torno deles. Confiantes no Deus que cuida deles devem saber-se
mais a vós, gente de pouca fé!" (Mt 6,25s.28-30; Lc 12,23s. 27s)49 .
livres de preocupações, e de coração indiviso dedicar-se à sua tarefa.
O texto, retoricamente bem formulado, com perguntas estimulantes, com a
conclusão argumentativa do menor para o maior ( dos pássaros e lírios para os Visão panorâmica
discípulos) e com sua estrutura paralela (alimento/veste, semear e colher/traba­
Na situação pós-pascal, a vida radicall'!'lente itinerante é pelos missionários cris­
lhar e tecer; trabalho do homem/trabalho da mulher) insere-se- de maneira
tãos primitivos mantida por algum tempo�º. Mas também podem surgir problemas.
natural na pregação de Jesus, na medida em que leva adiante o tema da ausêr1cia
A Didaqué adverte contra falsos profetas que exigem dinheiro das comunidades
de posses e que em seu conteúdo pressupõe absoluta confiança na providência
(11,6). Lc 22,35 representa uma ruptura: "Quando vos enviei sem bolsa, nem sacola,
divina. O texto é de estrutura sapiencial, possui passagens comparáveis na
nem sandálias, faltou-vos alguma coisa? Nada, responderam eles. Mas Jesus acres­
literatura sapiencial e nos salmos Gó 38,41; Sl 104, lüss; 147,9; Sairnós de Salornão
centou: Pois agora, quem tiver bolsa, que a pegue e também a sacola, e quem não
5,10). Jesus aparece como um mestre sapiencial. Apenas precisamos levar em
tiver, venda o manto e compre uma espada". O tempo de Jesus passou a pertencer
conta o horizonte global de sua pregação da "basileia".
ao passado, de que a gente se lembra como de uma época ideal e exemplar. As
Então resulta que a atitude de entrega e a despreocupação, que não devem ser realidades ultrapassaram suas extraordinárias possibilidades, cuja força, mais tarde,
minimizadas, não estão sendo bem entendidas quando equiparadas a um dolce far só voltará a irromper em cristãos isolados. De forma alguma a protelação da parusia
níente. Jesus não se declara contra o trabalho, mas ele pressupõe uma natureza ainda explica tudo. São Francisco é o grande exemplo jamais igu alado.
intacta. O alto valor atribuído à vida possui um efeito libertador. A vida (em grego:
\JfUXll) é mais do que alimento e roupa. Em suas preocupações com essas coisas BIBLIOGRAFIA: J. BLINZLER Etow nivouxoi: ZNW 48 (1957) 254-270; F. HAHN.
Das Ver.sfiindnis der Mission im NT (WUANT 13), Neukirchen, 1963; L.-E. KECK The Poor
facilmente a pessoa pode desperdiçar sua vida, perder o sentido da vida em coisas de among the Saints inJewish Christianity and Qumran: ZNW57 (1966) 54-78; H. KASTING.
somenos importância. Por trás destas palavras, libe1tadas de toda preocupação e Die Anfange der christlichen Mission. Munique, 1969;]. lAMBRECHT. The Relatives ofJesus in
autoto1tura, fala um homem livre e feliz. Por isso também são tão preciosas estas Mark: NT 16 (1974) 241-258; B. BUBY A Christology ofRelationship in Mark: Biblical Theology
palavras, porque nos preservam uma imagem de Jesus freqüentemente esquecida. Bulletin 10 (1980) 149-154; C.M. TUCKET. The Beatitudes: NT25 (1983) 117-125.
Elas colocam diante de nossos olhos uma pessoa alegre, que se sente segura sob a
proteção de Deus. Podemos mais uma vez citar a sabedoria, que diz: "Pois a tristeza
3. Os discípulos, as discípulas, os doze
já causou a perdição de muitos e não traz proveito algu m. A inveja e a raiva abreviam
os dias e as preocupações trazem a velhice antes do tempo. Um coração alegre Os discípulos, como grupo, envolvem o agir de Jesus e participam dele. Acom­
favorece o bom apetite... A preocupação da insônia impede o adormecer mais do panham o mestre, são enviados por ele, às vezes mostram dificuldades para com­
que uma doença grave afugenta o sono" (Eclo 30,236-31,2). Mas Jesus ainda vai preendê-lo, são por ele censurados ou estimulados. Esta é a imagem dos discípulos
mais longe do que o ensino sapiencial. Pois a confiança no Deus providente, para que nos é transmitida pelos evangelhos. A generalização, ou mesmo a tipologia de
ele e seus discípulos, anda lado a lado com o empenho pelo domínio de Deus. Quem sua imagem, de certo tem algo a ver com o fato de as comunidades pós-pascais
a si próprio se empenha inteiramente pelo reino, pode contar com a ajuda divina. sentirem-se na obrigação de reencontrarem-se neles. Dificilmente ser-nos-á possí­
vel afirmar algo sobre um discípulo em particular e sobre sua relação com Jesus.
Quem se deixa determinar pelo estilo de vida de Jesus e de seus discípulos, mais
Temos muitos nomes, porém poucos rostos.
uma vez se centraliza no reino. Livres de necessidades e exigências pelos caminhos
No seguimento de Jesus também encontramos mulheres. Ao seu número
pertencem as que se encontravam ao pé da cruz. Me 15,40s não as denomina dis-

49. Para a reconstrução: Mt 6,27p foi acrescentado secundariamente. Os corvos cm Lc 12,24 são secundários cm
relação aos passarinhos cm Mt 6,26 (cf Lc 12,24s). O discurso do "vosso Pai celeste" cm Mt 6,266 corresponde
ao estilo mateano, Lc 12,24 conservou, com "Deus", a forma mais primitiva. Sobre mais detalhes cf. Gnilka, 50. Cf Theissen, S1udie11, 79-105.
Ma1thâ'11sevangelium !, 246; Mcrklcin, Go1tesherrschaft, 178s.

170 171
cípulasº ', porém as caracteriza claramente como tais: "Elas seguiam e serviam a Jesus nas listas das mulheres demonstra sua posição de liderança55. Seu prestígio nas cotn:ti:..
quando estava na Galiléia. Havia também muitas outras que tinham subido com ele nidades deve-se ao fato de ela - com outras mulheres - ter estado sob a cruz e de cbm
a Jerusalém". E,�12-� 8,2s foi-nos trans!.Ditida uma lista de nomes das discípulas. toda probabilidade ter sido ela quem teve a primeira aparição do Senhor ressuscitado�\
Chama atenção qt.:ie as mulheres são mencionãdas··aepois dos doze: "Maríã.-Màda­ Desta forma Maria Madalena era uma testemunha extraordinariamente importante
lena, de quem tinham saído sete demônlo-s,Jõana;mülherdeC�za, administrador da vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus.
de Herodes, e Susana", Além de Maria, também outras destas mulheres foram
Das duas outras mulheres da lista em Lc 8,2s,Joana e Susana, nós nada sabemos.
curadas por ele. Tanto Me 15,41 como também Lc 8,3falam de muitas outras. Ambas
Como a primeira é apresentada como a mulher de um alto funcionário (cm'tponoç)
as passagens pressupõem que as mulheres acompanhavam Jesus.
do tetrarca Herodes Antipas, também elas estão ligadas à Galiléia. O mesmo vale
57
Lucas nos explica em que consistia o seu serviço: "Serviam-_no com seus bens". para as mulheres que estavam ao pé da cruz .
Estaríamos aqui diante de uma transferência, para a época de Jesus, de condíções
Uma história especial de vocação é dedicada a Levi, o filho de Alfeu (Me 2, 14).
missionárias posteriores, quando mulheres abastadas prestavam ajuda econômica
aos missionários? Ou será que as instruções radicais do discurso da missão se Em conexão com sua vocação é narrado um banquete de Jesus com publicanos e
aplicavam de uma maneira diferente às discípulas? Neste contexto muita coisa pecadores. Embora não saibamos mais coisa alguma a respeito de Levi, o que importa
permanece obscura. De qualquer forma, ao aceitar mulheres entre os seus é que ele é um publicano. Os publicanos eram considerados como uma classe
discípulos, Jesus fazia uma cois_i!: _rrni.iJ:;o_ p_r.ovõcante aos olhos dos contemporâ­ desprezada. Os fariseus não admitiam publicanos em suas fileiras. Por isso a
vocação de um publicano deve ser considerada como um sinal de que os pecados
neós, No rabinato judaico éra inconcebível que fossem encontradas mulheres
podem ser perdoados. Não existe nenhuma resposta clara à pergunta por que em
êõmo díscípulas. Até tio culto da ·sinagóga só se tinha necessidade de homens.
Mt 9,9 o nome Levi é substituído por Mateus. Podemos partir do pre ssuposto de
IvfüUier ·nãõ lê a Torá. Na ceia pascal ela toma parte. Era-lhe interdita a oração do
shemah. O mandamento do sábado não valia incondicionalmente para elas. Ensino que Levi e Mateus eram duas pessoas di_stintas e que o primeiro evangelista
°8
religioso para as mulheres não era uma coisa que fosse evidente por si mesma. Ao possuía razões particulares para esta troca . Também esta vocação foi localizada
admitir discípulas, Jesus quer aliviar a posição da mulher, que era oprimida na nos arredores do Lago de Genesaré, próximo a Cafarnaum. A proximidade desta
sociedade, e criar condições para restaurar sua dignidade humana. cidade fronteiriça é compatível com um posto fiscal.

Nas listas de mulheres nos evangelhos, Maria de Mágdala sempre é mencionada EmJo 1,45-50 lemos como Natanael tornou-se discípulo de Jesus. Também ele
52
em primeiro lugar (Me 15,40p; 16,lp; Lc 8,2; 24,10) . Sua pessoa carrega uma grave é galileu, natural de Caná (Jo 21,2). É digno de menção que seu nome também não
hipoteca de interpretação histórica. Desde Gregório Magno ela é identificada com a aparece nas listas dos doze. As tentativas sempre de novo empreendidas para através
53
pecadora de Lc 7,36-50 . Desta forma ela entrou para a liturgia como penitente. Esta de uma duplicidade de nome identificá-lo com um dos doze, e que chegaram mesmo
59
maneira de ver foi reconhecida como errônea. Maria foi libertada de sete demônios, quer a ser incluídas na liturgia grega, é preferível que sejam esquecidas .
dizer, ela foi curada de uma grave doença. Isto nada tem a ver com a vida de uma pecadora No evangelho de João, e só nele, nos deparamos com aquele discípulo que de
pública. Seu apelido, "a Madalena", ela o recebeu da cidade de Mágdala, o lugar de onde uma maneira marcante é designado como aquele "que Jesus amava" (13,26-29;
era proveniente, às margens do Lago de Genesaré, meia hora de caminhada ao norte de 19,26s; 20,2-10; 21,7.20-23), e que por isso também é chamado abreviadamente de
54
Tiberíades, na saída do Vale das Pombas • O fato de ser mencionada em primeiro lugar o discípulo predileto. Conhecemos semelhantes nomes simbólicos da l iteratura de

51. A palavra discípula, no NT, nós só a encontramos cm Atos 9,36, aplicada a Tabita cmJope, que com isto é designada 55. As listas de mulheres repetidamente mencionam três nomes, possivelmente baseando-se na regra das testemu­
como sendo cristã. Atos emprega o conceito discípulo/discípula para os membros das comunidades cristãs. nhas de Dt 19,15.
52. Só cmJo 19,25 Maria Madalena é mencionada cm último lugar numa lista de quatro mulheres.João segue aqui 56. Cf.Jo 20,11-18; Lc 24,22s; Mt 28,9s. Se seu nome não entrou na lista das testemunhas de !Cor 15,5, isto está
o princípio do grau de parentesco. Cf. Hengcl, Maria Magda/ena, 250. relacionado com o fato de, segundo o direitojudaico, as mulheres não serem capacitadas a dar testemunho.
4
53. Cf.J. Schmid. Das E11angeli1111111ach Markus (RNT 2), Rcgensburg, 1958, 254s (Exkurs: Dic Magdalcncn-Fragc). 57. Cf. Gnilka, Markus II, 326.
54. Em seu caminho de Nazaré para Cafarnaum Jesus deve ter passado por Mágdala, e também nas suas viagens da 58. Sobre este problema cf. Gnilka, Matthéiusevmigelium I, 330s; Pcsch: ZNW 59, 1968, 40-56.
Galiléia paraJerusalém. Curiosamente Mágdala nunca é mencionada em conexão com a atuação deJesus. Segundo 59, Na liturgia grega Natanacl é identificado com Simão o Zelote. Schnackenburg,joha1111eseva11geliwn I, 31_3, dei:"1
Schürmann, Lukasevangeli11111 1, 446 nota 13, Mágdala seria uma cidade mal afamada por causa de sua luxúria. Mas em aberto a possibilidade de uma identificação. Repetidamente se tem pensado cm Bartolomeu, mas isto nao
isto é confusão com Mágdala Sabbaa_üa. Cf Billerbeck I, 1047. passa de uma hipótese.

172 173
Qumran (Mestre daJustiça, Sacerdote da Iniqüidade). Aqui as dificuldades chegam JesuZs fosse constan�emente chamado "um dos doze" (Me 14,10.20.43;,M,t 2.@;i:�l�t.
às raias do insolúvel. Duas concepções de natureza restritiva impuseram-se ampla­ al.)? Na verdade, e JustamenteJudas como um dos doze que constitui um,sólidci
mente na pesquisa atual: Ele não pode ser identificado comJoão. Mas também não argumento em favor de que o grupo dos doze foi constituído pelo próprioJesu"s; €�
é uma figura simbólica. Quem é ele? Somos obrigados a renunciar a determinar-lhe favor disto falam também o desenvolvimento esboçado dos doze pàra os doz�
o nome. Era um discípulo de Jesus e para as "comunidades joanéias" pós-pascais apóstolos, assim como a observação de que a constituição de um tal grupo, como
veio a ter uma autoridade decisiva. R. Schnackenburg admite que ele seria prove­ sinal profético, se coaduna perfeitamente com a maneira de agir deJesus. Se na fonte
60
niente deJerusalém . Mas também podia ser um galileu, sobretudo se nos dispu­ Q - na medida em que é possível reconstituir-lhe o teor - os doze não aparecem,
sermos a ver o discípulo predileto 61 no "outro discípulo" que juntamente com André isto pode estar relacionado com seu caráter de lógia66.
faz parte dos que foram chamados em primeiro, lugar na. apresentação do quarto Se, portanto, podemos partir do pressuposto de o próprioJesus haver criado o
evangelho, e se levarmos a sério 21,7 (a cena da pescaria). Se era proveniente de grupo dos doze, com isto ele queria, simbolicamente, dar a entender alguma coisa.
Jerusalém, ele constituía uma exceção em meio ao grupo dos galileus62. · .·• O número doze tem que ver com Israel, o povo de Deus. O povo era composto de
O mais conhecido grupo de discípulos deJesus é o grupo dos doze. Em Marcos, doze tribos. Seja como for, no caso ideal a existência de Israel era percebida como o
que redigiu o evangelho mais antigo, eles são chamados simplesmente os doze (3,14; povo das doze tribos. Nos tempos deJesus isto ainda era válido, embora na época a
6,7; 9,35; 10,32; 11,11; 14,17). Em Mateus podem ser chamados os doze discípulos maioria das tribos já não existisse mais, havendo desaparecido em conseqüência de
(10,1) ou também, uma vez, os doze apóstolos (10,2). Nos escritos de Lucas firma-se guerras e deportações. Para esta consciência existe uma série de testemunhas.
o conceito dos doze apóstolos (Lc 6,13; 9,10; 17,5; 22,14; 24,10), eles passam a ser Flávio Josefo,Ant. 11,107, conta, idealizando, que depois do regresso do exílio babilônico e
uma instituição sacrossanta, o que se demonstra sobretudo pela eleição de Matias, da construção do novo templo os israelitas, entre outras coisas, teriam sacrificado doze bodes,
3
realizada posteriormente (At 1,12-26; cf. Ap 21,14)6 . Esta descoberta resulta em que conforme o número das tribos. Na carta de Aristéias (47-50) relata-se que os judeus, em
devemos distinguir entre os doze e os apóstolos, e que temos que considerar os conexão com a tradução grega da Bíblia, de cada uma das doze tribos enviaram uma
apóstolos (na época pós-pascal) como um grupo mais amplo, como o confirma delegação que deveria comprovar a fidelidade à lei. Os Testamentos dos doze Patriarcas,
também a distinção baseada na antiga fórmula de fé em 1Cor 15,5, entre os doze e um escrito cujo conteúdo básico pode remontar ao século II a.C., confirmam o interesse
"todos os apóstolos" (versículo 7). pelo número doze. Na comunidade de Qumran existe um grêmio de doze homens a
quem são atribuídas tarefas especiais e que tem a ver também com a lembrança do povo
É uma questão ardorosamente discutida como e quando ocorreu a criação do das doze tribos (1QS 8,1; cf 1QH 2,2). Em Ap 7,4-8, enfim, o vidente de Patmos vê a
círculo dos doze. Segu ndo muitos pesquisadores, o círculo dos doze só teria surgido multidão dos 144.000 salvos, doze mil de cada tribo.
na situação pós-pascal, como grêmio de direção da comunidade, na situação de
intensa expectativa do fim64. Para isso nos baseamos sobretudo na ausência dos doze As passagens mencionadas expressam também a esperança de que no final dos
na fonte dos lógia, no seu rápido desaparecimento da consciência das comunidades, tempos messiânicos o povo há de ser restaurado em sua integridade. Dentro deste
e também na passagem que acabamos de citar, lCor 15,5. Com esta idéia, no entanto, contexto de expectativa também podemos classificar a atuação deJesus. Os doze em
apenas criam-se mais dificuldades. Como se iria explicar que um grêmio formado torno de Jesus simbolizam o estar voltado para a totalidade do povo de Israel, a
depois da Páscoa fosse retroprojetado para a vida deJesus, e queJudas, que entregou promessa de reconstituí-lo, o estar destinado à salvação do domínio de Deus que há
de vi.r. Nesta perspectiva vemos que, embora pelo anúncio deJesus o indivíduo esteja
desafiado a tomar posição e a decidir-se, em última análise o que constitui o
horizonte de sua atuação é o povo de Deus. O caráter simbólico da existência do
60. Derjunger, denjesus liebte (EKK V 2), Einsiedeln, 1970, 97-117, aqui 113• "Mas não temos toda a segurança". Cf
o mesmo,Joha11nesevangeliu111 III, 449-464.
61. Do ponto de vista narrativo é perfeitamente compreensível que na história da vocação este discípulo ainda não
seja chamado o discípulo predileto. 65. Teríamos que construir teses ousadas, por exemplo, de que o caso de Judas representasse a espetacular apostasia
62. Ocasionalmente encontramos menção de discípulos judeus emJo 7,3. Mas sob este aspecto este versículo não é de um membro da comunidade primitiva, a qual, a fim de ser permanentemente conservada na lembrança, teria
muito adequado a uma reconstrução. Cf Bultmann,Joliannes, 218, nota 9. sido retroprojetada para a vida de Jesus.

63. Lucas, nesse caso, tem dificuldades com o apostolado de Paulo. Sobre a imagem lucana de Paulo, cf. K. Llining. 66. O /6gio11 Mt 19,28p, que se poderia considerar como uma alusão aos doze, é por demais problemático no tocante
D,c Saulustradition in der Apostelgeschichte• NTA 9, Münster, 1973; C. Burchard, Derdreíze/111/eZeuge (FRIANT à sua reconstrução, e por isso não pode ser levado em consideração. Cf Schmahl, Die Zwiilf, 29, 36; Trautmann,
103), Giittingen, 1970. Ha11dlunge11, 190-199; Gnilka, Ma11hii11sevangeliu111 II, 169s. - !Cor 15,5 já pressupõe o grupo dos doze. Ele não é
criado somente com a aparição do Ressuscitado. Doze é um número simbólico. Por isso é desnecessário levar em
64. Cf por exemplo Vielhauer, Gol/esreich, 68-71. consideração a omissão deJudas.

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círculo dos doze pode estar insinuado na observação contida em Me 3,14 (mas que As observações que seguem merecem menção especial: os quatro pt'imeiro's·�ão
é anterior a Marcos67), de que deveriam ficar em sua companhia. Porém estamos os dois pares de irmãos, que segundo Me 1,16-20/Mt 4,17-22 foram os primeiros ·a
lembrados de já havermos tomado conhecimento de que, entre os objetivos dos ser chamados. Será que nos inícios de sua atividade Jesus só teria tido estes quatro
discípulos deJesus, eles estavam destinados em primeiro lugar a anunciar juntamen­ discípulos?7° Simão Pedro e André, como também Filipe (e( Jo 1,44; 12,21), são
te com ele o domínio de Deus. Como núcleo dos discípulos, os doze certamente provenientes de Betsaida, que já ficava a oriente do Jordão e portanto já não fazia
não devem ficar excluídos desta tarefa. Através dos doze a oferta de salvação dirigida parte da Galiléia mas sim da Gaulanítide71 • Pedro e André haviam-se mudado para
a Israel, em conexão com a pregação da "basileia", não podia deixar de ser apresentada Cafarnaum. Não deve ter sido mera casualidade André e Filipe serem os membros
com mais eficiência. Resta observar que os doze, nesta fase mais precoce, ainda não do grupo dos doze que possuem nome grego, o último até mesmo o nome de seu
tinham que assumir outras funções especiais, como p. ex. a par�icipação no reinado tetrarca72. Não está fora de cogitações que especialmente os discípulos provenientes
escatológico do Filho do Homem e em sua tarefa de juiz, como mais adiante se diz de Betsaida também dominassem o grego. Segundo Me 3, 17, ao par de irmãos Tiago
em Mt 19,28p. Sua existência ainda se restringe a representarem um sinal profético. eJoão foi acrescentado porJesus o nome de Boanerges, que Marcos interpreta como
Dentro do Novo Testamento nos são transmitidas quatro listas de nomes dos filhos do trovão. O significado não está bem claro (temperamento, mentalidade de
doze, três nos sinóticos (Me 3,16-19; Mt 10,2-4; Lc 6,14-16) e um:á em Atos 1,13, zelote, poder?). É interessante que na vogal duplaBoan se manifesta o dialeto galileu
mas sugestivamente o evangelho de João já não apresenta mais lista alguma68. No do aramaico, caracterizado pelo obscurecimento do a73 •
que segue apresentamos a seqüência dos doze nomes com suas alcunhas, como Simão Pedro recebe em Mt 16,17 o nome adicional de Barjonas. Segundo João
podem ser lidos em Mt 10,2-4: 1,42 e 21,15 ele se chama Simão, filho deJoão. A partir daí se entende também Barjonas
Simão, chamado Pedro no sentido de um patronímico. Que o nome Barjonas identifique Simão Pedro como
André, seu irmão zelote, porque os zelotes eram chamados Barjones, é pouco provávet74. Este nome
Tiago, filho de Zebedeu aplicado aos zelotes só veio a surgir mais tarde. Também o ambiente de Simão não fala
João, seu irmão em favor disto75. O outro Simão do grupo dos doze, ao invés, é por seu cognome "o
Filipe cananeu" - em Lc 6,15 traduzido acertadamente por zelote- identificado como zelote76•
Bartolomeu Judas, que encerra a lista dos doze, traz o misterioso nome de Iscariotes.
Tomé
Mateus, o publicano Três possibilidades de derivação podem ser consideradas:
Tiago, (filho) de Alfeu 1. Ele é chamado de acordo com seu lugar de origem: "o de Kerioth"77, uma
Tadeu
Simão, o Zelote cidade no sul daJudéia mencionada também emJos 15,25, cuja posição exata é difícil
Judas Iscariotes, que o traiu. de determinar. Judas, neste caso, seria também por sua origem uma pessoa de fora.
Ao lado da diferente colocação de André e Tomé, os nomes das quatro listas
combinam, com uma única exceção: nas duas listas lucanas falta Tadeu. Em lugar
dele entra Judas, o (irmão?) de T iago. Isto pode ser secundário69. Todas as listas
começam por Simão Pedro e terminam com Judas Iscariotes. A posição destes dois
pretende estar associada a uma valorização. 70. Uma hipótese de Kingsbury:JBL 98, 1979, 67s.
71. Jo 12,21 fala de Betsaida na Galiléia, o que não é correto. Se contarmos com a possibilidade de o Jordão ter
modificado o seu curso desembocando no Lago a leste de Betsaida, isto só poderia ter ocorrido na época pré-cristã.
No tempo de Jesus Betsaida era a residência do tetrarca Filipe.
72. Tadeu poderia ser um nome grego, caso o derivemos de T heudas.

67. Cf. Gnilka, Markus I, 136-138. 73. Cf Dalman, Wortejes11, 39, nota 4.

68. EmJoão os doze só são mencionados ainda quatro vezes de passagem, duas das quais na expressão "um dos doze", 74. Contra O. Cullmann, DerStaat i111 NT, Ttibingen, 21961, 11, que toma esta idéia de R. Eislcr.
aplicada ajudas Iscariotes e a Tomé (6,67.70.71; 20,24). Que existisse uma lista dos doze em Q, como o pressupõe 75. Para a discussão, cf M. Hengcl. Die Zelote11 (AGSU 1), Leiden, 1961, 55-57, sobretudo 57, nota 5 .
1rautmann, Handlungen, 216s, é muito pouco provável.
76. Para a design ação dos zelotes como fanáticos, cf. Hengel (nota 25), 61-78.
69. .Estar-se-ia pensando em Judas, o irmão do Senhor (cf. Me 6,3)? Pretender-se-ia garantir a autoridade apostólica
77. Proposta de Dalman,Jesus, 26. Segundo M. Noth. Das Buchjosua (HAT ln), Ttibingcn, 1953, 93s, Kerioth ficava
da.epístola deJudas (cf. Jd 1)? Esta é uma suposição de Pesch, Mark11seva11geli11111 I, 208. Um segundoJudas também
é mencionado em Jo 14,22. no distrito de Horma, isto é, ao sul de Hebron, a leste-nordeste de Bersheba. Cf. o mapa na p. 91. Segundo Abel
Géographie II, 417, 7 km ao sul de Tel1 Ma'in.

176 177
78
2. Iscariotes é posto em relação com sicarius . Com isto também Judas estari mais jovem. Podemos admitir que a atribuição do nome de Kephas a Simão esteja
_ _ _
envolvido no movimento zelote, mais exatamente com um grupo pa1ticularment relacionada com o pnme1ro seguidor de Jesus. Talvez ela já tenha ocorrido nà
79
rigoroso, cujo nome provinha de sua maneira de lutar (de sica = punhal) • primeiro chamado. Ou na instituição do grupo dos doze?84
80
3. Iskariot é entendido como nome temático (homem da falsidade) . Nesse case Resumindo, pode-se dizer que os discípulos de Jesus se compunham predo­
o nome lhe teria sido dado posteriormente pela comunidade cristã. A primeira ou ; minantemente de galileus, homens e mulheres. Do ponto de vista de seus
terceira origem poderiam estar corretas. discípulos, o movimento iniciado por Jesus aparece como um movimento da
Galiléia'. De muitas discípulas e discípulos não sabemos outra coisa a não ser 0
De particular interesse para nós é o nome de Pedro, acrescentado ao de Simão,
o discípulo que é sempre o primeiro a ser menciqnado. Inicialmente é bom nos nome. Também não podemos dizer se os discípulos eram numerosos, apenas
pode-se afirmar que ao lado do grupo dos doze ainda havia outros discípulos.
conscientizarmos de que Pedro, na era pré-cristã, não pode ser comprovado como
apelativo (mas nomes parecidos sim, como Petrios, Petraios, Petrou e 6utros81 ). Com os doze Jesus colocou um sinal profético diante do povo de Israel,
Quer dizer, este nome foi dado a Simão a fim de expressar alguma coisa. Em Mt indicando com isso que ele deveria ser reunido para o reino de Deus iminente.
16, 18 a atribuição do nome de Pedro é relacionada com a intenção de instituir a Entre os doze Simão assume o primeiro lugar. A atribuição do nome de Kephas
Igreja. Mas esta já é uma interpretação ulterior do nome de Pedro. Pode-se o distingue como o primeiro discípulo de Jesus.
reconhecê-lo pelo fato de que aqui o "petros" é transformado em m:-rpa, o Visão panorâmica
rochedo (com mudança de gênero e de sign ificado), enquanto "petros" significa a
pedra (muitas vezes a pedra de atirar). O dicionário da língua grega de F. Passow Depois da Páscoa diminui a importância simbólica do grupo dos doze para Israel.
observa a respeito de nE-rpo<;: "sempre no significado de pedra e desta forma distinto Eles quase não assumem funções diretivas na comunidade de Jerusalém. At 6,2
de TCE-rpa, rochedo". -Mt 16,18, portanto, pressupõe que este discípulo já possuía este oferece para isto uma base demasiado fraca. Sua importância é vista agora sob uma
nome, e que aqui apenas ele recebe uma nova interpretação. nova luz. Embora em 1Cor 15,5.7 ainda seja mencionado ao lado de todos os
apóstolos - aqui podemos admitir que os doze faziam parte do grupo de todos os
Como terá Simão chegado a este nome? Que sign ificava o nome inicialmente? apóstolos-, existe uma evolução, forçada sobretudo por Lucas, de restringir o nome
Se uma nova interpretação podia ser ligada ao seu nome, e se Simão, por conseguinte, de apóstolos aos doze. Como os doze apóstolos, eles são as testemunhas decisivas e
já o possuía antes, é provável que o nome remonte a Jesus.Jesus chamava Simão de autorizadas da vida, morte e ressurreição de Jesus. Dentro do grupo dos apóstolos
Kepha. Esta é a forma aramaica original. Encontramo-la 10 vezes no Novo Testa­ Simão Pedro passa a ser um testis qualificatus especial no sentido mencionado, e com
mento, sob a forma ligeiramente helenizada de Kephas82. O Kepha aramaico significa isto o rochedo sobre o qual deve ser edificada a Igreja do Messias. Esta tarefa
predominantemente pedra, também pedra preciosa83, e ao lado disto rochedo. proeminente de Simão Pedro, que tem um ponto de ligação na situação pré-pascal,
Os evangelhos ainda deixam transparecer o papel de Simão como porta-voz dos é fundamentada após a Páscoa diante dos doze pela primeira aparição do Ressusci­
discípulos. Isto se explica com mais naturalidade pelo fato de juntamente com seu tado, que o distingue também de maneira pessoal (1Cor 15,5; Lc 24,34). Duas vezes
irmão André ele ter sido o primeiro a ser chamado porJesus. André deve ter sido o o primeiro, no início da atividade de Jesus e no reinício após a cruz e a Páscoa, ele
tornou-se o Kephas da Igreja.
BIBLIOGRAFIA: M. HENGEL. Maria Magdalena und die Frauen ais Zeugen: Abraham
78. O. Cullmann. Der zwii!fte Apostei: Untrâge 1111d Aufsiitze. Ttibingen, 1966, 214-222, aqui 218s.Já F. Schulthess, Zur
unser Vater (Festschrift O. Michel): AGSU 5, Leiden, 1963, 243-256; B. RIGAUX. Die
Sprache der Evangelien: ZNW21, 1922, 241-258, aqui 250s "Zwolf" in Geschichte und Kerygma: in: H. RISTOW e K. MATTHIAE. Der historischeJesus
79. Sobre os sicários, cf Hengcl (nota 25), 47-54. ttnd der ke1ygmatische Christtts. Berlim, 2 1964, 468-486; P. V IELHAUER. Gottesreich und
Menschensohn in der VerkündigungJesu: Aufsatze zum NT: TB 31, Munique, 1965, 55-91;
80. B. Gartner. Die râ1selhafte11 Ter111i11i Nazoriier 1111d Iskariot (Hsoed 4), Estocolmo, 1957. -EmJo 6,71; 13,2.26 ficamos
sabendo do nome do pai de Judas: Filho de Simão Iscariotcs. Aqui lscariotcs está ligado ao nome do pai. Isto R. PESCH. Levi-Matthaus: ZNW59 (1968) 40-56; H. MERKLEIN. DerJüngerkreisJesu:
poderia favorecer a derivação do nome a partir do lugar Kcrioth. in: K. MÜLLER. Die Aktionjesu und die Re-aktion der Kirche. Würzburg, 1972, 65-100; G.
81. Em Lampe: NTS 25, 1979, 228.
82. Abstraindo doJo 1,42, sempre nas epístolas protopaulinas. Para Kcpha, é discutido se a palavra já era usada corno
nome próprio. Uma prova nos papiros de Elefantina não elimina as dúvidas. Cf a controvérsia entreJ A. Fitzmyer,
Armnaic Kepha' and Peter's Name in the NT: Te.xi and Inte1pretation (Festschri.fi M. Black), Cambridge, 1979, 121-132,
aqui 127s, e P. Grelot, Documents arn111éC11s d'Égypte, Paris, 1972, 476. 84. Hipótese de R. Pesch: EWNT II, 721s. Nos evangelhos Jesus sempre chama o discípulo pelo nome de "Simão"
(Me 14,37; Mt 16,17; 17,25; Lc 22,61;Jo 21,15-17). A única exceção é Lc 22,34, sobre isso e( o paralelo cm Me
83. G. Dalman.Ara111iiisch-11euhebriiisches Hm1d111iirterb11ch. Gõttingcn, 31938, 197 à esquerda. 14,30. Podemos concluir daí que o nome Kepha-Pedro ainda não havia suplantado o nome de Simão.

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