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Marcus J.

Borg

JESUS
A BIOGRAFIA DO HOMEM QUE NASCEU POBRE E JURADO DE MORTE,
REVOLUCIONOU O MUNDO COM SUAS IDEIAS, FOI PERSEGUIDO,
CRUCIFICADO E RETORNOU DOS MORTOS PARA SE TORNAR A PESSOA
MAIS IMPORTANTE DA HISTÓRIA
SUMÁRIO

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Prefácio

1. Encontrar Jesus de novo

2. Quem é esse homem? O Jesus pré-Páscoa

3. Jesus, compaixão e política

4. Jesus e a sabedoria: o mestre da sabedoria alternativa

5. Jesus, a sabedoria de Deus: Sophia se faz carne

6. As imagens de Jesus e as imagens da vida cristã

Caderno de imagens

Notas

Créditos das imagens

Sobre o autor

Créditos
PREFÁCIO

ESTE LIVRO DEVE BOA parte de seu conteúdo a uma série de palestras
ministradas por mim durante uma conferência de acadêmicos cristãos
realizada na cidade de Asilomar, Califórnia, em maio de 1992.
Em termos de conteúdo, o livro não é uma transcrição exata das
palestras de Asilomar, mas tem aproximadamente o dobro do tamanho.
Algumas das características típicas de uma palestra foram mantidas. Eu
me permiti usar com frequência pronomes em primeira pessoa, ilustrações,
anedotas e referências pessoais.
Ocasiões como a conferência de Asilomar me possibilitam reunir os
dois mundos em que vivo. De um lado, habito o mundo da academia
secular: como professor numa universidade estadual, meu cargo de
docente é sustentado por financiamento público. Como um pesquisador
de Jesus, as organizações profissionais a que pertenço estão
comprometidas com o estudo não sectário de Jesus Cristo e de seu mundo.
Nessas esferas, não é apropriado falar dos significados em potencial desse
material para a vida cristã.
Entretanto, também habito outro mundo — o mundo da Igreja. Cresci
nela e vivi dentro da Igreja minha vida toda, com exceção de um hiato de
cerca de dez anos passado em uma espécie de exílio. Desde esse período,
que acabou há mais ou menos uma década, não só voltei à Igreja como me
tornei cada vez mais envolvido em sua vida e devoção, e comprometido de
modo muito mais profundo com a jornada cristã. Aliás, sou cônjuge de um
membro do clero: minha esposa, Marianne, é uma pastora episcopal.
Preciso admitir que me casar com uma pastora não era uma das minhas
fantasias de infância.
Assim, sou ao mesmo tempo um pesquisador secular de Jesus e um
cristão. As palestras de Asilomar (e este livro) surgiram de meu desejo de
reunir esses dois mundos. Esta obra é produto de um pensamento e de um
discurso sobre Jesus nos contextos seculares de uma universidade estadual
e da academia, e do pensamento e do discurso sobre Jesus no contexto
cristão da Igreja e da minha própria jornada pessoal.
Na maior parte dos meus trabalhos publicados escrevi como um
intelectual. Neste livro, eu me dei permissão para escrever como um
cristão, mesmo quando é necessário recorrer ao meu arcabouço
acadêmico. Assim, minha intenção é escrever de forma direta e sem
rodeios sobre algumas das implicações que, a meu ver, este material possui
para a vida cristã.
Além de ter uma dívida de gratidão para com John Brooke pelo título,
também sou grato a Francis Geddes, pastor da cidade de Fairfax, na
Califórnia, que foi em grande parte responsável pelo convite para que eu
realizasse as palestras em Asilomar. Francis também me convidou para
uma série de bate-papos intitulados “Jesus como Mentor Espiritual”,
realizados durante um retiro de uma semana patrocinado pelo Centro
Pacífico de Formação Espiritual no Wellspring Renewal Center, em
Mendocino County, também na Califórnia, em junho de 1992. Este livro
foi influenciado pela experiência de compartilhar aquela semana com
pessoas intencionalmente comprometidas com a vida no Espírito.
Ainda que esta obra tenha sua origem imediata na conferência de
Asilomar e nas conversas realizadas em Wellspring, ela também é um
trabalho em processo de evolução relacionado a outras palestras que
ministrei em ambientes eclesiásticos, incluindo a Universidade de Puget
Sound em 1989, o Ciclo de Palestras sobre a Bíblia e a Igreja realizado na
Catedral Episcopal da Igreja de Cristo, em Indianápolis, em 1991, e a série
de bate-papos realizados em diversas igrejas locais e para grupos clericais
(presbiterianos, a Igreja de Cristo, metodistas, luteranos, unitaristas, a
Igreja da Comunidade Metropolitana, episcopais e da Igreja Católica
Romana) no Oregon, em Washington, Idaho, Montana e na área da baía de
San Francisco. Agradeço a todos esses grupos por me proporcionar
ocasiões para pensar e falar sobre o significado de Jesus para a vida cristã.
Finalmente, gostaria de agradecer ao sr. Al Hundere, de San Antonio,
Texas, por seu generoso apoio ao meu trabalho.
CAPÍTULO 1
ENCONTRAR JESUS DE NOVO

TODOS NÓS JÁ CONHECEMOS JESUS. A maior parte O conheceu quando era


criança. Essa é a verdade mais óbvia para aqueles de nós criados na Igreja,
mas também para qualquer pessoa que tenha crescido na cultura
ocidental. Todos tivemos alguma impressão de Jesus, alguma imagem
Dele, por mais vaga ou específica.
Para muitos, a imagem infantil de Jesus se mantém intacta na vida
adulta. Para alguns, essa imagem é preservada com profunda convicção, às
vezes relacionada a uma intensa devoção pessoal e, outras vezes, ligada a
rígidas posições doutrinárias. Para outros, tanto dentro como fora da Igreja,
essa imagem de Jesus pode se tornar um problema, gerando perplexidade e
dúvida, quase sempre levando à indiferença ou à rejeição da religião da
infância.
Na verdade, para muitos cristãos, chegou um momento em que sua
imagem de infância de Jesus não fazia mais muito sentido. E, para muitos
deles, nenhuma alternativa persuasiva a substituiu. É para essas pessoas
em especial que este livro foi escrito. Para elas, encontrar Jesus de novo vai
ser — como tem sido para mim — como encontrá-Lo pela primeira vez.
Esse encontro irá lhes proporcionar uma nova imagem de Jesus.

IMAGENS DE JESUS E IMAGENS DA VIDA CRISTÃ


As imagens de Jesus importam. A afirmação basilar deste livro é que existe
uma forte conexão entre as imagens de Jesus e as imagens da vida cristã,
entre como pensamos Jesus e como pensamos a vida cristã. Nossa imagem
de Jesus afeta nossa percepção da vida cristã de dois modos: ela dá forma à
vida cristã e (como veremos mais adiante neste capítulo) pode tornar o
cristianismo verossímil ou inverossímil.
A maneira como as imagens de Jesus dão forma à vida cristã é ilustrada
por duas imagens disseminadas e seus efeitos nas imagens da vida cristã. A
imagem mais comum de Jesus — o que chamo de “imagem popular” — O
mostra como o salvador divino. Em termos mais compactos, essa imagem é
uma constelação de respostas para as três questões clássicas sobre Jesus.
Quem foi Ele? O filho divinamente único de Deus. Qual foi Sua missão ou
Seu propósito? Morrer pelos pecados do mundo. Qual era Sua mensagem?
De modo mais essencial, era sobre Si mesmo: Sua própria identidade como
Filho de Deus, o propósito salvador de Sua morte e a importância de
acreditar Nele.
A imagem da vida cristã a que essa imagem de Jesus leva é clara: ela
consiste primordialmente em acreditar — que Jesus foi quem disse que era
e que morreu pelos nossos pecados. Podemos chamá-la de imagem fideísta
da vida cristã, cuja dinâmica básica é a fé, compreendida como crer que
determinadas coisas sobre Jesus são verdadeiras. Ainda que crer possa (e
idealmente o faz) levar a muito mais, é a qualidade elementar dessa
imagem da vida cristã.
Apenas um pouco menos comum é a imagem de Jesus como professor.
Uma imagem Dele desdogmatizada é mantida por aqueles que não têm
certeza de como depreender as afirmações doutrinárias feitas sobre Jesus
pela tradição cristã. Quando colocadas de lado, o que fica é Jesus como
um grande professor. Seu ensinamento moral pode ser compreendido em
termos bem gerais (o grande mandamento de amar a Deus e amar ao
próximo, ou a regra de ouro de fazer aos outros o que gostaria que fizessem
a você), ou, em termos bem específicos, como um código bem estrito de
retidão. Mas, em todo caso, a imagem da vida cristã que emana dessa
imagem de Jesus consiste em “ser bom”, de tentar viver como Jesus disse
que devíamos viver.
Assim como a primeira conduz a uma imagem fideísta da vida cristã,
essa segunda leva a uma imagem moralista da vida cristã. Ambas, me
parece, são inadequadas. Não apenas são inexatas como imagens do Jesus
Cristo histórico, como veremos, mas levam a imagens incompletas da vida
cristã. Essa vida, no fim das contas, não possui ligação com nossa crença
nem com o fato de sermos bons. Em vez disso, como pretendo demonstrar,
é sobre uma relação com Deus que nos envolva em uma jornada de
transformação.
A percepção da vida cristã como uma jornada de transformação tem
como base a imagem alternativa de Jesus que desenvolvo neste livro. A
imagem tem origem na pesquisa histórica e bíblica contemporânea. Ainda
que possa parecer nova e, de início, pouco familiar, ela é bem antiga, e
data do primeiro século do antigo movimento cristão. Encontrar esse Jesus
vai ser, para muitos de nós, como encontrar Jesus pela primeira vez.

ENCONTRAR JESUS DE NOVO: MINHA PRÓPRIA HISTÓRIA


Recordar as maneiras como encontramos Jesus em nosso passado é uma
atividade elucidativa. Meu primeiro encontro com o Filho de Deus
aconteceu de modo inesperado. Alguns anos atrás fui convidado para falar
para um grupo de membros do movimento episcopal que se reunia
semanalmente havia mais de dez anos. Graças à natureza do grupo, cujas
reuniões eram marcadas por trocas de experiências, suas instruções para
mim foram duas: “Fale conosco sobre Jesus e faça isso de forma pessoal”.
Ninguém jamais havia me pedido isso antes. Ministrei centenas de
palestras sobre Jesus, mas nunca haviam me pedido “faça isso de forma
pessoal”. Foi um desafio. Sem saber ao certo como proceder, escrevi as
palavras Eu e Jesus em um pedaço de papel, comecei a pensar nelas e fui
levado a memórias e reflexões sobre Jesus na minha própria vida. Foi uma
experiência rica e reveladora, e encorajo você a experimentá-la em algum
momento. Apenas comece, como eu fiz, com suas primeiras memórias de
infância sobre Jesus, acompanhe-as pela adolescência até a vida adulta e
então veja o que aconteceu com sua imagem de Jesus ao longo dos anos.

INFÂNCIA

Cresci numa pequena cidade em Dakota do Norte, nos Estados Unidos,


próximo à fronteira com o Canadá, nos anos 1940, em um mundo que hoje
parece muito distante. Éramos uma família luterana de origem
escandinava, e a Igreja era importante para nós. Eu não só tinha muitos
tios que eram pastores luteranos como a Igreja luterana local era o centro
da nossa vida social: cultos nas manhãs de domingo e escola dominical,
reuniões da Associação de Senhoras das quais eu participava com a minha
mãe, jantares frequentes no salão paroquial, cultos no meio da semana
durante a Quaresma, conferências missionárias e grupos de jovens com
nomes como “Crianças Luteranas da Reforma”.
Minhas primeiras memórias de Jesus são bem esparsas. Eu me lembro
de imagens Dele com ovelhas, com crianças. Sabia que Ele gostava de
crianças — essa era uma mensagem crucial quando éramos garotos.
Claramente, Ele era importante. Sabia que era o filho de Deus e que tinha
nascido de forma milagrosa. Aliás, eu sabia que Ele tinha “nascido da
Virgem Maria” antes de saber o que era uma virgem. A voz de meu pai
lendo a história do nascimento no Evangelho segundo São Lucas para a
família, enquanto estávamos sentados ao redor da árvore na véspera do
Natal, ainda me vem à mente: “Naqueles tempos apareceu um decreto de
César Augusto, ordenando o recenseamento de toda a terra”.[1]
Eu também sabia que Jesus havia morrido em uma cruz e renascido dos
mortos, e que tudo isso era importante. As manhãs de Páscoa só perdiam
para as do Natal como a ocasião mais festiva do ano. Eu sabia que era
possível rezar para Jesus e até Lhe pedir para estar presente: “Venha,
Senhor Jesus, seja nosso convidado”, era nossa prece diária à mesa. Nos
tempos de pré-escola memorizei Jo 3,16 para um evento de Natal da escola
dominical:

Com efeito, de tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único, para que
todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.

O versículo parecia absurdamente longo na época.


E então, conforme os hinos da minha infância começaram a voltar às
minhas lembranças, as memórias se tornaram mais carregadas de emoção.
Recordar as melodias e as letras me tocou muito enquanto estava sentado à
minha escrivaninha com as palavras Eu e Jesus me encarando. Conforme
comecei a dizer as palavras em voz alta, descobri que eu não era capaz de
fazê-lo sem que minha voz se tornasse embargada.
Três hinos em particular voltaram à minha cabeça como os meus
favoritos daqueles primeiros anos. Cantávamos o primeiro em grupo com
frequência, bem como nos cultos da Igreja:

Jesus, tesouro inestimável, fonte do prazer mais puro, meu amigo mais querido.
Ah, por quanto tempo resfoleguei, e meu coração desfaleceu, sedento, Senhor por
Vós.
Vosso sou, Ó Cordeiro Imaculado; nada sofrerei para escondê-Lo,
Nada peço além de Vós.

De certa forma, um segundo combinava louvor e devoção:

Generoso salvador, Rei da Criação,


Filho de Deus e Rei dos Homens!
Eu Vos amo de verdade, de verdade eu sirvo a Vós,
Luz da minha alma, minha alegria, minha coroa.

O terceiro está associado a uma lembrança específica, uma conferência


missionária em uma Igreja rural luterana a alguns quilômetros da igreja da
nossa cidade. Eu devia ter uns seis anos. Era uma tarde quente de
domingo, em junho, e me lembro de brincar com os garotos desconhecidos
do campo no pátio da igreja antes que o culto começasse. Os oradores
eram um casal de missionários chineses. Não lembro o que disseram, mas
tenho certeza de que falaram sobre a importância e os desafios do trabalho
missionário. Então cantamos aquele grandioso hino cristão: “Oh, Sião,
apressai vossa missão tão gratificante”. Tenho uma lembrança clara de
estar sentado ao lado dos meus pais naquela igreja branca no campo, meu
corpo ainda quente e suado de tanto brincar, e da luz do sol enquanto o
santuário se enchia com o som de nossas vozes:

Oh, Sião, apressai vossa missão tão gratificante,


Dizer a todo o mundo que Deus é luz;
Que Ele que criou todas as nações não está desimpedido,
Uma alma há de padecer, perdida nas sombras da noite.
Publicar correntes alegres, correntes de paz,
Correntes de Jesus, redenção e libertação.

Ficou claro para mim naquele momento que acreditar em Jesus e dizer
aos outros sobre as correntes de Jesus eram as coisas mais importantes do
mundo. O que estava em jogo era nada menos que almas padecendo,
perdidas nas sombras da noite.
É tentador ver o curso da minha vida desde então como a vivência das
mensagens desses hinos. Afinal, toda a minha vida profissional adulta, que
chegava a quase três décadas, havia sido dedicada à pesquisa acadêmica
sobre Jesus. Como minha esposa diz sobre mim: “Ele passou a vida toda
procurando Jesus”.
Ao fim da infância, os ingredientes da imagem popular de Jesus
estavam em posição: Jesus era o diligente filho único de Deus que morreu
pelos pecados do mundo e cuja mensagem era sobre Si mesmo, Seu
propósito salvador e a importância de acreditar Nele. Na verdade, Jo 3,16,
aquele versículo que memorizei na pré-escola, expressava essa imagem de
infância à perfeição: Jesus é o salvador divino em quem se acredita para
receber a vida eterna.
Eu acreditava naquele Jesus sem dificuldade e sem esforço. Hoje
entendo por que era tão fácil: recebi essa imagem de Jesus no que desde
então aprendi a chamar de estado de ingenuidade pré-crítica — aquele
estado infantil em que consideramos, sem pensar, o que quer que as
figuras de autoridade importantes da nossa vida nos digam ser verdade
como verdade.[2] Porém, esse estado de convicção infantil não duraria.
Os problemas começaram não com Jesus, mas com Deus. Em algum
momento durante o ensino fundamental, ocorreu meu primeiro enigma
teológico. Eu me lembro de ficar confuso sobre como conciliar duas coisas
que tinha ouvido sobre Deus: que Deus estava “em toda parte” e que Deus
estava “no céu”. Sem me dar conta, eu estava me debatendo com relação à
onipresença e à transcendência de Deus.
Como podia ser?, me perguntei. Minha mente jovem solucionou o
quebra-cabeça em favor de Deus no céu. A onipresença de Deus, eu tinha
decidido, significava que Ele podia estar em qualquer lugar onde decidisse
estar. Deus podia até aparecer neste cômodo neste exato momento. Mas,
claro, na maior parte do tempo, Deus não está aqui. Em vez disso, Ele está
no céu. Involuntariamente, minha resolução da perplexidade reduziu a
onipresença de Deus a uma potencialidade mágica de estar em qualquer
lugar.
Também involuntariamente dei o primeiro passo para remover Deus do
mundo. A solução que encontrei indicava que eu tinha passado a pensar
em Deus como um ser sobrenatural que estava “lá fora”. Deus se tornou
distante e remoto, longe e afastado do mundo, exceto em intervenções
especiais, como aquelas descritas na Bíblia. Mas eu ainda não tinha
dúvidas de que Deus era real. Estas começariam mais tarde.

ADOLESCÊNCIA

Nos primeiros anos de adolescência, comecei a ter dúvidas sobre a


existência de Deus. Foi uma experiência repleta de ansiedade, culpa e
medo. Eu ainda acreditava o suficiente para ter medo de ir para o inferno
por causa dessas dúvidas. Sentia que eram erradas e, nas minhas orações,
pedia perdão. Entretanto, não conseguia parar de duvidar, então meus
pedidos de perdão não me pareciam genuínos. Afinal, eu tinha aprendido
que o verdadeiro arrependimento incluía a resolução de não continuar
cometendo o pecado.
Todas as noites, por muitos anos, eu rezava com uma angústia
considerável: “Senhor, eu acredito. Ajudai-me na minha descrença”. A
inabilidade de superar minha dúvida confirmou para mim que eu me
tornara mais um cético do que um crente. Em retrospecto, também
consigo ver que, pelo menos para mim, acreditar não era uma questão de
vontade. Eu queria desesperadamente acreditar e ser libertado da angústia
que estava vivenciando. Se pudesse me fazer acreditar, eu o teria feito.
Ao contrário da minha perplexidade anterior sobre a “ubiquidade” de
Deus, minha dúvida sobre Sua existência não estava ligada a nenhum
elemento específico do meu sistema de crenças, mas sim relacionada à
base do sistema em si. Hoje entendo o que estava acontecendo: eu vivia
uma colisão entre uma visão de mundo moderna e minhas crenças de
infância. A visão moderna, com sua imagem do que é real, como o mundo
da matéria e da energia, e sua visão do universo como um sistema fechado
de causa e efeito, tornou a crença em Deus — uma realidade não material
— cada vez mais problemática. Adentrei o estágio do pensamento crítico, e
não houve volta.
E, claro, essas dúvidas sobre Deus afetaram como eu pensava Jesus. O
que significa falar em Jesus como o Filho de Deus quando não se tem
certeza do que Deus é?
FACULDADE

Quando a adolescência acabou, fui para uma faculdade luterana no Meio-


Oeste dos Estados Unidos com uma compreensão convencional, porém
não mais profundamente arraigada, da fé cristã. As preces noturnas
pedindo para acreditar pararam. Pelo jeito, eu tinha deixado de acreditar o
suficiente para ter medo do inferno. O medo e a culpa tinham sido
reduzidos a uma perplexidade em que eu, de vez em quando, mas não com
frequência, pensava. Outras questões chamavam a minha atenção.
Então, no terceiro ano, em uma disciplina obrigatória de religião, fui
exposto ao estudo acadêmico da teologia por um jovem professor brilhante
com um doutorado recém-obtido pela Universidade de Chicago.[3]
Intelectualmente, foi o material mais impressionante que eu já tinha
encontrado. O curso abrangia todas as grandes questões: Deus, a natureza
da realidade, a natureza humana, o mal, a redenção, a ética, a relação entre
o cristianismo e outras religiões etc. Ele me expôs à diversidade de
respostas fornecidas pelos maiores intelectuais tanto da tradição antiga
quanto da moderna: Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Santo
Anselmo, Schleiermacher, Barth, Bultmann, Tillich, Eliade e tantos
outros. A experiência foi fascinante e libertadora. Seus efeitos em mim
foram que as vacas sagradas das crenças herdadas começaram a cair de
uma forma que legitimava sua derrocada. Mesmo assim, isso não me
ajudou a acreditar. Em vez disso, obtive uma estrutura dentro da qual eu
podia levar minha perplexidade a sério.
A julgar por conversas posteriores com muitos cristãos, acho que minha
jornada como descrita até o momento é bastante típica. Quando a
faculdade acabou, as imagens do cristianismo e de Jesus que eu tinha
recebido quando criança não eram mais persuasivas nem atraentes. Eu
havia me conscientizado de que era difícil e talvez desnecessário
considerar a Bíblia e os ensinamentos cristãos literalmente, mas não sabia
o que uma abordagem não literal podia significar. Minha compreensão
infantil do cristianismo havia ruído, mas nada a tinha substituído. Eu me
tornara um “agnóstico não assumido”, alguém que não sabia como
entender o mundo.

O SEMINÁRIO E ALÉM
Então fui para o seminário. Não ajudou. Para ser mais exato, não ajudou a
dimensão da fé de minha jornada, que ainda estava a anos de uma
resolução. Entretanto, o seminário foi tremendamente revelador; os
insights que emergem da formação teológica são de uma ajuda imensa para
resolver o que significa levar a vida cristã a sério.
Jesus mais uma vez assumiu o centro do palco. Isso aconteceu graças ao
meu curso sobre o Novo Testamento no primeiro semestre.[4] Lá, aprendi
que a imagem do Jesus da minha infância — a imagem popular de Jesus
como o salvador divino que sabia ser o Filho de Deus e que oferecera a
própria vida pelos pecados do mundo — não era historicamente correta.
Este, eu aprendi, não era o Jesus histórico.
A base para essa constatação surpreendente foi a compreensão dos
Evangelhos que se desenvolveu ao longo dos últimos duzentos anos de
pesquisa bíblica. Aprendi que os Evangelhos não são nem documentos
divinos, nem registros históricos diretos. Não são produtos divinos
inspirados diretamente por Deus, em cujo conteúdo, portanto, era preciso
acreditar (como eu achava antes disso). Tampouco eram relatos escritos
por testemunhas oculares que acompanharam Jesus e simplesmente
queriam documentar o que tinham visto e ouvido.
Em vez disso, aprendi, os Evangelhos representam as tradições em
desenvolvimento do primeiro movimento cristão. Escritos no último terço
do século I, eles contêm as tradições acumuladas das primeiras
comunidades cristãs e foram organizados em suas formas atuais por
autores de segunda (ou terceira) geração.[5] Por meio de um cuidadoso
estudo comparativo dos Evangelhos, é possível ver esses autores em ação,
modificando e acrescentando as tradições que receberam.[6] Eles estavam
dando sequência a um processo que havia ocorrido ao longo de 47 anos,
quando o material dos Evangelhos circulava de forma oral. Muita coisa
aconteceu naquelas décadas para mudar as tradições sobre Jesus.
Não é tanto que as memórias se tornaram vagas, ou que a tradição oral
não era confiável. Em vez disso, dois fatores básicos estavam ocorrendo.
Primeiro, as tradições sobre Jesus foram adaptadas e aplicadas às
circunstâncias em mutação do antigo movimento cristão. O próprio Jesus
falou em um ambiente judeu palestino. Os Evangelhos foram escritos em e
para comunidades que haviam começado a se movimentar para além da
Palestina e para o mundo Mediterrâneo mais amplo, e os autores dos
Evangelhos adaptaram os materiais sobre Jesus para esses novos cenários.
Segundo, as crenças do movimento sobre Jesus cresceram durante essas
décadas. Podemos ver esse crescimento ao organizar o material dos
Evangelhos cronologicamente, dos escritos mais antigos para os mais
recentes. Conforme as décadas passavam, o movimento cristão inicial
falava cada vez mais de Jesus como divino e como detentor de qualidades
de Deus, um desenvolvimento que em questão de poucos séculos
resultaria na doutrina da Trindade. Os Evangelhos são produto de
comunidades que estão passando por esses desenvolvimentos. Como tal,
eles contêm não apenas as memórias do movimento do Jesus histórico,
mas também essas memórias acrescidas e modificadas pelas crenças cada
vez maiores e as circunstâncias em mutação do movimento. Assim, os
Evangelhos são as memórias da Igreja do Jesus histórico transformadas
pela experiência da comunidade e seu reflexo nas décadas pós-Páscoa.
Portanto, eles nos contam como essas primeiras comunidades cristãs
passaram a acreditar em Jesus no último terço do século I. Logo, não são
relatos do ministério em si.
Essa compreensão dos Evangelhos é a base da conhecida distinção
acadêmica entre o Jesus da história e o Cristo da fé, que eu também aprendi
naquele primeiro curso do seminário. O primeiro se refere a Jesus como a
pessoa específica que Ele era — Jesus de Nazaré, um judeu da Galileia do
século I que foi executado pelos romanos. O segundo se refere ao Cristo da
tradição cristã em desenvolvimento — especificamente, o que Jesus se
tornou na fé das primeiras comunidades cristãs nas décadas após sua
morte.
É o Cristo da fé que encontramos na superfície dos Evangelhos, bem
como nos credos cristãos plenamente desenvolvidos nos séculos IV e V.
Esse Jesus — o Cristo da fé — é chamado de divino, aliás, equivalente a
Deus, feito da mesma substância de Deus, unigênito diante de todos os
mundos, a segunda pessoa da Trindade. Aprendi que Jesus como ser
humano — o Jesus histórico — era bem diferente de tudo isso. Para
começar, Ele não teria sabido todas essas coisas sobre si mesmo. Isso era
novidade. Antes de me conscientizar de tudo isso, eu tinha combinado,
sem reflexão, o que ouvi sobre o Cristo da fé com minha imagem de Jesus
como uma figura histórica. Ainda que obviamente eu estivesse ciente de
que Jesus teve uma vida humana, também presumia que mesmo como um
ser humano Ele era a segunda pessoa na Trindade e teria sabido isso sobre
Si mesmo.
Agora, junto com o aprendizado da natureza dos Evangelhos e a
tradição em desenvolvimento da Igreja, aprendi que houve uma nítida
descontinuidade (em vez de continuidade) entre o Jesus histórico e o
Cristo da tradição cristã. A compreensão do Evangelho de João que
emergiu naquele primeiro curso no seminário ofereceu uma boa maneira
de ilustrar os efeitos combinados desse novo conhecimento. A imagem de
Jesus em João é claramente bem diferente da figura de Jesus em Mateus,
Marcos e Lucas, que são coletivamente conhecidos como os Evangelhos
Sinóticos.[*]
Em João, Jesus fala como uma pessoa divina. As grandes afirmações de
“eu sou” (“Eu sou o Pão da Vida”, “a Luz do Mundo”, “a Videira, o
Caminho, a Verdade e a Vida”, e assim por diante) são peculiares a João.
Assim como as afirmações como “Eu e o Pai somos um”[7] e “Aquele que
me viu, viu também o Pai”.[8] Nos Evangelhos Sinóticos, Jesus fala de
modo muito diferente, a mensagem dele não é sobre Si ou sobre Sua
identidade. Como a maior parte dos cristãos, eu tinha apenas harmonizado
essas duas diferentes imagens, e na verdade não estava de fato consciente
de quão díspares são. Eu presumia que Jesus falava tanto como fala em
João como nos Evangelhos Sinóticos.
Então aprendi (e vi por conta própria) uma explicação diferente. O
contraste entre as imagens de Jesus nos Sinóticos e em João é tão grande
que uma delas não deve ser histórica. Ambas não podem ser
caracterizações exatas de Jesus como uma figura histórica. O veredito do
não histórico foi para João. Aprendi que o retrato de Jesus no Evangelho de
João era essencialmente o do Cristo da fé, e não o do Jesus da história.
Jesus nunca falou de Si mesmo como o Filho de Deus, como um com
Deus, como a Luz do Mundo, como o Caminho, a Verdade e a Vida, e
assim por diante. Na realidade, Ele nunca disse as palavras de Jo 3,16 —
aquele versículo da minha infância que resumia minha imagem de Jesus.
Estou ciente de que isso ainda é novidade para alguns cristãos, mesmo
que seja um assunto antigo nos seminários das principais denominações ao
longo deste século. Foi novidade para mim quando fiquei sabendo, e seu
efeito na minha imagem de Jesus como o salvador divino — a imagem
popular — foi dramático. Vi que essa imagem tinha sido extraída
basicamente das porções posteriores da tradição do Evangelho — em
grande parte do Evangelho de João, complementada pelas histórias do
nascimento em Mateus e Lucas. Na verdade, a ligação entre o Evangelho
de João e a imagem popular de Jesus era tão forte que eu me lembro de ter
ficado bravo com João quando me dei conta, pela primeira vez, de que seu
registro era, em grande parte, não histórico. Vi João como se contivesse
uma imagem distorcida de Jesus, uma imagem em que passei anos
tentando acreditar. Eu teria ficado feliz em extirpá-lo do Novo Testamento
(hoje vejo João de modo muito diferente e falarei mais sobre isso em
breve).
Assim, o efeito cumulativo do meu primeiro curso sobre o Novo
Testamento no seminário em minha imagem de Jesus foi surpreendente.
Além disso, aprendi uma posição consensual, então dominante na pesquisa
sobre Jesus: existem muitas lacunas sobre a trajetória do Jesus da história.
O Evangelho de João não só é considerado não histórico como também
mesmo nos Evangelhos Sinóticos era muito difícil discernir a voz de Jesus
da voz da Igreja. A pesquisa sobre Jesus de meados do século XX foi
marcada pelo ceticismo completo, acompanhado da afirmação de que
apenas o Cristo da fé é teologicamente significativo.
Preciso admitir que não era uma imagem muito satisfatória de Jesus.
No entanto, era a imagem que uma geração ou duas de estudantes do
seminário recebeu: não podemos saber muito sobre Jesus, e o que
podemos saber é que Ele estava errado sobre a convicção central que
motiva Seu ministério e Sua mensagem, e em todo caso não importa, na
verdade, porque o Jesus histórico é irrelevante do ponto de vista teológico.
Como um seminarista de 22 anos, achei tudo isso muito interessante,
ainda que parecesse vagamente escandaloso e algo que eu não deveria
contar a minha mãe. A notícia de que Jesus era muito diferente do que
achamos que Ele era parecia uma informação importante. E despertou a
minha curiosidade: se a mensagem de Jesus não era sobre Si mesmo como
o Filho de Deus, cujo propósito era morrer pelos nossos pecados, qual era
Sua mensagem e o que Ele queria?
Na verdade, curiosidade não é uma palavra forte o bastante. Eu não
planejava ser um estudioso do Novo Testamento nem de Jesus quando
entrei para o seminário (aliás, eu não tinha planejado nem ir para o
seminário, mas essa é outra história). Mesmo assim, fiquei fascinado pela
questão de Jesus e estou envolvido na busca acadêmica pelo Jesus
histórico desde então.
Mas vamos voltar ao seminário e aos anos de pós-graduação que se
seguiram. Mesmo enquanto eu me fascinava com o estudo da tradição
cristã e com a busca pelo Jesus histórico, minha descrença se aprofundava.
O “agnóstico não assumido” estava se tornando um “ateu não assumido”,
ainda que eu nunca assumisse isso para ninguém. As razões estão
suficientemente claras para mim agora. O problema central ainda era a
colisão entre Deus e a visão de mundo moderna, entre minha imagem de
Deus e a imagem da realidade que adquiri ao crescer no mundo moderno.
Esta última tinha se endurecido e se tornado um “mapa” menosprezado da
realidade. Aliás, eu nem pensava nela como um mapa, apenas como a
maneira como as coisas eram.
Além do mais, quanto mais eu estudava a tradição cristã, mais
transparente suas origens humanas se tornavam. As religiões em geral
(incluindo o cristianismo), me parecia, eram produtos manifestadamente
culturais. Eu podia ver como suas funções psicológicas e sociais de pronta
identificação atendiam a necessidades humanas e fins culturais. A ideia de
que criamos tudo é um tanto alarmante, mas também cada vez mais
envolvente.
E, assim, apesar de considerar o estudo da Bíblia e da tradição cristã
imensamente rico e recompensador, o fato é que no fim das contas eu não
sabia o que fazer com a ideia de Deus. No geral, achava que
provavelmente não havia essa realidade.
Essa incerteza sobre Deus afetou o foco da minha pesquisa sobre Jesus.
Nos aproximadamente primeiros doze anos, me concentrei no que
podemos vislumbrar sobre a relação de Jesus com “este mundo”. Centrei-
me em seu envolvimento com as questões sociais e políticas de seu tempo,
em especial no desafio que Ele representou ao sistema de pureza do
mundo social judeu do século I.[9] Argumento que Ele era um defensor das
políticas de compaixão em um mundo social dominado pela política da
pureza (sobre o qual falarei mais adiante). Em resumo, estudei as partes da
tradição que faziam sentido, à parte a questão de Deus. Mas, mesmo
enquanto o fazia, continuei ciente de que Jesus era mais do que uma figura
sociopolítica, ainda que não soubesse como depreender o que Ele dizia
sobre Deus.
Então, na casa dos trinta, tive uma série de experiências que hoje
reconheço como “misticismo natural”. De certa forma, não foram nada de
espetacular, pelo menos não quando comparadas com as experiências
descritas por William James em sua obra clássica, The Varieties of Religious
Experience.[10] Mas elas alteraram fundamentalmente minha compreensão
de Deus, de Jesus, da religião e do cristianismo.
As experiências foram marcadas pelo que o teólogo judeu Abraham
Heschel chamou de “assombro radical”, um momento de percepção
transformada em que a terra se torna “cheia da glória de Deus”, brilhando
com uma presença radiante.[11] Também foram momentos de conexão em
que senti meu vínculo com o Deus verdadeiro.
O que experimentei foi similar ao que Rudolf Otto descreveu como
experiências do “numinoso”, do “sagrado” maravilhoso e impactante, o
mysterium tremendum et fascinans (o mistério tremendo, extraordinário,
que evoca calafrios enquanto também nos atrai de forma envolvente).[12]
Elas envolveram uma redescoberta do mistério — não um paradoxo
intelectual, mas uma experiência de mistério sagrado.
Essas experiências, além de momentos de êxtase, também foram
ocasiões em que gritei: “Eureca!”. Elas me deram uma nova compreensão
do significado da palavra Deus. Eu me dei conta de que Deus não se refere
apenas a um ser supernatural “lá fora” (que é onde eu tinha posto Deus
desde minhas reflexões de infância sobre Deus “no céu”). Em vez disso,
comecei a ver que a palavra Deus se refere ao sagrado no centro da
existência, o mistério sagrado que está à nossa volta e dentro de nós. Deus
é o solo imaterial, a fonte e a presença em que, para citar as palavras
atribuídas a Paulo pelo autor dos Atos dos Apóstolos, “temos a vida, o
movimento e o ser”.[13]
Assim, também passei a entender o que significa dizer que Deus está
presente em toda parte e “no céu” — tanto imanente quanto
transcendente, como diz a teologia cristã tradicional. Como imanente (a
raiz quer dizer “que está contido”), Deus não está em outra parte, mas bem
aqui e em todo lugar. Falar de Deus como estando “no céu” — ou seja,
como transcendente — significa que Deus deve ser identificado como a
soma de todas as coisas.
Deus é mais do que tudo, e, no entanto, tudo está em Deus. Sendo um
tipo pensador, comecei a estudar experiências de Deus tanto em formas
místicas quanto não místicas. Aprendi que mesmo que essas experiências
sejam extraordinárias, também são bastante comuns, conhecidas em
diversas culturas, no decorrer da história, até os dias de hoje.
Gradualmente, tornou-se óbvio para mim que Deus — o sagrado, o
bendito, o numinoso — era “real”. Deus não era mais um conceito, um
artigo ou uma crença, mas havia se tornado um elemento de experiência.

COMO VEJO JESUS HOJE

Essa transformação no meu entendimento de Deus começou a afetar


minha compreensão de Jesus. Eu tinha me tornado capaz de ver a
centralidade de Deus (ou do “Espírito”, para dizer a mesma coisa) na vida
do próprio Jesus. Comecei a ver Jesus como alguém cuja espiritualidade —
sua consciência experiencial do Espírito — foi a base de sua vida. Essa
percepção se tornou o ponto estratégico para o que desde então passei a
entender como a verdade essencial sobre Jesus: que, além de estar
profundamente envolvido no mundo social do cotidiano, Ele também
estava estabelecido no mundo do Espírito. Na verdade, como pretendo
observar de diversas perspectivas neste livro, a relação de Jesus com o
Espírito era a fonte de tudo o que Ele foi.

O JESUS PRÉ-PÁSCOA E O JESUS PÓS-PÁSCOA


Enquanto eu continuava meu estudo de Jesus, a distinção entre o Jesus
histórico e o Cristo da fé que aprendi no meu primeiro curso do seminário
continua sendo da maior importância. Existe apenas uma grande diferença
entre como Jesus era enquanto uma figura da história e como se fala Dele
nos Evangelhos e na tradição cristã posterior. No entanto, comecei a
preferir a usar outro conjunto de termos para expressar o contraste: o Jesus
pré-Páscoa e o Jesus pós-Páscoa. Eles pareciam mais precisos e
esclarecedores.
Com Jesus pré-Páscoa, me refiro, claro, a Jesus como figura histórica, o
Jesus antes de sua morte. A maior parte deste livro trata do Jesus pré-
Páscoa. Além disso, pretendo oferecer um esboço de como vejo o Jesus
pré-Páscoa no próximo capítulo, então não falarei mais dele neste
momento.
Passei a preferir falar do Jesus pós-Páscoa a Cristo da fé — expressão que
sempre sugeriu para mim uma realidade um tanto problemática. A escolha
de palavras implicava que o Jesus “real” era o da história, ao passo que não
se podia acreditar no Cristo da fé. O primeiro podia (pelo menos em
princípio) ser conhecido; o segundo podia ser aceito apenas pela fé.
Para mim o termo Jesus pós-Páscoa supera essa dificuldade. Defino o
Jesus pós-Páscoa como o Jesus da tradição e da experiência cristãs. Isto é, o
Jesus pós-Páscoa não é apenas o produto da crença e do pensamento
cristãos iniciais, mas um elemento de experiência.
De fato, isso me parece ser o significado central da Páscoa. Começando
com a Páscoa, o primeiro movimento continuou a vivenciar Jesus como
uma realidade viva depois de sua morte, mas de uma forma radicalmente
nova. Depois da Páscoa, seus seguidores O conheceram como uma
realidade espiritual, não mais como uma pessoa de carne e sangue,
limitada no tempo e no espaço, como Jesus de Nazaré havia sido. Em vez
disso, Jesus como o Jesus Ressuscitado podia ser vivido em toda a parte.
Falava-se cada vez mais Dele como possuidor de todas as qualidades de
Deus. Preces eram endereçadas a Jesus como Deus, e louvores eram
oferecidos a Jesus como o Deus da devoção cristã. Em resumo, Seus
primeiros seguidores experimentaram o Jesus Revivido e se voltaram para o
Cristo Revivido como o equivalente funcional de Deus, como o “Um com
Deus”.
E assim tem sido desde então. O Cristo Renascido do Novo
Testamento é uma realidade experiencial (e não apenas um artigo de
crença) desde os dias da Páscoa até o presente. Assim, na experiência, no
culto e na devoção dos cristãos, ao longo dos séculos, o Jesus pós-Páscoa é
real.
Essa consciência me ajuda a ver o Evangelho de João sob uma nova luz.
A raiva que senti de João quando descobri que não se tratava de um retrato
fidedigno do Jesus histórico foi substituída por uma profunda apreciação.
Para usar as grandes afirmações iniciadas por “eu sou” que perpassam o
texto de João para ilustrar essa questão, por que a primeira comunidade
cristã da qual o Evangelho de João provém retrata Jesus como dizendo
sobre si mesmo “eu sou a Luz do Mundo”, “eu sou o Pão da Vida”, “sou o
Caminho, a Verdade e a Vida”, se Jesus não fala de Si mesmo dessa
maneira? Eu hoje vejo a resposta: foi assim que eles vivenciaram o Jesus
pós-Páscoa. Para eles, esse Jesus era a luz que os guiava na escuridão, o
alimento espiritual que os nutria durante a jornada, o caminho que os
levava da morte à vida.
Em outras palavras, o Evangelho de São João é um testemunho
poderoso da realidade e do significado do Jesus pós-Páscoa, o Cristo vivo
da experiência cristã. O Evangelho de João é “verdadeiro”, ainda que seu
relato da história da vida e dos provérbios de Jesus não seja, em grande
medida, historicamente factual. Minha jornada do estado da infância de
ingenuidade pré-crítica, passando pelo pensamento crítico da adolescência
e da vida adulta, levou-me então a ouvir João (e a Bíblia como um todo) em
um estado de ingenuidade pós-crítica — um estado em que é possível
ouvir essas histórias como “histórias verdadeiras”, mesmo sabendo que não
narram os fatos literalmente como aconteceram.

PARA ALÉM DA CRENÇA ATÉ UMA RELAÇÃO COM O ESPÍRITO DE DEUS


Finalmente, ao concluir a história de como reencontrei Jesus, quero
mencionar de modo breve como essas mudanças na minha imagem Dele
afetaram a minha visão da vida cristã. Até o fim da casa dos trinta anos,
olhei para a vida cristã como sendo basicamente sobre crença. Porém, no
fim da minha infância, começou um período, que durou mais de vinte
anos, em que, como muitos, lutei com a dúvida e a descrença. Durante
todo esse tempo, continuei achando que a vida cristã se resumia
basicamente a acreditar em algo específico. No entanto, não importava
quanto tentasse, eu não era capaz de “fazer” isso, e me perguntava como os
outros conseguiam.
Agora, eu tinha deixado de ver a vida cristã como sendo
primordialmente sobre crença. As experiências de quando eu estava na
casa dos trinta me levaram a perceber que a questão central da vida cristã
não se trata apenas de acreditar em Deus nem acreditar na Bíblia ou na
tradição cristã. Ao contrário, a vida cristã trata de adentrar numa relação
com o caminho para o qual ela aponta. E um cristão é alguém que vive sua
relação com Deus dentro da estrutura da tradição cristã.
Às vezes brinco que, se algum dia for escrever minha autobiografia
espiritual, eu a chamaria de “Para além da crença”. O título completo seria
“Para além da crença até a relação com o caminho cristão”. Essa tem sido
minha experiência. Minha própria jornada me levou além da crença (e
além da dúvida e da descrença) até uma compreensão da vida cristã como
uma relação com o Espírito de Deus — uma relação que envolve alguém
numa trajetória de transformação. É essa compreensão da vida cristã que
vou elaborar no restante deste livro.
CAPÍTULO 2
QUEM É ESSE HOMEM? O JESUS PRÉ-PÁSCOA

SE JESUS DE NAZARÉ não era igual à sua imagem popular, então como Ele
era? Antes de focarmos nos temas específicos de Sua mensagem e de Suas
ações, farei um esboço preliminar do que podemos supor a respeito do
Jesus histórico. Neste capítulo, irei apresentar o Jesus pré-Páscoa.

DOS EVANGELHOS ATÉ JESUS


Antes de esboçar minha própria imagem do Jesus pré-Páscoa, é útil
considerar o que está em jogo aqui. Como já mencionei no capítulo 1, os
Evangelhos não são documentos históricos diretos, mas sim tradições em
desenvolvimento do movimento cristão registradas por escrito no último
terço do século I. Nos 47 anos entre o ministério de Jesus e a redação dos
Evangelhos, os primeiros cristãos não apenas adaptaram as tradições sobre
Jesus a novas circunstâncias como também continuaram a experimentar
Jesus como uma realidade viva após sua morte. Os Evangelhos contêm
tanto as memórias de Jesus de Nazaré quanto a experiência subsequente
do Jesus pós-Páscoa.
Há, assim, pelo menos duas camadas de tradição, ou dois tipos de
materiais, nos Evangelhos. Parte do material remonta ao Jesus pré-Páscoa,
e é produto do movimento cristão primitivo. Ou, em outras palavras, os
Evangelhos contêm pelo menos duas vozes — a voz do Jesus pré-Páscoa e
a voz da comunidade no contexto pós-Páscoa. Construir a imagem do Jesus
pré-Páscoa implica separar essas duas camadas, essas duas vozes.
O trabalho de um grupo de acadêmicos do qual faço parte, conhecido
como Seminário de Jesus, ilustra esse processo muito bem. Desde que
começamos em 1985, nos reunimos duas vezes por ano para decidirmos a
precisão das falas de Jesus. Para muitas pessoas, a ideia de votar assuntos
ligados a Jesus pode parecer bizarra e, para outras, blasfêmia. Entretanto,
nossa votação tem um único propósito: medir o grau de consenso entre os
acadêmicos sobre quanto desse material remonta ao próprio Jesus.
Votamos sobre cada uma de suas falas ao escolhermos uma entre quatro
pedrinhas coloridas e a depositarmos numa urna. As diversas cores —
vermelho, rosa, cinza e preto — representam um espectro descendente de
probabilidade histórica. Um voto vermelho quer dizer “tenho quase certeza
de que Jesus disse isso”; o rosa, algo entre “provavelmente” e “mais
provável que seja sim do que não”; cinza, algo entre “mais provável que seja
não do que sim” e “provavelmente não”; e preto “tenho quase certeza de
que Jesus não disse isso”.
Para referir o trabalho do grupo quanto ao entendimento dos
Evangelhos como tendo pelo menos duas camadas, ou vozes,
consideramos: um voto vermelho quer dizer “essa é uma parte do
Evangelho que se aproxima muito da voz do Jesus pré-Páscoa”; um voto
rosa quer dizer “sim, a voz de Jesus ainda está presente, mas está
começando a ser afetada cada vez mais forte pela voz da comunidade”; um
voto cinza implica dizer que o que foi dito é muito mais uma voz da
comunidade; e o voto preto quer dizer que “isso é quase exclusivamente (e
talvez completamente) a voz da comunidade”.[1]
Se separarmos essas vozes, qual imagem de Jesus pré-Páscoa aparece?
Nossas fontes escritas para lidar com essa questão têm pelo menos dois
aspectos. A primeira (e mais importante) fonte são as camadas mais
antigas de Mateus, Marcos e Lucas (os Evangelhos Sinóticos, também
conhecidos simplesmente como os Sinóticos), que contêm as falas de
Jesus, suas ações mais comuns e um arcabouço básico de seu ministério
depois de adulto. Nossa segunda fonte são as camadas mais antigas do
recém-descoberto Evangelho de Tomé, encontrado no Alto Egito em 1945.
Esse Evangelho consiste apenas em falas de Jesus (114 ao todo), e pode-se
defender que algumas delas remontam ao próprio Jesus.[2]
Ausente em nossa lista de fontes está o Evangelho de João. Como já
disse no capítulo 1, apesar de ser um testemunho poderoso e verdadeiro da
experiência da comunidade do Jesus pós-Páscoa, ele não reflete muito
precisamente o Jesus pré-Páscoa. Para usar o código de cores do Seminário
de Jesus, quase tudo de João só recebeu votos pretos. Assim, voltamos à
nossa pergunta: como era o Jesus pré-Páscoa?

O JUDAÍSMO DE JESUS
Jesus era profundamente judeu. É importante enfatizar esse fato óbvio. Ele
era judeu não apenas de nascença e socialização, mas continuou judeu por
toda a vida. Sua escritura era a Bíblia judaica. Ele não pretendia criar uma
nova religião, mas via a Si mesmo como tendo uma missão dentro do
judaísmo. Ele falava como um judeu para outros judeus. Seus primeiros
seguidores eram judeus. Todos os autores do Novo Testamento (com a
provável exceção dos autores do Evangelho segundo São Lucas e dos Atos
dos Apóstolos) eram judeus.
Alguns cristãos, entretanto, parecem não levar em conta o judaísmo de
Jesus ou, caso estejam cientes disso, não lhe dão muito valor.[3] Além
disso, os cristãos têm, com frequência, um sentimento de culpa pelo seu
antissemitismo, consciente ou não, identificando Jesus com o cristianismo
e seus oponentes com o judaísmo; logo, enxergando Jesus e o primitivo
movimento cristão como antijudaico. Partes do Novo Testamento, bem
como a imagem popular de Jesus, encorajam a noção de que os “judeus”
rejeitaram Jesus.
Porém, os oponentes de Jesus não representavam o povo, ou a nação
judaica. Os “judeus” não rejeitaram Jesus. Ao contrário, as poucas pessoas
de origem judaica que se envolveram nos eventos que levaram à Sua
execução eram uma pequena, mas poderosa, elite, cujo poder vinha dos
romanos. Em vez de representarem os judeus, eles podem, muito
razoavelmente, ser descritos como colaboradores na opressão do povo
judeu.
A separação de Jesus do judaísmo trouxe consequências trágicas para os
judeus com o passar dos séculos. A separação é igualmente incorreta, em
termos históricos, e qualquer imagem fidedigna de Jesus necessita levar
muito seriamente em consideração suas raízes no judaísmo.
HISTÓRIAS DO NASCIMENTO DE JESUS
Sabemos muito pouco sobre Jesus antes do começo de Sua atuação
pública. Na opinião da maioria dos acadêmicos tradicionais, as histórias de
Seu nascimento e Sua infância não possuem comprovação histórica. Já que
isso ainda é novidade para muitos dentro da Igreja, vale a pena descrever
por que essas histórias são vistas assim.
No Novo Testamento, só se menciona o nascimento de Jesus em duas
fontes relativamente posteriores, os Evangelhos segundo Mateus e Lucas,
ambos escritos nos últimos vinte anos do século I. Paulo, o mais recente
autor do Novo Testamento, cujas cartas genuínas foram escritas
aproximadamente entre 48 d.C. e sua morte, entre 62 e 64 d.C., não
menciona que Jesus nasceu de uma maneira especial. Nem Marcos, o
Evangelho mais antigo, escrito por volta do ano 70. Nem o Evangelho de
João. No mínimo, isso sugere que essas histórias sobre o nascimento de
Jesus não eram centrais ao movimento cristão primitivo.
Além disso, as histórias do nascimento como descritas em Mateus e
Lucas são muito diferentes entre si. As diferenças são as seguintes:

Em Mateus, a genealogia de Jesus vai até Abraão, o pai do povo judeu, e


de Davi em diante passa pelos reis de Israel. Em Lucas, a genealogia de
Jesus vai até Adão, o pai tanto dos judeus quanto dos gentios, e de Davi
em diante passa pelos profetas de Israel.
Em Mateus, a família de Jesus vive em Belém, onde Jesus nasce em casa,
e se muda para Nazaré após voltar da fuga do Egito. Em Lucas, a
família de Jesus vive em Nazaré e viaja para Belém por causa do censo,
de modo que Jesus nasceu “a caminho”, num estábulo, e depois disso a
família voltou para o seu lar em Nazaré.
Em Mateus, as pessoas que visitaram Jesus após o nascimento foram os
magos que seguiam a estrela. Em Lucas, não há nem estrela nem
magos, mas sim pastores.
Em Mateus, o rei Herodes, o Grande, ordena o massacre dos bebês
meninos em Belém, o que leva a família de Jesus a buscar refúgio no
Egito. Em Lucas, não há esse massacre, nem fuga para o Egito.
Essas diferenças são a base sobre as quais a maioria dos estudiosos
conclui que as histórias do nascimento não são registros históricos, mas
narrativas simbólicas criadas pelo movimento cristão primitivo. Até certo
ponto elas refletem temas importantes para cada evangelista. Por exemplo,
ao traçar a genealogia de Jesus passando pelos reis de Israel, e com a
história dos magos buscando aquele que nasceu “rei dos judeus”, Mateus
enfatiza a realeza de Jesus. Lucas, com a genealogia de Jesus passando
pelos profetas, e com os pastores (que eram pessoas marginalizadas) como
sendo aqueles que receberam as novas do nascimento, enfatiza Jesus como
um profeta social poderoso.
As histórias do nascimento também usam um imaginário religioso mais
primal. Com suas histórias da concepção de Jesus pelo Espírito, tanto
Mateus quanto Lucas afirmam que o que se passou com Jesus não era
apenas “da carne”, mas também “de Deus” — ou seja, “do Espírito”. Ambas
expressam, de forma poderosa, o antigo tema da luz chegando às trevas:
Mateus, com a estrela luminosa como um farol para os magos, e Lucas
com a glória de Deus que surge no céu noturno enquanto os anjos cantam
para os profetas. A decisão da Igreja cristã no século IV de celebrar o
nascimento de Jesus junto com o solstício de inverno expressa tal
simbolismo perfeitamente (pelo menos no hemisfério norte): Ele nasce no
momento das trevas mais profundas, e seu nascimento é a vinda da luz.
Ou, de uma forma ainda mais resumida, Jesus é a luz em nossas trevas.
Ouvir novamente as histórias do nascimento num estado de inocência pós-
crítica é ser capaz de ouvir suas ricas afirmações simbólicas, sem precisar
acreditar em seus registros históricos.
É claro que essas histórias também dizem algo, indiretamente, a
respeito do Jesus histórico, mesmo que seja altamente questionável que
elas nos digam qualquer coisa sobre Seu nascimento. A saber, elas nos
contam que Ele era uma pessoa notavelmente extraordinária para que tais
histórias pudessem ser narradas a Seu respeito. Histórias parecidas
também foram contadas a respeito de outros. Mas como tais histórias
foram contadas sobre um judeu marginalizado vindo da Galileia? Essas
histórias levantam a questão: que homem era esse?
A SOCIALIZAÇÃO E O INÍCIO DA FASE ADULTA DE JESUS
Conforme avançamos além das histórias canônicas do nascimento para as
que buscam preencher os anos não relatados de Jesus pelos Evangelhos, o
mesmo veredito — não histórico — se aplica. Uma seleção dessas histórias
pode ser encontrada no Evangelho da Infância de Cristo segundo Tomé,
do final do século II (que não deve ser confundido com o Evangelho de
Tomé com suas falas), que reporta alguns episódios importantes de Jesus
quando menino. Por volta dos cinco anos, por exemplo, Ele faz andorinhas
de barro no sábado e, quando criticado por desrespeitar a lei ao “trabalhar”
no dia sagrado, bate palmas e elas saem voando. Por volta dos seis anos,
um coleguinha sem querer esbarra no ombro de Jesus:

Jesus ficou irado e lhe disse: “Você não seguirá seu caminho”, e a criança
imediatamente caiu e morreu.[4]

Essas fábulas elaboradas que dão poderes extraordinários ao menino


Jesus são o produto da imaginação dos primeiros cristãos nos quais o status
divino do Jesus pós-Páscoa é projetado, de forma nada crítica, para
momentos cada vez mais distantes no começo de sua vida.[5]
Resumindo, não temos nenhum fato confirmado historicamente sobre
Jesus antes que completasse trinta anos.[6] No entanto, é possível chegar a
algumas conclusões a partir dos Evangelhos. Ele muito provavelmente
nasceu bem perto do final do reinado de Herodes, o Grande, pouco antes
de 4 a.C.[7] Seus pais eram judeus, cujos nomes eram Maria e José. Ele
talvez tenha sido o primogênito, embora não se tenha certeza disso. Ele
teve quatro irmãos e um número incerto de irmãs, todos supostamente
filhos de José e Maria. José provavelmente morreu antes de Jesus começar
sua vida pública.[8]
Jesus cresceu em Nazaré, nas colinas ao sul da Galileia, a uns 160
quilômetros de Jerusalém. A estimativa da população de Nazaré não é
muito precisa, podendo ir de duzentas a 2 mil pessoas. Nazaré ficava a seis
quilômetros da cidade de Séforis, cuja população de 40 mil habitantes a
tornava a maior cidade da Galileia. Séforis havia sido destruída pelos
romanos, que sufocaram uma rebelião surgida quando Herodes, o Grande,
morreu em 4 a.C. Reconstruída durante a juventude de Jesus, ela era um
tanto quanto cosmopolita. A cidade passou a contar com um teatro em
estilo romano, erguido em algum momento no século I, e no qual eram
apresentadas peças gregas e romanas, embora ainda não esteja claro se
esse teatro pode de fato remontar ao tempo de Jesus. Porém, é bastante
intrigante imaginar Jesus indo ao teatro ainda jovem.
Na verdade, o entorno de Jesus era muito mais cosmopolita do que
normalmente se acredita. O debate a respeito do grau de helenização na
Galileia ainda está vivo entre os acadêmicos dos dias de hoje, embora
esteja claro que a Galileia não era um fim de mundo bucólico e rural. Além
de Séforis, havia outras quatro cidades dentro de um raio de vinte
quilômetros de Nazaré. Existia um forte comércio com outras partes do
Mediterrâneo, e bens importados, como a cerveja do Egito, estavam
disponíveis. A área tinha um grande número de gentios, e a língua grega
era bastante falada. É bem provável que muitos, ou a maioria, dos judeus
fosse bilíngue, falando tanto o aramaico quanto o grego. E, é claro, toda a
Palestina estava sob o controle dos gentios. Desde 63 a.C. ela fazia parte
do Império Romano, governada por “reis vassalos” escolhidos por Roma.
A partir de algumas pistas nos Evangelhos e do que podemos imaginar a
respeito da socialização de um menino judeu na Galileia do século I, é
possível supor algumas coisas sobre a juventude de Jesus. É muito provável
que Ele tenha estudado na sinagoga em Nazaré, com ênfase em leitura e
escrita, usando a Torá como o principal texto.[9] Ele provavelmente se
tornou um marceneiro (em grego, tekton).[10] A palavra tekton tem sido
traduzida por, se bem que com sentido distinto, carpinteiro — ou seja,
aquele que constrói coisas com madeira. Em sua maioria, as construções
não eram de madeira na Palestina. Na verdade, um tekton fazia produtos
de madeira: portas, batentes, vigas de telhado, móveis, armários, caixas e
até mesmo jugos e arados. Em termos sociais, um tekton estava na camada
mais inferior da classe dos trabalhadores, mais marginalizados que um
camponês que ainda possuísse um pedaço de terra. Não devemos pensar
num tekton como estando um passo aquém de um camponês de
subsistência; na verdade, um tekton pertencia a uma família que havia
perdido sua terra.
Se Sua família tivesse sido um pouco devota — uma premissa comum
entre os estudiosos da Bíblia —, Jesus teria participado das práticas do
“judaísmo comum”.[11] Ele teria aprendido as histórias, os hinos e as
orações da tradição judaica. Teria observado e celebrado os grandes
feriados judeus, três dos quais eram festivais de peregrinação, a serem
comemorados em Jerusalém. A Páscoa, na primavera, lembrava o êxodo do
Egito. O Pentecostes (ou a “Festa das Semanas”), quase cinquenta dias
mais tarde, era um festival agrícola que celebrava a posse de Deus das
terras e o agradecimento a Deus por seus frutos. A Festa dos Tabernáculos
(ou “Festa das Cabanas”) era uma celebração de oito dias da colheita no
outono, marcada por muita festa, celebrações e dança; ela lembrava os
quarenta anos passados no deserto. Durante esse festival, todos deveriam
viver em habitações temporárias, ou “cabanas”.[12] É razoável pensar que
Jesus tenha ido, uma vez ou outra, em alguma peregrinação a Jerusalém
para observar esses festivais. Apesar de não sabermos muito a respeito das
práticas religiosas diárias ou semanais dos tempos de Jesus, é provável que
Ele, como a maioria dos judeus, rezasse a Shemá duas vezes ao dia, ao
amanhecer e na hora de dormir.[13] Ele, sem dúvida, respeitava o sábado, o
que incluía ir à sinagoga para estudar a Torá e orar.
Em algum ponto de sua vida, Jesus deve ter se tornado um buscador
religioso, embarcando numa jornada mística. Essa é uma das explicações
mais óbvias de um dos fatos mais confirmados que sabemos a Seu respeito:
um pouco antes de completar trinta anos, Ele deixou Nazaré e Se tornou o
seguidor de um profeta do deserto chamado João. Não sabemos se essa
decisão foi resultado de um amadurecimento gradual ou produto de uma
experiência religiosa mais súbita e dramática, porém algo O fez deixar a
vida convencional para trás e seguir para o deserto, tornando-se um
seguidor de João Batista.
Também devemos supor que Jesus provavelmente passou por aquilo
que William James chama de uma “experiência de conversão”. A
conversão, é claro, não foi do paganismo para o judaísmo, já que ele
cresceu judeu. Em vez disso, e assim como definido por James, uma
conversão não precisa se referir à mudança de uma religião para a outra, ou
da não religião à religiosidade. Ela pode também se referir a um processo,
tanto súbito quanto gradual, onde as energias e os impulsos religiosos se
tornam centrais na vida de alguém.[14] É razoável supor que Jesus
experimentou tal transformação interior que o levou a assumir Seu
ministério, e que isso provavelmente teve algo a ver com João Batista.
Claramente, o relacionamento de Jesus com João foi importante. Não
apenas todos os Evangelhos começam a história das ações adultas de Jesus
de forma associada a João, mas sobre ele diz-se que Jesus tenha dito:
“Entre os filhos das mulheres, não surgiu outro maior que João Batista”.[15]
Isso é uma grande reverência. Além disso, Marcos data o começo do
ministério de Jesus a partir da prisão de João, o que ao menos sugere que,
com Seu mentor preso, Jesus assumiu sua função. Além desse detalhe,
podemos conjecturar se a prisão e a execução de João tenham tido um
significado ainda maior para Jesus.[16] De qualquer forma, é em conexão
com João que a história pessoal de Jesus se tornou uma história pública.

O JESUS ADULTO: UM ESBOÇO


Então, como era o Jesus adulto? No que essa pessoa, nascida de Maria e
José, criado em Nazaré e disciplinado por João Batista, se transformou?
Responder a essa pergunta nos envolve na tarefa de reconstrução
histórica, que pode ser entendida como a geração de uma imagem, ou
gestalt, que une num todo coeso os vários elementos da tradição
considerada como histórica. O processo é muito parecido com uma das
fases do trabalho de um detetive: depois que as evidências foram
coletadas, analisadas e ponderadas, elas têm de ser integradas numa
hipótese geral.
Fazer isso com as tradições a respeito de Jesus produz um esboço, ou
uma construção, uma gestalt ou uma imagem de Jesus. Prefiro esses
termos no lugar de figura ou retrato, ambos sugerindo uma plenitude
demasiada de detalhes. Um esboço, por outro lado, sugere pinceladas
amplas — uma sinopse clara, sem muita precisão de detalhes.
Estudiosos têm tentado fazer isso por mais de dois séculos, o que Albert
Schweitzer chama de “a busca pelo Jesus histórico”. Na maior parte do
século passado e deste novo século, como já indiquei antes, o esforço
acadêmico para discernir como era o Jesus pré-Páscoa foi eclipsado,
considerado como historicamente impossível e teologicamente irrelevante.
Os historiadores da disciplina se referem a esse período como um tempo
“sem busca”.
Na década de 1980, no entanto, durante o que agora se tem chamado
de “a terceira busca pelo Jesus histórico”, “uma nova era na pesquisa sobre
Jesus” e “um renascimento nos estudos sobre Jesus”, isso mudou.[17] Hoje
os estudiosos estão mais confiantes de que podemos, com um razoável
grau de probabilidade, saber algo de fato palpável a respeito do Jesus
histórico.[18] Segundo o julgamento de muitos, é possível “uma
caracterização levemente focada” do Jesus pré-Páscoa.[19]

DUAS ALEGAÇÕES CONTROVERSAS

Antes de voltar ao meu esboço, é importante que eu faça duas declarações


consideradas por muitos um tanto controversas. A primeira, contrária a um
elemento central na imagem popular de Jesus, é que o autoconhecimento
e a mensagem do Jesus pré-Páscoa foram, muito provavelmente, não
messiânicos. Com isso, quero simplesmente dizer que não há como saber se
Jesus se considerava como o Messias ou o Filho de Deus de forma
específica. De acordo com as camadas mais antigas do desenvolvimento da
tradição evangélica, Ele não disse nada a respeito de ter tais pensamentos.
Eles não eram parte de seu próprio ensinamento. Ao contrário, o Jesus pré-
Páscoa consistentemente apontava para além de Si em direção a Deus.
Sua mensagem era teocêntrica, não cristocêntrica — centrada em Deus, e
não numa proclamação messiânica a respeito de Si mesmo.
A segunda declaração controversa, que contradiz uma imagem
disseminada de Jesus entre os acadêmicos, é que muito provavelmente o
Jesus pré-Páscoa era não escatológico. Tal declaração precisa de uma
formulação mais específica, de modo a não ser mal interpretada: o que se
nega é a noção de que Jesus esperava uma vinda sobrenatural do Reino de
Deus como um evento do fim de mundo em Sua própria geração.[20] Esse
progressivo consenso entre os estudiosos é um desenvolvimento recente.
Nos últimos dez anos, a imagem de Jesus como um profeta escatológico,
que dominava os meios acadêmicos entre os anos 1930 e 1960, tornou-se,
em grande parte, uma posição minoritária.[21]

QUATRO PINCELADAS POSITIVAS


Meu próprio esboço do Jesus pré-Páscoa consiste em quatro amplas
pinceladas. Ele é baseado numa tipologia de figuras religiosas. Minha
pesquisa e avaliação dos melhores trabalhos acadêmicos sobre Jesus me
convencem de que Jesus tinha características de vários tipos diferentes de
personalidades religiosas, e cada pincelada em meu esboço O identifica
como um desses tipos. Já que desenvolvi essa ideia com muitos detalhes
em outros textos, eu a apresentarei aqui de forma bastante resumida.[22]

1. O Jesus histórico era uma pessoa espiritual, uma daquelas figuras na


história humana com uma consciência experiencial da realidade de
Deus. Falarei mais a respeito disso no decorrer deste capítulo.
2. Jesus foi um mestre de sabedoria que frequentemente usou as formas
clássicas de comunicar conhecimento (parábolas e impressionantes
dizeres curtos conhecidos como aforismas) para ensinar uma sabedoria
revolucionária e alternativa. Sobre isso falarei mais no capítulo 4.
3. Jesus foi um profeta social, semelhante aos profetas clássicos da antiga
Israel. Por isso, Ele criticava as elites (econômicas, políticas e
religiosas) de Seu tempo, foi defensor de uma visão social alternativa e
esteve em constante conflito com as autoridades. Sobre esse ponto
falarei mais no capítulo 3.
4. Jesus foi o fundador de um movimento que trouxe à existência uma onda
de renovação e revitalização do judaísmo que desafiou e devastou os
limites sociais de Seu tempo, um movimento que acabou se tornando a
Igreja cristã primitiva. Falarei mais sobre isso também no capítulo 3.

Essas quatro pinceladas, juntamente com as duas declarações


controversas expostas anteriormente, oferecem um esboço ou perfil de
quem era o Jesus pré-Páscoa.[23] Juntas, elas nos permitem consolidar as
tradições a Seu respeito num todo coerente. Essa sinopse não passa de um
esqueleto e, é claro, quero expandi-la. Sem tentar ser completo ou
desenvolvê-las em detalhes, a seguir desejo apenas descrever algumas
impressões de Jesus que me afetaram no decorrer dos anos.

ALGUMAS IMPRESSÕES DE JESUS


As habilidades verbais de Jesus sempre foram impressionantes. Sua
linguagem quase sempre era metafórica, poética e criativa, repleta de
frases curtas e memoráveis, além de pequenas histórias comoventes. Com
toda a certeza Ele era excepcionalmente inteligente. Suas ideias foram não
apenas mordazes, mas iluminadoras. Ele também era muito habilidoso na
refinada arte do debate, quase sempre devolvendo uma pergunta aos que
O interrogavam, de modo que não pudessem responder sem que
desacreditassem a si mesmos. Em termos contemporâneos, Ele era dotado
tanto de um pensamento do lado direito do cérebro quanto do esquerdo.
Ele lançou mão de ações públicas dramáticas. Comeu com intocáveis, o
que não apenas resultou em críticas, mas também simbolizava Sua visão
igualitária da comunidade humana. Entrou em Jerusalém à frente de uma
procissão montado num jumento — uma paródia das ideias então
prevalecentes sobre a realeza. E assim como os profetas clássicos da antiga
Israel, Ele desempenhou ações simbólicas: numa ocasião específica,
participou de uma demonstração no templo, derrubando as mesas dos
cambistas e expulsando os vendedores dos animais que seriam
sacrificados.
Havia um aspecto revolucionário, social e político em Suas mensagens
e em Seus atos. Ele denunciava a ordem social de Seu tempo, acusando as
elites que a dominavam. Tinha uma língua afiada que acusava, de forma
jocosa e sarcástica, os poderosos e os conformados. Ele deve ter sido
impressionantemente corajoso, disposto a continuar o que estava fazendo
mesmo quando estava claro que Sua vida corria perigo. O destino de Seu
mentor João Batista deve ter sido uma vívida lembrança do que acontecia
aos líderes não autorizados que atraíam muitos seguidores sob a tensa
atmosfera política da Palestina no século I.
Ele foi um notável curador: são contadas mais histórias de cura
relacionadas a Ele do que a qualquer outra pessoa na tradição judaica.
Atraiu seguidores, incluindo pessoas que deixavam sua vida comum para
trás, e qualquer esboço de Jesus que alega credibilidade histórica tem que
levar isso em consideração.[24] Com certeza havia algo muito interessante a
Seu respeito. Ele também atraiu inimigos, especialmente entre os ricos e
poderosos.
E, por fim, Ele era jovem, Sua vida foi curta e Sua ação pública, breve.
Ele não passou dos trinta e poucos anos, e Sua ação pública talvez não
tenha durado mais que um ano (segundo os Evangelhos Sinóticos) ou no
máximo três ou quatro anos (de acordo com João). Os fundadores de
outras grandes tradições religiosas do mundo viveram vidas longas, sendo
ativos por décadas. É excepcional que tanto tenha brotado de uma vida tão
curta. Ele deve ter sido uma pessoa extraordinária. Não é à toa que se diz
que Seus seguidores exclamaram: “Quem é esse homem?”.

JESUS COMO UMA PESSOA ESPIRITUAL E MEDIADOR DO SAGRADO


A primeira pincelada entre as quatro do meu esboço é a base de tudo o
mais que Jesus foi.[25] O fato mais importante a respeito de Jesus é que
Ele era uma “pessoa espiritual”, um “mediador do sagrado”, uma daquelas
pessoas na história humana para quem o Espírito era uma realidade
experiencial.
Demorei muito tempo para me dar conta disso. O processo começou
com a percepção que de fato existem fenômenos como experiências do
Espírito e pessoas espirituais. Tal percepção me veio inicialmente não a
partir do estudo da Bíblia ou da tradição cristã, mas do estudo de religiões
não ocidentais e da antropologia cultural. Essa categoria de iluminação nos
ajuda a perceber muito mais facetas de Jesus, algo que talvez passasse em
branco de outra forma.
Começamos por definir o que é uma pessoa espiritual. O termo mais
antigo, semitécnico, é um santo, porém, nesse caso específico, a
designação pessoa espiritual cabe melhor ao nosso propósito. A mudança
para pessoa reflete o fato de que tais personagens surgem a partir de ambos
os gêneros, o que torna mais atraente esse termo. O uso alternativo da
expressão espiritual (uma pessoa espiritual, em vez de um santo) busca
evitar as conotações de santo, cuja tendência natural é de ser entendido
como um adjetivo que denota uma qualidade moral, tal como justo, pio,
reverenciável ou sagrado. Essa leitura obscureceria profundamente aquilo
que a frase tenta dizer: uma pessoa para quem o sagrado é uma realidade
experiencial.[26]
Pessoas espirituais são conhecidas em todas as culturas. São pessoas
que têm experiências subjetivas vívidas e frequentes de outro nível ou
dimensão da realidade. Tais experiências envolvem uma entrada
momentânea em estados incomuns de consciência e assumem diversas
formas. Às vezes, há a experiência de uma jornada até outra dimensão da
realidade. Essa é a típica experiência de um xamã. Outras vezes há um
forte sentimento de que outra realidade visitou alguém, como na antiga
expressão “o Espírito me visitou”. Outras vezes, ainda, a experiência é da
natureza ou de um objeto da natureza que é momentaneamente
transfigurado pelo “sagrado”, brilhando através de si. Sarças queimam sem
serem consumidas; toda a terra é vista como repleta pela glória de Deus
(onde glória quer dizer uma “presença radiante”). O mundo é percebido de
tal modo que todas as percepções anteriores não passam de cegueira.
O que todas as pessoas que passaram por tais experiências
compartilham é uma forte sensação de haver uma realidade além do
mundo tangível de nossa experiência comum. Elas compartilham um
sentimento convincente de terem experimentado algo “real”. Sentem
fortemente que conheceram algo que não conheciam antes. Suas
experiências são noéticas, envolvendo não apenas um sentimento de êxtase,
mas um conhecimento. O que tais pessoas passam a conhecer é o sagrado.
As pessoas espirituais são as que experimentam o sagrado de forma
frequente e vívida.[27]
São experiências como essas que levaram as tradições do mundo a
falarem do “sagrado”. O sagrado (ou o numinoso) se refere a outra realidade
encontrada nessas experiências. Com mais frequência, é claro, as tradições
religiosas não falam do sagrado de forma abstrata. Em vez disso, elas o
nomeiam — como Yahveh, Brahman, Atman, Alá, o Tao, o Grande
Espírito, Deus. Não se deve supor, no entanto, que todos esses nomes (e
os conceitos associados a eles) signifiquem a mesma coisa.[28] Mas é para
supor que o impulso de nomear algo como sagrado vem depois da
experiência do sagrado. Já que o nome mais comum para o sagrado na
tradição judaico-cristã é Deus, e, para mim, é Ele que personifica a minha
noção de sagrado, irei, a partir de agora e com maior frequência, usar Deus
ou Espírito quando me referir ao sagrado.
Pessoas espirituais também compartilham um segundo atributo: elas se
tornam mediadoras do sagrado. E mediam o Espírito de várias maneiras. Às
vezes, falam a palavra de Deus, ou Sua vontade. Outras vezes mediam o
poder de Deus na forma de curas e/ou exorcismos. Em algumas ocasiões,
elas têm o papel de encontrar a caça ou fazer chover nas antigas
sociedades agrícolas de caça e coleta. Em outras, tornam-se guerreiros ou
líderes militares carismáticos. O que todas têm em comum é que se
tornam funis ou condutores do poder ou da sabedoria de Deus para este
mundo. Falando em termos antropológicos, elas são os delegados da tribo
em relação a outra camada da realidade, mediadores que conectam suas
comunidades com o Espírito.
É importante notar que a experiência de pessoas espirituais pressupõe
um entendimento da realidade muito diferente da imagem dominante da
realidade no mundo moderno ocidental. A visão de mundo moderna,
derivada do Iluminismo, vê a realidade em termos materiais como
constituída pelo mundo da matéria e pela energia dentro de um contínuo
espaço-tempo. A experiência de pessoas espirituais sugere que existe mais
na realidade que isso — que há, além do mundo tangível de nossa
experiência ordinária, um nível não material da realidade, real mesmo
sendo não material, carregado de energia e poder. A visão de mundo
moderna é unidimensional; a visão de mundo de pessoas espirituais é
multidimensional.
Além disso, essa outra realidade, é importante enfatizar, não está “em
outro lugar”. Pelo contrário, ela está ao nosso redor, e estamos nela. Nas
palavras de William James, estamos separados dela apenas por semiopacas
telas de consciência.[29] Quando tais telas de consciência caem, de
repente, ocorre a experiência do Espírito. Uma pessoa espiritual é aquela
em quem essas telas de consciência são, geralmente, permeáveis —
diferente da maioria de nós, que parecemos ter, em vez disso, cascas duras
de consciência.
O judaísmo tem o seu próprio fluxo de pessoas espirituais. De fato, elas
são as figuras centrais na tradição bíblica, desde o começo de Israel.
Abraão e Jacó tiveram visões de Deus e outras experiências paranormais.
Moisés era uma pessoa espiritual por excelência. Ele subiu ao Monte Sinai
— a montanha sagrada que simboliza o umbigo da terra, o axis mundi
conectando este mundo com o outro — e teve uma comunhão íntima com
Deus. De acordo com o livro de Êxodo, quando ele desceu da montanha,
sua face até mesmo brilhava com a presença divina. O argumento da
tradição é claro: Moisés é apresentado como um desses mediadores. Ele
“conhecia Deus face a face”, conforme descrito em seu breve obituário no
final do livro do Deuteronômio.[30]
Além de Moisés, existe Elias, um profeta social que estava
experiencialmente em contato com o Espírito de Deus. Ele até mesmo, de
acordo com as histórias que contam a seu respeito, “viajou em espírito”, de
forma muito parecida com o que se diz de Black Elk, uma pessoa espiritual
da tribo dos Sioux. Além disso, há os profetas da antiga Israel. Para a
maioria deles, no registro de seus “chamamentos”, geralmente há uma
experiência visionária de outra realidade. Uma história clássica dessas é a
de Ezequiel, cujo livro começa com as palavras que quase nos deixam de
cabelo em pé: “No trigésimo ano, no quinto dia do quarto mês, quando me
encontrava entre os deportados, às margens do rio Cobar, abriram-se os
céus e contemplei visões divinas”.[31]
Mais perto do tempo de Jesus, houve vários santos e pessoas espirituais
no judaísmo. Os mais conhecidos foram Honi, o Desenhador de Círculos,
e Hanina ben Dosa, ambos famosos por sua oração contemplativa e sua
habilidade em “fazer milagres”.[32] Se pularmos Jesus só por um momento,
o fariseu Saulo se tornou o apóstolo Paulo através de sua experiência do
Espírito. De acordo com o livro dos Atos dos Apóstolos, ele teve uma visão
na estrada de Damasco, onde houve tanto um fotismo (uma experiência de
luz) quanto uma audição (de uma voz).[33] De acordo com o próprio Paulo,
ele teve uma experiência vívida de viajar até o “terceiro céu”, tendo
experimentado coisas inefáveis, que não se pode pôr em palavras porque
transcendem as categorias de linguagem.[34]
Parece-me que, dado que realmente existem pessoas espirituais e que a
tradição judaica inclui muitas dessas figuras, Jesus era claramente uma
pessoa espiritual. As histórias de sua vida nos Evangelhos deixam isso
muito claro. Ele teve visões, incluindo uma de seu batismo na qual, como
Ezequiel, ele “viu os céus se abrirem” e o Espírito descer sobre ele como
uma pomba.[35] Aquela visão foi seguida de uma série de visões no deserto,
que costumamos chamar de narrativa da tentação, mas a que um
antropólogo cultural reconheceria imediatamente como uma provação no
deserto, ou uma jornada visionária, características de pessoas espirituais.
[36]
Jesus seguiu práticas espirituais, incluindo jejum e oração. É nos dito
que Ele orou por horas a fio, às vezes a noite toda, e supostamente não
porque Sua lista de orações tenha ficado excepcionalmente longa. Antes,
parece mais provável que Ele tenha praticado uma forma de contemplação
ou meditação similar àquela de Hanina ben Dosa e Honi, o Desenhador de
Círculos. Sobre eles é dito na tradição judaica que acalmavam os corações
diante de Deus antes que pudessem curar. A prática da meditação sem
palavras não é simplesmente uma tradição oriental, mas também é central
à tradição judaico-cristã.
Outras indicações de que Jesus era uma pessoa espiritual incluem a
forma íntima com que Ele se dirigia a Deus. Em especial, Ele chamou
Deus de Abba, que é a palavra aramaica usada por um bebê aprendendo a
falar para se dirigir ao Seu Pai. É similar ao português pai. Assim, Jesus
chamou Deus de “Pai” (Ele também, como veremos nos capítulos
seguintes, se referiu a Deus usando um imaginário feminino). Por que um
judeu do século I se dirigiria a Deus como “Pai” quando sua tradição
geralmente usava termos muito mais formais para se dirigir a Ele? Para a
época, esse tipo de comportamento deveria soar no mínimo chocante,
embora Jesus, como sempre fora de Seu feitio, jamais se privou de utilizá-
la, mesmo em público. Entretanto, também parece provável que tal termo
íntimo para se dirigir a Deus seja a expressão de intimidade da própria
experiência de Deus por Jesus.
Jesus falava com “autoridade”, o que pode ser mais bem entendido
como algo que flui de Sua própria experiência espiritual. Não era a
autoridade do tipo “Assim diz o Senhor”, mas, antes, uma autoridade que
tomava a forma de “Ouvistes que foi dito aos antigos, eu porém vos
digo…”. Às vezes Suas falas começavam com a palavra amen em vez de
terminar com ela. Esse amen inicial é incomum no judaísmo. Tal forma de
falar, com autoridade, sugere que Ele se reconhecia como falando “da boca
do Espírito”, não apenas recitando por tradição.[37]
De acordo com algumas das histórias nos Evangelhos, Seus seguidores
experimentavam uma presença quando estavam junto a Ele que era
palpável e contagiosa. Isso parece ser o tipo de presença espiritual, ou zona
de libertação, que se diz sobre outras figuras religiosas famosas como o
Buda ou São Francisco de Assis. É claro que Jesus foi tanto um curador
quanto um exorcista. Estudiosos modernos geralmente aceitam que existe
uma raiz histórica nas narrativas de cura e exorcismo, apesar de não
podermos ter certeza de que uma determinada história seja um registro
detalhado de um incidente específico. Porém, falando em termos
históricos, podemos dizer que Jesus era visto por Seus contemporâneos e
por Si mesmo como um exorcista que expulsa demônios e como um
curador de doenças, e isso era atribuído ao poder do Espírito agindo
através Dele.
Tudo isso permite inserir a própria espiritualidade de Jesus dentro
daquilo que sabemos sobre o misticismo judeu do Seu tempo. Nossa visão
do misticismo judeu antigo tem se expandido, especialmente nos últimos
anos.[38] Quanto mais percebermos que existia uma forma de misticismo
judeu na Palestina do século I, tanto mais parecerá que Jesus se destacou
naquela tradição experimental.[39]
A experiência do Espírito por parte de Jesus é expressa com uma
simplicidade dramática em seu “primeiro discurso” mostrado em Lucas,
com o qual ele começou seu ministério: “O Espírito do Senhor está sobre
mim”.[40] No centro da vida de Jesus havia uma profunda e contínua
relação com o Espírito de Deus.

IMPLICAÇÕES PARA A VIDA DA IGREJA


Esse entendimento de Jesus como uma pessoa espiritual tem profundas
implicações para a vida da Igreja hoje. Ele afeta, como vimos, Jesus, Deus
e a vida cristã.
A imagem do Jesus pré-Páscoa como alguém que experimentava Deus é
um tanto quanto distinta do entendimento comum a respeito de Jesus. Ele
é muito diferente da minha imagem infantil de Jesus como sendo Deus,
um entendimento ainda defendido por alguns membros da Igreja e que
vem à tona com a pergunta: “Você acredita que Jesus era Deus?”. A
imagem de Jesus esboçada neste capítulo sugere que, apesar de ter uma
relação íntima com Seu Pai, o Jesus pré-Páscoa não se considerava Deus”.
[41] Isso é muito diferente da imagem de Jesus como alguém que
acreditava fortemente em Deus. O esboço de Jesus como uma pessoa
espiritual sugere que Jesus não era simplesmente uma pessoa que
acreditava fortemente em Deus, mas de alguém que conhecia Deus.
Falando de forma pessoal, quando a verdade da tradição cristã estava
atada à alegação segundo a qual a revelação de Deus só podia ser vista
nessa tradição (e na tradição judaica anterior), houve um tempo em que
essa verdade se tornou muito pouco provável para mim. Quais são as
chances de que Deus falasse apenas para, e só, através desse grupo
específico de pessoas (que, por um acaso, é o nosso grupo de pessoas)? De
fato, dá para falar de um modo ainda mais enfático: ficou impossível, para
mim, acreditar nisso. Mas eu acho que a imagem de Jesus como uma
pessoa espiritual é muito mais provável de ser verdade. De fato, existem
experiências do sagrado, do numinoso, de Deus — e Jesus foi alguém para
quem Deus foi uma realidade experiencial.
Isso conduz a um segundo conjunto de implicações, que tem a ver com
a forma como pensamos em Deus. A sinceridade me leva a reconhecer que
as experiências do sagrado não provam a realidade de Deus (apesar de eu
as achar muito mais interessantes e convincentes que qualquer uma das
“provas” da existência de Deus). Mas, se alguém assumir essas
experiências como epifanias da forma como as coisas são, como revelações
do sagrado — como eu —, elas têm implicações sobre como pensamos em
Deus.
Elas desafiam nossas formas mais comuns de pensar a respeito de Deus
e nos convidam a um modo muito diferente de imaginar Deus. O
entendimento moderno mais comum de Deus na Igreja (bem como em
nossa cultura) é deísta e sobrenatural. Falando de forma mais ampla, o
caminho deísta concebe Deus como um ser sobrenatural, “lá fora”, e que
criou o mundo há muito tempo, que estabeleceu leis naturais como uma
forma de dar ordem a tudo isso, e que não tem mais muito a ver com isso.
A forma sobrenatural de imaginar Deus também o vê como um ser “lá
fora”, e se diferencia do deísmo simplesmente ao afirmar que Deus, de vez
em quando, intervém de forma sobrenatural neste mundo (especialmente
nas formas registradas no Antigo e Novo Testamento). Apesar de
diferentes, essas duas visões têm algumas coisas em comum. Ambas são
produto do Iluminismo, que tirou Deus deste mundo.[42] Ambas são
exemplos do “deus do teísmo”, que vê Deus como um ser separado do
mundo — ou seja, como essencialmente uma realidade transcendente. E
ambas com frequência enfatizam a crença como base para afirmar a
existência de um Deus que, em essência, não está por aqui.
A imagem de Deus que acompanha o entendimento de Jesus como
uma pessoa espiritual é muito diferente. Em vez de ser um artigo de fé,
Deus se torna uma realidade que pode ser experimentada. A tradição
judaica na qual Jesus se destacou fala de pessoas que conheciam Deus.
Deus pode e deve ser conhecido de forma direta e íntima, não
simplesmente como uma crença. A experiência de pessoas espirituais em
geral, e de Jesus em particular, sugere que Deus não deve ser imaginado
como um criador distante e transcendente, muito longe deste mundo, mas
visto como alguém sempre presente, que está em tudo e ao nosso redor —
como “é nele que temos vida, o movimento e o ser”, usando as palavras que
o livro dos Atos dos Apóstolos atribui a São Paulo.[43] Nesse arcabouço, o
Jesus pré-Páscoa se torna um testemunho poderoso da realidade e da
possibilidade de se conhecer Deus.
Finalmente, a imagem de Jesus como uma pessoa espiritual tem
implicações em como pensamos a vida cristã. Ela muda o foco da vida
cristã de meramente acreditar em Jesus ou acreditar em Deus para ter um
relacionamento com o mesmo Espírito que Jesus conheceu. É o argumento
que enfatizei no final do capítulo 1 e que emergirá de novo ao longo de
todo este livro: que a vida cristã se move além da crença em Deus para o
estabelecimento de uma relação com Deus.
CAPÍTULO 3
JESUS, COMPAIXÃO E POLÍTICA

DUAS PALAVRAS-CHAVE NOS PERMITEM dar uma olhada naquilo que era mais
central a Jesus: Espírito e compaixão. Como dois pontos focais ao redor dos
quais uma imagem de Jesus pode ser constituída, eles demonstram o que
Lhe era mais importante. No capítulo anterior, tratamos do papel do
Espírito em Sua vida. Neste capítulo, veremos quão central era a
compaixão para Ele, bem como as formas significativas pelas quais o
Espírito e a compaixão estão relacionados entre si. A defesa, por Jesus, da
compaixão continua a ser um convite e um desafio para a Igreja hoje.
Compaixão é uma palavra particularmente importante nos Evangelhos.
As histórias contadas sobre Jesus O retratam como tendo compaixão e de
como esse sentimento O movia. A palavra também representa a soma de
seus ensinamentos a respeito de Deus e da ética. Para Jesus, a compaixão
era a qualidade central de Deus e a qualidade moral essencial de uma vida
centrada em Deus. Esses dois aspectos da compaixão estão combinados de
forma mais clara e sintética num único versículo, para o qual voltaremos
várias vezes neste capítulo:

Sede misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso.[1]

Essa cristalização da mensagem de Jesus fala de uma forma de vida


baseada numa imitatio dei — uma imitação de Deus. As imagens de Deus
e do éthos — como Deus é e como devemos viver — são postas lado a
lado. Além disso, para Jesus a compaixão não era apenas uma virtude
individual, mas um paradigma sociopolítico que expressa Sua visão
alternativa da vida humana em comunidade, uma visão da vida
corporificada no movimento que passou a existir ao seu redor.
O SENTIDO DE COMPAIXÃO
Na Bíblia hebraica, a qual os cristãos normalmente chamam de Antigo
Testamento e que era a Escritura sagrada para Jesus e Seus
contemporâneos judeus, a palavra compaixão tem ricas associações
semânticas. Em hebraico (assim como no aramaico), a palavra comumente
traduzida por “compaixão” é a forma plural de um substantivo que em sua
forma singular quer dizer “útero”.[2] Na Bíblia hebraica, compaixão é tanto
um sentimento quanto uma forma de ser que flui desse sentimento. Às
vezes, ela está especificamente ligada à sua associação com o útero; uma
mulher sente compaixão por sua criança ainda em seu útero; um homem
sente compaixão por seu irmão, que vem do mesmo útero.[3] Como um
sentimento, a compaixão está localizada numa certa parte do corpo — a
saber, nas entranhas. Nas mulheres, como era de esperar, isso quer dizer
no útero;[4] nos homens, nas vísceras.[*] Assim, temos a expressão bíblica
um tanto quanto estranha: “suas entranhas foram tomadas de compaixão”.
Em termos de sentimentos, compaixão quer dizer “sentir junto”, assim
como a etimologia da palavra sugere: -paixão vem da palavra latina que
significa “sentir”, e o prefixo com- significa “junto”. Compaixão, assim, quer
dizer sentir os sentimentos de outra pessoa de uma forma visceral, num
nível localizado em algum canto abaixo do nível da mente; mais
frequentemente, a compaixão está associada a sentir o sofrimento de
alguém e ser movido por esse sentimento para fazer algo. Ou seja, o
sentimento de compaixão nos leva a sermos compassivos.
Com muita frequência, as palavras hebraicas para compaixão e
compassivo são traduzidas para o português como misericórdia e
misericordioso. Porém, o significado de compaixão é um pouco diferente do
de misericórdia, e ser compassivo é um tanto diferente de ser
misericordioso. Em português, misericórdia e misericordioso quase sempre
implicam alguém superior em relação a um subordinado, bem como uma
situação onde houve um erro: alguém é misericordioso em relação a outra
pessoa para quem um tem o direito (ou poder) de agir de outra forma.
Compaixão sugere algo diferente. Para parafrasear William Blake, a
misericórdia veste uma face humana, e a compaixão, um coração humano.
COMPAIXÃO, DEUS E ÉTICA
A palavra hebraica para compaixão, cuja forma singular quer dizer “útero”,
é usada com frequência em relação a Deus no Antigo Testamento. Ela é
traduzida como “misericórdia” na caracterização de Deus como “gracioso e
misericordioso”.[5] Ela está presente naquela expressão um tanto quanto
maravilhosa da versão do rei Tiago “suaves misericórdias” de Deus.[6] É
também encontrada numa passagem em Jeremias, traduzida assim:

Não é, porém, Efraim, filho querido, eternamente amado por mim? Todas as vezes que
falo contra ele, mais viva se torna em mim a sua lembrança. E meu coração [útero] se
comove ao pensar nele. Terei compaixão [materna] dele — oráculo do Senhor.[7]

Assim, a Bíblia hebraica descreve frequentemente Deus como


compassivo, o que ressoa, de forma muito aproximada, a “útero”.
Dessa forma, a declaração de Jesus “Sede misericordiosos [ou
compassivos], como também vosso Pai é misericordioso [ou compassivo]”
está arraigada na tradição judaica. Como uma imagem da qualidade central
de Deus, ela é impressionante. Dizer que Deus é compassivo é como dizer
que Deus é “como um útero” ou, para cunhar uma palavra que captura o
gosto do original hebraico, “uterino”. O que se sugere quando se diz que
Deus é como um útero? Metafórica e evocativamente, a frase e sua
imagem associada de modo provocativo sugerem várias conotações. Como
um útero, Deus é quem nos dá à luz — a mãe que nos dá à luz todos nós.
Assim como uma mãe ama os filhos do seu útero e sente pelos filhos do
seu útero, também Deus nos ama e sente por nós, por todos os Seus filhos.
Em seu sentido “como um útero”, compassivo tem nuances de dar a vida,
nutrir, cuidar, talvez até abraçar e incluir. Para Jesus, é assim que Deus é.
[8]
E, a fim de completar a imitatio dei, para “ser compassivo como Deus é
compassivo”, é ser como um útero, assim como Deus é como um útero. É
como sentir como Deus sente e agir como Deus age: dando vida e
nutrindo. “Ser compassivo” é o que se quer dizer em outras partes do Novo
Testamento em relação ao mandamento, um tanto quanto abstrato, “de
amar”. De acordo com Jesus, a compaixão é para ser a qualidade central de
uma vida fiel a Deus, o compassivo.
COMPAIXÃO, MUNDO SOCIAL E POLÍTICA
Apesar da compaixão como conteúdo do imitatio dei de Jesus estar
arraigada na tradição judaica, ela não era a imitatio dei dominante do
mundo social judeu no século I. Ao contrário, uma imitatio dei diferente,
também baseada na Bíblia hebraica, tornou-se o principal paradigma que
moldava o mundo social judeu: “Sede santos como Deus é santo”.[9]
É no conflito entre essas duas imitatio deis — entre a santidade e a
compaixão como qualidades de Deus a serem incorporadas na comunidade
— que vemos o conflito central no ministério de Jesus: entre duas visões
sociais diferentes. A visão social dominante estava centrada na santidade; a
visão social alternativa de Jesus estava focada na compaixão.
De fato, é só quando apreciamos essa dimensão da ênfase de Jesus na
compaixão que percebemos quão revolucionárias eram Suas mensagem e
visão. Para Jesus, a compaixão era mais que uma qualidade de Deus e uma
virtude individual: ela era um paradigma social, o valor central para a vida
em comunidade. Ou, posto de forma mais ousada, a compaixão, para
Jesus, era política. Ele desafiou de forma direta e repetida o paradigma
sociopolítico dominante de Seu mundo social e defendeu, em vez disso, o
que pode ser chamado de política da compaixão.[10] Esse conflito e essa
visão social continuam a ter enormes implicações para a vida da Igreja
hoje.
Para vermos isso, precisamos olhar para o papel que a pureza
desempenhava no mundo social de Jesus. Ele esteve, com frequência, em
conflito com Seus críticos a respeito das leis e das questões relacionadas à
pureza. Dentro da Igreja moderna, tendemos a ver tais disputas como
triviais, vendo as leis de pureza como parte da lei ritual ou cerimonial do
judaísmo antigo, e de pouca importância quando comparadas à lei moral.
Questionamos como qualquer pessoa racionalmente pensante poderia
estar ocupada com tais questões, que nos parecem um tanto quanto bobas.
Além disso, tendemos a pensar em pureza em termos individualistas, como
se fosse algo sobre o qual um indivíduo claramente pio pudesse se tornar
meticuloso. Entretanto, na Palestina judaica do século I não era bem
assim. A pureza não era nem trivial nem individualista. Em vez disso, de
forma resumida, a pureza era política.
O SISTEMA DE PUREZA DO MUNDO SOCIAL JUDEU

A pureza era política porque estruturava a sociedade num sistema de


pureza. Ela assumia como ponto de partida o versículo anteriormente
mencionado de forma breve:

“Dirás a toda a assembleia de Israel o seguinte: sede santos, porque eu, o Senhor,
vosso Deus, sou santo.[11]

Como uma imitatio dei, a passagem junta uma imagem de Deus e um


éthos para a comunidade: Deus é santo; logo, Israel tem que ser santo.
Além disso, a santidade era entendida como “separação de tudo o que
fosse impuro”. A santidade, portanto, significava o mesmo que pureza, e a
passagem era entendida assim: “Vós [Israel] deveis ser puros como Deus é
puro”. O éthos de pureza produziu uma política de pureza — ou seja, uma
sociedade estruturada ao redor do sistema de pureza.
Sistemas de pureza são encontrados em diversas culturas. Num nível
mais alto de abstração, são sistemas de classificações, com linhas e limites.
Um sistema de pureza “é um mapa cultural que indica um lugar para tudo
e tudo em seu lugar”.[12] Coisas que se permitem em certo lugar são
impuras ou imundas em outro, onde ficam deslocadas. De uma forma mais
estreita, e posto de modo muito simples, um sistema de pureza é um
sistema social organizado ao redor de contrastes ou polaridades entre o
puro e o impuro, o limpo e o imundo.[13] As polaridades entre o puro e o
impuro estabelecem um espectro, ou “mapa de pureza”, partindo do puro,
de um lado, passando por vários graus de pureza, até o impuro (ou “fora do
mapa de pureza”), do outro. Essas polaridades se aplicam a pessoas,
lugares, objetos, épocas e grupos sociais.
O mais importante para nós aqui é a forma como “puro” e “impuro” se
aplica a pessoas e grupos sociais no mundo social judeu do século I. O
sistema de pureza estabelecia um espectro de pessoas que iam desde as
puras, passando por vários graus de pureza, até as pessoas à margem do
que é radicalmente impuro.
O status de pureza de alguém dependia, até certo ponto, de seu
nascimento. De acordo com um mapa de pureza da época, os sacerdotes e
levitas (ambos frutos de classes hereditárias) vinham primeiro, seguidos
pelos “israelitas” e depois pelos “convertidos” (judeus que não eram judeus
por nascimento). Mais abaixo na lista estavam os “bárbaros”, seguidos pelos
que tinham testículos imperfeitos e pelos homens desprovidos de pênis.[14]
Entretanto, o grau de pureza ou impureza de alguém também dependia
de seu comportamento.[15] Os que observassem cuidadosamente os
códigos de pureza eram “os puros”, claro. Os piores entre os que não os
observassem eram os “párias”. Nesse grupo ocupacional estavam os
coletores de impostos e, talvez, os pastores (o que nos oferece uma nova
perspectiva sobre os pastores que aparecem no relato de Lucas a respeito
do nascimento de Jesus: as boas-novas do nascimento são dadas aos
párias).[16] “Os justos” eram aqueles que seguiam o sistema de pureza, e os
“pecadores” eram aqueles que não o faziam. Apesar de a palavra pecador ter
um amplo escopo de significados na Palestina do século I, ela não deveria
incluir a todos (como acontece na tradição teológica do cristianismo
convencional),[17] mas referir-se a um grupo particular de pessoas, sendo
os piores de todos os “intocáveis”.[18] Abrindo um parêntese, é interessante
notar o que acontece com a noção de pecado no sistema de pureza. O
pecado se torna uma questão de ser impuro ou “imundo”, definindo
alguém como “intocável”. Essa conexão entre pecado e impureza é
preservada em algumas confissões cristãs sobre o pecado quando se diz:
“pecador e impuro”. Assim se dava no judaísmo do século I: o termo
pecadores quase sempre se referia aos “impuros”.
As polaridades do sistema de pureza se associaram também a outros
contrastes. A inteireza física estava associada à pureza, e a falta dela à
impureza. Pessoas que não eram “completas” — os mutilados, portadores
de doenças crônicas, os leprosos, eunucos etc. — estavam do lado impuro
do espectro. O contraste de pureza também estava associado à classe
econômica. De forma clara, ser rico não colocava automaticamente alguém
do lado puro (e o judaísmo do século I podia falar de ricos que eram maus),
mas ser abjetamente pobre quase sempre tornava alguém impuro. Até
certo ponto, essa associação resultou da sabedoria popular que via a
riqueza como uma bênção de Deus (“os justos reverdecerão como a
folhagem”[19]), e a pobreza era uma indicação de que alguém não tinha
vivido uma vida correta. E, em certa medida, isso surgiu porque os que
eram muito pobres não conseguiam, na prática, observar as leis de pureza.
[20]
Pureza e impureza também estavam associadas ao contraste entre
homens e mulheres. Assim como com os ricos, ser homem não fazia
ninguém automaticamente puro; claramente havia homens que eram
párias. Tampouco o fato de ser mulher fazia de alguém automaticamente
impura. Porém, de forma geral, os homens, em seu estado natural, eram
considerados mais puros que as mulheres. Os processos fisiológicos do
parto e da menstruação eram considerados fontes de impureza, e isso levou
a um senso mais generalizado da impureza entre as mulheres.[21] Esse fato
é consistente com o status das mulheres naquela cultura como sendo, de
maneira distinta, pessoas de segunda classe, um ponto ao qual voltaremos
mais adiante neste capítulo.
Finalmente, a polaridade entre puro e impuro também se aplicava ao
fato de alguém ser judeu ou gentio. Ser judeu, é óbvio, não garantia a
pureza de ninguém. Entretanto, por definição, todos os gentios eram
impuros e imundos. De fato, a ideologia da pureza contribuiu para o fato
de Jesus ter vivido numa geração voltada para a guerra. A Palestina era um
território ocupado, uma colônia do Império Romano controlada por um
opressor gentio impuro e imundo; o sistema de pureza foi uma das causas
da heroica, porém catastrófica, revolta judaica em 66 d.C., que resultou na
destruição de Jerusalém em 70 d.C.
Em suma, o efeito do sistema de pureza era criar um mundo com
limites sociais claros: entre o puro e o impuro, o justo e o pecador, o inteiro
e o partido, homens e mulheres, ricos e pobres, judeus e gentios. Existe
ainda um último ponto a ser levantado antes de voltarmos à resposta de
Jesus ao sistema de pureza: a extensão pela qual o sistema era dominante
no mundo social judeu.
No centro do sistema de pureza estavam o templo e os sacerdotes. O
templo era o centro geográfico e ritualístico do mapa de pureza de Israel.
[22] Seus sacerdotes eram obrigados, portanto, a obedecer às regras de
pureza mais estritas que se aplicavam àqueles mais próximos do centro de
pureza. Além disso, a renda tanto do templo quanto dos sacerdotes (e
levitas) dependia da observação das leis de pureza pelos outros. Essa renda
vinha, em grande parte, dos “dízimos” — na prática, impostos sobre a
produção agrícola. O dízimo estava fortemente ligado à pureza; a produção
da qual não fosse descontado o dízimo era, assim, impura, e não poderia
ser comprada pelos que a observassem.[23] Desse modo, o templo e o
sacerdócio tinham interesses econômicos, bem como religiosos, no sistema
de pureza.
Pode-se ainda dizer que o templo também era o centro das elites
dominantes dentre o povo judeu. Não apenas eram as altas famílias de
sacerdotes a elite religiosa como também se sobrepunham às elites
econômicas e políticas, ligadas a elas por casamentos frequentes e outras
associações. Assim, a política de pureza era, em certa medida, a ideologia
das elites dominantes — tanto religiosas quanto políticas e econômicas.
A pureza também era central para os dois grupos de renovação judaica
na Palestina do século I. Os fariseus buscavam a extensão das regras
sacerdotais de pureza mais estritas à vida cotidiana;[24] e os essênios
(provavelmente ainda identificados com os povos do Qumran e dos
manuscritos do Mar Morto, apesar disso ainda não estar totalmente certo)
se retiraram para o deserto acreditando que a pureza só poderia ser
alcançada pelo isolamento do mundo impuro da cultura.[25]
Não sabemos até que ponto os judeus comuns se preocupavam com a
observação das leis de pureza.[26] Sem dúvida, alguns de fato se
importavam com essa questão, ao passo que outros a ignoravam. Um
terceiro grupo talvez tenha se sentido vítima dela (logo se ressentido contra
o sistema de pureza e aqueles que dele se beneficiavam). Porém, podemos
dizer que tanto o “judaísmo do templo” quanto os principais movimentos
de renovação estavam comprometidos com o paradigma da pureza. Era um
sistema tanto hermenêutico quanto social: ele formou as lentes através das
quais se viam a tradição sagrada e ofereciam um mapa para ordenar seu
mundo.

O ATAQUE DE JESUS AO SISTEMA DE PUREZA

É no contexto de um sistema de pureza que se criou um mundo com


profundas fronteiras sociais entre puros e impuros, justos e pecadores,
inteiros e não inteiros, homens e mulheres, ricos e pobres, judeus e
gentios, que podemos ver a significância sociopolítica da compaixão. Na
mensagem e na ação de Jesus, temos uma visão social alternativa: uma
comunidade moldada não pelo éthos e pela política da pureza, mas pelo
éthos e pela política da compaixão.
O desafio é sinalizado pelo começo do imitatio dei do qual Jesus falava.
É impressionante que “Sede compassivos como Deus é compassivo” ecoe
de forma tão próxima o “Sede santos como Deus é santo”, mesmo quando
isso mostra uma substituição radical. O paralelo próximo sugere que Jesus
deliberadamente substituiu o valor central da pureza pelo da compaixão. A
compaixão, não a santidade, é a qualidade dominante de Deus, sendo,
portanto, o que deveria ser o éthos da comunidade que espelha a Deus.
Muitas das palavras de Jesus atacavam o sistema de pureza. Ele
criticava um sistema que enfatizava o dízimo e negligenciava a justiça: “Ai
de vós, fariseus, que pagais o dízimo da hortelã, da arruda e de diversas
ervas e desprezais a justiça e o amor de Deus”.[27] Os dízimos sobre a
produção se somavam aos impostos pagos aos sacerdotes e ao templo, e a
produção sem o dízimo era impura. Assim, em nome da pureza, insistia-se
no pagamento meticuloso dos dízimos, negligenciando-se a justiça.
Ele chamava os fariseus de “sepulcros que não aparecem, e sobre os
quais os homens caminham sem o saber”, uma crítica que pode parecer
obscura para nós.[28] A chave é que os cadáveres (logo seus locais de
sepultamento) eram uma grande fonte de impureza. Chamar os fariseus de
“sepulcros que não aparecem” é impressionantemente irônico: eles eram
um movimento que procurava a expansão das leis de pureza, e Jesus os
chamou logo do oposto, de fonte de impureza.
Jesus falou de pureza interior, não exterior: “Nada há fora do homem
que, entrando nele, o possa manchar; mas o que sai do homem, isso é que
mancha o homem”.[29] Dizer que a pureza é uma questão interior é
subverter radicalmente um sistema de pureza constituído com base em
limites externos.
O mesmo ponto pode ser visto em outra passagem: “Bem-aventurados
os puros de coração”.[30] Quando eu era criança, ouvia isso como uma
exigência impossível, pensando: “Ó meu Deus, espera-se que eu seja puro
de coração! Se fosse para ser puro por fora, talvez até eu pudesse dar
conta, mas tenho que ser puro de coração também!”. Porém, a
internalização da pureza na mensagem de Jesus não envolvia a imposição
de uma exigência ainda mais pesada, mas sim uma mudança radical no
sistema social existente. A verdadeira pureza é uma questão não de limites
e observâncias externos, mas do coração.
A crítica do sistema de pureza é o tema de uma das parábolas mais
conhecidas de Jesus, a história do Bom Samaritano.[31] Interpretada, com
frequência, como uma mensagem a respeito da ajuda ao próximo, ela de
fato contém uma mensagem muito mais incisiva no mundo social judeu do
século I. Era uma crítica a uma forma de vida ordenada ao redor da pureza.
A chave para perceber isso é reconhecer a questão da pureza na história: o
sacerdote e o levita eram obrigados a manter certo nível de pureza; o
contato com a morte era uma enorme fonte de impureza, e o homem ferido
é descrito como “moribundo”, sugerindo que não se podia dizer se ele havia
morrido sem se aproximar a ponto de se tornar impuro, caso ele de fato
estivesse morto. Assim, o sacerdote e o levita passaram longe do homem,
baseados na observância das leis de pureza. O samaritano (que, não sem
querer, era radicalmente impuro de acordo com o sistema de pureza), por
outro lado, é descrito como alguém que agiu de forma “compassiva”.
Assim, essa tão amada parábola foi, originalmente, um ataque incisivo ao
sistema de pureza e defensora de outro caminho: a compaixão.
Vemos o desafio do sistema de pureza não apenas nos ensinamentos de
Jesus, mas em muitas de Suas ações. As histórias de Suas curas
derrubaram os limites da pureza de Seu mundo social. Ele tocou leprosos e
mulheres que sangravam. Entrou num cemitério habitado por um homem
com uma “legião” de espíritos imundos que viviam próximos a porcos, que
eram, é claro, animais impuros.[32] Na última semana da Sua vida, de
acordo com os Evangelhos Sinóticos, Ele levou Seu desafio ao centro do
sistema de pureza — o templo — quando expulsou os cambistas e os
vendedores de animais para sacrifícios. Sua acusação de que as
autoridades do templo tinham transformado o local sagrado em um “covil
de ladrões” pode muito bem se referir ao interesse econômico que as elites
do templo tinham no sistema de pureza.
Uma das suas mais conhecidas atividades se dava ao redor de uma
mesa inclusiva. A “comunhão à mesa” — quando compartilhava uma
refeição com alguém — possui uma significância no mundo social de Jesus
que nos é difícil imaginar. De modo geral, compartilhar uma refeição
representava uma aceitação mútua. Mais especificamente, as regras das
refeições estavam profundamente contidas no sistema de pureza. Tais
regras diziam respeito não apenas ao que poderia ser comido e como
deveria ser preparado, mas também a quem poderia comer. Recusar-se a
compartilhar uma refeição era uma forma de ostracismo social. Os fariseus
(e outras etnias) não comeriam com alguém que estivesse impuro, e
nenhuma pessoa tida como decente compartilharia uma refeição com um
pária. A refeição era um microcosmo do sistema social, e a comunhão à
mesa, uma corporificação da visão social.
A prática alimentar de Jesus tinha, assim, uma significância
sociopolítica. Ele frequentemente comia com párias, assim como com
qualquer outro tipo de pessoa. Além disso, parece que tais refeições eram
um tanto quanto festivas, como indicado por um pequeno detalhe nos
registros dos Evangelhos: os participantes “se reclinavam” à mesa. As
refeições comuns eram comidas sentando-se; nas refeições festivas, se
reclinava. O ato de se reclinar transforma uma refeição num banquete,
numa celebração.
Sua prática de “refeições abertas”[33] despertava críticas dos que
defendiam o sistema de pureza; essa crítica aparece várias vezes nos
Evangelhos. Jesus é acusado de “comer com os coletores de impostos e
pecadores”, de apreciar a boa mesa e não fazer distinção entre aqueles que
O cercavam nesses momentos. Como já mencionamos, os coletores de
impostos estavam entre os piores dos intocáveis, e, no sistema de pureza,
os pecadores eram as pessoas impuras, “imundas”.[34]
A comunhão de mesa aberta de Jesus era, assim, reconhecida como um
desafio ao sistema de pureza. E era mesmo exatamente isso: as refeições
de Jesus corporificavam Sua visão alternativa de uma comunidade
inclusiva. O éthos de compaixão levava a uma comunhão inclusiva à mesa,
assim como o éthos de pureza levava a uma comunhão fechada à mesa.
Por fim, as refeições de Jesus eram um ancestral da eucaristia cristã. A
centralidade das refeições no movimento dos cristãos primitivos, e ao longo
de toda a história cristã, pode ser datada a partir da comunhão à mesa de
Jesus.[35] Na tradição cristã, é claro, a refeição se tornou uma refeição
sagrada ritualizada, não apenas uma refeição propriamente dita. Porém,
para Jesus, essas eram refeições de verdade, com párias de verdade. Esse
reconhecimento adiciona uma nuance renovada à Eucaristia.
A visão inclusiva encarnada nas comunhões à mesa de Jesus se reflete
na forma do próprio movimento de Jesus. Era um movimento inclusivo,
que negava as limitações do sistema de pureza. Ele incluía mulheres,
intocáveis, os pobres, os mutilados e os marginalizados, bem como pessoas
de estatura que achavam Sua visão atraente. É difícil para nós, que
vivemos num mundo no qual assumimos como corriqueira uma atitude
(pelo menos como um ideal) de não discriminação, apreciarmos o caráter
revolucionário dessa inclusão. Isso é apenas algo que esperaríamos de
qualquer pessoa razoavelmente decente. Entretanto, numa sociedade
ordenada pelo sistema de pureza, a inclusão do movimento de Jesus
corporifica uma visão social radicalmente alternativa.
Podemos ver isso ao olharmos para um único exemplo: o papel das
mulheres no movimento. Tanto o judaísmo oficial quanto o popular eram
profundamente machistas e patriarcais, assim como outras culturas do
mundo mediterrâneo no século I. No mundo social judeu, as mulheres não
eram ninguém. Apesar de haver vozes alternativas dentro do judaísmo,[36] a
voz dominante desconsiderava as mulheres. Elas tinham menos direitos
que os homens. Não podiam, por exemplo, ser testemunhas num tribunal
ou pedir divórcio. Não podiam aprender a Torá (talvez porque a habilidade
de interpretar a Torá era considerada uma forma de poder). Ficavam
radicalmente separadas dos homens na vida pública, quase invisíveis, como
ainda são em algumas partes mais ortodoxas do Oriente Médio. Mulheres
de respeito não saíam de casa desacompanhadas, em geral levavam um
parente; mulheres adultas não deveriam ser vistas em público sem o véu.
As refeições fora do lar eram sempre destinadas apenas aos homens (e se
as mulheres estivessem presentes em tais ocasiões seriam tachadas de
cortesãs). A identidade de uma mulher estava em seu pai ou marido,
sendo, portanto, vítima de projeções masculinas. Como já destacamos
neste capítulo, elas eram constantemente associadas à impureza.
Nesse sentido, o papel das mulheres no movimento de Jesus é
impressionante. As histórias das interações de Jesus com as mulheres são
memoráveis.[37] Elas vão desde a Sua defesa da mulher que ultrajou um
banquete apenas para homens ao simplesmente adentrar o salão, passando
pelo fato de uma mulher — sem o véu e com os cabelos soltos — lavar
Seus pés com os cabelos, ser hospedado por Maria e Marta e afirmar o
papel de Maria como discípula, até Seu aprendizado de uma mulher gentia
siro-fenícia.[38] As mulheres eram aparentemente parte do grupo itinerante
que viajava com Jesus. De fato, elas, ao que parece, estavam entre Seus
mais devotos seguidores, como as histórias da presença delas em Sua
morte sugerem. O próprio movimento era financiado por algumas
mulheres ricas. Além disso, a evidência é contundente, já que não há
dúvidas de que as mulheres desempenharam papéis de liderança na
comunidade pós-Páscoa.
Isso não quer dizer que Jesus era um feminista; isso seria um
anacronismo. Porém, aponta para a realidade social radical constituída pelo
movimento de Jesus na Palestina do século I. Dentro do próprio
movimento, as fortes barreiras do mundo social foram subvertidas, e uma
visão alternativa afirmada e corporificada. Era um “discipulado de iguais”,
que corporificava “a prática igualitária” da visão de Jesus.[39]
A inclusão do movimento de Jesus continuou até o movimento dos
primeiros cristãos, conforme ouvimos sua descrição em outras partes do
Novo Testamento. Era uma das qualidades mais marcantes do movimento.
Nós a vemos no livro dos Atos dos Apóstolos na história do eunuco etíope,
que tem a ver com a questão dos limites da pureza.[40] Os eunucos tinham
limitações sexuais, logo estavam próximos da base do sistema de pureza.
Eram excluídos da plena participação na vida religiosa de Israel.[41] A
pergunta do eunuco a Filipe, “O que me impede de ser batizado?”, é na
verdade uma pergunta sobre se a comunidade da qual ele havia acabado de
ouvir falar o excluiria ou o incluiria. Ele foi, é claro, incluído. As famosas
palavras de Paulo também negam o mundo da pureza como era encarado
na época e os limites culturais, e expressam a mesma inclusão: “Já não há
judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois
todos vós sois um em Cristo Jesus”.[42] Paulo não estava anunciando um
ideal abstrato; ao contrário, esse versículo reflete a nova realidade social do
próprio movimento.
Em resumo, existe algo de destruidor de limites na imitatio dei que
surgiu no centro da mensagem e ação de Jesus: “Sede compassivos como
Deus é compassivo”. Se por um lado a pureza divide e exclui, a compaixão
une e inclui. Para Jesus, a compaixão tinha um sentido sociopolítico
radical. Em Seu ensinamento, e na comunhão à mesa, bem como na forma
de seu movimento, o sistema de pureza foi subvertido e uma visão social
alternativa afirmada. A política da pureza foi substituída pela política da
compaixão.
ESPÍRITO, COMPAIXÃO E NÓS
A batalha intrajudaica entre Jesus e os defensores do sistema de pureza
pode ser vista como uma batalha sobre duas formas diferentes de
interpretar as Escrituras. Tanto ele quanto seus críticos se basearam na
tradição de Israel e buscaram ser fiéis a ela. As elites de sua época liam as
Escrituras de acordo com o paradigma de santidade como pureza. A leitura
de Jesus era de acordo com o paradigma da compaixão. Cada um deles
oferecia uma lente através da qual se via a tradição. Era, portanto, uma
batalha hermenêutica, um conflito entre dois modos diferentes de
interpretar as sagradas tradições do judaísmo. Não era, é claro, o tipo de
argumento hermenêutico acadêmico que se dá hoje em dia em círculos
universitários. Em vez disso, era uma batalha hermenêutica sobre a forma
de um mundo, e as apostas eram altas.
A mesma disputa hermenêutica continua na Igreja hoje. Em partes da
Igreja existem grupos que enfatizam a santidade e a pureza como a forma
de vida cristã, e eles estabelecem seus próprios e claros limites sociais
entre os justos e os pecadores. É uma triste ironia que esses grupos, muitos
dos quais estão buscando, de forma sincera, ser fiel às Escrituras, acabem
enfatizando aquelas partes das Escrituras que o próprio Jesus redefiniu.
Uma interpretação das Escrituras fiel a Jesus e ao movimento cristão
primitivo vê a Bíblia através da lente da compaixão, não da pureza, como
era vista na época.
Não é só na Igreja que a política de pureza continua viva, mas também
na cultura como um todo. Pode-se facilmente defender que vivemos numa
versão secularizada da política da pureza. Nossa cultura tem maximizado,
de maneira crescente, as penalidades por falhar em viver segundo os
mesmos padrões, gerando assim limites sociais cada vez mais incisivos.
Além disso, a noção de pureza e impureza está pelo menos implícita em
atitudes em relação aos pobres e às pessoas com aids.
Ver a compaixão como um paradigma social tem um significado
adicional para os cristãos de hoje. Estudos sobre a nossa cultura mostram
que ela é caracterizada por um individualismo disseminado.[43] Dentro
desse arcabouço, a compaixão se tornou uma virtude individual em vez de
política. Ela deve ser desempenhada por “mil pontos de luz” em lugar de
ser um paradigma de política pública. No meio de nossa cultura moderna,
é importante para aqueles de nós desejosos de sermos fiéis a Jesus pensar e
falar de uma política de compaixão não apenas dentro da Igreja, mas como
um paradigma capaz de moldar a ordem política. Uma política de
compaixão como paradigma para moldar uma nova vida produziria um
sistema social diferente, de diversas formas, daquele gerado por nossa
história recente.
Eu não sei como seria, em minúcias, uma política de compaixão
alternativa, e é possível que os cristãos discordassem nos detalhes. Mas,
para não deixar esse ponto completamente abstrato, darei um detalhe geral
e um que seja mais específico. Uma política da compaixão geraria uma
dimensão mais “comunitária” à nossa vida política a fim de equilibrar os
excessos gerados pela dominante política do individualismo. Tal ênfase
poderia envolver uma recuperação daquilo que Robert Bellah chama de
“segunda voz” da tradição ocidental — a saber, sua ênfase original em
“aliança” e “virtude cívica” como imagens para a comunidade.[44] A questão
da comunidade (no lugar da maximização do individualismo) tornar-se-ia o
paradigma básico para se pensar a ordem política. Eis um exemplo mais
específico: parece-me que, apesar dos cristãos poderem discordar sobre a
melhor forma de implementar tal sistema, uma política da compaixão em
nossa era claramente exige um sistema de saúde universal (público e
gratuito) como sua meta imediata.
Comecei este capítulo falando da existência de dois pontos focais na
vida de Jesus. Ele era um ser do Espírito e um ser de compaixão, e ambas
as facetas estão relacionadas. Sua conexão pode ser vista pelo mesmo
imitatio dei que desempenhou um papel central neste capítulo: o Espírito é
compassivo; logo, sejamos compassivos. Mas o que levou Jesus a falar de
Deus como compassivo? Como Ele ficou tão convencido disso e tão
entusiasmado a respeito?
A resposta mais persuasiva identifica essa convicção na própria
experiência de Jesus em relação a Deus. É implausível ver Sua percepção
de Deus como compassivo e a coragem entusiasmada com a qual se ateve
a isso como simplesmente um resultado da atividade intelectual de estudar
a tradição, ou supor que, baseado em outras fontes, Ele decidiu que era
uma boa ideia. Em vez disso, é razoável conjecturar que Ele falou de Deus
como compassivo — ou “como um útero” — graças à Sua própria
experiência do Espírito.
Tais experiências subvertem radicalmente os limites sociais e as
distinções geradas culturalmente, expondo sua artificialidade e
demonstrando o “ser” que está subjacente aos mapas da realidade
construídos socialmente, e que nós mesmos erigimos.[45] A mesma
conexão está implícita na vida do movimento cristão primitivo nas décadas
que se seguiram à morte de Jesus. Esse movimento era formado, de acordo
com o livro dos Atos dos Apóstolos e das epístolas de Paulo, por
comunidades nas quais o Espírito estava ativo e presente, e elas eram
igualitárias. Resumindo, existe uma conexão intrínseca entre a experiência
do Espírito que derruba limites e o éthos de compaixão que também
derruba limites. O Espírito e a compaixão caminham juntos.
A relação entre o Espírito e a compaixão tem um significado adicional.
A vida espiritual e o mundo cotidiano não estão separados na mensagem e
nas ações de Jesus da forma como, às vezes, tem sido na história da Igreja e
na vida dos cristãos. Em vez disso, para Jesus, o relacionamento com o
Espírito leva à compaixão no mundo cotidiano. Assim também era para
Seu seguidor mais influente, Paulo, que usava a palavra amor onde Jesus
usava a palavra compaixão. Assim, quando Paulo, no grande “capítulo do
amor” em 1Cor 13, fala do maior dos dons espirituais como sendo o amor,
ele está essencialmente falando que a compaixão é o primeiro fruto do
Espírito.
Uma imagem da vida cristã moldada por essa visão de Jesus tem os
mesmos dois pontos focais: um relacionamento com o Espírito de Deus e a
corporificação da compaixão no mundo cotidiano. É uma imagem da vida
cristã que oferece tanto direção quanto crescimento. Para Jesus e Paulo, a
vida no Espírito dá início a um processo profundo de transformação
interna cuja qualidade central é a compaixão. De fato, o crescimento em
compaixão é o sinal do crescimento na vida do Espírito.
CAPÍTULO 4
JESUS E A SABEDORIA: O MESTRE DA SABEDORIA
ALTERNATIVA

A SABEDORIA É UM DOS CONCEITOS mais importantes para compreender o


que o Novo Testamento diz sobre Jesus, por duas razões: por um lado,
Jesus ensinava sabedoria. Este é o maior consenso entre os estudiosos de
hoje sobre Jesus. Não importa o que mais se diga do Jesus pré-Páscoa, Ele
ensinava a sabedoria — Ele era um sábio, como os mestres de sabedoria
eram chamados.[1] Por outro lado, o Novo Testamento também apresenta
Jesus como a corporificação ou a encarnação da divina sabedoria. Neste
capítulo, vamos olhar para Jesus como aquele que ensina a sabedoria, e, no
próximo, olharemos para Ele como “a sabedoria divina”.
A abrangência da sabedoria é ampla. Basicamente, sabedoria refere-se à
maneira de viver. Fala da natureza da realidade e de como viver em
conformidade com a vida real. Em seu cerne encontramos a noção de
caminho ou trajetória, ou melhor, dois caminhos ou duas trajetórias: o
caminho ponderado e o caminho desatinado. Mestres de sabedoria falam
de ambos, recomendando um e alertando sobre os perigos de seguir o
outro.
Existem dois tipos de sabedoria e dois tipos de sábios: o tipo mais
comum de sabedoria é a tradicional, onde seus mestres são sábios
tradicionais. Esta é a fonte principal da sabedoria de uma cultura, “o que é
do conhecimento geral”, a compreensão de uma cultura sobre o que é real
e de como devemos viver. Mais adiante nos aprofundaremos nesse tema.
O segundo tipo é uma sabedoria alternativa e subversiva. Essa
sabedoria questiona e enfraquece a sabedoria tradicional e fala de um
caminho alternativo, outra trajetória. Seus mestres são sábios subversivos,
e esse grupo inclui algumas das figuras mais eminentes da história das
religiões. Dentre as religiões orientais, os dois mestres mundialmente
conhecidos da sabedoria subversiva foram Lao-Tsé e Buda.[2] Lao-Tsé
falou de seguir um “caminho” que se afastava dos valores e da percepção
convencionais, levando a viver em consonância com o próprio “Tao”. No
centro dos ensinamentos de Buda está a ideia de uma trajetória, “o
caminho das oito vias”, que leva do mundo das convenções e de seu
“âmbito” em direção à iluminação e à compaixão. Na fonte da tradição
filosófica ocidental, Sócrates ensinou uma sabedoria subversiva que
conduziu os cidadãos de Atenas a fazerem um exame crítico das
convenções e da forma com que levavam suas vidas. Por seus esforços, ele
foi executado.[3]
A sabedoria de sábios subversivos é a sabedoria da “estrada menos
percorrida”.[4] E assim foi com Jesus: sua sabedoria mencionava uma
“porta estreita”, que levava a uma vida, e subvertia a “porta larga”, usada
por muitos, que conduzia à destruição.[5] Para ver o tal caminho estreito do
qual Jesus fala, Sua sabedoria subversiva e alternativa, precisamos olhar
tanto para a forma quanto para o conteúdo que Sua sabedoria ensina.[6]

METODOLOGIA DE ENSINO DE JESUS: AFORISMOS E PARÁBOLAS


As formas de discurso oral usadas com maior frequência por Jesus como
professor eram os aforismos e as parábolas. Aforismos são frases curtas e
marcantes, que causam um grande impacto. Já as parábolas, como muitos
sabem, são histórias curtas. Juntos, os aforismos e as parábolas são as bases
da tradição de Jesus, e ambos nos põem em contato direto com o Jesus
pré-Páscoa. Sem sombra de dúvida, o que melhor sabemos de Jesus é que
Ele foi um contador de histórias e um orador notável, um especialista em
aforismos.
Os aforismos e as parábolas de Jesus funcionam de uma maneira muito
especial: eles são convites. Jesus os utilizava para fazer com que Sua
audiência se desse conta de algo que não perceberia de outra forma. Como
discursos evocativos, provocavam a imaginação, sugeriam mais do que
aparentemente queriam dizer e convidavam a plateia a uma mudança de
percepção.
Os aforismos de Jesus, que somam mais de cem, são a cristalização de
percepções que nos convidam a um aprofundamento.[7] “Nenhum servo
pode servir a dois senhores”, “Não […] se apanham uvas dos abrolhos”, “Se
um cego conduz a outro, tombarão ambos na mesma vala”, “Deixa que os
mortos enterrem seus mortos”, “Filtrais um mosquito e engolis um
camelo”— todas frases curtas, provocativas, que significam mais do que
parecem e convidam a quem escuta para ver algo que, de outra forma, não
enxergariam.[8]
Para ver como os aforismos funcionavam como um discurso verbal,
precisamos imaginar que foram ditos um de cada vez. Na maioria das vezes
não é como mostrado nos Evangelhos, onde, via de regra, aparecem
agrupados. Mas temos que imaginá-los como parte dos ensinamentos orais
de Jesus, em geral ditos separadamente, pois um professor que discursa
alinhavando muitas frases de efeito juntas tira delas sua função e faz com
que percam seu propósito.
Percebi isso de forma clara pela primeira vez ao assistir a um filme
hollywoodiano sobre Jesus, onde ele fazia o Sermão da Montanha (uma
coletânea de aforismos que se estende por três capítulos no Evangelho
segundo São Mateus) como um único discurso.[9] Na metade da cena
(talvez até mesmo antes disso), eu estava com vontade de gritar: “Pare!
Pare!”. O problema é que havia tópicos em demasia, a maioria citados
como uma exortação, e todos estavam amarrados sem nenhuma folga entre
eles. Simplesmente não pode ter acontecido dessa maneira. Um professor
que fala, especialmente um mestre de sabedoria como Jesus, não faria isso.
Ainda mais se as frases individualmente exigem reflexão. Como frases
provocativas destinadas a levar o ouvinte a uma nova percepção, elas
exigem tempo para serem digeridas.
Desse modo, precisamos imaginar que elas foram ditas uma de cada
vez.[10] Algumas podem ter sido pronunciadas sem nenhuma elaboração,
apenas como meras reflexões que pairam no ar. Outras podem ter sido
tema de um ensinamento mais longo, o resumo de um discurso mais
extenso.
Também temos que imaginar que os aforismos eram repetidos muitas
vezes. Nenhum palestrante — talvez em especial se atuasse de forma
itinerante — usa uma frase de impacto apenas uma vez. Assim, os
contextos apresentados nos Evangelhos não deviam ser os únicos nos quais
elas foram escutadas. Esses contextos muitas vezes podiam oferecer pistas
sobre a situação na qual os aforismos deviam ser aplicados, mas é muitas
vezes mais esclarecedor imaginar cada aforismo repetido como um bordão
num contexto mais amplo do mundo social de Jesus. Mais ainda,
compreender que os aforismos eram ditos repetidas vezes tem diversas
outras implicações. O que encontramos nos Evangelhos é o resumo da
compilação, o âmago, dos ditos repetidos muitas vezes — as frases
ressonantes que fariam os ouvintes se lembrarem do resumo de diálogos e
discursos mais longos.[11]
Para sugerir como isso funcionava, voltemos à lista de exemplos citados
anteriormente. Às vezes é o significado da frase que é arrebatador e
inédito:

Deixa que os mortos enterrem seus mortos.

A frase é instigante, enigmática e evocativa. Há um modo de vida que


resulta em viver na terra dos mortos.[12] Jesus nos convida à reflexão: quem
ou o que está sendo chamado de morto? E o que quer dizer deixar a terra
dos mortos?
A próxima frase é igualmente inédita:

Filtrais um mosquito e engolis um camelo.[13]

A imagem é engraçada, mas tem uma provocação embutida.


Aparentemente dirigida a advogados do sistema de purificação, convida os
ouvintes a ver que a preocupação com a purificação é semelhante à tolice
de nos apegarmos a algo tão pequeno enquanto deixamos passar outra
coisa tão grande. O fato de o camelo ser considerado um animal impuro
apenas aumenta a ironia.
Algumas vezes, a frase expressa algo que todos aceitam como uma
verdade absoluta, embora convide a usar essa verdade comum em alguma
situação específica:

Nenhum servo pode servir a dois senhores.[14]


No mundo de antigamente, todo mundo sabia que era impossível um
escravo ter dois donos. O dito, desse modo, era imediatamente assimilado,
mas claramente ele devia ser aplicado a algo mais do que a escravidão em
si. A que Jesus alude? Quem ou o que são os dois senhores de quem Ele
fala? A que tipo de situação isso se aplica?
Da mesma forma as frases seguintes são truísmos, mas convidam à
reflexão sobre como usá-las:

Não se colhem figos dos espinheiros, nem se apanham uvas dos abrolhos.[15]

Novamente os seguidores de Jesus (e nós mesmos) teriam de dizer: “É


verdade”. Mas a que verdade essa observação se refere? É uma metáfora
para o quê? Qual a lição que encerra?

Ora, se um cego conduz a outro, tombarão ambos na mesma vala.[16]

Sim, é o que acontece. Mas qual é o significado da metáfora e a que se


refere? Os seguidores de Jesus são convidados a perceber que há uma
maneira de guiar que é cega, e que os que seguem essa maneira sofrerão as
consequências da cegueira. Mas em que consiste essa escuridão?
Assim, os aforismos de Jesus são mais bem compreendidos como a
cristalização de percepções que convidam a um aprofundamento. E as
parábolas se tornam convidativas por assumirem a forma de histórias.
Como os aforismos, elas têm de ser vistas como algo contado muitas vezes.
Assim como um aforista não usa uma frase de efeito uma única vez, um
bom contador de histórias não conta um bom conto apenas uma vez. Dessa
forma, os Evangelhos descrevem para nós apenas o contexto de uma das
muitas vezes que a história foi contada.[17]
Algumas das parábolas de Jesus são muito curtas, tão concisas quanto
um aforismo, com a única diferença de ter um cunho narrativo.
Precisamos imaginar essas parábolas curtas sendo pronunciadas como
aforismos, frases enigmáticas e marcantes, um conto com princípio, meio e
fim:

O Reino dos céus é comparado ao fermento que uma mulher toma e mistura em três
medidas de farinha e que faz fermentar toda a massa.
O Reino dos céus é também semelhante a um tesouro escondido num campo. Um
homem o encontra, mas o esconde de novo. E, cheio de alegria, vai, vende tudo o que
tem para comprar aquele campo.[18]

Entretanto, algumas parábolas são histórias mais longas com tramas


complexas e personagens bem desenvolvidos. Podemos imaginar que, no
curso de diversas repetições, as histórias foram contadas de formas
diferentes e com variadas durações. Na verdade, é mais fácil olhar para as
parábolas maiores em sua versão nos Evangelhos como um resumo da
trama de uma história contada muitas vezes. Diferentes partes da trama
podiam ser aumentadas, dependendo do que a ocasião pedia ou permitia.
Por exemplo, é fácil imaginar os detalhes de uma vida ampla e pródiga
num país distante, desenvolvida por um contador de histórias criativo
como Jesus, ou imaginar adendos em várias partes na história do Bom
Samaritano. Visto que eram originalmente histórias repassadas oralmente,
não devemos encará-las como as versões que temos nos Evangelhos,
descritas com detalhes, palavra por palavra.
É importante ver como elas funcionavam como histórias contadas.
Enquanto os aforismos capturam a mente e a imaginação como
cristalizações provocativas da percepção, as parábolas mais longas
funcionam de forma diferente. Por serem boas histórias, arrastam o
ouvinte para o universo da narrativa. Convidam o ouvinte a ver algo mais
que se desenrola no universo da narrativa.[19] Por vezes, o convite é
explícito: “Por que também não julgais por vós mesmos o que é justo?”, e
começa a parábola, ou “Que vos parece?”. E a história segue: “Um homem
tinha dois filhos…”.[20]
Mas, mesmo quando não é explícito, o convite está implícito. O apelo
não está na vontade — não “fazer isto” —, mas, melhor, “Considere ver as
coisas desta maneira”. Como uma forma de discurso convidativo, as
parábolas não invocam a autoridade externa. Não apelam para a autoridade
divina, como fazem os discursos dos criadores de preceitos religiosos
(“Assim disse o Senhor, você deverá…”) ou dos profetas inspirados
(“Ouçam a palavra do Senhor…”). Diferentemente, sua autoridade está em
si mesma, isso é, ela nasce na capacidade de envolver e afetar a
imaginação. Sua voz é mais convidativa do que imperiosa.
Como o mestre de sabedoria que é, Jesus usou aforismos e parábolas
para convidar Seus ouvintes a ver de uma forma radicalmente diferente. O
apelo é para a imaginação, aquele lugar dentro de nós onde guardamos as
imagens da realidade e as nossas imagens da vida em si; o convite é para
uma nova maneira de ver, para um conjunto diferente de imagens que
formarão a nossa compreensão da vida. A ênfase sobre a visão perpassa sua
mensagem. “Existem aqueles que têm olhos, mas não veem”.[21] Existe
uma cegueira que atinge os que têm visão. E como uma pessoa enxerga faz
toda a diferença: “O olho é a luz do corpo”.[22] Como vemos as coisas
determina o caminho que traçaremos, a maneira como vivemos.
Essa é a metodologia de Jesus para ensinar sabedoria. Agora nos
concentremos no objeto, no conteúdo de Seus ensinamentos. Jesus usava
esses discursos provocativos e convidativos — aforismos e parábolas —
para subverter as maneiras convencionais de ver e viver, e para convidar
Seus ouvintes a uma maneira alternativa de viver. Como um mestre de
sabedoria, Jesus não era um professor preocupado em passar a informação
(no que acreditar) ou a moral (como se comportar), mas em ensinar um
caminho ou trajetória de transformação. E que mudança seria essa? A de
uma vida no mundo da sabedoria tradicional para uma vida centrada em
Deus.

O PROBLEMA: A SABEDORIA TRADICIONAL


Precisamos primeiro analisar o oposto da sabedoria subversiva e não
convencional de Jesus: a sabedoria tradicional. Entender o que ela é e
como funciona nos dá uma ferramenta hermenêutica para interpretar a
mensagem de Jesus (e, de modo mais abrangente, a mensagem cristã como
a encontramos nas cartas de Paulo). Esse conhecimento é também
esclarecedor para compreender a nós mesmos.
A sabedoria tradicional é a consciência dominante em qualquer cultura.
É o somatório dos conhecimentos assimilados sobre a maneira como as
coisas são (sua visão de mundo, ou imagem da realidade) e a maneira como
se vive (éthos, modo de vida). É o que “todo mundo sabe”— o mundo em
que todos aprenderam a se relacionar socialmente, pelo processo de
desenvolvimento. É a construção da realidade através da cultura, e a
internalização dessa construção pela psique de cada um. E assim ela se
torna a consciência coletiva — ou seja, a consciência moldada e estruturada
pela cultura ou tradição.
Apesar de seu conteúdo variar de uma cultura para a outra, a sabedoria
tradicional compartilha uma série de aspectos comuns através das culturas.
Esses aspectos comuns não apenas definem a sabedoria tradicional, mas
também ilustram como ela atua em nossas vidas. Eles permitem que se
perceba que viver de acordo com a sabedoria tradicional não era apenas a
consciência dominante no primeiro século do universo social judeu, mas
também é a consciência dominante em nossa própria época e cultura.
Em primeiro lugar, a sabedoria tradicional nos oferece a orientação de
como viver. Cobre todos os aspectos, dos mais práticos, como as noções de
etiqueta, até os valores centrais e as imagens de boa vida encontradas em
qualquer cultura. Para ilustrar essa ideia com algo trivial, comecemos por
dizer que a maioria de nós se lembra de ter aprendido boas maneiras à
mesa quando crianças. “Não coma de boca aberta.” “Não pegue a maior
fatia de bolo no prato.” “Não cante à mesa.” Chegamos até mesmo a ser
ensinados como comer sopa da maneira correta. Disseram-nos para
disfarçar os ruídos corporais não verbais, apesar de os mais velhos em geral
não mencionarem esse tema de forma tão explícita. Essas são questões
pequenas, é claro, mas ilustram como a sabedoria tradicional é pervasiva e
como aprendemos isso cedo na vida.
Mais importante ainda, a sabedoria tradicional incorpora os valores
centrais de uma cultura — a compreensão do que tem valor e as imagens
de uma boa vida. No judaísmo do primeiro século, esse tipo de orientação
se origina na Torá e no entendimento popular sobre a cultura. Uma parte
disso, inclusive, está preservada no Livro dos Provérbios. As pessoas
comuns aprendiam sobre esse estilo de vida não através do estudo, mas
simplesmente por crescerem inseridos naquela cultura, da mesma forma
que acontece conosco.
Em segundo lugar, a sabedoria tradicional é intrinsecamente baseada
na dinâmica da recompensa e do castigo. Você colhe aquilo que planta;
siga esta orientação, e estará tudo bem; você ganha o que merece; os justos
prosperarão — essas são mensagens constantes na sabedoria tradicional.
Essa dinâmica é a base de uma noção popular no Ocidente de um
julgamento final onde seremos recompensados ou condenados de acordo
com nosso comportamento e/ou crença, bem como é a base da noção
popular oriental do carma. Também encontramos numa forma mais
secular: trabalhe duro, e terá sucesso. Carregue consigo um corolário
pontiagudo, é claro: se não tiver sucesso, ou não for abençoado, ou não
prosperar, é porque não seguiu o caminho certo. A vida se torna uma
questão de requisito e recompensa, falha e castigo.
Em terceiro lugar, a sabedoria tradicional tem consequências tanto
sociais quanto psicológicas. Socialmente cria um mundo de limites e
hierarquias. Algumas delas podem ser herdadas, como quando as
diferenças entre gênero, raça ou condição física determinam diferentes
valores culturais e papéis. Outras são resultados da atitude: existem
pessoas que atendem melhor aos padrões da sabedoria tradicional do que
outras.
Psicologicamente, a sabedoria tradicional se torna a base para a
identidade e a autoestima. É internalizada pela psique e pelo superego,
como “aquilo que está acima de mim” e que devo almejar.[23] O superego
(quer o chamemos assim ou não) é a voz internalizada da cultura, o
depósito do que é certo dentro de nossa cabeça, e funciona em geral como
uma voz interior crítica (às vezes elogiosa). É o policial e o juiz interior. A
sabedoria tradicional define o seu conteúdo específico. Sou o que sou de
acordo com os padrões da sabedoria tradicional, e pensarei bem ou mal de
mim, dependendo de como me comparo com seus padrões. Sabedoria
tradicional é a vida dominada pelo superego.
Em resumo, independentemente de ser religiosa ou secular, a sabedoria
tradicional cria o mundo onde vivemos. Na verdade, esse conhecimento
constrói um mundo, sendo apenas uma construção. É uma domesticação
da realidade, uma rede que jogamos por cima da realidade. É basicamente
a vida em um mundo construído socialmente.
A vida neste mundo pode ser, e frequentemente é, séria. É uma vida de
servidão a uma cultura dominante, na qual nos tornamos automaticamente
pessoas dessa determinada cultura, respondendo por reflexo ao que por ela
é ditado. É uma vida de cegueira e perspectiva limitada, em que vemos o
que somos condicionados por nossa cultura, e prestamos atenção apenas
naquilo que ela nos diz ter valor. É um mundo de julgamento: eu julgo a
mim mesmo e aos outros por sua adequação aos padrões. É um mundo de
comparação: posso estar ciente de que não sou a pessoa mais atraente do
mundo, mas porque sou mais atraente do que outros estou “bem”. Nossa
identidade e autoestima com frequência dependem desse tipo de
comparação, e a maioria delas é bem inconsciente, mas nem por isso
menos poderosa.
É uma vida de luta ansiosa, e nos sentimos “bem”, ou não, à medida
que nos adequamos aos padrões. É uma vida em conformidade com o
“princípio do resultado”, em que tudo depende da medida como alcanço a
meta.[24] A vida com base no “princípio do resultado” é também uma vida
com base no “princípio da conformidade”: ironicamente, tentamos
sobressair — nos destacarmos —, ficando em conformidade com os padrões
que nossa cultura valoriza mais. E assim é a vida também sob o domínio da
cultura. Por fim, é uma vida de profunda preocupação consigo mesmo —
com o resultado que estamos apresentando, com nossa identidade, nossa
segurança —, e assim uma vida de profundo egoísmo. Egoísmo esse que
raramente tem alguma relação com pegar o maior pedaço de bolo no prato,
mas sim com a preocupação excessiva que temos com nós mesmos.
Além disso, essa maneira de agir não é comum, sendo, na verdade,
pervasiva. Um tanto surpreendentemente, reflete a consciência normal de
um adulto, tanto na época de Jesus quanto agora. De uma maneira
importante, tornar-se adulto significa internalizar a sabedoria tradicional de
sua própria cultura. É o que os pesquisadores do desenvolvimento da fé
chamam de fase da “Síntese da Tradição”, a fase “Adulta”, ou
“Conformismo”.[25]
Existe uma imagem de Deus que acompanha o mundo da sabedoria
tradicional. Quando a sabedoria tradicional aparece em forma de
religiosidade, Deus é percebido primeiramente como um ditador de leis e
um juiz. Deus também pode ser descrito de outras formas (por exemplo,
misericordioso e compassivo), mas, no fundo, Deus é visto como a origem
e o perpetuador. E, portanto, o legitimador da forma religiosa da sabedoria
tradicional. Deus se torna Aquele a quem devemos satisfazer, Aquele a
quem devemos obedecer.[26]
Quando isso acontece na tradição cristã, passa uma imagem de que a
vida cristã é uma vida de obrigações. Na verdade, isso acontece com tanta
frequência que é a forma mais comum de cristianismo. É importante
compreender essa questão, em parte para não cair no equívoco de
equiparar a sabedoria tradicional com o judaísmo e a sabedoria alternativa
com o cristianismo. É muito comum entre cristãos (e para alguns
estudiosos) identificar o judaísmo como a religião das leis, que perpetua
uma imagem de Deus cruel e vingativo, em contraste com o cristianismo,
que aparece como a religião da Graça, com uma imagem de Deus
misericordioso e amoroso. Existem duas coisas erradas nessa identificação.
A primeira se deve ao fato de ela ser historicamente incorreta e
radicalmente injusta com o judaísmo. Existiram vozes de sabedoria
alternativa na crença judaica. Na verdade, Israel começou como uma
“comunidade alternativa de Moisés” vivendo em conformidade com uma
“consciência alternativa”,[27] que também se faz ouvir nos profetas
clássicos da antiga Israel e naquela porção da sabedoria tradicional
conhecida como sabedoria “subversiva” ou “cética” (Eclesiástico e Jó). A
segunda, ela escapa totalmente ao meu arcabouço analítico da sabedoria
tradicional. A sabedoria tradicional não deve ser identificada com
nenhuma tradição em particular; ela é pervasiva em todas as tradições.
Para enfatizar novamente a questão: o conflito entre a sabedoria tradicional
e a sabedoria alternativa não é um conflito entre judaísmo e cristianismo,
mas um conflito interno em ambas as tradições.
Estar atento a isso é também importante para a compreensão de nós
mesmos como cristãos. Para ilustrar a partir de minha experiência pessoal,
cresci como luterano, numa tradição que enfatiza a salvação pela graça e
não pelo “seguimento das leis”. Na verdade, “a justificação pela graça” foi o
grito de guerra da Reforma Luterana; a luta pessoal e teológica de Lutero
contra a “salvação pelas ações”. Todos os luteranos sabem que não serão
salvos pelas “ações”, mas sim pela “graça alcançada através da fé”.
Ainda assim, essa grande ênfase na graça se transformou num novo
sistema de sabedoria tradicional, não apenas na minha mente, acho, mas
nas mentes de muitos luteranos e muitos cristãos em geral. A ênfase maior
foi colocada na fé e não na graça, e a fé insidiosamente se tornou uma nova
obrigação. Fé (quase sempre compreendida como crença) é o que Deus
pediu, e por falta de fé/crença a pessoa se arrisca aos perigos de um castigo
eterno. A obrigação da fé trouxe consigo toda uma ansiedade e uma
preocupação consigo mesmo que marcaram a vida da maior parte da
humanidade num mundo de sabedoria tradicional. Será que a fé/crença de
uma pessoa é suficientemente forte ou verdadeira? Assim, para muitos dos
cristãos de hoje, o sistema da sabedoria convencional sobreviveu. Apenas o
que é solicitado mudou: além da fé também precisamos realizar boas ações.
Existe ainda outra consequência na sabedoria tradicional cristã. O
requerimento da fé divide o mundo entre os que têm fé e os que não a
têm, com a implicação de que Deus se apresenta gentilmente para o
primeiro grupo e não tão gentilmente para o segundo. Esse entendimento
se reflete em um slogan que adorna adesivos grudados nas janelas dos
carros de muitos cristãos, que diz: “Cristãos não são perfeitos — são
apenas misericordiosos”. Ele implica que os outros não são misericordiosos
e que os cristãos fizeram alguma coisa (Tornaram-se cristãos? Acreditaram
em Deus?) que lhes deu o mérito da misericórdia. Existe uma vaidade e
uma faceta facciosa na frase que nasce do casamento entre a sabedoria
tradicional e cristianismo.
Se mesmo a tradição luterana, que fala tão enfaticamente sobre a graça,
pode se tornar, com tanta facilidade, um sistema de obrigação e
recompensa, então isso pode acontecer em qualquer lugar. Falando com
outros cristãos, sei que minha experiência não é uma idiossincrasia. A
maioria conta que escutou a mensagem cristã como uma lista de exigências
(de crença ou de comportamento, ou mais frequentemente de ambos) e de
recompensas, que tipicamente seriam recebidas “na próxima vida”, e às
vezes também neste mundo. Assim, a subversão de Jesus da sabedoria
tradicional não subverte apenas as convicções centrais de seu mundo
social, mas também as de muitas formas comuns de cristianismo.

O OBJETO DO ENSINAMENTO DA SABEDORIA DE JESUS: SABEDORIA


SUBVERSIVA E ALTERNATIVA

Como professor de sabedoria, Jesus enfraqueceu o mundo da sabedoria


tradicional e falou de uma alternativa. As duas coisas estão
intrinsecamente vinculadas: A primeira precisa ser desconstruída para
permitir que a segunda floresça. Jesus se dedicou a fazer isso de muitas
maneiras.
PARADOXO E INVERSÃO

Jesus com frequência usava a linguagem do paradoxo e da inversão para


desconstruir a sabedoria tradicional de sua época. Combinações
impossíveis abundam em seus ensinamentos. Que tipo de mundo é aquele
em que um samaritano — uma pessoa herege e impura — pode ser “boa” e
se tornar até mesmo o herói de uma história? Que tipo de mundo é aquele
em que um fariseu — alguém tipicamente visto como uma pessoa pura e
correta — pode ser declarado injusto e um excluído pode ser aceito? Que
tipo de mundo é aquele em que montar num jumento pode ser símbolo de
realeza, em que a pureza é uma questão do coração e não de laços
externos, onde os pobres são abençoados, os últimos são os primeiros e os
primeiros são os últimos, os humildes são exaltados e os poderosos
humilhados?
Jesus falou com muita frequência de um Reino de Deus através de uma
linguagem de impossibilidades e combinações inesperadas.[28] O Reino,
algo grandioso, é comparado com algo diminuto: é como “um grão de
mostarda”.[29] Mais ainda, a mostarda era considerada por muitos como
uma erva daninha. O Reino era comparado a elementos que para a época
eram tidos como impuros: é como uma mulher (associada à impureza)
pondo fermento (que era impuro) na farinha.[30] O Reino é para as
crianças, que naquele mundo não tinham valor algum. Assim, o Reino era
para quem não tinha valor diante dos padrões daquela sociedade.[31] A
mesma ideia é passada com a refeição de Jesus com os excluídos: o Reino
é um banquete de excluídos, de gente esquecida pelos poderosos. Muitos
que esperam estar no Reino não estarão: multidões virão do Oriente e do
Ocidente e se assentarão no Reino dos céus, e muitos dos que esperam
estar no Reino dos Céus serão deixados de fora.[32] Mais ainda, o Reino
não está em outra parte; ele está entre vocês, dentro de vocês e fora de
vocês. Ele também não está em algum lugar do futuro, pois está aqui,
espalhado sobre a terra; as pessoas apenas não o veem.[33]

A SABEDORIA TRADICIONAL COMO UMA PORTA LARGA

Como a maioria dos sábios, Jesus falava de dois caminhos: o caminho


ponderado e o caminho desatinado, uma trajetória de vida e uma trajetória
de morte, uma porta estreita e uma porta larga:

Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à
perdição, e numerosos são os que por aí entram. Estreita, porém, é a porta, e apertado
o caminho da vida, e raros são os que o encontram.[34]

Para a maioria dos sábios, o caminho ponderado era o caminho da


sabedoria tradicional, e o caminho desatinado era o caminho que ignorava
essa sabedoria. Jesus inverte isso: ele fala de um caminho amplo que leva à
destruição não como uma coisa perversa ou um desatino flagrante, mas
como o caminho da sabedoria tradicional. Ele ataca diretamente a forma
como os valores centrais de seu mundo social — família, riqueza, honra,
pureza e religiosidade — estavam sendo encarados, mergulhados em
falsidade e demagogia. Essa forma de vida, entretanto, estava
aparentemente autorizada pela tradição, e era considerada como uma parte
indiscutível do que formava o mundo daquela época.
É contra esses valores deturpados que Jesus deflagrou alguns de seus
discursos mais poderosos. Naquela cultura, a família (que era patriarcal)
era a principal célula social, o coração tanto da identidade quanto da
segurança material, e uma “boa” família era uma das bênçãos de Deus.
Entretanto, Jesus disse: “E a ninguém chameis de pai sobre a terra, porque
um só é vosso Pai, aquele que está nos céus”. Nesse caso, Jesus se dirigia
contra a família patriarcal, que era a célula da sociedade naquele mundo e
um microcosmo do sistema hierárquico. Essa foi uma fascinante
oportunidade em que Jesus, usando a imagem de Deus como pai, subverte
o patriarcado, mostrando que, em uma família, tanto o marido quanto a
esposa possuem os mesmos direitos e deveres e que, acima de todos nós,
há um Pai misericordioso que guarda nosso caminho.
Longe de ver a riqueza como uma bênção de Deus por ter vivido
sabiamente, Jesus a via como uma idolatria e uma preocupação: “Não
podeis servir a Deus e à riqueza”.[35] Ele contou histórias de pessoas cuja
preocupação com suas posses as fizeram perder o banquete para o qual
tinham sido convidadas, de um fazendeiro que passou a vida juntando suas
riquezas em celeiros e morreu antes de começar a viver, de um homem
rico que dia após dia ignorou o pedinte à sua porta.[36] “É mais fácil passar
o camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar o rico no Reino de
Deus”, Ele disse.[37] De forma semelhante, ridicularizou aqueles que se
vangloriavam em excesso da própria honra, vilipendiou aqueles que
espalhavam aos quatro cantos seus dons de pureza. E indiciou os que
acreditavam que sua própria religiosidade era superior à dos outros. Não é
de espantar que aqueles que estavam seguros no mundo da sabedoria
tradicional acharam pouco valor em sua mensagem, e que muito do que
Ele dizia não fazia sentido ou parecia ofensivo e ameaçador.

JESUS — A IMAGEM DE DEUS

Em muitas de suas parábolas e aforismos, Jesus convidou seus ouvintes a


ver Deus não como um juiz, não como alguém que possui exigências que
precisam ser atendidas, não como o legitimador da sabedoria tradicional —
mas como um Pai compassivo e amoroso. Algumas das passagens mais
conhecidas de Jesus ilustram essa ideia:

Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam, nem recolhem nos celeiros e vosso
Pai celeste as alimenta.
Considerai como crescem os lírios do campo; não trabalham nem fiam, entretanto, eu
vos digo que o próprio Salomão no auge de sua glória não se vestiu como um deles.[38]

Quando era jovem, eu costumava ouvir essas passagens como se fossem


juízos, sentindo que elas me incriminavam pela minha fé insuficiente: “Ó
meu Deus, eu realmente não creio o suficiente”. Mas, agora, eu as escuto
de forma diversa. Mais do que uma recriminação, são um convite a ver a
realidade como ela é, caracterizada por uma generosidade cósmica e por
um abundante fulgor de vida. Entretanto, não há nada de “Poliana” nelas,
porque, na linha seguinte, Jesus fala a respeito dos lírios do campo que
num dia estão lindos e no seguinte são atirados às chamas:

Se Deus veste assim a erva dos campos, que hoje cresce e amanhã será lançada ao
fogo, quanto mais a vós, homens de pouca fé? [39]

A imagem evocada por Jesus reconhece a transitoriedade da vida, e


ainda assim nos convida a ver a fonte de toda a vida como compassiva e
generosa.
A mesma nota soa em outras passagens conhecidas. Jesus fala de Deus
como Aquele que faz “nascer o sol tanto sobre os maus como sobre os
bons” e o que “faz chover sobre os justos e sobre os injustos”, sem
pensamento de recompensa ou castigo.[40] Deus nos conhece bem: “até os
cabelos da vossa cabeça estão todos contados. Deus vê até a queda dos
pardais” — mais valor temos nós do que os numerosos pardais.[41] Na
história do dono do vinhedo, que paga o mesmo valor a todos os
trabalhadores, independentemente de quanto labutaram, os ouvintes são
convidados a entrar num mundo onde todos recebem o que precisam.[42]
Os trabalhadores que reclamam são a voz do mundo antigo, a voz da
sabedoria tradicional, e a resposta do vinhateiro a eles é mordaz:
“Porventura vês com maus olhos que eu seja bom?”.[43] A parábola convida
os ouvintes a considerar que Deus seja assim, e não como o Deus das
obrigações e recompensas.
Esses temas estão presentes na história mais conhecida de Jesus. Na
parábola do filho pródigo, corretamente considerada uma obra de arte,
podemos ver muito da destreza de Jesus como contador de histórias, seu
estilo convidativo, sua subversão da sabedoria tradicional e a base de sua
sabedoria alternativa — notadamente, uma imagem de Deus
misericordioso e compassivo.
É útil pensar na forma como achamos essa história no Evangelho
segundo São Lucas, como um resumo da trama de uma história oral com
três atos cada uma, como mencionado anteriormente, podendo ser
expandida de acordo com a vontade do contador.[44] No primeiro ato, a
vida do filho pródigo é descrita em um grande nível de detalhes. É a parte
em que o filho vai para o exílio e se torna um excluído. Ele viaja para um
país distante (um país gentio e, portanto, uma terra impura), e lá não
apenas esbanja seu dinheiro com a vida de exageros, mas, reduzido à
pobreza, se torna funcionário de um criador de porcos gentio. Como um
tratador de suínos, ele se torna menos que um intocável, se é que isso é
possível. É complexo imaginar uma cena de incúria mais abjeta segundo o
contexto judeu. O primeiro ato termina com o filho pródigo decidindo
voltar para casa.
No segundo ato, o foco é lançado sobre o pai. Vendo seu filho ao longe,
ele significativamente sente compaixão e corre a seu encontro. Antes que o
pródigo consiga falar, o pai o beija e o abraça. Varrendo para longe a
confissão bem ensaiada pelo filho, o pai, contente, manda vestir o jovem
com seu melhor manto, põe um anel em seu dedo e sapatos em seus pés
— todos símbolos de aceitação e restauração. E então manda prepararem
um banquete.
A parábola poderia ter acabado por aí, e teria sido um depoimento forte
sobre a compaixão de Deus e a aceitação dos intocáveis, mas não. No
terceiro ato, que começa com o som da música e a dança nos campos
próximos, o foco muda para o terceiro personagem, o filho mais velho.
Ouvindo a celebração e descobrindo através de um empregado o que está
acontecendo, ele obstinadamente se recusa a participar do banquete. Em
vez disso, reclama: todos esses anos ele foi um filho diligente e obediente,
e nunca havia sido tratado com tanta pompa. O pai implora que se junte à
celebração, e a parábola termina com uma pergunta no ar: será que a
maneira como o irmão mais velho sente que as coisas deveriam ser o
manterão longe do banquete?[45]
A parábola representa uma subversão sistemática do mundo da
sabedoria tradicional. A voz do filho mais velho é a voz dessa própria
sabedoria tradicional; é nessa voz que os ouvintes são convidados a ouvir
talvez a sua própria — e depois a rejeitá-la. Não é preciso transformar a
parábola numa alegoria para ver que o personagem do pai é como Deus —
compassivo, saudoso de seu filho perdido no exílio, festejando seu retorno.
Mais ainda, a história do filho pródigo mostra a vida religiosa de uma forma
bem diversa de como é vista no mundo da sabedoria tradicional: a vida de
exílio “em um país distante” e a volta para casa não representam uma vida
de obrigações, deveres e recompensas. Entre as duas há um imenso
abismo.
Assim, a imagem de Deus, no cerne do ensinamento de Jesus,
compromete a dinâmica de obrigações e recompensas que está no centro
da sabedoria tradicional. Falar de Deus como compassivo e misericordioso
— como um útero, para relembrar o tema do capítulo anterior — é muito
diferente de imaginar Deus como um criador de leis e um juiz que prega
uma vida de obrigações. Na verdade, se encararmos a compaixão de Deus
com seriedade, ela destrói as bases no mundo da sabedoria tradicional, seja
de forma religiosa ou secular.
Essa ênfase na compaixão de Deus presente na mensagem de Jesus
frequentemente nos leva a questionar a existência de qualquer elemento
de juízo. Algumas passagens esclarecedoras podem ajudar. Os trechos dos
Evangelhos Sinóticos que falam de um julgamento final com
consequências eternas são, em sua maior parte, produtos da redação de
Mateus. Mais ainda, a noção de que nossa vida na terra é principalmente
para que desempenhemos as obrigações impostas por Deus, para que
possamos ter a vida seguinte abençoada, me parece algo que não pertence a
Jesus. Apesar de sabermos que Ele “acreditava em uma vida após a morte”,
a mensagem Dele não se resumia em sobre como chegar lá.
Nos poucos textos em que Ele fala de um julgamento final, Seu intuito
é subverter noções amplamente aceitas sobre o julgamento. Em resumo,
parece que a ameaça de ser julgado por Deus, por seus pecados, em um
julgamento final, não é intrínseca a Jesus — se é que isso estava sequer em
sua mensagem. Mas a noção de um julgamento histórico tem uma função
na mensagem de Jesus, de forma bem semelhante à que possui nas
palavras dos profetas clássicos do Antigo Testamento: a cegueira tem suas
consequências, tanto para a sociedade quanto para o indivíduo. No nível
social, porque Jerusalém (o centro das elites no poder) não conhecia “as
coisas que levam à paz”, conflitos históricos estavam para eclodir.[46] No
nível individual (naquela época e agora), se uma pessoa não deixa o mundo
da sabedoria tradicional, vive na “terra de mortos”. Isso (e não a ameaça do
inferno) é o problema.

A ESTRADA MENOS PERCORRIDA


Qual então é o caminho que leva à vida? A porta estreita, a estrada menos
percorrida, a sabedoria alternativa de Jesus. Ela tem duas dimensões
intimamente relacionadas. A primeira é o convite para conhecer o Deus
misericordioso e uterino, em vez de como a origem e a perpetuação de
obrigações, limites e divisões da sabedoria tradicional (não importa se
judia, cristã ou secular). A segunda é o convite a uma trajetória que se
afasta da vida baseada na sabedoria tradicional em direção a uma vida que
é cada vez mais centrada em Deus. A sabedoria alternativa de Jesus encara
a vida religiosa como um relacionamento que se aprofunda com o Espírito
de Deus, não uma vida de obrigações e recompensas.
Exemplos dessa estrada são ilustrados por diversas imagens que nos
foram apresentadas por Jesus. Ele usava o imaginário do coração para falar
da necessidade de uma transformação interior. Para Jesus, como de uma
forma geral para a psicologia judaica da Antiguidade, o coração representa
o âmago de cada um em seu nível mais profundo. Quando o coração está
centrado no que é finito, ele se torna fechado e endurecido em vez de
aberto e receptivo. O que é preciso, então, é um coração novo — uma
transformação interna que brota pela profunda concentração em Deus.
Aqui o monoteísmo profundo de Jesus (e do judaísmo em si) pode ser
percebido com clareza: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração,
de toda a tua alma, de todo o teu espírito e de todas as tuas forças”.[47]
Essa é a essência da porta estreita de Jesus. Na verdade, uma pessoa pode
ver a sabedoria alternativa de Jesus como a radicalização do primeiro
mandamento, que o coloca contra as convenções da tradição, mesmo
aquelas convenções da tradição considerada até então sagrada, pois é
possível estar centrado na tradição sagrada e ainda assim ter o coração
distante de Deus.[48]
A porta estreita como a trajetória para a transformação interna é
também apontada por uma segunda imagem. Um imaginário enfatizado e
ampliado pelos evangelistas, mas que pode nos levar de volta ao próprio
Jesus, a porta estreita é mencionada como uma passagem através da morte:
“Quem não carrega a sua cruz e me segue, não pode ser meu discípulo”.[49]
A morte como imagem para o caminho da transformação aponta para a
morte para o mundo da sabedoria tradicional como o centro da segurança e
da identidade pessoais, e a morte de si mesmo como o cerne das próprias
preocupações. É uma imagem instigante para o caminho da transformação
espiritual. Não apenas a morte é a última libertação, e assim o oposto do
apego que marca a vida de acordo com a sabedoria tradicional, como o
processo pode frequentemente envolver estágios que associamos ao
processo da morte física: negação, ira, negociação, depressão e aceitação.
O caminho da morte também é, para Jesus, o caminho para a nova vida.
Ele resulta no renascimento, uma ressurreição para uma vida centrada em
Deus.
Dito de forma mais sucinta ainda, a estrada menos percorrida é a vida
no Espírito. É a vida que o próprio Jesus conhecia. A transformação da
percepção para a qual Jesus convidava seus ouvintes fluía de sua própria
experiência espiritual. Essa parece a melhor explicação para a origem da
sabedoria de Jesus. Existe uma voz soberana na sabedoria Dele, uma que
conhece a tradição, mas cuja vantagem não é uma simples tradição.
Podemos supor que a fonte de Sua voz soberana foi uma experiência
iluminadora semelhante a experiências relatadas por outros grandes sábios.
[50] Como alguém íntimo de Deus, Jesus O conhecia pela Sua compaixão,
não como um Deus de exigências e limites. A vida para a qual convidava
seus ouvintes era uma vida no Espírito que Ele mesmo havia
experimentado. O caminho estreito, a estrada menos percorrida, é uma
vida centrada no Espírito de Deus.
Essa é uma mensagem bastante desafiadora para as formas seculares e
cristãs da sabedoria tradicional de nossos tempos. A sabedoria de nossa
cultura secular não afirma a realidade do Espírito; a única realidade, não
há dúvida, que é o mundo visível de nossa experiência comum. Dessa
forma, ela busca por satisfação e significado no mundo material. Seus
valores dominantes são realização, afluência e aparência. Vivemos nossas
vidas em conformidade com esses valores, e tanto nossa autoestima quanto
nosso nível de satisfação pessoal dependem de como nos avaliamos em
relação a esses padrões de nossa cultura. Não apenas o esforço de se
comparar é estafante, como, mesmo quando temos um relativo sucesso em
fazer isso, descobrimos muitas vezes que a recompensa é insatisfatória.
Podemos experimentar a saciedade e ainda nos sentirmos com fome.
Talvez Santo Agostinho e outros tivessem razão quando diziam que nós
somos feitos de modo que nosso apetite é infinito. Os sinais que as pessoas
em culturas modernas frequentemente emitem em relação à ansiedade por
algo mais são muitos e encorajadores.[51]
O caminho de Jesus também desafia muitas formas comuns de
cristianismo, como já salientamos. Em especial, nos convida a sair de uma
“religião de segunda mão” para a “religião de primeira mão”.[52] A religião
de segunda mão é o caminho de ser religioso com base na crença do que se
ouviu de outros. Consiste em pensar que a vida cristã é sobre acreditar
unicamente no que a Bíblia diz ou no que as doutrinas da Igreja ditam. A
religião de primeira mão, por sua vez, consiste em um relacionamento com
aquilo que a Bíblia e os ensinamentos da Igreja apontam — com a
realidade que chamamos de Deus ou de Espírito de Deus.
A transformação de uma religião de segunda mão para uma de primeira
mão, viver de acordo com o que se ouviu para uma vida centrada no
Espírito, é o cerne da sabedoria alternativa de Jesus e também da tradição
judaica na qual Ele viveu. Uma das expressões mais poderosas dessa
transformação é encontrada no Livro de Jó.[53] Após o protagonista
experimentar um dramático desvendamento de Deus, ele clama:

Meus ouvidos tinham escutado falar de ti, mas agora meus olhos te viram.[54]

Essa mudança — de ouvir falar de Deus com os ouvidos e de “escutar”


Deus, de uma crença de segunda mão para uma de primeira mão — é no
que a sabedoria alternativa de Jesus se centra.
O Evangelho de Jesus — a boa-nova da mensagem do próprio Jesus —
é que existe uma maneira de ser que se move para além tanto da sabedoria
tradicional religiosa quanto da secular. O caminho da transformação de
que Jesus falou leva de uma vida de obrigações e comparativos (por
padrões culturais ou por Deus) para uma vida de relacionamento com
Deus. Sai de uma vida de ansiedade para uma vida de paz e confiança. Sai
das amarras da preocupação consigo mesmo para a liberdade do
desprendimento de si mesmo. Sai de uma vida centrada na cultura para
uma vida centrada em Deus.
CAPÍTULO 5
JESUS, A SABEDORIA DE DEUS: SOPHIA SE FAZ CARNE

O SEGUNDO IMPORTANTE PAPEL desempenhado pela sabedoria de Jesus no


imaginário do movimento cristão primitivo é cristológico. Os primeiros
níveis das tradições que estavam se desenvolvendo no movimento retratam
Jesus não apenas como professor de sabedoria, mas também intimamente
relacionado com “a sabedoria de Deus”. As principais vozes do Novo
Testamento — Mateus, Lucas, Paulo e João — falam desse
relacionamento de diversas maneiras, retratando Jesus como o emissário,
como criança e como a encarnação da sabedoria de Deus. Jesus era um
professor de sabedoria que também era, em certo sentido, a sabedoria de
Deus.
Falar desse assunto nos remete à cristologia — o braço da teoria cristã
que lida com a natureza de Cristo. Resumida e grosseiramente falando, a
cristologia concentra-se no relacionamento entre Jesus e Deus. Seus
principais temas incluem as imagens cristológicas do Novo Testamento; a
humanidade e a divindade de Jesus e como esses dois aspectos se
relacionam entre si; e os ensinamentos cristológicos contidos nas
declarações oficiais de fé da Igreja, conforme formulado pelos concílios da
Igreja em Niceia (325 d.C.) e na Calcedônia (451 d.C.).
Os bispos em Niceia redigiram o Credo Niceno, que foi especialmente
importante na construção do imaginário cristão de Jesus, e que poderia ser
chamado (não pejorativamente) de nível popular da cristologia. A tripla
divisão do credo em seções sobre o Pai, o Filho e o Espírito reflete o
emergente dogma trinitário do século IV. Sua estrutura e conteúdo
identificam Jesus como “Filho do Pai” e como a segunda pessoa da
Trindade. Como tal, Ele é o único Filho de Deus gerado, e isso antes de
todos os mundos, Deus do Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus
verdadeiro, além disso, “unigênito da substância do Pai”.[1]
Tudo isso — a identificação de Jesus como o divino Filho de Deus, o
Pai e as específicas frases usadas para falar desse estado — é muito
familiar aos cristãos por causa do papel do Credo Niceno na Igreja desde
então. O credo não só definiu a ortodoxia como sua recitação nos serviços
cristãos ao longo dos séculos arraigou profundamente uma cristologia do
“Filho de Deus” na psique coletiva cristã e, assim, na psique ocidental.
Como resultado, a cristologia mais familiar para as pessoas, tanto de
dentro quanto de fora da Igreja, é relacionar a imagem de Jesus com Deus,
como Filho do Pai. Esse Filho de Deus cristológico é o centro da imagem
popular de Jesus. Isso é tão familiar que é fácil pensar como algo
normativo ou definitivo da cristologia.
Mas isso ainda não havia acontecido no período do Novo Testamento.
Ainda não havia uma cristologia oficial. Ao contrário, o Novo Testamento
contém uma variedade de imagens cristológicas que funcionam como
metáforas para ilustrar o significado de Jesus e do seu relacionamento com
Deus. Elas ainda não tinham sido cristalizadas nas doutrinas, e palavras
como “substância”, “pessoa” e “duas naturezas” ainda estavam longe, no
futuro. Dentre essas metáforas estava a raiz do que se tornou a cristologia
do Filho de Deus mais tarde na Igreja: o Novo Testamento usa as imagens
pai/filho para falar de Deus e Jesus. Mas junto das imagens pai/filho havia
outras.[2] Uma delas, provavelmente tão antiga quanto, se não ainda mais
antiga, que a imagem pai/filho, é a imagem de Jesus tão intimamente
relacionado à sabedoria divina. Desenvolvendo-se junto com o embrionário
movimento cristão da cristologia pai/filho estava a embrionária sabedoria
cristológica que finalmente via Jesus como a personificação ou encarnação
da “sabedoria de Deus”.
Vista desse modo, a sabedoria cristológica pode afetar nossa imagem de
Jesus de diversas maneiras. Não só enriquecendo nossa imagem de Jesus
como também, como veremos, nos abrindo uma janela para a natureza da
terminologia cristológica.

A SABEDORIA NA TRADIÇÃO JUDAICA


Os ingredientes da sabedoria cristológica vêm da tradição judaica. Sua
sabedoria tem vários significados. Ela pode se referir a um gênero literário
— nomeando os livros de sabedoria encontrados na Bíblia hebraica
(Provérbios, Jó e Eclesiastes) e nos livros apócrifos (Eclesiástico e
Sabedoria de Salomão). Ou pode se referir também aos ensinamentos dos
sábios, “as palavras dos sábios”, que fornecem conselhos práticos para viver
de maneira sábia.
Há um terceiro significado também, que é fundamental para entender a
terminologia do movimento cristão primitivo sobre Jesus como a sabedoria
de Deus. Na literatura sobre sabedoria judaica, a sabedoria é, muitas vezes,
personificada por uma forma feminina chamada “Sabedoria”. Consistente
com essa personificação, sabedoria é uma palavra feminina tanto em
hebreu (hokmah) quanto em grego (sophia). Entre os estudiosos, tornou-se
comum citar essa personificação Sophia, mesmo quando a referência é
para um texto hebraico. O motivo óbvio de fazê-lo (além do fato de os
textos gregos usarem sophia) é que Sophia é um nome feminino,
lembrando assim a personificação feminina. Assim, nos textos bíblicos
transcritos neste capítulo, usei “Sophia” quando a passagem personifica a
sabedoria como uma mulher.[3]
Essa personificação é primeiro desenvolvida nos capítulos de abertura
do Livro dos Provérbios. Sophia aparece no capítulo 1, versículos 20-22,
falando em um local público como um dos profetas da antiga Israel:

Sophia clama nas ruas, eleva sua voz na praça. Clama nas esquinas da encruzilhada, à
entrada das portas da cidade ela faz ouvir sua voz:
E até quando os que zombam se comprazerão na zombaria?
Até quando, insensatos, amareis a tolice, e os tolos odiarão a ciência?

“Convertei-vos às minhas admoestações”, ela continua. E, então, diz:

Espalharei sobre vós o meu espírito,


Ensinar-vos-ei minhas palavras.

A primeira metade desse versículo — “Espalharei sobre vós o meu


espírito”[4] — é uma função atribuída a Javé nos textos proféticos.[5] Essa é
a primeira sugestão de uma possibilidade que logo se tornaria explícita: de
que Sophia é a personificação de Deus.
No final da passagem, Sophia fala de ser ignorada e avisa sobre as
consequências:

Uma vez que recusastes o meu chamado e ninguém prestou atenção quando estendi a
mão, uma vez que negligenciastes todos os meus conselhos e não destes ouvidos às
minhas admoestações, também eu me rirei do vosso infortúnio e zombarei, quando vos
sobrevier um terror; quando vier sobre vós um pânico, como furacão; quando se abater
sobre vós a calamidade, como a tempestade.[6]

Assim, nessa passagem como um todo, o papel de Sophia é


essencialmente profético. Embora seja uma figura sábia, ela fala muito
mais como os profetas clássicos da antiga Israel: nos mercados e praças
públicas, ela chama as pessoas a ouvir suas palavras e alerta sobre as
calamidades e desastres que cairão sobre quem ignorar seu conselho.
Seus vários papéis são mais extensamente descritos em um discurso
maior encontrado em Pr 8,1-9.6. Na primeira metade do discurso, ela se
autodenomina como a fonte da verdade, da inteligência e da força. Além
disso, “por mim reinam os reis e os legisladores decretam a justiça”. Ela
ama àqueles que a amam e aqueles que a buscam irão encontrá-la.[7]
Na segunda metade do discurso, ela fala de seu papel na criação. Ela
estava com Deus no início, antes de o mundo ser criado:

O Senhor me criou [Sophia], como primícia de suas obras, desde o princípio, antes do
começo da terra. Desde a eternidade fui formada, antes de suas obras dos tempos
antigos.

Sophia não está com Deus somente desde antes do princípio, mas
também participou do trabalho criativo de Deus:

Desde a eternidade fui formada, […] quando assentou os fundamentos da terra, junto
a ele estava eu como artífice.[8]

Aqui está a sugestão de que foi através de Sophia que Deus criou o
mundo. Sophia era a artesã que executou o plano divino.[9] O mesmo
ponto é encontrado antes no Livro dos Provérbios: “Foi pela sabedoria que
o Senhor criou a terra, foi com inteligência que ele formou os céus”.[10]
Retornando ao capítulo 8 do Livro dos Provérbios, Sophia fala, então,
de seu lugar diante da presença de Deus: “brincando todo o tempo diante
dele”. Já que ela também habitava o mundo, Sophia fala “brincando sobre o
globo de sua terra, achando as minhas delícias junto aos filhos dos
homens”.[11] Ela continua falando sobre o seu papel atual. Ela é a fonte da
vida: “felizes aqueles que guardam os meus caminhos […] Feliz o homem
que me ouve […]. Pois quem me acha encontra a vida e alcança o favor do
Senhor”.[12] Finalmente, ela conclui convidando as pessoas ao seu
banquete de pão e vinho:

Sophia pôs a mesa e enviou servas para que anunciassem nos pontos mais elevados da
cidade: “Quem for simples apresente-se!”. Aos insensatos ela disse: “Vinde comer o
meu pão e beber o vinho que preparei”.[13]

A personificação judaica da sabedoria como Sophia e a atribuição de


suas qualidades divinas são ainda mais desenvolvidas em dois livros
intertestamentários — Eclesiástico e Sabedoria de Salomão.[14] Em
Eclesiástico, escrito por volta de 180 a.C., Sophia fala novamente sobre
sua origem em Deus “desde o início”:

Desde o início, antes de todos os séculos, ele me criou, e não deixarei de existir até o
fim dos séculos.[15]

Ela fala de sua presença em todos os lugares:

Saí da boca do Altíssimo; nasci antes de toda criatura. Eu fiz levantar no céu uma luz
indefectível, e cobri toda a terra como que de uma nuvem. Habitei nos lugares mais
altos: meu trono está numa coluna de nuvens. Sozinha percorri a abóbada celeste, e
penetrei nas profundezas dos abismos. Andei sobre as ondas do mar, e percorri toda a
terra. Imperei sobre todos os povos e sobre todas as nações.[16]

Então, o autor fala de Sophia edificando sua casa e morando em Israel.


Deus “escolhe o lugar para ela morar” entre o povo de Jacó; ela estava em
uma tenda no deserto até estabelecer moradia em Jerusalém. Sophia está
aqui, entre outras coisas, idêntica a shekinah, a divina presença.
Finalmente, como no Livro dos Provérbios, Sophia convida para um
banquete.[17]
Na Sabedoria de Salomão, um livro escrito próximo à época de Jesus, as
qualidades divinas de Sophia são mais desenvolvidas.[18] Sophia é “a
criadora de todas as coisas”, e a “mãe” de todas as coisas boas.[19] Então,
em uma passagem memorável, ela é descrita como:

[…] um espírito inteligente, santo, único, múltiplo, sutil, móvel, penetrante, puro,
claro, inofensivo, inclinado ao bem, agudo, livre, benéfico, benévolo, estável, seguro,
livre de inquietação, que pode tudo, que cuida de tudo, que penetra em todos os
espíritos […]

Estes são, claro, todos os atributos de Deus. Além disso, como Deus,
ela é onipresente: “ela atravessa e penetra tudo”. Sophia “é o sopro do
poder de Deus, uma irradiação límpida da glória do Todo-Poderoso” e uma
“efusão da luz eterna”. Como Deus, ela é onipotente e o sustento da fonte
da vida:

Embora única, tudo pode; imutável em si mesma, renova todas as coisas.

Ela se relaciona com as pessoas: “Ela se derrama de geração em geração


nas almas santas”. Ela é fonte da inspiração profética, “forma os amigos e
os intérpretes de Deus”.[20]
Finalmente, ela esteve ativa na história de Israel desde o início do
Velho Testamento. Estamos acostumados a ouvir que Deus expulsou Israel
do Egito, mas, no livro Sabedoria de Salomão, é Sophia quem faz isso.

Foi ela [Sophia] que livrou das nações que o tiranizavam, o povo santo e a raça
irrepreensível; […] Fê-los atravessar o mar Vermelho, e deu-lhes passagem através da
massa das águas, ao passo que engoliu seus inimigos, e depois os tirou das profundezas
do abismo.[21]

Assim, no livro como um todo, ela tem qualidades e funções


normalmente atribuídas a Deus.[22]
O que devemos depreender do notável papel de Sophia na tradição da
sabedoria de Israel? Embora tenha sido notado pelos estudiosos, ele foi
com mais frequência visto simplesmente como um uso interessante do
recurso literário da personificação. Mas vai além disso, ele está envolvido
nela, como os estudiosos têm mostrado recentemente. Nesses livros,
Sophia está intimamente associada a Deus, em alguns momentos, não se
distingue de Deus em termos de funções e qualidades a ela atribuídas,
assim pode-se falar em uma “equivalência funcional” entre Sophia e Deus.
[23] Portanto, a palavra Sophia não é somente a personificação da sabedoria
na forma feminina, mas a personificação de Deus na forma feminina.
Sophia é uma imagem feminina de Deus, uma lente através da qual a
realidade divina é representada como uma mulher.[24] Em resumo, o uso
da palavra Sophia envolve uma imagem feminina para falar de Deus na
tradição bíblica.

OS EVANGELHOS SINÓTICOS
Voltando ao Novo Testamento, há várias passagens nos Evangelhos
Sinóticos que associam Jesus à figura de Sophia. Em uma ocasião, Jesus
diz:

Por isso, também disse a Sophia de Deus: Enviar-lhes-ei profetas e apóstolos, mas eles
darão a morte a uns e perseguirão a outros. E assim se pedirá conta a esta geração do
sangue de todos os profetas derramado desde a criação do mundo.[25]

O mais importante para nossos propósitos é a frase introdutória, na qual


Jesus fala pela Sophia divina. Falando suas palavras, ele é o enviado ou
emissário de Sophia.
Em outro versículo, Jesus fala Dele mesmo como um filho de Sophia.
No final da passagem em que narra as críticas direcionadas a Jesus e a João
Batista, Jesus diz:

Pois veio João Batista, que nem comia pão nem bebia vinho, e dizeis: Ele está
possuído do demônio. Veio o Filho do Homem [uma referência ao próprio Jesus], que
come e bebe, e dizeis: Eis um comilão e beberrão, amigo dos publicanos e libertinos
[exilados]. Mas a Sophia foi justificada por todos os seus filhos.[26]

Aqui Jesus fala Dele mesmo (e, implicitamente, de João Batista


também) como um filho de Sophia. Juntas, essas duas passagens mostram
que o movimento cristão primitivo via Jesus tanto como porta-voz como
filho de Sophia, e que o próprio Jesus falou de Si mesmo nesses termos.[27]
Existem mais associações entre Sophia e a missão e a mensagem de
Jesus nos Sinóticos. A conexão da imagem de Deus como compassivo,
“como um útero”, por Jesus, é impressionante.[28] Dizer que Deus é como
um útero é dizer que Deus é como uma mulher, e a personificação de
Deus como Sophia sugere que Deus é como uma mulher; e Jesus é o
porta-voz da compaixão de Sophia/Deus. A centralidade dos banquetes e
sua representação, especialmente as festivas refeições com os exilados,
podem estar conectadas a Sophia. Mais frequentemente os estudiosos
conectam essa prática às imagens da época messiânica como envolvendo
um banquete com o Messias. Isso é possível. Entretanto, a associação de
Sophia com um banquete é, no mínimo, igualmente forte na tradição
judaica. Talvez os banquetes de Jesus fossem os banquetes de Sophia.
Também é provável que haja uma conexão com o Reino de Deus.
Como já observamos, ao longo deste século e do passado, os estudiosos em
geral entenderam o termo Reino de Deus como referência ao reino
escatológico ou apocalíptico, o futuro reino vindouro que deveria acabar
com o mundo tal como o conhecemos.[29] Mas John Dominic Crossan
afirma que, com o colapso da compreensão apocalíptica do reino,
provavelmente deveríamos ver o significado do termo Reino de Jesus no
contexto da tradição da sabedoria.[30] Essa tradição também falou de um
reino, e o reino no qual Jesus falou pode bem ser o Reino da Sabedoria, e
não um reino que vem com o fogo do juízo final.
Parte dessa discussão é especulativa, e o que se pode afirmar com
segurança depende de pesquisas futuras. Porém pode-se dizer com certeza
que os Sinóticos retratam Jesus não somente como um professor de
sabedoria, mas também como alguém intimamente relacionado à Sophia.

PAULO
A sabedoria também é um tema central para o apóstolo Paulo. Como
veremos, ele fala de Jesus como a Sophia de Deus. Mas, antes de tratar
desse assunto, é esclarecedor explorar outra conexão entre o uso da palavra
sabedoria por Paulo e a sabedoria alternativa de Jesus.
Ao lado de Jesus, Paulo é a pessoa mais importante da história do
cristianismo primitivo.[31] As cartas originais de Paulo, todas escritas
quinze anos antes de sua execução em Roma, por volta do ano 64, são
nossos primeiros testemunhos do movimento cristão primitivo. Elas são,
claro, bem diferentes dos Evangelhos. Para a maior parte dos escritores das
comunidades cristãs, que o próprio Paulo fundou, elas falam em geral de
problemas locais específicos. Paulo consequentemente faz muito poucas
referências ao Jesus pré-Páscoa e aos Seus ensinamentos, uma vez que o
Jesus pós-ressurreição — o Cristo vivo ressuscitado — é absolutamente
central em sua experiência e teologia.[32]
Apesar de tais diferenças entre os Evangelhos e as cartas de Paulo, e
não obstante o relativo silêncio de Paulo sobre o Jesus histórico, há uma
impressionante similaridade entre a mensagem de Paulo e a revolucionária
e alternativa sabedoria de Jesus. Vemos isso mais claramente no uso por
Paulo da palavra justificação. Considerada por muitos como o centro da sua
teologia, ela é, pelo menos, uma das duas ou três mais importantes noções
para a compreensão da mensagem de Paulo.
Justificação é uma metáfora jurídica. Sua origem linguística, no mundo
antigo, vem de uma corte de justiça, onde o veredito era chamado de
“justificado”. Embora não seja o equivalente exato do “inocente” ou
“culpado” moderno, era o veredito que se gostaria de ouvir: significava que
se achou que a pessoa estava certa. Transferindo para o contexto teológico,
a justificação refere-se a alguém tornado justo com Deus, ou seja, alguém
perdoado por Ele.
Para Paulo, o coração do Evangelho é que nos torna justos com Deus
por meio da graça. Sua formulação completa é a “justificação pela graça
através da fé”.[33] O oposto da justificação pela graça é, claro, a justificação
pela obra. Trata-se da mesma coisa que a “vida sob a lei”, na qual alguém
busca se tornar justo com Deus por meio das “obras da lei” — ou seja,
cumprindo as exigências de Deus. É, para usar a expressão introduzida no
capítulo 4, levar a vida de acordo com o “princípio do resultado”, na qual a
minha “aprovação”, seja em um quadro religioso ou secular, depende de
algo que eu faça ou acredite. Essa é a maneira de ser que Paulo ataca com
tanta paixão em suas cartas.
Destaque-se que, para Paulo, a “vida sob a lei” não é simplesmente
equiparada à “vida sob a Torá”. Isto é, o problema não era com a Torá em
si, mas com uma maneira de ser que buscava estar “bem” diante de Deus
por meio do cumprimento de suas exigências, sejam elas muitas ou não.
Os cristãos, às vezes, não entendiam isso, achando que o problema era que
a Torá fazia as exigências erradas e, então, as substituía pelas exigências
cristãs. Quando isso acontece, a “vida sob a lei” permanece.
A justificação pela graça, por outro lado, é uma justificação livre dada
por Deus como um presente. Seu efeito é libertar-nos da vida de esforço
ansioso e da autopreocupação que a acompanha. Para Paulo, este é o
principal significado do Evangelho de Cristo:

[…] para todos os fiéis […] e são justificados gratuitamente por sua graça; tal é a obra
da redenção, realizada em Jesus Cristo.
Porque Cristo é o fim da lei, para justificar todo aquele que crê.
É para que sejamos homens livres que Cristo nos libertou. Ficai, portanto, firmes e
não vos submetais outra vez ao jugo da escravidão.[34]

Assim, para Paulo, há dois caminhos radicalmente diferentes de ser:


viver pela graça através da fé ou viver sob a lei pela obra.[35] Esse contraste
fundamental, que tem sido tão importante para a teologia e, muitas vezes,
mal compreendido, é o mesmo que encontramos no ensinamento de Jesus.
“Justificação pelas obras”, ou “vida sob a lei”, é a vida no mundo da
sabedoria convencional, com sua ênfase em exigências e recompensas. A
vida sob a graça é a sabedoria alternativa de Jesus, com sua ênfase na
compaixão e no Espírito de Deus.
Paulo explicitamente usou a palavra sabedoria para descrever esses dois
diferentes caminhos nos primeiros quatro capítulos da Primeira Epístola
aos Coríntios, uma carta escrita por volta do ano 54. Em resposta ao
facciosismo na comunidade cristã em Coríntios, Paulo descreveu o forte
contraste entre a “sabedoria deste mundo” e a “sabedoria de Deus”.
Implicitamente, os facciosos (que, é preciso que se lembre, eram os
cristãos) viviam sob a “sabedoria deste mundo”. Isso aparentemente
consistia na identificação com uma particular interpretação do Evangelho,
ou possivelmente na identificação com um particular líder cristão. Os
facciosos diziam: “‘eu pertenço a Paulo’ ou ‘eu pertenço a Apolo’ ou ‘eu
pertenço a Pedro’”.[36] Paulo respondeu falando sobre a “sabedoria de
Deus” (que ele também chamou de a “loucura de Deus”, porque ela é o
oposto da “sabedoria deste mundo”), que “destrói a sabedoria do sábio”. A
sabedoria de Deus é o “Cristo crucificado”, que destrói a sabedoria deste
mundo, e está fundamentada no “Espírito que vem de Deus” e não no
“espírito do mundo”.[37] Seu fruto é a união e não a divisão.
Em resumo, o contraste entre a “sabedoria do mundo” e a “sabedoria de
Deus” é o mesmo entre a sabedoria convencional e a sabedoria alternativa
de Jesus. Como Jesus, Paulo subverteu o mundo da sabedoria
convencional e falou sobre uma sabedoria alternativa fundamentada na
graça de Deus como conhecida em Jesus. Existe, então, uma
impressionante continuidade entre a sabedoria ensinada por Jesus e o
centro da mensagem de Paulo.
Além disso, para sua continuidade, Paulo também fala explicitamente
de Cristo como “a sabedoria de Deus”.

[…] mas nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os
pagãos; mas, para os eleitos — quer judeus quer gregos —, força de Deus e sabedoria
de Deus.[38]

Algumas linhas adiante, Paulo escreveu: “É por sua graça que estais em
Jesus Cristo, que, da parte de Deus, se tornou para nós sabedoria”.[39]
Em qual sentido Cristo é a sabedoria de (e para) Deus? Em particular,
devemos entender “sabedoria de Deus” nesses versículos como uma
ressonância das nuances da Sophia divina? É possível, e então isso
significa que Paulo falou de Jesus como a Sophia de Deus e para Deus.[40]
Há ainda mais uma conexão entre a palavra judaica sobre Sophia e a
palavra que Paulo usou para falar sobre Jesus. Em duas passagens, Paulo
fala sobre o que chamamos de preexistência de Cristo — isto é, Cristo
existia desde a eternidade com Deus tendo sido ativo na criação. A
primeira passagem está de forma resumida na Primeira Epístola aos
Coríntios:

Mas, para nós, há um só Deus, o Pai, do qual procedem todas as coisas e para o qual
existimos, e um só Senhor, Jesus Cristo, por quem todas as coisas existem e nós também.
[41]
A segunda, que é paulina, embora não se possa ter certeza se é do
próprio Paulo, expande a descrição do papel de Cristo na criação:

Ele é a imagem de Deus invisível, o Primogênito de toda a criação. Nele [ou por ele]
foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as criaturas visíveis e as invisíveis.
Tronos, dominações, principados, potestades: tudo foi criado por ele e para ele. Ele
existe antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem nele.[42]

A terminologia aqui utilizada sobre Cristo é, claramente, a terminologia


usada sobre Sophia na tradição judaica, na qual Paulo foi formado. Ela não
só descreve Jesus na terminologia divina, mas identifica Jesus com a
sabedoria.[43] A preexistência de Cristo é, portanto, de fato a preexistência
da Sophia divina. Para Paulo, Jesus é a personificação de Sophia.

O EVANGELHO DE JOÃO
A apresentação de Jesus como sabedoria é ainda mais impressionante na
última voz do Novo Testamento que iremos abordar, o Evangelho de João.
O prólogo do Evangelho de João (que pode ter tido sua origem como um
hino cristão primitivo, que o autor João incorporou no início do Evangelho)
começa com algumas das mais conhecidas palavras da Bíblia.[44] Na
transcrição, substituí a palavra Verbo pela palavra grega logos.

No princípio era o logos, e o logos estava junto de Deus e o logos era Deus. Ele [o logos]
estava no princípio junto de Deus. Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito. Nele
havia a vida, e a vida era a luz dos homens. […] [o logos] Estava no mundo e o mundo
foi feito por ele, e o mundo não o reconheceu. […] E o logos se fez carne e habitou
entre nós […].[45]

É importante, nesses versículos de abertura do Evangelho, não pensar


em “Verbo” ou logos como se referindo a Jesus, se por Jesus entendermos
“Jesus de Nazaré”. Ler como “Jesus” é inconscientemente encorajado tanto
pela posterior doutrina cristã da Trindade quanto pelo uso do pronome
masculino no original grego e em diversas traduções. Entretanto, os
pronomes masculinos são usados porque logos é um substantivo masculino
em grego, não porque se refere a ele como Jesus. João não está dizendo:
“No princípio era Jesus”, como se estivesse pensando em Jesus de Nazaré
como presente no ato da criação. Pelo contrário, o que se encarnou em
Jesus — chamado de logos — estava presente na criação. É logos (não
Jesus) que estava com Deus e que era Deus.[46]
Há muito tempo, os estudiosos observaram a estreita relação entre o
que João diz sobre logos e o que é dito sobre Sophia na tradição judaica.
Sophia estava presente com Deus desde o início, ativa na criação, e
presente na criação do mundo.[47] Essa equivalência funcional entre logos
e Sophia sugere que é legítimo substituir Sophia por logos, “Sabedoria” por
“Verbo” no início do Evangelho de João. Além disso, porque Sophia é um
substantivo feminino em grego, o pronome também se torna feminino:[48]

No princípio era Sophia, e Sophia estava junto de Deus e Sophia era Deus. Ela estava
no princípio junto de Deus. Tudo foi feito por ela, e sem ela nada foi feito. Nela havia
a vida, e a vida era a luz dos homens. […] [ela] Estava no mundo e o mundo foi feito
por ela, e o mundo não a reconheceu.

E, ao chegar ao clímax: “E Sophia se fez carne e habitou entre nós”.[49]


Jesus é a encarnação da Sophia divina, Sophia se faz carne.[50]

A COMPLEMENTARIDADE DAS IMAGENS CRISTOLÓGICAS


Nossa exploração sobre o papel de Sophia na tradição judaica e no Novo
Testamento levantou uma série de temas. Proporcionou-nos ver uma boa
simetria entre Jesus como um professor de sabedoria e a representação
Dele no movimento primitivo como alguém intimamente relacionado à
Sophia. Como voz de uma sabedoria alternativa, Jesus é também a voz de
Sophia.
Isso também nos habilita a vislumbrar o que pode ser a primeira
cristologia do movimento cristão.[51] O uso da palavra Sophia para falar de
Jesus nos transporta aos primeiros níveis do desenvolvimento da tradição.
O que também, como já vimos, é muito difundido na tradição. De acordo
com os Sinóticos Paulo e João, o que estava presente em Jesus era a
Sophia de Deus.
Isso aponta não somente para a centralidade da palavra Sophia na
formação do movimento cristão primitivo como também para uma
complementaridade de gênero de cristologias. Para o cristianismo
primitivo, Jesus era o Filho de Deus e a encarnação de Sophia, o filho do
íntimo Abba, o “pai”, e o filho de Sophia. Essa consciência é muito
importante para nós numa era de crescimento da sensibilidade para a
questão da linguagem inclusiva.
Aponta também para a impossibilidade de literalidade da terminologia
cristológica. A multiplicidade de imagens para falar do relacionamento
entre Jesus e Deus (como logos, Sophia, Filho — para citar apenas alguns
exemplos) deveria deixar claro que nenhuma delas deve ser lida
literalmente. Elas são metafóricas.
É importante entendê-las numa tradição cuja terminologia cristológica e
devocional é dominada pelo imaginário patriarcal. A linguagem trinitária e
as fórmulas litúrgicas que falam de “Pai e Filho” criam facilmente a
impressão de que esse é o modo cristão definitivo de falar sobre Deus e
Jesus. Mas é importante perceber que o domínio da imagem pai/filho
reflete o fato de que o pensamento trinitário foi moldado em uma cultura
patriarcal e androcêntrica. Para imaginar o impossível: se a trindade fosse
formulada em uma cultura matriarcal, Jesus ainda seria referido como
“filho”, mas certamente não seria primariamente chamado de Filho do Pai.
[52]
Assim, não se trata de Jesus ser literalmente “o Filho de Deus”, embora
também possa ser chamado metaforicamente de outras maneiras, como a
Sophia de Deus. Em vez disso, as duas maneiras são metáforas. E o que
elas têm em comum é que ambas apontam Jesus como alguém cujo
relacionamento com Deus era tão íntimo e profundo que poderia ser
denominado como o filho do Abba e o filho de Sophia. Não sabemos (e
nunca saberemos) se esse modo de falar começou enquanto Jesus ainda
estava vivo ou se essas imagens estavam presentes em sua própria
consciência. Na verdade, é plausível ver uma conexão entre essa
terminologia e o que podemos conjeturar sobre sua experiência. A
similaridade das metáforas é consistente em ver o Jesus pré-ressurreição
como uma pessoa espiritual. Como alguém que conhecia o Espírito, Jesus
podia ter a imagem e/ou ter experienciado o Espírito como Abba e como
Sophia. Mas, além disso, Ele pensava em Si mesmo como “filho” (de
alguma maneira especial) daquele que Ele chamou de Abba? Ele pensava
em Si mesmo como um filho ou emissário da Sophia divina? Dada a
natureza de nossas fontes, é difícil imaginar como se pode fazer um
julgamento da probabilidade histórica sobre esse assunto em particular.[53]
No entanto, embora não possamos saber se essas imagens faziam parte
da autocompreensão de Jesus, é claro que imaginar Jesus como “Filho de
Deus” e como a “sabedoria de Deus” está no estrato mais antigo das
tradições que estavam se desenvolvendo no movimento. Assim, digam-nos
ou não essas imagens algo sobre a consciência de Jesus, elas nos põem em
contato com o primeiro estágio do processo comunitário da produção e
reflexão de imagens cristológicas. Surpreendentemente, “Filho de Deus” e
“Sophia de Deus” estão ambos fundamentados no primeiro estágio.
A presença das cristologias tanto do filho quanto da sabedoria no
movimento primitivo afeta a imagem popular de Jesus, o Jesus que
conhecemos primeiro. Essas presenças apontam para a
complementaridade do gênero quando pensamos em Jesus, fato ainda
completamente novo para muitas pessoas. Além disso, elas também
movem o pensamento cristológico para fora do enquadramento literal que,
na maior parte das vezes, acompanha a imagem popular. A multiplicidade
das imagens cristológicas primitivas — “filho”, “sabedoria” etc. — leva ao
reconhecimento de que essa linguagem é metafórica.
Esse reconhecimento subverte a impressão popular de que a fé cristã
envolve acreditar que Jesus era literalmente “o Filho de Deus”. É uma
subversão útil. A leitura literal de “Filho de Deus” restringe o escopo da
cristologia, dando primazia para uma única imagem. O que também é bem
difícil de acreditar, em parte por causa da incerteza sobre o que se afirma
quando se diz que Jesus era literalmente o Filho de Deus.
Mas quando o “Filho de Deus” é visto como mais uma metáfora entre
tantas, abre-se a possibilidade de uma compreensão muito mais rica do
significado de Jesus como experienciado e expressado no movimento
cristão primitivo. A questão é não mais acreditar que Jesus era literalmente
o Filho de Deus, mas apreciar a riqueza do significado sugerido pela
multiplicidade das imagens cristológicas. Ele era “o Filho”, sim, mas
também a encarnação do Verbo, que também era a Sophia de Deus. Ele
era o Filho de Deus, o logos de Deus e Sophia de Deus.[54]
CAPÍTULO 6
AS IMAGENS DE JESUS E AS IMAGENS DA VIDA CRISTÃ

COMECEI ESTE LIVRO DESTACANDO a importância e, muitas vezes, a


inconsciente conexão entre as imagens de Jesus e as imagens da vida
cristã. O estreito relacionamento entre as duas significa que o que está em
jogo na forma como pensamos Jesus é, em grande parte, como pensamos a
vida cristã.
A imagem de Jesus que esbocei nos capítulos anteriores é muito
diferente de Sua imagem popular, o Jesus que muitos de nós conhecemos
anteriormente. Seu próprio autoconhecimento não incluía pensar e falar
Dele mesmo como o Filho de Deus, cuja histórica intenção ou propósito
era morrer pelos pecados do mundo, e Sua mensagem não era sobre
acreditar Nele. Ao contrário, Ele era uma pessoa espiritual, um sábio
revolucionário, um profeta social e o fundador de um movimento que
convidava Seus seguidores e ouvintes a transformar seu relacionamento
com o mesmo Espírito que o próprio Jesus conhecia em uma comunidade
cuja visão social era formada pelo valor fundamental da compaixão.
Naturalmente, essa imagem de Jesus leva a uma imagem muito diferente
da vida cristã, cujas características já foram identificadas.
Neste último capítulo, quero ampliar nossa estrutura para pensar sobre
imagens de Jesus e da vida cristã, incluindo a Bíblia como um todo,
especialmente o Antigo Testamento. Há duas razões para ampliar nossa
estrutura. A primeira tem a ver conosco: assim como nossa imagem de
Jesus molda nossa imagem da vida cristã, ela também molda nossa imagem
das Escrituras. Em parte, isso acontece porque aprendemos sobre Jesus no
contexto da Bíblia, e nossa percepção sobre o que a Bíblia trata afetará
nosso senso de sobre o que Jesus tratava. As Escrituras moldam nossa
compreensão sobre Jesus. A segunda razão tem a ver com Jesus e o
movimento cristão primitivo. Tanto ele quanto Seus seguidores foram
formados no judaísmo, e as sagradas tradições de Israel — o Velho
Testamento — moldaram Sua maneira de ver, pensar e falar.
Em nosso esforço de ver o significado das Escrituras para eles e para
nós, seremos muito ajudados por uma relativamente recente ênfase no
estudo bíblico e teológico. Nas últimas duas décadas, um movimento
conhecido como teologia histórica tem chamado atenção para o caráter
narrativo da Bíblia, ou, de forma análoga, a importância da “história” nas
Escrituras judaicas e cristãs.[1]
Isso pode ser visto em três características da Bíblia. Há a estrutura
narrativa da Bíblia como um todo, que, em grande escala, pode ser
considerada como uma única história, começando com o Paraíso e sua
respectiva perda nos capítulos de abertura do Gênesis, passando pela
história da atividade redentora de Deus em Israel e por meio de Jesus, e
concluindo com a visão do Paraíso restaurada na visão final do livro do
Apocalipse. A centralidade da narrativa na Bíblia também aponta para o
fato de que ela contém, literalmente, centenas de histórias individuais. E,
finalmente, no meio das Escrituras está um pequeno número de “macro-
histórias” — as primeiras histórias que moldaram a imaginação religiosa e a
vida da antiga Israel, e também o movimento cristão primitivo.
A teologia histórica não apenas enfatiza a importância da história na
tradição bíblica como também critica muito da teologia cristã e do
moderno ensino histórico por terem obscurecido ou eclipsado essa
característica. A história como narrativa se perdeu. O estudo histórico
moderno da Bíblia também tendeu a perder a história, ou por buscar a
história por trás da história, ou por ter uma abordagem analítica que muitas
vezes perde a narrativa como um todo por se concentrar em pequenos
pedaços e peças. Em ambos os casos, a história como relato desaparece.
Essa teologia busca recapturar o caráter histórico das Escrituras.
Embora seja um movimento recente, sua abordagem é bastante antiga. Em
grande medida, a Bíblia tem suas origens na história e na narrativa oral.
Talvez devêssemos imaginar as pessoas da antiga Israel contando as
histórias de seus ancestrais ao redor de fogueiras, acompanhadas por
tambores. A imagem é, sem dúvida, romântica, mas também traz uma
verdade: grande parte da tradição bíblica originou-se na narrativa oral e foi
alimentada por ela. Assim também se deu com os Evangelhos; suas
tradições sobre Jesus foram transmitidas como narrativas orais muito antes
de se tornarem textos.
Além disso, o caráter histórico das Escrituras aplica-se não somente a
suas origens. Ele também se aplica em como as Escrituras foram usadas
por muitos séculos das tradições judaica e cristã. As pessoas comuns que
viviam em culturas antes do surgimento da impressão (isto é, aquelas que
viveram antes da invenção da impressão cerca de quinhentos anos atrás)
conheciam a Bíblia não como um conjunto de textos, mas como histórias
narradas oralmente. As histórias eram transmitidas e experienciadas de
diversas formas: visualmente, nas imagens da arte cristã, em especial nos
vitrais das igrejas a partir da Idade Média; musicalmente, em hinos e
baladas populares; verbalmente, em sermões; e ritualmente, nas missas,
nos grandes festivais e festas do calendário cristão.
Como uma forma particular do discurso religioso, as histórias
funcionavam de um modo muito particular. As leis religiosas falam de
como se comportar; a teologia e a doutrina falam de como entender e no
que acreditar; mas as histórias apelam para a imaginação, para aquele lugar
dentro de nós onde nossas imagens da realidade, da vida e de nós mesmos
residem. As grandes histórias da Bíblia retratam o que é a vida religiosa.
Neste capítulo, descreverei as que me parecem as mais importantes
histórias da tradição bíblica. Entender essas histórias e como elas retratam
a vida religiosa pode enriquecer muito a nossa imagem de Jesus e a nossa
imagem da vida cristã.

AS MACRO-HISTÓRIAS DAS ESCRITURAS


Minha tese central é a de que existem três “macro-histórias” no coração
das Escrituras configurando a Bíblia como um todo, e que cada uma dessas
histórias retratou a vida religiosa de um modo particular. Duas delas são
baseadas na história da antiga Israel: a história do êxodo do Egito e a do
exílio e retorno à Babilônia. A terceira, a história sacerdotal, baseia-se não
na história da antiga Israel, mas em uma instituição — isto é, o templo, o
sacerdócio e o sacrifício. Como essas três histórias mais centrais estão na
Bíblia hebraica, elas formaram o imaginário e a abordagem religiosa tanto
da antiga Israel quanto do movimento cristão primitivo.[2]
Quando brevemente descrevo essas histórias, enfatizo as imagens do
que é a vida religiosa mais central em cada uma delas. A base para essa
abordagem é a visão simples, mas brilhante, de William James, no rico
capítulo final de seu livro The Varieties of Religious Experience. James alega
que as tradições religiosas do mundo, reduzidas àquilo que elas têm em
comum, afirmam duas coisas. Primeiro, afirmam que, quando vivemos
nossa vida de modo comum, algo está errado, isto é, elas contêm uma
descrição da condição humana ou da situação humana. Segundo, falam de
uma solução para esse problema.[3]
Usando uma metáfora médica, as várias tradições religiosas dão um
diagnóstico da condição humana e uma prescrição para a cura. A partir do
pensamento de James, abordarei duas questões na discussão sobre as
macro-histórias nas Escrituras: como cada uma dessas histórias retrata a
condição humana e como representa a solução. Expondo de modo um
pouco diferente: como cada uma nos retrata e retrata nossa vida em
relação a Deus?

A HISTÓRIA DO ÊXODO

Para as pessoas da antiga Israel, a história do êxodo do Egito era sua


“narrativa primordial”, a mais importante que conheciam, a primeira que
formava sua identidade, a noção de quem eram e sua noção de Deus.[4]
Em torno dela, o documento sobre a fundação de Israel, o Pentateuco (o
primeiro dos cinco livros da Bíblia, também conhecido como Torá ou Lei),
foi criado.
Os pais deveriam contar aos filhos a história que estava no centro da
narrativa mais antiga sobre as origens de Israel:

Quando teu filho te perguntar mais tarde […] Tu lhe responderás: éramos escravos do
faraó, no Egito, e a mão poderosa do Senhor libertou-nos. À nossa vista operou o
Senhor prodígios, e grandes e espantosos sinais contra o Egito, contra o faraó e toda a
sua família. Tirou-nos de lá para conduzir-nos à terra que, com juramento, havia
prometido a nossos pais dar-nos.[5]
A história foi relembrada e liturgicamente celebrada várias e várias
vezes, sobretudo na festa anual do Pessach. É importante dizer que ela não
era vista somente como uma história sobre o passado, mas também sobre o
presente. Não era somente sobre seus ancestrais vivendo o êxodo do Egito
onde tornavam-se escravos do faraó e de onde foram levados por Deus. A
liturgia do Pessach prega:

Para sempre, em todas as gerações, todos devemos pensar em nós mesmos como tendo
vindo do Egito. Pois lemos na Torá: “Naquele dia, ensinarás a teu filho, dizendo: Tudo
isso é por causa do que Deus fez por mim quando saí do Egito”. Não eram apenas os
nossos antepassados que o Santo, abençoado Deus, redimiu; nós, também, os vivos, Deus
nos redimiu com eles, como aprendemos no versículo na Torá: “E Deus nos tirou daqui
para que Deus nos trouxesse para casa e nos desse a terra que prometeu aos nossos
antepassados”.[6]

Assim, essa história não é somente sobre a antiga Israel, mas também
sobre “nós, os vivos”. Como uma história tanto sobre o passado quanto
sobre o presente, ela retrata a condição humana e o relacionamento de
Deus conosco em todos os tempos.
Mas sobre o que é essa história? Basicamente, é uma história sobre
servidão, liberdade, uma jornada e um destino. Ela começa com os
hebreus como escravos no Egito sob o domínio do faraó. A vida no Egito
era marcada por uma política de opressão, uma economia de abundância e
uma religião de legitimação.[7] Embora talvez fosse uma vida confortável
para os membros da casa do faraó, para os escravizados era uma vida de
trabalho árduo e de rações magras e escassas, com o suficiente para
sobreviver, mas não mais que isso. A história, então, se passa com pragas e
autolibertação (a palavra êxodo literalmente significa “a saída” ou “estrada
afora”). Mas a partida do Egito não é o fim da história. Sair da dominação
do faraó leva o povo ao deserto e o coloca em uma jornada que dura
quarenta anos, cujo destino é a terra prometida, que, simbolicamente, é o
lugar em que Deus se encontra.
Como uma história sobre Deus e nós, o que ela quer dizer? Nosso
problema, de acordo com a história, é que vivemos no Egito, a terra da
servidão. Somos escravos de um senhor alienado, o senhor do Egito, o
faraó. Ela provocativamente retrata a condição humana como escrava, uma
imagem de dimensões e significados tanto político-culturais quanto
psicológico-espirituais. Ela nos incita a perguntar: “Do que sou escravo, do
que somos escravos?”.
A resposta para a maioria de nós é: “De muitas coisas”. Somos escravos
de mensagens culturais sobre como deveríamos ser e o que deveríamos ter
— mensagens sobre sucesso, atração, papéis de gênero, boa vida. Somos
escravos das vozes de nosso próprio passado e de vários tipos de hábitos.
O faraó que nos escraviza está tanto dentro quanto fora de nós. Quem é
o faraó dentro de mim que me escravizou e que não me deixa ir? Quais são
os instrumentos de medo e opressão que usa esse faraó que tenta manter o
controle sobre tudo? Quais pragas poderiam derrubá-lo?
Se o problema é a servidão, a solução, claro, é a liberdade. Na história
do êxodo, a liberdade começa à noite, na escuridão que precede o
amanhecer, que permite deixar o Egito, o reinado e a dominação do faraó.
Ela envolve atravessar para o outro lado do mar, uma passagem de um tipo
de vida para o outro. A liberdade envolve sair do domínio do faraó e do
domínio da cultura.
Entretanto, a liberdade não é o fim da história. Pelo contrário, “a saída”
leva a uma jornada na direção do deserto. Como um lugar que está além da
domesticação da cultura, o deserto é um lugar de liberdade, onde
encontramos e conhecemos Deus. Embora também possa ser um lugar de
medo e ansiedade, onde erigimos um bezerro de ouro depois do outro, e
onde, às vezes, nos vemos com saudades da segurança do Egito — das
“rações” do Egito, como conta a história. Pelo menos lá havia comida.
Porém, o deserto é também um lugar onde somos nutridos por Deus, pela
água que vem das pedras e pelo pão que vem do céu, e onde Deus viaja
conosco em um pilar de nuvens durante o dia e em uma coluna de fogo à
noite. A jornada dura muito tempo — quarenta anos, de acordo com a
história. Seu destino é a vida na presença de Deus. Contudo, Deus não é
simplesmente o destino, mas alguém a quem se conhece durante a
jornada. É uma jornada em direção a Deus, mas também com Deus.
Assim, como uma epifania da solução e da condição humana, a história
do êxodo retrata a vida religiosa como uma jornada que vai da vida de
servidão à vida na presença de Deus. Embora nos encontremos
escravizados pelo faraó, ela proclama, há uma saída. Através de sinais e
maravilhas, através da grande e poderosa mão de Deus, Ele pode nos
libertar; certamente Ele quer nossa libertação, anseia por nossa libertação,
partindo da vida em servidão à cultura para a vida como uma jornada com
Deus.

A HISTÓRIA DO EXÍLIO E DO RETORNO

Assim como a história do êxodo, a história do exílio e do retorno é baseada


em uma experiência histórica. O exílio começa em 587 a.C., quando,
depois de Jerusalém e seu templo serem conquistados e destruídos pela
Babilônia, alguns sobreviventes judeus foram levados ao exílio na
Babilônia, cerca de 1.287 quilômetros de distância. Lá, eles viveram como
refugiados, separados de sua terra natal e sob condições de opressão.[8] O
exílio terminou em 539 a.C., cerca de cinquenta anos depois, quando o
império babilônico foi conquistado pelos persas, cuja política imperial
permitiu que os exilados voltassem a suas terras natais.
Junto com o êxodo, essa experiência de exílio e retorno foi o evento
histórico mais importante que moldou a vida e a imaginação religiosa do
povo judeu.[9] Ela se engendrou na consciência desse povo e tornou-se
uma metáfora de sua relação com Deus.
Como uma imagem sobre Deus e nós, como uma epifania da solução e
da condição humana, o que ela quer dizer? Como é a vida no exílio?
Vivemos em um século no qual milhões de exilados e refugiados conhecem
de perto essa experiência. Para o resto de nós, é proveitoso imaginar como
é a vida no exílio. Essa é uma experiência de separação de tudo o que nos é
caro e familiar. Ela, normalmente, envolve impotência e marginalidade,
além de opressão e vitimização. Como a metáfora da servidão na história
do êxodo, ela tem dimensões psicológicas e político-culturais.
Separada de tudo a que a pessoa pertence, a vida no exílio é, muitas
vezes, marcada pela dor, como em um dos Salmos do exílio: “Às margens
dos rios de Babilônia, nos assentávamos chorando, lembrando-nos de
Sião”.[10] A mesma tristeza é expressa em um dos mais importantes hinos
da Igreja adventista: “Ó, vem, ó, vem, Emanuel. E salva o aflito Israel. Que
chora o exílio em seu viver”. O exílio de Israel é nosso exílio, e a vida no
exílio é marcada por profunda tristeza e dolorida solidão.
O sentimento de se estar separado e com saudades de casa nos toca
profundamente. É esse anseio que deu tanta popularidade ao filme E.T. —
O extraterrestre em 1982. Aqueles que viram o filme podem se lembrar da
pungência do pequeno extraterrestre ao apontar para o céu e dizer de
forma repetitiva e com a voz tomada por um prolongado anseio: “Casa”. É a
mesma saudade que aparece na expressão do hino evangélico que diz:
“Manso e suave, Jesus está chamando. Chama por ti e por mim”, com o
refrão: “Vem já! Vem já! Alma cansada, vem já!”.
Em nossa própria vida, a experiência do exílio como distanciamento ou
alienação pode ser sentida como uma igualdade, uma perda de conexão
com o centro da vitalidade e da significação, quando um dia se torna muito
parecido com o outro e nada tem muito sabor. Ansiamos por algo de que
talvez nos lembramos apenas de forma vaga. A vida no exílio, então, tem
um profundo significado existencial. É viver longe de Sião, o lugar onde
Deus está presente. Além disso, o exílio é central no simbolismo da
história do Jardim do Éden no livro do Gênesis. O jardim — paraíso — é o
lugar da presença de Deus, mas nós vivemos fora do jardim, a leste do
Éden.
Se nosso problema é o exílio, qual é a solução? A resposta é,
obviamente, uma jornada de retorno. O convite ao retorno soa por toda a
segunda metade do livro de Isaías, feito por um profeta cujo nome não é
revelado, mas cujas palavras estão entre as mais magníficas da Bíblia
hebraica:

Uma voz exclama: Abri no deserto um caminho para o Senhor, traçai reta na estepe
uma pista para nosso Deus. Que todo vale seja aterrado, que toda montanha e colina
sejam abaixadas: que os cimos sejam aplainados, que as escarpas sejam niveladas![11]

As palavras retratam um caminho de retorno, uma estrada que é


construída no deserto, levando da Babilônia de volta à Terra Prometida, de
volta para casa.
Assim, como na história do êxodo, a do exílio e do retorno é uma
história sobre a jornada. Ela retrata a vida religiosa como uma jornada ao
lugar onde Deus está presente, um retorno ao lar, uma jornada de volta
para casa.[12] E, como na história do êxodo, essa narrativa fala de Deus
ajudando àqueles que realizam a jornada:

[Deus] Dá forças ao homem acabrunhado, redobra o vigor do fraco. Até os


adolescentes podem esgotar-se, e jovens robustos podem cambalear, mas aqueles que
contam com o Senhor renovam suas forças; ele dá-lhes asas de águia. Correm sem se
cansar, vão para a frente sem se fatigar.[13]

A HISTÓRIA SACERDOTAL

Como já mencionado, a terceira história é baseada não em um particular


evento histórico, mas em uma instituição da antiga Israel — isto é, o
templo, o sacerdócio e o sacrifício. Nessa história, o sacerdote é o único
que nos torna justos com Deus por meio da oferta de sacrifício em nosso
nome.
A história sacerdotal nos leva a uma representação bem diferente da
vida religiosa. Não é uma história essencialmente de servidão, exílio e
jornada, mas uma história de pecado, culpa, sacrifício e perdão. São
centrais nela as noções de impureza, profanação e sordidez, ou o sentido
primordial de “estar manchado”, como diz Paul Ricoeur.[14] Essas noções,
portanto, também estão ligadas a imagens de limpeza, lavagem e
encobrimento.
Como essa história retrata a condição humana? Quem somos nós
dentro dessa narrativa? Não necessariamente pessoas escravas ou ansiosas
por voltar para casa. Nessa história, somos essencialmente pecadores que
violaram as leis de Deus e que, por isso, são culpados diante de Deus, o
legislador e juiz. Vista através das lentes dessa história, a vida religiosa
torna-se uma trajetória de pecado, culpa e perdão.

JESUS E AS MACRO-HISTÓRIAS DAS ESCRITURAS


Todas essas três histórias configuram a mensagem de Jesus, o Novo
Testamento, e a subsequente teologia cristã. A própria mensagem de Jesus
fala de servidão e exílio causados pelo mundo da sabedoria convencional e
pela noção de pecabilidade e impureza gerada pelo sistema purista. Os
autores do Novo Testamento falam dos significados da vida, morte e
ressurreição de Jesus usando imagens geradas por essas três histórias.
Essas histórias também configuraram a teologia da Igreja sobre Jesus ao
longo de séculos. Em seu ainda clássico trabalho sobre expiação, o teólogo
sueco Gustaf Aulen, há cerca de sessenta anos, identificou três principais
abordagens sobre a morte e a ressurreição de Jesus na história da teologia
cristã.[15] Aulen argumenta que a mais antiga delas é o que ele chama de
Christus Victor, uma frase em latim que significa “Cristo vitorioso”. É uma
imagem que entende o trabalho principal de Cristo como um triunfo sobre
“os poderes” que aprisionam o ser humano na servidão, incluindo o pecado,
a morte e o demônio. Como na história do êxodo, essa imagem vê a
condição humana como servidão e o trabalho de Cristo como liberdade.
“Os poderes” que nos escravizam são o faraó e o Egito em uma escala
cósmica.
Aulen chama a segunda principal abordagem sobre a morte e a
ressurreição de Cristo de imagem “substitutiva” ou “objetiva”. Essa imagem
retrata a morte de Jesus como um sacrifício pelo pecado, o que faz o
perdão de Deus possível. Embora a palavra sacrifício seja usada para falar
da morte de Jesus no Novo Testamento, Aulen argumenta que essa
abordagem sobre a morte de Jesus não se torna dominante na Igreja até o
início da Idade Média.[16] Essa abordagem claramente vê a morte de Jesus
através das lentes da história da absolvição dos pecados.
Uma terceira abordagem sobre a morte e a ressurreição pode, com
alguma modificação, ser correlacionada com a história do exílio.[17] Essa
terceira abordagem não retrata Jesus nem como aquele que triunfa sobre
os poderes nem como um sacrifício pelo pecado, mas como “revelação” ou
“descoberta”. A ênfase não está sobre Jesus realizando algo que
objetivamente muda o nosso relacionamento com Deus, mas sobre Jesus
revelando algo que é verdade. O que é revelado é mais de uma coisa. Às
vezes, a ênfase está sobre Jesus revelando como Deus é (por exemplo,
amor ou compaixão). Outras vezes, a ênfase está em Jesus como “a luz”
que nos mostra nossa casa vista a partir da escuridão do exílio. Outras
vezes, ainda, a ênfase está na morte e ressurreição de Jesus como a
personificação do caminho de retorno, uma revelação do processo
espiritual interno que nos leva a experienciar o relacionamento com o
Espírito de Deus. Nesse modo de ver Jesus, Ele é a encarnação do
caminho de retorno do exílio.
Mas, embora todas as três histórias fossem importantes para Jesus, para
o movimento primitivo e para a subsequente teoria cristã, uma delas — a
história sacerdotal — tem dominado a compreensão popular sobre Jesus e
sobre a vida cristã até os dias de hoje. Esse é, obviamente, o principal
elemento na imagem popular de Jesus como o salvador, cuja morte é um
sacrifício por nossos pecados, tornando possível, desse modo, o perdão de
Deus. Dizer “Jesus morreu por nossos pecados” é interpretar seu
significado dentro da estrutura do que chamamos de história da absolvição
dos pecados.
A centralidade da história sacerdotal na prática cristã é ilustrada não
apenas pela imagem popular de Jesus, mas também pelo lugar de destaque
dado à confissão dos pecados no culto cristão. Falando de minha própria
experiência ao crescer numa comunidade luterana, confessar nossos
pecados era parte do serviço matinal de todos os domingos:

Nós, pobres pecadores, confessamos diante de ti que somos por natureza pecadores e
impuros, e que pecamos contra ti pelo pensamento, pela palavra e pela ação. Por isso,
fugimos para o refúgio da tua infinita misericórdia, buscando e implorando tua graça,
por amor de nosso Senhor Jesus Cristo.

Embora as palavras variem, confissões similares têm sido parte regular


das celebrações dominicais. Na tradição católica romana, essa ênfase é
ainda maior, já que o ato de confissão é institucionalizado e (até bem
recentemente) a confissão pessoal frequente era obrigatória.
Assim, a história da absolvição do pecado, da culpa, do sacrifício e do
perdão é, mais comumente, a principal história que configura nossa noção
de quem somos, nossa imagem de Jesus e das exigências de Deus, e a
natureza da vida cristã. Porque estou prestes a ser muito crítico sobre a
história da absolvição, quero primeiro esclarecer seu poder e seu lado
positivo. A imagem de Jesus como um sacrifício por nossos pecados é um
sinal do grande amor de Deus por nós, como aquele familiar versículo que
tão resumidamente diz: “Com efeito, de tal modo Deus amou o mundo,
que lhe deu seu Filho único”.[18]
O significado da história da absolvição dos pecados é simples, direto e
revolucionário: fomos aceitos exatamente como somos. Um antigo hino
evangélico diz: “Exatamente como sou, sem nenhuma contestação”. Deus
nos ama exatamente como somos. Somos preciosos na visão de Deus. A
história da absolvição diz que nossa própria noção de pecado, impureza e
culpa não precisa estar entre nós e Deus. Isso significa que novos começos
são possíveis; não precisamos ficar presos à servidão pelo peso de nosso
passado. E algumas pessoas — aquelas para quem a questão principal de
sua vida é a culpa ou que têm uma autoestima radicalmente negativa —
precisam muito ouvir essa mensagem.
Entretanto, quando a história da absolvição do pecado se torna a
história dominante ou a única que retrata Jesus e a vida cristã, surgem
sérias limitações. Na verdade, limitações é um termo fraco. Quando a
história da absolvição domina o pensamento cristão, ela produz severas
distorções na nossa compreensão da vida cristã.[19] Posso listar seis dessas
distorções.
A história da absolvição dos pecados leva a uma compreensão estática
da vida cristã, fazendo-a entrar em um repetitivo ciclo de pecado, culpa e
perdão. Somos absolvidos a cada domingo, apenas para pecar novamente
durante a semana, e, assim, o ciclo se repete. A história da absolvição
geralmente não faz a pergunta: Você foi aceito, e agora?
Similarmente, ela cria uma abordagem bastante passiva da vida cristã,
em pelo menos dois sentidos. A história da absolvição do pecado leva à
passividade sobre a vida religiosa em si. Em vez de ver a vida como um
processo de transformação espiritual, ela enfatiza a crença de que Deus já
fez o que era preciso fazer. Isso conduz a uma passividade em relação à
cultura também. Podemos ver isso imaginando como nossa visão da vida
cristã seria diferente se nossos cultos religiosos regularmente incluíssem,
em vez da confissão do pecado ou alternando com ela, uma descrição da
condição humana decorrente das outras duas macro-histórias. E se
disséssemos: “Somos os escravos do faraó do Egito e suplicamos por
liberdade?”. Ou “Vivemos na Babilônia e pedimos por libertação?”
Podemos entender por que a Igreja, durante os muitos séculos em que foi
a religião oficial da cultura ocidental, enfatizou a confissão do pecado em
vez de dizer que a cultura em que vivemos é o Egito ou a Babilônia. A
história sacerdotal é uma história de dominação política. As histórias de
servidão no Egito e exílio na Babilônia são histórias culturalmente
subversivas.
A história da absolvição do pecado tende também a levar a uma
compreensão do cristianismo como uma primeira religião da vida após a
morte. A questão crucial advém de estar justo com Deus antes de morrer:
acredite agora para encontrar a salvação mais tarde.
Essa história retrata Deus principalmente como um legislador e um
juiz. As exigências de Deus devem ser satisfeitas e, quando não
conseguimos satisfazê-las, Deus graciosamente nos dá o sacrifício que as
satisfaz. Contudo, o sacrifício gera uma nova exigência: Deus irá perdoar
aqueles que acreditam que Jesus foi o sacrifício e não perdoará aqueles
que não acreditam. O perdão de Deus torna-se contingente ou
condicional. Não só é somente para aqueles que acreditam, mas também
só dura até que o pecado seja cometido novamente, o que só pode ser
removido por arrependimento. Assim, embora a história sacerdotal fale de
Deus como gracioso, ela coloca a graça de Deus dentro de um sistema de
exigências. A imagem abrangente do relacionamento de Deus conosco é
uma metáfora jurídica, que representa Deus como o doador e executor de
uma série de exigências. A história da absolvição do pecado muitas vezes
faz com que a sabedoria revolucionária de Jesus se confunda com a
sabedoria convencional cristã.
Finalmente, existe mais um problema com a história sacerdotal:
algumas pessoas não se sentem muito culpadas. É difícil saber o que fazer
com isso. Talvez algumas devessem sentir culpa, mas, honestamente, não
sentem; a culpa não é uma questão importante em sua vida. Contudo, elas
podem ter fortes sentimentos de servidão ou de alienação e afastamento.
Assim, para algumas pessoas, a questão principal da vida não é o
pecado e a culpa, mas a servidão e a vitimização por um ou outro faraó dos
nossos tempos. Para elas, o que significa a mensagem de pecado e perdão?
Infelizmente, muitas vezes, significa: “Você deveria perdoar a pessoa que
vitimiza você”, quando o que a vítima precisa ouvir é: “Não é o desejo de
Deus que você seja escravo deste (ou de qualquer outro) faraó”. Ou, se o
problema central é a alienação e a falta de significado, a mensagem que a
pessoa precisa ouvir é: “Não é o desejo de Deus que você permaneça na
Babilônia, não é o desejo de Deus que você fique nesse exílio solitário”.
Entretanto, quando a história da absolvição do pecado é entendida
como uma das três maneiras de representar a vida cristã, em vez de como a
maneira principal, os problemas relacionados com ela basicamente
desaparecem. Podemos ver isso ao identificar quatro elementos comuns
nas macro-histórias das Escrituras.
Primeiro, todas as três histórias são sobre sofrimento e sobre a
experiência de estar distante de Deus. De acordo com a história do êxodo,
vivemos uma vida de muito trabalho no Egito, em servidão a um senhor
alienado. De acordo com a história do exílio, vivemos na Babilônia,
ansiosos e apartados do centro de nosso ser. Segundo a história da
absolvição do pecado, nossas vidas são marcadas pela culpa, pela vergonha,
pela baixa autoestima e pela experiência de distância de Deus, que é
gerada por esses sentimentos.
Segundo, todas as três histórias fazem poderosas afirmações não apenas
sobre a condição humana como também sobre Deus. São histórias sobre
Deus, não somente sobre nós, e retratam Deus como intimamente
envolvido com a vida humana. Há um poder que deseja nossa liberdade,
uma luz que brilha na escuridão e nos convida a sair do exílio e voltar para
casa, uma presença compassiva que nos aceita exatamente como somos,
embora ainda não tenhamos como saber disso.
Terceiro, todas as três histórias também são histórias de esperança. Sua
firme mensagem é que Deus não deseja nossa condição atual, mas almeja
algo muito diferente para nós. Todas elas falam sobre recomeços trazidos
por Deus. A história do êxodo fala da liberdade da servidão e da
vitimização, a história do exílio fala das boas notícias do “retorno ao lar”, e a
história da absolvição do pecado afirma que nosso próprio passado não é a
palavra final sobre nós.
Quarto, todas as três histórias são sobre uma jornada. Isso é evidente
nos casos das histórias do êxodo e do exílio. Elas retratam a vida religiosa
não como um ciclo estático de pecado, culpa e perdão, mas como uma
jornada, que leva do Egito e da Babilônia para o deserto. É uma jornada de
liberdade e retorno ao lar. É uma jornada em direção a Deus e também
com Deus. Assim, também a história da absolvição do pecado, quando
propriamente entendida, é sobre uma jornada. Na própria Bíblia, as
regulações sobre o perdão dos pecados e o sacrifício (e também a
institucionalização da história da absolvição) estão no contexto da jornada
do Egito para a Terra Prometida.[20] No contexto da história sobre uma
jornada, a história sacerdotal afirma que Deus nos aceita exatamente como
somos, não importando em que lugar estamos na jornada. Além disso, a
internalização de uma nova identidade conferida pela história da absolvição
do pecado — de que sou aceito e amado por Deus — é um processo que
leva anos. E tal processo é em si uma jornada.
Então, até mesmo a história da absolvição do pecado é sobre uma
jornada. E é quando ela se separa das outras histórias sobre jornadas das
Escrituras que leva à distorção e ao empobrecimento da vida cristã da qual
falei.
Assim, temos três macro-histórias para retratar a vida religiosa. Pode-se
pensar nelas como constituintes de um “kit de ferramentas” pastoral, cada
uma endereçada a uma diferente dimensão da condição humana. Para
alguns, a necessidade é de liberdade; para outros, é o retorno ao lar; já para
outros, ainda, a necessidade é de aceitação. Mas, apesar de suas
diferenças, todas as histórias retratam a vida cristã como uma jornada cuja
qualidade principal é um profundo e transformador relacionamento com
Deus.

JESUS E A VIDA CRISTÃ COMO UMA JORNADA


A história de Jesus e nossa compreensão da vida cristã ficam muito mais
ricas e completas quando as vemos no contexto dessas três histórias, e não
simplesmente no contexto da história da absolvição do pecado. Todas as
três histórias informaram e configuraram a própria percepção de Jesus
sobre a vida religiosa e, consequentemente, Sua mensagem e atividade.
A sabedoria convencional que Ele subverteu tinha características tanto
de servidão quanto de exílio, Egito e Babilônia. A sabedoria convencional é
a vida sob o senhor da cultura, que é tanto opressiva quanto alienante, e a
mensagem de Jesus é sobre liberdade e retorno. Ele veio para “libertar os
cativos”, termos que se conectam às imagens tanto de servidão quanto de
exílio. A história do pródigo é configurada, em um nível mais profundo,
pela história do exílio: o pródigo vai para um “país distante”, distante de sua
casa, e a solução para seu dilema é uma jornada de retorno, uma jornada
para “casa”.
A ênfase que tanto os ensinamentos de Jesus quanto os próprios
Evangelhos dão ao “caminho” ou à “trajetória” também aponta para a
compreensão da vida religiosa como uma jornada. Jesus ensina um
“caminho”, e os Evangelhos são sobre “o caminho”.[21]
O relacionamento de Jesus com a história da absolvição do pecado é
um pouco diferente. Aqui Ele subverte a história em si. Sua subversão do
sistema purista destitui a imagem da condição humana na história da
absolvição como “maculada” ou impura.
Assim, a mensagem de Jesus e do Novo Testamento como um todo é
formada por todas as três macro-histórias principais da Bíblia hebraica,
embora cada uma delas funcione de maneiras diferentes. A história da
absolvição do pecado é subvertida, e a compreensão da vida religiosa é
retratada pelas histórias sobre jornadas. Além disso, o Novo Testamento
tem sua própria história sobre jornada — a história do discipulado. O
significado da palavra discípulo é a questão inicial. Ela não quer dizer “um
aluno de um professor”, mas “um seguidor de alguém”. O discipulado no
Novo Testamento, claro, nos convida a seguir Jesus, a seguir uma jornada
com Jesus.
Qual é a imagem que temos do discipulado ao olharmos para as
histórias sobre o relacionamento de Jesus e seus discípulos narradas nos
Evangelhos?[22] Convido você a ouvir o que se diz e que ressoa tanto o que
significava para os primeiros seguidores estar em contato com o Jesus pré-
Páscoa quanto o que significa para os seguidores de todas as gerações estar
em contato com o Jesus pós-ressurreição. Assim como as macro-histórias
do Antigo Testamento, a história do discipulado não é somente sobre o
passado, nem apenas sobre os discípulos em si, mas também sobre nós.
Em uma jornada com Jesus, o discipulado intenciona estar na estrada
com Ele. Isso significa ser um itinerante, um peregrino; não ter um lugar
para recostar a cabeça, um lugar de descanso permanente. Significa
empreender a jornada da vida de sabedoria convencional, da vida em seu
Egito ou em sua Babilônia, para a sabedoria alternativa da vida no Espírito.
A jornada com Jesus significa ouvir Seus ensinamentos e sempre tentar
compreendê-los, por mais complexo que isso possa parecer algumas vezes.
Essa jornada é realizada na companhia de Jesus, em Sua presença, ao
Seu lado. Há alegria em Sua companhia. Como o estudioso holandês
católico romano Edward Schillebeeckx comenta em seu maravilhoso e
denso estudo acadêmico sobre Jesus: “Estar triste na presença de Jesus é
uma impossibilidade existencial”.[23] Talvez alguém possa até sentir tristeza
em determinados momentos da vida, nada mais normal, porém esta jamais
será uma tristeza existencial.
Ser discipulado significa comer à mesa de Jesus e experienciar o Seu
banquete. Um banquete inclusivo, que abrange não só eu nem só nós, mas
também aqueles que tendemos a excluir. Significa estar nutrido e
alimentado por Ele. Esse parece ser o ponto em que Jesus alimenta os 5
mil no deserto, assim como Israel foi alimentado na jornada pelo deserto
na história do êxodo. Se pensarmos na Eucaristia como essas refeições no
deserto, ela torna-se um poderoso símbolo da jornada com Jesus e de ser
alimentado por Ele durante todo esse caminho. “Pegue, coma, para que a
viagem não seja muito árdua para você.”
Estar em jornada com Jesus também significa estar em comunidade,
tornar-se parte da comunidade de Jesus. O discipulado não é um caminho
individual, mas uma jornada na companhia de discípulos.[24] É a estrada
menos percorrida, mas o discipulado envolve estar em uma comunidade
que lembra e celebra Jesus. Embora esse não seja o único papel da Igreja,
é o principal. Usando a descrição muito adequada de John Shea para a
Igreja: “Reúna as pessoas, conte-lhes histórias, divida o pão”.[25]
Estar no discipulado envolve tornar-se compassivo. “Ser compassivo
assim como Deus é compassivo” é a marca que define o seguidor de Jesus.
A compaixão é o fruto da vida no Espírito e o caráter da comunidade de
Jesus.
Assim, temos o que eu chamaria de transformação da compreensão da
vida cristã, uma imagem mais rica e completa da vida cristã do que as
fideístas e moralistas imagens que descrevi no capítulo 1.[26] É a visão da
vida cristã como uma jornada de transformação, exemplificada pela história
do discipulado, assim como o é pelas histórias do êxodo e do exílio. Ela nos
conduz de uma vida submetida ao senhor da cultura para a vida de
companheirismo com Deus.
É uma imagem da vida cristã, principalmente, não como crendo ou
sendo boa, mas como um relacionamento com Deus. Esse relacionamento
não nos deixa inalterados, mas nos transforma em seres cada vez mais
compassivos, “em seres semelhantes a Cristo”. É a visão da vida cristã
defendida tão eloquentemente por Paulo em uma densa passagem de 2
Cor:

Mas todos nós temos o rosto descoberto, refletimos como num espelho a glória do
Senhor e nos vemos transformados nesta mesma imagem, sempre mais
resplandecentes, pela ação do Espírito do Senhor.[27]

Contemplando o Espírito, somos transformados em seres semelhantes a


Cristo.
Quero terminar falando sobre uma frase cristã muito familiar — creia
em Jesus — e em como ela está relacionada à imagem da vida cristã que
está emergindo neste livro. Para aqueles de nós que cresceram na Igreja,
crer em Jesus era importante. Para mim, o que essa frase queria dizer, em
minha infância e juventude, era “creia nas coisas sobre Jesus”. Crer em
Jesus significava acreditar no que os Evangelhos e a Igreja diziam sobre
Jesus. O que era fácil quando eu era criança, mas foi ficando cada vez mais
difícil conforme ficava mais velho.
Mas hoje eu vejo que crer em Jesus pode significar (e é) algo muito
diferente disso. A mudança é apontada pela raiz do significado da palavra
crer. Crer não tinha, originalmente, o significado de acreditar em um
conjunto de doutrinas ou ensinamentos; tanto em grego quanto em latim
sua raiz significa “dar o coração a alguém”. O “coração” é o eu em seu mais
profundo nível. Crer não consiste em dar um assentimento mental a
alguém, mas envolve um nível muito mais profundo do eu. Crer em Jesus
não significa acreditar nas doutrinas sobre Ele. Em vez disso, significa dar
o coração, o eu, em seu mais profundo nível, para o Jesus pós-Páscoa, que
é o Senhor vivo, o lado de Deus que se voltou para nós, a face de Deus, o
Senhor que é também o Espírito.
Crer em Jesus no sentido de dar o nosso coração a Jesus é o movimento
que vai de uma religião indireta para uma religião direta, de ouvir sobre
Jesus para estar com o Espírito de Cristo. E, finalmente, entender que
Jesus não é simplesmente uma figura do passado, mas uma figura do
presente. Encontrar Jesus — o Jesus vivo que vem a nós ainda hoje — será
como conhecer Jesus novamente pela primeira vez.
CADERNO DE IMAGENS

Abraão é, segundo acredita-se, um dos antepassados diretos de Jesus de


Nazaré. Abraão oferece presentes para Melquisedeque, afresco de Nicola
Marcola, 1766, oratório de São Biaggio, Stalo, Itália.
Manuscrito da primeira carta de Paulo aos Coríntios, extraída do segundo
volume da Bíblia de Borso d’Este, iluminada por Taddeo Crivelli. Modena,
Itália, século XV, Biblioteca Estense.
Basílica da Natividade, construída no local do nascimento de Jesus. A
estrela de prata marca o local exato onde Maria deu à luz seu filho.
Ruínas de escavações de casas na vila bíblica de Betsaida, localizada a cerca
de dois quilômetros do Mar da Galileia.
Rio Jordão, onde Jesus foi batizado por São João Batista, evento que marcou
o início de seu ministério público.
Ruínas da sinagoga de Carfanaum onde, segundo o Evangelho de São
Marcos, Jesus curou um homem de espíritos malignos durante uma de suas
pregações.
Como retratado no quadro clássico de El Greco, Limpeza do templo (antes
de 1570), Jesus expulsa os cambistas do Templo de Jerusalém.
Mar da Galileia — na verdade, um lago. Grande parte do ministério de
Jesus decorreu em suas margens. Segundo a crença cristã, Jesus chegou a
caminhar sobre suas águas e nelas realizou as Pescas Milagrosas conforme
narrado nos Evangelhos de Mateus, Lucas e João.
Monte das Oliveiras, localizado a leste de Jerusalém, um dos lugares mais
importantes da biografia de Jesus e de onde se crê que Ele ascendeu aos
Céus.
A cidade de Nazaré hoje. Ao centro, vê-se toda a imponência da Basílica da
Anunciação.
Interior da Basílica do Santo Sepulcro, com destaque para o monumento
erguido no local em que Jesus foi sepultado após a crucificação e de onde,
segundo a crença cristã, ressuscitaria três dias depois.
Apesar das controvérsias a respeito da real localização do Monte Calvário e
dos fortes indícios de que este ficava fora dos muros de Jerusalém, muitos
cristãos creem que Jesus foi crucificado onde hoje está a Capela de
Golgotha, no interior da Basílica do Santo Sepulcro.
Vitral retratando Jesus em igreja localizada em Kingairloch, na Escócia.
NOTAS

1. ENCONTRAR JESUS DE NOVO

1. Lc 2,1. A história continua até 2,20.

   [ «« ]

2. Essa ideia foi desenvolvida por Paul Ricoeur, que se refere à ingenuidade pré-crítica
como a “primeira ingenuidade”, e ao estado paralelo (mas bastante diferente) de
ingenuidade pós-crítica como “segunda ingenuidade” (ver minha discussão sobre esse
segundo estado mais adiante neste capítulo). Para um estudo excelente da abordagem de
Ricoeur das Escrituras, ver Mark Wallace, The Second Naiveté: Barth, Ricoeur, and the
New Yale Theology (Macon, GA: Mercer University Press, 1990).

   [ «« ]

3. Meu professor era Paul Sponheim, agora professor titular de teologia no Seminário
Luther Northwestern em St. Paul, Minnesota, e autor de uma série de livros sobre
teologia cristã.

   [ «« ]

4. O curso foi ministrado pelo pesquisador britânico W. D. Davies no Seminário Union


Theological em Manhattan. No espectro do estudo bíblico na época, Davies era
moderado, refletindo a moderação característica de boa parte da pesquisa britânica do
Novo Testamento.

   [ «« ]
5. A Igreja, no decorrer da história, se referiu consistentemente aos autores dos
Evangelhos como evangelistas. O termo, de modo correto, sugere que eles não são
repórteres desinteressados nem historiadores diretos, mas proclamadores de uma
mensagem: as “boas-novas” de uma nova vida disponível através de Jesus.

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6. Para uma excelente e acessível introdução a essa compreensão dos Evangelhos, ver W.
Barnes Tatum, In Quest of Jesus (Atlanta: John Knox, 1982). Um entendimento
acadêmico mais amplamente aceito é de que o Evangelho segundo São Marcos é o mais
antigo, escrito por volta de 70 d.C. Mateus e Lucas foram escritos cerca de dez a vinte
anos mais tarde, e ambos usaram Marcos, bem como o documento conhecido como
“Quelle”, uma coleção de provérbios de Jesus que totalizam cerca de duzentos versos,
talvez compilados em 50 d.C. João pode ser independente dos outros três Evangelhos e é
tipicamente datado por volta de 90 a 100 d.C.

   [ «« ]

* Esses Evangelhos são conhecidos como Sinóticos por conterem uma grande quantidade
de histórias em comum, na mesma sequência e, algumas vezes, utilizando exatamente a
mesma estrutura de palavras. Tal grau de paralelismo relativo a conteúdo, narrativa,
linguagem e estruturas das frases somente pode ocorrer em uma literatura
interdependente. Muitos estudiosos acreditam que esses Evangelhos compartilham o
mesmo ponto de vista e são claramente ligados entre si. (N. E.)

   [ «« ]

7. Jo 10,30. (N. T.)

   [ «« ]

8. Jo 14,9. (N. T.)

   [ «« ]
9. Fui em busca desses temas em minha tese de doutorado de 1972 em Oxford (orientada
por George B. Caird) e em meu primeiro livro sobre Jesus: Conflict, Holiness and Politics
in the Teachings of Jesus (Nova York e Toronto: Edwin Mellen, 1984), que é uma grande
revisão expandida da tese.

   [ «« ]

10. William James, The Varieties of Religious Experience, org. de Martin Marty (Nova
York: Penguin, 1982), publicado originalmente em 1902. Apesar de ter mais de um
século, essa obra clássica ainda é uma magnífica introdução a diversas experiências
religiosas em primeira mão.

   [ «« ]

11. Abraham Heschel, Man Is Not Alone: A Philosophy of Religion (Nova York: Farrar,
Straus and Giroux, 1951).

   [ «« ]

12. Rudolf Otto, The Idea of the Holy (Nova York: Oxford University Press, 1958),
publicado pela primeira vez na Alemanha em 1917.

   [ «« ]

13. At 17,28. Para outra conhecida passagem da Bíblia que fala de Deus como o Espírito
onipresente e envolvente, ver o Sl 139.

   [ «« ]

2. QUEM É ESSE HOMEM? O JESUS PRÉ-PÁSCOA


1. O primeiro estágio da obra do Seminário de Jesus foi publicado numa edição colorida
dos Evangelhos, na qual as falas de Jesus estão impressas nas quatro cores que
correspondem aos nossos votos: The Five Gospels: The Search for the Authentic Words of
Jesus (Nova York: Macmillan, 1993; o quinto Evangelho é o de Tomé). O segundo estágio
da obra do Seminário, The Acts of Jesus: What Did Jesus Really Do? (San Francisco:
Harper San Francisco, 1998), foca nos feitos de Jesus.

   [ «« ]

2. Ver Helmut Koester e Stephen J. Patterson, “The Gospel of Thomas: Does It Contain
Authentic Sayings of Jesus?”, Bible Review, pp. 26-39, abr. 1990. Ver também Stevan
Davies, The Gospel of Thomas and Christian Wisdom (Nova York: Seabury, 1983); John S.
Kloppenborg et al., Q Thomas Reader (Sonoma, CA: Polebridge, 1990); e Marvin Meyer,
The Gospel of Thomas (San Francisco: Harper San Francisco, 1992).

   [ «« ]

3. Ver, por exemplo, Elisabeth Schüssler Fiorenza, In Memory of Her (Nova York:
Crossroad, 1985), pp. 105-6, onde a autora nos fala de um amigo que teve que se esforçar
bastante para convencer uma sala de adultos em sua paróquia de que Jesus era judeu, só
para ter que ouvir no final alguém dizer: “Mas a Virgem Santíssima com certeza não era”.

   [ «« ]

4. Traduzido de E. Hennecke e W. Schneemelcher, New Testament Apocrypha (Filadélfia:


Westminster, 1963, 1965), vol. 1, p. 393. No episódio logo antes desse, Jesus diz para
outra criança: “Você, um insolente ímpio estúpido, […] secará como uma árvore e não
dará nem folhas, nem raízes, nem fruto”, e a criança “imediatamente secou
completamente”. O Evangelho da Infância de Cristo segundo Tomé (bem como outros
Evangelhos cristãos antigos) pode, atualmente, ser consultado em The Complete Gospels,
org. de Robert J. Miller (Sonoma, CA: Polebridge, 1992).

   [ «« ]
5. O registro de Lucas sobre Jesus deixando os mestres deslumbrados no templo aos doze
anos provavelmente representa um estágio anterior a esse processo.

   [ «« ]

6. Lendas tentaram preencher a lacuna ou os anos “silenciosos” de Jesus. Diversas


sugestões dizem que ele viajou à Índia, ou encontrou missionários budistas em Alexandria,
no Egito, ou estudou magia com magos egípcios, ou era parte de uma comunidade
Qumran às margens do Mar Morto. Porém, todas essas sugestões são especulações
extremamente hipotéticas, sobre as quais alguém poderia dizer: “É possível (virtualmente
quase tudo é possível), mas, por que alguém pensaria assim?”. Podemos dar conta de tudo
o que vemos em Jesus sem precisar criar hipóteses de influências fora da tradição judaica.

   [ «« ]

7. E Jesus provavelmente nasceu em Nazaré, não em Belém, tal é a inferência natural a


partir do nome pelo qual ele ficou conhecido: Jesus de Nazaré. A tradição segundo a qual
Ele nasceu em Belém é talvez parte da criação de símbolos do movimento dos cristãos
primitivos, que associava Jesus ao “Messias” e ao “Filho de Davi”, com a promessa de um
governante davídico que viria da “cidade de Davi” — ou seja, Belém. Ver Mq 5,2-4 e a
forma como a informação foi utilizada em Mt 2,5-6. Para um tratamento contemporâneo
dessa questão e da conclusão de que Jesus provavelmente nasceu em Nazaré, ver John P.
Meier, A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus (Nova York: Doubleday, 1991), vol.
1, pp. 214-6.

   [ «« ]

8. A base para esse julgamento é que José não é mencionado durante o ministério, apesar
de a mãe de Jesus e seus irmãos, sim. A tradição segundo a qual José era velho quando se
casou com Maria não tem base no Novo Testamento; ela foi provavelmente criada para
tornar mais plausível a tradição posterior a respeito da virgindade perpétua de Maria.

   [ «« ]
9. Alguns estudiosos contemporâneos são céticos a respeito do fato de haver sinagogas na
Galileia no tempo de Jesus, especialmente graças à ambiguidade da evidência
arqueológica da existência de prédios com sinagogas naquela época. A palavra sinagoga, no
entanto, significa simplesmente “assembleia” e não precisa se referir a um prédio
construído especialmente para esse propósito. Assim, questionar se havia prédios de
sinagogas não deve ser confundido com a questão se havia assembleias de sinagogas. Não
parece haver dúvidas sobre o fato de ter assembleias onde eram realizados ensino e
adoração.

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10. É interessante notar que esse “fato” amplamente aceito a respeito de Jesus está
baseado num pequeno pedaço da metade de um versículo dos Evangelhos.

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11. Esse termo é usado por E. P. Sanders em Judaism: Practice and Belief, 63 AEC-66 EC.
(Filadélfia: Trinity Press International, 1992). Para outro importante e recente estudo
sobre o mundo judaico no século I, ver N. Thomas Wright, The New Testament and the
People of God (Mineápolis: Fortress, 1992), pp. 145-338. Para ilustrações do mundo
social de Jesus conforme refletido nos Evangelhos, ver o muito útil e novo livro de Bruce
J. Malina e Richard L. Rohrbaugh, Social-Science Commentary on the Synoptic Gospels
(Mineápolis: Fortress, 1992). Ver também Frederick J. Murphy, The Religious World of
Jesus: An Introduction to Second Temple Palestinian Judaism (Nashville, TN: Abingdon,
1991).

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12. Para uma discussão mais completa sobre os feriados judaicos, ver E. P. Sanders,
Judaism, pp. 125-43.

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13. A Shemá tem a ver com Dt 6,4-5: “Ouve, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único
Senhor. Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas
as tuas forças”. As orações, duas vezes ao dia, aparentemente incluíam a recitação de
várias passagens bíblicas, além de Dt 6,4-5. Para uma discussão sobre a prática das
orações, ver E. P. Sanders, Judaism, pp. 195-208.

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14. William James, The Varieties of Religious Experience, pp. 189-258.

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15. Mt 11,11 = Lc 7,28.

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16. Por exemplo, John Dominic Crossan especulou que a execução de João levou Jesus a
repensar aspectos centrais da mensagem que Ele havia aprendido com seu mentor.
Muitos estudiosos notaram que a mensagem de Jesus se diferencia em importantes
aspectos daquela de João (incluindo, de acordo com Crossan, uma mudança de
entendimento entre o Reino de Deus apocalíptico ou não apocalíptico), e é possível que
as diferenças sejam (pelo menos em parte) resultado do trauma causado pela execução de
João pelos poderosos deste mundo.

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17. As frases são, respectivamente, de N. Thomas Wright, em N. Thomas Wright e


Stephen Neill, The Interpretation of the New Testament (Nova York: Oxford University
Press, 1988), pp. 379-403; James H. Charlesworth, Jesus Within Judaism (Nova York:
Doubleday, 1988), pp. 9-29; e Marcus J. Borg, “A Renaissance in Jesus Studies”, Theology
Today, n. 45, pp. 280-92, 1988.

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18. E. P. Sanders, Jesus and Judaism (Filadélfia: Fortress, 1985), p. 2.

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19. A frase vem de Burton L. Mack, A Myth of Innocence: Mark and Christian Origins
(Filadélfia: Fortress, 1988), p. 56. Mack pode ser visto, justamente, como o acadêmico
mais cético entre os estudiosos contemporâneos de Jesus, logo é significativo que ele
afirme essa possibilidade.

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20. Assim, acadêmicos que entendem a palavra escatológico de forma diferente podem
continuar a afirmar um entendimento escatológico de Jesus. Ver ensaios citados na nota
21.

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21. Para um relato mais completo desse desenvolvimento, ver meu ensaio “A Temperate
Case for a Non-Eschatological Jesus”, publicado simultaneamente em Foundations and
Facets Forum vol. 2, n. 3, pp. 81-102, 1986, e em Society of Biblical Literature: 1986
Seminar Papers (Atlanta: Scholars Press, 1986), pp. 521-35; “A Renaissance in Jesus
Studies”, Theology Today n. 45, pp. 280-92, 1988; “Portraits of Jesus in Contemporary
North American Scholarship”, Harvard Theological Review n. 84, pp. 1-22, 1991; e “Jesus
and Eschatology: A Re-Assessment”, em Images of Jesus Today, org. de James
Charlesworth e W. P. Weaver (Valley Forge, PA: Trinity Press International, 1994).

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22. Ver meu livro Jesus: A New Vision (San Francisco: Harper & Row, 1987).

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23. Relacionando esse esboço de Jesus adulto com a votação do Seminário de Jesus: a
declaração controversa e a “pincelada” que retrata Jesus como um mestre de uma
sabedoria revolucionária são sustentadas por uma ampla maioria dentro do Seminário. De
fato, elas são posições de quase consenso. Nas outras três “pinceladas”, o Seminário
acabou empatado, apontando para uma falta de consenso e sugerindo que tais questões
provavelmente continuarão em disputa na disciplina.

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24. Sua inabilidade de dar conta desse fato é, me parece, o maior problema com o filme
de alguns anos antes, A última tentação de Cristo. Para mim, seu aspecto mais
problemático foi o retrato de Jesus como sendo um tipo estabanado que não era bom nem
sequer em contar parábolas. Por que alguém seguiria um Jesus assim?

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25. Para um tratamento completo da maior parte do material desta seção, ver Marcus J.
Borg, Jesus: A New Vision, pp. 25-75.

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26. Apesar de pessoa espiritual às vezes me parecer uma expressão estranha, ela me
parece superior a outras alternativas possíveis. Já sugeri o motivo pelo qual santo não é um
termo satisfatório. Uma pessoa sagrada seria outra possibilidade; a expressão funcionaria se
fosse claramente entendida como uma “pessoa em contato com o sagrado”. Porém, penso
que pessoa sagrada seria mais provavelmente entendida como uma “pessoa divina”,
podendo, assim, ser mal interpretada como se referindo à divindade de Jesus.

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27. Essa outra camada da realidade é experimentada como transpessoal. Ou seja, apesar
de ser conhecida por alguém em sua própria subjetividade, ela é experimentada como
transcendendo os limites da própria pessoa. Essa esfera transpessoal é o que quero dizer
sobre um mundo do Espírito. As formas de imaginá-la ou conceitualizá-la vão desde o
“Eu-Tu” de Martin Buber, no qual o divino “Tu” é mediado, talvez de forma plena, através
do mundo cotidiano, passando pela distinção de Mircea Eliade entre sagrado e profano,
até o mundo dos arquétipos junguianos e a cosmologia xamânica.

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28. Concordo com aqueles que falam de cada tradição religiosa como um “mundo
cultural-linguístico”; ver, por exemplo, George Lindbeck, The Nature of Doctrine
(Filadélfia: Westminster, 1984). Assim, as religiões do mundo são claramente diferentes;
elas são tão diferentes quanto as culturas de onde surgiram. Ainda assim, sigo convencido
de que o ímpeto de criar tais mundos cultural-linguísticos surge de certos tipos de
experiências extraordinárias que são transculturais.

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29. James, Varieties of Religious Experience, p. 388.

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30. Dt 34,10.

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31. Ez 1,1.

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32. Geza Vermes, Jesus the Jew (Nova York: Macmillan, 1973), pp. 58-82. Essa segue
sendo a obra clássica sobre os santos judeus. Apesar de algumas das conclusões de
Vermes terem sido qualificadas por pesquisadores posteriores (ver, especialmente,
William Scott Green, “Palestinian Holy Men: Charismatic Leadership and Rabbinic
Tradition”, Aufstieg und Niedergang der Römischen Welt, vol. 19, n. 2, pp. 619-47, 1979),
seu argumento central de que houve figuras judaicas como essas quase na mesma época
que Jesus continua parecendo sólido.

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33. Para uma discussão de “fotismos” como algo que acompanha, às vezes, súbitas
experiências de conversão, ver James, Varieties of Religious Experience, pp. 251-3.

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34. 2Cor 12,1-4. Ver James D. Tabor, Things Unutterable (Lanham, MD: University Press
of America, 1986); e Alan E. Segal, Paul the Convert: The Apostolate and Apostasy of Saul
the Pharisee (New Haven, CT: Yale University Press, 1990), especialmente pp. 34-71.

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35. Mc 1,10.

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36. Estou ciente das dificuldades envolvidas na leitura de histórias das visões de Jesus em
Seu batismo e no deserto. Muitos estudiosos as relacionariam à crescente tradição no
período pós-Páscoa. Ainda assim, é bom lembrar que ambas podem ser encontradas,
respectivamente, em Marcos e no “Quelle”, as duas das primeiras camadas da tradição
dos Evangelhos. Pelo menos isso quer dizer que a tradição, num estágio primitivo de
desenvolvimento, apresenta Jesus como alguém que tinha visões, assim como muitas
figuras antes e depois Dele na tradição judaico-cristã. De forma interessante, o Seminário
de Jesus, quase sempre cético em relação a tais textos, ficou dividido quase meio a meio
sobre a questão se Jesus teve visões (numa votação que aconteceu na reunião do grupo na
primavera de 1992).

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37. Para mais informações sobre “falando da boca do Espírito” na tradição judaica, ver
Marcus J. Borg, Jesus: A New Vision, p. 46 e nota 34.

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38. Para um tratamento compacto do misticismo no judaísmo primitivo, ver Alan E. Segal,
Paul the Convert.

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39. Ver a breve nota de John Dominic Crossan em “Materials and Methods in Historical
Jesus Research”, Forum, vol. 4, n. 4, p. 11, dez. 1988: [a mensagem de Jesus sobre a]
“presença não mediada de Deus… era baseada na experiência mística, já que não tenho
nenhuma ideia sobre de onde mais ela poderia ter vindo”.

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40. Aqui também estou ciente das dificuldades históricas envolvidas ao dizermos que
Lucas de fato registra o que Jesus disse no começo de seu ministério. Ainda assim, eu
argumentaria que, independente da cena registrada em Lc 4,16-19 ser histórica ou uma
construção literária criada pelo evangelista, ela reflete com precisão o fato de Jesus ter
experimentado a si mesmo como o ungido pelo Espírito.

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41. Essa negação não nos impede de afirmar que Jesus foi uma epifania, ou revelação de
Deus, ou, como sugiro no capítulo 5, a corporificação ou encarnação da Palavra e da
Sabedoria de Deus. Ver também Marcus J. Borg, Jesus: A New Vision, pp. 191-2.

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42. O Iluminismo é a “grande divisão” na história intelectual do Ocidente que separa a
Era Moderna de tudo o que veio antes. O Iluminismo teve início no século XVII e gerou a
visão moderna com seu entendimento da realidade como material e “autocontida”,
operando de acordo com “leis naturais” de causa e efeito. Sobre os seus efeitos na religião,
ver W. T. Stace, Religion and the Modern Mind (Filadélfia: Lippincott, 1952); e Huston
Smith, Forgotten Truth: The Primordial Tradition (San Francisco: Harper & Row, 1976; 2.
ed., 1992), especialmente o capítulo 1.

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43. At 17,28.

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3. JESUS, COMPAIXÃO E POLÍTICA

1. Lc 6,36. Tenho três breves comentários a respeito desse versículo. Primeiro, ele é da
tradição primitiva; seu paralelo mais próximo em Mt 5,48 indica que era parte do
“Quelle”. Segundo, a palavra de Lucas (“compassivo”) deve ser preferida em relação a
Mateus (“perfeito”); o uso da palavra perfeito é uma característica demonstrável da
redação de Mateus. Finalmente, como presente em algumas traduções, prefiro a tradução
“compassivo” a “misericordioso”. “Misericordioso” tem conotações um tanto quanto
diferentes de “compassivo”, sobre o qual farei pequenos comentários mais adiante neste
capítulo.

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2. Devo esse insight e a linha de raciocínio dele derivado à obra de Phyllis Trible, God and
the Rhetoric of Sexuality (Filadélfia: Fortress, 1978), especialmente os capítulos 2 e 3.

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3. Respectivamente, 1Rs 3,26 e Gn 43,30. Ver Trible, God and the Rhetoric of Sexuality,
pp. 31-4.

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4. Ver, por exemplo, 1Rs 3,26, onde Salomão tem que decidir sobre as demandas de duas
mulheres como sendo a mãe do mesmo bebê. Quando Salomão propõe resolver a questão
cortando o bebê ao meio, a verdadeira mãe, nos é dito, é movida em suas entranhas, como
aparece na tradução da Bíblia Ave-Maria.

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* Apesar de a versão em inglês usar a palavra “útero” (“womb”), em português optou-se por
“entranhas”, em Gn 43,30. (N. E.)

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5. Ver, por exemplo, Ex 34,6; 2Cr 30,9; Ne 9,17.31; Sl 103,8; Jl 2,13; Jo 4,2.

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6. Por exemplo, Sl 24,6; 40,12; 50,3; 68,17; 76,9; 78,8; 102,4; 118,77; 144,8.

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7. Jr 31,20. A tradução do original em inglês é de Trible, God and the Rhetoric of


Sexuality, pp. 45, 50; com a exegese nas pp. 40-50.

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8. Na citação original em inglês de Lc 6,36 no segundo parágrafo deste capítulo, usei o
termo independente do gênero “Deus” no lugar de “Pai”, que é usado no texto grego:
“Sede misericordiosos, assim como também vosso Pai é misericordioso”. A justaposição de
“Pai” e “como um útero” é interessante e oferece material para especulação. Dá até para
imaginar Jesus dizendo: “Querem saber como o vosso Pai é? Vosso Pai celestial é como
um útero”. Talvez desse até para imaginá-lo dizendo isso dando uma piscadinha. Tal uso
jocoso, se bem que sério, da linguagem é característico da tradição de Jesus.

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9. Lv 19,2.

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10. Estou usando política aqui num sentido mais amplo para significar (conforme a raiz
grega sugere) um cuidado com a constituição da “cidade” (a palavra grega polis quer dizer
“cidade”) e, por extensão, tem a ver com a constituição de qualquer comunidade humana.

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11. Lv 19,2. O “código de santidade” que define a santidade como pureza está em Lv
17,26. As leis de pureza compiladas em Lv 11-16 eram igualmente importantes, bem
como outras leis de pureza espalhadas por todo o Pentateuco.

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12. Jerome Neyrey, The Social World of Luke-Acts (Peabody, MA: Hendrickson, 1991), p.
275. Neyrey apresenta uma das mais claras e acessíveis exposições do sistema de pureza
da Palestina judaica: ver pp. 271-304 do volume acima citado e sua “The Idea of Purity in
Mark’s Gospel”, em Semeia 35, org. de John H. Elliott (Decatur, GA: Scholars Press,
1986), pp. 91-128. Ver também William Countryman, Dirt, Greed, and Sex (Filadélfia:
Fortress, 1988), especialmente pp. 11-65. Countryman foca sua lúcida exposição no
relacionamento entre o sistema de pureza e a ética sexual.
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13. Existem definições tanto amplas quanto específicas do que constitui o sistema de
pureza. Mary Douglas, uma antropóloga cuja obra tem sido muito influente no estudo do
Novo Testamento, define um sistema de pureza, de forma bem ampla, como um sistema
cultural ordenado de classificação, linhas e limites que torna os termos sistema de pureza e
cultura quase sinônimos. Ver Purity and Danger: An Analysis of Concepts of Pollution and
Taboo (Londres: Routledge and Kegan Paul, 1966). De uma maneira mais específica, um
sistema de pureza pode ser entendido como um sistema cultural de classificação que faz
uso explícito da linguagem da pureza. O mundo social de Jesus era um sistema de pureza
não apenas no sentido amplo como também no específico.

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14. Citado em Jerome Neyrey, Social World of Luke-Acts, p. 279.

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15. A forma de funcionamento do sistema de pureza é um tanto quanto complexa, e uma


descrição detalhada está além do escopo deste livro. Deve ser enfatizado, no entanto, que
algumas violações das leis de pureza eram rotineiras, e suas consequências passageiras,
logo, de certo modo, não sérias; ou seja, tais violações eram tratadas pela simples
passagem do tempo e/ou por simples rituais. Por exemplo, a ejaculação tornava o homem
impuro até o dia seguinte. Porém, a não observância regular das leis de pureza tornavam a
pessoa cronicamente impura.

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16. Digo “talvez” porque a lista que menciona os pastores como pertencendo à categoria
“mais desprezada” por causa de sua ocupação pode ser encontrada em fontes judaicas
escritas depois do tempo de Jesus. Para as listas, ver Joachim Jeremias, Jerusalem in the
Time of Jesus (Londres: SCM, 1969), p. 304. Para um tratamento equilibrado se os pastores
eram párias no século I, ver Richard A. Horsley, The Liberation of Christmas: The Infancy
Narratives in Social Context (Nova York: Crossroad, 1989), pp. 102-6. Horsley conclui
que os pastores eram, de qualquer forma, da classe dos camponeses e, portanto,
marginais.

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17. Acredito ter sido Krister Stendahl, um erudito do Novo Testamento que foi diretor da
Harvard Divinity School antes de se tornar o bispo da Igreja da Suécia, quem disse, numa
palestra que ouvi há uns 25 anos a respeito da crença teológica, que todos os cristãos são
pecadores: “É claro, somos todos pecadores honorários”.

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18. Seguindo a argumentação de E. P. Sanders em Jesus and Judaism, p. 210, o termo


pecadores poderia se referir aos que eram notoriamente maus. Porém, o termo também foi
usado por vários grupos dentro do judaísmo para se referir a outros judeus que não
observavam as leis de acordo com os padrões daquele grupo. Ver o ensaio muito
esclarecedor de James D. G. Dunn, “Pharisees, Sinners, and Jesus”, em The Social World
of Formative Christianity and Judaism, org. de Jacob Neusner et al. (Filadélfia: Fortress,
1988), pp. 264-89 (especialmente pp. 276-80).

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19. Pr 11,28. (N. T.)

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20. Um esclarecimento importante: até onde eu sei, não existem descrições de pureza que
associem explicitamente riqueza com pureza e pobreza com impureza. Entretanto, um
sistema de pureza é mais do que a soma das leis de pureza explícitas de uma cultura.
Sistemas de pureza têm uma lógica e uma estrutura que fazem com que noções de pureza
e impureza se tornem associadas a outros contrastes centrais na sociedade.

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21. Ver, por exemplo, William Countryman, Dirt, Greed, and Sex, pp. 28-30; depois de
examinar os textos do Pentateuco, ele conclui: “Não seria exagerado sugerir que os textos
demonstram uma ansiedade geral a respeito do potencial de contaminação das mulheres”.

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22. Ver o mapa de pureza em Jerome Neyrey, The Social World of Luke-Acts, pp. 278-9,
que consiste em dez círculos concêntricos de graus decrescentes de santidade/pureza
radiando a partir do templo em Jerusalém. No seu centro está a parte mais sagrada do
templo, o Santo dos Santos; o círculo mais exterior é a própria terra de Israel, que é
“santa” (e esse é um dos significados da terra santa: ela é santa e tem que ser mantida
pura). Além de Israel, tudo é “impuro” — ou seja, “fora do mapa de pureza”.

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23. Além dos dízimos pagos para o templo e o sacerdócio, os camponeses judeus também
estavam sujeitos aos impostos para as autoridades herodianas (na Galileia) e romana (na
Judeia). Não sabemos se o pagamento dos dízimos envolvia, de forma consistente, a
ameaça constante de coerção física, entretanto sabemos que isso acontecia de vez em
quando. De qualquer forma, há relatos de coerção social e econômica. Os judeus que não
observassem as leis (incluindo os que não pagassem os dízimos) sofriam ostracismo social
daqueles comprometidos com a pureza; e a classificação da produção de quem não pagava
o dízimo como impura — e portanto não deveria ser comprada pelos que observavam as
leis — levava a um boicote econômico. É difícil saber quão eficaz era o boicote. Mas
talvez ele fosse significativo. Se supusermos que a maior parte da aristocracia rica — em
geral os grandes donos de terras — estava comprometida com a pureza (como talvez eles
fossem, dado que as famílias dos sumos sacerdotes estavam no centro da aristocracia), é
possível imaginá-los se recusando a comprar a produção de seus coprodutores, a não ser
que os dízimos tenham sido pagos antes.

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24. A busca pelos fariseus históricos já causou tanta diversidade quanto a busca pelo
Jesus histórico. O retrato quase sempre negativo deles em muitos círculos cristãos e sua
imagem na linguagem popular como “hipócritas” (e pior) são certamente errados. Eles, de
fato, eram devotos. No entanto, existe uma discordância acadêmica considerável a
respeito de quem eles eram no tempo de Jesus, a extensão de sua influência e atividade
etc. Para uma coletânea aparentemente equilibrada e compacta do debate acadêmico, ver
James D. G. Dunn, “Pharisees, Sinners, and Jesus”.

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25. Para uma abordagem da “pesquisa atual”, ver o livro popular de Hershel Shanks et al.,
The Dead Sea Scrolls After Forty Years (Washington, DC: Biblical Archaeology Society,
1991), e o mais acadêmico Understanding the Dead Sea Scrolls, org. de Hershel Shanks
(Nova York: Random House, 1992). Para uma discussão resumida questionando a
identificação do Qumran, os Manuscritos do Mar Morto e os essênios, ver Norman Golb,
“The Qumran-Essene Hypothesis: A Fiction of Scholarship”, Christian Century, pp. 1138-
43, 9 dez. 1992.

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26. Dois importantes acadêmicos contemporâneos discordam a respeito da extensão pela


qual os judeus observavam as leis de pureza. Jacob Neusner, o mais importante erudito
judeu de seu tempo, pensa que os “judeus comuns” não as observavam; E. P. Sanders,
que escreveu longamente a respeito do judaísmo nesse período, acha o contrário. Ver E.
P. Sanders, Judaism, p. 229.

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27. Lc 11,42 = Mt 23,23, logo, o material “Quelle” (portanto, parte da tradição bem
antiga). A passagem acaba com: “No entanto, era necessário praticar estas coisas, sem
contudo deixar de fazer aquelas outras coisas”. Esta última frase talvez indique que Jesus
aprovava o dízimo e simplesmente lamentava que se negligenciassem assuntos mais
densos, como justiça; ou a frase poderia ser muito bem entendida como irônica.

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28. Lc 11,44, com um paralelo “parcial” em Mt 23,27.

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29. Mc 7,15.

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30. Mt 5,8. Ver também Mt 23,25-26 = Lc 11,39-41. A respeito de Mt 5,8, não podemos
ter certeza se Jesus disse isso. As palavras só aparecem em Mateus, e num contexto que
parece que elas foram “construídas” para servir ao contexto (as bem-aventuranças do
Sermão da Montanha). Por outro lado, elas são tão claramente coerentes como os dizeres
autênticos de Jesus que é possível argumentar que elas representam a essência do que Ele
disse sobre pureza, mesmo que não tenha dito exatamente essas palavras.

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31. Lc 10,29-37.

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32. Mc 5,1-20. Em sua forma presente, a história contém muitos elementos simbólicos,
de modo que é difícil discernir até que ponto existe um evento histórico por trás dela. A
questão, no entanto, é que a história em sua forma presente anula o universo simbólico do
sistema de pureza.

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33. A frase é do importantíssimo livro acadêmico de John Dominic Crossan sobre Jesus,
The Historical Jesus: The Life of a Mediterranean Jewish Peasant (San Francisco:
HarperSanFrancisco, 1991). Crossan considera essa “mesa aberta” como um dos aspectos
mais radicais a respeito da ação de Jesus; a outra é a “cura gratuita”, que oferecia acesso
ao poder divino fora da autoridade religiosa estabelecida.

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34. O uso de “imundo” aqui não deve ser, é claro, entendido no sentido de sujeira física
(apesar de alguns dos acompanhantes de Jesus à mesa terem sido, muito provavelmente,
sujinhos). Em vez disso, imundo tem um significado dentro do sistema de pureza.

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35. E a comunhão à mesa de Jesus não data simplesmente da “Santa Ceia”. Não sabemos
de verdade se Jesus teve uma “Santa Ceia” com seus discípulos. As histórias da Santa
Ceia nos Evangelhos podem ter sido o resultado de uma ritualização embrionária realizada
pela comunidade primitiva da tradição das refeições em vez de uma lembrança histórica
da última noite da vida de Jesus. Não devemos, me parece, nesse exemplo, ir além de
“não sabemos”.

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36. Elisabeth Schüssler Fiorenza, In Memory of Her, pp. 106-10, 115-8.

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37. Ver o comentário em Walter Wink, Engaging the Powers (Mineápolis: Fortress, 1992),
p. 129: “Em todos os encontros com mulheres nos quatro Evangelhos, Jesus violou as
regras do seu tempo”; para uma visão expandida de Wink a respeito desse assunto, ver pp.
129-34. Todo esse capítulo sobre o “sistema de dominação” dos judeus palestinos do
primeiro século e a resposta de Jesus a eles (pp. 109-37) é consistente com as alegações
que desenvolvo nesse capítulo.

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38. Lc 7,36-50; 10,38-42; Mc 7,24-30.

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39. As frases citadas são usadas com frequência em Schüssler Fiorenza, In Memory of
Her.

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40. At 8,26-40.

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41. Ver, por exemplo, Dt 23,1. O eunuco na história dos Atos dos Apóstolos também é
um gentio, logo, fora do sistema de pureza do judaísmo. Porém, a questão segue em
aberto: como um eunuco, ele não poderia se converter ao judaísmo.

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42. Gl 3,28.

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43. Ver, especialmente, Robert Bellah et al., Habits of the Heart (Berkeley: University of
California Press, 1985). Baseado num longo estudo dos americanos de classe média, ele
argumenta que o elemento dominante do éthos americano é o individualismo, que afeta
tudo, desde o amor e o casamento até o trabalho, da política e a justiça até a religião. Ver
também uma continuação em Bellah et al., The Good Society (Nova York: Alfred A.
Knopf, 1991).

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44. Ver Bellah et al., Habits of the Heart e The Good Society.

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45. Por “ser”, tento expressar uma noção difícil, porém óbvia: a saber, aquilo que “é”
independentemente dos mapas que criamos com linguagem e sistemas de ordenamento.
Central dentre essas criações estão os mapas sociais baseados em distinções geradas
culturalmente. Esses mapas se tornam a fonte de identidade, criando uma diferenciação
social além de limites sociais. Mas todos esses mapas são construções artificiais impostas
sobre o que “é” e sobre o que “somos”. Subjacente ao mundo que construímos com a
linguagem está o “ser”.

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4. JESUS E A SABEDORIA: O MESTRE DA SABEDORIA ALTERNATIVA

1. O consenso flui da convergência de duas vertentes de pesquisa que se estendem pelos


últimos vinte anos: intenso estudo das formas verbais do ensino de Jesus (principalmente
aforismos e parábolas, ambas formas de discurso de sabedoria, assunto do qual falaremos
bastante neste capítulo) e a análise da tradição oral, que argumenta que as informações
mais antigas eram dominadas por formas de sabedoria. Estudos recentes do Evangelho de
Tomé (que, como mencionado anteriormente, é visto por muitos estudiosos como um
material tão antigo quanto os Evangelhos Sinóticos) corroboram o cerne da sabedoria da
tradição de Jesus: Tomé, como o Quelle, a fonte comum dos Evangelhos Sinóticos, é um
documento de sabedoria. As divergências entre os estudiosos de Jesus não se centram na
determinação do fato de que Jesus era um professor de sabedoria, mas na possibilidade de
haver outros “acordes” mais importantes que deveriam ser considerados num esboço de
Jesus.

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2. Lao-Tsé (China, século VI a.C.), a quem se atribui a autoria de uma coletânea curta de
ditos alusivos e evocativos conhecidos como O Tao Te Ching (com o “t” pronunciado
como “d”). Sua influência é importante para o zen-budismo, assim como para o próprio
taoismo. Os ensinamentos de Buda (quase um século mais tarde, na Índia) subverteram o
mundo e a tradição hindus em importantes aspectos. No seu cerne estava “o caminho das
oito vias”, que se afastava do mundo das convenções.

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3. Para um relato sobre o julgamento e a execução de Sócrates, ver os diálogos de Platão
Eutífron, Apologia, Crípton e Fédon, disponíveis em muitas edições. É impressionante que
Sócrates e Jesus, as duas figuras mais centrais nas tradições ocidentais de filosofia e
religião, foram ambos executados. Claramente, desafiar a sabedoria tradicional é algo com
frequência percebido como ofensivo e ameaçador.

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4. Os dois tipos de sabedoria são encontrados na tradição judaica antes de Jesus. O Livro
da Sabedoria da Bíblia judaica inclui Provérbios, Eclesiástico e Jó. Muitos dos Provérbios
(em especial a coletânea de ditos nos capítulos 10 a 30) expressam a sabedoria
tradicional, enquanto as vozes dos autores de Eclesiástico e Jó são uma tradição
subversiva e alternativa. Assim, temos uma tensão ou dialética dentro da própria sabedoria
tradicional. De fato, Eclesiástico e Jó podem ser aceitos como um questionamento radical
da crença fácil da sabedoria tradicional dos Provérbios, que diz que, se uma pessoa vive da
forma correta, tudo vai bem. Para uma excelente e acessível apresentação à sabedoria
judaica, incluindo um tratamento elogiável dos Provérbios, veja Kathleen M. O’Connor,
The Wisdom Literature (Wellington, DE: Michael Glaser, 1988).

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5. Mt 7,13-14.

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6. Muitos dos temas deste capítulo também são tratados em meu livro Jesus: A New
Vision, pp. 97-124.

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7. O estudo de aforismos mais academicamente compreensível é de John Dominic


Croissant, In Fragments: The Aphorisms of Jesus (San Francisco: Harper & Row, 1983). Eu
me referi aos aforismos como “grandes frases de efeito”, mesmo que algumas vezes eles
sejam muito compridos. De qualquer forma, até os mais longos (como “Olhai as aves…
Considerai como crescem os lírios do campo…” em Lc 12,22-31 = Mt 6,25-34) são
considerados memoráveis como discursos orais.

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8. Lc 16,13 = Mt 6,24; Lc 6,44 = Mt 7,16; Lc 6,39 = Mt 15,14; Lc 9,60 = Mt 8,22; Mt


23,24. Um aforismo pode até parecer com seu parente mais próximo, o provérbio, porém
não são a mesma coisa. Ambos são curtos, marcantes e projetados para serem recordados
em uma cultura oral. Um provérbio, no entanto, apresenta tipicamente a sabedoria popular
— a sabedoria coletiva e tradicional da cultura em si. Um aforismo apresenta um ponto de
vista ou uma perspectiva nova de um indivíduo em particular. Daí o contraste essencial
entre sabedoria coletiva e sabedoria individual.

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9. Mt 5,7. Existe material similar em Lc 6,20-49 e outros materiais semelhantes


espalhados nesse mesmo Evangelho. Isso indica que muitos dos dizeres individuais do
Sermão da Montanha são originados no “Quelle”, e o sermão como um todo, já alinhavado,
é uma criação de Mateus.

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10. Há exceções, é claro. Pode-se imaginar um número de ditos paralelos sendo


enunciados em uma única ocasião (por exemplo, uma coleção de beatitudes ou
infortúnios) e pode-se imaginar um trecho mais longo como “Olhai as aves… Considerai
como crescem os lírios do campo…” como um discurso vinculado. Mas o que não se pode
imaginar é “Olhai as aves… Considerai como crescem os lírios do campo…”, seguido de
“Não julgue e não serás julgado”, e depois por “Por que olhas a palha que está no olho do
teu irmão”, imediatamente seguido por “Não lanceis aos cães as coisas santas”, e assim por
diante, como Mateus as apresenta (quer dizer, Mt 6,25-34 seguido de Mt 7,1).

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11. A ideia que temos no cerne tem duas implicações. A primeira significa que nunca
temos uma citação direta (ou, se temos, é acidental, e não temos meios de reconhecê-la
como tal). Crossan apresenta um exemplo clássico (In Fragments, p. 38): “A maioria dos
americanos conhece a ideia da famosa frase de Franklin D. Roosevelt sobre o medo, mas
ele disse: ‘Vocês não têm nada a temer além do medo em si’, ou ‘Não há nada a temer
além do próprio medo’, ou…?”. Crossan lista então outras quatro possibilidades. O ponto
aqui é: podemos conhecer o cerne sem ter certeza da citação exata. Em segundo lugar,
precisamos estar cientes de que o cerne pode às vezes ser mais do que uma frase a ser
memorizada ou sublinhada de forma individual. Ele também pode ser o resumo de um
discurso mais longo e, nesse caso, devemos olhar o dito não como tendo uma função
própria ao pairar no ar sozinho, mas como o tema central de um ensinamento mais longo.

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12. Lc 9,59-60 = Mt 8,21-22 (e, daí, temos um “Quelle”). A terra dos mortos é um local
de obrigação filial: os que querem se tornar seguidores pedem tempo para enterrar seu
pai, uma das mais sagradas obrigações do mundo de Jesus.

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13. Mt 23,24.

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14. Mt 6,24 = Lc 16,13.

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15. Lc 6,44 = Mt 7,16.

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16. Lc 6,39 = Mt 15,14.

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17. Dos muitos livros acadêmicos escritos sobre as parábolas nos últimos vinte anos, o de
Bernard Brandon Scott, Hear Then the Parable (Mineápolis: Fortress, 1989), é o mais
indicado para a compreensão desse ponto.

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18. Respectivamente Lc 13,21 = Mt 13,33.44.

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19. De fato, a raiz da palavra parábola significa “jogar junto com”. Uma parábola é uma
história “jogada junto com” alguma situação da vida.

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20. Lc 12,57; Mt 21,28.

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21. Mc 8,18.

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22. Mt 6,22-23 = Lc 11,34-35. É talvez mais comum ler esta passagem como se o olho
fosse a maneira como o interior do corpo é iluminado, uma leitura incentivada pelo resto
da passagem. Ao ler isso, é como se o olho fosse uma janela que deixa a luz entrar no
corpo. Minha sugestão é ler, no entanto, interpretando a passagem como uma analogia do
versículo, em Sl 118,105: “Vossa palavra é um facho que ilumina meus passos, uma luz
em meu caminho”. Aqui a imagem é a de uma lâmpada que ilumina o caminho enquanto
alguém viaja. Chamar o olho de luz do corpo é dizer que a maneira como uma pessoa
enxerga ilumina seu caminho.
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23. O termo superego vem, é claro, de Freud. O termo alemão que ele usou era mais
expressivo: das Über-Ich — “o que está acima de mim”. Quer se goste ou não de Freud,
me parece que o termo indica uma realidade psicológica conhecida de todos: um
mecanismo interno que nos elogia ou castiga com base na comparação entre nós e os
nossos padrões. Para a diferença entre superego e consciência, veja o artigo esclarecedor
de John W. Glaser, “Conscience and Superego”, Psyche and Spirit, org. de John J. Heaney,
ed. rev. (Nova York: Paulist, 1984), pp. 31-49.

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24. Robin Scroggs, Paul for a New Day (Filadélfia: Fortress, 1977), p. 10.

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25. Os termos pertencem, respectivamente, a James Fowler, Sam Keen e Elizabeth


Liebert. A compreensão de Fowler para os estágios da vida é encontrada em muitos de
seus trabalhos. Becoming Adult, Becoming Christian (San Francisco: Harper & Row,
1984) é especialmente esclarecedor. Para Keen e Liebert, veja Sam Keen, The Passionate
Life (San Francisco: Harper & Row, 1983); e Elizabeth Liebert, Changing Life Patterns:
Adult Development in Spiritual Direction (Nova York: Paulist, 1992).

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26. A compreensão freudiana segundo a qual as tradições religiosas geralmente


identificam o superego como a voz de Deus me parece correta. Em culturas ou
comunidades que afirmam que sua organização básica vem de Deus, é natural que a voz
do superego, quando emite julgamento, seja identificada com ele. Freud, no entanto, de
forma inadequada, apreciava a maneira como formas de religião podiam subverter culturas
e o próprio superego.

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27. As frases são de Walter Brueggemann, The Prophetic Imagination (Filadélfia: Fortress,
1978), cap. 1.

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28. Existe uma variedade de concepções do Reino de Deus no primeiro século do


judaísmo, e não sabemos se alguma era dominante ou não: um reino terreno que surgiria
de uma guerra contra Roma ou pela intervenção divina; um reino completamente
sobrenatural estabelecido no além, que substituiria este mundo; ou talvez até um reino
místico. Todas elas, entretanto, estão de acordo que o Reino de Deus era algo “grandioso”
e direcionado a “Israel,” não importa como fosse definido. As visões dos tempos gloriosos
por vir não necessariamente excluíam os gentios, porque algumas dessas visões os
apresentavam caminhando para Jerusalém. Mas até nessas visões Israel continuava no
papel central, é claro, porque é para o Deus de Israel e para a capital de Israel que as
pessoas marcham.

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29. Mc 4,30-31.

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30. Mt 13,33 = Lc 13,20-21.

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31. Para a compreensão das crianças como seres sem nenhum valor, ver em especial John
Dominic Crossan, The Historical Jesus, pp. 266-9. A tendência de ver as crianças como
símbolo do simples é muito difundido, o produto de uma defesa simplória contra a
ameaça representada pelo conhecimento iluminador que, em teoria, poderia corroer a fé.

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32. Mt 8,11-12 = Lc 13,28-30.

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33. Ao escrever as duas últimas frases, me coloco ao lado desses acadêmicos que veem o
Reino como uma realidade presente na mensagem de Jesus, e não como uma realidade
que está para acontecer num futuro próximo.

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34. Mt 7,13-14; ver também Lc 13,24. De certa forma paradoxal, a porta estreita é aqui
descrita como “dura” e também “fácil”. Ver Mt 11,28-30.

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35. Mt 6,24 = Lc 16,13.

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36. Lc 14,16-24 = Mt 22,1-10 = Tomé 64; Lc 12,13-21; 16,19-31.

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37. Mc 10,25.

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38. Mt 6,26-29 = Lc 12,24-27.

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39. Mt 6,30 = Lc 12,28.

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40. Mt 5,45.

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41. Lc 12,6-7 = Mt 10,29-31.

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42. Mt 20,1-15.

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43. Mt 20,15.

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44. Lc 15,11-32. Apesar de essa parábola só ser encontrada no Evangelho segundo São
Lucas, um consenso virtual de acadêmicos aceita que ela reflete a voz de Jesus. Lucas
aqui nos fala de uma única “apresentação” (provavelmente resumida) de uma história oral
contada por Jesus.

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45. Como salientamos no capítulo anterior a respeito da Comunhão de Jesus — um


banquete que é peça central nos Evangelhos —, é tentador generalizar e sugerir que Jesus
encarava a vida como um banquete do qual muitos se excluíam devido a percepções e
preocupações oriundas de sua imersão no mundo da sabedora tradicional.

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46. Lc 19,41-44. Passagens que indicam que Jesus avisou sobre a destruição que se
abateria sobre Jerusalém (o centro das elites no poder) como um evento histórico, de uma
forma bem parecida com a realizada pelo profeta Jeremias, podem ser encontradas nas
camadas mais profundas da tradição (nos Evagelhos Quelle e no Evagelho de Marcos),
bem como em passagens que só aparecem em Lucas.

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47. Mc 12,29-30. Essas palavras compõem o mandamento mais importante na tradição


antiga. É uma citação de Dt 6,5, na parte da Shemá, e vista como a cristalização da
obrigação primária ancestral de Israel para com Deus.

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48. Mc 7,6-8.

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49. Lc 14,27 = Mt 10,38; Mc 8,34.

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50. Esse aspecto é enfatizado por Stephen Mitchell na apresentação de seu livro The
Gospel According to Jesus (Nova York: HarperCollins, 1991). Poucos acadêmicos propõem
isso, mas acho a sugestão de Mitchell persuasiva.

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51. Um sinal de que o fato é marcante é que a obra de M. Scott Decks, The Road Less
Traveled, que trabalha a sabedoria alternativa, ficou na lista dos mais vendidos do New
York Times por mais de dez anos.

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52. A expressão religião de segunda mão é de William James, apresentada em The Varieties
of Religious Experience, p. 6.

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53. A autoria e a data do Livro de Jó são imprecisas, porém foi provavelmente escrito em
500 a.C., pouco depois que o povo judeu experimentou o exílio na Babilônia (587-539
a.C.). Junto com o Eclesiástico, supostamente escrito em 300 a.C., o livro é a voz da
sabedoria subversiva dentro da sabedoria tradicional da antiga Israel. Note como o
conteúdo da obra (os diálogos entre Jó e aqueles que o consolavam, caps. 3-37) é um
debate sobre o tema das obrigações e recompensas (“A habitação dos pérfidos será
destruída, mas a tenda dos justos florescerá” — Pr 14,11), que está no centro da sabedoria
tradicional. Os que o confortam defendem essa ideia. Jó, veementemente, a ataca.

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54. Jó 42,5.

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5. JESUS, A SABEDORIA DE DEUS: SOPHIA SE FAZ CARNE

1. O Concílio de Niceia, convocado logo depois que o imperador Constantino se


converteu ao cristianismo e declarou-o a religião oficial, foi o primeiro concílio ecumênico
(mundial) de bispos. Na Calcedônia (o quarto concílio ecumênico), o assunto principal
era “as duas naturezas de Cristo” (humana e divina) e como elas se relacionavam entre si
“em uma única pessoa”. Como resultado de Niceia e Calcedônia, as questões da
cristologia foram mais com frequência lançadas em torno das palavras “substância”,
“pessoa” e “duas naturezas”. Mas ver as questões cristológicas nessas categorias reflete o
considerável desenvolvimento posterior ao período do Novo Testamento. Esse
desenvolvimento não é “errado”, ele representa os melhores esforços da Igreja em
conceituar seus ensinamentos doutrinais nas categorias de pensamento da época. Mas ele
tende a obscurecer as imagens cristológicas metafóricas e diversas do Novo Testamento.
Como argumento neste capítulo, a consciência dessa diversidade enriquece nossa
compreensão da experiência e da expressão cristã primitiva.

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2. Sem procurar ser abrangente, menciono, para fins de ilustração, algumas outras
metáforas cristológicas: Jesus como o “segundo Adão” (Paulo); Jesus como “Cordeiro de
Deus” (São João, Apocalipse); Jesus como “sumo sacerdote e sacrifício” (Hebreus); Jesus
como logos — que é “Verbo” (São João). Um artigo excelente e de fácil acesso sobre o
assunto é James D. G. Dunn, “Christology (NT)”, em The Anchor Bible Dictionary, org. de
David Noel Freedman (Nova York: Doubleday, 1992), vol. 1, pp. 979-91.

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3. Para ler textos concisos e acessíveis sobre Sophia na tradição judaica, veja
especialmente Kathleen M. O’Connor, The Wisdom Literature, pp. 59-85; Elizabeth A.
Johnson, She Who Is: The Mystery of God in Feminist Discourse (Nova York: Crossroad,
1992), pp. 86-93; e Roland E. Murphy, “Wisdom in the Old Testament”, em The Anchor
Bible Dictionary, org. de David Noel Freedman (Nova York: Doubleday, 1992), vol. 6, pp.
920-31 (especialmente pp. 926-7). Murphy afirma que a “personificação da sabedoria é
simplesmente única na Bíblia, tanto em relação à sua quantidade quanto na qualidade” (p.
926). Veja também Susan Cady, Marian Ronan e Hal Taussig, Sophia: The Future of
Feminist Spirituality (San Francisco: Harper & Row, 1986).

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4. Pr 1,23; Kathleen M. O’Connor, The Wisdom Literature, pp. 71-2.

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5. Um desses textos pode ser encontrado em Jl 2,28: “[…] [Jeová] derramarei o meu
Espírito sobre toda a carne […]”.

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6. Os versículos transcritos estão em Pr 1,20-26; a passagem completa em 1,20-33.

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7. Pr 8,1-21; os versículos citados ou transcritos são 8,14-15.17.

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8. Versículos transcritos são Pr 8,22-23.27a.29b-30. “Artífice” (Pr 8,30) também pode ser
traduzido como “bebê” ou “criança”, mas a estreita conexão com “ao lado de Deus” nos
atos criativos citados em 8,27-29 sugere que “artífice” — alguém que presta assistência na
criação — se encaixa melhor no contexto.

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9. Ver também Kathleen M. O’Connor, The Wisdom Literature, p. 67.

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10. Pr 3,19.

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11. Pr 8,30b-31.
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12. Pr 8,32b.34a.35. Ver também 3,13-18, onde Sophia é citada como sendo mais
preciosa que o ouro, a prata ou as joias, e como “uma árvore de vida para aqueles que
lançarem mãos dela”.

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13. O banquete é descrito em Pr 9,1-6; as palavras transcritas são do 9,2b-5. Outras


referências da Mulher Sábia em Provérbios incluem 3,13-18; 4,5-9 e provavelmente
31,10-31, uma passagem que tipicamente tem sido vista como uma descrição da “esposa
ideal”. Kathleen M. O’Connor, The Wisdom Literature, pp. 77-9, persuasivamente
argumenta que a passagem é mais bem entendida como uma descrição de Sophia, pois as
funções de uma “mulher forte” não são as de nenhuma esposa real ou potencial na antiga
Israel, dado o papel das mulheres nessa cultura.

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14. Eclesiástico (não confundir com Eclesiastes) é um livro também conhecido como
“Sirácida”, de composição atribuída a Jesus, filho de Sirach.

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15. Eclo 24,14. (N. T.)

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16. Eclo 24,5-10. (N. T.)

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17. Todos encontrados no capítulo 24 de Eclesiástico. As transcrições são dos versículos
9.3-6.8. O banquete é citado em 24,19-21.

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18. Como os livros de sabedoria de Provérbios e Eclesiastes, esse livro é atribuído a


Salomão, o “santo padroeiro” da sabedoria em Israel. É um trabalho tardio, no entanto,
escrito por um autor judeu que viveu em Alexandria, no Egito, provavelmente no século I
a.C., embora alguns sugiram que tenha sido no século I d.C.

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19. Sb 7,21.11-12. E, como em Provérbios e Eclesiástico, Sophia está presente desde o


início: Sb 6,22.

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20. Esse discurso sobre Sophia, atribuído a Salomão, começa em Sb 7,7. Os versículos
transcritos são 7,22-23.24-25.26.27. Ver também 8,6, que se refere a ela como “artífice
dos seres”.

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21. Sb 10,15.18-19. Esse capítulo começa com a história de Sophia envolvendo-se na


narrativa de Israel com Adão e continua através de Noé e dos patriarcas para o êxodo. A
história continua no capítulo 11.

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22. Este livro notável tem sido mais importante na história do cristianismo do que sua
condição de não canônico sugerida pelos protestantes. Santo Agostinho, por exemplo,
refere-se a ele quase oitocentas vezes; ver David Winston, “Solomon, Wisdom of”, em The
Anchor Bible Dictionary, org. de David Noel Freedman (Nova York: Doubleday, 1992),
vol. 6, p. 127.

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23. Ver também Johnson, She Who Is, p. 91; Johnson fala da “equivalência funcional
entre os feitos de Sophia e os do Deus bíblico”. Ver também a sua útil revisão de cinco
diferentes compreensões da palavra Sophia nas pp. 90-3.

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24. Essa é uma ênfase recente dos estudiosos. Ver Johnson, She Who Is, pp. 91-2: Sophia
é “Deus de Israel em imagem feminina” e “uma personificação feminina do próprio ser de
Deus em um envolvimento criativo e salvador no mundo”; “Sophia personificava a divina
realidade”. Elisabeth Schüssler Fiorenza, em In Memory of Her, p. 132, fala da “Gestalt
feminina da Sophia divina” e da imagem de Deus “em uma Gestalt da mulher como
Sophia divina”. De acordo com James Dunn (citado em Johnson, She Who Is, pp. 91, 289,
n. 29), Sophia é Deus, reveladora e conhecida. Roland Murphy, em The Anchor Bible
Dictionary, vol. 6, p. 927, aponta que Sophia é de Deus, nasce de Deus, em Deus e,
então, pergunta retoricamente: “Sabedoria não é o Senhor, que se volta para as criaturas e
as convoca por meio da criação?”; Kathleen M. O’Connor, em The Wisdom Literature, diz:
“Ela é Deus” (p. 83), e “Seguir a Sabedoria, abraçá-la e viver com ela, é finalmente viver
com Deus” (p. 85).

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25. Lc 11,49-50 = Mt 23,34-35. É, portanto, uma passagem transcrita, embora apenas


Lucas tenha a frase introdutória que se refere a Sophia. É difícil saber se Mateus
eliminou-a da transcrição ou se Lucas adicionou-a. A favor da possibilidade anterior é o
fato de que outra passagem transcrita (a ser tratada em seguida) tem Jesus se referindo a
Sophia: Lc 7,35 = Mt 11,19.

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26. Lc 7,33-35 = Mt 11,18-19. Em Mateus temos: “Mas a sabedoria foi justificada por
seus filhos”; já em Lucas temos: “Mas a sabedoria foi justificada por todos os seus filhos”.
Ver Joseph A. Fitzmyer, The Gospel According to Luke I–IX (Nova York: Doubleday, 1981),
pp. 679, 681. Fitzmyer observa que Lucas provavelmente adicionou a palavra todos à
citação, dizendo que originalmente se referia a João e Jesus juntos como “filhos” da
sabedoria. A revisão de Mateus realmente leva a relação entre Jesus e Sophia um passo
adiante: ele fala dos atos de Jesus como os feitos de Sophia, identificando Jesus com a
própria Sabedoria. Ver também Mt 11,28-30: “Vinde a mim, vós todos que estais aflitos
sob o fardo, e eu vos aliviarei. Tomai meu jugo sobre vós […]. Porque meu jugo é suave e
meu peso é leve”. A passagem ecoa Eclo 51,23-26, que fala do “jugo” de Sophia e,
portanto, o Jesus de Mateus fala como sabedoria. Sobre Jesus como sabedoria em Mateus,
ver James D. G. Dunn, The Partings of the Ways (Filadélfia: Trinity Press International,
1991), pp. 213-5; Johnson, She Who Is, pp. 95-6; e fontes citadas por ambos.

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27. Ver Elisabeth Schüssler Fiorenza, In Memory of Her, pp. 130-40 (especialmente pp.
132-5). Para o Jesus histórico e Sophia, ver também Johnson, She Who Is, pp. 156-8.

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28. Ver capítulo 3 deste livro.

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29. Ver capítulo 2 deste livro e n. 21.

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30. John Dominic Crossan, The Historical Jesus, pp. 287-92.

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31. Paulo tinha uma má reputação em alguns círculos cristãos de sua época. Colegas
(incluindo alguns que dão aulas em seminários) me dizem que, enquanto a maioria dos
alunos está disposta a estudar Jesus, muitos começam a estudar Paulo com uma atitude
decididamente negativa. Paulo é percebido como alguém preocupado com assuntos
doutrinários abstratos e complexos, e não com o “ensinamento simples” de Jesus. Em
geral, as pessoas são afetadas pela forma como ouviram Paulo ser usado na pregação e no
ensino cristão. Tudo isso é compreensível, embora a maior parte seja injusta com Paulo.
As passagens mais ofensivas estão em cartas que ele não escreveu, mesmo que tenham
sido atribuídas a ele. Além disso, devo argumentar que, sobre as diferenças entre Paulo e
Jesus, há uma semelhança impressionante.

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32. É difícil saber o que fazer do relativo silêncio de Paulo sobre os ensinamentos de
Jesus. Ele fica em silêncio — como alguns argumentaram, em especial durante parte do
século passado, quando a busca do Jesus histórico estava eclipsada — porque apenas o
Cristo ressuscitado (e não o Jesus pré-Páscoa) era importante para Paulo? Ou esse
silêncio era simplesmente resultado da natureza dos escritos de Paulo — isto é, cartas
para comunidades que ele havia fundado? Talvez Paulo já tivesse comunicado
pessoalmente o que era mais importante sobre o Jesus pré-Páscoa.

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33. Justificação pela graça é um tópico especialmente importante para Paulo em Gálatas e
Romanos.

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34. Rm 3,24; 10,4; Gl 5,1.

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35. O forte contraste entre a justificação pela graça e a justificação pela obra está
intimamente relacionado a vários contrastes nos escritos de Paulo. Como um pensador
dialético, Paulo pensava em opostos: graça versus lei, fé versus obra, vida “em Cristo”
versus vida “em Adão”, os “frutos do Espírito” versus as “obras da carne”, liberdade versus
escravidão. Todos esses contrastes são maneiras de falar de dois estilos radicalmente
diferentes de viver.

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36. 1Cor 1,12.

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37. Respectivamente, 1Cor 1,19.23; 2,12.

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38. 1Cor 1,23-24. É interessante refletir sobre o porquê “Cristo crucificado” é um


obstáculo para os judeus. A noção de um Messias crucificado era aparentemente
desconhecida na tradição judaica, e talvez fosse uma combinação impossível de termos.
Pode funcionar como um koan no zen-budismo — ou seja, como um paradoxo que se
quebra aceitou outras formas de pensar. Assim, pode ser um “koan cristão”.

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39. 1Cor 1,30.

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40. Elisabeth Schüssler Fiorenza, In Memory of Her, pp. 188-92; ela inclui esses
versículos em sua base de dados para argumentar que o movimento missionário cristão
pré-paulino (portanto, muito antigo) tinha uma “cristologia Sophia”. Ela também cita os
seguintes hinos ou fragmentos de hinos pré-paulinos como refletindo a teologia Sophia: Fl
2,6-11; 1T 3,16; Cl 1,15-20; Ef 2,14-16; Hb 1,3; 1Pd 3,18.22; 1Jo 1-14.

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41. 1Cor 8,6.

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42. Cl 1,15-17. Colossenses (com Efésios e Tessalonicenses II) está entre aquelas cartas
sobre as quais os estudiosos se dividem se foram escritas pelo próprio Paulo. Dizer que o
Colossenses é paulino indica que ele tem forte afinidade com o pensamento de Paulo,
tendo sido escrito por ele ou não. Para um conciso tratamento dessa questão, ver Victor P.
Furnish, “Colossians”, em The Anchor Bible Dictionary, org. de David Noel Freedman
(Nova York: Doubleday, 1992), vol. 1, pp. 1090-6.

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43. Ver especialmente James D. G. Dunn, Partings of the Ways, pp. 195-7.

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44. 1Jo 1-18. Se esta passagem for baseada em um hino cristão primitivo, os versículos 6-
8 (que falam de João Batista) parecem ser uma inserção feita pelo autor do Evangelho.

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45. 1Jo 1-4.10.14.

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46. “Jesus” é primeiro mencionado no versículo 14: “E o logos se fez carne e habitou entre
nós”. Essas poucas palavras são, com efeito, a história de João sobre o nascimento de
Jesus. A tendência em ouvir todo o prólogo como se referindo a Jesus é ilustrada por uma
conversa recente na sequência de uma palestra na qual eu havia dito que o Jesus histórico
não era onisciente — que, como uma pessoa do primeiro século, Jesus provavelmente
pensava que a Terra era o centro do universo, que era plana, e assim por diante. Meu
questionador, um advogado cristão inteligente e bem-educado, disse que pensava que
Jesus saberia que a Terra é redonda, que o Sol está no centro do sistema solar, e assim por
diante, porque Jesus estava presente na criação e teria visto tudo. Sua base de pensamento
foi a leitura de todo a Primeira Epístola de São João como se se referisse a Jesus de
Nazaré.

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47. Mais uma similaridade pode ser citada. O prólogo do versículo 10 de São João diz que,
ainda que o logos estivesse no mundo, “estava no mundo e o mundo foi feito por ele
[logos], e o mundo não o reconheceu”. Assim também com Sabedoria/Sophia: na tradição
judaica, muitas vezes é dito que ela é ignorada.

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48. Ver Stevan Davies, The New Testament: A Contemporary Introduction (San Francisco:
Harper & Row, 1988), p. 169. A afirmação de que “Sabedoria” (muito mais do que logos)
está por trás do prólogo joanino é bastante antiga; ver Samuel Terrien, The Elusive
Presence (San Francisco: Harper & Row, 1978), p. 418, e as fontes ali citadas. Davies
sugere que o autor de São João usa o substantivo masculino logos em vez do feminino
sophia porque Jesus era do sexo masculino. Para mais comentários sobre a escolha de João
por logos e não por sophia, ver Johnson, She Who Is, pp. 97-8.

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49. Há mais uma conexão. A palavra grega traduzida como “habitar”, na verdade, significa
“tabernáculo” ou “tenda”. Assim fala-se sobre Sophia em Eclo 24: ela “firmou sua tenda”
em Israel. A importância das categorias de sabedoria não está restrita ao prólogo de São
João, mas está em todo o Evangelho. Ver James D. G. Dunn, Partings of the Ways, pp.
226-7, e as fontes por ele citadas.

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50. Mesmo Santo Agostinho, normalmente não pensado como tendo muita sensibilidade
feminista, fala de Jesus como a encarnação de Sophia: “Ela foi enviada de modo que
poderia estar com seres humanos; e foi enviada de outra maneira, que ela mesma poderia
ser um ser humano”. De Trin 4,20.27 citado em Johnson, She Who Is, pp. 156-7.

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51. Ver também Elisabeth Schüssler Fiorenza, In Memory of Her, p. 134; e James D. G.
Dunn, Partings of the Ways, p. 195: a sabedoria é “provavelmente a categoria mais
importante no desenvolvimento da cristologia primitiva”.

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52. Ver a entrevista de Sandra M. Schneiders sobre a multiplicidade e o metaforismo das


imagens de Deus na Bíblia: “God Is More than Two Men and a Bird”, U.S. Catholic, pp.
20-7, maio 1990. Achei o título especialmente iluminado.

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53. A cada tentativa de falar da “cristologia de Jesus” (se isso significa que ele tinha ideias
sobre si mesmo similares, de certa forma, ao que se pensava dele na pós-ressurreição), só
se pode dizer: “Pode ser assim, mas poderia ser, facilmente, o produto da comunidade”.
Talvez, mais do que qualquer outra parte do desenvolvimento da tradição, as passagens
“cristológicas” devam ser sistematicamente questionadas: elas representam a área do
pensamento e imaginário da comunidade que foi submetida ao maior desenvolvimento
após a ressurreição. Esse julgamento, devo enfatizar, aplica-se à questão da cristologia em
particular, e não à tradição evangélica em sua totalidade (penso que podemos ter
argumentos de probabilidade histórica bastante fortes sobre muitas partes da tradição).

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54. Para ilustrar a afirmação de que a linguagem cristológica é metafórica, compartilho


uma história que vivi com John Dominic Crossan. Perguntado por um exasperado
questionador: “Você acredita que Jesus era Filho de Deu ou não?”, Crossan respondeu:
“Sim, acredito que ele era o Filho de Deus, a Palavra de Deus e o Cordeiro de Deus”. O
ponto da resposta é claro, ainda que ela não tenha sido apreciada pelo questionador (que
disse: “Vocês, teólogos! São todos iguais!”.). Assim como Jesus não era literalmente “o
Cordeiro de Deus” (ele não era um cordeiro), e não era literalmente a Palavra de Deus (o
que isso significaria?), ele também não é literalmente o “Filho de Deus” (o que isso
significaria para ser literalmente verdade — filiação biológica?). Em vez disso, todos
envolvem o uso metafórico de imagens.

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6. AS IMAGENS DE JESUS E AS IMAGENS DA VIDA CRISTÃ

1. Um livro muitas vezes citado como fundamental para esse movimento é Hans Frei, The
Eclipse of Biblical Narrative: A Study in Eighteenth and Nineteenth Century Hermeneutics
(New Haven, CT: Yale University Press, 1974). A teologia histórica pode ser largamente
entendida com o popular livro de John Shea, Stories of God (Chicago: Thomas More
Press, 1978). Ver também William J. Bausch, Story-Telling: Imagination and Faith
(Mystic, CT: Twenty-Third Publications, 1984); e Terrence W. Tilley, Story Theology
(Wilmington, DE: Michael Glazier, 1985).

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2. Não estou irrevogavelmente comprometido com o número 3 nem somente com três
macro-histórias. Apesar da Trindade, não há nada de sagrado no número 3. Assim, estou
aberto a uma ou mais histórias adicionais sendo identificadas como macro-histórias.
Histórias que poderiam ser sérias candidatas a macro-histórias são as sobre cegueira e
visão (e os temas correlacionados de luz e escuridão), e histórias sobre doença e cura.
Entretanto, embora sejam importantes, não me parecem tão centrais quanto as três que
destaquei.

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3. William James, The Varieties of Religious Experience, p. 508.

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4. Walter Brueggemann, The Bible Makes Sense (Atlanta: John Knox, 1977),
especialmente o capítulo 5. Nas pp. 45 e 46, Brueggemann fala da narrativa primordial
como “aquele enredo mais simples, elementar e indiscutível que repousa no coração da fé
bíblica […]. É uma afirmação em forma de história que diz: ‘Esta é a história mais
importante que conhecemos, e acreditamos que é decisiva sobre nós’.”.

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5. Dt 6,21-23. Essa passagem e a do Dt 26,5-9 são vistas pelos estudiosos como narrativas
muito antigas da tradição oral, muito mais antigas do que o documento em que aparecem,
e como o núcleo da história completa contada pelo Pentateuco como um todo. Elas são
chamadas de as mais antigas “confissões de fé” de Israel.

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6. Maurice Samuel (trad.), Haggadah of Passover (Nova York: Hebrew Publishing, 1942),
p. 27. O itálico foi adicionado por mim e a tradução ligeiramente modificada por causa do
uso da linguagem inclusiva em termos de gênero.

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7. As frases são de Walter Brueggemann, The Prophetic Imagination, cap. 2.

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8. Para as descrições bíblicas sobre a experiência do exílio, ver especialmente Is 40-55


(uma parte do Livro de Isaías comumente citada como “Segundo Isaías” ou “Dêutero-
Isaías”). Embora esses capítulos ressoem como as boas notícias do retorno, eles também
contêm comoventes descrições de como é a vida no exílio. Ver também Sl 137, um salmo
sobre o exílio; e o Livro das Lamentações, que descreve o sofrimento, o desespero e a
angústia da geração que sobreviveu após a destruição de Jerusalém e de seu templo.

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9. Ver, por exemplo, James Sanders, Torah and Canon (Filadélfia: Fortress, 1972);
Sanders enfatiza que grande parte da Bíblia hebraica passou a existir durante e
imediatamente depois do exílio, quando a primeira de suas três partes, o Pentateuco ou
Torá, foi finalizada e a segunda de suas três partes, os profetas, começou a ser escrita.
Ampliando seu escopo para incluir o Novo Testamento também, Sanders, provocativa e
corretamente, comenta, na p. 6: “A Bíblia vem a nós das cinzas de dois templos, o Templo
de Salomão, destruído em 586 a.C., e o Templo de Herodes, destruído em 70 d.C.”.

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10. Sl 136,1. A experiência do exílio também pode gerar intensa ira, que é expressa nos
versículos finais desse salmo.

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11. Is 40,3-4. A bela e poderosa palavra desse profeta tornou-se muito familiar por meio
de seu uso generalizado no livro O Messias, de Handel.

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12. É interessante notar que a palavra em hebreu que traduzimos como “arrepender-se”,
originalmente, quer dizer “retorno”, e, portanto, tem sua origem linguística na história do
exílio e retorno.

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13. Is 40,29-31. Outros exemplos da linguagem sobre retorno: Is 40,11; 42,16; 43,1-21;
48,20-21; 49,8-12; 51,9-11.

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14. Paul Ricoeur, The Symbolism of Evil, trad. de Emerson Buchanan (Boston: Beacon,
1967).

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15. Gustaf Aulen, Christus Victor, trad. de A. G. Hebert (Nova York: Macmillan, 1969;
originalmente publicado em 1931). Aulen, mais tarde, se tornou bispo da Igreja Luterana
da Suécia.

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16. Gustaf Aulen, em Christus Victor, afirma que essa abordagem foi primeiro
desenvolvida sistematicamente por Anselm, arcebispo de Canterbury, em uma obra
intitulada Cur Deus Homo?, datada de 1097.

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17. Gustaf Aulen, em Christus Victor, chama a terceira abordagem de “subjetiva” ou


“exemplo moral” da teoria da expiação. Para mim, ele parece muito mais interessado nessa
abordagem do que nos contrastes entre as duas primeiras, e sua exposição do terceiro tipo
de abordagem me parece menos satisfatória e apreciativa. Desvio-me, assim, um pouco do
seu argumento nesse ponto.

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18. Jo 3,16.

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19. Porque a acusação seguinte da história da absolvição do pecado é severa, quero


adicionar duas notas esclarecedoras. Primeiro, a acusação é sobre a abordagem popular da
história da absolvição. Existe uma abordagem mais teologicamente sofisticada que salienta
sua verdadeira qualidade radical, sobre a qual eu brevemente irei me referir mais adiante.
Segundo, a acusação é sobre a história sacerdotal quando ela está apartada do modo
principal de retratar a vida cristã. Como destaco mais adiante neste capítulo, quando a
história do pecado é vista em um contexto de história de uma jornada, como fazendo parte
dela, suas limitações são superadas.

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20. Ver Ex 25-40, onde as regras sobre sacerdócio e sacrifício são dadas no deserto.

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21. É notável quanto Marcos, o primeiro evangelista, enfatiza o “modo” de representação.


Uma das palavras favoritas de Marcos é hodos, que pode ser traduzida como “estrada”,
“via” ou “caminho”. Marcos abre seu Evangelho com a passagem de Isaías sobre um
“caminho no deserto”, e o Jesus de Marcos ensina repetidamente sobre “o caminho”,
especialmente na parte central (Mc 8-10), quando ele começa sua jornada de Jerusalém
para a morte. Assim como no Evangelho segundo São Lucas: no centro há a narrativa de
uma jornada (Lc 9,51-18.14). E em Atos dos Apóstolos, o autor (Lucas) afirma que o
primeiro nome do movimento cristão era “o Caminho” (At 9,2).

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22. Estou usando “discípulos”, como os próprios Evangelhos fizeram, como uma categoria
mais abrangente do que simplesmente os “doze apóstolos”.

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23. Edward Schillebeeckx, Jesus (Nova York: Crossroad, 1981), p. 201.

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24. O discipulado envolve ter companheiros, uma palavra que significa “alguém com quem
se divide o pão”.

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25. Shea, Stories of God, p. 8.

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26. Ver capítulo 1 deste livro.

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27. 2Cor 3,18.

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CRÉDITOS DAS IMAGENS

Imagem 1: MAURO MAGLIANI/ELECTA/MONDADORI/GETTY IMAGES

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Imagem 2: DEAGOSTINI/GETTY IMAGES

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Imagem 3: TB PHOTO/UIG/GETTY IMAGES

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Imagem 4: BUURSERSTRAAT386/FOTOSEARCH LBRF/AGBPHOTO LIBRARY

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Imagem 5: DNAVEH/THINKSTOCK

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Imagem 6: JAMES NESTERWITZ/ALAMY/LATINSTOCK

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Imagem 7: DEAGOSTINI/GETTY IMAGES

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Imagem 8: DEAGOSTINI/GETTY IMAGES

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Imagem 9: ANNE-LISE LARGE/GAMMA-RAPHO/GETTY IMAGES

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Imagem 10: JEAN-ERICK PASQUIER/GAMMA-RAPHO/GETTY IMAGES

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Imagem 11: MOSTAFA ALKHAROUF/ANADOLU AGENCY/GETTY IMAGES

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Imagem 12: EITAN SIMANOR/ALAMY/LATINSTOCK

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Imagem 13: TIM GRAHAM/GETTY IMAGES

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SOBRE O AUTOR

©Cyndy J. Hubbard

MARCUS J. BORG nasceu em Fergus Fall, no estado norte-americano do


Minnesota, e foi criado na Dakota do Norte. Ele estudou Matemática,
Física, Ciência Política e Filosofia e por fim se formou em Teologia pelo
Union Seminary, em Nova York, e é doutor por Oxford. É considerado um
dos maiores especialistas mundiais no estudo do Jesus histórico e do Novo
Testamento.
Copyright © 2017 Editora Globo S. A. para a presente edição
Copyright © 1994 Marcus J. Borg

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou
reproduzida — em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia,
gravação etc. — nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados sem a
expressa autorização da editora.

Texto fixado conforme as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto


Legislativo no 54, de 1995).

Todas as citações bíblicas foram retiradas da Bíblia Sagrada Ave-Maria da Editora Ave-
Maria. Todos os direitos reservados.

Título original: Meeting Jesus Again for the First Time: The Historical Jesus & The Heart of
Contemporary Faith

Editora responsável: Amanda Orlando


Editora assistente: Elisa Martins
Editora de livros digitais: Lívia Furtado
Tradução: Alyne Azuma, Rafael Longo, Fabienne Mercês e Camile Mendrot
Preparação de texto: Jane Pessoa
Revisão: Adriane Gozzo
Pesquisa iconográfica: Franklin B. Nunes Neto
Diagramação: Crayon Editorial
Capa: Rafael Nobre
Conversão para e-book: Joana De Conti

1ª edição impressa, 2017


1ª edição digital, outubro de 2017
ISBN: 978-85-250-6549-0 (digital)
ISBN: 978-85-250-6534-6 (impresso)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
B729j

Borg, Marcus J.
Jesus [recurso eletrônico] : a biografia do homem que nasceu pobre e jurado de
morte, revolucionou o mundo com suas ideias, foi perseguido, crucificado e
retornou dos mortos para se tornar a pessoa mais importante da história / Marcus J.
Borg ; [tradução Alyne Azuma] ... [et al.]. - 1. ed. - São Paulo : Globo Livros, 2017.
recurso digital
Tradução de: Meeting Jesus again for the first time
Formato: ebook
Requisitos do sistema:
Modo de acesso: world wide web
Caderno de fotos
ISBN 978-85-250-6549-0 (recurso eletrônico)

1. Jesus Cristo - Biografia. 2. Livros eletrônicos. I. Azuma, Alyne. II. Título.


CDD: 232.9
17-44992
CDU: 27-312

27/09/2017       29/09/2017

Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo
S. A.
Av. Nove de Julho, 5.229 — 01407‑907 — São Paulo — SP
www.globolivros.com.br

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