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'rene de ,Âraújo Van Oen (Berg

HWfOS
l i DEiÓN
Interpretações sociológicas
do Pentecostalismo

Alberto Antoniazzi, Cecília Loreto Mariz,


Ingrid Sarti, José Bittencourt Filho,
Pierre Sanchis, Paul Freston,
Rogério Valle, Rubem César Fernandes,
Wilson Gomes

2' Edição

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ( C I F )


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Nem anjos nem demónios : interpretações sociológicas do pentecos-
talismo / Alberto Antoniazzi... | et al. |. - Petrópolis, RJ : Vozes,
1994.

ISBN 85-326-1227-X

1. Pentecostalismo - Igreja Católica I . Antoniazzi, Alberto.

')4 1466 CDD-269.4


índices para catálogo sistemático:
1. Pentecostalismo : Cristianismo 269.4 CERIS
Petrópolis
1996
B R E V E HISTORIA DO P E N T E C O S T A L I S M O
BRASILEIRO
Paul Freston

1. A Assembleia de Deus

As três ondas do pentecostalismo brasileiro


"A dissidência protestante... vem em três ondas [calvinista,
metodista e pentecostal]... em níveis [sociais] cada vez mais
baixos... O metodismo não se expande onde as igrejas calvinistas
oficiais foram bem sucedidas, [e] se restringe basicamente ao
ambiente anglo-saxão... O pentecostalismo se expande onde o
metodismo e o calvinismo pouco penetraram: as sociedades
católicas da Europa latina e da América Latina, e as áreas
dominadas por igrejas oficiais luteranas" (David Martin -
1978a:9-ll).
O pentecostalismo brasileiro já tem 80 anos de existência
e talvez 13 milhões de adeptos, mas ainda não conta com sequer
uma história académica. Isso prejudica a sociologia do fenó-
meno, pois, como diz Joachim Wach, sem o trabalho do
historiador da religião o sociólogo fica desamparado (1944:2).
Os bons estudos sincrônicos já produzidos não nos permitem
captar o movimento.
A "História Documental do Protestantismo Brasileiro"
(Reily 1984) dedica apenas 17 de suas 400 páginas aos pente-
costais. Não há nada sobre a Assembleia de Deus, a maior
igreja protestante, depois do episódio da fundação. Souza
(1969) e Rolim (1985) tratam da variedade de grupos pente-
costais, mas quase toda a evolução histórica lhes escapa. Essa
negligência académica da dimensão histórica talvez esconda
um desprezo inconsciente. O protestantismo é geralmente di-

I . o a u t o r e s t á t e r m i n a n d o o d o u t o r a d o e m s o c i o l o g i a na U n i v e r s i d a d e d e C a m p i n a s , c o m u m a
tese sobre "Protestantes e p o l i t i c a n o B r a s i l " . E l e agradece o a p o i o f i n a n c e i r o d a Fapesp e d o
P r o g r a m a de D o t a ç õ e s para Pesquisa da A n p o c s , b e m c o m o o a p o i o i n s t i t u c i o n a l d o I D E S P .

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vidido em históricos e pentecostais; já que os pentecostais não Com a exceção da Congregação Cristã, todas essas igrejas
são históricos, não possuem história! Em consequência, a possuem periódicos que às vezes publicam breves retrospecti-
sociologia desse vasto fenómeno é prejudicada. O pentecosta- vas históricas. A Quadrangular tem uma história da denomina-
lismo é aprisionado numa jaula atemporal, e não se percebe ção. A Assembleia tem várias histórias e biografias de líderes.
quando a jaula está ficando pequena para o tigre. Estas são úteis, pois o "padrão clientelista" de organização
(Nelson 1988) favorece a construção da história em tomo das
Até agora, as perspectivas inovadoras na sociologia do biografias ou autobiografias dos caciques.
pentecostalismo limitaram-se ao nível micro. Está na hora de
a sociologia da religião lançar-se ao estudo das grandes igrejas Evidentemente, essas fontes exigem cuidado.
pentecostais enquanto instituições em evolução dinâmica. Es- "O trabalho de resgate e conservação da memória organizacio-
tas não são organizações estáticas que incham numericamente; nal... constitui um dos principais obstáculos sociais à apreensão
são organizações em constante adaptação, e essas mudanças de pesquisadores leigos que não estejam... a serviço [da hierar-
são frequentemente objeto de lutas. Ademais, o pentecostalis- quia]... [pois geralmente foi produzido] em resposta a demandas
mo possui grande variedade de formas, e cada nova espécie de algum segmento de interesses da própria corporação" (Miceli
que surge vai enterrando mais alguns mitos a respeito do 1988:54,57).
"pentecostalismo". Uma outra limitação decorre da relação entre pentecosta-
E verdade que a pesquisa histórica entre os pentecostais lismo e história. O pentecostalismo toma o nome do incidente
sofre da relativa escassez de fontes escritas. Alguns grupos se que está na origem da Igreja cristã, a descida do Espírito Santo
adequam mais a uma "História anedótica" do que a uma no dia de Pentecostes, e se vê como um retomo às origens. Não
é por acaso que as histórias domésticas se concentram nas
"História documental". Podemos distinguir o grau de dificul-
origens (épicas) da denominação. Eventos posteriores se redu-
dade para se pesquisar as várias igrejas^ do seguinte modo:
zem virtualmente à expansão geográfica, ou seja, às origens
"(1) considerável facilidade: Assembleia de Deus e Igreja do em outras cidades. Não há muita ideia de desenvolvimento,
Evangelho Quadrangular - muitas fontes escritas, inclusive his- pois tudo já está contido no evento paradigmático original.
tórias domésticas e facilidade para se fazer entrevistas; Assim, o pentecostalismo tem uma relação difícil com a histó-
(2) relativa facilidade: Brasil para Cristo e Igreja Universal do ria. Esta é reduzida a apenas três momentos - a Igrej a primitiva,
Reino de Deus - poucas fontes escritas, mas certa facilidade para o momento da recuperação da visão (quando nosso gmpo
se fazer entrevistas^; começou) e hoj e - e cada um desses momentos repete o anterior
(3) relativa dificuldade: Deus é Amor - pouquíssimas fontes e descobre nessa repetição a sua única legitimidade.
escritas e dificuldade para se fazer entrevistas;
(4) extrema dificuldade: Congregação Cristã - quase nenhuma Outro problema na pesquisa histórica entre pentecostais é
fonte escrita e extrema dificuldade para entrevistas". a dificuldade destes em aceitar o enraizamento dos fenómenos
religiosos do grupo em ações analisáveis pelas ciências do
homem. Em certo grau, todas as igrejas se incomodam com
isso (apesar do princípio cristão da encamação), mas quanto
mais sectárias\r a resistência. A seita tende a uma
ideologia totalitária, e grupos totalitários não aceitam que um
2. C o n s i d e r a r e m o s nestes a r t i g o s apenas as seis igrejas q u e nos p a r e c e m f u n d a m e n t a i s para a
c o m p r e e n s ã o d o f e n ó m e n o pentecostal n o B r a s i l , as quais (ao q u e t u d o i n d i c a ) s e r i a m t a m b é m
as seis m a i o r e s : A s s e m b l e i a de Deus, C o n g r e g a ç ã o C r i s t ã , Q u a d r a n g u l a r , B r a s i l para C r i s t o ,
D e u s é A m o r e U n i v e r s a l d o R e i n o de D e u s .
3 . N o caso da U n i v e r s a l , a h i s t ó r i a é curta, mas h á farto m a t e r i a l de i m p r e n s a , n e m s e m p r e c o n f i á v e l . 4 . U s a m o s s e m p r e a palavra seita n o s e n t i d o t é c n i c o q u e a d q u i r i u na s o c i o l o g i a da r e l i g i ã o , e n u n c a
O p e s q u i s a d o r deve e v i t a r a t e n t a ç ã o de l e r o m a t e r i a l d o m é s t i c o c o m d e s c o n f i a n ç a e aceitar o n o s e n t i d o p e j o r a t i v o e m q u e aparece na i m p r e n s a o u e m a l g u n s d o c u m e n t o s da h i e r a r q u i a
m a t e r i a l de i m p r e n s a a c r i t i c a m e n t e . Isso seria apenas o reverso d o p r o c e d i m e n t o d o f i e l . católica.

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1'f

tf"

não-membro possa ter uma visão válida da sua estrutura e protestante a implantar-se e irradiar-se fora do eixo Rio-São
comportamento (Wallis 1979:211). Mas nem todos os pente- Paulo*", a Assembleia firmou, nas primeiras décadas, uma
costais se encaixam, nesse aspecto, no tipo ideal de seita e, de presença nos pontos de saída do futuro fluxo migratório. A
qualquer maneira, o desconforto diante da investigação não é segunda onda pentecostal é dos anos 50 e início de 60, na qual
traço exclusivo das seitas, nem das religiões. Quando o Men- o campo pentecostal se fragmenta, a relação com a sociedade
sageiro da Paz afirma que o pentecostalismo é "movimento do se dinamiza e três grandes grupos (em meio a dezenas de
Espirito Santo e, por conseguinte, imune aos condicionamen- menores) surgem: a Quadrangular (1951), Brasil para Cristo
tos naturais das sociedades humanas", a teologia pode ser (1955) e Deus é Amor (1962). O contexto dessa pulverização
criticável mas o sentimento não é peculiar aos pentecostais. épaulista. A terceira onda começa no final dos anos 70 e ganha
Textos domésticos são escritos para edificação e frisam o força nos anos 80. Sua representante máxima é a Igreja Uni-
heroísmo e os acontecimentos excepcionais. O normal e corri- versal do Reino de Deus (1977), e um outro grupo expressivo
é a Igreja Internacional da Graça de Deus (1980). Novamente,
queiro, com os quais a sociologia trabalha, não são destacados.
essas igrejas trazem uma atualização inovadora da inserção
Por isso, é preciso ler, entre as linhas extraordinárias, as
social e do leque de possibilidades teológicas, litúrgicas, éticas
entrelinhas comuns; ou seja, colocar os pés dos heróis docéti-
e estéticas do pentecostalismo. O contexto é fundamentalmen-
^ s novamente no chão.
te carioca.
Os dados disponíveis sobre as igrejas pentecostais são, em A vantagem dessa maneira de colocar ordem no campo
alguns casos, extremamente fragmentários. Na reconstrução, pentecostal é que ressalta, de um lado, a versatilidade do
precisamos recorrer, cuidadosamente, ao que sabemos sobre pentecostalismo e sua evolução ao longo dos anos e, ao mesmo
outros grupos semelhantes e ao que os tipos ideais da sociolo- tempo, as marcas que cada igreja carrega da época em que
gia da religião e das instituições nos levam a esperar. nasceu.
O pentecostalismo brasileiro pode ser compreendido como "As seitas tendem a ser mais influenciadas do que percebem...
a história de três ondas' de implantação de igrejas. A primeira pelas facilidades seculares prevalecentes no período do seu
onda é a década de 1910, com a chegada quase simultânea da surgimento... [Isto porque] a capacidade de unir ensinamentos
Congregação Cristã (1910) e da Assembleia de Deus (1911). antigos e técnicas modernas faz parte da fórmula de sucesso das
Estas duas igrejas têm o campo para si durante 40 anos, pois seitas modemas" (Wilson 1982:106).
as suas rivais (vindas do exterior, como a Igreja de Deus, ou
de cismas da Assembleia, como a Igreja de Cristo) são inex- Grupos novos podem inovar com muito mais liberdade.
pressivas. A Congregação, após grande êxito inicial, pemianece Assim, a Assembleia de DeUs dos anos 80 não é a mesma dos
mais acanhada, mas a Assembleia se expande geograficamente anos 10, mas, quando comparada com a Igreja Universal,
nesse período como a Igreja protestante nacional por excelên- percebemos os constrangimentos da história.
cia. Em alguns Estados do Norte, o protestantismo praticamen- Por que as três ondas surgem nos momentos indicados? Há
te se reduz a ela. Para todos os efeitos a única grande igreja explicações diversas e contraditórias pelo próprio crescimento
do pentecostalismo, e os surtos de criação institucional não

5. R o l i m ( 1 9 8 5 : 8 9 ) t a m b é m p r o p õ e u m a p e r i o d i z a ç ã o t r í p l i c e : i ) i m p l a n t a ç ã o ( 1 9 1 0 - 3 5 ) ; i i ) i n i c i o
da e x p a n s ã o , s e g m e n t a ç ã o e p r i m e i r o s passos na p o l i t i c a ( 1 9 3 5 - 6 4 ) ; i i i ) e n c l a u s u r a m e n t o na
esfera sacrat e, d e p o i s , e m e r g ê n c i a d e variadas p r á t i c a s sociais ( 1 9 6 4 - h o j e ) . M a s esses c r i t é r i o s 6. A p r i m e i r a I g r e j a B a t i s t a f o i f u n d a d a n a B a h i a , mas o R i o l o g o se f i r m o u c o m o o c e n t r o de
s ã o d e m a s i a d a m e n t e p a r e c i d o s c o m a p e r i o d i z a ç ã o c l á s s i c a d a h i s t ó r i a n a c i o n a l e n ã o nos i r r a d i a ç ã o . N ã o estamos l e v a n d o e m c o n t a a q u i a Igreja^ L u t e r a n a , q u e apenas s e g u i u os
a j u d a m a e n t e n d e r as igrejas c o m o i n s t i t u i ç õ e s . imigrantes.

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devem ser mais enquadráveis em caracterizações globalizan- Evangélica Brasileira (1879). Rompendo com os presbiteria-
tes. Mas podemos sugerir algumas pistas. A primeira onda, nos nos (que lhe disseram que Deus não se dirige mais diretamente
anos 10, é o momento da origem mundial e expansão do aos homens desde que lhes deu as Escrituras), Vieira pregava
pentecostalismo para todos os continentes. No Brasil, a recep- a necessidade de uma visão direta e sensível de Deus (Leonard
ção inicial é limitada, constituindo menos de 10% dos protes- 1963:339). Mas era uma igreja de ricos, pois Vieira era de uma
tantes de missão, excluídos os luteranos, em 1930. das primeiras famílias políticas do Maranhão. No Império, as
altemativas do protestantismo era uma reforma da Igreja na-
A segunda onda, dos anos 50, começa quando a urbaniza-
ção e a formação de uma sociedade de massas possibilitam um cional ou denominações protestantes para as camadas livres,
crescimento pentecostal que rompe com as limitações dos mas dificilmente haveria condições sociais para o pentecosta-
modelos existentes, especialmente em São Paulo. O estopim é lismo popular.
a chegada da Igreja Quadrangular, com seus métodos arroja- Além desses casos protestantes de iluminismo religioso,
dos, forjados precisamente no berço dos modernos meios de havia na tradição brasileira os movimentos messiânicos, uma
comunicação de massa, a Califórnia do entre-guerras. Após a outra forma de proto-pentecostalismo pela sua natureza popu-
Segunda Guerra, a atenção americana em geral, e missionária lar autónoma e, às vezes, pela manifestação de carismas como
(católica e protestante) em particular, se volta para a América a profecia e a glossolalia. Os últimos grandes movimentos
Latina, impulsionada pelo novo papel internacional americano,
messiânicos coincidem com os primeiros passos tímidos do
pela importância estratégica do "hemisfério ocidental", e pela
pentecostalismo. Depois, com o crescimento económico con-
mão-de-obra missionária deslocada após o fechamento da Chi-
tinuado (1930-80), a mobilidade social individual (Souza &
na. Mas quem lucra com o novo modelo, no primeiro momento,
não é a Quadrangular, demasiadamente estrangeira, mas sim a Lamounier 1989:7) e a centralização burocrática e militar do
criativa adaptação nacionalista, a Igreja Pentecostal Brasil para país (Novaes 1980:91), não há mais movimentos messiânicos.
Cristo. Mas o pentecostalismo pode representar um redirecionamento
histórico da articulação da desconformidade através do religio-
A terceira onda começa após a modernização autoritória so, já em forma pacífica, institucionalizada, integrada ao pro-
do país, principalmente na área das comunicações, quando a cesso produtivo e aparentemente apolítica {ib..92).
urbanização já atinge dois terços da população, o milagre
económico está exaurido e a "década perdida" dos 80 se inicia. Embora aproveitando-se desses elementos nacionais, o
A onda começa e se firma no Rio de Janeiro economicamente pentecostalismo brasileiro de fato resultou de um movimento
decadente, com sua violência, máfias do jogo e política popu- que surgiu nos Estados Unidos em 1906. A genealogia deste
lista. remonta ao avivamento metodista do século X V I I I , que intro-
duziu o conceito de uma segunda obra da graça, distinta da
As origens do pentecostalismo salvação, a qual Wesley chamava de perfeição cristã. Na
segunda metade do século XIX, o movimento de santidade
Houve precursores nacionais de um protestantismo mais {holiness) nos países de língua inglesa, sob a influência cultiu-al
místico. José Manoel da Conceição, ex-padre que se tomou do Romantismo (Bebbington 1989:170), democratizou o con-
pastor presbiteriano em 1865, acabou rompendo com os mis- ceito wesleyano: em lugar da busca demorada, a experiência
sionários porque sonhava com uma reforma do catolicismo que rápida e disponível a todos chamada "batismo no Espírito
criasse "um cristianismo brasileiro... evangélico mas emaizado Santo", a piedade intensificada pela mística escapista do Ro-
nas tradições e hábitos populares" (Ribeiro 1979:206). Após i mantismo (i6.: 173). O movimento de santidade, além de pene-
sua morte prematura, surgiu Miguel Vieira Ferreira e a Igreja trar muitas denominações, produziu uma franja separatista de

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pequenos grupos de holiness. Foi entre estes que o pentecosta- de Deus (quase exclusivamente branca) em 1914 (Anderson
lismo nasceu. 1979:189).
Havia nesses grupos uma expectativa, atiçada pela virada Uma caracteristica do nascente movimento era o seu adven-
do século, de que o iminente fim do mundo fosse precedido por tismo, a expectativa da volta iminente de Cristo. Investia-se em
um grande avivamento marcado pelo fenómeno glossolálico divulgação mas não em estruturação de igrejas. Os pastores e
da Igreja primitiva. Em meio a exemplos esporádicos de glos- missionários viviam de contribuições avulsas, sem salários
solalia, a síntese doutrinária que permitiu o surgimento do regulares. A glossolalia era simples confirmação da iminência
pentecostalismo como movimento distinto foi alcançada por do fim. Dentro de poucos anos, no entanto, com a não-concre-
volta de 1900 por um dono de escola bíblica em Kansas tização do advento, a glossolalia assumiu a centralidade na
chamado Charles Parham: as línguas eram a evidência do teologia pentecostal {ib.:96).
batismo com o Espírito Santo. Mas o estopim do movimento
O fenómeno glossolálico em si não era a novidade do
pentecostal não foi esse admirador do Ku-Klux-Klan que per-
movimento^ mas sim a elaboração doutrinária que lhe dava
mitia que negros ouvissem suas aulas somente do lado de fora
uma centralidade teológica e litúrgica. Armado com esse dis-
da porta (Hollenweger 1986), e sim um aluno negro chamado
tintivo, o pentecostalismo se espalhou rapidamente pela grande
W.J. Seymour, um batista nascido como escravo, que era cego
rede organizada do movimento holiness (ib.:14-75).
de um olho e trabalhava como garçom. "O que havia sido, com
Parham, um movimento relativamente pequeno e localizado, Outros fatores ajudaram na rápida expansão mundial: os
assumiria proporções internacionais através do ministério em muitos missionários americanos no exterior que mantinham
Los Angeles de um negro obscuro" (Anderson 1979:61). contato com os acontecimentos na pátria, e os muitos imigran-
tes nos Estados Unidos em contato com seus países de origem
Em 1906, Seymour foi convidado a pregar em Los Angeles e com patrícios emigrados para outros lugares.
por uma pastora de uma igreja negra holiness. Lá, o "batismo
com o Espírito Santo" com línguas fez sucesso, e Seymour O pentecostalismo estava apenas na sua infância, quando
alugou um velho armazém na Azusa Street para sua "Missão chegou ao Brasil um fator importante para sua autoctonia. Sem
de Fé Apostólica". A novidade e a localização favorável (Los grandes recursos ou denominações estabelecidas, e mais inte-
ressado numa última arrancada evangelística antes do fim do
Angeles era a cidade que mais crescia no país, com muitas
que na criação institucional, o movimento não estabeleceu as
minorias étnicas e ethos de fronteira) logo atraiu os brancos.
relações de dependência que caracterizavam as missões histó-
Da liderança multi-racial de Azusa Street, de 12 "anciãos",
ricas.
pelo menos seis eram mulheres. A liderança de negros e de
mulheres é marcante nos primórdios do pentecostalismo. Pas-
tores brancos do Sul iam a Los Angeles para receber as minis-
trações dos líderes negros. Mas essa convivência, tão inusitada
na época, não durou muito. O movimento pentecostal, origi-
nalmente concebido como uma renovação das igrejas existen-
tes, começou a solidificar-se em grupos independentes,
separados por querelas doutrinárias. Dentro de cada segmento
a separação racial se deu dentro de uma década. Os brancos 7 . H á e v i d ê n c i a d o falar e m l í n g u a s ao l o n g o da h i s t ó r i a ( A n d e r s o n 1 9 7 9 : 2 6 ) . A t é u m a p u b l i c a ç ã o
d a p r ó p r i a A s s e m b l e i a de D e u s serve para c o l o c a r o f e n ó m e n o e m c o n t e x t o . O f u n d a d o r da
que haviam recebido a ordenação na Igreja de Deus em Cristo entidade c o n h e c i d a no B r a s i l c o m o A d h o n e p fala dos contatos de seus antepassados a r m é n i o s
(predominantemente negra) saíram para fundar a Assembleia c o m "pentecostais russos", os quais f a l a v a m d o " b a t i s m o c o m o E s p í r i t o S a n t o " e e m l í n g u a s .
Isso, nas ú l t i m a s d é c a d a s d o s é c u l o X I X ( S h a k a r i a n 1 9 8 2 : 1 2 , 1 7 )

74 75
A Assembleia de Deus a base económica para as reformas dos governos social-demo-
cratas a partir de 1932.
"Não é costume dos crentes na Assembleia de Deus o uso de
A liberdde religiosa, porém, ainda era relativa na virada do
pinturas, brincos, etc. Não somos retrógrados, desejamos [ape-
nas nos conservar] irrepreensíveis... Não danifique a Assembleia século. O padrão escandinavo (Martin 1978b:22-24; 33-36) de
de Deus, ame-a ou deixe-a". Pr. José Welligton Bezerra da relação entre religião e sociedade é de uma Igreja estatal
Costa, presidente da Convenção Geral da AD (Mensageiro da luterana com altíssimo índice (95%) de adesão formal e de
Paz, fevereiro de 1991). cumprimento dos ritos de passagem, e de baixíssimo índice
"Está havendo uma deturpação dos postulados histórico-pente- (5%) de prática. Não há catolicismo, e o pluralismo existente
costais das Assembleias de Deus, que... hoje sofrem os efeitos é mais interno (pietismo) do que institucional. Igrejas dissiden-
negativos da institucionalização". Pr. Geremias do Couto (Men- tes (batistas) aparecem somente na segunda metade do século
sageiro da Paz, julho de 1989). XIX, e são fracas. É a formação protestante que mais parece
com o padrão monolítico dos países católicos. Por isso, a
A Assembleia de Deus (AD) tem um ethos sueco-nordes-
social-democracia inicialmente se associa a elementos marxis-
tino. Começou com os nórdicos e passou para os nordestinos.
Sem entender as marcas dessa trajetória, não se entende a A D . tas e anticlericais. Mas só inicialmente; depois, prevalece o
caráter protestante da igreja, ou seja, não organicista e mais
A cidade norte-americana em que o pentecostalismo mais subordinada ao Estado do que a Igreja Católica e, em conse-
cresceu nos primeiros anos foi Chicago (Anderson 1979:128),
qiiência, mais maleável com relação a mudanças no caráter
onde 75% da população eram imigrantes ou filhos de imigran-
deste. Assim, a Escandinávia é um caso fraco do pluralismo
tes. Era a segunda cidade do país, com condições graves de
anglo-americano, e não uma variante do padrão católico. A
exploração industrial, e marcada pela violência quotidiana e
pelo forte movimento operário. A modernidade dos arranha- religião se mantém apenas como sentimento ciíltural. A igreja
céus de armação de aço convivia com condições sanitárias estatal tem alto status e um clero treinado nas universidades,
horrendas. Lá pululavam missões pentecostais das mais diver- mas as congregações são muito pequenas. As periferias reli-
sas etnias, inclusive entre os escandinavos (íè.:129). giosas tendem politicamente à centro-direita, em oposição à
social-democracia metropolitana dominante.
A Suécia da época não era a próspera sociedade de bem-
estar em que se transformou posteriormente. Era um país A Suécia da virada do século, pois, era um mundo muito
estagnado com pouca diferenciação sociaf, forçado a exportar
diferente do denominacionalismo norte-americano. As peque-
grande parte da população. Mais de um milhão de suecos
nas dissidências protestantes eram reprimidas e marginaliza-
emigraram para os Estados Unidos entre 1870 e 1920. A livre
das. Muitos batistas preferiam emigrar (Martin 1990:14). Foi
iniciativa se implantou relativamente tarde (1864), numa série
de reformas liberais que incluiu, formalmente, a liberdade no meio desses batistas, emigrados ou não, que o pentecosta-
religiosa (1860). Mas somente em 1905 é que houve o primeiro lismo se firmou. Não demorou para sobrepujá-los, confirman-
governo realmente parlamentar, e somente em 1907 o sufrágio do a regra de Martin de que "em culturas luteranas, a
masculino universal. A virada para a Suécia foi o boom para dissidência explícita tende a chegar tarde e a adquirir forte
seus produtos durante a Primeira Guerra Mundial, o qual criou componente pentecostal" (1978a: 11).
Os missionários suecos, que tanta influência tiyeram nos
1\s quarenta anos da A D no Brasil, vieram de um país
1 religiosa, social e culturalmente homogéneo, no qual eram
8. E m 1 8 7 0 , s o m e n t e 10% da p o p u l a ç ã o trabalhavam c o m o a r t e s ã o s o u na indústria (Bruce M marginalizados. Pertenciam à insignificante minoria religiosa
1990a:97).

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num país onde vários trâmites burocráticos ainda passavam mãos nacionais. As condições económicas também ajudaram.
pelo clero luterano'. Desprezavam a Igreja estatal, com seu alto Não é que os suecos fossem necessariamente menos etnocên-
status social e político e seu clero culto e teologicamente tricos do que os americanos. É que a A D foi produto do esforço
liberal. Desconfiavam da Social-democracia, ainda tingida missionário de um gmpo pequeno e marginalizado de um país
pelo secularismo. Haviam experimentado um Estado unitário ainda relativamente pobre. Os missionários não tiveram con-
ino qual uma cultura cosmopolita homogénea não permitia à dições de inundar a igreja com dinheiro, criando instituições
Idissidência religiosa a construção de uma base cultural capaz poderosas que permanecessem nas suas próprias mãos'' ou que
de resistir à influência metropolitana. Por isso, eram portadores se tomassem palco de brigas intemas. Forçosamente, suas
Ide uma religião leiga e contracultural'", resistentes à erudição vidas pessoais foram marcadas pela simplicidade, um exemplo
teológica e modesta nas aspirações sociais. Acostumados com que ajudou a primeira geração de líderes brasileiros a ligar
a marginalização, não possuíam a preocupação com a ascensão pouco para a ascensão económica. Assim, o ethos da A D evitou
social tão típica dos missionários americanos formados no um aburguesamento precoce que antecipasse as condições
denominacionalismo. Na experiência escandinava, diante de oferecidas pela própria sociedade brasileira aos membros da
uma sociedade centralizada dominada por um establishment igreja.
cultural e religioso caracterizado pela "ilustração" e pela "des- Outro fator é que o modelo sueco rejeitava a ênfase no
crença", as periferias reagiam com uma religiosidade fervorosa aprendizado formal que reforçava o status do missionário
e um tanto antiintelectualista, pois não tinham possibilidades frente aos adeptos nacionais. Os missionários suecos eram
de se defender com as mesmas armas do centro. Os missioná- bíblicos (ênfase no conhecimento da Palavra escrita, mais do
rios americanos, por outro lado, vinham de um contexto onde que na inspiração direta'^) porque eram de um país protestante,
as periferias podiam se defender culturalmente, criando redes mas por serem culturalmente marginalizados, resistiam à pre-
de instituições altemativas. Assim, não rejeitavam as institui- tensão à ilustração. Assumiam que estavam formando uma
ções liberais em si, mas propunham a sua duplicação por outras comunidade de gente socialmente excluída (seja na Suécia
controladas pelo grapo minoritário. Por isso, não somente por luterana ou no Brasil católico) que não precisava de um clero
causa da disponibilidade de recursos, mas também em função diferenciado.
da experiência histórica, o impulso de institution-building
entre os americanos foi muito maior. Os pentecostais suecos, É nesse contexto que podemos entender a história dos dois
pioneiros lendários da AD, Gunnar Vingren e Daniel Berg. Os
por outro lado, em vez da ousadia de conquistadores, tinham
dois se complementavam: Berg, o robusto operário qualificado
uma postura de sofrimento, martírio e marginalização cultural.
que fazia longas viagens pelo interior; Vingren, o "intelectual
Tudo isso contribuiu para a maior liberdade da A D , em proletaróide" (Weber 1974:404) na tradição judaico-puritana.
- comparação com as igrejas históricas, de se desenvolver em Quando chegaram em Belém, Berg foi trabalhar como fundidor

9 . A l g u n s dos m i s s i o n á r i o s e r a m d a m i n o r i a sueca d o oeste d a F i n l â n d i a . N e s t e p a i s , a l i b e n l a d e 1 1 . A m i s s ã o presbiteriana de N o v a I o r q u e , p o r e x e m p l o , t i n h a " u m a p o l i t i c a consistente para


r e l i g i o s a d i a n t e da I g r e j a estatal luterana v e i o s o m e n t e e m 1923 ( H o l l e n w e g e r 1 9 7 2 : 4 3 0 ) . i m p e d i r q u e os b r a s i l e i r o s a d q u i r i s s e m o c o n t r o l e l e g a l das i n s t i t u i ç õ e s pertencentes à m i s s ã o "
1 0 . E x e m p l o disso é a a ç â o de u m t u t u r o m i s s i o n á r i o n o B r a s i l , S i m o n L u n d g r e n , q u a n d o se (Frase 1 9 7 5 : 3 9 4 ) .
c o n v e r t e u e m 1916. N ã o s ó a b a n d o n o u o c i c l i s m o , esporte e m que era c a m p e ã o , mas j o g o u 12. N a s palavras de G u n n a r V i n g r e n , u m dos p i o n e i r o s , " n ã o é p o r m e i o de p r o f e c i a , i n t e r p r e t a ç ã o
fora t o d o s os seus t r o f é u s e m e d a l h a s , j u n t o c o m " t u d o que era usado c o m o prazer c a r n a l "
e l í n g u a s que d e v e m o s ser d i r i g i d o s . . . mas a d i r e ç ã o verdadeira... v e m d a B í b l i a " ( V i n g r e n
(Cohen 1986:20).
1982:108)

78 79
para sustentar os dois e pagar as aulas de português de Vingren; do onde ficava "Pará" localizaram-no em atlas da biblioteca
história sem paralelo nos anais missionários americanos. pública.
Vingren nasceu numa região agrícola do sudeste da Suécia, A escolha do Pará para iniciar a AD não foi racional, mas
em 1879, filho de um jardineiro batista. Teve que interromper acabou tendo uma racionalidade maior (no sentido de se fazer
a educação com 11 anos de idade. Trabalhou como jardineiro presente em todo o país) do que se começasse no Rio ou São
até 1903, quando seguiu o rumo de parentes para os Estados Paulo. Acontece que havia um certo contexto para a profecia.
Unidos. Teve vários empregos manuais e frequentou uma O pastor da igrej a batista em Belém era precisamente um sueco
igreja batista sueca. Possivelmente com a ajuda financeira emigrado para os Estados Unidos aos 7 anos de idade. Trata-
desta, Vingren estudou no seminário da denominação em va-se de Erik Nilsson (ou Eurico Nelson), que desde 1897
Chicago. Em seguida, pastoreou em igrejas batistas. Nesse implantava igrejas em toda a Amazónia (Leonard 1963:319).
período, tomou-se pentecostal e pentecostalizou a igreja que Embora houvesse vindo por conta própria ao Brasil, inicial-
pastoreava. mente com vistas a uma carreira de pecuarista, é provável que
Foi nesse tempo que conheceu Daniel Berg. Berg era do o nome "Pará" já tivesse aparecido em relatos seus enviados à
sudoeste da Suécia, filho de um líder batista, e havia emigrado comunidade batista sueca nos Estados Unidos.
com 18 anos. Nos Estados Unidos, especializou-se em fijndi- Vingren e Berg vieram para o Brasil sem sustento garan-
ção de aço. Voltando à Suécia em 1908, descobriu que um tido e sem apoio denominacional. O dinheiro para a viagem
amigo de infância havia se tomado pentecostal. Este era Lewi fora doado por uma igreja sueca de Chicago. No Brasil, Berg
Pethms, posteriormente líder do movimento pentecostal sueco trabalhou por um tempo numa fundição, venderam Bíblias e,
e, no final da vida, fundador de um partido político que hoje
ao que tudo indica, receberam doações esporádicas de amigos
integra o governo. Pethrus, pastor de ovelhas e depois sapatei-
no exterior. Após sete meses em Belém, congregando na Igreja
ro, havia perdido a fé na divindade de Cristo enquanto estudava
Batista, ocorreu um cisma a respeito da sua mensagem pente-
num seminário batista em Estocolmo. Esta experiência deixou
costal. Dezenove pessoas foram excluídas da Igreja Batista e
marcas por muitos anos na A D do Brasil, devido à ascendência
formaram uma nova igreja, a qual adotou o nome de "Missão
de Pethms sobre os missionários suecos. Recuperando sua fé,
de Fé Apostólica". Era um dos nomes dos primitivos gmpos
tomou-se pentecostal na Nomega. Em 1910 Pethms assumiu
pentecostais nos Estados Unidos. O nome "Assembleia de
o pastorado de uma igreja batista em Estocolmo, a qual foi
Deus" já foraadotado em 1917 (Vingren 1982:93) e possivel-
excluída da denominação em 1913. Esse rompimento foi fun-
mente antes. Mas, nos primeiros anos, ainda não estava claro
damental para que sua igreja assumisse uma ação missionária
independente no Brasil, apoiando financeiramente o incipiente que organização resultaria da nova mensagem.
trabalho do amigo Berg e enviando outros missionários. A partir de 1914 outros suecos começaram a chegar para
Influenciado por Pethms, Berg também teve uma expe- colaborar com Vingren e Berg. De 1915 a 1917 Vingren viajou
riência pentecostal enquanto voltava aos Estados Unidos em pelo exterior, ocasião em que a Missão Sueca Livre foi oficial-
1909. Conhecendo Vingren, os dois se uniram pelo ideal mente organizada por Pethms. Os vínculos eram principalmen-
missionário. Orando em companhia de um profeta pentecostal te com a Suécia e secundariamente com a colónia sueca nos
sueco, este profetizou que deveriam ir a um lugar chamado Estados Unidos. Esta ordem vale para o tempo que os pioneiros
Pará, "onde o povo para quem eu testificaria de Jesus era de dedicavam em cada país quando de suas viagens, e também
um nível social muito simples" (Vingren 1982:25). Não saben- para o número de missionários enviados. Provavelmente vale

80 81
também para o apoio financeiro. Significativamente, os dois de uma forma limitante. Depois, em boa parte seguiram os
pioneiros voltaram para a Suécia para morrer. migrantes. A formação inicial de uma comunidade foi frequen-
O auge da presença sueca foi nos anos 30, com cerca de 20 temente facilitada pela existência de outros grupos protestan-
famílias missionárias. Depois de 1950, o fluxo praticamente tes, os quais forneceram uma porcentagem da primeira
cessou. Naquela altura, o Brasil já tinha a terceira comunidade liderança"*.
pentecostal do mundo. Suecos ocuparam a presidência da Quase sempre, o trabalho se iniciava nas capitais. A ex-
Convenção Geral até 1951. Quando a última leva de missioná- pansão (segundo os dados de Vasconcelos 1983:27-39) foi:
rios chegava ao Brasil, a sociedade sueca se transformava
numa próspera social-democracia e, depois, na vitrine da so- 1915:3 Estados (1 do Norte, 2 do Nordeste).
1920: 9 Estados (3 do Norte, 6 do Nordeste).
ciedade permissiva. O pentecostalismo sueco, por sua vez, 1925: 15 Estados (4 do Norte, 6 do Nordeste, 3 do Sudeste, 2 do
adquiria maior respeitabilidade, moderando seu discurso apo- Sul).
calíptico e estabelecendo uma série de instituições próprias". 1930: 20 Estados (4 do Norte, 9 do Nordeste, 4 do Sudeste, 3 do
Mas essa nova fase do pentecostalismo sueco não deixou Sul).
marcas na A D do Brasil.
O ano de 1930, momento em que a expansão geográfica
A expansão inicial da A D foi moderada. Nos primeiros 15 está basicamente completa, é importante por mais duas razões:
anos limitou-se praticamente ao Norte e Nordeste, onde a marcou a autonomia da igreja com relação à Missão Sueca, e
oposição católica e a dependência social de boa parte da a transferência efetiva da sede da denominação, de Belém para
população não eram favoráveis à mudança de religião. A o Rio de Janeiro. A nacionalização da obra, portanto, é acom-
Congregação Cristã (CC), com um ponto de apoio natural entre panhada pela mudança para a capital federal.
os imigrantes italianos de São Paulo, cresceu muito mais. Em Na primeira Convenção Geral da AD, em Natal em 1930,
1930 esta tinha 7 membros para cada 3 da A D (Rolim assistida por 11 missionários suecos e 23 líderes brasileiros",
1979:350). No final dos anos 40, porém, a A D já ultrapassava "todos os templos e salões de reuniões que pertenciam à missão
a sua rival (Read 1967:182), lucrando com a sua base territorial sueca foram entregues às igrejas brasileiras"". Mesmo que
mais ampla e com o proselitismo público, mais adaptado às essas propriedades não fossem tão valiosas quanto as das
cidades em crescimento mas rechaçado pela CC. missões protestantes norte-americanas, esse ato de desprendi-
A A D se espalhou, não só com a ação planejada dos líderes, mento parece ter tido muito a ver com a presença no Brasil do
mas também pela mão de leigos, geralmente pessoas simples. próprio Lewi Pethrus. "Haviam surgido dificuldades que se
Aliás, a expansão para outros Estados parece ter sido provoca- acentuaram quando a responsabilidade do trabalho foi sendo
da pelos leigos, uma vez que Berg evangelizava ao longo da
Esti-ada de Ferro Belém-Bragança e na Ilha de Marajó, enquan-
to Vingren pastoreava a igreja em Belém (Almeida 1982:21).
Talvez eles entendessem a profecia que os chamava para o Pará
1 4 . E x e m p l o s d i s s o s ã o os batistas e adventistas q u e i n i c i a r a m a igreja de M a c e i ó ( V i n g r e n
1 9 8 2 : 7 0 ) ; os m e m b r o s dos I m ã o s U n i d o s ( o u "Casa de O r a ç ã o " , v á r i o s dos q u a i s se t o m a r a m
pastores da A D n o Estado d o R i o ( V á r i o s 1 9 8 7 : 8 7 ) ; os adeptos da I g r e j a de D e u s , n o m e s m o
Estado ( A l m e i d a 1 9 8 2 : 2 0 9 ) ; e os m e m b r o s da C o n g r e g a ç ã o C r i s t ã q u e se t r a n s f e r i r a m n o
c o m e ç o d a A D na c i d a d e de S ã o P a u l o ( C o h e n 1 9 8 5 : 6 8 ) .
15. E o q u e se depreende da f o t o g r a f i a da C o n v e n ç ã o p u b l i c a d a no Mensageiro da Paz, fevereiro
de 1986, p. 19.
1 3 . D e v e m o s estas i n f o i m a ç õ e s ao D r . S i m o n C o l e m a n da U n i v e r s i d a d e de C a m b r i d g e . 16. / * . , fevereiro de 1990, p. 13.

82 83
transferida, paulatinamente, dos missionários para os obreiros Nas últimas décadas, o maior contato internacional da A D
brasileiros" (Vingren 1982:150). Talvez, do lado dos brasilei- tem sido com os Estados Unidos. Mas o contato é reduzido. O
ros, o problema fosse justamente a lentidão do processo: eles primeiro missionário chegou em 1934 (Read & Ineson
"se achavam diminuídos de não terem oportunidade em assu- 1973:32), mas houve dificuldades de aceitação por parte dos
mir as administrações das igrejas locais"'^ Do lado da missão, suecos. Uma das razões deve ter sido financeira: quando um
o problema era eclesiológico. Reagindo contra a experiência americano chegou em 1939, desembarcou com seu Chevrolet
de uma igreja estatal protestante, os pentecostais suecos guar- do ano e alugou um apartamento em Copacabana (Brenda
davam zelosamente a autonomia da congregação local. Como 1984:89). Outros motivos de conflito eram a ênfase americana
disse Pethrus, "a organização local e livre deve ser a única... em educação teológica e a atitude menos severa na área de
que se deve manter num trabalho no exterior... Mas, na prática, costumes.
quase sempre chegamos a uma situação contrária àquilo que O pentecostalismo nos Estados Unidos, após a explosão
desejávamos" (ib.:l54). Os missionários estavam sendo acu- inicial, teve um crescimento lento, "até o ressurgimento repen-
sados (por pentecostais suecos?) de haver se organizado numa fino durante a Depressão" (Anderson 1979:137). Aí, os tabus
organização eclesiástica a nível nacional (íè.:167). O quase comportamentais que, no começo, atingiam atividades fora dos
inevitável autoritarismo missionário contrariava o ethos do horizontes sociais dos membros, passaram a ser disfuncionais
pentecostalismo sueco. Ao mesmo tempo, entre os próprios e foram relaxados. Esse processo foi bem mais rápido do que
brasileiros a tendência autoritária se evidencia. A decisão, na Suécia ou no Brasil. Por isso, os missionários americanos
então, foi de tirar os missionários da linha de fogo, deslocando passaram a ser vistos como "mundanos", e tiveram que apelar
a maior parte deles para o Sul do país onde o trabalho ainda era para outras qualidades. Um líder brasileiro sintetizou bem a
incipiente. situação: "Os suecos têm a doutrina e os americanos têm os
dólares"".
Essa nacionalização ocorreu quando a igreja ainda era
muito nortista/nordestina, o que contribuiu para sedimentar O auge da presença americana foi nos anos 70, com umas
uma característica que subsiste até hoje. Na sala de espera do 20 famílias missionárias. Tiveram que aceitar as normas do
gabinete pastoral da Igreja de São Cristóvão, Rio de Janeiro, trabalho brasileiro. A influência financeira da igreja americana
há retratos de todos os pastores-presidentes da igreja desde a é reduzida. O único missionário americano com algum desta-
fundação. Até certo momento, as fisionomias são nórdicas; que no contexto brasileiro é a exceção que confirma a regra:
depois, são típicas do Norte e Nordeste brasileiros. Uma pro- um filho de missionários, criado no Brasil, que tem um minis-
porção alta da cúpula nacional é de nordestinos, geralmente de tério próprio de cruzadas evangelisticas e educação teológica
origem rural. A mentalidade da A D carrega as marcas dessa por extensão. Parece que a igreja americana deixa uma presen-
dupla origem: da experiência sueca das primeiras décadas do ça quase simbólica no país porque é interessante, do ponto de
século, de marginalização cultural; e da sociedade patriarcal e vista de levantamento de fundos nos Estados Unidos, poder
pré-industrial do Norte/Nordeste dos anos 30 a 60. dizer que trabalha junto com a A D brasileira, a maior do
mundo.

I7./Í., ib. 18. " D o u t r i n a " n o sentido pentecostal, de costumes c o m p o r t a m e n t a i s .

84 85
O pregador de televisão Jimmy Swaggart, que era pastor uma forma de manter o crescimento da igreja como um todo
da A D americana mas tinha um império próprio, financiava sem tocar na estrutura do poder.
algumas obras sociais de igrejas brasileiras e projetos espe-
ciais. Sua queda significou o fim dessas doações. Em conse- A Convenção Geral das Assembleias de Deus, órgão má-
qiiência, as obras da nova sede da Casa Publicadora da A D ximo de denominação, na realidade é um centro fraco. Há 47
brasileira atrasaram consideravelmente". convenções estaduais e ministérios filiados (muitos Estados
têm mais de uma convenção, devido a desentendimentos his-
A influência americana se faz sentir principalmente na área tóricos). A Convenção Geral não tem poderes para demitir ou
de educação teológica. Os suecos admitiam apenas o modelo nomear pastores, nem qualquer poder legal sobre as conven-
de Pethrus, de escolas bíblicas de poucas semanas, sem diplo- ções estaduais. Isso a deixa exposta financeiramente.
mas. Acima de tudo, resistiam a tentativas de vincular o pas-
torado com a formação teológica. A tentativa de um Tradicionalmente, um homem chega a ser pastor na AD,
missionário americano de implantar um seminário em 1948 vencendo uma série de estágios de aprendizado: auxiliar, diá-
naufragou na resistência dos suecos e da maioria dos brasilei- cono, presbítero, evangelista, pastor. Embora haja elementos
ros (Brenda 1984:119). clericais no sistema (ritos reservados aos pastores), não há um
abismo entre clero e laicato. O pastor é apenas aquele que
O sistema de governo da AD pode ser caracterizado como
chegou ao topo da escada, mas não se distancia do membro
oligárquico e caudilhesco. Surgiu para facilitar o controle pelos
comum por uma formação especializada. A escada de apren-
missionários e depois foi reforçado pelo coronelismo nordes-
dizado é um forte meio de controle social nas mãos dos
tino. A A D , na realidade, é uma complexa teia de redes
pastores-presidentes. Embora haja carreiras-relâmpagos,
compostas de igrejas-mães e igrejas e congregações dependen-
como no caso dos filhos de grandes caciques, a subida geral-
tes. Cada rede não habita necessariamente uma área geográfica
mente é lenta. Um exemplo: Alípio da Silva, nascido em
contígua, o que dá margem a controvérsias constantes sobre
"invasão de campo". O pastor-presidente da rede é, efetiva- Sergipe em 1909, tenente da marinha. Convertido no Rio em
mente, um bispo, com talvez mais de cem igrejas e uma enorme 1943, é feito diácono em 1951, presbítero em 195 5 e pastor em
concentração de poder. "Todos os crentes das igrej as-satéUtes 1958, com 49 anos de idade (Almeida 1982:65). Os pastorados
são arrolados na igreja-sede, para onde também é carreada toda geralmente são curtos até chegar a pastor-presidente; estes
a arrecadação" (Pinto 1985:27). O pastor-presidente é escolhi- ficam 20 ou 30 anos. Não é difícil imaginar o estilo de atuação
do por voto unânime do "ministério", um corpo composto de nesses casos: a familiaridade patriarcal com os mínimos deta-
pastores, evangelistas e presbíteros. "Embora aconselhado lhes; a organização burocrática antiquada, pois a modernização
pelo ministério, o pastor-presidente permanece a fonte última levaria a uma perda de controle; o formalismo no trato e o que
de autoridade em tudo... assim como o patrão da sociedade certo autor chama de "academicismo anacrónico" nos sermões.
tradicional que, mesmo cercado de conselheiros, maneja sozi-
Exige-se bastante respeito ao pastor, pois é o "ungido do
nho o poder" (Hoffnagel 1978:78). Esse sistema de feudos é
Senhor". Como diz um dissidente: "A A D tem uma cultura de
gueto, próxima à mentalidade católica: 'é a igreja-mãe, aqueles
que rompem estão se rebelando e não prosperarão". É a apro-
ximação sectária ao extra ecclesiam nulla salus da igreja.
Este modelo, que deixa espaço para iniciativa leiga na
expansão mas não no governo da igreja, produz as tensões
1 9 . 7 è . , m a r ç o de 1988, p. 3.

86 87
típicas do caudilhismo, como as cartas anónimas contra os incentivaria o surgimento de um clero jovem e crítico com uma
caciques^", as acusações de gerontocracia^' e os cismas. Quan- teologia política mais sofisticada. Muitos dos (raros) artigos
do o crescimento não é suficientemente rápido para permitir a mais críticos no Mensageiro da Paz vêm de produtos dessa via
absorção de novas lideranças em congregações novas, a alter- altemativa. Segundo um seminarista, a maioria dos estudantes
nativa é de reduzir a atração do cisma, garantindo uma renda teria votado em Lula para presidente, apesar da campanha que
fixa aos pastores por meio de uma maior institucionalização a cúpula fez contra ele.
(Nelson 1988:324). Mas isso tem a tendência de minar o
Mas o contexto eclesiástico em que terão que agir é bas-
próprio modelo, cada vez mais fora de sintonia com a moderna tante desfavorável à continuação de tais atitudes. Prefeririam
sociedade urbana. Há sinais de esvaziamento do modelo, e a um sistema mais congregacional e, naturalmente, mais profis-
renovação parece lenta demais para impedir que a A D entre sional. Poderíamos dizer que a batalha é entre a autoridade
numa fase internamente conturbada. tradicional^ e a racional-legal. Mas com a ressalva de que a
O modelo caudilhista é desafiado cada vez mais por alguns batalha, por enquanto, é bastante desigual, e que somente
pastores jovens que são produtos, não da escada de aprendiza- aqueles que combinam elementos dos dois lados (sendo pro-
do prático, mas da rota alternativa de uma formação teológica dutos da via altemativa e também filhos de famílias tradicio-
em seminário, levando ao pastorado com vinte e poucos anos nais de pastores proeminentes) conseguem guardar muito
de idade. O primeiro seminário da AD data de 1959, fundado espaço para a contestação.
contra muita oposição por um brasileiro que havia estudado A A D , atualmente, enfrenta crises de vários tipos, resul-
nos Estados Unidos. Hoje, a AD tem uns 50 institutos bíblicos, tantes do seu modelo, da ascensão social e da concorrência com
inclusive quatro seminários internos. O principal, o de Pinda- novos gmpos pentecostais.
monhangaba, tem cerca de 200 alunos, inclusive da África e
América Latina. Oferece um bacharelado em teologia. Em A crise do modelo se revela mais nitidamente no cisma da
1978, a Convenção Geral instituiu a obrigatoriedade (não Convenção de Madureira. É comum ouvir um membro da A D
retroativa) de curso bíblico para o pastorado. Houve, então, dizer que pertence a "Madureira" ou, então, à "Missão". Esta
uma proliferação de institutos bíblicos, com o objetivo de é o tronco principal que vem da obra da Missão Sueca, por sua
evitar o deslocamento geográfico e impedir que os seminários vez dividido em inúmeros ministérios nem sempre amigos.
internos ditassem o futuro da igreja. Muitas igrejas-mães já Madureira é como se fosse mais um desses ministérios, mas
possuem seu próprio instituto. que cresceu muito. É a concretização de uma das possibilidades
do modelo caciquista assembleiano: o caudilho que se tomou
Se a educação teológica já foi aceita em tese, os efeitos grande demais, ameaçando a sobrevivência dos outros. Para
ainda não se fizeram sentir em larga escala. Para os formados restaurar o equilíbrio do poder, ele acabou sendo eliminado.
do seminário de Pindamonhangaba não há nenhuma garantia
de emprego na igreja. Se esta via se tomasse mais aceita, teria
um efeito considerável sobre a postura política da AD, pois

2 2 . D i s c o r d a m o s d e N e l s o n q u a n d o c l a s s i f i c a o pastor da A D c o m o carismático. Alguns podem


t e r q u a l i d a d e s c a r i s m á t i c a s , mas s ã o s e c u n d á r i a s na fiindamentação de seu p a p e l . O pastor n ã o
e s t á l i v r e para i n o v a r m u i t o ; p e l o c o n t r á r i o , apela-se ao " c o s t u m e dos crentes da A D " , c o m o
na c i t a ç ã o d o presidente da C o n v e n ç ã o G e r a l n o i n í c i o d o c a p i t u l o . T a n t o n o seu papel c o m o
na sua p l a t a f o r m a ele se destaca p e l o fiel c u m p r i m e n t o da t r a d i ç ã o assembleiana ( v e r B r u c e
2 0 . Ib., s e t e m b r o de 1986, p. 21.
I989:199s).
2 1 . / è . , f e v e r e i r o de 1 9 9 1 , p. 9.

89
o fundador da Convenção Nacional das Assembleias de 1986:38); um homem de origem militar, feito líder religioso
Deus de Madureira foi um gaúcho chamado Paulo Macalão". das massas urbanas. Com um estilo destemido e um rigorismo
O pai era militar de carreira, à época oficial na fronteira e militar, entrou em choque com os missionários, mas compreen-
depois general no Rio de Janeiro. A mãe era de familia culta e deu as possibilidades do momento. Havia se convertido sem a
o jovem Paulo chegou a ter governanta; uma origem atipica ajuda dos suecos, e sua classe e formação social não o faziam
para um futuro líder da incipiente Assembleia de Deus. Fican- disposto a aceitar as peias desses homens que, embora estran-
do órfão de mãe, foi morar no Rio com o tio materno, um geiros, eram socialmente seus inferiores. Mas a estmtura caci-
engenheiro agrónomo. Estudou no Colégio Batista (apesar da quista então em formação permitiu que a sua cisão autonomista
família não ser protestante) e no Colégio Dom Pedro I I . O pai produzisse apenas um novo "ministério" dentro da AD, e não
queria que seguisse a carreira militar mas, com 20 anos de uma nova denominação independente. Há indícios de uma
idade, Paulo teve um contato casual com um grupo pentecostal influência nacionalista, à qual Macalão, com seus vínculos
liderado por um missionário inglês da Igreja de Deus e frequen- militares, teria sido especialmente suscetível no período após
tado por alguns assembleianos migrados do Nordeste. Conver- a Revolução de 1930.
teu-se lá, pouco antes da A D resolver organizar uma igreja no
Rio, à qual passou a assistir. Macalão dirigiu a sua obra com mão firme (e como presi-
dente vitalício) até a morte em 1982. Sempre cultivou vínculos
Macalão logo entrou em desacordo com os missionários com os militares. Sua morte foi o sinal para que os outros
suecos. " A força com que ele pregava, a convicção com que líderes assembleianos aumentassem a pressão contra Madurei-
dirigia seus ataques violentos contra o pecado, vinham sendo... ra, talvez esperando que implodisse. Cresceram as acusações
mofivo de censura... Incompreendido, o irmão Paulo, em se- de "invasão de campo" e desrespeito às normas da Convenção
tembro de 1926, decidiu pregar exclusivamente nos subúrbios Geral, culminando na exclusão de Madureira em setembro de
da Central" (CPAD 1983:37). Foi consagrado pastor por Pethrus 1989. Com isso, a Convenção Geral deixou de representar
em 1930, e se tomou efetivamente independente, embora sem talvez um terço da A D no Brasil. Agora livre de constrangi-
cisma formal. Já em 1937, abriu um trabalho em São Paulo, mentos, Madureira tem se expandido a todos os Estados,
seguido por outros Estados do Sudeste e Centro-Oeste. Em extrapolando a faixa do Centro-Sul que é sua base histórica.
1953 inaugurou o atual templo da sede em Madureira, Rio de
Janeiro^". Campinas ilustra a dinâmica do conflito entre a "Missão"
e Madureira. Um missionário sueco fundou a primeira igreja
Macalão era gaúcho numa igrej a de nortistas e nordestinos. lá em 1936. Mas, diante de suas dificuldades em viajar durante
Era filho de general, numa igreja de pobres. Mas, longe de levar a Guerra, sugeriu que a igreja convidasse Madureira a enviar
a A D a subir de nível social, ele tomou-se o líder absoluto dos um pastor, o que foi feito. Desacostumados com o maior rigor
mais miseráveis. Com ele, como diz a biografia oficial, "Jesus legalista de Madureira, muitos crentes saíram. Em 1950 a
se apossava dos subúrbios" (CPAD 1983:35). Macalão vestia "Missão" decidiu abrir outra igreja. Posteriormente, a igreja
"um surrado temo lavado às pressas, e botas rústicas" (Macalão que era de Madureira "se rebelou" sob a liderança de um pastor
dissidente e se tomou autónoma. Aí, Madureira abriu uma obra
própria, a terceira A D da cidade. Diz um crente antigo: "Agora,
as três igrejas se dão melhor. Não se unem, mas pelo menos
2 3 . S o b r e a v i d a de M a c a l ã o , v e r C P A D 1983; M a c a l ã o , Z . 1986; e V i n g r e n 1982:127s.
não estão em pé de guerra como antes, cada um tentando
2 4 . N ã o s o m e n t e esse t e m p l o ( p r o j e t a d o p e l o p r ó p r i o M a c a l ã o ) mas o u t r o s de M a d u r e i r a t o m a m desfazer o trabalho da outra, cada uma quase escondendo seus
a b s u r d o o j u l g a m e n t o de tantos observadores, de que as igrejas pentecostais n ã o f a z e m a p e l o
a l g u m aos sentidos.
crentes para outra não roubá-los".

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o cisma é das lideranças e possivelmente será superado. se sentem à vontade. As características da igreja que se consi-
Mas a duplicação institucional por parte de Madureira (editora deravam virtudes no passado (inclusive o apoliticismo) já são
própria, etc.) sugere que não. Editoras são importantes na vistas por outra ótica. Exemplifica-se o paradoxo da seita
institucionalização de igrejas pentecostais, pois dão poder conversionista: tendo prometido mobilidade social para seus
financeiro a quem as controla e se tomam "cabides de empre- fiéis depois da morte, acaba providenciando-a nesta vida (Wil-
go" para pastores. No caso da AD, a Casa Publicadora (CPAD), son 1970:236). Nesse processo, a própria seita muda. Os
fiindada em 1937, teve um papel central. Ao contrário da membros bem-sucedidos ou deixam-na ou a remodelam segun-
educação teológica, o jomalismo não encontrou nenhuma res- do a sua nova posição social, tomando-a mais parecida com as
trição por parte dos suecos, os quais iniciaram o primeiro jornal denominações (Hill 1973:65). O desejo de respeitabilidade,
pentecostal em 1917. O Mensageiro da Paz foi fundado em anátema para os pais fundadores, agora justifica-se estrategi-
1930. No final dos anos 70, começou a ser vendido em bancas camente: o pobre se entrega mais a Deus quando vê o rico se
de jornais e, em meados da década seguinte, chegou a uma entregando (Brandão 1986:262).
tiragem de 300.000 exemplares mensais. Em seguida, caiu para
50.000, evidenciando uma crise séria na AD. A CPAD tomou- Um dos sinais da passagem para "igreja emdita" é a
se, nas palavras de um ex-editor, "um cavalo de sela muito bem preocupação com a história. "Quanto mais emdita a igreja,
equipado que todo mundo quer sentar em cima". Era a principal tanto mais ela procura controlar, entre os seus fiéis, narrativas
fonte de renda para a Convenção Geral, a qual era deixada à não-oficiais sobre os seus próprios começos" (zè.:213). Até os
míngua pelos caciques regionais. "Temos que começar a ques- anos 80, havia somente uma história da A D (Conde 1960),
tionar o que tem sido feito com o lucro da CPAD", brada um escrita por um jornalista da igreja. Na década de 80 publica-se
jornal assembleiano de linha dissidente". uma série de histórias e biografias, movidas "pela necessidade
de conhecermos nossa história... [e incluí-la] nos currículos"
A A D é a igreja que mais cultiva o que Weber chama de (Vasconcelos 1983:7). O Mensageiro da PazpuhWcawmdiséne.
"intelectualismo pequeno-burguês", na tradição dos judeus, de editoriais com o título "Vamos Preservar Nossa História"^*.
dos puritanos e dos intelectuais proletários socialistas e anar- Outro sinal de institucionalização e que tem influência
quistas (1974:404-406). A quantidade de produtos literários do direta sobre o esforço político pós-1986 é a reestmturação da
pentecostalismo brasileiro deve ser bem maior do que de outros Convenção Geral em moldes mais burocráticos em 1979, o que
segmentos da mesma classe. De uns 170 títulos no catálogo da permitiu que se encorajassem as convenções estaduais, muitas
CPAD, 140 são de autores nacionais. das quais tinham existência precária, a fazerem o mesmo. Essa
A A D tem passado por um processo de ascensão social. Há maior burocratização foi, provavelmente, indispensável para
uma acentuada preocupação com a respeitabilidade social e que o projeto de candidaturas coordenadas à Constituinte t i -
orgulho nos êxitos educacionais e profissionais dos membros. vesse tanto sucesso.
A A D quer se distanciar de gmpos como a Universal do Reino A A D hoje em dia parece uma enorme banheira enchendo
de Deus. Os cultos se tomam mais comedidos, principalmente constantemente de água, mas com profundas rachaduras e água
nas igrej as-sedes para onde gravitam as pessoas em ascensão saindo de cima pelo "ladrão". Ficou demasiadamente diversi-
e onde os membros humildes das congregações de bairro já não

2 6 . Mensageiro da Paz, n o v e m b r o de 1984, p. 3, e o u t r o s n ú m e r o s .


2S. o Alerta, n o v e m b r o de 1989, p . 7.

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ficada em termos sociais para continuar como estava, mas uma série de vazamentos do topo da AD, na classe média e
hesita entre opções contraditórias para o novo momento. Já tem estudantil, pessoas cujas experiências de vida colocam-nas em
todas as classes dentro dela, desde empresários de porte razoá- contato com um mundo mais amplo. Estes vazamentos assu-
vel até mendigos. Há uma tensão entre o desejo de aderir mem a forma, ou de transferências para igrejas "renovadas" e
explicitamente a valores burgueses, e a tradição assembleiana para as "comunidades evangélicas", ou do desligamento de
de um certo populismo religioso que tende a gloriar-se na igrejas inteiras da AD. O objetivo é o mesmo: a busca de algo
escolha dos humildes por parte de Deus. Mas a nova geração que mantenha a tradição carismática de uma religião entusias-
de homens de negócios tende a rejeitar não só os elementos ta, mas sem os tabus legaHstas.
disfimcionais do moralismo restritivo, como também a própria Segundo um pastor que liderou um desses cismas, a A D
tendência de idealizar teologicamente a pessoa "humilde". Isso perdeu a maior parte da atual geração de jovens que fazem
causa uma perda de atratividade "embaixo". estudos superiores. A taxa de crescimento também está dimi-
Steve Bruce faz uma comparação entre dois pregadores de nuindo por causa das lutas intestinas dos caudilhos. Podemos
televisão envolvidos em escândalos, ambos pertencentes à acrescentar que, mesmo quando não estão em luta, a formação
Assembleia de Deus nos Estados Unidos, mas com estilos bem cultural ultrapassada que representam faz com que percam
diferentes. terreno para grupos pentecostais mais novos, com menos tra-
dições arraigadas para dificultar sua adaptação à moderna
"Swaggart se ofendia com a 'fé fácil' e teologia da prosperidade cultura urbana brasileira.
de Bakker... Os Bakker constraíram um parque de diversões
cristão. Swaggart gastava seu dinheiro com a televisão, missões Depois de algumas sangrias, causadas pela questão dos
estrangeiras e um colégio... Se [os Bakker] eram o pentecosta- "costiimes", pode ser que a A D acabe aceitando as suas novas
lismo ultramodemo do novo Sul, próspero e confiante, Swag- igrejas de classe média e média alta. A pressão de fazê-lo deve
gart... estava mais próximo às velhas tradições geradas num ser grande, pois representam dinheiro e apoio político, e seus
clima de fervor escatológico, um pentecostalismo sectário into- pastores não podem ser coagidos porque têm futuro garantido
cado pelo movimento carismático dos anos 70" (Bruce
1990b:204-205). com o respaldo de congregações prósperas. Mas se a denomi-
nação viesse a aceitá-las, aceleraria o processo de mudanças:
Vemos a mesma divisão na A D do Brasil. O tipo Swag- de "costiames", de estilo de culto, de formação de ministros e,
gart" ainda predomina, mas o tipo Bakker tem o dinheiro e os por conseguinte, de linha política. Na questão política, haveria
contatos sociais e políticos. um fracionamento entre os conservadores da teologia da pros-
Nos anos 50, nos Estados Unidos, a subida de status social peridade e os progressistas em contato com correntes teológi-
de uma camada de leigos ainda excluída das esferas decisórias cas mais amplas do mundo protestante. Em todo caso, a atual
pelo clericalismo da Assembleia de Deus levou à formação da política corporativa seria atenuada.
Associação de Homens de Negócio do Evangelho Pleno (Adh- A cúpula da A D admite que o crescimento tem sido me-
onep), a qual se implanta efetivamente no Brasil nos anos 80. nor^^ mas a reação não promete mudanças substanciais a curto
Mas não é suficiente para resolver o problema. Ocorre também prazo. De um lado, procura-se reacender a chama sectária.

2 7 . N ã o nos r e f e r i m o s ao e s c â n d a l o , mas.ao t i p o de p e n t e c o s t a l i s m o q u e S w a g g a r t representava


2 8 . / A . , j u l h o de 1988, p. 6-7.
nas suas mensagens.

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Num artigo contra a utilização nas igrejas de play-backs com Bibliografia
vozes de incrédulos, ou mesmo instrumentistas que sejam Almeida, Abraão de, et alii. História das Assembleias de Deus no
incrédulos, o diretor da Casa Publicadora afirma que "o mundo Brasil. Rio de Janeiro, CPAD, 1982.
jamais fará coisa alguma para agradar a Deus... O povo de Deus
Anderson, Robert Mapes. Vision of the Disinherited: The Making of
não somente é diferente, mas é também melhor"^'. Não se trata American Pentecostalism. Nova Iorque, Oxford University
de qualidades morais aqui, mas capacidades técnicas. A mesma Press, 1979.
atitude permeia as repetidas afirmações políticas de que "nós Bebbington, David. Evangelicalism in Modern Britain. Londres,
somos a resposta". Do outro lado, busca-se reacender a chama UnwinHyman, 1989.
conversionista. Os anos 90 foram decretados pelas A D do
Brandão, Carlos Rodrigues. Os Deuses do Povo. T ed.. São Paulo,
mundo inteiro a "Década da Colheita". A Igreja do Brasil Brasiliense, 1986.
estabeleceu o alvo de 50 milhões de convertidos, ou seja, de
Brenda, Albert W. Ouvi um Recado do Céu. Rio de Janeiro, CPAD,
que um em cada três brasileiros fossem membro da A D até o 1984.
ano 2000.
Bmce, Steve. God Save Ulster! The Religion and Politics of Pais-
Pode ser que a A D chegue a essa cifra, mas por uma outra leyism. Oxford University Press, 1989.
via. A Divisão de Missões Estrangeiras da A D norte-americana Bruce, Steve. A House Divided: Protestantism, Schism and Secula-
publica estatísticas para todos os países onde possui missioná- rization. Londres, Routledge, 1990a.
rios. Segundo as tabelas para 1990, os Estados Unidos possuem Brace, Steve. Pray TV: Televangelism in America. Londres, Routled-
em tomo de 2 milhões de assembleianos; nenhum país estran- ge, 1990b.
geiro chega perto disso, com exceção do Brasil, o qual registra
Cohen, Eliézer. Simon Lundgren e a Obra Missionária no Brasil.
um total de 14.400.000 membros da A D . Nem seus irmãos Curitiba, Edições Luz da Palavra, 1986.
americanos conseguem esconder a descrença: "Os números
Conde, Emílio. História das Assembleias de Deus no Brasil. Rio de
brasileiros, como registrados pela Igreja nacional e aqui publi- Janeiro, 1960.
cados, são difíceis de verificar independentemente. O Brasil
não realiza um censo nacional desde 1980". Nossa estimativa CPAD (Casa Publicadora das Assembéias de Deus). Paulo Macalão:
A chamada que Deus confirmou. Rio de Janeiro, CPAD, 1983.
seria de que a A D gira hoje em tomo dos 7 milhões de pessoas.
A influência política está garantida por muito tempo, seja qual Frase, Ronald. "A Sociological Analysis of the Development of
Brazilian Protestantism: A Study in Social Change", tese de
for o cenário do futuro: se continuar crescendo, pelo peso
doutoramento, Princeton Theological Seminary, 1975.
numérico; se estagnar, acelerando o processo de abertura e
reformulação teológica, pela conversão do seu já amplo públi- Hill, Michael. A Sociology of Religion. Londres, Heinemann, 1973.
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