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INSTITUTUM SAPIENTIAE

ORDINIS CANONICORUM REGULARIUM SANCTAE CRUCIS

CRISTOLOGIA

Professor:
Pe. Nathanael Thanner ORC

2o Semestre de 2010
1 Cristologia

A Cristologia é o tratado da teologia dogmática sobre JESUS CRISTO. Este tratado pode ser
dividido em duas partes: a Cristologia em sentido estrito e a Soteriologia (sothvr [sotér] = Salvador;
sothriva [sotería] = salvação). A Cristologia e a Soteriologia respondem a perguntas diferentes:
Quem é JESUS CRISTO? = Cristologia (em sentido estrito)
Cristologia
Qual é a obra (missão) de CRISTO? = Soteriologia
A Cristologia é o estudo da Pessoa de JESUS CRISTO como tal: procura aprofundar o mistério da
Encarnação do VERBO ou a chamada “união hipostática” e suas propriedades.
A Soteriologia é o estudo da obra salvífica de JESUS CRISTO: a vida pública, a paixão e morte, a
ressurreição e ascensão de CRISTO, o Pentecostes, como eventos que nos obtiveram a salvação.
As duas partes da Cristologia, embora distintas uma da outra, aparecem constantemente
entrelaçadas quando se estuda JESUS CRISTO, pois a Pessoa de JESUS Se manifesta na Sua obra; esta,
por sua vez, supõe o mistério da Encarnação. Todavia, para facilitar a explanação do tema,
apresentaremos separadamente a Cristologia propriamente dita 1 e a Soteriologia.
A Cristologia (em sentido amplo) tem por objeto o próprio âmago do “mistério de DEUS”, na
acepção paulina desta expressão (cf. Cl 2,2; 1,26s; Ef 3,3s.9-11). Em síntese, podemos dizer que este
“mistério de DEUS” é DEUS em relação às Suas criaturas, particularmente a nós homens. JESUS
CRISTO é a “chave” para o mistério da vida divina trinitária.

INTRODUÇÃO:
A ORIENTAÇÃO DO ESTUDO CRISTOLÓGICO
I. A CRISTOLOGIA NA INTENÇÃO PRIMORDIAL DE Jesus
A) Orientações essenciais da Cristologia

1. A Pessoa de JESUS numa Cristologia dinâmica


Pelo objeto do seu estudo a Cristologia é dinâmica. Ela busca conhecer a pessoa e a obra de
CRISTO, e faz isto de uma maneira que a Pessoa não seja nunca separada da Sua obra. Meditando em
CRISTO, não pode limitar-se a refletir sobre o que JESUS era (é) em Si mesmo. A Cristologia tem
sempre o objetivo de exprimir o dinamismo da ação divina que quis atuar a salvação da humanidade.
O dinamismo da reflexão cristológica nasce do esforço de chegar a compreender o dinamismo mais
fundamental: aquele que fez o Salvador entrar no nosso mundo e que suscitou a realização da Sua
missão redentora. Mas esse desígnio divino de amor (o mystérion segundo São Paulo) é realmente
divino, de modo que exige do homem um esforço sempre renovado de penetrar mais nele.
Isto quer dizer que o estudo da pessoa de CRISTO seja menos importante do que o estudo da Sua
obra, ou que a questão ontológica suscitada por JESUS deve ser absorvida pela questão soteriológica?
Há teólogos que elaboraram uma Cristologia puramente ou principalmente funcional. Eles tentaram
definir JESUS simplesmente e somente mediante a Sua função e reduziram a um significado
puramente funcional os títulos usados nos textos dos evangelhos (também aqueles que, na tradição,
receberam uma interpretação mais ontológica, como “FILHO de DEUS”, “LOGOS”, “SENHOR”).
O. Cullman, p. ex., escreveu: “Se no N.T. se faz a pergunta: ‘Quem é CRISTO?’, ela não significa
nunca exclusivamente, ou também só principalmente: ‘qual é a sua natureza?’, mas antes de tudo:
‘qual é a sua função?’” (Cristologia do Novo Testamento).
Para julgar, com todo o rigor, a justeza desta asserção seria necessário um exame dos textos em
seu conjunto. Porém, uma indicação essencial encontramos na pergunta que JESUS fez aos Seus

1
Estas apostilas apresentam particularmente o tratado de Cristologia de Jean Galot e J.H. Nicolas (J. GALOT,
Chi sei tu, o Cristo?, Firenze 1979; J.H. NICOLAS, Dalla Trinità alla Trinità, vol. I, Città del Vaticano 1991).
Cristologia 2

discípulos: “Vós, que dizeis vós que Eu sou?” (Mt 16,15; Mc 8,29; Lc 9,20). JESUS não pergunta:
“Que dizeis vós que Eu vim para fazer?”, nem: “qual é a obra a que me dediquei?”. No entanto, Ele
mostrava, com Sua pregação, qual era esta obra; Ele precisou em que consistia a Sua missão. Ele
poderia ter interrogado os discípulos sobre Sua missão para verificar se eles tinham compreendido o
sentido da Sua atividade, e se admitiam a validade da Sua obra. Ele Se limita, porém, a perguntar
quem é.
É uma pergunta que indica a importância que JESUS atribui ao que os discípulos pensam sobre
Sua identidade pessoal. Atesta assim que a fé deve, sobretudo, consistir numa adesão à Sua Pessoa.
Sem dúvida, Ele Se faz descobrir na Sua obra, mas quer que o olhar não se limite a reconhecer as
Suas atividades. A pergunta de JESUS supõe que não se pode entender a verdadeira importância da
Sua obra se não se reconhece a Sua identidade pessoal: JESUS, assim podia-se dizer, coincide
totalmente com Sua missão. O evento essencial é a presença da Sua Pessoa na humanidade.
Quanto à alternativa apresentada por Cullmann: “qual é a Sua natureza?” ou “qual é Sua
função?”, deve-se reconhecer o seguinte. JESUS não pergunta diretamente qual é a Sua função, nem,
qual é a Sua natureza. A pergunta refere-se à pessoa. Da resposta a esta pergunta derivam, em
seguida, esclarecimentos precisos a respeito da natureza ou das naturezas. Fica claro: a pergunta:
“quem sou Eu?”, ainda não se refere ao ser no sentido filosófico, como também não se reduz a uma
interrogação sobre o que JESUS é destinado a fazer. A pergunta refere-se à identidade pessoal.
Por outro lado, as opiniões do povo, referidas pelos discípulos, confirmam que a questão dizia
respeito à identidade: João Batista, Elias, Jeremias ou um dos profetas. Buscava-se de identificar
JESUS com uma personagem conhecida. JESUS indica claramente que a questão à qual o povo em geral
procurou responder, é propriamente a questão essencial.
A compreensão da obra está certamente ligada ao conhecimento da pessoa. Note-se: depois de
JESUS ter recebido a profissão de fé na Sua Pessoa, Ele começa a instruir os discípulos sobre o modo
como realizará a Sua missão. Mas não faz a pergunta sobre Sua identidade somente para fazer
entender melhor a Sua obra. Antes da colaboração com Sua obra Ele requer a adesão à Sua Pessoa;
convida a entrar na intimidade consigo, antes de enviar para a missão. Ele traz aos homens uma
presença pessoal, mais do que uma atividade.

2. Cristologia de diálogo
JESUS quer dar à Cristologia um dinamismo de diálogo. A pergunta que Ele faz, não é
simplesmente especulativa, como se se tratasse do significado de uma doutrina. O acento é posto
sobre as relações interpessoais: “Vós, quem dizeis vós que Eu sou?”. O “vós” recebe ainda um acento
particular por estar em contraste com a massa do povo. A esta característica do “vós” corresponde o
“TU” pronunciado por Pedro.
Manifesta-se nisso a vontade de JESUS de fazer nascer a Cristologia em forma de pergunta e
resposta. É Ele quem inicia o diálogo. A maneira como Ele toma a iniciativa é sublinhada
literalmente no texto de S. Marcos: em lugar da forma mais simples “e perguntou-lhes”, está escrito:
“e Ele (autós) lhes perguntou”.
A iniciativa de JESUS manifesta-se também pelo contexto; pois não se trata de uma pergunta
devida às circunstâncias; é que, de fato, não surge como reação a um acontecimento. Ela nasce de
uma intenção deliberada que escolheu aquele momento para provocar a resposta de fé.
Qual é o alcance da pergunta de JESUS? Ela implica uma pedagogia que consiste em requerer
uma tomada de posição pessoal. E JESUS alcança o Seu objetivo, porque a resposta é uma profissão
de fé. É uma pedagogia que sabe proceder paulatinamente, para iluminar pouco a pouco o espírito dos
discípulos. Antes de fazer os Seus discípulos compreender a verdadeira índole do Seu messianismo,
JESUS deve firmar neles a convicção de que Ele é de fato o Messias.
Eis, outra razão da pergunta de JESUS: Ele não tinha nunca dito expressamente aos Seus
discípulos Quem Ele era. A expressão “o Filho do homem”, com a qual designa a Si mesmo, é
misteriosa; por isso, tal expressão, antes de entrar numa profissão de fé, deveria ser traduzida numa
linguagem mais ordinária. A pergunta de JESUS tem também a finalidade de oferecer aos discípulos,
enquanto formam um grupo, a ocasião de professar a sua fé de modo deliberado. As adesões de fé
relatadas por S. João, no primeiro capítulo do seu evangelho, são de indivíduos.
3 Cristologia

JESUS gosta de proceder fazendo perguntas, para fazer aceitar a Sua revelação. A pergunta que
Ele aqui faz, pela primeira vez, a respeito da Sua identidade, deriva de todo o Seu comportamento
precedente; é o resultado explícito deste comportamento.
Recordemo-nos que a pergunta tinha, espontaneamente, surgido no espírito dos discípulos, após a
tempestade acalmada: “Quem é Este, a Quem até o vento e o mar obedecem?” ( Mc 4,41). Os milagres
de JESUS faziam surgir inevitavelmente a questão da Sua identidade. O mesmo vale para as
reivindicações do poder de perdoar os pecados (Mc 2,10) e da soberania sobre o sábado (Mc 2,28). No
evangelho de Marcos, a pergunta de JESUS aparece como a conclusão da primeira etapa da vida
pública. O ensinamento de JESUS, com todos os “sinais” extraordinários que o acompanhavam,
fornecia aos discípulos os elementos necessários para responder.
JESUS poderia ter declarado de Si mesmo esta identidade, em vez de requerer dos outros que a
formulem. Mas não é o caminho escolhido por Ele: Ele evita definir-Se a Si mesmo. Deseja que os
outros O descubram e exprimam o resultado desta sua descoberta.
Por conseguinte, JESUS não quis confiar a Sua identidade a uma fórmula. Teria sido fácil demais,
e com o risco de receber adesões superficiais ou de provocar o automatismo das repetições. A
profissão de fé deve nascer de um esforço pessoal de busca e não simplesmente da acolhida passiva
de uma fórmula. JESUS quis que a Cristologia fosse dialógica, para que as suas afirmações resultassem
de um estudo sobre os dados dos evangelhos. A Cristologia deve consistir num confronto não
somente da inteligência humana com a verdade revelada, mas de toda a pessoa humana com uma
outra pessoa que se apresenta e pergunta: “quem sou Eu?”

3. Cristologia que nasce da vida terrena de JESUS


Não por acaso foi durante Sua vida terrena que JESUS fez a pergunta sobre Sua identidade. Ele
sabia, melhor do que qualquer outro, que Sua Pessoa seria plenamente manifestada com a
ressurreição; por outro lado, apenas recebida a profissão de fé de Pedro, anuncia aos discípulos Sua
paixão, morte e ressurreição (Mc 8,31). Mas, embora atribua muita importância a este drama e ao seu
desfecho glorioso, JESUS não espera até sua realização para solicitar uma declaração sobre Sua
identidade.
Por conseguinte, deve-se supor que Ele tenha oferecido aos Seus discípulos um bom número de
indicações, em palavras e fatos, para suscitar uma resposta válida. Sua vida pública já é suficiente
para fazer surgir a questão da fé e para possibilitar a descoberta do mistério da Sua identidade. O
momento que JESUS escolhe para interrogar Seus discípulos, projeta luz esclarecedora sobre certas
discussões sobre o fundamento da Cristologia. Certamente, a fé dos discípulos foi iluminada pelo
evento da ressurreição, mas ela já tinha começado a formar-se durante a vida terrena de JESUS. Por
isso não é verdade que a ressurreição ou o CRISTO glorioso sejam o ponto de partida da fé e da
Cristologia e, menos ainda, seu único fundamento.
JESUS quis obter uma adesão de fé ainda antes da Sua ressurreição; esta Sua vontade é atestada
pela oração que, pouco antes da Sua paixão, faz em vista da perseverança de Pedro na fé (cf. Lc
22,32). Mediante a Sua ressurreição JESUS confirmará e fortalecerá esta fé. Mas, para falar com mais
exatidão, Ele deseja reavivar uma fé que não se extinga durante Sua paixão, mais do que suscitar uma
nova fé. A fé em CRISTO ressuscitado deve desenvolver (levar à perfeição) aquela que tinha
nascido durante Sua vida terrena.
Esta vontade do Senhor explica-se pelo fato que a vida terrena oferece à fé certos dados que a
ressurreição não pode fornecer. Uma Cristologia que quisesse interessar-se somente por JESUS
ressuscitado, não reconheceria alguns aspectos insubstituíveis da revelação da Sua Pessoa. A humilde
condição de servo que caracteriza a vida terrena de JESUS, em contraposição à Sua vida gloriosa, é
necessária para compreender o que JESUS foi e continua a ser para a humanidade que vive esta mesma
vida terrena.
Se a essência da revelação tivesse sido manifestada por CRISTO ressuscitado, isto significaria que
DEUS não teria podido ou querido revelar-Se a não ser em condições superiores à vida humana, além
das leis ordinárias da matéria e do mundo terrestre. Pelo contrário, JESUS mostrou que esta revelação
podia perfeitamente exprimir-se numa existência humana em tudo semelhante àquela dos outros
homens.
Cristologia 4

4. Cristologia empenhada no mistério


A primeira pergunta que JESUS faz aos discípulos (Mt 16,13 e par), indica que a questão existe
para todos os homens na medida em que entram em contato com JESUS: que pensam “os homens” (Mt
16,13; Mc 8,27) ou “as multidões” (Lc 9,18) da Sua identidade? Será esta uma questão que, em
seguida, necessariamente se colocarão aqueles que receberem a mensagem do evangelho. Neste
sentido, a Cristologia diz respeito a qualquer homem.
Existe, porém, uma maneira superficial de enfrentar a questão. JESUS deseja da parte dos Seus
discípulos uma resposta mais profunda que os introduza no mistério.
Já a própria pergunta, em si mesma, sugere o mistério, porque não faz parte dos diálogos
humanos comuns: normalmente uma pessoa não pergunta aos seus interlocutores: “Quem dizeis vós
que eu sou?” O caráter insólito da pergunta faz entender que há nisto um profundo mistério.
Sugestivas são também as circunstâncias. JESUS interroga os Seus discípulos na estrada de
Cesaréia de Filipe. Ele foi para uma região pagã onde Se encontra mais à vontade para falar
confidencialmente com Seus companheiros. Quer enfrentar a questão mais importante, longe do olhar
invejoso dos escribas e da importunação das multidões da Galiléia.
Segundo Lc 9,18, JESUS faz a pergunta depois de Se ter retirado para um lugar à parte para rezar;
JESUS fala com o PAI e Lhe faz uma súplica em vista da resposta esperada da parte dos discípulos.
Deve-se reconhecer todo o seu valor a este fato de a oração de JESUS preceder a primeira declaração
cristológica. Este fato indica duas coisas. Primeiro: a oração é necessária para toda Cristologia. 2
CRISTO levou os discípulos à parte, para uma convivência tranqüila com Ele (= oração), com Ele que
fala com o PAI (reza). Para entrar no mistério da Pessoa de JESUS precisa entrar (participar) na Sua
oração. “Uma vez que a oração é o centro da pessoa de Jesus, a participação no seu orar é um
pressuposto para conhecer e entender a Jesus”. Esta palavra do Cardeal Ratzinger 3 já nos faz ver
também o motivo da necessidade da oração (e isto é a segunda coisa que o fato da oração de JESUS
indica): trata-se de um mistério, no qual se pode penetrar somente com a luz que vem do alto (só se “o
PAI atrair”).
O modo como a pergunta é formulada confirma ainda a orientação para o mistério. Segundo a
versão de Mt (16,13), a primeira pergunta é assim formulada: “Quem dizem os homens que é o Filho
do homem?” A expressão “Filho do homem”, pouco compreensível para os interlocutores, chama a
atenção para um segredo pessoal.
Enfim, a pergunta supõe uma identidade superior à origem humana. A origem humana era
conhecida e não suscitava nenhum problema: JESUS era um habitante de Nazaré e Sua mãe comparece
muitas vezes na vida pública. A pergunta de JESUS, portanto, não se refere a esta origem, mas convida
a ultrapassar aquilo que se conhece d’Ele enquanto homem, e da família da qual provém.

B) A primeira declaração cristológica

1. A resposta de Pedro
A resposta de Pedro é referida de três modos diversos: “Tu és o CRISTO” (Mc 8,29); “o CRISTO de
DEUS” (Lc 9,20); “Tu és o CRISTO, o FILHO do DEUS vivo” (Mt 16,16).
Não é possível determinar com precisão aquilo que Pedro quis dizer com o termo “o CRISTO”.
Pode-se dizer que esta profissão de fé significa certamente que Pedro reconhecia em JESUS “Aquele
no qual iriam ser realizadas as esperanças de Israel” (exegeta Taylor). Além disso, parece que Pedro
devia incluir nessa expressão a soberania que JESUS tinha manifestado nos Seus milagres. Aquele a
Quem o vento e o mar obedecem (cf. Mc 4,41) é um Messias que ultrapassa tudo aquilo que tinha
sido anunciado sobre o rei messiânico ideal. A expressão “o CRISTO” podia, portanto, adquirir, em
referência aos acontecimentos da vida pública de JESUS, um significado mais amplo do que aquele da
tradição judaica, e exprimir uma certa transcendência com a qual os discípulos eram frequentemente
confrontados.
2
J. RATZINGER, Schauen auf den Durchbohrten, Einsiedeln 1980, 40: “Die Christologie wird im Gebet geboren,
nirgends sonst” (“A Cristologia nasce na oração, não em outro lugar”).
3
ID., ibid., 23.
5 Cristologia

Na primeira resposta nota-se o fato que as fórmulas são inadequadas para exprimir o mistério de
JESUS. As opiniões que os judeus tinham sobre o Messias não eram suficientes, mas era necessário
servir-se dos termos herdados da tradição.
Por ser assim, os termos são usados, mas podendo ser precisados por acréscimos. É o caso da
resposta de Pedro segundo a versão de Lc (“o CRISTO de DEUS”, precisando a origem do Messias) e,
sobretudo, de Mt: “o CRISTO, o FILHO do DEUS vivo”. Esta versão de Mt tem sido contestada. Mas o
diálogo referido por Mt apresenta tal coerência e verossimilhança que não se pode negar-lhe a
autenticidade. Às palavras: “Tu és o CRISTO, o FILHO do DEUS vivo”, JESUS responde: “És feliz,
Simão, filho de Jonas, porque não foram a carne nem o sangue quem to revelou, mas o Meu PAI que
está nos céus” (Mt 16,17). Esta correspondência realiza aquilo que JESUS tinha antes dito: “Ninguém
conhece o FILHO senão o PAI...” (Mt 11,27).
Notemos sobretudo a verossimilhança da resposta de Pedro. Ela encontra sua confirmação na
solene pergunta que o sumo sacerdote dirige a JESUS durante o processo: “Te conjuro pelo DEUS vivo
que nos digas se és o CRISTO, o FILHO de DEUS” (Mt 26,63). Desta acusação resulta que JESUS, com
Seu ensinamento e Seu modo de agir, pretendia ser não somente o Messias, mas um Messias que era
ao mesmo tempo o FILHO de DEUS. Ora, se os adversários de JESUS se deram conta desta Sua
“pretensão”, também os próprios discípulos devem ter percebido isso bastante antes. É, por
conseguinte, normal que Pedro, ao responder a uma pergunta de JESUS, tenha exprimido sua fé no
Messias FILHO de DEUS.
Que significado tinha para Pedro a expressão “o FILHO do DEUS vivo”? Não é possível dizê-lo
com toda certeza. A menção da filiação divina (tal filiação concorda com a qualidade de Messias, mas
põe em relevância o valor desta) encontra sua explicação na atitude filial que JESUS tinha manifestado
em relação a DEUS chamando-O de “ABBÁ”, para grande espanto dos discípulos. Tal atitude filial
indica uma relação superior de origem e de intimidade com DEUS, uma filiação única no seu gênero.
Os discípulos teriam ficado embaraçados quando se tivesse requerido deles um esclarecimento
preciso sobre o significado de tal filiação; eles lhe davam o valor que JESUS lhe queria dar, sem poder
entender tudo aquilo que o Mestre queria significar.
Aqui se faz ver uma característica essencial da Cristologia. A fé busca exprimir aquilo que JESUS
manifestou de Si mesmo, num dinamismo que tende a atingir do modo mais completo a revelação,
mas sem exaurir a riqueza de significado da revelação.
Quando se busca compreender o motivo último da força deste dinamismo, encontra-se o fato de
que DEUS é o ser que exerce sobre o homem a atração mais poderosa. É Ele que, em JESUS, atrai a
inteligência num esforço de descobrimento e de expressão. Se JESUS evita definir-Se com um nome
ou uma fórmula, é porque n’Ele DEUS está presente, e DEUS não pode ser encerrado inteiramente
numa expressão humana. Esta expressão, no entanto, é necessária ao desenvolvimento da fé; a
Cristologia tem a tarefa de buscar o melhor modo de exprimir, com uma fórmula, DEUS revelado em
JESUS.

2. Profissão de fé definitiva e única


Embora imperfeita, a profissão de fé de Pedro tem um valor seguro de verdade. Ela exprime com
exatidão Quem é JESUS, como bem indicam, em Mc e Lc, o tácito consentimento do Mestre e, em Mt,
a indicação de uma revelação da parte do PAI. As fórmulas humanas, portanto, são capazes de
manifestar os traços reais da pessoa de JESUS. Embora não se deva esquecer o dinamismo de uma fé
que vai sempre além de uma fórmula particular, igualmente não se pode negar o valor objetivo das
afirmações de fé na Cristologia.
A profissão de fé de Pedro tem um valor definitivo. É verdade que ele não possui já, sobre a
identidade de JESUS, toda aquela luz que terá depois da ressurreição do Senhor, mas isto não contradiz
o caráter definitivo dessa profissão de fé. Pois este valor definitivo resulta sobretudo do fato que
JESUS garantirá, mediante o testemunho da Sua morte, a resposta positiva à pergunta do sumo
sacerdote: Ele será condenado por Se ter definido o CRISTO, o FILHO de DEUS. A declaração de Pedro
não poderia receber uma confirmação mais válida.
Esta declaração, emitida em nome dos Doze, manifesta uma unidade na profissão de fé.
Enquanto entre o povo circulam opiniões contrastantes, a profissão de fé do primitivo grupo eclesial é
Cristologia 6

única. Qual a razão disso? É que, como constata JESUS, há uma distinção entre “aqueles de fora”, para
os quais tudo consiste em parábolas, e os Doze aos quais foi dado “o mistério de Reino de DEUS” (Mc
4,11).
Esta situação expressa no evangelho projeta luz sobre o futuro. Na história se manifestarão, entre
“aqueles de fora”, opiniões diversas a respeito de JESUS. Mas, para aqueles que aceitam o mistério,
haverá uma única Cristologia, aquela que se desenvolve na linha da resposta de S. Pedro e que busca
aprofundar sempre mais o significado da afirmação: “Tu és o CRISTO, o FILHO do DEUS vivo”.

II. DINAMISMO DA FÉ E OPÇÕES METODOLÓGICAS


A) Cristologia “do alto” e Cristologia “de baixo”

As divergências de método manifestaram-se na oposição entre Cristologia “do alto” e Cristologia


“de baixo”. Estas duas categorias têm sido usadas para distinguir os autores na teologia protestante
alemã. Representantes da Cristologia do alto são considerados Rudolf Bultmann e Karl Barth,
enquanto os dois (embora apresentando uma Cristologia bastante diversa entre si) querem fundar-se
sobre a Palavra de DEUS. A Cristologia de Pannenberg, ao invés, se apresenta como uma Cristologia
de baixo, porque parte do JESUS histórico para chegar à Sua filiação divina.
Ora, para evitar confusões é necessário reconhecer que os termos “do alto” e “de baixo” podem
assumir significados ou matizes diversos. Nas discussões entre as duas tendências mencionadas é
preciso distinguir com clareza duas questões:
1) A primeira refere-se ao tipo de conhecimento que deve servir de base à Cristologia.
Quer dizer: deve-se fundar a Cristologia sobre a afirmação da fé e sobre a mensagem da
pregação, considerando estas essencialmente superiores e irreduzíveis a toda demonstração histórica,
ou deve-se buscar o fundamento em JESUS histórico?
2) A segunda questão refere-se à própria realidade sobre a qual se reflete: precisa partir da
divindade de CRISTO para chegar à Sua humanidade, ou precisa ascender da Sua humanidade à Sua
divindade?
As duas questões, é verdade, estão unidas entre si: quando se assume a fé como fundamento da
Cristologia se é levado a considerar as coisas sobretudo do ponto de vista de DEUS (DEUS é o objeto
principal da fé!) e a tomar como ponto de partida a divindade de CRISTO ou, ao menos, a divindade
que Se manifesta em JESUS. Quando, ao contrário, se escolhe o fundamento histórico, normalmente se
parte da humanidade de CRISTO para chegar à Sua divindade.
Mas, as duas questões permanecem distintas: a fé consiste em crer na humanidade e na divindade
de CRISTO e se pode considerar em primeiro lugar o homem JESUS antes de passar à Sua divindade.
Por isso é preciso considerar sucessivamente as duas questões, das quais a primeira se refere ao
sujeito que conhece, e a segunda, ao objeto de estudo.

B) CRISTO da fé e JESUS histórico4

Alguns teólogos acentuaram a distinção entre o CRISTO e JESUS, ao ponto de opor uma
“Jesulogia” a uma “Cristologia”. Segundo eles, CRISTO é o objeto da nossa fé, enquanto JESUS é o
homem que viveu historicamente na Palestina.5
Para enfrentar esta falsa oposição é necessário precisar as relações entre conhecimento de fé e
conhecimento histórico. A qual dos dois conhecimentos deve-se dar o primado na Cristologia? Como
conceber a influência de um sobre o outro?
A resposta é complexa; não é possível decidir-se unicamente e exclusivamente, seja em favor de
uma Cristologia do alto, seja de uma Cristologia de baixo.

4
Cf., a respeito desta temática, o livro do Papa Bento XVI: J. RATZINGER-BENTO XVI, Jesus de Nazaré, Editora
Planeta do Brasil, São Paulo 2007.
5
Cf. BENTO XVI, ibid., 9-10.
7 Cristologia

1. Prioridade objetiva do evento histórico


Objetivamente, a Cristologia busca conhecer o JESUS da história. Pois o cristianismo teve início
num fato histórico. Com razão afirmam os fautores da Cristologia de baixo que o cristianismo é uma
religião histórica. O cristianismo não nasceu de uma idéia que se teria encarnado no espírito de um
indivíduo ou de uma comunidade e se teria organizado e codificado numa mensagem de pregação. O
cristianismo surgiu com uma Pessoa que, vivendo uma existência humana, realizou a obra divina da
Salvação: o evento que introduziu esta Pessoa na história humana foi o ponto de partida do
desenvolvimento da Igreja e conserva a sua importância fundamental. Por isso, é impossível
desinteressar-se deste acontecimento histórico, e não se deve separar a pregação cristã da sua origem.6
De um ponto de vista objetivo nem se pode até afirmar que a religião cristã é principalmente
dogmática, quer dizer: que ela consiste sobretudo num dogma que exige o assentimento da fé. É
JESUS histórico que exige a fé na Sua Pessoa; é Ele Quem fez a pergunta que está na origem da
profissão de fé da Igreja e da Cristologia: “Quem dizeis vós que Eu sou?”. A orientação essencial da
fé, assim como nos é apresentada no evangelho, permanece também na fé atual!
A fé autêntica é a fé em CRISTO e não somente na Sua mensagem; é a fé não num CRISTO abstrato
ou ideal, mas no Salvador que nasceu, viveu e morreu na Palestina, onde, depois, manifestou a
vitória da Sua ressurreição. É esta orientação que a Cristologia deve seguir. Ela deve procurar atingir,
o melhor possível, JESUS na Sua vida concreta; ela deve indicar não somente aquilo que Ele é
atualmente para a vida cristã ou para a existência na fé, mas aquilo que Ele foi na Sua existência
histórica nesta terra.
A fidelidade ao JESUS da história exprime uma dimensão fundamental da fé. Crer quer dizer: crer
em JESUS CRISTO; toda “Jesulogia” autêntica (conforme à verdade) é uma “Cristologia”, e vice-versa.
Nunca se deve perder de vista: desde o princípio a pregação cristã (o “kérigma”) quis anunciar
JESUS histórico, e os evangelhos foram escritos como testemunho de uma fé que se baseia sobre fatos
realmente acontecidos e apresenta, para legitimar sua origem relatos de testemunhos destes
acontecimentos.

2. Prioridade subjetiva do conhecimento de fé


Subjetivamente (no espírito daquele que estuda), a Cristologia tem normalmente seu ponto de
partida na fé em CRISTO. De fato, é a fé que suscita a exigência de um estudo. Aqueles que estudam
mais a fundo a verdade histórica contida nos evangelhos, não são, normalmente, historiadores, mas
exegetas e teólogos. O interesse por JESUS histórico nasce daquilo que Ele significa para a fé. A fé, na
Cristologia, não é uma atitude que nasce simplesmente como conclusão de uma pesquisa histórica: a
fé é, antes, o princípio desta pesquisa. Aqueles que se dedicam a esta pesquisa são pessoas que têm fé:
eles são impulsionados por uma fé que quer enriquecer-se sempre mais.
Destas considerações já se deve concluir que, na Cristologia, o método não pode pressupor uma
prioridade da pesquisa histórica referente à fé. É o dinamismo da fé que orienta todo o esforço
doutrinal da Cristologia. Esta fé não é simplesmente individual, como já vimos na resposta de Pedro
em nome dos Doze. É a fé da Igreja. A dimensão eclesial da fé (do teólogo) não consiste somente no
fato do fiel pertencer à Igreja, mas do conteúdo da sua fé ser aquele da Igreja. Trata-se de uma fé que
se desenvolveu e amadureceu ao longo dos séculos, enriquecendo-se de múltiplas perspectivas e de
formulações doutrinais mais precisas. É na fase atual de desenvolvimento a que chegou, que se
empreende a reflexão cristológica. Por isso, para atingir sua finalidade, realmente não deve renunciar
à própria riqueza (“começar na estaca zero”).
Se o dinamismo da fé que suscita a elaboração da Cristologia, é comunitário, um teólogo por si
só não pode apresentar todos os aspectos e todas as orientações. Ele é superado pelo dinamismo que o
anima; as opiniões cristológicas que exprime, conservam sempre um caráter parcial e devem ser
completadas por aquelas de outros teólogos. Deste ponto de vista há necessariamente um pluralismo
na Cristologia. Mas esta diversidade (com discussões e conflitos intelectuais) integra-se numa
unidade mais ampla e mais rica. A diversidade das Cristologias não suprime a unidade, ainda mais
6
Um exemplo disso é R. Bultmann, que ensinou uma ruptura entre JESUS histórico (= personagem bastante
insignificante e não messiânica) e o CRISTO “kerigmático” (= da pregação cristã), que teria sido revestido das
representações da corrente apocalíptica judaica e do mito gnóstico da redenção.
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fundamental, da Cristologia. Pelo contrário, essa diversidade alimenta e dá uma base mais ampla à
unidade, contanto que estas Cristologias não se afastem da orientação da fé em CRISTO e do seu
conteúdo essencial.
A posse de uma doutrina tradicional que exprime este conteúdo essencial em fórmulas oficiais
de fé (“símbolos de fé”) ou em fórmulas dogmáticas, não deve diminuir o esforço de pesquisa. Pois,
uma fórmula pode ser, com certeza, verdadeira, mas não pode absorver nem condensar todo o
dinamismo da fé: ela (a fórmula) exige um aprofundamento ulterior, e seu significado, com seus
limites, fazem sentir a necessidade de uma nova pesquisa. O mistério de CRISTO ultrapassa todas as
suas formulações. Estas, por conseguinte, não podem paralisar a Cristologia.
Por outro lado, note-se que a Cristologia não tem simplesmente o objetivo de exprimir toda a
riqueza escondida num dogma, mas também de explicitar sempre mais o que está implicado no
mistério da salvação que tende a transcender qualquer dogma particular. A definição dogmática é uma
expressão necessária do dinamismo da fé, que tende a precisar seu conteúdo intelectual. Expressa este
dinamismo, mas não o substitui e, sim, o impele a um constante progresso.

3. Fé e pesquisa histórica
Quais são, mais exatamente, as relações entre fé e pesquisa histórica? A questão do método
manifesta neste ponto toda a sua agudeza. Surge a pergunta: pode-se tomar como objetivo a
verificação histórica completa da fé em CRISTO, isto é, uma demonstração, mediante a pesquisa
histórica, da justeza da fé na filiação divina de JESUS?
Pannenberg achou que sim. Ele aplica, de modo mais radical, o seguinte princípio: “A tarefa da
Cristologia é fundar sobre a história de JESUS o verdadeiro conhecimento do Seu significado que se
pode reassumir com estas palavras: DEUS Se revelou neste homem”. Todas as afirmações do
cristianismo primitivo nasceram desta história, como também os dogmas cristológicos formulados
mais tarde na Igreja. Baseando-se sobre esta história e, particularmente, sobre a ressurreição, que para
JESUS significou o fim da história, Pannenberg afirma a unidade de JESUS com DEUS, uma identidade
de ser na distinção das pessoas do PAI e do FILHO. Ele quer deste modo demonstrar que a história nos
oferece a prova da divindade de JESUS e, de modo particular, da Sua filiação divina.
O que dizer desta Cristologia? Ela é ambiciosa demais, quer provar demais. Por outro lado, ela
tem o mérito de ter relevado o valor de JESUS histórico, idêntico ao FILHO de DEUS professado pela
fé. Por conseguinte: a reação legítima em favor do JESUS da história levou esse teólogo protestante a
uma tomada de posição extrema.
Explicamos: Sem dúvida alguma, a pesquisa histórica é necessária. Mas parece que não se pode
falar, em sentido próprio, de verificação e de demonstração das afirmações da fé mediante as
indagações históricas. A verificação pressupõe que tudo o que é afirmado pela fé seja acessível, em
todos os aspectos, à pesquisa histórica. A demonstração implica uma prova elaborada com método
histórico. Isto traz consigo as seguintes consequências: a indagação histórica deve decidir, em última
análise, sobre o objeto da fé, e o grau de certeza da fé é aquele que as conclusões da pesquisa histórica
oferecem. Ora, a fé comporta uma certeza maior do que a da ciência histórica (= certeza moral).
Pannenberg mesmo afirma que a demonstração histórica pode atingir somente uma grandíssima
probabilidade. Mas a fé é uma adesão tão certa que nenhuma probabilidade, por elevada que seja,
poderia jamais satisfazer. Quem crê em JESUS FILHO de DEUS, não pode esperar que a pesquisa
histórica (realizada na base dos escritos do NT) lhe forneça, por si mesma, uma certeza igual àquela
da sua fé.
A fé possui uma certeza superior porque adere à Palavra de DEUS, a uma revelação que, embora
realizando-se na história, transcende a história por causa da verdade que propõe. No caso de CRISTO,
esta Palavra de DEUS manifestou-se concretamente no VERBO feito carne. Ora, a encarnação do
FILHO de DEUS, ainda que se manifeste na vida histórica de JESUS, é uma realidade que ultrapassa
todas as constatações históricas. Em si mesma, não pode nunca ser verificada ou demonstrada
mediante pesquisa baseada unicamente sobre as leis da história.
Por outro lado, a fé requer a pesquisa histórica, porque quer iluminar o seu objeto. A fé em
CRISTO é uma fé em JESUS histórico. Estão errados Bultmann com seus seguidores, em separar o
CRISTO da pregação do JESUS da história. Quem esvazia a fé de quase todo o seu conteúdo histórico,
9 Cristologia

tira-lhe a substância. Em contraposição a religiões que se baseiam em alguns mitos, o cristianismo


baseia-se sobre um acontecimento salvífico que se realizou na história. A Encarnação significa que
DEUS entrou pessoalmente na história da humanidade.
Por isso, a Cristologia “do alto” de Bultmann está errada. Bultmann manteve de CRISTO somente
aquilo que combinava com sua análise existencial; quer dizer, ele quis reduzi-l’O à experiência
humana assim como ele a concebe. Segundo ele, o evento salvífico realiza-se somente na experiência
subjetiva de cada um; a salvação é anunciada por CRISTO, mas não realizada objetivamente por Ele.
Na concepção de Bultmann não há uma intervenção objetiva de DEUS no mundo dos homens, nem a
manifestação sensível de uma Pessoa divina: o que conta é a “existência autêntica na fé”, quer dizer: a
fé na salvação que DEUS anunciou em CRISTO.
K. Barth notou bem que a teologia de Bultmann é “teologia do solitário” que reflete sobre si
mesmo (sua autenticidade ou não), exprime a si mesmo e explica simplesmente o que é o indivíduo
crente; é a concentração no “eu”. Ora, CRISTO quer salvar o homem deste seu subjetivismo; CRISTO,
VERBO feito carne, impõe-Se objetivamente (independentemente da mente humana) à fé – ele faz com
que esta fé não seja pura relação interior com DEUS, e que ela se concentre na revelação histórica de
DEUS na Sua Pessoa (de CRISTO).
O FILHO de DEUS, entrando no mundo, realiza a verdadeira desmitização. Por “mito” entende-se
qualquer representação da divindade e das suas relações com os homens, mas, mais especificamente,
uma representação alheia a toda manifestação histórica e devida exclusivamente ao pensamento e à
imaginação humanas.
Certamente, o mito pode manifestar certos aspectos de DEUS e da Sua obra de salvação, mas ele
se situa fora da história (mito é “o que sempre é, mas nunca aconteceu”), e não pode exprimir a
revelação autêntica de DEUS neste mundo, a Sua intervenção na nossa história para nos salvar. Esta
manifestação autêntica, iniciado no AT, realiza-se plenamente na Encarnação. Deste modo CRISTO
liberta a humanidade do seu cativeiro mitológico. Ele faz ver, por meio do contraste que estabelece, a
ficção das representações míticas. É por isso que o cristianismo não absorveu as religiões pagãs, mas
as eliminou. A história exclui os mitos. A Encarnação indica, sim, a verdade escondida nos mitos (ou
que pode estar escondida nos mitos), mas só nela se encontra a verdade histórica da intervenção
salvífica de DEUS no mundo e do autêntico rosto de DEUS num rosto humano.7
Se a teologia quer continuar a obra de desmitização realizada por CRISTO, deve incessantemente
esforçar-se por determinar melhor o que foi o JESUS da história, o que disse e o que fez. É a própria
fé que impele a buscar a objetividade histórica. À primeira vista poder-se-ia pensar que a fé orienta o
estudo para o subjetivismo. Mas, na realidade, ela mira a objetividade porque a considera como
implicada na sua sincera adesão: quem crê em CRISTO deseja descobrir a figura real e objetiva de
JESUS.
Qual é precisamente, o significado desta orientação da fé para a pesquisa histórica? A fé
implica antes de tudo uma predisposição para a indagação cristológica: esta predisposição inclui
um interesse todo especial por esta pesquisa e a aceitação dos seus resultados. Além disso, a fé dá
uma pré-inteligência da indagação, quer dizer: a fé projeta luz sobre os objetivos a serem alcançados
pela pesquisa exegética e histórica, como também assegura uma linha geral de pensamento que
permite reconhecer o sentido e o valor dos vários elementos estudados. Note-se: esta pré-inteligência
não é preconceito, pois não predetermina os resultados da pesquisa e não orienta a pesquisa numa
direção contrária à objetividade científica do estudo.
Este papel positivo da fé em CRISTO na indagação cristológica, faz entender que está bem errado
imaginar-se um método ideal que consistiria em prescindir da própria fé durante o trabalho de
pesquisa. Para ser objetivo não é preciso lançar mão na “dúvida metodológica”. Aliás, querer realizar
um estudo considerando a inteligência uma “tabula rasa”, seria uma ilusão. Prescindir da fé, na
indagação cristológica, significaria privar a pesquisa da base que deve ter e que lhe é útil: a melhor
garantia de objetividade ficará sendo a disposição de fé, enquanto ela implica uma abertura total à
verdade e deseja uma indagação feita segundo as autênticas normas da ciência exegética e histórica.

7
Bultmann, em vez de desmitizar, retornou a um mito mais sutil: “mito antropocêntrico” (K. Barth), mito
provindo da “gnose” filosófica, mito da mensagem existencial com sua representação (imaginação) subjetiva do
divino e das Suas relações conosco.
Cristologia 10

Se perguntarmos pela razão última deste princípio, a resposta é: a fé em CRISTO implica uma fé
em DEUS que é adesão à verdade absoluta. Esta adesão implica, por sua vez, um acatamento a tudo
aquilo que no mundo reflete esta verdade, a tudo aquilo que é participação finita da verdade infinita.
A fé comporta uma preocupação fundamental de atingir a verdade, onde quer que se possa encontrá-
la.
O que, então, dizer da Cristologia “do alto” e “de baixo” (distinção feita quanto ao tipo de
conhecimento que deve servir de base à Cristologia)?
Partindo simplesmente “do alto” não se pode determinar a JESUS histórico. Assim, p. ex., a fé em
CRISTO ressuscitado não poderia constituir, do ponto de vista histórico, um motivo para admitir e
salientar a veracidade dos relatos evangélicos a respeito do encontro do sepulcro vazio. Esta
veracidade pode ser mostrada somente sobre a base de argumentos fornecidos pela análise exegética
dos testemunhos relativos ao sepulcro vazio. Por conseguinte, se por “Cristologia do alto” se entende
uma Cristologia na qual a fé determina as conclusões da pesquisa histórica, tal Cristologia não se
pode justificar. A fé não pode pretender substituir a história e comandar a ciência histórica. Por outro
lado, a história não pode oferecer conclusões que substituam a fé, nem uma certeza idêntica àquela da
fé. Deste ponto de vista, portanto, o método cristológico não pode consistir nem numa “dogmatização
da história”, nem numa “historização do dogma”.
Se a fé não pode receber da pesquisa histórica uma verificação e uma demonstração propriamente
dita, o que então se pode esperar dela? A fé requer desta pesquisa uma luz, de algum modo mais
claro, sobre o CRISTO no qual crê. Pois a pesquisa histórica e exegética dá à fé a possibilidade de
sair de uma visão global demais do seu objeto (p. ex.: CRISTO é verdadeiro DEUS e verdadeiro
homem; esta é uma visão muito global do mistério de CRISTO), e de descrever em todos os seus
numerosos detalhes a figura histórica de JESUS.
Além disso, esta pesquisa faz o fiel entender melhor o motivo pelo qual crê: ela ilumina não
somente o objeto, mas também o motivo da fé. Por si só, a pesquisa histórica não poderia suscitar a
adesão da fé; mas pode indicar que, no nível do conhecimento histórico, há razões sólidas para
admitir a existência e a obra de JESUS Salvador que a Igreja professa na sua fé (cf. a Teologia
Fundamental).
Graças à pesquisa histórica a fé pode assim aprofundar seu conhecimento de JESUS, e entender
com maior clareza por que adere a Ele.

4. Pesquisa histórica e sistematização doutrinal


O dinamismo da fé não somente orienta o esforço da pesquisa histórica, mas exige também uma
sistematização doutrinal. Não basta a análise dos testemunhos escriturísticos; é necessário fazer uma
síntese, porque a fé quer aprofundar aquilo que deve pensar da Pessoa e da obra de CRISTO, e não
apenas de um certo número de textos que se referem a Ele.
É isto que justifica a elaboração de uma Cristologia especulativa. Esta faz surgir uma nova
questão de método: quais são as relações da Cristologia especulativa com a exegese, e sobre qual
princípio deve fundar sua tentativa de síntese?
Esta questão tornou-se, hoje em dia, mais urgente, porque os estudos exegéticos multiplicaram-se
e diversificaram-se a tal ponto que é difícil fazer uma síntese das suas conclusões. Além disso, a
exegese entrou numa grande crise (de vários “-ismos” na exegese). Precisa, portanto, avaliar com um
espírito crítico as diversas interpretações dos dados bíblicos.
Poderia parecer que o método “transcendental” de Karl Rahner pudesse resolver facilmente a
questão de assegurar uma base escriturística suficientemente segura para a elaboração de uma
Cristologia especulativa. O método de K. Rahner, porém, com seu ponto de partida antropológico não
pode convencer, nem é plenamente admissível. O próprio ponto de partida da dedução de K. Rahner é
problemático: é no coração do homem que se deve buscar a essência do plano divino da salvação, sem
antes ter refletido sobre os textos da S. Escritura? Não é mesmo assim que se deve primeiro escutar a
palavra de DEUS na S. Escritura? É possível encontrar na existência humana uma espécie de primeira
revelação da ação salvífica e da Pessoa do Salvador, para depois verificar a sua realização no
Evangelho, em vez de partir do Evangelho para buscar nele a autêntica revelação de CRISTO e
11 Cristologia

iluminar assim o sentido da existência humana? Rahner não escapou do perigo de transformar a
antropologia em teologia.
Eis, portanto, uma conclusão: as linhas essenciais da Cristologia devem resultar do testemunho
da S. Escritura. A tarefa da Cristologia consiste justamente em andar o caminho das afirmações
tradicionais da fé católica na Igreja à fonte destas afirmações, e em observar a continuidade do
desenvolvimento histórico a partir do JESUS histórico até às fórmulas dogmáticas.
O teólogo deve levar em conta a pesquisa exegética, pelo menos nos pontos fundamentais que
devem servir de base à sistematização doutrinal. A sua tarefa, porém, não se limita a colher as
conclusões da exegese. À luz de toda a tradição patrística e teológica, e da sua evolução, o teólogo
reflete sobre o dado bíblico e busca o sentido profundo dele. Ele estabelece as conexões entre os
diversos elementos fazendo assim ver, numa visão ampla, como se realiza o plano divino da salvação.
Além disso, o teólogo deve procurar utilizar, para a elaboração doutrinal, a contribuição do
pensamento humano contemporâneo, e apresentar assim uma síntese cristológica numa linguagem
acessível aos homens contemporâneos.
Fica claro: a elaboração da Cristologia não pode confundir-se com a exegese. O esforço de
sistematização do teólogo, especialmente do dogmático, tem uma grande importância. É verdade: a
Cristologia não se funda sobre a dedução (K. Rahner); mas ela precisa sim da reflexão e do
raciocínio. No entanto, fica igualmente claro: a síntese doutrinal implica uma continuidade
fundamental com a pesquisa bíblica, e a referência ao dado da S. Escritura é essencial (não uma
Cristologia só no “ar” da pura especulação).
O dinamismo da fé (que anima a Cristologia) comporta duas coisas: adesão à mensagem
cristológica do Evangelho e, também, exigência de um aprofundamento especulativo do mistério de
CRISTO que nos é apresentado pelo Evangelho. Portanto: implica a exegese, mas vai além dela.
Eis o método próprio da Cristologia sistemática: ela consiste numa reflexão que colhe os
elementos essenciais do dado bíblico, estuda suas mútuas relações e os ordena numa síntese. A
Cristologia ocupa-se de todas as questões de ordem filosófica e psicológica precisando o que é
CRISTO na Sua constituição ontológica e na Sua consciência. Ela se esforça por determinar o sentido
da Encarnação, seu motivo e seu valor para a humanidade e todo o universo das criaturas,
considerando tudo isto na perspectiva da obra salvífica de CRISTO.
Compete à Cristologia mostrar que CRISTO corresponde às aspirações essenciais, mais profundas
do homem, e em que sentido Ele é o desejo da humanidade. Da tese de K. Rahner deve-se aceitar o
fato importante de ter mostrado que JESUS dá realmente uma resposta à esperança humana. Há no
coração humano a “exigência” secreta do “Salvador absoluto”, como o foi perfeitamente JESUS; mas
esta exigência só se revela na presença d’Aquele que nos é descrito nos Evangelhos. É CRISTO que
revela ao homem o seu próprio coração, e quando o coração humano revela a CRISTO, isto acontece
porque a fé já acolheu a CRISTO numa revelação mais fundamental entregue à Igreja e transmitida
pelo testemunho dos evangelhos.

C) Do homem a DEUS e de DEUS ao homem

Tendo esclarecido as relações entre fé, pesquisa histórica e sistematização doutrinal, encontramo-
nos diante da segunda questão: a Cristologia deve partir da divindade ou da humanidade? Deve
assumir uma direção descendente (de DEUS ao homem) ou ascendente (do homem a DEUS)?

1. A Cristologia ascendente (“de baixo”)


A tendência favorável à Cristologia “de baixo” provém de uma reação ao fato de se ter
evidenciado quase exclusivamente a divindade de CRISTO. É verdade: não se pode tolerar que a
divindade de CRISTO seja afirmada em detrimento da Sua humanidade. De fato, não está certo
considerar quase exclusivamente a divindade de CRISTO; precisa igualmente, com toda ênfase,
reconhecer em JESUS alguém que é inteiramente homem, em tudo semelhante a nós, com exceção do
pecado. A Cristologia não pode deixar de examinar todos os aspectos e todas as implicações da
existência humana de CRISTO.
Cristologia 12

Sendo assim, a Cristologia tem de reconhecer com toda a clareza que na humanidade de CRISTO
se revela a Sua divindade. A revelação não nos é feita diretamente através de uma simples iluminação
interior que nos faça crer no FILHO de DEUS. É no homem JESUS que a revelação se realiza
concretamente, e tudo que podemos saber do FILHO de DEUS nos é manifestado pelas palavras, pelos
gestos e pelos fatos da existência humana de JESUS. Por conseguinte, devemos sempre perscrutar esta
figura humana para descobrirmos a identidade do nosso Salvador. Isto quer dizer que de JESUS
podemos conhecer somente aquilo que é humano? Certamente que não. Pois, embora sendo
verdadeiro homem, Ele transcende o humano e manifesta uma transcendência divina. Todavia, é
sempre mediante Sua humanidade que Ele revela aquilo que transcende esta mesma humanidade.
Se voltarmos até à origem da Cristologia, para explicar como se formou a fé na divindade de
JESUS, precisamos mesmo partir da humanidade de JESUS. Deste ponto de vista há uma prioridade do
humano na Cristologia. Por outro lado, esta prioridade não se deve entender no sentido de que
primeiro é necessário reconhecer em JESUS um simples homem, um homem igual a nós, para depois
descobrir n’Ele uma manifestação de DEUS. Não há uma primeira etapa na qual se se limite a CRISTO
homem, e uma segunda etapa onde se busque chegar até CRISTO DEUS. Na realidade, toda a
humanidade de JESUS revela o divino e deve ser considerada nesta perspectiva.
A existência humana de JESUS forma um todo que não se pode separar da Sua identidade divina e
da intenção de revelar esta identidade. Quando se afirma que a humanidade de CRISTO é semelhante à
nossa (“verdadeiro homem”), não se quer excluir com isso a sua dimensão transcendental. Até
devemos constatar: esquecendo-se, na análise de Suas atitudes humanas, do mistério da Sua Pessoa
divina, banaliza-se e se faz insignificante esta humanidade. Quer dizer: priva-se a humanidade de
CRISTO do seu valor de revelação. JESUS é, sim, um homem, mas um homem que exprime e manifesta
DEUS (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 516).

2. A Cristologia descendente (“do alto”)


Se a Cristologia deve partir do homem JESUS (no sentido acima explicado), ela precisa também,
por outro lado, de uma perspectiva complementar que implica um ponto de partida do alto e um
movimento descendente.
Primeiro um argumento a partir da própria história da revelação divina: a fé judaica em DEUS
precedeu historicamente a fé cristã em JESUS. No judaísmo a revelação essencial era aquela do Único
DEUS. A manifestação de DEUS na Sua aliança com o povo judaico preparou a vinda de CRISTO. O
estrito monoteísmo judaico apresenta, para a obra da salvação, um só ponto de partida: DEUS mesmo.
Há, portanto, um caminho de DEUS ao homem JESUS.
No NT, na reflexão sobre a origem de JESUS, impõe-se uma direção descendente. Uma vez que
JESUS Se revelou como FILHO de DEUS, deve-se necessariamente perguntar sobre a passagem da
existência divina à existência humana que a vinda do FILHO do homem supõe. O estudo cristológico
inevitavelmente é levado a considerar o ato mediante o qual o FILHO de DEUS preexistente entrou na
humanidade. É o que faz S. João no prólogo do seu evangelho: evoca a preexistência eterna do
LOGOS para, depois, afirmar que o LOGOS Se fez carne e estabeleceu Sua morada entre nós. Já antes
de S. João, o hino cristológico da carta aos Filipenses (2,6-11) considera o movimento descendente
que vai da “forma” de DEUS à “forma” de servo e, em seguida revela a elevação de CRISTO glorioso
ao nível divino (adoração!). Não há dúvida: se a Cristologia fosse somente “de baixo” ela seria
incompleta.
O mistério mais profundo que ela deve descobrir, encontra-se justamente no ato mesmo da
Encarnação: reconhecer a iniciativa divina e a intenção divina que dirigiram o ato mediante o qual o
FILHO de DEUS Se fez homem. A esta indagação pertence a questão mesma de todo o sentido da
economia da salvação (eis a razão das grandes discussões entre as escolas teológicas referentes ao
motivo da Encarnação). Também entra aqui em jogo toda a metafísica de DEUS e das Suas relações
com o homem: o movimento descendente manifesta um dinamismo propriamente divino. Por isso, na
Cristologia a direção descendente é fundamental!
Do ponto de vista da pesquisa bíblica, a direção descendente é primordial em relação à revelação
que DEUS fez de Si mesmo ao povo de Israel: o homem JESUS não surge num ambiente humano
qualquer, mas no meio de um povo que entrara na aliança com o DEUS verdadeiro; JESUS apresenta-
Se como o fruto e o cumprimento das promessas divinas de salvação.
13 Cristologia

Do ponto de vista da teologia especulativa, não se pode penetrar na verdadeira profundidade do


mistério de CRISTO se não se considera n’Ele o VERBO feito carne. As declarações de JESUS sobre a
Sua identidade de FILHO de DEUS e a manifestação da Sua divindade na ressurreição não são senão
um ponto de partida para o intelecto que deseja compreender a primeira origem do Salvador: essas
declarações e essa manifestação convidam a penetrar no que significa a vinda do FILHO do homem. A
teologia é continuamente levada a concentrar toda a luz de que dispõe, sobre o caminho da
Encarnação, quer dizer: sobre a passagem do FILHO de DEUS, da existência eterna à existência
temporal. Somente nesta descida pode aparecer com toda a sua força o amor divino que trouxe à
humanidade a salvação.
O amor do homem JESUS para com os homens é a característica mais comovente da Sua vida
terrena. Mas, este amor adquire todo o seu valor somente se reconhece nele a expressão e a revelação
do amor divino, particularmente do amor do PAI que Ele dedica aos pecadores, como JESUS mesmo
foi até eles. O amor de DEUS que, por CRISTO, desce aos homens colocando-se ao nível deles,
constitui o essencial da mensagem e não pode ser reconhecido a não ser num movimento descendente.
Só este movimento pode fazer entender o sentido do correspondente movimento ascendente, aquele
da divinização do ser humano em CRISTO.
Se o dinamismo da fé quer coincidir com o dinamismo divino manifestado em JESUS, deve
esforçar-se por reconhecer o sentido do movimento descendente da Encarnação; só assim pode
conformar-se a esse dinamismo divino, pois este vai primeiro de DEUS ao homem para poder depois
subir do homem a DEUS.

PRIMEIRA PARTE:
LINHAS ESSENCIAIS DO CONTEÚDO
CRISTOLÓGICO DA SAGRADA ESCRITURA
I. O DINAMISMO DE ENCARNAÇÃO NA ANTIGA ALIANÇA
O AT revela o dinamismo de encarnação que inspira não somente alguns textos particulares, mas
forma, por assim dizer, toda a estrutura da religião judaica. Mais do que alguns oráculos particulares
é necessário considerar essa estrutura geral. O que quer dizer “dinamismo de encarnação”? É o
movimento pelo qual DEUS entra no mundo das relações humanas e participa da existência da
humanidade.

A) A estrutura de encarnação da religião judaica

1. A aliança, encarnação das relações entre DEUS e o povo

a) O contrato
O elemento estrutural mais característico e fundamental da religião judaica é a aliança. É digno
de consideração o fato de as relações entre o povo e JHWH serem concebidas à maneira de um
contrato: a aliança de JHWH com o povo é realmente um pacto que comporta obrigações recíprocas.
Ora, este empenho recíproco (cf. Ex 24) implica uma certa encarnação. Para DEUS, contrair a
aliança significa entrar deliberadamente num tipo de relações que os homens estabelecem entre si, e,
por conseguinte, colocar-Se no nível da humanidade. Da parte de DEUS, o elemento de encarnação
consiste no “agir como um homem”; ELE, que Se poderia ter comportado unicamente como um
superior ao inferior, quis estabelecer com a humanidade relações de tipo humano. Ele evita de Se
impor de modo unilateral, como poderia ter feito. Ele estabelece a religião sobre a base de um mútuo
acordo, e não tanto sobre uma disposição soberana Sua.
Cristologia 14

Um contrato poderia ter uma forma unicamente jurídica e regulamentar só externamente as


relações recíprocas. Neste caso o dinamismo de encarnação seria superficial: o empenho de DEUS se
limitaria a estabelecer certas promessas ou obrigações. Verdade é que a teologia da aliança no povo
judaico desenvolveu-se segundo um movimento de interiorização: numa época próxima do exílio, a
necessidade de uma nova aliança que consista numa intima pertença do povo a DEUS e de DEUS ao
povo, foi melhor reconhecida. Esta nova aliança foi, via de regra, definida com a fórmula: “Eles serão
Meu povo; Eu serei seu DEUS”.

b) Paternidade e filiação
A vontade divina de entrar numa relação humana mais íntima manifesta-se ao estabelecer
relações de pai a filho. O laço estabelecido na aliança implica uma paternidade da parte de DEUS:
“Israel é o Meu filho primogênito” (Ex 4,22).
Às vezes a paternidade exercida por DEUS é apresentada como uma adoção (Dt 32,10), mas
sobretudo implica um amor paterno que está na origem da existência de Israel como povo: “Quando
Israel era jovem Eu o amei , e do Egito chamei o Meu filho” (Os 11,1). Trata-se, portanto, de uma
filiação não de ordem física, mas de ordem moral que deriva de uma eleição gratuita da parte de
DEUS. JHWH declara ainda: “Eu sou um Pai para Israel, Efraim é o Meu primogênito” (Jr 31,9). Esta
paternidade manifesta-se sobretudo na misericórdia: “Não é porventura Efraim um filho tão caro a
Mim, filhinho de carícias? Com efeito, apenas falo dele, ou mesmo quando tão só dele Me lembro,
basta-Me isso para que se Me comovam, por ele as entranhas, sinto deveras compaixão dele” (Jr
31,20). Segundo o livro da Sabedoria, o Egito devia reconhecer que “este povo era filho de DEUS”
(18,13).
Às vezes esta condição de filho é considerada não tanto uma realidade adquirida quanto um ideal
a ser atingido, uma esperança de DEUS: “E Eu disse: ‘Como posso colocar-te entre os Meus filhos e
dar-te uma terra invejável, a gema das nações como herança?’ E acrescentei: ‘Chamar-Me-eis pai, e
não hesitareis em vir após Mim’” (Jr 3,19). As relações de pai e filho são objetos do plano divino.
A paternidade exprime as relações humanas que DEUS quis estabelecer com o povo, é uma forma
de encarnação destas relações e tem uma consistência mais profunda do que a conclusão jurídica de
um pacto. Ela revela os sentimentos íntimos de DEUS que explicam a Sua atitude externa de proteção.
Embora se situe no plano afetivo, esta paternidade contém também alguma alusão à geração; pois,
quando DEUS chamou do Egito o Seu filho, foi porque quis formar deles uma nação que tenha uma
existência própria, separada dos outros povos. Além disso, a paternidade é afirmada em relação à
criação: “Senhor, Vós sois nosso Pai; nós somos a argila e Vós o nosso oleiro; somos todos obras das
Vossas mãos” (Is 64.7; cf. 45,10). Está também ligada à redenção: “Vós, Senhor, sois nosso Pai, e
nosso Redentor, desde todos os tempos, é o Vosso nome” (Is 63,16).
A paternidade indica também uma superioridade e faz recordar a soberania divina: “Ele é o
nosso Senhor, o nosso DEUS, Ele o nosso PAI” (Tb 13,4). Mas não se deveria subestimar o fato que a
paternidade igual mente introduz em relações mais horizontais, porque exige uma reciprocidade de
afeto e implica uma certa elevação dos filhos ao coração do Pai benigno e misericordioso.

c) A união matrimonial
A união matrimonial é a outra imagem usada para descrever as relações de amor de JHWH com
Seu povo. Esta imagem é mais forte em sentido “horizontal”. Às vezes as duas imagens seguem uma
a outra, para ambas ilustrarem a força do laço amoroso: assim Israel é comparado a um filho rebelde e
a uma esposa infiel (Jr 3,19-22). A imagem do esposo e da esposa manifesta a intenção de
encarnação do amor divino que assume a forma do amor humano mais intenso. A união do homem e
da mulher era considerada como o tipo de afeto mais completo que devia prevalecer sobre outros
afetos familiares (cf. Gn 2,24). Esta imagem acentua fortemente a vontade divina de colocar-Se no
nível humano.
Todavia, o Esposo divino não perde Sua transcendência: a qualidade de esposo, como aquela de
Pai, é atribuída ao Criador e ao Redentor: “Teu esposo é o teu criador...; com afeto perene compadeci-
Me de ti, diz JHWH, teu Redentor” (Is 54,5.8). No profeta Ezequiel, Israel é apresentado como uma
esposa cuja beleza é obra de DEUS (16,1-14). Antes Oséias tinha considerado DEUS como autor dos
esponsais: DEUS diz: “Desposar-te-ei para sempre, desposar-te-ei conforme o direito e a justiça, com
15 Cristologia

misericórdia e afeição, desposar-te-ei com fidelidade e conhecerás JHWH” (Os 2,21s). Tudo aquilo
que o casamento traz em si, quer dizer: a justiça, o direito, o amor, a ternura, a fidelidade, é obra e
dom de JHWH. Mas, a reciprocidade do afeto não é deixada de lado. A promessa “tu conhecerás
JHWH” o atesta. O Cântico dos Cânticos acentua mais ainda esta reciprocidade com as palavras da
esposa: “Eu sou para o meu amado e meu amado é para mim” (6,3). Estas palavras traduzem, em
termos de afeto, a fórmula característica da aliança: “Eu serei seu DEUS e eles serão Meu povo” (Jr
31,33). A mútua presença mostra quanto o dom de DEUS desce ao nível do dom do homem. Também
a poesia do amor esponsal é assumida por este dom divino: tornando-Se o maior poeta do amor, DEUS
quer encarnar ao máximo o Seu modo de entrar em contato com a humanidade.

d) A nova aliança
O fracasso da antiga aliança suscita o anúncio profético de uma nova aliança. Uma vez que Israel
não cumpre seus deveres de filho ou esposa surge a representação ideal do filho amoroso e da esposa
fiel. A nova aliança não se pode realizar a não ser por meio de uma ação mais poderosa de DEUS que
traz remédio à fraqueza humana. Esta ação mais poderosa indica talvez uma acentuação da
transcendência divina em relação à humanidade? Pelo fato que DEUS não obteve bom êxito no que se
poderia chamar Suas primeiras tentativas de encarnação e de amor horizontal, Ele talvez Se situe de
novo num nível superior que Lhe permitirá atingir melhor Seus objetivos? Neste caso a nova aliança
seria uma encarnação menor.
Na realidade não é isto que acontece. A força divina se manifestará de modo mais eminente, mas
acentuando ainda o dinamismo de encarnação. Na aliança futura DEUS não Se contenta mais em
propor Sua Lei para obter a adesão do povo. Ele a coloca dentro do homem: “Porei a Minha Lei nos
seus corações e a imprimirei nas suas mentes” (Jr 31,33). A lei, expressão da vontade divina, não se
apresenta mais somente externamente: ela, por assim dizer, encarna-se no ser humano, de modo que a
vontade do homem possa coincidir com a vontade de DEUS.
Mais expressamente, a ação divina cria no homem disposições novas: “Dar-vos-ei um coração
novo e porei em vós um espírito novo; arrancarei o coração de pedra das vossas carnes e dar-vos-ei
um coração de carne. Porei dentro de vós o Meu Espírito...” (Ez 36,26s). Esta comunicação do
Espírito divino ao homem deixa vislumbrar a profundidade da encarnação: o Espírito de DEUS
penetra no homem para animar e dirigir sua conduta. DEUS não Se limita a ser “partner” de uma
aliança, a considerar o Seu povo como um filho e como uma esposa, Ele quer fazer entrar no coração
e no espírito do povo as Suas divinas disposições.
Concluímos: a estrutura da aliança que, desde o início, caracterizou as relações entre JHWH e o
povo judaico, evolui no sentido de uma penetração mais íntima de DEUS na vida humana, quer dizer,
no sentido de uma encarnação mais profunda.

e) A superioridade da nova aliança pela superioridade do novo Moisés, mediador da aliança


A aliança de DEUS com o povo de Israel foi concluída, sendo Moisés mediador dessa aliança. No
cap. 18 do livro do Deuteronômio encontra-se a promessa de um novo Moisés: “O Senhor, teu DEUS,
suscitará em teu favor, dentre os teus irmãos, um profeta como eu: é a ele que escutarás” ( Dt 18,15).
No final do Deuteronômio, a promessa é retomada, dando à figura desse profeta o seu autêntico
sentido: “Nunca mais apareceu em Israel um profeta semelhante a Moisés com quem o Senhor falava
face a face...” (Dt 34,10). Aqui se diz o que distinguiu Moisés, o que nele foi único e essencial: ter se
relacionado com DEUS “face a face” como um amigo com seu amigo (cf. Ex 33,11). O distintivo do
novo Moisés é, portanto, “a imediatez com Deus, de tal modo que ele pode comunicar, em primeira
mão, a vontade e a palavra genuína de Deus”8.
Porém, o contato imediato de Moisés com DEUS, que fez dele o mediador da revelação, da
aliança, teve os seus limites, como se pode ver em Ex 33,18.20.23: Moisés não pode ver o rosto de
DEUS (v. 20: “Tu não podes contemplar o Meu rosto”; v. 23: “Assim tu podes ver-Me de costas, pois
o Meu rosto não o podes ver”). “Ele não contempla o rosto de Deus, mesmo se introduzido na nuvem
da proximidade de Deus e mesmo se pode falar com Deus como amigo. Deste modo, a promessa de
um ‘profeta como eu’ traz consigo, de maneira implícita, uma expectativa ainda maior: que ao último
profeta, ao novo Moisés, será oferecido o que foi recusado ao primeiro Moisés – ver real e
8
J. RATZINGER-BENTO XVI, Jesus de Nazaré, 24.
Cristologia 16

imediatamente o rosto de Deus e assim poder falar inteiramente a partir da visão, e não
simplesmente a partir de um ‘olhar Deus por trás’. Assim, a expectativa está por si mesma ligada a
que o novo Moisés será mediador de uma aliança superior àquela que Moisés pôde trazer do Sinai
(cf. Hb 9,11-24).”9
Ora, segundo o prólogo do Evangelho de São João, esta promessa se realizou em JESUS:
“Ninguém jamais viu a DEUS; o FILHO unigênito que repousa no seio do PAI é que no-l’O deu a
conhecer” (Jo 1,18). “Em Jesus cumpriu-se a promessa do novo Moisés. N’Ele se realiza agora
plenamente o que em Moisés se encontrava apenas de um modo fraturado: Ele vive diante do rosto de
Deus, não apenas como amigo, mas como Filho; Ele vive na mais íntima unidade com o Pai.” 10

2. Encarnação da palavra, da ação, da presença de DEUS11

a) A revelação, encarnação da palavra de DEUS


A revelação pertence ao dinamismo de encarnação. 12 DEUS apresenta Sua mensagem numa
linguagem humana. A Palavra de DEUS não se comunica nunca no estado puro; ela toma forma na
palavra humana, aceitando consequentemente os seus limites e suas imperfeições. É mais do que
simplesmente um fenômeno de expressão e de tradução de linguagem humana, porque o pensamento
divino se faz conhecer com a ajuda do pensamento humano. Os homens que transmitem a revelação
imprimem na mensagem o cunho das suas opiniões e das suas reflexões. Neste sentido eles não
contribuem somente à sua transmissão, mas também à sua formação.
Os profetas têm cada um, um modo próprio de proferir a palavra de DEUS: é a substância do seu
pensamento que querem transmitir nesta comunicação. Constata-se, por conseguinte, uma espécie de
identificação do pensamento divino com o pensamento humano. O pensamento divino tanto se une ao
pensamento humano que não se pode separá-los. Para colher a mensagem da revelação precisa
acolher o pensamento humano integral do profeta e escritor e descobrir nele a intenção de DEUS. O
pensamento divino se dá no e através do pensamento humano.
A Palavra de DEUS realiza sua encarnação transmitindo-se numa linguagem humana que
conserva todas as suas propriedades, e que não precisa tornar-se menos humana para fazer conhecer
o pensamento divino. Conhece-se a tentação da exegese de parar no humano, sem colher
suficientemente o pensamento divino escondido na palavra humana; é que o pensamento divino soube
animar tão perfeitamente uma expressão espontaneamente humana.

b) A história, encarnação da ação divina


A história do povo eleito revela a encarnação da ação de DEUS. Com base nos empenhos
assumidos na aliança, o poder de DEUS age no povo guiando seu destino. O poder divino coloca-se ao
serviço dos israelitas para salvá-los e guiá-los à terra prometida (cf. o êxodo e os acontecimentos
posteriores).
Este serviço é tão completo que comporta uma espécie de identificação entre o plano de DEUS e
o destino de Seu povo; o poder soberano, próprio de DEUS, encarna-se nas vitórias e na expansão de
Israel. Para entender com maior precisão o sentido desta encarnação, convém distinguir dois aspectos
essenciais da ação de DEUS. De um lado, DEUS castiga e corrige o povo por causa dos seus pecados:
as provas infligidas a Israel em vista da conversão e do perdão. Por outro lado, DEUS preserva o povo
dos perigos e lhe assegura vida, triunfo, prosperidade (cf. Sl 33,16-19). Neste segundo modo de agir
de DEUS realiza-se a maior identificação de DEUS com Seu povo, a encarnação mais radical da ação
de DEUS na ação do homem. A história do povo torna-se assim obra de DEUS: o poder divino entra na
atividade humana para cumprir os Seus desígnios (na atividade humana e por meio dela DEUS realiza
Seus desígnios).
9
ID., ibid., 24s.
10
ID., ibid., 25.
11
DEUS fala, age, está presente em e através de uma realidade humana (humanamente acessível); cf. CONC.
VAT. II, DV 13 e 11,1.
12
L. BOUYER, Das Wort ist der Sohn, sublinha que o conceito e a realidade da Palavra de DEUS, assim como se
apresentam no AT, são o primeiro e mais fundamental preâmbulo a toda Cristologia.
17 Cristologia

c) A encarnação da presença divina


A presença de DEUS no meio do Seu povo não é simplesmente e somente presença moral de
ajuda e de assistência, quer dizer: não manifesta unicamente a intenção de DEUS de proteger e de
ajudar Israel. É uma presença real; JHWH encontra-Se no meio do Seu povo, de um modo certamente
misterioso e invisível, mas autêntico. Deste ponto de vista deve-se já falar de encarnação da presença
de DEUS: DEUS acompanha o povo.
Esta encarnação tem grande importância, enquanto manifesta o dom íntimo que DEUS faz de Si
mesmo. DEUS não assume somente os empenhos da aliança, não doa somente Sua assistência e Sua
palavra: doa o Seu ser. Na encarnação da presença o dom atinge a medida plena.
A encarnação é acentuada ainda pela forma local mais determinada que assume a presença
divina. Reservar a DEUS uma tenda onde possa receber aqueles que O buscam, é reconhecer à
presença de DEUS uma índole semelhante àquela de uma presença humana. Nesta tenda “JHWH
falava a Moisés face a face, como um homem fala a seu amigo” (Ex 33,11). Eis o horizontalismo
típico da encarnação: DEUS Se coloca no nível do homem para poder dialogar amigavelmente com
ele. O acesso a DEUS mantém ainda reservas, já que a tenda é armada fora do acampamento, e
manifestações prodigiosas, como aquelas da coluna de nuvem, criam um clima de temor. Mas, o
princípio de uma presença amigável, com o convite à “reunião” (“tenda da reunião”), é
suficientemente manifesto e faz entender a importância da vontade de DEUS de habitar entre os
homens.
No templo, esta presença estabelece-se de modo mais cultual. Ela constitui a alma do culto
judaico. o lugar onde os judeus veneram a presença de DEUS é o centro em torno do qual se
organizam todos os atos de culto. A presença divina confere ao templo todo o seu valor; sem esta
presença o templo seria uma casa deserta.
O fato que DEUS possui a Sua casa, revela até que ponto Ele, embora não esteja ligado a nenhum
lugar particular (1 Rs 8,27; Is 66,1), tenha querido tornar-Se presente de modo humano.

B) Os pressentimentos de uma figura divina de Messias

O dinamismo de encarnação não comporta somente uma linha coletiva (DEUS em relação ao
povo). Certos textos do AT tendem a apresentar a união do homem com DEUS numa perspectiva
messiânica mais individual.
Esta tendência apresenta-se segundo duas direções: uma ascendente e a outra, descendente. Na
ascendente, um ser humano tende a entrar na condição divina; separa-se do povo para receber
atributos de DEUS: é-lhe aplicado um nome divino ou é-lhe atribuída uma filiação divina.
Na direção descendente uma pessoa tende a separar-se de DEUS ou a sair da esfera divina para
atingir a humanidade. Esta direção, encontramo-la na “personificação” da Sabedoria divina que vem
em missão junto aos homens, e no anúncio da vinda do Filho do homem, personagem celeste que
recebe o poder supremo.

1. A via ascendente

a) A aplicação de um nome divino ao rei ou ao Messias


Dirigindo-se ao rei, o Salmo 45,7 afirma: “O teu trono, ELOHIM, permanece para sempre”.
Alguns exegetas pensaram que o termo “ELOHIM” indicasse um Messias- DEUS que substituiria a
idéia de um Messias puramente humano. É neste sentido forte que Hb 1,8 cita este Salmo para indicar
em JESUS o FILHO de DEUS, insuperavelmente superior aos Anjos. A tradição patrística seguiu esta
interpretação.
Porém, considerado em si mesmo somente, o texto parece não chegar a dizer tanto. Pois o título
“Elohim” é em outros lugares dado a grandes personagens: Moisés, Samuel, os chefes e os juízes, sem
que com isto se queira atribuir-lhes um caráter propriamente divino. Por isso é bem possível a
tradução: “o teu trono, ó Divino, permanece para sempre”.
Cristologia 18

Ainda que o salmista não tenha querido afirmar a divindade do rei, manifesta, no entanto, com o
uso do título Elohim, a tendência de reconhecer uma grandeza divina a um homem. Esta tendência
encontra-se em várias passagens da Bíblia.
Is 9,5 dá ao Messias um nome muito comprido, apropriado à sua dignidade: “Conselheiro
admirável, DEUS potente, Pai para sempre, Príncipe da paz”. Como entender “DEUS potente”13? O
profeta não tinha a intenção de afirmar a divindade do Messias cujo nascimento anuncia. Nesta
profecia, JHWH é completamente distinto da criança messiânica, embora realmente o poder divino se
manifeste nele: o Messias será aquele em quem o DEUS forte Se revelará.
Pode-se comparar este título com os nomes teofóricos: assim o nome de JESUS, muito comum
entre os judeus, não significa já por si mesmo que aquele que o traz, seja o “D EUS Salvador”, mas
significa que nele Se manifesta DEUS Salvador. Trazer no próprio nome o nome “D EUS”, não quer
dizer que o portador deste nome se identifique com D EUS. Uma identificação da criança messiânica
com JHWH não pode ter sido intencionada pelo profeta Isaías. Mas o fato de ter colocado
expressamente, no nome da criança, o titulo “D EUS forte”, implica a intenção de elevar muito para o
alto, o mais alto possível, a condição do Messias, e de reconhecer nele a revelação especialíssima do
poder de DEUS: uma identificação dinâmica; não uma identificação de natureza, mas de energia,
porque na criança e por ela o poder de DEUS atuará de modo singular.
Jr 23,6 chama o Messias, em contraposição a Sedecias, “JHWH nossa justiça”. Também neste
caso não é afirmada a divindade do Messias. Sedecias significa “JHWH minha justiça”. Com o nome
que Jeremias dá ao Messias, ele o apresenta como aquele em quem, verdadeiramente e não falsamente
como em Sedecias, JHWH estabelecerá Sua “justiça” em meio ao povo. Daí o significado do nome:
“verdadeira revelação da justiça de JHWH”. Há nisto uma tendência a uma identificação dinâmica,
uma vez que o Messias deve personificar, de algum modo, a justiça de D EUS, isto é, a obra de
salvação de DEUS (cf. Jr 23,5-6).

Valor do nome
A atribuição de um nome divino ao Messias poderia parecer ser um indício pouco importante,
mais formal do que real, de uma orientação para o mistério. Mas, levando em conta a importância que
os israelitas davam ao nome de uma pessoa, pode-se reconhecer o valor de tal nome. Pois o nome
inclui em si a realidade da pessoa. Assim, dar ao Messias um título como “D EUS forte” ou “JHWH
nossa justiça”, significa afirmar a realidade do poder e da justiça de DEUS que, de modo único se
manifestarão no Messias, significa habituar-se a ver na sua ação aquela de DEUS; nele, como em
nenhum outro, DEUS está presente para Se manifestar.

b) A atribuição da filiação divina


Os textos nos quais se atribui ao rei a filiação divina, devem ser considerados levando em conta
toda uma tradição que associa o rei a JHWH. Pode-se dizer que nesses textos esta associação é
acentuada até ao máximo.

1) A profecia de Natan
Na profecia de Natan,14 JHWH promete comportar-Se como um Pai em relação ao descendente
de Davi: “EU serei para ele um Pai, e ele será para Mim um filho” (v. 14). A reciprocidade é aquela
da aliança. Do ponto de vista da encarnação, essa promessa é particularmente interessante porque
indica como a paternidade permite a DEUS agir de modo humano: “Se fizer o mal, Eu o castigarei
com vara de homem e com açoites habituais entre humanos, mas não retirarei dele a Minha
benignidade...” (7,14s). DEUS, na Sua qualidade de Pai, coloca-Se no nível humano daquele que
considera como Seu filho.
Essa profecia encontra um eco no Salmo 89: “Ele Me invocará: ‘Tu és meu Pai, meu DEUS e a
Rocha de minha sa1vação’. E Eu o constituirei Meu primogênito, o mais alto entre os reis da terra” (v.

13
Esta expressão se encontra em outras passagens do AT e sempre referida a JHWH (Dt 19,17; Is 10,21; Jr
32,18).
14
2 Sm 7,1-16; é a origem do messianismo real (Messias = rei).
19 Cristologia

27s). Notamos que aqui o acento é posto mais sobre a dignidade concedida ao rei davídico: como
filho, ele recebe a semelhança d’Aquele que tem como Pai, e assim se torna o excelso entre os reis.

2) Salmo 2,7
O salmo faz o rei dizer, no momento da sua entronização, estas palavras: “Anunciarei o decreto
do Senhor; Ele me disse: ‘Tu és meu filho, hoje Eu te gerei’.” Nestas expressões reconhece-se um ato
de aliança: anunciando o decreto divino o rei aceita a aliança com JHWH.
Qual é o valor da filiação proclamada por JHWH? Há quem veja nela uma filiação de caráter
puramente jurídico, como uma adoção. Certamente é inegável o caráter jurídico: trata-se de um
decreto que garante a legitimidade do poder do rei. Este poder deriva da adoção, quer dizer: da atitude
de DEUS que a partir de “hoje” considera o novo rei Seu filho.
Mas, há algo mais. Parece que a filiação proclamada no salmo não consiste simplesmente num
ato jurídico, pois ela se apresenta como uma “geração”. A afirmação “Eu te gerei” também não
poderia justificar-se como simples atitude de afeto paterno da parte de DEUS. Há nisso algo mais do
que simplesmente a promessa de afetos de pai.
A frase: “Eu hoje te gerei”, sugere uma filiação que é uma verdadeira geração da parte de DEUS,
e que implica uma comunicação da divindade. Há uma atribuição de poder divino, descrito no salmo
com a dominação sobre os inimigos, e também a comunicação de um certo caráter divino ligado à
pessoa do rei a partir do momento da sua subida ao trono.

3) Salmo 110,3
O texto original deste salmo não é seguro. Pode ser traduzido assim: “A ti o princípio no dia do
teu nascimento sobre as montanhas sagradas; do seio da aurora, como o orvalho, Eu te gerei”. Na
versão grega dos LXX, a releitura causou uma transposição no sentido da transcendência:
entronização celeste, preexistência do Messias: “Contigo está a soberania no dia do teu poder nos
esplendores dos santos; do seio, antes da estrela da manhã, Eu te gerei”. 15
Para esclarecer o texto primitivo, os exegetas apresentam textos paralelos fenícios e, sobretudo,
egípcios, como também ugaríticos. De fato, são os paralelos de outras religiões que fazem entender
como a afirmação da geração do rei da parte de DEUS podia entrar nos salmos e tornar-se depois, na
sua releitura (dentro do povo de DEUS, segundo a orientação do ESPÍRITO divino!), um aspecto
característico do Messias: o Messias gerado por DEUS. Esta geração divina comporta a concessão do
poder de DEUS. Mais do que no Salmo 2, a geração se apresenta, neste salmo 110, independente de
uma concepção jurídica e tem mais claramente um valor poético que sugere uma filiação misteriosa
(mística).
A versão dos LXX transfere esta geração para o céu e indica que o Messias é gerado na
eternidade de DEUS, antes da criação das estrelas. De modo surpreendente ela se aproxima da idéia de
uma filiação eterna e atesta uma corrente de pensamento que, nos últimos séculos do judaísmo antes
de CRISTO, vê o Messias situado numa esfera celeste e transcendente.

2. A via descendente

a) A vinda da Sabedoria divina entre os homens


A Sabedoria de DEUS é descrita como uma Pessoa divina distinta de JHWH, mas provinda d’Ele:
“JHWH me adquiriu por geração” ou “me criou” (Pr 8,22; a última versão é dos LXX). “Eu saí da
boca do Altíssimo” (Sr 24,3). Mas, embora separando-se de DEUS, ela permanece divina: “exalação
do poder de DEUS, puro eflúvio da glória do Todo-Poderoso..., reflexo da luz eterna, espelho sem
mancha da atividade de DEUS, imagem de Sua bondade” (Sb 7,25s).
A Sabedoria exerceu a função de “arquiteto” ou de “artista” na criação (Pr 8,30), realizando sua
obra como um brincar ou um dançar que fascinava o Criador. Ela vem junto aos homens: “o meu
comprazimento está nos filhos do homem” (Pr 8,31), e é-lhes dada como feliz dádiva: “Feliz o
homem que me ouve”, “quem me encontra, encontra a vida...” (Pr 8,34s). DEUS a deu a Jacó e a Israel
15
A tradução da Neo-Vulgata: “Tecum principatus in die virtutis tuæ, in splendoribus sanctis, ex utero matutini
velut rorem genui te”.
Cristologia 20

(o povo): “Depois disso manifestou-se na terra e começou a viver entre os homens” (Bar 3,38). Ela
reinou sobre toda a terra (Sr 24,6), mas estabeleceu-se de modo particular em Sião (Sr 24,6), onde se
desenvolveu como uma vinha (Sr 24,17). “Através das gerações, transfundindo-se em todas as almas
santas, forma os amigos de DEUS e os profetas” (Sb 7,27). Convida os homens ao seu festim (Pr 9,1-
12) e doa-se a si mesma como comida e bebida (Sr 24,20).
Esta Sabedoria é apresentada com características que são também próprias do Messias. Eis tais
características comuns: origem divina misteriosa (“geração eterna”): para o Messias: Sl 110,3 (Sl 2,7);
para a Sb: Pr 8,23-31. A entronização divina: a Sabedoria: Pr 8,23 (“desde a idade mais remota fui
constituída, desde as origens, desde os primórdios da terra”); Messias: Sl 2,6 (“EU constituí Meu rei
sobre Sião, a Minha montanha santa”). Os dons da Sabedoria evocam os dons próprios do Messias:
Messias: Is 11,2 (“Sobre Ele pousará o ESPÍRITO do SENHOR, Espírito de...”); Sabedoria: Pr 8,14
(“Pertencem-me o conselho e a habilidade, minha é a inteligência, minha a força”). O juízo divino que
caracteriza o Messias, pertence à Sabedoria de DEUS: Sabedoria: Pr 1,24-33; 9,1-5; Messias: Is 25,6;
55,1-3; 65,13s.
Surge aqui a pergunta: Tal Sabedoria é uma personificação puramente literária ou uma
personificação real, quer dizer: uma Pessoa divina distinta? Os autores sagrados que falam da
Sabedoria não querem afirmar que ela seja realmente uma pessoa distinta de JHWH. Por outro lado,
esta Sabedoria divina não é uma simples personificação literária, porque a sua função é real, e a
comunicação de Si aos homens não é pura alegoria. Pode-se dizer: esta Sabedoria é o próprio DEUS
enquanto Se relaciona, Se comunica às criaturas: DEUS na Sua autocomunicação.
Assim, a distância entre DEUS, concebido de modo sempre mais transcendente, e os homens,
Suas criaturas, é vencida (“enchida”) por essa Sabedoria divina à qual também se reconhece uma
missão messiânica (no âmbito de um “messianismo sem Messias”, como foi chamada essa doutrina
[estreitamente ligada com a doutrina sobre a “Palavra” e também sobre o “Espírito”]). Note-se
sobretudo quanto esta Sabedoria está próxima aos homens e se comunica a eles. Ela aparece no meio
dos homens com o desejo de se lhes doar e de viver neles.
É notável ainda o seguinte paradoxo: a Sabedoria é transcendente e supera de longe tudo que
podia ser dito de um rei messiânico humano, pois ela é divina e participou na obra da criação.
Contudo, ela penetra mais profundamente na vida dos homens, bem diferente de quanto poderia ter
feito o Messias da tradição, cuja missão era concebida de maneira mais exterior. Transcendência e
imanência da Sabedoria estão maravilhosamente unidas.

b) O anúncio da vinda de um “Filho do homem”

1) Na profecia de Daniel
“Prossegui observando nas minhas visões noturnas, e eis que com as nuvens do céu vinha um
semelhante a um filho do homem, que chegou até ao Ancião, a quem foi apresentado. E foi-lhe
outorgado poder, majestade e império, e todos os povos, nações e línguas o serviram. Seu poder é um
poder eterno, que não passará, e o seu reino, tal que não será dissolvido” (Dn 7,13s).
Neste texto não se trata da vinda do “Filho do homem” sobre a terra, mas da sua vinda num
cenário celeste, contemplada numa visão apocalíptica. Neste sentido tal visão está longe do realismo
terreno do mistério da Encarnação. Contudo, a idéia da vinda deve ser retida e sublinhada. Quem é
aquele que vem “como filho do homem”? A interpretação é difícil porque a origem da expressão
permanece misteriosa. É talvez um ser humano? Parece antes que seja um ser celeste, de natureza
superior, não terrena. Este ser pertence à esfera divina, como indica a sua vinda “com as nuvens do
céu”16. Pois a nuvem, na linguagem bíblica, é o sinal característico das teofanias. Em todos os casos
em que a nuvem não indica um simples fenômeno natural e tem um significado religioso, ela
acompanha a aparição de DEUS e Sua intervenção (cf. a coluna de nuvem no Êxodo, a nuvem das
revelações do Sinai ou da tenda da reunião, a nuvem do templo (1Rs 8,10s; 2Cr 5,13s; 2Mac 2,8), a
nuvem das visões de Ezequiel (1,4; 10,3s), a nuvem das visões escatológicas (Is 4,5; Sl 97,2; Naum
1,3) etc.). Daí a conclusão necessária: a personagem que vem com as nuvens tem um caráter divino.

16
“Sobre as nuvens” = tradução dos LXX; Mt 24,30; 26,64; cf. Ap 14,14.16; esta segunda versão acentua ainda
o caráter transcendente da personagem.
21 Cristologia

“Como um filho do homem” não indica senão uma aparência: tem a aparência de um... Note-se o
paralelismo com a visão inicial de Ez: “Por cima do firmamento, que se estendia sobre suas cabeças,
apareceu uma como pedra de safira, em forma de trono, e sobre esta espécie de trono, uma figura com
semblante de homem” (1,26). Esta figura de homem manifesta DEUS: “tal aparecia a imagem da
glória do SENHOR” (Ez 1,28). Na visão de Daniel, aquele que vem como um filho do homem é
distinto do Ancião, isto é, de DEUS. Mas ele assume o aspecto de um filho do homem, como DEUS
tinha assumido o aspecto de um homem (o “Ancião”).
No contexto em que se encontra, esta forma humana (“semelhante a um filho do homem”) é um
indício de superioridade: antes tinha sido descrita a visão de quatro animais (Dn 7,lss), como, aliás,
em Ez, a visão dos quatro seres vivos precede aquela da figura de um homem (Ez 1,4ss). Há aqui a
aplicação do princípio segundo o qual o homem se assemelha ao Criador: a figura do homem é, por
isso, digna de manifestar a DEUS, e o aspecto de um filho do homem é apto para revelar a vinda de
um ser divino.
Esta personagem recebe de DEUS todo poder. Ela detém, de modo definitivo e perpétuo, o
domínio divino sobre o universo. Este poder pertence igualmente ao “povo dos santos do Altíssimo”
(assim é dito na segunda parte da visão; 7,27). Quem são os “santos do Altíssimo”? A maior parte dos
exegetas vê neles o povo eleito ou admitem ao menos no texto uma evocação dos “homens piedosos
do reino messiânico admitidos juntamente com os Anjos” (H. Kruse).
Precisa, então, ver nesse filho do homem simples e somente uma designação coletiva do povo
messiânico? Realmente, ele representa de alguma maneira este povo; mas não é também realmente
um indivíduo? Em favor desta índole individual pode-se invocar a natureza celeste e quase divina
desse personagem que vem com as nuvens: é uma imagem pouco apta para designar todo o povo.
Além disso, o Anjo que explica a visão e que declara: “Estes quatro animais são quatro reis”, não diz:
“o Filho do homem é o povo dos santos do Altíssimo”; na sua interpretação deixa de lado o Ancião e
o Filho do homem.
Conclusão: o personagem que vem como um filho do homem, não parece que seja um homem,
mas sim um ser divino, distinto de DEUS e inferior a Ele, e que recebe d’Ele um poder universal e
eterno do qual participa o povo eleito. Mas por que este ser divino aparece como um homem? É pelo
fato que no contexto das visões apocalípticas, nas quais alguns animais são apresentados como figuras
simbólicas, o homem é o melhor símbolo para representar um ser divino. O que, afinal, justifica este
símbolo é a semelhança do homem com DEUS. Por que “filho do homem”? O contexto de Dn e as
parábolas do livro de Henoc sugerem esta resposta: o personagem misterioso, divino, comparece na
presença do Ancião. Ora, se aquele que sem dúvida representa DEUS, tem um aspecto humano, de
“ancião”, entende-se então como o ser divino que Lhe é subordinado e que parece herdar tudo d’Ele,
tenha um aspecto de filho de homem: ele tem junto de DEUS a posição de filho.

2) Nas parábolas de Henoc


O judaísmo posterior a Daniel acentua a transcendência do Filho do homem. No “Livro das
parábolas”, do Livro de Henoc etíope (séc. I antes de CRISTO), um misterioso personagem, com
funções messiânicas, é chamado de Filho do homem ou Eleito, e é identificado com o Messias. Trata-
se sem dúvida de um indivíduo. O título de Filho do homem é reservado a ele somente, em
contraposição ao título de Eleito que ele compartilha também com os justos (cf. 51,2). O título “Filho
do homem” não é nunca aplicado à comunidade. O Filho do homem é claramente apresentado como
um personagem divino. A sua transcendência fica clara pelas seguintes características: ele é
preexistente. A sua preexistência é expressa com termos que lembram a origem da Sabedoria em Pr
8,22-31. Ele é apresentado em companhia do Ancião, isto é, de DEUS, como se estivesse no mesmo
nível divino, e ele participa da soberania divina sobre o universo. Ele desempenha na economia da
salvação uma função de importância primária análoga àquela de DEUS: “serão salvos por meio do
seu nome” (48,7). O Filho do homem é juiz “assentado sobre o trono da sua glória”, exatamente como
“o Senhor dos espíritos”, isto é DEUS (62,2.5, cf. 69,27). O Filho do homem é aquele que revela os
mistérios (46,3). Ele é a “luz dos povos” (48,4). Todos esperarão nele e orarão a ele; todos o adorarão
(62,9, 48,2). A vida futura se viverá com o Filho do homem como com DEUS (62,14; cf. 71,17). Estas
características do Filho do homem são tão próximas das de CRISTO que certos autores quiseram
atribuir ao Livro de Henoc uma origem judeu-cristã ou apresentaram a hipótese de interpolações
cristãs. Mas nenhum texto traz alusões precisas à linguagem do evangelho, e o vocabulário permanece
Cristologia 22

aquele dos apocalipses judaicos. Sobretudo, teria sido estranho que um cristão se tivesse silenciado
totalmente da morte e da ressurreição, tão importantes na vida de CRISTO e tão características das
Suas declarações sobre o Filho do homem. Além disso, o Filho do homem das Parábolas de Henoc
não é apresentado como um homem: permanece um ser de natureza superior, “angélica” e divina.
Não há, neste personagem celeste e glorioso, alguma indicação de uma real Encarnação nem alguma
evocação de um drama redentor.

3) Conclusão
Os dois caminhos, ascendente e descendente, foram percorridos no processo de evolução da
revelação veterotestamentária rumo à Encarnação. Estes dois caminhos não se desenvolveram
paralelamente, mas sucessivamente. A sucessão depende da evolução do pensamento do povo judaico
(guiado pelo ESPÍRITO SANTO), o qual, vendo desvanecer-se a esperança de um rei salvador,
compreendeu melhor que a salvação devia vir do alto, isto é, de DEUS mesmo. A via descendente
implica a consciência da incapacidade, da parte do homem, de realizar a obra da salvação. Por outro
lado, deve-se notar que também na via ascendente há um aspecto descendente: o nome divino
manifesta qualidades comunicadas por DEUS ao homem, e a filiação divina implica a atitude paterna
ou o ato gerador de DEUS. Pois, a idéia de um homem que, com suas possibilidades humanas, possa
elevar-se ao nível divino, é completamente estranha ao pensamento bíblico. O Messias, assim como é
anunciado, não é o simples resultado da evolução humana, também religiosa do povo judaico.
Mas é preciso constatar também o seguinte: ambas as vias não atingem a sua meta no judaísmo.
O dinamismo de encarnação está longe da sua plena realização. Mediante nomes divinos ou, melhor
ainda, mediante a filiação divina, o Messias chega a ter uma certa condição divina, mas não chega a
possuir a natureza divina. Quanto à Sabedoria, ela não é um ser humano, como também não o é, assim
parece, o Filho do homem que permanece um ser celeste. Assim o homem não atinge completamente
a DEUS, e DEUS não atinge completamente a humanidade. Contudo, ainda que a união esteja longe de
realizar-se, é efetuado um grande progresso de ambos os lados.17

II. A FÉ DA COMUNIDADE CRISTÃ PRIMITIVA


Para seguir a ordem cronológica que vai do AT ao NT deve-se considerar como JESUS Se
apresentou segundo o testemunho do Evangelho. N’Ele, na verdade, realizou-se plenamente o
dinamismo da encarnação. N’Ele a via descendente, mediante a qual uma pessoa vem da parte de
DEUS para junto dos homens, atingiu a sua meta. O mesmo vale para a via ascendente, aquela de um
homem elevado à condição de DEUS. Em CRISTO estabeleceram-se a verdadeira aliança, com perfeita
pertença mútua de DEUS e do homem, e novos laços de paternidade e filiação. N’Ele a Palavra de
DEUS se fez homem, a ação de DEUS na história da salvação tornou-se atividade humana, e a presença
divina no meio dos homens concretizou-se em presença humana. Tudo aquilo que tinha sido
“projetado” e anunciado, no sentido da aproximação de DEUS ao homem, encontrou em CRISTO sua
plena realização.
Para compreender esta realização, o mais certo é considerar primeiro e imediatamente aquilo que
JESUS disse de Si mesmo e aquilo que Ele fez? Parece lógico. Porém, nós sabemos que estas palavras
e estas ações não chegaram até nós diretamente. Elas foram transmitidas através do testemunho de
outros, e isto em virtude do próprio dinamismo de encarnação que criou um modo humano de
presença, de revelação e de ação. Por conseguinte, para melhor avaliar as condições nas quais este
testemunho se formou, e para melhor descobrir, através dele, a JESUS original, vamos primeiro
estudar a fé da comunidade cristã primitiva. Para poder melhor conhecer a maneira como JESUS
mesmo apresentou o Seu mistério (a “Cristologia” de JESUS mesmo), procuramos determinar a
Cristologia dos primeiros fiéis cristãos.

17
A influência que outras religiões podem realmente ter exercido nestas idéias (as quais o monoteísmo estrito
judaico teria, antes, desaconselhado de usá-las), pode ser reconhecida como sinal e testemunho da participação
de toda a humanidade, judaica e não judaica, na preparação do mistério da Encarnação.
23 Cristologia

A) A primeira Cristologia na pregação apostólica

Os Atos dos Apóstolos apresentam-nos a pregação apostólica primitiva. Esta pregação, embora
traga o cunho da redação de S. Lucas, apresenta traços de arcaísmo, não somente na sua forma, mas
também no seu conteúdo doutrinal. Ela nos oferece a possibilidade de conhecer os primeiros anúncios
da fé. Um desses traços de arcaísmo é exatamente a maneira pouco explícita de exprimir-se em
relação à divindade de JESUS.
Nesta pregação JESUS é apresentado como Aquele em Quem se concentrou, de maneira única e
completa, a salvação oferecida por DEUS à humanidade. O Pentecostes é a primeira demonstração
disso. CRISTO ressuscitado e exaltado à Direita de DEUS envia o ESPÍRITO SANTO: este fato essencial
domina a Cristologia primitiva, como se vê na pregação de Pedro: “Saiba toda a casa de Israel, com
absoluta certeza, que DEUS estabeleceu como Senhor e Messias a esse JESUS por vós crucificado” (At
2,36). À condição gloriosa de JESUS referem-se outras afirmações análogas: “DEUS O elevou, com a
Sua Direita, como Chefe (archegós) e Salvador” (5,31), “Ele foi constituído por DEUS Juiz dos vivos
e dos mortos” (10,42; cf. 17,31).
Nestas afirmações JESUS é reconhecido como Messias. Mas o sentido deste messianismo não se
limita àquilo que tinha sido anunciado no AT. Os anúncios proféticos se cumprem, é verdade, mas é
principalmente a experiência da ação eficaz de JESUS no progressivo desenvolvimento da Igreja, que
explica as afirmações da fé a Seu respeito e as qualificações dadas à Sua Pessoa. A pregação primitiva
deve ser entendida à luz da experiência à qual se refere: é um messianismo afirmado com base na
demonstração dada por fatos novos sem precedentes (e não simplesmente à base dos antigos oráculos
proféticos). Este messianismo situa-se num nível divino. Claro que se refere ao homem JESUS, com a
recordação muito viva da Sua vida humana e, sobretudo, da Sua paixão. Mas reconhece-se no homem
JESUS, agora glorificado, um poder divino.
Eis aqui algumas expressões relativas à atribuição da divindade ao Messias:
1. O termo “CRISTO” é usado, um certo número de vezes nos Atos, não como simples nome dado
a JESUS, mas como título. Quando Pedro declara que Israel deve reconhecer em JESUS o “CRISTO”, ele
dá a este termo o seu pleno valor messiânico (CRISTO = o Ungido, o “Messias”), compreendendo-o à
luz do evento de Pentecostes. JESUS é o CRISTO”, “o Ungido”, no sentido de ser repleto do ESPÍRITO
SANTO tanto que O possa efundir sobre a humanidade (At 2,33: Pedro diz: “Tendo sido elevado pela
Direita de DEUS, recebeu do PAI o ESPÍRITO SANTO prometido e derramou o que vedes e ouvis”). Ora,
o poder de comunicar o ESPÍRITO pertence a DEUS; no AT só DEUS efunde o Seu Espírito e é capaz de
efundi-l’O. JESUS tem portanto, um poder divino. É verdade que recebeu do PAI o ESPÍRITO SANTO,
mas é Ele mesmo Quem O efunde exercendo, deste modo, um poder particular de DEUS. Basta
confrontar a profecia citada por Pedro (o SENHOR DEUS promete derramar o Seu ESPÍRITO sobre toda
carne (toda a humanidade); At 2,17; Gl 3,1) com a afirmação que JESUS derramou o ESPÍRITO
prometido (At 2,33).
2. Também o título “Senhor” indica, no contexto em que é pronunciado, uma condição divina (At
2,36). O Salmo 110 é citado (At 2,34s) na perspectiva de uma transcendência do Messias JESUS em
relação a Davi, uma vez que Davi “não subiu aos Céus” (At 2,34). JESUS mesmo tinha citado este
salmo para fazer ver esta transcendência, mostrando assim aos Seus adversários que o Messias devia
ser o Senhor de Davi e não seu filho (cf. Mt 22,45; Mc 12,37; Lc 20,44). São Pedro considera esta
transcendência à luz da exaltação gloriosa de CRISTO.
O “Senhor” aparece aqui como quem tem poder sobre o ESPÍRITO, isto é, o poder supremo. Aquele
que no Salmo 110 foi chamado “meu Senhor”, participa da onipotência do “SENHOR”. O que tinha
sido predito no salmo realiza-se, deste modo, a um nível mais alto.
3. JESUS possui prerrogativas divinas. Quando Pedro reconhece n'Ele o Juiz dos vivos e dos
mortos (At 10,42), atribui-Lhe um poder que compete a DEUS.
Quando O chama “autor da vida” (At 3,15), proclama um poder divino que se manifestou pouco
antes na cura de um coxo de nascença, porque é DEUS o senhor da vida. O milagre tinha sido
realizado em nome de JESUS, quer dizer invocando uma Pessoa que possui por Si mesma o poder de
dar a saúde (At 3,16, cf. 4,10).
Sobretudo o nome de “Salvador” (At 5,31) é que testemunha o poder divino de JESUS. No AT era
DEUS quem foi considerado o Salvador: “Não existe algum Salvador fora de DEUS” (Is 45,21). Na
Cristologia 24

versão dos LXX, o termo grego “Salvador” (soter) era habitualmente um predicado de DEUS. Este
predicado é agora atribuído a JESUS com o mesmo exclusivismo com que antes era aplicado a JHWH:
“Em nenhum outro há salvação, pois não há debaixo do céu qualquer outro nome dado aos homens
que nos possa salvar” (At 2,12). JESUS ocupa nesta afirmação um lugar que é próprio de DEUS. Pelo
nome de JESUS “cada um que crê n’Ele obtém a remissão dos pecados” (At 10,43). O poder de salvar,
de exigir a fé, e de perdoar os pecados pertence a DEUS. A estes poderes acrescenta-se aquele da
potência santificadora do Batismo, porque é no nome de JESUS que é administrado o Batismo (At
2,38; 8,16).
4. No relato do martírio de Estêvão, a fé na divindade de JESUS adquire uma relevância
surpreendente. Em primeiro lugar precisa considerar a declaração com a qual Estêvão provocou o seu
apedrejamento. Os ouvintes já tinham ficado enfurecidos pelo seu longo discurso diante do Sinédrio,
com palavras duras contra os assassinos do “Justo”. Mas, embora com raiva e rangendo os dentes
contra Estêvão, não tinham ainda um motivo suficiente para condená-lo à morte. Este motivo lhes é
fornecido pela exclamação de Estevão: “Eu vejo os Céus abertos e o Filho do homem, de pé, à direita
de DEUS (At 7,56). Se eles se precipitam sobre Estêvão para assassiná-lo, é porque vêem nestas
palavras uma blasfêmia. Vistos isoladamente, nenhum dos termos usados nesta declaração parece
atribuir expressamente a JESUS um caráter divino. Mas os ouvintes deram-lhe este significado.
Sem razão e por maldade? Precisa ver o seguinte: essa frase foi pronunciada no mesmo lugar
onde JESUS tinha respondido à pergunta de Caifás, afirmando Sua identidade de FILHO de DEUS e
anunciando a elevação do Filho do homem à Direita de DEUS (Mt 26,64; Mc 14,62; Lc 22,69). A
“blasfêmia” de JESUS foi, portanto, confirmada por aquela do Seu discípulo: Estêvão quis testemunhar
que aquilo que JESUS tinha anunciado ao Sinédrio se verificava. Na sua declaração retoma, de modo
resoluto e referindo-se à sua própria experiência, aquilo que JESUS tinha dito de Si mesmo.
Além disso, a intenção de dar testemunho da divindade de JESUS aparece na invocação: “Senhor
JESUS, recebe o meu espírito” (At 7,59). Também nisto Estêvão inspira-se das palavras de JESUS:
“PAI, em Tuas mãos entrego o Meu espírito” (Lc 23,46); mas em vez de dirigir-se ao PAI, Estêvão
dirige-se a JESUS. Deste modo declara, morrendo, que para ele JESUS ocupa o lugar de DEUS.
Também a oração: “Senhor, não lhes imputes este pecado” (At 7,60) pede a JESUS o perdão que Ele
mesmo tinha pedido ao PAI para os Seus inimigos (Lc 23,34).
Este episódio do martírio de Estêvão indica-nos que a fé na divindade de JESUS é mais vivida do
que enunciada em termos próprios. Nos primeiros tempos da Igreja não há ainda a preocupação
explícita de definir a posição de JESUS em relação ao DEUS dos judeus, nem de conciliar a profissão
do monoteísmo com o reconhecimento do poder divino e das propriedades divinas a um indivíduo que
viveu uma vida humana real (JESUS). Antes de tudo a fé colhe o dinamismo da divindade que age em
JESUS e que é Sua posse pessoa1.
Este ponto de partida da fé da comunidade primitiva mantém um valor permanente. Pois a
divindade de CRISTO continua a revelar-Se mediante a efusão do ESPÍRITO SANTO; ela é descoberta
através do Seu poder que age continuamente na Igreja (ontem, hoje, amanhã). Esta atividade, pelas
suas múltiplas manifestações, nos convida a reconhecer a sua fonte (seu princípio), isto é CRISTO
ressuscitado, uma vez que a realidade da ressurreição nos é garantida pelo testemunho dos apóstolos.
Trata-se então simplesmente de reconhecer em CRISTO glorioso o sentido pleno da divindade
afirmada. Era inevitável que os primeiros cristãos se perguntassem a respeito da origem da existência
de JESUS, e procurassem determinar com maior precisão o que JESUS era na Sua essência antes da
ressurreição. É claro que a dinâmica ação divina de CRISTO está voltada para a frente, para o futuro
da Igreja a se desenvolver no tempo e no espaço. O dinamismo da fé tende a inserir-se neste
movimento. Mas ele toma também a direção inversa, olhando para o passado, até às primeiras
origens, para sondar tudo aquilo que está implicado nas afirmações sobre a divindade de CRISTO
glorioso.
Notemos: no ponto de partida desse dinamismo, o olhar da fé concentra-se sobre a exaltação
gloriosa de CRISTO, sem querer imediatamente discernir o que JESUS era anteriormente. Nesta
Cristologia primitiva permanece, por isso, uma certa indeterminação. Esta Cristologia, no entanto,
não é adopcionista. O adopcionismo reconhece em JESUS um simples homem adotado por DEUS como
Seu Filho e divinizado. Não é adopcionismo quando se afirma a conexão entre a glorificação de
JESUS e a manifestação da filiação divina.
25 Cristologia

Tal conexão aparece claramente num discurso de São Paulo quando aplica o Salmo 2 a JESUS
ressuscitado: “Tu és Meu Filho, EU hoje te gerei”; At 13,33: “DEUS a cumpriu (= a promessa feita a
nossos pais) em nosso benefício..., ressuscitando JESUS, como está escrito no salmo segundo: Tu és
Meu Filho, Eu hoje te gerei”. O adopcionismo implicaria que antes de “hoje” JESUS não teria tido a
qualidade de FILHO de DEUS e que teria sido considerado somente como um homem. No começo, é
verdade, a Cristologia não leva ainda em consideração o que JESUS era exatamente antes da Sua
morte e ressurreição. Quando, porém, ela colocar a si mesma claramente esta pergunta, reconhecerá
expressamente em CRISTO uma condição divina anterior.

B) A doutrina de São Paulo

1. O FILHO de DEUS
O Apóstolo Paulo chama JESUS de “FILHO de DEUS” (2 Cor 1,19; Gl 2,20; Ef 4,13), ou ainda “o
FILHO”, em sentido absoluto (1 Cor 15,28). Ele recorda mais vezes as relações entre DEUS e “Seu
FILHO”: “DEUS enviou o Seu FILHO” (Rm 8,3; Gl 4,4); “DEUS não poupou Seu FILHO” (Rm 8,32); Ele
nos destinou a sermos conformes “à imagem do Seu FILHO” (Rm 8,29); Ele nos transferiu para “o
Reino de Seu FILHO bem-amado (FILHO do Seu amor)” (Cl 1,13), etc.
Há uma preciosa indicação da origem deste título. Segundo os Atos dos Apóstolos, foi ele a
verdade essencial pregada por S. Paulo logo depois da sua conversão: “Começou então logo a
proclamar nas sinagogas que JESUS era o FILHO de DEUS” (9,20). Contudo, JESUS não Se tinha
expressamente apresentado como FILHO de DEUS quando apareceu a Saulo no caminho de Damasco.
A convicção nasceu no espírito de São Paulo à luz do próprio sentido que teve este encontro com
JESUS. Saulo, o perseguidor dos cristãos, via em JESUS um impostor que se tinha apresentado como
FILHO de DEUS pretendendo uma certa igualdade com DEUS: exatamente por causa desta blasfêmia
tinha sido condenado. Saulo considerava a morte na cruz como o sinal da reprovação divina, como
uma prova que JESUS não era o FILHO de DEUS como tinha pretendido ser. Mas, lançado por terra no
caminho de Damasco, Paulo compreendeu que JESUS estava vivo e que possuía uma força divina: Ele
era propriamente aquilo que tinha afirmado ser: o FILHO de DEUS. Saulo reconheceu este título
divino em CRISTO glorioso, mais exatamente, no CRISTO que pessoalmente Se lhe tinha manifestado.
A filiação divina afirmada por Paulo, ele a entende no seu sentido forte, transcendente, naquele
sentido que JESUS tinha reivindicado, mas que tinha sido rejeitado pelo Sinédrio.
É preciso ser claro: São Paulo concebe a filiação divina não como adquirida ou adotiva, mas
como preexistente à vida humana de JESUS. Esta preexistência está implicada na afirmação que DEUS
enviou o Seu FILHO: “DEUS enviou o próprio FILHO na semelhança de carne de pecado (= em estado
de solidariedade com os homens pecadores) e em vista do pecado (= para expiar o pecado)” ( Rm 8,3).
“Quando veio a plenitude dos tempos DEUS enviou Seu FILHO, nascido de mulher, nascido sob a lei”
(Gl 4,4).
Esta preexistência não é esquecida quando é atribuída à ressurreição um efeito de filiação:
Aquele que “foi constituído FILHO de DEUS com poder segundo o Espírito de santificação, mediante a
ressurreição dos mortos” (Rm 1,4), era já antes “Seu FILHO” (Rm 1,3). Portanto, a noção de FILHO de
DEUS que Se manifesta na glória (CRISTO glorioso) não indica a ausência da concepção de uma
filiação eterna. Aliás, CRISTO que venceu o Seu perseguidor Saulo, era Aquele que já antes da Sua
ressurreição tinha afirmado ser o FILHO de DEUS. Paulo reconheceu esta filiação divina não somente
em CRISTO ressuscitado, mas a reconheceu porque CRISTO a manifestou a Paulo mediante o poder da
ressurreição.
A afirmação discreta da filiação preexistente corresponde, aliás, ao modo com que JESUS mesmo
revelara Sua identidade. Paulo não discorre sobre esta preexistência, mas limita-se a declarar que
“DEUS enviou Seu FILHO”, quer dizer: limita-se ao modo velado com que JESUS Se tinha dito enviado
do PAI e vindo da parte do PAI.

2. Preexistência divina
Há em São Paulo a passagem da afirmação da filiação transcendente a uma clara afirmação da
divindade de JESUS?
Cristologia 26

O Apóstolo, de fato, não indaga muito sobre o mistério da origem de JESUS. Ele apresenta,
porém, dois “hinos” que evocam mais claramente a condição de JESUS antes da Sua vida terrena.
Estes dois hinos elucidam a plenitude da divindade possuída por CRISTO glorioso, também afirmando
a preexistência divina.

a) O hino da Carta aos Colossenses


O sujeito a que se referem as proposições do “hino” (1,15-20) é o “FILHO bem-amado (do Seu
amor), no qual temos a redenção, a remissão dos pecados” (1,13s). É portanto, JESUS CRISTO glorioso,
nosso Redentor (cf. v. 13: “nos transferiu para o Reino do FILHO do Seu amor”). O hino trata da
relação de CRISTO a toda a criação, é uma relação de primado (cf. 1,18c: “para que em tudo Ele seja o
primeiro”). O hino ensina que Ele tem este primado tanto na ordem da criação, quanto na ordem da
redenção (cf. as duas “estrofes”: vv. 15-17; vv.18-20). CRISTO é “a Cabeça do corpo, da Igreja”, “o
princípio, o primogênito de entre os mortos” (v.18), porque aprouve a DEUS fazer habitar (que
habitasse) n’Ele toda a plenitude” (v.19), sendo esta plenitude fundamentalmente a “plenitude da
divindade” (cf. 2,9: “n’Ele habita corporalmente toda a plenitude da divindade”). Com base nesta
plenitude, Ele pode estabelecer a paz (de salvação) em toda a criação (“na terra e nos Céus”); Ele é o
pacificador (salvador) universal. Mas, antes de ser isto, Ele já era Criador universal: n’Ele, por Ele e
para Ele tudo foi criado, n’Ele tudo subsiste (v.16 e 17). Tal participação na criação (tudo criado “por
Ele”) supõe Sua divindade eterna. Esta é a base (a razão, cf. “hóti” no começo do v.16) para Ele ser a
“imagem do DEUS invisível, o primogênito de toda a criatura” (= Ele possui, relativo a toda a criação,
a posição do “primogênito”, isto é, posição de herdeiro, de soberano) (v.15). Deste modo, estes
predicados de CRISTO se referem diretamente a Ele na Sua preexistência divina. Portanto, não diz S.
Paulo: porque CRISTO é a imagem de DEUS, tudo foi criado n’Ele (por Ele e para Ele), mas sim:
porque tudo foi criado por Ele e para Ele (“n’Ele” corresponde a “por e para Ele”), por isso Ele é
(pode ser) a imagem do DEUS invisível, isto é: JESUS, o FILHO encarnado (e exaltado) é a imagem que
revela a DEUS, o grande Revelador de DEUS por excelência. Assim, o “primogênito de toda criatura” e
a “imagem do DEUS invisível” fazem parte da criação (são títulos de JESUS CRISTO e não simples e
somente, nem diretamente do FILHO preexistente). Isto, porém, não exclui, mas sim implica ou,
melhor ainda, pressupõe que o CRISTO preexistente já é “IMAGEM” de DEUS, como também “FILHO”
de DEUS PAI (no título “primogênito de toda criatura” não está expressa diretamente a eterna filiação
divina de CRISTO, uma vez que este título indica diretamente a relação de CRISTO à criação e não a
DEUS PAI. Mas o termo “primogênito”, na acepção que tem aqui, implica ou pressupõe uma relação
singular de CRISTO a DEUS PAI (cf. a esse respeito Hb 1,2-5); no uso veterotestamentário do termo
protótokos (hebraico: bekor), ele pode assumir o significado: “o filho amado (de modo singular)”, e o
“primogênito” pode ser o único filho (cf. Ex 4,22; Sr 36,11; Sl 18,4); ora, em Cl 1,13, CRISTO é
chamado por São Paulo “o FILHO bem-amado” (literalmente: “o FILHO do Seu amor”). Com estes
conceitos de “Imagem” e “FILHO”, como também pelo fato de tudo ter sido criado “por” Ele (e
“n’Ele”), sugere-se uma distinção de pessoas em DEUS: a divindade é possuída por CRISTO como um
FILHO que Se assemelha perfeitamente (“imagem”) a Seu PAI, mas tem Sua característica própria.
Tudo isto é simplesmente explicitação da afirmação que JESUS é FILHO de DEUS.

b) O hino da Carta aos Filipenses


Este “hino” (2,6-11) exprime com força a divindade de CRISTO glorioso: “DEUS O sobreexaltou e
Lhe deu o Nome que está acima de todo nome” (v.9). Esta expressão reflete, de dois pontos de vista, a
mentalidade bíblica. O nome significa a realidade de uma pessoa; aqui este nome não é expresso, mas
a frase: “o nome que está acima de todo (outro) nome” é suficientemente clara. O exegeta Cerfaux
escreve: “Dois pontos nos parecem fora de dúvida: 1) o nome é uma personificação; atinge o fundo do
ser, indicando seu poder, sua função e sua natureza; 2) o nome por excelência, nome acima de todo
outro nome, designa o misterioso nome que é o fundo último do ser divino”. Além disso, da conclusão
do hino resulta que JESUS recebeu o Nome divino e que Ele deve ser reconhecido como DEUS: “a fim
de que no nome de JESUS todo joelho se dobre e toda língua confesse que JESUS CRISTO é Senhor,
para a glória de DEUS PAI” (v. 10s). Há nisto uma aplicação de Is 45,23, onde JHWH, por meio do
profeta, diz: “Diante de Mim se dobrará todo joelho, por Mim jurará toda língua”. Por isso a adoração
que dá a CRISTO o nome que está acima de todo nome, é aquela que era devida a JHWH.
27 Cristologia

Esta posição de CRISTO glorioso é ainda expressa pelo fato de “ser igual a DEUS”. Esta expressão
refere-se ao “existir na forma de DEUS” equivalendo a esta subsistência divina preexistente? Não. Na
afirmação: “não considerou um roubo o ser igual a DEUS”, este “ser igual (= advérbio) a DEUS” indica
a condição de exaltação gloriosa de CRISTO. Esta condição era, desde logo, algo a que Ele tinha
direito, quer dizer: não era uma arrogância, algo que não Lhe era devido (como foi no caso de Adão
que quis ser como DEUS).
Contudo, antes de fazer-Se homem, “existia (subsistia) na forma de DEUS”. “Forma” (morfé) aqui
não significa pura e simplesmente uma aparência ou modo de apresentar-se, mas a verdadeira
realidade correspondente: o modo de existir. 18 Antes de tornar-Se homem CRISTO vivia como DEUS
porque era DEUS; é este o sentido da expressão “existir na forma de DEUS”.
Há aqui também uma insistência deliberada sobre o modo de existir divino originário, porque
este faz ver o grau de despojamento que assinalou a passagem à “forma de servo”.
A esta existência originária (“existindo na forma de DEUS”) não falta nada: não é um estado
inferior e diminuído de divindade que se completa quando o ser divino, no momento da Sua exaltação
gloriosa, entra na plenitude. Não, não é isso. Pois o “ser igual a DEUS” e a atribuição do nome que
está acima de todo outro nome se referem a CRISTO enquanto homem. Antes de tornar-Se homem, Ele
já era DEUS, mas faltava-Lhe ser plenamente divinizado na Sua humanidade. Isto deu-se com a glória
que Lhe foi dada por motivo (cf. Fl 2,9a: “dió”, “por isso”) do Seu sacrifício.
Assim, o poder divino recebido com a glorificação, o poder de ser invocado e adorado como
DEUS, correspondia ao ser profundo de CRISTO que existia “na forma de DEUS”. O hino de Fl
manifesta, portanto, a vontade de determinar o que CRISTO era inicialmente, e ele não hesita em
reconhecer n’Ele a divindade.

3. O nome de DEUS reservado ao PAI


S. Paulo, embora conceba a filiação divina de JESUS como transcendente e preexistente, não diz
nunca que CRISTO é DEUS. Ele reserva o nome de DEUS ao PAI.
Esta maneira de falar é intencional. O Apóstolo assume a afirmação monoteísta do AT: “O
SENHOR é o nosso DEUS, o SENHOR é um só” (Dt 6,4), e a aplica ao PAI. “... Não há senão um só
DEUS... Para nós há um só DEUS, o PAI de quem tudo procede e para quem nós existimos; e um só
Senhor, JESUS CRISTO, por meio do qual todas as coisas existem e nós igualmente existimos por Ele”
(1Cor 8,4-6). São Paulo faz, portanto, uma clara distinção entre “um só DEUS”, o PAI, e JESUS
CRISTO, “um só Senhor”.
Há, porém, dois textos que parecem poder ser aduzidos como exceções desta regra. Tt 2,13:
“aguardando... a manifestação da glória do grande DEUS e Salvador nosso, JESUS CRISTO.” No
entanto, não é impossível (pela gramática e pelo contexto (cf. 2,10; 2,11; 3,4)) entender esta frase no
sentido de uma distinção entre o “grande DEUS” e “nosso Salvador JESUS CRISTO”. Verdade é, porém,
que não é este o sentido mais provável, quando se considera a expressão em si mesma.
O segundo texto é Rm 9,5. Este texto já foi muito discutido na sua estrutura gramatical. Falando
dos privilégios dos Israelitas, São Paulo declara: “dos quais é o CRISTO segundo a carne, o qual está
sobre todas as coisas, DEUS bendito pelos séculos. Amém.” “DEUS bendito” parece referir-se a
CRISTO. Mas duvida-se que o Apóstolo tenha podido dar, de maneira tão solene, o nome de “ DEUS” a
CRISTO quando normalmente evita esta identificação. A solução mais provável: admitir uma omissão
ou uma transposição ao ser copiado o texto. O fim da frase seria mais coerente com aquilo que
precede, se se devesse ler assim: “dos quais é o CRISTO segundo a carne, dos quais é DEUS que está
acima de tudo, bendito pelos séculos. Amém.”19
Conclusão: provavelmente São Paulo não deu nunca (ou só com uma exceção pelo fim da sua
vida) a JESUS o nome de “DEUS”. Ele está ligado ao vocabulário monoteístico do AT, no qual se
afirmava um só DEUS do modo como se afirma uma só pessoa. Afirmar que JESUS era DEUS,

18
Em alemão seria “Daseinsweise”. Isto vale segundo a acepção que este termo assumira no grego helenístico.
19
Em grego, eis o texto como se apresenta: ho òn epi pánton Théos eulogetòs...; o texto original poderia ter
sido: hon ho on epi pánton... (caso de omissão do primeiro “on”), ou: hon ho epi pánton... (caso da
transposição).
Cristologia 28

significava talvez confundir numa só pessoa o PAI e o FILHO, ou fazer pensar que JESUS Se
identificava pura e simplesmente com o DEUS do AT. Para evitar tal confusão ao afirmar a divindade
de JESUS, teria sido necessário recorrer a uma terminologia semelhante àquela de São João, que
distingue “ho Théos”, “DEUS” com artigo, para indicar o PAI, e “Theós”, “DEUS” sem artigo, para
indicar o ser divino, e que pode referir-Se tanto ao PAI quanto ao LOGOS. Não possuindo esta
distinção, São Paulo não se serve diretamente do termo “DEUS” para exprimir a divindade de JESUS
(que ele, no entanto, com outros termos, afirma claramente).

4. O SENHOR
O título que mais habitualmente São Paulo atribui a JESUS, é aquele de “Senhor”. Ele assume este
título da linguagem das primeiras comunidades cristãs, porque cita a fórmula de fé que nelas estava
em uso: “JESUS é Senhor” (Rm 10,9; 1Cor 12,3).
São Paulo atesta a antiguidade do título apresentando a fórmula aramaica “Maranatha” ( 1Cor
16,22). Esta fórmula litúrgica pode ser interpretada como uma profissão de fé: “O nosso Senhor vem”
(Maran atha), ou como uma oração: “Nosso Senhor, vem!” (Marana tha). É mais provável que se
trate de uma oração, porque este significado explica melhor a conservação desta fórmula aramaica
(como no caso do “ABBA”) e é confirmado pela invocação do Ap (22,20): “vem, Senhor JESUS”. A
presença desta formula aramaica nas cartas de São Paulo atesta a origem aramaica do nome
“SENHOR” atribuído a JESUS.
Esta fórmula indica a comunidade palestinense como o primeiro lugar do desenvolvimento da
expressão “Senhor JESUS”. Isto é confirmado pelo seguinte: segundo At 7,59, Estêvão morreu
invocando o “Senhor JESUS”, e Pedro, no dia de Pentecostes tinha expressamente atribuído a JESUS
este título de “Senhor”, chamando-O de “SENHOR” e “CRISTO”, duas qualidades que a fé cristã devia
professar (At 2,36).
Tomado em si mesmo e isoladamente, o título “Senhor” indica o poder, especialmente o poder
régio. Por isso ele convém particularmente ao CRISTO glorioso que detém o Seu poder régio
messiânico, como indica a afirmação: “CRISTO morreu e ressuscitou para ser Senhor dos mortos e dos
vivos” (Rm 14,9).
O termo “Senhor” já tinha sido usado pelos LXX para designar DEUS: tinha-se tornado o nome
próprio de DEUS. A teologia judaica, como se encontra expressa sobretudo em Filo (de Alexandria),
distinguia dois nomes divinos: “DEUS” e “SENHOR”. Quando São Paulo afirma “um só DEUS, o PAI” e
“um só SENHOR, JESUS CRISTO” (1Cor 8,6), ele aplica o termo “DEUS” ao PAI, e o termo “SENHOR”, a
JESUS CRISTO. Quer, portanto, ensinar a divindade de CRISTO, mas usando um termo diverso daquele
do PAI. A distinção dos dois vocábulos lhe permite exprimir a distinção das duas Pessoas divinas. Já
vimos que o uso somente do termo “DEUS” teria comportado o perigo de uma confusão entre o PAI e
o FILHO.
A intenção do Apóstolo de atribuir ao nome “Senhor” o valor de um nome divino manifesta-se
quando ele refere a JESUS aquilo que tinha sido dito de DEUS no AT. Ele cita a promessa de Joel (3,5):
“Todo que invocar o nome do Senhor será salvo”, mas entende por Senhor o CRISTO (Rm 10, 13).
Aliás, aqui ele acolhe o uso da comunidade cristã em geral, cuja atitude religiosa se definia
justamente com a invocação do nome do Senhor JESUS (cf. At 9,14-21).
Outras expressões como “a mesa do Senhor” (1Cor 10,21), “o temor do Senhor” (2Cor 5,11), “a
palavra do Senhor” (1Ts 1,8; 4,15; 2Ts 3,1), “o dia do Senhor” (1Cor 1,8; 4,15, etc.) referem a JESUS
o que foi dito de JHWH. Pode acenar-se também à “glória do Senhor” que os cristãos refletem, com a
face descoberta, como num espelho: é alusão a Moisés que foi admitido a olhar JHWH abertamente
(2Cor 3,18). Conclusão: como “SENHOR”, JESUS ocupa o lugar reconhecido a DEUS na antiga aliança.
O uso do título “SENHOR” não somente permite a São Paulo atribuir a JESUS a divindade sem
correr o risco de confundi-l’O com o PAI, mas reflete também a experiência do poder divino de
CRISTO que se manifesta na Igreja. Durante sua missão apostólica ele fazia constantemente esta
experiência, e não cessava de professar sua fé no poder vitorioso de JESUS. O título de “FILHO” ou
“FILHO de DEUS” convida mais a considerar as relações entre CRISTO e o PAI; o título “Senhor”, ao
invés, refere-se mais às relações de CRISTO a nós. É compreensível que São Paulo, mais do que todo
outro consciente da relação pessoal que o ligava a JESUS, tenha considerado n’Ele sobretudo o
29 Cristologia

“SENHOR”, e que este título tenha sido usado pelo Apóstolo mais frequentemente do que aquele de
FILHO (222 vezes contra 27).
Reconhece-se assim, a imagem que São Paulo tinha de JESUS: Ele é Aquele que, possuindo a
onipotência divina, age soberanamente no mundo e em todo homem. O “SENHOR” é Aquele que
manifesta Sua força no cristão, a ponto de este, como o Apóstolo bem compreendeu, viver em
CRISTO.

C) A Carta aos Hebreus

A carta aos Hebreus tem como centro de interesse o sacrifício de CRISTO, com a glorificação que
dele é o resultado e que Lhe conferiu o poder soberano de intercessão sacerdotal.
A primeira frase da carta (o prólogo; Hb 1,1-4) elucida a preexistência do FILHO. O contraste
entre a revelação profética e aquela de JESUS consiste na qualidade de FILHO: DEUS falou muitas
vezes por meio de homens como os profetas; mas, por meio do Seu FILHO não pôde falar senão uma
vez, de maneira única que transcende todas as palavras proféticas e que constitui a revelação
definitiva (quanto ao contraste de Filho no confronto com outros mensageiros, cf. a parábola dos
vinhateiros homicidas: Mt 21,33-41). Por conseguinte, conceber JESUS como um profeta que se teria
distinguido dos outros, mas que não teria ultrapassado a condição de profeta (homem através do qual
DEUS fala), significaria desconhecer a distinção fundamental que a carta aos Hebreus faz. Entre a
revelação do AT e aquela do NT, a diferença não é de grau, mas de essência. A primeira é profética, a
segunda é “filial”.
Resta, porém, a questão: o FILHO é divino desde Sua origem? Ele não possuía a qualidade de
FILHO apenas a partir do momento da glorificação, porque era já FILHO quando anunciava a palavra
de DEUS: DEUS “nos falou por meio do Seu FILHO” (1,2). Além disso, Ele tomou parte na criação:
por meio d’Ele DEUS “fez o mundo”; ora, esta participação na criação implica o poder divino
preexistente de FILHO. Esta atividade criadora do FILHO é descrita como sempre atual: “Ele sustenta
tudo pela Sua palavra poderosa” (1,3). Há mais ainda: o FILHO é caracterizado por algumas
propriedades que tinham sido atribuídas à Sabedoria divina (Sb 7,26): “resplendor da glória (de DEUS)
e imagem (charaktér) da Sua substância (tes tiypostáseos)” (v.3). Nota-se aqui o esforço de precisar a
característica distintiva da Pessoa eterna do FILHO (é a característica que já encontramos em Cl 1,15,
mas agora, pelo contexto imediato, diretamente relativa ao FILHO na Sua (pré)existência eterna).

D) O testemunho dos evangelistas

Quando se fala de Cristologia de cada evangelista quer-se somente indicar uma orientação de
pensamento de cada um deles, e não, por ventura, uma Cristologia sistematicamente elaborada por
cada um deles.

1. A apresentação do alto, comum aos evangelhos sinóticos


Os evangelhos sinóticos concordam em dar-nos uma apresentação de JESUS da parte do PAI, nas
duas teofanias do batismo e da transfiguração. Nestes dois relatos, uma voz celeste declara a filiação
divina de JESUS. No momento do batismo, a declaração dirige-se, segundo Mc (1,11) e Lc (3,22), a
JESUS: “Tu és o Meu FILHO muito amado, em Ti pus toda a Minha complacência”; segundo Mt, ao
invés, dirige-se às testemunhas (Mt 3,17): “Este é o Meu FILHO muito amado, no qual pus toda a
Minha complacência”. No momento da transfiguração, a palavra dirige-se aos discípulos: “Este é o
Meu FILHO muito amado, ouvi-O” (Mc 9,7; cf. Mt 17,5; Lc 9,35).

a) A voz
De quem é a voz? Segundo o uso judaico DEUS não é nomeado, mas não há dúvida de que é a
voz de DEUS mesmo. Trata-se de uma teofania com uma declaração pessoal do PAI.
Eis, uma conseqüência: encontramo-nos, com isso, além do profetismo: DEUS PAI em Pessoa
toma a palavra. DEUS mesmo faz ouvir a Sua voz. É a última e definitiva revelação. Já somente pelo
Cristologia 30

fato da “voz que vem dos Céus” a revelação que se inaugura no batismo é de essência diversa da
revelação precedente (veterotestamentária).

b) A designação de JESUS
Na designação da identidade de JESUS há a fusão de três figuras proféticas: aquela do rei
messiânico (Sl 2,7), do servo (Is 42,1) e de Isaac (Gn 22,2.12.16). Juntando as citações ou alusões
chega-se a uma síntese superior.
A referência ao rei messiânico: “Tu és Meu FILHO” ou “este é Meu FILHO”, corrige e completa a
alusão ao servo: “em Ti pus toda a Minha complacência”. O oráculo de Is 42,1 apresentava um servo
(“Eis o Meu servo”), no qual DEUS pôs Sua complacência; aqui, no caso de JESUS, é apresentado um
Filho. O acento é posto sobre a qualidade de Filho.
Por outro lado, as palavras: “em Ti pus toda a minha complacência” substituem as palavras do
salmo 2,7: “Eu hoje te gerei”. Não se trata de uma geração que se realizasse neste dia, como no caso
de uma entronização real. JESUS é apresentado como um FILHO no qual o PAI já pôs toda a Sua
complacência: a Sua filiação é anterior.
A recordação de Isaac, “filho muito amado” (ho hyòs ho agapetós), confirma que não se fala de
uma simples filiação adotiva. A relação entre JESUS e DEUS é semelhante àquela que há entre Isaac e
Abraão: uma filiação fundada sobre a geração natural e que comporta a posse de uma mesma
natureza. Além disso, esta filiação é única, porque este é o sentido da expressão “filho muito amado”.
Conclusão: a confluência de diversas imagens proféticas sugere uma filiação em sentido próprio,
anterior ao batismo, única, e que implica uma semelhança de natureza.

c) Valor da declaração
Quando os evangelistas relatam as duas declarações (no batismo e na transfiguração), querem
mostrar que é o PAI que, em Pessoa, apresenta o Seu FILHO à humanidade. Deste modo, eles revelam
um ponto de vista fundamental na maneira de conceber a vida pública de JESUS: desde o começo, esta
vida aparece como o dom que o PAI faz do Seu FILHO aos homens, e como a revelação decisiva de
que Ele mesmo é o primeiro responsável. Há nisto a expressão muito vigorosa de uma Cristologia do
alto. O período histórico que se inaugura tem seu ponto de partida em DEUS; antes da voz de JESUS
faz-se ouvir a voz do PAI. A Cristologia é, primeiro, teologia.

2. Marcos: evangelho do mistério


Desde o começo do seu evangelho São Marcos exprime a sua fé na filiação divina de JESUS:
“Início do evangelho de JESUS CRISTO, FILHO de DEUS” (1,1). É uma fé na filiação transcendente,
porque a citação dos oráculos proféticos nos versículos seguintes, refere a JESUS aquilo que tinha sido
dito de DEUS.
Em geral, Marcos sublinha as condições humanas e os sentimentos humanos de JESUS. Ele gosta
de elucidar os traços concretos da Sua fisionomia. Mas através destes traços concretos aparece o
mistério da Sua Pessoa.

a) Os aspectos humanos
Alguns exemplos da revelação do mistério no homem:
1. Uma situação humana característica é aquela da partida de Cafarnaúm. JESUS levantou-Se de
manhã cedo e foi a um lugar solitário onde rezava. Simão e seus companheiros O buscam e,
encontrando-O, convidam-n’O a retornar. Ele, porém, responde: “Vamos para outra parte, para as
aldeias vizinhas, a fim de pregar ali, pois foi para isso que saí” (1,38). JESUS não diz de onde saiu, e
esta imprecisão abre a possibilidade de um sentido mais profundo. Aparentemente a frase poder-se-ia
completar assim: “saí de Cafarnaúm”. Mas a missão de pregar nas outras vilas vem do PAI; sendo
assim, não é talvez o nome de DEUS que se deve adivinhar no silêncio? O sentido “saí de DEUS” é
confirmado pela versão de São Lucas: “é para isso que fui enviado” (4,43). A versão de Marcos,
menos explícita, tem a vantagem de manter em primeiro lugar o acontecimento humano, sugerindo o
fundo de mistério.
31 Cristologia

2. Os sentimentos humanos têm também valor de revelação, especialmente aquele que indica a
reação de JESUS à hostilidade daqueles que querem acusá-l’O: “lançou sobre eles um olhar de
indignação e, contristado por ver aqueles corações tão endurecidos” (3,5). Esta cólera é
surpreendente; Mt e Lc evitaram de mencioná-la. Marcos não hesita em descrevê-la, e nos convida a
descobrir o mistério que nela se esconde. Neste momento JESUS está para exercer o Seu poder divino,
pela cura que está para realizar no dia de sábado. Deste modo a Sua cólera aparece como expressão
humana da cólera divina: o AT fala frequentemente da cólera de DEUS provocada pelo
endurecimento dos corações.
Não menos surpreendente é a tristeza de compaixão que acompanha esta cólera. Mas também
esta evoca o mistério da cólera divina que está unida a uma misericórdia tanto maior; pode-se falar, de
algum modo, da cólera como da “dor do amor de DEUS”.
Duas cenas manifestam um amor particular de JESUS. Marcos é o único evangelista que nos faz
saber que JESUS abraçou as criancinhas (10,16). Mt limita-se a dizer que lhes impôs as mãos (19,15).
O gesto de afeto faz pensar na predileção divina para os pequeninos, e indica o calor deste amor. Esta
referência ao mistério de DEUS deduz-se do relato do episódio; pois JESUS declarou: “Deixai vir a
Mim as criancinhas ... porque dos que são como elas é o Reino de DEUS” (10,14). De certo modo
JESUS identifica-Se com este Reino.
Ao relatar o episódio da chamada do rico, Mc é igualmente o único que nos faz saber que “JESUS
fitou-o com amor” (10,21). Trata-se de um amor que as testemunhas notaram no olhar de JESUS e que
os tocou, uma vez que foi expressamente referido no relato do evangelho. Uma vez que JESUS age
soberanamente chamando o rico a abandonar tudo para segui-l’O, este amor revela o amor divino que
está na origem desta chamada.
3. Uma ação humana é relatada por São Marcos com um termo um pouco inapto. Falando da
instituição dos Apóstolos, Mc escreve que JESUS “fez doze” (3,14.16). Traduções modernas procuram
ajeitar a expressão: “estabeleceu” ou “constituiu” os doze. Mas o verbo “fazer” tem todo o seu valor,
e certos exegetas reconheceram nele o verbo usado na Bíblia grega no relato da criação (“ DEUS
fez ...”). Aqui é, portanto sugerida a nova criação, aquela que dá origem à Igreja. Na ação humana
que escolhe os doze para conferir-lhes um novo destino e um novo nascimento, transparece o mistério
da ação divina criadora; uma prova disso é o novo nome que é dado a Simão.
4. A resposta de JESUS à solene pergunta de Caifás, assim como se encontra em Mc 14,62, chama
a atenção pela sua simplicidade: “Eu sou” ou “sou Eu”. É expressão familiar com a qual um homem
se faz conhecer por aqueles que o rodeiam. Nada de mais humano do que esta palavra, que manifesta
até que ponto JESUS Se inseriu nas relações humanas. Mas esta palavra deixa, ao mesmo tempo,
adivinhar o mistério do nome de DEUS “EU sou” (Ex 3,14) ou do “sou EU” pronunciado por JHWH
(Is 41,4; 43,10.25 etc.)
5. A morte é o momento em que a fraqueza humana atinge seu ponto extremo. Ora, no caso de
JESUS, ela aparece como o ápice da revelação. “Ao vê-l’O expirar daquela maneira, o centurião, que
se encontrava em frente d’Ele, exclamou: Verdadeiramente este homem era o FILHO de DEUS” (Mc
15,39). A descrição de Marcos manifesta todo o seu valor se é comparada com aquela de Mt. Para Mc,
a reação do centurião reconheceu-Lhe esta filiação constatando o Seu modo de expirar: um modo
humano de morrer que era totalmente filial e atestava um mistério.

b) O mistério da Pessoa
O mistério da Pessoa de JESUS resulta da manifestação do divino no humano. Trata-se de um
mistério com o qual os discípulos são confrontados: “Quem é Este, a Quem até o vento e o mar
obedecem?” (Mc 4,41)
A cegueira dos discípulos, particularmente acentuada por Mc, revela, mediante o contraste, a
grandeza do mistério. Os discípulos não chegam a entendê-l’O por causa dos limites da inteligência
humana (6,52; 8,17-21).
Contudo, o mistério é-lhes oferecido: “A vós é dado o mistério do Reino de”, diz JESUS, em
oposição a “aqueles de fora”, para os quais tudo se lhes propõe em parábolas” (4,11). Mt e Lc trazem
esta declaração de JESUS numa outra versão: “A vós é dado conhecer os mistérios do Reino dos Céus”
(Mt 13,11; Lc 8,10). A versão de Mc tem um significado mais profundo: não se trata somente dos
Cristologia 32

mistérios do Reino de DEUS, mas do mistério (singular!), do mistério único, e este mistério não é dado
somente a conhecer, mas é apresentado de modo mais absoluto na Pessoa de JESUS.
Mc quis transmitir aos seus leitores este dom do mistério de JESUS. Pode-se concluir: por causa
de uma consciência mais viva do mistério, há em Mc uma vontade mais expressa de ser fiel ao
testemunho da tradição (de Pedro) sobre JESUS.
Reconheceu-se no evangelho de Mc uma fé na divindade de JESUS não menos completa daquela
testemunhada no evangelho de São João. O que Mc compreendeu de modo mais notável, é que DEUS
Se revela só como mistério, mediante a Sua própria transcendência, e que JESUS Se revelou justamente
assim. O mistério, mais do que enunciar a identidade divina, a implica.
Por outro lado, Mc reconheceu que em JESUS não há alguma oposição entre divino e humano.
Enquanto em Mt já se nota a tendência de deixar de lado certos aspectos considerados pouco dignos
da grandeza de JESUS, Mc não hesita a dizer tudo, porque todo o humano, como p. ex. um simples ato
de cólera ou de ternura, é portador do mistério de DEUS e capaz de revelá-l’O. De tal modo, no
evangelho de Mc, a simplicidade e a profundidade se unem.

3. Mateus: evangelho do Reino


a) Mt quer fazer reconhecer em JESUS o rei messiânico. Desde o começo do seu evangelho, JESUS
é apresentado como “Filho de Davi”, numa genealogia que tem principalmente a finalidade de indicar
esta origem. Em seguida, no evangelho inteiro, JESUS recebe mais vezes este título (9,27; 12,23;
15,22; 20,30s; 21,9.15). Mt acena, porém, também à Sua transcendência: a concepção virginal indica
a origem superior; o poder de JESUS supera aquele de Davi, porque Se chama Senhor de Davi (22,45).
Esta transcendência eleva o messianismo de JESUS a um nível divino. A qualidade divina do
Messias é indicada pelo Seu nome: “JESUS” significa “JHWH salva”, e tal nome é interpretado pelo
Anjo não no sentido que JHWH salvará por meio do portador deste nome, mas que JESUS mesmo
salvará o Seu povo dos seus pecados (1,21). Um outro nome, assumido do oráculo de Isaías, é citado
como confirmação: “Emanuel”, “DEUS conosco” (1,23). O juízo será realizado pelo FILHO do homem
que aparecerá como rei (25,34-40). Este rei que possui o poder de juízo universal não pode ser senão
um rei divino.
b) A transcendência divina do Messias manifesta-se sobretudo no poder que exerce sobre o
“Reino dos Céus”. JESUS aparece como instaurador e senhor deste reino. É verdade que o Senhor
supremo é o PAI, mas o banquete é feito pelo rei para as núpcias do seu filho (22,2). O Filho,
portanto, é quem realiza as núpcias de DEUS com Seu povo e doa a Israel o amor de DEUS.
JESUS Se comporta como legislador soberano: Ele promulga uma lei que corrige e completa
aquela antiga, e que, em todo caso, supera a antiga: “Foi dito ..., mas Eu vos digo ...”
(5,22.28.32.34.39.44). Esta reivindicação de dar leis por própria autoridade é tão decidida que faz
surgir esta questão: JESUS veio abolir a Lei? Mas Ele declara que não veio aboli-la, mas levá-la ao
cumprimento (5,17).
Com isto Ele confirma ainda mais tudo aquilo que devia aparecer aos judeus uma reivindicação
extremamente audaz da autoridade divina.
Esta reivindicação manifesta-se, mais radicalmente, na instituição da Igreja. Como JHWH tinha
formado o Seu povo, assim JESUS funda um novo povo. Ele edifica a Sua Igreja e dá as chaves do
Reino a quem Ele quiser (16,18s.). Comporta-Se como Senhor absoluto do Reino.
O evangelho termina com a afirmação de JESUS sobre Sua soberania: “Foi-Me dado todo o poder
no Céu e na terra” (28,18). Ele comunica este poder aos Seus discípulos para que levem a termo Sua
missão. Além disso garante a aliança com Sua ininterrupta presença, semelhante àquela que JHWH
tinha prometido ao Seu povo: “Eis, Eu estou convosco ...” (Mt 28,20). De modo definitivo tem o
lugar de DEUS junto aos Seus discípulos.
Na perspectiva de Mt, a consideração do Reino nos leva a admitir a divindade de JESUS. Só um
ser divino podia estabelecer o Reino de DEUS com a soberania de fundador e legislador, soberania
manifestada por JESUS. A idéia difundida um tempo no judaísmo, segundo a qual só DEUS em Pessoa
pode estabelecer o Seu Reino, realiza-se de um modo inesperado; em vez de um messianismo sem
Messias e tendo DEUS por autor, tem-se um messianismo no qual o rei messiânico é homem, mas
também DEUS.
33 Cristologia

4. Lucas: evangelho do SENHOR e do ESPÍRITO


O evangelho de São Lucas reflete o uso da comunidade primitiva de chamar a JESUS de
“SENHOR”. Lucas reconhece em JESUS, desde a Sua vida pública, a soberania que se manifesta
plenamente depois da ressurreição.20
Desta soberania divina ele tem um conceito menos exterior do que Mt.21 JESUS é Quem está
animado pelo dinamismo do ESPÍRITO; o exercício do poder divino provém da ação interna do
ESPÍRITO e toca mais o íntimo das pessoas.
A intervenção do ESPÍRITO SANTO, na concepção de JESUS, é descrita com termos que sublinham
sua conexão com a filiação divina.
Lc é o único a contar-nos que JESUS referiu a Si o oráculo de Is (4,18): “O ESPÍRITO do SENHOR
está sobre Mim; por isso Me consagrou com a unção e Me enviou a anunciar a Boa Nova aos pobres”.
Deste modo, toda a missão pública de JESUS aparece ligada, na Sua consciência, à inspiração
permanente do ESPÍRITO SANTO. Lc também recorda a função do ESPÍRITO SANTO no hino de louvor ao
PAI: “Naquele momento JESUS exultou no ESPÍRITO SANTO e disse ...” (Lc 10, 21; compare com Mt
11,25). O que provém do ESPÍRITO SANTO não é somente a alegria exultante, mas a revelação das
relações íntimas entre o PAI e o FILHO (10,22): o ESPÍRITO manifesta a filiação divina de JESUS.
Lc gosta de descrever a força misteriosa que emana de CRISTO taumaturgo: “Toda a multidão
procurava tocá-l’O, porque saía d’Ele uma força que curava a todos” (6,19; cf. 5,17). JESUS possui e
exerce conscientemente este poder divino e secreto.
JESUS é apresentado como um profeta, como convém justamente a um homem penetrado pelo
ESPÍRITO: “Um grande profeta surgiu no meio de nós e DEUS visitou Seu povo” (7,16; cf. 7,39;
24,19).
A morte aparece na sua realidade íntima mediante a palavra de abandono do espírito ao PAI:
“PAI, em Tuas mãos entrego o Meu Espírito” (23,46).
CRISTO ressuscitado anuncia o envio do ESPÍRITO SANTO que comunicará aos discípulos a força
divina: “E eis que Eu mando sobre vós o Prometido por Meu PAI; vós, porém, ficai na cidade até
serdes investidos com a força lá do alto” (24,49).
Podemos resumir: ao apresentar-nos JESUS, Lc foi influenciado pela experiência da Igreja
primitiva, na qual JESUS Se revelava como o SENHOR que efunde o ESPÍRITO. Lc encontrou esta
imagem nos testemunhos da vida terrena de JESUS e quis elucidá-la de modo particular.

5. João: evangelho do VERBO e do FILHO

a) Evangelho do VERBO
No prólogo do seu evangelho, São João indica logo até onde chega sua fé na divindade de JESUS.
Ele inicia o seu evangelho dirigindo seu olhar de “águia” ao VERBO Eterno: para ele não se pode
explicar a origem de JESUS senão partindo da eternidade. A Cristologia do alto, portanto, é
indispensável.
Logo a partir das primeiras palavras, é afirmada a divindade de JESUS sob um duplo aspecto:
eternamente o VERBO “estava junto de (voltado para) DEUS” (com artigo), quer dizer: em
relação íntima com o PAI; além disso, Ele era DEUS (sem artigo), quer dizer: Seu ser é o ser
divino. Aqui já é enunciado substancialmente aquilo que mais tarde será precisado como distinção
das pessoas e identidade da natureza divina.
É apresentado também o ato da Encarnação: “O VERBO Se fez carne e veio a habitar entre nós”
(1,14). Também aqui é mister notar os dois aspectos do ato. O primeiro refere-se à natureza: tornar-se
carne, isto é, tornar-se homem com a fraqueza inerente à condição humana; o segundo aspecto refere-
se às relações estáveis com os homens, habitando entre eles.

20
“Lucas usou no evangelho o2 kuvrio, lá onde o acontecimento que relata tinha para ele valor de antecipação
ou de prefiguração dos tempos da ressurreição, da vida da Igreja ou da escatologia” (Ignace de la Potterie).
21
Cf. a este respeito Lc 17,21; a interpretação mais conforme ao contexto não é, porém, “está em vós”, mas sim:
“está entre vós”.
Cristologia 34

Enfim, toda a obra de JESUS é considerada do ponto de vista da PALAVRA feita carne: é uma
manifestação da glória que foi apresentada ao nosso olhar, e nos permitiu conhecer a DEUS, isto é,
ver o invisível (1,14-18).
A doutrina do prólogo a respeito da existência do VERBO “no princípio” não era fruto de uma
pura especulação intelectual, mas sim a expressão de uma fé viva que procura dirigir o olhar para a
origem primitiva de CRISTO.

b) Evangelho do FILHO
O evangelho de João, antes ainda de ser o evangelho do VERBO, é o evangelho do FILHO. Fala do
VERBO somente no prólogo; mas já aqui o VERBO aparece como FILHO Único do PAI (1,14-18). São
João considera a qualidade de FILHO de DEUS como objeto essencial da fé. Ele declara ter escrito seu
evangelho para suscitar esta fé: “a fim de que creiais que JESUS é o CRISTO, o FILHO de DEUS” (Jo
20,31); cf. 1 Jo 4,15: “Quem confessa que JESUS é o FILHO de DEUS, DEUS permanece nele e ele em
DEUS”.
Esta fórmula difere da outra: “JESUS é SENHOR” (Rm 10,9; 1 Cor 12,3). Mas o caráter primitivo
desta última fórmula é confirmado por São João quando relata, no fim do evangelho, a profissão de fé
de Tomé: “Meu SENHOR e meu DEUS” (20,28). Nesta profissão de fé encontram-se unidos os dois
nomes divinos dados a JESUS.
Há nisto um convite a adotar como fórmula da fé cristã: “JESUS é SENHOR”. Se João prefere a
fórmula “JESUS é o FILHO de DEUS”, é porque fixou sua atenção sobre a posição pessoal de JESUS na
divindade. “SENHOR” podia indicar uma atribuição de divindade em sentido genérico: isto colocava a
questão da relação com o DEUS Único professado no judaísmo.
Esta questão é esclarecida pelas palavras de JESUS, referidas por São João, sobre as relações
entre PAI e FILHO. O evangelista meditou nestas palavras para compreender a posição pessoal de
JESUS no mistério de DEUS. Ele nos referiu declarações que elucidam uma semelhança perfeita entre
a ação do PAI e aquela do FILHO ( 5,17.19.26), uma mútua e total pertença (17,10), uma
reciprocidade de conhecimento (10,15), de imanência (10,38) e de amor (5,20; 15,10), uma unidade
completa: “Eu e o PAI somos uma só coisa” (10,30; cf. 17,21).
São João entendeu bem que, para afirmar a divindade de JESUS, precisava especificar que é
FILHO de DEUS, segundo o testemunho que JESUS mesmo tinha dado a respeito da Sua própria
identidade, mediante as Suas relações com o PAI.
Para descrever o ato da Encarnação João não se limita a afirmar que o VERBO Se fez carne. Ele
descreve este ato como o envio do FILHO da parte do PAI, um ato no qual DEUS revela a Sua mais
profunda intimidade: “DEUS é amor. Nisto manifestou-se o amor de DEUS por nós: DEUS enviou Seu
FILHO Unigênito no mundo, para que nós tivéssemos a vida por Ele” (1 Jo 4,8s.; cf. 4,10.14; Jo 3,16).
A qualidade de FILHO contribui a indicar o valor da Encarnação e manifesta o amor do PAI que
inspirou o ato.

c) Evangelho da Encarnação
Notando a acentuação forte de uma Cristologia do alto no pensamento de São João, não devemos
perder de vista que no VERBO feito carne João não considera somente o VERBO, mas também a carne.
Ele indica a dimensão da Encarnação. Nos relatos da vida pública, João recorda, mais do que todos os
outros evangelistas, os aspectos profundamente humanos de JESUS. Descreve o cansaço de JESUS
(4,6), Sua sede (4,7; 19,28), Sua perturbação (12,27), Sua emoção diante da traição (13,21). De modo
particular ele faz notar os afetos de JESUS: fala-nos do “discípulo que JESUS amava” (20,2), diz-nos
que “JESUS amava Marta e sua irmã e Lázaro” (11,5), e nos relata a exclamação das testemunhas:
“Vede como Ele o amava” (11,36).
A última profissão de fé: “meu SENHOR e meu DEUS” nasce numa situação de relações pessoais
que fazem a Tomé dizer “meu”, e num contexto de atestação da verdade da carne de CRISTO
ressuscitado, portanto numa situação verdadeiramente encarnada.
A seu modo São João atesta que o divino e o humano não se opõem. Em Mc constata-se que o
humano não esconde a identidade superior de JESUS; manifesta o mistério. Em Jo, a apresentação
35 Cristologia

inicial do VERBO eterno, FILHO Único de DEUS, não impede, de modo algum, a descrição de uma vida
verdadeiramente humana. Encarnando-Se, o VERBO assume tudo aquilo que há na carne.

Conclusão

1. Unidade da Cristologia primitiva


A fé da comunidade cristã primitiva expressou-se de vários modos, e cada um dos autores do NT
tem o seu próprio ponto de vista na apresentação de JESUS. Mas esta diversidade não impede uma
unidade fundamental. As Cristologias primitivas são ramificações de uma mesma Cristologia
essencial. Elas têm como fundo comum a fé na divindade de JESUS. Nesta fé nota-se um
desenvolvimento, no sentido de que primeiro foi afirmada a divindade de CRISTO glorioso que efundia
o ESPÍRITO sobre Sua Igreja. Depois foi melhor reconhecida a preexistência desta divindade anterior à
vida humana de JESUS, e foi considerada atentamente a filiação divina que determinava a posição
pessoal de JESUS mediante a Sua relação com o PAI.
As orientações cristológicas dos evangelistas não se opõem uma à outra, mas se complementam
mutuamente. A divindade de JESUS tem sempre o aspecto de um mistério (= Mc). Ela revela-se na
ação exterior do Senhor do Reino de DEUS e na ação mais íntima do Senhor que age por meio do
ESPÍRITO (= Mt e Lc). Ela exprime-se através das propriedades essenciais de VERBO e de FILHO (= Jo).

2. O ponto de partida
Escolher como ponto de partida da Cristologia somente o fato de JESUS ser homem significaria
afastar-se do ponto de partida da fé dos primeiros cristãos. Nesta fé nunca houve um período de
adopcionismo, segundo o qual JESUS teria sido considerado como um simples homem que, então,
chegou à divinização. Desde o início, os cristãos acreditaram na divindade de JESUS. Eles
reconheceram o poder divino exercido por CRISTO glorioso quando, no Pentecostes, efundia o
ESPÍRITO SANTO, e atribuíram um caráter divino à Sua Pessoa, chamando-O de SENHOR.
Na base de toda Cristologia conforme à fé das origens, há a humanidade e a divindade de JESUS.
Elas estão unidas na Sua Pessoa, e não se pode cancelar uma em vantagem da outra. Uma Cristologia
não pode prescindir desta dualidade, embora reconheça que JESUS, homem e FILHO de DEUS, é
essencialmente um.

III. O TESTEMUNHO DE Jesus SOBRE SUA PRÓPRIA IDENTIDADE


As palavras e as ações de JESUS nós chegamos a conhecer através do testemunho dos evangelistas
(sobretudo). Ora, o que eles escreveram não são simples afirmações subjetivas de fé. Pois a fé que
suscitou a redação dos textos evangélicos quis fundar-se sobre a figura histórica de JESUS. Os
evangelistas afirmaram de referirem aquilo que, conhecido e ouvido por testemunhas, tinha realmente
sido durante Sua vida concreta. Ainda que eles deixem inevitavelmente o seu cunho pessoal nos
relatos, transmitem-nos, ao menos substancialmente, os ensinamentos e as ações de JESUS.
Se especificamos em cima como o mistério de CRISTO foi compreendido e expresso pelos autores
do NT, foi sobretudo para entrar na perspectiva da fé primitiva, mas também para melhor determinar,
pelo contraste, em que consistia a originalidade das palavras de JESUS.
Partindo de pesquisas exegéticas sérias, é possível estabelecer com maior precisão em que
consistia o testemunho de JESUS sobre Sua própria identidade. Descobre-se que JESUS Se expressou
de modo diverso daquele que prevaleceu, em seguida, na comunidade cristã e que a linguagem dos
evangelhos reflete.
Uma vez que o nosso ponto de vista é aquele da encarnação, vamos considerar especialmente este
testemunho de JESUS segundo o cumprimento que traz à estrutura de encarnação já presente na
religião judaica. O cumprimento ultrapassa notavelmente o anúncio ou figura, mas verifica as
orientações que se manifestaram na revelação anterior. Por isso não seguiremos a ordem, bastante
cômoda, mas também superficial, dos títulos atribuídos a JESUS. Aquilo que nos interessa, é o modo
como JESUS Se apresenta no quadro da ação divina anterior, para cumprir, de modo transcendente,
Cristologia 36

as suas promessas. Em outras palavras: queremos determinar como n’Ele se expressou o primeiro
dinamismo de encarnação, realizado na antiga aliança.

A) Encarnação na aliança

1. A aliança
A estrutura fundamental da aliança que caracterizava as relações entre DEUS e Seu povo, assume
um novo significado: a única vez que JESUS fala, nos textos evangélicos, de aliança, é para identificar-
Se com a aliança. A identidade é afirmada na fórmula de consagração do vinho referida por Mc
(14,24) e por Mt (26,28): “Isto é o Meu sangue, o sangue da aliança”. Literalmente se deveria traduzir
assim: “Isto é o sangue de Mim (mou, da aliança”. A insólita construção gramatical torna mais
manifesta a intenção de sublinhar a identidade. O “Mim” de JESUS é inserido na fórmula empregada
por Moisés no momento da conclusão da aliança do Sinai: “Isto é o sangue da aliança ...” (Ex 24,8).
Esta inserção, feita em contraste com todo uso linguístico, é fundamental. A aliança não é mais uma
simples relação estabelecida entre DEUS e os homens: é uma pessoa.
Na versão de Paulo (1 Cor 11,25) e de Lc (22,20), a formulação é diferente, mas comporta
igualmente uma nota de estranheza: “Este cálice é a nova aliança no Meu sangue”. Uma afirmação de
identidade entre um cálice e uma aliança é algo totalmente excepcional; ela confirma que em JESUS
deve ter havido a vontade de identificar-Se pessoalmente com a aliança.
Esta versão de Paulo e Lucas traz a expressão “nova aliança”. Pode-se pensar, com razão, que
esta explicitação (“nova”) não seja do próprio Senhor. Da parte dos cristãos havia a preocupação de
manifestar a distinção entre a aliança instituída por CRISTO e aquela que tinha caracterizado o destino
do povo judeu. O oráculo de Jeremias (31,31) fornecia a expressão “nova aliança” (esta expressão
está presente também na terminologia dos essênios de Qumran).
O termo mais simples “a aliança” é mais provavelmente aquele que JESUS mesmo usou. Apesar
do seu aparente caráter de indeterminação, este termo exprime mais adequadamente o valor da aliança
personificada por CRISTO. É a única aliança real. As alianças da antiga economia não foram senão
figuras; tinham valor somente em virtude do que se instaura agora.
Esta maneira de exprimir-Se sobre o alcance da Sua missão mostra, em JESUS, a consciência de
realizar aquilo que, no AT, tinha sido ou descrito como fato, ou anunciado como evento futuro. JESUS
tem um modo totalmente próprio de compreender e interpretar a história do povo judeu: Ele sabe que
esta história encontra n’Ele seu significado e seu cumprimento. Atrás das aparências desta história, ele
indica a realidade que se cumpre n’Ele. Tudo o que até então tinha sido dito da aliança está presente
n’Ele. Falar da antiga e nova aliança definitiva, significa colocar-se do ponto de vista da sucessão
cronológica dos acontecimentos; falar de uma aliança única, de “a aliança”, quer dizer colocar-se no
nível ontológico, aquele do desígnio divino de salvação. JESUS não olha o “fora”, o exterior, mas o
“dentro”, a realidade interior da história.22
A profundidade do pensamento de JESUS aparece com clareza ainda maior quando se confronta
Seu pensamento com a doutrina da carta aos Hebreus. Nesta carta, CRISTO é chamado de “mediador
de uma nova aliança” (9,15; cf. 8,6). Esta definição mantém-se dentro dos quadros mais habituais
para o pensamento judaico: aliança nova (“melhor”) que sucede aquela antiga, e qualidade de
mediador que a tradição judaica reconhecia a Moisés (cf. Gl 3,19 “in manu mediatoris”).
Com a designação mais simples “a aliança”, JESUS sugere um papel mais amplo: Ele é mais do
que um mediador, porque n’Ele está presente a realidade mesma da aliança, e esta aliança não é
somente uma aliança que vem depois de outra, mas a única autêntica.
A identificação de uma pessoa com a aliança não é, contudo, uma novidade: encontra-se nos
cânticos do servo de JHWH. Ela é apresentada como o resultado de uma nova criação operada por
DEUS: “Eu te formei e te constituí como aliança do povo” (Is 42,6; 49,8).
JESUS não diz exatamente a mesma coisa. Não diz ter sido formado e constituído como aliança:
indica mais simplesmente que Ele é a aliança. Mais discreta, a Sua afirmação é também mais forte.

22
Cf. a esse respeito Ef 1,10: a “plenitude dos tempos” por JESUS CRISTO: todos os tempos são “enchidos”
somente pela realização do mistério de CRISTO.
37 Cristologia

Igualmente, JESUS não Se define aliança “do povo”. Ele Se limita a dizer “a aliança”. A diferença
pode parecer irrelevante, mas tem importância. A expressão “aliança do povo” significa que o servo
personifica o povo na aliança concluída com JHWH. JESUS é “a aliança”, quer dizer: ele é, em Pessoa,
a união dos dois contraentes, DEUS e o povo. Enquanto o servo se encontrava da parte do povo, JESUS
é, ao mesmo tempo, de ambos os lados. Personificar a aliança significa, no sentido pleno da
expressão, unir em Si DEUS e o homem.
Descobrimos assim, na palavra de JESUS, uma dupla ampliação de sentido do oráculo sobre o
servo. Há uma ampliação vertical: sendo a aliança, JESUS é antes de tudo aliança de DEUS. A aliança
era em primeiro lugar obra e dom de DEUS; era chamada por DEUS “a Minha aliança” (Gn 6,18 etc.).
Por outro lado há também uma ampliação horizontal: a aliança não se limita mais ao “povo”, mas se
estende à humanidade inteira, como indica expressamente a efusão do sangue “por muitos”, quer
dizer: pelo conjunto dos homens.23
A dupla ampliação manifesta a plenitude da Encarnação. Até chegar JESUS, tinha havido homens
que representavam a aliança do povo com DEUS; o ápice desta função de representação tinha sido
descrito na figura do servo. Com JESUS, é toda a aliança que se realiza: aquela de DEUS com a
humanidade e aquela da humanidade com DEUS. Ao designar-Se “a aliança”, JESUS insinua o fato que
Ele reúne em Si DEUS e a humanidade. Esta insinuação é logicamente implicada no termo “a aliança”,
quando se o compreende no seu significado mais completo. Se se considera a conexão desta
afirmação de JESUS com outras declarações Suas, nas quais se percebe uma insinuação semelhante da
divindade, tem-se a confirmação desse significado completo de “a aliança”.

2. O Esposo
Várias vezes, JESUS faz entender ser Ele o esposo, isto é, Aquele que realiza a aliança
matrimonial, anunciada no AT, entre JHWH e Seu povo.
A reivindicação mais explícita está contida na resposta aos discípulos de João Batista (Mt 9,14s).
Lembremo-nos de que João Batista tinha se designado a si mesmo “amigo do esposo”, que “sente a
mais viva alegria com a voz do esposo” (Jo 3,29). Aos discípulos do precursor JESUS lembra,
portanto, aquilo que o seu próprio mestre lhes tinha dito: “Porventura, podem os convidados das
bodas jejuar enquanto está com eles o esposo? Enquanto têm consigo o esposo, não podem fazê-lo.
Tempo virá em que o esposo lhes será tirado, e então jejuarão nesse tempo” (Mc 2,19s). Toda a
argumentação referente ao comportamento dos discípulos funda-se, portanto, sobre o princípio de que
JESUS é “o esposo”.
A reivindicação desta prerrogativa não se limita só a esta circunstância. JESUS compara o Reino
dos Céus a um banquete organizado por um rei para as núpcias do filho (Mt 22,2), a virgens que vão
ao encontro do esposo (Mt 25,1-13), a servos que esperam o patrão voltando das núpcias (Lc 12,36).
É como esposo que Ele deve ser festejado e acolhido.
Quando se lê esses textos, fica-se maravilhado pelo fato de JESUS falar do esposo de uma maneira
absoluta, sem mencionar a presença da esposa. Tal maneira de falar é tanto mais surpreendente
quanto no AT a imagem da união matrimonial de JHWH com Israel chamava a atenção sobre o
comportamento da esposa: no passado a esposa tinha sido adúltera, mas havia de chegar um futuro
ideal no qual ela se haveria de unir a DEUS na fidelidade (Os 2,21s). São Paulo aplicará este oráculo
profético a CRISTO e à Igreja (cf. Ef 5,24-32; 2 Cor 11,2). Supõe-se que, se o Apóstolo se serve desta
imagem, o faça inspirando-se ao uso desta imagem por JESUS. JESUS, no entanto, não apresenta uma
esposa: a Sua maneira de atribuir-Se a qualidade de esposo permanece excepcional, e não segue a via
normal aberta pelos oráculos proféticos.
O título de esposo sem menção da esposa adquire um significado mais total. Sugere o fato que
toda a união matrimonial se efetua na Pessoa de JESUS. Encontramos, portanto, aqui o equivalente da
identificação com a aliança. JESUS não é somente uma das duas partes que contraem a aliança;
igualmente, Ele não é somente um esposo em presença de uma esposa. Para dizê-lo segundo a
perspectiva do AT: JESUS une em Si JHWH e o povo.

23
Quanto ao universalismo já indicado, referindo-se ao servo, veja Is 42,6: “aliança do povo e luz das nações”;
mas JESUS não fala mais do povo e, sim, refere-Se diretamente à “multidão”.
Cristologia 38

Encontram-se aqui os traços característicos da personificação da aliança: indicação vertical,


extensão horizontal, valor do sacrifício.
A característica de esposo evidencia o fato que JESUS exerce mais precisamente o papel
reservado a DEUS na união matrimonial. Nos oráculos proféticos, o nome de esposo tinha sido dado
àquele que iria restaurar Israel; por conseguinte: JESUS, atribuindo-Se este título, deixa entender que
Ele realiza aquilo que tinha sido dito da ação divina. No AT é sempre DEUS o esposo. JESUS
certamente referiu-Se a este simbolismo e atribui, assim, a Si mesmo o papel de DEUS.
A parábola do banquete das núpcias tem como objetivo essencial: fazer descobrir a extensão
universal da união. Ao banquete são primeiro convidados os “eleitos”, os membros do povo judeu,
mas depois, todos os homens, sejam quais forem (Mt 22,9). Estes “chamados” são, em contraposição
aos “eleitos”, bastante numerosos: “muitos” (Mt 22,14). Não se trata, portanto, das núpcias entre
JHWH e o povo, mas entre DEUS e toda a humanidade.
O papel do sacrifício manifesta-se na evocação dos dias nos quais o esposo será tirado aos seus
amigos (cf. como possível base veterotestamentária, ver Is 53,8). Aqueles dias serão dias de jejum,
quer dizer: dias de dor e de privação. A resposta completa à pergunta relativa ao jejum é dada no
anúncio do desaparecimento do esposo. Da noção de um jejum material JESUS passa àquela de um
jejum muito mais profundo que consistirá na participação dos discípulos na Sua paixão (cf. a versão
de Mt 9,15: “podem os convivas das núpcias estar em luto ...”).
Com Sua resposta, JESUS faz entender que a vinda do Esposo transformou completamente as
relações dos homens com DEUS. Estas relações estão agora dominadas pela presença e pelo sacrifício
do Esposo.
Mas como relacionar o rapto do esposo com a união matrimonial? Falando de Si mesmo como
aliança, JESUS mencionava o sangue derramado pela multidão: o sacrifício destinava-se a consumar a
aliança. Aqui, no entanto, parecem estar opostos entre si as núpcias e o luto (ausência do esposo
depois da sua presença). Mas no pensamento de JESUS o afastamento do esposo pertence ainda ao
evento das núpcias. No costume judaico das núpcias, os amigos do esposo se retiravam, deixando o
esposo com a esposa. Aqui o esposo é tirado, mas a violência que lhe é imposta não enfraquece a
intenção de consumar as núpcias. No caso de JESUS, as núpcias se consumam não na separação
voluntária, mas através de um sacrifício.
Notamos: este afastamento está em contraste não somente com o costume judaico, mas mais
ainda com o comportamento do Esposo no AT. DEUS tinha abandonado Sua esposa: “Por um breve
instante Eu te abandonei, e com grande afeto, voltarei a acolher-te. Num rapto de ira, ocultei-te o Meu
rosto por um momento; mas com perene clemência compadeci-Me de ti, diz o teu Redentor, o
SENHOR” (Is 54,7s). O sofrimento do povo originava-se deste afastamento voluntário do Esposo; a
dor dos discípulos, pelo contrário, derivará do rapto do Esposo e terá um significado bem diverso,
pois esse rapto não constitui um adiamento das núpcias, mas sua consumação.
Quando se reflete sobre a apresentação que JESUS faz de Si mesmo como Esposo, precisa,
portanto, reconhecer que Ele aparece como esposo de uma maneira mais profunda do que o DEUS do
AT. O cumprimento é superior à imagem. Na antiga aliança, a ausência do Esposo era sinal da cólera
divina; ora, esta ausência será o sinal de um amor mais pleno, que toma a via do sacrifício. Deste
ponto de vista, JESUS completa a revelação de DEUS: JESUS mostra um novo rosto do Esposo divino.
Ele pode fazê-lo graças à intervenção divina numa vida humana que O leva ao dom de Si mesmo no
sofrimento e na morte.

B) Encarnação da filiação divina

As relações de paternidade e de filiação que tinham caracterizado a aliança de JHWH com Seu
povo, assumem em JESUS uma nova forma.

1. A invocação “ABBA”
O termo aramaico ABBA é citado uma só vez nos evangelhos: na oração de JESUS no Getsêmani
referida por São Marcos (14,36): “ABBA, PAI! Tudo Te é possível, afasta de Mim este cálice! Porém,
não o que Eu quero, mas o que Tu queres.” Contudo, podia-se demonstrar que em todas as Suas
39 Cristologia

orações JESUS invocou o PAI com o nome de ABBA, com exceção somente do grito: “Meu DEUS, Meu
DEUS, por que Me abandonaste?” (Mc 15,34; Mt 27,46). A exceção, porém, é somente aparente,
porque se trata de uma citação do Sl 22,2.
O termo ABBA jamais tinha entrado na linguagem religiosa judaica. Já a invocação de DEUS
como PAI era um fato não comum, mas raro, uma vez que a esse respeito não possuímos algum
testemunho anterior no judaísmo palestinense, enquanto se podem encontrar só dois exemplos no
judaísmo da diáspora (Sb 14,3; Sr 23,1-4). Invocar DEUS chamando-O de ABBA era uma novidade
absoluta. Este termo era usado pelos judeus – crianças e adultos – nas suas relações com o próprio
pai, termo familiar que era o equivalente de “papai”. Nunca eles teriam usado este termo na
linguagem da oração, e isto por respeito da transcendência divina. Os discípulos provavelmente
ficaram chocados quando ouviram esta palavra pronunciada por JESUS. Se Mc refere esta palavra,
certamente ela foi usada por JESUS, pois nenhum outro teria tido uma audácia tal.
Além disso supõe-se que esta palavra foi conservada pelo evangelista porque ela tinha tido na
boca de JESUS um acento inesquecível, com uma nuança que o termo grego (  não podia
reproduzir. Era uma expressão totalmente espontânea da consciência íntima de JESUS. Esta
expressão trazia em si uma revelação aos discípulos, sem fazer parte de algum discurso de revelação.
Na oração, JESUS podia mesmo exprimir-Se com maior liberdade, nos Seus estados de alma mais
profundos.
O que implica a palavra ABBA? Significa que JESUS tem com DEUS PAI relações análogas
àquelas que um filho tem com seu próprio pai. Se, por conseguinte, o DEUS ao qual Ele Se dirige, é
para Ele um Pai no verdadeiro sentido da palavra e com toda a familiaridade que ela encerra, então
Ele é, em relação a DEUS, um FILHO, com a mesma plenitude de significado. Ele está diante de DEUS
PAI na qualidade de DEUS FILHO. A paternidade implica uma relação de geração e uma semelhança de
natureza. É verdade que JESUS nunca deu uma explicação formal da palavra ABBA, mas se não tivesse
havido no PAI a paternidade mais real e mais completa, a invocação não teria sido verídica.
O termo ABBA realmente contém toda uma teologia, aquela que mais tarde fará dizer o Concílio
de Nicéia que o FILHO é consubstancial ao PAI. Notemos, porém, que este termo ABBA não exprime
a paternidade divina independentemente da Encarnação. É como homem e com uma consciência
humana que JESUS pronuncia a palavra ABBA. Ele vive, dentro de uma experiência humana, a Sua
filiação divina para com o PAI. Essa palavra exprime uma paternidade divina para com o FILHO feito
homem: paternidade divina que, neste sentido, deve dizer-se encarnada.
Deve-se hesitar a tirar conclusões teológicas desta única palavra? Facilmente se pode ter a
consciência de uma desproporção entre uma palavra tão simples e a importância de uma conclusão
como a afirmação da filiação divina de JESUS. J. Jeremias adverte contra uma interpretação exagerada
dessa invocação: atribuir a ela a idéia da preexistência, a Cristologia do FILHO de DEUS que se formou
muito cedo na Igreja; uma tal interpretação seria em contraste com o tom cotidiano e familiar da
palavra ABBA.
Contudo, por que dever-se-ia exigir, na linguagem de JESUS, afirmações solenes de Cristologia?
O tom cotidiano e familiar tem a vantagem de introduzir-nos no pensamento ordinário de JESUS e não
impede, de modo algum, uma reflexão sobre tudo aquilo que está incluído neste pensamento. A
espontaneidade do termo ABBA é uma garantia e não uma contra-indicação de um fundamento válido
para a elaboração cristológica.
Uma interpretação excessiva consistiria p. ex. em pretender que JESUS manifestasse com esta
palavra a consciência ou a lembrança de uma preexistência divina. “ABBA” é uma expressão de
consciência humana, não a manifestação direta de uma consciência divina. Objetivamente, porém, as
implicações deste termo são inegáveis. JESUS comportou-Se como FILHO, e a filiação divina que se
exprimia deste modo, obriga a atribuir-Lhe todos os traços característicos de uma personalidade
divina do FILHO.
Encontramos de novo no uso do termo ABBA as características que reconhecemos no uso dos
termos de aliança e Esposo. Mas aqui não se trata mais do uso de um termo do AT, com um alcance
novo, mas da introdução de um termo profano na linguagem religiosa, com um significado novo.
Podemos distinguir uma relação vertical, uma extensão horizontal universal, uma íntima conexão
com o sacrifício.
Cristologia 40

A relação vertical: ela deriva da atribuição do nome “Papai” a DEUS. Este fato faz com que
aquele que pronuncia este nome se situe no nível divino de FILHO. Como na identificação com a
aliança e na atribuição da qualidade de Esposo, há em “ABBA” uma afirmação implícita de identidade
divina. Esta identidade divina não está destacada da realidade humana; é perfeitamente encarnada.
“ABBA” é a expressão de uma experiência humana de filiação divina. Não há palavra mais humana
do que “papai”; ora, aqui esta palavra torna-se designação divina. É talvez a expressão mais notável
da Encarnação.
Uma extensão horizontal aparece no uso da palavra ABBA da parte das comunidades cristãs
primitivas: cf. Gl 4,6; Rm 8,15. Este uso não coloca os cristãos numa condição igual à de CRISTO, pois
é no nome de CRISTO e não no próprio nome que eles dizem ABBA. “Porque vós sois filhos, DEUS
enviou aos vossos corações o ESPÍRITO de Seu FILHO, que clama: ABBA, PAI!” (Gl 4,6). Segundo Rm
8,15-17 é um Espírito de filiação adotiva que atesta que nós somos filhos de DEUS e co-herdeiros de
CRISTO.
Tal uso manifesta uma audácia que lembra aquela de JESUS mesmo nas Suas relações com o PAI.
JESUS tinha querido esta ousadia quando tinha recomendado uma oração que, segundo Lc 11,2,
começava com a palavra ABBA (em grego: ). De uma maneira mais geral ainda Ele apresentou
Seu PAI como o PAI dos Seus discípulos. Ele faz uma distinção de paternidade, embora fale do mesmo
PAI: Ele diz ou “Meu PAI”, ou “vosso PAI”, “vosso PAI celeste”, “teu PAI”, “o PAI deles” (Mt 6,8.15;
10,20.29; 23,9; Lc 6,36; 12,32; Jo 8,42; 10,17; Mt 5,16.45.48; 6,14.26.32; 7,11; Mt 6,4.6.18; 13,43).
Uma tal constância de uso, presente nos evangelhos, deve corresponder a um uso muito nítido da
parte de JESUS. A expressão mais significativa está contida na mensagem de JESUS ressuscitado, no
Seu encontro com Maria Madalena: “Eu subo ao Meu PAI e vosso PAI” (Jo 20,17). Esta mensagem
testemunha a participação dos discípulos na Sua própria filiação divina, conservando, no entanto, a
distinção. A filiação de JESUS permanece única, embora assuma uma extensão universal.
É importante: a afirmação da consciência filial não se origina em JESUS da consciência do povo
judeu de ter DEUS por Pai. O caminho inverso é a verdade: JESUS tem consciência de uma relação
filial única com o PAI, e tende a fazer todos os homens participar da Sua filiação.
A íntima conexão com o sacrifício é sugerida pelo fato que o nome ABBA nos é referido pelos
evangelhos somente no relato sobre a agonia de JESUS no Getsêmani. É como se aquela hora
dramática fizesse com que JESUS pronunciasse esta palavra de um modo mais impressionante, porque
toda a consciência de Sua filiação sentia-se empenhada no drama.
A relação entre consciência de filiação e missão sacrifical manifesta-se numa outra palavra de
JESUS: “Não sabíeis que devo estar na casa de Meu PAI?” (Lc 2,49). É bastante provável que Maria
tenha dito: “Teu Abba e eu andávamos angustiados à Tua procura”, e que JESUS tenha respondido “...
na casa de Meu ABBA”. Assim se explica ainda mais porque Maria não tenha entendido a resposta.
Ora, este episódio prefigura o mistério pascal. “Estar na casa de Meu PAI” anuncia o drama da
Paixão, na qual JESUS será tirado de Sua mãe para estar três dias na casa paterna. A consciência de ser
FILHO comporta a consciência de pertencer ao PAI, até ao ponto de ser empenhado na via de um
sacrifício onde esta pertença se verificará de modo mais radical.
A conexão entre a consciência de identidade filial e a consciência da missão redentora é muito
estreita: o sacrifício será o ato filial por excelência, aquele em que “ABBA” assume a sua plenitude de
significado para a existência humana de JESUS.

2. A expressão “FILHO do homem”

a) O uso da expressão por parte de JESUS


A expressão “FILHO do homem” tem como característica o fato de ser sempre pronunciada por
JESUS. Embora esta expressão se encontre freqüentemente nos evangelhos (Mt: 30 vezes; Mc: 14; Lc:
25; Jo: 13), não se encontra nunca nos lábios dos interlocutores de JESUS, nem no que dizem os
evangelistas. As exceções são somente aparentes: a multidão repete a expressão pouco antes usada
por JESUS, pedindo-Lhe seu significado (Jo 12,34); o Anjo lembra às mulheres, depois da
ressurreição, uma predição feita por JESUS (Lc 24,6s); Estêvão retoma o anúncio feito por JESUS ao
Sinédrio, para testemunhar a realização dele (At 7,56; cf. Mc 14,62; Lc 22,69). A tradição posterior
não se servia desta expressão para designar JESUS. Conclusão: a expressão provém da linguagem de
41 Cristologia

JESUS mesmo. Só se se trata de uma palavra autenticamente pronunciada por JESUS, de um modo que
Lhe é pessoal, pode-se explicar o fato que Ele seja o único a usá-la.
A expressão é exclusivamente própria de JESUS e ficou enigmática para os Seus
contemporâneos.
Por outro lado, como para o nome ABBA, deve-se perguntar se o uso da expressão “FILHO do
homem” não tenha sido mais largo do que aquele que referem os evangelhos. Os que transmitiram as
palavras de JESUS tinham provavelmente a tendência de substituir essa expressão por um termo menos
enigmático.
Num certo número de casos eles substituíram “o FILHO do homem” simplesmente com “mim” ou
“me”. De fato, com “FILHO do homem” JESUS indicava a Si mesmo, pelo que um “Eu” ou um “me”
(“mim”) ou um “Ele” podia parecer um bom eqüivalente, mais compreensível. Os evangelhos
sinóticos apresentam diversos textos paralelos nos quais se nota a substituição: Lc 6,22: os
perseguidos “por causa do FILHO do homem”; Mt 5,11: os perseguidos “por Minha causa” (outros
exemplos: Mt 16,13; com Mc 8,27 e Lc 9,18; Mc 8,31 e Lc 9,22 com Mt 16,21; Lc 12,8 com Mt
10,32). É notável ainda a transformação de “o FILHO do homem veio” em “Eu vim”. “O FILHO do
homem veio para procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10) e “Eu vim para chamar não os
justos, mas os pecadores” (Mt 9,13; Mc 2,17; Lc 5,32). A facilidade da substituição faz suspeitar que
em alguns textos nos quais se lê: “Eu vim ...” a frase realmente pronunciada por JESUS tenha sido
mais provavelmente: “O FILHO do homem veio” (Mt 5,17; 10,34; Lc 12,49.51; Jo 10,10).
No evangelho de São João, JESUS atribui-Se às vezes o título de “FILHO de DEUS”. Mas há razão
para se duvidar de que seja um título nos lábios de JESUS. Nos evangelhos sinóticos JESUS nunca usa
este título para exprimir Sua identidade; também quando responde à pergunta de Caifás, o qual Lhe
pergunta se Ele é o FILHO de DEUS, JESUS evita expressamente este título e Se designa como o FILHO
do homem. Nos poucos textos joaninos nos quais o termo “FILHO de DEUS” aparece como
autodesignação de JESUS, descobrem-se indícios segundo os quais a expressão primitiva devia ser
“FILHO do homem”: o contexto e algumas passagens semelhantes podem ser aduzidas para sustentar
esta hipótese (confronte 3,18 com 3,14; 5,25 com 5,27; 11,4 com 12,23 e 13,31). Uma vez que São
João escreveu a fim de que seus leitores cressem “que JESUS é o CRISTO, o FILHO de DEUS” (20,31),
ele devia estar propenso a substituir a expressão “FILHO do homem” com aquela de “FILHO de DEUS”,
sendo esta última mais clara e mais conforme à linguagem da fé.
Se JESUS escolheu deliberadamente um nome misterioso para designar a Si mesmo, e se é
verdade que também na profissão solene da Sua identidade Ele usa ainda este nome, é pouco
provável que em outras circunstâncias Se tenha denominado “FILHO de DEUS”. Provavelmente serviu-
Se de uma única autodesignação para falar de Si mesmo na terceira pessoa.
Uma questão análoga coloca-se referente ao título “FILHO”, usado duas vezes por JESUS nos
evangelhos sinóticos e mais vezes no evangelho de São João (sinóticos: Lc 10,22 e par; Mc 13,32).
Nos sinóticos, as duas passagens indicam como expressão mais provável “o FILHO do homem”.
JESUS, portanto, pode muito bem ter dito: “Ninguém sabe quem é o PAI senão o FILHO do homem e
aquele a quem o FILHO do homem o quiser revelar” (Lc 10,22; cf. Mt 11,27). De fato, como se pode
notar pela pergunta feita por JESUS mesmo (Mt 16,13), trata-se de saber “quem é o FILHO do homem”
(ibidem). E a missão de revelar é própria do “FILHO do homem”; é Ele que “conhece” o PAI e O faz
“conhecer”. Não se trata diretamente de um conhecimento eterno, mas de um “conhecimento” que se
efetua no contexto da vida terrena, e que se transmite humanamente: tudo isto convém ao “FILHO do
homem”. Além disso se pode perguntar se aquilo que precede essa frase, originalmente não tenha sido
expresso assim: “Tudo foi entregue pelo PAI ao FILHO do homem” (em vez de: “a Mim”), na linha do
oráculo de Daniel (7,14).
A ignorância da data do fim do mundo seria, igualmente, atribuível ao FILHO do homem:
“Quanto àquele dia e àquela hora, ninguém sabe, nem os Anjos do Céu, nem o FILHO (do homem),
mas só o PAI” (Mc 13,32; cf. Mt 24,36). Trata-se de uma ignorância humana; não tendo a tarefa de
revelar esta data, o FILHO do homem não a conhece.
Os textos do evangelho de São João deixam também entrever uma transformação de “FILHO do
homem” em “FILHO”: para cada caso em que é usado o título “FILHO”, podem-se encontrar outros
textos, seja no evangelho de São João, seja nos evangelhos sinóticos, nos quais uma afirmação
análoga é feita do “FILHO do homem”. Assim a expressão “crer no FILHO” (Jo 6,40) assume uma
Cristologia 42

forma mais primitiva na pergunta dirigida ao cego curado: “tu crês no FILHO do homem?” (Jo 9,35)
(confronte ainda Jo 5,19 com Mt 12,8; Mc 2,27; Lc 6,5; Jo 5,21.26 com Jo 6,27.53; Jo 5,22 com 5,27;
Jo 8,34/36 com Mc 2,10; Mt 9,6; Lc 5,24). Os acenos à glorificação do FILHO (14,13; 17,1) estão
ligados ao tema da exaltação gloriosa do FILHO do homem (6,62; 8,28; 11,4; 12,23s, etc.).
Conclusão: JESUS serviu-Se do termo “FILHO do homem” para designar a Si mesmo, mais vezes
do que indicam os textos dos evangelhos. Estes substituíram esta expressão, seja com um “Me”
(“Mim”), seja com um titulo mais explícito de filiação divina, “o FILHO de DEUS” ou “o FILHO”. As
duas substituições informam-nos sobre aquilo que os contemporâneos colheram neste vocábulo
misterioso: uma designação da identidade de JESUS e uma indicação de filiação divina.

b) O FILHO do homem na Sua vida terrena

1) Vinda e preexistência
A afirmação “FILHO do homem veio” encontra-se um bom número de vezes nos evangelhos. Este
fato atesta a consciência (de JESUS) de uma certa preexistência. Que tipo de preexistência?
Em primeiro lugar pensa-se numa preexistência “profética”: JESUS é a personagem que tinha sido
anunciado pela profecia como FILHO do homem. Deste ponto de vista Ele é comparável a João Batista
que realiza uma outra figura profética: “Elias já veio” (Mt 17,12; cf. Mc 9,13).
Mas na vinda do FILHO do homem há mais do que uma indicação de preexistência profética.
Também João Batista reconhece em JESUS uma vinda de um gênero único: “És Tu aquele que vem?”,
ele faz os seus discípulos perguntar a JESUS (Mt 11,3; Lc 7,19). “Aquele que vem” é aquele cuja vinda
tem um caráter absoluto, porque manifesta a vinda de DEUS mesmo para o juízo definitivo. João tinha
anunciado: “Depois de mim vem alguém que é mais forte do que eu ...” (Mc 1,7; Mt 3,11; Lc 3,16).
Ele indicava com isso aquele que viria para instituir o juízo divino, do qual ele proclamava a
iminência. Deste modo, “vir” já não significa somente a realização de uma figura profética, mas sim
realizar uma vinda efetiva de DEUS através de uma mediação humana.
Nas palavras de JESUS encontramos indícios que aludem a uma preexistência real. A vinda do
FILHO do homem é descrita como um deslocar-se: vir para procurar e salvar o que estava perdido (Lc
19,10) ou vir para servir e dar a própria vida em resgate (Mc 10,45; Mt 20,28); isto supõe um
movimentar-se, abandonar a própria posição para tornar-se disponível para a humanidade e trazer-lhe
socorro. A presença do FILHO do homem é o efeito de um passo generoso que encontra sua origem
anteriormente a esta vida. A frase enigmática de Mc 1,38: “Para isso saí” contém a mesma insinuação.
Aquilo que é simplesmente sugerido pelos evangelhos sinóticos, é explicitado nas afirmações que
encontramos em Jo: o FILHO do homem é Aquele “que desceu do Céu” (3,13; cf. 8,14; 16,28), e Sua
exaltação consiste em subir para “onde estava antes” (6,62). Vir é vir no mundo: “Eu vim como luz
ao mundo” (12,46; cf. 18,37).
A afirmação da preexistência não se exprime através de um olhar para o passado, mas através da
consideração da condição presente (“preexistência atual”): para o FILHO do homem, viver a vida
humana é ter vindo. Isto significa que a preexistência é atualmente operante, que é experimentada
como dinâmica.
Merece atenção particular a citação da vinda do FILHO do homem a propósito das ações as mais
banais da vida humana: “Veio o FILHO do homem, que come e bebe” (Lc 7,34; Mt 11,19). A
insistência sobre a vinda tende a ligar o fato de comer e beber a uma origem misteriosa: esta origem é
inseparável de todos os aspectos da existência. Que um homem coma e beba é natural, e o
comportamento d’Aquele que Se diz FILHO do homem não deveria maravilhar: mas, uma vez que ele
é alguém que veio, estas ações banais assumem um novo significado; elas fazem parte de uma
revelação.
O contexto contém indicações que contribuem a fazer descobrir a identidade do FILHO do
homem. Eis o contexto: “Veio João que não come e não bebe, e dizem: É um endemoninhado. Veio o
FILHO do homem que come e bebe, e dizem: Eis aí um glutão e bebedor, amigo dos publicanos e dos
pecadores. Mas a sabedoria é justificada pelas Suas obras” (Mt 11,18s; cf. Lc 7,33-35).
O indício mais manifesto é dado pela referência à Sabedoria: diante das acusações de que o
FILHO do homem é alvo, a Sabedoria é justificada por Suas obras (ou “por todos os Seus filhos”,
segundo o texto de Lc). A equivalência entre acolhida do FILHO do homem e justificação da
43 Cristologia

Sabedoria sugere o fato que no FILHO do homem realiza-se a manifestação suprema da Sabedoria
divina. As obras realizadas por JESUS dão testemunho a esta Sabedoria, de modo que ela se
personifica, de algum modo, no FILHO do homem.
Há, portanto, uma maneira de comer e de beber que é característica da vinda do FILHO do
homem: esta vinda é caracterizada por uma total imersão na vida humana. O dinamismo da
Encarnação vai até ao fundo. O FILHO do homem é mais humano do que João Batista. Aqueles que
tinham sido desencorajados pela austeridade de João Batista, deveriam ter aceitado o FILHO do
homem no Seu aproximar-Se mais humano: aqueles que não tinham podido ser satisfeito de uma
encarnação ainda muito incompleta no AT, deveriam ter acolhido a perfeita Encarnação realizada no
FILHO do homem.

2) Poder divino
O poder escatológico de juízo (cf. Dn 7) exprime-se na vida terrena do FILHO do homem
mediante o poder de perdoar os pecados. Quando JESUS diz à pecadora arrependida: “Teus pecados te
são perdoados”, suscita na mente dos que estão presentes a pergunta: “Quem é este homem que
perdoa também os pecados?” (Lc 7,48s). No caso do paralítico, a questão é posta de maneira mais
explícita e recebe uma resposta completa da parte de JESUS. Não se trata mais somente de uma
pergunta, mas de uma acusação: “Ora, estavam ali sentados alguns escribas e diziam no seu coração:
‘Como é que este fala deste modo? Ele blasfema! Quem pode perdoar pecados a não ser somente
DEUS?” (Mc 2,6s).
Na Sua resposta, JESUS Se apresenta como FILHO do homem, para sublinhar que, embora sendo
verdadeiramente homem, Ele possui este poder: DEUS perdoa os pecados no Céu, mas sobre a terra é
o FILHO do homem que os perdoa. JESUS o demonstra com o milagre da cura: “Para que saibais que o
FILHO do homem tem o poder de perdoar os pecados sobre a terra, – Eu te ordeno – disse ao paralítico
– levanta-te, toma a tua enxerga e vai para tua casa” (Mc 2,10s; Mt 9,6; Lc 5,24).
Ao poder de julgar é associado o poder de dar a vida: e assim o PAI concedeu ao FILHO de ter a
vida em Si mesmo, como também o poder de julgar, “porque é FILHO do homem” (Jo 5,26s). A
exaltação gloriosa do FILHO do homem terá como objetivo a comunicação da vida eterna: “Assim é
preciso que o FILHO do homem seja exaltado, para que todo aquele que crê n’Ele, tenha a vida eterna”
(Jo 3,14s). Nesta perspectiva aparece a SS. Eucaristia: o FILHO do homem “dá o alimento que dura
para a vida eterna” (Jo 6,27). “Se não comerdes a carne do FILHO do homem e não beberdes o Seu
sangue, não tereis em vós a vida” (Jo 6,53). Ora, não menos do que o poder de perdoar os pecados, o
poder de dar a vida eterna é um poder divino.

3) Senhor do Sábado
“O núcleo dos conflitos sobre o sábado é a questão sobre o Filho do homem – a questão a
respeito de Jesus Cristo mesmo.”24 JESUS afirma: “o FILHO do Homem é senhor também do sábado”
(Mt 12,8). O rabino Jacob Neusner reconheceu com razão na resposta de JESUS a respeito do fato de
os discípulos colherem espigas no sábado (cf. Mt 12,3-8), claramente exposto o núcleo mais profundo
do conflito sobre o sábado. Trata-se particularmente da seguinte resposta: “Não lestes na lei que, nos
dias de sábado, os sacerdotes transgridem no templo o descanso do sábado e não se tornam culpados?
Ora, eu vos declaro que aqui está quem é maior que o templo. ... Porque o Filho do Homem é senhor
também do sábado.” O rabino diz: “Ele (Jesus) e os seus discípulos podem fazer ao sábado o que
quiserem, porque eles tomaram o lugar dos sacerdotes no templo: o lugar sagrado deslocou-se. Ele
consiste agora no círculo do Mestre e dos seus discípulos”.25
Deve-se ver em conjunto Mt 11,28 – 12,8. Por meio do tema do repouso e do tema da fadiga e do
peso com ele relacionado, o texto de Mt 11,28-3026 se orienta para a questão do sábado.

24
J. RATZINGER-BENTO XVI, Jesus de Nazaré, 108.
25
Jacob NEUSNER, A Rabbi talks with Jesus. An intermillenial interfaith exchange, Doubleday 1993, 86s.
26
“Vinde a mim, vós todos que estais aflitos sob o fardo, e Eu vos aliviarei. Tomai meu jugo sobre vós e recebei
minha doutrina, porque Eu sou manso e humilde de coração e achareis o repouso para as vossas almas. Porque
meu jugo é suave e meu peso é leve.”
Cristologia 44

O repouso de que aqui se trata tem agora a ver com Jesus. O ensino de Jesus sobre o sábado aparece
agora em consonância com esta chamada e coma palavra sobre o Filho do homem como senhor do
sábado. Neusner resume assim o conteúdo do conjunto: “O meu jugo é suave, eu vos concedo
descanso. O Filho do homem é verdadeiramente senhor do sábado. Porque o Filho do homem é agora
o sábado de Israel – assim agimos como Deus” (p. 90).
Agora Neusner, de um modo ainda mais claro do que antes pode dizer: “Nenhuma admiração, portanto,
que o Filho do homem seja senhor do sábado! Não o é porque explica de um modo liberal as limitações
do sábado... Jesus não era nenhum reformador rabínico, que pretendesse tornara a vida do homem
‘mais fácil’... Não, não se trata aqui de aliviar um peso... É a autoridade de Jesus que está em jogo...”
(p. 89). “Agora Jesus está sobre a montanha e toma o lugar da Tora” (p. 91). O diálogo do crente
judeu com Jesus alcança aqui o seu ponto decisivo. Agora o judeu, na sua nobre timidez, não pergunta
a Jesus, mas aos discípulos de Jesus: “O teu Mestre, o Filho do homem, é realmente senhor do
sábado? E de novo pergunto: ‘O teu Mestre é Deus?’” (p. 92).
Assim o núcleo autêntico do debate torna-se manifesto. Jesus compreende-se a si mesmo como a Tora
– como a palavra de Deus em pessoa. O prólogo imponente do Evangelho de S. João – “No princípio
era a palavra a e palavra estava junto de Deus e a palavra era Deus” – não diz outra coisa senão o que o
Jesus do Sermão da Montanha e o Jesus dos Evangelhos sinópticos diz.27

c) O FILHO do homem glorioso


1) A vinda sobre as nuvens do céu
JESUS Se chamou “o FILHO do homem” não somente pelo significado próprio da expressão, quer
dizer: aquele de um homem do qual se quer sublinhar a dignidade ou a fragilidade, mas Ele o fez
referindo-Se à profecia de Daniel (7,13s). É o único texto profético no qual essa expressão se refere a
uma personagem de dimensão messiânica. JESUS alude claramente a essa profecia quando, diante do
Sinédrio, quer professar Sua identidade pessoal de “CRISTO” e de “FILHO de DEUS”: “... Eu vos digo:
de agora em diante vereis o FILHO do homem assentado à Direita do Poder e vir sobre as nuvens do
céu” (Mt 26,64). A vinda sobre as nuvens era característica do FILHO do homem descrito pelo profeta
Daniel, assim como, além disso, a participação no poder divino.
A referência ao oráculo de Daniel não significava um simples retorno a uma visão apocalíptica.
JESUS colocou-Se habitualmente na perspectiva da tradição judaica contemporânea. Ora, no Livro de
Henoc eram afirmados mais nitidamente o caráter individual e a transcendência do FILHO do homem
(cf. acima). É neste sentido que se orienta o uso da expressão “FILHO do homem” da parte de JESUS.
A vinda do FILHO do homem “sobre as nuvens do céu” é teofânica, pois a nuvem era sinal de
teofania (= manifestação de DEUS). Quando JESUS anuncia esta vinda, usa uma imagem significativa
de um modo de vir divino, um modo que será em contraste com aquele que até aquele momento tinha
caracterizado a vinda do FILHO do homem. Este modo será tal que demonstre que Ele é realmente o
“CRISTO” e o “FILHO de DEUS”.

2) O FILHO do homem: juiz universal


O quadro do juízo universal evoca particularmente a autoridade divina. A maneira como o FILHO
do homem vem na Sua glória, “com todos os Seus Anjos” (Mt 25,31), lembra aquela de JHWH,
segundo o oráculo de Zacarias (14,5): “Virá JHWH teu DEUS, e com Ele todos os Seus santos”. O
poder de julgar é propriamente um poder divino. O que surpreende é que o FILHO do homem exerce
este poder com plena soberania; Ele julga como senhor absoluto.28 Há mais: é em referência a Si
mesmo que JESUS avalia a conduta dos homens: todos são julgados com base na atitude que tiveram
em relação a Ele, porque Ele está misteriosamente presente em todo ser humano.
O tema do julgamento pronunciado pelo FILHO do homem encontra-se mais vezes no
ensinamento de JESUS, especialmente para revelar o valor decisivo da profissão de fé n’Ele. “Quem se
envergonha de Mim e das Minhas palavras, dele Se envergonhará o FILHO do homem quando vier na
glória Sua e do PAI e dos Santos Anjos” (Lc 9,26; cf. Mc 8,38; cf. também Lc 12,8).
27
J. RATZINGER-BENTO XVI, Jesus de Nazaré, 107.
28
O “Eleito” no Livro de Henoc age somente em nome do Senhor dos Espíritos; JESUS, o FILHO do homem,
vem como juiz soberano, na própria glória e sobre Seu trono de glória. Nada de mais forte para sublinhar a
divindade de CRISTO, explica o exegeta Lagrange.
45 Cristologia

Ora, esta posição central de referência é aquela que convém a DEUS. A humanidade é julgada
segundo sua atitude referente a DEUS. É isto que também se vê nesta declaração: “Quem perder a
própria vida por causa de Mim encontrá-la-á ... porque o FILHO do homem virá na glória de Seu PAI,
com os Seus Anjos, e então retribuirá a cada um segundo as suas obras” (Mt 16,25-27). O FILHO do
homem é um juiz que, além do poder divino de julgar, possui aquele de exigir dos homens o sacrifício
total da sua vida; ora, também isto é privilégio de DEUS.
O que ainda completa a demonstração de que o FILHO do homem, no juízo, possui todos os
atributos de DEUS, é o fato que Ele, no momento do fim do mundo, exercerá um poder total sobre as
forças do mal, uma vez que a liberdade deixada ao demônio é somente provisória: “O FILHO do
homem enviará os Seus Anjos, que apanharão do Seu Reino todos os escandalosos e os obreiros de
iniqüidade, e lançá-los-ão na fornalha ardente” (Mt 13,41-42). O Reino é tanto do FILHO do homem
quanto de DEUS, e é o FILHO do homem que lhe garante a santidade definitiva.

d) Qualidade humana do “FILHO do homem”


Se a identidade divina do “FILHO do homem” é acentuada por JESUS de diversos modos, ao
mesmo tempo é elucidada Sua realidade humana.
Quando JESUS afirma que o FILHO do homem veio, Ele Se refere com isso ao homem que Ele
mesmo é, vivendo uma autêntica vida humana. Enquanto no oráculo de Daniel e nas parábolas de
Henoc, o FILHO do homem era um ser celeste e divino, mas não um homem, ele é em JESUS um
homem que leva uma vida terrena. A diferença é notável.
Designando-Se com esta expressão, JESUS manifesta, por outro lado, a intenção de chamar a
atenção sobre o valor da Sua qualidade humana, qualidade que Lhe permite cumprir Sua missão.
Se o poder de julgar foi dado ao FILHO do homem, “porque é FILHO do homem” (Jo 5,27), isto
não acontece simplesmente em virtude de um título que implicaria por si o juízo escatológico (“FILHO
do homem”: daí: juiz escatológico). A idéia subjacente parece ser esta: o juízo devia ser dado a um
homem, porque deste modo os homens são julgados por alguém que lhes é igual e que compreende as
situações humanas por tê-las experimentado pessoalmente. 29 O poder de julgar permanece um poder
divino e o FILHO do homem revela Sua personalidade divina exercendo o juízo. Mas Ele julga
também enquanto homem. Com isso compreende-se melhor que Seu juízo é antes um juízo de
salvação do que de condenação (cf. Jo 3,17).
Coisa análoga se diga do poder do FILHO do homem de perdoar os pecados sobre a terra (Mc
2,10 e par), como também do domínio sobre o sábado (Mc 2,27).
A condição humana é essencial ao FILHO do homem também na Sua missão de comunicação da
vida eterna, já que Ele a comunica através da Sua Carne e do Seu Sangue (cf. Jo 6).
O mesmo vale para a presença do FILHO do homem em todo homem e, particularmente nos
infelizes (presença que O faz experimentar pessoalmente aquilo que os alegra e os entristece). Esta
presença, cujo universalismo traz o traço divino, mostra até que ponto Ele é humano nesta
solidariedade que O faz sensível a tudo aquilo que aflige Seus irmãos.
Compreende-se, então, que a fé no FILHO do homem se refere ao mesmo tempo à Sua
humanidade e Sua identidade divina. A pergunta: “Crês no FILHO do homem?” (Jo 9,35) foi feita a
um cego que tinha visto pela primeira vez um homem ao abrir os olhos voltados para JESUS.
A adesão de fé resulta de uma aproximação de DEUS aos homens. Esta aproximação se realiza de
tal modo que se requer a fé em DEUS através da fé num homem.
Por fim, a humanidade do FILHO do homem adquire o seu valor mais alto de universalismo no
sacrifício: Ele veio “para servir e dar a própria vida em resgate por muitos” (Mc 10,45; Mt 20,28).
Como pode Sua vida ser resgate por toda a humanidade? É necessário que Sua Pessoa tenha um valor
ao menos igual à humanidade inteira: isto é compreensível se, como “FILHO do homem”, Ele tem
origem divina e poder divino, mas o fato implica também uma autêntica natureza humana que Lhe
permita estar no lugar da humanidade diante do PAI.

29
Aliás, Jo 5,27 é o único trecho em que o título aparece sem artigo; a explicação disso parece ser a intenção de
acentuar a qualidade humana do FILHO.
Cristologia 46

e) Teologia implicada na expressão “o FILHO do homem”


É significativo que, para designar a Si mesmo, JESUS tenha escolhido um termo que como tal, isto
é visto somente no seu valor semântico, significa “homem”, e que não Se tenha servido de um título
que mais diretamente teria sugerido a divindade, como “FILHO de DEUS”. Até, para dizer que era um
homem, usou uma expressão que não parecia reivindicar alguma superioridade de nível humano; pois
“filho do homem” indica um homem que se insere na série das gerações humanas e que, neste
sentido, tem toda a humildade da condição de homem.

A realidade humana
Em primeiro lugar, o termo quer sublinhar que JESUS é verdadeiramente homem. Isto poderia
parecer supérfluo para alguém que vive obviamente uma existência humana como os outros homens.
Mas é justamente em virtude desta existência concreta de homem que o termo “o FILHO do homem”
toma uma consistência nova, que não tinha nas representações apocalípticas de Daniel e de Henoc,
nas quais era descrito somente uma aparência humana (alguém com um aspecto humano).
Além disso, o termo implica que JESUS é integralmente homem. Nada daquilo que é humano Lhe
falta. Sabemos, é verdade, que ninguém O pode acusar de pecado (cf. Jo 8,46); mas esta ausência de
pecado não é uma deficiência da sua humanidade, pois o pecado degrada o homem, diminui-o
tornando-o escravo (cf. Jo 8,34). JESUS é mais profundamente homem pelo fato de não possuir esta
deformação ou esta alienação do humano implicada no pecado. Ele é o homem tal qual saiu das mãos
do Criador, sem alguma sombra nem algum aviltamento.
Na perspectiva bíblica a expressão “FILHO do homem” evoca inevitavelmente Adão. O melhor
comentário desta expressão, mediante uma genealogia, encontra-se no evangelho de São Lucas: se
passamos as gerações para trás, JESUS é por fim “filho de Adão, filho de DEUS” (“qui fuit Adam, qui
fuit Dei”; Lc 3,38). Uma vez que Adão traz o nome genérico de homem (Adão = homem), JESUS
atribui-Se o nome genérico de “FILHO do homem (= Adão)”. Este termo “FILHO do homem” sugere já
o confronto que São Paulo fará, em Rm 5, entre Adão e JESUS, entre um só homem por causa do qual
a multidão se tornou pecadora, e um só homem por meio do qual ela recebeu graça e justificação
5,12-21). Adão é figura de JESUS, “figura daquele que devia vir” (Rm 5,14), segundo um modo de
exprimir-se que faz pensar no FILHO do homem (= Aquele que vem (veio)), mas numa semelhança
que é acompanhada por um forte contraste.
Esta semelhança e este contraste estão implicados no termo assim como JESUS o empregou?
Estão certamente contidos no prolongamento do significado do termo: “FILHO do homem” assemelha-
Se ao homem primordial, é o homem na sua total integridade, em contraste com o pecado que o
desnatura. Por outro lado, deve-se recordar algumas afirmações sobre o FILHO do homem,
particularmente aquela da Sua vinda para servir e dar a própria vida em resgate por muitos ( Mc 10,45;
Mt 20,28), pela qual se pode reconhecer n’Ele a inauguração de uma nova humanidade.

A dimensão teológica
Como se revela no FILHO do homem aquilo que ultrapassa o humano? Pela referência a figura
apocalíptica de Daniel, o termo contém uma dimensão teológica: segundo o oráculo, a personagem
que vinha “semelhante a um filho do homem” era de origem celeste, e aparecia ao lado de DEUS
como um Filho.30 O nome “Filho do homem” lhe é dado devido à aptidão do homem de representar
um ser divino: na visão inaugural de Ezequiel 1,26, DEUS tinha sido descrito como uma figura com
aspecto humano. Para um FILHO de DEUS a melhor representação era, portanto, aquela de filho do
homem. Há nisto um princípio fundamental: o ser que mais se assemelha a DEUS no nosso mundo
visível é o homem (base bíblica: Gn 1,26s).
Por outro lado, a personagem no texto de Daniel representa o povo dos santos do Altíssimo, tanto
que era ao mesmo tempo uma personagem de dignidade divina e a personificação do povo judaico no
seu destino final.

30
Aliás, o fato de a expressão aramaica “bar nasha” se encontrar, nos evangelhos, sempre traduzida por “ho
hyòs tou anthrópou” e não simplesmente por “ánthropos” (homem), já manifesta que o significado comum de
“homem” não é o único, nem o mais específico.
47 Cristologia

Quando JESUS Se define “o FILHO do homem”, Ele compreende no título todos os elementos da
personagem no texto do profeta Daniel: ser divino que em relação a DEUS Se encontra numa posição
de FILHO, que representa o povo eleito, isto é a humanidade nova. Como em Daniel, o FILHO do
homem tem uma origem celeste que se exprime com uma vinda misteriosa, e está na posse de poderes
divinos.
Uma vez que Ele tem uma realidade humana e não somente uma simples aparência humana, o
humano não deve mais desaparecer diante do divino; o humano tem o seu próprio valor. O princípio
da semelhança recebe assim toda sua eficácia: o divino manifesta-Se no humano valorizando-o. Não
há nenhuma discordância, nenhuma desarmonia entre o divino e o humano.
A origem divina do FILHO do homem não Lhe impede de levar uma vida humana semelhante à
nossa, porque “veio o FILHO do homem que come e bebe”. Os poderes divinos que ele exerce, Ele os
possui como homem: é ao mesmo tempo como DEUS e como homem que Ele julga, perdoa os
pecados, exige a fé e o amor dos homens.
Tudo isto manifesta que n’Ele realizou-se perfeitamente a Encarnação: na Pessoa do “FILHO do
homem” DEUS e o homem estão inseparavelmente presentes e inseparavelmente atuantes. Alguém de
dignidade divina age como um homem e na qualidade de homem. Isto é possível pela semelhança
essencial de que já falamos e que dá ao homem a possibilidade de exprimir adequadamente o divino.
A simples expressão “FILHO do homem” é, ela mesma como tal, o sinal de uma Encarnação
totalmente realizada. Pelo sentido que JESUS lhe dá, esta expressão equivale ao que nós dizemos com
as palavras “FILHO de DEUS feito homem”. No entanto, uma vez que fala só do homem, esta expressão
sugere que a riqueza da Pessoa divina se esconde e se revela na humanidade.
Deste ponto de vista, o termo tende a excluir toda concepção de um CRISTO “em dois andares”:
um CRISTO no qual a divindade apareceria fora e acima da humanidade. Um tal dualismo é excluído
pelo próprio modo com que JESUS Se designa a Si mesmo. Até, pelo contrário, o termo contém a
tendência de concentração no humano; ele supõe que a Pessoa divina Se exprime somente no homem
e através do homem, mas, por outro lado, ele não poderia autorizar uma negação desta Pessoa divina.
Pode-se, portanto, concluir: “o FILHO do homem” = “o FILHO que é homem”.

O ontológico e o funcional
O uso que JESUS faz do termo “FILHO do homem”, dá uma indicação sobre a relação entre o
ponto de vista ontológico e o ponto de vista funcional da Sua identidade. A importância da função
reconhece-se pela insistência na vinda e nos poderes o FILHO do homem veio para cumprir uma
missão: veio “para procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10); veio “não para ser servido, mas
para servir e dar a Sua vida em resgate por muitos” (Mt 20,28; Mc 10,45). Quando JESUS preanuncia
Sua paixão, morte e ressurreição, Ele apresenta isso como cumprimento do desígnio divino relativo ao
FILHO do homem: “é necessário que o FILHO do homem sofra muito ...” (Mc 8,31; Lc 9,22).
No entanto, a escolha da expressão “FILHO do homem” chama a atenção sobre o ontológico.
JESUS não Se designa com um simples título funcional. Assim, Ele não Se chama nunca de “servo”,
apesar de gostar de pôr o acento do que o FILHO do homem veio para servir, Ele incorpora a idéia de
servo naquela de FILHO do homem; mas o “FILHO do homem” mantém Seu próprio nome.
Anunciando Sua glória futura JESUS poderia Se ter chamado de Messias (CRISTO). Ora, Ele declara
que o FILHO do homem Se assentará à Direita de DEUS; atribui-Se assim a realeza messiânica, mas
sem reivindicar o título de Messias e continuando a proclamar-Se o FILHO do homem.
Há nisto um sinal de que Ele não quis deixar-Se absorver por uma função. Ele não é simples
enviado de DEUS, é FILHO; e vem como FILHO. A Sua Pessoa de FILHO é originária, antes de
qualquer missão, e esta Pessoa permanece no triunfo glorioso (por isso: “o FILHO do homem” se
assentará ...). Ele não é a personificação de uma missão. O que importa antes de mais nada, é o que
Ele é; por isso Ele sempre chama a atenção sobre o mistério de Sua identidade pessoal; a partir disto
esclarece-se também aquilo que Ele faz.

A filiação humana
Se a expressão “o FILHO do homem” tem como base um mistério de origem filial,
inevitavelmente surge a pergunta: em que sentido há geração humana? O termo significa que JESUS é
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homem e filho. Diz ainda mais: filho de um ser humano. Não basta, por conseguinte, reconhecer
n’Ele o FILHO de DEUS que é homem; precisa também considerar de que modo Ele é filho do homem.
Pelos relatos da infância de JESUS sabemos como se resolveu esta questão. A concepção virginal
de JESUS, efetuada pela força do ESPÍRITO SANTO, teve como efeito o fato de a criança ser, ao mesmo
tempo, gerada do alto e Filho de uma mulher. Esta concepção manifesta a filiação divina numa
filiação humana.
JESUS mesmo não Se refere explicitamente a esta origem que dá ao termo “FILHO do homem”
todo seu valor e acentua ainda mais o seu realismo humano. Contudo, há uma indicação neste sentido:
nas duas circunstâncias da vida pública de JESUS, nas quais Ele fala a Maria, não lhe diz “mãe”, mas
“mulher” (Jo 2,4; 19,26). Ora, se Ele não a chama de mãe, é porque Ele está investido de uma missão
na qual atua como FILHO do homem. O nome que convém a Maria em função do nome “FILHO do
homem”, é aquele de “mulher”: é a mulher que deu a JESUS a possibilidade de chamar-Se o FILHO do
homem (cf. Irineu: CRISTO = novo Adão; Maria = nova Eva).
Não encontramos talvez um eco do que está implicado no termo “FILHO do homem”, em Gl 4,4:
“... DEUS mandou Seu FILHO, nascido de mulher ...”? Esta expressão: “FILHO, nascido de mulher”
explicita o conteúdo da expressão “FILHO do homem”.
Por conseguinte, a expressão “FILHO do homem” implica ao mesmo tempo uma antropologia e
uma teologia. JESUS Se define através da Sua filiação de Maria, sinal da Sua filiação do PAI. Falamos
da semelhança entre DEUS e o homem, que se encontra na base da figura do FILHO do homem.
Concretamente, no caso de JESUS, é Maria que, na sua maternidade, traz a semelhança do PAI com
Sua paternidade. Por isto a mulher tem um papel essencial na Encarnação.

C) Encarnação da palavra, da ação, da presença

1. Encarnação da palavra

a) Autoridade da palavra
Entre as palavras significativas pronunciadas por JESUS, encontra-se o termo “amen”. JESUS usa
este termo de uma maneira que quase não tem precedentes no judaísmo e não tem analogia no resto
do NT.
Uma vez que seu significado é “certamente” (“assim é”), esta palavra antes tinha sido usada
normalmente com o significado de resposta de consentimento. JESUS, ao invés, serve-Se dela como
introdução às próprias afirmações para acentuar-lhes a veracidade: “Amen, Eu vos digo”. Ele exprime
com isso Sua autoridade, de modo único e original. A única fórmula bíblica com a qual se poderia
compará-la é aquela dos profetas: “Assim diz o Senhor”. Ora, o confronto destas duas fórmulas
sugere imediatamente que JESUS ocupa agora o lugar do Senhor: é Ele que fala, com Sua autoridade.
Há identidade entre a palavra de JESUS e a palavra de DEUS.
Os ouvintes perceberam com muita clareza a diferença que havia entre o ensinamento de JESUS e
aquele dos escribas os quais se baseavam na Lei: “E maravilhavam-se por causa da Sua doutrina, pois
os ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas” (Mc 1,22; cf. Mt 7,29; Lc 4,32). De
qual autoridade se tratava precisamente? Os ouvintes provavelmente não poderiam ter respondido
com exatidão. Mas o essencial é que eles tinham constatado em JESUS um modo de ensinar até então
inaudito, e que neste ensinamento a autoridade pessoal substituía aquela da Lei. Se queremos analisar
com rigor o que está na base desta reivindicação de autoridade, devemos concluir que JESUS atribuía
ao próprio ensinamento um valor igual àquele que a Lei tinha para os judeus: o Seu ensinamento
apresentava-se, por conseguinte, como aquele de DEUS, dado com autoridade divina.
Assim Ele pode afirmar: “O céu e a terra passarão, mas as Minhas palavras não passarão” (Mc
13,31; Mt 24,35; Lc 21,33). Suas palavras não têm a caducidade das coisas criadas: trazem neste
mundo a eternidade de DEUS (cf. Is 51,6; 54,10).
Elas possuem toda a transcendência, mas também toda a imanência da Encarnação: embora
possuam autoridade divina e um valor eterno são autênticas palavras humanas. É no Seu modo de
falar humanamente com homens que se manifesta a superioridade da Sua linguagem. A resposta dos
guardas fascinados pelo Seu ensinamento a ponto de não poder executar a ordem de prender JESUS,
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nos é relatada pelo evangelista do VERBO feito carne: “Jamais um homem falou como fala este
homem” (Jo 7,46). É um ensinamento que vem do alto, mas que se impõe no nível humano.
De clareza particular é a fórmula de oposição entre o ensinamento antigo e o novo: “Foi dito ...
mas Eu vos digo” (Mt 5,22.28.32.34.39.44). JESUS reivindica uma autoridade superior à Lei. Uma tal
reivindicação é surpreendente, porque “foi dito” é um passivo que exprime uma ação divina
(“passivum divinum”). Como explicar que JESUS Se possa considerar superior à palavra do próprio
DEUS? Isto justifica-se pelo fato de esta palavra ter sido formulada por mediadores, e a mediação
humana ter comportado muitas imperfeições. A reivindicação de autoridade para corrigi-la e
completá-la, levando a Lei à plenitude (Mt 5,17), não pode provir senão de uma única fonte: JESUS
não é mais um simples mediador ou intermediário: n’Ele a Palavra divina está presente em toda a sua
integridade, sem restrição alguma. Ora, esta presença máxima implica que Ele mesmo é,
pessoalmente, Palavra de DEUS.

b) Palavra e pessoa
Duas afirmações de JESUS sugerem mais diretamente, embora em termos velados, a identidade
entre palavra e pessoa. “Os ninivitas ressurgirão no dia do juízo com esta geração e condená-la-ão,
porque se converteram com a pregação de Jonas. E eis, mais do que Jonas (há) aqui!” (Mt 12,42; Lc
11,32). Jonas é citado como tipo do profeta. JESUS afirma de ser mais do que um profeta: uma vez que
o profeta é aquele que fala em nome de DEUS, acima do profeta não pode haver senão a palavra
mesma de DEUS. JESUS insinua, portanto, ser Ele a Palavra de DEUS em pessoa.
Semelhante é a referência a Salomão: “A rainha do sul se erguerá no dia do juízo com esta
geração e condená-la-á, porque veio dos extremos confins da terra, para ouvir a sabedoria de
Salomão, e eis, mais do que Salomão (há) aqui!” (Mt 12,42; cf. Lc 11,31). Acima de Salomão, que foi
visto pelos judeus como o arauto supremo da Sabedoria, não pode haver senão a própria Sabedoria
divina. Quem está presente não é mais um simples anunciador ou um porta-voz da Sabedoria; é a
Sabedoria em pessoa. Esta exegese é confirmada pela afirmação de JESUS que “a Sabedoria é
justificada pelas Suas obras” (Mt 11,19).
Palavra de DEUS e Sabedoria de DEUS são duas realidades muito próximas uma à outra: a
primeira põe o acento sobre a expressão, enquanto a segunda sublinha antes o pensamento, mas, na
realidade, os dois conceitos mais ou menos coincidem. JESUS fez entender que Ele é a Palavra e a
Sabedoria.
No quarto evangelho encontramos uma identificação análoga de JESUS com a luz e a verdade. A
formulação é mais explícita do que nos evangelhos sinóticos. Em Mt e Lc, JESUS dizia
implicitamente: “Eu sou a Palavra de DEUS”, “Eu sou a Sabedoria de DEUS”. São João apresenta a
identidade em termos mais explícitos: “Eu sou a luz do mundo” (8,12; cf. 3,19; 9,5; 12,35.46); “Eu
sou a verdade” (14,6). Além destas fórmulas categóricas há outras mais veladas: “Quem Me segue
terá a luz da vida” (8,12); “quem é da verdade, escuta Minha voz” (18,37). As fórmulas com o “Eu
sou (a verdade etc.)” simplesmente acentuam a identidade implicada em afirmações mais discretas.
Em Is 45,7 e 48,5, encontram-se afirmações paralelas atribuídas a JHWH: “Eu formo a luz”; “Eu
falei”. As afirmações no Evangelho contêm uma reivindicação aparentemente superior. JESUS não é
somente Aquele que dá a luz e que fala, Ele é a luz, ele é a verdade. Esta superioridade é devida à
Encarnação: a luz e a verdade não são mais somente um dom divino comunicado aos homens, mas
uma Pessoa que condescende até a humanidade para doar-Se Ela mesma como luz e verdade. O
espírito de encarnação é indicado claramente pela expressão “a luz do mundo”, e a “verdade” é
concretamente aquela que se revela aos homens.
As próprias palavras de JESUS justificam, portanto, a apresentação que São João faz d’Ele no
prólogo do seu evangelho, como VERBO feito carne. Podemos também descobrir nas palavras de
JESUS aquilo que suscitou a afirmação inicial: O VERBO existia “no princípio”.
Quando JESUS diz: “Se não credes que ‘Eu sou’, morrereis nos vossos pecados”, os Seus
adversários Lhe perguntam quem é este Eu misterioso: “Tu quem és?”. Ele responde: “EU sou desde
o princípio aquilo que vos digo” (Jo 8,24s).
Esta resposta explica-se com a alusão à Sabedoria divina que, segundo Pr 8,23, existia “desde o
princípio”. Esta resposta de JESUS insere-se num diálogo que desembocará numa declaração mais
nítida: “Antes que Abraão fosse (viesse à existência), Eu sou” (8,58). Se desde o princípio JESUS é
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aquilo que Ele diz, Ele é na Sua identidade divina a Palavra que pronuncia: isto leva a reconhecer
n’Ele a PALAVRA (VERBO) divina que existia no princípio.
Trata-se da Palavra encarnada. “Eu sou aquilo que vos digo” refere-se a uma linguagem humana.
“Desde o princípio” poderia indicar simplesmente o início do diálogo, o início da pregação de JESUS:
a expressão tem um significado humano através do qual transparece um significado mais alto: aquele
do princípio absoluto.
O movimento da fé suscitado por JESUS também indica a encarnação da Palavra. Crer na Sua
Palavra e crer na Sua Pessoa são duas atitudes inseparáveis. JESUS não Se limita a exigir a fé na
doutrina que ensina e da qual afirma que ela tem sua origem no PAI. Ele exige a fé na Sua Pessoa, e é
isto que Ele obtém, como relata São João. À afirmação: “Como Me ensinou o PAI, assim Eu falo ...”
responde, de fato, uma adesão de fé: “Ouvindo-O assim falar, muitos creram n’Ele” (8,28-30). Fé na
palavra e fé na Pessoa se identificam. No mínimo, esta identificação leva a admitir uma certa
identidade entre a palavra e a Pessoa: JESUS deve ser crido como a Palavra do Pai.

2. Encarnação da ação divina

a) Recapitulação das grandes figuras de Israel


Através de homens escolhidos DEUS tinha guiado a história de Israel. JESUS repassa na Sua
missão toda esta história, realizando a um nível superior tudo aquilo que esses mediadores, segundo a
apresentação da ação deles na S. Escritura, tinham feito.
Trata-se sobretudo de Abraão, Isaac, Jacó, Moisés e Davi. Quanto a Moisés: JESUS dá a
verdadeira água a beber (Jo 7,37s) e o verdadeiro pão de DEUS (Jo 6,32s). Em relação a Davi, a
personagem messiânica: Aos fariseus que compartilham a opinião tradicional a respeito do Messias,
filho de Davi, JESUS cita o Sl 110: “O Senhor disse ao meu Senhor ...”, e faz a pergunta: “Se,
portanto, Davi O chama de Senhor, como pode ser seu filho?” (Mt 22,45; cf. Mc 12,37; Lc 20,44).
“Senhor de Davi”, eis uma novidade na concepção do Messias, que mostra bem a passagem da figura
à realidade no sentido transcendente.

b) Missão de instaurar o Reino

1) JESUS e o Reino (Reinado) de DEUS


Toda a pregação de JESUS refere-se à vinda do Reinado ou Reino de DEUS; toda Sua ação
consiste em estabelecer este Reinado e fundar este Reino. JESUS faz, portanto, a obra de DEUS.
JESUS fala de uma maneira que faz reconhecer a equivalência entre o Reino do FILHO do homem
e o Reino do PAI (Mt 13,41-43). Isto quer dizer que não é simplesmente no nome de um outro, do PAI,
que Ele age como senhor do Reino. Deixar tudo por causa do Reino de DEUS (Lc 18,29), é deixar
tudo por causa do Seu nome (Mt 19,29) ou por Sua causa (Mt 5,11). A declaração mais forte é aquela
na qual JESUS dispõe do Reino em favor dos Seus apóstolos, como o PAI dispôs em Seu favor (Lc
22,29s). Dispor assim do Reino, é atribuir-Se a soberania divina na qualidade de FILHO.
No que diz respeito ao além, JESUS descreve o poder do FILHO do homem que dá em herança o
Reino àqueles que amaram seus irmãos, e o nega àqueles que não tiveram este amor (cf. Mt 25,34).
Este poder de dispor do Reino na eternidade, não é senão um aspecto do poder de julgar.
Para a vida terrena, JESUS determina as condições de acesso ao Reino e as leis que regulam a
vida dos seus membros. A fórmula “Foi dito ... mas Eu vos digo” (5,22.28.32.34.39.44) testemunha
uma autoridade absoluta sobre o Reino; o mesmo diga-se do poder de perdoar os pecados e de
comunicar a vida eterna.

2) Um “Eu” que age com o poder de DEUS


Quando JESUS diz “Eu” para sublinhar o valor da Sua ação, descobre-se nisto a insinuação de um
poder ou autoridade divina.
Ele diz ao centurião a respeito do servo paralítico: “Eu irei e o curarei” ( Mt 8,7). Há aqui um
contraste com o “eu” que também o centurião emprega para dizer que ele está sujeito a outros: o “Eu”
de JESUS é soberano e ordena à doença.
51 Cristologia

No episódio da mulher adúltera, aos homens que quereriam condená-la ao apedrejamento


segundo a lei de Moisés, JESUS opõe o Seu “EU” que oferece o perdão divino: “Eu não te condeno”
(Jo 8,11).
A insistência sobre o “EU” contribui a mostrar que JESUS não é simples instrumento da ação
divina; o mistério da Sua obra é antes de tudo mistério da Sua Pessoa. É Ele pessoalmente que possui
o poder de agir como DEUS age.
Não se Lhe arranca um milagre; quando uma mulher quis permanecer incógnita tocando por
detrás a orla do Seu manto, JESUS reage: “Eu senti que uma força saiu de Mim” (Lc 8,46).
É com autoridade que Ele expulsa o espírito imundo do menino epiléptico: “Eu te ordeno, sai
desse menino ...” (Mc 9,25). De modo geral JESUS afirma: “Se Eu expulso os demônios ...” (Mt 12,27/
Lc 11,19). E Ele mesmo convida a reconhecer nisto “o dedo de DEUS” ou “o ESPÍRITO de DEUS”.
Ele insiste na soberania do chamamento dos discípulos da parte Sua: “Eu vos escolhi” (Jo
15,16.19). Ele realiza o gesto de DEUS que escolhe e envia: “Eis Eu vos mando” (Mt 10,16). A ação
de DEUS é ainda mais transparente nesta declaração: “Eis que Eu vos envio profetas, sábios e
escribas” (Mt 23,34). Parece mesmo ouvir-se falar o DEUS do AT.
Quando Seus discípulos serão perseguidos e arrastados aos tribunais, JESUS promete Sua
assistência: “Eu vos darei língua e sabedoria tais a que não poderão contrastar nem contradizer
qualquer dos vossos adversários” (Lc 21,15).

3) O Pastor
O título de pastor exprime uma autoridade disposta a atuar no sentido do amor. Quando JESUS
diz: “Eu sou o Bom Pastor” (Jo 10,11), Ele Se apresenta como o modelo de pastor, um modelo que
lembra a maneira como JHWH mesmo Se tinha apresentado como pastor do Seu povo. Dando-Se o
título de “pastor” JESUS faz uma reivindicação messiânica; reconhece-se isto quando se pensa no
oráculo de Ezequiel: “Suscitarei para elas um pastor único, o qual as apascentará, o meu servo Davi”
(Ez 34,23). Esta reivindicação é real, mas, por outro lado, sabemos que JESUS afirma realizar a figura
messiânica de um modo que ultrapassa Davi, pois JESUS Se apresenta como Senhor de Davi (Sl 110).
JESUS ultrapassa a figura messiânica de pastor, pois ele realiza mais especialmente aquilo que, no
oráculo de Ez, tinha sido dito de JHWH mesmo; em oposição ao pastores de Israel que “apascentam a
si mesmos”, JHWH tinha determinado: “Eis que EU mesmo irei em busca de Minhas ovelhas” (Ez
34,11). A oposição encontra-se no confronto que JESUS faz entre os ladrões e Si mesmo: frente a esses
ladrões é o Seu “EU” que Se afirma como outrora aquele de JHWH: “Eu vim”, “Eu sou o Bom
Pastor” (Jo 10,10-11).
Além disso, as duas funções assumidas por JHWH: reunir as ovelhas dispersas e dar-lhes boa
pastagem, caracterizam também JESUS. Ele dá a vida em abundância (= atributo próprio de DEUS) e
reúne as ovelhas em torno do “único pastor” que é Ele mesmo (Jo 10,16), indicando assim uma
identidade de Si com DEUS.
Numa outra ocasião JESUS aplica a Si mesmo uma outra nota distintiva de JHWH pastor: buscar a
ovelha tresmalhada (Mt 18,12-14; Lc 15,4-7), justificando o próprio comportamento com a conduta de
DEUS. Semelhantemente, é com uma autoridade divina que, no momento do juízo, age como pastor
que separa as ovelhas dos cabritos (Mt 25,32s); em Ezequiel, JHWH Se propunha “julgar entre ovelha
e ovelha”, “entre a ovelha bem nutrida e a ovelha extenuada” (Ez 34,17.22). O conhecimento que o
pastor tem das suas ovelhas não está expressamente enunciado neste oráculo, mas está suposto no
juízo: para julgar entre ovelha e ovelha, JHWH deve conhecê-las. No evangelho, este conhecimento é
bem evidenciado, juntamente com o modelo deste conhecimento, isto é: o conhecimento que o PAI
tem de JESUS: “Eu conheço as Minhas ovelhas e as Minhas ovelhas conhecem a Mim, com o PAI Me
conhece e Eu conheço o PAI” (Jo 10,14s). Note-se: os dois termos desta relação recíproca de
conhecimento sugerem uma certa afirmação da identidade divina do FILHO: não somente JESUS
conhece como o PAI conhece, mas Ele é conhecido pelas ovelhas como o PAI é conhecido por Ele (cf.
também Mt 11,27; Lc 10,22).
É importante observar que a afirmação: “Eu conheço as Minhas ovelhas e as Minhas ovelhas
conhecem a Mim” indica uma intimidade de conhecimento maior do que no oráculo de Ezequiel:
apesar da Sua solicitude pelas ovelhas tresmalhadas, feridas e enfermas, JHWH estava mais longe, e é
Cristologia 52

significativo que o profeta não fale de conhecimento recíproco. Pelo fato que o Bom Pastor vive sobre
a terra, Ele pode estabelecer uma familiaridade mais profunda com as ovelhas.
Há mais um ponto essencial, a cujo respeito a descrição do Bom Pastor no evangelho é superior à
apresentação de Ezequiel: “O Bom Pastor entrega a vida pelas ovelhas” (Jo 10,11). Ora, este ponto
evidencia precisamente o valor da encarnação: aquilo que JHWH, na Sua transcendência divina, não
podia fazer, JESUS o pode fazer porque é homem. Ele pode realizar com toda a perfeição o ideal do
pastor através do sacrifício da própria vida. Encontramos aqui a superioridade já constatada em outro
lugar: JESUS realiza o que tinha sido atribuído ao DEUS do AT, mas de uma maneira melhor ainda,
em virtude da Sua qualidade humana.

c) Os milagres

1) O problema do milagre
Os milagres fazem parte da demonstração tradicional da divindade de JESUS; hoje em dia, porém,
“a prova do milagre” é frequentemente contestada. Além dos sistemáticos “desmitizadores”, há
também críticas da parte daqueles que, sem querer negar os milagres, não aceitam uma certa
apresentação apologética da prova do milagre. De fato, se o milagre é considerado como um fato que
cientificamente é impossível explicar pelas causas naturais, e que por conseguinte é devido à ação
transcendente de DEUS, surgem duas dificuldades. Pode haver demonstração científica absoluta do
milagre? Uma cura ou um fato prodigioso podem ser inexplicáveis pelas causas naturais assim como
são conhecidas hoje, mas sem que se possa afirmar com certeza absoluta a impossibilidade de alguma
descoberta futura de capacidades escondidas na natureza que poderiam dar uma explicação do
fenômeno. Há, porém, milagres que escapam certamente desta possibilidade: quando de repente
(durante a noite) alguém possui de novo uma perna que lhe tinha sido amputado há anos ou quando
ressurge um morto já em estado de putrefação. No entanto, em casos não tão extremos permanece a
dificuldade mencionada. Por outro lado, a ciência é por si mesma incapaz de identificar com DEUS
uma força desconhecida que estaria atuando nos eventos visíveis.
Para superar estas dificuldades, a teologia recente reconhece no milagre essencialmente um sinal,
um sinal particularmente notável da ação divina que opera a salvação. Por isso, em vez de
considerar primeiro a ordem da natureza que não pode explicar o fato e postular depois uma causa
sobrenatural, ela se coloca logo no quadro sobrenatural da ação salvífica de DEUS. O milagre tem
sentido somente neste contexto sobrenatural como apelo dirigido por DEUS à fé. O milagre faz parte
da linguagem divina, do diálogo de DEUS (cujo motivo é o amor divino) com os homens.
Por conseguinte, é particularmente importante o modo como JESUS mesmo concebeu e operou o
milagre.

2) A perspectiva dos milagres de JESUS


Quando JESUS é perguntado pelos discípulos de João Batista a respeito da Sua identidade, ele
responde: “Ide e contai a João o que ouvis e vedes: os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os
leprosos são limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres é anunciada a boa-nova”
(Mt 11,4s; cf. Lc 7,22). Para mostrar que Ele é verdadeiramente “Aquele que vem” e que não se deve
esperar por um outro, convida a reconhecer o ensinamento que os milagres que opera, oferecem; pois
os termos que JESUS usa ao referir-Se aos Seus milagres fazem referência ao livro de Isaías,
precisamente aos termos que Isaías emprega ao anunciar o período messiânico (Is 26,19; 29,18; 35,5s;
61,1). Os milagres são, portanto, na intenção de JESUS, os sinais da Sua identidade.
Por esta resposta JESUS, ao mesmo tempo, situa o milagre na sua autêntica perspectiva; esta não é
aquela da constatação científica de um fenômeno inexplicável através das forças naturais. Claro,
JESUS faz suficientemente entender que as curas realizadas por Ele ultrapassam as leis da natureza
(quer dizer: as forças inerentes à natureza), e as ressurreições que menciona constituem um exemplo
irrefutável de obra impossível às forças naturais (A ressurreição dos mortos anunciada por Is 26,19,
era considerada no judaísmo – com toda razão – obra exclusivamente do poder de DEUS; assim, na
sua resposta a João Batista, JESUS atesta que é um Messias de ordem divina.). Mas, indicando fatos
que as possibilidades humanas somente não podem explicar, JESUS requer que nisso seja reconhecido
essencialmente o cumprimento do desígnio divino proclamado pelos profetas. Por fim, o último fato
53 Cristologia

que indica: “aos pobres é anunciada a boa-nova”, não é um milagre, mas faz entender o significado
dos milagres anteriormente enumerados.
Este último critério, o critério não “milagroso”, é realmente o mais decisivo: atesta a realidade da
ação divina, da qual um traço distintivo é a benevolência para com os “pobres”. Os milagres devem
ser considerados no contexto mais amplo de toda a atividade divina no mundo, no nível da fé.
Uma vez que JESUS Se refere à profecia, é bom lembrar aqui brevemente a concepção bíblica
(AT) do milagre.
No AT toda a criação, com tudo aquilo que chamamos de ordem da natureza, é considerada como
obra maravilhosa de DEUS. Na descrição da obra divina da salvação, todos os eventos manifestavam o
caráter maravilhoso das intervenções do DEUS Salvador, também aqueles eventos que aparentemente
são devidos a causas naturais ou humanas. O que faz de um evento um milagre, é menos o seu caráter
excepcional (de ser algo extraordinário) do que sua capacidade de manifestar o governo providencial
de DEUS e a presença do Seu poder invisível. Esses eventos manifestam, de modo modesto e limitado,
o poder divino que os transcende. Para interpretá-los e compreendê-los precisa, por conseguinte,
reconhecê-los na sua qualidade de sinais (cf. os sinais das palavras pronunciadas ou escritas).
Quando a história narrada pela Bíblia se torna prodigiosa é neste quadro geral que continua a ser
compreendida. O milagre pertence à economia do sinal. Se é excepcional devido a uma manifestação
extraordinária de transcendência, o milagre, no entanto, faz parte de uma ação contínua de DEUS Que
Se prodigaliza nos sinais da história; o milagre não pode ser desligado deste conjunto muito mais
amplo de sinais. Ele não é um parêntese, uma “subversão” da ordem estabelecida; ele é um ponto
culminante, um momento mais particularmente intenso da linguagem dos sinais divinos.
No caso de JESUS há uma espécie de concentração destes pontos culminantes. A intensidade do
sinal da ação divina atinge um grau incomparavelmente mais elevado do que em qualquer outro
período da história humana. Há uma tal multiplicação de fatos prodigiosos na vida pública de JESUS
que devemos falar de uma invasão repentina do milagroso: além dos mais ou menos trinta milagres
relatados especificamente nos evangelhos, há a multidão das curas de enfermos que é indicada de
modo genérico. Esta abundância testemunha um desdobramento singular do poder de DEUS.

3) A realidade histórica dos milagres


Em comparação com outros períodos ou outros ambientes, os milagres de JESUS gozam também
do privilégio de serem garantidos por sólidos testemunhos históricos (cf. o curso de Teologia
Fundamental).
Os milagres que particularmente foram postos em dúvida pelo ceticismo, são as ressurreições e
os milagres que manifestam um poder sobre a natureza: a pesca milagrosa, a transformação da água
em vinho, a multiplicação dos pães, a tempestade acalmada, o caminhar sobre as águas. Mas a análise
dos textos que nos referem estes milagres confirma seu valor histórico. O milagre que mais evidencia
o poder de JESUS sobre a natureza é a ressurreição de Lázaro; ora, múltiplos indícios garantem a
verdade deste acontecimento que explica outros fatos da vida pública do Senhor e está
particularmente ligado a Sua própria ressurreição.
As suspeitas relativas a esta categoria de milagres provêm talvez da aversão a admitir
demonstrações prodigiosas que se assemelhariam demais a um espetáculo ou implicaria uma certa
complacência no uso da onipotência. Ora, JESUS mesmo Se negou a dar demonstrações espetaculares
do Seu poder. O relato das tentações de JESUS no deserto mostra isso. No momento da Sua Paixão
esta Sua atitude assume todo o seu valor: JESUS abstém-Se de pedir legiões de Anjos para combater os
Seus adversários, e deixa sem resposta os desafios injuriosos a descer da Cruz.
A discrição que JESUS guarda ao operar os milagres aparece especialmente nos milagres mais
estupendos, as ressurreições. Longe de querer evidenciar o fato da morte da filha de Jarro para provar
a realidade da ressurreição, JESUS o minimiza declarando: “A menina não está morta, mas dorme”
(Mc 5,39; Lc 8,52). O mesmo se dá no caso de Lázaro: “O nosso amigo Lázaro adormeceu; mas Eu
vou acordá-lo” (Jo 11,11). Nesta discrição revela-se a vontade de não querer forçar a inteligência
humana a dobrar-se diante de prodígios fulgurantes; o convite dirige-se à fé, conservando sempre um
espaço de mistério e salvaguardando a liberdade pessoal de adesão. Com nenhum milagre JESUS
intencionava fazer violência ao espírito do homem ou arrancar irresistivelmente o assentimento.
Cristologia 54

É bom sublinhar a diferença entre prodígios gratuitos para um fim de glória pessoal, de um lado,
e os milagres pelos quais JESUS manifesta o Seu domínio sobre as forças da natureza. Estes milagres
são todos realizados com uma finalidade altruísta e tendem a exprimir, por meio deste domínio,
alguns aspectos de uma missão espiritual: as ressurreições significam a nova vida trazida por CRISTO
à humanidade, assim como a Sua vitória sobre a morte; o vinho de Caná e a multiplicação dos pães
anunciam a Eucaristia; o acalmar a tempestade e o caminhar sobre as águas testemunha o poder de
assistir os discípulos na dificuldade, fazendo-os vencer todos os perigos; a pesca milagrosa é um sinal
da fecundidade prometida à missão dos Apóstolos.
Estes milagres têm seu valor próprio. Se as curas milagrosas manifestam a intenção de libertar o
homem das suas enfermidades morais e espirituais, os milagres de domínio sobre a natureza mostram
como todo o universo material está envolvido na obra do Reinado de DEUS: não somente as forças
naturais não podem ameaçar esta obra, mas até obedecem a CRISTO Que tem o poder de fazê-las
concorrer ao cumprimento da Sua missão. Há aqui como que uma ponta extrema da Encarnação,
porque JESUS exerce ao mesmo tempo a influência de DEUS sobre o mundo circunstante como sobre a
própria carne.
Se olharmos estes milagres à luz do AT, veremos melhor o valor deste desdobramento de poder
divino. Quando JESUS caminha sobre as águas, Ele realiza concretamente e sensivelmente aquilo que
tinha sido dito de JHWH: “sobre o mar passava o Vosso caminho, a Vossa senda sobre grandes
águas” (Sl 77,20). Quando acalma a tempestade reconhece-se n’Ele a soberania de JHWH “Que
aplaca o tumulto dos mares, o fragor das suas ondas” (Sl 65,8; cf. 89,10; 107,29). Não se pode
esquecer que o domínio sobre o mar tinha sido atribuído particularmente ao Criador na obra da
formação do universo (Gn 1,7; cf. Pr 8,29). JESUS manifesta possuir pessoalmente este poder. Aquilo
que DEUS tinha realizado pelas intervenções na história do povo eleito e, particularmente, na
passagem do Mar dos Juncos, JESUS o realiza na Sua existência humana. N’Ele reside todo poder
divino, e este poder pode desdobrar-se em plenitude numa vida de homem: aquilo que para JHWH
não podia ser senão metáfora, torna-se n’Ele realidade material.
O mesmo vale para as curas. Quando, em Jó 5,18, Elifaz declara que as mãos de DEUS curam,
estas mãos não podiam ser senão uma imagem. Em JESUS Que impõe as mãos sobre os doentes, a
figura torna-se realidade sensível (Mt 9,18; Mc 5,23; 6,5; 7,32; 8,23-25; 16,18; Lc 4,40; 13,13). N’Ele,
DEUS tem verdadeiras mãos de homem para curar. Quando JESUS “estende a mão” e toca o leproso
(Mc 1,41 e par), o Seu gesto dominador (cf. Ex 7,19; 14,16) intenciona colocar-se acima da Lei que
proibia todo contato com os leprosos (cf. Lv 4). JESUS reivindica uma autoridade divina que se
exprime no sentido da bondade: somente as mãos de DEUS podem tocar aqueles que tinham sido
excluídos da sociedade dos homens.

4) O significado dos milagres


Vimos que JESUS tinha atribuído aos Seus milagres o valor de indicação da própria identidade,
ao menos da Sua identidade messiânica, à qual se referia diretamente a pergunta dos discípulos de
João Batista. João tinha ouvido falar na sua prisão das “obras de CRISTO” (Mt 11,2), isto é, sobretudo
dos Seus milagres: como então JESUS lhe dá uma resposta indicando para os Seus milagres?
Conforme a pergunta do Batista estas obras não bastavam a seu ver; ele esperava alguma outra coisa
(ainda), uma ação mais diretamente messiânica que devia comportar um desdobramento de um poder
temível, aquele que ele tinha anunciado na sua pregação (Mt 3,7-2; Lc 3,7-18). JESUS quer fazê-lo
entender que nos milagres se realiza Sua missão de Messias, mas uma missão que se cumpre de outro
modo, não na demonstração de poder da parte de um DEUS Vingador, mas sim na benevolência
milagrosa que se expressa no dom da “Boa Nova” aos pobres.
É útil recordarmos que por ocasião da cura do paralítico, JESUS indicou expressamente o valor
que Ele mesmo atribuiu a este milagre: “para que saibais que o FILHO do homem tem poder sobre a
terra de perdoar os pecados ...” (Mc 2,2-11 e par). O milagre é, portanto, sinal da identidade de JESUS
enquanto revela o FILHO do homem e Seu poder. Mas é mais exercício do poder divino de libertação.
A cura corporal é manifestação sensível da salvação espiritual, da remissão dos pecados. A intenção
salvífica é particularmente elucidada pelo fato que a este enfermo que deseja receber a cura corporal,
JESUS diz por primeiro: “Filho, perdoados te são os pecados” (Mc 2,5 e par). O milagre não é fim a si
mesmo; é requerido pela obra da salvação e exprime num sinal físico a realidade de ordem espiritual
que se está cumprindo. Pertencendo os milagres à categoria dos “sinais”, pode-se dizer que são “a
55 Cristologia

dimensão corporal da mensagem espiritual” e fazem parte, essencialmente da mensagem de JESUS.


Eles são o Reinado de DEUS em atos visíveis, constatáveis.
As palavras de JESUS por ocasião da cura do paralítico elucidam bem o valor demonstrativo do
milagre. É um valor que só se compreende num contexto de fé: o acento não é posto sobre o caráter
meramente excepcional (extraordinário) do fato (não explicável pelas forças naturais), mas sobre a
manifestação de um poder divino no qual as testemunhas são convidadas a acreditar. De um lado é
“tendo visto a sua fé” (Mc 2,5) (a fé dos que colocam o paralítico diante de JESUS), que JESUS
concede o perdão dos pecados, e por outro lado, é para responder à incredulidade daqueles que O
acusam de blasfêmia (2,7), que JESUS realiza a cura. Também nesta incredulidade há uma fé em DEUS
(“só DEUS pode perdoar os pecados”), mas JESUS quer mostrar que esta fé em DEUS deve prolongar-
se em fé na Sua Pessoa.
Quando JESUS censura duramente as cidades do Lago de Genesaré, é porque elas não se
converteram apesar dos numerosos milagres realizados sob seu olhar (Mt 11,20-24; Lc 10,13-15).
Precisa notar ainda outra característica: JESUS realiza a cura do paralítico no Seu próprio nome. O
Seu modo de falar põe em relevância a Sua autoridade pessoal: “Eu te ordeno, levanta-te, toma a tua
enxerga ...” (Mc 2,11). A questão a ser resolvida é a questão do Seu poder: Ele tinha pessoalmente um
poder que pertence a DEUS somente? JESUS fornece as provas que o FILHO do homem tem sobre a
terra o poder de DEUS.
Em outros episódios esta mesma autoridade pessoal de JESUS aparece claramente: “Eu quero, sê
curado”, diz ao leproso (Mc 1,41). “Menina, Eu te digo, levanta-te!”, diz à filha morta de Jairo (Mc
5,41). Ao acalmar a tempestade “ameaça” o vento e ordena ao mar, e estes Lhe “obedecem” ( Mc
4,39-41). Assim também ordena a Lázaro morto que saia do sepulcro. Nesta ocasião dá graças ao PAI
Que sempre O atende: atesta assim que a autoridade é a de um FILHO, mas o modo como realiza o
milagre mostra com clareza que, como FILHO, Ele possui pessoalmente o poder divino sobre a morte e
sobre a vida: “Lázaro, vem para fora!” (Jo 11,43). Antes tinha requerido de Marta um ato de fé n’Ele
mesmo (Jo 11,25s).
Esta reivindicação de autoridade pessoal é confirmada pelos milagres da Igreja primitiva: os
Apóstolos operam milagres não, precisamente, no nome de DEUS, mas no nome de CRISTO: “No nome
de JESUS CRISTO Nazareno, levanta-te e anda”, diz Pedro (At 3,6; cf. também 9,34). São Paulo quer
proclamar o que CRISTO fez através dele, “por virtude de sinais e prodígios” (Rm 15,18s).
Esta é a característica definitiva do milagre: não é somente um desdobramento sensível de poder
divino, mas está sempre ligado à Pessoa de JESUS. De fato, é em JESUS que o poder divino se
encarnou, e esta encarnação do poder divino está ligada à Encarnação de Sua Pessoa de FILHO. É uma
ulterior ilustração do dinamismo da encarnação, na qual a ontologia da Pessoa e o exercício da ação
estão indissoluvelmente unidos.

5) Os milagres, expressão do amor salvífico


Vimos que, respondendo à pergunta de João Batista, JESUS faz reconhecer Sua identidade através
dos milagres, os quais são todos expressão do amor que salva: é um DEUS misericordioso, libertador
e não um DEUS vingador, Que está aqui em ação.
É notável que no comportamento de JESUS não se encontre um gesto análogo àquele do Apóstolo
Paulo que cegou temporariamente o mago Elimas (At 13,11). JESUS não opera nunca milagres contra
alguém (cf. Lc 9,54s: Ele não quer lançar fogo sobre uma cidade samaritana hostil).
O que JESUS faz “contra alguém” são as expulsões dos demônios. O que JESUS veio destruir é o
reinado de Satanás. Ora, o reinado (e assim, o reino) de satanás é destruído pelo estabelecimento do
Reinado (e Reino) de DEUS: “Se Eu expulso os demônios pelo dedo de DEUS, então já chegou até vós
o Reinado de DEUS” (Lc 11,20). O dedo de JESUS é, portanto, o “dedo de DEUS”: há um dedo humano
que é realmente dedo de DEUS. Além disso, JESUS identifica a Sua vinda com a vinda do Reinado
(Reino) de DEUS. Não diz somente que destruindo o domínio de Satanás estabelece o Reinado de
DEUS; Ele afirma que este Reinado já chegou: é n’Ele que está presente.
Se há nisso um aspecto de destruição não é outra coisa senão a expressão da salvação, da
libertação trazida por JESUS à humanidade. Os milagres de JESUS testemunham, também neste
aspecto, a benévola ação salvífica de DEUS.
Cristologia 56

Outro aspecto a ser ainda considerado é a freqüência dos milagres realizados no dia de sábado:
sendo o sábado o dia do Senhor, os milagres realizados neste dia destinavam-se a manifestar, do
modo mais particular, o significado da ação de DEUS. Sabemos que JESUS justificou estes milagres
com o comportamento do PAI ao qual Ele devia conformar-Se: “Meu PAI opera também (até) agora
(héos arti = ainda está operando) e Eu também opero” (Jo 5,17).
Esta justificação, dada no evangelho de São João, completa aquilo que tinha sido dito a respeito
das acusações de violar o sábado, no evangelho de São Marcos. Em Mc era o ponto de vista do
homem que era considerado: como pode um homem ter a arrogância de permitir violações do sábado?
JESUS tinha respondido: uma vez que o sábado foi feito para o homem e não vice-versa, o FILHO do
homem era senhor do sábado Mc 2,27s). Aqui, em João, tratando-se de um milagre realizado em dia
de sábado, a objeção é feita do ponto de vista de DEUS: a cura milagrosa não podia ser obra de Quem
tinha estabelecido o sábado e Que, Ele também, repousou no sétimo dia da criação. JESUS corrige esta
maneira de conceber a atividade divina; o PAI não cessa nunca de operar, inclusive no dia de sábado.
O milagre operado neste dia é, portanto, em plena conformidade com a verdadeira ação de DEUS.
Os adversários vêem nas palavras de JESUS uma reivindicação de igualdade com DEUS: “Por essa
razão, mais do que até então, os judeus procuravam dar-Lhe a morte; não só por violar o sábado, mas
também por chamar a DEUS Seu PAI, fazendo-Se igual a DEUS” (Jo 5,18). JESUS Se apresenta como
Quem age como DEUS (atividade comum a JESUS e a DEUS PAI) com a autoridade divina, e apresenta
uma nova imagem de DEUS (o PAI opera sempre). Os milagres de sábado demonstram o amor
incessante de DEUS para com os homens.
Unindo as diferentes perspectivas em Mc e Jo podemos dizer: é através de JESUS homem (Mc: o
FILHO do homem, senhor do sábado) Que realiza milagres em dia de sábado, que o PAI quis revelar a
intenção amorosa que inspira Sua ação. A ação de DEUS no mundo assume Sua forma definitiva na
ação de JESUS.

3. Encarnação da presença

a) Templo e casa de DEUS


Em relação ao templo de Jerusalém JESUS Se definiu como o verdadeiro templo: “Ora Eu vos
digo que há aqui algo maior do que o templo” (Mt 12,6). JESUS afirma aqui uma superioridade
análoga àquela que tem em relação a Salomão e a Jonas. Uma vez que o valor essencial do templo
consistia na presença divina, acima do templo não podia haver senão esta mesma presença divina.
JESUS insinua, portanto, que na Sua Pessoa está escondida (e se revela também) a autêntica presença
divina.
Uma outra palavra de JESUS sugere a mesma idéia: “Em verdade, em verdade vos digo: vereis o
céu aberto e os Anjos de DEUS subir e descer sobre o FILHO do homem” (Jo 1,51). Segundo Gn 28,12,
os Anjos de DEUS sobem e descem por uma escada do céu, no sonho de Jacó: o FILHO do homem
representa aqui ou a escada que se levanta até ao céu ou (melhor) o lugar que por Jacó é chamado de
“casa de DEUS”, porque “JHWH está neste lugar” (Gn 28,16s). O FILHO do homem é, portanto, o
lugar na terra, no qual DEUS está presente; Ele é concretamente a presença divina sobre a terra.

b) EGO eimi

1) O significado da afirmação
Uma afirmação em Jo 8,58 elucida fortemente a encarnação da presença divina em JESUS: “Em
verdade, em verdade Eu vos digo: antes que Abraão viesse a existência, EU sou.” A expressão “EU
sou” (Ego eimi) contém uma referência ao episódio do Êxodo (3,14) no qual JHWH revelara Seu
nome a Moisés: “EU sou: ‘Eu sou’.” Através deste nome JHWH não Se atribuía uma existência
abstrata, como poderia sugerir a tradução: “EU sou Aquele Que é”; Ele Se definia através de uma
presença concreta. O verbo “ser” tem aqui valor de intensidade: “Eu sou, estou presente (e ajo)
poderosamente. Ele é e está sempre presente, de uma presença que não pode ser suprimida e que
permanece imutavelmente fiel. O “EU sou” garante assim a promessa anteriormente feita a Moisés
para o cumprimento da sua missão: “EU estarei contigo” (Ex 3,12).
57 Cristologia

É esta presença divina que permanece sempre em JESUS. A afirmação acentua o contraste entre o
“vir a ser” de Abraão, o que é próprio da criatura (cf. Jo 1,3), e o ser do “EU sou”, anterior a qualquer
vir a ser (Antes que Abraão viesse a existir, Eu era eternamente, como agora Eu sou e continua a ser).
O contexto desta afirmação manifesta que o “EU sou” afirmado por JESUS é aquele do FILHO (Jo
8,54); é portanto distinto daquele do PAI, e introduz, por isso, no “EU sou” uma distinção antes
desconhecida.
No evangelho de São João esta atribuição do “EU sou” não é um fato isolado. É a respeito dela
que JESUS requer particularmente a fé: “Se não credes que Eu sou, morrereis nos vossos pecados”
(8,24). “Quando tiverdes exaltado o FILHO do homem, então compreendereis que EU sou” (8,28).
“Desde já vo-lo digo antes que aconteça, para que, quando se cumprir, acrediteis que Eu sou” (13,19).
A expressão grega “Ego eimi” pode ser traduzida “Eu sou” ou “sou Eu”. A alusão às declarações de Is
41,4; 43,10-25; 46,4; 48,12; 51,12; 53,16 9cf. Dt 32,39) aconselha a tradução: “sou Eu”. Precisa
confrontar Jo 13,19 com Is 43,10: “a fim de que saibais, criais e compreendais que sou Eu”. Aqui (no
Dêutero-Isaías) a fórmula “sou Eu” (ani-hu) refere-se ao Eu de JHWH; é menos explícita do que a
afirmação “Eu sou JHWH” (esses textos de Is talvez contenham uma alusão a Ex 3,14-16).
Assumindo esta fórmula (de Is) JESUS refere-Se à Sua identidade divina, evitando ao mesmo tempo de
pronunciar o nome de DEUS. Deste modo Ele adota uma expressão que, pela sua indeterminação,
pode ser usada nas relações humanas sem chocar necessariamente os interlocutores e que Lhe
permite confiar o Seu mistério somente àqueles que nele querem penetrar.
Esta fórmula permite a JESUS uma perfeita encarnação da Sua afirmação de identidade divina.
Permite-Lhe dizer “sou EU” assim como o dizem os outros homens quando chegam aos seus
familiares e se fazem reconhecer por estes. É uma afirmação plenamente humana de identidade
divina.
É assim que esta fórmula se encontra em outros trechos do evangelho, ao se encerrar o encontro
com a Samaritana (Jo 4,26), no momento da prisão (Jo 18,5.6.8): a fórmula tem sobretudo o
significado normal que o diálogo lhe confere, mas ao mesmo tempo tem um significado misterioso
que é sugerido por alguns indícios do relato.
No caso da Samaritana, JESUS tinha oferecido a água viva, aquela que jorra até a vida eterna (Jo
4,10-14). Se Ele então, neste contexto, reivindica a qualidade de Messias dizendo: “sou Eu, Que fala
contigo”, Ele coloca este messianismo num nível divino atribuindo-Se o poder de comunicar a vida
divina. A insinuação do mistério divino não é menos atestada no momento em que JESUS, dizendo
“sou Eu”, faz recuar aqueles que vieram prendê-l’O, tanto que alguns caem por terra como se
devessem reconhecer, contra a vontade, a Sua soberania.
Particularmente interessante é a concordância de João com Mateus e Marcos no episódio de
JESUS que caminha sobre as águas. Todos os três referem a fórmula: “Sou Eu, não temais” ( Mt 14,27;
Mc 6,50; Jo 6,20). Trata-se do “sou Eu” familiar de um homem que chega junto aos seus amigos, mas
também d’Aquele que manifesta Seu poder divino no Seu domínio sobre a natureza (note-se também
que o imperativo “não temais” é algo próprio a teofanias). Estas palavras de JESUS podem ter, como
fundo veterotestamentário, Is 43,1-3: “Não temas,... porque sou Eu, JHWH, o teu DEUS, o Santo de
Israel, teu Salvador”. Para justificar esta referência, poder-se-ia dizer também que JESUS caminhou
sobre o lago, já que o oráculo de Isaías dizia: “Se tiveres de atravessar as ondas, estou contigo; através
dos rios, eles não te submergirão” (43,2). Tudo se dá como se JESUS “encarnasse” este anúncio
profético, realizando sensivelmente a passagem através das águas para estar com Seus discípulos. O
“sou Eu” ressoa, portanto, como aquele de JHWH no AT, e em certo sentido até de modo mais
impressionante, em virtude de uma presença sensível, humana. Segundo Mateus os discípulos
reconheceram em JESUS um mistério divino, já que se prostraram diante d’Ele dizendo:
“Verdadeiramente Tu és o FILHO de DEUS” (Mt 14,33).
O acordo com os evangelhos sinóticos confirma que a fórmula “Ego eimi” não é uma “invenção
teológica” de S. João, como certos exegetas pensaram. O contexto tem justamente esta vantagem:
mostra que JESUS podia servir-se desta locução da maneira mais natural, mas carregando-a de um
conteúdo secreto, e isto ou pelas circunstâncias ou/e por uma evocação de textos proféticos.
Marcos (14,62) e Lucas (22,70) apresentam esta fórmula também em outra ocasião: na
declaração mais solene e decisiva que JESUS fez sobre Sua identidade, diante do Sumo Sacerdote
Caifás e de todo o Sinédrio. Não se poderia compreender o “Ego eimi” da resposta a Caifás no
Cristologia 58

simples significado de “Eu o sou”, quer dizer: “Eu sou o FILHO de DEUS”. JESUS quer certamente
afirmar ser o FILHO de DEUS, mas exprime isto na própria linguagem, dizendo “sou Eu” ou “Eu sou”,
como JHWH tinha dito no AT. Ele sabe que, aos olhos do Sinédrio, com esta resposta Se torna réu de
blasfêmia e provoca Sua condenação, mas esta fórmula implica justamente uma persistência no ser,
capaz de vencer a morte. O “Ego eimi” exprime uma presença que não poderá ser eliminada deste
mundo.
Depois da ressurreição é ainda por esta fórmula que JESUS reconhece a própria identidade aos
Seus discípulos: “Olhai Minhas mãos e Meus pés: sou Eu mesmo” (ego eimi autós) (Lc 24,39). Neste
último caso precisa constatar que também no Seu novo estado de ressuscitado a Sua presença divina
permanece encarnada.
Esta presença perdurará para sempre em favor dos Seus discípulos: “Eis que Eu estou convosco
(ego meth’hymõn eimi) todos os dias até ao fim do mundo” (Mt 28,20). A fórmula da Antiga Aliança:
“Eu estarei contigo” (Ex 3,12) adquire a sua forma definitiva, com uma novidade essencial: a forma
de presença divina que não deixará jamais de ser ao mesmo tempo presença humana. Plenamente
encarnado, o “Eu sou” ou o “sou Eu” é tanto mais inseparável do “convosco”.
Encontramos aqui a confirmação do valor do ontológico. No momento em que JESUS envia Seus
discípulos em missão, poderia limitar-Se a assegurar-lhes a Sua assistência, juntamente com a
comunicação do Seu poder: “Foi-Me dado todo o poder no céu e na terra. Ide, pois, ensinai a todas as
nações” (Mt 28,18s). Ora, não somente Se empenha para sustentar os Seus discípulos, mas promete-
lhes a Sua presença. Ele deseja que a missão dos Seus discípulos se baseie nesta presença que os
acompanha.
A presença prometida é essencialmente dinâmica. Com efeito, a expressão “até a consumação do
tempo (héos tes synteleías tou aiõnos)” (Mt 28,20) é mais do que uma simples indicação cronológica:
sugere que toda a história, com o desenvolvimento da Igreja, será caracterizada pelo dinamismo da
encarnação que invadirá sempre mais a humanidade, até realizar aquele grau de encarnação
necessário para a consumação (!) do tempo.31

2. Teologia do “Ego eimi”:


É a partir de situações bem humanas que a expressão “Ego eimi” evoca um mistério e implica
uma teologia. “Sou eu” é a expressão mais apropriada para fazer perceber uma presença familiar; é
este o contexto existencial dentro do qual JESUS revela Sua identidade. Notemos bem: a primeira
finalidade da fórmula não é de afirmar uma distância, mas uma proximidade.
Deste ponto de vista o exemplo mais significativo é fornecido pelo episódio do caminhar sobre as
águas, porque dizendo: “Sou Eu, não tenhais medo” (Mc 6,50; Mt 14,27; Jo 6,20), JESUS quer fazer-
Se reconhecer como um amigo do qual não se precisava ter medo. Mas o modo milagroso de Ele se
aproximar e a alusão a um oráculo profético no qual o “sou Eu” de JHWH queria banir o medo, estas
circunstâncias insinuam a identidade divina. Por conseguinte, se se devesse traduzir a intenção do
“sou Eu” de JESUS nessa circunstância, precisaria parafrasear: “Não quero espantar-vos, pois, se o
Meu ‘Eu’ é divino, desejo, no entanto, que vós o reconheçais na familiaridade mais íntima”.
Contrariamente ao que poderia fazer supor a tradução “Eu sou”, o acento está sobre a presença,
mais do que sobre o ser (a existência) como tal. Já no AT o nome com o qual JHWH Se apresenta a
Moisés, “Eu sou”32 (Ex 3,14), destina-se a assegurar uma presença perpétua, na fidelidade à aliança:
“Eu estarei contigo” (Ex 3,12). Toda vez que JESUS usa o “Ego eimi”, deseja afirmar Sua presença,
quer dizer uma existência que não se fecha em si mesma, mas que se dirige aos homens e se coloca
em contato com eles. A presença é “a existência para o outro”.
Para a Samaritana que esperava a vinda do Messias num futuro indeterminado, o “sou Eu” de
JESUS exprime o dom de uma presença atual. Também quando a atenção se transfere para a
eternidade da existência, é ainda a presença que é visada: “Antes que Abraão viesse a existir, Eu sou”
(8,58). Conforme o diálogo, JESUS quis afirmar que já estava presente a Abraão, e que esta presença
permanece para aqueles que apelam a Abraão como seu pai. Quando JESUS exige a fé no “Ego eimi”

31
Cf. Ef 1,23: CRISTO é “a plenitude daquilo que de todo modo em todos está sendo enchido (tò pléroma tou tá
pánta em pásin pleroumenou); Ef 4, 10: “para encher tudo” (hína pleróse tá pánta).
32
Este “Eu sou” é a garantia firme, o fundamento último da Sua presença-assistência poderosa e fiel.
59 Cristologia

(“a fim de que creiais que sou Eu”; Jo 13,19; cf. 8,24.28), trata-se ao mesmo tempo de uma fé na Sua
presença e de uma fé na Sua identidade. No momento da prisão Ele diz “sou Eu” com a intenção de
assegurar uma presença que dominará os Seus adversários, e na resposta a Caifás ele intenciona
afirmar, com o “Ego eimi”, uma presença tal que já não poderá ser eliminada, sendo garantia disso a
vinda do FILHO do homem sobre as nuvens do céu. Depois da ressurreição ressoa o triunfo desta
presença nas palavras “sou Eu mesmo” (Lc 24,39). A promessa de uma presença perpétua é dada
solenemente aos discípulos.
Esta última promessa revela a orientação da presença para o futuro. O que é sugerido é que a
presença do “Eu estou convosco” é, entretanto, o princípio de desenvolvimento da história da
humanidade, a força que conduzirá à consumação do tempo (Mt 28,20). Não é somente o ser absoluto
que, inserindo-Se no vir a ser da criação, o faz chegar ao seu fim, mas a presença de um Eu que quer
progressivamente reunir os homens ao redor de Si.
A presença do “sou Eu” é essencialmente de benevolência. Longe de condenar a Samaritana, a
atrai à conversão e à fé. O “sou Eu” de quem caminha sobre as águas vem em socorro dos discípulos
na sua luta com o mar e se digna de comunicar a Pedro o próprio poder sobre as águas. Na Paixão, o
“sou Eu” manifesta a acessibilidade e a disponibilidade aos adversários, juntamente com a refutação
de combatê-los como inimigos. O “Eu estou convosco” de JESUS ressuscitado (literalmente: “Eu
convosco sou (estou)”) exprime no grego a conexão indissolúvel entre “Eu sou” e “convosco”. A
aliança é, de algum modo, incorporada no “Eu sou” de CRISTO (“Eu – convosco – sou”). Também
aquilo que JESUS tem de mais pessoal, o Seu “sou Eu”, é definitivamente compartilhado com Seus
discípulos.
A fórmula “Ego eimi” contém, portanto, a afirmação de um amor. JESUS desvela, é verdade, a
Sua transcendência divina, pois exprime Seu domínio sobre o correr do tempo, passado e futuro, Sua
serenidade que o coloca acima da agitação das coisas, da dependência das ondas e das tempestades, e
Seu triunfo sobre a morte. Mas este poder do “Ego eimi”, Ele o manifesta somente em vista de
comunicá-lo e beneficiar com ele os Seus discípulos. A revelação do Ser eterno visa à comunhão.
Por fim, é importante sublinhar que o “Eu” da fórmula “Eu sou” não tem nada de egocentrismo.
É o “Eu” de um FILHO que vive da Sua relação ao PAI (cf. Jo 8; Mc 14,62; Lc 22,70). Mt 28,18 (“todo
poder Me foi dado”) manifesta que é como FILHO do PAI que JESUS permanece presente aos Seus.

c) A presença fonte de vida


A presença assume também um outro aspecto, segundo a imagem da videira: “Eu sou a videira,
vós sois os ramos” (Jo 15,5). Aqui a presença comporta uma permanente comunicação de vida; não é
mais um “permanecer com”, mas um “permanecer em”; daí a norma para o discípulo: “Permanecei
em Mim e Eu em vós”. A presença divina encarnada em JESUS tende assim a estender aos discípulos
a Sua força de encarnação. A divindade desta presença é elucidada pela imagem da videira da qual
provém a seiva que faz viver: fonte da vida não pode ser senão DEUS.
A imagem da videira significa um constante fluxo vital para os ramos que permanecem unidos à
videira. Trata-se de uma presença dinâmica; aqui o acento não está mais colocado sobre as relações de
pessoa a pessoa como no “estar com” ou na imagem do Bom Pastor, mas sobre o íntimo fluxo de
vida, sobre a transformação da natureza humana.
A imagem está em relação com a SS. Eucaristia; esta relação é evidente por causa da imagem
mesma. É a imagem de uma infusão de vida, da qual a Eucaristia é justamente a expressão mais
característica. Esta imagem mostra que o vinho convertido no sangue da aliança não é somente um
dom transitório; é a expressão de um dom mais profundo de presença contínua. Por isso, é no quadro
desta presença que a instituição da Eucaristia adquire todo o seu significado. As palavras “Isto é o
Meu Corpo” (“a Minha Carne”) e “isto é o Meu Sangue” são como uma encarnação particular do
“sou Eu”. Carne e Sangue têm sim seu significado material concreto, mas designam o ser humano,
implicando a presença da pessoa. Não os podemos separar do “Ego eimi”, nem do “Eis que Eu estou
convosco todos os dias até a consumação do tempo” (Mt 28,20). Na promessa da Eucaristia, assim
como é relatada por S. João, a afirmação “Eu sou o Pão da vida” (Jo 6,35.48), “Eu sou o Pão vivo
descido do céu” (6,51; cf. 6,41) recebe esta explicação: “O pão que Eu darei é a Minha carne para a
vida do mundo” (6,51).
Cristologia 60

JESUS afirma de realizar aquilo que o maná outrora tinha anunciado em figura; Ele o realiza num
“Eu sou” ou “sou Eu” que evoca o supremo Vivente que é DEUS mesmo. Por isso não somente doa a
vida, mas é a vida mesma (cf. Jo 11,25; 14,6).
Isto nos indica como conceber a SS. Eucaristia: uma manifestação particularíssima da presença
mais ampla prometida aos discípulos. Também não se deve ver a SS. Eucaristia somente no seu
aspecto funcional imediato: de alimento e bebida. Existe este aspecto e é até essencial, mas não deve
velar o aspecto ontológico que é ainda mais fundamental. A afirmação de JESUS não é: “isto é o vosso
alimento”, “esta é a vossa bebida”, mas “isto é a Minha carne (corpo)”, “este é o Meu sangue”. É uma
afirmação de presença pessoal no Seu próprio Corpo, carne e sangue do FILHO do homem descido do
Céu e subido de novo ao Céu e repleto do ESPÍRITO (Jo 6,63), carne e sangue que asseguram a
encarnação da presença divina.
Para permanecer fiel ao que os evangelhos ensinam sobre a SS. Eucaristia relatando sua
instituição, deve-se vê-la na perspectiva da presença do “sou Eu”. A “memória” (“memorial”) não é
senão a atualização da presença. A comida é a penetração desta mesma presença na vida íntima dos
discípulos.

IV. KENOSIS E GLÓRIA


As palavras com as quais JESUS revelou Sua identidade, não possuem a clareza fulgurante que
talvez tivéssemos desejado ou previsto da parte de quem quer fazer-Se descobrir como FILHO de
DEUS. Elas dão margem à discussão por causa de certa obscuridade que comportam. Nunca JESUS
renunciou à Sua discrição; Ele poderia ter afirmado abertamente que Ele era DEUS, mas nunca disse
isto expressamente. Ele Se servia de alusões, insinuações ou demonstrações veladas que deixavam
subsistir um espaço de mistério.

A) Obscuridade da revelação

1. A diferença entre a linguagem de JESUS e aquela da comunidade (apóstolos)


JESUS não falou de Si mesmo com os termos usados pelos Seus discípulos para designá-l’O (cf. o
que foi dito acima). O exemplo bem claro é a expressão “FILHO do homem”. É um termo que, por si
só, significa simplesmente “homem”, e que, por esta razão, não foi assumido na linguagem da
comunidade cristã. De fato, não é um título propriamente dito, no sentido de uma qualidade que faça
aparecer diretamente a missão ou a personalidade transcendente de JESUS. Mas JESUS servia-Se desta
expressão num sentido que continha a indicação da Sua missão e da Sua personalidade transcendente
(uma indicação de que os discípulos perceberam em “FILHO do homem” (“bar nasha” em aramaico)
mais do que “homem”, é o fato de esta expressão nunca ter sido traduzida por “homem” (anthropos),
sempre por “ho hiòs tou antrópou”).
A diferença entre a linguagem da fé cristã e aquela de JESUS garante a autenticidade do
testemunho que temos a respeito desta última.
Atingimos, portanto, a JESUS com Sua originalidade no Seu modo misterioso de apresentar a Sua
identidade divina, na Sua maneira de dizer “ABBA” e “sou Eu”, de chamar-Se FILHO do homem, de
identificar-Se com a aliança, de reivindicar e exercer poderes divinos, de fazer compreender que Ele é
a Palavra divina e a presença divina, de agir como soberano e centro do Reino de DEUS. É uma
maneira única de falar de Si, e ficou única. A comunidade cristã, na explicitação da própria fé não
podia parar nesta etapa; ela esforçou-se por formular a seu modo a identidade de JESUS, baseando-se
sobre aquilo que Ele tinha dito e feito.
A diferença tem seu valor. Ela nos permite colher o significado fundamental da revelação que
JESUS fez de Si e que ultrapassa toda formulação posterior.
Neste ponto aparece bem manifestamente esta verdade: é JESUS histórico que é a origem da fé
cristã, e não a comunidade cristã após o Pentecostes. O dinamismo da Cristologia tem sua fonte em
JESUS mesmo e, mais precisamente, na consciência que JESUS tinha da Sua identidade. Vemos esta
consciência exprimir-se nos evangelhos de um modo que precede todas as formulações: ela suscita as
61 Cristologia

fórmulas de fé, mas sem poder ser totalmente alcançada por elas; por isso ficará sempre o primeiro
testemunho ao qual a fé se deve referir.

2. Abstenção do uso de títulos


Por que JESUS não se apresentou com títulos que teriam sido mais claros: Messias, FILHO de
DEUS, Senhor, DEUS?
O uso destes títulos teria trazido consigo um risco de incompreensão: poderiam ter induzido ao
erro os ouvintes.
Se JESUS Se tivesse designado como o M e s s i a s , os Seus ouvintes teriam acreditado
encontrar n’Ele a resposta às esperanças de um messianismo terreno e político. Sabemos que os
judeus esperavam um libertador nacional, e que por ocasião da multiplicação dos pães acreditaram
encontrar em JESUS o rei que desejavam. Os próprios discípulos aspiravam pela reconstituição do
reino de Israel (cf. também At 1,6). Assim se entende porque JESUS evite chamar-Se “CRISTO” ou
“Filho de Davi”: com base na disposição interior dos Seus contemporâneos, teria sido dar uma falsa
idéia de Si. Quando Pedro faz sua profissão de fé em JESUS, dizendo “Tu és o CRISTO”, ele mostra
logo depois que não entendera o sentido de um messianismo destinado a realizar-se através da morte e
da ressurreição. Realmente, somente depois da Sua partida definitiva deste mundo, JESUS pode ser
chamado o CRISTO (Messias) segundo a verdadeira acepção do título, excluindo o equívoco.
Porque JESUS não usou, como autodesignação, o título que O identificará nos enunciados da fé: o
título de “FILHO de DEUS”? Também quando responde à pergunta solene sobre Sua identidade, no
processo diante de Caifás, Ele evita repetir a expressão usada pelo Sumo Sacerdote, apesar de Sua
resposta ser afirmativa.
Esta expressão, ao menos segundo a variedade de atribuições que ela recebera no AT, não teria
podido exprimir a singularidade de JESUS. Esta expressão tinha servido para designar os Anjos (Sl
29,1; Jó 1,6; 2,1; 38,7), o povo de Israel (Ex 4,22; Os 11,1; Jr 31,9.20; Sb 18,13), os israelitas em
geral (Os 2,1; Dt 14,1; Is 1,2) indivíduos que gozavam de uma dignidade eminente, príncipes e juizes
(Sl 82,6) e sobretudo o rei (2 Sm 7,14; 1 Cr 17,13; 22,20), indivíduos notáveis pela sua perfeição
moral, os justos (Sb 2,18; 5,5; 12,19), os caridosos (Sr 4,10), e o rei messiânico (Sl 2,7; cf. Sl 89,27).
Diante desta variedade de aplicações, JESUS não podia servir-Se deste título para indicar a própria
identidade. Ele mesmo aceita o significado mais amplo da expressão quando chama de “filhos de
DEUS” os obreiros de paz (Mt 5,9) e filhos do PAI aqueles que amam seus inimigos (Mt 5,45; Lc
6,35).
A expressão é mais apta para os outros do que para Ele. Em si considerada, ela não é das mais
exatas para caracterizar a Pessoa de JESUS; pois ela sugere, distinguindo o Filho e DEUS, que este
Filho é simplesmente um homem. Ora, enquanto FILHO, JESUS é DEUS. Tomada a todo rigor da
expressão, “FILHO de DEUS” significaria que Ele é FILHO do DEUS Trinitário e, por conseguinte,
FILHO d’Ele mesmo e do ESPÍRITO SANTO. Falando com toda a exatidão, Ele é o FILHO do PAI, DEUS
FILHO defronte a DEUS PAI. O significado que a comunidade cristã dará à expressão “FILHO de
DEUS” corrigirá sua imperfeição compreendendo-a no sentido de “DEUS FILHO”. JESUS usou uma
linguagem mais exata ao Se abster de aplicar a Si mesmo este título.
JESUS não podia ter impedido as discussões a respeito da Sua identidade divina afirmando
decididamente que Ele era DEUS? Também esta afirmação não teria sido suficiente para eliminar as
dúvidas e as controvérsias, porque as tentativas de dissolver-lhe o alcance não teriam faltado.
Algumas recentes interpretações da expressão “verdadeiro DEUS”, empregada pelo Concílio de
Calcedônia, querendo reduzi-la ao sentido de “verdadeira manifestação de DEUS” (assim Hans Küng),
revelam como as afirmações mais claras podem ainda ser objetos de interpretações que as
desnaturam.
Mas também ao aplicar a Si o termo “DEUS”, teria havido um grave risco de erro. Declarar-Se
DEUS podia provocar confusão: que Ele fosse idêntico a JHWH do AT, a quem Israel tinha aprendido
a considerar como um PAI. Ora, JESUS não podia deixar os Seus ouvintes pensar que Ele fosse o PAI.
Ele podia dizer-Se DEUS somente sob a condição de fazer entender que Ele é o FILHO, pessoalmente
distinto do PAI. Uma vez que esta distinção de Pessoas divinas não era fácil de fazer compreender,
JESUS evitou uma afirmação que não podia ter deixado de provocar confusão.
Cristologia 62

Apresentando-Se simplesmente como DEUS não teria sido senão oferecer uma falsa clareza, e
suscitar reações mais hostis a uma reivindicação que, mal entendida, teria aparecido tanto mais
inaceitável.
Por que JESUS não Se atribuiu o título que, de preferência Lhe dará a primeira comunidade,
aquele de “SENHOR”? A resposta é-nos sugerida suficientemente por diversas palavras de JESUS
nos evangelhos. O título “Senhor” certamente teria tido a vantagem de insinuar uma certa distinção
entre o FILHO e o PAI; é a terminologia adotada por S. Paulo que proclama a fé num único DEUS, o
PAI, e num único Senhor, JESUS CRISTO (1 Cor 8,6). Mas teria havido o inconveniente de soar como
uma pretensão de domínio. Ora, se há uma atitude fundamental de JESUS, é aquela que consiste em
servir. O termo “Senhor” teria sido inapto para exprimi-la. Segundo Jo 13,12ss, JESUS ressalta o
contraste entre o título de “Senhor” e a humilhação de lavar os pés aos discípulos. O título “Senhor”
teria sugerido a muitos uma imagem falsa das intenções e do comportamento íntimo de JESUS.

3. Revelação destinada aos pobres


Por que JESUS não usou uma terminologia mais precisa para definir Sua identidade? Evitando
títulos que podiam prestar-se a mal-entendidos, poderia ter acrescentado um certo número de
explicações esclarecedoras que teriam tornado mais fácil a tarefa dos exegetas e teólogos e poderia
talvez ter poupado à Igreja as acerbas controvérsias cristológicas dos primeiros séculos. Assim se
poderia pensar.
É um fato que JESUS não se colocou no plano da especulação filosófica, nem no plano dos
enunciados conceituais. Ele absteve-Se de qualquer forma de terminologia douta.
Ao dizer que foi enviado para levar a Boa Nova aos pobres (Lc 4,18), JESUS indica o motivo
essencial desta abstenção. Ele quis falar em linguagem acessível a todos, especialmente àqueles que
não receberam o benefício de uma cultura intelectual desenvolvida.
Precisa compreender bem esta intenção de tornar-se universalmente acessível. Esta não significa
que JESUS tenha aceitado um empobrecimento da Sua revelação, renunciando a desvelar alguns
aspectos da Sua identidade e da Sua mensagem àqueles que não tiveram uma cultura suficiente. A arte
de JESUS consiste justamente em exprimir-Se com termos simples, que Ele carrega de um
significado extremamente denso e rico. O essencial da Sua identidade pessoal e da Sua missão, com
o desígnio divino da Salvação, é assim entregue aos ouvintes numa linguagem que eles podem
compreender. Aos discípulos, pessoas que não eram particularmente cultas, foi assim “entregue o
mistério do Reino de DEUS” (Mc 4,11).
Os pobres, portanto, não recebem uma mensagem empobrecida. As palavras que JESUS lhes
dirige são, na realidade, mais densas de significado do que seriam se brilhassem por uma agudez
conceitual. E essas palavras vêm acompanhadas de um comportamento que contribui a fazer colher o
seu significado, segundo um método muito prático e muito intuitivo.
Um exemplo concreto: JESUS não afirma nunca, em termos explícitos, ser Ele o FILHO gerado
pelo PAI desde toda eternidade, mas Se apresenta como Aquele que atualmente possui uma filiação
única referente a DEUS PAI. É a plenitude desta filiação que, no momento em que Ele Se revela, tem
importância. Os pressupostos que ela implica serão depois objeto da indagação teológica; não
interessam imediatamente aqueles que ouvem, os quais têm necessidade de saber somente que Ele é o
FILHO no sentido mais pleno da filiação.

4. Modos de expressão da transcendência


Quando se reflete sobre os motivos que levaram JESUS a abster-Se das formulações precisas
sobre Sua identidade, colhe-se melhor a vontade de evitar que a verdade que Ele traz, seja reduzida a
fórmulas. Ele quis deixar um testemunho de Si que fosse mais amplo do que qualquer formulação.
Neste fato aparece mais profundamente ainda a consciência da impossibilidade de exprimir em
termos adequados o que DEUS é. A revelação da identidade de JESUS põe a questão da revelação de
DEUS e da incapacidade de qualquer linguagem humana nesta revelação (incapacidade não total; neste
caso não poderia haver nenhuma revelação divina em linguagem humana).
Deste modo explicam-se as diversas modalidades de expressão adotadas por JESUS.
63 Cristologia

a) A interrogação
De um lado, JESUS provoca perguntas, seja pelo Seu modo de falar de Si mesmo: “Tu quem
és?” (Jo 8,25), “Quem é este FILHO do homem?” (Jo 12, 34), “És Tu, porventura, maior que o nosso
pai Jacó...” (Jo 4,12), seja pelo Seu modo de agir: “Quem é este ao qual também o vento e mar
obedecem?” (Mc 4,41; par).
De outro lado, é Ele mesmo que faz perguntas: “Se Davi O chama Senhor, como pode ser Seu
filho?” (Mc 12,37; par), “E vós que dizeis que Eu sou?” (Mc 8,29; par).
Este método da interrogação funda-se sobre o princípio que DEUS é Aquele que constitui para o
homem a pergunta fundamental, uma pergunta que, de qualquer modo, fica além de todas as
respostas. Toda revelação de DEUS é antes de tudo uma interrogação.

b) A ultrapassagem
JESUS afirma que Ele ultrapassa o que havia de mais alto no judaísmo quanto a expressões ou a
enviados de DEUS: “Aqui há algo maior do que o templo” (Mt 12,6). “Aqui há mais do que Salomão”
(Mt 12,42; Lc 11,31). “Antes que Abraão viesse a ser, Eu sou” (Jo 8,58).
O neutro empregado para o “mais” de Jonas e de Salomão, sugere que a ultrapassagem não é
somente aquela de uma pessoa por uma outra: há uma realidade mais ampla, acima das realidades
humanas.

c) O sentido duplo
JESUS serve-Se de expressões que, além do significado óbvio que possuem nas relações humanas,
adquirem ainda um significado transcendente em virtude do contexto ou das circunstâncias. Um
exemplo característico é aquele da expressão “sou Eu” (ego eimi). No “sou eu” de um homem que se
faz reconhecer pelos seus, surge o “sou Eu” de DEUS.
O título de “FILHO do homem” comporta igualmente um significado imediato, aquele de
“homem”, mas é empregado de uma maneira que faz aparecer nele a origem divina, os atributos
divinos, a filiação divina.
Todos aqueles que não querem abrir-se ao mistério, podem parar no primeiro significado, mas
aqueles que estão abertos interiormente à busca de DEUS, descobrem o significado mais profundo.

d) A apropriação humana do falar e do agir divinos


JESUS fala com a autoridade de DEUS: “Amen”, “Eu vos digo”. Ele age com os poderes de DEUS:
opera milagres, perdoa os pecados, coloca-Se acima do Sábado, e comporta-Se em geral como
soberano no Reino de DEUS.
Já que tudo isso é linguagem e ação humana, nisto o divino se esconde e, ao mesmo tempo, se
revela. A simplicidade da conduta de JESUS parece ser desproporcionada em relação à transcendência
que nela se afirma. Também aqui, aqueles que não querem aceitar esta transcendência, podem valer-
se da forma tão humana destas palavras e deste comportamento.

e) A familiaridade das relações com o PAI


A familiaridade das relações que JESUS tem com o PAI, demonstra que Ele vive no mesmo nível
de DEUS. “ABBA” é a prova que não há nenhuma distância entre o PAI e Seu FILHO.
Muitas vezes os exegetas falam das relações de CRISTO com DEUS, mas seria mais exato, para
falar em conformidade com a consciência de JESUS, falar das relações de CRISTO com Seu PAI. A
novidade constitui-se pelo fato que um homem se dirige constantemente ao PAI, atestando com isso
que Sua verdadeira posição não é aquela de uma simples criatura humana diante de DEUS, mas aquela
de um FILHO que compartilha a vida do PAI.
A linguagem humana exprime aqui só indiretamente a transcendência divina de JESUS. O uso da
palavra “ABBA” indica antes a proximidade do PAI do que a distância entre DEUS e o homem;
mostra, justamente, que a distância foi vencida, o que dá a possibilidade de remediar a incapacidade
das noções humanas de penetrar na intimidade divina.
Cristologia 64

f) A convergência
Uma vez que as expressões humanas são sempre inferiores à identidade divina que procuram
exprimir, JESUS reforça seu poder evocativo confirmando umas com as outras. Aí onde uma expressão
poderia parecer muito pouco evidente e suscitar dúvidas, a convergência com outras expressões faz
compreender o significado real. Isoladamente, a afirmação “aqui há mais do que Jonas” poderia
constituir facilmente objeto de discussão, mas quando se confronta com outras como “mais do que
Salomão”, “maior do que o templo”, tem-se mais certeza do seu valor: indicação de uma identidade
divina.
É a convergência que faz discernir, nas numerosas palavras de JESUS, esta indicação da Sua
identidade divina. Graças à sua convergência reconhece-se que os textos dos evangelhos estão cheios
de indicações da divindade de CRISTO; mas admitem-no somente aqueles que estão dispostos (não
fechados) a descobri-la. A variedade das afirmações exprime a multiplicidade dos aspectos da
presença humana de DEUS que se fundam na Pessoa de JESUS.

5. Permanência do mistério
As diversas modalidades de expressão possuem um ponto comum: manifestam a relação
inadequada entre a revelação (ato de revelar) e o conteúdo revelado. A identidade de JESUS
permanece um mistério. JESUS poderia ter feito certas afirmações doutrinais “precisas” sobre Sua
identidade; mas estas poderiam ter dado a impressão que fosse suficiente qualquer enunciado para
colher o fundo da Sua personalidade. Ora, isto teria sido e é um erro. Para revelar-Se assim como é,
uma identidade divina deve entregar-Se como aquilo que ultrapassa todos os nossos conceitos
humanos; JESUS jamais cessou de fazer sentir aos que O rodeavam até que ponto a Sua Pessoa era
misteriosa.
Por outro lado, não se poderia concluir disso que Ele não pôde ou não quis exprimir
humanamente a Sua Pessoa divina, nem que tudo aquilo que Ele disse não é senão um balbuciar que
não nos deixa penetrar de algum modo na realidade profunda. JESUS introduziu-nos efetivamente no
mistério, mas deixando ao mistério sua qualidade de mistério. Mediante uma aproximação
totalmente existencial à humanidade (vida, existência humana), Ele exprimiu do modo mais acessível
o que é DEUS numa vida humana. A obscuridade da revelação não deveria fazer-nos desconhecer a
clareza decisiva que Ele nos trouxe. Ele nos mostrou DEUS, de tal modo que quem viu a Ele,
verdadeiramente viu o PAI: o DEUS invisível não Se poderia ter apresentado de maneira mais
completa e mais precisa do que Ele de fato fez. A encarnação da revelação foi perfeita na medida das
possibilidades humanas de expressão.

B) Apelo à fé e kenosis

O que notamos a respeito na maneira de JESUS de revelar Sua identidade divina, indica-nos que a
discrição adotada por Ele é mais do que uma prudência devida às circunstâncias. É verdade que JESUS
devia proceder com muita prudência para não provocar nos Seus ouvintes choques que eles não
poderiam ter suportado. Só com dificuldade a fé monoteísta de Israel podia acolher a revelação de
Alguém que Se apresentava como FILHO de DEUS. Mas a necessária adaptação à mentalidade do povo
em meio ao qual JESUS vivia, adaptação que constituía um aspecto da Encarnação mesma, (esta
adaptação) não foi o único motivo do caráter velado das afirmações de JESUS. Havia,
fundamentalmente, a necessidade de adaptar a revelação de DEUS à realidade humana como tal,
aqui na terra.
Esta adaptação de tipo mais universal fazia parte da economia da salvação, uma economia que
queria instaurar o regime da fé em CRISTO.

1. O apelo à fé
A revelação realizada por JESUS dirige-se à fé. Por isso, ela evitou prodígios que poderiam ter
colocado Sua vinda mais na ordem da visão do que da fé. Note-se particularmente: a revelação requer
uma fé ativa que comporte um esforço de descobrir. Uma revelação que tivesse dito tudo ou que
tivesse feito ver tudo na maior clareza ter-se-ia imposto à passividade dos seus destinatários. A
65 Cristologia

revelação de JESUS, ao contrário, tem a característica de exigir colaboração: deste modo é tarefa
daqueles que a recebem penetrar no mistério, e compete à comunidade cristã (apóstolos) formular, ela
mesma, a própria adesão de fé.
A fé requerida nos evangelhos é uma fé nova, fé em JESUS mesmo (não só em DEUS PAI). Esta fé
deve assumir forma, exprimir-se naqueles que aderem a Ele. Não a formulou JESUS em lugar deles;
Ele apresentou a realidade a ser crida, antes de tudo Sua Pessoa divina, mas de modo tal que esta
apresentação, pelo seu mistério, estimule o esforço de conhecimento e de expressão.

2. Encarnação e kenosis
As condições de obscuridade nas quais se desenvolve a fé, explicam-se, por fim, pelo plano de
redenção, e com uma Encarnação fundamentalmente sacrifical. Aqui tocamos o mistério da kenosis.
Eis, de novo, a passagem do hino cristológico que S. Paulo apresenta para exortar os filipenses a
imitar a atitude de JESUS CRISTO. “Ele, subsistindo na forma de DEUS, não considerou o ser igual a
DEUS um roubo, mas (apesar disso) despojou-Se a Si mesmo (heautòn ekénosen), assumindo a forma
de servo feito solidário com os homens; e pelo Seu exterior reconhecido como homem, humilhou-Se
feito obediente até a morte, e morte de cruz” (Fl 2,6-8).
É notável que este hino antiquíssimo concebe a Encarnação como um despojamento. Neste
despojamento trata-se realmente do ato mesmo da Encarnação (não só do sacrifício redentor da Cruz),
já que Aquele que subsistia “na forma de DEUS” despojou-Se a Si mesmo “tornando-Se solidário com
os homens” e assumindo a “forma de servo”. Deste ponto de vista o hino elucida claramente um
aspecto sacrifical que no Prólogo de S. João será somente sugerido com muita discrição: “E o
VERBO Se fez carne” (Jo 1,14). S. João insistirá na manifestação da “glória” do VERBO Encarnado,
enquanto a atenção de S. Paulo se concentra mais na orientação da Encarnação para o sacrifício
redentor. A audácia do pensamento expresso no hino de Filipenses, consiste em reconhecer uma
renúncia na Encarnação mesma, no fato de assumir a “forma de servo”, e em considerar o sacrifício
do Calvário como o ponto culminante, extremo dessa renúncia primordial.
Em si, a Encarnação poderia ter sido de tipo glorioso, a carne poderia ter manifestado o esplendor
do Ser divino. Mas a kenosis implica a escolha de um outro tipo de Encarnação, o qual é descrito em
contraposição à atitude pecaminosa de Adão. Este tinha dado ouvido à voz que lhe dizia: “sereis como
deuses” (Gn 3,5), queria apoderar-se, sendo homem, da igualdade com DEUS.
Notemos aqui o significado da afirmação: “não considerou um roubo (= coisa roubada [cuja
posse seria não devida] ou coisa a ser roubada [de que se apoderar indevidamente]) o ser igual a
DEUS” (cf. p. 28). Muitos exegetas compreenderam este “ser igual a DEUS” como sinônimo de “forma
de DEUS”, e não puderam dar um sentido ao gesto de “roubar” (= no segundo dos dois acima
mencionados sentidos de “harpagmós”), pois aquele que possui a igualdade não precisa roubá-la.
Deste modo eles “traduziram”: “guardar (reter) ciosamente” ou “não considerou um bem a que não
devesse nunca renunciar”. Mas devemos conservar a força do termo “harpagmós” (= roubo), o qual é
esclarecido muito bem pela referência a Adão. O ser igual a DEUS não é o simples fato de possuir a
natureza divina, mas – como teria querido Adão – viver a vida humana à maneira de DEUS e
segundo as Suas prerrogativas soberanas. Este “ser igual a DEUS” designa o estado glorioso, o qual
CRISTO não quis possuir durante a Sua vida terrena e que recebeu em conseqüência ao sacrifício da
Cruz.
A Encarnação realizou-se, portanto, numa renúncia tão radical que CRISTO é definido pelas
palavras: “esvaziou-Se a Si mesmo”. O que é isto de que o CRISTO “de forma divina” Se despojou ou
esvaziou? Não, certamente, a “forma de DEUS”, uma vez que Ele “subsiste” (hypárchon, particípio do
tempo presente) nesta “forma” ou modo de ser. A idéia sugerida parece ser esta: existindo no modo de
ser de DEUS, CRISTO teria tido um certo direito de aparecer sobre a terra com Sua glória divina, isto é,
de assumir o estado de “igualdade com DEUS” ou de humanidade glorificada. Ele renunciou a este
direito, e neste sentido Sua vida humana foi um despojamento.
A índole “kenótica” da Encarnação mostra de maneira mais viva como o gênero de revelação
adotado por JESUS fazia parte de uma escolha sacrifical. Desejar uma revelação de tipo glorioso que
trouxesse a evidência da divindade no Seu esplendor, seria desejar o apoderar-se da “igualdade com
DEUS”. Os adversários de JESUS ou, mais geralmente, aqueles que não se decidiam de crer n’Ele,
Cristologia 66

requeriam d’Ele prodígios que fornecessem esta evidência gloriosa. Rejeitando esta exigência JESUS
renova Sua adesão ao plano divino de uma Encarnação na linha do despojamento e do sacrifício.

3. A afirmação da kenosis da parte de JESUS


Donde tirou o hino cristológico de Filipenses esta idéia da kenosis? Ele pressupõe uma reflexão
sobre o próprio ato da Encarnação, mas funda-se essencialmente sobre aquilo que JESUS tinha dito de
Si mesmo. De fato, pode-se estabelecer um paralelismo entre o hino e a declaração de JESUS: “O
FILHO do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a própria vida em resgate de
muitos” (Mc 10,45; Mt 20,28).
Nesta declaração, de maneira muito simples, aparecem as duas etapas do despojamento: da
Encarnação propriamente dita e do sacrifício redentor. Ao “CRISTO JESUS que subsistia na forma de
DEUS” e que Se tornou solidário com os homens, corresponde o “FILHO do homem” que veio: este
FILHO do homem que no oráculo de Daniel possuía uma “forma divina” (um ser celeste, divino) é
considerado aqui numa vinda que implica a preexistência. Ele não veio para ser servido, isto é, para
apoderar-Se de um estado de igualdade com DEUS, mas para servir, para assumir “a forma de
servo”.
“Dar a própria vida em resgate por muitos” indica o sentido final do despojamento no sacrifício
redentor. Este sentido é apresentado no hino de Filipenses 2 ao falar da humilhação e da obediência
até a morte de cruz. A diferença encontra-se no ponto de vista: o hino tende a ressaltar o valor moral
do rebaixamento, e o Apóstolo colhe disso um exemplo a ser imitado pelos cristãos. JESUS tinha
indicado com maior decisão a intenção de dar a salvação à humanidade. Ele afirma em termos
explícitos a entrega em benefício dos outros e a eficácia salvífica pela multidão, enquanto o hino se
concentra na Pessoa mesma de JESUS, no Seu rebaixamento e na exaltação gloriosa como
conseqüência dele.
A correspondência doutrinal, apesar de ser expressa de forma diversa, é notável. Pode-se
constatar que JESUS tinha expressado, com equivalência, a kenosis, uma vez que, descartando
qualquer reivindicação de ser servido, tinha apresentado a vinda do FILHO do homem como um
serviço e um sacrifício.
Por outro lado é a palavra de JESUS mesmo que especifica melhor o sentido altruísta da kenosis.
O hino termina com o quadro do triunfo de JESUS, diante do qual toda a criação se ajoelha, tanto que
Aquele que assumiu “a forma de servo” chega, por fim, a um estado glorioso no qual é servido. É esta
a perspectiva do FILHO do homem descrito no oráculo de Daniel, uma personagem à qual servem
todos os povos. Ora, justamente neste ponto JESUS indica que a vinda do FILHO do homem possui um
aspecto essencial que não aparece no oráculo de Daniel: o FILHO do homem não veio para ser servido.
JESUS mostra que Ele veio realizar a profecia de Daniel pela via do servo sofredor. Esta orientação ao
serviço não muda na passagem da kenosis à glória.
Assim, a palavra de JESUS faz-nos compreender de modo mais apropriado o sentido da kenosis.
Sendo o ato do FILHO do homem que veio para servir, a kenosis é a expressão deste amor
particularmente humilde, que se chama serviço. A Encarnação não foi inspirada por uma vontade
divina de fazer resplandecer Sua glória diante das criaturas ou de estender o Seu domínio. O
despojamento de quem vem para servir manifesta uma inspiração bem diversa: a da humildade na
doação de Si mesmo.
A orientação altruísta permanece também no estado glorioso: se é verdade que CRISTO está
destinado a ser reconhecido por todos como Senhor, e que assim Ele realiza o oráculo de Daniel, é
também verdade que é igualmente para a salvação dos homens que Ele Se tornou e permanece
Senhor. Como escreve S. Paulo em outro lugar, CRISTO ressurgiu para os vivos (2 Cor 5,5), “pela
nossa justificação” (Rm 4, 25). Esta consideração permite-nos completar a perspectiva do hino de
Filipenses 2.
A kenosis é somente um estado provisório que cessa com a entrada na glória celeste. Mas o valor
de amor e serviço ao outro, que ela comporta, destina-se a permanecer também na glória. Por
conseguinte, não desaparece tudo da kenosis, porque a disposição altruísta, em virtude da qual a
kenosis merece a exaltação do estado glorioso, tal disposição era para ser definitiva (cf. Lc 12,37:
67 Cristologia

“Felizes aqueles servos que o Senhor, quando vier, encontrar vigilantes. Em verdade vos digo: Cingir-
Se-á, mandará que se ponham à mesa e servi-los-á”).
Esta realidade de amor, essencial à kenosis, constitui a explicação última da obscuridade da
revelação de JESUS. Já falamos da vontade divina de não constranger a adesão humana por uma
manifestação fulgurante de esplendor divino: há nisto um respeito à pessoa humana, que é uma das
características do amor. Do mesmo modo é inspirada pelo amor a economia da fé que requer da parte
de todo homem uma colaboração ativa com o DEUS que Se revela (o amor livre da pessoa humana):
há nisto uma atuação da aliança, na qual DEUS não quer ser o único a agir. Mas todos estes aspectos
do amor dependem, por fim, do amor que fez o FILHO vir na condição de servo. A humildade de
serviço e do sacrifício exigia uma revelação na modéstia. A própria revelação da Pessoa de JESUS
devia ser serviço e sacrifício; ou ainda, devia ser kenosis, despojamento, para testemunhar aos
homens o amor que a inspirava. A discrição das indicações de JESUS sobre a própria Pessoa deriva de
uma maneira de amar mais radical.
Porém, poder-se-ia levantar uma última questão. De um lado, constatamos que o modo misterioso
de revelar-Se é devido à transcendência divina, que não pode encontrar uma expressão humana
adequada. Neste sentido parece que este modo misterioso dependa da própria natureza de DEUS e do
homem. Mas, por outro lado, atribuímos à economia da salvação, e mais particularmente à kenosis, a
discrição da revelação. Ora, deste ponto de vista não é mais a natureza, mas antes uma livre escolha
divina que é determinante.
Na realidade, os dois pontos de vista conciliam-se, porque no Seu desígnio de salvação DEUS
livremente decidiu revelar-Se em toda a Sua transcendência. Mais especificamente, Ele quis
desvelar um amor que Se doa no sacrifício mais completo: é justamente este amor que, em CRISTO,
constitui a suprema revelação da profundidade de DEUS.

C) A revelação de CRISTO glorioso

1. A manifestação obscura do estado glorioso


Também a ressurreição fica ainda caracterizada pela obscuridade que era uma característica da
revelação precedente de JESUS. O estado glorioso de JESUS apresenta-se como um desarraigamento
das condições da vida terrena; não é um retorno triunfal neste mundo com a irradiação da glória
divina.
Devemos reconhecer neste estado o termo último da Encarnação: a natureza humana de JESUS
está agora intimamente penetrada, repleta de vida divina, em virtude de uma transformação total. Mas
é exatamente esta transformação que confere a CRISTO homem um estado celeste, que acentua o
mistério e a distância defronte à condição humana ordinária.
Eis os diversos aspectos sob os quais se manifesta esta distância ou este desarraigamento:
1. A primeira glorificação de CRISTO diz respeito à Sua alma, o “espírito” que, no momento da
morte, Ele entregou nas mãos do PAI (cf. Lc 23,46). Esta glorificação permanece invisível; não
possuímos dela algum testemunho. Nada nos foi mostrado do estado glorioso no qual CRISTO
entrou depois de ter entregado o Espírito.
2. O primeiro indício da ressurreição é o sepulcro vazio. Em si, este fato não seria suficiente para
demonstrar a ressurreição (cf. Mt 28,13: não contestam o fato do sepulcro vazio, mas o significado
disso). Para o evento capital da obra salvífica a primeira indicação é das mais discretas e deixa à
intuição da fé uma parte ampla. A afirmação de João a respeito do discípulo predileto (ele
mesmo): “viu e acreditou” (Jo 20,8) sugere uma notável distância entre aquilo que foi dado a ver,
isto é: a ausência do corpo no sepulcro, e aquilo que se torna objeto de fé, a ressurreição.
3. As aparições de JESUS ressuscitado às mulheres e aos discípulos possuem maior força
demonstrativa. Todavia não são senão a atestação indireta de um evento do qual ninguém foi
testemunha: ninguém viu JESUS sair do sepulcro. Além disso, estas aparições mantêm-se na linha
de uma discrição fundamental. Não se dirigem nem às multidões, nem aos adversários; quer dizer:
não são dadas àqueles dos quais se pensaria que tivessem maior necessidade de uma demonstração
irrefutável. JESUS aparece somente àqueles que têm alguma disposição de fé. As aparições são
Cristologia 68

esporádicas, e se verificam em circunstâncias nas quais permanecem um privilégio para aqueles


que delas são beneficiados. A presença de JESUS impõe-se de um modo misterioso, fora das leis
dos encontros humanos. Também a amigos íntimos acontece que não O reconhecem ou não O
reconhecem logo.
4. O fato da Ascensão, que põe um fim às aparições de JESUS, também este fato tem uma índole
enigmática. É uma partida, um desaparecimento atrás da nuvem, que deixa os discípulos com o
olhar voltado ao céu, como numa expectativa que não é satisfeita. É, de algum modo, a última
expectativa de um prodígio; mas os Santos Anjos que interpelam os homens da Galiléia, fazem-
nos entender que devem cessar de esperá-l’O, e dirigir o seu olhar sobre a terra onde virá Aquele
que lhes foi arrebatado.
A Ascensão assinala o estado último da glorificação (pessoal) de JESUS, uma exaltação gloriosa
que foi interpretada como “assentar-Se à Direita de DEUS” (Mc 16,19), e plena tomada de posse do
poder filial messiânico. É o mistério da instauração do reinado divino de CRISTO; como tal foge a
qualquer constatação sensível, e o aspecto exterior do evento assim como foi percebido pelas
testemunhas terrestres, permanece muito humilde, muito simples, desproporcionado à realidade
significada: um homem que se eleva e que é definitivamente subtraído aos olhares por uma nuvem.
Até ao seu ponto culminante, a revelação de CRISTO permanece, portanto, envolvida de um véu
de humilde discrição, de modéstia expressamente querida, que contrasta com a grandeza da
Pessoa que Se revela.

2. A demonstração anunciada por JESUS


A ressurreição é considerada a prova decisiva da verdade da revelação feita por JESUS.33 (cf.
Teologia Fundamental). Ela implica ao mesmo tempo a manifesta aprovação divina desta revelação
e a aceitação do sacrifício redentor da parte do PAI.
Todavia, a ressurreição não foi anunciada por JESUS como uma demonstração. Ao anunciar aos
discípulos a paixão e a morte do FILHO do homem, JESUS acrescenta que Ele “ressuscitará no terceiro
dia” (cf. os três anúncios sucessivos: Mt 16,21; 17,23; 20,19 e par). Este anúncio da ressurreição
parece ter a finalidade de completar aquele da morte, para descrever até ao seu epílogo o drama da
redenção. Morte e ressurreição formam um todo inseparável, e o significado da morte não pode
aparecer a não ser na ressurreição.
Apesar desta importância capital, a ressurreição não se realiza à maneira de um evento que se
realize sob o olhar dos homens; ela mesma não é uma espécie de proclamação diante do mundo.
Acabamos de notar até que ponto esse evento se manifesta na discrição: a um número pequeno de
pessoas, de modo indireto, através da descoberta do sepulcro vazio e das aparições, e em condições
nas quais, longe de tornar inútil a fé, o fato de ver JESUS requer uma fé que vence dúvidas (cf. Mt
28,17). Quando JESUS, diante do Sinédrio, afirmou Sua identidade de CRISTO e de FILHO de DEUS,
anunciou uma demonstração da Sua afirmação. Esta demonstração não consistia, propriamente
falando, na Sua ressurreição, mas numa vinda de maneira divina: “De agora em diante vereis o
FILHO do homem assentado à Direita do Poder e vindo sobre as nuvens do céu” (Mt 26,64).
Esta vinda muitas vezes tem sido entendida como a vinda última no fim dos tempos. Mas, a
respeito da data do fim dos tempos JESUS declara que Ele não sabe (cf. Mt 24,36; Mc 13,32), enquanto
aqui anuncia “de agora em diante” a vinda do FILHO do homem, e declara aos membros do Sinédrio
que eles a constatarão com seus próprios olhos que eles a “verão”. Não se trata, por conseguinte, da
vinda no fim dos tempos.
O assentar-Se à direita do PAI alude à Ascensão; o poder que esta expressão significa
desenvolver-se-á com a vinda de CRISTO no mundo. Será uma vinda não mais na carne, à maneira
humana, como a primeira vinda do FILHO do homem, mas uma vinda “sobre as nuvens”, isto é, à
maneira divina. É a vinda que se realiza através do ESPÍRITO SANTO e que se iniciará no dia de
Pentecostes. Desta vinda JESUS pode dizer em toda verdade que ela se realizará “de agora em diante”,
e que se cumprirá sob o olhar de todos. O Pentecostes já atingirá gente de toda raça; mais, a expansão
33
Cf. a disciplina “teologia fundamental”. Aliás, quanto à divindade de JESUS, somente no caso de JESUS
antes (na vida pública) Se ter manifestado como FILHO de DEUS (tê-lo reivindicado de um e outro modo) e ter
predito a Sua ressurreição, esta tem valor demonstrativo da Sua divindade.
69 Cristologia

da Igreja, manifestação da vinda atual do FILHO do homem, se imporá aos membros do Sinédrio como
aos outros judeus.
É nesta expansão que se encontra a prova que JESUS é verdadeiramente o CRISTO, o FILHO de
DEUS. Aquilo que é visível é, portanto, o desenvolvimento da Igreja, testemunho da vinda de
CRISTO por meio do ESPÍRITO SANTO em meio aos homens. (O que se vê, não é o estar sentado à
Direita do PAI, mas a “vinda sobre as nuvens” [a vinda na Igreja], a qual é o exercício do poder de
quem está assentado à Direita do PAI.)
Notemos bem os diversos traços distintivos desta demonstração:
Ela completa o mistério da Encarnação, através de uma difusão da presença espiritual de JESUS
na humanidade. A vinda do FILHO do homem que se tinha realizado num só ponto da terra (Palestina),
com todos os limites de uma vida humana individual, multiplica-se entretanto num grande número de
lugares, porque é uma vinda à maneira divina, universal. Devemos pensar aqui também na Sua vinda
na SS. Eucaristia, vinda não puramente espiritual, mas com toda a realidade substancial, física da Sua
humanidade (embora a maneira da presença seja diferente daquela da Sua vida terrena antes da
Páscoa).
É uma demonstração que não consiste, como aquela da ressurreição, em oferecer uma
manifestação visível da realidade pessoal de JESUS (cf., quanto à SS. Eucaristia: “In cruce latebat sola
Deitas, sed hic latet simul et humanitas”). A demonstração realiza-se pela eficácia do poder divino
do Ressuscitado que transforma a humanidade. É, em fim, nos homens, e particularmente na
comunidade cristã que é dada a prova da identidade de JESUS, CRISTO e FILHO de DEUS.
A demonstração assume assim mais decididamente a via do amor que se doa. É comunicando-
Se que a divindade de JESUS manifesta Sua existência. CRISTO infunde nos homens Sua vida divina.
Com isto chega-se ao argumento ao qual recorreram os Padres da Igreja: pelo fato que Ele nos
diviniza devemos admitir que JESUS é DEUS.
Realizando-se pela via do amor, esta demonstração revela mais, em CRISTO, o que é DEUS. Esta
demonstração desvela um amor divino que compartilha com a humanidade as Suas riquezas divinas.
A revelação da identidade divina de CRISTO no desenvolvimento da Igreja comporta também a
característica da kenosis. A Igreja deve retratar a imagem de CRISTO, na “forma” de servo. Ela, por
isso, não deve aspirar a um reinado de glória ou de triunfo terreno. Se a Igreja vive do mistério da
ressurreição, fá-lo enquanto este mistério permanece ainda escondido na condição terrena, onde ao
mesmo tempo deve ser vivido o mistério da paixão. Os insucessos visíveis da Igreja situam-se na
linha da “derrota da cruz”. Assim, a Igreja atesta, numa condição de kenosis, a penetração da vida
divina de CRISTO na humanidade.
Por fim, constatamos que a demonstração da identidade divina de CRISTO não terminou ainda.
JESUS assinalou-lhe o ponto de partida: “de agora em diante”. Não colocou um fim. A demonstração
se completará somente com a extensão da Igreja a toda a humanidade. Ela anda de passo igual com a
encarnação progressiva de CRISTO no humano, até a consumação da História.

V. A IMAGEM DE Cristo NA S. ESCRITURA (SÍNTESE)

A) A busca de uma síntese

Qual é a imagem de CRISTO que o estudo da S. Escritura nos tem fornecido? Ou são imagens (no
plural)? Não, pois as diferenças realmente existentes – diversidades dos pontos de vista adotados
pelos evangelistas; diferenças entre o modo como JESUS mesmo fala de Si, e o modo como Ele é
designado pelos fiéis (apóstolos) – não fazem com que os traços comuns se diluam. Faz parte
imprescindível da tarefa do teólogo, realizar a síntese dos elementos fornecidos pelos diversos
autores. Aliás, é para esta síntese que se orienta a inspiração dos escritos do NT. Sem dúvida, o
ESPÍRITO SANTO favoreceu as interpretações pessoais (os pontos de vista, os acentos) de cada autor
(dos escritos da S. Escritura), mas fez isto tendo a finalidade de chegar a uma síntese mais equilibrada
e mais rica do mistério de CRISTO.
Cristologia 70

Ora, ao conjunto da S. Escritura pertencem também os escritos do AT que foi inspirado


divinamente em vista de CRISTO. JESUS nunca cessou de referir-Se a esta Escritura, para manifestar o
cumprimento dos anúncios e das figuras proféticas nelas contidas. Também os apóstolos com os
primeiros cristãos buscavam no AT o que confirmava a autenticidade da revelação de CRISTO; cf. Rm
16,26: o mistério escondido antes, manifestou-se agora a todas as nações “mediante as escrituras
proféticas”. Quer dizer: com CRISTO manifesta-se o verdadeiro significado da Escritura, segundo o
desígnio de DEUS. A tarefa suprema do AT é aquela de iluminar o Novo e de fazer melhor
compreender quem é CRISTO.34

B) O dinamismo de encarnação

O primeiro traço característico a ser posto em relevância, é o dinamismo de encarnação que se


exprime em JESUS.

1. O movimento de encarnação que precedeu a CRISTO


JESUS inaugura Sua missão estabelecendo uma conexão, através do batismo de João, com a
tradição que O precedeu, e com a expectativa messiânica que essa tradição comportava. Ele aparece,
portanto, como o fecho de todo um desenvolvimento histórico. Ora, este desenvolvimento é
exatamente aquele de uma encarnação de DEUS no humano. É claro que aqui empregamos a palavra
encarnação no seu significado mais amplo, não no significado particular que assume quando se aplica
esta palavra somente à Pessoa do LOGOS feito carne. A encarnação é a entrada de DEUS no mundo e
na vida humana, assim como se tinha manifestado ao povo de Israel.
A aliança (característica determinante de toda a religião judaica) particularmente evidencia a
vontade divina de colocar-Se no mesmo nível dos homens, através do fato de assumir empenhos
recíprocos: DEUS encarna Seus contatos com a humanidade em formas humanas de relacionamento.
Notas características deste relacionamento são: o “horizontalismo” soberanamente instituído pelo
DEUS transcendente; a acessibilidade, através da qual DEUS entra em diálogo com os homens até ao
ponto de reconhecer-lhes um direito sobre Si; a colaboração como exigência divina ao homem no
desenvolvimento das relações; a responsabilidade deixada ao homem que, observando as suas
obrigações, deve cuidar da manutenção da aliança e atingir os seus fins.
A vontade divina de ir até ao fundo nestes contatos com o homem, é manifestada pelo amor que
DEUS neles manifesta: a aliança não é somente pacto de ação, mas pacto de afeto. DEUS institui a
aliança como expressão da Sua paternidade: quer ser um PAI para Israel, e este deve ter a atitude de
filho. Ainda mais forte no sentido do “horizontalismo” é a imagem da união matrimonial: DEUS
atribui-Se o papel e os afetos de esposo. O estabelecimento das ralações de pai e filho, de esposo e
esposa, é uma autêntica encarnação da afetividade divina.
Esta completa-se com a encarnação da Palavra divina na “Lei e os Profetas”, da ação divina na
História do povo judaico, da presença divina no meio do povo, presença que é localizada primeiro na
tenda da reunião (ou do testemunho) e, depois, no templo. Tudo aquilo com que um homem entra em
comunicação com seus semelhantes é, portanto, assumido por DEUS: Ele fala, age, está presente.
Neste movimento de encarnação descobre-se a intenção de DEUS de estabelecer relações com os
homens por todas as vias possíveis e sob todos os aspectos dos contatos interpessoais. Podia-se falar
de “totalitarismo de encarnação” que é exatamente o contrário de um autoritarismo totalitário. DEUS,
que poderia impor-Se como DEUS em toda a Sua transcendência, prefere fazer com que seja recebido
pela humanidade, dirigindo-Se a ela num nível humano.
O que é tudo isso senão: o LOGOS vai, através de todo aquele tempo, ao encontro da Sua
Encarnação? E é realmente um progressivo ir ao encontro.

34
Cf. Dei Verbum, n.16: “... os livros todos do Antigo Testamento, recebidos íntegros na pregação evangélica,
obtêm e manifestam seu sentido completo no Novo Testamento (...), e por sua vez o iluminam e explicam.”
71 Cristologia

2. O movimento de encarnação em JESUS: continuidade e novidade


O movimento de encarnação se condensa em JESUS. Tudo aquilo que tinha sido realizado na
antiga aliança, realiza-se agora com perfeição, numa forma nova, única. A novidade consiste no fato
que CRISTO é perfeitamente toda a encarnação: Ele reúne em Si mesmo tudo aquilo que tinha sido
realizado antes na aproximação de DEUS aos homens: Ele é a aliança, é o Esposo, é o FILHO no qual
o PAI Se doa e Se revela, é a PALAVRA feita carne, é o poder divino operando neste mundo, é a
presença divina destinada a permanecer em meio aos homens.
Há “condensação” no sentido de que o movimento interior de encarnação atinge um máximo de
intensidade. Esta expressão, no entanto, não quer significar que JESUS é o produto de uma evolução
anterior. Pois, realmente há um tal salto qualitativo de um estado ao outro, que vale o seguinte: se
todos os aspectos do movimento de encarnação se concentram em JESUS, não é por um simples
resultado do passado, mas por força de uma intervenção divina, que JESUS supera muito esse passado,
embora esteja em continuidade com ele. A diferença depende justamente do fato de que a encarnação
se identifica com uma pessoa.
Reflitamos sobre os dois aspectos de continuidade e de novidade.
Em primeiro lugar aparece a continuidade histórica. JESUS não interrompe o curso da história
humana; insere-Se nele plenamente, e apresenta-Se numa referência contínua à história do povo
eleito. Pode-se reconhecer n’Ele a intenção de recolher o fruto deste desenvolvimento histórico
conduzido por DEUS que quis entrar no universo criado e fazer-Se um lugar na vida humana.
Constatamos de modo particular como JESUS recapitula em Si as grandes figuras de Israel, Abraão,
Jacó, Moisés, Davi. Por meio destas referências JESUS quer mostrar que nada desta história é perdido,
que todo o passado revive na Sua vida atual. Tudo que DEUS atuou nesses homens no caminho do
povo está presente em JESUS, assumido num nível superior, porque JESUS transcende de longe todas
as figuras precedentes. O mesmo vale das festas litúrgicas, das quais JESUS assume o significado,
transformando-o; o templo, como conjunto do culto, destina-se a encontrar seu valor definitivo na Sua
Pessoa. Vale o mesmo a respeito dos profetas.
Todavia, dentro da continuidade histórica, a encarnação realizada em JESUS faz-se perceber como
novidade radical. A transcendência demonstra que CRISTO não é o fruto de uma evolução religiosa
anterior, ainda que esta seja animada por um dinamismo de inspiração divina. Essa transcendência
insinua também uma inversão de causalidade: sob uma concatenação de eventos históricos sucessivos
dos quais JESUS parece o êxito final, a realidade divina n’Ele constitui o fundamento ontológico de
tudo aquilo que precedeu e de tudo aquilo que deve seguir. É a realidade da aliança, da qual as
alianças concluídas antes não eram senão figuras; é a realidade do templo, porque é a presença divina
em pessoa, da qual o templo era sinal material. A doutrina que Ele ensina contém toda a realidade da
mensagem que DEUS quer dar aos homens, e da qual os oráculos proféticos não eram senão
expressões provisórias e parciais; Ele é a PALAVRA. É a realidade da história da salvação, porque
n’Ele atua-se a ação salvífica em benefício da humanidade, da qual a história religiosa judaica não era
senão anúncio figurativo.
É a relação entre a figura e realidade que leva a ver em JESUS o fundamento ontológico dos
anúncios figurativos que o precederam. n’Ele não se dá somente o cumprimento histórico do anúncio,
cumprimento levado à sua plenitude; se fosse assim, JESUS seria simplesmente o ápice, a coroação de
uma evolução. N’Ele, ao invés, encontra-se a realidade total do que antes d’Ele tinha sido somente
figura. Ora, uma figura ou um símbolo tem sua base na realidade de que é figura ou símbolo; no plano
divino, portanto, é a realidade de CRISTO que foi o ponto de apoio, a base das figuras da Antiga
Aliança.
Assim fica claro em que sentido JESUS é o centro da história do mundo. Ele é isto não somente
porque na linha do tempo no qual a humanidade se desenvolve, Ele ocupa o ponto central: Ele é o
ponto de referência para distinguir entre as coisas “antigas” e “novas”. Há mais: Ele é o centro no
qual a eternidade divina se encarna perfeitamente no tempo humano e lhe confere uma qualidade
transcendente. Ele é na história Aquele que está acima da história. Em virtude desta qualidade
transcendente, o centro que Ele constitui é o fundamento de todo um passado que tem significado e
valor somente por meio d’Ele, assim como Ele é também o fundamento do futuro.
São João ressaltou a transcendência de CRISTO relativa à economia da religião judaica, a
diferença entre a Lei, dada por Moisés, e a graça e a verdade vindas por JESUS, o FILHO Único. João
Cristologia 72

referiu, sublinhando o valor ontológico, as palavras com as quais JESUS Se apresentara como a luz, a
verdade, a vida. Estas afirmações indicam uma superioridade sobre o que tinha sido dito por JHWH
no AT. JHWH declara: “EU formo a luz” (Is 45,7); JESUS não a forma somente, porque Ele é a luz:
“EU sou a luz do mundo” (Jo 8,12). O mesmo aumento nota-se a respeito da palavra “Sou Eu que dou
a morte e faço viver” (Dt 32,39): JESUS diz: “Eu sou a ressurreição e a vida” (Jo 11,25); assim
também os seguintes pares: “Eu marcharei diante de ti” (Is 45,2) e “Eu sou o caminho” (Jo 14,6); “Eu
falei” (Is 48,15) e “Eu sou a verdade” (Jo 14,6); “Eu vos conforto” (Is 51,12) e “Eu sou o pão da
vida” (Jo 6,35). Donde se origina esta superioridade que, à primeira vista, parece paradoxal? Não
seria absurdo pensar que CRISTO seja superior a DEUS? Na realidade, a superioridade está no novo
modo com que DEUS intervém no mundo: a encarnação realizada em CRISTO é de longe superior à
ação divina anterior. JESUS é a luz do mundo, porque Ele é DEUS vindo como homem no mundo: é a
luz divina encarnada, oferecida aos homens. É por meio da Sua carne, isto é, em virtude da
Encarnação, que Ele é o Pão da vida; é através da Sua palavra humana, que exprime a Palavra divina,
que Ele é a verdade; é graças à ressurreição da Sua carne que Ele comunica a vida eterna.
A encarnação realizada em JESUS é o ápice da intervenção divina na humanidade, um ápice que
ultrapassa incomparavelmente todas as intervenções anteriores.

3. Do povo ao indivíduo e do indivíduo ao povo


Se comparamos a Encarnação de DEUS na religião judaica e aquela que se realizou em JESUS,
notamos diferenças do ponto de vista das relações entre o povo e o indivíduo.
Na religião judaica a encarnação dizia essencialmente respeito ao conjunto do povo: é com o
povo que DEUS conclui a aliança, é o povo (“Israel”) que é considerado por DEUS PAI como um filho
ou por DEUS Esposo como uma esposa; é na história da nação judaica que se manifestava a ação
divina; é ao povo que foram dadas a palavra e a presença divinas. Os medianeiros humanos tinham
somente um papel secundário, e a intervenção do medianeiro supremo, que devia ser o Messias, foi
esperado para o futuro.
Na nova economia, a encarnação realiza-se essencialmente num só indivíduo. Esta encarnação
consuma e ultrapassa aquela da antiga economia, porque aqui o indivíduo deve representar o povo,
e até mais do que o povo. A este indivíduo deve-se atribuir uma personalidade corporativa. O que
significa esta expressão deve ser precisado, e exatamente em referência aos textos dos evangelhos,
para ver como JESUS mesmo sugeriu o valor corporativo ou representativo da Sua Pessoa.
A primeira indicação é dada pelo emprego do termo “FILHO do homem”. No oráculo de Daniel,
este termo implicava um valor corporativo, já que o poder atribuído ao Filho do homem significava
um poder atribuído ao povo dos santos do Altíssimo. Nas parábolas de Henoc, o termo “Filho do
homem” assumira um valor mais estreitamente individual, com uma acentuação da transcendência da
personagem. Em JESUS, esta transcendência é ressaltada; no entanto, embora seja uma designação
estreitamente pessoal, a expressão “o FILHO do homem” implica um certo valor de representação
universal. Oposto à expressão “o Filho de Davi”, a qual JESUS evita de aplicar a Si mesmo, o termo “o
FILHO do homem” tende a manifestar CRISTO não como o homem do povo, mas como o homem de
toda a humanidade.
O FILHO do homem é o homem em parentesco com todos os homens, solidário com todos, o
homem no qual o universalismo não aceita as divisões do nacionalismo e dos vários particularismos.
O termo por si só sela a intenção de uma reconciliação de todos os homens na unidade da condição
humana e do destino idêntico.
O valor representativo universal do “FILHO do homem” não deriva simplesmente da Sua
realidade humana; provém da Pessoa divina: no quadro do último juízo, é o FILHO do homem, em
posse do poder divino de julgar, que Se declara presente em todo homem, quem quer que seja, para
receber os atos de caridade ou de negação de ajuda. Neste caso a representação universal implica um
certo modo de estar presente. Graças ao Seu ser divino encarnado JESUS está realmente presente em
todo ser humano. A solidariedade com todos os homens assume uma dimensão ontológica por esta
presença encarnada.
Esta solidariedade vai até ao ponto de, no sacrifício, assumir o aspecto de uma substituição: o
FILHO do homem veio para “dar a própria vida em resgate pela multidão” (Mc 10, 45; Mt 20,28).
73 Cristologia

Aqui não são os indivíduos singularmente, mas a humanidade considerada no seu conjunto, que o
FILHO do homem intenciona representar. Ele a representa assumindo seu lugar com a oferta da
própria vida. A capacidade de representação justifica-se pela dignidade divina do “FILHO do homem”.
Um simples homem não poderia oferecer uma vida cujo valor fosse igual à vida de toda a
humanidade. Mas uma Pessoa divina, cujo valor é infinito, pode fazer uma oferta humana não
somente igual, mas também superior ao valor de todas as vidas humanas.
A imagem da vinha é particularmente esclarecedora para o significado da personalidade
corporativa. Israel foi muitas vezes comparado a uma vinha. JESUS retoma a imagem aplicando-a à
própria Pessoa: “Eu sou a verdadeira videira... Eu sou a videira, vós sois os ramos. Quem permanece
em Mim e Eu nele, traz muito fruto, porque sem Mim não podeis fazer nada” (Jo 15, 1.5). Esta
comparação destina-se a estabelecer as relações entre JESUS e Seus discípulos para o futuro: anuncia a
Igreja e seu desenvolvimento. A imagem do resgate referia-se propriamente ao sacrifício do Salvador
e, assim, a um evento singular da história; a imagem da vinha ou seja, da videira, quer manifestar o
estado permanente da comunidade cristã reunida ao redor de CRISTO e n’Ele. CRISTO será para ela
não somente alguém que une, um centro de adesão, mas uma fonte de vida. d’Ele jorra toda a seiva
que nutre os ramos. Ele é, por conseguinte, personalidade corporativa no sentido de que n’Ele a vida
que se comunica aos discípulos está presente em plenitude. Se o novo povo de DEUS é uma videira,
é no sentido que este povo nasce inteiramente de JESUS mesmo, e recebe d’Ele todo seu crescimento.
Note-se que JESUS não diz: “Eu sou o tronco da videira”, mas sim: “Eu sou a videira”; Ele é, sendo
plenitude (cf. Ef 1,23: pléroma = CRISTO), o todo ao qual os discípulos são inseridos.
Eis, portanto, os diversos modos como CRISTO, em virtude da Encarnação, aparece como
personalidade corporativa:
 Ele representa tudo aquilo que há de universal no homem;
 Ele está presente em todo homem;
 Ele assume o lugar da humanidade diante do PAI no sacrifício;
 Ele faz viver a comunidade mediante Sua influência total.
Sob este último aspecto o dinamismo de encarnação manifesta sua verdadeira extensão:
concentra-se em JESUS para estender-se melhor à humanidade.35 A Encarnação é eminentemente
pessoal para fazer-se universal.

C) Riqueza da diversidade na unidade

1. Os quatro aspectos do rosto de CRISTO


Já vimos que a doutrina cristológica dos evangelistas não deve ser vista somente na sua diferença
uma da outra, mas também na sua real unidade; completam-se mutuamente. Exprimem pontos de
vista que permanecem essenciais em todo estudo sobre a Pessoa de CRISTO.
CRISTO será sempre, segundo a descrição de Marcos, Aquele que, com os traços de um homem
semelhante a nós, Se apresenta como mistério. Nos Seus sentimentos e Seus atos humanos aparece
uma superioridade que sugere a transcendência divina da Sua identidade. Qualquer que seja a precisão
dos enunciados da fé, a Pessoa de JESUS conserva necessariamente este aspecto misterioso; só
descobrindo o mistério como mistério, pode-se atingir nele a realidade de DEUS. Além disso, longe de
tirar qualquer coisa à humanidade de JESUS, o mistério revela-se através desta humanidade; é todo o
humano que é portador do divino.
Segundo a perspectiva de Mateus, CRISTO é o Senhor do Reino, Aquele que estabelece a
estrutura essencial do Reino e lhe determina as leis com soberania divina; Ele é, portanto, tudo aquilo
que se esperava do Messias, mas num nível transcendente. Esta concepção do poder divino de
CRISTO associa-se àquela que S. Lucas propõe: JESUS é SENHOR, Senhor do Reino de uma
maneira mais interior, e Sua ação explica-se em profundidade pela potência do ESPÍRITO.
O título de Senhor, juntamente com a ação do ESPÍRITO, é o que mais explicitamente a
comunidade primitiva atribui – também por experiência – a JESUS: mais ainda do que na vida terrena
CRISTO afirma-Se no desenvolvimento da Igreja depois de Pentecostes como “SENHOR e CRISTO”,
35
Cf. Cl 1,19: “aprouve fazer habitar n’Ele toda a plenitude”, e isto para orientar tudo para Ele (“reconciliar”).
Cristologia 74

Senhor absoluto que exerce o poder divino de enviar o ESPÍRITO SANTO. Ele Se manifesta como
Senhor não somente do tempo presente, mas de todo o futuro; na invocação “Maranatha” (1Cor
16,22) ou “Vem, Senhor JESUS” (Ap 22,20), está implicada uma soberania total sobre a história.
Quando ficou esclarecida, dentro do mistério, a relação de soberania que CRISTO estabelece
defronte aos homens, fica ainda a determinar uma relação mais fundamental: a posição de JESUS no
mundo divino, na divindade. O Evangelho de S. João recordou e sublinhou o que, nas ações e nas
palavras de CRISTO, indicava a identidade do FILHO e a intimidade das Suas relações com o PAI.
Pelo fato de ter revelado esta filiação, S. João pode chamar JESUS de “DEUS” sem receio de Ele ser
confundido com o PAI: Ele é o “DEUS FILHO Unigênito” (Jo 1,18).
A qualidade de FILHO é a determinação última da personalidade de JESUS, aquela que penetra na
profundidade do mistério. No entanto, aquilo que poderia parecer a última etapa da indagação
cristológica corresponde à primeira indicação dada por JESUS a respeito da Sua identidade. O termo
“ABBA” é a expressão familiar da filiação divina transcendente. Além disso, não se deve esquecer que
a revelação desta filiação divina foi suficientemente forte para provocar a pergunta do sumo sacerdote
e suscitar a resposta decisiva.
Nenhum dos quatro aspectos mencionados pode faltar numa reflexão sobre a identidade de
CRISTO: o mistério, o poder sobre o Reino na sua organização externa, o poder de ação
espiritual e interior neste mesmo Reino, a personalidade de FILHO. Os quatro evangelistas, mais
tarde reconhecidos em íntima ligação com os quatro seres vivos que, segundo a visão de Ezequiel (1,
3-28), acompanham a manifestação de DEUS, são todos indispensáveis para nossa percepção da
revelação de DEUS em JESUS (a unidade dos quatro! aliás, a diferença entre eles está simplesmente no
acento posto sobre um determinado traço distintivo, o qual, porém, se encontra também nos outros
três evangelhos, só não assim acentuado).
Tal unidade dos evangelhos é indicada também pela maneira de falar da Igreja, a qual fala do
Evangelho (único) segundo diversos autores (e não somente dos evangelhos).
Pedagogicamente poder-se-ia ainda apresentar as quatro abordagens cristológicas como as quatro
etapas da descoberta de JESUS: Primeiro surge o mistério, com as interrogações que inevitavelmente
põe a pessoa, doutrina e vida de JESUS, um homem que fala e age como nenhum outro antes d’Ele,
que opera milagres e faz perceber a proximidade do divino. Depois vem a consideração da soberania
com a qual JESUS funda Sua religião, institui Sua Igreja formulando Seus mandamentos, uma lei
superior àquela antiga. Em seguida, o poder de CRISTO é melhor percebido na influência íntima que
Ele quer exercer sobre os homens através da ação do ESPÍRITO, para a instauração de um Reino cuja
primeira realidade é interior e espiritual. O título “Nosso Senhor” implica assim mais diretamente
uma influência vital. Enfim, o senhorio divino de CRISTO recebe sua qualificação mais profunda pela
filiação referente ao PAI: JESUS é DEUS na qualidade de FILHO. É esta qualidade que define Sua
Pessoa.

2. As três expressões da identidade pessoal


A coisa mais preciosa no testemunho dos evangelistas não é o seu modo pessoal de ver e
compreender JESUS, mas aquilo que nos transmitiram do testemunho de JESUS sobre Sua Pessoa, em
palavras e obras.
Felizmente possuímos excelentes indícios de autenticidade para algumas palavras de JESUS que
projetam uma luz definitiva sobre Sua identidade pessoal. A primeira é “ABBA”, cuja novidade
absoluta na aplicação a DEUS demonstra em JESUS uma consciência de filiação totalmente nova, e que
não se pode reduzir à consciência que podia possuir o povo judaico de ter DEUS por PAI. Na sua
simplicidade esta palavra implica que JESUS tinha com o PAI celeste relações de familiaridade
análogas àquelas de um filho com o próprio pai humano. Esta palavra é, portanto, bem apta para
revelar Sua filiação divina natural. JESUS Se relaciona com DEUS não como uma criatura com o
Criador, mas como um filho que se encontra no mesmo nível de ser do pai, numa intimidade que
exclui qualquer distância. Através do uso da invocação “ABBA” JESUS não cessa de mostrar que Ele
age em pleno direito e sem restrição alguma, na qualidade de FILHO. Há nisto uma revelação
existencial da filiação única e transcendente, filiação tão bem encarnada que utiliza, para exprimir-se,
a palavra que mais espontaneamente usam as crianças para dirigir-se a seu pai.
75 Cristologia

A afirmação “sou EU” é igualmente um modo de falar habitual nas relações humanas. Mas no
contexto no qual JESUS Se serve dela, ela evoca as afirmações de JHWH no livro de Isaías, ou
também o nome divino revelado por DEUS no Êxodo: “EU sou”. Quando JESUS diz “sou EU”, pode
bem dizê-lo como um amigo que se faz reconhecer pelos seus, mas o diz também para evocar a
presença pessoal de DEUS. Esta expressão testemunha, como “ABBA”, a profundidade da encarnação,
esta vez não nas relações com DEUS, mas nas relações com os outros homens. Para dizer que é DEUS,
a JESUS basta dizer “sou EU”: também sendo DEUS Ele está perfeitamente à vontade no meio à
humanidade. A revelação é existencial, porque a fórmula é o fruto de uma experiência de presença
num ambiente humano.
Depois das expressões “ABBA” e “sou EU”, através das quais JESUS Se apresenta como FILHO e
como DEUS, a fórmula de auto-designação “o FILHO do homem” chama a atenção sobre a qualidade
de homem. O FILHO do homem é homem que, sendo FILHO do homem, é FILHO de DEUS: este é o
conteúdo sugerido pela expressão assim como é empregada por JESUS em referência à personagem
evocada pelo oráculo de Daniel e pela tradição judaica sucessiva. Não existe incompatibilidade entre
FILHO do homem e FILHO de DEUS, porque o homem, criado à semelhança e imagem de DEUS, é, na
terra, o ser mais capaz de fazer DEUS visível. Quando Se designa como o FILHO do homem, JESUS
sublinha ao mesmo tempo a Sua qualidade de homem no meio dos outros homens e o Seu poder
divino.
À expressão “FILHO do homem” estão ligados, de modo particular, os dois movimentos,
descendente e ascendente, da encarnação. Primeiro há o movimento descendente que JESUS faz
entrever quando declara que “o FILHO do homem veio”. Depois, o movimento ascendente que Ele
anuncia dizendo que o FILHO do homem “ressurgirá” (Mc 8,31), ou que “subirá para onde era antes”
(Jo 6,62). A descida que leva o FILHO do homem a oferecer a própria vida em resgate por muitos,
termina numa exaltação gloriosa. Em João, o fim do primeiro movimento e o começo do segundo são
considerados numa única perspectiva, sendo a exaltação sobre a cruz o sinal da exaltação na glória:
“É necessário que o FILHO do homem seja exaltado” (Jo 3,14). Graças a esta exaltação o FILHO do
homem poderá vir sobre as nuvens para reunir os eleitos e exercer a soberania de juiz.
Esta vinda “sobre as nuvens” faz entender melhor a destinação do movimento ascendente. O
FILHO do homem é exaltado a uma dignidade divina também na Sua humanidade e a Encarnação
assume assim uma forma gloriosa, oposta à kenosis terrena. Mas é para cumprir Sua missão de
Salvador, sendo Ele um homem capaz de agir com todo o poder divino para reunir a Igreja. A
segunda vinda do FILHO do homem é, de fato uma vinda sobre a terra, mas realizada com o poder
divino do ESPÍRITO, com a finalidade de divinizar as vidas humanas, de “elevar” à altura do FILHO
do homem mesmo.

3. Palavra, ação e presença


Depois de ter notado que não devemos negligenciar nenhum dos pontos de vista cristológicos dos
evangelistas, convém notar que também não se deve transcurar algum dos aspectos do dinamismo de
encarnação que já na antiga aliança tinham sido manifestados. Assim, não se deveria limitar-se a ver
em JESUS a Palavra divina encarnada, e relegar à sombra a encarnação da ação divina e da presença
divina.
É verdade que devemos reconhecer todo o valor da identificação de CRISTO com a PALAVRA, o
VERBO, assim como no-l’O apresenta o prólogo de S. João. Esta identificação explica, ao menos em
parte, porque foi o FILHO a Se encarnar e não uma outra Pessoa divina. Justifica a missão reveladora
de JESUS. A profunda intuição do prólogo de S. João é: se JESUS nos fez conhecer o PAI invisível
através de toda a Sua vida humana, é porque Ele já era, como Pessoa divina, o VERBO ou a
PALAVRA, isto é, a expressão que o PAI dá a Si mesmo em DEUS. Sendo imagem divina, eterna,
do PAI, Ele era, por conseguinte, idôneo a tornar-Se a imagem humana do PAI, a exprimir em termos
humanos a mensagem de DEUS e DEUS mesmo. Por outro lado, a intuição de S. João funda-se sobre
certas indicações e sugestões de JESUS, relativas à Sua identidade pessoal de Palavra divina, de
Sabedoria, de Verdade absoluta, de luz. Deste modo, é conferido à revelação de JESUS força máxima,
porque, n’Ele, a Palavra que revela identifica-se com Sua Pessoa. Compreende-se assim bem porque a
mensagem cristã não pode ser destacada da Pessoa divina de JESUS: em primeiro lugar a mensagem
Cristologia 76

está contida nesta mesma Pessoa, e a encarnação da Palavra é a encarnação da Pessoa do FILHO. A
religião cristã é religião de uma Pessoa!
Por isso não se poderia limitar a encarnação do VERBO à comunicação de uma mensagem. Os
evangelhos atestam suficientemente que isto seria realmente uma vista estreita demais: JESUS não
somente falou; Ele agiu. N’Ele, a ação divina manifestou-se plenamente, através da instauração do
Reino de DEUS, do exercício da realeza divina. Nos milagres Ele multiplicou os sinais da Sua
transcendência, como também da Sua intenção fundamental de Salvação. JESUS aparece nos
evangelhos como um grande benfeitor da humanidade, alguém que não Se contentou de dizer boas
palavras, mas que trouxe efetivamente uma ajuda às misérias humanas. Através dos milagres Ele
revela o poder do amor divino juntamente com Sua imensa compaixão com todas as provações do
homem. Particularmente, realizando os milagres em dia de sábado faz entender que Ele vem para
completar a obra da criação, e revela para o sétimo dia uma atividade divina ainda muito mais intensa.
É uma ação divina mais encarnada, mais próxima à humanidade, mais apta para transformar o
destino humano. Não oferece somente a salvação, a libertação dos males que afligem a existência
humana, mas oferece a abundância de bens. A multiplicidade dos milagres testemunha a intenção de
acumular os homens dos dons da vida divina.
Palavra e ação poderiam ser consideradas como duas realidades funcionais. Mas, de fato, esta
interpretação seria restritiva demais, porque a grande novidade da Encarnação é aquela da vinda da
Pessoa divina do FILHO. É esta Pessoa que fala e age e dá valor à palavra e à ação de JESUS. Mas, há
mais: constatamos a importância que JESUS atribui à encarnação da presença divina. Além da
expressão desta presença no “sou EU”, há alusões ao templo verdadeiro que, entretanto, será Sua
própria Pessoa, e os convites a acolher Sua presença na SS. Eucaristia. Enviando Seus discípulos em
missão, JESUS não Se limita a transmitir-lhes o poder que Ele detém, mas assegura-lhes Sua presença
perpétua: “Eis que estou convosco todos os dias até ao fim dos tempos” (Mt 28,20). Segundo Jo 15,
5-9 pede aos discípulos de permanecer n’Ele como Ele neles. Portanto, Ele oferece-lhes, como fonte
da sua vida e ação, Sua presença contínua.
Esta oferta de presença elucida ulteriormente a qualidade essencialmente pessoal da Encarnação:
JESUS não Se limita a entregar a palavra e ação de DEUS; Ele entrega toda a Sua Pessoa mediante a
Sua presença. Deste modo indica como a Encarnação da Sua Pessoa divina de FILHO é um dom
definitivo que deve prolongar-se a todas as vidas humanas. O dinamismo da encarnação recebe um
novo horizonte, aquele da humanidade toda e do universo criado.
77 Cristologia

SEGUNDA PARTE:
AS AFIRMAÇÕES FUNDAMENTAIS
DA FÉ DA IGREJA
I. A FORMAÇÃO DA CRISTOLOGIA NOS PRIMEIROS SÉCULOS DA IGREJA
O dinamismo da fé em CRISTO manifestou-se nos primeiros séculos da Igreja através das
tentativas de elaboração de uma doutrina cristológica. O objetivo principal foi: determinar com
maior precisão quem era JESUS. Foi uma indagação que progrediu só a preço de grandes
controvérsias.

A) A orientação do desenvolvimento doutrinal

A primeira constatação a ser feita: o desenvolvimento cristológico era marcado por uma
preocupação essencialmente ontológica. É sobre a ontologia de CRISTO que se concentrou o esforço
de elucidação nos primeiros séculos.
Basta considerar as questões levantadas nas seguintes controvérsias: JESUS é verdadeiramente
homem, com uma carne real? É verdadeiramente DEUS? É da mesma substância do PAI, na Sua
divindade? Na Sua humanidade, possui uma alma, ou se deve dizer que o VERBO é diretamente unido
à carne? De que modo é assegurada a Sua unidade, na dualidade divina e humana que O caracteriza?
Deve-se falar de uma ou de duas pessoas, de uma ou de duas naturezas, de uma ou de duas vontades?
Todas estas questões, às quais vários concílios responderam, dizem respeito ao que JESUS é em Si
mesmo.
Isto não significa que o aspecto soteriológico seja ignorado: a obra do Salvador nunca é
negligenciada, e também a finalidade salvífica da Encarnação é expressamente sublinhada. Mas as
considerações soteriológicas tendem a ilustrar melhor a ontologia. Isto se vê no princípio ao qual
muitas vezes se apela: “O que não foi assumido não foi salvo.” 36 A finalidade salvífica é fundamental,
mas ela serve a demonstrar o que CRISTO era, o que o VERBO assumiu pessoalmente. Esta
preocupação de ordem ontológica é significativa. Ela confirma a orientação principal do dinamismo
da fé, que não poderia limitar-se a uma pesquisa sobre a função ou a missão de JESUS, e que em
primeiro lugar tende a resolver as questões que derivam da Sua identidade pessoal. É esta uma
orientação suscitada e querida por JESUS mesmo; pois Ele tinha perguntado aos discípulos: “Vós, que
dizeis vós que Eu sou?” (Mt 16,15 e par), e Se tinha exposto à condenação à morte pela Sua resposta à
pergunta do sumo sacerdote: “És Tu o CRISTO, o FILHO do BENDITO?” (Mc 14,61 e par). Para JESUS,
a questão ontológica tinha uma importância decisiva. Justamente por uma exigência de fidelidade ao
evangelho a elaboração doutrinal concentrou-se em primeiro lugar na definição da identidade de
JESUS. Há continuidade entre origem e tradição subseqüente.
A prioridade da questão ontológica explica-se por motivo da natureza intrínseca da fé cristã, que
é adesão a uma Pessoa e não somente acolhida da Palavra de DEUS e confiança no cumprimento da
obra salvífica. Por isso, o esforço intelectual da fé concentra-se necessariamente sobre a Pessoa.
Assim explicam-se as paixões suscitadas pelas controvérsias, cujo objetivo poderia parecer muito
distante da vida concreta dos homens. O fato é que nestas controvérsias a fé sentia-se profundamente
empenhada. Ainda que a formulação do que era JESUS podia parecer a alguns um problema
secundário, ligado ao significado de conceitos abstratos, ela era, contudo, requerida por uma fé que
quis tomar consciência de si e definir-se.
Notemos ainda aqui a índole altruísta desta pesquisa ontológica. Aqueles que queriam esquecer a
ontologia estão convencidos de que, afinal das contas, o que importa é aquilo que se realizou em nós

36
GREGÓRIO NAZIANZENO, Epist. 101 ad Cledonium: PG 37, 181C; mas este princípio já está implicado na
argumentação de S. Irineu.
Cristologia 78

mediante a ação divina, isto é: as novas condições do nosso destino; o que nós somos deveria
interessar-nos mais do que CRISTO é em Si mesmo. Porém, precisa reconhecer:
1) A obra de JESUS não pode ser compreendida a não ser em virtude do que Ele é pessoalmente;
2) A fé é animada por um amor que se interessa por CRISTO por causa d’Ele mesmo. Uma pesquisa,
como aquela dos primeiros séculos, que procura conhecer CRISTO antes de todo o resto, é a
manifestação deste amor. Por outro lado, ela chega a um conhecimento mais profundo do que é o
homem, pelo fato que JESUS é o homem perfeito.37 Mas, sobretudo, essa pesquisa testemunha um
esforço intelectual que, longe de fechar o homem em si mesmo, é inspirado pelo altruísmo
intrínseco do amor em procurar descobrir a Pessoa do Salvador.

B) Os três perigos iniciais

Três perigos manifestaram-se desde o início do desenvolvimento da Cristologia. Eles


correspondem a três tentações permanentes às quais a fé em JESUS deve resistir.

1. O desconhecimento da divindade de CRISTO: JESUS, homem dotado do poder divino


A condenação de JESUS tinha já manifestado a extrema dificuldade, para os judeus imbuídos de
monoteísmo, de aceitar que um homem pudesse realmente ser Filho de DEUS. Esta dificuldade
encontra-se de novo no ebionismo; é doutrina difundida em certos ambientes judeus-cristãos do séc.
II, mas muito mal conhecida. Os ebionitas foram judeu-cristãos heterodoxos, pois reconheceram em
CRISTO aquele que tinha sido investido do Espírito no momento do batismo, mas negavam que Ele
fosse o FILHO gerado pelo PAI.
Na mesma direção andou o adopcionismo, cujo protagonista, no último quarto do séc. II, foi
Teodoto o Velho. Para ele, CRISTO era um “simples homem”, embora tendo sido escolhido ou
adotado por DEUS como portador de uma graça divina excepcional; era um homem no qual agia o
ESPÍRITO como potência divina.
De fato, se se estabelece como princípio o monoteísmo de um DEUS que é uma só Pessoa, é
impossível atribuir a JESUS uma personalidade divina de FILHO. Não resta senão considerá-l’O como
um homem no qual se manifestou, de modo singular, a ação do único DEUS. Por conseguinte, JESUS é
essencialmente um homem, e quando é chamado de Filho de DEUS, é no sentido de filho adotivo,
privilegiado entre os outros homens.
Note-se: este adopcionismo propõe uma imagem de CRISTO no sentido inverso ao movimento da
Encarnação: em vez de um DEUS que Se torna homem, admite um homem que é elevada a uma certa
condição divina. Mas esta Cristologia ascendente é fundamentalmente incompleta, pois o homem
JESUS não se torna verdadeiramente DEUS. Esse adopcionismo simplesmente pára na perspectiva que
notamos na preparação judaica à Encarnação: a atribuição a um homem de propriedades divinas ou da
filiação divina concedida para uma missão. A perspectiva fica muito longe da revelação cristã.
No entanto, o adopcionismo que aceita a JESUS, de algum modo, como FILHO de DEUS,
limitando-se, porém, a exigir a fé numa ação especial de DEUS no homem JESUS, permanecerá um dos
caminhos mais fáceis nos quais a Cristologia será tentada de encaminhar-se. Encontra-se, sob outra
forma, no séc. III, em Paulo de Samósata que fará suprimir os cânticos em honra de CRISTO porque,
considerando-O Filho de DEUS enquanto homem, não poderá admitir que se Lhe preste culto.
O adopcionismo reaparecerá, na época da Reforma protestante, nos antitrinitários como Miguel
Serveto e seus discípulos, para os quais CRISTO é um simples homem, filho de DEUS por causa da
ação do ESPÍRITO SANTO que O gerou (concepção na SS. Virgem), ungiu e glorificou (S. Roberto
Belarmino combateu essas doutrinas).

37
Cf. CONC. VAT. II, GSp. n. 22: “Na realidade o mistério do homem só se torna claro verdadeiramente no
mistério do Verbo Encarnado. (...) Cristo manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre a
sua altíssima vocação”.
79 Cristologia

O adopcionismo está presente também nos teólogos recentes que vêem em JESUS somente um ser
humano, mas reconhecem n’Ele um homem privilegiado pela graça divina e, neste sentido, um filho
de DEUS.38

2. A negação da realidade humana de JESUS


Pode surpreender, mas é significativo que desde o começo a humanidade de CRISTO tenha sido
contestada (e não somente Sua divindade). O docetismo que reduz a carne de CRISTO a uma aparência
somente, surgiu bastante cedo, pois o evangelista S. João faz alusão a esta corrente em uma das suas
cartas: “Muitos são os sedutores que apareceram no mundo, os quais não reconhecem JESUS vindo na
carne” (2 Jo 7; cf. 1 Jo 4,2); é verdade que as palavras de São João não provam a existência, no seu
tempo, de uma doutrina docetista bem determinada.
Inácio de Antioquia luta contra o docetismo, afirmando com força a realidade do nascimento e da
crucifixão de JESUS.
Origem (fonte) do docetismo: influência do dualismo (espírito tão oposto à matéria que esta é
considerada má). Mas, sobretudo, pode-se encontrar a origem numa idéia excessiva da transcendência
divina.
O docetismo permanece uma tentação permanente porque a fé na divindade de JESUS, para
afirmar-se mais vigorosamente, corre o risco de diminuir a realidade da Sua humanidade.

3. A redução de CRISTO a um mito


No séc. II, escritos apócrifos: permitiram à imaginação popular representar-se CRISTO de modo
lendário.
A tendência de reduzir CRISTO a um mito manifesta-se, num nível mais intelectual, na gnose
cristã. A gnose quer incluir CRISTO num sistema cosmogônico, como se fosse um elemento deste
sistema, um “éon” em meio aos outros. O erro: inserir CRISTO num sistema intelectual (filosófico)
anteriormente elaborado. Tentação que permanece sempre atual: fazer-se um CRISTO segundo a
própria conveniência, em vez de receber Aquele que foi dado por DEUS (PAI) na história da
humanidade.39

C) Primeiros ensaios da teologia da encarnação

Entre aqueles que se opuseram aos primeiros erros cristológicos, são especialmente notáveis
Irineu de Lião e Tertuliano; notáveis pelas suas opiniões doutrinais e pelas fórmulas que antecipam os
futuros desenvolvimentos da teologia da Encarnação.

1. Santo Irineu
Ele combate o ebionismo, o docetismo e, sobretudo, a gnose. Afirma que CRISTO é “verdadeiro
homem e verdadeiro DEUS” e justifica esta afirmação com um argumento soteriológico. Contra a
gnose: a salvação não está na gnose (conhecimento), mas em CRISTO. No homem JESUS, ele insiste
sobretudo na realidade da carne. Ele admite a alma humana de JESUS, mas não presta muita atenção a
ela quando fala do VERBO e da carne.
Insistindo na verdadeira divindade e na verdadeira humanidade de JESUS, Irineu afirma ao
mesmo tempo com força a unidade que existe n’Ele; declara que “Jesus Cristo é um só e mesmo”
(heis kai ho autós).
O elemento doutrinal mais notável: a teoria da “recapitulação”. A recapitulação situa a
Encarnação na economia salvífica como o centro que explica tudo. O termo “recapitular” tem três
significados estreitamente unidos: reproduzir o passado de maneira nova, reassumir em Si o destino
da humanidade, orientar o desenvolvimento da história na qualidade de “cabeça”.
38
Cf. Declaratio ad fidem tuendam in mysteria Incarnationis et SS. Trinitatis a quibusdam recentibus erroribus,
da Congregação para a Doutrina da Fé, de 21 de fevereiro de 1972, n. 3.
39
Note: mito é aquilo que sempre é (um significado, uma idéia), mas nunca aconteceu.
Cristologia 80

CRISTO recapitula a criação, porque a Encarnação reproduz de maneira nova a formação de


Adão. Há nisto uma coroação da obra criadora, porque o VERBO “por meio do qual tudo foi feito, que
estava sempre presente à humanidade, uniu-Se nos últimos tempos, no momento estabelecido pelo
PAI, à obra que formara, e Se fez homem passível” (Adv. haer. 3,18,1). Graças a esta força criadora
que Ele possui, o VERBO encarnado recapitula a história da humanidade: reassume-a e a concentra
em Si quando realiza na Sua carne a economia salvífica e renova assim o destino humano.
Como no mundo invisível o VERBO tem o primado, assim no mundo visível e corporal o VERBO
feito homem assume o primado, estabelecendo-Se como Cabeça da Igreja e atraindo tudo a Si. Deste
modo CRISTO “recapitula tudo em Si”. A Encarnação adquire assim um valor cósmico, em harmonia
com o aspecto histórico e pessoal do VERBO feito carne.

2. Tertuliano
Tertuliano assumiu posições doutrinais e encontrou fórmulas que antecipam as respostas dadas
mais tarde no Oriente a três grandes erros cristológicos: o apolinarismo, o nestorianismo e o
monofisismo. Na sua oposição ao docetismo e à gnose ele afirma claramente a alma humana de
CRISTO.
Contra o monarquianismo ele faz a seguinte distinção: o VERBO distingue-Se do PAI como
Pessoa, tendo em comum com Ele a unidade de substância. Depois de ter introduzido a distinção
entre substância e pessoa na teologia trinitária, serve-se dela também na Cristologia. Sua formulação é
particularmente feliz: “Observamos uma dupla condição (duplicem statum) não confusa, mas unida
numa só pessoa, Jesus Deus e homem”. Nesta dupla condição “a propriedade de cada uma das duas
substâncias é conservada”, como também a distinção das operações. Em outro lugar, Tertuliano fala
de duas naturezas que equivalem a duas substâncias.
Mais de dois séculos antes da profissão de fé do Concílio de Calcedônia, a formulação
cristológica deste concílio já tinha sido proposta por Tertuliano; isto revela uma estupenda
continuidade da tradição.

D) A divindade do VERBO: a controvérsia ariana e o Concílio de Nicéia

No arianismo há um erro trinitário e um erro propriamente cristológico, isto é: negação da


divindade do VERBO e negação de uma alma humana em CRISTO. Para condenar o erro de Ario, o
Concílio de Nicéia (325) foi forçado a usar uma linguagem mais precisa do que aquela das fórmulas
escriturísticas, pois estas tinham sido assumidas por Ario com um significado novo, heterodoxo (cf.
DS 125: “Nós cremos...”). Pelo termo “homoousios” (consubstancial) o Concílio afirma que o FILHO
é perfeitamente DEUS, como o PAI (da mesma substância divina).

E) A alma humana de CRISTO: a controvérsia apolinarista


e o Concílio de Constantinopla I

Apolinário o Jovem, bispo de Laodicéia (362-390), ensinava: CRISTO não tem alma humana
racional, porque esta seria um princípio que se opõe ao VERBO: “É impossível que dois (seres)
espirituais e voluntários coabitem, porque eles se oporiam mutuamente através da sua vontade e da
sua operação. Por conseguinte, o Verbo não assumiu uma alma humana”. 40 Na humanidade de
CRISTO, o VERBO ocupa o lugar da alma (psyché) e do espírito (nous). Apolinário achava que não
podia aceitar uma liberdade humana de JESUS CRISTO – pensando que esta incluía necessariamente a
capacidade de pecar – e por isso negava que JESUS tivesse uma alma racional.
No sínodo de Alexandria em 362, o argumento soteriológico foi empregado contra os
apolinaristas: o VERBO encarnou-Se para salvar não somente os corpos, mas também as almas; por
conseguinte devia assumir alma e corpo. Condenação da heresia apolinarista: um concílio em Roma
(377); um concílio em Alexandria (378); um concílio em Antioquia (379); o concílio ecumênico de
Constantinopla (381); outro concílio em Roma (382).

40
Cf. J. GALOT, Chi sei Tu, o Cristo, 219.
81 Cristologia

Muitos escritos apolinaristas circulavam no século V sob os falsos nomes de Gregório o


Taumaturgo, dos papas Félix e Júlio, de Atanásio, etc. ... e exerceram sua influência sobre o
desenvolvimento da Cristologia.

F) A única pessoa de CRISTO: a controvérsia nestoriana e o Concílio de Éfeso

1. O dualismo na escola de Antioquia


Em contraposição à escola de Alexandria que afirma sobretudo a unidade de CRISTO e evidencia
a Sua divindade, a escola de Antioquia sublinha a dualidade e preocupa-se de reconhecer a
integridade da humanidade de JESUS.
Diodoro de Tarso († 394), adversário de Apolinário: um dualismo perigosamente acentuado.
Teodoro de Mopsuéstia (392-428): afirma que o VERBO Se encarnou assumindo um homem,
habitando num homem, revestindo-Se do homem JESUS. Mas ele não se refere à assunção de uma
pessoa humana e, sim, de uma natureza humana. Acentua que se trata de uma natureza humana
completa. Ensina que a união das duas naturezas, divina e humana, é devida à “habitação por
beneplácito” do VERBO no homem. Afirma, no entanto, de algum modo (com formulações ambíguas),
a unidade de pessoa (prosopon).

2. Nestório
Nestório (feito bispo de Constantinopla, em 428) teve de enfrentar uma controvérsia: alguns
rejeitaram o termo “Theotókos” (Mãe de DEUS) e atribuíram a Maria somente o título de “Mãe do
homem” (anthropotokos); outros indignaram-se contra esta doutrina. Nestório decidiu-se em favor do
termo “Mãe de CRISTO” (Cristotokos).
Recriminações que se deve fazer a Nestório:
1. Não soube aceitar a tradição: o termo “Theotókos” já era tradicional. Opõe-se ao Credo de Nicéia,
negando que se possa dizer que o VERBO nasceu de Maria, que Ele sofreu e que morreu; também
rejeitando a fórmula “Deus passus”. Nestório também não admite o princípio fundamental da
“communicatio idiomatum” (comunicação das notas distintivas), princípio que já tinha entrado na
Cristologia tradicional.
2. Do ponto de vista filosófico, faltava a Nestório o conceito de pessoa distinto do conceito de
natureza. Nestório procurou um princípio ontológico da unidade das duas naturezas em CRISTO,
mas não o encontrou. Porém, se tivesse aceitado os dados cristológicos da tradição, talvez pudesse
se ter orientado para a solução. De fato, a tradição cristológica afirmava o VERBO como sujeito de
toda a atividade humana de CRISTO e convidava assim a procurar no VERBO o princípio ontológico
da unidade das naturezas.

3. Reação ao nestorianismo: a expressão autêntica da fé na unidade de CRISTO


São Cirilo, patriarca de Alexandria, reagiu veementemente contra a doutrina de Nestório,
justificou o termo Theotókos e enunciou o princípio de que é preciso atribuir as propriedades de
CRISTO ao VERBO e que o VERBO Se uniu “segundo a hipóstasis” à carne que assumiu (aparece assim
pela primeira vez uma expressão que será acolhida pela tradição no conceito de “união hipostática”).
Todavia, nos anatematismos contra Nestório, Cirilo falava também de uma “união de natureza”
(henôsis physiké), porque não tinha fazia ainda a distinção entre pessoa (hypóstasis) e natureza
(physis). No seu tratado contra Nestório, falava de “uma só natureza encarnada de Deus Verbo”,
fórmula esta, que provinha de um escrito apolinarista atribuído a Atanásio.
O Concílio de Éfeso (431) definiu o conteúdo essencial da segunda carta de Cirilo de Alexandria
a Nestório. Tal conteúdo pode-se exprimir assim: o FILHO eterno do PAI é Aquele que, segundo a
geração carnal, nasceu da Virgem Maria; por isso Maria é legitimamente chamada Theotókos, Mãe de
DEUS.
O símbolo de união (pode ser chamado o Credo de Éfeso, no ano 433): “Confessamos, portanto,
nosso Senhor JESUS CRISTO, o FILHO Unigênito de DEUS, perfeito DEUS e perfeito homem com alma
Cristologia 82

racional e corpo, nascido do PAI, segundo a divindade, antes de todos os séculos e de Maria Virgem,
segundo a humanidade, nos últimos tempos, por nós e pela nossa salvação; consubstancial ao PAI
segundo a divindade, e consubstancial a nós segundo a humanidade. Pois se fez a união (hénosis) das
duas naturezas (fýseon). Por isso confessamos um só CRISTO, um só FILHO, um só Senhor” (cf. DS
272).

G) As duas naturezas: controvérsia monofisita e Concílio de Calcedônia

1. Êutiques, porta-voz do monofisismo


A posição fundamental de Êutiques exprime-se assim: “Eu confesso que Nosso Senhor foi de
duas naturezas antes da união, mas depois da união eu confesso uma só natureza”. Por isso
negava-se admitir em CRISTO uma natureza consubstancial à nossa.

2. A definição de fé do Concílio de Calcedônia


Eis o teor da definição de fé (DS 301s):
Seguindo os Santos Padres, ensinamos unanimemente que se deve confessar um só e mesmo Filho, nosso
Senhor Jesus Cristo, o mesmo perfeito na divindade e perfeito na humanidade, o mesmo verdadeiro Deus e
verdadeiro homem composto de alma racional e de corpo, consubstancial ao Pai segundo a divindade e
consubstancial a nós segundo a humanidade, em tudo semelhante a nós exceto o pecado; nascido (gerado) do
Pai antes de todos os séculos segundo a divindade, e nos últimos tempos (nascido) segundo a humanidade da
Virgem Maria Mãe de Deus, por nós e pela nossa salvação; um só e mesmo Cristo Filho Senhor Unigênito,
em duas naturezas sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação, não sendo de nenhum modo
eliminada a diferença das naturezas por causa da união, mas sim, sendo salvaguardada a propriedade de
ambas as naturezas que confluem numa só pessoa (prósopon) e numa só hipóstasis; não repartido e dividido
em duas pessoas (prósopa), mas um só e mesmo Filho, Unigênito, Deus, Verbo, Senhor, Jesus Cristo...
Os elementos desta definição provêm de quatro documentos anteriores: a segunda carta de Cirilo
a Nestório, o símbolo de união do ano de 433, a fórmula de Flaviano, patriarca de Constantinopla
(proposta a Êutiques e rejeitada por este), o “Tomo de Leão” (carta do Papa Leão Magno a Flaviano).

H) Uma reinterpretação do Concílio de Calcedônia: o Concílio de Constantinopla II

1. O “monofisismo” anticalcedonense
A “recepção” do Concílio de Calcedônia – quer dizer: aquele processo de acolhida da parte das
Igrejas locais, das decisões conciliares, que, deste modo, se tornam patrimônio comum e normativo de
fé – não se realizou sem fortes correntes de oposição e contestação. Durante o século entre o 4 o e 5o
Concílio ecumênico, as disputas cristológicas penetram a inteira vida sócio-político-religiosa do
Império e tratam em primeiro lugar da interpretação correta do Concílio de Calcedônia. Apesar da
insistência deste sobre a unidade de CRISTO, os seguidores de São Cirilo consideraram a fórmula do
Concílio dualista demais e nestoriana.
Há, nesse tempo, dois tipos de monofisismo: um monofisismo real e herético e um monofisismo
verbal, que pretende propor de novo, depois do Concílio e até em oposição a ele, a doutrina da mía
fysis (uma só natureza), juntamente com a interpretação soteriológica da divinização do homem. A
resistência maior ao Concílio provinha mesmo deste segundo tipo de monofisismo, moderado nos
seus conteúdos doutrinais, mas violento na sua polêmica anticonciliar; exponentes desta corrente
foram Severo de Antioquia (+ 538), Timóteo Ailouros (+ 477), Filosseno de Mabbug, na Síria (+
523).

2. A reação antimonofisita
Para ir de encontro a este monofisismo anticalcedonense e para dar de novo tranquilidade ao
Império, surgiram iniciativas concretas de mediação sobretudo da parte dos Imperadores. Assim, o
Henótikon (= “documento de união”) do Imperador Zeno, publicado em 482, e que apresenta uma
solução de compromisso entre os monifisitas e os difisitas.
83 Cristologia

O Imperador Justiniano (527-565), como teólogo, apresentando uma reinterpretação da doutrina


de Calcedônia para harmonizá-la o mais possível com as exigências do monofisismo dos
anticalcedonenses, deu impulso ao assim chamado “neocalcedonismo”, isto é, à atitude de entender e
explicar a definição do Concílio de Calcedônia em concordância com a doutrina de Cirilo de
Alexandria.
Diversamente de Justiniano e outros neocalcedonenses, Leôncio de Bizâncio (+ por volta de 543)
defendeu Calcedônia sem concessões neocalcedonenses. É significativa a distinção que ele faz entre
enhypóstaton e hypóstasis, para motivar a afirmação calcedonense de “uma hipóstasis em duas
naturezas”, e, ao mesmo tempo, superar tanto a equivalência que os monofisitas estabeleceram entre
hipóstase e natureza (uma hipóstase = uma natureza), como também a afirmação dos nestorianos, para
os quais em CRISTO às duas naturezas correspondiam duas hipóstases. A distinção entre enhypóstaton
e hypóstasis serve para mostrar que a cada hipóstase corresponde uma natureza, mas não sempre vice-
versa. Em CRISTO, à natureza humana não corresponde uma hipóstase humana própria (distinta da
hipóstase divina); ela subsiste na hipóstase divina.41

3. Os três capítulos
Uma última tentativa para chegar a um acordo com os monofisitas foi feita por Justiniano através
da controvertida condenação póstuma de Teodoro de Mopsuéstia (+ 428), Teodoreto de Ciro (+ 466)
e Ibas de Edessa (+ 457) (“os Três Capítulos”). Tratava-se de personagens conhecidas por sua posição
cristológica difisita (duas naturezas), que os monofisitas consideravam serem os inspiradores de
Nestório e os adversários de Cirilo de Alexandria. Para fazer ratificar sua condenação, Justiniano
convocou um concílio ecumênico em Constantinopla.

4. O Concílio de Constantinopla II (553)


O decreto conciliar distingue-se em duas partes. A primeira contém a sentença contra os três
capítulos (os três bispos mencionados), a segunda apresenta catorze anatematismos (dez de conteúdo
teológico, os outros contêm a condenação das pessoas e dos escritos dos mencionados bispos).
Os dez primeiros anatematismos contêm a afirmação forte da unidade do LOGOS, a afirmação da
“hénosis kath’hypóstasin” (a unidade segundo a hipóstase) e uma reinterpretação da fórmula
calcedonense “em duas naturezas”. Nisto procura-se harmonizar o difisismo calcedonense com o
monofisismo verbal de Cirilo e da sua tradição. No oitavo anatematismo dá-se uma interpretação
autêntica da fórmula de Cirilo: mía physis tou Theou Logou sesarkoméne (“uma natureza do LOGOS
de DEUS encarnada”), à luz do Concílio de Calcedônia: “Se alguém afirma que de duas naturezas, a divina
e a humana, surgiu a união, ou admite uma só natureza incarnada do Verbo de Deus, mas não entende estas
expressões segundo o sentido dos santos padres, isto é, que, feita a união segundo a hipóstase, da natureza
divina e da natureza humana, um só Cristo foi o efeito, mas com esta expressão tenta introduzir uma só natureza
ou substância da divindade e da carne de Cristo, seja excluído.” Com este esclarecimento elimina-se a
equivocidade das duas expressões de São Cirilo, caras aos monofisitas (“de duas naturezas” e “uma só
natureza encarnada do Verbo de Deus”), e se harmoniza-as com a terminologia e a doutrina do
Concílio de Calcedônia.
O Concílio de Constantinopla II oferece uma concreta solução de esclarecimento a um verdadeiro
e próprio conflito de linguagem e de interpretação. Fórmulas, como aquelas de Cirilo e do Concílio de
Calcedônia, que poderiam ter expresso uma convergência substancial, tinham sido exasperadas a tal
ponto que levaram a uma contraposição extrema de conteúdos. O significado positivo da cristologia
neocalcedonense, que com Justiniano se afirma no concílio, é justamente a busca e a proposição de

41
Vale sempre: se há uma hypóstasis humana (pessoa humana), há também uma natureza humana; se há uma
hypóstasis divina, há também uma natureza divina. Não vale sempre: se há uma natureza humana, há também
uma hypóstasis humana. Pode acontecer que uma natureza humana seja personalizada pela Pessoa divina (isto
é, subsistindo na Pessoa divina).
Anhypóstasis = uma natureza humana sem pessoa humana; enhypóstasis = subsistência da natureza humana
de CRISTO na hypóstasis divina. A natureza humana de CRISTO não tem uma subsistência própria, mas existe
na subsistência da Pessoa do VERBO; é uma natureza enhypostatica.
Cristologia 84

uma via média, que salvaguarda tanto a tradição alexandrina, como o solene pronunciamento do
Concílio de Calcedônia.
O quinto concílio ecumênico oferece, portanto, uma interpretação autêntica do Concílio de
Calcedônia (sobretudo da sua fórmula difisita). Ele explicita o que em Calcedônia tinha ficado
implícito, isto é, que a união da natureza humana com a natureza divina é uma união “segundo a
hipóstase” do LOGOS. A humanidade de CRISTO, portanto, subsiste na hipóstase do LOGOS. Por isso, o
sujeito “último” de todas as ações e paixões de CRISTO não é o LOGOS como tal (em Si mesmo), mas
o LOGOS feito homem.

I) As duas vontades: a controvérsia monotelita e o Concílio de Constantinopla III

1. O “monotelismo bizantino”
O monotelismo nasceu das tentativas de reconciliar os monofisitas com a ortodoxia, procurando
fórmulas intermediárias que pudessem satisfazê-los. O patriarca Sérgio de Constantinopla (610-638)
reabriu o diálogo com os monofisitas. Deixando de lado o conceito da dupla natureza em CRISTO,
sublinhou a única enérgeia (“operação”) de CRISTO, a qual provém não das Suas duas naturezas, mas
da Sua única Pessoa. Por isso podia-se falar de uma só “operação humano-divina” (theandrikè
enérgeia) em CRISTO. Na verdade, mais do que de “monoenergia” ou “dienergia” (uma ou duas
operações), o patriarca preferia falar do único “operante”, a Pessoa divina do VERBO encarnado. Em
síntese, sua fórmula foi a seguinte: “Em Cristo há somente uma realidade humano-divina”.
O texto fundamental é o psephos (“voto”), do ano 633, do mesmo patriarca. Neste, o raciocínio
do patriarca consta de três afirmações. Primeiro, ele formula a hipótese das duas vontades de CRISTO
no momento da agonia no Getsêmani, vendo a rejeição do cálice do sofrimento como sendo a
expressão da Sua vontade humana. A partir desta base, porém, Sérgio – recorrendo ao princípio
aristotélico da não-contradição – afirma que a hipótese de duas vontades contrastantes em CRISTO
tornaria impossível a Sua unidade hipostática. Daí emerge como conclusão inevitável a negação da
hipótese da dupla vontade em CRISTO e, por conseguinte, a negação da Sua vontade humana. A
rejeição do sofrimento não provém, portanto, de uma verdadeira e própria vontade humana, mas é
somente “inclinação natural” da carne. Isto quer dizer que Sérgio não consegue ver em JESUS uma
vontade humana não contrária à vontade divina e, no caso concreto da agonia, uma vontade humana
que queira realizar a paixão redentora. Para ele, a rejeição da paixão não é manifestação de uma
vontade humana, mas somente “inclinação natural” da carne. A hipótese das duas vontades estaria em
contradição com o dogma da união hipostática; daí a negação da vontade humana de JESUS torna-se,
para Sérgio, absolutamente necessária.
Sérgio enviou o psephos também ao Papa Honório I (625-638) e pediu-lhe que proibisse o uso
dos termos “uma ou duas energias” em CRISTO. O Papa, embora tivesse plenamente a fé do Concílio
de Calcedônia, respondeu ao patriarca com uma carta (ano 634) que contém a frase que, mais tarde,
isto é, no 6o Concílio ecumênico, será considerada heterodoxa: “professamos um só querer (hen
thélema, uma só vontade) do Senhor Jesus Cristo”.
Na realidade, à luz do contexto dessa frase, a profissão de um único thélema (“querer”) em
CRISTO deve ser vista não tanto como a negação da Sua vontade humana, mas, antes, como a
constatação de que em CRISTO não há oposição no querer entre a Sua humanidade e a Sua divindade,
de modo que, na prática, há um único querer. Isto é, o Papa descarta a hipótese de um querer humano
de JESUS que seja oposto ao querer divino: por isso Lhe atribui uma só vontade. Mas esta unidade é
para ser entendida como “conformidade”. Sendo a natureza humana do FILHO de DEUS uma natureza
sã, houve em CRISTO um único querer prático, resultando da convergência concordante das duas
vontades. Também S. Máximo Confessor42 – o grande combatente, ao lado do Papa Martinho I, contra
o monotelismo – insistiu na interpretação da “única vontade” a partir do contexto, segundo o qual se
exclui uma vontade humana contrária (à vontade divina), não uma vontade humana natural. Parece,
portanto, que Honório, talvez com demasiada ingenuidade, tenha usado uma linguagem
teologicamente imprópria. Como quando nós dizemos, referindo-nos a um homem e uma mulher
42
Ele também levantou a hipótese (infundada) de que, na frase incriminada da carta do Papa, se trate de uma
interpolação por um autor constantinopolitano.
85 Cristologia

muito unidos e sempre concordando entre si, que eles formam uma só coração e uma só vontade. E
não somente porque as suas vontades estão unidas no querer o mesmo objeto, mas, sobretudo, porque
continuamente a vontade de uma pessoa se conforma à vontade da outra.
Sem colher toda a profundidade da questão e tudo que, teologicamente, nela está implicado, o
Papa Honório aprova a tentativa de Sérgio de suprimir aquilo que, como lhe parece, é apenas uma
controvérsia de palavras, e fazendo isso, ele formula uma frase que, no contexto da doutrina que está
sendo elaborada em Constantinopla, é herética. No fundo, também o Papa, na questão das duas
vontades em JESUS, não consegue distinguir entre “contrariedade” (vontade humana contrária à
vontade divina) e “alteridade” (vontade humana realmente distinta da divina; outra vontade). Por isso,
rejeitando a contrariedade, ele parece afirmar a única vontade, negando assim a alteridade.

2. A doutrina de São Máximo o Confessor


O fundamento ontológico da posição antimonotelita de S. Máximo o Confessor (579/80-662)
encontra-se na distinção entre “natureza” e “hipóstasis”, seja no mistério da SS. TRINDADE, seja no
mistério de CRISTO. A sua fórmula cristológica pode ser sintetizada do seguinte modo: “a partir das
quais [= as duas naturezas], nas quais e as quais é Cristo”. A única pessoa de CRISTO é as Suas duas
naturezas.
Pelo ano 641, no opúsculo 6, dedicado inteiramente à oração de JESUS no Getsêmani, Máximo dá
uma brilhante solução ao problema do monotelismo bizantino de Sérgio a partir da agonia de JESUS
no Getsêmani.
Em geral, na oração de JESUS no Getsêmani, a rejeição do cálice (“afasta de mim este cálice”)
vinha sendo interpretada ou como proveniente da vontade humana de JESUS contrária à vontade
divina, ou, como dizia Sérgio, como inclinação natural da carne. Por causa da confusão das noções de
alteridade (outra vontade) e de contrariedade (vontade contrária) não se tinha conseguido evidenciar
o papel da vontade humana de JESUS no Evangelho, lá onde esta parecia opor-se à vontade divina.
Ora, nesse opúsculo de S. Máximo é, pela primeira vez, sublinhada a importância do querer humano
de JESUS na realização da paixão; trata-se nisso de uma verdadeira “revelação” de uma verdade até
então não vista. Enquanto antes o “não” à paixão foi atribuído à vontade humana e o “sim” à vontade
divina, S. Máximo reconhece a aceitação da paixão por parte da vontade humana de JESUS. Se na
oração de JESUS no Getsêmani os monotelitas vêem o fundamento para a negação da vontade humana
d’Ele, S. Máximo, ao invés, vê nisso o ato supremo desta vontade humana de JESUS, como
assentimento completo e perfeito à vontade divina, que ao mesmo tempo era a de JESUS e do PAI.
Para S. Máximo, a obra da salvação não provém somente da vontade divina, mas também
daquela humana de JESUS. O primeiro tempo da kénosis e da encarnação procede da vontade divina,
comum às três Pessoas divinas. O segundo tempo da obediência e da morte procede da vontade
humana própria do FILHO. Por isso a obediência ao PAI significa o acordo entre as duas vontades em
CRISTO não tanto entre si mesmas e em si mesmas, mas em relação com o PAI.

3. O Concílio lateranense de 649


Convocado pelo Papa Martinho I, sendo Máximo o Confessor o perito e redator dos textos
dogmáticos, este concílio, além de rejeitar a proibição do Imperador Constante II, de falar das
vontades e das operações em CRISTO, oferece uma doutrina que, na sua formulação, é teologicamente
superior, pela clareza e caráter incisivo, às decisões do sexto concílio ecumênico (Constantinopla III).

4. A definição do Concílio de Constantinopla III (680-681)


O Concílio de Constantinopla III dedicou-se à condenação do monotelismo e dos que o
sustentam, e à elaboração de uma fórmula de fé (“horos”, “definição” de fé).
Em síntese: a definição afirma que a vontade e a operação em CRISTO derivam da natureza:
havendo em CRISTO duas naturezas, há n’Ele duas vontades e duas operações.43
43
“Duas vontades naturais e duas operações naturais sem divisão, sem mudança, sem separação, sem confusão”.
O erro do monotelismo consistiu, justamente, em considerar somente a unidade da Pessoa na ação de CRISTO.
Os monotelitas entendem por vontade o impulso que vem da pessoa, modificando assim o sentido da palavra
Cristologia 86

A existência de duas vontades, além disso, não significa oposição ou desacordo. Elas – assim
como as naturezas das quais emanam – estão unidas, mas não confundindo-se; distintas, mas não
separadas. Por conseguinte, a vontade humana conforma-se livremente (subordina-se) à vontade
divina. A propósito da relação entre as duas vontades, o concílio cita a frase de JESUS em Jo 6,38:
“desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou”. No único
“Eu” do VERBO distinguem-se duas vontades: aquela humana e aquela divina, sendo esta última
comum ao VERBO, ao PAI e ao ESPÍRITO SANTO. Aproveitando o aprofundamento de S. Máximo, o
concílio releva que em JESUS a vontade humana está em perfeito acordo com aquela divina, uma vez
que, como homem, JESUS aceita e cumpre a vontade do PAI, que é também Sua enquanto VERBO.
O concílio define também que no único sujeito, que é CRISTO, se distinguem duas operações
naturais: os milagres, operação da natureza divina, e os sofrimentos, operações da natureza humana.
Por fim, a afirmação das duas vontades e das duas operações tem um intrínseco fim soteriológico,
visto que elas concorrem juntamente (sendo que a vontade humana se conforma à vontade divina) à
salvação do gênero humano.

5. O significado do Concílio de Constantinopla III


Na história da Cristologia patrística, este concílio não recebeu uma consideração adequada (foi
negligenciado, até esquecido), talvez também por causa da condenação póstuma do Papa Honório
(único Papa na história acusado de heresia 44). No entanto, este concílio, adequadamente aprofundado,
revela-se ser um passo importante no entendimento do mistério de CRISTO.
Ele é, antes de tudo, uma interpretação ulterior e decisiva da definição de Calcedônia. Ele
sublinha a importância da humanidade de JESUS e dos mistérios da Sua vida terrena, do nascimento ao
batismo, das tentações à agonia e à morte. Tudo foi realizado em obediência à vontade do PAI.
A definição do concílio constitui também uma compreensão mais profunda da S. Escritura (cf. Jo
6,38; Mc 14,36; o concílio faz sua a doutrina de S. Máximo).
O concílio precisa o que estava implícito ou não bem esclarecido (na S. Escritura, no concílio de
Calcedônia). Se na concepção monofisita a atividade de JESUS e Suas livres escolhas foram
compreendidas como atos imediatamente divinos, no concílio de Constantinopla III, ao invés, é
evidenciada a realidade de uma vontade humana obediente e não recalcitrante (do VERBO encarnado)
à vontade divina do PAI. Além disso, é superado o problema do diálogo, no VERBO, entre as Suas
duas vontades. Na realidade, como a Sua vontade divina, também a vontade humana de CRISTO está
em disponibilidade dialogal com aquela do PAI, à qual adere em plena obediência. No VERBO
encarnado, portanto, tanto a vontade divina como a vontade humana estão voltadas, num “sim” total,
ao PAI (cf. Jo 1,1: pros ton Theon). O FILHO de DEUS, também como homem, está todo voltado para o
PAI.

J) A afirmação do realismo da Encarnação: a defesa das imagens


no Concílio de Nicéia II

1. A crise iconoclasta e a elaboração de uma teologia da imagem


A grande crise iconoclasta (destruição das imagens sagradas) no Oriente manifestou uma falta de
harmonia entre a teoria e a praxe, já existente na Igreja antiga, com relação às imagens. A mencionada
crise, porém, levou à elaboração de uma teologia da imagem, cujos esboços, alias, já se encontram na
controvérsia antiariana (Atanásio, Basílio, Gregório de Nissa). Quanto a tal teologia da imagem
precisam ser mencionados os nomes de S. João Damasceno (+ 750), o patriarca Nicéforo de
Constantinopla (+ 829) e Teodoro Studita (+ 826).

“vontade”. Eles não consideram a dualidade de vontade e de ação, que deriva da dualidade das naturezas.
44
O concílio pronunciou o “anátema” sobre os autores da heresia monotelita e incluiu neles expressamente
Honório, “porque numa carta a Sérgio descobrimos que em tudo seguiu as opiniões do mesmo e confirmou suas
doutrinas ímpias”. O Papa São Leão II, que aceitou a decisão do Concílio de Constantinopla III, modificou a
culpa do Papa Honório no sentido de que ele não se esforçou por “conservar pura esta Igreja apostólica com a
doutrina da Tradição apostólica, mas permitiu que a intacta (= a Igreja de Roma) fosse maculada”.
87 Cristologia

Aqui se pode verificar num caso concreto que uma controvérsia leva a uma elaboração, um
esclarecimento e aprofundamento de determinada verdade. No Ocidente se pode verificar isso, por
exemplo, no caso da controvérsia sobre a presença real de JESUS CRISTO na Ss. Eucaristia.

2. O Concílio de Nicéia II (787)


O sétimo concílio ecumênico (com a presença de acerca duzentos e cinquenta bispos, dois
legados do Papa Adriano I e de muitos monges, os quais foram os grandes defensores das imagens),
na sua “definição”, dedica-se, na terceira parte, à defesa das imagens sagradas. Para isso faz, primeiro,
referência à tradição:
“Para proferir sucintamente a nosso profissão de fé, conservamos todas as tradições da Igreja,
escritas ou não escritas, que nos têm sido transmitidas sem alteração. Uma delas é a representação
pictórica das imagens, que concorda com a pregação da história evangélica, crendo que, de verdade
e não na aparência, o Verbo de Deus se fez homem, o que é também útil e proveitoso, pois as coisas
que se iluminam mutuamente têm sem dúvida um significado recíproco.”
Portanto, o concílio define que as imagens sagradas pertencem à “tradição da Igreja católica, que
sabemos ser a tradição do Espírito Santo que habita nela”. Depois afirma que elas confirmam a
verdadeira e não fantasiosa encarnação do VERBO de DEUS. Por isso, como a cruz, as imagens de
JESUS CRISTO, da Mãe de DEUS, dos santos anjos e dos santos devem ser expostas nas igrejas, sobre
as paredes, nas casas, nos caminhos. Em seguida esclarece: o fato de olhá-las serve a recordar e
honrar aqueles que nelas são representados; não se trata, porém, de um verdadeiro culto de latria,
mas de veneração; a honra prestada à imagem passa para aquele que nela é representado, pois quem
venera a imagem honra a pessoa que ela representa. Por fim, o concílio declara que aquilo que antes
foi dito é segundo a legítima tradição da Igreja, e que, por isso, o concílio condena aqueles que
rejeitam as imagens.
A quarta e última parte da definição contém quatro anátemas, com ulteriores esclarecimentos: 1)
CRISTO pode ser circunscrito (perigraptós) segundo a humanidade; 2) também as narrações
evangélicas podem ser representadas; 3) existe o dever de saudar as imagens do Senhor e dos santos;
4) existe a obrigação de manter toda tradição da Igreja, seja ela escrita ou não escrita.
Portanto, o concílio baseia-se na autêntica tradição da Igreja, da qual a imagem é um depósito
inalienável. Refuta a acusação de idolatria (seja porque foi justamente CRISTO quem nos libertou “das
trevas e do furor dos ídolos”, seja porque não se pode comparar a imagem do Senhor com os “ídolos
diabólicos”) e declara solenemente que a imagem é uma pregação evangélica: anuncia a verdadeira
encarnação do VERBO e suscita-lhe a recordação e a veneração.

3. O significado do Concílio de Nicéia II45


Contra a iconoclastia – que tinha posto em discussão a própria realidade da Encarnação e,
sobretudo, o princípio da unidade sem confusão e sem separação, do divino e do humano na única
Pessoa do VERBO – o Concílio de Nicéia II é a confirmação integral do dogma cristológico de todos
os precedentes concílios ecumênicos. Representar no ícone o aspecto humano de CRISTO é professar
tanto a realidade da Sua encarnação e da Sua redenção, como o mistério divino-humano da Sua
Pessoa.
Com este concílio dá-se, ao mesmo tempo, uma ulterior superação cristológica do Antigo
Testamento e uma mais profunda compreensão da economia do Novo Testamento. É a encarnação do
FILHO de DEUS que inaugurou uma nova “economia” das imagens: “Antigamente, Deus, que não tem
nem corpo nem aparência, não podia em absoluto ser representado por uma imagem. Mas agora, que
se mostrou na carne e viveu com os homens, posso fazer uma imagem daquilo que vi de Deus” (S.
João Damasceno, cf. Cat. 1159).
Ao esclarecer que a honra prestada à imagem passa para a pessoa representada, o concílio
sublinha a função mediadora do ícone sagrado, que contém uma própria eficácia de memória, de
ensinamento, de beleza e, talvez, também de graça (segundo a concepção de S. João Damasceno).

45
Cf. Cat. 1159-1162, 2129-2132.
Cristologia 88

Da controvérsia iconoclasta emerge, portanto, uma profissão de fé na realidade da encarnação


em todas as suas manifestações e consequências inerentes.
“A iconografia cristã transcreve pela imagem a mensagem evangélica que a Sagrada Escritura
transmite pela palavra. Imagem e palavra iluminam-se mutuamente” (Cat. 1160). Uma verdadeira
teologia da imagem é o que está fazendo falta na Igreja no Ocidente, hoje.

K) Conclusão sobre o período patrístico

Foi o Concílio de Calcedônia que enunciou, numa fórmula de fé, os resultados da elaboração
cristológica dos primeiros séculos. Numa posição equilibrada reuniu aquilo que as duas Cristologias
adversárias, a de Antioquia e a de Alexandria, tinham de válido, indicando que estes dois pontos de
vista deviam ser mantidos ao mesmo tempo e em harmonia: unidade de pessoa, dualidade de
naturezas.
Em Calcedônia não se impuseram nem conceitos filosóficos nem um sistema particular de
pensamento, mas sim a melhor maneira de exprimir o que se encontra concretamente em CRISTO;
trata-se de uma tradução do dado evangélico, porque os Padres sempre se referiram a este dado
fundamental.
A doutrina do Concílio de Calcedônia é a expressão autêntica da Cristologia patrística e uma
aquisição definitiva; fora da via traçada por este Concílio não pode ser elaborada alguma Cristologia
válida. O ponto de partida fica sendo a unidade de pessoa e a dualidade de naturezas. Por outro lado, o
Concílio de Calcedônia não põe fim à pesquisa doutrinal; como vimos, a sua doutrina foi ainda
explicitada e aprofundada por concílios ecumênicos posteriores. Apresenta-se, portanto, como ponto
de partida para novos estudos. Assim, a fórmula de fé do Concílio de Calcedônia não traz explicações
a respeito do que é a natureza, a pessoa ou a hipóstasis. Ele também não se preocupa em definir o ato
da Encarnação, porque se limita a declarar o que há em CRISTO. Ele não precisa as relações entre a
constituição ontológica de CRISTO e Sua missão redentora (nisto temos um avanço no Concílio de
Constantinopla III), e se limita à afirmação geral: “por nós e pela nossa salvação”. Sua finalidade não
foi a de indicar o valor e o significado da unidade de pessoa e da dualidade das naturezas em CRISTO
para nós homens transformados por Ele.
Compete à teologia posterior, baseando-se no Concílio de Calcedônia, ir além e elaborar uma
metafísica mais completa da Encarnação, sem nunca cessar de se referir ao dado fundamental que
orientou os primeiros concílios e continua a orientar o esforço doutrinal da Igreja: a Sagrada
Escritura e, especialmente na Cristologia, os Evangelhos.

II. BREVE VISÃO DE CONJUNTO DA HISTÓRIA DA CRISTOLOGIA,


DA IDADE MÉDIA ATÉ O SÉCULO XX

A) A Cristologia medieval no Oriente


Na Idade Média, a reflexão cristológica continuará, mas não haverá resultados tão novos e
originais como aqueles da especulação patrística no período que se estende do 4 o ao 8o século. A
teologia bizantina, p. ex., considerará o triunfo da ortodoxia do ano 843 como a fixação definitiva do
dogma cristológico. Por isso, no Oriente simplesmente se conserva o dogma, vendo na síntese
dogmática de São João Damasceno (último dos Padres da Igreja) o manual clássico da ortodoxia.
Nesse período, desenvolve-se, de modo exemplar, a espiritualidade cristológica (não ou muito
menos reformulações novas da teologia da encarnação). Estes autores são Simeão o novo Teólogo
(949-1022), o profeta da experiência cristã de divinização em CRISTO, e Nicolau Cabásilas (1322-
1391), com seu tratado A vida em Cristo, que representa um itinerário de desenvolvimento da vida do
batizado em CRISTO através dos sacramentos. No século XIV, houve a controvérsia entre Gregório
Palamás (1296-1359) e o filósofo Barlaão, da Calábria (1290-1350), sobre o conhecimento imediato
de DEUS em CRISTO (Gregório o afirmava; visão das “energias” incriadas de DEUS, com referência à
89 Cristologia

“luz de Tabor”), possível para todos os batizados, e sobre a oração hesicasta (com seu método
psicosomático). Esta foi a última grande controvérsia antes da queda de Constantinopla em 1453. Em
seguida, a teologia grega se esforçou, assim como pôde, por defender a própria originalidade defronte
quer do catolicismo romano quer do protestantismo alemão. Nos países eslavos, porém, a reflexão
cristológica ortodoxa se desenvolveu de um modo significativo, sobretudo nos séculos XIX e XX.

B) A Cristologia medieval no Ocidente


Na Idade Média latina, não houve graves erros cristológicos (Berengário de Tours, séc. XI, negou
a presença real de CRISTO na santíssima Eucaristia). Por isso, os grandes concílios da época não
contêm significativos progressos doutrinais. O Concílio do Latrão IV (1215), o Concílio de Lião II
(1274), o de Viena (1311-1312) e o de Florença (1439-1442) limitaram-se a propor de novo a
tradicional doutrina de fé a respeito. O Decretum pro Jacobitis, do Concílio de Florença (1442), p.
ex., depois de uma breve síntese cristológica, recapitula e condena todas as mais importantes heresias
antigas, dos ebionitas aos monotelitas, apresentando, enfim, a obra redentora de CRISTO.
Se a época patrística definiu o dogma cristológico, a Idade Média latina o conservou, mediante a
rica tradição litúrgica, e o aprofundou ulteriormente, através da utilização sistemática da razão
filosófica, em grande harmonia com a fé em todas as suas expressões de piedade litúrgica, de ascética,
de mística, de pregação, de religiosidade popular. Mais do que definições, a Idade Média latina nos
transmitiu originais interpretações da constituição ontológica de CRISTO, da Sua obra redentora, dos
mistérios da Sua vida humana. Até mesmo, a atenção aos mistérios da vida humana de JESUS,
sobretudo àqueles da infância e da paixão, é a característica da espiritualidade cristocêntrica medieval.
Um outro tema que se encontra na reflexão cristológica medieval é o conceito de pessoa. Aqui
encontram-se variações muito diversas no aprofundamento da relação entre Cristologia e
antropologia; essas reflexões constituirão uma herança significativa para a reflexão posterior.

C) O mistério de CRISTO na época moderna e contemporânea


No séc. XVI, as escolas teológicas inspiram-se substancialmente na Cristologia medieval, mas
não sem um certo enfraquecimento (esgotamento) de linguagem e de método. Pode-se, com Louis
Bouyer, acusar a teologia dessa época de “evasão metafísica” e de “invasão psicológica”: a metafísica
é substituída pela psicologia.
As mais importantes escolas teológicas tridentinas e pós-tridentinas são a tomista dominicana,
ligada à doutrina de São Tomás, a escotista franciscana, que desenvolve o ensinamento do Beato João
Duns Escoto, e a dos jesuítas, bastante eclética, tendo como representantes significativos, entre
outros, Luís Molina (+ 1600) e Francisco Suárez (+ 1617). Os temas cristológicos que mais se
encontram referem-se à controvérsia sobre o motivo da encarnação, ao aprofundamento da “pessoa” e
da união hipostática (a determinação do “constitutivo formal” da pessoa e, daí, da unidade do ser em
CRISTO), à maneira de conciliar a liberdade de CRISTO com Sua obediência ao PAI. Houve nisto muita
polêmica, e muitas vezes se chegou a posições extremamente abstratas e irreais. A teologia
protestante, ao menos no nível das fórmulas, aceita plenamente o Concílio de Calcedônia,
permanecendo fiel ao dogma sobre a divindade e humanidade de CRISTO. A Cristologia de Lutero,
porém, parece estar imbuída de um certo monofisismo.
Enquanto a teologia dogmática pós-tridentina, sempre mais especulativa e dialética, se voltou ao
estudo da unidade psicológica em CRISTO, procurando penetrar na Sua ciência e autoconsciência, a
espiritualidade continuou a desenvolver a sua dimensão cristocêntrica, acentuando o caráter
paradigmático da humanidade de JESUS e desenvolvendo devoções correspondentes: S. Inácio de
Loyola, S. Teresa de Ávila, S. João da Cruz, Escola francesa do séc. XVII (Pedro de Bérulle, João
Olier), S. Francisco de Sales. Também nesta época, consolida-se a devoção ao S. Coração de JESUS
(S. João Eudes, S. Margarida M. Alacoque).
No final do séc. XVIII, com H.S. Reimarus (+ 1768), começa um período de contestação
histórico-crítica das bases históricas da Cristologia tradicional. A provocação de Reimarus encontrou
grande eco nos ambientes protestantes da Europa central; é a assim chamada corrente da “Leben-Jesu-
Cristologia 90

Forschung” (“pesquisa da vida de JESUS”), a qual, no entanto, não foi conduzida com autênticos
critérios científicos de historiografia. No ambiente católico, ela encontrou eco no “modernismo”.
Pode-se dizer que, com o Concílio Vaticano II (cf. Dei Verbum), a problemática a respeito de uma
adequada fundamentação histórico-crítica da figura de JESUS CRISTO na S. Escritura e na teologia
dogmática concluiu um longo período de controvérsias a esse respeito.
No entanto, quanto à autêntica fé da Igreja em JESUS CRISTO, FILHO de DEUS encarnado, a
Congregação para a Doutrina da Fé viu-se obrigada a publicar uma declaração (“Mysterium Filii
Dei”, 21.02.1972), expondo a “fé católica no Filho de Deus feito homem” e apontando “erros recentes
sobre a fé no Filho de Deus feito homem”. Destes erros diz o seguinte:
Opõem-se claramente a esta fé as opiniões segundo as quais não seria revelado e conhecido que o Filho de
Deus subsiste ab aeterno, no mistério de Deus, distinto do Pai e do Espírito Santo; ademais, as opiniões
segundo as quais se deveria abandonar a noção de única pessoa de Jesus Cristo, nascido, antes dos séculos,
do Pai segundo a natureza divina e, no tempo, de Maria Virgem segundo a natureza humana; e, enfim, a
afirmação segundo a qual a humanidade de Jesus Cristo existiria, não como assumida na pessoa eterna do
Filho de Deus, mas, antes, em si mesma como pessoa humana, e, por conseguinte, que o mistério de Jesus
Cristo consistiria no fato que Deus que se revelou estaria maximamente presente na pessoa humana de
Jesus.
Aqueles que pensam deste modo ficam longe da verdadeira fé em Jesus Cristo, também quando afirmam
que a presença única de Deus em Jesus faz com que Ele seja a expressão suprema e definitiva da revelação
divina, nem recuperam a verdadeira fé na divindade de Cristo, quando acrescentam que Jesus pode ser
chamado Deus pelo fato que, naquilo que chamam a Sua pessoa humana, Deus está plenamente presente. 46
Vê-se, portanto, a necessidade de manter a fé da Igreja, exposta nas suas linhas essenciais nos
primeiros séculos da Igreja, e de compreender o sentido clássico das noções de natureza e pessoa.47
Por fim, podemos ainda constatar que cada época teve sua característica específica e deixou uma
preciosa herança: a patrística e conciliar: a afirmação da unidade de CRISTO, na distinção e perfeição
da Sua natureza divina e humana; a medieval: o aprofundamento, com adequadas razões teológicas,
da ontologia de CRISTO, em conexão estreita com Seus mistérios salvíficos; a moderna: a ilustração
da humanidade de JESUS CRISTO e da Sua realidade psicológica; a contemporânea: a reconsideração
da fundamentação histórico-crítica do evento que é JESUS CRISTO.

46
Declaração Mysterium Filii Dei, n. 3.
47
Cf. Joseph RATZINGER, na sua Introdução à mencionada declaração (CONGREGAZIONE PER LA DOTTRINA
DELLA FEDE, “Mysterium Filii Dei”. Dichiarazione e Commenti, Vaticano 1989, 16-18).
91 Cristologia

TERCEIRA PARTE:
O MISTÉRIO DA ENCARNAÇÃO DO
FILHO DE DEUS
(REFLEXÃO SISTEMÁTICA)

1O CAP.: O MISTÉRIO DA UNIÃO HIPOSTÁTICA


Na reflexão sistemática sobre o mistério da encarnação do FILHO de DEUS, concentramo-nos
primeiro sobre o mistério da assim chamada “união hipostática”. Ora, com A. Grillmeier e K. Rahner,
deve-se distinguir, ao falar de CRISTO, a unidade unida: a união das duas naturezas na unidade do ser
concreto de CRISTO, e a unidade unificante: o princípio unificador dessas duas naturezas (cf. também
S.Th. III, q. 2, a. 9).
A dificuldade sublinhada por K. Rahner é que, na explicação teológica da Encarnação, a mesma
Pessoa (hypóstasis) do FILHO de DEUS é apresentada como resultado da união (a unidade de CRISTO é
aquela da Pessoa do FILHO, “pessoa composta”, como veremos) e como princípio unificador (a
Pessoa eterna do FILHO, unindo-Se à natureza humana individual assumida, une esta com a natureza
divina, para formar com ela o CRISTO).
Vamos, então, refletir, em dois passos, sobre o mistério da união ou unidade hipostática: I. A
unidade unida; II. A unidade unificante; terminando com: III. A linguagem teológica na Cristologia.

I. A União das duas Naturezas na Pessoa do FILHO


(a Unidade unida: CRISTO, o FILHO encarnado)
A unidade unida é CRISTO, o FILHO de DEUS encarnado. O mesmo, o Senhor JESUS CRISTO, é ao
mesmo tempo DEUS e homem; n’Ele, há a união da natureza divina com a natureza humana, na
Pessoa do FILHO de DEUS.

A. A Pessoa do FILHO de DEUS


Ele é DEUS, porque tem a natureza divina. De que modo Ele tem a natureza divina? Por
identidade e desde toda a eternidade.
Ele tem a natureza divina por identidade: em DEUS não há distinção real entre a Pessoa que é
DEUS e a natureza, pela qual é DEUS. Ele a tem do PAI e com o PAI a comunica ao ESPÍRITO SANTO.
Ele é um dos Três que são o único DEUS. Ele é realmente distinto dos outros dois, mas a divindade
(natureza divina), pela qual é DEUS, é a mesma e idêntica. Como Ele é uma Pessoa distinta, na qual
subsiste a natureza comum aos Três (por identidade), assim Ele é um agente distinto da ação divina
comum (indivisamente) aos Três. Isto vale tanto para as ações imanentes (pensamento, amor), quanto
para as ações “ad extra” (criação e toda outra obra criada).
Ele tem a natureza divina como constitutivo ab aeterno (desde a eternidade), uma vez que Ele
procede do PAI ab aeterno. O FILHO é constituído na Sua personalidade própria pela relação de
filiação, enquanto subsistente, isto é, enquanto identificada com a natureza divina a Ele comunicada
sem ser dividida. Por conseguinte, a Sua personalidade é perfeita, infinita, devido à natureza divina na
qual subsiste (ou a qual nela subsiste).
Este FILHO eterno, o VERBO, DEUS desde toda a eternidade pela natureza divina uma e indivisível
comunicada a Ele pelo PAI, Se fez homem no tempo, assumindo uma natureza humana individual
formada no seio da santíssima Virgem. Tudo o que recebeu, fez, experimentou, sofreu nesta natureza
humana é o VERBO quem o recebeu, fez, experimentou, sofreu, mas não pela Sua natureza divina.
Cristologia 92

B. O FILHO-HOMEM
É este “ser-homem” temporal do FILHO, acrescentado ao Seu “ser-DEUS” eterno, que queremos
entender, na medida do possível. Procuramos uma explicação teológica, uma explicação, portanto,
que não acaba com o mistério, mas, antes, supõe a aceitação do mistério através da fé, mostrando, no
entanto, que não é contraditório e alcançando um certo entendimento (descobrindo uma certa
inteligibilidade do mistério para a nossa inteligência).

1. Explicação de base
Há uma explicação fundamental que se impõe a todos os teólogos; uma explicação a que leva a
própria fé e que o Magistério da Igreja determinou ao termo de longas pesquisas e controvérsias.

a) A união não se dá “na natureza”


Natureza significa aqui essência (aquilo pelo qual um ser é o que é – e não outra coisa) e, com
mais precisão, essência realizada, isto é, a essência enquanto é constitutiva de um ser concreto. Em
breve: natureza equivale aqui a essência individualizada, que se chama também substância.
Dizer que a união da humanidade e divindade em JESUS CRISTO se realiza “na natureza”,
equivaleria à afirmação de que JESUS tem uma essência composta de humanidade e divindade. Ora,
isto é impossível, como também não corresponderia à fé da Igreja, uma vez que esta afirma que JESUS
é, ao mesmo tempo, DEUS e homem. Mas, se tivesse uma essência composta, não seria nem
verdadeiramente DEUS nem verdadeiramente homem. Quanto à impossibilidade: é impossível que a
divindade (ato puro) entre em composição com alguma criatura (juntamente com uma realidade criada
formar um ser concreto); por outro lado, uma tal composição acabaria absorvendo totalmente a
humanidade (realidade criada) na divindade, pois uma essência criada não se distingue da essência
divina a não ser em virtude dos seus limites ontológicos; deste modo, sua união ontológica com a
divindade – se fosse possível – aboliria estes limites, fazendo-a perder não somente a sua
individualidade, mas até mesmo a sua especificidade: a humanidade seria absorvida na divindade (cf.
o erro do monofisismo).

b) A união hipostática é comparada à união da alma com o corpo


Na tradição encontramos a comparação da união hipostática com a união da alma com o corpo
(S. Agostinho, também Teodoro de Mopsuéstia, Símbolo Quicumque, entre os anos 430-450). No
Símbolo Quicumque se lê o seguinte:
Como a alma racional e o corpo formam um só homem, assim Deus mesmo e o homem formam um só
Cristo.
Esta comparação é muito sugestiva e deve ser entendida da seguinte maneira: na pessoa humana
confluem os dois universos: o dos corpos (do qual participa pela matéria) e o dos espíritos (do qual
participa pela alma espiritual).48 Ora, se considero a alma e o corpo como as partes que constituem a
natureza humana, é falso e inaceitável dizer que a humanidade e a divindade compõem o CRISTO
como o corpo e a alma compõem o homem (a humanidade e a divindade não formam uma só
natureza!). Mas, se considero a pessoa humana como resultando dessa composição, vejo-a subsistir
em dois universos distintos, embora seja uma só e mesma. Partindo disto, posso elevar-me (por
analogia) à consideração da Pessoa de CRISTO: embora permaneça uma só e mesma – permanecendo,
portanto, o que era desde toda a eternidade: a Pessoa do FILHO – ela subsiste, pelo fato da encarnação,
em DEUS e no universo criado (e este universo criado compreende, sem confundi-los, os dois
universos do espírito e da matéria).

c) A união se dá “na pessoa”


Primeiro, perguntamos o que é uma pessoa. A pessoa é o sujeito concreto (“suppositum”) no
qual se realiza uma natureza intelectual. Todo ser real é um sujeito concreto, uma hipóstasis. O que
faz a dignidade especial de uma pessoa (“o que há de mais nobre em toda a natureza”) é que o ser
concreto, no qual se realiza uma natureza intelectual, é dotado de pensamento, de amor, de liberdade

48
O homem é a maravilhosa união entre o que é espiritual e o que é material.
93 Cristologia

(um sujeito consciente e livre). Ora, o sujeito tem tudo isso pela natureza, ou seja, exatamente, pela
natureza intelectual. Por isso, escreve São Tomás:
Por causa desta nobreza singular, os indivíduos concretos nos quais se realiza a natureza racional
receberam um nome que os distingue de todas as outras substâncias: este nome é pessoa.49
Agora, voltemos a nossa questão do mistério de união ontológica 50 de divindade e humanidade
em CRISTO. A união ontológica de duas ou mais realidades acontece necessariamente em um sujeito,
no qual as respectivas realidades são unidas. Dizer de alguma realidade que ela é exterior ao sujeito é
dizer que ela é exterior às realidades que fazem parte do sujeito; tal realidade, portanto, não se
encontra unida no sujeito. No nosso caso (de JESUS CRISTO), o sujeito é uma pessoa. Ora, dizer que
no único sujeito, que é JESUS, a união da humanidade e da divindade é ontológica, quer dizer que ela
se realiza exatamente “na pessoa”.
Porém, ordinariamente (em tudo que é do alcance da nossa experiência), toda união “na pessoa”
começa com uma união “na natureza”:
- a união de dois princípios substanciais (alma e corpo), para constituir uma única substância, na
qual se realiza a natureza humana;
- a união entre as diversas partes do corpo, para constituir um só corpo, um único corpo que, com
a alma, forma a pessoa humana;
- a união de uma realidade acidental, que não forma a substância, mas a completa (por uma
determinação “acidental”, não substancial), de modo que a substância, embora permaneça a
mesma, é por ela “modificada”.
Ora, se excluímos em CRISTO toda união da humanidade e divindade “na natureza”, e afirmamos,
segundo a fé da Igreja, que essa união é ontológica, somos levados a afirmar uma união na pessoa e
somente na pessoa. Na única Pessoa de JESUS CRISTO unem-se a natureza divina e a natureza humana,
de tal modo que não se misturam entre si, nem como dois princípios consubstanciais, nem como os
membros de um mesmo corpo, nem como se une o acidente à substância que modifica.

d) O FILHO apropriou-Se a natureza humana assumida


Esta única Pessoa de CRISTO tem a natureza divina, é DEUS, é uma das Pessoas divinas: o FILHO,
o VERBO. Ele é DEUS, procedendo do PAI, no mistério da divindade una e indivisível.
E como Se tornou homem? Para fazermo-nos uma idéia disso, é preciso refletir sobre as relações
existentes entre a pessoa (o “eu”) e a natureza; fazemo-lo, antes de tudo, no nível fenomenológico.
Aliás, apelamos aqui não a uma bem determinada filosofia, mas simplesmente à experiência humana
universal, que sempre distinguiu entre o indivíduo e sua natureza, ou seja, no caso da natureza
intelectual, entre a pessoa e sua natureza – e, daí, as relações entre a pessoa e a natureza.
Entre a pessoa e a natureza (na sua totalidade ou nas suas partes) manifesta-se, antes de tudo,
uma relação de posse: a minha cabeça, o meu pé, a minha vontade, a minha liberdade, etc. e, enfim, a
minha humanidade (minha natureza individual, pela qual sou homem).
Mas manifesta-se também uma relação que vai além do possuir; ela exprime-se em termos de ser:
eu sou um homem; sou livre; sou (um ser) corpóreo, etc. (cf. o princípio escolástico: natura de
persona praedicatur in quid51; a natureza é atribuída à pessoa como um atributo essencial).
Pode-se afirmar a mesma coisa com a noção de apropriação: o FILHO eterno apropriou-Se uma
natureza humana individual, completa. Ele tem esta natureza e é homem por esta natureza, no sentido
pleno que nós damos a esta palavra, quando dizemos: é meu corpo, é minha alma, é minha cabeça,
etc. Essa natureza humana individual é a natureza humana do FILHO de DEUS.52

49
S.Th. I, q. 29, a. 1.
50
União “ontológica” significa, obviamente, união no ser e não apenas no agir ou pelo agir; união que forma um
ser concreto.
51
quidditas = essência (aquilo que é – quid est).
52
A apropriação é um ter que desemboca no ser. Enquanto “ter”, ela evita todas as possíveis formas de
monofisismo. Enquanto “ser substancial”, ela salva inteiramente a afirmação central da fé na Encarnação, que é
um verdadeiro tornar-Se do Imutável. “É Deus quem tem a natureza divina; é homem quem tem a natureza
humana” (S. João Damasceno).
Cristologia 94

Há duas analogias, complementares, que nos podem levar a um certo entendimento deste
mistério. São analogias que, no entanto, no percurso da aplicação, devemos corrigir.
Uma é a da parte substancial: como um ser humano, uma pessoa humana, é composta de partes
substanciais (alma e corpo), assim o FILHO de DEUS encarnado, a Sua Pessoa, é composta da
substância da divindade e da substância da humanidade.
Podemos, até mesmo, levar mais longe esta analogia: se, por um milagre, fosse restituído a um
homem um membro perdido (o braço, p. ex.), ou quando, na ressurreição, a pessoa humana
subsistente apenas na sua alma recebe o acréscimo do corpo, a pessoa é preexistente. Ela não é
formada por esta nova parte substancial, mas, na verdade, apropria-se este novo membro, este corpo,
faz dele uma parte de si.
Contudo, é preciso reconhecer logo a grande diferença entre esses casos e o de JESUS, o FILHO
encarnado. Pois nesses exemplos a união se realiza na natureza, enquanto em JESUS CRISTO a
natureza humana pertence, como própria, à Pessoa do FILHO, sem se tornar uma parte da natureza
divina.
Nesta altura, podemos buscar uma luz em outra analogia: a do acidente. O acidente acrescenta-se
a uma pessoa já inteiramente constituída e se torna o acidente desta pessoa, como a humanidade de
JESUS se acrescenta à Pessoa do FILHO já inteiramente constituída e se torna Sua.
Mas também aqui precisa logo corrigir a comparação. Pois o acidente não pertence à pessoa a
não ser por meio da substância que modifica (como determinação acidental), enquanto a humanidade
assumida não é uma determinação acidental da divindade; isto seria impossível e, além disso, a
humanidade assumida não é um acidente mas uma substância, que não pode, de modo algum, fazer as
vezes de um acidente.

e) União substancial
A união da divindade e da humanidade em CRISTO é substancial? Certamente, não se pode
chamar “substancial” no sentido de formar n’Ele uma só substância. Mas também não é “acidental”,
como se cada uma das substâncias unidas conservasse a própria subsistência (seriam dois sujeitos,
duas pessoas).
Neste último caso, a humanidade faria parte do ter do FILHO, não do ser; não se poderia dizer que
o FILHO é um homem (como todo homem faz parte do ter de DEUS; mas não posso dizer que DEUS é
homem, só pelo fato de Ele nos ter criado, de ser criador, só pelo fato de eu ser propriedade de DEUS).
Então, para salvar a união na pessoa, seria necessário dizer que a humanidade assumida é um
acidente; mas isto é absurdo. Com efeito, sendo uma natureza substancial, a humanidade só pode ser
realizada como substância, nunca como acidente. Se, portanto, esta substância pertence ao FILHO, é
Sua, isto não pode ser à maneira de um acidente que pertence ao sujeito, mas à maneira como a
natureza substancial pertence ao sujeito (à pessoa) que esta natureza constitui.
Por estas razões, no caso singular de JESUS CRISTO, é necessário admitir um meio termo entre a
união substancial (como as partes de uma substância individual são unidas entre si) e a união
acidental (como o acidente é unido à substância ou como dois subsistentes distintos são unidos entre
si por contato ou por relação). Este meio termo é a união segundo a subsistência, isto é: duas
substâncias distintas (a divindade e a humanidade) são unidas como pertencentes ao mesmo sujeito, à
mesma pessoa, a qual subsiste em uma e outra substância.
É necessário excluir totalmente, como contrário à fé cristã, que haja em CRISTO dois sujeitos
ontológicos: o FILHO e um homem distinto d’Ele. Não adiantaria dizer que o segundo sujeito, o
homem, não é pessoa, pois todo homem real, todo sujeito em que se realiza a natureza humana é uma
pessoa.

2. Explicação teológica ulterior

a) A natureza assumida não pertence a si mesma (“desapropriação”)


A natureza humana assumida pertence, como própria, ao FILHO; isto implica que não pertence a
si mesma, quer dizer: essa natureza humana não constitui uma nova pessoa à qual pertenceria como
sua e que, por meio dessa natureza, seria um ser humano (o que acontece com todos os outros
95 Cristologia

homens). A este fato podemos chamar de “desapropriação”. Esta idéia nos é oferecida pela exclusão –
exigida pela fé no mistério do FILHO encarnado – de um sujeito ontologicamente criado, que seria este
homem, JESUS CRISTO.
1) A subsistência da humanidade de JESUS
“Subsistir” significa “ter a existência” ou “ser realmente”. Daí, por definição, todo ser real
subsiste.
Portanto, a humanidade de JESUS, sendo real, subsiste. Mas há dois modos de subsistir: pode-se
existir “por própria conta”, como “quem existe” ou “existir como parte de um ente”, “existir nele”.
Assim, é preciso distinguir
- subsistere in se (subsistir em si mesmo), isto é, o ser (concreto) ou ente (ens) que subsiste, que
tem a existência e a exerce por própria conta;
- subsistere in alio (subsistir em um outro), isto é, concorrer, de um ou outro modo, a constituir o
ente que existe. Neste caso, a realidade indicada não é um quod est (alguma coisa que existe),
um ens (ente), mas id quo aliquid est (aquilo através do qual alguma coisa existe).
Este último caso é o da forma acidental: para o acidente, “ser” (ou “existir”) é ser no sujeito que
existe. Aquilo que existe, propriamente falando, não é o acidente, mas a substância que o acidente
modifica. O acidente participa da existência da substância; ele faz com que a substância seja “tal”.
O mesmo vale para a parte substancial, como um membro do corpo, o corpo mesmo, a alma
etc.53 Aquilo que existe é o ser vivente, o todo: as partes não existem a não ser no todo e mediante o
todo. Não têm uma existência própria.
Vimos que o caso único da humanidade assumida de JESUS se pode e deve conceber a partir do
caso do acidente e da parte substancial. Como o acidente, a humanidade assumida não subsiste por si
mesma (in se), mas faz que o VERBO, eternamente subsistente, seja “tal”, isto é, seja homem. Porém, a
humanidade assumida não é um acidente, mas uma substância. Como a substância incompleta, ela é
uma parte da pessoa na qual subsiste; porém, esta humanidade assumida é uma substância completa.
Ora, para que tudo isso tenha um sentido, é preciso admitir que também uma substância completa
– a humanidade individual – possa não ter uma subsistência própria. Em outras palavras: que a
individuação, pela qual uma substância é completa, não confira ainda a subsistência in se. Sem este
esclarecimento seria incompreensível que a humanidade de JESUS – que é certamente individual e real
– não subsista em si, não constitua uma pessoa existente por própria conta e, por isso, distinta do
VERBO.
2) Individuação e subsistência
O “subsistente” (ser concreto subsistente) ou sujeito é a substância, a substância completa. Toda
outra realidade é um “acidente” ou parte da substância. Quanto à substância, deve-se distinguir entre
- substância primeira: o sujeito ontológico, sujeito do ser e de todos os acidentes, e o princípio
que age (principium quod operatur), e
- substância segunda: a natureza universal que se realiza no sujeito concreto que é constituído
por ela.
Quando se trata de seres corporais (como também o homem é), a substância segunda,
determinada completamente na linha da essência ou perfeição ontológica, é ainda universal: é a
natureza específica, que pode ser realizada somente nos indivíduos materiais, distintos entre si pelas
propriedades de origem material (matéria como princípio de individuação). Estas propriedades não
acrescentam à essência alguma perfeição ontológica, mas são a condição para que a essência se
realize; são as propriedades individualizantes.
À primeira vista, poder-se-ia pensar que, completada pelas propriedades individualizantes, a
substância segunda poderia tornar-se ipso facto substância primeira, isto é, subsistente. O mistério da
Encarnação do FILHO de DEUS, no entanto, nos impede de pensar assim, pois a humanidade de JESUS
é uma substância completa, individual, que não subsiste por si, isto é, não tem subsistência própria.
Por conseguinte, não basta ser uma substância completa, individual, para ser uma substância primeira,
um subsistente, um ente “que existe e que age”. A humanidade de JESUS é real e pertence realmente
53
Quanto à alma humana, é preciso esclarecer que a subsistência do todo, da pessoa humana, é a subsistência da
alma comunicada ao corpo e a todas as suas partes.
Cristologia 96

ao VERBO como Sua humanidade. Por isso, não pertence a uma pessoa criada, formada por essa
humanidade. É necessário admitir que formar uma pessoa criada, à qual pertence, é para toda natureza
individual algo que se acrescenta à individuação.
3) O princípio de subsistência
Por isso, devemos perguntar-nos em que consiste aquela realidade que dá à natureza individual o
poder subsistir. É a pergunta pelo “princípio de subsistência”. Com relação à natureza humana, a
pergunta também se pode formular como segue: O que é o constitutivo próprio da pessoa humana? O
que faz com que uma natureza humana constitua uma pessoa?
Com relação ao mistério de JESUS CRISTO – que, segundo a fé da Igreja, é uma só Pessoa e não
duas (não uma pessoa humana além da Pessoa divina, distinta da Pessoa divina) – a pergunta é: O que
falta à natureza humana individual de JESUS para constituir uma pessoa humana? Ou: o que é o
constitutivo próprio da pessoa humana, o qual não há em JESUS? A resposta é: Falta o princípio
próprio (criado) de subsistência. Mas, então, em que consiste, em geral, o “princípio de
subsistência”?
Vejamos primeiro em que não consiste.
a. O princípio de subsistência não é uma determinação individualizante
A subsistência é própria do ser singular que existe (o indivíduo). Por isso, pensou-se que a
subsistência se daria pela última propriedade individualizante. Em CRISTO, esta propriedade
individualizante seria substituída pela união hipostática. Por isto, a união hipostática seria constitutiva
da natureza assumida enquanto individualizada.
Contra esta explicação, porém, se deve objetar: Se a união não se dá, de modo algum, “na
natureza”, a natureza assumida não é e não pode ser modificada pela união hipostática: o ato de
assumir fez sim que essa natureza fosse a do FILHO, mas não fez que ela fosse uma outra natureza
(também individual).
b. O princípio de subsistência não é o “ser”
Há teólogos tomistas (como Billot) que vêem o princípio de subsistência da humanidade de
JESUS no ser eterno do FILHO ou VERBO.
Aquilo que falta à substância, ainda que determinada até à individuação, para subsistir é
simplesmente o ser: subsistir é existir, e para nenhum ser concreto limitado a essência (ainda que
determinada até à última determinação individualizante) identifica-se com o ser54. O ser lhe dá, ao
mesmo tempo, o existir e o subsistir.
Isto se aplica, então, a CRISTO da seguinte maneira: a apropriação da natureza assumida do
VERBO acontece pela comunicação do ser divino, eterno a esta natureza. Com efeito, se subsistir é
existir, subsistir no VERBO significa: existir pela existência eterna do VERBO.
Ora, contra esta explicação se pode e deve objetar: existir e subsistir não se identificam
simplesmente. Está certo que o “subsistens”, o ser concreto subsistente (o sujeito, a hipóstasis, etc.) se
caracteriza pelo fato que existe: é “o que existe e age”. Mas a subsistência que procuramos é
justamente aquilo que faz dele o sujeito do ser, o possuidor do ser, o sujeito ontológico. 55
Outra objeção se baseia na teologia trinitária. Pois, ainda que se pudesse aceitar a idéia da
comunicação do ser divino à humanidade assumida, ficaria uma dificuldade insuperável: o ser é
estritamente comum às três Pessoas divinas. Se a união consistisse exatamente em que o ser divino
fosse comunicado à natureza humana assumida, que sentido teria a afirmação de que somente o FILHO
Se fez homem?
c. O princípio de subsistência é o que completa a substância (essência individualizada) na linha da
existência
Para reconhecer o que é realmente o princípio de subsistência, distingamos bem:

54
Em DEUS, essência e ser se identificam.
55
Dizer somente que é sujeito do ser pelo fato que tem o ser, é explicar o prius per posterius (aquilo que está em
primeiro lugar, por aquilo que vem depois, pela consequência). De fato, não poderia receber o ser se não fosse o
sujeito do ser. Portanto, é preciso saber o que o faz sujeito do ser.
97 Cristologia

 a e s s ê n c i a (natureza, substância segunda) é uma “forma”, é aquilo pelo qual o ser


subsistente é o que é e não outra coisa (aquilo pelo qual a natureza humana individual de JESUS
é natureza humana; aquilo pelo qual JESUS é homem);
 o s e r s u b s i s t e n t e (o “ente”, “o que existe e age”, a substância primeira) é o sujeito no
qual esta forma se realiza;
 o p r i n c í p i o d e s u b s i s t ê n c i a é aquilo pelo qual a forma se torna s u j e i t o .
A essência é o que se encontra no campo do conhecimento. Este é o campo da representação, isto
é, do universo intramental; a representação está, por sua natureza, toda orientada (tende a; a intentio,
em latim) para a coisa representada, a qual faz parte do universo extramental. Numa teoria do
conhecimento realista, como a de São Tomás, a representação coincide (pode coincidir; em DEUS
coincide mesmo perfeitamente) em tudo com a coisa representada, exceto no seguinte: que a coisa
existe realmente, enquanto a representação não existe a não ser idealmente ou intencionalmente. 56
O sujeito, a substância primeira, o ser subsistente, pertence ao universo extramental, tem
existência real. A subsistência é esta propriedade de realidade, pela qual o sujeito (substância
primeira) se distingue da essência (por mais que seja determinada; substância segunda) que nele se
realiza. Aliás, a distinção entre o indivíduo (pessoa) e sua essência ou natureza faz parte da
experiência humana universal e não é somente de uma determinada filosofia. O conceito de sujeito
como possuidor da natureza é resultado de uma observação universal e intuitiva.
O “princípio de subsistência” é o que dá à substância essa propriedade de realidade, pela qual ela
é o sujeito do ser, aquilo que existe, a substância primeira; em outras palavras, como já dissemos, o
“princípio de subsistência” é aquilo pelo qual a “forma” se torna sujeito.
Como entender este princípio de subsistência? Certamente, não se deve entender como uma nova
forma (não é uma determinação da essência, ainda que fosse a última determinação). Por definição,
este princípio não é representável, não pode ser reduzido a conceitos, uma vez que faz passar a forma
da ordem da representação à ordem real.57 Como vamos ainda explicar mais tarde, estabelecendo a
devida distinção (distinção necessária no caso de JESUS), esse princípio é o “ato de ser” (esse, actus
essendi). O ato de ser é o que faz que algo seja realmente, que exista. Podemos fazer uma
comparação: como o ato de correr é o ato que faz com que esta determinada pessoa seja uma pessoa
que corre, assim o ato de ser é o ato que faz que algo seja ou exista. A existência é o fato de ser ou
existir, o resultado de ter o ato de ser. A necessária distinção será aquela entre o ato de ser do sujeito
como aquilo que é (ut quod) e o ato de ser da natureza como aquilo pelo qual é (ut quo).
Em virtude deste “princípio de subsistência”, a substância primeira é um ser real, do qual se pode
reconhecer as duas seguintes propriedades:
uma propriedade positiva: sob este aspecto, ela é um sujeito ontológico, que é e que age (um
acidente, ao invés, quando passa à realidade, não se torna sujeito, mas participa da realidade do
sujeito, diferente dele: o acidente subsiste in alio);
e uma propriedade negativa: ela é ontologicamente distinta de todo outro sujeito ontológico. Em
termos de “ser-existir”: a substância primeira exclui toda comunicação no ser com outro ente. Com
efeito, ela não poderia, sem contradição, subsistir em si (ser “o que existe”) e subsistir em um outro
(ser parte de um “sujeito”).

56
Aqui podemos lembrar a distinção, em DEUS, entre o “simples conhecimento” e a “ciência de visão”. O
simples conhecimento é o conhecimento que DEUS tem de tudo que poderia existir (Ele poderia causar), mas
nunca existirá. Este conhecimento de DEUS é perfeito (até à última determinação, à individuação da essência),
mas exclui tudo que não é do “campo do conhecimento”, como é a existência das coisas conhecidas. A ”ciência
de visão” é esse conhecimento perfeito, acrescentando essa existência (é o conhecimento das coisas que
realmente existiram, existem ou existirão); cf. S. TOMÁS, De veritate q. 3, a. 3, ad 8.
57
Aliás, quando se diz que uma forma substancial ou acidental passa à realidade, não se quer dizer que ela passe
do mundo intramental (intencional) ao mundo extramental (real); ela não existe a não ser no mundo extramental
e, por conseguinte, propriamente falando, não entra nesse mundo. Mas a nossa pergunta é: esta realidade, que,
como forma, coincide exatamente com a representação no mundo intramental (supondo que possa ser e seja de
fato perfeitamente conhecida), o que é que ela tem de mais do que sua representação e o que é que a torna real?
Este “mais” é a subsistência.
Cristologia 98

4) Subsistência e Personalidade
Todo indivíduo no qual se realiza a natureza humana é uma pessoa (humana) já somente pelo fato
que subsiste. Pessoa humana é uma sujeito no qual se realiza a natureza humana.
Usa-se também a palavra “personalidade”. Ora, “personalidade” pode ter dois significados:
- o “princípio de subsistência”, em virtude do qual a natureza humana, neste indivíduo, é real,
subsistente; “personalidade”, nesta acepção, é, portanto, o que faz a natureza humana ser uma pessoa
(um sujeito, um ser subsistente);
- a dignidade particular do sujeito que, devido à sua natureza intelectual nele realizada, é dotado
de pensamento, de amor e de liberdade (um sujeito consciente e livre).
O segundo significado é o mais habitual. O primeiro significado tem a vantagem de nos recordar
que a dignidade da pessoa e todos os direitos e deveres que lhe competem provêm da natureza
intelectual, mas pertencem ao sujeito no qual esta natureza se realiza e são reais somente depois dessa
realização.
5) A “despersonalização” da natureza humana assumida
São Tomás escreve:
Se a natureza humana de CRISTO não tivesse sido assumida pela Pessoa divina, teria sua própria
personalidade. E se se diz impropriamente que a Pessoa divina eliminou a pessoa (do homem), é para
dizer que a Pessoa divina, unindo-se a ela [natureza humana], impediu que a natureza humana tivesse
uma personalidade própria.58
Pelo que vimos até agora, resulta que, para poder subsistir num sujeito diferente de si, isto é, no
FILHO eterno, a natureza humana assumida foi impedida de constituir uma pessoa, como faz toda
natureza humana realizada, no momento em que é realizada. Neste sentido, ela foi
“despersonalizada”.
Ora, esta “despersonalização” não comporta alguma mudança ou diminuição da natureza
assumida, e, por isso, por meio desta natureza, o FILHO é homem como nós somos homens. Ele é
“consubstancial” a nós. A razão disso é que a “personalidade” (no primeiro sentido da palavra) não
faz parte, de modo algum, da natureza, ainda que individualizada, mas sua função é somente a de
realizar essa natureza.
Por outro lado, essa “despersonalização” é relativa. Ela se refere apenas à pessoa criada, que
normalmente seria constituída pela natureza realizada.
Em lugar dessa pessoa criada está a Pessoa eterna do FILHO, na qual a natureza humana
assumida se encontra personalizada. Como, de fato, esta natureza é a natureza do FILHO, assim,
correlativamente, o FILHO é a Pessoa desta natureza. É importante, portanto, que reconheçamos: não
há, para a natureza assumida, privação de personalidade, mas sujeição, pertença, a uma
personalidade mais alta, infinita.59
6) Como se realizou a “despersonalização”?
Como se realizou essa “despersonalização”? Por aquela ação que faz a natureza ser, pela ação
eficiente que dá a subsistência: o que é produzido é a natureza subsistente neste sujeito singular. No
caso de JESUS, a ação pela qual foi realizada a humanidade individual de JESUS fê-la subsistente na
Pessoa do FILHO e, ipso facto, impediu que ela subsistisse em si (isto é, que formasse um sujeito (uma
pessoa humana), distinto da Pessoa divina do FILHO). Esta ação (de “assumir”) examinaremos mais
tarde.

b) A apropriação, por parte do FILHO, da natureza humana “despersonalizada”


A humanidade de JESUS, sendo real e não subsistente em si, mas no FILHO, impõe uma questão: o
que significa “subsistir no FILHO”?
1) Algumas explicações não satisfatórias
Quando se vê o constitutivo próprio ou formal da pessoa na qualidade de independência
ontológica da natureza individual (Beato Duns Escoto) ou no caráter de totalidade dessa natureza
58
S.Th. III, q. 4, a. 2, ad 3.
59
Cf. S.Th. III, q. 2, a. 2, ad 2.
99 Cristologia

(Tifânio: hypóstasis = um todo substancial subsistindo em si), subsistir no VERBO significa para a
natureza humana assumida de JESUS não ter essa qualidade de independência ou totalidade. Mas,
como já vimos, a personalidade não pode ser entendida como sendo uma qualidade ou um aspecto da
natureza; não se deve buscar na linha da essência (ou natureza). No caso de JESUS, essa teoria teria
duas consequências: de um lado, a natureza humana de JESUS não seria completa, porque privada de
uma propriedade importante; por outro lado, a Pessoa divina deveria ser entendida como uma
propriedade dessa natureza humana assumida.
Uma outra explicação é a da “atuação” da humanidade assumida mediante o ser divino do VERBO
(Billot, M. de la Taille). De la Taille fala de uma atuação criada mediante o Ato incriado. O ato em
virtude do qual a humanidade de JESUS existe é o Ato incriado, a saber, o ser divino (ato de ser); a
atuação, ele a concebe como “adaptação e habilitação” da potência ao ato. Mas esta “atuação criada”
da natureza humana seria uma realidade que não é nem potência nem ato. Além disso, seria uma
realidade criada, mas não produzida por causalidade eficiente, o que equivale a dizer: não criada.
A causalidade do Ato (atuação em sentido ativo) não é – segundo essa explicação – nem
causalidade eficiente (a causalidade eficiente produz um efeito distinto da causa; no nosso caso
(JESUS), seria o ser próprio, em virtude do qual a humanidade assumida existe; mas De la Taille quer
absolutamente excluir um tal ser) nem causalidade formal (com efeito, a forma causa unindo-se à
potência, o que se exclui expressamente, porque seria panteísmo); fala-se, então, de causalidade
quase-formal. Ora, ou há uma ou outra dessas duas causalidades; ou a causa se comunica a si
mesma, tornando-se a forma do efeito (esta é a causalidade formal), ou ela comunica uma forma
distinta de si (e esta é a causa eficiente). É contraditório dizer que ela, ao mesmo tempo, comunica a
si mesma e que a potência recebe dessa comunicação uma outra coisa.
Quando De la Taille fala de uma habilitação substancial da humanidade assumida do VERBO, há
nisso uma referência a uma famosa teoria escolástica: a do modo substancial. A ação de assumir
produziria na humanidade do JESUS “uma modificação substancial”, em virtude da qual ela seria a
humanidade do VERBO (teoria de Vasquez, Suarez, Salmanticenses). Ora, pode-se fazer a seguinte
objeção a essa teoria: este “modo substancial” teria como sua razão de ser a de impedir a humanidade
assumida de ter uma subsistência própria, sem, portanto, fazê-la subsistir, porque é o VERBO que lhe
comunica a própria subsistência. Porém, se a humanidade assumida não tem subsistência própria é
exatamente porque ela foi assumida, porque recebeu a comunicação da subsistência do VERBO. Está
errado pensar o contrário, isto è: porque essa humanidade não tem subsistência própria, ela foi
assumida, a ela foi comunicada a subsistência do VERBO.60
Segundo essa explicação (a “atuação” mediante o Ato incriado), portanto, subsistir no VERBO
significaria para a natureza humana assumida não ter um ser próprio. Já vimos a objeção a fazer
contra essa concepção.61
K. Rahner tentou outra explicação, fazendo consistir a união hipostática no ato da consciência de
JESUS. “A visão imediata ... é a própria união hipostática”. Porém, pode-se explicar mediante a
consciência (conhecimento de Si mesmo como VERBO) a própria união em virtude da qual este
homem é o VERBO?! É impossível fazer consistir a união na consciência que JESUS tinha desta união;
é que a união ontológica precede logicamente a consciência da união.
Outra explicação é aquela do “assumptus homo” (Déodat de Basly, L. Seiller). Segundo esta, a
humanidade assumida do VERBO forma um indivíduo humano distinto do VERBO, mas unido a Ele
ontologicamente e de um modo tão íntimo que faz com Ele uma só pessoa, embora permaneça um
sujeito distinto de ser e de agir. Esta explicação é insustentável e foi, na sua forma mais rigorosa de L.

60
Há anterioridade lógica da comunicação da subsistência sobre a ausência da subsistência própria, porque esta
última, considerada à parte, diz respeito à humanidade no seu estado ideal, não real. Não diz respeito, portanto,
à humanidade de JESUS, que é perfeitamente real, mas que não é real a não ser como “assumida”. Se se diz
(Suarez e, como parece, também De La Taille) que se trata de dispor a humanidade a ser assumida, isto é, a
receber a subsistência do VERBO, deve-se responder que, com relação a esta comunicação da subsistência, a
humanidade é totalmente passiva (diante da onipotência divina). Por conseguinte, não há necessidade de ser
“disposta”. DEUS pode fazê-lo sem alguma sucessão, sem alguma preparação.
61
Também quando se fala de uma causalidade quase-formal entre a subsistência do VERBO e a Sua humanidade
(não identificando “ser” com “subsistir”), permanecem graves objeções (cf. Nicolas, p. 411).
Cristologia 100

Seiller, rejeitada pelo Magistério da Igreja; ela não é, portanto, um caminho possível para a teologia
da Igreja.
2) Explicação mediante a relação real de união
Esta é a explicação proposta por São Tomás. A esta integraremos algumas idéias que se
encontram em outras explicações que, como tais, não consideramos acertadas, mas não deixam de
mostrar um ou outro aspecto verdadeiro.
a. A união hipostática é uma relação real predicamental
A natureza humana de JESUS pertence realmente ao VERBO e por essa natureza Este é realmente
homem. Por outro lado, esta pertença não modifica essa natureza humana em si mesma, já que por
esta natureza o VERBO é homem entre os homens, “consubstancial a nós” (Concílio de Calcedônia).
Ora, em todo o âmbito da realidade criada, do ser, somente a relação pode ser real sem modificar
o sujeito da relação (o sujeito relacionado a ...). Esta é a razão por que a união hipostática, tocando
realmente a natureza humana de JESUS, somente pode ser uma relação real.
Por outro lado, a relação pode ser real, sem que a relação oposta o seja também: há relações
mútuas, das quais uma só é real. Veremos que é impossível que a relação do VERBO à natureza
humana assumida seja real, uma vez que isto implicaria uma mudança em DEUS.
A noção de “relação real” é uma expressão válida do mistério. Vimos que este mistério somente
podia exprimir-se em termos de pertença: a natureza humana assumida pertence ao FILHO eterno
como Sua natureza. Ora, somente a noção de relação pode exprimir a pertença.
Poderá alguém objetar: no caso de um homem comum, a “personalização” não se realiza com
uma relação, e não se vê bem como uma simples relação possa explicar a subsistência, isto é, a
realização da natureza humana de JESUS. A resposta é a seguinte: No caso ordinário, há identidade
entre a pessoa e a natureza realizada, de modo que a relação de pertença, que estabelecemos entre a
pessoa e a natureza, é uma relação de razão (não uma relação real; é a relação de identidade). Na
união hipostática, ao invés, a pessoa é e permanece distinta da natureza que subsiste nela e por ela; é
por este fato que a pertença deve ser uma relação real.
No entanto, não é preciso dizer que esta relação faça subsistir a natureza humana, que ela torne
real essa natureza. É por uma ação divina – a ação de assumir – que essa natureza humana se torna
real. A relação é aquilo pelo qual esta natureza é real: esta não existe a não ser como pertencendo ao
FILHO. Nisto consiste a sua realidade: ela é “do FILHO”.
b. União hipostática e criação
A criação é a fundamental ação divina ad extra, no sentido de que todas as outras ações
pressupõem a criação, e que o efeito delas, na sua própria especificidade, é antes de tudo uma
“criatura” (algo criado). Pode-nos ajudar muito no entendimento do mistério a comparação da união
hipostática com a criação.
Não falaremos aqui da Encarnação como o termo (transcendente) da criação, isto é, como aquilo
que dá à criação seu pleno sentido mais alto. O que queremos fazer é comparar o efeito do ato criador
para uma criatura comum com o efeito da ação de assumir para a humanidade de JESUS.
Uma e outra ação conferem ao efeito a subsistência: o ato criador faz subsistir a criatura em si
mesma; a ação de assumir faz subsistir a natureza assumida no VERBO. Nos dois casos, o fato de
depender de DEUS para subsistir exprime-se com a noção de relação: a criação passiva (creatum esse;
o fato de ter sido criado) se reduz a uma total dependência com relação a DEUS. Como a criação
passiva é a relação pela qual o ser criado é referido a DEUS como ao princípio do próprio ser, assim a
união hipostática é a relação pela qual a humanidade de JESUS é referida ao FILHO como ao princípio
da sua subsistência. Como no caso da criação a relação, enquanto ser (sendo um acidente ontológico),
pressupõe a substância (como todo acidente pressupõe o próprio sujeito), mas, segundo a sua razão
formal, é a substância que a pressupõe (sendo relação no próprio princípio da existência dessa
substância), assim, no caso da união hipostática, a relação de união pressupõe a natureza humana de
JESUS, que é o seu sujeito, mas, ao mesmo tempo, é pressuposta por essa natureza; com efeito, esta
humanidade não é real e subsistente a não ser como humanidade do VERBO, isto é, como referida a
Ele.
101 Cristologia

É necessário, contudo, notar também a diferença: a ação de assumir não dá o ser à humanidade de
JESUS (ver nossa crítica a essa teoria), mas somente a subsistência. A ação de assumir pressupõe,
portanto, uma outra ação divina, pela qual a humanidade de JESUS recebe o “ser”. Por conseguinte, é
necessário reconhecer nessa humanidade uma dupla relação de dependência para com DEUS: uma
para com DEUS criador (às três Pessoas que são o único Criador), a outra, somente para com o FILHO,
em Quem ela subsiste como Sua.
c. O sujeito da relação de união
O sujeito de uma relação é, em geral, o ente que é referido a um outro. Aqui, porém, surge uma
grave dificuldade: o que é referido é a natureza humana de JESUS, a qual não é um ente, porque não é
um subsistente.
Podemos dar a seguinte solução: o sujeito da relação de união é a natureza humana de JESUS, não
considerada em si mesma, isto é, abstratamente, mas considerada em concreto, isto é, considerada
como pertencente ao VERBO,62 e que a pertença ao VERBO torna concreta. Nos casos ordinários, há
identificação entre a natureza concretizada e a pessoa na qual ela se concretiza. O mistério da
Encarnação consiste no seguinte: a natureza humana, pela qual o VERBO é um homem, distingue-se
realmente da Pessoa que subsiste nela e na qual ela subsiste; pode-se, portanto, considerar essa
natureza da parte do VERBO, em relação com Ele.
d. O termo da relação de união
São Tomás indica habitualmente como termo da relação de união a natureza divina, mas fala
também da relação da natureza humana à Pessoa do VERBO.
Aqui precisa distinguir duas coisas: a união das duas naturezas (divina e humana) entre si e a
união da natureza humana à Pessoa divina.
Ora, a natureza divina subsiste em três Pessoas. A união hipostática é certamente a união das
duas naturezas, mas das naturezas concretas, subsistentes. Elas são unidas precisamente por causa da
sua subsistência na única Pessoa do VERBO. O termo da relação de união é, por conseguinte, a
natureza divina subsistente no VERBO (ou: a natureza divina como constituindo a Pessoa do VERBO)
ou: a relação constitutiva da Pessoa do VERBO, enquanto esta relação é subsistente.
A união hipostática é uma única relação da natureza humana, que o VERBO fez Sua, à natureza
divina, enquanto esta é do VERBO desde toda a eternidade (não há duas relações da natureza humana,
uma à natureza divina e outra à Pessoa divina).
e. O fundamento da relação de união
Uma relação é real, quando tem um fundamento ontológico no seu sujeito. Deste modo, a relação
existe – não pelo ato do espírito que refere uma realidade à outra, mas – no mundo extramental, e o
espírito somente pode se dar conta dela, mas não estabelecê-la. É este o caso da união hipostática: não
é o espírito do crente que coloca a humanidade de JESUS em relação privilegiada com a divindade,
mas esta relação existe independentemente de todo ato do espírito (inclusive do ato de consciência de
JESUS mesmo). Em virtude desta relação, JESUS é homem e DEUS. Por isso, é necessário encontrar na
natureza humana de JESUS um fundamento real da relação de união.
Ora, segundo a nossa explicação dada, porém, a natureza assumida não é por nada modificada
pelo fato de ser assumida pelo FILHO. Não concordamos com aquelas explicações que vêem o fato de
essa natureza ser subsistente no FILHO em alguma determinação da própria natureza por parte da
Pessoa do FILHO (a “atuação criada pelo Ato incriado”; o “modo substancial”). Segundo essas
explicações, obviamente, não existe uma dificuldade para indicar o fundamento da relação real de
união da natureza humana à Pessoa do FILHO: é aquela determinação da natureza. No entanto, se a
nossa explicação está certa, nessas soluções se trata de uma falsa clareza. Qual é então o fundamento
da relação de união, segundo a nossa explicação?
O fundamento da relação de união é a substância mesma da humanidade de JESUS. Retomemos a
comparação da união hipostática com a criação. Como a relação na qual consiste o ser criado
(creatum esse, o fato de ser criado) se fundamenta imediatamente na substância da criatura, enquanto

62
Pode-se distinguir entre 1) a natureza humana como concreta, isto é, como subsistente no VERBO, que faz do
VERBO este homem que é JESUS, e 2) a natureza humana como abstrata (considerada em si mesma), isto é,
como aquela que é realizada, concretizada pela subsistência do VERBO.
Cristologia 102

esta recebe de DEUS o seu ser, assim a relação na qual consiste a união fundamenta-se imediatamente
na substância da humanidade assumida – não enquanto atuada pelo seu ser (sob este aspecto, a
substância fundamenta a relação de “ser criada”, como todas as outras realidades criadas), mas –
enquanto substância humana feita própria do FILHO, pela ação de assumir.
Portanto, a relação real de total dependência da criatura, de DEUS Criador, não tem como
fundamento ontológico alguma mudança na própria substância da criatura, mas a mudança consiste,
assim podemos dizer, no vir a ser dessa mesma substância (a substância, enquanto esta recebe de
DEUS o seu ser, enquanto esta vem à existência pela ação criadora de DEUS). O mesmo vale para o
fundamento da relação de união da substância humana assumida de JESUS para com a Pessoa divina
do FILHO: o fundamento não consiste em uma mudança na própria substância humana, mas no vir a
ser a substância humana da Pessoa do FILHO, pela ação de assumir. Na verdade, aqui nos encontramos
no limite da nossa explicação. Não temos os meios conceituais para determinar e precisar essa
realidade misteriosa.

C. O uso, em teologia, da noção de relação e seu alcance realista


Quando se quer definir, sob as suas diversas formas, a dependência da criatura com relação a
DEUS e, em sentido oposto, o senhorio de DEUS sobre a criatura, encontram-se somente conceitos de
relação, portanto aquilo que é menos real em todo o mundo da realidade. Como diz São Tomás: “A
relação tem o ser mais fraco”.63 Pode-se, então, perguntar: Isto não significa reduzir a nada ou a quase
nada essa dependência?

1. A questão

a) Os casos principais, nos quais a teologia deve recorrer à relação


O caso da criação:
“Se a criação introduz algo na criatura, é sempre algo de relativo” (S.Th. I, q. 45, a. 3).
Como na criação não se pode falar de uma “matéria” (de um “paciente”, de algo que receba a
ação), sobre a qual seja exercida a ação criadora (em outras palavras: o que faz com que o ser
contingente seja uma criatura reduz-se a uma simples relação a DEUS-Causa (Criador)), assim a ação
criadora não pode reduzir-se a uma relação de DEUS (relação de razão) aos Seus efeitos.
O caso da Encarnação:
Já vimos que a união hipostática consiste numa relação singular entre a natureza divina e a
natureza humana, fazendo com que estejam unidas numa única Pessoa, a do FILHO de DEUS (cf. S.Th.
III q. 2, a. 7).
O caso da presença eucarística:
“Quando dizemos que CRISTO está escondido no sacramento, trata-se de uma relação singular
que Ele tem com este sacramento” (S.Th. III, q. 76, a. 6).
O caso da presença pela graça:
“O que está compreendido no conceito “missão” é uma relação da Pessoa divina ao termo ao qual
é enviada, de modo que aí começa a estar presente” (S.Th. I, q. 43, a. 1).

b) A dificuldade
1o Na criatura: Parece que essa explicação pela relação tira toda a realidade à dependência da
criatura com relação a DEUS. Antes de tudo e fundamentalmente, parece tirar a realidade ao que
exprimo ao dizer que é uma criatura (o “creatum esse”), depois, à Encarnação: em que consiste a
singularidade da humanidade de JESUS, em comparação com aquela de qualquer outro homem, se a
união hipostática se reduz a uma simples relação? Como pode uma relação – que supõe o sujeito
referido – impedir realmente a esta humanidade de formar um “sujeito”, isto é, uma pessoa? E o
mesmo não vale também para a Eucaristia?: como pode a identificação das espécies consagradas com
CRISTO ser explicada mediante uma simples relação dessas espécies a JESUS CRISTO?

63
De potentia q. 8, a. 1, ad 4.
103 Cristologia

2o Em DEUS: Se ser Criador, ser homem, estar presente na Eucaristia (isto se refere a DEUS-
homem), morar no espírito do fiel, são apenas relações do DEUS imutável, como que encerrado na Sua
inacessível transcendência sobre a Sua criatura distante: tudo isto significa ainda algo de real para
Ele? E a questão se torna mais candente ainda se, para preservar a Sua imutabilidade, se deve dizer
que n’Ele essas relações são relações de razão (não relações “reais”). Sendo assim, parece que todo o
esforço por explicar como Ele cria, como Se torna homem, etc. termina num fracasso: Ele não cria
realmente, não assume realmente a natureza humana, etc.

2. O alcance realista das explicações mediante a relação

a) O absoluto está implicado no conceito relativo


A relação diz respeito a um sujeito que é um absoluto (um ser subsistente em si mesmo): é este
sujeito que é referido e, por isso, é necessariamente implicado no conceito de relação. Daí se vê
claramente como o conceito relativo (p.ex., pai, filho, criador, criatura, senhor, servo) pode ser um
instrumento válido para conhecer o absoluto. O conceito de “filho”, p. ex., implica ao menos um
vivente e, além disso, a ação de gerar, pela qual ele nasceu de um outro vivente da mesma espécie.

b) Aplicação à relação da criatura para com DEUS


Toda relação real tem um fundamento, que, no sujeito referido, é a razão pela qual este sujeito é
referido. Assim, a relação de filiação fundamenta-se sobre a ação de gerar, enquanto recebida no
vivente gerado por um outro. No caso em que a relação provém da ação divina, pela qual a criatura
depende completamente do Criador, é a substância mesma da criatura que fundamenta imediatamente
a relação; em outras palavras: o sujeito, neste caso, é referido inteiramente, segundo o seu ser
substancial. Deste modo, o conceito relativo, que representa diretamente a própria relação, atinge
indiretamente o ser considerado na sua realidade total.
Assim, para a união hipostática vale: dizer que ela é uma relação é afirmar que a conhecemos por
meio de um conceito relativo; este conceito, porém, implica (“conota”) a realidade total da
humanidade assumida, fazendo-a conhecer enquanto completamente referida ao VERBO, como à
pessoa que a tem como Sua própria e que, por ela, é homem.
Também a criação é um conceito relativo, que exprime diretamente a relação de dependência
total do ser criado para com DEUS. Conota, no entanto, a realidade total deste ser, conhecido
precisamente como referido a DEUS.

c) Aplicação à relação de DEUS para com a criatura


A relação de DEUS à criatura tem de ser uma relação de razão. Deve ser assim, porque DEUS é
perfeitamente imutável (perfeição infinita). Ora, se é verdade que a relação mesma não é produzida
por um agente (a relação não é o termo de um movimento, de uma passagem da potência ao ato), ela,
no entanto, resulta no sujeito referido de uma mudança que se produziu nele (esta mudança não é uma
mudança na natureza, não é alguma determinação da natureza, essência) e que o fez adquirir o
fundamento do qual nasce a relação, logo que o termo (da relação) exista (assim, um homem “gerou”
e, daí, existe a relação de paternidade para com o filho gerado). Ora, em DEUS não é concebível
alguma mudança capaz de fazer com que Ele Se torne criador e o VERBO Se torne homem. No
entanto, esta última afirmação não contradiz a afirmação da S. Escritura: “E o VERBO Se fez
homem”?
Esta afirmação escriturística mostra o seguinte: Para conceber a realidade do ser criado, do ser
assumido (a humanidade de JESUS), existe a necessidade de duplicar a relação realíssima da criatura
ao Criador e da humanidade assumida ao VERBO com uma correlação construída pela nossa razão;
desta correlação o sujeito é o Absoluto, DEUS, o VERBO. Este é o único meio à nossa disposição para
conhecer e afirmar que DEUS é realmente criador e o VERBO é realmente homem. Isto é mesmo real:
DEUS é o termo real da relação real de criação, e o VERBO é o termo real da relação de união.
Todavia, ordinariamente, o termo de uma relação real é também e simultaneamente o sujeito de
uma correlação (cf. paternidade e filiação). DEUS, no entanto, faz uma exceção: por causa da Sua
transcendência, Ele não pode ser o sujeito de uma relação real à criatura. Mas, como nos é impossível
pensar a transcendência de DEUS, que é infinita, podendo apenas afirmá-la, assim temos necessidade
Cristologia 104

de construir essa relação, que, por isso mesmo, é um ser de razão (não uma realidade existente
independentemente da razão). No entanto, por meio dessa relação podemos indiretamente e
negativamente atingir a DEUS como Aquele a quem é realmente referida a criatura para existir, para
subsistir.
Assim, embora a relação de “senhorio” de DEUS para com a criatura não seja uma relação real,
DEUS é realmente o senhor das criaturas, uma vez que as criaturas estão realmente submissas,
dependentes d’Ele (a relação de dependência das criaturas para com DEUS é realíssima). A única
relação que realmente une DEUS à criatura é aquela que une a criatura a Ele. E isto basta para
assegurar a realidade do atributo divino de senhorio, que se encontra no termo desta relação. A
relação de DEUS à criatura, que construímos a partir da primeira (relação da criatura a DEUS), não é
real (não é algo de novo em DEUS, não é algo em DEUS que não haveria n’Ele se não houvesse
alguma criatura), mas nos serve para atingir e afirmar essa realidade do senhorio de DEUS.
Assim, não podemos conceber e afirmar a realidade da encarnação a não ser mediante esta
afirmação: O VERBO Se fez carne; deste modo afirmo esta verdade: a carne foi assumida pelo VERBO
e, por conseguinte, o VERBO é realmente um homem, é o que antes não era. Contudo, devo ao mesmo
tempo afirmar que, para Ele, n’Ele, não houve alguma mudança real, um vir-a-ser.

3. Por que os conceitos que se referem a DEUS são conceitos relativos?


O fato de que os conceitos que se referem a DEUS são conceitos relativos deriva do fato que não
podemos conhecer a DEUS diretamente com conceitos que O representam. Uma vez que DEUS é
infinito tanto segundo a inteligibilidade como segundo o ser, nenhum conceito O pode representar
(Ele o ultrapassa infinitamente). Por outro lado, todos os nossos conceitos provêm da experiência;
mas DEUS não Se encontra no âmbito da nossa experiência, a qual, também se é espiritual, não pode
realizar-se sem uma dimensão sensível: “qualquer conhecimento tem sua origem a partir dos
sentidos”. Por conseguinte, não podemos conhecer DEUS a não ser como o termo transcendente da
relação das criaturas à sua causa. Os conceitos dos quais nos servimos para conhecer a DEUS são
tirados da nossa experiência e representam antes de tudo as perfeições criadas. Eles não podem valer
para DEUS a não ser através da via da analogia: o ato de juízo analógico, aplicando esses conceitos ao
termo transcendente da relação, permite-lhes superar-se a si mesmo e indicar Aquele que está além
de todos os objetos da nossa inteligência. Disto resulta que os conceitos com os quais atingimos a
DEUS só podem ser conceitos relativos.
Esta regra vale também para a Revelação divina e, por conseguinte, para a teologia. De fato, para
revelar-Se aos homens, DEUS utilizou conceitos humanos, elaborados pelo ser humano a partir da sua
experiência.

II. A Unidade da Pessoa: o FILHO assume uma Natureza humana


e a faz Sua
(a Unidade unificante: a Pessoa do FILHO
une em Si as duas Naturezas)
Até agora refletimos sobre o mistério da união hipostática enquanto união, em JESUS CRISTO, da
humanidade e da divindade na única Pessoa do FILHO. O princípio dessa união é, portanto, a pessoa
do FILHO. Vamos agora refletir sobre o mesmo mistério sob o aspecto da unida unificante, isto é, do
FILHO enquanto subsiste na natureza humana e une em Si a humanidade à divindade.

A. O FILHO: unidade que une

1. O FILHO princípio da união hipostática

a) Comunicação da subsistência do FILHO à natureza humana


105 Cristologia

Vimos que a Pessoa divina do FILHO comunica a Sua subsistência à natureza humana, o que
significa que esta natureza humana, pelo fato da ação de assumir – que é uma ação real, – não existe a
não ser como a natureza humana da Pessoa do FILHO.
Como isto pode ser? Com efeito, é próprio da pessoa ser uma unidade substancial, pela qual se
distingue de toda outra substância fora daquela que a constitui. Sendo assim, levanta-se a questão
como uma pessoa já constituída pode assumir em si uma natureza substancial e fazer com que esta
subsista distintamente (como substância distinta daquela substância pela qual a pessoa já está
constituída) como algo seu. Isto só é concebível para uma Pessoa divina, a qual é infinita.
A Pessoa divina é infinita, formada pela natureza divina infinita, à qual nenhuma natureza criada
é estranha: toda essência criada é uma participação limitada da única e infinita perfeição divina.
Esta constatação possibilita-nos não propriamente a demonstrar a simples possibilidade daquela
integração da natureza humana assumida à subsistência eterna do FILHO, mas a mostrar que isto não é
impossível, contraditório. Como diz São Tomás: “Ser comunicada de modo a subsistir em várias
naturezas não contradiz a idéia de pessoa” (S.Th. III, q. 3, a. 1, ad 2). Mas isto somente é concebível
por causa da infinitude ontológica da Pessoa divina (cf. ibidem).
Com efeito, a Pessoa divina é constituída pela natureza divina (ou seja, com exatidão: ela é
constituída pela relação de origem subsistente, que se identifica com a natureza divina), e a natureza
divina é infinita. Esta compreende, na sua absoluta simplicidade, todas as perfeições realizadas de
diversos modos e limitadamente nas criaturas. Sendo assim, uma natureza finita não é estranha à
natureza divina e, por isso, não é, de per si, exterior à Pessoa divina. Isto faz com que a Pessoa divina
pode, sem perder Sua incomunicabilidade (= distinção), estender-Se à natureza finita e assumi-la na
Sua subsistência. “É por isso que, quando a Pessoa do Verbo assume a natureza humana, ela não se
estende para além da natureza divina, mas, antes, eleva a Si o que é embaixo.” 64
Uma tal extensão seria impossível para uma pessoa criada, não porque é uma pessoa (não
contradiria a idéia de pessoa), mas porque é finita.
Vimos já que há duas analogias para nos oferecer uma certa inteligência do acréscimo da
natureza humana à Pessoa do FILHO: a analogia do acidente, como também a da parte substancial. O
que é único, além do que podemos entender, é a união somente na pessoa, isto é, o acréscimo à pessoa
sem acréscimo anterior à natureza (para constituir uma só natureza individual).
Em virtude deste “acréscimo” de uma natureza humana individual à Sua Pessoa, e por causa
dessa comunicação de subsistência, o FILHO, permanecendo embora distinto e infinitamente diverso
daquela natureza humana, é, Ele mesmo, o homem formado por esta natureza humana subsistente
desse modo. Ele é Aquele que tem esta natureza humana e por isto é um homem, como o teria sido a
pessoa que esta natureza teria formado, se não tivesse ocorrido a ação divina de assumir essa
natureza.
Há, portanto, “unidade unida” entre estes dois termos: o FILHO e a natureza humana. Precisa
ainda encontrar uma unidade “unificante” distinta da Pessoa eterna do FILHO? Não. Pois aqui a
unidade unida é o FILHO encarnado, que Se identifica completamente com a Pessoa eterna do FILHO.
Aqui, na verdade, há mais do que união de dois termos distintos; há identidade entre o FILHO eterno e
o homem que subsiste nesta natureza humana.

b) O FILHO como termo da união hipostática


1) Como pode uma Pessoa divina, na Sua distinção das outras duas, fazer subsistir a natureza
humana?
A questão é a seguinte: A ação divina de fazer subsistir uma natureza criada não é porventura
uma ação ad extra e, por conseguinte, uma ação comum às três Pessoas divinas? Neste caso não teria
mais sentido dizer que somente o FILHO Se fez homem.
Podemos dar a resposta de São Tomás: Enquanto ação, a assunção é efetuada pelas três Pessoas
divinas, mas o termo desta ação, a comunicação da subsistência, pode ser própria de uma das Pessoas:

64
S. TOMÁS, De unione Verbi I, 1, ad 14: “... non se extendit ultra naturam divinam, sed magis accipit quod est
infra.”
Cristologia 106

As três Pessoas fizerem juntamente que esta natureza humana individual fosse unida somente à Pessoa do
Filho.65
É preciso lembrar-se não somente do fato de que as três Pessoas agem indivisamente, quando se
trata de causalidade eficiente, mas também, do fato de que cada uma das Pessoas divinas, na Sua
distinção das outras duas, pode ser o termo de uma relação da criatura. Assim, eu posso ter relações
interpessoais de conhecimento e amor a cada uma das três Pessoas enquanto distinto das outras. Isto
vale também para a relação ontológica da natureza assumida ao FILHO, na qual consiste a união
hipostática. Nesta relação, o FILHO é o termo para o qual tende a criatura para além de si mesma,
enquanto Ele mesmo permanece imútavel, distinto.
2) Poder-se-ia ter encarnado outra Pessoa divina?
Há quem diga que não, há quem diga que sim. São Tomás fala de uma “conveniência em grau
máximo”.66 Na verdade, para São Tomás, aqui se trata da busca da inteligibilidade intrínseca de um
acontecimento que depende da liberdade divina; uma liberdade, porém, regulada pela soberana
sabedoria. Quando São Tomás não fala de “necessidade”, mas de “suma conveniência”, parece querer
sublinhar que não é em virtude da Sua propriedade pessoal, pela qual Se distingue das outras duas
Pessoas, que o FILHO faz subsistir a natureza assumida. E isto, porque Ele tem em comum com as
outras duas Pessoas o subsistir na natureza divina. Ele não tem, portanto, em comparação com as
outras duas Pessoas, uma capacidade especial de “personalizar” uma natureza humana.
Contudo, quando se considera a Encarnação como missão da Pessoa divina à humanidade, então
somente o FILHO pode ser enviado, uma vez que a missão a cumprir corresponde à Sua propriedade
pessoal e não corresponderia àquela das outras duas Pessoas. Portanto, a aptidão para realizar as
intenções essenciais da Encarnação faz parte da propriedade pessoal do FILHO ou VERBO (como a
aptidão para ser doado (o “dom de DEUS”) faz parte da propriedade pessoal do ESPÍRITO SANTO) e,
deste modo, a Encarnação manifesta o que é o FILHO na Santíssima TRINDADE.
Podemos dizer: do ponto de vista da teologia trinitária, não se pode dizer que somente o FILHO
podia encarnar-Se: não foi necessário que fosse Ele, no sentido que, considerada em si mesma, a
encarnação de uma outra Pessoa não é alguma coisa intrinsecamente contraditória. Do ponto de vista
cristológico, todavia, somente o FILHO podia encarnar-Se, pois seria inconveniente que uma outra
Pessoa divina Se encarnasse; ora, quando se trata de DEUS, em quem a sabedoria se identifica com o
poder e com a bondade, a inconveniência equivale a uma pura e simples impossibilidade.

c) A composição da Pessoa do FILHO encarnado


1) Em que sentido se pode dizer que a Pessoa do FILHO encarnado é composta?
Esta expressão (“composição”, “synthesis”) aparece pela primeira vez no 4 o anatematismo do II
Concílio de Constantinopla (ano 553), o qual fala da “união de Deus Verbo com a carne segundo a
composição, isto é, segundo a hipóstasis”. A expressão grega é: henosis kata synthesin. Esta união
“segundo a composição” é apresentada como o equivalente da “união segundo a hipóstasis”, isto é, da
união hipostática.
Esta idéia foi retomada e desenvolvida pelo grande Doutor da Igreja grega, São Máximo o
Confessor e se tornou tradicional (cf. São João Damasceno). São Tomás a explica da seguinte
maneira: “Embora haja um único subsistente, há, todavia, duas razões distintas de subsistir” (In III
Sent. 6, 2, 3; S.Th. III, q. 2, a. 4).
Como entender isso? A Pessoa divina não é absolutamente simples? Todavia, a natureza faz
parte da pessoa: a pessoa é o Todo. Uma vez que há duas naturezas que permanecem distintas, é
preciso dizer também que este Todo, que é a Pessoa do FILHO encarnado, é composto da natureza
divina subsistente (no FILHO) e da natureza humana subsistente (no mesmo FILHO). Porém, fica a
questão: é possível conceber a natureza divina infinita como uma parte?
Por isso, devemos dizer: a Pessoa divina é infinita; a ela não se acrescenta nada realmente (sem
que isto signifique que a natureza humana subsistente na Pessoa divina não seja real); o “acréscimo”
há segundo o nosso modo de pensar. Pensemos na criação: todas as criaturas juntas não acrescentam

65
S.Th. III, q. 3, a. 4.
66
Cf. S.Th. III, q. 3, a. 8.
107 Cristologia

nada a DEUS. Contudo, elas são reais, distintas de DEUS, de modo que não posso pensar a realidade
delas sem pensar que são parte da totalidade do ser e que, por conseguinte, o ser divino é uma outra
parte desta totalidade. Ao mesmo tempo, porém, devo afirmar que o Ser divino é o Todo e que o ser
das criaturas não lhe acrescenta nada.
2) Pode-se falar de uma personalidade humana de CRISTO?
A pessoa de JESUS CRISTO subsiste (não somente na natureza divina, mas também) na natureza
humana. Ora, uma pessoa que subsiste na natureza humana é algo diferente de uma pessoa
humana?67
Esta expressão pode surpreender à primeira vista, uma vez que o mistério da encarnação exclui
da humanidade assumida uma personalidade própria: “uma só pessoa em duas naturezas”. No entanto,
se falamos de “despersonalização” da humanidade assumida, foi para mostrar que esta natureza assim
“despersonalizada” (quer dizer: não pertence a uma pessoa formada com ela e nela) foi apropriada
pelo FILHO que a fez Sua. Ora, uma pessoa que tem a natureza humana, que subsiste nesta natureza
(ou na qual esta natureza subsiste), é uma pessoa humana.
Seria heresia afirmar que esta pessoa humana é uma pessoa humana distinta da Pessoa divina do
FILHO. Não é, de modo algum, heresia dizer que JESUS é uma Pessoa divina que, ao mesmo tempo,
isto é, a partir da encarnação no seio da santíssima Virgem, é também pessoa humana. O FILHO Se fez
pessoa humana, sem deixar de ser Pessoa divina.
Esta expressão permite também responder a esta objeção fundamental: Como JESUS seria um
verdadeiro homem, plenamente homem, se fosse privado daquilo que há de mais precioso no homem:
a personalidade? É necessário responder: a Pessoa divina, encarnando-Se, Se fez pessoa humana, sem
deixar de ser Pessoa divina, a segunda Pessoa da Santíssima TRINDADE.
São Tomás escreveu, neste sentido, que a Pessoa divina é “denominada pela natureza humana”:
“A natureza humana não constitui a Pessoa divina propriamente falando (simpliciter), mas ela a
constitui enquanto a Pessoa divina é denominada por esta natureza” (S.Th. III q. 3, a. 1, ad 3). Ora,
como é denominada a Pessoa divina por meio da natureza humana a não ser como pessoa humana?
Existe, certamente, uma distinção entre a expressão “pessoa humana”, aplicada a qualquer um
dos homens, e a mesma expressão, aplicada a JESUS. É que, para um ser humano comum, a natureza
subsistente e a pessoa se identificam, o que não é o caso em JESUS: a Pessoa do VERBO (da qual
dizemos que é a “pessoa humana” correspondente à natureza humana de JESUS) não Se identifica com
a Sua natureza humana individual.
Esta grave dificuldade pode e deve ser resolvida assim: a natureza humana subsistente de Jesus não constitui
um sujeito e uma pessoa distinta do Verbo, porque a sua subsistência consiste na sua pertença ao Verbo: ela
não existe a não ser como sua; é Ele que a faz subsistir, fazendo-a sua. Assim, embora Ele seja distinto dela,
como o Criador é distinto da criatura, é Ele que subsiste nela: Ele que é a pessoa humana da qual esta
natureza é constitutiva; com esta imensa diferença (e aqui está o mistério), que ela não o constitui como
Pessoa (porque lhe preexiste), mas faz somente que, embora seja Pessoa desde toda a eternidade pela
natureza divina que tem do Pai, se torne no tempo pessoa humana.68
Qual a importância destas considerações sobre JESUS como “Pessoa humana”? Elas fazem
entender melhor que JESUS foi plenamente homem, um homem entre os homens. Também ajudam a
resolver as questões a respeito da condição humana de JESUS, como, particularmente, a questão da
submissão de JESUS ao PAI (ver na Soteriologia: o sacrifício de JESUS).
É, portanto, necessário admitir que a Encarnação introduz no próprio FILHO – segundo nosso
modo de pensar (ver questão da imutabilidade) – um aspecto novo, uma nova qualificação: Ele é
“pessoa humana”, pessoa de natureza humana. Com efeito, a qualificação (por meio de adjetivos) da
pessoa sempre se faz a partir da natureza.
3) A kenosis do FILHO
Em Fl 2,5-12, São Paulo fala da “kenosis” do FILHO de DEUS: Ele, embora subsistindo
(eternamente) no modo de ser divino, “esvaziou-Se (despojou-Se) a Si mesmo, assumindo o modo de

67
São Tomás diz que, pela encarnação, o VERBO Se tornou “hypostasis naturae humanae”, “hipostase (=
pessoa) de natureza humana” (cf. S.Th. III, q. 16, a. 1, ad 1; cf. ibid. a. 2).
68
J.H. NICOLAS, Dalla Trinità alla Trinità, 442.
Cristologia 108

ser de servo, e feito solidário com os homens, ...”. Como entender este despojamento ou, literalmente,
esvaziamento do próprio FILHO?
Aqui temos uma referência não somente à morte na cruz, mas também, e fundamentalmente, à
própria Encarnação e – o que é mais difícil de entender – se trata de um despojamento do FILHO
mesmo; portanto, não se pode simplesmente dizer que aqui se trata do despojamento da natureza
humana assumida. Por isso, parece-nos que a idéia do FILHO feito pessoa humana mediante a
encarnação e depois, enquanto pessoa humana, despojado da honra devida a uma pessoa humana,
humilhado e, enfim, morto (privação da vida), pode dar algum entendimento dessa afirmação difícil
do Apóstolo. É evidente que ser homem não é um despojamento para a natureza humana, abstraindo
da pessoa divina do FILHO. Mas, que o próprio FILHO eterno de DEUS Se tenha feito homem, que Ele
seja homem e, primeiro, uma criancinha no seio da Virgem Maria (é o que escandalizou a Nestório), é
isto que se nos apresenta como um prodigioso despojamento. Então, a própria Pessoa divina é, em Si
mesma, atingida, mudada por esse despojamento?

2. A imutabilidade do FILHO e o vir-a-ser de CRISTO


O mistério da Encarnação nos coloca, do modo mais forte possível, diante da questão das
relações entre DEUS e a criatura. A criatura começa a existir, muda, deixa de existir. Tratando-se de
um homem, ela é “histórica”. DEUS, ao invés, não muda de modo algum: Ele é o Eterno. Mas, se Ele
Se relaciona com as criaturas, que Ele faz existir e conduz a Si, como esta imutabilidade divina é
compatível com as mudanças da relação de DEUS às criaturas, segundo as diversas fases da existência
delas? (Pense-se, p. ex., na mudança de pecador para santo; daí: a “ira”, o descontentamento de DEUS
com relação ao pecador, e a alegria de DEUS com relação ao homem santo).
No caso da Encarnação, a questão é mesmo candente, pois pela Encarnação o próprio DEUS (a
segunda Pessoa da SS. TRINDADE) entrou na história humana, Se fez “histórico”. Ora, continuar a
afirmar a Sua imutabilidade não acaba sendo uma negação do caráter real da Encarnação? Por outro
lado, sacrificar a Sua imutabilidade não é por ventura suprimir, de um outro modo, a Encarnação?
Pois, se o VERBO é não imutável, não é DEUS – e, por conseguinte, não foi DEUS mesmo quem Se
encarnou.

a) A posição clássica e as objeções a seu respeito


A posição clássica a este respeito é a seguinte: “Qualquer mudança encontra-se no nível da
criatura” (cf. S.Th. III, q. 16, a. 6, ad 2).
Esta solução tem sido contestada (p. ex., por K. Rahner): explicar a entrada na história por parte
do FILHO e Sua vida humana, com as características próprias da evolução do ser humano no tempo,
dizendo que tudo isto se deu somente na Sua humanidade, é contornar o mistério, deixá-lo de lado,
não o enfrentar realmente. Não é somente a humanidade assumida que é histórica, que começou, se
desenvolveu, etc., mas o próprio VERBO, pois foi o VERBO mesmo que “Se fez carne”, nasceu, sofreu,
morreu, ressuscitou. O drama redentor de JESUS CRISTO não aconteceu unicamente do outro lado de
um abismo absoluto que nos separa de DEUS: há um drama que o VERBO de DEUS venceu na Sua
própria carne; Ele, que “era no princípio”, que “estava junto de DEUS” e “era DEUS” (Jo 1,1).
Com certeza, compromete-se o mistério da Encarnação, quando não se quer reconhecer que, na
Pessoa do FILHO, DEUS verdadeiramente assumiu a mutabilidade característica do ser humano. E K.
Rahner pensa que não se reconhece isso a não ser reconhecendo também uma mutabilidade da própria
Pessoa do FILHO: O que significa (a comunicação das propriedades) “se esta realidade humana
atribuída ao Logos, enquanto pessoa, não muda o Logos, isto é, não faz algo que não haveria sem esta
humanidade?” Rahner propõe, como solução pessoal, uma fórmula: “Deus pode tornar-se algo, o
imutável em si pode, Ele mesmo, ser mutável no outro”. Na Sua transcendência infinita, o Absoluto
tem o poder de tornar-Se o finito.

b) A solução clássica bem explicada


De fato, como já dissemos, é preciso reconhecer que é o próprio FILHO de DEUS que assume a
mutabilidade característica do ser humano: é Ele mesmo que nasce, Se desenvolve, sofre, morre...
Mas, pode-se aceitar a solução daqueles teólogos que aceitam a mutabilidade divina (aliás, não
109 Cristologia

somente no caso da Encarnação)? Pode-se dizer que DEUS é, ao mesmo tempo e em Si mesmo,
mutável e imutável?
Para poder afirmar, sem contradição, a união – na transcendente realidade divina – de dois
atributos que, no nível dos nossos conceitos, são e ficam sendo distintos 69, é necessário que um não
seja a contradição do outro. A contradição é estritamente impensável e irreal. Ora, se o “absoluto” e o
“relativo” não são contraditórios, o são o “imutável” e o “mutável”. Reconhecer que DEUS, por causa
da sua onipotência, da Sua absoluta transcendência, pode tornar-Se finito, pode “sair de Si”, “tornar-
Se Ele mesmo histórico”, é reconhecer que Ele tem o poder de deixar de ser DEUS. Esta, portanto, não
é uma solução.
No entanto, à luz da contestação feita à solução clássica, é necessário que esta seja aprofundada.
Aqui é importante notar: o termo de uma relação faz parte dela, e numa relação real tudo é real. Por
conseguinte, o termo é real. Na relação da criatura a DEUS, em geral, e na relação da humanidade
assumida ao FILHO, o termo DEUS, o FILHO, é real como termo da relação: Ele é realmente o termo
da relação.
Não dizemos, portanto, que somente a natureza humana assumida é sujeito do devir: o FILHO,
enquanto termo da relação de união, é realmente compreendido neste devir (tornar-se, mudar). Ele é
quem nasceu da Virgem Maria, viveu a vida humana, sofreu, morreu e ressuscitou. É isto que quer
exprimir a fórmula: o FILHO Se fez uma pessoa humana.
Mas Ele permanece imutável em Si mesmo. Sem dúvida alguma, este é um mistério para nós,
apesar de todas as explicações possíveis. No entanto, é exatamente o mistério da Encarnação. Não
posso pensar a Encarnação a não ser empregando as categorias do relativo, e posso justificar a
validade destas categorias pela conhecimento real do FILHO encarnado. Ao mesmo tempo, porém,
devo continuar a afirmar a Seu respeito as categorias do absoluto, que excluem todo vir-a-ser real.
Eis os dois pólos a afirmar: o VERBO em si mesmo não muda, não “vem a ser”, não “Se torna”;
enquanto pessoa humana (isto Ele é pela relação real da natureza humana assumida), Ele é incluído
no vir-a-ser humano (ainda que a Sua relação a essa natureza humana seja só de razão).

B. A ação de assumir

1. A ação de criar a humanidade de JESUS


A humanidade de JESUS é criada. Quem a criou é a SS. TRINDADE: quanto à alma espiritual,
diretamente, quanto ao corpo, através da santíssima Virgem.
Devido a esta ação divina, a humanidade de JESUS, como toda e qualquer criatura, é referida a
DEUS, numa relação de dependência total no ser.

2. A ação de assumir
Essa natureza humana não formou uma nova pessoa humana (pessoa distinta da do VERBO),
porque no mesmo instante da ação de criar houve outra ação divina que fez esta natureza a natureza
humana própria do VERBO; é a ação de assumir.
Por esta ação, o VERBO “Se fez”, “Se tornou” pessoa humana, não por uma mudança d’Ele
mesmo, mas por uma mudança da natureza humana. Esta “mudança” da natureza humana não
consistiu em modificá-la em si mesma, mas em ordená-la ao VERBO como Sua, isto é, em fazê-la ser a
natureza humana do VERBO. Esta ação permanece totalmente misteriosa. Não podemos fazer-nos dela
uma idéia exata, porque nos faltam os conceitos para isso (conceitos formados a partir da nossa
experiência; mas essa realidade está fora daquilo que é acessível a nossa experiência).

69
Por exemplo: pensamento e amor, que em DEUS, são uma só coisa; ou o relativo e o absoluto, que na
divindade são o mesmo (a Pessoa divina é a relação de origem subsistente).
Cristologia 110

C. A unidade do ser em CRISTO

1. JESUS CRISTO é um único “ente” (ser concreto)


O “ente” é o “sujeito ontológico” (quod est). JESUS é uma só Pessoa, um só sujeito ontológico,
um único “ente”, portanto. O mistério está no fato de que este único ente tem duas essências ou
naturezas. Ele é um único “alguém” (quis) que é isto e aquilo (quid): DEUS e homem.70 É claro que
cada uma das duas naturezas é real.

2. JESUS tem um único ser

a) O princípio
O “ente” (ens, ser concreto) é chamado assim por causa do “ser” (esse). O “ser” é o ato (actus
essendi, ato de ser) do qual o “ente” é o sujeito que recebe, que é assim atuado. É claro que, se há um
único “ente”, não pode haver senão um único “ser” (ato de ser).

b) A interpretação de Caetano e sua crítica


Caetano, Cardeal, foi grande comentador de São Tomás. À aplicação do princípio referido, que
São Tomás fez ao caso de CRISTO, Caetano deu uma interpretação que se tornou clássica na escola
tomista. É a seguinte: Uma vez que, em geral, se deve distinguir entre essência e ser (existência) e
que, em JESUS, há duas essências mas uma só Pessoa e, portanto, Ele é um só ente, a essência ou
natureza humana de JESUS é “atuada”, tornada existente, pelo ser eterno do VERBO, comunicado à
natureza humana.
A crítica a ser feita a esta teoria: é impossível que uma natureza criada seja atuada pelo Ato
incriado (ato do ser divino). Outra crítica refere-se à interpretação dos textos de São Tomás. Em
nenhum dos cinco textos dedicados à unidade do ser em CRISTO, ele fala do ser pelo qual existe a
natureza humana de JESUS. Ele fala, sim, do ser de CRISTO, que é o VERBO encarnado, não do ser da
natureza assumida. Ele diz que o VERBO existe desde toda a eternidade e não começou a existir como
pessoa, quando começou a ser homem: “O Filho não tem da natureza humana de ser (existir),
propriamente falando (simpliciter), uma vez que existe desde toda a eternidade; mas dela tem somente
de ‘ser homem’” (S.Th. III, q. 3, a. 1, ad 3).

c) O ser substancial da natureza humana e o ser pessoal do VERBO


Normalmente, uma natureza (substância segunda) se torna subsistente (substância primeira),
sujeito (ou pessoa, quando se trata de natureza intelectual), no momento em que ela é realizada. O ser
(ato de ser) que ela recebe – e que é o termo final da ação produtora – é o ser do sujeito como aquilo
que é (ut quod) e o ser da natureza como aquilo pelo qual é (ut quo). Esta distinção entre o ser da
natureza e o ser do sujeito (esse prout est naturae et esse prout est hypostasis) é uma distinção de
razão, que tem mínima importância (daí, não se encontra nos livros de metafísica que tratam da
distinção real entre a essência e o ser (existência)).
Mas, o mistério da Encarnação faz com que esta distinção se torne importante, pois, em CRISTO,
se dá um caso singular: a natureza humana é realizada sem constituir um sujeito próprio, mas é
acrescentada (unida) como uma segunda natureza, uma segunda substância, a um sujeito preexistente,
o VERBO.
Dizer que a natureza humana é realizada, é dizer que recebe o ser, isto é, o ato sem o qual ficaria
em estado de pura potencialidade, quer dizer: não seria realizada. Dizer que essa natureza humana é
assumida pelo VERBO, é dizer que é assumida existente, isto é, tendo seu ser (ato de ser). Portanto: a
natureza humana com seu ato de ser.
Ora, este ser da natureza humana assumida não pode ser atribuído ao VERBO, porque o VERBO é
preexistente e não adquire a existência (recebe o ato de ser) assumindo a natureza humana. Este
homem, JESUS, existia antes de ser homem: “Antes que Abraão viesse a existir, eu sou”.
Também a regra da comunicação das propriedades (communicatio idiomatum, ver explicação
mais tarde) não permite atribuir o ser da natureza humana assumida ao VERBO. Pois um atributo que
70
Em termos clássicos: Ele não é alius et alius, mas é aliud et aliud.
111 Cristologia

convém ao VERBO por essência, por causa da Sua natureza divina, não pode ser dito d’Ele por
participação, ainda que a natureza humana, de per si, justificasse esta atribuição. A razão disso é que
“por essência” e “por participação”, referindo-se à mesma forma, são qualificações opostas. Por isso,
não se pode dizer que JESUS é filho adotivo de DEUS, embora a Sua alma esteja repleta da graça de
adoção dos filhos, pois Ele é FILHO por natureza, por causa da Sua natureza divina.
O mesmo vale no nosso caso (do ser de CRISTO). Não se pode dizer que o VERBO encarnado, este
homem, exista, também como homem, pelo ser que Lhe vem da Sua natureza humana. O VERBO não é
(existe) pela natureza humana assumida; por esta natureza Ele não existe uma segunda vez, mas
apenas: por esta natureza humana Ele é homem.
Duns Escoto (e sua escola), todavia, pensou que o VERBO existisse uma segunda vez como
homem. Mas a objeção é: qual é o princípio quod desse ser, do qual a natureza é somente o princípio
quo? Quem existe por esse “ser”? Não pode ser a própria Pessoa do VERBO.
Pela Encarnação, o VERBO é o sujeito da natureza humana existente. Todavia, esta existência (da
natureza humana) não Lhe pode ser atribuída. No caso dos seres acidentais (acidentes da natureza
humana) é possível a atribuição, pois estes podem referir-se ao VERBO somente enquanto Ele subsiste
na natureza humana. O ser substancial, ao invés, somente Lhe pode ser atribuído enquanto subsiste
simplesmente, isto é, enquanto subsiste na natureza divina. Assim, pela graça criada (graça
santificante, virtudes infusas...), a alma de JESUS recebe uma participação da vida divina, e quem vive
desta vida divina participada é o VERBO encarnado. Porém, não se pode qualificá-l’O, de modo
algum, como filho adotivo, porque já é FILHO por natureza. Vale aqui o mesmo como a respeito da
filiação: o fato de Sua alma ser cheia de graça (santificante,...) não justifica dizer que Ele tem uma
segunda filiação (é filho uma segunda vez); assim, o fato de Sua natureza humana existir (ter o seu ato
de ser) não justifica dizer que Ele tem um segundo ser (ainda que apenas secundário), isto é, que Ele
existe uma segunda vez.
Como conceber e exprimir a relação misteriosa entre o ser substancial que faz existir (torna real)
no tempo a natureza humana assumida, de um lado, e o ser pessoal, infinito e eterno, do VERBO?
Parece que pode ser pela noção de “integração”. Na Encarnação, o VERBO não Se torna existente,
mas integra a existência temporal da Sua humanidade na Sua existência eterna, assim como integra –
fazendo-a Sua própria – essa mesma humanidade a este todo que Ele constitui desde toda a
eternidade.
Como comparação, embora muito defeituosa, pode servir a ressurreição corporal: na ressurreição,
a pessoa existente só com sua alma integrará ao seu ser pessoal o ser que receberá o corpo para existir
– existir não à parte, mas como corpo desta pessoa que existia antes da ressurreição do corpo. O
defeito da comparação está no fato de que o ser que o corpo receberá é o próprio ser da alma, que se
estende ao corpo. No entanto, o ponto de comparação é o seguinte: a pessoa humana, embora
existindo de novo corporalmente, não receberá pela ressurreição uma nova existência.
Portanto, para manter o princípio metafísico fundamental que exige que se reconheça a rigorosa
correspondência entre a unidade do ente e a unidade do ser (um único ente, daí, um único ser), não é
necessário recorrer a esta impossibilidade metafísica que seria a existência real da natureza humana
sem um ser próprio, mas pelo ser do VERBO.
Cristologia 112

Podemos, enfim, apresentar esquematicamente as diversas posições:

1. Distinção do ser
Pessoal = ser pelo qual a pessoa existe
segundo a sua natureza substancial
SER “SIMPLICITER”
que constitui
Substancial = ser pelo qual a natureza
SER existe na pessoa
que não constitui,
mas à qual é acrescentada SER PRÓPRIO
substancialmente DA NATUREZA71

Acidental = ser pelo qual a pessoa existe SER “SECUNDUM QUID”


segundo as diversas formas acidentais ACRESCENTADO AO SER
SUBSTANCIAL

2. Unidade ou pluralidade do ser em CRISTO

por eliminação DEUS


do ser próprio = um só ser (eterno) a pessoa do VERBO é
da natureza em virtude do qual Homem
assumida
a humanidade de CRISTO
UNIDADE existe pelo ser eterno do VERBO
DO SER

um só ser pessoal DEUS


por integração em virtude do qual o VERBO é
do ser próprio = Homem
da natureza assumida um ser substancial
em virtude do qual a humanidade existe na
pessoa do VERBO

um ser pelo qual o VERBO é DEUS


Para o mesmo sujeito =
um segundo ser pelo qual o VERBO é homem
DUALIDADE
DO SER
um ser pelo qual o VERBO é DEUS
Para dois sujeitos =
um segundo ser pelo qual a natureza assumida existe
como se fosse um sujeito distinto

A primeira tese do ser em CRISTO é a posição de Caetano. A segunda é aquela que defendemos (São Tomás).
A terceira, na sua primeira parte, é aquela do Bem-aventurado Duns Escoto e dos escotistas. Na sua segunda
parte, é proposto o dualismo dos sujeitos, incompatível com a fé da Igreja.

D. A preexistência de CRISTO
Pelo que vimos até agora fica evidente que o mistério da Encarnação inclui o que se chama a
“preexistência” de CRISTO. Este é um dos elementos essenciais do mistério da Encarnação: esta
Pessoa, JESUS CRISTO, que é um homem, é a Pessoa eterna do VERBO. Por conseguinte, esta Pessoa

71
Somente pelo mistério da Encarnação do VERBO existe este caso do “ser próprio da natureza” (humana).
113 Cristologia

era existia antes de ser homem. Entendamo-nos bem. “Antes” (“pré-“) não se deve entender como
anterioridade temporal. A Pessoa “preexistente” é a Pessoa eterna do VERBO, e a eternidade não é
“antes” do tempo, uma vez que coexiste com a totalidade do tempo, transcende-a, envolve-a. A
relação (presença) da eternidade (de DEUS eterno) ao tempo podemos definir da seguinte maneira:
presença totalmente simultânea e perfeita a todos os momentos do tempo. Assim, está claro que o
VERBO eterno coexiste com aquela parte do tempo que é anterior ao tempo em que JESUS viveu sua
vida de homem aqui na terra. Isto nos autoriza e obriga a dizer que a Pessoa de JESUS CRISTO, esta
Pessoa que existe como homem a partir do momento da Encarnação, existia como Pessoa antes deste
momento, como disse JESUS: “Antes que Abraão fosse, eu sou” (Jo 8,58).

III. A Terminologia Cristológica


É importante prestar atenção às palavras que se usa ao falar dos mistérios da fé, pois “por causa
de palavras irrefletidas cai-se em heresia”.

A. A comunicação das propriedades (atributos)


A “communicatio idiomatum”72 ou “comunicação das propriedades” é a regra fundamental da
linguagem em Cristologia. Posso designar CRISTO com o termo concreto que corresponde a cada uma
das duas naturezas: DEUS – homem. Deste modo indico o mesmo sujeito, isto é, o VERBO encarnado.
Por conseguinte, posso atribuir a este mesmo sujeito as propriedades que lhe competem em
virtude seja da natureza divina, seja da natureza humana, e posso fazê-lo quer que eu indique este
sujeito de uma ou outra maneira. Pois posso designar a Pessoa do VERBO encarnado como sujeito de
uma das duas naturezas (p.ex., “homem”) e atribuir-Lhe as propriedades que Lhe competem por causa
da outra natureza (natureza divina). Posso assim dizer: este homem, JESUS, é eterno, todo-poderoso,
etc. DEUS, o FILHO, é homem, nascido da Virgem Maria, etc. Um da Santíssima TRINDADE sofreu.
É uma regra de linguagem, sim, mas também uma regra lógica, baseada no ser, na realidade; uma
vez que o sujeito ontológico é um só, um só é também o sujeito lógico. A linguagem, divinamente
inspirada ou garantida pela assistência do ESPÍRITO SANTO, desempenha aqui sua função de introduzir
no mistério.

B. Aplicações concretas da regra da comunicação das propriedades


1. Designação do único sujeito em quem se dá a união das duas naturezas
O sujeito único em quem se dá a união das duas naturezas pode ser designado:
– com um termo que O exprime na Sua complexidade: CRISTO, JESUS, VERBO ENCARNADO,
FILHO DE DEUS, FILHO DO HOMEM;
– com um termo que O indica como o sujeito concreto de uma das duas naturezas: HOMEM (pelo
contexto se entende: este determinado homem, isto é, JESUS), DEUS (pelo contexto: a segunda
Pessoa divina, não o PAI nem o ESPÍRITO SANTO), FILHO DE DEUS (pelo contexto: o FILHO por
natureza, não um filho adotivo).
2. Atribuem-se a este sujeito único propriedades de uma e de outra natureza
A este sujeito único, seja qual for a maneira de o indicar, posso atribuir as propriedades que Lhe
convêm devido a uma ou outra natureza:
Este homem é DEUS; DEUS é este homem. Este homem existia antes de Abraão; DEUS sofreu.
3. Exceções ou necessidade de esclarecimento
1) Se um atributo que conviria ao sujeito único por causa da natureza humana exclui um atributo que
Lhe convém por causa da natureza divina, a atribuição é ilegítima e errônea. Assim, não deve dizer:

72
i1dßwma significa propriedade ou atributo próprio de um determinado sujeito. Comunicação das
propriedades é a mútua atribuição verbal de atributos. Na Cristologia, é a mútua atribuição verbal das
propriedades das duas naturezas subsistentes na única Pessoa do VERBO. É atribuição verbal que corresponde à
realidade, exprime a realidade.
Cristologia 114

CRISTO é o enviado do SENHOR. A razão por que esta atribuição é falsa é a seguinte: CRISTO é
também o SENHOR (= DEUS, o FILHO, o VERBO). CRISTO é o enviado do PAI, isto sim.
CRISTO é filho adotivo de DEUS. É atribuição falsa, inaceitável. Ele tem a graça dos filhos (graça
santificante, etc.), sim, mas por Sua natureza divina Ele é FILHO por natureza, e há oposição entre
filho por natureza e filho adotivo.
A razão destas exceções é o fato de que o VERBO, encarnando-Se, não deixou de ser o que era
desde toda a eternidade; Ele não perdeu um dos Seus atributos divinos.
Um esclarecimento a respeito dessas exceções: Nenhum dos atributos que convêm a CRISTO
essencialmente por causa da sua natureza humana (atributos que convêm a todo homem pelo fato de
ser homem) podem encontrar-se entre essas exceções. Do contrário, a Encarnação seria impossível.
Na verdade, o VERBO, assumindo uma verdadeira natureza humana, fez Suas todas as propriedades da
natureza humana; por isso, não são incompatíveis com a natureza divina.
Os atributos que podem entrar no caso das exceções só podem ser atributos existenciais, isto é,
atributos que convêm ao sujeito não porque é homem, mas porque é este determinado homem.
2) Se um atributo não convém a CRISTO a não ser por causa de uma das duas naturezas, é preciso
esclarecer:
CRISTO é criado...; daí, o esclarecimento: segundo a natureza humana assumida.
CRISTO está em toda parte...; daí, o esclarecimento: segundo a natureza divina.
3) O sentido do acréscimo “enquanto homem”, “enquanto DEUS”:
É o VERBO encarnado que é DEUS e homem. Quando se diz “enquanto homem” ou “enquanto
DEUS”, não se quer dizer: a natureza humana ou a natureza divina, mas sim: o VERBO, considerado
com homem e considerado como DEUS. Segundo a explicação que foi dada anteriormente, a expressão
“enquanto homem” significa: o VERBO enquanto pessoa humana, isto é, pessoa de natureza humana.
É óbvio que, se eu falo de tal modo do sujeito (“enquanto ...”), só posso atribuir-lhe uma
propriedade que lhe convém por causa da natureza nomeada: “JESUS sofreu enquanto homem”. Não
posso dizer: “JESUS enquanto homem criou o céu e a terra com o PAI e o ESPÍRITO SANTO”.

2O CAP.: A HUMANIDADE DE Jesus


O FILHO eterno do PAI fez-Se realmente homem, assumiu uma natureza humana individual. É
desta natureza humana, pela qual o FILHO é realmente um ser humano, que vamos agora falar.
A essência humana realiza-se em cada indivíduo humano de um modo existencial próprio, que
compreende, juntamente com as características individualizantes, o complexo das qualidades contidas
na virtualidade da natureza comum.
Em JESUS CRISTO, a natureza humana comum é realizada de um modo existencial excepcional:
como pertencendo a uma Pessoa divina. Isto implica, antes de tudo, dentro dos limites intransponíveis
da natureza humana, a mais alta realização possível das virtualidades desta natureza. Há virtualidades
naturais como também sobrenaturais, que se realizaram em JESUS-homem.
Na busca do que a humanidade de JESUS deve ter, por causa da união hipostática, há dois
princípios que devem regulam a reflexão: 1) as exigências inalienáveis da dignidade infinita da
Pessoa do FILHO; 2) as exigências, também inalienáveis, da verdade do Seu ser-homem.
Assim, pode-se encontrar os atributos (“positivos”) de santidade, de conhecimento e de poder,
assim como atributos “negativos”, ou seja, características próprias da natureza humana, da vida
humana sobre a terra; pois a natureza humana necessariamente traz consigo limites e condições de
humildade (submissão a DEUS e o que ela implica; sujeição às forças da natureza e aos determinismos
naturais). No entanto, é claro que estas condições humildes se realizam em níveis diversos, segundo
cada indivíduo humano. Em CRISTO, no VERBO encarnado, a dignidade da Pessoa divina poderia
fazer-nos pensar que certas condições de rebaixamento n’Ele não se realizariam (sempre
salvaguardadas aquelas que são totalmente inevitáveis para todo homem, pelo fato de ser homem). Os
Evangelhos, porém, nos mostram JESUS submetido aos piores sofrimentos e humilhações e à morte
mais cruel e ignominiosa. A Pessoa do VERBO, depois do rebaixamento fundamental da encarnação,
115 Cristologia

sofreu os rebaixamentos extremos na própria condição humana, e isto por causa da Sua missão
redentora (e manifestação suprema do amor misericordioso de DEUS), como veremos na Soteriologia.
Vamos tratar em seguida 1) os atributos de santidade; 2) os atributos de conhecimento; 3) os
rebaixamentos do VERBO feito carne durante a Sua vida terrena.

I. Os atributos de santidade

A. A união hipostática e a graça

1. A santidade de JESUS e a graça


A santidade é um atributo de DEUS, um atributo do Seu ser e do Seu agir. Só Ele é santo “por
essência”, o Santo, o Santíssimo. Esta santidade pode ser comunicada às criaturas, distinguindo-se
santidade objetiva (o caráter “sagrado” de uma criatura) e santidade subjetiva. Esta última é a
“divinização”, pela qual a criatura intelectual é elevada a um nível superior àquele em que se encontra
pela sua natureza. A criatura pode “participar da natureza divina”, da vida divina. É evidente, por
conseguinte, que uma tal comunicação da santidade divina só se pode realizar como um dom da
graça, um dom gratuito sobrenatural de DEUS à criatura.
Deve-se dizer o mesmo a respeito de JESUS CRISTO enquanto homem? Tudo indica que sim, uma
vez que Ele tem uma natureza humana criada. Todavia, como entender que, para o FILHO, seja uma
graça ter a santidade de DEUS? A Sua Pessoa não é por ventura santa por Si mesma?

2. O sujeito da graça em JESUS


Antes de tudo é necessário reconhecer que a graça é o amor “agraciante” de DEUS; é o amor que
transforma, “divinizando”, a criatura espiritual. Amando a pessoa criada com amor paterno, DEUS faz
dela sua filha.
O amor de DEUS PAI para com Seu FILHO eterno é um amor não “de graça”, mas natural. O ato
de amor do PAI identifica-se com a natureza divina; a natureza divina que o PAI comunica ao FILHO
identifica-se com Seu ato de amor (a relação de paternidade é uma relação ontológica, mas
identificando-se com a relação (intencional) de conhecimento e amor). Este amor do PAI para com
Seu FILHO não é, portanto, um amor “de graça” (“dom gratuito”).
Ora, quando o FILHO Se faz pessoa humana, isto é, pessoa de natureza humana, o amor eterno do
PAI para com Seu FILHO “se torna” amor para com esta pessoa humana, isto é, para com Seu FILHO
enquanto agora é também pessoa de natureza humana. Sendo assim, este amor se torna amor
“agraciante”, amor de graça, amor transformante, divinizante, sem deixar de ser amor natural (se se
considera o FILHO em Si mesmo).
Quem é, portanto, o sujeito da graça em JESUS CRISTO (de todos os dons que constituem a Sua
santidade)? Não é a humanidade de JESUS considerada à parte, já que “graça” diz relações
interpessoais; é este homem, JESUS, isto é, o FILHO encarnado, como tal, como pessoa de natureza
humana.

3. A graça da união
Sem dúvida alguma, a união hipostática é o supremo dom de DEUS à Sua criatura; é a graça
maior, mais sublime, fonte de todas as outras. Porém, a quem foi dada esta graça? Ao universo das
criaturas, em seu conjunto, sendo a Encarnação o coroamento supremo do mesmo? Certamente.
Caietano pôde, até mesmo, falar de uma “elevação de todo o universo à Pessoa divina” (“elevatio
totíus universi in personam divinam”). Mas não é o universo que foi unido hipostaticamente ao FILHO
de DEUS, nem mesmo foi o gênero humano no seu conjunto, mas uma natureza humana individual,
singular, a humanidade de JESUS.
Então, é JESUS a quem foi dada essa graça? Mas, em que consiste esta graça se não no fato que,
no FILHO, a natureza assumida é unida ontologicamente à natureza divina? E como é possível dizer
que, para o FILHO, é uma graça ter a natureza divina?
Cristologia 116

Evidentemente, não é uma graça para o FILHO ter a natureza divina, isto é, ser DEUS, e também
não é uma graça ser homem. Mas para este homem – JESUS, filho de Maria Santíssima – é uma graça
ser o FILHO eterno de DEUS PAI. Este homem, isto é, a natureza humana na Pessoa do FILHO. Neste
sentido, é uma graça para todos os homens que a natureza humana, comum a todos, tenha sido
assumida pela Pessoa do FILHO em uma das suas realizações.
Esta graça – chamada “graça da união” – é incriada; não é uma participação da natureza divina,
mas DEUS mesmo que Se dá à criatura: antes de tudo e principalmente a este homem, JESUS, que não
recebe um dom criado, mas o dom de ser Ele mesmo o FILHO de DEUS, de ser DEUS (o dom é o
“ipsum esse personale Verbi”). Através d’Ele, DEUS Se doa aos homens (e Anjos) e a toda a criação.

4. A graça criada na alma de JESUS


A graça criada é o conjunto dos dons feitos à pessoa, tornando-a partícipe da natureza e vida
divina. É, antes de tudo, a graça santificante, que transforma a própria alma (substância; é “habitus
entitativus”) e faz dela um princípio imanente de vida divina, divinizando-a radicalmente (assim
como ela é, por natureza, princípio de vida humana). Há também as “virtudes”, principalmente as
virtudes teologais, que são transformações divinizantes das faculdades da alma, elevando-as ao nível
do objeto divino (conhecimento e amor de DEUS no Seu mistério trinitário). Assim, a pessoa humana
“divinizada” está em comunhão vital com as Pessoas divinas. Há, além das virtudes, também os “sete
dons do ESPÍRITO SANTO”, que também são aperfeiçoamento divinizante das mesmas faculdades,
tornando a pessoa humana dócil para seguir os impulsos do ESPÍRITO SANTO. Enfim, há também as
“graças atuais”, com as quais DEUS mesmo, que é, na alma, a fonte da vida divina comunicada (Ele
nos é mais íntimo do que nós mesmo o somos), suscita a partir de dentro esta nova vida (a realização
de atos vitais). Esta é, ao mesmo tempo, vida deste determinado vivente, que é a pessoa criada
divinizada, e vida divina. Todo este conjunto de dons é o que podemos chamar de “dom do ESPÍRITO
SANTO”.
Em JESUS CRISTO há dons deste tipo? Alguns teólogos pensaram: uma vez que a graça da união é
infinita ela exclui tais dons (na antiguidade, p. ex., Cassiano; no séc. XX, F. Malmberg). Por que e
como Aquele que é DEUS por natureza teria necessidade de ser “divinizado”? No entanto, a S.
Escritura e a Tradição nos mostram JESUS como um homem sobre quem repousa o ESPÍRITO de DEUS
e que é movido por Ele.
Na verdade, a graça da união não somente não exclui a graça criada, mas a exige (cf. S.Th. III, q.
7, a. 1), e isto, tanto na ordem ou no nível do ser, como também do agir e do cumprimento da missão.
Na ordem do ser: se a natureza humana de JESUS é “divina” no sentido de pertencer, como
própria, ao FILHO de DEUS, ela fica sendo simplesmente uma natureza humana. A natureza humana
pode, em si mesma, ser divinizada pela graça, mas o fato de pertencer ao FILHO não a diviniza; é
somente um título para receber de DEUS este dom.
Na ordem da ação: o “agir segue o ser”. Este homem, JESUS, é o FILHO de DEUS, é DEUS. A Ele
compete agir divinamente com esta natureza humana assumida, pela qual é homem, sem deixar de ser
o FILHO de DEUS. Mas, para ser princípio imanente de vida divina, a natureza humana deve ser
elevada pela graça. De modo que, se a natureza assumida não fosse enriquecida pela graça, existiria
este paradoxo: o FILHO, feito homem, seria estranho, como homem, à própria vida divina, não
poderia, como homem, viver a comunhão interpessoal com Seu PAI celeste, no ESPÍRITO SANTO.
Na ordem da missão: pela mediação do “único mediador”, o “homem CRISTO JESUS”, que é o
DEUS-homem, o dom supremo e infinito que DEUS faz de Si mesmo à criação deve expandir-se sobre
todos os homens e todo o universo criado. Mas, evidentemente, a graça da união é incomunicável. Daí
se dá a necessidade que seja a própria humanidade do homem-DEUS da qual jorre a fonte de água
viva, que, daí, deve derramar-se sobre o universo das criaturas; cf. Jo 7,37s.

5. A santidade de JESUS
A humanidade de JESUS é santa por causa da união hipostática: é santa porque pertence, como
Sua própria, ao FILHO de DEUS (= “santidade substancial” de JESUS). Por causa desta santidade, a
117 Cristologia

humanidade de JESUS, em si e em cada uma das suas partes, nas Suas próprias representações, é
adorável.73
A humanidade de JESUS pode e deve ser adorada, porque é a humanidade do FILHO de DEUS.
Adorar a humanidade de JESUS é adorar a Pessoa do FILHO encarnado, que não é somente Pessoa de
natureza divina, mas também de natureza humana. A humanidade de JESUS é adorada em si mesma,
enquanto faz parte do todo que é a Pessoa do FILHO encarnado, mas ela não é adorada por causa de si
mesma e, sim, por causa da divindade do FILHO, a quem esta humanidade pertence como Sua própria.
A humanidade de CRISTO é adorada também nas suas representações (imagens), enquanto o ato de
culto não se refere à imagem em si mesma, mas à realidade (pessoa) representada por ela. Ora, JESUS
CRISTO pode e deve ser adorado; por conseguinte, Ele mesmo é adorado também nas Suas
representações.74
Aqui podemos pensar no realismo eucarístico de Padres da Igreja (S. Gregório de Nissa, S. João
Crisóstomo, S. Cirilo de Alexandria), segundo os quais o contato físico com a carne de CRISTO, na
Comunhão eucarística, é santificante.
Além disso, a humanidade de JESUS é santa pela graça criada, que a diviniza em si mesma.
Então, há duas santidades de JESUS? É melhor dizer: a santidade de JESUS CRISTO é, principalmente,
aquela que é devida à união hipostática; esta é a própria santidade de DEUS.75 Ela compreende e
integra a santidade que os dons criados da graça conferem à alma de JESUS. Esta santidade é
simplesmente a continuação, na natureza humana assumida, da santidade de DEUS, como a ação
humana do FILHO é a continuação da união hipostática (que é união ontológica).

B. A plenitude de graça na alma de JESUS


É a plenitude da graça criada. Apoiando-se em Jo 1,14: “cheio de graça e de verdade”, a teologia
clássica fala da plenitude de graça na alma de JESUS.

1. Graça sem medida


A base dessa idéia encontra-se, na S. Escritura, nas afirmações que apresentam JESUS como o
FILHO bem-amado, que tem a vida em Si. Especialmente se deve referir o seguinte trecho ( Jo 3,34s):
“Aquele que DEUS enviou fala as palavras de DEUS, porque DEUS lhe dá o ESPÍRITO sem medida. O
PAI ama o FILHO e entregou tudo nas suas mãos.”

a) Todos os dons de graça


“A graça é antes de tudo e principalmente o dom do Espírito que nos justifica e nos santifica”
(Cat. 2003); ela nos “diviniza”, faz-nos participar da vida divina. Mas, em vista das necessidades da
nossa vida aqui na terra (na Igreja e no mundo), a graça tem múltiplas virtualidades, cuja atualização
não é necessária para cada um, mas somente para um e outro em favor de todos (necessária não para a
pessoa do fiel, mas para a Igreja). Assim, o carisma de pastor, o poder sacerdotal, os carismas em
geral... Além disso, pode-se reconhecer que, também do ponto de vista da “divinização”, alguns
traços da graça, comuns a todos, são mais acentuados num determinada pessoa do que em outra (p.
ex.: a misericórdia em S. Vincente; a pobreza em São Francisco de Assis; o zelo missionário em São
Francisco Xavier).
JESUS CRISTO é certamente o ponto culminante da atuação das virtualidades da graça. No entanto,
há dois importantes valores de graça que a teologia tradicional afirma que não houve (há) na alma de
JESUS (também durante a Sua vida terrena): a fé e a esperança. Como se deve entender esta
afirmação?

73
Cf. S.Th. III q. 25, a. 1-3.
74
Quanto à “adoração da cruz” (cf. liturgia da sexta-feira santa), cf. S.Th. III q. 25, a. 4. É adoração de CRISTO
crucificado.
75
Se uma coisa pode ser “santa” – no sentido de “sagrada”, – num ser pessoal é a pessoa que é santa, e em
CRISTO não há senão uma só pessoa.
Cristologia 118

JESUS CRISTO na terra tinha a fé?


Ao ler o testemunho dos Evangelhos e dos outros escritos neotestamentários, pode-se notar que a
virtude da fé nunca é atribuída a JESUS. Como ainda veremos, uma antiquíssima tradição teológica,
bem fundamentada na S. Escritura, reconhece em CRISTO, vivendo aqui na terra, a visão imediata de
DEUS (da essência divina).
Ora, se isto é verdade, a fé fica excluída da alma de CRISTO, pois a visão é incompatível com a fé.
Portanto, se JESUS, na Sua vida terrena, já tinha a visão, não tinha a fé. Isto, no entanto, não diminui
por nada a Sua graça, pois a visão é a meta da fé. A fé termina com a visão, pois a mesma verdade
que, pela fé, o homem conhece imperfeitamente e na obscuridade, mostra-se então na plena luz. Se,
ao invés – como pensam muitos teólogos hodiernos – na alma de JESUS não houve a visão de DEUS, é
preciso reconhecer que Ele tinha a fé, a mais alta, a mais pura, a mais rica, mas com os limites
inerentes à fé e inseparáveis da mesma.
Mas, não se poderia eventualmente falar da “fé de CRISTO”, apesar de aceitar que Ele tinha a
visão de DEUS? É o que certos teólogos fazem. Aqui, porém, é preciso fazer uma distinção: há na fé
uma dimensão intelectual e uma dimensão afetiva (volitiva). A segunda dimensão ou aspecto é, sob
certos aspectos, tão importante ou até mais importante: a confiança em quem fala e o empenho
pessoal com relação a ele. Sob este ponto de vista, a fé de JESUS é total e eminentemente exemplar.
Porém, é necessário esclarecer o seguinte: Certamente, é de importância capital (constitui o valor de
santificação da fé) a confiança total com que a pessoa entrega ao PAI e ao FILHO, que “ilumina todo
homem”, a própria autonomia, também intelectual. Aquilo, porém, que constitui propriamente a fé é o
conhecimento da verdade revelada. O movimento voluntário de acolhida da verdade divina, sem o
qual a fé não seria possível, faz parte da fé naquele que a tem, e este movimento perdura – e até com
mais força e envolvendo mais toda a pessoa – quando a fé se extingue pela passagem à visão. Se
JESUS tinha a visão desde o começo da Sua vida de homem, Ele tinha sem dúvida, em grau altíssimo a
confiança filial no “PAI das luzes” e acolhia com imenso desejo – desejo completamente atendido,
nunca extinto – esta verdade que se oferecia ao Seu espírito de homem. Mas nem esta confiança nem
este desejo condicionavam o conhecimento que Ele tinha da Verdade divina; antes, desse
conhecimento nasciam aquela confiança e desejo.
Esta confiança – chamada por alguns de “a fé de CRISTO” – desligada do conhecimento da fé, o
que é senão a esperança? Mas a tradição teológica quis excluir também a esperança da alma de
CRISTO.
JESUS CRISTO na terra tinha a esperança?
Os motivos tradicionais para excluir a esperança da plenitude de graça em JESUS não são muito
seguros. Na S. Escritura pode-se encontrar trechos que parecem dizer o contrário. Veja-se o brado de
JESUS na cruz: “Meu DEUS, por que me abandonaste?” Não foi um grito de desespero, mas nisto
houve, em situação a mais extrema possível, a esperança. E é propriamente a esta esperança contra
toda a esperança (cf. Rm 4,18) que faz eco o famoso versículo da Carta aos Hebreus (5,7): “Ele é que,
nos dias da Sua vida na terra, dirigiu petições e súplicas, com veementes clamores e lágrimas, a DEUS
que o podia libertar da morte. E foi ouvido por causa da Sua piedade.”
É inegável que JESUS esperava muitos benefícios do Seu PAI e, principalmente, a Sua
ressurreição e exaltação, como também a reconciliação do mundo com DEUS, isto é, o fruto da
redenção que Ele realizou na cruz, mas que fica sendo pura graça para aqueles que dela são
beneficiados (cf. Rm 6,23).
Tudo isso, Ele o desejava e esperava com confiança total, pela promessa que Lhe tinha sido feita
através de toda a história de Israel, de todas as profecias e de Sua própria incomparável experiência
espiritual. E no entanto, tudo isso não dependia d’Ele, como homem: na cruz, Ele experimentou, até à
mais terrível angústia, o sentimento de ser abandonado, sem perder a certeza da ajuda divina; certeza
esta, que ele, na paz da ressurreição, lembrou aos discípulos de Emaús, repreendendo-os de a ter
perdido: “Não era preciso que CRISTO sofresse essas coisas para entrar na glória?” (Lc 24,26). Esta
certeza Ele não perdera nunca. É a certeza da esperança; é a esperança.
Por que, então, na teologia tem sido afirmado que JESUS não tinha a virtude teologal da
esperança? Por causa da Sua união com DEUS na visão imediata e, portanto, beatífica de DEUS (ver o
que será exposto mais tarde). Esta visão beatífica, posse bem-aventurada de DEUS, é o objeto próprio
119 Cristologia

da virtude teologal da esperança. Ora, se JESUS já tinha a posse do objeto da esperança, não tinha mais
a esperança, mas a posse.
No entanto, como vamos ver mais tarde, JESUS não era somente “comprehensor” (já na meta),
mas também perfeitamente “viator” (“viajor”, a caminho do PAI). Ele podia, portanto, esperar ainda
Sua glorificação, embora na Sua alma espiritual, tendo a visão imediata de DEUS, já possuísse a
glória. A glorificação esperado é, portanto, a “glorificação corporal”, sem dúvida, mas esta não se
deveria entender somente como a glorificação do corpo e, sim, como a do ser humano todo inteiro,
considerado este na sua dimensão corpórea. Certamente, a visão imediata e o amor de DEUS que dela
deriva é o âmago vital e irradiante da glória (bem-aventurança), mas a glorificação corporal não é
somente “acidental” e como um simples acréscimo. A glorificação corporal será o desdobramento,
segundo todas as suas dimensões, dessa mesma glória que se encontra já na alma de JESUS, devido à
visão beatífica. Estas considerações justificam o reconhecimento da virtude teologal da esperança na
alma de JESUS.

b) Graça infinita
“Sem medida” (cf. Jo 3,34) significa “infinito”? Em que sentido a graça criada de JESUS pode ser
chamada de “infinita”? No sentido em que, na economia real da salvação, ela é a graça máxima, que
contém todas aquelas graças que são ou serão dadas às pessoas criadas (cf. S.Th. III, q. 7, a. 11-12).
Por quê? A razão profunda (segundo São Tomás) é que a graça criada de JESUS está em conexão
direta e imediata com a graça da união: esta é o ápice absoluto da graça. Há continuidade entre a
união intencional (por conhecimento e amor) e a união ontológica (devida à comunicação da
subsistência do VERBO à natureza assumida). Esta continuidade é o aspecto maior e essencial do
mistério da Encarnação. A união hipostática é, sem dúvida, o grau supremo de união da humanidade
com DEUS. Todas as uniões de graça medem-se com referência a ela. Na alma de JESUS, as duas
formas de união estão ligadas de tal modo na unidade da Pessoa que a união intencional recebe uma
infinitude relativa na ordem da graça, e isto se dá pelo fato que JESUS, sendo o VERBO, é unido por
Suas operações humanas à divindade de uma maneira digna do VERBO, isto é, em um grau de
intimidade que transcende tudo aquilo a que é conduzido pelo ESPÍRITO SANTO qualquer pessoa
criada. Isto Lhe confere uma espécie de “absoluto” dentro da ordem da graça ou salvação. “Na ordem
da graça” quer dizer: dentro dos limites da ordem da graça, que pertence à esfera do criado, por isso,
do que é finito, pois a graça criada não pode ser infinita em si mesma (é a graça (transformação
divinizante) das pessoas criadas).

2. Graça dada inteiramente desde o começo


Numa pessoa criada, a graça criada é uma realidade que conhece evolução: vai aumentando
pouco a pouco até chegar, afinal, ao seu auge, no final da vida, ou seja, na vida eterna. JESUS, porém,
o FILHO encarnado, recebeu já desde o começo aquela plenitude da graça – da qual falamos
anteriormente – no seu grau supremo. Esta é a afirmação da teologia clássica (cf. S.Th. III, q. 7, a. 2).
Contra esta afirmação levanta-se uma objeção: JESUS é verdadeiramente e plenamente homem; a
união hipostática não modifica n’Ele a natureza humana. Por natureza – essencialmente, portanto – o
homem é capaz de evoluir, ao menos na fase terrena da sua existência. Por causa deste caráter
evolutivo, a redenção no gênero humano e em cada pessoa realiza-se progressivamente. Por
conseguinte, não reconhecer em CRISTO este progresso da graça não seria diminuir ou desconhecer o
realismo da Encarnação?
É preciso refletir sobre o mistério da Encarnação: em JESUS, a pessoa é preexistente, perfeita,
infinita; a natureza humana não dá a esta pessoa o ser pessoa, mas somente o ser “humana”. Disto
resulta que, em JESUS, o progresso da perfeição humana não comporta algum progresso da perfeição
pessoal como tal, enquanto, em nós, a personalidade se desenvolve pouco a pouco juntamente com a
natureza.
Ora, a graça é uma perfeição pessoal, formalmente falando, e ela consiste em relações
interpessoais entre a criatura e DEUS. Estas relações se fundam, certamente, numa transformação da
própria natureza humana, mas, por outro lado, elas dizem respeito à pessoa como tal. Esta parece ser a
razão profunda e necessária para não poder admitir um progresso da graça de CRISTO.
Cristologia 120

Deste modo, apresenta-se ao mesmo tempo a razão pela qual essa plenitude de graça dada desde
o começo não se opõe ao realismo da Encarnação. A natureza assumida é, sem dúvida alguma, sujeita
à evolução; isto, no entanto, não comporta que a graça seja evolutiva e progressiva, porque isto não
comporta que seja evolutiva a personalidade de CRISTO, inclusive a humana. No nosso caso (pessoa
criada), no entanto, tanto a natureza como a personalidade são evolutivas.
Na argumentação de São Tomás, podemos reconhecer dois grandes argumentos, baseando-se na
visão imediata e na graça da união. Quanto à visão imediata como razão: a visão da essência divina é
o último coroamento da graça, sendo o ponto mais alto da união com DEUS. Ora, se JESUS tinha a
visão desde o começo da Sua vida terrena, a graça que Lhe foi dada era, desde o começo, plenamente
perfeita (sem poder tornar-se mais perfeita, sem poder “aumentar”). Quanto à graça da união: a graça
divinizante na alma de JESUS ordenava-se totalmente à graça da união e era, de alguma maneira,
proporcional a esta, numa medida fixada pela sabedoria divina, mas como convinha ao FILHO de
DEUS feito homem. Ora, a graça da união foi dada desde o primeiro instante e não comportava graus
(é pura e simplesmente infinita). Por conseguinte, a graça santificante que deriva dessa graça da união
(união hipostática), suscitada na alma de JESUS, pelo amor mesmo com que o PAI ama o FILHO, não
podia não ser perfeita desde o primeiro instante, sem precisar crescer para atingir a sua perfeição (cf.
S.Th. III, q. 7, a. 12, ad 2; também a. 13).
Todavia, isto não exclui qualquer progresso na vida da graça. Se a Pessoa do FILHO encarnado
não é sujeita ao progresso, ela, no entanto, não vive, segundo a graça, a não ser por atos, dos quais a
natureza é a fonte e o centro propulsor (a natureza é o princípio de ação, no sentido de principium
quo, o “princípio pelo qual” a pessoa age; a natureza é “id quo agit”). Disto resulta: se a Sua natureza
humana é evolutiva – e o é com certeza – dever-se-á encontrar alguma evolução, se não na própria
graça, ao menos nas operações da vida de graça, produzidas pela natureza e pelas faculdades
aperfeiçoadas divinamente pela graça.
A S. Escritura fala mesmo deste progresso (Lc 2,52): “E JESUS ia crescendo na sabedoria, no
tamanho e no agrado a DEUS e aos homens.” A graça é aquilo que torna a pessoa agradável a DEUS.
Esse texto faz uma alusão exata e até mesmo literal a 1 Sm 2,26: “Quanto ao jovem Samuel, ele
crescia sempre, em tamanho e em graça (agrado, beleza), tanto diante de JAVÉ como diante dos
homens”. Daí, o texto do evangelista Lucas não afirma mesmo um progresso de JESUS na graça?
Parece que, a este respeito, podemos e devemos fazer – com São Tomás – a distinção entre os
“habitus” (virtudes76, sete dons do ESPÍRITO SANTO) e os correspondentes atos ou obras; distinguir, p.
ex., entre a virtude do amor e o ato de amor. Nos “habitus”, JESUS não crescia, mas nos atos podia
crescer e crescia.
Expliquemo-lo. Para fazer um ato de amor ou sabedoria (sobrenatural) não basta ter o habitus
correspondente, ainda que seja no mais alto grau. Além disso é preciso que a faculdade que deve
emitir este ato vitalmente (o intelecto ou a vontade ou os dois conjuntamente) seja capaz de agir e de
agir no grau máximo da sua vitalidade natural. Ora, para um ser humano, isto é possível apenas no
fim de um longo processo, o qual não se refere diretamente à própria faculdade espiritual, mas às
faculdades sensíveis, os sentidos, e também os órgãos corporais, que, no homem, a faculdade
espiritual deve necessariamente pôr em ação para realizar o ato próprio. Um recém-nascido pode, no
Batismo, receber uma graça muito perfeita, mas ele deverá crescer e desenvolver-se para chegar ao
ponto em que as suas faculdades espirituais será capazes de emitir os atos sobrenaturais à altura dos
habitus que já há nele desde o Batismo. Enquanto não tiver chegado a este ponto, ele crescerá na vida
da graça sem que, necessariamente, cresça a graça mesma. Tratando-se de uma pessoa criada (todos
nós, mas não JESUS), essa graça poderá e normalmente deverá crescer em seguida e, no caso da
criança, crescerá pela recepção dos sacramentos (Eucaristia, Crisma). Para JESUS, porém, se pode
admitir que a graça mesma não podia crescer – sendo máxima desde o primeiro instante – e que Ele
tenha crescido na vida da graça até atingir a plenitude da Sua idade humana psicológica e física
(“adulto”).
Portanto, é necessário distinguir, em JESUS, entre, de um lado, a posse da graça santificante e de
todos os habitus sobrenaturais e, por outro lado, o uso desses habitus. Assim, podemos dizer: quando
76
Cf. a definição de “virtude” no Cat.: “A virtude é uma disposição habitual e firme para fazer o bem” (n.
1803). “As virtudes humanas são atitudes firmes, disposições estáveis, perfeições habituais da inteligência e da
vontade que regulam nossos atos, ordenando nossas paixões e guiando-nos segundo a razão e a fé” (n. 1804).
121 Cristologia

o Menino JESUS começou a usar os Seus habitus de sabedoria e de amor, os atos que fazia – sendo
embora sumamente elevados, os mais perfeitos que podia realizar naquele momento da Sua evolução
humana – não correspondiam à perfeição que n’Ele tinham a graça santificante e as virtudes.
Deste modo, portanto, pode-se conciliar a idéia, fundada e necessária, da plenitude da graça
desde o primeiro instante na alma de JESUS, com o texto de São Lucas e também as exigências da
verdade da Encarnação. Além disso, depois de JESUS ter atingido a idade adulta, podia haver um
progresso no sentido de Ele realizar obras que, como tais, são uma prática mais perfeita de uma
determinada virtude; cf. Jo 15,13 (“Ninguém tem maior amor do que ...”).

C. A graça de “Cabeça”
Se a graça é antes de tudo amor paterno de DEUS (também “amor de amizade”) para com o
homem, devemos afirmar que todos os homens são amados em CRISTO, “o Bem-Amado” (cf. Ef 1,6);
Ele é o novo Adão, que compreende em Si toda a humanidade; além disso, traz todos os homens no
Seu espírito e no Seu coração.
Lembremo-nos o que dissemos ao falar do “sujeito da graça em JESUS”: o amor eterno do PAI ao
FILHO, na vida intradivina, se torna na Encarnação amor do PAI para com o FILHO feito homem, para
o homem JESUS. Este amor prolonga-se em amor pessoal para cada fiel, na medida em que, pela fé e
o amor, adere a CRISTO.
Essa posição de JESUS CRISTO como “Cabeça” costuma chamar-se a “graça de Cabeça” (gratia
capitis), a graça de ser a Cabeça, a origem-fonte das graças para todas as criaturas. Esta “graça de
Cabeça” não é em JESUS uma outra graça. A graça que Ele recebe “como FILHO Único, cheio de graça
e verdade” (cf. Jo 1,14) é uma graça feita antes de tudo a Ele e por Ele a todo o gênero humano e a
todas as criaturas espirituais. Toda graça nas pessoas criadas deriva da graça de CRISTO. Esta
derivação ou comunicação da plenitude de graça em CRISTO para as criaturas não se deve entender – é
óbvio – como se a graça fosse algo material. A graça na minha alma é o efeito do amor divino para
comigo (a transformação “divinizante” da minha alma), e é em JESUS CRISTO que eu sou amado por
DEUS TRINDADE, como prolongamento do amor com que é amado o “FILHO bem-amado”. A
comunicação da graça, por parte de CRISTO, a mim se realiza pelo envio do ESPÍRITO SANTO (a
Pessoa-Amor, a Pessoa-Dom), da parte de CRISTO; o envio daquele único e mesmo ESPÍRITO de que
foi ungido, em plenitude absoluta, o CRISTO, isto é, “o Ungido” por excelência.

II. O conhecimento do homem JESUS durante a Sua vida terrena


Se JESUS é ao mesmo tempo DEUS e homem, tendo duas naturezas realmente distintas, a divina e
a humana, Ele tem também duas operações distintas – uma divina e outra humana – e, assim, tem
dois modos de conhecer: um divino (comum às três Pessoas da Santíssima TRINDADE) e outro
humano. Ele conhece pelo intelecto divino e pelo intelecto humano, tem “ciência” divina e humana.
Por “ciência”, como é óbvio, não se entende aqui o saber científico, mas simplesmente o
conhecimento claro e certo das coisas. Em JESUS há, portanto, um verdadeiro conhecimento humano,
o qual se encontra na base das decisões livres da Sua vontade humana e, por conseguinte, da Sua
capacidade de merecer-nos a salvação.
Apolinário de Laodicéia achava que não podia aceitar uma liberdade humana de JESUS CRISTO –
pensando que esta incluía necessariamente a capacidade de pecar – e por isso negava que JESUS
tivesse uma alma racional: em CRISTO, o VERBO teria substituído a alma ou o espírito. Vimos que o
Magistério da Igreja rejeitou este erro, confessando que o VERBO assumiu também uma alma racional
humana.
Por isso, não há dúvida quanto ao seguinte: embora não exista uma intervenção direta do
Magistério da Igreja sobre a existência em CRISTO de uma ciência humana, esta verdade encontra-se
implicitamente definida na afirmação da existência de uma alma racional humana e na afirmação de
que n’Ele cada natureza opera o que lhe é próprio.77 Os Evangelhos não deixam dúvida a respeito da
existência de uma conhecimento humano de JESUS. O Concílio Vaticano II sublinhou que o FILHO de

77
Cf. CONC. III DE CONSTANTINOPLA: DS 556ss.
Cristologia 122

DEUS “trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, agiu com vontade humana,
amou com coração humano” (GS n. 22,2).
Esse conhecimento de JESUS como homem, vivendo aqui na terra, podia ser ilimitado? Ele era
onisciente? Ao responder a esta questão devemos apoiar-nos no testemunho da S. Escritura.

A. O conhecimento de JESUS na Sua vida terrena, segundo a S. Escritura


No Evangelho de João, encontramos relatada a maravilha dos discípulos ao reconhecer que JESUS
“sabia tudo” (Jo 16,29s):
Os discípulos disseram: “Agora sim, falas claro e sem figuras! Agora vemos que conheces tudo e não
precisas que ninguém te faça perguntas. Por isso, acreditamos que saíste de DEUS.
JESUS sabe tudo e, já antes de alguém fazer uma pergunta, Ele sabe que esta pessoa quer fazê-la,
e sabe o que ela quer perguntar. JESUS não precisa do testemunho de alguém sobre uma outra pessoa,
pois “bem sabia o que havia no interior de cada um” (Jo 2,25). Já no primeiro encontro com Natanael
e com a mulher samaritana, Ele conhece a vida deles (Jo 1,47-49; 4, 17s); antes de acontecer ou
acontecendo em um lugar distante, Ele conhecia a traição de Judas (Jo 6,71; 13,24), a tríplice negação
de Pedro (Jo 13,38), a morte de Lázaro (Jo 11,11ss), como conhece também o amor de Pedro:
“Senhor, sabes tudo. Tu sabes que te amo!” (Jo 21,17).
Também nos evangelhos sinóticos, JESUS conhece os corações, os pensamentos dos homens (cf.
Mc 2,8 par), prediz a Sua morte e ressurreição (Mc 8,31ss; 9,3.30ss; 10, 32ss), a traição de Judas (Mc
14,18) e a negação de Pedro (Mc 14,30) e outros acontecimentos (cf. Mc 11,1-6; 14,13-15).
Em Mt 11,27 e Lc 10,22, JESUS diz que o PAI Lhe “entregou tudo”: “Todas as coisas me foram
entregues por meu PAI. Ninguém conhece o FILHO (quem é o FILHO) senão o PAI, nem alguém
conhece o PAI (quem é o PAI) senão o FILHO e aquele a quem o FILHO o quiser revelar” (a versão de
Lc está entre parênteses). JESUS, que fala aqui como homem, afirma de Si mesmo um conhecimento
de DEUS como Seu PAI essencialmente superior ao de qualquer outro homem: Ele conhece de um
modo exclusivo, singular, como ninguém pode alcançar. Outros poderão chegar a ter um
conhecimento da paternidade e filiação que há entre DEUS e JESUS, mas somente através de uma
“revelação” feita por JESUS mesmo; Ele mesmo não necessita de tal revelação, porque experimenta de
um modo perfeitamente imediato Sua relação de FILHO com o PAI: percebe, de um modo misterioso
Sua comunhão de bens e de vida com Ele: “Tudo (que Ele mesmo possui) me foi entregue por meu
PAI”.
É isto que encontramos desenvolvido e explicitado no Evangelho de São João. JESUS assegura ter
recebido tudo do PAI, a vida e o poder de comunicá-la aos que, ouvindo Sua palavra e entendendo
Seus “sinais” (milagres), crêem n’Ele. O PAI mostra ao FILHO as obra que faz, para que o FILHO as
faça também em união com o PAI (Jo 5,19s78). JESUS é o único que verdadeiramente conhece o PAI
(Jo 8,5579); mais ainda, Ele fala o que ouviu diretamente do PAI (Jo 8,26.28); e não somente O ouviu,
mas também O viu diretamente, como nenhum outra pessoa jamais O podia ver (Jo 5,37; 6,46;
8,3880). Ele pode falar das coisas celestes como quem dá testemunho do que Ele mesmo viu (Jo 3,11-
13). A razão fundamental de tudo isto é que Ele veio de junto do PAI, enviado pelo PAI (Jo 7,2981).
João o resume naquela frase que encerra o prólogo do seu evangelho: “Ninguém jamais via a DEUS. O
FILHO Único, DEUS, que está voltado para o seio do PAI, O revelou” (Jo 1,18). Todas essas
expressões enunciam claramente um conhecimento imediato, quer se chame de audição ou visão ou
contemplação de Seu PAI.
Assim, não é de admirar que Ele manifeste também ter conhecimento claro dos “desígnios
eternos que viera revelar” (Cat. 474), particularmente do desígnio da Sua paixão-morte e ressurreição,

78
“O FILHO nada pode fazer por Si mesmo, a não ser o que vê o PAI fazer. Tudo o que Ele fizer, fará igualmente
o FILHO. Porque o PAI ama o FILHO e mostra-Lhe tudo o que faz.”
79
“Vós não O conheceis, mas Eu O conheço.”
80
5,37: “Sim, o PAI que me enviou dá testemunho de mim. Nunca ouvistes Sua voz, nem vistes Sua face”. 6,46:
“Não que alguém tenha visto o PAI; só aquele que é de DEUS já viu o PAI”. 8,38: “Eu falo das coisas que meu
PAI me mostrou”.
81
“Eu O conheço, porque venho d’Ele e foi Ele que me enviou.”
123 Cristologia

como mistério de salvação da multidão dos homens (cf. Mc 8,31; 9,31; 10,33s [predições da paixão,
morte e ressurreição]; 14,18-20.26-30 [predição da traição de Judas, do abandono dos discípulos, da
negação de Pedro]; Mt 20,28; Mc 10,45 [veio para dar a vida em resgate]). Ele sabe que se completou
o tempo para a chegada do Reinado de DEUS (Mc 1,15), conhece a consumação definitiva do Reino
de DEUS, na qual “o FILHO do homem virá na glória de seu PAI com os santos anjos” (Mc 8,38; cf.
também 14,62), como também prediz os eventos em conexão com essa consumação (Mc 13,5-31).
No entanto, existem também trechos que manifestam uma limitação do conhecimento humano de
JESUS. Justamente a respeito da consumação do Reinado-Reino de DEUS, lê-se em Mc 13,32: “Quanto
a esse dia ou a essa hora, ninguém sabe: nem os anjos no céu, nem o FILHO, mas só o PAI”. Em At 1,7,
porém, Ele diz simplesmente que não é Sua missão revelar esse detalhe: “Mas Ele respondeu: ‘Não
vos compete conhecer os tempos e os momentos que o PAI fixou com Sua própria autoridade” (cf.
Cat. 474).
Lc 2,52 fala de um crescimento do menino JESUS “em sabedoria, em estatura e em graça”. Na
vida pública, em várias ocasiões, JESUS faz perguntas. Uma pergunta, às vezes, quer simplesmente
provocar o interlocutor, para que manifeste seus pensamentos ou desejos; sem que houvesse
necessidade de o perguntar, qualquer um podia saber que o paralítico da piscina de Betesda desejava
ser curado, e fazer-lhe a pergunta foi apenas convidá-lo a pôr sua esperança em JESUS que queria
curá-lo (Jo 5,6). Deste tipo são também as perguntas feitas por JESUS para dar ocasião a uma
profissão de fé n’Ele (Mt 16,13.15; Mc 8,27.29; Jo 6,67; 9,35). Mas, em geral, uma pergunta pede
informação sobre algo que se desconhece, e não há razão para excetuar as perguntas feitas por JESUS
(p. ex., Mc 6,38: “JESUS respondeu: ‘Quantos pães tendes? Ide verificar’.” 9,21: “JESUS perguntou ao
pai do menino: ‘Há quanto tempo lhe acontece isto?’ Ele respondeu: ‘Desde a infância’.” Jo 11,34: “E
perguntou: ‘Onde o puseste?’ Responderam-Lhe: ‘Senhor, vem e vê’”), pois, ainda que tivesse tido a
intenção de alimentar milagrosamente a multidão de homens e de ressuscitar a Lázaro (cf. Jo 6,5s;
11,11.14s), não era necessário saber o número exato de pães que um jovem trazia consigo (Jo 6,9; Mc
6,38) nem o lugar exato do sepulcro de Seu amigo (Jo 11,34). Numa ocasião, junta-se à pergunta o
olhar que procura encontrar: “Mas logo JESUS sentiu que uma força tinha saído d’Ele. Virou-Se então
no meio da multidão e perguntou: ‘Quem tocou na minha roupa?’ ... E Ele olhava à Sua volta
procurando aquela que tinha agido assim.” E até mesmo as perguntas feitas para pedir um ato de fé
não supõem necessariamente que a resposta seja conhecida de antemão.
Em outras circunstâncias, JESUS manifesta admiração pela fé ou surpresa pela incredulidade (Mt
8,10; Mc 6,6; Lc 7,9; Mc 3,5; 8,29). Estas manifestações espontâneas de admiração ou surpresa
indicam que deparou-Se com algo inesperado e imprevisto, ignorado até aquele momento.
Portanto, os Evangelhos apresentam também aquilo que o Catecismo da Igreja Católica exprime
da seguinte maneira: “Enquanto tal, este [conhecimento humano de JESUS] não podia ser em si
ilimitado: exercia-se nas condições históricas de sua existência no espaço e no tempo. Por isso o Filho
de Deus, ao tornar-se homem, pôde aceitar ‘crescer em sabedoria, em estatura e em graça’ (Lc 2,52) e
também informa-se sobre aquilo que na condição humana se deve aprender de maneira experimental.
Isto correspondia à realidade de seu rebaixamento voluntário na ‘condição de escravo’” (n. 472).
Por fim, convém lembrar uma característica do ensinamento de JESUS, a qual nos pode fazer ver
uma característica da Sua ciência. As multidões ficavam maravilhadas pela maneira como JESUS
ensinava, pois ensinava a Sua doutrina “como detentor de autoridade própria e não como os mestres
da lei” (Mt 7,29). Nisto, Ele unia a sublimidade da doutrina com a singeleza da forma. Esta
característica da Sua pregação nos faz descobrir uma característica da Sua ciência: o contato íntimo e
imediato com as realidades do mundo espiritual e divino, juntamente com o contato íntimo e imediato
com as coisas do nosso mundo humano. “Jesus sabe explicar as realidades da ordem religiosa, de
Deus e de suas relações com o homem, assim como dos deveres do homem para com Deus e para
com o próximo, com uma profundidade e exatidão insuperáveis; mas sabe fazê-lo também com uma
inimitável clareza e proximidade da nossa vida. Basta citar como exemplo suas parábolas: nelas, a
idéia é sempre precisa e a comparação adequada. ... Dir-se-ia que Jesus vive simultaneamente em dois
mundos, que Ele os conhece com perfeição e que percebe seus pontos de analogia com clareza
meridiana. Ademais, no entanto, se se dá conta que este conhecimento das coisas nasce de um contato
Cristologia 124

imediato com as realidades de ambos os mundos: não é uma noção abstrata ou intelectualista, mas um
conhecimento vital, experimental.”82

B. O conhecimento humano natural de JESUS na terra: a “ciência adquirida”


Por “ciência adquirida” designam-se aqueles conhecimentos que o homem adquire por suas
próprias forças, a partir dos seus sentidos. O realismo com que se aceita a Encarnação do VERBO, a
seriedade com que se reconhece que o VERBO realmente Se fez homem, assumiu uma natureza
humana e, portanto, limitado, obriga a reconhecer em JESUS uma tal ciência adquirida, pois dizer que
o VERBO é homem e não agiu humanamente, é privar a Encarnação do seu sentido. Por conseguinte,
JESUS tinha a ciência adquirida, que é uma ciência experimental, que progride com os anos, o esforço
e a experiência.
JESUS CRISTO é o Revelador do PAI; por Ele DEUS Se doa ao homem, revelando-Se. Mas, como
veremos, só por meio de um conhecimento humano JESUS podia revelar-nos aquilo que sabia por
conhecimento divino.
A dificuldade está em ir até o fundo nessa afirmação principal. Com efeito, conhecimento
humano tem características que provêm propriamente da estrutura ontológica do homem e, por isso,
se encontram necessariamente em cada homem. Estas são as seguintes.
Inicialmente, a inteligência humana é uma “tabula rasa, na qual nada está escrito ou desenhado”.
O conhecimento começa com a percepção sensitiva. Daí se formam nas faculdades sensitivas as
representações sensitivas (“phantasma”). Daí parte o desenvolvimento da inteligência, atingindo o seu
objeto, o “ser”, por abstração das representações sensitivas. Procedendo pouco a pouco, por
composição e divisão de conceitos e por raciocínio, ela chega a um conhecimento sempre mais
preciso e vasta do ser oferecido pela experiência (chega à essência [quidditas] das coisas materiais).
Nisto, porém, não pode nunca deixar de estar em contato com o ser das coisas materiais, por meio da
percepção e da imaginação, sob pena de perder o seu objeto. 83 Certamente, ela pode conhecer também
os seres imateriais e, sobretudo, DEUS, mas somente por analogia e ficando em contato permanente
com o ser das coisas materiais. A abstração, com a qual, de alguma maneira, constitui o seu objeto, é,
segundo S. Tomás, a operação de uma segunda faculdade intelectiva: o intelecto ativo (“intellectus
agens”). Sem este, a inteligência propriamente dita (o intelecto passivo, intellectus possibilis) ficaria
vazia, em um estado de pura potencialidade para conhecer.84
Este modo característico do conhecimento humano deve ter sido também o de JESUS na Sua vida
terrena. No entanto, grandes teólogos, como São Boaventura, o Beato Duns Escoto e Suarez negaram
que JESUS tivesse uma ciência verdadeiramente adquirida, pois pensaram que era mais de acordo com
a dignidade do VERBO encarnado afirmar que Sua humanidade tivesse possuído desde o princípio
todos esses conhecimentos por ciência infusa. Também São Tomás negou nas suas primeiras obras a
ciência adquirida no VERBO encarnado; apenas na Summa Theologiae ele se retrata formalmente:
“Embora em outro lugar eu tivesse escrito outra coisa, não se pode afirmar que Cristo não tenha tido
uma ciência adquirida. Uma tal ciência é propriamente segundo a maneira humana, não somente por
parte do sujeito que a recebe, mas também por parte da causa que a produz; pois tal ciência se atribui
a Cristo em virtude do intelecto ativo, que é conatural à natureza humana” (S.Th. III, q. 9, a. 4).
Ora, reconhecer essa ciência adquirida em JESUS equivale a reconhecer as limitações próprias
deste modo de conhecer. Pois este modo natural da inteligência humana implica necessariamente:
1) o progresso; 2) o progresso indefinido, uma vez que por meio da abstração, da composição e
divisão, do raciocínio, o homem não poderá jamais exaurir todo o campo aberto ao conhecimento; 3)
um progresso não somente individual, mas também coletivo (o gênero humano no seu conjunto) 85; 4)
um progresso, portanto, que comporta necessariamente a dependência de cada indivíduo humano,

82
M.M. GONZALEZ GIL, Cristo, el Misterio de Dios, vol. 1, Madrid 1976, 412.
83
Cf. S.Th. I, q. 84, a. 7: “impossibile est intellectum nostrum, secundum praesentis vitae statum, quo passibili
corpori coniungitur, aliquid intelligere in actu, nisi convertendo se ad phantasmata”.
84
Cf. S.Th. I, qq. 79, 84, 85 ss e lugares paralelos.
85
Nos seus conhecimentos, o indivíduo humano sempre depende necessariamente do estado da cultura do seu
tempo e do seu ambiente.
125 Cristologia

ainda que fosse o maior gênio, dos outros homens: uma criança aprende a ler, não inventa o alfabeto;
em cada ciência que se propõe de estudar e aprofundar, aprende aquilo que outros encontraram antes;
aprende-o de mestres vivos. No mais alto grau da ciência, ele continua a aprender dos outros, ao
menos com a leitura, com o diálogo, etc.; 5) um tal progresso não é sem alguma ignorância
(nesciência): com a experiência, o raciocínio, o ensinamento ou os simples intercâmbios intelectuais,
aprende-se o que não se sabia.
Por isso, quando São Tomás (cf. S.Th. III, q. 9, a. 4, ad 1) não reconhece que JESUS podia
aprender de alguma criatura (p. ex., da Sua mãe), ele não chegou ainda a reconhecer as últimas
consequências do realismo da Encarnação do VERBO divino. Ele e muitos outros teólogos ensinaram
também que a ciência adquirida de CRISTO abrangia “tudo aquilo que pode ser conhecido pela ação do
intelecto ativo” (cf. S.Th. III, q. 12, a. 1) e, neste sentido, seria ilimitada. JESUS não teria ignorado
nada em nenhuma ordem do conhecimento humano (p. ex., também na física, química...). Tal
afirmação, no entanto, não parece compatível com o realismo de uma ciência adquirida, que JESUS
consegue com o esforço de Seus sentidos e faculdades, e na qual progride como os demais homens. A
experiência de que Ele dispunha era obviamente limitada e de acordo com Sua época e lugar. O que
podemos dizer é, certamente, o seguinte: A ciência adquirida de JESUS teve sempre a perfeição
conveniente para a Sua idade, Seu tempo, os lugares onde vivia, e a missão a cumprir.

C. O conhecimento humano sobrenatural de JESUS na terra


Como vimos, a S. Escritura nos faz ver que JESUS não tinha apenas um conhecimento humano
natural, mas, além disso, conhecimentos de origem superior, divina. Antes de mais nada e sobretudo,
trata-se do conhecimento que Ele tem de DEUS, portanto também de Si mesmo como DEUS, como o
FILHO eterno de DEUS, assim como dos desígnios divinos. Na tradição teológica, chegou-se a
reconhecer em JESUS – quanto a este conhecimento sobrenatural – a assim chamada “ciência da
visão” e a “ciência infusa”. Quanto a isto, vamos seguir o desenvolvimento da tradição, começando
com os Padres da Igreja.

1. Os Padres da Igreja: uma evolução segundo o esclarecimento ontológico do mistério de JESUS


CRISTO
Na época patrística, podem-se distinguir aproximadamente dois períodos com relação à doutrina
sobre o conhecimento de JESUS.
1) Num primeiro período, mais ou menos antes do Concílio de Calcedônia (451), distingue-se o
conhecimento que JESUS tem enquanto DEUS, conhecimento infinitamente perfeito e total, igual ao do
PAI, e aquele que Ele tem enquanto homem, onde se podem dar ignorâncias e incertezas.
2) Num segundo período – sobretudo depois do Concílio de Calcedônia, mas, em certos Padres,
muito antes – descobre-se cada vez mais a insuficiência do esquema anterior, apesar de sua justeza.
Pois, se JESUS, o VERBO encarnado, tem à disposição o conhecimento que possui enquanto DEUS, isto
vai implicar que esse conhecimento divino se expressa por palavras humanas, por conceitos humanos,
frutos de uma inteligência humana; e isto implica que a inteligência divina do VERBO se comunica à
inteligência humana de JESUS segundo sua capacidade limitada.

a) O primeiro período
Para ver o pensamento dos Padres sobre o conhecimento sobrenatural de JESUS, serve-nos o
exame de suas reações ante o problema da ignorância de JESUS, problema largamente debatido no
decurso da antiguidade cristã, dentro do quadro das controvérsias cristológicas frente ao arianismo e
ao nestorianismo.
Trata-se, sobretudo, do famoso texto de Mc 13,32 (somente o PAI conhece o dia e a hora do juízo
final). Muito cedo, este texto foi utilizado pelos arianos como suporte da sua negação da divindade de
CRISTO: se Ele não sabe, e só o PAI, que é DEUS, o sabe, Ele não pode ser verdadeiro DEUS. Também
aos nestorianos esse texto servia de base para negar a unidade da Pessoa em CRISTO (JESUS, pessoa
humana não o sabe; o LOGOS, Pessoa divina, o sabe).
Ora, antes de Mc 13,32 se tornar ponto de discórdia nas controvérsias cristológicas, não se tinha
nenhuma dificuldade em admitir aquela ignorância de JESUS, como se pode ver em S. Irineu e em
Cristologia 126

Orígines.86 Posteriormente, a preocupação fundamental passou a ser não o sentido óbvio do texto, mas
o cuidado de interpretar aquela ignorância de modo a não se chocar com a divindade de CRISTO (Ele é
o VERBO encarnado).
Daí, duas direções na interpretação do mesmo texto: JESUS, mesmo enquanto homem, não
ignorava o dia do juízo, mas ignorava-o enquanto enviado de DEUS, porque isto não fazia parte do
que Ele tinha a missão de revelar; esta interpretação era a muito mais comum. 87
A outra interpretação é a seguinte: JESUS enquanto homem não conhecia a data do último dia,
mas a conhecia enquanto DEUS. Portanto, em Mc 13,32, JESUS falava do que Ele ignorava em Seu
conhecimento humano.88
O que importa aqui, é que, nas duas interpretações, os Padres tiveram a convicção de que JESUS,
o filho de Maria, tinha à Sua disposição tanto a ciência humana de filho do homem, como a ciência
divina de FILHO de DEUS. Quando liam no Evangelho: “o PAI e Eu somos um” (Jo 10,30), estavam
convictos de que JESUS o dizia não enquanto homem, mas segundo a Sua natureza divina.89
Por outro lado, parece que os Padres não se puseram a questão do como: Como pode essa ciência
divina exprimir-se em palavras-conceitos humanos, produzidos por uma inteligência humana? Esta
coisa não foi abordada. Eles se limitam a afirmar o fato. O FILHO eterno do PAI e JESUS, filho da
Virgem Maria, são a mesma Pessoa. Portanto, DEUS, o VERBO, fala pela boca de JESUS por meio da
humanidade que Ele assumiu. Também S. Agostinho não leva a análise mais longe. Ele, no entanto,
parece ser o primeiro dos Padres a ensinar que JESUS na Sua vida terrena via DEUS face a face, como
os santos no Céu (De diversis quaestionibus, 60,65: PL 40, 60).
Em 553 é que aparece o primeiro documento oficial do Magistério da Igreja sobre a questão da
ciência de CRISTO: uma condenação dada pela Papa Vigílio contra os nestorianos, a pedido do
imperador bizantino Justiniano:
Se alguém dizer que Jesus Cristo ignorou os acontecimentos futuros ou o dia do juízo final, ele, o único
Jesus Cristo, o mesmo simultaneamente verdadeiro Filho de Deus e verdadeiro filho do homem; e que
(Jesus) só pôde saber o que lhe revelou a Divindade habitando nele como em outro (outra pessoa), seja
anátema.90
Este texto quer, portanto, afirmar: J ESUS conhece tudo porque é DEUS. Tal conhecimento não é
objeto de uma revelação. JESUS como homem possui esta ciência divina em razão da unidade de Sua
Pessoa divina, DEUS feito homem. Em outras palavras: JESUS como homem, em virtude de Sua
ciência divina, conhece o que DEUS conhece. Pode-se deduzir daí: DEUS sabe que é DEUS; logo,
igualmente, JESUS o sabe.
Vê-se neste texto que a doutrina do Concílio de Calcedônia ainda não tinha produzido todos os
seus frutos (com relação às duas naturezas distintas e, por conseguinte, também das duas respectivas
operações distintas). Uma reflexão mais profunda sobre as implicações das definições desse Concílio
obrigará a análise a avançar, sem nada sacrificar do que antes foi dito, mas precisando e distinguindo
mais os diversos níveis do conhecimento.

86
Em Orígines, porém, encontramos também outra opinião, a opinião “mais difundida”: CRISTO fala em nome
da Igreja, Seu Corpo (não é Ele que ignora, mas Seu Corpo, a Igreja).
87
Entre os Padres os mais notórios são Hilário, Ambrósio, Crisóstomo, Agostinho, Dídimo, Epifânio, Basílio de
Cesaréia; mas há ainda muitos outros menos célebres. Na Idade Média, esta tornou-se a opinião comum entre os
teólogos escolásticos.
88
Assim interpretaram Irineu, Gregório de Nissa. Mas grande número de Padres admitem as duas
interpretações: Atanásio, Basílio, Gregório de Nazianzo, etc. Pode-se aplicar a esses Padres o que J. Lebreton
(Histoire du dogme de la Trinité des origines au Concile de Nicée, vol. I, Paris 61927, 563) afirma de S.
Atanásio: “Todo esforço de santo Atanásio tende a estabelecer que o Verbo divino não ignora nada; em
comparação com esta afirmação capital, o restante pouco importa para ele e propõe várias interpretações
diferentes do texto evangélico: a ignorância afastada da divindade de Cristo e atribuída a sua humanidade é
apresentada ora como aparente ora como real.”
89
Cf. Papa Leão Magno, em sua célebre carta a Flaviano (ano 449): DS 295.
90
DS 419.
127 Cristologia

b) O segundo período
1) A doutrina de São Fulgêncio
Na África do Norte, por volta do ano 500, São Fulgêncio, bispo de Ruspe, responde a um certo
Ferrando, diácono de Cartago, que lhe propusera a seguinte questão: será que a alma de CRISTO tem
conhecimento pleno da divindade que a assumiu? Será que o FILHO, por Sua humanidade, conhece
Sua divindade da mesma maneira que o PAI, o FILHO e o ESPÍRITO SANTO Se conhecem? (cf. PL 65,
415).
A questão é, portanto: CRISTO em Sua humanidade tem pleno conhecimento de Sua divindade? O
acento está na palavra pleno, e a pergunta prossegue: esse conhecimento é idêntico ao conhecimento
que as Pessoas divinas têm umas das outras?
São Fulgêncio responde sim à primeira pergunta e não à segunda. A alma de CRISTO, sendo
criada, tem um conhecimento de criatura; DEUS incriado tem conhecimento divino, infinito. CRISTO,
em Sua humanidade, conhece tudo que DEUS conhece, mas não com a mesma profundeza infinita; por
conseguinte, JESUS segundo Sua inteligência humana conhece plenamente Sua divindade, mas não
com uma plenitude idêntica àquela com que DEUS Se conhece a Si mesmo por Sua inteligência divina
idêntica à Sua natureza divina (cf. PL 65, 420-423). Entretanto, São Fulgêncio afirma com firmeza
que este conhecimento divino é comunicado à humanidade de JESUS pelo ESPÍRITO que Lhe é dado
sem medida (cf. Jo 3,34s; cf. DS 417ss).
Daí vem que JESUS, em Sua humanidade, conhece Sua divindade em toda a plenitude, plenitude
limitada apenas pelos limites intransponíveis da natureza humana, que é natureza criada. A análise
não avança ulteriormente. Mas já surge um grande progresso em comparação com S. Agostinho. Pois
entre Fulgêncio e Agostinho realizou-se o Concílio de Calcedônia, que afirmou claramente as duas
naturezas de CRISTO, “perfeito em Sua divindade, perfeito em Sua humanidade ..., sem confusão ...,
conservando cada uma das duas naturezas suas propriedades” (DS 301s). Por conseguinte, as palavras
e as ações de JESUS não podiam ser atribuídas imediatamente à Sua natureza divina; era necessário
que o fossem por intermédio de Suas faculdades humanas.
Depois de São Fulgêncio, toda a tradição cristã, de uma maneira ou de outra, retomará o
conteúdo das suas formulações. JESUS como homem conhece tudo o que Deus conhece, mas segundo
a maneira limitada em que funciona o conhecimento de toda inteligência humana, por mais perfeita
que seja.
A carta de São Fulgêncio teve notável influência nos autores latinos posteriores (cf. Alcuíno,
teólogo na corte de Carlos Magno; Hugo de São Vítor).
2) Os agnoetas
É muito fragmentário o nosso conhecimento acerca dos assim chamados “agnoetas” (de agnoia,
ignorância); parece tratar-se de indivíduos, não de grupos. Um deles é um certo Temístio, diácono da
Igreja de Alexandria, no séc. VI (a literatura patrística sobre esses cristãos situa-se entre 540 e 640).
Embora monofisita, Temístio ensinava que CRISTO era sujeito à ignorância como qualquer um de nós
(trata-se principalmente do texto de Mc 13,32). A reação dos Padres é mais clara e unânime do que
nos séculos precedentes.
O texto de maior importância a este respeito é uma carta do Papa São Gregório Magno ao
patriarca Eulógio de Alexandria (cerca de 600). Nela se lê (DS 474s):
Assim também o Filho onipotente diz não saber o dia, porque quer que não o saibamos; não porque Ele
próprio não o saiba, mas porque não permite de modo algum que se saiba. Daí se dizer que só o Pai o sabe,
porque o Filho, consubstancial ao Pai por Sua natureza, pela qual é superior aos anjos, sabe o que os anjos
ignoram. Por isso se pode entender, de modo mais sutil, que o Unigênito, encarnado e por nós feito homem
perfeito, conhecia, na [in] natureza humana, o dia e a hora do Juízo; mas não o sabia pela [ ex] natureza
humana. Assim, pois, o que nela sabia, não por ela sabia, porque Deus feito homem sabia o dia e a hora do
Juízo pelo poder de Sua divindade (...). Por isso, a ciência que não tinha pela natureza humana, pela qual era
criatura como os anjos, negou tê-la, como não a tinham os anjos, que são criaturas. Portanto: o dia e a hora
do Juízo Ele o sabe como Deus e homem; pela razão, porém, de que o homem é Deus.
Portanto, São Gregório Magno diz que o conhecimento do dia do Juízo não é fruto de uma
atividade normal de Sua inteligência humana. É o conhecimento divino do FILHO, mas comunicado à
inteligência humana de JESUS, em razão da união hipostática. O “conhecimento verdadeiramente
Cristologia 128

humano do Filho de Deus exprimia a vida divina de sua pessoa” (Cat. 473, com referência à carta de
Gregório Magno).
São Máximo o Confessor vai dizer a mesma coisa: “A natureza humana do Filho de Deus, não
por si mesma, mas por sua união ao Verbo, conhecia e manifestava nela tudo o que convém a Deus”. 91

2. Os teólogos da Idade Média e dos tempos modernos: “ciência de visão” e “ciência infusa”
O papel dos teólogos – da Idade Média e dos tempos modernos – consistirá principalmente em
tentar responder a esta questão que os Padres deixaram sem solução: como a ciência divina do VERBO
é comunicada à santa humanidade de CRISTO?
Vimos que os Padres, na sua fidelidade ao dado evangélico, unanimemente afirmaram que Jesus de Nazaré,
o filho de Maria, não somente era o Filho de Deus preexistente à criação, mas ainda tinha plenamente à sua
disposição o conhecimento, a ciência propriamente divina do Filho de Deus.
Vimos em seguida que, na fidelidade às definições do Concílio de Calcedônia, os Padres, nos séculos V e
VI, ensinavam que essa ciência divina se exprimia por uma boca de homem e em conceitos, idéias humanas
produzidos por uma inteligência humana. Era necessário que essa ciência divina transite de alguma maneira
por uma inteligência humana. Como? É a questão que tentarão resolver os teólogos da Idade Média. 92

a) Os teólogos da Idade Média


Depois de algumas hesitações,93 a maior parte dos teólogos do séc. XIII vai distinguir três níveis
no conhecimento humano de JESUS: a ciência adquirida (ver acima), a ciência de visão (visão
imediata, como a têm os bem-aventurados no Céu), a ciência infusa, comparável à dos profetas que
transmitem aos homens a Revelação divina. No entanto, os teólogos escolásticos entenderam esta
ciência infusa também no sentido da ciência própria dos anjos (species intelligibiles “infusas”).
Essa elaboração doutrinal não é, como se pensa muitas vezes, uma construção filosófica a priori,
segundo o deixaria supor a leitura superficial de santo Tomás. Ela se impõe aos teólogos como a
melhor maneira de dar conta do dado bíblico.94
Os teólogos escolásticos, como São Tomás, trataram também da autoconsciência de JESUS.
Fiel aos ensinamentos do Concílio de Calcedônia, santo Tomás afirma tranqüilamente: se não houvesse
em Cristo outro conhecimento senão a ciência propriamente divina, não poderia ele conhecer nada,
absolutamente.95
Com efeito, o conhecimento é ato da pessoa de Cristo, mas agindo com as faculdades de sua natureza.
Ora, o Jesus dos evangelhos apareceu em sua natureza humana, e suas palavras eram o fruto de uma
inteligência humana. E o Concílio de Calcedônia ensina que em Jesus as duas naturezas, divina e
humana, existem de maneira distinta, sem mistura nem confusão. A inteligência divina do Filho de
Deus, Deus ele próprio, não pode portanto suprir a ausência de uma inteligência humana no Verbo
encarnado.
Daí que, se Jesus sabe que é Deus, como o afirma são João, ele não pode sabê-lo senão por sua
inteligência humana. Mas de que maneira? Para santo Tomás a resposta é clara: pela visão beatífica de
que os eleitos gozam nos céus e que Jesus possui já desde esta nossa terra. Nessa “ciência de visão”, ele
vê Deus, sua unidade, a Trindade das Pessoas divinas, e vê-se também unido à segunda Pessoa da
Trindade na unidade de uma só Pessoa.96
São Tomás, contudo, não respondeu à seguinte pergunta: O que aconteceria se Jesus não tivesse a
“ciência de visão”, se não possuísse nem mesmo a “ciência infusa”, e tivesse apenas a “ciência
adquirida” comum a todos os homens? Jesus teria sabido que era Deus?

91
S. MÁXIMO CONFESSOR, Quaestiones et dubia, q. 1, 67: CCG 10,155 (66: PG 90,840).
92
Fr. DREYFUS, Jesus sabia que era Deus?, São Paulo 1987, 36.
93
O autor da Summa Sententiarum admitia somente a ciência divina; Alexandre de Hales (+ 1245) admitia seis
ciências em CRISTO (cf. DREYFUS, ibid., 36, nota 1).
94
DREYFUS, ibid., 37.
95
S.Th. III, q. 9, a. 1, ad 1.
96
DREYFUS, ibid., 38 (cf. S.Th. III, q. 10, a. 4).
129 Cristologia

b) Os teólogos dos tempos modernos


Os teólogos dos tempos modernos, em geral, continuam a admitir a tríplice ciência de JESUS; no
entanto, há também quem a conteste no que diz respeito à ciência de visão (a partir do séc. XIX e,
particularmente, no séc. XX) e à ciência “infusa”, entendida esta em um sentido muito perfeito. A
atenção dirige-se também, de um modo particular, à auto-consciência de JESUS.
É no séc. XX que os teólogos especulativos examinam a fundo a questão: de que maneira JESUS
sabia que era DEUS? Todavia, uma vez que vamos ainda tratar expressamente da questão da auto-
consciência de JESUS, adiamos a(s) resposta(s) a esta questão para mais tarde.

c) A ciência de visão
O Catecismo da Igreja Católica (n. 473), tendo citado a afirmação e o esclarecimento de São
Máximo Confessor sobre o conhecimento humano sobrenatural de JESUS,97 diz: “Este é, em primeiro
lugar, o caso do conhecimento íntimo e direto que o Filho de Deus feito homem tem de seu Pai (cf.
Mc 14,36; Mt 11,27; Jo 1,18; 8,55 etc.).” De que se trata aqui senão da assim chamada “ciência de
visão”? É aquela visão intuitiva da Divindade à qual se refere São Paulo com a expressão ver a DEUS
face a face (cf. 1 Cor 13,12), e São João ao dizer que conheceremos a DEUS tal como Ele é em Si
mesmo (cf. 1 Jo 3,2).
Quanto ao fundamento bíblico desta doutrina, lembremos os textos já referidos anteriormente,
que afirmam que o JESUS viu o PAI, que dá testemunho do PAI, dá testemunho do que viu. Cf. Jo 1,18
(cf. Jo 3,11); Jo 6,46 (cf. Jo 8,55; 3,32); Jo 3,11 (cf. Jo 8,38); Mt 11,27. Notemos aqui que em Jo
1,18, o evangelista responde afirmativamente à interrogação negativa do Siracides (Sr 43,31): “Quem
O viu para que O possa descrever (revelar)?” Para Siracides é claro: a resposta é “não”. Para São
João, a resposta é “sim”: JESUS. JESUS viu-O e revela-O.98
Eis uma formulação que parece absolutamente incontestável: no quarto evangelho, Jesus goza plenamente
do conhecimento do Pai que ele possuía antes da encarnação. Numerosos são os textos neste sentido. ...
“Aquele que vem do céu, (ele, Jesus) dá testemunho do que viu e ouviu” (3,32). Por outra parte, para João,
Jesus continua sobre a terra a usufruir desse conhecimento do Pai que possuía antes da encarnação, pois
embora estando na terra, ele continua a estar no céu: “O Filho único está para o seio do Pai” (Jo 1,18) e a ver
o Pai: “O Filho, por si mesmo, nada pode fazer, a não ser aquilo que vê o Pai fazer” (3,19). 99
Os textos acima indicados e outros semelhantes parecem deixar fora de dúvida que o poder
revelador de JESUS CRISTO tem sua origem não em uma revelação que Ele, por Sua vez, tenha
recebido, nem na fé d’Ele, mas no conhecimento direto que Ele tem do PAI. Ele dá testemunho no
sentido estrito desta palavra: testemunha o que viu. Como já vimos também, a S. Escritura não fala
nunca daquilo que JESUS deveria ter tido se não tivesse a visão de DEUS: a fé. JESUS, o Pontífice fiel
(cf. Hb 3,2) não aparece jamais como um crente, como aquele que procede na obscuridade da fé, mas,
sim, como quem conhece profunda e diretamente a intimidade divina.
É absolutamente fora de discussão que o Cristo joanino se apresente como uma testemunha direta do mundo
divino. Ele diz o que viu e ouviu junto do Pai. É sobre esta ciência de Cristo que se baseia a fé de todos os

97
“A natureza humana do Filho de Deus, não por si mesma, mas por sua união ao Verbo, conhecia e
manifestava nela tudo o que convém a Deus.”
98
Ocorrem os mesmos verbos gregos em João e no Siracides: ver (orãn, em ambos), revelar (exegoumai, em
João; o mesmo verbo, aumentado do prefixo diá, no Siracides).
99
François DREYFUS, Jesus sabia que era Deus?, São Paulo 1987, 125. Dreyfus escreve ainda: “Jesus [no 4 o
evangelho] pretende fruir daquele conhecimento do Pai que ele tinha desde toda a eternidade antes de sua
encarnação e do qual continua a fruir no seu estado atual de filho de Maria. Não se pode dizer mais do que isto
e, falando com rigor, não se trata da visão de Deus que têm os eleitos no céu e que nunca é comparada com o
conhecimento de Jesus. Mas, note-se bem, esse conhecimento que Jesus tem do Pai, segundo o quarto
evangelho, é o conhecimento do filho de Maria, um conhecimento de homem, de uma inteligência humana.
Logo, ele deve poder comparar-se aos diversos conhecimentos de Deus possíveis ao homem e mencionados na
Escritura: conhecimento de Deus pela razão; conhecimento pela fé; conhecimento profético, fruto de uma
revelação especial de Deus; conhecimento, enfim, que será o do céu, onde os eleitos verão a Deus face a face
(quanto a este último, ver Mt 5,8; 1Cor 13,12; 1Jo 3,2; Ap 22,4). Ora, somente este último parece corresponder
ao conteúdo dos textos de são João” (ibid., 126).
Cristologia 130

outros homens, inclusive as testemunhas oculares da sua existência, que nunca viram e ouviram daquele
modo. Por este motivo Cristo é o único revelador que a humanidade jamais conheceu. 100
Quanto aos Padres da Igreja, há um texto de S. Agostinho, em que ele parece afirmar a ciência
de visão em CRISTO. São Fulgêncio, como já vimos, diz que havia em JESUS um “pleno conhecimento
de Sua divindade”.101 Mas os Padres em geral nunca falam de JESUS como de um crente ou como de
alguém que caminha no claro-escuro da fé. Pelo contrário, nota-se na era patrística uma forte
afirmação da sabedoria do Senhor, de Sua infalibilidade, embora não se tenha refletido tematicamente
de onde Lhe venha esse conhecimento. Já vimos a repugnância dos Padres (com exceção de certos
Padres dos primeiros cinco séculos) à idéia de que o VERBO encarnado pudesse verdadeiramente
ignorar alguma coisa. Eles reconhecem que deve haver uma compenetração entre o saber humano e o
saber propriamente divino de JESUS, ou seja, uma comunicação da inteligência divina à inteligência
humana. Mas, como também já vimos, eles não explicaram o “como”.
A afirmação da ciência de visão em CRISTO foi a posição quase unânime dos teólogos desde a
Idade Média até a época do Concílio Vaticano II (no séc. XIX já se levantaram umas vozes contra),
baseada não em um texto determinado, mas no conjunto dos dados bíblicos e patrísticos.
Do ponto de vista da argumentação teológica, pode-se aduzir as seguintes razões teológicas.
1) O fundamento da primeira razão teológica é a dignidade pessoal do VERBO encarnado, a qual
requer, como vimos, que a graça seja dada à alma de JESUS, desde o primeiro instante, no seu mais
alto grau de perfeição. Ora, a visão imediata não é um dom acrescentado à graça, mas o coroamento
supremo da mesma, quer dizer: a graça no seu mais alto grau compreende a visão imediata. Por
conseguinte, negar a CRISTO a ciência de visão implica necessariamente negar-Lhe a plenitude
absoluta da graça e união de Sua alma com DEUS.
2) O fundamento é a missão redentora de CRISTO, ou seja, Sua missão de mediador único. É pela
humanidade de JESUS CRISTO que os homens são conduzidos à bem-aventurança em DEUS, isto é, à
visão beatífica. Pelos atos e sofrimentos da Sua vida terrena JESUS obteve aos homens a visão
beatífica: primeiro, revelando o mistério de DEUS; depois, com Sua paixão e morte sacrifical e, enfim,
com Sua ressurreição. Isto Ele realiza como o “único mediador entre DEUS e os homens”, aquele,
portanto, que une os homens com DEUS. Ora, a visão beatífica é o cume desta união. Não se pode
admitir que JESUS tenha tido necessidade de ser unido a DEUS enquanto homem, porque, neste caso,
teria tido necessidade de mediação, sendo Ele o primeiro e único mediador! Isto, no entanto, seria o
caso se Ele não tivesse o dom da visão imediata de DEUS; é que Ele seria beneficiário de uma
mediação.
3) O terceiro argumento se baseia nas exigências da auto-consciência de JESUS. Ele Se revelou
como “FILHO de DEUS”, e a nossa fé fundamenta-se nesta afirmação primordial. Sendo assim, era
necessário que Ele tivesse consciência de ser FILHO de DEUS. Porém, como poderia ter consciência
disso sem a visão? A Pessoa do FILHO eterno não podia ser “experimentada” a não ser pela visão
imediata.
4) Um quarto argumento é a dificuldade em entender o comportamento de JESUS, se com Sua
mente não estivesse vendo imediatamente a Divindade. Referimo-nos à absoluta segurança com que
Ele dá testemunho não somente da existência de DEUS, mas também da intimidade divina, de como é
o PAI, como Ele ama, perdoa, etc. A respeito de tudo isso, JESUS Se manifesta com segurança
absoluta. É a ciência de visão que explica este comportamento.
Pode-se ainda perguntar: qual é o objeto e a extensão da ciência de visão? É claro que DEUS
excede toda inteligência criada (limitada), portanto também a inteligência humana do VERBO
encarnado. Por isso, nessa ciência de visão, JESUS vê a divindade (essência divina), as três Pessoas
divinas, mas não pode ver, isto é, conhecer a divindade tanto quanto é conhecível. Igualmente, quanto
à visão das coisas em DEUS (na essência divina), JESUS, com Sua inteligência humana, não pode ver
todas as coisas possíveis (nunca realizadas), como, ao invés, com Sua inteligência divina vê o infinito
mundo dos possíveis. Aliás, quanto às coisas reais, é doutrina de São Tomás que, na visão beatífica,

100
A. FEUILLET, Le prologue du IVe évangile, Paris 1968, 132.
101
“É muito duro e totalmente estranho à retidão da fé dizer que a alma de Cristo não tinha pleno conhecimento
de sua divindade, com a qual cremos que é um em pessoa. ... Podemos afirmar certamente que a alma de Cristo
tinha pleno conhecimento da Trindade” (Epist. XIV, 3,31: PL 65, 420).
131 Cristologia

as pessoas criadas (não somente não vêem todos com igual perfeição a essência divina, mas que) não
vêem, na essência divina, todas as coisas, todas as pessoas e todos os acontecimentos. Cada um
conhece isto ou aquilo segundo lhe diz respeito (cf. S.Th. III q. 10, a. 2). Pela visão de DEUS, portanto,
JESUS via e conhecia tudo o que dizia respeito à Sua Pessoa, à Sua missão.
Os pronunciamentos do Magistério da Igreja sobre a ciência de visão são poucas, sendo que
todas elas afirmam a sua existência, fazendo eco à doutrina comum dos teólogos. Quando no início do
séc. XX alguns teólogos católicos (entre eles, Schell) negaram a ciência de visão em CRISTO antes da
ressurreição, o Santo Ofício emitiu um decreto (5.6.1918), declarando que esta tese “não pode ser
ensinada com segurança” (cf. DS 3645). Em 1943, na encíclica Mystici Corporis, e em 1956, na
encíclica Haurietis aquas, o Papa Pio XII afirma explicitamente a visão beatífica de CRISTO antes da
ressurreição. Na primeira das encíclicas, o Papa quer relevar a peculiar lucidez com que JESUS vivia,
também antes da Sua ressurreição, a Sua missão de Redentor e Cabeça do Corpo místico: “Este
amorosíssimo conhecimento, que desde o primeiro instante de Sua Encarnação teve de nós o divino
Redentor, excede tudo quanto a razão humana possa alcançar; porque Ele, pela visão beatífica de que
gozava desde o momento em que foi concebido no seio da Mãe de Deus, tem sempre e continuamente
presentes todos os membros do [Seu] Corpo Místico e [a todos] abraça com amor salvífico” (DS
3812); cf. a este respeito também Gl 2,20; Jo 10,3.11.14. Na outra encíclica, o Papa fala da ciência
beatífica e da ciência infusa (cf. DS 3924). O Papa João Paulo II ensinou, num discurso no dia 4 de
maio de 1980, que CRISTO, “na sua condição de peregrino pelos caminhos de nossa terra (viator),
estava já na posse da meta (comprehensor) à qual devia conduzir os demais”. 102 Também falou
expressamente da “visão de Deus” no cimo do espírito de JESUS, inclusive ao sentir-Se abandonado
pelo PAI na cruz.103

d) Como entender que JESUS na terra estava ao mesmo tempo “a caminho” e “na meta”?
1) As dificuldades
A principal dificuldade que a existência da ciência de visão na alma de JESUS suscita é a seguinte:
é preciso admitir que Ele, na Sua vida terrena, era ao mesmo tempo viator e comprehensor, quer
dizer: estava ao mesmo tempo “a caminho” e já “na meta” do seu destino humano. Isto parece
contraditório.
A isto junta-se a dificuldade de entender como, na mesma pessoa, podem coexistir a suprema
felicidade, própria de quem está na visão imediata (“beatífica”) de DEUS, e o supremo sofrimento na
paixão e morte de JESUS ou a tremenda agonia no Getsêmani.
Uma terceira dificuldade provém da natureza da conhecimento intelectual: “admitir a ciência de
visão em Cristo parece que implicaria negar a realidade de seu conhecimento adquirido. Com efeito,
se já sabe tudo por ciência de visão, como poderia Cristo compartilhar conosco o progresso tão
característico do conhecimento por ciência adquirida? Como poderia coexistir esta ciência universal
com a parcialidade inerente ao caráter progressivo da ciência adquirida?” 104
2) A possibilidade de ser ao mesmo tempo “viator” e “comprehensor”
É claro – segundo os Evangelhos e segundo a própria idéia de encarnação como missão – que
JESUS viveu uma verdadeira vida terrena (habitou entre os homens, caminhou com eles, compartilhou
plenamente a nossa vida humana aqui na terra); encontrou-se no estado de “caminhada”, de “viajor”.
Aliás, este estado é absolutamente requerido para a realização da Sua obra de redenção através do
sofrimento e da morte (amor sofredor), através do sacrifício. Por outro lado, é segundo os dados
fornecidos pelos Evangelhos que reconhecemos em JESUS também a visão imediata de DEUS.
Encontramo-nos diante de um mistério. Como entendê-lo, de alguma maneira? Como é que não se
trata de uma contradição?

102
Cf. Insegnamenti, III-1 (1980) 1128.
103
IOANNES PAULUS II, Oratio in generali audientia habita die 30 novembris 1988 (Insegnamenti di Giovanni
Paolo II, vol. 11/4 (1988), p. 1694); cf. etiam Ep. Apost. Novo millennio ineunte [6 ian. 2001], n. 26 et CCE n.
603). Quanto à doutrina do Catecismo da Igreja Católica, cf. o supracitado n. 473: “conhecimento íntimo e
direto”.
104
F. OCARIZ – L.F. MATEO SECO – J.A. RIESTRA, El misterio de Jesucristo, Pamplona 21993, 246.
Cristologia 132

Com toda a Escolástica, São Tomás afirma a coexistência dos dois estados (viator e
comprehensor) em JESUS. Ele escreve:
Viator é quem está a caminho da bem-aventurança; comprehensor é quem já alcançou a bem-aventurança. ...
A alma de Cristo, antes de Sua paixão, gozava plenamente da visão de Deus e, portanto, possuía a bem-
aventurança própria da alma. Mas fora disto, Lhe faltavam os demais elementos que integram a bem-
aventurança, pois Sua alma era passível [podia sofrer], e Seu corpo, passível e mortal, como já dissemos. Por
conseguinte, enquanto possuía a bem-aventurança própria da alma, era comprehensor; e enquanto tendia
àqueles elementos da bem-aventurança que ainda Lhe faltavam, era ao mesmo tempo viator.105
São Tomás reconhece com clareza que “é impossível que o mesmo sujeito e sob o mesmo
aspecto caminhe para seu fim e ao mesmo tempo repouse nele”. 106 Por isso, JESUS é sob um aspecto
viator e sob outro aspecto comprehensor. Ele está em estado de caminhada quanto à passibilidade da
alma e do corpo, enquanto, no que diz respeito ao fundo (ou cume ou mais íntimo) da alma, Se
encontra já na meta. Por conseguinte, não há uma contradição. A distinção dos dois aspectos talvez
pareça ser sutil demais, mas, na realidade, São Tomás simplesmente aceita o mistério, indicando a
não-contradição.
O mistério é a união das duas coisas: JESUS é realmente o companheiro de viagem na terra, de
modo que é claro que Sua vida encaminha-se para a consumação na morte (estado de caminhada), e,
por outro lado, sendo o Unigênito do PAI também na Sua humanidade, é óbvio que devemos afirmar
que Ele Se encontra na meta. Pois a meta não consiste senão na definitiva união com a Divindade, e
não há união mais estreita e irreversível do que a união hipostática. Daí se segue que, de uma forma
ou outra, é inevitável aceitar que em JESUS na terra coexistiram os dois estados: de viator e de
comprehensor.
3) Ao mesmo tempo suprema felicidade e suprema dor?
Vejamos agora a outra dificuldade: Como conciliar os piores sofrimentos morais e corporais com
a felicidade e a paz, que a visão imediata de DEUS comportam? Não é solução dizer que JESUS tinha a
visão imediata, mas sem a correspondente felicidade (Karl Rahner). “Sendo a posse definitiva, por
parte do ser espiritual, do Bem absoluto, que é o bem ao qual tendem todas as suas aspirações, este
Bem não pode não trazer consigo a felicidade, ao menos na medida em que enche todo o ser. Todavia,
na medida em que este bem não for possuído por aquele que vê a Deus, pode-se admitir que esta parte
de sombra e de desejo ainda não satisfeito se torne muito mais dolorosa pela coexistência, no mesmo
espírito, da plenitude da luz e da alegria, como o é a visão.” 107
A felicidade própria da visão imediata de DEUS só diz respeito à “parte superior” da alma, à alma
como espírito; é por ressonância sobre as outras partes da alma (a alma como “forma” do corpo) que
essa felicidade penetra a pessoa toda. Por isso, embora seja misterioso, não é inconcebível que esta
ressonância, no caso de JESUS na Sua vida terrena, tenha sido impedida. Foi pelo desígnio do PAI (e
do FILHO) que o FILHO encarnado participou da condição humana, da situação de quem está a
caminho da plena felicidade em DEUS.
Aliás, poder-se-ia formular a dificuldade em questão também do seguinte modo: Como é possível
que a glória do FILHO não tenha redundado em toda a humanidade de JESUS a partir do primeiro
momento da Encarnação? E os movimentos “kenóticos” (luteranos) – que afirmam que o VERBO Se
encontrou num estado de despojamento (in statu exinanitionis) desde a Encarnação até a glorificação
de JESUS – se perguntam: como é possível que o VERBO tenha permanecido glorioso enquanto sofria a
humanidade de JESUS? A solução de São Tomás, amplamente seguida pelos teólogos, mantém os dois
pólos da realidade misteriosa: a felicidade e o sofrimento de JESUS na Sua vida terrena. Nesta
explicação também não deixa de existir a possibilidade (e realidade) de uma verdadeira glorificação
de JESUS, merecida por Seu amor de viajor.
Para penetrar um pouco mais no mistério da coexistência, na alma de JESUS, da felicidade
espiritual e dos sofrimentos interiores e exteriores, pode-nos ajudar a experiência dos místicos. Num
nível muito inferior, mas real, eles experimentaram essa coexistência: alegria indizível no fundo do
coração e, ao mesmo tempo, as mais profundas angústias, sem contar os sofrimentos exteriores.
105
S.Th. III, q. 15, a. 10.
106
S.Th. III, q. 15, a. 10, ad 1.
107
J.H. NICOLAS, Dalla Trinità alla Trinità, vol. I, Città del Vaticano 1991, 526s.
133 Cristologia

4) Ciência de visão e conhecimento humano natural


Por fim, examinemos aquela dificuldade de conciliar em JESUS-homem um conhecimento total,
claro e certo, como é a visão imediata da divindade, com o conhecimento que progride pouco a pouco
e que não é total nem goza da claridade da ciência de visão, como é a ciência adquirida. A solução
está, fundamentalmente e exatamente, na natureza distinta dos dois conhecimentos: o conhecimento
natural adquire-se através dos sentidos por meio de imagens sensíveis e inteligíveis (phantasmata,
species), enquanto a ciência de visão se realiza sem qualquer imagem (conceito), pela comunicação
imediata da divindade à alma; este é um modo de conhecer que excede absolutamente o modo próprio
do conhecimento humano. Trata-se de dois conhecimentos de níveis e características bem distintos;
por isso, podem coexistir sem contradizer-se nem anular-se mutuamente.
No entanto, é preciso refletir ainda sobre a perfeição transcendente da ciência de visão e as
consequências desta perfeição. A visão imediata é, para a pessoa criada, um conhecimento totalmente
transcendente (como um êxtase) que a torna incapaz de considerar as criaturas em si mesmas e por si
mesmas. A pessoa as conhece, sem dúvida, mas em DEUS (in Verbo) e sem poder desprender sua
atenção de DEUS. Uma consequência disso é que, sendo incapaz de interessar-se por elas mesmas
(não por DEUS), é incapaz de agir sobre elas e, mais ainda, com elas. A visão imediata da essência
divina é um conhecimento adequado a DEUS somente; só Ele pode agir sobre as criaturas (criando-as,
governando-as, divinizando as pessoas criadas, etc.) à luz deste conhecimento. A criatura não pode
fazer isto; por isso, não somente lhe é útil mas mesmo necessário ter também o próprio conhecimento
natural, o qual, para o homem, é a assim chamada “ciência adquirida”.
O conhecimento humano natural, adquirido a partir da percepção sensível e das imagens
interiores, não era, portanto, incompatível com a ciência de visão, porque correspondia a uma
necessidade de conhecer e cobria um campo de conhecimento que não é o da visão. E a razão disto
não é a imperfeição, mas a transcendente perfeição da visão imediata de DEUS.
O que, no entanto, poderia parecer impossível é que um homem que vive entre os homens e age
em comunhão com eles mediante o conhecimento humano natural possa simultaneamente ver a
essência divina. É certamente um mistério. Mas não há impossibilidade de as duas ciências se
realizarem ao mesmo tempo no mesmo sujeito, pois não há oposição entre elas. 108 É, portanto,
possível a coexistência do conhecimento transcendente (visão) com o conhecimento humano natural e
com um comprtamento humano em relação às outras pessoas, às coisas e acontecimentos. Quem não
admite a visão de DEUS na alma de JESUS tem a tarefa de resolver os problemas enormes que suscita a
imagem de JESUS que caminha para DEUS na obscuridade da fé, embora seja DEUS e seja, como
homem, o revelador de DEUS.
5) Saber pela ciência de visão e não saber pelo conhecimento humano natural
Como pode a mesma pessoa não saber o que sabe e saber o que não sabe? É este o caso de JESUS-
homem, que tem o conhecimento humano natural, que é progressivo e pelo qual desconhece muitas
coisas, e ao mesmo tempo tem a ciência de visão, na qual pode conhecer tais coisas.
Ora, toda comparação com um homem comum é inadequada. Num homem comum não há senão
um modo de saber tudo o que sabe: o modo humano, por abstração e por raciocínio. No caso de
JESUS, é importante reconhecer que o Seu conhecimento natural adquirido não podia exprimir a visão
imediata, a qual se encontrava, por assim dizer, no “céu da Sua alma”, sem passar para o Seu
comportamento cotidiano (a visão imediata de DEUS não era o conhecimento que governava
[diretamente] o comportamento cotidiano de JESUS). Reconhecendo isso, pode-se admitir que em
JESUS houvesse realmente os limites e imperfeições inerentes ao conhecimento natural
“experimental”, que O guiava na Sua vida cotidiana e que Ele exprimia no Seu contato com as outras
pessoas, pois esta era a ciência de que Ele normalmente Se servia, quando as necessidades de Sua
missão não exigiam o uso de um conhecimento mais alto.
Assim, a visão imediata de DEUS (e a ciência “infusa” de que ainda vamos falar) deixa espaço à
aquisição da doutrina revelada com os meios naturais do ensinamento e da leitura. JESUS leu as
Sagradas Escrituras e nelas aprendeu verdadeiramente, de modo humano, o que Ele mesmo aí ensina

108
Há oposição entre a fé e a visão de DEUS, mas não entre o conhecimento humano natural e a visão imediata
de DEUS (cf. S.Th. III, q. 9, a. 3, ad 1).
Cristologia 134

por Sua divindade. Antes de ler, Ele aprendeu a ler e a entender (interpretar) o que estava lendo – não
terá sido Sua Mãe que o fez?
Afirmamos, portanto – como uma parte integrante do mistério da união, em JESUS-homem, dos
dois estados: de comprehensor e de viator – uma certa não-comunicação entre o conhecimento de
visão imediata e o conhecimento natural, de modo que o conhecimento natural não se tornou
radicalmente inútil e sem sentido.

e) A ciência infusa
Como no evangelho Jesus se proclama profeta (Mt 13,57; Lc 13,33), é normal que ele possua, como os
profetas, o conhecimento daquilo que é encarregado de revelar aos homens. E em razão da dignidade
eminente de Cristo, convém que este conhecimento seja permanente, e não transitório, como acontecia aos
mensageiros de Deus na antiga aliança.109
Por “ciência infusa” entende-se um conhecimento conceitual, o qual, no entanto, não se adquire
diretamente pela atividade da razão, mas que é infundido diretamente por DEUS na inteligência
humana. Pelo testemunho dos Evangelhos é óbvio que JESUS tinha um conhecimento sobrenatural de
coisas que Ele não podia conhecer pelos recursos ordinários de Sua inteligência humana (“ciência
adquirida”); cf. o que já foi exposto anteriormente (cf. Jo 1,47-50; 4,17s; 11,14; Mc 9,33-35; 14,18-
21.27-31; Lc 22,31-39; Mt 12,39-41; Lc 11,29-32; Mt 24,1ss; Mc 13,5ss; Lc 21,8ss). Aliás, sem esse
conhecimento sobrenatural, como poderia ter revelado os mistérios divinos que veio nos revelar, se o
Seu conhecimento pela visão imediata de DEUS era, como tal, incomunicável?
A existência, em JESUS, de algum tipo de ciência “infusa” está, portanto, fora de dúvida. Quando,
no entanto, se entende por “ciência infusa” o conhecimento conceitual de tipo angélico (próprio dos
Anjos, puros espíritos), pode surgir a dúvida e a objeção.
A maior parte dos teólogos a partir da Idade Média ensinam que Cristo gozou de ciência infusa. Apóia-se
esta convicção no princípio de perfeição com que abordam o estudo da ciência humana de Cristo: a
inteligência criada de Cristo – dizem – não devia estar em estado imperfeito, porque a uma natureza unida
hipostaticamente à Pessoa do Verbo convém uma perfeição de todos os modos. Portanto, não devia haver na
inteligência de Cristo nenhuma potencialidade que não estivesse atuada e, por conseguinte, uma vez que ele
era capaz de receber ciência infusa, devia receber esta ciência. 110
Esses teólogos entendem esta ciência infusa no sentido da infusão de representações inteligíveis
(conceitos, species intelligibiles) na inteligência de JESUS, desde o primeiro instante da sua existência.
É claro que daí devia surgir a questão se JESUS ainda tinha (precisava de) uma ciência adquirida, e
vimos que houve teólogos (inclusive São Tomás, nas suas primeiras obras) que pensaram que JESUS
não tivesse ciência adquirida.
Tal “ciência infusa”, porém, é o conhecimento próprio da natureza angélica, não da natureza
humana. Por isso, J.H. Nicolas argumenta:
Este conhecimento, de fato, não convém a uma inteligência humana, ao menos na condição de união com o
corpo [o homem vivendo aqui na terra]. A razão que propõe Tomás – isto é, que a inteligência de Cristo,
encontrando-se em potência com relação a todos os inteligíveis, devia ser plenamente atuada desde o
primeiro instante – dificilmente pode ser acolhida. A primeira razão é que Cristo tinha uma inteligência
humana, para a qual é conatural passar da potência ao ato, lentamente e com esforço. Além disso, porque a
inteligência humana é feita assim que não pode conhecer senão por abstração e retorno aos “fantasmas”
[representações sensíveis]: disto resulta que ela não poderia conhecer por meio de representações inteligíveis
vindas do alto, sem “fantasmas”, isto é, sem ligação à realidade, mediante a percepção. 111
Segundo Nicolas, JESUS tinha o conhecimento humano natural (“ciência adquirida”) e a visão
imediata de DEUS – que é participação em algo que é próprio só de DEUS (o modo de conhecer que é
próprio e conatural somente para DEUS112) – mas não a “ciência infusa”, que é o modo de conhecer
próprio e conatural dos Anjos. Entre o conhecimento de visão e o conhecimento natural havia uma
certa não-comunicação: não houve comunicação quanto aos objetos do conhecimento (não-

109
DREYFUS, Jesus sabia que era Deus?, 37.
110
F. OCARIZ..., El misterio de Jesucristo, 239.
111
Dalla Trinità alla Trinità, vol. I, 504.
112
Cf. S.Th. III, q. 9, a. 4.
135 Cristologia

comunicação “objetiva”), quer dizer: o conhecimento que JESUS tinha de um objeto por meio de um
desses dois tipos de conhecimento, segundo o seu modo próprio, não Lhe permitia conhecê-lo com o
outro tipo de conhecimento. Deste modo, podia ter um conhecimento pela visão imediata e não o ter
pela ciência adquirida.
Por outro lado, havia também uma comunicação entre os dois modos de conhecimento, e isto por
duas razões. A primeira razão se encontra no próprio sentido da Encarnação.
Cristo é essencialmente o Revelador. A visão imediata, que convinha quase necessariamente à sua dignidade
de Filho de Deus, foi-lhe dada enquanto homem. Se ele se fez homem, isto foi “por nós homens e pela nossa
salvação”. Assim, a visão imediata, se se encontra em Cristo desde o primeiro instante e por causa dele, tem
também ao mesmo tempo um sentido para o homem. Este sentido é indicado por João: Ninguém jamais viu a
Deus; o Filho único que está no seio do Pai no-lo revelou.113 Ele é o Revelador, porque a Verdade divina
transcendente e inexprimível, que ele atinge na sua transcendência mediante a visão imediata, reflete-se na
sua inteligência e na sua sensibilidade, numa linguagem (conceitos, imagens, palavras) segundo o modo
humano de se exprimir: numa linguagem por meio da qual possa comunicá-la aos homens.114
A segunda razão é tirada da antropologia:
Não se poderia compreender nem admitir que dentro de uma mesma inteligência, do mesmo espírito,
houvesse dois conhecimentos sem alguma comunicação entre eles. ... a mesma faculdade, o mesmo espírito
emitia estes dois atos de conhecimento, e isto estabelecia entre eles uma comunicação, não de tipo objetivo,
mas subjetivo.115
Este tipo de comunicação pode ser explicado como sendo uma “iluminação”. Esta iluminação é
um fortalecimento da força intelectiva da mente. Há a distinção entre a representação inteligível da
coisa conhecida (similitudo rei intellectae) e a força intelectiva (virtus intelligendi). Ora, esta força
intelectiva é expressa com a metáfora da luz. A “iluminação” é, então, um fortalecimento, um
aumento dessa força intelectiva. Ora, no Seu íntimo, na Sua inteligência, JESUS foi iluminado pela luz
da visão imediata. Foi em virtude desta iluminação que Ele conhecia, por um conhecimento de tipo
humano (não de tipo divino, como é a visão imediata de DEUS e em DEUS), os mistérios da graças, as
verdades divinas a revelar aos homens. Por isso, esta iluminação pode ser comparada com a dos
profetas. A “luz profética” refere-se a conhecimentos adquiridos naturalmente pelo profeta, mas dos
quais DEUS se serve para lhe fazer conhecer, iluminando-os de luz sobrenatural, os mistérios da graça.
(No entanto, o conhecimento profético pode também comportar representações milagrosamente
formadas por DEUS no espírito, na imaginação ou nos sentidos do profeta.)
JESUS, porém, não foi simplesmente profeta, mas mais do que um profeta. A iluminação na Sua
mente não era a da “luz profética” (aliás, passageira), mas a da visão imediata de DEUS e das criaturas
em DEUS (visão constante).
Isto explica o que se quer dizer, quando se afirma que Jesus não tinha a fé. Com seu conhecimento natural
ele não atingia o mistério de Deus imediatamente, mas através do caminho (desvio) das criaturas. Todavia, a
luz com que atingia, por esse caminho, o mistério de Deus não era a “luz da fé”, nem a luz profética; era a
luz que irradiava da sua visão (da própria visão; é o que o distingue dos simples profetas), clareando as suas
representações naturais e pondo-as em continuidade com aquela.116
Esta continuidade, no íntimo do espírito criado de Jesus, entre o conhecimento natural, humanamente
adquirido e humanamente exercido, e o conhecimento de visão foi estendida a todos os fiéis pelo ato
revelador e é prolongada neles pela “luz da fé”. Assim, Jesus é o Revelador, o Mestre de toda a humanidade
nas coisas da salvação. O seu conhecimento natural [= o modo conatural de conhecer da inteligência
humana] dos mistérios de graça é profético, não para ele mesmo, mas para os outros. 117
Segundo a explicação dada, portanto, JESUS tinha conhecimentos infusos (conhecimentos
sobrenaturais, não adquiridos pela atividade da mente humana), mas não propriamente a “ciência
infusa” (todo um conjunto completo de representações inteligíveis infusas no intelecto de JESUS).
Segundo a explicação dada..., mas que não pode (e, da nossa parte, não queremos) excluir

113
Jo 11,19; ver também Mt 11,25-27; Lc 10,22.
114
J.H. NICOLAS, Dalla Trinità alla Trinità, 506s. Ver também a confirmação do seu argumento (p. 507).
115
ID., ibid., 507.
116
ID., ibid., 510.
117
ID., ibid., 510s.
Cristologia 136

absolutamente qualquer “ciência infusa” (no sentido de representações formadas de modo sobrentural
no espírito humano de JESUS). Por isso, deixamos aqui ainda as considerações de alguns bons
teólogos do séc. XX:
A dignidade da Humanidade de Cristo – unida hipostaticamente ao Verbo –, torna muito conveniente a
existência, em Cristo, da graça em grau supremo, também em dons e carismas. Em Cristo repousa em
plenitude o Espírito Santo com seus dons (cf. Is 11,1-3). Não há por que negar, pois, a existência em Cristo
de ciência infusa. A esta razão há de acrescentar-se que Ele é Cabeça dos homens e dos anjos, “de cuja
plenitude todos recebemos, graça sobre graça” (Jo 1,16), e parece conveniente que estejam na Cabeça todas
as graças que serão outorgadas aos membros, também a ciência infusa. 118

f) A infalibilidade de JESUS
JESUS, como o único Mestre (cf. Mt 23,10), afirma de Si mesmo: “Eu sou o caminho, a verdade e
a vida” (Jo 14,6). N’Ele, o homem se encontra com a Verdade. Os cristãos de todos os tempos
aceitaram a JESUS como o único Mestre, como Aquele, cuja palavra é a Palavra de DEUS mesmo.
Só depois da crítica iniciada por Reimarus (1694-1768) começou a introduzir-se em ambiente
não-católico a idéia de que JESUS se tivesse enganado quanto à data do fim do mundo e quanto à
própria natureza do Seu messianismo. No ambiente católico, foram os modernistas (como Tyrrell,
Loisy, Schnitzer) que aderiram a essa corrente que atribui a JESUS um erro. Eles apóiam-se para isso
sobretudo no Discurso escatológico (Mt 24; Mc 13; Lc 21), em que JESUS parece anunciar o fim do
mundo como iminente, e em alguns outros versículos isolados como Mt 16,27s; Mc 14,62 e par. Este
erro teria levado a JESUS a pregar uma moral provisória, como também não teria querido instituir a
santíssima Eucaristia, nem fundar a Igreja. Esta teria sido fundada pelos Apóstolos, quando
perceberam que o fim do mundo não chegou.
Esses autores, na verdade, não fizeram uma exegese racional, mas racionalista, com preconceitos
e confusão de idéias, e com afirmações básicas gratuitas, isto é, sem fundamento histórico. 119
Examinando todos os textos que falam do Reino de DEUS, não se pode simplesmente identificar
“vinda do Reino de DEUS” com “fim do mundo”. O estabelecimento do Reinado-Reino de DEUS tem
etapas, há vários estádios do Reino de DEUS. Mas tomemos somente o cap. 24 do Evangelho de
Mateus como exemplo: Neste, o Senhor diz que aquele dia e aquela hora ninguém sabe, nem os
Anjos do Céu nem o FILHO, mas somente o PAI (Mt 24,36), e exorta aos discípulos à vigilância porque
não sabeis quando virá vosso Senhor (Mt 24,42). Como, então, se pode interpretar as palavras neste
mesmo capítulo: “não passará esta geração sem que tudo isto aconteça” (Mt 24,34), como se aqui o
Senhor estivesse falando de uma data iminente do fim do mundo?!
Aliás, a interpretação bem fundamentada e que se encaixa perfeitamente no contexto é aquela que
entende “esta geração” no sentido de “esta raça, este povo”, isto é, o povo judeu. 120 Na verdade, JESUS
não anunciava o fim do mundo para um futuro muito próximo, não além da duração de uma geração.
Há textos que falam neste sentido, mas não se referem ao fim do mundo. Assim, Mt 10,23, onde
JESUS diz a Seus discípulos enviados em missão: “Em verdade eu vos digo que não acabareis de
percorrer as cidades de Israel até que venha o Filho do homem”; Mc 9,1: “Em verdade eu vos digo
que alguns dos que estão aqui presentes não provarão a morte até que vejam o Reino de DEUS recém-
chegado com poder” (cf. Lc 9,27; Mt 16,28). A explicação melhor (incomparavelmente melhor que
outras) é aquela que vê nesses textos o anúncio do mistério pascal da Paixão-Ressurreição-Ascensão e
Pentecostes. Pelo mistério pascal realizou-se uma verdadeira vinda do Reinado-Reino de DEUS. O fim
do mundo, a parusia do Senhor, apenas manifestará, tornará evidente e levará a sua última
consumação o que, na realidade, estava presente e agindo poderosamente, mas só perceptível aos
olhos da fé.
Portanto, longe de serem errôneas, essas palavras de Jesus exprimem uma verdade profunda que perpassa
todo o evangelho de são João: a vida eterna, do mundo que vem, do Reino eterno já está presente desde a
Páscoa: “Aquele que crê... tem a vida eterna... ele passou da morte para a vida” (Jo 5,24). E a epístola aos

118
F. OCARIZ..., El misterio de Jesucristo, 240.
119
Cf. J. CARMIGNAC, Le Mirage de l'Eschatologie, Paris 1979.
120
Cf. Fr. MUSSNER, Was lehrt Jesus über das Ende der Welt, Freiburg-Basel-Wien 1987, 55-58.
137 Cristologia

Efésios já afirmava: com Cristo, o Pai “co-ressuscitou-nos e co-assentou-nos nos céus, em Cristo Jesus” (Ef
2,6).121
JESUS, portanto, não Se enganou. Aliás, é importante distinguir entre erro, ignorância e
nesciência. O erro é um conhecimento falso. Há uma grande diferença entre não conhecer e conhecer
falsamente. O erro é um mal; nem sempre um mal moral, mas é sempre um mal que toca a pessoa
como tal, dado que é um mal da inteligência. No VERBO encarnado não houve erro. 122 Também não
pôde haver ignorância, se por “ignorância” se entende um desconhecimento daquilo que se devia
saber e, portanto, a privação de uma perfeição devida. A nesciência, ao invés, é o simples
desconhecimento de algo. Esta faz parte da condição humana (e não necessariamente daquela
condição humana devida ao pecado) e houve em JESUS.
Ainda, enfim, mais uma vez a questão se JESUS sabia ou não a data do dia do Juízo final (Mc
13,32). A questão é se JESUS o sabia com Seu conhecimento sobrenatural: visão imediata e
conhecimento infuso. Dissemos que, pela visão imediata, JESUS, na Sua inteligência humana, via e
conhecia em DEUS tudo o que dizia respeito à Sua Pessoa, à Sua missão. O dia do Juízo diz respeito à
Sua Pessoa e missão, já que Ele será o juiz. No entanto, poder-se-á dizer que não diz respeito a Ele
como “viajor”, mas somente como o Exaltado (Ressuscitado) à Direita do P AI. Neste sentido, JESUS
na vida terrena poderá não conhecê-lo na visão imediata. Outra possibilidade – que está de acordo
com os numerosos Padres (cf., particularmente, São Gregório Magno [DS 474-476], São Máximo
Confessor) – é reconhecer que JESUS conhecia o dia do Juízo na visão imediata (= conhecimento,
como tal, não comunicável aos outros homens com os quais Ele convive), mas não por conhecimento
infuso (= conhecimento comunicável), já que não fazia parte da Sua missão revelá-lo (cf. At 1,7).
Deste modo, Ele não o conhecia.
Além disso, existe outro aspecto a ser levado em consideração:
Observemos agora que em todo ser humano existem três planos: o plenamente consciente, o
subliminarmente consciente ou o subconsciente e o inconsciente. Todos nós sabemos muitas coisas que não
utilizamos conscientemente, mas que podem ser trazidas à tona da consciência, como também podem ser
relegadas de novo para o plano inconsciente. – Aplicando isto a Jesus, 123 dizemos que, o plano de Deus,
Jesus o podia ter ora lucidamente em sua consciência, ora imerso no fundo do inconsciente; Jesus utilizava a
ciência infusa segundo as necessidades da pregação; podia também impedir que, em conformidade com a
vontade do Pai, certos temas se tornassem presentes à sua consciência.124
Pode-se e deve-se distinguir entre a constante possibilidade de saber as diversas coisas e o
constante saber atual dessas coisas. Nisto, JESUS certamente agia sempre em conformidade perfeita
com a vontade do PAI; cf. Jo 5,19s: “o FILHO nada pode fazer por Si mesmo, a não ser o que vê o PAI
fazer. ... Porque o PAI ama o FILHO e mostra-lhe tudo o que faz. E lhe mostrará ainda coisas maiores

121
DREYFUS, Jesus sabia que era Deus?, 132.
122
J.H. Nicolas não vê excluída a possibilidade que JESUS “tenha compartilhado erros comuns, aqueles
naturalmente inevitáveis para os homens de sua ambiente cultural” (ibid., 497). Isto não se fere, obviamente, ao
que fazia parte da Sua missão de Revelador.
123
Poder-se-á perguntar se esta aplicação (por parte de Dom Estêvão Bettencourt) é justificada. É a questão do
“inconsciente” psicológico em JESUS. Este inconsciente é todo um mundo de impressões e imagens que exercem
uma influência mais ou menos grande sobre o pensamento e sobre o comportamento deliberado. Certamente, há
em JESUS o inconsciente no sentido de ser aquilo que, na vida orgânica, escapa às possibilidades normais de
percepção. Isto faz simplesmente parte da condição humana. Também não é indigno do VERBO encarnado o
“inconsciente” no sentido de ser aquilo que, sem ser percebido atualmente, pode no entanto ser percebido. Com
efeito, é totalmente natural ao homem não ter atualmente consciência de tudo que passa nele, de tudo que
conhece. A isto acrescenta-se a inconsciência do sono. O que, porém, deve ser excluído de JESUS é o
inconsciente patológico, provocado por traumas psíquicos; este também provoca uma comportamento
“anormal”. Tal estado patológico pode até servir de purificação para quem sofre dele, mas é, em si, uma ameaça
à dignidade da pessoa, visto que diminui o autocontrole. Por fim, se o “inconsciente” psicológico não reduzível,
ao menos completamente, à plena luz da consciência (não somente não percebido atualmente, mas impossível
de ser percebido) realmente faz parte da condição humana como tal, tal inconsciente também pode encontrar-se
em JESUS, fazendo parte da “kenosis” do VERBO. (Tal inconsciente traria consigo, em geral, para qualquer
pessoa, um diminuído autocontrole, o qual não seria uma lesão da dignidade da pessoa, mas um limite da
mesma, quer como “pessoa”, quer como “humana”.)
124
Estêvão BETTENCOURT, Módulo 17 do Curso de Iniciação Teológica por Correspondência.
Cristologia 138

que estas, das quais ficareis maravilhados”. Podemos também fazer a seguinte comparação: pode-se
olhar uma paisagem ou um prédio no seu conjunto (visão de conjunto) ou se pode olhar, um por um,
os detalhes deste conjunto. Neste olhar, JESUS olha somente “o que o PAI lhe mostra”.

C. A consciência humana de JESUS


Chama-se “consciência” o conhecimento experimental de si mesmo. Consciência é uma
característica fundamental da pessoa. Ora, se JESUS era uma Pessoa divina subsistindo (também)
numa natureza humana individual, é preciso reconhecer que Ele tinha uma consciência humana.
Já mencionamos que no séc. XX se pôs o problema específico da consciência de JESUS CRISTO:
como Ele pôde ter uma “consciência humana” do Seu Eu divino? Esta consciência é um ato humano,
um ato, portanto, expresso pela natureza e pelas faculdades humanas, mas um ato cujo objeto é a
Pessoa mesma do VERBO.
Costuma-se distinguir entre a consciência “espontânea” (ou “direta”) e a consciência “reflexa”. A
primeira é a percepção de si que acompanha todos os fenômenos psíquicos; a segunda é a consciência
expressa do “sujeito”, como oposto ao “objeto”, e é obtida através da reflexão do sujeito que conhece
sobre os seus atos e seus estados.

1. A consciência humana do “Eu divino” em JESUS

a) Consciência de um “Eu divino”


Trata-se da consciência de um Eu divino e não de um “eu psicológico” humano, distinto do Eu
divino. Segundo a teoria de certos teólogos, JESUS teria, além de um “Eu” divino, também um “eu”
humano, formado pela natureza humana, e que não seria uma pessoa, enquanto pertencente à Pessoa
do VERBO. O objeto da consciência humana de JESUS teria sido esse eu humano, centro da Sua vida
psicológica humana. Além disso, JESUS teria sabido que este eu humano, do qual tinha consciência, se
referia ao FILHO eterno de DEUS, que este eu humano era o eu do FILHO eterno.
Esta teoria não é admissível, 125 pois aquilo que a consciência tem por objeto é a pessoa, e em
JESUS não há duas pessoas. A pessoa não é somente uma realidade “metafísica”; ela é o ser humano
concreto; é ela que vive, sente, conhece, ama, etc.: é o “eu psicológico”.

b) A autoconsciência de JESUS e a visão imediata de DEUS


A visão imediata de DEUS é para JESUS fundamento da consciência de Si como o FILHO eterno de
DEUS PAI. Eis as reflexões pertinentes de J.H. Nicolas a este respeito:
Se a consciência que o homem toma de si é uma consciência obscura, não objetiva, 126 isto é porque o objeto direto
do conhecimento intelectual humano não é o “eu”, mas o ser das coisas oferecidas pela experiência. A consciência
espontânea não faz outra coisa a não ser acompanhar o ato de conhecimento de um objeto. Para conhecer-se
reflexamente, o homem deve desprender-se do objeto que conhece, para fixar sua atenção sobre o sujeito em ato
de conhecer, sem que este se torne o objeto de um novo ato de conhecimento. Trata-se, antes, de uma experiência
pura, que o sujeito em ato de conhecer faz de si, enquanto conhece o objeto. Esta experiência, segundo os
resultados de uma análise finíssima de São Tomás 127, não se refere ao quid sit do sujeito (a sua essência), mas ao
an sit (isto é, à sua existência).
Não é o mesmo para o conhecimento de si de um ser puramente espiritual, como é o Anjo. Este conhece a si
mesmo, não por conhecimento reflexo (isto é, conhecendo um outro objeto), mas é para si mesmo objeto
primordial do seu conhecer. Ele se conhece por pura transparência, com um conhecimento não abstrato, mas
perfeitamente concreto, isto é, um conhecimento em que o quid est é atingido com o an est (o essencial com o
existencial). Com razão mais forte se pode dizer isto de Deus, que é o único objeto para si mesmo.
O ato de visão imediata expresso pelo homem-Jesus (por sua alma de homem: pela sua inteligência de homem)
colhe a Trindade, o Verbo como objeto, mas também o Verbo como o próprio sujeito que quer [conhece], uma vez

125
Cf. a crítica de J. GALOT, Chi sei tu, o Cristo?, Firenze 1979, 304-306.
126
Isto é: sem conteúdo noético, uma vez que só a existência do “eu” é colhido numa experiência profunda, às
vezes vivíssima, mas obscura.
127
De veritate 10,8.
139 Cristologia

que este homem que quer [conhece] é o Verbo. Como negar que este seja um ato de consciência, no qual o sujeito
se conhece como sujeito, e por isso se trate de um ato de conhecimento totalmente objetivo e transparente? 128
No entanto, existe também uma dificuldade, que faz com que não se possa explicar a
autoconsciência de JESUS apenas com a visão imediata. É que a desproporção entre o ato humano de
consciência e o seu objeto, o “Eu” divino, não é inteiramente resolvida.
Sem dúvida, a graça e a luz de glória [da visão imediata] permitem ao espírito humano de Jesus de superar a
distância que o separa do seu “eu” incriado; mas o conhecimento de visão não pertence, em Cristo vivendo na
terra, ao seu conhecimento de tipo humano. Ora, a consciência que procuramos explicar é a consciência de si que
Cristo tinha como homem vivendo entre os homens, quando lhes falava de si mesmo e do Pai. 129

c) A autoconsciência “adquirida” ou “elaborada” não poderia por si só atingir o “Eu” de JESUS


Por autoconsciência (espontânea ou reflexa) “adquirida” ou “elaborada” de JESUS entende-se a
autoconsciência que n’Ele se formou a partir da experiência (como acontece com todos os homens).
Ora, para assegurar esta autoconsciência, todo conhecimento de fé, inclusive o mais alto
conhecimento místico na fé,130 é insuficiente. Disto se segue que, sem a visão imediata de DEUS, a
autoconsciência de JESUS vivendo na terra é impossível. JESUS, no Seu conhecimento humano, ter-se-
ia encontrado diante de um mistério (o mistério da Sua própria identidade).

d) A autoconsciência integral do homem JESUS


Pelo que vimos até agora,
nem a visão só (inutilizável no nível da vida terrena; não somente para que Jesus possa dizer aos outros
quem ele é, mas também para poder dizê-lo a si mesmo), nem a consciência elaborada só (incapaz por si só
de colher o “eu” de Jesus) são suficientes para resolver o problema da consciência de si, que Jesus tinha
como homem, e para responder à questão: como ele sabia ser Filho de Deus? A união e a síntese vivida de
uma e outra constituíram o que se pode chamar a consciência integral de si do homem Jesus.
Já procuramos explicar, genericamente, este ponto de encontro entre o saber da visão e o saber humano. No
que diz respeito à consciência, deve-se dizer que exatamente sobre a consciência elaborada, na medida em
que esta se formava, projetava-se a luz da visão, de tal modo que, desde o primeiro abrir-se da sua
consciência elaborada, Jesus, graças à visão, se conheceu como Filho de Deus.
Esta [a visão imediata], por um certo tempo (aquele da primeira infância), podia ser sem a consciência
elaborada; neste período faltava o que chamei a “consciência humana integral” de si. Nunca, porém, a
consciência elaborada esteve sem esta iluminação por parte da visão, sem a qual seria impossível. 131

2. O progresso da consciência humana em JESUS


Se a autoconsciência em JESUS tem como sua componente a consciência humanamente
elaborada, sendo esta, por natureza, progressiva, é progressiva também a consciência integral.

a) Os anos de “inconsciência”
Assim, houve em JESUS um despertar da consciência de Si. Isto significa que o FILHO, feito
homem, conheceu durante os primeiros anos, a “noite da infância”. Esta faz parte do realismo da
Encarnação, da “kenosis”. O despertar da consciência em JESUS foi progressivo, mas, com certeza,
desde o primeiro momento desse despertar, era – pela luz da visão imediata, que possuía desde o
primeiro instante da Encarnação – a consciência de Si como FILHO (o VERBO) e como homem. Ele
não podia absolutamente ter consciência de Si sem ter consciência de ser o que realmente era: o
FILHO de DEUS, o VERBO feito homem. JESUS tinha inicialmente uma autoconsciência infantil, antes
de ter a de adolescente e, depois, de adulto. É possível dizer isto, porque a consciência elaborada, que

128
J.H. NICOLAS, Dalla Trinità alla Trinità, 516.
129
ID., ibid., 516s.
130
Aliás, o conhecimento místico é negativo, enquanto a consciência de si, também quando obscura, é positiva.
131
J.H. NICOLAS, ibid., 517s. Pode-se também ler, com proveito, a explicação interessante que Fr. Dreyfus
oferece da autoconsciência de JESUS (de Ele saber que era DEUS), a partir da experiência de místicos: ID., Jesus
sabia que era Deus?, 114-121.
Cristologia 140

era parte integrante dessa consciência de Si, tinha essas características, conforme o desenvolvimento
psicológico de JESUS.132

b) A progressiva tomada de consciência da Sua missão


Não podemos aceitar a opinião daqueles que afirmam que JESUS não sabia, desde o início, que
devia dar a Sua vida em sacrifício pelos pecados dos homens. O episódio do Menino JESUS no
Templo é uma elucidação disso. Contentamo-nos em citar o teólogo Jean Galot a respeito:
A relação entre consciência filial e conhecimento do sacrifício redentor é elucidado no episódio do menino
de doze anos encontrado no templo. Quando Jesus diz: “Não sabíeis que é necessário que eu esteja na casa
de meu Pai?” (Lc 2,49), ele usa as palavras “é necessário” que caracterizarão as predições da paixão. Ele faz
entender que a sua pertença ao Pai requer da sua parte um sacrifício; com efeito, o episódio aparece como
uma prefiguração do mistério pascal, quando Jesus ficará três dias na casa do Pai. O conhecimento do
sacrifício próximo está, portanto, ligado à consciência da identidade filial.
Há aqui uma indicação de que o desenvolvimento da consciência filial em Jesus é acompanhado do
desenvolvimento da consciência da missão redentora: este duplo desenvolvimento leva à revelação, por
parte de Jesus na idade de doze anos, da sua qualidade de Filho e ao anúncio do drama futuro.
Encontramos aqui de novo, do ponto de vista psicológico, a estreita conexão entre o ontológico e o
funcional. Tomar consciência de ser Filho de Deus é tomar consciência de ser enviado pelo Pai para uma
missão que requer o dom completo da vida humana, ou também é tomar consciência da exigência de
pertencer ao Pai, deixando todo o resto.133

III. Os rebaixamentos do FILHO encarnado durante a vida terrena


Na Encarnação mesma há uma “kenosis” do VERBO. Este começa com o ser homem e continua
com a participação na condição humana, nos seus limites, nas suas fraquezas e na dependência que
ela comporta, antes de tudo com relação a DEUS, como também com relação às forças do universo e
das vontades criadas.
Encarnando-Se, o VERBO tornou-Se verdadeiramente dependente das criaturas. Segundo a S.
Escritura, JESUS, o VERBO encarnado, tinha fome, tinha necessidade de dormir, sofreu a violência dos
homens, etc. Contudo, a S. Escritura nos apresenta também JESUS como Aquele que tem poderes
extraordinários. Também isto é verdade. Como se concilia isto com a fraqueza e dependência?

A. A vulnerabilidade corporal, pela qual JESUS podia sofrer e morrer


JESUS experimentou realmente o sofrimento e a morte, também sofrimentos que fazem parte da
condição humana normal, como são a fome, a sede, o cansaço, etc.

1. O VERBO assumiu a condição humana dolorosa e humilhada


São Tomás dá três razões para explicar esta vulnerabilidade: 1) as exigências da Sua missão
redentora; 2) as exigências próprias da Encarnação: os sofrimentos fazem parte da nossa condição
(ao menos como a conhecemos por experiência), e o fazem de tal modo que, do contrário, a
humanidade de JESUS não iria parecer verdadeiro, ou seja, a Encarnação não teria sentido para nós e,
por conseguinte, não seria credível; 3) o exemplo de paciência que o VERBO encarnado nos quis dar.

132
Vale a pena citar ainda as palavras claras de Jean Galot: “Não se deve sub-valorizar a lei essencial da
psicologia de Jesus, a conformidade com a verdade. Observamos já como devia ser evitado todo divórcio entre a
ontologia e a psicologia de Cristo. Jesus devia viver na verdade psicológica do que ele realmente era. Ele não
podia ignorar a própria identidade nem se enganar a respeito dela nos anos da sua infância e juventude. Se o
Filho de Deus, em virtude da Encarnação, toma humanamente consciência de si mesmo, esta tomada de
consciência não pode ter por objeto a não ser a sua identidade pessoal. O desenvolvimento psicológico não
podia consistir em passar da consciência de uma identidade humana àquela de uma identidade divina: ele fez
crescer e progredir a consciência humana de ser Filho de Deus” (J. GALOT, Chi sei tu, o Cristo?, 310).
133
J. GALOT, Chi sei tu, o Cristo?, 332s.
141 Cristologia

Pode-se levantar a seguinte dificuldade: há uma estreita relação entre os sofrimentos que
oprimem a humanidade e o pecado. Daí a questão: esta vulnerabilidade não deveria ser excluída por
causa da perfeita inocência de JESUS (não cometeu pecado algum)?
A resposta é a seguinte: Os Seus sofrimentos e a morte têm conexão com o pecado, mas não com
Seu próprio pecado e, sim, com o pecado dos homens que ele veio libertar da escravidão do pecado.

2. A Pessoa do VERBO foi realmente atingida, mas de modo algum degradada pela condição de
rebaixamento que assumiu
A dependência de uma pessoa humana com relação às forças exteriores e interiores que influem
sobre ela, é natural. Fazendo-Se homem, o VERBO a aceitou como fazendo parte da “kenosis”.
Perguntando-se como esta vulnerabilidade seja compatível com a dignidade do VERBO
encarnado, pode-se, com São Tomás, responder: aceitando-a voluntariamente, quer com a vontade
humana quer com a divina, JESUS a personalizou: integrou-a na Sua existência pessoal. Ele mudou
essa necessidade em vontade livre. O que não pode ter tido em JESUS são deficiências físicas e,
especialmente, psíquicas, provenientes de desordens naturais ou de um mau uso da liberdade. A
natureza individual na qual e pela qual o VERBO é homem deve ser perfeitamente sã e íntegra sob
todo aspecto.
A palavra de JESUS: “Ninguém tira a vida de mim; mas Eu a dou por minha própria vontade” (Jo
10,18), manifesta a plena liberdade com que aceitou de sofrer e morrer, fez Seus os sofrimentos e a
morte, integrando-os voluntariamente no Seu projeto de existência humana. Assim, Ele tinha, em
meio aos mais atrozes sofrimentos e na própria morte, um maravilhoso autodomínio, sem que, com
isso, Ele sofresse menos.
Quanto aos poderes extraordinários (milagres) de JESUS, eles foram a demonstração da Sua
“condição divina”, pela qual era mais do que homem, e serviam ao cumprimento da Sua missão.
Enquanto homem, Ele exercia esses poderes como causa instrumental da divindade.

B. A vulnerabilidade psicológica de JESUS durante a Sua vida terrena

1. A realidade das paixões em JESUS


A alma, como forma do corpo, compartilha a vulnerabilidade do mesmo. A dor é um fenômeno
psicológico.
Além disso, os Evangelhos nos mostram que JESUS tinha também sofrimentos propriamente e
formalmente psicológicos: a tristeza, a angústia, como também expressões de alegria, de cólera, etc.
JESUS era plenamente homem, com uma sensibilidade muito rica e delicada. Com efeito, esta faz parte
da perfeição humana como tal. E esta sensibilidade O fez experimentar o sofrimento e também a dor
física em um nível elevadíssimo. Isto deriva, de um lado, da própria perfeição dessa sensibilidade, por
outro lado, da Sua vontade de sofrer, da qual já falamos.
JESUS tinha as nossas paixões. As “paixões” “designam as emoções ou movimentos da
sensibilidade que inclinam alguém a agir ou não agir em vista do que é experimentado ou imaginado
como bom ou mau” (cf. Cat. 1763). Numa pessoa humana perfeita (perfeitamente ordenada
interiormente e ordenada totalmente a DEUS) as paixões não são porventura menos vivazes e
intensivas, mas são intrinsecamente sujeitas e de acordo com a razão (a qual, por sua vez, está
intrinsecamente submissa e de acordo com o ESPÍRITO SANTO). JESUS tinha, portanto, as nossas
paixões. A nossa experiência, porém, nos ensina que as paixões, agitando-se em nós por causa do
pecado, são motivo de desordem interior e de afastamento de DEUS. Por isso, é necessário dizer
também que JESUS tinha as nossas paixões, mas não as tinha como nós as temos. Estas paixões O
tornaram vulnerável psicologicamente; a sua alma era “passível”, quer dizer, sujeita a todas as
impressões da sensibilidade. Mas, Ele era também vulnerável espiritualmente?

2. A realidade das tentações


Segundo os Evangelhos, JESUS foi tentado por Satanás (no deserto, mas não somente naquela
ocasião; cf. Lc 4,13: “Tendo assim esgotado todo tipo de tentação, o diabo se afastou d’Ele até o
Cristologia 142

momento oportuno”). Também a afirmação de Hb 4,15 é clara: “Ele foi tentado em tudo como nós o
somos, mas não cometeu pecado”.
A tentação é uma solicitação ao mal; consiste em apresentar à pessoa tentada um objeto que, sob
certos aspectos, é para ela bom e corresponde a uma ou outra das suas aspirações, é, portanto, capaz
de despertar o seu desejo e, em seguida, provocar o querer, o ato deliberado da vontade; o objeto
desejado, porém, quanto ao verdadeiro bem da pessoa, é para esta um mal. Com efeito, não pode
desejá-lo, querê-lo, possuí-lo e gozar dele, sem renunciar ao seu verdadeiro bem, sem afastar-se de
DEUS.
Ora, experimentar em si – na sensibilidade e na própria vontade espontânea – este objeto como
bom e desejável não é mau, pois isto é conforme ao movimento espontâneo da natureza para o bem.
Por isso, é preciso fazer uma distinção, muito sutil mas bem fundada, entre experimentar um bem
como desejável e desejar este bem.
Na tentação, em JESUS se realizou o primeiro caso, não o segundo, que é o pecado. Entendida
assim, a tentação introduz na alma de JESUS a luta moral, não sob a forma de luta entre o bem e o mal
no íntimo da Sua alma – o bem triunfava n’Ele desde o primeiro instante – mas sob forma de
cumprimento da vontade de DEUS, que durante a vida terrena é muitas vezes dolorosa e dilacerante,
como se manifesta muito claramente no Getsêmani.

C. A vulnerabilidade espiritual de JESUS e seus limites intransponíveis

1. Os sofrimentos de JESUS no Seu espírito humano


Em uma pessoa humana podem-se distinguir legitimamente diversos níveis de paixão (de
sofrimento ou de alegria), mas seria artificioso desligá-los um do outro ou separá-los. Assim, não se
pode atribuir os sofrimentos de JESUS ao Seu corpo, como oposto à Sua alma. Todo sofrimento é
psíquico, e os sofrimentos mais propriamente psíquicos têm um elemento corpóreo. Seria igualmente
artificioso fazer da sensibilidade a única sede do sofrimento, em contraposição ao espírito. Segundo
os Evangelhos, havia em JESUS também a “alegria no espírito” como também o “sofrimento no
espírito”. O sofrimento formalmente espiritual – embora compreendendo elementos sensíveis – é
expressa pelo brado na cruz: “Meu DEUS, meu DEUS, por que me abandonaste?” (Mt 27,46; Mc
15,34).
Pelas descrições dos místicos sabemos que até mesmo os sofrimentos espirituais são compatíveis
com a mais profunda paz e serenidade. Analogicamente, mas num nível incomparavelmente superior,
aquela distinção em JESUS, entre “o céu da sua alma” (visão beatífica) e o Seu ser temporal, imerso no
tempo e na história, não separa o Seu espírito da sensibilidade, mas atravessa o Seu espírito mesmo:
no Seu espírito há bem-aventurança e profundo sofrimento.

2. A absoluta impecabilidade de JESUS na Sua vida terrena


Hb 4,15 diz de JESUS: “Ele foi tentado em tudo como nós o somos, mas não cometeu pecado”.
Ele salvou os pecadores, sendo Ele mesmo sem pecado (cf. também Hb 7,26; Jo 8,46; 2Cor 5,21; 1Pd
2,22; 1Jo 3,5).
Na verdade, em JESUS há a absoluta impecabilidade.134 Para reconhecer isto, reflitamos sobre o
pecado. Este é uma relação (ruptura de relação) entre a pessoa criada e as Pessoas divinas. É verdade
que o ato pecaminoso tem por princípio (principium quo) uma ou várias faculdades ou também a
natureza (natureza humana, no caso de JESUS), mas esse ato pode ser pecaminoso enquanto é livre,
quer dizer, enquanto com ele a pessoa se põe contra DEUS (querer de tal modo desordenado um bem
criado que isto implica um não querer a DEUS). Por isso, atribuir um pecado ao VERBO encarnado
seria dividi-l’O na Sua personalidade; seria praticamente negar a união hipostática.

3. Em JESUS não havia o “incentivo do pecado” (concupiscência)


O “incentivo do pecado” (fomes peccati), ou a “concupiscência”, pressupõe a possibilidade de
pecar. O incentivo do pecado é esta possibilidade de pecar não ainda atuada em um pecado

134
Cf. DS 1347 (Decreto pro Jacobitis): “sine peccato conceptus, natus et mortuus”.
143 Cristologia

determinado, mas acentuada por uma propensão positiva ao pecado (enquanto, de per si, a
possibilidade de pecar é somente, como diz a expressão, a não-impossibilidade de pecar).
Aqui se levanta a questão: JESUS é um homem como nós, se não provou a nossa maior prova, a
luta moral contra o pecado que nos assalta?
Impõe-se uma reflexão sobre o sentido desta luta. Ela recebe o seu valor humano da vitória total
ou parcial, com que é concluída, não da situação de conflito e de incerteza, da qual parte. Quem é
mais verdadeiramente ser humano não é o pecador, mas quem triunfa do pecado, e esta é a situação de
JESUS desde o primeiro instante da Sua vida. Ele não precisava lutar contra o pecado em Si mesmo,
uma vez que, desde o primeiro instante da Sua existência humana, é perfeitamente inocente, justo,
santo pela própria santidade de DEUS, a qual o VERBO traz em Si e não pode perder (nem pode ser
diminuída), tornando-Se homem. A partir do primeiro instante, Ele é santo como homem. O pecado
está excluído do Seu espírito humano. Em Si mesmo, JESUS não precisava lutar contra o pecado (e
vencê-lo). Por este domínio absoluto sobre o pecado na Sua Pessoa, JESUS triunfa dele no mundo, isto
é, na humanidade em geral e em cada homem que acolhe o Seu dom da graça redentora.

3O CAP.: A AÇÃO HUMANA DE Jesus


“Todo ente é feito para a própria ação”. A ação é a última atualidade do ser, o seu complemento:
o ser é “ato primeiro”, o agir é “ato segundo”. JESUS, o FILHO encarnado, era homem e agia como
homem. Mas era também e ao mesmo tempo DEUS e, por conseguinte, as Suas ações não deviam ser
também ações divinas? Esta questão é o prolongamento, no nível ou dimensão da ação, da questão da
união hipostática.

I. As duas Ações de CRISTO e sua União na Pessoa do VERBO

A. Os dados da questão

1. Os dados de fé
Para ficar fiel à fé cristã, é preciso evitar tanto o “monismo” como também o “dualismo”. Deve-
se evitar de separar em CRISTO a atividade humana da atividade divina (erro dualista); igualmente,
não é aceitável o monoergismo e o monotelismo (cf. III Conc. de Constantinopla, ano 681, e Concílio
Lateranense do ano 649). O monoenergismo consiste na idéia de que a humanidade de JESUS é
totalmente passiva sob a ação do VERBO, de modo que em JESUS não haveria uma verdadeira ação
humana. O monotelismo leva esta idéia ao extremo, negando em JESUS a própria existência de uma
vontade humana.
Os dados certos da fé, que toda e qualquer explicação teológica deve respeitar, podem ser
resumidos da seguinte maneira.
1) JESUS tinha uma vontade humana e um querer humano, causa de todas as Suas ações
humanas. Esta vontade tem todas as características de uma vontade humana: antes de tudo, a
liberdade (com relação a todos os objetos de um querer livre) e, então, o funcionamento desta
liberdade e, particularmente, a sua dependência da razão.
2) Sendo o FILHO eterno, JESUS tinha também como Sua a vontade divina. Sendo um único
agente, Ele operava em tudo, ao mesmo tempo, divinamente e humanamente.
3) Entre as Pessoas divinas, somente o FILHO tem como Sua a vontade humana assumida. A Sua
vontade divina, ao invés, é a única vontade comum às três Pessoas divinas.
4) A Sua vontade humana, sem deixar de ser completamente livre, era rigorosamente impecável:
onde toda vontade humana deve submeter-se à vontade divina, Ele não podia fazer que a Sua vontade
humana não fosse submissa à Sua vontade divina.
5) O Seu querer humano e todas as ações humanas que dele dependiam eram meritórias diante de
DEUS.
Cristologia 144

2. Pessoa humana, ação humana, natureza humana

a) A vontade unifica as diversas ações e paixões humanas.


A atividade e a passividade humanas são multiformes. É a pessoa que faz ontologicamente a
união: a mesma pessoa age (realiza as diversas ações) e recebe as diversas impressões.
Como esta unidade ontológica se torna unidade operativa? Ou, em outras palavras: como esta
unidade ontológica e estática da pessoa unifica dinamicamente todas as suas ações e paixões? Por
meio da vontade; a vontade é o appetitus totíus personae (inclinação da pessoa toda inteira para o
bem).
Em toda ação humana, a pessoa é o princípio que age (quod agit); a sua vontade é o princípio
pelo qual age (quo agit) a pessoa, assim como a pessoa é o sujeito que existe e a natureza é aquilo
pelo qual existe (pessoa humana, angélica ou divina). A natureza é o principium quo último. Com
efeito, a vontade é a faculdade na qual e pela qual se realiza a inclinação da natureza para o próprio
bem.

b) A vontade e o apetite sensível


Também o apetite sensível é uma inclinação da pessoa para o seu bem; não para o seu bem total,
mas para o bem sensível, que faz parte do seu bem total. Ora, é a vontade que acolhe ou rejeita o
objeto sensível. Assim, a dualidade dos apetites na pessoa humana (apetite sensível e vontade) não se
traduz em uma verdadeira dualidade de operação: o ato humano, também quando o seu princípio
imediato é o apetite sensível, não é um ato humano, uma ação da pessoa humana, senão enquanto
depende da vontade.

c) A natureza: “princípium quo” último da ação


Falando em geral, pode-se dizer que o princípio radical do agir é a natureza: um ser concreto age
de tal modo, porque tem uma tal natureza, e uma vez que é tal por natureza, tem também um tal fim
(correspondente a tal natureza) e age de tal modo (segundo esta natureza, em vista deste determinado
fim). A pessoa não age a não ser pela natureza.
A vontade – principium quo único de todos os atos humanos enquanto tais, princípio unificador
capaz de fazer com que todos estes atos, embora diversos, formem uma só ação humana – é a
faculdade na qual a natureza se atua e se exprime, como princípio total da atividade da pessoa.
Assim, podemos dizer: a pessoa é o principium quod unificador de todas as ações e de todas as
paixões produzidas ou sofridas pelo indivíduo humano; a natureza determinada pela vontade é o
principium quo unificador de todas as ações e paixões produzidas ou sofridas pela pessoa, enquanto
esta é constituída no ser pela natureza.

3. O problema do operar humano de JESUS


JESUS é uma pessoa em duas naturezas. Além disso, há a preexistência da Pessoa com relação à
natureza humana. Portanto, há clara e real distinção entre o principium quod da operação, que é único,
e o principium quo, que é duplo. Por conseguinte, há a possibilidade para a Pessoa de agir sobre uma
das duas naturezas (a natureza humana) por meio da outra.
O duplo principium quo impõe a dualidade do agir, pois as naturezas não se fundem em uma
terceira natureza superior; o mesmo vale para as duas vontades. A Pessoa, contudo, é uma só. Como é
que a Pessoa, o principium quod, reduz à unidade a dualidade do principium quo? (Encontramos aqui,
no nível dinâmico, a questão da unidade de CRISTO, sobre a qual já refletimos no nível estático da
estrutura ontológica.)
A questão, portanto, é esta: JESUS é uma só Pessoa que quer com duas vontades e opera com
duas operações; nesta dualidade de ação, como é respeitada a sua unidade? Ou também: como, apesar
da dualidade da Sua ação, JESUS fica sendo um só enquanto operante?
145 Cristologia

B. Diversas soluções

1. A operação teândrica
A expressão provém de Dionísio. Em sentido estrito significaria que, em CRISTO, as duas
operações, a divina e a humana, se fundem numa só. Trata-se da idéia expressa no VII anatematismo
na fórmula de união elaborada em 631, com a finalidade de reconciliar com a Igreja o monofisitas do
Egito. Pronunciou-se o anátema sobre quem negasse “que existia um só Cristo e Filho, operando
ações divinas e humanas por uma só operação teândrica, como diz São Dionísio” (MANSI, XI, 564-
568).
No entanto, a expressão “operação teândrica” tem sido interpretado em um sentido ortodoxo: O
querer humano de JESUS é mesmo um querer humano, sem misturar-se com o querer divino, mas há
ação “teândrica” no sentido de que a Pessoa divina do FILHO é o principium quod da ação humana;
deste modo, de um lado, a ação é divina, enquanto é ação do FILHO, embora seja uma ação
humana; por outro lado, no FILHO ela se une à ação propriamente divina e está em comunhão com
esta, segundo a fórmula do Papa Leão Magno: “Uma e outra forma (ou natureza) operam aquilo que
lhes é próprio, em comunhão entre si” (DS 294; cf. S.Th. III, q. 19, a. 1, ad 1).

2. A autonomia da vontade humana


É a posição de Tixeront e de seus seguidores. A Pessoa, única, de JESUS é o único sujeito a quem
se deve atribuir todas as operações e paixões, e só n’Ele as duas séries de operações são unificadas.
Mas elas permanecem exteriores uma à outra, assim como, num homem comum, os seus atos
permanecem exteriores à ação divina sobre eles. Não há alguma especial subordinação da vontade
humana de JESUS à Sua vontade divina, pelo fato da união hipostática.
Inclusive, foi afirmado que na humanidade de CRISTO houvesse um “eu psicológico” (portanto,
um “eu” humano), que teria a função de principium quod em relação aos atos humanos, enquanto esta
função é desempenhada ordinariamente pela pessoa. Este “eu psicológico” não seria uma pessoa;
pertenceria ao VERBO, de modo que o principium quod último destes atos seria o VERBO. Mas, nesta
explicação, falta alguma comunicação entre os atos humanos e os divinos, pois a mesma Pessoa age
simultaneamente com atos humanos e divinos, como sendo duas séries paralelas de atos.
A crítica fundamental a se fazer a esta explicação é a seguinte: estabelece-se uma ruptura entre a
ordem estática (o ontológico) e a ordem dinâmica (o operativo): somente na dimensão ontológica
teria uma só pessoa, e não propriamente na dimensão operativa.

3. A solução de São Tomás


Esta solução pode ser resumida da seguinte maneira: JESUS CRISTO era um único “agente” (o
único e mesmo era homem e DEUS, que operava humanamente e divinamente) com duas vontades e
duas operações, ordenadas entre si de tal modo que a vontade humana estava totalmente
subordinada à vontade divina e por esta movida e governada, querendo, assim, exatamente o que
queria a vontade divina (JESUS, com Suas duas vontades, queria a mesma coisa). No entanto, a
vontade humana não estava privada do seu movimento próprio e livre; espontaneamente e livremente
ela se subordinava desse modo. Esta subordinação tinha seu princípio próximo na graça criada (graça
habitual e graça atual), mas o seu princípio radical era a graça da união.
119) Que relação (segundo São Tomás) há entre o querer (vontade) divino e o querer humano de
JESUS? (como há unidade e distinção?)
Baseadas no mesmo e único princípio (a única Pessoa do FILHO encarnado), as duas operações
convergiam não somente para o mesmo fim, mas também sobre o mesmo objeto, produzindo
conjuntamente um mesmo efeito.

C. A subordinação total, em CRISTO, da vontade humana à vontade divina

1. A única solução
Da crítica feita à teoria do paralelismo das duas séries de operações resulta que a Pessoa do
FILHO, a única Pessoa de JESUS, é implicada nas operações humanas; ela é responsável pelas
Cristologia 146

mesmas, não somente juridicamente e moralmente, mas antes de tudo realmente, sendo a Pessoa que
quer e age mediante a vontade humana. Por conseguinte, é absolutamente necessário reconhecer que
ela tem um poder real sobre esta vontade humana.
Por outro lado, é impossível desligar a pessoa da natureza, para atribuir-lhe qualquer poder, uma
ação que não seria, ao mesmo tempo, da natureza. Como a pessoa existe graças à sua natureza, assim
não pode agir a não ser através da sua natureza, isto é, através da sua vontade. Portanto, a pessoa não
pode agir sobre a sua natureza, sobre a sua vontade. Isto, no caso de uma pessoa comum. Como,
então, entender que o FILHO encarnado tenha o poder de agir sobre Sua vontade humana?
É preciso recordar-se que o FILHO, antes de ser (no tempo) uma Pessoa humana (Pessoa de
natureza humana, por causa da natureza humana assumida), é eternamente uma Pessoa na natureza
divina. O Seu primeiro poder de querer e de agir é a vontade divina. Se Ela assume e faz Sua uma
vontade humana, de modo que é Ela que quer e age com esta vontade humana, isto não pode fazer a
não ser como Pessoa divina, quer dizer, como Pessoa que tem uma vontade divina e quer divinamente
o que essa vontade humana quer humanamente. É preciso aplicar também na ordem dinâmica o
princípio: “sem deixar de ser o que era, tornou-Se o que não era”; isto significa: sem deixar de ser
alguém que quer através da vontade divina, tornou-Se alguém que quer através de uma vontade
humana.
Isto implica uma subordinação total da vontade humana à vontade divina. Com efeito, a Pessoa
divina deve poder agir sobre Sua vontade humana. Ora, uma vez que a pessoa não pode agir a não ser
por sua vontade, isto significa que a Pessoa do FILHO age sobre a vontade humana assumida por meio
da Sua vontade divina, e esta ação é onipotente. Dizendo isto, descartamos a possibilidade de que a
Pessoa do FILHO aja sobre a Sua natureza humana sem ser por meio da vontade divina.
Na verdade, o querer divino, pelo qual é movida a vontade humana de JESUS, é o querer do PAI,
do FILHO e do ESPÍRITO SANTO, em conjunto (uma só vontade divina); mas o querer humano de JESUS
é somente do FILHO enquanto pessoa humana (pessoa de natureza humana).
Dizer que JESUS move a Sua vontade humana com a vontade divina, é dizer que, sob a moção
divina, a vontade humana de JESUS quer o que quer a vontade divina, a qual é também a vontade
de JESUS. Em outras palavras: JESUS quer com o querer humano o mesmo (em relação ao mesmo
objeto) que quer com o querer divino.135

2. A moção que a vontade divina exerce sobre a vontade humana


Como entender essa moção que a vontade divina exerce sobre a vontade humana? Esta questão é
um caso particular da questão geral: como DEUS age sobre a vontade humana?
Há dois tipos de moções que se podem exercer sobre a vontade: 1) a moção eficiente, que faz
querer efetivamente; 2) a moção objetiva, que induz a vontade a querer, apresentando-lhe um
determinado objeto (cf. S.Th. I-II, q. 9, a. 1).

a) A moção eficiente: a graça operante


Só DEUS pode agir efetivamente sobre a vontade, pois só Ele lhe é interior. A maneira ordinária
como DEUS age, na ordem sobrenatural, sobre a vontade humana é a simples moção ou graça
cooperante. A vontade decide-se normalmente através da deliberação, pensando no pró e contra dos
diversos objetos que lhe são propostos. A moção divina faz realizar todos estes atos da razão e da
vontade, até ao último, que é a escolha. Como é salvaguardada a liberdade, na verdade, fica sendo um
certo mistério; mas, a verdade é: aquilo para o qual há a moção divina é um ato livre; DEUS move
para um ato livre.
Com a deliberação, a vontade se move por si mesma, a partir de uma volição anterior: se quero
este fim, qual o meio que devo querer? Portanto, é preciso admitir no início um primeiro ato de
vontade não deliberado: a volição do fim. Para este primeiro ato a moção divina não passa pela

135
Quanto ao “mesmo objeto”, obviamente, é preciso dizer que a vontade divina supera infinitamente a vontade
humana, de modo que não se poderia dizer que JESUS queria com Seu querer humano tudo o que queria com
Seu querer divino, pois há objetos do querer divino que não podem ser objetos do querer humano, como são a
criação e a conservação das criaturas na existência. Mas JESUS não podia querer qualquer coisa com Seu querer
humano que não tivesse antes (prioridade lógica) querido com Seu querer divino.
147 Cristologia

deliberação: simultaneamente a razão é movida a julgar do bem e a vontade é movida a querê-lo (cf.
S.Th. I-II, q. 9, a. 4). Este primeiro ato pode ser perfeitamente livre, mas em caso algum pode ser
pecado. O juízo sobre a bondade, que regula este ato voluntário, não pode não ser certo, porque vem
imediatamente de DEUS (cf. S.Th. I, q. 63, a. 5): é um ato de querer humano, do qual a vontade
humana tem a responsabilidade secundária, enquanto DEUS tem a responsabilidade primária.
Esta intervenção soberana da vontade divina acontece muitas vezes no decorrer da vida humana e
pode acontecer muitas vezes também na ordem da graça. Nesta ordem, a pessoa humana é muitas
vezes chamada a tomar decisões que a superam, visto que se encontram na ordem dos objetos da vida
divina. É a graça operante. Aqui encontramos o mesmo processo acima descrito: DEUS faz julgar do
bem, não segundo as idéias anteriores da pessoa (por deliberação), mas segundo a Sua concepção
divina (por inspiração) e, ao mesmo tempo, faz querer segundo este juízo “inspirado”. Isto se encontra
primeiro na conversão, depois nas intervenções do ESPÍRITO SANTO, com Seus dons. São intervenções
sempre mais frequentes quanto mais se acentua o processo de divinização; por conseguinte, na
medida que os objetos que se apresentam ao querer são mais divinos.
Deste modo a vontade humana de JESUS era movida pela vontade divina em todos os seus atos de
querer. Não se trata de um contínuo constrangimento, mas, antes, de uma conivência íntima, inefável.
Pode-se dizer que o espírito de JESUS, como o nosso espírito, era habitado e movido pelo
ESPÍRITO SANTO. Mas, no caso de JESUS, era a Sua própria Pessoa que “enviava” o ESPÍRITO SANTO,
de modo que é preciso dizer também que Ele movia com a vontade divina a Sua vontade humana.

b) A moção objetiva: a obediência de JESUS


Para a vontade, é natural ser movida pelo objeto, isto é, ser atraída pelo bem que se lhe apresenta.
O bem apresenta-se por meio da inteligência, que o conhece e avalia sua bondade (sempre relativa e
contingente). Muitas diversas causas podem agir sobre a vontade com este meio: antes de tudo, o
apetite sensível e todos os elementos excitantes que este pode produzir; mas também podem ser
pessoas que influem apresentando o bem, quer frisando que ele é desejável (sedução), quer
aconselhando, pedindo ou mandando o que se deve querer. DEUS age sobre o homem de mil maneiras
para atraí-lo ao bem, seja servindo-Se das criaturas, seja por meio de graças interiores de luz, de
atração, etc. Ele age também por meio da autoridade, dando ordens e proibições (também conselhos).
Assim, todo homem é guiado, nas suas escolhas, pela vontade de DEUS, a qual é fonte das Suas
ordens e proibições. O homem pode desobedecer; mas neste caso não escolhe seu verdadeiro bem, ele
peca. A moção objetiva de DEUS não impõe uma necessidade: limita-se a apresentar o bem e a incitar
a escolhê-lo.
Pela S. Escritura fica evidente que, para JESUS, a ordem de Seu PAI estendia-se a todas as ações
da Sua vida. Ele tinha uma missão a cumprir, precisada nos mínimos detalhes: “Por ventura, não se
deve cumprir a Escritura?”
Para Ele, havia perfeita coincidência entre a moção eficaz, que O levava a querer o que o PAI (e
Ele mesmo com o ESPÍRITO SANTO) queria em cada circunstância, e a moção objetiva, isto é, a ordem
que Lhe fazia conhecer humanamente esta vontade divina a cumprir.
Quanto à questão da liberdade de JESUS, deve-se dizer que a ordem (mandamento) se dirige à
liberdade; do contrário não teria sentido ordenar alguma coisa. A ordem, portanto, não suprime a
liberdade, mas, pelo contrário, a supõe. A impecabilidade, por sua vez, não contradiz a verdadeira
liberdade em JESUS, pois não se deve confundir liberdade com possibilidade de pecar, como se a
essência da liberdade consistisse nesta possibilidade.
O Catecismo da Igreja Católica diz da liberdade do homem: “Enquanto não se tiver fixado
definitivamente em seu bem último, que é Deus, a liberdade comporta a possibilidade de escolher
entre o bem e o mal, portanto, de crescer em perfeição ou de definhar e pecar. ... A escolha da
desobediência e do mal é um abuso de liberdade” (nn. 1732 e 1733). A faculdade de escolher entre o
bem e o mal, comportando a possibilidade de escolher o mal, não é um tipo superior nem mais
perfeito de liberdade, mas, pelo contrário: a faculdade de poder pecar não é uma perfeição da
liberdade, mas uma limitação, uma imperfeição da mesma. E a escolha do mal é um abuso da
Cristologia 148

liberdade. A essência da liberdade não consiste, portanto, na faculdade de escolher entre o bem e o
mal.136
Assim, o santo é aquele que se torna sempre mais livre no decorrer de sua vida. Na medida em que se une a
Deus, ele tem sempre menos, concretamente, a faculdade de escolher o mal, porque o mal o atrai sempre
menos, e, todavia, se torna sempre mais livre pelo fato que sempre mais se determina no seu íntimo unindo-
se a Deus. O pecador inveterado, pelo contrário, em quem cresce sempre a faculdade de escolher o mal,
torna-se aos poucos escravo das paixões e se torna sempre menos livre.
Todavia, o santo conserva até a morte a faculdade de escolher. Mas o seu exemplo nos sugere o que pode
ser, no limite, a supressão da faculdade de escolher o mal, supressão que coincide com uma liberdade mais
autêntica e mais profunda. Este limite, que se encontra além do alcance dos homens comuns durante a sua
vida terrena, é precisamente o que se verifica em Cristo, em virtude da unidade hipostática. 137
Pode ficar ainda mais clara a perfeição da liberdade de JESUS, quando se considera o seguinte:
A faculdade de escolher o mal supõe que o mal possa apresentar-se como um valor aos olhos dos homens.
Certamente, não é uma perfeição ver no mal um valor. Cristo não podia sofrer esta imperfeição: aos seus
olhos, o mal era o que era realmente, um mal, não um valor; e então não teria podido ser desejado por ele,
porque não tinha valor, nem título para ser desejado.138
Mas, sendo assim e, sobretudo, considerando que JESUS tinha, já na Sua vida terrena, a visão
beatífica de DEUS, Ele podia ainda decidir livremente de obedecer a Seu PAI celeste? Ele não estava já
determinado, antes da ação, a um comportamento particular? Ele não disse necessariamente o “sim” a
DEUS, à Sua santíssima vontade?
Verdade é que, quem vê a DEUS face a face, ficando perfeitamente feliz (todos os desejos de
felicidade pessoal satisfeitos), não pode senão dizer o “sim” a DEUS (amar, aderir). JESUS CRISTO,
porém, na Sua vida terrena, como já vimos, encontrou-Se ainda a caminho dessa plena felicidade: Ele
era ainda “viajor”, capaz de sofrer, de experimentar a privação de bens. Ora, por causa do sofrimento,
Ele podia amar livremente o PAI, abraçar livremente a vontade do PAI celeste, realizar atos de
obediência ao PAI, os quais pressupõem a liberdade. A Carta aos Hebreus afirma essa conexão:
“Embora fosse FILHO, aprendeu a obediência por meio dos sofrimentos que padeceu” (5,8). Aliás, em
geral, a liberdade que é necessária para poder merecer pressupõe – como condição imprescindível –
algum sofrimento, ainda que seja meramente o sofrimento implicado no “estado de caminhada”. 139
Aqui falamos da liberdade que consiste na ausência da necessidade: a pessoa não quer
necessariamente alguma coisa. Esta necessidade existe quando à vontade é apresentado – pela visão
imediata – o próprio bem-por-essência, que é DEUS. Neste caso, a vontade quer este bem por
necessidade natural, isto é, devido à natureza mesma da vontade. Pois, neste caso, o objeto
apresentado exerce uma força de atração irresistível sobre a vontade, sem que isso, todavia, seja uma
coação exercida sobre a mesma, pois, como já dissemos, para a vontade é natural ser movida pelo
objeto, isto é, ser atraída pelo bem que se lhe apresenta. Ora, a vontade divina que quer que JESUS
sofra, que Ele aceite o sofrimento e a morte, é uma vontade “dolorosa” para JESUS. O sofrimento
(privação de um bem) não é naturalmente atrativo para a vontade humana de JESUS. Por isso, para
dizer “sim” a essa vontade divina, é preciso uma decisão livre, um empenho próprio da vontade
humana de JESUS, vencendo até mesmo uma resistência natural ao sofrimento140, ao invés de ser
atraída necessariamente, por inclinação natural (fazendo parte da essência ou natureza da vontade).
Quanto à liberdade de coação (querer espontaneamente, por si mesmo, de dentro, por própria
iniciativa), vamos responder em seguida, respondendo a uma objeção que parte da dignidade humana
de JESUS: do Seu senhorio de Si mesmo.

136
Cf. a resposta de Sto. Agostinho a Juliano de Eclane (na controvérsia pelagiana): “Se somente é livre quem
pode querer duas coisas, isto é, o bem e o mal, Deus não é livre, porque não pode querer o mal. É assim que tu
tiras a liberdade a Deus?” (PL 45, 1116).
137
J. GALOT, Chi sei Tu, o Cristo?, 358s.
138
ID., ibid., 359.
139
Cf. O Porquê da Cruz (I), em: Sapientia Crucis 1 (2000) 77-81.
140
Cf. o que será explicado mais adiante (4.).
149 Cristologia

3. A grande objeção: JESUS era senhor de Si mesmo?

a) A objeção
Sendo assim como acima exposto (moção eficiente e moção objetiva), a vontade humana de
JESUS parece totalmente “escrava”, pois, de um lado, o que devia querer era-Lhe prescrito nos
mínimos detalhes; por outro lado, era movido pela graça operante, sem precedente deliberação
própria. Isto não é contra a dignidade da pessoa humana? Poder-se-ia fazer a comparação com um
escravo que nunca pode decidir pessoalmente o que vai fazer. Ele não tem a liberdade no sentido do
poder de dispor de si mesmo e de escolher a direção da própria ação.

b) Uma primeira resposta


É preciso analisar o argumento da independência em nome da dignidade humana.
1o Do ponto de vista da obediência
A obrigação de obedecer às autoridades humanas baseia-se na dimensão social da natureza
humana. Uma vez que o homem não é somente uma parte de um conjunto social, mas é ao mesmo
tempo uma pessoa, a obrigação de obedecer, para ser plenamente compatível com a dignidade
humana, é associada:
– ao poder real de fazer sua a decisão tomada; isto comporta normalmente a participação na
decisão e, em todo caso, a livre aceitação da mesma;
– a uma margem de iniciativa deixada à decisão individual; a medida desta margem de iniciativa
depende das exigências do bem comum, numa determinada circunstância.
Ora, podemos considerar a personalidade humana na sua dimensão horizontal ou vertical. Na
primeira dimensão, isto é, nas suas relações com as outras pessoas humanas e com as realidades
terrenas, quanto maior for a participação na elaboração da decisão, mais ampla é a margem de
iniciativa individual e mais o ser humano se afirma como pessoa, maior é a sua dignidade pessoal.
Contudo, o mesmo não vale para a dimensão vertical, isto é, quando se considera a pessoa
humana nas suas relações com DEUS. Com efeito, a pessoa criada, enquanto pessoa, é totalmente
dependente de DEUS: antes de tudo, ontologicamente e, por conseguinte, deve sê-lo também
operativamente (portanto, no ser e no agir), procurando, em todas as coisas, fazer a vontade de DEUS.
Para a maioria dos homens, o mandamento dado por DEUS não se estende a todos os atos de
querer; mas isto não é para preservar o poder de decisão do homem diante de DEUS. A razão está no
fato de que a maior parte dos homens, na história da salvação, não têm senão uma função muito
limitada a desempenhar. No entanto, para cada um, a voz da consciência é a voz de DEUS, que é
preciso atender.
Quanto mais alguém é inserido na história da salvação, tanto mais tem, por causa da escolha
divina, uma função mais importante a desempenhar, e mais a vontade de DEUS se exprime para ele
numa ordem precisa; ver o caso dos patriarcas, dos profetas, dos apóstolos...
O homem JESUS, centro vivo e ativo de toda a história da salvação, tinha de cumprir uma missão
em que tudo era regulado por DEUS. Isto, no entanto, não diminuiu a dignidade humana de JESUS,
pois esta não é diminuída, de modo algum, pela obrigação de obedecer a DEUS.
2o Do ponto de vista da moção divina (graça)
A graça em geral e a graça operante em particular são requeridas por causa dos limites e das
insuficiências da natureza na ordem sobrenatural. Ora, seria ilusão pelagiana pensar que quanto mais
alguém progride na divinização, tanto menos tenha necessidade da graça. Na realidade, tanto mais
intensamente e completamente a criatura precisa, a cada momento, da graça divina quanto mais a
união com DEUS se torna íntima e profunda.
Assim, quem se adentrou no campo da mística começa a estar sob o regime dos dons do ESPÍRITO
SANTO, e tanto mais quanto mais progride.
Aqui é importante distinguir claramente entre a moção do ESPÍRITO SANTO (ser possuído pelo
ESPÍRITO; graças operantes sempre mais frequentes e contínuas) e as pressões que se exercem sobre a
vontade humana na ordem temporal. Toda pressão que parte de outras vontades criadas (ameaças,
promessas, insistência) é um certo ataque à independência originária da vontade. Às vezes são
Cristologia 150

necessárias, mas em medida adequada, quando a personalidade é insuficientemente desenvolvida, não


totalmente livre da pressão da sensibilidade ou das pressões exteriores. Quando alguém tem mais
personalidade, com maior independência dispõe de si nas suas escolhas. 141
A moção do ESPÍRITO SANTO, ao contrário, favorece o desenvolvimento da personalidade. Há
perfeita coincidência entre aquilo que o homem quer em profundidade e aquilo que o ESPÍRITO SANTO
o faz querer. São Tomás diz com razão: “Quando o Espírito Santo, pelo amor, inclina a vontade para
o verdadeiro bem, para o qual naturalmente se ordena, tira a escravidão” (CG IV, cap. 22).

c) Segunda resposta
Esta é a resposta que vai até à raiz. Quando se fala de dignidade humana de JESUS, de que se
fala? A dignidade, formalmente e diretamente, diz respeito à pessoa. O mesmo vale para a
independência; não é independente a vontade mas a pessoa que quer.
No caso de uma pessoa comum, esta distinção não tem importância, pois, neste caso, se o querer
humano é dependente de um outro querer, a pessoa depende de outra pessoa, e assim há uma
limitação da sua dignidade, no sentido acima esclarecido.
Mas no caso de JESUS, a pessoa humana é, também e ao mesmo, tempo Pessoa divina. O querer
ao qual é submetida a vontade humana não é o querer de uma outra pessoa. Esta dependência, embora
total, não pesa sobre a pessoa e não diminui sua dignidade, a qual é infinita. Esta Pessoa “composta”
(ver explicação dada anteriormente) agia sempre por própria decisão: submetendo o Seu querer
humano ao querer divino, submetia-Se ao próprio querer.
As duas respostas se complementam mutuamente. Na verdade, por essa submissão do Seu querer
humano, o FILHO encarnado fazia um ato de total obediência a DEUS. Mas Ele mesmo era DEUS, com
o PAI e o ESPÍRITO SANTO, e assim era ao mesmo tempo Aquele que ordenava e Aquele que
obedecia.142 Em todo caso, é certo que esta obediência não podia prejudicar Sua dignidade pessoal.
Também é certo que essa subordinação total da Sua vontade humana à vontade divina tornava Sua
vida totalmente dependente da iniciativa divina. Mas, como vimos, a iniciativa divina, quando se
comunica ao espírito humano, por meio da graça operante, não acaba com a iniciativa humana, mas,
pelo contrário, a faz desabrochar.

Conclusão
À questão: o homem JESUS era senhor de Si?, é preciso responder afirmativamente. Ele era
senhor de Si, antes de tudo, porque o homem JESUS era o VERBO, e era o VERBO quem dirigia e movia
soberanamente a Sua vontade humana com Sua vontade divina. Porém, é preciso dizer também que
para esta vontade humana – e, portanto, também para o VERBO considerado como Pessoa humana e,
por isso, submissa ao PAI (e a Si mesmo e ao ESPÍRITO SANTO) – essa total submissão era o contrário
da escravidão: era a perfeita liberdade dos filhos de DEUS. Esta não consiste na independência em
relação com DEUS (tal independência seria má e impossível), mas na independência total em relação
a todas as criaturas. E esta independência tem como fundamento exatamente a total dependência de
DEUS, aceita plenamente por amor. Quanto mais um homem é possuído por DEUS, mais ele se possui
a si mesmo e o universo inteiro (cf. São João da Cruz). Quanto mais alguém ama a DEUS, mais
livremente (sem qualquer coação; em total liberdade de coação; na mais perfeita espontaneidade)
cumpre em tudo a Sua santíssima vontade.

4. O querer humano de JESUS e Sua atividade humana

a) A questão
Com seus atos de vontade, um homem regula as suas ações internas e externas. O senhorio total
que o FILHO, por Sua vontade divina, tem sobre a vontade humana estende-se a todas e a cada uma
das ações sujeitas ao domínio do querer humano. Mas nem todas as ações dos quais o homem é o
sujeito estão sob a moção da sua vontade.

141
Isto não significa que ele não leve em consideração os avisos dos outros, suas perguntas, desejos; ele julga
por si o que melhor convém fazer e se comporta segundo o próprio parecer.
142
Na Soteriologia vamos ainda ver isso, ao refletir sobre o sacerdócio de CRISTO.
151 Cristologia

Em primeiro lugar, há a atividade fisiológica, que está completamente fora do domínio da


vontade – ao menos quanto à moção direta.
Há também a sensibilidade; já os antigos reconheceram que o apetite sensível é um princípio
espontâneo de ação, cuja submissão à vontade não é automática. Mas eles pensavam que todo e
qualquer movimento da sensibilidade não controlado pela razão (irracional) e, por isso, independente
da vontade (que está ligada à razão), fosse uma desordem (culpável quando a vontade teria a
possibilidade real de intervir; do contrário, inculpável), o que não parece estar certo (cf. descobertas
da psicologia moderna ref. ao inconsciente e subconsciente).
Enfim, até mesmo na própria vontade há movimentos não deliberados, anteriores a toda
deliberação, que são a reação espontânea da vontade diante daquilo que se lhe apresenta como bom
ou mau para a pessoa. Um exemplo é o horror diante do sofrimento e da morte ou os movimentos de
alegria na presença da pessoa amada e das manifestações do seu amor.
E em JESUS? N’Ele havia esta espontaneidade sensível e espiritual? Dizer que Ele tinha um poder
da vontade sobre Seus reflexos psicológicos, não significa tornar a Sua humanidade mítica, não real?

b) A resposta
A aceitação da parte de JESUS CRISTO, com Seu querer divino e humano ao mesmo tempo, do
determinismo natural dos reflexos fisiológicos e da espontaneidade psicológica é simplesmente a
aceitação da condição humana: é um aspecto da “kenosis” do VERBO.
Quanto às reações fisiológicas, é preciso dizer que, tanto para JESUS como para nós, elas são
“atos do homem” e não “atos humanos”.
Vale a mesma coisa para os movimentos espontâneos da sensibilidade e da vontade? De um lado
precisa afirmar que a pessoa age por um ato da vontade, pela escolha. Por outro lado, é também a
pessoa que reage espontaneamente na presença do bem ou do mal. Deste modo, a sua escolha pode
ser uma vitória sobre essa primeira impressão, mas a escolha não a elimina nem a renega. O FILHO
encarnado experimentou, sem dúvida alguma, um movimento muito forte de rejeição em relação à
Sua paixão e morte, e isto não somente na Sua sensibilidade, mas também na vontade espontânea.
Este movimento não era excluído da Sua livre aceitação: Ele aceitou a Sua paixão e morte com todo o
seu horror; Ele experimentou o horror dela.
No início, encontra-se uma dualidade de querer: em um primeiro tempo, com Seu querer
humano, JESUS rejeita o que DEUS quer (o que Ele mesmo quer com Seu querer divino): “ABBÁ, ...
afasta de mim este cálice”. A unificação se dá em um segundo tempo, aceitando, na escolha, essa
repugnância superada mas sempre presente (“porém, não o que eu quero, mas o que Tu queres!”).
Cristologia 152

ÍNDICE

INTRODUÇÃO: A ORIENTAÇÃO DO ESTUDO CRISTOLÓGICO.........................................1

I. A CRISTOLOGIA NA INTENÇÃO PRIMORDIAL DE JESUS.............................................1

A) Orientações essenciais da Cristologia.............................................................................................1


1. A Pessoa de JESUS numa Cristologia dinâmica...............................................................................1
2. Cristologia de diálogo......................................................................................................................2
3. Cristologia que nasce da vida terrena de JESUS...............................................................................3
4. Cristologia empenhada no mistério.................................................................................................4

B) A primeira declaração cristológica.................................................................................................4


1. A resposta de Pedro.........................................................................................................................4
2. Profissão de fé definitiva e única.....................................................................................................5

II. DINAMISMO DA FÉ E OPÇÕES METODOLÓGICAS......................................................6

A) Cristologia “do alto” e Cristologia “de baixo”..............................................................................6

B) CRISTO da fé e JESUS histórico........................................................................................................6


1. Prioridade objetiva do evento histórico...........................................................................................7
2. Prioridade subjetiva do conhecimento de fé....................................................................................7
3. Fé e pesquisa histórica.....................................................................................................................8
4. Pesquisa histórica e sistematização doutrinal................................................................................10

C) Do homem a DEUS e de DEUS ao homem......................................................................................11


1. A Cristologia ascendente (“de baixo”)..........................................................................................11
2. A Cristologia descendente (“do alto”)...........................................................................................12

PRIMEIRA PARTE: LINHAS ESSENCIAIS DO CONTEÚDO CRISTOLÓGICO DA


SAGRADA ESCRITURA.......................................................................................................13

I. O DINAMISMO DE ENCARNAÇÃO NA ANTIGA ALIANÇA............................................13

A) A estrutura de encarnação da religião judaica............................................................................13


1. A aliança, encarnação das relações entre DEUS e o povo..............................................................13
a) O contrato..................................................................................................................................13
b) Paternidade e filiação................................................................................................................14
c) A união matrimonial..................................................................................................................14
d) A nova aliança...........................................................................................................................15
2. Encarnação da palavra, da ação, da presença de DEUS.................................................................16
a) A revelação, encarnação da palavra de DEUS............................................................................16
b) A história, encarnação da ação divina.......................................................................................16
c) A encarnação da presença divina..............................................................................................17

B) Os pressentimentos de uma figura divina de Messias.................................................................17


1. A via ascendente............................................................................................................................17
a) A aplicação de um nome divino ao rei ou ao Messias..............................................................17
b) A atribuição da filiação divina..................................................................................................18
2. A via descendente..........................................................................................................................19
a) A vinda da Sabedoria divina entre os homens...........................................................................19
b) O anúncio da vinda de um “Filho do homem”..........................................................................20
153 Cristologia

II. A FÉ DA COMUNIDADE CRISTÃ PRIMITIVA................................................................22

A) A primeira Cristologia na pregação apostólica...........................................................................23

B) A doutrina de São Paulo................................................................................................................25


1. O FILHO de DEUS...........................................................................................................................25
2. Preexistência divina.......................................................................................................................26
a) O hino da Carta aos Colossenses...............................................................................................26
b) O hino da Carta aos Filipenses..................................................................................................27
3. O nome de DEUS reservado ao PAI................................................................................................27
4. O SENHOR......................................................................................................................................28

C) A Carta aos Hebreus......................................................................................................................29

D) O testemunho dos evangelistas......................................................................................................29


1. A apresentação do alto, comum aos evangelhos sinóticos............................................................30
a) A voz.........................................................................................................................................30
b) A designação de JESUS..............................................................................................................30
c) Valor da declaração...................................................................................................................30
2. Marcos: evangelho do mistério......................................................................................................30
a) Os aspectos humanos.................................................................................................................31
b) O mistério da Pessoa.................................................................................................................32
3. Mateus: evangelho do Reino.........................................................................................................32
4. Lucas: evangelho do SENHOR e do ESPÍRITO.................................................................................33
5. João: evangelho do VERBO e do FILHO.........................................................................................34
a) Evangelho do VERBO.................................................................................................................34
b) Evangelho do FILHO..................................................................................................................34
c) Evangelho da Encarnação..........................................................................................................35

Conclusão.............................................................................................................................................35
1. Unidade da Cristologia primitiva..................................................................................................35
2. O ponto de partida.........................................................................................................................35

III. O TESTEMUNHO DE JESUS SOBRE SUA PRÓPRIA IDENTIDADE..........................35

A) Encarnação na aliança...................................................................................................................36
1. A aliança........................................................................................................................................36
2. O Esposo........................................................................................................................................37

B) Encarnação da filiação divina.......................................................................................................39


1. A invocação “ABBA”.....................................................................................................................39
2. A expressão “FILHO do homem”...................................................................................................41
a) O uso da expressão da parte de JESUS.......................................................................................41
b) O FILHO do homem na Sua vida terrena...................................................................................42
c) O FILHO do homem glorioso.....................................................................................................44
d) Qualidade humana do “FILHO do homem”...............................................................................45
e) Teologia implicada na expressão “o FILHO do homem”...........................................................46

C) Encarnação da palavra, da ação, da presença.............................................................................49


1. Encarnação da palavra...................................................................................................................49
a) Autoridade da palavra................................................................................................................49
b) Palavra e pessoa........................................................................................................................49
2. Encarnação da ação divina............................................................................................................50
a) Recapitulação das grandes figuras de Israel..............................................................................50
b) Missão de instaurar o Reino......................................................................................................51
c) Os milagres................................................................................................................................52
Cristologia 154

3. Encarnação da presença.................................................................................................................57
a) Templo e casa de DEUS.............................................................................................................57
b) EGO eimi...................................................................................................................................57
c) A presença fonte de vida...........................................................................................................60

IV. KENOSIS E GLÓRIA......................................................................................................60

A) Obscuridade da revelação..............................................................................................................61
1. A diferença entre a linguagem de JESUS e aquela da comunidade (apóstolos).............................61
2. Abstenção do uso de títulos...........................................................................................................61
3. Revelação destinada aos pobres....................................................................................................62
4. Modos de expressão da transcendência.........................................................................................63
a) A interrogação...........................................................................................................................63
b) A ultrapassagem........................................................................................................................63
c) O sentido duplo..........................................................................................................................64
d) A apropriação humana do falar e do agir divinos.....................................................................64
e) A familiaridade das relações com o PAI....................................................................................64
f) A convergência..........................................................................................................................64
5. Permanência do mistério...............................................................................................................64

B) Apelo à fé e kenosis.........................................................................................................................65
1. O apelo à fé....................................................................................................................................65
2. Encarnação e kenosis.....................................................................................................................65
3. A afirmação da kenosis da parte de JESUS.....................................................................................66

C) A revelação de CRISTO glorioso....................................................................................................68


1. A manifestação obscura do estado glorioso..................................................................................68
2. A demonstração anunciada por JESUS...........................................................................................69

V. A IMAGEM DE CRISTO NA S. ESCRITURA (SÍNTESE)................................................70

A) A busca de uma síntese..................................................................................................................70

B) O dinamismo de encarnação..........................................................................................................70
1. O movimento de encarnação que precedeu a CRISTO...................................................................71
2. O movimento de encarnação em JESUS: continuidade e novidade................................................71
3. Do povo ao indivíduo e do indivíduo ao povo..............................................................................73

C) Riqueza da diversidade na unidade..............................................................................................74


1. Os quatro aspectos do rosto de CRISTO.........................................................................................74
2. As três expressões da identidade pessoal......................................................................................75
3. Palavra, ação e presença................................................................................................................76

SEGUNDA PARTE: AS AFIRMAÇÕES FUNDAMENTAIS DA FÉ DA IGREJA................78

I. A FORMAÇÃO DA CRISTOLOGIA NOS PRIMEIROS SÉCULOS DA IGREJA..............78

A) A orientação do desenvolvimento doutrinal................................................................................78

B) Os três perigos iniciais....................................................................................................................79


1. O desconhecimento da divindade de CRISTO: JESUS, homem dotado do poder divino.................79
2. A negação da realidade humana de JESUS.....................................................................................80
3. A redução de CRISTO a um mito....................................................................................................80

C) Primeiros ensaios da teologia da encarnação...............................................................................80


155 Cristologia

1. Santo Irineu....................................................................................................................................80
2. Tertuliano.......................................................................................................................................81

D) A divindade do VERBO: a controvérsia ariana e o Concílio de Nicéia.......................................81

E) A alma humana de CRISTO: a controvérsia apolinarista e o Concílio de Constantinopla I....81

F) A única pessoa de CRISTO: a controvérsia nestoriana e o Concílio de Éfeso............................82


1. O dualismo na escola de Antioquia...............................................................................................82
2. Nestório.........................................................................................................................................82
3. Reação ao nestorianismo: a expressão autêntica da fé na unidade de CRISTO..............................82

G) As duas naturezas: controvérsia monofisita e Concílio de Calcedônia.....................................83


1. Êutiques, porta-voz do monofisismo.............................................................................................83
2. A definição de fé do Concílio de Calcedônia................................................................................83

H) Uma reinterpretação do Concílio de Calcedônia: o Concílio de Constantinopla II................83


1. O “monofisismo” anticalcedonense...............................................................................................83
2. A reação antimonofisita.................................................................................................................84
3. Os três capítulos.............................................................................................................................84
4. O Concílio de Constantinopla II (553)..........................................................................................84

I) As duas vontades: a controvérsia monotelita e o Concílio de Constantinopla III.....................85


1. O “monotelismo bizantino”...........................................................................................................85
2. A doutrina de São Máximo o Confessor.......................................................................................86
3. O Concílio lateranense de 649.......................................................................................................86
4. A definição do Concílio de Constantinopla III (680-681).............................................................87
5. O significado do Concílio de Constantinopla III...........................................................................87

J) A afirmação do realismo da Encarnação: a defesa das imagens no Concílio de Nicéia II.......88


1. A crise iconoclasta e a elaboração de uma teologia da imagem....................................................88
2. O Concílio de Nicéia II (787)........................................................................................................88
3. O significado do Concílio de Nicéia II..........................................................................................88

K) Conclusão sobre o período patrístico...........................................................................................89

II. BREVE VISÃO DE CONJUNTO DA HISTÓRIA DA CRISTOLOGIA, DA IDADE MÉDIA


ATÉ O SÉCULO XX..............................................................................................................90

A) A Cristologia medieval no Oriente................................................................................................90

B) A Cristologia medieval no Ocidente..............................................................................................90

C) O mistério de CRISTO na época moderna e contemporânea.......................................................90

TERCEIRA PARTE: O MISTÉRIO DA ENCARNAÇÃO DO FILHO DE DEUS


(REFLEXÃO SISTEMÁTICA)........................................................................................92

1O CAP.: O MISTÉRIO DA UNIÃO HIPOSTÁTICA..............................................................92

I. A União das duas Naturezas na Pessoa do FILHO (a Unidade unida: CRISTO, o FILHO
encarnado)............................................................................................................................................92
A. A Pessoa do FILHO de DEUS.........................................................................................................92
B. O FILHO-HOMEM...........................................................................................................................93
1. Explicação de base.....................................................................................................................93
Cristologia 156

2. Explicação teológica ulterior.....................................................................................................95


C. O uso, em teologia, da noção de relação e seu alcance realista..................................................103
1. A questão.................................................................................................................................103
2. O alcance realista das explicações mediante a relação............................................................104
3. Por que os conceitos que se referem a DEUS são conceitos relativos?....................................105

II. A Unidade da Pessoa: o FILHO assume uma Natureza humana e a faz Sua (a Unidade
unificante: a Pessoa do FILHO une em Si as duas Naturezas).......................................................105
A. O FILHO: unidade que une..........................................................................................................106
1. O FILHO princípio da união hipostática...................................................................................106
2. A imutabilidade do FILHO e o vir-a-ser de CRISTO.................................................................109
B. A ação de assumir.......................................................................................................................110
1. A ação de criar a humanidade de JESUS..................................................................................110
2. A ação de assumir....................................................................................................................110
C. A unidade do ser em CRISTO.......................................................................................................111
1. JESUS CRISTO é um único “ente” (ser concreto)......................................................................111
2. JESUS tem um único ser...........................................................................................................111
D. A preexistência de CRISTO..........................................................................................................113

III. A Terminologia Cristológica......................................................................................................114


A. A comunicação das propriedades (atributos)..............................................................................114
B. Aplicações concretas da regra da comunicação das propriedades..............................................114

2O CAP.: A HUMANIDADE DE JESUS...............................................................................115

I. Os atributos de santidade..............................................................................................................116
A. A união hipostática e a graça......................................................................................................116
1. A santidade de JESUS e a graça................................................................................................116
2. O sujeito da graça em JESUS....................................................................................................116
3. A graça da união......................................................................................................................116
4. A graça criada na alma de JESUS.............................................................................................117
5. A santidade de JESUS...............................................................................................................117
B. A plenitude de graça na alma de JESUS.......................................................................................118
1. Graça sem medida...................................................................................................................118
2. Graça dada inteiramente desde o começo................................................................................120
C. A graça de “Cabeça”...................................................................................................................122

II. O conhecimento do homem JESUS durante a Sua vida terrena................................................122


A. O conhecimento de JESUS na Sua vida terrena, segundo a S. Escritura.....................................123
B. O conhecimento humano natural de JESUS na terra: a “ciência adquirida”................................125
C. O conhecimento humano sobrenatural de JESUS na terra...........................................................126
1. Os Padres da Igreja: uma evolução segundo o esclarecimento ontológico do mistério de JESUS
CRISTO.........................................................................................................................................126
2. Os teólogos da Idade Média e dos tempos modernos: “ciência de visão” e “ciência infusa”. 129
C. A consciência humana de JESUS.................................................................................................139
1. A consciência humana do “Eu divino” em JESUS....................................................................139
2. O progresso da consciência humana em JESUS.......................................................................140

III. Os rebaixamentos do FILHO encarnado durante a vida terrena............................................141


A. A vulnerabilidade corporal, pela qual JESUS podia sofrer e morrer...........................................141
1. O VERBO assumiu a condição humana dolorosa e humilhada................................................142
2. A Pessoa do VERBO foi realmente atingida, mas de modo algum degradada pela condição de
rebaixamento que assumiu...........................................................................................................142
B. A vulnerabilidade psicológica de JESUS durante a Sua vida terrena...........................................142
1. A realidade das paixões em JESUS...........................................................................................142
2. A realidade das tentações........................................................................................................143
157 Cristologia

C. A vulnerabilidade espiritual de JESUS e seus limites intransponíveis.........................................143


1. Os sofrimentos de JESUS no Seu espírito humano...................................................................143
2. A absoluta impecabilidade de JESUS na Sua vida terrena........................................................143
3. Em JESUS não havia o “incentivo do pecado” (concupiscência).............................................144

3O CAP.: A AÇÃO HUMANA DE JESUS............................................................................144

I. As duas Ações de CRISTO e sua União na Pessoa do VERBO......................................................144


A. Os dados da questão....................................................................................................................144
1. Os dados de fé..........................................................................................................................144
2. Pessoa humana, ação humana, natureza humana....................................................................145
3. O problema do operar humano de JESUS.................................................................................145
B. Diversas soluções........................................................................................................................146
1. A operação teândrica...............................................................................................................146
2. A autonomia da vontade humana............................................................................................146
3. A solução de São Tomás.........................................................................................................146
C. A subordinação total, em CRISTO, da vontade humana à vontade divina...................................147
1. A única solução.......................................................................................................................147
2. A moção que a vontade divina exerce sobre a vontade humana.............................................147
3. A grande objeção: JESUS era senhor de Si mesmo?.................................................................150
4. O querer humano de JESUS e Sua atividade humana...............................................................152

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