Você está na página 1de 15

Tzvetan Todorov

A Conquista da América
A questão do outro

,;,1

Tradução
BEATRIZ PERRONE-MOISÉS

Martins Fontes
São Paulo 2003

"
Título original: LA CONQUhE DE L' AMÉRIQUE
- LA QUESflON DE L'AfJfRE.
Copyright© by Éditions du Seuil, 1982. SUMÁRIO
Copyright© 1983, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.

1" edição
dezembro de 1983
31 edição
setembro de 2003

Tradução
BEATRIZ PERRONE-MOJSÉS

Revisão gráfica
Eliane Rodrigues de Abreu
Solonge Martins
~:1: Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação/Fotolitos
S1udio 3 Desenvolvimento Editorial
I. Descobrir
Dados Intemaciolllli'i de Catalogaçi.o na Publkação (CIP)
(Câmara Bmsileira do Livro, SP, Brasil)
A descoberta da América ........................................ . 3
Todorov, Tzvetan
Colombo hermeneuta .............................................. . 19
A conquista da América : a questão do outro / Tzvetan Todorov ;
tradução Beatriz Perrone-Moisés. - 3' ed. - São Paulo : Martins
Colombo e os índios ................................................ . 47
Fontes, 2003. - (fópicos)

Título original: La conquête de l' Amérique: la question de 1'autre


Bibliografia II. Conquistar
ISBN 85-336--1716--X

1. América - Descobrimento e exploração 2. Índios - Primeiros


contatos com a civilização ocidental 3. Índios - Tratamento rece· As razões da vitória ................................................. . 73
.-..,.;·•I bido I. Tí1tilo. U. Série. Montezuma e os signos ........................................... . 87
02-5699 CDD-970.01 Cortez e os signos .................................................... . 141
1ndices para catálogo sistemático:
1. América: Descobrimento e C)[p!oração : História 970.01

Todos os direitos desta edição reservados à


III. Amar
Livraria Martim> Fontes Editora Lttla.
Rua Conselheiro Ramalho, 3301340 01325-000 São Paulo SP Brasil
Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3105.6867
Compreender, tomar e destruir ............................. . 183
e-mail: info@martinsfontes.com.br http://www.~artinsfontes.com.br Igualdade ou desigualdade .................................... . 211
Escravismo, colonialismo e comunicação ............ . 245
46 A CONQU/STA DA AMÉRICA

Colombo pudesse ter tentado vencê-la): os intercâm-


COLOMBO E OS ÍNDIOS
bios com os europeus também não são bem-sucedidos.
Assim, voltando da primeira viagem, nos Açores, Co-
. lombo comete um erro após outro em sua comunica-
ção com um capitão português que lhe era hostil. Cré-
dulo demais no início, vê seus homens detidos, quan-
µo esperava a melhor das recepções; dissimulador gros-
seiro em seguida, não consegue atrair o capitão a seu
navio, para prendê-lo. Sua percepção dos homens à
stia volta não é muito clarividente: aqueles em quem
deposita toda confiança (comoRoldán, ou Hojeda) vol-
tam-se em seguida contra ele, ao passo que ele negli-
gencia.pessoas.que lhe são realmente dedicadas, como
Diego Mendez.
Colombo fala dos homens que vê unicamente por-
Colombo não é bem-sucedido na comunicação hu- que estes, afinal, também fazem parte da paisagem.
mana porque não está interessado nela. Lê-se em seu Suas menções aos habitantes das ilhas aparecem sem-
diário, a 6 de dezembro de· 1492, que os índios que pre no meio de anotações sobre a Natureza, em algum
havia trazido a bordo de seu barco tentam escapar e lugar entre os pássaros e as árvores. "No interior das
inquietam-se ao ver-se longe de sua ilha. "Aliás ele os terras, há muitas minas de metais e inúmeros habitan-
compreendia tão mal quanto eles a ele, e tinha o maior tes" (Carta a Santangel, fevereiro-março de 1493). "Até
temor do mundo das ºgentes desta ilha. Assim, para então, ia cada vez melhor, naquilo que tinha descober-
conseguir falar com os habitàntes desta ilha, teria sido to, pelas terras como pelas florestas, plantas, frutos,
necessário permanecer alguns dias neste porto. Mas flores e gentes" (Diário, 25.11.1492). "As raízes ali eram
ele não o fazia, para ver ~ais terras e duvidando que o tão grossas quanto as pernas, e todos, diz, eram fortes
j
J
bom tempo durasse." Tudo está. aí, no encadeamento
de algumas frases: a pouca ,percepção que Colombo
e valentes" (16.12.1492): vemos claramente como são
introduzidas as pessoas, em função de uma compara-
tem dos índios, mistura de autoritarismo e condescen- ção necessária à descrição das raízes. "Notaram qve as
'ii
dência; a incompreensão de, sua língua e .. de seus si- mulheres casadas usavam panos de algodão, mas1 não
nais; a facilidade com que aliena a vontade do outro as meninas, algumas já com dezoito anos. Havia ainda
visando a um melhor conhec.imento das.ilhas desco- cães mastins e perdigueiros. Encontraram tambén/i um
bertas; a preferência pela terra, e não pelos homens. homem que tinha no nariz uma pepita de ouro do
Na hermenêutica de Colombo, estesnão têm lugar re- tamanho de um meio castelhano..." (17.10.1492):iesta
servado.
referência aos cães entre observações sobre as m1r1lhe-

;.,[~;x\,Q(W;;,.;JJ§,Af

"
48 A CONQU/STA DA AMÉRICA DESCOBRIR 49

res e os homens indica bem o registro em que estavam eia de costumes, ritos e religião (o que tem urna certa
inseridos. lógica, já que, para um homem corno Colombo, os se-
A primeira referência aos índios é significativa: res humanos passam a vestir-se após a expulsão do
"Então viram gentes nuas ..." (11.10.1492). É bastante re- paraíso, e esta situa-se na origem de sua identidade
velador que a primeira característica desta gente que cultural). Além disso, Colombo tem, corno vimos, o há-
chama a atenção de Colombo seja a falta de vestimen- bito de ver as coisas segundo sua conveniência, mas é
tas - que, por sua vez, são símbolos de cultura (daí o significativo que ele seja assim levado à imagem da
interesse de Colombo pelas pessoas vestidas, que po- nudez espiritual. "Pareceu-me que eram gente muito
deriam aproximar-se mais do que se sabe do Grande desprovida de tudo", escreve no primeiro encontro, e
Can; e fica um pouco decepcionado por encontrar ape- ainda: "Pareceu-me que não pertenciam a nenhuma
nas selvagens). A mesma constatação reaparece: "Vão seita" (11.10.1492). "Estas gentes são muito pacíficas e
cornpletarn~nté·.nus, homens e mulheres, corno suas medrosas, nuas, como já disse, sem armas e sem leis"
rnães··os pariram" (6.11.1492). "Este rei e todo os seus (4.11.1492). "Não são de nenhuma seita, nem idóla-
andavam nus corno tinham nascido, assim corno suas tras" (27.11.1492). Já desprovidos de língua, os índios
mulheres, sem nenhum embaraço" (16.12.1492): as mu- se vêem sem lei ou religião; e, se possuem cultura p:ia-
lheres, pelo menos, podiam ser mais cuidadosas. Suas terial, esta não atrai a atenção de Colombo, não mais do
observações limitam-se, freqüentemente, ao aspecto que, anteriormente, sua cultura espiritual: "Traziam
físico das pessoas: sua estatura,cor da pele (mais apre- pelotas de algodão fiado, papagaios, lanças, e outras
ciada na medida em que é mais clara, ou seja, mais pa- coisinhas que seria tedioso enumerar" (13.10.1492): o
recida). "Todos são corno os canarinos, nem negros importante, claro, é a presença dos papagaios. Sua ati-
nem brancos" (11.10.1492). "São mais claros que os de tude em relação a esta outra cultura é, na melhor das
outras ilhas. Entre outros, tinham visto jovens tão bran- hipóteses, a de um colecionador de curiosidades, e nun-
cas quanto é possível ser na Espanha" (13.12.1492). ca vem acompanhada de urna tentativa de compreen-
"Há belíssimos corpos de mulheres" (21.12.1492). E der: observando, pela primeira vez, construções ein al-
conclui, com surpresa,que apesar de nus os índios pa- venaria (durante a quarta viagem, na costa de H01;1du-
recem mais próximos dos homens do que dos animais. ras), contenta-se em ordenar que se quebre dela~ um
i "Todas as gentes das ilhas e lá da terra firme, embora
tenham aparência'anirnalesca e andem nus (... ), pare-
pedaço, para guardar corno lembrança. ;
É de esperar que todos os índios, culturalll\ente
'í cem ser bastante razoáveis e de.inteligência aguçada" virgens, página em branco à espera da inscrição espa-
(Bernaldez). · · nhola e cristã, sejam parecidos entre si. "Todos f/are-
1
Fisicamente nus,osíndios também são, na opinião ciarn-se com aqueles de que já falei, mesma condjção,
· de Colombo, desprovidos de qualquer propriedade também nus, e da mesma estatura" (17.10.1492). 'jVie-
cultural: caracterizarn°se; de certo modo, pela ausên- rarn muitos deles, semelhantes aos das outras ilhas,
i
!

"
50

.;.;:~,.:J
. ,.
A CONQUISTA DA AMÉRICA
DESCOBRIR 51
igualmente nus e pintados" (22.10.1492). "Estes têm a
mesma natureza, e os mesmos hábitos que os que até ~lE.'.:_,~ltZ
r-. --
. _SL
~ . _ , ~ ~..-•e--•-,-~-,....,~
:-~,-~ -.;."7>__...., - .
agora encontramos" (1.11.1492). "São, diz o Almiran- , ..
te, gente semelhante aos índios de que já falei, de mes- ~ __::;.,~=- '·
;..-L..
ma fé" (3.12.1492). Os índios se parecem por estarem
nus, privados de características distintivas.
Dado este desconhecimento da cultura dos índios
e sua assimilação à natureza, não se pode esperar
encontrar nos escritos de Colombo descrições detalha-
das da população. A imagem que Colombo nos dá dos
índios obedece, no início, às mesmas regras que ades-
crição da _namreza: decidido a tudo admirar, começa,
então, pela beleza física .dos íridios. "Eram todos mui-
to bem feitos, belíssimos .de corpo. e muito harmonio-
sos de rosto" (11.10.1492).'.'E todos de boa estatura, gen-
te muito bonita'.' (13.10.1492); "Eram aqueles os mais
belos homens e as mais belas mulheres que tinham en-
contrado até então" (16,12.1492).
Fig. 3 - Colombo desembarca no Haiti
Um autor como.PierreMártyr;.que reflete exata-
mente as impressões (ou os fantasmas) de Colombo e
de seus primeiros compan.heiros;.pinta cenas idílicas. um homem jamais tenha visto gente de coração tão
Eis que as índias vêm saudarColombo: "Todas eram bom" (21.12.1492). "Não creio que haja no mundo ho-
belas. Era coino se víssemos aquelas esplêndidas náia- mens melhores., assim ·como não há terras melhores"
des ou ninfas das fontes,tão decantadas pela Antigui- (25.12.1492): a fácil ligação entre homens e terras indi-
dade. Tendo nas. mãosjeixes,.de•palmas que segura- ca bem o espírito com que escreve Colombo, e a pouca
vam ao executar suas danças;:que:acompanhavam de confiança que podemos depositar nas qualidades des-
critivas de suas observações. Além disso, no momento
cantos, dobraram osjoelhos:e.os apresentaram ao ade-
1 lantado" (I, 5; cf. fig:,3).·,
em que conhecer melhor os índios, cairá no outro '
ex-
tremo, o que não tornará sua informação mais idigna
1 Esta admiração,.decidida de,antemão, estende-se
de fé: vê-se, náufrago na Jamaica, "cercado por Jm mi-
1 também à moral. Colombodeclara•de cara que são gen-
! lhão de selvagens cheios de crueldade, e que nbs são
te boa, sem se preocúpa:r ein:Jundamentar sua afirma- hostis" (Carta raríssima, 7.7.1503). Sem dúvida,jo que
ção. "São as melhores, gentes,do -mundo, e as mais pa- mais chama a atenção aqui é o fato de Colombo1só en-
cíficas" (16.12,1492)."O-Almirante diz que não crê que contrar, para caracterizar os índios, adjetivos ~o tipo
1
52 A CONQUISTA DA AMÉRICA DESCOBRIR 53

bom/mau, que na verdade não dizem nada: além de "Até pedaços de barris quebrados aceitavam, dando
dependerem do ponto de vista de cada um, são quali- tudo o que tinham, como bestas idiotas!" (Carta a San-
dades que correspondem a extremos e não a caracterís- tangel, fevereiro-março de 1493), temos a impressão de
ticas estáveis, porque relacionadas à apreciação prag- que é ele o idiota: um sistema de troca diferente signi-
mática de uma situação, e não ao desejo de conhecer. fica, para ele, a ausência de sistema, e daí conclui pelo
Dois traços dos índios parecem, à primeira vista, caráter bestial dos índios.
menos previsíveis do que os outros: são a "generosi- O sentimento de superioridade gera um compor-
dade" e a "covardia". Ao ler as descrições de Colom- tamento protecionista: Colombo nos diz que proíbe
bo, percebemos que estas afirmações informam mais seus marinheiros de efetuarem trocas, segundo ele, es-
sobre o próprio do que sobre os índios. Na falta das candalosas. No entanto, vemos o próprio Colombo ofe-
palavras, índios.e espanhóis trocam, desde o primeiro recer presentes estranhos, que hoje associamos aos
encontm, pequenos objetos; e Colombo não se cansa "selvagens" (mas foi Colombo o primeiro a ensiná-los
de elogiar a generosidade dos índios, que dão tudo a apreciar e exigir tais presentes). "Mandei procurá-lo,
por nada. Uma generosidade que, às vezes, parece-lhe dei-lhe um gorro vermelho, algumas miçangas de vi-
beirar a burrice: por que apreciam igualmente um pe- dro verde, que pus em seu braço, e um par de guizos
daço de vidro e uma moeda? Uma moeda pequena e que prendi a suas orelhas" (Diário, 15.10.1492). "Dei-lhe
urna de ouro? "Dei", escreve, "muitas outras coisas de um belíssimo colar de âmbar que trazia no pescoço, um
pouco valor que lhes causaram grande prazer" (Diá- par de calçados vermelhos e um frasco de água de flor
rio, 11.10.1492): "Tudo o que têm, dão em troca de qual- de laranjeira. Alegrou-se muito com isso" (18.12.1492).
quer bagatela que se lhes ofereça, tanto que aceitam na "O senhor já trazia camisa e luvas que o Almirante lhe
troca até mesmo pedaços de tigela e taças de vidro tinha dado" (26.12.1492). Compreende-se que Colom-
quebradas" (13.10.1492). "Alguns tinham pedaços de bo fique chocado com a nudez do outro, mas luvas,.um
ouro no nariz, que de bom grado trocavam por (... ) gorro vermelho e sapatos seriam, nessas circunstân-
[coisas] que valem tão pouco que não valem nada" cias, presentes mais úteis do que taças de vidro quebra-
(22.11.1492). "Seja coisa de valor ou coisa de baixo pre- das? Em todo caso, os chefes índios poderão vir visi-
ço, qualquer que seja o objeto que se lhes dá em troca e tá-los vestidos ... Veremos que depois os índios descobri-
qualquer que seja seu valor, ficam satisfeitos" (Carta a rão outros usos para os presentes espanhóis, embora
Santangel, fevereiro-março de 1493). Colombo não com- sua utilidade continue não sendo demonstrada. "Co-
preende que os valores são convenções - a mesma in- mo não tinham vestimentas, os indígenas se perguttta-
compreensão que mostrou em relação às línguas, como ram de que poderiam servir agulhas, e os espanhói~ sa-
. vimos - e que o ouro não é mais precioso do que o vi- tisfizeram sua engenhosa curiosidade, mostrando-lhes
dro "em si", maS somente no sistema europeu de tro- por gestos que as agulhas servem para arrancar o~ es-
_ca: E, quando conclui a descrição das trocas dizendo: pinhos que freqüentemente lhes penetram a pele) ou

1
1

"

,:;
54 A CONQUISTA DA AMÉRICA
DESCOBRIR 55

para limpar os dentes; e assim começaram a fazer delas tudo o que era de seu agrado; mas notaram seu erro
muito caso" (Pierre Martyr, I, 8). rapidamente" (51). Colombo, nesse momento, esquece
É com base nessas observações e trocas que Co- sua própria impressão, e declara logo depois que os
lombo declara que os índios são as pessoas mais gene- índios, longe de serem generosos, são todos ladrões
rosas do mundo, dando assim uma contribuição impor- (inversão paralela àquela que os tinha transformado
tante ao mito do bon sauvage. "Não cobiçam os bens de de melhores homens do mundo em selvagens violen-
outrem" (26.12.1492). "São a tal ponto desprovidos de tos). Imediatamente, impõe-lhes castigos cruéis, os mes-
artifício e tão generosos com o que possuem, que nin- mos que se costumava então aplicar na Espanha: "Co-
guém acreditaria a menos que o tivesse visto" (Carta a mo na viagem que fiz a Cibao, ocorreu que algum ín-
Santangel, fevereiro-março de 1493). "E que não se diga, dio roubou, se fosse descoberto que alguns deles rou-
diz o Almirante, que dão generosamente porque o que bam, castigai-os cortando-lhes o nariz e as orelhas, pois
davam poucoyalia, pois os que davam uma pepita de são partes do corpo que não se pode esconder" (Ins-
ouro e eis que davam a cabaça de água agiam do mes- truções a Mosen Pedro Margarite, 9.4.1494).
mo modo, e com a mesma liberalidade. E é fácil saber, O discurso sobre a "covardia" encaminha-se do
diz o Almirante, quando se dá uma coisa de coração" mesmo modo. No início, é a condescendência risonha:
(Diário, 21.12.1492). "Não têm armas e são tão medrosos que um dos nos-
A coisa é, na verdade, menos simples do que pa- sos bastaria para fazer fugir cem deles, mesmo brin-
rece. Colombo pressente isso quando, em sua carta a cando" (Diário, 12.11.1492). "O Almirante garante aos
Santangel, recapitula sua experiência: "Não pude sa- Reis que com dez homens faríamos fugir dez mil de-
ber se possuem bens privados, mas tive a impressão les, a tal ponto são covardes e medrosos" (3.12.1492).
de que todos tinham direitos sobre o que cada um pos- "Não possuem nem ferro, nem aço, nem armas, e não
suía, especialmente no que se refere aos víveres" (fe- são feitos para isso; não porque não sejam saudáveis, e
vereiro-março de. 1493). Será que uma outra relação de boa estatura, mas porque são prodigiosamente me-
com a propriedade privada explicaria estes comporta- drosos" (Carta a Santangel, fevereiro-março de 1493). A
mentos "generosos"? Fernando, o filho, diz algo nesse caça aos índios pelos cães, outra "descoberta" de Co-
sentido quando relata um episódio da segunda via- lombo, baseia-se numa observação semelhante: "Pois,
gem:"Alguns índios que o Almirante tinha trazido de contra os índios, um cão equivale a dez homens" (Ber-
· Isabela entraram nas cabanas (que pertenciam aos ín- naldez). Por isso, Colombo deixa tranqüilamente par-
.dios locais) e serviram-se de tudo o que era de seu te de seus homens em Hispaniola, no final da primetj-a

~l
agrado; os proprietários não deram o menor sinal de viagem. Ao voltar, um ano depois, é forçado a admitir
~borrecimento, como se tudo o que possuíssem fosse que foram todos mortos por aqueles índios medrosbs
propriedade comum. Os indígenas, achando que tínha- e ignorantes das armas. Teriam eles se organizado e\n
mos o mesmo costume, no início pegaram dos cristãos bmdoo de mil p,ra •rahM com rad;, "m doo

"
56 A CONQUISTA DA AMÉRICA DESCOBRIR 57

nhóis? Então, cai no outro extremo, deduzindo, de al- (6). "Como escrevi às pressas e não tinha papel suficien-
gum modo, a coragem a partir da covardia. "Não há te, não pude colocar cada coisa em seu devido lugar"
gente pior do que os covardes que nunca arriscam suas (8). "Não consegui saber mais nada acerca disso, e o
vidas no confronto direto, e sabereis que, se os índios que escrevi tem pouco valor" (11) .
encontrarem um ou dois homens isolados, não é de es- Será que podemos adivinhar, através das anota-
pantar que os matem" (Instruções a Mosen Pedro Mar- ções de Colombo, como os índios percebem os espa-
garite, 9.4.1494); o rei deles, Caonabo, é "homem tão nhóis? Dificilmente. Aqui também, toda a informação
mau quanto audacioso" (Relatório para Antonio de Tor- é viciada, porque Colombo decidiu tudo de antemão:
res, 30.1.1494). Ao que tudo indica, Colombo não com- e já que o tom, durante a primeira viagem, é de admi-
preende os índios melhor agora: na verdade, nunca sai ração, os índios também devem ser admirativos. ''Dis-
de si mesmo. seram-se muitas outras coisas que não pude compreen-
É verdade.que, num certo momento de sua carrei- der, mas pude ver que estava maravilhado com tudo"
ra, Colombo faz um esforço suplementar. Acontece du- (Diário, 18.12.1492): apesar de não entender o que di-
rante a segunda viagem, quando pede ao frei Ramón zem, Colombo sabe que o "rei" indígena está em êxta-
Pane que descreva detalhadamente os costumes e as se diante dele. É possível, como diz Colombo, que os
crenças dos índios; e ele mesmo deixa, em prefácio a índios tenham considerado a possibilidade de os espa-
esta descrição, uma página de observações "etnográfi- nhóis serem seres de origem divina; o que daria uma
cas". Começa por uma declaração de princípio: "Não boa explicação para o medo inicial e seu desapareci-
encontrei entre eles nenhuma idolatria e nenhuma ou- mento diante do comportamento indubitavelmente
tra religião", tese que mantém, apesar dos exemplos humano dos espanhóis. "São crédulos, sabem que há
que ele mesmo dá em seguida. Descreve várias práti- um Deus no céu, e estão convencidos de que viemos
cas "idólatras", dizendo, no entanto: ''Nenhum de nos- de lá" (12.11.1492). "Achavam que todos os cristãos
sos homens :pôde compreender as palavras que pro- vinham do céu, e que o reino dos Reis de Castela ali se
nunciavam." Sua atenção volta-se, então, para uma encontrava, e não neste mundo" (16.12.1492). "Ainda
fraude: um ídolo falante era na verdade um objeto oco, agora, depois de tanto tempo comigo, e apesar de nu-
ligado por um tubo a outro cômodo da casa, onde fica- merosas conversas, continuam convencidos de que
va o assistente do mágico. O pequeno tratado de Ra- venho do céu" (Carta a Santangel, fevereiro-março de
món Pane (preservado na biografia de Francisco Co- 1493). Voltaremos a esta crença quando for possível exa-
lombo, capítulo 62) é bem mais interessante, apesar do miná-la mais a fundo; observemos, entretanto, i que,
autor, que não se cansa de repetir: "Como os índios para os índios do Caribe, o oceano podia parecet tão
não possuem nenhum alfabeto ou escrita, não dizem abstrato quanto o espaço que separa o céu e a terta.
bem seus mitos, e me é impossível transcrevê-los cor- O lado humano dos espanhóis é a sede que têp de
retamente; temo colocar o início no fim, e vice-versa" bens terrestres: o ouro, como vimos desde o início, e,

.
58 A CONQUISTA DA AMÉRICA DESCOBRIR 59

em seguida, as mulheres. Nas palavras de um índio, os valores em geral, de seu eu com o universo; na con-
relatadas por Colombo: "Um dos índios que vinham vicção de que o mundo é um.
com o Almirante falou com o rei dizendo-lhe que os Por um lado, Colombo quer que os índios sejam
cristãos vinham do céu e andavam à procura de ouro" como ele e, como os espanhóis, é assimilacionista de
(Diário, 16.12.1492). Esta frase é verdadeira em mais de modo inconsciente e ingênuo. Sua simpatia pelos ín-
um sentido. Pode-se dizer, simplificando até a carica- dios traduz-se, "naturalmente", no desejo de vê-los ado-
tura, que os conquistadores espanhóis pertencem, his- tar seus próprios costumes. Decide levar alguns índios
toricamente, à época de transição entre uma Idade Mé- para a Espanha, para que "ao retornarem sejam intér-
dia dominada pela religião e a época moderna, que pretes dos cristãos, e adotem nossos costumes e nossa
coloca os bens materiais no topo de sua escala de valo- fé" (12.11.1492). E ainda "devemos fazer com que cons-
res. Também na prática, a conquista terá estes dois as- truam cidades, ensiná-los a andar vestidos e adotar
pectos essenciais: os cristãos vêm ao Novo Mundo im- nossos costumes" (16.12.1492). "Vossas Altezas devem
buídos de religião, e levam, em troca, ouro e riquezas. ficar satisfeitas, pois em breve terão feito deles cristãos
A atitude de Colombo para com os índios decorre e lhes terão instruído nos bons costumes de seu reino"
da percepção que tem deles. Podemos distinguir, nes- (24.12.1492). O desejo de fazer com que os índios ado-
ta última, duas componentes, que continuarão presen- tem os costumes dos espanhóis nunca vem acompa-
tes até o século seguinte e, praticamente, até nossos nhado de justificativas; afinal, é algo lógico.
dias, em todo colonizador diante do colonizado. Estas Na maior parte do tempo, este projeto de assimi-
duas atitudes já tinham sido observadas na relação de lação confunde-se com o desejo de cristianizar os ín-
Colombo com a língua do outro. Ou ele pensa que os dios, espalhar o Evangelho. Sabemos que esta inten-
índios (apesar de não utilizar estes termos) são seres ção fundamenta o projeto inicial de Colombo, apesar
completamente humanos com os mesmos direitos que de a idéia ser um pouco abstrata no início (nenhum
ele, e aí consiçl.era-os não somente iguais, mas idênti- padre acompanha a primeira expedição). A intenção
cos, e este comportamento desemboca no assimilacio- começa a concretizar-se assim que ele vê os índios. Lo-
nismo, na projeção de seus próprios valores sobre os go depois de tomar posse das novas terras, através de
outros, ou então parte da diferença, que é imediata- ato notarial devidamente lavrado, declara: "Entendi
mente traduzida em termos de superioridade e infe- que eram gente que se entregaria e se converteria 'com
rioridade (no caso, obviamente, são os índios os inferio- muito mais facilidade à nossa Santa Fé pelo am~r do
res): recusa a existência de uma substância humana que pela força ..." (11.10.1492). O "entendimento'.' de
realmente outra, que possa não ser meramente um es- Colombo é, evidentemente, uma decisão tomadk de
tado imperfeito de si mesmo. Estas duas figuras bási- antemão; e refere-se aqui aos meios que devem sef uti-
cas da experiência da alteridade baseiam-se no egocen- lizados e não ao fim que deve ser atingido. Este último
trismo, na identificação de seus próprios valores com nem precisa ser afirmado, já que é óbvio. Colombo

-
.,
60 A CONQUISTA DA AMÉRICA DESCOBRIR 61

volta constantemente à idéia de que a conversão é o os traços dos índios que poderiam contradizê-la - su-
principal objetivo da expedição, e reafirma a esperan- pressão no discurso sobre eles e também, se for o caso,
ça de que os reis de Espanha aceitem os índios como na realidade. Durante a segunda expedição, os religio-
vassalos, sem nenhuma discrirrtinação. "E digo queVos- sos que acompanham Colombo começam a converter
sas Altezas não devem permitir que nenhum estran- os índios; mas falta muito para que todos se curvem e
geiro tenha qualquer relação com esse país e não ponha se ponham a venerar as imagens santas. "Depois de
nele os pés se não for católico cristão, pois a expansão terem deixado a capela, esses homens jogaram as ima-
e glória da religião cristã são finalidade e princípio gens ao solo, cobriram-nas com um punhado de terra
desta empresa, e que não admitam nessas regiões nin- e urinaram sobre elas"; vendo isto, Bartolomeu, irmão
guém que não seja bom cristão" (27.11.1492). Este tipo de Colombo, decide puni-los de modo bem cristão:
de comportamento implica, entre outras coisas, o res- "Como lugar-tenente do vice-rei e governador das ilhas,
peito pels1 vóntade individual dos índios, já que são levou aqueles homens maus à justiça, e, uma vez defi-
eqmparadrnl""iws cristãos. "Como já considerava aque- nido o crime, fez com que fossem queimados em pú-
la gente como vassalos dos Reis de Castela, e não via blico" (Ramón Pane in F. Colombo, 62, 26).
razão em ofendê-los, concordou em deixá-lo [um índio Seja como for, sabemos atualmente que a expan-
idoso]" (18.12.1492). são espiritual está indissoluvelmente ligada à conquis-
Esta visão de Colombo é facilitada pela capacida- ta material (é necessário dinheiro para fazer cruzadas);
de que tem em ver as coisas como lhe convém. Neste e surge aí a primeira falha num programa que impli-
caso, particularmente, os índios já são, a seu ver, dota- cava a igualdade dos parceiros: a conquista material (e
dos de qualidades cristãs, e já desejam a conversão. tudo o que ela implica) será ao mesmo tempo resulta-
Vimos que, segundo ele, os índios não pertenciam a do e condição da expansão espiritual. Colombo escre-
nenhuma "seita", eram virgens em matéria de religião ve: "Creio que, se começarmos, em breve Vossas Alte-
e, na verdade, já tinham uma predisposição ao cristia- zas conseguirão converter à nossa Santa Fé uma mul-
nismo. E as virtudes que imagina encontrar neles são tidão de povos, ganhando grandes territórios e rique-
virtudes cristãs: "Estas gentes não são de nenhuma sei- zas, assim como todos os povos da Espanha, pois há
ta, nem idólatras, e sim muito mansos e ignorantes do sem dúvida nestas terras grandes quantidades de ou-
que é o mal, não sabem matar-se uns aos outros (... ) ro" (12.11.1492). Esta conexão torna-se quase automá-
Estão sempre dispostos a recitar qualquer oração que tica para ele: "Vossas Altezas têm aqui um outro: mun-
lhes ensinarmos, e fazem o sinal da cruz. E Vossas Al- do onde pode expandir-se muito nossa Santa F~ e de
tezas devem decidir-se a fazer deles cristãos" (12.11.1492). onde se pode tirar muito proveito" (Carta a9s reis,
"Amam o próximo como a si mesmos", escreve na 31.8.1498). O proveito tirado pela Espanha é incontes-
noite de Natal (25.12.1492). É evidente que esta ima-
gem só pode ser obtida através da supressão de todos ros
tável: "Pela vontade divina, pus deste modo u~ outro
muruiu oob o ouWdd<de do Rei e d, R,mb,,

.,
62 A CONQUISTA DA AMÉRICA DESCOBRIR 63

senhores, e assim a Espanha, que diziam ser tão pobre, notários. Quando as coisas começam a se esclarecer, não
tomou-se o mais rico dos reinos" (Carta à ama-de-leite, ficam exatamente entusiasmados. "Fundei ali um po-
novembro de 1500). voado e dei vários presentes [luvas? gorro vermelho?
Colombo age como se entre as duas ações se esta- Colombo não informa] ao quíbian - assim chamam o
belecesse um certo equilíbrio: os espanhóis dão a reli- senhor da terra - mas bem sabia que a concórdia não
gião e tomam o ouro. Porém, além de a troca ser bas- duraria. São realmente gente muito rústica [traduzin-
tante assimétrica, e não necessariamente interessante do: que não desejam se submeter aos espanhóis], e meus
para a outra parte, as implicações desses dois atos se homens são bastante importunos; enfim eu tomava
opõem. Propagar a religião significa que os índios são posse de terras pertencentes a esse quibian [segunda
considerados como iguais (diante de Deus). E se eles etapa da troca: dão-se luvas, tomam-se terras]. Ao ver
não quiserem entregar suas riquezas? Então será pre- as casas feitas e o ardor de nosso tráfico, ele resolveu
ciso subjugá-los'; militar e politicamente, para poder quei_mar tudo e matar-nos" (Carta raríssima, 7.7.1503).
tomá-Tas à força; em outras palavras, colocá-los, agora A continuação desta história é ainda mais sinistra. Os
do ponto de vista humano, numa posição de desigual- espanhóis conseguem prender a família do quibian e
dade (de inferioridade). E Colombo não hesita nem querem usá-la como refém; alguns dos índios, no en-
um pouco em falar da necessidade de subjugá-los, sem tanto, conseguem escapar. "Os prisioneiros restantes
perceber a contradição existente entre o que cada uma foram tomados de desespero, pois não tinham escapa-
de suas ações implica, ou, pelo menos, a descontinui- do com seus companheiros, e no dia seguinte desco-
dade que estabelece entre divino e humano. Por essa briu-se que tinham se enforcado aos barrotes da pon-
razão notou que eram medrosos e desconheciam o uso te, com as cordas que puderam encontrar, dobrando
das armas. "Com cinqüenta homens Vossas Altezas os joelhos por não haver espaço suficiente para se en-
podiam dominar todos eles e fariam deles o que qui- forcarem como se deve." Fernando, o filho de Colom-
sessem" (Diário, 14.10.1492): ainda é o cristão que fala? bo, que relata este episódio, presenciou-o; tinha ape-
• Ainda se trata de igualdade? Partindo pela terceira vez nas quatorze anos, e pode-se pensar que a reação de
· 'para a América, pede permissão para levar com ele seu pai foi igual à sua: "Para nós, que estávamos a bor-
voluntários criminosos que sejam por isso perdoados: do, a morte deles não era urna grande perda, mas agra-
ainda é o projeto evangelizador? vou bastante a situação dos homens em terra; o quíbian
"Minha vontade, escreve Colombo na primeira teria ficado feliz em fazer a paz em troca de se11s fi-
viagem, era não passar por nenhuma ilha sem dela to- lhos, mas agora, que já não tínhamos reféns, havi~ ra-
mar posse" (15.10.1492); na época, chega a oferecer zões para temer que fizesse guerra ainda mais cruel ~on-
. uma ilha aqui e outra ali a algum de seus companhei- tra nossa vida" (99). j

.. ros. No início, os.índios não deviam entender muito dos Eis que a guerra substitui a paz, mas pode-se pen-
. ~itos que Colombo executava em companhia de seus sar que Colombo nunca tenha posto completam~nte

',,..
64 A CONQUISTA DA AMÉRICA DESCOBRIR 65

de lado este meio de expansão, já que desde a primei- dável e de ótimo entendimento, os quais, arrancados de
ra viagem acalenta um projeto particular. "Parti esta sua desumanidade serão, cremos, os melhores escra-
manhã", nota já a 14 de outubro de 1492, "para procu- vos que há" (Relatório para Antonio de Torres, 30.1.1494).
rar um local onde pudesse ser construída uma fortale- Os Reis da Espanha não aceitam esta sugestão de
za." "Porque aqui há um cabo rochoso bastante eleva- Colombo: preferem ter vassalos em vez de escravos; sú-
do, poderíamos construir uma fortaleza" (5.11.1492). ditos que possam pagar impostos, em vez de seres que
Sabemos que realizará este sonho após o naufrágio de pertencem a alguém; mas Colombo não renuncia a seu
sua nau, e aí deixará seus homens. Mas a fortaleza, projeto, e ainda escreve, em setembro de 1498: "Daqui
mesmo que revele não ser particularmente eficaz, não poderíamos enviar, em nome da Santíssima Trindade,
seria um passo em direção à guerra, logo à submissão tantos escravos quantos se possam vender, e também
e à desigualdade? brasil [madeira]. Se as informações de que disponho
Assim, gradativamente, Colombo passará do assi- são boas, dizem que poderiam ser vendidos quatro mil
milaeionismo; que implica uma igualdade de princí- escravos, que poderiam valer vinte milhões ou mais"
pio, à ideologia escravagista e, portanto, à afirmação (Carta aos reis, setembro de 1498). Os deslocamentos
da inferioridade dos índios. Isto já podia ser notado em podem apresentar alguns problemas no início, mas es-
alguns julgamentos sumários que surgem desde os pri- tes serão rapidamente resolvidos. "É verdade que mui-
meiros contatos. "Devem ser bons servidores e industrio- tos deles morrem no momento, mas não será sempre
sos" (11.10.1492). "Servem para obedecer" (16.12.1492). assim. Os negros e os canarinos tinham começado da
Para manter-sua coerência, Colombo estabelece distin- mesma maneira" (ibid.). Dirige seu governo da ilha de
ções sutis entre índios inocentes, cristãos em potencial, Hispaniola nesse sentido, e uma outra carta, endereça-
e índios idólatras, praticantes do canibalismo; ou índios da aos reis, de outubro de 1498, é resumida por Las
pacíficos (que se submetem ao poder dele) e índios be- Casas assim: "De tudo o que diz, deduz-se que o lucro
licosos, que Il).erecem por isso ser punidos; mas o im- que pretendia dar aos espanhóis que ali se encontra-
portante é que aqueles que ainda não são cristãos só vam consistia em lhes dar escravos para serem vendi-
podem ser escravos: não há uma terceira possibilida- dos em Castela" (Historia, I, 155). No espírito de Colom-
. de. Imagina então que os navios que transportam re- bo, a propagação da fé e a escravização estão intima-
banhos de animais de carga no sentido Europa-Améri- mente ligadas. ·
ca sejam carregados de escravos no caminho de volta, Michele de Cuneo, membro da segunda expedi-
para evitar que retomem vazios e enquanto não se acha ção, deixou um dos raros relatos que descrevell) deta-
ouro em quantidade suficiente, e a equivalência im- lhadamente como se dava o tráfico de escravos no iní-
plicitamente estabelecida entre animais e homens não '
cio; relato que não permite ilusões quanto à perçepção
é, sem dúvida, gratuita. "Os transportadores poderiam que se tem dos índios. (... ) "Quando nossas caravelas
ser pagos em escravos canibais, gente fero~ mas sau- tiveram de partir para a Espanha, reunimos eml nosso

. ,
66 A CONQUISTA DA AMÉRICA DESCOBRIR 67

acampamento mil e seiscentas pessoas, machos e fê- pode pegá-los porque todos tinham partido antes do
meas desses índios, dos quais embarcamos em nossas anoitecer. Mas no dia seguinte, terça-feira, 8 de agosto,
caravelas, a 17 de fevereiro de 1495, quinhentas e cin- doze homens vieram numa canoa até a caravela: foram
qüenta almas entre os melhores machos e fêmeas. Quan- todos aprisionados e levados à nau do Almirante, que
to aos que restaram, foi anunciado nos arredores que escolheu seis deles e enviou à terra os outros seis" (Las
quem quisesse poderia pegar tantos deles quantos de- Casas, Historia, I, 134). O número já tinha sido fixado:
sejasse; o que foi feito. E, quando todos estavam servi- meia dúzia; os indivíduos não contam, são contados.
dos, sobravam ainda quatrocentos, aproximadamente, Numa outra ocasião ele quer mulheres (não por lubri-
a quem demos permissão para ir aonde quisessem. En- cidade, mas para ter uma amostra de cada coisa). "En-
tre eles havia muitas mulheres com crianças de colo. viei alguns homens a uma casa na margem oeste do rio.
Como temiam que voltássemos para pegá-las, e para Eles me trouxeram sete cabeças de mulheres, jovens e
escapar '!e n,ós mais facilmente, deixaram os filhos em adultas, e três crianças" (Diário, 12.11.1492). Ser índio,
qualquer lugar no chão e puseram-se a fugir como de- e ainda por cima mulher, significa ser posto, automati-
sesperadas; e algumas fugiram para tão longe que foc camente, no mesmo nível que o gado.
ram parar a sete ou oito dias de nosso acampamento As mulheres: se Colombo só se interessa por elas
em Isabela, além das montanhas e atrás de imensos rios; enquanto naturalista, o mesmo não acontece com os
outros. Vamos ler o relato que Michele de Cuneo, fidal-
o que faz com que, de agora em diante, só os alcance-
go de Savana, faz de um episódio da segunda viagem
mos com. grande esforço." Assim começa a operação;
- uma história entre mil, mas que tem a vantagem de
eis aqui seu desenlace: "Mas quando atingimos as ser contada por seu protagonista. "Quando estava na
águas que cercam a Espanha, uns duzentos dos índios barca, capturei uma mulher caribe belíssima, que me
morreram, creio que por causa do ar ao qual não esta- foi dada pelo dito senhor Almirante e com quem, ten-
vam habituados, rriais frio do que o deles. Foram joga- do-a trazido à cabina, e estando ela nua, como é costu-
dos no mar,(. .. ). Desembarcamos todos os escravos, a me deles, concebi o desejo de ter prazer. Queria pôr
metade deles doente." meu desejo em execução, mas ela não quis, e tratou-me
·;:'-,,.;;" Mesmo quando não se trata de escravidão, o com- com suas unhas de tal modo que eu teria preferido
portamento de Colombo implica o não-reconhecimen- nunca ter começado. Porém, vendo isto (para contar-te
to do direito dos índios à vontade própria; implica que tudo, até o fim), peguei uma corda e amarrei-a, bem, o
os considera, em suma, como objetos vivos. Assim, em que a fez lançar gritos inauditos, tu não terias acredi-
seus impulsos de naturalista, sempre quer trazer à Es- tado em teus ouvidos. Finalmente, chegamos um tala
panha espécimes de todos os gêneros: árvores, pássa- acordo que posso dizer-te que ela parecia ter sido edu-
ros, animais e índios; não lhe ocorre a idéia de pedir a cada numa escola de prostitutas." 1

.opinião deles. "Diz que gostaria de prender uma meia Este relato é revelador em vários aspectos. O eu-
dúzia de índios para levá-los consigo; mas diz que não mi""' acl,a as m"l'-' lnilias boruaso oão li=•~

.,
68 A CONQU/STA DA AMÉRICA DESCOBRIR 69

evidentemente, a idéia de pedir a ela consentimento diferentes. Colombo descobriu a América, mas não os
para "pôr seu desejo em execução". Dirige esse pedi- americanos.
do ao Almirante, que é homem e europeu como ele, e Toda a história da descoberta da América, primei-
que parece dar mulheres a seus compatriotas com a ro episódio da conquista, é marcada por esta ambigüi-
mesma facilidade com que distribui guizos entre os dade: a alteridade humana é simultaneamente revela-
chefes indígenas. Michele de Cuneo escreve, é claro, da e recusada. O ano de 1492 já simboliza, na história
para um outro homem, e prepara cuidadosamente o da Espanha, este duplo movimento: nesse mesmo ano
prazer da leitura para seu destinatário, pois, para ele, o país repudia seu outro interior, conseguindo a vitó-
trata-se de uma história de puro prazer. No início, ele ria sobre os mouros na derradeira batalha de Granada
se coloca no papel ridículo de macho humilhado; mas e forçando os judeus a deixar seu território; e descobre
faz isso unicamente para tornar ainda maior a satisfa- o outro exterior, toda essa América que virá a ser lati-
ção de seu leitor em ver a ordem finalmente estabeleci- na. Sabemos que o próprio Colombo liga constante-
da cqm o ·truIÍfo do homem branco. Último olhar cúm- mente os dois eventos: "No corrente ano de 1492, de-
plice: nosso fidalgo omite a descrição da "execução", pois que Vossas Altezas puseram fim na guerra contra
mas faz com que seja deduzida a partir de seus efeitos, os mouros (... ), nesse mesmo mês, (. .. ) Vossas Altezas
aparentemente além de sua expectativa, e que permi- (. .. ) pensaram em enviar-me, a mim, Cristóvão Colom-
tem, além disso, num salto surpreendente, a identifi- bo, às ditas paragens da Índia. (. .. ) Assim, após terem
expulsado todos os judeus para fora de vossos reinos e
cação da índia a uma prostituta: surpreendente, pois
domínios, Vossas Altezas nesse mesmo mês de janeiro
aquela que recusava violentamente a solicitação sexual
ordenaram-me gue partisse com armada suficiente às
se vê assimilada à que faz desta solicitação sua profis- ditas terras da India", escreve no início do diário da
são. Mas não é esta a verdadeira natureza de toda mu- primeira viagem. A unidade destes dois movimentos,
lher, que um número suficiente de palmadas basta para nos quais Colombo tende a ver a intervenção divina, está
revelar? A rec.usa só podia ser hipócrita; arranhe a mu- na propagação da fé cristã. "Espero em Nosso Senhor
lher arisca, e descobrirá a prostituta. As mulheres ín- que Vossas Altezas se decidirão a enviar rapidamente
dias são mulheres, ou índios ao quadrado; nesse senti- [religiosos] para unir à Igreja tão grandes povos e con-
do, tornam-se objeto de uma dupla violentação. vertê-los, assim como Elas destruíram aqueles que não
Como Colombo pode estar _associado a estes dois queriam confessar o Pai, o Filho e o Espírito Santo"
mitos aparentemente contraditórios, um em que o ou- (6.11.1492). Mas também podemos ver as duas;ações
tro é um "bom selvagem" (quando é visto de longe), e como orientadas em sentidos opostos, e complementa-
o outro em que é um "cão imundo", escravo em po- res: uma expulsa a heterogeneidade do corpo da! Espa-
tencial? É porque ambos têm uma base comum, que é nha, a outra a introduz irremediavelmente. !
o desconhecimento dos índios, a recusa em admitir que A seu modo, Colombo participa deste duplo mo-
sejam sujeitos com os mesmos direitos que ele, mas eimtt>. Não pero,be o w<ro, ro= •i=s, , l>iie a

"

."
70 A CONQUISTA DA AMÉRICA

ele seus próprios valores; mas o termo que usa mais fre-
qüentemente para referir-se a si mesmo e que é utiliza-
·..cv-_ do também por seus contemporâneos é: o Estrangeiro;
e, se tantos países buscaram a honra de ser a sua pá- II
tria, é porque ele não tinha nenhuma.
CONQUISTAR

·,

Você também pode gostar