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Os_Anos_Perdidos_Jesus.

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Nota do autor


E ste livro não é sobre o Jesus presente no Novo Testamento, mas sobre
o que ficou de fora da narrativa bíblica. Os autores dos evangelhos
nada falam sobre “os anos perdidos” de Jesus – como é conhecido o
período compreendido entre os 12 e os 30 anos de sua vida. Na realidade, Jesus
desaparece antes disso, pois o único incidente relatado após as narrativas de seu
nascimento (encontrado apenas no evangelho de São Lucas) é o de que, aos 12
anos, ele se perde dos pais durante a Páscoa, em Jerusalém. José e Maria já estavam
no caminho de volta para casa quando deram pela falta do menino. Ansiosos, eles
refizeram seus passos e encontraram o filho Yeshua (como ele era chamado em
hebraico) debatendo sobre Deus com os sacerdotes do templo. Salvo esta menção
extraordinária, a infância e a juventude de Jesus são praticamente uma incógnita.
Contudo, outro Jesus foi deixado de fora do Novo Testamento – o Jesus
iluminado. Sua ausência, a meu ver, debilitou de forma profunda a fé cristã,
pois, por mais singular que seja Cristo, fazer dele o único Filho de Deus deixa
o restante da humanidade desamparada. Um grande abismo separa a santidade
de Jesus da nossa mediocridade. Milhares de cristãos aceitam essa separação,
porém, ela não precisa existir. E se Jesus desejasse que seus seguidores – e até
mesmo nós – desfrutassem a mesma comunhão com Deus alcançada por ele?
Minha história parte da premissa de que esse era o seu desejo. Ao acompa-
nhar a busca do jovem de Nazaré em seu caminho para se tornar o Messias,
pude traçar um mapa da iluminação. Não precisei, no entanto, inventá-lo. A
iluminação sempre esteve presente em todas as eras. O caminho que leva do
sofrimento e da separação à glória e à comunhão com Deus é bastante conheci-
do. Coloquei Jesus nesse caminho por acreditar que ele o trilhou. Obviamente,
inúmeros cristãos convictos discordarão de mim, às vezes com veemência. Eles
fazem questão de que Jesus permaneça singular, o único homem que também
era Deus. No entanto, se Jesus pertence ao mundo – como eu acredito que per-
tença –, sua história não pode excluir todas as outras pessoas que alcançaram a

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consciência divina. Neste romance, Jesus continua sendo um salvador, mas não
é o salvador.
A princípio, a ideia de escrever um romance sobre os anos perdidos de Jesus
me causou desconforto. Criar uma nova versão das Escrituras Sagradas é algo
inconcebível, e se, em vez disso, você decide apresentar Jesus num tom secular,
corre o risco de negar seu papel sagrado, que é indiscutivelmente real. Eu queria
dar aos fiéis cristãos – e a todos os que buscam a iluminação – motivos para se
sentirem ainda mais inspirados. Para tanto, precisava trazer Jesus para as ques-
tões do dia a dia. Assim, ele se preocupa com a violência e a agitação popular,
questiona se Deus está ouvindo e se encontra profundamente imerso na per-
gunta “Quem sou eu?”. Minha intenção não foi, de forma alguma, contradizer
os ensinamentos de Jesus na Bíblia, mas sim imaginar como ele os obteve.
Então, como era este Jesus jovem, repleto de dúvidas e em busca da ilumina-
ção? Eu me defrontei com várias possibilidades. Poderia ter fingido que esta era
uma biografia perdida. No entanto, biografias precisam se basear em fatos e,
neste caso, são poucos os que conhecemos: os nomes dos familiares de Jesus e
quase nada mais. Jesus sabia ler? Qual era seu grau de conhecimento da Torá, a
lei divina? Ele vivia à margem da cultura romana ou circulava livremente entre os
colonos e soldados imperiais? Ninguém sabe dizer com certeza.
Estudos recentes chegam até mesmo a questionar se Jesus era de fato um
carpinteiro; alguns estudiosos afirmam ser mais provável que José, seu pai, te-
nha sido pedreiro, ou uma espécie de “faz-tudo” da época. De qualquer forma,
o Novo Testamento tampouco é biográfico. Trata-se de uma defesa parcial do
argumento de que um andarilho carismático é o tão esperado Messias. Além
disso, ele foi escrito durante um período turbulento, em que outros candidatos
a messias reivindicavam o título com o mesmo ardor.
Eu poderia ter optado por escrever uma espécie de fantasia espiritual e dar
asas à imaginação. Fantasias espirituais não têm limites, uma vez que não exis-
tem fatos para desafiá-las. Jesus poderia ter feito seu treinamento numa escola
para mágicos em Éfeso ou visitado o Partenon, onde teria se sentado aos pés
dos discípulos de Platão. Contudo, essa opção me pareceu desrespeitosa.
Por fim, eu poderia ter pegado o Jesus familiar e benquisto dos evangelhos
e trabalhado de trás para a frente. Esse teria sido um caminho mais seguro,
uma espécie de O jovem Indiana Jones que nos desse um gostinho do herói que
sabíamos estar por vir. Se os evangelhos nos revelam um homem cheio de amor,
compaixão, bondade e sabedoria, é mais do que plausível que ele tenha sido
uma criança que demonstrasse amor, bondade, compaixão e sabedoria fora do
comum. Essas qualidades teriam amadurecido até Jesus entrar em cena por

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volta dos 30 anos de idade, quando pediu a seu primo João que o batizasse no
rio Jordão.
Ao remoer todas essas possibilidades, percebi que mais de um Jesus havia
sido deixado de fora da Bíblia. Portanto, nada mais justo do que resgatar o mais
crucial de todos: o Jesus essencial que implora para ser conhecido. Para mim,
ele não é uma pessoa, mas um estado de consciência. A comunhão de Jesus com
Deus foi um processo que ocorreu dentro de sua mente. Do ponto de vista de
Buda ou dos antigos rishis (profetas) indianos, Jesus atingiu a iluminação. Este
é o meu verdadeiro tema. Um jovem capaz de se tornar um salvador descobre
seu potencial e então aprende a consumá-lo.
Espero conseguir satisfazer as mais profundas curiosidades dos leitores. Em
que consiste entrar em comunhão com Deus? Podemos trilhar o mesmo ca-
minho que Jesus? Eu acredito que sim. Ele queria nos ensinar a atingir uma
consciência mais elevada, e não apenas ser um exemplo glorioso dela. Jesus disse
aos seus discípulos que eles poderiam fazer tudo o que ele fazia e mais. Afir-
mou que eles eram a “luz do mundo”, o mesmo termo que usava para si mesmo.
Apontava para o Reino dos Céus como um estado de graça eterno, não como
um lugar distante escondido além das nuvens.
Em suma, o Jesus que foi deixado de fora do Novo Testamento acaba se
revelando, sob muitos aspectos, o mais importante para os tempos modernos.
Sua busca pela salvação ecoa nos corações de todos nós. Se não fosse assim, a
breve carreira de um rabino controverso e amplamente menosprezado que vivia
à margem da sociedade judaica do século I não teria muita importância. No
entanto, todos nós sabemos que a trajetória desse rabino desconhecido ficou
marcada para sempre como mito e símbolo. Não pretendo que o Jesus deste
livro seja adorado, e muito menos impô-lo como definitivo. Os acontecimentos
desta história são pura ficção. Porém, em um nível mais profundo, este Jesus me
parece real, pois pude ter um vislumbre da sua mente. Um insight momentâneo
pode atender muitas preces. Espero que os leitores sintam o mesmo.

Deepak Chopra
Maio de 2008

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PARTE UM


A BUSCA

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O estranho na neve

-U m cavalo! – exclamou o ajudante do templo ao entrar corren-


do, ofegante. – Depressa, venha ver.
– Por quê? – perguntei sem erguer os olhos. Eu estava
escrevendo, como fazia todas as manhãs. Meus escritos jamais chegavam aos
olhos de ninguém fora daquela cabana mal iluminada e caindo aos pedaços, mas
isso não tinha importância.
– Porque ele é enorme. Depressa, antes que alguém o roube.
– Antes que você o roube, quer dizer.
O rapaz estava tão empolgado que esparramava no chão a água quente do
balde. Ele tinha permissão para entrar na cabana e preparar meu banho logo
após o raiar do dia.
Franzi as sobrancelhas para ele.
– Onde está o seu desapego?
– O quê? – perguntou o menino.
– Achei que o sacerdote estava lhe ensinando a não se entusiasmar tanto.
– Isso foi antes do cavalo.
Para quem nasce nas partes mais altas destas montanhas, um cavalo desgar-
rado é um acontecimento marcante. De onde ele poderia ter vindo? Do império
ocidental, provavelmente, onde se criam enormes garanhões negros. Os nativos
conhecem os animais por meio da bússola. Camelos vêm do deserto orien-
tal; elefantes vêm do sul, onde começa a selva. Em todas as minhas viagens,
eu havia visto apenas um desses monstros cinzentos, que são como muralhas
ambulantes.
Do norte, para além dos desfiladeiros, vinham pôneis pequenos e peludos,
muito usados por mercadores ambulantes para chegar aos vilarejos com seus
produtos: cânhamo, seda, incenso, sal, carne-seca e farinha – artigos básicos,

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além da seda para enfeitar uma noiva na alegria ou envolver um cadáver na
tristeza.
Devolvi a pena cheia de tinta ao seu suporte e limpei as manchas pretas dos
dedos.
– É melhor largar esse balde antes que você nos afogue – falei. – Depois traga
meu manto.
Lá fora, uma tempestade havia descido dos picos altos durante a noite, açoi-
tando as peles de animais esticadas sobre as janelas e depositando sobre o chão
mais 30 centímetros de neve fresca. Saí da cabana e olhei em volta.
O cavalo não está sozinho aqui, pensei.
O rapaz não pôde esperar e desceu correndo a trilha.
– Encontre o estranho – gritei.
Ele deu meia-volta. Eu havia gritado na direção do vento e, àquela altitude,
minha voz podia ser ouvida de muito longe.
– Que estranho? – gritou de volta o rapaz.
– O que caiu do cavalo. Procure por ele. Mas procure mesmo, sem enrolar.
O ajudante do templo hesitou. Ele preferia ficar olhando boquiaberto para o
cavalo enorme, porém, encontrar um corpo na neve também tinha lá seus atrati-
vos. Então, assentiu e dobrou a trilha, desaparecendo de vista. Os rochedos que
a cercavam dos dois lados eram grandes o suficiente para ocultar um homem
adulto, quanto mais um menino franzino.
Segui o rapaz lentamente, mas não por conta da idade. Não sei quantos anos
tenho. Perdi o interesse no assunto há muito tempo. Mas ainda consigo me
movimentar sem ranger.
Eu previra a chegada do estranho misterioso dois dias antes, mas não a tem-
pestade noturna. A neve não o mataria, porém, as rajadas de vento gelado que
chegavam uivando dos picos, provavelmente sim. Nenhuma pessoa do mundo
abaixo dali estava preparada para esse tipo de frio. Eu já havia ajudado os al-
deões a resgatarem viajantes em apuros que tiveram sorte. Apenas seus narizes e
dedos dos pés ficaram enegrecidos. A princípio, eles sentiam apenas dormência
ao serem carregados para um abrigo, mas assim que a equipe de resgate aquecia
seus corpos, começavam a gritar de dor.
Todos no meu vale têm um imenso respeito pelos picos altos e seus perigos.
Mas eles também reverenciam as montanhas, que os fazem recordar como o
Paraíso está próximo. Eu não preciso do consolo do Paraíso.
Os aldeões não me chamavam mais para ajudá-los nos resgates. Incomodava-
-os que um velho asceta, que mais parecia uma árvore empenada, conseguisse
andar descalço pelas trilhas enquanto eles precisavam cobrir os pés com couro

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de cabra e pedaços de pano. Eles se reuniram durante longas noites de inverno
para discutir a questão e concluíram que eu tinha feito um pacto com algum de-
mônio. Uma vez que havia milhares de demônios na região, sem dúvida alguns
poderiam ter sido encarregados de cuidar dos meus pés.
Desci a trilha até ouvir um som fraco e distante no vento, mais parecido com
o guinchar de um roedor do que com a voz de um homem. No entanto, entendi
seu significado. Voltei-me para a esquerda, de onde vinha o som, e apertei o
passo. Tinha um interesse pessoal em encontrar o estranho com vida.
O que vi quando cheguei ao cume seguinte foi um monte na neve. O ajudante
do templo olhava para ele, que não se movia.
– Preferi esperar o senhor antes de chutá-lo – disse o rapaz. Seu rosto trazia
a mistura de medo e prazer que acomete as pessoas quando imaginam ter des-
coberto um cadáver.
– Preste atenção. Não o deseje morto. Isso não ajuda em nada – alertei.
Em vez de chutar o monte, o rapaz se ajoelhou e começou a escavá-lo com
energia. O estranho estava enterrado sob uma camada de 30 centímetros de
neve, porém isso não era o mais impressionante. Quando finalmente pude ver
os contornos de seu corpo, notei que o homem estava ajoelhado, os dedos das
mãos entrelaçados sob o queixo. O menino nunca tinha visto ninguém nessa
posição antes.
– Ele ficou congelado assim? – perguntou o rapaz.
Eu não respondi. Ao olhar para o corpo, fiquei impressionado que alguém
conseguisse continuar rezando até a morte. Sua posição também indicava que
ele era judeu, pois, à medida que se chega próximo ao oriente, os homens santos
passam a rezar com as pernas cruzadas; eles não se ajoelham.
Mandei o rapaz correr até a aldeia para apanhar um trenó e ele obedeceu sem
perguntas. Na verdade, nós dois poderíamos ter transportado o corpo; no en-
tanto, eu precisava ficar sozinho. Logo que o ajudante do templo desapareceu,
aproximei minha boca da orelha do estranho, cuja pele ainda estava bastante
cor-de-rosa, embora coberta pela geada.
– Mexa-se – sussurrei. – Eu sei quem você é.
Por um instante, nada aconteceu. Ao que parecia, o estranho continuava con-
gelado, mas eu não o abracei para aquecer seu corpo com meu próprio calor. Se
aquele fosse o visitante que eu aguardava, não haveria necessidade. Porém, abri
uma pequena concessão. Chamei-o pelo nome.
– Jesus, acorde.
A maioria das almas reage quando chamada pelo nome. Algumas são capazes
até mesmo de voltar das sombras da morte. O estranho se mexeu. A princípio,

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bem de leve; apenas o bastante para derrubar alguns flocos de neve dos cabelos
cobertos pela geada. Ele não estava degelando. Os seres humanos não são como
as carpas, que podem ficar presas no gelo o inverno inteiro e voltar à vida quan-
do o lago descongela na primavera. O estranho alcançara total imobilidade por
vontade própria e estava saindo dela da mesma maneira. Se eu tivesse deixado o
menino testemunhar aquilo, ele não teria dúvidas de que eu estava praticando
magia negra.
Jesus ergueu a cabeça e me fitou com os olhos vazios. Ainda não havia retor-
nado por completo a este mundo. Aos poucos, eu entrei em seu foco.
– Quem é você? – perguntou ele.
– Não importa – respondi.
Tentei ajudá-lo a se levantar. Jesus resistiu.
– Eu vim em busca de um homem apenas. Se não é você, deixe-me em paz.
– Ele era robusto e forte, mesmo depois de uma jornada tão árdua, e sua resis-
tência quase me fez cair para trás.
Jesus não perguntou por seu cavalo. Ele falava em grego vulgar, o linguajar
usado nos mercados do império ocidental. Provavelmente o aprendera durante
suas viagens. Eu havia aprendido um pouco de grego com os mercadores am-
bulantes quando tinha mais ou menos a idade do estranho, em torno dos 25
anos.
– Não seja teimoso – falei. – Eu vim até aqui e o desenterrei. Quem mais se
importaria com um monte de neve qualquer?
Jesus continuou desconfiado.
– Como você descobriu meu nome?
– Você mesmo já sabe a resposta – falei. – O homem certo saberia seu nome
sem perguntar.
Jesus sorriu. Então, nós dois forçamos juntos seus joelhos congelados a se
desdobrarem. Ele se levantou tremendo e caiu logo em seguida no meu ombro.
– Só um momento – disse ele.
Aproveitei aquele instante para analisá-lo. Eu era consideravelmente mais alto
que os aldeões da montanha. Jesus, por sua vez, era bem mais alto do que eu.
O cabelo e a barba negros eram curtos, aparados sem o menor esmero, como
os de um viajante sem tempo para sutilezas. Os olhos castanhos pareciam mais
escuros do que o usual contra a pele clara – isto é, clara se comparada à dos
nativos das altas montanhas, cuja tez curtida pelo sol lembra o couro de um
odre de vinho.
Jesus permitiu que eu o ajudasse a subir a montanha apoiado em meu ombro,
o que deixou claro que ele passara a confiar em mim. Não voltou a perguntar

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meu nome. Esse era um detalhe sutil, porém eu o interpretei como um sinal de
vidência. Prefiro o completo anonimato. Se você deseja a solidão perfeita, não
diga seu nome e jamais pergunte o de ninguém. Os aldeões locais não sabiam
meu nome mesmo após anos de proximidade, e eu me esquecia dos deles no
momento em que os ouvia, até o do ajudante do templo. Às vezes eu o chamava
de Gato, porque o trabalho do menino era apanhar os ratos que eram atraídos
para dentro do templo pelo cheiro de incenso e azeite.
Cerca de 800 metros depois, Jesus endireitou o corpo e começou a andar
sozinho. No instante seguinte, ele quebrou o silêncio.
– Eu o conheço por sua reputação. As pessoas dizem que você sabe tudo.
– Isso é mentira. Elas dizem que sou um idiota completo ou um adorador do
diabo. Diga-me a verdade. Você teve uma visão.
Jesus pareceu surpreso.
Eu falei:
– Não precisa esconder seu conhecimento de mim. – Lancei um olhar para
Jesus. – Não tenho nada a ocultar. Se você tiver olhos, verá.
Ele assentiu. A confiança entre nós agora era total.
Chegamos logo à minha cabana castigada pelo vento. Uma vez lá dentro,
apanhei de cima das traves do teto um pacote envolvido em panos de linho
sujos.
– Chá – falei. – De verdade, não os talos de cevada secos que eles fervem por
aqui.
Coloquei um bule com neve derretida no braseiro para ferver. Ele produziu
um calor esfumaçado, pois para os afazeres cotidianos eu queimava esterco seco
como combustível. O chão da cabana também era coberto do mesmo esterco
misturado à palha. Toda primavera, mulheres da aldeia vinham assentar uma
nova camada.
Jesus se agachou no chão como um camponês e ficou observando. Se eu sou-
besse mesmo tudo, saberia se Jesus havia aprendido a se sentar daquela maneira
com seu povo ou durante suas longas viagens. Depois do ar puro lá de fora,
os olhos do visitante lacrimejaram por conta da fumaça. Afastei uma das peles
secas que cobriam a janela para deixar uma brisa entrar.
– Você acaba se acostumando – falei.
Eu não tinha planos de colocar essa experiência no papel, embora em 20 anos
tenha recebido poucas visitas assim. À primeira vista, Jesus não tinha nada de
especial. A superstição dos ignorantes precisa transformar os que possuem um
destino extraordinário em gigantes e monstros. A realidade, no entanto, é outra.
Os olhos de Jesus eram profundos como o oceano e negros como a eternidade?

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Não. Para os iniciados, havia algo em seu olhar que palavras não conseguiriam
expressar; o mesmo, porém, poderia ser dito de uma aldeã paupérrima trans-
bordando de amor ao ver seu bebê recém-nascido pela primeira vez. Uma alma
contém todas as almas; nós é que nos recusamos a ver isso.
Pela mesma lógica, todas as palavras contêm as palavras de Deus. Esta é
outra coisa que nos recusamos a ver. Jesus falava como uma pessoa comum. No
entanto, nem todos falam como Jesus, o que é um mistério.
Durante aquela primeira hora nós bebemos o chá preto, que em respeito ao
visitante eu preparara forte, como manda o figurino, e não fraco como eu cos-
tumava tomá-lo. Meu estoque precisava durar o inverno inteiro.
– Acho que entendo o seu problema – falei.
– Você quer dizer o motivo que me levou a procurá-lo? – perguntou Jesus.
– Dá no mesmo, não? Você encontrou Deus, mas isso não foi o suficiente.
Nunca é. A fome eterna é a pior fome de todas.
Jesus não pareceu surpreso. O homem certo falaria dessa forma, sem rodeios.
Quanto a mim, já havia recebido minha cota de jovens exaltados que subiam a
montanha com suas visões. Depois que seu ardor se extinguia, eles iam embora
rapidamente, levando consigo as cinzas de suas visões.
– Encontrar Deus é uma coisa – falei. – Tornar-se Deus é outra. Não é isso
que você quer?
Jesus pareceu chocado. Ao contrário daqueles outros jovens eufóricos, ele
chegara a mim não por vontade própria, mas guiado por uma força invisível que
o conduzia pela mão como a uma criança.
– Eu não colocaria isso dessa maneira – disse ele com sobriedade.
– Por que não? Não me diga que está preocupado com blasfêmia, não a essa
altura. – Dei uma risada que soou como um latido curto e fraco. – Certamente
você já foi acusado de “blasfêmia” centenas de vezes. Não se preocupe. Nin-
guém está olhando por cima do seu ombro. Quando eu fecho a porta, até os
deuses locais são obrigados a ficar do lado de fora.
– Não o meu.
Após essa troca de palavras, não conversamos mais. Em vez disso, ficamos em
silêncio, enquanto o bule chiava no braseiro. O silêncio não é um vazio. Ele car-
rega em si a possibilidade do que está prestes a nascer. O silêncio é o mistério
do qual eu me ocupo. Silêncio e luz. De modo que não foi difícil reconhecer a
luz que Jesus trazia dentro de si.
No entanto, isso não era tudo. O caminho daquele homem havia sido traçado
antes do seu nascimento. Por ser jovem, Jesus tivera apenas um vislumbre dele.
Porém, outra pessoa talvez pudesse enxergar mais claramente seu percurso, sem

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lágrimas nos olhos. Por isso ele havia sido conduzido através da nevasca, para
que nossas duas visões se entrelaçassem.
Ele adormeceu sentado ali, vencido pelo cansaço. Na manhã seguinte, come-
çou a me contar sua história. À medida que as palavras fluíam de sua boca, o
frio e a escuridão da cabana tornavam seu relato irreal. Contudo, isso já era de
se esperar. Havia muito que Jesus desconfiava estar vivendo num sonho.
Eu escutei suas palavras e pude ver muito além delas em minha mente. Ouça
a história e julgue você mesmo.

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