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...Os suspiros de Pedrinho se espaçavam mais distantes, e seu corpinho ardia em febre alta.

Quando ouvi o trote dos cavalos do coche, já imaginava que o médico e o padre fossem
agentes de outro mundo, para levá-lo. Que desespero. Isabel superou bem a febre.

O historiador estava exausto. Lutou para decifrar a caligrafia tremida do Imperador. Alguns
sussurros e vozes ecoavam naquele salão. Passos percorriam os corredores de livros.
Levantou-se e caminhou em direção à máquina de café. Muitos estudantes e curiosos. Eles
não sabem nada. A verdade se esconde nesses salões, mas é preciso luta para encontrá-la. As
mentes mais bem dispostas não encontram saída percorrendo esses labirintos de documentos
esquecidos.

Lembrou-se dos seus filhos, que estavam essa hora na escola. Lembrou os filhos do
Imperador Dom Pedro II; poderiam ter sido os seus, doentes e sem ajuda em uma fazenda
distante.

Havia um grupo de pessoas diante de um auditório. O cartaz anunciava uma mesa redonda
sobre a independência do Brasil, promovida por seu orientador. Duzentos anos
arbitrariamente decididos por um evento, um brado diante de um rio. Alguns alunos vieram
cumprimentá-lo, oi professor, como anda sua tese? É sobre o quê mesmo? E ia passando e
tentando ser simpático com todos. Pensou em buscar seus filhos, mas depois mandou uma
mensagem delegando a missão à sua esposa.

O orientador estava no café.

- João, como anda nossa tese?

- Não encontro saída. Ainda estou pesquisando esses documentos velhos.

Ele preparou uma dose de café latte. Queria se desvencilhar do velho mestre. Sabia que estava
procrastinando ao se deter em dramas pessoais de pessoas do passado ao invés de recompor a
ordem dos eventos. O orientador permaneceu em silêncio, e ele se sentiu forçado a continuar a
conversa:

- Professor, uma cabeça coroada, e mesmo nascida no Brasil, não sei se significa realmente
qualquer mudança substancial na vida comum. Mesmo na proclamação da República. Eu
estou em dúvida se o povo realmente sentiu algo real em suas vidas com as mudanças da
independência, de regimes, de reinados.
- Meu filho, isto é evidente. Vou indo ao auditório.

Permaneceu em silêncio diante do balcão de madeira, olhando para a máquina. Alguém


passou recitando e traduzindo um trecho de John Milton, Ele sendo nossa escuridão, não
podemos Sua luz imitar quando bem quisermos?

Ele pensou sobre o último trecho lido. Isabel superou bem a febre. Frio. O drama estava na
perda do sucessor. O segundo filho de Dom Pedro II que morrera. Aquilo abalou a forma
como o Imperador encarava a vida, o tempo, a salvação do Império. Se perdesse meus filhos,
como veria a vida? Pedrinho, cedo retirado da terra, levou do imperador tudo aquilo que a
alma de um homem guarda de sublime e puro. Todas as possibilidades, todos os sonhos que
não seriam mais vividos. O velho imperador magnânimo, intelectual, frequentava em sua
imaginação os salões e cortes dos homens da antiguidade, talvez procurando uma esperança
para o futuro. A morte sempre presente em sua vida, recordando-lhe que uma coroa não quer
dizer nada diante dos desígnios de Deus ou do destino. Cedo perdeu seu pai e sua mãe, sua
irmã, seus filhos, sua filha, e finalmente seu império. Quase duzentos anos depois, até parte de
sua memória foi destruída por um incêndio, cataclismo da negligência. O que lhe restava
quando finalmente partiu? Apenas Isabel, a Imperatriz do reino de outro mundo. Se ele não
tinha esperanças, pelo menos as orações de sua filha poderiam guiar sua alma para um lugar
não muito ruim.

Retornou à larga mesa, e selecionou uma carta datada de outubro de 1823, endereçada a um
jornal:

...o vai e vem de estivadores e vagabundos no porto não demonstra a agitação política de
nossos dias. Ladrões aproveitam a oportunidade para recrutar prostitutas e assaltar os
estrangeiros. Mendigos catam restos de comida e mercadorias abandonadas...

Não era isso que procurava. Estava enfadado de ler as sessões da Constituinte,
correspondências, livros ultrapassados. Seu orientador era um velho professor que viveu a
juventude nos anos 60 e 70. Até quando ideias importadas teriam voz predominante no
Brasil? Ao contrário de seu mestre, encontrava a Independência Brasileira apenas naqueles
homens mais simples sem importância alguma à história, e lampejos em homens importantes
esquecidos. Sua tese caminhava para trás.

Encerrou os estudos por hoje.

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