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HOME / VOL. 3 | N.º 2 / RÉQUIEM PARA HILDA HILST | EDSON COSTA DUARTE (CAMPINAS, SP, BRASIL)
Hilda, amantíssima, hoje nasceu uma pequena or azul, aqui no quintal de casa, e logo me lembrei de você,
daquele seu colar de sa ras azuis, que você às vezes queria usar porque tinha lido, na Autobiogra a de um Iogue,
do Yogananda, que sa ras azuis eram muito boas para a saúde das pessoas. Aí, numa sucessão veloz do
pensamento, me lembrei do seu poema das éguas que tinham manchas azuladas em seus dorsos, e do
maravilhoso quinto poema das tuas “Odes maiores ao pai”, que nunca canso de revisitar. É m de tarde, e a
chuva cai, há raios e trovões, e sei que você caria em pânico nesta hora. Por m, entro e vou beber água, os
cantos ali, aqueles mesmos que você escreve que nunca são notados, ninguém dá nenhuma importância para
eles, e os cantos agora pulsando, reverberando em mim a lembrança de ti que não, nunca cessa de me
acompanhar.
Depois, vou aos livros, releio o poema para seu pai Apolônio. Não me contenho. Há aquele nó na garganta.
Aquele umedecer dos olhos, como se um algo indescritível transbordasse em mim, como se a moringa de água
já estivesse cheia demais, ou a eclusa se rompesse. Chorei potes, querida, como costumo dizer. Será por que
meus olhos andam tão úmidos estes últimos tempos? Será que é por causa de tanta chuva? Pensar e repensar a
nitude, a morte. Obsessão? Morbidez? Você sempre a rmou que não, que não era porque uma pessoa escrevia
pornogra a que ela era pornógrafa, e nem era mórbida se ela escrevia sobre a morte.
Onze anos se passaram como passa veloz uma lufada de vento. Haverá comemorações, com certeza, eventos,
falas, homenagens vão pulular como pipocas pulando céleres na panela do tempo. Talvez haja pouco tempo
para pensar na nitude, e muita festa, como se fosse Ano Novo, dia dos namorados etc.
Você virou um personagem, um mito, minha nega (lembra a Lídia, nossa amiga de Jundiaí, uma mulher rica e
elegante, chamando você assim, desde a primeira vez que veio nos visitar?). Sua literatura, Hilda querida, vai
permanecer, como você disse várias vezes em vida. Você estaria contentíssima se estivesse viva, porque
nalmente estaria colhendo os frutos de seu trabalho. Mas a celebridade tem um preço, como escreveu Clarice
Lispector: “Se eu fosse famosa, teria minha vida particular invadida, e não poderia mais escrever. O autor que
tenha medo da popularidade, se não será derrotado pelo triunfo.” Como você, Clarice teve alguma notoriedade
em vida, mas não ganhou dinheiro su ciente para viver bem apenas com os frutos de seu trabalho. Clarice só foi
enterrada dignamente graças à ajuda de amigos.
Você disse numa entrevista que era megalômana mesmo, que tinha escrito um trabalho de primeira qualidade.
Imagino você aqui, agora, mais megalômana ainda, tendo que fazer como o Henry Miller, que depois da fama,
mudou-se para Big Sur, na Califórnia, mas aos poucos esta praia deserta onde ele morava se converteu num
centro de peregrinação, e o coitado foi expulso do lugar, tendo que se mudar de um lugar para outro o tempo
todo. Para onde você iria? Fico pensando que você se mudaria para dentro de você, numa modesta casinha,
mínima, que nem ninguém te encontraria mais aqui na Terra.
Seu senso de humor era impagável, quando a gente estava negociando a compra de seu arquivo pessoal com o
Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulalio, da Unicamp, você estava apreensiva e brava com a demora
da compra, mas mesmo assim escreveu o seguinte para as pessoas encarregadas de realizar a transação:
Tenho cado no quintal, nestas lentas madrugadas, olhando para o céu, pensando se você está mesmo em
Marduk, ou na quinta Galáxia depois de Andrômeda, quem sabe agora você é uma das estrelas da constelação
de Pegasus, mas minha inclinação é de que você está mesmo morta, enterrada embaixo da terra, enquanto eu,
que maçada, ainda VIVO. Você sempre brincava que, quando a morte viesse, você diria: “Que maçada!” Vittorio, o
protagonista de seu último livro, Estar sendo. Ter sido (1997), disse:
A BUÇA NEGRA VEM VINDO. PUNHAL. VELHICE. ADAGA. CUSPO-LHE NA CARA. ELA SE ARREGAÇA LASSA. MORTE.
AMADA.
ANEXOS
Hilda Hilst (Jaú, 21 de abril de 1930 — Campinas, 4 de fevereiro de 2004) foi uma poeta, ccionista, cronista e
dramaturga brasileira. É considerada pela crítica especializada como uma das maiores escritoras em língua
portuguesa do século XX.
“Se me tocares,
Amantíssima, branda
Ao invés de Morte
Te chamo
Poesia
Sorte.”
“um dia me disseram: as suas obsessões metafísicas não nos interessam, senhora D, vamos falar do homem
aqui e agora. que inteligentes essas pessoas, que modernas que grande cu aceso diante dos movietones,
notícias quentinhas, torpes, dois ou três modernosos controlando o mundo, o ouro saindo pelos desodorizados
buracos, logorreia vibrante moderníssima, que descontração, um cruzar de pernas tão à vontade diante do
vídeo, alma chii morte chii, falemos do aqui agora.” A obscena senhora D
E as manhãs morriam
Uníssonas, resfolegavam.
[esquecer-te
De soltar estas âncoras e depois orir sem ao menos guardar tua ressonância.
“Não me sinto atraída pela fama. Mas é lógico que, como escritora, quero ser consumida.” (Sem indicação de
autor. Shopping News, São Paulo, 12 jan 1978)
“Fiz um excelente trabalho, de primeira qualidade. Sou meio megalômana mesmo. (STYCER, Mauricio. Hilda Hilst.
Folha de São Paulo, São Paulo, 16 abril 1997.)
“ Falei sobre a morte, mas nunca me chamaram de mórbida por causa disso porque seria uma tolice imensa.
Quando iniciei minha trilogia erótica, achei que poderia ser o palhaço da literatura. Já que ninguém me lia, podia
fazer o que quisesse. Fiz, e deu certo.” (Felipe Araújo. Diário do Nordeste. Fortaleza, Ceará, 15 de janeiro de 2002.)
“Ano passado eu fui a uns debates, uma coisa de educadores, e uma senhora me perguntou por que eu escrevia
assim, dessa forma tão angustiada. Eu respondi: “Minha senhora, nós temos basicamente sete orifícios. Se a
senhora não os lava a cada dia, a senhora fede. Isso não a angustia?” Criou-se um problema horrível. Sim, a mim
angustia profundamente ter de fazer essas coisas todo dia. Vem a história da nitude, da degradação do corpo.
A carne acaba, e depois disso – depois disso, nada.”[1] ([1]ABREU, Caio Fernando. A festa erótica de Hilda Hilst.
Revista A-Z (nº 126). São Paulo, 1990.)
“Desde menina essa era uma interrogação constante. A morte me abalava muito. O que é morrer? Mas como
morreu? As crianças normalmente se perguntam sobre isso, mas acho que as coisas me abalavam demais. Essa
compaixão que não me deixa até hoje saborear a vida com muita intensidade! Estou sempre preocupada com o
que me rodeia, que as árvores vão morrer, que os bichos, os amigos, eu mesma. Você ser feito de carne, ter
vísceras e sangue, e tudo, e essa compulsão de car se olhando e pensando, que coisa impressionante, tudo se
movendo dentro de você e daí depois tudo isso termina. (…) Eu sempre muito comovida com a vida, com a
morte, com o amor.”( Sônia Amorim Mascaro. Hilda Hilst. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21 jun. 1986.)
“A paisagem que mais me agrada é a vida. A vida para mim é uma experiência vigorosa a cada dia. Eu gosto
muito de olhar as coisas, de car olhando os pássaros, à noite, mas não há nada de lírico nisso. É uma coisa
interiorizada, questionando o que é essa dimensão na Terra, o que os homens estão fazendo no espaço. (Sem
indicação de autor. A amarga tarefa de criar num país sem letras e sem poesia. Diário do povo, Campinas, 27
mar. 1988. )
“Os 40 anos de escrivaninha não zeram de Hilda uma unanimidade. Hilda dissimula, brinca, diz que jamais será
lida, que as pessoas a confundem com uma tábua etrusca. Descon a que, se não tivesse herdado da mãe a
gleba idílica, a ponte do desterro seria seu paradeiro.”
“(…) Hilda, acho que demorou muito tempo para descobrir o que é que queria. Ela quer ser professora visitante
da universidade, ela quer vender muito livro, ela quer aparecer nas páginas de crítica… Talvez por isso a crítica se
irrite tanto com ela, porque Hilda nesse sentido é mais opaca (que Márcia Denser). Como ela não dá a chave em
que pretende ser lida, ca mais complicado lidar com ela. Acho que os circuitos disponíveis para cada uma
dessas senhoras têm que ser levados em consideração dentro dos parcos percursos disponíveis na literatura
brasileira.”
“Entre decifrar e interpretar há uma diferença básica; aquela que se pode achar entre um hieróglifo egípcio, ou
uma inscrição etrusca e uma peça de Eurípedes ou uma parábola evangélica. Hilda, escritora, poeta, teatróloga é
mais perto da inscrição etrusca e do hieróglifo egípcio. (…) (Hilda) escreve um livro para pouquíssimos que
compreendem, para muitos que a rmam que compreendem (mas não compreendem) e para muitíssimos que
não têm a coragem de declarar que nada compreenderam. Hilda escreve para si mesma, para sua torre e
mar m, dedicada ao indecifrável.”
(Lembranças do passado. Vogue (no 59), São Paulo, Carta editorial, maio de 1980)
“Megalômana e ressentida, é como se confessa e admite, mas também grande solitária, buscando
ocasionalmente na fuga alcoólica o mundo brilhante que o mundo lhe parece negar. É a provocadora
sentimental, lutando contra a indiferença: ‘Essa modesta articulista que eu sou, escreveu textos e poemas
belíssimos e compreensíveis, e tão poucos leram os compraram meus livros…’ A queixa é justa, podendo ser
repetida por praticamente todos os poetas. É pungente pensar que Hilda Hilst vale mais, muito mais, do que
muito do que escreveu na esperança de chamar a atenção para o que vale.”
EDSON COSTA DUARTE estudou Letras na Unicamp, onde também fez mestrado sobre a obra de Clarice
Lispector. Entre os anos de 1992 a 1996, organizou o acervo documental da escritora Hilda Hilst, que foi
negociado em duas partes com o Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulálio”, Instituto de Estudos da
Linguagem, Unicamp, em 1995 e em 2002. Em 2002, mudou-se para Florianópolis para fazer seu doutorado, na
UFSC, sobre a poesia de Hilda Hilst. Desde 2006 voltou a morar em Campinas. Entre 2007 e 2009, fez um pós-
doutorado sobre a prosa de Hilst, sob supervisão do professor Dr. Jorge Coli, do Instituto de Filoso a e Ciências
Humanas, Unicamp. | DUARTEAZUL@IG.COM.BR
[1] ABREU, Caio Fernando. A festa erótica de Hilda Hilst. Revista A-Z (nº 126). São Paulo, 1990. p. 61.
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