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Sumário

1. Capa
2. Folha de rosto
3. Sumário
4. Escrevo estas linhas

5. TRÊS POETAS ROMÂNTICOS


1. Fagundes Varela, solitário imperfeito
2. No jardim público de Casimiro
3. O sorriso de Gonçalves Dias

6. NA RUA, COM OS HOMENS


1. Recordação de Alberto Campos
2. Dois poetas mortos de Minas Gerais
3. Pessimismo de Abgar Renault
4. O secreto Emílio Moura
5. Segredo e atualidade de Schmidt
6. Autobiografia para uma revista
7. Suas cartas
8. Estive em casa de Candinho
9. Poesia e utilidade de Simões dos Reis
10. Morte de Federico García Lorca
11. Mauriac e Teresa Desqueyroux
12. Boadella entre elefantes
13. O simpático William Berrien

7. CONFISSÕES DE MINAS
1. Vila de Utopia
2. Viagem de Sabará
3. Teatro daquele tempo

8. QUASE HISTÓRIAS
1. Conversa de velho com criança
2. Lembro-me de um padre
3. Leonor, Emília, Marieta
4. Morreu um chofer
5. Um escritor nasce e morre
6. Esboço de uma casa

9. CADERNO DE NOTAS
1. Purgação
2. Poesia do tempo
3. Velha casa
4. Literatura infantil
5. Morte de um gordo
6. Religião e poesia
7. Questão de corpo
8. O livro inútil
9. Ternura diante do retrato
10. Linguagem
11. Bondade
12. Neblina
13. Georgina
14. Pontuação e poesia
15. Um sinal
16. A coisa simples
17. Nu artístico
18. Moda literária
19. Prodígio
20. Enquanto descíamos o rio
21. A voz pelo telefone
22. Vinte livros na ilha
23. Natal USA, 1931
24. Enterro na rua pobre
25. Os fotógrafos vegetais
26. Número 10 mil
27. A rua assombrada
28. Canto de Natal no bonde
29. O cotovelo dói

10. Posfácio: Um livro único, MILTON OHATA

11. Leituras recomendadas


12. Notas de edição
13. Cronologia
14. Créditos
Landmarks

1. Cover
2. Body Matter
3. Table of Contents
4. Copyright Page
COLEÇÃO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
CONSELHO EDITORIAL

Antonio Carlos Secchin


Davi Arrigucci Jr.
Eucanaã Ferraz
Samuel Titan Jr.
CONFISSÕES DE MINAS
Escrevo estas linhas em agosto de 1943, depois da batalha de
Stalingrado e da queda de Mussolini. Meu livro vai para o linotipista.
Não quis que se compusesse sem acrescentar-lhe algumas palavras,
menos de explicação ou desculpa do que de exame da conduta
literária diante da vida.
É um livro de prosa, assinado por quem preferiu quase sempre
exprimir-se em poesia. Esse suposto poeta não desdenha a prosa,
antes a respeita a ponto de furtar-se a cultivá-la. Seria inútil repisar o
confronto das duas formas de expressão, para atribuir superioridade
a uma delas. Mas a verdade é que se a poesia é a linguagem de
certos instantes, e sem dúvida os mais densos e importantes da
existência, a prosa é a linguagem de todos os instantes, e há uma
necessidade humana de que não somente se faça boa prosa como
também de que nela se incorpore o tempo, e com isto se salve esse
último.
Não há muitos prosadores, entre nós, que tenham consciência do
tempo, e saibam transformá-lo em matéria literária. Frequentemente
a literatura se faz à margem do tempo ou contra ele — seja por
incapacidade de apreensão, covardia ou cálculo. Daí o vazio e o
desconforto do texto literário, como a insatisfação que ele desperta
em cada vez mais descrentes leitores. E pouco importa que haja
muitos leitores, uma vez que não amem o autor nem se confessem
devedores de alguma coisa tirada ao livro.
Este livro começa em 1932, quando Hitler era candidato
(derrotado) a presidente de República e termina em 1943, com o
mundo submetido a um processo de transformação pelo fogo. Os
que tiveram a sorte de viver em tal período serão bem mesquinhos
se se embriagarem com a vaidade do espectador de um drama
exemplar ou com a do passageiro do transatlântico de luxo. Eles
próprios terão de confessar-se transformados, mais sérios e
esclarecidos, mais determinados quanto aos problemas
fundamentais do indivíduo e da coletividade. Não lhes bastará fazer
uso contínuo da palavra “cultura” ou da palavra “justiça”, mas antes
devem contribuir com tudo o que tenham de bom para que essas
palavras assumam o seu conteúdo verdadeiro ou, então, sejam
varridas do dicionário.
Declaro honestamente que falta a meu livro isso que para mim,
neste domingo de agosto, é o mais precioso de tudo: falta-lhe o
tempo, com suas definições. As páginas foram-se escrevendo mais
para contar ou consolar o indivíduo das Minas Gerais, e dizem bem
pouco das relações desse indivíduo com o formidável período
histórico em que lhe é dado viver. Mesmo assim, não as desprezo.
Dou-as como um depoimento negativo, indicando aos mais novos que
devem formular depoimentos positivos, autênticos e até mesmo
impiedosos, se for o caso.
Já não tenho medo de escravizar-me à vida, e acho que uma
sutileza que não resista à prova da convivência mais larga é apenas
um vício. E digo aos rapazes: Rapazes, se querem que a literatura
tenha algum préstimo no mundo de amanhã (o mundo melhor que,
como todas as utopias, avança inexoravelmente), reformem o
conceito de literatura. Já não é possível viver no clima das obras-
primas fulgurantes e… podres, e legar ao futuro apenas esse saldo
dos séculos. Reformem a própria capacidade de admirar e de imitar,
inventem olhos novos ou novas maneiras de olhar, para merecerem o
espetáculo novo de que estão participando. Se lhes disserem que
nada disso é novo e que já houve guerras, e depois armistícios e
depois outras guerras etc. etc., não levem a sério essa falsa
experiência histórica, que impede qualquer melhoria da história. Se
tudo foi dito, então o remédio é o suicídio sob qualquer de suas
formas, inclusive a do beato e precário contentamento de existir na
época do rádio e das roupas de vidro. Prefiro acreditar que nada foi
feito nem escrito nem descoberto. Que estamos começando a
nascer, e que os gênios nacionais e estrangeiros não foram ainda
inventados. Porque antes negá-los todos do que viver esmagado por
eles, e como pesam!, de todo o peso da aceitação e da facilidade.
Não estou pois dentro deste livro de retalhos, e sim fora dele. Mas
sinto que foi um caminho pelo qual cheguei a uma excelente cidade,
de ruas largas e populosas. Ele abriu minhas gavetas secretas.
Libertou-me de alguns fantasmas particulares. Agiu. Hoje não
escreveria quase nada do que aí se contém, mas por isso mesmo a
sensação de desprendimento e liberdade é maior. Vamos andando.
TRÊS POETAS ROMÂNTICOS
FAGUNDES VARELA, SOLITÁRIO IMPERFEITO

Minha casa é deserta; na frente


Brotam plantas bravias do chão,
Nas paredes limosas — o cardo —
Ergue a fronte silente ao tufão.

De deserto em deserto se acampando


Os pastores da Arábia a vida passam;
Como eles vagabundo, — eivado o seio,
De dor em dor com vagarosos passos
Atravesso os desertos da existência!

Minh’alma é como o deserto


De dúbia areia coberto,
Batido pelo tufão;
É como a rocha isolada
Pelas espumas banhada,
— Dos mares na solidão. —

De quem parte esta voz desanimada? Certamente de um velho, e


velho não somente por ter vivido muitos anos, mas por ter
experimentado todas as dores e ruindades da vida? De um eremita,
como os há tantos, sem fé, e que trocando o século pelo
recolhimento se sentiu mais vazio do que antes? Nada disto. O poeta
que assim se declara sozinho no mundo e se compara a uma
paisagem áspera tem vinte anos, nasceu em terra fértil e tempo
áureo: o tempo da aristocracia do café e da cana-de-açúcar. Seu pai
é bacharel em direito. As biografias são parcas de informação, mas
esse bacharel do Rio Claro que não sabe enriquecer à sombra do
regime econômico em que repousa o Império, e que vai ser juiz em
Goiás, levando consigo o filho de onze anos numa viagem espantosa,
sem pouso a não ser sob as árvores da estrada, explica um pouco,
talvez, o adolescente sombrio, inadaptado, desiludido, feroz, tímido e
sarcástico (porque é também sarcástico, e tanto faz troça do rei
como escreve canções libertinas, ao jeito de Omar Khayyam, no
verso das notas de 10$000).
Vinte anos é uma bela idade, mas tem o inconveniente de não se
dar a conhecer senão depois que a perdemos. Para quem chega aos
cinquenta, não há tempo mais doce; quando se tem vinte anos, é um
inferno. A alma não se encontrou ainda, mas julga haver-se
reconhecido. Tudo é triste e velho, não há esperança nem
ingenuidade. É impossível ser otimista quando ainda não houve
sofrimento nem foi avaliado o preço da vida. A mocidade nutre-se de
equívocos, e às vezes chega a morrer deles; exemplo: Álvares de
Azevedo.
Álvares de Azevedo havia morrido já há nove anos, quando o moço
Fagundes Varela declarava ter a alma deserta, numa casa deserta.
Estamos em 1861. Junqueira Freire: morto há seis anos. Casimiro de
Abreu: morto há um ano. Castro Alves é apenas um menino baiano
que faz sonetos em homenagem ao diretor do colégio; tem catorze
anos e Varela ignora-o. Machado de Assis tem 22 anos e sua lira
hesita ainda entre a grandiloquência e a discrição; esse mulato tão
sutil e exigente, a essa época, poetava sobre Mont’Alverne,
chamando-o de “régio crânio”. Não pode interessar a Varela, que
sendo mais moço já avançara mais em poesia. Apenas um grande
poeta está vivo e agindo, Gonçalves Dias. Tem 41 anos e é enorme,
como acentua José Veríssimo, sua “ação de presença” sobre Varela.
Três anos depois, desaparece o cantor dos Timbiras, e o poeta dos
Cantos do ermo e da cidade diz dele, como elogio maior:

Mavioso cantor das soledades!

Mas Varela chora também “o tímido Abreu”, “Aureliano Lessa, o


desditoso”, “Franco de Sá, débil mancebo”, Basílio da Gama,
“grande no nome, nas desditas grande”. Todos morreram ou se
preparam para morrer diante de seus olhos, e o tempo não “concede
ao gênio o respirar ao menos”. Fagundes Varela sente-se
abandonado entre os homens que não são poetas. O barulho
circunstante atordoa-o, irrita-o. As imagens urbanas não têm sentido
para ele, salvo um sentido de corrupção e vaidade. Não há comércio
possível entre a alma do poeta e os fazendeiros de café de São
João Marcos, os ginasianos de Petrópolis, os acadêmicos de São
Paulo, os doutores do Recife. O poeta está só, só, só:

A Providência que os coqueiros une


Quando a tormenta pelo espaço ruge,
Até o braço de um irmão vedou-te,
Ó planta solitária!

Diz Mauro ante o cadáver da irmã, e a exclamação se aplica ao


próprio cantor, não obstante contar ele com dezesseis irmãos,
completamente inúteis para salvá-lo da destruição em que se foi
consumindo.
Todas as solidões se lhe desvendam, a esse especialista da
solidão, que se compraz em anotá-las. A solidão do inseto:
Quem és tu, pobre vivente,
Que passas triste e sozinho,
Que tens os raios da estrela,
E as asas do passarinho?

A solidão do pássaro:

Desprende a voz adorada,


Namorada,
Poeta da solidão,
Ah! vem lançar com encanto
Mais um canto
No livro da criação.

A solidão da pedra:

Como é sentido o canto que murmuras,


Ó gênio dos rochedos solitários!

A solidão da casa:

Corre, pois, vendaval das tormentas,


Hoje é tua esta morna soidão!
Nada tenho, que um céu lutulento
E uma cama de espinhos no chão!

A dupla solidão do mar e da noite:

Oh! eu te adoro como adoro a noite


Por alto-mar, sem luz, sem claridade,
Entre as refregas do tufão bravio
Vingando a imensidade!

A solidão de um homem morto:

Surdo sejas aos ecos da trombeta


Em teu leito de pedra enregelada;
Findem-se os mundos, e a existência tua
Fria se apague na soidão do nada!

A solidão do cego:

Dize, dize que me escutas!


Que nas lutas
Da vida achei um farol!
Ah! tem dó de meus pesares…
Se falares
Meus olhos verão o sol!

A solidão (um tanto ridícula) do guerreiro:

Sobre uma ilha isolada,


Por negros mares banhada,
Vive uma sombra exilada,
De prantos lavando o chão;
E esta sombra dolorida,
No frio manto envolvida,
Repete com voz sumida:
— Eu inda sou Napoleão.

A solidão do poeta:

As auras do verão, nas regiões formosas


Do mundo Americano, as virações cheirosas
Parecem confundidas rolar por sobre as flores
Que exalam da corola balsâmicos odores;
As leves borboletas em bandos esvoaçam;
Os reptis na sombra às árvores se enlaçam;
Mas só, sem o consolo de um’alma predileta,
Descora no desterro a fronte do poeta!…

A solidão da alma:
Minh’alma é como um deserto
Por onde o romeiro incerto
Procura uma sombra em vão;
É como a ilha maldita
Que sobre as vagas palpita
Queimada por um vulcão!

Esta última solidão, de resto, acha-se presente em toda a obra. É


um dos seus temas mais caros. Fagundes Varela considera-se só,
no meio de tudo:

[…] este exílio, do rumor no centro,


Onde pranteio desprezado e só?

Pouco importa que ele se ponha a vagar, a pé, a cavalo, de verdade


ou na imaginação. Torna-se um errante, um exilado, faz praça de
vagabundo, ou seja, de homem que procura estabelecer novos
contatos com o mundo. A solidão o acompanha:

O meu destino é vaguear e sempre!

Eu passava na vida errante e vago


[…]
Vi-te; e nas chamas de fervor profundo
A teus pés afoguei a mocidade
[…]
Mas ai! cedo fugiste!… da soidade,
Hoje te imploro desse amor tão fundo
Uma ideia, uma queixa, uma saudade!

Repete dez vezes em um poema:


O exilado está só por toda a parte!

Leia-se por acaso:


[…] neste exílio que infernal me cerca.

Amo o cantor solitário


Que chora no campanário
Do mosteiro abandonado,

Deixa passar a douda caravana,


Fica no teu retiro […]
[…] conheço a senda
Que ao repouso conduz.

[…] sonhador proscrito,


Que vagueia nos desertos,
Alma cheia do infinito,
Pedindo a Deus um consolo
Que o mundo não pode dar?

E busco altivo as solidões profundas


Que dormem quedas do Senhor aos pés.

De plaga em plaga como o hebreu maldito


Refugiei-me em vão,

Andar e sempre andar! O globo inteiro


Pedindo atravessar como Caim!
Não é preciso mais. “Deserto”, “ermo”, “proscrito”, “exílio” são
palavras que a todo instante fluem dessa boca amarga. Estamos
diante de um solitário.
Mas olhe-se mais de perto esse solitário e ver-se-á que ele
pertence à espécie dos que não amam a solidão. Dos que têm medo
dela. Alguns dos seus versos, aqui e ali, denunciam certo
desapontamento, certa irritação produzida pelos contatos infelizes
com o mundo. Dir-se-ia que o mundo o repeliu, ou, quando menos, o
ignorou:

Passei tristonho dos salões no meio,


Atravessei as turbulentas praças
Curvado ao peso de uma sina escura;
As turbas contemplaram-me sorrindo,

A palavra “desprezo” é difícil de pronunciar:

Ah! que eu não possa me esquivar dos homens


[…]
Que busco pasmo nos salões dourados?
Verme do lodo me desprezam todos

E o orgulho continua doendo sempre:

Como Fausto e Manfredo eu tive amigos,


Fiz bem a muitos homens…
… De tudo o que tirei? — enojo, — tédio,
Angústias e martírios!

Não somente o amigo, mas também a mulher deve tê-lo


desencantado, para que ele diga com melancolia:

Por que teu nome vem ferir-me o ouvido,


Lembrar-me o tempo que passei no mundo?
E não há humildade, há vingança no gesto com que se volta para o
mar:

[…] ditoso no teu seio


Zombo do mundo que meu ser esmaga,

Há que desconfiar desse solitário. Ele não traz a solidão consigo


como a própria atmosfera do seu espírito, um dado do ser. Adquiriu-
a e vive a lamentar-se por isto. Por exemplo, tem medo de vir a
morrer sozinho:

Mísero! ao leito de final descanso


Ninguém meu sono velará chorando.

Socorre-se de Deus, para que o não invada o pavor dos sítios


desertos:

Ah! que seria a vida,


Tão tétrica e dorida,
Sem teu saber sem termos
Que quando o triste cansa,
Povoa de esperança
Os mais medonhos ermos?

O ermo é às vezes, para ele, não um lugar de fuga, mas


precisamente de comércio:

Quando no ermo a teus sorrisos, fada,


Verei de novo rebentar um mundo?

Sou moço ainda; de meu seio aos ermos


Posso-te louco arrebatar comigo;
De um mundo novo na solidão sem termos
Deitar-te à sombra de amoroso abrigo!
*

E esses tão lindos planos de esperança


Que a sós na solidão traçamos juntos.

De resto, é orgulhoso o seu isolamento, e o poema “Resignação”


vale por um desabafo de tímido, em que as feridas se abrem por
trás do condoreirismo:

Gigante da soledade,
Tenho na vida um consolo:
Se enterro as plantas no solo,
Chego a fronte à imensidade!

Solitário, sim, mas por compensação, depois de o ter sido a


contragosto:

Rejeito as glórias de falaz porvir,


Galas e festas, o prazer talvez,
E busco altivo as solidões profundas
Que dormem quedas do Senhor aos pés.

[…] Ricas de gozos que não tem o mundo,


Pródigas sempre de beleza e paz!

Não é possível duvidar da trágica sinceridade com que ele vitupera


as aglomerações urbanas e exalta o campo desimpedido, porque
Varela se tornou um bicho do mato e aparecia, como um fantasma,
nas fazendas do estado do Rio; mas há razão para admitir que o
poeta trocou a rua pela floresta porque aquela não lhe deu carinho
nem compreensão. A começar pelo desembargador de Niterói, que
profetizara: “Nunca serás bom poeta”, e que achando sublimes as
estrofes de Varela apresentadas como de Camões, declara
medonho o trecho camoniano assinado por Varela…
O seu excelente biógrafo Edgard Cavalheiro, registrando a viagem
a Goiás, diz que “a natureza forjara nele um dos seus maiores
cantores, mas, na alma da criança sensível, o sentimento da solidão
ficou para sempre gravado”. Reconhece, porém, que “ao contrário
do que seria de esperar, não foi, a rigor, um solitário, perdido em
abstrações extraterrenas”. Já era esta, aliás, a opinião de Franklin
Távora, no seu “estudo crítico” tão cheio de curiosos e
estranhamente falsos conceitos sobre a poesia de Varela: “O seu
ideal não está além das nuvens em uma mansão sonhada pelos
poetas místicos”.
Aqui, poder-se-ia esboçar uma querela sobre a essência da
solidão. Varela não se me afigura solitário imperfeito porque lhe haja
faltado misticismo. Fosse místico e ainda assim eu não o julgaria
envolto em verdadeira solidão. Acho mesmo que o misticismo
constitui um dos recursos mais sutis de que lança mão o solitário
para evadir-se da sua regra. O místico não está só, pois tem
comunicação pessoal e direta com a divindade. Está, mesmo,
demasiadamente cheio de sociedade, pois se liga a todos os homens
através de Deus, realizando uma comunhão ideal, que nenhum
contato repugnante ou simplesmente incômodo virá comprometer. O
místico é um falso solitário.
A solidão é niilista. Penso numa solidão total e secreta, de que a
vida moderna parece guardar a fórmula, pois para senti-la não é
preciso fugir para Goiás ou as cavernas. No formigamento das
grandes cidades, entre os roncos dos motores e o barulho dos pés e
das vozes, o homem pode ser invadido bruscamente por uma terrível
solidão, que o paralisa e o priva de qualquer sentimento de
fraternidade ou temor. Um desligamento absoluto de todo
compromisso liberta e ao mesmo tempo oprime a personalidade.
Desta solidão está cheia a vida de hoje, e a instabilidade nervosa do
nosso tempo poderá explicar o fenômeno de um ponto de vista
científico; mas, poeticamente, qualquer explicação é desnecessária,
tão sensível e paradoxalmente contagiosa é esta espécie de
soledade.
Até que ponto a experimentou Fagundes Varela? Este homem
atormentado procurou fugir às vozes humanas e entreter-se com as
vozes naturais. Mas foi sempre, no ermo da natureza, uma voz
humana com a nostalgia de suas irmãs citadinas. O seu “Cântico do
calvário”, que o conservou na memória e na emoção do povo, como
no apreço dos críticos, não é o cântico de um homem só, por mais
que o tenha deixado só a morte do filho. É um instrumento de
confraternização na dor e de fusão com o poder divino, em que
Varela acreditava. Em torno do poeta, e embalando-lhe o desespero,
estão os ventos, as árvores, a respiração das ondas, a Igreja
católica, e por via de consoladoras operações o filho se transformará
em estrela e os raios da estrela se tornarão Estrada de Jacó “por
onde asinha subirá minh’alma”.
Mas precisamente por não ter sido um solitário perfeito, e sim um
homem, embora esquivo, preso aos outros homens por uma
poderosa força de comunicação, é que sua poesia ainda hoje nos
invade e nos comove tanto.
NO JARDIM PÚBLICO DE CASIMIRO

O encanto de Casimiro de Abreu está na tocante vulgaridade. Em


sua poesia tudo é comum a todos. Nenhum sentimento nele se
diferencia dos sentimentos gerais, que visitam qualquer espécie de
homem, de qualquer classe, em qualquer país. Casimiro dirige-se
igualmente a todos, e por isso mesmo é restrita a matéria de sua
poesia: abrange somente aquela região em que não operam as
distinções filosóficas, os credos políticos, a tumultuosa torrente da
vida social. Evita mesmo o campo subjetivo, em que cada um de nós,
sofrendo diferentes pressões, se revela incoerente e descontínuo.
Casimiro ignora a rua e seus problemas; ignora tudo que é drama
coletivo e até qualquer drama individual que não se inclua num destes
esquemas:

a) o homem se recorda da infância e fica triste;


b) o homem tem um amor que não pode realizar-se e também fica
triste;
c) o homem está longe da terra natal e sente saudade.
Apenas uma vez, Casimiro fugiu a esses padrões. Foi quando
compôs “Camões e o Jaú”, em que perpassa um vento de epopeia e
se sente à sombra de navios conquistadores, de infortúnios
clássicos, o espírito da raça no quadro histórico. Tinha dezessete
anos e não repetiu a aventura.
Faltou-lhe, realmente, o sentido da aventura. A viagem a Portugal
surge-lhe como uma tragédia:
Já dois anos se passaram longe da pátria. Dois anos! Diria dois séculos. E durante
este tempo tenho contado os dias e as horas pelas bagas do pranto que tenho chorado.

Seu ideal é bem pacífico, e para concretizá-lo não seria preciso


destruir nenhuma instituição nem magoar nenhuma criatura: “Feliz
aquele que morre debaixo do mesmo céu que o viu nascer!”. Só isto:
morrer na terra do nascimento. Era a única ambição de Casimiro de
Abreu, e pensar que sua morte poderia ocorrer em Lisboa, entre “os
seus mil e um atrativos”, o fazia mergulhar na mais negra infelicidade.
O grito de fuga, de pesquisa das ilhas fabulosas, a fascinação do
asiático, que dilacera o espírito romântico, não penetra o pequeno
jardim das Primaveras, onde Casimiro nasceu e deseja viver e
morrer sem sobressaltos.
Está entendido que esse jardim não é fechado nem ostenta
espécies raras. O poeta não ama o raro e o difícil. Há nele uma
disposição natural para as emoções fáceis, ligada a uma graciosa
modéstia, que o faz murmurar sem fingimento: “Nós, cantores novéis,
somos as vozes secundárias que se perdem no conjunto de uma
grande orquestra; há o único mérito de não ficarmos calados”.
Apresentando-nos sua primeira produção, adverte que “essas notas
são tiradas pelas mãos trêmulas dum novato, na mais humilde e
desconhecida lira”. Note-se que era um tempo em que os novatos
não tinham mão trêmula (e algum dia a tiveram?). Casimiro guardou,
pois, a inocência entre dois demônios poéticos. Antes dele, já
Álvares de Azevedo zombara de todas as metafísicas e da própria
poesia, recomendando em verso que cortassem uma tripa de seu
cadáver para a feitura de uma lira que cantasse os amores da vida.
Pouco depois, Castro Alves, ao mesmo tempo em que renovava o
conteúdo dos velhos temas amorosos, agredia o leitor com a
insolência de novos assuntos: a conspiração de Tiradentes, o tráfico
dos escravos, a batalha política. O frágil Casimiro esgueirou-se na
tempestade, à procura de abrigo para a sua sensibilidade de
contornos tão limitados. E à donzela que ama envia este certificado
de bom comportamento poético:

Podes ler o meu livro: — adoro a infância,


Deixo a esmola na enxerga do mendigo,
Creio em Deus, amo a pátria, e em noites lindas
Minh’alma — aberta em flor — sonha contigo.

Sabe-se o que há de perigoso para a literatura em uma conduta


exemplar; o perigo é tão positivo como o da falta de conduta. De
bons sentimentos não germinam obrigatoriamente bons versos.
Casimiro correria o risco de tornar-se aborrecido, se não viesse
salvá-lo certa simplicidade nativa, que dá aos seus versos um
perfume de flor pobre, também ele fraco, mas decente.

Meu Deus! eu chorei tanto lá no exílio!

Não há nada menos particularizado. É tão simples que, em público,


nos sentiríamos inclinados a sorrir da confissão. Mas em casa, lendo
o livro a oitenta anos de distância do poeta, uma ternura cúmplice
nos embebe, como a água que passando por baixo da porta vai
lentamente molhar o tapete.
Essa espécie de infiltração sem surpresa faz de Casimiro um
poeta popular. Explico-me: ele é o poeta que nós todos nos
imaginamos capazes de ser, se quiséssemos (não queremos).
Enquanto o homem da rua considera com prevenção a figura de Paul
Éluard, que traz no bolso um aparelho de fabricação de sonhos
(sabe-se lá o que escondem essas máquinas!), acolhe de coração
aberto o vulto tranquilizador de Casimiro, que acabou de colher
boninas e vai depô-las no túmulo da namorada. Temos aí várias
sugestões suaves: ideia de virgindade, ideia de flor, ideia de
melancolia. Dá para um instante de poesia módica, na agitação
bancária da rua Primeiro de Março, ou nas conversas arrastadas da
farmácia de Mato Grosso.
Se Casimiro chegasse ao desespero em amor, sua voz seria mais
rouca, não o estimaríamos tanto. Com acento magoado mas límpido,
ele nos conta de amores que doem, mas passam; fala-nos de
paixões que não conduzem ao aniquilamento; de namoradas que
morreram antes que o poeta as possuísse; de emoções que uma
valsa desperta, e fogem com a valsa (“Tu, ontem,/ Na dança/ Que
cansa,/ Voavas/ Co’as faces/ Em rosas/ Formosas […]”). Seu infinito
recato sofre mesmo com a hipótese de ver, após essa valsa

A tua coroa de virgem


Rolando no pó das salas!…

Brotam-lhe, de raro em raro, pensamentos lúbricos:

Vampiro infame, eu sorveria em beijos


Toda inocência que teu lábio encerra,
E tu serias no lascivo abraço
Anjo enlodado nos pauis da terra.

Mas tem o cuidado de descrever esse ato no condicional — e


instantes de fauno, qual o burguês moderado que os não conhece?
Ainda aí Casimiro satisfaz obscuras aspirações do homem
indiscriminado, que guarda em si um recanto disponível para a
devassidão mental. A preocupação de preservar a coroa da virgem
é, porém, dominante nos seus devaneios de poeta casto.

O segredo de dizer coisas tristes sem envenenar muito a vida faz


de Casimiro um parente de todos nós. Sua leitura não é uma
provocação ao suicídio, nem torna sedutora a imagem da morte.
Pelo contrário. O poeta receia morrer moço e pede que, se isto
tenha de acontecer, “não seja já” (assonância a meu ver admirável,
pelo que lembra da gagueira de pavor diante da morte):

Tenho pena… sou tão moço!


A vida tem tanto enlevo!

Ele concilia o pessimismo de determinada condição pessoal — o


moço pobre, escravizado economicamente ao pai, à espera de que a
glória ou o amor o vá tirar da triste vida de empregado no comércio
— com o gosto da vida natural, entre árvores frutíferas, pássaros
que nos distraem com o seu canto e que apanhamos em armadilhas,
e o mais que compõe o quadro singelo das pequenas cidades do
interior, confundidas com o campo. É uma poesia de horta e
campina, em que há laranjeiras com sabiás, regatos brincalhões,
raios de lua e brisas travessas; nenhuma suspeita do Amazonas.
Tudo isso envolto na névoa das recordações ou mais pateticamente
no que ele chama, num achado, “este pó da infância”.
As Poesias elegíacas inserem nesse todo de melancolia
conformada uma nota áspera e desconcertante. Aí, Casimiro por
vezes deixa de ser o jovem de sentimentalismo epidérmico, esvaindo-
se em queixumes e suspiros crepusculares, para exprimir — ou
denunciar — alguma coisa de mais forte, mais inquietante, que nele
irrompe surdamente:

Agora em vez dos hinos d’esperança,


Dos cantos juvenis,
Tenho a sátira pungente, o riso amargo,
O canto que maldiz!

Os outros, — os felizes deste mundo,


Deleitam-se em saraus;
Eu solitário sofro e odeio os homens,
P’ra mim são todos maus!

Eu olho e vejo… — a veiga é de esmeralda,


O céu é todo azul.
Tudo canta e sorri… só na minh’alma
O lodo dum paul!

Casimiro vai fazer, enfim, a descoberta do mundo:


Há dores fundas, agonias lentas,
Dramas pungentes que ninguém consola,
Ou suspeita sequer!
Mágoas maiores do que a dor dum dia,
Do que a morte bebida em taça morna
De lábios de mulher!

Doces falas de amor que o vento espalha,


Juras sentidas de constância eterna
Quebradas ao nascer;
Perfídia e olvido de passados beijos…
São dores essas que o tempo cicatriza
Dos anos no volver.

Se a donzela infiel nos rasga as folhas


Do livro d’alma, magoado e triste
Suspira o coração;
Mas depois outros olhos nos cativam,
E loucos vamos em delírios novos
Arder noutra paixão.

[…]
Não! a dor sem cura, a dor que mata,
É, moço ainda, e perceber na mente
A dúvida a sorrir!
É a perda dura dum futuro inteiro
E o desfolhar sentido das gentis coroas,
Dos sonhos do porvir!

É ver que nos arrancam uma a uma


Das asas do talento as penas de ouro,
Que voam para Deus!
É ver que nos apagam d’alma as crenças
E que profanam o que santo temos
Co’o riso dos ateus!
É assistir ao desabar tremendo,
Num mesmo dia, d’ilusões douradas,
Tão cândidas de fé!

[…]
Horas há em que a voz quase blasfema…
E o suicídio nos acena ao longe
Nas longas saturnais!

[…]
Murcha-se o viço do verdor dos anos,
Dorme-se moço e despertamos velho,
Sem fogo para amar!

[…]
Dores na sombra, sem carícias d’anjo,
Sem voz de amigo, sem palavras doces,
Sem beijos de mulher!…

Estas poesias dão-nos o pressentimento de um outro e maior


Casimiro. O Casimiro que a morte aos 21 anos não deixou nos
revelasse toda a sua amarga fisionomia, e que de bom grado
colocaríamos ao lado de Fagundes Varela, no viril desencanto que
assegura a este outro poeta fluminense um lugar à parte entre os
nossos românticos. Casimiro que não chegou a formar-se, ai dele!, e
que transborda das Primaveras.
O SORRISO DE GONÇALVES DIAS

Em um exemplar d’Os timbiras, edição de Leipzig, 1857, pertencente


à Biblioteca Nacional, alguém escreveu a lápis-tinta: “Versos duros,
malferindo os ouvidos”. Este comentário anônimo será uma paga
injusta ao esforço do poeta que tanto se afadigou na composição do
trabalho dedicado “à majestade do muito alto e muito poderoso
príncipe, o Sr. D. Pedro II, imperador constitucional e defensor
perpétuo do Brasil”. Mas deve lembrar aos que se entregam a
exercícios idênticos quanto é inviável a poesia dos institutos
históricos, elaborada friamente pela inteligência, traindo a erudição e
o didatismo e constituindo-se em peça de museu, diante da qual a
nossa admiração respeitosa se inclina, mas a sensibilidade não se
entrega.

Outro exercício poético: as Sextilhas de frei Antão. Mas aqui, o


ensaio filológico tentado pelo autor consegue interessar-nos menos
pela graça da forma acariciante do que por um certo sorriso, que
secretamente abre caminho na poesia carrancuda de Gonçalves
Dias:

Mas vós, quem quer qu’isto lerdes,


Relevai-me esta tardança;
São achaques da velhice:
Vivemos de remembrança
E em longas falas fazemos
De tudo comemorança.

O poeta não se permitiria zombar da velhice nem da glória das


naus portuguesas. Anotando a “Lenda de São Gonçalo”, adverte-nos
mesmo que não escreve sátiras. Sua capacidade de ironia é nula,
seu humour inexistente. Isto não impede que exclame, num suspiro:

Bom santo foy Sam Gonçalo,


Pezar que foy portuguêz,

O “sorriso” de Gonçalves Dias está, para mim, no efeito


ligeiramente cômico que ele extrai, ou que nós, leitores de hoje,
extraímos dessas estrofes em que são contados milagres e feitos de
bravura, num tom de conversa de velho ou de padre, ainda
encontradiço, em seus últimos vestígios, na linguagem dos homens
cultivados das pequenas cidades brasileiras. Gonçalves Dias aí nos
apresenta o edificante e o épico debaixo de um certo pitoresco, que
lhe reduz as proporções, humanizando-as. É bom que Mustafá e
Gulnare, escravizados, renunciem a Mafoma e penetrem no seio da
fé cristã; entre os dois, e estonteado diante dos dez anéis da moura,
do seu vestido azul e carmim, do seu pezinho nu “mimoso e branco e
nevado”, da sua rabeca diabólica, o pobre frei Antão se revelou
homem de carne fraca e imaginação voluptuosa:

Assi todo embevecido


Bons sonhos que então sonhei,
Boas venturas que eu tive,
Bons scismares que eu scismei!
Esqueci-me de ser frade!
Como isto foy, já não sei.

Mas é o próprio Gonçalves Dias que nos explica em outro passo


das Sextilhas:

Conto as coisas como foram,


Não como deviam ser.

E há certa malícia escondida nas barbas severas do poeta.

Surpreende encontrar, em meio ao clamor desordenado dos


românticos, esse desejo do jovem mestiço de Caxias: “Dá, Senhor
Deus, que eu sobre a terra encontre […]/ Uma alma que me entenda,
irmã da minha,/ — Que escute o meu silêncio […]”.

Ontem no baile
Não me atendias!
Não me atendias,
Quando eu falava.

— queixa-se Gonçalves Dias, em 1846.


Doze anos depois, Casimiro de Abreu, que também reescrevera a
“Canção do exílio”, repete a queixa gonçalvina:

Tu, ontem,
Na dança
Que cansa,
Voavas
[…]
Sem pena
De mim!

É a mesma a situação dos dois românticos, no baile. A amada


rodopia, lânguida ou nervosamente, nos braços de outro; prefere
este outro ou se prefere a si mesma, corpo feliz na dança.
Note-se a concentrada amargura do maranhense:

De mim bem longe


Teu pensamento!
Teu pensamento,
Bem longe errava.

traduzida na esvoaçante melancolia do vate do Indaiaçu:

Na valsa
Tão falsa,
Corrias,
Fugias,
Ardente,
Contente,
Tranquila,
Serena,
[…]

O primeiro sofre, mas observa com lucidez:

Eu vi teus olhos
Sobre outros olhos!
Sobre outros olhos,
Que eu odiava.

Casimiro, mais fraco, apenas deplora:

Os olhos
Perjuros
Volvias,
Tremias,
Sorrias
Pra outro
Não eu!
E aquele prossegue a cruel análise:

Tu lhe sorriste
Com tal sorriso!
Com tal sorriso,
Que apunhalava.

Este revela a sua fragilidade numa interrogação inútil, que disfarça a


dor na lisonja:

Mas esse
Sorriso
Tão liso
Que tinhas
Nos lábios
De rosa,
Formosa,
Tu davas,
Mandavas
A quem?!

Um, implacável:

Tu lhe falaste
Com voz tão doce!
Com voz tão doce,
Que me matava.

Outro, antes buscando compaixão que ameaçando:

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!…

E enquanto Casimiro, tímido e recalcado, se compraz em figurar a


amada presa de iguais tormentos, o desgosto severo de Gonçalves
Dias se resolve em um apelo patético:

Oh! não lhe fales,


Não lhe sorrias,
Não lhe sorrias,
Que era matar-me.

Na mesma ambiência romântica, um temperamento revelava o seu


caráter viril, outro a sua essencial feminilidade. Essa diferenciação
salvou Casimiro da cópia.

Censurou-se há pouco ao sr. Ribeiro Couto a frase deliciosa que


dizia ao volume das Primaveras: “Te levo comigo”. A construção
espontânea foi capitulada entre os “artifícios de mau gosto e que
pretendem aristocratizar os erros de sintaxe da fala dos incultos”.
Mas a censura não cabe ao sr. Ribeiro Couto. E sim a Gonçalves
Dias, Últimos cantos, poesia “Harpejos”:

Te vejo, te procuro,
Teus mudos passos sigo […]

Prenda-se e enforque-se.

Voltando à “Canção do tamoio”… Há nesse poema a exaltação da


vida difícil, que tantos anos depois viria constituir uma das fórmulas
de sugestão adotadas pelos regimes belicosos para despertar no
povo, simultaneamente, o espírito de sacrifício e o gosto de matar.
Felizmente, Gonçalves Dias não viu sob esse ângulo de realismo
político o domínio do forte sobre o fraco. A par da intenção
puramente estética, de realizar um belo poema — e o conseguiu: é
das canções mais nítidas e lapidares que haja escrito —, ele deixou
aí uma concepção antes pessimista que entusiástica da existência.
Se prega a coragem, é porque não vale a pena preservar a vida,
sendo esta tão curta: “Um dia vivemos!”. Um pesado fatalismo
oriental ressoa na exclamação: “Não fujas da morte,/ Que a morte há
de vir!”. Seja-nos “pesada ou querida” a sucessão dos dias, o
combate é inevitável. Ao longo de todo o poema, Gonçalves Dias
inculca ao tamoio o desprezo da vida, incitando-o a dispor livremente
desse bem que nada vale. Só assim ele se fará escutado dos
“tímidos velhos” e encherá de espanto os indiozinhos a quem a mãe
dirá o seu nome para educá-los “na lei do terror”. É, psicológica e
pedagogicamente, terrível: fazer tremer os velhos e as crianças. Mas
não há outro jeito, quando se tem uma concepção tão áspera da
vida.

Minha alma não está comigo,


não anda entre os nevoeiros dos Órgãos envolta em neblina,
balouçada em castelos de nuvens
nem rouquejando na voz do trovão.
Lá está ela!
— a espreguiçar-se nas vagas de São Marcos,
a rumorejar nas folhas dos mangues,
a sussurrar nos leques das palmeiras:
lá está ela nos sítios que os meus olhos sempre viram,
nas paisagens que eu amo,
onde se avista a palmeira esbelta,
o cajueiro coberto de cipós,
e o pau-d’arco coberto de flores amarelas.
Ali sim, — ali está —
desfeita em lágrimas nas folhas das bananeiras.

Este poema de Ronald de Carvalho ou de Guilherme de Almeida


— ou de Whitman ou do Valery Larbaud de Barnabooth — está, em
prosa, na dolorosa dedicatória dos Últimos cantos, escrita em
agosto de 1850.
NA RUA, COM OS HOMENS
RECORDAÇÃO DE ALBERTO CAMPOS

1933. Noite de 18 de junho, Belo Horizonte.

O que mais surpreende na morte de Alberto Campos é que ele não


trazia consigo essa marca misteriosa dos que foram escalados para
morrer cedo. Não era um desses avisados que Maeterlinck vê
surgirem do berço já com “as mãos e a alma preparadas” e que, na
rápida viagem, se limitam a olhar silenciosamente para as outras
criaturas, com uma certeza nos olhos; uma certeza que nos contagia
mas que continuamos aparentemente a ignorar, tanto é grave esse
reconhecimento na noite.
O amigo que olhasse para Alberto Campos não se sentiria coagido
a colocar o problema da morte. O corpo talvez fosse débil, mas o
que sobretudo identificávamos nele era a chama do espírito, que
arde generosamente e que se alimenta do seu próprio fogo. Como
admitir que o fogo se apague, quando ele nos aquece e nos alegra
até o fundo do nosso ser? Por isso tínhamos confiança naquele
jovem e sabíamos que ele não trairia esse pacto silencioso que os
amigos se fazem ao se encontrarem, e que é o de viverem sempre
no mesmo plano ideal, desprezando as contingências, as
enfermidades e as abdicações. E por isso ainda a sua morte
permanece sem explicação, despertando em nós o remorso de o não
havermos tratado sempre com esse respeito grave e esse carinho
mudo, que reservamos exclusivamente para os que se despedem de
nós.
A amizade não é cortada de pressentimentos. Os amigos são
seres que à força de se situarem muito de perto e de se
frequentarem e se identificarem, acabam se desconhecendo
sinceramente. Entre dois amigos, ainda os mais contíguos de que há
notícia, é sempre possível identificar uma zona de silêncio e de
cautchuc,* que amortece os contatos e estabelece indefiníveis
paliçadas. Que é um amigo? Não é um ser que adoeça; tampouco
um homem que nos venha informar sobre os seus pequenos
negócios. É um ser depurado, um espírito. Por isso mesmo, e à
força de exaltarmos esse conceito da pura e perfeita amizade, que
se nutre de imponderáveis, acabamos por nos distanciar da vida real
dos nossos amigos, como os mais sinceros nos distanciamos da
nossa própria… E sucede às vezes que quando vamos reparar no
amigo, eis que ele está morto.
Com Alberto Campos e pelo menos um dos seus companheiros
terá acontecido isso. O amigo que se mudou para o Rio e que não
mandava cartas continuou sendo um dos seres preferidos, entre
raros preferidos da rua humana. Mas era como se estivesse em
Sirius, e a luz que nos vem de Sirius carece de ser interpretada com
atenção, para que não se perca entre os outros fogos acesos no
céu.
Que sei de Alberto Campos senão que ele foi um dos encontros da
minha vida? Mais moço do que eu, e no entanto nenhuma puerilidade
que o pusesse sob meu domínio. Antes, era eu que silenciosamente
respeitava o seu espírito, porque o sabia forte e seivoso,
enriquecendo-se de leitura, e trazendo sempre, no fim de cada
viagem, uma nova e apaixonada opinião da vida.
Era indomesticável. Entre tantos moços que recebem
submissamente, com o dom da vida, a experiência dos velhos, não
se preocupando em refazer essa experiência em todas as suas
peças, ele era a exceção que chocava e que às vezes chegava a
irritar. Porque em Alberto Campos, “espírito não prevenido” na
acepção gidiana, era inútil procurar o conceito hereditário, a noção
empalhada, o julgamento que ninguém estabeleceu, pois nasceu
feito. Ele verdadeiramente passava as coisas a limpo, e não se
permitia adotar uma definição que não fosse decantada pelo filtro
severo da sua análise e que não indicasse uma pesquisa, não raro
dolorosa, de sua inteligência.
Poucas inteligências terão o feitio agressivo que distinguia a de
Alberto Campos. Para ele, pensar era discutir e discutir era
combater. Uma paixão desinteressada tornava vertiginosos todos os
seus debates. Não atentarei contra a sua memória lembrando que
muitas vezes essa paixão chegava à injustiça. Mas a injustiça é ainda
um padrão humano para medir valores humanos, e a criatura injusta
que há em mim amava em Alberto Campos o homem cuja balança
era desigual, mas cujos pesos eram incorruptíveis, porque ele
pesava com o espírito.
Mas por que sempre lembrar o espírito, quando há também na
amizade um terreno que é puramente do coração, e quando sobre
essa pista os movimentos são tão lestos, a vida é um esporte tão
grato? O coração de Alberto vigiava à sombra das espadas. A
acidez de suas palavras tinha um mel oculto, e nessa doçura íntima a
preocupação dos amigos, o cuidado com a vida deles, o desejo de
servir, a intenção de ajudar assumiam formas de uma discreta mas
calorosa solidariedade. Há uma alegria em saber que mesmo na
sombra e principalmente na sombra a amizade está agindo, e que a
distância ajunta os amigos; tantos meses sem vê-lo não perturbavam
em nada o ritmo de uma ligação que vinha da adolescência comum e
que já não ficava na dependência dos caminhos que seguíssemos.
Mas este capítulo é o mais difícil de escrever, porque, como dizem
os ensaístas da amizade, nesta não há lugar para a conta-corrente,
e não é bom que o amigo se lembre dos benefícios que recebeu. A
noção de contabilidade desaparece ante o espetáculo sempre
espontâneo e gratuito das trocas sentimentais. Mas por muito que eu
apure a minha maneira de ser amigo, é impossível esquecer, Alberto,
aquilo que eu lhe fiquei devendo: a excitação intelectual, as leituras
reveladoras, a confirmação do gosto da poesia como um alimento
cotidiano, a descoberta de Stendhal, a admiração em comum de
Gide, de Dostoiévski; e ainda esse primeiro emprego na cidade,
esse primeiro dinheiro ganho pela mão que está escrevendo,
enquanto o corpo imóvel avança no caminho de Belo Horizonte…
Em nossa geração, que sofreu mais do que as anteriores, porque
não tinha o respeito dos mestres nem a ilusão dos discípulos, Alberto
Campos pode ser apontado como exemplo do trágico silencioso. Um
recuo de dez anos projeta no presente esse grupo que em 1923
procurava o caminho, e no qual a presença dele operava como um
elemento de crítica vivaz e mordente. Abgar Renault, Gustavo
Capanema, Emílio Moura, Milton Campos, Pedro Nava, Mário
Casassanta, Martins de Almeida, Gabriel Passos, e outros mais
episódicos, decompunham e recompunham o espetáculo humano e
preparavam materiais de cultura. Mas não éramos felizes. Fomos as
primeiras vítimas da nossa própria ironia, e, impiedosos com o
próximo, não nos perdoávamos a nós mesmos nenhuma fragilidade.
O nosso compromisso, que era o de não possuirmos nenhum,
impunha-nos disciplinas severas. A voluptuosa disponibilidade deixava
de ser uma condição edênica para constituir fonte contínua de
angústias. Uns escaparam optando com heroísmo, e se realizaram,
outros ainda se reservam obstinadamente, embora sem qualquer
esperança. Em conjunto, a geração continua por definir-se, enquanto
o tropel dos mais moços aí vem pela escada acima, anunciando uma
nova experiência, talvez uma nova posição intelectual e moral… No
meio dessa desordem, Alberto Campos desaparece sem ter-nos dito
a sua palavra definitiva — que eu suspeito fosse uma criadora e
severa palavra.

* Borracha vulcanizada. (N. E.)


DOIS POETAS MORTOS DE MINAS GERAIS

ASCÂNIO LOPES

Belo Horizonte, 1931 — A passagem de Ascânio Lopes pela rua da


Bahia é o único capítulo da sua vida que eu conheço, e esse capítulo
me enche de saudade.
Uma noite, Martins de Almeida contou-me que descobrira um
poeta na pensão onde morava: era de Cataguases e escrevera um
poema excelente sobre sua terra natal. Logo depois, Emílio Moura
levava o poema ao Diário de Minas, publicando-o com palavras de
admiração.
Foi esta a primeira coisa de Ascânio Lopes que se estampou (6 de
março de 1927) e é das melhores que há nos Poemas cronológicos.
Apresentado a Ascânio, ele sorriu para mim com timidez, disse
duas ou três palavras só. Fiquei gostando desse moço com quem
seria incapaz de manter uma longa conversa (e daí, para que uma
longa conversa?) mas em quem enxergava uma alma finamente
colorida, meiga, séria e encharcada de poesia. Não pretendo
entender muito de almas; julgo, porém, ter encontrado desde o
primeiro dia a chave desta, que por pudor nunca cheguei a abrir.
Desse modo, distante mas realmente bem perto de Ascânio, eu fui
dos seus amigos mais certos.
Tinha 23 anos e não se poderia dizer que viveu, se não fosse a
poesia, que inundou o seu minuto apressado sobre a Terra. Aos 23
anos, a gente só sabe da vida o que ela consente em noticiar —
muito pouco —, outro pouco de que se tem a intuição, e nada mais.
Salvo quando o indivíduo é poeta, caso de Ascânio Lopes e dos que,
como ele, conheceram a vida sem terem tido tempo de vivê-la; dos
que adivinharam. Os versos ascanianos dos Poemas cronológicos
são adivinhações ou, por outra, prêmios de loteria que o autor
ganhou sem nunca ter comprado bilhete.
Era ainda naquele tempo (bom tempo) em que se tomava cerveja
e café com leite na Confeitaria Estrela. Entre dez e onze horas, o
pessoal ia aparecendo e distribuindo-se pelas mesinhas de mármore.
Discutia-se política e literatura, contavam-se histórias pornográficas
e diziam-se besteiras, puras e simples besteiras, angelicamente, até
se fechar a última porta (você se lembra, Emílio Moura? Almeida?
Nava?). Ascânio chegou quando o Estrela já entrara em decadência,
e nas melancólicas mesinhas o mosquito comia o açúcar derramado
sobre as últimas caricaturas de Pedro Nava. Cada vez se bebia
menos cerveja, e diziam-se pouquíssimas besteiras sinceras. Não
chegou a conhecer alguns dos tipos mais curiosos da fauna desse
café histórico; como por exemplo o sargento João Carlos, gordo,
poeta e cáqui, colaborador assíduo do Trabalho de Espírito Santo do
Pinhal, que não podia compreender por que motivo eu nunca lhe dera
boa-noite (nós nunca fomos apresentados um ao outro, meu bravo
sargento). Conheceu apenas os últimos abencerrages, e como não
era homem de grande comércio verbal, nem sempre participava
dessas farras ingênuas. O que não quer dizer que não fosse boêmio,
e soube depois que o era muito.
Passava tempos sem vê-lo. Era esquivo e filtrava-se entre as
árvores da rua. Dizem que ótimo trabalhador. Na Secretaria do
Interior, 6a seção, fala-se muito bem do funcionário Ascânio Lopes.
“Deve ser computado para aposentadoria o tempo em que a
professora serviu como interna ou provisória”, concluía ele numa
informação que o chefe achou útil publicar, porque bem-feita e
esclarecedora do assunto. Na Inspetoria da Instrução, há a caneta
com que ele escrevia, papéis que guardam sua letra, recordações
diversas de Ascânio, funcionário que deixava a poesia no cabide,
com o chapéu, ao contrário de outros que só deixam o chapéu, e
fazem poesia na hora do expediente.
Dizem também que mau estudante, ou por outra, estudante
displicente, mas isso só serve para aumentá-lo na minha estima. A
nossa Escola de Direito não é melhor nem pior do que o comum das
escolas, de direito ou não, que não dão gosto nenhum de serem
frequentadas. Mesmo assim Ascânio teve pachorra (ou malícia)
bastante para imaginar uma tese, O direito da família sobre o
cadáver, cujo título suspeito dá ideia antes de uma blague jurídico-
literária, um pouco fúnebre.
Bom funcionário, mau estudante, bom poeta… A rua da Bahia não
conheceu bem Ascânio Lopes, que passou por ela como um
automóvel. Eu mesmo já tive ocasião de dizer, há anos, num poema
que provocou geral indignação, apesar de ser perfeitamente
insignificante: há os que sobem e há os que descem a outrora
famosa rua pública. Os que sobem gloriosos e aplaudidos e os que
descem obscuros e silenciosos. O auto de Ascânio desceu com o
farol apagado, sem buzinar, e desceu para sempre.
Numa sala da Secretaria do Interior há uma mesa, e debruçado
sobre essa mesa um jovem moreno e baixo trabalha; é o secretário
do Conselho Superior de Instrução; depois o jovem levanta-se, põe o
chapéu, desce, toma o bonde; é o poeta Ascânio Lopes. A noite
desce sobre a casa de pensão da rua Rio Grande do Norte em que
ele escreve os seus últimos, os seus penúltimos versos; a noite
desceu de todo, já não há mais versos para escrever, vida cotidiana
para viver, tarefa nenhuma para levar a cabo. Discreto até o fim,
Ascânio Lopes foi morrer em Cataguases: “De repente percebi que
eu estava diminuindo, diminuindo, até que ficara apenas uma rodilha
de dores”, como diz ele nas admiráveis “Sete trombetas
misteriosas”.
JOÃO GUIMARÃES

Belo Horizonte, 1934 — A vida separa os amigos, que a morte vem


juntar bruscamente. Eu, que há tanto tempo havia perdido João
Guimarães Alves, agora torno a encontrá-lo, ao entrar na sala da
redação e receber a notícia de que, em Soledade, ele fechou os
olhos.
Entre as melancolias de viver, é talvez das mais penetrantes essa
que resulta da existência de “zonas de amizade”, cada uma
correspondendo a determinada fase moral, e todas, mais ou menos
isoladas e características, exprimindo a descontinuidade emotiva do
indivíduo, sua irremediável fragmentação, seus desertos, suas
incompatibilidades.
Porque, salvo três ou quatro companheiros que uma fatalidade
cordial anexa ao nosso destino, e de um certo modo o assimilam e
nele colaboram, os demais vão ficando pelo caminho, uns separados
pela diversidade de interesses, outros pela circunstância geográfica,
outros, finalmente, porque chegaram mais depressa à maturação, ou
tardaram, ou se perderam. Já não falo nas desilusões que esse
comércio, como qualquer outro, comporta. Penso somente nessas
amizades que o tempo vai esgarçando e substituindo por outras, com
o cuidado pérfido de intercalar, entre os amigos de vinte anos e os
de trinta, um espaço em branco para as incompreensões e as
incorrespondências. De sorte que viver é perder amigos, porque eles
não se somam, e as novas aquisições anulam as anteriores.
João Guimarães Alves foi dos que se perderam na distância. Entre
duas cidades de Minas, como de resto entre duas ruas de não
importa qual cidade pode haver mais distância potencial do que entre
dois universos. A notícia que tínhamos de João Guimarães era rara e
estrita. Às vezes, um abraço de passagem: o amigo estava de novo
na avenida Afonso Pena. Mas, ou fosse porque já não existissem os
antigos cafés, ou fosse porque ele se demorasse pouco, não
tínhamos a sensação de que houvesse voltado. Efetivamente,
trocara de cidade, isto é, de alma. Sua visita tinha alguma coisa de
retrospectivo.
Mas agora falece o inspetor de ensino comercial, e quem surge na
minha frente, com a voz, os gestos e as palavras do velho tempo, é
o meu amigo João Guimarães, tal como eu devo tê-lo deixado, há
doze anos, numa esquina noturna, recitando o soneto de amor, ou a
quadra satírica, à espera de que qualquer coisa, o guarda-civil ou a
madrugada, acontecesse. 1922…
O poeta João Guimarães tinha voz forte e o gesto violento que
devia ter outro poeta do temps jadis [tempos de outrora], François
Villon. E o punho forte também. Mas esse punho não se abatia com
brutalidade sobre um literato medíocre ou um notívago importuno,
sem que o coração do poeta corrigisse logo a demasia física. Era
impossível ficar brigado com João por mais de cinco minutos.
As memórias despertam em mim, os fatos sucedem-se, mas já
não é a exposição retrospectiva, é o próprio tempo de ontem que se
inscreve no quadro de hoje, e a vida em movimento, com a amizade
em movimento. Tenho de novo João Guimarães no meu convívio.
Suas mãos enormes contam as fichas do chope. Sua grande voz
repete Raimundo Correia:

Lúcia teve um desmaio quando Anfrísio partiu…

Ou então, de sua própria fábrica, o soneto em que desfilavam todas


as namoradas de um ano:

913, o ano dos anos!


Ano em que, de alma feérica e iludida
saboreei, na taça dos enganos
o capitoso vinho desta vida.
[…]
913 foi-se embora
e em 914 entrei.

Afinal, João Guimarães é todo um pedaço de minha vida, como terá


sido para Milton Campos, Batista Santiago, João Alphonsus, rapazes
que, à feição de todos os rapazes do mundo, misturamos um dia a
coisa literária com a coisa humana. O corpo dele levanta-se com um
sinal nesse tempo que já sentimos ser de uma substância diversa e,
em consequência, de um diverso sabor.
Assente-se aí, João. Na minha opinião, você está apenas fingindo
de morto.
PESSIMISMO DE ABGAR RENAULT

Abgar Renault figura numa antologia de poesia moderna como


poderia figurar — se tivesse idade provecta — numa antologia dos
últimos parnasianos. Não esquecer que começou modelando
“sonetos antíguos”, num tempo em que Bilac se despedia com a
Tarde e a poesia chamada modernista era apenas um poema de
Manuel Bandeira em O Malho: “Quando perderes o gosto humilde da
tristeza…”. A guerra acabara provisoriamente no mundo, mas outra
guerra, esta literária, ia começar no Brasil.
Os sonetos camonianos de Abgar, entretanto, não indicavam no
poeta uma disposição especial para defender os cânones da
linguagem e do verso clássico. Eram mais uma experiência pessoal
do autor, que se nutria de sólidas humanidades e sentia prazer em
exercitar-se no idioma dos anos 500. A presença bilaquiana, por sua
vez, estava bem próxima, e intervinha em certos fechos de sonetos
que Abgar adolescente compunha mais para satisfação sua e de
amigos do que por ambição literária. Esta, de resto, parece ausente
da obra desse poeta, que chega à madureza sem haver publicado
um livro — um só —, exceção feita das traduções de poemas
ingleses das guerras de 1914 e 1939, recentemente editados (à
traição) por um grupo de conspiradores amigos.
Mas vem o modernismo, e Abgar Renault é situado nele sem
perder sua característica fundamental, o culto às formas decorosas
de expressão. Nessa imensa falta de respeito que foi o modernismo,
Abgar conservou o respeito próprio e o respeito dos outros. Quebrou
os moldes acadêmicos, mas só raramente se permitia liberdades de
linguagem “brasileira”. Há uns versos em que se lastima: “Ah! se eu
pudesse me embebedar/ e cambalear… cambalear…”. Mas não se
embriaga nem cambaleia. É, de seu habitual, sereno, sóbrio,
policiado. Qualidades que não invalidam, antes projetam sob uma luz
fria o seu incurável pessimismo. A constante pessimista já aparecia
naquele “soneto antíguo” em que o poeta manifesta o receio de que
a morte, afinal, seja apenas, e “por nosso maior dano”, “outra forma
de ser da mesma vida”. Em outro soneto, o “fantasma sombrio”, isto
é, Deus, está colocado “mais alto que a nossa humana
desesperação”, e “alheio ao nosso humano sobressalto”. Com o
tempo, o pessimismo se torna menos crispado, e é antes ceticismo,
dúvida filosófica, fruição poética, embora desconsolada, de uma
existência inexplicável e noturna. Afinal, não se tem “nem mesmo a
certeza consoladora de que a Vida não presta para jogar fora”. “Não
posso dormir para esquecer que estou vivo” — confessa o poeta —
e se salva. O pessimismo, não há dúvida, é um grande gerador de
poesia.
A posição de Abgar Renault no nosso quadro literário? Não é difícil
defini-la. Consumada a função destruidora do modernismo, e
desmoralizadas, por sua vez, as convenções novas com que se
procuravam substituir as velhas convenções, ficou para o poeta
brasileiro a possibilidade de uma expressão livre e arejada,
permitindo a cada um manifestar-se espontânea e intensamente, no
tom e com o sentido que melhor lhe convenha. É nesta atmosfera
que se move sem dificuldade o sentimento poético de Abgar Renault,
exprimindo não somente a sua reação pessoal diante dos temas
clássicos do amor e da metafísica mas também as obscuras
inquietações do indivíduo e, ultimamente, alguma coisa mais
comovedora, porque ligada às duras preocupações do nosso tempo.
É esta a fase em que Abgar vê largar do porto os imensos
transportes de guerra, conduzindo homens para a luta; em que
procura correspondência, na nossa língua, para os cantos que a
guerra inspirou aos poetas ingleses. Como os poetas e escritores
conscientes da sua geração e do seu país, Abgar Renault sente que
a sua poesia tem de sofrer a penetração da guerra e dos problemas
espirituais e morais que a guerra suscita. Não é a subordinação ao
tema de circunstância, mas o reconhecimento da verdade de que o
poeta só se pode alimentar do tempo, e que o tempo de hoje não é
inferior a qualquer outro nem deve ficar de conserva, até
transformar-se em passado, para atrair a prospecção lírica. Não é
lícito prefigurar o que Abgar vai fazer, o rumo que vai tomar; mas
sente-se que, como a vida, ele está em movimento, mesmo no
escuro deste amargo “Black-out”:

Trouxe-o um silvo, um silvo o leva.


Veio; voltou de repente,
o céu está claro agora,
e o azul na luz se refaz.
Mas uma incansável treva,
crua, infatigavelmente,
dia a dentro, noite em fora,
come estrelas, sóis e luas,
lâmpadas, bicos de gás,
lampiões, candeias e velas
nas avenidas, nas ruas,
nas praças, becos e vielas
e nos longos olhos fundos
deste mundo e de outros mundos.
O SECRETO EMÍLIO MOURA

Emílio Guimarães Moura quase que realiza no Brasil o ideal do poeta


conhecido apenas pelos seus versos. De sua pessoa física há
poucas informações. Nasceu numa cidadezinha do oeste de Minas e
tem vivido em bairros sossegados de Belo Horizonte. Duas ou três
viagens ao Rio, sempre rápidas — o tempo de ver o mar, a Lapa,
algumas livrarias —, e o poeta volta à sua casa mineira. Nessa casa
há muitas crianças, muitos parentes, além de retratos de músicos,
poetas e amigos na parede. Há também desenhos do próprio Emílio
Moura, que só os íntimos desencavam e, ainda, ensaios de
escultura, do mesmo autor, que só os íntimos dos íntimos
conseguem espiar, não porque o seu pudor seja selvagem, mas
porque é sincero e tem a doçura de todos os sentimentos emilianos.
Sobre o homem, há a notar ainda sua magreza e altura, seu ar de
cegonha tímida, seu silêncio quase completo, sua maneira de
deslizar entre multidões, seu desinteresse, sua identificação total
com a poesia. É um manso, mas está longe de ser um conformista.
Em voz baixa, grandes olhos acesos, espalhando as largas pernas
pelas ruas de Belo Horizonte, nas noites que dão vontade de andar
sempre, ele nos fala da injustiça e do mal. Dir-se-ia andar alheio a
tudo, e nada lhe escapa do mundo e da cidade. Seu julgamento é frio
e inflexível, o que não impede que depois de julgar e condenar, ele
perdoe. Um bilhete de loteria saiu-lhe premiado; Emílio continuou
pobre, como antes. Nenhuma concessão ao tempo ou ao poder
macula a sua vida. Entretanto, essa honestidade nada tem de feroz,
tão límpida é ela, e Emílio consegue extrair de todos, os mais secos
ou os mais indiferentes, um imenso amor.
Do poeta, sabe-se que está entre os mais importantes da
moderna lírica brasileira. Pertence à geração modernista mineira,
que se afirmou aí por 1924, e nela guardou sempre a marca pessoal,
fugindo aos exageros escolásticos por uma percepção sutil do que
havia de ruim ou falso na desordem renovadora. Sua poesia ilustra
bem a tese da variedade e riqueza do movimento modernista, onde
se mesclaram poetas tão diferentes como Ronald de Carvalho,
Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Jorge de Lima, Ribeiro Couto,
Oswald de Andrade e o próprio Moura. Em uns, o objetivismo
sensualista, voltado para o cheiro e o colorido das coisas; noutros, a
autossátira cruel, doendo como canivete na carne; neste, o
sentimentalismo cheio de entretons e confidências ciciantes; naquele,
espírito epigramático e depois a tendência ódica e americanista: em
mais outro, a sombra de Deus… Todas as tendências, todos os
gêneros, inclusive o inconfessável. Emílio Moura não se classifica em
nenhum dos modelos. Poderiam rotulá-lo sumariamente como um
poeta espiritualista, pois em sua obra é patente a presença do
espírito, e ele mesmo exclama: “Eu sou um poeta quase místico:/ —
A vida é bela porque é um êxtase”. Mas esse místico em estado
latente não vence em si as perplexidades e as dúvidas do ser
intelectualizado, e vemo-lo, numa hora de grande despojamento,
assinalar que “nenhum milagre te espera,/ nenhum”. Sua mística não
é a de Deus, mas a do mistério. “Que alegria sentir que a vida é uma
dádiva maravilhosa!” Mas “esta paz em que me envolvi, de repente,
só por engano é que poderia ter-se instalado dentro de minha alma”.
Alma sem paz, porém não alma desesperada: o equilíbrio, a
harmonia, o já citado pudor, a delicadeza infinita temperam e
cristalizam essa dor e previnem tanto a negação como a solução
materialista. Emílio Moura propõe-nos assim uma poesia que não se
satisfaz com a explicação materialista das coisas mas que não nos
conduz seguramente a nenhuma teologia. Dir-se-ia que o poeta,
cultivando os jardins do espírito, conserva o triste e severo privilégio
de se não exaltar. Entre a contingência e a eternidade, sua voz nos
fala simplesmente de poesia, da poesia como consolo e como
interpretação lírica do mundo:

Os que não podem amar


estão cantando.
A luz é tão pouca, o ar é tão raro
que ninguém sabe como eles ainda vivem.
Os que não podem amar
estão cantando,
estão cantando
e morrendo.
Ninguém ouve o canto que soluça
por detrás das grades.
SEGREDO E ATUALIDADE DE SCHMIDT

Que diz a primeira página? “Ondas sucessivas de aviões, durante


toda a noite, atacaram com bombas incendiárias uma cidade dos
Midlands, destruindo três cinemas, dois hotéis, duas igrejas, um
hospital de crianças e diversos bairros operários.” Que diz a página
10? “Há nas rosas, que estão morrendo, um silêncio infinito.
Poderíamos dizer que a sombra envolveu as rosas.” Dir-se-ia que a
página 10 (suplemento literário, com um poema de Augusto
Frederico Schmidt) está fora do tempo. Mas precisamente porque
está fora do tempo, a poesia de Augusto Frederico Schmidt consola-
nos dos bombardeios aéreos e instila em nosso coração uma doçura
que a aridez da garganta seca não saberia recolher.
Schmidt, em seu último livro — Estrela solitária —, fala-nos com
obsessão da lua (“oh! é a lua, a velha lua”; “espetáculo inédito esse
da lua!”; “há quanto tempo não olhávamos a lua!”); dos pés (“os pés
iguais às mãos”; “pés que não brincaram, pés que não correram”;
“oh! benditos sejam os pés!”); das rosas (“as rosas estão quase
mortas”); da borboleta branca, das nuvens brancas, do céu azul,
enfim
das coisas que as almas mais simples podem alcançar

e há na sua poesia um tamanho desdém de agradar, uma renúncia


tão voluntária ao difícil e ao raro, uma comunicação tão terra a terra
com as coisas, que os elementos banais, repetidos e enervantes de
que se serve acabam se impondo ao leitor como indicações
primárias de uma profunda e substancial poesia, recriadora de
vocábulos, imagens, associações misteriosas e estranhos apelos. As
palavras ficam sendo para o poeta elementos de uma profusa
distribuição lírica. Isto, que é o seu segredo, já não interessa apenas
às almas simples, e salva Schmidt do puro verbalismo e da
declamação retórica.
E então sentimo-nos obrigados a corrigir a impressão de um
Schmidt fora do tempo, a que suas luas e flores mortas nos induziam
ao primeiro exame. Esse poeta reage contra o tempo mas com ele
se articula por milhões de filamentos nervosos, graças ao dom de
infinita comiseração por tudo que é sofrimento e injustiça, e pelo
próprio reconhecimento da sua fragilidade em face dos problemas
maciços, esmagadores, que o tempo nos propõe:

Cantar! cantar! cantar! para não ficar louco.

A voz patética parece subir de um abrigo antiaéreo.


AUTOBIOGRAFIA PARA UMA REVISTA

Convidado pela Revista Acadêmica a escrever minha autobiografia,


relutei a princípio, por me parecer que esse trabalho seria antes de
tudo manifestação de impudor. Refleti logo, porém, que, sendo
inevitável a biografia, era preferível que eu próprio a fizesse, e não
outro. Primeiro, pela autoridade natural que me advém de ter vivido a
minha vida. Segundo, porque, praticando aparentemente um ato de
vaidade, no fundo castigo o meu orgulho, contando sem ênfase os
pobres e miúdos acontecimentos que assinalam a minha passagem
pelo mundo, e evitando assim qualquer adjetivo ou palavra generosa,
com que o redator da revista quisesse, sincero ou não, gratificar-me.

Isto posto, declaro que nasci em Itabira, Minas Gerais, no ano de


1902, filho de pais burgueses que me criaram no temor de Deus. Ao
sair do grupo escolar, tomei parte na guerra europeia (pesa-me dizê-
lo) ao lado dos alemães. Quando o primeiro navio mercante
brasileiro foi torpedeado, tive que retificar a minha posição. A esse
tempo já conhecia os padres alemães do Verbo Divino (rápida
passagem pelo Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte). Dois anos em
Friburgo, com os jesuítas. Primeiro aluno da classe, é verdade que
mais velho que a maioria dos colegas, comportava-me como um
anjo, tinha saudades da família, e todos os outros bons sentimentos,
mas expulsaram-me por “insubordinação mental”. O bom reitor que
me fulminou com essa sentença condenatória morreu, alguns anos
depois, num desastre de bonde na rua São Clemente. A saída
brusca do colégio teve influência enorme no desenvolvimento dos
meus estudos e de toda a minha vida. Perdi a Fé. Perdi tempo. E
sobretudo perdi a confiança na justiça dos que me julgavam. Mas
ganhei vida e fiz alguns amigos inesquecíveis. Casado, fui lecionar
geografia no interior. Voltei a Belo Horizonte, como redator de jornais
oficiais e oficiosos. Mário Casassanta levou-me para a burocracia,
de que tenho tirado o meu sustento. De repente, a vida começou a
impor-se, a desafiar-me com seus pontos de interrogação, que se
desmanchavam para dar lugar a outros. Eu liquidava esses outros,
mas apareciam novos. Meu primeiro livro, Alguma poesia (1930),
traduz uma grande inexperiência do sofrimento e uma deleitação
ingênua com o próprio indivíduo. Já em Brejo das almas (1934),
alguma coisa se compôs, se organizou; o individualismo será mais
exacerbado, mas há também uma consciência crescente da sua
precariedade e uma desaprovação tácita da conduta (ou falta de
conduta) espiritual do autor. Penso ter resolvido as contradições
elementares da minha poesia num terceiro volume, Sentimento do
mundo (1940). Só as elementares: meu progresso é lentíssimo,
componho muito pouco, não me julgo substancialmente e
permanentemente poeta. Entendo que poesia é negócio de grande
responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem
apenas verseje por dor de cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea
tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar
aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da
contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um
poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis,
dócil às modas e compromissos. Infelizmente, exige-se pouco do
nosso poeta; menos do que se reclama ao pintor, ao músico, ao
romancista… Mas iríamos longe nesta conversa. Entro para a
antologia, não sem registrar que sou o autor confesso de certo
poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem
escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as
pessoas em duas categorias mentais:

No meio do caminho tinha uma pedra


tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento


na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
SUAS CARTAS

Debruço-me à beira desse poço de dezenove anos de profundidade.


Lá embaixo, no escuro, é 1924. Alguns dos que hoje me convidam a
escrever estavam apenas nascendo. E eu era um dos moços de
então. Os nomes mudaram, porém os moços continuam existindo na
literatura, amando-a e fazendo dela um valor humano. Por que xingar
os moços de literatos? O que há de melhor neles é a literatura, ou
seja, a vida fantástica, que aperfeiçoa e cristaliza a vida cotidiana, a
literatura que ajuda a viver, e que tanto permite sair da vida como
entrar nela. Chave de duas portas, porém não chave falsa. É quase
impossível ter vinte anos, um pouco de sensibilidade, um pouco de
insatisfação, e não entregar a alguns poetas e alguns romancistas o
cuidado de resolver os nossos problemas, de nos salvar de nós
mesmos. E para melhor nos comunicarmos com eles, temos que ser
nós mesmos poetas e romancistas. Seus iguais. Somos Dante e
Baudelaire, somos Balzac e Dostoiévski. Com o tempo, despregamo-
nos desses personagens monstruosos, caímos numa mediocridade
vivida e suportável, reenquadramo-nos no plano estático, sem
constelações, sem agapantos indescritíveis, sem bicicletas de fogo…
Mas eu sustento que o pior literato de vinte anos ainda é um homem
maravilhoso, e eu o invejo, o amo e o respeito, absolutamente sem
crítica.
Vejo moços no fundo do poço, tentando sair para a vida impressa
e realizada. Como falam! Como escrevem! Como bebem cerveja!
Estou entre eles, mas não sei que sou moço. Julgo-me até velho, e
alguns companheiros assim também se consideram. É uma
decrepitude de inteligência, desmentida pelos nervos, mas
confirmada pelas bibliotecas, pelo claro gênio francês, pela poeira
dos séculos, por todas as abusões veneráveis ainda vigentes em
1924. A mocidade entretanto parece absorver tóxicos somente para
se revelar capaz de neutralizá-los. Ninguém morria de velhice, e cada
um, inconscientemente, preparava a sua mocidade verdadeira. Essa
tinha que vir de uma depuração violenta de preconceitos intelectuais,
tinha que superar fórmulas de bom comportamento político, religioso,
estético, prático, até prático! Havia excesso de boa educação no ar
das Minas Gerais, que é o mais puro ar do Brasil, e os moços
precisavam deseducar-se, a menos que preferissem morrer exaustos
antes de ter brigado.
Para essa deseducação salvadora contribuiu muito, senão quase
totalmente, um senhor maduro, de 31 anos (quando se tem vinte, os
que têm 25 já são velhos imemoriais), que passou por Belo Horizonte
numa alegre caravana de burgueses artistas e intelectuais,
adicionada de um poeta francês que perdera um braço na guerra e
andava à procura de melancia e cachaça. Foram apenas algumas
horas de contato no Grande Hotel; os burgueses agitados
regressaram a São Paulo, o senhor maduro com eles; e de lá
começou a escrever-nos.
As cartas de Mário de Andrade ficaram constituindo o
acontecimento mais formidável de nossa vida intelectual belo-
horizontina. Eram torpedos de pontaria infalível. Depois de recebê-
las, ficávamos diferentes do que éramos antes. E diferentes no
sentido de mais ricos ou mais lúcidos. Quase sempre ele nos matava
ilusões, e a morte era tão completa, que só podia deixar-nos
ofendidos e infelizes. Então reagíamos com injustiças, tolices, o que
viesse de momento ao coração envinagrado. Mário recebia sorrindo
essas tolices, mostrava que eram simplesmente tolices, e ficávamos
mais amigos…
Porque a amizade se formou numa base de literatura, e devia
nutrir-se dela, até que fossem chegando outros motivos de interesse
e abandono, certas confidências difíceis, pedidos de conselho diante
da complicação imediata da vida, histórias de casamento,
nascimento e morte de filhos. Isto que nas relações comuns só o
conhecimento pessoal e o trato diário costumam permitir, o
conhecimento postal e literário suscitara imprevistamente e era
mesmo uma festa receber carta de Mário alastrada em oito, dez
folhas manuscritas, com aquela letra que não subia nem descia
morro, apertada no papel para que tanta ideia, comentário, crítica,
descompostura e carinho coubessem nas dez folhas. “Desculpe esta
longuidão de carta. Eu sofro de gigantismo epistolar.”
Num país em que ninguém responde cartas, Mário de Andrade
respondia todas. “Em todo caso de mim não desespere nunca. Eu
respondo sempre aos amigos. Às vezes demoro um pouco, mas
nunca por desleixo ou esquecimento.” E quando os amigos não
escrevem, hipótese tão brasileira e particularmente mineira? “Na
verdade eu não conto carta com você e escrevo por precisão de me
sentir junto com os amigos.”
Essa necessidade de se sentir junto com os amigos era reflexo de
outra, maior, de se sentir junto com os homens em geral, declarada
no poema de 1922 em que explicava aos amigos que, sorteado, se
tornara “defensor interino do Brasil”, “apesar da simpatia por todos
os homens da Terra”. Sem exceção de um só, Mário de Andrade
simpatizava com todos. Os rapazes de Minas, ou pelo menos um dos
rapazes com quem ele se carteava padecia do mal contrário:
antipatizava com o gênero humano. A correspondência entre os dois
tinha que ser assim eriçada de discordâncias. O indivíduo
encaramujado em si mesmo lutava com o escritor socializante,
antiartístico por deliberação, apesar de fundamentalmente artista,
capaz de sacrificar o melhor de si mesmo para chegar a uma
comunicação maior com os outros homens. E — circunstância ainda
mais desconcertante — esse furor de socialização não servia
nenhum pensamento político, não era partidarista, não queria salvar
a humanidade. Mário de Andrade, cem por cento professor, e o
melhor professor que já conheci, embora nunca lhe ouvisse uma aula,
pregava simplesmente a vida, a “gostosura” sempre encontrada no
ato natural de viver, com todas as suas consequências e
responsabilidades:

Ai, vida vida


Vida comovida,
Vida apertada
Não se acaba mais!

De São Paulo, a carta explicava:


Tudo está em gostar da vida e saber vivê-la. Só há um jeito feliz de viver a vida: é ter
espírito religioso. Explico melhor: não se trata de ter espírito católico ou budista, trata-se
de ter espírito religioso pra com a vida, isto é, viver com religião a vida. Eu sempre
gostei muito de viver, de maneira que nenhuma manifestação da vida me é indiferente.
Eu tanto aprecio uma boa caminhada a pé até o alto da Lapa como uma tocata de Bach
e ponho tanto entusiasmo e carinho no escrever um dístico que vai figurar nas paredes
dum bailarico e morrer no lixo depois como um romance a que darei a impossível
eternidade da impressão.

Esta afirmação de espontaneidade do espírito, que a saturação de


cultura não corrompia, não era feita para despertar pasmos
ingênuos. Tinha caráter educativo. E o professor examinava o caso
coletivo concreto:
Eu acho, Drummond, pensando bem, que o que falta pra certos moços de tendência
modernista brasileiros é isso: gostarem de verdade da vida. Como não atinaram com o
verdadeiro jeito de gostar da vida, cansam-se, ficam tristes ou então fingem alegria o
que ainda é mais idiota do que ser sinceramente triste. Eu não posso compreender um
homem de gabinete e vocês todos, do Rio, de Minas, do Norte me parecem um pouco
de gabinete demais. Meu Deus! se eu estivesse nessas terras admiráveis em que
vocês vivem, com que gosto, com que religião eu caminharia sempre pelo mesmo
caminho (não há mesmo caminho pros amantes da Terra) em longas caminhadas!
Que diabo! estudar é bom e eu também estudo. Mas depois do estudo do livro e do
gozo de livro, ou antes vem o estudo e gozo da ação corporal. Eu neste ponto não
aconselho nada porque nisso a gente não se muda por causa de conselhos alheios,
mas um dos desastres que impedem a felicidade, que é naturalidade, de vocês está aí:
em casa lendo, redação de jornal, café com amigos sobre tal livro, tal escritor, escrever
coisas depois, talvez cinema e depois farra com mulheres. Isso não é vida que se leve!
Isso é vício. Está muito bem com todas as outras formas de vida juntas, mas assim
sozinhos e continuados é miséria, decadência e infelicidade na certa. É horrível! Veja
bem, eu não ataco nem nego a erudição e a civilização, como fez o Osvaldo* num
momento de erro, ao contrário respeito-as e cá tenho também (comedidamente, muito
comedidamente) as minhas fichinhas de leitura. Mas vivo tudo. Que passeios
admiráveis eu faço, só! Mas ninguém nunca está só a não ser em especiais estados
de alma, raros, em que o cansaço, preocupações, dores demasiado fortes tomam a
gente e há essa desagregação dos sentidos e das partes da inteligência e da
sensibilidade. Então a gente fica só por milhões de amigos que tenha ao lado. Se não,
não. Um sentido conversa com outro, a razão discute com a imaginativa etc. e é uma
camaradagem sublime de pessoas tão íntimas como nenhuns Castor e Pólux ideais. E
então parar e puxar conversa com gente chamada baixa e ignorante! Como é gostoso!
Fique sabendo duma coisa, se não sabe ainda: é com essa gente que se aprende a
sentir e não com a inteligência e a erudição livresca. Eles é que conservam o espírito
religioso da vida e fazem tudo sublimemente num ritual esclarecido de religião. Eu
conto no meu “Carnaval carioca” um fato a que assisti em plena avenida Rio Branco.
Uns negros dançando o samba. Mas havia uma negra moça que dançava melhor que
os outros. Os jeitos eram os mesmos, mesma habilidade, mesma sensualidade mas
ela era melhor. Só porque os outros faziam aquilo um pouco decorado, maquinizado,
olhando o povo em volta deles, um automóvel que passava. Ela, não. Dançava com
religião. Não olhava pra lado nenhum. Vivia a dança. E era sublime. Este é um caso em
que tenho pensado muitas vezes. Aquela negra me ensinou o que milhões, milhões é
exagero, muitos livros não me ensinaram. Ela me ensinou a felicidade. Bom! não é
preciso ninar a vida para ser feliz dentro dela […].

Outra surpresa para o moço de 1924 é que essa revalorização


emotiva e moral da vida nada tinha que ver com uma certa euforia
pseudofilosófica então muito generalizada nos arraiais modernistas e
que trazia a marca de fábrica de Graça Aranha. Não era uma atitude
estética circunstancial, porém um modo de ser, assimilado à
personalidade, e que dava uma coerência brutal a todos os gestos
de Mário de Andrade, justificando os seus próprios erros, fazendo-os
do tamanho de suas virtudes, igualmente honestos, necessários e
andradinos.
Porque em Mário, nos seus versos, na sua prosa, muita coisa não
desagradava apenas ao público retardatário, mas também a nós
outros seus companheiros mais moços. Éramos requintados demais,
não perdoávamos a menor falta de gosto, embora nem sequer o
tivéssemos formado. Uma propensão exagerada a ver o lado ridículo
e não o lado sublime ou patético das coisas nos impedia de
acompanhar integralmente Mário nas suas aventuras. E não
tínhamos também sua capacidade de sacrifício. Como fazer para
segui-lo quando ele, de braço fortíssimo, aconselhava:
Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o pessimismo e apesar de todo o século
XIX, seja ingênuo, seja bobo, mas acredite que um sacrifício é lindo. O natural da
mocidade é crer e muitos moços não creem. Que horror! Veja os moços modernos da
Alemanha, da Inglaterra, da França, dos Estados Unidos, de toda a parte: eles creem,
Carlos, e talvez sem que o façam conscientemente, se sacrificam. Nós temos que dar
ao Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar uma
alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é sublime. E nos dá felicidade.
Eu me sacrifiquei inteiramente e quando eu penso em mim nas horas de consciência,
eu mal posso respirar, quase gemo na pletora da minha felicidade. Toda a minha obra é
transitória e caduca, eu sei. E eu quero que ela seja transitória. Com a inteligência não
pequena que Deus me deu e com os meus estudos, tenho a certeza de que eu poderia
fazer uma obra mais ou menos duradoura. Mas que me importa a eternidade entre os
homens da Terra e a celebridade? Mando-os à… Eu não amo o Brasil espiritualmente
mais que a França ou a Cochinchina. Mas é no Brasil que me acontece viver e agora
só no Brasil eu penso e por ele tudo sacrifiquei. A língua que escrevo, as ilusões que
prezo, os modernismos que faço são pro Brasil. E isso nem sei se tem mérito porque
me dá felicidade, que é a minha razão de ser da vida. Foi preciso coragem, confesso,
porque as vaidades são muitas. Mas a gente tem a propriedade de substituir uma
vaidade por outra. Foi o que fiz. A minha vaidade hoje é de ser transitório. Estraçalho a
minha obra. Escrevo língua imbecil, penso ingênuo, só pra chamar a atenção dos mais
fortes do que eu pra este monstro mole e indeciso ainda que é o Brasil. Os gênios
nacionais não são de geração espontânea. Eles nascem porque um amontoado de
sacrifícios humanos anteriores lhes preparou a altitude necessária de onde podem
descortinar e revelar uma nação. Que me importa que a minha obra não fique? É uma
vaidade idiota pensar em ficar, principalmente quando não se sente dentro do corpo
aquela fatalidade inelutável que move a mão dos gênios. O importante não é ficar, é
viver. Eu vivo. E vocês não vivem porque são uns despaisados e não têm a coragem
suficiente pra serem vocês.

Eu vivo, portanto, sou feliz, parecia dizer-nos Mário de Andrade. O


pensamento dele nunca destoou nesse particular (e terá destoado
em algum outro?). Está nos seus versos como nas suas cartas que
“A PRÓPRIA DOR É UMA FELICIDADE”. E eis aí o sinal que mais o distancia
da retórica de Graça Aranha. Falando das “Danças”:
Revelam pra quem souber olhar um sofrimento muito doído. Não há alegria nenhuma
nelas. Só o Graça com a mania de pregar a alegria, vê alegria ali. Elas são dolorosas,
perversas, um mau momento que passou, um tumor que esvaziei. Compare-as com o
“Noturno” e verá se o esvaziei inteiramente ou não. Se você encontrar um laivo de
amargura ou perversidade no “Noturno” me diga porque hei de apagá-lo imediatamente.
Ironia, tem. Essa ironia brincalhona de amoroso, de camarada, mas perversidade não.
O cinismo continua. Mas cada vez se apura mais, é um que-bem-me importa! que me
liberta de todas as covardias, que me deixa sem-vergonha, com essa heroica beleza
de afirmar: Deus existe. A mulher existe. A esperança existe. A Patriamada existe.
Suponhamos que não existam. Mas a felicidade não está na existência ou inexistência
deles, está na afirmativa, na crença, em nós.
Ou então:
Toda gente acha graça na minha alegria e como eu me divirto quando estou na festa
mais pau. Creio que essa riqueza me vem de eu compreender a vida e vivê-la em toda
a variedade dela. Quando vou na festa sei que a festa é pra gente se divertir e qualquer
coisa me diverte extraordinariamente. Quando vou… na dor sei que a dor é pra gente
sofrer e sofro pra burro, sofro sério, sofro sofrendo e não espetacularmente, é lógico.
Que sucede? a minha variedade de viver é tão incomensurável que não me fatigo dela
nunca.

E é assim que ele pôde lançar no “Reconhecimento de Nêmesis”, no


mesmo ano de 1926, esse grito severo:

Eu reconheço que sofro!

Mas distinguindo:

Sofrer… pois sim, mas lutando


Pela replanta brotando,
Sofrer sim, mas porém nunca
Sofrer puxando memória
Pelo café que secou.

Sua lucidez e sua força conquistaram assim esse “direito de


lágrima” de que devemos usar com dignidade e sobriedade de
homem.
As cartas de Mário têm sempre esse tom. O sentido delas é
menos estético do que moral e pedagógico. O professor Mário de
Andrade tanto corrige a apreciação errada de um episódio vivido
como aponta fraquezas de linguagem, de ritmo ou de concepção na
poesia do principiante. E quantos principiantes! No Sul, em Minas, no
Norte. Todo o Brasil de vinte anos conversa com o escritor sem pose
e recebe crítica, advertência, carinho de companheiro mais velho.
Esta última função deve interessar mais de perto o literatozinho
mineiro, de tendência pessimista, que procura resolver em verso
moderno suas dúvidas e agitações íntimas. Assim, ele abusa da
paciência e da simpatia humana de Mário, esmagando-o com
sucessivas remessas de poesia. O professor lê tudo e devolve com
anotações preciosas. Às vezes uma simples preposição dá ensejo a
lições em que todo o problema da língua nacional se coloca:
Foi uma ignomínia, a substituição do “na” estação por “à” estação só porque em
Portugal paisinho desimportante pra nós diz assim. Repare que eu digo que Portugal
diz assim e não escreve só. Em Portugal tem uma gente corajosa que em vez de ir
assuntar como é que dizia na Roma latina e materna, fez uma gramática pelo que se
falava em Portugal mesmo. Mas no Brasil o sr. Carlos Drummond diz “cheguei em
casa” “fui na farmácia” “vou no cinema” e quando escreve veste um fraque debruado de
galego, telefona pra Lisboa e pergunta pro ilustre Figueiredo: — Como é que se está
dizendo agora no Chiado: é “chega na estação” ou “chega à estação”? E escreve o que
o sr. Figueiredo manda. E assim o Brasil progride com Constituição anglo-
estadunidense, língua franco-lusa e outras alavancas fecundas e legítimas. Veja bem,
Drummond, que eu não digo pra você que se meta na aventura que me meti de estilizar
o brasileiro vulgar. Mas refugir de certas modalidades nossas e perfeitamente humanas
como o chegar na estação (aller en ville, arrivare in casa mia, andare in città) é
preconceito muito pouco viril. Quem como você mostrou a coragem de reconhecer a
evolução das artes até a atualização delas põe-se com isso em manifesta contradição
consigo mesmo. E já que falei na minha aventura peço uma coisa e aviso outra. Não
pensem vocês, aí de Minas, que sou um qualquer leviano e estou dando por paus e por
pedras sem saber bem o que estou fazendo. A aventura em que me meti é uma coisa
séria já muito pensada e repensada. Não estou cultivando exotismos e curiosidades de
linguajar caipira. Não. É possível que por enquanto eu erre muito e perca em firmeza e
clareza e rapidez de expressão. Tudo isso é natural. Estou num país novo e na
escureza completa duma noite. Não estou fazendo regionalismo. Trata-se duma
estilização culta da linguagem popular da roça como da cidade, do passado e do
presente. É uma trabalheira danada que tenho diante de mim. É possível que me perca
mas que o fim é justo ou ao menos justificável e que é sério, vocês podem estar certos
disso. Não estou pitorescando o meu estilo nem muito menos colecionando exemplos
de estupidez. O povo não é estúpido quando diz “vou na escola”, “me deixe”,
“carneirada”, “mapear”, “besta ruana”, “farra”, “vagão”, “futebol”. É antes inteligentíssimo
nessa aparente ignorância porque sofrendo as influências da terra, do clima, das
ligações e contatos com outras raças, das necessidades do momento e de adaptação,
e da pronúncia, do caráter, da psicologia racial modifica aos poucos uma língua que já
não lhe serve de expressão porque não expressa ou sofre essas influências e a
transformará afinal numa outra língua que se adapta a essas influências. Então os
escrevedores estilizam esse novo vulgar, descobrem-lhe as leis embrionárias e a
língua literária, única que tem reconhecimento universal (aqui sinônimo de culto)
aparece. Nessa estrada me meti. Sei que tudo está por fazer. E o que é pior sei que
uma palavra brasileira empregada na escrita soa pra todos como exotismo,
regionalismo porque só como regionalismo exótico foi empregada até agora. Mas isso
não é culpa do escritor que a não emprega mais assim mas a adota como sua maneira
regular de expressão. Nem é culpa da palavra, também. A culpa vem do preconceito
civil adquirido na leitura dos livros cultos. Se “munheca” soa mal depois dos quinze
anos de idade é porque o sujeito da cidade, mocinho faceiro e enfeitado de um
despotismo de preconceitos inconscientemente hipócritas, nunca leu munheca em
Fialho ou Machado de Assis e por isso se bota a policiar a língua que fala pras
melindrosas do assustado e mesmo pros colegas de Academia. Tudo preconceitos e a
nossa vida é feita de preconceitos eu sei. Por isso falo em criar uma linguagem culta
brasileira e falo em adquirir novos preconceitos porque assim se move a vida do
homem e se torna nova e se torna bonita. O meu trabalho não é simples nem pequeno.
Sei que muito hei de errar. Sei que muitas vezes voltarei pra trás. Sei que exagerarei.
Sei que me iludirei talvez. Sei principalmente que a minha língua de hoje cheira
caipirismo exótico pra muita gente. Mas aqui a ilusão não é minha porque tenho a
experiência histórica que está do meu lado. Mas é certo que muito errarei. Só o que eu
quero é que não julguem-me mal, vocês que quero bem. As aventuras podem falhar
porém se o aventureiro teve um fim justo e trabalhou sem leviandade pra atingi-lo, a
nobreza continua com o aventureiro, não acha? Não me queiram mal pelo que faço e
esperem pra me condenar ao menos a apresentação dum livro em prosa. Só isso que
eu peço pra vocês.

Observações práticas se sucedem para proveito do pequeno


versejador ignorante da disciplina poética (falou-se tanto em quebra
de padrões clássicos!) e dos próprios característicos elementares da
língua (é tão fácil escrever…):
procure evitar o mais possível os artigos tanto definidos como indefinidos. Não só
porque evita galicismo e está mais dentro das línguas hispânicas como porque dá mais
rapidez e força incisiva pra frase.

*
Mesma observação com possessivos e todos os berenguendens que castram a frase.

*
“vianda tenra”, horrorosibilíssimo, impossível de existência;

*
Também o “qualquer coisa mais forte” é um galicismo que me desagrada.

*
Aconselho tirar o quarto verso que faz a frase engolir em seco no meio.

*
O processo de repetição da mesma palavra ou ideia que você emprega que nem
Ronald, Manu, Ribeiro Couto é perigoso e decadente. Neste poema está irritante pela
frequência.

*
O último verso quebra um pouco dolorosamente o indeciso balanço rítmico em que a
gente está. Veja se faz ele ficar indecisamente entre oito e nove sílabas e a acentuação
deste, o baloiço indeciso continuará.

*
Se você algum dia publicar isso rompemos relações! E me crismo Xavier.

O “louco” é bastante frio para preocupar-se até com a minúcia


ortográfica.
Extranha é estranha, s.

Anotações assim enxameiam nas cartas. Havia sempre o que


aprender na correspondência desse homem, a quem entretanto a
chamada elite conservadora negava tudo, inclusive o conhecimento
de sua língua e de sua arte, mas que só praticou o pecado de
conhecê-las melhor do que os seus negadores. A história das
reações suscitadas por sua atividade intelectual constitui talvez o
mais selvagem e doloroso exemplo de incompreensão ainda
verificado na literatura brasileira. As injustiças do modernismo foram
pagas em dobro, e Mário, especialmente, pagou mil por um, pagou
por si e por todos, de resto sem reclamar nem se queixar do
pagamento. Acostumado a receber incompreensão de acadêmicos e
errados, dispôs-se a recebê-la também de seus companheiros de
todas as gerações. Findo o período heroico das cartas, Mário vai
exercer essa mesma faculdade analisadora e minudente na crítica
literária do Diário de Notícias, e há autores que se irritam com as
suas observações absolutamente justas, fecundas e sobretudo
amorosas. Porque, como assinala na “Advertência” dos Aspectos da
literatura brasileira, em 1943,
espero que se reconheça neles [nos ensaios críticos], não o propósito de distribuir
justiça, que considero mesquinho na arte da crítica, mas o esforço apaixonado de amar
e compreender. É mesmo certo que se por vezes sou um bocado áspero em minhas
censuras aos artistas isto provém de uma desilusão. A desilusão de não terem eles me
proporcionado, de arte, o quanto eu sinto poderiam me dar.
Esta queixa final de Mário de Andrade, depois de vinte anos do
trabalho literário menos egoístico que já vi em minha vida, pode
servir para explicação não apenas de sua obra como de sua maneira
mesma de viver a vida. Porque afinal a vida-vida simplesmente, com
tudo que contenha, será bem mesquinha para ocupar o pensamento
e o coração todo de um homem e principalmente de um artista. A
total ocupação deste só se fará pelo amor. A vida fica sendo assim
uma ocasião de amar, e o amor se estende à própria vida pelo seu
conteúdo autenticamente amorável. Falando de um ex-
companheiro,** Mário confessa:
Há razões pra odiar, e talvez eu tenha odiado mesmo no princípio. Mas foi impossível,
percebi isso muito cedo, perseverar no ódio. É besteira isso de falar que o ódio é
sempre uma espécie de amor, não é não. Como tinha de recontinuar no amor, tive de
abandonar o ódio.

Pouco importa que nesse terrível exame de consciência que foi a


conferência sobre o movimento modernista, em 1942, ele se
interrogue: “Mas apesar das sinceras intenções boas que dirigiram a
minha obra e a deformaram muito, na verdade, será que não terei
passeado apenas, me iludindo de existir?…”.
Eu não posso estar satisfeito de mim. O meu passado não é mais meu companheiro.
Eu desconfio do meu passado. Mudar? Acrescentar? Mas como esquecer que estou na
rampa dos cinquenta anos e que os meus gestos agora já são todos… memórias
musculares…

Cruel pessimismo da idade madura, que só pode ser explicado em


quem fez tanto, pela insatisfação por não ter feito tudo e até mais do
que tudo. Não importa, repito, que Mário de Andrade não esteja
satisfeito consigo mesmo, nessa “fase integralmente política da
humanidade” que o seu pensamento mais recente denuncia. Nós
estamos satisfeitos com ele pelo que foi, pelo que é, pelo que não
deixou de ser, na sua absoluta dignidade de homem consciente,
apaixonado, companheiro e estímulo de outros homens desnorteados
ou frágeis.
* Oswald de Andrade. (N. E)
** Oswald de Andrade. (N. E)
ESTIVE EM CASA DE CANDINHO

Olga vem abrir a porta. No seu rosto puro combinam-se timidez e


hospitalidade. Não sabemos nunca o que devemos nos dizer, por
isso geralmente não nos dizemos nada. Dá-se tempo a Candinho
para chegar e ver o embaraço da moça e a confusão do visitante,
que se considera sempre um ladrão penetrando em casa fechada.
Candinho vem sorrindo, a calça azul, sapatos roxos ou verdes,
camisa branca de meia manga, e diz: “Ah, é Drummond”. A sala
abre-se ao fim do pequeno corredor. De lá vêm luzes e vozes. Paro
à entrada, atordoado. Cores e formas se propõem subitamente, com
violência, à minha percepção. São figuras que se espalham pelas
paredes: é o admirável Preto, destacando-se num fundo de postes
telegráficos e de morros verdes, que um dia, num gesto de pura
generosidade, o autor acaba me oferecendo; é o rubro retrato da
filha de Aníbal; são os moleques do Futebol; é o singelo e patético
Enterro no morro; é uma paisagem marinha, sombria e de taciturna
beleza; mas são também outras figuras humanas que se deslocam,
que cruzam as pernas e fumam. Aí está, dobrado em dois (do
contrário não caberia na sala) o poeta Murilo; com voz surda e doce
ele revela os inefáveis mistérios de Mozart. Maria, empelotada a um
canto do grande divã amarelo, escuta silenciosa, e é quase imóvel a
fumaça do seu cigarro. Dois pintores de São Paulo, cujos nomes
perguntarei a Luís Martins, proprietário deles, abriram Les Chants de
Maldoror [Os cantos de Maldoror] de Lautréamont, e mergulham nas
ilustrações de Salvador Dalí. M. Offaire, esguio e misterioso,
debruça-se na janela e entretém Santa Rosa: com a guerra que virá
dois anos depois? com o suprarrealismo? com Picasso? Não se
conhecerá jamais essa confidência.
Mas há outros. Há Mário, com o suéter bariolado, uma enorme
calma desfeita em sorriso, os óculos de professor sob a calvície
ilustre. Há José, que é da casa, ao mesmo tempo irmão e retrato
(impossível esquecer essa máscara nobre, esse retrato antigo que
vimos um dia na exposição e que depois, com espanto,
reconhecemos na rua). Há dois ou três alunos da Universidade, não
servis, não apagados, mas funcionando com expressão própria e
singela na sala abarrotada. Há Meyer e Sara, vindos em um vapor
fantástico, que levou semanas a fazer a travessia do Rio Grande do
Sul ao Rio de Janeiro. Chegaram hoje mas o ambiente os proclama
velhos companheiros. De certo, um fluido circula neste apartamento,
que reúne tantas criaturas diversas e as concentra num ponto
imperceptível. Borba, tão agreste e fugitivo, não se furta a esse
contato cordial do Jardim Sul América. Landucci tem afetos latentes
no seu canhestro e gigantesco aperto de mão. Murilo tira o paletó. O
paletó não é realmente peça indispensável da indumentária humana.
E é natural que faça calor na casa pequena de Candinho, que
recolhe tantos amigos.
— Chico, será que Mané não vem hoje?
— Vem, Candinho. Telefonou da casa de Rodrigo, dizendo que
chega mais tarde.
Há tanta gente na casa, e entretanto a casa é um navio solitário,
na noite de Laranjeiras. Sim, efetivamente, falta Mané, Manu ou
Manuel. Ele chega daí a pouco, de roupa escura, chapéu escuro, os
óculos tão reluzentes. Esse senhor magro e adunco, de boca
amaríssima, por que razão é tão desejado? Que poder carrega
consigo? Sua calça não é fosforescente; de seus óculos não saltam
pombas com letreiros dourados; a mão não traz nenhuma bengala
mágica. Que é? Que não é? Sabê-lo-eis daqui a um momento. Eis
que a boca amaríssima se abre, os dentes pontudos se mostram, e
no sorriso desse homem há um mistério, um encanto grave, uma
humildade e uma vitória sobre a doença, a tristeza, a morte. Maria
dá-lhe uma poltrona perto da vitrola. Olga traz-lhe um café especial.
Mané senta-se sem importância, sorri sem importância. O que ele
disser e o que ele não disser terão o mesmo valor, porque todos o
amam com adorável respeito e sentem-se intimamente orgulhosos de
tê-lo perto.
Agora Candinho está mais satisfeito. E diz que pintou três quadros
durante o dia. Sem contar a parede da casa, que ele “sujou” toda,
treinando no afresco. Amanhã, vai acordar cedo com o projeto de
fazer escultura, e observar os moleques brincando, para ver se
acerta. E já pensa em fazer também litografia e zincografia. Leu na
noite passada o Degas Danse Dessin [Degas dança desenho], de
Valéry. Refere-se com nojo a um sujeito que escreveu um artigo
miserável sobre pintura, no Jornal do Commercio de domingo. Acha
que o crítico devia ser ferrado e posto a puxar carroça, durante 49
anos. “Fabuloso, não é?” Na Europa ou nos Estados Unidos, o
sujeito seria pelo menos encarcerado a título de advertência; aqui ele
continuará dando palpites errados e criando confusão e burrice. Mas
a cólera de Candinho é rápida. Ele se lembra que recebeu umas
tintas de Paris, para os afrescos do Ministério, e leva alguns íntimos
a um lugar secreto, onde estão guardados esses tesouros. De fato,
os azuis são maravilhosos. E há um vermelho que tua boca, Rosa,
não saberia imitar.
Sente-se que a população tem fome, e eis que surge sobre a
mesa uma imensa macarronada, receita de Maria.
Nunca se sabe ao certo quantas pessoas comem. Quase ninguém
avisou que vinha comer. Foram aparecendo. Do chão, do teto brotou
gente (a macarronada encerra um poderoso e vibrante apelo). Maria
não se afobou com essa germinação súbita de bocas devoradoras, e
há macarrão e vinho para todos. (Apenas alguém achou que o
macarrão ia melhor com a branquinha; e pelo telefone, pede-se a
branquinha, para atender a esse conhecedor.)
Homem de frágeis omeletes, hesito em frente à montanha dourada
e vermelha, e Candinho zomba da minha humilhação e do meu
problema. Afinal, a vida é combate! Ataquemos a macarronada.
Murilo e Mário venceram atacando. Mané venceu docemente. O
pequeno Jorge, idem. Idem, os pintores paulistas. Ninguém diria que
Meyer, tão metafísico… E M. Offaire… O homem que come é um
animal digno. Há na assembleia uma gravidade natural e bela, sob a
luz forte, entre as pinturas ilustres que amanhã serão célebres e
honrarão o Brasil.
Como esquecer, Candinho, tua casa de Laranjeiras? E aquelas
horas em que eu, calado e gauche, sentia em mim, sem confessá-lo,
o orgulho de ser do teu tempo, da tua companhia…
POESIA E UTILIDADE DE SIMÕES DOS REIS

Veio de Aracaju. Mas poderia ter vindo de qualquer parte do Brasil


ou do mundo. Estudou vagamente direito em Niterói. Deve ter
esquecido o que aprendeu então. Escreve em jornais, mas não é
jornalista. Funcionário, chefe de família, tem obrigações civis, que
desempenha normalmente. Nada disso conta, porém. Na vida de
Antônio Simões dos Reis, o próprio Antônio Simões dos Reis nada
significa. A única coisa que conta é o livro.
Que livro? Qualquer livro. Todos os livros. Para Simões dos Reis, o
mundo foi impresso, antes de ser criado. A palavra escrita (um MS
solto no caos) precedeu o verbo. Depois, aconteceram as coisas que
sabemos, inclusive os prelos e as bibliotecas. A existência das
tipografias e das bibliotecas tornou possível a de Antônio Simões dos
Reis e deu a esse homem a felicidade, que de outra forma lhe
faltaria.
Porque seria impossível compreender a vida de Simões dos Reis
num mundo sem livros. Se ele é antinazista, a explicação não estará
no seu sentimento democrático propriamente dito, mas no
conhecimento, que tem, de que o nazismo cultiva o mau hábito de
queimar livros. Semelhante prática é intolerável a Simões dos Reis,
que suponho não fumar para não usar fósforos e, assim, não
carregar consigo um agente de combustão da matéria impressa.
— Os maus livros, entretanto, lucrariam em ser queimados…
— Nunca! — brada Simões dos Reis. — Os maus livros devem ser
fichados e catalogados como os bons. Tudo é papel e é tinta, são
caracteres tipográficos ordenados, todos encerram um índice, têm
um formato, certo número de páginas. E a folha de rosto? E as
folhas de guarda? Não se pode queimar um mau livro. No máximo,
não o leiamos. Mas precisa figurar nas bibliografias, como um recife
é mencionado nas cartas de navegação.
Estão vendo, por esse diálogo simulado, que Antônio Simões dos
Reis possui os dois vícios maravilhosos: é bibliófilo e bibliógrafo. Se
quem possui um vício intelectual é feliz, o que possui dois está acima
da felicidade, do tempo e da vida terrestre. Simões dos Reis cultiva
ainda um requinte: inscreveu-se naquela classe dos bibliófilos pobres,
que são os mais finos bibliófilos. Ele sabe o que lhe custa uma bela e
boa edição seiscentista, tocaiada anos a fio e afinal descoberta num
sebo infeto e delicioso da rua Regente Feijó. Custa alguns contos de
réis. Ora, Simões não possui fábricas, navios e outras comodidades.
Vive do seu salário de repartição e de biscates jornalísticos. Se
possuísse aquelas coisas extraordinárias, seria fácil: tirava um
pedaço do navio, uma roda da fábrica, e trocava-a pelo livro. Na
falta, Simões despe a camisa do corpo, contrai dívidas, corta no gás
e na luz e adquire o troféu.
Mas Antônio Simões dos Reis, aristocrata sergipano, cultiva ainda
um segundo requinte. É também bibliófilo… generoso. Já viram tal
adjetivo ligado a semelhante substantivo? Eu, nunca. Pois essa
estranha fusão se operou em Antônio Simões dos Reis. O gosto
pelos livros antigos veio de um lado, caminhando solerte; do outro
lado, vinha, distraído, o gosto de fazer presentes. No caminho
estreito os dois tinham de se juntar… Um simpatizou com o outro, e
aí temos Simões dos Reis escarafunchando raridades da vetusta
oficina de Inácio Rodrigues, de Lisboa, não somente para si, como
para uso e gozo dos amigos, a quem as oferta Deus sabe mediante
que complicadas operações orçamentárias.
Do bibliófilo ao bibliógrafo a distância é variável. Alguns nunca a
transpõem. Outros vencem-na de um salto. Antônio Simões dos Reis
é desses últimos. O muito amar os livros não fez dele o ciumento que
mal ousa tocar em seus tesouros. Simões serviu-se, mesmo, da
bibliografia como de um instrumento de comunicação cordial entre os
livros e os seus possíveis amadores. Seus achados bibliográficos
são logo divulgados. Sua preocupação de estabelecer uma
bibliografia brasileira sistemática está presente nos trabalhos de
cada dia. Simões gostaria de poder informar a qualquer pessoa, em
qualquer momento, onde se encontra, em que estado se acha e o
que contém qualquer livro de qualquer autor do Brasil. Para ajudar o
estudo ou a curiosidade do consultante, mas sobretudo para
cooperar na leitura de novos livros.
Vejo-o catando laboriosamente os folhetos deixados sobre a
mesa, tomando apontamentos telegráficos, descobrindo, num mundo
de livros interessantes que convidam à leitura como mulheres
convidam ao amor, este opúsculo de capa amarela:
Castelo, plácido Aderaldo — Instituto de Previdência do Estado do Ceará. Relatório
apresentado pelo presidente Dr. Plácido Aderaldo Castelo ao Conselho Fiscal do Ipec,
atinente aos serviços executados e ocorrências havidas no exercício de 1941, inclusive
balanço de contas. Ceará, Tip. Minerva, Assis Bezerra & Cia., s.d. — 65 + 4 (n. nums.)
fls. desdobráveis e páginas com gravuras.

É apenas uma ficha. Simões faz milhares delas, para os livros


graves e para os frívolos, para as epopeias e as monografias de
farmácia galênica, para os romances, os dicionários e as ciências
didáticas, jurídicas, médicas, ocultas e outras.
Já se está vendo o valor de repositório, o valor de enciclopédia
viva que encerra esse homem, que o ministro Gustavo Capanema
soube aproveitar para pesquisas a fundo num oceano de livros,
jornais, revistas e processos burocráticos. Ele não tem tempo de
escrever os seus livros, tanto se dedica a descobrir, inventariar e
divulgar os livros dos outros. Renunciando às veleidades de autor, no
sentido de criador, consome o melhor de si na coleta dos materiais
que irão documentar e estruturar a obra alheia. Há, entre nós,
poucos obreiros literários com essa capacidade de investigar e
coligir. Entre tantas tarefas que se propõem à vocação das letras,
Simões dos Reis elegeu a tarefa que não brilha, mas que produz os
elementos de que se nutrem as especialidades fulgurantes. Daí a
poesia e a utilidade de sua obra. Poesia e utilidade de Simões dos
Reis, o homem que está sempre maquinando a caça a um alfarrábio
roído de bichos, que se embriaga com a descoberta de um
pseudônimo colonial, e que publica todas as suas caçadas e orgias
bibliotecárias.
De 1941 para cá, ao lado de intensa colaboração esparsa em
periódicos, ele publicou cinco séries de Pseudônimos brasileiros,
contendo mais de mil verbetes, três volumes da Bibliografia
nacional, com 531 verbetes, e a notável Bibliografia das
bibliografias brasileiras. Este último volume causa-me vertigem. É
como se entrasse numa galeria subterrânea, que conduzisse a outra
galeria, que por sua vez conduzisse a outra galeria, que por sua
vez… Culpa, talvez, de Augusto Meyer, que na introdução ao livro
nos cita o Tratado de documentação, de Otlet, prevenindo-nos da
possibilidade de existência de bibliografias de quinto grau, ou seja, a
bibliografia das bibliografias das bibliografias de bibliografias. Uma
suma das sumas, que excede as possibilidades do meu campo de
atenção, e que me conduz a um país alucinante de espelhos
multiplicados ao infinito. Simões dos Reis, entretanto, move-se
desembaraçadamente entre esses espelhos, e fichou-os todos.
Castro Alves certamente o prefigurava, ao criar a imagem do
homem mostrando-se diante de Deus com um livro na mão. O livro
será o passaporte, a carteira profissional, o documento de
identidade, tudo que interesse ao indivíduo Simões dos Reis; e
fazendo entrega dele à divindade, Simões não se esquecerá de
informar, como perfeito bibliógrafo:
— Com licença. Tem 0,184 ∑ 0,126 (0,134 ∑ 0,081). 119 páginas.
É uma primeira edição, ilustrada com mapas e gravuras. O índice
onomástico…
Deus o mandará calar-se, não por impaciência, mas porque na sua
infinita sabedoria, desde o começo dos séculos até a consumação
deles, conhece o livro, todos os livros, e conhece sobretudo Simões
dos Reis.
— Foste bibliógrafo, meu filho, e isso me apraz. Vem para o reino
dos bibliógrafos, que é sossegado, e está longe do reino dos
autores, esses indivíduos de mau coração.
(O que espero não aconteça tão cedo.)
MORTE DE FEDERICO GARCÍA LORCA

A Revista Acadêmica deu-nos em seus últimos números dois


poemas de Federico García Lorca e a notícia de sua morte. Tanto
vale dizer: a notícia de sua vida, porque García Lorca, desconhecido
do nosso público, só chegou até nós por essa informação rápida do
assassinato do poeta pelos fascistas de Granada.

Se le vió caminando entre fusiles,


por una calle larga,
salir al campo frio,
aún con estrellas, de la madrugada.

Mataron a Federico
quando la luz asomaba.
El pelotón de verdugos
no osó mirarle la cara.
Todos cerraron los ojos;
rezaron: ni Dios te salva!
Muerto cayó Federico
sangre en la frente y plomo en las entrañas
que fué en Granada el crimen
sabed — pobre Granada! en su Granada!…

É como outro poeta, Antonio Machado, em versos que têm a


simplicidade de uma notícia de jornal — e o trágico jornalístico,
também — faz o registro dessa morte. García Lorca não morreu em
combate, como o impressor de seus livros, Saturnino Ruiz. Morreu
assassinado ou, se preferem, fuzilado por um pelotão urbano e
provavelmente adversário da poesia.
Porque em García Lorca a Espanha de hoje tinha sua expressão
lírica mais veemente e ao mesmo tempo mais concentrada, mais
sutil. Não era homem de partido. Era um poeta, ou seja, um indivíduo
dotado do poder de recriar os objetos e a atmosfera em que eles se
realizam. E era também poeta no sentido medieval e eterno em que
a poesia é dom que se distribui, meio de comunicação entre os
homens, efusão lírica da massa concentrando-se num indivíduo e
refluindo sobre a massa através dos cânticos que o indivíduo
produziu sob a sua influência e o seu ditado. Sua experiência poética,
rica de ensinamentos fecundos, mostra a possibilidade de
coexistência de um grande poeta nacional com uma força poética
universal. Assim, pôde renovar a tradição gitana dos romances e
canções, em versos que têm o colorido forte de Granada, os cheiros
e palpitações sensuais daquela terra amorosa, e, ao mesmo tempo,
integrar-se na corrente supranacional daqueles que, em diferentes
países do mundo, conseguiram depurar a poesia de tudo quanto é
acidental, insubstancial ou meramente decorativo. A solução
harmoniosa desse pseudo mas comprometedor conflito entre o local
e o universal é, para mim, a primeira lição de García Lorca. (Entre
nós, haverá quem a aproveite.) A segunda reside no seu conceito
rigorosamente popular do localismo. A vida e a alma espanholas,
como já se tem dito, são tão marcadas de contrastes que seria
possível ao poeta optar ou deixar-se conduzir por esta ou aquela
inclinação menos generosa (fidalgos, padres e generais lhe
disputariam o estro), ou mesmo tornar-se campo de batalha de
tendências antagônicas. García Lorca, porém, soube distinguir entre
as contradições de sua pátria e achar, através delas, o seu justo
caminho. Ficou com o povo, apropriando-se assim do opulento
cabedal lírico que o povo costuma oferecer aos que realmente o
penetram e assimilam. Daí essa “poesia de veias abertas”, que um
crítico lhe assinalou, e que nada tem da enfática receita nietzschiana,
da literatura escrita com o sangue. A paisagem, a figura humana, a
vida social de sua terra, os dramas peculiares ao caráter hispânico
formam a substância mesma de seu mundo poético, na fase que se
poderá colocar sob o signo do Romancero gitano:

Las piquetas de los gallos


cavan buscando la aurora,
cuando por el monte oscuro
baja Soledad Montoya
Cobre amarillo, su carne,
huele a caballo y a sombra.
Yunques ahumados, sus pechos,
gimen canciones redondas.
Soledad, ¿por quién preguntas
sin compaña y a estas horas?
Pregunte por quién pregunte,
dime: ¿a ti qué se te importa?
Vengo a buscar lo que busco,
mi alegría y mi persona.
[…]
¡Oh pena de los gitanos!
Pena limpia y siempre sola.
¡Oh pena de cauce oculto
y madrugada remota!

Mas, tendo triturado suficientemente a complexa substância


ibérica, Federico vai agora debruçar-se sobre outros caminhos e
planos, já então vertiginosos.

¡Oh Salvador Dalí, de voz aceitunada!


[…]
Marineros que ignoran el vino y la penumbra,
decapitan sirenas en los mares de plomo.
[…]
El Gobierno ha cerrado las tiendas de perfume.
La máquina eterniza sus compases binarios.

O ciclo lorquiano completa-se naturalmente, e a sua Granada,


antes policiada tanto pelo metro tradicional como pela nitidez da
visão imediata, aparece-nos agora sob um ângulo feérico, uma
quarta dimensão, da qual, entre outras verdades interceptadas, é
possível observar que

la gillette descansaba sobre los tocadores


con su afán impaciente de cuello seccionado.

Federico García Lorca está na posse absoluta do seu dom poético


(“Oda a Salvador Dalí”, “Oda al Santísimo Sacramento del altar”,
“Niña ahogada en el pozo”). É o artista que domina todos os
materiais e recursos técnicos e é o homem que se nutriu de
experiências próprias. Volta-se então para o teatro, levado ainda
pelo seu amor ao povo e sua identificação com ele, pois tudo indica
que o teatro voltará a constituir entre os homens uma expressão
natural da vida e um meio de ação sobre as consciências,
recuperando o tempo roubado e perdido pelo cinema. La zapatera
prodigiosa, Amor de Don Perlimplín con Belisa en su jardín, Bodas
de sangre, Así que pasen cinco años, Doña Rosita la soltera o el
lenguaje de las flores marcam essa fase em que o poeta busca
realizar um contato mais quente e fraternal com o povo. E não
somente escreve farsas e tragédias como organiza uma companhia
de amadores, La Barraca, indo com ela — conta-nos o escritor
cubano Raúl Roa — Espanha afora, recitando, tocando piano,
fazendo conferências, passes de prestidigitação e magia.
Uma de suas peças mais felizes, Yerma, é representada no país
quando estala o golpe fascista. Todos os escritores se enfileiram ao
lado da República, e Federico García Lorca não trai o profundo
instinto popular que sempre o inspirou. É o momento em que não
adianta falar a linguagem dos anjos e dos mistérios, em que a poesia
tem de ser um protesto ardente e viril. E ele se dirige à Espanha:

No hagas caso de lamentos


ni de falsas emociones;
las mejores devociones
son los grandes pensamientos.
Y, puesto que por momentos
el mal que te hirió se agrava,
resurge, indómita e brava,
y antes que hundirte cobarde,
estalla en pedazos y arde,
primero muerta que esclava!

Uma voz assim, de um poeta assim (sua influência nos países


americanos de cerne espanhol é imensa; poetas amadurecidos ou
gastos renovam-se ao seu contato; o Ministério da Educação da
Colômbia dedica-lhe um número especial de sua revista), era
realmente perigosa. Fuzilaram o poeta. O compositor Manuel de
Falla, segundo nos informa o sr. Gilberto Freyre, enlouqueceu ao
saber da morte de seu íntimo amigo. Mas o poeta continua. A poesia
não está morta, meu prezado Augusto Frederico Schmidt. Um ano
depois do seu brado melancólico, a poesia está viva, e sua luz, de
tão fulgurante, algumas vezes torna-se incômoda.
MAURIAC E TERESA DESQUEYROUX

Tome-se ao acaso um livro de François Mauriac e ele servirá de


chave à obra do romancista. Aqui, a chave é Thérèse Desqueyroux.
Mas Mauriac não tem muitas portas, nem sua porta muitos
segredos. É homem de um só livro, indefinidamente multiplicado.
Como, então, consegue fugir à monotonia? É que esse livro único,
repetido até o desespero, nunca se esgota; sua matéria, sempre a
mesma, apresenta uma riqueza incalculável; a fome se sacia, mas o
celeiro continua provido; Mauriac desfalca-o de alguns grãos, mas
uma reserva abundante permite e como que sugere novos assaltos.
Essa matéria de Mauriac é o homem, o homem solitário entregue
à sua natureza. Pertencendo a uma Igreja, mas não a um partido
religioso, o autor de Ce qui était perdu [O que foi perdido] se tornou
geralmente conhecido como romancista católico. Entretanto, ele tem
no catolicismo seus amigos fervorosos e seus detratores cruéis. O
zombeteiro professor Thibaudet observa, a propósito de sua obra,
que “a Igreja, por muito tempo hostil ao teatro, nunca viu com bons
olhos o romance, mesmo católico”, abominando neste, não já a
descrição deleitosa do pecado, mas o próprio pecado original do
romance. De resto, esclarece Jean Prévost, não é em nome da fé ou
da pureza, mas como ordem estabelecida e poder oficial, que a
Igreja censura certas tendências de Mauriac, tão avesso ao
constrangimento das fórmulas sociais. Por sua vez, o próprio
romancista, nas páginas do seu pungente Journal [Diário], registra o
fato: “Os que fazem profissão de crer na queda original e na
corrupção da natureza não suportam as obras que dão testemunho
dessas coisas”.
Em traços muito sumários, ficou definido o conflito entre o
romancista religioso e sua religião, entre Mauriac e o catolicismo. O
escritor versa matéria proibida, matéria de escândalo; pintar o
pecado é convidar a pecar. Mas quando se tem o gosto da
profissão, e essa profissão é a de romancista, não pode fugir ao
romanesco, isto é, ao pecaminoso. O citado Jean Prévost procura
resolver a questão em proveito de Mauriac; na sua opinião, o conflito
existe menos entre o cristianismo e a coisa literária, do que entre
elementos cristãos, “no próprio interior da fé; entre um pensamento
essencialmente cristão e certos pontos da conduta cristã”; “é
escandaloso, aos olhos do cristão, pintar o mundo tal como ele é aos
olhos dos cristãos”. De qualquer modo, a difícil posição de Mauriac é
fonte constante de riscos, porque o homem não abandona a sua fé
nem a sua literatura.
Outros ficcionistas, como outros leitores, sorrirão desse drama. Se
Mauriac não jogasse tanto com a presença (invisível, mas palpitante
à distância, em seus livros) de um poder divino, tais livros seriam
simplesmente freudianos. Elimine-se esse dado oculto, e surgirão os
complexos, os recalques, as transferências, o conteúdo onírico e
toda a nomenclatura popularizada nos últimos anos. De acordo. Mas
é preciso contar com a personagem secreta de Mauriac, que dela
não prescinde. Seria muito bom que os romancistas fossem apenas
romancistas, os poetas puramente poetas, mas a verdade é que eles
se comunicam, através de inumeráveis condutos, com as correntes
morais, políticas e filosóficas que banham o mundo, e que sem essa
comunicação não existiria mesmo a matéria que produzem, isto é, a
literatura.
Para compreender e estimar Mauriac, portanto, é preciso aceitá-lo
tal como é, romancista obcecado com o problema da culpa e do
resgate. Não o problema da consciência moral, pura e simples,
comum ao crente, ao cético e ao ateu, ou o da responsabilidade
jurídica, forma civil dessa consciência. Sua fraqueza, como sua
força, vêm daí. É pegá-lo ou deixá-lo. Mauriac não cometeria a
transigência de sacrificar a um certo esnobismo, que adotasse essa
atitude em substituição àquela outra, julgada fora de moda. Ou
admitimos o mundo tal como nos propõe com as suas regras de
jogo, ou não haverá jogo. Por exemplo: se quisermos a ironia ou o
humour, não os procuremos em suas páginas. Encontraremos, no
máximo, um sarcasmo azedo, incidindo não sobre o ridículo, mas
sobre a “corrupção envaidecida”. Ao lado desse cautério, os
bálsamos de que Mauriac se serve são a piedade e a caridade,
registra ainda um dos seus críticos: aquela para os loucos, esta para
os fracos. É exato que os sentimentos evangélicos não fazem os
bons livros, mas não o é menos que os livros de Mauriac, escritos
por quem conhece muito bem o ofício literário, não sofrem a
influência negativa desses sentimentos e só podem ser interpretados
à luz deles, em que pese aos próprios depositários intransigentes da
verdade cristã.
De resto, se a liberdade de espírito tem um valor em si e não é
apenas palavra de ordem contra certas forças opressoras do
momento, devemos reconhecer em Mauriac, no puro território das
letras, sejamos ou não solidários com a sua crença, estejamos ou
não identificados com a sua concepção das coisas, a figura singular
de romancista que ele é. Seus analistas são unânimes, por exemplo,
em reconhecer-lhe o dom de criar uma atmosfera. A “atmosfera
Mauriac”, sabe-se o que isto quer dizer (e Thérèse Desqueyroux
bem o reflete): são os pinheiros enchendo o horizonte, a desolação
das landes, o calor sufocante numa sala cheia de ações frustradas e
velhos retratos; cheiros de terra, de resina, de baús, de roupas; e a
chuva, que “cairá sempre”, envolvendo não só as personagens como
o leitor. “O mínimo pormenor”, diz Marcel Arland, “parece não
imaginado, mas evocado, saído da alma, e adquire logo um valor
poético. Em qualquer dos seus livros, uma personagem faz o gesto
mais simples, e a gente vê desatar-se em torno um invólucro de
paisagem, percebe um cheiro de frutas maduras, sente que está
fazendo calor, ouve o apito de um trem.” E já se tem falado, mesmo,
da existência evidente de “personagens Mauriac”. Como vivem por
aí, misturadas às de Dostoiévski e de Joyce, as 2 mil criaturas de
Balzac. Em Mauriac, o homem vive, respira, choca-se com outros
homens, vai para casa com o peso das misérias acumuladas durante
o dia, dorme, acorda angustiado e retoma os miúdos deveres
cotidianos. É vulgar, não aspira ao heroísmo, resvala mais facilmente
para a decadência. Mas pode-se sentir nele o silencioso nascer da
barba, o cheiro íntimo, individual, do seu corpo, o cheiro que cada
corpo carrega sobre a terra (faro de cão e de romancista). E isso é
mais sugerido do que contado. Todo processo naturalista é alheio à
sua técnica. Sua maneira é opressiva como sua atmosfera. É preciso
lê-lo depressa, não porque o elemento anedótico seja de tal modo
atraente que desperte mais a curiosidade que a simpatia do leitor
(esse elemento é quase nulo), mas porque, como nesses brinquedos
do parque de diversões, em que o indivíduo é lançado em extrema
velocidade numa pista vertiginosa, o ritmo de Mauriac é o de um
mergulho instantâneo na superfície espessa da consciência. Teresa
Desqueyroux vai a um canto da casa verificar se ainda estava no
bolso de uma velha capa o pacotinho de veneno que ali pusera. A
cena exterior e a interior são fotografadas em quatro linhas como
uma receita de farmácia:
Teresa enfia a mão, retira o pacote lacrado: Clorofórmio, 10 gramas. Aconitina, 2
gramas. Digitalina, 2 gramas. Relê essas palavras, esses algarismos. Morrer. Sempre
teve pavor de morrer. O essencial é não olhar a morte de frente — prever apenas os
gestos indispensáveis: derramar água, dissolver o pó, beber de um gole, estender-se
na cama, fechar os olhos.

Mauriac não escreve: corta. E Ramon Fernandez fala com


propriedade de “sua mão galopante”.
É a galope que ele nos conta a história de Teresa Desqueyroux,
com resíduos de monólogo interior, fazendo luz não sobre os objetos
e os fatos, mas sobre a lembrança deles. Dir-se-ia que a história se
desenvolve no escuro; apenas, de quando em quando, uma lanterna
passeia nas trevas, e a essa claridade sem aviso as coisas se
apresentam na sua humilde e ignóbil realidade. Não há linhas
divisórias entre romance e leitor, porque, como já se observou,
Mauriac se esforçou em nos levar para dentro do corpo, do coração
de Teresa; convida-nos a um misto de cumplicidade e investigação. E
fechamos o livro com o angustioso problema de, por nossa vez,
termos de julgar Teresa. Mas como julgá-la? Em nome de que
princípios irreparáveis, com que autoridade…?
BOADELLA ENTRE ELEFANTES

A poesia de José Boadella poderia suscitar um debate infindável.


Que é poesia? Como explicá-la? Onde é segredo individual e onde é
mensagem coletiva? Que parte deve ter nela a inteligência? E a
parte do instinto? A palavra, em poesia, pode ter um segundo e um
terceiro sentido? Que correlações de palavras é lícito ao poeta
estabelecer, à margem das habituais e da convenção geral da
linguagem? Se esta é um instrumento lógico, disciplinado por leis
especiais, pode servir à elaboração de representações ilógicas? Há
no poeta algo de específico, que o leitor comum deva assimilar,
embora não preparado para isto, ou o fenômeno poético se
transmite espontaneamente do criador ao leitor, viajando entre
núcleos secretos idênticos? A poesia deve ser apenas uma
representação estilizada do universo, ou lhe compete uma tarefa de
correção desse universo, num plano arbitrário e sempre renovado ao
sabor do capricho poético?
Os livros de José Boadella, entretanto, não respondem a nenhuma
dessas perguntas. Sua poesia é provocadora, mas serena. O poeta
é simplesmente um poeta, parece dizer-nos. Nem adianta que o
decifremos. Decifrado ou não, o poeta nos devora, sua obrigação é
devorar-nos. “Devorar” é empregado aqui no sentido de invasão e
impregnação do espírito, por meio das sugestões da linguagem
poética, isto é, coisa totalmente despojada de sentido lógico, prático,
social, moral ou metafísico. Isto faz José Boadella, com os seus
versos que não têm explicação imediata e dela não necessitam.

Mi aventura es extrema porque no se repite.


Soy el ángel que anuncia la Rosa de la Ley
Amanezco entre el premio de la sangre vertida
y la roja serpiente de la polar Babel.

Não é o poeta que nos fala, mas sim o “elefante dos olhos azuis”.

Hago mis cosas feas con la risa en los ojos


por los trigales y las piedras del mar.
… Un rumor de mareas acompaña mi vida.
Yo me pierdo en la frase de una fuga de Bach
… Te digo que soy vivo de sentencia y contraste
El fiscal invisible de toda la ilusión.
La muralla perfecta de toda obra de arte.
La armonía que nace como nace una flor.

Ainda não é o poeta: são outros elefantes, róseo, violeta,


vermelho, e o elefante cego, o elefante escocês, o elefante grego, o
elefante econômico, o plástico, a dançarina grande elefanta, todos
os elefantes possíveis, até o elefante poeta. O livro inteiro é um
excitante e ritmado monologar de elefantes, cada qual com a sua
sutileza própria (o fluido, em Boadella, também escultor em madeira,
é figurado pelo que há de mais maciço como plástica). Trata-se de
uma primeira pessoa multiplicada até o tédio, mas variando com a
tonalidade do pelo e a riqueza íntima de cada elefante — ou de cada
pseudônimo de Boadella.
Todo esse cortejo de elefantes desfila numa ordem sinfônica, que
o poeta soube dispor na sua combinação de disciplina formal e
arbítrio conceitual. Uma arquitetura musical se ergue, criando o livro,
que o poeta quis rigoroso e cruel, rico de secretas associações,
ligado ao tempo (Guernica e Dunquerque, tumulto de intelectuais na
praça da Concórdia, pinturas de Chirico) e do mesmo passo fugindo
dele por todos os veículos da alucinação poética. Boadella transfere
a cada um dos elefantes um pouco da sua multifária substância;
confia-lhe um segredo, uma descoberta, um espasmo. Todos são
Boadella, mas o poeta se compraz em conservá-los sob a espécie
elefantina, bichos poderosos e ignorantes de sua força, boiando
numa atmosfera de lirismo irresponsável, em que mundo, coisas,
elefantes e problemas se dissolvem, se recompõem, manipulados
por um criador caprichoso, que só despreza as regras do jogo
porque as conhece de sobra.
Esta é, através de anotações precárias e que nada refletem do
seu mistério, a complexa e perturbadora poesia de José Boadella.
Confesso que não a amo inteiramente, embora a admire sempre.
Não sei que partes do meu ser permanecem insatisfeitas ou
descontentes ante o furor lúcido desse poeta, abstrato e sensual, e
dotado de tamanho poder de descaracterizar as coisas. Percebo
nele, indeciso entre a poesia, a obra de talha ou outro qualquer
caminho não revelado, um desses “místicos em estado selvagem”,
capazes de sacrificar toda a arte a um sentimento de plenitude
ontológica.

Si yo no nombro a Dios, es porque está en mi canto.


Y el dia que no esté, seré como una sombra
que la vida concilia y recogen sus manos.

Dispondo de tantos poderes, o poeta se anexa mais este,


sobrenatural! Daí ao silêncio inefável e à contemplação mística, o
passo é rápido, mas já não haverá poesia, e sim ruptura com ela, em
proveito de outros valores. Pressentirá Boadella o perigo? ou talvez
o procure, fascinado?… Nada posso dizer, ai de mim!, pobre
elefantezinho não metafísico, que mal sei abanar a tromba.
O SIMPÁTICO WILLIAM BERRIEN

Trinta pessoas se reúnem em torno da mesa para homenagear um


intelectual; mas, comendo, se esquecem de homenageá-lo. O
intelectual, por sua vez, comendo, se esquece da homenagem. Uma
atmosfera de cordialidade e benevolência se estabelece, e o almoço
resulta proveitoso, e a homenagem efetiva. Foi assim que
almoçamos com William Berrien num restaurante em frente ao mar,
ou melhor, almoçamos William Berrien, sem que ele desse por isso.
Luís Jardim, que fez então o primeiro discurso de sua vida (e teria
sido o primeiro? O norte tinha tantos parlamentos, dispõe ainda de
tantas academias!), disse que o nosso homenageado, por sua
identificação com o Brasil, já era conhecido em alguns círculos por
William Berrien de Almeida e Silva. A informação dá uma ideia de
como esse americano do norte soube assimilar a nossa complexa e
difusa substância brasileira e incorporá-la ao seu jeito natural de
homem dos Estados Unidos. É verdade que muitos de nós vão à
América do Norte e de lá voltam — ou não voltam, o que é pior —
com uma epiderme norte-americana colada à carne cabocla.
Deixam-se invadir pelos Estados Unidos, e daí por diante não podem
deixar de considerar sob um prisma ianque qualquer problema
brasileiro que se lhes proponha. Trazem consigo um estoque de
soluções nova-iorquinas para as nossas necessidades sertanejas. E
desde o motorzinho elétrico para atar e desatar cordões de sapatos,
até o aparato psicomecânico para denunciar os maus pensamentos
dos funcionários públicos em hora de expediente, esses cavalheiros
a todo instante nos oferecem os instrumentos miraculosos, de que se
abasteceram no vasto arsenal de maravilhas da civilização norte-
americana — máquinas, filmes, best-sellers, camisas, planos
econômicos, doutrinas pedagógicas, legumes enlatados… E nada
nos falam, efetivamente, dos Estados Unidos, da sua alma e da sua
atitude nova no mundo.
William Berrien, que gostou da Bahia, passando um dia inteiro no
seu mercado ao invés de passá-lo no Instituto Histórico de Salvador,
não se fez brasileiro, entretanto, à maneira como esses brasileiros
apressados se fizeram norte-americanos. Tornou-se Almeida e Silva,
mas continuou Berrien, de Northwestern University. Daí o seu
encanto, sensível aos brasileiros em geral, que gostam de ver-se
refletidos, na sua exata condição, por uma clara pupila estrangeira, e
que se agradaram de ver a imagem do nosso país tal como aparece
nos olhos azuis desse bom gigante calvo e gordo, que lê os nossos
gramáticos, os nossos poetas, os nossos romancistas e os nossos
sociólogos, mas os confere pessoalmente com o nosso povo, a
nossa linguagem e a nossa vida.
Foi esse prestante cidadão que almoçamos em termos de
confiança recíproca e bom humor. Não se pronunciou, diante da fruta
e do peixe, a palavra “pan-americanismo”, ou similar. Há um trabalho
que se desenvolve à margem das fórmulas, e de certo modo as
ignora, realizando-as. A ideia de maior solidariedade moral e de
maior compreensão espiritual entre as Américas não pode ser-nos
indiferente; mas, curiosamente, essa ideia nem sempre ganha em
exprimir-se em termos políticos ou de propaganda. Pessoalmente,
sinto-me álgido em frente a um representante da política de boa
vizinhança; prefiro a boa vizinhança em si. Talvez porque os próprios
fatos nos hajam demonstrado de maneira evidente a necessidade de
coesão dos povos americanos, tornando ocioso o jogo das palavras;
talvez porque essa coesão constitua um elemento de solução para
as nossas dolorosas perplexidades íntimas, e fica sendo, assim,
matéria de infinita delicadeza — o certo é que não agrada falar
dessa ideia como de uma simples conveniência política ou de um
rumo preconcebido de ação. E, também, a necessidade de
compreensão, que tal conduta nos impõe, não é facilitada pelo
discurso de propaganda; a compreensão mais perfeita será uma
experiência pessoal, adquirida com os nossos próprios materiais, a
nossa pesquisa individual. É um esforço na direção da coisa a
compreender, não a aceitação dócil e molenga dessa coisa.
William Berrien não discutiu conosco a técnica da aproximação,
mas sente-se que ele amadureceu esse problema e concluiu pela
inutilidade da técnica. Representante do meio universitário norte-
americano, enviado da Divisão Cultural da Fundação Rockefeller, seu
processo de absorção do meio estrangeiro parece-me resultar antes
da sua maneira pessoal de ser do que de instruções regulamentares
ou normas gerais de ação. A tarefa de desenvolver as relações
culturais entre dois ou mais países comporta problemas de
psicologia individual e coletiva, mas sobretudo da primeira. Na frente
de cada país, como a resumi-lo está apenas o homem com quem
falamos, e é preciso inspirar confiança a esse homem. Todo o
intercâmbio — já que essa gasta palavra ainda circula, à falta de
melhor — se reduz a uma conversação entre dois temperamentos
num salão ou na rua; e da maior ou menor entrosagem desses
temperamentos nascerá uma prevenção feliz ou infeliz para com os
países confrontados. A tarefa do bom agente cultural será menos a
de dar que a de pedir; não querer seduzir pela riqueza espiritual que
represente, mas esforçar-se por descobrir a outra, que o interlocutor
traga consigo. Não importa que as duas culturas não se equivalham,
e é bom que assim seja; na diversidade que apresentarem estará o
maior interesse da dupla penetração.
Qualquer outra concepção das relações culturais, baseada na
inoculação de uma cultura mais débil por outra mais poderosa ou
melhor provida de elementos de expressão, será sempre uma
concepção imperialista, a serviço de fins econômicos e políticos
indesculpáveis. Não pude encontrar vestígios dessa tendência em
William Berrien. Ele é, sem dúvida, um cidadão norte-americano.
Mas o seu interesse pelo Brasil como pelo Chile, pelo México ou pela
Argentina, me parece antes de tudo um interesse intelectual e
humano. O trabalho que resulta de um impulso dessa natureza pode
servir a fins políticos de momento, desde que esses fins coincidam
com o seu objetivo desinteressado, que é o de definir os traços
peculiares de cada povo do continente. Nada como um país novo
para considerar a velhice uma forma específica de sabedoria, e
cultivar a falsa tradição e a banalidade pomposa. Ajudá-lo a
descobrir, sob esse monte de convenções, a sua própria fisionomia,
sem perda de espontaneidade e originalidade, e contribuir assim
para um mundo mais decente (oh! estou divagando!) em que os
povos se respeitem e se estimem, é o melhor que se pode fazer, no
terreno das relações culturais. Assim parece ter compreendido o
simpático William Berrien, esse companheiro de bom convívio, com
quem foi agradável almoçar no dia claro, diante do mar.
CONFISSÕES DE MINAS
VILA DE UTOPIA

A casa era grande, na rua Municipal: dois andares que subiam cheios
de portas e sacadas, oferecendo a frontaria sem ornatos, maciça,
impressionante, à admiração dos que passavam. Dentro dela,
olhando para o pátio central, outro sobrado, este menor, guardava
cômodos inúteis; parecia um pombal. Em 1911 esse sobradinho
desapareceu, mas a casa não diminuiu de tamanho, os passos
ecoavam ainda nos mesmos imensos corredores, nas mesmas salas
infinitas. E nela existiam desvãos que nós nunca havíamos explorado.
Por baixo da escada, por cima da copa, aqui, ali, o mistério abria-
nos os seus lares. Mas nós crescíamos depressa e não púnhamos
reparo na casa grande.
Sabíamos que a casa tinha muitos anos, que ali morreram avós,
tios e primos; em tal quarto nasceu meu pai, naquele outro meu avô
estendeu, até à morte, uma perna baleada nas últimas eleições
sangrentas do município; mas nós circulávamos livremente através
do ar coalhado de lembranças e eflúvios familiares, de pesadas e
obscuras memórias dos coronéis e das damas antigas, dos vestidos
de dona Joana e das festas do comendador Paula Andrade.
Com a mesma inconsciência natural nós crescemos e nos
dispersamos; um dia a casa foi vendida, e então um amargor sem
aviso prévio, uma angústia nos subiram à boca, aos olhos;
verificamos como aquela casa fazia parte da nossa vida, e como
essa vida ficava sem explicação, despregada das enormes paredes
azuis que o Andrade dominador salvara da ruína para compor com
elas o nosso quadro infantil e humano.
Tinha setenta, oitenta anos… Nunca soubemos ao certo a idade
daqueles barrotes veneráveis. Ninguém sabia. E não pedíamos
informações. Insisto em dizer que a vida era inconsciente e calma. O
pico do Cauê, nossa primeira visão do mundo, também era
inconsciente, calmo. Na nossa rua apenas passavam as pessoas que
iam assistir à chegada das malas, no Correio, espetáculo diário e
maravilhoso, pelo humorismo que nele sabia pôr o velho agente
Fernando Terceiro; as pessoas que iam reconhecer firmas no
tabelião Barnabé; e algum vago transeunte, em demanda da rua de
Santana, algum vago moleque, que ia atirar pedras na casa de
Didina Guerra (às vezes, eu aderia cinicamente a esse moleque).
Nos dias de júri, a curiosidade das tragédias e das humilhações
alheias punha um enxame de criaturas no Fórum, perto de nossa
casa; mas nós íamos caçar passarinhos ou tomar banho na praia do
Rosário, onde uma bica nos dava a impressão de uma catarata
doméstica, submetida aos nossos desejos. Como foi que a infância
passou e nós não vimos? Até hoje interrogo aquele menino que
durante quatro anos foi aluno deploravelmente bom do grupo escolar,
e não o sinto nem aprumar-se, nem enriquecer-se de experiências
vitais, nem desprender-se do cenário familiar. No entanto, o menino
existiu, sofreu, brigou, amou, desesperou, cresceu. Vinte anos
depois, voltando à cidade, não encontrei vestígio algum da aventura
individual. Só a velha casa continuava, espetacularmente azul na rua
deserta, de onde haviam desaparecido o tabelião Barnabé e o
coletor Quinca Custódio, mas onde restava o inesgotável Fernando
Terceiro, ainda ereto, fazendo sempre o comentário sarcástico dos
acontecimentos e dos homens entre os quais incluía o seu vizinho e
também humorista Minervino Betônico.
A vida anterior sutilizara-se. A cidade, entretanto, continuava o
mesmo aglomerado de casas desiguais, nas ruas tortas grimpando
ladeiras. Um silêncio grave envolvia todas essas casas e
impregnava-as de uma substância eterna, indiferente à usura dos
materiais e das almas. Dessa maneira ela se preserva da destruição.
Hoje, amanhã, daqui a cem anos, como há cem anos atrás, uma
realidade física, uma realidade moral se cristalizam em Itabira. A
cidade não avança nem recua. A cidade é paralítica. Mas, de sua
paralisia provêm a sua força e a sua permanência. Os membros de
ferro resistem à decomposição. Parece que um poder superior tocou
esses membros, encantando-os. Tudo aqui é inerte, indestrutível e
silencioso. A cidade parece encantada. E de fato o é. Acordará
algum dia? Os itabiranos afirmam peremptoriamente que sim.
Enquanto isso, cruzam os braços e deixam a vida passar. A vida
passa devagar, em Itabira do Mato Dentro.
Se a vida passasse depressa, a estrada de ferro já teria posto os
seus trilhos na orla da cidade; à sombra do Cauê, uma usina imensa
reuniria 10 mil operários congregados em cinquenta sindicatos, e
alguma coisa como Detroit, Chicago, substituiria o ingênuo traçado
das ruas do Corte, do Bongue, dos Monjolos. Mas para que tanta
pressa? Tudo virá a seu tempo, e se não for agora, como não foi em
1898, quando o padre Júlio Engrácia dizia ironicamente que “depois
que pelos diversos estudos ficou a esperança que passará na cidade
uma via férrea, tem havido animação em construir; ao menos houve
esta vantagem” — algum dia há de ser, e tudo estará bem. Na
consumação dos séculos se consumarão também os nossos
desejos, e a alma alcançará a bem-aventurança eterna, que é o sono
no regaço de Deus. Até lá, vivamos com calma.
É curiosa esta vila de Utopia, posta na vertente da montanha
venerável e adormecida na fascinação do seu bilhão e 500 milhões
de toneladas de minério com um teor superior a 65% de ferro, que
darão para “abastecer quinhentos mundos durante quinhentos
séculos”, conforme garantia o visconde de Serro Frio. “Os números
que exprimem a quantidade de minério de Itabira”, confirma o
professor Labouriau, “são astronômicos: de tão grandes tornam-se
inexpressivos.”
Inexpressivo, é bem o termo; e não encontro também outro para
qualificar a minha, a nossa indiferença diante de tanta opulência
inerte. Somos tão ricos, em Itabira, que não nos preocupamos com a
nossa própria riqueza. Temos riqueza para dar ao mundo inteiro e
ainda sobra para 499 mundos possíveis. Se oferecêssemos a cada
habitante do planeta a insignificância de uma tonelada de ferro,
quase todo o rebanho humano estaria servido, pois a cifra total do
rebanho não vai além de 1 bilhão e 700 milhões de criaturas. Somos
perdidamente, inefavelmente milionários. No entanto, a arrecadação
da prefeitura, em 1932, não excedeu de 216 contos (inclusive vinte
contos de saldo do exercício anterior), e uma honesta parcimônia
pauta a vida dessa gente ensimesmada e grave, que nada tem nem
pede ao governo, e passa honradamente pelos guichês do Banco
Comércio e Indústria, para emitir ou reformar as suas promissórias.
Tanta riqueza em potência vem sendo, talvez, um grande mal para a
vila de Utopia.
— Itabira, onde estão tuas trinta fábricas de ferro do tempo do
barão de Eschwege, com os seus cadinhos dotados de trompas e
martelos hidráulicos, os seus fornos e as suas oficinas de armeiro,
que antecederam e suplantaram em eficiência a real fábrica do
Morro do Pilar?
— Onde estão, Itabira, os escravos e os faiscadores de João
Francisco de Andrade e do capitão Tomé Nunes, varejando os
regatos e as encostas de Santana e da Conceição e produzindo mais
de 7 mil oitavas de ouro, quando já a mineração declinava no Brasil?
— Que notícia me dás, Itabira, da Associação Brasileira de
Mineração, último esforço da nossa gente para manter o caráter
nacional dos nossos depósitos minerais, hoje entregues ao
estrangeiro tão arrebentado quanto nós para explorá-los?*
Tudo isso está longe. A minha infância já não foi frequentada pela
memória desses homens e dessas preocupações. E se me
debruçava sobre o passado, era para ouvir uma voz que cantava,
toldada de álcool:

Capitão Tomé
é ouro só,
os herdeiros dele
é molambo só…

ou para ouvir o velho Elias do Cascalho resmungar uma reza meio


africana meio mística, que tinha poderes para esconjurar mazelas;
era mais velho que a cidade, viera do Congo e não se aproveitava
nada do que dizia.
Como você foi diferente, sá Maria, com a sua existência
prestimosa e sóbria, devotada à criação de duas gerações da família
e pitando eternamente o seu cachimbo, única volúpia que a singeleza
de seu feitio lhe permitia! E no entanto o Cutucum, de que você veio,
num dia remoto do século XIX, está situado nesse distrito do Carmo,
de que o padre Júlio assinalava o “descalabro social”, a “polícia
fraquíssima e nula”, a “deficiência de educação e princípios
religiosos”, a inclinação “a toda sorte de orgias”. Ainda vejo seu
corpo mirrado, sob o lenço colorido da cabeça, os dedos
entrelaçados de frieiras, a boca murcha mascando mesmo quando
vazia, a voz severa, mas traindo um secreto carinho, o coração
aberto, numeroso… Cinquenta anos, pelo menos, da vida de Itabira
desfilaram diante dos seus olhos e você nem reparou neles,
preocupada como estava em encher o seu pote d’água, preparar
cedo o almoço e o jantar da família, deitar cedo os filhos de criação,
viver cedo, fazer tudo cedo… menos morrer, porque isso era contra
o seu regulamento interno, que exigia o máximo de fervor e de
humildade na devoção.
Os velhos da cidade, no meu tempo, já não podiam dizer da velha
Itabira, porque eles mesmos não a haviam alcançado. As gerações
anteriores, sim, desbravaram as matas no lugar onde hoje meninas
da Escola Normal e professoras do grupo fazem o footing à noite,
antes do baile no Atlético; faiscaram os córregos, plantaram — perto
d’água, para que pudessem rezar mais a jeito, sem perturbar a
lavagem do ouro — a igrejinha do Rosário, e depois, mais alto, a
nova Matriz; fizeram discursos falando na liberdade e, como esse
altivo Paulo José de Sousa, “nos sentimentos americanos”; deram ao
agrupamento social, ainda informe, contorno e coesão,
estabelecendo em 1827 a freguesia, em 1833 a vila, em 1848 a
cidade: e esses últimos foram, na história política e administrativa,
os construtores da segunda e atual Itabira.
Porque a primeira Itabira, a Itabira do ouro, essa não tinha outra
forma, senão a que lhe traçaram, com a ponta do pé, os
desbravadores sequiosos na sua “exploração insensata e ruinosa
das lavras”, de que fala Eschwege. As leis vinham da Vila Nova da
Rainha, para onde ia o trabalho e o suor dos mineiros, convertidos
em imposto; as bênçãos e as proibições morais vinham de Santa
Bárbara, onde a igreja assentara a sua freguesia. Na encosta
áspera, os pretos vibravam a picareta, mergulhavam os pés na água
escassa e barrenta. Um ou outro, com extrema dificuldade, ocultava
na carapinha a pedra que daria para forrá-lo. Quando o amo não
fosse como o citado capitão Tomé, de quem os negros fugiam,
espavoridos, para precipitar-se na mina, onde dizem que um morreu
asfixiado.
Que resta dessa velha Itabira? Um mapa do sargento Bougadas,
quando o povoado já sentia aproximar-se a sua elevação a vila.
Procuramos, eu e Luiz Camilo de Oliveira Neto, esse mapa no
Arquivo Público Mineiro, onde deveria estar, mas sumiu, como o
sargento Bougadas, de que só o padre Júlio conserva o nome
precário.
Haverá uma terceira e diversa Itabira? Meu Deus, como me doeria
responder sim à pergunta, e confessar que em 1933 o antigo menino
da rua Municipal foi encontrar a sua cidade habitada por um pelotão
de velhos, que nada poderiam dizer, e por um exército de rapazes e
meninas, aos quais não tinha nenhuma mensagem para dirigir. Entre
aqueles velhos e estas crianças, ele passeou rapidamente a sua
incorrigível inquietação de trinta anos, a sua falta de solidariedade
com as coisas, a sua incompreensão do meio humano, a sua
saudade, a sua disponibilidade. E o seu sofrimento foi como uma
picada fina, penetrante, na carne do braço.
Tudo foi rápido. Não suportou o choque emotivo com a sua terra, e
voltou na persuasão de lhe terem roubado alguma coisa. Era o
problema da cidade diferente, ou do homem diferente, este
recusando-se a admitir que houvesse mudado e supondo de boa-fé
que a mudança fosse exterior e urbana; e a cidade não
respondendo, mas impenetrável, mas inflexível, insinuando antes que
a mudança devia ser humana e pessoal. Um espelho que não
refletisse mais o dono; foi o cristal que se corrompeu ou foi o homem
que se tornou invisível? De volta, na estrada de Santa Bárbara,
essas dúvidas surgiam, cruzavam-se, desapareciam, e nenhuma
resposta consolava o coração incerto.
Abro ao acaso as Meditações sul-americanas, de Keyserling, e
fico pensando se o autor teria diante de si o cidadão de Itabira,
quando apontou as características espirituais do homem da parte
meridional do continente. Embora dificilmente aplicável à realidade
psicológica brasileira o seu conceito de “gana”, vale a pena ouvi-lo
quando diz, por exemplo:
O sul-americano (o itabirano) é passivo. Ele suporta a sua vida, e não conhece outra
maneira de viver. Cede pouco às influências exteriores, mas capitula incessantemente
diante da impulsão interior.
Todo ato sul-americano (itabirano) resulta do abandono a essa impulsão.
A vida, aí, não segue uma direção, mas uma inclinação. Nada de espantoso, pois,
em que, refletida pela consciência intelectual, evoque um abismo de melancolia e um
abismo de cepticismo. Não se passa nada de novo. Nada serve para nada. Nenhum
esforço vale ser tentado.

E finalmente:
a prodigiosa monotonia que paira, que está suspensa, por assim dizer, na fisionomia
moral da América do Sul (de Itabira).

Dessa monotonia, o conde de Keyserling extrai um “sofrimento sul-


americano”. Seria absurdo isolar, na sensibilidade mineira, um
sofrimento itabirano? Julgo que não. Eu sou, Itabira, uma vítima
desse sofrimento, que já me perseguia quando, do alto da Avenida, à
tarde, eu olhava as tuas casas resignadas e confinadas entre
morros, casas que nunca se evadiriam da escura paisagem de
mineração, que nunca levantariam âncora, como na frase de Gide,
para a descoberta do mundo. Parecia-me que um destino mineral, de
uma geometria dura e inelutável, te prendia, Itabira, ao dorso
fatigado da montanha, enquanto outras alegres cidades, banhando-
se em rios claros ou no próprio mar infinito, diziam que a vida não é
uma pena, mas um prazer. A vida não é um prazer, mas uma pena.
Foi esta segunda lição, tão exata como a primeira, que eu aprendi
contigo, Itabira, e em vão meus olhos perseguem a paisagem fluvial,
a paisagem marítima: eu também sou filho da mineração, e tenho os
olhos vacilantes quando saio da escura galeria para o dia claro.
Todos cantam sua terra, mas eu não quis cantar a minha. Preferi
dizer palavras que não são de louvor mas que traem a silenciosa
estima do indivíduo, no fundo, eternamente municipal e infenso à
grande comunhão urbana. Ainda assim fui itabirano, gente que quase
não fala bem de sua terra, embora proíba expressamente aos outros
falarem mal dela. Maneira indireta e disfarçada de querer bem,
legítima como todas as maneiras. E afinal, eu nunca poderia dizer ao
certo se culpo ou se agradeço a Itabira pela tristeza que destilou no
meu ser, tristeza minha, tristeza que não copiei, não furtei… que põe
na rispidez da minha linha de Andrade o desvio flexível e amável do
traço materno.

* O autor escreve em 1933.


VIAGEM DE SABARÁ

Já fiz duas vezes a viagem de Sabará. Para quem vive em Belo


Horizonte (a menos interessante das cidades mineiras; menos
interessante do que qualquer estaçãozinha de estrada de ferro,
perdida no mato, onde o trem não para) esta viagem é uma
revelação. Revelação de coisas que os livros não trazem, porque o
próprio dos livros é desviar a curiosidade das coisas realmente
dignas de serem reparadas; surpresa; uma sensação de queda no
abismo, talvez o abismo dos séculos, quem sabe?, em todo caso um
abismo e a sensação brusca de queda. A mudança inesperada de
planos produz isso. A nostalgia das origens, inconsciente mas ativa,
faz o resto. A 24 quilômetros da incaracterística e fácil capital de
Minas, a velha cidade do Borba nos espreita como uma cilada
colonial.
O passado dói fisicamente quando nos aproximamos dele com os
olhos ainda cheios de presente. As linhas, cores e volumes de
outrora, tão brutalmente distintos dos de hoje, ofendem, machucam a
nossa sensibilidade. Sair de uma avenida perfeitamente arborizada,
aerada, iluminada, policiada e de repente plaft! cair de chofre na
ladeira do Kakende… (Estes dois Ks não são já duas pedras
pontudas?) Enfim, depois de algum tempo o espanto, o susto, a dor
(falo das sensibilidades alertas, é claro) se confundem e misturam
num sentimento vasto e bom, numa euforia demorada, envolvente,
cândida; beatitude do corpo em paz com a alma, da alma que se
espreguiça sorrindo dentro do corpo; e o espírito da gente se
dissolve no passado.
Por duas vezes Sabará me deu esta sensação de dor feliz
acabando em dissolução. Duas vezes operou em mim o sortilégio
das cidades mortas de Minas, que são as cidades mais vivas de
Minas, em que pese a Juiz de Fora, Belo Horizonte, Uberaba, Ponte
Nova, Cataguases. E mergulhando na sua paz profunda de ladeiras,
igrejas, cemitérios, eu meditava que coisa terrível como
encantamento deve ser Ouro Preto. E São João del-Rei. E Mariana.
E Diamantina. Pois se ali que era o passado ao alcance da mão, o
passado acessível, superficial, “de aluvião” como o ouro fácil do rio
das Velhas; passado bon marché [módico], com duas ou três figuras
de primeiro plano somente, e uma chusma vaga de bandeirantes,
emboabas e liberais revolucionários agitando-se sobre o pano de
fundo; se ali o prodígio era tão agudo, como seria, meu Deus!, em
Diamantina, em São João del-Rei, cidades humanas e ilustres como
impérios?
Sabará vale assim como uma introdução ao passado mineiro. Aos
que quiserem dar um mergulho nesse rio de superfície tranquila e de
camadas inferiores agitadíssimas, aconselho que visitem e estudem
primeiro Sabará. É a menos “violenta” de nossas cidades
tradicionais. Aquela em que a perspectiva histórica, embora mais
acentuada que a perspectiva artística, cede talvez mais facilmente
lugar a esta última. Em Vila Rica e nas outras cidades “extintas” de
Minas é impossível esquecer o elemento histórico, que se insinua
traiçoeiramente em toda conversa, leitura, mirada, até mesmo nos
momentos de gozo estético mais desabalado. Aqui houve tocaias e
combates; aqui Tiradentes fez isso, Marília fez aquilo; aqui dançou
(como Josephine Baker) Chica da Silva; aqui Felisberto Caldeira
Brant virou-se para o jesuíta e disse; aqui outrora retumbaram hinos.
Os hinos retumbam ainda, e muitas vezes nos proíbem de ouvir os
segredos que as imagens do Aleijadinho queriam contar; a arte é
curta e a história é longa; há os painéis do Ataíde mas há também os
cavalos que arrastaram Felipe dos Santos; quantos cavalos? Um,
dois, quatro? Problema cuja discussão nos impede de admirar como
desejávamos a graça retorcida deste ornato; ou o colorido franco e
ingênuo desta figura que deve ser a Arca da Aliança; este púlpito que
dois hércules suportam; o chafariz; a lanterna que não alumia mais; a
platibanda.
Em Sabará, não. Aqui, o tenente-general Manuel de Borba Gato,
com todo o romanesco de sua existência que está pedindo
urgentemente um biógrafo esperto, não consegue afastar o nosso
olhar das maravilhosas combinações de planos em que se
desenvolve a cidade. Contemplando os sobrados decrépitos, que
pareciam estar esperando a visita do desenhista Manoel Bandeira
para depois cair aos pedaços, eu pensava menos nos guerreiros e
nos exploradores barbudos que os habitaram, do que na composição
sóbria das fachadas, no gosto severo que presidiu à construção
dessas moradias, verdadeiras máquinas de habitar* como duzentos
anos depois havia de querer um arquiteto maluco; máquinas
primitivas, em que escadarias imensas faziam o papel de rodas
supérfluas, porém máquinas e satisfazendo perfeitamente o fim a
que se destinavam.
E d. Rodrigo de Castel-Branco, “que era, à parte os pequenos
defeitos, um homem fino e amável”; Matias Cardoso de Almeida,
“sertanista abalizado”; Artur de Sá e Meneses, “quem aqui instalou o
princípio de autoridade”; d. Maria Pimenta, que com seu marido
Jacinto de Sá Benevides, “troncos de ilustre geração”, povoou a
infinita solidão de Sabarabuçu; Manuel Nunes Viana, “o primeiro
ditador que se erigiu na América”, espécie de Mussolini maneiroso
saído dos armazéns de gêneros; frei Francisco de Meneses, “frade
incomparável”, batalhador, sanhudo, flor de uma geração de
sacerdotes “libertinos e dissolutos, simoníacos e apóstatas” —
nenhuma destas sombras ilustres, de que os livros nos relatam as
boas e as malas-artes, os heroísmos e os crimes, é bastante
imprudente para nos assaltar numa esquina da cidade modorrenta,
como tenho a impressão que fariam os espectros consagrados dos
outros burgos tradicionais, e:
— Tenha a bondade de parar um pouquinho e examinar estes
papéis. Não me acha de fato um vulto digno de figurar na história
mineira?
Há, é certo, os lugares históricos e os pseudo-históricos, que a
memória vaidosa do povo indica ao viajante boquiaberto (todo
viajante é boquiaberto por definição). Mas não são eles em Sabará
que nos despertam a melhor emoção; a melhor emoção, a mais
cheia de pudor e a mais profunda, é para certas formas de beleza
que o homem e o tempo criaram e vão destruindo de parceria; certas
igrejas que envelheceram caladas e orgulhosas no seu incomparável
silêncio; certos becos; certas ruas tristes e tortas por onde ninguém
passa, nem a saudade deste chafariz, com uma cruz e uma data,
como um túmulo; a sucessão dos Passos; muros em ruína mesmo,
sem literatura, inteiramente acabados; tudo o que no passado não é
nem epopeia nem romance nem anedota; o que é arte.
Fui, como todo mundo, visitar a igreja do Carmo. Em frente do
frontispício famoso, em que o Aleijadinho pôs todos os recursos de
uma técnica extremamente apurada, mais fruto de intuição que de
estudo (era um monstro divinatório, não há dúvida), está o cemitério;
estão as catacumbas com os nomes dos mortos inscritos no muro
alto. E entre o templo e as catacumbas (uma nesga de terra), está o
silêncio de um largo de igreja antiga, o inesgotável silêncio e as mil
coisas misteriosas que nele se agitam.

Meu amor me ensinou a ser simples


como um largo de igreja
onde não há nem um sino
nem um lápis
nem uma sensualidade.

Poema lindo mas falso, este de Oswald de Andrade… Não creio


que haja coisa mais complicada e perturbadora do que um largo de
igreja dos bons, dos legítimos. Como esse do Carmo, em Sabará,
em que na exiguidade de alguns metros de terra cabem todas as
melancolias, todas as deliquescências, tudo o que não chegou a
realizar-se e também uma grande calma e resignação cristãs. Na
sombra tênue os pensamentos amadurecem como frutas, sem que a
gente sinta necessidade de exprimi-los; o contagioso silêncio; saber
que tudo está vivo e calado ao redor de nós; ou antes, não saber
coisa nenhuma, estender-se no chão e olhar a cruz entre duas torres,
o relógio inútil, sem corda, não marcando nenhuma hora, e a outra
igreja, no fundo, sem nome, que importa o nome.
Mas há outro poeta que diz:

Em todas as velhas cidades de Minas


há sempre um velho do tempo das bandeiras
que conta histórias e mostra as igrejas…

Nem sempre; às vezes é um menino que nos conduz e


naturalmente ignora tudo, inclusive o nome de batismo do Aleijadinho;
o velho, que se presume mais informado, tem memória fraca, pernas
trôpegas; resta o sacristão, indivíduo de idade neutra, triste e vago,
que desejaria mostrar-nos os livros da irmandade, mas as chaves da
sacristia nunca estão em seu poder.
Conheci os três tipos na cidade; o mais interessante, vê-se logo, é
o menino, que embora não saiba positivamente de nada, ou por isso
mesmo, é bastante inteligente para tirar partido da curiosidade que o
forasteiro mostre pelos templos. Um desses guias mirins me
transmitiu a ideia que fazia do Aleijadinho e não era propriamente
falsa, posto que exagerada; Aleijadinho, confiou-me ele degustando
metodicamente um pé de moleque, era um homem sem braços nem
pernas, tronco só, que fez todas essas igrejas que o senhor está
vendo aí e depois foi para Ouro Preto fazer as de lá. Percebi que a
“definição” fora arranjada mais para distração do que para
informação do ouvinte, mas, como não se distanciasse muito da
realidade, gratifiquei devidamente o autor.
Aliás, o garoto exprimia a média da opinião corrente sobre o
Aleijadinho, personagem mítico, de contornos indefinidos, autor de
uma porção de obras que nunca fez e possuidor de uma série de
característicos que jamais o distinguiram. O silêncio dos arquivos, de
onde nada ou quase nada saiu até agora para iluminar a
personalidade do artista, aumenta e justifica essa confusão.**
Sabe-se apenas que em Congonhas do Campo existem recibos
firmados pelo cinzelador dos profetas. Em Sabará ouvi falar de
documentos semelhantes, e mesmo um certo Zidorinho — aqui fica o
seu nome como indicação para futuros e mais afortunados
pesquisadores — prometeu fornecê-los com rapidez, mediante certa
quantia que o jornalista representante de O Jornal não teve dúvida
em desembolsar previamente, na doce expectativa de ver brotar do
fundo do passado revelações sensacionais sobre o mais notável
arquiteto e escultor brasileiro. Zidorinho, porém, até hoje se conserva
em discreto e pundonoroso silêncio, o que me induz a suspeitar, sem
malícia, da improficuidade de suas buscas nos velhos armários de
jacarandá.
Antônio Francisco Lisboa continua assim à mercê da inventiva
popular, que lhe atribui feitos improváveis e obras de duvidosa
autenticidade. As nossas cidades tradicionais se disputam a glória de
possuir maior número de recordações do formidável talhador, e
nesse empenho comum entram em boa dose o sentimento bairrista,
o cálculo e a boa-fé. Embora seja por muitos títulos um artista difícil,
como se diz, o Aleijadinho tem uma clientela cada dia mais
numerosa. Seus trabalhos são coisas que podemos mostrar sem
susto, como a colcha de damasco, a toalha de renda, o castiçal de
prata. Envaidecem. E depois dão lucro; necessidade de fomentar o
turismo, indústria incipiente e de grandes possibilidades; o dinheiro
que circula e tilinta nos bolsos; atividades que se intensificam; seria
até o caso de posturas municipais. Finalmente, sendo agradável e
lucrativo, é também honesto, e quem sabe se até verdadeiro; aqui a
boa-fé introduz-se no raciocínio e faz com que o espertalhão fique
dupe [ingenuamente confiante] da própria esperteza, como o
hipnotizador que, para causar maior impressão ao público,
começasse por hipnotizar-se a si próprio.
Não digo tais coisas com o pensamento detido em Sabará. Noto
apenas um estado de espírito mais ou menos generalizado e que
afinal, bem pesadas as coisas, serve mais é para demonstrar a
grandeza do Aleijadinho.
Lugar por onde esse homenzinho pardo e de maus bofes andou é
lugar encantado. Em tudo se nota seu rastro; ia dizer sua garra, se
não me objetassem que não podia ter garras porque não tinha
dedos. Pilhéria aliás tola, porque Lisboa não nasceu aleijado, e
Rodrigo Bretas, seu único e verídico biógrafo, nos afirma que só em
1777 começaram a roê-lo as muitas mazelas que acumulou numa
vida de farras franciscanas. Antes disso, porém, já havia produzido
muito, e é claro como água que suas obras mais perfeitas são
anteriores à “zamparina”, ou à complicação “do humor gálico com o
escorbútico”. Escorbuto que também me parece suficiente para
explicar em grande parte a disparidade de “maneiras” e de técnicas
observada nos trabalhos do mestre. Artista irregular, a doença
repelente tornou-o mais irregular ainda, rasgando uma diferença
maior entre as figuras que saíram de suas mãos outrora íntegras e
hoje mutiladas.
De qualquer maneira foi desmesurado, e sozinho bastaria para
colorir uma época em que se cuidou mais de viver que de embelezar
a vida. Dominando o puzzle econômico e acomodatício do barroco
jesuítico, aparece-nos como um criador simples, forte e desabusado.
Era tão marcante a sua personalidade que em Sabará, a cidade
menos fecundada pelo seu gênio, resta coisa sua, e os ornatos das
igrejas a que deu expressão exalam a nostalgia desse demiurgo da
plástica.
Desprendemo-nos a custo da fascinação que exercem o
frontispício, os púlpitos e os atlantes da igreja do Carmo, para nos
perdermos entre os painéis da igreja Grande ou assuntarmos as
chinesices simplesmente curiosas, que, como as peninhas da
anedota, estão ali só para atrapalhar. Nossa Senhora do Ó fica mais
adiante, e não é difícil encontrar também em suas decorações um
pouco de chinesice. Que é que não se encontra numa igreja daqueles
tempos, minha Nossa Senhora do Ó?
A impressionante velhice dessa capelinha, talvez a primeira casa
de Deus que se construiu no país do rio das Velhas. A Matriz data de
1771, e o Carmo é sabidamente posterior; em Nossa Senhora do Ó,
como a autenticar-lhe a idade provecta, há um ex-voto comovente
pela incorreção ortográfica e pela convicção do milagre que aí se
registra. Tive a pachorra de copiá-lo igualzinho:
MERCÊ Q FES Na. Sa. DO O AOCAPPam. MAIOR LVCAS RIBEIRO ALmda.
REGENTE DESTA Va. REAL DEN Sa. DA CONCEIÇAM OQVAL VINDO DEFAZER
AFEST A ADa. Sa. DEQ HERA IVIS OACOMETERAM TEMERARIAMte. QVATRO
SOLDADOS DOS DRAGOIS EDEPOIS TODOS OS MAIS DA COMPa. COMD EZEIO
DEOMATAREM MAS NEM COMASESPADAS NEM COM VÁRIOS TIROS Q
LHEDERAM FOI POSI VEL Q CONSEGVISEM O IMTENTO POR Q AMAI DE DEOS
DEV FORÇAS AO SEO DEVOTO PA. Q DETUDO SEDEFENDESE SE M RESEBER
OMENOR PERIGO NEM EMSI NEM EM OSESCRAVOS Q OACOMPANH AVÃO E
EMÇINAL DEAGRADECIMENTO MANDOV FAZER ESTA MEMORIA Q SOSS EDEO
EM O S29 DE DEZENBRO DE 1720.

Era assim a Vila Real de Sabará, nos bons tempos de 1700 e


pouco, em que todo mundo ia beber água no chafariz do Kakende;
bebia e ficava, porque a água do Kakende, afirma o povo com
absoluta certeza, prende como visgo. Tempos heroicos e
barulhentos, mas também tempos de milagre, em que um capitão-
mor acometido por toda uma companhia de dragões escapava
incólume por uma das quatro ruas que “davam aos povos a
franqueza de sua comunicação”; ou antes quatro estradas: uma ao
norte, uma a oeste e duas ao sul. Estas últimas cortavam a
Sabarabuçu na ponte do João Velho e na ponte pequena; a do oeste
dava para o rio das Velhas, e quem aí passasse veria da ponte
grande as últimas canoas paulistas sulcando melancólicas o Uaimi-i
de que o ouro ia desertando.
A mineração “a lume d’água” cedia lugar à mineração em terra
firme, muito mais penosa mas já praticada com êxito pelo português
teimoso e absorvente. Pelos quatro caminhos circula uma turba
colorida de frades, milicianos, mascates e negros, muitos negros,
cinco mil negros, que sofrem e se multiplicam através da comarca do
rio das Velhas.
Os dias passam-se em rudes trabalhos para uns, caçadas para
outros, as noites em orgias para todos, sendo o elemento religioso o
mais debochado, como em todas as Minas Gerais. A vila turbulenta
exige extremos de policiamento: dois regimentos de cavalaria
levantam poeira do chão, intimidando os desordeiros e ladrões; vinte
companhias de ordenança, constituídas de homens brancos, onze de
homens pardos e sete de homens pretos completam o ambiente
marcial; não esquecer que Sabará é excelente ponto estratégico, e
ninguém melhor do que Manuel Nunes Viana mostrou saber disso; os
governadores que se sucedem, transmitindo-se as dificuldades,
mantêm o aparato bélico que lhes é de tanto proveito na pacificação
dos ânimos eternamente revoltados: “esta gente tão desobediente”,
escreve ao rei o conde de Assumar; “estas gentes que por caminho
nenhum se podem governar”; “uma canalha tão indômita”, insiste o
santo inquisidor de Vila Rica, propondo a Sua Majestade, entre
outras coisas amáveis, que a todo negro fugido se corte a perna
direita e se adapte uma de pau.
… foi-se lenta a penúltima canoa; a última desce agora o rio seco,
rumo de Santa Luzia ou da história mineira (ninguém sabe, nem o
canoeiro); foram-se os portugueses, os baianos, os paulistas, os
legalistas e os rebeldes de 1842; “as pedras de Sião choram
amargamente na noite…”; quem disse? Nada chora em Sabará; tudo
é sério e composto, tudo é digno; uma atitude descabelada como a
do profeta Jeremias causaria escândalo aos discretos e orgulhosos
habitantes da cidade.
Aliás essa gente de passo largo (o passo dos bandeirantes e dos
subidores de ladeira) não vive só de recordações da idade do ouro.
Vive também de certezas da idade de ferro. Depois de nos mostrar
as naves do século XVIII, o sabarense leva-nos à Siderúrgica Belgo-
Mineira (20 mil contos de capital, usina para fabricação de aço e de
gusa, 10 mil pés de eucalipto, 15 mil hectares de terra cobertos de
florestas, com depósitos minerais e quedas-d’água em profusão). E
esta usina é como um direto no queixo do saudosista.
Fecho os olhos para ver a cidade-presepe: dir-se-ia decalcada nas
estampas ingênuas do Natal, em que as casas se alastram numa
desordem aparente e um rio raso — dois rios rasos — serpenteiam
muito convencidos de sua função decorativa; as ruas tortas são
obscuros caminhos de Deus, e todas conduzem a igrejas, no alto dos
morros; como em todo presepe que se preza, pululam anacronismos;
um chalezinho catita, um Ford, um cinema, uma joalheria; de novo as
casas coloniais subindo a rua em procissão; grandes massas verdes
inscrevem-se arbitrariamente na perspectiva urbana e desorganizam-
na; jabuticabeiras. Um inglês declarou-me que em sua terra ouvira
falar da excelência das jabuticabas de Sabará; não podia
compreender como é que não se explora industrialmente uma tal
riqueza etc.; esse homem positivo ignorava que em Sabará as
jabuticabeiras também são decorativas: inútil tomar um carro em
Belo Horizonte e ir com a família em busca das bolinhas pretas e
lustrosas, último ouro do rio das Velhas; quem vai com a boca doce
volta com a boca seca; os proprietários formulam evasivas,
recusando qualquer dinheiro, e as bolinhas lá continuam
dependuradas, como numa árvore de brinquedos.
— Mas o pé está carregado até o chão.
— O pé está carregadinho mas ainda não choveu, e jabuticaba
sem chuva faz mal pra saúde, o senhor sabe.
Tirante isso, o povo é acolhedor e bom; talvez não aprecie muito o
povo de Belo Horizonte, mas são brigas de família; no fundo ambos
se enternecem um pelo outro. Uma ocasião perguntaram ao poeta
Justino da Praia, que nasceu e morreu em Sabará, o que é que ele
preferia nas quatro partes do mundo; resposta:

Do Curral d’El-Rei as fruta,


Das Congonha os Danié;
De Sabará os Paula Rocha,
De Santa Luzia as muié.

O mundo é assim. Entre as jabuticabas de Sabará, o poeta Justino


da Praia suspirava pelas mangas do Curral d’El-Rei, cujos poetas,
por sua vez, suspiram pelas jabuticabas de Sabará.

* Da mesma forma que as igrejas eram verdadeiras máquinas de rezar, até nos detalhes
burocráticos da sacristia. A pompa de algumas não indicava preocupação estética, e sim
moral; era antes um ardil para atração dos crentes desidiosos e sedução dos incrédulos;
exterioridades convidativas de máquina, pois. Isto me parece psicologicamente mais razoável
do que afirmar que os anseios de fausto da época se objetivavam só na fábrica luxuosa dos
templos, desertando as residências particulares, nuas e tristes. Uma contraprova está no fato
de que, quando lhes dava na telha, os antigos também sabiam construir solares
maravilhosos: o Jacinto Dias em Sabará, por exemplo.
** Escrito em 1928.
TEATRO DAQUELE TEMPO

Tanto se fala em teatro, ultimamente…


Lembro-me de um palco improvisado no pátio de recreio do grupo
escolar. Ficava junto ao muro dos fundos, perto das jabuticabeiras, a
que fazíamos expedições solertes, quando o porteiro e os serventes
iam-se embora. Seria melhor chupar jabuticabas toda a vida, mas
havia as aulas e havia as festas escolares, duas formas de coação
totalitária e de tédio organizado: como pressentíamos confusamente.
Eu aprendia tudo que me ensinavam de geografia, história,
maneira de assentar e comer, não meter (em público) o dedo no
nariz etc., mas não conseguia ser bom ator.
Fui péssimo, meu caro Santa Rosa. Os pais e os meninos
colocados em frente do palco enfeitado de folhagens pareciam olhar-
me com diabólica ironia e paralisavam todo o meu escasso jogo
cênico.
Verifiquei que é difícil mover os braços quando não se vai pegar
um passarinho ou empurrar um companheiro no brinquedo
desinteressado, e que o ato de falar esconde sutilezas sem nome.
Que fazer de um braço quando se conversa, quanto mais de dois?
Ah, os braços caídos ao longo do corpo, uma confissão de timidez:
mãos que não agarram, não se crispam, não sabem chorar e rir…
Perdão: o braço se levanta para desenhar um semicírculo no ar (o
nosso céu azul, cheio de estrelas) ou para apontar um sítio
imaginário, lá embaixo (o nosso solo rico de minérios). Eram os dois
recursos clássicos da mímica escolar: a indicação discreta do
firmamento e do chão nacionais, os mais belos do mundo.
Depois, meu pescoço era rígido, e os olhos não se moviam em
qualquer direção — salvo a do ponto.
Eu daria bem uma estátua, como elemento de composição do
cenário, mas figura viva, de gente que fala e se move,
absolutamente.
Esta a minha recordação do teatro infantil, de cançonetas e
monólogos, alimentado pela produção inesgotável do professor
Eustórgio Wanderley através do Tico-Tico. Consolei-me de minha
incapacidade teatral ouvindo gramofone, que naquele tempo estava
aparecendo e já espalhava pelo Brasil os dós de peito de Vicente
Celestino.
Por essa época havia nas cidades do interior de Minas esta coisa
extraordinária: um teatro, mantido pela Câmara Municipal e ocupado
seja por companhias de profissionais que vinham de fora, seja por
amadores do lugar.
No de minha terra, a fachada ostentava um enorme globo azul —
ou seria enorme para os meus olhos daquele tempo —, dominado
por uma águia, que não sabíamos bem o que significava, mas era
bela, feita ou restaurada, que foi, pelo grande santeiro Alfredo Duval.
Como eram maravilhosos os amadores! E que vocações! Iam do
dramalhão terrível em cinco atos, às vezes reduzido por falta de
alguns intérpretes, à comédia mais desenfreada. (Verdadeira fábrica
de gargalhadas. Rir! Rir! Rir!) E não havia tipos nem especialidades.
Cada um fazia o que era preciso. Na mesma noite, o amador
passava da tragédia à chanchada. E era também ponto, maquinista,
bilheteiro, acendedor dos bicos de luz de carbureto (ficou-me na
memória o cheiro de carbureto, ligado a esses espetáculos). A luz
elétrica ainda não fora introduzida na cidade. A aristocracia urbana
possuía grandes lampiões belgas, o resto se contentava com
velinhas. E no teatro, aquele deslumbramento do carbureto.
Que saudades do meu primo Maninho, homem de cinquenta anos,
esguio e solene, colocando os polegares na cava do colete, entre
lágrimas de viúvas e órfãos, e declamando com a voz soturna para
uma sala esmagada de emoção:
— Mais uma vez prevalece o poder do ouro!
O ministro Antônio Camilo de Oliveira, hoje presidente do Conselho
de Imigração, e que não perdeu o senso de humour, corria em torno
da mesa para pegar um pretinho — na vida, prático de farmácia —
que se furtava aos seus golpes e que por sua vez o perseguia. Eu ria
— nós ríamos — até a barriga doer. Então meu pai comprava balas
de quarenta réis, dessas riscadas de vermelho, e que se derretiam
na boca. Íamos dormir no auge da felicidade, hoje diria: do prazer
estético.
As companhias de fora traziam roupas e mulheres formidáveis.
Para estas últimas eu tinha medo de olhar. Padre Olímpio, na
“prática” de domingo, invectivava os desfalecimentos da carne e
prevenia-nos da existência do inferno. Era homem para fechar o
teatro, por intimidação aos fiéis, caso se representassem peças com
histórias de “gente amancebada”, que o seu furor bíblico não
perdoava.
Mas havia também prestidigitadores fabulosos, que extraíam
pombas e flores da cartola, ventríloquos, mulheres que eram
cortadas por uma faca e ressurgiam perfeitas, havia principalmente o
ar, o perfume, a graça de 1910, com o cometa de Halley ameaçando
incendiar a Terra e o menino Murilo Mendes; havia sobretudo a vida
em começo.
Depois vieram o cinema, silencioso e falado, o automóvel, a
Primeira Guerra Mundial, a crise econômica, o colégio interno, a
gripe espanhola, os deveres, as namoradas, os suspensórios de
vidro, o Serviço Nacional de Teatro, Mussolini e outros
acontecimentos maiores e menores, que alteraram completamente a
face da terra. Dos quais não falarei por demasiado recentes.
As cidades do interior perderam a pequena felicidade dos seus
teatros, em que a paixão e o riso do mundo eram contados por
pessoas de carne, que a gente conhecia cá fora, de todos os dias,
ou ia conhecer na porta do hotel de “seu” Baltasar.
Tudo o que aconteceu depois, não nego, foi interessante. Mas o
bom, mesmo, o gostoso-raro-inesquecível, foi 1910.
QUASE HISTÓRIAS
CONVERSA DE VELHO COM CRIANÇA

Quando o bonde já cheio ia pôr-se em movimento, o senhor idoso


subiu, com uma criança. Não havia lugar para os dois, e mesmo a
menina só pôde acomodar-se no meu banco porque uma senhora
magra aí consumia pouco espaço. A garota sentou-se a meu lado, e
o velho dependurou-se no estribo. O bonde seguiu.
Notei que a menina levava um pacote de balas, e que com o velho
iam vários embrulhos; entre eles, um guarda-chuva. Não sabendo o
que fazer dos acessórios, e desistindo de ordená-los, o velho
resignou-se ao mínimo de desconforto na viagem. Tinha os
movimentos tolhidos, e o condutor aproximava-se, a mão tilintando
níqueis. Era de prever a dificuldade da operação a que se via
obrigado: libertar dois dedos da mão direita, enfiá-los no bolso do
colete e extrair desse secreto lugar as moedas devidas.
Na linha em que viajávamos, a posição do pingente oferece
perigos. O bonde segue paralelo e justo ao passeio, e os postes, no
momento preciso em que passa o bonde, deslocam-se
imperceptivelmente para mais perto dele. O deslocamento de alguns
milímetros é, algumas vezes, mortal. Todos os que viajam de pé
sabem disso. Os que morrem têm tempo de verificar o fenômeno,
porém não de evitá-lo.
Imaginei que o velho se arriscava a morrer dessa maneira, e, na
desordem de seus movimentos, havia base para a suposição. A vida,
entretanto, vigiava-o com interesse, e o mais que aconteceu foi a
moeda cair na rua, depois de penosamente sacada do bolso. Era de
dez tostões, havia troco.
Como a linha, pouco adiante, deixasse de ser dupla, o bonde tinha
que parar, à espera de outro que vinha. O condutor aproveitou o
momento para pesquisar a pratinha entre os trilhos. Voltou instantes
depois, sem ela.
— Não precisa; assim, o prejuízo seria maior — explicou ao velho,
que se dispunha, desta vez com facilidade, mas sem prazer, a tirar
outra moeda. — O senhor não paga nada.
O velho agradeceu vagamente: sem dúvida, não precisava disso.
A certeza de que não pagaria duas vezes e que perderia apenas os
níqueis do troco restituiu-lhe a serenidade e a compostura próprias
dos caracteres firmes. Cabia-lhe não recusar nem aceitar: atitude
ambígua, vazada naquele agradecimento impreciso, meio cortês,
meio seco. O bonde seguiu.
Já então o velho estabelecera um modus vivendi com o veículo.
Colocou o guarda-chuva num ferro do estribo, onde ele ficou
balouçando de leve; dispôs os embrulhos sobre o braço esquerdo e
arrimou este junto ao peito; quanto à mão direita, assumiu
automaticamente a sua função preponderante: empunhou, com força,
a trave do estribo e ficou responsável pela vida e segurança do
homem.
O homem tinha sessenta, setenta anos. No rosto vermelho,
sulcado de rugas, o bigode branco era ralo e não parecia objeto de
cuidados especiais. Os olhos eram a parte realmente sofredora do
rosto, e neles se concentrava toda a expressão da fisionomia. As
rugas entrecruzavam-se sabiamente em redor das pálpebras
cansadas, e uns olhos tristes, de uma tristeza particular e sem
comunicação com o conjunto humano a que devia pertencer, abriam-
se na paisagem de ruínas. São comuns as criaturas em que um só
pequenino ponto parece existir realmente; as outras partes
mergulham na sombra, e nem são percebidas.
No corpo de mais de meio século, as vestes eram modestas e
denunciavam o pequeno proprietário de subúrbio (talvez antigo
funcionário público?). A casimira de cor neutra era talhada com
fartura no paletó, com exiguidade nas calças. Uma gravata preta, de
laço mais desajeitado que displicente. Um relógio — de ouro, para
dar a imagem do tempo — devia bater dentro do colete, de onde
escorria uma gôndola grossa. O chapéu também era preto, de um
preto que a sorrateira infiltração do pó tornava mais doce, e que
falava dessas casas onde todas as pessoas são velhas e se
resignam à poeira, não a expulsando mais dos móveis nem dos
chapéus, porque não vale a pena.
— Ferreira, você quer uma bala?
Só então voltei a reparar na menina, que se sentara no meu banco
e era miudinha, morena. Sentara-se na ponta do banco. O corpo do
velho e seus embrulhos protegiam-na, a ponto de anulá-la. Mas a
presença infantil ressurgia na voz, que era lépida e desejosa.
— Quero, sim. Me dê uma aí.
— Eu também quero uma. Abre pra mim, Ferreira.
O velho desprendeu a mão do estribo — sua vida ficou
balouçando, como o guarda-chuva —, e, com o equilíbrio
assegurado, desatou o embrulho de balas. A menina serviu-se
primeiro. O oferecimento fora um ardil para que Ferreira consentisse
na abertura do pacote. É possível que Ferreira tenha compreendido,
mas o certo é que chupou a sua bala com uma simplicidade que
excluía a menor suspeita de reflexão.
Avô e neta? Ou, simplesmente, amigo e amiga? O certo é que
eram íntimos.
Enquanto chupava a bala, a menina não carecia de outra diversão,
e deixou de pensar em Ferreira. As mãozinhas seguravam com
firmeza o embrulho precioso. O bonde, para uma criança daquele
tamanho, devia ser alguma coisa de monstruoso e incompreensível.
Ou seria apenas eu que não compreendia a maneira como a criança
tomava conhecimento do bonde? Surpreendi-me a interrogá-la (e
Deus sabe como me é difícil dirigir a palavra a um desconhecido, de
qualquer idade, em qualquer situação):
— Me diga uma coisa, como é que você se chama?
— Maria de Lourdes Guimarães Almeida Xavier.
A vivacidade indicava um largo treino. Havia também o gosto do
nome comprido como um trem de ferro, tão mais interessante do que
Maria somente, ou Lourdinha.
Disse e sorriu para mim, com a bala dançando na língua.
— O nome é maior do que a pessoa — observei, bestamente.
Não fez caso.
— É. O nome é grande — repetiu o velho, com essa
condescendência mole com que se gratifica o vizinho de bonde, e
não envolve compromisso de relações.
— Você tem quatro anos, aposto.
— Não, tenho cinco.
— E está no jardim da infância.
— Jardim de quê? Ah! — (muxoxo) — Estou não.
Evidentemente, eu não saberia interessá-la. Ondulou sobre nós,
por instantes, um leve constrangimento. Quando encontrarás, Carlos,
a chave de outra criatura? Ferreira continuava no estribo, sem ligar.
A vida dele estava salva, os postes haviam recuado um metro.
O silêncio deu tempo a Maria de Lourdes para dizer esta frase
estranha:
— Ferreira, você é o saci-pererê.
Ao que Ferreira respondeu, com tranquilidade:
— É você. Você é que é o saci.
Por que o saci aparecera de súbito entre os dois? Certamente ele
frequentava a conversa de ambos. A imagem invocada fez rir Maria
de Lourdes, que apontou o dedo para Ferreira e insistiu:
— É você! É você!
Ferreira sorriu o bastante para significar a Maria de Lourdes que
não se importava em ser o saci-pererê, mas também não queria ver
a sua identidade conhecida do grosso público. E depois, mais baixo,
em tom confidencial:
— Ferreira perdeu o dinheiro do bonde. Você viu?
— Não. Onde você perdeu?
— Caiu da mão. Foi ali atrás, na curva. Era uma pratinha amarela.
— Achou?
— Não — terminou Ferreira, distraidamente (estava pensando em
outra coisa). Os dois calaram-se.
Seriam amigos? Os sobrenomes não coincidiam.
Eu preferia que fossem amigos, exclusivamente, e que nenhum
vínculo de sangue forçasse aquela intimidade abandonada. A
ausência de respeito era argumento contra o parentesco e a favor da
amizade. Mas os pais de hoje prescindem do respeito em benefício
da camaradagem. Os avós devem ter-se modernizado também.
Seria Ferreira um avô moderno? De qualquer modo, a camaradagem
consentida é menos estimável que a espontânea, dos
temperamentos que se ajustam. E imaginei Ferreira vizinho de Maria
de Lourdes, afeiçoando-se à pequena, subornando-lhe o coração à
custa de carinhos diários, roubando-a, enfim, para si. Amiga Maria
de Lourdes, amigo Ferreira; os 55 anos de diferença faziam o
entendimento mais perfeito, já que as pessoas da mesma idade
dificilmente se entendem.
— Ferreira… Chega aqui.
Ferreira inclinou-se e pôs a sua velha orelha, coberta de pelos,
junto à boca lambuzada. A menina, vermelha, baixou os olhos com
infinito pudor. Num sussurro, o segredo grave passou de boca para
orelha, introduziu-se em Ferreira, ocupou-o inteiro. Ele fez apenas:
“Ah!…”. Depois, retirou do estribo o guarda-chuva e alçou-o à altura
do cordão. O bonde parou. Ferreira, Maria de Lourdes, o guarda-
chuva e os embrulhos desceram pausadamente, atravessaram a rua,
entraram pela primeira porta aberta…
Meu pai dizia que os amigos são para as ocasiões.
LEMBRO-ME DE UM PADRE

Lembro-me de um padre, um curioso padre… Foi em 1932. O país


se agitava na Revolução Constitucionalista. Nas montanhas do sul de
Minas, paulistas se batiam com mineiros. Algumas notas, um tanto
enfáticas, que conservo desse tempo (também ele um tanto enfático)
restituem-me a figura do padre:

Belo Horizonte, agosto — Durante dois dias nós o tivemos na cidade.


Veio da lama e do frio das trincheiras do sul de Minas, e instalou-se,
ou melhor, instalaram-no em um quarto de hotel, com água corrente,
tapetes e móveis de espelho. Padre Alfredo Kobal, soldado
anticonstitucionalista da Mantiqueira, deve ter estranhado esse
absurdo conforto urbano. Há um mês e vinte dias que ele não
experimentava os prazeres simples, mas fundamentais, de um bom
travesseiro. Para além de Manacá, não há muita oportunidade nem
conveniência em dormir; corre-se o risco de ser acordado pela
música dos ZB, quando não são formas noturnas que se deslocam, se
arrastam e caem sobre a gente de surpresa. Por isso, é provável
que padre Kobal não haja dormido bem na nossa cidade. Já perdeu
o hábito disso, como terá perdido, se é que o teve, o de praticar
bons vinhos e deleitar-se com bons pratos. Em compensação,
aprimorou outros, e entre eles o de não se incomodar com tiros de
fuzil, metralhadora, canhão, tanque ou aeroplano; o de achar graça
na chuva que desaba na serra e encharca as batinas e os ossos; o
de julgar a morte uma coisa tão natural como a vida ou mesmo muito
mais natural do que a vida, que é de natureza tão sutil, complexa,
enredada, perigosa e difícil que, francamente, dá mais trabalho
arrastá-la do que perdê-la. Não esquecer que padre Kobal, com
milhões de outros homens, mudou o rumo de sua vida em agosto de
1914. Desde então, vive um pouco romanescamente para o perigo
da aventura. Os homens que voltaram da Grande Guerra trouxeram
na máscara um vinco de amarguras irremediáveis. Vieram curvos e
graves, com os olhos ainda cheios de negras visões e o espírito mais
velho do que o corpo. Padre Kobal veio lépido, vermelho, jovial, e ao
mesmo tempo humilde e sereno. Tanto sangue espalhado à sua
volta, e sua batina preta não tem um salpico. É verdade que ela está
toda rasgada, mas é dos espinhos, dos paus, das farpas que estão
no campo e barram a passagem. Como padre Kobal precisa
avançar, porque há feridos a socorrer e os combates não esperam,
pouco importa o que apareça pelo caminho. Se lhe aparecer o diabo
em pessoa, padre Kobal o saudará com aquela irrepreensível
cortesia de são Francisco de Assis, em que Chesterton enxergou
uma das primeiras virtudes do Poverello. Saudaria com polidez e
marcharia para a frente. Nada detém esse homem, que tem uma
cruz no peito e um sorriso na boca.
Conheci padre Kobal entre os homens da brigada Leri, numa visita
à serra onde lutavam mineiros e paulistas. Havia seis batalhões da
polícia mineira em operações contra os rebeldes. Cada unidade
podia ter o seu capelão, e o serviço desse ainda seria grande. Mas
todos os batalhões elegeram padre Kobal, que ficou sendo o amigo
de todos, com o número de cada um deles no casquete. E esse
casquete em que se amontoam os algarismos não é um símbolo
guerreiro, porque nele se gravam a simpatia e a piedade.
Mas, afinal, será padre ou soldado? Não se sabe. Sabe-se que
está no campo da luta, circulando entre os homens imóveis, levando-
lhes comida e cigarros, amparando-os quando tombam e arrastando-
os nas costas por uma hora inteira, como a esse coronel Fulgêncio,
cujo corpo ainda palpitante padre Kobal tirou do chão varrido de
balas e foi depositar no carro que o transportou a Passa Quatro.
No ar fino, puríssimo, dos morros do Túnel, como se destaca a
sua voz: “Meus amigos, atirrem! Mas atirrem sem ódio”.
Atirar sem ódio: é a fórmula de padre Kobal. Se o dever do
soldado é rude, que cumpra esse dever, mas não empeçonhe a sua
alma.
Padre Kobal tem palavras definitivas. Usa um idioma que é quase
o português, mas que ainda se turva com os resíduos do alemão,
língua de seu país natal. Pois nessa linguagem brusca, arrepiada e
torcida, sua comunicação com o mundo é sensível a todos os
homens. Tive a prova disso no cemitério de Passa Quatro, quando
se enterrava o coronel Fulgêncio, da polícia mineira. Padre Kobal fez
um discurso. Que discurso! Vinte ou trinta palavras apenas, mas
palavras essenciais, que davam a volta naquele corpo e penetravam
em nós todos. Alguém que assistiu à cerimônia teve a impressão de
que eram pedras, blocos maciços desfechados por mão certeira. A
emocionante brutalidade daquelas palavras (e padre Kobal
pronunciou-as com o mais humilde e cristão dos semblantes):
— Fulgêncio, você não morreu. Esse que aqui está são apenas os
despojos do outro que lá do alto comandou o seu batalhão. Meus
amigos, o companheiro Fulgêncio está vivo e pedindo porr nós. Nós
temos que aprenderr com Fulgêncio e guardarr a memórria dele.
Sim, não se sabe bem se é padre ou soldado, e são Francisco de
Assis foi ambas as coisas e foi também um grandíssimo poeta.
Padre Kobal usa um capote civil sobre as vestes de sacerdote: usa
também perneiras e quepe. O capote não é o mesmo com que foi
para o Túnel, porque alguém mais precisado o subtraiu, e padre
Kobal, sem se aborrecer, arranjou outro. Há um vago ar prussiano na
sua indumentária, mas atrás desse ar há a grande criança generosa
que pode ser austríaca e pode ser mineira, há a resignação, flor
universal que viceja nos canteiros sábios, há a bondade e o
desprendimento. Não tem medo de morrer. É ainda uma palavra sua:
“O que pode acontecer de máximo é uma bala”. Mas essa bala, ele
não a espera nem a deseja. Apenas não a teme. Porque padre
Kobal não é um desesperado, desses que acabam na Legião
Estrangeira, mordendo o pó de Marrocos. Sabe que todas as coisas
têm seu preço, sua hora e sua significação. Deixou a sua
paroquiazinha de distrito, onde a vida corria au ralentisseur
[desacelerada] e onde os duelos de artilharia eram substituídos
pelos simples casamentos, e rumou para o lugar onde, havendo luta,
havia sofrimento a consolar. O amor do próximo, que é o mais raro e
o mais inexplicável dos sentimentos, esclarece o gesto do padre
Kobal. Esse homem esquisito ama os seus semelhantes e por eles
deixou casa e tranquilidade.
Chegando aqui, mal descendo do trem, foi ao palácio do bispo,
pedir-lhe a bênção e uma batina. Porque a batina que carregava no
corpo era ainda o velho trapo dilacerado da Mantiqueira.
Galgou conosco as escadas de um dos edifícios onde está
instalado o governo. Éramos três ou quatro a acompanhá-lo. Vista do
terraço, a cidade esparramava-se como um sinuoso corpo carregado
de segredos, e dela subiam as vozes tênues da tarde, as queixas
imperceptíveis que moram dentro das casas. Mas padre Kobal
mostrou-se homem do seu tempo e observou com convicção:
— Que belo lugarr para uma metralhadorra!
Passaram-se oito anos. Perdi de vista padre Kobal. Soube,
entretanto, que, à falta de metralhadoras e de novas revoluções, ele
se meteu em política municipal, ainda no interior de Minas, e perdeu
o interesse específico. Receio muito que ultimamente lhe tenham
repontado pendores nazistas.
LEONOR, EMÍLIA, MARIETA

As três irmãs eram rigorosamente quatro, a saber, Emília, Marieta,


Leonor e o retrato da mais moça, que falecera na gripe de 1918 mas
continuava presente nas conversações.
Continuava presente nas intermináveis conversações… Marieta por
vezes evadia-se, e uma doutrina geralmente admitida na rua
Policarpo Dutra estabelece que ela ia, gordinha e manquitolando, ao
cinema da praça XV. Em Emília a evasão tomava antes o aspecto de
viagem marítima, que subitamente empreendia, Deus sabe como,
realizando desde a travessia oceânica até o simples pensamento de
passeio num barco, velozes passam os barcos. Mas Leonor deixava
placidamente crescer os cabelos, e o retrato da irmã, tão presente
que não raro se tornava importuno, constituía a nota contínua,
vibrante, ressoando no cristal da sala.
Ressoando monotonamente no cristal da sala… Às vezes Leonor,
Marieta e Emília perguntavam-se em voz baixa se não estariam
sendo vítimas de um poema em prosa ou qualquer outra mistificação.
Mas não havia sinais evidentes disso. O padeiro chegava, tocava a
campainha, e uma delas ia receber o pão fresco. Todas sentiam
fome. Todas comiam. O retrato contemplava as irmãs comendo.
Outras vezes, Leonor, mais irritável, chorava. Não sabia de quê. E
como ninguém explicasse, um riso mais nervoso ainda sucedia ao
pranto imotivado. Leonor sentiu-se envergonhada de chorar, e no dia
seguinte teve mais fome. Nesse dia, o gato foi atropelado por uma
bicicleta, e diversos outros acontecimentos perturbaram o bairro.
Notou-se, inclusive, que uma toalha de poeira, finíssima, cobria a
mesa onde pousava o retrato.
O avô, cada dia mais alquebrado, já não se esquentava ao sol, no
alpendre. Sua morte passou a ser um acontecimento esperado pela
vizinhança. O leiteiro aborreceu-se, mesmo, com as melhoras que
ele experimentou na quarta-feira, embora não lhe desejasse mal. As
tardes começaram a ser incomparavelmente longas e boas. Leonor,
Emília, Marieta sentiam preguiça, eram invadidas por um desejo
imoral de amar (o padre dizia que era imoral) e as opiniões dividiam-
se sobre a irmã falecida.
— Esta foi feliz em morrer.
— Não diga isso. Coitadinha da nossa irmã! Eu queria tanto morrer
no lugar dela. Já vivi vinte anos, fui a tantos bailes. Bem podia me
levar. Ela morreu criança, não soube nada da vida.
— Por isso mesmo foi feliz.
— Não. Foi desgraçada. Morrer cedo é uma infelicidade. Morrer
muito velha, isto sim. Mas eu não me importava de “ir” agora. Nossa
irmã é que devia estar aqui.
— Eu é que devia morrer.
— Ou senão eu…
E se as três morressem juntas? A ideia era totalmente inédita e
perturbou-as. O retrato disse: não, com a cabeça e os cachos
pensativos destruídos pela gripe como que escureceram mais a
pacífica fisionomia. Felizmente, foi o avô que morreu.
O enterro do avô foi muito interessante. Vieram muitas pessoas,
inclusive romancistas e um sociólogo pernambucano. Todos se
calaram, respeitosos, e o enterro deu uma certa importância à casa,
de ordinário tão desapontada. Percebia-se que o avô tinha sido um
homem relacionado, posto que ultimamente, cego, surdo e gago,
sem vias de comunicação com o mundo exterior. A noite foi quente, e
choveu.
Se eu soubesse tocar piano, pensou Emília, tocaria amanhã uma
valsa muito triste para pensar em vovô. Esquecia-se de que não
havia piano em casa. Todas as suas imagens marítimas haviam
desaparecido. Leonor, conservando acesa a lâmpada de 32 velas,
movia na parede a sombra enorme de um pé, que ora era um bicho,
ora uma flor de cinco pétalas, ora um ferreiro castigando
energicamente a chapa sobre a bigorna. Marieta cismava que afinal
de contas o seu defeito físico, indispondo-a para o casamento, lhe
dava preferência para a morte. O retrato, na escuridão, era
insubsistente.
E durante muitos anos Marieta, Emília, Leonor flutuaram,
indecisas, entre o retrato e a escuridão.
MORREU UM CHOFER

A morte de um chofer não é, em si, um acontecimento


impressionante.
Como não o é também a morte de um pedestre. Os jornais trazem
diariamente fotografias de pessoas que, desta ou daquela maneira,
encontraram a morte numa esquina, e que nem por isso atraem mais
de um minuto a nossa volúvel atenção. Morrer, ato tão simples
quanto nascer, e menos complicado do que viver, raramente constitui
originalidade. Por isso a gente não se importa muito com os corpos
que vão caindo pelo caminho.
O chofer Manuel Pereira dos Santos só passou a existir,
entretanto, depois que o liquidaram na avenida F. O interesse que
então despertou na cidade foi unânime. Até às 14 horas de quinta-
feira, ele não tinha propriamente personalidade civil. Era o no 2631,
para efeito do lápis dos fiscais. E devia ter sido apanhado muitas
vezes por esse lápis, porque tinha índole impetuosa. Mas a não ser o
patrão, que lhe pagava o salário, ninguém na cidade X tomava
conhecimento especial desse rapaz. Um caminhão passa, carregado
de serragem, e nele vão dois homens. Esses homens fazem parte do
carro, que tem o motor, a embreagem, o pneumático, o tanque de
gasolina, o motorista, o ajudante e outras peças. Se o nome do
motorista é José ou Calígula, não importa. O que se quer saber é se
a máquina que ele guia é Ford ou Continental.
Aconteceu porém a Manuel Pereira dos Santos passar por um
lugar proibido, embora habitual no seu caminho: a oficina de bondes.
Os bondes estavam recolhidos, para que os ginasianos e outros
futuros marxistas pudessem fazer uma pequena festa popular,
carregando em triunfo os motorneiros, na mais pacífica de todas as
greves. A polícia, por precaução, e para guardar alguma coisa,
guardou as oficinas, interditando a rua. Manuel Pereira, que não tinha
nada com isso, passou, veloz e predestinado. Uma descarga de fuzil
parou o carro. Foram ver, ele estava inerte, as mãos presas na
direção, e a alma no céu dos operários.
Então todo mundo reparou longamente no chofer morto. As balas
haviam feito um grande estrago. Alguém julgou ver mesmo um
cadáver de mãos varadas e rosto irreconhecível. Na realidade não
tinha havido tempo para se fazer coisa tão perfeita. Os tiros foram
nazistas, mas sem estilo. Manuel apresentava uma lesão no pulso e
outras pelo corpo, em desordem. Qualquer fiscal de veículos, que o
multara em vida, podia identificá-lo.
Então, Manuel Pereira dos Santos ganha uma notoriedade súbita.
A cidade comove-se. Os colegas agitam-se. Os jornais fecham-se.
Os automóveis recolhem-se. Circulam apenas pedestres e boletins.
E a gente se lembra de outras mortes como essa. E acha uma
explicação para o destino do rapaz. Lembra-se, por exemplo, do
estudante assassinado na Faculdade de Direito da cidade X, numa
tarde em que desacataram o reitor. O reitor era amado de todos e
sua voz grossa, carinhosa no fundo, fazia cessar as divergências. Um
dia cismaram com ele, houve uma porção de discursos, e no meio
dos discursos cai morto um universitário, que apenas assistia ao
espetáculo. Não teve tempo de saber por quê. O chofer também
não. Nos momentos de crise, a morte escolhe apressadamente um,
dois indivíduos — e desfecha o golpe. Não examina se a escolha foi
conveniente, nem se valeria a pena fazer um serviço mais esmerado.
É preciso que alguém morra, eis tudo. Faz parte dos
acontecimentos. Manuel estava na escala do dia 12 — os grevistas
diriam “na tabela” — e se é verdade que passou duas vezes pelo
local, isso prova apenas que, escalado para morrer, fez o possível
para cumprir sua obrigação. E nesse episódio banal encontramos o
sentido grego da tragédia, do fatum.
Eu não ataco a polícia por haver fuzilado Manuel Pereira nem
censuro este por sua imprudência. O dever da sentinela é matar,
coisa que nós, cirurgiões-dentistas, professores de álgebra,
amanuenses e vendedores de lotes, dificilmente compreendemos.
Também a tentação do risco se atuou em Manuel Pereira, é estranha
à nossa cautelosa existência, mas pode habitar um chofer como
habitou — desculpem-me a citação — a obra de um sujeito chamado
Nietzsche. É preciso compreender que as mil maneiras de morrer
não são justas nem injustas: são variedades. Daí, o luxo da escolha
se acomodaria mal com a trepidação de uma greve, e o obscuro
mandamento que exige a mort de quelqu’un [morte de alguém].
Não vamos discutir o fim desse chofer pois o importante é o que
aconteceu depois. Aconteceu o mais monstruoso enterro já visto na
cidade X. O préstito fúnebre do presidente Raimundo era
considerado o maior até então visto na capital. Veio depois o do
presidente Inácio, ainda mais complicado e extenso. Mas eram dois
chefes de Estado. Manuel Pereira, de profissão motorista, bateu
todos dois, fazendo-se acompanhar ao cemitério até pelos
caminhões que transportam areia e pedra para construção; até pelos
ônibus, os inacreditáveis ônibus da cidade X.
Os caminhões alternavam com limusines. E os ônibus tinham este
letreiro, homenagem a Manuel Pereira: “Especial”. Esparsos no
cortejo, viam-se todos os Fords, de 1915 a 1934, todas as marcas
americanas e europeias, evoluindo através das idades, como numa
exposição retrospectiva. O enterro de Manuel Pereira parecia
anúncio de marcas de automóveis.
Mas, perto de mim, dizem que foi anúncio de outras coisas
também.
Quando rebocamos um conhecido ao cemitério, pensamos que,
com certeza, Deus levará a nosso crédito a maçada. É uma
compensação. Não creio porém que as pessoas que durante
algumas horas acompanharam o enterro de Manuel Pereira, ilustre
desconhecido, fizessem esse cálculo com a eternidade. Teriam sido
levadas por um pensamento difícil de exprimir, e que provisoriamente
chamaremos de solidariedade.
Mas solidariedade com quem, se entre os grevistas e a
Companhia Força e Luz o corpo de Manuel Pereira não tinha
opinião? Alguma coisa no ânimo dos presentes ditava, porém, essa
atitude. Sentia-se que era preciso levar aquele homem ao cemitério,
prestar-lhe uma homenagem formidável, mostrar-lhe que as mortes
estúpidas desencadeiam largas e longas correntes de emoção.
Havia também a fazer, dizem os líderes proletários, uma afirmação
de princípios. Manuel Pereira foi transformado em bandeira, em
símbolo obscuro mas necessário, e vai agora trabalhar o
pensamento dos homens pobres.
Muitos, a esta hora, estão com os olhos postos nele, procurando
decifrar o seu último gesto, a razão de sua imprudência, e a razão
maior que faz certos homens serem mortos de preferência a outros
— e, entre eles, os que não têm culpa…
Eu vi o enterro passar pela avenida S. Não a cabeça, mas a cauda
desse coleante e prodigioso corpo, que se estirou, horas a fio, pela
cidade. Outra multidão assistia, das calçadas. Eram homens
humildes, comerciantes, crianças, populares. E, integradas na fila
contínua, as mulheres que vinham subindo das ruas próximas punham
naquela massa contemplativa os seus vestidos e o seu silêncio.
Gordas, magras, luxuosas, miseráveis, de pernas inchadas, de seios
expostos, de preços e categorias diversas, elas formavam também
um estranho cortejo, na sua imobilidade de espectadoras.
No cemitério, fizeram-se ouvir vários oradores. Mas os oradores
não interessam a ninguém neste país, e o que eles dizem sobre os
túmulos fica enterrado com as vítimas. A lembrança que resta de
tudo isso, é a de um largo, escuro cortejo, em que homens de barba
por fazer, sem paletó, mangas arregaçadas, guiam as suas
máquinas empoeiradas, sob o olhar das mulheres, e, de esquina em
esquina, um soldado de cavalaria, vigiando.
UM ESCRITOR NASCE E MORRE

Nasci numa tarde de julho, na pequena cidade onde havia uma


cadeia, uma igreja e uma escola bem próximas umas das outras, e
que se chamava, digamos, Turmalinas. A cadeia era velha,
descascada na parede dos fundos, Deus sabe como os presos lá
dentro viviam e comiam, mas exercia sobre nós uma fascinação
inelutável (era o lugar onde se fabricavam gaiolas, vassouras, flores
de papel e bonecos de pau). A igreja também era velha, porém não
tinha o mesmo prestígio. E a escola, nova de quatro ou cinco anos,
era o lugar menos estimado de todos. Foi aí que nasci: nasci na sala
do 3o ano, sendo professora d. Emerenciana Barbosa, que Deus
tenha. Até então era analfabeto e despretensioso. Lembro-me que
nesse dia de julho o sol que descia da serra era bravo e parado. A
aula era de geografia, e a professora escrevia no quadro-negro os
nomes dos países distantes. As cidades vinham surgindo na ponte
dos nomes, e Paris era uma torre ao lado de uma ponte e de um rio,
a Inglaterra não se enxergava bem no nevoeiro, um esquimó, um
condor surgiam misteriosamente trazendo consigo países inteiros.
Então eu nasci. De repente nasci, isto é, senti necessidade de
escrever. Nunca havia pensado no que podia sair de um papel e de
um lápis, a não ser bonecos sem pescoço e com cinco riscos
representando as mãos. Nesse momento, porém, minha mão
avançou para a carteira procurando um objeto, achou-o, apertou-o
irresistivelmente, escreveu alguma coisa parecida com a narração de
uma viagem de Turmalinas ao Polo Norte.
É talvez a mais curta narração no gênero. Dez linhas, incluindo um
naufrágio e a visita a um vulcão. Eu escrevia com o rosto ardendo e
a mão veloz tropeçando sobre as complicações ortográficas, mas
passando adiante. Isso durou talvez um quarto de hora e valeu-me
uma interpelação de d. Emerenciana:
— Juquita, que que você está fazendo?
O rosto ficou mais quente e eu não respondi. Ela insistiu:
— Me dá esse papel aí… Me dá aqui.
Eu relutava, mas seus óculos eram imperiosos. Sucumbido,
levantei-me, o braço duro segurando a ponta do papel, a classe toda
olhando para mim, gozando já o espetáculo da humilhação. Mas d.
Emerenciana passou os óculos pelo papel e, com assombro para
mim, declarou à classe:
— Vocês estão rindo do Juquita. Não façam isso. Ele fez uma
descrição muito chique e mostrou que está aproveitando bem as
aulas.
Fez uma pausa e rematou:
— Continua, Juquita. Você ainda será um grande escritor.
A maioria, na sala, não avaliava o que fosse um grande escritor.
Eu próprio não avaliava. Mas sabia que no Rio de Janeiro havia um
homem pequenininho, de cabeça enorme, que fazia discursos muito
compridos e era inteligentíssimo. Devia ser, com certeza, um grande
escritor, e nos meus nove anos eu achava que a professora estava
me comparando a Rui Barbosa.
A viagem ao polo foi cuidadosamente destacada do caderno onde
se esboçara, e conduzida em triunfo para casa. Minha mãe,
naturalmente inclinada à sobre-estimação de meus talentos, julgou-
me um predestinado. Meu pai, homem simples e de um bom senso
integral, abriu uma exceção para escutar os vagidos do escritorzinho.
Ganhei uma assinatura d’O Tico-Tico, presente régio naqueles
tempos e naquelas brenhas, e passei a escrever contos, dramas,
romances, poesias e uma história da Guerra do Paraguai,
abandonada no primeiro capítulo para alívio do marechal Lopez.
II

Escrevi. Escrevi. Deixei Turmalinas. No internato, fui redator da


Aurora Ginasial, onde um padre introduziu criminosamente na minha
descrição da primavera a expressão “tímidas cecéns”, que me
indignou. Cá fora, as revistas literárias passaram a abrigar-me com
assiduidade. Em uma delas o meu retrato apareceu, com adjetivos.
Não me pagaram nada, nem eu podia admitir que literatura se
vendesse ou se comprasse. Quantas vezes o meu coração bateu
quando os dedos folheavam, trêmulos, o número de sábado ainda
cheirando a tinta de impressão! Publicou… Não publicou… E sempre
a descoberta do meu trabalho, ainda em plena rua, despertava-me a
sensação incômoda do homem que foi encontrado nu e não teve
tempo de cobrir as chamadas partes pudendas. Eu escondia o meu
crime, orgulhoso de tê-lo cometido, fazendo da literatura um segredo
e uma masturbação. Havia semanas em que o Fon-Fon!, o Para
Todos, a Careta e a Revista da Semana publicavam
simultaneamente trabalhos da minha humilde lavra, todos ou quase
todos poemas em prosa, em que me havia especializado. Nem
sempre havia numerário suficiente para adquirir todas as revistas, e
então o copo de leite quente, com pão e manteiga, à noite, antes de
ir para a pensão sacrificava-se com galanteria às belas-letras.
Escrevi muito, não me pejo de confessá-lo. Em Turmalinas, gozei
de evidente notoriedade, a que faltou, entretanto, para duração, um
certo trabalho de jardinagem. É verdade que Turmalinas me
compreendia pouco e eu a compreendia menos ainda. Meus
requintes espasmódicos eram um pouco estranhos a uma terra em
que o minério de ferro calçava as ruas e dava às almas uma rigidez
triste. Entretanto, meu nome em letra de fôrma comovia a pequena
cidade, e dava-lhe esperanças de que o meu talento viesse a
resgatar o melancólico abandono em que, anos a fio, ela se
arrastava, com o progresso a cinquenta quilômetros de distância e
galinhas ciscando nas ruas.
Não houve resgate, e a cidade esqueceu-me. Nunca mais voltei lá.
De lá ninguém me escreveu mais, pedindo para fazer uma página
sobre o Pico do Amor ou a Fonte das Sempre-Vivas. Meus parentes
espalharam-se ou morreram. O escritor tornou-se urbano.
III

Publiquei três livros, que foram extremamente louvados pelos meus


companheiros de geração e de pensão, e que os críticos
acadêmicos olharam com desprezo. Dois volumes de contos e um de
poemas. Distribuí esses livros entre os jornais, os amigos, as
pessoas que me pediram e as mulheres a quem eu desejava
impressionar.
Sobretudo entre essas últimas. Minha tática, de resto bem
simples, consistia em jamais pronunciar ou sugerir a palavra
“literatura”. Eu não era um literato que se anunciava, mas um
homem, que no fundo sofria de saber-se literato. Minha literatura
assumia uma feição estranha, com alguma coisa de nativo e
contrariado na origem, mas vegetando não obstante.
— O senhor escreve coisas belíssimas, eu sei…
— Calúnia de meus inimigos. Infelizmente, é impossível viver sem
fazer inimigos. Eles é que espalham isso, não acredite…
O meu sorriso gauche, de dentes não suficientemente íntegros
(ganhei fama de irônico por causa do sorriso envergonhado),
sublinhava a discreta intenção da negativa.
O sujeito afastava-se, impressionado. Muitas reputações nacionais
não se estabelecem de outro modo. Eu escrevia.
IV

Escrevia realmente para quê, escrevia por quê? Autor, tipógrafo e


público não saberiam responder. Eu não tinha projetos. Não tinha
esperanças. A forma redonda ou quadrada do mundo me era
indiferente. A maior ou menor gordura dos homens, a sua maior ou
menor fome não me preocupavam. Sabia que os homens existem,
que viver não é fácil, que para mim próprio viver não era fácil, mas
nada disso contaminava os meus escritos. E dessa incontaminação
brotara, mesmo, certa vaidade. “Artista puro”, murmurava dentro de
mim uma vozinha orgulhosa. “Não traía o espírito”, acreditava outra
voz interior (um borborigmo, talvez). Como o espírito não
protestasse, eu me atribuía essa dignidade exemplar, feita de
gratuidade absoluta. E escrevia. Rente ao meu ombro, outros
rapazes faziam o mesmo. E não queríamos nada, não esperávamos
nada. Éramos muito felizes, embora não soubéssemos, como
acontece geralmente.
O meu, o nosso individualismo fundamental proibia-nos o
aconchego das igrejinhas. Éramos ferozmente solitários. Em cada
estado do Brasil, uma academia de letras reunia os gregários e
distribuía louros inofensivos. Esses louros repugnavam-me, e os
acadêmicos, geralmente pessoas sem complexidade, apareciam a
meus olhos como monstros de intolerância, inveja, malícia e
incompreensão, intensamente misturadas. O fato de terem quase
todos mais de 45 anos apenas adoçava esse sentimento de repulsa,
mas para introduzir nele um grão de piedade triste. Em verdade, ter
mais de 45 anos era não somente absurdo como prova de extrema
infelicidade. Até certo ponto, os acadêmicos mereciam simpatia.
Como, por exemplo, os dromedários, animais estranhos que não
podem ser responsabilizados pelo gênero de vida que lhes impõe o
vício de nascença.
Fugindo aos mais velhos seria natural que nos ligássemos uns aos
outros, os de vinte a 25 anos. Cultivávamos mais ou menos os
mesmos preconceitos. As mesmas fobias em cada um de nós.
Desgraçadamente, essas fobias nos impunham um cauteloso
afastamento recíproco, e nossas conversas de bar, noite adentro,
tinham alguma coisa de ferocidade e de autoflagelação. Entretanto…
Licurgo, que compusera comigo o “Poema do cubo de éter”,
descobriu certa noite o tomismo, e eu o expulsei da minha
convivência. Mas sua voz continuou pregando os novos tempos e
perturbando almas sedentas de verdade e metafísica.
Aleixanor, tendo comprado num sebo as Cartas aos operários
americanos, de Lênin, e começando a colaborar no Grito Proletário,
sofreu da minha parte uma campanha de descrédito intelectual.
Voltou-se para a ação política, fundou sindicatos, escreveu e
distribuiu manifestos, e desfrutou de certa notoriedade até o golpe
de 35, quando emudeceu.
A poetisa Laura Brioche fundou um Clube de Psicanálise, que
procurei desmoralizar na primeira reunião, introduzindo sub-
repticiamente entre os sócios, antes da votação dos estatutos,
volumosa quantidade de uísque, genebra e gim. A sessão dissolveu-
se em álcool, mas restaram aqui e ali grupos de bem-aventurados
que se entretinham na interpretação onírica e confrontavam
gravemente os seus respectivos complexos, recalques e
ambivalências.
Fundaram-se, sucessivamente, a Associação dos Amigos dos
Livros de História, a Academia dos Gramáticos de Ouro Preto, um
Curso de Alimentação Racional, a Sociedade de Aculturação Ario-
Africana, o Grupo Deus-Pátria-Justiça-Ensino Profissional, o Clube
Esperantista Limitado, o Instituto de Genética.
Todos, em redor de mim, se iam afirmando, iam-se fixando.
Todos optavam. Nos jornais, passavam do suplemento dos
domingos para a página editorial. Alguns recebiam manifestações de
apreço, outros eram chamados para trabalhar nos gabinetes de
secretários de Estado. Vários compraram lotes e começaram a
edificar. Um deles, extraordinário, conquistou um cartório. Uma
floração de filhos, vitoriosos nos concursos de puericultura, afirmava
o rumo seguro da minha geração.
Eu perseguia o mito literário, implacavelmente, mas sem fé. Nunca
meus poemas foram mais belos, meus contos e crônicas mais
fascinantes do que nesse tempo de crescente solidão. Solidão,
solidão… Era só o que havia em torno a mim, dentro de mim. Era
como se morasse numa cidade que, pouco a pouco, fosse ficando
deserta. Algum tempo mais, e não haveria ninguém para dirigir os
sinais luminosos nas esquinas, para dar corda aos relógios,
velocidade aos bondes, carne, pão e fruta às casas. De resto, para
que bondes, relógios? Já não havia ninguém, todos se haviam
mudado para as cidades em frente, ao norte, ao sul, e eu passeava
lugubremente a minha solidão nas ruas que ressoavam com o meu
passo, ruas que outrora me eram familiares, e agora pareciam
escurecer, mudar de forma, de cheiro: de tal modo elas estavam
ligadas a uma época, a uma geração, a um estado de espírito que
se decompunham… Tudo ia escurecendo… escurecendo… Mas eu
andava, eu continuava, eu não queria acreditar…
Risquei um fósforo, já sob a escuridão absoluta, e na lâmpada que
as minhas mãos em concha formavam, percebi que tinha feito trinta
anos. Então morri. Dou a minha palavra de honra que morri, estou
morto, bem morto.
ESBOÇO DE UMA CASA

Casa fria, de apartamento. Paredes muito brancas, de uma aspereza


em que não dá gosto passar a mão. Aí moram quatro pessoas, com
a criada, sendo que uma das pessoas passa o dia fora, é menina de
colégio.
Plantas, só as que podem caber num interior tão longe da terra
(estamos em um décimo andar), e apenas corrigem a aridez das
janelas. Lá embaixo, a fita interminável de asfalto, onde deslizam
automóveis e bicicletas. E ao longo da fita, uma coisa enorme e
estranha, a que se convencionou dar o apelido de mar, naturalmente
à falta de expressão sintética para tudo o que há nele de salgado, de
revoltoso, de boi triste, de cadáveres, de reflexos e de palpitação
submarina.
Do décimo andar à rua, seria a vertigem, se chegássemos muito à
janela, se nos debruçássemos. Mas adquire-se o costume de olhar
só para a frente ou mais para cima ainda. Então aparecem
montanhas, uma estátua de pedra que é às vezes cortada pelo
nevoeiro, casas absurdas dançando — ou imóveis, após a dança —
sobre precipícios. Há também um coqueiro irreal, sem nenhum coco,
despojado e batido de vento (que se diria um vento bêbedo), no alto
do morro, quase ao nível da casa.
Conhecimento íntimo do vento, depois que a noite se adensou e se
acumulou sobre os tetos, em torno das paredes, cobriu todo o bairro
e a coisa grande chamada mar. Nas casas ao nível do chão o vento
não é tão importante assim. Faz bater as janelas esquecidas, às
vezes traz pó. Mas é um simples vento que passa e logo se
esquece. No alto, o vento fica rondando a noite toda a janela, e se
vai até o largo é para voltar, insistir, como se quisesse apagar o
fogo, embora o saiba aprisionado em ampolas. Ou talvez, ambição
maior, despregar as paredes de cimento e levar a casa, os livros, as
quatro criaturas sobre as águas, até o farol.
O vento obstina-se, e faz calar a respiração das ondas, que era
um arquejo constante, pontuado. Agora são barulhos desconexos,
árvores que se partem e os pedaços ficam se chocando uns contra
os outros, sinos que se esforçam por impor um canto puro, passos
de alguém que sobe a escada, ronco surdo de elevador. Parece que
desta vez a casa vai, e nós com ela.
Mas a casa fica sempre. Os meses de inverno passaram.
Podemos continuar a viver a quarenta metros do solo, fazendo-se as
comunicações por meio de duas escadas elétricas e uma comum, de
degraus. Os materiais preciosos — pão, leite, jornal, carne — vêm
pelos fundos, às escondidas como se se temesse um assalto e sua
perda. Pelo caminho nobre entram senhoras de chapéu, que têm
mãos fantásticas, talvez impróprias para carregar objetos de ferro,
mãos que possuem um valor em si e, cortadas, poderiam ser
expostas em joalheria.
Para cobrir o alarido do vento, encomendou-se um piano, e sua
forma gigantesca inaugurou um caminho novo, ascensão ao longo da
parede, por uma corda. A coisa preta subindo, como um elefante
cansado, raspando o cimento, balançando-se no ar. Todos os
moradores magnetizados.
De repente, um pássaro. Florestas, pequenas moitas secretas,
simples ramo à beira do caminho, menos que um ramo, a folha e
suas nervuras. A superfície estritamente necessária para que um
passarinho pouse. O mensageiro da vida visita os exilados do
cimento Portland. Ninguém saberá jamais a que veio, não improvisou
um canto nem provou dos víveres. Um minuto de pouso, e regressou
ao natural. Ficamos tristes e pensativos, como ficáramos contentes e
cheios de palavras com sua presença.
Então outra ave aparece, mas enclausurada. Menor que a nossa,
a casa que lhe damos compreende três poleiros, o depósito de
alpiste, o depósito de água. Há multidão de grades de arame, e
tantos fios convergindo em abóbada lhe darão talvez a ideia de que o
mundo é um espetáculo em forma de zebra, o que poderá diverti-la
e, quem sabe, induzi-la a cantar.
Cantou. A princípio canto indeciso, tímido. Depois as notas se
juntaram, um hino festivo insinuou-se através das grades, circulou
entre as porcelanas. Canta, passarinho, canta diante de tudo que é
sem voz ou a perdeu, faze com que as cadeiras, a mesa, as
estantes reaprendam música, se lembrem do mato natal, dá uma
solução melodiosa a todas as tristes impossibilidades desta
segunda-feira, deste quarto, destas roupas usadas!
Mas o vento espiava da esquina, e, irritado, derrubou a gaiola. Lá
está no chão da varanda. O vento aniquila um circo inteiro, a
tripulação de um navio, mas apenas fere as aves e impõe-lhes
silêncio. Esta nunca mais cantará. A gota de iodo no bico, o
minúsculo aparelho retificador da perna quebrada lhe permitirão viver
fracionariamente, e será horrível daí por diante contemplá-la,
conversá-la. Com o rosto voltado, alguém limpa todas as manhãs o
espaço restrito em que o canário espalha humildemente sua dejeção.
Não importa. Encomendaremos uma gata. Será estúpida e não
nos amará. Encomendaremos um cão, ou mais propriamente a
deliciosa caricatura de um cão, que terá dos cães autênticos o olhar
encharcado de ternura, e a cauda alegre. Este nos amará, e um dia
perpetraremos nele o horroroso crime de mutilação, que não será
punido. Sua língua ficará envolvendo de doçura o corte sangrento,
até que se aplaque a dor da ferida. Será nosso companheiro à noite,
de dia dormirá sob o piano. Elegerá a entrada do escritório para
local de suas reprováveis operações. Um dia se descobrirá no
espelho e encherá a casa de gritos furiosos de alarme. Lamberá
também gulosamente os pés salgados de água do mar, enfrentará
com ira todo aquele que ousar tocar a campainha da porta,
abominará de maneira especial os meninos pretos, por que os
pretos? E, como os homens, venderá sua alma pelo menor pedaço
de doce.
Então percebe-se que a população da torre aumentou de quatro
para sete vidas. Inclusive a menina que dorme em casa mas vive no
colégio. (Não é bem dormir, porque o sono se povoa de problemas
de matemática, medalhas, viagens, abstinências e filmes.) A vida
seria divertida entre os bichos, se houvesse tempo. Não há. O
elevador engole a menina e promete devolvê-la à tarde, para a aula
de piano à sombra do retrato de Portinari, da estátua de pedra, dos
morros que escurecem, do coqueiro que não acaba de desprender-
se da terra, da noite que vem descendo, descendo, até pousar no
chão e desfazer-se em umidade e silêncio.
E silêncio. Há um sono de pessoas e pequenos animais
capturados, inofensivos, suspensos, protegidos pelo cimento,
espreitados pelo vento, um sono solidário, tão puro!, que a casa
perde seu caráter hostil e também ela boia na noite, grande flor
muda que, ao primeiro grito, se despetala.
CADERNO DE NOTAS
PURGAÇÃO

Penso nos títulos dos contos e romances de hoje: Stela me abriu a


porta, Boa noite, Rosa, Olha para o céu, Frederico! Tendência para
o cartaz, justificável em face das condições da vida moderna, que
tem pressa e sugere pouco. Títulos clássicos, como A filha do
capitão, de Púchkin, já não seduzem o escritor nem atraem o
público. Entretanto, é para eles que vai a minha simpatia, já que a
minha curiosidade se detém nos outros. Para esses títulos (A
abadessa de Castro, As minas de prata, O cortiço), que apenas nos
informam da condição de um personagem ou do ambiente em que a
história se desenvolve, mas que deixam o leitor perfeitamente livre de
imaginar todas as possibilidades para depois conferi-las com o texto.
Títulos secos, de uma banalidade voluntária; estáticos; ia dizer
indiferentes, se não percebesse neles a reserva e a solicitude
discreta dos velhos criados, que em silêncio nos escovam o paletó,
nos servem a mesa. Sentimos que são solidários conosco, sem
necessidade de qualquer manifestação oral.
Penso no título do romance de Yan de Almeida Prado, Os três
sargentos, que me agrada muito; e verifico que já não tenho vinte
anos.
Sim, deve ser o tempo. À medida que envelheço, vou me
desfazendo dos adjetivos. Chego a crer que tudo se pode dizer sem
eles, melhor talvez do que com eles. Por que “noite gélida”, “noite
solitária”, “profunda noite”? Basta “a noite”. O frio, a solidão, a
profundidade da noite estão latentes no leitor, prestes a envolvê-lo, à
simples provocação dessa palavra “noite”.
POESIA DO TEMPO

O equívoco entre poesia e povo já é demasiadamente sabido para


que valha a pena insistir nele. Denunciemos antes o equívoco entre
poesia e poetas. A poesia não se “dá”, é hermética ou inumana,
queixam-se por aí. Ora, eu creio que os poetas poderiam
demonstrar o contrário ao público. De que maneira? Abandonando a
ideia de que poesia é evasão. E aceitando alegremente a ideia de
que poesia é participação. Não basta dizer que já não há torres de
marfim: a torre desmoronou-se pelo ridículo, porém muitos poetas
continuam vendo na poesia um instrumento de fuga da realidade ou
de correção do que essa realidade ofereça de monstruoso e de
errado. Desenvolve-se então entre eles a linguagem cifrada, que
nenhum leigo entende, e que suscita o equívoco já célebre entre
poesia e povo.
Participação na vida, identificação com os ideais do tempo (e
esses ideais existem sempre, mesmo sob as mais sórdidas
aparências de decomposição), curiosidade e interesse pelos outros
homens, apetite sempre renovado em face das coisas, desconfiança
da própria e excessiva riqueza interior, eis aí algumas indicações que
permitirão talvez ao poeta deixar de ser um bicho esquisito para
voltar a ser, simplesmente, um homem.
VELHA CASA

André Maurois conta que na casa dos pais de Turguêniev, em


Spásskoie, se manipulava tudo o que era necessário à vida da
família. A casa era fábrica e celeiro. Como não lembrar a velha casa
mineira, de que descendo, em que minha bisavó instalara oficinas e
serviços diversos, e na qual se preparava tudo que se fazia mister
para a vida no interior mineiro, vida aparentemente simples mas na
verdade cheia das exigências da classe social em que minha família
se integrava? Se os gêneros alimentícios vinham da fazenda
próxima, o pão, o doce, o chapéu, o sapato, a roupa eram
fabricados ali mesmo, sob os olhos vigilantes de d. Joana, por uma
multidão de escravos especializados em diferentes ofícios. Do bulício
dessa casa cheia de trabalhadores pretos e mulatos já não chega
mais aos meus ouvidos nenhum eco, nenhum murmúrio de queixa ou
revolta. Apenas o barulho das mãos, o refrão das ordens. Tudo o
mais ficou longe, ficou em Spásskoie como no passado mineiro…
LITERATURA INFANTIL

O gênero “literatura infantil” tem, a meu ver, existência duvidosa.


Haverá música infantil? Pintura infantil? A partir de que ponto uma
obra literária deixa de constituir alimento para o espírito da criança
ou do jovem e se dirige ao espírito do adulto? Qual o bom livro para
crianças, que não seja lido com interesse pelo homem-feito? Qual o
livro de viagens ou aventuras, destinado a adultos, que não possa
ser dado à criança, desde que vazado em linguagem simples e isento
de matéria de escândalo? Observados alguns cuidados de linguagem
e decência, a distinção preconceituosa se desfaz. Será a criança um
ser à parte, estranho ao homem, e reclamando uma literatura
também à parte? Ou será a literatura infantil algo de mutilado, de
reduzido, de desvitalizado — porque coisa primária, fabricada na
persuasão de que a imitação da infância é a própria infância? Vêm-
me à lembrança as miniaturas de árvores, com que se diverte o
sadismo botânico dos japoneses; não são organismos naturais e
plenos; são anões vegetais. A redução do homem, que a literatura
infantil implica, dá produtos semelhantes. Há uma tristeza cômica no
espetáculo desses cavalheiros amáveis e dessas senhoras não
menos gentis, que, em visita a amigos, se detêm a conversar com as
crianças de colo, estas inocentes e sérias, dizendo-lhes toda sorte
de frases em linguagem infantil, que vem a ser a mesma linguagem
de gente grande, apenas deformada no final das palavras e
edulcorada na pronúncia… Essas pessoas fazem oralmente, e sem o
saber, literatura infantil.
MORTE DE UM GORDO

Morte de E. B. G. Não era meu amigo, mas conhecê-lo bastou para


que a notícia, dada pelo rádio, me comovesse. Indo para o trabalho,
passei na casa de saúde onde estava o corpo. É uma casa de saúde
onde morrem muitos doentes — ou que nos dá a impressão disso.
Não conhecendo ninguém da família, pedi a umas moças, paradas no
jardim, que me guiassem. No necrotério, entre algumas coroas, o
caixão pobre e o morto de rosto velado. Soube logo que a morte
resultara de atropelamento por automóvel. Vendo E. morrer
gradativamente, nas vezes em que me procurava, a notícia
surpreendeu-me. Como se a morte por atropelamento não estivesse
certa. “Foi um carro oficial”, sussurrou uma das senhoras presentes
— e essa revelação me deixou gêné [embaraçado] como se o fato
de também eu utilizar-me de carro oficial e tê-lo parado ali no jardim
fizesse cair sobre meus ombros a responsabilidade do desastre.
O corpo estava vestido de preto; creio que envolto numa beca;
sobre a bola do ventre, o capelo, preto e vermelho, tinha alguma
coisa de grotesco. O mesmo grotesco que em vida caracterizava
esse homem estranho, cor de cobre, cabelos brancos, rosto
pequeno como cabeça de alfinete, sobre o abdome imenso e de
difícil transporte.
Vivia num mundo esvaído, o mundo de seu tio, o grande poeta B.
(anterior à Primeira Guerra Mundial). Para o sobrinho, todos os
contemporâneos eram necessariamente burros, exceto eu, de quem
necessitava para manifestar-se, sabido que o monólogo diante do
espelho não consola, e cada um de nós é um pouco deputado à
procura de Câmara. Tinha sempre o ar suspeito de quem viesse
pedir-me dinheiro emprestado. Nunca pediu. Satisfazia-se com livros
e magoava-o não ganhar esta ou aquela publicação oficial, que
estivesse sendo distribuída. Empreendia vagos estudos históricos,
tendentes à exaltação dos heróis pátrios, e assumia um tom
confidencial ao narrar-me as suas aquisições de obras raras, nos
sebos da rua São José.
Numa de suas últimas visitas, impressionou-me a cavidade entre o
paletó e o busto. A roupa caía em dobras frouxas, denunciando um
abismo. Lá embaixo, o ventre se arredondava, como um tumor.
Puxou o paletó para a frente, segurando-o pelo botão central, e eu
pude ver que entre o peito e a roupa havia apenas o vácuo.
Emagrecera não sei quantos quilos depois de uma operação e
devido a regime. As roupas, talhadas para o homem anterior,
sobravam-lhe no corpo. Dava a impressão de que, do tronco para
cima, estivesse vazio. Era espantoso, desse espanto cotidiano que
nos visita um minuto para depois perder-se no rio do dia. Muitas das
pessoas com quem conversamos no trabalho ou na rua parecem não
ter outra função além desta, de forçar-nos a uma breve excursão
pelo mistério, através do ridículo. Devemos amar tais criaturas.
RELIGIÃO E POESIA

Até que ponto a doutrina católica poderá invadir, alentar e informar


um poeta, eis a questão que sou conduzido a meditar, diante da
assinatura de Murilo Mendes numa página de A Ordem. Esta grande
voz lírica se integrou há quase dez anos na Igreja, e ao fim desse
período relativamente longo o seu grito é ainda de fraqueza e derrota
em face das coisas da Terra. O poeta se lamenta porque o mundo, a
carne e o demônio não lhe permitiram abrigar no coração o anseio
de Deus. Em lugar de sinos festivos, escuta sirenes de avião; em
lugar da Santa Eucaristia, recebe granadas. “Os mitos do mal
desencadeados sobre mim/ me envolvem sem que eu possa
respirar.” Em suma, a religião não trouxe nenhuma felicidade a Murilo
Mendes — e nem o poeta, que é dos mais dignos, seria capaz de
conceber esse cálculo; mas verifica-se que não lhe trouxe também
nenhum enriquecimento ou plenitude poética, não o armou de
poderes líricos para dominar a desordem do mundo. O poeta canta a
perplexidade e o pânico irremediáveis dos que são católicos e dos
que não têm esse privilégio. O homem Murilo, anterior ao poeta
cristão, “morr[e] de fome debaixo da mesa coberta de pães”. Dir-se-
ia que não encontrou ainda a chave do seu dramático enigma, e que
a religião, em geral, não é uma chave.
QUESTÃO DE CORPO

Não aprovo as mulheres que cantam em poesia o seu próprio corpo,


relatando-nos suas delícias e comodidades. Elas se oferecem
indistintamente a cada leitor do livro ou jornal, na rua ou na biblioteca.
Mas suponho que se recusariam a esse mesmo leitor, que, de livro
ou jornal em punho, as procurasse para a consumação do ato
sugerido ou proposto literariamente. Elas me responderão que
literatura é uma coisa e vida é outra. E que o poeta, o escritor não
são obrigados a realizar uma vida conforme os seus livros. Que o
personagem “eu” de um livro não é necessariamente o autor desse
mesmo livro. Que dois livros sucessivos se contradizem, e nesse
caso em qual deles deveria refletir-se a vida do autor? E sendo a
contradição possível nas letras, como não admiti-la na própria vida?
E que mal haverá em descrever o corpo sem oferecê-lo, como em
oferecê-lo sem contá-lo? E como limitar a um artista o rol dos seus
temas, interditando-lhe o grande tema do corpo? Etc. etc.
A todas essas interrogações, eu continuo abanando as orelhas e
repetindo para mim mesmo que não acho próprio acenar com
promessas que não temos intenção de cumprir. Enquanto um instinto
irreprimível, diante das manifestações de erotismo mental de certas
páginas, me segreda: isto não é literatura. A literatura, mesmo
descrevendo o corpo, não o expõe, e narrando o amor, não o realiza.
O LIVRO INÚTIL

Escrever um livro inútil, que não conduzisse a nenhum caminho e não


encerrasse nenhuma experiência; livro sem direção como sem
motivação; livro disfarçado entre mil, e tão vazio e tão cheio de
coisas (as quais ninguém jamais classificaria, falto de critério), que
pudesse ser considerado, ao mesmo tempo, escrito e não escrito,
sempre foi um de meus secretos desejos.
Os dias passaram sobre esse projeto e não o fizeram mais nítido;
ambições mais diretas me agitaram; nunca soube quando chegaria o
tempo desse livro, e nunca senti em mim a plenitude insuportável da
maturação; será hoje?
Se me disponho a escrevê-lo é porque já está feito… O mesmo
seria dizer que minha vida está acabada. Quando me sinto capaz de
nascer neste escasso momento e olhar com olhos ingênuos essa
janela que se insere entre mim e a paisagem; ou aquela porta, que
esconde um gato; ou o céu, onde passam aeroplanos postais. O
homem acabado, o livro acabado são fórmulas; o homem que
continua, o livro que continua, e, sobretudo, o leitor que continua,
estão insinuando como é audacioso esse projeto e como é difícil
“pintar a passagem”, com o pincel que foge da minha mão, com a
minha mão que se desprega do braço e navega por conta própria,
sobre a crista móbil da onda, da onda que, por sua vez…
TERNURA DIANTE DO RETRATO

Percorrendo as oito páginas de notícias do país e do estrangeiro,


detenho-me na coluna (tão modesta) que estampa o retrato do
menino Edival. O retrato e a notícia de sua morte, em dez linhas.
O menino Edival era soldado do Corpo de Bombeiros, ou mais
propriamente, aspirante a soldado. Tinha cinco anos e o uniforme da
corporação. Na fotografia, ele veste a farda de 3o sargento e sorri
previamente para os leitores do jornal. Edival era mascote dos
bombeiros e morreu de pneumonia.
Não posso explicar por que simpatizei tanto com Edival. O fato de
se tratar de uma criança estimadíssima entre os soldados não é
bastante. Eles conheciam o garoto, e eu não. O fato de ter morrido
também não me parece suficiente para justificar a ternura que me
veio bruscamente diante do jornal e quando já não havia nada que
remediar na vida do pequeno. Desconfio do carinho que os mortos
inspiram, e que os vivos não souberam despertar. E daí, morrer é
dos atos menos sinceros. Não se pode querer bem a uma pessoa
unicamente porque foi obrigada a morrer. Não, eu gosto do Edival
por outro motivo.
Esse motivo é o seu sorriso. Edival sorri para a vida, para o
fotógrafo e para a morte, de que ele não tem o obscuro
pressentimento. A vida desse menino me agrada pela condensação
de seus elementos: em cinco anos, Edival nasce, enverga uma farda,
é mascote do Corpo de Bombeiros, tira retrato, apanha uma
pneumonia e morre. Só depois de morto o retrato aparece nos
jornais. Para nós, ele começou a existir agora e viverá cinco minutos.
Na realidade, travamos conhecimento com Edival, quando o seu
destino está consumado e perfeito, e não há nada a tirar nem pôr na
sua vida. A fotografia de Edival são as suas obras completas. E
nessas obras nada mais belo do que o seu sorriso.
Aí está como a Providência, ou alguém por ela, preserva certos
seres do que poderíamos chamar a decomposição vital. Se Edival
crescesse, que seria dele daqui a quinze ou vinte anos? Teríamos
mais um “soldado do fogo”, sem alegria especial, sem o dom de
comunicação, preocupado com a falta d’água, que, em todas as
cidades, ocorre fatalmente no instante que os turcos escolhem para
incendiar as suas lojas.
Ele morreu precisamente na véspera de um desses incêndios. O
fogo pegara na lavanderia, em frente ao canal. Na minha meninice,
havia a pilhéria do incêndio numa caixa-d’água. O que aconteceu
agora foi mais ou menos isso. E a água faltou. O prédio ardeu
inteiramente, o que, digam o que disserem, é ainda uma maneira de
melhorarmos a arquitetura nacional. Por mais que se esforçassem,
os bombeiros nada puderam fazer. Voltaram ao quartel
desconsolados. Edival estava doente. Dois dias depois, ele morria.
Não sei quanto vale uma lavanderia a vapor, mas senti mais a morte
do pequeno bombeiro.
Por que motivo Edival sorri tão docemente para nós, que não o
conhecíamos, senão para nos deixar saudades? Em alma tão
simples, seria absurdo pesquisar uma intenção de sobrevivência
sentimental através da fotografia, mas o sorriso dele é, apesar de
tudo, um astucioso convite à amizade. Convite que nos chegou às
mãos quando o autor já havia morrido. A vida, como o correio,
costuma chegar atrasada.
LINGUAGEM

Há um desgaste mais doloroso que o da roupa, e é o da linguagem,


mesmo porque sem recuperação. Certa moça dizia-me de um seu
admirador entrado em anos, homem que brilhara no Rio de Machado
de Assis e Alcindo Guanabara:
— Ele é tão velho, mas tão velho que me encontrando à porta de
uma perfumaria disse: “Boa ideia, vou te oferecer um vidro de
cheiro!”.
BONDADE

O caso do guarda-civil que, com risco da própria vida, salvou a de


um homem que se afogava no Tamanduateí, em São Paulo, pertence
à anedota sem fugir à realidade. Da anedota tem o sabor que
sempre se encontra nos fatos onde o herói, figura legendária, é
deformado pelo ridículo e dessa maneira, em vez de provocar
admiração, desperta riso ao comum dos mortais, infenso ao
heroísmo. E da realidade conserva essa acidez que há no fundo de
todos os episódios humanos reveladores da nossa mesquinha
condição moral: a ingratidão como prêmio às façanhas generosas, a
falta de solidariedade entre os seres que mais se deviam estimar
etc. É um caso triste e alegre, ou seja, um caso de todos os dias.
Os jornais não consignam, mas adivinha-se a surpresa do próprio
guarda-civil, que, por força da profissão e de uma inclinação
individual pelo sacrifício, se lançou à correnteza para salvar o
desconhecido. Ser-lhe-ia de todo impossível admitir que o seu gesto
despertasse indignação precisamente na companheira do homem
salvo das águas. As pessoas capazes de prefigurar semelhante
reação jamais se lançariam ao rio para salvar quem quer que fosse;
tais pessoas são as cultivadas, as que escrevem ou leem tratados
de moral e psicologia, e a essas não é estranho que o próprio do
homem é odiar o seu semelhante, como o demonstrou a mulher do
afogado, levando o rigor da demonstração ao ponto de fazê-la com a
vida do marido.
Temos assim um guarda-civil ingênuo, que ainda acredita no valor
dos maridos e busca evitar que o número deles diminua por
afogamento; uma esposa não amamentada com o famoso “leite da
bondade humana”, de que falava um criador de tipos ferozes, como
foi Shakespeare; e um esposo provavelmente desolado, que talvez
preferisse morrer, que se regozijou no entanto ao ver conjurada a
ameaça de morte, e que restituído à vida, não pôde afinal, em
consciência, agradecer ao salvador o ter-lhe restituído igualmente
uma esposa rancorosa.
Diante disso, é o caso de perguntar se valeria a pena salvar-se o
homem, ou até onde deve ir a impulsão generosa que, em certos
instantes, nos invade o coração, sejamos ou não guardas-civis.

E a reflexão responderá que vale a pena salvar todos os


afogados; que a impulsão altruísta deverá ir até o seu nobre fim, e
que nenhuma ação “boa” ou tida como tal deverá deixar de ser
praticada, sob qualquer pretexto. É com a sua prática que o homem
se impõe o mais severo e necessário castigo, aquele que atenua a
aridez milenária de sua natureza, insinuando-lhe uma tal ou qual
esperança de bondade. Não será ainda a bondade, porque esta não
exige nenhum esforço, mas será a trégua imposta aos instintos, a
submissão momentânea da fera. O guarda-civil de São Paulo incute-
nos esperança de que a humanidade pode vir a melhorar. Não será
em breve, responde a mulher do afogado. Mas esta resposta
valoriza ainda mais a abnegação do outro.
NEBLINA

Essa neblina que desde ontem envolve a cidade, e torna as mulheres


mais estranhas, os homens menos cotidianos — essa neblina não te
dá vontade de partir?
Partir para uma ponta de ilha brumosa, de onde vieram os teus
antepassados; partir para a Bretanha ou para a Escócia, para a
Finlândia ou para a Dinamarca?
Ou partir para lugares ainda mais irremediáveis, como o Cabo
Não, como a Terra do Príncipe Patrick?
Mas como é impossível partir — os caminhos são compridos e os
meios são curtos e a vida está completamente bloqueada — tu te
resignas a tomar o teu grogue no bar do hotel, nessa hora mais que
todas tristíssima — seis horas da tarde, enquanto a neblina cai lá
fora, e as mulheres passam monstruosas e vagas como desenhos
indecisos, que a mão constrói para apagar logo depois.
GEORGINA

De repente, sem que nada em nós ou fora de nós avisasse o


desfecho, tudo que se transfigurara volta a desfigurar-se, e o mundo,
que girava em volta de Georgina, não gira mais em volta de
Georgina. Ela era tudo o que existe sobre a Terra, a flor, a água, a
estrela, o fogo, o crime, a alegria, a dor, a batalha, o ouro e a prata
do mundo. E de repente, puff! Estourou. Acabou-se. Nós mesmos
não compreendemos, e Georgina acaso o compreenderia? Ela
continua a passar, esplêndida, pela nossa rua e seus vestidos cada
dia atraem novas cobiças, acendem novos desejos. Em nós, porém,
os vestidos de Georgina já não acordam nada, nem sequer um
protesto. E sua beleza se volve em feiura ou, pior, em indiferença e
neutralidade. Agora Georgina não é feia nem bonita, é apenas a
décima milésima Georgina deste mundo onde há tantas. Inútil você
sorrir, Georgina, o seu sorriso é uma máscara fria. Todas as coisas
aconteciam, por sua causa; agora você acontece com as coisas, e
tem a sua ficha no imenso arquivo de nossa vida. Você abusou,
Georgina… Isto é, você não tem culpa, a gente é que pôs em você
um infinito de coisas doces, gostosas e puras. Bem que você abria
os olhinhos espantados, às vezes pensando mesmo que era
exagero, que “era deboche”. Você, miudinha neste mundo, se
enxergava tão grande nos olhos da gente! Olha a cara de espanto de
Georgina. Não podia imaginar que um homem sofresse. Pois se você
não sofria, por que motivo ele… Um mundo de imaginações quer
ondular na cabeça tão penteada, e de tão admiráveis cabelos, da
inocente Georgina. Ela prefere dormir ou tocar piano. Ouvidos que
passais e vos detendes, esta música que dava para entristecer a
Noruega, esta música não é triste, porque Georgina não é triste, é
apenas um exercício. Coitado do moço, tanto pensou em Georgina
que fez um poema, depois outro, depois mil. É claro que ela não se
sentiu orgulhosa por isso. Georgina não tem informações sobre essa
dor de joelho que é a poesia no homem. Em resumo, Georgina era o
objeto amado, único e intransferível, e o próprio do objeto amado é
não saber que o é. Por isso a gente sofria muito com ela, e nas
noites de chope concluía que a vida era irremediável, a menos que
algum anjo piedoso nos fornecesse alguns cristais de metilarseniato
de sódio, para liquidar.
Mas de repente, como ia dizendo, sem o menor aviso,
pressentimento, sirene, advertência ou campainha — sem um grito,
sem um ai — a gente passou por Georgina e nem se importou com
Georgina.
(Por acaso, Beatriz vinha passando naquela rua.)
PONTUAÇÃO E POESIA

Quando leio em Mallarmé:

Si tu veux nous nous aimerons


Avec tes lèvres sans le dire
Cette rose ne l’interromps
Qu’à verser un silence pire

tenho a impressão de que esses versos, não somente pela fluidez


das palavras, mas também pela supressão de qualquer elemento de
pontuação, se acham, como o quarto de Manuel Bandeira, “intactos,
suspensos no ar”.
Em Apollinaire, já a ausência de pontuação não me sugere a
flutuação do verso na atmosfera, mas antes uma sensação de
arrastamento na terra, de doloroso manquejar de quem não sabe ou
não quer libertar-se da sua prisão humana:

J’ai cueilli ce brin de bruyère


L’automne est morte souviens-t’en
Nous ne nous verrons plus sur terre
Odeur du temps brin de bruyère
Et souviens-toi que je t’attends

Um e outro efeito não são necessariamente produzidos pela falta


de sinais de pontuação, mas antes salientados por esse artifício, que
confirma em Mallarmé a misteriosa diafaneidade, a libertação de
todo compromisso terrestre, e em Apollinaire a indeterminação entre
o poeta e o mundo. E de um modo geral, poder-se-á dizer que a
pontuação regular, iluminando igualmente todos os ângulos da
superfície poética, impede que se destaque algum de seus acidentes
mais característicos.
UM SINAL

11. Saíram os fariseus e começaram a discutir com Ele, procurando obter d’Ele um
sinal do céu, para O experimentarem. 12. E Ele, dando um profundo suspiro dentro do
seu espírito, disse: Por que pede esta geração um sinal? Em verdade vos digo, que a
esta geração nenhum sinal será dado. 13. E deixando-os, tornou a embarcar para o
outro lado.
Marcos 8

A esse tempo, Jesus já havia realizado coisas portentosas. Menino,


confundira com a sua dialética os doutores no templo. Moço,
multiplicara os pães. Faltou vinho em um casamento, e deu à água
que corre a cor e o gosto do vinho. As ondas aplacavam-se a um
gesto seu: os peixes, que se recusavam a Pedro, enchiam a rede
que Jesus mandara lançar. Uma noite, perante os discípulos
turbados, caminhou lisamente sobre o mar, como nós outros pisamos
o chão. Acalmou os possessos. Fez andar os paralíticos. Aos
leprosos secava as feridas. E os cegos, os mudos, os gagos, os
estropiados ganhavam ao seu contato o uso de um sentido, a posse
de um órgão. Finalmente, e sem que quanto a isso pudesse restar
sombra de dúvida, disse ao cadáver de uma moça: “Anda”, e o
cadáver abriu os olhos, andou.
Pois depois de todos esses prodígios que com o toque dos dedos
ou o abrir dos lábios se operavam à sua ordem, os homens ainda lhe
exigiram um sinal. O sinal de que não era como os outros homens,
que não mentia nem sonegava impostos nem praticava malas-artes
nem era agente provocador. Os homens reclamaram esse sinal a
Jesus.
A resposta de Jesus é, como sempre, desconcertante. Dessa
boca, onde morava a sabedoria, as palavras saíam surpreendentes.
Jesus não se indignou, e sua indignação seria sagrada, como a que
o possuiu no templo, quando viu o comércio de animais e especiarias
sobre as lajes devotas. Não se calou, como poderia ser a forma da
sua amargura diante dos cegos da pior espécie, e mais tarde se
calaria, quando Pilatos entendeu de perguntar-lhe que coisa é a
verdade. Não concordou, propiciando o sinal que atestasse aos
espíritos mais escuros a evidência de sua natureza. Todas essas
respostas seriam impressionantes, e os evangelistas as
consignariam respeitosamente em suas crônicas.
Jesus preferiu fazer, numa palavra, o processo do ceticismo. Até
hoje essa palavra tem a sua oportunidade, porque as gerações
continuam exigindo um sinal. Há tantos sinais entre o céu e a terra,
que elas se perturbam e não veem nada. Ou antes, não há sinal
nenhum, a não ser o que cada homem traz consigo, e é a sua maior
ou menor penetração, a mais ou menos extensa claridade de suas
pupilas, o seu dom de joeirar as imagens do mundo. Os homens
continuam duvidando, como no tempo de Jesus. Por que pedem eles
uma demonstração celeste de verdades em que lhes repugna
acreditar, se não são capazes de acreditar, como não são capazes
de negar? A dúvida rói-se a si mesma. Um deus poderia ser
eletrocutado hoje em Nova York, e ninguém o perceberia. Inclusive o
abaixo assinado.
A COISA SIMPLES

Certos espíritos dificilmente admitem que uma coisa simples possa


ser bela, e menos ainda que uma coisa bela é, necessariamente,
simples, em nada comprometendo a sua simplicidade as operações
complexas que foram necessárias para realizá-la. Ignoram que a
coisa bela é simples por depuração, e não originariamente; que foi
preciso eliminar todo elemento de brilho e sedução formal (coisa
espetacular), como todo resíduo sentimental (coisa comovedora),
para que somente o essencial permanecesse. E diante da evidente
presença do essencial, não o percebendo, até mesmo fugindo a ele,
o preconceituoso procura o acessório, que não interessa e foi
removido. Mais pura é a obra, e mais perplexa a indagação: “Mas é
somente isto? Não há mais nada?”. Havia; mas o gato comeu (e
ninguém viu o gato).
NU ARTÍSTICO

Por que será que o nu dos pintores quase sempre nos repugna? Não
creio que seja devido à simples exibição de corpos despidos numa
parede, quando eles se mostram assim um pouco por toda parte.
Parece antes que o desagrado vem da atitude artificial dos corpos,
que quase nunca é a atitude que eles tomam quando em liberdade.
Os artistas se esmeram em fixar posições e gestos que não
correspondem aos do natural abandono do nu (abandono bem raro,
pois o corpo, mesmo só, é extremamente policiado pela civilização),
e muito menos a essa atitude mais comum do nu, que é o nu em
movimento, o nu rápido, necessário, quase inconsciente, que só uma
câmara fotográfica secreta saberia fixar, mas já então, que pena!,
sem a força individualista da pintura. Resulta daí que os nus pintados
são nus fotográficos, no sentido de artificialismo e rigidez, que os
torna insuportáveis a um olhar sensível à forma e, sobretudo, aos
mistérios do nu. Geralmente, os pintores rodeiam esse mistério; não
o penetram.
MODA LITERÁRIA

A vitrine da livraria ostenta as últimas novidades. O livro tornou-se,


irremediavelmente, objeto de comércio. Como as gravatas e as
malas, ele obedece às flutuações da moda, e não apenas no seu
aspecto material (os livros norte-americanos, geralmente de aspecto
sóbrio e simpático, tiveram de esconder-se sob ignóbeis capas de
cores modernas), mas também na sua essência, gênero,
composição, ideias… Os romances estiveram em moda entre nós há
dez anos. Veio depois uma onda de contos. Seguiu-se uma débil
safra de poesia. Agora, parece que os contos vão voltar, enquanto
perdura a vaga dos estudos brasileiros. Certas preocupações
geográficas e políticas marcam desta ou daquela forma os catálogos
dos editores. Os escritores estão atentos e farejam no ar a moda
que passa. Irá para o norte? Ficará no sul? Voltará a introspecção?
Teremos os inquéritos sociais? Sente-se um cheiro vago de
neotomismo… É preciso captar depressa a inclinação do momento,
e tirar dela um livro, um poema, uma história.
Meu pobre livro inútil, que sempre sonhei escrever e ainda não me
deste a honra de te deixares escrever, por onde andas tu? Livro que
não obedeceria a nenhum interesse do tempo, que desagradaria
simultaneamente a todas as tendências, que não encontraria aplauso
em nenhum fundo de livraria, livro torto, desajeitado e solitário, que
nem sequer irritasse. Os caixeiros pegariam nele sem interesse; os
leitores, sem amor; os críticos o desprezariam. Sobre suas páginas
cairia um silêncio perfeito, cristalizante. Assim ele ficaria intacto,
congelado, para ser lido daqui a 85 anos por um amador não
prevenido. Esse amador de 2027 o descobriria aos berros, sairia
correndo com ele pelas ruas aéreas, louco de entusiasmo, de
emoção… e o poria na moda.
PRODÍGIO

— Seu nome?
— Arita Bauer Gomes e Silva.
— Idade?
— Três anos.
— Profissão?
— Pianista prodígio.
Este diálogo travou-se em Pelotas, entre o Anjo Protetor das
Celebridades Precoces e a pequenina guiomar-novais do teclado
gaúcho. O Anjo tomou uns apontamentos e prometeu estar sempre
alerta para que a artista não trocasse os dedos na hora de executar
Chopin nem lambuzasse o teclado. Aos três anos, as celebridades já
exigem controle.
Aritinha saiu e foi tomar café com leite. O café estava quente,
Aritinha quebrou a xícara, molhou-se, quase queimou a pele cor-de-
rosa. O pai telefonou para o Anjo, zangado: “O senhor não está
protegendo minha filha!”. Resposta do Anjo: “Perdão. Minha
assistência às Celebridades Precoces limita-se ao domínio da Arte.
Nada tenho a ver com as atividades infantis de sua filha”. Nesse
meio-tempo, Aritinha consolou-se lendo o Ensaio sobre a música
brasileira, de Mário de Andrade, edição da Casa Chiarato. À página
61 encontrou um coco de ganzá do Rio Grande do Norte, “Onde vais,
Helena?”, que lhe interessou sobremodo pelo desenho melódico.
Tomou nota da peça para estudá-la mais tarde ao piano e imprimir
uma orientação nacionalista à sua formação musical.
— Gente, quede Aritinha?
— Aritinha foi ao Conservatório?
— Aritinha está se correspondendo com Darius Milhaud?
Não; Aritinha está brincando com boneca e trem de ferro, dois
presentes do último Natal. Por sinal que o trenzinho, já muito
esbodegado, não tem locomotiva nem apita nas curvas. Os pais
contemplam-na, maravilhados: “Três anos apenas! E a maior pianista
de Pelotas! Quando fizer sete, o que será?”.
Os meninos de d. Bromeliácea, do jardim da casa vizinha, estão
dizendo a Aritinha que ela pode saber tudo, mas não sabe tirar o
“Vem cá Bitu” no berimbau. E tiram, para moer. Porém Aritinha olha-
os com infinito desprezo na ponta do beicinho inferior. Não diz nada,
mas parece dizer: “Eu, uma Paderewski, tocar nisso? Vê lá!”. Não,
Aritinha conservará a sua personalidade.
E o dia todo, à sombra do Anjo ou sem Anjo nenhum, Arita Bauer,
de quarenta centímetros, ora é o gênio incomensurável, ora é a
criança levada do jardim da infância. O pêndulo de sua existência
oscila entre os pesados deveres de pianista prodígio e as deliciosas
evasões de garota. Organiza programas de recitais que vai realizar
em Porto Alegre e Buenos Aires, e diverte-se com uma chave ou um
mosquito morto sobre o ladrilho. Beethoven e o Bicho Tutu são-lhe
familiares. Os jornais exaltam-na, e a ama de vez em quando muda-
lhe a roupinha de baixo, que se molhou.
Leitor, dirás que minto e é possível. Mas a existência dessa
menininha portento, cuja fama nos veio do Rio Grande do Sul, deve
ser assim um misto de ações adultas e de práticas pueris — afinal,
uma existência descontínua, desequilibrada e difícil, geradora de
traumatismos nervosos. E a gente, que quer bem a Aritinha mesmo
sem conhecê-la, fica pedindo a Deus que a faça crescer depressa
para que ela deixe de ser prodígio e se case com um rapaz sério
chamado Joaquim.
ENQUANTO DESCÍAMOS O RIO

E quando as águas pareciam calmas, um peixe voou que se escondia


em camadas mais fundas que o mais fundo suspiro. Logo se
formaram círculos, elipses, triângulos e mais desenhos alheios à vã
geometria. Entre esses ressaltava a corola de uma flor, que era
como uma cobra rastejando na corrente, mordendo apenas, com o
seu breve contato, a planta úmida de nossos pés e assumindo a
cada instante uma nova complexidade.
As coisas passaram a existir fora e independentemente de nós,
sucedendo-se em séries de duração insegura, indefinida e
incontrolável, os reflexos mais curtos do que as sombras, estas
menos densas do que os raios luminosos, e sobretudo, as pedras,
oh! as pedras! maravilhosamente duras e polidas, batendo em
nossos corações.
As águas de novo se apaziguaram, Deus sabe com que pérfida
intenção: até onde a vista alcançava, um amarelo peremptório
recolhia os matizes da várzea, da corrente e do ar, e era a soma
neutra das cores; sempre o amarelo; e por que mesmo dentro de
nossos corpos esse tom insípido ia ganhando espaços confinados,
impondo-nos uma certa cumplicidade com a paisagem?
Velozes corriam os barcos, os homens afogavam-se em silêncio,
os altares desabavam miríficos; e nem uma crispação no rosto do
pescador, que era liso e tranquilo como o rosto do mar, o mar
severo, o mar inenarrável e profícuo.
As vozes humanas mal me chegavam aos ouvidos, preocupados
tão somente com identificar o ruído que faz uma folha despregando-
se da haste; a própria queda, o instante entre a haste e a água, não
me interessava, mas aquele desgarrar dramático provocava em mim
uma hiperacuidade de botânico, que ouvia a folha já quase sem
enxergá-la.
Nisso entraram as mulheres, todas as mulheres, modificando
completamente o plano em que se desenvolviam, com a nossa
existência, os acontecimentos que lhe são próprios. Pareciam
espantadas de sua própria nudez; se bem que muitas estivessem
vestidas e algumas, mesmo, ostentassem colares de contas grossas
como abóboras, que lhes obscureciam a castidade e as faziam
vergar como se fossem pecados.
O rio correndo sempre, os barqueiros remando sempre, mas já
agora nenhuma participação com o divino, senão apenas protestos e
murmúrios que retificavam, aqui uma árvore, ali uma locução
prepositiva, mais além os amores infelizes de Romeu e Julieta. No
meio de tudo, indecisos como estrelas, nós luzíamos, luzíamos… até
que o céu se apagou e os acontecimentos tornaram-se péssimos.
A VOZ PELO TELEFONE

Voz amiga que me acostumei a ouvir na noite, e que me falava do


amor ainda possível na Terra, das viagens para o desconhecido, das
mãos unidas, dos olhos mergulhados nos olhos, das fugas, das
solidões profundas.
Eu ouvia sempre a voz doce, velada, calma (que às vezes se
entrecortava de um soluço e rasgava uma pausa dolorosa na
conversa) e pensava que a vida não é afinal uma coisa absurda,
porque dentro dela cabem palavras brandas, que acalentam as
almas. E a voz continuava, murmúrio amigo, na longa noite mineira.
(Longe, homens matavam-se. Perto, outros homens atiravam-se
palavras feias. O rádio funcionava. A viela funcionava. A voz perdia-
se dentro da confusão, e era consoladora.)
Tantas ruas separando a nossa conversa. Os bondes passando no
meio, os corpos se entrecruzando, os homens tirando o chapéu. Os
guardas. Os funcionários de todas as repartições de todas as
cidades. Os detetives. Os curiosos anônimos. Todos os homens que
escutam atrás das portas, que veem através das portas. E a voz
constante, alegre e tranquila, zombando de tudo, saltando de uma
casa para outra e mantendo comigo o infinito, noturno diálogo.
Depois o silêncio.
Silêncio dentro e fora de nós, dissolvendo o mundo e suas
criaturas sem sentido. Eu escutava esse silêncio casto. E dentro dele
a voz ainda existia, mais tênue do que um sopro, lembrança de voz,
desenho, reflexo, sombra de voz, contando segredos. Que importa
que os outros não ouçam? A voz é tênue e os homens são surdos.
Eu sozinho escutava, e tinha medo de que ela emigrasse para
Pasárgada, onde os ouvidos são sutilíssimos e as músicas mais
especiosas andam no ar.
Mas nós estamos em Minas Gerais, Brasil, país de caminhos
fechados, país irremediável…
VINTE LIVROS NA ILHA

Aqui e ali, continua a formular-se a velha pergunta: se fosse obrigado


a passar seis meses numa ilha deserta, com direito a levar vinte
livros, que obras escolheria?
A indagação é capciosa e convida à cisma, quando a resposta
exige cálculo e meditação. Entre o sonho da aventura e o exame das
preferências que podem ou devem ser confessadas, há espaço, não
para vinte livros, mas para toda uma cultura de homem, com as suas
inclinações, as suas idiossincrasias, e principalmente as suas
deficiências. Como o problema da cultura é também um problema de
ordem pessoal, que não se resolve senão no sentido da nossa
formação humana, fazer tal pergunta a uma pessoa é quase que
indagar da qualidade da sua inteligência e da profundidade de sua
alma. Os seus vinte livros preferidos serão outros tantos retratos ou
feições do seu espírito, embora nenhum contato aparente os
identifique, e muito embora mesmo esses livros possam exprimir
rumos opostos ao seu rumo interior. A identificação se fará do
mesmo modo, se o autor do inquérito for bastante hábil ou talvez
bastante perverso para encontrar nos livros citados precisamente
aquilo que o leitor deles não é, mas desejaria ser. Retrato negativo,
mas sempre retrato.
No fundo da pergunta, porém, é fácil descobrir logo outra
preocupação além dessa declarada, de “apurar as preferências
populares em matéria de gêneros e autores”. E vem a ser o gosto
romântico que todos nós guardamos pela viagem, cada vez menos
possível, às terras misteriosas que a civilização não desencantou. No
mundo moderno, esse nomadismo elementar do homem encontra
satisfação nas inúmeras possibilidades que lhe oferecem trens,
aviões e vapores em contínuo movimento a serviço do comércio e do
tédio capitalista. Mas as viagens eram confortáveis e previstas
escrupulosamente pelas companhias de transporte, que fixavam a
hora de cada porto e, com ela, a emoção de cada desembarque. O
elemento surpresa era omitido, por deliberação, das paisagens que
os nossos olhos esperavam devassar. Guias cautelosos e bem
informados conduziam o vagabundo pelas ruas em que ele amaria
perder-se; ministravam-lhe noções exatas sobre a partida dos
expressos, a significação dos monumentos; tudo lhe davam mas
igualmente tudo lhe tiravam. Esse homem infinitamente desgraçado
que ousou ir à Europa voltou de lá com os olhos fatigados e o
espírito vazio. Restava, no entanto, um recurso: viajar só. Ou
naufragar, como Robinson, como a Suzana de Giraudoux, e ir anotar
sensações novas de viagem numa ilha distante, onde houvesse
coqueiros, macacos, passos na areia…
Por que será que o homem civilizado sonha tanto com a ilha
deserta? Pelo desejo romântico da aventura, já se disse. Pela aflitiva
necessidade de solidão, convém acrescentar. As grandes cidades
atormentam-no de tal sorte com os ruídos incoerentes e a
complexidade de sua vida de relação, que ele se volta para a ilha
anônima, como para um deserto habitável. Seu desejo de evasão
fixa-se, de preferência, nessa forma nítida e recortada no mar: um
pouco de terra selvagem protegida pelas águas. A cidade
promíscua, com os seus contatos intoleráveis, fica bem distante
dessa ilha em que, teoricamente, se gozam os especiosos prazeres
da solidão. Mas como não há, praticamente, ilhas desertas onde
aportar e viver, cada um de nós constrói dentro de si mesmo a sua
ilha pessoal e vai vivendo como pode, no tumulto da cidade, que, na
aparente solidariedade de suas casas e ruas, esconde a sua
estranha composição de milhares de almas opostas e inconciliáveis,
vegetando orgulhosamente em ilhas inacessíveis. Nesse sentido, Ivan
Goll pode dizer com justeza que Paris é um deserto.
Reprimida a aventura, por todos os lados, o homem consola-se
imaginando o que poderia acontecer-lhe se… E é então que surge a
ideia de escolher, entre os livros de sua estante, os que o
acompanhariam nessa excursão a um mundo diferente do seu.
Deformado pela cultura, busca atenuar, desde já, os prováveis
incômodos da adesão ao estado natural, corrigindo-os com o que
constitui a própria substância intelectual das cidades: um monte de
livros. Sua solidão será povoada de formas humanas, de
preocupações e interesses humanos, transportados do plano
material para um outro em que eles não são menos reais. Assim,
fugindo de seus semelhantes, esse homem voltará a eles,
ingenuamente, pelo intermédio de vinte volumes escolhidos com dedo
certo. E não será essa uma forma extrema de egotismo: suportar o
convívio do animal humano somente através das páginas
insensibilizadoras do livro, de modo que o nosso comércio com ele
fique isento do suor de suas mãos e do cheiro de sua pele, como se
todo o diálogo se fizesse através de uma parede? Feição antipática
do homem moderno, no seu desejo de fugir da vida social, sem
perceber que ele a carrega com os próprios hábitos do seu corpo e
as necessidades do seu espírito.
Mas que livros, afinal, escolheríamos para uma estação de seis
meses na ilha deserta?
André Gide conta que, quando estudante de retórica, um de seus
jogos prediletos era precisamente esse de fazer, cada trimestre, a
lista dos vinte livros. Por sinal que a pergunta era mais grave,
marcando não seis meses, mas o restante da vida, para o leitor
exilado. Diante dessa perspectiva, a escolha tornava-se difícil, como
se se tratasse de um ato decisivo para o destino do ser. Era quase
uma sentença de tribunal… “Vinte livros! Achávamos que era pouco
para povoar um deserto e amenizar toda uma vida; por isso,
inscrevíamos, em lugar de títulos de obras, nomes de autores;
indicávamos, por exemplo, Goethe, simplesmente, o que nos
dispensava de escolher entre Fausto, Wilhelm Meister e as poesias,
depois, recorríamos a astúcias: indicávamos Amyot, o que nos fazia
ganhar, com Plutarco, como brinde, o delicioso Daphnis et Chloé;
indicávamos Leconte de Lisle, cujas traduções nos pareciam então
de uma beleza insuperável… Nossa biblioteca de vinte autores
oferecia, assim, trezentos a quatrocentos volumes.”
A dificuldade oposta poderá, também, intervir na escolha das
obras. Vinte livros parecerão muito à própria sensibilidade gidiana,
que se compraz com os raros e estritos alimentos tirados de si
mesmo, e se mostra capaz de colher, na trama de um só livro,
material para toda sorte de variações sobre os seus temas
constantes. Por que vinte livros, se um apenas de Dostoiévski nos
permite penetrar em outras almas, aclarar-lhes os segredos e
confrontá-los com os nossos? Um capítulo de À la Recherche du
temps perdu [Em busca do tempo perdido], sobre o sono de
Albertina, por exemplo, concentra para os leitores avisados toda a
melodia proustiana, esparsa em dezesseis desesperadores volumes,
que, se levados para a ilha hipotética, apenas deixariam quatro
lugares vagos para conter os mundos de Shakespeare, Goethe,
Dante, Camões, Cervantes, sem nenhum espaço para Rabelais,
Pascal, Stendhal, Tolstói, o nosso Machado de Assis, os gregos
veneráveis, os modernos Joyce, Faulkner e Kafka, Valéry e o próprio
Gide. E onde ficariam esses volumes caros à nossa inteligência e ao
nosso coração, que não consideramos parte de nossa livraria, com
uma ficha e um número, porque são companheiros da hora íntima,
depositários da nossa confidência: Les Confessions [Confissões], de
Rousseau, Les Fleurs du mal [As flores do mal], de Baudelaire, o
Adolphe, de Benjamin Constant, o Journal [Diário], de Jules Renard
— quatro títulos ao acaso, reunidos ao sabor de uma preferência
individual, nutrida do velho leite francês, e respeitadas todas as
outras preferências? Isso demonstra apenas que vinte livros são um
número demasiado grande e demasiado pequeno, ao mesmo tempo.
Eu proporia, diante do caso concreto, o processo de fechar os
olhos e estender a mão. Os vinte primeiros livros que fossem
tocados seriam os escolhidos. E a razão é que ninguém escolhe
nunca as vinte melhores obras da literatura universal. Escolhe,
simplesmente, vinte obras da sua estante. A estante já é uma
seleção. O homem inteiro está ali, naquelas prateleiras que dizem
dos seus bons ou maus hábitos intelectuais. Por isso não me admirei
ao ler, num inquérito dessa natureza, a resposta de um acadêmico
de direito, que juntava o Werther aos Apólogos, de Coelho Neto, e
as Memórias de um médico, atribuindo a autoria (aliás honrosa)
destas últimas a Conan Doyle. Há paladares enciclopédicos, e o
homem é, de si mesmo, um tecido de contradições.
NATAL USA, 1931

Memento do poeta: fazer todos os anos um poema sobre o Natal.


Receita: esperar a semana pré-Natal. Viajar as ruas, escrutar
longamente, policialmente as lojas de brinquedos. Indagar das
novidades em brinquedos mecânicos, procurar os sentimentais:
Carlito e o seu arquidoloroso estado de inocência. Fazer a estatística
dos pais felizes e das mães enternecidas. Oferecer-se para carregar
os embrulhos maiores; não esquecer as casas de frutas, que se
derramam pelas calçadas; verde-claro das uvas dominado pelas
maçãs imensas, o mole consentimento das peras: vergel urbano, à
altura da barra de um vestido.
Notar o rumor em que se fundem as músicas e se esconde um
como balbuciante cântico de Natal. Olhar bem nos olhos os meninos
pobres. Estudar o reflexo da luz das vitrines, das coisas
maravilhosas das vitrines nas pupilas cândidas. Desejos do Natal. Eu
queria uma bola vermelha, amarela, verde. Eu queria um banjo. Eu
queria uma coisa gostosa. Eu queria querer.
Possível alusão a Papai Noel, se bem que o indivíduo se haja
desprestigiado terrivelmente em literatura. O bom ladrão que, não
podendo insinuar-se por outra abertura mais cômoda, introduz-se
capciosamente pelo buraco da fechadura. Carta das crianças
brasileiras a Papai Noel, com muitos erros de português, os únicos
erros perdoáveis, além dos da carne. Papai Noel das moças
sapecas; o namorado dançando dentro do sapato. Sugestão
freudiana do sapato de moça, que a moça usou, machucou, deixou.
A paisagem, vista do sapato. Natal turvo dos homens curvados de
desejos. Eu queria era teu corpo, a alma fica para depois.
Natal frio, luzes geladas, mãos cruzadas diante do ícone,
Dostoiévski. Vagos natais alemães, com mulheres muito redondas
despindo-se atrás dos chopes. O indispensável Natal inglês. Cotejos
dos diferentes tipos europeus de Natal, especificação de seus
méritos; propor a padronização.
Mas nenhum poema superior ao telegrama de Nova York, cujo
autor permanecerá anônimo pelos séculos; telegrama que o poeta
não compôs, não saberia compor:
Nova York, 26 (H.) — O número de acidentes mortais ocorridos nos Estados Unidos
durante as festas do Natal foi particularmente elevado. Houve duzentas mortes, das
quais 130 em consequência de desastres de automóvel.
Ocorreram dois encontros entre automóveis e trens nas passagens de nível da linha
Batavia-Nova York, nos quais pereceram sete pessoas. Em um encontro dessa
natureza em Charlotte, na Carolina, houve nove vítimas.
Em Sacramento, na Califórnia, explodiu a locomotiva de um trem expresso,
matando os dois maquinistas. Vinte pessoas morreram no incêndio de um hotel de
Springfield. O consumo de licores adulterados ocasionou no estado de Massachusetts
nove mortes.
ENTERRO NA RUA POBRE

Morreu a senhora do construtor, na casa ali em frente, de duas


janelas e alpendre modesto, onde sobem trepadeiras. Morreu ontem.
E hoje pela manhã, antes de se completarem 24 horas, foi o enterro.
Os autos vieram chegando um a um, despejando homens de preto,
alguns sérios, outros despreocupados ou aborrecidos, e entre eles
um que ria contando ao companheiro uma história picante. Crianças
enchiam a rua. Nas casas próximas, mulheres se debruçavam à
janela, para ver melhor. Às vezes o roxo de uma coroa invadia o
alpendre, e era como uma ideia fugitiva de morte no ruído de festa
em que se ultimavam os preparativos. Fora os autos manobravam
tomando posição, para alegria dos garotos, que se enterneciam com
a simples proximidade dos pneumáticos. Dentro, passos cortavam a
casa em todas as direções, vozes roucas davam ordens, ninguém se
entendia, e o calor sufocava tudo. Na sala de visitas, de onde haviam
fugido o sofá e as cadeiras, estava o corpo, rodeado pelos íntimos e
mesmos aí, ao clarão vacilante das velas de cera, havia um rumor
abafado de festa. Pelos cantos, abraços cautelosos exprimiam pesar
e derramavam conforto, entre cochichos de “Meus sinceros
pêsames”, “A que horas sai o enterro?”, “Onde está o viúvo?”, “O
carro é de primeira classe?”, “Os cunhados parece que não sentiram
muito” etc. Mas a hora avançava, e quando vieram retirar o cadáver,
um choro imenso, cortado de soluços, desabou sobre a muralha da
eça, e mãos nuas amarrotaram lenços, mulheres se lamentaram,
tudo pareceu rolar um instante numa enorme desordem, enquanto as
crianças, espantadas mas divertidas, saboreavam o espetáculo. A
um canto, um senhor chupado e verde esfregou a mão na gola do
paletó: não era uma lágrima, era um pingo de cera.
O viúvo surgiu, amparado por dois amigos, um gordo, de bigodes,
ar peninsular, e o outro já velho, de barba suja, que dizia a cada
momento: “Coragem, Pascoal…”. Abriram caminho para que ele
avançasse; mas não avançou. Parou indeciso na entrada da sala,
cabelo revolto, olhos esgazeados, barba de três dias, roupa de
casimira já usada, sem colarinho nem gravata. Dizia-se que havia dez
noites não pregava olho. Alguém chegou-se para dar-lhe pêsames e
observá-lo melhor. O viúvo não correspondeu ao abraço. Tinha a
boca aberta, numa declaração de estupidez. Fechado o caixão, entre
gritos, lágrimas e sinais impacientes (os automóveis cobravam tarifas
exorbitantes), uma rapariga loura tombou sobre o vizinho, num
desmaio. Correram para os fundos, à procura de um vidro de sais
que não foi encontrado, apesar de estar à vista de todos.
Depositaram o frágil corpo na sala de jantar. O caixão já transpunha
o alpendre. Este era estreito — um corredor —, e foi preciso fazer
prodígios para que o féretro não se despencasse sobre o ladrilho.
“Estas trepadeiras não terão espinhos?”, indagou um senhor
cauteloso e calvo. Os autos começaram a mover-se; eram treze. Um
homem que os contou a dedo despediu o seu carro, pagando o
motorista, e aproveitou a condução de um amigo; esse homem era o
da anedota pornográfica. O viúvo foi transportado a uma limusine, no
mesmo desleixo de antes e com o mesmo ar de burrice desolada.
Antes de subir olhou longamente o coche, e desatou os lábios numa
exclamação: “Pobre Mariquinhas! Trinta e cinco anos. Era tão boa,
tão econômica!”… O cocheiro ergueu bem alto o chicote, e fustigou a
parelha. O préstito começou a rolar vagaroso, num ritmo bocejante,
pela rua mal calçada. A manhã fina, sem rugas, era de um azul
indiferente. Cinco minutos depois, o silêncio da rua abraçava em arco
o silêncio do céu.
OS FOTÓGRAFOS VEGETAIS

Gosto desses fotógrafos de jardim público, que semanas e meses e


anos a fio esperam um freguês que não vem. São discretos e sérios.
Têm a correção dos funcionários públicos com mais de vinte anos de
serviço, e a serenidade natural que dá o contato com as árvores, as
águas e os bichos modestos. Estão há tanto tempo de pé, junto aos
canteiros de grama, que podem ser classificados como elementos da
paisagem. E se não se retirassem à tardinha, para os misteres do
sono e do sonho, é possível que a hera acabasse por subir-lhes pelo
corpo e as trepadeiras se lhes enroscassem confiadamente nas
pernas, como em estacas seguras.
Acaso esses fotógrafos terão fotografado algum dia um
frequentador do jardim? Seria temeridade afirmá-lo. A fisionomia que
mostram é estática e intemporal. O trabalho vão de focalizar um
indivíduo, ocultar a cabeça sob o pano preto e premer um botão viria
talvez perturbar a dignidade dessa atitude. Seria a destruição de
uma harmonia imemorial, a quebra de um ritmo clássico. Se tirassem
instantâneos, já não seriam os imóveis fotógrafos do parque, e a
atividade dele se refletiria nos seus olhos como uma ação feia.
Gosto desses fotógrafos, silenciosos diante da alameda em que a
areia estala sob o passo lépido das crianças. Atrás deles está o
grande lago, enrugado apenas pela família dos patos, estão o
escorregador e as gangorras, as aves de plumagem violenta, os
macacos sábios e as onças entediadas na gaiola. Atrás está todo o
jardim público, que eles anunciam com as suas figuras simbólicas, as
suas máquinas inúteis e o seu balde de água, arcanjos decaídos do
paraíso.
Às vezes me aproximo, não para tirar retrato (o que seria quebra
de tradição e incomensurável falta de respeito), mas tomado de
tímida simpatia por esses seres de natureza quase vegetal. E vejo
os postais emoldurados em cada canto da máquina, representando o
sargento instrutor da Polícia Militar, a copeira de pensão em dia de
folga, a mocinha de subúrbio que se esqueceu de fazer compras e
foi respirar a poesia da vida, o antigo vereador do norte de Minas em
trânsito pela capital… Quem fixou esses tipos? Ninguém viu a hora
em que eles se incorporaram à coleção de imagens do meu
fotógrafo. Este não fez um gesto, a não ser o gesto grave de
acender um cigarro e seguir, com os olhos, a linha feminina da
fumaça. Tudo no jardim é silêncio e recolhimento, nem um tremor na
tarde, e no entanto esses seres transeuntes insinuaram-se
misteriosamente pela objetiva adentro e foram estampar-se na
superfície branca de um cartão. Como? Com auxílio de quem?
Autorreprodução inexplicável, que há de sempre constituir uma das
perplexidades de minha vida.
NÚMERO 10 MIL

Às vezes tenho vontade de discar o número 10 mil. O número 10 mil,


como a hora H, existe, mas ninguém o conhece. Não consta da lista
telefônica; os tratados de matemática não o registram; os mais
perfeitos contabilistas o ignoram. Entretanto, o número 10 mil é
aquele que, uma vez discado, oferece a você a voz mais harmoniosa
que já se ouviu desde a aurora do mundo; voz que você pressentia
devesse andar por aí perdida numa garganta, como certas vezes
pressentimos que um anjo passou no ar: em sigilo, sem que os
melhores de nós chegassem a vislumbrar-lhe a ponta dos vestidos.
E então começará para você o romance menos verossímil de
todos. Com a voz, que veio pelo fio, vieram todos os pensamentos
anteriores e superiores ao pensamento de sua vidazinha
intransferível. A castidade, com os seus véus. A bondade, e o seu
manto de estrelas. As flores silvestres, que toucam os cabelos da
simplicidade. A caridade! de mãos muito brancas e muito abertas. O
perdão das ofensas. O gosto de ficar rezando ou lembrando-se das
rezas decoradas na infância, quando o incenso e a ladainha lenta das
novenas faziam a igreja próxima de sua casa desprender-se da
âncora e subir e navegar por mares de bruma. E a humildade. E a
resignação. E o amor, que resume tudo.
E ela virá atrás desses sentimentos, esplêndida como uma rainha,
mas sem orgulho nenhum. Pousará a mão em seus cabelos. Dirá:
“Por que custaste tanto a chamar-me, Teodureto! Eu estava no teu
primeiro sonho, à espreita de um sinal do teu dedo ainda incerto.
Docilmente acompanhei o teu itinerário. Conheci as tuas namoradas.
Debrucei-me à beira de tuas orgias. Escondi-me entre os teus livros.
Uma noite descobri em ti, num segundo, a vontade de matar. Muitas
vezes, ao contrário, pensaste em morrer; naquele quarto de hotel,
em Pasárgada, fui eu que tirei as balas do teu revólver. Nos teus
instantes de pureza, quase que a minha imagem se desenhava aos
teus olhos; mas o que a tua imaginação construía era um simples
anjo da guarda, com duas asas e iluminado por fora. Nunca
idealizaste a minha forma pura e exata, nem a minha complexidade
nem todas as coisas boas que não estão em mim, e que contudo
participam da minha essência, como a doçura da sombra das
árvores, o gorgolejo das águas que escorrem mato afora e não
banham corpos humanos, o manso compasso das horas na casa
fechada, o gosto do pão, o da poesia que não se lê nos jornais, as
dívidas pagas, as paixões aplacadas, as indiferenças obtidas, as
alegrias telegráficas, os encontros inesperados, as felicidades sem
compromisso, as abnegações em consequência, os remédios
caseiros que curam dor de dente e dor de barriga, os cheques
rasgados para evitar a tentação de recebê-los, as conformidades, os
aspargos, as vindimas… Vem, Teodureto!”.
Tudo isso está do outro lado do fio, nesse número impossível que
é preciso saber discar: 10 mil.
A RUA ASSOMBRADA

É meia-noite, e no absoluto silêncio passa o cavaleiro-fantasma pela


rua velha de Nossa Senhora da Conceição.
Ouço as ferraduras martelando, metódicas, as pedras de ferro,
compondo a música elementar do burro em movimento, o burro que
carrega o homem horrível, sem nariz, sem olhos, sem boca, e
entretanto fazendo uma notável careta de riso perverso.
O ruído era leve com o princípio da rua, nítido e igual em frente a
minha casa, mas como se perde e volta ao silêncio na rua que
desce, nas pedras cada vez mais longe, essas pedras que apenas
esperam o aviso dos relógios para ressoar sob os passos do burro-
fantasma.
O cavaleiro não tem pressa.
Há muitos anos, nesta mesma hora, passa pela rua velha de
Nossa Senhora da Conceição, com o mesmo sorriso pirogravado no
rosto incrível, e as mãos muito extensas segurando a rédea do
animal, que também não tem pressa.
Amanhã eles voltam.
E depois de amanhã também. E depois, e depois de depois. A
menos que os últimos rapazes do mundo se lembrem de fazer uma
serenata — mas com esse frio! De cada lado da rua, as casas
contemplam imóveis o fantasma pontual, que nunca se lembrou de
descer do animal para bater a uma porta e, quem sabe?, pedir um
fósforo, por obséquio, ou fazer uma aparição cinemática no comprido
corredor onde as crianças depositam os seus sonhos mais noturnos.
CANTO DE NATAL NO BONDE

É sempre no fim do ano, quando as almas, os corações e os pés


estão cansados, que nós colocamos em ti o pensamento e,
aproximando-nos do ingênuo presepe, fazemos vagamente,
canhestramente, o sinal da cruz, que é o bom-dia do céu.
Durante o ano todos nós pecamos e traficamos, ganhamos e
perdemos dinheiro, brigamos e amamos, tivemos muitos filhos e
realizamos muitas viagens, sem que nenhum de nós, ao menos por
esporte, se lembrasse de abrir a porta dos anjos para conversar
contigo uma conversa carinhosa.
E as namoradas que enganamos, os caminhos maus que
caminhamos, os risos, as farras, os combates, os sentimentos
complexos, os recalques sexuais, os filmes de Greta Garbo, as
melancolias, as cóleras, os ardis, os estudos de mil e uma ciências,
a vulgaridade, o tram-tram cotidiano e irremediável, encheram de tal
modo nossa vida, que nenhum de nós, ainda o mais puro, ou antes, o
menos corrupto, acaso advertido de tua presença ou distinguido por
teu apelo, nenhum trocaria o prazer ou a dor do momento pela
honesta alegria de teu comércio.
Mas agora chegamos a essa zona do ano em que, parece, as
grandes chuvas penetram e amolecem o coração do homem,
lavando-o e fazendo germinar nele toda sorte de finas culturas e
brandas vegetações. Já não é possível ser-se nem muito ruim nem
muito cínico. A bondade está presente um pouco em toda parte, e
sua irmã a humildade também. Vamos pensar em Jesus? Pronto:
agora nós todos estamos pensando em Jesus; não se meta, seu
diabo.
Jesus que desconhecemos em janeiro e procuramos em
dezembro.
Homem alto, magro, de barbas. Rosto esquisito entre os nossos
rostos romanos, adornados, no máximo, por um pequeno bigode
cinematográfico. Jesus tão fora do nosso tempo e — por que não?
— tão fora de nós mesmos. Jesus que não compreendemos, Jesus
que por isso mesmo buscamos.
É preciso ir mais longe e tentar compreendê-lo na palha, sob a
estrela, entre o boi e o burro. Os míopes não enxergarão a estrela,
os distraídos procurarão no jornal a data do nascimento, os peritos
estimarão o valor do burro e do boi, mas todos acabarão chegando e
se prosternando ante o lugar onde nasceu um deus.
Aqui estamos, menino, com a nossa oferenda.
É certo que nenhum de nós nasceu rei ou príncipe, mesmo de um
reino improvável, e os nossos presentes são como nós somos; e nós
somos como o boi e o burro, que pastam sem compreender, e
continuam pastando. Médicos, bacharéis, telegrafistas, escrivães,
majores, datilógrafas, bombeiros, catedráticos, farmacêuticos, ex-
deputados, motorneiros, as nossas dádivas compósitas traem,
todas, a nossa miséria interior, para a qual não há disfarce de roupa
ou de estilo. E a nossa alma é como uma Casa de Dois Mil-Réis,
onde os próprios enternecimentos se classificam por essa tarifa
modestíssima.
Vimos trocar esses dons pelos de tua espera sem esperança, o
nosso amor envinagrado, o nosso tédio, a nossa bagunça.
Vimos trocar esses dons pelos de tua misericórdia. Queremos o
que não possuímos e o que não queremos. Queremos rever-nos em
tua fotografia, como se o retrato de um deus fosse por um minuto o
nosso retrato humano. Dá-nos, senão a fé, pelo menos o
esquecimento de nossa incredulidade. Queremos voltar ao primitivo e
ao elementar, lá onde os grandes sonos estrelados de sonhos
balançam entre cantigas negras, rezas e assombrações brasileiras.
Queremos acreditar menos em ti, que independes de nossa crença,
do que em nós mesmos, navios sem âncora. Queremos nascer
contigo, nesta noite fabulosa e romântica, sob o hálito morno do boi
e a assistência dócil do burro.
Por isso te chamamos: Jesus, com a possível comoção na voz.
Não o Jesus que já lemos, o dos evangelistas e o dos
romancistas. Jesus denso, profundo e taumatúrgico. Jesus
inquietante ou literário. Jesus de Renan e de Emil Ludwig. De Cecil
B. DeMille. A literatura e o cinema trabalhando o perfil de um
Messias, e as lentes da lenda desordenando-lhe os contornos.
Mas Jesus, simplesmente Jesus, presença misteriosa, diáfana,
imperceptível e pressentida. Jesus mais adivinhado que realizado.
Jesus sem desenho e sem sombra.
O nosso pensamento, Jesus, não alcança mais que a suspeita de
um deus. E se te descobríssemos todo, seria para nós um pasmo
eterno.
Jesus, recebe a nossa prece no bonde, perdoa-nos e alivia-nos de
tanta carga, amém.
O COTOVELO DÓI

Ai, ai, ai, meu Deus.


Tenha pena de mim.
ARACY DE ALMEIDA

Ias triste e lúcido.


MANUEL BANDEIRA

A impossibilidade de participar de todas as combinações em


desenvolvimento a qualquer instante numa grande cidade tem sido
uma das dores de minha vida. Sofro como se sentisse em mim,
como se houvesse em mim uma capacidade desmesurada de agir.
Entretanto, na parte de ação que a vida me reserva, muitas vezes
me abstenho e outras me comprometo.

A ideia de que diariamente, a cada hora, a cada minuto e em cada


lugar se realizam milhares de ações que me teriam profundamente
interessado, de que eu deveria certamente tomar conhecimento e
que entretanto jamais me serão comunicadas — basta para tirar o
sabor a todas as perspectivas de ação que encontro na minha frente.
O pouco que eu pudesse obter não compensaria jamais esse infinito
perdido. Nem me consola o pensamento de que, entrando na posse
imediata e simultânea de tantos acontecimentos, eu não pudesse
sequer registrá-los, quanto mais dirigi-los à minha maneira ou mesmo
tomar de cada um o aspecto singular, o tom e o desenho próprios,
uma porção mínima que fosse de sua peculiar substância.

Uma criatura que era tudo na nossa vida (embora não o


suspeitássemos, mas como a ruptura se encarregou de demonstrar),
fazer dela, em momentos, com a urgência que exigem as crises do
coração, um ser indiferente e neutro, eis um dos problemas que a
vida costuma nos colocar de maneira imperativa, com a aprovação
bonacheirona dos médicos. “Não dê mais importância a essa
mulher”, aconselham-me por cima do ombro. Como se ela não
houvesse adquirido, por isso mesmo que me deixou, uma importância
enorme no universo, e como se fosse fácil realizar a operação de
aniquilamento de um ser que já não me pertence nem é mais dócil
aos meus manejos. Ela reconquistou a sua independência de
movimentos — e impomos sanções à prisioneira evadida, que se
diverte com a nossa ferocidade.

Fugir dos neurologistas, que receitam injeções intramusculares


para os mais perigosos conflitos morais e fazem acompanhar essa
receita de conselhos otimistas. As injeções aplicam-se, mas quanto
aos conselhos, invade-me uma tentação forte de fazer exatamente o
contrário do que eles recomendam. Donde uma súbita e enganadora
melhora, tirada do prazer de contrariar o médico e agir por meios
próprios, logo agravada pela reiteração dos sintomas que me haviam
levado ao consultório.

Fugir dos amigos, para poupar-lhes a história pormenorizada de


uma crise que não poderão ouvir com interesse continuado porque
difere da que no momento experimentam, ou porque não
experimentando nenhuma crise não se sentem inclinados a
compreender a nossa. E principalmente para não criar o hábito de
contar cada dia um capítulo novo, o que acaba por forçar a criação
de, cada dia, um novo capítulo. A crise tira daí um prolongamento
incalculável.

Se ela, antes de nos conhecer, tinha já uma experiência amorosa,


podemos omitir essa experiência, em proveito da que se realizará
sob nossa orientação e com a nossa cumplicidade. Mas, uma vez
declarada a ruptura, será para nós um tormento horrível a simples
suposição de que ela esteja realizando outra experiência, Deus sabe
em que proporções e com que espírito. Perdoamos a infidelidade
passada, anterior a nós, embora a consideremos sempre uma
traição prévia, que chegamos a tempo de anular. Mas, não
admitimos traição posterior ao nosso período, talvez por uma
vaidade que nos faça julgar esse período o mais esplêndido de todos
na vida de uma mulher. Que ela se haja esquecido precisamente
dessas horas inolvidáveis (e inolvidáveis precisamente porque se
permitiu a leviandade de esquecê-las) está, para nós, acima da
compreensão humana.

Minha traição, diária e renovada, múltipla e metódica, nunca me


fez diminuir os méritos da mulher traída. Por isso considero chocante
que ela se insurja contra minha conduta e ameace imitá-la — o que
me irrita. Não há imitação possível sem grave dano sentimental e
moral, pois que conduta idêntica, da parte de uma mulher, importaria
implicitamente no desconhecimento ou no menosprezo de meus
méritos. Trair-me é diminuir-me e esquecer-me. Este é o meu
raciocínio primário, como o de todos os homens. Admito mesmo que
perdoaria a revanche dessa traição, se ela viesse acompanhada do
mais indiscutível testemunho de que, no momento mesmo da traição,
eu não fora desestimado; isto é, que a traição fora ato mecânico e
sem nenhuma significação moral (como a que pratico).
A subestimação de mim mesmo, a sobrestimação da mulher
amada, juntando-se, tornam dramáticos os lances do ciúme, o qual
seria uma paixão suportável se a todo instante não insinuasse que
criatura tão admirável não poderia, evidentemente, viver presa a um
completo imbecil como eu. E há ainda a sobrestimação do indivíduo
que eu suponho a tenha roubado. É sempre um grande homem, cujas
riquezas espirituais e materiais me colocam numa posição de ridícula
inferioridade. Sofremos pela privação do objeto amado, sofremos
pela sua posse por outras mãos, sofremos finalmente pela
desvalorização pessoal de nossa própria individualidade.

Se escreveres sobre o amor infeliz, dirão que o teu amor foi infeliz.
E apontarão nomes de pessoas que te fizeram provavelmente sofrer.
E mesmo algumas pessoas se reconhecerão no que escreveste.
Depois de quinze dias de pressão ambiente, de curiosidade policial e
de comentários maliciosos, tu mesmo acabarás convencido de que
foi assim e sentirás uma grande pena de ti próprio e serás muito
infeliz e te consolarás.

O que não mata, engorda (provérbio mineiro).


Posfácio

UM LIVRO ÚNICO
Milton Ohata

Para a Flor
Confissões de Minas é o primeiro livro em prosa de Drummond. Foi
publicado em 1944 e desde então nunca mais ganhou a forma de
volume independente.1 Após integrar as edições da Obra completa
(1964), caiu num curioso limbo que não fez jus à sua força discreta.
No entanto, mal saído do prelo, foi saudado como um acontecimento.
Ao situá-lo na corrente dos gêneros então praticados na literatura
brasileira, Antonio Candido notava que os poetas
escrevem com um senso da língua, uma maturidade intelectual ausente nos nossos
grandes ficcionistas. Talvez porque, entre nós, a poesia, intelectualmente falando,
esteja mais depurada, mais trabalhada do que a prosa, esta, porventura mais entregue
ainda ao impulso da criação do que propriamente submetida ao crivo da inteligência.2

E assinala a precisão da escrita de Drummond, pois que, “reduzindo-


se ao essencial, a sua prosa como que assimila os valores próprios
da poesia”. Sérgio Milliet seguia na mesma direção, ao apontar para
a envergadura incomum do poeta, dado que “seus poemas mais
recentes alcançam uma densidade de que não tivemos muitos
exemplos em nossa literatura”. A seu ver, tal excepcionalidade
emprestaria à prosa de Drummond qualidades que deslocavam o
eixo do próprio modernismo, cujas soluções sintáticas “se renovam,
se incham de seiva, perdem aquela aparência de fórmula que irrita
nos menos poetas”.3
Na correspondência pessoal de Drummond, encontram-se
testemunhos que adotam o mesmo tom de admiração. Em carta de
novembro de 1944, Cyro dos Anjos, a um só tempo amigável e
cerimonioso, pede permissão para dizer
à queima-roupa, que não acredito se encontrem páginas mais belas na língua
portuguesa. […] Não aludo, é claro, somente às qualidades formais da sua prosa.
Quero referir-me principalmente ao que nela encontramos em pensamento e poesia
(ou “poesia e verdade”, como eu ia escrevendo…).4

Um mês antes, Otto Maria Carpeaux dizia em outra carta que


Drummond possuía
o segredo de descobrir o estranho no comum, o que é prerrogativa da poesia, e o
comum no aparentemente estranho, o que é prerrogativa da inteligência. Se concluo
que inteligência + poesia fazem um grande prosador, tenho a esperança de v. não
considerar a conclusão como elogio barato.5

No arco da obra do poeta, Confissões de Minas e Passeios na


ilha (1952) são o correlato em prosa das inquietações que se
configuram em Sentimento do mundo (1940) e se apaziguam em
Lição de coisas (1962), período em que há

uma espécie de desconfiança aguda em relação ao que diz e faz. Se aborda o ser,
imediatamente lhe ocorre que seria mais válido tratar do mundo; se aborda o mundo,
que melhor fora limitar-se ao modo de ser. E a poesia parece desfazer-se como
registro para tornar-se um processo, justificado na medida em que institui um objeto
novo, elaborado à custa da desfiguração, ou mesmo destruição ritual do ser e do
mundo, para refazê-los no plano estético.6

Durante esses anos, o poeta amadurece e, como nenhum outro,


leva a língua portuguesa a territórios até então inexplorados, fazendo
uso de uma ampla gama de recursos expressivos, do epigrama ao
poema dramático, sem trair o impulso lírico de origem. Em paralelo,
incansável, Drummond pratica o mesmo na sua prosa. Cronista
desde sempre, tornou-se conhecido do grande público por meio
dessa forma breve e descompromissada, próxima da conversa, que
espalhou durante anos a fio nas páginas de jornal. De cronista
municipal, no Diário de Minas na Belo Horizonte das décadas de
1920 e 1930, a cronista federal, no Jornal do Brasil, entre 1969 até
praticamente sua morte, movimentava suas antenas para os
acontecimentos do dia a dia, com crescente predileção pelos
menores, o ponto de inflexão nitidamente marcado por Fala,
amendoeira (1957).
Mas é preciso notar que, à exceção da forma romance,7
Drummond praticou todos os gêneros de prosa — da novela O
gerente (1945) aos aforismos de O avesso das coisas (1987) —
com uma variedade de tons e registros extraordinária. Para ficar
apenas no círculo dos modernistas, Bandeira, Murilo Mendes e
Vinicius de Moraes, virtuoses tanto em poesia como em prosa, estão
longe da multiplicidade do Drummond prosador.
Confissões de Minas reúne num livro único essa característica que
mais tarde se manifestará em separado seja em Contos de aprendiz
(1951) ou Passeios na ilha (1952) — este o ponto alto de sua prosa
de ensaio —, seja na via larga aberta por Fala, amendoeira (1957),
livro ainda um pouco híbrido diante do franco predomínio da crônica
e das “historinhas” a partir de A bolsa e a vida (1962). Quem sabe
por isso Confissões de Minas seja tão difícil de classificar, pois sua
estrutura aberta, feita de perfis, pequenos ensaios, crônicas,
minicontos e anotações soltas, torna menos visível sua costura
interna. A linha usada aqui por Drummond é a mesma que usou para
sua poesia. É também seu livro de prosa mais abertamente
modernista — muito embora de um modernismo precocemente
diferenciado, como adiante veremos —, graças à configuração
montada de textos tão diversos, publicados em datas espaçadas e
veículos os mais variados. Não custa lembrar que a montagem foi um
dos recursos que armaram a arte modernista para a batalha contra
as essências com maiúsculas, a fumaça elitista e os andaimes
convencionais que acabaram por enrijecer a cultura burguesa. E que
durante certo tempo essa batalha foi parte de uma frente maior
contra a sociedade capitalista. Explicitar a montagem de uma obra
de arte era como um dos prenúncios da construção de uma nova
sociedade. A liberdade das relações internas na pintura, na música e
na literatura de vanguarda prefiguraria a liberdade de relações dos
novos homens.
Filtrada pela sensibilidade do poeta, a experiência das redações
de jornal também faz parte da estrutura de Confissões de Minas,
sobretudo pela convivência de textos de natureza e tom
relativamente autônomos na mesma página, ora mais próximos dos
acontecimentos, como registro ou comentário, ora como pausa
descompromissada do contingente, na forma de notas. No todo,
porém, respira a diversidade do vasto mundo.8
A cacofonia das metrópoles, de que o jornal busca ser o espelho,
também inspirou a arte modernista e sua técnica da montagem. Na
literatura, quando a sensibilidade do escritor encontra a forma e o
tom adequados, o resultado são obras-primas como Rua de mão
única (1928), de Walter Benjamin. No outro extremo, e a despeito da
ambição artística, a montagem pode ser falha estrutural em
desacordo com o impulso épico, como nos romances da trilogia
U.S.A. (1930-6), de John dos Passos. Embora aleatórios, são
exemplos que dão a medida do grau de risco envolvido na arte de
vanguarda. A seu modo, no meio da ganga impura de um país
periférico, Confissões de Minas participa dessa corrente mais ampla
como uma realização bem-sucedida e sem provincianismos às
avessas, ou seja, sem fazer praça de ombrear com Paris, Berlim ou
Nova York.
Entretanto, a montagem deste livro é peculiar. Ainda que feita de
textos tão heterogêneos, existe como que um baixo-contínuo a
impedir o choque entre si. A força que os imanta está na
personalidade poética do autor que se confessa a cada linha, muitas
vezes de maneira indireta. Talvez por isso o livro comece sob o signo
do romantismo, o primeiro movimento artístico do Ocidente a
prescindir de cânones, que por sua vez correspondiam a uma
sociedade de hierarquias sociais rígidas. De que meios o indivíduo
dessa nova condição poderia dispor para que, nos vagalhões do
mundo, ao se expressar, pudesse expressar também os outros
homens? Na trinca de poetas românticos brasileiros, Drummond vê
sobretudo os impasses vividos por si próprio. Como fazer uma
poesia que brote da solidão individual, condição incontornável da vida
moderna, e fale do tempo presente aos seus semelhantes? O
partido tomado é deliberadamente anacrônico, o que confere aos
textos um tom de falsete que pode ser a chave para muita coisa do
livro. Assim, ao falar de poetas encasacados num país tropical ainda
às voltas com a escravidão e o atraso, cujos esforços são vistos no
entanto com simpatia, Drummond faz uma transição a seco e tira da
manga frases como estas:
No formigamento das grandes cidades, entre os roncos dos motores e o barulho dos
pés e das vozes, o homem pode ser invadido bruscamente por uma terrível solidão,
que o paralisa e o priva de qualquer sentimento de fraternidade ou temor. Um
desligamento absoluto de todo compromisso liberta e ao mesmo tempo oprime a
personalidade. [p. 27]

Drummond vê em Fagundes Varela a figura paradoxal de um


“solitário imperfeito” que, como outros românticos, procurou na
natureza a harmonia ausente da vida em sociedade. Mas Varela
seria “sempre, no ermo da natureza, uma voz humana com a
nostalgia de suas irmãs citadinas”. No avesso da poesia de Varela
estaria a de Casimiro de Abreu, toda porosidade e comunicação,
onde “tudo é comum a todos”. Para Drummond, justamente por isso
“é restrita a matéria de sua poesia: abrange somente aquela região
em que não operam as distinções filosóficas, os credos políticos, a
tumultuosa torrente da vida social”. O eu lírico que fala nessa poesia
estaria aquém da complexidade do mundo e da subjetividade que
busca fazer frente a ela, “em que cada um de nós, sofrendo
diferentes pressões, se revela incoerente e descontínuo”. Drummond
conclui que faltou a Casimiro “o sentido da aventura”, sentido que já
fora privilégio das formas épicas antigas e ainda buscaria uma forma
correspondente para o escritor contemporâneo. Embora
literariamente mais armada que as de Varela e Casimiro, a poesia de
Gonçalves Dias, a despeito de um humor muito peculiar, é ameaçada
por um artificialismo carrancudo, em linha com as intenções
patrióticas do indianismo assumido pelo autor de Os timbiras. Na
“Canção do tamoio”, Drummond nota sobretudo a
exaltação da vida difícil, que tantos anos depois viria constituir uma das fórmulas de
sugestão adotadas pelos regimes belicosos para despertar no povo, simultaneamente,
o espírito de sacrifício e o gosto de matar. [p. 40]
Nesse primeiro conjunto, o figurino oitocentista mal encobre
questões que estavam no nervo da arte da primeira metade do
século XX. Solidão individual, linguagem comum, poesia pública —
ingredientes da grande poesia praticada por Drummond na
maturidade.
“Na rua, com os homens”, a segunda parte do livro, joga o leitor no
corpo a corpo da vida cultural, partindo da província em processo de
modernização até a metrópole atravessada pelas tensões da
geopolítica contemporânea. Dentre as evocações, crônicas e perfis,
contudo, pode ser puxado um fio que revela um poeta procurando
modular sua própria voz pela de outros. Na biografia de Drummond,
o período corresponde ao fim da roda modernista no Café Estrela,
aos primeiros anos no jornalismo e à entrada na burocracia,
remexida pela Revolução de 1930, que o levará ao Rio de Janeiro na
condição de chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema, seu
amigo de juventude. No modernismo mineiro giram as órbitas
combinadas e desiguais de dois sistemas de composição diversa. A
partir de Juiz de Fora, com Murilo Mendes, e em Cataguases, com o
grupo da revista Verde, a atitude é mais luminosa, muito próxima à
do modernismo paulista. Drummond pertenceu à variante peculiar de
Belo Horizonte, estrela fria onde o ingrediente crítico era a reserva
intelectual:
Fomos as primeiras vítimas da nossa própria ironia, e, impiedosos com o próximo, não
nos perdoávamos a nós mesmos nenhuma fragilidade. O nosso compromisso, que era
o de não possuirmos nenhum, impunha-nos disciplinas severas. A voluptuosa
disponibilidade deixava de ser uma condição edênica para constituir fonte contínua de
angústias. [p. 48]

Longe do escândalo programado e dos gestos decididos do


vanguardismo, Drummond traça para o modernismo mineiro uma
figura em descompasso negativo. Num primeiro momento, evocando
companheiros mortos precocemente cuja obra não chegou a se
realizar, como Alberto Campos, Ascânio Lopes e João Guimarães. E
depois aqueles que esperaram a consumação da “função destruidora
do modernismo” para realizar uma poesia feita de sobriedade e
ausência, como Abgar Renault e Emílio Moura. Como não pensar no
próprio Drummond quando diz de Alberto Campos que “a acidez de
suas palavras tinha um mel oculto” ou que seus gestos possuíam
uma “discreta mas calorosa solidariedade”? E também que a
sobriedade dos versos de Abgar Renault “não invalidam, antes
projetam sob uma luz fria o seu incurável pessimismo”? Ou ainda que
a poesia de Emílio Moura “não se satisfaz com a explicação
materialista das coisas mas […] não nos conduz seguramente a
nenhuma teologia”?
Na capital do país, embora sempre de maneira esquiva, o poeta
de Itabira do Mato Dentro penetra de vez na corrente sanguínea da
literatura brasileira, com um livro que alça sua poesia a outro
patamar. Sentimento do mundo (1940) combina as inquietações
pessoais às do seu tempo, marcado pela crise do capitalismo liberal,
pela ascensão de comunismo e fascismo, e pelos horrores da
Segunda Guerra. No plano local, o varguismo abre caminho para a
industrialização e a formação do operariado num Brasil que havia
pouco ainda se concebia como “de vocação rural”. Contingência de
um país em que a massa de analfabetos e semiletrados ainda era
enorme, a proximidade na relação entre intelectuais e Estado é
entrevista na série de perfis na qual têm de conviver o espírito crítico
e as tarefas de construção de uma cultura nacional. Dado que cada
texto possui uma embocadura diferente, a comunidade de propósitos
é curiosamente ressaltada pelo tratamento igualitário dado a figuras-
chave como Mário de Andrade, Augusto Frederico Schmidt e
Portinari e outras de menos cartaz, como o bibliógrafo Simões dos
Reis e o brasilianista William Berrien.
Ainda uma vez, é possível atravessar os diferentes perfis para
alcançar na outra ponta o perfil do próprio Drummond. Assim, ele vê
na poesia do antípoda Schmidt “o dom de infinita comiseração por
tudo que é sofrimento e injustiça”, bem como o “reconhecimento da
sua fragilidade em face dos problemas maciços, esmagadores, que
o tempo nos propõe”. No bibliógrafo e livreiro Simões dos Reis, o
burocrata Drummond valoriza a dedicação à “tarefa que não brilha”.
Aos olhos do poeta mineiro, a missão cultural de William Berrien é
mais benfazeja do que a de muitos compatriotas que retornavam dos
Estados Unidos com “um estoque de soluções nova-iorquinas para
as nossas necessidades sertanejas”. Para o modernismo de
gabinete — a expressão é de Vinícius Dantas — de que Drummond
era uma das figuras mais destacadas, um país novo como o Brasil
tendia a “considerar a velhice uma forma específica de sabedoria, e
cultivar a falsa tradição e a banalidade pomposa”. Berrien, que deve
ter sido hostilizado por muitos como um agente imperialista, ganha a
simpatia do poeta por ajudar o Brasil a “descobrir, sob esse monte
de convenções, a sua própria fisionomia”.
Os modernistas do Ministério da Educação sempre buscaram
descobrir um conceito não tradicionalista de tradição para alcançar
um sentido emancipador de cultura. Drummond parece ter adaptado
esse programa para definir sua própria fisionomia poética e, além
disso, parece ter encontrado um modelo semelhante na poesia de
Federico García Lorca, que supera o “pseudo mas comprometedor
conflito entre local e universal” e em cuja figura estão condensadas
as tensões mais agudas da época. À sombra do autor do
Romancero gitano, surge um caso para futuras pesquisas na pessoa
do poeta e escultor José Boadella Garrós. Na correspondência de
Drummond existem algumas cartas que deixam entrever um contato
pessoal tênue e algumas dificuldades materiais na Espanha do pós-
guerra.9 Mas como não ver em “Boadella entre elefantes”,
originalmente um prefácio a um livro do poeta espanhol publicado
aqui em 1943, a cozinha para um dos melhores poemas de A rosa
do povo, “O elefante”, em que Drummond reflete/brinca com os
segredos de seu ofício?
Creio que a partir desse ponto Confissões de Minas se divide em
duas partes, sem prejuízo das muitas relações multívocas que
atravessam todo o livro. Salvo engano, na primeira metade
prevalecem ações ou atitudes, e o andamento é de sinfonia, no
colorido do todo que redime eventuais descaídas. Na segunda
metade, o tom é mais camerístico e uniforme, tanto no espírito
quanto no estilo de cada texto. No meio de ambas, uma parte que
não à toa duplica o título do próprio livro. Nela estão duas notáveis
evocações de cidades, fontes às quais Drummond reserva sua
predileção. Ao contrário de outras irmãs mineiras que pareceram
destinadas ao tombamento, ao turismo e aos poemas modernistas,
Itabira e Sabará não pertencem a um tempo muito definido mas a
uma dimensão da própria poesia de Drummond, que Francisco Alvim
identifica como “uma paisagem de dentro, não figurativa, é como se
entrasse no Dante, uma paisagem sem nada por trás”.10 Alguns
meses após a publicação de Confissões de Minas e o episódio
traumático com o Partido Comunista Brasileiro, Drummond é
convidado por Rodrigo Mello Franco de Andrade para trabalhar no
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ao lado de Lucio
Costa, que possuía um sentimento das cidades coloniais muito
parecido com o do poeta mineiro.11 Como Sabará para Drummond, a
cidade que mais fala à imaginação de Lucio desde que a conheceu
em 1922, não é Ouro Preto, Mariana ou Tiradentes, mas Diamantina,
onde passado, presente e futuro não estão onde supõe o senso
comum:
Lá chegando caí em cheio no passado no seu sentido mais despojado, mais puro: um
passado de verdade, que eu ignorava, um passado que era novo em folha para mim.
[…] No último dia, já tarde, subi ao campanário para me despedir da cidade e lá fiquei,
olhando os telhados, até escurecer. […] E mal sabia que, trinta anos depois, iria projetar
nossa capital para um rapaz da minha idade nascido ali.12

O “passado novo em folha” de dr. Lucio foi na verdade a criação


coletiva de uma vertente modernista, que buscava na herança
colonial um conjunto de forças que fizesse frente ao país oficial das
oligarquias e da cultura encasacada. O ponto de fuga seria uma
cultura nacional sem patriotada, democrática sem folclorismos, a um
só tempo cosmopolita e original. Na prosa de ensaio modernista, e
guardadas as diferenças, podemos considerar como parte de um
mesmo ciclo obras como Casa-grande & senzala (1933), de Gilberto
Freyre, Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, e o
par mais discreto que Crônicas da província do Brasil (1937), de
Manuel Bandeira, forma com essas Confissões de Minas.
Assim como Machado de Assis, Drummond parece buscar uma
mineiridade interior, diversa e melhor do que se fora apenas
superficial, e nesse sentido diverge de certa tendência à estampa
cultivada pelo modernismo. Misturada a memórias pessoais,
documentos históricos e dados econômicos do presente, a cidade
natal surge em “Vila de Utopia” estranhamente à parte de
coordenadas mais precisas de tempo e espaço:
Hoje, amanhã, daqui a cem anos, como há cem anos atrás, uma realidade física, uma
realidade moral se cristalizam em Itabira. A cidade não avança nem recua. A cidade é
paralítica. Mas, de sua paralisia provêm a sua força e a sua permanência. Os membros
de ferro resistem à decomposição. Parece que um poder superior tocou esses
membros, encantando-os. Tudo aqui é inerte, indestrutível e silencioso. [p. 104]

Algumas linhas adiante, já não se distingue mais o que para o


poeta é paisagem física e o que é paisagem interior:
Parecia-me que um destino mineral, de uma geometria dura e inelutável, te prendia,
Itabira, ao dorso fatigado da montanha, enquanto outras alegres cidades, banhando-se
em rios claros ou no próprio mar infinito, diziam que a vida não é uma pena, mas um
prazer. A vida não é um prazer, mas uma pena. […] e em vão meus olhos perseguem a
paisagem fluvial, a paisagem marítima: eu também sou filho da mineração, e tenho os
olhos vacilantes quando saio da escura galeria para o dia claro. [p. 109]

Se Itabira é a paisagem mais entranhada em Drummond, a sua visão


de Sabará aproxima-se da revelação de Diamantina para a
sensibilidade de Lucio Costa.13 À semelhança do arquiteto carioca,
Drummond considera no final das contas um verdadeiro estorvo o
“elemento histórico, que se insinua traiçoeiramente em toda
conversa, leitura, mirada, até mesmo nos momentos de gozo
estético mais desabalado” e, mencionando Le Corbusier, valoriza em
Sabará sobretudo o “passado novo em folha”, sem o ranço de
passadismo
na composição sóbria das fachadas, no gosto severo que presidiu à construção
dessas moradias, verdadeiras máquinas de habitar como duzentos anos depois havia
de querer um arquiteto maluco; máquinas primitivas, em que escadarias imensas
faziam o papel de rodas supérfluas, porém máquinas e satisfazendo perfeitamente o
fim a que se destinavam. [p. 113]

A Minas de Drummond parece abstraída de um passado-presente-


futuro que é sobretudo imaginação concreta do real. Dessa matéria
autoconsciente, o poeta teria extraído muito de sua arte reflexiva ou,
no limite do silêncio, sua cisma tão característica. Nos últimos anos,
a crítica tem nuançado essa dimensão que parece ter existido desde
sempre, seja aprofundando seu sentido filosófico, seja fazendo uma
nova leitura da passagem da poesia “social” de A rosa do povo para
a “hermética” de Claro enigma.14 Para a caracterização dessa
reflexividade distintiva da obra de Drummond, arrisco apenas mais
uma hipótese, no sentido da história social. Coincidência ou não, o
poeta publica seu primeiro livro em 1930, ano em que uma revolução
antioligárquica sacode um Brasil aferrado a quatro séculos de
agrarismo e escravidão. A velocidade do processo que segue não
tem paralelo em países de mesma formação. Criada a partir de uma
política de Estado, a industrialização coloca o país, em poucos anos,
nos trilhos da modernidade. Contudo, a velha ordem não foi
suplantada por outra inteiramente nova, como notou Francisco de
Oliveira, pois nesse arranjo o moderno reproduz-se com a
preservação do atraso.15 A figura do “fazendeiro do ar” surge como
um resultado desse paradoxo. John Gledson notou sua presença em
Brejo das almas (1934) e em romances do período, como Angústia
(1936), de Graciliano Ramos, e O amanuense Belmiro (1937), de
Cyro dos Anjos.16 A cisma drummondiana parece tomar pé nesse
chão histórico que lhe foge, em que antigo e novo convivem em
estranho equilíbrio na paisagem que o poeta descreve em “Vila de
Utopia” e “Viagem de Sabará”. Lugares de uma geografia abstrata e
reflexiva, contemporânea da aceleração do circuito da mercadoria e
da criação do Estado moderno no Brasil — ambos, a seu modo,
também portadores de abstração e reflexividade. Para além das
fronteiras nacionais, essa tendência ganhava uma voltagem ainda
maior com o internacionalismo da luta antifascista, a que Drummond
se filiou enquanto compunha Confissões de Minas. O conjunto forma
um baita problema, claro enigma a ser decifrado.17
Na metade final de Confissões de Minas, a relativa fixidez do
coração do livro cede espaço ao ritmo entrecortado da variedade
que tende ao caleidoscópio, à semelhança de Mélange (1941), de
Paul Valéry, embora aqui a matéria seja mais mundana. A paisagem
predominante é urbana, observada pelo poeta que percorre as ruas
de bonde ou se recolhe solitário no alto dos edifícios. A simpatia
desencantada de Drummond vai nitidamente para as “quase
histórias” da humanidade anônima, “em que um só pequenino ponto
parece existir realmente; as outras partes mergulham na sombra, e
nem são percebidas” (“Conversa de velho com criança”, p. 128).
Como as três solteironas que durante anos flutuaram entre o retrato
do avô morto e a escuridão. Ou o chofer inocente abatido a tiros
pela polícia durante uma greve. E o gordo roído por um tumor. E o
mascote dos bombeiros, o menino Edival, vítima de pneumonia, cujo
rosto o poeta vê numa foto de jornal. A recorrência da morte no
quase anonimato parece reverberar, sem ênfase nem retórica, a
carnificina do período que Eric Hobsbawm chamou de “Catástrofe”
(1914-45) e que, transfigurada, ganhará a forma de poema em “Os
rostos imóveis” (José, 1942), “Morte do leiteiro” (A rosa do povo,
1945) e “Desaparecimento de Luísa Porto” (Novos poemas, 1948).
Na chave da luta de classes que dinamizou o período, ao contrário
de muito da literatura de esquerda, Drummond passa ao largo da
exaltação ao operário stakhanovista, como deixa manifesto em “O
operário no mar” (Sentimento do mundo, 1940), e toma o partido
dos sem partido — o homem comum de Chaplin, que em crônicas
posteriores ganhará o nome de João Brandão.
Enfim, o sentimento do mundo é posto entre parênteses nos traços
breves mas firmes do “Caderno de notas”, em que Drummond
parece ruminar toda a matéria anterior na reclusão de observador no
escritório. No edifício de apartamentos descrito de modo a um só
tempo familiar e estranho em um dos textos mais admiráveis do livro
(“Esboço de uma casa”, p. 148), o poeta passa num crivo o sentido
da literatura, o engajamento do intelectual, simples fatos do dia a dia,
momentos de suspensão na agitação urbana, notícias de jornal, a
mercantilização da cultura e da vida, uma dor de cotovelo. O conjunto
das notas, tomadas ao sabor do acaso e a montante de todo o livro,
oscila entre o contingente e o perene numa configuração que afinal
faz pensar nas Confissões de Minas como um móbile. Artefato de
peças diferentes entre si mas necessárias ao sistema hesitante de
contrapesos — esperando apenas um leve toque do leitor para se
mostrar vivo. As figuras do caleidoscópio e do móbile são congênitas
ao espírito lúdico da arte de vanguarda, que em Drummond, no
entanto, sempre é impregnado de uma dúvida radical que dilacera o
eu e sua relação com os seres e o mundo.
Rio-São Paulo, agosto-setembro de 2010

1. Em 2011, a editora Cosac Naify lançou uma segunda edição, para a qual este posfácio foi
originalmente escrito.
2. Publicado na seção Notas de Crítica Literária da Folha da Manhã, 15 out. 1944.
Posteriormente em Antonio Candido, Textos de intervenção, org. Vinícius Dantas. São Paulo:
Editora 34, 2002, pp. 198-9.
3. “15 de outubro”. Diário crítico v. II [1944], 2. ed. São Paulo: Martins/ Edusp, 1981, p. 278.
4. Arquivo da Fundação Casa de Rui Barbosa, Correspondência Carlos Drummond de
Andrade/ Cyro dos Anjos, CDA — CP — 0096, fls. 81-83.
5. Arquivo na Fundação Casa de Rui Barbosa, Correspondência Carlos Drummond de
Andrade/ Otto Maria Carpeaux, CDA — CP — 0328, fls. 17-18.
6. Antonio Candido, “Inquietudes na poesia de Drummond”, em: Vários escritos. 2. ed. São
Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977, p. 95.
7. Fernando Py dá notícia de um romance escrito nos anos de juventude, com o título Rosa
branca, que jamais veio a público. Ver Bibliografia comentada de Carlos Drummond de
Andrade — 1918-1934. 2. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa,
2002, p. 228.
8. Devo esta passagem a conversas com Augusto Massi.
9. Devo a informação à gentileza de Júlio Castañon Guimarães, que com Augusto Massi
preparou uma edição das poesias traduzidas por Drummond. Poesia traduzida (São Paulo:
Cosac Naify, 2011) revela uma face pouquíssimo conhecida do poeta e tornará mais claros o
sentido e a intensidade de seus laços com a poesia espanhola.
10. Entrevista a Adolfo Montejo Navas. Cult, São Paulo, ano IV, n. 42, jan. 2001, p. 7. Note-se
de passagem que, na mesma época, Goeldi e Guignard faziam algo parecido na gravura e na
pintura. A partir de 1941, Goeldi — em quem Drummond reconheceu o “pesquisador da noite
moral sob a noite física” (“A Goeldi”, A vida passada a limpo, 1958) — passa a ilustrar
regularmente as páginas de Autores e Livros, suplemento de A Manhã em que Drummond
publicou vários dos textos de Confissões de Minas e um dos seus poemas mais admiráveis,
“Passagem da noite” (A rosa do povo, 1945), com ilustração do próprio gravurista, na edição
de 18 out. 1942. Esboçadas nos fins da década de 1930, as paisagens imaginárias de
Guignard começam a ocupar a obra do artista sobretudo a partir de 1941, quando pinta duas
delas para a casa Hungria Machado, projetada por Lucio Costa. Ao longo de 1942, publica 23
desenhos em Autores e Livros. Ver Lélia Coelho Frota, “Guignard: arte, vida”, em: Alberto da
Veiga Guignard, 1896-1962. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 2005, pp. 30-1. Para Rodrigo Naves,
“o confronto entre esses dois momentos decisivos da obra de Guignard — o mundo difuso e
indiferenciado e a caracterização pitoresca — parece revelar um esforço para garantir ao país
certa transcendência, que o manteria à margem das qualificações circunstanciais” (Naves,
“O Brasil no ar: Guignard”, em: A forma difícil: Ensaios sobre arte brasileira. Ed. rev. e ampl.
São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 175).
11. Hoje se sabe que o papel de Drummond foi decisivo para a construção do atual Palácio
Gustavo Capanema, cujo projeto foi coordenado por Lucio Costa a partir dos esboços de Le
Corbusier. A legislação vigente não obrigava a opção pelo projeto vencedor do concurso de
1935, da autoria de Arquimedes Memória, o qual, preterido, “dirigiu carta ao presidente da
República, na qual denunciava uma ‘célula comunista’ de modernistas cujos objetivos eram ‘a
agitação do meio artístico e a anulação dos valores reais que não comungam com seu
credo’. Esses elementos deletérios teriam como ‘patrono e intransigente defensor o sr. Carlos
Drummond de Andrade’” (Moacir Werneck de Castro, Mário de Andrade: Exílio no Rio. Rio de
Janeiro: Rocco, 1989, p. 39). Sobre o projeto e a construção do edifício, ver Maurício
Lissovsky e Paulo Sérgio Moraes de Sá, Colunas da educação: A construção do Ministério da
Educação e Saúde. Rio de Janeiro: Minc/Iphan, 1996. A partir de 1945, o poeta e o arquiteto
dividiriam a mesma baia entre uma parede e uma fileira de arquivos. “Eu era seu
subordinado, como chefe da Seção de História, mas não sentia qualquer espécie de
subordinação. Fomos bons camaradas, dentro da discrição natural dos temperamentos. Ao
dirigir-me a palavra, sempre em voz baixa e tom extremamente delicado, deixava
transparecer simpatia e compreensão, mas em geral preferia manter-se em silêncio — um
silêncio que durava o tempo de permanência no corredor — que eu respeitava como se
respeita o silêncio das igrejas. […] Não tinha nem de leve ar importante, e parecia mesmo
querer se ocultar de todos e de tudo, até do nome de Lucio Costa. Tanto que assinava os
seus pareceres com um esmaecido LC, saído do toco de um lápis que era todo o seu
equipamento de trabalho.” Carlos Drummond de Andrade, “LC na repartição” [1982], em: Lucio
Costa, Registro de uma vivência, 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2018, p. 435.
12. Lucio Costa, “Diamantina”, op. cit., p. 27. Em 1957, o arquiteto confiou a um revisor a
memória descritiva apresentada ao concurso de Brasília. Diante da irretocável qualidade do
texto, Drummond limitou-se a “corrigir a ortografia do português antigo para o português então
corrente, sem introduzir mudança alguma de estilo, como demonstram as anotações
encontradas no manuscrito”. Milton Braga, O concurso de Brasília. São Paulo: Cosac Naify,
2010, p. 155.
13. Fato que não exclui o conhecimento minucioso do passado histórico, baseado também
em velhos documentos, como mostra “Viagem de Sabará” e a antologia Minas Gerais,
organizada pelo próprio poeta, reunindo textos de mais de cem autores (Rio de Janeiro:
Editora do Autor, 1967). Drummond, contudo, criou uma forma própria, onipresente em toda a
sua poesia e que encontrou realização superior em “Os bens e o sangue” (Claro enigma,
1951).
14. Ver Alfredo Bosi, “‘A máquina do mundo’ entre o símbolo e a alegoria”, em: Céu, inferno.
São Paulo: Ática, 1988, pp. 80-95; Vagner Camilo, Drummond: Da rosa do povo à rosa das
trevas. São Paulo: Ateliê, 2001; Davi Arrigucci Jr., Coração partido: Uma análise da poesia
reflexiva de Drummond. São Paulo: Cosac Naify, 2002; Betina Bischof, Razão da recusa: Um
estudo da poesia de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Nankin, 2005; José Miguel
Wisnik, “Drummond e o mundo”, em: Adauto Novaes (Org.). Poetas que pensaram o mundo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2005, pp. 19-64; Alcides Villaça, Passos de Drummond.
São Paulo: Cosac Naify, 2006. Para a prosa, ver João Adolfo Hansen, “Drummond e o livro
inútil”, Sibila, ano 13, 5 abr. 2009. Disponível em: <http://sibila.com.br/mapa-da-
lingua/drummond-e-o-livro-inutil/2730>. Acesso em: 8 mar. 2020.
15. “A expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novas no arcaico e
reproduzindo relações arcaicas no novo, um modo de compatibilizar a acumulação global,
em que a introdução das relações novas no arcaico libera força de trabalho que suporta a
acumulação industrial-urbana e em que a reprodução de relações arcaicas no novo preserva
o potencial de acumulação liberado exclusivamente para os fins de reprodução do próprio
novo.” Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista: O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo,
2003, p. 60.
16. John Gledson, “O funcionário público como narrador: O amanuense Belmiro e Angústia”,
em: Influências e impasses: Drummond e alguns contemporâneos. São Paulo: Companhia
das Letras, 2003, pp. 224-5.
17. Algo semelhante podemos sentir na prosa de Lucio Costa e de Celso Furtado, a um só
tempo abstratas e muito brasileiras.
Leituras recomendadas

Mário da Silva.
BRITO,

“Um homem em onda curta”,


O Estado de S. Paulo, 4 nov. 1944.
, Antonio.
CANDIDO

“Notas de crítica literária”,


Folha da Manhã, São Paulo, 15 out. 1944.
, Carlos; BRANDÃO, Jacques do Prado.
CASTELO BRANCO

“Palavras quase duras”, Mensagem,


Belo Horizonte, 1o jan. 1945.
, Wilson.
CASTELO BRANCO

“Livros e ideias: profissão de fé”,


Folha de Minas, Belo Horizonte, 22 nov. 1944.
, Antonio.
CONSTANTINO

“Confissões de Minas”,
O Estado de S.Paulo, 14 dez. 1944.
, Dias da.
COSTA

“Confissões de Minas”, Leitura,


Rio de Janeiro, out. 1944.
, Luís.
DELGADO

“Sentimento e visão do mundo”,


Jornal do Commercio, Recife, 16 jul. 1944.
ESCOREL, Lauro.
“Crítica literária”, A Manhã,
Rio de Janeiro, 15 out. 1944.
F., João.
ETIENNE

“De mineiro a mineiro”,


O Diário, Belo Horizonte, 17 out. 1944.
FIGUEIREDO , Guilherme.
“Prosa de poeta”, Diário de Notícias,
Rio de Janeiro, 21 jan. 1945.
, João Adolfo.
HANSEN

“Drummond e o livro inútil”,


Revista da Biblioteca Mário de Andrade,
n. 60/61, dez. 2002 / jan. 2003.
“Alguma prosa de Drummond”,
Revista Brasileira, Rio de Janeiro,
Academia Brasileira de Letras,
fase VII, jul./ago./set. 2002, ano VIII, n. 32.
, Aires da Mata.
MACHADO FILHO

“Confissões de Minas”,
O Estado de S. Paulo, 11 nov. 1944.
, João Eurico.
MATA

“A alma dos livros: um mineiro se confessa”,


O Diário, Belo Horizonte, 5 nov. 1944.
, Sérgio.
MILLIET

“15 de outubro”, in Diário crítico — volume II (1944),


São Paulo: Martins; Edusp, 1981.
, José Osório de.
OLIVEIRA

“Um livro em prosa de um poeta”,


Ação, Lisboa, 31 maio 1945.
, Alcântara.
SILVEIRA

“Presença do itabirano”,
O Estado de S.Paulo, 7 dez. 1944.
, João Camillo de Oliveira.
TORRES

“Confissões de Minas”,
Folha de Minas, Belo Horizonte, 8 nov. 1944.
, Lívio.
XAVIER

“Um poeta e suas confissões”,


Diário da Noite, 20 jan. 1945.
Notas de edição*

Confissões de Minas foi publicado em 1944 pela editora carioca


Americ=Edit., dirigida por Max Fischer. Segundo a correspondência
de Drummond com seu editor, depositada no arquivo do poeta na
Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, os originais
foram intermediados por Murilo Miranda, diretor da Revista
Acadêmica. Precedido por Aspectos da literatura brasileira, de
Mário de Andrade, e A vida de Joaquim Nabuco, de Carolina
Nabuco, o livro foi o terceiro título da Coleção Joaquim Nabuco, sob
a coordenação de Álvaro Lins.
Primeiro livro de prosa de Carlos Drummond de Andrade, nunca
mais voltou a ser reeditado separadamente. E, desde 1964, quando
passou a integrar as sucessivas edições da Obra completa do autor,
sofreu cortes consideráveis ao longo do tempo. O próprio Drummond
deslocou dois textos para Contos de aprendiz (1951), mas na edição
da Prosa seleta (2002) restavam apenas quinze dos 54 textos da
primeira edição de Confissões de Minas. Na Fundação Casa de Rui
Barbosa, há um datiloscrito, sem data precisa, que atesta a intenção
do poeta de restaurar o texto original. Tudo indica que o documento
é posterior a 1984, período em que deixou a José Olympio e passou
a integrar o quadro de autores da editora Record, pois compõe-se
de 86 folhas em papel timbrado da nova editora, com recortes de
xerocópias de todos os textos da edição de 1944 e pequenas
correções anotadas à mão pelo próprio Drummond, em sua maioria
atualizações ortográficas.
Para a elaboração destas notas, foi de grande valia a consulta a
Antonio Candido de Mello e Souza, Elvia Bezerra, Fernando Py, José
Mário Pereira, Júlio Castañon Guimarães, Marcos A. de Moraes e
Isabel Travancas. Agradecimentos: Ana Luisa e Lauro Escorel,
Humberto Werneck, Jaime Prado Gouvêa, John Gledson, José
Almino de Alencar, Jurandir Persichinni, Thereza Christina de Moura
A. Guimarães e Vinícius Dantas.

Escrevo estas linhas


Texto publicado sob o título “O escritor e o tempo” na Folha Carioca,
em 24 jul. 1944, acompanhado desta breve introdução:
É discutível a utilidade dos prefácios. Ou o livro realiza os propósitos de seu autor, e
nesse caso dispensa prefácio, ou não os realiza, e então o próprio livro é dispensável, e
o prefácio fica sendo a chave de uma porta incendiada: para que chave?
Não obstante esta consideração cética, e talvez porque os prefácios tenham voltado
a estar na moda (o que não é prova da eficiência deles), elaborei um de proporções
modestas, para as Confissões de Minas. É o que se encontrará a seguir.
três poetas românticos
Os três ensaios, escritos num breve intervalo de tempo, entre
agosto e novembro de 1941, realizam um acerto de contas com os
poetas românticos. Embora menos demolidores do que a série de
artigos “Mestres do passado” (1921), nos quais Mário de Andrade
disparava contra os parnasianos, os do poeta mineiro estão mais
próximos do discreto resgate dos românticos empreendido por
Manuel Bandeira em poemas, ensaios e antologias. Drummond
reconsidera os românticos à luz de suas obsessões: o tema da
solidão, da melancolia e do humor.
FAGUNDES VARELA, SOLITÁRIO IMPERFEITO
Publicado em Autores e Livros, n. 2, suplemento literário de A
Manhã, Rio de Janeiro, 24 ago. 1941. A edição utilizada por
Drummond foi a das Obras completas em três volumes, publicada
pela Livraria Editora Garnier em 1896. Na presente edição, utilizou-
se o texto estabelecido por Miécio Tati e E. Carrera Guerra nas
Poesias completas de L. N. Fagundes Varela (São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1957. 3 v.). Para efeitos de consulta,
os poemas citados por Drummond são referidos pelo título, seguidos
do número do volume e do número da página:
Página 19: “O foragido”, I, 130; “Fragmentos”, I, 135; “Tristeza”, I, 142.
Página 20: “Elegia”, II, 347.
Página 21: “O suplício”, I, 205; “O vaga-lume”, I, 251; “O sabiá”, I, 285;.
Página 22: “Colmal”, II, 96; “O foragido”, I, 131; “Juvenília”, II, 32; “Sobre um túmulo”, I,
141; “O cego”, II, 170.
Página 23: “Napoleão”, I, 233; “Queixas do poeta”, II, 64; “Noturno”, II, 164; “Expiação”, II,
157.
Página 24: “Childe-Harold”, I, 281; “Soneto”, I, 250; “O exilado”, I, 268; “Estâncias”, I,
291; “Sextilhas”, II, 47; “Conforto”, II, 245.
Página 25: “O canto dos sabiás”, II, 247; “Em viagem”, II, 251; “Fragmentos”, I, 132;
“Sombras!”, II, 60; “O exilado”, I, 268.
Página 26: “As selvas”, I, 274-5; “Fragmentos”, I, 310; “Deixa-me”, I, 244; “O mar”, I,
297; “O exilado”, I, 270.
Página 27: “A várzea”, II, 62; sem título, I, 259; “À Lucília”, I, 276; “A despedida”, II, 239;
“Resignação”, II, 66.
Página 28: “Em viagem”, II, 251.

NO JARDIM PÚBLICO DE CASIMIRO


Publicado em Autores e Livros, n. 9, suplemento literário de A
Manhã, Rio de Janeiro, 12 out. 1941. Na presente edição utilizou-se
o texto estabelecido por Souza da Silveira nas Obras de Casimiro de
Abreu (2. ed. melhorada. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e
Cultura/ Fundação Casa de Rui Barbosa, 1955). Para efeitos de
consulta, os poemas citados por Drummond são referidos pelo título
seguido pelo número da página:
Página 31: “A ***”, 51.
Página 32: “No lar”, 109; “O baile!”, 246;
Página 33: “Amor e medo”, 206; “No leito — II”, 346.
Página 34-5: “Horas tristes”, 302; “Dores”, 309.

O SORRISO DE GONÇALVES DIAS


Publicado em Autores e Livros, n. 13, suplemento literário de A
Manhã, Rio de Janeiro, 9 nov. 1941. Na presente edição utilizou-se o
texto estabelecido por Alexei Bueno em Poesia e prosa completas
(Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998). Para efeitos de consulta, os
poemas citados por Drummond são referidos pelo título seguido pelo
número da página:
Página 37: “Loa da princesa santa”, 304.
Página 38-9: “Lenda de Sam Gonçalo”, 595; “Gulnare e Mustafá”, 317; “Pedido”, 133-34.
O poema “A valsa”, também citado, está nas Obras de Casimiro de Abreu [op. cit. cit.],
159-60.
Página 42: “Harpejos”, 427.
NA RUA, COM OS HOMENS

No sentido contrário à observação feita no ensaio sobre Casimiro,


que “ignora a rua e seus problemas”, Drummond transita numa rua
de mão dupla, entre amigos que se foram e outros com quem
partilha um longo diálogo desdobrado em análises,
correspondências e traduções. Sob o signo da amizade, os três
primeiros repisam a experiência da perda: “De sorte que viver é
perder amigos, porque eles não se somam, e as novas aquisições
anulam as anteriores”.
O roteiro desta segunda parte é emblemático da trajetória do
poeta. Ele parte de relações provincianas, nostálgicas e ancoradas
no passado. Mas, pouco a pouco, nos transporta ao tempo presente
e aos homens presentes, nos transmite o sentimento do mundo.
RECORDAÇÃO DE ALBERTO CAMPOS
Publicado no Minas Gerais, Belo Horizonte, 20 jun. 1933. ALBERTO
CAMPOS (1905-33) formou-se em 1928 pela Faculdade de Direito de
Belo Horizonte e era irmão de Francisco Campos, mais tarde
ministro do governo Getúlio Vargas. Fez parte da famosa roda do
Café Estrela, que na década de 1920 reunia em Belo Horizonte os
jovens modernistas mineiros. Convidou Drummond para integrar a
redação do Diário de Minas, periódico oficial do Partido Republicano
Mineiro, em que o poeta publicou suas crônicas regularmente, de
1921 a 1929. Este notou, contudo, que havia muita liberdade na
redação do jornal, onde trabalhou ao lado de Emílio Moura, João
Alphonsus e Cyro dos Anjos:
a partir de 1926 foi se tornando uma espécie de valhacouto de jovens intelectuais de
tendência modernista. […] Nossa liberdade era quase total, mesmo porque quase
ninguém lia a folha, e o Governo tinha preocupações mais sérias. E nós, redatores
jovens, assimilávamos o famoso senso mineiro de ordem, para uso da matéria política.
No mais, éramos uns desmandados. [Carlos Drummond de Andrade, Tempo vida
poesia: Confissões no rádio, em Prosa seleta. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, p.
1240]

Alberto Campos publicou em A Revista, periódico do grupo


modernista de Belo Horizonte, dois textos ficcionais, “O barrete de S.
Cornélio” e “Simão, o matemático”, reunidos sob o título “Duas
figuras” (A Revista, ano 1, n. 1, jul. 1925, pp. 25-8).
Para um retrato de Alberto Campos, ver PEDRO NAVA, Beira-mar:
Memórias 4. (3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, pp. 158-
9). Sobre o papel aglutinador do Diário de Minas para os
modernistas mineiros, ver MARIA ZILDA FERREIRA CURY, Horizontes
modernistas: O jovem Drummond e seu grupo em papel jornal (Belo
Horizonte: Autêntica, 1998).
DOIS POETAS MORTOS DE MINAS GERAIS

Ascânio Lopes
Sob o título “Ascânio Lopes na rua Bahia”, foi publicado em Verde —
Revista Mensal de Arte e Cultura, 2a fase, ano I, n. I, maio 1929,
editada pelos escritores modernistas de Cataguases (MG) sob a
liderança de Rosário Fusco. Esse número foi especialmente
dedicado ao poeta ASCÂNIO LOPES (1906-29). Em Confissões de
Minas, Drummond acrescentou à evocação os seguintes trechos:
“Tinha 23 anos e não poderia dizer […] sem nunca ter comprado
bilhete” e “Numa sala da Secretaria do Interior […] admiráveis ‘Sete
trombetas misteriosas’”. A tuberculose o impediu de concluir o curso
de direito, interrompido em 1928 na capital mineira, onde
estabeleceu relações com o grupo do Café Estrela e de A Revista.
Foi autor de um único livro, Poemas cronológicos (Cataguases:
Verde Editora, 1928), com Henrique de Resende e Rosário Fusco.
Ver DÉLSON GONÇALVES FERREIRA, Ascânio Lopes: Vida e poesia (Belo
Horizonte: Difusão Pan-Americana do Livro, 1967); MÁRIO DE ANDRADE,
“Táxi: Ascânio Lopes” (Diário Nacional, 30 maio 1929, em Táxi e
Crônicas no “Diário Nacional”. Introd. e notas de Telê Porto Ancona
Lopes. São Paulo: Duas Cidades, 1976, pp. 115-6); PEDRO NAVA,
Beira-mar: Memórias 4. (3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985, pp. 232-6); JOAQUIM BRANCO, Ascânio, o poeta da “Verde”
(Cataguases: Totem, 1998).

João Guimarães
Publicado sob o título “João Guimarães, lembrança” e o pseudônimo
Antônio Crispim, no Minas Gerais, Belo Horizonte, 14 jun. 1934. JOÃO
BERNARDO GUIMARÃES ALVES (1900-34) foi poeta e inspetor de ensino,
neto do escritor Bernardo Guimarães (1825-84), sobrinho do poeta
Alphonsus de Guimarães (1870-1921) e primo do escritor João
Alphonsus (1901-44). Participou da roda literária do Café Estrela, em
Belo Horizonte.
PESSIMISMO DE ABGAR RENAULT
Provavelmente inédito até a publicação de Confissões de Minas.
Posteriormente publicado na revista Panorama, Belo Horizonte, jan.
1948. O poema citado está em Cristal refratário (Obra poética. Rio
de Janeiro: Record, 1990, p. 155).
A tradução dos “poemas ingleses das guerras de 1914 e 1939”, a
que se refere Drummond, foi publicada em edição fora de comércio
sob o título Poemas ingleses de guerra (Rio de Janeiro: Oficinas
Gráficas do Jornal do Commercio, 1942; e a segunda edição em
Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1970).
A Abgar Renault, Drummond dedicou o poema “Infância” (Alguma
poesia, 1930), “Abgar Renault”, três homônimos “A Abgar Renault”
(Viola de bolso 1 e 2, 1952-5, e Discurso de primavera e algumas
sombras, 1977) e “A contagem do tempo” (Viola de bolso 3).
Renault compôs o “Soneto ao poeta Carlos Drummond de Andrade”,
datado de 27 jan. 1952, e “Mensagem ao poeta Carlos Drummond
de Andrade”, datado de 1962. Ambos estão em A outra face da lua
(1983).
O SECRETO EMÍLIO MOURA
Provavelmente inédito até a publicação de Confissões de Minas. O
poema citado é “Toada dos que não podem amar” (Poesia: 1932-
1948. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953, p. 47).
Drummond compôs “Epigrama para Emílio Moura” (Alguma
poesia, 1930), “A Emílio Moura” (Viola de bolso, 1952), “Poeta
Emílio”, datado de 12 abr. 1969 (sob o título “Minas e o poeta”, em
Estado de Minas, Belo Horizonte, 30 abr. 1969), “O poeta irmão” (As
impurezas do branco, 1973). E dedicou ao amigo “A mulher do
elevador” (Diário de Minas, Belo Horizonte, 10 jul. 1924). Sobre a
poesia de Emílio Moura, Drummond também escreveu “Palma
severa” (Passeios na ilha, 1952), posteriormente publicado como
prefácio a Poesia (1953), “O anjo Emílio” (Correio da Manhã, Rio de
Janeiro, 11 set. 1956), “Aniversário” (Jornal do Brasil, Caderno B,
Rio de Janeiro, 17 ago. 1972; e Minas Gerais, Suplemento Literário,
Belo Horizonte, 2 set. 1972) e “A poesia na mala” (ver OSÓRIO COUTO
& JOSÉ HIPÓLITO DE MOURA FARIA, Dois poetas e um centenário. Belo
Horizonte: adi edições, 2002, pp. 90-1). Tudo indica que a figura
evocada na crônica “O amigo que chega de longe” seja Emílio Moura
(Caminhos de João Brandão, 1970). Por sua vez, Emílio Moura
escreveu o “Soneto a Carlos Drummond de Andrade” (O instante e o
eterno, 1953), “Ao fazendeiro do ar” e “O poeta e a pedra”
(respectivamente em Habitante da tarde e Noite maior, livros que
fazem parte de Itinerário poético, 1969), além de resenhar
longamente Sentimento do mundo (1940) e voltar ao assunto em “O
poeta e seu sentimento do mundo”, publicado em Panorama, ano 1,
n. 1, ago. 1947. Sobre a amizade dos dois poetas mineiros, ver
OSÓRIO COUTO & JOSÉ HIPÓLITO DE MOURA FARIA, Dois poetas e um
centenário, op. cit., especial, pp. 50-61.
SEGREDO E ATUALIDADE DE SCHMIDT
Publicado na Revista Acadêmica, n. 53, fev. 1941. A primeira edição
de Estrela solitária (1940) foi publicada pela editora José Olympio e
hoje integra o volume Poesia completa: 1928-1965 (Rio de Janeiro:
Topbooks, 1995). Drummond compôs “Augusto Frederico Schmidt 10
anos depois” (Discurso de primavera e algumas sombras, 1977).
AUTOBIOGRAFIA PARA UMA REVISTA
Sob o título “Sorriso crispado ou o depoimento do homem de
Itabira”, aparece na Revista Acadêmica, n. 38, ago. 1938. Em jul.
1941, a mesma revista dedica a edição de n. 56 a Drummond, com
colaborações de Oswaldo Alves, Mário de Andrade, Manuel
Bandeira, José Cezar Borba, Rubem Braga, Odilo Costa Filho,
Ribeiro Couto, Otávio de Faria, Alphonsus de Guimarães Filho,
Carlos Lacerda, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Emílio Moura e
Abgar Renault. Outro perfil autobiográfico é “Autorretrato”, publicado
originalmente em Leitura, jun. 1943, e hoje parte do volume póstumo,
organizado por Fernando Py, Autorretrato e outras crônicas (Rio de
Janeiro: Record, 1989).
SUAS CARTAS
Publicado em duas partes, em versões menores como “Mário de
Andrade, o amigo postal”, na Folha Carioca, 6 mar. 1944, e “Mário
de Andrade, o educador”, na Folha Carioca, 13 mar. 1944. É
provável que o autor, por limitações de espaço, tenha cortado os
seguintes trechos, posteriormente restituídos em Confissões de
Minas: “Eu neste ponto não aconselho nada […] para ser feliz dentro
dela”; “Que horror! […] se sacrificam”; “E nos dá felicidade […]
mando-as à”; “E isso nem sei se tem mérito […] ainda que é o
Brasil”; “E vocês não vivem […] serem vocês”; “Falando das ‘Danças’
[…] sempre esse tom”; “Mas no Brasil […] pensada a repensada”;
“É uma trabalheira […] estupidez”; “Nessa estrada […] enxameiam
nas cartas” e “espero que se reconheça neles […] críticos”.
Quase quarenta anos depois, em 1982, foi editado pela editora
José Olympio A lição do amigo, volume organizado e anotado por
Drummond das cartas que recebeu de Mário de Andrade. Este
conjunto foi, em suas palavras, “o mais constante, generoso e
fecundo estímulo à atividade literária, por mim recebido em toda a
existência”. Finalmente, as cartas do poeta mineiro se juntaram às de
Mário de Andrade, no volume Carlos e Mário: Correspondência
entre Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade (Rio de
Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002), organizado por Lélia Coelho Frota e
anotado por Carlos Drummond de Andrade e Silviano Santiago. Há
menções a Confissões de Minas e à resenha de Lauro Escorel na
carta escrita por Mário em 15 out. 1944, pp. 531-5.
Na presente edição, utilizou-se o texto da edição de 2002, acima
referida, bem como a edição crítica de Diléa Z. Manfio das Poesias
completas (Belo Horizonte: Itatiaia/ São Paulo: Edusp, 1987). Para
efeitos de consulta, as citações de Drummond são referidas, no caso
de poema, pelo título, seguido pelo número da página, ou, no caso
de carta, pela datação, seguida pelo número da página:
Página 68: “Lembrança da Maria (moda safada)”, não incluído pelo autor nas Poesias
completas. Oferecido a Oneyda Alvarenga na série “Malditos”. Figura em carta a
Manuel Bandeira de 7 nov. 1927. Ver Marcos Antonio de Moraes (Org.),
Correspondência: Mário de Andrade e Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp/ IEB-USP,
2001, 2. ed., p. 363.
Página 68-72: carta de 10 de novembro de 1924, pp. 46-51.
Página 72: “A própria dor é uma felicidade…”: sem título, xvii, Losango cáqui, p. 136, e
“As moças”, xxxii, idem, p. 145; carta de 10 de novembro de 1924, p. 46.
Página 72: “Revelam para quem souber…”: carta de 1924, sem data, pp. 68-9; “Toda
gente acha graça…”: carta de 14 de outubro de 1926, p. 249; “Sofrer…”: A costela do
grão cão, pp. 300-5.
Páginas 74-6: carta de 18 de fevereiro de 1925, pp. 100-02; carta de 1o de agosto de
1926, pp. 228-31.
Página 78: carta de 16 de dezembro de 1934, p. 436; a conferência referida é “O
movimento modernista” e está publicada em Aspectos da literatura brasileira. São
Paulo: Martins, 1974, 5. ed.

Mário de Andrade analisou a poesia de Drummond em “A poesia


em 1930” (Aspectos da literatura brasileira. 5. ed. São Paulo:
Martins, 1974, pp. 32-7). Por sua vez, o poeta mineiro dedicou seu
primeiro livro, Alguma poesia (1930), a Mário de Andrade, e compôs
“Mário de Andrade desce aos infernos” (A rosa do povo, 1945) e
“Mário longínquo” (Lição de coisas, 1962).
ESTIVE EM CASA DE CANDINHO
Publicado na Revista Acadêmica, Rio de Janeiro, n. 48, fev. 1940,
dedicado especialmente ao pintor Candido Portinari, com a
colaboração de Álvaro Lins, Aníbal Machado, Guignard, Jorge de
Lima, José Lins do Rego, Manuel Bandeira, Mário de Andrade,
Murilo Mendes, Pedro Nava e Santa Rosa, entre outros. No mesmo
tom de crônica, Drummond voltaria ao tema em “O pintor em horas
antigas”, incluído em Cadeira de balanço (1966), e em “A família
Portinari”, na entrada de 17 mar. 1945 no diário O observador no
escritório (1985).
Drummond compôs “Portinari” (Viola de bolso, 1952), “A mão”
(Lição de coisas, 1962), “Quixote e Sancho, de Portinari” (As
impurezas do branco, 1973, originalmente em PORTINARI, Dom
Quixote. Rio de Janeiro: Diagraphis Editora, 1973), “Lembrança de
Portinari” (Discurso de primavera e algumas sombras, 1977) e “O
mundo nos olhos de Portinari”, prefácio a Portinari [12 desenhos em
pranchas soltas]. São Paulo: Cultrix, 1966. Portinari deixou dois
retratos do poeta, um quadro a óleo (1936) e um desenho a sépia e
pincel seco (c. 1940). Ver PORTINARI, Catálogo raisonné. v. I, 621 [FCO
3998], p. 352; e v. II, 1192 [FCO 1640], p. 128.
POESIA E UTILIDADE DE SIMÕES DOS REIS
Publicado na Folha da Manhã, São Paulo, 6 dez. 1942. O sergipano
ANTÔNIO SIMÕES DOS REIS (1899-1980) foi bibliógrafo e livreiro da
Organização Simões, editora que publicou Passeios na ilha (1952).
Desde 1929 dirigiu a publicação especializada O Bibliógrafo. De
1941 a 1947 foi diretor do Serviço de Divulgação do Ministério da
Educação e Cultura. Autor de Pseudônimos brasileiros: Pequenos
verbetes para um dicionário (Rio de Janeiro: Zélio Valverde, 1941);
Mário de Andrade: Bibliografia sobre a sua obra (Rio de Janeiro:
Ministério da Educação e Saúde, s.d.); Bibliografia das bibliografias
brasileiras (Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1942),
Poetas do Brasil: Bibliografia. 2 v. (Rio de Janeiro: Organizações
Simões, 1949), entre outros.
Sobre Simões dos Reis, há também uma crônica de Drummond,
“Simões e os poetas”, publicada postumamente em Autorretrato e
outras crônicas (org. Fernando Py. Rio de Janeiro: Record, 1989).
Ainda sobre o bibliógrafo e livreiro, ver WALDIR RIBEIRO DO VAL, “Simões
dos Reis, um bibliógrafo”, A Gazeta, Vitória, 9 jul. 1953, e ARNAUD
PIERRE, “Simões dos Reis, o livreiro”, Correio da Manhã, 15 jul. 1961.

MORTE DE FEDERICO GARCÍA LORCA


Publicado no Boletim de Ariel, Rio de Janeiro, ano VII, n. 2, nov.
1937. Pela ordem de citação, o poema de Antonio Machado é “El
crimen fue em Granada”, publicado em Poesias de guerra (1936-9),
e as poesias de Lorca são “Romance de la pena negra” em
Romancero gitano (1924-7), “Oda a Salvador Dalí”, “Mundo” e
“España”, que nas Obras completas estão no conjunto Poemas
sueltos. Anos depois, na condição de presidente do Ateneu García
Lorca, no dia da inauguração, 30 set. 1946, Drummond pronunciou
no Teatro Regina a conferência “García Lorca e a cultura espanhola”.
Esta foi reproduzida no Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 6 out.
1946. No mesmo ano, em 13 jan., havia publicado “Poetas diante da
Espanha”, no Diário Carioca. Em 1968, volta ao assunto em
“Espanha e Federico, numa noite”, no Correio da Manhã, 27 jul.
1968.
Vale lembrar que Drummond, além de “A casada infiel”, poema do
Romancero gitano, traduziu a peça Dona Rosita, a solteira (Rio de
Janeiro: Agir, 1959). Sem falar do poema “A Federico García Lorca”,
incluído em Novos poemas (1948).
MAURIAC E TERESA DESQUEYROUX
Publicado na Revista Acadêmica, n. 60, maio 1942. Posteriormente,
figura como prefácio do romance Uma gota de veneno (Rio de
Janeiro: Irmãos Pongetti, 1943), traduzido pelo poeta. Reeditado
sessenta anos depois como Thérèse Desqueyroux, na coleção
Prosa do Mundo (São Paulo: Cosac Naify, 2002).
BOADELLA ENTRE ELEFANTES
Prefácio a JOSÉ BOADELLA GARRÓS, La caravana de los elefantes (Rio
de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1943). Natural de Bilbao, JOSÉ BOADELLA
GARRÓS (1904-?) chegou ao Brasil em 1933 e realizou sua primeira
exposição em 1934, na capital da Venezuela. Já residindo no Brasil,
expôs no Rio de Janeiro, em 1935 e em 1936, ano no qual obteve
Menção Honrosa no Salão de Belas-Artes com a escultura Conflito.
No ano seguinte, no mesmo salão, ganhou a medalha de prata com
Goya em Carabanchel. Também publicou Sol sobre las piedras,
1925-1938 (Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1939).
O SIMPÁTICO WILLIAM BERRIEN
Publicado na Folha da Manhã, 21 out. 1942. WILLIAM BERRIEN (1902-?)
foi diretor da Fundação Rockefeller e visitou o Brasil no âmbito da
“política da boa vizinhança” estimulada pelo presidente Franklin D.
Roosevelt durante a Segunda Guerra Mundial por intermédio do
Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA), cuja chefia
estava a cargo de Nelson Rockefeller. Prestou serviços de
assessoria na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Foi professor
de língua espanhola e portuguesa em Northwestern California
University, University of Michigan, Mills University e Harvard
University, onde fundou o Modern Language Center. Coautor, com o
escritor e bibliófilo brasileiro Rubens Borba de Morais, do Manual
bibliográfico de estudos brasileiros (Rio de Janeiro: Gráfica Editora
Souza, 1949), no qual colaboraram Mário de Andrade, Herbert
Baldus, Manuel Bandeira, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de
Holanda, Pierre Monbeig, Caio Prado Jr., Robert C. Smith e Otávio
Tarquínio de Sousa, entre outros.
confissões de minas
Estes três textos parecem feitos da mesma argamassa conceitual
que molda certas crônicas de Mário de Andrade e Manuel Bandeira.
Eles refletem uma demarcação ainda indefinida das fronteiras de
gênero, ora avançando sobre o território da crônica histórica ora
invadindo as propriedades mais produtivas do ensaio, tão presentes
em O turista aprendiz (1927-9), Táxi e crônicas no Diário Nacional
(1927-32) ou nas Crônicas da província do Brasil (1937).
Aos três defuntos românticos, aos três amigos mortos, somam-se
agora esses três textos sobre cidades mortas. Para Drummond, o
presente se dissolve no passado, o indivíduo infiltra-se no coletivo,
os mortos esboçam uma conversa com os vivos.
VILA DE UTOPIA
Publicado em A Tribuna e Minas Gerais, Belo Horizonte, 7 out. 1933.
VIAGEM DE SABARÁ
Publicado em O Jornal, Rio de Janeiro, número especial sobre Minas
Gerais, 24 jun. 1929. O poema de Oswald de Andrade é “ditirambo”,
no conjunto “rp I” de Pau-Brasil (1925).
TEATRO DAQUELE TEMPO
Publicado em Sombra, sob o título “O bom foi 1910…”, Rio de
Janeiro, fev. 1944; e em Vamos ler!. Rio de Janeiro, 2 nov. 1944.
quase histórias
Esta parte sinaliza um ponto de virada na estrutura do livro. As
explorações em torno do grupo familiar, a mineração nas fundas
galerias das origens, as ciladas e tocaias do passado cedem lugar
a pequenas crônicas crivadas de observações sobre o cotidiano,
sobre a comunhão urbana da rua, numa prosa vazada de diálogos,
resíduo de diários e dotada de fina ironia que enreda a todos, seja
padre, chofer, escritor.
O conjunto dos textos demonstra a acentuada inclinação narrativa
do poeta, não à toa dois deles passaram a integrar Contos de
aprendiz (1951). Nesta cidade moderna, feita de automóveis,
elevadores, greves, “o presente também dói fisicamente quando
nos aproximamos dele com os olhos ainda cheios de passado”,
invertendo as palavras do próprio Drummond em “Viagem de
Sabará”.
CONVERSA DE VELHO COM CRIANÇA
Publicado em Bello Horizonte, Belo Horizonte, 21 jun. 1934. Passou
a integrar o livro Contos de aprendiz a partir da segunda edição (Rio
de Janeiro: José Olympio, 1958).
LEMBRO-ME DE UM PADRE
Publicado no Anuário Brasileiro de Literatura, Rio de Janeiro, n. 40,
1940.
LEONOR, EMÍLIA, MARIETA
Publicado em O Jornal, Rio de Janeiro, 26 abr. 1936.
MORREU UM CHOFER
Publicado no Diário da Tarde, Belo Horizonte, 14 jul. 1934.
UM ESCRITOR NASCE E MORRE
Publicado na Revista do Brasil, Rio de Janeiro, n. 16, ano II, 3a fase,
out. 1939. Passou a integrar o livro Contos de aprendiz a partir da
segunda edição (Rio de Janeiro: José Olympio, 1958).
ESBOÇO DE UMA CASA
Publicado em Autores e Livros, suplemento literário de A Manhã, Rio
de Janeiro, 7 mar. 1943.
caderno de notas
Nesta seção que fecha o livro é importante destacar procedimentos
que singularizam a prosa de Carlos Drummond de Andrade. O
primeiro aspecto que chama a atenção é a sua capacidade de
reaproveitar artigos datados das décadas de 1920 ou 1930,
reorganizando-os dentro de uma nova lógica. O segundo é que
justamente a técnica da montagem parece atuar de modo direto
sobre o processo de composição, reatualizando os textos, dando-
lhes uma sobrevida.
Publicados no jornal sob o título geral de “Notas do tempo” ou “O
homem sentado”, os pequenos fragmentos de texto adquirem
configuração de simultaneidade, revelam uma extrema alternância
de planos e movimentos. Transportados para a página do livro,
essas “notas” perdem parte da temporalidade e se abrem a uma
série de novas articulações. Mimetizam a estrutura de poemas
como “Lanterna mágica” ou “Selo de Minas”.

Reunidos sob o título geral de “Notas do tempo”, os textos


“Purgação”, “Poesia do tempo”, “Velha casa”, “Literatura infantil” e
“Morte de um gordo” foram publicados em Autores e Livros,
suplemento literário de A Manhã, 10 ago. 1941. É importante frisar
que os títulos não constavam do original e foram introduzidos na
edição de Confissões de Minas.

Reunidos sob o título geral de “O homem sentado”, os textos


“Religião e poesia”, “Linguagem”, “Bondade”, “Neblina” e “Georgina”
foram publicados em Autores e Livros, suplemento literário de A
Manhã, 23 ago. 1942. Neste caso, os títulos já constavam do original
e foram preservados na edição de Confissões de Minas.
Vale observar que Drummond já havia abordado anteriormente um
dos temas: “Poesia e religião”, em A Revista, Belo Horizonte, ano 1,
n. 3, jan. 1926; “Neblina” foi publicado sob o pseudônimo de Barba
Azul, na seção “Um minuto, apenas”, caderno Variedades, em Minas
Gerais, 16 jul. 1931; “Georgina” foi publicado sob o pseudônimo
Barba Azul e o título original “Sem ninguém saber” na seção “Um
minuto, apenas”, caderno “Variedades”, em Minas Gerais, Belo
Horizonte, 25 jun. 1931.

Reunidos sob o título geral de “Notas do tempo”, os textos


“Pontuação e poesia”, “Questão de corpo”, “Língua pátria” e “Um
sinal” foram publicados em Autores e Livros, ano II, v. III, n. 7,
suplemento literário de A Manhã, 6 set. 1942. No primeiro tópico, o
poema citado de Mallarmé é “Rondels — II”, do conjunto Feuillets
d’album: “Se quiseres, nós nos amaremos/ com teus lábios sem o
dizer/ Esta rosa só o interrompe/ Para verter um silêncio pior”. O
poema de Apollinaire é “L’Adieu” de Alcools: “Colhi este raminho de
urze/ O outono morreu lembra-te/ Não nos veremos mais sobre a
terra/ Cheiro do tempo raminho de urze/ E lembra-te de que eu te
espero” [traduções livres de Cláudia Santana Martins].
O último tópico, “Um sinal”, foi publicado sob o pseudônimo José
Luís na coluna “O homem da rua” do Minas Gerais, Belo Horizonte,
23 mar. 1932.
O LIVRO INÚTIL
Publicado em O Jornal, Rio de Janeiro, 28 ago. 1935.
TERNURA DIANTE DO RETRATO
Publicado em O Jornal, Rio de Janeiro, 28 ago. 1935. E
posteriormente em Pronome, jornal dos alunos do Colégio Pedro II,
Rio de Janeiro, número de out./dez. 1939.

Reunidos sob o título geral de “Notas do tempo”, os textos “A coisa


simples”, “Nu artístico”, “Moda literária” e “Prodígio” foram
publicados em Autores e Livros, suplemento literário de A Manhã, 20
set. 1942.
De todos eles, apenas “Prodígio” havia sido publicado
anteriormente sob o pseudônimo de José Luís e o título “Aritinha
Bauer” na coluna “O homem da rua” do Minas Gerais, Belo
Horizonte, 20 mar. 1932.
ENQUANTO DESCÍAMOS O RIO
Publicado no Minas Gerais, Belo Horizonte, 27 nov. 1932.
A VOZ PELO TELEFONE
Publicado sob o pseudônimo de José Joaquim no Minas Gerais, Belo
Horizonte, 6 nov. 1932.
VINTE LIVROS NA ILHA
Publicado sob o título “Vinte livros e a ilha deserta” em A Tribuna,
Belo Horizonte, 11 abr. 1933. Posteriormente sob o título “Vinte livros
na ilha deserta” na Folha da Manhã, São Paulo, 8 out. 1942.

NATAL USA, 1931


Publicado em Bazar, Rio de Janeiro, 15 jan. 1932.
ENTERRO NA RUA POBRE
Publicado em A Revista, Belo Horizonte, ano I, n. I, jul. 1925.
Posteriormente em Saúde e Beleza, Rio de Janeiro, dez. 1940.

Reunidos sob o título geral de “A vida e as imagens”, os textos “Os


fotógrafos vegetais”, “Número 10 mil” e “A rua assombrada” foram
publicados em Autores e Livros, suplemento literário de A Manhã, 19
jul. 1942.
Todos os três já haviam sido publicados anteriormente: “Os
fotógrafos vegetais” foi publicado sob o pseudônimo de José Luís no
Minas Gerais, Belo Horizonte, 15 fev. 1932; “Número 10 mil” foi
publicado sob o pseudônimo de José Luís na coluna “O homem da
rua” do Minas Gerais, Belo Horizonte, 15 mar. 1932; e “A rua
assombrada” foi publicado no Minas Gerais, Belo Horizonte, 9 jun.
1931.
CONTO DE NATAL NO BONDE
Publicado em O Estado de Minas, Belo Horizonte, 25 dez. 1930.
O COTOVELO DÓI
Publicado em Esfera, Rio de Janeiro, ano I, n. 2, jun. 1938. Os
versos em epígrafe “Ai, ai, ai, meu Deus/ Tenha pena de mim” são
do samba “Tenha pena de mim”: “Ai, ai, meu Deus/ tenha pena de
mim!/ Todos vivem muito bem/ Só eu quem vivo assim./ Trabalho, não
tenho nada/ Não saio do miserê./ Ai, ai, meu Deus/ Isso é para lá de
sofrer!// Sem nunca ter/ nem conhecer felicidade./ Sem um afeto/ Um
carinho ou amizade/ Eu vivo tão tristonho/ Fingindo-me contente./
Tenho feito força/ para viver honestamente.// O dia inteiro/ Eu
trabalho com afinco/ E à noite volto/ para o meu barracão de zinco./
E para matar o tempo/ E não falar sozinho/ Amarro essa tristeza/
com as cordas do meu pinho”. A autoria da canção é de Cyro de
Souza e Waldemiro Rocha, este um compositor do morro da
Mangueira mais conhecido como Babaú. Na voz de Aracy de
Almeida, a música foi gravada em agosto de 1937 e lançada em
novembro do mesmo ano, tendo sido um dos maiores sucessos do
Carnaval de 1938. Já os versos “Ias triste e lúcido” pertencem ao
poema “Marinheiro triste”, de Estrela da manhã (1936).

* As notas aqui reproduzidas foram preparadas por Augusto Massi e Milton Ohata e
publicadas originalmente em Confissões de Minas (São Paulo: Cosac Naify, 2011). A editora
agradece a gentil autorização da Cosac Naify.
Cronologia

1902 Nasce Carlos Drummond de Andrade, em 31 de


outubro, na cidade de Itabira do Mato Dentro (MG),
nono filho de Carlos de Paula Andrade, fazendeiro, e
Julieta Augusta Drummond de Andrade.
1910 Inicia o curso primário no Grupo Escolar Dr.
Carvalho Brito.
1916 É matriculado como aluno interno no Colégio
Arnaldo, em Belo Horizonte. Conhece Gustavo
Capanema e Afonso Arinos de Melo Franco.
Interrompe os estudos por motivo de saúde.
1917 De volta a Itabira, toma aulas particulares com o
professor Emílio Magalhães.
1918 Aluno interno do Colégio Anchieta da Companhia
de Jesus, em Nova Friburgo, colabora na Aurora
Colegial. No único exemplar do jornalzinho Maio…, de
Itabira, o irmão Altivo publica o seu poema em prosa
“Onda”.
1919 É expulso do colégio em consequência de
incidente com o professor de português. Motivo:
“insubordinação mental”.
1920 Acompanha sua família em mudança para Belo
Horizonte.
1921 Publica seus primeiros trabalhos no Diário de
Minas. Frequenta a vida literária de Belo Horizonte.
Amizade com Milton Campos, Abgar Renault, Emílio
Moura, Alberto Campos, Mário Casassanta, João
Alphonsus, Batista Santiago, Aníbal Machado, Pedro
Nava, Gabriel Passos, Heitor de Sousa e João Pinheiro
Filho, habitués da Livraria Alves e do Café Estrela.
1922 Seu conto “Joaquim do Telhado” vence o
concurso da Novela Mineira. Trava contato com Álvaro
Moreyra, diretor de Para Todos… e Ilustração
Brasileira, no Rio de Janeiro, que publica seus
trabalhos.
1923 Ingressa na Escola de Odontologia e Farmácia
de Belo Horizonte.
1924 Conhece, no Grande Hotel de Belo Horizonte,
Blaise Cendrars, Mário de Andrade, Oswald de
Andrade e Tarsila do Amaral, que regressam de
excursão às cidades históricas de Minas Gerais.
1925 Casa-se com Dolores Dutra de Morais. Participa
— juntamente com Martins de Almeida, Emílio Moura e
Gregoriano Canedo — do lançamento de A Revista.
1926 Sem interesse pela profissão de farmacêutico,
cujo curso concluíra no ano anterior, e não se
adaptando à vida rural, passa a lecionar geografia e
português em Itabira. Volta a Belo Horizonte e, por
iniciativa de Alberto Campos, ocupa o posto de redator
e depois redator-chefe do Diário de Minas. Villa-Lobos
compõe uma seresta sobre o poema “Cantiga de viúvo”
(que iria integrar Alguma poesia, seu livro de estreia).
1927 Nasce em 22 de março seu filho, Carlos Flávio,
que morre meia hora depois de vir ao mundo.
1928 Nascimento de sua filha, Maria Julieta. Publica
“No meio do caminho” na Revista de Antropofagia, de
São Paulo, dando início à carreira escandalosa do
poema. Torna-se auxiliar na redação da Revista do
Ensino, da Secretaria de Educação.
1929 Deixa o Diário de Minas e passa a trabalhar no
Minas Gerais, órgão oficial do estado, como auxiliar de
redação e, pouco depois, redator.
1930 Alguma poesia, seu livro de estreia, sai com
quinhentos exemplares sob o selo imaginário de
Edições Pindorama, de Eduardo Frieiro. Assume o
cargo de auxiliar de gabinete de Cristiano Machado,
secretário do Interior. Passa a oficial de gabinete
quando seu amigo Gustavo Capanema assume o
cargo.
1931 Morre seu pai.
1933 Redator de A Tribuna. Acompanha Gustavo
Capanema durante os três meses em que este foi
interventor federal em Minas.
1934 Volta às redações: Minas Gerais, Estado de
Minas, Diário da Tarde, simultaneamente. Publica Brejo
das almas (duzentos exemplares) pela cooperativa Os
Amigos do Livro. Transfere-se para o Rio de Janeiro
como chefe de gabinete de Gustavo Capanema, novo
ministro da Educação e Saúde Pública.
1935 Responde pelo expediente da Diretoria-Geral de
Educação e é membro da Comissão de Eficiência do
Ministério da Educação.
1937 Colabora na Revista Acadêmica, de Murilo
Miranda.
1940 Publica Sentimento do mundo, distribuindo entre
amigos e escritores os 150 exemplares da tiragem.
1941 Mantém na revista Euclides, de Simões dos Reis,
a seção “Conversa de Livraria”, assinada por “O
Observador Literário”. Colabora no suplemento literário
de A Manhã.
1942 Publica Poesias, na prestigiosa Editora José
Olympio.
1943 Sua tradução de Thérèse Desqueyroux, de
François Mauriac, vem a lume sob o título Uma gota de
veneno.
1944 Publica Confissões de Minas.
1945 Publica A rosa do povo e O gerente. Colabora no
suplemento literário do Correio da Manhã e na Folha
Carioca. Deixa a chefia do gabinete de Capanema e, a
convite de Luís Carlos Prestes, figura como codiretor
do diário comunista Tribuna Popular. Afasta-se meses
depois por discordar da orientação do jornal. Trabalha
na Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(DPHAN), onde mais tarde se tornará chefe da Seção de
História, na Divisão de Estudos e Tombamento.
1946 Recebe o Prêmio de Conjunto de Obra, da
Sociedade Felipe d’Oliveira.
1947 É publicada a sua tradução de Les Liaisons
dangereuses, de Laclos.
1948 Publica Poesia até agora. Colabora em Política e
Letras. Acompanha o enterro de sua mãe, em Itabira.
Na mesma hora, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro,
é executado o “Poema de Itabira”, de Villa-Lobos, a
partir do seu poema “Viagem na família”.
1949 Volta a escrever no Minas Gerais. Sua filha,
Maria Julieta, casa-se com o escritor e advogado
argentino Manuel Graña Etcheverry e vai morar em
Buenos Aires. Participa do movimento pela escolha de
uma diretoria apolítica na Associação Brasileira de
Escritores. Contudo, juntamente com outros
companheiros, desliga-se da sociedade por causa de
atritos com o grupo esquerdista.
1950 Viaja a Buenos Aires para acompanhar o
nascimento do primeiro neto, Carlos Manuel.
1951 Publica Claro enigma, Contos de aprendiz e A
mesa. O volume Poemas é publicado em Madri.
1952 Publica Passeios na ilha e Viola de bolso.
1953 Exonera-se do cargo de redator do Minas Gerais
ao ser estabilizada sua situação de funcionário da
DPHAN. Vai a Buenos Aires para o nascimento do seu
neto Luis Mauricio. Na capital argentina aparece o
volume Dos poemas.
1954 Publica Fazendeiro do ar & Poesia até agora. É
publicada sua tradução de Les Paysans, de Balzac. A
série de palestras “Quase memórias”, em diálogo com
Lia Cavalcanti, é veiculada pela Rádio Ministério da
Educação. Dá início à série de crônicas “Imagens”, no
Correio da Manhã, mantida até 1969.
1955 Publica Viola de bolso novamente encordoada. O
livreiro Carlos Ribeiro publica edição fora de comércio
do Soneto da buquinagem.
1956 Publica Cinquenta poemas escolhidos pelo autor.
Sai sua tradução de Albertine disparue, ou La Fugitive,
de Marcel Proust.
1957 Publica Fala, amendoeira e Ciclo.
1958 Uma pequena seleção de seus poemas é
publicada na Argentina.
1959 Publica Poemas. Ganha os palcos a sua tradução
de Doña Rosita la Soltera, de García Lorca, pela qual
recebe o Prêmio Padre Ventura.
1960 É publicada a sua tradução de Oiseaux-Mouches
Ornithorynques du Brésil, de Descourtilz. Colabora em
Mundo Ilustrado. Nasce em Buenos Aires seu neto
Pedro Augusto.
1961 Colabora no programa Quadrante, da Rádio
Ministério da Educação. Morre seu irmão Altivo.
1962 Publica Lição de coisas, Antologia poética e A
bolsa & a vida. Aparecem as traduções de L’Oiseau
bleu, de Maeterlinck, e Les Fourberies de Scapin, de
Molière, recebendo por esta novamente o Prêmio
Padre Ventura. Aposenta-se como chefe de seção da
DPHAN, após 35 anos de serviço público.
1963 Aparece a sua tradução de Sult (Fome), de Knut
Hamsun. Recebe, pelo livro Lição de coisas, os
prêmios Fernando Chinaglia, da União Brasileira de
Escritores, e Luísa Cláudio de Sousa, do PEN Clube do
Brasil. Inicia o programa Cadeira de Balanço, na Rádio
Ministério da Educação.
1964 Publicação da Obra completa, pela Aguilar. Início
das visitas, aos sábados, à biblioteca de Plínio Doyle,
evento mais tarde batizado de “Sabadoyle”.
1965 Publicação de Antologia poética (Portugal); In the
Middle of the Road (Estados Unidos); Poesie
(Alemanha). Com Manuel Bandeira, edita Rio de
Janeiro em prosa & verso. Colabora em Pulso.
1966 Publicação de Cadeira de balanço e de Natten
och Rosen (Suécia).
1967 Publica Versiprosa, José & outros, Uma pedra no
meio do caminho: biografia de um poema, Minas
Gerais (Brasil, terra e alma), Mundo, vasto mundo
(Buenos Aires) e Fyzika Strachu (Praga).
1968 Publica Boitempo & A falta que ama.
1969 Passa a colaborar no Jornal do Brasil. Publica
Reunião (dez livros de poesia).
1970 Publica Caminhos de João Brandão.
1971 Publica Seleta em prosa e verso. Sai em Cuba a
edição de Poemas.
1972 Publica O poder ultrajovem. Suas sete décadas
de vida são celebradas em suplementos pelos maiores
jornais brasileiros.
1973 Publica As impurezas do branco, Menino antigo,
La bolsa y la vida (Buenos Aires) e Réunion (Paris).
1974 Recebe o Prêmio de Poesia da Associação
Paulista de Críticos Literários.
1975 Publica Amor, amores. Recebe o Prêmio Nacional
Walmap de Literatura. Recusa por motivo de
consciência o Prêmio Brasília de Literatura, da
Fundação Cultural do Distrito Federal.
1977 Publica A visita, Discurso de primavera e Os dias
lindos. É publicada na Bulgária uma antologia intitulada
Sentimento do mundo.
1978 A Editora José Olympio publica a segunda edição
(corrigida e aumentada) de Discurso de primavera e
algumas sombras. Publica O marginal Clorindo Gato e
70 historinhas, reunião de pequenas histórias
selecionadas em seus livros de crônicas. Amar-Amargo
e El poder ultrajoven saem na Argentina. A PolyGram
lança dois LPs com 38 poemas lidos pelo autor.
1979 Publica Poesia e prosa, revista e atualizada, pela
Editora Nova Aguilar. Sai também seu livro Esquecer
para lembrar.
1980 Recebe os prêmios Estácio de Sá, de jornalismo,
e Morgado Mateus (Portugal), de poesia. Publicação
de A paixão medida, En Rost at Folket (Suécia), The
Minus Sign (Estados Unidos), Poemas (Holanda) e
Fleur, téléphone et jeune fille… (França).
1981 Publica, em edição fora de comércio, Contos
plausíveis. Com Ziraldo, lança O pipoqueiro da
esquina. Sai a edição inglesa de The Minus Sign.
1982 Aniversário de oitenta anos. A Biblioteca Nacional
e a Casa de Rui Barbosa promovem exposições
comemorativas. Recebe o título de doutor honoris
causa pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Publica A lição do amigo. Sai no México a
edição de Poemas.
1983 Declina do Troféu Juca Pato. Publica Nova
reunião e o infantil O elefante.
1984 Publica Boca de luar e Corpo. Encerra sua
carreira de cronista regular após 64 anos dedicados ao
jornalismo.
1985 Publica Amar se aprende amando, O observador
no escritório, História de dois amores (infantil) e Amor,
sinal estranho (edição de arte). Lançamento comercial
de Contos plausíveis. Publicação de Fran Oxen Tid
(Suécia).
1986 Publica Tempo, vida, poesia. Sofrendo de
insuficiência cardíaca, passa catorze dias hospitalizado.
Edição inglesa de Travelling in the Family.
1987 É homenageado com o samba-enredo “O reino
das palavras”, pela Estação Primeira de Mangueira,
que se sagra campeã do Carnaval. No dia 5 de agosto
morre sua filha, Maria Julieta, vítima de câncer. Muito
abalado, morre em 17 de agosto.
GD
Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond
www.carlosdrummond.com.br
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou
em vigor no Brasil em 2009.
CAPA
Raul Loureiro
Sobre foto de Acervo Chichico Alkmim/ Instituto Moreira Salles
FOTO DO AUTOR
Acervo Fundação Casa de Rui Barbosa/ Arquivo Museu de Literatura Brasileira/ Fundo Carlos
Drummond de Andrade. Reprodução de Ailton Alexandre da Silva
PREPARAÇÃO
Leny Cordeiro
REVISÃO
Huendel Viana
Carmen T. S. Costa
VERSÃO DIGITAL
Rafael Alt
ISBN 978-65-5782-023-0

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA SCHWARCZ S.A.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002 — São Paulo — SP
Telefone (11) 3707-3500
www.companhiadasletras.com.br
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twitter.com/cialetras
Nova reunião
Andrade, Carlos Drummond de
9788543804002
928 p�ginas

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Num único volume, uma viagem panorâmica e instrutiva pela


obra de um dos mais importantes poetas brasileiros. E com
preço acessível.

Em 1969, Drummond publicou sua Reunião em um único volume.


Recolhia, ali, os dez livros que escrevera até então, incluindo Alguma
poesia (1930), sua obra de estreia. Mais tarde foi acrescentando
outros volumes, até 1983, quando trouxe a lume, já sob o nome Nova
reunião, dezenove títulos de sua lírica. Depois da morte do poeta, os
netos Luis Mauricio e Pedro Graña Drummond complementaram a
obra com trechos de livros posteriores.
O resultado, ideal para estudantes e amantes de poesia, é esta
Nova reunião de 23 livros em um único volume. Um amplo painel da
obra de Carlos Drummond de Andrade, que atravessou boa parte do
século XX construindo um depoimento - lírico e político, metafísico e
sensual - sobre o Brasil.

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As pequenas virtudes
Ginzburg, Natalia
9788554516260
128 p�ginas

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Escritos entre 1944 e 1962, situados entre o ensaio e a


autobiografia, os onze relatos de As pequenas virtudes são um
marco da escrita memorialística do século XX.

Sem idealizações nem sentimentalismos, As pequenas virtudes é


fruto de uma prosa límpida, aliada ao vigor típico dos escritores que,
ao falar de coisas simples, revelam as questões humanas mais
profundas. Nestes onze textos, a escritora italiana Natalia Ginzburg
não faz delimitações entre as dimensões social e histórica,
construindo uma obra singular e de raro afeto.
O livro é dividido em duas partes. A primeira se atém a
deslocamentos — como o período em que a autora morou em
Londres — e a retratos de duas figuras centrais em sua vida: o
poeta Cesare Pavese, de quem ela foi amiga, e Gabriele Baldini, seu
segundo marido. Na segunda, figuram ensaios poderosos, como "O
filho do homem", uma avaliação das sequelas da guerra recém-
terminada; "O meu ofício", em que Ginzburg explora as relações
entre escrita e verdade íntima; e o texto que dá título a este volume,
um elogio extraordinário às verdadeiras grandezas humanas.
Breve e imenso, simples e original, As pequenas virtudes é um livro
inesquecível. Ao retratar uma vida marcada por perdas, desterros e
humildes alegrias, Natalia Ginzburg constrói uma obra luminosa,
cheia de carinho e de genuíno amor às pessoas e às palavras.

"Uma lição de literatura." — Italo Calvino


"Com lucidez e uma valentia a toda prova, Natalia Ginzburg nos
mostra seus personagens quando não eram heróis nem vítimas;
quando eram falíveis, quando era possível amá-los menos. E por
isso os amamos mais." — Alejandro Zambra

"Ginzburg é inconfundível. Suas observações são rápidas e exatas,


geralmente irradiadas através de humor indisciplinado e satírico. Sua
voz é pura, fascinante, elegantemente moldada pela autoridade de
uma inteligência poderosa." — The New York Review of Books

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Uma terra prometida
Obama, Barack
9786557820322
764 p�ginas

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Um relato fascinante e profundamente íntimo da história em


formação — feito pelo presidente que nos inspirou a acreditar
no poder da democracia.

No comovente e aguardado primeiro volume de suas memórias


presidenciais, Barack Obama narra, nas próprias palavras, a história
de sua odisseia improvável, desde quando era um jovem em busca
de sua identidade até se tornar líder do mundo livre. Com detalhes
surpreendentes, ele descreve sua formação política e os momentos
marcantes do primeiro mandato de sua presidência histórica —
época de turbulências e transformações drásticas.
Obama conduz os leitores através de uma jornada cativante, das
primeiras aspirações políticas à vitória crucial nas primárias de Iowa,
na qual se demonstrou a força do ativismo popular, até a noite
decisiva de 4 de novembro de 2008, quando foi eleito 44º presidente
dos Estados Unidos, o primeiro afro-americano a ocupar o cargo
mais alto do país.
Ao refletir sobre a presidência, ele faz uma análise singular e
cuidadosa do alcance e das limitações do poder executivo, além de
oferecer pontos de vista surpreendentes sobre a dinâmica da política
partidária dos Estados Unidos e da diplomacia internacional. Obama
leva os leitores para dentro do Salão Oval e da Sala de Situação da
Casa Branca, e também em viagens a Moscou, Cairo e Pequim,
entre outros lugares. Acompanhamos de perto seus pensamentos
enquanto monta o gabinete, enfrenta uma crise financeira global,
avalia a verdadeira face de Vladímir Pútin, supera dificuldades que
pareciam insuperáveis para aprovar a Lei de Assistência Acessível
(Affordable Care Act), bate de frente com generais sobre a
estratégia militar dos Estados Unidos no Afeganistão, trata da
reforma de Wall Street, reage à devastadora explosão da plataforma
petrolífera Deepwater Horizon e autoriza a Operação Lança de
Netuno, que culmina com a morte de Osama bin Laden.
Uma terra prometida é extraordinariamente pessoal e introspectivo
— o relato da aposta de um homem na história, da fé de um
organizador comunitário posta à prova no palco mundial. Obama fala
com sinceridade sobre a situação delicada de concorrer a um cargo
eletivo sendo um americano negro, sobre corresponder às
expectativas de uma geração inspirada por mensagens de
"esperança e mudança" e sobre lidar com os desafios morais das
decisões de alto risco. É honesto sobre as forças que se opuseram
a ele dentro e fora do país, franco sobre os efeitos da vida na Casa
Branca em sua esposa e em suas filhas e audacioso ao confessar
suas dúvidas e desilusões. Jamais duvida, porém, de que no grande
e incessante experimento americano o progresso é sempre possível.
Brilhantemente escrito e poderoso, este livro demonstra a convicção
de Barack Obama de que a democracia não é uma benção divina,
mas algo fundado na empatia e no entendimento comum e construído
em conjunto, todos os dias.

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Sejamos todos feministas
Adichie, Chimamanda Ngozi
9788543801728
24 p�ginas

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O que significa ser feminista no século XXI? Por que o


feminismo é essencial para libertar homens e mulheres? Eis as
questões que estão no cerne de Sejamos todos feministas,
ensaio da premiada autora de Americanah e Meio sol amarelo.
"A questão de gênero é importante em qualquer canto do mundo. É
importante que comecemos a planejar e sonhar um mundo diferente.
Um mundo mais justo. Um mundo de homens mais felizes e mulheres
mais felizes, mais autênticos consigo mesmos. E é assim que
devemos começar: precisamos criar nossas filhas de uma maneira
diferente. Também precisamos criar nossos filhos de uma maneira
diferente."
Chimamanda Ngozi Adichie ainda se lembra exatamente da primeira
vez em que a chamaram de feminista. Foi durante uma discussão
com seu amigo de infância Okoloma. "Não era um elogio. Percebi
pelo tom da voz dele; era como se dissesse: 'Você apoia o
terrorismo!'". Apesar do tom de desaprovação de Okoloma, Adichie
abraçou o termo e — em resposta àqueles que lhe diziam que
feministas são infelizes porque nunca se casaram, que são "anti-
africanas", que odeiam homens e maquiagem — começou a se
intitular uma "feminista feliz e africana que não odeia homens, e que
gosta de usar batom e salto alto para si mesma, e não para os
homens".
Neste ensaio agudo, sagaz e revelador, Adichie parte de sua
experiência pessoal de mulher e nigeriana para pensar o que ainda
precisa ser feito de modo que as meninas não anulem mais sua
personalidade para ser como esperam que sejam, e os meninos se
sintam livres para crescer sem ter que se enquadrar nos
estereótipos de masculinidade.

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Três roteiros
Filho, Kleber Mendonça
9786557820537
320 p�ginas

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Pela primeira vez disponíveis ao público, três roteiros que


mostram o processo criativo do principal cineasta brasileiro
contemporâneo.

Nem sempre é possível ter acesso à construção de uma obra de


arte. Poucas formas artísticas se prestam tão bem a essa análise
retrospectiva quanto um filme e seu roteiro, principalmente se
roteirista e diretor forem a mesma pessoa. Ao ler os roteiros
finalizados de Kleber Mendonça Filho é possível identificar as
decisões tomadas por ele como diretor, com as filmagens já em
movimento, e compreender de forma muito mais elaborada o
processo criativo de um dos principais cineastas da atualidade.
Se em O som ao redor vemos a diferença entre os começos do
roteiro e do longa-metragem, no texto de Aquarius temos um final
bastante diferente do que foi filmado, mostrando a vivacidade de
uma arte que se molda à medida que se desenvolve. Já em Bacurau,
as cenas de violência extrema ganham um novo contorno depois da
leitura deste livro.
Formando uma trilogia ímpar para entender o Brasil, que se mostra
cada vez mais simétrica com os acontecimentos reais, os três
roteiros de Kleber Mendonça Filho são uma forma de encarar o país
de frente, tanto na tela quanto nas páginas.

"Nos melhores dias, acredito que o roteiro é uma peça de literatura,


certamente peculiar. Roteiros talvez tenham uma textura telegráfica,
mas ainda assim podem ser capazes de apresentar um fluxo claro de
ideias e sugestões maliciosas como qualquer bom texto. Ideias de
cinema embutidas em observações sobre gente e mundo.
Descrições compactas de sonhos ou pesadelos." — Kleber
Mendonça Filho

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Table of Contents
Folha de rosto
Sumário
Escrevo estas linhas
TRÊS POETAS ROMÂNTICOS
Fagundes Varela, solitário imperfeito
No jardim público de Casimiro
O sorriso de Gonçalves Dias
NA RUA, COM OS HOMENS
Recordação de Alberto Campos
Dois poetas mortos de Minas Gerais
Pessimismo de Abgar Renault
O secreto Emílio Moura
Segredo e atualidade de Schmidt
Autobiografia para uma revista
Suas cartas
Estive em casa de Candinho
Poesia e utilidade de Simões dos Reis
Morte de Federico García Lorca
Mauriac e Teresa Desqueyroux
Boadella entre elefantes
O simpático William Berrien
CONFISSÕES DE MINAS
Vila de Utopia
Viagem de Sabará
Teatro daquele tempo
QUASE HISTÓRIAS
Conversa de velho com criança
Lembro-me de um padre
Leonor, Emília, Marieta
Morreu um chofer
Um escritor nasce e morre
Esboço de uma casa
CADERNO DE NOTAS
Purgação
Poesia do tempo
Velha casa
Literatura infantil
Morte de um gordo
Religião e poesia
Questão de corpo
O livro inútil
Ternura diante do retrato
Linguagem
Bondade
Neblina
Georgina
Pontuação e poesia
Um sinal
A coisa simples
Nu artístico
Moda literária
Prodígio
Enquanto descíamos o rio
A voz pelo telefone
Vinte livros na ilha
Natal USA, 1931
Enterro na rua pobre
Os fotógrafos vegetais
Número 10 mil
A rua assombrada
Canto de Natal no bonde
O cotovelo dói
Posfácio: Um livro único, MILTON OHATA
Leituras recomendadas
Notas de edição
Cronologia
Créditos: GD

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