Crônica
Rio de Janeiro
2022
“Assim, durante semanas, os prisioneiros da peste debateram-se como puderam.
E alguns, chegavam até a imaginar que ainda agiam como homens livres, que ainda podiam
escolher.
Mas, na realidade, podia-se dizer nesse momento, nos meados do mês de agosto, que a peste tudo
dominara.
Já não havia então destinos individuais, mas uma história coletiva que era a peste e sentimentos
compartilhados por todos.
O maior era a separação e o exílio, com o que isso comportava de medo e de revolta.
Eis por que o narrador acha conveniente, no auge do calor e da doença, descrever de maneira
geral e a título de exemplo as violências dos nossos concidadãos vivos, os enterros dos defuntos e
o sofrimento dos amantes separados”.
***************
Quincas, você fez muito bem em não vir: no Rio de Janeiro os dias
adquiriram um smog parecido com aquele londrino das histórias de Sherlock
Holmes, Inspetor Morse e Hercule Poirot, mas o nosso fumacê é efeito das
queimadas que torram todo o país. A CEDAE foi privatizada mas a água que a
gente bebe continua com excesso de coliformes fecais e geosmina. A maioria
dos ônibus e barcas deixou de circular pelos bairros transportando passageiros
depois que o cappo dos transportes coletivos sumiu e os políticos foram
promovidos à corrupção de Brasília. Aquela loirinha nunca mais veio pendurar
roupas no varal da varanda nuinha, como fazia. O preço da garrafa de vinho
tinto alentejano pulou de $25 para $35 assim sem mais nem menos. O
Flamengo é o único time que ainda dá alguma alegria pros cariocas. O bolo de
milho maracanã diminuiu, diminuiu, diminuiu tanto que ficou do tamanho de
um pudim. A variante Delta do Covid gostou tanto do litoral do Rio de Janeiro
que se mudou de São Paulo e se arranchou nas nossas praias. Por fim, a picanha
fatiada que os pés-sujos estão servindo aqui perdeu tanto em espessura que mais
parece aquele churrasquinho de gato que se comia na Central do Brasil. Por
essas e por outras que estou contigo: vem não! Vem não! (10/9/2021)
Perdi um primo e amigo em São Luís. Não, não foi por Covid, mas
morrer é morrer, tanto faz se por diarreia, aids, catapora ou gripe. Quantas vezes
fui a São Luís, tantas vezes o encontrei – jovem estudante de medicina – para
dividirmos os prazeres e os saberes da vida. Ouvir a palavra do meu querido
primo e amigo enriqueceria qualquer um. A diferença de idade entre nós não
inibia o relacionamento aberto a todas ideias, devido à cultura de que ele era
possuidor, era daqueles seres cuja destinação está predeterminada: tornou-se
não só o médico que pretendeu ser, mas – como não tinha fronteiras na
capacidade e na inteligência – avançou, se tornou cientista especializado sempre
ouvido na área que optou seguir. Numa dessas aventuras de juventude, certa vez
o encontrei em Barreirinhas, descalço, trajava só bermuda, tinha o torso forte, o
rosto, todo o corpo queimados pelo sol, amorenando mais ainda a tez de
beduíno. Nos abraçamos efusivamente e ele me disse: “Que sorte te encontrar e
logo aonde! Quando pensaria esbarrar contigo em Barreirinhas!” E me contou
esta história: “Resolvi atravessar os Lençóis sozinho. Para isso, deixei a
mochila com todos os meus pertences aos cuidados de uma senhora, esposa de
pescador. Levei pouco mais de uma semana para percorrer toda aquela
imensidão de areais. Quando voltei tive a desagradável surpresa de saber que
minhas coisas tinham sido furtadas. Estou, pois, sem lenço nem documento…
nem dinheiro algum. Estando você aqui me tranquiliza pois sei que não me
faltará”. Fomos logo ao banco onde tínhamos, os dois, conta e voltou ele
sorrindo: “Não precisa, não precisa, ainda tenho algum trocado e já estou
abastecido”. E continuamos nossa jornada: a minha em busca do passado, a dele
em realizar o Nirvana para iluminar o seu futuro, segredo que certamente lhe foi
revelado nos dias e noites de solidão que passou meditando na vastidão dos
Lençóis Maranhenses. (11/9/2021)
Por se estar vivo e são da cabeça e da alma, bem que se poderia manter o
direito de – em certos lugares – cumprir a extinta tradição de escolher o local
onde ser enterrado. Para meu corpo descarnado e impuro decretaria: enterrem
meu coração na curva do Rio Preguiça. Foi em Barreirinhas que conheci a
minha curva. Estava com meu amigo Artur Buna, que foi ali deixar material
para um fulano desmiolado construir uma casa na minha curva, a vinte passos
das margens do rio. Um crime contra a natureza, um crime contra a mansidão
das águas negras, cheias de vida. Ainda sem sair de lá, escolheria as praias
desertas – a selvagem Praia de Caburé, onde milhares de águas-vivas e
caravelas impedem qualquer banhista de se aventurar por ali. Poderia ser
também em Atins, porta de entrada para o deserto dos Lençóis Maranhenses,
onde ninguém iria perturbar minha alma aterrada pelas areias alvas. Certo
tempo, influenciado pelos gurus indianos, pedi para ser enterrado em Benares,
cidade onde os mortos, iluminados pelas tochas de lenha antes de se evolar em
fumaça branca, são perdoados de todos os pecados. Também pensei em
encomendar meu corpo para meu amigo, o Rei de Parságada ou para São Saruê,
onde não tem Governo, nem Senado, nem Câmara de Deputados, nem
Vereadores, nem Prefeitos, onde não se paga imposto nem se vai preso – ou
seja: o único estado anárquico sobre a face da Terra. Enfim, como não posso
escolher, foda-se! (15/9/2021)
Tanta gente gosta de dar lição de vida. Agora mesmo estamos engolfados
delas: nos dão aulas de vida a torto e a direito, aos milhares, tantas, tantas, que
nos sufocam à morte – com a melhor das intenções, claro. Mas o tempo passa e
o que a gente nota é que a vida não pode ser ensinada. Pode-se até contar a
própria experiência de vida. É bom. Já li, vi e ouvi tanta gente importante
narrando o próprio “on-the-road”, tanta história cheia de sentimentos mais
diversos, que tudo acaba por se converter numa vasta sementeira de ideias,
ideais, sonhos, utopias. Mas tudo vira ilusão quando se descobre que não, não
existe uma didática para a vida, não existe uma ideologia de vida, não existe
uma veia pedagógica capaz de criar um currículo para esta coisa estranha que
chamamos vida. Desde que nascemos o milagre acontece: a vida se entranha no
corpo todo de tal maneira que, mal aprendemos a ter entendimento das coisas,
as catástrofes vão nos envolvendo com desfaçatez e fingimentos. Ora fazemos
festas cheias de gritos e risos, ora acompanhamos féretros de negro silêncio. Em
certos momentos estamos felizes, cercados de gente amada, mas daqui a pouco
tudo se desfaz no ar. Inventamos preconceitos, animais destruidores,
decretamos preceitos que passamos a cumprir, como se fizéssemos semeadura e
safra de perda de tempo, toneladas de tristeza, tempestades de dores. Ah, sim,
existe o amor, o breve e velocíssimo amor, um tapa na nossa cara, um tapa no
que é a nossa existência. E só então descobrimos, às vezes tarde demais, um
outro lado da vida, que ninguém contou, nem está escrito. (23/9/2021)
“Luz, mais luz!” Essas palavras proferidas pelo poeta alemão Johann
Wolfgang von Goethe no exato instante de sua morte, alimentou (e continua
alimentando) o folclore intelectual do mundo literário. “Em 22 de março de
1832, falecia o grande poeta alemão Johann Goethe, autor da célebre obra
Fausto. "Luz, mais luz" - teriam sido suas últimas palavras, antes de partir.
"Onde há muita luz, mais forte é a sombra", havia ele sentenciado. Mas, se é
verdade que luz e sombra andam de mãos dadas, também é verdade que "onde
resplende muitíssima luz divina, faz-se luz sem sombras", diz outro alemão, o
teólogo Klaus Berger. “Mehr Licht!” foram as últimas palavras que Goethe
falou antes de morrer. A luz é uma máquina de tempo e espaço, é o segredo da
imortalidade. Ela olha para a luz na tentativa de capturá-la, criando um espaço e
um tempo só seus. Atravessa em segundos a história do mundo, desde quando
não existiam seres humanos até onde não existirá. Olhar, regard, retard, atrasar,
o filme é invenção de um tempo que não passa. Merh licht! (vídeo instalação)
2016 Merh licht! (curta) Duração: 11 min. 2017. Para ser preciso, Goethe
faleceu às onze e meia do dia 22 de março de 1832 com 82 anos. [Pensar que
110 anos mais tarde nasceria numa choupana às margens do Rio Tinto aquele
que viria a ser o maior poeta do Cachambi!). “Sempre disseram que as últimas
palavras de Goethe foram “Mais luz!”. Na verdade, parece que ele pediu que as
persianas fossem abertas para que entrasse mais luz no quarto. “Creio que nas
últimas palavras de Goethe podemos ouvir um brado da profundeza de seu ser.
Ao pedir por mais luz, ele estava manifestando seu incessante desejo de
continuar a observar o mundo e a aprender com ele, de continuar a dialogar e,
além disso, de continuar a dedicar sua vida e a empreender ações pelo bem do
mundo”. Tudo conversa fiada. Tudo cascata! Goethe estava morrendo e é isso o
que acontece com quem morre: adeus luz! (24/9/2021)
Uma das coisas que me deixa mais enquizilado é a frase feita, que nem
aquela dita por John Kennedy: “Não perguntes o que a tua pátria pode fazer por
ti. Pergunta o que tu podes fazer por ela”. É uma proposição tão maldosa como
aquela que botou nas donas de casa a culpa pela proliferação da dengue, que era
doença silvestre (contida nas matas e florestas), trazida pelo desmatamento. As
autoridades competentes, como sempre, tiram o corpo fora. Quem produz mais
mosquitos: a bandeja de vaso ou a piscina abandonada; as poças d’água do
terreno baldio ou as águas invisíveis que se acumulam nos ralos? Quem tirou o
fumacê das ruas? No caso de “morrer pela pátria” frase feita é o diabo. A
Espanha e depois Cuba celebrizaram o “No pasarán!” (que veio da França).
Revendo o próprio conceito de “pátria”, como defini-lo num mundo
globalizado onde as correntes migratórias circulam como o próprio vento? Os
hinos estão entulhados de frases feitas e conceitos patrióticos, que só nasceram
quando reinventaram a nação e as fronteiras. No mundo sem fronteira não
existia a pátria. "Pátria amada, Idolatrada" – diz o hino nacional que, louve-se,
não estimula ninguém a morrer por ela. Já o Hino da Independência é mais
incisivo: “Ou ficar a Pátria livre / Ou morrer pelo Brasil”. Nenhuma das nossas
pequenas guerras teve como motivo a defesa da pátria. E em nenhum momento
grave da história da nação irmã USA o conceito de “morrer pela pátria” foi
decisivo: na Guerra da Secessão os negros foram convocados em troca da
liberdade da escravidão; na II Guerra Mundial a justificativa foi o revide aos
ataques alemães e hoje as guerras são por petróleo, água e gás. Enfim, hoje,
para ter exércitos poderosos esqueçam o conceito de pátria: os soldados das
forças armadas não querem mais morrer pela “pátria amada, Brasil”, precisam é
de melhor salário e mais direitos, igual aos deputados e ministros. A indústria
de armas tem cacife para garantir as despesas. (28/9/2021)
Meu primo disse-me que se enfadou de escrever, logo ele que escreve
desde quando era jovem estudante de Direito, tendo como professor o Mestre
Sobral Pinto! Agora, que já ultrapassou a barreira dos 80 anos, me vem com
essa pose de avestruz. – Já escreveram tudo no mundo – diz ele. Não tenho
nada mais a dizer. É natural reagir assim, acho até que em toda arte ou profissão
isso ocorre. Mas é uma falsa impressão. Muito do que já se escreveu vai
passando para trás e tudo que está bem guardado em bibliotecas se torna
inacessível para a maioria dos leitores. Outra coisa: como o mundo se reinventa
a cada segundo, sempre haverá o que dizer ou comentar. Outra questão que o
escritor levanta é: – O que escrevo será lido? Os homens que deixaram textos e
imagens nas cavernas não pensaram assim. Agora mesmo, esta pandemia de
Covid tem se transformado desafiadora para todos os artistas. A pandemia traz
consigo não só destruição e morte, mas um vasto material que se impõe ser
decifrado não só para a ciência, mas também que requer uma interpretação para
as artes, exige uma reflexão para a sociedade. A pandemia – como um vulcão
que derrama lavas devastadoras sobre um vilarejo – cobriu a humanidade com
um pesado e mortal manto, que faz desmoronar a retórica política e põe a nu o
vasto campo da corrupção humana. A história bíblica de Sodoma e Gomorra se
repetiu, só que, por não termos os mesmos poderes, reagimos com maior
passividade, perdoamos pecados que aquele Deus não perdoou, porque sabia
que o Diabo estava no poder. Então, primo, como é essa história de não ter nada
sobre o quê escrever? (29/92021)
Não sei, mas acho que dou razão à turma que reclama de um poeta fazer
poesia em pleno desespero pandêmico. À luz da razão, não faz sentido. Esse
momento indiscreto ocorreu comigo, não na pandemia, mas na vida comum. Eu
frequentava a casa dela quase cotidianamente. Chegava, cumprimentava,
abraçava, beijava e só depois participaria da vida familiar, nas conversas,
problemas e sucessos. Éramos assim como parentes afins, isto é, pessoas que
não têm laço de parentesco, mas que a vivência e afinidades os fizeram
parentes. Então, mais que de repente, quando a abracei e beijei a bochecha
rosada ela me disse: “Agora não é mais, não é?” Fui vê-la no quarto, ela deitada
na cama tinha com um livro escolar nas mãos. Eu estranhei a frase não
explícita, mas seus olhos brilhavam, os lábios estavam molhados. Fingi não
entender e saí para a sala, a visita continuou comum a não ser pelos voejados,
passagens e demonstrações que ela fazia questão de executar interrompendo a
conversa, dando opiniões sem importância, pedindo que fizesse algo para ela.
Só quando ela me pediu para ajudá-la num trabalho escolar me dei conta da
realidade: ela me oferecia uma maçã, como a serpente, o mais astuto de todos
os animais. Ele perguntou: “Você quer?” Ela viu que seu fruto era agradável ao
paladar, de odor pecaminoso, atraente aos olhos e desejável por qualquer um:
depilou-o, perfumou-o e, como uma dádiva religiosa, ofereceu-o ao homem.
(02/10/2021)
Dois anos depois que vi Aline pela última vez – lembro de ter desejado a
ela boas festas e feliz ano novo, foi, portanto, antes da pandemia – dois anos
depois, dizia, senti na pele e na alma o prejuízo que esta Pandemia do Covid-19
está me causando. É bem verdade que o tempo não parou por causa disso e os
anos tornaram meus cabelos alvos. Apenas nos cumprimentamos rapidamente e
ela se recusou a me dar o número do telefone. A Ana Lúcia? Casou, mudou para
a Itália, ainda não tem filhos, ao contrário de Taís que também casou, descasou,
casou de novo e continuará se casando, sem se importar de ter filhos. A Julinha,
de 20 anos, que conheci vendendo comida natural na esquina da Garcia
Redondo, estremeceu quando lhe toquei à cintura alvíssima e confessou num
simples olhar que gosta de meninas. Fazer o quê? Tá na moda. A cada novo
reencontro, um nome a menos na agenda da memória. Até a minha pombinha –
à qual recuso dar nome para não cair em línguas ferinas – não casou, mas voou
para terras longínquas e nem mais o facebook nos une. Colombina, bom, essa já
estava de malas arrumadas e deixei-a no aeroporto numa boa jurando que torcia
pela felicidade amorosa e profissional dela. A paz terminou no dia em que pedi
que me mandasse umas fotos pornoeróticas para eu relembrar os velhos tempos.
Bloqueou-me e as lembranças se esfumaçaram. A Luzia se cansou de morar no
Cachambi, apesar de todos os meus elogios à modernização do bairro: mudou-
se de mala e cuia para a Barra. Quer dizer: mala e cuia e namorada. Enfim, tem
mais uma dezena dessas histórias, que não vou relatar aqui, por um motivo:
Não é da conta de ninguém. Confesso apenas que o prejuízo é grande, o dano é
irreparável. Maldita Pandemia! (17/10/2021)
Com atraso, mas muita alegria, recebo a notícia que o poeta Fernando
Braga foi eleito para ocupar a Cadeira nº 2 da Academia Maranhense de Letras,
deixada pelo romancista Waldemiro Viana, a quem – tenho certeza – Fernando
Braga prestará as devidas homenagens a esse importante escritor
contemporâneo, injustamente esquecido pelos ensaístas literários. A poesia de
Fernando Braga ecoa nos becos e ruelas de São Luís com a mesma dignidade
que o cantar e os fados de Fernando Pessoa passeiam pelas calçadas do Chiado,
em Lisboa. Esta escolha mais que merecida serve como pedido de desculpas ao
poeta, quando foi injustamente preterido, devido a manobras políticas, quantas
vezes anteriormente pleiteou a vaga. Em resumo: levou rasteiras, mas, dono de
obra sólida, nem ligou: cancelou algumas amizades e seguiu em frente.
Fernando Braga é dos escritores na ativa que mantém fidelidade à Pátria-Mãe,
Portugal, enquanto que grande parte da intelectualidade maranhense tece loas e
broas ao pirata Daniel de La Touche, quando a França tinha pretensão de
colonizar o Norte desta terra ainda não chamada Pátria Amada. Bom, mas isso
são águas passadas, embora, convém lembrar, a França seja a única ocupadora
das Guianas que ainda não deu independência à sua colônia. O fará quando a
Inglaterra devolver as Malvinas à Argentina. Mas nem Lisboa nem São Luis
prestaram tanta homenagem a Fernando Braga: o chope rolou firme em Barra
do Corda e já corre abaixo-assinado para dar nome de rua ao ilustre membro da
A.M.L. (18/10/2021)
Esta semana choveu quase em todo o país. Deve ter chovido também nos
cofres da Aneel, da Light e demais distribuidoras. A corrupção no Brasil,
sustentada pelo Congresso Nacional e câmaras regionais, é composta de vários
elementos. O mais famoso e antigo deles é a Indústria da Seca do Nordeste, que
enriqueceu e continua enriquecendo os coronéis e seus descendentes há séculos.
A goela da Indústria da Seca do Nordeste é maior que a cratera do Vesúvio e
mais gulosa do que Lombriga. De uns tempos para cá foram expostas outras
indústrias, até então escondidas noutras regiões, para se juntar à corrupção da
Indústria da Seca do Nordeste. São elas: Indústria da Cheia do Amazonas, a
Indústria das Queimadas e a Indústria dos Reservatórios Vazios – todas
corruptoras e tão vorazes quanto a Seca do Nordeste. A Indústria dos
Reservatórios Vazios é alimentada pelas hidrelétricas, sistema escolhido pelo
país por ser “fonte renovável” e produzir “energia limpa”. Tudo mentira e por
não ser nem um nem outro, pagamos o pato. As represas para serem construídas
alagam cidades, expulsam populações, engolem florestas, terras produtivas,
enterram belezas naturais (entre todas a mais agressiva nesse sentido foi Itaipu,
que fez desaparecer o Salto de Sete Quedas), secam rios e pantanais,
prejudicam o abastecimento de água dos países e estados vizinhos. Sabendo-se
que 90% das reservas de água do país é consumida pelo agronegócio e pela
indústria, acaba-se por ver que a seca nos reservatórios não é só por causas
naturais. Políticos, reis, rainhas e cientistas que regem a nação brasileira sabem
a solução do problema. Mas quem quer acabar com essa mamata? (22/10/2021)
Meu primo Quincas é seresteiro de mão cheia. Não tem o vozeirão do
Pavarotti, mas é afinado e tem ritmo. Os sustenidos e bemóis são emitidos com
emoção, os trêmulos entonados no tempo dramático exato, porque até mesmo a
seresta tem seu momento de ópera lírica. Ele guarda de memória canções que
remontam ao Brasil Império e provavelmente Dom Pedro I cantava aos pés da
amada Domitila. Na juventude Quincas, acompanhado apenas por violonista,
acoitava-se nas praças ou debaixo das janelas e balcões onde entoava as mais
belas composições do cancioneiro romântico brasileiro, para deixar em pedaços
os corações e os cabaços das Julietas e Amélias. As serestas, acompanhadas
pelo luar, também serviam de pano de fundo para uma prática comum na época:
o roubo de donzelas. Roubo consentido, é claro, pois os casais fugiam com
malas e cuias para voltar tempos depois casados e com um neto na algibeira pro
mode de não ter jeito do sogro enfurecido desfazer a união sagrada. Só então se
dava a festa de casamento, que durava uma semana. Bolei usar com Quincas o
mesmo método aplicado à minha sogra, ela própria um repositório do
cancioneiro sacro do Nordeste. Lançava um desafio: – Essa você não conhece.
Para provar o contrário ela me presenteava com canções de procissão, de
enterros, incelenças, cantos votivos, novenas, ave-marias. Com Quincas bastava
jogar a frase inicial da canção no ar. Essa você não conhece: “Lábios que beijei,
mãos que afaguei, numa noite de luar sem fim”. Aí ele entoava, à capela, a
canção todinha de cabo a rabo, sem errar uma vírgula, uma reticência, sem
deixar de entoar a rima mais difícil. Eram interpretações para nenhum Nélson
Gonçalves botar defeito. Algumas delas arrancavam lágrimas, outras um soluço
contido, todas mereciam aplausos pois enterneciam os corações mais duros,
amalgamados em concreto. Bateu saudade, primo: é grande a distância entre
Olho d’Água e Cachambi.... (23/10/2021)
Como não uso relógio, na hora de acordar nunca sei que horas são.
Levanto e vejo que o tempo continua enfarruscado: a Serra do Sumaré está
mergulhada em névoa. Do outro lado, quando em dias claros dá para ver o
cocuruto da Serra dos Órgãos, as nuvens brancas escondem tudo. Como não
tenho mucamas para fazer meu desjejum, como o amigo das redes sociais
Evangelista (Evangelistas e Messias são privilegiados), eu mesmo cumpro o
ritual e agora estou no sofá tomando o café que preparei tendo como companhia
o gato e Bach na TV, executado pelo violinista chinês Ling Fen (mora em
Berlim) em Live direto do Wigmore Hall. Essa turma de há tempos vem
ganhando espaço na música clássica ocidental, trazendo na bagagem as
composições orientais, que não perdem em nada para os nossos sambas. Assim
foi com a pianista Zhu Xiao-Mei, que também interpreta Bach e vive em Paris
entre recitais e alunos. Parecemos civilizados, mas quantas interrogações
mofam nossas células cinzentas (como diria o detetive belga Hercule Poirot,
que vivia na França). O glorioso passado dos povos da Antiguidade não ensinou
nada a nós ou ignoramos premeditadamente, simplesmente nos recusamos a
aprender? Como disse o antropólogo e professor César Lotufo, “tem sempre um
Donald Trump atravancando o Progresso, entalado na goela da Humanidade”.
Graças a gente desse tipo – orgulhosamente imitados por tupiniquins – nós
vivemos em perene questionamento. As interrogações pairam sobre nossas
cabeças como nas histórias em quadrinhos do Gato Félix. Quando a Inglaterra
irá devolver as Ilhas Malvinas para a Argentina? Quando o Sargento Garcia vai
prender o Zorro? Quando a Espanha vai libertar os territórios de Ceuta e
Melilla? Quem inventou o papel higiênico? Quando a Inglaterra vai dar
independência a Gibraltar? Para que serve o rabo do gato? Quando o Brasil irá
devolver o Acre à Bolívia? Ó! Quantas dúvidas ingratas! (28/10/2021)
Este gato não é burro. De manhã, ele sabe que o primeiro e acordar sou
eu, mas não caio na conversa dele e não dou sachê, só ração e água. Ele espera
e quando a segunda pessoa se levanta, ele se esfrega nas pernas, dá aqueles
miados de nordestino faminto de Vida e Morte Severina e ganha sachê. Mas,
pouco tempo depois, ainda não satisfeito disfarça mais um pouco e quando
alguém sai da cama para o café ele repete o mesmo teatro de sofrência, mia
como se cantasse música sertaneja, e ganha mais sachê. Só então se arreia
satisfeito, toma aquele banho de gato e dorme como um anjo. Digo isso por
puro hábito que nós humanos temos, desde a pré-história (desde Adão e Eva,
para ser mais exato), de estar sempre fazendo comparação com bichos. O fulano
é bom no que faz? Aquele cara é cobra! A sogra é uma fera? Minha sogra é uma
jararaca! O político é safado, como a maioria dos políticos? Aquele deputado é
um gatuno! Senador Fulano é uma ratazana! E assim vai. Centenas e centenas
de expressões mesclam homens e bichos, não só bichos, toda a fauna, incluindo
os insetos e os desconjuntados. Quantas vezes ouvi a definição do caráter de
fulanos e sicranas: É um verme! Não vale o que o gato cobre de areia. Tenho a
impressão que o Barão de Drummond traduziu bem essa familiaridade entre
animais e humanos quando inventou aquele jogo de 25 bichos para ganhar um
dinheirinho extra e manter o zoológico de Vila Isabel aberto para a população –
principalmente a criançada – se divertir com as micagens dos sagüis Leão
Dourado pulando de galho em galho, atingindo as visitas com casca de
amendoim, e as macaquices do Gorila Tião que jogava casca de banana e outros
dejetos nos visitantes, surpreendendo os mais desavisados. (8/11/2021)
Todo mundo tá percebendo que ando um bocado jururu e não é por causa
desse tempo acinzentado, do cobertor de nuvens, diria, plúmbeas, tempo que há
tempos anda cobrindo com essa cabeleira de chumbo que esmaga com um peso
invisível a humildade e a arrogância das gentes, nem porque Ela, depois do
tempo que dura esta Pandemia sem nos ver, sem nos abraçar, sem nos beijar,
decidiu tirar de mim todos os átomos de esperança de comê-la (não estou
falando de uma pizza ou uma picanha na brasa, mas sim de um corpo com
1,70m de altura recheado de pura carne e músculos que exalam, como a carne-
de-sol exala a salmoura, o hálito espumoso da libidinagem) e o fez de tal
maneira decidida e contundente que me deixou de imediato com vontade de
saltar das Cataratas do Niágara sem cuecas nem colete salva-vidas, de pular do
vão central da ponte Rio-Niterói de olhos bem arregalados, de enfrentar de peito
aberto a tempestade em copo d’água, de fazer roleta-russa com uma 765 sem
balas e, até, de comer uma feijoada completa no pé-sujo do Wakim na Cidade
Nova e depois me acabar bebendo muitos rabos-de-galo cercado das meninas
saudáveis da Vila Mimosa, de fazer, enfim, para não esticar a conversa, uma
dessas coisas que inspiraram aquele filme “Antes de partir”, mas, ora, porra, o
que é na nossa vida repleta de emoções mais uma ou menos uma boceta perdida
no meio dessa multidão esfacelada por problemas maiores que nos deixam
envergonhados e sem opção, a não ser dizer: bem fulana (quase que falo o nome
d’Ela), foda-se!, já tomei as três doses do coquetel de vacinas anti-Covid, tive
uma reação debelada com uma aspirina e agora, só para te sacanear, vou beber
sozinho a garrafa de vinho Cousiño Macul Pinot Noir de uvas cultivadas no
Planalto Central chileno que está encalhada na Adega do Egídio bem ali no
estado independente do Cachambi. E ponto final. (10/11/2021)
UBI SUNT
Assistir aos filmes de Ingmar Bergman num domingo de sol é dose. Mal
liguei a TV e estava lá o aviso sobre “O Sétimo Selo”, o que logo me lembrou
as noites de filas para assistir na Sessão da meia-noite no Cine Paissandu, no
Flamengo, a retrospectiva do Diretor Sueco, endeusado pela intelligentzia
contracultural daqueles dias e noites. A história conta o retorno do Cruzado
Block à terra natal após dez anos ausente servindo ao exército católico e ter sido
derrotado pelo xeique Suleiman. Para piorar, os Estados Nórdicos sofrem a
epidemia da Peste Negra. O primeiro ser que Block avista na praia em que
desembarcou é a Morte, que está ali para levá-lo. É mole? O filme abre com a
citação: “Quando o cordeiro rompeu o sétimo selo houve silêncio no céu por
cerca de meia hora. Eu vi sete anjos ante Deus aos quais foram dadas sete
trombetas”, que é do Apocalipse de João. Todos esses acontecimentos derrubam
a crença que Block tinha em Deus. Para driblar a morte e elidir as dívidas
religiosas e morais, o Cruzado repete a fórmula daquela formosa donzela d’As
Mil e Uma Noites: desafia a Morte para uma partida de xadrez. Enquanto a
partida se desenrola – lentamente, como a abertura dos sete selos do Apocalipse
– a temática sobre Fé e Deus se arrasta nos diálogos e dá mais sono que
Melatonina. Chamemos então outra cena, no Stabat Mater, em que Jesus
agoniza e, ao clamor da mãe aos pés da cruz: – Meu filho!, responde: – Eis teu
filho – e aponta para João, o irmão que nasceu com deficiência mental e que
depois viria a escrever o Livro do Apocalipse. Todos os evangelistas se
juntaram para manter João no grupo, inclusive Paulo, mas ele não recebeu
maior dedicação que do irmão Thiago. Essa situação foi explorada em tantas
obras, romances, músicas, dramas (Cervantes, Shakespeare, etc.) – mas jamais
foi tão vilipendiada quanto em mãos das próprias igrejas cristãs. Eu sei, já me
acusaram de criar personagens inverossímeis – eu e Kafka – mas essa é a
realidade histórica, queiram ou não. (23/01/2022)
Outro dia falei aqui sobre os filósofos do facebook. Vale para todas as
chamadas “redes sociais”. Mas tem uma categoria que supera em muito a dos
filósofos: o Poeta. Como tem Poeta neste mundo! Tem Poeta aqui mesmo, no
Instagram, no Tumblr, no Twitter não, no Twitter – apud Donald Trump – se
escreve alguma porcaria primeiro, para pedir retratação depois. Nem vou citar
as demais redes sociais porque tá assim dessas modernas criadoras de
comportamento no mundo todo. E em cada região, tem uma mídia social em
língua própria. E em todas elas o Poeta está presente. Carregar ou dar-se o
nome de Poeta não é fácil. Não por si só, você pode se batizar de qualquer
coisa, desde que com coerência e convicção. No presente caso, o Poeta carrega
a responsabilidade de ter nos ombros milênios de poesia. Para ficar cá entre nós,
desde José de Anchieta até a novíssima geração, da qual não consigo tirar um
nome porque são tantos e incontáveis. Ademais, ser Poeta requer – como o
alimento defumado, na salmoura ou o bacalhau desidratado – bastante tempo
para consolidar a poesia. Uns conseguem, outros não e daí vem a dificuldade
em nomear quem quer que seja. Mas muitos se autonomeiam Poeta – fazer o
quê? Torcer para que não passem o vexame de também terem de se retratar no
Twitter. E também: não basta ser Poeta, tem que viver como Poeta. Alguns
amigos – uns por generosidade, outros por gozação – me chamavam Poeta,
porque eu vivia tentando escrever poesia. Um deles, ao me colocar como fiador
num empréstimo bancário, na hora de preencher a minha profissão escreveu:
Poeta. É claro que o empréstimo foi negado, afinal qual banco empresta algo a
alguém tendo como fiador um Poeta? Então, depois de quinze coletâneas e uma
centena de folhetos de cordel, descobri que a poesia não era a minha praia. Não
sou poeta. Aí, entrei para o facebook para escrever essas besteiras e esperar
benevolência dos amigos, quando perguntarem por mim: – Salomão? Bah! É
um contador de lorotas. (24/01/2022)
Há algum tempo, médicos e cientistas andaram pesquisando a memória de
gente que passou pela experiência de ter sofrido, digamos, morte temporária.
Por algum problema, cardíaco ou cerebral, certas pessoas perderam
momentaneamente a capacidade de vida, mas conseguiram ser ressuscitados.
Então, a ciência e a pára-ciência ficaram curiosas em saber o que se passou
naqueles momentos extraordinários em que a morte tomou conta do corpo. Os
relatos mais comuns foram: 1) saí do corpo e fiquei me olhando do alto; 2) toda
a minha vida passou na mente como um relâmpago. Mais ou menos assim.
Antes, o poeta alemão Goethe, que estudava poeticamente a cor, deixou sinal
sobre os segundos que antecedem a morte. “Luz, mais luz” disse ele. Não era o
ambiente que estava soturno, era a morte que se aproximava rapidamente
trazendo a escuridão. Como a física não reconhece a luz no sentido goethiano
(tampouco reconhece a escuridão da morte) as interpretações sobre a frase são
milhares. Bom, deixa pra lá! Eu quero chegar no ponto em que viver e morrer é
uma aventura. Uma aventura como, Alexandre viveu, aventura como Safo
viveu, uma aventura como Aretino viveu, aventura como Antônio e Cleópatra
viveram, uma aventura como João Batista e Cristo viveram, aventura como
Cristóvão Colombo e Fernão de Magalhães viveram, como Marco Polo, Noel
Rosa, Chiquinha Gonzaga, Elza Soares e Mané Garrincha viveram. Então é
isso, entendeu? Sem parangolé, sem a Nega Fulô, sem abre alas, sem alalaô,
sem o General da Banda, viver é apenas isso: uma tremenda aventura, a maior
aventura da sua vida, a maravilhosamente dolorosa e alegre aventura que somos
obrigados a realizar. Então, o tempo é uma fera, o tempo ruge, morde nosso
calcanhar, urge viver. Tá esperando o quê? (25/01/2022)
A gente tem por hábito adotar costumes que chegaram até nós
atravessando gerações e persistem por séculos, sem ligar para as evoluções e
revoluções que, em teoria, deveriam nos tirar do limbo das crenças duvidosas.
Certa vez um amigo me pediu para pegar um medicamento receitado por um
médico espírita e enviar a ele. Era caso de vida e morte, tudo que a ciência
oficial sabia foi tentado, sem sucesso. Pedido de amigo não se discute, cumpri a
missão com a rapidez que o caso pedia, sem medir distância (era longe, assim
como Cururupu!), mas foi tudo em vão. Enfim, se tem medicina espiritual é
porque nosso corpo tem órgãos espirituais, não somos feitos apenas de vã
matéria. Por isso se diz: “Fulano tem bom coração” (um anjo); “Sicrano tá com
o fígado irritado” (de mau humor); “Beltrano tem o sangue quente” (com raiva).
Também são muitas as “veias artísticas” e não se esqueça de que a mulher foi
criada a partir de uma costela… espiritual. Por isso elas são inteligentes, bonitas
e muito, muito superiores e poderosas que nós pobres homens. Então pode ser
verdade que os órgãos tenham o lado material e o lado espiritual, não há prova
em contrário. Essa digressão toda vem a pus de uma sugestão para consultar um
médico espírita, apesar da solução para o mal que me aflige possa estar numa
mera tirinha do genérico. Pensei no Dr. Fritz e em muitos médicos espíritas
respeitados, mas parei no Dr. João de Deus. Acho que não. Afinal, não tenho
intenção de passar o dia fazendo aquilo: é só uma vez ou outra. E depois beber
uma long-neck Eisenbahn American IPA, de rótulo azul, em paz. Sem perturbar
a alma do meu fígado. (08/02/2022)
– Como está o tempo?
– O tempo está ruim.
Costumava-se chamar de ‘tempo ruim’ os dias de chuva. Hoje o tempo
ruim passou para o outro lado: dias de sol, calor de mais de 45ºC, necas de
chuva, umidade do clima péssima. No entanto, o ano de graça de 2022 começou
com meses em que a chuva, às vezes mal distribuída, se fez presente, constante,
visitando todas as regiões do nosso Brasil varonil. É claro: só não chove nas
regiões onde tem hidrelétricas, construídas nos desertos. É um problema da
nossa engenharia: as hidrelétricas são construídas onde, ao redor, tem muita
fazenda, muita agricultura, muito latifúndio, enormes propriedades de terra
abandonadas, quando poderia ser usada para o plantio do feijão, da mandioca,
do milho e criação de leitões, bodes, galinhas e patos, que são a base da
culinária dos menos afortunados. Daí porque a energia elétrica é cara, o feijão é
caro, a carne é cara, e os donos dos supermercados (que são cada vez mais
empresários estrangeiros) estão ricos e prósperos. Como tem chovido! Hoje
mesmo está uma quinta-feira cinzenta, enlutada com uma garoa tipo paulistana,
bem a gosto dos meninos da Semana de Arte Moderna, que este mês completa
100 anos de juventude. Se Santa Maria e Cururupu não terão na agenda eventos
para comemorar a efeméride, o governo de São Paulo não tem mais espaço para
nenhum evento, nem mesmo um show dos filhos e netos de Chitãozinho e
Chororó. O que pode rolar é uma Roda de Samba no Braz, um encontro de
chorões no Largo do Arouche, um baile funk no Capão Redondo, ouvir o grupo
Saudosa Maloca na Vila Itororó, no Bixiga, e as inevitáveis apresentações no
Theatro Municipal, onde Mário e Oswald de Andrade, Víctor Brecheret, Anita
Malfatti, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, Heitor
Villa-Lobos, Tácito de Almeida, Di Cavalcanti (Tarsila do Amaral só foi vista
em exposição, pois estava em Paris), entre outros, deram o Grito do Ipiranga
das artes tupiniquins. (10/02/2022)
A gente ter parente médico é uma chatice. Toda hora fica nos lembrando
disso e daquilo como se aspirássemos a imortalidade. É claro que tudo com boa
intenção. Agora mesmo recebi mensagem do meu primo alertando que está na
hora de fazer o exame prostático anual (não será anal?). Faz dois anos que
ignoro os avisos. Mas esses alertas sempre vêm acompanhados com a ameaça
da doença mais temível do que a Covid – câncer. É terrorismo puro. O primo
Dr. Mário Rovedo, com clínica e consultório em São Gonçalo (RJ), é excelente
Clínico Geral com especialidade em gastro, então não faz exame de próstata,
óbvio, indica um colega proctologista. Mas reclamei, pois na última indicação
que me fez o coleguinha dele da área anal deu preferência ao sistema antigo: o
toque presencial, ou seja, a dedada. “É mais confiável” – disse. Mas a sensação
que tive foi de que, em vez de passar vaselina na luva, parece que usou pimenta
malagueta. Outra coisa: por que os médicos sempre elegem o dedão do meio
para fazer o exame? Por que ao final do exame todos sorriem? É porque o cu
não é o deles. Exame de próstata deveria ser opcional e permitir mandar outra
pessoa no lugar. Eu, por exemplo, poderia mandar o gato. O primo riu. “Tem a
opção do autoexame”, disse Dr. Mário. Como? Autoexame? É novidade para
mim. Mas como a gente leiga no assunto fará o autoexame? Eu mal sei onde
estão minhas amídalas, como vou saber onde está a próstata? Sei o caminho,
mas não sei onde é o “ponto G”… Um médico faz o exame de próstata em
trinta segundos, mas um ignorante como eu é incapaz disso. Esse autoexame
prostático – se optar por fazer – é bem capaz de me obrigar a passar o dia
inteiro futucando o cu em busca da próstata, com, pelo menos, duas
consequências trágicas: 1) eu gostar; 2) suspender o exame para continuar no
dia seguinte. Que merda! PS. Sei que muitos amigos vão se oferecer para fazer
o exame. Agradeço a solidariedade, não, obrigado. (14/02/2022)
Com a tragédia que resultou do mar de água que caiu sobre a Cidade
Imperial, o nome do Petropolitano Foot-Ball Club voltou ao noticiário, desta
vez sobressaindo com o apoio exemplar e incondicional aos moradores carentes
e aos trabalhadores envolvidos na recuperação da cidade. O Petropolitano,
fundado em 1911, mostrou mais uma vez que as funções primordiais de um
clube, além da recreação, envolve o trabalho social ecumênico, o apoio
permanente aos moradores, ao comércio e indústria, se entregando de corpo e
alma, colaborando, aplicando todos os recursos de que dispõe quando a tragédia
das chuvas atinge a cidade – é na verdade uma cooperativa cultural e social para
a cidade. Foi nesse clube que tive a emoção de acompanhar o Interzonal de
Xadrez de 1973 em que Henrique Mecking teve seu nome consagrado como um
dos maiores jogadores da época. A competição começou na sexta-feira,
20/07/1973 e terminou no dia 17/08/1973. Foram os 28 dias mais incríveis que
passei, mesmo contando as emoções renovadas no Interzonal Atlântica-
Boavista, em 1979, no Copacabana Pálace. Pode-se dizer que sem um não
haveria o outro. O evento colocou Petrópolis no noticiário internacional: hotéis
lotados, turistas e participantes circulando pela cidade e pelo Rio de Janeiro,
nos dias livres. Botou a TVGlobo longe do futebol e da F1, sobretudo fez parte
da população esquecer as tragédias de verão que atingiram a cidade, como esta
de agora. A Editora Vozes, orgulho local, publicou o livro do evento, escrito
pelo mestre Dr. J. C. de Almeida Soares, que, como eu, se deslanchava
diariamente do Rio para acompanhar as partidas em Petrópolis. Só a turma da
velha guarda lembrará alguns nomes dos participantes. Félix Sonnenfeld fez
salão mostrando aos Grandes Mestres seus problemas, contando histórias. No
torneio principal só tinha cobra: Oscar Panno, Henrique Mecking, Peter
Biyiasas, Vlastimil Hort, Sammy Reshevsky, Lajos Portisch, Shimon Kagan,
Borislav Ivkov, Ljubomir Ljubojevic, Florin Gheorghiu, Lian Ann Tan, Werner
Hug, David Bronstein, Efim Geller, Lev Polugaevsky, Paul Keres, Vasily
Smyslov e Vladimir Savon, fizeram a plateia eclética encher as dependências da
Sede Social do Petropolitano, na Av. Roberto da Silveira. Meninos, eu estive lá.
Eu vi. (21/02/2022)
É fato que uma Andorinha só não faz verão. Aliás, para falar a verdade,
ninguém faz verão sozinho. É um desperdício da natureza, repartida em
estações climáticas. Nos lugares onde o calor é perene, nas partes da terra onde
o verão é apenas um nome técnico, não se pode dizer o mesmo. Isso vem a
propósito de que, mal o termômetro superou a marca dos 40ºC – o que é normal
nesta época – lá vem a Andorinha voar e revoar diante da minha varanda.
Pensei que era uma Andorinha solitária, por isso a frase me veio à memória.
Mas qual nada! Fora de minha vista lá estavam mais outra meia dúzia fazendo
voos malabarísticos para espantar o calorão. Estas são do tipo pequeno e de
pouca cor: apenas o peito branco e as asas e cauda negras. Mas no revoo há
muita beleza, talvez não intencional. Planagens, curvas, paradas antes de
estolar, mergulhos alucinantes, adejos, voos de curvas sinuosas, sensuais. Ao
longe ouço o silvo agressivo do gavião: está em algum ponto estratégico, alto,
de onde, com olhos de gavião, pode alcançar área suficiente para caçadas.
Andorinhas não interessam a gavião nenhum, antes, são evitadas por eles
porque qualquer aproximação resulta num cerco estratégico e bicadas vindas de
todos os lados. As andorinhas do Cachambi são da espécie Andorinha-pequena,
miúdas, não chegam nem perto das grandes andorinhas cauda de tesoura que
costumam aparecer em Santa Maria e Cururupu. Embora pertença ao grupo que
agora revoa à minha frente, uma delas se destaca, não acompanha as restantes
nas revoadas, prefere ficar aqui na minha frente exibindo-se: aplaina, adeja,
esvoaça, drapeja, paira na subida, depois plana, revoluteia, voa e revoa, voeja,
circula em volteios e revolteios, movimentos de beleza e conotações eróticas
que bastam ao meu prazer. Deve ser uma Andorinha fêmea: somente as fêmeas
são assim exageradas e atrevidamente exibidas.
Ah, se eu fosse um Andorinho… (05/03/2022)
Outro dia falei sobre as comidinhas que estão sumindo da mesa brasileira.
Não sei se por culpa dos vegetarianos e veganos, da influência da culinária
internacional que invade tudo via internet ou das iguarias que são degustadas e
guardadas sob a égide de “pratos típicos”. Tirando fora a tradicional Feijoada
Completa, que chegou com os africanos para ficar (carne seca, costela, linguiça,
chispe, orelha, rabinho, lombo, toicinho, goela de porco, bucho e tripas), outros
pratos estão escasseando ou sumindo de vez: a Dobradinha (bucho fatiado, paio,
azeitonas, cenoura); o Ossobuco (osso com carne e tutano); o Joelho-de-porco
(eisbein, alemão), com chucrute e batata assada; o Rim de porco ou boi, au
sauté (polvilhados com sal grosso, alho migado, sumo de limão, salsa,
repousado toda a noite, para frigir na sertã, na mistura meio por meio de azeite
e manteiga, antes de chegar ao ponto, meio cálice de vinho do Porto Tawny de
10 ou 20 anos, segundo receita galega); a Buchada de bode ou cordeiro,
nordestina, via Portugual ou “crux mechi”, do Líbano, feita com rins, fígado e
vísceras, lavadas, fervidas, cortadas, temperadas e cozidas em bolsas da barriga
do animal; o Sarrabulho ou Sarapatel feito com as vísceras vermelhas, coração,
rins, pulmão, fígado e baço, receita tradicional trazida de Portugal; o Miolo-de-
boi cortado em pedaços, temperado com alho, sal, orégano e vinagre,
empanado, frito no azeite; todos – mais alguns – viraram comidas especiais
(alguns dizem “malditas”), raras e caras. Eu, que por força do estudo e do
trabalho sempre comi fora de casa, enfrentei a maldição e ganhei muitas pragas
por “comer bicho morto”. Mas sinto saudades dessas porcarias todas: do Bife-à-
milanesa, do Creme-de-espinafre, do Escalopinho-ao-molho madeira, do
Espaguete-à-bolonhesa, do Filé-à-cavalo, da Posta-de-peixe com pirão, do
Quibe-de-forno, das Lasanhas e muitos outras delícias. Foram consumidos com
prazer e muitas das vezes preliminares para outras gostosas comidas.
(08/03/2022)
(Detetives II) Não sei por quê, mas autores de novelas de detetives
escolhem os personagens já na meia-idade e não jovens ambiciosos para crescer
na carreira. É claro que me refiro a livros e filmes que li e assisti. São os coroas
que fazem sucesso. O primeiro deles, claro, é Auguste Dupin, detetive criado
por Edgar Allan Poe na famosa novela “Os assassinatos da Rua Morgue”,
publicado em abril de 1841. Aliás, Allan Poe é considerado precursor da
literatura policial-detetivesca, cuja primeira influência confessa foi Sir Arthur
Conan Doyle, criador do Sherlock Holmes. Poe jogou o cenário para a Europa
(o detetive mora em Paris) e sua atuação se estende a mais duas obras: “O
mistério de Marie Rogêt” e “A carta roubada”. Dupin fuma muito, gosta de
uísque (às vezes do vinho borgonha), joga duro nas investigações e sempre
chega ao suspeito. Morto aos 40 anos, Poe não pôde concluir sua obra literária,
que também abrange jornalismo, poesia e teatro. Já o famoso Sherlock Holmes,
investigador particular de fins do Séc. 19 e início do Séc. 20, aparece pela
primeira vez em 1887 na novela “Um estudo em vermelho”. Holmes ficou
famoso por usar métodos científicos, lógica dedutiva, aliados às pesquisas do
companheiro Dr. Watson. As marcas particulares são o cachimbo com a piteira
quase vertical em curva, a capa xadrez que ninguém em Santa Maria tem
coragem de usar e o violino desafinado onde mal toca algumas notas. Um dos
maiores personagens do romance policial, Holmes também gostava de dar uma
cheiradinha. Como curiosidade: em1874, o emigrante alemão Frederick Kapp
mudou a fábrica de cachimbos de Londres para Dublin (Irlanda). Um ano
depois, Fred empregou o jovem marceneiro letão Charles Peterson para ajudá-lo
no fabrico e reparos de cachimbos. Anos depois Peterson assumiu a fábrica e
lançou a coleção Sherlock Holmes, que existe até hoje. (13/03/2022)
Pausa para prestar justa homenagem ao poeta maranhense Fernando
Braga, recém-falecido, às vésperas de tomar posse da Cadeira 2 da Academia
Maranhense de Letras, para a qual foi eleito. Fernando Braga não viveu a vida
de poeta, mas viveu a poesia e tendo realizado a trajetória destinada a seu
cantar, recolheu-se na lembrança, tornando-se detalhado memorialista.
Tornamo-nos parentes afins depois de um casamento familiar e se já éramos
irmãos de leituras e escrituras, ficamos mais íntimos, alargamos as visões
pessoais, fazemos reparos e trocamos ideias sobre textos, coisas assim. Eu já
estava de matulão arrumado para ir a São Luís, querendo muito rever o
Fernando Braga, torcendo para que ele – que decerto seria muito requisitado –
arranjasse um tempinho para o bate-papo reparador do tempo que o tempo nos
afastou um do outro. Fernando Braga há anos pleiteava vaga na Academia
Maranhense de Letras – não o faria se não guardasse talento, qualidade e
méritos para ocupar cadeira naquela Casa de Cultura – mas sempre foi
preterido, sempre recebeu um “não”. Um bloqueio injustificado: por residir em
Brasília, por não comungar com as fofocas, o disse-me-disse, os mal
intencionados trapaceavam sua candidatura, postergando-a para a próxima vez.
Na Academia Brasileira também Machado de Assis sacaneou as pretensões de
Emílio de Menezes, que tinha apoio dos colegas, mas, segundo Machado,
gostava de uma farra e essa imagem seria negativa para a entidade. De fato:
numa cervejaria recém-inaugurada, há duas quadras da ABL, o proprietário
colocou no salão principal um enorme quadro de Emílio de Menezes
empunhado para o alto uma caneca dupla transbordando chope! Mas nem
Emílio de Menezes, nem Fernando Braga, sabendo que os próprios opositores
amanhã seriam uma vaga, jamais desistiram e tiveram, enfim, os nomes
imortalizados nas letras brasileiras. (15/03/2022)
(Detetives VI) Dick Trace. O mais durão dos detetives das histórias em
quadrinhos foi criado pelo cartunista Chester Gould em 1931. Tracy entrou para
a polícia após o assassinato do pai de sua noiva, Tess Trueheart, morto por
bandidos. Em sua incansável luta contra o crime, antecipou modernos
apetrechos eletrônicos, como o videofone. Com ele, conseguia se comunicar, à
distância, com os colegas da polícia. Em 1990, foi interpretado pelo galã
Warren Beatty no cinema. Nero Wolfe. Criação do estadunidense Rex Stout,
Wolfe é um detetive privado e sua primeira aparição aconteceu no livro
Serpente, de 1934. O narrador dos livros é sempre Archie Goodwin, o ativo e
intrépido assistente e responsável por buscar as pistas para que Wolfe resolva os
intricados mistérios sem sair de casa. Entre suas tramas mais famosas estão: A
confraria do medo, Milionários demais, A voz do morto, Mulheres demais e A
caixa vermelha. (25/03/2022)
© Salomão Rovedo