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A TEOSOFIA DO ABJECTO E A SODOMIA EPIFÂNICA EM

ALEISTER CROWLEY E RAUL LEAL

(Publicado na Revista Ideia – Nº 77/80, de 2016)

O Homem Abominável
Não há nada de mais abjecto do que o pueril quando elevado a modelo de vida e
estatuto de arte. Tanto para um antigo yogui do panchatranta como para um gnóstico de
cepa valentiniana ou carpocratiana é pela lei da Inversão e Perversão dos valores que
encontramos a condição propícia ao eclodir do Transcendente e da Gnose num mundo
forçado à estupidez consensual e à alienação espiritual. Aos homens presos na
contingência deste mundo, o poeta Raul Leal outorga o epíteto de “abomináveis”. Ele
inverte, ao estilo gnóstico, a relação convencional dos valores da civilização afirmando
que o pai, o comerciante e o escroque, são todos exemplos de seres “abomináveis”, da
mesma maneira que Crowley os apelidava de “grosseiros” e os gnósticos de “hílicos”,
isto é, terrestres, em virtude d’ “as suas preocupações serem da Terra e não dos Céus”1.
Na primeira metade do século XX, tanto Aleister Crowley como Raul Leal foram dois
dos expoentes literários que, por vias autónomas de inspiração e pensamento enraizadas
na tradição decadentista finissecular, seguiram a Via Espiritual a que chamo o Caminho
Antinómico do Louco. Crowley, por um lado, foi um poeta rebelde ao estilo byroniano
com traços de transgressão sadeana, como vemos nas suas obras White Stains e World’s
Tragedy. O princípio inspirador da sua Via Espiritual de carácter Não-Dual foi
claramente Satã. Tanto no Liber Vel Legis como nas suas cerimónias-performances em
Fulhan Road, Londres, como ainda no uso do nomen lucis Baphomet na O.T.O., era
Satã, enquanto Divindade dispensadora do Novo Aeon, que era invocado. Satã,
entendamo-nos, na sua versão árabe Shaitan, este último expressão do Anjo Pavão
Melek Taus dos Yezidi. Por outro lado, Raul Leal, não só ao longo dos seus escritos,
sobretudo o Antéchrist et la Gloire du Saint-Espirit e o Sodoma Divinizada, mas na
atitude lúcida e corajosa que manteve no momento da sua morte ao rejeitar os
sacramentos católicos e a intercessão salvífica de Cristo, manteve-se sempre fiel ao
Espírito Santo, a Deus-Satã, a “metafísica Besta”, centro vertigínico de sua
espiritualidade.
A pequena obra Sodoma Divinizada que Raul Leal publica pela editora Olissipo em
1923, mais para expor os seus pontos de vista poético-paracléticos do que defender a
poesia de António Botto, é o equivalente português do Liber Al vel Legis que Crowley
“recebeu” em escrita automática em 1904 no Cairo. É aí que ele apresenta a sua defesa
da Luxúria divinizante e da Besta metafísica. É incrível, assim, que Leal nunca tenha
conhecido Crowley ou as suas obras antes de 1923, pois a sua convergência filosófica e
vocabular com as ideias de Crowley é muito clara. Tanto a centralidade metafísica de
Satã, como da Besta, da Luxúria, do papel do Génio e da Loucura, assim como o desejo
de criar um Templo da Luxúria, eco recolhido provavelmente nos jornais da época que
deram publicidade à conduta escandalosa no seio da Abadia de Thelema, criada por
Crowley em Cefalu, também chamada por Colégio do Espírito Santo, tem similitudes

1
Leal, Raul. SODOMA DIVINIZADA. Lisboa: Guimarães, 2010, p. 93.

1
que não podem ser, na minha humilde opinião, meras coincidências filosóficas. Raul
Leal tem consciência dessa coincidência de pontos de vista. Na sua carta de 15 de
Janeiro de 1930, agora publicada pela primeira vez com a apresentação, tradução e
notas da especialista leanina Manuela Parreira da Silva, na separata da Revista Ideia, nº
75/76, Raul Leal dirige-se a Mestre Therion, o epiteto profético de Aleister Crowley,
afirmando que as suas doutrinas se aproximam muito das suas. Se existe, contudo, um
elo explicativo entre as obras de Crowley e o pensamento de Leal, ele pode ter
desaparecido. Desapareceram ou desconhece-se o paradeiro dos documentos, cartas,
livros, apontamentos, que poderiam atestar a eventual influência de Crowley em Raul
Leal, caso tenha existido. A única possibilidade que temos é procurar as convergências
e paralelos filosóficos e literários entre um e outro, com todos os riscos que advêm de
estarmos a especular sobre uma mera verosimilhança dos factos e das ideias. Uma
explicação possível para tal, seria a possibilidade de Leal ter conhecido o pensamento
de Crowley através de Fernando Pessoa. Porém, parece que o mesmo só tem acesso ao
pensamento e vida aventureira de Crowley já muito tarde, em 1929, desconhecendo
provavelmente até então o mito teriónico da sua missão paraclética apresentada e
desenvolvida na auto-hagiografia crowleyniana das Confissões2, que então adquirira da
Mandrake Press. O facto de ter na sua posse, também, o livro 777 de Aleister Crowley
já antes dessa data3, nada acrescenta ou contradiz o que acaba de ser dito, uma vez que
se trata apenas de uma obra técnica de analogias e correspondências para magistas.
Sobre esta Via de Inversão, defendida tanto por Crowley como Leal, Pessoa há-de
afirmar no seu O Caminho da Serpente, anos depois de ter rompido com Crowley, mas
com forte influência cabalística-crowleyniana, que “é preciso, quando se é Serpente,
passar em Satan para chegar a Deus”. Para eles, mesmo através de Satã pode-se entrar
no reino de Deus, isto é, num estado de consciência transcendente (E3/54A-1)4.
Referência sigílica, julgo eu, ao chamado “Caminho da Serpente”, entre Geburah e
Chesed, que se tem de atravessar antes de cruzar o Abismo para o Pleroma das
Supernais, a Trindade Divina. Segundo Crowley o Aéon de Ra-Hoor-Khuit, a
manifestação heróico-miltoniana de Seth, Satã ou Hoor-Pa-Kraat que agora vivemos,
abrira finalmente o Caminho da Serpente ou de Teth. Pessoa cruzou-o de facto, pouco
tempo depois, mas não em vida. Deve entender-se Satã não na perspectiva bíblica ou
miltoniana, tão em voga na juventude intelectual e artística decadentista, mas no
contexto do jargão esotérico, referindo-se a uma prática sexual antinómica de fundo
gnóstico, onde tanto o motivo como a ascese são por excelência da natureza da abjecção
imoral. O âmago desse abjeccionismo centra-se na sodomia mágica, em alguns casos
mesmo na coprofagia e na digestão de fluidos sexuais como sacramentos eucarísticos,
que Crowley havia conhecido através de Theodor Reuss quando foi iniciado em 1912
com Leila Wadell na O.T.O..
A nova Via Espiritual do Louco eleita por Crowley e Leal não é uma cedência hedonista
à velha tradição libertina, embora possa ter as suas raízes transgressivas mais próximas

2
Parece que Pessoa já tinha adquirido o livro 777 de Crowley, porém este livro não contem o mito
teriónico do mesmo, nem a Lei da nova dispensação espiritual centrada em Satã (Hoor-Paar-Krath) e na
Besta e sua Mulher Escarlate. ROZA. Miguel. Encontro Magick. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 75.
3
Ver carta de Fernando Pessoa à Mandrake Press de 18 de Novembro de 1929. Encontro Magick, Idem,
p. 60.
4
PESSOA, Fernando. O Caminho da Serpente. Lisboa: Edições Sem Nome, 2014, p.7.

2
em Sade e as mais longínquas nos gnósticos libertinos e antinómicos. Trata-se de um
Culto da Luxúria, que como a sua etimologia sugere é evocadora da Luz Primordial,
aquilo que a contemporânea Maria de Naglowska há-de chamar a Luz do Sexo, mas
cuja ênfase é agora colocada na perspectiva sodomita. Ela tem, como defendia Crowley,
tanto o Phallus como o Vas Nefandum como locus epifânico onde o sublime e o abjecto
coincidem. É esta Coincidentia Oppositorum que reinstaura a Gnose original do Vazio
Eterno por detrás de todas as dualidades. Janine Chasseguet-Smirgel refere-se com
apropriada ciência, a psicanalítica, a esse efeito dissolutivo da sodomia quando afirma
que “para um universo anal todas as diferenças são abolidas … tudo que é tabu,
proibido ou sagrado, é devorado pelo tubo digestivo”5. Esta devoração digestiva implica
a aniquilação mística do ego através do regresso ao caos do não-pensamento. A função
do abjecto é, assim, desencadear o choque de transição entre a realidade sancionada pela
norma racional e moral e a realidade livre de todas as normas, supra-sensível e não-dual.
A indefinição vertigínica e a experiência abísmica de que fala Raul Leal só podem estar
a referir-se, por isso, a esse estado que Crowley designava de entusiasmo energizado
(Liber DCCXI – Energized Enthusiasm, a Note on Theurgy) e que permitiria alcançar o
estado de atmadarshana referido no Budismo.
O abjecto convoca sempre, através do choque exercido sobre o ego domesticado do
abominável, a função de desencadear uma transição violenta da consciência, prisioneira
no círculo terrestre da sua alienação, de uma dimensão unidimensional do sujeito para
uma experiência aniquilante, que Leal designa como teotranscendente. Neste sentido,
Leal não partilha a visão mais luciferina e vanguardista de Pessoa ao apontar a
transcendência de Deus e a subsequente exaltação na Pura Ipseidade6. Nem todo o ser
abominável está condenado a nunca atingir a perspectiva não-racional e vertigínica da
experiência espiritual. Existem alguns abomináveis que contêm em estado virtual a
vocação e a coragem para sair dos limites e contingências da Razão, simplesmente
porque são estúpidos. Existiu sempre uma contiguidade semântica entre a total
estupidez e o total despertar. Na tradição tântrica, o homem comum, preso na estupidez
obtusa da alucinação consensual da cultura e civilização, é chamado de paçu, “animal
de gado”7. O paçu está preso à sua condição de ignorância do mundo espiritual, estando
muito próximo do animal, do atávico e do original, tolhido à lei do destino e da
sociedade. O Louco que por ânsia espiritual se afunda na dimensão do atávico, típica do
estado de estupidez (tamasica) do paçu e recusa a Lei torna-se um Baul, um errante e
mendigo fora de castas, um banido e fora da Lei, um eleito de Deus. Para o Louco
Espiritual “a merda é a metáfora da negação”8. Esta cropolatia tornou-se parte de um
anti discurso de cariz esotérico, nos tempos de Crowley e Leal, a que não é estranho
uma certa influência tanto gnóstica como tântrica, tornando-se mais tarde um dos temas
comuns, embora chocantes, da arte contemporânea. São exemplos Cindy Sherman,
Mike Kelly ou Yakoi Kusama. Mesmo na Arte Moderna, o excremento continua a ser
indigerível, sendo usado como tema para gerar repulsa e servir de táctica de choque,

5
CHASSEGUET-SMIRGEL, Janine. Creativity and Perversion. New York: W. W. Norton, 1985, p.
3/4.
6
LASCARIZ, Gilberto de. O Verbo do Arcano Luciferino em Fernando Pessoa. Lisboa: Edições Sem
Nome, 2014, p.50.
7
STOENESCU, Radu. Wilhelm Reich et le Tantra-yoga: une comparaison critique. New York: Lulu
Press, 2007, p.58
8
MALEN, Lenore. Postcript: An Anal Universe. Art Journal. Vol. 52, Nº3 (1993), pp. 79-81.

3
colocando os valores morais e a padronização mental à escala ficcional de uma mera
convenção social sem relevância ontológica.

A Teosofia do Abjecto
Há na língua portuguesa uma curiosa homofonia entre objecto e abjecto. Ela tem para
mim, no contexto da língua verde, uma grande relevância, não só poética, mas esotérica.
Tudo o que se torna objecto é abjecto. Na história da consciência há uma relação entre a
sua queda no estado do estúpido, típico do homem abominável, e a possibilidade de,
através da vertigem antinómica, se criar um movimento de abertura e ascensão para o
Espírito. No Liber Al vel Legis de Aleister Crowley não se trata de Queda bíblica, mas
de uma descida heróica desse princípio andrógino original, agora dualizado
temporalmente na Besta e na Mulher Escarlate. Isso acontece apenas por desejo de se
voltarem a unir no Amor, isto é, na resolução das dualidades, na experiência infinita
autoconsciente. A Vertigem leanina ou a Insanidade crowleyniana liquida o sujeito
racional libertando o Génio, de que a Poesia é a Voz da Carne transfigurada pelo
Espírito (Santo). É esta possibilidade que a Luxúria tem de desencadear no
temperamento místico, apenas no místico afirma Leal, a transfiguração do corpo na
Carne (O Verbo se fez Carne) fazendo eclodir a consciência vertigínica, que o Paracleto
leanino se revela como Deus-Satã, simultaneamente Opositor (no sentido bíblico) e
Libertador (no sentido miltoniano), mas também Iluminador (no sentido prometeico). A
Besta é, então, a Carne transfigurada pelo Espírito através da Luxúria Antinómica. Para
Leal só há “Luxúria como reza”9.
O Abjecto surge quando o objecto transpõe o limiar autodestrutivo entre a indiferença e
a vertigem, a ordem e o caos, a norma e o excesso, entre a podridão e a abstracção. A
natureza do objecto é ser totalmente estúpido e só quando se torna abjecto é que se pode
tornar vertigínico e transcendente, pelo interstício do desejo negativo. Por esse
interstício, constituído por múltiplos estados repelentes e abjectos, destinados a ser
reabsorvidos no caos, o “poeta vidente” conduz o objecto padronizado a perder-se no
informe e absoluto. Em virtude da sua natureza estúpida ser um objecto é estar já a um
passo da vertigem e da autodestruição. Mas esse passo no abismo é declinado pelo
homem abominável. O abominável sente-se bem em ser estúpido, ser objecto. Isso
porque a estupidez é uma imitação degradada da felicidade. Para Leal como para
Crowley, à imagem de William Blake, a criação é puro Desejo e é a sua expressão
antinómica e anti-humana que tem a propriedade de deificar o poeta. William Blake
declarou que “a luxúria do bode é a glória de Deus”. O Homem colocou entre ele/a
mesmo/a e a Energia, o Desejo Epifânico, uma barreira racionalizada feita de
convenções religiosas e morais, de normas interiorizadas, que impedem que a Energia
de Deus, a Luxúria, circule e se reifique na Deificação e transcendência do humano. Ele
anseia a unidade do Caos Eterno que nega a unidade vegetativa e homeostática do Deus
eclesial, que também se tornou objecto eterno e aberração normativa. Leal é
indubitavelmente Dioniso no seio dos seguidores sublimados de Orfeu.

9
Sodoma Divinizada, Idem, p. 87.

4
O abjecto é um estado de espírito que recusa tudo o que decai na condição de puro
objecto subjectivo, tanto na sua espessura (existencial) como na sua vacuidade
(ontológica). Mas o decadentista sabe que há um limiar semântico na condição do puro
objecto, isto é, do estúpido, que é o de estar muito próximo da Ipseidade. Para isso, o
objecto tem de estar num estado de pura estupidez ontológica para estar o mais contíguo
possível da sapiencialidade. Até Cristo declara que “bem-aventurados os pobres de
espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mateus 5:5). Há, assim, uma relação de
atracção íntima e perversa entre Vidyâ-Mâyâ e a Avidyâ-Mâyâ, entre a Sapiência e a
Estupidez, a Natureza que Ilumina e a Natureza enquanto potência de Ilusão. O que faz
a passagem entre um e outro é a abjecção operativa antinómica na qual se vira a
estupidez do avesso e se abre vertiginosamente ao espiritual e transcendente. Essa
técnica decadentista é da esfera semântica do anal. A natureza do abjecto é ser visceral,
atávico, anal no seu aspecto febril e orgânico, vertigínico, como dizia Raul Leal, ou pura
insanidade, como defendia Aleister Crowley.
Para Crowley a insanidade anunciava uma oportunidade única que permitia entrar na
experiência abísmica da sapiência gnósica, que ele apelidava de Augoeidos ou Santo
Anjo Guardião, uma forma de Paracleto pessoal ao estilo cátaro, onde sujeito e objecto
se unem no estado indiferenciado do atmasardhana. Crowley referia-se a esta
insanidade como um processo em que “todas as coisas se assemelham, todas as
impressões eram indistinguíveis”10. No próprio Liber Al vel Legis a figura de Aiwaz,
outra epifania da Besta, declara que “não seja feita nenhuma diferença…entre uma coisa
e qualquer outra coisa” (LL: I.22). É aquilo que Leal designará como o estado
“informe” da Luxúria. Na tradição esotérica, quem vive esse estado está a passar o
Abismo ou a aproximar-se dele. Não tenho dúvidas que Raul Leal sabia muitas vezes ao
que se referia sob o ponto de vista esotérico no uso que fazia de um vocabulário
internamente preciso, embora externamente esfíngico para os profanos, mesmo para os
críticos e comentadores que o tentam integrar nos espartilhos de uma hermenêutica
universitária. Exemplo disso é o uso da expressão “abísmico” e “vertigínico” nas suas
obras, sintomas de quem passa pela experiência do Abismo.
A passagem do Abismo é semelhante a uma cloaca universal. No seu seio permanecem
os excrementos da humanidade, isto é, tudo o que foi rejeitado no processo de
domesticação civilizadora e na ascensão do estádio animal e atávico ao estado racional.
Daí a relevância da analidade e da praxis sodomita para o Mago. Crowley atravessou o
Abismo e confrontou essa cloaca, que desde John Dee se apodava de Choronzon, o
Dragão Universal, através de um rito sodomítico no cimo do monte Dal’leh Addin, no
deserto argelino de Bou-Saâda, com o poeta Victor Neuberg, o conhecido autor inglês
do “Triunfo de Pã”. Todo o verdadeiro Graal é uma taça cheia de excrementos. O
excremento por excelência é o pensamento! Sejam esses excrementos as fezes, o sémen,
o mênstruo, a urina, o ciprino ou o sangue. São os Sete Sacramentos do Diabo, aos
quais já me referi em outras obras. A sua hóstia é o dejecto, a pedra rejeitada, matéria de
visceralidade genital, sémen e mênstruo, a antiga eucaristia valentiniana. Em visões
recebidas durante a Operação de Paris, uma opus inteiramente sodomita com Victor
Neuberg e o jornalista Willian Durant, futuro prémio Pulitzer, Aleister Crowley

10
Lachman, Gary. Aleister Crowley, Magick, Rock and Roll. New York: Jeremy P. Tarcher/Penguin,
2014, p. 159.

5
percebeu que o universo é uma grandiosa latrina cheia do excremento e desperdício
seminal do falo de Hermes, a Sapiência. Por outras palavras: o excremento de Hermes é
o pensamento reprodutivo! O sangue e o excremento convocam perpetuamente o
atávico, o sentido em vez do pensado, o saber/saborear hermético em que o
Conhecimento Secreto é pura segregação, puro kalas vaginal11. Na alquimia é o dejecto
que contém a potencialidade de vir a ser a Pedra Filosofal, o Pão dos Imortais. A merda
é ouro, como dizia o poeta José Emílio-Nelson.
Há, então, no Abjecto uma faculdade anagógica que, depois da descida no visceral e
atávico, no repelente e no nojo, anseia o transcendente. O Nojo anseia aceder à Luz do
Sublime pela perpétua Lei da Enantiodromia. O nojo dos gnósticos pelo mundo almeja
a imortalidade pleromática. O decadentista medita diante de um excremento como S.
Jerónimo diante de um crânio seco e abjecto. O Abjecto releva metafisicamente de um
choque sobre o sentir domesticado e padronizado do homem abominável, abrindo à
experiência de vacuidade espiritual de todas as normas e convenções. Diante do Nojo
que convoca o choque de um prato cheio de excrementos, o Poeta Vidente pode ver a
ironia de ele vir a ser a imagem do ouro e do espírito invertido na matéria. Então, só
pode relegar-se ao Silêncio ou, então, enunciá-lo pelo labirinto anal típico da retórica de
Raul Leal. Na verdade, a escrita labiríntica, esfíngica diria, em Leal, releva apenas da lei
interna da analidade, da sumptuosidade e repelência do simbólico excrementício, da
defecação retórica. Por isso, o leitor abominável recusa inconscientemente compreendê-
la, aceitar o seu estilo, isto é, comê-la. Isso porque reduz tudo, mesmo o sujeito, a um
objecto conceptual excrementício, às fezes da mente.
O exemplo de humano que no Tantra representa o abjecto é o «paçu», o pequeno
homem preso nas normas interiores da sua socialização que o alienam e o castram da
iniciativa de vir a ser Livre e Iluminado. Por outro lado, tornar-se “paçu”, um animal de
gado como designam os Tantras, no sentido de regressão no informe, no visceral, cujo
símbolo máximo é o excremento, pode ser uma forma de conduzir o objecto ao abjecto
e depois à Iluminação. Não deixa de ser curioso que, quando Crowley estava em Cefalu,
só alcançou o grau de Ipsissimus depois de passar a prova de comer os excrementos de
Leah Harsig, a sua Mulher Escarlate. Não há nada melhor para o Mago Abjeccionista do
que exaltar as fezes da humanidade como o ouro dos filósofos e depois comê-las. Neste
sentido, elas são a pedra filosofal tratada alquimicamente no fogo do atanor da
corporalidade divinizada da Grande Sacerdotisa. O Abade Boulan, que conhecia as artes
negras da Magia, não tinha pejo em fornecer aos doentes que o procuravam em
desespero pela fama de seus milagres de receitar os seus excrementos secos e
santificados como panaceia. Todos eles conhecem a virtude transmutatória do
excremento que na alquimia detém o poder da viridatio. Os comedores de fezes, como o
porco e o cão, são considerados em muitas tradições como impuros e animais do Diabo,
isto é, de Satã. Na perspectiva leanina, a era paracletiana em que vivemos deve exaltar
Satã como a força oculta e espiritual que está por detrás da nova assunção do Espírito
Santo. É semelhante ao que pensava Aleister Crowley. Compreende-se, então, a

11
Na língua inglesa a relação entre segredo e segregar é muito clara e usada por alguns autores na
linhagem iniciática de Aleister Crowley como Kenneth Grant. Veja-se a relação na língua inglesa entre o
substantivo secret (segredo) e o verbo secret (segregar).

6
necessidade de Leal ao desejar ser iniciado por aquele que se autoproclamava a Besta, o
Paracleto Luciferiano, para atingir também o estado de Ipsissimus, de Pura Ipseidade.
Os que mergulham nas fezes, na imundice, são os Loucos de Deus. Mergulhar nas fezes
é uma alegoria crowleyniana para mergulhar totalmente no inconsciente. Crowley
achava que o Mago tem de se atirar para dentro do inconsciente e perder a sua
consciência racional, mesmo a consciência de sua própria identidade, o seu próprio eu,
para se transcender no Anjo e na Besta, simultaneamente. A natureza do abjecto é
ambivalente, pois sendo dejecto e símbolo do regressivo na humanidade civilizada, do
abominável ou do paçu, é ao mesmo tempo a sua panaceia. Tornando-nos Loucos
podemos aproximar-nos mais facilmente desse estado de Ipseidade Original que os
crentes, esses outros néscios no negativo, chamam Deus. Baudelaire dizia que se
treinava constantemente para viver na histeria e Aleister Crowley afirmou que se
treinava para viver na insanidade como forma de acesso ao transcendente e não-dual.
Crowley debateu-se com repulsa ao comer as fezes da sua Mulher Escarlate, Leah
Harsig, o Macaco de Thot, em Cefalu como prova de alguém que transcende o humano
aceitando o seu lado mais abjecto. Ajoelhado diante dos excrementos da sua Mulher
Escarlate e preparando-se para os comer repete ad inversus a do sacerdote ajoelhado
diante de sua hóstia sobre o altar da igreja. Dessa forma consagra-se como o Louco
Divino. Da mesma maneira, Leal inclinado sob a sombra escura do vão de escadas no
interior do prédio da Praça da Figueira, em Lisboa, experimentava o que Crowley
chamava o “santo sacrifício” e a condenação policial e social. A essa posição
pederástica Crowley chamava “fazer o sacrifício”, expressão recolhida do jargão
eclesiástico católico, e “receber o sacramento”. Pazollini deve ter-se lembrado desse
momento em que o sodomita Crowley humilhava o seu ego megalómano a comer os
excrementos de Leah Harsig no banquete coprófago de Salô, muito mais do que de
Sade. Mas embora os excrementos, simbólicos ou não, convoquem a abjecção, é pela
Sodomia Divina que se entra na experiência epifânica, vertigínica e se é invadido pelo
espiritual. Não foi assim que provavelmente Raul Leal conheceu a sua Iniciação de
Crowley: per vas nefandus?

A Bestialidade Espiritual
A mística das fezes e da sodomia divina, o santo pecar de que falava Crowley e a
bestialidade-delírio ou luxúria-reza de Leal - o poeta Jorge Sousa Braga garantia que
“amanhã vamos todos acordar com uma pérola no cu” – enquadra-se na inversão
gnóstica de todos os valores pela “permutação das zonas erotógenas e suas funções”,
como a do ânus vaginalizado que Mapplethorpe há-de representar no seu polémico auto-
retrato (Self-Portrait, 1978). O lugar de eleição do abjecto é, por isso, o ânus e o seu
poder de redenção/retenção beatífica, espaço eucarístico (“fusionista” diz Leal) do Ser e
do Outro, do horrível com o sublime, do paranóico com o inteligível. Aleister Crowley
designará esse locus corporal como uma fonte de beatitude - “a mais pura e mais santa
experiência espiritual que existe” diz ele em World’s Tragedy (1908) - e Raul Leal de
vertigem onde se convoca o Espírito Santo enquanto Deus-Satã.
O abjecto rejeita o inteligível no seu aspecto ordenador e mumificador e sujeita-o ao
sensível. O estado supra-inteligível alcançado pela experiência do abjecto é não-dual,

7
noético. Pelo abjecto que nos repugna podemos sair do nosso estatuto ontológico de
unidade provisória e auto-suficiente do “eu” e conhecer o caos vertigínico do Ser, onde
este participa de um estado indiferenciado e informe de Vazio Eterno. A prática do
abjecto é a recusa de pensar em manada, invertendo as suas antíteses ou unindo-as pelo
ardil retórico, tipicamente leanino, do oximoro. É a recusa da alucinação consensual da
nossa existência humana vivida na fragmentação da dualidade. Pelo ardil retórico do
discurso, o oximoro restaura essa androginia pré-dual e faz explodir a estrutura binária e
dialéctica do homem racional pela arte da analidade. O abjeccionista procura as
fracturas e aberturas anatómicas, boca (per os), vulva (per manus) e ânus (per vas
nefandum), no corpo e no universo coisificado pelos seus contrastes duais, elegendo o
que todos rejeitam como sendo o caminho por excelência do Eleito: o Caminho da
Aversão. O próprio Crowley há-de dizer, por isso, que o verdadeiro Adepto só escolhe
para o exercício da Magia Sexual mulheres que sejam fisicamente repelentes. As
pinturas e desenhos de Austin Osman Spare ilustram muitas vezes essas mulheres
repelentes que este artista e mago, tal como Crowley, usava na sua Opus Mágica. É pela
repelência da nossa abertura anal que se regressa ao estado pré-informe da linguagem,
tornado então verdadeiro “ânus solar” (Bataille) iluminando as trevas qlifóticas do
inconsciente.
Raul Leal é muito preciso na designação da Besta, como sendo metafisica e a expressão
da Luxúria, no seu sentido místico mais elevado. A função da Besta e da Luxúria é ser
uma força anagógica, isto é, um impulso ascensional da consciência ao plano espiritual,
contradizendo o relato do Apocalipse de S. João em que esta é a força regressiva, de
queda da humanidade na natureza e no pecado, que prende a consciência a um estado de
alienação inercial e embotamento espiritual. Qualquer leitor ficará perplexo com esta
inversão leanina da Besta natural na Besta metafísica. Aleister Crowley foi quem,
aproximadamente vinte anos antes, propôs esta ideia no Liber Al vel Legis, em 1904.
Para Crowley e, segundo a tradição esotérica ocidental que veio a considerar o hebreu
como sendo a sua língua sagrada de expressão, a Besta é Chioa. A sua raiz etimológica
Chi, que significa “vida, fluir, besta e animal” é a mesma raiz de Chiah, que significa a
Vontade, divina entenda-se, que tem a sua posição supernal em Chokmah (Sabedoria).
É o equivalente de Sofia. Para o Liber Al vel Legis a Besta é o Dador da Vida, isto é, da
consciência espiritual à consciência racional e utilitária do ser humano que está tolhida e
alienada no mundo natural. É por este motivo que Crowley considera a Besta, na nova
recensão espiritual telémica, o equivalente do Santo Anjo Guardião, da contraparte
espiritual inconsciente do ser humano. Para o mago britânico a natureza da Besta
embora sendo inteiramente espiritual e, mesmo no seu estado de Queda, ter sido
glorificada numa condição tifarética e solar, ela só é alcançada com a completa revulsão
da consciência. Só através da violação de todas as normas culturais que aprisionam o eu
e da sua tripla ascese de sexo, drogas e canção, isto é, Poesia, é que essa revulsão pode
reificar a Gnose. A ser verdade, é fascinante que sendo a filosofia leanina toda ela
inspirada e original, tendo emergido independente de qualquer influência telémica,
tenha chegado de forma tão completa e tão simples às mesmas conclusões e mitemas
sacrílegos de Crowley, mas que já estavam disseminados e sugeridos tanto pelas obras
literárias e artísticas como da filosofia de vida dos decadentistas finiseculares.

8
Entre Crowley e Leal
Existem desconcertantes paralelos, tanto em pensamento como em existência, entre
Raul Leal e Aleister Crowley, que será impossível no estreito limite desta revista
explorar. Deixarei, sem dúvida, para outro momento e para a próxima edição de um
livro ainda embrionário sobre Raul Leal e Aleister Crowley, a minha análise dos vários
elos serpênteos entre um e outro. Estamos diante de duas pessoas que apresentam um
estranho caso de duplicidade especular. Não tenho ainda uma ideia precisa do grau de
conhecimento que Raul Leal teria da obra antinómica de Aleister Crowley e da sua
magia sexual sodomita antes de o ter conhecido pessoalmente em 1930, para além do
eventual convívio com Fernando Pessoa. Contudo, encontram-se fascinantes paralelos
biográficos entre um e outro, a saber:
1) Ambos nasceram de uma família muito rica cujo património esbanjam em muito
pouco tempo numa vida de dandy e de busca espiritual. Leal acabará num estado de
completa miséria e indigência ao modelo do louco Majnum e Crowley viverá numa
pobreza constrangedora, endividando-se sem parar, aliviado apenas pela simpatia dos
seus discípulos americanos.
2) A noção do vertiginoso como o vago, o indefinido, o informe, enquadra-se na
insanidade e filosofia aeónica de Crowley expressa no Liber Al vel Legis. Num caso é a
valorização da Vertigem e, no outro, da Insanidade como condição de uma comunicação
com o supra-racional
3) A crença megalómana de que ambos eram eleitos e tinham uma função messiânica,
sendo um a hipóstase de Henoque e outro a da Besta do Apocalipse.
4) A referência ao Génio em ambos os autores como condição sine qua non de
aproximação ao irreal e transcendente, inspirada provavelmente na nomenclatura usada
por William James.
5) A provável influência de Kant (Crítica da Razão Pura) e de Nietzsche (Zaratustra)
em ambos os poetas, e a crença na falência da razão para explicar o mundo espiritual e a
própria existência.
6) Uma crença patriota no centrismo geoglobalizador e messiânico, que num caso é o
luso centrismo de Leal e no outro o anglo centrismo de Crowley.
7) A necessidade de despersonalização tanto na vida como na consciência como
condição epistemológica para aceder a estados não racionais de consciência não-dual.
8) A convicção de serem ambos emissários de Satã, num caso do Divino Paracleto
enquanto Verbo de Deus-Satã e, noutro, a importância da figura de Hoor-Pa-Kraat e
Aiwaz, considerados por Crowley duas hipóstases de Satã.
9) A sodomia idealizada como experiência epifânica e essência gnósica do antinómico.
Neste caso, a sodomia é uma metodologia sexual que permite passar da linguagem à
experiência da anti linguagem, da retórica à profecia e epifania das visões. O poeta
sodomita, o sodomita superior e não o sodomita inferior, que na classificação leanina é
o abominável que busca apenas a intensidade do desejo auto narcísico, é habitualmente

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um pederasta passivo, aquilo que o guarda-nocturno, ao surpreender Raul Leal,
classificava como sendo uma atitude não-autorizada.
10) Os dois poetas são profundamente devedores do Decadentismo finissecular, num
caso o francês e no outro o inglês, adicionado ao facto de ambos como poetas nunca
terem conseguido passar do anonimato literário e só serem conhecidos sobretudo pelo
escândalo sexual antinómico. Ambos usam uma retórica labiríntica, retorcida,
simbólica, anal.
11) A crença na chegada de uma Nova Era Espiritual, a Era do “Amor sob a Vontade”
segundo Aleister Crowley, de empréstimo Joaquimita, dominada pela consciência do
Divino Paracleto com feições satânicas, gnósticas e liberacionistas, em que se rejeita o
papel de Cristo.
Estas e outras confluências temáticas e espirituais antinómicas entre Leal e Crowley
devem ser trazidas à luz do dia, a este mundo de profanidade agora preparado para
compreender a importância e originalidade do seu (a)pensamento abísmico. Foi a esse
empreendimento que me propus neste breve ensaio, mas que espero apareça brevemente
amplificado em livro imoral e sapiencial.
Gilberto de Lascariz

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