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LIBRETO PARA UMA NOITE D’OBNÓXIAS ALEGRIAS

- por data do meu vigésimo quarto aniversário


«Ridicolo, poi, sarebbe cercar di dimostrare che la natura è:
è evidente, infatti, che di tali enti ve ne sono molti.
E dimostrare le cose evidenti mediante le oscure
è proprio di chi non sa distinguere
ciò che è conoscibile di per sé
e ciò che non lo è
(e non è improbabile che una tale malattia possa capitare,
giacché un cieco nato potrebbe pur ragionare intorno ai colori)
e la necessaria conseguenza è che questi tali si mettono a discutere di
vuoti nomi,
ma non pensano affatto.»

Aristóteles, in ‘Physica’, II, 1

«From too much love of living,


From hope and fear set free,
We thank with brief thanksgiving
Whatever gods may be
That no man lives for ever,
That dead men rise up never;
That even the weariest river
Winds somewhere safe to sea.»

Swinburne
MODAS

Fui perdendo alguns quilos em saldos.


Vinte porcento, devo à Marta,
a madame que me aconselhou
estas calças.

Morena, de olhos verdes, curvas delicadas,


talvez não fosse o tipo de musa
cantada por Camões.

Mas, segundo consta, no tempo dele


nem saldos nem ganga,

e quanto aos quilos e à Marta…

Mudam-se os tempos, as medidas,


desfazem-se as calças.
FALA A GATA DE SUA CÓLERA

para a minha irmã

Já passa das cinco da tarde e o tipo ainda não saiu dali.


Há horas que está deitado no sofá, sem fazer nada.
No melhor sofá da casa, ainda por cima.
Não faz por menos.
Ele sabe perfeitamente que aquele é o melhor sofá.
Sabe perfeitamente que eu adoro meter-me ali a levar com o solinho.
E então ele deita-se ali, de papo para o ar, a ler e a coçar-se.
Faz de propósito. Tenho a certeza.
E nada mais faz, além disso.
Passa ali horas e horas e horas e horas deitado. A ler e a coçar-se.
Lá fora, há gente que trabalha a sério, sim, cumpre funções, de facto, porque é de-
mais óbvio: estar sentado a ler e a coçar-se não se trata de um verdadeiro trabalho.
Ele pode acordar todos os dias e dizer para ele próprio que se trata de trabalho, mas
pode ter a certeza que não lhe servirá de nada.
Melhor saísse de casa e fosse ver as vistas.
Beber um cafezito, fumar um cigarro, fazer umas apostas.
Ser um homem a sério.
E deixar-me ficar descansada no sofá.
É que eu só não saio porque não posso. Não me deixam.
Ele, pelo contrário, podia perfeitamente sair, mas não… fica ali deitado a ler e a
coçar-se.
Eu ainda me lambo, volta e meia. Ele nem isso. Passa dias sem tomar banho, o badal-
hoco.
E o sofá fica entranhado daquela presença fedorenta.
Podia, pelo menos, já que quer ler e coçar-se, deixo a sugestão; podia, pelo menos,
ler alguma coisa sobre o que se passa lá fora, de facto.
No outro dia estava a ver televisão, enquanto a mãe passava a ferro, e ouvi um senhor
a falar de um livro muito interessante onde tentava explicar umas coisas de econo-
mia e falava de desigualdades sociais também. Desigualdades sociais que eram
reflexo das desigualdades económicas e desigualdades económicas que eram reflexo
das desigualdades sociais. Explicava que se tratava de uma bola de neve estrutural
nas sociedades pós-industriais, pós-modernas, pós-coloniais e pós-outras coisas
que não me recordo, podendo mesmo vir a ter implicações nas sociedades pós-hu-
manas. Porque, dizia ele citando um iluminado qualquer, é mais fácil imaginar o fim
do mundo do que o fim do capitalismo. O capitalismo teve o grande dom de extrav-
asar a economia, o capitalismo superou de tal forma a economia ao ponto de nos
fazer crer que é a economia que está na base de tudo.
A economia é própria vida. E Deus é o capital.
Melhor, o capital fez-se Deus nesta época desprovida de sentido, nesta era pós-in-
ternet e pós-tantas-outras-coisas-que-jamais-conseguirei-recordar-e-supor-
tar-em-consciência neste mundo vazio e fluído, assim sobejamente condenado ao
declínio. Esse senhor na televisão falava destas coisas e de muitas outras ainda, esse
senhor na televisão falava com elevação, elegância, com palavras vastas palpitan-
do na ponta da língua, anunciando o apocalipse moral do ocidente, o apocalipse
do próprio ocidente, o perigo da china, o perigo da vigilância, da pornografia, da
surface web, da d33p w3b, de como a surface é apenas a ponta do iceberg, de como a
humanidade está condenada ao seu próprio auto-extermínio, nem deus nem senhor,
somente ceo’s e colaboradores, o fim, anunciava o fim decretado por profetas com
nomes afrancesados, filósofos, sociólogos, indivíduos capazes de escrever e falar e
pensar sobre tudo, os últimos paladinos da esperança humana, esses senhores tão
bem sentados em cátedras endinheiradas, esse senhores, supus, são o último, o
derradeiro, reduto de esperança.
Confesso. Não percebi muito daquilo que estava a ser falado, mas o senhor tinha um
ar sério e falava de forma eloquente.
Uma sociedade pós-humana.
Agradou-me bastante a ideia de uma sociedade pós-humana, livre finalmente
daquele chato que passa a vida deitado, no melhor sofá da casa, sem fazer rigorosa-
mente nada. Nada.
Limitando-se a ler e a coçar-se.
A ler e a coçar-se.
A ler.
A coçar-se.

A ler e a coçar-se.
RONCEVAUX

Sagrado é o coração da floresta


que atravessam lado a lado.
SAGRADO É O CORAÇÃO DA FLORESTA
AS ARTÉRIAS DA TERRA DESCOBERTAS
AO ENCONTRO DOS CRAVOS.

Sagrado é o teu nome aberto


sobre as páginas de Orlando.

O amor dos homens é uma lança.


DURENDAL O SEU NOME.

Triste aquele que percorre a floresta,


por mais que passem os anos,
será sempre contada a história
dos que ficaram.

SAGRADO SEJA O CORAÇÃO DA FLORESTA


QUE ATRAVESSARAM.

A traição é um telhado cinzento e metálico.


A traição são as montanhas negras de Roncevaux.
A traição é aquele homem.
AQUELE QUE DENUNCIOU ROLANDO E O RESTO DO GRUPO.
A traição tem braços, ombros e pernas
e caminha.
A TRAIÇÃO ENCAMINHA-OS.
Encaminha-os para a morte.

Sagrado seja o coração dos homens


que pereceram.
Por mais que a morte os tenha:

PARA SEMPRE O seu nome será RONCEVAUX.


JANUSZ KORCZAK

Alguns homens carregam no peito


o peso de estar vivo
e ser-se humano.

SE HÁ QUEM ACEITE CORROMPER-SE


QUEM O FAÇA COM A MAIOR
DAS QUOTIDIANIDADES
QUEM TENHA SANGUE
INSCRITO NAS MÃOS
NOS DEDOS
ENCRAVADO NAS UNHAS
PASSADO A LIMPO EM ACTAS
ARQUIVADO PARA SEMPRE EM DECRETO
NOS EDITAIS DA HISTÓRIA FUTURA

GÁS
SANGUE

(em uníssono)

GÁS
SANGUE
NOS CAMPOS
NOS GUETOS
NAS ASSEMBLEIAS

PROPAGANDEADOS COM
ORGULHO
ENBANDEIRADOS
COMO CONQUISTAS

– Se há quem tenha participado.

CONTRA ELES
há quem tenha entregue a vida.

Como o velho rabino de Auschwitz


há quem tenha dito:

– Este é o meu corpo,


tomai-o,
deixai passar por ele o vento,
aquele vento antigo vindo do alto do Sinai,
escutai-o,
escutai no meu corpo as páginas
de Amos
e Zacarias,
Oseias
e Miqueias,
Isaías
e Malaquias,
Ageu
e Daniel,
Habacuque
e Sofonias,
Jonas
e Joel,
Naum
e Obadias,
Jeremias
e Ezequiel.

CONTRA ELES
Perdoam-nos
o fatídico facto de sermos descendentes
das bestas da morte

OPRIMIDOS QUE SOMOS PELA NOSSA CULPA

somos os filhos dos que não morreram


dos que mataram dos que ajudaram a matar
para não morrerem
e dos poucos que sobreviveram
à TORTURA à FOME à MORTE
para contar os mortos
6 000 000

Seis milhões de mortos.


Número inteiro.

Citado da famigerada wikipedia:

«Seis milhões é o número estimado de vítimas do Holocausto judeu na Segunda


Guerra Mundial; o número de pessoas assassinadas pelos nazistas nos campos de
concentração é ainda maior.

De acordo com Carl Friedrich Keil e Franz Delitzch, com base na estimativa de que
o exército do Rei Davi tinha um milhão, quinhentos e setenta mil soldados, a popu-
lação da Palestina, naquela época, seria da ordem de cinco a seis milhões de pessoas.

O Homem de Seis Milhões de Dólares, série americana dos anos 1970.


O Homem de Seis Milhões de Cruzeiros contra as Panteras, paródia brasileira, de
1978.»

– Quando vejo o teu rosto à frente desse pelotão


de crianças,
a caminho do campo de TREBLINKA,
não é o sangue, o gás, a tortura, a fome,
a morte,
nem o GENOCÍDIO,
aquilo que vejo.
– Nas roupas elegantes com que trajaste
os teus filhos – no teu semblante, Janusz
– Na dignidade em que os guias,

vejo a outra face do SÉCULO que herdamos.


ROMA E PAVIA NÃO SE FIZERAM NUM DIA

No primeiro dia, fizeram-se à estrada.


Ao segundo, sentaram-se sob o sol quente de Sorrento
e esqueceram-se de acordar a tempo.
Ao terceiro, levantaram-se e continuaram a caminhar.
Ao quarto dia, lembraram-se das suas mães aflitas,
sem notícias, na já distante Puglia.
Ao quinto dia, aperceberam-se que ainda estavam
em Nápoles, a beber grappa e a vender chapéus
aos turistas.
Ao sexto dia, duvidaram se valia mesmo a pena
mudar de cidade, de hábitos, e de língua.
Ao sétimo dia, alguém lhes disse que o império
se fazia com sangue e carne.
A BALADA DE CAMILO NEVES,
LÓGICO E AGENTE FUNERÁRIO,
QUE PARECE ABJUGAR DEUS
DA SUA EQUAÇÃO

Tenho morrido, meu amor,


e visto morrer tantas vezes
que já nem sei que será
da morte seu sentido
quanto mais do amor
seu referente.

Que a morte
não tenha referente,
sabem-no somente
os que à vida
se viram realmente
condenados.

Mas eu,
nem sei se à vida
me vejo entregue
ou do amor (do mundo
libertado.

Tenho morrido
mas terei morrido
de amor somente
ou do esquecimento
da morte

a que me sinto
conjurado?

Tenho vivido, meu amor,


entregue à lógica modal
dos funerários,
vendendo no melhor
dos mundos possíveis,
a melhor das possíveis
passagens.
STANZA DI BAGGIO

traças do meu quarto


onde vos deixei morrer
para só agora vos recordar?

em que amarga hora


atei minhas mãos
no vosso corpo?

em que dia tão triste


contrariei a fraternidade
e tolerância entre espécies

guiado pelo ímpeto egoísta


de ler, ó ironia, um livro de biologia
sobre a lâmpada a gás da escrivaninha?

traças do meu quarto


do meu pequenino quarto
milanês – traças da minha cozinha,

da minha kitchenette tão fria


que foi quarto sala de estar e cozinha
e onde só a vós tive por companhia.

aqui na ocidental praia lusitana


vejo os dias que morrem mais cedo
vejo as ternas raparigas de ruy belo

tornar a seus poemas


deixando estas praias despidas
deixam para trás algumas pegadas

subtis esquivas deixam a memória


de partir mais uma vez aos olhos esquiços
dos rapazes tristes – deixam indícios

também eu deixei para trás os meus restos


alguns livros de saba e pasolini
um ou outro filme de fellini roubado à biblioteca

um amor ou uma espécie de paixão


una sorta d’amore sbagliato uma grande razão

um jardim onde a adolescência se redime


ainda
como se fosse já madura e não mais errasse

uma jovem mulher de cabelos curtos e dentes d’ouro


uma jovem mãe esquecida entre os meus cansaços
e inquietações sazonais

lembro-me agora de haver esquecido tudo isto


o que a memória reserva no tanto que inventa
e a métrica e a rima a aliteração fácil nos tercetos
e de só a vós haver dirigido a minha voz em pensamentos

ó traças do meu quarto – minhas singelas companheiras


tão dignas e tão frágeis – onde vos deixei morrer:

entre os boxers sujos, os jornais, ou os soutiens esquecidos?

em que amarga hora vos matei? foi a solidão ou a terna arrogância


de me ver enfim amado? quem foi o capataz da chacina?

quem vos enterrou entre as calhas das paredes


onde repousavam as garrafas vazias
os guardanapos usados?

ó imundície onde vos deixei jazer para a eternidade –


sereis vós o meu futuro, ó fosseis do meu passado?

entre mim e a sentença que vos preguei pra mal dos meus pecados
não vejo agora qualquer diferença

também eu serei parte de vós ou vós parte de mim –


sei agora que também sou um condenado
ó traças do meu quarto da minha cozinha da minha kitchenette
tão fria
tantas vezes vos maldisse por solidão ou arrogância
até matar-vos como se fosse imperador das vossas vidas

só agora me sei somente


tal como vós
traça

condenado à morte e escravo


de uma vida errante

peço-vos desculpa
e peço-vos
por fim

que me deixeis repousar a vosso lado.


KOLN, UMA MANHÃ DE DEZEMBRO

A noite esconde-se nos cântaros,


como se morresse.

Sobre os cabelos enevoados


da amada,
o dia começa.

Ergue-se o cálamo da saudade.

Nenúfares, flores de lótus, cisnes, garças,


repousam sobre o sol frio de dezembro

que lhes é tão estranho.

De repente,
como se não fosse de repente que tudo
sucede,
as garças despedem-se,
mergulham nos lagos.

Começa o lento rumor do mundo,


alheio a tudo o que parte;
nas estradas,
nos passeios,
como se tudo tornasse:

a trépida solidão dos passantes,


a monocórdica chegada do quotidiano.
Como se tudo partisse sempre,
tu e eu, de mãos dadas
com a banalidade.

Nos parques, meros sítios de passagem,


resta uma ou outra alma cansada, para quem
o inverno é uma casa, a única casa possível,

e o dia e a noite são inseparáveis.

Ocupam
os bancos com a sua ausência forçada.

Caem sobre a relva do cansaço.

A manhã, dizem, é a premissa das lágrimas,


é o sorriso da tarde, do meio-dia;

em silêncio, como se esquecesse,


o quotidiano caminha em direcção ao tram,

ocupa as cidades.

Com os seus casacos invernais, abandonados


ao silêncio, com os gorros e os cachecóis
cheios de frio;

há uma cidade que caminha


para o dia.

Persegue, sem saber, o abandono


das garças.
ENQUANTO ESCREVO, ALHEIO AO QUE ESCREVO

“Para escrever um único verso,


é necessário ter esgotado a vida”
Maurice Blanchot

Enquanto escrevo, alheio ao que escrevo,


será que ainda estamos na primavera?

As andorinhas voltam a desenhar os céus,


voam alto rente ao azul;
nas árvores dos parques,
algumas garças, verdilhões,
e outros comparsas,
juntam-se aos pardais
sobre a terra adubada de maio.

No contorno das nuvens, etéreas,


algumas crianças ignoram o sábio florentino;
flutuam no firmamento criaturas mágicas
frutos do mais eclético panteísmo.

Perguntam:
quem sabe onde morrem as pétalas,
as esmeraldas da primavera?

E não respondem.
As respostas são frutos tardios,
filhos caídos, entregues a si mesmo,
e à nudez do outono.

Enquanto escrevo, alheio ao que escrevo,


pouco sei além do que esqueço.

Quero dizer:
sei ter perdido o amor, isto é,
a inocência de ter amado perdidamente
um rosto, um nome
a quem cantar à noite,
uma pétala de juventude
caída nas minhas mãos morenas;
um prado imenso onde cair com a cabeça
acordada de sonhos, com a manhã
quente do pensamento puro,
da adolescência.

Quando se ama,
ignoram-se algumas evidências.
Não se sabe que ter sonhos
é ter à espreita desastres
– aguardam-nos enquanto a paz
se alastra e se disfarça de eternidade.

O vento volta.
Caem levemente os frutos,
sobre o regaço da mulher amada
cai a cabeça do amante,
caem versos delicodoces,
doces ingenuidades,
metáforas sobre a primavera
que fazem da primavera uma época,
uma certa idade onde se pode viver alegremente
sem escrever versos.

Enquanto escrevo, alheio ao que escrevo,


o dia cai sobre o cais. Alguns homens preparam
as redes, trocam palavras, conselhos,
uma ou outra piada.
Penso:
ontem perdi a inocência de ter amado
– mas que terei perdido realmente?

Se a primavera fosse uma coisa real,


concreta, a seguir viria o verão.
As raparigas tornariam às praias
onde o mar as abraçaria de sal e algas,
a espuma dos seus desejos viria à tôna,
e os amantes, de calças arregaçadas
pelos joelhos, trocariam um ou outro passe
mais arriscado com a bola já feita em trapos;
trocar-se-iam olhares ansiosos, nessa idade
em que ânsia volúpia caminham
de mãos dadas, junto à praia,
rumo ao futuro
– sobre a tórrida placidez
daquelas formas equilibradas.

Mas agora é tarde:


nessas telas de deus imaculadas,
cai a noite.

Porque deus fez-se somente nome


para clamar a adolescência.

Quem poderá crer em deus,


depois de ter passado o inferno,
ajoelhado sobre remorsos e perdas,
e não visto nada,
nem criador nem criaturas?
Depois de tudo ter visto
resumido a um corpo coberto de chagas,
depois de ter visto a tristeza de ser somente isso –
um corpo coberto de chagas, atravessado pela desgraça –
perseguido pelos poucos acertos,
pelas poucas fortunas em que se viu arrastado,
pelo vento e a contemplação serena das crianças

e pelo desenho, agora triste, das aves relembradas.

Enquanto escrevo, alheio ao que escrevo,


as vindimas fizeram das raparigas
mulheres,
colocaram-lhes grandes cestos à cabeça,
tesouras afiadas no coração,
e feridas
no peito triste das lembranças
desses amores perdidos, afogados na espuma,
nas marés vivas do irreparável.

Enquanto escrevo, alheio ao que escrevo,


as árvores despidas, abandonadas pelos pássaros,
mostram que a primavera é tão somente um disfarce,
um vestido colorido da realidade.
E O REVERSO

Avesso ao mundo
avesso em mim mesmo,
avesso ao próprio avesso,
assim acho o reverso
de me achar num verso
adverso em tudo
à própria ideia de verso.
O POETA IGNORA RECORRENTEMENTE O QUE COPÉRNICO
PODERÁ TER AFIRMADO ACERCA DO SOL E DA TERRA

O que não significa necessariamente que o sol


não esteja no centro da via láctea
ou o ache assente na terra.

Acende um cigarro,
senta-se à mesa dos desastres,
das transfusões de terra,
enumera,
delineia,
cartografa
sobre a tela das palavras
a vida estática das estrelas
:contemplando o surgi
mento
de galáxias,
órbitras –
não-finis-
terra
mais
sobre
a mesa.

O que não indica,


– frise-se –
que a mesa seja o centro
ou nela se encerre
a vida nupcial dos astros.

O poeta indica a si mesmo,


onde devem passar as cadentes nebulosas;
no negro espaço onde caem os cometas,
torna transparente algumas ideias
mais opacas.
A luz
atravessa-as
como as coisas primeiras,
de que outro poeta falara:
dedos, caneta, pena(m
nas patas
as marcianas aves.

E o poeta às vezes fala a fala das crianças,


balbuceia, diz em seu livre desatino
quão livre é o amor das dantescas árvores,
o verbo amigo.

Caminha entre as florestas mirabolantes,


onde memória e criação se fundem,
achando-se nessa encruzilhada,
o poeta é o labirinto e o minotauro.

Por isto tudo se aceita a sua ignorância


acerca das leis da astronomia,
tal como a ausente divisão entre
tempo
e espaço,
para que se faça do espaço
seu próprio tempo
e a seu tempo
(a seu bel-prazer
se ocupe
o espaço.

Se o sol comanda a terra


ou a terra gira em seu próprio regaço,
o poeta ignora,

a/braços,
a/barca/os,

abraça-os.
EVOLUCIONISMO

para o Miguel

Divido a atenção entre as teclas


deste piano de imagens
e as labaredas
do fogão.

Faço uma pausa


para pesquisar a invenção
da escrita
e a descoberta do fogo.

«Os vestígios mais antigos de escrita


são as Tábuas Tártaras descobertas na Romênia,
com datação estimada de 5500 a.c.
O significado dos símbolos é desconhecido,
e a sua natureza tem sido objeto de calorosos debates.»

«Le più antiche prove di uso umano del fuoco


provengono da vari siti archeologici nell'Africa orientale,
come Chesowanja vicino al Lago Baringo,
Koobi Fora ed Olorgesailie in Kenya.
Le prove a Chesowanja consistono in cocci di argilla rossa
datati a 1,42 milioni di anni (Ma) Before Present (BP).
Il trattamento di pre-riscaldamento sui frammenti trovati presso il sito
mostra che l'argilla deve essere stata scaldata a 400 °C per farla indurire.»

O homem atravessou, então,


milénios infindáveis,
intempéries várias,
cautelas e alarmes,
somando a estas outras descobertas,
tudo isto para chegar
aqui.

A esta mesa.
E sobre ela nada vejo,
senão:

um poema e um rojão,

a nobre wikipedia,
(a pobre rima em –ão)

a minha síntese
da passagem do homem pela terra.
LIVRO DAS ALITERAÇÕES

Onde a leitura se alitera,


oblitere-se.

Oblitere-se
Oblitere-s
Oblitere-
Obliter-
Oblite
Oblit
Obli
Obl
Ob
O.

Onde a leiteira se oblitera,


com tanto literatice.
O MEU NARCÍSICO CONTRIBUTO PARA UMA REDIFINIÇÃO
DOS TERMOS E DOS MODOS DO TERRORISMO

ainda hoje me irritaram


por acaso um dos tipos era palestiniano
falava alto
e no lugar de rir
guinchava

continuei
solenemente incomodado
a tentar ler um livro de Bellow
sobre Jerusalém e pensei:

caramba,
já nem ler se pode descansado
nesta europa em constante trânsito
entre a euforia e a depressão

Bellow escreve
a certa altura:

«O ar, o próprio ar,


é inspirador em Jerusalém,
foram os sábios que o disseram.
Estou disposto a acreditar nisso.»

por essa altura


já estava disposto a converter-me
ao mais radical dos sionismos
só para poder vingar-me
daquele merdas

até que me lembrei


do Silêncio de Bergman

e pensei em aprender árabe


aliás,
foi assim que decidi
aprender todas as línguas do mundo:
só para poder ler em paz nos transportes públicos

mas depois o tipo começou a arrotar e a clamar


ao escarro

e aí eu tive a certeza que o mal não é a palestina


nem o sionismo nem o judaísmo ou o islamismo

é a javardice deste tipo


que provavelmente não deixa ninguém ler o corão
em paz

e no fundo tem para si que o corão é tão irrelevante


quanto a bíblia ou o talmude

o importante, tanto lhe faz,

melhor é mandar uns arrotos


como bem lhe apraz.
ARTE DE AMAR

Nesses dias outrora vividos,


cansado de amar morria, cansado caía
sobre o teu peito; alegre caía
sobre a própria alegria.

Nada mais havia senão cansar-me,


repousando no cansaço de amar
o melhor que podia,

razão até havia em madrugar


entre as coisas pueris da vida:
sair de casa, abrir e fechar portas,
fazer de conta que saía:

quão grande é a fortuna de esquecer


os quatro quadrantes do mundo:
vida e morte guerra e paz
a razão seu avesso e o outro verso ainda

escrito de cansaço quando me esquecia,


quão breves são os trabalhos da carne
e da arte por ela empreendida:

por fortuna, cansado de amar me havia


nos dias em que me cansava de amar

nem vida ou morte me detinham,

cansado de amar morria,


cansado de amar vivia.
GENTRIFICAÇÃO

O teu nome é uma casa antiga.

No início, nem rua havia,


pedra a pedra
foi-se fazendo a calçada,
sobre o suor dos homens
que te amaram e perderam.

Só depois disso, em torno


do teu nome,
foi crescendo a cidade.

Em teu nome,
fizeram-se ruas,
praças, avenidas,
mercados,
e até um senado
para que os homens
mais ilustres
discutissem o teu futuro.
Tudo vão.

Perderam-se em discussões
sobre o estado da cidade-estado,
o preço da moeda, a inflação,
e deixaram o teu nome esquecido,
entregue às pedras da calçada.

Um dia, um desses homens


que te amava, o mais fraco,
quis regressar, cansado
de arrelias e zaragatas.
Mas quando abriu a porta
era já tarde.

O comércio de interesses
havia-se apoderado dele
mas também de ti.
A inflação da ganância
tomou tudo em seu regaço
e deixou o amor desalojado.

Agora, anos mais tarde,


volto a essa cidade na lembrança,
e vejo que o teu nome foi trespassado
para um estrangeiro atento
à gentrificação das cidades.

Agora,
o teu nome, é uma casa
remodelada contra a saudade.
PRESTAÇÃO DE CONTAS

«The past is a foreign country:


they do things differently there.»
L.P. Hartley

Tenho uma ou duas coisas a dizer


a esse que dizem ser o passado.

Volta e meia lá aparece o fulano,


à porta de minha casa,
sem sequer ligar ou deixar aviso
quando a maior parte das vezes
já durmo
ou estou encurralado pelas insónias.

Entra pela porta das traseiras,


senta o rabo displicente
no cadeirão da sala,
começa a revirar os jornais,
os livros, as garrafas vazias –
os poucos pertences
que deixou ao presente
e decide tomá-los novamente
como se ali estivessem para sua mordomia –

não tem a decência, muito menos a educação,


de não reclamar o que um dia deixou.

Portanto,
esta era a primeira coisa que tinha a dizer
a esse que todos dizem ser
o responsável pelo departamento da saudade.

A segunda – bem mais difícil – diz respeito


às cartas onde ele depois vai mexer
com o intuito de mostrar o remetente
e a pretensão de levantar a dúvida
se alguma vez aquele foi o meu nome,
se era eu quem as recebia ou um outro

que nunca pude realmente conhecer.

Tudo com o regozijo de enaltecer


que quando nele morava,
conheci o amor
e até cheguei a receber cartas.

«Prendi il primo pullman, via.


Tutto il resto è già poesia.»

Paolo Conte

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