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Quando fazemos perguntas sobre as coisas que existem no mundo, significa que tais

coisas não são tão fixas; que seu significado não é tão explícito e dado e que a sua existência
depende da compreensão e do interesse da maioria das pessoas que lidam, direta ou
indiretamente, com elas.

Por isso, a primeira pergunta a ser feita aqui e agora, nesse momento, é: O que é
literatura?

Todas as respostas que são dadas a essa pergunta ou partem de suas experiências
pessoais com aquilo que vocês identificam como literatura ou partem daquilo que já ouviram
falar (de colegas, de professores, por aí) sobre literatura.

Existe, entretanto, um desafio imposto pelo próprio campo de saberes nos qual a
literatura se insere: e esse campo é a arte.

Por isso, a complexidade de respostas e de provocações feitas pela simples pergunta:


O que é literatura? recaí também para a pergunta sobre o campo que a engloba: o que é arte?

Aqui, entretanto, uma resposta possível e satisfatória para os objetivos desse curso é:
a literatura e as artes se opõem a um discurso comum. Discurso comum é entendido como um
discurso referencial e comprometido, de maneira sóbria e objetiva, com a verdade do mundo
das coisas. A literatura é uma maneira de estar no mundo, que se concretiza num produto –
texto escrito/falado.

Na história do pensamento ocidental, desde que homem fala e escreve, existe embate
entre um discurso comum (a História, a Filosofia, as Ciências) e o discurso encantatório
(Literário).

Porque, no entendimento dos tempos antigos do qual somos herdeiros, o discurso


literário não está comprometido com a verdade, mas sim com a mentira, com a fantasia e com
a ilusão.

A literatura é a ilusão? É a mentira? É a fantasia? Talvez. Isso é bom? Não existem


certezas. O importante, talvez, é saber que a verdade não existiria sem o conceito de mentira.
E o conceito de realidade não existira sem que houvesse um conceito de fantasia.

Arrisco a dizer que a literatura – assim com as demais artes – fazem o mundo brilhar
por uma outra perspectiva. O mundo, provável, ficaria obscuro demais se houvesse apenas a
gravidade dos saberes ditos científicos.

A literatura, portanto, põe em xeque a racionalidade humana. Lembra-nos de que, por


meio da criatividade e da imaginação, é possível utopizar o mundo. Idealizar um mundo e
apontar o que, no mundo em que vivemos, o lado negativo e cruel da busca pela única e
exclusiva verdade, quando ela se torna sinônimo, sobretudo, de poder.

Alguém aqui já ouvir falar na República, de Platão?

Bem, a República é um dos textos mais importantes da História da Filosofia. Nele,


existe um personagem criado por Platão: Sócrates.

Sócrates é um filósofo. Ele expõe suas ideias por meio de conversas com os seus
amigos. O tema da República é: como deve ser uma cidade (polis) ideal?
Segundo Sócrates, a cidade ideal deve ser construída por meio de cidadãos ideais,
altamente compromissados com o equilíbrio e com a verdade. A verdade, segundo Sócrates,
só pode ser dada por meio da Filosofia. Portanto, para Sócrates, é o filósofo responsável pelas
diretrizes a compor a boa cidade.

Mas Sócrates apresenta um problema: ele dirá que o poeta, ou seja, aquele que faz
literatura, jamais poderá entrar na cidade. Poetas não seriam de acordo com Sócrates,
cidadãos confiáveis. Uma vez que lidam com a mentira, estimulariam os demais cidadãos a se
afastar da verdade e a por em xeque a própria credibilidade do filósofo. Poetas, para Sócrates,
devem ser banidos da cidade.

TEXTO I

- Firmemos desde logo esse ponto: todos os poetas, a começar por Homero, não passam de
imitadores de simulacros da virtude de tudo o mais que constitui o objeto de suas composições,
sem nunca atingirem a verdade, o que também se dá com o pintor, a que já nos referimos, o
qual, sem nada entender da arte de fazer sapatos, é capaz de pintar um sapateiro que lhe
pareça bom e a quantos desconheçam essa profissão e só percebam as cores e o desenho.

- A mesma coisa, creio, podemos afirmar do poeta que com palavras e frases reveste as
diferentes artes das cores que lhe são próprias, sem entender nada mais além da imitação.
Como consequência, os ouvintes, que apreciam os assuntos apenas pelo efeito das palavras,
ficam convencidos de que ele fala com muita propriedade, quer o ouçam discorrer com metro,
ritmo e harmonia acerca da arte de fazer sapatos, quer sobre a estratégia militar ou o tema
que for, tal o natural fascínio que exerce com os seus recursos. Porém, se despirmos as criações
dos poetas desse colorido musical e as apresentarmos em expressões comuns, bem sabes,
tenho certeza, a que ficam reduzidas. (Livro X).

PLATÃO. A República – Livro X. In.: Souza, Roberto Acízelo (org.). Do mito das Musas à razão
das Letras. Chapecó: Argos Editora, 2015. (Século VI a.C).

A partir da República de Platão, podemos ver que se engendra, se forma um sintoma


que os séculos vindouros vão herdar. A literatura como um perigo para a verdade e sobretudo
um perigo para o estabelecimento do poder. A literatura também como um perigo para a
ciência e para o cidadão de bem. Será que Platão está com a razão?

TEXTO II

21 DE MAIO - Passei uma noite horrível. Sonhei que eu residia numa casa residível,
tinha banheiro, cozinha, copa e até quarto de criada. Eu ia festejar o aniversário de minha filha
Vera Eunice. Eu ia comprar-lhe umas panelinhas que há muito ela vive pedindo. Porque eu
estava em condições de comprar. Sentei na mesa para comer. A toalha era alva ao lírio. Eu
comia bife, pão com manteiga, batata frita e salada. Quando fui pegar outro bife despertei.
Que realidade amarga! Eu não residia na cidade. Estava na favela. Na lama, as margens do
Tietê. E com 9 cruzeiros apenas. Não tenho açúcar porque ontem eu saí e os meninos comeram
o pouco que eu tinha.

... Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem tem dó e amizade ao povo. Quem
governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do
pobre. Se a maioria revoltar-se, o que pode fazer a minoria? Eu estou ao lado do pobre, que é o
braço. Braço desnutrido. Precisamos livrar o país dos políticos açambarcadores.
Eu ontem comi aquele macarrão do lixo com receio de morrer, porque em 1953 eu
vendia ferro lá no Zinho. Havia um pretinho bonitinho. Ele ia vender ferro lá no Zinho. Ele era
jovem e dizia que quem deve catar papel são os velhos. Um dia eu ia vender ferro quando parei
na Avenida Bom Jardim. No Lixão, como é denominado o local. Os lixeiros haviam jogado carne
no lixo. E ele escolhia uns pedaços. Disse-me:

- Leva, Carolina. Dá pra comer.

Deu-me uns pedaços. Para não magoá-lo aceitei. Procurei convencê-lo a não comer
aquela carne. Para comer os pães duros ruídos pelos ratos. Ele disse-me que não. Que há dois
dias não comia. Acendeu o fogo e assou a carne. A fome era tanta que ele não pode deixar
assar a carne. Esquentou-a e comeu. Para não presenciar aquele quadro, saí pensando: faz de
conta que eu não presenciei esta cena. Isso não pode ser real num país fértil igual ao meu.
Revoltei contra o tal Serviço Social que diz ter sido criado para reajustar os desajustados, mas
não toma conhecimento da existência infausta dos marginais. Vendi os ferros no Zinho e voltei
para o quintal de São Paulo, a favela.

No outro dia encontraram o pretinho morto. Os dedos do seu pé abriram. O espaço era
de vinte centímetros. Ele aumentou-se como se fosse de borracha. Os dedos do pé pareciam
leque. Não trazia documentos. Foi sepultado como um Zé qualquer. Ninguém procurou saber
seu nome. Marginal não tem nome.

... De quatro em quatro anos muda-se os políticos e não soluciona a fome, que tem a
sua matriz nas favelas e as sucursais nos lares dos operários.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, p.39-41. [1958]

***

Em vez de perguntar a vocês qual é o conceito de literatura, acho que posso perguntar:
a literatura é tão ameaçadora assim?

Aqui, portanto, terei de dar uma definição rasa, pois o vestibular trata de forma rasa o
bicho de sete cabeças que se costuma chamar literatura: Literatura pois é um texto que
trabalha com os desejos e as vontades humanas, com aquilo que no humano é sobrevivente e
atemporal: seus sentimentos, suas sensações, suas percepções e suas mudanças no mundo.
Faz isso numa linguagem particular, num estilo que é próprio daquele que se deixa
simultaneamente encantar-se e se desencantar com o mundo, a quem chamamos de autor,
convidando o leitor para a experiência dessas percepções.

A literatura não promete nem nunca prometeu a verdade para o mundo. A literatura
fracassa perante o mundo. Sobretudo num mundo que preza pela eficácia e estimula o que há
de menos humano em nós. A literatura, entretanto, parece não deixar a peteca cair: lembra-
nos de que “ser menos humano” ainda é uma qualidade do ser homem; e que é nas situações
extremas que teremos de ressignificar os nossos valores, os nossos sentimentos, a nossa
maneira de lidar com o outro

TEXTO III

Príamo salta depressa do carro, deixando ainda nele


o venerável Ideu, que ficou para guarda dos mulos
e dos cavalos. O velho penetra direto na tenda
onde o Pelida, a Zeus, caro, soía sentar-se, encontrando-o
dentro, sozinho, que os sócios à parte moravam, exceto
Automedonte galhardo e o ínclito Álcimo, de Ares aluno,
que, prestimosos, o servem. De cear acabara nessa hora,
sim, de comer e beber, mas ao lado ainda a mesa lhe estava.
Sem pelos outros ser visto, entra o grande monarca, e de Aquiles
aproximando-se, abraça-lhe os joelhos e beija as terríveis
mãos homicidas, que muitos dos filhos lhe haviam matado.

"Lembra-te, Aquiles, igual a um dos deuses, teu pai venerável é


da mesma idade que a minha e, portanto, como eu, assim velho.
É bem possível que esteja cercado por fortes vizinhos,
cheio de angústia, sem ter quem lhe sirva de amparo e defesa;
mas, só de ouvir que estás vivo, alegria indizível lhe invade
o coração, dia a dia esperando poder ante os olhos
ter a figura do filho glorioso, de volta de Tróia.
Muito mais triste é meu fado, que, após tantos filhos ter tido,
de comprovado valor, nem um só na velhice me resta.
Vivos, cinquenta floriam no tempo em que os Dânaos chegaram;
da mesma mãe, dezenove guerreiros me foram brindados;
os outros todos diversas mulheres nos paços tiveram.
De muito dele as forças dos joelhos tirou Ares forte;
e o único herói que restava, dos muros amparo e de todos,
a combater pela pátria, não há muito tempo mataste,
o meu Heitor, cujo corpo aqui venho insistente pedir-te,
às naus Aquivas trazendo resgate de preço infinito.
Sê reverente aos eternos, Aquiles; de mim tem piedade;
pensa em teu pai, também velho; bem mais infeliz sou do que ele,
pois chego agora a fazer o que nunca mortal fez na terra:
beijo-te as mãos, estas mãos que a meus filhos a Morte levaram".

HOMERO. Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, p.539-40. (Séc. VIII
a.C)

A literatura é um patrimônio da humanidade. A literatura é um valor. Por isso, no


ENEM e nos demais vestibulares, ela é cobrada. Porque o homem, nela tematizado, é encarado
como uma espécie de monumento. Por isso, ler literatura é alimentar em nós todo o assombro
de nossa existência e das existências dos outros, em todos os tempos cronológicos.

E é pela via cronológica (História da Literatura) que teremos de delimitar a nossa visão.
Como uma forma de cumprir aquilo que os vestibulares nos exigem.

Antes de falar sobre determinados séculos, décadas e anos, falar sobre obras, autores
e contextos, precisamos nos lembrar de que, mesmo em manifestações literárias, é preciso
dominar um determinado vocabulário, uma linguagem técnica. Ou seja, os termos literários.

GÊNEROS LITERÁRIOS – ROBERTO ACÍZELO -Épico, Lírico e Dramático

TEXTO IV Guerreiro, ouvi:


Sou filho das selvas,
Meu canto de morte, Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo Firmava-se em mi:
Da tribo Tupi Nós ambos, mesquinhos
Por ínvios caminhos,
Da tribo pujante Cobertos de espinhos
Que agora anda errante Chegamos aqui!
Por fado inconstante,
Guerreiro, nasci: O velho no entanto
Sou bravo, sou forte, Sofrendo já tanto
Sou filho do Norte; De fome e quebranto,
meu canto de morte, Só queria morrer!
Guerreiros, ouvi. Não mais me contenho,
Nas matas me embrenho,
Já vi cruas brigas, Das frechas que tenho
De tribos imigas, Me quero valer.
E as duras fadigas
Da guerra provei; Então, forasteiro,
Nas ondas mendaces Caí prisioneiro
Senti pelas faces De um troço guerreiro
Os silvos fugaces Com que me encontrei:
Dos ventos que amei. O cru dessossego
Do pai fraco e cego,
Andei longas terras, Enquanto não chego,
Lidei cruas guerras, Qual seja, - dizei!
Vaguei pelas serras
Dos vis Aimorés; Eu era o seu guia
Vi lutas de bravos, Na noite sombria,
Vi fortes - escravos! A só alegria
De estranhos ignavos Que Deus lhe deixou:
Calcados aos pés. Em mim se apoiava,
Em mim se firmava,
E os campos talados, Em mim descansava,
E os arcos quebrados, Que filho lhe sou.
E os piagas coitados
Já sem maracás; Ao velho coitado
E os meios cantores, De penas ralado,
Servindo a senhores, Já cego e quebrado,
Que vinham traidores, Que resta? - Morrer.
Com mostras de paz. Enquanto descreve
O giro tão breve
Aos golpes do imigo Da vida que teve
Meu último amigo, Deixai-me viver!
Sem lar, sem abrigo
Caiu junto a mi! Não vil, não ignavo,
Com plácido rosto, Mas forte, mas bravo,
Sereno e composto, Serei vosso escravo:
O acerbo desgosto Aqui virei ter.
Comigo sofri. Guerreiros, não coro
Do pranto que choro;
Meu pai a meu lado Se a vida deploro,
Já cego e quebrado, Também sei morrer.
De penas ralado,
DIAS, Gonçalves. I-Juca Pirama. São Paulo: Martin Claret, 2012, 20-23. (Século XVIII)

TEXTO V
Que saudade de minha senhora tenho
Que soidade de mia senhor hei quando me lembro dela como a vi
quando me nembra dela qual a vi e que me lembro que bem a ouvi
e que me nembra que ben'a oí falar; e por quanto bem dela sei,
falar; e por quanto bem dela sei, rogo eu a Deus, que tem para isso o poder,
rog'eu a Deus, que end'há o poder, que me deixe, se Lhe aprouver, a ver
que mi a leixe, se lhi prouguer, veer
logo; porque ainda nunca me fez bem,
cedo; ca, pero mi nunca fez bem, se não a vir, não posso evitar
se a nom vir, nom me posso guardar enlouquecer ou morrer com pesar;
d'ensandecer ou morrer com pesar; e porque ela tem o poder em tudo,
e porque ela tod'em poder tem, rogo eu a Deus, que tem para isso o poder,
rog'eu a Deus que end'há o poder que me deixa, se Lhe aprouver, a ver
que mi a leixe, se lhi prouguer, veer
logo; porque tal a fez Nosso Senhor,
cedo; ca tal a fez Nostro Senhor, de quantas outras no mundo existem,
de quantas outras no mundo som não lhe fez par, juro por Deus, não;
nom lhi fez par, a la minha fé, nom; pois a fez das melhores a melhor,
e poila fez das melhores melhor, rogo eu a Deus, que tem para isso o poder,
rog'eu a Deus que end'há o poder, que me deixe, se Lhe aprouver, a ver
que mi a leixe, se lhi prouguer, veer
logo; porque tal a quis Deus fazer,
cedo; ca tal a quiso Deus fazer, que, se não a vir, não posso viver.
que, se a nom vir, nom posso viver.

D. DINIS. “Que soidade de mia senhor”. In.: MONGELLI, Lênia. Fremosos cantares. São Paulo:
Martins Fontes, 2009, p.68-69. (Século XIII)

TEXTO VI –

A COMPADECIDA - Está bem, vou ver o que posso fazer.


JOÃO GRILO, ao Encourado - Está vendo? Isso aí é gente e gente boa, não é filha de chocadeira
não! Gente como eu, pobre, filha de Joaquim e de Ana, casada com um carpinteiro, tudo gente
boa.
MANUEL - E eu, João? Estou esquecido nesse meio?
JOÃO GRILO - Não é o que eu digo, Senhor? A distância entre nós e o Senhor é muito grande.
Não é por nada não, mas sua mãe é gente como eu, só que gente muito boa, enquanto que eu
não valho nada. (Ocorrendo-lhe a brincadeira.) Mas com toda desgraça, acho que sou menos
ruim do que o sacristão.
A COMPADECIDA - Intercedo por esses pobres que não têm ninguém por eles, meu filho. Não
os condene.
MANUEL - Que é que eu posso fazer? Esse aí era um bispo avarento, simoníaco, político...
A COMPADECIDA - Mas isso é a única coisa que se pode dizer contra ele. E era trabalhador,
cumpria suas obrigações nessa parte. Era de nosso lado e quem não é contra nós é por nós.
MANUEL - O padre e o sacristão... (Gesto de desânimo).
A COMPADECIDA - É verdade que não eram dos melhores, mas você precisa levar em conta a
língua do mundo e o modo de acusar do diabo. O bispo trabalhava e por isso era chamado de
político e de mero administrador. Já com esses dois a acusação é pelo outro lado. É verdade
que eles praticaram atos vergonhosos, mas é preciso levar em conta a pobre e triste condição
do homem. A carne implica todas essas coisas turvas e mesquinhas. Quase tudo o que eles
faziam era por medo. Eu conheço isso, porque convivi com os homens: começam com medo,
coitados, e terminam por fazer o que não presta, quase sem querer. É medo.
ENCOURADO - Medo? Medo de quê?
BISPO - Ah, senhor, de muitas coisas. Medo da morte...
PADRE - Medo do sofrimento...
SACRISTÃO - Medo da fome...
PADEIRO - Medo da solidão. Perdoei minha mulher na hora da morte, porque a amava e
porque sempre tive um medo terrível da solidão.
MANUEL - E é a mim que vocês vêm dizer isso, a mim que morri abandonado até por meu pai!
A COMPADECIDA - Era preciso e eu estava a seu lado. Mas não se esqueça da noite no jardim,
do medo por que você teve de passar, pobre homem, feito de carne e de sangue, como
qualquer outro e, como qualquer outro também, abandonado diante da morte e do
sofrimento.
JOÃO GRILO - Ouvi dizer que até suar sangue o senhor suou.
MANUEL - É verdade, João, mas você não sabe do que está falando. Só eu sei o que passei
naquela noite.
A COMPADECIDA - Seja então compassivo com quem é fraco.
MANUEL - Mas esses dois? Você mesma via daqui e comentava o que eles faziam com João
Grilo e os outros empregados na padaria!
JOÃO GRILO - Se é por mim, não há dificuldade, porque eu sou tão sem-vergonha, que já me
esqueci de tudinho.
MANUEL - Devia ter esquecido lá, João. Pode alegar alguma coisa em favor deles?
A COMPADECIDA - O perdão que o marido deu à mulher na hora da morte, abraçando-se com
ela para morrerem juntos.
MANUEL - Isso pode se dizer em favor dele. Mas ela?
ENCOURADO - Enganava o marido com todo mundo.
MULHER - Porque era maltratada por ele. Logo no começo de nosso casamento, começou a
me enganar. A senhora não sabe o que eu passei, porque nunca foi moça pobre casada com
homem rico, como eu. Amor com amor se paga.
A COMPADECIDA - Eu entendo tudo isso mais do que você pensa. Sei o que as mulheres
passam no mundo, se bem que não tenha do que me queixar, porque meu marido era o que se
pode chamar um santo. (...)

JOÃO GRILO - E o senhor vai dar uma satisfação a esse sujeito, me desgraçando para o resto da
vida? Valha-me Nossa Senhora, mãe de Deus de Nazaré, já fui menino, fui homem...
A COMPADECIDA, sorrindo - Só lhe falta ser mulher, João, já sei. Vou ver o que posso fazer. (A
Manuel.) Lembre-se de que João estava se preparando para morrer quando o padre o
interrompeu.
ENCOURADO - É, e apesar de todo o aperreio, ele ainda chamou o padre de cachorro bento.
A COMPADECIDA - João foi um pobre como nós, meu filho. Teve de suportar as maiores
dificuldades, numa terra seca e pobre como a nossa. Não o condene, deixe João ir para o
purgatório.
JOÃO GRILO - Para o purgatório? Não, não faça isso assim não. (Chamando a Compadecida à
parte.) Não repare eu dizer isso mas é que o diabo é muito negociante e com esse povo a
gente pede o mais para impressionar. A senhora pede o céu, porque aí o acordo fica mais fácil
a respeito do purgatório.
A COMPADECIDA - Isso dá certo lá no sertão, João! Aqui se passa tudo de outro jeito! Que é
isso? Não confia mais na sua advogada?
JOÃO GRILO - Confio, Nossa Senhora, mas esse camarada enrolando nós dois.
A COMPADECIDA - Deixe comigo. (A Manuel.) Peço-lhe então, muito simplesmente, que não
condene João.
MANUEL - O caso é duro. Compreendo as circunstâncias em que João viveu, mas isso também
tem um limite. Afinal de contas, o mandamento existe e foi transgredido. Acho que não posso
salvá-lo.
A COMPADECIDA - Dê-lhe então outra oportunidade.
MANUEL - Como?
A COMPADECIDA - Deixe João voltar.

SUASSUNA, Ariano. O auto da compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2005, p.147-157 [1955]

***

Colocar no quadro, para a próxima aula, a linha do tempo sobre a história da literatura
brasileira.

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