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Obras literárias para leitura e análise

Rosa de Hiroshima

Pensem nas crianças mudas, telepáticas


Pensem nas meninas cegas, inexatas
Pensem nas mulheres, rotas alteradas
Pensem nas feridas como rosas cálidas
Mas, oh, não se esqueçam da rosa, da rosa
Da rosa de Hiroshima, a rosa hereditária
A rosa radioativa, estúpida e inválida
A rosa com cirrose, a anti-rosa atômica
Sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada.

(Vinícius de Moraes)

Metamorfose

Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama
transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia
revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho
dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a
posição e estava a ponto de escorregar. Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras
pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos.

Que me aconteceu ? — pensou. Não era nenhum sonho. O quarto, um vulgar quarto humano,
apenas bastante acanhado, ali estava, como de costume, entre as quatro paredes que lhe
eram familiares. Por cima da mesa, onde estava deitado, desembrulhada e em completa
desordem, uma série de amostras de roupas: Samsa era caixeiro-viajante, estava pendurada a
fotografia que recentemente recortara de uma revista ilustrada e colocara numa
bonita moldura dourada.

Mostrava uma senhora, de chapéu e estola de peles, rigidamente sentada, a estender ao


espectador um enorme regalo de peles, onde o antebraço sumia! Gregório desviou então a
vista para a janela e deu com o céu nublado — ouviam-se os pingos de chuva a baterem
na calha da janela e isso o fez sentir-se bastante melancólico. Não seria melhor dormir um
pouco e esquecer todo este delírio? — cogitou. Mas era impossível, estava habituado a dormir
para o lado direito e, na presente situação, não podia virar-se. Por mais que se esforçasse
por inclinar o corpo para a direita, tornava sempre a rebolar, ficando de costas. Tentou, pelo
menos, cem vezes, fechando os olhos, para evitar ver as pernas a debaterem-se, e só desistiu
quando começou a sentir no flanco uma ligeira dor entorpecida que nunca antes
experimentara.

Oh, meu Deus, pensou, que trabalho tão cansativo escolhi! Viajar, dia sim, dia não. É um
trabalho muito mais irritante do que o trabalho do escritório propriamente dito, e ainda por
cima há ainda o desconforto de andar sempre a viajar, preocupado com as ligações dos trens,
com a cama e com as refeições irregulares, com conhecimentos casuais, que são sempre novos
e nunca se tornam amigos íntimos.
Diabos levem tudo isto! Sentiu uma leve comichão na barriga; arrastou-se lentamente sobre as
costas, — mais para cima na cama, de modo a conseguir mexer mais facilmente a cabeça,
identificou o local da comichão, que estava rodeado de uma série de pequenas
manchas brancas cuja natureza não compreendeu no momento, e fez menção de tocar lá com
uma perna, mas imediatamente a retirou, pois, ao seu contato, sentiu-se percorrido por um
arrepio gela- do. Voltou a deixar-se escorregar para a posição inicial. Isto de levantar cedo,
pensou, deixa a pessoa estúpida. Um homem necessita de sono. Há outros comerciantes que
vivem como mulheres de harém.

Por exemplo, quando volto para o hotel, de manhã, para tomar nota das encomendas que
tenho, esses se limitam a sentar-se à mesa para o pequeno almoço. Eu que tentasse sequer
fazer isso com o meu patrão: era logo despedido. De qualquer maneira, era, capaz de ser bom
para mim — quem sabe?

e não tivesse de me agüentar, por causa dos meus pais, há muito tempo que me teria
despedido; iria ter com o patrão e lhe falar exatamente o que penso dele. Havia de cair ao
comprido em cima da secretária! Também é um hábito esquisito, esse de se sentar a uma
secretária em plano elevado e falar para baixo para os empregados, tanto mais que eles têm
de aproximar-se bastante, porque o patrão é ruim de ouvido. Bem, ainda há uma
esperança; depois de ter economizado o suficiente para pagar o que os meus pais lhe devem
— o que deve levar outros cinco ou seis anos —, faço-o, com certeza. Nessa altura, vou me
libertar completamente. Mas, para agora, o melhor é me levantar, porque o meu trem parte às
cinco. Olhou para o despertador, que fazia tique-taque na cômoda. Pai do Céu! — pensou.
Eram seis e meia e os ponteiros moviam-se em silêncio, até passava da meia hora, era quase
um quarto para as sete. O despertador não teria tocado? Da cama, via-se que estava
corretamente regulado para as quatro; claro que devia ter tocado. Sim, mas seria possível
dormir sossegadamente no meio daquele barulho que trespassava os ouvidos?

Kafka, Franz, 1883-1924. A metamorfose / Franz Kafka: tradução Lívia Bono. – São Paulo: Pé da Letra, 2017. 97 p.

ORAÇÃO AO SOL

Sol, rei astral, deus dos sidérios Azues, que fazes cantar de luz os prados verdes, cantar as
águas! Sol imortal, pagão, que simbolizas a Vida, a Fecundidade! Luminoso sangue original que
alimentas o pulmão da Terra, o seio virgem da Natureza! Lá do alto zimbório catedralesco de
onde refulges e triunfas, ouve esta Oração que te consagro neste branco Missal da excelsa
Religião da Arte, esmaltado no marfim ebúrneo das iluminuras do Pensamento. Permite-
me que um instante repouse na calma das Idéias, concentre cultualmente o Espírito, como no
recolhido silêncio das igrejas góticas, e deixe lá fora, no rumor do mundo, o tropel infernal dos
homens ferozmente rugindo e bramando sob a cerrada metralha acesa das formidandas
paixões sangrentas.

Concede, Sol, que os manipanços não possam grotescamente, chatos e rombos,


com grimaces e gestos ignóbeis, imperar sobre mim; e que nem mesmo os Papas, que têm à
cabeça as veneráveis orelhas e os chavelhos da Infalibilidade, para aqui não venham com
solene aspecto abençoador babar sobre estas páginas os clássicos latins pulverulentos, as
teorias abstrusas, as regras fósseis, os princípios batráquios, as leis de Crítica-megatério. E faz
igualmente, Sultão dos espaços, com que os argumentos duros, broncos, tortos, não sejam
arremessados à larga contra o meu cérebro como incisivas pedradas fortes. Livra-me tu,
Luz eterna, desses argumentos coléricos, atrabiliários, como que feitos à maneira das armas
bárbaras, terríveis, para matar javalis e leões nas selvas africanas.

Dá que eu não ouça jamais, nunca mais! A miraculosa caixa de música dos discursos
formidáveis! E que eu ria, ria – ria simbolicamente, infinitamente, até o riso alastrar, derramar-
se, dispersar-se enfim pelo Universo e subir, aos fluidos do ar, para lá no foco enorme onde
vives, Astro, onde ardes, Sol, dando então assim mais brilho à tua chama, mais intensidade ao
teu clarão.

Pelo cintilar de teus raios pelas ondas fulvas, flavas, ó Espírito da Irradiação!
Pelos empurpuramentos das auroras, pela clorose virgem das estepes da Lua, pela clara
serenidade das Estrelas, brancas e castas noviças geradas do teu fulgor, faculta-se a Graça real,
o magnificente poder de rir – rir e amar, perpetuamente rir… perpetuamente amar…

Ó radiante orientalista do firmamento! Supremo artista grego das formas indeléveis


e prefulgentes da Luz! pelo exotismo asiático desses deslumbramentos, pelos majestosos
cerimoniais da basílica celeste a que tu presides, que esta Oração vá, suba e penetre os
etéreos passos esplendorosos e lá para sempre viver, se eternize através das forças firmes,
num álacre, cantante, de clarim proclamador e guerreiro.

CRUZ E SOUSA, João da. PÉREZ, José (org.). Missal, Evocações. In: Cruz e Sousa: Prosa. 2 ed. São Paulo : Cultura,
1945. v. 2. pp.5-126. (Série Clássica Brasileiro-Portuguesa, Os mestres da língua, 14).

Poema tirado de uma notícia de jornal


João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem
número.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

BANDEIRA, M. Estrela da vida inteira: poesias reunidas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.

Paulo Leminski

Será preciso
explicar o sorriso
da Mona Lisa
para que você
acredite em mim
quando digo
que o tempo passa?

Ainda vão me matar numa rua.


Quando descobrirem, principalmente,
que faço parte dessa gente
que pensa que a rua
é a parte principal da cidade.

Contranarciso

Em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas
o outro
que há em mim
é você
você
e você
assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós.

Terceiro soneto

Por que quereis, Senhora, que ofereça


a vida a tanto mal como padeço?
se vos nasce do pouco que mereço,
bem por nascer está quem vos mereça.

Sabei que, enfim, por muito que vos peça,


que posso merecer quanto vos peço;
que não consente Amor, que em baixo preço
tão alto pensamento se conheça.

Assim que a paga igual de minhas dores,


com nada se restaura, mas devei-ma,
por ser capaz de tantos desfavores.

E se o valor de vossos servidores


houver de ser igual convosco mesma,
vós só convosco mesma andai de amores.

Extraído do livro Sonetos Luiz de Camões, Editor Martin Claret, 2003, página 41.

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