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POESIA

FRUIÇÃO

2016-2

De que são feitos os dias?

– De pequenos desejos,

vagarosas saudades,

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silenciosas lembranças.

Entre mágoas sombrias,

momentâneos lampejos:

vagas felicidades,

inatuais esperanças.

De loucuras, de crimes,

de pecados, de glórias

– do medo que encadeia

todas essas mudanças.

Dentro deles vivemos,

dentro deles choramos,

em duros desenlaces

e em sinistras alianças...

MEIRELES, Cecília. Poesia completa (volume II). Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

2001. p.1088.

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I

Te batizar de novo.

Te nomear num trançado de teias

E ao invés de Morte

Te chamar Insana

Fulva

Feixe de flautas

Calha

Candeia

Palma, por que não?

Te recriar nuns arco-íris

Da alma, nuns possíveis

Construir teu nome

E cantar teus nomes perecíveis:

Palha

Corça

Nula

Praia

Por que não?

HILST, Hilda. Da morte. Odes mínimas (com aquarelas da autora). São Paulo: Editora
Globo, 2003. p.29.

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Todas as Vidas

Vive dentro de mim

uma cabocla velha

de mau olhado, acocorada ao pé do borralho,

olhando para o fogo.

Benze quebranto.

Bota feitiço…

Ogum. Orixá.

macumba, ferreiro.

Ogã, pai-de-santo…

Vive dentro de mim

a lavadeira do Rio Vermelho,

seu cheiro gostoso

d’água e sabão.

Rodilha de pano.

Trouxa de roupa,

pedra de anil.

Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim

a mulher cozinheira.

Pimenta e cebola.

Quitute bem feito.

Panela de barro.

Taipa de lenha.

Cozinha antiga

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toda pretinha.

Bem cacheada de picumã.

Pedra pontuda.

Cumbuco de coco.

Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim

a mulher do povo.

Bem proletária.

Bem linguaruda,

desabusada, sem preconceitos,

de casca-grossa,

de chinelinha,

e filharada.

Vive dentro de mim

a mulher roceira.

Enxerto da terra,

meio casmurra.

Trabalhadeira.

Madrugadeira.

Analfabeta.

De pé no chão.

Bem parideira.

Bem criadeira.

Seus doze filhos.

Seus vinte netos.

5
Vive dentro de mim

a mulher da vida.

Minha irmãzinha…

Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:

Na minha vida –

a vida mera das obscuras.

CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. 14ª ed. São Paulo:
Editora Global, 1987. p.45-46.

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esvoaça... esvoaça...

Dedico ao meu pai, bom e viajoso

É como a vela que se apaga,

e a fumaça sobe e se atenua.

É o amor fraco que se apaga.

Não adiantam poemas para a lua.

Sofre o homem, o amor acaba

e a doce influência esvoaça como o fio adelgaçado

de fina e translúcida fumaça.

Esvoaça, esvoaça...

Atenua o amor,

Atenua a fumaça.

Para que tanta dor?

E o amor que vai sumindo,

adelgaça, esvoaça, esvoaça...

maio/63

CESAR, Ana Cristina. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p.139.

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*

tem o que passam

e tudo se passa

com passos já passados

tem os que partem

de pedra ao vidro

deixam tudo partido

e tem, ainda bem,

os que deixam

a vaga impressão

de ter ficado

RUIZ S, Alice. Dois em um. São Paulo: Iluminuras, 2008. p.24.

8
*

Florir – é um fim – casualmente

Vendo uma Flor no campo

Talvez sequer alguém perceba

A sutil Circunstância

Que há na Lúcida Tarefa

A tal custo cumprida

Para se abrir qual Borboleta

Ao sol do meio-dia

Encher Botão – evitar Bicho –

O Orvalho obter bem cedo –

Expor-se à Luz – fugir ao Vento –

Precaver-se da Abelha

E não frustrar a Natureza

Que nesse dia a aguarda –

Ser uma Flor é uma profunda

Responsabilidade –

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Tradução José Lira. São Paulo:


Iluminuras, 2008.

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Cadela Rosada

[Rio de Janeiro]

Sol forte, céu azul. O Rio sua.

Praia apinhada de barracas. Nua,

passo apressado, você cruza a rua.

Nunca vi um cão tão nu, tão sem nada.

sem pelo, pele tão avermelhada...

Quem a vê até troca de calçada.

Têm medo da raiva. Mas isso não

é hidrofobia – é sarna. O olhar é são

e esperto. E os seus filhotes, onde estão?

(Tetas cheias de leite.) Em que favela

você os escondeu, em que ruela,

para viver sua vida de cadela?

Você não sabia? Deu no jornal:

para resolver o problema social,

estão jogando os mendigos num canal.

E não são só os pedintes os lançados

no Rio da Guarda: idiotas, aleijados,

vagabundos, alcoólatras, drogados.

Se fazem isso com gente, os estúpidos,

com pernetas ou bípedes, sem escrúpulos,

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o que não fariam com um quadrúpede?

A piada mais contada hoje em dia

é que os mendigos, em vez de comida,

andam comprando boias salva-vidas.

Você no estado que está, com esses peitos,

jogada no rio, afundava feito

parafuso. Falando sério: o jeito

mesmo é vestir alguma fantasia.

Não dá para ficar por aí à

toa com essa cara. Você devia

pôr uma máscara qualquer. Que tal?

Até a Quarta-Feira, é carnaval!

Dance um samba! Abaixo o baixo-astral!

Dizem que o carnaval está acabando,

culpa do rádio, dos americanos...

Dizem a mesma coisa todo ano.

O carnaval está cada vez melhor!

Agora, um cão pelado é mesmo um horror...

Vamos, se fantasie! A-lá-lá-ô...!

BISHOP, Elizabeth. Poemas escolhidos de Elizabeth Bishop. Seleção, tradução


e textos introdutórios de Paulo Henriques Britto. 383-385.

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Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,

desses que tocam trombeta, anunciou:

vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado para mulher,

esta espécie ainda envergonhada.

Aceito os subterfúgios que me cabem,

sem precisar mentir.

Não sou feia que não possa casar,

acho o Rio de Janeiro uma beleza e

ora sim, ora não, creio em parto sem dor.

Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

Inauguro linhagens, fundo reinos

– dor não é amargura.

Minha tristeza não tem pedigree,

já a minha vontade de alegria,

sua raiz vai ao meu mil avô.

Vai ser coxo na vida é maldição para homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.

PRADO, Adélia. Poesia reunida. In: Bagagem (1976). São Paulo: Siciliano,
1991. (p.11)

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mulher de vermelho

o que será que ela quer

essa mulher de vermelho

alguma coisa ela quer

pra ter posto este vestido

não pode ser apenas uma escolha casual

podia ser um amarelo

verde ou talvez azul

mas ela escolheu vermelho

ela sabe o que quer

e ela escolheu vestido

e ela é uma mulher

então com base nesses fatos

eu já posso afirmar

que conheço seu desejo

caro watson, elementar:

o que ela quer sou euzinho

sou euzinho o que ela quer

só pode ser euzinho

o que mais podia ser

FREITAS, Angélica. Um punho é do tamanho de um útero. São Paulo: Cosac


Naify, 2016. p.25.

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A ESTRELA PRÓXIMA

A poesia é

impossível

o amor é mais

que impossível

a vida, a morte loucamente

impossíveis.

Só a estrela, só a

estrela

existe

─ só existe o impossível.

FONTELA, Orides. Poesia reunida [1969-1996]. Lúdicos. São Paulo: Cosac


Naify: Rio de Janeiro: 7 Letra, 2006. p.223.

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Ainda assim, eu me levanto

Você pode me riscar da História

Com mentiras lançadas ao ar.

Pode me jogar contra o chão de terra,

Mas ainda assim, como a poeira, eu vou me levantar.

Minha presença o incomoda?

Por que meu brilho o intimida?

Porque eu caminho como quem possui

Riquezas dignas do grego Midas.

Como a lua e como o sol no céu,

Com a certeza da onda no mar,

Como a esperança emergindo na desgraça,

Assim eu vou me levantar.

Você não queria me ver quebrada?

Cabeça curvada e olhos para o chão?

Ombros caídos como as lágrimas,

Minh’alma enfraquecida pela solidão?

Meu orgulho o ofende?

Tenho certeza que sim

Porque eu rio como quem possui

Ouros escondidos em mim.

Pode me atirar palavras afiadas,

Dilacerar-me com seu olhar,

Você pode me matar em nome do ódio,

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Mas ainda assim, como o ar, eu vou me levantar.

Minha sensualidade incomoda?

Será que você se pergunta

Porquê eu danço como se tivesse

Um diamante onde as coxas se juntam?

Da favela, da humilhação imposta pela cor

Eu me levanto

De um passado enraizado na dor

Eu me levanto

Sou um oceano negro, profundo na fé,

Crescendo e expandindo-se como a maré.

Deixando para trás noites de terror e atrocidade

Eu me levanto

Em direção a um novo dia de intensa claridade

Eu me levanto

Trazendo comigo o dom de meus antepassados,

Eu carrego o sonho e a esperança do homem escravizado.

E assim, eu me levanto

Eu me levanto

Eu me levanto.

ANGELOU, MAYA. Still I rise. Tradução de Mauro Catopodis, 2014. Consultado


em: 21/11/2016. Disponível em:
https://vinteculturaesociedade.wordpress.com/2014/02/15/still-rise-de-maya-
angelou-em-duas-traducoes/

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MINHA AVÓ e minha mãe

perdi-as de vista num grande armazém

a fazer compras de Natal

hoje trabalho eu mesma para o armazém

que por sua vez tem tomado conta de mim

uma avó e uma mãe foram-me

entretanto devolvidas

mas não eram bem as minhas

ficámos porém uma com as outras

para não arranjar complicações

LOPES, Adília. Antologia. In: A pão e água de colónia (seguido de uma


autobiografia sumária). São Paulo: Cosac & Naify; Rio de Janeiro: 7
Letras, 2002. p. 63

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AUTOBIOGRAFIA SUMÁRIA DE ADÍLIA LOPES

Os meus gatos

gostam de brincar

com as minhas baratas.

LOPES, Adília. Antologia. In: A pão e água de colónia (seguido de uma


autobiografia sumária). São Paulo: Cosac & Naify; Rio de Janeiro: 7
Letras, 2002. p. 71

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A MINHA DOR

A Você

A minha Dor é um convento ideal

Cheio de claustros, sombras, arcarias,

Aonde a pedra em convulsões sombrias

Tem linhas dum requinte escultural.

Os sinos têm dobres d’agonias

Ao gemer, comovidos, o seu mal …

E todos têm sons de funeral

Ao bater horas, no correr dos dias …

A minha Dor é um convento. Há lírios

Dum roxo macerado de martírios,

Tão belos como nunca os viu alguém!

Nesse triste convento aonde eu moro,

Noites e dias rezo e grito e choro,

E ninguém ouve … ninguém vê … ninguém …

ESPANCA, Florbela. Poesia de Florbela Espcanca. Porto Alegre/RS:


LP&M, 2002. V. 1. p.133.

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