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Religare

Marcelo Moro

DESCONCERTOS EDITORA
Apresentação

O tempo me ensina que a natureza humana é uma


floresta de alheamentos e a tentativa de encontrar-se nela é
perder o senso de orientação. Assim me senti lendo autores
Beats e quando os descobri também decidi que escreveria sem
bússolas literárias, o decidido era o errar.
Encontro nas escrituras moras, esse poeta Marcelo
Moro, o sabor etílico que provei com os Beats. Frases cruas em
períodos refinados. Requintes de observações. Investigações
subliminares e sujas como as fotografias de um filme noir.
Moras teias onde ficamos fisgados nas tramas de suas
paisagens contemporâneas, personagens atemporais, construí-
dos ou intuídos em seu contar as alteralidades, as pulsações
desejadas de quando as escreveu. Então sua escrita é desterro,
é off road com paradas em botequins de bar-flys . Cheguei
bêbado a madrugada da última crônica e um cigarro
queimava na quina da mesa como uma ameaça de incêndio,
improvável e possível. 
 
Senhoras e senhores, entrem sem bater.
Há um beat religado no porão: Marcelo Moro.
 
 
Anselmo Vasconcellos
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Preâmbulo

Sou uma coleção de acúmulos.


As vezes sufoco do fundo da alma tapando a garganta
e é preciso derramar, transbordar, inundar as outras almas do
que está impregnada a minha.
Por isso. Poeta, coloca mais uma para mim nesse
bendito copo e saiamos ali, na varanda do mundo para nessa
noite fria baixar meus acúmulos.
Tudo que conto tem origem, local, momento, mas
nunca tem final, segue-se ligando um ao outro feito notas de
uma mesma canção, ou, para quem é do ramo, tramas do
mesmo tecido, contínuo, variável em cor e estampa, mas
ligado em um só laço matriz.
Dirijo-me a ti como Poeta porque, além de ser, de
forma exímia, também é uma forma imortal de guardar-te, em
prosa e versos, ainda que desbote a falível tinta, resta a
memória, nossa e as dos quais confiamos nossos melhores
momentos.
Todas essas histórias que se fazem em certo momento
dessa noite enxurrada forte são verdades, melhoradas, nunca
em detrimento das originais, mas na realidade a favor, é, tudo
bem - nem todas, existem aí mentiras sinceras e manipulações
dos papeis, tudo em favor imortal das passagens.
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Quais? (risos) que isso seja um exercício diário de
cada leitura.
Um dia, me lembro bem Poeta, que cheguei em casa
apressado e passei a mão no violão para tocar algo que desde
daquela tarde tinha ficado na minha cabeça, e lá no íntimo da
canção despretensiosa tinha uma frase: “A formiga só trabalha
porque não sabe cantar” - e na segunda passagem dessa frase,
minha mãe, que estava assistindo ao show relâmpago,
segurando uma extasiante xícara de café esfumando deu um
sorriso e uma piscadela que traduzindo queria dizer - é isso aí!
Aliás, por anos ela foi a plateia solitária desses
vernissages diários de pressa ejaculada em forma de músicas de
estudo.
Talvez eu tenha compreendido, nesse dia, que as coi-
sas todas se amarram num puta e enorme nó, um só e por isso
a vida é uma linha e quem volta perde tempo, porque esse
avança sem esperar seus desembaraços.
E confesso, como confessarei muita coisa ainda nessa
noite, que com sua maestria Poeta tem me falado muito dessa
força linear nos últimos anos, em conselhos, em carinhos, e
acalantos e em grandes e literais esporros.
Por fim, o resumo é tão tosco que nem ser profundo
filósofo necessita para tal solução, o canto da cigarra marca o
ritmo do trabalho da formiga para sempre estação após
estação, então o conselho é que se abrigue o canto nos seus
salões enquanto se banqueteia, para quando o inverno acin-
zentar tudo lá fora, manter-lhe vivo para que ao sol vigente ele
marque de novo o ritmo da colheita.
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Depois caríssima, companheira de copo e etc e tal
tem a coisa da morte, complicam por aí mas ela é uma
passagem, mais ou menos como uma porta para um outro
estágio de onde talvez se veja com mais clareza todos os fios
dessa enorme teia que do lado de cá chamamos vida.
Mas antes que mergulhemos nos meus acúmulos
saúdo aos que, como você Poeta, tem coragem e embarcam
intensos nessa viagem que com certeza já viveram das mais
variadas formas, porque tudo liga-se e desliga-se tornando a
religar-se em outras ocasiões mais favoráveis ou mesmo
adversas.
 
 
 
Eu tu e eles somos esse imenso religare.
Bem vindos!
 
Marcelo Moro

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No creo em las brujas
Pero...
Que las hay las hay

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Nunca fui santo doutor!
Nem pretendo ser nos descaminhos que se seguem.
São lapsos de virtude e erros pontuais mas machucaram e
macularam as crenças.
Quando de pé e só no vasto cinza que me envolveu,
chovia inclusive, pude lamentar o que não se devia lamentar, a
perda eminente que solta os laços e te joga no plano infinito.
Foi assim que, sem enxergar muito bem, me enfiei
entre as pessoas naquele ir e vir frenético como um
imprestável dois de paus na barulhenta e última embaralhada,
e assim o croupier, fatiando os destinos, destronava minha
canastra tão sabidamente limpa.
Não tive espelhos para olhar minha cara, faltou-me
honrar a desdita, e o vidro do ônibus me parecia uma laje de
mármore gelada e inviolável.
Tens a noção o que é se sentir morto?
Creio que tenha sim, mas como ente alado, vulgo
corvo, da morte alheia, deve-lhe dar um certo poder essas
sensações, ou prazer escondido no recôndito moral e ético da
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alma confusa já atormentada por tantas confissões.
Mas voltando a minha morte, não a primeira, mas
uma de várias mortes, tantas que quando vier a definitiva não
carrego medo e não arrego ao emissário do tempo ancestral,
morrerei em pé.
Sim doutor, sou petulante, mas juro que me quebrei
tal como vidro fajuto diante daquele rosto consternado,
ladeado de forma irregular pelas cortinas dos cabelos.
Com os dentes cerrados e ódio primitivo estampado
nas ventas fez meu despacho para os quintos dos infernos
onde me encontro, morto-vivo buscando acalanto no colo de
mãe e reprovação nos olhos do pai.
Roguei aos orixás e mãe Iansã volveu tempestade
dentro de mim, um bem querer de verdade, uma chama
amarela em uma janela do lado de lá da tormenta, um: “expe-
rimente agora o próprio veneno”, e pai Xangô bradou o
martelo sobre meu ori, golpe doído quando ainda não se
compreende.
Não é a primeira vez, como já disse, mas sem dúvida
alguma foi a mais dolorosa, todas as outras vezes eu falei mais
que a boca, mas dessa eu apenas engoli o lodo do próprio um-
bral ao que me coloquei, burrice doutor, em plena sabedoria.
Me lembrei tanto do mestre Baudelaire - “A minha
mão que acaricia, feriu! Furtivamente e sem crer no arrepen-
dimento, embora exista, a dor embutiu-se.
Pago-lhe para tirar-me do silêncio vil que me
consome as horas, pago-lhe bem para me dizeres o que quero
ouvir, o bálsamo as vezes brota da alucinação e no engano
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seguimos todos mais vivos que nunca.
Mas não! Esse é meu grito...
Derrame minhas verdades sob o chão da sala de
modo que não possam ser varridas para debaixo do tapete,
quero aprender com essa morte, ir em frente vencendo os
pesadelos e tornando-me nada mais e nada menos que sou,
apenas justo.
Não seguirei as receitas de drogas que punam a
realidade com aceites improváveis, vou praticar algo mais
lúcido, liberdade explícita e perdão absoluto.
Não que eu seja absolutista e nem ela em questão,
apenas quero redimir o seu sorriso e devolver-nos o paraíso.
É isso doutor... até nunca mais em nenhum horário.
 
 
 

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Gloria!

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Antes de tudo existiu Cláudia.
A mais desengonçada das garotas que subiam por ali,
uma incógnita.
Todos os outros e outras tinham horários precisos, as
onze e meia passava Adriana, três minutos depois os meninos
da Rua Diogo de Faria, eram cinco ou seis, sempre juntos.
Faltando quinze para o meio dia a caminhonete do
João saia lotada, e o mais legal, era só chegar, jogar a mochila
em cima da carroceria e subir, as apresentações se davam ali
mesmo entre os dois minutos até a chegada no colégio.
Notem que tudo é questão de tempo, eu como um
cientista herege, nas barbas da Paróquia Nossa Senhora do
Carmo anotava tudo em uma caderneta.
Um tipo diário de lunático que na verdade era
explícita curiosidade.
Não que eu fosse caladão 0u essas coisas que pudesse
causar aos tolos estranheza, muito pelo contrário, eu falava
pelos cotovelos.
Tinha mesmo mania ou sei lá que nome pode se dar a
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isso de anotar tudo com precisão cirúrgica, mas isso durou
apenas um ano com a graça de Deus.
Foi nesse ano que sublimei da amizade de Cláudia, o
pronome indefinido, o X da matemática.
Não havia regularidade nos seus atos e nem singula-
ridade nos seus passos, nunca, nunquinha no mesmo horá-
rio... nunca repetia o lugar que ficava durante os intervalos,
nem o que comia, nem com quem falava.
Fora de caminhonete uma vez para nunca mais, ficou
onde ficávamos antes do sinal para entrada, embaixo de uma
árvore frondosa de flores amarelas para nunca mais ser vista.
Quando me aproximei foi demonstrando que
dominava história e fui tirando uma ou duas dúvidas de um
pequeno grupo de pessoas aflitas.
Ela estava ali, mas impávida, enquanto eu explanava
ela sorria com a cabeça tombada sobro o ombro esquerdo. Ao
final da explicação se dirigiu ao grupo dizendo: “Bobagem a
aflição pessoal, tem sempre alguém que sabe o que não
sabemos e assim caminha a porra toda.”
Achei uma desfeita daquela filha da puta, lógico que
eu queria atenção mas com o intuito de ajudar... ou não.
O fato é que ela tinha toda razão, é um desperdício
ridículo, inclusive de tempo, todos saberem de tudo, os laços e
relações entre as pessoas vão se completando, assim ninguém
se esgota ou cansa.
O contato imediato do segundo grau com ela se deu
numa saída mais cedo, um desses dias idiotas de comemo-
rações sem nada para se louvar, em que se perde tempo
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punindo as pessoas com a maldição de não fazer nada. Me
lembro do ato mas não me lembro do dia, enfim, nessa saída
espreitei-a no portão e descemos juntos a Professor Miguel
Couto que era a grande veia que nos levava de casa ao colégio
e vice versa.
Resolvi que tinha que aproveitar muito bem aqueles
quarteirões porque seriam os únicos andando lado a lado com
a lenda, ela jamais permitiria que acontecesse de novo.
Chego a conclusão, hoje, que ela nunca sentiu tédio
na vida, pois nada fazia de idêntico nunca.
Mas voltando a caminhada, foi louvável e digna de
nota, descobri sua idade, de onde vinha, onde morava, e como
era sua família, tudo com a precisão de um cego em meio a
um tiroteio.
Como previsto aquela cena nunca mais se repetiu,
afinal quem repete é relógio de igreja e eu, claro.
Confesso que a admirava e que a achava desengon-
çada, mas de uma beleza ímpar naquele ano, ela era grande,
maior que a maioria e tinha cabelos cuidadosamente indeco-
rosos, quase um objeto explícito.
Ao final do período letivo, como já era de costume,
assinávamos as camisetas uniformes uns dos outros, com
dedicatória e toda a papagaiada pagã da época.
Era um desbunde certas assinaturas, como se fossem
autógrafos de nadas.
Cláudia gentilmente assinava todas as que pediam e
dizia, solenemente, quando queriam deixar a marca pessoal na
dela, que não, pois não iria guardar.
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Era óbvio... e eu percebi que óbvio nela era nunca se
repetir, deveria ser legal não ter os passos marcados no chão.
Nesse sagaz, inesquecível e feliz dia, quando eu
reunia minhas coisas para ir embora, sozinho na sala de aula
ela entrou e sentou-se em cima da mesa da professora me
olhando com a cabeça tombada sobre o ombro direito.
Terminada a arrumação e a conferida se não havia
esquecido nada joguei a mochila nas costas e tentei ignora-la,
mas isso duzentos e tantos dias depois era improvável para não
dizer impossível.
- Você me dá um beijo? Ela pediu.
Porra... foram as Aleluias de Haendel soando por
todos os meus poros juvenis...
- Saiba que será um adeus! - Claro, nem precisava
falar.
Dito e feito, nunca mais a vi, e hoje tenho uma
dúvida insana se ela teria mesmo existido ou fora uma criação
da minha voraz imaginação.
Nutri algum tempo uma paixão platônica por
Cláudia, a moça do beijo quente e doce, do jeans surrado e do
All Star vermelho, a que sempre esteve sem nunca ter estado.
 

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Angelus

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Ângela estava sempre ali.
É dessas sensações mais esquisitas que alguém pode
nutrir, ao longo da vida quando se tem memória de elefante,
ou do próprio pobre diabo.
Havia um ou dois clubes, relesmente viáveis para se
frequentar na cidade, um do lado de lá da linha do trem e
outro para cá, no nosso canto do mundo.
Frequentávamos os dois sem moderação, apanháv-
amos da turma lá e batíamos nos caras aqui, quase um resumo
febril dessa ópera.
As meninas daqui gostavam inexplicavelmente dos
imbecis de lá e as garotas da turma deles gostavam dos idiotas
daqui, um sabor de aventura toscamente delicioso.
O que unia os dois burgos era a grana curta, essa lá e
aqui não fazia a menor diferença.
Éramos punks, darks, rançosos e imorais, Dândis da
pueril ingenuidade oitentista vigente.
As bebidas baratas e com a eficiência maior eram o
custo benefício mais cultuado nessa cafajestagem toda.
Em meio a noites gloriosas e decepções per capita
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existiam certas figuras que aguçavam nosso deglutir, vulgar-
mente davam água na boca.
Uma garota despojadamente rica que sempre ficava
nos cantos com uma dancinha estranha e um louvor quase
religioso pelo post punk era uma dessas figuras renascentistas
daquela nossa pequena Florença.
Eu a observava feito um astrônomo descobrindo um
desses planetas sombrios, e ela sorria de volta, um espetáculo
dado a linhas de Goethe.
Outra dessas figuras centrais era o Sérgio, um pouco
mais velho que nós, tinha a nossa admiração como se fosse um
mestre Jedi, não que não fosse, mas não gostava muito dessa
bajulação.
O Sérgio tinha um fuscão e manjava para cacete de
som, equalizava as bandas podres que ouvíamos, transfor-
mando aquilo em algo extremamente emocionante e pode-
roso, o feio quando passava por aqueles incríveis olhos tristes e
verdes ganhavam tons infinitos.
Mas como tudo tem seu preço nessa vida bastarda
debaixo do céu, o fuscão perdeu uma das rodas e empacotou o
nosso Jedi para sempre.
Todas as mortes de certo modo são tristes, a dele não
tem discrição, a tristeza parece ter nascido ali.
No velório, as cenas se repetiam diante do último
adeus ao nosso amigo, choros e flores, as pessoas se abraçavam
como se a inimizade houvera deixado de existir e o Sérgio era
isso, o fim da inimizade, a paz, o não ódio e o perdão
infindável.
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Eu estava tão desolado que minhas lágrimas se
tornaram um porque sem sentido, mestre Bob Dylan, tão
admirado pelo garoto que jazia inconsolável naquele espaço e
tempo me dizia ... “a resposta meu amigo, rola no vento”
Em pé, sentinela do corpo sem aquela vida, senti uma
mão pequena e quente envolver a minha, não olhei, apenas
deixei-me acalentar...
Uma voz maviosa, sutil, doce amparo então subiu
pelo lado do meu corpo e bateu nos meus ouvidos
misturando-se imediatamente as batidas do coração.
- Nosso amigo, se assim me permite chamar, cumpriu
sua sina, e sua missão, é triste, mas a morte é inerente a todos
os seres.
Eu quis gritar, expor meu ódio, a morte que esperasse
um bocado mais para tocar alguém sagrado e de toda forma
tão jovem.
Mas quando olhei para o lado lá estava ela, a garota
da dança estranha dos cantos do clube.
- Eu sou Ângela - disse com o rosto fechado mas
tomado de natural e imaterial serenidade.
Fomos os últimos a deixar o cemitério naquela tarde
depois de uma chuva repentina, um choro dos anjos com
certeza.
Pude saber de Ângela tudo o que ela quis que eu
soubesse e nos meses que se passaram ela sempre esteve ali, no
canto do clube mas ao alcance de minha visão e mãos,
trocamos sorrisos e afagos e misturamos sinceridades e versos.
Não cheguei a gostar dela mais do que me permitia,
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mas gostava de saber que nas noites insones ela estava ali, ao
telefone, no pensamento já em cheiro e gesto.
Num domingo qualquer na vastidão do clube nunca
mais a vi, um flagelo que deixam os anjos quando cumprem a
missão de nos fazer entender que nossa vã filosofia é nua
diante do universo.
Perguntei sobre ela a todos meus amigos, pessoas que
frequentavam a mesma onde ela dizia morar, nunca soubera
de Ângela. Mas ele sempre esteve ali.
Num ato de rebeldia deixei num muro da rua em
questão em tinta azul florescente:
“Nessa rua, Nessa rua mora um anjo” que se chama
solidão!
Talvez, e para que meu coração cético se aqueça, ela
apenas tenha se mudado.
Um dia iremos nos encontrar.

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28
Maktub

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O ambiente exalava aroma de anis e outros condi-
mentos, no fundo, bem ao fundo... um cheiro fraco,
perceptível de gás. Música árabe, véus, pouca luz, sempre
colorida, muita ação e nenhuma câmera.
O velho Buk que sempre estava ali, no mesmíssimo
lugar, tomava seu Arak puro, naquela noite, como em todas
as outras - desde que deixou o Islã e passou a ter toda a casa
decorada com fotos em preto e branco das nove esposas.
Perguntou entre uma tragada e outra no Narguilé
que dividia com um turco de Siracusa.
- Tá sentindo um cheiro de gás?
- Hum... Porra! Alho, ópio, perfume de puta. Tudo
misturado. Deve estar cheirando gás também, mas é incerto
afirmar a essas horas... - continuou o turco, o seu discurso,
sem que isso importasse mais ao velho.
- Tá cheirando gás, sim! - afirmou, entre uma canção
e outra que, embalava a dança das filhas do deserto.
No final de um Arak e o início de outro - terceiro ou
quarto -, desceu ao salão, toda vestida de preto: Mercedita! -
linda como um oásis.
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Cheirava a tâmara fresca e rodava os véus como se
tivesse um vento próprio - seu.
Os alaúdes pareciam falar seu nome e derbaks e
pandeiros liam seus pés descalços.
Mercedita, era o próprio ou o impróprio pecado, do
Velho Buk. Por ela, certa vez... com um golpe de punhal
afiado, teria deixado caolho um marroquino.
Rezava a lenda, que um dos dois enfartes sofridos,
teria sido com ela, na cama.
Nada mais que lendas - supunham.
O fato é que, ela destilava perfume e veneno, em
iguais proporções. Exibia uma serpente dourada com olhos de
rubi no pescoço - um presente que o costume local, atribuía
ao velho Buk.
Nada mais que lendas.
- Velho calhorda! - vociferava a velha Agnes de dentro
da cozinha, ao avistar o velho Buk, sentado como sempre, no
mesmo lugar.
- Fala isso porque queria ser uma das esposas dele.-
provocava a ajudante de cozinha e prima da nona esposa, do
velho.
- Ah... cala a boca, sua infeliz! Pela lã do carneiro mais
peludo de Maomé, como odeio esse velho babão! - dizia, com
o rosto em brasa.
Ninguém sabia o verdadeiro motivo, do ódio que
Agnes nutria, pelo velho Buk. Mas, havia algumas lendas, que
corriam os sete mercados...
...apenas lendas!
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- Tá sentindo cheiro de gás? - perguntou a moça.
- Deve ser o gás do rabo, daquele velho flatulento. -
respondeu Agnes, gargalhando -, apresse o carneiro, já vai
entrar Mercedita e depois da aparição da meretriz do deserto,
a fome vai corroer essa legião de diabos-velhos, que vão roer
até os ossos do assado, pensando sentir aquela boceta.
A correria tomou conta da cozinha. Por onde pas-
savam também, os figurantes, no final do show de Mercedita
- os cuspidores e engolidores de fogo.
Soou o último acorde da música, o último movimen-
to da sua dança. Nisso... irromperam as palmas e assovios.
O velho Buk, com uma baita vontade de mijar, saiu
rápido, dividindo a porta da cozinha, com os figurantes do
show Tropeçando e rogando pragas nos anões e de passagem
pelo botijão de gás... bateu a ponta metálica do seu cinto,
fazendo o som agudo de um badalar de sino.
Fez-se nesse momento, uma luz imensamente azul!
Tocava outro sino mais grave e o velho Buk, viu
passando por um portão dourado... Mercedita, o marroquino
caolho, o turco de Siracusa, a ajudante de cozinha e Agnes - a
alcoviteira. E continuou a procissão pelo portão de ouro...
que se fechou!
Ali parado, entre oliveiras tortas e flores secas, o velho
Buk, que gostava de filosofar, pensava:
- Acho que tomei no cu! Algum degenerado daquele
show, ou aqueles malditos anões, explodiram o gás com todas
aquelas chamas. Decerto morreu todo mundo. E esse é o céu
de Allah! Ele existe! E eu... agora, tô fodido, aqui fora,
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sozinho!
De repente soou o sino.
Desta vez, do mercado central.
E o velho Buk se vê atordoado no meio de milhares
de pessoas, com uma baita vontade de mijar.
Falam demais essas pessoas sobre a lenda do velho,
que voltou do inferno sem nunca ter ido.
 

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A violência é tão fascinante

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Sempre fui insone!
Bem antes de Bellaugusta. Já contei exaustivamente
essa história para algumas pessoas. Sou insone desde os nove
anos de idade... o que colaborou para a paixão que tenho pela
leitura, filmes, música e pelo rádio.
Com a chegada maldita ou bendita das redes sociais,
ali pelo meio da primeira década dos anos dois mil, todo
insone, encontrou um alento.
Assim ficamos menos sozinhos. Muitas vezes mal
acompanhados, mas foda-se! Até tarde da noite tinha sempre
alguém interagindo: notívagos, vampiros, gente maluca...
Frequentava uma comunidade, entre centenas com o
mesmo nome - Insônia.
Essa... diziam ser a original - a primeira. Seu fundador
e o administrador era: um psicólogo falido, especialista em
distúrbios do sono. Uma espécie de Freddy Krueger que
falava difícil.
Essa comunidade tinha mais de trezentos mil
membros. Nas madrugadas, como um botequim de quinta
categoria, em que se declarava aberta... ficavam uns cinquen-
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tas conectados. E, mais da metade notívagos. Insones mesmo,
uns dez ou vinte.
Fábio666 rolava sua rádio rock... para embalar os
assuntos, as risadas, as bebedeiras virtuais - onde cada um fazia
a sua, em casa, parecendo um caramujo com ares de festa.
Foi numa dessas noites que apareceu Bellaugusta.
Dizia-se DJ - e o ápice dos seus prováveis shows, era
virar com discos de vinis, ainda não tão distantes, mas já bem
desaparecidos - relíquias.
Miúda, de bom papo, inteligentíssima... participava
de quase todas as rodas de conversas e debates, com notorie-
dade, gerando interesse nos rapazes e despertando ciúme nas
garotas... ou vice e versa e não na mesma ordem. O que não
tinha em Bellaugusta era caretice ou qualquer traço antiqua-
do, que contracenava de forma contundente com os discos de
vinis, suas roupas e seus gostos pessoais, que diriam Cult.
Seguríssima - se dizia vítima de um relacionamento
abusivo-impetuoso, com o qual lidava por querer e todos ali,
embora soubesse o que significava, riam... achando engraçado
que uma moça com aquela construção, pudesse tolerar
tais atos.
Ninguém, no tocar das suas vidinhas de merda, se
atentou aos sinais de fumaça emitidos pela moça - um possível
pedido de socorro.
Isso se arrastou por muitas noites... Meses. O tempo
naquela loucura virtual, parecia diferente do normal. Aliás,
tudo era distorção do real e aquilo consumia nossas vidas de
maneira diferente.
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Eu trabalhava como relações públicas, em um hotel
decadente, no período da noite. Tinha decidido aproveitar de
minha insônia, para ganhar algum dinheiro.
Atendia grupo s de pessoas que vinham às compras
de tecido e armarinhos, fazia o meio de campo ali até aco-
modá-los.
O hotel era um pequeno museu com peças e obras de
arte e antiguidades. Realizada a visita dos interessados, o res-
tante da madrugada era dedicado as redes sociais e a um ou
outro desgarrado que aparecesse para hospedagem, depois da
hora morta virava também recepcionista e gerente, tudo,
ficava sozinho por lá.
Tinha muito tempo para a Insônia - Comunidade
seus debates e resenhas, suas intrigas e tudo que permeava
aquela segunda vida e para todos ali, tudo, absolutamente
tudo era normal e resumia-se a apenas um concordo ou não
concordo, participo ou não participo.
Bellaugusta pedia socorro e os “amigos” achavam pe-
ça de diversão ou apenas davam de ombros, a dor da pimenta
no rabo alheio é mesmo um anestésico aos fracos de espírito.
Ao som de um rock industrial pesadíssimo Bellau-
gusta abriu uma câmera num chat privado para cinco pessoas,
uma câmera oculta que mostrava a sala do apartamento e ao
fundo a sacada aberta.
Entrou em cena o jovem diabo, agarrou-lhe pelas
duas orelhas sacudindo seu miúdo e borrado rosto em lágri-
mas e num tapa jogou - a de joelhos no tapete da sala.
As janelas de privado começaram a subir entre os cin-
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co, pânico instaurado - sempre precisamos do visual e do que
não tem mais volta para agir ... agir?
Ninguém sabia quem era Bellaugusta, onde morava,
uma câmera a conectava ao nosso mundo, mas de que inferno
viria?
No chão a moça abra a bolsa e ao levar um chute nas
costelas cai deitada, mas consegue segurar algo nas mãos, vira-
se e num grito aterrorizante atira duas vezes, o corpo cai, feito
um pacote de pano.
Ouve-se o áudio de um dos amigos - Meu Deus do
Céu! Mas Deus habita nossa fé e não move contra nossa
impotência.
Bellaugusta levanta-se com dificuldade se apoiando
na poltrona e numa corrida desenfreada se joga, aos gritos de
pavor e mordidas de dedos dos cinco companheiros distantes.
Pela janela, voa para a liberdade.
Um a um os fakes se desfazem, apagam-se em total e
irrestrita covardia, Loop um de nós naquela plateia sinistra,
um hacker entra invadindo e apaga a transmissão, nenhum
sinal, nenhum rastro desse crime compartilhado em stream.
A TV informou minutos depois que uma jovem
matara o namorado e cometera suicídio pulado da sacada do
seu apartamento no Meier, o delegado Nogueira falou ao vivo
que o motivo, tudo indicava, ciúme doentio da jovem moça.
Talvez tivesse um nome, e era Cristiane.
Sete dias depois, quando a desonra sobre Bellaugusta
e a dor haviam caído como tempestade sobre sua família e
após vermos na TV o Pai de Cristiane dizer que deveriam ter
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tratado a moça e a Mãe dizer que falou palmadas...
O delegado Nogueira recebeu uma carta anônima
deixada na caixa de cartas do prédio do Meier... um relato
breve e a assinatura - “Os Cinco” e nossas vidas são tão
normais.

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Rigor Mortis
 

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Quando ela fechou os olhos pela última vez, uma
parte da vida, encerrou-se ali.
Embora muito do que perdeu já havia sido perdido
bem antes, mas o tempo achou de ser cruel e adicionou
aflições e dores - dramaticidade, sem que houvesse algum
motivo plausível.
De nada vale nossa vã filosofia em muitos dos casos.
Aquelas últimas vinte e quatro horas haviam sido regidas pelo
silêncio, com o ascendente na reflexão... apenas olhares e
gestos, diziam tudo que precisava ser dito e ouvido.
Foi como se minha vida fosse exibida em um longo e
único capítulo piloto, chamando para uma segunda tempora-
da - mais curta... e quem sabe o que esperar?
Foi impossível não trazer em imagens, as tardes
longas e quentes, quase modorrentas, que findavam com a
gente, sentado embaixo da árvore do quintal, sob o ambiente
laranja intenso, criado pelo sol no poente. Ela, com o incrível
cheiro fresco do banho, cigarro-café e uma história mais inte-
ressante, que a outra.
Era fantástico como se podia viajar dentro de cada
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história, uma vida rica e sábia.
Passou por aqueles corredores sombrios, todo o
nosso riso fácil e quantas vezes fomos bons cozinhando
juntos, um acúmulo, sem moderação de aromas felizes.
Nunca quis que fosse santa. Não a via assim. Nem
intocável. Apenas louvei cada momento, como único. E
parece que sempre tive razão em fazê-lo assim. Nada é
poupado do sono eterno.
Vi - finalmente - serenidade, naquela entrega. Tinha
sido uma guerra, com poucas batalhas vencidas. Mas, enfim,
entregou sua espada - cansada demais para qualquer outro
golpe.
Não era mais o rolar dos dados, que tanto me tinha
dado alento, anos antes... foi-se por necessidade ampla de ir. E,
ao abaixar minha cabeça, para contemplá-la dignamente, pedi
para que fosse acolhida.
Foi-se a Terezinha - de Jesus, como gostava de cantar
meu saudoso pai. Um amor, que em laço nada tem, que se
compare.
Ele dizia da canção, que houvera sido os três e que na
terceira vez, acertou para viver quarenta anos de harmoniosa
paz de espíritos. E quando foi chamado pelo ceifador, estava
feliz. Tinha dito a mim, ao telefone, com o bom humor de
sempre, que a Tereza estava ajudando alguém, meia hora
antes, do derradeiro encontro.
A última metade da minha mais profunda amizade,
jazia, sem vida, e não era tristeza que me permeava, — era
saudade.
45
Tudo na São Bento 127, se tornou um vão... um
lapso, sem duração mínima... Os detalhes de uma solidão,
povoada por boas lembranças.
- Há que se dar um giro. - dizia ela, diante da
exposição sutil das dificuldades, de quem fosse.
- Há de se dar um salto. - respondia, quando
solicitada opinião, sobre ideia e planos.
Pois é, doutor, menos de uma primavera que eu
prometi não mais voltar aqui. E estou de volta, para falar que
certas pessoas fazem falta.

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47
48
Credus
 

49
Janete gostava no rabo.
Não importava o local, a hora... a posição que
conseguisse fazer. A doida, não sossegava, enquanto não
sentisse a verga dura, no brioco.
Nenhuma argumentação adiantava.
Fosse de amor, paixão, preferência... Saúde. Ela
queria mais, que se danasse tudo... queria no cu. E, isso era:
ponto passivo.
Não que eu fizesse frescura, diante de tal exigência.
Mas cu precisa jeito... algum conforto e uns momentos a mais.
Senão não come. E não adianta dar de macho, que é a mais
pura realidade.
Uma entrada de viés, no buraco da bala e você pode
lascar com as pregas. Pior, lascar com o pau todo. Numa
sentada daquelas se bate na trave é fratura.
Sim, caros mancebos: o cacete quebra. E é uma cena,
que dói, apenas de se imaginar.
Certa vez, o L. - que tinha seu nome no aumentativo,
sabe-se, por que - o meu chefe, numa dessas empreitadas que
puxei na vida, estava comendo a T., em seu escritório... e ela se
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sentou sem jeito. T., era uma espécie de gerente, assistente
dele, nos assuntos diários da empresa. Uma mulher bonita,
com ares de menina, que gostava das sapequices.
Sentou... e ouviu-se um gemido, para dentro.
Uma agonia - enfartante.
M.P., que era a copeira e que, da vida, tinha a expe-
riência de uma legião, já tinha àquela altura, velado três mari-
dos e cuidava do quarto - sequelado por um aneurisma -, foi
chamada as pressas, na sala de crise, para levar gelo e um pano.
Mesmo no auge de tanta experiência M.P., nunca
tinha presenciado cena tão dolorosa.
Era a tal fratura peniana - um pé de pica do cacete.
Eu ouvi todo o relato... e por isso me arrepiava toda
vez que a Janete pirava, a sentar com a toba sem imaginar o
medo que eu sentia.
- Senta mesmo. - dizia, mordendo até o céu da boca.
Todo sujeito homem, ignora qualquer aviso, quando
se entope de salame, cerveja, cachaça e tudo que não presta...
que deixa a vida mais feliz. Mas se visse a cena narrada, com
riqueza de detalhes pela M.P., afinava a voz e inventava algo
do tipo - sente Janete, com mais romance.
O fato é que, a lindíssima Janete, sabia muito bem o
que queria. E gostava no cu. Sei lá se já tinha quebrado o pau
de alguém nas suas fodelanças, mas isso era não contava.
Apenas se divertia com seus prazeres.
No carro, na viela, no sofá da casa, com a mãe,
dormindo no quarto. Pendurada em algum galho, da
arvorezinha da rua escura. Ela não estava nem vendo, queria
51
sacudir a rosca.
Gozava... e como gozava, a Janete!
Eu gostava dela... tinha um bom humor e uma
inteligência ácida, sarcástica aguda era bom estar com ela em
todos os momentos, era diversão e riso garantidos.
Nunca se prendeu a ninguém, mas nunca maldisse
quem quer que fosse.
Como todos os meus momentos, Janete foi também
intenso e breve e partiu sem deixar rastros.
Fiquei triste em saber dias atrás que num assalto
seguido de tiroteio um malfadado jovem a tirou a vida por
meros trocados.

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Mea Culpa
Mea
Maxima culpa
 

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{ Gula }
 
Você tem fome de que?
Segurou com confiança o Bispo Branco e, naquela
sala de luz amena e aroma relaxante de incenso onde não se
ouvia mais nada além das duas respirações e o tic-tac do
relógio de parede, avançou-o à casa do Rei soltando:
- Cheque Mate!
Mais uma derrota das pretas… a terceira naquela
mesma noite. O jantar estava ganho e saíram deixando para a
sala… tão somente a agonizante respiração do relógio e os sons
dos fantasmas ainda escondidos.
Chegaram ao Baco e como sempre bem recebidos
por Helena e, foram encaminhados a uma mesa reservada
mais ao fundo, pediram um vinho maduro.
O rapaz, por sinal - Arthur - tinha requinte, se vestia
impecavelmente e preferia as cores sóbrias: preto-chumbo-
cinza…devidamente harmonizadas com gravatas em tons
bordô.
O velho bom… era Adriano - homem sobre o qual
contavam muitas lendas. Barba cerrada sempre alinhada e
bem desenhada…embora não parecesse; era avó-viúvo-vivia-
sozinho, e quase todo o tempo passava dentro da enorme
biblioteca particular.
Uma porta de vidro fumê se fechou reservando mais
54
ainda o ambiente onde apenas Helena e o velho maitre
Onofre circulavam.
Ainda saboreavam o Crostoli e a primeira taça do
refinado vinho quando Onofre entrou… auxiliado    por um
velho baixinho: traziam o cordeiro.
Olhando para Adriano sorriu brilhante com o
imenso dente de ouro que ostentava como um tesouro:
- Quem fará as honras?
A voz grave de Adriano ecoou soberba.
- O Jovem Arthur ganhou com destreza seus jogos e
será servido.
E mostrando muita intimidade com os instrumen-
tos… tomou em mãos o martelo e, num só golpe bambeou o
animal… e, rapidamente com a faca afiada cortou-lhe o pesc-
oço. O ajudante do maitre rapidamente amparou o sangue
vivo do cordeiro com uma bacia de prata
- Toma Arthur ainda quente o vinho mais puro, o
elixir da vida e da vitória…
O rapaz, enojado - mas discípulo das lendas - bebeu
rapidamente.
Mais três ou quatro movimentos e o cérebro do ani-
mal estava à mesa servido com o bigalhó curtido no vinagre
balsâmico e pão ázimo.
Enquanto comiam, animados, rindo como em um
banquete formal, Arthur pensava e concluía que havia uma
lógica em tudo aquilo. A fome que nunca se sacia…e uma vez
condenado ao inferno topou viver o inferno.
O rapaz comia com essa fome nunca antes sentida…
55
Adriano o observava excitado.
Mais vinho… outra garrafa!
E a cada giro dos ponteiros o tempo parecia parar. Os
pedaços do cordeiro eram devorados ao vinagre-hortelã-
gengibre-e-zimbro.
Os mamilos de Arthur lambidos ao vinho ora por
Helena, ora por Adriano.
Em um piscar de olhos era ele… o vencedor que,
estava sendo devorado sob a mesa. Sentia a barba de Adriano
nas costas, na nuca, o sexo de Helena a deslizar pelo rosto
lambuzando de um creme que jamais havia sentido o sabor -
tão único. O falo que o violava o intimo conhecia os mean-
dros e o fazia respirar ofegante, gemendo sensações
indescritíveis, e foram servidos os licores.
Arthur foi despertado por uma dor lancinante nos
sisos, tentou olhar através da gaiola de aço cirúrgico bem
próxima ao seu rosto.
…sentiu frio nas entranhas!
Viu Adriano e Helena recebendo alegremente um
jovem convidado… um desconhecido para ele, mas reparou
com atenção redobrada quando se sentaram à mesa - ao redor
dele…
Um vinho rose de delicado buquê foi servido… ele
viu o bigalhó no balsâmico e o pão ázimo, o tempero de
zimbro… Adriano se aproximou do seu rosto destilando um
imenso sorriso sarcástico… elevando a faca de prata e o garfo
acima de sua cabeça…
E tudo ficou escuro.
56
 
{ Ganância}
 
Existem os Adoráveis Avarentos.
Já dizia o grande poeta Baiano, Vinicius de Moraes,
que aqueles que só ganham para juntar verão um dia à fria em
que vão entrar… uma laje, embaixo a escuridão [Testamento -
Vinicius de Moraes].
E por falar em escuridão lembrei-me de uma visita
que fiz um dia com um tio-avô, João, à casa de um conhecido
dele… o Doutor Adolfo.
Casa escura, cheirando a guardado… a grande sala
tinha hálito de doença. Confesso que foi além do incomodo.
Senti medo… preferi esperar no enorme Jardim do lado de
fora… o qual fui explorar.
Lá era tudo o máximo - sendo mínimo; a lindíssima
piscina era um lodo só. Tudo bem que era inverno, mas era de
uma economia burra não cuidar daquele tanto de água e
depois… no verão, quando viessem os netos; jogar tudo fora e
ter que colocar água nova.
O velho nadava em dinheiro, e depois de anos, qua-
ndo descobri o que era um agiota… soube bem o que aquelas
visitas representavam.
Demorava alguns dias para aquele cheiro de morte
deixar minhas narinas, mas era tudo economia, não entendia
bem como alguém que poderia viver com a taça sempre meio
57
cheia… adorava viver com ela sempre meio vazia.
Pensava: “se fosse eu nessa casa, iluminava tudo, mu-
dava os ares, os hálitos, gastava com ela o que ela merece que
seja gasto e não haveria fantasma de natais passados que pu-
dessem me assombrar, nem o Velho Adolfo e seu instinto ca-
nino de enterrar dinheiro como se enterra um precioso osso”.
Mas o tempo não foi piedoso com o avarento Adolfo,
e a doença não fez economias para com ele: dedos, pés,
pernas… e eu com pena… imaginava o tamanho da ressaca ao
ver o neto enchendo a casa de empregados… dando vida ao
que estava morto. Que fria Adolfo!
Ao longo da vida conheci muitos Adolfos… e o fim
de todos era sempre o mesmo: a laje escura e fria e sem
dinheiro para nadar, apenas duas moedas nos olhos já devidas
ao Barqueiro.
 
 

58
{ Luxúria}
 
Bem vindos aos Jardins das Delícias!
Hedonistas eu e você… discípulos do Deus Prazer —
o supremo sumo sacerdote.
Pecamos muito uma noite dessas eu e você numa sala
cheia de gente e nós extraterrestres nesse planeta útero hostil.
Eu encarava seu decote querendo lhe cravar os dentes
naquele vão, e você blasée segurava o cigarro… olhando para o
nada! - com aquele olhar tranquilo que se tem para a
destruição, no pós-guerra.
Ah! Flor da minha contemplação de nome…
obviamente, oculto, pois não seria prudente expor esse desejo
latejante que se resume ao espaço frontal da minha calça jeans.
Se por um motivo qualquer eu ficasse cego - nesse
momento- saberia ler em braile sem nenhuma aula… os seus
seios e o desenho do seu losango sempre bem apertado em
variados tecidos e modelos.
Você por sua vez, se luxuria com a ideia pecaminosa e
proibida - bem sei ler gestos e sentir aromas e, às vezes, penso
alto… por sorte quase todas, às vezes, o faço em seu ouvido,
em um desses esbarrões que a vida nos propõe nessa sala cheia
de olhos famintos… sexos moles e dedos duros.
Desnorteamos eu e você quando sozinhos, à palma
de mão molhada de cuspe, à jatos sinceros e quentes de du-
59
chinhas… lembrando que o impossível é apenas uma falta
mortal de possibilidade… e, talvez algum dia, numa sala mais
vazia, passe a delícia operar nossos sentidos e devaneamos
sobre a chance.
O pecado que envolve todos os outros pecados, que
nivela os pecadores todos… na mesma condição diante do
trono do julgamento… o pecado mais socialista.
Nessa lógica, conheci uma moça soberba que gostava
de me contar suas transas, seus pegas, seu sexo por muitas
vezes piegas. O que tinha de gostoso nisso era sentir a energia
vinda daqueles corpos queimando cada vez mais rápido e
forte. Imaginar as mãos fortes domando a pelos… cabelos cor
de fogo.
Sou um voyeur confesso… gosto dos sons, das
silhuetas em movimento, das frestas, das insinuações… esse é
meu pecado; além de gostar do ardor da água do chuveiro nos
rasgos feito a unhas quando você me fode.

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{ ira }
 

Bendita a espada de Azazel!


Metade de tudo que rendia o morro: tráfico,
transporte clandestino, mototaxi, venda de gás, agiotagem…
pertencia a Azazel - a figura mais misteriosa de todo o Rio de
Janeiro…
O Dono do morro sabia que era um protegido e
sabia o preço dessa proteção e pagava regularmente. a Azazel -
cabra onipresente, onipotente e matava só para ver cair.
A parte do sócio sobrenatural deveria ser colocada na
caixinha de esmola da Igreja de cada comunidade em notas
graúdas todas as sextas-feiras… faltando dois minutos para
meia noite em ponto. O emissário deveria entrar… se ajoelhar
em reverencia, colocar a “doação” e sair sem olhar para trás até
que…
Dois jovens padres se negaram a deixar suas igrejas
abertas para tal ritual e acabaram empalados e fincados na
parte central da comunidade… onde todos puderam ver a
punição aferida aos “pagãos”.
Alguns emissários olharam para trás e acabaram com
as cabeças viradas de modo a sempre olharem ao contrário dos
corpos…
Certa vez… Locádio - dono de um morro famoso;
pagou quarenta e cinco por cento dos lucros em uma sexta-
61
feira… e como nada aconteceu tirou dez por cento da parte do
Azazel na sexta seguinte… e assim até surrupiar metade da
parte do Oculto.
Saiu todo serelepe a contar que tinha enganado o
Demônio e disse ao seu Zé Pedro do Bar: “o Diabo não é mais
tão inteligente e nem tão feio quanto parece”.
Locádio fechava sozinho as contas e estava certo que
não haveria como qualquer pessoa desse mundo saber quanto
seria o arrocho da semana… Mas, Azazel não era desse mundo
e queria seu bode ali no deserto completo… com todo o
sangue e toda a carne!
Numa sexta feira em que o emissário do Locádio
chegou à Igreja no horário da oferenda… a encontrou fechada!
…rodou pelas portas laterais já se borrando todo sem
encontrar entrada. Voltou assustado para o bar onde o chefe
jogava sinuca com os camaradas e relatou a desgraça.
Mas não teve tempo de abrir a boca… caiu dentro do
bar… atingido nas costas por uma bala de fuzil…
A tocaia do comando rival foi rápida, eficiente e
rasteira… em poucos minutos não havia sobrado um fogue-
teiro, um vapor, um soldado e nenhum comandante.
Locádio tinha caído…
Foi morto, esquartejado e cada pedaço pregado em
um poste da comunidade em seu ex-morro. Foram espalhados
cartazes que diziam: “isso é apenas Azazel cobrando o que é
seu”.
Quem era, como era e a quem servia nunca soube-
ram. Houve um tempo em que ninguém mais desafiava a Ira
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de Azazel… pagavam o sacrifício sem desrespeitar nenhuma
das suas regras… inexplicavelmente aos sábados pela manhã,
todas as igrejas dos morros começaram a ficar com seus cofres
cheios e os seus padres em silêncio absoluto.
E numa manhã chuvosa de sábado que o ansioso Pas-
tor Carlos Muniz tomava seu café no aeroporto de
Congonhas… enquanto esperava um amigo oculto que,
deveria chegar do Rio de Janeiro… e, entre um biscoitinho de
nata e outro… viu uma mão estendida na altura do seu rosto.
Olhou por cima dos óculos e apertou a mão do
desconhecido, ouvindo um sorriso simpático e voz maviosa:
— Muito Prazer, eu sou Azazel.
 
 
 
 

63
{ A inveja }
 
Ah a contradança dos Deuses!
Como entender uma avalanche de sentidos descendo
de alturas impossíveis e caindo justamente na sua cabeça?
Não, não se entende, apenas se vive, sente, deixa
viver… e foi nesse estágio; com o seu caos um pouco mais doce
que ela entrou no Metrô.
Quase meio do dia… às vezes, tudo assustava, crescia,
metia em perigo… um auto perigo, medo anacrônico.
Era nessa cena de Hitchcock que ela começava a
vivenciar a paixão através da falta. Aquelas mãos, palavras e
fotos, as letras perdidas na escuridão, o sentimento, a
sensação.
De tanto negar caia em contradição… não estava
sozinha nessa visão. Havia outros olhos vivendo a mesma
imaginação, em sintonia, em desapego de total prisão. O estar-
se preso por vontade.
Os tachos tinham ardido tocados pelos braços de
chamas da fogueira a noite toda e arderiam ainda mais,
contemplando corpos nus dançando com punhais, os pés no
chão. Sortilégio.
Ele pegou o café… o jornal e se sentou para assistir
sua melhor ressurreição.
Tudo era leve…
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Se propunha a viver dia após dia sem uma rota, sem
tortura e sem sofrer.
As mãos cortavam o baralho e os dedos puxavam um
valete de paus… o andarilho-cigano que dizia “não é o
momento de parar, um passo a frente, uma nova e mágica
revelação; dentro da noite tinha visto a dança imortal dessa
bela e etérea mulher, a menina do metrô”.
Todos os deuses invejam os mortais pela capacidade
de sentir e ser sentido e saber que um dia virarão pó, medo e
excitação… por isso guiam nossos destinos tendendo a nos
afastar dos nossos orgasmos mais imortais — da nossa entrega
perfeita.
Fechou o jornal, meteu o arcano no bolso e saiu
apressado… precisava dizer algo, sussurrar, gritar.
Ela ganhou o último degrau e a rua… sumindo ao
dobrar a esquina.
Ele ganhou o último degrau e percebeu que os
Deuses riam do sutil desencontro.
 
  Ah! A Inveja…

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{ A preguiça }
 

Havia e ainda há o Insonso!


Se ao sal perde o sabor serve apenas para ser jogado
fora e pisado pelos Homens.
Era um homem sem vícios! Dizia Dona Vilma sobre
o defunto, seu genro Oscar.
Sem vícios e sem ambição - Completava Sorlene - a
esposa.
Sem vontade - sussurrava a jovem e apaixonada
vizinha.
Sem virtudes - completava a Dona Mirtes, a mãe da
fogosa Cléo que não se conformava.
Oscar levava uma vida simples, mas não precisava de
muito também, não se viciou em café porque tinha preguiça
de fazer, quando feito, tinha preguiça de ir buscar na cozinha,
quando servido, tinha preguiça de soprar para tirar os vapores
que lhe queimavam a boca - Muito complicado, deixa para lá-
Dizia o gajo.
Também não se viciou em pitar, dava muito trabalho
picar e enrolar o fumo, cigarro feito? Nossa, tinha de ir com-
prar no bar, na venda, na padaria, cansava…
Não teve filhos, se quer transava, apenas quando era
encurralado na cama por Sorlene quase louca que fazia todo o
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serviço, sem que o preguiçoso precisasse mover um dedo.
Sentadão ali na varanda, de roupa impecável era uma
visão garbosa para a pobre e iludida Cléo que sonhava com
esses amores proibidos de novela, e fazia de tudo para ser vista,
em vão.
Dona Mirtes por muitas vezes aconselhou Sorlene,
desses conselhos que vizinho dá de graça achando que está nos
fazendo um favor - Larga esse imprestável, joga ele no mundo
para ver se espanta essa preguiça jamais vista em nenhum
homem.
Sorlene amava servir, e amava seu marido Oscar e
ademais tinha preguiça de qualquer atitude extrema, deveria
ser cansativo terminar um casamento de anos assim.
Na beira da morte, depois de sofrer de falência de
vários órgãos pela tremenda inércia que o dominava, Oscar,
coçando as escaras se viu de frente a uma tremenda luz que
parecia engolir o quarto e depois a casa toda, ouvira vozes
chamando - nenhum passo…
Imediatamente tudo escureceu e um homem todo
vestido de preto entrou juntamente com um outro, esse todo
de branco.
Ouviu quando o de preto argumentou - Não tinha
vícios o tal - e logo em seguida falou o de branco - mas
também não tinha virtudes e essa preguiça, mortal pecado-
O tinhoso tirando o chapéu contra-atacou - Se é
sentido para o céu é sem interesse para o inferno, não levo…
Saíram os dois e desabou a choradeira na casa.
Enquanto discutiam ali na sala ao lado do caixão
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sobre as não qualidades do morto, ele, éter sem corpo jazia
sentadão na varanda sentindo a brisa da tarde, preguiçosa
abalançar-lhe o bigode, sempre intocável de tanta preguiça.
 

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{ A vaidade }
 
Pobre Diablo !
… “mentiram-te, o Diabo não é o príncipe da
matéria, ele é a arrogância do espírito”… - Umberto Eco - o
Nome da Rosa.
Aquele que divide! Foi assim que o traduziram os
Gregos, que joga irmão contra irmão, aquele que se apossou
de Caim como ensinaram os antigos hebreus. o mal e o mau,
um anjo lindo caído em tentação e desgraça, banido e
castigado. Senhoras e Senhores eis o Diabo.
Ao longo dos séculos engana, corrompe, seduz e
destrói.
Mas o Diabo não é tão feio quanto parece, é bom
moço, hipócrita como qualquer um, cretino como quem se
deixa levar pela pretensão, arrogante como os sábios, o Diabo
tem uma habilidade incomum em tudo que faz, ele é bom, se
torna gênio em qualquer seguimento.
Ele vai a missa, comunga e se mistura com a multi-
dão, com o povo de Deus e é convincente em pensamentos e 
palavras, atos  e omissões, sim senhores, o Diabo vive fazendo
o pseudo mea Culpa, diz aqui e ali que se arrepende mas de
fato ignora seus erros, é egocêntrico e prepotente.
O Diabo vai ao culto, vai a sessão espírita, está
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sempre tentando algo que alivie sua lista corrida de
malcriações, é um dos entes mais velhos do universo, mas é
sempre um garoto mimado cheio de si, que tem síndrome do
pânico e se esconde em armários.
O Diabo não enxerga amigos, tem no máximo
colegas de ações, um séquito de gente burra e inútil que fica
lambendo o chão que ele pisa, e ao contrário do que dizem,
adora espelhos.
O Diabo dissimula, come a mulher do próximo, não
se importando quão próximo esteja o dito cujo, não suportou
ser o pai do rock porque quer sempre mais bajulação afinal é
para isso que ele existe, tornou-se o pai do sucesso, da penosa
burrice bem-sucedida. É o que dá o tapa e esconde a mão,
precisa o tempo todo de atenção e busca ser visto a qualquer
preço, pobre Diabo o dia em que descobrirem quem
realmente és, tua identidade, teu fascismo, teu cinismo, talvez
tua ruindade se torne ruína, talvez apenas leve todos os tolos
na conversa e recomece com outra cara, outros sons, outras
meninas, e principalmente outros súditos.
O diabo é apenas um espírito arrogante, um jeca
incandescente dentro de uma fogueira de vaidades.
 
 

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Shoganai

Havia um origami, chamado Harume.


O perfume de seus longos, lisos e pretos cabelos
espalhava-se pela casa acanhada da rua C., no quarto canal do
Rio Ota.
Antes de sair, por volta de sete e quarenta da manhã,
Yoko - sua mãe - a presenteara com uma linda flor amarela,
para contracenar com o lindo cabelo.
O domingo tinha sido muito feliz, com passeio pelo
parque das cerejeiras imperiais, embora houvesse a guerra.
A segunda-feira era um lindo dia de sol e a manhã
estava clara e dourada, quando Harume começou a varrer a
rua, cumprindo seu esforço de guerra.
Os estudantes passavam, pelo menos, duas horas do
período, em que não estavam na escola, a serviço do
Imperador do Japão. Varriam as ruas das cidades e eliminavam
todo tipo de lixo que pudesse, se acumular, causar incêndios
ou doenças.
Não era uma lei, que se previa punição, caso não
fosse executada. Era orgulho coletivo da adolescência japone-
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sa, em honra aos seus bravos soldados mortos, naquela
estúpida guerra, sem fim.
Harume varria seu trecho de sonho e pensava na paz,
como um pássaro que voava, beirando os canais, naquela
linda manhã.
Um zunido, bem parecido com o de uma abelha, em
seu esforço de voar, lotada de matéria prima, para o doce do
mel, chamou a sua atenção.
No céu completamente azul, viu em destaque uma
bela nave, que reluzia todo seu prata celestial, numa rota
curva, lenta e calma, que a mansidão invadiu o coração, ainda
infantil.
Havia escutado tantas histórias das ferozes batalhas
em Okinawa e de seus amados heróis soldados que naquelas
selvas “pacíficas”, se embrenharam atrás dos nortes america-
nos... varrer a sujeira das ruas era pouco.
Louvava, embora achasse uma lenda pouco palpável,
a ação corajosa dos Kamikazes, que jogavam seus aviões e
corpos imortais, contra a frota inimiga nos mares, poupando
o povo japonês, de ataques diretos.
A vida, funcionava normalmente: comércio e escolas
abertas, indústrias trabalhando de forma integral. Poupar
comida e água era mais um ato de consciência coletiva, que
uma necessidade.
Tudo garantido pelo sangue dos gloriosos heróis,
deuses de uma sociedade única e fechada, que acreditava e
apoiava a guerra, como ato divino do seu Imperador, que
junto aos jovens, varria as ruas ao redor do palácio.
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Daquela ave prata, no céu, parecida com uma dobra-
dura, feita pelos mestres antigos, caiu um pacote, talvez
esperança. Harume, aplaudiu animada.
Quarenta e oito segundos depois, fez-se a luz, a maior
já vista por aqueles olhos sábios e curiosos. Um vento quente
e devastador, seguiu em ondas de impacto, tão inimaginá-
veis... que todo o quarteirão caiu sobre a jovem e seus
inocentes sonhos.
Do alto, o piloto do Enola Gay, contemplava o
funghi gigante de fumaça e radiação. Comemorava o sucesso
da bem-sucedida ação da “Litle boy”... que definitivamente,
colocaria os petulantes japoneses, no seu devido lugar.
Harume abriu os olhos e tentou sorrir, ao ver sua
mãe entre socorristas. Yoko se afastou em desespero, procu-
rando a filha, entre os escombros.
A voz não saia. Não conseguia ouvir o caos, tam-
pouco mover uma parte de seu pequeno e frágil corpo, que
começava a doer de forma lancinante, queimado por uma
forma de fogo primitivo e tão absurdamente desconhecido.
Foi recolhida por uma moça, mais velha e levada a
um abrigo. Reconheceu os escombros - era a sua escola. E se
agitou aflita, pois sabia que havia mais de quatrocentos
jovens-amigos, em aula no momento do cataclisma.
Nos corredores, Yoko vagava como uma alma, sem
rumo, chamando pelo nome de Harume. Entre aflição e
desespero, corria e clamava por uma luz ainda mais forte que a
presenciada há poucas horas.
Um médico que, se aproximou, foi tocado por uma
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flor amarela intacta entre o que restava dos cabelos da jovem e
em tom patriótico e emocionalmente desproporcional, er-
gueu a flor, ente lágrimas, para dizer que ali renascia a espe-
rança e a vida. Tudo naquela pequena centelha do universo,
misteriosamente conservada, do fogo avassalador.
Yoko reconheceu de longe a flor e gritou prostrando-
se ao infinito, em agradecimento. Sua pequena heroína estava
viva - milagrosamente viva. A bomba tinha caído há menos de
dois quilômetros de distância de onde estava.
Era 6 de agosto de 1945 - Hiroshima-Japão.
Cinquenta anos mais tarde, quando na praça dos
sonhos, brotou espontaneamente a primeira rosa, do pós-
guerra, Harume estava lá, para amarrar novamente seu laço de
vida, ao universo, que como dizem: “Conspira contra e a favor
conforme o gosto de quem pede”.
 

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Non Ducor Duco
 

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Heitor! Heitor! - Chamou Aquiles, junto ao portão,
revestido de pedra. Era sua mãe - dona Ignês - o tirando do
sonho Homérico, para ir à escola, em mais uma manhã
quente.
Acordou, respondendo com a cabeça, pois a fala lhe
estava suspensa havia dois anos - desde a explosão da pilha de
lenha, que o deixou soterrado, entre pedaços de toras. Um
milagroso buraco, feito por ele, por peraltice - que lhe custou
cintadas na bunda -, o salvou.
Aquele local, era um recanto feliz. Bem movimenta-
do nos últimos anos. Se mantinha pitoresco, entre os frescores
do rio, que cortava a geografia.
A caminho da escola, parava todos os dias, para ver a
chegada do trem na estação. Gostava de saber quem chegava e
quem partia.
Era impossível não lembrar do amigo Lourenço, que
desembarcava todas as manhãs, de sábado, com o pai e mais
outros tantos, que vinham vender produtos, na feira.
Era o povo de Minas, pacatos produtores rurais e
exímios artesãos de doces e produtos lacticínios. As delícias
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dos queijos, manteigas e os famosos pingos de leite, que Lou-
renço, surrupiava do pai, para presentear o amigo.
Nossos irmãos de pátria, pois não! — pensava
Heitor.
E veio a Guerra.
Na aula, a professora falou do orgulho ferido, do po-
vo paulista, que dois anos antes, apenas pleiteava ao ditador
Getúlio, uma nova constituição. Embora houvesse escamotea-
dores, clamando pela separação da Província de São Paulo, do
resto do Brasil - tudo balela segundo a professora.
Heitor tinha vivido por dentro aquele fratricídio. Seu
rosto queimava e sua expressão se fechava em luto, quando
falavam mal dos vizinhos Mineiros - seus amigos!
Queria se expressar contrário. Mas, nervoso, exagera-
va nos gestos e era zoado pelos demais. Se fechava em seu
mundo... muito melhor que o deles. Dominavam a fala mas,
nada tinham a dizer, de interessante. Nem a professora, uma
cretina corna de saias. Heitor sabia das coisas.
Conviveu, durante a guerra, com Clóvis - um jovem
estudante de jornalismo que, por idealismo, se voluntariou a
tropa paulista e seguiu com o destacamento para sua cidade,
se “hospedando” na casa de Heitor, como tantos outros, na
primeira parte do conflito.
Clóvis tinha entre suas funções, a espionagem. E
Heitor se especializou em esgueirar-se pelos muros e observar
a vida alheia. A cornice da professora tinha sido muito bem
observada. O marido e bom homem da casa, comia a vende-
dora de armarinhos, nos becos escuros.
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Antes da guerra varrer a pacata cidade, havia feira aos
sábados, promovida pelos comerciantes locais que, tinham
como objetivo, movimentar o centro comercial e atrair com-
pradores para os produtos locais. Era divertido e se ganhava
alguns tostões.
A mania de observar o trem chegando, ao amanhecer,
deu a Heitor um companheiro incrível: Lourenço. E, nas
noites em que a guerra sacudia de bombas, a serra... ele rezava,
pela segurança, do amigo.
Quando os paulistas partiram para a inevitável frente
de combate... Clóvis partiu com eles, para se encontrar com a
morte, em alguma trincheira insalubre.
Os combates fizeram sumir da vida de Heitor, dois
bons amigos. O soldado que lhe ensinou que o silencio valia
mais que a fala... e o garoto que, o presenteava com pingos de
leite roubados e revistas com ilustrações eróticas - tudo muito
apropriado.
Na segunda parte da guerra, foram os mineiros que
vieram se “hospedar” casa de Heitor. Tinham varrido a frente
Paulista e avançado. Nenhum passo além do rio que, cortava a
cidade. Dominar aquela ponte era impedir qualquer tentativa
de avanço, daquela frente... sem perdas de vidas ou derrama-
mento desnecessário de sangue.
Numa incrível manhã, enquanto espiava pelas frestas
e vielas, Heitor ouviu chamar seu nome... Heitor! Heitor!
Psiuuuu!
Dentro de um pequeno depósito, estava Clóvis
escondido, sujo e fedido. Pelo menos, não estava morto... ou
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estaria vendo fantasmas.
Na guerra e nas canções de amor, a ética e a moral se
ausentam. E Clóvis entregou a Heitor, duas minas, com as
instruções para que enterrasse no quintal a fim de eliminar o
pelotão inimigo - hospedado em sua casa.
Imediatamente correu para casa, escondeu as minas
dentro de uma velha cisterna desativada e se apossando de
uma pá, cavou o quintal, num pequeno gramado onde os
soldados inimigos, jogavam peladas.
Aqui é o lugar exato. - pensou. No final da tarde,
catam a bola e vão para os ares. Sorriu de forma macabra. Em
seu íntimo os responsabilizava pela possível morte de Lou-
renço e a pseudo morte de Clóvis.
Enquanto cavava os dois buracos Dona Ignês, viu da
porta da cozinha, e ralhou.
- É para colocar as balizas para fazer o gol do futebol
aqui. - respondeu Heitor, confiante.
A farsa não funcionou e a cinta cortou-lhe o couro.
Ainda nutria ódio em seu coração pelo inimigo,
quando o diabo, que sempre espreita os odiosos pensamen-
tos... soprou-lhe um plano.
Foi até a escola, à noite. Entrou pela janela quebrada -
que conhecia, desde sempre... e roubou uma bandeira de São
Paulo, do armário da diretora e correu para casa. Com a
destreza de um espião, subiu no celeiro, onde dormiam os
soldados e a esticou lá em cima. Baita símbolo de orgulho e
resistência.
Não dormiu aquela noite, tamanha a excitação e logo
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que clareou o dia, ouviu o zumbido agudo dos motores
alados, das mais novas máquinas de guerra do mundo... os
monomotores da recém-formada Força Aérea Brasileira, que
durante todo o dia, patrulhavam dos ares da região.
Os soldados tomavam café, debaixo do alpendre do
celeiro, quando a bomba caiu.
Os pilotos lá em cima não eram ases indomáveis e
nem tinham equipamentos de precisão. A bomba foi jogada
para atingir o alvo - a bandeira inimiga e o celeiro com
possíveis tropas de resistência, mas...
Heitor correu pela grama para ver de perto. Mas, ao
ouvir o assovio da bomba, se assustou e caiu no buraco cavado
por ele mesmo. A bomba atingiu a pilha de lenha entre a casa
e o celeiro e a fez voar por todos os lados.
Por sorte o nosso paladino da vingança, foi protegido
pelo buraco. E a casa não foi atingida ou teria matado toda a
sua família. Quando foi enfim tirado do buraco, havia
perdido a fala.
A guerra se foi... a feira nunca mais aconteceu, por
aproximadamente quinze anos, e Heitor ficou mudo, durante
longos nove anos.
Depois de uma procissão, entre gabinetes médicos e
feiticeiras, que lhe davam crista de galo, para comer... o jovem
se enamorou por Lúcia, com quem teve um tórrido romance,
silencioso.
Num desses sábados, quis o destino que Lucia arras-
tasse Heitor a estação, para esperar uma prima que chegaria de
uma cidade perto da capital.
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Estavam no café, sentados, quando parou o trem que
vinha no sentido contrário e o jovem fixou o olhar no ir e vir
das pessoas, e para sua total surpresa viu um fantasma.
- Lourenço! - gritou, desenrolando finalmente a
língua.
Foi um longo e calentoso abraço.
Tinha, com tanta fé, dado o amigo como morto, que
precisou que Lucia, em choque ainda pela volta da fala do
namorado, testemunhasse, beliscando o rapaz, que ele era de
carne e osso.
Aquele encontro devolveu bem mais que a fala a
Heitor-— devolveu-lhe vidas.
Já estava me esquecendo... Lourenço casou-se com a
prima de Lúcia - que desembarcou do trem, para não mais
voltar à sua cidade. Tiveram uma filha, Madalena, que era
chamada carinhosamente por todos, por “pinguinho de
leite”.
Heitor teve um filho com Lúcia, que ao ser batizado,
recebeu o nome de Clóvis - o amigo do qual nunca mais teve
notícia.
 
 

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Engel des Todes
 

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Um carpinteiro chamado Álvaro.
Nascido e criado naquela cidade, mantinha uma loja
de móveis novos e usados, na principal avenida comercial.
Cresceu com a Villa... e ficou conhecido por seu
capricho, determinação e honradez - coisas que valiam algum
prestígio social, à época.
Era acima de tudo... um estudioso. Gostava de temas
diversos. Mas, era apaixonado mesmo, por história.
O clima de pós-guerra era intenso e muitos paravam
para conversar com Sr. Álvaro, sobre os recentes combates em
solo europeu, Normandia e Sudoeste da Ásia.
O mundo já estava mergulhando em outro conflito,
na Península da Coréia, onde as duas potências ideológicas, se
digladiariam nos próximos anos, com a mão dos outros.
Muitos estudantes entrevistavam o carpinteiro, para
trabalhos de escola. Ele gostava dessa notoriedade. Era cético e
entusiasta da paz. Alguns diziam que gostava dos combates e
por eles nutria, secreta admiração — um vício.
Estava envolvido com a escrita de um livro sobre os
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recentes incidentes na Coréia, sob o título: “O lobo perde o
pelo, mas não perde o vício” - velho ditado, que definia a
guerra, como um maldito vício do poder e dos Homens.
Sua loja ficava em frente aos principais pontos de
partida dos ônibus para as cidades vizinhas... e muito
movimento se fazia naquelas calçadas, nos horários de pico.
Dentro, era tudo bem arrumado. Nosso Álvaro era,
acima de qualquer coisa, metódico, virginiano - era a isso que
Leonor atribuía a organização e arrumação de um local, que
era meio loja, oficina, biblioteca - já que possuía grandes
estantes, lotadas... com destaque para a coleção completa de
uma revista americana. Fascículos sobre a guerra, ilustrados
com fotos sensacionais e relatos de quem esteve lá.
Era o seu xodó - jamais deixou que alguém colocasse
os olhos nos volumes, sem que estivesse em suas mãos.
Nos últimos dias, em meio àquela movimentação
frenética, dos finais de tarde, em frente à sua loja, reparou em
uma presença diferenciada.
Estavam em meados de agosto... fazia frio, ao cair da
tarde. O homem, que observava havia alguns dias, estava
muito bem vestido, enfiado em um capote cinza-chumbo,
que escondia as camisas de linho bem engomadas e as calças
extremamente elegantes para a época.
Se destacava entre os tecelões e mecânicos, que
voltavam para casa, depois do longo dia, de trabalho. Tinha
sempre à mão, um jornal ou revista, e carregava uma pasta
dessas que os médicos usavam.
Álvaro, sabia que aquela figura, não tinha chamado a
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sua atenção à toa. Algo de importante deveria haver para
despertar seu interesse repentino.
Chegou a espreitar o homem, com todo cuidado.
Escondido. Todavia, a curiosidade e seu peculiar interesse
cientifico, eram maiores que qualquer medo de passar alguma
vergonha.
Em uma manhã, com o um sol radiante, ao ler uma
matéria investigativa sobre os fugitivos criminosos de guerra e
a vinda deles, quase que maciça para a América do Sul, no
jornal diário... seu coração - descompassado naturalmente —
ganhou métricas de sinfonias de Tchaikovsky... ao se deparar
com fotos reveladoras.
Correu imediatamente à sua coleção dos fascículos da
guerra... e olhou atentamente cada uma das fotos. Verificou
rostos e comportamentos corporais. Tinha se tornado um
perito, em tais observações.
À tardezinha... sentou-se em uma poltrona, munido
de uma caneca, bem servida de café e passou a observar o
movimento das paradas de ônibus. Sabia em qual dos
coletivos, o tal homem embarcava... todos os dias, com
destino à Nova Odessa, pontualmente, às 17:35.
Divagou sobre as possibilidades muitas, quando
avistou o sujeito atravessando a rua apressado. Levava em uma
das mãos: a mala - supostamente médica. E, na outra, um
exemplar do Estadão.
Se posicionou no mesmo lugar. Acendeu um cigarro
- os mesmos gestos e movimentos, as mesmas expressões
faciais.
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Álvaro não tinha mais dúvidas... levantou-se num
rompante. Verificou as horas. Eram exatas 17 e 30. Teria cinco
minutos de tempo para evitar a fuga.
Chegou na porta da loja e chamou:
— JosefMengele! Mengele! Doutor Mengele!
O Homem se agitou.
Olhou para o chão e de soslaio, para Álvaro, que
vestia um quipá característico do seu povo.
Assustado e muito nervoso... olhou de novo.
O ônibus parou, abriu a porta... inexplicavelmente
cinco minutos adiantado.
O Homem embarcou apressado, deixando cair o
jornal. Se embrenhou no meio das pessoas que lotavam o
coletivo e desapareceu para nunca mais.
Álvaro guardou o jornal até que chegasse o dia... de
revelar a verdade. Aquele jornal pertencera a um Anjo... da
Morte.
 
 
 
 
 
 

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Panis Angelicus!
 

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Ela habitava as estrelas!
Desde daquela noite sem nome, em que a sensação de
impotência, lhe foi rebatizada... engolir à seco, era o menor
dos desconfortos.
As questões sem respostas depositadas sob a lousa
fria, todas as noites, soava como um alívio... ainda que não
sentisse alento.
Lá de cima, o céu era um espetáculo. A pequena e
peculiar cidade dormia, aos pés do minúsculo campo santo.
Embora girasse, sua cabeça era orbitada por todos os
planetas e constelações que, às vezes, se alinhavam sobre a
soturna cena, devolvendo, sem resposta, todas as perguntas.
Nos ouvidos, a trilha sonora habitava intacta. Ainda
que se fizesse silêncio sepulcral, desses em que se ouve o bater
de asas, dos mínimos insetos.
A contradança de Johnny Rivers, por muitas vezes foi
um movimento solo, entre muretas e cruzes de cimento mal e
porcamente caiadas. Enorme poder tinha sua dança. Esperava
que ele dançasse, onde estivesse.
O que pensava o funcionário, que se assustava
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constantemente com sua presença. Realmente não importava.
O pobre apenas era conivente com aquela silenciosa - e sem
maldade alguma - transgressão.
De luto fechado, seu vulto se misturava a escuridão e
brilhava prata, nas noites de lua cheia. Uma pequena e errante
fagulha do universo, que sonhava.
Foram milhares de cigarros, goles e socos na
imensidão do concreto, que respondia vagamente, com ecos
secos e dor.
Havia amor, claro! Era uma garota perdida entres
sonhos e desesperanças, que crescia ingenuamente entre os
dois mundos, tentando relativizar com respostas ausentes o
ato desesperador e premeditado, que lhe roubou a vida, aos
quase vinte. Era só amor... puro, em essência e saudade
lancinante - nada demais.
A quem visse, poderia apelidar loucura, perda de
tempo... ou qualquer outro desses rótulos idiotas, de quem
pretende saber mais do tempo, que do próprio nariz.
Não havia lógica naquela poesia, aliás, há em alguma?
Isso durou algumas estações. Séculos na sua mente
alimentada pelo vazio... até diminuir e deixar de ser. Talvez,
quem precisasse de respostas, era quem jazia precocemente,
naquela viagem sem volta. Ela perguntava, mas, respondeu e
num abraço, ele seguiu seu caminho. Nem se lembra mais da
última vez em que pulou o ridículo muro e se deitou ao lado
do abismo desconhecido. Mas, ao sentir o vazio, veio como
um balsamo a paz.
Mas, saiba garota, que falar é fácil!
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#
 

95
S., tinha sempre meio tom, acima!
Sustenido, em cima do salto quinze, com o jeans
apertadíssimo. Poderia ser uma bon-vivant em tempos de
maré brava.
Não chegava a ser uma patricinha, metida com a
plebe. Mas, não era uma de nós - era turista do lado de cá, da
linha do trem.
Sua petulância e arrogância, eram um encantamento
para mim... e certamente um defeito, para os pobres diabos,
que se aventuravam.
Ocorre que eu aprendi a dar o tapa e esconder a
mão... logo chegavam as cartas imensas, em tons velados, de
declaração e desafeto.
Numa semana, jogou sete dessas, uma por dia... por
cima do muro da minha casa... sempre, em horas abissais. A
do domingo, eu pude ler, sem danos - quase por um milagre.
As outras, meu cachorro chegou primeiro. Desengonçou, mas
ainda assim consegui decifrar. A de quarta-feira, se encerrava
com a frase: “parece que te amo, mas deve ser um mal estar
passageiro”. Era uma das mais belas e na qual, mais trabalhei
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para montar - feito um arqueólogo, que descobriu um
pergaminho antiquíssimo, em fragmentos pelo tempo.
O cachorro era danado com tudo que caia em seu
território.
S., tinha, além do meio tom acima, algumas peculia-
ridades muito apreciadas, os cabelos extremamente pretos e
ondulados, os olhos devedores, os seios pequenos, bem feitos
e me fazia sorrir quando sorria - era impossível não se
contagiar.
Depois de uma briga infernal, por causa do tipo de
liberdade que queríamos, se ausentou da cena. E me ausentou
de si. Sabia fazer silencio quando era preciso.
Foi um tempo em que minhas letras soavam com
graves de sinos, indagando o luto.
Ah! Doutor, me esqueci de contar... eu tinha uma
banda. Cantava e me aventurava no baixo, porque pensei, tem
só quatro cordas, deve ser um terço mais fácil. Outro dos
meus grandes enganos doutor, mas me dei bem, naquela
merda toda.
Enfim, chegou pelas bandas de cá, o cu de mundo da
época, uma peça que realmente valia à pena ir ao teatro. Tinha
nu, palavrão e cena de sexo. Minha prima, que tinha mania de
me chamar de Vital... aquele da moto dos Paralamas,
comprou as entradas para o escárnio.
- Dizem que tem nu, e com ereção. - comentou. Eu
apenas olhei de soslaio, grandes merdas uma ereção naqueles
dias. Mas, como tudo é um lance de sorte - dados rolados
podem ser para a perdição e para a porra da glória -, e assim se
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deu aquela noite.
S., estava lá. Eu podia sentir... embora na escuridão,
eu não a enxergasse. Mas, sabia que ela não iria perder o tal
evento pecaminoso, de luzes e ação.
Na saída, minha prima, excitadíssima, com a nova
arte... veio com dois chopes geladíssimos. E após brindar co-
migo, sumiu entre os amigos.
Eu fiquei olhando o aquário e degustando o amargor
da espuma até que, uma mão, laçou por trás minha cintura... e
uma voz umedeceu os ouvidos.
- Uma moeda por seu pensamento!
- Estava pensando, na peça. - menti.
- Você mente bem! Eu não. Estava te procurando no
meio da multidão de rostos estranhos e sem histórias para me
contar.
Foi o melhor dos elogios e o pior dos vacilos.
A noite acabou em peça encenada, com a voracidade
das nossas jovens almas e com a estupidez das nossas cabeças
vazias.
Ela sempre tinha meio tom acima, doutor. E, às ve-
zes, desafinava. E, eu, no auge de minhas serenas confissões,
estou descobrindo que, por muitas vezes, fui bemol. Meio
tom abaixo - que desafina.
Outro dia, a vi vagando por aí, com a mesma
elegância de eminência parda. Escoltada por dois jovens: uma
garota - ela mais nova - e um garoto, com um bigodinho
vagabundo. Parecia feliz... e isso me deixou contente, de forma
pueril e sem conhecer o outro lado da linha do trem.
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“A vida é feita de encontros, ainda que hajam tantos
desencontros pela vida” - assim ensinou mestre Vinicius, mais
diplomata que eu.
 
 
 
 

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100
Rosso!

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Não poderíamos esquecer de Betina - um diamante...
se falso ou legítimo, nem o tempo soube dizer.
Amava Dali e o surrealismo, desde que voltou de
Nova Iorque - onde visitou a exposição clássica, do pintor
Catalão.
O ano de 1934, tinha sido transformador na vida da
jovem Betina - pintora, de influência expressionista e apaixo-
nada pela arte brasileira, ainda que não aceitasse a sua arte.
Tinha exposto numa das salas do Palacete Santa
Helena e no Rio de Janeiro, na Escola Nacional de Belas Artes
- a convite de Portinari. Levou algumas telas para Nova Ior-
que, vendidas logo de cara. Tinha prazer em pintar e buscava
reconhecimento.
Em São Paulo, trabalhava avaliando obras, organi-
zando exposições e procurando marchands, para promovê-las.
Conseguia contatos importantes... e algum dinheiro.
Antes de acabar 1934... poderia aparecer uma opor-
tunidade, para expor na Europa. Precisava estar preparada. Se
empenhava... compondo uma coleção nova, exacerbando o
vermelho e como tela principal, o Flamboyant da Várzea do
102
Carmo... sobre o qual, alimentava uma dúvida - dada aos
expressionistas - manter a figura feminina, passeando ao lado
do Flamboyant... ou corria o risco de virar natureza morta,
com o vermelho expressivo e a presença desproporcional das
flores.
Naquela tarde, outonal, havia marcado um encontro
com a Sra Olívia Guedes Penteado - famosa mecenas e amiga
de muitos artistas... dentre eles, os modernistas. O tema seria,
angariar fundos, para expor seu vermelho, na Europa.
Betina era moça de família abastada do interior do
Estado... do ramo dos tecidos, de origem alemã. Teve a vida
facilitada na Europa, quando ingressou na Universidade de
Munich, para cursar Farmácia. Mas, por um desses desvios do
destino, acabou por conhecer, em sua primeira viagem de
trem, um jovem e talentoso professor de filosofia e crítico de
arte - Walter Benjamin.
Nunca chegou a casa da tia Olga - nos arredores de
Munich. Mudou seu destino para Frankfurt e seu curso, para:
estudo das artes. Acabou deserdada pelo pai, através de uma
carta e foi acolhida pela mãe, que enviava dinheiro secreta-
mente, através um amigo especial e secreto.
Em Frankfurt, tomou contato com o expressionismo
e todo seu universo. Começou a compor as primeiras telas...
primeiro gravuras soturnas, em preto e branco. E, depois, ad-
mitindo algum vermelho, evoluiu consideravelmente e che-
gou, com a ajuda do namorado, a ser exposta no Brasil, usan-
do o pseudônimo: Emma Wolf.
Evidentemente achincalhada pela crítica ácida, de “O
103
Jornal”... o carro chefe dos Diários Associados, do implacável
Assis Chateaubriand, que a chamou de: “outra chucrute
batedora de carteiras” .
Carregava esse segredo - jamais revelado.
E se viu sozinha na Alemanha, depois que em um
domingo, Walter Benjamin saiu para filosofar e desapareceu.
O Partido Nazista estava em expansão e começava a
apertar o cerco sobre os pensadores livres e de opiniões mais
internacionalistas. Por isso, não era apenas prudente mas, ne-
cessário, deixar o país... antes que um golpe viesse esmagar as
liberdades em nome de determinados avanços, econômicos-
sociais. O Filósofo e sociólogo Judeu só deixou a Alemanha,
quatro anos mais tarde - em 1934... ano especial para Betina.
Ela nunca entendeu o porquê de não ter deixado um
bilhete ou enviado uma carta. Depois de alguns dias, tomou-
lhe por morto e bateu na porta dos pais, para repactuar sua
volta ao Brasil. Trazia consigo o expressionismo alemão e as
cores do mestre Van Gogh - elementos mais que suficientes
para se lançar numa fase, mais promissora
E era com esse entusiasmo que saltou do bonde na
avenida Rio Branco e enveredou pela Conselheiro Nebias -
onde avistou o palacete imponente, na esquina com a Rua
Duque de Caxias... casa da Sra Olivia - padroeira do
Modernismo.
O bairro dos Campos Elíseos não era assim o centro
da agitação cultural e artística da Pauliceia Desvairada mas,
abrigava em seus palacetes, as mais cobiçadas coleções de arte
do país. Além, de serem os seus proprietários... os mais ricos
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mecenas da cidade, quiçá do Brasil.
Passando por uma pequena porta que se abria para a
calçada... um acanhado e bagunçado salão com gravuras
expostas, chamaram a atenção da moça.
Relógios divinamente pincelados, em preto e branco.
Alguns em tons pastéis... marcavam expressivamente as horas
da manhãzinha e os primeiros, as horas da noite.
Maravilhada pela primeira impressão que se parecia
com uma tempestade, dessas em que os ventos se embaralham
sem direção.
Entrou e encontrou sentado - em frente a um ca-
valete - um homem de expressão rude, bigode, camiseta de
malha, calça de algodão e sandálias nos pés. Ele pintava um
esboço, outro relógio.
- Boa tarde! - disse, cortesmente.
O homem, mudando a expressão franzida, terminou
uma pincelada e respondeu, olhando nos enormes olhos cas-
tanhos de Betina:
- Boa tarde! - carregado de um sotaque italiano, sem
refinamento.
- Estão à venda, essas telas?
- Sim, cada uma delas.
- Prazer, sou Betina.
- Nenete, muito prazer. - respondeu, apertando com
convicção a mão de louça alemã, da moça
- O senhor pinta divinamente, a expressão das horas,
em todos esses relógios.
- Má chè! Faço essas gravuras para enfeitar casa de
105
pobre, que não pode comprar belas artes. É tudo muito sim-
ples. Eles gostam e nem reparam que vivem cercados por
relógios, que limitam suas vidas, controlam seus minutos e os
mantém escravos das horas, sempre.
Espantada, Betina hesitou diante da próxima pergun-
ta. Mas, como boa observadora, reconheceu os relógios um a
um. O da sede da Light. O da Sorocabana. Do prédio dos
Correios e o do Viaduto do Chá.
- A senhorita se interessa, por alguma?
A pergunta demorou a entrar... diante do espanto ao
perceber que o artista não assinava suas telas.
- O senhor não assina ?
- No! No! Quem compra, paga pelo enfeite e não
pela obra.
- Quanto custa ?
- Dois vinténs, meio tostão
- Qual a quantidade da coleção completa?
- Treze quadros
- Quatrocentos e sessenta réis. - disse a moça, pen-
sando alto
- Dou um desconto pela coleção toda. Faço quatro-
centos réis
- Eu compro - arrematou Betina
Dois meses depois estava agitado o Palacete Santa
Helena, muita gente chegando elegante, na frente uma con-
fusão de baratinhas despejando a então elite cultural e
financeira de São Paulo, e deixando a Praça da Sé tomada de
uma nevoa venenosa.
106
Entre os imortais, Olivia Guedes Penteado se destaca-
va com seu inconfundível sorriso de bem-estar artístico,
enquanto, descendo as escadas trazida por Lasar Segall, vinha
a estrela da noite, vestida de vermelho Flamboyant, Betina
Wendlinger.
A exposição “Os treze relógios da Pauliceia Desvai-
rada” já era um sucesso e embarcaria para uma tour europeia
em uma semana, sem vendas porque todos os quadros perten-
ciam a coleção particular da Sra Olivia Guedes Penteado,
Betina dez contos de Réis mais rica vendia paralelamente sua
coleção de vermelhos.
Em um canto da sala, vestido de terno simples e cha-
péu de segunda linha um homem com expressão rude se
aproximou de um dos quadros e perguntou baixinho ao pé do
ouvido em sotaque carregado.
- Senhorita Betina, reparei que criou uma marca nova
de relógios, não quis retratar as diferentes marcas dos relógios
espalhados pela cidade?
Betina sorriu congelada, e só então pode notar abaixo
dos dozes, onde se costuma destacar a marca do fabricante do
relógio um elegante N A, perguntou pensamento o que
queria dizer e a resposta veio de novo ao pé do ouvido:
- Nenete Amádio, o verdadeiro dono da sua instan-
tânea riqueza e do seu pueril sucesso
Quando tomou coragem para virar-se, o homem já
saia pela porta saudando com o chapéu uma dama que
entrava de braços dados com um cavalheiro que retribuiu a
saudação.
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No dia 10 de junho de 1934 as vozes do rádio de
Assis Chateaubriand noticiavam de manhãzinha as man-
chetes do dia :
- Estreia em Paris com absoluto sucesso e glamour a
exposição da genial expressionista brasileira Betina
Wendlinger
- Morreu em São Paulo na tarde de ontem a Senhora
Olivia Guedes Penteado, a benfeitora do modernismo e das
artes no Brasil
- Encontrado morto um imigrante italiano reco-
nhecido como Nenete Amádio enforcado com uma echarpe
de seda vermelha em um quarto do Hotel da Luz.

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109
110
Verum

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Se é autenticidade o que busca, olha para aquela
bunda!
A vida dá dessas, até nos nossos melhores anos.
Aliás, acho que a autenticidade, diminui com os
anos... e envelhecidos, nos transformamos em blend que,
infelizmente, não assume só as melhores notas agregadas, mas
todas sem distinção.
Esse é apenas um comentário, sem ordem ou noção
alguma, no pensamento que vaga, pela minha cabeça, agora.
Colocar no copo uma boa cachaça e acender um
cigarro sob um céu de recém escuridão, vale lembrar muitas
passagens, que dariam quadros, obras de arte.
Do cigarro aprecio apenas o gosto... não trago, por
isso os cigarros munidos de sabores, são os melhores.
E foi assim que J., aconteceu... no balcão da tabacaria
que, ocupava uma ilha, do corredor do Welcome Center.
Procurava cigarro de cravo... e eu, estava por ali, de bobeira...
entre o espelho e uma dose de vermute barato.
Puro charlatanismo xamânico o meu... intelectualizar
as tardes de vagabundice pura, com bebidas pouco apreciadas
112
- desconhecidas e ridiculamente baratas. Cabia nos bolsos e
impressionava que era uma beleza.
Até que existem bons vermutes no mundo, mas os
daqui, são misturados com aguardente... viram o fabuloso e
enigmático rabo de galo - entorpece gastando míseros
trocados.
A moça estava empacotada numa calça de couro, às
17 e pouquinho. Admito que fazia um pouco de frio, mas o
seu andar, ia aquecendo até o meu coração, de esquimó.
Baita bunda, meu irmão!
Fez duas ou três perguntas e a pobre garota que aten-
dia com cara vaga de nada, deu aquele sorrisinho típico de
quem não entendeu bulhufas e deixou andar o relógio.
Me levantei e fui pedir outra dose... obviamente, es-
clarecer a moça sobre as perguntas e indicar-lhe um genérico,
já que seu pedido específico, estava em falta.
Para minha total surpresa J., além de aquiescer puxou
assunto e praticamente se convidou a acompanhar-me numa
bebida - pedindo uma dose de Frangelico.
Sentou-se como dama e foi soltando a língua, como
uma rock girl. Curti de cara, o que já tinha curtido, mas de
verso.
Astuta, sagaz e inteligente - pensei na hora... isso daí,
fodendo, deve ser mais eficiente que aquelas máquinas me-
dievais, de confissões.
Ela, assim como eu, saboreava a bebida e a cada tala-
gada seus olhos, verdes intensos, se avivavam, parecia que o
anjo engarrafado, tomava corpo.
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Depois de muitas doses, com o fígado gelado, pedi a
conta. Tratar, aquela sumidade, no Frangelico, seria como
tratar burro no pão de ló, e meus bolsos não estavam muito
bons para surpresas.
Mais uma vez, quebrei minha cara interiorana, com
resquícios machistas. Ela sacou a carteira, pagou... Inclusive as
minhas doses e falou uma frase que, até hoje, me estremece.
- Já é noite. Acabou a matiné. Podemos pedir um
whisky, agora.
Foram quatro bem servidos... os dela: cowboy. Os
meus: on the rock e água mineral. Ela achou fofo, tamanho
afrescalhamento.
Nos entendemos bem no bar e na cama... no sofá -
conversando. Nos cafés e no cinema. Puta bunda complica-
da... dessas barcas que a gente paga a ida e fica indo, para
sempre.
Eu adorava vê-la por trás, ao sair do banho... as
gotinhas descendo pelas costas, fazendo curvas, até chegar na
bunda e sumir pelo desfiladeiro da minha perdição.
J., era autêntica de cabo a rabo... e como eu morria de
medo dessa coisa asfixiante que, poderia ser o amor - o verbo
era capaz de matar, toda aquela diversão, sem deixar vestígios.
Éramos metidos a jovialidade e aos pensamentos
inteligentes e mesquinhos, por isso nada seria digno de
apossar das nossas horas, como se não houvesse amanhã - e
sempre havia.
Nada melhor para encerrar esse nosso papo que, o
corte mais estúpido de laços, jamais visto. Desenlaçar o que
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não aconteceu por medo... logo nós, que nunca tivemos medo
de nada.
No mais, estou indo embora!
 

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Epílogo

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Tudo deveria começar aos domingos.
Mas, domingo tem uma puta cara de final de tudo...
parece uma rasteira na cobra, que assombrou o paraíso.
Por muito tempo odiei os domingos... Dia de nada,
que se salva com o futebol, ali no final da tarde... Dia em que
parente, aparece das trevas, que vizinho bota tudo que é
barulho para fora. As pessoas se sentem eufóricas aos
domingos e o amargo se espalhava, sobre mim.
Depois, fiquei tolerante com os domingos. Era só o
irmão mais velho da semana, que ligava a folga ao trabalho de
novo... e domingo bom é aquele que chove e nos permite,
mortais que somos, ver a chuva chegar, desabar e partir.
Por fim, passei a simpatizar com os domingos...
quando eles começaram a ser a espichada da alma, ligada a
outra alma, pensamentos, receitas sem pressa, carícias de mãos
quentes e brisas reconfortantes.
Um domingo sem cerveja e música... é um erro, sem
o cheiro dos condimentos. Sem a casa inundada de uma luz
profundamente sacra. Um dia de calmaria, ainda que esteja
anunciada a tempestade. Coisa da idade, sei lá.
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Essa confissão, baixa de acumulo e, por fim, nave
lançada a eternidade poeta, também termina num domingo,
com momentos congelados, em quadros guardados, na retina.
Nos demos a caminhar por ruas pitorescas, e entre os
afrescos de sei lá quantos séculos, transamos com a moder-
nidade, provando por “x mais y” que a porra toda, é uma
correnteza só, uma cálida lágrima que nasce no olho, para
virar mar, lá na frente.
O cheiro das flores do campo santo, onde tudo
parecia estar tão simplesmente calmo. A brisa das frutas e as
nuvens gravadas no mármore. Cenas entrelaçadas desse
bendito moleque, que é meu coração.
Pois é, Poeta, agora tu sabes das minhas consultas
impares, confissões e crenças, penitencias e ocasos sagrados.
Nesse domingo desfez o nó para amarrar-se de novo e
de novo e de novo...
Um belo passeio Poeta... religare caríssima, de agora
para o próximo passo.
 

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Posfácio

Moro nos prende, talvez pela picardia sensual. Talvez


pelo jogo.
Se isso mora dentro dele, só ele vai nos responder,
mas o escritor deixa aberto um flanco que antes não havíamos
notado: a dor do amor sexual, suas etapas e caras, sua capa
fechada e o ardor do amor que vira do avesso.
Não penso em escrever laudas sobre o autor e sua
escrita grata e rude, penso em enaltecer o ser: ser manso, ser
denso, ser intenso, ser menino de uma menina e morrer no
seu amor escrachado, só por ela.
O que há por trás do escritor com sua cara angelical,
substituindo uma falange de anjos encarnados num só?
Um anjo, sim, mas também um demônio. Os dois
brigando entre si pelas palavras malditas, benditas e nada,
nada breves.
Há posições de vida e de corpo, onde só jogam com
ele, a dor e a visita da amada.
 
Moro joga limpo.
 
 
Soraya Ruffo
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