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Todos
se trancaram. Podemos dizer que todos acordaram para
a grande realidade: não somos imunes. No meio do
caos instalado, temos a oportunidade de prestarmos
atenção para as coisas simples da vida, que o nosso
dia a dia corrido nos impede de percebermos. Toda
mudança repentina é dolorosa, e para atenuar as
nossas dores, resolvemos escrever, traduzir um pouco
a respeito das inquietações do mundo, nesses tempos
turbulentos.
A poesia sempre é um bom antídoto contra o
tédio, e a escrita um ótimo exercício para não
enlouquecermos, e assim elementos e personagens dia
a dia retornam ao universo literário com maior
profundidade e importância, tudo para que não
sejamos contaminados com o vírus da desumanidade e
letargia.
POESIA EM TEMPOS DE CORONA
Organização
Luan Batista
Laís Fernando Borges
Dom Alencar
Arte da capa
Laís Fernanda Borges
Contato
natora.producoes.eventos@gmail.com
dom.alencar@outlook.com
luantondichter@gmail.com
Licença
Todos os direitos reservados.
SUMÁRIO
O estigma da fumaça
Almas de diesel
A boca que come o látex corrompido
Anti-natura, desnatura
A morte, prematura, espia, se rindo,
dos Profetas do fim
Há um peso no céu
- São 9 e 50.
- Troco?
- Não tem troco pra vida...
Olhou com graça a desgraça que se fizera e pagou pra ver, sem acreditar, não
obstante.
-Se fizer de mim aquilo que quero e não permito, pago a mim o preço de não
ter troco, e me troco.
- Não há troco pra vida, continuou a falar pra si mesmo...
Nunca entendera a razão pela qual os corvos e urubus eram tidos como
animais de mau presságio. Julgava fruto de estúpidos racismos. Mirabolava
motivos. Orgulhava-se até do mascote de seu time de cor, nos idos tempos de
entretenimento vis. Porém, tendo que sair de casa para comprar pão,
esforçando-se para não notar os corpos empilhados à espera do crematório
público que, naquela região, custava a chegar, segurando a respiração para que
a putrefação não o fizesse vomitar, lembrara-se, se rindo, da estupidez das
criações da razão em tempos de fome parcialmente controlada. Ao menos os
corvos estavam saciados.
Ao relento lentamente
apenas vai
segue o fluxo
e o contrafluxo
ao sabor dos torpes ventos
sem almoço ou álcool em gel
não entrará em nenhuma lista de mortos
simplesmente porque há muito já morreu.
* Rojefferson Moraes
Digito seu nome na tecla do computador que também fica mudo. O cursor
tateando meus olhos friamente feito uma agulha. Clico. Sua foto surge e ocupa
uma página imensa no meu cérebro prestes a bugar. Minhas mãos suadas e
trêmulas. Meu coração descompassado. É difícil escolher palavras. Me recordo
que dias antes do mundo inteiro parar por conta da pandemia, saímos do
trabalho, cortamos as ruas do Centro de Manaus, e num pequeno boteco em
ruínas próximo à Feira da Panair, tomamos algumas cervejas, degustamos
alguns bolinhos de pirarucu frito, e em seguida fomos para meu pequeno
quitinete no Beco da Bomba. Os meninos do tráfico e suas pistolas prateadas
nos cumprimentaram, e, tão seguros da nossa paixão, não nos intimidamos.
Aquela noite fizemos amor, e você, feito uma gata no cio, gritou tão alto que nem
conseguimos escutar o som dos foguetes disparados pelos fogueteiros, lá na
beira do rio. Um ar de adeus nos seus suspiros. E você se foi. Dias depois o
vírus chegou. O isolamento. Essa saudade inundando o peito feito temporal de
verão. Você dentro de seu pequeno barraco na Zona Norte com seus filhos, e
seu marido, e nós contaminados com o vírus do pecado nos corroendo por
dentro.
À noite mais um pronunciamento com o balanço geral dos novos casos, mortos
e curados. Amanhã brotarão da terra infértil das telas dos smartphones,
economistas liberais gazeteiros, virologistas neopentecostais, e cientistas
políticos que sequer conhecem a história política desse país. Desligo todos os
equipamentos da casa, acendo uma vela, tateio Drummond mais uma vez, e
decido namorar meu bairro da janela do meu pequeno barraco.
Passada a pandemia
Pode ser que aconteça
Os pais nunca mais
Abrirão suas bocas
Para vociferarem
Que professores
Levam uma vida mansa
Pode ser que aconteça