Você está na página 1de 23

De uma hora pra outra os dias adoeceram.

Todos
se trancaram. Podemos dizer que todos acordaram para
a grande realidade: não somos imunes. No meio do
caos instalado, temos a oportunidade de prestarmos
atenção para as coisas simples da vida, que o nosso
dia a dia corrido nos impede de percebermos. Toda
mudança repentina é dolorosa, e para atenuar as
nossas dores, resolvemos escrever, traduzir um pouco
a respeito das inquietações do mundo, nesses tempos
turbulentos.
A poesia sempre é um bom antídoto contra o
tédio, e a escrita um ótimo exercício para não
enlouquecermos, e assim elementos e personagens dia
a dia retornam ao universo literário com maior
profundidade e importância, tudo para que não
sejamos contaminados com o vírus da desumanidade e
letargia.
POESIA EM TEMPOS DE CORONA

Organização
Luan Batista
Laís Fernando Borges
Dom Alencar

Revisão, Edição de capa e Diagramação


Rojefferson Moraes
Luan Batista

Arte da capa
Laís Fernanda Borges

Contato
natora.producoes.eventos@gmail.com
dom.alencar@outlook.com
luantondichter@gmail.com

Licença
Todos os direitos reservados.
SUMÁRIO

Laís Fernanda Borges.........................................................04


Luan Batista ........................................................................07
Dom Alencar .......................................................................13
Rojefferson Moraes ............................................................18
ENCONTRO
* Laís Fernanda Borges

Pela tela eu te devoro


Expressando o meu desejo.
Porém apenas o toco
Por meio do meu pensamento.
A imagem aproxima e nos afasta.
Seguimos pelo andar da madrugada
Em nossa festa particular
Composta por lembranças e devaneios.

Não sei se foi a carência da quarentena que o trouxe


Ou o tal do amor verdadeiro (duvidoso)
Eu sei que nosso tesão existe
Embora não possa ser concreto
As palavras que ouvi tem origem nesses lábios reais
Que às vezes me trazem felicidade
E em outros momentos a mais cruel saudade

Poesia em Tempos de Corona 04


INDIRETAS
.
Essa tal de quarentena
Mexeu com nossos ânimos
Não sei mais se é só uma música
Ou a cutucada dos amores
.
Em vários momentos
As linhas são pensadas
Tanto para nos defender
Ou espalhar flechadas
.
Quero plantar as flores
No coração que quero pra mim,
Mas não me esqueço dos ataques
De pessoas amarguradas.
É difícil falar de amor
Nesses tempos de pandemia e ódio
Talvez a maior doença é a ignorância.
Essa é a que a cega
E também nos mata

Poesia em Tempos de Corona 05


QUARENTENA

Sou um pássaro engaiolado,


Cujo canto reprimido entoa
a tristeza de um coração isolado.

As informações chegam e são armazenadas,


Contribuindo para a raiva sufocar
o que eu verdadeiramente queria cantar.

Gostaria mesmo de celebrar o amor,


porém é a dor que reina nessa sexta-feira fria
Nas ruas predomina o temor da pandemia
E a escuridão vem tragando a esperança dos nossos dias.

As coisas só não ficam piores


Porque o coração é regado por lembranças lindas
Que terminam por embelezar essas linhas

As estrelas que vejo pela janela observam


Que uma pequena brasa teima em permanecer.
Porém a nostalgia passa e a realidade bate à porta
Fazendo com que tudo isso esteja a desaparecer.
.
Um dia vou voar e encontrar o meu destino
Seja no calor do amor universal
Ou o que estiver no meu ninho.

Domingo é dia de nostalgia e a quarentena acrescentou ao café da manhã um


forte gosto de saudade.
Saudade tem gosto de adoçante: adoça, mas deixa um incômodo na boca,
lembrando que tudo não é mesma coisa e a doçura não é plena.

Poesia em Tempos de Corona 06


INTROITUS
* Luan Batista

O estigma da fumaça
Almas de diesel
A boca que come o látex corrompido
Anti-natura, desnatura
A morte, prematura, espia, se rindo,
dos Profetas do fim

Há um peso no céu

Poesia em Tempos de Corona 07


DA MORTE

Sequer anoitecera e já chegava, ainda que inconsciente de qualquer


trajeto, em seu embrião. Não tardara... Porém, tinha a impressão de ser o último
a chegar. O suor frio escorria por todos pelos da cara. Olhava para trás na
esperança de ver alguma coisa, mas só tinha passado. Estava só. Adentrou o
recinto lentamente. Apesar do silêncio imaginou a porta rangendo, qual vulva,
com a luz a escorrer lentamente espaço adentro. Dera três passos e, décadas
depois, morreu.
Acordara no berço da Babilônia, a quem reconheceu e implorou por
chupeta. Tendo golfado doze dias, olhara para si e percebera duas cobras se
enroscando até o pescoço. A agonia que sentiu enrijecia o couro das cobras a
enforcar seu pomo. Morrera soterrado em seu próprio vômito.
No topo do Monte das Oliveiras, viu sete papagaios a quem nomeou,
conforme as sacrílegas escrituras, de viajantes. O sétimo, vermelho qual fogo,
antes invisível ao sol, empinava-se a fazer quedar os outros viajantes. Era hora.
Acendera o catolé e jogou, qual aviãozinho, para oriente. Ouviu, assustado, o
silêncio que fizera. Não tomou consciência da morte.
Perto de meio dia, marchando com balde sobre os ombros e máscara na
cara, concentrava-se na queimadura que se formava entre a aba da boina e o
elástico da máscara. A cada passo, uma roçada, a cada roçada, uma
queimadura. Um passo, uma roçada, uma queimadura... Parou repentinamente.
O peito derretia enquanto a corona, sacudida pela consciência, rasgava tudo que
sobrara de si. Derretera por completo quando chegara ao topo da cabeça, que a
essa altura jazia desfalecida no capim roçado a terçado.

Poesia em Tempos de Corona 08


QUARENTENA

- São 9 e 50.
- Troco?
- Não tem troco pra vida...

Percebo as luzes e freio na imaginação resquícios de loucura.

- Qual a parte que não entendeste?

...trocou a vida por um troco de tanto manchar beleza seduziu e vendeu.

- Liberdade, por favor.


- Mais 30 centavos, senhor!
- Use o troco que não me devolveste.
- Não há troco pra vida.
- E quanto custa o amor?
- Esse é de graça.

Olhou com graça a desgraça que se fizera e pagou pra ver, sem acreditar, não
obstante.

-Se fizer de mim aquilo que quero e não permito, pago a mim o preço de não
ter troco, e me troco.
- Não há troco pra vida, continuou a falar pra si mesmo...

Poesia em Tempos de Corona 09


DA CRISE

Em todas das muitas vezes em que, ao tornar-se consciente de suas


dores, percebera que vivia; sem exceção, devido a pequenos lapsos de alegria,
julgara ser a felicidade possível. O júbilo, devido sua natureza, intoxicava cada
pequena partícula do seu ser. Inebriado pelo estado de graça, criou teorias,
manipulou genéticas, dominou a natureza. Não satisfeito, voltou-se para si.
Passou a acreditar que os pequenos lapsos poderiam ser, de fato e ao fim, se
tudo fosse seguido, regrado, benzido e rezado, um grande e supremo agora de
felicidade, eterno e etéreo. A este estado de felicidade etérea e eterna chamou
de graça.
Tudo quanto não fosse estado de graça, tanto em si quanto na natureza,
seguia ciclos específicos. Da alegria à dor, os ciclos ditavam, qual seu coração,
o ritmo da existência. Às fronteiras destes estados de consciência, geralmente
marcados pela dor, nomeou de crise.
As crises, apesar de cíclicas, detêm a severa característica de, destarte
seu estado de eterno retorno, virem acompanhadas pelo véu da novidade. A
cada vez que saía de seus estados de sofrimento, esquecia-se deles, e a dor,
quando novamente vinha, inexorável, acompanhava-se da ilusão de eternidade,
tornando o infortúnio cíclico num martírio aparentemente eterno.

Poesia em Tempos de Corona 10


DA COROA

Desde que a luz fora embora definitivamente, tivera que reaprender a


ignorância, que ignorantemente desaprendera. A velocidade artificial da vida, ou
pressa para cova, dera lugar a percepções cíclicas de todos os tipos, dentre os
quais os das crises, que a partir de então estiveram desligadas de qualquer
sofrimento.

Tem uma história, a de Sísifo. Recontemos. A certa feita, quando mais


uma vez via uma águia a consumir seu intestino, resolveu apreciar o mar
vermelho a escorrer por todo seu tronco. Concentrou-se na beleza pictórica da
dor, do sangue, dos pedaços de si a jorrarem como entidades desvinculadas de
si, do berro da águia. A dor permanecia ali, mas as sensações assumiam uma
outra qualidade. O sofrimento, por fim, desapareceu.

Nunca entendera a razão pela qual os corvos e urubus eram tidos como
animais de mau presságio. Julgava fruto de estúpidos racismos. Mirabolava
motivos. Orgulhava-se até do mascote de seu time de cor, nos idos tempos de
entretenimento vis. Porém, tendo que sair de casa para comprar pão,
esforçando-se para não notar os corpos empilhados à espera do crematório
público que, naquela região, custava a chegar, segurando a respiração para que
a putrefação não o fizesse vomitar, lembrara-se, se rindo, da estupidez das
criações da razão em tempos de fome parcialmente controlada. Ao menos os
corvos estavam saciados.

Poesia em Tempos de Corona 11


A ASCENÇÃO DE DONA PERNETA

Quando as estrelas que formam uma bacia despontavam no meridiano,


indicando o horário em que, habitualmente, encerrava sua leitura diária e se ia
tomar um ar, J. avança pela porta afora da casa adentro da vida e rapidamente
é surpreendido pela dança visual que a multidão fazia, em ritmo perfeito com as
sombras banhadas de fogo, e os gritos em êxtase pelo sacrifício e expiação. Era
o ritmo da terra. Só então percebera que compreendia a noção de sublime. A
beleza dos gritos e ossos quebrados e a maneira como Dona Perneta, incólume,
assumia para si, com perfeição e plenitude, a tarefa da diferença. Assobiou, num
segundo de eternidade, pela última vez, e desapareceu, para espanto das
massas gentis que, a partir de então, a declararam filha de Bolsonaro Pai. Fora
o começo de toda uma mitologia. Desde então, toda perneta é fruto de
fraquejada, e todo perneta é jogado aos cães como atrapalhador das leis divinas.

Poesia em Tempos de Corona 12


I
* Dom Alencar

O caminhante que estanca


no meio do caminho
depois de vislumbrar
um pequeno pedaço
carcomido do infinito
Novamente a incerteza
dos dias noite adentro
A frieza deserta dos números
Protocolos e mortos e poemas
As forças que trabalham a terra
a todo vapor escrevem a história.

Poesia em Tempos de Corona 13


II

Vamos nos expor


ao vírus e a morte
Quem sobreviver é
porque tem histórico
de atleta ou sorte
Os cemitérios e as lotéricas
aguardam. Sempre prontos
Façam agora mesmo
suas apostas.

Poesia em Tempos de Corona 14


III

Ao relento lentamente
apenas vai
segue o fluxo
e o contrafluxo
ao sabor dos torpes ventos
sem almoço ou álcool em gel
não entrará em nenhuma lista de mortos
simplesmente porque há muito já morreu.

Poesia em Tempos de Corona 15


IV

mais uma vez os tempos do cólera


tragédias e amores
surgidos da espuma dos mares
explodem diante do mesmo abismo.

logo todos os rostos


serão apenas sombras
distorcidas em eternas
e tristes quarentenas.

brotam demônios das entrelinhas


a morte e a peste de Camus
fechando sonhos e estradas
e encomendando a vida dos homens.

Poesia em Tempos de Corona 16


V

Escavada a terrível substância


a pandemia se fez desgraça
As entranhas foram expostas
e tudo estava podre
Alguém tossiu e um véu
de incertezas nos caiu
imediatamente
sobre os espectros
inacabados
de rostos. já nada
podíamos fazer
Uma só gota e a chaga aberta
Antes que a trepadeira suba à torre
Profanada estará à luz da vida
Cintilantes sussurros retornarão
condensados a secreta folhagem
Aqui está a desolação dos espinhos

Poesia em Tempos de Corona 17


CONTAMINADOS

* Rojefferson Moraes

Digito seu nome na tecla do computador que também fica mudo. O cursor
tateando meus olhos friamente feito uma agulha. Clico. Sua foto surge e ocupa
uma página imensa no meu cérebro prestes a bugar. Minhas mãos suadas e
trêmulas. Meu coração descompassado. É difícil escolher palavras. Me recordo
que dias antes do mundo inteiro parar por conta da pandemia, saímos do
trabalho, cortamos as ruas do Centro de Manaus, e num pequeno boteco em
ruínas próximo à Feira da Panair, tomamos algumas cervejas, degustamos
alguns bolinhos de pirarucu frito, e em seguida fomos para meu pequeno
quitinete no Beco da Bomba. Os meninos do tráfico e suas pistolas prateadas
nos cumprimentaram, e, tão seguros da nossa paixão, não nos intimidamos.
Aquela noite fizemos amor, e você, feito uma gata no cio, gritou tão alto que nem
conseguimos escutar o som dos foguetes disparados pelos fogueteiros, lá na
beira do rio. Um ar de adeus nos seus suspiros. E você se foi. Dias depois o
vírus chegou. O isolamento. Essa saudade inundando o peito feito temporal de
verão. Você dentro de seu pequeno barraco na Zona Norte com seus filhos, e
seu marido, e nós contaminados com o vírus do pecado nos corroendo por
dentro.

Poesia em Tempos de Corona 18


A QUEDA DAS MÁSCARAS

Máscaras nas ruas


Mãos escondidas
Olhos se esquivando de filas dormentes
Abraços que se perdem na solidão do ar
Beijos abandonados em praças vazias

Chinelos, trapos, cachimbos


São o contraste cruel do teu país
Com edredons macios, pantufas e fibra ótica

Difícil pensar que alguém


Gostaria do aconchego de um espirro
Ao seu lado, mesmo que um espirro doente

Álcool em gel bem que poderia eliminar


A hipocrisia de joelhos que se dobram apenas para ganhar likes
Enquanto isso o preço de tudo se eleva
E a incerteza é nossa única certeza

Poesia em Tempos de Corona 19


PROFISSIONAIS LUNÁTICOS

À noite mais um pronunciamento com o balanço geral dos novos casos, mortos
e curados. Amanhã brotarão da terra infértil das telas dos smartphones,
economistas liberais gazeteiros, virologistas neopentecostais, e cientistas
políticos que sequer conhecem a história política desse país. Desligo todos os
equipamentos da casa, acendo uma vela, tateio Drummond mais uma vez, e
decido namorar meu bairro da janela do meu pequeno barraco.

Poesia em Tempos de Corona 20


ESPERANÇA

Passada a pandemia
Pode ser que aconteça
Os pais nunca mais
Abrirão suas bocas
Para vociferarem
Que professores
Levam uma vida mansa
Pode ser que aconteça

Pode ser que aconteça


Que os as orientações de médicos
Não sejam mais deixadas de lado
Graças às palavras de milagreiros
Engravatados e podres de rico

Pode ser que aconteça


Que as pessoas percebam
O quanto faz falta um aperto de mão
Um abraço, um beijo, um afago

Ou nada disso terá adiantado.

Poesia em Tempos de Corona 21

Você também pode gostar