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Ficção

Jacson J. Faller

Ficção

2a Edição

Organização
Marcus Wörterheim
Prefácio , 11

Relatos de um Suicida, 1 3
E a Cidade Amanheceu em Cinzas, 70
49 ,87
Norberto & Clarisse, 97
O Presente, 100
Depois de Clarisse, 103
A Noje ira dos Dias, 104
Querida Clarisse, 107
O Todo é Trauma, 108
Nunca o Mesmo, 109
O Vazio q ue Te Convida,111
Uma Esperança em Outro Mundo, 114
As mães não querem mais filhos poetas
Hilda Hilst
Prefácio

Prefácio é já ficção. Sei que uma afirmação assim talvez incorra, senão
em uma absurda contradição, ao menos, em negligência, já que
minha tarefa como responsável em apresentar os textos e o autor, é
cativar o eminente leitor. Pois bem... admito, de antemão, que sou a
pior pessoa a ter que fazê-lo, visto que minha existência, há muito
tempo vem sendo questionada. Por sorte, a de Jacson J. Faller, ainda
não.
Faller nasceu na cidade de Sobradinho em 1974, no estado
do Rio Grande do Sul. Filósofo de formação e mestre em Filosofia
da Linguagem, na juventude estudou fotografia e flertou com o
teatro. Como fotógrafo fez apenas trabalhos sob encomenda, sempre
relacionados à criação artística. Assim como no teatro, em
detrimento da evolução pessoal, nunca considerou ter a fotografia
ou as artes cênicas como profissão. No campo da Filosofia, foi
professor durante quatro anos e escreveu alguns poucos artigos sobre
epistemologia na filosofia moderna. Apaixonado por Hilda Hilst e
Samuel Beckett é autor de "Relatos de um Suicida " e de "Depois e
Clarisse”, cujos textos estão contidos aqui, bem como de três livros
de poemas.
Minha ideia de organizar esta coletânea se deu quando
soube da exclusão de seus livros a que o autor se impôs. Como uma
análise crítica não cabe ao autor de prefácios, resta-me falar um
pouco dos textos que se seguem. Em “Ficção”, a pequena novela
"Relatos de um Suicida" trata dos devaneios de um homem
atormentado por sentimentos de culpa pouco antes de atingir a meia
idade, quando sai de casa buscando algum sentido à sua vida já
acometida por dramas familiares e existenciais. "E a Cidade
Amanheceu em Cinzas", segundo texto do livro, expõe os
pensamentos de um viajante que é levado a passar seus últimos dias
em uma pousada isolada defrontando sua psique já deteriorada pela

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sensação de angústia ante a um mundo que se encaminha
rapidamente para o final. Na segunda metade da obra temos contos
curtos, ensaios e textos em prosa poética pelos quais o autor sempre
demonstrou muito apreço. Devido à supressão de dois contos que
faziam parte da 1ª publicação deste apanhado, nesta 2ª edição foi
incluída “49”, história inédita escrita ao final de 2020.
Mas, voltando a elaboração de prefácios, ficcionais ou não,
resta-me saber a que um texto deste caráter deve se sujeitar para que
cumpra efetivamente seu papel. Imagino que aquele leitor que se
deva conquistar não iria, sem intenção de lê-lo, chegar a este ponto.
O que quer ele? Ser convencido de fazer o que já está fazendo? Talvez
sim. E é exatamente isso o que saberemos, agora.

Marcus Wörterheim
Porto Alegre, 2020

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Relatos de um Suicida
Todos os caminhos levam à morte...
— Borges, J. L.
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Não. Não é por acaso que inicio este relato com uma negativa. Sou
negativo. Talvez minha natureza seja negativa. Hoje, logo que
acordei, precisei dar uma caminhada, na chuva. Digo que precisei,
mas não é, necessariamente, isso. Foi pela ansiedade. Pela ansiedade
matutina que me agride sempre, sem falta, sem piedade. E, como já
foi dito certa vez, é ao acordar, ou ao amanhecer, a hora mais fatal
do dia. Que é, continuamente, neste momento que a ansiedade e a
angústia se alimentam. Há o risco que isso seja apenas um sonho.
Um retalho mal costurado de algum sonho antigo. Na verdade, o
mais importante no dia de hoje era dar vazão à loucura. À minha
loucura cotidiana. Relatar sem discriminações meus devaneios e
meus juízos a qualquer custo. Sinto a necessidade de, ao menos,
tentar entender um pouco de que se alimentam esses males, que
conosco despertam e conosco — vão dormir. Porém, sinto que meu
fracasso está garantido nessa empreitada; e isso me entristece
profundamente. Creio que por mais que viva ainda, não terei tempo
o suficiente para chegar a alguma conclusão a respeito desse assunto.
Agora deixarei o escrito de lado. Hoje à noite
confraternizarei com meus colegas de trabalho; mas não creio que
terei alguma satisfação. Estas festinhas em que só se fala sobre o
próprio trabalho e que todos concordam com todos – e aquele que
detém a palavra é sempre melhor do que aquele que está a ouvir –
me despertam um tédio medonho. Claro que depois os papéis se
invertem e a tortura continua. E parece não ter fim. No entanto, há
um ponto a se notar: desta vez fomos autorizados a levarmos conosco
algum amigo ou familiar. Eu não levarei ninguém, mas talvez eu
conheça alguém que desperte meu interesse. Ou quem sabe seja eu

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a encontrar, desta vez, alguma vítima... alguma presa. Antes, tenho
várias coisas desinteressantes para fazer até que a noite chegue,
depois irei me aprontar para a festa e – que eu tenha sorte!

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Bebida de graça. Sexo fácil e sem compromisso. Um porre
magnânimo. Sim! Faço um balanço positivo desta confraternização.
Ontem à noite conheci um poeta. Tive muita pena daquela criatura,
seu olhar era tão triste, tão vulnerável... (E pensar que um dia desejei
poetar!). Relatou-me que em uma manhã de setembro ele saíra para
fazer seus exercícios quando, (nunca pensei que intelectuais se
exercitassem, que ignorância a minha!), ele entrou numa rua
próxima à sua casa, e que nesta rua havia várias árvores com umas
flores quase mortas e quase vivas e quase flores que (isso me deixou
confuso) o perfume era, definitivamente, inefável... Era impossível
para qualquer homem transmitir em palavras, a beleza, o cheiro e o
som daquele momento. Realmente eu tive muita pena dele. Pois eu,
quando no dia anterior havia ido andar um pouco, por coincidência
entrei nesta mesma rua; senti esse perfume e admirei essa beleza e,
acreditem, ouvi aquele som; porém, não sou escravo de arte alguma,
não preciso, nunca, não tenho a necessidade de expressar meus
sentimentos. Sou livre. E eu, apenas eu, naquela rua tive o prazer da
sensação de sentir, mesmo que uma forma consideravelmente
singular, a essência e o sentido da vida. Conhecem Murphy? Pois é...
Se você estiver se sentindo bem, não se preocupe. Logo passa. Passou.
Acho que durou um minuto. Durou o tempo suficiente para eu me
distrair e seguir caminhando enquanto o sinal ainda estava aberto
aos carros. Que buzina filha da puta! Quase que causa mais danos
que se o automóvel tivesse me atropelado. Mas voltando ao assunto:
que tristeza — ser poeta!

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3
A vida é mesmo uma coisa curiosa. Acordei e escrevi um
poema. Agora o que me resta é tentar entendê-lo. Procurar algum
sentimento que seja verdadeiro em seus versos. Talvez mais tarde eu
ligue para aquela criatura triste que conheci noutro dia. Talvez ela
me diga se isso é realmente um poema ou só mais um devaneio. Não
sei muito bem o que é considerado poesia, poema, arte. Há regras?
Bom, ontem pedi demissão; há muito tempo tinha esta vontade. A
única coisa que lucrei em todo tempo que trabalhei com eles foi uma
única festinha em que não sai de mãos abanando e atolado em
melancolias. Não suportava mais aquelas pessoas, aquele lugar; não
suportava mais minha rotina... “Posso mais do que isso” eu dizia.
Mas na verdade não sei por que tinha essa vontade e nem o porquê
disso. Aleguei problemas particulares. E nada é tão particular quanto
curar ressacas. Perdi todos os “direitos” adquiridos por lei, a empresa
não fez questão alguma que eu mudasse de ideia. Confesso que fiquei
chateado, mas só por alguns segundos. Agora não quero pensar
nisso. O que me interessa é interpretar meu poema. Espero que
consiga. Moro sozinho, não tenho filhos, estou desempregado. Nada
me inibirá.

O que quero é
Alimentar teu girassol
Com poesia e suor
Transpor tuas mãos
(teu corpo para o meu)
Sombrear tua arte
Roubar o teu sol
Velar tua insônia
Em teus dias de mulher
Mascar tuas sementes
Cuspi-las ao renascer

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Zombar do sentimento
Que não seja o melhor
Lamber teus temores
Fazê-los são
Ter quase tudo
Que tua vontade tiver
Reduzir teus sonhos
A milagres pequenos
Flutuar em tuas cores
Até me encontrar
Também
Amar-te, apenas
para não querer
O que não É!

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Ontem passei o dia todo sem sair de casa. Li e reli várias vezes
o poema; fiquei muito curioso em relação a seu significado. Em
quem pensava enquanto escrevia? No que eu pensava? Esta está
sendo a parte mais difícil. Tive pesadelos à noite, monstros vinham
a mim, professavam, insultavam-me – a loucura foi intensa. Acordei
durante a madrugada com os lençóis encharcados de suor, pude jurar
que até com febre eu estava. Inevitavelmente me lembrei da criatura
triste, triste e incompreendida. Passei a prestar mais atenção ao
tempo; digo, em cada minuto da minha vida; em primeiro lugar revi
que foi escrito por mim até este ponto e senti-me quase um poeta,
quase triste, quase vivo, quase morto, quase flor... Um vazio
inexplicável se apossou de mim. Tudo passou a variar. O vazio não
era novidade, eu sabia do que se tratava: era aquela coisa cotidiana,
as angústias e temores da vida moderna, ser bem-sucedido
profissional e financeiramente; ser respeitado pelos amigos; bem-
quisto pela família, amado... ter status. Todos estes pequenos

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demônios que atormentaram o homem no final do milênio e
continuam a atormentar no início de um novo. Mas algo mudou...
Ainda não sei o que pensar: Ver estes míseros relatos dos últimos
dias fez-me ver quão insignificante é a minha vida, até mesmo a
ironia que vi presente em algumas linhas me chocou com tamanho
cinismo. A partir deste ponto também noto que escrevo como se
estivesse narrando os fatos a alguém. Fiz um poema! Em que eu
pensava? Creio que em alguém que eu pudesse ter conhecido –
alguém que eu anseie em conhecer, alguém que eu necessite para
viver. Acho que não pensava... apenas sentia. Pensar e sentir são
coisas distintas? Talvez o significado para o poema nem exista. Já está
ficando complicado demais, pararei por aqui. Espero que não perca
minha ironia. Pretendo deixar apenas o cinismo de lado.

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Recebi um convite para visitar um haras hoje à tarde. Quem
me convidou não é exatamente um amigo, é um colega... ex-colega
de trabalho. Fomos funcionários da mesma empresa por uns sete
anos. Fiquei de telefonar avisando se aceito o convite ou não. Tenho
medo de rever o que certa vez presenciei em uma fazenda: Um
animal estava parindo e nós acompanhávamos o acontecimento a
olhos curiosos e sádicos, queríamos ver o sangue, a vagina da égua se
abrindo. Éramos adolescentes, nada fazia muito sentido mesmo.
Bem, minha experiência não foi a das melhores. Não que eu tivesse
visto algo extremamente desagradável, não foi isso. A sensação foi
outra, bem diferente. Lembro-me de ter tido a nítida impressão de
que o potrinho, no momento do nascimento, estivesse lutando para
voltar ao útero. Inevitavelmente recordei de um poema que havia
lido, um péssimo poema, lembro que na época eu julgava. O poema
comentava algo semelhante. O pior não foi isso, lembrei também do
olhar de uma tia que cada vez que me via contava a mesma história.
Contava como tivera sido o meu nascimento, como foi horrível para

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a minha mãe. Não considero correto comentar certos assuntos, ao
menos não a uma criança. No parto, um parto dificílimo, de fato, os
médicos não conseguiam me remover, usaram aparelhos de algum
açougue, eu acho. Tive dificuldades para respirar, era como se não
quisesse respirar, pelo menos hoje é o que penso. Não tenho como
descrever minhas sensações. Algo horrendo e de mau gosto:
comparei-me ao potro, minha mãe, à égua... O animal fora
sacrificado; minha mãe sacrifica-se até hoje por conta do catolicismo
fervoroso e incoerente, como é de costume entre as mulheres de sua
família e geração. Isso é o que sinto agora. Não irei ao haras; darei
uma caminhada, com certeza me fará bem. O sol está brilhante,
porém, suave; há uma sensação de vida na rua. Espero que ainda
esteja lá, quando eu chegar ao lado de fora.

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A cidade amanheceu em cinzas... tons claros e escuros. Isto
até daria um poema, mas quero distância da poesia. A cidade
amanheceu cinzenta – e logo hoje que pensei sair para fotografar,
gosto de fotografar a cidade, quase sempre fotografo os mesmos
lugares, acompanho a transformação, a grama entre os
paralelepípedos que nascem e parecem morrer – o limo nos muros,
os viadutos e seus habitantes. Reduzindo o belo amenizo minha
angústia. Win Wenders certa vez comentou que precisava dos óculos
para não enxergar demasiadamente: o enquadramento fazia-se
necessário. A mim o belo parece-me triste. E, se o que é belo é triste,
padeço de ver o mundo através das lentes de uma objetiva; sufocando
os detalhes do belo posso andar completamente só entre a multidão
– e tudo mais amargurar; e em meu microuniverso me acolher,
quando sobrar para mim apenas brisa ou sol, ruminando minhas
contradições. Mas hoje:

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A cidade amanheceu em cinzas,
Tons claros e escuros...

Acho que fui eu quem amanheceu em cinzas. Inutilmente


cinza.
7
São quatro horas da manhã. Perdi o sono há mais de uma
hora e não consigo parar de pensar na mensagem que recebi de
minha irmã. Ela trabalha na cidade de Nova Iorque há mais ou
menos três anos e é muito bem-sucedida, é o orgulho do papai e da
mamãe, não tem filhos, é casada com um nigeriano naturalizado
americano que também tem futuro garantido em sua profissão.
Como pode que uma única frase tenha força para me perturbar
tanto! “Espero que tenhas mais sorte em teu próximo emprego”. Que
absurdo! Analisando melhor, foram duas frases. A outra, tenho a
impressão de que foi ainda pior; seu efeito foi bem mais arrasador:
“Beijos mil de sua irmã.” Beijos mil de sua irmã!? E depois o irônico
sou eu! Não que alguém vá perceber a ironia disso.
Às vezes lembro-me do nosso irmão caçula, eu sou o
chamado “do meio”; nós três, quando crianças, brincávamos tanto,
de tantas coisas, brincávamos inocentemente, achávamos que
seríamos eternos amigos, que não cresceríamos. Fui o primeiro a
perceber que era uma ilusão. Ela iniciou a fase de amadurecimento
bem antes de nós dois. Mas a paixão e os ciúmes que o menino caçula
sentia por ela não havia explicações. A irmãzinha dele crescera.
Começara a namorar. Ele adoeceu com o fato, desnorteou-se, e de
repente me vi na mais absoluta solidão. Sempre tive fama de amoral,
nesse caso não tive como permanecer neutro, não achava correto esse
sentimento que meu irmão cultivava. Talvez eu fosse realmente
amoral, pois o que eu desaprovava não era aquela paixão, mesmo
que sexual entre irmãos, e sim que o sentimento fosse, em si, por ela.
Em seus olhos não existia sentimento algum, era a frieza que reinava

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em sua vida, uma razão. Não que a razão seja algo ruim, mas a razão
pura nunca funcionou comigo. Tudo o que é puro tem pouco valor.
O caminho do meio é sempre o mais correto a seguir. A mistura, a
mestiçagem, tudo que deixa de ser puro tende ao aprimoramento. É
como a pele de uma menina virgem que, após o coito, fica mais
perfumada e saborosa. Não sei se vem ao caso agora. Penso em meu
irmão naquele sanatório, enquanto eu, aqui, vivo minha vida
fingindo ser a melhor do mundo. Atuando para plateia alguma,
revivendo meu passado como se ele fosse a chave para o futuro. E
que terrível é esse futuro! Sei disso agora, depois desses últimos dias.
Atuando para plateia alguma.

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Duas horas da tarde, acabei de ler o que, ontem, escrevi. E
entre as anotações estava um poema, um poema assinado Dolores
Azáfama. Não sei como aquilo foi parar em minhas mãos. Bom, o
porre deve ter sido grandioso, eu não teria coragem de descrever estes
fantasmas em sã consciência. Nunca mais beberei um vinho puro!
Quanta confusão! Quanta incoerência!
Hoje fui convidado para uma festa, beberei cerveja e vodca.
Nada é mais certo do que isso. Desejo, cada vez mais, impurezas em
meu corpo; comprarei cigarros, erva e pó. Preciso, mais do que
nunca, esquecer o dia anterior. Sua fantasmagoria me alucinou a um
ponto que, para mim, não vejo mais salvação. Minha cabeça está
sensível, a cada momento piscadelas atingem minha cabeça, atingem-
na sem misericórdia. Até que não dói muito. Mas a sensação é
horrível. Meus planos para o próximo emprego foram por água
abaixo, minhas reservas estão esvaindo-se consideravelmente. O
dinheiro não dará até o final do ano, suponho. Pode ser que eu
encontre algo para fazer, algum trabalho ou o que valha. Vejo que a

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minha vida se encaminha para o final. Como se o contrário fosse
possível!
Liguei hoje para os meus pais, marquei para amanhã uma
visita. Deverá sair tudo normal. Minha mãe reclamando de tudo e
pedindo a Deus por todos nós, meu pai a aturando, quase que com
um sorriso no rosto. Ele realmente se diverte com isso, ao menos é o
que me aparenta. Não gosto muito de visitá-los. A ideia de que
morrerão em alguns poucos anos me deprime de tal maneira... Não
aceito mais da vida como ela é. Parece mentira, mas eu acreditava até
pouco tempo que toda essa engrenagem funcionava perfeitamente.
Nascer, crescer, procriar, envelhecer e morrer. Achava natural. Hoje
em dia tudo está diferente, não aceito a dita ordem natural. Creio na
estupidez do homem, essa sem dúvida, sua maior característica. Não
acredito que mudei tanto em tão pouco tempo. Provavelmente a
mudança tenha começado há mais tempo, eu que não a percebi.
Lerei um pouco. Não, não lerei. A temperatura está
agradável, vou aproveitar e pedalar pela cidade, pela adorável cidade.
Beberei o resto do vinho e procurarei pela bicicleta. Antes preciso
comprar uma cerveja. Vinho puro!? Ninguém sabe o que pode
acontecer. Não arriscarei de novo.
Esta casa é tão grande para uma pessoa só!

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Acabo de lembrar que prometi almoçar com minha mãe e
meu pai. Ligarei para avisá-los que não irei mais. Claro que não direi
que penso em jamais visitá-los novamente. Apenas criarei uma
desculpa razoável.
Durante quase toda a tarde de ontem pedalei pelos parques
e pelas avenidas planas da cidade. À noite, vesti uma roupa
confortável, coloquei minha máscara, e fui para o palco; ou melhor,

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para a festa. Todos os monstros estavam presentes, os amigos e os
apenas conhecidos. Velhos conhecidos. Havia uma menina, não era
um exemplo de beleza, mas continha no olhar um ora suave ora
violento desejo. O que desejava? Essa fora a premissa da noite. Todos
nós propusemos algo àquela singular criatura, todos, sem exceções,
mesmo que inconscientemente.
Minha particular curiosidade tornou-se pauta na roda em
que me encontrava. Claro que fui eu quem deu asas à imaginação
dos demais. Como sempre. Como sempre falando mais do que devo.
Contei com o apoio do álcool, é fato. Mas também abusei do estado
de meus companheiros e procurei me soltar um pouco; quase sempre
faço isso, aproveito a bebedeira geral e conduzo o assunto à direção
que mais convir.
No fechar das cortinas, nada aconteceu. Vim de carona para
casa com um barbado de dois metros de altura e uns cem quilos.
Enquanto o dono da festa... bem, o dono da festa acabou
descobrindo o que tanto desejava a menina. Foi melhor assim, eu
poderia acabar me apaixonando por aquela vad... Imagina!
Apaixonar-me por aquela formidável vad...! Acordar com o perfume
daqueles cabelos, acariciá-la durante a noite toda. Sentir sua pele e –
trepar, trepar, trepar, trepar! Formidável vadia: A casa continua grande
demais para uma pessoa só.

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“Nove da manhã. Será cedo para começar a beber? Talvez
não”. Esse foi o meu primeiro pensamento do dia. Agora são onze
horas da noite, não estou com nem um pouco de sono. Juntei várias
pontas de maconha e fumei, não fizeram efeito algum. Minha cabeça
não para, ouço vozes a todo minuto. São três. Todas falam ao mesmo
tempo, fico sem saber a qual ouvir. Foi assim durante o dia todo.
Elas me acompanharam por todos os lugares onde andei; no

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supermercado, na praça, nos corredores da galeria e, principalmente,
dentro de casa. Fico pensando no motivo das coisas parecerem-me
tão intensas. Talvez seja uma péssima impressão, poucos dias
parecerem meses; cada detalhe a me socar com tamanha força; não
conseguir lembrar-se dos acontecimentos do mês passado e cultivar
apenas as ideias das últimas horas. E todos estes números nos textos,
todos definindo horários, dias, coisas... Merda! Vamos lá! O que
realmente importa é ser sincero, não com os outros, mas sim consigo
mesmo; com o meu tabloide particular, com minhas confissões.
Pensamentos. Temores. Tenho medo da morte dos meus pais, tenho
medo da morte das pessoas que ainda não conheci – que ainda não
amei. Tenho medo de me apaixonar. Medo da solidão que me faz
Um. Meus sentidos andam tão aguçados ultimamente! Ainda não
acredito que escrevi um poema! Sinto que me falta tempo... e a
ansiedade tende a me consumir cada vez mais rápido.
Tive uma infância difícil, quase morri aos três meses de vida.
Digo sempre que fiquei desequilibrado, digo sem receio algum. Isso
é o que mais faz com que as pessoas tenham certeza do meu
desequilíbrio: Falar alto e em bom som, sem receios, sem me
importar com o que pensarão. Para elas, isso é, sem dúvidas, a prova
final de minha loucura. Não tenho queixas, eu mesmo escolhi este
caminho, escolhi ser julgado pelo que falo, pelo que faço. Nunca pelo
que sou. Pois o que sou, nem eu sei. Ninguém sabe. Algumas pessoas
confundem minha espontaneidade com alegria e inteligência, apenas
pelo fato de falar o que penso me consideram alegre, decidido,
inteligente. Isso parece absurdo, eu sei, mas é a mais pura verdade.
Sei que não sou nada disso, principalmente inteligente. Se fosse,
saberia redigir meus pensamentos com clareza, saberia expor minhas
ideias sem ter vontade de matar alguém depois. Nem que seja a mim.
Suicídio!? Acho que pensei nisso durante toda a minha adolescência.
Fiquei obcecado com a morte desde que minha avó materna faleceu,
doente, com câncer. Minha primeira morte. Também tenho

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lembranças horríveis de algumas declarações de minha amada mãe.
Direcionadas a mim, é claro. Tenho grudado na memória as brigas e
discussões de meu pai, bêbado, com os amigos, vizinhos, colegas de
trabalho e, como qualquer um supõe, com a minha mãe. Não que
tudo isso importe agora, já que apaguei da memória quase tudo de
ruim que aconteceu em minha vida – quase tudo.
Lembro-me da primeira grande injustiça que, contra uma
criança de seis anos, praticaram. Na pré-escola, quando eu estava na
fila do escorregador, uma menina, muito lenta, não subia de uma vez
na escadinha e eu, com pressa como sempre, fiz um sinal com a mão
para ela ir rápido; minha mão bateu na saia da menina que foi
reclamar à professora. Eu, o tarado da escolinha, fui parar de castigo,
com a cara cravada no canto de uma sala. Grande merda isso
também! Já que apenas eu senti o golpe desta injustiça. Com onze
anos eu entrei no mar para, como de costume, sentir a água fria no
corpo, cessar meus pensamentos impertinentes por algumas horas,
para sentir-me bem. Pelo menos uma vez durante o dia. Foi então
que caí numa corrente de retorno, a cada braçada, a cada metro que
nadava em direção à praia voltava o triplo para dentro do mar; ou
melhor, para o fundo das águas. Para as profundezas do horror-mor,
para a morte. Para a morte de todos os amigos que tive – os mesmos
que dividiram comigo as amarguras de um jardim de infância, todos
eles que morreram queimados, aos cinco, seis anos de idade, quando
o ônibus que os conduzia a um acampamento de férias, chocou-se
em algum penhasco uma rodovia qualquer. Para as profundezas do
câncer de uma vizinha, para o atropelamento de um operário que
voltava para casa, numa sexta à noite, com a feira pronta, bombons
para os filhos, laranja-lima para a esposa, uma garrafinha de
aguardente para ele... Atropelado em frente de casa, em frente aos
filhos... Em frente aos moradores da rua, “Que bêbado desgraçado!”,
o motorista gritou, é o que dizem... Bêbado! Hoje eu entendo esses
homens, os bêbados. Basta tomar uma cerveja para as galinholas da

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vizinhança os chamarem de bêbados. Servente de obras, num
vilarejo, com as compras e o salário da semana... Bêbado! Em um
ambiente de pobreza extrema, onde passei minha infância. Hoje até
gosto da hipocrisia deste bairro luxuoso onde moro. A hipocrisia?
Quem diria, hoje é amiga.
Já são três horas da manhã (outra vez medindo o tempo):
sairei para comprar mais cervejas, talvez encontre alguém disposto a
conversar, uma mulher de preferência. Uma mulher parecida com
minha mãe. Torço para que eu encontre... E trepe com ela! Talvez
eu leia meu poema para ela... Com certeza – treparia com ela!

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Há uma grande vantagem em estar desocupado: pode-se
fazer tudo o que antes não fazíamos por falta de tempo. Aprendi a
aproveitar mais o dia, quisera ter aprendido isto antes, quando ficava
preso quase quinze horas no trabalho. Hoje, por exemplo, acordei às
dez horas da manhã, apesar de ter conseguido dormir lá pelas seis;
levantei-me, tomei um banho e fui correr no parque. Voltei com a
agradável sensação de missão cumprida. Diria até que feliz. Pedi uma
pizza e tomei uma cerveja, logo após os alongamentos e o segundo
banho. Quando voltei para casa comecei a reler A Metamorfose, livro
fascinante, mas o que mais gosto, na edição que tenho, é uma citação
do prefácio que fala sobre o que Freud disse a respeito de Kafka:
“Será um Homo Religiosus ou alguém que com seus veredictos toma
nas mãos a vingança contra Deus e contra seu mundo desfigurado
pelos homens”. Logo após O Veredicto veio A Metamorfose, isso para
mim pode muito bem representar meus últimos dias. Claro que
corro o risco de aludir de maneira errônea, mas sinto que eu mesmo
já cometi crimes; há pouco tempo fui réu e juiz destes mesmos
crimes. Lancei sobre mim o veredicto. E após o pedido de demissão
de meu trabalho iniciou-se a minha metamorfose. Como já disse,

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sinto que minha vida se encaminha rapidamente para o seu fim. E já
não me importo com isso! Lembrei-me agora de outra citação sobre
Kafka e sua Metamorfose, esta sim, mais atual: “Pois claro está que
Gregor sempre foi um inseto – um inseto desprezível que construiu
em seu entorno uma fábula suavizadora, ou uma neurose, que, tendo
nele seu ponto de referência central, o impedia de ser esta realidade...
Claro está, também, que Gregor foi um exemplar do gênero
humano...”. Creio que, apesar de tensa, sua leitura rendeu frutos...
Antes de anoitecer mandei várias mensagens a meus amigos
(que andam um tanto afastados ultimamente), escrevi sobre várias
coisas, todas bem íntimas, pensamentos íntimos, praticamente
confissões. Escrevi sobre o que penso de cada um. Creio que três ou
quatro deixarão de se corresponder comigo e a maioria pensará duas
vezes antes de me fazer uma visita. Talvez um se preocupe e venha
me ver. Estou cansado. Ontem voltei para casa embriagado, sozinho.
Cheguei a conversar com uma menina. Uma tão linda e tão menina
linda que não quis importuná-la nem mais um segundo com a minha
existência.

12
Não suporto mais acordar desta maneira. É como se eu
estivesse no alto de um edifício, no centro da cidade, no último
andar. Empoleirado na janela, olhando fixamente para baixo,
criando coragem para me jogar. Observo atentamente o local onde
suponho que meu corpo cairá. Mesclam-se na minha cabeça medo,
angústia, insegurança, decepção. Mas logo salto! Eu inicio a queda
com o corpo na vertical, controlando o voo – depois, o estômago
aloja-se na garganta, um imenso buraco assume seu lugar, começo a
me asfixiar; passo rapidamente por uma ave de rapina, logo em
seguida pelos pombos da cidade. Enquanto isso, na calçada imunda
da semimetrópole, os pedestres seguem seus trajetos; vencedores,

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seguros, distribuindo sorrisos a qualquer bunda que passe. O
movimento é intenso, entretanto, ninguém notará o luxuoso
embrulho que, delicadamente, fabricado por Deus, em uma
velocidade estrondosa se aproxima... Neste ponto perco o controle e
começo a rodopiar, meu cérebro explode e acomodo-me sobre corpos
ainda vivos. Dois corpos que são levados às pressas ao mais próximo
hospital. Não suporto mais acordar dessa maneira. Algo precisa ser
feito! Até quando permitirei que isso aconteça? Até quando? Até
quando permitirei que isso aconteça?
(Campainha).

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Recebi uma estranha visita, era um rapaz que eu conhecera
numa cidade da região central do estado, há uns treze anos. Ele disse
que conseguiu meu endereço com uma tia minha da mesma cidade
(poderia ter conseguido o telefone também e ligado antes...). Tudo
bem! Posso dizer que já tivemos uma história juntos. No final das
contas eu gostei de falar com ele, está ótimo agora. Eu ainda era “o
cara que pode tudo” quando o conheci. Nesta época ainda achava
que morreria cedo, tinha quase certeza, não sabia que a vida seria
mais cruel do que me parecia: Ela sempre dá um jeito para que
sobrevivamos.
Viajava com intensidade pelo interior do estado, sempre
sozinho. Em uma dessas jornadas eu estava me deslocando de um
distrito para o centro de uma cidade, tarde da noite, na chuva, e para
ajudar, era inverno. Acabara de sair de um bar, estava jogando cartas
(a dinheiro) e bebendo cachaça com limão, chamavam de
pingadinho. Que noite! Comecei ganhando e continuei ganhando
por um bom tempo. Quando mencionei sair praticamente me
ameaçaram um assassinato. Tive muito pavor. Sem saber como reagir
eu continuei jogando, limpo. Eles também continuaram, porém,

27
sujo. Comecei a perder partida por partida até consumir todo o
dinheiro. Só assim para deixarem-me ir embora. Quando o dinheiro
acabou, agradeci a noite e me despedi. Saí, lentamente, cabeça baixa
e congelando; a uns mil metros do bar ouvi uma voz, “Boa Noite, tá
indo pra onde?”, eu estava tão desnorteado que não percebi a carroça
se aproximando; respondi que estava indo para a estação rodoviária,
como de fato estava. Ele me disse que depois das duas da manhã a
rodoviária estava fechada, que era costume naquela cidade. Disse-me
também que reabriria só pela manhã. Não dei importância nenhuma
a ele, segui caminhando sem olhar... De repente ele grita “não quer
uma carona até o centro, até a rodoviária?”, disse-lhe que não era
preciso e o agradeci pela proposta e segui caminhando até que ele
retrucou, “Tá com medo, meu amigo?”. “Não, não é isso”, respondi.
“É que eu não quero te incomodar. Mas se insistes, eu aceito.” Eu
não poderia depois disso, de jeito nenhum, não aceitar a carona,
nessas situações é complicado mostrar medo. É muito complicado, e
disso eu entendia, apesar da pouca idade, tinha muito tempo na
estrada, muita experiência adquirida. Subi na carrocinha e fomos em
direção à cidadela.
Foi ele quem iniciou uma conversa, começou me
perguntando de onde eu era, o que estava fazendo, aonde eu estava
indo e coisas assim. Respondi a todas as perguntas procurando
acrescentar algum nexo às respostas, nem todas de maneira sincera,
mas razoavelmente verdadeiras. Isso não importa agora, o que
importa é o que ocorreu depois. Durante nosso papo passei a sentir
uma simpatia pelo sujeito, depois de ficarmos juntos por algumas
dezenas de minutos já estávamos em harmonia, conversamos sem
pausas o tempo todo. O desconhecido tinha 28 anos e já havia se
casado duas vezes, trabalhava como papeleiro, reciclador, catador de
lixo. Fazia esse tipo de serviço. Convidou-me para dormir em seu
barraco, aceitei o convite e fomos até lá; o lugar era horrível, um
cômodo apenas. Ali havia uma cama, um sofá, um fogão e uma TV

28
com o tubo de imagem quebrado. Também havia oito cachorros. O
cheiro da umidade misturado com o de comida fria era repugnante;
sem contar com o cheiro dos cães. Meu anfitrião abriu uma garrafa
de aguardente e iniciou seu relato. Algo que fiz questão de esquecer
até hoje, quando me deparei com mais esse fantasma. Levou-me até
o terreno, nos fundos de sua moradia, mostrou-me a árvore seca, o
pequeno balanço em seu galho mais forte e o lindo gramado que,
curiosamente, nascera ali. Contou-me que naquele lugar sua segunda
esposa se suicidou, enforcou-se com uma corda feita com fraldas de
tecido. Fraldas que pertenciam a seu primeiro filho, que teve aos
dezoito anos. Filho este que aos dois meses de vida faleceu na mesma
cama em que dormia com seus pais. Morreu sufocado com o corpo
do próprio pai que, durante um de seus intermináveis pesadelos,
rolou sobre o dele; enterraram o corpo no quintal e na mesma
manhã partiram, e quando voltaram, algumas semanas depois,
disseram aos vizinhos que tinham entregado a criança ao juizado
infantil, alegando falta de condições financeiras para a criação do
filho. A jovem mãe não suportou o tormento e entregou-se à
desgraça. Havia me esquecido de tal história, mas hoje me vi forçado
a chocar-me a mais este monstro.
Logo após o almoço pomo-nos a revelar as histórias destes
últimos anos, apreciei muito a conversa; bebemos a tarde toda, a
conversa continuava; jantamos e ainda conversávamos. Ele foi
embora... acho que eram dez horas. Pretendo assistir algum filme
antes de me deitar, talvez ainda beba mais algumas cervejas. Tenho
medo de como poderá ser a minha noite, e procuro não pensar no
amanhecer.

14
Ontem, um pouco antes de eu ir me deitar recebi uma
ligação do poeta, a criatura triste. Achei curioso ele ter me

29
perguntado sobre a minha família. Indagou-me se eu tinha pai e mãe
vivos, se tinha irmãos... Ele não sabia qual era o meu sobrenome e
não hesitou em perguntar. Questionou-me também sobre onde havia
nascido e coisas do tipo. Respondi a todas as perguntas, mesmo com
ele sendo direto demais. E, aproveitando o ensejo, como ele mesmo
disse, convidou-me para uma reunião de escritores e artistas plásticos
que ocorrerá daqui a alguns dias. Aceitei o convite e não retruquei a
nenhumas de suas perguntas. Deixei acontecer. Tenho jogado muito
com a vida ultimamente, não é de umas perguntinhas e um bando
de presunçosos que eu recuarei.
Pouco antes de dormir procurei me concentrar para ver se
conseguia neutralizar quaisquer pensamentos deturpados que
pudessem reacender minhas neuroses. Foi horripilante a sensação de
bem-estar. Nunca pensei que eu me sentiria assim, aquilo tudo que
me preocupava desapareceu completamente e, de repente, um
imenso temor se apossou de mim: e se eu acordar e não tiver
problema algum? Pior do que isso: se eu – ao acordar – não tiver mais
consciência dos meus problemas? Será que lembrarei que um dia fui
um doente? Neurótico, esquizofrênico? Vi, claramente, que o pior de
tudo não são minhas crises existenciais, e sim o medo da ignorância.
Da cegueira absoluta, o medo de não mais perceber quão sem sentido
é a vida. O que preciso fazer é aprender a aceitá-la como ela é – aceitar
sua fragilidade, aceitar como as pessoas sãs a veem, como sendo boa,
um Bem; mas sem nunca esquecer da verdade que apenas eu vejo.
Procurarei as coisas belas da vida, as coisas belas e tristes da vida...
Hoje à tarde caminharei sem pressa. Com leveza. Usarei de
todos os artifícios para me portar de maneira sadia ante minha
espécie. Não farei agrado algum a ninguém, mas não falarei mal, não
julgarei nenhum ato ou pensamento alheio ao meu, que eu não
concorde. Guardarei o rancor, o pessimismo, o sarcasmo. Tudo que
for radical eu guardarei para as horas oportunas. Amanhã é o dia da
dita reunião dos poetas e artistas, estou bastante disposto para

30
reencontrar a triste criatura; creio que podemos ter uma conversa
produtiva, poderei conhecer pessoas diferentes. Tudo pode
acontecer. Mas por que nada acontece? Dou opções para a vida, a
vida sempre viva! Dou sempre a oportunidade para algo acontecer.
Mas nada acontece! Até quando permitirei que isso aconteça?
Acordar dessa maneira! Nada acontecer!... (Palavras traiçoeiras: até
quando deixarei acontecer que nada aconteça). Agora me lembrei
das palavras de Bukowski: “Não podemos acordar? Temos de
continuar, amigos, a morrer enquanto dormimos?” Hoje preciso
morrer um pouco...
se ao dormir, morro
que eu viva um pouco
num próspero amanhecer!

Perdoe-me, Bukowski.

15
Quatro da manhã: acabei de regressar do meu mais recente
inferno, vim da maldita reunião. Estavam todos com os olhos
arregalados, cocaína pura! Os que não estavam eram tão chatos que
não tenho como compará-los a coisa alguma, não consigo imaginar
nada mais enfadonho que seus olhares de repressão ao nosso
comportamento. Falávamos alto, zombávamos de toda e qualquer
criatura que se considerasse importante em seus ternos de linho ou
em seus trajes alternativos, cool... ou sei lá a merda de nome que dão
a essas roupas. Como se não soubéssemos que também éramos
imbecis. Rindo feito idiotas, gesticulando como macacos no cio. Não
sei como fui me portar desta maneira! Justo eu que havia jurado ser
racional, acabar me envolvendo nessa guerrinha de egos e ideias! Não
poderia ter ocorrido, mas ocorreu. Optei por um grupo radical,

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identifiquei-me mais com eles do que com os eruditos. Jamais
simpatizei com estes estudiosos de porra nenhuma!
O poeta falou-me de uma viagem que fez ao exterior. Aos
Estados Unidos e à Europa. Já contei como eu o conheci? Não, creio
que não: Agora sei que não o conheci por acaso, ele já me conhecia,
sabia coisas sobre mim através de minha irmã. Foi em uma dessas
viagens que se apaixonou e teve um caso com uma mulher casada.
Linda, excepcional na cama, inteligente... Era impossível negar a
alegria em seu rosto quando falava sobre ela. E ela falou sobre mim
sem pudor, contou detalhes de nossa vida, sobre o nosso irmão; ela
lhe disse, com detalhes, seu verdadeiro sentimento, por que me
tratava como tratava, por que meu irmão enlouquecera. Conheceu-a
no Central Park, enquanto caminhava, deslumbrando a atmosfera
do Fatídico Mundo, viu aquela bela mulher e não teve dúvidas,
aproximou-se sem pestanejar; depois disso foi inevitável a atração
entre os dois. Um poeta sabe como tratar a quem desperta seu
interesse, ou, pelo menos, como envolvê-las com suas palavras.
Palavras que se encaixam perfeitamente com a expressão do olhar,
envolvem-nas com as palavras que anseiam ouvir.
Nunca imaginei que ela se interessaria por alguém desse
tipo; seus interesses sempre foram outros, foram outras as suas
prioridades. Em todo caso, o que mais me chocou foi sua confissão:
Havia ficado por mais de quatro vezes a sós com o caçula, na cama,
em atos de amor. Tudo começou a se encaixar para mim, a obsessão
do caçula que por ela mantinha, não era vã. Seu desejo pela irmã fora
retribuído. Mas também foi esse desejo que o enlouquecera;
apaixonado pela primeira vez, sentindo-se homem pela primeira
vez... Ouviu da boca da amada durante o sexo o nome de outro
homem. Não consigo imaginar uma situação como essa. Dois irmãos,
legítimos irmãos, tocando-se como amantes – e ele ouvindo da
amada o nome de seu outro irmão... tive náuseas. Era como se um
lodaçal tivesse me inundado inteiramente. Um porco selvagem

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começou a me roer de dentro para fora, roendo meus órgãos podres,
sem vida. O uísque que bebia transformou-se em urina; a comida,
em fezes; e todos aqueles molhos, todos muito finos, já não passavam
de pus.
Lembrei-me do caso do rapaz interiorano, de sua desgraça
familiar. Agora recordo de outra parte da história: Disse-me que após
o pesadelo em que resultou na morte de seu filhinho, ainda em
delírios tentou recuperar em sua memória o que havia ocorrido,
tentou encaixar as peças, o emaranhado de alucinações que
preenchia suas noites. Durante as tempestades oníricas sempre
assassinava seu filho e sua esposa, e depois daquela manhã já não
tinha certeza da sua inocência. A mulher foi a primeira a emitir uma
acusação – e foi a primeira a inocentá-lo. Haveria sido de propósito?
Não terei certeza de nada, nunca. Por que me lembrei dele? Porque
senti tesão por várias vezes pela minha irmã. Porque, quando soube,
invejei o caçula pelas quatro noites que passou com ela. Porque hoje,
o que mais gostaria é que o tempo voltasse para possuí-la em sua
cama. Sou culpado? Sou inocente? Não terei certeza de nada, nunca!
Quando o poeta me indagou sobre minha vida estava apenas
confirmando o que já sabia. Ele já possuía todos os dados a meu
respeito. Na noite em que o conheci, havia ido ao mesmo bar de
sempre, e sempre as mesmas pessoas estão lá. Naquela noite percebi
vários rostos distintos; não eram dali, não faziam parte do rebanho
de beberrões que habitavam aquele curral. Eu sempre fui muito
fechado, não dou confiança para ninguém; um dos motivos por eu
ser assim é que as pessoas não querem isto, elas não querem
confiança, não querem ouvir os problemas das outras, a não ser que
seja um vexame ou desgraça, algo que as faça se sentirem superiores
ou mais afortunadas; o que é bem diferente de ouvir problemas
iguais aos seus. Mas, especialmente nesse dia, o meu lado coletivo
estava saliente, queria comunicar-me, conversar com outras pessoas.
Ansiava encontrar alguém disposto a falar e a ouvir. Foi quando

33
aquele homem se aproximou de mim: “Me empresta o fogo...” (não
sei se era uma interrogação ou uma ordem, já fiquei desconfiado,
mas logo agradeceu com um largo sorriso e acabei cedendo);
perguntou-me se não sabia de um lugar chamado W e se ficava perto
dali, falei que nunca havia ouvido este nome; “Que merda, fiquei de
me encontrar com umas amigas neste local e nenhuma pessoa a
quem perguntei o conhece”; eu disse que talvez fosse melhor
perguntar a algum taxista (há um ponto de táxi em frente ao bar),
mas concluiu que já era tarde e que ficaria ali bebendo mais um
pouco e depois tentaria novamente contatar uma das amigas pelo
celular, já o tinha feito várias vezes sem sucesso, talvez fosse embora
em alguns minutos. Convidou-me para sentar-se com ele à mesa e
que se conseguisse falar com a amiga a convidaria para ir até ali. Já
fiquei desconfiado novamente, pensei que talvez fosse um
ladrãozinho me armando uma armadilha, tentando me atrair com
esse papo de amiga. Sentei-me com ele. Uma buceta é sempre bem-
vinda. Comecei a ficar interessado em sua conversa, contou-me que
era escritor, poeta... A simpatia foi natural, e aparentou-me
retribuída. Logo começamos a nos identificar, falamos sobre
literatura e filosofia – discutimos a condição humana e o caminho
que deveria seguir. Não tive como não me alegrar e entristecer com
ele. Daria tudo para ser uma grande amizade. Até esta noite, até esta
reunião. Agora não sei mais o que pensar...

16
Se não fosse o fato de ter conhecido aquele que versa, jamais
teria sabido sobre os verdadeiros sentimentos de minha irmã. Creio
que deva admitir o mal que ele me causou, mas também o prazer de
conhecer tão interessante criatura. Tive o meu próprio Virgílio nessa
parte da jornada. Concederei a ele mais uma chance ou seguirei
sozinho de agora em diante, remoendo as amarguras do passado? O
dia está tão claro, brilhante. Tão cheio de uma falsa vida... Falsidade

34
inequívoca! O som dos carros é como o som de uma grande
máquina, seus condutores são o combustível. O movimento não
cessa nunca; dias, noites, madrugadas a fio. Estarão todas perdidas
estas pessoas? Procurando um lar ou refúgio para protegerem-se de
suas mágoas e fraquezas? Não. Não procuram por nada, sequer sabem
que estão perdidas. É costume dar nome às doenças, não saberia
dizer do que elas sofrem, mas a minha, penso em apenas uma
maneira de chamar: Melancolia Voluntária. Uma espécie de Spleen
impregnado pela Nausée. É exatamente assim que me sinto desde a
adolescência. Doença crônica - que chegou ao seu ápice após o meu
último encontro com o Poeta.
Tomarei uma atitude extrema! Uma atitude que causará
uma ruptura em meu relacionamento com minha família e com as
demais criaturas que conheço. Abandoná-los-ei por completo, como
diria a criatura que versa. Darei como perdida a batalha contra o
medo. Os abandonarei para evitar mais sofrimento e angústia.
Amanhã mesmo partirei. Um andarilho, um errante, um animal que
se vê como sendo o último de sua espécie, isso eu serei. Só preciso
de vestes e de comida; o resto virá por si só. A vida é cruel comigo,
usará de todos os meios para manter-me vivo...
Levar-me um tanto mais, bem próximo à morte.

17
Tranquei todas as portas e todas as janelas, destruí as plantas
e sequei o aquário – o peixe não viverá muito tempo. Ontem à noite
entrei em contato com uma estação de rádio local e anunciei que
necessitava de carona para o estado vizinho. Sugeri que auxiliaria
com o dinheiro do combustível. Sobraram ofertas; confesso que me
impressionei. Não me despedi dos meus pais. Enviei apenas um
bilhete com versos…

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Nuances de uma filosofia surreal:
Palavras que dormem dentro de mim;
Dormentes traços de um defunto
Cercado por Deuses Superficiais...

Assombra-me a ideia de que todo e qualquer indivíduo


possua dentro de si a força necessária para tornar-se tão poderoso
quanto o carpinteiro da Galileia, e não tenha capacidade para se dar
conta disso. Com inteligência, usar as fraquezas como uma arma.
Guerrear até a morte; até atingirmos a todos e matarmos a nós
mesmos: Eis o segredo do sucesso!
Não sei qual o caminho... Há muito tempo que programo
todos os meus passos antes de sair de casa, mas a atitude é extrema!
Primeiro reuni o que julguei necessário para dar início à viagem,
apenas quando eu estiver aberto ao mundo decidirei qual rumo
tomar. Sempre ouvi que o homem precisa de um norte na vida.
Seguirei para o Norte. E isso feito, chegarei ao Sul de algum lugar...
E seguirei para o Norte.

18
Toda cidade é imaginária – e esta – nem o nome sei. Os
habitantes me observam – curiosos; noto seus olhares de
desconfiança. Sinto-me cercado por uma matilha de lobos, estão
todos à espera pelo momento oportuno para atacar. Estão famintos.
Sou uma presa fácil, a insegurança multiplica-se; até mesmo as
crianças me ameaçam com sua indiferença. As mulheres sentem-se
curiosas, o que torna mais perigosa a situação...
Parti há dois dias. Viajei com dois rapazes, o moreno
representava ter uns vinte anos, seu companheiro - um pouco mais.

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Foi uma viagem silenciosa, não encontramos em nossas
reminiscências assunto algum que pensássemos interessar ao outro.
Atravessamos algumas cidades antes de chegarmos um paradeiro;
durante o caminho fui tomado por uma violenta e imensurável
tranquilidade. Usei as janelas do automóvel para enquadrar as
paisagens, movimentos borrados penetravam em minha alma como
se tivessem sido criados exclusivamente para o meu olhar. Não pude
conter a tristeza.
Enquanto andava pela cidade, aos poucos fui me adaptando
à sua forma; imaginei que já não corria perigo. O que de fato era
verdade. A noite se aproximava com uma sutil elegância, no
horizonte o céu estava em grande parte rosado, mas também
continha tons de laranja e azul, completando a beleza do Novo. Mas
após alguns minutos os nativos já pareciam não se importar tanto
com a minha presença, poucos olhares ainda me atingiam; as
mulheres perderam o interesse e as crianças, como antes,
continuavam com suas brincadeiras. Já havia me tornado
parcialmente invisível. Invisível e sem importância, exatamente
como no dia em que parti. E o Novo havia desmoronado!
A insegurança não teve a mesma sutileza que a noite.
Atingiu-me de um só golpe... Em seguida, a angústia e a ansiedade
também se manifestaram. Avarentas e famintas, devoravam-se,
devoraram-se até se completarem; e mais poderosas, transformaram-
me em uma presa facílima de digerir. Cobras com bulimia! É isso o
que elas são! Considerei-me culpado por tudo o que senti até hoje, e
é disto que elas se alimentam: Culpa! Alimentam-se da culpa de
sentirmo-nos inseguros; a culpa de nos sujeitarmos à inércia; a culpa
de que, mesmo sabendo, que no viver não há sentido, lutamos
desesperadamente por prazer, regozijo. E é ao despertar de um sonho
que, sem percebermos, a consciência se apodera da nossa vida, nos
pune por nós sermos criaturas que mesmo vendo, não enxergamos;
mesmo ouvindo, não escutamos; criaturas que tocam e não sentem

37
por completo, criaturas que mesmo contempladas com a dádiva do
espírito se apegam a superficialidades. Temo o futuro, imagino-me
com oitenta anos e ainda alimentando a angústia. Mas enquanto me
detenho entre meus temores, outras vidas estão se esvaindo. Quantas
pessoas, neste exato momento, estão a sofrer em suas vidas pacatas?
Quantas criaturas de Deus estão embriagando-se de bebida barata
para afugentar a mediocridade de suas vidas? Sabem disto? Creio que
não. A única certeza é que estarei com oitenta anos e ainda
alimentando a angústia. Parti em busca de algo. O que busco? Onde
procurar? Esse algo virá encontrar-me? Estará fora de mim?

19
Acordei subitamente. Com taquicardia. São três horas da
manhã, recolho minha toalha do banco da estação rodoviária, serviu-
me perfeitamente de travesseiro. Já é imenso o número de pessoas
que circulam pelas ruas da cidade, alastrando-se sobre as superfícies
do planeta. O ser Humano é uma praga! E entre as Pragas, há
virtudes? Sim; por mais que grite o contrário, há pragas virtuosas.
Pessoas humildes que respeitam a vida, suas vidas e a do outro, e
dentro de si, estão certas de como se portarem e em que acreditar.
Pessoas que não usam do tripúdio, escárnio ou do utópico orgulho
como tábuas para a felicidade. Já penei o suficiente pregando o
egocentrismo, mas agora a vida criou, à sua maneira, um vazio
estrondoso em minha mente. Meus pensamentos se dissipam; onde
brotavam ideias e ideais agora restam apenas dúvidas, insegurança,
caos. Onde sentia alegria, agora há vazio, desgosto. As contradições
de uma vida, ao mesmo tempo, aflorando como uma infecção que
julgávamos curada. Para todos os assuntos, religião, política, arte.
Para todos os assuntos, banais ou imprescindíveis, Eu, o Todo
Poderoso, tinha uma opinião formada, uma ideia para defender. Mas
agora me sinto perdido. Um burocrata que teve seus documentos
queimados, extraviados, mesclados a listas de compras. Faz-se

38
presente o ator principal de uma comédia sem sentido. A vida é uma
grande comédia sem sentido, não há dramas, só a imbecilidade de
um Deus. Ou pior, apenas o Humor de um Deus. Precisamos
identificar a sua arte, decifrar o seu código.
Durante muito tempo vivi preso a um pequeno mundo, vivi
rodeado por pessoas superficiais, amargas, fúteis e presunçosas. Hoje
uma grande tristeza pousou sobre mim; imaginei se não enxergasse
também as virtudes da minoria: as pessoas reprimidas pelos valores
modernos. Mas não tardei a notá-las. Talvez nelas eu encontre minha
redenção. Redimir-me perante minha própria existência tornando as
coisas mais leves. Creio que eu esteja passando por uma fase de
transição e reforma em meus pensamentos. Certa vez li que a grande
vitória de um existencialista é perceber o absurdo da vida e aceitá-la,
no meu caso é perceber o humor, a piada.
A vida é uma grande comédia! É hora de reorganizar a
papelada.

20
Passei o dia ziguezagueando pela periferia da cidade,
inebriado em minhas lembranças; entre elas há uma discussão de
dois jovens estudantes. Falavam a respeito de Jesus, o cristo salvador:
o primeiro jovem pregava a favor do filho de Deus, o outro a favor
do inquieto revolucionário (creio que estavam falando da mesma
pessoa). Foi engraçado observar esses dois mamíferos dialogando, já
seus pensamentos divergiam e apesar disso também se notava
coincidência. O animal alto chamava-se Régis, o baixo, Matheus.
— Jesus foi tocado pelo dedo de Deus, este dedo tocou-lhe na
ferida da humanidade, e através da dor que sentiu chegou enfim ao
entendimento da palavra divina. Deus disse-lhe que era Seu filho e

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que sua missão era salvar os Homens deles próprios, mostrar-lhes o
caminho da compaixão...
— Não penso desta forma, interveio Régis, Jesus de Nazaré,
como Homem e Pensador, isso sim, sentiu a necessidade de algo fazer
por sua raça, pela raça Humana! Sentiu como qualquer grande
pensador de nossa história também sentiu. Tudo o que Ele alcançou,
alcançou como Homem e não como filho de uma entidade
espiritual, de um conceito estritamente abstrato... e assim, de
pensador, passou a revolucionário. Como aconteceu com outros
pensadores de nossa época, mas sem expressão alguma; em nada
comparável a Emmanuel.
E deste modo os dois jovens seguiram remoendo-se até que
eu interferi – já translúcido de vinho chileno – dizendo-lhes que
ambos estavam com razão, pois Jesus fora educado para fazer o que
fez, claro que apenas ser educado não bastou; quantas vezes vemos
pais decepcionados com seus filhos, apesar de toda educação e amor
a eles destinados; Sua grandeza foi outra – e foi outro o Seu penar.
O mundo ansiava por mudanças. Profetas iniciaram a propagação
dos antigos boatos acerca do nascimento do Messias e o povo,
necessitado de esperança, aos poucos começou a dar crédito aos
divagadores. O Livro nada nos conta sobre a juventude do Nazareno,
mas foi ali, vendo o sofrimento de sua gente que formou o seu
caráter. A adolescência, como a conhecemos hoje, não existia nesta
época. Os jovens não tinham tempo nem podiam se dar ao luxo da
animalidade hormonal, e foi crescendo em meio à pobreza e opressão
que Jesus desenvolveu o seu pensamento. Estudando, aprendendo
com seus contemporâneos as antigas profecias. Como o maior dos
Homens poderia deixar de ser um estudioso, um letrado até? Pois de
outra maneira não conseguiria ser ouvido. Deveria destoar do
restante humilde e ignorante. Deveria (e conseguiu) ser pensador e
ativista, inquieto, guerreiro. Dificilmente poder-se-ia imaginar
coragem maior do que a de bater no peito e gritar, com convicção do

40
que queria: Eu Sou o Filho de Deus, a Palavra de Deus, a Verdade e
a Salvação! E esta salvação bem que poderia ser política. Quantos
crentes de hoje são os adeptos do “Jesus voltará”; e o fazem não por
motivos tão diferentes quanto os de mais de dois mil anos atrás. O
povo humilde e ignorante de hoje também necessita de um Salvador.
Até quando continuaremos a sermos esmagados pelos imperadores
atuais, as grandes potências? Até quando seremos humilhados? Até
sempre! Essa é a minha resposta. Pois ninguém possui coragem nem
força para mobilizar o povo contra seus opressores. Às vezes tenho a
impressão de que ainda estamos vivendo os séculos passados,
inflamando em discursos inúteis, vivenciando falsas revoluções. Por
isso ouvimos os viventes de passado implorando pelo retorno do
Salvador. Esta pobre gente precisa de esperança, precisa de alguém
que morra por eles...
— Cala a boca, bêbado burro! Esbravejou Matheus, com um
sorriso tosco e debochado.
— Manda-te daqui idiota! Disse, muito irritado, o outro
rapaz.
E com a minha mediocridade entre as pernas, afastei-me
destes fabulosos pensadores; pois já não lembrava palavra alguma
que havia dito. Trambolhando caminhei até o balcão, comprei outra
garrafa de vinho e saí do bar.
Idiota. Esta palavra ecoa em minha cabeça. É isto que sou?
Em todos os sentidos agora sinto: a isto me reduzo triste e vencido.
E não há Deus algum para me consolar, e não há para mim também
Luz nem trevas, como me prometeu o Livro Sagrado. Não há mais
nada para mim nesta cidade. Nem mais lembranças. Nem mais
novidades.
Anoitecia enquanto deixava o lugar, rumo ao Norte. Andei
por quatorze quilômetros, ininterruptamente. Quase não havia
movimento na estrada sem asfalto e repleta de buracos. Em minhas

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últimas centenas de metros percorridos, segui por um caminho entre
dois morros, havia uma mata cerrada, à minha esquerda e direita.
Era madrugada, ouvia-se apenas o som de um riacho que teimava em
existir. Ou melhor, ouvia-se apenas o silêncio, graças a este riacho.
Entre a mata, avistei pequenos focos de luzes, a pouca distância.
Lentamente, enquanto me aproximava notei um pequeno vilarejo.
Percebi sinal de vida em apenas uma das casas. Apesar de modesto,
o vilarejo comportava e sustentava mais de mil moradores, todo o
dinheiro vinha daquilo que eles chamavam de ecoturismo. A beleza
do lugar fascinava quem por ali passasse. Os habitantes eram
igualmente belos, principalmente as mulheres. Aquele pedaço de
vida subdesenvolvido também era rico em fauna e flora, cercado por
rios e cascatas que desciam os morros por todos os lados.
Receoso, bati à porta de uma singela pensão, rústica, como
quase tudo ali. Oitenta quilômetros adiante existia uma grande
cidade, que obviamente também sobrevivia do turismo. A pensão
possuía vinte cômodos, completos. O proprietário foi quem veio a
meu auxílio. Já passavam das cinco horas; falei a ele que estava
disposto a passar o dia ali e se me locava um quarto. Depois de muitas
perguntas como vieste a pé... A esta hora, de onde vens? E outras
frivolências. Menti que era antropólogo, que havia partido, viajando
pelo interior do estado para elaborar um trabalho sobre nem-me-
lembro-o-que e que aquele seria o último lugar que descasaria antes
de regressar à minha cidade. Ele ficou estonteado com a conversa,
fingiu que entendia tudo o que eu falava. Ofereceu-me o quarto
gratuitamente se eu ficasse apenas um dia. “É o dezessete, bom
repouso”.
Na noite em que cheguei postei-me diante da porta e fiquei
a observá-la por alguns minutos. Era feita de costaneira de araucária,
ainda cheirava a madeira nova. Entre as frestas da parede falha
entrava uma brisa reconfortante; uma lágrima me ameaçou. De
sobressalto, adentrei. No dia seguinte, exatamente às nove horas,

42
abrir os olhos e saltei da cama. Dirigi-me à rua. Não consegui
distinguir os nativos dos visitantes, todos tinham uma aparência
comum, gestos neutros e trajes simples. Durante o dia nada fiz,
fisicamente, de produtivo; porém, os sentimentos transgrediram o
considerado possível. O que concluí a respeito dos habitantes e o
lugar atestei como verdadeiro logo ao primeiro sinal do crepúsculo.
Propus ao velho pagar todas as despesas se ele me aceitasse como
hóspede por mais alguns dias. Meus recursos estavam próximos do
fim, eu já considerava o dinheiro insuficiente para mais algumas
horas, mas estava disposto a gastá-lo, permanecendo ali. Gostaria que
minha vida se encerrasse naquela vila. Mesmo que eu vivesse por
apenas mais alguns meros segundos.
Eu ainda permaneceria em paz durante quase oito dias,
desfrutando da surdez e cegueira da felicidade que aquele ambiente
e o acaso me ofereceram. Logo após o acerto de contas com o
senhorio, que fiz questão de reunir meus últimos centavos e me dar
o desfrute de pagar adiantado minha estadia, já estava vivenciando o
segundo dia de meu breve paraíso.
Nesta localidade conheci uma família de comerciantes; o pai
aparentava uns cinquenta anos, a mãe, um pouco mais. Tinham dois
filhos, um menino de nove anos e uma menina de vinte e três, todos,
exceto a menina, tomavam conta e eram proprietários de uma Rede
Funerária, se assim pode-se chamar. Carniceiros, era como os
chamaria há algum tempo, mas não compete a mim o julgamento
por sua autossuficiência. Autossuficiência. Percebo agora quão
infeliz, fui eu, ao empregar esta palavra. Nenhum ser é
autossuficiente, dependemos de outro, em todas as ocasiões, para,
mesmo que derrotados, nos aproximarmos de algo como suficiência.
Todos nós, direta ou indiretamente, dependemos, senão do
próximo, do acaso para atingirmos objetivos, obtermos sucesso,
sermos suficientes, em nossa e para a nossa vida. Para esta família, o
ocaso é o seu maior aliado. Se pensarmo-nos suficientes já é uma

43
derrota, julgarmo-nos autossuficientes é bestialidade, é nos
vangloriarmos da derrota. Mas, provavelmente, nada do que eu
disser poderá mudar os caminhos do orgulho humano. E eu sentia
orgulho, e eu estava derrotado, e eu estava me apaixonando…

21
Durante todo dia fiquei junto a eles. Almoçamos,
caminhamos à tarde entre a mata, banhamo-nos nas águas geladas de
uma cascata. Senti-me como em família; jamais havia me sentido
assim, nem com os meus pais. Felipe, apesar da pouca idade, parecia
bem maduro; não me lembro de ter conseguido conversar mais de
que dez minutos com uma criança de nove anos, mas com ele era
diferente, tinha ideias, “argumentos”. Para todo e qualquer assunto
ele contava uma história que havia acontecido com algum amigo
dele, parecia, e eu tinha quase certeza, que mentia a respeito dos
amigos, das histórias, só para poder expor seu pensamento. Rogério,
bem centrado, cuidava bem de sua família, tinha algumas atitudes
ultrapassadas, devido a sua criação, talvez, mas parecia se portar bem
às adversidades que a vida lhe impunha. Marieta era uma senhora
sofrida, humilde, católica; seu rosto se parecia com o solo de sua terra
natal, seco, com infinitas cicatrizes, castigado pela pobreza, pelo
descaso. Creio que considerava uma ‘bênção’ Rogério tê-la tirado à
força de seu Norte sem vida. Já Maria era um mistério, uma mulher
de contrastes. Tinha o olhar firme, não demonstrava sentimento, a
pele pálida, os cabelos da altura dos ombros e extremamente negros;
sua voz, porém, não condizia com o olhar, era suave, sempre em
baixo tom, com uma trêmula leveza quando queria fazer-se ouvir. Era
filha do primeiro casamento de Rogério; depois que ficou viúvo
viajou pelo país até que conheceu Marieta, casaram-se, tiveram um
filho e compraram uma funerária. A única em sua cidade. Hoje
possuem oito; a cidade cresceu e o número de mortos também. Este
ano decidiram viajar e convidaram Maria para acompanhá-los. Maria

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veio da Alemanha onde mora, trabalha e estuda. Orgulha-se de não
depender dos pais, de ser suficiente. Orgulha-se, mesmo que com um
olhar firme, muito firme para não demonstrar sua tristeza.
Um pouco antes de anoitecer, Felipe estava acabado, já
tomado pelo cansaço, o casal e o filho recolheram-se aos aposentos
e... Bom, Maria e eu continuamos juntos, sentados lado a lado, bem
próximos, sobre sacas de milho em frente a um galpão. O céu estava
avermelhado, já não avistávamos o sol, escondido por detrás do
morro. Fiquei calado a observando falar por quase uma hora, falava
sobre Baudelaire, sobre o poema Harmonia da Tarde e recitava:
Un coeur tendre qui hait le néant vaste et noir,
Du passé lumineux recueille tout vestige !
Le soleil s’est noyé dans son sang qui se fige...
Ton souvenir en moi luit comme un ostensoir !

Entendi pouco, ou quase nada, daqueles versos, mas foram


as palavras mais lindas que ouvi. Disse-me que aquele poema a tocava
muito, que sempre o recitava quando se sentia triste ou feliz,
principalmente a última estrofe. Disse que a beleza a instigava,
também a deixava triste, mas a lançava rumo à poesia.

Sorriu. Olhou-me de maneira terna. Pediu que eu também


falasse sobre poesia. Rapidamente recordei do rosto da criatura que
versa, lembrei do meu poema, de minha irmã. Mas sobretudo do
único poema que eu mesmo gostaria de ter escrito, só, antes de
qualquer coisa, sozinho. Fixei meu olhar no horizonte e iniciei:
From childhood's hour I have not been
As others were; I have not seen
As others saw; I could not bring
My passions from a common spring.

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Antes de desviar o olhar eu vi, claramente, um gesto, um
movimento de quem estava prestes a interromper. Ignorei-a e
prossegui:
From the same source I have not taken
My sorrow; I could not awaken
My heart to joy at the same tone;
And all I loved, I loved alone.
Then- in my childhood, in the dawn
Of a most stormy life - was drawn
From every depth of good and ill
The mystery which binds me still:
From the torrent, or the fountain,

Sinto a mão sobre meu ombro, faz gestos de carícia.


Continuo:

From the red cliff of the mountain,


From the sun that round me rolled
In its autumn tint of gold,
From the lightning in the sky
As it passed me flying by,
From the thunder and the storm,
And the cloud that took the form
(When the rest of Heaven was blue)

Beijou-me na altura do olho e, assumindo a palavra,


completou:
Of a demon in my view.

Abraçou-me fortemente e sussurrou:


— Edgar.

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Já amanhecia. Caminhamos um pouco durante a noite,
deitamo-nos junto ao rio, adormecemos na mata, tornamo-nos
cúmplices de nossas amarguras, enquanto contemplávamos o céu
repleto de passado e estrelas ainda vivas. Sobreviveríamos a nós
mesmos? Era o que nos perguntamos durante a noite. Gritávamos ao
vazio e nada ouvíamos, provocávamos a Deus e nada ouvíamos. Ao
despertar pedimos perdão – e nada ouvimos.
E, como cúmplices, nós caminhávamos, silenciosos ante os
olhares de desconfiança de todo o vilarejo. Mas não nos
importávamos, sentíamos o gosto da vitória: Não estamos mais aqui,
estamos acima, estamos além! Nós já não estávamos ali, não
pertencíamos àquele lugar, não cabíamos naquele tempo; existíamos
por completo. E juramos que à Falsa-Existência jamais
regressaríamos sem antes lutar. Eu sentia que havia encontrado algo
de especial neste mundo insano. Parecia-me que agora a Vida valia a
Pena. Antes, não pensava em um futuro que não fosse a hora fatal,
mas naquele instante eu já fazia planos, idealizava como seria nossa
próxima conversa, nosso próximo beijo, o que nós iríamos almoçar...
Coisas tolas, simples... Vida.
Durante o almoço Rogério falou-me sobre suas crenças e
atuais opiniões políticas. Enquanto falava, Maria me observava
incessantemente; como quem estivesse implorando para eu
continuar calado, apenas ouvindo, sem manifestar meus
pensamentos contrários aos do pai. Permaneci como estava:
concordando, fazendo gestos com a cabeça, dizendo sim, pois é,
talvez, com certeza, acatando o silencioso pedido, e já imaginando
como seria a nossa tarde.
A mulher que nos serviu a refeição sugeriu que fizéssemos
uma visita a um sítio que ficava bem próximo à cidade. Não era
muito diferente do restante dos pontos turísticos dali. Mas havia um
diferencial. Não sabiam explicar, mas havia, e apenas indo ao

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encontro deste diferencial era possível senti-lo. Não foi essa a sua
explicação, porém, foi assim que a compreendi.
Marieta disse que estava cansada e preferiria repousar, o
menino já estava comprometido com outros do local a uma partida
de futebol, e Rogério acompanharia a esposa ao quarto.
Disponibilizei-me a fazer companhia a Maria e fomos nós. Alugamos
um carro e partimos em seguida. Novamente estávamos a sós.
Incrivelmente, não retomamos a conversa da noite anterior, ela
passava-me a impressão que nem lembrava que havíamos ficado
juntos e tudo mais. Naquele momento pareceu-me muito estranho.
Sentia-me bem, confortável com a situação, porém, não entendia sua
atitude ou a falta de tal atitude. Chegamos ao sítio quarenta e cinco
minutos depois, sem nada falarmos durante o caminho; e foi aí que
aconteceu. Desci do automóvel, espreguicei-me. E ela tomou-me pela
mão... O beijo foi mágico; seu sorriso, maravilhoso. O lugar era
realmente fascinante. Toda a vegetação tinha um tom escuro e vivo,
aconchegante; uma brisa nos atingia, sentíamos o ar frio das águas
do riacho. O sítio chamava-se Cores Ávidas, achamos o nome bem
curioso, até original; lembro também que o preço pela diária era
bastante justo e que os atrativos, apesar de comuns, eram bem
sugestivos. Passamos a tarde ali, sentados sob um belo arvoredo à
beira de um lago em que alguns senhores pescavam com seus filhos.
Tudo aquilo era bonito, calmo, mas já começava a sentir falta de
alguma intensidade física, de exercícios, de sexo, de álcool. Sou um
ser urbano. Já estava começando a sentir falta da rotina em que eu
vivia antes de partir. Dos bares, do cinema. Aquilo que estava me
acontecendo era divino; Maria era linda, saborosa, tinha paixão
quando se empenhava em me agradar, mas decidi falar-lhe a respeito
do que estava sentindo, tomando cuidado para não ser mal
compreendido, é claro. Falei... e não houve arrependimento. Ela
entendeu-me perfeitamente e sua primeira reação foi me informar
que a um quilômetro dali ela conhecia alguém, um rapaz que era da

48
capital e estava passando uma temporada com a madrinha e ele
tinha, digamos, um remédio que suavizaria minhas saudades de uma
grande aglomeração. Não tive dúvidas: Profanamos a noite-donzela,
amanhecemos fartos de sexo, tequila e haxixe. E quando amanheceu,
estávamos ainda na casa do rapaz e de sua “madrinha”, e uma
metrópole já não me fazia falta...
Quando chegamos à pensão, Felipe estava descendo as
escadarias indo ao encontro do pai, Maria e eu, alucinados,
completamente desnorteados, não dizíamos coisa com coisa. Apenas
riamos abraçados e trambolhando. Acho que vi Rogério menear a
cabeça com um sinal de negativa, levantou-se da mesa, pôs sua mão
sobre o ombro do filho e se retirou. O menino nos contou que a mãe
quase não dormira à noite, preocupadíssima com a nossa demora,
chegou até a passar mal, tomou alguns analgésicos durante a
madrugada e estava dormindo até àquela hora. Propus à Maria que
eu conversaria com seu pai e ela não concordou, julgou melhor ela
mesma falar com ele e que depois me procuraria. Acatei sua decisão
e fui para o meu quarto.
Não lembro em que situação cheguei até a cama, quando
acordei vi que havia vomitado por todo o quarto, tratei logo de
começar eu mesmo a limpeza, pois não gostaria que alguém visse o
que fiz. Tomei um banho frio e aos poucos uma lembrança falha
chega a mim. Maria, disse em voz alta. Fui até o seu quarto e ela não
estava. O relógio do corredor marcava nove horas. Era a hora do café.
No refeitório estavam quase todos os hóspedes, em pé, alguns
aguardavam uma mesa. Não vi Maria nem sua família, saí para ver e
o carro de Rogério não estava lá. Atravessei a rua e fui tomar uma
cerveja no bar, em frente. Ali, alguns agricultores comentavam as
condições do tempo. Quando pedi a segunda garrafa vi Marieta e
Felipe entrando no armazém da esquina. Da porta avistei Maria e seu
pai parados em frente à pensão. Não tive coragem de ir até eles,
ocorreu-me que, talvez, estivessem indo embora, movidos pelos

49
acontecimentos da noite anterior. Fiquei lá, estagnado, apenas
observando. Não me vinha pensamento algum que não fosse
pessimista, ainda estava um pouco confuso e a cerveja já fazia efeito.
Convenci-me que o correto era ir para perto deles e aceitar a situação;
sei que parece um tanto ingênua e que no nosso tempo essa era uma
situação normal, sem dramas, algo fácil de ser resolvido, por respeito,
um pedido de desculpas e nada mais. Mas a particular ressaca estava
carregada, densa e ainda saturada com os efeitos do haxixe.
Cumprimentei-os com naturalidade e com naturalidade
retribuíram o cumprimento somado a um “que noite, hein?”. “Acho
que nós perdemos um pouco no horário e na bebida, devíamos tê-
los avisado que demoraríamos, perdão...”. “Sem problemas”,
retribuiu Rogério, acrescentando, “quem deveria ter nos avisados era
a Maria, ficamos preocupados, principalmente depois que Marieta
teve aquele probleminha de pressão; chegamos agora do posto de
saúde e tudo está bem agora”. Em poucos segundos nosso
relacionamento estava normal. Felipe e a mãe saíram do armazém
com alguns produtos de higiene pessoal e juntaram-se a nós. Maria
disse-me que não conseguira adormecer e que estava pensando em ir
deitar-se, perguntei-a se iríamos nos ver mais tarde e ela sorriu.
Entrou na pensão seguindo sua família e antes do pôr do sol ouvi
uma batida na porta e uma voz: Acorde, vamos sair.
Estávamos juntos, com convites para um “baile” que
aconteceria no salão ao lado da igreja e com muita, muita disposição.
O baile era dividido em partes, gostei da ideia. Nas primeiras horas
tocavam música direcionada aos senhores e senhoras, havia um
intervalo e na sequência uma apresentação de dança típica da região
e em seguida a festa continuava, agora ao agrado dos mais jovens.
Tocavam música popular, todas dançantes e alegres, contadas na
língua imperial. A noite foi boa, apaixonada e sem excessos. Maria
estava linda e perfumada como nunca, dançamos ao longo da noite

50
e antes de amanhecer já havíamos nos recolhidos. Dormimos juntos,
como irmãos, como irmãos que se amam.
Não consigo descrever meus sentimentos ao acordar ao lado
daquela criatura. Sou até capaz de acreditar em um ser divino, em
um ser realmente onipresente, onisciente, um deus a creditar toda a
beleza que existe no mundo, mesmo que uma beleza frágil, finita.
São delírios, divagações. É isso que leva humanidade a prosseguir.
São delírios e divagações alimentados pelo amor. E eu quase acreditei
no amor.
Pensei em acordá-la e depois desisti; deixei-a entregue a seu
sono e desci sozinho para tomar café. Vi a oportunidade de me
redimir perante aquela família, iriam me ver, acordando na hora do
café, sem ressaca e com um ar tranquilo na face, e não com a
aparência trágica que tinha no dia que os conheci. Desejei bom dia
e me sentei à mesa. Indagaram-me a respeito de Maria e disse-lhes
que ainda dormia; Marieta comentou que havia ido até o quarto e
ela não estava. “Ela dormiu no meu, não quis acordá-la”. Olharam-
se todos com ares de aprovação. Senti algo até então desconhecido,
poderia ser felicidade?
Marieta estava com um rosto sereno, sentia sua presença leve
e sadia. Ela sempre me pareceu uma mulher amargurada, como se
levasse um peso sobre os ombros; provavelmente sua vida era pesada.
Mas por quê? Depois de Rogério a resgatar, do que ela mesma
chamava de purgatório, ela tinha tudo que uma pessoa poderia ter,
filhos, um companheiro de caráter e apaixonado; trabalhavam,
tinham dignidade e orgulho do que conquistaram; possuíam
economias, e não eram poucas, pelo que me falou Maria. Faltava-lhe
algo, era isso que ela sentia. Mas hoje estava diferente, aparentava
uma sabedoria infinita, uma superioridade digna...
Felipe segurava uma revista sobre cinema, havia estreado um
filme juvenil, não lembro o nome. Eufórico, falava sem parar que

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não podia deixar de assistir a esse filme, queria vê-lo o quanto antes.
Avisei a todos que o cinema mais próximo se encontrava a cento e
vinte quilômetros dali e que talvez nem estivessem passando este
filme, mas que eu poderia, perfeitamente, informar-me a respeito. O
menino, agora mais agitado ainda, saiu correndo dizendo que
acordaria Maria e que nós três iríamos ao cinema e assistiríamos o
que fosse... “Esse moleque!”, exclamou Rogério, completando, “Nós
não vamos sair hoje, se quiserem mesmo ir empresto meu carro pra
vocês, está certo?”; “Claro, só me resta saber se a Maria quer ir...”,
respondi sem muita vontade. Não estava disposto a dividi-la com
ninguém.
Maria bebeu um copo de suco e fomos caminhar, desbravar
os morros, como disse o menino. O levamos junto para irmos nos
acostumando com a companhia. E foi ótima a sua companhia,
andamos de mãos dadas, os três; Felipe no meio, radiante, feliz como
jamais vi uma criança. Não tenho como colocar as palavras, como
tudo ali, era fantástica a visão que tínhamos, o vilarejo estava coberto
por uma densa camada de neblina, éramos como anjos guardiões da
vida. Pouco antes do meio-dia a paisagem começou a mudar, a
neblina se dissipou nos possibilitando enxergar a cidadezinha e toda
a grande beleza da região. Decidimos descer para o almoço, uma
sessão de cinema nos aguardava a alguns quilômetros dali. Seria
divertido, como na adolescência, pipoca, refrigerante, beijos, irmão
caçula... certamente seria interessante.
Aos poucos o sol passou a esconder-se por detrás das nuvens,
uma tempestade se anunciava. Maria comprou algumas latas de
cerveja e “pegamos a estrada”, o garoto contava algumas piadas que
aprendera com os professores, piadas educativas e com uma pitada
de ironia, todas muito interessantes para se contar inclusive em
mesas de bar; Felipe tinha talento. Chegando lá, fomos direto para o
cinema, estávamos curiosos para saber o que nos esperava. De
tempos em tempos milagres acontecem: Naquela sala passavam

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apenas filmes antigos e naquele dia passariam “O Sétimo Selo”, um
clássico indispensável para qualquer pessoa. Receoso, Felipe quis
mudar de ideia e não assistir a filme algum. Maria também não achou
uma boa ideia o irmão entrar na sala, mas minha animação era tanta
que consegui convencê-los a fazer o que havíamos combinado. E
enquanto as silhuetas marchavam ao seu destino depois de terem
cruzado a floresta, todos julgaram que fizemos a escolha certa.
Eram cinco horas da tarde e já estávamos voltando quando
a tempestade, enfim, havia nos alcançado. É incrível a minha atração
por tempestades e tormentas, chuvas, granizo, terremotos, vulcões
em erupção, todos esses fenômenos da natureza, apesar de terríveis
em alguns casos, sempre me fascinaram; vejo beleza em qualquer
coisa desse gênero, não sei se é porque são realmente belos ou se é
pelo que nos podem proporcionar... Morrer por uma coisa tão bela
assim seria a morte ideal. Seria morrer de vida, morrer de natureza.
E quando no céu, eu ouvir aquela voz pomposa me perguntando: Do
que vós morrestes, amado filho? Eu responderia “morri de caos,
grande senhor. Morri de uma catástrofe, morri de beleza!”.
Quando chegamos à vila Rogério bebia um chá junto a um
enfermeiro e ao dono da pensão, Marieta novamente não havia se
sentido bem, teve uma queda de pressão e desmaiou na escadaria,
quebrou duas costelas e foi imobilizada por um médico que estava
hospedado ali. Não recordo muito bem dos fatos que narraram.
Parece-me que o médico sugerira que não a movessem e que alguém
fosse buscar ajuda. Ligam para o posto de saúde e a ambulância vem.
Os enfermeiros a levam até o posto. Ela é atendida e a trazem de
volta à pensão...
Cinco minutos depois, nós chegamos. Felipe parece calmo
Maria, apreensiva. Comentou comigo que já andava preocupada
com sua madrasta, que temia por sua saúde. Justo naquele dia que
ela me pareceu tão bem. É engraçado como as coisas acontecem. É
sempre quando não estamos preparados. Durante a noite

53
conversamos com ela sobre a nossa pequena viagem, contamos o
filme, ela riu e se alegrou um pouco. Rogério nos disse que pela
manhã a levaria ao hospital, que fica ao lado do cinema aonde fomos,
que por sua vez fica ao lado de um asilo que fica ao lado de uma
capela, que foi construída em frente a um cemitério. Ironia?
Coincidência? Mau gosto na criação? Não sei. Colocamos um
colchão ao lado da cama, Rogério dormiria ali para não correr o risco
de chocar-se com Marieta durante o sono. Felipe foi para o seu
quarto e Maria e eu fomos para o meu.
Não sei como ela conseguiu. Depois do susto, ainda assim
Maria teve ânimo para ficarmos unidos e, como não poderia deixar
de ser, tivemos mais uma noite inesquecível. E pela primeira vez
falamos sobre nós, sobre nós dois, como uma só pessoa. O que
faríamos no futuro, como ficaríamos? Falei que tive uma ideia, meio
maluca talvez, de vivermos juntos, falei que se quisesse eu iria embora
com ela, para onde quer que fosse. Disse-me que não havia pensado
dessa maneira, a única coisa em que pensara era em vir embora para
o nosso país. Talvez fosse morar com o pai e o irmão, já que Marieta
não estava bem de saúde, ajudaria com as funerárias. Mas não
prosseguimos com as palavras, logo adormecemos e tudo acabou em
sonhos. Belos sonhos de esperança e amor. E, sonhando, pude ter
uma noite de sono verdadeira.
Na manhã seguinte ouvi um grito e acordei. Maria já não
estava ao meu lado. Enrolado no lençol eu saí correndo pelo, nunca
tão longo, corredor. Vi pessoas confusas e chorando pelo lugar, e no
último quarto, o quarto de Felipe, um rapaz o consolava “tua irmã já
vem, tua irmã já vem...”; Rogério, assim que acordou, teve uma
parada cardíaca. Marieta desesperadamente gritava sobre a cama
tentando levantar-se, uma senhora tentava a conter. Maria
conversava, assustada, com algumas pessoas. Estavam esperando que
buscassem o corpo...

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Fiquei completamente imóvel vendo a criatura mais bela do
mundo deteriorando-se lentamente, a vi sem vida, apodrecendo,
enterrada em um luxuoso cemitério europeu depois de ter vivido
durante sessenta anos com alguém que nada acrescentaria à sua
existência. Depois de ter vivido com alguém que morreu preso a uma
filosofia decadente e ignóbil. Não. Não era isto que eu desejava para
ela. No entanto, se ficássemos juntos, seria esse o nosso desfecho. Ela
precisava de algo mais, de uma pessoa que a mantivesse em
transgressão continuamente, que sempre a levasse além. E era isso
que eu mesmo precisava: ter forças para resgatar quem eu fui, só
assim poderíamos permanecer unidos. Mas não era o momento, não
pertencia a mim aquele tempo. Maria precisava de outra pessoa, de
alguém que compartilhasse com ela força e não desgostos. Fui
arrebatado por esses pensamentos e não tive coragem, outra vez, de
fazer o que era correto. Como em quase todas as situações de minha
vida.
Passei pela porta sem ninguém me notar, lembrei-me
exatamente como me senti em outra cidade, invisível, nidificado
pelas circunstâncias que eu próprio criei. No meio da rua enxerguei
uma camionete branca e preta vindo em minha direção, “Onde fica
a pensão, amigo?”, apenas indiquei com o dedo... Maria me viu e
correu, abraçou-me soluçando “Viu o que aconteceu? Viu o que
aconteceu? A vida é uma merda mesmo!”; eu nada dizia, nem ao
menos meus braços eu mexi; “Vem comigo, vamos lá, por favor!”,
mecanicamente a acompanhei. Eu via sua boca e via os gestos
enquanto conversava com os médicos, mas não conseguia ouvir; era
como se eu tivesse ensurdecido. Não sabia o que fazer, o que dizer,
acompanhava o movimento das pessoas e as atitudes do ser que eu
amava, agora inacessível, intocável, santo.
Dei às costas àquilo tudo, dei às costas ao futuro, à vida.
Andei até a porta dezessete e novamente postei-me a olhá-la, estava
lá, desafiando-me... Só que desta vez não havia brisa para me

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confortar, eram lâminas que passavam por dentro do meu corpo, a
araucária não tinha cheiro de nova, era de morte, de uma nova
morte. Juntei todas minhas roupas e preparei a mochila. Enquanto
saía Maria me viu. Perguntou-me o que estava havendo e lhe disse
que estava indo embora, falei para não me pedir explicação. “Tu
sabes o que faz, eu confio em ti”. Aquela frase desmoronou sobre
mim. Mesmo sufocado segui, aprendi que quando se toma uma
decisão, deve levá-la até o fim. Era nisso que eu acreditava? Eu?
Nenhuma luz, nenhuma brisa, eu estou a dezenas de
quilômetros de tudo aquilo. Faz onze dias que Rogério faleceu, que
toda aquela família, para mim, morreu. Estou outra vez no ponto de
partida. Estou com saudades dos meus pais, como será que estão?
Como estará minha irmã? E Maria, como estará? Arrependo-me de
ter ido até o fim com a minha decisão. Eu mesmo sei que sou vítima
de uma filosofia decadente. Como pude fazer isso!
Aquele não era eu. Eu sou outro, sou aquele trancafiado,
envolvido em tecido e ácido. Sou outro. Este rosto não é meu, estas
mãos não são minhas; e de quem são estes olhos? Estes olhos não
pertencem a mim; porém, no profundo olhar me vejo. Já não é este...
Sou eu. Espio-o por uma pequena fenda do interior da pupila. Está
ao largo, mas está lá. Estou lá. Estranho, desconhecido, ainda eu.
Tremo em pensar o contrário: se aquele lá no fundo não for eu e este
que vejo no espelho sorrir desprezando-me ironicamente de minha
dúvida? Entendo. Tenho duas opções a refletir: sou quem não quero
ser ou sou quem não alcanço.

22
Saudades de Maria. Fiquei preocupado com a última coisa
que escrevi: Sou quem não quero ser ou sou quem não alcanço. Está
tudo muito, muito confuso em minha mente. Tenho apenas alguns
trocados no bolso e não são suficientes para pagar minha estadia

56
neste hotel. Por diversas vezes pensei em fugir sem quitar minha
dívida, mas temi que fossem atrás de mim. Um hotel de beira de
estrada é muito “delicado”. Vi cada coisa nestes dez dias que nem
tenho coragem de relatar. Há mais de uma semana que saio do
quarto apenas para comer, dar uma caminhada e em seguida volto
para dormir. Durmo, acordo cansado de tanto dormir, como, e
durmo novamente. Se eu soubesse rezar, pediria ao Criador do
universo que me transformasse num inseto. A ideia não é nada, nada
original, eu sei. Mas estou muito cansado para ser criativo.
A atual situação em que me encontro – rever a cada dia todos
os passos que tomei durante a minha vida – me traz uma
descomedida sensação de angústia. Sempre ansiei por vida, quis
sempre, chegar ao extremo de tudo. Às vezes tenho a impressão de
que em diversos momentos, em minha corrida por prazer, cheguei a
tocá-lo nos calcanhares sem nunca passar disso; noutros, creio
piamente que o ultrapassei, que esta angústia e desconforto que hoje
sinto são a sensação de morrer sufocado, engasgado, farto de tanta
vida. No caminho de erros que eu tracei, minhas pegadas já não
existem, não tenho como segui-las de volta e recomeçar... O que não
entendo é por que razão permaneço imóvel, sem reação às
adversidades que esta viagem me trouxe e sem também, novamente,
tomar as rédeas da situação, ignorar os erros passados e seguir a
diante, como qualquer outra pessoa faria. Estes matizes do
corriqueiro, esta farpa certeira do cotidiano, tudo ocorre dentro da
maior normalidade, mas para mim, não; para mim não é assim.
Vivemos em dias absurdos, ninguém é capaz de negar isso, mas são
criados pequenos macetes e é correto isso acontecer, é certo que os
Homens se adaptem, contextualizarem-se a seu tempo. Resta-me
fazer o mesmo. É esse o ponto? Sou este que não alcanço?

57
23
Acordei antes das seis da manhã. Senti que teria de me
mexer, forçar algum acontecimento – e dormindo isto não acorreria
tão cedo...
Ainda não havia reparado, mas aquele pedaço da rodovia
guardava alguns segredos. Fui conversar, enquanto bebia um café
com conhaque, com algumas pessoas no posto de combustível, ao
lado do hotel. Estava frio, creio que fazia uns dois graus. Há vários
caminhoneiros que viajam em companhia de suas esposas, outros
com suas amantes ou sozinhos. Simpatizei, dentro do possível, com
um sujeito chamado Valdir. Este transportava uma carga de pneus,
carga esta que é muito visada pelas quadrilhas de assaltantes nessa
época tosca em que vivemos. Disse-me que já fazia três meses que não
via sua esposa, viajava sozinho e não dava caronas, em primeiro lugar
porque a empresa não permitia, em segundo, por considerar muito
perigoso, “Nunca se sabe quem pode estar a seu lado”, conforme suas
palavras.
A história de Valdir é bastante curiosa. Pouco antes de se
tornar caminhoneiro, trabalhava como “leão de chácara” em uma
fazenda em que morava com sua esposa e um filho. “Foram dias
árduos e intermináveis”, disse-me ele, esquentando lentamente uma
colher com seu isqueiro. O filho era um caçador nato, nunca havia
errado um tiro, caçava sempre com uma arma pesada, caso aparecesse
um animal de maior porte que seus tradicionais pombos que sempre
visitavam os arrozais. Certa vez, num dia de chuva fraca, frio e muita
umidade, notou um estranho movimento aos arredores da fazenda.
O rapaz havia ido caçar pela manhã, já passavam das quatro horas da
tarde e ainda estava ausente. Mais de trinta homens ingressaram
propriedade adentro sem maiores satisfações, estavam procurando
um presidiário que fugira há três dias, diziam que era muito perigoso,
era chefe de uma quadrilha de ladrões de gado e sua assinatura era a
coação da família e estupro de filhas e esposas enquanto sua trupe se

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envolvia com o carregamento do roubo. “E, embrenhados na mata,
fomos procurar pelo criminoso e por meu filho”. Apavorado, com o
passar das horas e a chegada da noite, temeu pelo pior e realmente
tinha por quê. Munidos de lanternas, cães e cavalos, passaram a
madrugada inteira a procurá-los. Os homens suspeitaram que algo
havia ocorrido, não era por não terem encontrado o criminoso que
deixariam de ajudar o homem na busca por seu filho, tinham certeza
de que agora os casos estavam ligados. A chuva, à medida que
amanhecia, cessava pouco a pouco; no horizonte incerto, um sol
vermelho despontava. Os ânimos estavam abalados, principalmente
os de Valdir. Quando o relógio marcou dez horas reuniram-se num
clarão da mata para reprogramarem as estratégias. Uns sugeriram o
cancelamento da busca e uma pausa para o descanso, ou esperarem
até que outros viessem a seu auxílio. Mas alguém ali não estava
disposto a acatar esta decisão. Valdir disse-lhes que continuaria,
mesmo que sozinho, a procurá-lo. “A vida do meu único filho estava
em jogo, não me admitiria tal concessão...”.
Sinto que devo omitir certos detalhes desta história, talvez
nem devesse contá-la desta forma, escrevendo em pedaços de papel
que enfio com descuido para dentro da mochila. Porém, se isto feito,
negaria a mim mesmo os objetivos da viagem. Viajei não só para
buscar algo, mas também para relatar os acontecimentos e o que eu
concluiria de tudo. O caminhoneiro se mostrava cada vez mais
nervoso, quanto mais próximo o ápice de sua aventura, maior ainda
era a sua ansiedade. Todos decidiram seguir o pai desesperado e
continuar a procura. Sem tréguas, sem mais desistências. Por volta
do meio-dia surgiu a primeira novidade, ouviram adiante deles um
passo firme entre as árvores. Dividiram-se em três grupos, dois foram
pelas laterais, em linhas diagonais, com a marcha mais apertada, o
outro, formando uma barreira, seguiu um pouco mais lento, mas sem
se distanciar do suposto passo, pelo centro, formando um triângulo;
tinham a ideia de ultrapassá-lo pelos extremos, fechá-lo pela frente e

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por trás completar o cerco. Quando se sentiram seguros da
proximidade com o indivíduo que, aparentemente, fugia, o líder dos
cavaleiros gritou que parasse ou atirariam... “Foi aí que ouvi a voz do
meu filho. Lembro que gritou que não havia feito nada, que tivessem
calma.”. Senti Valdir mais calmo, creio que reproduziu a mesma
sensação do momento em que encontrou, com vida, seu filho.
Encontraram o menino com as roupas rasgadas e com um
ferimento no pescoço, correu por quase uma hora sangrando e
desesperado. Contou-lhes que quando estava espreitando uma
pequena presa, ouviu algo de estranho. Foi surpreendido por um
homem armado de uma faca, e pela ação rápida do criminoso não
pode reagir, mesmo com a espingarda. O sujeito parecia perdido e
com muito medo. Estava nu, tentou despir o jovem usando da força
para roubar-lhe as vestes. O ingênuo caçador esboçou uma reação e
fora esfaqueado, o jovem se apavorara e o agressor também. Saíram
os dois correndo, um em cada direção. O menino correu até que fora
encontrado pelo grupo de cavaleiros e por seu pai. Quando voltaram,
tomaram um caminho diferente, visando encontrar o agressor, já que
pelo relato do menino, eles correram em direções opostas. Próximo
à casa do proprietário da fazenda, que estava vazia, encontraram um
corpo. Devia ter morrido a pouco tempo, segundo um dos policiais.
O corpo era do presidiário foragido, mas o filho disse-lhes que não
havia sido aquele homem que o atacara...
“Minha primeira reação foi pegar a minha família e mudar.
Com o dinheiro da rescisão consegui comprar esta carreta, eu
ganhava muito bem, por fazer aquele tipo de trabalho. Os policiais
varreram toda a região por semanas a fio e nunca encontraram
aquele homem que atacou o meu filho e nunca soubemos quem era
ou do que se tratava...”. Os olhos de Valdir já estavam cobertos de
lágrimas quando acabou de contar a sua história e de preparar a
seringa. Conversamos até o horário do almoço, mostrei-lhe algumas
de minhas fotografias que lhe agradaram muito, outras nem tanto.

60
Perguntei para onde estava indo, e se por acaso não abriria uma
exceção à regra das caronas, por mim. “Quer carona até onde?”, vou
até onde tu me levares, amigo... “Parto às duas horas, pode vir...”.
Rapidamente subi até meu quarto e organizei minha
bagagem, segundos antes das duas horas as joguei pela janela. Caíram
sobre o telhado do posto e depois no chão; desci, calmamente,
tentando parecer natural, peguei uma cerveja no bar do hotel, dei à
volta no prédio e logo tratei de esconder minha mochila no
caminhão. Pontualmente no horário estabelecido estávamos na
estrada, já estava pronto para mais Vida e ainda com uns trocados
no bolso; não poderia perder a oportunidade.
A duzentos quilômetros do ponto de partida, pedi que me
deixasse na próxima cidade. Não estava disposto que o perseguissem
e me encontrassem, assim também evitaria problemas para ambos.
Não quis envolver Valdir nesse pequeno deslize de caráter a que a
ocasião me levou. Ele não merecia isso. Na verdade, nem eu merecia.
Agora penso nisso, agora que estou sentado à beira de mais uma
estrada poeirenta e traiçoeira. Sinto saudades de casa, da casa grande
demais para uma pessoa só. Sinto saudades da Maria, humana
demais para uma pessoa só...

24
Ontem, assim que guardei as minhas anotações, refleti sobre
a história do caminhoneiro (antes de procurar um lugar onde
pudesse me abrigar durante a noite); já estava muito cansado
enquanto escrevia sobre a sua aventura, não consegui relatar
claramente os acontecimentos. Mas não consertarei nada. Assim veio
a mim e assim ficará registrado.
Dormi em um ponto de ônibus feito de tijolos e telhas
usadas. Provavelmente foi feito pelos próprios moradores das

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redondezas, já que o amadorismo estava presente em cada grão de
areia ali posto. Passei frio e fome durante a madrugada, não havia
iluminação alguma para eu arriscar uma caminhada, eu estava com
febre e muito desanimado. Quando amanheceu retomei a viagem. A
alguns metros encontrei várias casas de comércio e algumas de
moradia, pobreza e poeira eram o que aquela gente respirava. O
tráfego intenso de caminhões garantia dinheiro para a sua
sobrevivência, prostituíam suas filhas e vendiam artigos roubados;
parei em um armazém onde se vendia apenas pão, leite e cachaça.
Pedi uma dose e comecei a indagar o homem por detrás do balcão.
Aos poucos descobri que havia alguém que comandava tudo e todos.
Se alguém possuía algum dinheiro extra, era ele. Ficou claro que
aquela pessoa explorava todas as outras dali. Fui até ele com a
desculpa de comprar um cobertor. Mostrou-me a “loja” toda. Vendia
rádios de automóvel, ferramentas, rodas, peças, aparelhos eletrônicos
e outros mil itens, mas o seu “carro-chefe” era outro. Tinha material
do bom; propus trocar minha câmera fotográfica por alguns gramas
de cocaína e ele se mostrou desconfiado: “se tu tá a fim de vender a
câmera eu te compro, mas daqui tu não sai com mais de um grama,
o.k.?”, não entendi o porquê daquela proposta, mas para mim era o
negócio do século. Vendi a minha companheira de viagem por um
terço do valor e um pouco de maconha. Dispensei o ouro branco,
minha última experiência com o pó fantasma não havia sido das
melhores. Negócio feito, saí rapidamente do local. E à medida que
me afastava, mais rápido eu caminhava, e mais forte era o meu
pensamento em voltar para casa. Agora estou a alguns minutos de
embarcar em um ônibus de volta ao meu lar. Apesar de curta, minha
aventura foi intensa. Longe de tudo, representa-me um sonho
delirante...

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25
“Formiguinha amiga, não me morda. Pois quando eu era
pequenino, desviei meu enorme pé da tua trilha. Talvez se eu tivesse
assassinado o teu tataravô, tu não estarias aqui, passeando entre os
pelos da minha mão. Formiguinha amiga, mudei de ideia: morda-
me! Morda-me com todo o veneno acumulado nos séculos da tua
existência” ... Era isto o que eu dizia, em voz alta, pouco antes de ser
acordado pelo motorista do ônibus. Senti um pouco de vergonha,
mas logo passou. Vai ver ele nem sequer ouviu minhas palavras.
Talvez eu estivesse apenas sonhando que falava.
Houve um acidente gravíssimo, a rodovia está bloqueada nos
dois sentidos. O cheiro de morte está insuportável, as pessoas estão
nervosas e com uma enorme curiosidade. Pelo que entendi, o carro
que tentava uma ultrapassagem pelo acostamento colidiu
diretamente em um trator que trafegava por ali. Daqui onde estou
não dá para ver muita coisa, há policiais espalhados por todo o local,
alguns tentam organizar o trânsito, outros conversam entre si. Estou
encostado num tronco de uma árvore, começa a cair uma chuva fina
e serena, uma garoa, como alguns chamam. Tenho que parar de
escrever. Não quero voltar para o veículo, já faz seis horas que
estamos na estrada, devem ser umas duas horas da madrugada.

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Ainda estamos parados, a garoa cessou. Neste momento
estamos todos a par do acidente. Aconteceu exatamente como
suspeitei. O homem que conduzia o trator teve fraturas nas costelas,
mas passa bem. As pessoas do automóvel não tiveram tal sorte, da
mesma família três morreram, um último teve castigo pior:
sobreviveu sem nenhum arranhão; terá que viver por mais alguns
anos ainda. Chega a ser engraçado: os que morreram, morreram; o
que sobreviveu, fisicamente, ileso, deseja estar morto; e por último o

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tratorista, mais vivo do que nunca, cheio de dores, cheio de vida… O
que eu realmente acho é que não deveria ter comprado aquela
garrafa de uísque no bar da rodoviária. Preciso dormir um pouco.
Como está longe essa merda de porta!
“Morda com mais força, formiguinha, mais força, mais
força... Formiga idiota!”.

27
Após retornar ao ônibus, tudo transcorreu na maior
normalidade possível. Banhos em rodoviárias, estradas tumultuadas,
cansaço, mais três dias de viajem e muitas, muitas lembranças. Não
sei o que farei quando chegar em casa, talvez procure um emprego,
talvez venda a casa e compre um apartamento ou, quem sabe, alugue
um dos quartos para alguém. Chegarei pela manhã, estarei com
fome, não haverá nenhum alimento em condições de consumo,
exceto uma garrafa de vodca no armário da cozinha, alimento para a
cuca. Creio que já terão cortado a água, luz e o telefone. Esta será a
primeira coisa a ser feita: Pagar dívidas.
Dez horas da manhã. Estava parado em frente aquele lugar.
Vi paredes, teto, piso, janelas e portas. Não havia sinal de vida ou
nunca houve? Entrei em silêncio, o lugar estava exatamente como o
deixei, oco. Sentei-me no sofá, diante de um enorme televisor.
Limpei o pó de uns três dias do controle remoto e o acionei. Havia
energia elétrica. Fui até a área de serviço, abri a torneira do tanque
e... Água! O telefone toca: Alô! Poderia falar com o Dr. Henrique?
Não há ninguém com esse nome aqui, minha senhora...
Sem me exaltar tomei um banho, abri a garrafa de vodca e
fiquei a imaginar quem teria tomado conta de minha casa enquanto
eu estava fora. Meus pais? O poeta? Como ele soube? O que
aconteceu nesta cidade na minha ausência? Como é que entraram

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aqui? Algo mudou? Algo aconteceu? Passaram a se preocupar
comigo? Ausente, passei a existir? Deitei-me no tapete da sala e
adormeci. Acordei agora, oito horas da noite. Não tenho a mínima
ideia do que farei. Talvez vá até o bar da esquina, talvez ligue para a
minha mãe. Sim, isso seria correto: avisar da minha volta. Mas não
antes de fantasiar um pouco mais sobre essa novidade. Ah! Algo de
novo, algo aconteceu...
Ausente, passei a existir?

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Nem bem eu havia acordado, ouvi alguém abrindo a porta.
Levantei-me rapidamente e corri até a sala. Encontrei uma mulher
de uns quarenta anos aproximadamente. Estava bem-vestida e era
muito bonita.
— Bom dia, o Sr. é...
— Sim, sou ele mesmo. O que faz aqui?
— Tenho vindo uma vez por semana, já há algum tempo,
para fazer a faxina. Quem me mandou foi a dona...
— A minha mãe?
— Não, não foi ela. Foi a sua irmã.
Não consigo imaginar as feições que meu rosto adquiriu.
Minha irmã voltara, estava ali, a poucos minutos de mim. Se eu já
me perguntava se algo havia ocorrido de novo em minha ausência,
agora a curiosidade ultrapassa seus limites. Disse à faxineira para
proceder como sempre, que eu sairia e não tinha hora para voltar e
que depois trataríamos se ela continuaria com os serviços ou não.
Levei meu corpo trêmulo até a rua e o forcei a atravessá-la. Talvez
meu corpo tenha me levado, mas isto não importa. Andei um pouco
pela cidade e fui até a casa de meus pais, achei natural procurá-los,

65
pois eu havia me afastado por um tempo consideravelmente longo.
Assim também teria notícias sobre os supostos “acontecimentos” e,
principalmente, sobre minha irmã.
O reencontro com minha mãe e meu pai foi o mais natural
possível, quando cheguei, estavam bebendo chá e assistindo
televisão, seus rostos estavam repletos de rugas, o homem que eu
conhecera como o mais forte do mundo estava frágil, trêmulo,
humilde, amigo... A mulher continuava a mesma, preocupada,
dramática, linda. Estavam morrendo, com certeza. E com eles
também eu morria e todos os meus amigos e a vizinha, o jardineiro
e o Seu João, o jornaleiro da esquina. Mas parece que o Seu João teve
um neto; parece-me feliz. Nunca o vi agir assim com o seu filho.
Mamãe contou-me que sua filha havia separado do marido e
voltara para o nosso país. “Abriu um negócio próprio”, disse-me,
orgulhosa. Papai me olhava sem nada falar, apenas observava, parecia
que havia percebido que eu voltara pela metade... Mamãe continuava
contando-me sobre as peripécias de sua amada filha e sobre seu
sucesso profissional e financeiro. Abriu um Café, mas que à noite
funciona como um pub. “Você pode trabalhar com ela, meu filho, o
que acha?… Ah! Ela gosta tanto de você, não viu o que ela mandou
fazer na sua casa enquanto você andava por aí, gastando dinheiro?”.
Controlei-me para não dizer adeus e dar às costas a mais este episódio
mal costurado por algum deus estúpido. Imaginei-me voltando para
casa, quebrando toda a casa, ateando fogo em tudo, e que eu sairia
correndo e gritando: Formiguinha, o que me forçaste a fazer,
Formiguinha? Porém, logo me recupero, lembro que concordei com
o meu pensamento de banir o radicalismo, para evitar todos os tipos
de cegueira. “Ela está louca de saudades, volta daqui a uma semana
de...”, nesse momento eu a interrompo e digo que tenho um
compromisso... “Caso ela ligar, eu digo que você está de volta e esteve
aqui. Beijo, filho, até amanhã...”.

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“Até amanhã, mãe. Um beijo”. Até amanhã! Saio a repetir
esta expressão por um longo caminho. Até amanhã! Até amanhã! Até
amanhã!... Até amanhã, mas apenas se a formiguinha permitir... Era
isto que eu deveria ter dito. Mas não disse, fui o mais rápido possível
até minha segunda casa: o famoso bar da esquina; aquele mesmo,
onde conheci o poeta. Fiquei lá até anoitecer, pedi para anotar
minha conta que depois eu pagaria, voltei para casa e estou
escrevendo estas porcarias que nem eu entendo...
Esta noite ele veio a mim. Chorava em um desespero
profundo enquanto se masturbava. O caçula, em meu pesadelo,
estava velho, com um corpo esguio e fétido. Também eu, estava aos
prantos. Sobre nós havia uma imagem, um vulto. Um vulto não de
todo negro como sempre os são; este emanava insuportáveis raios de
luz, que se o olhássemos sem um sobreaviso, sua imensurável
branquidão, de sobressalto, tornar-se-ia negra de fato. Eis porque
digo que este vulto não era como sempre o são...
Já passam das onze horas da manhã. O pesadelo fez com que
desencadeasse em minhas memórias um ritual de suposições.
Suposições que um dia tive em relação ao que acontecera a nós três.
Inconscientemente sempre procurei por razões, motivos que nos
levaram a nos separar, nos levaram a transformarmo-nos em pessoas
extremamente desiguais. Somos irmãos; será que a única coisa que
nos uni, ou uniu, foi esse sentimento “depravado”, insensato? Pois o
sangue nós nunca respeitamos, pelo menos da maneira católica que
nos ensinaram no seio da família. Estou com uma ressaca horrível, e
este assunto já me causa repugnância. Por hoje chega. Bebi demais e
estou caindo de sono. Amanhã pensarei, ou melhor, amanhã voltarei
a pensar... Lembrei-me de uma frase que usei em algum momento
destes relatos e vejo-me agora na mesma situação. Creio que seja
apenas mais uma falsa impressão, mas: nada aconteceu ou – não
importa o que aconteça, nada, realmente, acontece?

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29
Vi, claramente, o crepúsculo dominical arrancar de mim o
último fio de esperança que existia. Sou um doente. Eram duas horas
da tarde quando cheguei para almoçar com os meus pais, depois
fomos visitar o caçula. Durante o almoço minha mãe irradiava
alegria, papai estava orgulhoso de ter a filhinha de volta. Ela estava
linda, coincidência ou não estava com o mesmo corte de cabelo que
Maria usava na ocasião em que a deixei. Seu rosto tomara as feições
dos de Maria, sua pele também se tornara branca como a dela, os
cabelos, igualmente, negros. Eu a olhava incessantemente... Sei de
tudo, era o que eu a dizia com o meu olhar, ela retribuía do mesmo
modo, com os olhos: Sei que sabes, meu amado irmão, sei que
sabes...
Falamos sobre o que se espera nestes tipos de reencontros,
coisas banais, falsas, nulas... Em seguida saímos, para não perdermos
o horário da visita; os médicos haviam dito que em poucos dias o
menino teria alta, estaria novamente em casa. No momento em que
o revi, dei-me conta que estava, finalmente, curado; olhou-me como
da última vez em que brincamos, não lembrava de nada que um dia
sentira. Seus olhos estavam vivos, acesos (com certeza estava drogado,
pois a vida que ali presenciei não era normal, era suprema.
Definitivamente, estava drogado), olhava-me com amor e compaixão,
era como se dissesse: Meu irmão, por que tanta tristeza? Para que
todo este sentimento de abandono... eu te amo, nossos pais nos
amam, amamos nossa irmã!
Dentro de três dias ele estará em casa, mamãe disse-nos que
rapidamente ele retomaria os estudos e tudo voltaria ao normal.
Pensei em que espécie de normalidade seria, em que espécie de novo
mundo viveríamos e

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E a Cidade Amanheceu em Cinzas

Hoje Dolores escreveu seu primeiro poema. Poema iniciado no exato


momento que sua mãe, ao dar à luz, morrera. Muitos dirão que
escrever sobre a vida e sobre a obra de alguém são coisas distintas;
mas assumirei outra postura, assumirei o pensamento alheio de que
todo poeta, não é senão autor, de um único poema. Da mesma
forma, e o mais provável, que outros articularão ataques ao que
considerarão tamanha loucura: principiar uma biografia no mesmo
dia, e a partir do dia, em que se conhece a pessoa biografada. Porém,
não é de hoje, como diz o dito vulgar, que a observo – sem dela
extrair um único sorriso. Contudo, à tarde Dolores dormirá
tranquila; talvez ponha seus pés sobre minha barriga. Talvez sorria.
Sei disso, pois, ontem, ao nos deitarmos, falamos sobre coisas. Sobre
as coisas que não sabemos o nome. Indaguei-a se há coisas cujos
nomes não sabemos; disse-me que não era uma pergunta fácil de ser
respondida. Disse-me que esta questão em muito se aparentava a
uma outra. Tal questão mantinha um formato mais ou menos assim:
que há no mundo em maior quantidade, coisas ou palavras? Que
existe em maior quantidade? Sei disso. Não porque ela disse. Mas
porque a ouvi falar. Ouvia-a falar pouco antes de pegarmos no sono.
Dolores é uma pessoa solitária. Vive e pensa só. Não tem
novos nem velhos amigos, somos muito parecidos. Seu poema é um
poema frágil, assim como sua saúde. No entanto, esta história não é
realmente sua, é minha. Talvez nossa. É uma história vista pelos
olhos dos senhores, leitores – mesmo que não haja leitores, mesmo
que não sejam leitores. Apesar de sérias dúvidas, para evitar certos
ataques creio este ser um início interessante para o nosso desabafo,

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no tempo passado, na ambiguidade do sentimento: O ambiente era
negro, sombrio. A luz adentrava os recintos de nossa história como
que rastejando, deixando-se ver somente com nossos olhos
entreabertos – mas como expressar em palavras a luz? Nesta tarde
iniciei esta história, e já estou disposto a encerrá-la, mas não o farei.
Talvez amanhã o faça... Talvez amanhã... Talvez... O que há de certo
é apenas o fato que aqui permanecerei. Permaneci e permanecerei
enquanto houver algum sangue a ferver. Algum calor a sentir, alguma
esperança a remoer. Já houve um tempo em que eu pressentia um
cheiro de aventura muitas horas antes de algo ocorrer; algo distinto
passou nestes dias... Provoquei esta aventura. Inventei minhas
certezas e minhas dúvidas. Inocência cruel e predisposta à destruição
de si próprio. Quero ser sugado, quero ser testado; vestido como a
um palhaço sem graça, inútil em uma festa sem crianças. Ah! Cruel
Dolores... como será seu coração, quando estiver em busca de algo
perdido? Como organizará sua errônea lógica quando a vida lhe
apontar um caminho oposto? Quando perceber que sem imaginação,
não há lógica. Não há vida. Não há sobrevivência! O fim de uma
pessoa é o fim de infinitas possibilidades de vidas, de brincadeiras
em que fingimos ser como deuses insanos e repletos de razão.
Contraditórios por natureza.

2
O ambiente era negro, sombrio. A luz adentrava os recintos
de nossa história como que rastejando, deixando-se ver somente com
nossos olhos entreabertos. Se demasiadamente abríssemos os olhos,
ela nos cegaria. Se os fechássemos – acabaria conosco. Vistas pela
janela, as silhuetas móveis dos plátanos contrastavam com as nuvens
atingidas pela luz de uma lua que não estava lá, mas detrás daquela
pequena pousada onde Dolores, eu conheci. Bela musa de um
guerreiro sufocado de erros, de um escritor sem livros, de um poeta
sem amor.

71
Na noite em que aqui cheguei, com apenas minha pele e
meus ossos, Dolores recebeu-me como a um príncipe – e a vida, não
sabia eu – pela última vez, convidou-me a encará-la de frente, com
paixão, aventura! Quando olhei em seus olhos, aquele lugar já não
parecia vazio. E toda aquela penumbra não mais me despertava
terror, ao contrário, meus temores incendiavam meu sangue,
cerravam meus dentes, excitavam-me. Em princípio minha ideia era
a de ficar apenas doze dias. Era quando se encerravam minhas férias
de verão. Mundano pensamento de típicos bois de canga; de escravos
que carregam seu fardo sem compreender que possuem a capacidade
de livrarem-se dele. Tolice a minha, ingenuidade minha: Prever o
futuro! Mas ontem foi o dia dos dias. Foi o dia em que ouvi sua voz
de uma forma que ainda não havia ouvido. Senti seu cheiro como
jamais havia sentido, vi seu sorriso, lambi seu ventre, como nunca
fora feito. E, exaustos, dormimos a partir de uma tarde igualmente
sombria. Eu só. Ela, sozinha. Aqui permaneci e permanecerei; sem
planos, sem fatos... Somente minha própria companhia e alguns
lances de dados.

3
Dolores às vezes mostra-me o que escreve. Mas na maior
parte do tempo, apenas fala-me sobre aquilo que fora escrito. Alguns
de seus pensamentos confundem-se – mais que isso – fundem-se aos
meus. Entretanto, e lamentável, alguns de seus versos permanecem
– apenas seus. Habito este ambiente com mais duas criaturas, um
menino e uma menina, filhos de minha musa sandia. Quase nunca
falam comigo, observam-me, agitam-se, nada mais. Até ontem,
apenas eu estava hospedado aqui. Hoje chegaram dois casais de
jovens fedorentos e drogados. Dolores parece apreciá-los, agora, mais
que a mim. Apesar da tarde e da noite anterior, hoje dormirei em
meu aposento. Solitário no sentido lato do termo. (Quase um
buraco. Úmido, denso; um poço claustrofóbico e violento. Minha

72
cama fica na parede dos fundos. Não há “um outro lado” nesta
parede; há somente um aterro, igualmente úmido, igualmente
angustiante. A parede e o aterro possuem uns três metros de altura.
No que segue os recôncavos, apenas uma terra que parece ser sempre
removida, remexida, revirada. De um mau cheiro inefável e em um
perene movimento). Os viajantes mantiveram a fala que fora minha
no dia em que aqui cheguei: belo lugar para passar alguns dias;
longínquo, curioso, inebriante. Longe dos olhares daqueles que não
suportam uma pequena aventura psicoanaléptica. Não sei quantos
dias permanecerão ali. Será que perdurarão algum tempo a mais,
como eu mesmo fizera. Suportarão aquele cheiro de mofo e o
vampirismo da agora nossa anfitriã?
Não posso negar que o ambiente externo é fascinante. A
pousada fica numa, como chamam mesmo? Numa coxilha! Sim, é
assim que chamam as extensões pequenas, não tão grandes, elevações
de terra onde nasce alguma vida vegetal e sobrevivem alguns animais.
Assim como nós. Fico muito grato que, ao menos até agora, apenas
os animais ditos inferiores são abatidos para a nossa alimentação.
Apesar de no quinto e mais recente sonho que tive, sonhei com
aqueles meninos, ansiando por um pedaço de mim. A mais feroz era
a fêmea queria comer-me enquanto pulsava minhas veias. Mas não
pensei mais nisso e fiz questão de bloquear os pesadelos anteriores.
Acima da coxilha há um morro e, mais acima ainda, uma
montanha. Nesta montanha corre um peque riacho que despeja suas
águas sobre a colina. Que por sua vez, fez questão de desviar da
coxilha e correr, apesar da violência de suas quedas anteriores, lenta
e silenciosamente em uma saliência profunda aos fundos da
desedificação rústica de onde estamos habitando, sobrevivendo de
perspectivas. Mas creio que expresso estas palavras apenas por mim.
Talvez, ou melhor, provavelmente, eu seja o único a me embriagar
com a geografia do lugar, embriagar-me e gozar da vertigem destas
imagens... Estou muito curioso em desencadear meu verdadeiro

73
sentimento sobre o caso de Dolores não se manifestar a favor que eu
dormisse com ela mais esta noite. Sinto ciúmes. Náuseas inigualáveis.
Todavia, tenho a plena convicção de que, apesar da possível noite
insone que terei, amanhã saberei, verei com clareza o ocorrido desta
noite atroz e existencialmente lúgubre. Deitar-me-ei a fitar a égide
mofada e fétida de meu aposento, as náuseas continuarão... Passarei
a apreciá-las, logo adormecerei.

4
Ora, “logo adormecerei...”, como me arrependo de outra vez
deixar uma esperança moribunda apoderar-se de mim. Não
adormeci. Permaneci durante toda a noite a tentar coligar os sons do
ambiente à minha imaginação e aos meus anseios. Ouvi risos,
gemidos – todos misturados a estalos da velha cama de Dolores.
Quando amanheceu, logo me levantei da cama e dirigi-me à pequena
cozinha onde, certa vez, em outros dias, sempre havia um café a
beber, um pão a mascar, uma mulher a apaixonar. Hoje nada havia.
Nada existia, ocorria; apenas um silêncio mortal que pareceu durar
horas até que fora cessado pelo riso daquelas criaturas minúsculas e
fedorentas a quem Dolores chamava de filhos. Deboches raivosos e
sádicos da inenarrável ofensa que a mim dirigiam. Não com palavras,
não com gestos físicos; mas com risos de indiferença e agressividade.
Lembrei-me de minhas mortes particulares, derrotas e perdas que me
transformaram nisto que sou. Agora simplesmente sobrevivo à dor
destas perdas e à insegurança da afirmação do que é certo e do que é
errado.
Logo em seguida, um dos casais entra no refeitório,
cumprimentam-me; logo peço licença para me retirar. Vou até o
banheiro, busco uma posição estratégica para observar o quarto de
Dolores. E eis que minhas suspeitas se transmutam em realidade, em
fatos. Os outros dois saem do quarto onde dormi há duas noites. Em

74
seguida Dolores também aparece; aparece com um sorriso no rosto
e olheiras tão profundas como as feridas abertas em meu
incompetente coração. Ela passa por mim, acaricia meu rosto e diz:
amo-te mais que a meu próprio prazer! “Amo-te mais que a meu
próprio prazer!”. O que significaria isso? Que sentido possuíam estas
palavras?
Por algum motivo eu não consegui sair dali, daquele lugar
funesto e excitante. Minha dor, como animal esfaqueado, não atribuí
ao ato de Dolores, não sou exatamente um sujeito emotivo, apenas
sensível. Animalmente sensível ao perigo do confiar em animais de
outra espécie. E, depois disso, tive noção que apenas havia eu ali de
mais próximo aos animais humanos. Dolores e suas crias possuíam
apenas uma aparência, uma aparência extremante facetada. Talvez
sem emotividade. Sem paixão, emoção dita como antigamente,
equilibrada. Equilibrada como foram os animais humanos antes de
mim. Mesclados a uma humaneza respeitosa para com os seus
julgados semelhantes na singularidade. Amar mais que o próprio
prazer! Talvez o prazer para ela seja o substituto daquilo que
chamávamos de vida. Algo mais universal e, com o perdão da palavra,
mais humano.
Após o ocorrido, passei o dia andando através da coxilha, até
chegar ao morro. Onde me deparei com enormes pedras e com o
som do riacho. Achei curioso haver um riacho acima de minha
cabeça. Tentei escalar as rochas e acabei escorregando e caindo de
costas sobre uma planta espinhenta e rígida. Senti uma dor física
quase insuportável, embora tenha conseguido rir da situação. E,
como há tempo eu não sorria, aproveitei o momento para apreciar
tal dor. Sentir-me vivo, talvez. Permaneci ali até o anoitecer, quando
inicie meu retorno à pousada. Sentindo-me um tanto leve, um pouco
satisfeito com minha peripécia em particular... Já não mais me
importava com o ato de Dolores, já não fazia sentido pensar que a
teria apenas para mim. Como é a maneira de se possuir uma pessoa?

75
Como possuímos nossas vestes ou nosso pão comprado com trabalho
e técnica? Não, eu estava errado. Estava errado o que eu havia
sentido. Mas, estaria eu, tornando-me como eles? Ou era o novo
modo de amar que a mudança dos tempos nos trouxe?

5
Recordei um pouco e percebi que até então não havia um
único segundo que eu ficara, como dizem, em paz. A angústia e a
ansiedade sempre estiveram por aqui – em mim. E, claro, como um
bom Cristão, descobri tarde que tudo ou deriva da raiva ou deriva
da culpa... Digo isto, pois Dolores assim me orientou, um dia após
eu retornar de minha peripécia na coxilha, disse-me isso, lembro-me
bem, enquanto lambia a parte interna de minha coxa esquerda.
A pousada estava sem hóspedes há um bom tempo.
Passávamos os nossos dias como de arremedo. Estavam tão iguais que
nem mais sabíamos qual era a data em que nos encontrávamos. As
criaturas estavam crescendo. Passei a simpatizar com elas. Um dos
animaizinhos até deu-me um presente. Era uma espécie de pedra, um
objeto que não consegui definir. Tinha o formato de uma articulação
óssea, bem pequena; do tamanho de uma bolinha de gude.
Envernizei-o; para demonstrar apreço. Dolores estava por aqueles
dias com um semblante tranquilo. Sua pele estava tão deliciosa como
antes, porém cheirava à inocência. Não sei ao certo. Era como um
aroma de uma chuva mansa em um pescoço jovial, com cheiro de
chiclete. Algo que me remetia à minha juventude. E aquilo me
despertava um salivar levemente ácido.
Sempre depois do almoço eu acabava pegando no sono,
Dolores permanecia em frente à pousada, sentada sobre um troco de
árvore. Um cinamomo muito antigo, quase petrificado. Quando eu
despertava não sentia aquela dita sensação gostosa de um
espreguiçar-se, sentia-me intranquilo, ansioso, com medo. Sentia

76
todos meus ossos ralando uns contra os outros, minha pela
desgrudando-se e se alteando como nas ecdises das cobras. Minha
carne apodrecia vagarosamente... Acho que acordei com câncer,
disse certa vez a Dolores. Não se acorda com câncer, disse-me ela.
Pouco importa. Acordei com um câncer, pensei. Enquanto sentava-
me a seu lado.
Em uma determinada manhã tive a sensação de ter
adormecido sozinho. De nunca ter havido Dolores. Estava eu sentido
a brisa da manhã, solitário. Confuso. Foi neste dia que tive a ideia
de anotar meus dias antes de deitar-me, ou quando tivesse vontade,
quando sentisse que se não o fizesse naquele momento eu o
esqueceria. Foi no mesmo momento que observava fisicamente
Dolores e pensei: esta mulher tem uma cabeça perfeita... O raio do
crânio, o comprimento do queixo, a largura das narinas... A
imensidão do olhar... O cheiro da virilha... A profundidade de sua
garganta... Seus pelos..., mas havia muitas outras coisas que me
incomodavam. A pequena abertura entre os incisivos centrais, uma
pinta demasiadamente estranha atrás da orelha esquerda; que às
vezes parecia um tanto maior que a direita. Sua extrema habilidade
em me excitar... A maneira de fazer com que meu pau parecesse
menor com suas gigantes e deliciosas mãos.
No entanto, em algumas vezes percebi que isto era o que
mais amava. Imperfeições. Gostava de vez ou outra encarar-me no
espelho. A pouca ferrugem formava um pequeno esboço artístico.
Bloqueava minha própria visão de mim. E eu me lembrava do corpo
de Dolores. E tudo eu esquecia. Percebia as pequenas coisinhas a que
nos apegamos para acreditar veementemente em nossas próprias
mentiras. O corpo de Dolores. “Amo-te mais que ao meu próprio
prazer”, disse-me ela. Linda mentira. Linda como todas aquelas
mentiras que eu contava a mim mesmo. — O inefável manifesta-se
sob o luar solitário... Estamos longe de casa, longe do lar de nossos
irmãos.

77
6
Fiquei a apreciar o objeto que ganhei da criaturinha. A
semelhança com um osso era realmente impressionante. Eu estava
cansado, tenso... Usei uma das drogas de Dolores e fui para o meu
quarto. Há tempos não entrava ali. Durante a noite fiquei instigado
a cometer suicídio. Como de costume, lembrei-me de Dolores.
"Àquilo que os deuses desejam não nos cabe dizer que sim nem que
não..." Na ocasião em que me dissera esta frase, estávamos deitados
há quinze horas. “O que os deuses desejariam para mim?”, pensei.
Quase tudo que quis, conquistei... E mesmo assim não me sinto –
em nada – realizado. Mas penso que quando estamos longe do
litoral, em cada palavra reside um mar. Digo, não estaremos uma vez,
ao menos, satisfeitos?
Meu relacionamento com as palavras nunca foi fácil, fluído.
Em todos os momentos busco algo além da palavra, talvez algo
realmente sobre a palavra. E “fracasso” é uma delas. Certa vez sonhei
em ser livre. "Livre". Sonhei em sentir tranquilidade.
“Tranquilidade”. Tive sucesso em muitos casos, porém, quero mais,
sempre mais. "Mais". Quando penso no corpo de Dolores sinto certa
paz. "Paz". Quando quero mais. Nada tenho. "Nada". Possuo algumas
lembranças tanto inusitadas. Lembro-me mais de gritos que
cumplicidade. Recordo mais de olhares que de sermões. "Regras".
Mais de cheiros que de presentes. O cheiro de minha avó desejando-
me "Feliz Natal, meu filho". Tudo é verbo. Tudo é mental. Tudo é
consciência racional do eu e sua percepção do mundo. Que mundo?
Onde está o Mundo? Queres conhecer o meu, Dolores, queres?
"Querer".
Há retalhos por toda a parte. Em todo o texto, por todo o
sofá... Em todo cheiro, em todo olhar... Há poesia em todo lar. Há
dores em todo mar... Há beleza em toda a dor. Há uma linha
violentamente tênue entre o deprimido e o deprimente. Comi esta
linha, enfiei-a no rabo... quando lambi, pela vez primeira, Dolores.

78
Quando deixei minha vida esquálida e lancei neste mar. Divaguei
sobre o real e adormeci sob a quente areia. Quando despertei, já não
era o mesmo. Já estava enamorado das tristezas do viver. Um salar
incessante se apossou de mim. Minha sede apenas aumentava.
Violenta, pendular. Arrebatava-me para qualquer lugar que voltasse
meu olhar. Mas, como sempre, sempre em que devemos falar, perco
minha voz. Não sei bem o que escrever, apenas há a necessidade de
escrever, mas nenhuma habilidade. Não é por falta de querer que a
vontade não vinga. Vem-me à mente recortes soltos de antigos
pensamentos... Tento ver. "Ver". Mas tudo me parece apenas uma
imagem... "Em toda fala há uma mentira". Frases... Mentiras... Uma
busca pelo sentido... "O desejo sempre pune os confusos...". "Apenas
a morte do outro nos atinge"... Nunca nos vemos como um amigo de
nós mesmos... Sempre estamos em guerra... E a guerra parece não ter
fim; até que a noite eterna nos acolha... E, enfim, com os olhos
cerrados, choramos, pois sentimos a nossa própria falta.

7
Numa manhã cinzenta e fria, distinta das demais manhãs
que até ali ocorreram, Dolores me narrou que durante muito tempo,
em sua juventude, ela gostou apenas de histórias com finais felizes,
mas que desconhecia o que era a felicidade. Sempre desconheceu a
felicidade. De imediato, passei a recordar passagens da minha vida,
tentando encontrar um naco, ao menos, disto que chamamos, em
nossa língua, de felicidade. E não encontrei. Fiz o mesmo com o
termo amor... Tampouco. O que havia de errado nisso? Pensei,
então, em termos de sentimentos bons... Sentimentos que me
fizeram bem... Que apreciei em senti-los, que sorri ao vivê-los.
Definições nada mais fazem do que encerrar possibilidades de
significado. O que chamei de amor, aquilo que senti por minha mãe,
por exemplo, poderia ser muito bem felicidade... Felicidade sentida
por aquela criatura existir. Ou, quando nos lembramos de algo de

79
algum passado remoto... Algo de que não nos orgulhamos...
Orgulho, outro termo amplo. Minha memória não é em nada
louvável, no entanto, lembro-me muito bem deste momento de
minha existência, das palavras de meu avô. Pois elas me
acompanharam e ainda acompanham e, sem exageros, formaram-me
como pessoa. Mostram-me que, na tristeza, há o maior aprendizado:
Estar vivo. Pessoalmente, a grande questão do vulgo shakespeariano
é uma farsa... ser sempre será melhor que não-ser... E, como me disse
Dolores nesta tarde, “Isto serve apenas à poesia”, enquanto sorria
com a língua entre os dentes... Disse-me que, uma vez que nascemos,
somos necessários, a contingência, quando relacionada ao existir de
nós mesmos, é anterior ao nosso surgimento no mundo. Somos
tempo e mais nada. Então, sorri... E, aparentemente, sem razão
alguma, senti-me bem por alguns segundos.
Já faz alguns dias que Dolores não escreve. Anda um tanto
reticente em encarar a si mesma. Seus últimos versos questionavam
se, acaso, fôssemos felizes, haveria algo “maior”. Se a felicidade, em
outros termos, era absoluta, disse-me. E, pela primeira vez, não pude
levar a sério algo que fora perguntado por Dolores... Há pessoas que
falam sozinhas. Dizem que é um hábito a se cultivar. Já disseram,
ainda, que no meu caso, é até necessário. As pessoas creem nisso.
Como eu também creio em certas proposições. Mesmo que,
tecnicamente, estas asserções sobre a vida e sobre o tempo não sejam
proposições. No entanto, assusta-me a ideia de que nossas crenças
talvez sejam apenas o inconsciente encontrando explicações e
justificativas para suportarmos a realidade. Por vezes desperta-se, pela
segunda vez, no mesmo dia... E espreita-se, a primavera. E não
encontramos proposições para expressar o amor e a felicidade. Não
sabemos definir o que é amor, o que é felicidade. Às vezes temos a
impressão de que apenas concordamos o que possa ser Primavera. É
com todos os pretéritos e não apenas um lançamo-nos ao futuro —
na busca atual e incessante de todos os verbos. E certa vez, nessa

80
confusão de termos e sentimentos, impregnados de vinho e de
tabaco, perguntei, então, o que seria a tal da comédia. E onde
iniciaria a comédia, na vida do homem? Na subjetividade, disse-me
Dolores, o sujeito é importantíssimo às comédias. Nunca entendi o
seu senso de humor. Nem o sinal da cruz feito, piamente, todas as
noites, antes de trepar. (A crença religiosa é fantástica...
etimologicamente, fantástica).

8
Depois de muito tempo estamos com hóspedes. Hóspedes
distintos dos que até ali apareceram. Dois homens bem-vestidos e
ares tensos. Olhares de sobrevoo e com vozes de afronte. Chegaram
há dois dias logo após uma pequena tempestade. Estavam com as
vestes molhadas, com frio e com fome. Oferecemos toalhas logo que
chegaram. As crianças as trouxeram, às pressas, ansiosas. Fazia muito
tempo que eu não me sentava para escrever. Neste exato momento
estou forçando a escrita. Sinto uma ansiedade estranha. Não sei ao
certo sua origem. Sua causa. Parece-me, a princípio, medo. Não um
medo de não conseguir escrever... Ao contrário. Este medo é de que
eu consiga escrever. Consiga pôr para fora meus demônios. Expor a
mim mesmo, para mim mesmo. Eu mesmo. Escrever é como
olharmo-nos no rosto. Uma visão direta e imediata de nossos
próprios olhos, na escrita. Nas palavras. É disto que tenho medo.
Minhas mãos ainda tremem. Mas prossigo.
Os homens parecem não ter interesse em Dolores; não estão
em viagem para buscar prazer. Ao menos é o que me aparenta. São
os primeiros dentre os poucos hóspedes que ali ficaram desde que
cheguei que não sei o que sinto em relação a eles. Não sei ainda o
que farei. Pego vez ou outra um deles a me espreitar; quando
demonstro interesse em seu olhar ele move a cabeça não parecendo
saber para qual direção. Hoje pela manhã eu tomava meu café no

81
balcão, como de costume eu bebia minha cerveja escura, que eu
mesmo preparava no primeiro sábado de cada mês. O homem mais
jovem olhava-me estranhamente. Talvez apenas estivesse curioso por
eu beber cerveja pela manhã, no desjejum. Pretendo puxar conversa
nos próximos dias. Até agora apenas Dolores dirigiu-lhes a palavra.
E as criaturinhas, pela tarde, sempre emitiam alguns grunhidos
durante alguma brincadeira casual.
Saí para caminhar há duas horas. Regressei à coxilha. Cai
uma chuva fina e a temperatura está muito agradável. E as árvores
estão, como dizia um poema antigo, desesperadamente verdes. Deste
ponto já possível avistar, por cima, a pousada. Seu telhado está
tomado por limo. Fico olhando fixamente para a parede que fica aos
fundos do meu aposento. Ou melhor, para o local onde a parede
está, já que ficam avista apenas uns 50 centímetros da alvenaria; o
restante, fica sob aquela terra que insiste em manter sua aparência
de nova, mexida, e apenas alguns poucos ramos de grama. Acredito
que ao regressar passarei pelos fundos da pousada e darei mais uma
olhada naquele pedaço de terra; creio que devo escavar e olhar bem
o que há de tão especial naquele lugar. Se bem que muitas e muitas
vezes tive este pensamento e nunca consegui realizá-lo. Sempre
ocorre algo que me desvia do caminho.

9
É estranha a sensação de que, mesmo quando estamos a sós,
estamos – ao mesmo tempo – coexistindo. Existindo junto aos
demais humanos. Nosso mundo é o mesmo. Nosso mundo é o
mesmo? Mas é curioso o modo que coexistimos. Atualmente as
grandes aglomerações já não existem. As grandes cidades todas
arderam em chamas. Mas isto já faz muito tempo. Tudo aconteceu
muito rápido. Aliás, foi a “velocidade” que, sob o meu olhar, causou
o declínio da humanidade. Uma espécie de tacocracia tomou conta

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do cotidiano das cidades. Tudo se tornou demasiadamente
superficial. As relações familiares, pessoais, profissionais. A relação
conosco mesmo também se tornou superficial. Não sei muito em
como elaborar uma explicação. Mas para que explicar? Não faz
sentido pensar neste momento em uma explicação. Escrevo somente
para mim. Não tenho, de fato, a intenção de mostrar estes escritos,
algum dia, a alguém. E é bem provável que eu destrua o que foi
escrito no término de minha estadia aqui. No mundo. Mundo. Onde
está o Mundo?
Aqui, pelo lado de fora, não há aquele cheiro estranho que
sinto quando estou no interior do meu quarto. É bem verdade que
há tempos não durmo ali, mas recordo-me bem do cheiro. Tenho
passado muitas noites no quarto de Dolores, às vezes conversamos,
horas a fio, sem ao menos nos olharmos. Parecemos dois atores
ensaiando monólogos paralelos. Monólogos de peças distintas...
Esfrego meu pé na grama rala enquanto escrevo. As folhas de ontem
estão um tanto umedecidas devido à chuva. Mas ainda posso fazer
uma releitura. Sinto a terra entre meus dedos e um pequeno prazer
na sola dos pés. Um prazer quase sexual. Uma formiga passeia de
unha em unha. Eu a amo. Ouço passos atrás de mim. Cesso por um
instante de escr

Falei com os hóspedes respondendo às suas perguntas sobre


a geografia da localidade. Queriam saber a que distância ficava a
próxima vila se seguissem para o leste e a quem a pousada pertencia.
Disse que não sabia ao certo e que perguntassem a Dolores.
Olharam-me outra vez com estranhamento e se afastaram. Gostaria
de retornar à escrita anterior. Mas a formiga não está mais aqui e não
há mais prazer algum em meus pés, ou em escrever sobre eles...
Não há prazer algum em nada.

83
10

Para Dolores, assim como para mim, sofrimento e morte


eram coisas naturais. E Dolores amava a natureza. Mas quanto à
violência discordávamos em vários aspectos. Disse-lhe, algumas vezes,
que a Natureza era violenta. Para ela, o conceito de violência foi
tratado de maneira errada durante muito tempo. Durante os anos
das grandes aglomerações. Uma guerra sempre nos encontra, dizia
ela. Cheguei a este assunto a partir de um sonho que tive há duas
noites. Aqueles pesadelos que no momento não distinguimos se reais
ou não. Mas não encontro mais sentido em continuar a escrever
sobre ele. Creio já ter notado isto: qual será a verdade sobre essa
aparente necessidade em escrever? E o pior de tudo: escrever como
se estivesse alguém a me observar. Ansioso em saber qual será a
próxima letra que surgirá na folha... Deixarei mais este assunto de
lado, imaginário amigo. Até a próxima vez, meu caro! Gostaria de ser
capaz de descrever o riso sem graça que me ocorre cada vez que
brinco, aleatoriamente, tendo meu fim como mote.
Um ponto final a todo delírio.
11
Após a confusão do último escrito, decidi estar mais sóbrio
quando for registrar meus pensamentos e os fatos ocorridos aqui. O
mais preocupante é que a sobriedade tem me enlouquecido cada vez
mais. Ontem à noite tive mais pesadelos terríveis. Repousei minha
cabeça aos pés da cama, no assoalho de madeira. Não suportava mais
aquele colchão. Gostaria de estar outra vez na cama com Dolores, já
faz algum tempo que estivemos juntos e ela me evita ultimamente. E
ainda não sei o porquê. Tudo está muito confuso, eu até preferiria
que Dolores estivesse acostada com os dois sujeitos. Mas não. Está
só. Sozinha em seu quarto. E eu aqui, sozinho com minhas
perturbações.

84
Não consigo mensurar todas as vezes em que fiquei magoado
com o que as pessoas me falaram. Era muito jovem e com tudo me
magoava. Era um menino mimado e arrogante. Usava meu
conhecimento literário e minha aguda percepção para me pôr em
altos patamares. Isso não é tudo. Hoje eu sei. Lembro-me de uma
outra época estranha. As pessoas relacionavam-se pelo que elas
chamavam de internet. Havia algo como que redes sociais. Éramos
amigos de outras pessoas, éramos seguidores. Entrei neste compasso
por um tempo, uns cinco anos, creio. Mas aos poucos fui sumindo.
Desaparecendo. A impressão que tive foi a de que nunca, realmente,
existi. Nunca existi para nenhum deles. “Não teria eu tido amigos,
um dia?”, pensei. Não sei. Na verdade, não sei. Eu simplesmente
desapareci. A pessoa que convivia comigo, junto a meu filho,
também desapareceu. Vi-me sozinho. Preso a um mundo de
pensamentos. Incapaz de descrever meus sentimentos, incapaz de
descrever tudo o que senti ou pensei. Algo muito parecido ocorre
com estes escritos. Não sei direcioná-los como deveria. Não sei
escrever de forma correta. Com os meus antepassados também
ocorreu o mesmo. Tragédia. Uma família inteira assombrada pelo
fracasso.
Os homens pagaram pela estadia e se foram. Estamos a sós
outra vez. As criaturinhas andam silenciosas. Dolores também pouco
fala. Apenas anda por aí, ao léu. Não a vejo nem ao menos realizando
os afazeres domésticos como de costume. Na verdade, não me lembro
da última vez em que a vi lavando as peças de louça ou os talheres.
Sinto quase vontade de sorrir: A vi de relance agora há pouco,
enquanto iniciava essa escrita. Parece que ela está atrás de mim, neste
exato momento... não posso negar que enquanto a sentir, eu não
imagine que tudo fará sentido novamente. Que eu sinta uma vez
mais aquela sensação de aventura. Mas sei que já estou a divagar.
Dolores, minha Dolores, nunca existiu. As Dolores sempre são de
todos. E sempre há criaturinhas junto a elas… Não sei por que deixei

85
que aqueles homens fossem embora, sei que eles voltarão e me
causarão problemas. Agora já não tenho dúvidas, agora vejo com
clareza. Sinto medo.
Precisarei desencavar os corpos?

86
49

Algo de estranho, a alma na terra.


Georg Trakl

Sim, era preciso. A maneira correta de como começar escapava-o a


todo momento, mas necessitava de um começo. Aquela história
deveria ser contada o quanto antes e do modo mais sucinto possível.
Havia, no entanto, uma dúvida: quem leria uma história escrita por
um estrangeiro e, além do mais, de um nome tão
estranho? Sucram carecia, somando ainda a todos os seus
infortúnios, de outro nome. Talvez também, de outra vida.
Sem ter grandes aspirações naquela manhã, Sucram
penhorou na loja da esquina um laptop surrado e velho que havia
encontrado em seu último dia de emprego. Há quatro anos
trabalhando na separação de resíduos sólidos naquela cidade, ele
nunca havia levado nada para casa, porém, quando soube que seria
demitido, sentiu-se impelido a levar algo com ele desta vez. Saindo
de lá, dirigiu-se a uma Feira de Rua (ou, Flohmarkt, como diriam os
locais) onde comprou uma antiga máquina de escrever. Voltando a
seu quarto, tirou o pó de uma velha mesa e a acomodou ao lado de
sua cama. Ali, imaginou ele, sentir-se-ia mais confortável para
escrever que na cadeira solitária que era usada, muitas das vezes,
como cabide para suas roupas sujas e que, em uma ocasião ou duas,
pôs seus pés enquanto enrolava uma corda em seu pescoço. Nunca
teve coragem de completar o ato, ao menos não até aquele dia.
Após algum tempo olhando para a máquina, Sucram
percebeu que não havia papel algum em casa. Algo curioso, já que
ele sabia exatamente o que faria com o laptop quando saiu do seu
antigo trabalho onde, aliás, papel era o que não faltava. E algumas

87
folhas para o rascunho já bastariam naquele momento. Sua decisão
de usar uma máquina ninguém soube ao certo. Mesmo que muito já
tivesse sido fofocado sobre como ele gostava de coisas antigas. Seus
colegas sempre falavam, seu chefe e outros ainda. No prédio onde
morava quase ninguém falava com ele e, muito menos sabiam de sua
vida. Alguns, certamente, não reconheciam nem mesmo sua
existência. Mesmo assim, decidiu ir até o apartamento vizinho que,
como o seu e não por acaso, também estava sem a identificação na
porta, devido ao constante vandalismo que ocorria naquele prédio.
— Um momento, por favor, disse uma voz feminina,
enquanto já era possível ouvir seus passos no ambiente.
— Olá, bom dia. Sou seu vizinho, aqui deste andar. Peço
perdão por lhe importunar, mas, por acaso, não teria algumas folhas
de papel em branco para me emprestar?
— Ah... oi, bom-dia. Imagine, não há por que se desculpar.
Vizinhos são para essas coisas, não é mesmo? Espere um momento
que já lhe trago.
Ao deixar escapar um tímido sorriso, Sucram, enquanto a
moça fechava a porta, pensou que não deveria ter feito aquilo. No
entanto, agindo de ímpeto, fê-lo. Seu coração palpitava velozmente
e, com sua boca já bem seca e olhando para suas roupas sujas, buscava
por palavras a serem usadas quando a porta voltasse a se abrir.
— Aqui está! Disse a mulher com um sorriso largo e
desinibido.
— Muito obrigado, agradeço-lhe imensamente, mesmo,
muito mesmo. Disse, prolixamente, Sucram. Deu às costas e
apressou-se, um tanto atrapalhado, em direção a seu apartamento
quando, repentinamente, seu regresso foi interrompido pela voz.
“Espere, pergunte o seu nome!”. Ele já havia ouvido aquela voz. Era
a mesma que o incentivava ao lidar com a corda e a cadeira. Muito

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embora, essa mesma voz o impedira noutras ocasiões de concluir o
ato.
— Qual é o seu nome? Disse muito alto, voltando
rapidamente sua cabeça para traz e viu a porta se fechando e voltando
a abrir quase que violentamente.
— Disse alguma coisa?
— Sim, perdão. Apenas perguntei o seu nome.
— É Magda, e o seu?
— Sucram. Disse, desviando seu olhar.
— Olha, que diferente. Bonito. Tem algum significado?
— Não que eu saiba. Respondeu sorrindo em meio a um
suspiro.
Os dois olham-se por um breve instante e voltam a se
despedir.
— Nos vemos por aí, disse a moça.
— Sim, claro.
Sucram, já em seu quarto, ficou algum tempo refletindo
sobre aquilo. Aquelas frases trocadas com sua vizinha. Era notória
sua falta de jeito em se comunicar com as pessoas em geral e, sempre
que ocorria, sentia-se muito mal depois. Sentia-se nervoso, ansioso.
De alguma forma, envergonhado. Como chegou a esse ponto ele
nunca teve certeza. Mas, em todo o caso, sabia que ele mesmo fizera
com que sua vida se encaminhasse a isso; apesar de não estar
convencido de que havia culpa, ou mesmo arrependimentos, em sua
alma. Sempre admitiu sua predisposição ao fracasso. Na juventude
era o oposto. Comunicava-se avidamente. Todos com quem se
relacionava admiravam sua retórica graciosa e levemente irônica. Em
contrapartida, os últimos cinco ou seis anos foram bem diferentes.

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Toda sua fé no futuro foi, aos poucos, sendo consumida pelo
cotidiano. Vilipendiada pelo rumo que o comportamento e a
mentalidade de seus contemporâneos tomaram. Às vezes, em suas
digressões, pensava sobre como tudo começou, ou que passou a
mudar. Como o desprezo pelo estranho havia se tornado regra na
vida dos indivíduos. Como essa decadência surgiu? Algo que lhe
ocorria era a sensação de que a decadência havia se principiado na
descoberta do espelho… sensação que quase lhe despertava um
sorriso de ironia, depois, com o tempo, apaixonados pela nossa
própria imagem, fomos deixando de lado aquele que sempre foi
essencial para nós, aos poucos passamos a enxotá-lo e quando vimos,
já o odiávamos. Assim o Outro morreu. Alguns segundos antes de
nós. Sim, eram divagações, ele sabia. Mas fantasiava que, algum dia,
escreveria sobre isso. Apaixonado por literatura, lia os clássicos e
imaginava que ele poderia ter escrito aquilo. E seria lindo esse
acontecimento. Agora que já estava com sua retrógada máquina de
datilografia, poderia iniciar sua história. Ao menos era isso que ele
pensava. Foi dormir naquela noite como sempre dormia,
enclausurado em si e policiando seus sonhos para não que
excedessem as possibilidades de realização. Imaginou-se indo até a
empresa em que trabalhava, e lá recebia todo o dinheiro de sua
indenização pelos serviços prestados, já que era bem-quisto pelo seu
chefe, mesmo que seu trabalho não fosse oficial. Não ocorreria
problema algum com o pagamento. E o dinheiro não seria muito;
entretanto, o suficiente para mais alguns meses, ao menos. E sentia-
se feliz com isso. Esse foi seu sonho naquela noite. Tudo estava bem.
Passaram-se alguns dias e Sucram não havia escrito nada.
Sentava-se à máquina, datilografava alguns pensamentos e nada mais.
Nada aproveitável, nem ao menos para o rascunho daquela história
que deveria ser contada. Tentava escrever nas brechas do cotidiano,
entre lavar louça ou secar a roupa. Um horror doméstico, uma vida
domesticada, surgiam palavras-frase como pequenas criaturas de

90
estimação. Sim, ele esteve em Beckett, era um lindo lugar para se
estar, mas não havia nada que não houvera sentido antes. Aquela
clausura lhe pertencia. Aquela voz que surgia não se sabe de onde.
Aquilo também era ele. Como também era ele o animal imaginário
que o arranhava por dentro. Gritava em seus ouvidos. “Volte lá”,
“Leve-lhe um presente como agradecimento pelas folhas!”, “Não
deixe passar mais tempo!”; sim, eram coisas pequenas que agora a voz
articulava, não mais perguntava pelo sentido da vida ou sobre como
envelhecer bem.
Ainda sobraram algumas folhas que Magda o cedera e o
homem, neste ponto, não estava convencido de que precisaria
comprar mais. Aquelas bastariam até o dia que lhe brotasse frases
gramaticalmente aceitáveis. Sentia uma urgência em datilografar o
quanto antes e foi então, que sem imposição alguma, lembrou dos
livros de poesias que havia lido na juventude. Principalmente de uma
poetiza conterrânea e de um escritor irlandês. Seria ele capaz de algo
assim? Sucram, sem saber como iniciar a história decidiu entregar-se
às palavras, sem técnica nem estudo. Entregou-se às palavras apenas
por necessidade de usar seus dedos nas teclas daquele aparelho.
Retirou a máquina da cadeira e levou-a até sua mesinha. Naquele
momento pareceu-lhe ridículo o fato de tê-la acomodado na cadeira,
bem como a ideia de sentar-se à cama para escrever. No entanto não
se ateve a esse ato falho, apenas juntou as folhas remanescentes e
colocou-as também sobre a mesa. Como sempre ocorrera até ali,
desde que se mudou para lugar, deparou-se com os obstáculos da
língua. Se ele quisesse escrever algo para ser lido onde morava, era
crucial que escrevesse naquele idioma, e não no seu. Mesmo assim,
sentou-se à mesa, ajeitou o papel e passou a datilografar.

Passado um mês desde que escrevera suas primeiras linhas,


Sucram já estava adaptado a não ter um emprego. Ainda havia uma
boa quantidade de dinheiro e, como de costume, seus sonhos eram

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bem pequenos. A possibilidade de ficar mais tempo em sua rotina
doméstica antes de procurar trabalho não lhe era absurda. Ao
contrário, sentia-se bem com ela. Decidiu que não mais faria as
comprar nos mercados. Que não teria mais mantimentos em casa,
nem bebidas. Sempre que quisesse comer ou beber iria se dirigir aos
bares e restaurantes próximos a sua casa e que, devido a seu
sobrepeso, não comeria nem beberia nada após as oito horas da
noite. Dentre essas, muitas outras regras ele criara para sua rotina.
Desejava sentir-se o mais livre possível para cultivar seus
pensamentos e, uma vez ou outra, dialogar com a voz. Naquele
momento não lhe adveio o quão estranho era ou perigoso aquilo
poderia ser-lhe.
Durante um café, enquanto observava os transeuntes de sua
mesa, viu um rosto familiar. No mesmo instante a voz gritou “é a
Magda, chame-a!”. Sem nada pensar, Sucram se levantou
rapidamente, correu cinco passos até a calçada e gritou “Magda!
Magda!”. Quando a mulher girou seu pescoço, Sucram olhou para o
chão. A mulher seguiu seu caminho e Sucram voltou à sua mesa.
Embaraçado com a situação, sentindo-se um infantil e um idiota.
Ficou ali por mais três horas, em um estado que beirava a catatonia,
olhando para um guardanapo; pede uma caneta à sua atendente e
escreve algo. Pagou sua conta e voltou a seu prédio. Passando pelo
apartamento de Magda, enfia o papel por debaixo da porta e sai em
disparada.
Os urros de Sucram ecoavam por toda a edificação. Urros de
dor e agonia. Chorava e, entre um berro e outro, gritava em
desespero “nunca mais!!”, “nunca mais!!”, “nunca mais me diga
nada!”. Chega a seu apartamento e, em seu quarto, afunda-se na
cama. Adormece quase que instantaneamente, despertando apenas
no outro dia.
Ao acordar, saiu para comprar pão e manteiga. Tentou, sem
grandes êxitos, não pensar em seus sentimentos da noite anterior.

92
Apenas tomou seus comprimidos e saiu. Quando regressou, uma
menina, que morava no apartamento ao lado do seu chamou-lhe.
Como não era corriqueiro alguém o interpelar julgou de imediato
ser um engano. Não, não sou eu, disse ele. Mas assim que a menina
insistiu dizendo-lhe seu nome, percebeu que sim, era com ele mesmo
que a criança falava.
— Sucram, não é? O senhor Sucram que mora logo ali...
Toma!
A menina entrega-lhe um envelope grande e pesado. Eram
folhas. Dentro do envelope havia muitas folhas em branco e um
cartão. Era de Magda. “Espero que faça bom uso”, dizia. “Sairei uns
dias da cidade, quando voltar gostaria muito de falar com você; caso
não se oponha”. Será que Magda lera o seu bilhete? Não lembrava de
ter assinado ou escrito nada que indicasse a autoria, e, se olhasse em
seu íntimo, não conseguiria se recordar do escrevera naquele breve
bilhete.
No mês de agosto, em seu aniversário, a temperatura estava
amena e Sucram sentia-se bem, apesar da suave melancolia que o
permeava, uma melancolia que muito acordava, ocasionalmente,
com o nevoeiro matinal da cidade. Sentia uma falta um tanto
inexplicável de Magda. Há quanto tempo ela estava ausente, Sucram
não saberia dizer. Abandonara a máquina de escrever há várias
semanas, quando conclui sua história que fora escrita numa espécie
de prosa poética. Era uma história muito bonita e bem escrita, apesar
de, no decorrer do texto, ter usado muitas palavras que seriam
consideradas estrangeirismo pelos falantes da língua daquele país.
Seu esforço foi intenso. Usou quase todo no vocabulário que
dominava naquele idioma, no entanto, quando lhe faltavam
palavras, apelava para sua língua materna. Achou curioso que,
sempre, no êxtase da escrita, passasse a datilografar apenas na sua
língua, ignorando completamente a linguagem a que se propôs antes
de começara escrever. Em relação à voz, sim, ela o perturbara, uma

93
vez ou outra, nestes últimos tempos, mas sempre sem o causar
nenhum transtorno. Ao menos até ali.
Porém, na manhã de domingo, aquela melancolia suave
transformara-se em uma angústia estridora de suspiros
entrecortados. Era insuportável. Estava incapacitado para se
locomover. Uma paralisia mental que o causava calafrios
intermitentes. Tentou concentrar-se primeiro em sua respiração.
Forçando-a um ritmo mais lento, sua intenção era chegar a um
estado que pudesse, com seu esforço, mover-se da cama, mas não
conseguiu, então tentou gritar por ajuda, mas seu grito estava mudo,
nenhum som era emitido.
— Vamos, ingrato, converse comigo!
Era uma ordem vinda de lá; de não-se-sabe-de-onde, podia
apenas ser dela, da voz. Estava brava, uma amargura também
transbordava daquelas palavras. “O que fiz...”, pensou Sucram.
“Como foi que a deixei tão irritada?”, questionou-se ele. O homem
forçava seu tronco, mas não se mexia. Suas pernas pesavam uma
tonelada. Ficou ali por horas e horas lutando contra sua condição...
e a voz não parava.
— Vamos, idiota, vamos, mexa-se!!!
E gargalhava. Gargalhava e gargalhava cada vez mais alto e
com mais desprezo e escárnio. Depois de tanto sofrimento, Sucram
não mais aguentou aquilo. Desmaiei... pensou ele. Mas como haverá
de ter desmaiado se pensava sobre isso? Era um pesadelo, só poderia
ser um pesadelo.
Na segunda-feira, já durante a tarde, acordou pensativo e
exausto, com o olhar distante, sentindo-se vazio. Lembrou de sua
chegada àquele país e toda as leis que foi forçado a burlar. Ele não
era nem nunca fora bem-vindo ali. Era um clandestino. Um humano
clandestino. Sorte possuem os animais menores, pensou Sucram, por

94
viverem num mundo gigante e sem fronteiras e não na prisão que
chamamos Mundo. Encarcerados em nossos Estados, encarcerados
pelo poder dos “grandes homens”. Emaranhados em nossas
burocracias. Enclausurados em nós mesmos. Nunca tinha sido tão
claro para ele. Por que necessitava de um documento que dissesse
aos outros quem ele era? Poderia ele mesmo falar. Mostrar. Viver
sendo ele mesmo onde quer que quisesse. Não que sua vontade fosse
invadir casas e palácios alheios. Não. Ele estava pensando em solo.
Em terra. Em espaços físicos do mundo. Mas não podia. Ele era um
estranho.
— Ei, estranho, vamos, procure!
Procurar o que? O que quer ela que eu procure.?
— Vamos, não se faça de tolo, procure!! Olhe debaixo da cama...
Olhar debaixo da cama... Creio que eu realmente deva olhar
debaixo da cama.
— Olhe de baixo da cama, olhe de baixo da cama...
Espere! Silêncio!
Não havia mais a voz, apenas a sua vontade de olhar debaixo
da cama. Ajoelhou-se e olhou. Lá estava a máquina de escrever.
Puxou-a, levou-a até a mesinha velha e a acomodou ao lado de sua
história. Foi até o banheiro e olhou dentro do armarinho. Ficou ali,
observando compulsivamente os fracos de seus comprimidos. Algum
dia fizeram efeito? Algum dia foram úteis? Ao menos eram baratos.
Não tão baratos, mas o preço era muito menor que se os tivessem,
durantes esses anos, os comprado nas farmácias. Fecha o armarinho
sem nada pegar.
Volta à sua cama e olha novamente debaixo dela. Vê a
sombra de algo bem ao centro. Fica pensativo. Levanta-se e se dirige
à máquina. Falta-lhe um título! Exclama em pensamento. E talvez
também lhe falte um final. Inconscientemente Sucram sabia que o

95
final que faltava dependia do regresso de Magda. A voz já havia
comentado algo neste sentido há algumas semanas. Volta a se
levantar e caminha em direção à sua cama, ajoelha-se pela última vez
e estica sua mão até a sombra. A poeira na corda indicava que há
muito tempo não era tocada. Segura-a com estima e caminha até sua
cadeira. Senta-se com ela em seu colo. Ajeita uma folha em branco
na sua máquina, datilografa algumas linhas e a noite chega. Na
manhã seguinte, na mesinha, uma tímida fagulha de sol iluminava a
velha máquina. Havia uma folha colocada até a metade. Nela apenas
estava escrito: O ESCRITOR QUE NINGUÉM LEU . Sucram
tinha 49 anos. Gostaria de ter vivido mais dez. Depois de alguns dias,
sua senhoria ligou para a polícia, o cheiro já estava alastrando por
todo o prédio. No salão público onde ocorreu a cremação que fora
organizada pela associação de refugiados, estavam apenas oito
pessoas e mais dois oficiais da imigração. Naquele dia, a exemplo de
todos os outros, nenhuma página foi lida e nenhuma voz se ouviu.

96
Norberto & Clarisse

Norberto não conseguia se lembrar dos acontecimentos da noite


anterior. Algumas coisas indicavam que, não importava o que havia
se passado, estava relacionado à comida. Um jantar, talvez. Seus
dedos exalavam um cheiro que parecia ser de alho. Em sua boca, um
hálito muito forte de bebida alcoólica. Norberto aprendera a
cozinhar em seu primeiro casamento. Sempre teve acesso rápido e
fácil a diversas receitas e, provavelmente, seu amor por comer e
beber, também o influenciavam na hora de se dedicar a aprender o
preparo de algum prato novo. Guido, amigo de infância de
Norberto, tinha uma avó que se dedicava muito à arte culinária e
desde criança Norberto ajudava a avó de Guido na cozinha e, com
ela, aprendera muito sobre a prática e sobre os prazeres de se cozinhar
bem. Dos sabores e dos aromas daqueles pratos preparados pela avó
de Guido, disto Norberto lembrava-se.
Abriu seus olhos lentamente. Estava frio. Olhou para o lado
e Clarisse não estava junto a ele em sua cama. Quem sabe ela tivesse
saído. Talvez estivesse na cozinha. Mas Norberto estava sentindo-se
cansado demais para pensar sobre isso naquele momento. Havia um
pequeno incômodo em sua cabeça, uma dorzinha aguda que o
impedia de pensar claramente. Porém, tinha algo de que se
recordava. Recordava-se de ter decidido tentar esclarecer tudo o que
o estava perturbando ultimamente. Norberto mantinha algumas
memórias de seus sete ou oito anos de idade, nada antes disso.
Escutara certa vez que isso era algo normal. Que memórias anteriores
a este período eram mais raras nos adultos. A maioria de suas
memórias eram da adolescência e da juventude. No entanto, alguns
nacos de histórias pertenciam a uma época anterior. E eram estas as
memórias que começaram a vir a seu encontro nos últimos meses.
Caminhadas com seu pai em uma cidade interiorana, o cheiro de

97
seus avós, o som do granizo sobre um telhado de zinco, um lugar que
não se sabe, uma brincadeira há muito distante. Memórias
dormentes que submergiam lentas e parcas.
Já havia passado algumas horas e Norberto ainda permanecia
deitado. Poderia levantar-se e procurar algo para ler. As notícias do
dia, talvez. Mas isso ele já fazia há alguns anos e, francamente, não se
lembrava de quando este costume lhe proporcionara, de fato, algum
prazer. Sabia que sentia algo. Algo que não conseguia explicar.
Apenas a sensação de que o que quer que ele sentisse, mesmo sem
saber exatamente o que, não era bom. Fica, quase sempre, repetindo
a si mesmo “está tudo bem, tudo bem, tudo ficará bem”. Clichês.
Isso ele sabia. Durante muito tempo Norberto assumiu para si que,
independentemente de tudo o que ele viria a saber sobre a existência
humana e suas filosofias, a vida nunca faria sentido. Havia decidido
que nada o convenceria do contrário. Pero… Siempre hay un pero,
como repetia Guido durante um acampamento de verão. Pero, após
o início de seu relacionamento com Clarisse e sua entrada na meia-
idade, percebeu que se tivesse mesmo que analisar a vida em
separado da morte, o que não faria sentido seria a morte. A própria
morte. E a vida humana não passaria, como já constatado por alguns
homens pensantes, de um grande absurdo, um grandioso absurdo.
A própria morte, a morte de si mesmo, essa não faz nem dá sentido
a nada. Apenas ocorre. A morte do outro, em contrapartida, dá
sentido e significado à vida, à nossa vida. Faz que reflitamos sobre
ela, que construamos o sentido, seja ele qual for, e para qual mundo
particular que seja. Ele não sabia por que ocorreram nesse momento
de sua vida, e não em outro; esses pensamentos, essa mudança.
Esperava, em seu íntimo, que seu mundo e atitudes também
mudassem com esses pensamentos. Mas não ocorreu. Continuou
sentindo-se solitário, abandonado. E esse sentimento prendia-o ao
solo. Não sentia vontade de agir, de sonhar, de aspirar algo em sua

98
vida, a não ser contemplar rotos horizontes e sofrer com eles.
Nonsense.
Virando seu corpo, Norberto pensa uma vez mais em
levantar-se. Ouve um som estranho, mas logo percebe que é apenas
o vento no corredor de seu edifício, forçando as portas dos
apartamentos. E numa mistura de vigília e sono, encerra-se uma vez
mais em seus pensamentos: Será mesmo possível continuar vivendo
sem que nada mais o motive? Haverá algum sentido em tentar
recuperar memórias de um passado tão confuso e doloroso? Há bem
pouco tempo convivia com um grupo reduzido de amigos. Tinha
uma vida, supunha. Uma vida pobre, mas, ainda assim, vida. Agora
não mais a possui. É possuído por ela. Não sente vontade de discutir
sobre assunto algum, com ninguém. Quando ocorre algum
pensamento mais reflexivo sobre algum fato cotidiano qualquer,
algum tema que em outra época e momento ele discutiria com seus
amigos, apenas suspira profundamente. E se cala. Passado mais
algum tempo, tenta escrever sobre isso e elaborar argumentos, como
na época de seus estudos acadêmicos, e não consegue. Seu intelecto
também está se deteriorando pelo abatimento anímico. Logo passa
novamente às suas lembranças, lembra de seus textos, de sua mania
de escrever artisticamente quando o que se necessitava era apenas
técnica; dos amigos nos bares, das meninas assanhadas. Gostava de
escrever às quintas. Sem motivo, era o que dizia. Assim como se vive,
assim como se morre. Gostava de escrever nas manhãs de quinta.
Sem rumo. Assim como se ama, assim como se cansa. Vira-se mais
uma vez. Lembranças.

99
O Presente

Naquela manhã em que olhou para o móvel ao lado de sua cama,


Felício teve a sensação de que toda a sua vida já estava decidida. O
tempo que permaneceria vivo, o emprego que perderia, o primeiro
divórcio, quantos filhos. Sobre o móvel havia um livro que narrava a
trajetória de um casal de atores, muito famosos em sua época. O livro
era, basicamente, sobre os afazeres cotidianos dessas pessoas e sobre
como decidiram que um relacionamento aberto, calcado no conceito
de liberdade, poderia ser o melhor caminho para um futuro feliz.
Mas Felício não acreditava nisso. Nisso de felicidade.
Há oito dias, Clarisse, colega de trabalho de Felício, estava
organizando a festa de seu aniversário. Clarisse completaria 32 anos
de vida. Depois de um almoço entre os funcionários da empresa,
Clarisse chamou Felício em um canto e o presenteou com o livro.
Felício não entendeu muito bem o motivo, já que quem estava de
aniversário era ela. Por que razão o presente seria para ele? Em
resposta ao olhar de estranhamento, Clarisse apenas disse não se
preocupe, eu não te amo. E após um breve silêncio, um meio sorriso.
Aquele livro estava ali desde então. Felício não chegou a lê-lo, não
era o tipo de “literatura” que se interessava; no entanto, aquele livro,
mesmo sem lê-lo, causara mais impacto em sua vida que quando, pela
primeira vez, leu o primeiro parágrafo de Memórias do Subsolo, livro
menor de Fiódor Dostoiévski.
“Não se preocupe, eu não te amo”, disse-lhe ela. Pensava
muito nesta frase. Principalmente pelas manhãs. Felício não se
importava muito com essa negativa frisada por Clarisse; ao contrário,
pensava na importância de alguém o notar. Sentia-se invisível entre
seus amigos, invisível nas ruas da cidade, nos bares entre risadas. No
prédio onde morava. O fato de Clarisse dispensar sua atenção a
alguém como ele, assim, ao ponto de não o amar, era o que mais lhe

100
proporcionava prazer. Felício tinha uma teoria. Sempre afirmava que
as pessoas não enxergavam realmente as coisas. Dizia que quando as
pessoas estavam diante de algo, olhavam superficialmente para esse
algo, ou até mesmo alguém, e não mais voltavam a olhar de verdade.
Já haviam construído em suas mentes uma imagem e estipulado um
pensamento sobre aquilo, ou aquele. Depois disso feito, com cada
coisa ou pessoa de seus cotidianos, nunca mais precisariam voltar
seus olhares para esta ou aquela direção. Sem darem-se conta que
tudo e todos mudam, o tempo todo, e para sempre. Poderiam seguir
vendo o mundo somente a partir de seus próprios pontos de vista.
Uma visão a partir de lugar nenhum, segundo as teorias de Felício.
Porém, com Clarisse, não. Clarisse percebia-o!
Durante um banho quente e demorado, decidiu que quando
voltasse do trabalho, no final da tarde, leria seu presente. Esboçou
alguns sorrisos durante o trajeto até o ponto de ônibus. Ficou
pensativo até chegar à empresa; no coletivo, uma menina estava aos
beijos com seu namorado. Uma menina parecida com Clarisse.
Durante o dia, seus afazeres estavam mais leves. Seu sorriso mais fácil
(apesar de toda a distância que sentia em relação à vida de seus
colegas e amigos, e da tristeza que isso sempre lhe causava). Lembrou
por um momento de sua mãe e de seu pai. Sentiu-se um pouco
culpado de não ter ido ao enterro. Os pais de Felício morreram em
um acidente de automóvel durante uma viagem ao estado vizinho,
há dois anos, quando decidiram passar alguns meses na casa de uma
amiga de infância de sua mãe. O enterro duplo era demais para
aquele rapaz. Nenhum dos parentes distantes o perdoou nem ao
menos tentou entendê-lo. Ele seguiu com sua vida. Alimentou sua
solidão. Durante o café, após o almoço, Clarisse, Felício e mais dois
colegas contaram algumas piadas e se divertiram. Mesmo que de
relance pode ver Clarisse espreitando-o pelo canto dos olhos.
Coração acelerado, a boca seca. Bebia seu café como se fosse água.
Quando o expediente terminou, todos se preparavam para regressar

101
aos seus lares. Desligaram as luzes, fecharam as portas e as janelas.
Clarisse se aproximou. Até que foi agradável o dia de hoje.
Geralmente acho o trabalho tão angustiante e enfadonho. Sim, disse
Felício, para mim também. Despediram-se com um leve beijo
acidentalmente ocorrido no canto da boca, bem próximo aos lábios.
Um olhar rápido e cruzado indicou a consciência do ocorrido. Um
final perfeito para um dia. Algo para dar esperança e armas para que
Felício espantasse sua tristeza e sua culpa. Um regresso à infância, a
busca por um amor perdido.
Não gostaria de ser eu o porta-voz de tais notícias, mas
Felício está morto. E foi naquele final de tarde que Felício se foi.
Morreu atropelado por um ônibus escolar. Dizem que tentou
atravessar a rua sem olhar. Rindo feito uma criança boba. Uma
mulher gritou cuidado, meu filho e ele não ouviu. Um grito de
homem também ecoou não se sabe de onde e ele também não se
interessou. Jovens também gritaram e ele não entendeu. Uma
criança observava-o sem ele notar. Várias pessoas voltaram seus
olhares para Felício e ele não pode perceber. Com cabeça e rosto
desfigurados e sem nenhum familiar para identificar o corpo nem
amigos hábeis, apenas Clarisse, que não o amava, pode fazer isso. E
ela o fez pelas pequenas cicatrizes na mão direita, uma ranhura
recente no cotovelo, uma pinta na barriga, bem como pelas
imperfeições dos tornozelos.

102
Depois de Clarisse

Depois de Clarisse nada mais foi como era antes. Nem mesmo os
clichês. Dizem que gostava de livros. Que às vezes escrevia sobre isso,
e dava notícias lidas que não escreveu. Ouvia também, falava assim e
como eu… conversava sobre olhos, amigos... e Ivo o amor seu.
Levantava uma fala uma vez ou outra olhando para o céu. Olho por
dentro assim, disse em tom... e Ivo tremeu. Soube que ao ler não sou
fácil assim, como um olhar para o céu. E Ivo tremeu. Depois de
Clarisse Ivo morreu. Hoje ratos habitam onde antes era céu. Hoje
ratos palpitam e salivam, eu. E um olhar pequeno sobe, se altiva
pensando eu. Depois de Clarisse Ivo morreu. Nada como antes, nada
como céu. Raspou palavras, depois morreu. Primeiro Clarisse, depois
Ivo… e eu.

103
A Nojeira dos Dias

Com a cabeça levemente inclinada, Júlio observava a chuva, da janela


de seu apartamento. Enquanto sentia o cheiro das árvores molhadas,
imaginava o início de seu monólogo que em breve deveria estrear no
Teatro Municipal.

A cena inicia-se como qualquer cena se inicia: no interior humano. Um


prisioneiro, injustamente condenado à morte, espera por sua hora, enquanto
pequenos demônios passam a pô-lo à prova.

Júlio estava casado há doze anos. Sentia que amava sua


esposa. Amava incondicionalmente sua filha. Melissa havia
completado três anos em maio. Sua esposa, Clarisse, trabalhava
como empresária; era responsável pela carreira de três ou quatro
conhecidas modelos de lingerie. Nestes doze anos de casamento
foram poucas as vezes que Júlio sentiu-se feliz, sentiu-se satisfeito com
sua relação; parecia-lhe que sempre algo faltava (mesmo depois do
nascimento de Melissa). Pensou que pudesse usar seus sentimentos
para buscar inspiração na sua escrita. Mas doía-lhe demais. Além
disso, o verão anunciava seu fim e havia uma exigência, imposta em
contrato, que sua peça estreasse nos primeiros dias do outono. Júlio
gostaria muito que tivesse tempo de esperar o inverno para iniciar a
seu trabalho. O inverno sempre o movia em direção a si mesmo. E
era disso que ele necessitava para dar continuidade à sua ideia.
Duas vezes por semana Júlio levava Melissa para suas aulas
de balé e sempre aproveitava o tempo de espera para ler ou escrever.
Determinado dia, surgiu-lhe a imagem de um monólogo levemente
inspirado em Fédon, de Platão. “Um monólogo tendo um diálogo
como inspiração!”, pensou Júlio, “será que os críticos julgariam um

104
afronte?”. Mas, se não levasse adiante sua peça movido por isso, qual
seria, então, o pensamento que serviria de estopim para sua próxima
criação? Foi então que pensou “e se me inspirasse nos dias, no
cotidiano mesmo, será que não seria o suficiente?”. Sempre foi muito
observador; não lhe daria muito trabalho apurar um tanto mais o seu
olhar sobre o mundo. Sobre o dia a dia das pessoas que o cercavam
e sobre os lugares que frequentava. Mas nunca percebeu que
frequentava apenas a si mesmo.

Como posso a isso superar? Há algo maior que a vida? Vivi plenamente, sem
macular a carne nem perturbar o espírito, minha querida Alma. Fala-me, há
algo para mim junto à Divindade?

Clarisse e Melissa saíram pela manhã, almoçariam fora e


retornariam apenas à noite. Júlio teria praticamente o dia todo para
escrever. Gostava de ouvir música enquanto bebia seu café. A vida
sempre nos parece mais difícil antes do primeiro gole. Em uma
tentativa de ânimo ouvia, enquanto caminhava pela sala com uma
caneca na mão, o final de Le Fate, de Giovanni Ristori. Embora já
pensasse em não escrever nada naquele dia, pois a chuva havia
cessado e os raios de sol que começavam a invadir sua sala deixavam
cada vez mais distante a ideia de inverno.
Amada, diga-me, era prazer tudo o que senti em vida? Prazer em não macular
a carne, deleite em não confundir o coração?

Pensou em sair de casa, observar as ruas, continuar seu


desjejum em alguma cafeteria; ou até mesmo apenas caminhar pelo
bairro. Porém, algo lhe veio repentinamente à memória. Já havia
feito isso. Aliás, é exatamente isso que faz sempre, todos os dias, há
muito tempo. Uma espécie singular de estranhamento toma-o de

105
repente. Vem à luz uma imagem de sempre repetir os mesmos passos.
Fazer as mesmas coisas, forçar os mesmos pensamentos. Sobre a mesa
há umas folhas impressas; há também algumas em branco.

Que fiz eu, minha Amada, minha Alma fugidia? Serei digno desta angústia
ante o desconhecido da morte? Manterás tua singularidade após meu fim? É
legítimo que nos doa um prazer?

Júlio não sabia como reagir àquelas sensações. Durante toda


a sua vida buscou uma verdade que lhe acolhesse. Mas nunca sem
sofrimento. Mesmo quando chegava a certas conclusões após
momentos de reflexão, seu prazer não era o suficiente. Confuso,
deitou-se sobre o sofá da sala, sob sua cabeça pairaram pensamentos,
ideias. Quando despertou de seu transe, seu primeiro pensamento
lhe esclareceu que escrever com pressa não era escrever.
“Tecnicamente, é escrever”, pensou, “mas não – escrever.” E, sim!
Tudo o que ocorreu neste dia já havia, sem dúvida alguma, ocorrido.
Vinha repetindo seus dias, sempre, sem falta. Sentiu-se triste por não
encontrar explicação nenhuma que o confortasse. Que não o fizesse
sofrer ainda mais. Escrever não era e nem nunca foi importante. A
literatura, o teatro, as artes em geral… tudo uma farsa. O levantar-se
pela manhã. O dormir até tarde. O trabalho. Tudo uma farsa. O
amor. A vida. Uma farsa. Júlio fixa seu olhar no teto da sala; suspira
profundamente, e adormece.

Com a cabeça levemente inclinada, Júlio observava a chuva, da janela de


seu apartamento. Enquanto sentia o cheiro das árvores molhadas, imaginava
o início de seu monólogo... que em breve deveria estrear no Teatro Municipal.

106
Querida Clarisse

Depois de muito tempo eu volto a escrever. Não sei se estou


preparado para um confronto desta plenitude. Nem ao menos viver
simplesmente, por costume. Eu não possuo muitos hábitos
saudáveis. Leio um pouco, bebo e fumo. Deveria deixar de ler, ao
menos esses jornais de domingo. Minha cabeça é fraca. Quando jogo
sempre perco. Não tenho muita sorte, nem ao menos juízo. Tanto
faz quando ando, um tanto tropeço, é sempre o mesmo… tabuleiro
ou labirinto. Miro uma meta contradizendo, às vezes minto. Tenho
uma fala um tanto esparsa, eu assumo, quase sempre rindo. Repito
palavras, busco uma casa. Idiomo letras acumulando versos, que
sempre jogados, abomino.

107
O Todo é Trauma

Ele ouve, de suas vozes, sempre a mais fraca. Aquela que sussurra,
Clarisse. De uma infância de que ao nada o levara, parou aqui, no
mundo. Se fracasso ou sucesso, a ele, um mistério. Das vozes que
sempre estão, Clarisse. Fragmentado em juventude e morte (a sós)
sempre sabe, fracasso. Como parte, mesmo que pequena, não julga,
Clarisse. Solto e livre, à noite, algo o alimenta. Nacos de suspiros e
interno riso, e adulando suas partes, Clarisse.

108
Nunca o Mesmo

Certa vez, enquanto Cláudia carregava as compras, percebi que eu


estava sozinha. Havia um eu que falava, um eu que escrevia; e que
fazia com que todas as coisas, se tornassem vazias. Das três irmãs,
Cláudia era a que menos se importava. Pulava, gritava. Sorria.
Mamãe muito trabalhava. Cíntia, na igreja, sofria. Laura-mais-velha...
vivia. O mundo nunca é o mesmo, era o que nosso pai dizia.
Enquanto eu conjecturava e eu escrevia, alguns juízos de
leitores ouvia. Mas era eu que lá estava. Era eu que lá escrevia.
Minhas irmãs, por vezes, olhavam, mamãe nem faria; mas papai,
muito estranho, contemplava, mas não lia.
No final da tarde, no que o sol dormia, balançavam todas as
pessoas em suas equilibrarias. Ao norte de nossa cidade, a menina
pobre... existia. E o mundo nunca é o mesmo, era o que papai dizia.
Laura lançava sobre nossas cabeças seu tesão e patifaria. Trepava
tudo e todas. E vivia. Mamãe engolia sempre suas vergonhas, todo
santo dia. Cláudia, musa saltitante, às vezes parava... e sentia. Cíntia
orava e, eu acredito, nunca se arrependia. Nunca o mesmo, nunca o
mesmo, papai repetia. Meu peito palpitava e a tontura vinha. Minha
cabeça, buscando rimas, ardia.
Sempre foi a idiotice que mais me convencia. Ver tudo e
todos sendo sempre o mesmo era aquilo que eu queria. Porém, estava
ali papai e triste respondia. Não há ninguém em casa, amigo alheio,
não me olhe com caretice! Ontem aqui estavam, mas hoje é outro
dia. O mundo é sempre um erro, também papai ouvia. Cláudia-
presente, era arisca e fugidia. Tentava sempre o mesmo, mas não
dizia. Cíntia-sofrida, era angustiada... e nos deprimia.
O quadro em frangalhos já está pintado e não… eu não
fugiria. Pedaços de lembranças, rimas e imundices. É certo o sempre

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o mesmo e os dias. Passados os anos fui ficando velha, perdendo
rimas e percebendo a babaquice. Por que não idiotar com esse ia e
não ia? Irritei-me pela vez primeira e a tudo eu quebraria. Nunca o
mesmo. Nunca o mesmo eu também percebia. Papai, em olhos vagos,
calou-se uma vez... e via. Toda Cláudia ficou uma só e toda letra não
grudava ao sentido que não havia. Uma Cíntia que era Laura ou um
outro ia e não ia, mais letras e mais letras e muita esquisitice. Mamãe-
nasal nunca demonstrava sua expertise. Papai com pinto duro,
sempre dizia... agora lembro de todo o sussurro e de toda a criancice.
Nunca o mesmo, nunca o mesmo... vira-te de costas, Clarisse.

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O Vazio que Te Convida

No quatorze de julho, há dois dias, foi quando sofri o acidente. Era


uma tarde nublada e de um verde desbotado. Quando me aproximei
do corpo não me reconheci. Um corpo estranho, não-eu. Andei
lentamente em volta daquele grupo, não me viam, viam apenas
minha carne ensanguentada, desfalecida. Olhei nos olhos de Clarisse
e não vi tristeza, apenas dúvidas. Depois daquele momento não sabia
mais o que fazer. Sentei-me na maca e passei a lembrar de minha
vida, mais particularmente, de minhas escolhas. E de meus erros.
Minha vida como escritor não fazia muito sentido. Difícil
admitir algo assim já que, como escritor, todos esperam que demos
algum sentido à nossa vida, pois ela não passa daquilo que
escrevemos. Ao menos era isso que eu pensava, em vida. Laura, uma
antiga namorada, sempre me alertou que minha vida seria um
desastre. Creio que ela estava com razão. Disse-me que fora alertada
por sua mãe, uma bruxa local, que não importavam quais fossem, ou
mais sólidos que fossem, meus planos jamais dariam certo. Lembro
das vezes em que Laura falava para que eu parasse com os boicotes.
Implorava. Dizia que eu mesmo era o responsável pelo fracasso dos
meus planos. Quando Clarisse surgiu em minha vida pensei que as
coisas mudariam. Sua alegria e força eram tamanhas que
contagiavam a todos em sua volta. Mas quando se tem o que comer
e o que vestir, ter um trabalho é apenas uma maneira de se ocupar
até o dia de morrer. E ser escritor era isso para mim. Não agora, mas
no futuro. Ou no passado, não sei bem. O tempo relativizou-se mais
após a minha morte. No entanto, enquanto havia minha presença
física entre os vivos, Clarisse mostrou-se, nesta questão, uma
nulidade. Sobrou apenas o escritor, um estrangeiro em sua própria
casa, mestiço em sua raça. O não-lugar e o indefinido, singularidade
que nos dá o é… O presente. E era neste presente, sempre fugidio,

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que eu imprimia minhas letras. Letras que formavam frases pobres e
que, unidas, tinha-se o que eu chamava de livros. Livros decrépitos,
machos, ultrapassados. Quem me dera ter sido uma mulher, para
escrever lindo e feminino. Mas impelido por Clarisse fiz-me homem,
por seu sexo e o eu faminto. E assim também a fiz, moldada a talo
grosso e sujeira – grifada em papéis virtuais & melada… no ventre.
Aprendi tarde e sem muita importância que a escrita
machuca e fadiga. Assim como Clarisse… seus gestos com a língua, a
língua e seus gestos. Uma linguagem de horror e sorte, bem-estar que
se perde no gozo… Os planos e os fatos foram corroídos pelo tempo,
e agora nada mais importa. E se eu não tivesse feito planos? Se eu
tivesse apenas vivido? Conseguiria ter vivido sem mendigar atenção
com alguns escritos? Clarisse teria me amado como um contador ou
sócio-gerente de alguma média empresa? Seria ainda eu, sem isso de
escrever? Se algo implicasse em uma vida menos vazia… O que
haveria de tornar significativo meu último dia?
Por mais absurdo que pareça, aquele que escreve deve se ater
tão somente no que há antes da realidade, ou seja, na situação ou na
interpretação já ultrapassada e que, paradoxalmente, continua
indefinida por aquilo que o tempo é, foi ou será... forjado pela
intelecção e pela autoconsciência de finitude que constitui o
humano. Afirmações assim, que muito repeti em meus textos,
fizeram-me escritor. Porém, não sei realmente o que frases, deste
modo grafadas, possam representar para o pensamento alheio.
O que mais eu reparava, como escritor, era no rosto das
pessoas. Mais precisamente, no olhar. Aqueles olhares me
mostravam quem elas realmente eram ou, no mínimo, como estavam
naquele momento. E isso me enojava profundamente. Talvez mais
que nojo, eu sentia angústia, decepção. Nisto que os vivos chamam
de momento, para mim, para esse eu que as palavras me fazem
formar, nada mais importa. Depois de tudo percebi que, em vida, eu
estava dividido. Era um eu que escrevia, um eu que comunicava o

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cotidiano, um eu específico para qualquer aspecto (ou nível) de
existência. Agora longe, corrói-me a ideia de quão pobre é estar vivo
em um mundo apenas. Em um único tempo. Nosso mundo. Próprio
mundo. Somos crianças que observam a tudo por uma luneta de
brinquedo. A tudo encaixotado. A tudo descrito. Falado. Estarmos
vivos é apenas um falatório, nada mais. O fato de uma pessoa não
estar mais fisicamente presente diante de nós não significa nada. A
ideia de morte é uma contradição. Após aquilo que dizem morte há
outros mundos. Gostaria de ter me dado conta disso enquanto estava
vivo, vivo em termos humanos. Racionais. Vivo no âmbito do
falatório.
Demorei exatos dois dias para perceber essas nuances que
permeiam as carcaças que pensam, que falam. Que insistem em vestir
seus pensamentos e em jogá-los na direção de outras carcaças
também pensantes. Aos poucos as palavras foram me deixando, os
modos de comunicar se confundindo, a noção de tempo se
perdendo. Era numa tarde, não sei ao certo. Havia cores diante de
mim. Um segundo de escuridão… dois dias e alguns minutos. Muito
ocorreu em mim, talvez na mente. Muitas coisas saíram da minha
boca. Palavras soltas que pousaram em outro corpo físico. Sorte
minha que num corpo que gostava de escrever. E em ser fiel ao que
ouvia. Quis dar-lhe de presente uma nova história. Uma história que
nunca tive coragem de escrever. Esta história começa e termina
assim:

Acordou por uma sensação súbita e violenta,


numa manhã de pensamentos nus.

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Uma Esperança em Outro Mundo

É assim que espero que aconteça: eu sentado, distraído, embriagado,


respirando um tantinho de nada, e ele cravado, tenso e em pleno
fingimento. Clarisse observaria a tudo, lutando contra boas
lembranças do tempo em que estávamos juntos. Em que ela ao meu
lado estaria também embriagada, de nada. Ele não é propriamente
uma pessoa. Está mais para um indivíduo. Talvez nem isso. Uma
entidade? Quem me dera ter navalhas para aparar a barba do antigo
filósofo enquanto respiro, respiro uma ideia de nada. Todavia, é
muito provável que nada disso ocorra. Habito uma caverna
intransponível chamada interior humano, uma caverna onde todas
as guerras se travam. Observo o mundo de fora, e lá fora sinto o
orvalho e a mata rasteira. Cheiro concreto e odores humanos.
Na terça será o grande dia? O dia em que gritarei bem alto?
Tão alto que explodirei? E não precisarei dizer mais nada? Sem mais
angústias, sem mais sabores. Um nada. Clarisse ainda estará em luta?
Clarisse é assumida de si mesma, exala um hálito de
felicidade. Ela me conhece pelo nome. Fala-o em voz alta e usa-o para
chamar a minha atenção. Conheço boa parte desse que usa o meu
nome. Sei de algumas coisas que as pessoas dizem sobre mim. Melhor
dizendo, desse mim que usa um nome. Mas, e eu? Onde é que fico
nisso tudo? Não importa. Aceito o beijo de felicidade. Mas ainda
anseio que aconteça. Estarei travestido de meu nome, e usarei as
roupas que o mundo já está acostumado a ver. Ver a mim, aquele
que usa um nome. “Vesti vossa Máscara e vinde à festa!” deveriam
gritar-nos ao nascer. Só assim estaríamos aptos para dançar a linda
dança do absurdo. O absurdo de tornarmo-nos um nome. E eu?
Onde é que fico nisso tudo?

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Mas é assim que eu espero que aconteça. Em outro mundo
serei eu. Noutro mundo nos permitirão sermos nós mesmos e não
esses que atendem pelo nosso nome. Enquanto não acontece nos
pomos a fazer coisas com a carne. Deitamo-nos sobre a cama quente.
Adormecemos por breves minutos. Ao despertar, Clarisse travestia-
se para o trabalho. Com suas roupas leves e de fácil manuseio,
cobrindo quase nada da extensão de seu corpo, como que ironizando
ao que ela é quando não usa um nome. Já não sinto seu hálito de
felicidade. Ouço o barulho da porta se fechando enquanto escrevo
meu nome. Não será como no bilhete. Nada parecido como eu
queria que acontecesse. Mas terça será o dia. Espero que esqueçam o
meu nome.

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