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Doutorado em Teoria Literária – Escrita Criativa II

Doutorando Rubens Gomes Corrêa


Orientador Prof. Paulo Sandrini

Anjo caído na terra do nunca


Virando lentamente a página do livro que pretendia ler, observei a ponta dos dedos que
deslizavam pelo canto da folha. Ouvi o som que aranhava suavemente sobre as ranhuras do
papel Couché e não conseguia saborear até então aquele manuscrito.
Aflição de não conseguir iniciar com o conto, com os dedos sujos e com a falta de atenção, pois
percebia que algo novo estaria por vir.
Aflito com um possível desastre, pois não estava acostumado com uma morte, uma traição, um
sequestro de pensamentos que ali estava implícito no título daquele livro.
Assustei-me com os pequenos pontos escuros nas ranhuras das digitais do polegar e do
indicador.
- Onde estive, que me deixei sujar as mãos?
- Não me recordo o que fiz ontem.
- Teria sido o vinho no final da noite, o amendoim japonês recoberto de tempero ou o mato que
tirei do jardim?
Levei até as narinas, na tentativa de sentir o cheiro, mero habito de Sherlock Holmes, tentando
desvendar o indesvendável.
Uma mistura de terra, vinho e geleia de jabuticaba no queijo. Tinha me esquecido da jabuticaba.
Pode ter sido isso.
- Só me preocupei para não aviltar as folhas.
Me intrigava com a possível queda que não se falava nas primeiras linhas e folhas do conto.
- Teria sido uma queda de um prédio.
- Teria sido um suicídio?
- Teria sido sangue nos meus dedos e eu estaria envolvido em um crime?
- Ou teria sonhado com tudo isso. “MORTE”? ...e este conto não teria nada haver com isso?
Me voltei ao livro na tentativa de iniciar a leitura, ou de onde teria parado.
Melhor iniciar novamente... essa sujeira nos dedos me tiraram atenção.
Reli a primeira frase: “O mensageiro que leva as correspondências para a terra do nunca... as
correspondências chegavam sempre sujas, empoeiradas”.
Meus dedos estavam sujos por causa da poeira? Seria isso? Seria este o final da história?
Bom!!! Essa frase cresci ouvindo minha mãe dizer:
- Toninho... se algo não deu certo é porque ainda não chegou no final. No final tudo da certo! E
muito mais os contos. Então não se preocupe com este.
Acredito que dará certo no final sim, desde que eu não fique aqui parado, na tentativa de entrar
dentro da historia que pretendo ler. Solecismo que acabo sempre cometendo quando começo a
escrever, ler, meditar nas palavras.
O corpo que caia do décimo oitavo andar. Altura, andar que era o mesmo da idade do garoto.
Sempre que entro no consultório, me descem lágrimas e me faz lembrar dessa história.
- Mas você era parente do garoto? Ele se suicidou?
- Não! O senhor não entendeu. Estou falando da história.
- Tive até um caso parecido na família, com um primo de meu pai. Sempre me contavam essa
historia do enforcamento e acho que isso ficou meio que traumatizado em mim. Ele morava no
sitio e se enforcou numa arvore. Tinha problemas mentais, segundo meu pai, que contava o
seguinte:
- Feruslux1 estava num período de conflitos internos, descobrindo o mundo, saindo muito à
noite e voltando só de madrugada, ninguém sabia o que ficava fazendo. Ás vezes chegava em
casa com cheiro de bebida. Uma vez chegou e encontrou a porta trancada e não foi por
esquecimento, mas sim de propósito. Depois fiquei sabendo que teve de entrar pela janela do
quarto. Acho que estava usando alguma coisa a mais do que somente bebida. Dei umas prensas
pra ver se ele entrava no eixo, mas, no entanto ele deve ter se sentido encurralado e resolveu se
revoltar com deus e todo mundo, seus professores na escola, em casa e, um dia fugiu. Quando
percebemos não tinha voltado da escola pra casa. Sinto remorso de ter pressionado o menino.
Acho que não dei a atenção que devia.
Mas também acho que ele foi muito mimado quando criança, sempre tinha tudo, diferente dos
demais irmãos. Acho que também por ser caçula. Mimadinho! Bem feito. Quem sabe aprende a
se virar um dia, quando voltar. Se voltar!
- Feruslux não voltou mais pra casa. Resolveu criar seu mundo paralelo e lá permanecer.
Revoltado com a vida, com as pessoas e com tudo. Cheio de dor. Quando chegou no consultório
e fizemos a primeira sessão, descobri que ele tinha um tipo de transtorno de personalidade
múltiplo associado a Síndrome de Húbris2. Um temperamento instável, mas amoroso ao
extremo, ao mesmo tempo, de fácil relacionamento com as pessoas, podendo se dizer,
carismático. Uma verdadeira Atena casada com Baco, pois adorava todo tipo de artes, literatura,
musica, mulher e vinho. Chegou a cantar até em coral e ariscava-se na pintura. A últimas
noticias que tive dele é que estava morando com uma senhora da sociedade aqui da capital,
chamada Afitrite. Nunca comentou sobre seus relacionamentos e afetividade de forma mais
aprofundada, se era amor verdadeiro. Uma vez comentou que tinha facilidade para se
apaixonava e que também desapaixonava tão rápido como quando se apegava. Por este motivo
se achava frio, mas enquanto estava com a pessoa, ele amava com todas as forças. Usava do seu
lado romântico, escrevendo lindas mensagens de amor e seduzindo a pessoa.
- Bom! O motivo pelo qual veio buscar atendimento no consultório foi que estava se sentindo
inquieto e angustiado, quanto ao seu relacionamento com Anfitrite 3, e que sua relação estaria
por um fio. Não estava mais apaixonado por ela, mas também não queria perde-la.
- Seu poder de sedução com as mulheres deixava claro o Don Juan (DeMarco) que estava
impregnado em seus poros, suas atitudes e comportamento. A forma como falava, meio melosa,
não enjoativa, permeando musica em todo momento. “Basta olhar no fundo dos seus olhos pra
ver que já não sou como era antes. Tudo que eu preciso é de uma chance, de alguns instantes”.
Trazia a musica entre suas mensagens e assim conquistava a sua próxima amante ou vítima, e
tão logo a conquistava já se sentia satisfeito como numa caçada. Ele aprendeu a arte de
arremedar com o que viu nos filmes e livros. O poder de sedução, lançando o anzol diretamente
onde queria capturar sua presa.
- Se despedia na sida do consultório, sempre com um sorriso de satisfeito e um ar de que a partir
daquele momento iria mudar seu comportamento.
- Sei que pode parecer estranha essa história toda, a respeito de Feruslux, mas estou trazendo
para o grupo, sobre o rapaz por que já faz um ano que ele vem ao meu consultório e não sei
mais como lidar com a situação. Tenho percebido que aproveito dele em relação às suas falas e
ao seu comportamento. Ele tem me ensinado a deixar muitas coisas prá lá, coisas sem
importância e que também não conseguia lidar, não valorizava. Vocês sabem como são essas
coisas de terapia, configurando um cenário da vida do meu paciente, semelhante ao vivenciado
por mim. Sinto que estou caindo a cada dia que converso com ele. Já não consigo mais ajudá-lo
sem me envolver ou querer saber mais sobre sua trajetória amorosa e seus últimos
relacionamentos afetivos e até mesmo sobre a técnica da caça.
- Vamos ao livro que a gente ganha mais. Me deixe eu só lavar as mãos novamente e tentar tirar
essa porcaria de sujeira dos dedos. Como perco tempo com pensamentos bobos, que voam do
nada, como o vento, pra se livrar, não lembrar de maus momentos, gostar... gostar de alguém, se
preocupar, querer o seu bem. Tenho que parar de escrever esses meus pensamentos enquanto
escrevo. O garoto nem é um anjo de verdade e fico aqui me iludindo. Deixe que ele viva e tenha
suas experiências. Só assim vai crescer e quem sabe um dia lá na terra do nunca, tenha juízo ou
até mesmo ser juiz, nem que seja de futebol.

1
Feruslux – Mesmo que Lúcifer. Vem da junção das palavras em latim lux (luz) e ferus (carregar) e
significa "portador da luz". Na tradição cristã, ele é representado como um anjo que desejava estar acima
de Deus, por isso foi expulso do céu para o mais profundo abismo, tornando-se, então, o diabo.
2
Síndrome de Húbris - Conhecida pela Síndrome da Presunção. Partilha elementos com o narcisismo e a
psicopatia, corresponde a um padrão de comportamento provocado pela exposição a um cargo de poder
por um período variável de um a nove anos.
3
Anfitrite - filha da ninfa Dóris e de Nereu, portanto uma nereida. Esposa de Posídon e deusa dos mares.
A princípio, se recusou a unir-se ao deus, se escondendo nas profundezas dos oceanos, em um lugar
conhecido apenas por sua mãe. Acabou cedendo às investidas de Posidão, se tornando rainha dos
oceanos. É representada portando um tridente, símbolo de sua soberania sobre os mares.

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