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DADOS DE ODINRIGHT

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Annie Ernaux nasceu em Lillebonne, na Nor-mandia, em 1940, e estudou nas

universidades de Rouen e de Bordéus, sendo formada em Letras Modernas. É

atualmente uma das vozes mais importantes da literatura francesa, destacando-

se por uma escrita onde se fundem a autobiografia e a sociologia, a memória e

a história dos eventos recentes. Galardoada com o Prémio de Língua Francesa

(2008), o Prémio Marguerite Yourcenar (2017) e o Prémio Formentor de las

Letras (2019) pelo conjunto da sua obra, destacam-se os seus livros Um Lugar

ao Sol (1984), vencedor do Prémio Renaudot, e Os Anos (2008), vencedor do

Prémio Marguerite Duras e finalista do Prémio Man Booker Internacional.


Uma Paixão Simples

Annie Ernaux

Publicado em Portugal por

Livros do Brasil (www.livrosdobrasil.pt)

Título original: Passion simple

© Éditions Gallimard, 1991

© Porto Editora, 2020

Tradução: Tereza Coelho

Capa: Egon Schiele (1890-1918), O Abraço.

Fotografia da autora: © Ulf Andersen/GettyImages

1.ª edição em papel na Livros do Brasil/Porto Editora: outubro de 2020

Rua da Restauração, 365

4099­-023 Porto

Portugal

www.portoeditora.pt

ISBN 978-989-711-081-8
Nous deux – a revista – é mais obscena do que Sade.

ROLAND BARTHES
1
Este verão vi pela primeira vez um filme pornográfico no Canal + .

Como não tenho descodificador, as imagens no ecrã eram desfocadas,

em vez das palavras havia uns barulhos estranhos, zumbidos, batidos,

uma espécie de outra língua, suave e contínua. Distinguia-se uma

silhueta de mulher de corpete, e de meias, e um homem. A história era

incompreensível e não se conseguia prever o que quer que fosse, nem

gestos, nem ações. O homem aproximou-se da mulher. Houve um

grande plano, o sexo da mulher apareceu, muito visível nas cintilações

do ecrã, depois foi o sexo do homem, em ereção, que deslizou para

dentro do sexo da mulher. Durante um período de tempo longo, o

vaivém dos dois sexos foi mostrado sob diversos ângulos. A verga

reapareceu, entre as mãos do homem, e o esperma espalhou-se por cima

da barriga da mulher. Com certeza que uma pessoa se habitua a esta

visão, mas da primeira vez é perturbante. Já passaram séculos e séculos,

gerações e gerações, e só agora é que se pode ver isto, um sexo de

mulher e um sexo de homem a unirem-se, o esperma – não se podia

olhar sem quase morrer, e agora é tão fácil de ver como um aperto de

mãos.

Pareceu-me que a escrita devia tender para isso, para a impressão

que provoca a cena do ato sexual, a angústia e o espanto, uma suspensão

do juízo moral.

1
Canal +: canal privado de televisão. (N. da T.)
A partir do mês de setembro do ano passado, não fiz mais nada a não

ser esperar um homem: esperar que ele me telefonasse e que viesse a

minha casa. Ia ao supermercado, ao cinema, levava a roupa à lavandaria,

lia, corrigia provas, comportava-me exatamente como antes, mas sem

uma longa habituação a esses atos teria sido impossível, a não ser com

um esforço assustador. Era principalmente quando falava que eu tinha a

impressão de viver por impulso. As palavras e as frases, até o riso,

formavam-se na minha boca sem uma efetiva participação da minha

reflexão ou da minha vontade. Eu aliás já só tinha uma recordação vaga

das minhas atividades, dos filmes que tinha visto, das pessoas que tinha

encontrado. O conjunto do meu comportamento era fictício. As únicas

ações em que eu empenhava a minha vontade, o meu desejo, e algo que

deve ser a inteligência humana (prever, avaliar os prós e os contras, as

consequências) tinham, todas, uma relação com esse homem:

ler no jornal os artigos sobre o país dele (ele era estrangeiro)

escolher a roupa e a maquilhagem

escrever-lhe cartas

mudar os lençóis e pôr flores no meu quarto

tomar nota daquilo de que não me devia esquecer de lhe dizer

da próxima vez, daquilo que lhe poderia interessar

comprar uísque, fruta, iguarias diversas para a noite que

passávamos juntos

imaginar em que sala faríamos amor quando ele chegasse.

Nas conversas, os únicos temas que passavam através da minha

indiferença relacionavam-se com esse homem, com o que fazia, com o

país de onde vinha, com os sítios onde tinha ido. A pessoa que estava a

falar comigo nem suspeitava que o meu intenso interesse súbito por
aquilo que me dizia não tinha nada que ver com a sua maneira de contar,

e era muito pouco por causa do tema em si, mas prendia-se sim com o

facto de que um dia, dez anos antes de eu o ter conhecido, A., numa

missão em Havana, tinha entrado precisamente nessa boîte, o

«Fiorendito», que, estimulada pela minha atenção, essa pessoa me

descrevia com uma grande abundância de pormenores. Quando lia, as

frases que me faziam parar também eram sobre as relações entre um

homem e uma mulher. Parecia-me que me ensinavam qualquer coisa

sobre A. e davam um certo sentido àquilo em que eu desejava acreditar.

Por isso, ler na Vida e Destino de Grossman que «quando se ama

fecham-se os olhos durante o beijo» levava-me a imaginar que A. me

amava, porque ele beijava-me assim. Depois, o resto do livro voltava a

ser aquilo que qualquer atividade tinha sido para mim durante um ano,

um meio de passar o tempo entre dois encontros.

Eu não tinha nenhum futuro a não ser o próximo telefonema a

marcar um encontro. Tentava sair o menos possível fora das minhas

obrigações profissionais – ele sabia esses horários –, temendo acima de

tudo falhar um telefonema dele durante a minha ausência. Também

evitava servir-me do aspirador ou do secador do cabelo, porque me

teriam impedido de ouvir tocar. Quando o telefone tocava sentia-me

fulminada por uma esperança que muitas vezes só durava o tempo de

pegar lentamente no aparelho e dizer está. Descobrindo que não era ele,

caía numa tal deceção que passava a odiar a pessoa que estava do outro

lado. Logo que ouvia a voz de A., a minha expectativa indefinida,

dolorosa, evidentemente ciumenta, aniquilava-se tão depressa que eu

tinha a impressão de ter estado louca e de me ter tornado subitamente


normal. Sentia-me chocada pela insignificância, no fundo, dessa voz, e

pela importância desmedida que tinha na minha vida.

Se ele me anunciava que chegava dentro de uma hora – uma

«oportunidade», ou seja, um pretexto para se atrasar sem a mulher

suspeitar de nada –, eu entrava noutro tipo de expectativa, sem

pensamento, sem desejo sequer (ao ponto de me perguntar se teria

algum prazer no sexo), cheia de uma energia febril para tarefas que eu

não conseguia ordenar: tomar um duche, tirar os copos, pintar as unhas,

passar a esfregona. Já não sabia quem esperava. Era apenas engolida por

esse instante – cuja aproximação sempre me encheu de um terror sem

nome – em que ia ouvir o carro travar, a porta bater, os passos na

entrada de cimento.

Quando ele me deixava por um período mais longo, três ou quatro

dias entre o telefonema e a vinda, eu imaginava, enojada, todo o trabalho

que ia ter de fazer, os jantares em casa de amigos onde teria de ir, antes

de o voltar a ver. O que eu queria era não ter de fazer nada a não ser

esperar por ele. E vivia num pânico crescente de que acontecesse fosse o

que fosse que impedisse o nosso encontro. Uma tarde, quando chegava a

casa de carro e ele devia chegar uma meia hora depois, pensei

rapidamente que podia bater. E logo a seguir pensei: «Não sei se

1
parava.»

Quando estava pronta, maquilhada, penteada, e tinha a casa

arrumada, era incapaz, se me sobrasse tempo, de ler ou corrigir provas.

Também não queria, de certo modo, desviar a atenção para uma coisa

que não fosse esperar por A.: para não estragar isso. Muitas vezes,

escrevia numa folha a data, a hora e «ele vai chegar», e outras frases,

outros medos, de que ele não viesse, ou de que ele me desejasse menos.
À noite pegava outra vez nessa folha, «ele veio», e anotava

desordenadamente pormenores do nosso encontro. Depois, apalermada,

ficava a olhar para a folha rabiscada, com os dois parágrafos escritos

antes e depois que se liam um a seguir ao outro, sem rutura. Entre os

dois tinha havido palavras, gestos, que tornavam qualquer gesto irrisório,

incluindo a escrita através da qual eu tentava fixá-los. Um espaço de

tempo delimitado pelos dois barulhos do automóvel, o R 25 dele a travar

e a arrancar, em que eu estava certa de que não tinha acontecido nunca

nada de mais importante na minha vida, nem ter filhos, nem as melhores

classificações nos concursos, nem as viagens mais longas, nada a não ser

aquilo, estar na cama com aquele homem a meio da tarde.

Aquilo só durava umas horas. Eu tirava o relógio de pulso mesmo

antes de ele chegar. Ele não tirava o dele e eu receava o momento em

que o consultasse discretamente. Quando eu ia à cozinha buscar gelo,

olhava para o relógio que estava pendurado por cima da porta, «já só

faltam duas horas», «uma hora», ou «daqui a uma hora estou eu aqui e

ele já se foi embora». Perguntava a mim própria, admirada: «Onde é que

está o presente?»

Antes de sair, ele vestia-se pausadamente. Eu via-o a abotoar a

camisa, a calçar as meias, a enfiar as cuecas, as calças, a ver-se ao

espelho para fazer o nó da gravata. Na altura em que vestisse o casaco,

estava tudo acabado. Eu já era só tempo a passar através de mim.

Logo que ele se ia embora, sentia-me petrificada por um cansaço

imenso. Não começava logo a arrumar. Contemplava os copos, os pratos

com os restos, o cinzeiro cheio, a roupa, as peças de lingerie espalhadas


pelo corredor, o quarto, os lençóis a caírem para a alcatifa. Queria

manter intacta aquela desordem em que todos os objetos significavam

um gesto, um momento, que compunha um quadro cuja força e dor eu

nunca serei capaz de experimentar num museu, com outro quadro

qualquer. Não me lavava, naturalmente, antes do dia seguinte, para

conservar o esperma dele.

Calculava quantas vezes fizéramos amor. Tinha a impressão de que,

de cada uma dessas vezes, qualquer coisa se acrescentara à nossa

relação, mas que era também essa acumulação de gestos e de prazer que

ia, seguramente, afastar-nos um do outro. Esgotávamos um capital de

desejo. O que se ganhava em intensidade física perdia-se em tempo.

Eu caía numa sonolência em que tinha a sensação de estar a dormir

dentro do corpo dele. No dia seguinte, vivia num torpor em que se

refazia, indefinidamente, uma carícia dele, em que se repetia uma

palavra que ele havia pronunciado. Ele não sabia obscenidades em

francês, ou então não lhe apetecia utilizá-las porque não estavam, para

ele, carregadas de interdito social, eram palavras tão inocentes como as

outras (como teriam sido para mim as grosserias na língua dele). No

2
RER , no supermercado, ouvia a voz dele murmurar «acaricia-me o sexo

com a tua boca». Uma vez, na estação de Opéra, mergulhada nos meus

devaneios, deixei passar sem me dar conta a ligação que ia apanhar.

Esta anestesia dissipava-se progressivamente, eu recomeçava a ouvir

um apelo, e o sofrimento e a angústia eram cada vez maiores à medida

que se afastava a data do último encontro. Era como os exames,

antigamente, quanto mais tempo passasse depois da prova mais eu tinha

a certeza de chumbar, quanto mais os dias se sucediam sem ele telefonar

mais eu tinha a certeza de que ele me tinha deixado.


Os únicos momentos felizes quando ele não estava eram aqueles em

que eu comprava vestidos novos, brincos, meias, e os experimentava em

casa, em frente ao espelho. O ideal, o impossível, consistia em ele ver

sempre uma toilette diferente. Cinco minutos era o tempo que ele tinha

para ver a blusa ou os sapatos novos que iam ser abandonados num sítio

qualquer até ele se ir embora. Eu também sabia da inutilidade da roupa

perante um desejo novo que ele sentisse por outra mulher. Mas aparecer

numa toilette que ele já conhecesse parecia-me uma falha, uma

negligência no esforço rumo a uma espécie de perfeição para a qual eu

tendia na minha relação com ele. Dentro da mesma vontade de

perfeição, folheei, num hipermercado, Técnicas do Amor Físico.

Debaixo do título tinham escrito «70 000 exemplares vendidos».

Muitas vezes, eu tinha a impressão de viver esta paixão como se

estivesse a escrever um livro: a mesma necessidade de não falhar

nenhuma cena, a mesma preocupação com todos os pormenores. E até

pensei que não me importava de morrer depois de ter ido até ao fim

desta paixão – sem dar um sentido preciso a «até ao fim» –, da mesma

maneira que poderia morrer depois de ter acabado de escrever isto,

daqui a uns meses.

1
Frequentemente ponho lado a lado um desejo e um acidente em que sou eu a agressora ou a

vítima, qualquer coisa mais ou menos trágica. É uma maneira bastante segura de medir a força

do meu desejo – talvez de desafiar o destino, também –, isso de saber se, imaginariamente, aceito

pagar o preço: «Não me importo que a minha casa arda se conseguir acabar o que estou a

escrever.»

2
O Réseau Express Régional é uma rede do Metropolitano de Paris destinada a servir a zona

suburbana da cidade. (N. do E.)


Eu tentava, diante das pessoas com quem me dou, não deixar

transparecer a minha obsessão naquilo que dizia, embora isso me

obrigasse a uma vigilância difícil de manter constantemente. No

cabeleireiro, vi uma mulher muito volúvel, a quem toda a gente

respondia normalmente até ao momento em que, quando lhe estavam a

lavar o cabelo, ela disse «estou a fazer um tratamento aos nervos».

Desde logo, impercetivelmente, o pessoal começou a dirigir-se a ela com

uma contenção distante, como se aquela confissão irreprimível fosse a

prova da sua perturbação. Eu tinha medo de parecer também anormal se

dissesse «estou a viver uma paixão». No entanto, quando estava no meio

de outras mulheres, na caixa do supermercado, no banco, perguntava-me

se elas tinham, como eu, sempre um homem na cabeça, se não, o que é

que faziam para viver assim, quer dizer – segundo a minha existência

anterior – sem terem nada para esperar a não ser o fim de semana, ir

jantar fora, uma sessão no ginásio ou os resultados escolares das

crianças: tudo aquilo que agora me era penoso ou indiferente.

Como troca de confidências com uma mulher ou com um homem

que confessasse estar a viver, ou ter vivido, «um amor louco com um

gajo» ou «uma relação muito forte com alguém», às vezes apetecia-me

entregar-me. Desaparecida a euforia da cumplicidade, censurava-me a

falta de cuidado, por menor que fosse. Essas conversas em que eu tinha

continuamente respondido àquilo que a outra pessoa me dizia com «eu

também, comigo é igual, fiz a mesma coisa, etc.» pareciam-me de

repente estranhas à realidade da minha paixão, inúteis. E além disso,

parecia-me que alguma coisa se perdia nessas efusões.

Aos meus filhos, que andam a estudar e que ficam irregularmente em

minha casa, eu só revelara um mínimo que em termos práticos me


garantisse o exercício fácil da minha ligação. Por isso, tinham de

telefonar para saberem se podiam ir para casa, e, se lá estivessem,

tinham de se ir embora logo que A. anunciasse que ia chegar. Esta

disposição não provocava – exteriormente pelo menos – dificuldade

nenhuma. Mas eu teria preferido que para os meus filhos esta história

fosse completamente secreta, como eram dantes, para os meus pais, os

meus flirts e as minhas aventuras. Era, sem dúvida, o desejo de evitar

que me julgassem. E também porque pais e filhos são os últimos a

poderem aceitar, sem que isso os perturbe, a sexualidade daqueles que

lhes estão, de um ponto de vista carnal, mais próximos, e lhes são para

sempre os mais interditos. As crianças podem recusar a evidência

inscrita no olhar vago, no silêncio ausente da mãe: para ela, em certos

momentos, elas não contam mais do que para uma gata impaciente por ir

1
atrás dos gatos velhos.

1
Na Marie-Claire, os jovens, entrevistados, condenam sem apelo os amores da mãe separada ou

divorciada. Uma rapariga diz, com rancor: «Os amantes da minha mãe só serviram para a fazer

sonhar.» E que melhor serviço lhe poderiam prestar?


Durante esse período, não ouvi uma única vez música clássica,

preferia as canções. As mais sentimentais, a que não prestava atenção

nenhuma dantes, perturbavam-me. Diziam, sem desvios nem distância,

o absoluto da paixão e também a sua universalidade. Ao ouvir Sylvie

Vartan cantar, nessa altura, «é fatal, animal», tinha a certeza de não ser a

única a sentir aquilo. As canções acompanhavam e legitimavam o que eu

estava a viver.

nas revistas femininas começava por ler o horóscopo.

apetecia-me ir ver imediatamente o filme que eu estava

convencida de que continha a minha história, ficava muito

dececionada por, quando era antigo, não estar em exibição em

lado nenhum, como O Império dos Sentidos de Oshima.

dava dinheiro aos homens e às mulheres sentados nos

corredores do metro fazendo votos de que ele me telefonasse

nessa noite. Prometia mandar 200 francos à Misericórdia se ele

aparecesse antes de uma data que eu escolhia. Contrariamente à

minha maneira habitual de viver, gastava dinheiro de uma forma

absurda. Isso parecia-me estar integrado num gasto geral,

necessário, inseparável da minha paixão por A., e que incluía

gastar tempo, que eu perdia em devaneios e expectativa, e que

incluía, naturalmente, gastar o corpo: fazer amor até titubear de

cansaço, como se fosse a última vez. (Como é que se pode ter a

certeza de que não é a última vez?)

numa tarde em que ele lá estava, queimei o tapete da sala até

à trama por lhe ter posto em cima uma cafeteira a ferver. Tanto se
me dava. Aliás, sempre que via aquela marca, ficava contente por

me lembrar dessa tarde passada com ele.

os problemas da vida quotidiana não me irritavam. Não me

preocupei com uma greve na distribuição do correio que durou

dois meses, porque A. não me mandava cartas (era, sem dúvida,

prudência de homem casado). Ficava tranquilamente à espera nos

engarrafamentos, no guichê do banco, e não me incomodava o

acolhimento mal-humorado de um empregado. Não havia nada

que me fizesse sentir impaciente. Sentia para com as pessoas

uma mistura de compaixão, de dor e de fraternidade.

Compreendia os marginais deitados nos bancos, os clientes das

prostitutas, uma passageira mergulhada num romance cor-de-rosa

(mas não teria sido capaz de dizer o que é que havia em mim de

semelhante a eles).

uma vez, ao ir buscar, nua, cervejas ao frigorífico, lembrei-me

das mulheres, sozinhas ou casadas, mães de família, que, no

bairro da minha infância, recebiam às escondidas um homem

durante a tarde (ouvia-se tudo – era impossível distinguir se os

vizinhos as censuravam por não se portarem devidamente ou por

consagrarem as horas do dia ao prazer em vez de estarem a

limpar os vidros). Eu pensava nelas com uma satisfação

profunda.

Durante todo esse tempo, tive a impressão de estar a viver a minha

paixão no modo romanesco, mas agora já não sei em que modo escrevo,
se é como testemunho, ou confidência, como se pratica nas revistas

femininas, se é como manifesto ou relato, ou mesmo como comentário

de texto.

Não conto a história de uma ligação, não conto uma história (cerca

de metade escapa-me) com uma cronologia precisa, «ele chegou no dia

11 de novembro», ou aproximativa, «passaram-se semanas». Não há

disso nesta relação, porque eu só tive presença ou ausência. Limito-me a

acumular os signos de uma paixão, oscilando incessantemente entre

«sempre» e «uma vez», como se o inventário me fosse permitir chegar à

realidade da paixão. Não há aqui, naturalmente, na enumeração e

descrição de factos, nem ironia nem cinismo, que são formas de contar

as coisas aos outros ou a nós próprios depois de as termos vivido, não

servem para as sentirmos naquele momento.

Quanto à origem da minha paixão, não procurei encontrá-la na

minha história longínqua, essa que um psicanalista me faria reconstituir,

nem na história recente, nem nos modelos culturais de sentimentos que

me influenciaram desde a infância (E Tudo o Vento Levou, Fedra ou as

canções de Piaf são tão decisivos como o complexo de Édipo). Não

quero explicar a minha paixão – isso acabaria por considerá-la erro ou

desordem a justificar –, quero, simplesmente, expô-la.

Talvez os únicos dados pertinentes a considerar sejam materiais, o

tempo e a liberdade que eu tive para viver isto.

Ele gostava de fatos Saint-Laurent, de gravatas Cerruti e de carros

grandes. Guiava depressa, a fazer sinais de luzes, sem falar, como se

estivesse completamente entregue à sensação de estar livre, bem vestido,

a dominar as autoestradas francesas, ele que vinha de um país de Leste.


Gostava que o achassem parecido com Alain Delon. Eu adivinhava –

tanto quanto isso é possível com um estrangeiro – que ele não se sentia

atraído por coisas intelectuais e artísticas, apesar do respeito que lhe

inspiravam. Da televisão, preferia os concursos e Santa Barbara. Tanto

me fazia. Sem dúvida porque podia considerar os gostos de A., que era

estrangeiro, como sendo antes de mais diferenças culturais. Se ele fosse

francês eu teria considerado os mesmos gostos, antes de mais, como

diferenças sociais. Ou talvez me desse prazer descobrir em A. o meu

lado mais «nova-rica»: eu fora uma adolescente ávida por vestidos,

discos e viagens, privada disso entre amigas que as tinham – tal como

A., «privado» com todo o seu povo, que só aspirava a ter as camisas

1
bonitas e os vídeos das montras ocidentais.

Ele bebia muito, como era costume nos países de Leste. Isso

assustava-me, porque podia ter um acidente quando se ia embora pela

autoestrada, mas não me repugnava. Mesmo que lhe acontecesse

titubear, ou arrotar quando me beijava. Pelo contrário, sentia-me

satisfeita por estarmos juntos naquele princípio de abjeção.

Eu não sabia qual era a natureza da relação dele comigo. Ao

princípio, havia alguns indícios – o ar feliz e o silêncio quando estava a

olhar para mim, dizer «guiei que nem um maluco para cá chegar»,

contar-me a infância – de que ele sentia a mesma paixão por mim. Esta

certeza depois começou a vacilar. Ele parecia-me mais reservado, menos

propenso a entregar-se – mas bastava falar-me do pai, das framboesas

que apanhava na floresta aos doze anos, para eu mudar de opinião. Já

não me oferecia nada – quando eu recebia flores ou um livro da parte de

amigos, pensava nas atenções que ele não achava necessário ter comigo,

mas também pensava logo: «Dá-me de presente o seu desejo.» Registava

avidamente as frases que considerava sinais de ciúme, única prova, na


minha opinião, do seu amor. Algum tempo depois percebi que «vais sair

no Natal?» era apenas uma pergunta banal ou prática, para prever ou não

um encontro, e não era nenhuma maneira desviada de saber se eu ia para

a neve com alguém (talvez ele até quisesse que eu fosse, para poder

encontrar-se com outra mulher?). Muitas vezes perguntava-me o que

significavam para ele aquelas tardes passadas a fazer amor. Com certeza

não significavam nada além disso, fazer amor. Como quer que fosse, era

inútil procurar razões suplementares, eu nunca teria a certeza de nada a

não ser de uma coisa: do desejo dele ou da falta desse desejo. A única

verdade incontestável era visível olhando para o seu sexo.

1
Este homem continua vivo num lugar qualquer do mundo. Não posso descrevê-lo mais, nem

fornecer sinais suscetíveis de o identificarem. «Faz-se à vida» com determinação, o que significa

que para ele não há obra mais importante a elaborar do que essa vida. Que o meu caso seja

diferente não me autoriza a revelar quem ele é. Não escolheu figurar no meu livro. Só na minha

existência.
O facto de ele ser estrangeiro tornava ainda mais improvável

qualquer interpretação do seu comportamento, modelado por uma

cultura da qual eu só conhecia o aspeto turístico, os clichés. Comecei

por me sentir desencorajada com estes limites evidentes à compreensão

mútua, reforçados pelo facto de não conseguir falar a língua dele,

embora ele se exprimisse bastante bem em francês. Depois admiti que

esta situação me poupava a ilusão de acreditar numa comunicação

perfeita, ou até numa fusão, entre nós. No leve desajustamento entre a

língua francesa, que ele falava, e aquilo que é a sua utilização mais

corrente, na hesitação que eu por vezes sentia quanto ao significado que

ele estava a atribuir a um termo, eu media continuamente o que havia de

aproximativo nas trocas de palavras. Tinha o privilégio de viver, desde o

princípio, constantemente, e em plena consciência, aquilo que acabamos

por descobrir sempre, com um grande espanto e uma profunda deceção:

que o homem que amamos é um estranho.

As regras que me impunha a sua situação de homem casado – não

lhe telefonar – não lhe enviar cartas – não lhe dar presentes que ele teria

uma grande dificuldade em justificar – depender constantemente das

suas possibilidades de se disponibilizar – não me revoltavam.

eu entregava-lhe as cartas que lhe escrevia no momento em que ele

se ia embora de minha casa. Suspeitar de que, logo que acabava de as

ler, as deitava fora na autoestrada, rasgadas aos bocadinhos, não me

impedia de continuar a escrever-lhe.

tinha cuidado em não lhe deixar nenhum sinal meu na roupa e não

lhe fazia marcas na pele. Queria evitar-lhe cenas com a mulher, e não

queria arriscar-me a despertar nele um rancor que o levasse a deixar-me.


Pela mesma razão, evitava encontrá-lo em sítios onde sabia que ela ia

com ele. Tinha medo de trair à frente dela, com um gesto espontâneo –

acariciar a nuca de A., retificar-lhe um pormenor no fato –, a relação que

nós tínhamos. (Também não queria sofrer inutilmente imaginando,

como sempre que a via, A. a fazer amor com ela – nem achá-la

insignificante, nem pensar que ele talvez fizesse isso porque ela «estava à

mão», eram dados relevantes contra a tortura de uma visão dessas.)

Estas imposições eram em si mesmas motivo de expectativa e de

desejo. Como ele me telefonava sempre de cabinas telefónicas com um

funcionamento imprevisível, quando eu levantava o auscultador, muitas

vezes não havia ninguém do outro lado. Com a continuação, percebi que

aquela «falsa» chamada precedia uma verdadeira, o mais tardar um

quarto de hora depois, o tempo de ele encontrar um telefone que

funcionasse. Este primeiro telefone mudo era o sinal que precedia a voz

dele, uma (rara) promessa certa de felicidade, e o intervalo que me

separava do telefonema seguinte, em que ele diria o meu nome e

«encontramo-nos?», era um dos momentos mais belos que se podem

imaginar.

Em frente da televisão, à noite, eu perguntava-me se ele estaria a ver

o mesmo programa ou o mesmo filme que eu, principalmente se o tema

era o amor ou o erotismo, ou se o guião tinha uma semelhança qualquer

com a nossa situação. Nessa altura eu imaginava que ele via A Mulher

1
do Lado pondo-nos a nós no lugar das personagens. Se ele me dizia que

realmente vira o filme, eu tinha tendência a acreditar que ele o escolhera

nessa noite por nossa causa, e que, representada no ecrã, a nossa história

lhe devia parecer mais bonita, e, como quer que fosse, justificada.
(Naturalmente, afastava depressa a ideia de que a nossa relação podia,

pelo contrário, parecer-lhe perigosa, porque no cinema a maior parte das

2
vezes as paixões extraconjugais acabam mal.)

Por vezes, dizia a mim própria que ele passava provavelmente um dia

inteiro sem pensar em mim nem por um segundo. Via-o levantar-se,

tomar o café, falar, rir, como se eu não existisse. Essa descoincidência

com a minha própria obsessão surpreendia-me bastante. Como é que

isso era possível? Mas ele próprio teria ficado estupefacto por saber que

não me largava a cabeça de manhã à noite. Não havia razão para achar a

minha atitude mais justa do que a sua. De certo modo, eu tinha mais

sorte do que ele.

Quando andava por Paris a ver desfilar nos boulevards carros

grandes guiados por um homem sozinho, com ar de quadro superior

atarefado, dava-me conta de que A. não era nem mais nem menos do

que um entre eles, preocupado antes de mais com a carreira, com uns

acessos de erotismo, talvez mesmo de amor, por uma nova mulher de

dois em dois ou de três em três anos. Esta descoberta libertava-me.

Dava-me a certeza de que ele se tinha tornado para mim tão anónimo e

desinteressante como aqueles ocupantes clean de BMW ou de R 25. Mas,

enquanto andava, olhava para as montras dos vestidos e da lingerie,

como se estivesse a prever um próximo encontro.

Estes momentos de distanciação, efémeros, vinham do exterior, eu

não os procurava. Pelo contrário, evitava as ocasiões que poderiam

arrancar-me à minha obsessão, leituras, saídas e qualquer atividade de

que eu gostasse antes. Aspirava à inocupação total. Recusei, vivamente,


uma carga extra de trabalho que o meu diretor me pediu, e praticamente

insultei-o ao telefone. Parecia-me que tinha o pleno direito de me opor

àquilo que me impedia de me entregar sem limites às sensações e às

histórias imaginárias da minha paixão.

No RER, no metro, nas salas de espera, em todos os lugares onde é

permitido não nos entregarmos a ocupação nenhuma, mal me sentava,

entrava num devaneio sobre A. No exato segundo em que caía nesse

estado, sentia na minha cabeça um espasmo de felicidade. Tinha a

impressão de me abandonar a um prazer físico, como se o cérebro, sob o

afluxo repetido das mesmas imagens, das mesmas memórias, pudesse

gozar, como se fosse um órgão sexual igual aos outros.

Claro que não sinto vergonha nenhuma ao escrever estas coisas, por

causa do tempo que separa o momento em que elas se escrevem, e em

que sou a única pessoa a vê-las, do momento em que serão lidas por

outras pessoas e que, parece-me, não chegará nunca. Daqui até lá, posso

ter um acidente, morrer, pode rebentar uma guerra ou começar a

revolução. É por causa deste lapso de tempo que eu posso atualmente

escrever, um pouco como aos dezasseis anos me expunha ao sol a

escaldar um dia inteiro, e aos vinte fazia amor sem contracetivos: sem

pensar nas consequências.

(Por isso é um erro comparar aquele que escreve sobre a sua vida

com um exibicionista, porque um exibicionista só quer uma coisa,

mostrar-se e ser visto no mesmo instante.)


1
Filme de Truffaut. (N. da T.)

2
Lulu de Pialat, Bela de Mais para Ti de Blier, etc.
Na primavera, a minha expectativa passou a ser contínua. Instalou-se

um calor precoce a partir do princípio do mês de maio. Os vestidos de

verão surgiram nas ruas, as esplanadas dos cafés estavam cheias. Ouvia-

se ininterruptamente uma dança exótica, a lambada, nos murmúrios de

uma mulher de voz sufocada. Tudo queria dizer novas possibilidades de

prazer, e eu atribuía a A. o projeto de as aproveitar sem mim. O seu

posto, as suas funções em França pareciam-me muito elevados,

suscetíveis de atraírem a admiração de todas as mulheres, e eu

depreciava-me numa proporção inversa, não me descobrindo interesse

nenhum que pudesse retê-lo junto de mim. Quando ia a Paris, fosse em

que bairro fosse, esperava sempre vê-lo passar de carro com uma mulher

ao lado. Eu andava muito direita, numa atitude antecipada de orgulhosa

indiferença por aquele encontro. Que esse encontro nunca tivesse

ocorrido quase me dececionava ainda mais: eu deambulava pelo

boulevard des Italiens, a suar, sob o seu olhar imaginário, enquanto ele

estava num lugar qualquer, inatingível. Perseguia-me a visão dele a guiar

com os vidros abertos em direção ao parque de Sceaux ou ao bosque de

Vincennes.

Um dia comecei a ler, numa revista de televisão, uma reportagem

sobre um grupo de bailarinos cubanos em tournée em Paris. O autor

insistia na sensualidade e na liberdade das cubanas. Uma fotografia

mostrava a bailarina entrevistada, alta, de cabelo preto, com as pernas

compridas à mostra. À medida que continuava a ler, o meu

pressentimento crescia. No fim tinha a certeza de que A., que conhecia

Cuba, havia encontrado a bailarina da fotografia. Via-o com ela num

quarto de hotel e não havia nada que nesse momento pudesse convencer-

me de que a cena era inverosímil. Pelo contrário, era a hipótese de não

ter acontecido que me parecia estúpida e inimaginável.


Quando ele telefonava para nos vermos, o seu telefonema, cem vezes

esperado, não mudava nada, eu ficava no mesmo estado de tensão

dolorosa. Tinha entrado num estado em que mesmo a realidade da sua

voz não conseguia fazer-me feliz. Tudo era uma carência interminável, a

não ser o momento em que estávamos juntos a fazer amor. E, além

disso, obcecava-me o momento seguinte, em que ele se ia embora. Vivia

o prazer como uma dor futura.

Era incessante a vontade de acabar, para não continuar à mercê de

um telefonema, para deixar de sofrer. E, logo a seguir, a representação

daquilo que isso pressupunha, no exato momento da rutura: uma

sequência de dias sem esperar nada. Eu preferia continuar, fosse qual

fosse o preço – ele ter uma mulher, várias (o que seria um sofrimento

ainda maior do que aquele pelo qual eu o queria deixar). Mas,

comparando com o nada que eu entrevia, a minha situação atual parecia-

me feliz, o meu ciúme uma espécie de privilégio frágil do qual seria

uma loucura desejar que acabasse, porque isso aconteceria um dia sem

eu querer, quando fosse ele a ir-se embora ou a deixar-me.

Eu evitava as ocasiões de o encontrar no exterior no meio de

pessoas, não suportava vê-lo só por ver. Foi assim que eu não fui a uma

inauguração para a qual ele estava convidado, e acabei por ficar toda a

noite obcecada com a imagem dele a sorrir e a dar atenção a uma

mulher, como tinha acontecido comigo quando nos conhecemos. Depois

houve uma pessoa qualquer que me disse que nessa inauguração só

estavam três gatos pingados. Fiquei aliviada, e repetia para mim aquela

frase com prazer, como se houvesse uma relação entre o ambiente numa

receção, o número de mulheres convidadas e aquilo que só dependia do


acaso de um encontro – porque só uma mulher bastava –, e do desejo

que ele tivesse, ou não, de a seduzir.

Eu tentava saber como é que eram o tempo livre e as saídas dele

durante o fim de semana. Pensava: «Neste momento ele está na floresta

de Fontainebleau a fazer jogging – segue pela estrada de Deauville – vai

a andar pela praia com a mulher ao lado», etc. Saber tranquilizava-me,

eu tinha a impressão de que, se pudesse situá-lo num certo lugar, num

certo momento, isso me precavia contra uma infidelidade. (É uma crença

que aproximo de outra, igualmente forte, que consiste em achar que se

eu souber o sítio onde é a festa ou onde são as férias dos meus filhos

isso basta para garantir que não vai haver nem acidente, nem droga, nem

afogamento.)

Eu não queria ir de férias nesse verão, acordar de manhã num quarto

de hotel com um dia à minha frente sem a expectativa de um telefonema

dele. Mas renunciar a isso era confessar-lhe mais claramente a minha

paixão do que dizer-lhe «estou louca por ti». Um dia em que só me

apetecia romper, decidi, em vez disso, reservar lugares no comboio e no

hotel para dali a dois meses, em Florença. Estava muito satisfeita com

esta forma de rutura em que não era obrigada a deixá-lo. Vi aproximar-

se a altura da partida como se fosse um exame para o qual me tivesse

inscrito muito tempo antes e que não tivesse preparado – prostrada, com

uma sensação de inutilidade. No compartimento da carruagem-cama,

não parava de me imaginar no mesmo comboio, mas a regressar a Paris,

oito dias mais tarde: era a perspetiva de uma felicidade inaudita, quase

impossível (talvez fosse morrer em Florença, nunca mais voltaria a vê-


lo), que aumentava o meu horror por me afastar cada vez mais de Paris,

e que me fazia sentir o intervalo entre a ida e a vinda como uma duração

interminável e atroz.

O pior era não poder ficar no quarto de hotel o dia inteiro, à espera

do comboio que me levasse outra vez para Paris. Tinha de justificar a

viagem entregando-me às visitas culturais, aos passeios a que estava

habituada em férias. Andava horas, pelo Oltrarno, pelo jardim Boboli,

até à piazza San Michelangelo, San Miniato. Entrava em todas as igrejas

que estivessem abertas, fazia três pedidos (por causa da crença de que

um dos três seria satisfeito – todos diziam respeito a A., naturalmente), e

ficava ali sentada, era fresco e silencioso, enquanto ia continuando um

dos múltiplos guiões (uns dias juntos em Florença, o nosso encontro

daqui a dez anos num aeroporto, etc.) que eu ia construindo

continuamente, em toda a parte, de manhã à noite.

Não entendia porque é que as pessoas procuravam no guia a data, a

explicação de cada um dos quadros, tudo coisas sem relação com as suas

próprias vidas. O uso que eu fazia das obras de arte era puramente

passional. Voltava à igreja de Badia porque fora ali que Dante encontrara

Beatriz. Os frescos semiapagados de Santa Croce perturbavam-me por

causa da minha história, que um dia seria como aquilo, farrapos

descoloridos na memória dele e na minha.

Nos museus, só reparava nas representações do amor. Era atraída

pelas estátuas de homens nus. Era nelas que reencontrava a forma dos

ombros de A., da barriga, do sexo, e principalmente do leve sulco que

segue a curva interior da anca até à concavidade da virilha. Não

conseguia afastar-me do David de Miguel Ângelo, admirada, uma

admiração que chegava a ser dolorosa, por ter sido um homem e não

uma mulher a manifestar de uma forma tão sublime a beleza do corpo


masculino. Até isso se explicava pela condição dominada das mulheres,

1
parecia-me que qualquer coisa tinha falhado para sempre.

No comboio, de regresso, tinha a impressão de ter escrito,

literalmente, a minha paixão em Florença, andando pelas ruas,

percorrendo os museus, obcecada por A., a ver tudo com ele, a comer e

a dormir com ele naquele hotel barulhento na margem do Arno. Bastava

que regressasse para ler essa história de uma mulher que amava um

homem, e que era a minha história. Esses oito dias sozinha, sem falar, a

não ser com os empregados do restaurante, possuída pela imagem de A.

(até me sentir estupefacta por ser abordada na rua, então eles não viam a

imagem de A., em transparência, no meu corpo?), surgiam-me

finalmente como uma prova que aperfeiçoava ainda mais o amor. Uma

espécie de gasto suplementar, desta vez da imaginação e do desejo na

ausência.

1
Também lamentei que não existisse, pintado por uma mulher, um quadro que provocasse uma

tão grande emoção indizível como a tela de Courbet que mostrava em primeiro plano o sexo

oferecido de uma mulher deitada, de rosto invisível, e que se chama A Origem do Mundo.
Ele saiu de França e voltou para o seu país há seis meses. Claro que

nunca mais vou voltar a vê-lo. Ao princípio, quando acordava às duas da

manhã, estar viva ou morta tanto me fazia. Doía-me o corpo todo.

Gostaria de poder arrancar a dor, mas doía-me tudo. O que eu queria era

que entrasse um ladrão no meu quarto e me matasse. Durante o dia,

tentava estar constantemente ocupada, não ficar sentada sem fazer nada,

porque se isso acontecesse estava perdida (nessa fase, esta palavra tinha

um sentido vago, mergulhar na depressão, começar a beber, etc.). Por

causa disso também, esforçava-me por me vestir e maquilhar

corretamente, usar as lentes de contacto em vez dos óculos, apesar da

coragem que me exigia essa manipulação. Não podia ver televisão nem

folhear revistas, todos os anúncios de perfumes ou de micro-ondas

mostravam exclusivamente isto: uma mulher à espera de um homem.

Voltava a cara para o lado quando passava à frente das lojas de lingerie.

Quando estava muito mal sentia uma violenta vontade de consultar

uma cartomante, parecia-me que era a única coisa vital que eu podia

fazer. Um dia procurei nomes de videntes no Minitel. A lista era

comprida. Uma delas especificava que tinha adivinhado o tremor de

terra de São Francisco e a morte de Dalila. Durante todo o tempo em

que copiei nomes e números de telefone, senti um júbilo igual àquele

que senti ao experimentar, no mês anterior, um vestido novo para A.,

como se ainda estivesse a fazer alguma coisa por ele. A seguir não

telefonei a vidente nenhuma, tive medo que alguma me dissesse que ele

não ia voltar nunca mais. Pensei «afinal eu também acabo nisto», sem

me admirar. Não via razão nenhuma para não acabar naquilo.

Uma noite atravessou-me a vontade de fazer um teste de despistagem

de sida: «Ao menos fiquei com isto.»


Queria por força lembrar-me do corpo dele, do cabelo aos dedos dos

pés. Conseguia ver, com nitidez, os olhos verdes, o movimento da

madeixa sobre a testa, a curva dos ombros. Sentia os dentes dele, o

interior da boca, a forma das coxas, a sua pele. Pensava que a distância

era mínima entre essa reconstituição e uma alucinação, entre a memória

e a loucura.

Uma vez, deitada de barriga para baixo, masturbei-me até ao

orgasmo, pareceu-me que era o orgasmo dele.

Durante semanas:

acordei a meio da noite, e fiquei até de manhã num estado

indistinto, acordada e incapaz de pensar. Queria fugir para o

sono, mas ele permanecia sempre como que suspenso por cima

de mim.

não me apetecia levantar. Via o dia à minha frente, sem

nenhum projeto. A sensação de que o tempo já não me levava a

nada, e que a única coisa a fazer era envelhecer.

no supermercado, pensava «já não preciso de comprar isto ou

aquilo» (uísque, amêndoas, etc.).

olhava para os camiseiros, para os sapatos que eu tinha

comprado para um homem, e que tinham voltado a ser coisas

sem sentido, que só serviam para seguir a moda. Seria possível

desejar aquelas coisas, qualquer coisa, fosse ela qual fosse, sem

que isso fosse para uma pessoa, para servir o amor? Precisei de

um xaile por causa do frio intenso: «Ele não vai vê-lo.»

não suportava ninguém. As pessoas com quem conseguia dar-

me eram aquelas que tinha conhecido durante a minha relação


com A. Figuravam na minha paixão. Mesmo que não me

inspirassem nem interesse nem estima, eu sentia uma espécie de

afeição por elas. Mas não era capaz de ver na televisão um

apresentador, ou um ator, em que eu dantes tivesse identificado o

mesmo ar, as mesmas mímicas, os olhos de A. Esses sinais dele

noutra pessoa que me era indiferente eram uma espécie de

impostura. Odiava aqueles tipos por continuarem a parecer-se

com A.

fazia promessas. Se ele me telefonar antes do fim do mês, dou

quinhentos francos a uma organização humanitária.

imaginava que nos encontrávamos num hotel, num aeroporto,

ou que ele me escrevia uma carta. Eu respondia a palavras que

ele não tinha dito, a palavras que ele não ia escrever nunca.

se ia a um sítio onde tivesse ido no ano anterior, quando ele

ali estava – ao dentista ou a uma reunião de professores –, vestia

o mesmo fato de saia-e-casaco da época, tentando persuadir-me

de que as mesmas circunstâncias produziriam os mesmos efeitos,

que ele me ia telefonar nessa noite. Quando me deitava, por volta

da meia-noite, abatida, dava-me conta de que tinha realmente

acreditado no telefonema durante todo o dia.

Nas minhas insónias, de vez em quando pensava em Veneza, onde

tinha passado uma semana de férias mesmo antes de encontrar A.

Tentava lembrar-me daquilo que fizera e dos meus itinerários,

imaginava-me em Zattere, nas ruelas da Giudecca. Reconstituía o meu

quarto no anexo do hotel La Calcina, esforçando-me por me recordar de

tudo, da cama estreita, da janela tapada que dava para as traseiras do

Café Cucciolo, da mesa coberta por uma toalha branca sobre a qual eu
tinha pousado os meus livros, e enumerava os títulos. Contava as coisas

que ali estavam, uma por uma, tentando esgotar o conteúdo de um lugar

onde tinha ficado antes de a história com A. começar, como se um

inventário perfeito me fosse permitir revivê-la. Era uma crença idêntica

que por vezes me fazia sentir o impulso de voltar realmente a Veneza, ao

mesmo hotel, ao mesmo quarto.

Durante esse período, todos os meus pensamentos, todos os meus

atos eram uma repetição daquilo que tinha acontecido antes. Queria

forçar o presente a voltar a ser o passado aberto sobre a felicidade.

Calculava sempre «há duas semanas, há cinco semanas que ele se foi

embora», e «o ano passado, nesta altura, onde eu estava era ali, o que eu

fazia era aquilo». A propósito de fosse lá o que fosse, a abertura de um

centro comercial, a vinda de Gorbatchov a Paris, a vitória de Chang em

Roland-Garros, eu pensava imediatamente: «Foi quando ele aqui

esteve.» Revia momentos dessa época que não tinham nada de particular

– eu na sala dos ficheiros da Sorbonne, eu a andar pelo boulevard

Voltaire, eu a experimentar uma saia numa loja da Benetton –, e com

uma sensação tão aguda de ainda lá estar que me perguntava porque é

que era impossível passar por aquele dia, por aquele momento, da

mesma maneira que se passa de um quarto para outro.

Nos meus sonhos, também havia aquele desejo de um tempo

reversível. Eu falava e discutia com a minha mãe (falecida), que estava

viva outra vez, mas no meu sonho eu sabia – e ela também – que ela

estivera morta. Isto não tinha nenhum carácter extraordinário, a sua

morte estava atrás dela, como «uma coisa que já estava feita», e pronto.

(Parece-me que tive este sonho muitas vezes.) Outra vez, eu era uma

menina de fato de banho, que desaparecia durante uma excursão. A


reconstituição do crime era imediata. A criança nessa altura ressuscitava

para voltar a fazer, ela própria, o itinerário que a tinha levado à morte.

Mas, para o juiz, o conhecimento da verdade complicava a

reconstituição. Nos outros sonhos, eu perdia a carteira, perdia-me na

estrada, não conseguia encher a mala para me meter num comboio

iminente. Voltava a ver A. no meio das pessoas, ele não olhava para

mim. Estávamos os dois dentro de um táxi, eu acariciava-o, e o sexo dele

permanecia inerte. Mais tarde, apareceu-me a desejar-me outra vez.

Encontrávamo-nos no WC de um café, numa rua ao longo de um muro,

e ele possuía-me sem dizer uma palavra.

Durante o fim de semana, eu forçava-me a uma atividade física

exagerada, arrumava a casa, jardinava. À noite estava esgotada, com os

braços e as pernas doridos, como depois de A. ter passado uma tarde em

minha casa. Mas naquele caso era um cansaço vazio, sem memória de

outro corpo, e que me horrorizava.

Comecei a contar «a partir do mês de setembro, não fiz mais nada a

não ser esperar um homem», etc., dois meses depois de A. se ter ido

embora, já não sei bem em que dia. Embora seja capaz de me lembrar

exatamente de tudo o que está associado à minha relação com A., os

tumultos de outubro na Argélia, o calor e o céu encoberto do dia 14 de

julho de 1989, e até dos pormenores mais fúteis, como comprar uma

varinha mágica em junho, nas vésperas de um encontro, é-me impossível

relacionar a redação de uma página em concreto com a chuva a cair ou

com um dos acontecimentos do mundo desde há cinco meses, a queda


do muro de Berlim e a execução dos Ceausescu. O tempo da escrita não

tem nada que ver com o da paixão.

No entanto, quando comecei a escrever, era para continuar nesse

tempo, em que tudo seguia o mesmo caminho, da escolha de um filme à

escolha de um batom, e esse caminho era sempre em direção a uma

pessoa. O tempo verbal que eu usei espontaneamente a partir das

primeiras linhas corresponde a uma duração que eu não queria que

estivesse terminada, a duração de «naquele tempo a vida era melhor»,

uma repetição eterna. Também serve para produzir uma dor substituta

daquela expectativa anterior, dos telefonemas e dos encontros. (Ainda

agora, reler as primeiras páginas tem a mesma natureza dolorosa que

olhar e tocar o roupão turco que ele vestia em minha casa e tirava no

momento em que tinha de voltar a vestir-se para se ir embora. Há uma

diferença: estas páginas vão sempre manter um sentido para mim, talvez

para outras pessoas também, enquanto o roupão – que aliás já só o tem

para mim – um dia deixa de evocar o que quer que seja, e eu hei de

metê-lo numa trouxa de trapos. Se escrevo isto é porque com certeza

tento salvar também o roupão.)

Mas continuava a viver. Quer dizer que escrever não me impedia, no

momento em que parava, de sentir a falta do homem de quem já não

ouvia a voz e o sotaque estrangeiro, de quem já não tocava a pele, o

homem que levava numa cidade fria uma existência que eu não

conseguia imaginar – o homem real, mais fora do meu alcance do que o

homem escrito, designado pela inicial A. Portanto eu continuava a

utilizar todos os meios que servem para suportar o desgosto, que dão

esperança quando, razoavelmente, já não resta nenhuma: ter sucesso,

meter dez francos no pires de um pedinte em Auber, rogando «que ele


telefone, que ele volte», etc. (E talvez, no fundo, a escrita faça parte

desses meios.)

Apesar da minha falta de vontade de encontrar pessoas, aceitei

participar num colóquio em Copenhaga, porque ia ter oportunidade de

lhe mandar um sinal de vida discreto, um postal, e persuadia-me de que

ele me ia responder com certeza. Logo que cheguei a Copenhaga, só

pensei nisso, em comprar um postal, copiar as poucas frases que tinha

formado cuidadosamente antes de partir, encontrar uma caixa do

correio. No avião de regresso, dizia a mim própria que só tinha ido à

Dinamarca para mandar um postal a um homem.

Apetecia-me reler um ou outro dos livros que tinha lido tão

vagamente quando A. ali estava. Era a impressão de que a expectativa,

os sonhos desse tempo estavam ali guardados, e que eu ia encontrar a

minha paixão, igual àquela que vivi nessa altura. No entanto, não me

decidia a fazê-lo, recuando supersticiosamente no momento de os ir

abrir, como se Anna Karénina fosse uma dessas obras esotéricas em que

está estipulado que não se deve voltar a ler determinada página sob pena

de infelicidade.

Uma vez, senti o desejo violento de ir à passagem Cardinet, no XVII

bairro, ao sítio onde abortei clandestinamente há vinte anos. Parecia-me

que devia absolutamente rever a rua, o prédio, subir ao apartamento

onde isso tinha acontecido. Como se esperasse confusamente que uma

dor antiga pudesse neutralizar a atual.

Saí em Malesherbes, numa praça cujo nome, recente, com certeza,

não me evocava nada. Tive de perguntar o caminho a um vendedor de

legumes. A placa que indica a passagem Cardinet está semiapagada. As


fachadas estão rebocadas, brancas. Fui ao número de que me lembrava e

empurrei a porta, que era uma das poucas sem código digital. Na parede

tinha o mapa dos residentes. A velha, que era ajudante de enfermagem,

tinha morrido, ou então tinha saído dali para uma casa de repouso na

província, agora são pessoas de uma classe superior que vivem naquela

rua. Quando avançava em direção ao Pont-Cardinet, vi-me outra vez a

andar ao lado daquela mulher que tinha feito questão de me acompanhar

até à estação mais próxima, sem dúvida para se certificar de que eu não

ia desmaiar à frente da casa dela, de sonda metida na barriga. Pensei

«um dia estive aqui». Procurava a diferença entre essa realidade passada

e uma ficção, talvez simplesmente esse sentimento de incredulidade, de

que eu tinha ali estado um dia, e que não sentiria se se tratasse de uma

personagem de romance.

Voltei a meter-me no metro em Malesherbes. Aquele

empreendimento não tinha alterado nada, mas sentia-me satisfeita por

ter feito aquilo, por ter voltado a um desamparo cuja origem também foi

um homem.

(Seria só eu a voltar ao sítio onde fiz um aborto? Pergunto a mim

própria se não escrevo para saber se os outros fizeram ou disseram

coisas idênticas, ou então para eles acharem normal sentir essas coisas.

Ou mesmo para que as vivam, esquecendo-se de que leram aquilo um

dia em qualquer parte.)

Agora é abril. De manhã, às vezes, acordo sem pensar imediatamente

em A. A ideia de desfrutar novamente dos «pequenos prazeres da vida»


– conversar com os amigos, ir ao cinema, jantar bem – horroriza-me

menos. Continuo no tempo da paixão (porque um dia deixo de verificar

que pensei em A. ao acordar), mas não é o mesmo, deixou de ser

1
contínuo.

Subitamente recordo-me de pormenores sobre ele, de palavras que

ele me disse. Por exemplo, que tinha ido ao circo de Moscovo e que o

domador de gatos era «inacreditável». Por momentos, sinto-me invadida

por uma grande tranquilidade, a mesma que sinto ao sair de um sonho

em que acabo de vê-lo sem perceber que estava a sonhar. Um sentimento

de que tudo voltou a estar em ordem, de que «agora está tudo bem».

Depois reparo que isso se refere a uma coisa qualquer longínqua, que

passou outro inverno, que o domador de gatos talvez já tenha deixado o

circo, o «inacreditável» pertence a uma atualidade que já passou do

prazo de validade.

Durante uma conversa, acho que de repente percebi uma atitude de

A., ou que descobri um aspeto da nossa relação que até aí não tinha

imaginado. Um colega com quem eu estava a tomar um café confessou-

me que teve uma relação muito física com uma mulher casada mais

velha do que ele: «Quando saía de casa dela, à noite, respirava o ar da

rua e sentia uma formidável impressão de virilidade.» Pensei que A.

talvez tivesse sentido o mesmo. Esta descoberta, que no entanto eu não

podia confirmar, fazia-me feliz, como se eu tivesse alcançado uma coisa

que as recordações não nos dão, uma espécie de eternidade.

Esta noite, no RER, duas raparigas iam a falar uma com a outra à

minha frente. Ouvi «eles estão num pavilhão em Barbizon». Fiquei a

pensar o que seria que me lembravam aquelas palavras e recordei-me,

uns minutos depois, de que A. me tinha dito que tinha lá passado um


domingo com a mulher. Era uma recordação igual a outra qualquer, por

exemplo, àquela que me teria evocado a palavra Brunoy, onde vivia uma

amiga minha que eu tinha perdido de vista. O mundo, portanto, teria

começado a ter significados exteriores a A.? O homem dos gatos do

circo de Moscovo, o roupão de turco, Barbizon, todo o texto que eu

construía na minha cabeça dia após dia desde a primeira noite, com

imagens, gestos, palavras – o conjunto dos signos que constituem o

romance por escrever de uma paixão começa a desfazer-se. Desse texto

vivo, este é só um resíduo, um leve vestígio. Como o outro, um dia, não

há de ser nada.

E no entanto não sou capaz de o deixar, como também não fui capaz

de deixar A., o ano passado, na primavera, quando a minha expectativa e

o meu desejo ainda não tinham sido interrompidos. Embora saiba que,

ao contrário da vida, não tenho nada a esperar da escrita, onde só

encontramos o que lá pusemos. Continuar é também afastar a angústia

de dar isto a ler aos outros. Enquanto me senti na necessidade de

escrever, não me preocupei com essa eventualidade. Agora que fui até ao

fim dessa necessidade, olho para as páginas escritas com admiração e

com uma espécie de vergonha, que nunca senti – pelo contrário –

enquanto vivia a minha paixão, e não passei a sentir por estar a contá-la.

São os juízos, os valores «normais» do mundo que se aproximam com a

perspetiva de uma publicação. (É possível que a obrigação de responder

a perguntas do género: «É autobiográfico?», de ter de justificar isto ou

aquilo, impeça todas as espécies de livros de verem a luz do dia, a não

ser sob a forma romanesca, que salva as aparências.)

Aqui, perante as folhas cobertas pela minha escrita rasurada, que só

eu consigo decifrar, ainda posso acreditar que se trata de algo de

privado, de quase infantil, sem consequências praticamente – como as


declarações de amor e as frases obscenas que eu inscrevia durante a aula

dentro das capas dos meus cadernos e tudo o que se pode escrever

tranquilamente, impunemente, por termos a certeza de que ninguém vai

ver. Quando eu começar a passar este texto à máquina, e ele me aparecer

em caracteres públicos, a minha inocência acabou.

1
Deixo de usar o imperfeito, aquilo que era – mas até quando? –, e passo a usar o presente – mas

desde quando? – à falta de melhor solução. Porque não posso dar conta exatamente da

transformação da minha paixão por A., dia após dia, só posso parar nestas imagens, isolar os

signos de uma realidade cuja data em que surgiu – como na história geral – não pode ser definida

com precisão.
Fevereiro, 1991

Eu podia ter acabado com a frase anterior e fazer como se nada do

que aconteceu no mundo e na minha vida pudesse, a partir dali, intervir

nesse texto. Considerá-lo fora do tempo, ou seja, pronto a ser lido. Mas

enquanto estas páginas forem, ainda, pessoais, e estiverem ao alcance da

mão como estão hoje, a escrita continua aberta. Parece-me mais

importante acrescentar aquilo que a realidade me trouxe do que mudar o

lugar de um adjetivo.

Entre o momento em que deixei de escrever, em maio último, e

agora, 6 de fevereiro de 1991, o conflito previsto entre o Iraque e a

coligação ocidental rebentou. Uma guerra «limpa» segundo a

propaganda, se bem que já tenham caído no Iraque «mais bombas do

que na Alemanha durante toda a Segunda Guerra Mundial» (vejo no Le

Monde, hoje) e que testemunhas digam que viram em Bagdad crianças,

surdas por causa das deflagrações, a andarem pelas ruas como os

bêbados. A única coisa que se faz é esperar por acontecimentos

anunciados que não acontecem, a ofensiva terrestre dos «aliados», um

ataque com armas químicas por Saddam Hussein, um atentado nas

Galeries Lafayette. É a mesma angústia, o mesmo desejo – e

impossibilidade – de saber a verdade a não ser no tempo da paixão. A

semelhança acaba aí. Deixa de haver qualquer género de sonho ou de

imaginação.

No primeiro domingo da guerra, ao fim da tarde, tocou o telefone. A

voz de A. Durante uns segundos, senti-me aterrorizada. Repetia o nome


dele a chorar. Ele dizia «sou eu, sou eu» lentamente. Queria ver-me

imediatamente, ia apanhar um táxi. Na meia hora que me restava antes

de ele chegar, maquilhei-me e arranjei-me numa enorme perturbação. A

seguir esperei no corredor, embrulhada no xaile que ele nunca tinha

visto. Olhava para a porta, apalermada. Ele entrou sem bater, como

dantes. Devia ter bebido muito, vacilava quando me agarrou e tropeçou

na escada para ir para o quarto.

Depois só quis tomar café. A vida dele, aparentemente, não tinha

mudado, o mesmo trabalho no Leste que tivera em França, sem filhos,

embora a mulher quisesse ter um. Continuava a parecer novo aos trinta e

oito anos, com qualquer coisa de mais engelhado na cara. As unhas

estavam menos cuidadas, as mãos mais ásperas, sem dúvida por causa

do frio no seu país. Riu-se muito por eu lhe censurar não ter dado sinais

de vida desde que se tinha ido embora: «Então telefonava-te, dizia bom

dia, está tudo bem. E depois?» Não tinha recebido o postal que eu lhe

mandara da Dinamarca para o seu antigo local de trabalho em Paris.

Voltámos a pôr a nossa roupa misturada sobre o chão de ladrilhos, e eu

levei-o ao hotel, para os lados da Étoile. Nos semáforos, quando a luz

estava vermelha, em Nanterre e em Pont-de-Neuilly, beijávamo-nos e

acariciávamo-nos.

No túnel de la Défense, quando vinha para casa, pensava: «Onde está

a minha história?» E a seguir, «já não espero nada».

Ele foi-se embora três dias depois sem nos voltarmos a encontrar

uma única vez. Ao telefone, antes de se ir embora, disse-me «eu


telefono-te». Não sei se isto significa que me telefona do sítio onde está

ou de Paris, quando tiver oportunidade de voltar. Não lhe perguntei.

Tenho a impressão de que este encontro não aconteceu. Não está em

lugar nenhum do tempo da nossa história, é só uma data, 20 de janeiro.

O homem que voltou essa noite já não é aquele que eu trouxe em mim

durante o ano em que ele esteve ali, e depois enquanto eu escrevia. Esse

homem, nunca mais vou voltar a vê-lo. No entanto, é este regresso,

irreal, quase inexistente, que dá à minha paixão todo o seu sentido, que é

não ter nenhum, e ter sido durante dois anos a realidade mais violenta

que se possa conceber, e a menos explicável.

Nessa fotografia, a única que tenho dele, um bocado desfocada, vejo

um homem alto e loiro, vagamente parecido com Alain Delon. Tudo,

nele, me foi precioso, os olhos, a boca, o sexo, as recordações de

infância, a maneira brusca de agarrar nos objetos, a voz.

Quis aprender a língua dele. Conservei, sem o lavar, um copo por

onde ele tinha bebido.

Desejei que o avião no qual eu voltava de Copenhaga se

despenhasse, caso eu nunca mais pudesse vê-lo.

Coloquei a fotografia, no verão passado, em Pádua, sobre a parede

do túmulo de Santo António – com as pessoas que carregavam num

lenço, num papel dobrado com as suas súplicas – para que ele voltasse.

Que ele tenha «merecido» ou não, isso não faz, evidentemente,

sentido nenhum. E que tudo isto comece a ser-me tão estranho como se

se tratasse de outra mulher não muda nada quanto a isto: graças a ele,
aproximei-me do limite que me separa da alteridade, a ponto de

imaginar, por vezes, ter passado para o outro lado.

Medi o tempo de outra maneira, com o corpo todo.

Descobri do que podemos ser capazes, ou seja, de tudo. Desejos

sublimes ou mortais, ausência de dignidade, crenças e comportamentos

que achava insensatos nos outros porque nunca me tinha acontecido

recorrer a eles. Sem querer, ele ligou-me mais ao mundo.

Ele tinha-me dito «não vais escrever livro nenhum sobre mim». Mas

eu não escrevi um livro sobre ele, nem sequer escrevi sobre mim.

Transformei, simplesmente, em palavras – que ele não vai ler, sem

dúvida, que não lhe são destinadas – aquilo que a sua existência, só por

si, me trouxe. Uma espécie de dádiva invertida.

Quando eu era criança, para mim o luxo eram casacos de pele,

vestidos compridos e vivendas à beira-mar. Mais tarde, pensei que fosse

ter uma vida de intelectual. Agora parece-me também que é poder viver

uma paixão por um homem ou por uma mulher.

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