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Sintra, 25 de Novembro de 1999

Caro Eduardo,

Prometi-lhe uma resposta. Pensei inicialmente em dar-lha pelo telefone. Pensando melhor, no
entanto, achei que seria preferível partilhar consigo algumas reflexões, que tenho feito sobre a
expansão e a explicitação do texto em que me acho envolvida. Repare que nem o Eduardo, nem,
aliás, qualquer outra pessoa ligada à gestão da cultura, alguma vez me perguntou o que eu
achava sobre o assunto. Para o Eduardo, literatura, literatura nacional, lusofonia,
empenhamento do Estado, difusão da literatura portuguesa no estrangeiro, acabam por estar
intimamente relacionados.

Para o meu texto, a que o Augusto Joaquim, chama orgânico, não estão. Não cheguei a essa
conclusão, deduzindo premissas, mas experimentando, nomeadamente, participando em actos
como os que me propõe, aceitando a tradução de livros meus, deixando-me fotografar e
entrevistar, conversando para públicos anónimos. Cheguei mesmo a dar autógrafos.

Desde sempre me tenho norteado pelo princípio do que o texto precisa de encontrar, não o
leitor abstracto, mas o leitor real, aquele a que, mais tarde, acabei por chamar legente – que
não o tome nem por ficção, nem por verdade, mas por caminho transitável. O que mais me
impressionou no caso de Timor foi o facto de não haver texto para onde (e por onde) pudesse
caminhar toda a revolta emotiva que se ergueu. Vi, assim, as pessoas descerem cada vez mais
na emoção, terem cada vez menos palavras para a dizerem, entregrando-se às práticas
ancestrais, como rezar, dispor-se a dar a vida, levantar castelos de proclamações, em suma,
servir-se dos texto que havia, não tendo um novo por onde trilhar o facto novo, porque foi, de
facto um novo que emergiu e se perdeu. Lembrei-me de Coração do Urso, Xanana, por vezes,
fez-me lembrar o gesto de levantar o corpo dos camponeses mortos, a dizer «este sou eu», dizê-
lo estando vivo enquanto nos braços lhe morriam as palavras, e com esse texto tentar abrir no
real da política actos mais frequentes de dom poético, de compaciência pelos corpos que
sofrem, e de alegria pelos que amam. O dom poético faltou, de facto, ao «rendez-vous». Se
tivesse um lugar minimamente «aceite» nesta cultura, creio que o poderia ter escrito.

Nas experiências que fiz, no meio literário, não encontrei qualquer caminho para o meu texto.
A falta de humanidade é de regra, ninguém sabe por que escreve, a minha obra é apresentada
como um meteoro desconhecido, nunca ninguém pediu a quem sabe um pouco mais sobre ela
para a apresentar, eu própria estou, desde sempre catalogada como inacessível, nunca
encontrei ninguém que estivesse minimamente interessado em escutar os problemas que me
punha a obra que nascia de mim e à qual eu sempre estive firmemente disposta a dar corpo.
Descontada a maldade evidente do prémio da APE (dificilmente esquecerei o que se passou em
Tróia) e de tudo quanto aconteceu com Frankfurt, que vi, pois? As traduções são uma total
fantasia, os jornalistas não fazem a menor ideia do que fazemos, o público agarra-se ao que
pode e que nada é, os supostos colegas nunca nos leram, quando eu os tinha lido quase todos.
Sem contar com o peso que fiz recair sobre o Augusto. Sei que poucas pessoas estão como ele
por dentro da literatura, dos seus problemas e desafios, mas nunca ninguém lhe perguntou nada
e, como é seu hábito, entrou mudo e saiu calado. Só que cada vez mais farto.

Mas o mais grave é a situação em que sempre fui colocada. Eu que sou frontal, gosto de
conversar e rir, adoro facécias, antes mesmo de abrir a boca, já a minha palavra estava inscrita
numa rede de total incompreensão. Ninguém imagina o esforço físico que me foi pedido.
Gostaria de ver o Eduardo a pregar o seu materialismo ao papa. Talvez compreendesse. E se
preparava cuidadosamente as minhas intervenções era para poder situar a minha palavra,
noutro lugar que não fosse o da afasia. Nunca imaginará o combate que tive de travar para que
nem uma sombra de ressentimento (e de moral) entrasse na minha escrita, tal era a
desumanidade e a imbecilidade a que tive de assistir. Sinto uma alegria profunda, ao pensar que
nas centenas de páginas que publiquei não há traço de ressentimento, nem de esperança vã,
nem de moral grandiloquente.

No quadro da literatura «nacional», serei sempre a esotérica de serviço. A minha literatura e a


dos que escrevem no campo em que me situo será sempre marginal, intemática,
incompreensível. Somos quatro ou cinco, ao lado de todos os outros, que têm por si o essencial
dos meios de comunicação, as cadeiras universitárias, o establishment institucional e cultural,
os ícones publicitários, os dinheiros do Estado e do mercado (fazendo as contas por alto, devo
ter ganho quinhentos escudos por dia, nestes quarenta anos, ao serviço da literatura). Esta
cultura pura e simplesmente não quer a minha obra, não sabe o que fazer dela, excepto em
termos privados. O número de pessoas “cultas” da nossa praça que a lêem (algumas citaram-
me páginas inteiras de cor), e são incapazes de a nomear no espaço público é propriamente
aterrador. E, mesmo em privado, procuram silenciar o pensamento que ela veicula. Ou seja, eles
próprios, no sistema da dupla cultura, colocam aquele texto na esfera do privado, não abrindo
espaço para que eu possa intervir, não como marginal, mas como ser humano que criou uma
perspectiva que, em privado, lhes é útil.

Mas essa não-aceitação vai mais longe: não houve prémio que recebesse (o último vai para 10
anos), convite que tenha aceite que, posteriormente, quando não no próprio momento, não
tivesse sido objecto de declarações de «encapotada rejeição». Uns queixam-se de que tiveram
de lutar muito para que me fosse dado X prémio, outro acha que não era evidente que eu
devesse ser convidada, aqueloutro entende que me foram dadas linhas a mais no dicionário. Ou
seja, queixam-se à posteriori do trabalho que lhes dera, como se não fosse sua obrigação estrita
bater-se, a meu lado, ombro a ombro, por uma obra que nos ajudava a viver melhor e com
menos impostura.

Estou a fazer setenta anos. Com recta intenção, fiz o meu trajecto pela floresta de enganos da
literatura. Nem sempre consegui certamente a melhor postura. Seja como for, saí incólume, mas
sem nada deixar de meu nesse espaço. Porque para deixar seria preciso que os outros me
quisessem receber. É, pois, território a que não voltarei. Continuarei a escrever e a encontrar-
me com legentes. Está quase tudo por fazer. Sinto que é preciso pegar nas coisas simples
(porque se conta, porque vai o homem para onde a escrita for, porque cria a linguagem estética
caminhos transitáveis, etc…), e começá-las pelo seu começo. Creio que os outros escritores «do
meu ramo» já conhecidos ou ainda no começo, aqui e no Brasil, vão ter de pensar no modo
como criar um espaço de vida, que não seja marginal a nada, mas um lugar real de escrita e de
leitura.

Caro Eduardo,
espero que compreenda que só lhe pude dirigir esta carta pela muita amizade que lhe tenho e
porque toda ela transpira comunicação aberta com o interlocutor.
Não devemos lamentar que os caminhos não se cruzem e os encontros não se dêem. Algures,
no texto, se não na história, seremos humanos.
Com um beijo para si e para a São,

Maria Gabriela Llansol

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