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26 de abril de 1974

Muitas vezes, durante o último ano, tão penoso e vazio,


mencionei aqui a intenção de ocupar as horas vagas, dar-lhes
sentido talvez, escrevendo o que Julia -Julia Marquezim Enone -,
sempre discreta em relação a si mesma, me contou da sua vida, o
que testemunhei e o que depois pude saber. Quantas noites, ouvindo
o rumor dos veículos que ascende, indistinto, a esta sala agora sem
alma, examino os poucos retratos que deixou? Sei quase de cor os
seus apontamentos, nem sempre inteligíveis, e um diálogo nosso,
gravado. As conversas diárias, estas se perderam; delas, com uma
aguda noção do irrecuperável, só fragmentos consigo reconstituir.

Sim, muito eu teria a dizer quanto ao seu modo negligente e


desamparado de ser, através do qual parecia indicar que se sabia
frágil e que, por essa razão mesma, não se resguardava. Hesito,
limitando-me a esboçar, sem plano, algum breve comentário a
propósito da nossa convivência.
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Nos últimos dias, entretanto, uma idéia vaga e que não quero
ainda registrar começa a rondar-me.

1º de maio

A idéia persiste e se define. Em vez de escrever sobre a


mulher, por que não dedicar um estudo ao livro, o seu, que sempre
leio? Mais razoável a alternativa e mais proveitosa. Afinal, muito do
que eu possa dizer de Julia Enone terá valor para mim unicamente,
como as fotografias de família. Privado, apesar da atração que sobre
mim exerce o novelesco, da habilidade e da energia indispensáveis à
arte de narrar, correria o risco de palidamente sugerir o perfil da
minha amiga. Mesmo se, cauteloso, sem qualquer veleidade de
incursão no imaginário, ativesse-me à biografia.
Ocupar-me do livro oferece vantagens evidentes. O texto
impedirá que eu me embarace entre as recordações e imagens
conservadas, dédalo a disciplinar. Somo, à existência do texto, a sua
natureza. Os textos: em princípio, doação universal. Se sobre eles
opinamos ou se os iluminamos de algum modo − se fazemos com
que se ampliem em nós −, operamos sobre um patrimônio coletivo.
No caso especial de Julia Marquezim Enone, o texto a ser
apreciado, é verdade, não chegou a ser impresso. Pode-se discutir
por isto o seu caráter de bem (ou de mal) público. Circunscrito
ainda aos originais, não franqueado, portanto, a quem deseje e possa
tê-lo consigo, já pertence a todos?
2 de maio
Inclino-me a supor que sim. A obra, mesmo embrionária,
concerne ao ente coletivo − nós − de cuja substância ela se forma.
Depois, quem se ocupa de livros deve sempre recordar, e a volta a
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esse extenso período, acredito, não é de todo improvável, a
reprodução manuscrita. Por último, o livro quase lendário de Julia
Marquezim Enone, onde homens informados e sensíveis
reconhecem, ocultas com zelo, certas explorações audaciosas,
transita entre algumas dezenas de leitores e de interessados na arte
romanesca, graças àqueles sessenta e cinco exemplares que eu
próprio copiei numa obsoleta máquina a álcool.
Contém-me ainda um senão. Admitindo, sem reserva, a
condição pública da obra literária, mesmo não editada, e que a
modesta reprodução subtrai o livro ao total anonimato, fico
indeciso. Quais as probabilidades de obter editor para um ensaio
sobre livro quase ignorado e não acessível, por enquanto, aos
leitores em geral?

6 de maio

Ouçamos, no limiar do meu possível estudo ou simples


comentário (quem sabe entretanto aonde vai quem e enreda em
projetos deste gênero?), ouçamos, entre reveladora e sibilina, a voz
da romancista: "Iniciei o livro que, devagar, vinha gerando em mim.
Tudo, antes, foi preparação, espera , rapinagem. E depois? Depois,
será a África . Como escreveu o nosso Rimbaud, enterrarei 'minha
imaginação e minhas lembranças' e rumarei 'para o porto da
miséria"'. (Carta de 6/1/1970 ao escritor Hermilo Borba Filho.)

18 de maio

Discuto o projeto com A.B., docente na Pontifícia


Universidade Católica, homem de grande saber e um tanto irônico,

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que, sendo eu afeiçoado aos livros, me distingue com o seu apreço.
O que me diz, mesmo descontando certo exagero provável, tributo
sempre devido à ironia, preocupa-me e, por outro lado, esbate em
mim certos receios. Revela-me A. B., com o seu fino sorriso
eclesiástico, o que sucede com alunos seus e até com mestres de
nome: se, por exemplo, sabem alguma coisa de Madame de
Volanges, de Danceny e do libertino Valmont, não é por terem lido
As ligações perigosas, e sim porque ouviram a análise estampada há
cerca de oito anos na revista Communications sobre o romance de
Laclos, esse conhecedor de fortificações e da fraqueza humana.
O editor, hoje, acrescenta A. B., ao publicar um estudo
literário, dispõe de um público importante, ávido, mais numeroso
que o público − real ou possível − da obra analisada e que talvez
nem julgue necessário conhecê-la.
Adverte-me, em compensação, para o lado negativo do que
podia ser uma vantagem: minha intimidade com a autora. O exame
dos textos, postulam hoje os especialistas, deve ignorar a mão que
os redigiu (tensa, não obstante, de história e de motivos obscuros).

25 de maio

Vejo, na revista alemã Burda, um anúncio das porcelanas de


Delft, com o seguinte texto, em meio a uma seleção de jarros e
outras peças elegantes: "Não olhe antes o fundo do objeto. Evite
reações estereotipadas de admiração ou confiança. Os produtos de
Delft se impõem pela sua beleza e qualidade".
Curiosamente, repete esse anúncio o que afirma o teórico
romano Bruno Molisani, em estudo sobre poema de Hugo (Escrito
na vidraça de uma janela flamenga). Molisani, aí, dá por
demonstrada, há muito tempo, "a vantagem, para o analista, de não

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levar em conta o nome do autor, o que impede reações
estereotipadas de admiração ou confiança".1
Creio então necessário perguntar − levando ainda em conta o
que me dizia A. B. − se não errarei em desprezar um conceito
igualmente firmado nos estudos literários e na publicidade da
faiança de Delft, ocupando-me de Julia Marquezim Enone (melhor,
do seu livro), eu, que não só sabia e sei o seu nome, como ouço-o
repetir-se tantas vezes em mim, dado que fomos amantes. Não
estará o meu depoimento desde já condenado à parcialidade, ao
malogro, tendo eu de incidir, devido à minha antiga condição, em
"reações estereotipadas de admiração ou confiança ''?

26 de maio

Posso indagar ainda:assente que o autor não existe, teria eu


sido amante de ninguém?

3 de junho

Pensei bem e decidi não recuar ante decretos que − por mais
objetivos que sejam e mais virtuosos − careçam de sabedoria no
sentido amplo. Vejamos. Uma simples carta pode ser mais bem
compreendida se confrontada com outras − anteriores e talvez até
ulteriores − de quem a enviou. Reiterações e mudanças podem
indicar tantas coisas! Como traduzir certos entretons e propósitos
senão contrastando-os, opondo-os a uma certa tradição,

1."Le poeme comme representation", Poetique , no. 4, Paris, 1970, p. 403.

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ou seja, a uma autoria? Os mesmos versos não são os mesmos
versos, venham do epígono Etienne Alane ou de Hugo. É o que nos
afirma, a seu modo, um argentino que entende dessas coisas, Jorge
Luis Borges, no conto em que Ménard, palavra por palavra, escreve
o romance de Cervantes. O estilo do Quixote, natural no seu
primeiro autor, em Pierre Ménard faz-se arcaizante. Comparar os
dois textos, diz Borges, "é uma revelação": Ménard haveria
enriquecido a arte da leitura com uma nova técnica, a "do
anacronismo deliberado e das atribuições errôneas". Sugere Borges,
dentre outras, a experiência de lermos, atribuindo-a a Joyce, a
Imitação de Cristo.
Além do mais, estando eu longe de ser − e do desejo de ser −
um teórico universitário, por que fixar-me a normas? Vamos em
frente.

10 de junho

Sim. Por que submeter-me à tendência hoje vitoriosa?


Lembro-me agora de ter lido, no Almanaque do Pensamento,
suponho, ou em algum velho exemplar do Almanaque Cabeça de
Leão, o que escrevia há perto de cem anos, de um modo talvez
pouco elegante, o prussiano Fontane: "Sempre que se trata da
organização da obra, emitem os filósofos juízos imbecis. Falta-lhes,
em absoluto, um órgão para captar o essencial". "O julgamento de
um profano dotado de finura sempre é valioso; o de um profissional
da estética, geralmente, não tem valor algum."
Carecendo, é provável, de finura, ao menos sou um profano.
De qualquer modo, Fontane, estou distante do teu filósofo ou esteta
profissional, estou mesmo distante dos círculos letrados, o que me
faz tender para a escala oposta, a dos apreciadores não de todo
obtusos do romance. É a esse título que sonho
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dissertar sobre o livro da minha amiga morta , tantas vezes visitado
e que ainda guarda segredos.

12 de junho

Conheci a romancista, convivemos, não oculto que a amei.


Amar não quer dizer, por força, cegueira e engano. Não erra o viúvo
Middleton Murry quando apresenta o Diário da sua Katherine
Mansfield. Há de transparecer, em certas páginas − talvez mesmo
em todas −, o meu amor por Julia Marquezim Enone. Ainda que o
fato acaso diminua a lucidez e a isenção do estudo, e confio que
uma e outra, isenção e lucidez, não serão ofendidas, custa-me
admitir que isto anule o meu comentário. Pois que inflexível lei nos
obrigaria a esconder, como indecoroso, ante uma obra de arte, o
nosso ardor? Onde, ao certo, a coerência, quando, ante esse objeto
que se dirige ao nosso ser total, voluntariamente obstruímos parte
das nossas faculdades, para sobre ele depor com um distanciamento
a que não é de sua natureza aspirar?
Não resvalarei no engano de "discutir o poeta e não o poema",
com o que evito a clássica condenação do lúcido Pound. Mas não
exigirei de mim, também, no estudo que pretendo, mutilações
voluntárias. Isso, nunca. Só o meu pudor, caso não o vença, e
alguma delicadeza limitarão a franqueza do trabalho − análise ou,
quem sabe, simples depoimento −, a que decerto não falte uma nota
elegíaca.
Ó Julia, que, apesar de tudo, não direi minha, pois sempre
estiveste em viagem para uma região misteriosa, invisível e sem
mapa!

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15 de julho
Parte do mês de junho e metade das férias escolares
fazendo e refazendo planos para o meu ensaio, sem me decidir por
nenhum: todos, com suas chaves e subdivisões, imitam esses
esquemas − tão úteis, afinal − com que os Linneus vivem tentando
ordenar a natureza. Hoje, suponho haver encontrado a saída.
Todo ensaio literário, obediente a uma convenção que firmou
autoridade, evoca o narrador oculto. Inviável, nos dois casos, o
discurso chamado pessoal − que precisa as circunstâncias da
enunciação. O ensaísta nunca se dirige a nós em um tempo e um
lugar definidos: intemporal e como abstrato, só nos revela de si,
mediante o ardil de um texto que de certo modo o oculta e portanto
nos ilude, suas leituras (sempre estimáveis) e seus conceitos (jamais
inconclusos).
Tomarei outro rumo. Quero um ensaio onde, abdicando da
imunidade ao tempo, e, em conseqüência, da imunidade à surpresa e
à hesitação, eu estabeleça com o leitor − ou cúmplice − um convívio
mais leal. Que outra opção, neste caso, impõe-se mais naturalmente
que o diário? Assim, dia a dia seguireis o progresso e as curvas das
interrogações que me ocorram.
Patente a minha desvantagem em um confronto com os
fictícios autores de diário imaginados por Goethe (Werther), por
Machado de Assis ( Memorial de Aires), por Gide (Sinfonia
pastoral). Ocupavam-se todos de mulheres − de Carlota, de Fidélia,
de Gertrudes −, enquanto meu herói é só um livro. Ao menos,
favorece-me a circunstância não pouco valiosa de que o livro e eu
somos reais.
Vamos pois ao meu ensaio entre íntimo e público,
confidencial, livro a ser composto devagar e no qual há de
imprimir-se o fluxo dos dias.

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Que, procurando iludir a solidão, eu não me transforme
definitivamente em sua presa. Que eu não tenha de lamentar, como
Goethe: "Aqui, como aliás em toda parte, encontro sempre ao
mesmo tempo o que procuro e aquilo de que fujo".2

17 de julho

Escreve Nietzsche, não me ocorre onde, que uma filosofia é


sempre a expressão de um temperamento. Não contaminou Julia
Marquezim Enone a feroz necessidade de espantar que aflige a
maior parte dos artistas atuais. Discreta, cultivando um gênero não
muito difundido de elegância, uma elegância íntima, invisível, cheia
de pudor, recusava qualquer ostentação − no seu conceito uma
prova flagrante de soberba. As originalidades evidentes feriam-na.
Como resolver o problema, se, honesta como alguém privado
de imaginação − ela, que ampliava sem cessar o mundo −, nunca
desceria a repetir caminhos feitos; se contemplava os escritos e as
coisas naturais de uma perspectiva nada trivial; se não conseguia
esconder sua inadequação perante o estabelecido?
Optou, e seu temperamento, assim, se não originava uma
filosofia, guiava uma poética, por um romance contíguo, na
aparência, a modelos do passado. Contrariando deliberadamente o
mais difundido e respeitado dogma da ficção moderna, o que
condena o enredo, estrutura A Rainha dos Cárceres da Grécia
mediante uma cadeia ininterrupta de fatos, centrados em Maria de
França, heroína parda e pobre, perdida nas escadas, nos corredores e
nas salas da burocracia previdenciária, onde luta por determinado
benefício.
Quando tudo faz supor termos nas mãos uma obra conven
cional, ocorre o inverso.
2. Viagem à Italia, memento de 19 de setembro de 1786, in fine .
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Isto porque a narradora empenha-se em dissimular os seus achados.
Se nos escapa esse traço, fundamental na romancista, avaliaremos
incorretamente o livro. Descobrir nele o que há de elaborado e
pessoal − e as minhas descobertas nesse campo, até agora
descontínuas e indisciplinadas, deixam apenas entrever aqueles
veios encobertos − será o objetivo principal do meu ensaio ou que
outro nome tenha.

18 de julho

"[...] então notou, suspensa no ar, uma aparição estranha: no


primeiro instante, perturbou-se enormemente, mas, depois de
observá-la um ou dois minutos, viu que se tratava de um sorriso, e
disse a si mesma: 'É o Gato de Cheshire, agora terei com quem
falar'."
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas, cap. VIII.

19 de julho

Que vale o resumo de um livro? Prática superficial, difunde e


reanima a idéia corrente segundo a qual a história é o romance, não
um de seus aspectos, dos que menos ilustram a arte de narrar.
Imaginar desejos, contratempos, embates, desistências, o triunfo ou
a morte prende-se à invenção em estado bruto. Nasce o romancista
com o ato de dispor esses eventos e de elaborar uma linguagem que
não sabemos se os reflete ou se apenas serve-se deles para existir.
Aqui, porém, resumir os fatos encadeados no livro que iremos
comentar é indispensável. Ainda não impresso (oportunamente,
revelarei os motivos desse fato), ficaria o meu leitor na posição de
alguém que presencia um debate sobre o qual lhe faltam referências.

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Sem mais tardar − não quero merecer a censura de Montaigne a
Cícero, cujos discursos, diz, inflados de preparatórios, "esmorecem
à roda do pote"3−, volto portanto ao romance e o resumirei, de
modo a transmitir, sem o concurso de Propp, solicitado por outros
compromissos, uma idéia tão fiel quanto possível das banais
aventuras da heroína, aventuras que as repetições, as variações,
transformam em pesadelo. Quando necessário, alterarei a ordem
estabelecida pelo original.

21 de julho

Maria de França, filha de lavradores, perde o pai com pouco


mais de cinco anos; a viúva, de origem urbana e que odeia trabalhar
na terra, muda-se para o Recife. Espera ganhar mais que no cabo da
enxada e sonha desde a infância com uma capital guarnecida de
"quartel e pontes". Vão, com ela, Maria de França e os irmãos.
(Julia Enone abstém-se de caracterizar, de nomear e até de precisar
quantos são esses irmãos, aos quais sempre alude vagamente e que
deslizam em torno da heroína como sombras voluntariosas,
solidárias ontem e amanhã ofensivas, quando não indiferentes.) No
Recife, aluga um quarto suburbano onde todos se amontoam. Lava
e engoma para casas de família.
Maria, havendo ingressado na escola primária, falta à aula
quando quer, não aprende nada e, "perdida entre irmãos", fica
definitivamente em casa. Seu maior prazer, observar a
transformação da roupa suja: sob as mãos da viúva, lençóis e
camisas ficam limpos, lisos, "com um cheiro que a gente nunca sabe
se é de capim ou de tijolo novo". Observa que as chuvas e o bom
tempo, tão importantes no cultivo da terra, continuam a afetar, na
cidade, o trabalho de limpar a roupa que os donos encardem.

3 "Dos livros", Ensaios .

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Os dias de sol, agora, principalmente quando sopra o vento, são
mais bem recebidos que as chuvas oportunas na lavoura, mas a
coincidência induz Maria de França a uma reflexão: dependemos de
coisas que nos são alheias e que não podemos dominar. Não só
isto. Entrevê um laço incompreensível entre a operação que
executam as mãos da mãe e o mundo. A associação evoca o nexo
entre as diligentes mãos do lavrador e, por exemplo, as nuvens.
Eis, então, jogando com as incertezas do tempo e sob o
disfarce de, simples abertura, o apólogo que orienta os episódios
futuros do romance. A transferência da viúva e os primeiros cinco
anos no Recife, ao termo dos quais − sempre mais soturna e mais
distraída − não progrediu em nada, constituem o acesso a Maria de
França e aos seus desastres. Queixando-se do aparelho genital,
amortecido o lado esquerdo do corpo, vai a mãe para segundo
plano; deixa no centro do palco, com dez anos completos, a heroína
do drama. A transmissão opera-se de modo coerente: declinando as
forças da mulher (surgem também distúrbios renais), Maria de
França, apesar da idade, emprega-se como doméstica, a troco de
comida, cama e ordenado insignificante.

22 de Julho

Muitos dos que saem do campo, sabe-se, ao campo voltariam,


se pudessem, tão difícil para eles a vida na cidade. Aí engrossam o
contingente dos que formam a "cultura da pobreza", assinalada pela
desproporção entre a estrutura mental dos indivíduos e a
complexidade dos centros onde vão tentar a vida, com o que o
fracasso é inevitável. "Para mim só há um lugar", disse um ex-lavra
dor desesperado. "É sete palmos embaixo do chão."4 Mesmo assim,
4. Revista Realidade, ano VII, no. 74, maio de 1972, edição especial consagrada à vida
urbana

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aumenta o êxodo rural, gerando favelas como a do Coque − sessenta
hectares, no Recife, de terra pantanosa aterrada com lixo −, onde
vivem dez mil pessoas, noventa por cento das quais sem ocupação
certa e que se alimentam de, mariscos apanhados na lama.
Quis saber de J. M. E. por que oferecia, no romance,
condições de moradia menos deploráveis aos migrantes. A escala
onde se processavam os infortúnios das suas personagens −
respondeu-me − e mesmo a natureza desses males eram inacessíveis
a gente como a do Coque, que ela não conhecia tão bem. Lembrava,
a propósito, o interesse que podia ter um estudo das classes sociais
baseado no tipo de desgraça peculiar a cada uma. Que haveria de
comum entre a dor de Édipo e a luta de Fabiano com a estiagem, em
Vidas secas?

25 de julho

Sob a cama de Maria de França, uma voz leva as noites


prevenindo-a:
"Tome tento, menina. Alguém aqui na casa quer arrasar com a
tua vida."
Acompanha-a essa voz nos sucessivos empregos, invisível,
repetindo até amanhecer o dia a cantilena assustadora. Mais tarde,
passa Maria de França a imaginar que um peixe cresce debaixo dos
seus pés, enorme, no fogo subterrâneo, que esse peixe um dia
romperá o chão e sairá pelo Recife em direção ao mar, dando
pancadas com a barbatana da cauda .
Começa a receber um "espírito de luz", Antônio Áureo, que
em vida foi barbeiro. Gago e melancólico, o visitante despreza os
bens terrenos, chama a vida "passeio no Coque" e revela a Maria,
com pormenores, as circunstâncias em que ela irá morrer.
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Designa inclusive onde será a cova, a hora exata e as condições do
tempo: "Não vai estar chovendo e também não vai estar fazendo
sol". Desconhece Antônio Áureo a voz que clama sob as camas. Vê,
em compensação, o peixe que nada no fogo da terra e discute sobre
ele com a menina. É esse amigo invisível quem anuncia a chegada
de "um vassalo de Vênus", no qual Maria de França pode encontrar
alguma coisa, mas "como quem acha no lixo um belo frasco de
mijo".
Com a lúgubre presença do ex-barbeiro e anunciador de
males, encerra-se o primeiro capítulo: pobre de eventos, que, ao
contrário, afluem em todas as outras páginas, acumula expectativas,
implantando a certeza de aflições próximas. Isto de maneira tão
clara que talvez não seja erro ver em Antônio Áureo a
personificação, a manifestação, posso dizer, dessa parte do
romance. Assim, quando Maria passa a trabalhar, aos doze ou treze
anos, em mais uma casa de aparência respeitável (na verdade,
conforme indicam certos pormenores, um bordel disfarçado, apesar
das estampas de santos pelos quartos), vemos delinear-se como num
melodrama a prostituição precoce.

26 de julho

As expectativas a que aludi e com que interrompi, ontem, o


meu resumo, parecem confirmar-se quando surge a figura de Belo
Papagaio, tio e explorador de uma das putas, chofer de caminhão,
com seu nariz recurvo, olho redondo, as pernas arqueadas, o jeito de
andar jogando o tronco para a frente e sem o polegar da mão direita,
que cortou para não fazer serviço militar: "Diz que é homem do
amor, ouvintes, e não homem da guerra". O crioulo Otelo falava à
jovem Desdêmona "de muitas aventuras desastrosas, de
comovedores acidentes em terra e mar, de perigos iminentes", "dos
antropófagos e dos homens cuja cabeça fica abaixo das espáduas",

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segundo acabo de ver, com o intuito de animar e de altear este
passo, na minha estante dos elisabetanos. Belo Papagaio fala das
estradas de rodagem, de caminhões tombando em precipícios, de
rios cheios, de cangaceiros, descreve. as brigas que provocou e
venceu em prostíbulos famosos da Bahia, de Alagoas, de Sergipe, as
mesas de jogo viradas, os tiros, o brilho das facas, vôos das janelas
para a rua, as mulheres cujos sexos, devido à forma excêntrica, às
dimensões, ao perfume, à maciez e ao fogo estarrecem qualquer
macho. Não obstante os quarenta e tantos anos, deflora Maria de
França e, antes que amanheça o dia, azula no tempo.
O episódio não traz as conseqüências que tememos. Resta, na
vítima, como vestígio da passagem de Belo Papagaio, o costume de
esconder os polegares. A voz sob a cama e o espírito soturno do ex-
barbeiro, silenciosos durante os cinco ou seis dias em que o
visitante se mete no bordel, usando as camisolas das mulheres,
perfumado, unhas pintadas, reaparecem quando ele vai embora,
seguem-na quando ela muda de emprego e só emudecem quando
Maria de França evolui de doméstica a operária de fábrica, voltando
a ocupar, com a mãe doente, o seu quarto de subúrbio, agora mais
respirável: foram-se alguns dos irmãos. Belo Papagaio e mesmo o
defloramento esvaem-se como um sonho. Mas a facilidade com que
a operária cede a qualquer proposta, abrindo-se em terrenos
devolutos ou em fundos de quintal, confere a este período certo
clima de degradação.
O imenso peixe continua aumentando sob a terra, noite e dia.

27 de julho

Devo ou não indicar as páginas, quando citar o romance?


Acho que as poucas dezenas de exemplares precariamente
reproduzidos a álcool não justificariam esse cuidado.

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É também possível que eu nem sempre situe, com o rigor
usual, as outras citações. A exatidão nesses casos expressa uma
gentileza do escritor e sobretudo o empenho de merecer fé. O
ensaísta, mesmo quando severo com o mundo, aspira à consideração
geral. Honrarei a memória da mulher que amei se esclarecer que não
quero ser acreditado e que a consideração geral, a mim, obscuro
professor secundário, me deixa indiferente.

4 de agosto

Não é aqui o lugar onde tentarei analisar a inquietação, a


necessidade de indagar (mas indagar o quê?) que em mim provoca
certo personagem, Rônfilo Rivaldo, surgido no capítulo III e
conhecido no bairro como Espanador-da-Lua: é alto e magro.
Flutuando entre a ação social, o espiritismo, a superstição franca e o
protestantismo, diz ter um guia do astral, Alberto Magno de Titivila,
"arcebispo, inquisidor, cigano e mártir"; não obstante a orientação
arquiepiscopal, deixa crescer a unha do dedo mínimo para cortar o
azar e sabe de cor inúmeros hinos evangelistas. Ensina Maria de
França a cantá-los e matricula-a na escola gratuita que fundou e
orienta, apesar de analfabeto e pobre, com obrigações familiares.
Ela, na fábrica de tecidos, chora de alegria quando assina pela
primeira − e última − vez o recibo: demitem-na a seguir, para não
completar o chamado "período de carência"− O fato é decisivo para
a tecelã e para o livro. Volta a trabalhar como doméstica − ominoso
retrocesso − e a ouvir sob o leito a advertência de que alguém
tenciona destruí-la. Uma tarde, aguando o jardim, tem o primeiro
acesso violento de loucura. Ao sair do hospício, na avenida Rosa e
Silva, antiga construção rodeada de árvores, que o povo do Recife,
um tanto familiarmente, conhece por "Tamarineira" e à qual se tem
acesso por entre duas filas de palmeiras imperiais, depois de
atravessar o largo portão de ferro (há um certo fausto nas palmeiras,
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nas dimensões do prédio quase em ruínas e nos desenhos
caprichosos das grades que guarnecem as janelas, por trás das quais
gritam os loucos), ao sair daí, aconselham-na a durante alguns
meses evitar empregar-se. Outras ex-internas, em condições
semelhantes, obtiveram pensão temporária. Por que não tenta?
Maria de França,confiante, segue a sugestão.
Cabe-me, entretanto, a esta altura, ponderar se apenas devo
sugerir ou, ao contrário, expor passo a passo as suas idas e vindas
no mundo em que entra a atuar − maligno e desesperador −, feito de
prorrogações, ofícios, indeferimentos, equívocos, arquivos, esperas,
protocolos, estampilhas, mentiras, atestados, carimbos; arbítrio.
8 de agosto
A expressão "período de carência" indica o intervalo entre a
total ausência de um direito e o seu exercício: entramos, aí, na
incerta posse de um bem que em princípio nos pertence e que a inda
não nos favorece.
O decreto 72.771, de 6/9/1973, publicado em suplemento ao
número 173 do Diário Oficial da União, de l0/9/1973, estabelece no
artigo 41 a carência de doze contribuições mensais para que o
sistema previdenciário estude a concessão de:
auxílio doença,
aposentadoria por invalidez,
pensão por morte,
auxílio reclusão,
auxílio natalidade.
A exigência não abrange todos os benefícios. Dela independe,
por exemplo (artigo 42), a aposentadoria nos seguintes casos:

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de lepra,
de tuberculose ativa,
de cegueira,
de alienação mental,
de paralisia irreversível.
O direito à assistência médica, precária, é obtido a partir da
primeira contribuição. Garantido, igualmente, o auxílio para enterro.
Mas há ainda um ponto não esclarecido e que convida à
discussão. Qual a vantagem em demitir um empregado antes que ele
alcance todos os direitos no sistema previdenciário, se a aquisição
desses direitos não implica ônus para o empregador?
O advogado Aquilino de Macedo Lima, autoridade em
questões trabalhistas, tem sobre a matéria uma hipótese cáustica e
cuja ausência de provas, inevitável, é compensada pelo rigor de sua
lógica, firme como a de um alucinado. Trata-se, diz Macedo Lima,
de um acordo de cavalheiros. Que sucede com a demissão de
empregados dentro do "período de carência"? Evita-se o pleno
ingresso, na entidade previdenciária, de inúmeros associados cheios
de problemas, muito onerosos portanto e que, inversamente,
contribuem pelos níveis mais baixos. O artifício reduz
consideravelmente os encargos do órgão assistencial, que, assim
favorecido, não consideraria indigna de si uma certa maleabilidade
na fiscalização junto às empresas que integram o conluio.
9 de agosto

Disse, há perto de um mês, que as repetições e as variações


transformam em pesadelo as aventuras de Maria de França. Referia-
me antes de tudo ao seu litígio com algo para ela tão desnorteante
como um quebra-cabeça insolúvel. Uma legislação, com seus

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artigos, parágrafos e alíneas, compõe essa entidade com que luta a
heroína. Compõe, eu disse: faz parte da composição. Vejo o texto
legal, aí, como uma espécie de veículo inseguro, acionado por
condutores ineptos e malignos, que trocam peças, invertem
comandos, deterioram o veículo, transformando-o num monstro
voluntarioso − num insano. Assim, o desequilíbrio mental da
personagem soa com ironia: há, nos seus atos, no objetivo que
busca, certa coerência. A verdadeira loucura reina no outro lado, na
máquina viciosa. O ambíguo confronto entre a mulher e esse ente só
pode ser expresso através de uma série de respostas, tão laboriosas
como ineficazes, a exigências que se alteram sem cessar.
Nada, portanto, justificaria a opção de reduzir a uma frase o
pesadelo de Maria de França, dizendo por exemplo que às
dificuldades vencidas sucediam-se outras; ou que um fator
inesperado, quando tudo parecia chegar a bom termo, decretava o
reinício do ciclo. De maneira esquemática, como num protocolo ou
numa ficha, darei então pela ordem o histórico das providências −
todas vãs − exigidas da simplória aspirante a uma pensão não
vitalícia. Perder-se-ão no meu resumo a movimentação e o tom do
original. Não me seja atribuído o que nele restar de atraente e ágil.

15 de agosto

Familiar aos que visitam o Recife e aos que residem na


cidade, ergue-se, na avenida Martins de Barros, o edifício branco e
incaracterístico do Grande Hotel. Os hóspedes, das janelas
fronteiras, podem ver as embarcações de pequena cabotagem, o cais
da alfândega do outro lado das águas, telhados escuros e algumas
torres de igreja, tudo compondo uma visão sugestiva e instigadora.

25
Na ala posterior do edifício, procurado, apesar das cortinas um tanto
descoradas e das manchas de tisna em redor das maçanetas, por
viajantes de posses, funcionava e talvez ainda funcione − fato único
no mundo, penso − uma dependência do serviço social, o setor de
benefícios.
Inicia-se aí a "descida" de Maria de França ao purgatório da
burocracia, e ante esses balcões decorrem vários episódios do seu
drama. O primeiro é favorável: embora trabalhasse na fábrica onze
meses, pagou − não sabe como − doze, estando em condições de
reivindicar o que pretende. Dão-lhe um formulário que preenche a
duras penas e que deve entregar na rua do Riachuelo, com duas ou
três certidões. Mais de ano, entretanto, havendo decorrido entre o
pagamento da última mensalidade e a solicitação do benefício,
prescreveram os seus direitos, a não ser que prove ter sofrido o
primeiro acesso de loucura antes de encerrado aquele prazo. A
reivindicação, com isto, poderá ser discutida, alegando-se que se
nada requereu quando ao abrigo da lei, foi justamente por estar
internada como doida.
Procura o Hospital de Alienados, explica o caso como pode e
vê no seu registro, espantada, declarações da mãe, dizendo que ela
nunca teve bom juízo. Bem. Papel é papel: leva o atestado à rua do
Riachuelo. A funcionária custa a lembrar-se de tudo, afinal se
recorda, mas agora trocou de opinião. Pelas seguintes razões: a)
atestado é uma coisa muito vaga; b) não tem destinatário, sabe?, não
se dirige a ninguém; c) só é válido com a firma autenticada em
cartório. Instrui, portanto, a confusa segurada, no sentido de trocá-
lo, se puder, por um ofício carimbado e assinado pelo médico-chefe
da “Tamarineira”.
Maria de França também consegue o ofício. A funcionária
entra numa sala e fecha a porta. Reaparece horas depois com um
papel que deverá ser entregue no departamento médico.

26
Rua da União. Maria de França, antes de ser atendida, vai muitas
vezes ao endereço marcado e depois outras tantas, paciente,
aguardando o exame. O médico saiu antes da hora ou lhe. manda
dizer para voltar outro dia.
Afinal examina-a e garante ser possível, no seu caso, um ano
de licença. Mas não tenha como certo, não cabe a ele a decisão
final. Cabe a quem? À junta médica superior. Longo, depreende-se,
o tempo decorrido entre essa informação e o veredicto, contrário, da
junta médica. Maria de França, enquanto espera, tenta obter
trabalho em casas de família e, entre uma tentativa e outra, ajuda a
mãe na barrela.
Fazem-lhe, ainda na Riachuelo, nova sugestão: recorrer à
assistência judiciária, antes, obtendo atestado de pobreza. Ela ouve
o conselho, desce as escadas − tem medo de elevadores −, as
escadas sujas, repetindo-o. Ao chegar embaixo, já se esqueceu de
tudo.
Ganha algum dinheiro, em casa, fazendo bruxas de pano. Às
vezes, com a ponta da tesoura, estripa-as. O eleito de Alberto
Magno, que nada sabe dessas mortes e da raiva que então obscurece
o coração da louca, vê naquela nova ocupação instintos maternais e
arranja-lhe o emprego menos indicado: pajem de dois meninos
surdos-mudos.
A mãe dos surdos-mudos passa as manhãs fora, confiando-os
à ama, em quem a violência cresce, cheia de ameaças. Haverá um
duplo infanticídio? Serão esfaqueados os inocentes Dino e Lino? A
seqüência, felizmente, foge a tais previsões: a patroa nota uma
inchação na perna da empregada e quer levá-la à Clínica de
Doenças Tropicais. Resistência de Maria de França. Havendo sido
interna no Hospital de Alienados, diz, onde a trataram bem e tem
amigos do peito, só confia nos seus médicos. Imediatamente, sem
perceber por quê, recebe as contas.

27
Admitida num armarinho (sem registro na carteira
profissional), suas vendas não chegam nem ao mínimo exigido, "e
só por isso, ouvintes, me mandam passear, me mandam para o olho
da avenida".
Passa fora de casa a maior parte dos dias, sem nada que fazer,
conversando com os vizinhos, batendo boca por nada, e concebe um
ideal, "ser mulher de porta aberta, isto é, de coxa aberta, imperatriz
das toleradas, mundana-mor, a glória!". Pintada, cheia de laços, saia
bem acima dos joelhos, dirige-se a qualquer homem que passa e
assume atitudes provocantes, virar os olhos, lamber o beiço, coçar a
"sempre-viva", sem atender aos conselhos e ponderações
("conversa, conversa de velho broxa, de quem nunca foi e não é
nunca") que lhe manda o prelado Alberto Magno por intermédio de
Rônfilo Rivaldo. Quando entra em casa, é para entregar-se a
exercícios como o de pôr no copo com água uma rolha de cortiça e
impedir que chegue à superfície, com ágeis toques da língua.
Afinal, convencida de que o motivo do insucesso é a perna
inchada, vai ao Hospital de Alienados, onde revela tal desequilíbrio
que ali mesmo fica. Sofre tratamento, depreende-se, à base de
eletrochoque, cura-se também da perna − "agora estou em ordem,
uma água-marinha, um brinco de argola"− e tem alta num sábado,
ao meio-dia.
20 de agosto

Mostra-me, esta última leitura, que as personagens do livro


sempre esquecem: compromissos, eventos, recomendações. Folheio
os capítulos restantes e confirmo a anomalia. Que significa? Até
agora escapara-me e, casual ou arbitrária, merece exame.

28
30 de agosto

O isolamento é a nota principal na soturna construção da


avenida Rosa e Silva; no trecho que se segue e, pode-se dizer, em
todo o capítulo IV, reina a comunhão. Maria de França, livre, em
vez de ir para casa, sai andando sem rumo e de repente se vê no
centro da cidade. Gente se abraça nas ruas, nos bares, joga talco e
água nos estranhos, improvisa instrumentos musicais. Ela bebe
restos de copos ("para as mágoas esquecer, ouvintes, eu sou é da
fuzarca"), diz a todo mundo que é milionária, sobe nos estribos dos
carros que se arrastam, escapamento aberto, cai no frevo sob os
alto-falantes ("é de amargar, é do barulho") e por fim entra no bloco
Flor da Madrugada. Aí desfila com um novo personagem, cantando
o "hino" da turma , em coro:
Mandei fazer um buquê pra minha amada,
mas sendo ele de bonina disfarçada,
com o brilho da estrela matutina.
Adeus, menina,
Linda flor da madrugada !
O Torre, clube suburbano sem futuro onde o seu novo amigo
atua como centroavante, perde um campeonato atrás do outro. Paga
uma miséria aos jogadores -quando paga -, e a saída para o atacante
é desgastar as forças que lhe restam como guarda-noturno, enquanto
aspira à Seleção Brasileira. Nicolau Pompeu (seu nome esportivo,
Dudu, raramente aparece nos jornais) irradia uma serenidade que
Maria de França nem sequer imaginava. Isto apesar do passo rápido,
dos olhos acesos, do chapéu levantado sobre a testa e do seu jeito −
enganoso, afinal − de quem "se não abre o caminho no peito, abre
no ombro". Afeiçoa-se a ela, e esse pobre amor se manifesta sob a
forma de orientação junto ao sistema previdenciário. Ouve de

29
Maria, após o Carnaval, a história dos seus passos inúteis; insiste
para que ela volte à carga: houve alteração nos estatutos; vai com a
ex-operária, novamente, à rua do Riachuelo, onde respondem que
ela poderá talvez obter o benefício, caso providencie atestados de
saúde e a curatela. Curatela? Que diabo é isso, ouvintes?
2 de setembro

"Os recursos que o Instituto Nacional de Previdência Social


(INPS) dedica à assistência médica são insuficientes, e as suas
diárias hospitalares vêm diminuindo em relação ao custo médio do
paciente-dia. Devido em grande parte a esse estado de coisas, 48
hospitais brasileiros fecharam suas portas nos últimos dois anos,
entre eles o Hospital Boa Esperança, de Itapecerica, que, apesar do
nome, funcionou um ano e, com a adaptação de algumas grades, foi
transformado em cadeia." (Da reportagem publicada em 21/1/1970
no jornal O Estad o de S. Paulo. Recorte encontrado entre os papéis
de J. M. E.)
4 de setembro

Tem reinício a partida contra o INPS, mas, com o


centroavante do Torre, a máquina emperrada movimenta-se, embora
esse combate seja como lutar em campo adversário, com um juiz
vendido, marcando tudo a favor do outro lado. Dudu consegue
cópias das entradas de Maria de França no Hospital de Alienados;
leva-a, em companhia da mãe, à assistência judiciária. Contra-
ataque: os documentos provando que ela esteve louca são
insuficientes, queiram trazer atesta dos de saúde e de pobreza, e

30
reconheçam as firmas no tabelião. Dudu assedia a assistência
judiciária: esbarra no expediente encerrado e nas ausências dos
servidores, todos de licença ou em viagem ou em enterro de
parentes Por fim, depois de tanto esforço e combatividade (seu time,
enquanto isso, atua desastrosamente no campeonato estadual), vem
a ser informado que os termos do atestado de saúde são demasiado
vagos e que deve obter outro. Desespera-se e tumultua a assistência
judiciária, pressionando todos os pontos possíveis, insistente,
quando aceitam o segundo atestado de saúde e resolvem impugnar o
de pobreza. Faz o comissário de polícia amolecer, sorrir, fornecer
novo atestado, depois de haver gritado que se retirassem e que de
modo algum.
Toda essa pertinácia parece dar resultados. Os papéis são
aceitos (esgotaram-se os pretextos negativos da repartição) e mais
tarde devolvidos, para encaminhamento ao Palácio da Justiça. O
centroavante leva-os ao Palácio da Justiça e daí para a Liga de
Higiene Mental, onde um médico − afinal! − deve examinar a sua
amiga.
No dia, o desprestigiado atleta suburbano está com ela na
exígua e sufocante sala de espera. O psiquiatra nem sequer chega a
vê-la. Manda dizer que, não sabe como, os papéis se extraviaram.

7 de setembro

A decepção é compensada, em parte, quando Nicolau


Pompeu, no ponto do ônibus, oferece a Maria de França uma
delgada aliança de noiva. O gesto é a culminação de um movimento
jubiloso, que, por assim dizer, evolui em surdina. Apesar da
incompetência ou da má-fé do esquema previdenciário, ou da
conjugação de ambas, tudo parecendo obedecer a um cálculo, a

31
um plano capcioso, sente-se a antiga tecelã, sob os cuidados ativos
do amigo − agora noivo −, em união com o mundo, como que
vertendo sobre tudo e todos as provas de amor qu e recebe:

Ninguém me ama? Ninguém me quer? Quer, sim. Alô, ouvintes,


ouçam, vocês estão por longe, fora do Globo da Morte, mas agora
abro a porta de aço e vou até aí, meu homem e anjo ordena, vou de
chapéu de palha e entro na ciranda, coroa de pessoas, dedos dados,
jogo flores nos telhados, no rio e nas ruas do Recife.

Certamente por isto, ela, tão desamparada que depois de tantos


meses nada obtém do que pleiteia, toma sob a sua proteção uma órfã
de seis anos, anêmica e um pouco retardada. Vemos então a
heroína, sem quaisquer condições que justifiquem o empenho, de pé
nas filas e em longas confabulações inúteis, nas repartições que
freqüentava e ainda em outras, como a Clínica de Puericultura,
levando pela mão a menina que pretende socorrer.
Enquanto isto, Nicolau Pompeu, cujo lema em campo é "não
deixar as comadres bordarem o enxoval", ataca novamente. Com
Rônfilo Rivaldo, agora seu amigo, revolve a Liga de Higiene
Mental e obtém, do médico, a declaração surpreendente de que
achou os papéis e deu despacho sem ver a paciente. Que despacho?
Não se lembra. E onde estão os documentos? Na sua clínica
particular. Podem ir buscá-los no outro dia? Vão os dois e
descobrem que foram tapeados, que não houve despacho, que todos
os papéis estão na Liga, qu e o doutor viajou para um congresso,
onde?, no Rio, e volta quando?, daqui a uns oito dias.
Sobrevém um imprevisto. Maria de França, embora tenha
pouco que comer, hospeda a criança. Certa madrugada, gente da
polícia, à procura de assaltantes, põe a porta abaixo e, mandando
chumbo, invade a casa. Vendo, tarde demais, que estavam errados,
advertem os moradores, vejam bem, bico calado, senão a gente

32
volta, e volta pra valer. Nem parecem ver, no meio da fumaça e da
balbúrdia, a protegida da louca estrebuchando no chão, o pescoço
esburacado com dois tiros de metralhadora. Pouco depois de meio-
dia, antes do enterro ela menina, Maria de França tem uma crise
forte. Terminava o capítulo III com a sua alta do hospício; este é
encerrado com um novo internamento.

8 de setembro

O sr. Reinhold Stephanes, novo presidente do INPS, começa a


descobrir que a burocracia desse órgão é "arrepiante". O processo
relativo a um a autorização para obras no Centro de Reabilitação de
São Paulo já cresceu de tal modo que só pode ser transportado de
uma repartição para outra em carro de mão. Outro, mais modesto,
destinado a retificar algumas datas em simples guias de
recolhimento, percorreu doze agências, dois bairros, quatro prédios
em quarenta dias, retornando à origem com vinte e dois carimbos,
outros tantos despachos e nenhuma solução. (Revista Veja,
4/9/1974)

9 de setembro

Visita Maria de França, no Hospital de Alienados, o médico


da Liga de Higiene Mental, que afinal redige o laudo e cobra
(legalmente?) taxa extra. Nicolau Pornpeu acerta as contas com ele
e leva os papéis a um cartório no Palácio da Justiça. A desconfiança
inesgotável da máquina assistencial faz com que novo médico
entreviste a segurada.
Pra que doutor? Para ver, minha filha, como está a fibrose e a
esteatose infiltrativa, o grau do estado mórbido, o esforço tussígeno,

33
a eclâmpsia, a evidência clínica, e para averiguar se o laudo
fornecido não é falso.

4 de outubro

Tenho maus olhos, eu, a quem tanto comprazem os livros.


Qualquer esforço maior prejudica-os; o meu gosto de ler é
temperado pelo risco. Com o globo ocular um tanto dilatado
(acontece, olhando-me no espelho, pensar que as córneas vão cair
dentro da pia), tenho um ar alucinado e pareço incrédulo diante do
mundo, o que é certo. Ora, na manhã de 9 de setembro, escrevera
meia dúzia de linhas, quando todas as coisas − mesmo as dores −
adquiriram um brilho intenso, e eu, que vivo só, mal pude descer o
elevador.
Nas quase três semanas de hospital, privado de leituras, algo
ocorreu. Imóvel, infiltrado de trevas, tudo confuso em mim, o que
não era essencial fez-se pó − ou fez-se esquecimento, ou nada, ou
escuridão − e só algumas imagens prevaleceram, isoladas de tudo: o
saldo, posso dizer, dos meus cinqüenta anos, os minutos
afortunados, saldo não copioso e constituído quase sempre de coisas
não comerciáveis. Predominava a contribuição de Julia, embora
pouco houvesse durado − três anos e seis meses − a nossa vida
comum.
Enleava-se com essas imagens, completando-as de uma forma
que me escapa, o livro que escreveu e que eu percebia não só
enquanto texto. Não que o texto se desfizesse e volvesse, por assim
dizer, às coisas que nomeia. Sem deixar de ser o que é, oferecia-se
também enquanto mundo, e eu nele me movia, entre carnal e verbal.
Uma espécie diversa de leitura? Um modo esquecido, já apagado
em nós, de percepção das narrativas? Não sei. Registro os dois
fenômenos por refletirem a intensidade da presença, em mim, de
Julia Marquezim Enone e do seu livro − e por mostrarem como,
ainda em mim, ela e seu texto se trespassam.

34
6 de outubro

Habituado à alameda Lorena e arredores, evito, sempre que


possível, aventurar-me ao centro da cidade. Pessoas que, nos
bairros, movem-se naturalmente, parecem meio cegas quando
investem − decididas, mas numa espécie de pânico − pela Quinze de
Novembro ou pela Sete de Abril, áreas onde clama, intensa, a vida
de São Paulo − e isto me atordoa: sem viver, como o personagem de
Tchekhov, o seu Biêlikov, encerrado num estojo, só me encontro
comigo quando imóvel.

Por isto, embora desejasse fazer uma sondagem sobre os


nomes de certos personagens da Rainha dos Cárceres, fui adiando.
E só hoje, à tarde, cumprindo decisão formada na extensa noite
hospitalar, fui à Biblioteca Municipal. Caminhava para uma
revelação − ao menos, para uma hipótese −, devida apenas ao acaso
(ninguém mereceu confidências de Julia M. Enone envolvendo o
seu curioso projeto literário), ou, sendo mais preciso, aos indícios
distribuídos por ela e que desempenham, no romance, função
idêntica à do conceito nas charadas pitorescas.

O onomástico Rônfilo, que até ontem eu não encontrara em


outra parte, me soava estranho. Também não o registra a maioria
dos dicionários e enciclopédias hoje examinados. (Tenho ainda o pó
na garganta, os olhos irritados, e abro aqui o meu escrito, por um
segundo, ao surdo rumor dos veículos, que fazia vibrarem as
prateleiras e os tampos inclinados das estantes.) Descobri afinal um
certo Ronphile, quiromante famoso no século XVIII por ter previsto
que Maria Antonieta, pouco antes dos quarenta anos, "perderia os
cabelos e não voltaria a usar brincos".

35
Haveria, no mesmo ofício, algum Nicolau Pompeu? Sim. Entre os
séculos XIV e XV, um indivíduo com esse nome, misto de letrado
(circulam livros seus sobre a poesia goliárdica e o amor cortês),
quiromante e vidente, pois empreende viagens longas e; difíceis
para ler a mão de príncipes, de negociantes ou mesmo de prelados
cuja identidade, diz, lhe é revelada "por línguas celestes", cruza
ansioso as estradas da Europa Central, e a seriedade com que
disserta sobre as linhas das mãos não o impede de ler, nas palmas de
mulheres que exaltam os seus sentidos, a indicação de que o destino
os une e que a isto devem submeter-se. No fim da vida, faz-se o
antigo Nicolau Pompeu, ao mesmo tempo, cirurgião e impressor.
Creio reconhecer, atenuados, alguns dos seus traços, não no
homônimo do livro, e sim em Rônfilo Rivaldo: a inclinação pelos
livros, a magia, algo de charlatanesco. Um terceiro nome vem
ampliar esse jogo de correspondências, o de Belo Papagaio,
simples e pura tradução de uma alcunha famosa, Pretty Parrot O.
(que significaria este O.?), com presença marcante em ilhas de ação
bem separadas e cuja biografia possuo, sem que até hoje me
houvesse ocorrido uma ilação entre ele e A Rainha dos Cárceres da
Grécia.
7 de outubro

Ontem mesmo, à noite, li a história de Pretty Parrot O., até


então um desses livros que adquirimos e que jazem entre outros,
anos e anos, à espera da improvável e sempre adiada leitura. No
pequeno volume, escrito por um certo Ashley Brown, nostálgico
decerto de magia e de aventuras,5 conjugam-se dois aspectos que
vagamente me atraem: a pirataria e as artes divinatórias.

5. Parrot € Bonney, Liverpool, Search Books, 1948.

36
Mesmo assim, apenas folheara-o algumas vezes, mas nítidos traços
à unha assinalam alguns trechos. Não fui eu que os fiz.
Quiromante, Pretty Parrot O. testemunhou, integrado à
tripulação, as últimas viagens de Calico Jack, capitão do navio
corsário Trinidad, e não parece que fosse muito seguro; pois,
quando indeciso na decifração de uma cruz ou de uma estrela
emaranhadas nas linhas - pouco visíveis, decerto - que restavam nas
palmas dos bucaneiros, consultava (e ouvia) um papagaio que
sempre trazia no ombro. Cabia a esse ledor de destinos, em
sociedade tão pouco familiar aos seus pares, ler a mão dos
candidatos à pirataria e mesmo dos prisioneiros, sendo recusado,
entregue à gana dos tubarões ou abandonado numa penedia todo
aquele em quem Pretty Parrot O. lesse previsões nefastas, como o
Anel de Saturno ou o Signo do Cadafalso.6 A precaução não
impediu que uma chalupa inglesa fizesse o Trinidad em pedaços,
prendesse Calico Jack e o conduzisse à Jamaica, onde, julgado,
morre na forca. Dois dos sobreviventes livram-se da punição: Pretty
Parrot O. quiromante, e não pirata − e um marinheiro que o capitão
não submetera ao seu exame. O marinheiro, despojado das roupas,
revela o sexo e a identidade real; chama-se Anne Bonney e, livre
das faixas de seda no ventre, acusa gravidez de alguns meses. A
criança é talvez de Calico Jack ou talvez do quiromante, que,
segundo viria a confessar, reconhecera desde o início, pelas mãos de
Anne Bonney, seu verdadeiro sexo, apesar do disfarce e da
habilidade nas armas. Associam-se os dois; Pretty Parrot, que não

6."O Anel de Saturno é o mais desfavorável sinal que se possa observar." (Cheiro, O
que dizem as mãos. Trad. de Antoine Boueri. São Paulo, Hemus Livraria Editora, 1971,
p.87. Título italiano: Che dicono le mani.) "A cruz que aparece isolada e distinta sobre o
monte de Saturno (terminando, assim, a linha da sorte) é significativa de morte violenta.
Na verdade, alguns quiromantes a denominam Signo do Cadafalso." (Jo Sheridan,. O
futuro em suas mãos Trad. De P. S. Werneck. Rio de Janeiro, Cia Editora Americana,
1971, p. 83 Títilo original: What your hands reveal.)

37
experimentara sem contágio a pilhagem e a existência errante, faz-
se black birder,7 tornando-se lendária a virtude que possui de
embalar os ouvintes com o relato das próprias aventuras. Aduzamos
que o seu fim, bem como o da corajosa Anne Bonney, perde-se na
sombra, entre uma ilha e outra das Caraíbas.
Não se pode afirmar que Julia Enone haja transposto para o
Nordeste de alguns anos atrás essa figura, embora, além do nome,
pelo menos um traço do velho par de Anne Bonney sobreviva em
Belo Papagaio, o prazer de narrar ousadias e lances arriscados. Seu
objetivo, penso, não era recriar personagens legendárias, mas,
lançando mão de pistas onomásticas, preparar uma espécie de
inscrição cifrada que, descoberta, ampliasse os horizontes da obra.

8 de outubro

Insiste A Rainha dos Cárceres, desde as primeiras páginas que


não − o que pode notar qualquer leitor menos alheio −, em reportar-
se à mão, quase um leitmotiv. Além de incidências menos
ostensivas, como o polegar cortado de Belo Papagaio e o dedo
mínimo de Rônfilo Rivaldo, com a unha crescida, toda uma página,
na abertura do livro, desenvolve o tema das ilações entre as mãos
que lavam (ou lavram) e o Sol, a chuva , o vento, o mundo. A
ênfase concedida ao motivo evidencia-se ainda, como se verá, na
página final do texto.
Estava nos meus planos comentar o fato, expressão de um

7. O termo designa uma profissão rara: "Aporta-se a uma ilha afastada, onde se faz
amizade com os indígenas, de modo que eles acabem por subir a bordo; largam-se as
amarras e vendem-se os cativos em outra ilha, para trabalhos agrícolas". (Gilles
Lapouge, Les pirates. Paris, E.d. André Balland, 1969, p 73.)

38
fenômeno assíduo na história da literatura: a presença, em obras
impregnadas do tempo em que surgem, de temas errantes, egressos
de uma tradição remota, como este do nexo entre a mão e o mundo,
tendo no homem − resumo do cosmos − o intermediário. Vestígio
de uma civilização anterior à Suméria, já a tábua de argila
encontrada na região de Susa e que pode ser vista no Museu de
Lanciano, mostra, de cima para baixo:
o famoso Mapa-Múndi Estrelado;
um homem com os braços abertos;
a mão espalmada de Oãm, deus da vidência.
"Aquele para quem a mão é diurna, noturnos são os astros. A
mão reflete o homem, e o homem, a Criação", proclama Eudóxio de
Antioquia.8
Não cito por acaso o nome de Eudóxio, em quem vêem muitos
o mestre não confessado de Artemidoro, ancestral tratadista da
quiromancia. Orientado pela coincidência entre os nomes dos três
principais coadjuvantes masculinos do romance − Belo Papagaio
(Pretty Parrot), Rônfilo, Nicolau Pompeu − e os nomes de
quiromantes insignes, tendo a acreditar que essa arte, ou ciência, ou
impostura, orienta a construção da obra, dividida (arbitrariamente?)
em cinco longos capítulos, evocando assim o número dos dedos.

9 de outubro

"'Os maiores problemas desta organização', afirma o sr.


Reinhold Stephanes, se resumiriam em um, praticamente: falta ao

8. O úmido e o seco na tradição velada. Trad. de J. R. Viana. Porto, 1931, p. 112.


Eudóxio, certamente, quer referir-se, quando usa a expressão "astros noturnos", à
circunstância de que estes são mais visíveis à noite. A edição, ricamente ilustrada,
apresenta, dentre muitas curiosidades, a pretensa mão de Ulisses e a "leitura" do seu
destino.

39
Instituto Nacional de Previdência Social uma política de
previdência e de assistência social."' (Entrevista ao Jornal da Tarde,
São Paulo, 3∕10∕1974.)

10 de outubro

Calma e proclamando aos "ouvintes" a sua cura total, mas


com um sintomático rosário no pescoço, Maria de França consegue
novo emprego de doméstica. Espanador-da-Lua, instruído pelo
arcebispo e guia Alberto Magno, comprou uma velha cadeira de
dentista e faz extrações sem nada cobrar. O incansável Nicolau
Pompeu, que não deu trégua à gente do Palácio da Justiça,
suportando todas as prorrogações e indo lá quase diariamente,
obtém que a curatela fique pronta para a respectiva assinatura.
Vai a mãe com ele e Maria de França, como se fossem para
um casamento, assina como pode, retira o processo, leva-o, com o
centroavante e a filha, para a rua do Riachuelo, de onde são
enviados para o setor atrás do Grande Hotel, de onde novamente
voltam à rua do Riachuelo, de onde seguem ainda para o Grande
Hotel. Aí, um chefe de seção estranha que se pleiteasse, "para essa
inocente", a curatela: não acredita que venham a conceder-lhe
benefício algum. Dá por escrito uma série de instruções (não
funciona o telefone) "aos bundas-sujas da Riachuelo". Nicolau
Pompeu serve de mensageiro.
Mas está prestes a ser atropelado. Marginais assaltam o
armazém entregue à sua vigilância, e ele passa a noite na polícia,
depondo. Pela manhã, não consegue dormir, e enerva-o ainda mais
saber que o Torre vai jogar de tarde. Toma antes do jogo um elixir
que o mago Espanador-da-Lua lhe oferece, corre sem parar os dois
tempos e, no último minuto, num lance individual,

40
dá a vitória ao Torre sobre o Santa Cruz, até aquele domingo no alto
da tabela. Suspeito de entrar em campo dopado, chamado
novamente à polícia, aparece uns dois dias na crônica esportiva,
centro desse escândalo breve e tão medíocre quanto a sua vida. O
dono do armazém, já insatisfeito com o ambíguo desempenho do
vigia no assalto (não se sabe se resistiu ou fugiu), despede-o.
À falta de outra coisa, Dudu aceita o lugar de cobrador de
ônibus, ganhando menos; para economizar e poder alimentar-se,
dorme na garagem, dentro dos carros; e então lhe aparecem dores
agudas nas costas. O motorista de um dos carros é Belo Papagaio.

11 de outubro

E Maria de França? Suas mãos, não muito versáteis, tornam-se


pesadas, ela quebra torneiras, vassouras, cabos de panelas, portas:
vai para a rua.
Quanto ao seu processo, depois de novos trâmites, expiações e
cerimônias legais, volta à Riachuelo, gravado com um misterioso
adendo: o caso é de histeria. Nicolau Pompeu quer saber quem
subscreve o diagnóstico; mas a assinatura é ilegível; e variada,
aleatória, não reconstituível a peregrinação dos papéis nos desvãos
oficiais. Recebe, entretanto, uma informação importante: o velho
almoxarife, depois de lhe impingir um folheto com os seus versos,
deixa escapar que, em todos os pedidos de pensão por doença
mental, alguém declara tratar-se de histeria, para dificultar ou até
impedir a atribuição do benefício. Dá, em segredo, o nome do
médico a quem Maria de França deve procurar, historiar o processo,
solicitar revisão.
Nicolau Pompeu, preso o dia quase todo na borboleta do
ônibus, dispõe agora de pouco tempo livre. Mesmo assim, arma-se
de decisão e investe, confiante, para nova tentativa, a última.
41
Certamente de coração apertado, pois a sua noiva, a essa altura, só
quer viver no quintal, tentando, entre acessos de raiva, mover o
corpo antes da sombra. O novo médico examina-a e entrega o laudo
ao Instituto, com o pedido, categórico, de incapacidade definitiva.
Autoriza-se, então, com base nesse termo, a pensão que tudo fazia
supor inviável.
Nessa mesma noite, reaparece o "espírito de luz" Antônio
Áureo. Grita a Maria de França que não creia em nada, nada espere,
nada, não faça acordo com nenhum filho-da-puta e que, achando o
estopim do mundo, não hesite um segundo: toque fogo. Ela começa
a passar a mão no olho direito "para tirar uma lama". Sente-se, além
disso, insegura, acreditando que o peixe, cada vez maior, está a
ponto de romper do chão.
Súbito, há nesse combate uma interrupção quase festiva, com
falsas tensões subjacentes e que voltarei a comentar: Nicolau
Pompeu, admirador recente de Belo Papagaio, aceita o seu convite
para tomar um chope e leva Maria de França. O encontro decorre
sem que a heroína (a seu cargo, recordemos, a emissão da
narrativa) ou seu deflorador demonstrem a mínima lembrança do
que se passou. Volta Maria de França para casa em companhia do
noivo. Estoura um bate-boca grosso. A mãe, a quem os irmãos,
sempre vagamente referidos e à margem dos seus problemas,
acabam de informar que ela desde muito deixou "o cabaço nas
moitas" − a loucura de Maria não a preocupa, e talvez se alegre com
a sua enfermidade, que pode converter-se em fonte de renda −,
excede-se a mãe em lamúrias e·condenações, renega-a, expulsa-a de
casa.

Furada! Vergonha da família. Furada? Eu? Sou flauta? Calça de


esfarrapado? Caixa de violão? Furada como e onde, quero que me
digam, e que família mancho e que mancha eu fiz, eu, cadela de
becos sem saída.

42
O noivo, desolado com o que chama "traição desleal", desiste
do casamento; em seguida, aplaca a ira da velha, e reconcilia mãe e
filha.
12 de outubro

Tardia e desconexa, vem me inquietar um a pergunta sobre o


modo como, durante o mês de setembro, nos dias de cegueira, vi-me
dentro do romance, movendo-me nele. Significaria isto o desespero
de não ver, aí, traços meus? A ausência não deixa de ser inquietante
para quem tanto amou a romancista (e ama-a ainda, na medida em
que amamos os mortos), e eu quase poderia indagar: "Como saber
se existi − se, ao menos, existi para ela −, quando, no seu livro, em
nada me reconheço?"

13 de outubro

O combativo Dudu − por quem, mesmo através do meu pálido


resumo, é possível que alguém venha a afeiçoar-se − está prestes a
sair de campo. A radiografia periódica a que o Torre submete os
jogadores acusa no seu centroavante uma lesão pu1monar.
Matriculado no Dispensário de Tuberculose, segue para Pedra de
Buíque, onde ficará algum tempo. Antes de ir, chora como se fosse
criança no ombro frágil da amiga e reata o noivado.
O tempo foge sem que ele retorne e sem que o despacho
relativo à pensão de Maria de França efetive-se. Decidem, ela e a
mãe, ir novamente à rua do Riachuelo; espantadas, ouvem que a
curadoria, estabelecida mais de um ano após o período de carência,
isto é, mais de um ano depois de paga a duodécima mensalidade
como segurada, não tem validade para a instituição. Para ser válida,

43
só retroagindo, voltando atrás algum tempo. A solução, "legal e
banal, coisa de alguns meses", é procurar o juiz, pedir a ele que o
faça. Mais uma vez, como um desmesurado pesadelo, volta-se ao
ponto inicial, com a desvantagem de que o impetuoso Dudu agora
está na cerca.
Mesmo assim, conseguem, a duras penas, ver o magistrado.
Seu veredicto: inviável a retroação da curatela. Manda chamar o
filho, advogado novo, expõe o caso. O advogado considera
"dispensável, supérfluo, estéril e inútil" apelar para a Justiça, talvez
leve alguns anos. Confirma o magistrado este cálculo. Instrui o
jovem, e daí resulta uma petição minuciosa, recorrendo da decisão
negativa. Curatela, atestados médicos, registros dos internamentos e
ainda outros papéis que Maria de França ignora seguem para a rua
do Riachuelo, engrossando a petição.

14 de outubro

Volve Nicolau Pompeu ao Dispensário de Tuberculose.


Restabelecia-se com grande rapidez em Pedra de Buíque, pusera-se
a jogar futebol, e o seu estado se agravou, precisando agora de uma
intervenção cirúrgica.
A petição de Maria de França percorre certo número de salas,
merece outros tantos despachos e torna ao mesmo indivíduo que a
recebeu, para que proceda à revisão do caso. O advogado
acompanha a evolução do processo e chega a interpelar o delegado
regional. A autoridade telefona para um funcionário que Maria de
França deve procurar e a quem recomenda, com evidente
ostentação, "uma porra de solução mais rápida". Este funcionário,
bilioso, indolente e de aparência obscura (inspira-se, como veremos
ainda, em certo herói da história do Brasil), adido à dependência da
rua da Praia, limita-se a enviar a infeliz

44
pleiteante a mais um médico. O médico, que já conhece o caso,
manda buscar toda a documentação. Atenderá a pleiteante dentro de
oito dias, com a curadora e o advogado.
Nicolau Pompeu; rouco, o corpo dançando na roupa, aparece
no bairro. Fora colocado no Sanatório Otávio de Freitas, para
submeter-se a uma lobectomia, palavra que repete com alguma
vaidade. A doença, entretanto, evoluiu inesperadamente e afeta
inclusive o pulmão antes sadio. Impossível, confessa, a operação.
Mas não suporta ver gente morrendo e por isso caiu fora e não há
quem o faça regressar. Encontram-no morto um ou dois dias depois,
o dedo no gatilho do revólver. O revólver dos seus tempos de vigia?
No dia marcado, Maria de França, a quem não atinge o
suicídio do noivo, está na rua da Praia, sem companhia. Ninguém
alude à recomendação de que o advogado e a mãe fossem com ela.
O médico estudou o processo e está disposto a conceder despacho
positivo, desde que receba, por escrito, comunicação de serviço
emitida por um funcionário da Riachuelo. Vai Maria de França à
rua do Riachuelo. O funcionário, fazendo Maria de França
portadora, escreve ao médico: resume o caso (quando o destinatário
tem consigo toda a papelada) e emite o seu ponto de vista (quando
esta função compete justamente ao médico). O médico, irritado,
trata a portadora com brutalidade e rascunha novas instruções ao
mesmo petulante escriturário, reiterando o pedido de comunicação
de serviço.
Maria de França, a quem é confiada essa mensagem; em vez
de voltar à rua do Riachuelo e entregá-la (para novamente voltar e
novamente voltar e novamente voltar?), cruza o Recife com o papel
na bolsa, ao acaso, medindo sem indulgência o espaço existente,
infranqueável, entre ela e os que passam. À sua frente vai um
homem, com um volume embrulhado em folhas de jornal. Ela
segue-o a distância. O desconhecido entra numa rua de pouco
trânsito, desfaz o embrulho, retira uma pedra de calçamento,

45
estende a mão direita sobre o meio-fio e esmaga-a, em três golpes.
Vem correndo pela rua, mudo de dor, a mão sangrando. Imóveis,
face a face, olham-se. Maria de França cruza com ele e segue em
direção à pedra jogada no solo.
Assim acaba o manuscrito, o que justifica a hipótese – errônea
− de ter ficado inconcluso. Do peixe subterrâneo, não mais se tem
notícia.

16 de outubro

Como nos engana, em sua pobreza, o resumo -um tanto frio ou


monótono − do enredo! Mais uma vez se constata em que medida o
romance − construção verbal, feixe de alusões, laboratório de
instrumentos, campo de provas de materiais tanto novos como
aparentemente obsoletos −, o romance, digo, fingindo servir às
fábulas que narra, delas se serve para existir, a tal ponto que talvez
se afirme: ele não conta uma história, é a história que o conta.
Não importa, entretanto, que o resumo apresentado − etapa
inicial do meu plano − revele ainda pouco sobre A Rainha .dos
Cárceres da Grécia. Ao contrário, tal deficiência acentua a utilidade
do projeto em curso e que, justamente, visa a demonstrar como o
livro de Julia Marquezim Enone, sob as espécies, digamos, de um
figurativismo banal, oculta soluções incomuns e que afetam, longe
do que pode sugerir o resumo, a visão corrente do real e dos
processos narrativos, conforme haveremos de ver.
Assinalo uma, para que notem como a romancista, sem
ostentar os seus fins, antes escondendo-os, instaura desvios nas
normas. Nicolau Pompeu, o centroavante, orgulha-se do chute com
efeito reverso, utilizado para cobrança de faltas e que imprime
grande rotação à bola, fazendo-a descrever no ar uma parábola

46
acentuada. Creio intencional a insistência nessa habilidade: também
as grandes linhas do enredo (o fenômeno reaparece em unidades
temáticas menores) apresentam soluções de efeito reverso. Seguem
os eventos um rumo que em princípio leva a determina da
conseqüência. Não se contenta porém a romancista em eludir a
expectativa provocada: realiza-a, nunca na altura prevista e sempre
dando a idéia − que, observando de perto, se descobre ser falsa − de
não ter conexão com eventos anteriores. Variante mais astuciosa das
motivações falsas, o processo, como exige a poética de Julia Enone,
evoca as rimas toantes, ou mesmo as rimas internas, silenciosas e
invisíveis para o leitor desatento.
Noto o efeito, sem engano possível, ao menos em três pontos.
Nenhum mal sobrevém às crianças sob a guarda da louca Maria de
França, que "assassina" bonecas de pano com a ponta da tesoura;
mas a menina que ela protege é baleada pela polícia. Belo Papagaio
nada revela quando se encontra com ela e Nicolau Pompeu no bar; a
revelação, contudo, ocorre por outros meios e causa o rompimento
do noivado. Note-se que o encontro dos três personagens e a
divulgação, em casa, da perda da virgindade ocorrem
sucessivamente, de modo que esse acúmulo de eventos afins parece
um tanto pesado, talvez grosseiro. Quis a romancista, assim, evitar a
suposição de que Belo Papagaio, discreto e aparentando não
reconhecer Maria de França, buscasse depois perturbar por vias
indiretas o noivado − aliás tão pouco promissor. A volta do boêmio
e chofer de caminhão, vista de uma perspectiva tradicional, é inútil;
mas permite a Julia Enone exercitar o movimento que inventou.
Nada de surpreendente, portanto, que o mesmo recurso apareça no
término do livro. A rima toante ou efeito reverso, sob novo aspecto,
ordena a cena final. A rigor, é à heroína que, sem um lugar
satisfatório, definido e justo no mundo do trabalho, compete destruir
a mão direita, sua ferramenta básica. A narradora, porém, repudia a
clareza dessa articulação e introduz, para agir a distância, no lugar
da antiga tecelã, um anônimo!

47
20 de outubro

Traz o jornal de anteontem (O Estado de S. Paulo, última


página), amplo noticiário sobre o incêndio de uma casa no Parque
das Américas, em Mauá, causado pelo vazamento de um bujão de
gás. Registro-o aqui porque já foi esquecido (os jornais de hoje e
mesmo de ontem nada mais trazem a respeito) e porque as
condições de moradia das vítimas lembram as de Maria de França,
com os seus muitos irmãos sem rosto e sem nome. A habitação
incendiada compunha-se de um quarto e uma cozinha. Catorze
pessoas moravam nos dois cômodos, sendo doze no quarto:
só em uma cama, na hora da explosão, dormiam seis. O desastre
ocorreu às três da madrugada, e um dos inquilinos, que ainda não
chegara do trabalho, declarou ao repórter: vinham todos do campo,
de Ubá, em Minas Gerais; ganha-se mais em São Paulo, mas sofre-
se "que nem um burro"; ali amontoado com treze viventes, quase
não via ninguém e, assim, mal conhecia os outros moradores.
A notícia acusa outros por menores expressivos, ausentes no
romance de Julia Marquezim Enone, cuja ação decorre há alguns
anos e numa capital menos atingida pelas quimeras da civilização
industrial: no alojamento, havia geladeira, rádio-vitrola portátil,
televisão e até projetor de diapositivos; num anônimo teatro do
Brás, "iniciando-se na carreira artística'', ensaiavam, todas as noites,
Lúcia e Maria do Carmo, mortas no incêndio.
Vem à tona, por um acidente, a camada que − como os
esgotos − se procura ocultar e que, talvez menos enfaticamente,
aparece em A Rainha dos Cárceres da Grécia
.

48
21 de outubro

Como se altera, a uma suspeita ou indício novo, nossa visão


das coisas e mesmo a intensidade do que vemos! Folheando os
papéis deixados por Julia, mais de uma vez tive entre as mãos uma
cópia fotostática a que não concedi atenção e cujo original
desconheço. Agora, observo esse papel, valorizado pela hipótese a
que já me referi. Sobre a mão espalmada que reproduz, enxameiam
símbolos herméticos: castelos, minaretes, luas, um cavalo, a flor-de-
lis, a roda denteada, espirais e outros seres da geometria. Isto eu
sempre vi. Não me apercebera, até hoje, dos traços a lápis vermelho,
limitando, nas bases dos dedos, as proeminências consagradas a
Mercúrio, Sol, Saturno, Júpiter e Vênus. As linhas rubras, antes
invisíveis, tornaram-se brilhantes aos meus olhos e denunciam o
interesse de J. M. E. pela quiromancia.

22 de outubro

Aprofundo-me em textos pouco familiares. Consultado,


principalmente, o manual de J. O. von Hellwig, Die Hand,
Zusammenfassung der Welt (A mão, resumo do mundo).9 Atrai-me
esse Hellwig, que se interessava também por alquimia, tendo pelo
menos dois livros sobre a matéria: Hermaphroditisches Sonn und
Mondskind, Mogúncia, 1752; e Arcana Maiora, Frankfurt, 1712.
9. Hamburgo, Patrick Verlag, 1953. A edição original, que é de 1740, foi impressa em
Mogúncia.

49
A antologia da Azteca, México, Los profetas de las manos, que
reúne textos de Patrício Tricasse, Gaspar Peucer, Rodolfo
Goglenius, do capitão d'Arpentigni, ele Desbarolles e ele vários
outros cujo nome eu ainda não ouvira, prestigiará o meu ensaio com
um vistoso simulacro de erudição, ornato indispensável ao gênero.
Epígrafe da antologia: "Ele [Deus] põe um selo sobre a mão
ele todos os homens, para que cada um conheça as suas obras",
Livro de Jó (37, 7). Sempre imaginei que a outra citação do mesmo
texto com que Julia Marquezim Enone anuncia a sua história −
"Quem dera que se cumprisse a minha petição, e que Deus me
concedesse o que espero!" (6, 8) − se reportasse aos trabalhos de
Maria de França, reflexo dos transes de Jó. Mas talvez ande aí uma
intenção menos óbvia, pois, alerta do pelo versículo da antologia,
volto ao patriarca de Hus e noto que também no escrito bíblico
surge o motivo das mãos, com uma insistência que nada pode ter de
casual.

23 de outubro

Vejo, num filme documentário, desenhos escavados em certa


planície do Peru, desértica − uma aranha, um pássaro, um pavão −,
de tais proporções que só de boa altura, em vôo, os identificamos.
Pode o homem andar a vida inteira por cima desses sulcos, sem
jamais supor que integram uma figura harmoniosa, traçada com
sabedoria. Desejariam, os que conceberam e imprimiram no solo
pedregoso tão perturbadoras imagens − e que, sem asas, nunca
puderarn vê-las −, significar que a ausência de sentido, nas obras de
arte ou na vida, pode ser enganosa e advir das nossas limitações?

50
24 de outubro

Concluída nova releitura, dissipou-se toda dúvida: A Rainha


dos Cárceres da Grécia remete-nos constantemente a princípios
correntes na quiromancia, cada um dos seus cinco capítulos
correspondendo a um dos cinco dedos e ao que neles vê a arte do
quase mítico Artemidoro.10
O que dificulta, a princípio, a identificação, é que os capítulos
não seguem a ordem dos dedos. Isto não surpreende. Saberá o leitor
que cada uma das falanges pertence a um signo zodiacal? As do
indicador, ao primeiro quadrante (o polegar não tem valor
astrológico); as do médio, ao quadrante final; as do anular, ao
segundo; as do mínimo, finalmente, ao terceiro. Como o romance,
portanto, também a quiromancia, ao relacionar mãos e estrelas,
altera a ordem dos dedos.
Pode-se indagar, decerto, se o caráter muito especial do
terreno sobre o qual assenta a estrutura da obra não sonega aos
leigos o alcance da analogia − que só por acaso e, depois, com
esforço, apreendi − e, portanto, as sugestões decorrentes dessa
analogia. A resposta será afirmativa e indica-nos, a partir do traçado
inicial da obra, a lei fundamental da arte da escritora, arte a que se
pode atribuir, no mais alto e fino sentido do termo, o título de
hermética, não por ser impenetrável, mas por ser uma arte que se
oculta. A Rainha dos Cárceres da Grécia − eis uma virtude sua −,

10. Caso estranho, o desse homem, anterior ao Artemidoro do Tratado dos sonhos, que
viveu no séc II d.C., sob o reinado de Antonino, o Pio. Há quem confunda os dois,
contra o que nos adverte, não sem motivo, Fred Gettings (Le livre de la main, texto
francês de Madeleine Othenin-Girard. Paris, Ed. des Deux Coqs d'Or, 1969, p. 162). A
crer na tradição, o primeiro Artemidoro, analfabeto, sabia o que contêm os textos:
leitura semelhante à dos magos que, ante o rosto de um homem, apreendem a sua
intimidade. As linhas das escritas, dizia-se, são para ele transparentes como as linhas da
mão. Do seu famoso livro, escrito "no ar", não existe o mínimo vestígio real.

51
assemelha-se bem a esses gestos rituais estudados pelos
antropólogos, que para o adventício têm um sentido banal e
guardam outro, mais largo, para os naturais.
25 de outubro

O capítulo I evoca o dedo médio, o que o dedo médio significa


para os quiromantes. A escolha parece lógica, quando lemos que o
médio implanta-se no monte de Saturno, planeta anunciador de
obstáculos. Maria de França, representante das migrações agrárias
na periferia urbana − setor particularmente desfavorecido da
população brasileira −, integra-se, apesar de pobre, na condição de
vítima, a partir do encontro com Belo Papagaio, no capítulo II.
Tudo, até aí, são profecias, expressas através de alucinações
auditivas e de Antônio Áureo, "espírito de luz". As trinta páginas
datilografadas não se reduzem a isto, muitos os registros de teor
quase naturalista aí disseminados, mas, em linhas gerais, pode-se
identificar esse capítulo como o que anuncia a vida ingrata da
heroína. Antônio Áureo e a voz, bem entendido, materializam a
profecia. Mas o capítulo todo, pode-se dizer, é um anunciador
implícito de fortuna adversa.
O polegar cortado de Belo Papagaio, personagem que oçupa e
justifica o capítulo II, facilita a identificação, confirmada aliás por
motivos acessórios. Consagrado a Vênus, o polegar liga-se ao amor,
à carne e à sinuosidade. O resumo do capítulo é esclarecedor: o
ambiente em que decorre, as prostitutas, as narrativas de Belo
Papagaio e o seu breve caso com Maria de França enquadram-se
nesse campo temático.11 Não devemos esquecer que

11. "Em quiromancia, o monte de Vênus, a proeminência da base do polegar que é


contornada pela linha da vida, representa a nossa inclinação para o amor e amizade e
nosso apreço pela beleza." (Jo Sheridan, op. cit., p. 160.)

52
esconder o polegar, hábito que o chofer de caminhão transmite à
ingênua servente do bordel, significa uma tendência à regressão.
Manipula a romancista um universo instrumental fechado, havendo-
se apenas com o que Claude Lévi-Strauss chama de meios limites,
"um conjunto, continuamente restrito, de utensílios e de
materiais".12 Mas temos de admitir que exerce o bricolage com
grande paciência e desenvolvido senso de ordenação.

26 de outubro

"Santo Afonso Henriques! Fazei de mim uma escritora. Mas


só isto. Nada de festivais, de juris em concursos (de beleza ou
literários), de cargos em repartições chamadas culturais, de capelas,
de frases de espírito. Livrai-me do fascínio que tantos dos nossos
autores, hoje, têm pelo convívio com os ricos, pela adoção
obrigatória de livros seus na área estudantil, pelas viagens com
passagem e hotel pagos. Fazei-me orgulhosa da minha condição de
pária e severa no meu obscuro trabalho de escrever." (Dos papéis de
J. M. E.)

27 de outubro

Salamandra. Escolopendra. Urodelo. Sapo-do-surinã. Peixe-


de-vidro. Qual a diferença entre os parasitas verdadeiros e os
parasitas do espaço ou epífítas? Que entende por mutação? Penso,
neste domingo indeciso, alternadamente sombrio e ensolarado,
enquanto organizo temas de provas e ordeno meus papéis, que
talvez haja um certo fundo irônico na dívida de Julia Enone para

12. O pensamento selvagem. Trad. de Maria Celeste da Costa e Souza e Almir de


Oliveira Aguiar. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1970, pp. 38 e ss.

53
com esse campo do conhecimento (ou sonho) humano: projetar no
seu livro alguns princípios básicos da leitura das mãos pode ser uma
paródia de certas estruturas caprichosas, familiares ao romance do
século xx, embora com inumeráveis precedentes na poesia medieval
− onde a composição numérica, por exemplo, raia o maneirismo − e
bem mais longe, no Velho Testamento. Para E. R. Curtius, o poeta,
com esse proceder, "atingia um duplo fim: esqueleto formal para a
construção e profundidade simbólica".13A alusão numeral lançava
cordas para as margens do mistério e expressava, ao menos em seus
exemplos mais nobres, reverência em face do mundo. O poema
ligava-se a algo que o ultrapassava mediante os números a que
obedecia e de que, por isso, era o portador: trazia-os em si.
Contemplador incrédulo que sou das práticas e especulações
alquímicas, das inquirições sobre o zodíaco e dos que lêem nas
mãos a ilegível carta da vida, nem assim é menor o meu apreço por
esse lado da averiguação e busca humana. Também em nós, através
dessas sondagens, instauramos números e astros, embebemos de
eternidade a nossa passagem tão breve. O projeto de Julia
Marquezim Enone, ainda que se admita ser irônico, carreia para a
obra, no seu artifício, esse componente ampliador e mágico.

28 de outubro

Os densos objetos do poeta, fabricante de sínteses, atraem −


hoje, mais do que nunca − inteligências analíticas. Armamo-nos de
instrumentos separadores, para deslindar o que é emaranhado.

13. Literatura medieval e Idade Média latina. Trad. de Teodoro Cabral, com a
colaboração de Paulo Rónai . Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro,1959, p. 548.

54
Penso: o texto, uma vez decomposto (no sentido químico),
decifrado − e se a decomposição integral seria viável e provável,
como ambicionar à total decifração? −, de certa maneira se evola.
Mesmo pensando assim, sou homem do meu tempo e, como um
nadador a quem puxa a corrente, vou sendo levado, neste meu
comentário, a separar, isolar , classificar o que no romance é uno.
Neste ponto, penso em algo inviável: uma obra que se apresentasse
desdobrada, construída em camadas e que fingisse ser a sua própria
análise. Por exemplo: como se não houvesse Julia Marquezim
Enone e A Rainha dos Cárceres da Grécia, como se o presente
escrito é que fosse o romance desse nome e eu próprio tivesse
existência fictícia.
Tal obra, se possível, qual o seu destino? Condenariam ou
absolveriam o criador que ousara aventurar-se, nu, em domínio
alheio? Mas fujo do meu traçado. O que pretendia era só acautelar-
me, sufocar um pouco em mim o demônio das separações, antes de
comentar a parte do romance onde surge o incrível Espanador-da-
Lua.

29 de outubro

Assim como a amputação do polegar, à luz da quiromancia,


assinala a influência de Vênus no complexo temático apoiado em
Belo Papagaio, a unha crescida do auricular, espantalho dos maus
espíritos e neutralizador das influências ruinosas, é o signo das
conotações simbólicas centradas na figura de Rônfilo, seu portador
ou centro de irradiação.
Essas conotações, mais eu tento desvendá-las e mais depressa
me fogem. Ocupo-me, então, de R. R., certo de que omitirei,
comentando-o, o essencial. Fundador e patrono de uma escola,
move-se na órbita da palavra escrita. Soubesse ler, e a ligação fora
menos relevante. Analfabeto, o seu amor à leitura adquire sugestiva
55
ambigüidade: ele divulga o que desconhece, ato evocador do
fenômeno poético, fruto da tensão entre saber e não saber. O motivo
enreda-se ainda em intuições dispersas entre os homens e cuja
fineza não impede que surjam mesmo em culturas chamadas
primitivas. Entre os Bambara, estudados por Dominique Zahan,
constituem as palavras, simplesmente, emanações da Sabedoria,
vivida na língua que as articula. Daí a extrema importância atribuída
a esse órgão: para além das palavras, acham eles, está o
Conhecimento.14 Afirma-se, também, que grandes líderes religiosos,
um deles Maomé, foram homens sem letras, e que esse traço −
verídico ou falso −-não significa ignorância, sendo mesmo
interpretado como o reverso da ignorância: "expressa a percepção
imediata (a intuição) das realidades sobrenaturais, a liberação das.
servidões inerentes à letra e à forma".15 Entre povos antigos, como
os celtas, determinadas tradições deviam propagar-se mediante
transmissão oral. A escrita, sendo imutável, representaria a morte.
Realçam a figura do iletrado Rônfilo as incursões no mundo
invisível. Desnecessário insistir nos seus pós, nos seus amuletos e,
principalmente, na proteção que lhe concede, alheio à indiferença de
classes e à falta de instrução do protegido, Alberto Magno de
Titivila. O nome, coisa notável, reafirma a ligação de Rônfilo
Rivaldo com a palavra. Inquisidor e mártir, os atributos do
imaginário prelado são pistas falsas. Titivillus, alcunha familiar
entre os monges da alta Idade Média, era o demônio da transcrição
infiel: ocioso, instalava-se nas scriptoria, induzindo

14 Textualmente : "c'est la Connaissance qui constitue la fortune de la langue ".


(Dominique Zaham, Sociétés d'iniciation Bambara, apud Dictionnaire des symboles.
Paris, Seghers e Ed. Júpiter, 1974, vol. III, p. 118.)
15. Tufik Didrom, La naissance du monde selon l'lslam. Paris, Orient, 1953, p.312.

56
a erro. os copistas. Não só isto: o seu homônimo são Alberto
Magno, mestre de santo Tomás de Aquino, na linha de um
procedimento mágico originado no Egito ou mesmo antes, haveria
construído um autômato com forma humana, um andróide, do qual
obtinha respostas sábias.16
O inquietante jogo de contrastes existente em Rônfilo, ainda
que intencional, nada tem de arbitrário. Funda-se na tradição de
ambivalência que impregna o auricular, posto sob o influxo de
Mercúrio e chamado, pelos quiromantes, "O Sábio", ao mesmo
tempo que se reconhece o seu poder de conjurar influências
negativas. Pelos dons e poderes, Tot, o deus egípcio com cabeça de
íbis, que, com a mesma intrigante ambivalência, patrocinava os
mágicos e a palavra criadora (atuava ainda, associação
surpreendente, sobre os arquivistas e os astrônomos), correspondia,
no entender dos gregos, a Hermes. Esse avatar de Mercúrio criará o
mundo com o poder da palavra. Quatro deuses e quatro deusas
haveria também gerado a voz de Tot. Cantam e nunca silenciam,
mantendo o curso do Sol com a sua canção interminável.
Dependem, a luz e a vida, da voz desses cantores. Não deixa de ser
interessante, aliás, que atributos tão sugestivos e de tanta
importância impregnem exatamente o mais frágil dos dedos e talvez
o menos útil do ponto de vista prático ("o dedo ocioso", chamava-o
Goglenius), o qual assume, graças a tal consagração,

16. Há , por sinal, outros exemplos desse fenômeno, que hoje nos espanta, entre grandes
figuras da lgreija. Consta que Paulo III, o papa responsável pelo Concílio de 'I'rento, era
adepto exaltado da astrologia , chegando a retardar a assinatura de um tratado com o rei
de França, até que evoluíssern as estrelas para uma concordância simpática entre o seu
horóscopo e o do monarca. Também não podemos esquecer as páginas do padre
Antônio Vieira sobre os cometas, para ele anunciadores de "intemperanças do ar,
ventos, tempestades, naufrágios, secas, esterilidades, fomes, terremotos, pestes e todas
as outras calamidades mais que ordinárias, a que está exposta a nossa mortalidade".
(Obras escolhidas. Lisboa, Sá da Costa, vol. VII, p. 10.)

57
um valor que contraria a sua fragilidade. O nexo entre o. auricular e
a mente talvez procure sugerir a delicadeza do espírito em oposição
às atividades práticas. Não estaremos, em todo caso, longe da
verdade, se virmos no contraste um símbolo da vida mental,
delicada e, ao mesmo tempo, dotada de forças imprevisíveis.
O relevo destas observações é acentuado pela situação do
capítulo, o terceiro dos cinco que, acumulando aventuras nada
espetaculares, compõem a obra: na plataforma do romance, o
elemento evocador do conhecimento e da linguagem constitui uma
espécie de centro, de eixo ou de cume. Que expressaria essa
disposição privilegiada, mais significativa em texto governado pelo
número cinco, centro dos nove algarismos? A atitude de Julia
Marquezim Enone em face da palavra? Certa concepção do texto
literário, ligando-o aos exorcismos, à incongruência, às vozes
invisíveis, talvez − quem sabe − aos astros e aos arquivos? Faltam-
me condições para arriscar uma interpretação. Não será esta, na
Terra, minha única perplexidade.

30 de outubro

Correções de provas escritas, trabalho vagaroso − ardem-me


os olhos −, ocuparam-me o dia. Para não deixar sem acréscimo o
livro e porque o assunto, a meu ver, integra o mundo de Maria de
França, resumo a matéria hoje estampada no Diário Popular.
Noventa e três menores, escoltados por treze homens da lei −alguns
destes com capuzes ocultando o rosto −, foram conduzidos num
ônibus para o município mineiro de Camanducaia e abandonados no
mato, nus, às três da madrugada (chovia), debaixo de pau e de canos
de ferro. Nivelados pelo singular tratamento, as acusações que
58
pesam sobre os jovens delinqüentes, entre os quais um epiléptico,
são entretanto muito variadas, indo da cumplicidade no roubo de
automóveis à venda de biscoitos, sem licença, no Parque D. Pedro
II.

31 de outubro

Seria Rônfilo Rivaldo, para a sua criadora, mais claro do que


para mim? Não afirmaria que sim e nem ser isto indispensável.
Errôneo atribuir ao poeta as mesmas leis que comandam o
pensamento abstrato. Está em Lautréamont: "Uma idéia existe para
a poesia. Não é a mesma da filosofia".17

2 de novembro

O Dia de Finados destina-se talvez a recordar os mortos desde


muito esquecidos. Outro é o caso de Julia. Mesmo assim, tomei o
ônibus, fui ao cemitério, levei algumas flores ao seu túmulo. Por
mim, teria apenas gravado o nome que sabemos e estas datas:
6/1/1940-27/3/1973. Os irmãos, pródigos, acrescentaram uma frase
desgastada, de que ela sorriria e que resisto a transcrever. Mesmo
banal, a frase talvez seja demasiada para expressar as relações entre
a morta e eles. Também não creio que sentissem tanto como está
escrito: minha amiga desde muito reduzira ao mínimo os contatos
com a família, que não a aceitava como era, a ponto de... Não.
Mudemos de rumo.
Há ainda no túmulo a ampliação − oval e em sépia − de uma
fotografia. À falta de retrato mais recente ou em obediência ao
obscuro desejo de negar, por este modo, a adulta, oferecendo aos

59
eventuais contempladores do pequeno monumento uma imagem de

17. lsidore Ducasse, Oeuvres complètes. Paris, Le Livre de Poche, 1963, p. 376.
inocência, o rosto que ali se tem de Julia, emoldurado num véu
claro e fluido, é o da sua primeira comunhão. Erraram os
falsificadores se realmente os moveu o propósito inconfesso de
absolvê-la da lucidez. O rosto, embora prenuncie o que·tive entre as
mãos e guardo na memória, é de criança − e a cabeleira negra
descendo pelos ombros, como sempre usou, acentua o que há nele
de infantil. Os olhos, porém, por baixo da fronte ainda intocada e do
véu, escrutam, luminosos, a lente da máquina, varam o breve
minuto do retrato e parecem alcançar visões remotas, do outro lado
do seu tempo. Prematuro, vela nessa manhã da sua infância o
mesmo olhar audaz que possuía ao morrer.

3 de novembro

Nicolau Pompeu, o apagado centroavante do Torre, ilustra um


aspecto pouco divulgado do futebol brasileiro: o do jogador sem
futuro, que se exaure nos gramados ante as gerais sempre vazias,
bastardo de um mundo tão desigual quanto o de fora dos estádios,
com o sobrepeso de que a glória ali é ruidosa, e sem limite o
desdém dos campeões, sua indiferença ante os companheiros sem
relevo.
Ao lado do valor documental ou social, adquire o personagem,
modesto, outra amplitude − projetado sobre o cenário do mundo, e
não apenas sobre o fundo de uma cidade nordestina − devido ao
nexo imposto entre o capítulo onde surge e o anular, dedo
consagrado ao Sol. Motivos de escassa importância lembram essa
relação, refletida, por exemplo, na aliança de noivado, onde se
conjugam o círculo e o ouro, metal solar. Mas o tema principal
sugerido pelo Sol é o da união entre os homens, que

60
a abertura do capítulo, a ampla seqüência do Carnaval, a mais
unificadora das festas brasileiras, anuncia . Notemos ainda a
mudança de atitude de Maria de França, que, sob o influxo desse
amor tão sem perspectivas quanto a carreira esportiva do noivo,
conhece uma trégua na sua drástica ruptura com o meio. A união
não é estática e manifesta-se na tentativa de ajudar a menina,
expressão de uma confiança que a extensa cadeia de malogros a
inda não dissolveu e que a irrupção da brutalidade policial irá delir,
encerrando o período solar do romance.

4 de novembro

Os policiais ouvidos sobre os menores dispersados à noite, em


Camanducaia, declararam que, devido a uma avaria no ônibus-
presídio, os noventa e três detidos provocaram tumulto, despiram-se
(será mais cômodo escapar sem roupa ?) e fugiram. Proclamam
ainda os agentes da lei terem agido na "mais pura das intenções
afim de resolver problema sem solução" e que os "melhores
propósitos de bem servir à coletividade" os inspiraram. Na
sindicância instaurada pela Secretaria da Segurança, surge como
único culpado o escrivã o J. A. P., suspenso por trinta dias.(O
Estado de S. Paulo, 1º/11/1974)

5 de novembro

Denúncia, acusação e expulsão, atos liga dos ao indicador,


dedo de Júpiter, dominam o capítulo V. Denuncia-se o defloramento
de Maria de França, Dudu é acusado de cumplicidade com

61
assaltantes, de doping, perde o emprego, sua noiva é expulsa de
casa pela mãe, e ele, tuberculoso (os pu1mões, com as artérias e o
tato, incluem-se na área de influência de Júpiter), sai do Torre, sai
da cidade e perde o convívio com os sãos, matando-se afinal com
um tiro (o indicador, dedo do gatilho).
Conjugam-se, ainda, na última cena do livro, denúncia,
acusação e expulsão quando o anônimo, projeção de Maria de
França, esmaga a mão direita. Destruindo a própria mão, o homem
exclui-se, elimina-se do universo útil, produtivo e ao qual não quer
mais pertencer. O gesto denuncia, numa espécie de síntese, a
insensibilidade das classes dominantes, expressa no embate de
Maria de França com a Previdência Social, que o livro desenvolve.
Enquanto a mão direita, no consenso geral, envolve a idéia de
utilidade no trabalho e na tradição cristã a de misericórdia, a
esquerda − também chamada mão do rigor − simboliza a justiça. A
acusação, pois, expressa-se através de um agente investido do poder
de julgar, a mão esquerda, como que adquire ainda maior
intensidade. Podemos aduzir que, na mão direita esmagada, a
complacência também morre. O movimento final de Maria de
França em direção à pedra, instrumento da execução, não é fortuito:
ela assimila o gesto do personagem sem nome, resposta individual a
uma estrutura que ignora simultaneamente a justiça e a
misericórdia.

6 de novembro

Quem, lendo este ensaio, leia também o romance e


superponha ao complexo de eventos que formam o livro de Julia
Marquezim Enone o esquema aqui exposto ficará talvez
decepcionado e pode ser que recuse minha interpretação: as
fórmulas da quiromancia, integradas à planta do relato, quase se
diluem na massa de incidentes. (Deve-se ainda notar que o resumo
62
apresentado neste ensaio (?) deixa de lado as numerosas e vivas
descrições do romance). É que o encadeamento, aí, das várias
unidades de ação, não procura ilustrar princípios quiromânticos, e
sim amoldar-se a alguns deles. Convoca o livro um setor das artes
divinatórias nobilitado pela anciania, não se podendo dizer que isto
o empobreça. Mas também não o avaliaremos em suas justas
proporções se nele virmos só o lado esotérico. A Rainha dos
Cárceres, como todo romance de certa envergadura, é um objeto
heterogêneo. Formam-no, em variada medida, ressonâncias
mitológicas, inquietação metafísica, estudo social, clamor
reivindicatório, aversão às instituições, tentativa de análise da
psicologia dos pobres (abrangendo os seu sonhos, os seus mitos e os
seus núcleos de informações), tudo enlaçado com problemas
formais de grande atualidade.

7 de novembro

Semanas antes de concluir o livro, iniciado em novembro de


1969 (ela trabalharia ainda oito meses inteiros sobre a redação
original, alterando-a bastante),18 recebeu Julia Marquezim Enone,
com a data de 11/1/1972, carta na qual um editor lhe dizia ser inútil
enviar-lhe o manuscrito. A situação do mercado, pouco sensível a
obras nacionais, impunha-lhe certas exigências, "dado que uma
editora visa precipuamente à obtenção de lucros". Outro lhe
devolveu o texto definitivo: alegava não estar examinando originais.
Esta carta se perdeu. Pode ser que a escritora a atirasse na cesta.
Cerca de dois meses após a sua morte, dirigi-ne a um terceiro. A seu
ver, respondeu-me, a obra ficara inconclusa, motivo pelo qual
achava não se justificar a edição.

18. "[. . . ]mas o termo de uma obra é tão longe para os que vêem longe!" A frase é de

63
Goethe, e li-a na Reader’s Digest, que, ciosa de justiça e de variação, citava o autor de
Poesia e verdade ao lado de Harry Truman.

O ineditismo do romance, que receio venha a perdurar, tem


hoje outras causas. Toda a herança de Julia é esse livro. Mas, com
uma biografia retorcida e cujos efeitos nunca procurou corrigir,
desatenta aos estatutos que comandam a nossa vida ordinária,
ensejou com a sua morte uma pendência absurda, envolvendo
pessoas que sob nenhum ângulo podem avaliar o manuscrito − para
elas um legado incômodo − e não consentem em divulgá-lo, por
temor ou talvez por brio de família: tudo, menos essa humilhação.
Apenas tendo vivido em companhia da autora e sem qualquer
direito legal sobre o espólio (perdi, inclusive, a custódia dos
originais, dos quais acompanhei a formação), cedi em parte às
circunstâncias, fazendo o que estava em minha alçada para que o
seu trabalho não continuasse inteiramente ignorado.

8 de novembro

Resumida a história e comprovadas, suponho, certas capciosas


intenções no plano geral do livro, vejo-me de súbito frente a uma
questão que certamente rondava, difusa, este diário e que não posso
mais descartar: "Qual, no livro que estudo, o tema central e qual a
sua importância?".
O problema, atento a um caso particular, refere-se na verdade
à arte da ficção em geral, e talvez eu não encontre nunca, para ele,
uma resposta plena. Mas não se esconde, quem sabe?, nas
afirmativas, ainda nas mais firmes, um resíduo de interrogação?
Não serão as perguntas a única forma de saber realmente
concedida? Que dizem?
Não contestaria ser a obra literária uma articulação verbal,
efetuada em torno de um pretexto: o tema ou temas. O léxico e a
64
ordenação desse arsenal, os desvios de sentido, os ritmos, aí está a
sua essência, admitindo-se ainda mas com prestígio menor e, creio,
declinante −, em campo tão seleto, a arte de dispor os eventos, de
sugerir o tempo ou de jogar com planos cronológicos, de regular o
crescendo etc. Daí toda uma família do romance ciosa da pesquisa
formal, desdenhosa em relação às idéias e às fábulas. Outra,
estamos vendo, a concepção de Julia Marquezim Enone. (Toda obra
de arte configura a sua própria teoria.) Apesar de tudo, subsiste a
indagação que hoje afronto. O mundo, mais do que nunca, estende-
nos laços e redes. Sei disso, sei disso e vivo em guarda. Eis por que,
suspicaz, não muito refinado, pergunto se o conceito de obra
literária simplesmente evolui, depura-se, ou se acaso penetra-o,
insinuante, algum sopro emanado do poder. Tocamos aí talvez
numa zona cambiante, onde os matizes e as reverberações também
pesam .
Aparece no romance de Julia M. Enone o sistema
previdenciário, quando os jornais estão cheios de cartas e mesmo
reportagens apontando os erros desse órgão. Compõe Graciliano
Ramos um romance sobre os flagelados das secas. Por quê? O
assunto é tão antigo e divulgado! O modo como se escreveu, a
construção artística, eis a razão da obra literária e a sua identidade.
Isso é tudo? Não creio. Quando o narrador, no variado mundo, elege
os seus temas, define uma atitude, e não só em relação à vida:
também diante da literatura. Diz, com a sua opção, até que ponto,
comprometido com a nomeação das coisas, é também
comprometido com as coisas nomeadas e qual o gênero desse
compromisso. Os que fogem da seca (o artista não abrange todas as
significações do que cria) são, à revelia dele, o homem evitando o
inferno ou o destino, lutando por compreender, tudo isto − e muito
mais − são os que fogem da seca, mas por muito que sejam e
evoquem e detonem, são os que fogem da seca e disto não podem
fugir.

65
Assim, por mais que o tema de um livro e os conceitos que
abrigue constituam o lado vil da literatura, tão incômodo, estarei, se
os ignoro, abrigando-me numa atitude evasiva. Isto, mesmo quando
o tema pareça eleito ou concebido para que uma ambição formal do
narrador se cumpra. Esta, quem me garante não ter sido gerada nas
sombras da sua maquinaria, imperiosamente, por algo que o autor
de certo modo ignora e que, entretanto, já reside nele e anseia pela
escrita? Quem me garante?
A Rainha dos Cárceres da Grécia, visto de um modo
transcendental, evoca as buscas do homem − a da salvação?, a do
destino?, a da compreensão?, ou todas. Guardemo-nos, porém,
amigos, da transcendência e das suas seduções. Ela pode embotar a
acuidade ao circunstancial e há diferenças entre a peregrinação de
Enéias (ou a o baleeiro Ahab) e a de Maria de França. Não podemos
esquecer as limitações do seu desejo − raso, tacanho − e a natureza
das forças que a ele se opõem.

São quase duas horas da manhã, ardem os meus olhos, e


mesmo os cachorros adormeceram, mas um esclarecimento impõe-
se, formulado, cabendo-me apenas transcrevê-lo. Recusa, o que hoje
registrei, qualquer intenção normativa. A variedade é exaltante, sei
que não há uma via legal para o romance, e nem sequer move-me o
propósito de esboçar uma doutrina que ampare a opção da minha
amiga ante o gênero. Aliás, espantam-me (e, no entanto, há nos
manifestos literários outro duende mais ativo?) as posições
dogmáticas quando se cogita de arte. Só duas coisas explicam tal
rigidez: a estratégia da luta (a luta expulsa o meio-termo) e as
carências naturais do homem, que o reduzem por vezes a não
entender a coisa amada, da qual se torna uma espécie de cego e
exaltado guardião.

66
Quanto ao "meu" livro, qual será o seu assunto?
11 de novembro

Por volta de 1920, um homem vestido de negro apeou do


cavalo e subiu os degraus de um alpendre estreito, sob o olhar de
duas mulheres altas, mãe e filha. Viúvo ainda recente, achava
incorreto permanecer nesse estado; vinha pedir a moça em
casamento. Sentado, as mãos de lavrador sobre as coxas
musculosas, tentava manter a conversa, à espera. do chefe da
família, que inspecionava os trabalhos no sítio. Surgindo da sombra
e do silêncio da casa, irrompeu no alpendre a irmã mais nova da
moça, os peitos fortes ainda cheirando a bonecas. Estendeu para ele
o braço decidido, retirou-se e jogou o corpo na cama: audível, no
alpendre, o rumor da queda.
O homem vinha para dormir e projetava fazer na manhã
seguinte o pedido. Não queria arriscar-se ao embaraço de pernoitar
na casa, se recusada a sua pretensão; a viagem de volta, ainda mais
difícil para quem leva na garupa um não, extensa demais para ser
feita no escuro. Contudo, enleado não sabia em quê e estranhando o
próprio modo de agir, pois as suas decisões, em geral , eram como
se não mais lhe pertencessem, ele, Oton, sendo um emissário de si
mesmo, só lhe cabendo executá-las, deixou-se ficar um dia e mais
outro, mesmo ciente de que todos conheciam o objetivo da visita.
Tivera, da morta, uma filha e três filhos (trazia, no relógio de
algibeira, uma fotografia da menina). Muitas outras coisas mostrou
e disse, não à moça alta com quem pensava casar, mas à adolescente
que pouco a pouco se acercava e o encarava mais firme. Porquê?
Teve a resposta quando ela desfechou, olhando-o, a frase formulada
no minuto em que, vendo-o no alpendre, pressentira − ela ou seu
ventre ainda brando − o dom daquele homem e que, nessas quarenta

67
horas, havia adquirido autoridade, o viúvo escutando aquelas
poucas palavras como se fossem uma revelação ou um provérbio:

"O senhor deve casar, sabe?, mas é comigo."


Murmurou como um bêbado, sem nexo:"
Porquê?

"Ainda pergunta, seu Oton? Se o senhor me conhecesse e


tivesse vindo aqui por isso, nada de mais. Acontece todo dia. Mas
não! Conhecia minha irmã . Ela não é a mulher para o senhor. Foi
só o chamariz. O senhor está aqui por minha causa. Pois nunca me
viu e não ouviu falar em mim ."
Outras vezes, a incongruência e a falta de sentido passaram
por verdade; tanto, raramente, como nesse dia. Quem poderia cuidar
dos quatro órfãos com maís compreensão do que ela, Adelaide,
madrasta de pouca idade? Tudo justificava o seu propósito, não que
fosse ardilosa e lançadora de redes, mas simplesmente porque ali
estava o par, o emprenhador, trazido pelos cálculos do acaso, posto
ao seu alcance, sendo então ou nunca, mas haveria de ser então,
agora. Gestações e partos empurravam-na, vai!, este é o patriarca.
Às quatro da manhã, sem ter dormido, o hóspede bateu na porta do
casal, e o desejo da menina começou a cumprir-se.
Fez com que ele trouxesse os quatro futuros enteados; como
se fosse a mãe, cuidou de todos; beijou um por um antes do
casamento, o noivo ainda de luto. Para a irmã, não voltou a surgir
pretendente que servisse − homens em condições, ali , não eram
muitos −, e Adelaide jamais a recebeu. Também não visitava os pais
e não foi vê-los mortos: em muitos anos, não se ausentou um só dia,
executando o serviço da casa sem nunca admitir empregada,
capricho inadmissível quando se sabe que pariu exatamente duas
dúzias de vezes, sendo Julia a vigésima primeira. Desde o
primogênito, a antes amável madrasta negligenciou os enteados,

68
distribuídos a seguir entre parentes da morta. Oton Enone, em
breve, só viu a segunda família e raramente nomeava os primeiros
descendentes. Quando Julia soube deles, estava com quinze ou
dezesseis anos.
Nisso tudo − no modo como a jovem quase analfabeta e sem
experiência mundana soube impor-se a um homem que se voltava
noutra direção, e na espécie de ritmo implacável com que viria a gerar
vinte e quatro filhos, nenhum dos quais morto na infância −,
reconhecia minha amiga, sem ironia e sem entusiasmo, uma expressão
de genialidade, algo fora das medidas e que remove tudo para
cumprir-se. Ainda: a coragem de ousar e a disposição incansável para
levar a termo um projeto desmedido. Esse exorbitante desígnio
absorveu o esposo, reduzido com os anos a servidor ou instrumento,
alheio ao resto do mundo. Mais ou menos bem de vida e já ocupando
no. Recife sobrado com seis quartos, recebeu carta da primeira filha −
o retrato infantil desaparecera do relógio −, convidando-o para o
casamento. Mandou recado por quem trouxera o convite (nem sequer
escreveu para justificar a ausência): "Ando muito ocupado
ultimamente. Sem tempo nenhum". Tinha, quando morreu, mais de
setenta anos e não voltou a procurar os quatro filhos mais velhos,
inteiramente apagados do seu coração pelo gênio tribal da hoje
também septuagenária Adelaide.
Esses fatos, naturalmente, foram-me transmitidos por quem
escreveu A Rainha dos Cárceres, que pode ter infundido à crônica da
família algum sabor romanesco.

18 de novembro

Observarão acaso os leitores, e terei mais de um, acredito, haver


por vezes hiatos entre uma data e outra destas anotações. Na verdade,
quase todos os dias − nem sempre o mesmo número de horas − tomo o
caderno e escrevo. Muitas vezes apago o que escrevi, e outras tantas
conservo a página como registro das minhas insuficiências ou ainda
69
por saber que ali, na incerteza e no tumulto, esconde-se o fio a seguir.
Não iria sobrecarregar o leitor eventual com essa parte larvar e
desesperadora do meu livro; também não quero calar sobre ela.

20 de novembro

Eis-me aos dezoito anos: cai a noite, e eu leio, indiferente ao


decréscimo de claridade na sala, um romance de Stendhal. Anos
passaram-se. Meditei sobre os processos romanescos, estudei-os em
autores ilustres e estou lendo, de Stendhal, um romance. O livro é o
mesmo, O vermelho e o negro, mas as leituras divergem, e isto
modifica-o.

O confronto entre romance e leitor, em nossa época, não se


restringe entretanto a uma questão de idade. Diferem o leitor atual e o
de outros tempos. Ao leitor pronto a evocar o que lia, seduzido por
processos cuja soma resultava em uma espécie de mágica e que ele
não distinguia, sucedeu-se o leitor desconfiado, rebelde, nada ingênuo
e que parece dizer, quando solicitado: "Não me recordo e não quero
recordar".19
Qual a opção de quem, ciente dessa recusa, não quer renunciar
ao ato de narrar, porque o considera indispensável ou

19. "O texto romanesco, jogando com ações e coisas, instiga nossa imaginação?
Elegendo quase sempre o pretérito, parece, antes, contar com uma certa espécie de
memória. Diz-me, alguém, haver despertado 'de um sonho cheio de chicotes e de laços
tão compridos como serpentes, de diligências arrastadas por cavalos embalados nas
gargantas das montanhas, de vastos galopes ao vento por campos de cactos', como em
Dylan Thomas ("Uma visita ao avô", in Retrato do artista quando jovem cão), e tudo é
como se me houvesse ocorrido (há quanto tempo?) e agora, estimulado, eu ou alguém
dentro de mim recordasse." (Dorothy E. Severino (The reader and his memory), citada
por E. Bezerra de Souza, na sua tese sobre lembranças imaginárias, apresentada no. III
Simpósio Nacional de Psicologia, realizado em março de 1970, na Sociedade de
Medicina de Porto Alegre.)

70
exaltante? Não podendo contar com memórias que recordem,
dóceis, o mundo implícito nos seus romances, passa, numa manobra
temerária e tensa de imprevistos, a operar, com ser admitido, no
centro mesmo da recusa. Troca a situação de depoente fidedigno − e
mais ou menos disfarçado − por outra, menos honrosa e mais
arriscada, de falsa testemunha declarada. A modificação do texto
deixa de ser ulterior à sua existência e opera se desde a nascente.
Declina o romance atual do que foi ponto de honra no passado
e respondeu por tantas dissimulações mais ou menos ingênuas
(confissões de personagens, manuscritos encontrados pelo escritor),
com o fim de legitimar a história e. as "recordações" do leitor,
pronto a restaurar, solicitado pelo texto (uma hipnose?), segmentos
insuspeitos do mundo. O escritor ostenta os seus artifícios,
prestigiados na hierarquia nova do gênero. Impõe, com isto, sua
presença e parece dizer a cada um de nós: "Não acreditais em mim?
Melhor. Isto é fala e artifício".
O fenômeno, atual, talvez constitua, em última análise e sob
nova configuração, o regresso da narrativa à sua origem e à sua
verdadeira natureza. Acreditava o rei em Sherazade?
Não concluir, amigos, falácia consoladora e tacitamente aceita
em nossos dias, pela validade estética de tudo que se venda por
moderno. Constitui um erro, admissível apenas em quem não
contemple o destino das coisas, supor que a constituição das obras
pode negar a constituição do fruidor. O cemitério dos livros para
sempre fechados (em minha estante mesmo jazem alguns) abrange
toda a face da Terra, e singularidade não implica imortalidade − ou
vida menos breve. Borges, na Zoologia fantástica, lembra que nem
todos os animais inventados perduraram: não encontraram eco no
coração dos homens. Foi necessária decerto uma hecatombe de
monstros para sobreviverem os unicórnios e os centauros.

71
22 de novembro

As novas relações entre o romancista e o leitor emergem


claramente na fugidia entidade à qual é confiada à narração. Quando
Natacha dançou para mim em Guerra e paz, quando Cathy me
disse, o vento noturno galopando na charneca, sobre as urzes, "Eu
sou Heathcliff", quando Judas morreu solitário no seu quarto, em
Christminster, lembrando-se de Sue, enquanto a intolerável Arabela
divertia-se nas ruas, em todos esses momentos eu recordava como
se não lesse, a história obliterava o texto. Agora, sei: a narrativa é
um acontecer verbal, exigindo portanto que um agente o formule; o
papel do narrador, ser enigmático, é misterioso e variado; a ficção
contemporânea vem eliminando as interdições que embaraçavam o
seu mediador e que, rigorosas, tentavam impor ao universo do
romance, intactas, as leis do mundo físico.
Quanto se tem escrito sobre o tema! Que ardor, nas discussões
sobre o absurdo de um narrador que tudo sabe! Quantos, ao
contrário, mostram-se inflexíveis contra o personagem-narrador,
que limitaria as possibilidades do romance! Percy Lubbock, Wayne
C. Booth, Henry James, Mark Schrorer, Chavignolles, Warren
Beach, Friedmann, Spielhagen, Wolfgang Kayser, Stanzel, Sartre,
Genette. Impossível e inoportuno nomear todos vós, investigadores
do que se convencionou denominar ponto de vista, foco, visão ou
perspectiva narrativa.
Contudo, mesmo o leitor advertido e insubmisso, para quem o
romance não contém fatos brutos, sendo acima de tudo uma
artimanha, verbal , nem sempre localiza a visão da narrativa ou tem
consciência clara do recurso. Não, não posso falar de recurso:
Narrar supõe testemunhar − real ou falsamente −, e como fazê-lo
sem colocar-se num determinado ponto ou em vários? O ponto de
vista é então no romance uma fatalidade: o romancista experimenta-
o, disfarça-o, luta com ele, subverte-o, multiplica-o, apaga-o e
sempre o tem de volta. Ampla a escolha, e variada a nomenclatura.
72
Também aí, como em botânica ou zoologia, não faltam as
classificações e chaves.

23 de novembro

Poderei afirmar que estou sozinho? Percorro com o olhar − e


com a imaginação −, lento, minhas fileiras de livros, os que li e os
que ainda estão por ler, os que desejo ardentemente ler. Fenômeno
jamais apreendido na sua integridade o desses sinais legíveis
(quantos?), pousados entre as páginas como nuvens de pequenas
mariposas e que só por um milagre continuam imóveis. Será
verdade, como nos assegura um apócrifo de são João, que, no Juízo
Final, todas as palavras voarão dos livros, inclusive as dos livros
destruídos? Mágica revoada! Não diz o códice se, nos livros que
narram, voarão as palavras e andarão pela Terra as personagens:
heróis, comparsas e bichos. Para mim, essa hora muitas vezes tem
soado, e os romances que já li abrem a não sei que desvão do meu
ser as suas portas seladas. Quanto aos outros, permanecem
invioláveis e eu contemplo-os do exterior, entre sobressaltado e
insciente. Que escondem? Hão de revelar-me algum segredo? Estará
a meu lado, aguardando só o gesto, simples, de os colher dessa
árvore, um sumo fundamental?

24 de novembro

Desvantagem: somos levados, ouvindo as expressões hoje


correntes − ponto de vista, foco, perspectiva ou visão −, a pensar
mesmo num ponto, num olho, coincidindo com uma personagem ou
deslocando-se, isolado, no mundo imaginário do romance. Tal idéia,
73
é certo, participa do que se convenciona entender por visão da
narrativa, mas apenas constitui seu atributo mais flagrante. Prefiro
assim a sugestão de Diderot, em esboço para o Elogio de
Richardson e não aproveitada no texto definitivo. Nesse manuscrito,
divulgado em fac-símile pela revista inglesa Drum,20 onde retoma
ou antecipa21 certas proposições do Paradoxe sur le comédien,
como a de que, no romance, nada se passa exatamente "comme en
nature" e que os poemas dramáticos "sont tous composés d'apres un
certain systeme de principes",22 emprega Diderot a fórmula
"dispositivo de mediação", que supera em amplitude as propostas
hoje em curso. Ausente, aí, a simplificadora noção de um "ponto"
que observa ou do qual alguém observa. Concebia o autor de A
religiosa, também nisto precursor, a idéia mais complexa e decerto
mais exata de um mecanismo graduado minuciosamente, com leis
que nunca se repetem e que ecoam em vários níveis: esse
mecanismo rege a narrativa. O "dispositivo de mediação", escreve,
"não contempla os eventos, simplesmente. Responde pelo que se
sabe e pelo que se ignora, regula as distâncias − entre uma
personagem e outra, entre personagem e mundo, entre leitor e
personagem −, podendo inclusive optar entre o registro neutro da
ação e a interferência apaixonada".
Também ao esboçar para o "dispositivo de mediação" uma
tipologia, parece-me acertado Diderot. Na sua classificação, o
dispositivo cuja estrutura seja inflexível e clara, é rígido; o
aparentemente arbitrário impera no dispositivo maleável,

20. N° 7, ano IV. Londres, outono de 1973, pp. 75-80.

21. Antecipa O ensaio sobre Richardson aparece em 1761, enquanto a versão final do
Paradoxe sur le comédien, segundo Assézat, é de 1773.

22. O postulado, palavra por palavra, e por isso transcrevo-o no original , reaparece no
Paradoxe . Diderot, Oeuvres. Paris, Bibliotheque de la Pleiade , NRF, 1951, p.1034.

74
mais aberto ao improviso ou ao que Thornton Wilder, em nosso
século, chamaria "o alento caprichoso da composição''. Muitas
variações desta última modalidade encontramos, por exemplo, nos
romances que admitem, implícita, a existência de um narrador
angélico, móbil, de idade incerta, talvez mesmo sem idade e que −
acredita-se − nada ignora. "Nós que, incorpóreos, tudo sabemos e a
todas as mortes podemos estar presentes." (Sérgio Sant'Anna, O
despertar de Gregório Barata.)

27 de novembro

O escrivão J. A. P., suspenso por trinta dias como responsável


pela Operação Camanducaia, ouvido pelo juiz corregedor dos
presídios, incriminou vários superiores, acrescentando que a
suspensão recebida, segundo lhe garantiram, destinava-se a aplacar
a imprensa. Logo seria revogada, e, como prêmio, ele almoçaria
com o secretário da Segurança Pública. Declarou ter recebido
ordens para "manter a vitrola quebrada" (não dizer nada), sob pena
de aparecer "com a boca cheia de formigas". O eufemismo não
corresponde à simples idéia de morte, mas de morte brutal e
desvalida, o cadáver jogado em alguma beirade estrada. Sugere
também a idéia de castigo e exemplo, transformada em buraco de
formigas a boca que não soube calar.

28 de novembro

O "dispositivo de mediação" em A Rainha dos Cárceres, onde


uma personagem, Maria de França, assume a narrativa, processo
este tipicamente rígido, torna-se maleável devido a certas
distorções. O discurso, a cargo de uma quase analfabeta, esquiva-se
a qualquer esforço de mimese. Marca-o uma orientação estilística

75
incompatível com quem o enuncia. Acercamo-nos, aqui, de um
ponto delicado e que tentarei esclarecer; e os leitores muito
cultivados ou aqueles a quem pouco interesse a matéria, bem como
os que prefiram conservar, em suas transações com a arte do
romance, a candidez de outros tempos, nada perderão se forem
espairecer, se saltarem estes últimos dias de novembro. Mas eu
proporia retornassem dentro de duas páginas ou três. Muitas
surpresas os aguardam.
Há dois modos distintos de formar e que nem sempre
coexistem: o culto e o poético. O primeiro reflete sempre as leituras
do escritor, selecionadas em áreas consagradas pela tradição, e
aspira a uma certa elegância; − o segundo, propenso a explorar o
informulado e o rústico, sonda em vários planos as jazidas
populares e ignora a herança cultural ou combate-a. A reflexão, que
na maneira culta vai cristalizar-se no aforismo, como em Machado
de Assis, na maneira poética não se apresenta como fruto definitivo
do raciocínio, e sim como verdade provisória, formada no trato
com o mundo. Alinham-se, nesta última corrente, obras como São
Bernardo, de Graciliano Ramos, e Grande sertão: veredas, de
Guimarães Rosa.
São Bernardo, ligado a certas convenções realistas, apresenta-
se francamente como escrito, e por homem de instrução rudimentar;
tenta, em conseqüência, uma dicção adequada ao personagem,
objetivo literariamente inviável, sendo necessário que o livro,
convencendo-nos do seu primitivismo, logre ao mesmo tempo −
disfarçadamente, claro − alto nível expressivo; o conflito, incômodo
para o autor real e para o pseudo-autor, ascende ao plano temático.
Grande sertão: veredas, liberado das exigências que embaraçam o
projeto de Graciliano, surge imediatamente como inaceitável,
fingindo uma oralidade que o texto, dos mais elaborados, embora
não culto, contesta sem cessar: instaura-se a ficção, de maneira
declarada, no ato mesmo da enunciação. O jagunço Riobaldo conta
de viva voz a um problemático interlocutor a sua história, expressa
76
num volume de quinhentas e cinqüenta páginas e cuja falsidade,
claramente assumida, nunca se disfarça.

29 de novembro

A Rainha dos Cárceres da Grécia segue este último rumo,


indo mais longe no sentido de uma enunciação confessadamente
imaginária; o discurso apresenta-se como não escrito e sempre
construído no presente do indicativo. Acredita Anatol Rosenfeld,
com quem cheguei a debater o assunto, que esta solução, freqüente
no romance moderno, procura "eliminar a impressão de distância
entre o narrador e o mundo narrado" ou "apresentar a geometria de
um mundo eterno, sem tempo".23 Omite, na sua interpretação, algo
importante: a voz do presente, nesse caso, constitui um
aprofundamento no rumo da ficção. Grande sertão: veredas ainda
imita − concessão, tênue, ao senso comum − a narrativa oral de
fatos já sucedidos; A Rainha dos Cárceres, fazendo coincidirem
ação e verbalização, parece sugerir constantemente que o seu
discurso é falso, irreal , fabricado, absurdo, não atesta um passado:
admite ser um conto e só.
Julia Marquezim Enone leva mais longe o propósito de
acentuar o caráter literário da sua ficção. Seu "dispositivo de
mediação", centrado na primeira pessoa, amplia-se muitas vezes
numa "onisciência" ilógica, atributo convencional do narrador
anônimo, angélico, exterior ao romance:

23. Texto/Contexto. São Paulo, Ed . Perspectiva, 1969, p. 90.

Vive olhando para mim e pensando que sou louca, fazendo perguntas
esquerdas ("Choveu ontem?" "O vidro da janela está sujo de que
lado?" "Gosta de arroz?"). Nunca me pergunta isso que tem na

77
cabeça e que faz com que estremeça de noite, no escuro, quando
abafa o grito do meu nome no seu colchão de solteiro.

A personagem que utiliza esse "eu", Maria de França , é uma


louca, argüirá o leitor. Não admira, pois, que acredite ler no íntimo
de quem conhece e mesmo de estranhos.
Dá-se, com isto, uma volta, tornando ao âmbito do natural, o
que invalida em parte a tese de um "dispositivo de mediação" que
assume sem reserva os privilégios do imaginário. A objeção,
oportuna, traria novamente à superfície, involuntariamente, o traço
essencial dessa arte discreta, a propensão a esconder-se. Não é para
estudar a psicologia de um doente mental ou, na trilha dos
naturalistas, mostrar uma "chaga social" que Maria de França
enlouquece. A opção inscreve-se na linha do disfarce. A loucura da
heroína, como ainda se verá, permite a J. M. E., parecendo mover-se
nos limites do tradicional, explorar a seu modo certas áreas do
romance visadas pela investigação contemporânea. O tratamento do
espaço e do tempo, por exemplo, se lemos na superfície, parece
refletir a consciência doente da tecelã e doméstica. A análise
demonstra o engano: o espaço e o tempo, marcados, como em tantos
romances atuais, pela desordem e a contradição, correspondem na
verdade a um cálculo pontuado de significações imprevistas.

30 de novembro

O livro omite o diagnóstico sobre Maria de França e é um


tanto vago nos sintomas da sua loucura. Esta omissão, comum

nas grandes obras literárias, tem uma importância que em geral nos

78
escapa e liga-se a uma compreensão ampla das coisas. Muitas
vezes, a nomeação é um engano, uma expressão de cegueira ou
imaturidade: ludibriamo-nos, nomeando algo bem maior que o
nome.
Perdida nas mil e quinhentas páginas de O homem sem
qualidades, há uma elucidativa frase de Musil. Falando do primeiro
esposo de Ágata, diz ter-lhe sobrevindo "o que se chama, na
linguagem do mundo não esclarecido, uma doença infecciosa". Para
o mundo esclarecido, uma doença infecciosa é um conceito trivial:
por trás dele, superior a ele, está o sofrimento, a dor, a deterioração
do ser, o mal O mesmo se aplica à loucura. Há, não devemos
ignorar, um pensamento voltado para o essencial, um pensamento
ciente − não científico − e ante o qual a precisão nada precisa: é
desfiguração da verdade, máscara, equívoco, ilusão.

2 de dezembro

Já deveria ter revelado que, não exatamente por cálculo,


escapei ao "papel ambíguo e mal definido"24 de lecionar literatura,
fantasia tão comum em tipos como eu e a que nem mesmo o
excelente A. .B. escapou. Foi ele quem me disse, há dias: "Quando,
no intento de harmonizar trabalho e festa, os que encontram nos
livros motivo de prazer cedem à tentação de ensinar o que, neles,
leitores, é menos um saber que uma vivência, estão perdidos".
Tem razão. O magistério, para ser devidamente exercido

24. Jean Onimus, L'enseigenement des lettres et la vie. Paris, Desclée de Brouwer,
1965, p. 1 35.

79
− e ele está nesse caso −, implica o estabelecimento de sistemas,
condena o vago e o intuitivo, reclama estudos metódicos, leva enfim
a um tipo de conhecimento útil, ordenado, sólido, funcional,
respeitável − e falto de alegria. Ora, há na freqüentação aos textos
literários algo de errante, e não me arrependo de haver preservado
em mim essa vagabundagem afortunada.
Que aulas e cursos são aqueles, então, que mais de uma vez
referi? Sou um vago e obscuro professor do que antes se chamava
história natural. Seduz-me dissertar sobre a variedade das raízes ou,
reagindo à triunfante pedagogia para retardados vigente no país,
demonstrar a ambigüidade dos anfíbios. Além do mais, numa cidade
mineral como São Paulo, o que ensino se reveste de magia. Aranhas
e falenas, aos olhos da classe, são irreais e tão absurdas quanto o
pterossauro do Texas.25
Mas − diverso, nisto, dos que ocupam as cadeiras de letras − o
lente de botânica ou de zoologia não cede ao impulso de querer
inocular, em espíritos quase sempre voltados para outras direções, o
que há de menos transmissível: uma paixão. Sempre temi esse
papel, indesejável no magistério e próprio de loucos (ou de quem,
visto que ama, distancia-se dos sãos). Exige a arte das letras, como a
história e a geografia, do mestre, atualização incessante. Plantas e
animais, ao contrário, na sua variedade, formam um universo imoto
− como o das figuras geométricas. Não faltará portanto quem veja,
na opção que fiz, certa malícia; na verdade, ela me permite a
desinteressada fruição das obras que povoam a minha casa. Meus
olhos vulneráveis acrescentam à fruição o mérito ou o valor do
risco. Colho ainda as vantagens de apenas atuar na escola
secundária: evito muitos encargos absorventes − estéreis, por vezes,
confessa-me A. B. − e que os proveitos da alta docência, acho, não
chegam a compensar.

25. Supõe-se que o pterossauro, com asas de dezessete metros, seria um réptil
carnívoro: nutria-se de dinossauros podres.

80
Nem sequer esteve nos meus planos escrever, a não ser estes
cadernos (íntimos?), onde há mais de vinte anos comento os livros
que leio; o presente estudo, organizado, constitui exceção no meu
programa de vida.

3 de dezembro

A onisciência toda ficcional de que é portador o "eu" de Maria


de França não se limita a ler no íntimo dos seus interlocutores ou
dos que passam por ela. Abrange, com liberdade nem sempre
concedida ao narrador impessoal, o registro do espaço, todos os
seus sentidos debandados no Recife e libertos, portanto, da clausura
corporal:

Vocês não podem sentir, mas esse é o cheiro do mangue e da fumaça


do trem das sete da manhã, carvão de pedra, na direção do agreste, os
balaústres da Ponte Velha, ferro alcatroado, começam a esquentar,
entra pela boca, no ar, o gosto das mangabas e das agulhas fritas do
Pátio do Mercado, badalam os sinos grandes do Carmo e dos
Franciscanos, os sinos de menino das capelas, o Sol vai subindo,
montante da maré, sobe, alô! alô!, olhem e vejam, inunda os
arrabaldes e o centro da cidade.

Olfato, tato, paladar, audição e visão, isolados, captam


aspectos soltos do Recife num amanhecer de estio. Por vezes, altera
Julia Enone o processo, acumulando a figura que os manuais
designam por sinestesia:

Vejam, vejam, o estouro das ondas, brilhante e cor de fuligem,


quebra na praia, é bonito?, é bonito?, meninos estendem as mãos
para fora da janela (na Torre, nos Aflitos, na Encruzilhada, em São

81
José, nas pensões das toleradas da rua Vigário Tenório), esse gosto
da chuva nas palmas estendidas, o arcebispo, sem sapatos, levanta a
cara no meio do jardim, abre a boca santa, vê na língua sagrada a
chispa do relâmpago, fecha a boca, a língua encandeada, Dudu!,
amor meu, ouve o cheiro da chuva que devagar vai entrando pelos
vidros meio abertos do ônibus, um segredo este perfume da chuva
cruzando o óleo, a graxa, a tisna da garagem, no palácio do governo
o rei abre as narinas, aspira, não se move, não vê, aspira e ensina,
real: "A chuva é fria".26

O apelo a todos os sentidos é, por assim dizer, obrigatório


nesse gênero de descritivo, tão freqüente no livro e acusando tais
variações que justificaria estudo à parte.

4 de dezembro

A possível objeção de que o espaço assim representado não


expressa onisciência, nada mais sendo que o reflexo do modo como
atua a imaginação da personagem, parece refutada em outros pontos
do texto, a não ser que se tome por falsa toda a narrativa de Maria
de França:
Vem a chuva do mar, atinge o cais do porto, avança para cima
da cidade, avança e cruza as pontes que amarram as ilhas no chão
firme, alô, ouvintes, são as águas de março, a perna esquerda
cobrindo o aeroporto, a outra em Santo Antônio, a cabeça na Várzea,
estende o braço direito para Casa Amarela e molha os morros, o
Recife quase todo coberto por esse corpo chuvoso, os pássaros,
grandes como cachorros, enfiam-se nas copas das árvores, um
canário monstro vem berrando, chega aqui antes da mão da chuva

26. Para Maria de França, a autoridade superior é sempre um "rei".

82
que veloz desce no morro e me alcança ainda no quintal e eu corro
para dentro, batem as portas, um pombo pousa no teto e a casa geme,
ouvem?27

A percepção real da chuva (a chuva no quintal onde está a


personagem ) confirma a percepção irreal, romanesca (a chuva em
lugares distantes da cidade)

5 de dezembro

"Alice esperou que os olhos do Gato se delineassem e então


saudou-o, inclinando a cabeça."
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas.

6 de dezembro

Não se deve supor que o artifício de Julia Marquezim Enone,


conferindo uma espécie de visão espiritual à personagem-narradora,
apresente-se como simples transferência de um pronome pessoal
para outro. A onisciência de Maria de França, note-se bem, é
exposta a erros e por isto mais ampla que a do narrador impessoal.
Este não pode enganar-se. De que lhe serviria, afinal, isentar-se das
limitações humanas para incorrer nos seus equívocos? Maria de
França, ao contrário, conhece a onisciência e ao mesmo tempo
aprisiona-se a um "eu" que as restrições humanas embaraçam.
Ocorrem, assim, mais de uma vez, enganos

27. Haveria, nesta citação, outros pontos a comentar, como a forma humana da chuva e
o gigantismo dos pássaros: aos olhos de Maria de França - aspecto que me intriga e para
o qual não encontrei ainda resposta satisfatória -, todos são enormes e temíveis.

83
perigosos: sua onisciência imperfeita lê, inexatamente, reflexões e
sentimentos alheios. Passa Maria de França a agir, diante de outro
personagem, baseada no que sabe − ou acredita saber − do seu
interior.
Mas o dispositivo de mediação do livro, que nada tem de
rígido, ainda vos traz surpresas. Registram-se ocasionais cisões
entre a consciência da personagem enquanto personagem e o que
registra enquanto narradora. O efeito é sugestivo e inquietador. Diz-
nos o "eu" falante, referindo-se a Belo Papagaio, haver no motorista
uma intenção destrutiva e que o relato das suas aventuras não passa
de um ardil, "nuvem de rumores e de espalhafatos, para torcer-me o
juízo, a guarda", enquanto o "eu" atuante, surdo às constatações de
que é o porta-voz, precipita-se no laço.

7 de dezembro

Há portanto na obra um ir-e-vir, um movimento oscilante e


arbitrário nas relações entre a personagem que age e o seu duplo
que fala, embora utilizem − uma e outro − o mesmo pronome, cuja
natureza torna-se cambiante. Vê-se o leitor − e acompanha-o o
crítico − embaraçado e inseguro: defronta-se com um locutor que
não merece confiança alguma e que se esforça por não merecê-la, às
custas de um jogo de acertos e equívocos, de aberturas e de
restrições no seu campo de visão, por vezes tão limitado que resvala
o absurdo. O passo que se segue confirma nossa observação:
Desço pelas escadas, volte numa semana, subo pelas escadas, a
pretensão não encontra amparo regulamentar, desço e subo e desço,
atravesso as ruas, ninguém sabe o que eu vejo, que sons escuto, nada,
ninguém sabe, eu não sei , ignoro o que penso e o que

84
sinto, ignoro o que falo se é que falo, onde estou?, na rua ou em
casa?, característica ·sonora, ponto final em nossas transmissões.

O discurso, sempre amarrado a esse "eu" mutável e esquivo,


prossegue, −enquanto a personagem como que se extravia − Surge
além disso, claramente, embora sem ênfase, o motivo da dúvida
sobre a verdadeira fonte da enunciação: "Ignoro o que falo se é que
falo". Vemo-nos assim ante uma solução ambígua, que assimila os
direitos do chamado narrador onisciente e as tradicionais limitações
do personagem que assume a narrativa, ocorrendo entre essas duas
possibilidades − aqui conjugadas − impregnações mútuas.
Acrescentando-se ainda a esse dispositivo dúctil e fascinante para o
observador as ocasionais obstruções ou perdas de contato, onde o
texto, solto, nada mais sabe do mundo e questiona a sua própria
existência.

8 de dezembro

Números precisos ilustram as declarações do sr. Reinhold


Stephanes, comentados hoje em O Estado de S. Paulo, sobre o
Instituto Nacional de Previdência Social, que diz querer renovar.
Segundo ele, há no INPS cem mil metros de processos na área de
benefícios; passam-se quatro anos entre a resolução de construir um
novo ambulatório e a colocação da estaca inicial; numerosas
decisões têm atrás de si um histórico que vai de cem a quatrocentos
despachos; estão obsoletos os seus equipamentos e hospitais. Inútil,
depois de tudo isso, a informação suplementar, emitida pela mesma
autoridade, de que todos os setores, nesse órgão desmesurado
(dezesseis milhões de beneficiários diretos e um total de quarenta e
dois milhões de dependentes), "vivem completamente
burocratizados"

85
9 de dezembro

Disse que Grande sertão: veredas, escrito na voz do pretérito,


ainda sugere a narração oral de eventos já vividos; e que A Rainha
dos Cárceres da Grécia recusa esse pequeno amparo convencional,
preferindo eliminar a distância entre viver e narrar. Mas o equívoco
discurso de Julia M. Enone também finge, a seu modo − como,
ainda, em plano bem diverso, o de J. Guimarães Rosa −, uma forma
consagrada de enunciação oral e que, no seu artificialismo, infunde
à obra certa vitalidade insólita e não despida de humor. Revelemos,
confirmando as suspeitas de leitores mais avisados, esse traço −
alegre e pode ser que, no fundo, trágico − do texto.
A socióloga Cesarina Lacerda, desenvolvendo sugestões de
Lucien Goldmann, de quem foi aluna por correspondência, realizou
pesquisa de campo nos bairros operários do Recife e constatou, o
que já era previsível, o domínio absoluto do rádio como instrumento
de informação e a nenhuma importância do jornal. Menos previsível
é o desacordo entre o mundo configurado pelo rádio e, para os que
sabem ler, o que estampam os jornais. Os jornais cedo ou tarde
chegam à periferia, como papel de embrulho, trazidos pelos pobres
ambulantes que os compram a peso para revender, e até soprados
pelo vento. Uma dona de casa, entrevistada em 1968, acreditava ser
recente o suicídio de Getúlio Vargas, ocorrido em 1954. Mas o
aspecto que parece haver tocado Cesarina Lacerda e ao qual
consagra extenso capítulo é o que ela denomina "a confirmação da
existência". Marginalizado social e topograficamente, o homem da
periferia tem poucas ligações com a cidade, não sendo insensível a
essa exclusão. O rádio, dirigindo-se, através do locutor, a um
ouvinte não especificado e sempre encarecido, vai ao encontro de
um vácuo. "Chega ao homem dos morros e dos alagados como
(enfim!) a voz da cidade, que o acolhe e reconhece. A linguagem

86
radiofônica, portanto, reveste-se para ele de um caráter ao mesmo
tempo balsâmico e recompensador. O silêncio da cidade representa
uma forma de negação do ser: para existir, é necessário que a cidade
fale. A mensagem radiofônica desempenha esse papel, confirma
uma existência problemática e assume, com isso, um estatuto
privilegiado e quase diríamos sacral” 28 A interpretação de Cesarina
Lacerda talvez explique a atração dos pobres pelo rádio. Seja como
for, busca avaliar o significado, na chamada classe C, de um tipo de
mensagem altamente cordial, freqüente nesse meio de comunicação
e lisonjeiro para o destinatário. Além disso, sem o saber, justifica a
ensaísta, sob perspectiva sociológica, o discurso de Maria de
França, que finge dirigir-se − solução evidente a partir do capítulo II
− ao público de uma emissora de rádio. Animam a obra os clichês
de linguagem comuns aos locutores, e certos esquemas típicos de
programas radiofônicos, dentre os quais o noticiário, empregado
com humor e eficácia, envolvendo tanto as personagens (inclusive a
própria narradora), quanto os acontecimentos mundiais, deformados
pelo anacronismo e outros fatores.

12 de dezembro

Quantas vezes, desde o Decameron e os Contos de


Canterbury, narradores mais ou menos loquazes dirigem-se a
pequenos auditórios ou a um interlocutor paciente (este que mais
tarde escreve a história)? Há o narrador privilegiado e há o encontro
de narradores, onde ocorre uma troca de contos ou, eventualmente,
torneios: o melhor autor, no livro de Chaucer, teria um

28. Falando para o mundo. Recife, Ed. Flos Carmeli, Convento do Carmo, 1968, p.
120.

87
jantar como recompensa. A insistência nesse recurso e variantes não
é fortuita: ele configura integralmente o fenômeno da narrativa − eis
o contista, a fábula, os destinatários e mesmo o lugar convidativo −,
e pode-se afirmar que vem dessa coincidência o seu fascínio. Tal
evocação, por vezes, acentua-se tanto que a história deixa de ser
improvisada e alguém lê para os de mais um texto, quase sempre de
origem misteriosa.·Assim a "Novela do curioso impertinente",
esquecida na estalagem, com alguns livros, por alguém "que puede
ser que vuelva" e lida em voz alta pelo cura, no Dom Quixote;
assim, trezentos anos depois, o "álbum vermelho e fino, de capa
desbotada, com os cantos dourados, à moda antiga", cuja leitura os
hóspedes de uma velha casa ouvem de Douglas, em A volta do
parafuso, de Henry James. Os peregrinos de Chaucer vão narrando
algumas fábulas ao passo embalador das montarias, mas os pontos
naturais desses encontros são os pousos, onde cada hóspede é um
livro ainda não aberto. Quase sempre, em horas noturnas. Os dez
jovens florentinos de Boccaccio narram seus contos sentados sobre
a relva, quando "o Sol está a pino e o calor é intenso". Já "o Homem
da Colina" leva toda uma noite contando a sua história a Tom Jones,
e o Douglas de Henry James, mais de uma para ler seu estranho
manuscrito. Descreve Charles Dickens, com minúcias, a sala
comercial do Pavão, onde se hospedam Mr. Pickwick e seus
amigos, pouco antes da "História do caixeiro-viajante", também
contada à noite.
Com os anos, as hospedarias transformam-se em hotéis e
restaurantes, emigram das estradas concorridas para os centros
urbanos, algo de aventuroso vai esmaecendo nos narradores em
trânsito e nos seus benévolos comparsas, que já não chegam em
cavalos estrompados ou na mala-posta, a lavanda lhes é familiar, às
vezes comparecem vestidos a rigor, mas o núcleo da situação − o
conto, o narrador, o ouvinte e o abrigo − permanece:

88
"Havia sobre a mesa uma pequena lâmpada com abajur.
Guarneciam a lareira um itinerário, um almanaque, o tinteiro com
uma pena e meio bastão de lacre. Ele pedira dois conhaques duplos
com o café e estava encolhido na poltrona. Envolvia-nos a esquisita
sensação de intimidade que proporcionam as salas repousantes e
silenciosas do Hotel Plaza.
"'Serei importuno se lhes contar o caso? Sucedeu com um
amigo do meu tio e, desde então, oitenta anos se passaram.'"
A citação é imaginária, unindo fragmentos de Dickens e de
Maugham. Que romancista, entretanto, não reconhece aí o ofício de
contar, a união com o leitor e a ânsia de ser ouvido longe do tumulto
do mundo?

I7 de dezembro

Julia Marquezim Enone, quando amplia esse esquema,


multiplicando por milhares as quatro ou cinco pessoas que uma
longa tradição oferecia ao narrador em estalagens, hotéis,
carruagens e navios, sabe que a ampliação tem seus ônus e que
implicará certos prejuízos. Aceita-os: estes, como outros que a arte
defronta em nosso tempo, são significativos. O narrador que, em
tantas narrativas do passado, confia a um grupo de ouvintes sua
história ou, ainda, o que lê em voz alta um manuscrito de autor
ignorado elegem de algum modo a audiência, e esta nunca é
indiferente. Engendraria o autor, nessas projeções do seu desejo,
assembléias distraídas?Mas o artifício de Julia Marquezim Enone,
se evoca e altera recurso consagrado (aperfeiçoando-o, pois na
verdade o público do romance é invisível), deixa de refletir um
anseio do escritor, para constatar o seu isolamento irredutível, o
monólogo contínuo, a inexistência de resposta.

89
18 de dezembro

A reflexão conduz o homem à verdade? Pressuponho, é claro,


um cérebro lúcido e exercitado. Sem isto, pensar é como fazer
avançar um carro sem governo: sempre desastroso o resultado. Mas,
ainda que eu possua o instrumento e o tenha provido de ciência,
estarei a salvo do erro? Não. Se imagino, entretanto, nunca me
engano: o imaginário é autônomo e plana sobre as mudanças. Para
Anaximnandro de Mileto, o vento, encerrado numa nuvem como o
vinho num odre, rompe-a com violência durante a tempestade, e
este rompimento é que produz o relâmpago e o trovão. O raciocínio
de Anaximandro leva-o a este absurdo. Mas o absurdo deixa de
existir se saliento a real natureza da hipótese. Concentrando no
problema a sua mente ágil e poderosa, colheu o pensador milésio,
certo de ouvir outras vozes, uma resposta da imaginação, e tão
duradoura que não nos custa aceitar, ainda hoje, grandes sementes
de ar rompendo as nuvens, com estrondos e clarões.

19 de dezembro

O que ontem escrevi parece resvalar no que pretendo dizer.


Tentarei modificar o texto, tornando-o mais claro e desenvolvendo-
o.
A mente empenhada em solver um problema (pressuponho
que seja exercitada e provida ele recursos) elabora por força
respostas apropriadas? Quando escrevo "apropriadas" não quero
significar, necessariamente, respostas certas; mas, por exemplo,
respostas abstratas para inquirições abstratas. A história do
pensamento, a princípio, inquieta-nos: quantas vezes se ilude o
pensador, aceitando como produto da razão algo engendrado
90
pela invenção? Mas justifica-se a nossa inquietude? Anaximandro
de Mileto, querendo descobrir a vazão dos trovões e dos
relâmpagos, afirma − e isto lhe parece indiscutível − que o ar preso
nas nuvens "como o vinho num odre" arrebenta-as durante a
tempestade. Os conhecimentos atuais invalidam tal explicação.
Salva-a, entretanto, sua impropriedade. Incitando a razão, para
decifrar e explicar um fenômeno natural, o pensador milésio acolhe
inadvertido uma proposta da imaginação. Justamente por isto, e
porque o imaginário plana sobre o transitório, continua a animar a
sua hipótese uma certa espécie de vida, e facilmente acreditamos
que nuvens cheias de ar rebentam feito odres, com estrondos e
lampejos.
Esta digressão nasce das dúvidas que por vezes sombreiam o
meu humor, desde que me dispus a analisar A Rainha dos Cárceres.
Concentro-me num aspecto do livro e nem sempre estou certo do
que penso ver. É o caso de algumas correspondências − para mim
bastante nítidas, afetando a história e o discurso − que ligariam
Maria de França ao escritor. Ambos despojados e loucos,
distanciados das áreas do poder e percebendo o real com estranheza,
buscam na cidade, sem sucesso, uma indenização para a loucura; a
mensagem da heroína, emissão no vazio, evoca o drama do escritor,
muitos dos quais vivem e morrem sem conhecer a alegria da
resposta; como o romancista e, ainda mais, o poeta, desnuda-se a
figura central do livro, submete ao mundo indiferente o que por
norma se esconde.

Atenção! Ele me espreita com seu olho azul, o rosto meio de lado,
ainda está de combinação de seda e eu nua, mete o dedo na minha
bocetinha, ai, que dedo presepeiro, dedo grosso de chofer,
acostumado a mexer com ferramentas e a mudar pneu de caminhão
na estrada, lambe a minha orelha, levanta a combinação, que coisa é
essa, ouvintes, apontando para cima?, vem para o meu

91
lado, pois é agora, é agora. Vamos dar a hora certa: são vinte e duas
horas e trinta e um minutos na capital do Nordeste. Neste momento
exato deixo de ser virgem e me candidato a tolerada.

A aproximação que menciono e ilustro é um exemplo entre outros.


Terá razão de ser, ou eu a inventei? Não mais me oprime o dilema.
Alguma coisa eu teria de aprender com os relâmpagos de
Anaximandro.

20 de dezembro

"Vinte e dois policiais, dentre eles dezesseis delegados, foram


indiciados pela Corregedoria dos Presídios e da Polícia Judiciária
como responsáveis pela 'Operação Camanducaia'.
"O promotor J. B. Marques da Silva Filho, da Corregedoria da
Polícia Judiciária, terminou ontem seu relatório sobre o caso,
encaminhando cópias para o presidente do Tribunal de Justiça de
São Paulo, o procurador-geral da Justiça, o juiz de menores, o
secretário da Segurança Pública e o ministro Armando Falcão.
"Principal indiciado, R. A. L., diretor, na época, do
Departamento Estadual de Investigações e Capturas. "Também o
delegado A. C. Lellis, do gabinete do secretário da Segurança
Pública, concluiu na tarde de ontem a sindicância policial sobre a
referida 'Operação' e citou vinte e três policiais − dezesseis
delegados, três investigadores, dois carcereiros, um escrivão e um
motorista − por procedimento de natureza grave. Todos serão
enquadrados em processo administrativo, que poderá resultar em
exoneração do serviço público." (Jornal da Tarde, São Paulo,
17/12/1974.)

92
23 de dezembro

Sob fortes aguaceiros, viagem para a estância termal de Serra


Negra. Minha sobrinha Alcmena, vinda do Espírito Santo para uns
dias comigo e que vi quando tinha seus catorze anos, agora é uma
jovem de vinte, delgada, afável. Prometia sempre visitar-me e afinal
aí está, no quarto ao lado, talvez à janela, vendo a chuva cair sobre o
jardim e os outeiros, ela, a portadora inconsciente de uma breve
estação de calor e ociosidade em minha rotina apenas aquecida, hoje
em dia, pelos autores que amo.

24 de dezembro, meia-noite

Ceia de Natal. Imitava-se, em tudo, a tradição européia: nas


músicas, no grande pinheiro iluminado que adornava o fundo do
salão e até em certas iguarias: castanhas, tâmaras, damascos. Esta
falta de autenticidade contraria os puristas dos costumes, que
reivindicam uma expressão tropical para as comemorações
natalinas. Não sei se estão certos e se realmente é possível a
substituição. Inclino-me a supor que tudo isto pode ter até mais
força aqui que nos países de origem. Alcmena − o seu rosto brilhava
à luz das velas − seguidamente erguia a taça de champanha,
fazendo-a tilintar contra a minha ou acompanhando o ritmo da
música. Irrompiam, através das amêndoas, das nozes, dos pinheiros
com luzes (onde flocos de algodão fingiam o inverno mais glacial),
um tempo e um espaço que o exotismo e a raridade trespassavam de
mistério. O homem nunca é imune − antes, vulnerável − às
especiarias, às essências aromáticas e aos animais trazidos de longe.

93
25 de dezembro
Significativa, esta necessidade humana de celebrar as festas na
abundância. Negando as limitações que regalam o nosso domínio
sobre as coisas e permitindo-nos fingir que podemos fruir o mundo
sem cuidados, banimos a penúria, instituímos por um momento a
fartura e portanto o desperdício.

6 de janeiro de 1975

"Hoje seria aniversário de Julia. Trinta e cinco anos."


Alcmena levantou devagar um braço e apanhou, com os seus
longos dedos abertos em leque, alguns cabelos que lhe caíam pela
testa.
"Nunca teve filhos?”
A sala estava quase em treva completa, e eu só via o grande
olhar que me envolvia todo.
"Sim, uma. Atualmente, quase da sua idade."
"Parece-se comigo?"
"Não conheço. Ouvi dizer que é um tanto... inocente. Julia
dizia que não. Mas ela viu a filha poucas vezes."
Esperou, em silêncio, que eu explicasse por quê. Uma estrela
brilhava muito próxima das nossas cabeças. Informei, evasivo:
"Mora com um tio, irmão de Julia "
"Um tio como o senhor?"
Apertou o meu braço, sorrindo, soltou-o e cruzou os seus,
reclinada na poltrona, uma das longas pernas estendida.
"Sabe quantas vezes a mãe engravidou? Vinte e quatro: varões
nos partos ímpares e mulheres nos pares. Julia, na vigésima
primeira gravidez, é que inverteu essa alternância. A seguir, veio

94
um homem, depois outra mulher e finalmente um homem, o
último."
"Então ela nasceu como exceção", exulta Alcmena. "Marcada.
Tumultuou o ritmo!"
"Não se orgulhava disso. Repelia a idéia de chegar ao mundo
assinalada ."
Estremeceram as cortinas, levemente. Houve um pequeno
sussurro, e a vida das coisas continuou.
10 de janeiro

Alcmena, tendo programado ficar uma semana, permaneceu


comigo três; e acredito, não sei se com razão, que evitou encarar-me
na hora de subir no ônibus, segurando com um pouco mais de força
o violão guardado numa capa verde. Por muito tempo haverão de
ressoar aqui seu instrumento, seu riso juvenil, seus passos de garça
− e quando escrevo aqui penso na casa e no livro, este, que mais de
uma vez fui tentado a mostrar-lhe. Insistiu em ler A Rainha dos
Cárceres e me surpreendeu com um testemunho: "Vejo o senhor no
livro inteiro". Como eu protestasse um tanto ansioso, esclareceu:
"Não que eu o reconheça em alguma das pessoas. Mas está aqui".
Observou também que versos inteiros de canções populares
brasileiras permeiam de uma ponta a outra o texto, tendo me
apontado exemplos. Cantava a música para mim, na sua voz rouca e
melodiosa. Sim. uma estação de calor e ociosidade, um intervalo,
um verão amável e efêmero, hoje terminado.
Não posso dizer que Julia Enone − mais velha, mais silenciosa
− e Alcmena se pareçam. Como entender então a atmosfera que
todos esses dias respirei e que tanto se assemelha à que reinava
aqui, naquele tempo? Identifica-as acaso uma qualidade que
podemos chamar de inocência, uma limpidez de espírito em geral

95
destruída pela maturidade e que a minha amiga soube conservar até
morrer?

12 de janeiro

Lendo o romance, tinha eu a impressão de ouvir em certas


páginas não sei que fugidio eco, uma vibração familiar (este,
decerto, o efeito que J. M. E. procurava ao inserir no texto letristas
populares), sem entretanto descobrir o que uma jovem de apenas
vinte anos percebeu à primeira leitura.
Facilmente eu constatara, na seqüência do Carnaval, quando
Maria de França encontra Nicolau Pompeu, vários fragmentos de
letras carnavalescas inseridas no texto, como no passo que se segue
e onde aparecem em itálico os de que posso indicar a autoria:

Nicolau e eu debaixo de uma mesa, cama fofa de confetes e


serpentinas que eu até me embaraço, o bar quase deserto, que horas?,
noite alta?, músicas na cabeça, ó jardineira, que vais fazer,
mandarim?, gosto de te ver, morena, soltando papagaio de papel,
bom é lança-perfume com cerveja, Nicolau se levanta e emborca
sobras de copos, grito embaixo da mesa que não precisa pressa, e
ele, "Eu quero ver queimar carvão, eu quero ver carvão queimar, a
sede me tortura, negra ", também eu com sede, sede e dor de cabeça,
mas o que dói de verdade é o homem do piano, batucando e berrando

Eu já cantei muito em serenata

na porta de uma ingrata,

96
a ingrata uma tolerada gorda e cerzida, estandartes no ar, um
mascarado na porta , dançando feito um boneco e gritando para
dentro "Olha a porteira do mundo, gente, a porteira do mundo",
madrugada alta, um coro muito longe entoa a marcha-regresso, chora
a tolerada junto do piano manchando a cara pintada de vermelho, um
coração miúdo em cada lado da cara, se lamenta para o homem "Esta
vida é mesmo assim, Hermilo, viver feliz quem me dera" , Hermilo
canta batendo no piano

E u não sei o que fazer

para o meu amor não chorar,

Nicolau canta com ele, vão por aí pedaços do domingo. e do Recife,


rua Nova, Imperatriz , Imperador, praça da Independência, eu e
Nicolau Pompeu de chapéu de sol aberto, os blocos famosos, Bloco
das Flores, Andaluzas, Pirilampos, Os Corações Futuristas, a Lira
de Charmion, a multidão me acompanha , o cara grita, agora dentro
do bar: "A porteira do mundo! A porteira do mundo!".

Todas as citações, excetuando "ó jardineira", da marcha de


Benedito Lacerda e Humberto Porto, são de autores
pernambucanos: Nelson Ferreira, Antônio Maria, Luiz Bandeira, os
irmãos Valença e, principalmente, Capiba, que comparece ao menos
sete vezes nessa espécie de colagem . O trecho "madrugada alta, um
coro muito longe entoa a marcha-regresso" altera (para evitar a
anástrofe do modelo? ) os versos de Nelson Ferreira na sua
"Evocação nº 1": "Na alta madrugada/ o coro entoava/ do bloco a
marcha-regresso". Parece haver ainda, na série de "blocos famosos",
onde se rende homenagem ao compositor Nelson Ferreira, uma
alusão ao célebre "Valores do passado", de Edgard Moraes, que
agrupa nessa música vinte e cinco nomes de agremiações
carnavalescas, alguns extremamente graciosos (Lira da

97
Noite, Pavão Dourado, Flor da Magnólia) e que a romancista não
inclui no texto, decerto para que a acumulação não prejudicasse a
sugestiva mobilidade da cena.

17 de janeiro

Este, o momento de anotar o que também já observei: a


locução de Maria de França (requintada, segundo vimos, conquanto
aparente naturalidade e mesmo ingenuidade) deixa-se impregnar de
variados campos semânticos, de acordo com as áreas temáticas
invadidas pela personagem. Quando em contato com médicos, sua
"transmissão" é afetada por um jargão entre árido e grotesco,
extraído de livros científicos, de rótulos de remédios e do que a
lingüista Dora Paulo Paes, num ensaio cheio de humor (coisa
espantosa entre os especialistas, sempre enfatuados), denomina a
"estilística das bulas" fazendo aproximações muito divertidas e
pertinentes entre as bulas de calmantes e as bulas papais.29

Abre-se a porta e avanço pelo centro, cara terapêutica, esse alguém


de quem falo, olhos sedativos, voz de beladona, manda sentar-se a
paciente, tudo bem com você?, que acha a ouvinte?, se estivesse tudo
bem eu aqui ? Aqui?

"Respire. Abra a boca. Cristais ausentes. Agora, gemer. Abra os


olhos. Esclerótica e retina."

"Doutor! A passiflora responde pelo epitélio mucoso?"


"Completamente. Do reto à árvore pulmonar. Respire. Abra a bunda.
Parasitas presentes e cromatina uniforme. Volte outro dia."

29."As bulas e as bulas", revista Ciência, publicada pela Associação Médica de


Campinas, no. 7, ano III, pp. 137-52.

98
Ver ainda este exemplo, onde a segurança do psiquiatra (meio
louco?) contrasta com a angústia da operária examinada:

"Eu sou um doutor muito bom e competente. Veja os meus diplomas


na parede. O meu retrato de formatura. O meu anel na falange e .o
meu botão de rotariano. Vou casar com moça hígida. Que vê neste
cartão?"

Mais uma vez os cartões, manchas, sempre as mesmas,


encarnadas e pretas, que me perseguem e que não decifrarei. Nunca.
A vida é triste, seu moço. Caminho cheio de espinhos. Quem pode
me ajudar? Que devo ver, no cartão? Jogo difícil ou impossível.
Grande demais, o Recife, o estoque de coisas do Recife, tenho
pensado em muitas, mas nunca vou dizer, nunca, a que tem de ser, a
que eles querem, e perco sempre. Dispnéia. Tremedeira. Taquicardia.
O sistema nervoso. Posologia.

"Vejo nesse cartão... nesse cartão..."

"Blu ê. Volte daqui a uma semana."

19 de janeiro

Dispensáveis também instrumentos apurados para captar a


intenção caricatural das passagens em que interfere a gente da
Justiça: advogados, juízes ou simples escrivães. A romancista, aqui,
explora o pesado vocabulário dos tribunais e, sem renunciar ao tom
geral da obra, imita a suficiência e a aptidão sofismática dos
arrazoados jurídicos, aludindo obliquamente ao fato de constituir
essa linguagem uma rede.
Impossível transmitir o espírito do original (dele estariam
ausentes a ampliação e a prolixidade, virtudes essenciais do
maneirismo forense) se transcrevêssemos apenas frases soltas do
trecho onde Maria de França relata a preleção do juiz, antes de

99
sugerir, para advogar a sua causa, o próprio filho, “patrono e pa
ladino”. Isto justifica a citação longa:

Se estou ante o juiz e o juiz me fala, conclui-se, ouvintes, que o juiz


tem boca, e eu, ouvidos. Como falar, ele, despojado de seu órgão
emissor, a alguém que, por dolo ou má-fé, privou-se de ouvidos?
Senão, vejamos. Portanto, não só fica provado que ele fala, e que fala
a alguém na situação de receber sua judiciosa preleção, como, para
que não se conteste, ou negue, ou ab juris se tente distorcer os fatos,
transmito para longe das janelas seladas e lacradas deste seleto
recinto o seu princípio − sábio, pois vem de um doutor − de que toda
e qualquer lei, minha filha, se for clara, atua contra o réu, pois aí é
pão, pão, queijo, queijo, não havendo escapatória ou apelação
possível. Em segunda instância, a que viriam o juiz e o direito
romano, a que viriam os compêndios e as apelações, a que viriam a
toga e o chanfalho, a que viriam o Diário e a Revista, esta dos
Tribunais e aquele da Justiça, a que viria toda essa egrégia
construção se as leis, claras, dispensassem as interpretações e
portanto os intérpretes, sendo oportuno salientar que tanto mais
arbitrárias as interpretações quanto mais ampla a margem de o
infrator achar uma brecha, hein? Resumo toda a minha doutrina
numa antílabe. Contraria o espírito da lei ser o texto legal um livro
doméstico, um almanaque como o do Capivarol (o fortificante da
família), ou um catecismo para iniciantes, ou. o Manual prático do
abridor de latas. Isto avacalha o troço. A lei, distintos jurados, tem
de ser escrita numa língua nobre, se possível morta e enterrada,
desconhecida das gentes, porque senão perde a graça. O modelo das
leis são os oráculos, e cada servidor será um intérprete. Por isso,
todos são iguais perante a lei, e, sem razão alguma, pode-se ter ganho
de causa ou ser absolvido, tudo dependendo de nós, seus humildes
guardiões e hermeneutas uti possidetis. Já imaginou que chato,
peticionária, se todo gato-pingado soubesse quanto tem de pagar
quando se mexe ou abre a boca? O sentido natural da Justiça exige
que o povo em geral dependa de uma plêiade − nós −, porque de
acordo com o artigo primeiro, você, infringindo as cláusulas
100
segundas, beneficia-se do item anterior, incorrendo nas penalidades
inerentes ao parágrafo final, no uso todavia das atribuições que lhe
conferem as alíneas correlatas e revogadas as disposições em
contrário. Ou, conforme preconizam os tratadistas: Ab hoc et ab hac.

22 de janeiro

Este arranzel pomposo, para o juiz breve sentença, "antílabe",


não é senão a paráfrase grotesca de uma idéia justa, exposta às
avessas (notemos o embaraçado do último trecho, espécie de
armadilha, imagem viva da especiosa linguagem exalçada pelo
magistrado e ante a qual já ninguém pode saber o que absolve ou
condena), e não poderemos avaliar devidamente a sua importância
se não o compararmos com o original que tão violentamente
deforma, e que é, segundo creio, a abertura do capítulo V ("Da
obscuridade das leis") de um clássico da literatura jurídica, Dos
delitos e das penas, de Beccaria:
"Se a arbitrária interpretação das leis constitui um mal, a sua
obscuridade o é igualmente, visto como precisam ser interpretadas.
Tal inconveniente ainda acresce quando as leis não são escritas em
língua comum.
"Enquanto o texto das leis não forum livro familiar, como um
Catecismo, enquanto elas forem redigidas em língua morta e não
conhecida do povo, e enquanto forem, de maneira solene, mantidas
como oráculos misteriosos, o cidadão que não puder aquilatar por si
próprio as conseqüências que devem ter os atos que pratica sobre a
sua liberdade e os seus bens, estará dependendo de pequeno número
de homens, que são depositários e intérpretes das leis."

101
23 de Janeiro
Sim, todos esses caprichos tinham-me sido pouco a pouco
revelados. Não percebera, talvez por tão de perto sondar o tecido da
prosa enoniana, a extensa dívida da romancista para com os letristas
da música popular nacional. Faz com eles Julia Marquezim Enone o
que outros fizeram com os provérbios, os festejos populares ou a
literatura de cordel. Por dois motivos, penso, não os nomeia: busca
sempre ocultar o seu jogo; o anonimato significaria uma espécie de
consagração, a imersão do produto individual no acervo coletivo.
Deve-se ainda considerar, em certos casos, que a romancista,
sonegando a autoria dos fragmentos de canções incrustados no seu
texto, resgata-os. Criações anônimas, invenções da multidão, não
têm autor.
Pode ser esta a razão por que, ao selecionar o seu material,
prefira as letras onde mais claramente assomam as fontes populares,
como em Ataulfo Alves, várias vezes "citado": "pisei meu próprio
calo" ("Vassalo do samba"); "duro com duro não dá bom muro"
("Duro com duro"); "Deixa estar, jacaré, que o verão vai chegar,
quero ver se a lagoa secar" ("Quantos projetos") etc.
Mas também pode ser que ao homenagear, com a sistemática
assimilação de tantos dentre eles, os nossos compositores populares,
porta-vozes do humor, do sentimento e da filosofia das ruas, em
livro onde a figura central é uma mulher do povo − à qual, além do
mais, atribui-se a emissão do discurso, problema que há dois meses
absorve este diário −, queira a romancista, por tabela, marcar sua
repulsa ao exasperado intelectualismo reinante em setores
específicos da sociedade, isolacionistas a ponto de engendrarem,
mediante não sei que mecanismo, códigos privativos, vedados
totalmente aos intrusos.
O gênero de discurso consagrado por Maria de França,
desprestigia do e sem antecedentes literários, o discurso radiofônico

102
na mais vulgar de suas expressões, reafirma, acredito, a aversão da
autora ao livresco e às mensagens impenetráveis.

24 de janeiro

Escrevia, ontem, quando ficou insensível o meu braço direito


e, ao mesmo tempo, eu não conseguia lembrar os termos braço e
mão. Via-o e tocava-o, conseguia movê-lo (sem firmeza, sim ), mas
era como se ele fosse um espectro anônimo e o braço verdadeiro
estivesse em outro mundo, não sei dizer de que maneira. A sensação
não durou, e mesmo assim impressionou-me. Coisa parecida
sucedeu em outubro com o meu nome, também num dia em que
escrevi durante horas.

25 de janeiro

Nunca a minha amiga punha os seus discos quando estávamos


juntos. Nesses momentos, preferia outros. (Noite de julho, a névoa
cobre a tal ponto a cidade que os edifícios mais distantes
desapareceram, nós ouvimos em silêncio o Inverno, de Vivaldi.)
Depois que morreu, o pó cobria a sua coleção, da qual ouvi apenas
alguns títulos, mesmo depois de advertido. Ontem, dediquei a tarde
aos que restavam e constatei que inclusive as canções antiquadas,
do tipo que se ouve nos cabarés decadentes e que as prostitutas em
artigo de abandono repetem madrugada adentro, interpretadas pelos
astros da seresta e do samba compassado, nas vitrolas automáticas
da zona, têm lugar no seu livro. A Rainha dos Cárceres da Grécia,
assim, para quem como eu o conhece, torna-se mais e mais
semelhante, quando o lemos, a um bairro festivo que se cruza e
onde, das lojas e das ruas

103
transversais, vêm ao nosso encontro breves retalhos de músicas: o
livro ressoa.
Não surpreende que também ouçamos os versos consagrados
pelos balconistas e pelas descoradas jovens dos subúrbios. O fato
apenas confirma certas intenções já apontadas no projeto romanesco
sob estudo. Há uma retórica infusa, vigente em amplos setores
populares, na qual a máxima virtude estilística são os clichês
sentimentais e que por isto desperdiça um vocabulário impreciso,
limitado, colhido há cem anos nos autores românticos e desde então
manipulado com absoluta inocência. Lastimável e ingênua,
representa entretanto uma insatisfação diante da linguagem trivial e
o anseio de engrandecer certos atos com um estilo ornado. Sabemos
que o seu uso é obrigatório nas mensagens festivas (cartões de
aniversário, discursos de casamento etc.) e principalmente na
correspondência amorosa. O fenômeno, embora duradouro (tem-se
a impressão de que continuará, com a mesma intensidade, quando
todo o folclore estiver morto) e apesar da importância numérica
(com prestígio menor e em caráter esporádico, atinge setores com
nível mediano de instrução), tem sido desdenhado pelos homens de
saber. Que ficcionista brasileiro, além de Dalton Trevisan, cuja
atitude em face dos próprios personagens é geralmente cáustica, o
que o distancia deles e da linguagem que usam, acolhe em seus
textos esse veio lingüístico? Isto realça a manobra de Julia M.
Enone, que − natural ou corajosamente? −, mediante a deliberada
seleção de letristas afinados com a retórica pobre do povo, une-se a
eles e, através deles, a um certo modo coletivo de sentir e expressar.
Acolher apenas os compositores que, refletindo o humor, a poesia e
o saber da multidão, representassem um modo criador de dizer,
expressaria ainda um preconceito de natureza intelectual.
Ao mesmo tempo, é indiscutível que muitas citações, banais
no contexto original, transplasntadas para o romance, tecido mais
complexo e conotativo, sofrem uma espécie de transmutação,
afetadas por tudo que as rodeia, tornando-se quase irreconhecíveis.
104
28 de janeiro

Observando Vicente, meu barbeiro, no ofício há mais de vinte


anos, amolar a navalha na correia, pergunto em quanto tempo
aprendeu a fazê-lo.
"Dez anos.”
"Com sete ou oito, ainda não sabia ?"
"Não, e alguns barbeiros não aprendem nunca."
"Como é que você sabe que a navalha pegou o fio?"
"Sinto na mão. Mesmo de olhos fechados."
Amolar navalhas, então, evoca a arte de escrever: pelo que
exige do praticante, em exercício e paciência; e pelo modo como o
fio se revela, tão semelhante à maneira como o escritor, amolando a
sua frase, percebe (também na mão?) ter alcançado o que busca.

30 de janeiro

Assinalei as aplicações populares de uma certa retórica


limitada, mas intensamente difundida e com espantosa capacidade
de sobreviver. Indispensável aduzir que ela também se manifesta
num gênero dos mais conceituados e que aparece em A Rainha dos
Cárceres, as canções patrióticas, fato este notável em um país como
o nosso, onde a distância entre povo e classes dominantes é ampla.
Todo o hinário cívico do Brasil observa respeitosamente as leis
dessa estilística tão curiosa e por assim dizer perene, inclusive o
hino Nacional, no conjunto um exemplar perfeito do gênero, a
começar pela adjetivação. Nele, as margens (do rio) são plácidas, o
brado retumbante, fúlgido o Sol, idolatrada a pátria; e o céu, como

105
se não bastara ser formoso, é ainda profundo, límpido e risonho
(risonhos, igualmente, os campos, inclusive os campos sáfaros),
enquanto o país, como um herói fabuloso, surge impávido, belo,
forte, sem deixar de ser − nesse quadro arbitrário e todo verbal mãe
gentil. Também não faltam inversões de palavras, figura obrigatória
no gênero, como o famoso "da Pátria filhos'', que abre o Hino da
Independência; e pelo menos uma antítese, lógica e historicamente
discutível, onde o futuro vem antes do passado. Por último, evento
só compreensível no exalta do universo de uma retórica onde a
regra de ouro é ignorar o real, descem à terra, quando cintila a
constelação do Cruzeiro, um sonho intenso (qual?) e,
simultaneamente, um raio, um raio vívido − pois essa linguagem
desconfia das coisas e venera os atributos −, um raio de esperança e
de amor, um raio.
Poucas decisões, acredito, seriam tão desastrosas como a se
substituir a letra deste nosso hino por outra mais densa ou mais
sóbria. Com a substituição, que muitos homens cultos justificam,
desapareceria o único ponto onde acaso coincidem, no Brasil, o
povo e o mundo oficial.

31 de janeiro

Rematemos o espectro do dispositivo de mediação que Julia


M. Enone, cheia de intenções e de subterfúgios, introduziu no seu
livro e que, com cautela e desejo de exatidão, venho procurando
descrever.

Maria de França, agente fictícia do discurso, oscila entre a


sanidade e a loucura: devido ao seu estado de saúde é que pretende
mesmo obter uma pensão temporária ou vitalícia. Não surpreenderia
se a romancista, cuja noção de documento é muito especial − como
106
um artista que, versado em anatomia, altera as figuras −, evitasse
notações perceptíveis no texto, distinguindo os períodos de lucidez
e os de privação mental. A solução que logo se impõe é povoar de
monstros e deformações a mente da louca e desarticular a
linguagem. Imagens de pesadelo e uma sintaxe fragmentada
evocariam o exclusivismo do seu mundo e o horror do seu
isolamento. Julia Marquezim Enone, que viveu a loucura e às vezes
me falava, serena, da imundície no hospício, da comida ruim, da
venda de cadáveres, coisa de que não se ocupa no romance,
esquiva-se com um tino e capacidade espantosa de renunciar ao
próprio eu, à armadilha confessional, que a desviaria do espírito e
das linhas reguladoras da obra, decidindo-se por uma solução mais
significativa. Tematicamente, esta solução é fria e, em certo sentido,
decepciona: ao universo crispado, tumultuoso e compacto que é o
de Maria de França quando lúcida, sobrepõe-se outro altamente
banal, rarefeito e sem mistério. Formalmente, seria difícil imaginar
uma escrita mais limitada e, ao mesmo tempo, mais clara: clareza
impregnada de conotações irônicas.

1º de fevereiro

Todas as manhãs, no seu quintal, hoje integrado no terreno


sobre o qual se ergue, inacabada, a estrutura de um alto edifício, o
velho alimnentava os seus pássaros, regava as flores, desaparecia
entre as árvores, reaparecia. Não é raro levantar-me desta mesa e
contemplar fixamente o ponto de onde ele foi varrido.

Volto a sentar-me com uma vaga impressão de ameaça e vejo


as páginas manuscritas de Julia como se elas me salvassem. Mas de
quê?

107
2 de fevereiro

Vimos ser A Rainha dos Cárceres da Grécia concebido como


absurdo monólogo radiofônico: minuto por minuto, a personagem
converte a vida em discurso (ou instaura, mediante o discurso, um
simulacro de vida). As seqüências da loucura, significativamente,
rompem esse contato. Maria de França, enclausurada em mais de
um sentido, esquece o ouvinte e já não proclama os seus atos e
cogitações. A ação, aliás, reduz-se a tal ponto que a personagem
quase desaparece; fala de uma zona de sombra, com voz fria. Frieza
inquietante, que talvez queira sugerir outro seccionamento: Maria
de França, já desligada do seu público, separa-se também do seu
discurso. A extensão desse divórcio pode medir-se pelo que a
tradição do gênero repudia como erro ou inépcia − o descompasso
entre psicologia e linguagem.
Confrontando, nas preliminares ao exame do esquema de
mediação, os modos de formar culto e poético, situei nesta segunda
família o romance de Julia M. Enone. As fases de alucinação,
entretanto, tendem para o modo culto, de que vêm a ser uma espécie
de modelo em cera, arruinado e vácuo. Receoso das elipses, das
obscuridades, das imagens, o estilo quer a todo custo ser exato e
para isto não poupa as reiterações. Estranhamente, essa ambição
resulta em nada, e falta consistência ao mundo que com tanta
objetividade pretenderia evocar. Da sintaxe, morta, neutra como o
rosto de um morto, não nascem os laços de ritmo e ainda outros
laços, imponderáveis, que comunicam a toda frase feliz, tensa de
estrutura e de mundo, uma espécie de rumor. A este descolamento,
cada termo só na aparência unido aos termos contíguos, tal um
mecanismo cujas peças alguém fingiu armar e apenas estão juntas,
corresponde uma separação entre discurso e coisas. A romancista,
por meandros difíceis de seguir, estabelece, com mão não apenas
engenhosa (mil intenções fazem vibrar o seu texto), o instigante
108
fenômeno de uma composição que, sob a aparente normalidade,
expressa o horrível da loucura − e do isolamento. Exemplo perfeito
do que tento compreender, o trecho onde Maria de França fala do
incêndio ocorrido em frente ao hospital:

Vejo pe1a primeira vez um incêndio, espetácu1o para mim


inteiramente novo e que só conhecia até este momento através de
descrições. Está ocorrendo o incêndio em pleno dia (às dez horas
mais ou menos) e em pleno bairro residencial, à avenida Rosa e
Silva, diante do hospício, que é onde em geral ficam os loucos.

Muitas famílias usam fechar suas casas nos − feriados para


gozar na praia ou em outros logradouros igualmente agradáveis um
merecido descanso. É nessas circunstâncias que irrompe o fogo na
casa supra referida, na ausência, portanto, de seus proprietários e
serviçais.

O fogo revela-se através de rolos de fumaça, que se


desprendem pelo telhado. Isto significa que o fogo já atingiu o
telhado e que, portanto, assumiu grande altura. [...] Eu e os outros
desassisados que, como eu observam o sinistro, ficamos em grande
alvoroço.

Chega, fazendo soar as sirenas, o valoroso Corpo de


Bombeiros, que entra 1ogo em ação. Ligadas as mangueiras os
bravos soldados do fogo sobem ao telhado do prédio e assestam as
mangueiras, cuja água começa a jorrar para dentro do prédio em
chamas. Vou ficar com muito medo de incêndios.

4 de fevereiro

Nenhum leitor reconhecerá, por trás do que acima transcrevi, a


voz de Maria de França: distanciada do que diz − desta casa em
chamas que em nenhum momento inflamam o texto −, aparece
109
igualmente separada do modo como o diz . Por outro lado, faltam
indícios sobre a realidade do incêndio. Não se impõe à nossa
confiança o que descreve ou relata a personagem quando fora de si;
e nenhum incidente (também isto nos conduz à série de abismos
que, analogicamente, expressam na obra o tema da loucura ou do
isolamento peculiar à loucura), incidente algum que fora observa do
no hospício tem ligação com as demais unidades narrativas.

5 de fevereiro

Há aqui ainda um ponto a apreciar. Todas as cenas do


hospício são minadas por breves expressões que denotam a idéia de
logicidade, já sugerida pela dessorada limpidez do texto:
"naturalmente", "claro", "vê-se bem" etc. O problema que esse fato
insinua não é apenas lingüístico, e sim metafísico. Ao mundo das
outras partes da obra, enredado e por vezes mesmo impenetrável,
opõe-se − expresso na linguagem chã e óbvia − um mundo
decifrado e sem fundo, um mundo plano. Observem a descrição que
faz do cemitério anexo ao hospício:
Depois ele viver algum tempo, a pessoa falece. Não há mistério
algum em que tal aconteça. O cemitério é o recinto onde se enterram
os mortos. A municipalidade cobra determinadas taxas pelo tempo
que deve durar o enterramento. Contíguo ao hospício, a que pertence,
temos naturalmente o nosso cemitério. A necrópole ocupa vasta área,
recortada de ruas e quadras. A rua mais larga é aquela por onde
entram os enterros. Além das ruas e quadras, há também um
necrotério, onde se guardam os mortos ainda não enterrados. No
cemitério do hospício há muitas árvores plantadas. As árvores
concorrem muito para oxigenar os ambientes, que se tornam por isso
mais salubres e saudáveis. Servem também as árvores para abrigar os
pássaros, evitando que eles não tenham onde construir seus ninhos,
110
nos quais põem ovos. Não causa admiração que os pássaros nasçam
de um mero ovo. Tenho medo de pássaros, e da árvore tudo se
aproveita, desde a raiz, que mergulha no solo, até os gomos e
rebentos, uns dos quais constituem palmito, de que o homem se
nutre; outros dos quais constituem forragem, de que se utilizam a
girafa e o elefante.

Passa o texto, impassível, sobre o tema da morte, insistindo,


desde a segunda frase, na ausência de mistério. Esta convicção,
capciosa, é reforçada por informações topográficas ou
administrativas, todas banais: a extensão da área, a cobrança das
taxas, logo passando-se a uma breve e anódina dissertação sobre as
árvores, não mais as que ela vê (as do cemitério e da morte), e sim
as árvores em geral, das quais "tudo se aproveita". Como de
passagem e sendo, na verdade, a contrapartida da ausência de
mistério na morte, insinua-se, na alusão aparentemente fortuita ao
pássaro e ao ovo, a idéia de que também a vida não espanta. Pode-se
negar, latente nas duas citações feitas, mais ainda na última, essa
parábola (difusa, aliás, em todas as seqüências do hospício)?

7 de fevereiro

"Por que escrevo? Você, perguntar isto? Um homem


inteligente! Ora... (risos). É, não sei. Não sei mesmo." (Da fita
magnética gravada por J. M . E.)

111
8 de fevereiro

A linguagem sem mistério de Maria de França quando louca


subentende a ausência de mistério no mundo. Aparenta-se à loucura
reduzir o mundo e a palavra. Jogados em um universo impenetrável,
tentamos nomeá-lo, teimosamente, cônscios da nossa insuficiência.
A nomeação, ato inteligente, é também − e por isso − um ato aflito.
Daí as aventuras da linguagem, expressão − com as suas contorções,
buracos, obscuridades − dessa tentativa tão desesperada.

Sim.
Como nomear o que nos foge, o que se nega, o que se oculta
− e como vislumbrar, sem nomear,
o que se oculta, nega, foge?
Nomeamos.
Isto é romper sem cessar os ossos olhos contra pontas de aço.
Mas insistimos:
experimentamos a nomeação, inventamos linguagens.
Ofício? Encargo? Desafio?
Difícil, bem sabemos, nomear e ver
− expressões de lucidez.

Vida e morte, contudo, iluminam-se? Ante elas transitais sem


sobressaltos e tranquilamente medis a extensão dos cemitérios,
insensíveis à extensão ilimitada da morte? Sois o repetidor, servil, de
uma linguagem formalizada, convicta da própria eficiência, pois o
real, pretendeis, é tangível e sem sombras? Nesse caso, entre vós e
nós, os que vemos tão pouco e sabemos ver pouco, e falamos com os
dentes soltos na boca, pois vemos pouco, as imagens da Terra
obstruindo (folhas de treva?) nossas órbitas perplexas, entre vós e
nós existem muros.

112
Sabemos não ver porque vemos. Estais certos de ver tudo e tudo
credes nomear? Isto é ofício de loucos.

Que outro modo, mais sugestivo, encontraria Julia Marquezim


Enone para nos segredar sua concepção da linguagem e do
parentesco da linguagem com o emaranhado das coisas?

19 de fevereiro

Viajo para o Recife e vejo o seu Carnaval. Mudou e


empobreceu: Mas alguns dos blocos que encontrei nas ruas
lembravam em tudo o Flor da Madrugada, onde se encontram Maria
de França e Dudu. Acreditei reconhecer, em mais de um casal que
passava abraçado, dançando o frevo, os personagens da minha
amiga. Aturdindo-me com o som dos instrumentos, segui um bloco
e, a certa altura, eu estava no centro do romance, governado pelo
Sol.
Cruzo a Ponte da Boa Vista, onde pela primeira vez eu e Julia
seguimos lado a lado (encontrara-a numa exposição) e onde,
debruçado no balaústre de ferro, enquanto a noite rapidamente caía
sobre o rio, eu ainda ignorava que esse encontro não era passageiro,
que um processo ainda vago − mas irresistível − iniciara-se, unindo-
nos.
A pretexto de mais uma vez tentar a liberação do romance, e,
na verdade, com o objetivo de ver a descendente de Julia, tirar as
minhas próprias conclusões, vou à pequena cidade cujo nome
prefiro ocultar e onde agora reside a maioria da família Enone,
inclusive os responsáveis pela moça. Qual o motivo da

113
desconfiança e mesmo hostilidade, tensas e surdas, que encontro
nessa casa? Pareciam desejar que eu me fosse quanto antes,
fingiram ignorar minha insinuação de falar à tutelada e continuaram
inabaláveis em relação ao livro.
"Mesmo, o senhor sabe, a decisão não depende só de nós, há
outros interessados. E por que essa insistência?"
Comi num restaurante ordinário − não encontrei outro −, as
portas para a rua, em frente a um mercado primitivo, legumes e
frutas amontoados no solo. Crianças descalças olhavam-me
encostadas aos portais, com pedaços de papel nas mãos, à espera de
que eu terminasse a refeição e distribuísse as sobras da comida .

20 de fevereiro

Continuando a desarmar (e assim armando) o que é em si


inextricável, tentarei isolar e definir o espaço de A Rainha dos
Cárceres, de certo modo uma extensão, esse espaço prodigioso, dos
pássaros que o assombram, todos enormes, intimidando Maria de
França.
Quem, psicólogo ou estudioso do romance, identificará as
razões pelas quais o leitor em geral só se apercebe da ação e dos que
agem? Quando muito, compraz-se ainda nas sentenças que
exprimem algum gênero de sabedoria. Talvez os velhos contos nos
dêem a pista do que hoje nos parece uma deficiência e que pode ser
o modo genuíno de ler ou de ouvir.
Abra-se, com a reverência que impõem os textos muito
antigos, a coletânea de Marie de France, essa homônima normanda
da personagem de Julia M. Enone e de quem, a setecentos anos de
distância, não espanta que saibamos pouco: escreve na

114
Inglaterra os seus lais30 e dedica-os a. Henrique II, Plantageneta, rei
de uma corte francesa na etiqueta e na língua, como a sua mulher,
Alienor de Aquitânia. Atém-se as composições de Marie de France
ao enredo, pouco informando sobre as personagens e ainda menos
sobre o chão onde se movem: "Vivia outrora na Bretanha um
homem rico e idoso". "Há muitos anos, viviam na Bretanha dois
cavaleiros cujas terras confinavam." "Morava na Bretanha um
barão." Queria-se, antes de tudo, a história; mesmo os protagonistas
assumiam interesse na medida em que participavam de eventos
espantosos ou dignos de pena. Emergem a intervalos, dessa
Bretanha vaga e cuja geografia parece toda contida no seu nome,
uma vereda, um aposento ou bosque onde os heróis se encontram,
mas a ação − direta e sumária − dispensa por menores descritivos.
O exemplo de Marie de France não é único e representa uma
tradição que só muito mais tarde será modificada. Vai o narrador
estender em torno das figuras um cenário mais preciso, e o simples
nome Bretanha já não basta. As descrições do espaço − verdadeiras
árias numa certa época e minuciosos catálogos, por exemplo, com
Zola − alcançam o romance moderno e assumem por vezes a
hegemonia, como na segunda parte ("O tempo passa") desse
delicado e elegíaco Rumo ao farol, onde o espaço não constitui
simplesmente o fundo mais ou menos espesso contra o qual se
projetam as personagens: animada pela mão de Virginia Woolf, a
velha casa litorânea da Escócia onde antes vimos transitaremos
Ramsay, pequena criadagem e convidados, aparece-nos vazia,
fechada e em silêncio, apenas visitada pelos ecos

30. Francês arcaico: lai; celta: loid, "canção". Havia, no lais, a letra e a melodia,
executada por uma espécie de harpa ou viola. Cultivaram-se, na Idade Média, dois tipos
de lais: os extensos (dentre os quais os de Marie de France) e os arturianos, inseridos
nas novelas de cavalaria do ciclo bretão. (Massaud Moisés, Dicionário de termos
literários e ocultistas. São Paulo, Cultrix, 1974.)

115
e reverberações do mundo exterior, à espera de que tornem os
antigos habitantes (alguns dos quais já estão mortos). Curiosamente,
não parece o leitor do nosso tempo seguir o romancista nas suas
preocupações com o espaço. Quase sempre, mostra-se pouco
informado − quando não pouco sensível − em face da atenção
concedida pelo romance moderno ao problema; e quando alude ao
espaço no livro que lê, como no século XII um cortesão de
Henrique e Alienor, limita-se a dizer que a história decorre na
Bretanha.
Sim, talvez a narrativa, na sua expressão arquetípica, não exija
do espaço mais que um nome − quando muito, um nome
encantatório. Iria então o narrador, século após século, cumprir esta
lei? "A dança reverenciava os deuses; hoje exalta o corpo adestrado
e vibrátil do próprio bailarino", sentencia Marquerol Quarez.31 Julia
Marquezim Enone, portadora da inquietude e do espírito de
investigação vitais, hoje mais do que ontem, à atitude criadora, cria
um espaço nada trivial e que amplia a significação do seu livro.

21 de fevereiro

A gestante Divina Alves da Rosa, moradora em lpatinga,


Minas Gerais, visitava a irmã em Governador Valadares, quando
começou a sentir dores. Tendo deixado em casa alguns documentos,

31. Introdução às artes do gesto. Trad. de Jorge Prata Coimbra, Edições do Rei, 1970,
p. 12. Quarez, coreógrafo e leitor constante do Canzoniere, faz nessa mesma obra um
confronto muito claro entre os gestos ordinários e os movimentos da dança: "Vai entre
eles a distância que a muito surpreende entre a linguagem útil e o poema. Poema e
dança operam-se num grau de elevação cuja intensidade o cotidiano repele. Mas essa
altitude permanece na comunidade turva dos homens, como uma memória. Recordemos
a presença estelar de Laura na vida de Petrarca".

116
inclusive a carteira de beneficiária do INPS, percorre quatro
hospitais, uma farmácia e o serviço de assistência social da
prefeitura, não conseguindo socorros médicos, e por isso morreu,
juntamente com a criança.
Quanto a Expedito Esteves, possuía a documentação exigida,
mas as inúmeras tentativas de internar a esposa, Rita Correia de
Araújo Esteves, trinta e três anos, grávida de sete meses, foram
inúteis. A Maternidade de Juiz de Fora recusou-se a atendê-la,
alegando ser muito cedo para o internamento. Rita Correia de
Araújo Esteves e o filho morreram sem que ninguém os assistisse.
(Jornal do Brasil, 22 e 31/1/1975.)

24 de fevereiro

Transitam as personagens em um espaço simultaneamente real


e irreal, que o estado mental de Maria de França justifica ou simula
justificar: A Rainha dos Cárceres da Grécia, insisto, é um tecido de
simulações.
Talvez, como num jogo de reflexos (obtido, é verdade, com
espelhos embaçados e em corredores sombrios), tenha perpassado
no meu texto o espectro dessa operária e doméstica, atravessando
consultórios e repartições, cruzando ruas não imaginárias de uma
cidade real, o Recife, com os seus rios e pontes, seu porto, seus
quartéis e as favelas, que formam em redor da cidade uma espécie
de aba negra e podre. Neste processo de desvendamento que é o
meu comentário − e delinearei, espero, o perfil do romance, como já
delineei algumas das suas personagens −, não foi ainda possível
revelar o verdadeiro espaço da história, na verdade um Recife que
não nega o Recife real e também não se limita ao modelo: enruga-o
e encanta-o. E como se a cidade se transformasse no seu próprio
mapa, de tal modo flexível que se pudesse dobrar, sem com isto
perder o volume: continuasse habitável.
117
25 de fevereiro

Temos, em A Rainha dos Cárceres da Grécia, um espaço


natural (aí estão as avenidas e bairros de uma cidade que todos
podem identificar) e contudo arbitrário. Como sempre, a romancista
disfarça as suas soluções. Quem conhece o Recife achará absurdo
que uma personagem venha pelo cais de Santa Rita, dobre à direita,
passe pela Estação Central e atravesse a Ponte Santa Isabel; que no
fim da rua da Concórdia surja a praça da República; ou mais ainda
que Maria de França, indo pela rua da Aurora, ao lado do rio,
enverede pelo beco das Cortesias ou observe o Seminário, situados
em Olinda. Como se não bastasse converter o Recife numa estrutura
móvel, que se desconjunta e sem cessar reordena-se, Julia M. Enone
remove a cidade de Olinda, anula os seis quilômetros que a
distanciam do Recife e faz com que ela invada a capital, trespasse-a.
Surge, da fusão operada, uma cidade fantástica, exclusiva do
livro e cuja impossibilidade escapa ao observador não alertado. O
Recife, cidade rasa e como submersa, recebe as colinas de Olinda,
alteia-se, e os sinos de uma, soando, ecoam dentro das casas de
ambas. Contrapondo-se à topografia mutável da cidade invadida,
com os seus logradouros que flutuam e ligam-se a outros −
separando-se depois para novas combinações impossíveis −, a
Olinda do romance é firme e corresponde fielmente à que podeis
visitar. Extraviam-se os habitantes do romance e, indo por uma
calçada da zona portuária, galgam em seguida a ladeira do Amparo.
Acontece regressarem a outro ponto do Recife ou ao mesmo lugar
nas imediações do cais, com os seus cheiros pesados de óleo cru e
frutas podres, mas o traçado da Olinda romanesca, estável, repete
com exatidão o da Olinda histórica.

118
Esse espaço híbrido, onde um espaço firme um espaço móvel
associam-se, resulta mais sugestivo e intrigante que a opção em
favor de uma ou de outra alternativa. Apesar disto, como evitar a
necessidade de indagar o que leva a romancista a integrar, no
mesmo campo, concepções antagônicas? Motiva-a a lei da
variação? Quer apenas a escritora, atenta ao conselho de Horácio,
mesclar "o verdadeiro e o fictício"? Procura confrontar, com as suas
obscuras implicações ocultistas, o líquido e o sólido?
Não sei responder.

26 de fevereiro

Fui discreto e mesmo inexato quando mencionei alguns dias


atrás o almoço na cidade onde moram irmãos da minha amiga e sua
filha. Creio ter dado a impressão de estar sozinho, mas a partir de
certa altura tive companhia. Pode ser que, escrevendo, a lembrança
do que houve deixe de afligir-me. Só. Não creio que ilumine A
Rainha dos Cárceres e nem sequer o ato de escrever.
Acabavam de pôr a comida e a água mineral sobre a encardida
toalha de plástico, quando vi o homem na calçada. Trajava roupa
clara e passeava em frente ao restaurante, como se hesitasse em
entrar, mãos nos bolsos das calças. À espera de alguém? Sob o
chapéu-do-chile um tanto gasto, seu olho direito, azul e zombador,
atravessou-me. Tive a impressão − mas era impressão ou certeza
absurda? − de já ter visto esse olho numa caixa de costura. As
pedras do calçamento, as pessoas − todas pobres −, as mercadorias
no chão, as paredes tinham um ar sacrifical: oferendas a algum deus
crestador e sem clemência. Descobriu-se com um gesto rápido e
inquietante (os cabelos amarelos), enxotou os meninos junto às
portas e agora estava perto da mesa.
"O amigo é o professor que..."
119
No mesmo instante, eu soube. Como? Desde muito separava-
nos, ligava-nos também?, um muro espesso. Agora, estávamos
frente a frente, e a minha amiga regia o nosso confronto. Depus a
carne mastigada no prato.
"Bem... Julia. Não sei se ela falou de mim. Deve ter falado.
(Os movimentos falsos dos braços, como se ocultasse uma arma.)
Era minha mulher. Eu sou Heleno."
Isto nada me dizia. Julia evitava pronunciar o seu nome e
nunca tentara descrevê-lo. Quantos anos, agora, ele? O nariz curvo
se inclinava para a boca um tanto flácida, a testa alta e ossuda com
rugas semelhantes a costuras, contrações espasmódicas no queixo.
Quarenta e cinco? Apesar de tudo havia nele uma força, algo
flagrante, intenso e enjoativo. Como um perfume ordinário.
Depende desse A Rainha dos Cárceres, e talvez de uma pobre
retardada, confiada a gente inculta, que crê de certo infamante e até
delituoso o ato de escrever.
"Vou passar uns dias por aqui, quero ver esse troço que ela
andou escrevendo. Tenho o direito. Fomos marido e mulher."
Mais difícil, a cada instante, levantar-me ou dizer que se vá. A
vida de Julia, que ela me confia por partes -nunca um relato
ordenado, nada que se aproxime de uma confissão -, adquire, ante
esse corpo ao qual não foi estranho o seu e tão próximo de mim que
posso ouvir, quando se move, o roçar do brim áspero, uma
contundência que me chega aos ossos. Eis ao meu alcance, no corpo
gasto do estranho, a minha amiga em plena juventude, cega em
muitas coisas e frágil em quase tudo, menos na determinação de não
render-se, ei-la no tempo em que ainda não mereço vê-la,
desbravando o seu caminho tortuoso e indecifrável, tocando os
primeiros segredos através desse homem que ama aos onze anos e a
quem desposa antes dos quinze − já avançando entretanto na minha
direção e do seu livro.

120
"Não sou doido, para ver todo aquele calhamaço. Mas vou
mandar ler, de ponta a ponta. Posso queimar o livro. se ela não diz a
verdade. A lei está do meu lado. A doidinha, a tal filha-da puta, não
tem direito a nada ."
Curvou-se sobre a mesa (sempre os gestos não explicáveis dos
braços, com algo de inconcluso), e eu soube que ele ia ofender-rne.
Quase podia prever frase por frase a ofensa.
"Com três meses, dei-lhe um chute. 'Suma-se!' Entendeu?
Tem isso no livro? Duvido. Sempre mentiu demais. Eu é que não
suportava e dizia a ela: 'Vá trepar com o diabo'. Entendeu? Eu ainda
não tinha 25 anos, sou macho toda a vida, a sacana que se queixe de
ir comigo ainda não nasceu, mas ela queria passar a vida na cama."
Os olhos azuis procuram ler no meu rosto; eu me exponho ao
seu exame. Que coisa é um corpo e que coisa a história da sua
passagem no mundo? Herda o corpo os extravios e as procuras?
Que restava, no corpo de Julia − não um belo corpo, talvez, mas
suave e audível, sim, como se todo ele respirasse, com os seios
chatos, a cintura espessa e os joelhos um pouco salientes −, que
restava no seu corpo do embate longínquo com esse estranho a
quem amou e que a feriu ? A lembrança dele, falseada, perdurava:
os espelhos da memória. Há os espelhos do corpo?
"Depois, ela aparecia e queria voltar. Eu não tinha·forças pra
dizer não. Era muito bonita nesse tempo. Viu algum retrato dela
ainda menina ?"

"Vi. Há um no túmulo."

Derrisória agressão. Atingira-o, eu, mas bem pouco: era um


homem com valores arbitrários, e a morte para ele valeria tanto
quanto nada. Queria-o a minha amiga naqueles anos passados com
uma violência que a idade não tardaria a esbater. Mas esse

121
ardor − ela dissera-me − não compreendia, era ain da imaturo, o que
são Bruno de Asti denomina "a ilusão diabólica do êxtase"− O
esposo assediava-a com orgulho e desespero, tentava acordar a sua
carne ínscia: contundia o jovem corpo, do qual se sentia tão distante
como agora. Com intervalos irregulares, houvera quatro separações
entre eles; numa das vezes, não todas as vezes, ela tornara por sua
própria vontade. Um dia, afinal, a mulher em formação entreviu o
prazer, reflexo do que o macho prometia. Mas o que vislumbrara −
decidiu − não era dele que receberia em toda a plenitude quando
chegasse a hora. Urgia preparar-se desde logo: abandonou-o para
sempre. Para sempre? Não. Houve esse encontro, inexplicável, de
que ele agora me fala.
"Se não rabiscou o tal livro só pra torcer os fatos, deve ter
confessado que seis janeiros depois do casamento encontrei com ela
na rua, e já sabe. (Contrações no queixo. Hesita? Nódoas de fumo
nos dentes.) Deixei lá dentro um filho. Pra seu governo: fazia mais
de quatro anos que a gente não se via − entendeu? −, e eu morava
com outra. É! Posso lhe mostrar a casa onde estivemos. No Pina ."
Pouco lhe interessa o livro, apenas um pretexto, fácil, para
falar de si e ofender-me, mas eu sei muito mais do que ele pode
supor, e o que sei desvenda-me o reverso ignóbil de cada palavra
sua. Os meninos outra vez junto da porta, sal e mica nos meus olhos
enfermos, a claridade reverberando nas pedras. Julia e ele na praia,
o velho Oton Enone lava as mãos, não é mais do seu caderno o que
ela faça ou não faça, caia na zona, apodreça na, vá ser puta de
assaltantes, dane-se, contanto que ele não veja, não saiba. Mete o
dinheiro na bolsa da filha: comprar passagem e viajar para a Bahia
comuns parentes que moram em Salvador. Falta ainda um desastre,
um peso a receber e conduzir, uma lição a incorporar, um exercício
aviltante (Julia e o homem chamado Heleno, os dois na praia
andando, a pensão ordinária), ela não sabe mentir e conta ao pai o
que houve, ela e esse homem, os passos na areia, a noite no quarto,
o despertar, a bolsa vazia, o pai expulsa-a de casa. Internada pela
122
segunda vez, aborta dois meses depois no Hospital de Alienados e
desde então fica estéril. O corpo é uma história: a do seu próprio
curso.

11 de março

Imitando Julia Marquezim Enone, que consagrava por vezes


manhãs e tardes a um parágrafo, aplicação agravada no meu caso
pela necessidade de criar artificialmente, com base no exemplo de
alguns mestres, aquela espécie de instinto mediante o qual elege o
narrador, na multiplicidade do real, fragmentos que, imantados de
significações, nos levam a perceber ou a crer que percebemos, à sua
luz, mil fatores ausentes do texto (o fundo implícito do texto),
concluí no sábado o trecho datado de 26 último, nele aplicando
perto de dez dias. Envolvido na matéria − o episódio descrito, note-
se, era recente, e não dizer quanto me perturbou −, pode ser também
que a minha condição de interessado estorvasse o trabalho do
observador. Ocorreram, finalmente, quando eu tentava descrever
com exatidão e algum apuro formal o encontro, certos recuos ou
falseamentos do espírito, impedindo-me de referir tudo.
Omiti que o de nome Heleno − quando se levantou, eu vi tinha
− o braço esquerdo decepado à altura do pulso. Minha omissão não
era calculada e não deve ser interpretada como um gesto nobre: não
poupava o homem. Eu resistia a enfrentar o fato, insólito, de admitir
nele um rival. Não, não em relação a Julia − em relação ao livro.
Incapaz de esclarecer se ela desposara um mutilado ou se a
amputação ocorrera mais tarde (faltava-me língua para esta pergunta
inconcebível), a incerteza roía-me, pertinaz como esses medos, nem
sempre falsos, de que progride em nós, discreta, uma doença mortal.
Opunham-se as duas versões, cheias de conseqüências. Sentira

123
ainda a minha amiga, nos seus tenros quadris, as duas mãos do
esposo, e era esta a imagem neles sobreviva? A coincidência entre o
órgão mutilado e o fundo quiromântico do livro desprestigiava essa
hipótese, sobre a qual prevalecia, tão aflitiva quanto absurda, a que
surge como seu reverso: Julia M. Enone, criança, conhece e ama um
aleijado, um manco; anos mais tarde, dando a impressão de
organizar o seu livro como um jogo de alusões à ciência de ler nas
mãos a vida e a morte, na realidade monta-o como um órgão
artificial, refazendo, com tão astuciosa alquimia, a mão que falta ao
incôngruo parceiro da sua adolescência. Uma doação ambígua como
a que antes lhe faz do próprio corpo, e bem mais grave.
Outras suposições surgem e lutam. Mas a verdade, afinal, não
chega a importar muito. Seja qual for (mesmo Julia teria a
resposta?), sobressai de tudo a minha penúria de forças, lastimável,
eu, cujo verão inevitavelmente começa a declinar, um celibatário
nutrido de leituras e supondo haver adquirido, na contemplação e na
meditação, um pó de sabedoria, afligindo-me como se na insciente
juventude e dependendo, para reconquistar a minha paz ou o que
ostente esse nome, das relações entre certa mão − esmagada?,
arrancada a machado?, comida pelos cães? − e o arcabouço de um
texto.

12 de março

"Proteger minha obra, inclusive, não só da complacência,


como também do ódio. Um dia, enganada, chorei muitas horas, e
não propriamente por mim: temia que o engano envenenasse a
minha obra futura e, através da obra, o coração de alguns." (Dos
papéis de J. M. E.)

124
13 de março

Descrevi nas páginas anteriores um processo do qual eu tinha


noção, envolvendo os abstrusos meandros dos que amam, sempre
expostos a atos vis. Outro movimento mais profundo, entretanto,
inacessível à minha percepção e domínio, desenvolvia-se, ia
alcançar o livro da ausente a quem amo, minha concepção do livro,
e esta madrugada revelou-se.
Por isto, em definitivo, incluirei aqui as últimas anotações. A
Rainha dos Cárceres da Grécia, sem que uma vírgula se deslocasse,
sofreu uma transformação interior. A mão, não a minha ou a de
alguém, a mão ideal, abstrata, modelar, que é de certo modo o
esqueleto do romance, sua armação, ressecou, ou, para ser mais
preciso, ausentou-se, deixando em seu lugar um vácuo. A
concepção da obra, tudo o que ministra nas suas artificiosas (e
secretas) alusões quiromânticas, o nexo aceito pela tradição − e
incorporado ao livro − entre a mão de cada um e os astros, entre
cada um de nós e a Criação, tudo recende agora a equívoco. Uma
negativa vinda de fora, do nosso universo cambiante e efêmero, por
meu intermédio insinuou-se entre os muros da obra e lá está, fora do
meu alcance, triste.

17 de março

Retifico o que há poucos dias afirmei. Manteria no meu livro,


com tudo que trazem de confessional, as quatro ou cinco
páginas anteriores, mesmo se não houvesse repercutido na minha
compreensão do romance o desagregador episódio de que tratam.

125
Assentei, desde o início, tornar o presente comentário
permeável ao sempre ignorado instante da sua elaboração. Mas a
arte de hoje − fenômeno, com a intensidade que vemos, próprio de
nosso tempo − é muitas vezes a demonstração inflexível, fechada,
de princípios teóricos. Assume, com isso, o caráter, a que os
contemporâneos permanecem inexplicavelmente alheios, de obra de
tese, não ideológica, mas formal. E só o cuidado − assimilado talvez
no livro mesmo que estudo − ele evitar o vício programático, isto e
ainda o senso da oportunidade, quase sempre agudo nos tímidos,
tem impedido que eu mencione aqui o ruído intolerável de
máquinas − serras mecânicas, removedoras de terra, betoneiras −,
fundo habitual e exasperante deste meu trabalho.
Contudo, sem receio deveria fazê-lo. Isto acrescentaria ao
texto, que pode acaso parecer tecido no silêncio, uma espécie de
fundo e um sentido de resistência: no âmago da balbúrdia e da
aspereza, ele tenta constituir-se em melodia.

18 de março

O deslocamento geográfico que aproxima, de um Recife


desarticulado − ou sujeito a articulações inconstantes −, a sólida
cidade de Olinda, não é no livro uma invenção cerrada. Associa-se a
outra, ainda mais sugestiva e que vai acentuar, nele, a singularidade
do espaço.
Organiza-se A Rainha dos Cárceres da Grécia em torno de
uma percepção anômala. Mesmo quando lúcida, surge Maria de
França, fonte aparente do discurso, como portadora de uma visão ao
mesmo passo veraz e onírica − o que se repete na dualidade do
cenário, firme e fluido, preciso e incerto. À maneira do jogador de
126
damas, que sacrifica uma pedra para avançar·com vantagem, Julia
Enone faz uma concessão ao verossímil e assim fica livre para às
experiências que, solerte, desejava pôr em prática no campo do
romance, A loucura de Maria de França, motivo "natural",
convincente, implantado no fundo social da obra, é antes de tudo
uma cortina para esconder a partida verdadeira, essencial,
desenvolvida no campo da criação romanesca. Elude um
diagnóstico preciso e sempre nos conduz a problemas de fatura,
abrangendo a realidade concreta e a linguagem. Chave essencial na
estrutura enganosa do livro, máscara da romancista, faz passar por
deformação o que é tentativa de aprofundamento e por arbitrário o
que é cálculo, como as tropas bem armadas que, em clima de
guerra, fazem tremer de um ponto a outro do romance o chão da
anfíbia Recife/Olinda .

19 de março

Lê-se nos jornais: o procurador-geral da Justiça, Oscar Xavier


de Freitas, determinou o arquivamento do processo que apurava a
"Operação Camanducaia", por entender que não há crime a punir.

20 de março

Quem são os soldados que guarnecem o romance? Concluída


a leitura, a primeira e talvez outras ainda, que resta dos seus perfis e
armas? Vai Maria de França de um lado para outro e sempre cruza
com eles. A princípio, tem-se a idéia de que a ação do livro, ainda
pouco explícita em relação ao tempo, corra paralela com algum
levante armado, histórico ou imaginário. Vagas operações militares
reforçam esta suposição, e eis-nos indagando de que modo esses

127
homens, sobre cujo aspecto e feição nada oferece o texto − são
sempre "o batalhão", "um esquadrão", "o piquete", "o bando
armado" −, haverão de entrar na história que se delineia. Súbito,
uma palavra solta retine, que há de estranho no seu timbre?, vibra
estranha e adverte-nos de que esses guerreiros talvez não usem os
trajes e outros aparatos que lhes dávamos:

estão ouvindo, passo firme, todos sem mover-se e assim mesmo bate
no ar a cadência, o brá e brá e brá, atroante feito coronhada em porta,
tão diferente da pisada de paisano, o sol faísca de mosquete em
mosquete, de fivela em fivela [...]

Mosquete? Podia ser ainda uma impropriedade de quem vê no


governador do estado um rei. Três linhas adiante, esvai-se a dúvida.
Alude-se à defesa do porto, a fortificações de pedra, a trincheiras na
praia, e então percebemos que certos elementos anacrônicos de
arquitetura e de mobiliário − como janelas sem vidro ou cortinas
espessas − vêm sendo introduzidos, se bem com parcimônia, e que,
assim como Olinda penetra no Recife, outro tempo distante,
irrevelado ainda, invade o tempo da fábula e nele permanecerá,
concreto e à margem, inacessível: uma guerra antiga, entre o mar e a
terra (repetição do confronto fluidez/solidez, Recife/Olinda?),
desenrola-se incongruente no cenário de uma narrativa que a ignora
e em nada influirá no seu curso.

128
21 de março

A interpretação que proponho e que recusa, a rigor, o estatuto


de personagens a esses vultos fora do tempo, preferindo aglutiná-los
à noção de espaço, é discutível, mesmo se considerarmos que eles
nunca se movem, conquanto sejam vistos quase sempre em ação,
compondo, em conjunto, uma espécie de álbum, uma galeria de
quadros de batalha, sobrepostos a um cenário onde nada mais têm a
fazer esse rancor e essas balas. Não desejo impor − ou sequer
propor − uma tese. Minha posição é cautelosa, nada arrogante, e
dúctil nada medida do possível. Decerto, não elejo ao acaso ou por
capricho tal perspectiva. Esses soldados em armas não alteram em
nada a fábula; mas alteram significativamente a natureza do espaço.
Sem eles, a operação imaginária com que Julia M. Enone torna
surreal o cenário do seu livro ignoraria o tempo, ficaria limitada a
uma única categoria; com eles, trânsfugas de uma época passada,
nasce uma temporalidade ubíqua, da qual o espaço todo vai
impregnar-se. Às conciliações móbil/fixo, líquido/sólido,
sobrepõem-se o hoje e o ontem, simultâneos. As fachadas lisas das
construções recentes coexistem com o geométrico entrelaçamento
dos mudéjares; as paredes revestidas, com os muros vermelhos de
adobe; as vias asfaltadas de agora, com becos lajeados de outrora,
sinuosos e sem ândito, grandes balcões sombreando-os.

22 de março
Ontem. O termo, no sentido em que o empreguei, não tem
limites. Tais expressões, abissais, foram criadas, como grande parte
da linguagem, por pessoas levianas, sem o orgulho da eficiência.
Vogam no ar essas palavras nuviosas.

129
23 de março

Não. Estou sendo injusto e, o que é mais grave, obtuso:


escapa-me a razão do que andei escrevendo nos últimos dias.
Pensando bem, a imprecisão do ontem, ali onde ocorreu, não era
indesejável. Veio, certamente, para sugerir o modo progressivo
como vai o leitor identificando no romance aquelas figuras militares
que a princípio supõe incoerentes, signos do desacerto mental da
heroína. Incapaz de situá-las, joga-as, o leitor, quando o sol pela
primeira vez se reflete nos mosquetes, para um vago período de três
séculos ou mais, coincidindo os limites mais remotos desse tempo
passado com a presença dos descobridores. A participação fortuita
de combatentes índios torna mais difícil estabelecer datas.
Pertencem esses guerreiros a épocas diversas? Finalmente, revelam-
se de todo, e mais uma vez observa-se a tendência de Julia
Marquezim Enone para ocultar seu jogo: acha-se delimitada com
exatidão a época das estranhas milícias, e nada existe de casual nos
seus sucessivos aparecimentos − os quais, com leves distorções,
certas mudanças na cronologia e mais ou menos veladamente,
reproduzem um dos eventos capitais da história do Brasil. Qual?
Veremos a seguir. Revelar de improviso o que se desvela pouco a
pouco no romance seria grosseiro.

25 de março

Meu estilo de vida e minha escassa ambição fazem de mim


um tipo com quem não vale perder tempo, algo como um
dipsômano ou um viciado em narcóticos, enfim, um irrecuperável,
O que me assegura escasso trânsito entre pessoas mais ou menos
instruídas. Não diria que isso me entristece. Estou com santa Teresa
130
de Jesus, que, por não ter confessores "de tan buenas letras como
quisiera", antes preferira, aos "médio letrados", os sem quaisquer
letras, porque estes nem "se fían de sí, sin preguntar a quien las
tenga buenas, ni yo me fiara”.32 Também não imaginem que eu
viva isolado ou que não me procurem os colegas de ofício. Alguns
professores de comunicação e expressão, principalmente, quando
pouco atribulados, vêm e extraem de mim o que podem, curiosos,
como fariam com De Quincey, o fumador de ópio. Assim aconteceu
ontem, e, quando menos cuidei, falava deste diário. Não me
arrependi , pois alguém advertiu , ouvindo-me, que os textos da
loucura talvez fossem inspirados no Método de redação, de um
certo Carlos Góes.
Adquiri dois exemplares do opúsculo: um de 1961 (décima
primeira edição) e outro (décima quarta edição) de 1968. A mais
antiga traz uma introdução do autor − acadêmico e, portanto,
imortal, mas não sei se ainda vivo −, datada de março de 1930; a de
1968 manteve a introdução, mas − como fazem, maduras, no
registro dos hotéis, algumas damas − omitiu a data. Reza a folha de
rosto de 1961, um pouco à maneira dos velhos tônicos contra a
calvície: PROCESSO NOVO E INÉDITO, QUE EVITA AO
PROFESSOR O TRABALHO DE CORRIGIR PROVA POR
PROVA. Em 1968, essa comprida isca sofre um corte: o processo
deixa de ser "novo", continuando a ser "inédito", não obstante os
seus trinta e oito anos.
Tais indícios denotam o espírito do afortunado manual e da
edição, mas o que nos interessa, constatei assim que vi a brochura, é
ser ela realmente o modelo das fórmulas propostas por Julia
Marquezim Enone para, a partir do tema da loucura, representar
importantes cisões, todas conduzindo a uma certa idéia (assim vejo)
da linguagem e da nossa compreensão do mundo. Lá estão, com
poucas ou nenhuma modificação, trechos inteiros .de A Rainha dos

32.Obras completas. Madri, Aguilar, 1951, p. 42.

131
Cárceres; essas páginas dão-me agora a impressão de que o autor,
cínico, plagiou a romancista. Compreende-se. As fraudulentas
descrições e dissertações de Carlos Góes (passadas durante quase
meio século, como dinheiro falso, a alunos inermes), transpostas
para um contexto denso, imantam-se de significações e sofrem uma
espécie de desmascaramento, vindo à tona algo do que,
involuntariamente, representam. Examinando, entre divertido e
irado, esses modelos que a minha amiga realmente aceita como tais
− porém em outro sentido −, observo: para realçar os efeitos que
buscava, ela, no vasto repertório do Método de redação, desde já
incluído na minha estante de obras que à falta de melhor chamo
celestiais, ao lado do Moderno curso de oratória , de Admir
Ramos,33 e do Secretário dos amantes, selecionou, com
irrepreensível coerência, os textos onde a solidariedade aparente
com o real é sem falha, flores da sensatez mais obtusa, recusando
aqueles onde ocorre o inevitável, isto é, onde a alienação, o
descompasso, escondido por trás de uma objetividade altamente
suspeita, entre consciência e realidade, vem a revelar-se, como no
"modelo" que se segue e onde as semelhanças com os trechos antes
comentados do romance impõem-se:
"Chamam-se 'animais domésticos' aqueles que o homem
soube amansar e educar, convertendo-os de brutos e selváticos em
fatores de sua riqueza e prosperidade.
"São eles: o cão, o boi, o cavalo, o burro, o camelo, o
dromedário, o gato, o elefante, o carneiro, o cabrito, as aves
domésticas, o porco etc.
“O cão foi o primeiro a ser domesticado. Guardava a caverna
do homem primitivo contra o assalto do lobo, do tigre e do leão.”

33. São Paulo, Cia. Brasil Ed., naturalmente sem data.

132
Há um grau, na percepção das coisas, onde não se alcança
mais a diferença entre um cachorro e um dragão. Voltemos ao
mundo, menos extravagante, da louca Maria de França.

27 de março

Morta Laura, il passato, il presente


e il futuro, tutto gli é tormento e pena

La vita fugge e non s'arresta una ora,


e la morte vien dietro a gran giomate,
e le cose presenti e le passate
mi danno guerra, e le future ancora;
e’l rimembrare e l'aspettar m'accora
or quinci or [...]

Não, Petrarca, teu soneto não é duro bastante para celebrar o


aniversário, o segundo, da iníqua morte de Julia, esmagada, cinco
meses depois de dar por terminada a sua obra, sob um caminhão
GM de cor verde, chassi de oitocentos e oitenta e dois milímetros,
eixo dianteiro tipo viga em I (capacidade três mil, setecentos e
cinqüenta quilos), eixo traseiro flutuante dupla redução (capacidade
nove mil e trezentos quilos), tanque para cento e quatro litros de
óleo diesel, freios a ar, pneus de doze e de catorze lonas, carregado,
peso bruto total vinte e dois mil e quinhentos quilos.
4 de abril
Será preciso transcrever, selecionando fragmentos
significativos para evitar citações muito longas, quatro pontos do
romance onde retorna a enigmática presença dos soldados. Há neste

133
meu recurso um artifício e mesmo deturpação. Ele confere nitidez
ao que, no livro; se apresenta como um solo instrumental, cortado
pelo alarido de timbales. Mas não é também assim que procede o
romancista quando deslinda um caráter? Não seleciona
artificialmente, na infinitude dos possíveis (ou do que observou), os
contados elementos que, mesmo na contradição, dão coerência e
sentido às personagens?

Que é isso? Espada firme na mão e festa? As sentinelas na costa, nos


altos e nos baixos, bocas de aço apontando para os peixes e um
escuro de meia-noite dentro do céu de meio-dia, as claridades dos
foguetes perto do balão, esse navio na praça, no chão seco, cheio de
marinheiros, e os bombos, e as rabecas, e as flautas, e as violas,
quarenta recrutas nas armas (da pátria filhos?) e uma corneta de
batalha, o boi com fitas verdes nos chifres, alegria, gente, é preciso
não ver e não pensar nas sessenta torres marinhas, nas sessenta torres
viajantes, carregadas de chumbo, de brotes, de lanças, de vozes de
comando, o povo do Recife encantado e enganado [...] [pp. 36-7 do
manuscrito ]

"Não viva tão capiongo, seu Antônio Áureo."

"Maria, viv... vivi macambúzio e ma... macambúzio entreguei as


armas. Conheço todas as senhas do mundo. Até a eternidade é uma
hom ... bom ... bomba."

Bomba? Será? Que acham? Seu Antônio Áureo, um ramo de oliveira


na lapela, no meu ombro a... a mão... a mão... a mão de palha ,
pisando muito de leve as pedras da ladeira com os borzeguins de
solado mais fino que papel de seda, borzeguins de alma, vai ... vai
comigo nessa marcha batida e não se cansa, olha desconfiado o
homem de capacete de pé no Alto da Sé vendo se o mar é verde,
desguia a toque de caixa, resmungando, ouvem o que ele diz?, eu não
ouço. Range os dentes e dana-se a cuspir pra baixo, um cuspe atrás
do outro, fogo de bilbode, na direção do porto e dos guindastes, mete
a mão entre as pernas, mostra a colubrina, uma trouxinha, gente, e

134
grita ó... ó... ó... olhem aqui, fazendo uma roda, completa, na direção
dos sinos que batem meio-dia, dos prédios altos e baixos, das
bandeiras nos mastros, das nuvens, dos armazéns, do cais, eu fico
meio tonta e mudo a vista, ele aponta os arrecifes:

"Veja! Eu não digo? Ímpias falanges.34 Veja o desperdício. O


estrago."

Não precisava mostrar. Oito ou dez navios, ouvintes, no meio


da fumaça, todos fora do prumo, parte no fundo e parte ainda à vista,
o mastro de um rasgando a vela de outro, o desastroso, o temível, o
insuportável brilho do Sol nos cascos, luz mortal, uma esquadra na
armadilha. [pp. 79-80]

Saio do setor de benefícios, o sol muito quente, e dentro do calor um


ar de fim de tarde. Venham ver as barcaças no braço norte do rio e
esse povo se afogando, gente grande, meninos. Que águas serão
essas? Quatro pombos cinzentos e um branco procurando comida no
cais de Santa Rita. A junta médica superior vai estudar o meu pedido.
O convento dos franciscanos com as portas arrombadas, fumaçando,
a ponto de desmoronar em cima do Palácio da Justiça. Isso. Em vez
do atestado, um ofício. Ah, sim. Homens de capacete, uns com
passarinhos ou berloques nos chapéus, a ponto de invadir aquela
casa, grande como dez, no alto. O rei sai do palácio, piscando, um
braço protegendo os olhinhos, que sol quente! Bota as mãos na

34. A locução, um tanto insólita, está no Hino da Independência: "Não temas


ímpias falanges/ Que apresentam face hostil". Vários sintagmas colhidos no
hinário cívico pontuam as cenas bélicas, repetindo, sem a mesma amplitude, o
processo de incrustaçao, no texto, do cancioneiro popular.

135
cabeça e corre para dentro, ai, me acudam, não vá um desses
soldados mijar em cima de mim. Compreendemos o nosso dever.
Volte na outra semana. Quinhentos mosquetes, quinhentas golas,
quinhentos tambores, quinhentas trombetas, quinhentos talabartes
desembarcam em alguma parte. [p. 188]

Vejo pela segunda vez um incêndio, corram e se podem vejam


também, os navios carregam e descarregam, dez da manhã, os
guindastes, a água oleosa, os marinheiros, linda galera, os
estivadores, os reflexos dos cascos, e, no centro da calma, dentro da
máquina do dia e dos trabalhos do dia, os rolos de fumaça, inchados,
destampando os armazéns, e as chamas levando para o alto os
mastros, quantos veleiros?, vinte?, trinta? muitos, cheios de tesouros,
o cheiro de tabaco embebeda os urubus, e o açúcar derretido queima
o couro dos bagres. Venham! [p. 264]

8 de abril

Imagens de pesadelo? Imagens de guerra, paralelas às que


vemos, estes últimos dias, em todos os jornais e telas de TV.
Tangidas pelo avanço da Frente de Libertação, ante a qual parece vã
qualquer resistência, sendo iminente a rendição de Saigon, hordas
de desertores e de civis sem destino inundam as zonas ainda não
conquistadas. Soldados em fuga renegam a bandeira; violam as
mulheres do seu país; atiram para matar até na mãe, se ela cruzar a
estrada; alguns tentam escapar no trem de aterrissagem de um jato e
largam-se nos ares, despencam, vão beber o mar da China. E se,
tanto na guerra fantasmal do romance como na que revolve o
Sudeste Asiático, muitos dentre os vencidos arriscam-se a fugir
nadando, certos fatos − idênticos na substância − mudam de
aspecto. No Vietnã do Sul, um reator nuclear, dinamitado, voa pelos
ares, para não cair em poder dos comunistas; em A Rainha dos
Cárceres, o incêndio de entrepostos e navios·impede que as

136
mercadorias destruídas − fumo, algodão, pau-brasil e açúcar −
aproveitem ao invasor.

9 de abril

Aproveitem à Holanda. Pois, vemos cada vez mais claro, é


disso que se trata. Toda a iconografia guerreira superposta ao
cenário do romance, ponto por ponto, recompõe, com poucas
mudanças na seqüência e nos fatos abonados pelos historiadores, a
conquista, em 1630, de Olinda e do porto do .Recife pelos homens
de Lonck e Waerdenburch. Seguindo, parece, o exemplo de
Homero, que evita narrar toda a Guerra de Tróia, argumento este,
segundo a conhecida fórmula de Aristóteles, "demasiado vasto e
difícil de abarcar num relance", como se lê na Poética, não
pretendeu Julia Marquezim Enone inflar o seu livro com os vinte e
quatro anos da ocupação, neles incluindo o tempo de Nassau e as
batalhas que destroçaram o invasor. Limita-se à fase que antecede o
aparecimento da esquadra e às duas semanas do assédio − iniciado a
15 do mês de fevereiro −, culminando com a nossa rendição.

10 de abril

Volto a certos pontos das quatro transcrições feitas


ultimamente. Observaremos o paralelismo entre as cenas de guerra
que ensombram o romance e a entrada das forças holandesas em
Pernambuco; e seguireis a romancista no seu trabalho de encobrir a
natureza dessas alusões, numa espécie de conflito entre história e
poesia.

137
Todo o primeiro trecho, por exemplo, desenvolve a oposição
contida na frase que encabeça o período −
"Espada firme na mão e festa?" −,
sendo uma das partes, a guerra, expressa simbolicamente ("espada
firme na mão") e a outra, a festa, nomeada sem disfarces. Aponto,
de passagern, a coerência absoluta, aí, da solução formal: o
contraste entre o emblema e a designação pura reflete uma verdade
psicológica. Encarregado, pela corte de Madri, de estruturar a defesa
da capitania, Matias de Albuquerque, à medida que prepara
fortificações e combatentes, organiza festejos ao ar livre, com o
objetivo de apagar "agouros e temores".35 Era então a guerra
(oculta, na frase, sob uma figura emblemática) que exigia um
disfarce, e não a festa. Daí a invocação: "alegria, gente!, é preciso
não ver e não pensar".
Esse jogo só em parte se projeta no parágrafo, todo ele
mesclado de designações frontais e de imagens enigmáticas, sem
que as primeiras sempre se associem à festa e os enigmas à guerra.
Há, como se vê, as "sentinelas", as "bocas de aço", os "recrutas nas
armas" e a "corneta de bataIha", as "lanças", as "vozes de
comando", imagens inequívocas de guerra. Já as "torres marinhas",
as "torres viajantes" − invenções, acredito, sugeridas por Vieira 36 −,
solicitam outro nível de compreensão. Nesse caso, o sibilino da
metáfora é equilibrado pelo número, de modo algum casual. De
fato, compunha-se a esquadra expedicionária de sessenta e três
unidades, sendo "trinta e cinco grandes naus, quinze iates,

35. Rocha Pombo, História do Brasil. São Paulo, W. M. Jackson, Inc. , 1935. vol. 1, p.
310.

36. "Assombrou esses mares aquela multidão confusa de torres navais, composta de
oitenta e sete vasos , muitos de extraordinária grandeza [...]"·(Antônio Vieira, Sermões,
IX, 6ª. ed. Porto, 1909, p. 359.)

138
treze chalupas e duas embarcações inimigas capturadas, com uma
guarnição de três mil, setecentos e oitenta marinheiros, três mil e
quinhentos soldados e um armamento de mil, cento e setenta
canhões de todos os calibres'', conforme nos afiança Johannes de
Laet,37 que se apoiou em jornais de bordo e nos depoimentos de
chefes militares. A pequena diferença numérica não deve
surpreender-nos e justifica-se pela existência de valores que
transcedem a verdade trivial, elevando-a, fenômeno este
desenvolvido com finura pelo escritor Thomas Mann, ao menos em
dois pontos ("Sete ou cinco" e "Em número de setenta") ele José, o
provedor. Narradores e historiadores servem a diferentes leis.
Cheio de marujos, o navio, associado às imagens evidentes de
guerra, ancora "na praça, no chão seco" − espaço anômalo − e com
esta manobra ingressa no irreal. Isto se escapar ao leitor que a
romancista aí não se reporta à guerra, e sim à festa: alude à Nau
Catarineta, folguedo popular do Nordeste que o inglês Henry
Koster, parece, é o primeiro a descrever (Traveis in Brazil, 1816),
mas já se pode ver, em segundo plano, num esboço de Franz Post.
Baseado no naufrágio do navio que, em 1565, se dirigia a Lisboa
vindo do Recife,38 representa, com dançarinos e cantores, a
tripulação em luta contra o demônio, a fome

37. Historie ofte Jaerlijck Verhael van de Verrichtingen der Geoctroyeerde West
Indische Compagnie. Zedert haer Begin, tot het eynde van’t jaer sesthien hondert ses-
en-dertich. Leyden, 1644, p. 174. Além da conquista de Pernambuco, relata de Laet a
pirataria neerlardesa ao largo das Índias Ocidentais das lutas com galeões espanhóis.
Vemos ainda a Holanda no Hudson e na Costa do Ouro. Mas ninguém imagine que as
narrativas de tantas aventuras marítimas tornem amena a reportagem desse antuerpiano,
minuncioso a ponto de assinalar a procedêcia e as datas de partida dos navios.

38. É a tese de Pereira da Costa , no Folk-lore pemambucano, 1ª. edição automa. Recife,
Arquivo Público Estadual, 1974, pp. 254 e ss.

139
e o extravio, chegando por fim à terra firme. Não me consta que
alguma fonte mencione expressamente a Nau Catarineta entre os
festejos com os quais Matias de Albuquerque "encanta e engana"
Olinda e Recife. Haveria, entretanto, prefiguração mais acessível da
ameaça holandesa, à qual sobrevive a nau em perigo, comandada
pelo ínclito e leal capitão?
Imagem também enigmática da festa é a do "boi com fitas
verdes nos chifres", decerto um particular do cavalo-marinho, auto
pastoril do Nordeste, que o intolerante cronista de costumes padre
Lopes Gama, no século passado, chama "agregado de disparates".
As muitas figuras do auto − gente, animais e seres fantásticos −
cantam, bebem, dançam e correm, oito horas seguidas. Afinal morre
o boi , "sem quê nem para quê", diz Lopes Gama, e ressuscita por
via de um clister. Dispenso-me de indicar a equivalência, nesse
breve passo do romance, entre os instrumentos musicais e as vozes
de comando ou entre os fogos de artifício e as lanças, elementos
com a identidade à flor do nome e obviamente associados à
oposição festa /guerra.
Falta, em minha tentativa de desenredo, comentar o recurso
mediante o qual Julia M. Enone, no seu texto, revela o país da
armada agressora. Quase nada restou, no Brasil, como herança da
Holanda. Mesmo os nossos topônimos ignoram-na; nome algum de
cidade lembra a origem daqueles aventureiros. Quanto à língua,
parece ter guardado uma única palavra: brote, uma das cargas dos
navios − como chumbo e as armas − e que era "o biscoito militar,
pago nas viagens marítimas e distribuído aos soldados nas
diligências".39 Também já foi grafado broth, e supõe um estudioso
que o termo provém do holandês brood (inglês bread), grafado
broot no século XVII. Havendo o brote, acredito, passado por
transformações, como a sua grafia, incorporou- se
39.Tarcísio L. Pereira , Clavinas e rendas. São Paulo, Melhoramentos, 1956, p. 73.
Devo ao mesmo a autor as demais informações deste parágrafo.

140
− duro e redondo − à tradição alimentar do Nordeste. Na passagem
transcrita, equivale . − segundo a maneira discreta e por assim dizer
maliciosa da escritora − à bandeira da Holanda
13 de. abril

Releio as páginas em que descrevo o encontro com esse pobre


Heleno, ligado à vida de Julia M. Enone − que nunca usava o nome
de casada − e pedra essencial na atribulada formação do seu destino;
e vejo ser necessário completar um claro. Fala-se, ali, de um
segundo internamento no Hospital de Alienados, quando nada se
esclarece do primeiro.
Cerca de três anos após o seu precoce matrimônio, Julia
separa-se em definitivo e vai residir com os pais. Uma das irmãs
fica noiva; tem o noivo um irmão que também deve casar em breve.
Tentaria a jovem repetir, de modo menos claro e sem o mesmo
ímpeto, a manobra da mãe, quando arranca o viúvo Oton Enone à
irmã? Voltara a matricular-se na Escola Normal e havia certamente
uma ambigüidade perturbadora na normalista de dezessete anos,
casada há três e na verdade sem marido, espécie de mescla entre
maturidade e verdor. O irmão do noivo da irmã envolve-se com ela
e engravida-a. O pai e irmãos exigem que aborte, ela resiste. Nasce
a criança; o velho Oton Enone, por determinação própria, entrega-a
ao pai, já casado e com a esposa grávida de um mês. A reação de
Julia é violenta: rompe a vidraça a murros, agride as enfermeiras e
dirige-se para o berçário com um pedaço de vidro na mão, sendo
agarrada na porta. Metida à força numa ambulância, levam-na para
o hospício, onde permanece quase trinta dias, na condição de
indigente. O marido denuncia a menina como espúria e some do
mapa, mas sem desfazer o casamento.

141
Julia, tendo alta, ajuda sem remuneração na secretaria do
hospital, até que o pai vai buscá-la. A certa altura, coisa insólita,
interrompe a marcha do ônibus uma multidão de lavradores. Só aí
ela soube que era o 1º de Maio e que seiscentos pés-no-chão da
Sociedade dos Plantadores, núcleo das Ligas Camponesas, escuros,
descarnados, rotos, sujos (como esses detritos que aparecem na
cabeça da cheia, turbando o Capibaribe), tinham chegado ao Recife
para o desfile do Dia do Trabalho. O ano: 1956.

Põe-se a ler tudo que encontra, passando às vezes o dia inteiro


no quintal, com um livro. Termina o curso na Escola Normal e
parece inteiramente sem objetivo. De repente, começa a sair muito,
as ausências se alargam, certas noites não volta e não precisa onde
esteve, o pai insulta-a, algum homem?, investiga e descobre: muitas
das cartas recebidas nesse tempo por administradores e proprietários
de engenhos, intimando-os a comparecer aos sindicatos rurais, sem
o que terão de vir "na marra e no cacete", são redigidas por ela.
Participa, taciturna, os pés descalços, para fazer número, tendo à
mão uma foice, de manifestações de lavradores no Cabo, em
Aliança e em Vitória, inclusive no Engenho Galiléia, isso antes que
o governo de Pernambuco o expropriasse para dividir entre foreiros
sublevados. É então que o pai, lutando por uma autoridade em que
talvez não acredite mais, decide enviá-la para longe do estado e
ocorre o último encontro com Heleno. Iria mesmo adquirir a
passagem, ou ajudar com o dinheiro a agitação na zona do açúcar,
que então fazia tremer o Nordeste? Nunca lhe perguntei. Dentro do
possível, guardava-me de forçar as suas proteções. Difícil interrogar
alguém que amamos e que, aos vinte anos, coisa impensável na
classe média, à qual na verdade ela não pertencia (pertenceria a
alguma?), mas de norma entre as mulheres do povo, carregue uma
biografia de meio século ou mais.

142
15 de abril

Nosso primeiro épico, na Prosopopéia, menciona "uma cinta


de pedra inculta e viva". Refere-se aí às formações de arenito às
quais deve a cidade do Recife o nome e a origem: a cinta natural,
visível ou submersa de acordo com as marés, fazia da península um
porto. A certa altura, interrompia-se a muralha − era a passagem dos
navios. A futura cidade, assim, nascia destinada ao comércio
ultramarino e protegida contra visitantes de maus desígnios. Podia-
se fechar aos inimigos, se necessário, o poço entre os arrecifes,
porta secreta.
Realiza Matias de Albuquerque o que está a seu alcance para
defender-se da agressão iminente; renova as fortalezas hoje
chamadas do Buraco e do Brum, cria milícias, distribui trincheiras;
e completa a muralha meio submersa, "inculta e viva", atravessando
na passagem uma corrente de ferro. Para estorvar ainda mais os
atacantes, afunda nesse lugar um navio.
As crônicas nos dizem que a confiança nutrida pelos bailes de
rua e pelas representações populares esvaíram-se à vista dos
primeiros mastros inimigos, famílias inteiras debandando com o que
podiam carregar, antes que o primeiro tiro sacudisse as árvores. Tão
prematura reação, compensada pelo ardor de muitos soldados,
antecipava a fragilidade da armadura que o nosso capitão procurava
opor à Holanda. Assim, embora o mar agitado alie-se à terra,
dificultando a precisão da artilharia flamenga, o peso do ataque é
tão sensível que parece capaz, a quem o sofre, de partir a corrente
de ferro e reduzir a espumas a embarcação submersa na passagem.
Matias de Albuquerque atravanca essa via com o sacrifício de mais
oito navios.
Este o portentoso naufrágio a que Maria de França e Antônio
Áureo assistem; e no qual o "espírito de luz", irritado, vê um
desperdício. Impossível dizer se o seu julgamento reflete a posição
143
da escritora perante o fato histórico ou se expressa de um modo
geral a reação dos pobres.

17 de abril

Quando transcrevi, por extenso, o flagrante em que o ex-


barbeiro e a amiga sobem ao Alto da Sé − de onde, com o seu gesto
obsceno, ele insulta as cidades de Olinda e Recife, mais uma vez
fundidas −, aparentemente excedi-me. Bastaria, para a
demonstração visada, extrair as alusões à sentinela e ao naufrágio
tático fechando o porto. Mas eu desejava acentuar, ali, uma discreta
e feliz ocorrência de infiltração, na área semântica, do tema
dominante. Refletindo a introdução de cenas de batalha, vai o texto
eriçando-se de expressões ligadas à guerra, algumas com trânsito no
linguajar civil: "senhas", "marcha batida", "toque de caixa", "fogo
de bilbode" (que é o de muitos disparos um depois do outro sem
pausa sensível), "colubrina" (antiga peça de artilharia, longa e de
muito alcance) e ainda outros termos" que o leitor verá.
A tantas sugestões militares, opõe-se o ramo de oliveira na
lapela de Áureo, motivo pacífico, inserido com a discrição peculiar
à arte da minha amiga. No íntimo, o ex-barbeiro, em oposição
contínua e declarada ao mundo, do qual conhece as senhas,
ambiciona o armistício impossível.

19 de abril

"Solicitada há quatro anos, estaria chegando a uma solução a


aposentadoria dos sertanistas Orlando e Cláudio Villas Boas, após a
vida inteira junto aos nossos índios, num trabalho

144
de pacificação que todos reconhecem admirável. Tudo dependerá da
pensão a ser-lhes concedida e que, pelos cálculos feitos, baseados
nos salários de ambos, seria inferior às suas necessidades atuais, não
correspondendo, além disto, à importância e aos perigos da missão
que realizaram na selva ." (Jornal da Tarde, São Paulo, 18/4/1975.)
23 de abril

O ataque holandês, por terra, faz-se através de Olinda, com


três mil homens que avançam pela praia, seguidos a pequena
distância por uma formação de lanchas, todas despejando chumbo
quente. Será isto que ensurdece tantos? Os capitães ordenam a
resistência, e eles, fazendo ouvidos de mercador, escondem-se na
mata ou tentam salvar a família. Não tarda, e mais quinhentos
atiradores da Holanda invadem a parte sul de Olinda. Cede o
convento dos jesuítas, as portas arrombadas a tiros de canhão, o dos
franciscanos cede, a notícia de que a sede da capitania está em mãos
dos hereges percorre como um vento de fogo as cidadelas, e muitos
matam a sede para sempre, tentando fugir a nado. Matias de
Albuquerque, cônscio da derrota mas ainda animoso, desloca-se
com apenas vinte seguidores para o povo (ou povoação) do Recife,
ateia fogo a vinte e quatro navios carregados de açúcar, algodão,
tabaco e pau-brasil, queimando ainda os armazéns, "todas as casas
em que havia açúcares'', como podemos ler na carta em que narra a
sua decisão.
Dou por evidente a presença de todos estes sucessos na
terceira e na quarta transcrição. Apenas será talvez prudente
recordar a mútua penetração, no romance, da acidentada Olinda e da
pouco acidentada cidade do Recife, quase uma extensão do mar,
coincidência que elucida, no terceiro exemplo, certas imagens de
tom surrealista. Uma, o convento dos franciscanos (Olinda) "a ponto
de desmoronar em cima do Palácio da Justiça" (Recife); outra,
"aquela casa, grande como dez, no alto" (decerto o convento dos

145
jesuítas), que o governador (o rei, no texto) vê amedrontado no ar,
acima do palácio. A simultaneidade de episódios − desembarque de
tropas, conquista dos conventos, morte de fugitivos − ocorre em
outros pontos do romance e já foi discutida.
A descrição das naus e armazéns em fogo toma como
referência, manifestamente, a decalcada no Método de redação e
opõe, ao ilusório equilíbrio do modelo, uma desordem enganosa e
altamente expressiva, peculiaridade − não exclusiva, decerto − da
sua poética e na qual a inquietude sintática reflete uma imersão no
real, na sua turbulência, uma união, uma harmonia, acordo que as
fases agudas de loucura rompem, a sintaxe hirta sendo a expressão
desse rompimento.
24 de abril

Esclarecido o paralelismo absoluto entre os quadros de


guerra disseminados na obra e a invasão de Pernambuco, nexo que a
seleção de exemplos privilegiados talvez engane, fazendo-o parecer
transparente, mas que se dissolve no emedoso do texto e ilude o
observador, insinua-se uma hipótese para o motivo da intermitente
fusão Recife/Olinda. Não custaria a Julia Marquezim Enone, tão
desenvolta na invenção do cenário e nada convencional na
montagem da mediação, representar, via Maria de França, cenas da
invasão de Olinda sem trazer a montanha a Maomé. Mas quem sabe
se não lhe pareceu demasiado jogar nesses termos com a apreensão
do espaço e do tempo, tangendo para a visão da narradora uma
cidade distante do lugar onde ela vai ordenando o seu discurso, e,
simultaneamente, os fantasmas três vezes seculares de uma guerra?
Teríamos então aí um caso raro e exemplar, no qual a eficácia
dos resultados advém da sobrecarga de recursos. As imagens
fragmentadas de 1630, dispersas em duas cidades separadas,
impõem-se ao leitor porque, exatamente, ao impossível do seu
ressurgimento, da sua renovação, da sua transgressão às leis do
146
tempo, acrescenta-se o impossível de uma transgressão às leis do
espaço. Com máquinas aladas, Julia Marquezim Enone remove os
aclives e as construções de Olinda (algumas das quais, nesse lance
en cantatório, renascidas do pó, com suas arcas, seus armários, os
leitos com sobrecéu ), mescla à capital ele hoje a de ontem, unindo
− com isto impondo-as sem recusa possível − visões afastadas entre
si e, de um ponto de vista natural, duplamente inacessíveis ao "eu"
que vê e fala.

Insisto: minha posição, diante elas obras literárias, é reverente


e pouco amiga de certezas. Não sou dos que fazem perguntas e logo
as transformam em convicções. A hipótese acima coexiste em mim
com outra, oposta: a preocupação com o espaço e a conseqüente
remoção de Olinda teriam conduzido ao motivo da Guerra
Holandesa. Seja como for, aí reina, in discutível, alheio a intenção e
origem, o fenômeno de um problema romanesco fora dos padrões,
instalado, pela ciência e pela intuição da escritora, na fronteira tênue
onde a razão, fascinada, rende-se ao absurdo.

26 de abril

Não faltará quem repudie o fato ele Julia M. Enone, podendo


escolher, na longa história do domínio holandês no Brasil, episódios
que nos fossem favoráveis e, mais do que nenhum, os
que culminam com a expulsão definitiva dos conquistadores,
houvesse preferido exatamente a invasão e a queda da capitania.
Deve-se observar, porém, que A Rainha dos Cárceres da
Grécia exclui da sua temática o triunfo. Aí está, na linhagem de

147
Judas, o obscuro, de Fome , de Manhattan transfer, um livro de
fracassos. A heroína, membro de uma classe oprimida, bate-se
durante anos contra a burocracia que a desnorteia e cuja língua tenta
aprender, sempre em vão. Que viria a fazer, em obra assim armada,
uma série de quadros "positivos", evocando a vitória do país e a
expulsão dos invasores? Seriam, esses quadros, uma expressão
daquela retórica sem consistência e como solta no ar, tão visada no
seu livro? Frei Manuel Calado escreve em prosa e verso O valeroso
Lucideno para cantar
Olinda libertada
Do tirano furor dos holandeses,

conforme promete solenemente na epístola dedicatória ao


sereníssimo sr. d. Teodósio, príncipe do reino e monarquia de
Portugal. Mas respondam-me se trouxe algum proveito a Maria de
França e a toda a sua classe a derrocada de Holanda.
Por outro lado, quem ignora a voracidade com que uma parte
do planeta explora a outra?
Mais verdadeiro e significativo que Julia M. Enone tenha
minado o seu livro com cenas de ocupação e não de expulsão do
invasor: elas refletem melhor a nossa realidade e a realidade de
todos os países hoje ocupados − pelas armas, pelo ouro e por
instrumentos menos palpáveis. Que só Maria de França e, uma vez,
Antônio Áureo, vejam as cenas de guerra, enquanto todos se
movem indiferentes, apenas me parece reforçar esse sentido. Matias
de Albuquerque punha sentinelas nas elevações de Olinda, para
anunciar os mastros inimigos. Mas quem vê as forças que hoje nos
invadem?

148
28 de abril

Hipótese: Julia Marquezim Enone introduz o motivo da


invasão para explorar o da resistência.40
Matias de Albuquerque, vencido, não entrega as armas,
organizando − entre o Capibaribe e o Beberibe, os dois grandes rios
do Recife, numa colina afastada da orla marítima, a igual distância
de Olinda e do porto onde queimara os navios·− o que viria a
chamar-se Arraial do Bom Jesus, núcleo da resistência durante
cinco anos. Brancos, índios, mestiços, escravos africanos e, depois,
também os comandados negros de Henrique Dias, livres,
resumiriam de maneira simbólica, nesse famoso reduto, a população
brasileira. Sem que haja, no romance, nenhuma descrição do Arraial
(e não podia haver, pois sua extensão e aspecto mudavam segundo
as circunstâncias, hoje uma pastagem com dezenas de bois e
amanhã uma incompreensível cidadela, rodeada de serpentes), faz
Maria de França alusões esparsas a esse núcleo.

6 de maio

O verdadeiro peso, nos romances, da vitória – sempre


luminosa − e do seu negro contrário pede uma reflexão. Há aí ardis,
enganos, incompreensões. Não quero o fim dos heróis que triunfem
no amor ou na luta. Inimigos para sempre extintos não

40. Pode-se mesmo acrescentar que essa mensagem cifrada tem um alvo preciso o
sistema político vigente. A militância da futura escritora. nos tumultos que agitaram, em
sua juventude, a zona canavieira do Nordeste reforçaria tal interpretação. Mas não será
isto limitar o alcance elo motivo? A resistência dos espoliados é um tema vigoroso.
Representar a espoliação fere mais fundo do que representar a resistência.

149
existem − a sua morte, em todo caso, nunca é a morte do mal −, e
que amor tão inflamado será imune à senilidade e ao fim? Importa,
mesmo assim, que cintilem, na vida e nas histórias, esses momentos
prodigiosos nos quais o ser amado cede à veemência do que ama ou
o antagonista desaba. Que leitor de romance, vivido e sábio, não se
surpreendeu desejando que Amelia Sedley, afinal, aceite, em Vanity
fair, o paciente amor de William Dobbin? Negarei ter desejado de
todo o coração que David Copperfield desmascarasse o tratante
Uriah Heep? Negarei minha alegria quando o vi por terra? Sim,
exaltam-nos esses momentos dos romances como nos exaltam, na
vida, momentos semelhantes, por mais crua que seja nossa visão das
coisas. Transitórios, eles correspondem a um encontro feliz de
circunstâncias e vibram com harmonia: há um acordo entre o desejo
do homem e o variável universo, perfuramos a névoa que nos cobre,
conhecemos algo a que damos muitos nomes e que não tem
nenhum. Exaltação? Beatitude? Êxtase? Estamos do outro lado, sem
memória, e se alguma lembrança conservamos é a do desejo agora
alcançado. Nada sabemos, mais, da senectude, do efêmero, da
morte. Muitas vezes tenta o escritor representar essas felizes
injunções não nomeáveis. Para quê? Para acrescentar, por artes do
imaginário, tais ocorrências; para contrapor, ao que tão depressa nos
foge, uma espécie de eternidade.
Mas não é leal à vida e, portanto, aos leitores, o narrador que
insiste na representação dos momentos harmoniosos, dando curso
ordinário e certo ar invulnerável ao que sabem os raro e frágil.
Inadmissível que recuse, na sua obra, os aspectos infaustos, mesmo
porque esta é a substância da vida, vindo daí muito da força e da
transcendência que, de Édipo a K., dignifica tantas narrativas,
solidárias a tal ponto com a incerteza da nossa condição que todo
enxerto feliz as desintegraria. Qual o significado ele um Ivan Ilitch
salvo da morte? Nada a fazer com um Lord

150
Jim triunfante e sobrevivo. Querem tais obras representar, sob uma
luz intensa, certos aspectos pungentes da condição humana − e essas
mortes, aí, são geradoras dos textos que as relatam.

9 de maio

Vejo-a no Jornal Nacional; da TV Globo. Casou com treze


anos e trabalhou na lavoura a vida quase toda, sem saber até hoje o
que é usar sapatos. Quatro filhos se foram nos seus braços: punha
uma vela na mão do agonizante e deixava-o morrer. Que se recorde,
nunca chorou. Assistiu à morte do marido; e à da mãe, envenenada
por uma cascavel.
"A mim, as cobras não mordem: se enrolam nos meus braços,
e eu seguro assim a cabeça delas."
Atualmente faz bonecas de pano e tem saudade da enxada.
Chama-se Gertrudes Maria da Conceição, nasceu em Guaratinguetá,
Minas Gerais, a 19 de janeiro de 1842, e só agora, com cento e
trinta e três anos, está solicitando aposentadoria ao INPS.

11 de maio

Os pássaros vistos por Maria de França em toda parte são os


que os meninos do Nordeste conhecem: galos-de-campina, jacus,
periquitos, nambus, lavandeiras, sanhaçus, uma lista variada e que
pouco se repete. Seriam, eles, um elemento compensador,
amenizando o cenário que sabemos inseguro, trespassado pelas
imagens de uma guerra morta − sem que por fim saibamos com
certeza onde está o irreal, se na visão de Maria de França ou no
tempo que interpomos, objetivos, entre o que ela testemunha e as
datas de guerra constantes dos compêndios?
151
Não. Desligam-se da sua natural função, parecendo cheios de
poder: a personagem os vê enormes. Essa anomalia, eventualmente,
chega a ser desejável, como na cena em que alguns beija-flores,
com três palmos de envergadura, irrompem na Capela Dourada,
certo entardecer de verão, com os ouros das talhas se refletindo nas
suas plumagens cambiantes e que se mesclam velozes, num silêncio
fantástico. Mas, em geral − com seus agudos biquinhos parecidos
com dentes de alicate, seus pezinhos de unhas finas e que agarram
com firmeza de torquês, seus olhinhos duros, moedas de cassiterita,
seu modo redondo e inflexível de olhar, sua plumagem eriçada, seu
canto pavoroso −, enchem de ameaça o espaço já incerto onde se
move a protagonista. Mais uma vez vai Julia Marquezim Enone
atribuir à loucura de Maria de França as próprias invenções e usar
esse pretexto para nos propor − sem ostentação, como se apenas
citasse, transcrevesse − sua visão do real, quase sempre inquietante.

12 de maio

Penetrando, em criança, num quarto mal iluminado e que


devia estar vazio, tive a sensação de uma presença, uma respiração
inaudível e mesmo assim real. Ocorre-me, em A Rainha dos
Cárceres, ante o gigantismo dos pássaros, algo idêntico, como se
algum ouvido ou olho meu, secreto, aí intuísse um ser invisível,
abaixo da certeza mas nos limites da convicção. Não, talvez, um
ente metafísico ou calamitoso: algo, em todo caso, velado,
inacessível, com toda a sedução e ameaça que latejam no
abscôndito.
Não me custa, deixando de lado o instrumental legado pelos
que procuram decifrar o espírito − ou, simplesmente, institur uma
nomenclatura para os seus movimentos mais flagrantes −, ver
nesses frágeis animais gigantescos a súmula do mundo. Teme-os

152
Maria de França e muitas vezes proclama o seu temor, tanto nas
fases agudas de desequilíbrio como nas de aparente sanidade.
Mescla-se ao temor o incompreensível. Como podem os pássaros
ficar prisioneiros em gaiolas menores do que eles? Por que, depois
de mortos, diminuem? Eles: o universo fugidio, volátil, ilusório e
terrível.
Sim, tudo parece claro e ajustado ao tema axial da obra: o
homem desarmado perante um meio hostil. Mas subsiste, na lógica
do quadro, a respiração misteriosa. Espreita-me, aí, algo que não
capto.

15 de maio

O que acima escrevi provocará náuseas no crítico digno e que


adota, ante a obra literária, uma postura solene, como
implicitamente legislam os centros mais prestigiosos. Não sou,
porém, um crítico digno, nem sequer pretendo ser um crítico, e, no
que tange à. dignidade, tantas vezes um valor industrial, como a
resistência nos motores ou a firmeza de cores nos tecidos, quem
afirma que a possuo? Sou um homem sensível, e, sob esse aspecto,
fora do meu tempo, um homem sensível e enlutado, portador ao
mesmo tempo da fascinação por um texto e da paixão por quem o
engendrou. Sobra-me, portanto, liberdade para conduzir o meu
livro, aventura intelectual e também, à sua maneira, ato de amor,
nada me obrigando a excluir deste ensaio o que eu não puder
elucidar.
Falei da minha inquietude ante os pássaros enormes e da
inquietude que me causa o medo de Maria de França? Impressão
ainda mais funda e o mesmo vago mal-estar (a respiração oculta e
inexplicável!) causa-me a cena em que ela estabelece proteção

153
contra eles. O episódio só ocorre no último terço do livro, após o
rompimento do noivado pelo centroavante, mas vem sendo
preparado desde o segundo capítulo. Não captamos, então, o sentido
do que diz a heroína quando fala de guardar − nos ouvidos, no peito,
nos olhos, na mão −atributos de uma ou de outra personagem. Ou
quando concentra num desses traços, desmedidamente, seu exame:

que orelha, que orelha, cheia de voltinhas, e ouve atenciosa, ouve


bem, uma orelha cortês, magoada pelas vozes brutas, pelas mentiras
de mel (cheias de moscas), que estás fazendo aí, orelha, nesse
homem que não te merece?, escuta, orelhinha: nenê, cavalicoque,
sineta, tico-tico, bibelô, lulu.

16 de maio

Dudu, ferido pela "traição desleal", afasta-se. As perspectivas


que esse compromisso oferecia eram frágeis, ou não havia
perspectiva nenhuma, ele regride na cancha e fora da cancha, mas o
ânimo com que ignora o seu fracasso e insiste no combate (a
inferioridade do Torre nunca impede que ele tente, com seus chutes
reversos, amenizar a desvantagem ou vencer), sua dedicação e pode
ser até que o seu ar apressado, de quem chutou rente à baliza e volta
para o meio-de-campo, transformam por algum tempo a vida de
Maria de França. Quando rompe, ela passa a noite em claro, e esta
vigília é expressa por um longo trecho furioso e sem nexo:

também, negro e mais negro, rasgo, mordeu, o murro, dilaceramos,


carvão outro lixo, calangos todavia, vai?, tamancos mas corta quem
quer tampa carregado xô. Alô! Dormem?

154
A manhã, confortadora para os insones, a·gride-a , pior ainda
que a travessia noturna, com

os arrotos dos pássaros, seus gargarejos, gargarejam pedras?, cacos


de vidro?, assovios vingativos.

Então, para não continuar sem defensor, exposta a esses entes


numerosos, ágeis (sua conformação lhe parece organizada para
atirar o bico, para disparar o bico), ela adoece e, numa espécie de
letargo ou êxtase, em oito dias e nove noites, forma o espantalho.
Só então revela-se o propósito das aquisições, ou dos raptos,
ou das mutilações, os pés, os braços pouco musculosos, a orelha
"cheia de voltinhas", esses olhos "de ver inundações e estrondos",
fragmentos dispersos em vinte e sete personagens do livro e que vão
reunir-se no espantalho de Maria de França, protetor fantástico,
sucessivamente chamado pela criadora a Brisa, o Vento Largo, o
Sumetume, a Torre, a Chuvarada, a Criatura, o Súpeto, o Escudo
Luminoso, o Susto Deles, o Lá, o Homem, o Báçira.

17 de maio

A análise desses cognomes, cujo nexo não descobrimos com


facilidade, vai revelando entre eles um acordo. Convergem, todos,
para as noções de brandura, força, proteção, fecundidade e
amplitude, atributos de um ser incomum, ligado ao bem e o único
capaz de guardá-la dos pássaros. O que torna menos clara − e isto,
creio, não casualmente − a coerência da série são alguns termos de
significado enigmático ou pouco vulgar, como sumetume, ao
mesmo tempo o sumidouro onde se

155
abriga a paca quando perseguida pelos cães e a saída de uma galeria
sob a terra; ou súpeto, grafia antiga de súbito, remanescente na
fórmula de supetão.41
Quanto ao Báçira, último nome dado ao espantalho e com isto
ressaltado, posto em evidência, nenhum dicionário registra-o.
Tinham os antigos cartógrafos uma visão mítica do espaço: os
limites familiares desfaziam-se no sonho. Não eram, seus mapas,
apenas a projeção de oceanos e terras conhecidas; acrescentavam o
mundo, não se restringiam ao que o viajante podia encontrar; além
de guiar, extraviavam; ao passo que informavam, eram também
registro de medos. Tenho ante mim o mapa do turco Piri Reis, que
não era um amador ou viajante ocasional, mas conhecedor do mar e
da ciência da navegação marítima, um autêntico almirante. O mapa,
de 1513, que é tributário da cartografia maometana do seu tempo e
utiliza modelos carolíngios, assimila o relato de um marujo
espanhol, preso na Turquia depois de ter servido sob Cristóvão
Colombo. Pululam, nessa colorida pele de gazela, com as retas que
se cruzam, imagens fantásticas. Dança um mono com não sei que
monstro lascivo, eis o homem a que se refere Otelo perante os
senadores e cuja cabeça fica abaixo das espáduas, um casal, em
pleno mar, navega sobre um peixe e dele se alimenta. Tudo são
indícios do ignoto, evidente na ausência de fim ou de limite para
esta carta da Terra. Além, o quê, além? Tal interrogação, no mapa
brasileiro de Marcgrave, é naturalmente menos abissal e tem um
nome: o Báçira, boje serra da Pacira, antes monte Trovão ou serra
do Abalo. Não muito distante, oitenta ou noventa quilômetros, do
porto do Recife, o Báçira, entretanto, mais assombrava e continha o
passo dos aventureiros que a largura toda do oceano:

41.O epíteto, realmente, parece um tanto deslocado na seqüência. Seria uma pista falsa,
para estorvar a decifração? Não sei se incorro numa compreensão tendenciosa quando
associo o termo à idéia de susto, de vinda inesperada , de gesto que afugenta, brusco

156
"isolado, posto no meio da solidão, era a fronteira, o limite absoluto
de tudo quanto se sabia".42 Encerrar, com uma palavra tão
impregnada de conotações, a construção e a nomeação do
espantalho por Maria de França não parece sugerir que, nessa
criatura sua, a idéia de amplitude espiritual e de mistério sobreleva-
se à de simples proteção?

22 de maio

Concebido, expressa e confessadamente, para neutralizar em


A Rainha dos Cárceres um componente do espaço − ou o que esse
componente representa de ameaça real ou falsa −, o espantalho de
Maria de França liga-se ainda ao cenário através do seu discurso,
onde, numa curiosa peça oratória em que se mesclam frases sem
sentido, canções anônimas, anexins, parábolas, quadras, parlendas,
enigmas, profecias e indagações metafísicas, divaga sobre a própria
identidade, relacionando-a com a topografia na qual ele é um
ádvena, perplexo.
Sua função, portanto, não consiste só em dispersar os pássaros
desmesurados. Quem sabe, mesmo, se, em livro tão ardiloso,
infestado de passagens falsas, essa incumbência não será,
demasiado explícita para ser verdadeira? Quem me assegura que o
espantalho − o Teto, o Báçira − não seria criado antes de tudo para
arremessar o seu discurso, de certo modo o vértice da obra, ponto de
encontro de muitos temas nela dispersos e aquele

42. Luis da Câmara Cascudo, Geografia do Brasil holandês. São Paulo, Ed. José
Olympio, 1956, pp. 195-6. Reordeno, acima, expressões daquele estudioso, único onde
encontrei -e por-acaso dados sobre o Báçira, mais um vestígio da presença holandesa no
romance de J. M. E. Aliás, como ainda veremos, o mapa de Marcgrave ajuda-nos a
compreender certas obscuridacles do discurso do Lá.

157
onde a linguagem, chegando a romper, incidentalmente, com os
significados, alça-se a um diapasão de rara intensidade? Discurso,
oração pública, e não diálogo: há, entre o Súpeto e Maria de França,
uma identificação obscura, como se os dois corpos tivessem a
mesma boca, como se houvessem partilhado o leito, habitado o
mesmo sonho.

25 de maio

Luz imprópria, papel demasiado escuro ou claro, corpo


tipográfico miúdo, composição cerrada − e mesmo, acredito, o
excessivo interesse pelo texto −, tudo pode levar-me a períodos de
cegueira ou de repouso obrigatório em recintos pouco iluminados.
No íntimo, sou grato ao meu mal: é como se a leitura fosse em mim
um amor secreto, ameaçado e exposto a reparações. Esta madrugada
mesmo − havia lido muito, à noite −·despertei com uma dor intensa
nas órbitas. Andei pelos cômodos apagados e afinal abri a janela.
Passava das duas, a rua estava deserta, olhei vagamente para o alto e
o que vi fez-me tremer: a Lua estava negra, não, cor de sangue, e
parecia desfazer-se numa segunda morte, catastrófica.
Que homem subsiste em mim, irracional, apesar de tudo?
Alterado, custei a relacionar a deterioração lunar com a idéia de
eclipse. Mesmo depois, quando me ocorreu ter lido nos jornais o
anúncio do fenômeno (Isto é a sombra da Terra, homem!), mesmo
então subsistia em mim um peso. Mais: seria capaz de jurar que as
relações de distância entre os edifícios alteravam-se, que céu e chão
saíam dos gonzos. Talvez as minhas retinas ainda magoadas
subvertessem as coisas.

158
27 de maio

Fragilidade do espírito! Ante uma fala como a do espantalho,


tão eriçada de significações e de enigmas, eis-me, como se nada
mais importasse, atento a uma breve alusão solta no texto, só porque
imagino a sua origem. Estávamos na sala, e ela costurava, a cabeça
inclinada. Que inadmissível acuidade lhe haveria permitido sentir o
meu olhar e, daí, alcançar o que pensei ? Observo o seu rosto, a pele
um tanto castigada do seu rosto puro e de ossos leves, sempre
alterado por manchas lívidas ou súbitos rubores. Vejo-a, no seu
alheamento, frouxa a vigilância aos músculos da face: finas rugas
verticais começam a acumular-se no lábio superior, trinta e três anos
e já se delineia, prematuro, um traço de senilidade. Envolvo-a,
mudo, na minha compaixão, ela, a quem amo, envelhece, a sua
juventude foge entre meus dedos. Julia ergue a cabeça, grandes
olhos plácidos, as lentes polidas e os aros redondos, prateados, sorri
com o se de nada soubesse e diz :
"Está quieto!"
Como se de nada soubesse. Mas sabe, viu sem me ver, leu-me.
Palavras do Súpeto:
Mulher! Tão moça ainda, e os lábios enrugando? A mocidade vai,
foi, era, ser é perecer, lê-ô-lê, lê-ô-lá, o rosto baixo, e a velhice um
enxame de vespas começando a casa, aí, no talho da boca, stx.
Debando os pássaros, mas não o tempo, debando os pássaros, não a
corrupção, os pássaros debando e só.

30 de maio

Pronunciado o discurso, o espantalho emudece e não volta ser


mencionado. Omissão, na verdade, enganosa: a partir desse instante,

159
cessa no livro qualquer palavra sobre os pássaros e o medo que
provocam, isto em um longo processo − metonímico? − onde a
causa é referida pelo seu efeito; ou, melhor, pela inexistência de
alusões a ele. Ao mesmo tempo, o silêncio estabelecido em torno de
elemento tão minuciosamente elaborado como o espantalho, que
parecia fadado a governar o último quarto da obra, introduz mais
uma vez e com maior amplitude um tema obsessivo em Julia
Marquezim Enone, o do esquecimento.
Fala o espantalho, e seu discurso, no qual repercutem as
preocupações da romancista, é truncado por lapsos. Mais de uma
vez, esquecido do que disse, repete-se ou interroga-se; vacila em
meio à frase, fugindo-lhe o que ia dizer.

Não sei se disse e se já disse vou e digo novamente. O quê?

Xô, então, pois aí vêm eles, e as praias vão subindo, quando, os pés
no chã-o... no chã-o... No chã-o? pés?

Entretanto, a ausência de memória, que até certa altura parece


adstrita ao discurso, vem a revelar-se de uma natureza mais
profunda. Crê .o espantalho ter vivido um passado sobre o qual nada
sabe: o que conhece de si é o presente; logo inverte a situação,
indagando se o que acaba de surgir não é exatamente o espaço, se a
ausência de um espaço propício − agora criado − não o impedia de
estabelecer referências e apreender a própria identidade. Tal
especulação, porém, é jogo e fingimento, ele permanecerá um vulto
obscuro, impenetrável como o seu monólogo:

Pássaros ou

meninos hão

160
de ver- me, e não

direi quem sou.

8 de junho

Conheço, em grau menor, aquelas depressões que às vezes


assaltavam a minha amiga e faziam-na odiar seu livro. Eis-me há
oito dias ante os meus cadernos e anotações, embotado, vendo
escoarem-se as horas. Curvo-me sobre o discurso do espantalho e
cada vez me sinto mais perdido nesse verdadeiro salão de espelhos,
onde se mesclam, confusos, objetos e reflexos.
Não, não é isto, não. Posso distinguir os objetos reais e
apontar os que me espreitam, intocáveis, no cerne dos espelhos: mas
suspeito de todos, a tumultuosa fala do espantalho soa-me familiar e
cheia de solércia. Nada entende das coisas quem supuser que devo
calar sobre isto. Não devo e não posso. Imagina: reconheces,
falando em algum ponto da casa, a tua própria voz, e o que ela diz,
se parece inocente, é uma denúncia e te morde. Não que o discurso
da Torre seja inimigo meu. Refiro-me à duplicidade, a um lado
outro, a um fundo falso, máscara. Onde a face real de palavras tão
dúbias?
De onde venho, que havia? Parte-se neste L, neste L de viés, revira
do L, a memória das coisas; vem o vento povoado de pássaros e
sopra o pó do vivido para longe. Nasce outra memória, Maria, cheia
de assovios, de lados. A faca que corta dá talho sem dor. Arrebento
os dentes dos cavalos. Talos de capim na boca das vacas. Tudo vai
morrer, vento e ventura pouco dura, dura pouco e talvez nada, muros
e telhados ouçam bem o que eu digo, apagam-se os vulcões, apagam-
se os pavões, tudo vai morrer, e só ficam mesmo elas, graças a elas
tu és, sou, somos, ei-las: boiando, cardume de quadrados, alados,
sobre o xadrez da morte, sem fundo e sem beiras, o zero do fim, onde
os gritos não chegam.

161
É noite e é dia, é aqui e é lá, sou e não sou eu, a mutação, a
passagem, o trans , vou indo e já cheguei, atravesso a janela e não
saio do lugar, eu no meio da árvore, os braços abertos (dois ou
quatro?), as mãos abertas (quatro ou duas?), o coração aberto, eu
disse o quê?, vamos, gente, guardo Maria de França, quero Maria de
França, acendo Maria de França, salvo Maria de França, diminuo o
vulto dos pássaros: o coração assustado de Maria bate confiante
dentro da minha sombra lúcida.

Quem houver lido pondere a minha turbação ante a arestada


fala do espantalho. Acentuo aqui uma vantagem sobre os
narradores: lidam com personagens, e eu lido. com um texto.
Tencionam ilustrar o caráter do herói? Ei-los movendo todo um
arsenal expressivo para merecer a nossa confiança (confiança que
boa parte da ficção contemporânea agride, invocando uma nova
espécie de adesão, mais complexa). Mas eu, se quero demonstrar
aspectos do livro que há tantos meses interrogo, de certo modo
personagem meu, faltando-lhe apenas ser um livro imaginário, e não
real, confio ao leitor o próprio texto, prova acima de todas
fidedigna. É como se um romancista, por milagre, levasse-nos a ver
a sua personagem em carne e osso, agindo − a personagem, não o
ser perecível no qual fora moldada.
Assim com os dois trechos do discurso acima transcritos, onde
se percebe claramente o tom misterioso que me desconcerta.
Algumas expressões ininteligíveis, ali, têm sua origem na
cartografia e − mais uma ligação com a presença holandesa no
Nordeste − traduzem verbalmente certas convenções do mapa de
Marcgrave. A letra L, por exemplo, invertida e posta em diagonal,
"L de viés, revirado L", significa lugar despovoado, domicilia
deserta . Os quadrados representam fontes; os xadrezados, salinas.
Isto evidenciado, a obscura alusão ao "cardume de quadrados"
boiando sobre o "xadrez da morte" ganha em clareza: trata-se,

162
simplesmente, do contraste entre vida e esterilidade, com a
hegemonia da vida. Ainda em Marcgrave, o sinal árvore indica um
descampado, e quando o espantalho se diz "no meio da árvore"
devemos entender "no meio do campo".43
Mas tem os de admitir que estas decifrações revelam pouco e
talvez não desvendem o essencial. No conjunto, o discurso
permanece hermético. Mesmo a confissão de amor , intensa e
orgulhosa − "guardo Maria de França, quero Maria de França" −,
tem um lado ambíguo. Por que a sombra que envolve o seu tênue
coração é "lúcida"? De quem fala o Escudo Luminoso quando se
refere a "elas", que nos sustêm "sobre o xadrez (ou salinas) da
morte, sem fundo e sem beiras"? Criva do de adivinhas , desafia-me
o discurso do espantalho, longo enigma plantado no romance, pedra
no caminho, baralho misterioso.

10 de junho

No meio da noite, despertando levemente, espreito-me, eu, um


homem em alto sono. O infernal discurso continua em mim,
desdobra do em ramificações inumeráveis.

43.Outras convenções de Marcgrave: círculo, ponto central, cruz exterior encimante:


engenho d'água com capela; sem cruz: sem capela, sem o ponto central: o engenho é de
bois; círculo com quatro linhas cardiais: curral (Cons. Luís da Câmara Cascudo, op. cit.,
pp. 188-9)

163
8 de julho

Mais uma vez fulmina-me e, durante quase um mês, suspende


o curso normal da minha vida o problema dos olhos. Nesse período,
nada escrevi e nada li. Não importa, pois, que estenda um pouco
mais a interrupção e fale, amanhã ou depois, das últimas semanas,
antes de tornar à Rainha dos Cárceres. Pensando bem, a experiência
que sofri e, se lhes cabe tal nome, as reflexões que me assaltaram
não são de todo alheias ao livro que tento analisar e à minha própria
análise. Integram-se em ambos os textos, e voltar simplesmente ao
meu ensaio, como se nada houvesse acontecido, seria falso.

10 de julho

Não descreverei como se manifestou o acesso. Apenas direi


ter sido o mais forte de todos e que boa parte do tempo estive sob a
ação de calmantes. Quando emergia do letargo, minha sobrinha
Alcmena, vinda do Espírito Santo para assistir-me alguns dias (teve
de ir-se antes que eu recuperasse a visão e, assim, resignei-me a
ouvi-la), lia, naquela sua voz ligeiramente rouca e tão aveludada,
escritos que infiltravam em meu espírito, simultaneamente, imagens
luxuosas e terríveis: Diário do ano da peste, de Defoe, e, numa
tradução francesa, esparsos de Dürer, entre os quais seu diário de
viagem aos Países Baixos, em 1520, onde o pintor constantemente
fala de quadros, de construções civis e religiosas, de comidas, de
vinhos e de variadas moedas estrangeiras.
Contaminado pelos textos que ouvia, eu, solto num espaço
verbal, uma cidade estrangeira que alguém descrevia e por isso
existia, acreditava-me vítima da peste e esquecera o meu nome.

164
Dias e dias, eu ofertava peças de brocado e especiarias
(ressonância, ainda, do alegre Natal em Serra Negra?) para que
trouxessem meus papéis de identificação, ninguém me entendia, e
eu acreditava que sobreviveria, venceria a peste, e as portas da
cidade se abririam, liberando-me, se recordasse o meu nome. Não
conseguia, embora − contradições da febre − soubesse quem era, o
discurso do espantalho, atroador e autônomo, reboava na escuridão
e houve, vejam bem, houve uma hora em que, perdendo toda a
noção da minha vida anterior, eu me reconheci no meio da cidade
condenada, os braços abertos, bicos de pássaros (ou do discurso?)
vazando-me os olhos, vários tumores na pele, e esses tumores eram
ainda o discurso, doloroso.... e, conquanto encravado no meu corpo,
intocável, fora de qualquer compreensão. Certo momento, eu soube:
a decifração estava ali, próxima, ao alcance da mão, aqui. Triste e
aterrado, exclamei: "Vou saber?!". Mas a revelação fugiu, e isto me
rejubilou.

11 de julho

Não supor que as notas de ontem resumam todo o longo mês


de imobilidade. Deixei, por exemplo, de mencionar um pormenor
valioso. Escreve Dürer: "As artes perdem-se muito facilmente,
sendo necessárias orações inumeráveis e um tempo enorme para
reencontrá-las". Na desolação da peste, eu inquiria sobre a minha
identidade e, nessa caçada, buscava reencontrar alguma arte
perdida, movido pela frase de Dürer. Identidade e arte confundiam-
se.
Ouvi, mais de uma vez, vozes que identifiquei como de
personagens do romance. Ainda escuto a de Maria de França:
cantante, áspera, um pouco assustada, mas transformando o susto
em sarcasmo e desafio.

165
12 de julho

Duvido muito que seja casual a cegueira interior de tantas


personagens, desde o rei Édipo a Riobaldo. A circunstância de estar
ao alcance da personagem obumbrada a verdade que nunca − ou
bem tarde − chega a ver torna esse fenômeno mais instigante. O
herói convive com a revelação e não a reconhece. A que se deve a
espantosa incidência do motivo? Ao fato de evocar a nossa própria
cegueira ante os hieróglifos que nos cercam.
Reagir contra o orgulho, que por vezes me tenta, de negar o
mistério do texto; como tantas vezes se recusa, em outro campo, o
mistério das coisas.

14 de julho

Convalescente, tudo fazendo com parcimônia, meus sentidos


se aguçam. A noite passada, lendo em voz alta As metamorfoses,
constatei certas inflexões apaixonadas que eu nunca percebera em
mim e que não se ajustavam ao texto de Ovídio. Se olho da janela a
massa de edifícios, também faço descobertas, como essas duas
torres à direita − não sei de que igreja − e alguns telhados antigos.
Ontem, movia-se, por trás desses telhados, um guindaste que hoje
desapareceu. Normalmente, não observaria a diferença: teria
esquecido o guindaste e o grande pássaro amarelo que pousou numa
das torres. Lamento não poder explorar esta acuidade passageira.
Todas as superfícies brilham como se esmaltadas e ofuscam-me os
tons claros.
Nota: Semelhante aos velhos e às pessoas muito doentes,
venho observando-me, nestes últimos tempos, mais do que o

166
normal. Como se eu suspeitasse de mim, como se receasse que, em
mim, esteja para ocorrer o que não sei. Com isto, invado, mais do
que desejava, o meu livro e o da minha amiga. Recuar, se possível.

15 de julho

A mobilidade, a incerteza, a fusão − as cidades de Recife e


Olinda trespassando-se −, a iconografia da invasão holandesa
projetando de algum modo a paisagem urbana no tempo e, ainda, a
nota de ameaça, concentrada no gigantismo dos pássaros, tudo isso
transfigura em A Rainha dos Cárceres da Grécia o espaço,
tornando-o único, original, específico dessa obra e inteiramente
refeito pela imaginação.
Mas talvez houvesse o risco de uma fissura demasiado ampla
entre o espaço do romance e o espaço ordinário, não obstante as
numerosas alusões às duas cidades reais, a edifícios tradicionais −
como em Olinda o Mosteiro de São Bento ou no Recife o Palácio da
Justiça − e a nomes verdadeiros de ruas: do Amparo, da Concórdia,
do Príncipe, do Sol. Havia ainda o perigo de um corte ou, ao menos,
de uma atenuação do nexo entre esse espaço feérico e a temática da
penúria, cuja importância no livro é indiscutível. Julia M. Enone,
hábil, desfaz as duas possibilidades mediante uma nova
singularização: a personagem central avaliando os detritos urbanos.

16 de julho

O modo como essa avaliação se faz recende a ironia. Maria de


França, vivendo à beira da fome e sem condições para suprir
devidamente qualquer necessidade, representa a maioria da
população brasileira, ou, em termos amplos, dois terços do

167
mundo. Limitada pela sua condição, é insensível às pratarias e
louças exibidas nas lojas, aos automóveis, às moradias luxuosas, aos
tecidos bons, aos restaurantes e a tudo que expresse fartura: só
compreende o pouco. Este seu traço talvez negue um fenômeno
geral, a hipnose do supérfluo que ofusca hoje em dia as classes
pobres. Mais importante, todavia, que o simples registro de uma
distorção comprovada e, até onde posso julgar, típica de estágios
como o nosso, parecem-me as ressonâncias do achado romanesco.
Para Maria de França, limitada de maneira total por uma vida parca,
riqueza e luxo, inacessíveis em todos os sentidos, escapam inclusive
à sua percepção.

17 de julho

Mas será mesmo verdade que o embotamento do necessitado


diante da riqueza carece de valor psicológico? A população
aborígine africana com a qual ao longo de oito anos conviveu B. L.
Magyar era indiferente, por não alcançar sua importância, a
fenômenos como o eclipse do Sol.44 Para Jean-Paul Sartre, a obra só
existe no nível de capacidade do leitor;45 a partir daí, seria
necessária uma educação, esclarecendo-o. No que tange à riqueza, à
compreensão da riqueza, pode-se indagar se tal educação não vem
sendo exercida pela publicidade. Se for, esse instrumento do
capitalismo, gerando, a princípio, diante dos bens e
das·necessidades, uma noção errônea − como tende a suceder, no
início, com qualquer aprendizagem −, terá a longo prazo função
subversiva.

44. Citado por Ernest Grassi, Arte e mito. Trad. de Manuela Pinto dos Santos Lisboa,
Livros do Brasil, s. d., p. 41.

45. Situations II. Paris, Gallimard, 1948, p. 96.

168
18 de julho

Bem. Voltemos a Maria de França, para quem a fartura no


Recife é tanta que transborda. Se duvidam, percorram as latas de
lixo, antes que passem, nas ruas centrais, os caminhões da limpeza
pública e, na zona periférica − pois as diferenças de classe fazem-se
sentir nos setores mais inesperados −, as carroças puxadas a cavalo.
Infelizmente, toda essa riqueza, reconhece, é desperdiçada por falta
de cuidado e método. Se as coisas expostas nos vasilhames, à espera
da coleta, fossem devidamente separadas, quantos armarinhos
poderiam sortir os botões jogados fora e quantos caldos dariam as
patas de galinha! Tal separação, observa, não ocorre aos expositores
de detritos; assim, cada preciosidade incluída no lixo, limpa em si
mesma, suja a outra; mesmo um pedaço de sabão ou de palha de
aço, coisas destinadas à limpeza e portanto higiênicas, deitam a
perder uma sobra de sopa.
Sabe que muita gente ignora a distinção entre puro e
misturado − entre assético e sujo − e por duas vezes descreve a
alegria da pobreza disputando com bandos de urubus e de cachorros
vadios, nas formações de lixo que a limpeza pública, mal servida de
fornos, erige em certos pontos da cidade, os bens aí ofertados.
Vendo um porco fuçando nas lamacentas vielas da periferia,
galinhas ciscando o monturo ou algum cavalo esquálido solto no
mato, vem-lhe, então discreta e logo contida, essa noção de
prodigalidade. Mas, o que é significativo, não leva em conta as aves
soltas no ar (caça possível), nem as árvores das vias públicas (lenha
gratuita ), o que confirma a intenção, mordaz, de apresentar os
produtores de detritos como dispensadores de bens.
Alheia aos pássaros e árvores, às escassas flores dos parques e
à água das chuvas, faz com gratidão o inventário dos bens dispersos
no asfalto e nas calçadas, pontas de cigarro ou de lápis, parafusos
soltos, barbantes, pedaços de fitas, saltos de borracha, pentes
169
quebrados, sacos de pipoca vazios, papel de chocolates, tampas de
refrigerantes e de frascos de remédio, amostras de fazenda, clipes
abertos, alfinetes tortos, flores de plástico sem haste, caixas de
fósforo vazias, lâmpadas queimadas, giletes cegas, pilhas
descarregadas, toda essa miuçalhaa que em geral somos indiferentes
e que o seu olhar, desregulado pela necessidade, avalia como se
fossem esterlinos.

19 de julho

Astronautas russos e norte-americanos acoplam a duzentos mil


metros da Terra. As águas mais uma vez sacrificam cidades do
Nordeste, algumas praticamente eliminadas do mapa; o Capibaribe
inunda oitenta por cento do Recife e atinge setecentas mil pessoas,
desalojando trinta e cinco mil, isto sem falar nas casas que ruíram,
nos mil quilômetros de ferrovias levados pela torrente, nas cem
mortes comprovadas e na ameaça de surtos epidêmicos.
Esta não é a única notícia lutuosa a transitar dos jornais para o
meu livro, invadindo-o. O material obsoleto da Central do Brasil
causa desastre de grandes proporções, com descarrilamento, onze
mortos e trezentas e setenta e duas vítimas; o frio que alastra a
região centro-sul mata desabrigados nas cidades e provoca a geada
mais devastadora já sofrida pela agricultura brasileira, gerando
desemprego e um decréscimo calamitoso na produção de trigo e de
café (especulação imediata, com muitos pontos de alta, nas bolsas
de Londres e de Nova York).

170
20 de julho

Compenso a nota de ontem: a Presidência da República


sancionou a lei que cria a IMBEL, empresa destinada a fabricar
material de guerra e recebida com exultação pelo setor privado. O
assessor de vendas da Rossi, fornecedora tradicional do Exército,
ilustra a euforia desse ramo da indústria ao declarar: "Em Brasília,
esta semana, eu disse a três generais que podem pedir até uma
bomba. Nós fabricamos logo".
Dentro de duas semanas, no dia 6 de agosto, completa trinta
anos. Media, de ponta a ponta, exatamente quatro metros e vinte e
quatro centímetros; metro e meio de diâmetro. Quinhentos mil
homens, no período de dois anos, foram servos desse engenho
complexo, exigente e mesmo delicado nos seus quatro mil,
quinhentos e trinta e cinco quilos. Conquanto nada tivesse de
supérfluo (era uma criação do nosso tempo, amante do traçado puro
e avesso ao ornamento), seu coração ou alma, a parte, viva − a
capaz de matar − não chegava talvez a vinte quilos. Quando
explodiu, içando uma coluna incandescente, um ser ardente, irado e
deslumbrante como jamais se imaginara ou temera, mais alto que a
mais alta das montanhas, terra e céu dobraram-se, a água deixou de
ser, as labaredas desceram o curso dos rios, setenta mil prédios
ruíram e, dentre os duzentos e quarenta mil mortos, se isto na
verdade tem o velho nome de morte, houve alguns de que apenas
restou, no chão estéril, uma sombra. No dia 6 de agosto, faz trinta
anos que aconteceu. Faltam apenas quatrocentos e setenta para que
cessem os efeitos da explosão. O avião que transportou o objeto
(quem ainda se lembra?) chamava-se Enola Gay. O nome da cidade
também começa a esbater-se na consciência do mundo, e é preciso
escrevê-lo: Hiroshima.

171
21 de iulho

Percebe-se, olhando um mapa do Recife, a presença das


águas. Mas é sobrevoando-a que se vê até que ponto a cidade é rasa
e úmida. Além do mar que parece conquistá-la e dos extensos
mangues, com as infectas habitações equilibradas sobre varas e nos
quais o sol mais luminoso, quando refletido, perde o brilho, poço
lívido e sujo, há os rios, vários. Antes de ser o que é, a planície,
submersa ou quase, era cortada de rios em fim de viagem, ligados
através de canais. Os pequenos rios brotavam na planície, e os
maiores chegavam de longe, da zona da mata ou do agreste, como o
Beberibe e o Capibaribe. O visitante pode ir ao Recife e não ver os
outros rios; impossível ignorar o Capibaribe, originário do planalto
da Borborema e que, passando entre colinas de argila e areia,
atravessa o coração da cidade.
Ora, o motivo da riqueza dispersa − verdadeira ou falsa,
apreensível ou não −, sempre ligado às bagatelas atiradas nas ruas,
permite à romancista, via Maria de França, surpreendentes variações
sobre esse rio, não somente registrando os bichos e utensílios

(é um colchão?, um colchão navegando, uma riqueza, quem sabe se


não traz, com os percevejos, dinheiro na palha, enfiado?),

mas também os resíduos com que a indústria envenena as suas


águas, e culmina com o aparentemente exaltado − na verdade,
cortante − inventário de bens trazidos pelo Capibaribe,
transformados, na avaliação anômala de quem nada possui de valor,
em tesouros disponíveis.
Os que habitam as suas margens acostumam-se a ver,
descendo a correnteza, bichos mortos e destroços: chuvas pesadas
nas cabeceiras ou em um ponto qualquer do seu percurso. Além

172
disso, sabem todos − e as últimas notícias só fazem confirmar a
ameaça que esse rio, decorativo e pacífico, constitui para o Recife.
Nas cheias temporárias e cujas proporções avultaram no último
decênio, de modo que as zonas seguras diminuem e crescem os
danos, prevendo-se inclusive uma inundação que reduzirá a capital
a lama (e não se veja, nisso, puro acaso ou uma fatalidade natural),
traz o Capibaribe, desconjuntados, os mundos que percorre.
Plantação, gado pesado e leve, de couro e de pena, habitação − o
madeirame e o acervo doméstico −, gente, o que não vem nesse
dilúvio?, e pode mesmo engrossar as águas da cheia, anônimo, com
suas baronesas e peixes, um açude solto.

24 de julho

Sim, lado a lado com a miuçalha das ruas, com os destroços


que rolam no Capibaribe e com a invasão do Recife pelas águas,
peixes vivos e mortos entrando pelas janelas, cobras enrodilhadas
nas cornijas, carros virados nas copas das árvores, as coisas
arrancadas dos lugares e vogando nesse caudal barrento que cheira a
rato podre, tudo semelhante às imagens estampadas nos jornais e
surgidas estes últimos dias na TV, perpassa a certa altura do livro de
Julia Marquezim Enone um ser disforme e enorme, um açude. Tenta
Maria de França precisar, na desordem da cheia, o difuso contorno
desse reservatório perdido. O motivo, lançado como por acaso, mais
de uma vez retomado e nunca desenvolvido de maneira sistemática,
como se a imponência da imagem repudiasse ampliações,
transcende o tema da riqueza dispersa e incita ainda um comentário.
Há, apesar das conexões que entre eles perduram e da matriz
comum, contrastes que não escapam à ron1ancista entre os
destroços carregados pelo rio e as pequenas coisas atiradas na

173
rua, doadas, no sentido em que o lixo, na concepção de Maria de
França, é doado às pessoas em geral. Os possuidores renunciam ao
que, em princípio, perdeu a serventia (daí a gratidão da operária e
doméstica); os bichos terrestres, os móveis, os pedaços de cerca ou
de telhado estão chegando à embocadura contra a vontade dos
donos. A ironia, aqui, não advém do erro, voluntário, de ver-se
doação no gesto distraído de abandonar o que já foi usado; nasce de
uma obliteração, sempre intencional, do discernimento: o que vem
de roldão nas águas podres da enchente é exaltado como sinal de
fartura, e não de ruína .

Sugestões de outra ordem e, por assim dizer, inesgotáveis


contém a imagem do açude imerso no rio, seus limites invadindo o
rio e sendo por ele franqueados. Aí vemos ecoar o mesmo jogo de
penetrações mútuas já assinaladas no espaço do romance e
claramente expressas na fusão Recife/Olinda.46 Na vultuosa massa
líquida, amorfa, sem bordas, a que a personagem-narradora pretende
atribuir uma forma, duas imagens a meu ver se impõem: uma é a do
próprio romance, mundo imerso no mundo, por ele penetrado e nele
penetrando, enquanto uma consciência ativa mantém idealmente os
limites da obra; outra é a da consciência, perdida na imensidão que
a circunda e tentando manter-se una. Esta consciência, no caso, é a
de todos nós e, ao mesmo tempo, tem um nome: o açude vindo na
cheia, de algum lugar na mata ou no agreste, chama-se Maria de
França.

46. Essas invasões, abrangendo diferentes campos do real e operando-se, por vezes,
entre o real e o imaginário, são em A Rainha dos Cárceres da Grécia, uma constante
das mais expressivas, tema velado e envolvente, atravessando o romance.

174
29 de julho

Se as breves alusões aos insignificantes objetos abandonados


na rua e aos bagulhos vistos no Capibaribe seguem as deambulações
da heroína, o mesmo não ocorre quando menciona a enchente e o
açude. É como se, no tempo privilegiado do romance, fosse
evocado, através da catástrofe e dessa imagem desmesurada, o
tempo exterior, real, o nosso; ou como se no Recife imaginário,
invulnerável ao desgaste, perpassasse a memória da cidade mortal,
de que ele − o Recife do livro − é o reflexo. Mas, por sua vez,
integra-se na cidade real esse impossível açude transmigrado do
romance.

1º. de agosto

Ante a Biblioteca Municipal, eu esperava um ônibus quando


vi atravessar a rua e tomar lentamente a direção do Mappin,
acotovelado pela multidão, um indivíduo alto, de terno branco. O
modo de vestir-se, contrário aos usos desta cidade úmida e
fuliginosa, a primeira coisa que me chamou a atenção no homem,
além da estatura. Segui-o a certa distância, movido por uma
curiosidade irresistível e que me parecia natural. Cruzou o andar
térreo do Mappin sem dar atenção às mercadorias expostas, seguiu
pela Barão de ltapetininga, passou para o outro lado da rua. Apesar
da sua altura, tanto era o movimento que mais de uma vez eu o
perdi de vista. Voltou-se à beira da calçada, meio curvo, os longos
braços quase chegando aos joelhos: era, escrito, o negro Rônfilo
Rivaldo. A mesma pele com marcas de varíola, o cabelo engomado,
o ar entre bondoso e sonso, os dentes podres. Fitou-me e, dando as
costas, afastou-se, jogando mais vivamente as compridas, como se
175
precisasse chegar com urgência à praça da República. Só então,
mesmo assim de maneira fugidia, pois alguns veículos
interpuseram-se entre nós, vi que o ladeava uma mulher franzina, de
quem não cheguei a distinguir o rosto e que fazia o possível por
acompanhar as suas largas passadas.

5 de agosto

A seqüência por assim dizer natural destas anotações devia


conduzir-nos, examinado o espaço surpreendente inventado por
Julia M. Enone, ao problema do tempo, com ele fundido e tanto
que, por vezes, só às custas de artifício evitei discutir, fugindo ao
plano traçado, a sua natureza em A Rainha dos Cárceres, como nos
pontos onde surgem, anacrônicas, as cenas de guerra. Mas a
composição literária, sabemos, tem os seus caprichos, e pode
suceder que um valor diferente da lógica − mais discreto e, em
certas circunstâncias, mais importante − subverta o projeto da
estrutura.
Aqui, esse valor é uma espécie de jogo entre o concreto e as
incursões no abstrato, uma ondulação, amigos, como a que dirige
tantas vezes os livros de viagens, nos quais se alternam flagrantes
do país e meditações sobre o povo, quando não sobre o próprio
viajante. Aludir ao espaço do romance e, sem intervalo, ao seu
tempo, não seria levar além do desejável o movimento osciltório na
direção do abstrato e assim causar certa arritmia, contrariando o que
estabeleci?
O princípio, um tanto vago, não aspira no meu caso a
configurar discutível habilidade na execução do escrito. Como o
"habitante de otro mundo", o "bagre" de Bioy Casares, que não
suportava o ar seco e sobreviveu apenas enquanto mantiveram no

176
seu esconderijo um repuxo, respiro mal o abstrato e procuro voltar,
sem intervalos muito demorados, a uma atmosfera mais úmida.47
Adiemos então as ponderações sobre o tempo em A Rainha
dos Cárceres. Voltarei, com a tolerância e talvez o alívio do leitor, à
gentama do romance.

6 de agosto

O sr. Reinhold Stephanes reconhece que o atendimento do


INPS, atualmente sob a sua direção, "é inferior, em São Paulo, em
termos globais, ao de todos os estados da região centrosul", mas
anunciou "sérias e urgentes providências"− O tumulto, aqui, em
vários postos de atendimento, que abrem às sete da manhã, começa
na véspera, ao escurecer, quando chegam os primeiros pacientes e
iniciam a fila, onde pernoitam. No Tatuapé, quando se abre o
guichê, há em geral cinco a seis mil pessoas, vindas de numerosos
bairros periféricos, na zona leste. Destas, são atendidas mil e
oitocentas, e as restantes voltam para casa, dirigem-se a outros
postos ou então, exaltadas, reagem com gritos e às vezes atiram
pedras nos funcionários. Apesar do "muito que já se fez no setor",
conforme disse em maio o ministro Nascimento e Silva, da
Previdência Social, "ainda há muito por fazer".

7 de agosto

Esboçamos, no início, mostrando seu nexo com o plano


quiromântico da obra, os perfis de Antônio Áureo, de Belo

47. "El calamar opta por su tinta", in Histórias fantásticas. Buenos Aires, Emecé
Editores, 1972.

177
Papagaio, de Dudu, de Rônfilo. Outras figuras, depois, cruzaram
nossas páginas, com maior ou menor relevo, segundo o grau da
minha reação ante elas, mas sempre incidentalmente. Se atento,
haverá o leitor deduzido que no livro de Julia Marquezim Enone,
onde a figura central percorre sem descanso ruas, salas da Justiça,
consultórios, repartições, empregos e ainda o Hospital de Alienados,
habita uma pequena multidão (vinte e sete personagens contribuem
para a formação do Súpeto), nele ocorrendo o inevitável em
romances muito povoados, onde a estrutura das personagens é
urgente e sumária, como aprofundamento − mesmo assim, nem
sempre − de apenas três ou quatro. A dedução é exata, mas o caso
sob estudo apresenta um quadro menos esquemático.
O que dissemos sobre as relações entre o arcabouço do
romance e a quiromancia sugere uma tendência para as alusões,
notadamente as alusões a conjuntos, mais que a pessoas e coisas
isoladas. Onde vai a romancista convocar as suas personagens?
Onde os seus modelos? Habitavam o espírito da minha amiga
muitas das pessoas que odiou ou amou (teria odiado alguém?), que
conheceu ou que, simplesmente, viu um dia: mais de uma vez me
falou de como recordava os traços de desconhecidos com quem há
muitos anos cruzara na rua. Mas a disciplina com que organiza A
Rainha dos Cárceres recusa transformar o livro numa simples
galeria da memória. Vimos, por exemplo, as origens literárias de
Belo Papagaio, moldado em grande parte num obscuro e remoto
aventureiro dos mares; e as do protegido de Alberto Magno,
inquisidor e mártir, o iletrado Rônfilo, elaborado a partir de
intenções bastante complexas.

178
8 de agosto

Rônfilo Rivaldo, que volta a instigar minha reflexão, ilustra


quão variadas são as convergentes de uma obra literária e como tal
variedade corresponde sempre à ambição do plano. Pedagogo e
vidente, transforma-se, sem gradações e sem que a mudança influa
no curso dos eventos, num charlatão da odontologia. Qual o sentido
deste lance?
Superstição e ciência, é verdade, nem sempre se excluíram.
Recordo o fundador da Academia dos Segredos, em Nápoles,
Giovanni Baptista della Porta, morto em 1615; alquimista, deixou
ao mesmo tempo trabalhos sobre óptica, elasticidade do ar,
pneumática e pressão atmosférica. A metamorfose "científica" de
Rônfilo Rivaldo, caso tenha em mira essa conciliação de tendências
mentais, leva-nos a origens e fins não integráveis no coerente
arcabouço que venho desvendando. A suposição é fecunda para o
estudo do processo romanesco. "Engana-se quem crê que todos os
fragmentos de uma narrativa nascem da mesma intenção e
convergem, em acordo perfeito, seja para onde for. Só a obra, mais
nada, acolhe e justifica o que a ela se associa. Objeto uno e,
entretanto, caprichoso, apto a assimilar corpos estranhos, modelam-
no os múltiplos interesses do escritor por tudo que − importante ou
sem valor claro − deixou no seu espírito marcas duráveis."48
Ainda mais fecundo, a essa luz, o pressuposto de que a nova
profissão de Rônfilo Rivaldo, ilegal, não tenha sentido. Pode a
introdução de um motivo ser um gesto de amor, cifrado, só
traduzível pelo destinatário verdadeiro; pode estar na obra como o
búzio apanhado numa excursão matinal e que se guarda,

48. Dos papéis de J. M. E. Ignoro se a observação é sua ou se copiou de algum livro o


fragmento citado.

179
tentando·− inutilmente, sabeis − guardar o som do mar e a sombra
da manhã; pode ser eleito pela sua raridade ou, ao contrário, sua
banalidade exemplar; pode destinar-se a romper uma série,
quebrando a sua harmonia e com isto desorientando-nos.

10 de agosto

Razões bem diversas das que conduziram à criação de Rônfilo


Rivaldo − e, também, mais superficiais no seu esquematismo −
orientam a escolha, a fatura e a conduta dos tipos que representam
no livro o mundo burocrático. Joyce, no Ulisses, leva para a Dublin
de 1904, reduzindo-os a um nível farsesco e deplorável, os heróis da
Odisséia. A casta Penélope? Chama-se Mary Tweedy: verdadeira
puta. O temível Ulisses? Quem: o corno Bloom. Nausícaa: a coxa
Gertie Mac DowelL Circe: Bella Cohen, cafetina. Julia Marquezim
Enone traz para o Recife, condenando-os a uma vida sem glória e
inteiramente anônima, heróis (quem sabe até que ponto reais?) da
história do Brasil.
Ressurge o Marechal de Ferro, sem poder, sem farda e sem
patente, no contínuo Flor,
sopro de asmático, o olhar de morto e o coração vingativo, mas se
vingar de quem se não se lembra quem?

Rio Branco assina o ponto, e a poltrona giratória range com o peso


do seu corpo. Arrogante e perfumado, às voltas com a disposição
das mesas, olha constantemente para fora − alusão pouco sutil à sua
ânsia de ser admirado na Europa −, esquecido dos processos que
dormem nas gavetas e dos deveres de chefe de seção. Raquítico,
enervado, vaidoso, cheirando a cânfora, acreditando guardar "na
cabeça de cabaço, de cor e salteado", os números dos protocolos e
sempre se enganando, Rui Barbosa − Barbosa Neto −, sem
180
possibilidade alguma de ascender dos seus infectos arquivos à
Presidência da República, esqueceu a Campanha Civilista e
transformou-se num fanático do militarismo:
Tenho vergonha de ser honesto. A pátria é a família amplificada, e
portanto só vai na espada e no tiro.

Restou, do modelo consagrado pela tradição, a retórica proliferante,


pompeada inclusive no guichê:
Leve este papel, conduza este ofício, seja portadora deste documento,
e, ontem como hoje, agora como sempre, sempre como nunca, insista
em reclamar os seus direitos, em exigir o que lhe cabe, em propugnar
pelas suas regalias, em reivindicar a sua pretensão.

Mesmo d. Pedro II, mito de bondade e de amor ao estudo, aparece


vez por outra, vindo do almoxarifado, a barba branca, um barrete −
redução da coroa? −, lado a lado com os líderes republicanos,
sempre admirando o telefone, fazendo já idoso o supletivo e
tentando impingir aos associados uma exígua coleção de sonetos.
Ainda mais tocante, nem por isto delineada com traço menos
cáustico, a figura transparente do escriturário Santos: a mesa e a
cadeira que ocupa, postas sobre um estrado, são além disso mais
altas que as restantes. Os olhos perdidos no ar, alheio aos
solicitantes que desfilam nos balcões, vive a refazer os planos de
um balão, sem dar-se conta de que a época é outra e de que, tendo
chegado tarde, os balões já passaram e o seu prêmio no mundo será
o anonimato. Mas talvez acabe vendo claro: como o seu modelo,
suicida-se.

181
13 de agosto

Afirma-se que se o poema de Homero ressurge em Joyce sob


uma forma degradada é por ser o nosso mundo incapaz de gerar
outra Odisséia. Sugeriria igualmente Julia Marquezim Enone, com
mordacidade e desencanto, não sermos hoje capazes de engendrar
heróis como os de ontem? Hipótese admissível e que o exame da
nossa realidade atual parece consagrar. Os últimos heróis nacionais
surgiram há meio século e desde então caíram no esquecimento, na
rotina ou na dubiedade. Quando morreram, a notícia apenas
perpassou por nós − como perpassa a brisa − e pode ser que algum
tenha expirado sem que o país soubesse. Um deles, remanescente de
um pequeno grupo de dezoito que saíra à rua em. 1924, de armas na
mão, dispostos a morrer e talvez invocando uma bala inimiga, no
coração se possível, para que o fluir da vida não negasse o fulgor
daquele instante único, vinte anos depois cruzaria o país, envolto na
sua legenda ainda clara e que, antes de todos, começaria a esquecer.
Nem sequer do fumo da Segunda Guerra nasceriam heróis. Muitos
foram mortos e jazem em Pistóia, enterrados junto com os seus
nomes, ninguém sabe onde estão os mutilados, e os nomes dos que
os comandavam nada significam para nós. A ação política tem
levado muitos ao exílio, à morte e aos negócios − e a verdade é que,
de todos, só os últimos conservam ainda certo fulgor mítico. Isto
não deve surpreender. Os heróis nacionais, hoje, todos circunscritos
à televisão e ao esporte profissional, ganham num dia o que
ninguém come em um ano. Agravando o desacerto, esses nossos
mitos, sem um único exemplo discordante, professam indiferença
absoluta por todos os problemas que afligem os humanos. Nenhum,
como o peso pesado Cassius Clay, arriscaria a carreira e o título por
nada neste mundo − uma causa, ou um princípio, ou uma idéia, ou
uma teimosia. A neutralidade, luxo equívoco, é sua norma, e isto em
nada os fere no conceito geral.

182
14 de agosto

Sim, esse fenômeno um tanto melancólico. bem pode ter


contribuído para a ressurreição degradada, em A Rainha dos
Cárceres, de alguns mitos históricos nacionais, aparentando-se
então à de Joyce, com amplitude menor, a solução da minha amiga.
Temo sempre arriscar hipóteses e interpretações. Comentamos uma
obra literária, e, circunstância a ser considerada, obra ainda inédita.
Assim, o risco de limitar o alcance de suas significações é ampliado,
por menor que seja a minha autoridade (aliás, nenhuma).

15 de agosto

Os comentadores estabeleciam para as Sagradas Escrituras


uma interpretação alegórica, logo consagrada e que vem
atravessando os séculos. Já Homero era alegoricamente
interpretado, no esforço discutível de legitimar como frutos da
sabedoria os seus poemas. Para Melanchton, o amigo de Lutero, ele
fundara a astronomia e a filosofia quando descreveu o escudo de
Aquiles. O mesmo processo envolveria o autor da Eneida, "todo
cheio de ciência", no dizer de Sérvio, que andei lendo há anos. Uma
trajetória complexa e só delineável mediante estudos demorados faz
convergirem para a Idade Média, onde não se discute a sua
autoridade, o alegorismo pagão e o bíblico. Quem se interessa pelo
tema sabe que esse esforço de conciliação, não restrito aos dois
grandes épicos da Antigüidade, define-se já no século III. Clemente
de Alexandria vê em Sólon e Empédocles antecipações sobre Deus.
Hércules, Sansão e Davi, de certo modo, viriam a confundir-se. O
empenho conciliador seria contestado e por fim repudiado. Mas
subsistiria, intocável, a noção de obra literária como alegoria − e,
183
logo, toda uma doutrina seria construída para justificar a
necessidade da alegoria:
a) a razão, incapaz de alcançar as coisas divinas, só chegaria a
elas com a mediação alegórica;
b) a alegoria, dependendo de um mestre ou decifrador,
permanecia velada aos indignos da verdade.

16 de agosto

Recusando aquele segundo postulado (b) e ilustrando


deliberadamente o primeiro (a), um texto anônimo da época, A
demanda do Santo Graal, atesta as ressonâncias do fenômeno. As
personagens, incapazes de interpretar os eventos que defrontam,
sempre recebem de outras, detentoras da sabedoria, a explicação
correspondente. "Por essa dama, entendemos a Santa Igreja, que
conserva a cristandade na verdadeira fé, e o que é o patrimônio de
Jesus Cristo. A outra dama, que tinha sido deserdada e lhe declarava
guerra, é a Antiga Lei, o inimigo que guerreia sempre contra a Santa
Igreja e os seus."
Um conto da Disciplina clericalis, do judeu converso Pedro
Alfonso, narra que um homem foi em viagem e que, na sua
ausência, a esposa recebeu em casa um amante. Mas o homem
regressa quando não é esperado, e a sogra mostra-lhe uma colcha
bordada, por trás da qual foge o intruso. Os predicadores assim
interpretavam o conto: o marido, viajando para o estrangeiro,
figurava o cristão, eterno peregrino na Terra; a adúltera, a
concupiscência e o vício; a volta do marido, o arrependimento, a

184
oração e o jejum; a sogra má, o mundo pecador, que cega o homem
com a colcha das vaidades e dos prazeres.
A demanda do Santo Graal abriga este. gênero de
interpretação e, no dizer de um ensaísta, "contém a sua própria
glosa". Mas, apesar dessa rendição − quem sabe até que ponto
verdadeira? −, a narrativa estende os seus laços, e, citando o mesmo
estudioso, que tem sobre a matéria considerações interessantes,49
"no interior de um único sistema de interpretação, já se propõem
vários sentidos". Isto é, mesmo parecendo aceitar a autoridade da
interpretação anagógica, a ponto de incorporá-la, o narrador
anônimo, dentro da nítida simbologia adotada, oferece aberturas por
vezes antagônicas.

17 de agosto

Tais aberturas prendem-se deliberadamente ou não a um


problema artístico fundamental, o da significação da obra (ou de
determinadas unidades). Que significa, no romance, a redução de
tantos mitos brasileiros à cinzenta vida burocrática? Que significa a
transformação de Ulisses num insignificante mora dor de Dublin?

49. De amore et dilectione Dei et proximi, do dominicano Lázaro de Pádua(1313-70),


edição em fac-símile na revista Drum no. 4, ano II, primavera de 1972, p. 80. Lázaro,
diz-se, impregnara-se de tal modo da Demanda do Santo·Graal que era capaz de emitir
o texto: quem o conhecesse acabava conhecendo também a narrativa, mesmo que não
ouvisse, dele, uma só palavra a respeito. Além disso, trouxera o livro para a sua vida
diária e, em tudo, via símbolos que não resistiaa explicar: "Se sois quatro a receber-me e
me acolheis com duas janelas deste recinto fechadas e a do centro aberta de par em par,
isto significa [...]". O mais curioso é que, segundo a tradição, Lázaro de Pádua atraía
fenômenos crípticos: no refeitório onde comia entrava o leão fugido de um grupo de
saltimbancos; o seu vinho, entornado, espalhava-se em forma de cimitarra etc.

185
Respostas solicitam o observador. Corretas? Não. Não há, nesse
caso; respostas absolutas, e sim respostas possíveis. Nem mesmo o
autor é testemunha incontestável: ele não domina integralmente a
sua criação, na qual subsistem componentes obscuros. Isto não nos
impede de arriscarmos hipóteses de impossível confirmação. O
importante é que elas sejam apreciadas como um testemunho da
atuação da obra no espírito do observador, e não como decifração
que a reduza a uma mensagem cifrada − limitada, portanto −,
contrariando a natureza do objeto artístico, que nunca é um detentor
de significação, e sim um deflagrador de significações.
Isto, ainda que ele, no espírito do criador, se revista de uma
significação precisa.

19 de agosto

Assim, é resguardado pela minha liberdade de leitor, e sem


fechar-me a outras interpretações, que suponho haver no motivo
discutido um intuito corrosivo ou mesmo uma agressão. Induz-me a
esta hipótese um traço pessoal e, portanto, sem validade crítica:
Julia M. Enone, com todas as suas leituras, era, sem forçar e sem
ostentar, uma mulher do povo e com uma aptidão para falar no seu
nome, para ver do seu lado, que os escritores não conseguem nunca.
Inversamente, os ídolos nacionais, no Brasil, os consagrados com
monumentos e nomes nas vias públicas (em que cidade brasileira
não existem a rua Barão do Rio Branco e a praça Marechal
Deodoro?), se realizaram feitos memoráveis, sempre guardaram
distância do povo, e a sua indiferença pelos humilhados
assemelhava-se à dos heróis de hoje − os esportistas e os das telas
de TV. Imersos em sonhos aristocráticos, moviam-nos ideais
abstratos; ou de poder; ou nenhum.

186
Os mecanismos oficiais, reconhecendo-os, por motivos
diversos, servidores seus, é que os levariam ao que chama
Talleyrand a ''canonização laíca".
Julia Marquezim Enone derruba-os dos pedestais, priva-os dos
títulos, dos bens e das vestes − se militares, das dragonas e das
armas −, troca ou adultera os seus nomes e atira-os no limbo do
serviço público, mais ou menos como Dante mete inimigos seus no
inferno. Todos, no moral e no físico, são identificáveis pelo leitor
não distraído.50 Mas, excluídas as circunstâncias que os favoreceram
(onde iria o duque de Caxias forjar a sua glória, se não existisse
mais Guerra do Paraguai e, portanto, batalhas de Humaitá ou Lomas
Valentinas?), eis, nos balcões e nos fichários, anônimos, fora do
mundo e ansiosos, como se tivessem consciência do seu
despojamento, esses homens lendários, agora expulsos da lenda e só
um pouco mais altos do que Maria de França.

20 de agosto

Precisarei acrescentar que essas figuras desfiguradas não


passam de comparsas e que, em última análise, formam em
conjunto uma entidade ampla, a massa burocrática, encarnação −
distantes, anacrônicos, confusos − da distante, anacrônica, confusa
Previdência Social? Isoladamente, nenhuma tem a vida e a força
que desprendem Belo Papagaio ou sequer o fantasma Antônio
Áureo. Mesmo assim, na posição subalterna que lhes concede o
plano da obra, respiram: tangíveis e impalpáveis, solicitam nossa
credulidade, rendem-nos. Por quê? Que falcatrua vence em nós a
certeza de sua inexistência e nos desarma ?

50. Isto nos permite avaliar, mais uma vez, o alcance da obra literária, vedada, em
alguns dos seus aspectos, ao leitor de outros meridianos.

187
***

Alguns escritores, contra os quais se irritava Julia Enone,


falam de personagens que entraram porta adentro e exigiram um
lugar na obra em elaboração. "Querem insinuar com isto o quê? Que
são videntes?" Sua reação era justificável: a única porta pela qual
ingressa a personagem, principal ou secundária, é o ofício,
"repertório de soluções, usuais ou surpreendentes, mediante as quais
o romancista atinge certos resultados", na definição pragmática de
Norman.51
Quanto a mim, desde muito acho um prazer suplementar,
intensificado a partir da nossa convivência, em seguir o romancista
no trabalho de compor a personagem. Quem leu Tristram Shandy,
lembra-se de como Sterne deixa uma página em branco no volume,
para que o leitor desenhe a, esplendente viúva Wadman, passando
assim a colaborador da obra. Colaboração ilusória e habilmente
conduzida por Sterne: jamais vimos, diz, objeto que tanto excite os
sentidos; o retrato deve ser o mais próximo possível da nossa
amante; e não lembrar em nada a nossa esposa. Na esteira de.
Lessing, contemporâneo seu, para quem a descrição minudente da
beleza feminina é inútil e sempre inferior à beleza ideal, não quer
dizer-nos como eram os lábios ou os joelhos da viúva. Tudo que
deseja − e consegue, mediante o artifício − é excitar nossa
imaginação e estender em torno dessa apetecível fêmea uma
atmosfera de sensualidade. Não descuida de acrescentar:
"Oferecerá a natureza outra coisa tão doce! tão esquisita!
"'Como, caro senhor, poderia o meu tio Toby resistir-lhe?'
Capcioso Sterne Diverge, tanto, tua ágil manobra, do
laborioso processo acionado por Dostoievski para delinear

51. C. D. Norman, The novel and its problems. Manchester, Typhom, 1971, p.121.

188
Raskolnikof! Tentei (precisava delir este ser imaginário e cujo
modo de ser me atordoava, nele haverá traços meus?) seguir os
laços do enramado que o faz existir. Vi como o autor inicia o
romance, pondo Raskolnikof em movimento − "passo tardo,
vacilante" −, um homem de ação, esboçando a seguir o sórdido
lugar onde mora e seu constrangimento quando encontra a senhoria,
fato inexplicável para o futuro assassino: planeja "uma coisa tão
arriscada!". Saber o que pensa o personagem, o que sente, suas
decisões secretas, não obriga o narrador a entender as "palavras
indistintas" que ele remói. Vejo bem, Fiódor Mikháilovitch: teu
empenho, mais que apresentar o personagem, é disseminar uma
sensação de incompatibilidade; e o caminho que escolhes, velho
trapaceiro, é o de insistires no desconforto físico, o calor, a fome, o
ar pesado, o povo comprimindo-se entre andaimes, montes de cal, o
mau cheiro, vestíbulos escuros, e nem sequer dispensas este golpe
baixo, aduzir que o quadro era "horripilante e melancólico". Vi isto
e vi mais, segui os rastros dessa composição rica em pormenores, e,
depois de tudo, reconstituída na medida do possível a operação
clarividente e sólida do mestre, reencontro, perturbador como antes,
com a mesma discutível energia, o assassino de Lizáveta e Alióna
Ivánovna.

26 de agosto

Mas a equívoca página em branco onde algum cândido leitor,


acreditando no convite, desenhará a bela viúva de Sterne, e o
seguidor invisível que contempla sem recato os passos do estudante
em Petersburgo, nada ignorando do que deve saber e falando por
ambos, são apenas dois casos − inimitável, o primeiro − de uma arte
complexa, executados por detentores do ofício. Tudo, no romance,
complicada máquina astuciosa (o romance não se entrega num dia,
não se revela na ociosidade e não nasce de mulher), tudo nele é
189
fabricado e exige manejos. Criar uma personagem não significa
apenas vê-la, e sim eleger, em relação a ela, uma atitude e um modo
de operar, instando o leitor eventual a uma perspectiva calculada, a
uma posição tanto emotiva como espacial: a densidade e o tom das
informações regendo no conjunto a disposição das figuras, aqui as
personagens dominantes, e no fundo do quadro, anônimos, por
vezes, os comparsas.
J. M. Enone, como se estivesse certa da morte prematura e
cuidasse de amadurecer avidamente, revela uma noção desse
problema, uma aptidão e uma diversidade de métodos acima dos
padrões correntes. Teria escrito e destruído outros romances de que
nunca falou? Para dar corpo à multidão do seu livro, vale-se do
nome significativo, do breve traço emblemático, da descrição
pausada ou, inversamente, do epítome, acumula ou distribui, finge
objetividade ou permite-se envolver, tudo com aguçado senso da
gradação e adestrada mão. Tem, cada figura, o tratamento que a
situa, nítida ou difusa, no conjunto.
Não vou recensear o uso desses métodos. Para quê?
Magistrais e variados que sejam, já os vi e verei em outras obras.

27 de agosto

"Tudo que desejo: escrever um livro. Só. Merecerei?" (Dos


papéis de J M. E.)

28 de agosto

A consciência anômala de Maria de França, capaz de invadir


almas alheias, ultrapassa as constrições ordinárias de espaço

190
e tempo, fenômeno previsível nesse romance de permutações, onde
tudo invade tudo, sendo fatal que as leis internas da obra
conduzissem a invasões de ordem cultural. Mais: a dicção de Maria
de França, se em certa medida revela o seu perfil, como estabelece a
tradição, sofre modulações constantes (recordemos a sintaxe do
Método de redação, aplicada nos períodos de internamento). Nota-
se, em decorrência, uma inversão curiosa e tão audaz que me
aventuro a perguntar se a romancista mediria o seu alcance. Maria
de França, narradora e personagem, caracteriza-se, sim, através de
sua fala. Outras vezes, porém, mediante a estrutura mesma do
discurso, feito de alusões pervertidas ao léxico, ao tom e à
fraseologia cultivada no setor onde outras personagens dominam,
caracteriza-as a elas. Alvos constantes desse jogo, demonstramos, a
medicina e o direito.
As figuras nascidas de método tão inadequado − mas
fascinante, no que tem de ousado e sorrateiro − tendem certamente
para a uniformidade e nunca para a singularidade. Ainda aí Julia M.
Enone amplia o ofício, superpondo aos indivíduos, pelo ardil de
uma enunciação alusiva, niveladora e captiosa, a máscara da classe
em que se anulam. Mas quem aceita anular-se? Segregar-se, então,
mediante códigos grupais, vem a sêr o modo de negar a anulação e
de simular uma identidade qualquer. Mordaz, Julia M. Enone,
deslocando para a boca de Maria de França, desfigurados, códigos
tão discutíveis, ao mesmo tempo que revigora um proceder
romanesco, vergasta:
a anulação do indivíduo;
a empáfia do grupo;
a vacuidade do código que disfarça tudo isto.

191
2 de setembro

Morreu hoje. Chamava-se Orlando da Costa Ferreira, e há


muito eu não via esse leitor atento e exigente, a quem me uniam os
livros. Seu interesse, entretanto, mais amplo que o meu e sábio, ia
além dos textos: fascinava-o o livro com as suas metamorfoses. O
livro? Os caracteres tipográficos, as variedades de papel, a gravura,
os métodos arcaicos ou modernos de reprodução, o uso da página, a
encadernação. Esse conhecimento, que aprofundou a vida inteira,
nunca se transformou num ato de posse ou de orgulho, saber era um
modo seu de amar. Não colecionava obras raras e duvido que as
ambicionasse, dada a pouca força, nele, da avareza, mesmo em suas
formas nobres. Para não guardar o que sabia, há quase vinte anos −
vinte ou mais? − dedicava noites e domingos a um estudo onde
concentra o que aprendeu e pensava sobre o livro. Vinha agora
procurando editá-lo e morre (chuta o saco, Orlando!) com o
manuscrito na mão. Apesar de tudo, não me comove a sua morte
como devia comover. Vejo-a a distância, entendem?, e o que desejo,
confesso, é fechar as persianas, dormir um dia e uma noite, surdo,
sem que me sobressaltem, como vem sucedendo, esses ruídos
brutais e cuja origem não descubro, gritos, tiros isolados, choques
de metais, ferraduras no chão úmido. Sinto que fujo de mim e,
quando acordo, transparece, o fio mais agudo, a questão que
ultimamente me desequilibra: "Quem sou?". Embotam-me estas
noites desassossegadas? Que é o espírito, afinal, se tanto depende
do corpo? Tua morte, pois, não me fere, Orlando. Adeus. Só?
Desabotoa as calças, mija uma última vez neste país que não
retribuiu em nada o que lhe deste e depois vira as costas, segue,
some. Teu livro está escrito e bem escrito. Fim.

192
5 de setembro

Da mesma forma que o mundo burocrático é suprido com os


nossos mitos históricos, J. M. Enone, opondo-se mais uma vez à
linha confessional e pensando o seu livro sempre de maneira
alusiva, tanto quanto possível longe da memória, vai povoar o
hospício com figuras advindas do meio literário, não com os loucos
que pôde observar nas duas vezes em que andou internada. Não
transpõe, igualmente, para o romance, com ou sem disfarce,
personagens da nossa ficção, recriando-as. As celas, os pátios e as
enfermarias do hospício estão abarrotados de autores. Mortos e
vivos. Do padre Anchieta a Clarice Lispector.
Alguns, não identifiquei. Ou lá estão, como faz sempre e tanto
ocorre em outros livros, para turbar a série? Ignoro quem seja esse
louco maneiroso e bem-vestido, constanternente falando em
mortandades; ou esse tipo meão e gordo, de turbante branco,
coberto de balangandãs, sempre agitando no ar ramos de arruda e
dentes de jacaré, com um charuto de folhas na boca, para afugentar
a Serpe Antiga, ou às voltas com galinhas pretas, vou fazer um
despacho, saravá. Mas o de pele escura e rosto pintado de alvaiade,
de chapéu alto e luvas, piscando com malícia, certamente é
Machado de Assis; o que acredita ser proprietário de um enfermeiro
negro, enfeita-se com penas de arara e tudo dissimula sob frases
pomposas, é o autor de Iracema. Quem não reconhece o ríspido e
arredio louco, parricida e uxoricida, soturno, constantemente
disseminando entre enfermos e sãos uma espécie de rosnado, como
se todos ali fossem um cão informe a ponto de morder?; ou o
precário latifundiário imaginário, olhando, contando e avaliando no
ar seus pastos, plantações, bois, sesmarias?; ou o míope de chapéu
de couro, gravata borboleta, rosário no colo, meias de seda e sapatos
de verniz, brandindo dia e noite um rifle invisível com medalhas na
correia e clamando:

193
Epa, mano velho, venho e vim, sobrosso?, afã, dou brado e bala!,

quem não reconhece? Um dos internos, a pele encarvoada, volta e


meia na camisa-de-força, protesta contra tudo, grita para ser ouvido
na rua, e sua idéia fixa é escalar os muros. Vejam o ancião inquieto,
empertigado, olhos pequenos e cínicos, nariz de quem fareja o
mundo, a. boca um lanho oblíquo e corrosivo: maneja uma viola de
lata e com língua aguçada verbera sem descanso o tesoureiro, o
supremo juiz, o papa, o provedor e o rei: Gregório de Matos.

6 de setembro

O dentista do INPS em Teresina, Antônio Martins, mandou


assassinar a tiros outro servidor daquele órgão, Antônio Ferreira da
Silva. Homem de posses modestas, contratou o assassinato a
prestações, sendo cinco mil cruzeiros de entrada e o restante em
vinte parcelas de quinhentos cruzeiros. O matador, da Polícia
Militar do Piauí, acolitado por mais dois elementos da corporação,
foi denunciado e preso horas depois, sem chegar sequer a receber a
primeira prestação. O dentista, em seu depoimento, confirmou tudo
e adiantou que, se ganhasse melhor e encontrasse pistoleiros de
coragem, mandaria liquidar mais seis funcionários do INPS "que
não merecem estar vivos"
9 de setembro

A loucura e o hospício, em A Rainha dos Cárceres da Grécia,


vão além do puramente episódico, e sua carga de notação social é
irrelevante. Trespassa esses motivos correlatos, proliferando em
variações caprichosas, a noção de isolamento, expressa com
superior ironia na sintaxe grotescamente ordenada que esteriliza a
expressão de Maria de França quando interna. A decisão de povoar
o hospício com escritores, reconhecíveis, embora despoja dos de

194
seus nomes, integra-se nesse motivo. Fora de cogitação, parece-me,
a hipótese (eis, se acaso a aceitam os, uma escritora cheia de
orgulho) de que os atira numa casa de loucos para sugerir, neles,
uma percepção inidônea do real. A dissociação entre a consciência e
a realidade, aí, manifesta-se − em caráter individual, não como um
fenômeno geral − na linguagem postiça e idealizante dos
românticos, em especial na de José de Alencar. Ou seja: a
romancista, como é próprio da caricatura, expressa, com a
deformação de certos traços e a mescla de emblemas transparentes,
sua atitude em face do modelo. Solidária, sarcástica ou ambígua.
Comum a todos, apenas a segregação, o isolamento. O isolamento,
no caso, sugere e quase impõe aquele gênero de leitura a que Witt
chama secular, opondo-a à leitura oracular.52

52. "Secular: a leitura que supõe ver claro. Oracular: a leitura que vê enigmas nos
textos. Secular: leitura interpretativa. Oracular: leitura mágica. A tradução e o espanto.
A máscara sobre uma face desverdável; a máscara sobre mil faces possíveis." (John
Williams Witt, Positions € suppositíons. Londres, Sagittarius, 1960, p. 13.) O
patronímico do autor soa-nos familiar, lembrando as Pílulas de Witt. Efetivamente, o
Witt citado descende em linh a reta do famoso médico e, por coincidência, viria a
desposar Evelyn Bruce Ross, neta do igualmente célebre dr. Ross, o dlas Pílulas de
Vida. Explicaria isto o seu estilo tão sintético, idêntico, por vezes, ao do nosso Oswald
de Andrade? Cf., p. ex., o "Manifesto antropófago": "Antropofagia. Absorção do
inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade".
Etc.

195
10 de setembro

O trabalho do escritor incita-o a isolar-se. Todas as formas de


convivência lhe são familiares, mas vem o dia em que ele fecha a
porta e é aí, quando parece cortar as ligações com todos. e,
inclusive, versa uma linguagem pouco habitual, que ele se une aos
demais. Claro, esse ato não é mágico, e o escritor pode errar: na
difícil solidão da obra, só alguns logram intensificar e aprofundar as
ligações com tudo o que, materialmente, está longe. Unamuno,
refletindo sobre o ato poético e a vida social, fala em alguma parte
na "espessa crosta de pudor que nos separa uns dos outros" e que o
poeta, na solidão onde as mentiras se desfazem, anula. Os
companheiros de Maria de França podem simbolicamente expressar
a condição de segregado voluntário, peculiar ao escritor no ato da
criação.
Entretanto, se, à força de convivência, captamos a índole
desse. romance, se a direção dos seus eventos se revela à nossa
demorada sondagem, não nos parece que a paradoxal manobra do
escritor − retirando-se para mais aprofundar as suas relações com o
próximo − prepondere no motivo que ora me agita. Julia Marquezim
Enone não se revela propensa a esse gênero de armações mentais e
deixa sempre de lado, no seu livro, os íntimos dilemas do escritor,
interessando-lhe pouco essa visão um tanto elaborada das relações
entre o homem que escreve e os outros indivíduos, a qual lhe
parecia encobrir um vago sentimento de culpa. Aliás, toda a
psicologia soava-lhe falso, uma tentativa de autojustificação e, se
possível, de absolvição. Quem nos siga ao longo deste livro haverá
depreendido que a sua tendência ante os fenômenos é antes para o
desafio, para a ofensiva, a agressão − uma tendência instigadora .
(No circo, aos mágicos, aos equilibristas e mesmo aos que
trabalham no trapézio, preferia os números de equitação.

196
Excitavam-na os cavalos galopando em círculo, açulados pelo tipo
que, no centro da arena, estala o chicote no ar.) Assim, coincide
melhor com as linhas gerais do romance outra visão − mais chã − do
isolamento do escritor, não voltada para ele, e sim para a sociedade,
que o recusa. Tal perspectiva, entende-se, não elimina a outra;
superpõe-se a ela.

12 de setembro

Não. Da belbutina à hipotenusa, dealbar, sintagma insolente


haja vista o ofidiano, sutura e nó. Sou eu que assim comando, quero
e dirijo, ousio. Por que essas voltas e cercos, esses movimentos de
gato? Atacar de frente, disparar na mosca, abrir o jogo. Julia
Marquezim Enone é o seu livro e algumas frases reveladoras.
Mesmo estas podem não revelar, mas enganar, esconder. Morreu, e
eu a amei, o que não quer dizer conhecer. Além de comentário e,
parcialmente, substituo de obra ainda inacessível ao público, este
livro talvez seja, quem sabe?, não o testemunho de quem conheceu a
romancista (modo de reatar, ilusoriamente, a convivência
interrompida), mas, ao contrário, a tentativa de conhecê-la, sim, de
desvendar, mediante o aprofundamento do seu texto, o ser que amei
e amo ainda − como se pode amar uma sombra. Possível, também,
que esta inquirição não conduza a nenhuma verdade − nenhuma − e
que eu apenas construa, sobre o romance da minha amiga, outro
romance, outra amiga, à imagem de modelos que ignoro e, mesmo
assim, governam-me. Ou o que procuro iluminar é o meu próprio
rosto, como o velho Montaigne ("sou eu quem eu retrato"), meu
rosto, sim, mas de ângulo diverso e com diverso ânimo, pois desde
muito (desde sempre?) sinto-me fugir de dentro de mim mesmo e
pergunto sem resposta:
"Quem sou?".

197
13 de setembro

Eu , quem eu seja, quero ver − e, vendo assim , vejo e faço ver


de uma certa maneira a romancista −, quero ver nos loucos do
romance, na clausura dos loucos, principalmente, o lado negro e cru
do ofício de escrever, a condição do escritor em algum país onde só
se tolera o seu ato essencial quand o esvaziado de sentido e onde, se
admitido à convivência dos sãos, é sob vigilância e em caráter
provisório, como esses retardados que vêm passar em casa o Natal.
Teríamos uma variação do que ocorre quando o discurso de
Maria de França deixa de ser a expressão de quem fala, para refletir,
no seu modo de formar, no seu tom, o grupo (mais que os
indivíduos) ao qual se reporta: inexiste a preocupação de
caracterizar os verdadeiros internos da "Tamarineira" (ou esta
preocupação é irrelevante), e eles não estão lá para compor uma
certa imagem sombria do cenário. Conquanto, nos escritores em
cuja obra sente-se o esforço de aliar-se ao povo (o esforço, eu disse,
pois que obra literária atravessa a barreira e vem a ser, realmente,
uma expressão do povo?), conquanto, neles, o grotesco do traço seja
atenuado, o que Julia Marquezim Enone mostra e julga, mostrando-
os, não aparece e nem sequer se nomeia: é o que enclausura, o
exterior, o lado de lá, o país.

14 de setembro

O lado de lá? Ontem, pensei nessa expressão. Não: lutei


contra ela. Vai um homem vivendo a sua vida uniforme, iluminada
por um só evento importante e já passado. Vai alguém na curva dos
cinqüenta, um amador dos textos, às voltas com o texto amado entre
todos, por sabê-lo erigido na sua convivência, nos anos mais
significativos que até então conheceu. Vai, dia após dia, anotando
198
como pode sua íntima viagem nesse texto, obediente a vozes que a
princípio acredita conhecer, certo de que nada virá surpreendê-lo,
alterar a constituição de sua vida, assim vai, e eis que um advérbio,
lá, revela de improviso a ambição ignorada. Algo novo e grave lhe
ocorreu: é um escritor, e com isto assumiu a clausura, o
internamento. Mas não me deixarei seduzir. Não, não sou um
escritor, e sim alguém que se aventura, cauteloso, no envolvente
universo da escrita. Alguém que se imiscui numa cultura estranha e
assimila seus valores. Pode o mundo que explora (a floresta
equatorial entra pelas aberturas e até pelos muros das construções
que a desafiam, irrompe do assoalho, invade-as, entorna o prumo e
o nível, reduz a pó as pedras e a lembrança das pedras), pode, o
mundo que explora, prevalecer sobre ele. Sua intenção é voltar.

15 de setembro

Indigência e magia das metáforas! Em que podem assemelhar-


se a obra escrita e a floresta virgem? Que distância entre um homem
nas minhas condições, ora sondando com uma espécie de fervor −
não, porém, tendo feito os seus votos − o uso intenso da linguagem
e o edifício isolado entre árvores selvagens! Apesar de tudo, um
misterioso processo vem impregnar o real com o seu discutível
símile: e o símile, mais forte que o real, por um momento o reveste.

16 de setembro

Quando darei por concluídas estas anotações? Tenho o meu


plano (que vem sendo cumprido como os ramos de uma árvore,
rebeldes, cumprem o seu desenho impresso num manual), mas o
temor de afinal interromper este convívio com A Rainha dos
Cárceres da Grécia, e que não é, sabemos, apenas um convívio com
199
o romance, insinua questões novas. Vou afastando-as, e, apesar de
temer o fim da obra, quando ignoro o que será de mim e o que farei
dos meus dias solitários, ela domina-me, o simulacro de um
desfecho clama (de onde?) e me impõe a sua urgência.
Por isso, contra o meu desejo, alegando, com pudor da
verdade, agravamento do problema ocular, entreguei quase metade
das aulas. Há quantos dias? Dois? Quatro? Não consigo recordar
com exatidão, falta imperdoável num diário ou imitação do gênero.
É como se o tempo do romance, tão vacilante quanto o seu espaço,
me influenciasse. Entrego-me, agora mais decididamente, ao meu
livro − do qual me fiz servidor.

17 de setembro

Cedi, aqui e ali, à tentação de fazer com que assomasse, ao


meu estudo, o perfil de Julia, delicado. Infringi, com isto, leis que a
rigor não me atingem, empenhado que estou numa aventura, e não
na disciplinada execução de movimentos exteriores a mim, embora,
acredito, muito mais corretos e eficientes. Não escrevo isto para
desculpar-me, e sim por me ocorrer que ao retrato faltam ainda
alguns traços, importantes.
Falo, principalmente, das duas funções que exerceu depois
que sai, pela segunda vez, do Hospital de Alienados: durante um
ano e meses, entre 1961 e 1962, mestra de uma escola primária no
Alto José do Pinho, onde alunos de dez anos apareciam armados de
faca; funcionária, por concurso, do Instituto Nacional de
Previdência Social, sendo demitida com cinco anos de serviço,
emeados de 1967, por abandono de cargo, após uma carreira
irregular, com faltas sucessivas. As duas ocupações explicam em
parte o assunto do seu livro; mas não é impossível que ela tenha
ocupado os empregos para instruir-se a respeito do assunto que
200
elegera. No INPS conhece Gilvan Lemos, já com obra publica da e
que sempre lhe emprestava livros, além de confiar-lhe os novos
manuscritos, mal sabendo que ela, na aparente falta de rumo,
avançava sem desvios para a determinação de escrever, desde muito
firmada em seu espírito.
No período entre a demissão do emprego e o nosso encontro,
na primeira coletiva de dois artistas raros, com algo de angélico no
modo de ser, José Cláudio e Montez Magno, ambos de vida
modesta e que, assim mesmo, tantas vezes hospedaram-na, oscilou
entre trabalhos grosseiros e fases de inatividade no sentido corrente,
quando se enfiava nas bibliotecas, na Livro 7 − cujo dono lhe
emprestava edições estrangeiras, que ela devolvia imaculadas − ou
em casas de intelectuais, como Hermilo Borba Filho, Paulo
Cavalcanti, Jefferson Ferreira Lima e Gastão de Holanda, onde
passava dias lendo ou discutindo. também era comum vê-la no
Recife e em Olinda, um ar de romeira, com sandálias franciscanas e
vestidos de segunda mão, mal passados, sempre muito limpos, uma
bolsa a tiracolo com o sabonete e vagos manuscritos que a ninguém
exibia, seu perfil silente deslizando ante as paredes das galerias de
arte, percorrendo sem dinheiro as livrarias e as casas de discos,
quando não vagava pelas ruas, saturando-se da topografia das
cidades que no seu livro haveria de unir, preferindo os lugares onde
se agitava, apressa, a gente do serviço pesado, ou das ocupações
transitórias, ou sem meio algum de vida − carregadores de frete,
mercadores ambulantes, mendigos, prostitutas, ciganos, cantadores
de feira −, gravando as caras de fome e as vozes cantantes do seu
povo.

201
Leio, com quase um ano de atraso, em O Estado de S. Paulo,
que uma weimaraner teve onze filhotes e, na matéria que se segue,
caber ao casal Blinstrup o mérito inegável de haver introduzido essa
variedade de cães na América Latina. "Tendo em vista desejarem os
alemães um animal com características da sua própria raça, o
weimaraner tinha que ter os olhos azuis ou âmbar. Para tanto, foram
cuidadosamente estudados e selecionados certos cruzamentos"

Entre os vinte e sete e os vinte e nove anos, durante os quais,


mesmo na marginalidade em que vive, conquista no Recife, em
círculos restritos, uma certa espécie de prestígio consternado, pois
ninguém acredita que ela venha ainda a cumprir a intenção −
evidente, àquela altura − de escrever, a única ocupação a que
retorna a minha amiga com alguma regularidade, mediante
gratificações imprevisíveis, é no ambulatório da Legião Nordestina
de Assistência, onde, como essas freiras pobres de algumas ordens
religiosas, fazia toda espécie de tarefas, desde lavar o chão a
solicitar donativos.
Assim disponível, não espanta que aceitasse, mal me
conhecera, vir morar comigo. Aqui, ao longo de uma convivência
cada vez mais cerrada, empreendeu sem tardar o seu livro, e, nestes
cômodos apenas visitados pelos áridos rumores da cidade, surgiu
um rumor melodioso, o texto que crescia.
Perdoareis então se às vezes sou tentado a ver em nosso
encontro um desígnio qualquer, para que − num mútuo jogo de
influências − existíssemos. Sem essa conjugação, mais intrincada do
que podeis supor, que seria eu e onde estaria? Os galos, ávidos da
própria glória, comerão as penas do corpo e irão esconder-se,
desfeitos.

202
18 de setembro

A confissão que agora escreverei, não a ousaria nenhum


verdadeiro ensaísta, ocupando-se de obra literária. Seria admitir
imperdoáveis fendas na sua capacidade de análise e, mesmo,
possível turvação do espírito. Que importa? Sou um ser criado,
imperfeito, depondo sobre uma criação imperfeita. Imperfeita e, por
que não, tão viva quanto eu e capaz de malícias.
Vi, na noite de 27 de março, segundo aniversário da morte de
Julia Marquezim Enone, um gato enlameado saltar de um caixote de
lixo no centro da cidade e esgueirar-se, o rabo fino e baixo, junto ao
meio-fio, desaparecendo entre as grades do esgoto. Como se este
animal corrompido viesse das ruas e se escrevesse,·com infinitas
dissimulações, no romance que confronto, ampliando-o, aí o
reencontro. Há quanto tempo, vigilante, revolvo o cerne desse livro!
A gata de Maria de França ocultara-se entre uma frase e outra, como
sob móveis e folhagens, subtraindo-se a mim − e só há pouco a
descobri, segui-lhe a deterioração, perplexo.
Pode-se ver em A Rainha dos Cárceres da Grécia, no fato de
esconder, sob a capa de simplicidade, uma estrutura complexa e − o
termo irrompe abissal, uma tentativa de imitar a aparência do
mundo e, escondida nas aparências, a sua verdade, lentamente,
dificilmente revelável ao contemplador, mesmo adestrado.
Ora, minha própria falta, deixando de ver o que via, contribui
a seu modo para acentuar e ampliar esse aspecto, se é que o texto
não escamoteou jamais algo de si e se casualmente não se amplia,
na sua inocência então especiosa. Ao contrário disto, a gata de
Maria de França, estéril, sofre um processo lastimável de perdas.

203
19 de setembro

Que faz no livro Mimosina ou Memosina (o nome é grafado


indiferentemente), a gata estéril de Maria, de França? Casual, em
obra tão altamente construída? Nasce apenas para esconder-se dos
pássaros − topos do "mundo às avessas" − e acentuar o gigantismo
deles, insinuando que este é verdadeiro, não um resultado da
loucura? Pode ser, Mas qual a razão da esterilidade ou, melhor, da
sua indiferença crescente pelos machos? Porque Memosina, a
princípio, nada tem de anormal. Chega porém o dia em que não
parece mais reconhecer os da sua espécie, como se perdido o olfato,
e cega:

Que é isso, Mima , Memosina querida, nem olhas o rapaz, o airoso,


de rabinho alto, só o rabo? Hein?

Gatos, quando adoecem do intestino, comem certas folhas,


tratam-se. Mimosina, doente, esquece as ervas curativas, Mais tarde,
erra de casa em casa, esquecida da sua, deixa de atender pelo nome,
pára de miar, tenta comer farelo e grãos de milho, briga com o gato,
mata-o, quer devorá-lo e, finalmente, sua "cor de girassol" virando
para um tom cinzento, passa a andar cada vez mais estranha junto
ao rodapé, põe-se um dia a chiar

(viraste rato, Mimosina?, com medo de que gato?),

mete a cabeça num buraco, morre assim, O gato enlameado e com


jeito de lontra esgueira-se no esgoto.

204
23 de setembro

Mimosina ou Memosina. O nome evoca não se sabe que


afetuosa palavra, há nele um acorde ingênuo e familiar. Não, não
para tornar mais pungente sua degradação. Olhos atentos! O
processo terá atrás de si, movendo-o, o esgotamento e o fim das
coisas, mas suscita um fenômeno atual, o esfacelamento coletivo da
memória, que o livro onde estamos imersos recorda (para não
esquecer?) a cada instante. Os burocratas do sistema previdenciário
estão sempre confundindo as instruções dadas, Belo Papagaio e
Maria de França reencontram-se como se nada houvesse ocorrido
entre ambos, a morte de Dudu não comove a sua noiva, nada
provoca lembranças, eis o traço constante, comum às personagens,
todas, que cruzam a narrativa . Mesmo a fala do espantalho aqui e
ali se refaz, numa espécie de luta pela recordação. Na verdade, tudo
isso adverte-nos para esquecimentos mais profundos e talvez
irreparáveis.

Conta Hesíodo que no princípio era o caos, tenebroso e sem


fim. Mas Gea, a Terra, surge, e dela nascerá o firmamento, Urano,
seu igual em extensão, para que a cobrisse toda. Cria ainda Gea os
elevados cumes e os abismos talássicos. Recebe dentro de si o
próprio filho, Urano, o espaço estrelado, e, dentre os seres fabulosos
que engendram, nasce Mnemósina, a Memória. Memosina ou
Mimosina são desfigurações desse nome, culto e sem halo emotivo.
Recordar seria então um ato essencial, ligado intensamente à
Terra e aos astros que a envolvem. Implantam-se, nele, a Criação, o
entendimento e a direção, o rumo.

Memosina, pequeno animal deplorável, concentra em si o


fenômeno de que romance e mundo estão impregnados, a geral
205
obliteração da memória, enfermidade metafísica (onde nasce e
como fazê-la regredir?) que precipita o homem e suas obras na
insânia, na sem-razão.

Tarde chuvosa e cortada por golpes de vento frio. Abro a


vidraça do escritório, aspiro um ar morno, impregnado de odores
marinhos, como se alguma praia espectral assomasse a esta cidade
sólida.

Quem ou que nos salva do esquecimento? Antes, ainda os


mais inscientes dentre nós, sabíamos "por quê". Quando não
sabíamos, necessidade alguma de justificar, de construir explicações
que substituíssem, em nós, o conhecimento ou, em seu lugar, a
certeza. Não que soubéssemos tudo. Quem, jamais, soube? Não
saber, porém, era um gênero de alegria, a nós próprios dizíamos
ignorar e íamos à caça, tentar prender, tentar saber − e às vezes
trazíamos, em nossas redes de caçadores, presas que inventávamos
(elas grunhiam na armadilha) e que viviam cem mil·anos. Qual a
importância, fossem ou não reais? Acreditávamos nelas, e isto ia
formando em nossas almas informes uma ordenação geométrica,
gerava-se um sistema, um acordo entre nós-e o quê? Entre nós e
Algo. Um jogo complexo e infinitamente arriscado. E sem embargo,
não descansávamos: insistir era um ato que implicava a sua própria
continuidade. Absoluta, nesse tempo, a nitidez das coisas
incompreensíveis.
Assim, foi possível não sucumbir e, glória à nossa ousadia,
mais ainda ampliamos o infinito mundo. Tudo, porém, se movia
jubilosamente de um extremo a outro, e este vôo, e este laço, e este
passo de dança, tinha um nome: nexo. Se inventávamos o cântaro,
tínhamos em mente a água, a mão, o copo, a boca. A lança? Vede
como é longa, enramada e tortuosa. Ali está a minha fome, além
206
minha cautela, além meu braço, além meu olho, além minha perícia,
além a máquina quente do animal, vulnerável: isto é a lança. Quem
se desviaria em lanças que ignorassem o ato de caçar e a
necessidade de ferir, fechando em si esta fábrica agressiva, então
inerte? O animal tombava, golpeado, e isto não mutilava o mundo:
sua morte era um evento rico de memória.

Agora, erramos, orgulhosos e tristes, de ato vão em ato vão,


modelando vasos fechados e cortando lanças circulares, não mais
portadoras de aguilhão. Uma besta espantosa, de índole recurva,
nasceu do cansaço universal e impera entre nós: come voraz a cauda
e engole a própria garganta. Criações e atos perecem: sua respiração
interna, letal.

Ninguém suponha que a memória hoje perdida é esta, pessoal,


com que fixamos nossa vida − couro esticado entre varas. Posso
viver e vivo enquanto morrem em mim os traços e, ainda mais
efêmeros, as frases dos meus mortos e o peso, na pele, das mãos
deles. Mas se não reconheço a minha espécie? Se ignoro para quê?
Se esqueci o motivo? Se perco o segredo? Sei, sei que não se vive
por simples decisão e que a morte ronda, ronda, sei que nada posso
contra. Talvez um homem pense, como os que acabam de perder o
braço, acreditar mover a mão cortada.

O que levaria J. M. E. a seguir tão metodicamente o extravio


da gata Memosina, desde o tempo em que persegue os ratos, até
mudar de pele e morrer sufocada, o buraco onde se
207
mete lhe servindo de forca ? Preocupações antagônicas ferviam em
minha amiga, receptáculo ativo das coisas e dos nomes. Mas haverá
realmente para o criador, se criador e enquanto, outro problema fora
do seu próprio ofício? Solidário e vulnerável, quase sempre se
imiscui em outras áreas, fora dessa órbita candente. Por desespero,
reverência ou cólera, entretanto, ele só compreende, como forma de
vida, fabricar seus objetos e vota por isto ao trabalho que faz um
amor desesperado, como alguém que, havendo perdido todos os
filhos, tivesse ainda um e neste único sobrevivente concentrasse
também o seu amor aos mortos.

Chove sem parar, e sinto-me doente. Continuo a indagar,


atônito: "Quem sou?". Mesmo sem resposta clara, disponho-me a
enfrentar o evento ainda obscuro que se forma. Tenho passado a
existir na expectativa e na interrogação. Venha o que vier, estou
pronto.

Há, no modo como desenvolve o livro o tema da memória


perdida, uma contradição aparente. As coisas, quando esquecem a
própria natureza, perdem a direção, não sendo correto dizer que se
degradem, pois realmente elas não descem de grau, antes se
deslocam, deixam de ser o que eram, tornam-se inócuas. O vaso,
uma esfera impenetrável; aro cerrado a lança. Memosina ou
Mimosina, portadora e centralizadora desse tema, extraviase e,
perdido o fôlego (perdeu unhas e dentes?), passa à condição de rato
e morre. No resto do livro, porém, ocorre o tema de um modo
menos drástico, sem a coerência com que se organiza em Memosina
− e disperso, fragmentário, inapreensível por assim dizer. Aí, mais
uma vez, aprendo sobre a arte do romance e sobre a arte em geral.
Não só os figurantes dos quais depende a sorte de Maria de França
208
têm memória curta: também ela é propensa a esquecer. Nessa faixa,
esquecer não aparece como um fato monstruoso, um desvio, e sim
como signo da erosão do mundo, do seu desgaste. Portanto, como
algo normal, fatal. Operar de um modo mais coerente, repetindo ao
longo do texto, nas demais incidências do tema, a parábola expressa
em Memosina, não seria o que se espera de Julia M. Enone, da sua
poética despistadora, propensa à máscara. A solução notada, por
assim dizer, desfia o tema, impedindo-o de apontar numa direção
única e, ao mesmo tempo, insinuando, mediante uma unidade
temática precisa e calculada com minúcias − a falência dos instintos
em um bicho doméstico −, a direção dominante.

Descoberta que me atordoa. Enquanto não me envolvo com


um texto através do qual me revelo de maneira inapelável (uma vez
que, por mais que tente ocultar-me, se digo "eu" é este eu que me
faz, e fazer, em tal caso, que poderia significar senão formar, dar,
revelar?), enquanto vou e venho pelo mundo, seguro, um homem
com a sua rede fixada em muitos pontos concretos, proclamando
com voz firme um "eu" que é a imagem do meu rosto, nem sequer a
morte vem ameaçar a minha identidade.
Mas se tomo um papel ou, o que é mais grave e assustador, se
alguém toma um papel e escreve "eu", e, por trás desse pronome,
me põe no seu lugar, quem me garante mais nada? Eis-me então a
nascer de uma expressão gramatical como o som nasce da boca, eis-
me na dependência dessa articulação, a ela exposto, indefeso. Não,
não devo dizer "dependência": se ela pode mentir-me, eu próprio,
utilizando-a com sabedoria, posso impor a algum destinatário
longínquo não importa que presença. Meu formador será o texto; e
o destinatário nunca poderá insurgir-se contra ele, negá-lo. Posso
criar-me outro na escrita, posso criar-me todos, menos um − este
que, real e infinitamente, sou no tempo.
209
Não só isto. A identidade da palavra escrita é problemática e
vincula-se ao modo como inflete sobre ela o perfil do responsável −
verdadeiro ou fictício − pelo discurso. Lês, atentando para a
indecisão da caligrafia, diferente do que era há dez anos, uma carta
do teu pai. O espesso "eu" desse homem firma o escrito no real e
pode ser que o guardes para sempre, como hás de guardar seu velho
Omega de algibeira. Mas... e se a carta, impressa num volume de
Turguiêniev, é dirigida por um certo Rúdin a um certo Sierguiêi
Pávlovitch? Hein? Já aí a palavra, impressa, longe do manuscrito e
da mão que conhecêssemos, finge tudo: finge o remetente, finge o
destinatário, finge a carta e, acima de tudo, finge uma escrita diversa
da que é. Não só na carta de Rúdin está a ficção; também na
impressão tipográfica. Ainda existe, porém, entre a carta imaginária
do imaginário Rúdin e sua expressão gráfica, um símile, um
paralelismo. Pousa o texto que leste, semelhante a um molde, sobre
o texto que aparenta repetir e que, pensa bem!, é engendrado pela
sua equívoca "reprodução". Como não inquietar-me ante essa
versatilidade − que só agora parece revelar-se a mim − da escrita?
Mais, como dar ainda o mesmo nome à escrita meio roxa na carta
do teu pai (o papel cheirando a fumo) e que podes tocar quase como
se tocasses no seu rosto, e àquela outra escrita, espectral, atribuída
não a um ser que a grafa e sim a um ser que a pronuncia, ou, caso
mais retorcido, a um ser que age, ou, para sermos exatos, é agido,
em nosso espírito, pelo seu inviável discurso, centrado num "eu"
cuja natureza me escapa?

210
Este repentino atordoamento frente à cambiante natureza da
escrita alucina-me. Sou uma aranha cuspindo a minha teia. Mas,
fonte da teia, fiz-me ambíguo (o "eu" da escrita é uma cápsula
cava), e nada me proíbe de escrever -o que pode ou não ser falso -
que, simultaneamente, teço a teia e me teço a mim. Trançado no
meu próprio discurso, entrei numa espécie de nuvem placentária, da
qual tanto posso emergir criador como criado. Mesmo porque
aquele a quem alcance este murmúrio, o meu, não terá outro laudo,
outro indício, outro testemunho, outra comprovação. Somos
incontestáveis, eu e a minha outra realidade, entranhada em mim,
dissociada de mim, o discurso. Noturnas matilhas de cães matam a
sede no rio e escurecem a água de latidos que empanzinam os
peixes. Posso ou podem (quem sabe ainda?, quem, aqui, está seguro
mais de nada?), por uma dessas químicas a que um longo e inquieto
uso expôs a escrita, salvando-a da estrita servidão utilitária e
abrindo-lhe virtualidades arriscadas, posso ou podem, é só tanger de
leve algum leve instrumento, mudar a identidade deste monólogo
com o qual venho convivendo; ou então firmar a suspeita latente de
que ele vos mostra uma face enganadora; posso ou podem liberá-lo
de todo vínculo real com a minha mão: então, atingida a essência do
monólogo, eis-me atingido igualmente no meu "eu", eis-me atingido
em minha essência e logo me revelo outro, não mais um ente que
escreve, e sim que é escrito. O espectro do autor dando lugar a um
ser imaginário, diversamente constituído, imerso numa versão
singular − e da qual talvez se possa dizer mágica − do espaço e do
tempo.

O tenente Pavel Nikolai Neverov mal sentia na mão


enregelada o cabo da pistola. A neve cessara de cair, havia um
silêncio total no bosque, e ele ouviu, atrás de si, a respiração do
adversário que recendia levemente a sandáraca. Dentro de dois
meses, viria a primavera, e nem sequer Anna Andreievna recordaria
ainda esse duelo. Começaram a afastar-se, as botas rangendo no

211
chão nevado. No terceiro passo, antes que alguém compreendesse o
que via, Neverov se voltou, fez pontaria e estourou os miolos do
rival com um tiro pelas costas.

A consciência das alternativas -tão sedutoras! -que oferece


este monólogo centrado no "eu" (no "eu" de quem, amigos, no
meu?) provoca em mim uma exaltação repassada de júbilo e terror,
como se eu até agora estivesse disfarçado, como se viesse
desempenhando um papel, como se escondesse a minha natureza
real ou não possuísse verdadeiramente uma. Por trás das palavras
que libero (que, vejam a diferença, escrevo ou pronuncio), ou,
ainda, que alguém me atribui, minha existência torna-se mais
problemática. Alternativa 1: confirme-se a imagem central do
mestre de ciências naturais, admirador anônimo da palavra literária,
contemplador inquieto e curioso do romance, amante sobrevivo de
alguém que concluiu, às vésperas da morte, certo misterioso livro:
tudo permanecerá sob a mesma luz. Alternativa 2: insinue-se que o
livro, sim, é real, não a figura do seu comentador, inventada para
resguardar o amigo verdadeiro − também anônimo − da morta,
evitando assim o desnudamento absoluto: eis a dúvida instilada, eis
a fina dúvida surgindo, óleo levíssimo. Toda a iluminação se altera,
e cada palavra dita ressoa com um timbre novo.
Temo, porém, que muitos já recusem, suspeitosos, a minha
identidade e, portanto, a minha natureza. Não irei persuadi-los do
contrário.
Maria de França é receptiva à leitura. Mecanicamente, por
assim dizer, reage à palavra impressa, onde quer que a encontre.
Nada, portanto, que se relacione, mesmo de longe, com qualquer
idéia de formação cultural. Ao contrário; em trânsito num mundo
que não entende, o acesso à infinidade de escritos que a submergem
− embalagens de remédios e de enlatados, bulas, volantes,
212
almanaques, folhetos populares, letreiros comerciais·, cartazes de
rua, folhas soltas de jornais − só contribui para ainda mais atordoá-
la. Principalmente o acesso a pedaços dos diários e das revistas
ilustradas.
A rigor, ela não difere substancialmente, senão em grau, do
moderno leitor de jornais. É certo que nem uma vez ela adquire nas
bancas o jornal do dia, e não parece ocorrer-lhe que esse ato seja
possível. Mas quem hoje é bastante informado para, percorrendo os
jornais, apreender todo o vocabulário e estabelecer as conexões
indispensáveis entre os fatos? Basta que se interrompa durante uma
semana − ou menos − o convívio com eles, e é como se houvéramos
perdido os últimos capítulos de algum folhetim absurdo e
labiríntico. Novos nomes surgiram, inclusive de países até a véspera
inimagináveis; não sabemos o desfecho de episódios que nos
empolgavam; outros, para nós nebulosos, aparecem em caixa alta.
Mesmo quem os lê todos os dias esbarra diante de fatos que,
ocupando meses e até anos, nem assim chega a compreender, como
se se tratasse de algum insondável ma metafísico, o que levaria o
cardeal Cicognani a declarar, em entrevista a L'Osservatore
Romano, quando nomeado, em março de 1972, deão do Sacro
Colégio: "Sim, Deus sabe tudo. Mas não tudo que sai nos jornais".
Que significam então para Maria de França essas folhas
impressas cujo conteúdo global desafia a onisciência divina?
Precisamente o que são, para todos, em maior ou menor grau: a
selva incompreensível do mundo, agravado esse mistério pelo modo
como Maria de França recebe-os, em pedaços e quase sempre fora
de tempo. Da mesma maneira que, ante a riqueza, Maria de França
só é sensível às coisas insignificantes, nos jornais, embora leia
nomes e fatos, só alcança conmo verdadeiros os que se inscrevem
na sua órbita de vida: a penúria e a fome, incêndios, assaltos e
vinganças, casamentos, cheias, paradas militares, procissões,
desastres de veículos e, emergindo tal uma frase familiar dentre
rumores tanto insondáveis quanto acerbos, alguma silhueta
213
verdadeiramente humana, que ela transforma em ideal temporário
ou, ao menos em um caso, ideal permanente, modelo inacessível,
como a ladra Ana, de um certo lugar nomeado Grécia.

Nesse lugar nomeado Grécia, que, no espírito de Maria de


França, flutua como ilha sobre imensa nuvem arenosa, a invencível
Ana vagueia até a morte, renegando, obstinada, qualquer ocupação
produtiva, compelida ou entregue por princípio a todo gênero de
falcatruas, do estelionato ao furto, com a só restrição, que se impõe,
de agir sem armas. Sempre a mudar de sobrenome, mas
conservando o nome de batismo, para honrar o que ela considera a
sua marca, sobe, em uma embarcação pintada de vermelho, como as
naus alígeras de Ulisses, de Creta ao continente, age na antiga
Citera e a seguir em Esparta, cruza o Peloponeso, é presa e
condenada em Maratona, em Atenas, em Samos, em Corinto, em
pequenas cidades banhadas pelos mares Jónio e Egeu, traçando
sobre todos esses nomes, magnificados por acontecimentos
históricos e míticos (onde vos bateis agora, preclaro Aquiles e tu,
que submeteste a Pérsia?), traçando nova gesta, individual e sem
fulgor.

Tal justaposição escapa a Maria de França, apenas atraída pela


astúcia com que Ana, persistente e desastrada nos seus golpes,
tantas vezes sendo presa e condenada, move-se nos tribunais e entre
as grades dos presídios, entidades para Maria de França inacessíveis
e, para a atual concidadã de Minos, juiz da corte infernal,
decifradas, conseguindo, no cárcere, revisão de processo e perdão,
quando não sumia entre os muros como sombra, iludindo a
214
vigilância dos guardas, para surgir e voltar a ser presa nos lugares
menos previsíveis, vindo, com o passar dos anos, das penas, dos
perdões e das fugas, a personificar uma legenda, a da mulher que
conhece, no tramado da força e da administração, todas as saídas −
estejam escritas na leis ou erigidas em pedra −, a ponto de ser
recebida com honras nas celas onde é encerrada e receber, sem que
houvesse nisto a mínima ironia, o título, por ninguém contestado na
parte continental do país ou nas ilhas, de "Rainha dos Cárceres da
Grécia".
Quando já se aproximava do fim, um magistrado, no tribunal,
pretendeu mostrar aos presentes a maldade que se escondia por
baixo dos seus olhos. A resposta, única a restar de tudo que as
prisões e cortes da Grécia, durante meio século, ouviram de sua
boca, ficou célebre:

"O senhor vê mal. O que eu tenho escondido debaixo dos


meus olhos é medo. Medo de saber de que modo o tempo passa."

Ressaltemos a importância da Rainha dos Cárceres em relação


a Maria de França − e, com isto, seu valor no romance. Propensa a
romper com o mundo do trabalho, Maria de França, entretanto, não
se insurge − deliberada ou impulsivamente − contra a propriedade e
os instrumentos que a resguardam. Não é, assim, como falsária,
dama de astúcias, ratuína ou mão de seda que a grega vai crescer na
sua imaginação, com um relevo de ídolo ou de mito. Seu prestígio,
antes, nasce de uma habilidade que Maria ele França considera
superior e que o centroavante Dudu exerce em proporções modestas
− a compreensão de algo impenetrável, o mundo burocrático, talvez

215
simples metáfora do mundo. Ana, para Maria de França, é − o que
ela jamais chega a ser − a heroína lúcida, a vidente, movendo-se
ágil entre mistérios e obstáculos.

Compreensível e clara (na medida .em que algo é claro nas


obras sutilmente construídas) a atitude de Maria de França em face
da Rainha dos Cárceres; não a impressão que lhe causa a frase sobre
o medo e o tempo, obviamente além do seu alcance. Mesmo eu,
posso dizer que a entendo? Limito-me a suposições. Também não se
deve esperar que o próprio texto, atribuído a Maria de França,
ajudasse-nos, por mais que se distancie das construções veristas,
amigas do natural e do sensato. O problema é curioso. Julia M.
Enone, indiferente a uma coerência chã, colada ao episódico e à
visão ordinária do real, opta por outra coerência, voltada antes de
tudo para a obra, para o seu arcabouço. Não importa − eis o espírito
da solução, do ardil − se o conceito admirado por Maria de França
fica acima do seu entendimento. Importa, isto sim, que essa
admiração o valorize: que a frase de Ana, assim iluminada, adquira
relevo no conjunto e institua-se, sem dúvida possível, como peça a
ressaltar.

O tempo acumula mudanças no espaço. Para não saber de que


modo ele passa, Ana, apavorada, cruza a Grécia inteira, de cidade
em cidade, de prisão em prisão: foge das transformações nas coisas
e, assim, de apreender um dos modos do fluir do tempo.
Qualquer obra ou construção − bordado, casa, família, poema
− ensina um pouco sobre o modo como passa o tempo. Por isto Ana
recusa todo compromisso regular, fugindo sempre das
circunstâncias que façam algo crescer de suas mãos. As coisas de

216
que se apossa e que, de nenhum modo, ajudou a produzir talvez não
lhe pareçam trazer a marca do tempo.
Fuga impossível. Luta inglória. Ana da Grécia foge de
entender o curso inexorável do tempo e é atirada nas prisões, para
sentir nessa imobilidade o viajar do tempo e então desesperar: este o
castigo seu. Mas acaso não ama de algum modo os interiores dos
presídios exatamente porque a imutável nudez aí reinante simula a
eternidade e volta o dorso ao tempo? Neste caso, por que foge?
Teria sempre fugido no momento em que, em alguma oliveira
vicejando no pátio ou no modo como o vento passava a soprar nas
muralhas, pressentia o perigo de entender? Preferia as cidades. Não
tanto porque aí se acumulem riquezas e ambições, favorecendo a
rapinagem. Não. Porque nas cidades ela sente menos o evoluir das
estações. Só vê o campo quando em trânsito − entre uma cidade e
outra − e odeia os instrumentos agrícolas.
Tinha a ilusão de que o tempo, emigrando de Creta, fazia
servilmente o seu mesmo itinerário? Consta que só por acaso se via
nos espelhos e mal sabia como era o próprio rosto. Principalmente,
não guardava nada dos rostos que perdera. Assim, sempre tinha o
direito de supor que esta jovem parada numa praça ou esta que
passava num trem em movimento, olhos abertos por trás da vidraça,
eram ela própria e o tempo que volvia . O que, portanto, legitimava
esta dúvida: "O tempo passava?".
Seu próprio nome, Ana, sugeria a idéia de oposição, de
movimento contrário.

Certos peixes, no Oriente Médio, inconformados com o passar


das águas e a sujeição a esse elemento fluido, vêm à superfície,
usam as unhas rudimentares que ornam as nadadeiras

217
ventrais e peitorais, sobem, lamentáveis aves mudas, às árvores que
ladeiam o rio e, durante um breve tempo, arfantes, tentam fugir à
corrente, sem saber que, entre os ramos, outro rio igualmente
incessante vai arrancando as suas escamas. Pobre Ana!

Às voltas com papéis que não entende, com instruções que


não entende, com deferimentos e indeferimentos esotéricos, com
prorrogações misteriosas, Maria de França reconhece desolada que
tudo lhe escapa e sonha com ardor a metamorfose suprema:
transformar-se em Ana, a Rainha dos Cárceres, compreender o
impossível, decifrar.
Iriam ver, então.
De que modo passa o tempo? Tinha medo de outras coisas,
não de penetrar este segredo. Ajuda-a uma incapacidade da qual
nem sequer se apercebe: confunde as referências temporais.
Amanhã, no seu espírito, é uma noção impenetrável e nunca se
transforma em hoje, em ontem:

Antes que seja cedo.


Quando agora foi outrora?
Jamais depois de ontem se hoje vai e já regressaria.
Dudu, anjo meu, hoje é ontem?
Tarde demais para depois e mais ainda para nunca, sabem,
sabiam?
Cedo e tarde se anulam na mesma vaga concepção, assim

218
como depois, que, simultaneamente, também sempre é antes. Esta
anomalia impede que se cristalizem em sua mente as úteis noções
segundo as quais nós e o tempo fingimos uma espécie de
mobilidade: lá eu vou correndo para algum momento futuro, que se
aproxima e faz-se passado, distancia-se. Maria de França não
nomeia essas alterações de perspectiva entre o eu e certas
configurações do tempo − e como que flutua numa extensão sem
fim, propensa à imobilidade, sim, oposta a qualquer imagem fluvial,
uma extensão, sim.

"Pensou Alice: 'É inútil dirigir-lhe a palavra, enquanto não se


manifestarem as suas orelhas, ou ao menos uma'. Um minuto mais
tarde, a cabeça inteira surgira."

Olho atento e suspicaz! Terá a frase de Ana o peso que


aparenta, ou estarei sendo enganado? Atenção! A mente perturbada
de Maria de França, inapta (deficiência manifesta em vários níveis)
à apreensão usual do tempo, encontra uma correspondência exata no
modo fragmentário como recebe e lê os jornais. Confunde o antes e
o depois? As folhas soltas do Jornal do Comércio ou do Diário de
Pernambuco que passam pelas suas mãos, envolvendo mercadorias,
apanhadas no lixo, trazidas pelo vento, repetem concretamente esse
fenômeno de natureza abstrata. Se a doença (aqui, não tanto mental
quanto verbal) de Maria de França, tornando impenetráveis palavras
como antes e depois, tende a diluir no livro o tempo, o suceder de
acontecimentos históricos reais − não na seqüência em que teriam
ocorrido, e sim desconexos, soltos, ao azar do encontro com folhas
já antigas de noticiário, às vezes com anos de atraso e das quais
apenas supomos as datas −, o suceder anacrônico desses eventos,
postos como fundo à indeterminável peregrinação burocrática da
heroína, agrava o processo. À primeira vista, haveria aí uma
impropriedade ou capricho: a solução teria algo de superficial, uma

219
solução voltada para a estrutura e indiferente aos centros temáticos
da obra, talvez opondo-se a eles. Que vem fazer essa distorção do
tempo histórico, esse desmembramento, num relato que extrai a sua
força, em grande parte, das prorrogações, da trituração vagarosa de
um anseio, em uma palavra, da acumulação do tempo? A objeção
não é tão pertinente como à primeira vista finge ser. Por um lado, o
que aí ocorre com o tempo imita ponto por ponto a desarticulação
do espaço: as permutações ou enrugamentos da topografia real. Por
outro, não me parece que a turvação do tempo atenue o que há de
desesperador na luta de Maria de França com o mundo burocrático.
Ao contrário, todo esse longo envolvimento, contaminado pela
imprecisão que a consciência desconcertada da operária origina,
dilata ainda mais os anos ao longo dos quais tramita a ação, imersos
com isto em uma categoria menos trivial do tempo, exalçado por
certa transcendência e no qual ressoa a eternidade. O fado terreno,
sem prejuízo do lado contundente e mordaz, voltado para uma
sociedade anômala, refrata-se e simultaneamente aparece como
peregrinação e suplício fora do tempo, no sempre-nunca, no inferno.

Aqui insinuo a minha suspeita. Nos jornais, que, no variado


universo da tipografia, melhor exprimem a história e a sucessão dos
dias, e que, ironicamente, aparecem no romance concorrendo para a
desagregação aparente do tempo, informa-se Maria de França de
episódios que a seduzem ou angustiam, dentre os quais a aventura
de Ana da Grécia. Ana, entretanto, figura associada ao espaço,
sempre em movimento, parece um tanto à margem de todo o
esquema temporal dentro do qual surge. A sua confissão, de que a
moveria de um extremo a outro da Grécia, de um extremo a outro
da vida, o temor de saber de que modo passa o tempo, não seria
também um golpe falso, um truque (Julia M. Enone aprendendo
com a sua personagem), encravando-a ilusoriamente numa temática
da qual na verdade está separada?

220
Fora de dúvida: se põe a romancista, no centro de sua obra,
uma consciência desordenada, é para ordenar o conjunto mediante
certas leis. Dentre elas, a de ocultar tanto quanto possa a ambição
experimental. Não interessada na reprodução servil das coisas e, ao
lado disto, supondo ser indispensável ao gênero certo liame com a
realidade ordinária, cria uma linguagem, uma emissão e um mundo
excêntricos, mas justificando-os indiretamente com o distúrbio
mental da heroína, como se tudo decorresse disto, e não da sua
própria inquietude. Assim, fingindo ser forçada pela personagem,
cuja loucura teria um laivo de denúncia (manifesta-se como
resultante de insucessos profissionais), enfrenta e soluciona a seu
modo problemas dentre os mais estimulantes da ficção atual,
culminando com este, a que mesmo os narradores pouco
aventurosos são hoje sensíveis, do tempo e de suas transgressões.

Fanny Brown, a Deformada, os dois braços inúteis ou, para


sermos precisos, sem eles − e a quem faltam os braços, falta,
naturalmente, envergadura −, jamais havendo conhecido a exaltação
da corrida num declive ou a doçura de um lento passeio entre as
rosas ao entardecer (nasceu sem pernas), era transportada de um
lado para outro da casa como um objeto que em nenhum lugar
ficava bem. Como tocar no seu corpo fosse cada vez mais
desconfortável, passaram a removê-la com o auxílio de uma pá.
Ficaram tão exímios nesse gênero de exercício que a deslocavam
até quando desnecessário. Para a desventurada Fanny Brown, a pá
era o que são para outros os ventos da paixão: contra esse
instrumento de madeira e aço de que servia a sua vontade?

O embaralhamento do noticiário percorrido por Maria de


França torna quase impossível estabelecer uma cronologia para A
Rainha dos Cárceres. O longo itinerário nas repartições e a vida
privada da heroína sucedem-se em ordem rigorosa, tudo anotado
com exatidão, numa clara estrutura temporal, imitando o cartapácio
que documentaria o seu processo. Esses eventos, porém, conquanto
221
ordenados em seqüência rigorosa, projetam-se sobre um fundo
caótico − e esse fundo acaba repercutindo nos fatos do primeiro
plano, flutuantes sobre um tempo tão dilacerado quanto os jornais,
que, parecendo informar sobre ele, oferecem pistas falsas.

Distribui Julia Marquezim Enone esses indícios como um


quebra-cabeça que os leitores devessem recompor? Não vejo por
quê. A imprecisão decorrente do seu método não atenua em nada a
aspereza do combate entre Maria de França e o labirinto
previdenciário, como não esbate − antes agrava − a sensação de
inutilidade absoluta que nos causam os sucessivos despachos das
repartições (nunca o despacho final).
Que sucede, se tentamos estabelecer os limites da longa
peregrinação ante os heróis decaídos da história do Brasil? O
recenseamento das notações históricas indica-nos que a mais
recente é a deposição de Constantino, fato que comove a
personagem por ocorrer na mesma Grêcia de Ana e fixa o desfecho
por volta de 1967. Mas nem todos os pedaços de jornal cuja matéria
o livro nos revela enquadram-se na fase entre o emprego naquela
tecelagem − quando ela aprende a ler − e a via-.crúcis nas
repartições. Duas alusões à Segunda Grande Guerra, por exemplo,
são claramente anacrônicas. Notícias sobre engenhos nucleares
("Explosão de bomba abre cratera") voltam sempre aos jornais,
como se sabe. Por outro lado, só uma investigação paciente e talvez
sem êxito situaria a notícia de que "padre, médico e jurista
condenam o aborto até para evitar monstros"; de que Melminno
Ratto, marítimo, roubava peças do navio em que servia, oferecendo-
as aos seus amantes do cais; e nos. diria em que data esse pássaro
branco, extraviado, se é que houve pássaro, chegou a Cabo Frio,
vindo das Bahamas ou, segundo alguns, da Terra Nova.
Pode-se então situar, sem grande margem de erro, o fim − mas
não o início, não − dos anos infernais em que Maria de França
persegue o impossível, interrogando uma entidade adversa, da qual
jamais penetra os segredos, ao contrário da insigne trapaceira de
Creta.

222
Que fotografia, esta? Homens e .mulheres, uma menina, de pé
ou sentados, vestidos como se fossem a passeio, vestidos para a
fotografia, iluminados por uma luz que unifica ainda mais os seus
rostos (que indefinível traço insinua em todas essas pessoas
sorridentes um ar de família?), reunidos num quintal de subúrbio ou
do interior, o roseiral ao fundo e um pedaço de muro, antiga tarde
de domingo, quente e clara. Quem são? Certeza de os conhecer,
como certas faces que encontramos e não chegamos a identificar,
mas aqui é todo um grupo que me desafia, nesse quintal e nessa
hora onde talvez soasse, juvenil, a minha voz. E se um desses rostos
for o meu ? Insisto em reconhecer os que vejo, em rasgar a
membrana que me impede de chegar ao grupo e ouvir as suas vozes,
o ranger dos seus sapatos. Tudo que consigo: fingir recordar o
jardim e o muro que já então segregam, solerte, o odor de cartão
envelhecido, peculiar às fotografias desde muito esquecidas nos
armários.

Creio que se esconde de mim. Senão, como passaria tantas


horas e, por vezes, dias inteiros a vê-la? Assemelha-se, nisto, a
certas zonas das obras de arte e da vida, que perpassam frente ao
nosso espírito, reveladas − tão claras! −, logo voltando à sombra.
Não é que esqueçamos a decifração e nos angustiemos agora ante a
charada outra vez impenetrável. Não. Apagam-se decifração e
charada, na obra e na vida: esquecemos que um dia, ali, vimos
claramente, que ali houve uma fresta pela qual entramos. Sinal
algum denuncia a experiência, essas concessões não deixam
cicatrizes.
Não temos sonhos durante os quais sabemos e após os quais,
despertos, somos os mesmos cegos de sempre e mal recordamos o
sonhado, logo esquecendo tudo? Assim com ela, que sempre
consegue ocultar-se e, inclusive, ocultar os seus dejetos, embora o
apartamento seja parco em esconderijos − poucos cômodos e
mobília discreta. Quando menos espero, vejo-a em plena sala ou ao
pé da cama, sentada sobre as patas, os estriados olhos de felino cada
vez menores, mais pontudo o focinho e o ar mais miserável, o pêlo
curto um tanto oleoso. Tomo-a nos braços, ela abre a boca e tenta

223
miar, a garganta entorpecida exala um gorgolejo. Novamente no
chão, ganha a porta, ligeira como um rato meio trôpego, olhando
para trás, com uma expressão tão intensa de medo que eu preciso
conter-me para não gritar. Desaparecerá durante largo tempo, e eu a
esquecerei. Ali está, lastimável, olhando-me por trás das pernas da
cadeira, supondo não ser vista e sorrindo com um leve ríctus
sardônico, como se soubesse de coisas que ignoro. Suas pupilas
luzem sem nexo.

Teu livro, Julia, começa lentamente a fechar-se para mim. Sei


e tu sabias tão ilimitadas serem as obras quanto limitado o nosso
alcance. Por isto buscam as obras encarnações mais perduráveis que
os homens e, num certo sentido, indestrutíveis: para que muitos
espíritos, sucessivamente, aguilhoados pelos segredos infindáveis
da obra, possam acumular decifrações. Também por isto, sabias, nós
as conservamos: porque sabemos que elas tentam falar-nos, tentam
falar-nos, tentam. Entre os teus papéis, havia alguns recortes sobre
escavações arqueológicas, a planta da Casa do Tesouro de Atreu,
Thompson dragando o Poço Sagrado de Chichén-Itzá, a esteia maia
encontrada há mais de um séulo em Honduras por Stephens. Por
quê? O homem que remove a terra acumulada sobre uma civilização
e interroga as suas ruínas assemelha-se aos que, recusando o mundo
inesgotável, curvam-se ante uma obra de arte e tentam penetrá-la. A
diferença entre um e outro é que a civilização exumada talvez se
esgote um dia.

Mas como entender, silenciosa amiga, que a mente restrita do


artesão venha a conceber e terminar um produto cuja magnitude nos
suplanta? É a obra, e não ele, circunscrito como nós, que sabe mais
do que todos. Apenas, o criador torna-se permeável ao mundo e a
seus mistérios, sem os compreender e sem os nomear. O artista:
urna de ar. Duro ofício, este a que se obriga, com instrumentos cujo
fio o bom e o mau uso quase sempre embotaram, de representar o
que ele próprio ignora e nem a ele revela o que significa! Tinir de
224
espadas.

* * *

Era uma sala de cinco metros por sete, aprazível, com um


lustroso piso de madeira e jarros de flores. O velho esburacou uma
parede a golpes de martelo e de repente viu que por trás da parede
havia outra, de aço. Abriu a leve cortina clara e debruçou-se à
janela: dava para um abismo do qual não via o fim. Fez um rombo
no assoalho, ouviu o rio que deslizava solene sob o piso e
mergulhou para sempre nas águas caudalosas.

A noite ia avançada, e a casa estava em silêncio. Sentado na


poltrona onde costumava ficar a inesquecível amiga, eu tinha entre
as mãos o Curso de lingüística geral, de Saussure, lançando vez por
outra um olhar apreensivo em direção à porta, como se esperasse
alguém, embora só a polícia costume chegar tão tarde. O abajur
iluminava bem o livro, minha camisa branca, a poltrona cor de
vinho e deixava o resto da sala em penumbra. Numa das vezes em
que ergui os olhos do livro, vi sobre o tapete um animal raquítico e
sujo, gato ou gata, de perfil, as patas dianteiras estendidas. "Como a
Esfinge!" Que animal era este e como pôde entrar aqui? Esta
pergunta foi como incinerada pela combustão do que vi, o intruso
era real e, sem deixar de ser real, era a sua invenção, nele
coincidiam morte e perenidade, a orla do imaginário ascendia e
acercava-se de mim, não só isto, o mundo inteiro apodrecia nesse
animal onde reinava o esquecimento, e nele começava a nascer
outra memória. Devagar, sua escuridão me invade, eu me levanto e,
sem saber por quê, as mãos como luvas não calçadas, abro os
braços, sufocando um grito que não sei se de alegria ou de horror.

O 7º Regimento de Cavalaria, com suas túnicas vermelhas e


os sabres fora das bainhas, desceu vagarosamente a encosta, a pé.
225
Ouvia-se apenas o rufar abafado de um tambor. Afinal; fizeram alto
diante da cidade, as bandeiras flutuando à brisa da manhã. Surgiu,
no cimo do monte, a imensa cabeça de um cavalo, feito de todos os
cavalos, cresceu mais ainda na descida e esmagou a cidade sob os
cascos, ante o olhar raivoso dos soldados.

Certo de que chegou o momento e sem saber que


transformação se arma nos limites da noite, vagueio, a cabeça
descoberta, o sereno noturno ardendo nos olhos e estranhando as
súbitas lufadas de ar quente, como se um trem de fogo, silencioso e
invisível passasse de tempos em tempos por mim, veloz. Quase
ninguém nas ruas, deve ser bem tarde, passam raros veículos em
grande velocidade, apitam os guardas-noturnos, meus sapatos novos
ainda rangem um pouco; e cada passo meu repercute, como
repercutem os latidos dos cachorros nos quintais escuros. A muitos
metros do solo, na minha sala, um gato dúbio imanta devagar o
mundo com a sua substância, irradia-se, e é dele, talvez, que
procuro fugir, eu, esse homem ansioso, de óculos, as mãos nos
bolsos da japona. Sobe a rua Pamplona e pára na avenida Paulista:
os sinais de trânsito acendem-se e apagam-se, refletem-se nos seus
cabelos quase brancos. Vem até ele o som impossível de uma onda
arremetendo sobre as rochas e assalta-o, estrídulo, um odor de algas.
Mais estreita e aprazível esta avenida quando a carreta esmagou,
aqui, teu corpo leve, Julia. Houve uma tarde de setembro onde
caminhamos no passeio, abraçados, sobre as flores roxas dos ipês
que o asfalto substituiu? Cruzo a avenida e, adiante, extravio-me
pelas ruas Sílvia ou Doutor Seng. Transforma-se em certeza a
suspeita que sempre trouxe em mim, a de que Julia Enone quis
dizer, de um modo terrível, algo tão grave que só o ato de morrer
estaria à altura de expressar. Não devo agora estar longe do morro
dos Ingleses, mas como saber ao certo, entre tantas demolições?
Todas as luzes se apagam, minhas indagações parecem mais
difíceis, e a noite infectada por Memosina ou Mimosina, que a rege
do alto ou se enfia em algum esgoto, ambígua. Nada vejo sob o céu
fechado, e o cáustico orvalho da madrugada parece mais aguçado,
felizmente estou de chapéu. O que será, por trás dos edifícios, esse
226
clarão entre dourado e verde, movendo-se, como se um fantástico
navio com todas as luzes acesas ou uma grande baleia chamejante,
surgida da terra, singrasse em plena escuridão − visível apenas o seu
halo − as ruas desertas de São Paulo, traçando uma curva? Tua vida,
Julia, foi uma extensa vigília, e tudo preparava o teu livro, termo da
peregrinação. Ele era o ouro do teu ser, o que resta do que os anos
queimam, nada em ti valeria o que ele pudesse valer − e como
expressares convicção tão grave, senão com o teu sacrifício? Mais
perto, como se viesse em minha direção, sinuoso, o halo verde e
ouro, cheiro de mar e vozes cantando muito longe, em coro, não sei
mais onde estou e receio avançar. Que tivesses amor e inspirasses
paixão, que estivesses no vigor da idade, e o amor (o de quem te
ama e o teu), em plenitude, seria a tua retórica, dando mais realce ao
que − de maneira encoberta, segundo preferias − resolveras dizer
com a tua morte. Árdua decisão, na qual desprendimento e
crueldade se fundem. Mas não tem sempre algo de mutilador dizer o
que nos é essencial? Morreste porque morrer era difícil. Vem de
alguma rua coberta de trevas o rumor ritmado de passos, como
conseguem ver na escuridão?, estão mais perto e não falam,
esgueiro-me junto à parede, piso numa poça, a água entra por um
buraco na sola do sapato, soa um clarim como de dentro da terra,
abafado, a patrulha cruza a rua, não ao longo da rua, cruza-a como
se viesse de dentro das casas e entrasse nas casas do outro lado, não
vejo os milicianos, ouço a marcha e o ranger de botas, o tinir
discreto de metais, o vento que levantam quando passam agita as
abas do meu velho e frouxo paletó, fino como um lençol. Percebo
então leve claridade à direita, não o grande halo ambulante, mas
uma pequena nebulosa fixa, e busco-a (assim fazem os viajantes que
se perdem nos contos, ao divisarem uma lanterna), o lugar onde
estou é mais alto do que eu imaginava, de repente vejo luzes a
distância, um navio, as luzes se refletem, é o mar: Não havia, ali,
terra firme e massas de edifícios com luzes vermelhas nos pára-
raios? Flutua quase na linha do horizonte o minguante, e o vento do
oceano passa entre os buracos dos meus trajes; me arrancaria o
chapelão, não fosse o barbante amarrando-o no queixo. Voltaram as
luzes a acender-se ou − estas que cintilam − nunca se apagaram?
Corro as mãos informes na superfície áspera da amurada que se
delineia à minha frente (mãos de pano?), vejo à esquerda uma
guarita, um sino começa a bater, dou as costas ao mar e ao navio,
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piso sem pés, como um bêbado, as pedras desta cidade ladeirosa,
cheia de velhas igrejas, desço um beco (das Cortesias ), rua do Sol,
Amparo, São Francisco, um farol gira no ar, lê-ô-lê, lê-ô-lá, que
faço aqui, que rua esta, ali os sobrados e de outro lado o cais, suas
árvores torcidas na direção das águas, quando vi aquelas pontes, e
quem me diz o nome desse rio, cheirando a peixe e lama? Quem é
você, imperatriz ou puta, tolerada, a cara meio oculta nos véus da
madrugada, que vem vindo sob as árvores do cais, na minha
direção? Lê-ô-lê! Alô! É fogo, mana! Tudo se lascando, os dentes
dos serrotes, as presas das torqueses, os gatilhos das pistolas, os
cabos dos martelos, as pontas dos pregos, o fio das facas, o brio
sabem de quem. Mas vamos lá, vamos lá! O que aperta segura; o
que dói cura. É noite e é dia. Era uma vez? Me eis: desfeito e
refeito. Onde estou e quem fui, eu, quem sou? No mundo acho, no
mundo deixo. Alô! Eu acendo, eu ardo, eu queimo, eu torro. Sou o
fogo de palha, o come-fogo, o fogo grego, a lagarta de fogo, não
nego fogo. Seremos uma vez. De quem foi meu estrambólico
chapéu? De um pobre morfético e surdo-mudo. Mas o que é isto que
sai da minha boca? Sopro de vento ou vento, poeira voando,
moscas, nuvens, papagaios de papel, pífanos, estrondo, mundo? Era
uma vez um homem. Foi com um desejo, voltou com dois queijos;
foi com dois pães, voltou com três irmãs; foi com três primas,
voltou com quatro rimas; foi com quatro versos, voltou com cinco
berços; foi com cinco canções para ninar criança, voltou com seis
donas mais pretas do que brancas; e quando quis parar com esse
varejo, levou tudo que tinha e só voltou com o desejo. Lê-ô-lá! Para
onde venho e de onde vamos? Onde estou e quem fui, hein, quem
sou, eu, jogo espalhado e unido, pronto com cartas de vinte e sete
baralhos, com pedras de vinte e sete dominós? Senha e dica. Se
minhas mãos são de algodão e de madapolão, posso ter um destino,
traçado, missão? Perguntas de otos e de otas. Tanto faz ser
saltimbanco como assaltar bancos, tanto um frade calçado como um
fracassado. Igual. Minha camisa parece casca de alho. E onde
achaste, doutor, paletó tão escrotélico? Na praia. Comendo mosca,
vendo navios, encangando grilos, crucificado no ar, lanço no tempo
meu óstraco e me dano, enfio-me no próprio rabo, peteca (onde
todos batem e ninguém entra). A turca chora um prato de sopa, zum,
zum, lambedor calango laudêmio salamargo. Alô! Meus óculos são
dois fundos de garrafa. Mas vejo no futuro. Hei! .Hei, fossas, hei,
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latrinas, latas de lixo, lençóis mijados, cascas de feridas, hei,
percevejos, pinicos velhos, carcaças de cachorros, esgotos e
operários, ouçam a minha profecia:

Vejo um leão de boné


soprando
o cu do nobre
e um jumento em pé
lascando
o cu do pobre.

Lê-ô-lá! É noite e é dia, é aqui e é lá, sou e não sou eu, a


mutação, a passagem, o trans, vou indo e já cheguei, atravesso a
janela e não saio do lugar, eu no meio da árvore, os braços abertos
(dois ou quatro?), as mãos abertas (quatro ou duas?), o coração
aberto, eu disse o quê?, vamos, gente!, guardo Maria de França,
quero Maria de França, acendo Maria de França, salvo Maria de
França, diminuo o vulto dos pássaros: o coração assustado de Maria
bate confiante dentro da minha sombra lúcida. Junto o esquerdo
com o direito, o perto com o distante, o aqui com o ontem, e sou ele,
e também tu, mana, maninha, sendo quem és, continuas sendo
aquela, somos quem parecemos ser e também somos quem somos
noutro lugar numinoso, xô, passarões canhotos, bichos de bico triste
e furador, xô, esta é Maria, sua passagem uma chuva que tanto
chega como passa, cantiga breve, bordado na almofada . Agora,
vem, Maria, sê uma vez, abre a minha capa esburacada, minha
braguilha sem casa e sem botão, a ceroula que herdei de um
acidentado no trabalho, meus culhões de meia, quebra os meus
ovinhos de miçangas, opa! saio feito um passarinho de dentro dos
ovinhos, saio macio e pequeno, um biscoitinho de maizena, um
bonequinho de louça, lê-ô, e cresço. Lê-ô lê-ô-lá, ela me dá o braço,
somos uma vez, entramos, entramos por uma perna de pinto,
saímos, saímos por uma perna de pato, vamos por aí, ela e eu , o
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Báçira, em direção aos impossíveis limitíferos, ao erumavezífero, ao
Recífero, às portas abertíferas, ao bacorífero, ao eixo universífero,
ao ir sem regressífero, ao amplífero, ao putaqueparífero, ao
imensífero, ao ífero, ao Baçirabacífero.

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