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1º de maio
6 de maio
18 de maio
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que, sendo eu afeiçoado aos livros, me distingue com o seu apreço.
O que me diz, mesmo descontando certo exagero provável, tributo
sempre devido à ironia, preocupa-me e, por outro lado, esbate em
mim certos receios. Revela-me A. B., com o seu fino sorriso
eclesiástico, o que sucede com alunos seus e até com mestres de
nome: se, por exemplo, sabem alguma coisa de Madame de
Volanges, de Danceny e do libertino Valmont, não é por terem lido
As ligações perigosas, e sim porque ouviram a análise estampada há
cerca de oito anos na revista Communications sobre o romance de
Laclos, esse conhecedor de fortificações e da fraqueza humana.
O editor, hoje, acrescenta A. B., ao publicar um estudo
literário, dispõe de um público importante, ávido, mais numeroso
que o público − real ou possível − da obra analisada e que talvez
nem julgue necessário conhecê-la.
Adverte-me, em compensação, para o lado negativo do que
podia ser uma vantagem: minha intimidade com a autora. O exame
dos textos, postulam hoje os especialistas, deve ignorar a mão que
os redigiu (tensa, não obstante, de história e de motivos obscuros).
25 de maio
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levar em conta o nome do autor, o que impede reações
estereotipadas de admiração ou confiança".1
Creio então necessário perguntar − levando ainda em conta o
que me dizia A. B. − se não errarei em desprezar um conceito
igualmente firmado nos estudos literários e na publicidade da
faiança de Delft, ocupando-me de Julia Marquezim Enone (melhor,
do seu livro), eu, que não só sabia e sei o seu nome, como ouço-o
repetir-se tantas vezes em mim, dado que fomos amantes. Não
estará o meu depoimento desde já condenado à parcialidade, ao
malogro, tendo eu de incidir, devido à minha antiga condição, em
"reações estereotipadas de admiração ou confiança ''?
26 de maio
3 de junho
Pensei bem e decidi não recuar ante decretos que − por mais
objetivos que sejam e mais virtuosos − careçam de sabedoria no
sentido amplo. Vejamos. Uma simples carta pode ser mais bem
compreendida se confrontada com outras − anteriores e talvez até
ulteriores − de quem a enviou. Reiterações e mudanças podem
indicar tantas coisas! Como traduzir certos entretons e propósitos
senão contrastando-os, opondo-os a uma certa tradição,
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ou seja, a uma autoria? Os mesmos versos não são os mesmos
versos, venham do epígono Etienne Alane ou de Hugo. É o que nos
afirma, a seu modo, um argentino que entende dessas coisas, Jorge
Luis Borges, no conto em que Ménard, palavra por palavra, escreve
o romance de Cervantes. O estilo do Quixote, natural no seu
primeiro autor, em Pierre Ménard faz-se arcaizante. Comparar os
dois textos, diz Borges, "é uma revelação": Ménard haveria
enriquecido a arte da leitura com uma nova técnica, a "do
anacronismo deliberado e das atribuições errôneas". Sugere Borges,
dentre outras, a experiência de lermos, atribuindo-a a Joyce, a
Imitação de Cristo.
Além do mais, estando eu longe de ser − e do desejo de ser −
um teórico universitário, por que fixar-me a normas? Vamos em
frente.
10 de junho
12 de junho
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15 de julho
Parte do mês de junho e metade das férias escolares
fazendo e refazendo planos para o meu ensaio, sem me decidir por
nenhum: todos, com suas chaves e subdivisões, imitam esses
esquemas − tão úteis, afinal − com que os Linneus vivem tentando
ordenar a natureza. Hoje, suponho haver encontrado a saída.
Todo ensaio literário, obediente a uma convenção que firmou
autoridade, evoca o narrador oculto. Inviável, nos dois casos, o
discurso chamado pessoal − que precisa as circunstâncias da
enunciação. O ensaísta nunca se dirige a nós em um tempo e um
lugar definidos: intemporal e como abstrato, só nos revela de si,
mediante o ardil de um texto que de certo modo o oculta e portanto
nos ilude, suas leituras (sempre estimáveis) e seus conceitos (jamais
inconclusos).
Tomarei outro rumo. Quero um ensaio onde, abdicando da
imunidade ao tempo, e, em conseqüência, da imunidade à surpresa e
à hesitação, eu estabeleça com o leitor − ou cúmplice − um convívio
mais leal. Que outra opção, neste caso, impõe-se mais naturalmente
que o diário? Assim, dia a dia seguireis o progresso e as curvas das
interrogações que me ocorram.
Patente a minha desvantagem em um confronto com os
fictícios autores de diário imaginados por Goethe (Werther), por
Machado de Assis ( Memorial de Aires), por Gide (Sinfonia
pastoral). Ocupavam-se todos de mulheres − de Carlota, de Fidélia,
de Gertrudes −, enquanto meu herói é só um livro. Ao menos,
favorece-me a circunstância não pouco valiosa de que o livro e eu
somos reais.
Vamos pois ao meu ensaio entre íntimo e público,
confidencial, livro a ser composto devagar e no qual há de
imprimir-se o fluxo dos dias.
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Que, procurando iludir a solidão, eu não me transforme
definitivamente em sua presa. Que eu não tenha de lamentar, como
Goethe: "Aqui, como aliás em toda parte, encontro sempre ao
mesmo tempo o que procuro e aquilo de que fujo".2
17 de julho
18 de julho
19 de julho
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Sem mais tardar − não quero merecer a censura de Montaigne a
Cícero, cujos discursos, diz, inflados de preparatórios, "esmorecem
à roda do pote"3−, volto portanto ao romance e o resumirei, de
modo a transmitir, sem o concurso de Propp, solicitado por outros
compromissos, uma idéia tão fiel quanto possível das banais
aventuras da heroína, aventuras que as repetições, as variações,
transformam em pesadelo. Quando necessário, alterarei a ordem
estabelecida pelo original.
21 de julho
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Os dias de sol, agora, principalmente quando sopra o vento, são
mais bem recebidos que as chuvas oportunas na lavoura, mas a
coincidência induz Maria de França a uma reflexão: dependemos de
coisas que nos são alheias e que não podemos dominar. Não só
isto. Entrevê um laço incompreensível entre a operação que
executam as mãos da mãe e o mundo. A associação evoca o nexo
entre as diligentes mãos do lavrador e, por exemplo, as nuvens.
Eis, então, jogando com as incertezas do tempo e sob o
disfarce de, simples abertura, o apólogo que orienta os episódios
futuros do romance. A transferência da viúva e os primeiros cinco
anos no Recife, ao termo dos quais − sempre mais soturna e mais
distraída − não progrediu em nada, constituem o acesso a Maria de
França e aos seus desastres. Queixando-se do aparelho genital,
amortecido o lado esquerdo do corpo, vai a mãe para segundo
plano; deixa no centro do palco, com dez anos completos, a heroína
do drama. A transmissão opera-se de modo coerente: declinando as
forças da mulher (surgem também distúrbios renais), Maria de
França, apesar da idade, emprega-se como doméstica, a troco de
comida, cama e ordenado insignificante.
22 de Julho
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aumenta o êxodo rural, gerando favelas como a do Coque − sessenta
hectares, no Recife, de terra pantanosa aterrada com lixo −, onde
vivem dez mil pessoas, noventa por cento das quais sem ocupação
certa e que se alimentam de, mariscos apanhados na lama.
Quis saber de J. M. E. por que oferecia, no romance,
condições de moradia menos deploráveis aos migrantes. A escala
onde se processavam os infortúnios das suas personagens −
respondeu-me − e mesmo a natureza desses males eram inacessíveis
a gente como a do Coque, que ela não conhecia tão bem. Lembrava,
a propósito, o interesse que podia ter um estudo das classes sociais
baseado no tipo de desgraça peculiar a cada uma. Que haveria de
comum entre a dor de Édipo e a luta de Fabiano com a estiagem, em
Vidas secas?
25 de julho
26 de julho
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segundo acabo de ver, com o intuito de animar e de altear este
passo, na minha estante dos elisabetanos. Belo Papagaio fala das
estradas de rodagem, de caminhões tombando em precipícios, de
rios cheios, de cangaceiros, descreve. as brigas que provocou e
venceu em prostíbulos famosos da Bahia, de Alagoas, de Sergipe, as
mesas de jogo viradas, os tiros, o brilho das facas, vôos das janelas
para a rua, as mulheres cujos sexos, devido à forma excêntrica, às
dimensões, ao perfume, à maciez e ao fogo estarrecem qualquer
macho. Não obstante os quarenta e tantos anos, deflora Maria de
França e, antes que amanheça o dia, azula no tempo.
O episódio não traz as conseqüências que tememos. Resta, na
vítima, como vestígio da passagem de Belo Papagaio, o costume de
esconder os polegares. A voz sob a cama e o espírito soturno do ex-
barbeiro, silenciosos durante os cinco ou seis dias em que o
visitante se mete no bordel, usando as camisolas das mulheres,
perfumado, unhas pintadas, reaparecem quando ele vai embora,
seguem-na quando ela muda de emprego e só emudecem quando
Maria de França evolui de doméstica a operária de fábrica, voltando
a ocupar, com a mãe doente, o seu quarto de subúrbio, agora mais
respirável: foram-se alguns dos irmãos. Belo Papagaio e mesmo o
defloramento esvaem-se como um sonho. Mas a facilidade com que
a operária cede a qualquer proposta, abrindo-se em terrenos
devolutos ou em fundos de quintal, confere a este período certo
clima de degradação.
O imenso peixe continua aumentando sob a terra, noite e dia.
27 de julho
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É também possível que eu nem sempre situe, com o rigor
usual, as outras citações. A exatidão nesses casos expressa uma
gentileza do escritor e sobretudo o empenho de merecer fé. O
ensaísta, mesmo quando severo com o mundo, aspira à consideração
geral. Honrarei a memória da mulher que amei se esclarecer que não
quero ser acreditado e que a consideração geral, a mim, obscuro
professor secundário, me deixa indiferente.
4 de agosto
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de lepra,
de tuberculose ativa,
de cegueira,
de alienação mental,
de paralisia irreversível.
O direito à assistência médica, precária, é obtido a partir da
primeira contribuição. Garantido, igualmente, o auxílio para enterro.
Mas há ainda um ponto não esclarecido e que convida à
discussão. Qual a vantagem em demitir um empregado antes que ele
alcance todos os direitos no sistema previdenciário, se a aquisição
desses direitos não implica ônus para o empregador?
O advogado Aquilino de Macedo Lima, autoridade em
questões trabalhistas, tem sobre a matéria uma hipótese cáustica e
cuja ausência de provas, inevitável, é compensada pelo rigor de sua
lógica, firme como a de um alucinado. Trata-se, diz Macedo Lima,
de um acordo de cavalheiros. Que sucede com a demissão de
empregados dentro do "período de carência"? Evita-se o pleno
ingresso, na entidade previdenciária, de inúmeros associados cheios
de problemas, muito onerosos portanto e que, inversamente,
contribuem pelos níveis mais baixos. O artifício reduz
consideravelmente os encargos do órgão assistencial, que, assim
favorecido, não consideraria indigna de si uma certa maleabilidade
na fiscalização junto às empresas que integram o conluio.
9 de agosto
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artigos, parágrafos e alíneas, compõe essa entidade com que luta a
heroína. Compõe, eu disse: faz parte da composição. Vejo o texto
legal, aí, como uma espécie de veículo inseguro, acionado por
condutores ineptos e malignos, que trocam peças, invertem
comandos, deterioram o veículo, transformando-o num monstro
voluntarioso − num insano. Assim, o desequilíbrio mental da
personagem soa com ironia: há, nos seus atos, no objetivo que
busca, certa coerência. A verdadeira loucura reina no outro lado, na
máquina viciosa. O ambíguo confronto entre a mulher e esse ente só
pode ser expresso através de uma série de respostas, tão laboriosas
como ineficazes, a exigências que se alteram sem cessar.
Nada, portanto, justificaria a opção de reduzir a uma frase o
pesadelo de Maria de França, dizendo por exemplo que às
dificuldades vencidas sucediam-se outras; ou que um fator
inesperado, quando tudo parecia chegar a bom termo, decretava o
reinício do ciclo. De maneira esquemática, como num protocolo ou
numa ficha, darei então pela ordem o histórico das providências −
todas vãs − exigidas da simplória aspirante a uma pensão não
vitalícia. Perder-se-ão no meu resumo a movimentação e o tom do
original. Não me seja atribuído o que nele restar de atraente e ágil.
15 de agosto
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Na ala posterior do edifício, procurado, apesar das cortinas um tanto
descoradas e das manchas de tisna em redor das maçanetas, por
viajantes de posses, funcionava e talvez ainda funcione − fato único
no mundo, penso − uma dependência do serviço social, o setor de
benefícios.
Inicia-se aí a "descida" de Maria de França ao purgatório da
burocracia, e ante esses balcões decorrem vários episódios do seu
drama. O primeiro é favorável: embora trabalhasse na fábrica onze
meses, pagou − não sabe como − doze, estando em condições de
reivindicar o que pretende. Dão-lhe um formulário que preenche a
duras penas e que deve entregar na rua do Riachuelo, com duas ou
três certidões. Mais de ano, entretanto, havendo decorrido entre o
pagamento da última mensalidade e a solicitação do benefício,
prescreveram os seus direitos, a não ser que prove ter sofrido o
primeiro acesso de loucura antes de encerrado aquele prazo. A
reivindicação, com isto, poderá ser discutida, alegando-se que se
nada requereu quando ao abrigo da lei, foi justamente por estar
internada como doida.
Procura o Hospital de Alienados, explica o caso como pode e
vê no seu registro, espantada, declarações da mãe, dizendo que ela
nunca teve bom juízo. Bem. Papel é papel: leva o atestado à rua do
Riachuelo. A funcionária custa a lembrar-se de tudo, afinal se
recorda, mas agora trocou de opinião. Pelas seguintes razões: a)
atestado é uma coisa muito vaga; b) não tem destinatário, sabe?, não
se dirige a ninguém; c) só é válido com a firma autenticada em
cartório. Instrui, portanto, a confusa segurada, no sentido de trocá-
lo, se puder, por um ofício carimbado e assinado pelo médico-chefe
da “Tamarineira”.
Maria de França também consegue o ofício. A funcionária
entra numa sala e fecha a porta. Reaparece horas depois com um
papel que deverá ser entregue no departamento médico.
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Rua da União. Maria de França, antes de ser atendida, vai muitas
vezes ao endereço marcado e depois outras tantas, paciente,
aguardando o exame. O médico saiu antes da hora ou lhe. manda
dizer para voltar outro dia.
Afinal examina-a e garante ser possível, no seu caso, um ano
de licença. Mas não tenha como certo, não cabe a ele a decisão
final. Cabe a quem? À junta médica superior. Longo, depreende-se,
o tempo decorrido entre essa informação e o veredicto, contrário, da
junta médica. Maria de França, enquanto espera, tenta obter
trabalho em casas de família e, entre uma tentativa e outra, ajuda a
mãe na barrela.
Fazem-lhe, ainda na Riachuelo, nova sugestão: recorrer à
assistência judiciária, antes, obtendo atestado de pobreza. Ela ouve
o conselho, desce as escadas − tem medo de elevadores −, as
escadas sujas, repetindo-o. Ao chegar embaixo, já se esqueceu de
tudo.
Ganha algum dinheiro, em casa, fazendo bruxas de pano. Às
vezes, com a ponta da tesoura, estripa-as. O eleito de Alberto
Magno, que nada sabe dessas mortes e da raiva que então obscurece
o coração da louca, vê naquela nova ocupação instintos maternais e
arranja-lhe o emprego menos indicado: pajem de dois meninos
surdos-mudos.
A mãe dos surdos-mudos passa as manhãs fora, confiando-os
à ama, em quem a violência cresce, cheia de ameaças. Haverá um
duplo infanticídio? Serão esfaqueados os inocentes Dino e Lino? A
seqüência, felizmente, foge a tais previsões: a patroa nota uma
inchação na perna da empregada e quer levá-la à Clínica de
Doenças Tropicais. Resistência de Maria de França. Havendo sido
interna no Hospital de Alienados, diz, onde a trataram bem e tem
amigos do peito, só confia nos seus médicos. Imediatamente, sem
perceber por quê, recebe as contas.
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Admitida num armarinho (sem registro na carteira
profissional), suas vendas não chegam nem ao mínimo exigido, "e
só por isso, ouvintes, me mandam passear, me mandam para o olho
da avenida".
Passa fora de casa a maior parte dos dias, sem nada que fazer,
conversando com os vizinhos, batendo boca por nada, e concebe um
ideal, "ser mulher de porta aberta, isto é, de coxa aberta, imperatriz
das toleradas, mundana-mor, a glória!". Pintada, cheia de laços, saia
bem acima dos joelhos, dirige-se a qualquer homem que passa e
assume atitudes provocantes, virar os olhos, lamber o beiço, coçar a
"sempre-viva", sem atender aos conselhos e ponderações
("conversa, conversa de velho broxa, de quem nunca foi e não é
nunca") que lhe manda o prelado Alberto Magno por intermédio de
Rônfilo Rivaldo. Quando entra em casa, é para entregar-se a
exercícios como o de pôr no copo com água uma rolha de cortiça e
impedir que chegue à superfície, com ágeis toques da língua.
Afinal, convencida de que o motivo do insucesso é a perna
inchada, vai ao Hospital de Alienados, onde revela tal desequilíbrio
que ali mesmo fica. Sofre tratamento, depreende-se, à base de
eletrochoque, cura-se também da perna − "agora estou em ordem,
uma água-marinha, um brinco de argola"− e tem alta num sábado,
ao meio-dia.
20 de agosto
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30 de agosto
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Maria, após o Carnaval, a história dos seus passos inúteis; insiste
para que ela volte à carga: houve alteração nos estatutos; vai com a
ex-operária, novamente, à rua do Riachuelo, onde respondem que
ela poderá talvez obter o benefício, caso providencie atestados de
saúde e a curatela. Curatela? Que diabo é isso, ouvintes?
2 de setembro
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reconheçam as firmas no tabelião. Dudu assedia a assistência
judiciária: esbarra no expediente encerrado e nas ausências dos
servidores, todos de licença ou em viagem ou em enterro de
parentes Por fim, depois de tanto esforço e combatividade (seu time,
enquanto isso, atua desastrosamente no campeonato estadual), vem
a ser informado que os termos do atestado de saúde são demasiado
vagos e que deve obter outro. Desespera-se e tumultua a assistência
judiciária, pressionando todos os pontos possíveis, insistente,
quando aceitam o segundo atestado de saúde e resolvem impugnar o
de pobreza. Faz o comissário de polícia amolecer, sorrir, fornecer
novo atestado, depois de haver gritado que se retirassem e que de
modo algum.
Toda essa pertinácia parece dar resultados. Os papéis são
aceitos (esgotaram-se os pretextos negativos da repartição) e mais
tarde devolvidos, para encaminhamento ao Palácio da Justiça. O
centroavante leva-os ao Palácio da Justiça e daí para a Liga de
Higiene Mental, onde um médico − afinal! − deve examinar a sua
amiga.
No dia, o desprestigiado atleta suburbano está com ela na
exígua e sufocante sala de espera. O psiquiatra nem sequer chega a
vê-la. Manda dizer que, não sabe como, os papéis se extraviaram.
7 de setembro
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um plano capcioso, sente-se a antiga tecelã, sob os cuidados ativos
do amigo − agora noivo −, em união com o mundo, como que
vertendo sobre tudo e todos as provas de amor qu e recebe:
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volta, e volta pra valer. Nem parecem ver, no meio da fumaça e da
balbúrdia, a protegida da louca estrebuchando no chão, o pescoço
esburacado com dois tiros de metralhadora. Pouco depois de meio-
dia, antes do enterro ela menina, Maria de França tem uma crise
forte. Terminava o capítulo III com a sua alta do hospício; este é
encerrado com um novo internamento.
8 de setembro
9 de setembro
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a eclâmpsia, a evidência clínica, e para averiguar se o laudo
fornecido não é falso.
4 de outubro
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6 de outubro
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Haveria, no mesmo ofício, algum Nicolau Pompeu? Sim. Entre os
séculos XIV e XV, um indivíduo com esse nome, misto de letrado
(circulam livros seus sobre a poesia goliárdica e o amor cortês),
quiromante e vidente, pois empreende viagens longas e; difíceis
para ler a mão de príncipes, de negociantes ou mesmo de prelados
cuja identidade, diz, lhe é revelada "por línguas celestes", cruza
ansioso as estradas da Europa Central, e a seriedade com que
disserta sobre as linhas das mãos não o impede de ler, nas palmas de
mulheres que exaltam os seus sentidos, a indicação de que o destino
os une e que a isto devem submeter-se. No fim da vida, faz-se o
antigo Nicolau Pompeu, ao mesmo tempo, cirurgião e impressor.
Creio reconhecer, atenuados, alguns dos seus traços, não no
homônimo do livro, e sim em Rônfilo Rivaldo: a inclinação pelos
livros, a magia, algo de charlatanesco. Um terceiro nome vem
ampliar esse jogo de correspondências, o de Belo Papagaio,
simples e pura tradução de uma alcunha famosa, Pretty Parrot O.
(que significaria este O.?), com presença marcante em ilhas de ação
bem separadas e cuja biografia possuo, sem que até hoje me
houvesse ocorrido uma ilação entre ele e A Rainha dos Cárceres da
Grécia.
7 de outubro
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Mesmo assim, apenas folheara-o algumas vezes, mas nítidos traços
à unha assinalam alguns trechos. Não fui eu que os fiz.
Quiromante, Pretty Parrot O. testemunhou, integrado à
tripulação, as últimas viagens de Calico Jack, capitão do navio
corsário Trinidad, e não parece que fosse muito seguro; pois,
quando indeciso na decifração de uma cruz ou de uma estrela
emaranhadas nas linhas - pouco visíveis, decerto - que restavam nas
palmas dos bucaneiros, consultava (e ouvia) um papagaio que
sempre trazia no ombro. Cabia a esse ledor de destinos, em
sociedade tão pouco familiar aos seus pares, ler a mão dos
candidatos à pirataria e mesmo dos prisioneiros, sendo recusado,
entregue à gana dos tubarões ou abandonado numa penedia todo
aquele em quem Pretty Parrot O. lesse previsões nefastas, como o
Anel de Saturno ou o Signo do Cadafalso.6 A precaução não
impediu que uma chalupa inglesa fizesse o Trinidad em pedaços,
prendesse Calico Jack e o conduzisse à Jamaica, onde, julgado,
morre na forca. Dois dos sobreviventes livram-se da punição: Pretty
Parrot O. quiromante, e não pirata − e um marinheiro que o capitão
não submetera ao seu exame. O marinheiro, despojado das roupas,
revela o sexo e a identidade real; chama-se Anne Bonney e, livre
das faixas de seda no ventre, acusa gravidez de alguns meses. A
criança é talvez de Calico Jack ou talvez do quiromante, que,
segundo viria a confessar, reconhecera desde o início, pelas mãos de
Anne Bonney, seu verdadeiro sexo, apesar do disfarce e da
habilidade nas armas. Associam-se os dois; Pretty Parrot, que não
6."O Anel de Saturno é o mais desfavorável sinal que se possa observar." (Cheiro, O
que dizem as mãos. Trad. de Antoine Boueri. São Paulo, Hemus Livraria Editora, 1971,
p.87. Título italiano: Che dicono le mani.) "A cruz que aparece isolada e distinta sobre o
monte de Saturno (terminando, assim, a linha da sorte) é significativa de morte violenta.
Na verdade, alguns quiromantes a denominam Signo do Cadafalso." (Jo Sheridan,. O
futuro em suas mãos Trad. De P. S. Werneck. Rio de Janeiro, Cia Editora Americana,
1971, p. 83 Títilo original: What your hands reveal.)
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experimentara sem contágio a pilhagem e a existência errante, faz-
se black birder,7 tornando-se lendária a virtude que possui de
embalar os ouvintes com o relato das próprias aventuras. Aduzamos
que o seu fim, bem como o da corajosa Anne Bonney, perde-se na
sombra, entre uma ilha e outra das Caraíbas.
Não se pode afirmar que Julia Enone haja transposto para o
Nordeste de alguns anos atrás essa figura, embora, além do nome,
pelo menos um traço do velho par de Anne Bonney sobreviva em
Belo Papagaio, o prazer de narrar ousadias e lances arriscados. Seu
objetivo, penso, não era recriar personagens legendárias, mas,
lançando mão de pistas onomásticas, preparar uma espécie de
inscrição cifrada que, descoberta, ampliasse os horizontes da obra.
8 de outubro
7. O termo designa uma profissão rara: "Aporta-se a uma ilha afastada, onde se faz
amizade com os indígenas, de modo que eles acabem por subir a bordo; largam-se as
amarras e vendem-se os cativos em outra ilha, para trabalhos agrícolas". (Gilles
Lapouge, Les pirates. Paris, E.d. André Balland, 1969, p 73.)
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fenômeno assíduo na história da literatura: a presença, em obras
impregnadas do tempo em que surgem, de temas errantes, egressos
de uma tradição remota, como este do nexo entre a mão e o mundo,
tendo no homem − resumo do cosmos − o intermediário. Vestígio
de uma civilização anterior à Suméria, já a tábua de argila
encontrada na região de Susa e que pode ser vista no Museu de
Lanciano, mostra, de cima para baixo:
o famoso Mapa-Múndi Estrelado;
um homem com os braços abertos;
a mão espalmada de Oãm, deus da vidência.
"Aquele para quem a mão é diurna, noturnos são os astros. A
mão reflete o homem, e o homem, a Criação", proclama Eudóxio de
Antioquia.8
Não cito por acaso o nome de Eudóxio, em quem vêem muitos
o mestre não confessado de Artemidoro, ancestral tratadista da
quiromancia. Orientado pela coincidência entre os nomes dos três
principais coadjuvantes masculinos do romance − Belo Papagaio
(Pretty Parrot), Rônfilo, Nicolau Pompeu − e os nomes de
quiromantes insignes, tendo a acreditar que essa arte, ou ciência, ou
impostura, orienta a construção da obra, dividida (arbitrariamente?)
em cinco longos capítulos, evocando assim o número dos dedos.
9 de outubro
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Instituto Nacional de Previdência Social uma política de
previdência e de assistência social."' (Entrevista ao Jornal da Tarde,
São Paulo, 3∕10∕1974.)
10 de outubro
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dá a vitória ao Torre sobre o Santa Cruz, até aquele domingo no alto
da tabela. Suspeito de entrar em campo dopado, chamado
novamente à polícia, aparece uns dois dias na crônica esportiva,
centro desse escândalo breve e tão medíocre quanto a sua vida. O
dono do armazém, já insatisfeito com o ambíguo desempenho do
vigia no assalto (não se sabe se resistiu ou fugiu), despede-o.
À falta de outra coisa, Dudu aceita o lugar de cobrador de
ônibus, ganhando menos; para economizar e poder alimentar-se,
dorme na garagem, dentro dos carros; e então lhe aparecem dores
agudas nas costas. O motorista de um dos carros é Belo Papagaio.
11 de outubro
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O noivo, desolado com o que chama "traição desleal", desiste
do casamento; em seguida, aplaca a ira da velha, e reconcilia mãe e
filha.
12 de outubro
13 de outubro
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só retroagindo, voltando atrás algum tempo. A solução, "legal e
banal, coisa de alguns meses", é procurar o juiz, pedir a ele que o
faça. Mais uma vez, como um desmesurado pesadelo, volta-se ao
ponto inicial, com a desvantagem de que o impetuoso Dudu agora
está na cerca.
Mesmo assim, conseguem, a duras penas, ver o magistrado.
Seu veredicto: inviável a retroação da curatela. Manda chamar o
filho, advogado novo, expõe o caso. O advogado considera
"dispensável, supérfluo, estéril e inútil" apelar para a Justiça, talvez
leve alguns anos. Confirma o magistrado este cálculo. Instrui o
jovem, e daí resulta uma petição minuciosa, recorrendo da decisão
negativa. Curatela, atestados médicos, registros dos internamentos e
ainda outros papéis que Maria de França ignora seguem para a rua
do Riachuelo, engrossando a petição.
14 de outubro
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pleiteante a mais um médico. O médico, que já conhece o caso,
manda buscar toda a documentação. Atenderá a pleiteante dentro de
oito dias, com a curadora e o advogado.
Nicolau Pompeu; rouco, o corpo dançando na roupa, aparece
no bairro. Fora colocado no Sanatório Otávio de Freitas, para
submeter-se a uma lobectomia, palavra que repete com alguma
vaidade. A doença, entretanto, evoluiu inesperadamente e afeta
inclusive o pulmão antes sadio. Impossível, confessa, a operação.
Mas não suporta ver gente morrendo e por isso caiu fora e não há
quem o faça regressar. Encontram-no morto um ou dois dias depois,
o dedo no gatilho do revólver. O revólver dos seus tempos de vigia?
No dia marcado, Maria de França, a quem não atinge o
suicídio do noivo, está na rua da Praia, sem companhia. Ninguém
alude à recomendação de que o advogado e a mãe fossem com ela.
O médico estudou o processo e está disposto a conceder despacho
positivo, desde que receba, por escrito, comunicação de serviço
emitida por um funcionário da Riachuelo. Vai Maria de França à
rua do Riachuelo. O funcionário, fazendo Maria de França
portadora, escreve ao médico: resume o caso (quando o destinatário
tem consigo toda a papelada) e emite o seu ponto de vista (quando
esta função compete justamente ao médico). O médico, irritado,
trata a portadora com brutalidade e rascunha novas instruções ao
mesmo petulante escriturário, reiterando o pedido de comunicação
de serviço.
Maria de França, a quem é confiada essa mensagem; em vez
de voltar à rua do Riachuelo e entregá-la (para novamente voltar e
novamente voltar e novamente voltar?), cruza o Recife com o papel
na bolsa, ao acaso, medindo sem indulgência o espaço existente,
infranqueável, entre ela e os que passam. À sua frente vai um
homem, com um volume embrulhado em folhas de jornal. Ela
segue-o a distância. O desconhecido entra numa rua de pouco
trânsito, desfaz o embrulho, retira uma pedra de calçamento,
45
estende a mão direita sobre o meio-fio e esmaga-a, em três golpes.
Vem correndo pela rua, mudo de dor, a mão sangrando. Imóveis,
face a face, olham-se. Maria de França cruza com ele e segue em
direção à pedra jogada no solo.
Assim acaba o manuscrito, o que justifica a hipótese – errônea
− de ter ficado inconcluso. Do peixe subterrâneo, não mais se tem
notícia.
16 de outubro
46
acentuada. Creio intencional a insistência nessa habilidade: também
as grandes linhas do enredo (o fenômeno reaparece em unidades
temáticas menores) apresentam soluções de efeito reverso. Seguem
os eventos um rumo que em princípio leva a determina da
conseqüência. Não se contenta porém a romancista em eludir a
expectativa provocada: realiza-a, nunca na altura prevista e sempre
dando a idéia − que, observando de perto, se descobre ser falsa − de
não ter conexão com eventos anteriores. Variante mais astuciosa das
motivações falsas, o processo, como exige a poética de Julia Enone,
evoca as rimas toantes, ou mesmo as rimas internas, silenciosas e
invisíveis para o leitor desatento.
Noto o efeito, sem engano possível, ao menos em três pontos.
Nenhum mal sobrevém às crianças sob a guarda da louca Maria de
França, que "assassina" bonecas de pano com a ponta da tesoura;
mas a menina que ela protege é baleada pela polícia. Belo Papagaio
nada revela quando se encontra com ela e Nicolau Pompeu no bar; a
revelação, contudo, ocorre por outros meios e causa o rompimento
do noivado. Note-se que o encontro dos três personagens e a
divulgação, em casa, da perda da virgindade ocorrem
sucessivamente, de modo que esse acúmulo de eventos afins parece
um tanto pesado, talvez grosseiro. Quis a romancista, assim, evitar a
suposição de que Belo Papagaio, discreto e aparentando não
reconhecer Maria de França, buscasse depois perturbar por vias
indiretas o noivado − aliás tão pouco promissor. A volta do boêmio
e chofer de caminhão, vista de uma perspectiva tradicional, é inútil;
mas permite a Julia Enone exercitar o movimento que inventou.
Nada de surpreendente, portanto, que o mesmo recurso apareça no
término do livro. A rima toante ou efeito reverso, sob novo aspecto,
ordena a cena final. A rigor, é à heroína que, sem um lugar
satisfatório, definido e justo no mundo do trabalho, compete destruir
a mão direita, sua ferramenta básica. A narradora, porém, repudia a
clareza dessa articulação e introduz, para agir a distância, no lugar
da antiga tecelã, um anônimo!
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20 de outubro
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21 de outubro
22 de outubro
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A antologia da Azteca, México, Los profetas de las manos, que
reúne textos de Patrício Tricasse, Gaspar Peucer, Rodolfo
Goglenius, do capitão d'Arpentigni, ele Desbarolles e ele vários
outros cujo nome eu ainda não ouvira, prestigiará o meu ensaio com
um vistoso simulacro de erudição, ornato indispensável ao gênero.
Epígrafe da antologia: "Ele [Deus] põe um selo sobre a mão
ele todos os homens, para que cada um conheça as suas obras",
Livro de Jó (37, 7). Sempre imaginei que a outra citação do mesmo
texto com que Julia Marquezim Enone anuncia a sua história −
"Quem dera que se cumprisse a minha petição, e que Deus me
concedesse o que espero!" (6, 8) − se reportasse aos trabalhos de
Maria de França, reflexo dos transes de Jó. Mas talvez ande aí uma
intenção menos óbvia, pois, alerta do pelo versículo da antologia,
volto ao patriarca de Hus e noto que também no escrito bíblico
surge o motivo das mãos, com uma insistência que nada pode ter de
casual.
23 de outubro
50
24 de outubro
10. Caso estranho, o desse homem, anterior ao Artemidoro do Tratado dos sonhos, que
viveu no séc II d.C., sob o reinado de Antonino, o Pio. Há quem confunda os dois,
contra o que nos adverte, não sem motivo, Fred Gettings (Le livre de la main, texto
francês de Madeleine Othenin-Girard. Paris, Ed. des Deux Coqs d'Or, 1969, p. 162). A
crer na tradição, o primeiro Artemidoro, analfabeto, sabia o que contêm os textos:
leitura semelhante à dos magos que, ante o rosto de um homem, apreendem a sua
intimidade. As linhas das escritas, dizia-se, são para ele transparentes como as linhas da
mão. Do seu famoso livro, escrito "no ar", não existe o mínimo vestígio real.
51
assemelha-se bem a esses gestos rituais estudados pelos
antropólogos, que para o adventício têm um sentido banal e
guardam outro, mais largo, para os naturais.
25 de outubro
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esconder o polegar, hábito que o chofer de caminhão transmite à
ingênua servente do bordel, significa uma tendência à regressão.
Manipula a romancista um universo instrumental fechado, havendo-
se apenas com o que Claude Lévi-Strauss chama de meios limites,
"um conjunto, continuamente restrito, de utensílios e de
materiais".12 Mas temos de admitir que exerce o bricolage com
grande paciência e desenvolvido senso de ordenação.
26 de outubro
27 de outubro
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com esse campo do conhecimento (ou sonho) humano: projetar no
seu livro alguns princípios básicos da leitura das mãos pode ser uma
paródia de certas estruturas caprichosas, familiares ao romance do
século xx, embora com inumeráveis precedentes na poesia medieval
− onde a composição numérica, por exemplo, raia o maneirismo − e
bem mais longe, no Velho Testamento. Para E. R. Curtius, o poeta,
com esse proceder, "atingia um duplo fim: esqueleto formal para a
construção e profundidade simbólica".13A alusão numeral lançava
cordas para as margens do mistério e expressava, ao menos em seus
exemplos mais nobres, reverência em face do mundo. O poema
ligava-se a algo que o ultrapassava mediante os números a que
obedecia e de que, por isso, era o portador: trazia-os em si.
Contemplador incrédulo que sou das práticas e especulações
alquímicas, das inquirições sobre o zodíaco e dos que lêem nas
mãos a ilegível carta da vida, nem assim é menor o meu apreço por
esse lado da averiguação e busca humana. Também em nós, através
dessas sondagens, instauramos números e astros, embebemos de
eternidade a nossa passagem tão breve. O projeto de Julia
Marquezim Enone, ainda que se admita ser irônico, carreia para a
obra, no seu artifício, esse componente ampliador e mágico.
28 de outubro
13. Literatura medieval e Idade Média latina. Trad. de Teodoro Cabral, com a
colaboração de Paulo Rónai . Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro,1959, p. 548.
54
Penso: o texto, uma vez decomposto (no sentido químico),
decifrado − e se a decomposição integral seria viável e provável,
como ambicionar à total decifração? −, de certa maneira se evola.
Mesmo pensando assim, sou homem do meu tempo e, como um
nadador a quem puxa a corrente, vou sendo levado, neste meu
comentário, a separar, isolar , classificar o que no romance é uno.
Neste ponto, penso em algo inviável: uma obra que se apresentasse
desdobrada, construída em camadas e que fingisse ser a sua própria
análise. Por exemplo: como se não houvesse Julia Marquezim
Enone e A Rainha dos Cárceres da Grécia, como se o presente
escrito é que fosse o romance desse nome e eu próprio tivesse
existência fictícia.
Tal obra, se possível, qual o seu destino? Condenariam ou
absolveriam o criador que ousara aventurar-se, nu, em domínio
alheio? Mas fujo do meu traçado. O que pretendia era só acautelar-
me, sufocar um pouco em mim o demônio das separações, antes de
comentar a parte do romance onde surge o incrível Espanador-da-
Lua.
29 de outubro
56
a erro. os copistas. Não só isto: o seu homônimo são Alberto
Magno, mestre de santo Tomás de Aquino, na linha de um
procedimento mágico originado no Egito ou mesmo antes, haveria
construído um autômato com forma humana, um andróide, do qual
obtinha respostas sábias.16
O inquietante jogo de contrastes existente em Rônfilo, ainda
que intencional, nada tem de arbitrário. Funda-se na tradição de
ambivalência que impregna o auricular, posto sob o influxo de
Mercúrio e chamado, pelos quiromantes, "O Sábio", ao mesmo
tempo que se reconhece o seu poder de conjurar influências
negativas. Pelos dons e poderes, Tot, o deus egípcio com cabeça de
íbis, que, com a mesma intrigante ambivalência, patrocinava os
mágicos e a palavra criadora (atuava ainda, associação
surpreendente, sobre os arquivistas e os astrônomos), correspondia,
no entender dos gregos, a Hermes. Esse avatar de Mercúrio criará o
mundo com o poder da palavra. Quatro deuses e quatro deusas
haveria também gerado a voz de Tot. Cantam e nunca silenciam,
mantendo o curso do Sol com a sua canção interminável.
Dependem, a luz e a vida, da voz desses cantores. Não deixa de ser
interessante, aliás, que atributos tão sugestivos e de tanta
importância impregnem exatamente o mais frágil dos dedos e talvez
o menos útil do ponto de vista prático ("o dedo ocioso", chamava-o
Goglenius), o qual assume, graças a tal consagração,
16. Há , por sinal, outros exemplos desse fenômeno, que hoje nos espanta, entre grandes
figuras da lgreija. Consta que Paulo III, o papa responsável pelo Concílio de 'I'rento, era
adepto exaltado da astrologia , chegando a retardar a assinatura de um tratado com o rei
de França, até que evoluíssern as estrelas para uma concordância simpática entre o seu
horóscopo e o do monarca. Também não podemos esquecer as páginas do padre
Antônio Vieira sobre os cometas, para ele anunciadores de "intemperanças do ar,
ventos, tempestades, naufrágios, secas, esterilidades, fomes, terremotos, pestes e todas
as outras calamidades mais que ordinárias, a que está exposta a nossa mortalidade".
(Obras escolhidas. Lisboa, Sá da Costa, vol. VII, p. 10.)
57
um valor que contraria a sua fragilidade. O nexo entre o. auricular e
a mente talvez procure sugerir a delicadeza do espírito em oposição
às atividades práticas. Não estaremos, em todo caso, longe da
verdade, se virmos no contraste um símbolo da vida mental,
delicada e, ao mesmo tempo, dotada de forças imprevisíveis.
O relevo destas observações é acentuado pela situação do
capítulo, o terceiro dos cinco que, acumulando aventuras nada
espetaculares, compõem a obra: na plataforma do romance, o
elemento evocador do conhecimento e da linguagem constitui uma
espécie de centro, de eixo ou de cume. Que expressaria essa
disposição privilegiada, mais significativa em texto governado pelo
número cinco, centro dos nove algarismos? A atitude de Julia
Marquezim Enone em face da palavra? Certa concepção do texto
literário, ligando-o aos exorcismos, à incongruência, às vozes
invisíveis, talvez − quem sabe − aos astros e aos arquivos? Faltam-
me condições para arriscar uma interpretação. Não será esta, na
Terra, minha única perplexidade.
30 de outubro
31 de outubro
2 de novembro
59
eventuais contempladores do pequeno monumento uma imagem de
17. lsidore Ducasse, Oeuvres complètes. Paris, Le Livre de Poche, 1963, p. 376.
inocência, o rosto que ali se tem de Julia, emoldurado num véu
claro e fluido, é o da sua primeira comunhão. Erraram os
falsificadores se realmente os moveu o propósito inconfesso de
absolvê-la da lucidez. O rosto, embora prenuncie o que·tive entre as
mãos e guardo na memória, é de criança − e a cabeleira negra
descendo pelos ombros, como sempre usou, acentua o que há nele
de infantil. Os olhos, porém, por baixo da fronte ainda intocada e do
véu, escrutam, luminosos, a lente da máquina, varam o breve
minuto do retrato e parecem alcançar visões remotas, do outro lado
do seu tempo. Prematuro, vela nessa manhã da sua infância o
mesmo olhar audaz que possuía ao morrer.
3 de novembro
60
a abertura do capítulo, a ampla seqüência do Carnaval, a mais
unificadora das festas brasileiras, anuncia . Notemos ainda a
mudança de atitude de Maria de França, que, sob o influxo desse
amor tão sem perspectivas quanto a carreira esportiva do noivo,
conhece uma trégua na sua drástica ruptura com o meio. A união
não é estática e manifesta-se na tentativa de ajudar a menina,
expressão de uma confiança que a extensa cadeia de malogros a
inda não dissolveu e que a irrupção da brutalidade policial irá delir,
encerrando o período solar do romance.
4 de novembro
5 de novembro
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assaltantes, de doping, perde o emprego, sua noiva é expulsa de
casa pela mãe, e ele, tuberculoso (os pu1mões, com as artérias e o
tato, incluem-se na área de influência de Júpiter), sai do Torre, sai
da cidade e perde o convívio com os sãos, matando-se afinal com
um tiro (o indicador, dedo do gatilho).
Conjugam-se, ainda, na última cena do livro, denúncia,
acusação e expulsão quando o anônimo, projeção de Maria de
França, esmaga a mão direita. Destruindo a própria mão, o homem
exclui-se, elimina-se do universo útil, produtivo e ao qual não quer
mais pertencer. O gesto denuncia, numa espécie de síntese, a
insensibilidade das classes dominantes, expressa no embate de
Maria de França com a Previdência Social, que o livro desenvolve.
Enquanto a mão direita, no consenso geral, envolve a idéia de
utilidade no trabalho e na tradição cristã a de misericórdia, a
esquerda − também chamada mão do rigor − simboliza a justiça. A
acusação, pois, expressa-se através de um agente investido do poder
de julgar, a mão esquerda, como que adquire ainda maior
intensidade. Podemos aduzir que, na mão direita esmagada, a
complacência também morre. O movimento final de Maria de
França em direção à pedra, instrumento da execução, não é fortuito:
ela assimila o gesto do personagem sem nome, resposta individual a
uma estrutura que ignora simultaneamente a justiça e a
misericórdia.
6 de novembro
7 de novembro
18. "[. . . ]mas o termo de uma obra é tão longe para os que vêem longe!" A frase é de
63
Goethe, e li-a na Reader’s Digest, que, ciosa de justiça e de variação, citava o autor de
Poesia e verdade ao lado de Harry Truman.
8 de novembro
65
Assim, por mais que o tema de um livro e os conceitos que
abrigue constituam o lado vil da literatura, tão incômodo, estarei, se
os ignoro, abrigando-me numa atitude evasiva. Isto, mesmo quando
o tema pareça eleito ou concebido para que uma ambição formal do
narrador se cumpra. Esta, quem me garante não ter sido gerada nas
sombras da sua maquinaria, imperiosamente, por algo que o autor
de certo modo ignora e que, entretanto, já reside nele e anseia pela
escrita? Quem me garante?
A Rainha dos Cárceres da Grécia, visto de um modo
transcendental, evoca as buscas do homem − a da salvação?, a do
destino?, a da compreensão?, ou todas. Guardemo-nos, porém,
amigos, da transcendência e das suas seduções. Ela pode embotar a
acuidade ao circunstancial e há diferenças entre a peregrinação de
Enéias (ou a o baleeiro Ahab) e a de Maria de França. Não podemos
esquecer as limitações do seu desejo − raso, tacanho − e a natureza
das forças que a ele se opõem.
66
Quanto ao "meu" livro, qual será o seu assunto?
11 de novembro
67
horas, havia adquirido autoridade, o viúvo escutando aquelas
poucas palavras como se fossem uma revelação ou um provérbio:
68
distribuídos a seguir entre parentes da morta. Oton Enone, em
breve, só viu a segunda família e raramente nomeava os primeiros
descendentes. Quando Julia soube deles, estava com quinze ou
dezesseis anos.
Nisso tudo − no modo como a jovem quase analfabeta e sem
experiência mundana soube impor-se a um homem que se voltava
noutra direção, e na espécie de ritmo implacável com que viria a gerar
vinte e quatro filhos, nenhum dos quais morto na infância −,
reconhecia minha amiga, sem ironia e sem entusiasmo, uma expressão
de genialidade, algo fora das medidas e que remove tudo para
cumprir-se. Ainda: a coragem de ousar e a disposição incansável para
levar a termo um projeto desmedido. Esse exorbitante desígnio
absorveu o esposo, reduzido com os anos a servidor ou instrumento,
alheio ao resto do mundo. Mais ou menos bem de vida e já ocupando
no. Recife sobrado com seis quartos, recebeu carta da primeira filha −
o retrato infantil desaparecera do relógio −, convidando-o para o
casamento. Mandou recado por quem trouxera o convite (nem sequer
escreveu para justificar a ausência): "Ando muito ocupado
ultimamente. Sem tempo nenhum". Tinha, quando morreu, mais de
setenta anos e não voltou a procurar os quatro filhos mais velhos,
inteiramente apagados do seu coração pelo gênio tribal da hoje
também septuagenária Adelaide.
Esses fatos, naturalmente, foram-me transmitidos por quem
escreveu A Rainha dos Cárceres, que pode ter infundido à crônica da
família algum sabor romanesco.
18 de novembro
20 de novembro
19. "O texto romanesco, jogando com ações e coisas, instiga nossa imaginação?
Elegendo quase sempre o pretérito, parece, antes, contar com uma certa espécie de
memória. Diz-me, alguém, haver despertado 'de um sonho cheio de chicotes e de laços
tão compridos como serpentes, de diligências arrastadas por cavalos embalados nas
gargantas das montanhas, de vastos galopes ao vento por campos de cactos', como em
Dylan Thomas ("Uma visita ao avô", in Retrato do artista quando jovem cão), e tudo é
como se me houvesse ocorrido (há quanto tempo?) e agora, estimulado, eu ou alguém
dentro de mim recordasse." (Dorothy E. Severino (The reader and his memory), citada
por E. Bezerra de Souza, na sua tese sobre lembranças imaginárias, apresentada no. III
Simpósio Nacional de Psicologia, realizado em março de 1970, na Sociedade de
Medicina de Porto Alegre.)
70
exaltante? Não podendo contar com memórias que recordem,
dóceis, o mundo implícito nos seus romances, passa, numa manobra
temerária e tensa de imprevistos, a operar, com ser admitido, no
centro mesmo da recusa. Troca a situação de depoente fidedigno − e
mais ou menos disfarçado − por outra, menos honrosa e mais
arriscada, de falsa testemunha declarada. A modificação do texto
deixa de ser ulterior à sua existência e opera se desde a nascente.
Declina o romance atual do que foi ponto de honra no passado
e respondeu por tantas dissimulações mais ou menos ingênuas
(confissões de personagens, manuscritos encontrados pelo escritor),
com o fim de legitimar a história e. as "recordações" do leitor,
pronto a restaurar, solicitado pelo texto (uma hipnose?), segmentos
insuspeitos do mundo. O escritor ostenta os seus artifícios,
prestigiados na hierarquia nova do gênero. Impõe, com isto, sua
presença e parece dizer a cada um de nós: "Não acreditais em mim?
Melhor. Isto é fala e artifício".
O fenômeno, atual, talvez constitua, em última análise e sob
nova configuração, o regresso da narrativa à sua origem e à sua
verdadeira natureza. Acreditava o rei em Sherazade?
Não concluir, amigos, falácia consoladora e tacitamente aceita
em nossos dias, pela validade estética de tudo que se venda por
moderno. Constitui um erro, admissível apenas em quem não
contemple o destino das coisas, supor que a constituição das obras
pode negar a constituição do fruidor. O cemitério dos livros para
sempre fechados (em minha estante mesmo jazem alguns) abrange
toda a face da Terra, e singularidade não implica imortalidade − ou
vida menos breve. Borges, na Zoologia fantástica, lembra que nem
todos os animais inventados perduraram: não encontraram eco no
coração dos homens. Foi necessária decerto uma hecatombe de
monstros para sobreviverem os unicórnios e os centauros.
71
22 de novembro
23 de novembro
24 de novembro
21. Antecipa O ensaio sobre Richardson aparece em 1761, enquanto a versão final do
Paradoxe sur le comédien, segundo Assézat, é de 1773.
22. O postulado, palavra por palavra, e por isso transcrevo-o no original , reaparece no
Paradoxe . Diderot, Oeuvres. Paris, Bibliotheque de la Pleiade , NRF, 1951, p.1034.
74
mais aberto ao improviso ou ao que Thornton Wilder, em nosso
século, chamaria "o alento caprichoso da composição''. Muitas
variações desta última modalidade encontramos, por exemplo, nos
romances que admitem, implícita, a existência de um narrador
angélico, móbil, de idade incerta, talvez mesmo sem idade e que −
acredita-se − nada ignora. "Nós que, incorpóreos, tudo sabemos e a
todas as mortes podemos estar presentes." (Sérgio Sant'Anna, O
despertar de Gregório Barata.)
27 de novembro
28 de novembro
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incompatível com quem o enuncia. Acercamo-nos, aqui, de um
ponto delicado e que tentarei esclarecer; e os leitores muito
cultivados ou aqueles a quem pouco interesse a matéria, bem como
os que prefiram conservar, em suas transações com a arte do
romance, a candidez de outros tempos, nada perderão se forem
espairecer, se saltarem estes últimos dias de novembro. Mas eu
proporia retornassem dentro de duas páginas ou três. Muitas
surpresas os aguardam.
Há dois modos distintos de formar e que nem sempre
coexistem: o culto e o poético. O primeiro reflete sempre as leituras
do escritor, selecionadas em áreas consagradas pela tradição, e
aspira a uma certa elegância; − o segundo, propenso a explorar o
informulado e o rústico, sonda em vários planos as jazidas
populares e ignora a herança cultural ou combate-a. A reflexão, que
na maneira culta vai cristalizar-se no aforismo, como em Machado
de Assis, na maneira poética não se apresenta como fruto definitivo
do raciocínio, e sim como verdade provisória, formada no trato
com o mundo. Alinham-se, nesta última corrente, obras como São
Bernardo, de Graciliano Ramos, e Grande sertão: veredas, de
Guimarães Rosa.
São Bernardo, ligado a certas convenções realistas, apresenta-
se francamente como escrito, e por homem de instrução rudimentar;
tenta, em conseqüência, uma dicção adequada ao personagem,
objetivo literariamente inviável, sendo necessário que o livro,
convencendo-nos do seu primitivismo, logre ao mesmo tempo −
disfarçadamente, claro − alto nível expressivo; o conflito, incômodo
para o autor real e para o pseudo-autor, ascende ao plano temático.
Grande sertão: veredas, liberado das exigências que embaraçam o
projeto de Graciliano, surge imediatamente como inaceitável,
fingindo uma oralidade que o texto, dos mais elaborados, embora
não culto, contesta sem cessar: instaura-se a ficção, de maneira
declarada, no ato mesmo da enunciação. O jagunço Riobaldo conta
de viva voz a um problemático interlocutor a sua história, expressa
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num volume de quinhentas e cinqüenta páginas e cuja falsidade,
claramente assumida, nunca se disfarça.
29 de novembro
Vive olhando para mim e pensando que sou louca, fazendo perguntas
esquerdas ("Choveu ontem?" "O vidro da janela está sujo de que
lado?" "Gosta de arroz?"). Nunca me pergunta isso que tem na
77
cabeça e que faz com que estremeça de noite, no escuro, quando
abafa o grito do meu nome no seu colchão de solteiro.
30 de novembro
nas grandes obras literárias, tem uma importância que em geral nos
78
escapa e liga-se a uma compreensão ampla das coisas. Muitas
vezes, a nomeação é um engano, uma expressão de cegueira ou
imaturidade: ludibriamo-nos, nomeando algo bem maior que o
nome.
Perdida nas mil e quinhentas páginas de O homem sem
qualidades, há uma elucidativa frase de Musil. Falando do primeiro
esposo de Ágata, diz ter-lhe sobrevindo "o que se chama, na
linguagem do mundo não esclarecido, uma doença infecciosa". Para
o mundo esclarecido, uma doença infecciosa é um conceito trivial:
por trás dele, superior a ele, está o sofrimento, a dor, a deterioração
do ser, o mal O mesmo se aplica à loucura. Há, não devemos
ignorar, um pensamento voltado para o essencial, um pensamento
ciente − não científico − e ante o qual a precisão nada precisa: é
desfiguração da verdade, máscara, equívoco, ilusão.
2 de dezembro
24. Jean Onimus, L'enseigenement des lettres et la vie. Paris, Desclée de Brouwer,
1965, p. 1 35.
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− e ele está nesse caso −, implica o estabelecimento de sistemas,
condena o vago e o intuitivo, reclama estudos metódicos, leva enfim
a um tipo de conhecimento útil, ordenado, sólido, funcional,
respeitável − e falto de alegria. Ora, há na freqüentação aos textos
literários algo de errante, e não me arrependo de haver preservado
em mim essa vagabundagem afortunada.
Que aulas e cursos são aqueles, então, que mais de uma vez
referi? Sou um vago e obscuro professor do que antes se chamava
história natural. Seduz-me dissertar sobre a variedade das raízes ou,
reagindo à triunfante pedagogia para retardados vigente no país,
demonstrar a ambigüidade dos anfíbios. Além do mais, numa cidade
mineral como São Paulo, o que ensino se reveste de magia. Aranhas
e falenas, aos olhos da classe, são irreais e tão absurdas quanto o
pterossauro do Texas.25
Mas − diverso, nisto, dos que ocupam as cadeiras de letras − o
lente de botânica ou de zoologia não cede ao impulso de querer
inocular, em espíritos quase sempre voltados para outras direções, o
que há de menos transmissível: uma paixão. Sempre temi esse
papel, indesejável no magistério e próprio de loucos (ou de quem,
visto que ama, distancia-se dos sãos). Exige a arte das letras, como a
história e a geografia, do mestre, atualização incessante. Plantas e
animais, ao contrário, na sua variedade, formam um universo imoto
− como o das figuras geométricas. Não faltará portanto quem veja,
na opção que fiz, certa malícia; na verdade, ela me permite a
desinteressada fruição das obras que povoam a minha casa. Meus
olhos vulneráveis acrescentam à fruição o mérito ou o valor do
risco. Colho ainda as vantagens de apenas atuar na escola
secundária: evito muitos encargos absorventes − estéreis, por vezes,
confessa-me A. B. − e que os proveitos da alta docência, acho, não
chegam a compensar.
25. Supõe-se que o pterossauro, com asas de dezessete metros, seria um réptil
carnívoro: nutria-se de dinossauros podres.
80
Nem sequer esteve nos meus planos escrever, a não ser estes
cadernos (íntimos?), onde há mais de vinte anos comento os livros
que leio; o presente estudo, organizado, constitui exceção no meu
programa de vida.
3 de dezembro
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José, nas pensões das toleradas da rua Vigário Tenório), esse gosto
da chuva nas palmas estendidas, o arcebispo, sem sapatos, levanta a
cara no meio do jardim, abre a boca santa, vê na língua sagrada a
chispa do relâmpago, fecha a boca, a língua encandeada, Dudu!,
amor meu, ouve o cheiro da chuva que devagar vai entrando pelos
vidros meio abertos do ônibus, um segredo este perfume da chuva
cruzando o óleo, a graxa, a tisna da garagem, no palácio do governo
o rei abre as narinas, aspira, não se move, não vê, aspira e ensina,
real: "A chuva é fria".26
4 de dezembro
82
que veloz desce no morro e me alcança ainda no quintal e eu corro
para dentro, batem as portas, um pombo pousa no teto e a casa geme,
ouvem?27
5 de dezembro
6 de dezembro
27. Haveria, nesta citação, outros pontos a comentar, como a forma humana da chuva e
o gigantismo dos pássaros: aos olhos de Maria de França - aspecto que me intriga e para
o qual não encontrei ainda resposta satisfatória -, todos são enormes e temíveis.
83
perigosos: sua onisciência imperfeita lê, inexatamente, reflexões e
sentimentos alheios. Passa Maria de França a agir, diante de outro
personagem, baseada no que sabe − ou acredita saber − do seu
interior.
Mas o dispositivo de mediação do livro, que nada tem de
rígido, ainda vos traz surpresas. Registram-se ocasionais cisões
entre a consciência da personagem enquanto personagem e o que
registra enquanto narradora. O efeito é sugestivo e inquietador. Diz-
nos o "eu" falante, referindo-se a Belo Papagaio, haver no motorista
uma intenção destrutiva e que o relato das suas aventuras não passa
de um ardil, "nuvem de rumores e de espalhafatos, para torcer-me o
juízo, a guarda", enquanto o "eu" atuante, surdo às constatações de
que é o porta-voz, precipita-se no laço.
7 de dezembro
84
sinto, ignoro o que falo se é que falo, onde estou?, na rua ou em
casa?, característica ·sonora, ponto final em nossas transmissões.
8 de dezembro
85
9 de dezembro
86
radiofônica, portanto, reveste-se para ele de um caráter ao mesmo
tempo balsâmico e recompensador. O silêncio da cidade representa
uma forma de negação do ser: para existir, é necessário que a cidade
fale. A mensagem radiofônica desempenha esse papel, confirma
uma existência problemática e assume, com isso, um estatuto
privilegiado e quase diríamos sacral” 28 A interpretação de Cesarina
Lacerda talvez explique a atração dos pobres pelo rádio. Seja como
for, busca avaliar o significado, na chamada classe C, de um tipo de
mensagem altamente cordial, freqüente nesse meio de comunicação
e lisonjeiro para o destinatário. Além disso, sem o saber, justifica a
ensaísta, sob perspectiva sociológica, o discurso de Maria de
França, que finge dirigir-se − solução evidente a partir do capítulo II
− ao público de uma emissora de rádio. Animam a obra os clichês
de linguagem comuns aos locutores, e certos esquemas típicos de
programas radiofônicos, dentre os quais o noticiário, empregado
com humor e eficácia, envolvendo tanto as personagens (inclusive a
própria narradora), quanto os acontecimentos mundiais, deformados
pelo anacronismo e outros fatores.
12 de dezembro
28. Falando para o mundo. Recife, Ed. Flos Carmeli, Convento do Carmo, 1968, p.
120.
87
jantar como recompensa. A insistência nesse recurso e variantes não
é fortuita: ele configura integralmente o fenômeno da narrativa − eis
o contista, a fábula, os destinatários e mesmo o lugar convidativo −,
e pode-se afirmar que vem dessa coincidência o seu fascínio. Tal
evocação, por vezes, acentua-se tanto que a história deixa de ser
improvisada e alguém lê para os de mais um texto, quase sempre de
origem misteriosa.·Assim a "Novela do curioso impertinente",
esquecida na estalagem, com alguns livros, por alguém "que puede
ser que vuelva" e lida em voz alta pelo cura, no Dom Quixote;
assim, trezentos anos depois, o "álbum vermelho e fino, de capa
desbotada, com os cantos dourados, à moda antiga", cuja leitura os
hóspedes de uma velha casa ouvem de Douglas, em A volta do
parafuso, de Henry James. Os peregrinos de Chaucer vão narrando
algumas fábulas ao passo embalador das montarias, mas os pontos
naturais desses encontros são os pousos, onde cada hóspede é um
livro ainda não aberto. Quase sempre, em horas noturnas. Os dez
jovens florentinos de Boccaccio narram seus contos sentados sobre
a relva, quando "o Sol está a pino e o calor é intenso". Já "o Homem
da Colina" leva toda uma noite contando a sua história a Tom Jones,
e o Douglas de Henry James, mais de uma para ler seu estranho
manuscrito. Descreve Charles Dickens, com minúcias, a sala
comercial do Pavão, onde se hospedam Mr. Pickwick e seus
amigos, pouco antes da "História do caixeiro-viajante", também
contada à noite.
Com os anos, as hospedarias transformam-se em hotéis e
restaurantes, emigram das estradas concorridas para os centros
urbanos, algo de aventuroso vai esmaecendo nos narradores em
trânsito e nos seus benévolos comparsas, que já não chegam em
cavalos estrompados ou na mala-posta, a lavanda lhes é familiar, às
vezes comparecem vestidos a rigor, mas o núcleo da situação − o
conto, o narrador, o ouvinte e o abrigo − permanece:
88
"Havia sobre a mesa uma pequena lâmpada com abajur.
Guarneciam a lareira um itinerário, um almanaque, o tinteiro com
uma pena e meio bastão de lacre. Ele pedira dois conhaques duplos
com o café e estava encolhido na poltrona. Envolvia-nos a esquisita
sensação de intimidade que proporcionam as salas repousantes e
silenciosas do Hotel Plaza.
"'Serei importuno se lhes contar o caso? Sucedeu com um
amigo do meu tio e, desde então, oitenta anos se passaram.'"
A citação é imaginária, unindo fragmentos de Dickens e de
Maugham. Que romancista, entretanto, não reconhece aí o ofício de
contar, a união com o leitor e a ânsia de ser ouvido longe do tumulto
do mundo?
I7 de dezembro
89
18 de dezembro
19 de dezembro
Atenção! Ele me espreita com seu olho azul, o rosto meio de lado,
ainda está de combinação de seda e eu nua, mete o dedo na minha
bocetinha, ai, que dedo presepeiro, dedo grosso de chofer,
acostumado a mexer com ferramentas e a mudar pneu de caminhão
na estrada, lambe a minha orelha, levanta a combinação, que coisa é
essa, ouvintes, apontando para cima?, vem para o meu
91
lado, pois é agora, é agora. Vamos dar a hora certa: são vinte e duas
horas e trinta e um minutos na capital do Nordeste. Neste momento
exato deixo de ser virgem e me candidato a tolerada.
20 de dezembro
92
23 de dezembro
24 de dezembro, meia-noite
93
25 de dezembro
Significativa, esta necessidade humana de celebrar as festas na
abundância. Negando as limitações que regalam o nosso domínio
sobre as coisas e permitindo-nos fingir que podemos fruir o mundo
sem cuidados, banimos a penúria, instituímos por um momento a
fartura e portanto o desperdício.
6 de janeiro de 1975
94
um homem, depois outra mulher e finalmente um homem, o
último."
"Então ela nasceu como exceção", exulta Alcmena. "Marcada.
Tumultuou o ritmo!"
"Não se orgulhava disso. Repelia a idéia de chegar ao mundo
assinalada ."
Estremeceram as cortinas, levemente. Houve um pequeno
sussurro, e a vida das coisas continuou.
10 de janeiro
95
destruída pela maturidade e que a minha amiga soube conservar até
morrer?
12 de janeiro
96
a ingrata uma tolerada gorda e cerzida, estandartes no ar, um
mascarado na porta , dançando feito um boneco e gritando para
dentro "Olha a porteira do mundo, gente, a porteira do mundo",
madrugada alta, um coro muito longe entoa a marcha-regresso, chora
a tolerada junto do piano manchando a cara pintada de vermelho, um
coração miúdo em cada lado da cara, se lamenta para o homem "Esta
vida é mesmo assim, Hermilo, viver feliz quem me dera" , Hermilo
canta batendo no piano
97
Noite, Pavão Dourado, Flor da Magnólia) e que a romancista não
inclui no texto, decerto para que a acumulação não prejudicasse a
sugestiva mobilidade da cena.
17 de janeiro
98
Ver ainda este exemplo, onde a segurança do psiquiatra (meio
louco?) contrasta com a angústia da operária examinada:
19 de janeiro
99
sugerir, para advogar a sua causa, o próprio filho, “patrono e pa
ladino”. Isto justifica a citação longa:
22 de janeiro
101
23 de Janeiro
Sim, todos esses caprichos tinham-me sido pouco a pouco
revelados. Não percebera, talvez por tão de perto sondar o tecido da
prosa enoniana, a extensa dívida da romancista para com os letristas
da música popular nacional. Faz com eles Julia Marquezim Enone o
que outros fizeram com os provérbios, os festejos populares ou a
literatura de cordel. Por dois motivos, penso, não os nomeia: busca
sempre ocultar o seu jogo; o anonimato significaria uma espécie de
consagração, a imersão do produto individual no acervo coletivo.
Deve-se ainda considerar, em certos casos, que a romancista,
sonegando a autoria dos fragmentos de canções incrustados no seu
texto, resgata-os. Criações anônimas, invenções da multidão, não
têm autor.
Pode ser esta a razão por que, ao selecionar o seu material,
prefira as letras onde mais claramente assomam as fontes populares,
como em Ataulfo Alves, várias vezes "citado": "pisei meu próprio
calo" ("Vassalo do samba"); "duro com duro não dá bom muro"
("Duro com duro"); "Deixa estar, jacaré, que o verão vai chegar,
quero ver se a lagoa secar" ("Quantos projetos") etc.
Mas também pode ser que ao homenagear, com a sistemática
assimilação de tantos dentre eles, os nossos compositores populares,
porta-vozes do humor, do sentimento e da filosofia das ruas, em
livro onde a figura central é uma mulher do povo − à qual, além do
mais, atribui-se a emissão do discurso, problema que há dois meses
absorve este diário −, queira a romancista, por tabela, marcar sua
repulsa ao exasperado intelectualismo reinante em setores
específicos da sociedade, isolacionistas a ponto de engendrarem,
mediante não sei que mecanismo, códigos privativos, vedados
totalmente aos intrusos.
O gênero de discurso consagrado por Maria de França,
desprestigia do e sem antecedentes literários, o discurso radiofônico
102
na mais vulgar de suas expressões, reafirma, acredito, a aversão da
autora ao livresco e às mensagens impenetráveis.
24 de janeiro
25 de janeiro
103
transversais, vêm ao nosso encontro breves retalhos de músicas: o
livro ressoa.
Não surpreende que também ouçamos os versos consagrados
pelos balconistas e pelas descoradas jovens dos subúrbios. O fato
apenas confirma certas intenções já apontadas no projeto romanesco
sob estudo. Há uma retórica infusa, vigente em amplos setores
populares, na qual a máxima virtude estilística são os clichês
sentimentais e que por isto desperdiça um vocabulário impreciso,
limitado, colhido há cem anos nos autores românticos e desde então
manipulado com absoluta inocência. Lastimável e ingênua,
representa entretanto uma insatisfação diante da linguagem trivial e
o anseio de engrandecer certos atos com um estilo ornado. Sabemos
que o seu uso é obrigatório nas mensagens festivas (cartões de
aniversário, discursos de casamento etc.) e principalmente na
correspondência amorosa. O fenômeno, embora duradouro (tem-se
a impressão de que continuará, com a mesma intensidade, quando
todo o folclore estiver morto) e apesar da importância numérica
(com prestígio menor e em caráter esporádico, atinge setores com
nível mediano de instrução), tem sido desdenhado pelos homens de
saber. Que ficcionista brasileiro, além de Dalton Trevisan, cuja
atitude em face dos próprios personagens é geralmente cáustica, o
que o distancia deles e da linguagem que usam, acolhe em seus
textos esse veio lingüístico? Isto realça a manobra de Julia M.
Enone, que − natural ou corajosamente? −, mediante a deliberada
seleção de letristas afinados com a retórica pobre do povo, une-se a
eles e, através deles, a um certo modo coletivo de sentir e expressar.
Acolher apenas os compositores que, refletindo o humor, a poesia e
o saber da multidão, representassem um modo criador de dizer,
expressaria ainda um preconceito de natureza intelectual.
Ao mesmo tempo, é indiscutível que muitas citações, banais
no contexto original, transplasntadas para o romance, tecido mais
complexo e conotativo, sofrem uma espécie de transmutação,
afetadas por tudo que as rodeia, tornando-se quase irreconhecíveis.
104
28 de janeiro
30 de janeiro
105
se não bastara ser formoso, é ainda profundo, límpido e risonho
(risonhos, igualmente, os campos, inclusive os campos sáfaros),
enquanto o país, como um herói fabuloso, surge impávido, belo,
forte, sem deixar de ser − nesse quadro arbitrário e todo verbal mãe
gentil. Também não faltam inversões de palavras, figura obrigatória
no gênero, como o famoso "da Pátria filhos'', que abre o Hino da
Independência; e pelo menos uma antítese, lógica e historicamente
discutível, onde o futuro vem antes do passado. Por último, evento
só compreensível no exalta do universo de uma retórica onde a
regra de ouro é ignorar o real, descem à terra, quando cintila a
constelação do Cruzeiro, um sonho intenso (qual?) e,
simultaneamente, um raio, um raio vívido − pois essa linguagem
desconfia das coisas e venera os atributos −, um raio de esperança e
de amor, um raio.
Poucas decisões, acredito, seriam tão desastrosas como a se
substituir a letra deste nosso hino por outra mais densa ou mais
sóbria. Com a substituição, que muitos homens cultos justificam,
desapareceria o único ponto onde acaso coincidem, no Brasil, o
povo e o mundo oficial.
31 de janeiro
1º de fevereiro
107
2 de fevereiro
4 de fevereiro
5 de fevereiro
7 de fevereiro
111
8 de fevereiro
Sim.
Como nomear o que nos foge, o que se nega, o que se oculta
− e como vislumbrar, sem nomear,
o que se oculta, nega, foge?
Nomeamos.
Isto é romper sem cessar os ossos olhos contra pontas de aço.
Mas insistimos:
experimentamos a nomeação, inventamos linguagens.
Ofício? Encargo? Desafio?
Difícil, bem sabemos, nomear e ver
− expressões de lucidez.
112
Sabemos não ver porque vemos. Estais certos de ver tudo e tudo
credes nomear? Isto é ofício de loucos.
19 de fevereiro
113
desconfiança e mesmo hostilidade, tensas e surdas, que encontro
nessa casa? Pareciam desejar que eu me fosse quanto antes,
fingiram ignorar minha insinuação de falar à tutelada e continuaram
inabaláveis em relação ao livro.
"Mesmo, o senhor sabe, a decisão não depende só de nós, há
outros interessados. E por que essa insistência?"
Comi num restaurante ordinário − não encontrei outro −, as
portas para a rua, em frente a um mercado primitivo, legumes e
frutas amontoados no solo. Crianças descalças olhavam-me
encostadas aos portais, com pedaços de papel nas mãos, à espera de
que eu terminasse a refeição e distribuísse as sobras da comida .
20 de fevereiro
114
Inglaterra os seus lais30 e dedica-os a. Henrique II, Plantageneta, rei
de uma corte francesa na etiqueta e na língua, como a sua mulher,
Alienor de Aquitânia. Atém-se as composições de Marie de France
ao enredo, pouco informando sobre as personagens e ainda menos
sobre o chão onde se movem: "Vivia outrora na Bretanha um
homem rico e idoso". "Há muitos anos, viviam na Bretanha dois
cavaleiros cujas terras confinavam." "Morava na Bretanha um
barão." Queria-se, antes de tudo, a história; mesmo os protagonistas
assumiam interesse na medida em que participavam de eventos
espantosos ou dignos de pena. Emergem a intervalos, dessa
Bretanha vaga e cuja geografia parece toda contida no seu nome,
uma vereda, um aposento ou bosque onde os heróis se encontram,
mas a ação − direta e sumária − dispensa por menores descritivos.
O exemplo de Marie de France não é único e representa uma
tradição que só muito mais tarde será modificada. Vai o narrador
estender em torno das figuras um cenário mais preciso, e o simples
nome Bretanha já não basta. As descrições do espaço − verdadeiras
árias numa certa época e minuciosos catálogos, por exemplo, com
Zola − alcançam o romance moderno e assumem por vezes a
hegemonia, como na segunda parte ("O tempo passa") desse
delicado e elegíaco Rumo ao farol, onde o espaço não constitui
simplesmente o fundo mais ou menos espesso contra o qual se
projetam as personagens: animada pela mão de Virginia Woolf, a
velha casa litorânea da Escócia onde antes vimos transitaremos
Ramsay, pequena criadagem e convidados, aparece-nos vazia,
fechada e em silêncio, apenas visitada pelos ecos
30. Francês arcaico: lai; celta: loid, "canção". Havia, no lais, a letra e a melodia,
executada por uma espécie de harpa ou viola. Cultivaram-se, na Idade Média, dois tipos
de lais: os extensos (dentre os quais os de Marie de France) e os arturianos, inseridos
nas novelas de cavalaria do ciclo bretão. (Massaud Moisés, Dicionário de termos
literários e ocultistas. São Paulo, Cultrix, 1974.)
115
e reverberações do mundo exterior, à espera de que tornem os
antigos habitantes (alguns dos quais já estão mortos). Curiosamente,
não parece o leitor do nosso tempo seguir o romancista nas suas
preocupações com o espaço. Quase sempre, mostra-se pouco
informado − quando não pouco sensível − em face da atenção
concedida pelo romance moderno ao problema; e quando alude ao
espaço no livro que lê, como no século XII um cortesão de
Henrique e Alienor, limita-se a dizer que a história decorre na
Bretanha.
Sim, talvez a narrativa, na sua expressão arquetípica, não exija
do espaço mais que um nome − quando muito, um nome
encantatório. Iria então o narrador, século após século, cumprir esta
lei? "A dança reverenciava os deuses; hoje exalta o corpo adestrado
e vibrátil do próprio bailarino", sentencia Marquerol Quarez.31 Julia
Marquezim Enone, portadora da inquietude e do espírito de
investigação vitais, hoje mais do que ontem, à atitude criadora, cria
um espaço nada trivial e que amplia a significação do seu livro.
21 de fevereiro
31. Introdução às artes do gesto. Trad. de Jorge Prata Coimbra, Edições do Rei, 1970,
p. 12. Quarez, coreógrafo e leitor constante do Canzoniere, faz nessa mesma obra um
confronto muito claro entre os gestos ordinários e os movimentos da dança: "Vai entre
eles a distância que a muito surpreende entre a linguagem útil e o poema. Poema e
dança operam-se num grau de elevação cuja intensidade o cotidiano repele. Mas essa
altitude permanece na comunidade turva dos homens, como uma memória. Recordemos
a presença estelar de Laura na vida de Petrarca".
116
inclusive a carteira de beneficiária do INPS, percorre quatro
hospitais, uma farmácia e o serviço de assistência social da
prefeitura, não conseguindo socorros médicos, e por isso morreu,
juntamente com a criança.
Quanto a Expedito Esteves, possuía a documentação exigida,
mas as inúmeras tentativas de internar a esposa, Rita Correia de
Araújo Esteves, trinta e três anos, grávida de sete meses, foram
inúteis. A Maternidade de Juiz de Fora recusou-se a atendê-la,
alegando ser muito cedo para o internamento. Rita Correia de
Araújo Esteves e o filho morreram sem que ninguém os assistisse.
(Jornal do Brasil, 22 e 31/1/1975.)
24 de fevereiro
118
Esse espaço híbrido, onde um espaço firme um espaço móvel
associam-se, resulta mais sugestivo e intrigante que a opção em
favor de uma ou de outra alternativa. Apesar disto, como evitar a
necessidade de indagar o que leva a romancista a integrar, no
mesmo campo, concepções antagônicas? Motiva-a a lei da
variação? Quer apenas a escritora, atenta ao conselho de Horácio,
mesclar "o verdadeiro e o fictício"? Procura confrontar, com as suas
obscuras implicações ocultistas, o líquido e o sólido?
Não sei responder.
26 de fevereiro
120
"Não sou doido, para ver todo aquele calhamaço. Mas vou
mandar ler, de ponta a ponta. Posso queimar o livro. se ela não diz a
verdade. A lei está do meu lado. A doidinha, a tal filha-da puta, não
tem direito a nada ."
Curvou-se sobre a mesa (sempre os gestos não explicáveis dos
braços, com algo de inconcluso), e eu soube que ele ia ofender-rne.
Quase podia prever frase por frase a ofensa.
"Com três meses, dei-lhe um chute. 'Suma-se!' Entendeu?
Tem isso no livro? Duvido. Sempre mentiu demais. Eu é que não
suportava e dizia a ela: 'Vá trepar com o diabo'. Entendeu? Eu ainda
não tinha 25 anos, sou macho toda a vida, a sacana que se queixe de
ir comigo ainda não nasceu, mas ela queria passar a vida na cama."
Os olhos azuis procuram ler no meu rosto; eu me exponho ao
seu exame. Que coisa é um corpo e que coisa a história da sua
passagem no mundo? Herda o corpo os extravios e as procuras?
Que restava, no corpo de Julia − não um belo corpo, talvez, mas
suave e audível, sim, como se todo ele respirasse, com os seios
chatos, a cintura espessa e os joelhos um pouco salientes −, que
restava no seu corpo do embate longínquo com esse estranho a
quem amou e que a feriu ? A lembrança dele, falseada, perdurava:
os espelhos da memória. Há os espelhos do corpo?
"Depois, ela aparecia e queria voltar. Eu não tinha·forças pra
dizer não. Era muito bonita nesse tempo. Viu algum retrato dela
ainda menina ?"
"Vi. Há um no túmulo."
121
ardor − ela dissera-me − não compreendia, era ain da imaturo, o que
são Bruno de Asti denomina "a ilusão diabólica do êxtase"− O
esposo assediava-a com orgulho e desespero, tentava acordar a sua
carne ínscia: contundia o jovem corpo, do qual se sentia tão distante
como agora. Com intervalos irregulares, houvera quatro separações
entre eles; numa das vezes, não todas as vezes, ela tornara por sua
própria vontade. Um dia, afinal, a mulher em formação entreviu o
prazer, reflexo do que o macho prometia. Mas o que vislumbrara −
decidiu − não era dele que receberia em toda a plenitude quando
chegasse a hora. Urgia preparar-se desde logo: abandonou-o para
sempre. Para sempre? Não. Houve esse encontro, inexplicável, de
que ele agora me fala.
"Se não rabiscou o tal livro só pra torcer os fatos, deve ter
confessado que seis janeiros depois do casamento encontrei com ela
na rua, e já sabe. (Contrações no queixo. Hesita? Nódoas de fumo
nos dentes.) Deixei lá dentro um filho. Pra seu governo: fazia mais
de quatro anos que a gente não se via − entendeu? −, e eu morava
com outra. É! Posso lhe mostrar a casa onde estivemos. No Pina ."
Pouco lhe interessa o livro, apenas um pretexto, fácil, para
falar de si e ofender-me, mas eu sei muito mais do que ele pode
supor, e o que sei desvenda-me o reverso ignóbil de cada palavra
sua. Os meninos outra vez junto da porta, sal e mica nos meus olhos
enfermos, a claridade reverberando nas pedras. Julia e ele na praia,
o velho Oton Enone lava as mãos, não é mais do seu caderno o que
ela faça ou não faça, caia na zona, apodreça na, vá ser puta de
assaltantes, dane-se, contanto que ele não veja, não saiba. Mete o
dinheiro na bolsa da filha: comprar passagem e viajar para a Bahia
comuns parentes que moram em Salvador. Falta ainda um desastre,
um peso a receber e conduzir, uma lição a incorporar, um exercício
aviltante (Julia e o homem chamado Heleno, os dois na praia
andando, a pensão ordinária), ela não sabe mentir e conta ao pai o
que houve, ela e esse homem, os passos na areia, a noite no quarto,
o despertar, a bolsa vazia, o pai expulsa-a de casa. Internada pela
122
segunda vez, aborta dois meses depois no Hospital de Alienados e
desde então fica estéril. O corpo é uma história: a do seu próprio
curso.
11 de março
123
ainda a minha amiga, nos seus tenros quadris, as duas mãos do
esposo, e era esta a imagem neles sobreviva? A coincidência entre o
órgão mutilado e o fundo quiromântico do livro desprestigiava essa
hipótese, sobre a qual prevalecia, tão aflitiva quanto absurda, a que
surge como seu reverso: Julia M. Enone, criança, conhece e ama um
aleijado, um manco; anos mais tarde, dando a impressão de
organizar o seu livro como um jogo de alusões à ciência de ler nas
mãos a vida e a morte, na realidade monta-o como um órgão
artificial, refazendo, com tão astuciosa alquimia, a mão que falta ao
incôngruo parceiro da sua adolescência. Uma doação ambígua como
a que antes lhe faz do próprio corpo, e bem mais grave.
Outras suposições surgem e lutam. Mas a verdade, afinal, não
chega a importar muito. Seja qual for (mesmo Julia teria a
resposta?), sobressai de tudo a minha penúria de forças, lastimável,
eu, cujo verão inevitavelmente começa a declinar, um celibatário
nutrido de leituras e supondo haver adquirido, na contemplação e na
meditação, um pó de sabedoria, afligindo-me como se na insciente
juventude e dependendo, para reconquistar a minha paz ou o que
ostente esse nome, das relações entre certa mão − esmagada?,
arrancada a machado?, comida pelos cães? − e o arcabouço de um
texto.
12 de março
124
13 de março
17 de março
125
Assentei, desde o início, tornar o presente comentário
permeável ao sempre ignorado instante da sua elaboração. Mas a
arte de hoje − fenômeno, com a intensidade que vemos, próprio de
nosso tempo − é muitas vezes a demonstração inflexível, fechada,
de princípios teóricos. Assume, com isso, o caráter, a que os
contemporâneos permanecem inexplicavelmente alheios, de obra de
tese, não ideológica, mas formal. E só o cuidado − assimilado talvez
no livro mesmo que estudo − ele evitar o vício programático, isto e
ainda o senso da oportunidade, quase sempre agudo nos tímidos,
tem impedido que eu mencione aqui o ruído intolerável de
máquinas − serras mecânicas, removedoras de terra, betoneiras −,
fundo habitual e exasperante deste meu trabalho.
Contudo, sem receio deveria fazê-lo. Isto acrescentaria ao
texto, que pode acaso parecer tecido no silêncio, uma espécie de
fundo e um sentido de resistência: no âmago da balbúrdia e da
aspereza, ele tenta constituir-se em melodia.
18 de março
19 de março
20 de março
127
homens, sobre cujo aspecto e feição nada oferece o texto − são
sempre "o batalhão", "um esquadrão", "o piquete", "o bando
armado" −, haverão de entrar na história que se delineia. Súbito,
uma palavra solta retine, que há de estranho no seu timbre?, vibra
estranha e adverte-nos de que esses guerreiros talvez não usem os
trajes e outros aparatos que lhes dávamos:
estão ouvindo, passo firme, todos sem mover-se e assim mesmo bate
no ar a cadência, o brá e brá e brá, atroante feito coronhada em porta,
tão diferente da pisada de paisano, o sol faísca de mosquete em
mosquete, de fivela em fivela [...]
128
21 de março
22 de março
Ontem. O termo, no sentido em que o empreguei, não tem
limites. Tais expressões, abissais, foram criadas, como grande parte
da linguagem, por pessoas levianas, sem o orgulho da eficiência.
Vogam no ar essas palavras nuviosas.
129
23 de março
25 de março
131
Cárceres; essas páginas dão-me agora a impressão de que o autor,
cínico, plagiou a romancista. Compreende-se. As fraudulentas
descrições e dissertações de Carlos Góes (passadas durante quase
meio século, como dinheiro falso, a alunos inermes), transpostas
para um contexto denso, imantam-se de significações e sofrem uma
espécie de desmascaramento, vindo à tona algo do que,
involuntariamente, representam. Examinando, entre divertido e
irado, esses modelos que a minha amiga realmente aceita como tais
− porém em outro sentido −, observo: para realçar os efeitos que
buscava, ela, no vasto repertório do Método de redação, desde já
incluído na minha estante de obras que à falta de melhor chamo
celestiais, ao lado do Moderno curso de oratória , de Admir
Ramos,33 e do Secretário dos amantes, selecionou, com
irrepreensível coerência, os textos onde a solidariedade aparente
com o real é sem falha, flores da sensatez mais obtusa, recusando
aqueles onde ocorre o inevitável, isto é, onde a alienação, o
descompasso, escondido por trás de uma objetividade altamente
suspeita, entre consciência e realidade, vem a revelar-se, como no
"modelo" que se segue e onde as semelhanças com os trechos antes
comentados do romance impõem-se:
"Chamam-se 'animais domésticos' aqueles que o homem
soube amansar e educar, convertendo-os de brutos e selváticos em
fatores de sua riqueza e prosperidade.
"São eles: o cão, o boi, o cavalo, o burro, o camelo, o
dromedário, o gato, o elefante, o carneiro, o cabrito, as aves
domésticas, o porco etc.
“O cão foi o primeiro a ser domesticado. Guardava a caverna
do homem primitivo contra o assalto do lobo, do tigre e do leão.”
132
Há um grau, na percepção das coisas, onde não se alcança
mais a diferença entre um cachorro e um dragão. Voltemos ao
mundo, menos extravagante, da louca Maria de França.
27 de março
133
meu recurso um artifício e mesmo deturpação. Ele confere nitidez
ao que, no livro; se apresenta como um solo instrumental, cortado
pelo alarido de timbales. Mas não é também assim que procede o
romancista quando deslinda um caráter? Não seleciona
artificialmente, na infinitude dos possíveis (ou do que observou), os
contados elementos que, mesmo na contradição, dão coerência e
sentido às personagens?
134
grita ó... ó... ó... olhem aqui, fazendo uma roda, completa, na direção
dos sinos que batem meio-dia, dos prédios altos e baixos, das
bandeiras nos mastros, das nuvens, dos armazéns, do cais, eu fico
meio tonta e mudo a vista, ele aponta os arrecifes:
135
cabeça e corre para dentro, ai, me acudam, não vá um desses
soldados mijar em cima de mim. Compreendemos o nosso dever.
Volte na outra semana. Quinhentos mosquetes, quinhentas golas,
quinhentos tambores, quinhentas trombetas, quinhentos talabartes
desembarcam em alguma parte. [p. 188]
8 de abril
136
mercadorias destruídas − fumo, algodão, pau-brasil e açúcar −
aproveitem ao invasor.
9 de abril
10 de abril
137
Todo o primeiro trecho, por exemplo, desenvolve a oposição
contida na frase que encabeça o período −
"Espada firme na mão e festa?" −,
sendo uma das partes, a guerra, expressa simbolicamente ("espada
firme na mão") e a outra, a festa, nomeada sem disfarces. Aponto,
de passagern, a coerência absoluta, aí, da solução formal: o
contraste entre o emblema e a designação pura reflete uma verdade
psicológica. Encarregado, pela corte de Madri, de estruturar a defesa
da capitania, Matias de Albuquerque, à medida que prepara
fortificações e combatentes, organiza festejos ao ar livre, com o
objetivo de apagar "agouros e temores".35 Era então a guerra
(oculta, na frase, sob uma figura emblemática) que exigia um
disfarce, e não a festa. Daí a invocação: "alegria, gente!, é preciso
não ver e não pensar".
Esse jogo só em parte se projeta no parágrafo, todo ele
mesclado de designações frontais e de imagens enigmáticas, sem
que as primeiras sempre se associem à festa e os enigmas à guerra.
Há, como se vê, as "sentinelas", as "bocas de aço", os "recrutas nas
armas" e a "corneta de bataIha", as "lanças", as "vozes de
comando", imagens inequívocas de guerra. Já as "torres marinhas",
as "torres viajantes" − invenções, acredito, sugeridas por Vieira 36 −,
solicitam outro nível de compreensão. Nesse caso, o sibilino da
metáfora é equilibrado pelo número, de modo algum casual. De
fato, compunha-se a esquadra expedicionária de sessenta e três
unidades, sendo "trinta e cinco grandes naus, quinze iates,
35. Rocha Pombo, História do Brasil. São Paulo, W. M. Jackson, Inc. , 1935. vol. 1, p.
310.
36. "Assombrou esses mares aquela multidão confusa de torres navais, composta de
oitenta e sete vasos , muitos de extraordinária grandeza [...]"·(Antônio Vieira, Sermões,
IX, 6ª. ed. Porto, 1909, p. 359.)
138
treze chalupas e duas embarcações inimigas capturadas, com uma
guarnição de três mil, setecentos e oitenta marinheiros, três mil e
quinhentos soldados e um armamento de mil, cento e setenta
canhões de todos os calibres'', conforme nos afiança Johannes de
Laet,37 que se apoiou em jornais de bordo e nos depoimentos de
chefes militares. A pequena diferença numérica não deve
surpreender-nos e justifica-se pela existência de valores que
transcedem a verdade trivial, elevando-a, fenômeno este
desenvolvido com finura pelo escritor Thomas Mann, ao menos em
dois pontos ("Sete ou cinco" e "Em número de setenta") ele José, o
provedor. Narradores e historiadores servem a diferentes leis.
Cheio de marujos, o navio, associado às imagens evidentes de
guerra, ancora "na praça, no chão seco" − espaço anômalo − e com
esta manobra ingressa no irreal. Isto se escapar ao leitor que a
romancista aí não se reporta à guerra, e sim à festa: alude à Nau
Catarineta, folguedo popular do Nordeste que o inglês Henry
Koster, parece, é o primeiro a descrever (Traveis in Brazil, 1816),
mas já se pode ver, em segundo plano, num esboço de Franz Post.
Baseado no naufrágio do navio que, em 1565, se dirigia a Lisboa
vindo do Recife,38 representa, com dançarinos e cantores, a
tripulação em luta contra o demônio, a fome
37. Historie ofte Jaerlijck Verhael van de Verrichtingen der Geoctroyeerde West
Indische Compagnie. Zedert haer Begin, tot het eynde van’t jaer sesthien hondert ses-
en-dertich. Leyden, 1644, p. 174. Além da conquista de Pernambuco, relata de Laet a
pirataria neerlardesa ao largo das Índias Ocidentais das lutas com galeões espanhóis.
Vemos ainda a Holanda no Hudson e na Costa do Ouro. Mas ninguém imagine que as
narrativas de tantas aventuras marítimas tornem amena a reportagem desse antuerpiano,
minuncioso a ponto de assinalar a procedêcia e as datas de partida dos navios.
38. É a tese de Pereira da Costa , no Folk-lore pemambucano, 1ª. edição automa. Recife,
Arquivo Público Estadual, 1974, pp. 254 e ss.
139
e o extravio, chegando por fim à terra firme. Não me consta que
alguma fonte mencione expressamente a Nau Catarineta entre os
festejos com os quais Matias de Albuquerque "encanta e engana"
Olinda e Recife. Haveria, entretanto, prefiguração mais acessível da
ameaça holandesa, à qual sobrevive a nau em perigo, comandada
pelo ínclito e leal capitão?
Imagem também enigmática da festa é a do "boi com fitas
verdes nos chifres", decerto um particular do cavalo-marinho, auto
pastoril do Nordeste, que o intolerante cronista de costumes padre
Lopes Gama, no século passado, chama "agregado de disparates".
As muitas figuras do auto − gente, animais e seres fantásticos −
cantam, bebem, dançam e correm, oito horas seguidas. Afinal morre
o boi , "sem quê nem para quê", diz Lopes Gama, e ressuscita por
via de um clister. Dispenso-me de indicar a equivalência, nesse
breve passo do romance, entre os instrumentos musicais e as vozes
de comando ou entre os fogos de artifício e as lanças, elementos
com a identidade à flor do nome e obviamente associados à
oposição festa /guerra.
Falta, em minha tentativa de desenredo, comentar o recurso
mediante o qual Julia M. Enone, no seu texto, revela o país da
armada agressora. Quase nada restou, no Brasil, como herança da
Holanda. Mesmo os nossos topônimos ignoram-na; nome algum de
cidade lembra a origem daqueles aventureiros. Quanto à língua,
parece ter guardado uma única palavra: brote, uma das cargas dos
navios − como chumbo e as armas − e que era "o biscoito militar,
pago nas viagens marítimas e distribuído aos soldados nas
diligências".39 Também já foi grafado broth, e supõe um estudioso
que o termo provém do holandês brood (inglês bread), grafado
broot no século XVII. Havendo o brote, acredito, passado por
transformações, como a sua grafia, incorporou- se
39.Tarcísio L. Pereira , Clavinas e rendas. São Paulo, Melhoramentos, 1956, p. 73.
Devo ao mesmo a autor as demais informações deste parágrafo.
140
− duro e redondo − à tradição alimentar do Nordeste. Na passagem
transcrita, equivale . − segundo a maneira discreta e por assim dizer
maliciosa da escritora − à bandeira da Holanda
13 de. abril
141
Julia, tendo alta, ajuda sem remuneração na secretaria do
hospital, até que o pai vai buscá-la. A certa altura, coisa insólita,
interrompe a marcha do ônibus uma multidão de lavradores. Só aí
ela soube que era o 1º de Maio e que seiscentos pés-no-chão da
Sociedade dos Plantadores, núcleo das Ligas Camponesas, escuros,
descarnados, rotos, sujos (como esses detritos que aparecem na
cabeça da cheia, turbando o Capibaribe), tinham chegado ao Recife
para o desfile do Dia do Trabalho. O ano: 1956.
142
15 de abril
17 de abril
19 de abril
144
de pacificação que todos reconhecem admirável. Tudo dependerá da
pensão a ser-lhes concedida e que, pelos cálculos feitos, baseados
nos salários de ambos, seria inferior às suas necessidades atuais, não
correspondendo, além disto, à importância e aos perigos da missão
que realizaram na selva ." (Jornal da Tarde, São Paulo, 18/4/1975.)
23 de abril
145
jesuítas), que o governador (o rei, no texto) vê amedrontado no ar,
acima do palácio. A simultaneidade de episódios − desembarque de
tropas, conquista dos conventos, morte de fugitivos − ocorre em
outros pontos do romance e já foi discutida.
A descrição das naus e armazéns em fogo toma como
referência, manifestamente, a decalcada no Método de redação e
opõe, ao ilusório equilíbrio do modelo, uma desordem enganosa e
altamente expressiva, peculiaridade − não exclusiva, decerto − da
sua poética e na qual a inquietude sintática reflete uma imersão no
real, na sua turbulência, uma união, uma harmonia, acordo que as
fases agudas de loucura rompem, a sintaxe hirta sendo a expressão
desse rompimento.
24 de abril
26 de abril
147
Judas, o obscuro, de Fome , de Manhattan transfer, um livro de
fracassos. A heroína, membro de uma classe oprimida, bate-se
durante anos contra a burocracia que a desnorteia e cuja língua tenta
aprender, sempre em vão. Que viria a fazer, em obra assim armada,
uma série de quadros "positivos", evocando a vitória do país e a
expulsão dos invasores? Seriam, esses quadros, uma expressão
daquela retórica sem consistência e como solta no ar, tão visada no
seu livro? Frei Manuel Calado escreve em prosa e verso O valeroso
Lucideno para cantar
Olinda libertada
Do tirano furor dos holandeses,
148
28 de abril
6 de maio
40. Pode-se mesmo acrescentar que essa mensagem cifrada tem um alvo preciso o
sistema político vigente. A militância da futura escritora. nos tumultos que agitaram, em
sua juventude, a zona canavieira do Nordeste reforçaria tal interpretação. Mas não será
isto limitar o alcance elo motivo? A resistência dos espoliados é um tema vigoroso.
Representar a espoliação fere mais fundo do que representar a resistência.
149
existem − a sua morte, em todo caso, nunca é a morte do mal −, e
que amor tão inflamado será imune à senilidade e ao fim? Importa,
mesmo assim, que cintilem, na vida e nas histórias, esses momentos
prodigiosos nos quais o ser amado cede à veemência do que ama ou
o antagonista desaba. Que leitor de romance, vivido e sábio, não se
surpreendeu desejando que Amelia Sedley, afinal, aceite, em Vanity
fair, o paciente amor de William Dobbin? Negarei ter desejado de
todo o coração que David Copperfield desmascarasse o tratante
Uriah Heep? Negarei minha alegria quando o vi por terra? Sim,
exaltam-nos esses momentos dos romances como nos exaltam, na
vida, momentos semelhantes, por mais crua que seja nossa visão das
coisas. Transitórios, eles correspondem a um encontro feliz de
circunstâncias e vibram com harmonia: há um acordo entre o desejo
do homem e o variável universo, perfuramos a névoa que nos cobre,
conhecemos algo a que damos muitos nomes e que não tem
nenhum. Exaltação? Beatitude? Êxtase? Estamos do outro lado, sem
memória, e se alguma lembrança conservamos é a do desejo agora
alcançado. Nada sabemos, mais, da senectude, do efêmero, da
morte. Muitas vezes tenta o escritor representar essas felizes
injunções não nomeáveis. Para quê? Para acrescentar, por artes do
imaginário, tais ocorrências; para contrapor, ao que tão depressa nos
foge, uma espécie de eternidade.
Mas não é leal à vida e, portanto, aos leitores, o narrador que
insiste na representação dos momentos harmoniosos, dando curso
ordinário e certo ar invulnerável ao que sabem os raro e frágil.
Inadmissível que recuse, na sua obra, os aspectos infaustos, mesmo
porque esta é a substância da vida, vindo daí muito da força e da
transcendência que, de Édipo a K., dignifica tantas narrativas,
solidárias a tal ponto com a incerteza da nossa condição que todo
enxerto feliz as desintegraria. Qual o significado ele um Ivan Ilitch
salvo da morte? Nada a fazer com um Lord
150
Jim triunfante e sobrevivo. Querem tais obras representar, sob uma
luz intensa, certos aspectos pungentes da condição humana − e essas
mortes, aí, são geradoras dos textos que as relatam.
9 de maio
11 de maio
12 de maio
152
Maria de França e muitas vezes proclama o seu temor, tanto nas
fases agudas de desequilíbrio como nas de aparente sanidade.
Mescla-se ao temor o incompreensível. Como podem os pássaros
ficar prisioneiros em gaiolas menores do que eles? Por que, depois
de mortos, diminuem? Eles: o universo fugidio, volátil, ilusório e
terrível.
Sim, tudo parece claro e ajustado ao tema axial da obra: o
homem desarmado perante um meio hostil. Mas subsiste, na lógica
do quadro, a respiração misteriosa. Espreita-me, aí, algo que não
capto.
15 de maio
153
contra eles. O episódio só ocorre no último terço do livro, após o
rompimento do noivado pelo centroavante, mas vem sendo
preparado desde o segundo capítulo. Não captamos, então, o sentido
do que diz a heroína quando fala de guardar − nos ouvidos, no peito,
nos olhos, na mão −atributos de uma ou de outra personagem. Ou
quando concentra num desses traços, desmedidamente, seu exame:
16 de maio
154
A manhã, confortadora para os insones, a·gride-a , pior ainda
que a travessia noturna, com
17 de maio
155
abriga a paca quando perseguida pelos cães e a saída de uma galeria
sob a terra; ou súpeto, grafia antiga de súbito, remanescente na
fórmula de supetão.41
Quanto ao Báçira, último nome dado ao espantalho e com isto
ressaltado, posto em evidência, nenhum dicionário registra-o.
Tinham os antigos cartógrafos uma visão mítica do espaço: os
limites familiares desfaziam-se no sonho. Não eram, seus mapas,
apenas a projeção de oceanos e terras conhecidas; acrescentavam o
mundo, não se restringiam ao que o viajante podia encontrar; além
de guiar, extraviavam; ao passo que informavam, eram também
registro de medos. Tenho ante mim o mapa do turco Piri Reis, que
não era um amador ou viajante ocasional, mas conhecedor do mar e
da ciência da navegação marítima, um autêntico almirante. O mapa,
de 1513, que é tributário da cartografia maometana do seu tempo e
utiliza modelos carolíngios, assimila o relato de um marujo
espanhol, preso na Turquia depois de ter servido sob Cristóvão
Colombo. Pululam, nessa colorida pele de gazela, com as retas que
se cruzam, imagens fantásticas. Dança um mono com não sei que
monstro lascivo, eis o homem a que se refere Otelo perante os
senadores e cuja cabeça fica abaixo das espáduas, um casal, em
pleno mar, navega sobre um peixe e dele se alimenta. Tudo são
indícios do ignoto, evidente na ausência de fim ou de limite para
esta carta da Terra. Além, o quê, além? Tal interrogação, no mapa
brasileiro de Marcgrave, é naturalmente menos abissal e tem um
nome: o Báçira, boje serra da Pacira, antes monte Trovão ou serra
do Abalo. Não muito distante, oitenta ou noventa quilômetros, do
porto do Recife, o Báçira, entretanto, mais assombrava e continha o
passo dos aventureiros que a largura toda do oceano:
41.O epíteto, realmente, parece um tanto deslocado na seqüência. Seria uma pista falsa,
para estorvar a decifração? Não sei se incorro numa compreensão tendenciosa quando
associo o termo à idéia de susto, de vinda inesperada , de gesto que afugenta, brusco
156
"isolado, posto no meio da solidão, era a fronteira, o limite absoluto
de tudo quanto se sabia".42 Encerrar, com uma palavra tão
impregnada de conotações, a construção e a nomeação do
espantalho por Maria de França não parece sugerir que, nessa
criatura sua, a idéia de amplitude espiritual e de mistério sobreleva-
se à de simples proteção?
22 de maio
42. Luis da Câmara Cascudo, Geografia do Brasil holandês. São Paulo, Ed. José
Olympio, 1956, pp. 195-6. Reordeno, acima, expressões daquele estudioso, único onde
encontrei -e por-acaso dados sobre o Báçira, mais um vestígio da presença holandesa no
romance de J. M. E. Aliás, como ainda veremos, o mapa de Marcgrave ajuda-nos a
compreender certas obscuridacles do discurso do Lá.
157
onde a linguagem, chegando a romper, incidentalmente, com os
significados, alça-se a um diapasão de rara intensidade? Discurso,
oração pública, e não diálogo: há, entre o Súpeto e Maria de França,
uma identificação obscura, como se os dois corpos tivessem a
mesma boca, como se houvessem partilhado o leito, habitado o
mesmo sonho.
25 de maio
158
27 de maio
30 de maio
159
cessa no livro qualquer palavra sobre os pássaros e o medo que
provocam, isto em um longo processo − metonímico? − onde a
causa é referida pelo seu efeito; ou, melhor, pela inexistência de
alusões a ele. Ao mesmo tempo, o silêncio estabelecido em torno de
elemento tão minuciosamente elaborado como o espantalho, que
parecia fadado a governar o último quarto da obra, introduz mais
uma vez e com maior amplitude um tema obsessivo em Julia
Marquezim Enone, o do esquecimento.
Fala o espantalho, e seu discurso, no qual repercutem as
preocupações da romancista, é truncado por lapsos. Mais de uma
vez, esquecido do que disse, repete-se ou interroga-se; vacila em
meio à frase, fugindo-lhe o que ia dizer.
Xô, então, pois aí vêm eles, e as praias vão subindo, quando, os pés
no chã-o... no chã-o... No chã-o? pés?
Pássaros ou
meninos hão
160
de ver- me, e não
8 de junho
161
É noite e é dia, é aqui e é lá, sou e não sou eu, a mutação, a
passagem, o trans , vou indo e já cheguei, atravesso a janela e não
saio do lugar, eu no meio da árvore, os braços abertos (dois ou
quatro?), as mãos abertas (quatro ou duas?), o coração aberto, eu
disse o quê?, vamos, gente, guardo Maria de França, quero Maria de
França, acendo Maria de França, salvo Maria de França, diminuo o
vulto dos pássaros: o coração assustado de Maria bate confiante
dentro da minha sombra lúcida.
162
simplesmente, do contraste entre vida e esterilidade, com a
hegemonia da vida. Ainda em Marcgrave, o sinal árvore indica um
descampado, e quando o espantalho se diz "no meio da árvore"
devemos entender "no meio do campo".43
Mas tem os de admitir que estas decifrações revelam pouco e
talvez não desvendem o essencial. No conjunto, o discurso
permanece hermético. Mesmo a confissão de amor , intensa e
orgulhosa − "guardo Maria de França, quero Maria de França" −,
tem um lado ambíguo. Por que a sombra que envolve o seu tênue
coração é "lúcida"? De quem fala o Escudo Luminoso quando se
refere a "elas", que nos sustêm "sobre o xadrez (ou salinas) da
morte, sem fundo e sem beiras"? Criva do de adivinhas , desafia-me
o discurso do espantalho, longo enigma plantado no romance, pedra
no caminho, baralho misterioso.
10 de junho
163
8 de julho
10 de julho
164
Dias e dias, eu ofertava peças de brocado e especiarias
(ressonância, ainda, do alegre Natal em Serra Negra?) para que
trouxessem meus papéis de identificação, ninguém me entendia, e
eu acreditava que sobreviveria, venceria a peste, e as portas da
cidade se abririam, liberando-me, se recordasse o meu nome. Não
conseguia, embora − contradições da febre − soubesse quem era, o
discurso do espantalho, atroador e autônomo, reboava na escuridão
e houve, vejam bem, houve uma hora em que, perdendo toda a
noção da minha vida anterior, eu me reconheci no meio da cidade
condenada, os braços abertos, bicos de pássaros (ou do discurso?)
vazando-me os olhos, vários tumores na pele, e esses tumores eram
ainda o discurso, doloroso.... e, conquanto encravado no meu corpo,
intocável, fora de qualquer compreensão. Certo momento, eu soube:
a decifração estava ali, próxima, ao alcance da mão, aqui. Triste e
aterrado, exclamei: "Vou saber?!". Mas a revelação fugiu, e isto me
rejubilou.
11 de julho
165
12 de julho
14 de julho
166
normal. Como se eu suspeitasse de mim, como se receasse que, em
mim, esteja para ocorrer o que não sei. Com isto, invado, mais do
que desejava, o meu livro e o da minha amiga. Recuar, se possível.
15 de julho
16 de julho
167
mundo. Limitada pela sua condição, é insensível às pratarias e
louças exibidas nas lojas, aos automóveis, às moradias luxuosas, aos
tecidos bons, aos restaurantes e a tudo que expresse fartura: só
compreende o pouco. Este seu traço talvez negue um fenômeno
geral, a hipnose do supérfluo que ofusca hoje em dia as classes
pobres. Mais importante, todavia, que o simples registro de uma
distorção comprovada e, até onde posso julgar, típica de estágios
como o nosso, parecem-me as ressonâncias do achado romanesco.
Para Maria de França, limitada de maneira total por uma vida parca,
riqueza e luxo, inacessíveis em todos os sentidos, escapam inclusive
à sua percepção.
17 de julho
44. Citado por Ernest Grassi, Arte e mito. Trad. de Manuela Pinto dos Santos Lisboa,
Livros do Brasil, s. d., p. 41.
168
18 de julho
19 de julho
170
20 de julho
171
21 de iulho
172
disso, sabem todos − e as últimas notícias só fazem confirmar a
ameaça que esse rio, decorativo e pacífico, constitui para o Recife.
Nas cheias temporárias e cujas proporções avultaram no último
decênio, de modo que as zonas seguras diminuem e crescem os
danos, prevendo-se inclusive uma inundação que reduzirá a capital
a lama (e não se veja, nisso, puro acaso ou uma fatalidade natural),
traz o Capibaribe, desconjuntados, os mundos que percorre.
Plantação, gado pesado e leve, de couro e de pena, habitação − o
madeirame e o acervo doméstico −, gente, o que não vem nesse
dilúvio?, e pode mesmo engrossar as águas da cheia, anônimo, com
suas baronesas e peixes, um açude solto.
24 de julho
173
rua, doadas, no sentido em que o lixo, na concepção de Maria de
França, é doado às pessoas em geral. Os possuidores renunciam ao
que, em princípio, perdeu a serventia (daí a gratidão da operária e
doméstica); os bichos terrestres, os móveis, os pedaços de cerca ou
de telhado estão chegando à embocadura contra a vontade dos
donos. A ironia, aqui, não advém do erro, voluntário, de ver-se
doação no gesto distraído de abandonar o que já foi usado; nasce de
uma obliteração, sempre intencional, do discernimento: o que vem
de roldão nas águas podres da enchente é exaltado como sinal de
fartura, e não de ruína .
46. Essas invasões, abrangendo diferentes campos do real e operando-se, por vezes,
entre o real e o imaginário, são em A Rainha dos Cárceres da Grécia, uma constante
das mais expressivas, tema velado e envolvente, atravessando o romance.
174
29 de julho
1º. de agosto
5 de agosto
176
seu esconderijo um repuxo, respiro mal o abstrato e procuro voltar,
sem intervalos muito demorados, a uma atmosfera mais úmida.47
Adiemos então as ponderações sobre o tempo em A Rainha
dos Cárceres. Voltarei, com a tolerância e talvez o alívio do leitor, à
gentama do romance.
6 de agosto
7 de agosto
47. "El calamar opta por su tinta", in Histórias fantásticas. Buenos Aires, Emecé
Editores, 1972.
177
Papagaio, de Dudu, de Rônfilo. Outras figuras, depois, cruzaram
nossas páginas, com maior ou menor relevo, segundo o grau da
minha reação ante elas, mas sempre incidentalmente. Se atento,
haverá o leitor deduzido que no livro de Julia Marquezim Enone,
onde a figura central percorre sem descanso ruas, salas da Justiça,
consultórios, repartições, empregos e ainda o Hospital de Alienados,
habita uma pequena multidão (vinte e sete personagens contribuem
para a formação do Súpeto), nele ocorrendo o inevitável em
romances muito povoados, onde a estrutura das personagens é
urgente e sumária, como aprofundamento − mesmo assim, nem
sempre − de apenas três ou quatro. A dedução é exata, mas o caso
sob estudo apresenta um quadro menos esquemático.
O que dissemos sobre as relações entre o arcabouço do
romance e a quiromancia sugere uma tendência para as alusões,
notadamente as alusões a conjuntos, mais que a pessoas e coisas
isoladas. Onde vai a romancista convocar as suas personagens?
Onde os seus modelos? Habitavam o espírito da minha amiga
muitas das pessoas que odiou ou amou (teria odiado alguém?), que
conheceu ou que, simplesmente, viu um dia: mais de uma vez me
falou de como recordava os traços de desconhecidos com quem há
muitos anos cruzara na rua. Mas a disciplina com que organiza A
Rainha dos Cárceres recusa transformar o livro numa simples
galeria da memória. Vimos, por exemplo, as origens literárias de
Belo Papagaio, moldado em grande parte num obscuro e remoto
aventureiro dos mares; e as do protegido de Alberto Magno,
inquisidor e mártir, o iletrado Rônfilo, elaborado a partir de
intenções bastante complexas.
178
8 de agosto
179
tentando·− inutilmente, sabeis − guardar o som do mar e a sombra
da manhã; pode ser eleito pela sua raridade ou, ao contrário, sua
banalidade exemplar; pode destinar-se a romper uma série,
quebrando a sua harmonia e com isto desorientando-nos.
10 de agosto
181
13 de agosto
182
14 de agosto
15 de agosto
16 de agosto
184
oração e o jejum; a sogra má, o mundo pecador, que cega o homem
com a colcha das vaidades e dos prazeres.
A demanda do Santo Graal abriga este. gênero de
interpretação e, no dizer de um ensaísta, "contém a sua própria
glosa". Mas, apesar dessa rendição − quem sabe até que ponto
verdadeira? −, a narrativa estende os seus laços, e, citando o mesmo
estudioso, que tem sobre a matéria considerações interessantes,49
"no interior de um único sistema de interpretação, já se propõem
vários sentidos". Isto é, mesmo parecendo aceitar a autoridade da
interpretação anagógica, a ponto de incorporá-la, o narrador
anônimo, dentro da nítida simbologia adotada, oferece aberturas por
vezes antagônicas.
17 de agosto
185
Respostas solicitam o observador. Corretas? Não. Não há, nesse
caso; respostas absolutas, e sim respostas possíveis. Nem mesmo o
autor é testemunha incontestável: ele não domina integralmente a
sua criação, na qual subsistem componentes obscuros. Isto não nos
impede de arriscarmos hipóteses de impossível confirmação. O
importante é que elas sejam apreciadas como um testemunho da
atuação da obra no espírito do observador, e não como decifração
que a reduza a uma mensagem cifrada − limitada, portanto −,
contrariando a natureza do objeto artístico, que nunca é um detentor
de significação, e sim um deflagrador de significações.
Isto, ainda que ele, no espírito do criador, se revista de uma
significação precisa.
19 de agosto
186
Os mecanismos oficiais, reconhecendo-os, por motivos
diversos, servidores seus, é que os levariam ao que chama
Talleyrand a ''canonização laíca".
Julia Marquezim Enone derruba-os dos pedestais, priva-os dos
títulos, dos bens e das vestes − se militares, das dragonas e das
armas −, troca ou adultera os seus nomes e atira-os no limbo do
serviço público, mais ou menos como Dante mete inimigos seus no
inferno. Todos, no moral e no físico, são identificáveis pelo leitor
não distraído.50 Mas, excluídas as circunstâncias que os favoreceram
(onde iria o duque de Caxias forjar a sua glória, se não existisse
mais Guerra do Paraguai e, portanto, batalhas de Humaitá ou Lomas
Valentinas?), eis, nos balcões e nos fichários, anônimos, fora do
mundo e ansiosos, como se tivessem consciência do seu
despojamento, esses homens lendários, agora expulsos da lenda e só
um pouco mais altos do que Maria de França.
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50. Isto nos permite avaliar, mais uma vez, o alcance da obra literária, vedada, em
alguns dos seus aspectos, ao leitor de outros meridianos.
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***
51. C. D. Norman, The novel and its problems. Manchester, Typhom, 1971, p.121.
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Raskolnikof! Tentei (precisava delir este ser imaginário e cujo
modo de ser me atordoava, nele haverá traços meus?) seguir os
laços do enramado que o faz existir. Vi como o autor inicia o
romance, pondo Raskolnikof em movimento − "passo tardo,
vacilante" −, um homem de ação, esboçando a seguir o sórdido
lugar onde mora e seu constrangimento quando encontra a senhoria,
fato inexplicável para o futuro assassino: planeja "uma coisa tão
arriscada!". Saber o que pensa o personagem, o que sente, suas
decisões secretas, não obriga o narrador a entender as "palavras
indistintas" que ele remói. Vejo bem, Fiódor Mikháilovitch: teu
empenho, mais que apresentar o personagem, é disseminar uma
sensação de incompatibilidade; e o caminho que escolhes, velho
trapaceiro, é o de insistires no desconforto físico, o calor, a fome, o
ar pesado, o povo comprimindo-se entre andaimes, montes de cal, o
mau cheiro, vestíbulos escuros, e nem sequer dispensas este golpe
baixo, aduzir que o quadro era "horripilante e melancólico". Vi isto
e vi mais, segui os rastros dessa composição rica em pormenores, e,
depois de tudo, reconstituída na medida do possível a operação
clarividente e sólida do mestre, reencontro, perturbador como antes,
com a mesma discutível energia, o assassino de Lizáveta e Alióna
Ivánovna.
26 de agosto
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e tempo, fenômeno previsível nesse romance de permutações, onde
tudo invade tudo, sendo fatal que as leis internas da obra
conduzissem a invasões de ordem cultural. Mais: a dicção de Maria
de França, se em certa medida revela o seu perfil, como estabelece a
tradição, sofre modulações constantes (recordemos a sintaxe do
Método de redação, aplicada nos períodos de internamento). Nota-
se, em decorrência, uma inversão curiosa e tão audaz que me
aventuro a perguntar se a romancista mediria o seu alcance. Maria
de França, narradora e personagem, caracteriza-se, sim, através de
sua fala. Outras vezes, porém, mediante a estrutura mesma do
discurso, feito de alusões pervertidas ao léxico, ao tom e à
fraseologia cultivada no setor onde outras personagens dominam,
caracteriza-as a elas. Alvos constantes desse jogo, demonstramos, a
medicina e o direito.
As figuras nascidas de método tão inadequado − mas
fascinante, no que tem de ousado e sorrateiro − tendem certamente
para a uniformidade e nunca para a singularidade. Ainda aí Julia M.
Enone amplia o ofício, superpondo aos indivíduos, pelo ardil de
uma enunciação alusiva, niveladora e captiosa, a máscara da classe
em que se anulam. Mas quem aceita anular-se? Segregar-se, então,
mediante códigos grupais, vem a sêr o modo de negar a anulação e
de simular uma identidade qualquer. Mordaz, Julia M. Enone,
deslocando para a boca de Maria de França, desfigurados, códigos
tão discutíveis, ao mesmo tempo que revigora um proceder
romanesco, vergasta:
a anulação do indivíduo;
a empáfia do grupo;
a vacuidade do código que disfarça tudo isto.
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Epa, mano velho, venho e vim, sobrosso?, afã, dou brado e bala!,
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seus nomes, integra-se nesse motivo. Fora de cogitação, parece-me,
a hipótese (eis, se acaso a aceitam os, uma escritora cheia de
orgulho) de que os atira numa casa de loucos para sugerir, neles,
uma percepção inidônea do real. A dissociação entre a consciência e
a realidade, aí, manifesta-se − em caráter individual, não como um
fenômeno geral − na linguagem postiça e idealizante dos
românticos, em especial na de José de Alencar. Ou seja: a
romancista, como é próprio da caricatura, expressa, com a
deformação de certos traços e a mescla de emblemas transparentes,
sua atitude em face do modelo. Solidária, sarcástica ou ambígua.
Comum a todos, apenas a segregação, o isolamento. O isolamento,
no caso, sugere e quase impõe aquele gênero de leitura a que Witt
chama secular, opondo-a à leitura oracular.52
52. "Secular: a leitura que supõe ver claro. Oracular: a leitura que vê enigmas nos
textos. Secular: leitura interpretativa. Oracular: leitura mágica. A tradução e o espanto.
A máscara sobre uma face desverdável; a máscara sobre mil faces possíveis." (John
Williams Witt, Positions € suppositíons. Londres, Sagittarius, 1960, p. 13.) O
patronímico do autor soa-nos familiar, lembrando as Pílulas de Witt. Efetivamente, o
Witt citado descende em linh a reta do famoso médico e, por coincidência, viria a
desposar Evelyn Bruce Ross, neta do igualmente célebre dr. Ross, o dlas Pílulas de
Vida. Explicaria isto o seu estilo tão sintético, idêntico, por vezes, ao do nosso Oswald
de Andrade? Cf., p. ex., o "Manifesto antropófago": "Antropofagia. Absorção do
inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade".
Etc.
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Excitavam-na os cavalos galopando em círculo, açulados pelo tipo
que, no centro da arena, estala o chicote no ar.) Assim, coincide
melhor com as linhas gerais do romance outra visão − mais chã − do
isolamento do escritor, não voltada para ele, e sim para a sociedade,
que o recusa. Tal perspectiva, entende-se, não elimina a outra;
superpõe-se a ela.
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Leio, com quase um ano de atraso, em O Estado de S. Paulo,
que uma weimaraner teve onze filhotes e, na matéria que se segue,
caber ao casal Blinstrup o mérito inegável de haver introduzido essa
variedade de cães na América Latina. "Tendo em vista desejarem os
alemães um animal com características da sua própria raça, o
weimaraner tinha que ter os olhos azuis ou âmbar. Para tanto, foram
cuidadosamente estudados e selecionados certos cruzamentos"
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Este repentino atordoamento frente à cambiante natureza da
escrita alucina-me. Sou uma aranha cuspindo a minha teia. Mas,
fonte da teia, fiz-me ambíguo (o "eu" da escrita é uma cápsula
cava), e nada me proíbe de escrever -o que pode ou não ser falso -
que, simultaneamente, teço a teia e me teço a mim. Trançado no
meu próprio discurso, entrei numa espécie de nuvem placentária, da
qual tanto posso emergir criador como criado. Mesmo porque
aquele a quem alcance este murmúrio, o meu, não terá outro laudo,
outro indício, outro testemunho, outra comprovação. Somos
incontestáveis, eu e a minha outra realidade, entranhada em mim,
dissociada de mim, o discurso. Noturnas matilhas de cães matam a
sede no rio e escurecem a água de latidos que empanzinam os
peixes. Posso ou podem (quem sabe ainda?, quem, aqui, está seguro
mais de nada?), por uma dessas químicas a que um longo e inquieto
uso expôs a escrita, salvando-a da estrita servidão utilitária e
abrindo-lhe virtualidades arriscadas, posso ou podem, é só tanger de
leve algum leve instrumento, mudar a identidade deste monólogo
com o qual venho convivendo; ou então firmar a suspeita latente de
que ele vos mostra uma face enganadora; posso ou podem liberá-lo
de todo vínculo real com a minha mão: então, atingida a essência do
monólogo, eis-me atingido igualmente no meu "eu", eis-me atingido
em minha essência e logo me revelo outro, não mais um ente que
escreve, e sim que é escrito. O espectro do autor dando lugar a um
ser imaginário, diversamente constituído, imerso numa versão
singular − e da qual talvez se possa dizer mágica − do espaço e do
tempo.
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chão nevado. No terceiro passo, antes que alguém compreendesse o
que via, Neverov se voltou, fez pontaria e estourou os miolos do
rival com um tiro pelas costas.
215
simples metáfora do mundo. Ana, para Maria de França, é − o que
ela jamais chega a ser − a heroína lúcida, a vidente, movendo-se
ágil entre mistérios e obstáculos.
216
que se apossa e que, de nenhum modo, ajudou a produzir talvez não
lhe pareçam trazer a marca do tempo.
Fuga impossível. Luta inglória. Ana da Grécia foge de
entender o curso inexorável do tempo e é atirada nas prisões, para
sentir nessa imobilidade o viajar do tempo e então desesperar: este o
castigo seu. Mas acaso não ama de algum modo os interiores dos
presídios exatamente porque a imutável nudez aí reinante simula a
eternidade e volta o dorso ao tempo? Neste caso, por que foge?
Teria sempre fugido no momento em que, em alguma oliveira
vicejando no pátio ou no modo como o vento passava a soprar nas
muralhas, pressentia o perigo de entender? Preferia as cidades. Não
tanto porque aí se acumulem riquezas e ambições, favorecendo a
rapinagem. Não. Porque nas cidades ela sente menos o evoluir das
estações. Só vê o campo quando em trânsito − entre uma cidade e
outra − e odeia os instrumentos agrícolas.
Tinha a ilusão de que o tempo, emigrando de Creta, fazia
servilmente o seu mesmo itinerário? Consta que só por acaso se via
nos espelhos e mal sabia como era o próprio rosto. Principalmente,
não guardava nada dos rostos que perdera. Assim, sempre tinha o
direito de supor que esta jovem parada numa praça ou esta que
passava num trem em movimento, olhos abertos por trás da vidraça,
eram ela própria e o tempo que volvia . O que, portanto, legitimava
esta dúvida: "O tempo passava?".
Seu próprio nome, Ana, sugeria a idéia de oposição, de
movimento contrário.
217
ventrais e peitorais, sobem, lamentáveis aves mudas, às árvores que
ladeiam o rio e, durante um breve tempo, arfantes, tentam fugir à
corrente, sem saber que, entre os ramos, outro rio igualmente
incessante vai arrancando as suas escamas. Pobre Ana!
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como depois, que, simultaneamente, também sempre é antes. Esta
anomalia impede que se cristalizem em sua mente as úteis noções
segundo as quais nós e o tempo fingimos uma espécie de
mobilidade: lá eu vou correndo para algum momento futuro, que se
aproxima e faz-se passado, distancia-se. Maria de França não
nomeia essas alterações de perspectiva entre o eu e certas
configurações do tempo − e como que flutua numa extensão sem
fim, propensa à imobilidade, sim, oposta a qualquer imagem fluvial,
uma extensão, sim.
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solução voltada para a estrutura e indiferente aos centros temáticos
da obra, talvez opondo-se a eles. Que vem fazer essa distorção do
tempo histórico, esse desmembramento, num relato que extrai a sua
força, em grande parte, das prorrogações, da trituração vagarosa de
um anseio, em uma palavra, da acumulação do tempo? A objeção
não é tão pertinente como à primeira vista finge ser. Por um lado, o
que aí ocorre com o tempo imita ponto por ponto a desarticulação
do espaço: as permutações ou enrugamentos da topografia real. Por
outro, não me parece que a turvação do tempo atenue o que há de
desesperador na luta de Maria de França com o mundo burocrático.
Ao contrário, todo esse longo envolvimento, contaminado pela
imprecisão que a consciência desconcertada da operária origina,
dilata ainda mais os anos ao longo dos quais tramita a ação, imersos
com isto em uma categoria menos trivial do tempo, exalçado por
certa transcendência e no qual ressoa a eternidade. O fado terreno,
sem prejuízo do lado contundente e mordaz, voltado para uma
sociedade anômala, refrata-se e simultaneamente aparece como
peregrinação e suplício fora do tempo, no sempre-nunca, no inferno.
220
Fora de dúvida: se põe a romancista, no centro de sua obra,
uma consciência desordenada, é para ordenar o conjunto mediante
certas leis. Dentre elas, a de ocultar tanto quanto possa a ambição
experimental. Não interessada na reprodução servil das coisas e, ao
lado disto, supondo ser indispensável ao gênero certo liame com a
realidade ordinária, cria uma linguagem, uma emissão e um mundo
excêntricos, mas justificando-os indiretamente com o distúrbio
mental da heroína, como se tudo decorresse disto, e não da sua
própria inquietude. Assim, fingindo ser forçada pela personagem,
cuja loucura teria um laivo de denúncia (manifesta-se como
resultante de insucessos profissionais), enfrenta e soluciona a seu
modo problemas dentre os mais estimulantes da ficção atual,
culminando com este, a que mesmo os narradores pouco
aventurosos são hoje sensíveis, do tempo e de suas transgressões.
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Que fotografia, esta? Homens e .mulheres, uma menina, de pé
ou sentados, vestidos como se fossem a passeio, vestidos para a
fotografia, iluminados por uma luz que unifica ainda mais os seus
rostos (que indefinível traço insinua em todas essas pessoas
sorridentes um ar de família?), reunidos num quintal de subúrbio ou
do interior, o roseiral ao fundo e um pedaço de muro, antiga tarde
de domingo, quente e clara. Quem são? Certeza de os conhecer,
como certas faces que encontramos e não chegamos a identificar,
mas aqui é todo um grupo que me desafia, nesse quintal e nessa
hora onde talvez soasse, juvenil, a minha voz. E se um desses rostos
for o meu ? Insisto em reconhecer os que vejo, em rasgar a
membrana que me impede de chegar ao grupo e ouvir as suas vozes,
o ranger dos seus sapatos. Tudo que consigo: fingir recordar o
jardim e o muro que já então segregam, solerte, o odor de cartão
envelhecido, peculiar às fotografias desde muito esquecidas nos
armários.
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miar, a garganta entorpecida exala um gorgolejo. Novamente no
chão, ganha a porta, ligeira como um rato meio trôpego, olhando
para trás, com uma expressão tão intensa de medo que eu preciso
conter-me para não gritar. Desaparecerá durante largo tempo, e eu a
esquecerei. Ali está, lastimável, olhando-me por trás das pernas da
cadeira, supondo não ser vista e sorrindo com um leve ríctus
sardônico, como se soubesse de coisas que ignoro. Suas pupilas
luzem sem nexo.
* * *
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