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Aufsätze und Berichte

Erros de escolares como síntomas de tendéncias


lingüísticas no portugués do Rio de Janeiro
P o r J . M A T T O S O C A M A R A JR.

O regime escolar do Brasil estabelece urna selegao, por prova escrita,


chamada „Exame de Admissào", para o ingresso no ensino de 2° grau, ou
„ginasial", das crianzas que completaram o ensino de I o grau ou primàrio.
Consiste, quanto à lingua materna, de u m ditado e da d e s c r i t t o de urna g r a v u r a
além de algumas questòes de ordem gramatical simples.
Pareceu-me interessante analisar os ditados e descrigSes dessa natureza,
executados por 62 crianzas, entre 11 e 13 anos, n u m colégio do Rio de Janeiro,
a firn de destacar os erros mais freqüentes e constantemente repetidos, como
indice de tendéncias lingüisticas d a lingua coloquial culta, que nessas crianzas
está sedimentada como linguagem „transmitida" (Bally) n o meio familiar. O
colégio está situado n a zona sul da cidade, onde vive a p a r t e mais abastada
e de mais alto nivel social da populagao urbana, e cobra altas taxas de
freqüéncia, o que dele exclui naturalmente as crianzas das classes humildes.
Estas procuram quase sempre as escolas gratuitas do Govèrno Municipal,
enquanto a parte d a populacpào menos abastada e de menor nivel social se con-
centra n a zona norte d a cidade, onde os colégios cobram taxas de freqüéncia
mais reduzidas.
Urna análise semelhante, feita para urna escola gratuita do Govèrno Muni-
cipal e p a r a um colégio da zona norte, d e v e apresentar quadros um tanto
diversos, correspondentes a uma estratificagáo lingüística muito nítida que a
cidade apresenta.
O resultado do meu estudo veio corroborar conclusoes de ordem fonética,
morfológica e sintática a que se tem chegado em referéncia à lingua coloquial
culta do Rio de Janeiro. É um resultado naturalmente parcial e que nao abarca
todos os aspectos que conviria apreciarmos. Por outro lado, as crianzas já
sofreram o impacto da lingua literária, adquirida no ensino primàrio e numa
intensa p r e p a r a l o de um ano para èsse Exame d e Admissào ¡ mas em regra o
conflito entre as duas linguagens provoca solugoes de compromisso, que sao
bastante significativas p a r a a dedu<pào das tendéncias por depreender. Acresce
que os erros que persistiram, malgrado èsse trabalho de p r e p a r a l o preliminar,
traem u m a forte radicagao e se tornam muito importantes p a r a o nosso objetivo.

Convém, de inicio, sumariar as conclusóes assim confirmadas, para em


seguida comentar a exemplificagao concreta dos erros, reportando-os metòdica-
mente aos itens assim destacados.

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Em referéncia à fonética temos as seguintes observaçôes gérais:


1 ) debilidade do acento tonico quando o vocábulo se acha no interior de um
grupo de força ¡
2) ausência do [a] aberto átono, que em Portugal caracteriza a partícula
resultante da erase da preposiçâo a com o artigo homónimo, de sorte que só se
tem contraste a rigor entre ['a] tónico, do verbo haver (isto é, há) e urna partí-
cula átona proclitica, quer artigo, preposiçâo ou contraçâo da preposiçâo com o
artigo ¡
3) tendencia a anular-se a oposiçâo entre [e] e [i], bem como [o] e [u], em
posiçâo pretónica, realizando-se um arquifonema [i] ou [u] conforme o caso¡
4) tendência a nasalar a sílaba inicial simples i-, provàvelmente pela ana-
logia dos vocábulos compostos com o prefixo in--,
5) reduçâo sistemática do en- inicial a in-;
6) certa tendencia a nasalar [i] ou [u] tónicos fináis, por mero mecanismo
fonético, com o abaixamento da parte posterior extrema do véu palatino;
7) anulaçâo da oposiçâo entre ditongo [ou] e [o] fechado;
8) tendência à vocalizaçâo do [1] velar posvocálico, que passa à semi-
vogal [u] ;
9) anulaçâo da oposiçâo entre ditongo de pospositiva [i] e vogai simples
diante de consoante diiante na mesma sílaba ([s], [z]), com a realizaçâo da
vogai ditongada; (ao contràrio, a chiante ¡mediata em sílaba seguinte absorve
a pospositiva) ;
10) artificialismo da articulaçâo do -s- medial posvocálico (aliás [s]) diante
de outro [s], nos grupos eruditos -sc(e, i)- ou -sc(a)-: dessa articulaçâo só se
realiza pròpriamente urna semivogal [i] como glide entre a vogai precedente
e o -s- posvocálico, contrastando com a pronùncia coloquial espontánea, que
omite pura e simplesmente a sibilante posvocálica;
11) precariedade do [r] e do [1] intervocálicos em contacto com [i]¡
12) maior nitidez da articulaçâo consonantal forte ou fraca do que da surda
ou sonora, respectivamente, de sorte que as sonoras em posiçâo forte (inicial
ou medial depois de sílaba fechada) tendem a ser interpretadas como surdas,
enquanto as surdas em posiçâo fraca (intervocálicas) tendem a ser interpretadas
como sonoras;
13) tendência à omissâo do [s] e do [r] fináis antes de pausa.
Na morfologia, foi possível deduzir:
14) o artificialismo das contraçôes pronominais do tipo mo (pronome dativo
da 1 2° ou 3° pessoa com pronome acusativo da 3o o, a, os, as) ;
15) a falta de integraçâo na lingua coloquial do pretérito mais que perfeito
do indicativo em -ra e certa incompreençâo do pretérito imperfeito do subjun-
tivo em -sse;
16) a tendência a omitir a forma pronominal dos verbos reflexivos que
indicam atividade corporal (levantarse, sentar-se etc.), de sorte que o uso da
forma pronominal se limita aos verbos estritamente reflexivos, em que a açâo,
que poderia recair num objeto distinto do sujeito, recai no pròprio sujeito
(ferir-se etc.).

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N a sintaxe, a colheita foi a seguinte:


17) tendência à próclise sistemática da variaçâo pronominal átona adverbal,
exceto a partícula se, em funçâo apassivante, que é sentida como um índice da
impessoalizaçâo do verbo (àmaneira do lat. itur, feitur etc.) em forma de sufixo;
18) tendência a subordinar ao verbo o sujeito posposto, desaparecendo a
concordância do verbo com êsse sujeito, o que resulta, em última análise, numa
impessoalizaçâo;
19) tendência a transformar em complemento circunstancial um sujeito que
designa lugar, de sorte que o verbo se impessoaliza (repete-se assim a evoluçâo
que levou lat. habere a verbo impessoal ñas línguas románicas) ¡
20) emprêgo de que como conectivo geral, perdendo-se para o pronome
relativo a sua integraçâo na oraçâo que rege, com urna funçâo sintática bem
definida.
Isto posto, podemos passar à segunda parte dêste artigo, apreciando os
exemplos concretos que ilustram essas conclusses gérais.

1. A debilidade do acento tónico no interior do grupo de força em proveito


da predominancia da tonicidade do último vocábulo do grupo, provoca pertur-
baçôes em ditado, em dois sentidos: ausência da marcaçâo do acento em sílaba
tónica interna e marcaçâo do acento em sílaba átona porque enunciada com
certo vigor e insistência. Esta última ocorrência se dá na sílaba radical inicial
de certas palavras expressivas e em sílabas fináis naturalmente débeis, porque
a professóra, ao ditar, as enuncia com uma nitidez artifical pelo receio de
passarem despercebidas. É preciso levar em conta, aínda, a enunciaçâo artificial
das palavras ditadas, destacadas dos seus naturais grupos de força, porque ao
serem ditadas há a intençâo de insistir nelas. Tudo isso perturba a percepçâo
do j ó g o sutil de tonicidade e atonicidade, que se realiza na fala espontánea,
determinando erros aparentemente absurdos de acentuaçâo.

Assim, em
„com está e outras diverçôes (sic)",
compreende-se que a marcaçâo de acento no demonstrativo esta resultou da
maneira por que o vocábulo deve ter sido ditado: destacado do seu grupo de
força e com as duas sílabas muito nítidas, o que deu à ultima, de debilidade
máxima, um relêvo perturbador para o aluno, fazendo-o interpretá-la como
tónica. A mesma exegese se aplica a
,,em sua confortavél cama",
para o adjetivo conioitável.
Em
„José que só a viiá no momento exato",
houve, a mais, a tendência a estender o ritmo iambíco do primeiro grupo de
fôrça — José ao segundo— que só a vira, onde a primeira parte (que só) ainda
está neste ritmo. (Note-se complementarmente uma razâo morfológica: a falta
de compreensâo do pretérito mais que perfeito [v. item 15] e a sua instintiva
associaçâo com o futuro — viró).
A influência da insistência estilística na sílaba inicial radical de palavras

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naturalmente importantes na frase determinou


„tremenda cicuriju"
e „ali pèndidos",
onde a acentuagao grave de tremenda e pendidos está abafada pela sua posigSo
interna em grupo de fórca e as sílabas iniciáis devem ter sido enunciadas com
especial relèvo. É èsse relèvo que explica em última análise a freqüente
marcagào do acento na preposigào por, ai acrescida da circunstancia de que a
professóra, ao ditar, foge de enunciar um [u] aberto (o impròpriamente chamado
o reduzido), que é a vogai espontànea da preposigào e articula um [o] fechado,
como se se tratasse do verbo tònico por. Eis um exemplo:
„por entre os inúmeros troncos".
A ausencia de marcagào em sílaba tónica secundária no grupo de fórca
aparece na omissao do acento para a forma verbal é, como em —
„èie e loro (sic, ver adiante, item 7)".
2. A ausència do [a] átono aberto (item 2) determina a nào-marcagao, com
sinal grave, da preposigào a em erase com o artigo feminino a, como nos com-
plementos circunstanciáis indicativos de hora (em redagao, porque em ditado
a professóra emitiría uma [a] artificialmente aberto e até acentuado como trago
mecánicamente acompanhante)¡ ex.:
„chegamos ao destino as 10,15".
Anàlogamente: n a s s i m q u e A e g u e i a fazenda".

A o contràrio, em ditado, encontramos à até para o artigo simples e para o


pronome acusativo átono adverbal, em virtude provàvelmente de uma pro-
nuncia „alfabética" com [a] aberto em divergència com a pronùncia espontánea,
que apresenta ai um alofone de artìculagào posterior e fechada:
„firmar à mào no tronco" „José que só à vira . . . "
Como o timbre aberto do [a] está associado no portugués do Brasil, exclusiva-
mente, com a tonicidade, o aluno ouve um ['a] tónico e escreve-o como a forma
verbal de presente do verbo haver, que é a única partícula de [a] aberto, e
tónico, existente na linguagem coloquial; assim temos também:
„José, de (sic, confusao de de com que) há v i r a . . "
Naturalmente surge ainda a ultracorregào e tèm-se casos da marcagao do
sinal grave na preposigào simples, mesmo em redagao:
„que o levou à um lugar" — „que estào à brincar" — „passeios à cavalo".
3. A anulagào da oposigao entre [e] e [i] e entre [o] e [u], em sílaba pretó-
nica, com a realizagào de [i] e [u], respectivamente, explica a grafia „acus-
tumado", em vez de acostumado, em redagao, e mesmo em ditado — „sintiu-se",
em vez de sentiu-se, „traisueiro", em vez de haiQoeiro. Sao curiosas ai as ultra-
corregoes, provenientes da preocupagao de manter uma distingào inexistente
na lingua coloquial, como em
„Depois de falar com os parentes romou para o campo"
onde nem a associagào espontánea com rumo conseguiu firmar a forma rumou.
Conseqüéncia da neutralizagào do contraste [o]—[u] é a confusao entre no,
equivalente a em o (preposigào em e artigo definido) e num, equivalente a em

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um (prepostaci em e artigo indefinido), porque [n] prevocàlico nasala automà-


ticamente a vogai seguinte, dai resultando na lingua coloquial em ambos os
casos urna partícula átona [nü] ¡ isto leva a utracorregào do tipo
„ora no ramo que crescia"
onde o texto é
„ora num ramo que crescia".
Análoga explicagao cabe à frase ditada — „inúmeros troncos", que aparece
escrita como — „enúmeros troncos", e até — „em números troncos".
4. A nasalagao do i- inicial, combinada com a tendéncia do item 3, leva a
urna forma freqüente — „inquilibrio", em vez de equilibrio, e por ultracorregào,
no esfórgo para manter-se a distingào [e]—[i] em posigào pretónica, até —
enquilíbrio".
5.—6. Como exemplo, entre muitos, do item 5, sirvam — „insolaradas", em
vez de ensolaradas e „imbarcacao", em vez de embarcando, e, em referencia ao
item 6, a insistente grafia „sicurijum", em vez de sicuriju.

7.—8. A ausència de contraste entre [oy] e [o], consignado no item 7, leva à


grafia — „loro", para louro, e ao contràrio, em ditado, „poupa", para popa.
Por outro lado, a tendéncia registrada no item 8 [1] para [u] leva, por ultra-
corregào, a „polpa". Vale assim assinalar a confusào entre très vocábulos dis-
tintos da lingua literaria: popa, parte posterior do navio, poupa, forma verbal
de poupar, e polpa, substancia mole e carnuda dos frutos.
Essa tendéncia à vocalizagào do [1] velar posvocálico para [y] aparece em
—„autas árvores", por altas árvores, „causa (sic) azul", por caiga azul, „cauqào
azul", por callao azul, „(a cobra) siuvou no ar" (ditado), e ainda — „impusso",
por impulso, porque o [1] vocalizado depois de [u] determina naturalmente a
fusào das vogais idénticas. Da ultracorregào resulta — „al longe" em vez de
ao longe (isto é [aulozi]) e curiosamente
„(a cobra) ciovol no ar"
onde silvou, sentido como siuvou, evoluiu para essa abstrusa grafia pela preo-
cupagào do aluno em nào incidir no èrro resultante da tendéncia 3, para a
primeira sílaba, e, para a segunda sílaba, pela de nào confundir -ou e -ol.
Aliás, o esfórgo para manter o [1] velar posvocálico leva-o a ser pronunciado
dental, e, como o [1] dental é normalmente prevocàlico, tem-se ainda outra
ultracorrecào
„(a cobra) silivou no ar".
9. A ditongagao da vogai diante de consoante chiante na mesma sílaba
explica „treis" por très (que é, aliás, grafia muito generalizada na nossa lingua
escrita) e ainda a ultracorrecào „mas" para o advérbio mais, porque o aluno
sente o [a] ditongado nessa posigào e foi alertado contra a grafia „mais' para
a conjungao adversativa mas:
„firmar a mào no tronco mas perto" (ditado).
10. Quanto à enunciagào do -s- posvocálico (isto é [s]) nos grupos eruditos
-se (e, i)-, o resultado em ditado é de duas espécies: ora surge a grafia -ic (e, ij-
que corresponde à verdadeira realizagao dessa pronùncia „alfabética"; ora o

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grupo -Jc (e, i)- ou -ic- legítimo é escrito -se (e, ij- ou - s < D a i , de um lado
„José deJxi-a o rio"
onde descia apresenta ainda urna palatalizapao conseqüente da ditongagào
criada, e, de outro lado
„corpo visguento e tras<?oeiro" —•
em vez de — corpo visguento e traì^oeiio.
A ultracorregào pura e simples verifica-se num frequente „parescia', por
parecJa.

11. Da precariedade do [1] e do [r] intervocálicos parece-me ter resul-


tado a ìntercalacao de urna dessas consoantes no vocábulo tapuio, ditado,
naturalmente desconhecido ao aluno: „tapúlio", „tapúrio" e até, por assi-
milando progressiva das consoantes — „tatúlio".

12. É essa palavra que também apresenta exemplo da confusào entre conso-
ante surda intervocálica com sonora (porque ambas sao iracas), consignada no
item 12; frequentemente, no ditado, temos „tabuio". Fenòmeno do mesmo tipo
aparece em „trejo' por trecho, enquanto o fenòmeno oposto (sonora em posipào
forte feita surda) se exemplifica com „sigue-sague", por zigue-zague-, vale notar
que é forte a consoante depois de vogai nasal (como comprova a pronùncia [í]
da vibrante nesta posigào) e dai tèrmos — Jazenta", „peganto", „pentidos",
„sincra" (sic), ,,um taqueles", em vez respectivamente de — lazenda, pegando,
pendidos, síngra(r), um daqueles.

13. A forma „sincra" por singrafr) exemplifica ainda o esvaimento do -r


final, que é típica da linguagem coloquial do Rio de Janeiro. É èsse esvaimento
que ilustra ainda numa reda^ào a frase
„em alguns trechos do terreno nao podiam-se distinguidos" —,
onde „podiam-se" é na realidade — podiam se(r), embora também deva ter
intervindo um cruzamento com a frase equivalente — „podiam-se distinguir",
como indica o hifen entre „podiam" e „se" por ser. Do esvaimento do [r] resulta
a freqüente ultracorregào „estar" por está, como em
„èie estar olhando os belos patinhos"
ou aínda
„O rosto do garoto estar estampada urna alegría imensa".
O esvaimento correspondente de [s] posvocálico diante de pausa determina
o desaparecimento do sinal de plural do substantivo final de grupos nomináis,
como em
„em verdadeiros ziguezague" — „com urna faxa" ([ai] feito [a]
diante de [s] na sílaba seguinte) „dos lado".
Nota-se também èsse esvaimento no determinativo todos, que é necessària-
mente acompanhado do artigo os, diante de substantivo. Dai tèrmos
„Lá todo os dias de tarde"
e com a fusao de -do os em -dos a supressào do artigo
„èie mexia com todos animais".

14. O artificialismo das contrates pronominais do tipo mo, que se consignou


no item 14, referente à morfologia, leva a urna como que obsessào dessa con-
traggo e faz com que se interprete como tal a desinència -mos da I o pessoa

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plural do infinitivo flexionado; a conseqüéncia é urna grafia muito freqüente


do tipo — „descrever-mos", „contar-mos". E a incapacidade para usar a contra-
pao, quando eia naturalmente se impòe, transparece na construyo —,
„meu avo me deu-o"
onde o dativo me fica proclitico ao verbo e o acusativo o fica enclítico.
A lingua coloquial do Brasil refuga, aliás, a forma acusativa o, a, os, as,
preferindo-lhe èie, -a, -es, -as em fungào de acusativo. As crianzas, alertadas
pela preparalo anterior ao exame contra èsse vulgarismo, empregam sempre
ñas redacóes o, a, os, as, mesmo quando o pronome objeto é ao mesmo tempo
sujeito de um infinitivo integrante. Por isso só encontrei esporàdicamente a
construyo, que é a usual na lingua cotidiana
,,sem ver éles nadarem".
Que a construgào literária resultou de um treino preliminar e nào está absor-
vida pelo sentimento lingüístico, mostra-o a seguinte frase:
„Passando um trem pediu para deixarem o viajar"
pois é evidente que o pronome o substituiu um „ele", realmente mentado, em
vista da sua colocagào; do contràrio, teríamos — pediu para o deixarem viajar,
ou, ainda mais literariamente — pediu para deixarem-no viajar.
15. A mesma falta de integrafo no sentimento lingüístico, assim registrada
para a contragào do tipo mo, se verifica na incompreensaò da estrutura do
pretérito mais que perfeito e do imperfeito do subjuntivo, cujas flexòes sào
destacadas, por um hifen, das formas verbais:
,,deixa-ra" — „se èie passa-se etc.
16. A tendència à omissao da forma pronominai em certo tipo de verbos
reflexivos (item 16) se revela em casos como
„Despedi de todos e vim embora"
ao mesmo tempo que na ultracorregào
„(o menino) todo dia acorda-se cedo"
por assimilalo de acordar com levantar-se, que a lingua coloquial usa como
„levantar".
17. Costrastando com erros do tipo — „se èie passase', temos
„despencousse" — ,,o capim encontrasse com as àrvores"
„Vèsse que é urna bela fazenda"
onde a partícula se é integrada na forma verbal como urna verdadeira flexao
(item 17). Fora disso o que se tem é a próclise sistemática da variapào pronomi-
nai desde que é sentida como tal; ex.:
„A gravura que vejo representa urna escola em dia de festa. Me
parece ser dia de festa dos professóres".
Dos exemplos supracitados com a partícula se os dois primeiros sào —
é verdade — de valor reflexivo e só no terceiro tem essa partícula caráter
apassivante. Mas a voz reflexiva da 3 o pessoa, nos verbos em que aparece
necessària e espontáneamente (correspondendo ao movimento de coisa inani-
mada que é atribuido à iniciativa do sujeito por impressionismo lingüístico) só
se distingue da forma passiva, na lingua coloquial, pela circunstància de nesta
última o verbo ficar impessoalizado, como em
.vesse algumas casas"

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ou ainda, com a partícula proclítica,


,,Ao fundo se vé uns casebres".
18. A impessoalizacao, pela nao concordáncia do verbo com o sujeito, já
nao mais claramente sentido como tal, é freqüente com sujeito posposto, como
consignou o item 18. Citem-se, quase ao acaso, das redapoes:
„mais adiante no matagal pastava os bois e cavalos" — „onde
existe ao fundo árvores" — „existe pastando duas vacas" —
„por cima das matas verdes está uns bois e vacas malhadas".
Parece haver urna tendencia a fazer do complemento de lugar („no matagal",
„onde" etc.) um sujeito psicológico, daí resultando a invariabilidade do verbo;
pelo menos é o que sugere éste exemplo com um complemento de lugar plural
e o verbo em concordáncia com éle:
„ñas duas margens crescem relva abundante".
19. Assim, o mecanismo de associagSes mentáis que explica a tendéncia assina-
lada no item 18, está relacionado com outra mais profunda, que registra o
item 19: há apenas a diferencia que nesta última o lugar, que também devia
ser o sujeito gramatical, adquire a forma de complemento de lugar. Foi o que
sucedeu com o verbo habere ñas línguas románicas, e na língua coloquial do
Brasil já está radicado com o verbo ter, de sorte que os nossos alunos escrevem
muito naturalmente.
„nao tinha urna nuvem no céu" — „nele tinha vacas e um cavalo".
O verbo haver nesta fungao está sobrepujado por ter, e o aluno passa do
primeiro ao segundo com a maior naturalidade na mesma frase:
„há um riacho onde em cima tem urna ponte de madeira" — „há um
bonito pasto, aonde tem as vacas e os cavalos".
E o processo da passagem do sujeito gramatical a complemento de lugar
estende-se a outros verbos, como dar, no sentido de produzir, e ser:
„duas árvores onde dd agradável sombra" — „Na fazenda onde
reside Joao, é muito bonito".
Resta-nos apreciar o item referente á oragao subordinada.
20. Consignou-se ai a tendéncia a fazer da partícula que um conectivo geral,
até equivalente a e, de sorte que o pronome que relativo perde a sua funpao
sintática na oragao que rege. De um e outro fato dao exemplo os trechos seguin-
tes, escolhidos como típicos entre muitos outros:
„Foi ao pasto que ali encontrou urna vaca" (que = e) — „urna
rústica ponte de madeira que sobre ela está um menino" {que,
relativo, sem fungao sintática).
Outros vários erros, que se encontram no corpus aqui examinado, sao de
caráter mais pessoal, esporádico e acidental, e apenas interessariam a um
estudo de psicología da linguagem. Nao foi éste, porém, meu objetivo, senao —
como se declarou de inicio — documentar certas tendéncias coletivas da língua
coloquial no Brasil, ou mais especialmente no Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, Agosto de 1957

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