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DADOS DE ODINRIGHT

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C I R C U I T O   F E C H A D O
Obras reunidas de Florestan Fernandes
Coordenação:
Maria Arminda do Nascimento Arruda

A FUNÇÃO SOCIAL DA GUERRA NA SOCIEDADE TUPINAMBÁ / O FOLCLORE EM QUESTÃO /


FUNDAMENTOS EMPÍRICOS DA EXPLICAÇÃO SOCIOLÓGICA / A SOCIOLOGIA NUMA ERA DE
REVOLUÇÃO SOCIAL / A INTEGRAÇÃO DO NEGRO NA SOCIEDADE DE CLASSES / A REVOLUÇÃO
BURGUESA NO BRASIL / EDUCAÇÃO E SOCIEDADE NO BRASIL / CIRCUITO FECHADO /
PENSAMENTO E AÇÃO / QUE TIPO DE REPÚBLICA?
F l o r e s t a n   F e r n a n d e s
C I R C U I T O   F E C H A D O

Quatro ensaios sobre o “poder institucional”

prefácio:
Maria  Arminda  do  Nascimento  Arruda
Copyright © 2005 by herdeiros de Florestan Fernandes
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode
ser utilizada ou reproduzida – em qualquer meio ou forma, seja
mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. – nem apropriada
ou estocada em sistema de bancos de dados, sem a expressa
autorização da editora.

Preparação: Ronald Polito


Revisão: Carmen T. S. Costa e Otacílio Nunes
Índice remissivo: Luciano Marchiori
Capa: Paula Astiz
Produção de ebook: S2 Books

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Fernandes, Florestan, 1920-1995.


Circuito fechado : quatro ensaios sobre o “poder institucional” / Florestan
Fernandes ; prefácio Maria Arminda do Nascimento Arruda – São Paulo : Globo, 2010.
ISBN 978-85-250-5621-4
1. América Latina – Condições sociais 2. América Latina – Política e governo 3.
Brasil – Condiçõers sociais 4. Brasil – Política e governo 5. Escravidão no Brasil 6.
Intelectuais – América Latina 7. Negros – Condições sociais 8. Universidades e
faculdades – América Latina I. Arruda, Maria Arminda do Nascimento. II. Título.
10-00922 CDD-301

Índice para catálogo sistemático:


1. Poder institucional : Ensaios : Sociologia 301

Direitos de edição em língua portuguesa


adquiridos por Editora Globo S. A.
Av. Jaguaré, 1485 – 05346-902 – São Paulo, SP
www.globolivros.com.br
SUMÁRIO
Capa
Folha de rosto
Ficha catalográfica
Dedicatória
Prefácio: Uma Sociologia do Desterro Intelectual
Prefácio do Autor
Primeira Parte - Brasil: Passado e Presente
Capítulo 1 - A Sociedade Escravistano Brasil
A Produção Escravista e sua Evolução
A Ordem Social da Sociedade Escravocrata e Senhorial
Capítulo 2 - 25 Anos Depois: O Negro Na Era Atual
O Amadurecimento da Consciência Crítica
O Inconformismo Inócuo
As Transformações Visíveis
Segunda Parte - América Latina: Hoje
Capítulo 3 - A Ditadura Militar e os Papéis Políticos dos
Intelectuais na América Latina
Nota Explicativa
Introdução
A Natureza Sociológica do Processo
Uso e Limites do “ Poder Militar”
Estado e Sociedade em Tensão
O Intelectual e a Ditadura Militar
Os Papéis Políticos dos Intelectuais
Capítulo 4 - A Universidade em uma Sociedade em
Desenvolvimento
Nota Explicativa
Introdução
A Universidade Latino Americana e seu Contexto Histórico
Social
Aspectos da Situação Atual do Ensino Superior
Universidade e Desenvolvimento
Sobre o autor
Índice Remissivo
A Atsuko Haga,
amiga infatigável e leitora crítica tão
paciente, que tem me ajudado,
resolutamente, a enfrentar os
momentos mais amargos sem perder
a fé na razão e a confiança no futuro.
P R E F Á C I O

U M A   S O C I O L O G I A   D O
D E S T E R R O   I N T E L E C T U A L

JÁ É LUGAR-COMUM afirmar que toda reflexão é herdeira do seu


tempo e raramente escapa à crítica corrosiva dos anos.
Poucas são as obras capazes de preservar o viço e
conservar o vigor das ideias, a despeito da época em que
foram escritas e das motivações que as conceberam.
Circuito fechado: quatro ensaios sobre o “poder
institucional” reúne textos de Florestan Fernandes,
produzidos entre 1966-1976, período de profundas
transformações na sua vida intelectual e pessoal,
correspondendo ao afastamento compulsório da
Universidade de São Paulo pelo arbítrio do governo militar,
em 1969, à experiência docente na Universidade de Toronto
no Canadá, o retorno ao Brasil e a vivência da condição de
exílio no seu próprio país. O livro é composto por dois
ensaios que versam sobre o tema da escravidão e da
condição social do negro, seguidos por outro par que trata
do lugar dos intelectuais nos regimes ditatoriais na América
Latina e das universidades no contexto dessas sociedades
em processo de desenvolvimento. Circuito fechado
distingue-se por conciliar, de forma rara, a têmpera dos
anos com o caráter de reflexão que conservou a força da
sociologia de Florestan, intelectual marcante e autor
clássico na tradição do pensamento brasileiro.
O livro explicita, de outro lado, posição já assumida pelo
sociólogo pelo menos desde A revolução burguesa no Brasil,
obra decisiva à compreensão da sua trajetória, publicada
em 1975, ano anterior à primeira edição de Circuito
fechado, na qual afirmou no Prefácio:
 
É preciso que o leitor entenda que não projetava fazer obra de “Sociologia
acadêmica”. Ao contrário, pretendia, na linguagem mais simples possível,
resumir as principais linhas da evolução do capitalismo e da sociedade de
classes no Brasil. Trata-se de um ensaio livre, que não poderia escrever se
não fosse sociólogo. Mas que põe em primeiro plano as frustrações e as
esperanças de um socialista militante.
 
Na introdução da presente publicação, Florestan retoma o
mesmo ponto de vista ao caracterizar os quatro emsaios
nela agrupados:
 
Circuito fechado reúne quatro ensaios, escritos sob propósitos diferentes e
em momentos diversos da vida do autor. Todos se ligam à minha atividade
sociológica, como eu a entendo e pratico: um meio de relação crítica com a
sociedade brasileira e de confronto com os dilemas históricos de nossa
época.
 
Engana-se o leitor, no entanto, se pensar os textos do
ângulo de uma interpretação militante, na acepção corrente
do termo. As concepções críticas do autor não se separam
das análises rigorosas sobre as quais se debruçou;
tampouco dão guarida a diagnósticos dominados por
circunstâncias ligeiras. O livro revela o quanto Florestan era
mestre nesta capacidade rara de manejar a melhor
sociologia no curso de um pensamento intolerante com as
iniquidades sociais, concebendo uma disciplina voltada à
compreensão de uma realidade débil para suplantar o
abismo existente entre as classes em sociedades que
reproduzem o mesmo padrão de desigualdade e de domínio
ao longo da história, como é o caso da brasileira e das
demais latino-americanas.
Se na obra A revolução burguesa no Brasil Florestan
rejeitou a posição antes assumida sobre a viabilidade de se
“forjar nos trópicos este suporte de civilização moderna”,
para retomar uma frase de fecho de A integração do negro
na sociedade de classes e que ainda encerrava um facho de
esperança no sentido de o Brasil realizar as promessas
civilizatórias do moderno, em Circuito fechado todas as
apostas estão cristalizadas na força incoercível das classes
populares para construir um futuro socialista e democrático,
negador da repetição contínua do passado.
 
O circuito fechado constitui uma equação metafórica de um dos ângulos da
situação que prevalece graças aos tempos retardados da revolução
burguesa. A história nunca se fecha por si mesma e nunca se fecha para
sempre. São os homens, em grupos e confrontando-se como classes em
conflito, que “fecham” ou “abrem” os circuitos da história. A América Latina
conheceu longos períodos de circuito fechado e curtos momentos de circuito
aberto. No entanto, o modo pelo qual se dão as coisas, nos dias que correm,
revela que “o impasse de nossa era” não consiste mais no caráter perene da
repressão e da opressão. Os que reprimem e oprimem, nestes dias, lutam
para impedir o curto-circuito final, que para eles vem a ser o
desaparecimento de um Estado antagônico à Nação e ao Povo, ou seja, um
Estado que, como todo Estado elitista, tem sempre de “fechar a história”
para os que não estão no poder.
 
O livro representa, a despeito das permanências
perceptíveis no estilo costumeiro de construir as reflexões e
da manutenção das categorias fundamentais do seu
pensamento, a superação da fase caracteristicamente
acadêmica de Florestan Fernandes, transcorrida entre 1945-
1969, datas que medeiam a admissão como professor de
sociologia na Universidade de São Paulo e a aposentadoria
compulsória imposta pelo arbítrio do regime militar. A obra
revela, de outro lado, o peso da sua experiência de desterro
civil na mudança de tonalidade das concepções do
sociólogo sobre os processos de transformação da
sociedade brasileira, acontecida ao longo de uma década.
Em A integração do negro na sociedade de classes, que foi
publicado em 1965, Florestan ainda propugnava pela
construção de políticas sociais, como a da universalização
da escola pública, para romper o padrão social e étnico da
desigualdade; em A revolução burguesa no Brasil
demonstrou a incompatibilidade do capitalismo dependente
e da burguesia no Brasil com os valores civilizatórios da
modernidade; em Circuito fechado defendeu a
ultrapassagem do Estado autocrático burguês pelo conflito
de classes. Como se percebe, interpretações já
desenvolvidas são retomadas para tratar de novos
problemas, mas segundo outro andamento reflexivo,
deixando entrever uma espécie de arremate na trajetória
pessoal e intelectual de Florestan Fernandes.
A forte presença das suas concepções de sociologia não
permite, por isso, classificar o livro no rol das reflexões
escritas à moda de um manifesto, tampouco com objetivos
políticos imediatos, visão, aliás, encontradiça em certas
análises que compõem a já volumosa fortuna crítica a seu
respeito. Autores do porte de Florestan não se submetem a
qualificações simplificadoras, tampouco podem ser eLivross
em retratos esquemáticos, ou destituídos da complexidade
tipicamente humana e característica daqueles que são
prisioneiros do exercício intelectual rigoroso, posto que
voltado à construção de diagnósticos consequentes. No
mesmo ano em que publicou A revolução burguesa no
Brasil, afirmou em entrevista concedida à revista
Transformação: “Não nos devemos esquecer que estávamos
na década de 1940 e 1950 e que, então, o fundamental era
construir a Sociologia como uma ciência empírica”.
Acrescentando mais à frente: “Não devemos exorcizar nem
a palavra função, nem a análise causal resultantes de
elaborações interpretativas estruturais-funcionais. Elas são
instrumentais. O que se deve exorcizar é uma concepção
naturalista de Ciências Sociais: esse é que é o busílis da
questão”. Ou ainda: “Não se tratava de ver Marx em termos
de dogmatismos de uma escola política. Marx emergia
diretamente de seus textos e de seu impacto teórico na
Sociologia”. Ou, em outras palavras, o tratamento analítico
dos problemas de pesquisa é ligado, mas ao mesmo tempo
distinto, dos seus desdobramentos políticos.
Tais afirmações não elidiram os princípios de construção
da sua problemática sociológica, centrada no drama e na
tragédia cotidianos vividos pelas camadas populares
marginalizadas da participação nos rumos do país e
excluídas das conquistas civilizadas e que explicam os
dilemas do Brasil no trânsito do moderno. São os negros e
os seus descendentes, os índios, os pobres, os
trabalhadores explorados pelo movimento predatório do
capital, o povo segundo a sua denominação, os depositários
das mais perversas iniquidades. Exatamente por interpretar
a história brasileira desse lugar de orfandade, conferiu
originalidade a sua obra, o que lhe permitiu conceber uma
reflexão empenhada e potente, sem que para isso fosse
necessário subordinar as análises ao domínio de posições
políticas adrede assumidas. O foco nos deserdados conferiu
coerência entre a sua obra e a sua origem social,
permitindo-lhe revelar que, na gênese dos impasses da
história do Brasil moderno, se aloja a rejeição de integrar e
atribuir cidadania real às classes populares, preservando-se
a desigualdade, prática que exige reproduzir uma estrutura
política autocrática e privatista com o poder,
independentemente do regime político.
Na introdução de Circuito fechado, constatando que nas
“nações pobres” a história segue ritmos diversos, é
imperioso “saber como eles se manifestam e aonde eles
levam, para que a autocracia burguesa possa ser
denunciada e o Estado autocrático burguês destruído”.
Percebe-se, assim, como Florestan não se alforriou da
necessidade de se empreender uma análise embasada nos
cânones da pesquisa rigorosamente concebida, rejeitando
visões impressionistas, como explicita mais uma vez na
introdução: “No entanto, o sociólogo tem de aventurar-se às
construções de longa duração e a vincular os resultados da
investigação histórica com as descobertas da pesquisa de
campo. É seu dever ‘profissional’, mesmo que não seja
socialista, ao contrário do que acontece comigo”... Apesar e
por causa de expor a sua filiação política, Florestan não
confunde a natureza do métier com orientações nitidamente
valorativas, afirmando a universalidade do método e o seu
compromisso com o conhecimento. Até por isso, o livro
ultrapassa perspectivas exclusivas na modelagem dos
diagnósticos e das posições que abraça,
independentemente de rejeitar a crítica sociológica
“impassível e neutra”.
O caráter de particular
 
complexidade dessa situação histórica sugere que não nos devemos
contentar com a superficial hipótese do “colonialismo interno”. Não nos
defrontamos com algo tão simples. Porém, com uma história que se
recompõe, simultaneamente a partir de dentro (pela dominação burguesa) e
a partir de fora (pela dominação imperialista), produzindo, constantemente,
novos modelos de desenvolvimento capitalista que exigem a conciliação do
arcaico, do moderno e do ultramoderno, ou seja, a articulação de antigas
“estruturas coloniais” bem visíveis a novas “estruturas coloniais”
disfarçadas.
 
Segundo essa avaliação, o capitalismo, em países como o
Brasil, é duplamente determinado, espessando ainda mais a
opacidade inerente a essa formação histórica, complicando
o entendimento do modo como se configurou, na medida
em que combinou formas não homólogas de
desenvolvimento, subordinadas aos ritmos diversos das
esferas da economia, da política, do social, da cultura.
Aprofunda-se, portanto, a heterogeneidade existente nas
sociedades periféricas que combinam formas arcaicas e
tradicionais ao moderno, obstando a realização de uma
ordem social aberta e democrática, em um processo em que
a revolução burguesa constrangeu o raio de ação dos
agentes modernizadores que se limitou a certas esferas da
vida social, sem a capacidade de atingir o conjunto da
sociedade. Dito de outra maneira: a revolução burguesa em
países dependentes como o Brasil constrói um abismo entre
as intenções da ação social dos agentes frente aos efeitos
que provoca. Uma burguesia débil não encarna a utopia da
nação e torna-se prisioneira do estamento oligárquico e da
dominação externa; uma ordem social competitiva fica
restrita ao âmbito econômico-empresarial, atrelando-se ao
domínio burguês autocrático de transformação capitalista
na periferia. Nesse andamento de imposição da ordem por
via antidemocrática, resta como alternativa à mudança
romper o círculo de ferro do domínio das elites refratárias
aos valores civilizados. A sua avaliação dos rumos
assumidos pelo capitalismo no Brasil, sobretudo pós-1964, o
leva a abandonar a postura de intervenção racional na
promoção de reformas e a propugnar pela criação da nova
ordem por via radical. Circuito fechado elucida o caminho
anterior e posterior de Florestan Fernandes, que elegerá a
classe trabalhadora como o interlocutor privilegiado,
filiando-se, posteriormente, ao Partido dos Trabalhadores.
É nessa quadra particular da sua vida que se inserem os
quatro ensaios que compõem Circuito fechado. Os dois
primeiros revisitam os temas da escravidão, da
problemática racial, do preconceito, da marginalização dos
negros e dos mulatos na sociedade brasileira. O primeiro —
“A sociedade escravista no Brasil” —, escrito para um
simpósio internacional acontecido em Nova York, em 1976,
pretende examinar “as relações de produção, a
estratificação da sociedade e a articulação das raças
contidas nos vários polos de dominação escravista”. De
acordo com essa proposta, Florestan se propõe “esboçar
uma espécie de síntese, que procura pôr em relevo os
elementos estruturais e dinâmicos invariantes, os quais
tornaram esse conjunto de diferenciações possível e,
mesmo, necessário”. Retornar ao passado escravista
permite-lhe entender ao mesmo tempo a persistência de
um padrão social de marginalização recorrente dos negros e
seus descendentes, representantes das formas mais
desenvolvidas de exclusão e de rejeição à incorporação das
classes populares na história do Brasil moderno. “O que
aconteceu dentro da colônia e no rebento tardio, que vem a
ser a eclosão modernizadora do capitalismo nas sociedades
de origem colonial?”
A pergunta lançada ao passado brasileiro dirige-se à
compreensão do presente histórico das sociedades latino-
americanas. “No cenário da América Latina, o Brasil é um
‘caso ideal’ para o estudo das conexões da escravidão com
o desenvolvimento interno do capitalismo.” País no qual a
modernização capitalista realizou-se de modo mais típico, a
experiência brasileira ilumina os trajetos trilhados pelos
países periféricos, em especial os do continente. O exame
“da antiga ordem escravocrata e senhorial” permite
entender a permanência das mesmas condições estruturais
na época da transição neocolonial que, além de não perder
impulso, dinamiza-se no contexto da formação da sociedade
nacional.
 
A vítima foi o “negro” como categoria social, isto é, o antigo agente do modo
de produção escravista que, quer como escravo, quer como liberto,
movimentará a engrenagem econômica da sociedade estamental e de
castas. Para ele não houve “alternativa histórica”. Ficou com a poeira da
estrada, submergindo na economia de subsistência, com as oportunidades
medíocres de trabalho livre das regiões mais ou menos estagnadas
economicamente e nas grandes cidades em crescimento tumultuoso, ou
perdendo-se nos escombros de sua própria ruína, pois onde teve de competir
com o trabalhador branco, especialmente o imigrante, viu-se refugiado e
repelido para os porões, os cortiços e a anomia social crônica.
 
A passagem acima sintetiza o conjunto das pesquisas e
análises de Florestan sobre a escravidão, as relações
raciais, enfim, sobre as experiências dramáticas dos negros
e descendentes após a Abolição, no contexto de emergência
da revolução burguesa, no qual A integração do negro na
sociedade de classes é obra irreparável.
No ensaio seguinte dessa edição — “25 anos depois: o
negro na era atual” —, no qual realiza um balanço das
pesquisas realizadas em parceria com Roger Bastide para
atender o chamado Projeto UNESCO de investigação das
relações raciais, no início dos anos 1950, o sociólogo
escreveu:
 
Para que as coisas fossem diferentes, teria sido necessário que a revolução
burguesa fosse, ao mesmo tempo, aberta às pressões populares,
democrática e nacionalista; e, de outro lado, que o próprio negro tivesse
criado, depois da Abolição e, principalmente, da “Revolução de 30”,
legitimidade para o protesto racial (tido pelas camadas conservadoras como
o pior tipo de protesto, depois do conflito operário) — o que, sabidamente,
não ocorreu, pois a população negra nunca reuniu condições para levar a
democratização da ordem mais longe que as classes operárias e o
radicalismo burguês. Tudo isso significa que o inconformismo negro pode ser
uma realidade psicológica, cultural e moral, mas não pode tornar-se uma
força social atuante e uma realidade política. Em uma sociedade de classes
que preserva um padrão de elitismo típico da dominação estamental, o
conflito potencial de raça não tem como eclodir na cena histórica. No
passado, ele era expurgado da ordem legal e fortemente reprimido, como
uma “ameaça às instituições e à civilização”. No presente, ele é
deliberadamente confundido com o conflito de classe ou com a “subversão
comunista da ordem” — e exposto à solução policial.
 
O negro, dada a sua permanente marginalização, não
pode alçar-se à condição de sujeito da sua história, sendo
expropriado do seu próprio estatuto de humanidade. A
radicalidade à qual a análise chega está expressa neste
diagnóstico de perda da substância humana de seres
sociais. Sem lugar, o problema negro está sempre
subsumido por outras demandas, seja porque a escravidão
é desumanizadora, seja porque se formou um tecido cultural
tendente a rasurar o preconceito, em nome de uma
democracia racial que a todos atinge, apaziguando a
consciência das elites e excluindo a legitimidade do
protesto.
Nesse quadro de arremate dos estudos sobre a
problemática racial, subjaz a análise realizada em A
integração do negro na sociedade de classes, que já revelou
o amadurecimento da reflexão do sociólogo sobre o
processo de constituição do Brasil moderno e o seu franco
recuo em relação às possibilidades efetivas de se construir
no país os princípios civilizatórios, raiz do tratamento que
conferiu à revolução burguesa e aos textos posteriores
escritos sobre o tema. Situando a problemática do negro na
passagem da sociedade escravista para a sociedade de
classes, Florestan analisou as relações raciais no prisma da
dinâmica global da modernização brasileira, acentuada na
cidade de São Paulo. A rápida transformação urbana,
ocorrida entre o final do século XIX e o começo do século XX,
impossibilitou a inserção do negro e do mulato no estilo
urbano de vida, por não possuírem recursos para enfrentar
a concorrência dos imigrantes. Ou, para acompanhar as
suas categorias, a heteronomia presente na “situação de
castas” impediu aos negros assimilar as potencialidades
oferecidas pela “situação de classes”. Resulta desse
processo o “desajustamento estrutural”, a “desorganização
social”, típicas da condição dos descendentes dos africanos,
relegados a viver um estado de marginalidade social,
verdadeiros proscritos das conquistas civilizadas. O
preconceito e outras expressões de discriminação
exerceram a função “de manter a distância social” e de
reproduzir o “isolamento sociocultural”, tendo em vista a
preservação das “estruturas sociais arcaicas”. O ritmo
intenso da história em São Paulo produziu forte
descompasso entre a ordem social (mais sincronizada com
as transformações da estrutura econômica) e a ordem racial
(de ajustamento mais lento às mudanças), permanecendo
como uma espécie de “resíduo do antigo regime”, cuja
eliminação futura adviria dos “efeitos indiretos da
normalização progressiva do estilo democrático de vida e da
ordem social correspondente”, posição que é superada após
1969.
Explicita-se, nessas passagens, a origem do seu
entendimento sobre o modo de realização da sociedade
moderna no Brasil, enquanto processo complexo e de
resultados híbridos, uma vez que, independentemente do
ritmo das transformações, padece de uma sorte de fraqueza
congênita, comprometendo todo o seu desenvolvimento
ulterior. As análises sobre a herança da escravidão inseriam-
se, dessa maneira, na busca de compreender como os
fundamentos da sociedade brasileira produziam bloqueios à
plena consecução de princípios civilizados, verdadeiros
anteparos à pura modernidade capitalista. O projeto de
investigar o papel das relações escravistas no Brasil na
constituição da sociedade nacional desdobrou-se nos
trabalhos escritos por seus assistentes, como Fernando
Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Maria Sylvia de Carvalho
Franco, entre outros colaboradores. A articulação dos temas
de pesquisa rendeu frutos e produziu afinidades intelectuais
ao grupo reunido por Florestan, justificando a identificação
posteriormente construída e sintetizada na expressão
Escola Paulista de Sociologia, apesar de a convivência não
ter sido sempre apaziguada e comportar diferenças internas
entre os participantes.
Os estudos nessa área temática foram, portanto,
essenciais na constituição do grupo de pesquisa e da
importância dos sociólogos da USP no cenário das ciências
sociais no Brasil, na medida em que se tornaram
interlocutores privilegiados das gerações seguintes,
sobretudo porque foram vocalizadores de visões críticas
sobre a modernização da sociedade brasileira, salientando
as tensões existentes, das quais as reflexões de Florestan e
a chamada “teoria da dependência”, formulada
posteriormente por Fernando Henrique Cardoso, são
paradigmáticas. Os sociólogos de São Paulo, diversamente
dos intelectuais do ISEB que fizeram do Estado o principal
interlocutor, dirigiram prioritariamente as suas pesquisas
para o entendimento das questões, das mudanças e dos
impasses sociais resultantes do processo acelerado de
transformações. Foram produzidas, naquela época,
concepções diversas sobre a formação do capitalismo no
país que, embora tenham enriquecido o campo intelectual,
tornaram-se alvo de disputas sobre as modalidades mais
legítimas de interpretação.
No curso dos debates, revelaram-se personalidades
nucleadoras das posições e definidoras das direções futuras
da pesquisa, a exemplo de Florestan Fernandes, que se
tornou o principal construtor do cânone da sociologia
brasileira, naturalmente em decorrência da envergadura da
sua obra. Florestan foi, por esse conjunto de motivos, o
principal artífice da formação da moderna linguagem
sociológica, se a concebermos na acepção de uma disciplina
ancorada em procedimentos rigorosos, realizada em moldes
científicos e desenvolvida no espaço acadêmico, mas que se
voltou para os mais diferentes papéis afeitos aos
intelectuais no Brasil de então. A ênfase que conferiu à
importância dos cientistas sociais na discussão e definição
das políticas públicas, em especial à necessidade desses
profissionais participarem da planificação social para corrigir
distorções no processo de construção do moderno, foi
tributária da sociologia de Karl Mannheim, o formulador da
condição do intelectual socialmente desvinculado. O
sociólogo, como se depreende das suas reflexões, ocupa
lugar decisivo no tratamento dos problemas erigindo-se em
interlocutor qualificado pelo conhecimento científico. Por
isso, Florestan atribuiu lugar de relevo aos intelectuais
comprometidos com os rumos da sociedade.
Os dois últimos ensaios de Circuito fechado — “A ditadura
militar e os papéis políticos dos intelectuais na América
Latina” e “A universidade em uma sociedade em
desenvolvimento” — são sintomáticos da sua desilusão a
respeito do significado do papel desses atores em
sociedades periféricas. Enquanto o primeiro, escrito entre
1969-1970 quando era professor na Universidade de
Toronto, analisa os intelectuais no contexto das ditaduras
latino-americanas controladoras da liberdade de
pensamento, o segundo, produzido em 1966 para uma
publicação no exterior, trata do tema de maneira indireta,
pois realiza um balanço da universidade nesses países do
ponto de vista do significado que tiveram na articulação
“dos dilemas econômicos, sociais e culturais que pesam
sobre os diferentes países da América Latina”. Os dois
estudos transpiram a sua irrecuperável desilusão com o
papel desse atores, com o fechamento dos espaços de
atuação. Ao lado do diagnóstico sobre a traição de muitos
intelectuais que, ou aderiram diretamente à situação, ou
assumiram posições de afastamento, em função das
frustrações que geraram “confusões morais e pessimismo
sistemático, dando origem a uma superavaliação das
atividades intelectuais como refúgio e fim em si mesmas”,
Florestan salienta a crise da atividade. “O malogro da
intelligentsia latino-americana reflete, de fato, o malogro de
suas sociedades, com respeito à sua organização interna e à
sua evolução como sociedades competitivas”. A derrota dos
intelectuais foi tanto produto “estrutural e dinâmico de suas
inter-relações com as elites culturais existentes”, quanto
consequência da própria origem de classe, dificultando a
ruptura, “parcial ou totalmente, com as classes dominantes
e suas elites no poder”.
Circuito fechado é, em essência, uma densa reflexão
sobre a perda de lugar da intelligentsia na América Latina, a
sua derrota, capitulação e o seu encerramento num circuito
que se conclui. É um livro que não isenta os intelectuais da
responsabilidade com os rumos assumidos pela atividade:
“os melhores representantes do progresso da ciência e da
tecnologia científica assumem atitudes ou comportamentos
que não correspondem à ética de responsabilidade
intelectual, que deveria ter vigência numa sociedade
subdesenvolvida”. O movimento que se fecha refere-se aos
caminhos que lhe foram impostos por ter sido desterrado do
seu país na dupla significação do cidadão destituído de
direitos e do intelectual alijado da realidade de onde retirou
as suas perguntas e enraizou a sua obra. Não por
casualidade, os quatro ensaios foram construídos a partir de
perguntas a serem respondidas e cujo equacionamento não
enfraquece o impulso de formular compulsivamente novas
questões. Nos dois primeiros, Florestan Fernandes enfrentou
as suas próprias pesquisas, isto é, pôs em escrutínio a sua
responsabilidade de cientista; nos dois últimos, foi ao cerne
do próprio métier, numa espécie de acerto de contas com o
seu passado e de busca de outro lugar de responsabilidade
do conhecimento.
O subtítulo do livro — Quatro ensaios sobre o “poder
institucional” — pode ser compreendido em chave
interpretativa ambígua, derivada das definições sociológicas
de instituição, isto é, de orientações de valor organizadas e
estruturadas que possuem caráter duradouro. Em suma,
como poder autocrático e como valores fixados que só se
alteram por conflitos profundos, com força para dilapidar
antigas crenças e afirmar outros princípios. O sociólogo,
mesmo que eventualmente não tenha pretendido, está
aludindo às novas responsabilidades dos intelectuais na
América Latina. Não é de se surpreender, portanto, que ele
as tenha perseguido.
 
 
MARIA ARMINDA DO NASCIMENTO ARRUDA
Professora titular do Departamento de Sociologia da USP
P R E F Á C I O   D O   A U T O R

CIRCUITO FECHADO reúne quatro ensaios, escritos sob


propósitos diferentes e em momentos diversos da vida do
autor. Todos se ligam à minha atividade sociológica, como
eu a entendo e pratico: um meio de relação crítica com a
sociedade brasileira e de confronto com os dilemas
históricos de nossa época. Somente o último ensaio,
elaborado há dez anos, ficou definitivamente preso à órbita
do “trabalho acadêmico” stricto sensu. Como contribuição a
uma coletânea organizada por J. Maier e R. W. Weatherhead,
a sua parte no diagnóstico da universidade na América
Latina estava prefixada. Achávamo-nos na década de 1960
e as pressões ativistas, estudantis ou dos intelectuais, iam
em um crescendo. Contudo, cabia-me fazer um corte que se
limitasse a apanhar as conexões mais gerais da
universidade com “uma sociedade em mudança”. Dentro
dos vários mundos que coexistem na América Latina,
limitei-me a ressaltar certas tendências que permitiam
entender a reação recíproca — com frequência inibidora —
da universidade com o meio societário inclusivo.
Qualquer que seja minha presente insatisfação diante da
postura teórica que assumi nesse ensaio, devo confessar
que ele me foi muito útil. De um lado, ele forçou-me a fazer
um diagnóstico global da universidade latino-americana um
pouco antes da intensificação e do aprofundamento da crise
da universidade brasileira: os anos de 1967 e 1968 marcam
o clímax da discussão da reforma universitária no contexto
mais amplo de um radicalismo democrático que iria levar,
estudantes e professores, ao fundo dos problemas solúveis
e insolúveis. Aquele ensaio preparou-me intelectualmente
para esse debate, levando-me a situar-me diante dele de
uma perspectiva mais geral e com uma visão relativa da
posição do Brasil no conjunto do ensino superior da América
Latina, que poucos se lembraram de tomar em conta. De
outro lado, todo esse avanço da reflexão comparada
coincidia com os progressos que eu próprio vinha realizando
no estudo da formação e evolução do capitalismo
dependente na América Latina. Ainda não havia chegado ao
fulcro dos problemas suscitados por uma revolução
burguesa em retardamento, regulada por potencialidades
internas muito mais fracas que os dinamismos do mercado
mundial e da eclosão do capitalismo monopolista, com seu
padrão peculiar de imperialismo. Porém, já conseguira
apreender a teia principal de suas limitações intrínsecas.
Podia, portanto, entender o que vinha a ser a tão celebrada
fórmula da “revolução pelo desenvolvimento” e perceber
com realismo o que ela reservava a todas as universidades
da periferia do mundo capitalista contemporâneo, inclusive
na América Latina e, em particular, no Brasil. Isso cobriu-me
diante das ilusões de outros colegas, que viram no “poder
jovem” e na “inquietação estudantil” um duplo avanço de
destruição do arcaico e de construção do moderno, o qual
não era historicamente possível. Apoiei e participei dos
movimentos intelectuais e políticos dinamizados pelas
organizações estudantis, orientando-me, quanto aos
diagnósticos, pelos resultados globais da análise sociológica,
e, no plano político, pelas implicações de um projeto de
reforma que a própria sociedade brasileira, nas suas
manifestações mais avançadas, continha dentro dos limites
do “radicalismo democrático”. Apesar de tudo, o
pensamento conservador transbordou, inclusive a partir de
dentro da universidade brasileira, denunciando os adeptos
da reforma universitária como inimigos públicos do decoro
intelectual e do equilíbrio interno das instituições do ensino
superior!... Não obstante, não fora esse ensaio, a
contribuição que logrei dar, especialmente em A
universidade brasileira: reforma ou revolução?, seria muito
mais pobre.
O terceiro ensaio nasceu de uma problemática mais
complexa.
A coexistência de dois tempos históricos contraditórios e
opostos, em conflito de vida e morte — os tempos de uma
revolução burguesa retardada, que iria se acelerar com o
intervencionismo econômico do Estado e com a irradiação
do capitalismo monopolista através das Nações latino-
americanas “mais viáveis”; e os tempos de uma revolução
socialista em avanço, que mostrou, em Cuba, como se
desenha o presente e o futuro da América Latina —,
desencadeou um processo histórico de consolidação da
dominação burguesa Nacional e Imperial que mobilizou, em
novo estilo, o famoso “braço armado da burguesia”. Nesse
ensaio, aparece a primeira manifestação da posição que
tomei diante dessa típica contrarrevolução a frio (iria tornar-
se a quente, no Chile). O diagnóstico sociológico, nesse
plano, converte-se numa crítica de denúncia. De um lado,
das forças e fatores históricos que criaram essa necessidade
“inelutável” de manter a ordem através da violência estatal.
De outro, do papel que os intelectuais assumiram nesse
bouleversement. Muitos se lembram que não há revolução
sem teoria revolucionária. Contudo, também não há
contrarrevolução sem teoria contrarrevolucionária. O
mínimo que se pode afirmar, sociológica e historicamente, é
que os intelectuais — tanto os “liberais” quanto os
“conservadores” e “reacionários”, de mistura com muitos
“reformistas” inconsequentes — colaboraram ativa ou
disfarçadamente com essa chamada “revolução
institucional” (?!). Cumpria-me dar um balanço e, ao mesmo
tempo, sugerir os rumos de uma tomada de posição
corretiva, que ressuscitasse ou o radicalismo democrático,
esquecido tão depressa, ou as esperanças verdadeiramente
socialistas das “transformações de estrutura”, que não
podem eclodir sem a presença efetiva da maioria na
condução dos processos socioeconômicos e políticos
fundamentais.
Os dois primeiros ensaios focalizam outros temas, na
aparência “menos quentes”: a sociedade escravista das
épocas colonial e imperial; e a situação do negro em São
Paulo vinte e cinco anos depois da pesquisa R. Bastide-F.
Fernandes. Mas, quem é que disse que teríamos “essa”
universidade ou “este” presente se de permeio não
estivesse um passado colonial, que deixou sequelas que
ainda não foram absorvidas nem eliminadas? Além do mais,
como escrevi algures, é a partir do negro que se deverá
tentar descobrir como “o Povo emerge na história” no Brasil.
Muitos dirão que ele não emerge nem nunca emergiu.
Engano redondo. Se não estivesse emergindo, e com certa
impetuosidade, nem “as revoluções institucionais” nem o
Estado autocrático burguês seriam uma imperiosa
necessidade histórica. Além disso, porque o Povo está
emergindo na história, há perspectivas de um presente e de
um futuro de negação do passado. A história subterrânea é
pouco visível e sistematicamente ignorada pelos
historiadores “profissionais”. Ela envolve o atual, aquilo que
está ocorrendo ou está prestes a ocorrer. As classes
dominantes nunca gostaram desse tipo de pesquisa nos
países em que a estabilidade parece ameaçada. No entanto,
o sociólogo tem de aventurar-se às construções de longa
duração e a vincular os resultados da investigação histórica
com as descobertas da pesquisa de campo. É seu dever
“profissional”, mesmo que não seja socialista, ao contrário
do que acontece comigo.
Por causa da escravidão mercantil, o negro não só
aparece como o elo mais frágil e o polo mais explorado de
uma sociedade de alta concentração de riqueza, de poder e
de prestígio social. Ele é, também, queira ou não, o marco
de referência da ruptura para a frente (como tentei
assinalar em “Os aspectos políticos do dilema racial
brasileiro”). Através dele, portanto, não só o passado e o
presente se cruzam — o futuro nos diz o que ele nos reserva
dentro da “democracia racial” de nossa ordem institucional.
O que pode fazer, pelo negro e pelo mulato, um capitalismo
dependente que lança suas raízes em um passado colonial e
escravista tão recente, no qual a acumulação originária teve
na escravidão um dos seus fulcros principais? Tudo isso quer
dizer que, postos lado a lado, os dois ensaios evocam um
ponto de partida e um ponto de chegada, sobre os quais é
forçoso refletir com espírito crítico objetivo. O leitor terá de
colaborar amplamente comigo, para saturar os vazios de
uma confrontação tão ampla. O “negro rico” de São Paulo
não ergue, apenas, a questão da “vez do negro”. Ele nos diz,
claramente, o que o capitalismo da periferia pode assegurar
aos “oprimidos”, em geral, e às “raças submetidas”, em
particular. Há uma igualdade? Ou uma perspectiva de
igualdade? Em que ela consiste? Nas chamadas “nações
pobres” a história possui outros ritmos. Impõe-se saber
como eles se manifestam e aonde eles levam, para que a
autocracia burguesa possa ser denunciada e o Estado
autocrático burguês destruído.
Ambos os ensaios — embora, de modo mais pertinente e
concentrado, especialmente o primeiro — põem-nos diante
da descolonização como processo histórico. Há tempo
venho insistindo na necessidade de dar-se maior atenção à
investigação histórico-sociológica desse processo. O mau
vezo de confundir-se emancipação nacional, como processo
histórico, com descolonização, como processo econômico,
sociocultural e político fez com que as ciências sociais
ignorassem a realidade da América Latina. A emancipação
nacional ocorreu ao nível das estruturas de poder dos
estamentos dominantes e exigiu, como sua base material
necessária, que a descolonização fosse contida e, ao
mesmo tempo, se desenrolasse sinuosamente, como um
processo ultraprolongado. Ainda lutamos não só com as
sequelas de estruturas “herdadas” da era colonial ou da
escravidão. Vemos como o capitalismo competitivo ou, em
seguida, o capitalismo monopolista revitalizam muitas
dessas estruturas, requisito essencial para a intensidade da
acumulação de capital ou a continuidade de privilégios, que
nunca desaparecem, e de uma exploração externa, que
sempre muda para pior. A complexidade dessa situação
histórica sugere que não nos devemos contentar com a
superficial hipótese do “colonialismo interno”. Não nos
defrontamos com algo tão simples. Porém, com uma história
que se recompõe, simultaneamente a partir de dentro (pela
dominação burguesa) e a partir de fora (pela dominação
imperialista), produzindo, constantemente, novos modelos
de desenvolvimento capitalista que exigem a conciliação do
arcaico, do moderno e do ultramoderno, ou seja, a
articulação de antigas “estruturas coloniais” bem visíveis a
novas “estruturas coloniais” disfarçadas. A existência de um
Estado nacional independente apenas complica esse
processo. Porque ele supõe a existência de uma vontade
nacional pela qual a dominação de classe significa, sempre,
esses dois florescimentos concomitantes do capitalismo da
periferia. A crítica sociológica não pode permanecer
impassível e “neutra”, como vem fazendo,
sistematicamente, a análise histórica. É preciso desmitificar
esse processo, desvendando o quantum de descolonização
que não pode ser feito simplesmente porque se restringe ou
se toma impossível uma participação popular revolucionária
nas estruturas de poder da Nação e do Estado. Se não fui
tão longe, pelo menos tive o mérito de mostrar o que os
investigadores precisam fazer no estudo do passado recente
e da época contemporânea no Brasil.
O título deste pequeno livro não deve enganar ninguém. O
circuito fechado constitui uma equação metafórica de um
dos ângulos da situação que prevalece graças aos tempos
retardados da revolução burguesa. A história nunca se fecha
por si mesma e nunca se fecha para sempre. São os
homens, em grupos e confrontando-se como classes em
conflito, que “fecham” ou “abrem” os circuitos da história. A
América Latina conheceu longos períodos de circuito
fechado e curtos momentos de circuito aberto. No entanto,
o modo pelo qual se dão as coisas, nos dias que correm,
revela que “o impasse de nossa era” não consiste mais no
caráter perene da repressão e da opressão. Os que
reprimem e oprimem, nestes dias, lutam para impedir o
curto-circuito final, que para eles vem a ser o
desaparecimento de um Estado antagônico à Nação e ao
Povo, ou seja, um Estado que, como todo o Estado elitista,
tem sempre de “fechar a história” para os que não estão no
poder. Nesse sentido, vivemos a pior fase da transição,
aquela na qual a autodefesa do privilégio pela violência
sistemática, organizada, institucionalizada e “legitimada”
através do poder concentrado do Estado, dá a impressão
que o “passado é perene” e que tenderá a reproduzir-se no
futuro como se reproduzia socialmente no passado. Pura
ilusão. A virulência do processo não indica uma história em
crescendo mas uma história em declínio. Enfim, a
proximidade do ponto morto do clímax de uma crise, que
poderá durar ainda algumas décadas, mas como “o começo
de uma nova era”.
 
 
 
Resta-me agradecer o incentivo de um colega que fez tudo
que pôde para animar-me a reunir ensaios tão heterogêneos
em um pequeno livro. Trata-se do professor Jaime Pinsky, a
cujo convívio devo algumas das poucas aberturas que
tenho, atualmente, para o dia a dia brasileiro. Ao mesmo
tempo queria agradecer à Editora de Humanismo, Ciência e
Tecnologia “Hucitec” Ltda., e especialmente a Adalgisa
Pereira da Silva e a Flávio George Aderaldo, a programação
e a edição do livro.
 
FLORESTAN FERNANDES
São Paulo, 16 de março de 1976
PRIMEIRA PARTE

B R A S I L:
P A S S A D O   E   P R E S E N T E 
Eu canto aos Palmares
odiando opressores
de todos os povos
de mão fechada
contra todas as tiranias!
SOLANO TRINDADE (Canto dos Palmares)
CAPÍTULO 1

A   SOCIEDADE   ESCRAVISTA
NO   BRASIL[1]

O BRASIL CONHECEU, em sua história colonial e independente,


várias formas de escravidão, as quais se associaram à
escravização de raças diferentes, com caracteres étnicos e
culturais distintos, e a formações socioeconômicas
escravistas diversas. Em quase quatro séculos, em que a
escravidão se constituiu e se refez em conexão com as
determinações diretas e indiretas dos vários “ciclos
econômicos”, não foi só a história que se alterou. Com ela
se alteraram as relações de produção, a estratificação da
sociedade e a articulação das raças contidas nos vários
polos da dominação escravista.
O propósito deste artigo não consiste em fazer um
levantamento global sistemático de todas essas
diferenciações, ocorridas, de modo simultâneo, no espaço,
ou de modo sucessivo, no tempo. Lembramos em primeiro
lugar as diferenciações para que se tenha em mente que
não nos entregamos a uma simplificação grosseira e para
deixar claro que elas aparecem como o ponto de partida de
qualquer reflexão sociológica sobre o assunto. Contudo, o
nosso objetivo central é outro. Propomo-nos a esboçar uma
espécie de síntese, que procura pôr em relevo os elementos
estruturais e dinâmicos invariantes, os quais tornaram esse
conjunto de diferenciações possível e, mesmo, necessário.
Portanto, vamos nos concentrar naquilo que, na
reconstrução e na explicação da realidade, Marx entendia
como os “pontos de chegada”. Infelizmente, os resultados
prévios da pesquisa histórica, econômica e sociológica não
nos permitem trabalhar à vontade com as totalidades que
nos interessam, que se encadeiam às “grandes
transformações históricas”, mas não são, apenas, “produtos
da história”, pois também contam como “as suas causas”.
A reflexão sociológica, concebida dessa maneira,
converte-se numa espécie de “história interpretativa de
longa duração”. Não vamos nos penitenciar por isso. A
tradição especulativa, que leva a uma condenação da
história, não nasce da sociologia clássica, mas de
influências filosóficas que as principais correntes da
sociologia clássica já haviam superado, nos quadros
intelectuais de sua formação e consolidação. Tampouco
concordamos com os que pensam que a reflexão
sociológica, concentrada em realidades históricas de longa
duração, não leva a nada ou desemboca em uma história
metafísica, “sem fatos”. Numa época em que a sociologia
diferencial (ou histórica) se reconstitui e recolhe o que há de
melhor nas diretrizes ontológicas, metodológicas e teóricas
da análise dialética, esse nos parece, ao contrário, o melhor
caminho para estabelecer os “conhecimentos precisos”, que
devem estar na raiz de qualquer estudo comparado na
investigação sociológica.
É pacífico que não se pode progredir muito, em qualquer
campo de estudos comparados nas ciências sociais, antes
que se introduza um máximo de clarificação analítica, ao
mesmo tempo conceitual e teórica, na reconstrução, na
descrição e na interpretação das realidades que se
pretendam comparar. Em um artigo tão pequeno como este
não podíamos alimentar muitas pretensões. Porém, temos
plena consciência de que tentamos abrir uma perspectiva
correta e frutífera, especialmente quando se tem em mira a
localização do Brasil escravista neste simpósio sobre o
estudo comparado das sociedades de plantação no Novo
Mundo.
A PRODUÇÃO   ESCRAVISTA   E   SUA   EVOLUÇÃO

SE EXCETUARMOS ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES (e muitas delas devidas


às peculiaridades dos Estados Unidos), os estudiosos da
escravidão têm encarado suas relações com o capitalismo
da perspectiva das sociedades metropolitanas. Na verdade,
como conexão imediata da escravidão, o capitalismo se
desenvolveu lá — e, em particular, não nas sociedades
metropolitanas em geral, mas naquelas que podiam
preencher hegemonia através do poderio político-militar e
financeiro-comercial. É preciso fazer uma rotação nessa
perspectiva. O que aconteceu dentro da colônia e no
rebento tardio, que vem a ser a eclosão modemizadora do
capitalismo nas sociedades de origem colonial?
Essa pergunta é importante, quando se tem em vista os
países da América Latina e, entre eles, o Brasil em
particular. As economias exportadoras de “gêneros coloniais
ou de produtos tropicais” não só nasceram profundamente
especializadas: essa especialização foi imposta pelas
antigas metrópoles e, embora mantida pelo mercado
mundial depois da emancipação nacional, nunca deixou de
ser uma especialização colonial propriamente dita. Daí
temos um paradoxo: a emancipação nacional condiciona e
se alimenta da preservação de estruturas e dinamismos
coloniais, que não poderiam ser destruídos sem criar
impossibilidades quer para a eclosão modernizadora, quer
para a expansão inicial de um mercado especificamente
moderno e do capitalismo comercial que ele implicava, quer
para a consolidação de uma economia urbano-comercial
capitalista nas cidades e sua irradiação para o campo. As
pressões para manter formas de produção e estruturas
coloniais vinham, pois, simultaneamente, “a partir de
dentro” (dos grupos dominantes na economia e na
sociedade) e “a partir de fora” (da expansão dos países
industriais e dos dinamismos do mercado mundial). No
conjunto, a colonização formava, aí, a realidade-matriz,
profunda e duradoura; a descolonização surgia, com
frequência, como uma realidade recente, oscilante e
superficial, incapaz de gerar, por si própria, as forças de
autodestruição do “mundo colonial” persistente ou de
autopropulsão do “desenvolvimento capitalista moderno”
incipiente. Portanto, atrás de uma aparente ebulição
capitalista, deparamos com estruturas coloniais que se
fixam no mundo capitalista emergente, através de
amálgamas e composições que irão revelar duração secular
ou semissecular, o que as converte no “outro lado
necessário” do capitalismo da periferia da Europa da
revolução burguesa e do nascente capitalismo industrial.
No cenário da América Latina, o Brasil é um “caso ideal”
para o estudo das conexões da escravidão com o
desenvolvimento interno do capitalismo. Devido à
importância e à universalidade da escravidão, ela alcançou
uma influência construtiva homogeneizadora, que nem
sempre possuiu em outras partes, e por ela tiveram de
passar os momentos iniciais de constituição de um mercado
interno não colonial, ou seja, ela se insere, com relativa
rapidez, entre os pré-requisitos tanto da eclosão capitalista
modernizadora, quanto da formação, consolidação e
diferenciação do capitalismo comercial. Na etapa de crise
final da produção escravista-colonial, dela irrompe também
a negação do regime escravocrata e senhorial, se não
através da atuação revolucionária das massas escravas, que
não chegou a ocorrer como “fator tópico” das
transformações históricas, pelas cisões, rupturas e
convulsões que converteram o abolicionismo numa
“revolução do branco para o branco” (ou seja, em uma
irrupção revolucionária “dentro da ordem”, que leva a
descolonização à estrutura e aos dinamismos do mundo que
o português criou, ou seja, da ordem escravocrata e
senhorial).
Tudo isso tem sido negligenciado, por uma razão bem
simples. Ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos,
aqui não se poderia opor regiões contrastantes em termos
de formas de produção e de estruturas sociais ou de poder;
e, de outro lado, os ritmos evolutivos foram descontínuos e
muito lentos. Perdeu-se de vista, assim, o que a escravidão,
que aparecia de modo visível como o principal esteio de
perpetuação de tudo que era colonial e senhorial,
representava para a emergência, a consolidação e a
irradiação do que era capitalista e moderno. As conexões
estruturais e dinâmicas, muitas delas institucionais, que
surgiam nesta esfera, ocorriam ao longo de um gradiente
diacrônico: não eram, portanto, visíveis de maneira direta
ou saliente. O que se pode descobrir comparando dois
estilos de vida coexistentes, nos Estados Unidos, no caso
brasileiro só se percebe com nitidez estabelecendo-se as
sequências de uma evolução histórica de ritmos oscilantes,
em zigue-zagues, e de sentido ambíguo. Contudo, nem por
isso a realidade é menos imperativa. O desaparecimento
tardio da escravidão acaba por convertê-la em um dos
fatores da “acumulação originária” na cena histórica
brasileira. Não se trata, pura e simplesmente, de constatar
que a escravidão desaparece e é enterrada com “a crise do
regime escravocrata e senhorial”. Ela alimentou essa crise,
inclusive no plano construtivo, já que sem a persistência da
escravidão e a transferência do excedente econômico que
ela gerava para as cidades (segundo ritmos históricos
lentos) a “história ocorrida” seria inexequível. Não
advogamos, com isso, que se ponha a imigração e outros
fatores em um segundo plano. Mas, apenas, que não se
conte a história tão depressa e tão por cima a ponto de
deixar-se na penumbra a verdadeira camada primária desse
“mundo moderno” de raízes tão arcaicas.
Se se adota este amplo ponto de vista descritivo e
interpretativo, podem-se estabelecer dois tipos de
confronto. O primeiro, apanhando as fases socioeconômicas
da evolução do sistema de produção e de dominação
econômica. Têm-se, aí, três períodos ou fases mais ou
menos bem delimitados historicamente:[2] 1º) a era
colonial, que se caracteriza pelo controle direto da Coroa e
pelos efeitos do antigo sistema colonial na organização do
espaço ecológico, econômico e social; 2º) a era de transição
neocolonial, que vai, grosso modo, do início do século XIX,
com a chegada da familia imperial, a abertura dos portos e
a Independência, até a sexta década do século XIX, a qual é
caracterizada pela eclosão institucional da modernização
capitalista e a formação de um “setor novo da economia”,
ambas girando em torno da constituição e irradiação de um
mercado especificamente capitalista, implantado nas
cidades com funções comerciais dominantes (em
consequência de suas conexões com o mercado mundial e
por começarem a funcionar como centros de concentração
dos negócios ou de movimentação do excedente econômico
retido internamente); 3º) a era de emergência e expansão
de um capitalismo dependente, nascido do crescimento e
consolidação do “setor novo da economia”, que primeiro se
configura como uma economia urbano-comercial com
funções satelizadoras em relação ao campo e, em seguida,
se reorganiza, transfigura e redefine como uma economia
urbano-industrial, com funções integrativas de escala
nacional e tendências de dominação metropolitanas, era
esta que vai da sexta década do século XIX aos nossos dias.
O segundo confronto permite considerar as fases da
evolução do sistema social de poder. Têm-se, aí, o largo
período colonial e as duas eras da emancipação nacional, a
primeira delimitada pela reintegração da ordem
escravocrata e senhorial no Império e a última, pela
emergência e consolidação de uma ordem social
competitiva.[3] Ou seja, uma era em que a continuidade da
ordem escravocrata e senhorial convertia o Estado nacional
em um Estado senhorial e, portanto, escravista; e outra era
na qual a expansão da ordem social competitiva dá à luz um
Estado burguês propriamente dito, através de um
prolongado e conturbado parto histórico. A evolução
ocorrida indica que foi preciso mais de meio século para que
a descolonização atingisse, por fim, todas as estruturas de
poder das classes dominantes e a organização do Estado
nacional.
De acordo com uma ou outra dessas perspectivas, o
funcionamento e o rendimento da escravidão são vistos
como contraparte de um contexto histórico-estrutural
regulador e determinante. Se se constrói o contexto
histórico-estrutural a partir do sistema de produção e de
dominação econômica, o que ganha saliência são as
funções econômicas da escravidão, que variam ao longo da
evolução apontada. Se se constrói o contexto histórico-
estrutural a partir do sistema social de poder (e, portanto de
dominação política), o que ganha saliência são as funções
sociais da escravidão, que variam menos mas, ainda assim,
também sofrem transformações ao longo da evolução
apontada. Em um tratamento analítico exaustivo, a primeira
modalidade de reconstrução teria de passar da base
econômica para as estruturas sociais de poder (ou “as
superestruturas do sistema”), para que o quadro ficasse
completo. E reciprocamente, a segunda modalidade de
reconstrução teria de abranger, forçosamente, as
determinações e as implicações da base econômica sobre o
sistema social de poder e de dominação política. A nossa
exploração de ambas as perspectivas será naturalmente
limitada pelo alcance deste artigo (a primeira, com um
pouco mais de extensão, nesta parte; a segunda, muito
parcialmente, na parte subsequente). Os materiais
empíricos e a principal bibliografia de referência, que
fundamentam essa excursão analítica, encontram-se em
obras já publicadas.[4]
Em termos da apropriação do homem pela violência, a
“escravidão moderna” apresenta muitos pontos de contato
e de semelhança com a “escravidão antiga”. No entanto, a
escravidão moderna é, em sua essência, uma escravidão
mercantil: não só o escravo constitui uma mercadoria, é a
principal mercadoria de uma vasta rede de negócios (que
vai da captura e do tráfico, ao mercado de escravos e à
forma de trabalho), a qual conta, durante muito tempo,
como um dos nervos ou a mola mestra da acumulação do
capital mercantil. De outro lado, embora o senhor
comprasse o escravo, o que ele queria era a energia
humana, não como simples variedade ou equivalente da
“energia animal em geral”, porém como uma modalidade de
energia que podia ser concentrada e utilizada
intensivamente, através da organização social do trabalho
escravo, como se o organismo humano fosse uma máquina.
O inconveniente de que essa máquina não só se desgastava
mas também perecia durante o processo de produção
apenas intensificava o circuito da circulação, tornando tal
rede de negócios uma inexaurível mina de ouro.
Aí temos as duas conexões fundamentais da escravidão
com o capitalismo no período colonial, não se indo de
dentro para fora, mas ficando-se no eixo colonial do
crescimento interno da economia. No nível do “mercado das
peças” a Colônia estava institucionalmente incorporada ao
espaço econômico da Metrópole e, também, dos centros
econômicos a que esta se subordinava. Nesse plano,
portanto, a plantação e a mineração (com outras formas
subsidiárias de produção) faziam parte, de fato, de uma
“periferia”. Por definição, uma colônia de exploração não
pode ser, em sentido estrito, uma periferia. A exclusão do
espaço econômico metropolitano representa, aliás, um dos
requisitos para que a colônia de exploração possa funcionar
com eficácia e com um mínimo de atritos. O inverso pode
ocorrer (mas não é necessário que ocorra, pelo menos nos
estágios de implantação) com uma colônia de povoamento.
A instituição do trabalho escravo sublinha bem a extensão e
a profundidade em que se dava a exclusão. No entanto, a
articulação entre a Colônia e a Metrópole se estabelecia na
“rede de negócios” imposta pela organização do comércio
do escravo, em larga escala, o que impunha aparelhar a
Colônia de meios institucionais para dar vazão regular ao
fluxo de compra e venda de escravos. Isso implicava uma
diferenciação do mercado colonial, pondo-o a funcionar,
nesse nível, como extensão e em condições similares ao
mercado metropolitano (embora com uma flutuação do
elemento especulativo que emanava do caráter colonial do
mercado, das práticas de extorsão que ele comportava e da
escassez cíclica daquela mercadoria, produto dos azares do
negócio ou das incertezas do mercado colonial).
Ao mesmo tempo, através do caráter mercantil da
escravidão, o capital mercantil penetrava as formas de
produção pré-capitalista a que ela se associava. É por essa
razão que Marx sublinha que a plantação, nos Estados
Unidos, nada tinha de patriarcal. Como parte de uma
economia patriarcal, embora possa ocorrer a exploração
econômica do escravo, este não conta como mercadoria e
como fonte de uma “indústria”. Mesmo que utilizasse
escravos nativos, o senhor tinha de penetrar no circuito do
capital mercantil. Com o “tráfico africano” e a
universalização do trabalho escravo de origem africana,
essa conexão se torna mais ampla e profunda. Assim como
tinha de participar do circuito comercial para negociar seus
produtos, o senhor precisava incorporar-se a esse circuito
para comprar (ou vender) escravos. Apesar de o grosso
dessas atividades envolver operações de crédito e
pagamentos em espécie, elas eram estimadas em termos
monetários e requeriam um envolvimento da plantação e da
mineração (bem como das formas de produção subsidiárias)
no âmago do circuito do capital mercantil. Quando menos, o
senhor convertia-se em um agente deste capital e o seu
excedente — que era um excedente produzido pelo trabalho
escravo, de modo direto (quando o senhor explorava suas
unidades de produção) ou de modo indireto (quando o
senhor se beneficiava da produção alheia, também operada
por escravos) — correspondia à parte que lhe ficava no
complexo rateio da apropriação colonial, graças ao fato de
ele possuir e explorar o trabalho escravo. Portanto, a
conexão do senhor com o capital mercantil se dava em dois
pontos relativamente débeis, o da negociação dos produtos
e o da negociação dos escravos, que o expunham à
ganância dos agentes diretos desse capital e o tornavam,
gostasse ou não, um “parceiro menor” na repartição e no
desfrutamento do butim colonial.[5] Contudo, por causa
mesmo desses dois pontos, o senhor fazia parte do “mundo
de negócios” colonial-metropolitano e a própria escravidão
constituía o suporte material dos papéis econômicos daí
resultantes, graças aos quais ele tinha acesso regular e
institucionalizado à acumulação de capital mercantil (pouco
importando o resultado final do processo: entesouramento;
imobilização do excedente econômico sob a forma de
escravos e/ou de novas unidades de produção; troca de
mercadorias; remessa de mercadorias ou de créditos para a
Metrópole; investimento no tráfico, no contrabando, em
transações comerciais e na aquisição de propriedades na
Metrópole ou em operações financeiras visando aos
transportes e ao comércio com outras colônias; aquisições
de títulos de nobilitação ou participação de
empreendimentos da Coroa etc.). A vasta maioria dos
senhores e dos colonos não podia ir tão longe, condenando-
se a uma inclusão marginal nessas manifestações do
capitalismo comercial, pouco consistente e vitalizado pelas
estruturas e dinamismos da economia colonial propriamente
dita.
Portanto, a questão do que é uma “periferia” na
constelação econômica de uma colônia de exploração vem
a ser algo deveras importante. Nem a Metrópole nem as
nações que detinham a hegemonia do comércio e das
finanças no mercado mundial tinham interesse ou estavam
empenhadas em imprimir à produção e ao mercado
coloniais do Brasil um padrão de organização e de
crescimento análogo ao que tinha vigência
institucionalizada na Europa. Na verdade, esse padrão só se
aplicava ao Brasil colonial de modo muito restrito, rígido e
segmentado — e por uma razão muito clara: para dar vazão
às fases das operações mercantis que tinham de se
desenrolar aqui, através de agentes ou de prepostos da
economia metropolitana e sob seu controle direto. Essas
fases de operações não eram muitas nem alcançavam
notável diferenciação, pois sob esse aspecto as conexões
eram muito similares a de um entreposto de grande porte.
Portanto, era possível dar viabilidade, eficácia e
continuidade a tais fases de operações, que precisavam ser
transplantadas e pelo menos parcial ou segmentarmente
ativadas a partir de dentro da economia colonial; sem criar-
se o risco de que elas engendrassem um crescimento
econômico que transcendesse os limites da produção e do
mercado coloniais (suscitando processos extra e
anticoloniais em nível econômico). Os autores que recorrem
à tese de que a política econômica colonial da Coroa evoluiu
insensivelmente da “colônia de exploração” para a “colônia
de povoamento” cometem um terrível equívoco. A
transplantação de núcleos imigrantes portugueses (e por
vezes de elementos de outra nacionalidade) não se prendia
ao fato de engendrar, aqui, uma extensão demográfica,
econômica, sociocultural e política da sociedade
metropolitana. Nem a lavoura nem a mineração nem os
típos de produção subsidiária que se desenvolveram através
delas acarretaram esse desfecho. O povoamento resultava
da necessidade de produzir o butim. Este não existia pronto
e acabado. Para colhê-lo era preciso produzi-lo. E se o
caráter das orientações da Colônia se alterou, isso não
decorreu de uma política deliberada e aplicada com certo
afinco. Mas da lenta reação da população da sociedade
colonial, que descobriu que o antigo sistema colonial não
reproduzia nem levava a outra coisa senão ao próprio
sistema colonial.
Por aí se vê como se põe (e como se deve interpretar
sociologicamente) o problema da conexão do capitalismo
comercial com a escravidão colonial e mercantil. Esta dava
suporte material a fortes fluxos do capitalismo comercial na
Europa (naturalmente, os que se articulavam à “exploração
colonial”) e a alguns dinamismos comerciais que eles
tinham de infiltrar na estrutura e no funcionamento do
“sistema colonial”. Todavia, os setores privilegiados da
economia e da sociedade coloniais não tinham como tirar
proveito e expandir esses “efeitos de infiltração”. Eles não
viviam em um meio econômico como o europeu: o sistema
de produção e o mercado da Colônia não os arrastavam
para a voragem da revolução econômica desencadeada
pelo capitalismo comercial na Europa. Suas funções
especificamente econômicas começavam e terminavam
dentro de uma faixa estreita e estática, delimitada pela
produção e pela reprodução do sistema econômico colonial.
É certo que algumas figuras tentaram ultrapassar esses
limites. Esses casos são elucidativos, já que revelam a
tenacidade do bloqueio. Elas sentiram bem depressa a mão
pesada da Coroa, dos interesses metropolitanos ou
ultrametropolitanos. De outro lado, a própria escravidão
colonial e mercantil não podia servir como ponto de apoio
para alterar essa situação. Por sua estrutura e dinamismo,
ela era pré-capitalista e não tinha como expor, a partir de si
mesma, o mercado colonial a uma irradiação que
revolucionasse o seu padrão de organização e de
crescimento. Como tentamos sugerir, ela era uma
necessidade, mas não uma parte da periferia: o ponto onde
o mundo colonial se distinguia, se opunha e negava o
mundo metropolitano. Ela só tinha existência como o meio
inevitável para criar-se uma riqueza ou um butim que não
se encontrava pronto e acabado em estado natural. Como
conexão do capitalismo comercial, ela era um investimento
de capital mercantil — investimento, aliás, que não se dava
apenas na escravaria — e, por vezes, de magnitude
considerável. Entretanto, esse capital nunca perdeu o seu
caráter estritamente mercantil e, ao mesmo tempo, fechado
sobre si mesmo, o que somente poderia acontecer pela
supressão da escravidão e pelo desaparecimento da
exclusão que o estatuto colonial impunha sobre a produção
escravista.
Este modo de entender o assunto requer uma modificação
da análise habitual. Impõe-se precisar a categoria de
apropriação no contexto histórico do sistema colonial. Na
verdade, essa categoria envolvia dois tipos de relação
superpostas. De um lado, estava a apropriação realizada
pelo senhor no nível da produção escravista e da exploração
do trabalho escravo. Contudo, essa apropriação não se
esgotava em si mesma: o proprietário do escravo, e,
portanto, proprietário de sua força de trabalho e do seu
produto, não era proprietário exclusivo do excedente gerado
pela produção escravista, cujo valor, nos setores de maior
significação econômica, se realizava, necessariamente, fora
e acima da Colônia. Em termos relativos (e não de uma
comparação extemporânea com a produção capitalista),
esse excedente não era tão pequeno. Boa parte da análise
de sua formação se funda na ideia de que ele resultava,
pura e simplesmente, da extensão da jornada de trabalho
associada ao controle coercitivo do trabalho escravo. No
entanto, o que é específico da formação da mais-valia
absoluta da produção escravista não são esses dois
elementos, quase sempre típicos das fases de implantação
ou de escassez da força de trabalho escravo. O elemento
específico consiste no trabalho combinado, que sem criar
exigências de intervenção no nível técnico permitia
aumentar a produtividade. O próprio uso do controle
coercitivo da violência não se prendia somente à
necessidade de intensificar a jornada de trabalho. Ele
procedia do fato que o trabalho combinado acarretava uma
disciplina que tirava da violência e da força bruta o caráter
de um fim em si.[6] Vendo-se as coisas desse ângulo,
percebe-se que o trabalho escravo comportava uma vasta
gama de realização eficiente e inclusive de flexibilidade e de
aperfeiçoamento do seu agente. Bem como implicava certos
intervalos, que, não sendo preenchidos pela técnica, tinham
de ser saturados através do trabalho semilivre ou, mesmo,
do trabalho livre (embora, como regra, numa extensão
superficial e limitada). De outro lado, existia um circuito de
apropriação, em parte legal, político e fiscal e em parte
econômico, que constituía a essência da apropriação
colonial. O excedente econômico não era produzido para o
desfrute exclusivo do senhor, mas para entrar nesse
circuito. Aí, senhor, Coroa e negociantes, todos eram
“escravos” do capital mercantil. Nessa relação, o poder
político-legal e o poder econômico determinavam
desigualdades insuperáveis. Sob esse pano de fundo, o
senhor não passava de um duplo agente, em condição
mistificada e ambígua, da Coroa e do capital comercial na
economia colonial. A Coroa extraía a sua alíquota por via de
um extorsivo sistema de associação, concessões e
tributação, que não vem ao caso examinar aqui.
Os negociantes, metropolitanos ou dos centros
econômicos hegemônicos, desvendavam o mistério da
relação, levando-a ao plano concreto do desdobramento do
negócio como um todo. Algumas partes e certas fases do
negócio se desenrolavam no cenário comercial e financeiro
da Metrópole; porém, a parte substancial se encontrava nos
núcleos estrangeiros, que manipulavam à distância e
indiretamente os nervos das economias coloniais e de sua
articulação às economias e ao mercado mundial: a
mercantilização dos “produtos coloniais” e todas as
operações ou resultados financeiros de vulto iam ter nas
suas mãos. Portanto, como o senhor, a Coroa e a Metrópole
não ficavam com “a parte do leão”. O capital mercantil tecia
as redes que não deixavam escapar os peixes grandes e o
seu apetite era insaciável.
Essa superposição de formas de apropriação nunca foi
estudada de modo conveniente: como se ignoraram as
implicações econômicas da natureza mercantil da
escravidão moderna, também se deu pouca importância ao
fato de que a apropriação escravista não passava de uma
das facetas da apropriação colonial. Entre o senhor e o
escravo havia uma relação econômica, embora ela não
fosse capitalista (a menos que se queira caracterizar toda
aplicação de capital como capitalista e se esqueça que a
produção capitalista exige o aparecimento de uma categoria
histórica, que se chama “mais-valia relativa” em termos
marxistas). O escravo era propriedade do senhor e também
contava como a quase totalidade do seu fundo de capital. E
o senhor tinha a ilusão de que se apropriava de modo direto
e imediato tanto do produto do trabalho escravo, quanto do
excedente econômico gerado pelos colonos independentes
ou dependentes, que lhe estivessem submetidos, em suas
unidades de produção. Contudo, a escravidão colonial e
mercantil não fora erigida para ser um “negócio privado” no
sentido estrito e preciso do capitalismo industrial. Ela devia
produzir e reproduzir um butim, a ser compartilhado pelo
senhor, pela Coroa e seus funcionários, pelos negociantes
metropolitanos e ultrametropolitanos. Esse butim, no plano
em que se dava a partilha colonial dos frutos da pilhagem,
perdia qualquer ligação com as suas origens. Aí, nem a
produção escravista nem a propriedade do senhor
contavam para qualquer efeito. O que importava eram as
“mercadorias” e as “riquezas” que entravam, através desse
singular rateio — provavelmente o mais odioso tipo de
pilhagem da história humana —, na circulação engendrada
pelo capital mercantil. É deste patamar que se desvenda o
que era a escravidão colonial e mercantil como uma
totalidade, bem como quais eram seus laços com um
capitalismo comercial de pilhagem, com as irradiações que
ele estabelecia na direção da economia colonial e no seio da
economia metropolitana, das economias comerciais
hegemônicas e do mercado mundial.
Na evolução subsequente — na era de transição
neocolonial e no período da era de formação do capitalismo
dependente durante o qual o trabalho escravo continuou a
existir — a escravidão manteve o seu caráter mercantil. Por
isso, todas as ligações estruturais e dinâmicas apontadas
acima não desapareceram, mas se consolidaram, seja a
partir de dentro, seja de fora para dentro ou de dentro para
fora. No entanto, nunca se entenderá convenientemente
certos processos econômicos que afetaram a organização
da economia colonial, em sua base escravista, e a
modificação da relação dinâmica da escravidão com a
acumulação de capital mercantil no Brasil, se se ignoram
certos efeitos de encadeamento do fim da mineração e, em
particular, o que a crise do antigo sistema colonial
representou para a operação da escravidão mercantil como
fator construtivo das transformações econômicas. A
investigação histórica, econômica e sociológica tem dado
maior atenção a aspectos ou efeitos que se relacionam com
o eixo de gravitação da crise do próprio trabalho escravo,
que iria enfrentar as pressões inglesas, quanto à supressão
do tráfico, ou as pressões internas das leis
emancipacionistas, que dominam historicamente as
tendências gerais de um longo período, que poderia ser
descrito como “o período de crise final da instituição”. De
outro lado, como ocorria no horizonte intelectual dos
senhores e dos negociantes, ao que parece os cientistas
sociais também perfilharam a ideia de que o trabalho
escravo constituía um “fato natural” e tão natural que
descrevem as últimas transformações da economia colonial
e os principais processos da constituição da lavoura do café
e de sua irradiação econômica interna como se a escravidão
mercantil se perdesse nas fímbrias dos “fatores naturais da
produção”. Contudo, até o fim, apesar de incorporar-se ao
capital fixo, o trabalho escravo sempre foi um fator humano
e mesmo depois que a imigração já contava como o eixo
histórico da evolução do sistema de trabalho, o que só
ocorre na década de oitenta, ele representou a base
material da revolução histórica que se dá na economia
interna.
Não nos é possível fazer uma exposição sistemática de
todos os fatos que consideramos de significação histórica
explicativa. Vamos arrolar, tratando em conjunto as duas
eras (mas deixando claro o que ainda era típico da era
colonial ou o que se prende especificamente a cada uma
das outras duas eras mencionadas), como a escravidão
mercantil funciona, de um lado, como a base material da
revitalização da grande lavoura e de perpetuação das
estruturas de produção coloniais, e, de outro, como o fator
sine qua non, o capital mercantil, não se concentraria nem
cresceria nas cidades, o que quer dizer que, sem o trabalho
escravo, não teríamos a forma de revolução urbano-
comercial que é típica da evolução da economia brasileira
ao longo do século XIX. Se essa revolução culmina no fim da
década desse século e atinge o seu apogeu sob o trabalho
livre, isso não significa outra coisa senão que a
diferenciação alcançada sob o trabalho escravo pela
economia interna exigia outra forma de trabalho — e não
que, sem a escravidão mercantil, o capitalismo comercial
teria crescido sobre seus próprios pés nas zonas urbanas e
imposto à grande lavoura um novo padrão de organização e
de crescimento econômicos.[7] A nossa história tem sido
contada de uma perspectiva branca e senhorial; por isso,
ela deixa o escravo, como agente humano e econômico, na
penumbra, e quando não se lembra pura e simplesmente de
condenar a escravidão, descreve os processos econômicos
de uma perspectiva tão abstrata, que prescinde de um dos
elos da “ação econômica” e da “produção agrícola”, que até
a penúltima década do século XIX foi o trabalho escravo.
A economia de plantação colonial-escravista articulou,
entre si, várias formas de produção subsidiárias e várias
regiões da Colônia. Em muitas dessas formas de produção,
o trabalho escravo encontrava uma utilização meramente
seletiva ou segmentar. Mas, isso não é importante. O que
possui importância é que essa irradiação da economia de
plantação explica a generalização precoce da escravidão
mercantil na economia colonial, com o branco refugando o
“trabalho mecânico” pela existência do escravo e as
oportunidades das “fronteiras abertas”. Contudo, foi o ciclo
de mineração que produziu os efeitos de encadeamento
que, de um lado, suscitaram uma expansão da economia de
plantação “para o sul” e, de outro, puseram o escravo no
âmago de “uma revolução econômica dentro da ordem”. A
mineração e a exploração diamantífera incorporaram uma
vasta área do território colonial aos setores produtivos da
Colônia, provocando o aparecimento e a expansão de
formas de troca, de produção de mantimentos e de
circulação de riquezas que só foram conhecidas
anteriormente, na América Latina, no México e no Peru.
Apesar da curta duração desse período, os seus efeitos de
longa duração foram consideráveis. A Coroa com seus
funcionários não puderam impedir várias modalidades de
retenção do ouro (e em escala menor mesmo dos
diamantes) pelos operadores diretos ou pelos agentes
econômicos que controlavam tais atividades. Por isso, ao
terminar o episódio, havia muita “gente rica”, pelo
entesouramento encoberto, pela posse de escravos, e como
resultado das trocas comerciais. À retração progressiva e à
aniquilação de formas subsidiárias de produção e do
comércio, segue-se um processo quase simultâneo, em
algumas regiões, ou relativamente lento, em outras, pelo
qual o dinamismo da economia colonial se revela em toda a
plenitude — e isso pela primeira vez! Gente originária de
Minas, do Rio de Janeiro, do Nordeste, do Norte e de São
Paulo aparece em vários empreendimentos que iriam
modificar a paisagem da antiga zona estagnada ou
subdesenvolvida da economia colonial. O açúcar e
especialmente o café estão na base dessa expansão, que
iria se consolidar e amadurecer como o ciclo do café. Para
se ver a função desempenhada pela escravidão mercantil
nesse complexo processo, é preciso deter-se na área onde a
transição foi mais morosa e difícil.[8] No Oeste paulista,
pessoas que se ocupavam na mineração ou no comércio de
alimentos e de muares, viam-se com uma riqueza
imobilizada, na forma de escravaria, que não podia ser
negociada (por causa do estado geral da economia da
Colônia na época) e que não encontrava utilização
reprodutiva nos quadros da economia de subsistência da
região. Inicia-se, então, uma cadeia de experiências
sucessivas, pelas quais esses senhores tentaram descobrir
um “gênero colonial” que pudessem explorar e exportar. Por
fim, fixaram-se no café e lograram escapar ao círculo vicioso
com que se defrontaram. Esse exemplo é característico.
Como indica com razão Caio Prado Júnior, a economia de
plantação escravista tinha de crescer em sentido horizontal.
Os efeitos de encadeamento que consideramos mostra
como se deu o que poderíamos chamar de “incorporação de
novas fronteiras” à economia de plantação colonial. A
riqueza entesourada sob a forma de ouro ou de diamantes
não estava condenada a perecer. O mesmo não sucedia
com a escravaria. Portanto, quer nas áreas de
desenvolvimento lento, quer nas áreas de desenvolvimento
rápido, a escravidão mercantil estava por trás de uma
modificação tão substancial dos quadros históricos da
economia colonial. Indo-se ao fundo da análise, o que se
descobre não é apenas que a escravidão mercantil produzia
e reproduzia a si própria. Ela também promovia a sua
extensão e generalização, pois estas condições estavam na
própria raiz da produção e da reprodução do trabalho
escravo pelo escravo.
Esse processo achava-se em pleno florescimento quando
se dá a transplantação da família real para o Brasil, ocorre a
abertura dos portos e os episódios que levariam à
Independência. O que significa que a fase neocolonial,
apesar de coincidir com o desenrolar do processo
dominante da emancipação nacional, cria um contexto
histórico próprio, no qual o fato mais saliente é a vitalidade
em crescendo da economia de plantação. Essa vitalidade
não só provinha da escravidão mercantil: ela só poderia
manter-se e aumentar pela perpetuação e fortalecimento da
escravidão mercantil. As camadas senhoriais e os círculos
dos negociantes urbanos não precisavam “buscar
alternativas econômicas novas”. O seu problema central
consistia em como dar continuidade ao tráfico africano e
adaptar o uso da força de trabalho escravo às condições
que se criavam com esse deslocamento de fronteiras da
economia de plantação. Em consequência, os seus
interesses levam diretamente a uma política
ultraconservadora, pela qual, em nível econômico, o
essencial consistia em manter a produção escravista como
a base material do sistema. Ou seja, a escravidão mercantil
seria o fulcro da continuidade da ordem senhorial e
escravocrata. Em torno dela e através dela as estruturas
econômicas e sociais da economia de plantação ficariam
intactas: o Estado-nação em emergência teria de constituir-
se sobre essa base material, que fazia da escravidão
mercantil a fonte da viabilidade econômica e política das
novas estruturas sociais e políticas, que iriam surgir nas
cidades, nas relações dos estamentos senhoriais
dominantes entre si e com os outros setores da sociedade e
na “comunidade nacional” em elaboração.
Não obstante, com a emancipação nacional começa a
surgir um novo contexto histórico estrutural, que irá
consolidar-se gradualmente, mas que, desde o início,
modifica a relação da escravidão mercantil com a economia
e com a sociedade. Os pontos centrais de tal transformação
são dois: 1º) as consequências econômicas do
desaparecimento da apropriação colonial; 2º)o significado
da escravidão mercantil para o desenvolvimento do “setor
novo da economia”, ou seja, da economia urbano-comercial.
Pelo que vimos, com a emancipação nacional, a economia
colonial não entra em colapso. Para que isso acontecesse,
de imediato ou posteriormente, seria necessário que os
escravos, os libertos e os vários setores da população pobre
livre estivessem envolvidos, em massa, no processo de
descolonização. O que entra em crise, portanto, é a parte
política do antigo sistema colonial, que prendia e
subordinava a Colônia à dominação colonial metropolitana.
O resto desse sistema apenas se redefine, com a
monopolização das funções administrativas, legais e
políticas da Coroa pela aristocracia agrária e os estamentos
de que esta dependia para controlar o Estado senhorial e
escravista. Entretanto, no conjunto tal transformação
constituía uma revolução política de profundas
consequências econômicas. A questão principal é óbvia.
Essa revolução eliminava o controle direto e a mediação
econômica da Metrópole: o que quer dizer, ela acabava com
aquilo que os setores dominantes da economia interna viam
como “o esbulho colonial”. Desaparecia a superposição da
apropriação colonial sobre a apropriação escravista. A
apropriação do produto do trabalho escravo convertia-se
numa relação econômica específica, determinada a partir de
dentro e regulada pelos interesses coletivos da aristocracia
agrária. Isso não impedia que o excedente econômico,
gerado pela produção escravista, entrasse no sorvedouro do
mercado mundial em condições muito desvantajosas.
Contudo, a Coroa, os seus funcionários e os interesses do
comércio metropolitano — que nunca puderam impedir que
isto sucedesse — deixavam de absorver alíquotas desse
excedente, em grande parte abocanhado pelos próprios
senhores. De outro lado, com o controle do Estado, estes
podiam montar a sua política econômica, ou seja, uma
política de autodefesa dos interesses escravocratas e de
fortalecimento do setor escravista da emergente economia
nacional. Portanto, se a supressão do nexo colonial não se
refletiu na condição do escravo nem afetou a natureza da
escravidão mercantil, ela alterou a situação econômica do
senhor, que deixou de sofrer o peso da “espoliação colonial”
e passou a contar, por conseguinte, com todas as vantagens
da “espoliação escravista” que não fossem absorvidas
indiretamente pelos mecanismos secularizados do comércio
internacional. Muitos dos “efeitos” que são atribuídos
indiscriminadamente às consequências indiretas e remotas
do ciclo de mineração e de exploração diamantífera lançam
aqui suas raízes. A escravidão mercantil se desvencilha da
“cadeia colonial” e o único beneficiário dessa rotação
histórica é o setor senhorial. A expansão da economia de
plantação através do café iria mostrar a magnitude das
diferenças e o que representa economicamente, para o
senhor, “dispor livremente” do produto do trabalho escravo.
Ao mesmo tempo, as “influências construtivas” diretas e
indiretas da escravidão sobre o desenvolvimento econômico
deixavam de escoar-se para fora. Embora o mercado
mundial atravessasse por essa ponte, as estruturas
escravistas da produção deixaram de ser um esteio quase
exclusivo de “desenvolvimento para fora”, isto é, para a
Metrópole e os centros econômicos que controlavam a
economia metropolitana. Como os interesses comerciais e
financeiros dos senhores se concentraram nas cidades e a
partir das cidades também se organizaram os “negócios de
exportação”, a escravidão mercantil passou a ser a base
material última do crescimento do capital mercantil dentro
do país. Aí, é preciso que se leve em conta dois processos
concomitantes, mas distintos. Um deles tem importância
excepcional apenas até os meados do século XIX, em que a
supressão do tráfico se torna uma realidade, embora o
comércio com o escravo continuasse a ser alimentado a
partir das migrações internas. A questão é clara: a
emancipação fez com que o Brasil também participasse do
circuito do “mercado triangular”. Ainda que se escoasse
para fora uma boa parte dos lucros produzidos pelo tráfico,
a partir da abertura dos portos, do Vice-reinado e da
Independência uma boa parte da riqueza que tinha essa
origem ficou em “praças brasileiras”. O aparecimento de um
mercado especificamente moderno favoreceu essa
internalização dos “negócios negreiros” e o impacto que
eles tinham sobre a acumulação de capital mercantil, agora
dentro do país. O outro processo se relaciona com a
diferenciação dos papéis econômicos dos senhores, seu
engolfamento na vida econômica das cidades e da
expansão relativa da escravidão urbana. De um lado, o
excedente econômico gerado pela produção escravista, na
parte em que ele ficava no Brasil e ia alimentar o
crescimento do “setor novo da economia”, dinamizava e
dava maiores proporções à expansão interna do capitalismo
comercial. De outro, a escravidão mercantil, como fonte do
uso do trabalho escravo ou da pessoa do escravo dentro da
vida urbana, ganhava maiores proporções, embora ela
nunca alcançasse, nesse nível, importância análoga à que
teve em algumas cidades norte-americanas.
Aparentemente, apenas o Rio de Janeiro, por abrigar a Corte
e satelizar, durante muito tempo, uma vasta hinterlândia
agrícola, converteu essa fonte em algo digno de
consideração. De qualquer maneira, na fase neocolonial se
estabelece um novo engate entre a escravidão mercantil e a
acumulação originária. Certas funções que a escravidão
desempenhou para o desenvolvimento capitalista da Europa
apareceram aqui e determinaram os rumos, a intensidade e
os frutos do florescimento do capitalismo comercial como
realidade histórica interna.
À medida em que isso sucedia, os senhores se viram
apanhados de modo mais profundo pela conexão capitalista
de seu status. Duas evoluções merecem ser evocadas. A
primeira, tão bem descrita por S. J. Stein. Embora mantendo
seu enquadramento econômico, sociocultural e político
senhorial, houve fazendeiros de café que procuraram
“modernizar tecnologicamente” a produção escravista. Com
isso, pretendiam lutar contra a deterioração das terras e a
baixa produtividade. No fundo, queriam salvar a condição
senhorial da ruína econômica. Contudo, aumentaram ainda
mais o seu fundo de capital fixo, ficando à mercê dos
especuladores, acelerando e aprofundando a gravidade da
crise que pretendiam evitar. Outra, e esta deveras
importante para os estudiosos da escravidão moderna, foi
apontada por Sergio Buarque de Holanda e o autor deste
trabalho. Os fazendeiros de café do Oeste paulista
procuraram reduzir o uso do trabalho escravo em fins não
produtivos. O principal elemento dessa evolução aparece na
separação entre domus e plantação. A escravaria doméstica
se reduz e é gradualmente substituída, enquanto o capataz
assume encargos de gerência mais amplos. Vivendo na
cidade, o fazendeiro passava alguns períodos, com a
família, na sede da fazenda: mas a família senhorial vê
seriamente reduzida ou eliminada a periferia de escravos e
semilivres domésticos. Tal evolução não afeta nem a
estrutura nem a natureza da escravidão mercantil. Contudo,
erige uma área de especialização virtual compulsória do
trabalho escravo e elimina vários fatores de desperdício,
intrínsecos ao padrão tradicional de produção escravista. Se
ela não tem maior importância analítica, pelo menos indica
que a moderna plantação sob trabalho livre já começa a
constituir-se sob a vigência da escravidão. O único elemento
paternalista que existia antes, que consistia no fato de a
casa-grande ou a sede se implantar socialmente, como
unidade existencial, no seio da plantação, está em vias de
desaparecer antes da crise final do escravismo.
Por fim, para concluir este levantamento: qual é a relação
da escravidão com o desenvolvimento capitalista interno na
fase inicial do capitalismo dependente no Brasil (e que é a
fase de formação do capitalismo competitivo)? Temos, entre
a década de 1860 e a data da Abolição, quase três
decênios. Trata-se de um período curto e que foi, de fato, a
era de “crise final irreversível da escravidão”. Os autores
mais atilados, no estudo desse período, inclusive os que
descreviam o processo de visu, como Couty, são unânimes
em ressaltar como a escravidão se erigia em uma barreira
intransponível. Ou ela ou o capitalismo. Isso não deixava de
ser verdadeiro. Nem por isso, porém, tal verdade excluía
outra realidade: chegara-se ali através e graças à
escravidão mercantil. O que nos repõe na trilha do
pensamento hegeliano: ao desaparecer, em sua crise de
morte, a escravidão deixava de produzir-se a si própria para
produzir o seu contrário, para gerar uma “vida nova”. A
própria expansão da economia urbano-comercial
engendrava novos elos ou aprofundava os elos antigos entre
a escravidão mercantil e o desenvolvimento capitalista
dentro do país. Agora, desdobra-se diante do observador o
circuito total. O que aparece, à primeira vista, como “o
excedente econômico produzido pelo café” — e que é,
ainda, em larga medida, o excedente econômico resultante
do trabalho escravo — está na raiz de todo processo
econômico de alguma importância. Nessa época, a
acumulação originária sofre um desdobramento, pois a
imigração suscita uma evolução nova, de largo prazo. Não
obstante, será dos meados da década de 1880 em diante
que este fator irá prevalecer e determinar os ritmos
históricos vinculados ao trabalho livre e à sua exploração.
Isso esclarece a nossa pergunta. Nesse período de três
décadas não há apenas uma repetição do passado, com o
fortalecimento de certas tendências que já foram
esclarecidas. O contexto histórico-estrutural apresenta
condições que permitem mudar a qualidade das relações da
economia urbano-comercial com uma escravidão em
extinção. O grau de internalização institucionalizada de
complexas funções comerciais e financeiras é suficiente
para garantir um aproveitamento mais amplo e, mesmo,
revolucionário do capital mercantil acumulado através da
produção escravista. O que faz com que ele ajude a
financiar, juntamente com capital mercantil captado no
Exterior, um vasto processo de criação de infraestrutura
econômica, de crescimento da grande lavoura, de
modernização urbana, de diferenciação econômica no
sentido da industrialização e, até, de imigração, expansão
da pequena propriedade ou do trabalho livre etc. Nas
convulsões finais, portanto, a escravidão mercantil exercia
influências construtivas que não preenchera antes, nem no
período colonial nem no período de transição neocolonial,
pela simples razão de que antes não existia um meio
capitalista consolidado, capaz de ampliar e de aproveitar
seus efeitos multiplicadores. Sob um capitalismo comercial
plenamente constituído e quase maduro, não se tratava
mais de provocar certos deslanches. Mas, de pôr a
acumulação de capital mercantil gerada pela escravidão a
serviço da revolução burguesa.[9]
A   ORDEM   SOCIAL   DA   SOCIEDADE   
ESCRAVOCRATA   E   SENHORIAL

A ANÁLISE DA SOCIEDADE escravocrata e senhorial esbarra em


muitas dificuldades. Assim como se negligenciou a busca de
conceitos e de categorias históricas adequados à
compreensão, descrição e interpretação da escravidão
mercantil, também se tem negligenciado a procura de uma
maior precisão no uso de conceitos e categorias históricas
apropriados à compreensão, descrição e interpretação da
sociedade escravocrata e senhorial, que se montou, desde o
período colonial, sobre a base material da produção
escravista. Suscitaram-se falsos debates, resultantes de
uma distorção mecanicista do determinismo econômico ou
da explicação dialética, como a tentativa de restabelecer a
“sociedade feudal” sobre a escravidão mercantil. Ou
proscreveram-se conceitos, como o de casta e de
estamento, essenciais para a explicação de sociedades
estratificadas nas quais a desigualdade econômica, social e
política não se vincula ao capital industrial (e, portanto, à
institucionalização do trabalho livre e da mais-valia
relativa). Aqueles conceitos encontram largo uso entre os
especialistas da sociologia histórica e da sociologia
comparada — e mesmo os criadores do marxismo, Marx e
Engels, os utilizam quando pretendem introduzir um
máximo de saturação histórica no manejo de categorias
gerais. Ao se evitar o emprego simultâneo de conceitos e
categorias históricas como “casta”, “estamento” e “classe”
perde-se, portanto, aquilo que seria a diferença específica
na evolução da estratificação social no Brasil. Por fim, a
investigação empírica não se aprofundou tanto a ponto de
forçar uma melhor exploração das teorias existentes sobre
as sociedades estratificadas e, em particular, para suscitar
um quadro teórico integrativo, capaz de render conta da
complexa situação brasileira. Temos procurado evitar todos
esses empecilhos, mas é muito árduo e limitado o esforço
de autores isolados ou de grupos de investigadores
demasiado pequenos. Sob esse aspecto, o paralelo com o
avanço da investigação dos tipos de sociedades
estratificadas na Europa merece ser lembrado, pois ele põe
em primeiro plano que é essencial a colaboração crítica de
gerações sucessivas de investigadores. O esboço que
faremos a seguir constitui um ponto de chegada que
precisa, ainda, ser explorado de modo mais amplo e crítico
pelos que vierem a lidar, mais tarde, com os mesmos
problemas com melhores perspectivas e maior base
empírica. Trata-se de um “conhecimento aproximado” muito
imperfeito, que só tem um mérito inquestionável: o de
colocar a discussão desses problemas dentro de um ponto
de vista rigorosamente sociológico.
As linhas gerais da evolução da estratificação social são
as mesmas que as da produção escravista. Do mesmo modo
que a escravidão mercantil alcançou o seu apogeu depois
da desagregação do Império colonial, o sistema social que
se monta sobre a produção escravista vai atingir o seu
máximo de eficácia e sua maturidade histórica depois da
emancipação nacional. A escravidão mercantil serve de
lastro a esse giro histórico: ao restringir os limites e os
ritmos da descolonização, ela condiciona não só a
persistência das estruturas sociais da Colônia, como
também determina que elas alcancem, pela primeira vez,
todas as potencialidades sociodinâmicas que elas
continham e não podiam emergir nem expandir-se sob o
Império colonial. O que quer dizer que, com base na
escravidão mercantil, o “antigo sistema colonial” deu
origem a uma complexa ordem societária que transcendia a
si própria e exigia, para alcançar a sua plenitude histórica, a
“liberdade do senhor” e a desagregação da dominação
metropolitana.
O esquema básico da sociedade estamental e de castas
do período colonial repousa numa construção muito
simples. Os portugueses transplantaram, para cá, a ordem
social que tinha vigência em Portugal na época dos
descobrimentos e da conquista. O que quer dizer que
ocorreu uma formidável tentativa deliberada de
preservação e de adaptação de todo um corpo de
instituições e de padrões organizatórios-chaves, com vistas
à criação de um “novo Portugal” (expressão empregada
pelo padre Cardim com referência a São Vicente) que
deveria emergir das condições sociais de vida de uma
colônia de exploração. Todavia, os trópicos, a abundância de
terras e o propósito colonial de pilhagem sistemática,
combinados às reduzidas potencialidades demográficas do
colonizador, introduziram interferências que não puderam
ser eliminadas ou superadas dentro de uma estratificação
estamental. O recurso para vencer esse obstáculo consistiu
numa superposição: a ordem estamental tinha validade
para os brancos, na sua grande maioria portugueses; os
outros, no início as populações nativas, gravitavam fora
dessa ordem e logo foram convertidos em “aliados” e
“submetidos”, todos com status virtual ou real de “escravos
de fato”. Na medida em que a coleta de pau-brasil e as
feitorias cederam lugar à luta com os indígenas pela posse e
controle das terras e pela força de trabalho indígena, essa
escravidão de fato foi rapidamente formalizada e
institucionalizada. Dada a abundância de povoações
indígenas “inimigas”, a mercantilização desse tipo de
escravidão econômica (pois o que estava em jogo era o uso
sistemático da força de trabalho indígena ad libitum dos
colonizadores) não se impôs como um imperativo imediato.
Contudo, mesmo sob o regime de feitorias a compra e
venda de escravos indígenas podia ocorrer amplamente.
Com as donatárias, as transformações subsequentes do
esforço de colonização e a fundação ou expansão de
povoações, o crescimento da grande lavoura e da produção
do açúcar generalizaram a mercantilização do escravo
indígena e provocaram sua institucionalização. Portanto, a
transplantação dos escravos africanos em bases comerciais
apenas aprofundou um arranjo global, no qual a
estratificação inter-racial e interétnica modificara
profundamente o modelo original português de ordem
societária.
A sociedade, no seu todo, compunha-se de um núcleo
central, formado pela “raça branca” dominante, e pelos
conglomerados de escravos índios, negros ou mestiços.
Entre esses dois extremos, situava-se uma população livre
de posição ambígua, predominantemente mestiça de
brancos e indígenas, que se identificava com o segmento
dominante em termos de lealdade e de solidariedade, mas
que nem sempre se incluía na ordem estamental. Onde o
crescimento da economia colonial foi mais intenso, esse
setor ficava largamente marginalizado, protegendo-se sob a
lavoura de subsistência mas condenando-se a condições
permanentes de anomia social. Onde o conjunto da
população branca e mestiça tinha de se dedicar à lavoura
de subsistência, complementando-a com formas de
produção subsidiárias da grande lavoura ou com a preação
de índios, a consanguinidade garantia uma solidariedade de
parentesco pela qual pelo menos uma parte desses
segmentos de “homens livres” se incorporava à ordem
estamental. De qualquer modo, com as populações
indígenas “aliadas”, essa população livre pobre
representava uma espécie de “argamassa paramilitar”,
usada como um aríete na defesa das povoações, na
penetração dos territórios desconhecidos e na conquista de
novas fronteiras. Quaisquer que sejam os problemas
descritivos suscitados por esse amplo setor oscilante, o
núcleo central (acrescido ou não de parcelas da população
livre pobre) abrangia os vários estamentos em que se
dividia socialmente a “raça dominante”. Os escravos
indígenas, africanos e mestiços formavam, em relação a
esse núcleo estamental, uma subordem de castas. Com o
tempo, os libertos ganharam o status legal que lhes conferia
condição estamental. No entanto, para efeitos práticos eles
eram tratados como se pertencessem à subordem de
castas. Por fim, um código rígido regulava o tratamento
recíproco dos membros dos vários estamentos entre si e,
mesmo, das “questões de hierarquia” envolvidas no
tratamento recíproco de membros do estamento dominante
(esse código abrangia outras especificações, relativas ao
vestuário, uso de armas, de joias e emblemas,
comportamento em público, certos direitos e deveres etc.,
que não vem ao caso ventilar aqui). Com o tempo, ele se
diluiu, incorporando-se aos usos e costumes (ou seja,
convencionalizando-se), e passou a fazer parte, no que
restou sob essa forma, das expectativas de tratamento e de
comportamento tradicionais dos estamentos aristocráticos.
Está fora de propósito que façamos, aqui, uma descrição
exaustiva dessa sociedade. Todavia, em vista do objeto
central deste seminário, conviria dar pelo menos alguma
atenção às questões que entrelaçam a economia de
plantação com essa dupla ordem de estamentos e de
castas. Entre essas questões, selecionamos quatro, que
parecem ser as mais importantes de um ângulo que
combine história e teoria: 1º) as funções do patrimonialismo
nas relações da Coroa com os vassalos e, por consequência,
no processo de colonização; 2º) os efeitos da escravidão
sobre a eficácia e a flexibilidade da ordem estamental; 3º) a
variedade de formas de dominação que eram coordenadas
e unificadas através da superposição de estamentos e de
castas dentro de uma mesma ordem societária compósita;
4º) as inconsistências institucionais intrínsecas à escravidão
mercantil ou resultantes da escravização segundo o
princípio do direito romano partus sequitur ventrem e como
elas podiam se converter, não obstante, em “funções úteis”
naquela ordem societária compósita.
Quanto ao primeiro tópico, se tomarmos como ponto de
referência teórica as conclusões de M. Weber em seu estudo
comparado do patrimonialismo e do feudalismo, o império
colonial português da época dos descobrimentos, da
expansão marítima e da conquista organizava-se como um
complexo Estado patrimonial. A concentração de poder e de
riqueza nas mãos do soberano representava a contraparte
da associação deste com a nobreza, o clero e os “homens
de fortuna”, do país e do Exterior, em uma grande empresa
militar, econômica, política e religiosa comum. Essa relação
não se constituíra como fruto da expansão colonial; ela se
formara anteriormente, por motivos que não vêm ao caso
lembrar aqui, e foi posta à prova, ampliada e aprofundada
através da expansão colonial. Duas coisas nos interessam
nessa relação. Primeiro, o que a associação representa
como uma forma de divisão de riscos e de solidariedade
político-legal e econômica. Uma Coroa pobre, mas
ambiciosa em seus empreendimentos, procura apoio nos
vassalos, vinculando-os aos seus objetivos e enquadrando-
os às malhas das estruturas de poder e à burocracia do
Estado patrimonial. Esse aspecto é deveras importante.
Sem essa associação não haveria nem império colonial
português nem economia de plantação no Brasil. Por isso, o
“colonizador” ou o “colono” é sempre um vassalo, um
agente da Coroa, e arca, por sua conta e risco, embora com
alguns privilégios ou vantagens e, por vezes, com algum
suporte oficial, com a construção do império na Colônia. Ele
é o outro lado do Estado patrimonial, o que simplifica a
tarefa da construção do império, de sua defesa militar e do
seu crescimento econômico. Os que só viram o lado frágil
dessa relação negligenciaram por que ela surgiu e o que ela
significou em termos da criação de um imenso sistema
colonial. Segundo, convém que não se deixe na penumbra
qual era a função da referida associação nos quadros do
emergente mundo colonial. Uma colônia de povoamento
coloca problemas especiais na expropriação e apropriação
de terras, pois os espaços vazios eliminam a disposição de
“trabalhar para os outros” à meação, a pagamento etc. O
que dizer de uma colônia de exploração? E o que dizer de
uma colônia de exploração no Brasil, com suas fronteiras
abertas e sua disponibilidade de terras? No caso, a relação
patrimonial permitia condicionar a transferência da ordem
estamental existente em Portugal: as concessões de
sesmarias demarcavam as estruturas de poder que não
podiam nem deviam ser destruídas, como condição
histórica para manter a estratificação estamental que servia
de base social à existência e ao fortalecimento do Estado
patrimonial. Portanto, as doações da Coroa (ou feitas em
seu nome) traduziam uma política de concentração social
da propriedade da terra. Tal política não criou apenas o
latifúndio. Ela excluiu, ab initio, a massa da população livre,
pertencente ou não à ordem estamental, da posse da terra
e, por aí, do controle do poder local e do direito de ter
vínculos diretos com o Estado. Em si mesma, a terra não era
uma riqueza e iria demorar algum tempo para que ela
assumisse esse significado (mesmo como conexão do
capital mercantil). Mas erigia-se na base material da
transferência e da perpetuação de uma arraigada estrutura
de privilégios e da própria dominação patrimonialista.
O segundo tópico leva-nos à dimensão esquecida do
mundo colonial brasileiro. Se foi a propriedade da terra — e
não a escravidão, que constituía o eixo econômico do antigo
sistema colonial — que condicionou a persistência e o
fortalecimento do patrimonialismo, quais foram, então, as
consequências da introdução da escravidão na ordem
estamental transplantada? Na verdade, a escravidão
esvaziara a ordem estamental portuguesa de muitas de
suas funções econômicas e sociais. Todavia, o
empreendimento colonial, especialmente sob um tipo de
colônia de exploração que requeria uma variada retaguarda
demográfica, impunha de algum modo a reprodução social
da sociedade metropolitana. Aí voltamos ao problema da
periferia. A economia de plantação exigia dois
desenvolvimentos paralelos. De um lado, uma comunidade
local, que não abrangia somente “senhores” e “escravos”.
Havia os colonos que detinham, através de doações
subestabelecidas pelo senhor, posse de lotes de terra e
alguma escravaria (de vinte, trinta ou quarenta peças).
Havia também os colonos dependentes, que trabalhavam
sob meação e em outras condições, com a colaboração de
um número menor de escravos. Por fim, havia “oficiais
mecânicos” e outros tipos de gente, sem os quais a
supervisão do trabalho escravo, o funcionamento do
engenho e o transporte da matéria-prima seriam
impraticáveis. Tudo isso significa que o substrato humano
da economia de plantação era heterogêneo e que a força de
trabalho escravo não existia no vácuo, mas em um mundo
social no qual a presença do branco era imperativa em
várias posições estratégicas. De outro lado, a economia de
plantação exigia algo mais que uma feitoria comercial-
militar. Era preciso criar, para essa massa de gente branca
diferenciada e para o escoamento da produção, certos
povoados com um mínimo de funções urbanas, político-
administrativas, militares e religiosas. Desses povoados
nasceram as vilas e as cidades do mundo colonial: eles
cresceram em função da economia de plantação e do
circuito comercial da Metrópole com a Colônia (bem como
de outros circuitos, que surgiram dentro da Colônia ou
através do contrabando). Os dois desenvolvimentos
paralelos conduziam ao mesmo resultado. A base
demográfica branca do sistema colonial como um todo tinha
de estratificar-se segundo critérios estamentais, isto é,
como uma “extensão da mãe pátria”, ou então destruiria os
fundamentos da dominação patrimonialista e do Estado
patrimonial. Tudo isso é curioso, porque muitos analistas
ressaltam o “caráter anárquico” e “democrático” da
sociedade colonial. No entanto, se esses atributos fossem
reais, a colônia de exploração geraria, por uma evolução
espontânea e incontida, uma colônia de povoamento em
condições de lutar por sua autonomia. O que nos obriga a
pôr a escravidão nesse contexto, para verificar o que ela
acarretava no plano do funcionamento e da reprodução da
ordem societária estamental. Em poucas palavras, ela
provocava o seu empobrecimento e o seu enrijecimento. Os
artesãos e oficiais mecânicos, por exemplo, tornavam-se
artesãos e oficiais mecânicos titulares. Eles não transferiam
para os escravos todas as suas obrigações. Porém, somente
saturavam os interstícios em que o seu trabalho
“especializado” era insubstituível. Em suma, a escravidão
irradiou-se por toda a ordem estamental: todos os
estamentos, dos nobres e dos homens bons aos oficiais
mecânicos viam nos escravos “os seus pés e as suas mãos”.
O que nos interessa são os dinamismos que deixam de
aparecer ou que são sufocados. Os que não são nem
escravos nem libertos adotam, de uma forma ou de outra, a
ótica senhorial. A apatia do “povo miúdo”, que prevalecia na
Metrópole, reproduzia-se numa escala ampliada, através de
um conformismo sociopático, que não provinha do “espaço
cósmico” nem da pulverização do microcosmo social
(supostamente fomentada pela economia de plantação). Ela
era um efeito da superposição de estamentos e de castas
que convertia o estamento dominante em árbitro da
situação e estimulava os demais estamentos e os estratos
socialmente oscilantes a se converterem em caixa de
ressonância dos interesses senhoriais.
O terceiro tópico é o único que despertou largo interesse
entre os investigadores brasileiros e por isso encontrou
maior esclarecimento empírico e teórico. No entanto, é
forçoso reconhecer que os conhecimentos obtidos são
unilaterais (pensamos principalmente nas contribuições
mais significativas de Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Nestor
Duarte e Fernando de Azevedo) e essa unilateralidade nasce
da redução do macrocosmo social inerente à ordem
estamental e de castas ao microcosmo social inerente à
plantação ou ao engenho e à fazenda. Para uma análise
sociológica que se volta para as totalidades, a economia de
plantação faz parte de um contexto histórico estrutural
inclusivo e determinante; o problema central não consiste
em explicar uma ou outro, mas ambos. Portanto, temos de
considerar a economia de plantação em dois níveis
simultâneos e interdependentes: todo um complexo de
relações comunitárias e societárias que a articulava a várias
estruturas econômicas, sociais e de poder, ou seja, a várias
formas de dominação. De um lado, havia a comunidade
local, que abrangia duas unidades distintas — o domus ou o
lar senhorial; e a senzala ou o confinamento dos escravos —
e ambas existiam em um espaço social mais amplo na
localidade, dentro do qual viviam todos os agregados de
gente branca ou mestiça e, com frequência, uma ou mais
povoações e vilas circunvizinhas. De outro lado, havia o
macrocosmo social, com o qual, em regra, só o senhor, a
família senhorial e alguns dos colonos brancos tinham uma
relação funcional frequente e com o qual, no nível do
“regime de governo colonial”, exclusivamente o senhor ou
seus prepostos tinham vínculos permanentes legítimos.
Esse macrocosmo vinha a ser a cidade que funcionasse
como entreposto comercial e núcleo das instituições
religiosas, jurídicas, administrativas e políticas — e o mundo
que se atingia através dela e dos seus canais institucionais,
inclusive a Metrópole e a Coroa. Ao se enumerar todos
esses modos de relação deparamos com várias formas de
dominação (entre iguais ou com subordinados da mesma
posição social e de posição social inferior, do pater familias
e do dominus, ou do vassalo preso nas malhas do poder
colonial como correia de transmissão das “necessidades” e
da “vontade” da Coroa). Em termos de poder, a essa
variação corresponde o “poder doméstico”, o “poder
senhorial” no sentido de um poder específico sobre o
escravo e de poder em geral sobre os “homens comuns”
brancos ou mestiços, o “poder da aristocracia”, no plano
mais abstrato, dos que irradiavam, através da dominação
tradicional e da dominação patrimonialista, as funções
paternalistas, burocráticas e políticas dos que tinham o
direito de comandar, em nome próprio e através de
delegações locais do “poder do povo” ou em nome das
autoridades administrativas coloniais e da Coroa.
Quando se reduz tudo isso ao poder patriarcal, inerente
ao pater familias e ao dominus, comete-se a mesma
simplificação e a mesma mistificação que se praticam ao
reduzir a escravidão mercantil à “escravidão antiga”. Não
estamos diante do senhor de escravos grego ou romano
nem do senhor feudal. Há, aqui, uma irredutível
complicação, que nos obriga a levar em conta vários
elementos diversos e contraditórios na relação de
dominação — o que é tradicional e patrimonialista, o que é
patriarcal e paternalista, o que é burocrático e político, e o
que nasce da relação do dono com a “coisa” quando essa
coisa é um ser humano que se compra e a fonte de toda a
força de trabalho fundamental. O próprio Max Weber, que
distinguiu tão bem os vários tipos de dominação,
recomendou que se procurasse reter, nas situações
concretas, as combinações históricas possíveis de todos
esses elementos. Ora, essa regra de observação e de
interpretação impõe que se apanhe a economia de
plantação nos dois níveis de relações comunitárias e
societárias. Em síntese, a superposição de estamentos de
uma “raça” dominante e de castas de “raças” dominadas
punha a ordem societária correspondente sobre um vulcão.
A força bruta, em sua expressão mais selvagem, coexistia
com a violência organizada institucionalmente e legitimada
pelo “caráter sagrado” das tradições, da moral católica, do
código legal e da “razão de Estado”. O mítico paraíso
patriarcal escondia, pois, um mundo sombrio, no qual todos
eram oprimidos, embora muito poucos tivessem acesso, de
uma maneira ou de outra, à condição de opressores. Aliás, a
escravidão mercantil só poderia implantar-se e desenvolver-
se em uma ordem societária dessa natureza, na qual se
definia a figura legal do escravo, simultaneamente, como
“um inimigo doméstico” e “um inimigo público”.[10] O ponto
de apoio estrutural e dinâmico desse tirânico estilo de
acomodação interétnica e inter-racial nascia de uma
confluência e da conjugação de formas de repressão, de
controle armado e de despotismo generalizado (forjadas e
mantidas pela superposição de estamentos e castas),
graças às quais uma rala minoria não só monopolizava
socialmente todo o poder, como o aplicava a seu bel-prazer.
Essa monopolização permitia que, com relativa facilidade,
as instituições-chaves pusessem nas mãos dessa minoria,
em qualquer momento e em qualquer nível das relações
comunitárias e societárias, os meios necessários para
defender a ordem, impedindo qualquer evolução explosiva
da “anarquia reinante”, do “rancor do escravo” e dos
possíveis “atropelos” da gente miúda branca e mestiça.
A escravidão mercantil pressupunha uma inconsistência
institucional medular: o fundamento monetário da
escravidão fazia com que “a liberdade do escravo” fosse,
por sua vez, uma “questão de mercado”. De outro lado, a
superposição de estamentos e de castas em uma colônia de
exploração onde existia permanente escassez de mulheres
da “raça branca” e extensa liberdade sexual incitava à
miscigenação em todos os sentidos possíveis.[11] Os filhos
dessas uniões herdavam a posição das mães escravas e,
qualquer que fosse a sua cor e sua relação de parentesco
com o senhor, ele nascia escravo, sendo tratado e
explorado como tal. Houve muita controvérsia a respeito
das “funções integrativas e democratizadoras” da
miscigenação. Graças a Antonio Candido de Melo e Sousa,
porém, tornou-se mais fácil descobrir como a família
patriarcal operava de fato. O acesso à posição de dominus
só era possível aos que pertencessem ao núcleo legal dessa
família. A ampla miscigenação, ocorrida em sua periferia
(com referência à escravaria doméstica e até da senzala),
nada tinha que ver com a estrutura da família senhorial,
protegida pelos laços do casamento legal. Por isso, onde a
miscigenação transcorresse dentro daquele núcleo,
“pessoas de cor” (mesmo escuras) não só nasciam livres,
como podiam ascender, eventualmente, à condição de
pater familias e de dominus. Contudo, essa era uma
possibilidade e, ao que se sabe, mais a “exceção” que a
“regra”, nos centros coloniais de maior vitalidade da
economia de plantação. Os sociólogos costumam contar a
frequência dos casos para depois generalizarem. Esse
procedimento metódico foi invertido e se esqueceu, quase
por completo, que a exceção é fundamental para o
conhecimento analítico da regra (especialmente quando se
pode estabelecer como “a exceção confirma a regra”). O
estrato dominante da minoria branca estava por demais
empenhado na defesa sistemática do monopólio da
dominação racial e estamental — segundo uma estratégia
de autoproteção contra a “mácula de sangue” e a “mácula
de ofícios mecânicos”, como o esclarecem frei Vicente da
Salvador e tantas outras fontes — para tolerar uma brecha
no funcionamento da ordem escravocrata e senhorial. Não
obstante, o caráter mercantil da escravidão e a
miscigenação abriam dois focos de fissuras potenciais, que
se aprofundaram com o tempo, introduzindo fortes tensões
no padrão de equilíbrio racial e estamental da sociedade
escravista. Por isso mesmo, apesar do catolicismo e do
suposto efeito conciliador que lhe seria inerente, essas
linhas de fissura caíam na esfera de consciência crítica dos
estamentos senhoriais; e as ações ou relações sociais, que
poderiam intensificá-las, estavam sujeitas a fortes controles
externos. Em qualquer das duas direções a “fraqueza do
senhor” submetia-se a um código tradicionalista severo, que
inclusive legitimava a burla de “últimas vontades”,
expressas em testamento, especialmente se poderiam ser
tidas como lesivas ou perigosas (ou pura e simplesmente
demasiado lenientes). A crise da consciência cristã,
portanto, se não impedia nem suavizava a escravidão
mercantil, tampouco protegia certos efeitos que deveriam
ser “intocáveis” e “sagrados”.
Aí temos uma complexa situação histórica. Apesar do
caráter mercantil da escravidão, o acesso do escravo à
liberdade acabava não sendo uma “questão puramente
mercantil”. Várias barreiras e pressões restringiam o
processo de “liberação por compra”. O que estava em jogo
eram a existência e a reprodução do trabalho escravo, base
material de toda a economia de plantação e da sociedade
correspondente. O mesmo sucedia com a mudança do
status do cativo por vontade ou intervenção do próprio pai
(ou de alguém por ele nomeado). Se casos desta natureza
se tornassem muito numerosos, além do trabalho escravo
estariam ameaçados a dominação da “raça branca” e o
próprio princípio da estratificação estamental. Por isso, às
linhas de fratura da ordem escravocrata e senhorial
correspondiam outras linhas igualmente fortes de sua
defesa e fortalecimento. Nenhuma “ética cristã” e muito
menos o duro catolicismo colonial português[12] poderiam
transpor essa realidade histórica. Mas, em consequência, a
ordem que se fechava para o escravo criava duas
alternativas. Primeiro, como em outras economias e
sociedades de plantação, as tensões do escravo
desabrochavam de modo indireto (suicídio, infanticídio,
sabotagem do trabalho, destruição da propriedade do
senhor, roubos, crimes etc.) ou através das fugas, nem
sempre bem-sucedidas, apesar do aparecimento e difusão
dos quilombos e da tradição que eles evocam da rebeldia do
escravo. Segundo, a manipulação deliberada das fissuras
em um “sentido útil”. A liberação do escravo acabava
sendo, muitas vezes, menos que uma demonstração de
bondade e de piedade cristãs (embora, muitas vezes e em
toda parte, isso tenha ocorrido com certa regularidade).
Dois problemas práticos se abatiam sobre a ordem
escravocrata e senhorial. Um, era de natureza estrutural. O
povo colonizador não era suficientemente numeroso para
transplantar para a Colônia todo o tipo de gente pobre e de
oficiais mecânicos que ela requeria. Para saturar esse vazio
inevitável, impunha-se uma espécie de bombeamento
demográfico, pelo qual uma parte da população escrava era
transposta para o setor livre, na condição de liberto. O
outro, era de natureza conjuntural. Os momentos de crise
do mercado mundial se refletiam negativamente sobre a
expansão da produção e o custeio de manutenção da
escravaria. O recurso mais empregado consistia em
transferir o trabalho escravo da grande lavoura para lavoura
de subsistência, como sugere Celso Furtado. Mas essa
solução envolvia outras manipulações, entre as quais se
salientam certas práticas bem conhecidas, como a
manumissão dos escravos mais ou menos inaptos para o
trabalho produtivo de qualquer espécie (escravos velhos,
doentes, aleijados etc.). O que quer dizer que, nas duas
direções, havia uma “racionalidade senhorial”, que
governava o fluxo das concessões sob o escravismo.
Excetuados os casos de exceção, a regra era ditada pelo
esforço de preservar a estabilidade da ordem senhorial e
escravocrata, bem como de fortalecer o seu padrão de
equilíbrio racial e estamental. O que estava em jogo era a
defesa nua e crua do senhor e dos interesses senhoriais. E
se alguma vez as autoridades coloniais ou a Coroa
interferiam com o intuito de resguardar o escravo ou “os
limites” da escravidão, o significado dessa interferência é
patente: tratava-se de impedir que a transgressão da
violência institucional média, pelos próprios senhores e por
seus prepostos, se convertesse no fulcro de tensões raciais
incontroláveis e de uma instabilidade que transcendesse o
poder conjunto de autodefesa armada dos senhores, das
autoridades coloniais e da Coroa.
Em todos os tipos de sociedades estratificadas — seja a
sociedade de castas, a sociedade estamental, a sociedade
de classes ou uma combinação delas — o padrão estrutural
e dinâmico da ordem existente possui vigência universal.
Isso não quer dizer que a vida social, no plano comunitário
ou no nível societário, tenha a mesma intensidade em todos
os pontos cobertos pela ordem social vigente. Do mesmo
modo, os ritmos históricos de funcionamento,
autorreprodução e transformação da ordem social não se
impõem com a mesma intensidade em toda parte. No caso
da ordem escravocrata e senhorial, engendrada pela
economia colonial de plantação, o produto principal no ciclo
econômico, o volume e a facilidade do seu escoamento para
a Metrópole e o mercado mundial é que determinavam as
áreas internas onde o regime escravista e a sociedade
estamental e de castas atingiam o seu máximo de
saturação histórica. Não podemos dar a essa questão todo o
interesse que ela merece. Não obstante, é essencial
lembrar, pelo menos, dois de seus aspectos cruciais.
Primeiro, da implantação e desenvolvimento do antigo
sistema colonial no Brasil à sua extinção político-legal, as
regiões que imprimiram maior vitalidade ao crescimento da
ordem escravocrata e senhorial foram, naturalmente,
aquelas onde a produção de açúcar alcançou o seu apogeu
ou aquelas nas quais a mineração e a exploração
diamantífera serviram como eixo à oscilação da esfera
dominante da produção escravista-colonial. É claro que as
demais regiões se ordenavam, institucionalmente, pelos
mesmos requisitos econômicos, militares, jurídico-
administrativos, políticos e religiosos. O que significa que a
ordem societária era a mesma e o mesmo, portanto; o
relacionamento das “raças” e dos estamentos sociais.
Apenas, nessas regiões predominavam formas de produção
secundárias (como o cacau, o fumo, o algodão etc.) e
formas subsidiárias de produção colonial (preação de índios,
produção de charque e de peles, fazendas de criação etc.),
cuja extensão e vitalidade estavam “voltadas para dentro”
— o que fazia com que a base material da ordem societária
reduzisse a proporção entre escravos africanos e indígenas
ou modificasse a relação numérica entre a população
escrava e a população livre. Esta sempre era minoritária
mas nas áreas subdesenvolvidas da economia e da
sociedade coloniais a minoria branca se tornava ainda mais
rala e tinha de exercer as várias modalidades de
dominação, apontadas acima, utilizando como ponto de
apoio uma vasta retaguarda composta por elementos
indígenas “aliados” ou “submetidos” e por elementos
mestiços dependentes. Por isso, essas minorias tinham de
aprofundar os ritmos históricos em outras direções, nem
sempre “contidas pela ordem”, talando as populações
nativas e levando o terror inerente à ordem escravocrata e
senhorial aos limites mais extremos (não poupando sequer
as ordens religiosas, como o demonstram os episódios das
lutas contra os jesuítas, nem respeitando as tentativas da
Coroa de conter “a violência senhorial”, que poderia,
potencialmente, evoluir no sentido de alimentar processos
especificamente anticoloniais). Nada disso levou a rupturas
mais profundas nem impediu que a universalização da
ordem escravocrata e senhorial atingisse mesmo os espaços
onde era maior o “vazio histórico” em relação aos requisitos
econômicos, demográficos, sociais e políticos da ordem
escravocrata e senhorial. Uma explicação superficial
tenderia a levantar a hipótese de uma supercompensação
psicológica, como um “efeito de demonstração” possível em
um mundo no qual quem não tivesse dom comprovável
acabaria suspeito de “mácula de sangue” e de “condição
mecânica” (ou, se fosse mestiço, poderia ser tomado como
escravo ou liberto). Não se pode excluir o valor de
semelhantes hipóteses. Contudo, é evidente que elas
apanham a órbita secundária das relações humanas. A
explicação fundamental, de uma perspectiva
macrossociológica, está na própria organização e viabilidade
da economia e da sociedade coloniais. A associação entre o
vassalo, como colono, e a Coroa, diretamente e através das
funções imediatas das autoridades coloniais, era o elemento
básico do sistema. Sem essa associação, da qual vinha
como decorrência a própria ordem escravocrata e senhorial,
sobre a qual se assentava tanto a “possibilidade”, quanto o
“futuro” da colônia de exploração, tudo se tornaria inviável.
Portanto, os efeitos de compensação entram em conta
numa linha secundária de interpretação dos fatos. E eles
ajudam a entender como, em condições de extrema
pobreza ou de dificuldades inconcebíveis, o que aparecia
era um zelo mais extremo pela “limpeza de sangue” e pelos
“atributos de fidalguia”, uma lealdade exaltada à Coroa e
hipócrita à religião católica, bem como uma saturação dos
vazios históricos pela ação direta dos próprios colonos, que
se tornavam, assim, “as mãos e os pés” do antigo sistema
colonial.
Segundo, é preciso pelo menos dar alguma atenção ao
problema histórico do que poderia e deveria ser uma ordem
escravocrata e senhorial no seio de uma colônia de
exploração do império lusitano. A evolução das estruturas
de poder, em Portugal, tendia a reduzir as prerrogativas da
alta nobreza, embora isso ocorresse de maneira oscilante.
Na medida em que se fortalecia um Estado patrimonial e
absolutista, os vários estratos da alta e da média nobreza —
e mesmo alguns estratos dos pequenos fidalgos de “dom
antigo” ou nobilitados pelos serviços prestados ao Império
— tendiam a gravitar em torno do séquito do soberano ou
das oportunidades militares, econômicas, burocráticas e
políticas abertas pela administração estatal. Algumas
famílias nobres mais ricas e poderosas demoraram para
sentir os efeitos dessa evolução ou tiveram oportunidades
para remontar os ventos adversos. Contudo, em média, as
oscilações não impediam que o fortalecimento de um
Estado patrimonial absolutista, que crescera demais para os
recursos financeiros de que dispunha ou poderia mobilizar,
repercutisse de modo negativo sobre a situação e as
aspirações dos estamentos nobres. Essa tendência tinha,
forçosamente, de refletir-se na parte colonial do império e
com maior intensidade no Brasil. De um lado, porque, à
exceção de alguns nobres que vieram para cá como
mandatários ou altos funcionários da Coroa, a gente de dom
que se transplantou para o Brasil era predominantemente
de terceira ou segunda grandeza. Os poucos que poderiam,
a partir da situação colonial, resistir com eficácia às
tendências montantes à centralização do poder estatal
estavam destinados a circular pelo vasto império ou
pretendiam voltar para Portugal tão depressa quanto fosse
possível. De outro lado, a base econômica, social e política
da aristocracia colonial — ou seja, do “rebento crioulo” da
nobreza lusitana — não conferia aos estamentos senhoriais
o poder para contra-arrestar qualquer tendência que
prejudicasse os estamentos nobres metropolitanos. Ao
contrário, a chamada aristocracia colonial era, em si
mesma, um grave problema político dentro do Império.
Muito mais que à aristocracia metropolitana, a Coroa tinha,
quisesse ou não, de anular as potencialidades da
aristocracia colonial, impedindo-a de constituir uma
comunidade de interesses e de alvos políticos capaz de
unificar-se em um sentido especificamente estamental. Uma
evolução dessa natureza poderia culminar na criação de um
Estado dentro do Estado, ou seja, em processos de
autonomização econômica e político-legal que a Coroa não
teria meios para enfrentar e destruir.
A solução desse problema político foi, talvez, o traço mais
fino da habilidade da Coroa e nela reside o segredo da longa
duração do antigo sistema colonial no Brasil e da “transição
pacífica” pelo tope, da fase colonial para a fase neocolonial,
com uma emancipação política que transcorreu como uma
autêntica “revolução dentro da ordem”. É que, apesar de
todas as tensões e conflitos, a Coroa soube manter a
associação do colono com o império numa escala tão ampla
e íntima que ele nunca passou de um agente privado
instrumental da “política imperial”. O colono de status
senhorial não só era o vassalo e o representante da Coroa
na Colônia: ele era, simultaneamente, a base material
visível e a mão armada invisível da existência do império
colonial. Sem essa ligação, o governo colonial português,
com todas as suas instituições administrativas, militares,
religiosas e políticas, entraria em colapso, pois teria de
enfrentar um vácuo total. Como explicar essa ligação,
aparentemente paradoxal e contraditória? A Coroa e os
estamentos senhoriais eram o que hoje se poderia chamar
de irmãos siameses. No Brasil, a construção da colônia de
exploração e o seu progresso deveram-se a essa correlação,
em grande parte fundada numa evolução interdependente,
criada e fortalecida pelo patrimonialismo. Tanto a riqueza e
o poder da Coroa quanto a riqueza e o poder do colono
privilegiado cresciam do mesmo modo e na mesma direção,
em termos de despotismo absolutista. Só que enquanto o
poder da Coroa era canalizado por um Estado nacional
patrimonialista, tendo por fundamento o império colonial, o
poder do colono privilegiado era canalizado pela colônia de
exploração, tendo por fundamento o domínio patrimonialista
com sua economia de plantação e o seu modo de produção
escravista. Para que um pudesse crescer, o outro também
tinha de crescer. Enquanto a colônia de exploração se
desenvolvesse em sentido horizontal, sem modificar suas
estruturas e sem revolucionar os seus ritmos históricos,
esse paralelismo não precisava ser destruído a partir do
polo colonial. De outro lado, enquanto se mantivesse tal
paralelismo, a Coroa podia usar sua posição estratégica
para preservar as coisas “nos devidos lugares”, isto é,
impedindo que o poder absolutista do senhor colonial
transcendesse os focos de sua expansão natural, isto é, o
domínio colonial e as instituições coloniais de caráter local,
em que se congregavam e deliberavam os “homens bons”.
Fora desse circuito, o senhor colonial podia exercer pressões
diretas ou indiretas sobre os vários níveis das autoridades
coloniais e fazer petições à Coroa, diretamente ou por
agentes desta (civis e religiosos). Trata-se de uma
montagem política perfeita, que ainda hoje aparece como
uma pequena obra-prima. Quisesse ou não, o senhor
colonial era o “parceiro válido” da Coroa e, em última
instância, o verdadeiro sustentáculo do império no Brasil. Ao
movimentar as contradições inerentes ao antigo sistema
colonial “dentro da ordem”, ele favorecia, inevitavelmente,
e fortalecia a Coroa. Por sua vez, a própria estrutura e as
contradições inerentes à ordem escravocrata e senhorial
paralisavam o senhor colonial em tudo que dissesse
respeito às contradições do mesmo sistema que só
pudessem ser enfrentadas e resolvidas “contra a ordem”. A
massa de escravos, de libertos e de mestiços pobres erguia
o fantasma de uma rebelião geral, que poderia muito bem
ter como estopim o “inimigo doméstico” que era, ao mesmo
tempo, o “inimigo público”. Em si mesmo, para os
estamentos senhoriais (ou para a chamada aristocracia
colonial) esse risco era muito mais temível e indesejável
que o pleno funcionamento do antigo sistema colonial. O
que quer dizer, em outras palavras, que o antigo sistema
colonial português gerou o agente principal de que carecia,
com uma mentalidade tão ultraconservadora e egoísta, que
se tornava apto a pôr em primeiro plano e a satisfazer-se
com os seus interesses mais estreitos e imediatos. Portanto,
se a ordem estamental, em Portugal, caminhava em
crescente atraso com referência à história da Europa da
revolução capitalista, a ordem estamental e de castas, no
Brasil, impunha-se os padrões e os ritmos de uma história
colonial. Tudo porque o senhor não transcendia à Coroa, no
plano histórico, e ao tornar-se escravo da produção
escravista sucumbia à condição colonial.
Essa exposição das estruturas e dinamismos funcionais e
históricos da antiga ordem escravocrata e senhorial pode
parecer muito longa. Mas, é preciso levar em conta duas
coisas: 1º) aí está o período mais longo da análise, pois
abrange o tempo percorrido pela formação da colônia de
exploração e sua evolução até o limiar do último quartel do
século XVIII; 2º) essa ordem não se alterará em sua
substância, posteriormente, em especial no período de
transição neocolonial, em que ela atingirá sua plenitude
histórica e desabrochará todas as suas potencialidades ao
nível das relações comunitárias e societárias. A crise da
ordem escravocrata e senhorial surgiu de baixo para cima,
em termos estáticos, por causa do problema da renovação
da escravaria e da reprodução do trabalho escravo. E foi
agravada pelas pressões dinâmicas decorrentes da
expansão do setor capitalista novo, que se irradiou das
cidades para as zonas rurais, expondo os senhores a um
novo circuito histórico, através do qual a base material da
produção escravista e a própria reprodução do modo de
produção escravista foram condenadas à extinção
paulatina, embora se mantivessem as demais condições de
sua riqueza e do seu poder (como o monopólio da terra,
forte predomínio no controle das estruturas de poder
político, constante e crescente participação nas atividades
econômicas nascidas do crescimento da economia urbano-
comercial, despotismo social em todos os planos da
organização das instituições-chaves, das comunidades
locais ou da sociedade nacional etc.). Portanto, apogeu e
crise aparecem como dados concomitantes. O senhor não
sai dessas transformações como era antes. Porém, se ele
aproveita, agora em estilo tradicional-patrimonialista e em
estilo capitalista, o momento de apogeu, ele não se
converte em vítima da crise final dessa ordem. A vítima foi o
“negro” como categoria social, isto é, o antigo agente do
modo de produção escravista que, quer como escravo, quer
como liberto, movimentara a engrenagem econômica da
sociedade estamental e de castas. Para ele não houve
“alternativa histórica”. Ficou com a poeira da estrada,
submergindo na economia de subsistência, com as
oportunidades medíocres de trabalho livre das regiões mais
ou menos estagnadas economicamente e nas grandes
cidades em crescimento tumultuoso, ou perdendo-se nos
escombros de sua própria ruína, pois onde teve de competir
com o trabalhador branco, especialmente o imigrante, viu-
se refugado e repelido para os porões, os cortiços e a
anomia social crônica.
Já contamos demais essa história, para repeti-la aqui, de
novo, em todos os seus pormenores. Apenas para completar
os quadros históricos desta exposição, conferindo-lhe um
mínimo de unidade, vamos ressaltar alguns aspectos
centrais da revitalização da ordem escravocrata e senhorial
na fase de transição neocolonial bem como do complexo
interdependente de causas e efeitos, os quais tornaram o
modo de produção escravista inviável e, com isso, fizeram o
que a emancipação nacional não conseguira, levar a
descolonização às estruturas econômicas e sociais herdadas
da “sociedade colonial” e mantidas na “sociedade imperial”.
A descrição feita acima sugere, claramente, que a ordem
escravocrata e senhorial, elaborada em uma colônia de
exploração, não tinha como dinamizar por si mesma,
mantidas as condições existentes, as suas contradições
internas. Essas condições se alteraram mais a partir de fora
para dentro que a partir de dentro, mas assim mesmo nas
duas direções. O fim do último quartel do século XVIII e todo
o primeiro quartel do século XIX formam uma época histórica
de crise da consciência ultraconservadora do senhor
colonial.[13] O desfecho do ciclo de mineração e de
exploração diamantífera desencadeou vários processos
concomitantes de mobilidade espacial e econômica, de
deslocamento de fronteiras econômicas, com diferentes
tentativas de substituir a lavoura de subsistência pela
grande lavoura e de descobrir um novo eixo econômico para
o modo de produção escravista. O principal elemento dessa
eclosão histórica dentro do mundo colonial era político. O
senhor colonial começava a desatar suas amarras com o
regime colonial, ao mesmo tempo em que se propunha o
problema de sua impotência econômica e de sua
inviabilidade política em termos da organização do império
colonial. Por fim, o significado da condição colonial, que
atravessava sua posição dominante na sociedade e a
neutralizava, prevalece, então, sobre as compensações que
o regime podia oferecer. Ao mesmo tempo, essa
transformação é apanhada pelas relações da Colônia com a
Europa e sua posição dentro do império colonial português.
Em consequência da invasão de Portugal, a família real se
refugia no Brasil e várias ocorrências mudam a vinculação
do país com o mercado externo. De um lado, ao converter o
Rio de Janeiro em centro político da Corte, a Coroa conferia
ao Brasil a condição — por passageira que fosse — de
núcleo de irradiação do poder real e metropolitano. Isso
equivalia a interiorizar o império colonial sob nova condição:
não mais a do antigo sistema colonial, mas das instituições
necessárias à existência e eficácia do poder imperial. Se
isso garantia para as camadas senhoriais a base política
para uma “transição dentro da ordem”, isto é, através da
família real e do poder imperial, ao mesmo tempo
significava que o “senhor colonial” iria pretender, daí por
diante, ser apenas “senhor”. De outro lado, ao abrir os
portos e conceder à Inglaterra amplos privilégios
econômicos, a Coroa inaugura um circuito histórico novo: a
economia de plantação e o comércio interno ganhavam
vínculos diretos com o mercado mundial. As funções
econômicas da Metrópole teriam de ser, por sua vez,
internalizadas, e isso representou a base material para uma
profunda rotação econômica. Pois é em torno dela que se
iria dar a eclosão do capitalismo comercial moderno,
através do seu mercado, de suas instituições básicas e do
estilo de modernização econômica que ambos exigiam, no
acanhado mundo urbano herdado da era colonial.
Todas essas transformações simultâneas e inter-
relacionadas através do “tempo histórico europeu”
continham o mesmo significado para a sobrevivência e o
fortalecimento da ordem escravocrata e senhorial. Esta não
foi condenada juntamente com o antigo sistema colonial. Ao
contrário, o destino dos dois foi cuidadosamente separado,
de acordo com os interesses em jogo inerentes às principais
forças históricas. As camadas senhoriais tinham natural
interesse em resguardar a base material de seu poder social
e econômico, que era o monopólio da terra, a propriedade
escrava e o regime de plantação; a Coroa, em um momento
tão dramático de derrocada, precisava ainda mais que os
senhores proteger o que antes se chamara a “sua vaca de
leite”; a Inglaterra e os outros centros dominantes do
comércio internacional competiam duramente entre si pela
partilha dos despojos coloniais de Portugal, mas tinham o
mesmo interesse pela continuidade da produção de
“gêneros coloniais” no Brasil e de sua exportação para o
mercado europeu. No conjunto, pois, essa primeira etapa da
transição neocolonial foi muito favorável à persistência da
ordem escravocrata e senhorial como ela existia
anteriomente e, o que é deveras mais importante, de tal
confluência de fatores resulta que essa ordem ganha maior
elasticidade em dois níveis distintos. No plano puramente
econômico, as funções centralizadoras da Metrópole entram
em crise irremediável e começam a ser rapidamente
absorvidas a partir de dentro, um processo que se iria
consolidar e aprofundar com a emancipação nacional. Ao
mesmo tempo, o arcaico e rígido mercado colonial interno
começa a esboroar-se, e em seu lugar começa a aparecer
um mercado capitalista especificamente moderno, que se
desenvolverá aos poucos, de início nas cidades de maior
porte, mas segundo ritmos intensos (em virtude dos novos
vínculos com o mercado mundial e o controle do comércio
de exportação e de importação predominantemente por
firmas estrangeiras). Na evolução que vai até a segunda
década do século XIX essas transformações podem parecer
acanhadas. E de fato, elas o eram, pois é somente depois
da Independência que todos esses processos atingirão seu
clímax. Não obstante, elas retiravam a economia de
plantação do eixo do antigo sistema colonial, transferindo-a
para o eixo mais dinâmico do mercado mundial, e
contribuíam para expor os papéis econômicos do senhor ou
dos intermediários do comércio de exportação a influências
mais diretas e especificamente capitalistas. No plano
estritamente político, os efeitos da dinamização da ordem
escravocrata e senhoriais são ainda mais consideráveis. Os
estamentos senhoriais começam a ganhar existência
própria, fora e acima do estreito palco fornecido pelo
domínio patrimonialista e senhorial, do poder local e das
pressões canalizadas institucionalmente de modo indireto
sobre a Coroa. Eles não só começam a tomar consciência da
comunidade de interesses econômicos, sociais e políticos
numa linha integrativa estamental. Surgem as primeiras
manifestações coletivas, embora regionais ou
“concentradas no tope”, através dos figurões do Governo,
de um “querer coletivo” que iria articular-se de modo muito
rápido. Tão rápido, que a Independência converteu-se numa
transação senhorial: os senhores já tinham alcançado
solidariedade política estamental suficiente para poderem
impor a própria posição social como fundamento dos
processos de emancipação de Portugal e para conterem
essa radical transformação nos limites de uma “revolução
política dentro da ordem”, ou seja, com a preservação do
monopólio da terra, da propriedade do escravo e de todos
os privilégios da aristocracia.[14]
O que se poderia designar como a “Idade de Ouro” da
ordem escravocrata e senhorial vai da segunda etapa da
fase de transição neocolonial (mais ou menos da
Independência até a década de 60) ao início do último
quartel do século XIX (portanto, uma fase em que a
formação do capitalismo competitivo dependente já
alargara as bases do comércio interno e já atingira a
primeira irradiação importante da indústria de bens de
consumo). Aqui, os problemas históricos da duração da
ordem escravocrata e senhorial passam para segundo
plano. De fato, nos meados do século XIX já se tornam
evidentes os fatores e os efeitos estruturais de uma crise
irreversível dessa ordem. Não obstante, ela revela nesse
período o seu máximo de eficácia histórica e de
flexibilidade. Ambos os efeitos se prendem ao polo
senhorial. Os estamentos senhoriais lograram plena
integração de seus interesses econômicos, sociais e
políticos numa escala horizontal e nacional, tornando-se o
que se poderia descrever como um estamento em si e para
si, com condições de monopolizar o poder político estatal e
de comandar a política econômica interna. Isso não quer
dizer que os estamentos intermediários estivessem
anulados ou que não lutassem contra a “organização
oligárquica” do poder e da liderança política da aristocracia
agrária. Mas que o Império, no Brasil, foi um regime
escravista e que tinha os seus limites nos marcos da ordem
social dominados pelos senhores de escravos. Em suma, a
supressão dos liames coloniais com Portugal não implicou
desaparecimento do império colonial. Este se internalizou e
se estabilizou, alimentando-se a partir de dentro pelas
funções econômicas, sociais e políticas do domínio
senhorial, da economia de plantação e do modo de
produção escravista. O liberalismo senhorial era um
liberalismo que começava e terminava na “liberdade do
senhor” — e cobria-se contra qualquer risco de uma
revolução verdadeiramente nacional, que tirasse o Estado
nacional do seu controle estamental. O que ocorreu, teve
tão larga duração e deixou sequelas que vêm até hoje,
permite corrigir a interpretação que cientistas políticos
fazem da formação do Estado representativo nas “nações
emergentes” de origem colonial. Não é verdadeiro, pelo
menos no século XIX, que os estamentos dominantes e as
suas elites usassem as instituições representativas para
excluir o Povo da participação política e das estruturas de
poder. Na verdade, o Povo, na situação brasileira, nunca
teve tais regalias. O que era o Povo? Os estamentos
dominantes e intermediários, como queriam os
parlamentares e os publicistas conservadores do Império?
Ou o conjunto da população brasileira, composta em sua
quase totalidade de escravos ou de libertos e “homens
livres” completamente desvalidos, mesmo para se
qualificarem para a representação política? De modo que a
adoção das instituições representativas não foi um passo
para excluir o Povo do poder, mas um artifício para manter
a concentração social do poder nas mãos dos estamentos
sociais dominantes e intermediários. A constituição de uma
sociedade civil ultrasseletiva permitia criar a base política
de um sistema nacional de poder estável, no qual todas as
funções do Estado e do Governo podiam transcorrer dentro
dos “parâmetros da ordem”.
Em consequência, as funções que a Coroa portuguesa por
vezes refugou na defesa dos interesses escravistas
senhoriais, o Império brasileiro preencheu com a
desenvoltura e a eficácia necessárias. Ao contrário do que
afirmam alguns autores, que atribuem um caráter
mitológico suprarracional à “política econômica”, o Império
teve uma política econômica, e esta gravitava em torno dos
interesses da aristocracia agrária e do comércio de
importação e de exportação, largamente ligado (embora
não exclusivamente) àqueles interesses. As medidas que
aprofundavam a crise da produção escravista, vindas de
fora (da pressão inglesa) ou de dentro (da pressão
emancipacionista e abolicionista), encontravam nela forte
oposição e só logravam êxito a duras penas (para com
frequência serem adulteradas; ou para serem postas em
prática nos limites do “consentimento senhorial”). A
expansão do café ofereceu, assim, uma evidência ideal
dessa “Idade de Ouro” da ordem escravocrata e senhorial.
[15] Ela mostra até onde se poderia ir, dentro e através da
economia de plantação, no fortalecimento da sociedade de
castas e de estamentos. Contudo, é preciso não esquecer
que, ao lado da política, havia outros fatores que explicam
esse extremo de vitalidade e de flexibilidade, atingidas por
uma ordem social que estava condenada e poderia ter
desaparecido com a Independência, se esta fosse, de fato,
uma revolução nacional de cunho popular. O crescimento
das economias urbanas e o mundo de negócios criados pelo
café, especialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro,
serviram de eixo a um engolfamento do senhor em outras
esferas da vida econômica. Em uma sociedade na qual o
capital ou era importado ou estava concentrado nas mãos
dos que realizavam a expropriação do trabalho escravo e
participavam internamente do seu rateio social entre os
estamentos privilegiados, o senhor era um dos principais
candidatos a se converter em “homem de negócios” de
estilo moderno. Isso começa a acontecer nos fins do século
XVIII e ao largo de toda a fase de transição neocolonial. Mas
o apogeu desse processo é alcançado com a fase de
formação do capitalismo competitivo dependente. Os
efeitos desse engolfamento direto ou indireto do senhor nas
transações capitalistas nas grandes cidades, onde ocorria
nossa peculiar revolução urbana,[16] em nada melhorava a
condição e o destino do escravo. Os reflexos imediatos
dessa conexão, na medida em que ela já é mais ou menos
conhecida, indicam que os senhores se empenharam, de
fato, em prolongar ao máximo a duração da escravidão, não
só para ganhar tempo para poderem substituir o escravo
pelo trabalhador livre,[17] mas, principalmente, para
explorar da forma mais intensa possível e no prazo possível
o trabalho do escravo. Em certas regiões, por sua vez, os
senhores não tinham alternativa. Com o desaparecimento
do modo de produção escravista, ver-se-iam condenados a
perder qualquer viabilidade como agentes ativos da
economia de plantação.
A crise da ordem social escravocrata e senhorial constitui
um processo de extinção histórica prolongada de um
sistema econômico, social e político. É um caso concreto
que aparece, no nível interpretativo, como uma
demonstração típico-ideal de que as formações sociais não
podem ir além e sobreviver à forma de produção
correspondente. Muito do “antigo regime” iria existir além
dessa crise, graças à articulação de estruturas arcaicas e
modernas imperantes no padrão de desenvolvimento das
economias capitalistas da periferia. Não obstante, o
elemento que condicionou a crise e a levou ao colapso final
foi a impossibilidade de renovar a força de trabalho escravo
e de reproduzir o modo de produção escravista. Por isso,
embora o escravo e o liberto não tivessem um palco
histórico no qual pudessem atuar abertamente como
agentes de uma “revolução contra a ordem”, no substrato
da história eles desempenharam essa função capital. Foi
nos núcleos mais dinâmicos de expansão da economia de
plantação[18] que esse efeito seria sentido com maior
rapidez e nele se apelou, de maneira mais organizada e
intensa, à imigração e à substituição do trabalho escravo,
pelo trabalho livre. A pequena lavoura e a economia de
plantação de áreas de menor vitalidade de crescimento
poderiam enfrentar essa lenta agonia por mais tempo.
Porém, tal solução esbarrava com os interesses econômicos
dos fazendeiros de café do Oeste paulista, cujas figuras de
proa ocupavam o centro do “mundo dos negócios” e vários
tipos de papéis econômicos, que iam do comércio de
exportação e de importação às atividades bancárias, às
especulações imobiliárias, com terras ou com os
transportes, e aos empreendimentos industriais.[19] O
elemento competitivo e a acumulação originária de capital
em moldes capitalistas já haviam penetrado, aliás, de modo
tão profundo a condição do senhor, que ele já era pura e
simplesmente o “fazendeiro”, uma “versão burguesa” do
senhor colonial ou do barão do café de Minas Gerais e do
Vale do Paraíba.[20] Ao abandonar a exploração do trabalho
escravo e a espoliação do excedente econômico gerado
pela produção escravista, o senhor, portanto, volta as
costas para a sua antiga condição histórica, largando a si
mesmos — em uma demonstração de “negra ingratidão”,
indignadamente apostrofada por Nabuco — a ordem
escravocrata e senhorial e o Império. O que comporta uma
reflexão melancólica. Enquanto os escravos “são postos no
olho da rua”, largados a si mesmos, “os ratos abandonam o
navio”. Mas levam consigo tudo o que tinham, pois aderindo
à República os antigos senhores resolveram o “problema
dos braços para a lavoura”, bem como salvam o monopólio
da terra e o poder oligárquico, impondo à revolução
burguesa em ascensão os seus próprios ritmos históricos
arcaicos e o padrão mandonista que iria minar e destruir a
ordem republicana.[21]
Há, também, outro “lado moderno” mais humano nessa
crise da ordem escravocrata e senhorial. Ele vem do conflito
irredutível e irrefreável que se estabeleceu entre o trabalho
livre e o trabalho escravo. A conciliação entre as duas
formas de trabalho poderia ser feita nas fazendas,
especialmente à custa de certos artifícios, que não podem
ser relatados aqui (como deixar aos escravos as lavouras
mais duras e os trabalhos mais penosos, usar o trabalho
escravo nas “tarefas pioneiras” etc.). Porém, mesmo nas
fazendas os imigrantes se mostraram menos dóceis que os
trabalhadores brancos ou mestiços nacionais. Criaram
conflitos conhecidos e forçaram uma gradual eliminação do
trabalho escravo, em um processo que não ia contra o
agente humano do trabalho escravo, mas contra o modo
escravista de produção. Este rebaixava o valor do trabalho,
suscitava a persistência generalizada de padrões de
dominação intoleráveis e tendia a impedir que as relações
de contrato, tão essenciais para a existência do “trabalho
livre” e para o aparecimento de um verdadeiro mercado de
trabalho, se institucionalizassem nas zonas rurais nas quais
a economia de plantação sob o trabalho livre tendia a
crescer de maneira acelerada. Em poucas palavras,
enquanto perdurasse, o modo de produção escravista
convertia o “imigrante” e o “trabalhador livre” em geral em
substituto e equivalente do “escravo”. E isso tinha
consequências mais nocivas e incontornáveis nas fazendas
de café e nas pequenas cidades do interior. No entanto, é
nas cidades grandes, cujo comércio prosperava segundo
ritmos nunca vistos anteriormente e nas quais a
diferenciação do sistema de produção levava a uma
industrialização de tendências permanentes, com
perspectivas de crescimento constante, que a oposição à
escravidão era particularmente mais violenta. Não se
tratava mais de algo como o que ocorria nos meados do
século XIX, quando a “opinião pública esclarecida” mostrava
sua indignação moral contra as brutalidades dos “maus
senhores” ou dos “vícios” que a escravidão introduzia numa
“sociedade civilizada”. Tampouco se tratava das reflexões,
que iriam se tornar tão absorventes a partir do início do
último quartel desse século, sobre “como preparar o
escravo para o trabalho livre”. O fim da década de 1870 e
toda a década de 1880 abrange uma época de agitação
apaixonada contra a escravidão, na qual o movimento
abolicionista se tornou intrinsecamente revolucionário e se
fixaram os parâmetros de que capitalismo e escravidão não
podiam coexistir. Membros ilustres de famílias
aristocráticas, como Nabuco ou o célebre dr. Antônio Bento,
davam as mãos a todos os que pretendessem participar da
desagregação do trabalho escravo. Este último, inclusive,
indo mesmo mais longe que Patrocínio, levou a agitação
para as senzalas, combatendo o poder senhorial dentro de
seu próprio bastião. A mitologia da campanha abolicionista
foi muito engrandecida depois da Abolição. Ainda assim, de
modo direto ou indireto, dela participaram todos os setores
sociais importantes, em cidades como o Rio de Janeiro, São
Paulo e outras, embora o testemunho insuspeito de Antônio
Bento deixe bem claro: “A abolição foi feita pela pobreza,
com o maior sacrifício que é possível imaginar-se”.[22] E, no
ato final, também pelo escravo!
Essa correlação entre desenvolvimento capitalista e
extinção da escravidão, como diria Durkheim, é “normal”. O
modo de produção escravista serviu para construir as
fortunas das aristocracias agrárias da Colônia e do Império.
Em termos de formação e de expansão do capitalismo como
uma realidade histórica interna, ele preencheu as funções
de fator de acumulação originária de capital. Quando esse
fator se tornou historicamente inoperante e, além disso,
passou a ser substituído por formas de acumulação de
capital especificamente capitalistas, foi definitivamente
condenado ao desaparecimento. De um lado, ele contribuiu
para o crescimento interno de um mercado capitalista e de
formas de produção capitalista. De outro, ao se
constituírem, estes acabaram eliminando, no plano histórico
e no nível estrutural simultaneamente, o modo de produção
escravista e, com ele, todas as suas superestruturas, da
dominação senhorial na esfera do domínio patrimonial ao
Estado monárquico. Portanto, a ordem escravocrata e
senhorial foi destruída a partir de dentro, através de
desenvolvimentos capitalistas direta ou indiretamente
engendrados pela economia de plantação escravista; e foi,
ao mesmo tempo, suplantada e substituída a partir de fora,
pelos desenvolvimentos capitalistas que se irradiaram da
economia urbano-comercial para a sua periferia agrária.
Trata-se de um circuito histórico bem conhecido. Apenas, no
Brasil, ele não se deu de maneira completa. Como o polo
senhorial do regime monárquico logrou converter-se no polo
oligárquico do regime republicano, graças a certas
condições materiais e políticas que permitiram essa rotação
histórica, ao desaparecer, o trabalho escravo deixou atrás
de si várias formas de trabalho semilivre e de trabalho
escravo disfarçado que continuam a existir até hoje, mesmo
em economias de plantação tidas como “especificamente
modernas”.
CAPÍTULO 2

25 ANOS DEPOIS:
O NEGRO NA ERA ATUAL[23]

O PROJETO DA PESQUISA sobre relações raciais foi publicado em


1951.[24] Escrito pelo autor deste artigo, ele visava a
estabelecer um consenso intelectual que nos permitisse, a
mim e ao professor Roger Bastide, entrar em acordo sobre
os aspectos controvertidos da situação racial brasileira,
apesar das diferenças de pontos de vista que pudéssemos
ter a respeito do assunto. Ao mesmo tempo, impunha-se
unificar, empírica e teoricamente, as técnicas e os métodos
de observação, reconstrução e interpretação da realidade,
que devíamos explorar. Os dois objetivos foram alcançados
de imediato, através de uma discussão crítica que nos
ofereceu a oportunidade de conhecermos melhor o
pensamento um do outro. Com pequenas retificações, o
projeto passou a exprimir uma plataforma de trabalho
comum, tornando-se operacional tanto para as etapas de
coleta e análise dos dados, quanto para a etapa mais
complexa de descrição e explicação dos processos de
interação racial na cidade de São Paulo.
A pesquisa constituiu um êxito patente, apesar da severa
limitação de recursos com que nos defrontamos. Na história
da pesquisa sociológica no Brasil, ela aparece como a
primeira tentativa de certo vulto de trabalho
cooperativo[25] e de utilização da pesquisa empírica
sistemática como “técnica de consciência social” dos
dilemas históricos da sociedade brasileira. Ela deu origem a
vários estudos importantes;[26] e encontrou ampla
confirmação por outras pesquisas, que estavam sendo feitas
na mesma ocasião[27] ou que foram encetadas
posteriormente, graças à sua influência.[28] Procuramos
buscar a colaboração direta e crítica dos sujeitos da
investigação, especialmente do negro e do mulato, cujos
sentimentos, atitudes e orientações de comportamento
eram mal conhecidos. A colaboração do negro e do mulato
foi maciça: nos seminários contávamos com uma afluência
média de 130 ou 150 pessoas. Nessa massa, selecionamos
intelectuais negros, para entrevistas em grupo focalizadas;
mulheres com maior consciência do “problema negro”, para
seminários e entrevistas focalizadas; e sujeitos para história
de vida e entrevistas formais ou informais, de caráter
pessoal. A colaboração do branco se deu através da
assistência de um grande número de estudantes de
sociologia da Universidade de São Paulo, de assistentes e
auxiliares de ensino da cadeira de Sociologia I, e de pessoas
que ocupavam posições-chaves em diversos tipos de
instituições, através das quais as “linhas de cor” definiam
sua vitalidade e funções, selecionadas para entrevistas
formais e informais. Embora os documentos pessoais
constituíssem um dos eixos da investigação, as reuniões
mensais representavam uma técnica de observação em
massa e os seminários com intelectuais ou mulheres abriam
perspectivas à análise de atitudes e comportamentos em
pequenos grupos. É certo que não se tratava de entidades
sociais espontâneas, pois se formavam sob a motivação da
pesquisa. Contudo, através da observação direta
procuramos colher materiais sobre as situações concretas
de vida e de interação racial. Na medida do necessário, tais
dados foram complementados por informações censitárias e
tratamento estatístico descritivo de entrevistas focalizadas
sobre aspirações e perfis de carreiras. De outro lado, para
evitar o obscurecimento das explicações que nascem da
ignorância do passado, fizemos um amplo esforço de
sondagem histórica, para acompanhar a posição do negro e
do mulato na evolução da economia e da sociedade
paulistanas, do século XVI à década de 1940 ou 1950 do
século XX. Na verdade, a cidade de São Paulo possui certas
peculiaridades, algumas históricas (no período colonial, ela
foi durante muito tempo o que chamaríamos de uma
“região subdesenvolvida” e permaneceu nessa condição até
ao surto cafeeiro), outras econômicas e étnicas (ela se
tornou o eixo da revolução urbano-comercial e industrial no
Brasil, ao mesmo tempo em que se convertia no maior
centro de concentração de imigrantes estrangeiros), e
outras propriamente sociais (a cidade se transformou em
cidade regional e logo em seguida em cidade metropolitana
de modo rápido e acelerado). Por isso, o que se passou na
cidade de São Paulo, em termos de concentração, irradiação
e aceleração da revolução burguesa, só iria se repetir em
outras cidades brasileiras posteriormente e com frequência
através da satelização do desenvolvimento socioeconômico
brasileiro pelo eixo Rio de Janeiro-São Paulo. Em outras
palavras, a cidade de São Paulo viveu todo um processo
histórico que se desencadeou no resto do Brasil sob a sua
hegemonia e como uma maturação “tardia”. Cumpria
verificar se essa explosão histórica incluía o ex-agente do
trabalho escravo e se as novas estruturas econômicas,
sociais e políticas destruíam o antigo regime na esfera das
relações raciais. O próprio “elemento negro” tentou tomar
pé nesses processos, através de movimentos de protesto e
de crítica raciais (especialmente nas décadas de 1930 e de
1940), o que exigia um desdobramento na observação e na
análise sociológicas da contraideologia racial elaborada no
seio do “meio negro” (o que fizemos por meio de
entrevistas, histórias de vida e do estudo da documentação
escrita, principalmente dos jornais negros). Sabíamos que
nem tudo que iríamos descrever ou descobrir se daria da
mesma maneira em outras localidades brasileiras. Como
não incluímos essa convicção no planejamento da pesquisa,
deixamos de lado suas consequências teóricas (pois não
dispúnhamos de recursos para ir além, procurando
comparações com outras situações, contrastantes ou
similares). De qualquer modo, essa convicção nos impediu
de generalizar de forma afoita e foi com prazer que vimos
surgir os primeiros tateios de reflexões voltados para a
comparação.[29] Mas, se se trata da cidade de São Paulo
apenas, isso não quer dizer que o que se passava aí não
repetia algo mais ou menos geral (quanto à sociedade
escravista) e que tende a acontecer em outras partes da
sociedade brasileira de nossos dias (nas condições
imperantes de transição para a economia urbano-industrial
e para o capitalismo monopolista).
Hesitamos muito quanto à categoria descritiva
privilegiada. Preferimos empregar os conceitos de branco,
negro e mulato entre aspas, para indicar os percalços de
uma flutuação que não pode ser efetivamente controlada
pelos investigadores. Na época, apenas o conceito de meio
negro foi explorado com intenções inclusivas e
totalizadoras. Não nos propúnhamos a estudar só os negros
nem procuramos descobrir em que a condição do mulato
poderia ser peculiar (em face do “branco” e do “negro”). De
fato, ao descrevermos o que podíamos observar através das
duas categorias, postas lado a lado, estávamos tentando
unificar as experiências e as orientações de comportamento
do negro e do mulato. Não nos atrevemos a fundir as
observações numa mesma categoria, por respeito às
ambiguidades da situação e das patentes diferenças entre
os dois agentes humanos. Apesar de nossas intenções
relativizadoras e unificativas, recebemos críticas
especialmente dos ativistas do meio negro, que são
visceralmente contra todas as distinções e repelem, por
igual, expressões como “elemento de cor”, “pessoa de cor”
etc., e palavras como “preto”, “mulato claro”, “mulato
escuro” etc. Para eles, todos os elementos que não são
fenotipicamente brancos, são negros e a palavra negro
surge, portanto, como um símbolo de identidade psicológica
e racial. Essa inclinação se fortaleceu ainda mais nos
últimos anos, como pudemos descobrir em um debate
recente.[30] Os negros e mulatos que não são “racialmente
conscientes”, porém, mantêm as antigas descrições, que
revelam, profundamente, categorias e critérios perceptivos
construídos pelo “branco” no passado. De qualquer forma, a
nossa pesquisa ficou com duas limitações. Se ela é
totalizadora, ela não chega a operar com uma única
categoria integrativa e exclusiva, como pretendem os
principais representantes das várias correntes do
radicalismo e do ativismo afro-brasileiro. Se ela é
relativizadora, ela não separa o “negro” do “mulato”: se os
distingue, o faz para projetá-los no que possuem e sofrem
em comum, o que desperta a crítica dos brancos que se
identificam com a ideologia da “democracia racial” e suscita
reserva nos especialistas que se interessam mais pelo que é
peculiar à “condição do mulato”.[31] Todavia, não se pode
fazer tudo de uma vez. A nossa pesquisa não era isenta de
valores — pois víamos nela uma contribuição à crítica
objetiva a uma situação histórica de preconceito e
discriminação camuflada; e aceitávamos, abertamente, uma
identificação moral e política com o negro, como condição
intelectual para que nossa contribuição se inserisse no
processo de criação de uma verdadeira democracia racial
—, mas por mais que pretendêssemos nos superar, tivemos
de cair nas malhas do conhecimento científico circunscrito e
especializado. Dependemos de outras investigações, e
particularmente de investigações que sejam feitas por
negros, para chegarmos a um conhecimento mais completo
e inclusivo e, ao mesmo tempo, suficientemente
diferenciador.
Depois de 25 anos, em termos de datas-limites, o assunto
que se coloca é claro. As transformações recentes da cidade
de São Paulo, tão profundas no nível da economia, da
sociedade e da cultura, afetaram radicalmente o quadro que
nos foi dado observar e descrever? Aquele quadro ainda faz
parte da “realidade quotidiana” ou foi pulverizado? A
questão, como indicamos em nossas hipóteses de trabalho,
é que o Brasil se transforma rapidamente mas, ao mesmo
tempo, nem todas as suas estruturas entram em jogo e
fazem parte da história em processo. A desigualdade racial
permanece um fato inquestionável. Nem poderia ser
diferente. O fracasso dos movimentos de protesto negro
redundou na ausência do negro na luta por seu destino na
cena histórica. As alterações que ocorreram não revelam
menos a presença do negro na economia, na sociedade e na
cultura. Porém como parte dos processos globais e dos
dividendos indiretos. A história seria diferente se aqueles
movimentos tivessem persistido, se ampliado e
aperfeiçoado; aí, os principais interessados estariam lutando
pela democracia racial e com toda a probabilidade sua
pressão sobre a desigualdade racial seria diversa. As notas
que se seguem, sem pretenderem ultrapassar o caráter de
uma sondagem muito tosca e impressionista, retêm as
imagens da situação atual, do ângulo do negro e do mulato
que participam de uma visão inconformista do “problema
racial”.[32] Eis os três pontos que comportam uma
exposição de relativa consistência: 1º) o aproveitamento
crítico dos resultados da pesquisa (naturalmente, pelos
setores mais ou menos ativistas do meio negro; mas,
também, pelo branco, onde isso se mostra sintomático); 2º)
por que as transformações recentes da sociedade brasileira
não engendraram qualquer alteração profunda da
desigualdade racial nem de um tipo mais atuante,
organizado e conflitante de inconformismo racial; 3º) os
aspectos nos quais são patentes transformações
significativas do quadro de contato racial descrito
inicialmente (e válido para a década de 1950).
O AMADURECIMENTO   DA CONSCIÊNCIA   CRÍTICA

DESDE SUAS ORIGENS, a sociologia se constitui como uma


“técnica de consciência social”, orientada para a percepção
e a explicação críticas do presente,[33] esfera na qual
deveria ligar “o estado atual das coisas” às transformações
históricas em processo.[34] Essa função obliterou-se nos
países em que a profissionalização institucional dissociou a
pesquisa sociológica dos grandes debates coletivos e isolou
os sociólogos dos movimentos sociais inconformistas.[35]
Não é esse o caso no Brasil, apesar do caráter repressivo do
controle da investigação científica e do comportamento
antidemocrático das elites econômicas, culturais e políticas.
Os intelectuais brasileiros mais ou menos atuantes
continuam a formar uma intelligentsia funcional para os
grandes debates coletivos e para as transformações
históricas em processo, desempenhando papéis
construtivos pelo menos quanto à verbalização e à difusão
de várias formas de inconformismo e de radicalismo. A
própria opressão institucional faz com que essa
funcionalidade não desapareça, mesmo em condições de
extrema repressão do “intelectual crítico” e da “sociologia
militante”. Na medida em que os vários grupos e classes
sociais não possuem meios próprios de autoconsciência e
de autoexplicação das condições adversas do ambiente,
eles têm de voltar-se para os “intelectuais críticos”, em
geral, e para a “sociologia militante”, em particular, na
busca de uma visão inconformista articulada, no que
concerne seja ao radicalismo burguês, seja à contracultura e
ao socialismo revolucionário.
Essa conexão, condenada pelo pensamento conservador e
temida pelos “intelectuais acomodados”, beneficiou
amplamente a avaliação positiva e a divulgação
extracientífica dos resultados da pesquisa Bastide-
Fernandes. Embora um aproveitamento prático realmente
eficiente não tenha ocorrido, mesmo nos setores iletrados
do meio negro ela teve um impacto inesperado. A ausência
de racismo institucional, por sua vez, contribuiu para que
esses resultados: 1º) recebessem acolhida muito favorável
por parte dos radicais e ativistas negros, que viram neles
um prolongamento e um aprofundamento das tentativas de
desmascaramento racial encetadas pelos principais
mentores do “protesto negro” nas décadas de 1930 e de
1940; 2º) fossem aceitos com simpatia e incorporados pelo
branco inconformista, de personalidade democrática e
identificado com a mudança de mentalidade ou de
costumes. Não obstante, tanto no meio negro quanto no
meio branco, foi nos setores abertamente radicais que o
interesse pela contribuição empírica e teórica da pesquisa
alcançou maior intensidade e consistência. É que a
avaliação produtiva e o aproveitamento construtivo dos
resultados da pesquisa exigiam um nível de secularização
de atitudes e comportamentos que não são comuns ou
frequentes em uma sociedade de classes em formação; e a
incorporação de certas explicações ao horizonte intelectual
médio exigia uma ruptura prévia com as concepções
conservadoras e tradicionalistas dominantes, pelo menos na
esfera da ideologia racial. Por isso, embora não sejam
conhecidos contrastes relevantes a respeito, o meio negro
revelou uma sensibilidade maior às “verdades reveladas” ou
“comprovadas”. De José Correia Leite, Raul Joviano do
Amaral, Fernando Goes, Oswaldo de Camargo, a S.
Rodrigues Alves, José Pelegrini e Abdias do Nascimento —
sem enumerar todos os veteranos “mais conspícuos” e os
jovens “mais promissores” — partiram as avaliações
reativas mais entusiásticas e apologéticas, que adquiriram,
na prática, o significado de um rito de adoção.[36] Através
daquela pesquisa, portanto, a sociologia não só se
incorporou ao desmascaramento do mito da democracia
racial — ela se inseriu, também, na confusa situação
presente e nos anseios daqueles que procuram redefinir o
protesto negro em busca de “um mundo melhor para os
negros”, de uma “verdadeira confraternização racial” e de
“igualdade sem hipocrisia”.
Em um primeiro nível, a pesquisa Bastide-Fernandes não
só “confirmou” os diagnósticos da situação racial brasileira,
que serviam de base à contraideologia e à contrautopia
elaboradas através dos movimentos sociais que abalaram o
meio negro em São Paulo nas décadas de 1930 e 1940. Ela
pôs em evidência a dignidade histórica desses movimentos,
que surgem atualmente, na verdade, como as únicas
manifestações autênticas e autônomas de populismo,
ocorridas no passado recente. O protesto negro falhou, por
motivos intrínsecos e em virtude da falta de ressonância no
mundo dominante dos brancos. Mas, a sua herança
intelectual e política, ignorada antes daquela pesquisa, ficou
delimitada e reconhecida, transcendendo aos limites em
que ficou contida durante a sua eclosão e evolução. Em um
segundo nível, a pesquisa Bastide-Fernandes foi mais longe
e penetrou mais fundo — como tinha, aliás, de acontecer —
tanto nas ambivalências e nas debilidades do protesto
negro, quanto na miséria racial de uma sociedade que se
pretende democrática embora mantenha, indiferente,
estruturas raciais herdadas do passado colonial e
escravista. O protesto negro estava condenado a morrer nas
fronteiras do meio negro, pois ele não podia debilitar os
padrões existentes de dominação e de desigualdade raciais
permanecendo no âmbito institucional da ordem
republicana. De outro lado, as estruturas raciais da
sociedade brasileira só poderão ser ameaçadas e destruídas
quando a “massa de homens de cor”, ou seja, todo o
elemento negro, puder usar o conflito institucionalmente em
condições de igualdade com o branco e sem nenhuma
discriminação de qualquer espécie, o que implicaria
participação racial igualitária nas estruturas de poder da
comunidade política nacional. Os intelectuais negros
revelaram um singular tropismo positivo pelos resultados da
pesquisa nos dois níveis mencionados: eles não se puseram
em defesa estreita de suas posições anteriores nem dos
diagnósticos implícitos ou explícitos. Avançaram até onde
conseguimos chegar, levando com eles seus seguidores
mais ou menos letrados e até iletrados, que não teriam
condições culturais para entender e aceitar as contribuições
da sociologia crítica. Analistas apressados e superficiais,
especialmente quando tomam como ponto de referência a
natureza do protesto negro nos Estados Unidos da
atualidade, veriam nessa evolução mais uma evidência da
passividade do negro brasileiro e de sua propensão a imitar
o branco. Mas, tal apreciação seria malévola e
inconsistente. Eles perceberam muito bem em que plano se
davam as convergências e as superações, e aonde o
sociólogo não pode chegar — e a sua tarefa especificamente
anticonformista e de rebelião dos costumes precisa se
manter ou se renovar. Incorporaram as várias combinações
que se podem fazer sociologicamente entre “classe” e
“raça”; e com isso lograram uma nova perspectiva prática
para entender melhor as inconsistências institucionais da
propalada democracia racial e para conceber melhor a
“Segunda Abolição”, que não lograram desencadear como
pretendiam.
É óbvio que o amadurecimento da consciência crítica, no
meio negro, não caminhou unilateralmente e em uma
direção dominante. Os mesmos motivos que explicam o
fracasso relativo e o impasse final dos movimentos de
protesto,[37] também explicam, ainda hoje, a pulverização
da crítica reativa na atualidade. Não se trata, apenas, do
desnível socioeconômico, cultural e político do negro em
face do branco. O padrão brasileiro de dominação racial
engendrou uma ambivalência inexorável no meio negro — e
esta não pode ser combatida e extirpada sem a eliminação
prévia daquele. Isso quer dizer que, enquanto o negro não
romper com a visão mistificadora da realidade racial,
dispondo-se a colocar o branco no centro de um
antagonismo que deve ser, inevitavelmente, de “classe” e
de “raça”, ele será vítima de várias confusões morais e da
incapacidade de lutar, de fato, por posições coletivas nas
estruturas de poder. Os movimentos da década de 1930 e
de 1940 atestam essa conclusão: até ao negar a ordem, se
não for ao fundo das coisas e da combinação brasileira de
“classe” e “raça”, ele acabará favorecendo, de um ou de
outro modo, as ideologias e as formas de hegemonia de
raça dominante. Aliás, o mesmo raciocínio se aplica ao meio
branco, mas por motivos inversos. O esforço de
desmascaramento e de superação da situação racial
existente não pode partir do branco, por “inconformista”,
“radical” ou “revolucionário” que ele seja. O seu
inconformismo, radicalismo ou revolucionarismo de classe
só parcial e incompletamente poderiam conter os
componentes mais explosivos da igualdade racial. No
conjunto, por paradoxal que pareça, as reações positivas
aos resultados da pesquisa refletem, de um lado e de outro,
impossibilidades crônicas e conjunturais. Por fim, cumpre
mencionar que o negro encontrou um ponto de apoio
inesperado, que traz consigo mais que “uma confirmação
pelo branco”, o prestígio da ciência. Talvez tal avaliação
traduza uma superestimação da pesquisa sociológica e do
papel intelectual do sociólogo. Não importa. Um limite é
demarcado e transposto — e isso é o principal. O branco,
por sua vez, se for identificado com orientações
verdadeiramente democráticas (quanto à organização da
personalidade, à concepção do mundo e à convivência inter-
racial), descobre como alargar o âmbito de seu ataque aos
costumes anacrônicos e às sequelas raciais da escravidão.
Para ele, será sempre uma surpresa verificar que o próprio
negro se antecipou às descrições sociológicas; mas a
sociologia lhe oferece uma oportunidade para transcender à
ideologia racial dominante, já que seu critério de verdade
passa pelos fatos (não pela contraideologia do negro). O que
significa que é através da crítica sociológica da situação que
o branco pode, mais facilmente, entender o protesto negro
e apoiá-lo de modo prático, indo da simpatia ocasional para
a rejeição global. Contudo, nem o branco nem o negro
chegaram ao chamado “terreno da ação” à luz dos
conhecimentos novos. Seu aproveitamento dos resultados
da pesquisa ficaram contidos em um limite prévio, a meio
caminho entre a negação de uma ordem social que
dissimula seus fundamentos raciais e a vontade de alterar
de alto a baixo as estruturas raciais da sociedade brasileira.
Em consequência, nem os conflitos de classe estimulam o
encaminhamento da crise racial, nem os conflitos de raça
ajudam a configurar a revolução com base na classe. Nesse
ponto, a crítica sociológica foi mais longe e sua contribuição
potencial continua inexplorada.
Feito esse balanço geral convém indicar certas
retificações evidentes. Muitas “atitudes esclarecidas”, que
apareceram simultaneamente entre negros e entre brancos,
nada têm a ver com os resultados da pesquisa e sua
absorção pelo horizonte cultural médio. Ao contrário, elas
foram induzidas pela alteração dos estilos de vida e das
mentalidades dos dois estoques raciais em presença. A
industrialização maciça e a convulsão metropolitana, a esse
respeito, secretaram atitudes, padrões de comportamento e
valores que expõem a ordem racial herdada do passado ao
que se poderia designar como o início da crise final. No
entanto, mesmo estabelecendo-se esse confronto e
aceitando-se suas consequências, não ficam comprometidos
os efeitos úteis da pesquisa e dos seus resultados (os que
podemos avaliar sociologicamente; e os que resultam da
elaboração histórica descrita acima). Pois eles não só
reforçaram propensões críticas preexistentes e ajudaram a
criar outras novas. Também incluíram, de modo definido e
aparentemente durador, o dever de estar informado sobre a
natureza e os efeitos nocivos do “preconceito de cor” no
ideal de personalidade do negro educado e esclarecido. A
corrente nova, de negros e brancos que ostentam atitudes
raciais divergentes, autenticamente democráticas e
igualitárias, encontra uma base perceptiva e explicativa
para a sua atuação racional e, ao servir de contrapeso às
pressões conservantistas, amplia o público aberto à
“sociologia crítica e militante”. Hoje já não se poderia mais
pensar em “combate ao preconceito de cor” ou cogitar de
medidas práticas de “controle do preconceito e da
discriminação raciais” sem pôr em primeiro plano a
contribuição da sociologia e a colaboração dos sociólogos.
Ainda não se constituíram os meios institucionais que
poderiam fazer o enlace da pesquisa sociológica com as
impulsões inconformistas e inovadoras do comportamento
coletivo divergente. As necessidades desse enlace existem
e impõem ao negro inconformista um novo ponto de
partida, que o obriga a ser mais realista e, ao mesmo
tempo, mais difícil de satisfazer. Em função do nível crítico
da percepção sociológica, a negação da ordem se abre
simultaneamente para a “classe”, a “raça” e os seus
entrelaçamentos visíveis ou invisíveis. O que quer dizer que
saltamos do ideal inconcretizável da “Segunda Abolição”
para a ideia da revolução de baixo para cima: o negro aí
aparecendo como o Povo que se torna agente da história.
O INCONFORMISMO   INÓCUO

O PROJETO DE PESQUISA de 1951 insistia no conceito de


“capitulação passiva”. Então, conhecíamos mal o protesto
negro, sua contraideologia racial e os ideais que orientaram
as lutas pela frustrada “Segunda Abolição”. Hoje, o conceito
que merece preeminência é o reverso de inconformismo
inócuo. Esse conceito representa a imagem invertida
daquilo que se entende, no meio negro, como “o complexo”.
Todo negro, quer ele caiba na categoria do “negro
tradicional”, que transige com as expectativas do branco,
de acomodação espontaneamente passiva; quer ele seja o
que os próprios negros designam como o “negro trânsfuga”,
que “foge ao problema” e, com cálculo ou sem ele, “sufoca
o seu orgulho”, em troca de compensações elementares e
com frequência fugazes; quer ele corresponda ao que
caracterizamos como o “novo negro”,[38] firmemente
disposto a competir e até a aceitar o conflito pessoal com o
branco “para subir socialmente”; quer ele corresponda ao
que os brancos entendem como “negro racista”, pronto para
repelir o padrão de dominação racial assimétrica, a
ideologia racial correspondente e as estigmatizações
resultantes, e para colocar no seu lugar a “beleza do negro”,
com sua “superioridade biológica” e sua “supremacia
intelectual” e com um ideal retaliador de igualdade das
raças e da democracia racial, mais afro-brasileiro que
“negro brasileiro” — enfim, todo negro, nessa variedade de
tipos, quando se põe diante do branco, revela alguma forma
de inconformismo, por mais oculto e tosco que ele seja
(embora, nas áreas de tensão, de competição e de conflito,
o inconformismo transpareça claramente, como o falo ereto
desproporcional, pintado por Abdias do Nascimento). Na
verdade, “o complexo” trabalha em várias direções opostas
e contraditórias.
Da capitulação passiva à rebeldia ativa, com passagens
pela “traição franca” diante dos “irmãos de raça” e pelo
comportamento estritamente racional com relação a fins ou
a valores. Todavia, se se leva a análise ao que é mais
profundo e, em regra, parcial ou totalmente inconsciente, “o
complexo” sempre implica uma anuência tácita que é uma
acusação, uma “alienação” que é uma “esperteza contra o
branco” ou, nos dois níveis mais complicados, a resistência
calculista e a rebelião declarada, pelas quais se inverte e se
dá combate ao tradicionalismo nas relações raciais.
Portanto, as mesmas reações que engendram “o complexo”
produzem o inconformismo (embora a elaboração
psicológica e cultural deste dependa do tipo de
personalidade e das condições externas da situação social
do sujeito e de sua interação com os brancos). A base
estrutural do comportamento racial do negro está
intrinsecamente mesclada a componentes psicodinâmicos e
sociodinâmicos que negam o que ele “precisa” e “deve ser”
em termos das expectativas do branco e do padrão
assimétrico de acomodação racial. Por aí se desenha uma
dialética das relações raciais que faz com que, por detrás do
“complexo”, que inferioriza e subalterniza o negro
psicológica, cultural e socialmente, exista uma
compensação, por vezes meramente simbólica ou
simplesmente subjetiva, pela qual o negro procura definir-se
e afirmar-se como pessoa, tentando impor a sua própria
realidade moral, de modo discreto e dissimulado ou de
modo agressivo e retaliador. A lógica contestatória só
aparece quando essa negação implícita ou explícita rejeita o
mundo dos brancos e o lugar nele destinado ao negro.
Estamos, pois, diante de um inconformismo básico, que
assume várias formas e, com frequência, ilude o próprio
negro. Ele possui uma natureza larvar em nível de
comportamento e de ajustamento raciais do “negro
tradicional”; já quando se trata do “negro trânsfuga”, o
inconformismo surge “envenenado”, como a maçã na
história da Branca de Neve, pois a relação desse tipo de
negro com o mundo dos brancos é perversa e pervertida; o
“novo negro” comporta ambiguidades, mas são
ambiguidades que rendem juros e o colocam na espiral do
êxito, em detrimento do branco, de sua vontade e de seu
ímpeto de dominação dos outros; mas, se ele corrói a
tendência à subalternização do negro, ele não se bate
frontalmente contra ela; o que faz o “negro racista”, que
deixa de racionalizar o inconformismo, apresentando-o na
forma mais límpida de uma contestação da ordem racial e
da posição subalterna do negro dentro dela. A gradação
implica um radicalismo progressivo, pelo qual o negro, de
fato, elabora culturalmente “o complexo”, projetando-o
contra o branco, a sua dominação racial e as iniquidades
especificamente raciais da sociedade de classes, herdadas
do passado ou não. Esse é um ponto que precisa ser retido
com cuidado. Nas análises iniciais, ficamos muito rente aos
dados e mesmo nas descrições dos movimentos de protesto
negligenciamos esse explosivo componente psicodinâmico,
com as várias elaborações sociocuIturais que ele comporta.
As insatisfações intrínsecas ao “complexo”, que são
externamente materiais e sociais, possuem um reverso
psicológico e moral, que metamorfoseia a necessidade de
ser uma pessoa em uma incompatibilidade diante da ordem
racial existente. Se essa incompatibilidade pode ser
absorvida onde o padrão de relação racial assimétrica se
impõe por anuência tácita ou malícia, o mesmo não pode
suceder no nível de comportamentos raciais racionais com
relação a fins e a valores. Aí, a elaboração final é ou uma
“má consciência” diante de uma ordem racial
irremediavelmente “injusta” diante do negro, eximindo-o de
compromissos morais sólidos, ou a “denúncia” pura e
simples, de contraposição e radicalismo sistemático. Ora, os
dois tipos de negro que estão nos limites de tais orientações
de comportamento e de ajustamento inter-racial são
também os negros que podem manipular suas insatisfações
e seu radicalismo na arena histórica. Por pequeno que seja o
espaço social que tenham para preencher tais papéis, eles
sentem a disposição de fazê-lo e são coagidos “a entrar na
torrente”, por motivos psicossociais egoísticos ou por alvos
coletivos mais ou menos altruístas.
A questão é que a sociedade brasileira não se abre para
quaisquer dessas elaborações do inconformismo, do larvar
ao radicalismo sistemático. Ele tem de ser sufocado dentro
do meio negro (ou, o que é pior, como “drama de
consciência”, pela própria personalidade que o secrete). A
sociedade permanece fechada a essas impulsões de
humanidade do negro, pois o uso aberto da tensão e do
conflito continua a ser um privilégio dos estratos sociais
dominantes da “raça dominante”. Apesar de todas as
transformações ocorridas, nessa esfera há pouca diferença
entre o presente, o passado recente e o passado remoto; a
escravidão desapareceu, porém subsiste um mandonismo
estreito, que converte a dominação de classe em
equivalente da dominação estamental e de casta. Para que
as coisas fossem diferentes, teria sido necessário que a
revolução burguesa fosse, ao mesmo tempo, aberta às
pressões populares, democrática e nacionalista;[39] e, de
outro lado, que o próprio negro tivesse criado, depois da
Abolição e, principalmente, da “Revolução de 30”,
legitimidade para o protesto racial (tido pelas camadas
conservadoras como o pior tipo de protesto, depois do
conflito operário) — o que, sabidamente, não ocorreu, pois a
população negra nunca reuniu condições para levar a
democratização da ordem mais longe que as classes
operárias e o radicalismo burguês.[40] Tudo isso significa
que o inconformismo negro pode ser uma realidade
psicológica, cultural e moral, mas não pode tornar-se uma
força social atuante e uma realidade política. Em uma
sociedade de classes que preserva um padrão de elitismo
típico da dominação estamental, o conflito potencial de raça
não tem como eclodir na cena histórica. No passado, ele era
expurgado da ordem legal e fortemente reprimido, como
uma “ameaça às instituições e à civilização”. No presente,
ele é deliberadamente confundido com o conflito de classe
ou com a “subversão comunista da ordem” — e exposto à
solução policial. Só o branco poderia manipular esse tipo de
tensão, e o branco no caso vem a ser o branco das elites
das classes dominantes, pouco interessado em levar a
democratização das estruturas econômicas, sociais e
políticas aos “porões da sociedade”. Assim como ele
monopoliza as decisões sobre as mudanças que devem ser
implementadas, ele também seleciona e monopoliza as
tensões que devem ser incrementadas.[41] Essas tensões
não passam pela revolução democrática da ordem, mas por
sua consolidação e perpetuação como ela está, uma ordem
social que é de classes para as elites e para as classes
dominantes, porém que é semiestamental ou estamental
para as classes operárias e o Povo em geral. Em
consequência, poderíamos concluir que, se a questão racial
não é literalmente uma questão de polícia, isso se dá
porque o próprio negro não pode fomentar, material e
politicamente, uma séria questão racial. A estrutura da
sociedade está preparada para reprimir qualquer pressão
racial que se volte para a democratização da ordem social
(e, implicitamente, da ordem racial que ela absorve e
retrata): a Abolição não aumentou em nada as
probabilidades de participação econômica, social, cultural e
política do “elemento negro”. Ela foi uma revolução do
branco para o branco e, nesses limites, manteve intacto o
padrão assimétrico de relação racial e as desigualdades
raciais, institucionalizadas ou não.[42] A única tentativa do
negro para alterar essa situação histórica, através dos
movimentos de protesto das décadas de 1930 e de 1940,
malograram. O que quer dizer que a “ordem democrática”
existente não é democrática para todos. E ela não é nada
democrática para o negro em geral, perdido no seio das
populações mais ou menos pobres e sistematicamente
marginalizadas das estruturas de poder.
Os processos de “formação do Brasil moderno” sofreram
uma profunda deflexão nos últimos trinta anos. O
desenvolvimento foi ampla e profundamente condicionado e
dirigido do exterior, embora seu patamar interno fossem as
potencialidades de uma economia capitalista periférica
dotada de um vasto mercado interno e rica de matérias-
primas ou produtos exportáveis. Esses dois polos dinâmicos
condicionaram uma forma de revolução capitalista especial,
que conjuga três elos de decisão: as classes burguesas
“nacionais”, a comunidade “internacional” de negócios e o
Estado brasileiro. Essa modalidade de revolução capitalista
forçou as elites das classes burguesas, privadamente e
através do Estado, a adotar formas de dominação
econômica, sociocultural e política especificamente
autocráticas e ultraconservadoras. Em consequência, o
movimento que em certos países da Europa e nos Estados
Unidos gerou uma ordem burguesa aberta e democrática,
no Brasil produziu uma ordem burguesa fechada e
autocrática. O despotismo inerente à dominação burguesa
se adaptou à forma possível de acumulação capitalista,
gerando um elitismo dotado de todos os recursos da
modernização, inclusive de forte concentração do poder
político estatal. Com isso, os antigos e novos privilégios
puderam ser defendidos ao longo de várias fases sucessivas
de transformação urbana e de transição industrial. As
classes dominantes lograram, assim, bloquear a pressão
popular e manter, ao lado da concentração do poder
político, uma concentração paralela da riqueza e do
prestígio social. Embora a massa de operários aumentasse
em número, de modo constante, e as migrações internas
incrementassem sem cessar as populações urbanas, a
riqueza e o poder ficaram concentrados no tope (mais ao
nível dos 1%, 5% e 10% de maior renda e de melhores
probabilidades de participação cultural, ainda que a faixa
dos 30% de maior renda tenha recebido, em grosso,
compensações relativamente satisfatórias).
Esbatido sobre esse contexto histórico, o populismo se
diluiu,[43] pois nenhuma modalidade de demagogia
burguesa e de radicalismo elitista poderia servir de enlace
entre as classes privilegiadas e as massas populares. Para
se autodefender e se autoprivilegiar as classes burguesas
precisaram amparar-se em seus setores armados e
tecnocráticos, utilizando o aparato estatal para comprimir a
ordem legal e restringir as garantias civis. Em tal clima,
mesmo a liberdade das elites e das classes dominantes
sofreu uma drástica compressão. As massas populares, nas
quais está inserida a maioria da população negra e mestiça,
ficaram reduzidas ao silêncio e à inatividade. Foram
neutralizadas politicamente, embora possam participar
culturalmente do desenvolvimento socioeconômico e
ritualmente do “processo político”. O sentido desse duplo
movimento contrastante precisa ser retido com cuidadosa
atenção. Ao ápice da revolução capitalista corresponde uma
marginalização maciça do grosso da população, convertida
em uma maioria silenciosa dócil e intimidada. A chamada
capacidade de negociação ou de barganha das massas
populares e das classes trabalhadoras foi reduzida a zero. O
precário intercâmbio com a plebe, consentido sob a
demagogia populista, desapareceu e com ele o reduzido
espaço político que articulava o “diálogo” das massas com o
despotismo conservador das classes dominantes.[44]
A elevação da “consciência crítica” do negro desemboca,
portanto, em um vazio histórico. Ao contrário do que se
esperava, os movimentos de protesto das décadas de 1930
e de 1940 — silenciados sob e pelo Estado Novo —, em vez
de abrirem, encerram um ciclo histórico. Eles constituem a
última manifestação da luta contra os vestígios do “antigo
regime”, tão nocivos para o negro e para as populações
destituídas em geral. No novo contexto histórico (pelo
menos enquanto durar o regime de despotismo instaurado
pela autocracia burguesa), movimentos dessa espécie são
impossíveis. Os processos em curso favorecem o tipo de
personalidade do “novo negro”, mas as condições
imperantes não são de molde a favorecer igualmente a
prosperidade paralela de uma “burguesia negra” e de um
“capitalismo negro”, como aconteceu nos Estados Unidos e
na África do Sul.[45] A “tolerância sob forte desigualdade
racial” restringe severamente o campo de oportunidades e
regula o movimento de ascensão econômica e social pelo
modelo de infiltração, como se fosse um conta-gotas. O
próprio negro acaba rompendo os obstáculos identificando-
se com os interesses e os valores dos estratos sociais
dominantes e de suas elites, aspirando a um elitismo
precoce e deformador, que o separa irremediavelmente da
massa negra e de seus problemas. Por conseguinte, o único
inconformismo que quebra as barreiras históricas se
transforma, no terrível processo de ascensão econômica,
social e cultural do negro, em um elemento de manipulação
do negro pelo branco e pela ordem estabelecida. Apesar de
tudo que tem de importante esse processo, em termos da
relação do negro com a sociedade brasileira e sua
transformação, ele resulta em uma reserva de tensões para
o futuro mais ou menos remoto. De imediato, o “novo
negro” está enredado com o seu êxito pessoal, familiar e
social, dentro do mundo fechado e elitista em que pode
viver. Ele não se dispõe a dinamizar as suas potencialidades
de negação da ordem em uma.perspectiva mais ampla e
mais drástica, pois, se fizesse isso, correria o risco de sair
do circuito e não chegar ao tope permitido. O inconformismo
aberto e radical, por sua vez, está banido
“institucionalmente” da ordem legal. O “negro racista” vê-
se, portanto, condenado à impotência. Como o “negro
tradicional” e o “negro trânsfuga”, mas por outras razões, é
compelido a “engolir sua vergonha”. A frustração racial não
dispõe de canais sociais, institucionalizados ou
espontâneos, para achar a luz do dia. Ela é comprimida para
dentro das pessoas e armazenada no meio negro. Se isso
será ou não útil no futuro, é uma questão para as
indagações históricas. Quanto ao presente, essa frustração
racial comprimida e armazenada não se converte nem em
forças psicodinâmicas nem em forças sociodinâmicas
produtivas. Elas se destroem negativamente — ou destroem
a personalidade do negro e o equilíbrio do meio negro.
Esse fato é capital. Os que se preocupam com a mudança
social, encarada abstratamente, e com a revolução
burguesa, vista nas conexões centrais para a evolução do
capitalismo, têm naturalmente algo a dizer. No entanto, até
agora nem a aceleração da mudança social nem o auge da
revolução burguesa, nas condições predominantes no Brasil,
ajudaram a quebrar os padrões preexistentes de
desigualdade racial ou impediram que eles se
superpusessem às estruturas da sociedade de classes. Pode
ser que os desdobramentos dessa evolução contenham
outras transformações e que a expansão do capitalismo
traga consigo novas modalidades de solapamento e
desagregação da desigualdade racial. Por enquanto, o que
aconteceu nos últimos 30 anos evidencia o oposto: a
incorporação de padrões e estruturas arcaicos, em uma
sociedade de classes em formação e expansão. E, em
contraposição, a impotência do negro em fazer valer os
seus tipos de inconformismo, por falta de base material,
psicológica e moral para suplantar “o complexo” e convertê-
lo em uma fonte de emulação na luta contra a desigualdade
racial (que é, implicitamente e inevitavelmente, uma luta
contra o branco e contra a ordem existente).
Voltamos, de novo e por outra via, ao argumento central.
A simples elevação da “consciência crítica” do negro não
leva a nada. Ou, antes, ela leva a uma nova forma de
frustração, muito mais corrosiva e perniciosa que as
anteriores. Pois isso tudo convence o negro de que o
“esclarecimento” e uma “nova mentalidade” só são úteis ao
percurso pessoal e individual do negro que “quer subir”. O
que constitui um forte reforço às avaliações que conduziram
à convicção de que os movimentos de protesto “dão azar”,
vinculando o “novo negro” com uma espécie de
oportunismo visceral e sistemático. Ora, tal ajustamento
afasta o negro do caminho certo: para alterar a atual
combinação de “raça” e “classe” seria preciso que o negro
utilizasse politicamente essa “consciência crítica”, voltando-
se contra os resíduos do passado, expressos na tolerância
ritual, no padrão assimétrico de relação racial e na ideologia
racial correspondente; e, principalmente, tentando construir
as bases de novas formas reais de igualdade progressiva
entre as “raças” (ou seja, que a “raça” não interfira
negativamente nos mecanismos de “classe” e vice-versa).
Estas necessidades psicossociais e histórico-sociais, que
não são atendidas e não encontram canais de
encaminhamento e concretização, exigem que o
inconformismo do negro adquira outro caráter, em particular
que possa ser absorvido pela rede de instituições e de
estruturas sociais da sociedade de classes. Existem
limitadas perspectivas de integração efetiva do negro a essa
sociedade fora e acima de tais condições, pois o
inconformismo do negro precisa encontrar oportunidades de
elaboração psicológica, social, cultural e política, já que é
através dele que se poderá constituir e perpetuar-se um
novo padrão de relação racial igualitária e de ordenamento
de “raça” e “classe” em bases democráticas. Isso
provocaria uma transformação sociodinâmica do
inconformismo do negro; ao converter-se numa força social
construtiva e incorporada à rede de instituições e de
estruturas sociais, de início e durante um período de tempo
de duração imprevisível tal força social teria de operar
mudanças profundas nos fundamentos raciais da sociedade
brasileira, atuando como um fator histórico tanto de
“revolução dentro da ordem”, quanto de “revolução contra
a ordem”. Pois, mesmo sob a hipótese de continuidade do
capitalismo, semelhante liberação sociodinâmica do
inconformismo negro levaria a descolonização até onde ela
deveria ter chegado, quando da supressão do trabalho
escravo e da implantação do trabalho livre.
Pode-se admitir que tais reflexões envolvem conjecturas
otimistas: nem sempre as sociedades realizam as evoluções
que deveriam completar seu ciclo histórico. E no que diz
respeito à sociedade de classes, sabe-se perfeitamente que
o capitalismo libera certas forças revolucionárias, mas
represa e reprime outras. No caso, como a massa negra
interessa mais como “massa trabalhadora”, é pouco
provável (para não dizer-se que é de todo improvável) que a
sociedade de classes consiga, no Brasil, sob um capitalismo
dependente e subdesenvolvido, realizar uma façanha que o
capitalismo não logrou nem mesmo nos Estados Unidos. No
entanto, conjecturas dessa natureza são muito úteis à
análise e à interpretação sociológicas. Elas possuem uma
função heurística: põe-nos diante da realidade à luz de um
experimentum crucis ideal e simulado. De um lado, tais
elaborações interpretativas sugerem que a evolução mais
plausível manterá o paralelismo de “raça” e “classe”, como
sucedeu na sociedade estamental e de castas sob a Colônia
e o Império. Mantido semelhante paralelismo, qualquer
padrão de relação racial igualitária e todo ordenamento de
“raça” e “classe” em bases democráticas serão
simplesmente inviáveis. Uma maior massa de negros se
integrará nas várias classes existentes. Mas isso não
romperá com as contradições raciais herdadas do passado e
incorporadas ao regime de classes. Permitirá, sob a vigência
da tolerância racial, que o mundo do negro se organize em
moldes simétricos ao dos brancos e, eventualmente, maior
comunicação entre grupos raciais diferentes do mesmo
nível social. De outro lado, as mesmas conjecturas também
deixam evidente que o “novo negro” constitui o rebento
viçoso do florescimento racial do capitalismo dependente e
subdesenvolvido. É aí que se está concentrando o real
“aproveitamento das novas oportunidades”. Uma minoria
negra se destaca da massa negra trabalhadora e tende a
alocar-se em várias posições de classe no espaço social da
ordem existente. Como se trata de um processo mecânico,
que agrega novos grupos às estruturas de classes, sem
alterar em nada o paralelismo de “raça” e “classe” (ao
revés, está adaptando o paralelismo às condições de
organização, funcionamento e evolução do regime de
classes sob o capitalismo), o que se configura como mais
provável é o aprofundamento da formação de elites negras
ao longo das linhas de classes (no nível das classes médias,
a classe média de cor já começa a deixar de ser uma “falsa
classe média”, como diagnosticara Bastide) e a
consolidação de um elitismo negro que produzirá uma maior
tolerância do “negro de prol”, isto é, o “novo negro” diante
do mencionado paralelismo de “raça” e “classe”. Pelo
menos enquanto as elites negras em formação e
diferenciação não forem atingidas pela frustração dos outros
setores da população negra e por seus tipos de
inconformismo, elas tenderão a se acomodar à situação
histórica e a evitar a adesão às pressões raciais mais
radicais, “dentro da ordem” ou “contra a ordem”.
Não obstante, no conjunto a alteração do panorama
histórico será, ainda assim, considerável. Com as
tendências de elevação dos níveis de vida e de participação
cultural, o novo paralelismo da “raça” e “classe” significa
uma revolução do meio negro. O “negro pobre” continuará
largado à sua sina, isolado da atuação das elites negras e
ignorado pelo resto da sociedade, como tem acontecido até
hoje. Contudo, contará de fato com a eclosão de
oportunidades que a industrialização maciça e a explosão
metropolitana estão abrindo, o que nos permite estender as
conjecturas expostas acima: essa massa pobre é que fará, a
largo prazo, o papel de pião na transformação dos
fundamentos raciais da sociedade brasileira. Dificilmente
ela contará com condições econômicas e culturais tão
favoráveis que levem ao anestesiamento e à ignorância dos
problemas políticos mais profundos do negro. De outro lado,
os novos níveis de expectativas e o ressentimento que
resultará da ascensão parcial de alguns setores da própria
população negra (além do mais, pouco sensíveis ao dilema
racial do negro brasileiro, por causa de seu elitismo)
forçarão a reelaboração das frustrações reprimidas,
associadas aos vários tipos de inconformismo descritos.
Mesmo que a violência possa ser e venha a ser evitada,
nada impedirá uma fermentação ignorada até hoje das
tensões raciais. E quanto mais forte for a repressão
conservadora, da sociedade inclusiva e das elites negras,
maior será a contradição entre “raça” e “classe” e menores
serão as probabilidades de eliminação do referido
paralelismo dentro da ordem.
AS   TRANSFORMAÇÕES   VISÍVEIS

O QUADRO GLOBAL descrito mostra que, mesmo agora, “ainda


não chegou a vez do negro” — pois ainda não chegou a vez
do Povo. A situação histórica, porém, não é tão adversa à
população negra, como o foi durante o primeiro ciclo de
prosperidade econômica da cidade, dos fins do século XIX à
crise de 1929. Então a população negra vivia dentro da
cidade mas sem pertencer a ela; tratava-se de uma
condição extrema de isolamento cultural e de
marginalização socioeconômica. As oportunidades iam para
os brancos, especialmente das famílias tradicionais ou
imigrantes. O progresso estuante não existia para o meio
negro, mergulhado na mais extrema desorganização social,
pauperismo e desalento,[46] uma fase dramática e amarga,
que suscitou a imagem do “emparedamento do negro”. Nos
últimos 25 anos a industrialização maciça e a convulsão
metropolitana se alimentaram de “braços nacionais”: as
migrações internas desembocaram na cidade e delas saíram
os contingentes de trabalhadores menos qualificados ou
desqualificados. Os setores pobres e dependentes da cidade
participam por aí do crescimento econômico. O negro de
origem local ou estadual ou que vem nessas correntes
humanas encontra com maior facilidade uma avenida para
a classificação social através do trabalho, por humilde e mal
remunerado que ele seja. O grande obstáculo, que vinha a
ser a falta de trabalho ou a instabilidade do trabalho, tende
a se neutralizar. Com o “emprego”, o negro pode conquistar
mais facilmente a base material para a participação
institucional, de que estava quase completamente excluído,
e pode montar novos projetos de vida. Doutro lado, as
migrações internas carreiam para a cidade fortes
contingentes de mestiços, na maioria “mulatos claros” ou
“mulatos escuros”, o que aumenta o setor de origem
remota afro-brasileira e, ao mesmo tempo, estimula a busca
de novos estereótipos. O “baiano” tende a substituir o
“negro” na estereotipação negativa: uma variação
semântica importante, que diminui uma visibilidade
incômoda e ajuda a quebrar certas resistências teimosas.
Além disso, as favelas, os cortiços, a pobreza ou a
mendicância, a prostituição e a vagabundagem, os
trabalhos braçais e “serviços por conta própria” humildes
continuam a implicar uma visibilidade desfavorável.
Contudo, a convulsão urbana pulverizou o meio negro,
disseminando-o por várias regiões e concentrando-o na
periferia da cidade. Em consequência, essa visibilidade se
dilui e é mais acessível ao branco pobre. De qualquer modo,
ela é fortemente compensada pelos efeitos visíveis da
classificação ocupacional, da mobilidade profissional e, por
vezes, da ascensão social do negro. Ela já não se associa
automaticamente, como no passado recente, à
estigmatização negativa. Os estereótipos raciais não
desapareceram nem deixaram de produzir efeitos
devastadores sobre as aspirações e as ambições do negro.
Mas, eles já não podem servir tão facilmente de fundamento
a certas rejeições, especialmente na esfera do trabalho:
certas ocupações atrairiam poucos pretendentes se o antigo
crivo de seleção permanecesse intocável, o que acarretaria
prejuízos econômicos para o próprio branco. Se ainda
prevalece a condição de marginal,[47] os jovens sem
trabalho e sem perspectiva, a mãe solteira, o menor
abandonado, a desorganização familiar e a miséria, o
quadro global é menos tenebroso e apresenta aspectos
compensadores, onde o trabalho, o emprego, a classificação
ocupacional e a mobilidade profissional incorporaram o
negro à classe operária ou a alguns dos setores das classes
médias. O passado não ficou totalmente para trás. Ele
revive em vários pontos da cidade, em ilhas de desespero
social, encravadas nas favelas ou no novo tipo de cortiço da
periferia. O “negro bem-sucedido”, por sua vez, aparece
com maior frequência na vida social e no horizonte cultural
do branco. Seja guiando o seu automóvel, morando em casa
própria de bairros respeitáveis ou ostentando sua
prosperidade pelo “traje impecável” e o “alto estalão de
vida” (uma tradição que não desapareceu no meio negro e
que revela a forte necessidade da compensação de status).
Portanto, temos agora duas visibilidades: a “má”, que
suscita no branco lembranças e estereótipos negativos que
deveriam desaparecer, e a “boa”, que obriga o branco a
rever suas atitudes e convence o negro de que “sua sorte
está mudando”. Embora ainda seja cedo demais para tirar
conclusões a respeito dessa dupla visibilidade social, é
evidente que ela está concorrendo para tirar o negro do
limbo, do opróbrio dos estereótipos infamantes dos brancos
ou do próprio “recalque” e da condição deletéria de “bode
expiatório”. Graças à proletarização e à ascensão a estratos
de classe média (em alguns casos, também de classe alta;
mas são pouquíssimos), constitui-se uma base material
estável de participação — e não de exclusão sistemática —
e de uma nova relação do negro com a sociedade
capitalista. Os pontos de concentração das oportunidades
econômicas, educacionais, intelectuais e políticas ainda são
fracos ou débeis demais para quebrar as linhas tradicionais
de desigualdade racial ou para “fazer o branco engolir o seu
orgulho”. Todavia, o negro deixou de ser o espectador à
margem da vida e da história.
Se a “boa visibilidade” ainda não se impõe, a “má
visibilidade” está perdendo o caráter autodesmoralizador
que possuiu durante tanto tempo e começa a neutralizar-se
como foco de “desmoralização do negro” perante o branco.
De fato, o negro com seus problemas não desaparece na
“sociedade de massas”. Essa seria uma simplificação
grosseira. Contudo esta contém vários alçapões e pode
esconder dentro deles, ou pelo menos dissimular através
deles, muitos aspectos desoladores da “miséria humana” do
negro, antes tão chocantemente visíveis numa escala
universal. Onde existem favelas — médias, pequenas ou
grandes — nas orlas de bairros ricos ou no seio de bairros
pobres, e onde existem cortiços, a visibilidade negativa
aumenta. Mas, nem sempre a forte participação de negros e
mulatos na população dessas favelas e cortiços aparece em
associação com a miséria, o desemprego sistemático, a
desorganização familiar etc. O novo tipo de cortiço
(especialmente nos bairros da periferia) e várias favelas
contêm, com frequência, uma vida interna autopoliciada e
conspícua, na qual mesmo a extrema pobreza requer um
mínimo de participação institucional. O que significa que há
pobreza “com alguma esperança”, pois os padrões de
organização doméstica impõem certa soma de obrigações
que favorecem a educação dos filhos e pressupõem alguma
solidariedade social. O afluxo de migrantes de origem rural
parece ser o principal fator dessa alteração, que reduz ou
elimina a “irresponsabilidade do negro”; e ela é fortemente
reforçada pelas oportunidades de trabalho regular e de
estabilidade ocupacional. De outro lado, a pobreza também
se vincula aos resíduos do tradicionalismo, que não
desapareceram nesse primeiro arranque da explosão
metropolitana. Alimentação, música, padrões de entreajuda
(familiar e vicinal) e formas de recreação dão, aqui e ali, um
“colorido nordestino” e exótico mas “altamente respeitável”
— ao estilo emergente de “vida de pobre” na cidade. O
negro que não está preso aos resíduos da anomia que veio
do passado se engolfou nesse estilo de vida, amparando-se
nele para lograr um modesto ponto de partida. No conjunto,
é deveras importante a tendência básica, que dissocia os
velhos estereótipos e estigmas raciais da condição social do
negro. A escravidão e a Abolição já estão bastante longe —
e o mesmo sucede com o doloroso período que vai até
1930, de anomia social sistemática — para reforçar antigas
compulsões dos brancos ou para gerar outras novas,
encerrando o negro no círculo de ferro de uma condenação
irremediável e irremissível. Nesse plano, a pulverização da
miséria e a disseminação da pobreza, no imenso espaço
geográfico da metrópole, fizeram com que a “sociedade de
massas” oferecesse, ao mesmo tempo, múltiplos refúgios e
vários pontos de partida à sua dispersa população negra. Se
o passado não está extinto, as cicatrizes não dominam nem
governam mais a vida do negro; e tampouco o forçam a
procurar o isolamento autoprotetivo, pelo qual se destruía, e
a converter a desorganização pessoal, familiar e social em
um multiplicador incontrolável de sua “desgraça coletiva”.
Tudo isso indica que seria aconselhável a realização de
uma nova pesquisa sobre a matéria. Conhece-se muito mal
o que está ocorrendo nas várias áreas da Grande São Paulo
quanto às relações de negros e brancos e à transformação
dos velhos padrões de acomodação e integração raciais.
Percebe-se que a proletarização do negro e a estabilidade
ocupacional (ou, pelo menos, as oportunidades de trabalho)
alteraram por completo a base material de grande parte da
população negra. De outro lado, esta tende a defrontar-se
com diversas situações de classe de modo mais ou menos
definido e estável. Enquanto antes a classificação era
precária e minoritária, hoje pelo menos a proletarização
alcança o grosso dessa população enquanto alguns setores
penetram certos estratos da pequena burguesia e da alta
burguesia urbanas. A expressão ecológica dessas
tendências aparece na agregação de segmentos da
população negra em torno de bairros mais homogêneos,
quanto aos meios de subsistência e aos níveis de vida, e na
ocupação predominante da periferia. Essa forma de
apinhamento parece ter favorecido certas linhas de
concentração demográfica e ecológica, com pessoas e
famílias mais ou menos ligadas entre si procurando as
mesmas áreas e nelas tentando manter tipos de
solidariedade tradicional preexistentes. Também se percebe
que as migrações internas enriqueceram a população negra
da cidade, trazendo para cá negros mais ou menos aptos a
competir profissionalmente com os brancos do mesmo nível
social, tanto na busca de colocações, quanto na luta pelo
“trabalho melhor” e pelos “empregos que dão dinheiro”. Até
agora, a educação escolarizada favoreceu muito pouco o
negro de origem local. Também aí o adventício abre uma
clareira ao pretender para o filho “uma educação melhor” e
expondo seus vizinhos a novas aspirações e aos valores
sociais correspondentes. O que significa que novos padrões
de competição, quanto à ocupação, educação, moradia,
nível de vida etc., estão se constituindo ou consolidando e
que eles desembocam na ideia de que a escola é essencial
“para o futuro dos filhos”. E de fato, o negro torna-se mais
visível como estudante, do ensino primário ao ensino
superior, e, agora, sem a intervenção do mecenas branco.
Um processo que já estudamos, relacionado com a técnica
de ascensão social, agora alcança um contingente bem
maior da população negra. A aceitação da infiltração como
forma de competição dissimulada e de mobilidade social
vertical continua dominante. Ao que parece, com a
dissolução do protesto negro, desapareceu a esperança de
uma ascensão coletiva do negro. As mesmas atitudes que
notamos no passado reaparecem no novo contexto
histórico. O “negro que quer subir” repudia abertamente o
protesto racial e busca dentro da ordem, numa linha
egoística e individualista (embora com a cooperação
eventual do branco e a solidariedade possível — mas nem
sempre atuante e eficiente da própria família), a “solução
de seus problemas”. Isso não quer dizer que ele seja
“neutro” com referência ao preconceito e à discriminação.
Como se lança à competição inter-racial, ela acumula uma
experiência esclarecedora. Ele condena apenas uma
demonstração de “racismo” que poderia prejudicar sua
ascensão; pois está convencido de que o caminho para
“combater o preconceito” é gradual e indireto (o que
representa uma elaboração original de uma contraideologia
racial conservadora, ainda não estudada sociologicamente).
Por isso, repele o protesto coletivo e, do mesmo modo, as
demonstrações de “inferioridade”, que associa ao
desalento, ao desleixo, à falta de educação e de ordem na
família, às várias manifestações de anomia no meio negro
etc., das quais se torna um crítico severo. Como
contraponto do branco conservador, ele valoriza a
instrução, a competência profissional, o caráter, o trabalho,
a acumulação de riqueza e a família, embora exagerando os
vários traços que poderiam caracterizar uma concepção
elitista da vida e do mundo. Isso põe o novo negro a
cavaleiro de duas tendências. Primeiro, ele absorve um
elitismo que é imitado do branco, mas ainda
predominantemente dos brancos dos antigos círculos
dominantes das famílias tradicionais (portanto, o que ele
valoriza não é o elitismo do nouveau riche, porém o que se
poderia chamar de “elitismo aristocrático”). Segundo; como
o imigrante, ele aceita qualquer ocupação, mas como
“estágio inicial” e transitório, algo inevitável ou necessário
embora indesejável (o que o leva a repelir a condição
operária e a proletarização como estilo de vida, de alguma
forma capazes de aprofundar a degradação do negro).
Reproduz, com um atraso considerável, as utopias dos
antigos imigrantes, sem contar com os mesmos recursos
materiais e institucionais para combinar trabalho,
solidariedade doméstica, mobilidade ocupacional, êxito
econômico e ascensão social. Essa combinação, aliás, hoje
não é tão fácil quanto o foi no passado, quando uma
posição estratégica no sistema econômico era suficiente
para garantir as melhores previsões. As oportunidades
econômicas reais são escassas e não podem ser
aproveitadas com os recursos de que dispunham os
imigrantes pioneiros, muitas vezes melhores do que aqueles
de que dispõe o “novo negro” na atualidade. Ainda assim, a
motivação é decisiva: ela mantém tendências complexas de
competição com o branco, força a elevação da participação
institucional e fortalece propensões igualitárias sem as
quais o negro se condenaria à exclusão e à marginalização.
A insegurança ainda se faz sentir como um fator adverso.
Ela ainda estimula a busca de uma autoproteção destrutiva,
através do isolamento social (na família e no nível social
dentro do meio negro). Ela não opera tão negativamente
como no passado, pois a família tende a revelar maior
estabilidade e a estratificação em termos de nível social
abrange maiores números (o que favorece os dinamismos
sociais e recreativos dos clubes, tornando mais fácil a
consecução de um “nível conspícuo” mas protegido de
vida). No entanto, o grosso dessas compensações só é
acessível aos setores de classe média ou alta da população
negra. E, mesmo nessas classes, isso reduz o universo
social do negro. De um lado, ele gravita dentro do “mundo
do negro”, construído como uma réplica imaginária do
“mundo dos brancos”. De outro, ele confere alta nocividade
ao processo de acefalização implícito. As elites negras são
seccionadas e dissociadas da massa negra. Toda
solidariedade racial torna-se, assim, impossível e tem de ser
substituída por uma espécie de “solidariedade estamental”
(dos negros que pertencem à mesma clique de um mesmo
estrato elitista). Por aí, o passado se reproduz ampla e
destrutivamente. Mesmo os líderes que se projetam mais
acima de seu próprio nível social não rompem com as
limitações resultantes. Ao contrário, eles instituem no meio
negro o tipo de relação clássica que, antigamente,
estabelecia liames entre o notável branco e seus clientes. A
comunicação das elites com a massa ganha, assim, um
significado pouco criador, porque a massa negra é sempre
um “elemento de manobra” ou um “meio para certos fins”,
que nunca preveem ideais de “redenção da raça negra” ou
de protesto coletivo. Esse clientelismo negro, em plena
emergência e irradiação, precisaria ser estudado. Ele cria
certas áreas de contato, engendra algumas formas de
participação cultural novas e põe as elites negras na mesma
posição das antigas elites dos imigrantes, preocupadas com
várias modalidades de assistência social aos conterrâneos.
Porém, isso não é muita coisa, se se leva em conta a
precariedade da situação da população negra e as terríveis
exigências da desigualdade racial. Na verdade, as obras
assistenciais, feitas até agora, têm servido mais para
valorizar socialmente as “classes médias e altas de cor”,
que para suavizar os problemas de extrema carência da
massa negra. Essas elites se lançam, naturalmente, em um
nível de competição sofisticada por consideração social,
como fizeram, aliás, no passado, muitos imigrantes, que
sabiam o valor que as famílias tradicionais atribuíam a tais
demonstrações de solidariedade e de prestígio. O seu único
resultado, que beneficia o negro em geral, diz respeito à
“boa visibilidade”. Por aí se evidencia, através do jornal, da
televisão e da rádio, que o negro dispõe de uma nova
situação econômica, social e cultural, a ponto de cuidar da
“gente desfavorecida” de sua comunidade.
Esse efeito não é de menosprezar-se. O “novo negro”
tenta, em vez de cobrar uma igualdade racial coletiva que a
sociedade brasileira não lhe daria, revolucionar
indiretamente o horizonte cultural do branco. No entanto,
não usa a pressão econômica, cultural ou política nem a
coerção psicológica, como fizeram os negros norte-
americanos na década de 1930. Emprega meios sutis e por
vezes maliciosos, como a ostentação do nível de vida “alto”
e “aristocrático”, da “competência inexcedível”, do “caráter
irrepreensível”, da “vida organizada e responsável” etc.
Como não tem liberdade nem base material para usar o
conflito, precisa contentar-se com a “reeducação do branco”
na avaliação moral do negro. Ao fazer isso, consegue algum
êxito pelo que se vê, já que pressiona habilmente no sentido
de dissociar os “fracassos dos pretos” de razões
estereotipadas e da condenação estigmatizadora. Procede
como se exigisse a igualdade no plano puramente pessoal e
como se quisesse que o branco se convencesse que há
negros e negros, como entre os brancos há brancos e
brancos, não havendo portanto sentido em avaliar o negro
através de uma imagem falsa, estereotipada e irreal. Essa
tática se ajusta como uma luva ao preconceito dissimulado
e à discriminação assistemática: não só apanha o branco
desarmado; explora o terreno sempre virgem dos tateios
iniciais, a confusão moral do branco (tão grande quanto a
do negro, pois a armadilha funciona dos dois lados) e a
disposição frequente à abertura para “o negro de alma
branca” (o que converte a exceção que confirma a regra
numa vantagem adicional para qualquer “negro calculista”).
São meandros tortuosos e é indiscutível que eles constituem
uma forma refinada de tortura mental, a qual os negros em
ascensão deveriam recusar e combater. Todavia, eles não
criaram esse jogo e, muito menos, as suas regras. Armaram
uma carapaça adaptativa, pela qual, em vez de se
colocarem no próprio lugar, forçam o branco a revisões que
são cruéis para os dois lados. Na maioria das vezes obtêm o
que desejam ou esperam. Se é mais ou menos difícil
localizar a casa de uma “família negra bem colocada”, os
vizinhos sabem muito bem se moram perto de um “negro
rico” e “bem-educado” (e podem presumir se ele pertence à
classe média ou alta). É mais fácil ainda estabelecer
avaliações corretas diante de uma família negra “bem-
vestida”, que viaja em automóvel próprio ou ostenta de
uma ou de outra maneira o seu status. O quadro subjetivo
que se esboça não é mais o tradicional — “o negro precisa
do branco para vencer”; mas, o alternativo: “esse negro
precisa ser muito importante para estar nesse lugar”. Com
ambiguidade e relutância, o branco repete uma
aprendizagem histórica, que já teve de enfrentar diante do
português, do italiano, do sírio e libanês, do espanhol etc.
Os estereótipos e os estigmas esvaziam-se na medida em
que as exceções que confirmam a regra se tornam muito
numerosas. Ou eles precisam ser refeitos e redefinidos ou
perdem sua eficácia. No caso do negro, ao que parece, a
situação atual ainda não alimenta um limite histórico dessa
natureza. Mas, qualquer que seja o desnível entre os
“mitos” alimentados pelo “novo negro” e as brechas reais
na fortaleza do mundo dos brancos, é patente um avanço
considerável. Antes, “o negro de alma branca” servia de
base para manipulações simplistas, graças às quais o êxito
do negro se tornava irrelevante para as avaliações
concretas (ficando sempre de pé que a mestiçagem ou a
proteção de algum branco explicava, no fundo, “o milagre”).
O mecanismo da exceção que confirma a regra criava um
ponto morto e uma cesura intransponível na reavaliação
social do negro. Hoje, o mecanismo continua a ser
empregado. Entretanto, dentro de um contexto diverso: à
medida que cresce o setor de classe média e alta da
população negra, surge uma erosão inevitável do
mecanismo, a qual tende a aumentar e a agravar-se com o
tempo.
Os avanços descritos não introduzem uma liberação
intelectual e moral do jovem negro. Este se defronta com
dramas reais ou falsos, como se evidencia pela literatura de
ficção negra.[48] Os conflitos entre as aspirações
igualitárias e o padrão brasileiro de preconceito e
discriminação raciais produzem estragos devastadores no
jovem. Este está no começo da aprendizagem, iniciando-se
no adestramento do que se poderia chamar de cinismo
autodefensivo. Aos poucos, ele se predispõe a aceitar as
duas “verdades”, a que afirma e a que nega a democracia
racial. No contexto atual, esses conflitos tornam-se, ao
mesmo tempo, mais agudos e dolorosos, suscitando reações
contraditórias de ambivalência de atitudes e de alienação,
pelas quais a evasão ganha o caráter de uma técnica tosca
de autoproteção psicológica e moral. Se em vez do elitismo
e da ascensão por infiltração tivesse prevalecido um novo
estilo de protesto racial coletivo, é provável que o jovem
negro tivesse de procurar caminhos de autorrealização
menos tortuosos e ambíguos.[49] As propensões à
autopiedade, à fabulação imaginária e à sublimação de
fantasias, ao desalento compensatório ou ao escapismo
teriam de ser substituídas por outras formas de crise da
personalidade, como sucedeu, aliás, no passado, quando os
jovens negros vararam a barreira psicológica do
enfrentamento com o branco nas lutas pela “Segunda
Abolição”. Dentro da sociedade de classes, ou contra ela,
teria de iniciar uma busca mais realista de sua
autoafirmação, sem o “carrossel de ilusões” que destrói tão
prematuramente o talento jovem no meio negro,
principalmente nas classes médias e altas. A opção por uma
das duas “verdades”, porém, não se dá concretamente,
menos por culpa do jovem que da “estrutura da situação
histórica” (na qual se mesclam as pressões da sociedade
brasileira e “a falta de orientação combativa” das famílias
negras “bem-sucedidas”). Em consequência, o jovem negro,
que deveria ser o elo mais forte no aparecimento de um
inconformismo militante e na cadeia de uma revolução
democrática, neutraliza-se e converte-se no equivalente
humano do boêmio negro das décadas de 1920 e de 1930,
mas sem suas justificativas históricas. Os veteranos dos
movimentos de protesto coletivo criticam esse jovem, que
eles não compreendem, e que pensam ser “alienado” e
“envenenado”. Uma condenação prematura e filha da
fraqueza. Se aplicassem a esse jovem as mesmas técnicas
de desmascaramento que aplicaram ao branco, nas
décadas de 1930 e de 1940, descobririam em que sentido
eles são também “vítimas” da situação racial brasileira. De
outro lado, não seria melhor que eles próprios fizessem uma
revisão crítica e apontassem os fatores reais da sufocação
do talento jovem no meio negro, a qual segue paralela à
desmoralização e ao esvaziamento de todo radicalismo
racial igualitário e libertário? Não seria melhor, em
particular, que tentassem estabelecer uma ponte entre as
gerações, para que o protesto racial coletivo pudesse ser
reciclado e voltasse à tona, nas novas condições
econômicas, sociais e culturais do país, como uma garantia
de continuidade da luta do negro para que a sociedade
brasileira se torne, de fato, uma sociedade multirracial
democrática?
SEGUNDA PARTE

AMÉRICA   LATINA:   HOJE
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos
e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta,
um verme.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, (Nosso tempo)
CAPÍTULO 3

A   DITADURA   MILITAR
E   OS   PAPÉIS   POLÍTICOS   
DOS   INTELECTUAIS   NA   
AMÉRICA   LATINA[50]
NOTA EXPLICATIVA
 
ESTE ENSAIO FOI EDITADO como publicação avulsa da
universidade de Toronto em 1969-1970, junto com outro
estudo e sob o título The Latin American in residence
lectures (com prefácio do professor Kurt. L. Levy; e a
colaboração, na preparação do texto em inglês ou na
revisão, do querido colega professor Kenneth N. Walker e
dos então estudantes pós-graduados Marion Blute e Craig
McKie). Não cometi a injúria de solicitar autorização para
publicá-lo em português na presente edição.
O sociólogo não está livre de exercer suas funções e seus
papéis intelectuais nas piores condições para si próprio (e,
quiçá, para a sociologia). Às vezes, se o que entra em conta
é uma denúncia (expressa ou velada), ele é limitado por sua
profissão ou por suas vinculações acadêmicas dentro do
mundo da universidade. Os que lerem este ensaio não
devem deixar de ter isso em mente — não para desculpar o
autor, que conhece e aceita os riscos que deveria correr,
mas para ajudá-lo. Estamos num limite em que a
inteligência e a imaginação dos leitores são essenciais: ela
permite saturar os vazios, colorir as omissões e perceber o
que nem sempre é óbvio.
Na ocasião em que foi escrito, entre fim de dezembro de
1969 e início de janeiro de 1970 (a versão inicial do trabalho
foi apresentada como conferência pública, sob patrocínio
oficial, em um dos auditórios da Universidade de Toronto em
20 de janeiro de 1970), os focos de referência implícitos da
discussão eram o Brasil, a Argentina, a Bolívia e o Peru. A
explicitação dos casos que serviam de base para a análise
do novo estilo de golpe de Estado e de militarização do
Estado capitalista era simplesmente inócua. Os ouvintes,
professores, estudantes e intelectuais tinham condições de
acompanhar uma formulação altamente abstrata, sem
perder de vista do que se tratava, empiricamente; e, o que
é mais importante, de introduzir as gradações históricas
inevitáveis, dadas as diferenças existentes entre esses
países.
A inclusão do Peru não se devia a qualquer animosidade
pessoal ou a alguma ignorância dos aspectos positivos que
a militarização do poder estatal tenderia a assumir naquele
país.[51] Embora o autor nunca se tenha entusiasmado com
a ideologia da “revolução peruana”, ambígua no seu
aparente repúdio concomitante do capitalismo e do
comunismo, é evidente que, no Peru, o novo modelo de
ditadura militar tentou enfrentar e resolver problemas
capitais, que vão da reforma agrária à proteção da Nação
contra os interesses ultraconservadores internos e contra os
interesses imperialistas externos, articulados na prática
econômica e política. O caso peruano se incluiu no campo
de observação e de exposição por motivos formais. A
impregnação tecnocrática-militar do Estado e o
funcionamento do governo militarizado são altamente
similares em todos os quatro casos. O que varia são as
funções históricas do Estado e as identificações políticas do
governo militarizado, pois em um plano se configura, em
toda a plenitude, a ditadura militar polarizada através da
reação e da contrarrevolução burguesas; e, no outro, a
ditadura militar pretende configurar-se como uma espécie
de bonapartismo acima das classes, polarizando-se através
de um nacionalismo revolucionário oscilante (embora,
concretamente, tenha tentado medidas exclusivas de
“revolução dentro da ordem” e de “revolução contra a
ordem”). Desde que tais diferenças essenciais sejam
tomadas em conta, é crucial considerar em conjunto os
quatro casos: assim aparecem com maior nitidez as linhas
de demarcação, que separam a ditadura militar em nome
das classes possuidoras e de suas elites da ditadura militar
“acima das classes”; e, o que é mais relevante, o que é
específico aos três casos que tendem para a situação típica
no presente, na qual os interesses internos e os interesses
externos, articulados pelo capitalismo monopolista e
unificados pela dominação burguesa, fazem com que a
ditadura militar das classes possuidoras seja instrumental
para impedir a revolução contra a ordem, tanto quanto para
confinar a revolução dentro da ordem à modernização
consentida, imposta de fora para dentro e de cima para
baixo. O leitor poderá, certamente, lamentar que esses
filões não tenham sido explorados explicitamente e de
modo sistemático; eles estão, porém, mais do que
evidentes, já que iluminam o sentido global da análise e, em
particular, a caracterização das evoluções potenciais de
curto e médio prazos (no tópico que focaliza o tema “Estado
e sociedade em tensão” e, posteriormente, numa passagem
do debate sobre os papéis políticos dos intelectuais).
Naquele momento já eram evidentes os contrastes que
permitiriam separar as características e as prováveis linhas
de evolução dos três casos que cabiam na ditadura militar
de classe, com orientações reacionárias e
contrarrevolucionárias (definidos em termos da contradição
com a “democracia burguesa” e com o radicalismo
burguês). No entanto, como o limite explicativo e crítico se
oferecia na abstração de traços comuns essenciais (em
termos de instituições e de processos ou de comportamento
de classes dominantes), tais diferenças eram irrelevantes.
Parecia, então, que o caso extremo já se havia dado. Porém,
só no Chile e em 1973, a América Latina tomaria
conhecimento de que aquela realidade histórica ainda não
se esgotara e que, nas dobras da ditadura militar das
classes possuidoras, havia uma conexão histórica
contrarrevolucionária permanente, suscetível de
aprofundamento em função dos embates entre capitalismo
monopolista e o movimento socialista revolucionário. No fim
da década de 1960, em suma, uma análise de oposição
frontal e que não se situava no âmbito de demonstrações
especificamente políticas podia limitar-se à enumeração
abstrata de aspectos estruturais e dinâmicos comuns aos
casos conhecidos de maior significação histórico-
sociológica.
Haveria pouco sentido em aproveitar esta nota explicativa
para arrolar leituras complementares e, em particular, para
situar os desdobramentos da pesquisa sociológica sobre o
assunto. As referências bibliográficas originais não tinham
significado “erudito”. Elas visavam, apenas, a sugerir as
linhas de informação do autor e a atualidade do tema na
preocupação dos sociólogos, “comprometidos” ou
“neutros”, “pró” ou “contra”. Quanto à evolução do
pensamento do autor, que continuou a aprofundar o exame
do tema e o seu envolvimento na oposição a esse tipo de
regime, o leitor que estiver interessado deve recorrer a
Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina
(Rio de Janeiro: Zahar, 1973, esp. pp. 102-115) e A
revolução burguesa no Brasil (Rio de Janeiro: Zahar, 1975,
toda a última parte ou, esp., cap. 7). Aí se poderão
patentear as linhas de compensação introduzida por
descrições mais balanceadas, que também pretendem
participar da “sociologia crítica e militante”, mas atingem
esse propósito fora e acima de uma confrontação
contingente ou condicionada por objetivos reduzidos de
relação com um público determinado.
Há, ainda, a considerar as críticas feitas a este trabalho
(os elogios nem sempre chegam ao autor; e, quando
chegam, podem ser negligenciados na comunicação com o
leitor). A crítica mais frequente focalizou a falta de
fundamentação empírica ou a ausência de um propósito
formal de construir uma teoria desses regimes. Ora, se fui
claro, tanto no texto original quanto nesta breve nota
explicativa, trata-se de uma desorientação da crítica.
Pretendia algo que não se enquadrava nem na descrição
sistemática nem na interpretação exaustiva, com
pretensões classificatórias. Ou seja, uma apertada síntese
de certos conhecimentos sociológicos, além do mais de uma
perspectiva de negação e de confrontação aberta, quase
uma “literatura de partido” (a qual não cheguei, por falta de
um palco partidário e, ao mesmo tempo, porque a
Universidade de Toronto, e, posteriormente, outras
universidades, ofereceram uma “alternativa acadêmica”
para o livre debate de cunho sociológico — embora sem ser
estritamente profissional). Não buscava beneficiar-me de
nenhuma ambiguidade nem proteger-me por trás dos muros
acadêmicos. É que as circunstâncias eram aquelas e não me
era dado escolher as condições em que tentava sair à liça.
Isso me impunha uma severa limitação. Todavia, qual foi o
partido, organização radical ou movimento político que me
convidou para outro tipo de discussão? Só me foi dado
discutir francamente como “sociólogo engajado”: um debate
que podia ser crítico, militante e contundente, mas ficando
sempre dentro da sociologia (pela natureza dos argumentos,
os fins da exposição ou as expectativas do público). Se o
resultado desagrada os que só entendem a sociologia como
descrição empírica ou alta construção teórica mais ou
menos “neutra”, o melhor é passar adiante. Para esses,
recomendo — não adianta comprar este livro e, muito
menos, procurar no seu terceiro ensaio o que ele não
contém nem pretende oferecer.
Uma segunda crítica tem se voltado contra um pretenso
“preconceito antimilitar” do autor. Como e enquanto
socialista, sempre fui e serei contra o militarismo; como e
enquanto cientista, por outro lado, não posso aceitar a
violência dos poderosos como última via de decisão política
e instrumento de conformação da razão. Mas, ser
antimilitarista não é o mesmo que ser contra o militar. O
militar nunca escolhe, individualmente ou como
coletividade, os papéis que pode ou que tem de
desempenhar na história. Doutro lado, na própria sociedade
capitalista há um amplo campo de utilização do militar a
favor ou contra a revolução democrática (isto é, em termos
de preservação do status quo, de revolução dentro da
ordem ou de revolução contra a ordem). É um erro crasso
querer transformar o militar, individual ou coletivamente,
em uma categoria pura e na ultima ratio dos processos
históricos. Acredito que antes já dei demonstrações
concretas de que posso compartilhar com os militares aquilo
que se pode chamar de defesa da “boa causa” (tentei, de
motu proprio e inutilmente, buscar o seu apoio para a
Campanha de Defesa da Escola Pública; e, ocasionalmente,
tive alguns companheiros militares lúcidos nas várias
manifestações do radicalismo burguês nos últimos trinta
anos). E, mesmo neste texto, indiquei os vários caminhos
que a presente crise abre ao uso político do militar e das
forças militares como “braço armado da burguesia” ou
contra ela. Tenho a impressão de que a minha posição é
clara e coerente; e que não me coloco contra o militar em
geral, pois aqui cuido do militarismo engendrado na
sociedade de classes capitalista dependente e
subdesenvolvida, na era em que a sua crise interna e a crise
mundial do capitalismo ameaçam a dominação burguesa e a
sobrevivência do estado capitalista.
A terceira crítica se concentrou no modo pelo qual tentei
situar os papéis do intelectual no mesmo processo de
contrarrevolução burguesa e de militarização do poder
estatal. Muitos julgam que não houve nem capitulação
passiva nem colaboração dissimulada nem solidariedade
ativa por parte dos intelectuais (seria melhor dizer-se: de
grupos de intelectuais) a um odioso movimento
contrarrevolucionário e a uma férrea ditadura de classes
privilegiadas. Ao mesmo tempo, os que afirmam isso
continuam a usufruir, imperturbavelmente, as vantagens
que alcançaram ou a melhorá-las — como se o mundo
criado pela autocracia burguesa fosse o melhor dos mundos
possíveis (salvo alguns inconvenientes, que atingem os
precipitados ou os renitentes). Essa não é sequer a
linguagem ou o comportamento de um Pilatos. Não se
lavam as mãos. Come-se mesmo de mãos sujas. Admitindo
que todos os argumentos têm uma base de verdade — não
é isso que me preocupa; e tampouco pretendi generalizar,
pois também mencionei o “maquis” da intelligentsia. O que
fica, como papel crítico e negador da ordem para o
intelectual, se ele se acomoda sem “boa” ou “má” crise de
consciência? Ou se ele se comporta como se o mister
intelectual fosse indiferente às transformações do mundo e
da cultura? Não estava cuidando de casos concretos ou de
experiências individuais. E, de fato, se a exceção pode
invalidar um princípio, a exceção também confirma a regra.
E era isto que tinha de ser posto a nu. A omissão, na área
vital da produção do pensamento, é a pior das fugas. E,
como já pregava o clássico Vieira, pecar por omissão é o
pior dos pecados. O que esperar de uma sociedade ou de
uma civilização nas quais os intelectuais assistem
impassíveis à brutalização do homem, enquanto desfrutam,
com ou sem requinte mas sempre com afinco, o seu “nível
de vida” e os seus grandes ou pequenos privilégios?
F. F.
1º de setembro de 1975.
INTRODUÇÃO
A IDEIA DE QUE a América Latina é uma região na qual os
golpes de Estado são uma rotina política tornou-se comum.
Tendo-se em vista a participação dos militares nesses
golpes, o melhor estudo sociológico sobre o fenômeno
mostra que, de 1930 a 1965, os países latino-americanos
sofreram cento e um golpes militares de estado com êxito.
[52]Somente o Uruguai e o México, por motivos diversos,
estiveram ausentes desse levantamento, no período acima
mencionado. Apesar disso, os países latino-americanos
tiveram, no passado e no presente, períodos de relativa
estabilidade, nos quais os setores civis dominantes da
sociedade foram capazes de controlar tanto o poder político
quanto o militar.
O estilo do golpe de Estado, o envolvimento político dos
militares e os tipos de ditadura militar variam no tempo e no
espaço, de acordo com as características demográficas,
econômicas, sociais, culturais e políticas dos países, e de
acordo com a organização das Forças Armadas e de suas
funções, manifestas ou latentes, dentro do Estado e da
sociedade nacional.[53] A discussão de um assunto de tal
complexidade torna-se impossível numa exposição breve.
Minha intenção é mais específica. Em alguns países da
América Latina, atualmente emerge e se expande, como um
processo transitório, uma militarização definida do Estado e
da política.
Este fenômeno pode ser descrito e interpretado,
sociologicamente, sob muitos pontos de vista. Nesta
discussão, abordá-lo-ei em termos da situação total em que
as forças armadas se converteram num prolongamento da
política mediante outros meios, e num fator contingente de
contrarrevolução.
A NATUREZA   SOCIOLÓGICA   DO   PROCESSO

ESTA TENDÊNCIA EM DIREÇÃO à militarização do Estado e da


política não decorre da “modernização dos exércitos” e
tampouco é consequência de uma decisão interna dos
militares imposta pela violência em nome dos interesses
das Forças Armadas. A ditadura militar surge ou está
surgindo, em sua nova forma, como um mecanismo de
autodefesa política de uma complexa situação de
interesses, criada pelo capitalismo dependente, num
período de crise e de reorganização na América Latina. O
exército não é um agente político, que trabalhe para si
próprio (como uma categoria social), ou para um setor
particular da sociedade (como estrato burocrático das
classes médias “tradicionais” ou “modernas”).
O Exército encontra-se envolvido nessa tendência em
virtude das potencialidades institucionais estratégicas de
ação organizada e efetiva das Forças Armadas, num
contexto onde a ordem social estabelecida enfrenta
diferentes tipos de fissuras, que se encadeiam às novas
tendências da revolução burguesa sob o “capitalismo
monopolista”, os efeitos desintegradores da explosão
demográfica, a superconcentração nas cidades ou a inflação
galopante e a inquietação popular nas áreas urbanas e
rurais. Como o envolvimento é de natureza institucional, o
status quo e os interesses privados dominantes, internos e
externos, foram privilegiados, o que deu ao golpe de Estado
militar, de fato, o caráter de uma contrarrevolução.
Esta descrição sugere a necessidade de se levar em
consideração três aspectos primordiais dos golpes de
Estado militar. Primeiramente, eles envolvem um tipo de
ditadura militar que é, na realidade, uma ditadura de classe.
Considerando-se este aspecto, existe pequena diferença
entre estes regimes e as precedentes formas
“democráticas” de governo. Na realidade, as formas
“democráticas” de governo precedentes sempre
encorajaram, de modo dissimulado, ainda que
ocasionalmente com apoio popular, uma concentração de
poder social extremamente elevada. Portanto, elas eram,
realmente, um sistema flexível de opressão e de dominação
autoritária, através do qual as classes altas e alguns círculos
privilegiados das classes médias monopolizavam o poder
politicamente organizado, o controle do Estado e os
benefícios do crescimento econômico e cultural. Sob a
ditadura militar somente a concentração de poder veio a ser
mais rígida, violenta e sistemática, permanecendo iguais
todas as demais condições. Por outro lado, como efeito
dessa mudança, a opressão tornou-se aberta e
desmascarada. Qualquer dissimulação ou flexibilidade
“democrática” tornou-se desnecessária, pois a margem de
tolerância para com a dissensão ou mesmo o consenso
“ritual” foi reduzida ao mínimo.
Em segundo lugar, a tomada institucional do poder
político obrigou os militares, na condição de categoria
social, a um esforço deliberado de acomodação de suas
divergências políticas. Em outras palavras, as elites
militares foram compelidas a uma composição interna,
através da qual o controle do poder tem o seu preço no
próprio âmbito das Forças Armadas, impondo a
neutralização calculada das opções políticas divergentes e a
eliminação dos intolerantes (sem outras razões políticas; ou
qualquer lealdade explícita para com uma “ética militar
profissional”). Isto significa que as elites militares se viram
forçadas a adotar uma perspectiva tecnocrática; tornando-
se mais ou menos cegas às orientações políticas
predominantes no meio interno das sociedades nacionais.
Como um efeito natural dessa polarização, duas coisas
diferentes ocorreram. De um lado, a busca de consenso
militar em termos “neutros”, “profissionais” ou
“tecnocráticos”. Isso foi conseguido através de uma nova
ideologia, construída sobre a concepção militar de
“desenvolvimento com segurança”.[54] De outro lado, a
conjugação da ditadura militar com uma filosofia altamente
tecnocrática implica um gradual endurecimento de calibre
direitista. A militarização do Estado e da política tende a
mover-se facilmente na pior direção, pois, como uma fonte
visível de totalitarismo fascista.
Em terceiro lugar, o novo estilo de ditadura militar
proclama-se a si mesmo como uma “revolução”, extraindo
sua legitimidade do seu próprio “poder revolucionário” e de
sua capacidade de submeter todos os ramos do Estado
(inclusive o parlamento e a justiça) e todas as camadas da
sociedade às ordenações “institucionais” militares. De fato,
o poder militar inverteu sua relação com o Estado e a
sociedade, assumindo abertamente, portanto, a condição de
poder supremo e inquestionável, como a última fonte de
legitimidade da ordem política e legal. Isto implica mais do
que a existência de um Estado dentro do Estado: pois o
Estado fica subordinado à “vontade revolucionária” das
Forças Armadas, ou seja, é transformado num Estado
autoritário. No entanto, devido à natureza de classe da
ditadura militar, o processo mencionado se caracteriza mais
como uma reserva de poder que como uma transição
efetiva para o despotismo militar. Os objetivos do processo
são dois: substituir o consenso negociado pela decisão
vertical e impor como norma a submissão passiva. A
distância na direção de um Estado autoritário ativo só é
vencida em áreas específicas, como na eliminação
sistemática da oposição real ou potencial válida ou no nível
sombrio do terror permanente, que se volta contra os que
defrontam a ditadura militar pela força.
Por conseguinte, a ditadura militar não tenta absorver
“todo o poder para as Forças Armadas”. Pelo menos até
agora, aparece como uma forma típica de tirania de classe,
na qual os “homens de farda” constituem-se no último
recurso para a manutenção da ordem social estabelecida.
Isso produz uma grande ambiguidade: em que sentido os
militares são a encarnação de uma “vontade
revolucionária”? É a palavra “revolução” usada como
manipulação perversa ou tem ela algum significado
objetivo, no contexto histórico do pensamento político
conservador das classes altas e médias? Os argumentos,
neste nível, são relativos, mesmo para os sociólogos. Do
meu ponto de vista pessoal, convertendo-se na mão armada
de uma tirania de classe, os militares cometeram traição
nacional. Mas tal convicção não exclui meu dever de
encontrar uma explicação objetiva para os motivos dos
militares, como e enquanto membros das classes sociais,
que misturaram a opressão despótica com a mudança social
politicamente controlada.
A ideia de “revolução”, especialmente no seio das classes
alta e média dos países .mais desenvolvidos da América
Latina, é uma extrapolação de uma experiência histórica
recente. Estes países absorveram, durante o recente
período de dominação europeia, um modelo de
desenvolvimento econômico, social e cultural que deu às
suas burguesias certas funções autônomas nos processos
de integração nacional. A Primeira Guerra Mundial, a crise
de 1929 e, especialmente, a Segunda Guerra Mundial
favoreceram algumas tendências do desenvolvimento
econômico, que criaram a ilusão de que o estágio da
industrialização seria conquistado através de esforços e
decisões internos. Contudo, ao mesmo tempo, o modelo de
desenvolvimento econômico, social e cultural, elaborado
sob o imperialismo europeu do século XIX e durante as três
primeiras décadas deste século, entrou em colapso.
Estrutural e dinamicamente, os países da América Latina
foram incorporados, pelas grandes empresas modernas e
por outros meios, ao espaço econômico, cultural e político
dos Estados Unidos. Esta mudança rápida produziu uma
realidade inesperada. O último estágio da revolução
burguesa coincide com a substituição do modelo precedente
de desenvolvimento econômico, social e cultural; e vem se
efetuando sob profunda iniciativa e controle externos.
O novo modelo de desenvolvimento econômico, social e
cultural requer mudanças rápidas e complexas na
infraestrutura da economia (na organização, tanto da
produção quanto do mercado, em níveis local, nacional e
continental), na tecnologia, no sistema de educação, na
organização e eficácia dos serviços públicos, na contribuição
do Estado para a segurança e a expansão dos setores
privados, no padrão de vida, no consumo e na comunicação
de massa, e nas orientações de valor das camadas
dominantes das classes alta e média. O efeito básico do
novo modelo de desenvolvimento econômico foi um novo
padrão de dependência, ao mesmo tempo assaz aguda e
inevitável (sob a persistência da ordem social vigente),
interiorizada através de um processo típico de
modernização, organizado, orientado e controlado a partir
de fora (pelos Estados Unidos da América mas, em certa
escala, por outros países capitalistas avançados da Europa e
pelo Japão).
Outros efeitos, mais difusos mas fundamentais, são uma
confusão moral e uma frustração econômica, especialmente
no nível dos setores dominantes das classes alta e média e
de suas elites detentoras do poder. As esperanças de
autonomia nacional e de um brilhante estilo de vida
burguês, experimentado durante a primeira década deste
século, nas grandes cidades, deram lugar a uma
industrialização que transforma o capitalismo dependente
da América Latina numa associação colonial indireta
disfarçada com os Estados Unidos da América, a
superpotência hegemônica capitalista, e com outras
sociedades capitalistas avançadas.
E, finalmente, como um efeito transitório, seria necessário
considerar também a crise da ordem econômica
preexistente, agravada por tendências conjunturais de
estagnação ou recessão, pela explosão demográfica e
migrações em massa para as cidades, pela inflação
galopante, pelo “populismo”, inquietação política e
movimentos esquerdistas. Os setores dominantes das
classes alta e média se adaptaram rápida e cinicamente às
condições oferecidas pela emergência do novo modelo de
dependência e desenvolvimento econômico. Contudo, eles
sofreram uma convulsão nos seus padrões de valor e de
autoconfiança, herdados do passado recente, tornando-se
socialmente confusos quanto ao futuro e em necessidade
crescente de um bode expiatório, para ocultar seus
insucessos e para dar sentido ao neocolonialismo indireto,
aceito livremente.
Nesse amplo contexto histórico, a ideia de “revolução” foi
retomada do passado, como uma necessidade psicossocial,
moral e política. Como uma revolução burguesa se achasse
realmente em processo, desde o último quartel do século
XIX, os setores sociais dominantes tinham à sua disposição
uma situação de interesse de classe para recapturar a ideia
de “revolução” e projetá-la, objetivamente, no contexto
histórico emergente. A ênfase na necessidade de
desenvolvimento rápido, autossuficiente e contínuo
estendeu-se a todas as classes através da propaganda, dos
escritos dos intelectuais ou dos movimentos de massa e da
influência de algumas agências internacionais, contribuindo
para simplificar a redefinição cultural da ideia de revolução.
Ela foi mantida isolada do seu significado real, enquanto
concepção de classe e como “projeto de classe”.
Se considerarmos as ideias de “revolução”, que os
militares tomaram aos interesses privados internos e
externos, em termos dos seus vínculos de classe,
descobriremos tanto o seu significado real, quanto por que,
atrás da ideias de “revolução”, havia de fato uma
contrarrevolução. Como um processo histórico e social
concreto, a “revolução” se operou como um mecanismo
político. Os setores dominantes das classes alta e média
não tinham outro recurso, para se protegerem das
consequências diretas ou indiretas do novo modelo de
desenvolvimento econômico, social e cultural, senão
neutralizar as crescentes pressões internas, favoráveis às
reformas estruturais e democráticas. O uso calculado do
Estado e a utilização da violência organizada para alcançar
determinados fins foram os meios de ação e de autodefesa
que encontraram à sua disposição.
Através da composição civil-militar e da delegação
temporária do poder político às Forças Armadas, esses
meios foram, na realidade, mobilizados. Os setores
dominantes das classes alta e média alcançaram, assim, o
monopólio da orientação política da sociedade, impondo
seus próprios interesses numa dramática situação de
mudança. Agindo dessa forma, todos os outros interesses e
valores de integração nacional — mesmo sob o capitalismo,
e essenciais para uma revolução burguesa autônoma —
foram esquecidos e abandonados. A democratização da
renda, do prestígio social e do poder, o único meio de
integrar milhões de pessoas excluídas ou
semimarginalizadas em relação ao mercado, à ordem social
vigente e à Nação, foi completamente ignorada. Nesse
sentido, a “revolução” deu origem a um golpe de Estado
reacionário e nasceu como uma contrarrevolução, um
assalto ao poder organizado pelos e para os privilegiados,
em sociedades nas quais os miseráveis constituem a
maioria.
USO E LIMITES   DO   “ PODER   MILITAR”

DE ACORDO COM A DESCRIÇÃO precedente, o novo tipo de golpe


de Estado e de ditadura militar constitui uma expressão
compósita de uma realidade histórica complexa. Ambos
estão imersos numa situação de classes de face dupla. De
um lado, eles representam a “burguesia nacional”,
incluindo, nesta acepção, o setor capitalista da classe alta
(urbana e rural) e as diferentes camadas da classe média,
mais ou menos identificadas com o status quo. Nesta
polarização, as Forças Armadas não são representativas de
uma determinada classe. Todos os setores são privilegiados
politicamente como condição para se garantir a
concentração do poder político no tope e para se assegurar
a estabilidade da ordem social existente. Por outro lado,
eles absorvem as expectativas de papéis e as orientações
de valor dos interesses estrangeiros privados e da potência
hegemônica externa, os Estados Unidos. Na polarização
decorrente, as Forças Armadas desenvolvem duas funções
bem definidas. Primeiramente, suportam algumas condições
de estabilidade, exigidas pelo novo padrão de dominação
econômica, cultural e política externa. Segundo, decidem,
no nível do poder político, a opção de classe dominante, em
face do conflito entre capitalismo e socialismo em nossa
época.
É evidente, sob tais polarizações, que as Forças Armadas
não iniciaram o processo de militarização do Estado e das
estruturas políticas como e enquanto grupo ou categoria
social em si e para si. Sua orientação foi (e é) determinada
pela composição dos interesses privados e públicos,
internos e externos, com vistas a certas condições de
estabilidade econômica, social e política, impostas em nome
de uma “transição segura” para uma nova forma de
desenvolvimento capitalista dependente.
Por causa do caráter desta nova forma de
desenvolvimento, as Forças Armadas estão, de fato,
identificadas com a modernização. Mas esta modernização,
por sua origem, natureza e funções, é uma expressão
dinâmica dos interesses mistos internos e externos
envolvidos. Primeiro, é uma modernização controlada de
fora, como uma fonte de neutralização permanente de
qualquer tendência de crescimento autônomo. Segundo, é
uma modernização politicamente controlada pelos setores
dominantes das classes alta e média, portanto uma
modernização que rende dividendos somente para esses
setores e suas elites no poder.
Seria atrativo explicar a orientação adotada pelos
“homens de farda” em termos da “perspectiva profissional”,
do “atraso cultural” em relação aos civis mais nacionalistas,
às manipulações tecnocráticas e ditatoriais etc. Porém, na
realidade, explicações desse tipo são superficiais e parciais.
Os “homens de farda” são unicamente variações de outros
homens das mesmas classes. As profissões militares, além
disso, formam partes das mesmas largas oportunidades
ocupacionais, abertas para essas classes. Por outro lado, a
educação dos “homens de farda” organiza-se de acordo
com as expectativas de poder e as orientações de valor
básicas predominantes naquelas classes.
Deste ponto de vista, o que se liga, de imediato, à opção
política das Forças Armadas é o horizonte cultural inerente à
maneira conservadora de raciocínio e de ação,
profundamente enraizada, nos países da América Latina,
nas classes privilegiadas (alta e média). Esta forma de
raciocínio e de ação conservadora explica, igualmente,
tanto a orientação egoístico-autoritária, quanto a
acomodação passiva diante das expectativas e imposições
externas. Poder-se-ia dizer que o capitalismo dependente
possui sua própria tradição, de acordo com a qual a
ideologia das nações hegemônicas, como regra de fato,
torna-se a ideologia das nações dominadas. Isto é óbvio,
particularmente, no caso da ideologia do “desenvolvimento
com segurança”, claramente absorvida de fora.
É inquestionável que esta ideologia possui seus próprios
elementos de falsa consciência social. No entanto, é sabido
que tal ideologia propagou-se primeiramente entre os civis.
Seus elementos de falsa consciência social são, por sua vez,
típicos da concepção burguesa conservadora do mundo sob
o capitalismo dependente.
Não obstante, tais aspectos são deveras importantes para
a compreensão “da revolução imposta de cima e através da
ordem”, perfilhada e praticada pelos “homens de farda”.
Atrás da fachada, o novo tipo de ditadura militar é uma
composição de interesses internos e externos, estando
profundamente orientada para fazer o jogo como o fulcro e
a garantia da estabilidade do sistema. Assim nós temos
duas questões, que merecem atenção especial. Primeiro, o
uso calculado das Forças Armadas como um fator transitório
de extrema concentração de poder e de autoritarismo
político. Segundo, os limites do “poder político-militar”.
Considerando-se a primeira questão, os “homens de
farda” foram usados politicamente (mais do que tiraram
proveito) pelas elites no poder existentes. A discussão
acima evidencia os tipos de uso envolvidos. Contudo, seria
aconselhável especificar as áreas de uso estratégico do
poder militar para fins políticos.
A área mais importante é naturalmente a relacionada com
os problemas da “grande burguesia”. Ameaçada de dentro,
pelo “populismo”, pela inquietação social e pelo radicalismo
de esquerda, e pressionada de fora, pela competição com
ou através da absorção pela grande empresa corporativa, a
“grande burguesia” esteve perto de um colapso. A crise
desgastou especialmente seus setores rurais e sua base
financeira. A ditadura militar tentou reorganizar a economia
em sua totalidade, a fim de solucionar tais problemas de um
modo estrutural (favorecendo a transição gradativa do
empreendedor rural para outros tipos de negócios e
dotando o mercado financeiro de maior elasticidade). Em
adição, juntamente com a depressão dos salários dos
trabalhadores, ela adotou políticas de deflação que
preenchem a função de transferir a riqueza,
organizadamente, dos grupos de baixa renda para o Estado
e, por meio deste, para algumas empresas públicas e
privadas de importância econômica estratégica.
As classes médias foram contempladas de maneira
acessória (excetuando-se os militares e os tecnocratas das
empresas públicas e privadas). Todavia, os problemas das
classes médias aparecem em dois níveis intricados: 1. de
manutenção e ampliação dos seus privilégios relativos de
renda, prestígio e poder; 2. de consolidação do status de
classe média em termos de mobilidade social vertical e de
linha de sucessão familial. Por causa desses problemas, as
classes médias são, ao mesmo tempo, conservadoras,
frustradas e ávidas por poder. Apesar de suas pressões
radicais, feitas por pequenas minorias, e de seu ardiloso
conservantismo dominante, as classes médias receberam
apenas as migalhas. Suas vantagens tomaram caráter
indireto, graças às posições ocupadas pelos militares, os
burocratas, os tecnocratas e os políticos, extraídos das
classes médias, nas novas estruturas políticas e nas
renovadas elites no poder. Na verdade, a dinâmica da
militarização do poder e da modernização do Estado deu a
esses círculos, especialmente quando comprometidos com o
“regime”, consideráveis ganhos em prestígio social, poder e
facilidade de consolidação do status, quase sempre
alimentados por agências públicas (como na educação, em
oportunidades profissionais etc.).
A grande empresa corporativa estrangeira constitui um
capítulo à parte. Essa empresa levanta uma série de
problemas como problemas econômicos, resultantes do
padrão monopolístico de organização, de seus lucros
excessivos, e em muitos casos, de sua falta de importância
em vista dos fins globais de crescimento econômico
nacional; problemas políticos, ligados à natureza do novo
modelo de desenvolvimento dependente sob o
industrialismo, a desnacionalização das empresas locais, a
política da reinversão e remessa de lucros, e o maior de
todos, a intromissão financeira, legal e governamental
sistemática dos países hegemônicos, especialmente os
Estados Unidos da América na conformação e controle do
novo modelo de desenvolvimento econômico; e, por fim,
problemas sociais, provocados pela absorção irrestrita de
tecnologia avançada, que contribui para poupar trabalho em
países necessitados de rápido aumento dos empregos, e
pelos impactos negativos do novo modelo de
desenvolvimento dependente sobre a integração nacional
do sistema econômico. Os dois problemas estratégicos
foram naturalmente impostos pela dinâmica da grande
empresa corporativa e pelos controles financeiros, legais e
políticos, que ficam por trás dela. Em todos os países da
América Latina, a expansão deste tipo de empresa está
associada a grandes sacrifícios internos, muito bem
conhecidos. Quando ela atinge seu clímax e poderia tornar-
se uma fonte de pressões internas na expansão e
reorganização do mercado nacional, ela se volta para os
mercados externos de outros países da América Latina,
pressionando em direção a uma política de exportação e de
“integração regional”. Isto implica novos sacrifícios
adicionais e perda imprevista de capacidade de crescimento
diferenciado e integrado (em nível de economias nacionais).
A ditadura militar é decididamente favorável a essa política
econômica e a encara como uma vantagem promissora. De
outro lado, a grande empresa corporativa é um problema
em si mesma. Ela é tão poderosa, que sua expansão
externa é uma ameaça permanente para a hegemonia
econômica e cultural dos países aos quais ela pertence. Por
causa disto, os Estados Unidos estão envolvidos em um
complicado sistema de controle legal e político, de natureza
tipicamente autodefensiva, para evitar uma futura
realocação do centro estratégico de operação das grandes
empresas corporativas. Este é o aspecto mais notável do
florescente “Império Norte-Americano”: o controle
econômico externo é seguido de um controle político
externo ainda mais poderoso. Em regra, a ditadura militar é
muito condescendente com ambos os processos e tende a
avaliar a intromissão externa, extensiva e intensiva, em
assuntos nacionais, como uma questão de segurança
interna! Sob este aspecto, ela é mais leal à nova teoria de
“poder e cooperação interdependentes” do que à soberania
de suas próprias nações. Como o processo total é tão
complicado, os países subdesenvolvidos e dependentes da
América Latina não têm meios efetivos de contrarreação,
dentro da ordem econômica e social existente. Os
resultados da Missão Rockefeller mostram que os setores
privados do país hegemônico compreenderam claramente o
processo em sua totalidade. Eles estão conscientes de que
algumas estruturas econômicas, herdadas do velho sistema
colonial, não podem ser adaptadas aos novos padrões de
dominação econômica e cultural. Por isso, toleram e até dão
apoio à eliminação progressiva ou rápida dessas estruturas,
que se tornaram obsoletas e constituem um obstáculo para
a completa reorganização da economia capitalista na
América Latina. As ditaduras militares, à semelhança de
suas burguesias, tiram pouco proveito mesmo destas
tendências de desenvolvimento dependente, numa era de
crise e transição.
As pressões internas que visassem a reformas
democráticas foram consideradas como fonte de desordem
e como uma ameaça à proclamada “civilização cristã”. Essa
polarização negativa dos setores dominantes das classes
alta e média tem um valor estratégico. A inquietação das
massas urbanas e rurais, os movimentos estudantis, o
protesto católico e o radicalismo intelectual forneceram, em
conjunto, o bode expiatório para uma contrarrevolução
sacrossanta. Todas as manifestações rejeitadas e reprimidas
de não conformismo foram paradoxalmente alimentadas por
orientações de valor e por expectativas sociais do tipo
“revolução dentro da ordem”. Por isto, elas servem de
barômetro para definir o caráter particular da tirania de
classe, que se impôs a si própria como uma “revolução”, e
para avaliar-se a forma resultante da opressão, que
suprimiu até o modelo “pequeno-burguês” e “ilustrado” de
radicalismo.
Finalmente, uma última área engloba movimentos e
atividades de revolução social propriamente dita. Nos países
em que prevalecem desigualdades sociais tão chocantes,
como na América Latina, tais movimentos e atividades
podem facilmente atingir um ponto explosivo. Não existe
lealdade popular para com a ordem social estabelecida e a
explosão em potencial é uma questão de oportunidade
política. Não obstante, como os Estados Unidos aprenderam
de modo errado as lições da revolução cubana, suas
influências sobre o pensamento conservador e as Forças
Armadas da América Latina tomaram uma direção negativa.
Elas engrandeceram e difundiram um medo pânico e uma
drástica contraviolência. E, de outro lado, elas oferecem
uma boa desculpa e uma saída oportunista para os civis e
militares conservadores, que puderam justificar facilmente
os golpes de Estado, a ditadura militar, o terrorismo
direitista e uma terrível repressão obscurantista. No
entanto, o risco corrido pelas “instituições” e pela ordem
social estabelecida era mais imaginário que real. O medo
pânico, contudo, preencheu duas funções: 1. promover a
identificação da sociedade civil com a militarização do
Estado e das estruturas políticas;
2. justificar o uso sistemático da violência organizada
contra quaisquer pessoas ou grupos suspeitos de atividades
subversivas. A contraviolência permite, por sua vez, o uso
planejado de um duplo mecanismo de associação entre os
setores dominantes das classes alta e média, as tiranias por
eles instituídas e o poder hegemônico externo dominante,
os Estados Unidos. A repressão dos movimentos de reforma
democrática foi de importância estratégica para as classes
alta e média das sociedades latino-americanas. Contudo, a
organização de uma contrainsurreição, através dos recursos
humanos dos Estados latino-americanos, mas com a ajuda
externa, era de importância estratégica para os Estados
Unidos e, em menor grau, para as outras nações capitalistas
adiantadas, envolvidas nas novas tendências de
desenvolvimento dependente. Como resultado dinâmico e
estrutural desse duplo mecanismo, a dependência
transferiu-se rapidamente das esferas econômicas e
culturais para os níveis políticos, burocráticos e militares.
Em relação à segunda questão, os limites do “poder
político-militar”, é óbvio que, em termos da composição
descrita, a militarização do Estado é um fenômeno
contingente. Ela pode durar alguns anos. Mas está
condenada a desaparecer tão logo se torne desnecessária.
Para adquirir realidade política substancial, as Forças
Armadas necessitariam novos tipos de alianças sociais e
novas orientações de valor. Mantendo-se as condições
presentes, o poder militar não tem meios para impor sua
vontade além e acima do momento deliberado de omissão
dos setores dominantes das classes alta e média.
ESTADO   E   SOCIEDADE   EM   TENSÃO

A ÚLTIMA QUESTÃO propõe os problemas políticos básicos. Seria


impossível negar que a tendência moderna descrita possui
uma natureza verdadeiramente tradicional e profundamente
enraizada. De fato, ela é uma nova versão de um processo
político, econômico e social arcaico. O novo tipo de tirania é
a forma assumida pela dominação, opressão e autoritarismo
oligárquicos sob as condições históricas presentes, nas
quais alguns setores da classe média conseguem
compartilhar dos privilégios e do poder da classe alta.
Talvez, uma melhor descrição sociológica seria um pouco
mais complexa. O novo tipo de tirania aparece como
subproduto da transformação da dominação oligárquica em
dominação plutocrática, composta de interesses sociais,
políticos e econômicos, públicos e privados, tanto internos
quanto externos. Contudo, a última descrição não muda a
realidade do elemento arcaico, constituído pela extrema
concentração social da riqueza, do prestígio e do poder.
Os problemas que surgem da última questão estão
relacionados com a dinâmica da ordem social vigente, sob
as condições que prevalecem na América Latina, e com a
evolução das estruturas de poder herdadas. De um modo
amplo, temos duas realidades diferentes: um Estado
lutando rigidamente para estabilizar a ordem social
existente, segundo certos interesses particularistas internos
e externos; e uma sociedade tentando destruir um Estado
que se tomou uma camisa de força. Estas duas realidades
estão em irremediável conflito.
Sob este ponto de vista, a tirania oculta atrás da ditadura
militar pode ser bem-sucedida e durar duas ou três décadas
(talvez mais, talvez menos, dependendo dos países da
América Latina que se considerem). Todavia, as posições
militares e a natureza dos seus laços com a sociedade
podem transformar-se de maneiras diversas. De outro lado,
os valores e as orientações políticas das classes sociais, dos
poderes hegemônicos externos e dos países socialistas em
relação à América Latina podem mudar, também, de
maneiras diversas. A necessidade de articular interesses
privados internos e externos, de caráter divergente, e de
lançar mão de golpes militares de Estado é, por si mesma,
uma evidência clara de que as pressões da sociedade
contra a tirania estão se tornando muito “fortes para serem
enfrentadas por meios normais”. Não há razões para se
admitir que essas pressões desaparecerão em virtude da
militarização do Estado e do poder político. Ao contrário, a
rigidez de tal processo é previsivelmente propícia ao
fortalecimento de algumas tensões estruturais e ao
aparecimento de conflitos mais violentos.
Nem as Forças Armadas e os interesses privados externos
e internos, nem os outros setores sociais da sociedade
(agora em silêncio ou subjugados), poderão permanecer
continuamente em tal estado de acomodação conflitante.
Na realidade, o golpe de Estado pelas Forças Armadas é, por
si mesmo, uma mudança profunda, que está provocando o
nascimento de novas formas de acomodação ou de conflito
grupal e de uma vasta socialização política dos militares.
Então, poder-se-ia perguntar, quais seriam as alternativas
possíveis para o futuro, olhando-se as coisas a partir das
composições de poder predominantes? Aceitando distinções
toscas, nós consideraríamos três arranjos típicos: 1. a
estabilização do novo padrão de opressão política e do novo
regime autoritário; 2. a exacerbação do controle militar do
poder e, em consequência, das funções políticas e
burocráticas do Estado; 3. uma revolução socialista.
O primeiro arranjo atende aos requisitos políticos do
modelo emergente de desenvolvimento econômico e
cultural dependente, vinculados ao capitalismo monopolista.
O “desenvolvimento como revolução”, dadas as presentes
condições demográficas, econômicas, sociais, culturais e
políticas da América Latina, trabalha nessa direção.
Portanto, se a composição dos interesses internos e
externos prevalecer a largo prazo, uma concentração social
permanente do poder se imporá como uma condição
necessária. Nesse caso, o êxito do novo tipo de tirania
dependeria de uma reação ativa dos setores civis, com a
substituição da antiga e exausta dominação oligárquica por
uma dominação plutocrática, orientada tecnocraticamente.
Uma tal evolução produziria uma reorganização relativa do
poder militar. Isto não significa uma “devolução do poder”
aos civis. Mas, talvez, um “aperfeiçoamento” do chamado
modelo mexicano, mediante uma adaptação da participação
normal das Forças Armadas no núcleo das estruturas de
poder, especialmente no que respeita às exigências
políticas, militares e policiais de repressão
contrainsurrecional. A combinação de um regime autoritário
com a militarização de determinados serviços públicos e de
funções estratégicas do executivo é tão vantajosa para os
interesses privados internos e externos, que ela não será
abandonada facilmente pelos setores dominantes das
classes alta e média ou pelos poderes hegemônicos
externos. Portanto, a “restauração da democracia”, ou seja,
o restabelecimento do tipo anterior de opressão “liberal” é
totalmente inviável. Isso exigiria um crescimento econômico
e cultural autônomo tão rápido e um controle tão completo
de inquietação social ou da insurreição política, que a
“restauração da democracia” se torna impossível, enquanto
“realidade burguesa”. O grande dilema, para a elite no
poder, militar e civil, é como conseguir participação e
suporte populares. O tão decantado e desejado modelo
mexicano somente é realizável quando as massas podem
ser engoIfadas pelo fluxo de uma verdadeira revolução
social.
O segundo arranjo é, de fato, muito complexo. Ele
depende de fatores estruturais diferentes, dos quais a
reação dos “homens de farda” às mudanças em processo é
apenas um dos elementos dinâmicos da situação. Mas duas
orientações extremas parecem ser mais ou menos
imperativas, dado um malogro definitivo na consecução do
primeiro arranjo. Essas duas probabilidades são: a) um
radicalismo político-militar, seja como resposta à
incapacidade de estabelecer-se o novo tipo de
desenvolvimento dependente sob o capitalismo
monopolista, seja como um produto da predominância
sectária de grupos direitistas entre as Forças Armadas e os
setores civis dominantes; b) a fermentação e a consolidação
graduais de um “nacionalismo revolucionário”, construído
sob a proteção do poder militar.
Esses dois caminhos são tão antagônicos, que é difícil
imaginar como eles podem ser produzidos pela mesma
situação histórica. Não obstante, os “homens de farda”
foram projetados na arena do poder político organizado.
Suas atitudes, orientações de valor e comportamentos
políticos sofrerão mudanças dramáticas graças às
experiências com o poder político e através de um
conhecimento mais acurado de seus países. Por causa
disso, os setores sociais mais conservantistas e as
influências externas estão tentando intensificar algumas
identificações morais dos militares com uma concepção
pervertida de “segurança nacional”. O objetivo é criar uma
forte corrente para uma saída direitista, capaz de converter
rapidamente a militarização do poder político em um regime
fascista acabado. As frustrações da burguesia nacional e as
fraquezas das massas poderiam contribuir, então, para uma
espécie de racionalização e modernização do antigo
despotismo.
Entretanto, como os demais seres humanos, os “homens
de farda” estão experimentando um processo de
ressocialização política. Eles estão aprendendo coisas novas
não somente a respeito da “arte política”, mas sobre
iniquidades sociais que, de agora em diante, serão
praticadas sob sua responsabilidade política. Através da
cooperação de técnicos e tecnocratas nacionais ou
estrangeiros, eles estão aprendendo novas técnicas sociais,
novos modelos de organização institucional, e de mudança
planejada e controlada. Por outro lado, eles se viram
moralmente envolvidos em “projetos nacionais” de reforma
social e politicamente expostos à corrupção, à crítica ou à
aprovação dos setores populares etc. Essas condições são
favoráveis à emergência, aperfeiçoamento e difusão de um
novo tipo de “populismo”, um “populismo militar”. Desde
que o “populismo militar” possa ser controlado pelos
interesses privados dominantes, internos e externos, ele é
um mero fator de controle político autoritário a partir de
cima. Mas, como grupo social organizado e por causa de seu
poder institucional, as Forças Armadas têm maiores
oportunidades de se esquivarem às pressões
conservantistas. O processo pode se iniciar como um
processo típico de modernização do Estado e de suas
funções; e pode terminar como uma verdadeira revolução
nacional. A evolução dessa polarização política depende de
mudanças nas identificações existentes dos militares com a
lealdade conservadora, de mudanças de atitude dos setores
radicais, das classes alta e média diante dos “homens de
farda” e da constituição de novas estruturas políticas,
capazes de integrar esse tipo de composição social.
Pessoalmente, sou cético quanto a tal perspectiva. Contudo,
ela pode ser factível num contexto no qual algum progresso
dos setores reformistas e democráticos da sociedade
pudesse liberar os assim chamados “setores nacionalistas”
das Forças Armadas. Nesse caso, ao invés de um
“desenvolvimento dentro da segurança”, conservador ou
direitista, o “nacionalismo revolucionário”, sob a garantia do
poder militar, poderia combinar desenvolvimento autônomo
com integração nacional. A questão é se o “populismo
militar”, como aconteceu com o “populismo civil”, não está
condenado ao malogro, por falta de identificação com a
revolução democrática vinda de baixo.
O terceiro arranjo tem sido visto, depois das novas
tendências de levantes militares, como um caminho
interceptado. Aceita-se geralmente que o uso político do
poder militar, em combinação com a capacidade dos
Estados Unidos de intervenção maciça e imediata, em
outros países, bloquearam qualquer evolução para uma
insurreição socialista na América Latina. De um ponto de
vista objetivo, isto é um grosseiro contrassenso, baseado
em duas suposições falsas. A primeira, envolve um
paralelismo superficial entre a “Dominação Romana” e o
“Império Norte-Americano”. Não existe fundamento para tal
associação. Um império alicerçado nos interesses
capitalistas está por si mesmo condenado a mudar
rapidamente e a ser reconstruído de acordo com as
transformações do próprio tipo de capitalismo. Desde o
início, com Veneza, Portugal, Espanha e Holanda, até os
tempos mais recentes, com a Grã-Bretanha, França,
Alemanha ou Itália, as grandes reorganizações do
capitalismo privilegiaram todas as formas de estruturas
políticas, inclusive a “nacional” e a “imperial”. Os Estados
Unidos têm levado a vantagem de uma tecnologia
superavançada e de uma articulação capitalista
internacional momentânea, catalisada pela sua própria
hegemonia dentro do “mundo capitalista” e pela duração do
jogo de paciência russo dentro do “mundo socialista”.
Todavia, essas condições são condições históricas, instáveis
pela sua própria natureza. O que conta são os dinamismos
intrínsecos do moderno capitalismo monopolista e os efeitos
estruturais da presente expansão do socialismo na
organização do mercado internacional e na sobrevivência do
capitalismo. Negligenciando-se o último aspecto, é evidente
que a dinâmica do capitalismo monopolista é a mais
perigosa ameaça enfrentada pelo “império norte-
americano”, já que seu poder e hegemonia se fundam no
poder e hegemonia de umas poucas “grandes empresas
corporativas”, os verdadeiros “impérios”. Como estas
“grandes. empresas” estão se espalhando e se
internacionalizando, seu futuro controle ecológico,
econômico, legal e político é uma matéria imprevisível. Esta
conclusão mostra que alguns acontecimentos
circunstanciais foram mal interpretados, talvez por causa da
inabilidade com que os Estados Unidos enfrentaram certos
problemas internacionais e continentais, dando prioridade à
violência em ocasiões nas quais outros meios pacíficos
deveriam merecer atenção cuidadosa. No que se refere à
América Latina, isto implica que os Estados Unidos serão
crescentemente forçados a uma política mais acomodativa
e flexível.
O segundo contrassenso relaciona-se com a avaliação dos
elementos básicos na constituição de uma nova ordem
social nos países da América Latina. Para os novos governos
autoritários, o essencial é a combinação da violência
organizada com algumas mudanças estruturais, de interesse
primário para os setores dominantes das classes alta e
média, para as empresas corporativas estrangeiras e para
os Estados Unidos. Não obstante, a violência organizada
(mesmo sob condições de repressão brutal e de opressão
sistemática) não pode ser um fator permanente de
equilíbrio social. Ela pode garantir um período de extrema
concentração social de poder e de controle político
arbitrário da situação pelas elites no poder. Entretanto, ela
gera, por si mesma, fluxos reativos de contraviolência. O
que é essencial, pois, não é a violência em si mesma, mas o
uso social das condições de estabilidade e de mudança
controlada durante o período de extrema concentração do
poder. Sob as condições econômicas, sociais e políticas
predominantes, de privação absoluta ou relativa, o
capitalismo seria favorecido pela negação da pobreza e do
desemprego aberto ou disfarçado. Oportunidades de
trabalho estável assalariado, em grande escala, e a
integração à ordem social existente são exigências básicas
da grande maioria silenciosa dos pobres, nas áreas urbanas
e rurais. Contudo, as reformas em processo, impostas pelo
setor público sob liderança militar ou realizadas pelos
interesses privados internos e externos, por agências real ou
supostamente internacionais etc., estão primariamente
relacionadas com objetivos particularistas dos setores
dominantes das classes alta e média das empresas
corporativas estrangeiras, dos Estados Unidos e de outras
nações capitalistas avançadas. Essas reformas produziram,
estão produzindo e produzirão alguns efeitos indiretamente
positivos nos setores populares. Porém, isto não é o
bastante. As mudanças requeridas pela situação são de
caráter revolucionário (mesmo em termos de “uma
revolução dentro da ordem capitalista”). As mudanças em
processo são de natureza contrarrevolucionária, como
subprodutos da predominância de uma composição de
interesses particularistas internos e externos.
Isso significa que a extrema concentração de poder e o
período de relativa estabilidade, produzidos pela opressão
ou pela repressão, não estão sendo utilizados de modo a
conquistar, realmente, apoio e participação permanentes da
grande maioria silenciosa dos pobres. A frustração dessa
maioria silenciosa está aumentando rapidamente, mas em
condições muito diferentes das do passado: o uso aberto da
violência pelos setores dominantes da sociedade, pelas
organizações contrainsurrecionais conhecidas como
manipuladas do exterior, e pela tirania estabelecida criou
uma nova realidade política. A maneira tradicional de
opressão foi desmascarada pelas elites no poder e a
legitimidade da violência foi legal e politicamente
proclamada como um fim em si mesmo. Em poucos anos, os
conservadores foram mais úteis à causa da revolução
socialista que todos os movimentos de esquerda,
considerados em conjunto. Os horizontes políticos das
massas estão mudando de modo mais rápido que a ordem
social. Se a obstinação egoísta dos interesses particularistas
predominantes permanecer cega às urgentes reformas
democráticas, necessariamente de grande escala, a
explosão será uma realidade política nas próximas décadas.
Sob tais circunstâncias, o poder militar confrontar-se-á
com fissuras inteiramente novas. Agora, é fácil distorcer o
significado e as funções dos movimentos socialistas ou
radicais. Eles são vistos como “atividades antipatrióticas”,
de grupos minoritários, financiados, orientados e
controlados do exterior. E eles continuam, na verdade,
distanciados do apoio popular maciço. Sob outras
condições, a distorção dos fatos será inútil e a rebelião
socialista ou radical se converterá em realidade histórica.
Então, as Forças Armadas não poderão manter-se tão
fechadas e ao mesmo tempo tão protegidas diante da
fermentação e da explosão revolucionária. Sentimentos
sociais e identificações nacionais pressionarão os “homens
de farda” primeiro em direção a uma “participação
popular”; e muitos deles serão finalmente engajados na
revolução social, na construção de um mundo autônomo e
democrático, negado aos países da América Latina sob os
tipos de colonialismo e neocolonialismo ligados aos vários
estágios do capitalismo.
Esta discussão global mostra que não há sentido, quando
consideramos a situação histórica como uma realidade
total, de pensar-se sobre o uso político do poder militar
somente em termos de uma determinada polarização.
Especialmente quando o Estado e a sociedade estão numa
tensão insuperável, as polarizações políticas do poder
militar podem tomar, rapidamente, diferentes direções.
Mesmo nas piores condições, os homens sempre têm
possibilidades alternativas de escolha. Um controle militar
rígido do Estado e uma tirania de classe não são intangíveis.
Ao contrário, eles forçam os “homens de farda” a enfrentar
problemas complexos e a tomar decisões difíceis. Ao
enfrentar os problemas complexos e ao tomar decisões
difíceis, os “homens de farda” mudam suas identificações
sociais, seu horizonte cultural e o caráter de suas ações
políticas. Sob esse aspecto, o assalto do poder pelos
militares não é o fim de um processo histórico, mas o
começo de muitos outros processos históricos. Os “homens
de farda” veem-se engolfados nesses processos, através
dos quais novas composições e soluções surgem como uma
necessidade social. Isso significa que eles não são os únicos
agentes da história. Porém, à semelhança dos outros
homens, eles estão imersos nas formas existentes de
comportamento e de conflito grupais, das quais a história de
uma sociedade emerge como produto da atividade humana
coletiva.
O INTELECTUAL   E   A   DITADURA   MILITAR

O INTELECTUAL NA AMÉRICA LATINA está tão intimamente ligado


aos setores dominantes das classes alta e média quanto o
militar. Dependendo do país considerado, eles são primos,
irmãos ou gêmeos. Por esta razão, o “momento de omissão”
da sociedade civil, que deu ao poder militar a dimensão
política descrita, foi claramente, também, um “momento de
omissão” dos intelectuais. Eles estavam tão identificados
com o medo pânico e tão impregnados de ardor
contrarrevolucionário quanto qualquer outro círculo
conservador das classes alta e média dominantes.
Poder-se-ia dizer que, como categoria social, os
intelectuais pagaram um alto preço à nova forma de tirania
de classe e à repressão político-militar, e que um grande
número de intelectuais esteve e está envolvido na
resistência política contra a existência e a consolidação do
novo tipo de dominação autoritária. Todavia, esta evidência
revela uma dupla realidade. A exemplo dos “homens de
farda”, os intelectuais têm alguns segmentos radicais
comprometidos com a democracia, as reformas estruturais
e a autonomia nacional. Por outro lado, a condição do
intelectual ainda é um fator secundário de diferenciação de
papéis sociais, de ego-envolvimento e de orientações de
valor. O intelectual é, fundamentalmente, um “membro
responsável” dos setores dominantes das classes alta e
média, e quando possível, um “cérebro pensante” leal e
ativo da elite no poder.
Por isso, a militarização do poder encontrou (e vem
encontrando) um apoio cada vez mais amplo e forte, ao
invés de oposição por parte dos intelectuais. Uma grande
maioria estava (e continua a estar) abertamente a favor da
proclamada “revolução para salvar a ordem social”. Esse
setor aproveitou a situação para expandir a repressão
militar e a opressão política, de modo aberto ou
dissimulado, nas esferas das atividades intelectuais. Outros
setores mais ou menos largos gostariam de fazer as coisas
de “maneira civilizada”, sem violências e injustiças
extremas, especialmente no nível da “liberdade intelectual”.
No entanto, esses setores também encaravam a situação
em termos de “interesses de classe” e de “lealdade de
classe”, encarando as medidas excepcionais contra os
intelectuais como um preço necessário, aceitando mesmo
alguns papéis repressivos para “preservar as instituições”
ou para “proteger aqueles que pudessem ser defendidos”!
Apenas uma minoria se opôs à militarização do poder em
nome de orientações de valor intelectuais especificamente
abstratas. Uma pequena parte dessa minoria tinha uma
autêntica orientação liberal-conservadora. Alguns entre eles
desafiaram o poder militar ou tentaram ativar,
secretamente, uma espécie de organização de autodefesa
(em nome da “liberdade intelectual” clássica). Porém, um
grande contingente daquela minoria seguiu os radicais, a
verdadeira intelligentsia da América Latina, “oponentes do
sistema” e, por esta razão, inimigos conscientes da ditadura
militar e da florescente tirania de classe. Eles foram (e estão
sendo) esmagados através de várias formas de repressão
policial, de opressão política e de discriminação intelectual.
Não foram, todavia, destruídos ou aniquilados. Ao contrário,
a crise expurgou esses intelectuais de seus elementos
espúrios, aumentou sua solidariedade e amadureceu sua
percepção política da realidade.
A situação exposta poderia ser descrita e interpretada,
sociologicamente, sob diferentes pontos de vista. No
entanto, estamos interessados nas conexões estruturais e
dinâmicas existentes entre o regime autoritário e os
intelectuais. Por esta razão, discutiremos aqui somente três
questões básicas: 1. os fatores diretos e indiretos que
produziram o autoenvolvimento e a orientação coletiva dos
intelectuais na direção das tendências assumidas pela
militarização do poder; 2. o mecanismo de recrutamento e
compensação dos intelectuais comprometidos com a
construção da “infra” e da “super” estruturas de um regime
autoritário; 3. as razões para o malogro dos intelectuais da
América Latina, durante e depois do período de crise.
A enumeração e a análise completas dos fatores
relacionados com a primeira questão é impossível. Grosso
modo, os fatores mais importantes são indiretos: as
posições e papéis intelectuais acham-se ramificados através
dos status privilegiados das classes alta e média. Em
consequência, os intelectuais ficam permanentemente
expostos a interesses, a ideologias e a valores que, por sua
própria natureza, são intrinsecamente conservadores, no
sentido de que fazem parte do horizonte cultural
conservantista dos setores dominantes das classes alta e
média. Isso não significa que eles sejam contra a
“modernização” ou “inimigos da mudança social”, mas que
a posição de classe e as orientações de classe dos
intelectuais tendem a ser mais uma função da estabilidade
da ordem social existente, que das exigências específicas de
suas atividades culturais, diletantes ou profissionais. Eles
podem estar engajados nos processos de modernização e
de mudança cultural. Mas tal engajamento possui limites
restritos: 1. a preservação do status quo, em períodos de
estabilidade social; 2. o controle político da modernização e
da mudança social, pelos setores dominantes das classes
alta e média, em períodos de crise. Por isso, os intelectuais
não representam uma força cultural de toda a sociedade.
Exercem suas atividades construtivas na qualidade de força
cultural dos setores sociais que formam a sociedade civil na
América Latina, ou seja, a parte “integrada” das sociedades
nacionais a que pertencem. Essa função dirige suas
atividades construtivas para objetivos intelectuais neutros
ou para fins intelectuais positivamente ligados à
continuidade e ao fortalecimento dos privilégios das classes
alta e média.
Esse fator indireto foi, na realidade, a fonte dinâmica do
ajustamento dos intelectuais à “necessidade” dos golpes de
Estado militares e dos seus principais “motivos de
reconhecimento” para com a militarização do poder político.
Entretanto, por detrás de suas atitudes, comportamentos e
orientações de valor predominantes, há uma situação
estrutural que fragmenta as atividades intelectuais em
posições e papéis que carecem, como tais, de qualquer
autonomia social e de qualquer poder político inerente de
autodeterminação. Essa situação estrutural engendra uma
imagem específica dos “intelectuais”, na qual a facilidade
com que é conquistada a estima pública e um prestígio
quase ritual, mediante a publicação de obras escritas, e a
impotência associada a mecanismos compensatórios de
frustração e de sublimação constituem os dois lados de uma
mesma moeda. Suponho que é a situação estrutural — mais
do que o controle externo, imposto através e pelos setores
dominantes da sociedade — que explica
sociodinamicamente o complexo padrão de conservantismo,
inerente aos papéis intelectuais. O que é importante
considerar-se, desse ponto de vista, é que o isolamento dos
intelectuais gera uma exclusão dos papéis intelectuais na
dinâmica da história, da cultura e da sociedade. A “tradição
liberal” torna-se um escudo, que os protege dos riscos de
uma participação social aberta e responsável como
intelectuais. O isolamento origina uma “torre de marfim”,
cuja função consiste em acomodar os intelectuais às
expectativas de papéis sociais e aos controles societários
externos. Portanto, o isolamento não funciona como uma
fonte dinâmica de autoafirmação intelectual, de um
poderoso pensamento abstrato revolucionário (ou, pelo
menos, crítico). Ele funciona, antes, como instrumento de
autoneutralização e autocastração, que organiza as
atividades intelectuais como formas culturais do
pensamento conservador. Através desta situação estrutural,
pois, uma sociedade civil conservadora conforma as
atividades intelectuais criadoras à sua própria realidade
histórico-cultural.
Isso explica por que o pensamento conservador é um
produto sociodinâmico da organização das atividades
intelectuais; e consequentemente, por que a grande maioria
dos intelectuais está substancialmente do lado dos golpes
de Estado militares e da militarização do poder, em vez de
se acharem em oposição frontal às restrições ou à
supressão da “liberdade intelectual”. Entrementes, o
sistema institucional, ligado à produção, transmissão e
difusão de conhecimento, também está subordinado aos
privilégios sociais das classes alta e média e às suas
orientações de valor conservantistas. Há pouco interesse
numa discussão ampla desse aspecto — a elite cultural
conservadora imprimiu uma estrutura conservadora e
funções conservadoras às instituições ligadas aos meios de
comunicação de massa, à educação, à pesquisa científica
ou tecnológica etc. Por isso, tão logo os golpes de Estado se
encontraram em preparação, um plano coerente, voltado
para o uso estratégico daquele sistema institucional, foi
elaborado e posto em prática com êxito. O centro desse
esforço baseou-se na combinação, bastante complexa, dos
serviços secretos das Forças Armadas, dos movimentos
intelectuais direitistas apoiados pelos interesses privados
internos ou externos, das agências de contrainsurreição
norte-americanas, de algumas empresas de pesquisa social
comercializada ou aplicada etc. O que interessa à presente
discussão é a conglomeração dos motivos intelectuais
predominantes, que foram tão decisivos para os desígnios
dos serviços secretos e estados-maiores das Forças
Armadas.
Em todos os níveis, o sistema institucional organizado em
torno de objetivos intelectuais esteve, e está, enfrentando
uma crise interna. Em todas as instituições, um elemento
comum de crise é a “diferença de gerações”, que na
América Latina assume um caráter dramático de conflito
dos jovens contra formas abertas ou disfarçadas de controle
gerontocrático do poder. Foi verdadeiramente fácil unir os
interesses dissimulados das elites intelectuais neste nível,
em nome da “defesa da ordem”. Um segundo conflito
importante apareceu nas universidades, nas quais os
melhores representantes das profissões liberais viram-se
confrontados com as exigências de um novo padrão de
trabalho de tempo integral. Neste nível, de novo, os
interesses dissimulados encontraram proteção sob a
bandeira da “defesa da ordem”. Em algumas instituições
dedicadas à pesquisa científica e tecnológica há um conflito
entre duas tendências diferentes: a pesquisa considerada
como um meio honorífico de se obter bons salários e
prestígio, em contraposição à pesquisa empenhada no
avanço do conhecimento original. Aqui, os interesses
dissimulados triunfaram, rotulando a devoção ardente à
pesquisa científica e tecnológica como “ameaça comunista”
aberta ou camuflada. De modo geral, a competição
profissional e o conflito social envolveram motivos
intelectuais na zelosa “defesa da ordem”. Nessas
circunstâncias, os interesses dissimulados transformaram-
se, no seio dos círculos intelectuais, em armas venenosas.
Eles impediram, ao mesmo tempo, qualquer espécie de
resistência intelectual efetiva contra o obscurantismo ou
qualquer espécie de solidariedade intelectual genuína. Os
três exemplos fornecem uma clara evidência de duas coisas
diferentes: 1. as instituições organizadas em torno das
atividades intelectuais constituíram cenário dos mesmos
conflitos que impeliram os militares aos golpes de Estado e
à militarização do poder político; 2. essas instituições foram
usadas em proveito dos interesses escusos predominantes,
para apoiar tanto os golpes de Estado militares, quanto a
militarização do poder político. Consideradas em seus níveis
de atividades “profissionais” ou “culturais”, as elites
intelectuais aparecem como agentes da contrarrevolução
burguesa e o “braço pensante” do poder militar.
A segunda questão, concernente aos mecanismos de
recrutamento dos intelectuais envolvidos na construção dos
regimes autoritários emergentes, coloca dois problemas
diversos. Um, relacionado com o período de “conspiração”,
no qual os intelectuais conservadores foram gradualmente
absorvidos pelos serviços secretos e os estados-maiores das
Forças Armadas. O outro relaciona-se com o período de
organização e de consolidação da militarização do poder
político.
As recentes mudanças da tecnologia bélica, do padrão de
guerra e de envolvimento dos interesses rnilitares na
pesquisa científica e tecnológica deram origem a um
processo mais complexo de intelectualização dos militares.
Sob o patrocínio dos Estados Unidos, esse processo teve
uma influência concentrada na América Latina: os militares
tornaram-se os campeões de uma teoria simplificada de
“desenvolvimento dentro da segurança” e, também, os
“policy-makers” de uma concepção pervertida de
“associação interdependente”, que desempenhou uma
função básica na organização política de seus países na
década de 1960. À semelhança dos outros setores das elites
civis no poder, os intelectuais foram maciçamente
absorvidos pelas agências culturais e pelos “contatos”
militares durante o período de “conspiração”. Através de
tais processos, pelo menos os melhores representantes dos
intelectuais conservadores sofreram algum tipo de
doutrinação militar e de ressocialização política autoritária.
Além disso, as chamadas elites culturais foram preparadas
não só para dar sua aprovação aos golpes de Estado
militares, pois elas também estavam identificadas,
politicamente, com a militarização do poder e predispostas
a aceitar a liderança política dos militares nos termos que
estes propunham, isto é, sob regime autoritário.
Por causa disso, o recrutamento de intelectuais para
cooperar na construção de um novo regime autoritário não
enfrentou dificuldades. A realização desse objetivo seria,
sob quaisquer condições, muito fácil em países tão minados
por um conservantismo obscurantista, fortes interesses
particularistas de classe e uma classe média ávida por
poder. Por outro lado, a transição para o novo padrão de
industrialismo dependente criou sua própria esfera de
racionalidade, na qual os intelectuais podem encontrar
diferentes áreas de realização criadora e uma arena de
poder. O fluxo da cooperação intelectual, leal e entusiasta
ou fria e calculada, ultrapassou todas as expectativas (e
mesmo as probabilidades existentes de absorção útil).
Alguns atritos surgiram, destruindo a ilusão de que “a
restauração da ordem” envolveria rápido restabelecimento
do controle civil do poder político, e provocando o
retraimento dos intelectuais que fizeram o papel de
“inocentes úteis” ou de “aliados perigosos”. Mas, a massa
dos intelectuais “conservadores” (“liberais” ou “neutros”)
mostrou uma grande tolerância, proclamando sua fé na
“ordem revolucionária”.
Os atritos tiveram diferentes motivos. Para os intelectuais,
o mais importante era (e é) a emergência, entre os
militares, de uma elite contraintelectual. Isso indica que os
militares estão dispostos a criar seus próprios intelectuais —
para acabar com a competição intelectual em volta de
posições de força e para estimular o monopólio militar
parcial das melhores oportunidades intelectuais. Outra
causa importante de atritos foi (e é) o estilo militar de
controle e liderança. O mecanismo vertical de decisão
imposta do tope e de mando parece chocante e limitativo,
mesmo para os intelectuais mais servis. Finalmente, os
militares esposaram uma visão sectária e puritana dos seus
papéis como “policy-makers”. Eles fazem consultas formais
e informais em “alto nível”, ou seja, no nível das elites no
poder (incluindo as elites culturais). Mas, demonstram
pouca flexibilidade em pontos já assentados por suas
doutrinas preestabelecidas e não revelam qualquer
disposição para as “discussões acadêmicas”. Em conjunto,
esses atritos dão um sabor amargo à participação do poder
político-militar. Não obstante, os militares conhecem as
vantagens básicas da especialização, da cooperação
disciplinada, e da modernização do Estado. Sob sua
responsabilidade, o regime autoritário está se tornando um
Estado tecnocrata de múltiplas faces. Isto implica uma
miríade de oportunidades para os intelectuais de
“mentalidade aberta” e tolerantes. No fim, eles perdem o
sentido de dignidade, inerente à posição do intelectual na
sociedade. Mas ganham poder “vivo”, como lacaios do
poder político-militar institucionalizado.
Os mecanismos de recompensa repousam, portanto, em
oportunidades a serem mantidas ou em novas vias de
acesso aos diferentes níveis de poder. Os intelectuais
“revolucionários” — aqueles que estão identificados com os
golpes de Estado militares e com a militarização do poder
político — podem ter uma desculpa. Eles olham a si próprios
como agentes do novo tipo de leviatã, como os cérebros
pensantes das Forças Armadas, e como “a inteligência do
regime”. O mesmo poderia ser dito em relação aos técnicos
e aos cientistas envolvidos na tecnocratização do poder
político-militar (do Estado e das Forças Armadas, à
educação, a meios de comunicação de massa, à economia
etc.). Eles se veem — e são, realmente — a “verdadeira
inteligência” daquele leviatã, a elite cultural que está
emergindo com e através do regime autoritário militar. Mas
eles possuem, adicionalmente, uma ideia clara de que
podem sobreviver politicamente sem o poder militar. Os
dois setores intelectuais mencionados estão construindo,
sob a dominação militar, com a cooperação dos interesses
privados internos ou externos, e o auxílio do poder
continental hegemônico, os Estados Unidos, uma versão
latino-americana aperfeiçoada do salazarismo e do
franquismo.
Por aí se vê que o antigo tipo de intelectual “liberal” e o
tipo moderno de intelectual “tecnocrata” estão unidos na
mesma causa e são compensados pelos mesmos meios.
Algumas vezes, contam com as mesmas origens sociais ou
culturais e alimentam interesses profissionais abertos ou
dissimulados similares. Contudo, o último setor tem mais
em comum e identifica-se mais com os militares; sem
contar que um regime autoritário moderno pode produzir
mais dividendos para ele, independentemente de qualquer
ônus moral ou político. Através de semelhante regime, os
intelectuais do último setor estão construindo mais do que
as estruturas políticas e administrativas da ditadura militar.
Eles estão tentando construir o tipo de economia, de
sociedade e de Estado nos quais poderão ser, sob o
capitalismo industrial dependente, uma poderosa elite
cultural.
A terceira questão, as razões de malogro da intelligentsia
latino-americana, levanta muitos problemas que não podem
ser discutidos aqui. Para evitar mal-entendidos: eu acredito
que parte dos intelectuais constituiu uma intelligentsia
verdadeira, orientada na direção de uma percepção e de
uma explicação crítica da realidade e da construção de uma
concepção negativa do mundo, oposta à ordem social
existente, baseada em extrema concentração da riqueza, do
prestígio e do poder no tope, e numa grande massa de
iniquidades sociais e de miséria; e voltada para reformas
democráticas ou para a revolução social. A situação externa
dessa intelligentsia explica sua falta de consistência, sua
fraqueza intelectual, e sua irracionalidade política. Ela é o
produto de interesses de classe e de ideologias divergentes:
os intelectuais ilustrados, de origem “burguesa” ou
“pequeno-burguesa”; a moral radical, de extração católica
ou de outras raízes religiosas e humanitárias; o jovem
rebelde, em sintonização com os diferentes movimentos
modernos de protestos de geração; os intelectuais
definidamente comprometidos com atividades e ideologias
de esquerda, do anarcossindicalismo e do socialismo às
várias correntes atuais do comunismo; os tecnocratas
politizados, fascinados pela “revolução da ordem social”
através do poder político organizado e do capitalismo de
Estado etc. Assim, devido à sua composição social, padrões
culturais e identificações políticas, a emergente
intelligentsia latino-americana constitui mais uma congérie
que um todo diferenciado e articulado. Não obstante,
apresenta certos laços de solidariedade intelectual e de
associação política. E, o que é mais importante, ela é um
setor ativo dos intelectuais, cuja influência vem crescendo
rapidamente nas últimas quatro décadas graças à sua
enorme capacidade criadora, de fermentação e de produção
intelectuais. Por essa razão, foi o único setor dos
intelectuais que tentou desenvolver, primeiro, a
desobediência civil sistemática e, mais tarde, uma oposição
aberta contra golpes de Estado militares e a militarização do
poder político.
As razões que explicam o apoio dado pelos intelectuais à
contrarrevolução também explicam o malogro da
intelligentsia latino-americana. Na falta de condições para
um envolvimento permanente dos pobres no seio do poder
organizado institucionalmente, nos processos culturais de
integração nacional e nos movimentos de protesto social,
aquela intelligentsia não conta com o apoio social
necessário. Os chamados “setores radicais” da classe média
podem oferecer um cenário, algumas condições de
comunicação de massa e uma estreita base política. Não
obstante, como são uma minoria desorganizada e instável,
até agora mostram-se mais capazes de fazer face às
frustrações da própria classe média, que de abrir caminho
para as reformas democráticas ou a revolução social. Por
conseguinte, a intelligentsia latino-americana usa o vácuo
político e o tipo de liberdade criados pela ordem social
existente para fins conservadores e para a dominação
autocrática. Assim que os setores dominantes das classes
alta e média perceberam os riscos inerentes à existência, ao
crescimento e às atividades de tal intelligentsia, existiam
duas coisas que eles podiam fazer facilmente: 1. a
supressão do vácuo político (através de uma
superconcentração do poder); 2. restrição da liberdade para
os interesses e valores políticos da elite no poder (mediante
uma superestimulação dos mecanismos existentes de
opressão de classe). Se a situação histórica fosse diferente,
essas duas medidas não seriam exequíveis (o que significa
que os golpes de Estado militares e a militarização do poder
seriam impedidos através da ação social dos setores
“radicais” das classes médias e dos pobres). Mas na
situação dada, ambas as medidas foram impostas
sucessivamente e a intelligentsia latino-americana perdeu,
por algum tempo, seu débil sustentáculo social e suas
oportunidades para uma influência aberta.
A análise anterior demonstra que a fraqueza básica da
intelligentsia latino-americana é um produto estrutural e
dinâmico de suas inter-relações com as elites culturais
existentes. Para ser livre e revolucionária, uma intelligentsia
precisa romper, parcial ou totalmente, com as classes
dominantes e suas elites no poder. Mas a intelligentsia
latino-americana é predominantemente composta de
profissionais ligados à ordem social através de posições de
classe média (a grande maioria) e alta (uma pequena
minoria). Como as sociedades não possuem garantias de
liberdade institucionalizadas e reais, esse setor não pode
empreender uma luta independente pela democracia, pela
reforma social e mesmo pela “revolução nacional”. As
implicações negativas de tal situação são muito complexas,
uma vez que as identificações sociais e as orientações de
valor das classes médias, dentro de uma sociedade
capitalista de consumo em massa subdesenvolvida,
ultrapassam o nível político. O estilo de vida e as
expectativas sociais predominantes produzem um
compromisso com o uso conspícuo do tempo e com
objetivos políticos ou culturais que estão em contradição
com uma atitude de negação da ordem social. Esta situação
provoca algumas incongruências insuperáveis, tais como um
radicalismo tipicamente compensatório e outras
irracionalidades, que resultam da ambiguidade do
“esquerdismo” nas sociedades capitalistas
subdesenvolvidas. A “negação da ordem” toma
simultaneamente formas diferentes, desde a “consolidação
da democracia” e da “revolução através do
desenvolvimento” (ambas “revoluções dentro da ordem”)
até a revolução social. Tais alternativas confundem opções
políticas, ideológicas e utópicas exclusivas, dando origem a
um pensamento não conformista politicamente ineficiente.
O malogro da intelligentsia latino-americana reflete, de
fato, o malogro de suas sociedades, com respeito à sua
organização interna e à sua evolução como sociedades
competitivas. A minoria dos privilegiados controla o poder
político através de uma sociedade cívica parcialmente
fechada. A maioria dos pobres e da gente marginalizada ou
semimarginalizada constituem congéries destituídas de
poder. A intelligentsia foi incapaz de superar a brecha
histórica e sua oposição à contrarrevolução apenas inicia o
caminho em direção a uma nova era. Na qualidade de único
setor entre os intelectuais que opôs resistência aos golpes
de Estado militares e à militarização do poder político, ela
foi parcialmente esmagada e banida de suas funções
culturais estratégicas. Em resumo, os intelectuais não
constituíram problema para a ditadura militar e para a nova
tirania de classe. Eles deram apoio à nova tendência com
lealdade ou por interesse. Os que ficaram com a democracia
e na oposição eram demasiado fracos para organizar uma
reação interna. Por isso, foram derrotados quase sem luta,
embora não tenham se rendido, até agora, diante da
violência militar e da contrarrevolução “burguesa”.
OS   PAPÉIS   POLÍTICOS   DOS   INTELECTUAIS

A CARACTERÍSTICA POLÍTICA básica do novo tipo de ditadura


militar e de tirania de classe é a supressão, inibição ou
controle legal e policial de todas as garantias e liberdades
que são “normais” em uma sociedade competitiva e eram
consideradas “essenciais” pelos setores dominantes das
classes alta e média, nos países mais avançados da América
Latina. Esse endurecimento do controle formal e esta
restrição ou extinção da liberdade não foram planejados
para suprimir as condições da ação política eficaz da elite
no poder. Ao contrário, foram impostos como um
mecanismo para impedir o uso possível das garantias e
liberdades preexistentes em termos dos interesses e
orientações de valor de outras classes, especialmente para
evitar mudanças estruturais e reformas democráticas
reclamadas pelos “setores radicais” das classes média e
baixa, urbanas ou rurais. Em consequência, a transição
autoritária tem uma função bem definida: instituir as
condições sociais, culturais e políticas sob as quais aquelas
garantias e liberdades podem ser usadas “seguramente”,
para os fins dos setores sociais dominantes e suas elites no
poder. Em termos sociológicos, isso significa que as elites
culturais têm um campo seguro, amplo e aprovado de
atividades intelectuais. Essas atividades não foram (nem
poderiam ser) abolidas. Como requisito da transição para
um novo padrão de desenvolvimento econômico e cultural
dependente, é necessário introduzir novas formas de
atividades intelectuais e substituir ou mudar as formas
antigas. Assim, o regime autoritário aparece em conexão
com uma inevitável ampliação e modernização das
atividades intelectuais, em um período de rápida
diferenciação dos papéis dos intelectuais e de intensa
inovação na esfera cultural. Os regimes autoritários não são
(nem poderiam ser) contrários a esses processos. Eles são
somente contra o controle de tais processos pelos
intelectuais, porque isso poderia significar a perda do
controle da situação pelos setores sociais dominantes.
Enfim, a dominação militar e o novo tipo de tirania de
classe modificaram as condições de recrutamento, trabalho
e influência dos intelectuais, impondo-lhes que adaptassem
suas atividades e papéis sociais às funções de uma elite
cultural sob um regime autoritário. O objetivo consiste em
integrar os intelectuais às elites no poder, dentro dos limites
e dos fins da tirania de classe existente. A reorganização do
mundo das atividades intelectuais é, assim, um dos
aspectos dos processos mais amplos de reorganização das
estruturas econômicas, sociais e políticas. Isso põe duas
questões básicas para a nossa discussão: 1. que círculos
intelectuais serão capazes de aceitar ou de desafiar
manipulações tão substanciais? 2. Quais são as linhas
políticas alternativas de ação e opção abertas aos
intelectuais?
Em referência à primeira questão, é necessário encarar a
situação presente de uma perspectiva bem ampla. Alguns
sociólogos, por convicções ideológicas ou suposições
teóricas, refutam a existência tanto de uma revolução
burguesa quanto de uma integração nacional como
processo revolucionário nos países da América Latina. Em
minha opinião, nas sociedades capitalistas
subdesenvolvidas, a revolução burguesa ocorre como um
padrão de evolução estrutural, seja do seu capitalismo
dependente, seja de seu sistema correspondente de
classes. De outro lado, a integração nacional pode ser
expandida dentro das possibilidades estreitas de uma
revolução burguesa controlada do exterior, já que ela pode
ser a fonte de tensões econômicas, sociais e políticas de
caráter revolucionário (como uma “revolução dentro da
ordem”, que poderia associar alguma forma do “socialismo
de acumulação” com um desenvolvimento autônomo das
estruturas nacionais, agora estranguladas sob o capitalismo
dependente). O novo estilo dos regimes autoritários surgiu
(ou está surgindo), na América Latina, como requisito
político para a intensificação da revolução burguesa sob
impulso e controle externo, na fase do industrialismo
financeiro. As atitudes e orientações de valor dos
intelectuais diante desse regime são e serão,
crescentemente, uma função de suas polarizações de
classe. As tendências em processo estão produzindo um
novo tipo de capitalismo industrial na América Latina. Mas,
ao mesmo tempo, elas estão produzindo novas formas de
dependência externa e de neocolonialismo. As estruturas
nacionais estão sofrendo e sofrerão novas modalidades de
estrangulamento e deterioração em proveito dos interesses
privados internos e externos.
O que poderia ser considerado a amplitude política do
comportamento crítico dos intelectuais, nesta dada situação
histórica, não é nem determinada pelo próprio regime
autoritário nem por qualquer virtude inerente aos
intelectuais como um todo. O regime autoritário é
“instrumento político” de uma tirania de classe e a
militarização do poder constitui o único meio pelo qual ela
poderia ser eficientemente realizada. A reação política
(positiva, negativa ou “neutra”) dos intelectuais a um
regime autoritário, como foi visto, é primordialmente uma
questão de interesses de classe. Como os intelectuais estão
fragmentados em diversas congéries e sofrem um
envolvimento moral e político predominante pelo status
quo, sua avaliação da ditadura militar é,
sociodinamicamente, moldada pela estrutura dos interesses
de classe dos setores dominantes das classes alta e média,
a curto ou a largo prazo. Da mesma forma, os intelectuais
carecem de autonomia social e de homogeneidade cultural,
especialmente em questões políticas decisivas. Os
intelectuais desempenham seus papéis específicos de
conformidade com “as regras do jogo”, estabelecidas fora
do mundo intelectual, por vezes até em termos
extraintelectuais. Não obstante, algumas instituições
(especialmente as universidades) podem “proteger”
algumas poucas atividades intelectuais independentes, de
significação política, ou com implicações políticas, em
diferentes níveis da cultura e da modernização.
A polarização de classe dos papéis dos intelectuais,
despertada e fortalecida por controles políticos e morais
circunstanciais, de natureza extraintelectual, gera condições
de frustração amarga, de desorientação e desmoralização.
Os setores intelectuais ligados às classes dominantes e à
elite no poder contam com possibilidades definidas para a
sublimação de tais tensões. Através da identificação social,
cultural e política com os interesses de classe das classes
dominantes, eles são capazes de absorver as tensões e de
assumir papéis políticos velhos ou novos no seio de um
regime autoritário de dominação e de governo. O mesmo
processo é aberto a outros setores intelectuais, que operam
nos campos “neutros” das atividades intelectuais (ou que se
consideram “comprometidos de modo puramente
intelectual”). Esses setores também são capazes de
absorver as tensões e de assumir papéis políticos velhos ou
novos de uma maneira tipicamente racional (em termos de
interesses calculados; ou em nome dos “interesses da
nação”, dos “interesses da ciência”, dos “interesses da
educação” etc.) no seio do regime autoritário. Nos
diferentes casos, tais papéis políticos não estão isentos de
exigências intelectuais específicas. Isso significa que os
círculos intelectuais, anteriormente mencionados, podem
desempenhar alguns papéis políticos construtivos — para a
emergente tirania de classe e seu regime autoritário, mas
também em um sentido amplo, para o crescimento da
cultura. Os setores intelectuais que estão ligados às classes
dominantes, mas se opõem à ditadura militar, embora
pequenos em número e politicamente insignificantes, estão
na pior situação. Como abandonaram seus interesses de
classe e seus papéis dentro da elite no poder e carecem de
uma linha de oposição consistente à ditadura militar, eles
são destruídos pela ambivalência de sua posição. As
frustrações geram confusões morais e pessimismo
sistemático, dando origem a uma superavaliação das
atividades intelectuais como refúgio e fim em si mesmas. Os
papéis políticos abertos a esses setores são indiretos
(dentro do mundo “intelectual”: as universidades,
organizações de pesquisa, casas editoras, serviços técnicos
públicos ou privados etc. e, como artifício neurótico, a febre
da produtividade intelectual).
Os setores que formam a intelligentsia, estritamente
falando, estão numa posição mais difícil. Eles carecem de
meios de absorção de suas frustrações e são
sobrecarregados com expectativas de controle e de ação
conflitantes, impostas pela ditadura militar ou pelos grupos
radicais e por si próprios. A situação global cria uma
tempestade de fricções, desilusão e desorientação moral.
Aqueles que ainda se acham protegidos
institucionalmente podem tentar uma “reversão neutra”,
envolvendo-se em atividades intelectuais de significado
político apenas latente (de “importância” para os
estudantes, para a ciência, para o futuro da instituição, para
o desenvolvimento da nação etc.). O caráter compensatório
dos ajustamentos não elimina a importância dessa
orientação, como uma frente silenciosa de resistência, tanto
contra a tirania de classe, quanto contra o regime
autoritário. Aqueles que se viram engajados politicamente
em movimentos organizados, radicais ou de esquerda,
também estão protegidos, em certo grau, pelo menos
contra a autodesintegração e a desmoralização pessoal.
Eles podem preencher papéis políticos bem definidos e
construtivos, negando e opondo-se à ditadura militar
através de atividades intelectuais clandestinas. Aqueles que
perderam suas posições e agiam como franco-atiradores
enfrentam uma dura escolha: a solução oferecida por uma
“reversão neutra”, sem sustentação ou proteção
institucional (a qual implica uma retratação dissimulada e a
aceitação aberta de uma acomodação política dentro do
“sistema”); ou a solução oferecida pela “radicalização
política”, através da incorporação a movimentos radicais ou
revolucionários subsistentes.
Essa enumeração demonstra que, nas presentes
condições, a tirania de classe dominante: 1. possui controle
externo sobre as atividades intelectuais e sobre as funções
políticas dos intelectuais na sociedade; 2. tem controle
interno dos papéis políticos dos intelectuais, requeridos pela
superconcentração do poder no nível dos setores
dominantes das classes alta e média e pela militarização do
poder político. Em consequência, os regimes autoritários,
sob a dominação militar, possuem poder suficiente para
produzir o tipo de intelectual de que necessitam. Sob esse
aspecto, a questão não é de “falta de papéis políticos” dos
intelectuais, mas de uma sistemática corrupção, através da
qual os intelectuais estão sendo transformados em lacaios
políticos de uma tirania de classe e de sua ditadura militar.
Em contrapartida, só poucos representantes da pequena
mas estimulante intelligentsia preservaram alguns papéis
políticos tolerados ou proibidos, a um alto preço em
sacrifícios pessoais, e com pequena eficácia e sob riscos
crescentes de marginalização. Eles não são capazes de
desafiar e destruir, por si mesmos, os novos regimes
autoritários. Porém, podem desempenhar seus papéis
políticos em diversos níveis, desde as atividades intelectuais
organizadas institucionalmente aos movimentos
clandestinos de oposição e rebelião. Sua força e influência
políticas não são produto de números, mas da qualidade e
da necessidade. A fraqueza fundamental do tipo descrito de
tirania de classe e a iniquidade da ditadura militar, sua
sustentação política exterior, estão dando (e darão cada vez
mais) maior importância aos papéis políticos da
intelligentsia latino-americana.
Quanto à segunda questão, as linhas políticas alternativas
de ação e de opção abertas aos intelectuais, seria
necessário considerar as diferentes probabilidades de
evolução da presente situação política. Alguns papéis
específicos dos intelectuais e suas implicações políticas
indiretas (para o desenvolvimento da pesquisa científica, da
educação, do planejamento etc., ou para empreendimentos
abstratos) não foram afetados. Eles sofreram uma mudança
de orientação, em consequência do novo padrão de
dominação econômica e cultural externa. As esperanças de
crescimento cultural autônomo e de uma “revolução
intelectual” através da ciência, da tecnologia avançada e da
educação democrática serão basicamente destruídas. Mas,
aqueles papéis e suas implicações políticas indiretas são
inerentes ao sistema de instituições da “civilização
tecnológica moderna”. Acham-se estrutural e
dinamicamente protegidos: aumentarão quantitativamente
e qualitativamente, mediante um novo tipo de
modernização dependente, controlada do exterior. De outro
lado, a tirania de classe e os regimes autoritários militares
não são contra “o homem de saber” em si mesmo. Apenas
empenham-se em controlar ou destruir o assim chamado
homem de saber “rebelde” e o desenvolvimento do
“conhecimento crítico” sobre a sociedade. Porém, se a
superconcentração e a militarização do poder atingirem
seus objetivos políticos, sob o novo modelo de dominação
econômica e cultural externa, surgirá algum tipo de
equilíbrio político, e com ele o intelectual “rebelde” e o
“conhecimento crítico” reaparecerão na cena histórica.
Talvez “o homem de saber” será um pouco mais cauteloso;
e os setores dominantes da sociedade e de suas elites no
poder um pouco mais tolerantes. O essencial é o fato de
que a “civilização ocidental moderna” não pode sobreviver
sem os intelectuais “rebeldes” e o “conhecimento crítico”.
Eles fazem parte do seu padrão de continuidade através de
mudanças permanentes e rápidas. Isto também é
verdadeiro para o presente e para o futuro dos países da
América Latina.
De toda a discussão precedente depreende-se que os
golpes militares de Estado e a militarização do poder só
destruíram algumas condições históricas das atividades
intelectuais. Não suprimiram nem os intelectuais, enquanto
categoria social, nem a intelligentsia, de modo particular.
Como a revolução burguesa está numa etapa crítica de
transição, a integração nacional ainda se encontra
ameaçada pela dominação externa ou pervertida pelos
efeitos estruturais do capitalismo dependente; a pobreza ou
miséria de milhões continuam a ser uma realidade crua; e a
resposta a esse desafio social, o uso da violência, atingiu o
seu clímax ao nível do poder político organizado. Portanto,
os papéis políticos dos intelectuais estão adquirindo e
adquirirão de maneira crescente uma nova dimensão
histórica. Não importa o tempo que durem, os regimes
autoritários são somente instrumentos equivalentes ao
Estado-tampão — são governos-tampões. Eles estão criando
maiores problemas econômicos, sociais e políticos de que os
que podem resolver, especialmente nas condições da
América Latina. Por causa disso, os “intelectuais não
conformistas” serão chamados, talvez mesmo pelos
militares, mas certamente pelas novas composições do
poder, para participar dos processos políticos necessários à
revolução democrática, requerida pelos países da América
Latina.
Deve-se considerar, no entanto, que o significado, as
funções e as manifestações sociais do “radicalismo
intelectual”, e o envolvimento dos intelectuais no uso
político da violência sofrerão algumas mudanças previsíveis.
Até agora, o “radicalismo intelectual” foi uma simples
expressão de atritos absorvidos pelas elites no poder. Uma
intelligentsia expurgada e marginalizada, nas condições de
crescimento e de proteção proporcionadas pelas atividades
políticas clandestinas, afasta-se por sua própria natureza da
“normalidade” das elites culturais. Em relação ao uso da
violência, os países da América Latina estão agora
alcançando um ponto crítico de transição na história: o
monopólio da violência pelos setores dominantes da
sociedade, por meios institucionais mais ou menos
dissimulados, atingiu seu clímax num período em que a
violência começou a ser moralmente combatida (inclusive
por “círculos conservadores” da Igreja católica) e ameaçada
politicamente pela confrontação ativa. Sob tais condições, o
“radicalismo intelectual” defronta-se com a necessidade
política da contraviolência e converte-se em fonte do
pensamento revolucionário sistemático. No cerne do dilema
político, criado pela tirania de classe e seus regimes
militares autoritários, está um processo de radicalização
política do intelectual “não conformista” e o engajamento
revolucionário da intelligentsia. A superconcentração do
poder político e o uso irracional da violência não deixam
outra alternativa aos intelectuais envolvidos na luta por
uma democracia verdadeira. A derrota da tirania de classe e
a destruição de seus regimes autoritários, por quaisquer
meios possíveis, converte-se em papel político primário não
só dos “intelectuais” — ou do seu setor comprometido
politicamente com o não conformismo, a intelligentsia —
mas do homem comum.
Não obstante, as diferentes probabilidades políticas,
mencionadas acima (cf. “Estado e sociedade em tensão”),
merecem alguma atenção nesta discussão. A presente
situação é uma fase de transição politicamente perigosa
para os setores sociais dominantes, para os interesses
externos privados e para o poder hegemônico continental,
os Estados Unidos. Como não existe possibilidade de
“protesto popular” e de “crítica livre”, as atividades
terroristas e de guerrilha tornam-se, de modo crescente, um
equivalente funcional da democracia. Esta situação
politicamente perigosa impõe alternativas contraditórias: a
radicalização da opressão e da repressão; e uma confusa
busca da transição segura para um novo padrão de
desenvolvimento industrial dependente sob o capitalismo
monopolista. O quadro criado por tal situação, entre os
intelectuais, acabou de ser descrito. Para os setores sociais
dominantes, os interesses privados externos e os Estados
Unidos, o que realmente interessa é a segunda alternativa
(a primeira é, para eles, apenas um “mal necessário”). Não
é fácil alcançá-la e ela não pode ser alcançada na mesma
extensão e do mesmo modo em todos os países da América
Latina. Contudo, o que fica absolutamente claro é que ela
não pode ser atingida sob e através da violência organizada,
mas somente por meio do crescimento econômico rápido,
da mudança social acelerada e da modernização cultural
intensa.
Se esses fins puderem ser alcançados (através de uma
cooperação competitiva vigorosa entre as Estados Unidos,
alguns países europeus e a Japão) os golpes de Estado e a
militarização do poder político lograrão êxito. Sob novas
condições econômicas, sociais e culturais, a tirania de
classe adquirirá flexibilidade política e meios eficientes e
indiretos para estabilizar, organizar e controlar o poder, com
uma grande margem de “participação política”,
“mobilização de massa” e “governo representativo”. Será
uma realidade política onipresente, mas invisível. Dado que
a transição significará a aceitação de um estado de
neocolonialismo moderno, os atuais fatores de tensões
sociais internas e externas subsistirão, alguns com uma
força mais aguda e explosiva. Além do mais, todos os
setores intelectuais adquirirão papéis políticos. Os setores
conservadores dos intelectuais, porque ver-se-ão envolvidos
no processo de “nativização” dos centros de decisão do
poder; os setores inovadores dos intelectuais,
especialmente os técnicos, os tecnocratas e os cientistas
“neutros”, porque estarão interessados na “nacionalização”
dos centros de decisão do poder. Ambos os setores
desempenharão papéis políticos normais dos intelectuais
nos países dependentes: tentando ajustar politicamente a
“revolução nacional” às condições econômicas, sociais e
culturais emergentes, com vistas a um estágio mais
complexo e avançado do capitalismo dependente. A
intelligentsia, por seu turno, enfrentará os mesmos
problemas sociais e dilemas políticos da América Latina de
hoje, porém em condições políticas piores. A aceleração do
crescimento econômico e cultural, sob o controle externo e
a persistência de uma extrema concentração social de
riqueza, prestígio social e poder não serão de grande ajuda
na solução desses problemas. Todavia, mudanças
simultâneas em diferentes aspectos de economia, da
sociedade e da cultura, com um aumento geral das
oportunidades de trabalho (para as classes média e baixa),
provavelmente terão efeitos inibidores sobre as “tendências
radicais” dos movimentos sociais. Não obstante, a
percepção social e o padrão de crítica da pobreza, da falta
de participação popular, ou da exploração externa serão
mais refinados e exigentes. A intelligentsia deverá adquirir
politicamente mais do que o que está perdendo através da
presente repressão e extermínio. Ela poderá ser melhor
sucedida, portanto, na aquisição de novos papéis políticos,
em três níveis simultâneos: 1. as pressões em favor de uma
verdadeira democracia, em todas as esferas da vida social;
2. as pressões contra o impacto negativo da extrema
concentração da riqueza ou do poder, e da exploração
externa na integração e autonomia nacionais; 3. as pressões
em favor de reformas estruturalmente igualitárias e da
revolução social. O “sistema” necessitará de tais tipos de
manifestações do radicalismo político, como um artifício
adaptativo para pressionar, ao mesmo tempo, os interesses
privados internos e os controles políticos externos.
Parece que o malogro nessa direção, como vimos, poderá
contribuir para uma inevitável exacerbação do controle
militar do poder político. As alternativas mencionadas — um
extremo endurecimento direitista da ditadura militar ou sua
transformação num “populismo militar” — possuem
significados muito diferentes para o desempenho político
dos intelectuais. Sob a primeira probabilidade, as
tendências seriam intensificadas. Os setores “velhos” e
“modernos” dos intelectuais, em termos de interesses
dissimulados e de comportamento racional, estariam
literalmente comprometidos na construção de uma versão
“colonial-fascista” dos regimes autoritários militares
existentes. Certo uso “nacional” e “radical” de ambos os
setores poderia estar em harmonia com uma “política
patriótica” predatória. A intelligentsia, como tal, estaria
condenada à destruição completa ou a ser “usada” para tais
fins “patrióticos”. Entretanto, essa alternativa possui um
elemento positivo: uma radicalização extrema e
“profissional” das atividades políticas clandestinas da
intelligentsia. Os intelectuais ativistas se tornariam
militantes revolucionários, lutando para a “restauração da
democracia” ou para a “revolução socialista”. Sob a
segunda probabilidade, os papéis políticos dos intelectuais
sofreriam alguma convulsão. De fato, apesar do proclamado
“nacionalismo revolucionário”, o populismo militar é uma
forma disfarçada e débil de concentração e organização
direitistas do poder. Sua importância resulta de certos
compromissos abertos e sistemáticos em face da
participação popular, da política nacionalista e anti-
imperialista, mudanças sociais estruturais e planificadas
etc. Tais compromissos não só criam tendências voltadas
para a integração nacional; sob pressões de massa, eles
podem impelir alguns círculos das elites no poder (inclusive
os militares) e a sociedade nacional na direção de um
capitalismo de Estado, do reformismo democrático, ou do
socialismo. Grande parte do “velho” setor dos intelectuais
ficaria marginalizada, mas o seu setor “moderno”, imerso
em processos de decisão nacional, como componente de
uma burocracia tecnocrática, voltar-se-ia para o
“radicalismo” político e para a “esquerda”. A intelligentsia
se veria, então, congestionada pela elevação de aderentes e
politicamente solapada e pervertida. Mas teria diferentes
probabilidades de desempenho político construtivo, e pelo
menos sua verdadeira esquerda poderia assumir algumas
polarizações políticas decisivas.
A tendência para uma revolução socialista, no contexto
histórico latino-americano, como em outros países
subdesenvolvidos, não é exatamente um “produto inerente
às contradições do capitalismo”. Essa seria uma imagem
clássica, de um ponto de vista europeu ou alienado. Em
todas as nações subdesenvolvidas, e isso mesmo nas que
são mais orientadas pelo capitalismo e relativamente mais
avançadas (a exemplo de alguns países latino-americanos),
o que conta não são as “contradições intrínsecas” do
capitalismo, mas o fracasso relativo do capitalismo para
enfrentar os problemas sociais e os dilemas políticos dessas
nações. O capitalismo dependente é incapaz de sobrepujar
a pobreza crônica e generalizada, a marginalização
sistemática de milhões, a falta permanente de integração
nacional, e a exploração externa crescente. As razões para
tal fracasso são estruturais. A “revolução dentro da ordem”,
através do desenvolvimento, é impossível: 1. sob a extrema
concentração social da riqueza, do prestígio social e do
poder; 2. Sob o controle externo espoliativo do crescimento
econômico, da modernização cultural e da política
“nacional”. As ditaduras militares atuais e seus possíveis
sucedâneos não podem evitar um colapso futuro (que
poderia ser evitado unicamente se uma revolução burguesa
autônoma ocorresse, como sucedeu nos Estados Unidos e
no Japão). A consciência política de tal situação histórica
não foi alcançada por todos os intelectuais. No entanto, os
círculos intelectuais mais maduros e resolutos da
intelligentsia latino-americana estão aprendendo, através
de experiências concretas.
De um lado, estão descobrindo os meios potenciais da
revolução socialista na América Latina (tão diversos dos
outros modelos “clássicos”, já conhecidos). Por outro lado,
estão acumulando novos conhecimentos sobre a estrutura e
a dinâmica do sistema de classe sob o capitalismo
dependente, ou seja, conhecimentos que constituirão a
base para uma teoria viável da revolução socialista na
América Latina.
Ambos os tipos de aprendizagem e de pensamentos
revolucionários são muito importantes para esses círculos
da intelligentsia. Isso porque eles não irão concentrar os
seus esforços exclusivamente em uma oposição estreita e
superficial contra os regimes autoritários militares: o alvo de
seus ataques será a tirania de classe, produzida por uma
revolução burguesa permanentemente abortiva, incapaz de
atingir os caminhos e os fins de um desenvolvimento
capitalista autossustentado e relativamente autônomo.
Enquanto os regimes autoritários militares podem se tornar
instrumentais para outros intentos políticos, sob condições
históricas diversas, a influência política de uma
intelligentsia verdadeiramente revolucionária também pode
contribuir para uma percepção melhor da realidade histórica
e para a sua transformação social pelo comportamento
revolucionário da massa. Esse é, talvez, o papel político
específico de uma autêntica intelligentsia, que se ache
disposta a participar do destino social e das lutas de povos
impiedosamente brutalizados.
Apesar do meu envolvimento pessoal e de minhas
inclinações políticas ou ideológicas explícitas, tentei traçar
uma perspectiva objetiva da situação do intelectual diante
dos golpes de Estado militares e da militarização do poder.
Por essa razão, todas as polarizações possíveis ou em
potencial dos papéis políticos dos intelectuais foram
consideradas, seja em termos de defensores ou de
opositores dos regimes autoritários militares. Não obstante,
a intelligentsia mereceu maior atenção. A razão de tal
ênfase é fácil de se entender. Um estudo sociológico
engajado desse fenômeno deveria ser não só uma tentativa
de caracterizaçao empírica e de explicação teórica, mas
também, acima de tudo, uma análise das condições através
das quais a ordem social, que gerou a necessidade histórica
de coisas como a tirania de classe e (em consequência) os
regimes autoritários militares, pode ser destruída. A
intelligentsia encontra-se, ao mesmo tempo, sob a maior
pressão e no centro da oposição política a tal ordem social.
Seus papéis políticos ativos, em seus aspectos negativos
(como negação daquela ordem social), e em seus aspectos
positivos (como afirmação de uma ordem social igualitária e
democrática), exigiram atenção cuidadosa. Não só porque
ela compreende os “rebeldes responsáveis”, mas porque ela
está tentando se unir à maioria silenciosa dos pobres e
oprimidos, para a construção de um novo tipo de sociedade.
CAPÍTULO 4

A UNIVERSIDADE
EM UMA SOCIEDADE EM
DESENVOLVIMENTO
NOTA EXPLICATIVA
 
ESTE ENSAIO FOI ESCRITO em 1966 e destinava-se a um livro
sobre A universidade na América Latina, organizado por
Joseph Maier e Richard W. Weatherhead.[55] Cabia-me
discutir algumas relações da situação do ensino superior e
da organização da universidade com a transformação da
sociedade circundante. Outros temas ficaram a cargo de
autores diferentes, o que explica a sua negligência ou
localização muito sumária no presente trabalho.
É obvio que os dados empíricos se referem aos materiais
que me eram acessíveis no Brasil até 1966. A atualização do
quadro de referência empírica está, naturalmente, fora de
cogitações. Isso implicaria a redação de um trabalho novo.
O tópico 2, sobre o que se poderia chamar de “a
universidade tradicional e sua transformação”, não exigiria
qualquer alteração. Conviria agregar à leitura, em particular,
um livro de José Carlos Mariátegui (Sete ensaios de
interpretação da realidade peruana. Tradução de S. O. de
Preitas e C. Lagrasta. São Paulo: Alfa-Omega, 1975, pp. 95-
105), recém-publicado em português (não só para o leitor
avaliar por si próprio o atraso com que o movimento de
reforma universitária se desencadeia no Brasil; também
para que ele tome contato com a amplitude pedagógica,
intelectual e política daquele movimento na América
Espanhola da década de 1920). É com relação ao tópico 3
que os dados que servem de base à análise envelheceram.
Todavia, a técnica analítica (que constitui uma parte
importante do trabalho) mantém sua atualidade; ela abriu
margem a reflexões que ainda hoje são úteis e que, por sua
vez, não perderam consistência, quando se considera o
período ao qual se aplicavam. A alteração da posição do
Brasil, naquele quadro global, se fez mais quantitativamente
que qualitativamente (veja-se F. Fernandes. A universidade
brasileira: reforma ou revolução? São Paulo: Alfa-Omega,
1975, esp. pp. 33-37). Pela natureza do assunto, o tópico 4
deveria ter envelhecido, pois as relações entre universidade
e desenvolvimento se alteraram, em virtude da expansão
do capitalismo monopolista. Não obstante, a
contrarrevolução, que eclodiu em todos os países nos quais
a “democracia burguesa” parecia prestes a consolidar-se e
expandir-se, abortou alterações de maior significado. O
ensaio, que pareceu “pessimista” a vários colegas que o
leram (inclusive com referência às expectativas reformistas
e revolucionárias despertadas pela rebelião da juventude),
hoje pode ser avaliado como objetivamente crítico
(evidenciando que o autor não se curvou às suas
esperanças como e enquanto socialista militante). Em seu
livro acima citado se encontra matéria para aprofundar as
reflexões com material mais recente (esp. caps. 3, 4, 6 e 8).
Não teria propósito atualizar a bibliografia utilizada. Todavia,
pelo menos alguns poucos livros merecem ser salientados:
Darcy Ribeiro. A universidade necessária (Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1969), La universidad peruana (Lima: CENTRO,
1974); Tomás A. Vasconi e Inés Reca. Modernización y crisis
en la universidad latinoamericana (Santiago: CESO, 1971);
François Bourricaud. La universidad a la deriva (Caracas:
Fundación Eugenio Mendoza, 1971); Huascar Taborga. Mito y
realidad de la universidad boliviana (La Paz: Cochabamba,
1970); Marialice M. Foracchi. A juventude na sociedade
moderna (São Paulo: Pioneira, 1972). É impraticável fazer
uma atualização da bibliografia sobre o papel da juventude
radical e dos movimentos estudantis. Pelo menos os
seguintes artigos devem ser mencionados, como ponto de
partida: Marialice Mencarini Foracchi. “Ideologia estudantil e
sociedade dependente” (Revista Mexicana de Sociologia,
vol. XXXI, nº 3, 1969) e “Estudante e política no Brasil”
(Aportes, Paris, nº 7, jan. 1968); Ian Weinberg e Kenneth N.
Walker. “Student politics and political systems” (The
American Journal of Sociology, vol. 75, jul. 1969); Ted
Goertzel, “American imperialism and the Brazilian student
movement” (Youth & Society, vol. 6, nº 2, 1974). Como um
marco na descrição da violência na repressão do
inconformismo estudantil: Salvador Hernández, El PRI y el
movimiento estudantil de 1968 (México: El Caballito, 1971).
A universidade sempre esteve em relação tensa com os
estratos dominantes e com o obscurantismo na América
Latina. Mesmo a “universidade tradicional” não escapou à
incompreensão e a algumas represálias, que certas vezes
atingiram seriamente os elementos mais representativos do
corpo docente ou as tentativas mais ousadas dos
estudantes. No entanto, as crises que se inauguram no
após-1930 e, em especial, as repercussões da chamada
“guerra fria” no continente, antes e particularmente depois
da revolução cubana, expuseram a universidade latino-
americana a formas sistemáticas e institucionalizadas de
repressão e de opressão, malgrado as tendências
conservadoras do corpo docente e sua propensão suicida à
capitulação passiva. Como consequência, a fermentação em
processo no meio estudantil e entre os intelectuais mais
esclarecidos (e mais ou menos radicais) tornou-se um
capítulo da ultraviolência, sendo sufocada no nascedouro.
Sempre me coloquei à frente dos que acham que a função
do intelectual consiste em negar a ordem, em nome do
pensamento crítico e das forças de transformação
revolucionária da sociedade de classes. Se esses temas não
comparecem na presente discussão ou só aparecem em
termos de certas conexões da mudança social com a
seleção das funções sociais construtivas da universidade,
isso se deve aos aspectos do assunto que me cabia abordar.
Minha participação no movimento da reforma universitária
iria intensificar-se e radicalizar-se somente em 1967 e 1968,
alterando toda a minha perspectiva do assunto. O ensaio,
como um todo, no entanto, não foge a tudo que tenho
tentado fazer de minha vida, em constante confrontação
com o pensamento conservador e o controle externo da
universidade.
F.F.
1º de setembro de 1975.
INTRODUÇÃO

A AMÉRICA LATINA não é um todo homogêneo. Nem


econômica, nem social, nem culturalmente se poderia falar
numa “unidade histórica básica” das diferentes sociedades
nacionais, que constituem o “mundo latino-americano”. Em
conjunto, como sucede com o “mundo europeu”, o “mundo
africano” ou o “mundo asiático”, ao se pensar sobre a
América Latina como um todo fazemos uma simplificação,
sobrepondo certas semelhanças fundamentais a outras
tantas diferenças, que não são menos fundamentais.
Se fizéssemos um balanço crítico, as semelhanças e as
diferenças não se compensariam nem se neutralizariam. Ao
concretizar seu “destino nacional”, cada sociedade latino-
americana forjou algo que não pode ser diluído no
patrimônio comum, embora lance nele suas raízes. Por
conseguinte, cada sociedade nacional possui a “sua” ou as
“suas” universidades e não pretendemos omitir esse fato.
Em termos de organização, funcionamento e valores tais
universidades dificilmente poderiam ser reduzidas a uma
mesma realidade, sem perderem o que as caracteriza nos
respectivos cenários nacionais e o que lhes dá o vigor que
explica, a um tempo, as suas grandezas e as suas misérias.
Não obstante, vários fatores de natureza histórica e
sociocultural dão sentido e justificam uma discussão
integrativa, desde que se tenha em conta que tal discussão
deverá ser meramente preliminar e exploratória. No estado
atual dos nossos conhecimentos sobre a América Latina é
inviável proceder a análises comparadas verdadeiramente
específicas e rigorosas. Isso não impede que se tente uma
espécie de “diagnóstico da situação global”, de caráter
abstrato e geral, com fundamento naqueles fatores e em
razões analíticas que aconselhem a ignorar as diferenças
que não sejam relevantes para o diagnóstico.
Atendo-nos ao essencial, três são os fatores que podem
justificar tal intento com referência às conexões porventura
existentes entre universidade e desenvolvimento. Primeiro,
há um elemento que, se não é propriamente
homogeneizador, pelo menos cria certa uniformidade
histórico-cultural. Trata-se do padrão de civilização vigente e
de suas tendências de implantação e de evolução nas
sociedades nacionais da região. Através da conquista, da
colonização e dos ideais políticos de emancipação nacional,
os diferentes países latino-americanos assimilaram a
civilização ocidental moderna e desenvolveram-se,
organizatória e estruturalmente, em função de seus padrões
de vida econômica, social e política. Por esse motivo, em
todos eles a universidade responde a necessidades
psicológicas, sociais e culturais altamente similares e tende
a dar a mesma contribuição fundamental ao equilíbrio da
ordem social ou à sua evolução histórica. Segundo,
malgrado seu êxito relativo na absorção e na expansão da
civilização ocidental moderna, em todos esses países os
efeitos do passado colonial e da persistente dependência
econômica diante do exterior conduziram a uma escassez
crônica de recursos materiais, financeiros e humanos, que
geraram e continuam a gerar dificuldades por assim dizer
típicas na esfera cultural do desenvolvimento econômico,
social e político. Em consequência, embora a intensidade
dos sucessos e dos malogros marcantes sejam variáveis,
todos os países se defrontam com dilemas educacionais
muito parecidos e com problemas universitários análogos.
Terceiro, os modelos institucionais vigentes, particularmente
no setor educacional e com respeito ao ensino universitário,
possuem as mesmas origens e sofrem os mesmos
percalços. Extraídos inicialmente do estoque cultural
ibérico, sofreram renovações durante o ciclo da
emancipação política (sob a predominância da influência
francesa, ocasionalmente substituída ou suplementada pela
influência alemã ou inglesa) e recebem, agora, o impacto da
posição hegemônica dos Estados Unidos. Em todos os
casos, as instituições universitárias transplantadas tiveram
de adaptar-se, estrutural e dinamicamente, a situações
histórico-sociais que selecionaram positivamente apenas
algumas de suas funções essenciais (aquelas que fossem
compatíveis com o estilo social de vida predominante). Essa
circunstância histórica mas repetitiva limitou,
reconhecidamente, as potencialidades construtivas da
educação escolarizada (inclusive e principalmente ao nível
do ensino superior) e restringiu o alcance de sua
contribuição positiva para o desenvolvimento econômico e
sociocultural.
Essa breve enumeração sugere, por sua vez, que a análise
sociológica do tema corre o risco, ao concentrar-se nos
elementos comuns, de desembocar em um quadro de
“realismo pessimista”. As limitações e as dificuldades
avultam sobre as realizações produtivas e as facilidades.
Isso nos aconselha a deixar patente que não
compartilhamos de nenhuma espécie de negativismo ou de
derrotismo, na apreciação dos dilemas econômicos, sociais
e culturais da América Latina. No que concerne aos seus
problemas educacionais, pensamos não só que eles são
normais, no melhor sentido sociológico dessa noção.
Estamos convictos de que eles poderão e deverão ser
resolvidos gradualmente, dadas certas condições
econômicas, sociais e políticas que os diferentes países
latino-americanos ganharão, progressivamente, por vias
capitalistas ou socialistas.
Em nosso entender, a herança cultural recebida da Europa
possui dois aspectos contrastantes. De um lado, ela foi
altamente vantajosa, compensadora e estimulante, pois
forneceu aos latino-americanos o mais alto patamar
civilizatório alcançado pelo “homem moderno”. Contudo, o
fato de essa herança cultural carecer de profunda e
complexa adaptação às condições materiais e morais de
vida existentes na região, mais ou menos impróprias aos
desígnios criadores do homem como “portador de cultura”,
ocasionou problemas de dinâmica cultural que ainda não
foram suficientemente investigados. O homem desgastou
uma grande parcela de suas energias e de sua capacidade
inventiva tentando criar condições para a mera preservação
de sua herança cultural. No fundo, o que se conseguiu, ao
longo de uma evolução secular, representa um marco na
história cultural da humanidade; e merece ser avaliado
como o principal feito da “expansão do mundo ocidental
moderno”, no que tange a essa parte do Novo Mundo.
Essas reflexões se aplicam especialmente às aspirações
educacionais, aos padrões de socialização escolarizada e às
instituições de ensino superior. A esse respeito, seria
recomendável e útil que se abandonasse o vezo de se
estabelecerem confrontos superficiais entre os avanços das
nações adiantadas da Europa ou dos Estados Unidos com os
países da América Latina. O fato de aquelas aspirações,
padrões e instituições terem vingado, adquirindo condições
locais ou regionais de autodesenvolvimento e de
aperfeiçoamento constante, é um índice que fala por si
mesmo. O homem não só venceu a adversidade. Logrou
plantar profundamente as raízes mais delicadas e
complexas de sua civilização nas árduas e toscas condições
de existência com que se defrontava. Não só ficou fiel a um
ideal de vida e às suas implicações educacionais. Ganhou,
por esse caminho, o único meio pelo qual poderia converter-
se em senhor dos processos civilizatórios e lançar-se, com o
correr do tempo, à conquista do futuro.
O critério de exposição adotado prende-se à natureza da
análise, que concentra a atenção sobre certos aspectos
comuns, que podem ser abstraídos sem perder seu
significado descritivo e interpretativo do ponto de vista
sociológico. Todavia, ele também se recomenda em termos
de considerações empíricas, pois a documentação acessível
ainda não é suficiente para dar margem a tentativas de
síntese mais ambiciosas, especialmente no plano teórico.
Na verdade, não pretendemos outra coisa senão projetar o
leitor dentro de um “logos cultural”. Por isso, procuramos
caracterizá-lo, com o rigor possível, através de atributos ou
de tendências mais conhecidos atualmente, com a
esperança de que a bibliografia disponível (em parte
resumida no fim deste livro) possa servir como ponto de
partida para esclarecer a sua curiosidade e aprofundar
indagações que não podiam ser feitas nos limites da
presente discussão.
A UNIVERSIDADE   LATINO   AMERICANA   
E   SEU   CONTEXTO   HISTÓRICO   SOCIAL

AS INSTITUIÇÕES MAIS ANTIGAS, devotadas ao ensino superior, na


América Latina (algumas vezes organizadas como
“seminários”, “escolas” ou “faculdades”, outras como
“universidades”, no mundo colonial ou depois da
emancipação política),[56] têm sido submetidas a uma
crítica implacável, mais passional e indiscriminada que
propriamente realista e relativista. O teor ultrassevero das
críticas explica-se facilmente. Elas surgiram numa época em
que a organização e o rendimento daquelas instituições
estavam superados, ou seja, em que os seus modelos
estavam condenados pelas exigências da situação, embora
isso não fosse geralmente reconhecido e aceito.
Principalmente ao longo das duas primeiras décadas do
século XX, em que o problema da reforma universitária se
impõe na escala de movimento social, até a década de
1930, em que as influências da pedagogia moderna
atingiram o seu ápice, a crítica negativa e violenta da antiga
universidade adquire o sentido de um estilo de pensamento
e de ação. Os analistas estrangeiros reforçaram essa
tendência, na medida em que examinavam o ensino
superior latino-americano sem procurar as causas histórico-
sociais e econômicas de suas insuficiências ou deficiências
e em que negligenciavam, generosamente, a existência de
males análogos nos países que contavam como doadores
dos modelos vigentes de ensino superior. Se fizessem uma
comparação rigorosa, teriam descoberto que, na Europa, as
limitações apontadas também existiam, ainda que em
outras proporções, e que seus efeitos negativos não eram
sanados através da estrutura e funcionamento das
instituições de ensino superior, mas pelo modo através do
qual a sociedade ambiente aproveitava o talento e a
contribuição positiva da universidade.
O fato é que se chegou a uma imagem da antiga
universidade latino-americana que constitui uma distorção e
uma aberração, qualquer que seja a parcela de verdade
contida nas proposições críticas mais ou menos objetivas.
Não podemos dar atenção ao processo intelectual pelo qual
se chegou a essa imagem, nem discutir o significado e as
funções que ele preencheu, construtivamente, na renovação
do seu objeto. No entanto, é preciso que comecemos por
assinalar a sua existência, pois isso é indispensável para
que se possa compreender, adequadamente, que as
instituições de ensino superior da América Latina nunca
estiveram dissociadas dos contextos histórico-sociais em
que se formaram e nos quais evoluíram. As suas
características, que passaram a ser impugnadas pelos
setores mais avançados do corpo docente, pelos
intelectuais preeminentes e pelos estudantes, provinham
em larga parte do condicionamento do meio
socioeconômico e cultural e tinham muito que ver com as
atitudes de autocrítica e de renovação, sustentadas pelos
movimentos de “autonomia universitária”. Se elas não
possuíssem nenhuma dimensão positiva, é claro, o bloqueio
da percepção crítica e das iniciativas inovadoras seria total;
e o impasse obrigaria a superar-se a situação pela criação
de novas instituições (e não pela reforma das antigas).
Isso posto, parece evidente que adotamos uma
perspectiva relativista e compreensiva, diante da formação
e da evolução das escolas superiores, faculdades e
universidades latino-americanas. As conclusões da análise
efetuada não permitem esclarecer, de modo específico,
quais foram as influências qualitativas e quantitativas
dessas instituições na transformação a largo prazo das
sociedades de que faziam parte. Que elas exerceram tais
influências é patente, como se verá em seguida. Ao que
parece, porém, as influências de maior magnitude ou
significado se deram, em nível histórico ou em nível
sociocultural, sob a forma de causação circular e torna-se
impraticável dizer onde começa ou onde termina a
contribuição da universidade para a alteração dos
costumes, a organização da mentalidade das “pessoas
cultas” ou dos “notáveis” e a graduação da “revolução
dentro da ordem”, que se desenrolou em todos os países
depois da emancipação política e, principalmente, da
consolidação dos estados nacionais independentes. Todavia,
o aspecto reverso, pelo qual as transformações do meio
econômico, social e político repercutiram na composição, no
acesso, no funcionamento e na melhoria progressiva da
universidade, parece ser mais nítido e inquestionável.
Apesar das técnicas sutis ou grosseiras de resistência às
inovações, a universidade latino-americana revelou uma
notável maleabilidade, o que facilitou os mecanismos mais
ou menos dramáticos de autocrítica e de autorrenovação. O
que fornece aparentes evidências em contrário — a lentidão
do esforço de mudança; a falta de objetivos precisos e de
eficácia nos propósitos renovadores; a animosidade dos
círculos letrados conservadores, sejam ou não
universitários; a descontinuidade dos programas de
renovação encetados etc. — não significa, em termos
sociológicos, “rigidez”, “imobilismo” ou “incapacidade de
mudança”. Antes de fazer-se um diagnóstico judicativo,
deve-se proceder a uma avaliação rigorosa das relações
entre meios e fins: as influências inovadoras teriam sido
bastante fortes e persistentes para atingir os objetivos
proclamados de “reforma universitária”? A inércia apenas
vingou e venceu onde tais influências revelaram-se
prematuras, frágeis e incongruentes. Nesse caso, o que
entra em jogo são as potencialidades materiais, intelectuais
e humanas do meio social e não a estrutura intrínseca das
universidades e o poder de autodeterminação do pessoal
que elas envolvem. Em resumo, ao que parece as
universidades acompanharam os processos de
transformação do contexto histórico-social. Por vezes, elas
desempenharam funções construtivas naqueles processos
e, se aqui ou ali aparecem exemplos em contrário, eles
devem ser devidamente interpretados como a exceção que
confirma a regra.
A primeira e principal fonte de confusão, na análise da
antiga universidade (ou escola superior e faculdade),
consiste na sua alegada função de mera agência de difusão
de conhecimentos e de técnicas, elaborados originalmente
no exterior. Outros caracteres, postos em relevo, dizem
respeito à sua estrutura fechada (pois era acessível a
reduzido número de pretendentes), ao seu teor
enciclopédico, pseudo-humanístico e de segunda mão (pelo
congestionamento da erudição de superfície), à natureza
autocrática e verbalista do ensino (em virtude do princípio
do magister dixit), e, por fim, ao imobilismo da própria
instituição (que não entraria, como tal, em interação
plástica com os dilemas humanos do seu meio social e
intelectual). Todas essas críticas possuem algum
fundamento. Mas, cabe perguntar-se se, no contexto
histórico da sociedade colonial e no contexto histórico da
sociedade nacional emergente, o ensino superior poderia
responder a outros requisitos organizatórios, tanto
estruturais quanto funcionais. Na verdade, a antiga
universidade atendia, por sua organização, funcionamento e
filosofia pedagógica, às necessidades intelectuais do
ambiente, aos valores educacionais que resultavam do
estilo de vida social dominante e ao modo pelo qual a
mudança institucional se concretizava historicamente. Todo
o processo de absorção cultural, nas duas épocas históricas
em questão, era regulado segundo as regras e os
mecanismos da modernização tipicamente “colonial” ou
dependente. Tratava-se, sobretudo, de um processo de
transferência maciça e de assimilação compacta de técnicas
sociais, valores e instituições impostos pela civilização,
através de interesses e controles econômicos, sociais e
políticos das metrópoles (no período colonial) e das nações
que lançaram as bases do imperialismo moderno (no
período nacional). Em ambos os contextos histórico-sociais,
portanto, cabia às instituições de ensino superior a função
que preencheram. Elas deviam ser e operar como uma
ponte entre as colônias ou as sociedades nacionais
emergentes e o “mundo civilizado” europeu. O que se
requeria delas não era que fossem núcleos de produção de
saber original e centros de invenção criadora. Mas, que elas
organizassem e mantivessem o fluxo mínimo de
conhecimentos, técnicas sociais e valores, do qual
dependia: a implantação e o florescimento da “civilização
ocidental” no Novo Mundo; a preparação das elites de uma
sociedade estratificada em castas e estamentos; a
persistência e o refinamento dos padrões de “cultura
letrada”, que podiam ser cultivados e revalorizados
socialmente.
A própria organização econômica dessa sociedade,
vinculada de forma heteronômica às Metrópoles ou às
Nações europeias que controlavam o mercado mundial,
fazia com que os recursos destinados à educação fossem
demasiado limitados (mesmo em termos das necessidades
educacionais de uma ordem social senhorial e para manter-
se um “ensino para poucos”). Tanto sob o antigo sistema
colonial, quanto sob o neocolonialismo, grande parte do
excedente econômico era canalizada normalmente para
fora, para alimentar o crescimento econômico e o
desenvolvimento sociocultural das metrópoles ou das
nações europeias que detinham o controle do comércio
mundial. Em consequência, os países da América Latina não
dispunham de condições materiais e sociais para
expandirem a “civilização ocidental” segundo os padrões
europeus. Estes podiam ser imitados formalmente, mas sem
um intenso crescimento econômico e um desenvolvimento
sociocultural paralelo jamais seria possível explorar
plenamente as potencialidades funcionais das instituições
importadas (inclusive na esfera da educação escolarizada e,
dentro dela, principalmente com referência ao ensino
superior, que só produz rendimentos efetivos a longo
prazo). Se as instituições escolares conheceram alguma
expansão e atingiram certos padrões mínimos de qualidade
e eficácia, para os limitados fins mencionados, isso se deve
ao fato de que a especialização profissional e técnica se
incluía entre as necessidades sociais prementes. Em
particular depois da emancipação política e da implantação
de estados nacionais independentes, era preciso formar
intelectuais capazes de lidar com certos problemas práticos,
dos quais dependia o funcionamento normal da economia,
do próprio Estado nacional e da administração pública, e
das instituições que asseguravam às elites e a seus estratos
sociais os padrões de conforto e de segurança a que
estavam acostumadas. Todavia, os problemas práticos que
surgiam nesses níveis não requeriam fortes ou complicados
processos de invenção cultural. Na época colonial ou na
época da emancipação nacional e da consolidação do
Estado nacional independente, o grosso desses problemas
podia ser resolvido através de conhecimentos, técnicas
sociais e valores incorporados à herança cultural
transplantada ou transplantável. As habilidades ou
manipulações novas apareciam mais na área de adaptação
desses conhecimentos, técnicas e valores às situações nas
quais emergiam e deviam ser resolvidos os problemas. Por
isso, as escolas (inclusive e principalmente as escolas
superiores) não podiam encarregar-se, sozinhas, da
socialização completa dos aprendizes. O tirocínio requerido
para formar-se o perito, levando-se em conta a preparação
formal e a habilidade efetiva, obrigava a amplas
combinações entre um ensino por assim dizer informativo e
o amadurecimento por meio do uso das informações
recebidas em condições práticas. Esse aspecto tem sido
negligenciado, como se a antiga universidade se destinasse
a preencher, apenas, as funções reguladoras de um rito de
passagem: ao receber seu diploma, o “bacharel” estaria
nobilitado e em plena posse dos direitos conferidos pelas
profissões liberais. Embora o título possuísse o significado
de um símbolo e esse símbolo fosse, de fato, nobilitante, o
seu prestígio nascia da posição dos seus portadores na
estrutura da sociedade. Só mais tarde, e como um dos
efeitos reativos dessa conexão, é que ele passou a ser
nobilitante independentemente do monopólio do poder e do
prestígio social pelos estamentos dominantes. O essencial,
pois, não era o título. Mas, a qualificação para iniciar a parte
prática da aprendizagem, por meio da qual o aprendiz
absorvia os “segredos da profissão” e, ao mesmo tempo,
obtinha condições fluidas de comunicação mais profunda
com os avanços de sua profissão ou da civilização no
exterior e adquiria os papéis que possibilitariam a iniciação
na “arte de dirigir-se”, como parte de uma elite dominante.
Só existe um critério para avaliar-se até que ponto esse
tipo de universidade (ou de escola superior) preenchia a sua
função “colonizadora”, “civilizadora”, “elitista” e
“aristocratizante”, à qual se associou um ideal espiritualista
e humanístico, de natureza consumidora, da “cultura
letrada”: ele consiste em relacionarem-se os desígnios de
tal ensino superior com as realizações dos homens que se
formaram sob sua inspiração. Se se fizer uma indagação
dessa espécie, a eficácia da antiga universidade (ou escola
superior) patenteia-se, claramente, em três direções
diferentes (nos limites, naturalmente, das exigências ou das
necessidades socioculturais dos seus contextos históricos).
Primeiro, foi através dela que se formaram as primeiras
gerações que lutaram contra o sistema colonial,
organizaram o Estado nacional independente e lograram
converter os estamentos privilegiados das ex-colônias em
aristocracias. Pode-se pôr em dúvida muitos dos valores e
ideais dessas gerações e o seu liberalismo era antes uma
filosofia de igualdade social entre privilegiados que um
autêntico rebento democrático. Mas, é inegável que
conseguiram, em condições tumultuosas, contraditórias e
difíceis, um ritmo constante de modernização progressiva
de seus países, em todos os níveis da vida social e da
cultura. Segundo, dada a correlação apontada, entre
estrutura da sociedade global, acesso à universidade e
sentido técnico-profissional do ensino superior, as
instituições que transmitiam esse ensino possuíam uma
ligação dinâmica com a constituição e a preservação do
padrão de equilíbrio requerido pela ordem social vigente.
Semelhante conexão imprimia um caráter conservador à
antiga universidade, já que os interesses econômicos,
sociais e políticos, que definiam esse padrão de equilíbrio,
emanavam dos estamentos sociais dominantes. Entretanto,
o pensamento conservador, principalmente depois da
emancipação política e da consolidação do Estado nacional
independente, apresentava grande fluidez e não era avesso
à mudança. Como a posição daqueles estamentos na
estrutura de poder não era nem podia ser ameaçada por
pretensões revolucionárias de outros círculos sociais, o
liberalismo econômico, político e cultural, embora
pervertido em sua essência, representava mais que uma
simples fachada. Especialmente em matérias que
interessavam às elites dos estamentos dominantes, ele
inspirava ou suscitava variados processos de modernização.
Terceiro, no nível especificamente intelectual, o saber ou era
ostentatório, ou precisava demonstrar sua eficácia no plano
técnico-profissional. Limitando-nos à última alternativa, é
claro que não foi a antiga universidade que impôs tal
critério de reconhecimento de valor do saber à sociedade.
Ao contrário, foi esta que modelou a universidade para
produzir os tipos de letrados, de literatti e de homens de
saber de que carecia. O advogado, o médico e o engenheiro,
que se formavam e socializavam sob o clima de excessiva
valorização e de nobilitação de suas profissões, tendiam a
expandir a orientação especificamente técnico-profissional
do saber proporcionado por suas respectivas “ciências”. A
“pesquisa” tinha escassa significação para eles, não lhes
importando a não ser como meio rudimentar de estabelecer
ou verificar o diagnóstico de uma situação prática. Por isso,
ela não chegava a possuir, normalmente, qualquer
envergadura, nem mesmo como “pesquisa tecnológica”, e
reduzia-se a uma auxiliar da razão em manipulações de
natureza técnico-profissional. Contudo, levando-se em conta
que as sociedades nacionais emergentes estavam
empenhadas em intensificar determinados processos de
modernização econômica, social e política, as atividades
práticas assim desenvolvidas não eram destituídas de
amplo significado social. Doutro lado, no nível indicado, as
formas de saber vinculadas à advocacia, à medicina e à
engenharia permitiam lidar com os problemas práticos em
termos de equilíbrio estático (pouco importando se as
ficções que presidiam à sua definição procediam do
“sistema legal”, do “organismo” ou do “maquinismo”). Essa
circunstância garante, indiretamente e pela base, uma
grande conformidade entre o horizonte intelectual dos
letrados-profissionais, dos literatti e dos homens de saber
(ou “notáveis”), formados pela universidade (ou escola
superior), e as orientações liberal-conservadoras
predominantes na sociedade global. A inteligência podia
usufruir e beneficiar-se de uma consagração honorífica e, ao
mesmo tempo, realizar suas tarefas intelectuais ou suas
atividades criadoras sem desafiar interesses ou ideologias
dos estamentos sociais dominantes e sem envolver-se em
conflitos estruturais com a ordem social vigente.
A discussão precedente sugere duas coisas, que são
essenciais para caracterizar e situar o dilema universitário
latino-americano. De um lado, os modelos importados de
organização do ensino superior possuíam certas limitações
pedagógicas bem conhecidas, que já foram patenteadas
com referência aos próprios países europeus, em que se
originaram. Não obstante, é evidente que suas
potencialidades educacionais e intelectuais apenas
chegaram a ser exploradas e mobilizadas de maneira muito
incompleta e superficial na América Latina. Isso indica que
seus propalados “defeitos intrínsecos” possuem menor
importância, para explicar sociologicamente as referidas
limitações, do que se imagina. De outro lado, o fator de
presumível “baixo rendimento” dado por aqueles modelos
também parece claro. Suas potencialidades educacionais e
intelectuais nunca chegaram a ser devidamente exploradas
e mobilizadas, porque a sociedade inclusiva não lhes
ofereceu bases materiais e socioculturais adequadas, além
de utilizar os seus produtos (e o talento em geral) de forma
visivelmente contrafeita e inconsistente. Portanto, foram
limitações e inconsistências externas às instituições de
ensino superior que forneceram campo propício à
exacerbação dos mencionados “defeitos intrínsecos”,
agravando os seus efeitos diretos contraproducentes e
gerando os conhecidos caracteres negativos da antiga
universidade latino-americana.
Essa conclusão possui enorme interesse sociológico, na
medida em que a evolução da nova universidade[57] iria
defrontar-se com as mesmas fontes de redução de sua
eficácia e de sua capacidade de expansão. Ao que parece, o
dilema universitário latino-americano possui uma origem
histórica (e não uma origem puramente cultural). O grau de
modernização relativa do sistema institucional é mais
avançado do que os graus paralelos ou concomitantes de
crescimento econômico e de desenvolvimento social. Essa
circunstância explica-se facilmente. Os países da região
participam direta e ativamente do ciclo cultural da
“civilização ocidental moderna” e das tendências mais
significativas de sua renovação no exterior. No entanto, sua
economia dependente e suas estruturas sociais anulam ou
reduzem tais vantagens, fazendo com que, no conjunto, o
progresso na absorção das instituições e dos seus valores
represente muito pouco para a intensificação da mudança
progressiva global. A escassez de recursos materiais e
financeiros, bem como o estilo imperante de utilização
social dos recursos humanos disponíveis e de
aproveitamento social do talento acarretam uma espécie de
esvaziamento histórico das instituições. Elas passam a
render, naturalmente, não em função de suas
potencialidades ideais, pressupostas nos modelos
institucionais importados; mas em função do modo pelo
qual a sociedade inclusiva relaciona, estrutural e
funcionalmente, tais potencialidades com suas
necessidades socioculturais. Ou seja, do modo pelo qual a
sociedade inclusiva mobiliza e explora socialmente as
referidas potencialidades, dinamizando-as como fator de
autodesenvolvimento.
A época histórica mais recente permite estabelecer uma
contraprova dessa interpretação. Durante a última metade
do século XIX, mas principalmente no último quartel desse
século, o capitalismo começa a converter-se numa realidade
histórica na maioria dos países da América Latina. Todavia,
as condições que cercaram essa transformação imprimiram
à “revolução burguesa” uma forma que pode ser
considerada típica das sociedades capitalistas
subdesenvolvidas: à integração do capitalismo comercial e
financeiro seguiu-se um constante e relativamente intenso
desenvolvimento urbano-industrial, sem que se tornasse
possível extinguir estruturas socioeconômicas pré-
capitalistas e superar a posição heteronômica das
economias latino-americanas na organização do mercado
mundial. Em consequência, a “revolução burguesa”
engendrou um sistema capitalista diferenciado mas
dependente, desembocando num impasse permanente, que
impede que o crescimento econômico opere como um fator
nacional de autonomização socioeconômica, política e
cultural. Sob a égide desse capitalismo dependente, a
América Latina continuou a produzir excedente econômico
para fora, diferenciando e revitalizando, através de sua
peculiar “revolução burguesa”, os interesses internos que
subordinam o seu desenvolvimento aos dinamismos das
nações capitalistas avançadas.
O que nos interessa, nesse vasto quadro, é o que sucedeu
com a universidade latino-americana. A “revolução
burguesa” caracterizou-se, em todos os países, pelas
transformações que afetaram a composição e a organização
da sociedade. Ocorreu um considerável e contínuo aumento
da população. A integração nacional das economias, em
bases capitalistas, provocou mudanças também
consideráveis e contínuas na distribuição da renda, do
prestígio social e do poder. Surgiram novas cidades,
ampliou-se o setor urbano das populações e nasceram as
grandes metrópoles da região. Em conexão com esses
fenômenos, apareceram novos grupos sociais, embora a
concentração social da riqueza e do poder político
conservasse as antigas elites em suas posições de
dominação e de liderança. A educação perdeu, aos poucos,
o caráter de privilégio social e de prerrogativa dos
estamentos dominantes. Os recursos naturais, financeiros e
humanos destinados à educação sofreram, por sua vez,
uma constante elevação progressiva, embora se
mostrassem cronicamente insuficientes para fazer face ao
crescimento demográfico, à proporção dos elementos
jovens na população e às expectativas de democratização
das oportunidades educacionais. Sob o impacto dos fatores
quantitativos desse amplo processo de mudança estrutural,
as velhas instituições entraram em crise (e, com elas, as
antigas instituições escolares). Nesse contexto, os efeitos da
modernização revelaram-se particularmente fecundos no
plano intelectual. Em um clima de tensão e de luta, as
novas teorias pedagógicas, vindas da Europa e dos Estados
Unidos, permitiram aprofundar as críticas a todo o sistema
escolar, herdado do passado. Elaborou-se uma sorte de
“idealismo pedagógico”, de conteúdo pragmático-
racionalista, que propunha reformas educacionais de
inegável magnitude e que definia a nova universidade a
partir de uma conjugação construtiva entre novos modelos
institucionais importados e necessidades potenciais do meio
sociocultural latino-americano.
Embora o fenômeno se iniciasse no fim do século
passado, foi entre a primeira e a terceira década deste
século que ele adquiriu a consistência e a qualidade de
processo histórico irreversível, nos países em que logrou
vingar. No que nos importa aqui, cumpre salientar que ele
desencadeou um processo positivo de crítica à antiga
universidade (faculdade ou escola superior), propondo-se
antes as funções construtivas que as instituições de ensino
superior deviam preencher, que as mazelas das velhas
instituições. Não se pretendia “destruir uma herança”, mas
superar um passado tão cheio de contingências. A
contribuição positiva dos movimentos de “autonomia” e de
“reforma” universitárias dizia respeito, portanto, ao que se
devia fazer para criar-se uma universidade capaz de
preencher todas as funções normais, que ela precisaria
satisfazer à luz dos requisitos da civilização baseada na
ciência e na tecnologia científica. Supunha-se, pois, que o
meio social inclusivo poderia dinamizar aquelas funções,
com os recursos materiais, financeiros e humanos
acessíveis; e que ele não tolhia, por si mesmo ou através da
intromissão das forças conservadoras, a missão diretora que
a universidade deveria exercer na vida cultural e moral da
sociedade. O acesso livre às oportunidades de educação
superior, só limitável pelas aptidões efetivas dos
candidatos; a alta qualidade da aprendizagem; a introdução
da pesquisa científica e tecnológica e sua associação regular
ao ensino; a produção de saber original; interdependência
em condições de autonomia intelectual com os centros
estrangeiros de investigação e de ensino (e, por
conseguinte, autêntica cooperação com os centros de
investigação mais avançados); a representação e a
participação dos estudantes na administração e na política
universitárias; uma vinculação dinâmica da universidade
com os “problemas do Povo” e com as “necessidades
nacionais”; e uma renovação institucional bastante
profunda e eficaz para suportar tais objetivos — eis as
principais reivindicações dos movimentos.
Embora os movimentos produzissem, por si mesmos,
frutos parcos e inconstantes, seus objetivos se viram
parcialmente concretizados, a largo prazo, graças aos
efeitos inevitáveis do crescimento demográfico e do
desenvolvimento socioeconômico.[58] A nova universidade
firmou-se, em uns países mais, em outros menos, mas sem
atingir o êxito esperado. Não só atitudes, técnicas, valores e
estruturas tidos como “arcaicos” persistiram, dentro e fora
da universidade, afetando o seu rendimento, restringindo ou
anulando a sua autonomia, e tolhendo a sua evolução
progressiva. As melhores realizações no sentido desta
evolução entraram em relativo torpor precoce, estagnaram
ou produziram efeitos incompatíveis com as esperanças
mais fundadas. Ficou patenteado que a inovação
circunscrita, localizada e isolada não constitui, em si e por si
mesma, um caminho seguro para fazer-se a revolução
cultural que a criação da nova universidade pressupunha.
Além disso, os diagnósticos mais penetrantes impuseram a
conclusão de que a “reforma puramente institucional” é
regulada e controlada (mesmo que os agentes do processo
possuam clara consciência da relação entre meios e fins)
pelas disposições, orientações e possibilidades do meio
social circundante. Aos poucos, fatores negligenciados ou
inseridos na rede de efeitos nas reflexões pedagógicas
iniciais — como a estrutura da economia, a organização da
sociedade e o funcionamento do Estado — ganharam o
centro do palco e dominaram as preocupações gerais.
Descobriu-se que uma sociedade nacional subdesenvolvida,
mesmo sob o capitalismo dependente, está sujeita a uma
situação contraditória. Ela precisa da educação escolarizada
como “fator de desenvolvimento” e até de “revolução
social”, tanto para conquistar autonomia de crescimento,
quanto para consolidar e fazer valer sua soberania. Não
obstante, raramente ela dispõe, pelas vias normais, dos
recursos materiais, financeiros e humanos suscetíveis de
converter as mudanças desejadas e necessárias em fator de
“salto histórico”. De um lado, porque são sociedades que
não comandam o crescimento e a aplicação marginal de
suas próprias riquezas. De outro, porque são sociedades nas
quais as parcelas de riqueza, absorvidas e controladas
nacionalmente, são em grande parte destruídas de forma
improdutiva, por causa de privilégios de classe arraigados e
da expansão imoderada da economia de consumo.
Constatações desta espécie despertaram educadores,
políticos e administradores para o “uso racional” dos
recursos materiais, financeiros e humanos disponíveis.
Dados os limites dentro dos quais se estabelece o nível de
escassez dos recursos e a gravidade dos problemas
educacionais, especialmente na esfera do ensino superior,
logo se evidenciou que esse tipo de “racionalidade possível”
nunca passaria de uma panaceia. Sem transformações
profundas e persistentes da organização da economia, da
sociedade e da cultura, ele nada poderá fazer de crucial,
mesmo a longo prazo.
No marco de tais reflexões, que superam o idealismo
liberal e põem em questão o farisaísmo conservador, o
problema da nova universidade se projetou num contexto
histórico-social conturbado. Enquanto a própria instituição
se deteriora lentamente, correndo o risco de repetir a sina
da antiga universidade (em alguns países), ou avança em
zigue-zagues, ameaçando o próprio sentido da “reforma
universitária” e seus efeitos construtivos (em outros países),
cresce e generaliza-se a convicção de que as mudanças
reais terão de ser procuradas e conquistadas, palmo a
palmo, fora da universidade. A concepção utópica, que
presidiu à primeira fase dos movimentos de “autonomia” ou
de “reforma” (e segundo a qual a nova universidade poderia
emergir de mudanças institucionais inteligentes,
convertendo-se em seguida no fulcro de canalização
pacífica das alterações revolucionárias em processo), cai em
crescente descrédito. Seu lugar está sendo disputado por
duas orientações de comportamento social alternativas. A
da acomodação realista, de acordo com a qual o “teto” da
reforma universitária, em sociedades subdesenvolvidas, é
dado pela escassez dos recursos e as limitações resultantes
de possibilidades inevitavelmente estreitas de utilização
social construtiva das universidades. A única solução
inteligente consistiria em associações de propósitos
limitados com as sociedades avançadas, que permitiriam
concretizar uma interdependência corretiva e linhas de
desenvolvimento cooperativo de grande interesse para as
sociedades subdesenvolvidas. E o da opção puramente
revolucionária, que põe em primeiro plano a transformação
prévia das estruturas econômicas, sociais e políticas
existentes. Nada adiantaria mudar as universidades, se
estas não possuem meios internos e externos que as
adaptem às funções que devem preencher, em nível do
ensino ou da produção de conhecimentos originais e em
nível das exigências de uma sociedade subdesenvolvida, na
era da ciência e da tecnologia científica. A primeira
alternativa praticamente trai o espírito dos movimentos de
reforma universitária, pois aceita que uma estagnação
relativa da nova universidade constituiria um preço razoável
para a dependência cultural crônica, em relação ao exterior.
A outra alternativa transcende aquele espírito, mas sob o
preço de pôr em segundo plano os problemas centrais da
própria reforma universitária, ofuscados por outros
problemas de natureza econômica, social e política, vistos
como “estratégicos”. Isso quer dizer que a nova
universidade se encontra diante de um impasse histórico,
aliás, um impasse análogo ao que pesa sobre o capitalismo
dependente. Se a história do passado remoto não se
reproduzir, esse impasse poderá ser vencido ou pela
aceleração e radicalização da “revolução burguesa” (o que
significaria: “solução pelo desenvolvimento”), ou pela
destruição do próprio capitalismo (o que significaria:
“solução pela revolução social”).
Essas indicações são suficientes para sugerir que a nova
universidade ainda não superou a crise de que nasceu. Ela
não mantém uma relação de equilíbrio dinâmico com a
ordem social estabelecida, malgrado as influências
conservadoras ou radicais que se debatem dentro dela.
Acha-se tão dividida quanto a sociedade inclusiva e tão
impotente quanto esta para encontrar um termo médio ou
uma saída unilateral de superação das tensões. Nesse
clima, prevalecem a indecisão, a perplexidade e a
frustração, como se a atividade intelectual criadora
estivesse de antemão condenada à negação de si mesma.
Por isso, os universitários (professores ou estudantes) e os
intelectuais de formação universitária (os chamados
“antigos alunos”) podem percorrer qualquer dos três
caminhos que se abrem como “possibilidades históricas”
diante deles: o da estagnação relativa; o do
desenvolvimento acelerado; ou o da revolução social. Seus
ajustamentos futuros dependem mais da maneira pela qual
a sociedade inclusiva equacionar historicamente essas
saídas, que de convicções íntimas, firmemente
estabelecidas e rígidas, que imponham tais saídas em
termos ideológicos exclusivos — conservantistas,
reformistas ou revolucionários. Este retrato certamente
define o drama que está por trás do dilema universitário
latino-americano. Como sucedeu com a antiga universidade,
a nova universidade também não é uma “instituição
diretora”. Ela constitui uma amálgama em busca de
reorganização e de reintegração totais e não possui meios
para forjar por si mesma o seu destino. Aguarda, em
compasso de espera, os momentos de decisão histórica,
para compor a fisionomia que deverá ter no mundo do
planejamento, da automação, da energia nuclear, das
integrações econômicas regionais e da hegemonia das
superpotências.
ASPECTOS   DA SITUAÇÃO   ATUAL   DO   ENSINO   SUPERIOR

A EVOLUÇÃO DA AMÉRICA LATINA, nos últimos dez anos,


caracterizou-se pelo intenso crescimento demográfico,
estancamento ou baixo crescimento econômicos (pelo
menos na média dos países) e fortes tendências de
deslocamento de população (seja de áreas rurais
estagnadas ou em regressão para áreas rurais com
vitalidade econômica, seja do “campo” para as médias e
grandes cidades). O sistema escolar, sob esse pano de
fundo, viu-se sob duas tensões contrárias. Uma, que nascia
da pressão quantitativa, desencadeada inexoravelmente
pela “explosão demográfica” e agravada pela revolução das
expectativas educacionais e pela intensidade do movimento
migratório campo-cidade. Outra, que procedia da escassez
crônica de recursos materiais e humanos destinados à
educação, frequentemente agravada pela má utilização dos
fatores existentes e por disposições mais ou menos
impróprias ao estabelecimento de políticas eficientes de
democratização do ensino. Os efeitos dos processos
demográficos são aparentemente positivos. Há quem pense
que eles conduziram à deterioração dos padrões de ensino.
Contudo, se eles não alcançassem proporções “explosivas”,
é duvidoso que os níveis educacionais médios,
predominantes na região, tivessem se alterado (pelo menos
em suas expressões quantitativas), de modo tão acentuado
nas décadas de 1940-50 e 1950-60. As transformações
econômicas, sociais e culturais não concorreram, de fato,
para uma efetiva democratização universal do ensino. Por
isso, a expansão quantitativa das matrículas e dos níveis
educacionais representa um produto direto dos dinamismos
demográficos. Doutro lado, parece evidente que o
agravamento das pressões demográficas, que começam a
afetar também os índices de participação do ensino pós-
primário, e o dilema da magnitude dos custos educacionais
tendem a modificar as orientações tradicionais no uso dos
recursos materiais e humanos destinados à educação. Essa
mudança, que mal se inicia, irá contribuir, previsivelmente,
para a alteração ou a proscrição de critérios irracionais,
extrapedagógicos e antidemocráticos de distribuição e
aproveitamento das oportunidades educacionais.
O quadro 4 oferece uma visão global do nível de
escolaridade na América Latina, em 1950. Sua leitura
demonstra que a maior parte da população (93,1%)
incorporava-se, em média, em duas categorias: os que não
tinham nenhuma escolaridade ou menos de um ano de
escolaridade; e os que contavam de 1 a 3 anos de
escolaridade. Apenas 6% se incluíam nas categorias dos que
possuíam de 7 a 9 anos e de 10 a 12 anos de escolaridade.
E somente 0,9% possuíam 13 anos e mais de escolaridade.
Os níveis médios de escolaridade, além de muito baixos,
apresentavam forte contraste, entre as porcentagens da
população global e as da população escolarizada. O nível
médio de escolaridade desta última era exatamente o dobro
da primeira (conforme o país, oscilava de duas vezes e meia
até dez vezes mais: como sucedia com o Brasil, Guatemala,
El Salvador, Bolívia, República Dominicana ou Haiti). Esse
contraste sugere que a educação escolarizada ainda
constituía um privilégio social. Por sua vez, o número de
pessoas com educação pós-primária (quase 16 pessoas por
100 habitantes) era um dos mais baixos do mundo
(comparem-se as indicações fornecidas naquele quadro
sobre os Estados Unidos, o Japão e Porto Rico). Isso
significa, sociologicamente, que só ao acaso o peneiramento
de tais pessoas poderia corresponder às suas aptidões e às
suas aspirações educacionais. Critérios econômicos, sociais
e provavelmente políticos decidiam o peneiramento,
especialmente aos níveis do ensino secundário, colegial e
superior. Quanto a este último, é conhecida a
predominância dos estratos superiores das classes alta e
média na população universitária:[59]
 

 
 

 
 
 

 
 

 
 
A década de 1950-60, apesar da relativa adversidade
econômica, parece marcada por um crescimento
relativamente considerável do sistema escolar desses
países, como evidenciam os seguintes dados:[60]
 

 
Como se pode constatar, os países que se aproximaram
ou superaram essas médias atingiram ou estão atingindo
um patamar de alfabetização que lhes permite dedicar
maiores esforços ao ensino médio e superior. Ao que parece,
os objetivos centrais de mudança da política educacional
voltavam-se para este último. Mas, dados o afunilamento do
sistema escolar, as avaliações sociais dominantes e a maior
acessibilidade do ensino médio, isso acarretou uma
elevação desproporcional do ensino médio (que teve a sua
matrícula aumentada em escala inesperada). Em
consequência, a relação entre uma matrícula no ensino
superior e o total de matrículas correspondentes no ensino
primário caiu de 57 para 50, de 1950-60. No entanto, a
mesma relação do ensino superior com o ensino médio
subiu de 6 para 7. Informações relativas a 1966 mostram,
grosso modo, como as mencionadas características estão
evoluindo:[61]
 

 
Por esses dados, a uma matrícula no ensino superior, em
1966, correspondia, aproximadamente: 42 matrículas no
ensino primário; e 8 matrículas no ensino médio. A
representação percentual demonstra que, em conjunto,
implantou-se uma tendência no sentido de diminuir
paulatinamente o achatamento estrutural do sistema
escolar:
 

 
A correlação entre as matrículas nos três níveis de ensino
sugere que não se processou nenhuma alteração
substancial nos critérios econômicos e socioculturais de
distribuição das oportunidades educacionais. Contudo, ela
confere algum vigor à hipótese segundo a qual a pressão
demográfica tem operado como uma espécie de
equivalente da influência dinâmica da democratização do
ensino. Pois uma parte considerável da população
escolarizada no nível médio não contou com suficiente
fluidez no sistema escolar para poder passar ao nível
ulterior. Esse efeito poderia explicar-se pela rigidez do
ensino superior, sujeito ao critério de número clausus em
alguns países ou a crescimento moderado, por falta de
recursos, em outros. Todavia, o simples congestionamento
das matrículas no ensino médio altera a concorrência pelas
oportunidades educacionais no nível imediato do ensino,
introduzindo ou aumentando a importância relativa do fator
competição no rateio social das referidas oportunidades.
Isso não modifica, certamente, a qualidade de privilégio
social que caracteriza, em maior ou menor grau, o ensino
médio e superior. Mas indica claramente que, graças aos
dinamismos demográficos e aos processos socioculturais
correlatos, a sociedade tende a mudar sua relação com o
sistema escolar.
Esta conclusão é deveras importante, porque sublinha que
não é o sistema escolar, em si mesmo, que se modifica em
sua estrutura, em suas funções e em seu rendimento, como
condição prévia para o atendimento de parcelas
crescentemente maiores da população. Ao inverso, são as
transformações do volume e da organização da população
que compelem o sistema escolar a se abrir gradualmente à
avalanche, embora mantendo seus caracteres estruturais e
funcionais “arcaicos”. A contraprova dessa interpretação é
fornecida pelo fato de que, na maioria dos países, o sistema
escolar enfrenta o aumento crescente das matrículas nos
níveis do ensino médio e superior (para não se falar do
ensino primário), apenas em termos quantitativos: ele
ingurgita, sem transformar-se estrutural e dinamicamente.
De modo geral, ainda não se constituíram (ou estão em
elaboração lenta) novas orientações de política educacional
que permitam passar do crescimento quantitativo para a
reorganização do sistema escolar.
A discussão precedente, tomando por pano de fundo o
ano de 1950 ou a evolução ocorrida entre 1950-60 e 1966,
desemboca numa evidência melancólica. O ensino superior,
embora não seja definido legalmente como “privilégio”, na
prática é monopolizado socialmente pelos estratos médios e
altos da população. Entretanto, até na prodigalização dos
privilégios existe uma hierarquia. Os quadros 1 e 2 abrem
margem para muitas conjecturas fundadas a esse respeito.
É claro que países como o Brasil e o México, ou a Colômbia
e o Peru, possuem perspectivas que não se definem
claramente nas estatísticas, pois contam com
potencialidades de crescimento econômico e de
desenvolvimento social que ainda não foram exploradas
dentro dos limites da própria expansão do capitalismo
dependente. Todavia, nas fases de transição que estão
atravessando, devem submeter-se a penosos sacrifícios, se
quiserem garantir-se tais perspectivas. Os países que já
lograram o tipo de integração econômica permitido pelo
capitalismo dependente, ao contrário, ostentam maior
progresso médio, mas, ao mesmo tempo, defrontam-se com
sérias dificuldades no que concerne à preservação e à
elevação das vantagens acumuladas. Estariam nesse caso
países como a Argentina, o Uruguai ou o Chile, por exemplo.
No contexto latino-americano, somente Cuba poderá evoluir
no sentido de neutralizar influências socioeconômicas e
políticas que interferem cronicamente na evolução do
sistema escolar. Infelizmente, não podemos examinar a
fundo as questões que se colocam dessa perspectiva e
somos forçados a considerar as diferenças relativas, com
frequências apreciáveis, de um ângulo mais limitado, que as
dramatiza em termos do que elas representam
quantitativamente, em um momento determinado.
Uma aproximação grosseira da realidade é fornecida
através do volume e variação da matrícula na América
Latina. Esse indicador é passível de críticas, pois alguns
países (como a Argentina) aceitam livremente os
candidatos; outros, como o Chile ou o Brasil, levantam
barreiras à promoção ou restringem o número de vagas.
Além disso, a evasão escolar no nível do ensino superior
constitui uma realidade desoladora, mais grave
naturalmente nos países em que a transição do ensino
médio ao superior é mais fácil. No entanto, as informações
comparáveis disponíveis dizem respeito à matrícula (ver
quadro 2), não nos restando outro recurso senão aproveitar
os dados com o cuidado possível. Se tomarmos os países
que atingiram ou superaram a média da matrícula (em
ordem decrescente: Argentina, Uruguai, Chile, Panamá,
Venezuela, Costa Rica, Cuba e México), descobriríamos: 1º)
que o aumento percentual da matrícula, no ensino superior,
neles era de 5,1 em 1960 (e não 3,0); 2º) que a variação do
aumento percentual da matrícula, com referência a 1950,
neles era da ordem de 222% (e não de 67%). Inversamente,
se tomarmos os países que não atingiram a média de
matrícula (em ordem crescente da diferença negativa: Peru,
Equador, Paraguai, Colômbia, Brasil, Bolívia, República
Dominicana, El Salvador, Nicarágua, Honduras, Guatemala e
Haiti), descobriríamos: 1º) que o aumento percentual da
matrícula, no ensino superior, neles era da ordem de 1,5 (e
não de 3,0); 2º) que a variação do aumento percentual da
matrícula, com referência a 1950, neles foi da ordem de
37% (e não de 67%).[62] Se se levar em conta que o
aumento da taxa anual de crescimento da população foi,
neste último grupo de países, de 2,4 para 2,9 (no período
1945-55), reclamando um esforço adicional de 22% ao ano,
aproximadamente, pode-se avaliar as deficiências do seu
crescimento real na esfera considerada. Doutro lado, para
romper o verdadeiro estado de estagnação invisível em que
se encontram, e atingir simplesmente a média da região, os
doze países do segundo grupo teriam de realizar um
incremento adicional médio de matrículas no ensino
superior no mínimo da ordem de 100% ao ano. Se se
propusessem alcançar os níveis atuais do primeiro grupo de
países, então o referido incremento adicional médio deveria
ser da ordem de 240%!
Os dados coligidos no quadro 1 oferecem uma base
razoável para se entender por que os países do primeiro
grupo conseguiram alcançar, antes de 1950 ou na década
de 1950-60, condições para expandir seu ensino superior.
Excetuando-se o México e a Costa Rica, eles incluíam-se
entre os países com mais de US$ 300 per capita, em 1959;
excetuando-se o Panamá e Costa Rica, eles contavam com
uma população urbana igual ou superior a 50% da
população total; além disso, o que é mais importante, na
América Latina, excetuando-se Costa Rica, todos possuíam
mais de 1/4 de sua população em cidades de 20.000
habitantes e mais, embora em alguns países (Costa Rica,
Venezuela, México e Panamá) a intensificação da
urbanização seja fenômeno recente (como se pode inferir
da porcentagem do crescimento urbano na década de 1950-
60). Ao inverso, no segundo grupo de países, excetuando-se
a Colômbia e o Brasil, os demais contavam com uma renda
percapita inferior a US$ 250; todos apresentavam menos de
50% de população urbana, com predominância de menos de
40%; excetuando-se a Colômbia e o Brasil, nenhum país
possuía 1/4 de sua população em cidades de 20.000
habitantes e mais; e, com exceção da Colômbia, a
intensidade do crescimento urbano, onde ela ocorreu,
evidencia mais “fuga do campo” que outra coisa.
A correlação positiva da situação socioeconômica do
primeiro grupo de países com o desenvolvimento do ensino
superior torna-se evidente, quando se associam as
condições apontadas com a variação do aumento
percentual de matrículas (conforme quadro 2). Excetuando-
se Cuba, que mudou a orientação de sua política
educacional, e o Uruguai, sobre o qual não se dispõe de
dados comparáveis,[63] todos os países daquele grupo
igualaram ou superaram porcentagens de crescimento da
matrícula no ensino superior que lhes permitiriam alcançar
ou manter ritmos de aumento análogos ou superiores ao da
média da região. Os avanços mais impressionantes foram
feitos pela Venezuela, México e Chile, que em 1950 não
atingiam os níveis médios e os igualaram ou ultrapassaram
em 1960. Contudo, o significado vantajoso do
desenvolvimento econômico, social e cultural anterior fica
ainda mais patente com os casos do Chile, Argentina e
Uruguai. Apesar do estancamento econômico (e por vezes
de crises sociais e de agruras políticas), conseguiram
preservar um ritmo de progressão constante do aumento da
matrícula (o que explica a proeza do Chile, que não é fruto
da aceleração do crescimento econômico, como na
Venezuela e no México, e as tendências observadas nos
outros dois países). O quadro 8 sugere que as dificuldades
econômicas se refletiram nos gastos orçamentários com a
educação, tanto na Argentina, quanto no Chile. É provável,
pois, que a iniciativa privada, a ajuda externa e a
racionalização do uso dos recursos destinados à educação
tenham compensado, de alguma maneira, quanto ao ensino
superior, as limitações dos recursos oficiais. A parte tomada
pelos gastos com educação nos orçamentos do México,
Costa Rica e Venezuela demonstra que os governos desses
países estão participando ativamente (e com relativa
disponibilidade de recursos financeiros) da elevação do
esforço educacional no nível do ensino superior. Ao que
parece, o êxito das iniciativas oficiais é garantido pelas
condições externas ao sistema escolar, as quais garantem
àquelas nações um aproveitamento construtivo do
incremento de esforço educacional (o que nem sempre se
realiza com referência aos países do segundo grupo).
Os países do segundo grupo, por sua vez, comprovam que
a ausência de certas condições econômicas, socioculturais e
políticas tanto dificulta ou impede a aceleração do
crescimento do ensino superior, quanto pode determinar
fenômenos bem definidos de estagnação ou de retrocesso.
Aparentemente, os casos mais dramáticos seriam os dos
países que evidenciariam a última condição (o Peru e a
Bolívia, por exemplo, em 1950 superavam a média da
região; em 1960 decaíram e ficaram aquém da referida
média). Todavia, bem examinadas as coisas, os casos mais
dramáticos não aparecem nitidamente como tais nas
estatísticas. A razão disso é simples. O que dificulta o
crescimento da educação, no segundo grupo de países, é o
clima dentro do qual o esforço educacional se vê projetado.
Os problemas educacionais são focalizados socialmente
com relativa negligência e resolvidos apenas nos limites em
que sua solução vem a ser importante para a perpetuação
do statu quo. Daí resulta uma inércia cultural crônica diante
das exigências da educação, a qual reduz o esforço
educacional desses países (colocando-o, com frequência,
muito abaixo do que eles poderiam efetivamente fazer, se
fosse outra a ótica usada na esfera da política educacional).
Tomando-se esta perspectiva de avaliação, todos os países
do segundo grupo ilustrariam, de um modo ou de outro, o
mesmo drama comum: a persistência, em nossos dias, de
uma tradição cultural imprópria às funções que a educação
escolarizada preenche na organização da vida moderna.
Entre eles, talvez dois países (a Colômbia e o Brasil)
mereçam ser tomados como casos exemplares, na medida
em que possuíam elementos para vencer a mencionada
tradição cultural ou para realizar um esforço educacional de
maior amplitude, e não o fizeram.
A Colômbia alcançara vários requisitos econômicos e
sociais, que permitiriam incluí-la, de fato, no primeiro grupo,
com um pouco mais de elasticidade no uso dos critérios
descritivos empregados. Doutro lado, ostenta uma variação
do aumento percentual das matrículas no ensino superior
da ordem de 100%. No entanto, o quadro 8 deixa patente
que a deliberação de intensificar o esforço educacional não
chegou a ser tão forte a ponto de conferir à educação uma
alta participação nos gastos orçamentários (de 5,3%, em
1950, passou a 9,1%, em 1960; outros países, do primeiro e
do segundo grupos, privilegiaram a educação como esfera
de investimento produtiva, destinando-lhe acréscimos que
envolviam uma variação relativa superior a 9% e a 10% ou
mais). Parece evidente, pois, que um dos países da América
Latina, que dispunha de condições mais propícias para
acelerar o seu esforço educacional no ensino superior, não
se impôs, como o fez o México, por exemplo, alvos
suficientemente ambiciosos para levarem ao atendimento
dos mínimos médios da região. Semelhante esforço teria
exigido um aumento percentual na variação das matrículas
da ordem de 234%, com claras implicações quanto à
orientação programática e financeira da política
educacional.
A situação brasileira é, sob todos os aspectos, porventura
mais típica da condição do segundo grupo de países que a
da Colômbia. Não só porque o esforço educacional
desenvolvido pelo Brasil, no mesmo período, é visivelmente
menor (com relação ao ensino superior e com referência à
proporção dos gastos orçamentários com a educação), mas
ainda porque certos acontecimentos políticos recentes
fizeram com que ele se tornasse o principal representante
do “farisaísmo educacional” tradicionalista na América
Latina. Esse farisaísmo consiste em proclamar uma
ideologia educacional de conteúdo democrático e de
significado moderno; e em desenvolver uma prática
educacional que corresponde à negação de tal ideologia. O
exemplo brasileiro também é típico à luz das implicações
educacionais da militarismo. Agora está em voga,
especialmente nos Estados Unidos, uma literatura
sociológica que valoriza o sentido “racional” e “inovador” do
militarismo nos países subdesenvolvidos. É provável que,
por motivos de segurança da política internacional dos
Estados Unidos, o militarismo represente, do ponto de vista
norte-americano, o máximo de progresso com o mínimo de
riscos. Para os países que sofrem os golpes militares, porém
(em particular, para os países da América Latina que estão
no segundo grupo), se a ação política desencadeada não
tiver ligações profundas com movimentos civis de
reconstrução da ordem legal vigente (como sucedeu no
Brasil com a revolução de 1930), o militarismo representa
uma preservação do statu quo por meios violentos (ou da
presunção do uso da violência). Eles não se dirigem apenas
contra os riscos potenciais da democratização do poder:
voltam-se contra todos os símbolos ou mecanismos pelos
quais a democracia pode estabelecer-se, como aspiração
social, como estilo de vida e como realidade política. Por
isso, adquirem significados e funções reacionárias, que
irrompem de forma negativa na esfera da educação. É fácil
avaliar tais efeitos, no que eles nos interessam aqui. Apesar
de serem figuras de confiança do governo militarista
brasileiro (que tomou o poder em 1964), os reitores das
universidades federais do Brasil se viram compelidos a
“denunciar” publicamente: 1º) que a participação do
Ministério de Educação e Cultura no orçamento da União
vem decaindo progressivamente: 11,0%, em 1965; 9,7%,
em 1966; 8,7%, em 1967; 7,7%, na proposta orçamentária
de 1968; 2º) que as universidades federais receberam
cortes que reduziram seus orçamentos em 37%; 3º) que a
participação das universidades federais nas dotações
destinadas à educação também vem decrescendo
continuamente: 3,9%, em 1965; 3,5%, em 1966; 3,4%, em
1967; 2,8%, na proposta orçamentária de 1968.[64] Esse
quadro é característico. A educação sofre um processo de
esvaziamento financeiro, como se não constituísse uma
esfera de inversão produtiva e necessária. Como, ao mesmo
tempo, as medidas simplistas vão do corte das verbas ao
aumento compulsório das matrículas, pode-se imaginar qual
é o resultado final do militarismo como ingrediente da
“política educacional” dos países subdesenvolvidos.
Não obstante, já na década de 1950-60, o crescimento da
matrícula no ensino superior do Brasil estava aquém de
uma política deliberada, que visasse pelo menos equiparar
o país aos progressos médios da região. O aumento
alcançado na variação percentual da matrícula
representava, aproximadamente, 1/3 do esforço que deveria
ser feito para a consecução de semelhante objetivo global.
O caso brasileiro ilustra, pois, que é inerente às propensões
de uma tradição cultural conservadora moderar a expansão
do ensino, contendo-a dentro de um ritmo que permita
atender, especificamente, ao aumento potencial da procura
nos estratos superiores das classes médias e altas. Os
golpes militares, em vez de destruir, fortalecem essa
orientação e agravam os seus efeitos perniciosos,
exacerbando a conotação das oportunidades educacionais,
no nível do ensino médio e superior, como “privilégio de
classe”. Dentro desse contexto, o ensino superior fica
permanentemente associado ao status e ao prestígio social
das élites, com o agravante de que ele não é concebido e
usado como um fator de dinamização do crescimento
econômico, do desenvolvimento sociocultural, ou do
progresso da pesquisa científica e tecnológica. Mas, como
um dos fatores da estrutura social que regulam a
transmissão do status e do prestígio social, de uma geração
a outra, segundo os padrões da ordem social existente e das
estruturas de poder que eles configuram. Por aí se vê que a
inércia cultural relativa, que afeta o desenvolvimento do
ensino superior no segundo grupo de países, constitui um
produto crônico (e sob vários aspectos sociopático) da
estrutura e funcionamento da ordem social. Explicam-se,
assim, o solapamento e a neutralização de todas as
pressões favoráveis à mudança, especialmente daquelas
que afetem a qualidade do ensino e a distribuição das
oportunidades educacionais, e o amortecimento das
tendências puramente quantitativas de crescimento global
do sistema escolar. A visão tradicionalista, que organiza a
percepção e a inteligência da situação, converte o ensino
superior numa barreira social e resiste tenazmente contra a
sua transformação em núcleo institucional dinâmico do
desenvolvimento da personalidade, da sociedade e da
cultura.
Essa apreciação de conjunto precisa ser completada em
dois pontos. Na discussão precedente foi negligenciado um
aspecto que agrava seriamente o esforço educacional do
segundo grupo de países. Dez deles apresentam uma
população em idade escolar, de 20 a 24 anos, igual ou
superior à média da região (em ordem de diferença
decrescente: República Dominicana, Guatemala, Nicarágua,
Brasil, El Salvador, Honduras, Peru, Costa Rica, Paraguai e
Haiti). No entanto, nove desses países se encontravam, em
seu esforço de expansão do ensino superior, abaixo da
média global (em ordem de diferença crescente: Peru,
Paraguai, República Dominicana, Brasil, El Salvador,
Nicarágua, Honduras, Guatemala e Haiti). E quatro entre
esses países enfrentavam um retrocesso ou alguma
estagnação nesse nível do seu esforço educacional
(respectivamente: Nicarágua e Peru; Guatemala e Haiti).
Pensando-se em termos da massa de população em idade
escolar e dos padrões médios da região, excetuando-se o
Peru (cujo caso não possui, em termos relativos, a gravidade
que aparenta) e o Haiti (que praticamente deveria começar
da estaca zero), sete dos países mencionados (na ordem
das diferenças negativas crescentes: Nicarágua e Paraguai;
República Dominicana; Brasil e Guatemala; El Salvador;
Honduras) não lograram crescimento verdadeiramente
compensador das matrículas no ensino superior. Para que
isso tivesse ocorrido, o seu esforço educacional, nesse nível,
deveria ter sido duas, duas vezes e meia, três, cinco e até
oito vezes maior do que foi.
Outro aspecto negligenciado refere-se ao aumento da
variação percentual aparentemente alto (da ordem de 50%,
60%, 80% e até 100%) de seis países que estavam abaixo
da média para a região, em 1950, e mantiveram essa
posição, em 1960 (Honduras, El Salvador, República
Dominicana, Brasil, Colômbia e Equador). A discussão
anterior já esclareceu suficientemente as proporções do
malogro relativo do esforço educacional dos quatro
primeiros países. Restam, pois, os casos da Colômbia e do
Equador, que devem ser estimados em função dos padrões
médios da região. Ambos são dois casos-limites, pois a
variação do aumento percentual das matrículas aparenta
uma magnitude considerável (100% e 80%,
respectivamente). Contudo, apesar de ultrapassarem a
média da região (67%), o esforço educacional de ambos os
países ficou, nesse nível do ensino, aquém do que deveria
ser feito para atingirem a média da região (para que isso
ocorresse, a Colômbia deveria ter realizado um esforço
quase duas vezes e meia maior; e o Equador, pelo menos
mais a metade do que conseguiu realizar). Isso evidencia
que mesmo as duas nações de maior êxito relativo no
segundo grupo de países, na verdade, perderam terreno
quanto ao ritmo médio de desenvolvimento global da
matrícula no ensino superior (embora a perda relativa do
Equador seja de magnitude quase insignificante). Os dois
casos possuem um interesse especial, porém, porque
revelam até onde as aparências são enganadoras. Um
crescimento aparentemente intenso e compensador oculta,
na realidade, a preservação de posições relativas
desvantajosas no conjunto da região. O que quer dizer que o
segundo grupo de países não sairá da estagnação real em
que se acha, se não forem postas em prática medidas
corretivas de natureza estrutural e de longo alcance.
Os resultados dessa análise quantitativa apanham apenas
aspectos da situação que são necessariamente superficiais.
Pelo que se sabe, através das investigações feitas por
educadores e cientistas sociais, o aspecto mais grave do
ensino superior na América Latina é qualitativo. Portanto,
haveria um paradoxo a adicionar ao quadro descrito com
tintas inevitavelmente sombrias. Ele consiste em que, além
de deficiente, a expansão quantitativa desenrola-se numa
direção errada: o sistema escolar, ao crescer e diferenciar-
se, multiplica e difunde um tipo de ensino superior superado
e, sob vários aspectos, “disfuncional” numa sociedade
competitiva em desenvolvimento. Desse prisma, o avanço
do primeiro grupo de países traduziria um progresso ingrato,
porque eles estariam empregando maior soma de recursos
materiais e humanos na propagação e na expansão de um
ensino superior que mereceria ser posto à margem e
superado. Não possuímos dados comparáveis que permitam
discutir semelhantes problemas; e na última parte deste
estudo trataremos, sumariamente, dos aspectos qualitativos
que interessam mais à presente análise. Apenas para nos
situarmos diante desse debate, gostaríamos de assinalar
que o fenômeno apontado não possui o caráter de um mal
em si e de um drama insuperável. Era preciso que os países
da América Latina atingissem um nível de desenvolvimento
socioeconômico que provocasse o desnivelamento social do
ensino superior, com a subsequente expansão das velhas
escolas e dos antigos padrões de escolarização. Só através
desse processo histórico-social, que se acha em curso em
todos os países (embora com intensidade variável), é que se
dará a lenta depuração e a fatal superação de práticas
educacionais envelhecidas ou arcaicas. Por isso, o esboço
descritivo, que pretendíamos realizar, abrangerá apenas
mais duas questões. Uma, que diz respeito à distribuição
das matrículas pelos diferentes ramos de ensino. Outra, que
se relaciona com o destino prático dos graduados. No
exame das duas questões pretendemos completar o
diagnóstico sociológico já esboçado, tentando desvendar se
uma “sociedade subdesenvolvida”, nos marcos históricos do
capitalismo dependente, pode ou não imprimir à
universidade as funções que ela deveria desempenhar para
constituir-se em “fator de desenvolvimento” (ou de
aceleração e de autonomização do desenvolvimento).
Em 1965 graduaram-se, aproximadamente, 71.000
pessoas por universidades ou escolas superiores latino-
americanas. Eis a distribuição dos graduados, pelos diversos
ramos do ensino:[65]
 

 
O conjunto de ramos de ensino ligados com as profissões
tidas como tradicionais (medicina, direito e engenharia)
concorre nada menos que com 52% do total. Doutro lado,
setores tão vitais para o desenvolvimento cultural de uma
nação moderna, como o da educação e o das ciências
naturais, participam de modo relativa mente baixo ou ínfimo
(21% e 4%, respectivamente). Além disso, somando-se os
totais de educação, direito, ciências sociais e econômicas,
arquitetura e belas-artes, temos 37.000 graduados (ou 51%)
contra os 14.000 graduados (ou 20%) de engenharia,
ciências naturais e agricultura. Ao que tudo indica, pois, a
universidade latino-americana ainda não conseguiu superar
as distorções nascidas do antigo condicionamento técnico-
profissional e socioeconômico, que inibia o seu
desenvolvimento como um fator cultural multifuncional.
Essas conclusões poderiam ser confirmadas e ampliadas,
se usássemos os dados concernentes à distribuição de
matrículas em 11 países da América Latina (veja-se o
quadro 3). Tais dados mostram que, entre 1955-56 e 1960,
havia a seguinte distribuição percentual das matrículas:[66]
 

 
Parece evidente que a antiga distorção técnico-
profissional ainda prevalece nas universidades latino-
americanas, em termos que concorrem para preservar uma
alta concentração da procura em torno de ramos do ensino
relativamente pouco significativos para a modernização da
tecnologia, o crescimento econômico e o desenvolvimento
sociocultural. Razões econômicas e psicossociais,
relacionadas com a manutenção de status das famílias de
classe média e alta ou com as pressões dinâmicas de uma
estrutura ocupacional deformada em alguns de seus níveis
pelo congestionamento de profissionais liberais, continuam
a preponderar no ânimo dos jovens e em suas aspirações de
“carreira intelectual”. O círculo permanece tão fechado, que
os jovens são permanentemente compelidos a fazer o
reduzido grupo de escolhas que prevaleciam no passado,
mesmo em sociedades nas quais já existem novos recursos
educacionais, novas oportunidades de “empregos
compensadores” e novas vias de aproveitamento
construtivo do talento.
Tende-se a condenar a universidade latino-americana por
essa situação. Todavia, não é a universidade que cria a
estrutura de avaliações das carreiras, fundadas em
requisitos universitários. Ao que parece, ela se adaptou
profundamente, ao longo de uma evolução secular, às
exigências de uma sociedade que atrelava estreitamente a
universidade a uma organização do poder na qual só
possuíam significação interesses econômicos, sociais e
culturais de uma estreita parcela da população. Isso
produziu uma espécie de vácuo social na configuração da
universidade e de suas relações com a sociedade. Ela
interage estrutural e funcionalmente com esta, mas apenas
no nível da organização de poder em que se encontra
inserida (ou seja, dos interesses materiais e morais das
classes médias e altas, bem como de suas élites
econômicas, culturais e políticas). Daí resultou uma barreira
invisível à diferenciação progressiva das funções na
universidade e uma tendência quase inexorável à
concentração dominante das escolhas em um número
reduzido de ramos do ensino. Como a esse processo
institucional sempre correspondeu uma acentuada
concentração dos graduados em algumas “carreiras
condignas” (o que continua a ocorrer com as oportunidades
intelectuais, científicas ou técnicas emergentes), a
universidade ficou presa dentro de malhas pouco elásticas,
que reduziam inevitavelmente o seu impulso criador e
restringiam fatalmente a sua contribuição para a alteração
da estrutura, do significado e das funções das “ocupações
intelectuais”. Portanto, aprofundando-se a análise,
descobre-se que a universidade não é responsável pela
situação existente e suas consequências mais ou menos
negativas. O aparecimento, a consolidação e a valorização
positiva de novas “carreiras intelectuais” não se produzem
como efeitos secundários da modernização. É preciso que a
própria estrutura da sociedade global se altere, provocando
transformações profundas na organização do sistema
ocupacional, nos critérios de peneiramento dos intelectuais
e no aproveitamento socialmente construtivo do talento.
Como nada disso ocorreu, pelo menos dentro de uma escala
sociologicamente significativa, as mudanças que afetaram a
organização, o funcionamento e o rendimento da
universidade foram superficiais. Até as novas escolas ou
faculdades acabam se defrontando com uma realidade
dramática. Por falta de suporte institucional adequado e de
dinamismos societários vigorosos, elas por assim dizer
envelhecem precocemente. Em vez de fazerem pressão no
sentido de transformar as unidades preexistentes, elas se
obsoletizam por contágio ou graças a controles sociais
indiretos, tornando-se totalmente impotentes diante das
“estruturas arcaicas”. Convertem-se às expectativas
socioculturais predominantes no meio e logo ficam
irrelevantes como fator de mudanças substanciais nas
formas possíveis de vida intelectual.
Os dados apresentados não comportam uma análise
sistemática das orientações da procura de cursos ou de
suas implicações propriamente educacionais. Todavia, eles
sugerem algumas conjecturas, úteis à compreensão do
estado atual do ensino superior na América Latina. Em
primeiro lugar, não deixa de ser impressionante a
negligência de matérias tão essenciais para esses países,
como a agronomia e a veterinária. As pessoas que lidam
praticamente com tais questões, em posições dominantes e
de liderança, formaram seu horizonte cultural através da
rotina, do conhecimento de senso comum e, por vezes, do
folclore. Mesmo quando aceitam inovações de caráter
técnico-científico ou quando admitem a colaboração
circunstancial e localizada dos especialistas, repelem o que
chamam de “técnica formada” e desmerecem de várias
maneiras suas qualificações científicas “teóricas”. Os
motivos que determinam semelhantes atitudes e
comportamentos ligam-se, provavelmente, à defesa de
prerrogativas autoritárias de status e de dominação
incondicional, que poderiam ser minadas e destruídas
juntamente com o tradicionalismo.[67] Doutro lado, não é
raro que a criação e a expansão de escolas de agronomia e
de veterinária (como acontece de modo universal também
com outras faculdades, especialmente as de direito, de
farmácia e odontologia, de filosofia, ciências e letras etc.)
exprimam mais o desejo de possuir certos símbolos de
civilização, que a decisão de enfrentar determinados
problemas em escala racional. Por isso, as escolas mais
fáceis de montar encontram decidida preferência. Elas nada
representam (e em regra nada devem representar) como
fontes de modificação da rotina ou de mobilização e de
utilização racionais dos recursos materiais e humanos do
ambiente.
Em segundo lugar, é preciso notar-se que a alta
concentração da procura em certos ramos do ensino
superior, como a arquitetura, a engenharia e a medicina
(que alcançaram 42,5% das matrículas), não quer dizer que
as universidades da região estejam formando e preparando
o pessoal especializado que seus países necessitam nesses
setores. Ao contrário, não só existe escassez de pessoal
qualificado nessas áreas, como são notórios tanto a sua má
distribuição dentro dos diferentes países (em regra, os
graduados tendem a preferir as grandes cidades ou as
metrópoles como núcleos de exercício de suas profissões),
quanto o seu subaproveitamento (com frequência em
atividades bem remuneradas e de prestígio, mas que não
requerem as qualificações indicadas). Além disso, na
maioria dos países, os médicos e os engenheiros,
principalmente, têm demonstrado que são mais sensíveis à
defesa dos seus níveis de renda e de prestígio que às
necessidades mais ou menos prementes de seus povos.
Fundados em razões aparentemente louváveis, como a “alta
qualidade do ensino” ou a “preparação rigorosa” para a vida
profissional, impedem, restringem ou inibem o
aproveitamento da capacidade ociosa de suas escolas ou
faculdades. No que diz respeito à expansão do ensino de
arquitetura, engenharia e química industrial, ao que parece
apenas o México está tentando realmente modificar, de
maneira decisiva, os padrões tradicionais. Em menor escala,
o mesmo parece estar acontecendo na Colômbia e no
Panamá. Merece também consideração especial, por
motivos inversos, a situação do Brasil. Apesar de carecer de
uma reviravolta nesse campo (não só pela extensão do país
e do volume da população, mas por causa de ter a
industrialização atingido a fase de formação de indústrias
de produção de bens de produção), o Brasil está abaixo das
médias globais e muito abaixo do esforço educacional dos
países que estão enfrentando com maior tenacidade as suas
deficiências nesses setores. No que tange à farmácia,
medicina e odontologia, duas coisas chamam a atenção. De
um lado, as deficiências flagrantes, que alcançam
proporções dramáticas em alguns países da América Latina.
De outro, que alguns países estão empenhados em corrigir,
como podem, tais deficiências. O que acarreta,
naturalmente, porcentagens que são aparentemente altas
para o grau de diferenciação e de desenvolvimento dos
respectivos países. De qualquer modo, seria bom não se
perder de vista uma hipótese de conjunto. Os dados
sugerem, conclusivamente, que os onze países,
representativos dos dois grupos analisados acima, em
ramos do ensino importantes para o desenvolvimento como
a engenharia, a química industrial e as ciências médicas,
mal conseguem adaptar-se à pressão do aumento crescente
das matrículas. Excetuando-se o México, prevalece uma
orientação passiva e inibidora, a qual impede que a
universidade assuma a iniciativa de romper os bloqueios
tradicionais, forçando modificações urgentes na organização
e distribuição das matrículas.
Em terceiro lugar, cumpre-nos observar que nem sempre
são justas as críticas feitas à preponderância da procura em
ramos do ensino como o direito, as ciências sociais e
econômicas, a pedagogia etc. Tais críticas fundam-se na alta
participação do direito nessa procura (por si só, esse ramo
do ensino entra com uma quota de 25% a 30% ou mais das
matrículas, na maioria dos países) e na presunção de que o
direito não possui mais a importância que teve no passado
como fonte de recrutamento das élites culturais, político-
administrativas e econômicas. Na realidade, porém, a
maioria dos países ainda depende dos “bacharéis em
direito” para compor suas élites. E a carência de cientistas
sociais e de professores de ensino médio, além das
necessidades que impõem o uso maciço do planejamento,
tornam as demais escolas superiores tão úteis e necessárias
quanto as de engenharia, química e medicina. Feitas essas
ressalvas, seria conveniente mencionar alguns traços
sintomáticos do atual sistema de ensino, revelados pelas
indicações expostas. A maneira pela qual países tão
diversamente desenvolvidos na esfera do ensino superior
(como Argentina, Brasil, El Salvador, Costa Rica, Panamá,
Paraguai e Peru) oscilam em torno ou acima da média global
sugere o quanto a procura nesse nível reflete a persistência
do padrão tradicional. Essa implicação deve ser
devidamente ponderada, pois ela assinala que, nesse plano,
não existem diferenças substanciais entre os dois grupos de
países. Independentemente da magnitude do seu esforço
educacional e de sua pobreza ou riqueza relativas, todos
tentaram e conseguiram um mínimo de êxito na montagem
do tipo de “ensino superior” que era encarado pelas élites
tradicionais como o próprio símbolo da “cultura refinada” e
da qualificação para o exercício do poder. Os mesmos dados
apoiam uma observação importante. O México e a Colômbia
são os dois únicos países cujo esforço educacional está
fortemente abaixo da média, quanto a esse nível do ensino
superior. Como não se pode presumir que isso resulte de
uma escassez relativa de recursos para a educação, é
provável que esteja emergindo uma tendência definitiva no
sentido de reorientar e reorganizar a procura das matrículas
universitárias. Não deixa de ser sintomático, porém, que
apenas em dois países sobre onze apareça tal tendência,
tida em muitos círculos intelectuais como a pedra de toque
para o início de transformações verdadeiramente
substanciais do ensino superior.
A segunda questão leva-nos à discussão do destino
prático dos graduados. Apesar do muito que se escreveu a
respeito, não se dispõem de dados comparáveis,
suficientemente consistentes, para toda a América Latina.
Faltam, especialmente, indicações mais ou menos precisas
sobre os requisitos intelectuais das ocupações em que os
graduados são aproveitados. Em regra, pode-se afirmar que,
excetuando-se carreiras inerentes às “profissões liberais” ou
técnicas, a preferência por graduados não nasce de
exigências intelectuais específicas, mas de questões de
prestígio, tradição ou de pura solidariedade social. Doutro
lado, a emergência e a ascensão das classes médias não
quebraram os padrões tradicionais, como se tem
interpretado tão generosamente. As classes médias não
tinham meios para privilegiar a riqueza, o prestígio social ou
o poder em sua competição por status e por mobilidade
vertical. Tais fatores eram monopolizados pelas classes
altas. Por isso, a acumulação de saber ou de “cultura”
erigiu-se em seu verdadeiro bastião nas relações
competitivas com as demais classes, embora isso não
engendrasse nenhuma forma de monopolização do saber ou
da “cultura” (pois as classes altas preservaram suas antigas
posições nesse nível, admitindo apenas um alargamento
dos círculos sociais que tinham acesso às formas
privilegiadas de educação). Em consequência, as classes
médias tenderam a se acomodar aos padrões tradicionais,
de supervalorização e de nobilitação tanto do título de
bacharel, quanto da preferência pelos setores da advocacia,
medicina e engenharia. Onde e como puderam,
manipularam a ordem legal com vistas à criação de
requisitos de exercício das profissões que impunham (ou
poderiam impor) qualificações universitárias. Dessa
maneira, privilegiavam o fator através do qual contavam
com probabilidades de competir com as classes altas numa
estrutura social eivada de privilégios. Por aí se explica por
que as transformações tão profundas, acarretadas pela
“revolução burguesa” no plano econômico, tecnológico e
político, quase não afetaram a organização, o
funcionamento e o rendimento das universidades. Estas
continuaram a ser uma espécie de “fábrica de bacharéis”,
no melhor estilo da antiga universidade.
Esse processo não impediu que as relações entre a
universidade e a sociedade se alterassem em muitos
pontos. Graças à complicação da divisão social do trabalho,
o sistema de ocupações inerente à economia de mercado, à
“grande cidade” e ao “Estado moderno”, surgiu em todos os
países como uma realidade histórica. Essa circunstância,
combinada ao mecanismo pelo qual as classes médias
privilegiaram intelectualmente (e por vezes também
legalmente) os requisitos universitários das profissões
“qualificadas” ou “altamente qualificadas”, determinaram a
persistência e a redefinição social dos padrões tradicionais
no novo contexto histórico. Como no passado mais ou
menos remoto, os graduados visam a carreiras altamente
compensadoras (em prestígio, em renda ou em ambas as
coisas) de “natureza intelectual”; e como então sucedia,
várias dessas carreiras situam-se no âmbito de atuação do
profissional liberal, livre e independente, ou nos setores de
atividades do “homem de ação” (da política à administração
pública e privada). Ao que parece, no entanto, as mudanças
econômicas, tecnológicas e políticas tendem a estabelecer
uma nítida predominância do assalariamento do
universitário. Pode-se verificar essa tendência através das
seguintes indicações, pertinentes a 1950, que evidenciam
que a proporção de profissionais, semiprofissionais e
técnicos livres é, normalmente, 2, 3 ou 4 vezes menor (e
circunstancialmente é 5, 6 ou até 7 vezes menor) que a dos
seus colegas assalariados:[68]
 
 
Está em curso, portanto, um processo de transformação
do sistema ocupacional, com referência a profissões com
requisitos universitários, que se adapta às mudanças de
estrutura da ordem econômica, social e política.
Infelizmente, não existem dados que permitam analisar as
implicações educacionais (especialmente no nível do ensino
superior) desse processo. Até o presente, é possível avaliar
apenas um aspecto de suas consequências. Trata-se da
dispersão (ou da polarização dispersiva) do pessoal com
formação universitária. É cada vez maior a amplitude e a
diversificação de oportunidades de carreira que a sociedade
oferece aos graduados das universidades, tanto dentro de
uma linha que respeita e aproveita as potencialidades da
especialização, quanto numa linha de intensificação
crescente de duras competições interprofissionais. Esse
processo, todavia, não pode ser descrito com relação a
todos os países. Utilizando-nos de informações
concernentes ao Brasil, contudo, podemos esboçar uma
imagem viva do que está acontecendo. Assim, dados
relativos a pessoas ocupadas em profissões técnico-
científicas (no censo de 1/7/1950) revelam que, num total
de 97.114 profissionais, semiprofissionais e técnicos, 42.265
(ou seja, 47%) dedicavam-se às profissões liberais,
enquanto 51.849 (ou seja, 53%) dedicavam-se a outras
atividades, por conta própria ou como assalariados. O
quadro 9 fornece uma visão de conjunto da situação
brasileira, sob esse aspecto (note-se que várias profissões
técnico-científicas não foram computadas: economistas,
sociólogos, psicólogos, orientadores educacionais,
administradores etc.). Por ele se verifica que algumas
profissões técnico-científicas são mais suscetíveis que
outras à polarização dispersiva. Os dentistas e protéticos
(com 92,9% em profissões liberais), os advogados (com
75%) e os médicos (com 51,9%) estão entre os profissionais
que logram o máximo de autonomização numa estrutura
ocupacional competitiva. Por sua vez, o inverso se revela
com os químicos (com 2,2% em profissões liberais), os
agrônomos (com 9,8%), os engenheiros (com 10,4%), os
veterinários (com 16,8%) e os arquitetos (com 25,5%), os
quais tendem a um máximo de irradiação dispersiva. Com
três exceções, que não vem ao caso discutir, essa irradiação
envolve os profissionais de formação universitária em todos
os ramos de atividade econômica. É possível que as
proporções indicadas traduzam potencialidades de
aproveitamento de pessoal de nível superior alcançadas
pela sociedade brasileira na década de 1950. Entretanto,
presumimos que as tendências centrais possuem caráter
geral (em termos da organização da economia e da
sociedade sob o capitalismo dependente), aplicando-se pelo
menos aos países da América Latina que conseguem formar
internamente os profissionais em questão.
O processo mencionado suscitou várias controvérsias. Há
quem pense que a tendência a incorporar o universitário a
“élites culturais” de funções criadoras tão dispersivas e
improdutivas seja uma degradação do intelectual. Também
se tem ventilado o problema de saber se a maneira indicada
de dispersar os graduados de diferentes ramos de ensino
em carreiras tão variadas e disparatadas não seria mera
devastação de recursos humanos relativamente escassos
(já que, no mínimo, haveria subaproveitamento sistemático
de pessoal de nível superior). Na verdade, semelhante
irradiação dispersiva de intelectuais com formação
universitária não estimula a produção criadora e colide
abertamente com o que se poderia chamar de uso racional
do talento pela sociedade. Mas, é preciso ter-se em vista
que os países latino-americanos estão incorporando, dessa
maneira, novas formas de saber artístico, científico ou
técnico a uma massa crescentemente maior de indivíduos.
Isso significa que se está alterando, por uma via tão
tumultuosa quão dispersiva e cara, os conteúdos e a
organização do horizonte cultural dos “intelectuais”. Aos
poucos, a sociedade acabará contando, em quantidade e
em qualidade, com pessoal abundante para ocupações que
exigem altas qualificações. Portanto, ao processo descrito
são inerentes pelo menos alguns significados positivos, que
têm sido negligenciados. O nível de qualificação dos
diferentes tipos de profissionais, que controlam as posições-
chaves da estrutura ocupacional de uma sociedade
moderna, constitui em si mesmo um dos fatores invisíveis
mais importantes da continuidade e da intensidade do
desenvolvimento econômico e sociocultural. O que se
poderia e deveria pôr em causa, sob esse prisma, não seria
a polarização dispersiva de “intelectuais” com formação
universitária, mas se eles obtêm (ou deixam de obter), nos
cursos universitários, o mínimo de qualificação requerida ou
desejável. Posta nestes termos, a questão muda de aspecto.
Pois as escolas e faculdades que ministram ensino superior
(inclusive nos países do primeiro grupo) raramente estão
adaptadas para preencher a função de preparar seus
graduados para os diferentes tipos de carreira em que eles
são ou podem ser aproveitados. Eles sequer “aprendem a
aprender” nas escolas e faculdades mais deficientes. As
instituições que absorvem os graduados, por sua vez,
também raramente possuem condições para complementar
e aperfeiçoar a aprendizagem universitária (tanto no setor
público, quanto no setor privado). Estabelece-se, assim, um
círculo vicioso, que redunda, de fato, no “mau uso” e no
“subemprego sistemático” de fatores humanos essenciais à
criação de suportes psicoculturais do desenvolvimento
econômico e social.
O aspecto mais dramático da situação, do ponto de vista
em que ela é colocada neste trabalho, consiste em que o
círculo vicioso apontado não encontra um fator de ruptura e
de superação nem no crescimento da estrutura ocupacional
da sociedade nem em algum desequilíbrio súbito de origem
especificamente educacional. É sabido que o crescimento
econômico tende a diluir, a longo prazo, as inconsistências
institucionais do sistema escolar. Doutro lado, em condições
de ebulição social e política, o sistema escolar por vezes
consegue (através do egresso das universidades e
independentemente do padrão e do ritmo do crescimento
econômico) imprimir à sociedade uma evolução
revolucionária. Até o presente, nenhuma das duas
alternativas se configurou como uma saída histórica nos
países da América Latina. O impulso fornecido à mudança
institucional pela “revolução burguesa”, sob o capitalismo
dependente, é descontínuo, fraco e dispersivo. Além disso,
atingido certo patamar mais avançado, os efeitos
construtivos do crescimento econômico deixam de operar
construtivamente em escala nacional, porque em seguida
aquele patamar se estabiliza (por falta de fatores de
aceleração da mudança) e deixa de funcionar como um
simples elo na direção de uma organização econômica mais
complexa. Em semelhantes condições, o agente humano da
mudança institucional redefine constantemente suas
motivações econômicas, sociais e políticas, imprimindo
insensivelmente maior peso aos interesses egoísticos que o
prendem ao statu quo ante. Desse modo, esvazia de modo
parcial ou total e perverte de um jeito ou de outro o
complexo processo de adaptação das instituições às suas
funções econômicas, sociais e políticas emergentes. Foi
graças a uma progressão desse tipo que as universidades
ficaram permanentemente envolvidas pela situação de
interesses e pela perspectiva social dos estratos superiores
das classes médias e altas. As ideologias e as utopias
educacionais, que poderiam dar fundamento a uma
autêntica e profunda “reforma universitária”, em vez de
serem usadas como forma de negação e de superação da
antiga universidade, serviram de biombo para ocultar a sua
perpetuação sob novo figurino. Em consequência, da
universidade e dos seus egressos não partiu nenhum
processo cultural de teor revolucionário, suscetível de
causar um impacto sobre a transformação da ordem legal e,
através dela, sobre o crescimento econômico e o
desenvolvimento social.
Os quadros 6, 7 e 8[69] lançam, indiretamente, alguma
luz sobre esses aspectos sombrios do impasse que nasce da
conjugação crônica de ritmos insuficientes de crescimento
econômico com padrões débeis e inconsistentes de
mudança institucional. O que chama a atenção do analista,
nos referidos quadros, é o círculo vicioso quase perfeito que
inibe, solapa ou destrói qualquer influência recíproca
altamente criadora nos sentidos economia Ü sociedade Ü
ensino superior; ou ensino superior Ü sociedade Ü
economia. Como a inibição, o solapamento ou a
neutralização das influências dinâmicas construtivas se dá
sob transformações quantitativas constantes, o aspecto
sociopático da rigidez relativa do ensino superior é perdido
de vista. Contudo, a estrutura ocupacional e da renda,
suportada pelo sistema econômico, não alimenta um
processo educativo suficientemente diferenciado e vigoroso
para galvanizar a universidade, erigindo-a em um fator real
de ruptura da inércia cultural e do desenvolvimento. No
conjunto total de ocupações, apenas 1,4% das pessoas
ocupadas dispõem de formação universitária (completa ou
incompleta). Elas concentram-se em algumas categorias
ocupacionais (fornecem 23,6% dos profissionais e técnicos,
9,9% dos administradores e gerentes, e 2,0% dos
empregados e vendedores). É esse número ínfimo que
delimita a estrutura ocupacional das pessoas com formação
universitária (na qual 62,3% se ocupam como profissionais
e técnicos; 21,7%, como administradores e gerentes; e
16,0%, como empregados e vendedores). Por aí se
depreende o que a formação universitária pode representar,
estrutural e funcionalmente, como “força socioeconômica”.
Em condições de crescimento econômico contínuo e em
aceleração crescente, essa minoria poderia agir como um
elo dinâmico entre a ordem social estabelecida e a
transformação da economia, da tecnologia e do sistema de
instituições (inclusive as instituições educacionais e, entre
elas, as universidades). Nas condições predominantes da
América Latina, de estancamento econômico e de
crescimento econômico instável ou moderado, essa minoria
apenas opera como um elo dinâmico entre a ordem
existente e a estabilidade social (ou a mudança sob o
máximo de segurança para os estratos superiores das
classes médias e altas). Por sua própria situação
socioeconômica, tal minoria está condenada (pelo menos
enquanto prevalecerem as condições econômicas, sociais e
culturais do presente) a canalizar o crescimento econômico
e o desenvolvimento educacional (especialmente do ensino
médio e superior) no sentido da preservação e do
fortalecimento dos seus próprios níveis de renda, de
prestígio social e de poder. Os sociólogos sabem que não
existe “lógica dos grandes números” que resista ao
estancamento socioeconômico crônico ou ao
desenvolvimento socioeconômico moderado. Todavia, dadas
e mantidas essas mesmas condições, a alternativa da
“lógica dos pequenos números” desemboca numa
encruzilhada, na qual todos os privilégios se unificam para a
defesa do que garante a existência e a sobrevivência dos
privilégios: a ordem estabelecida. Atrás de uma mudança
aparentemente contínua, profunda e avassaladora,
esconde-se a perpetuação do statu quo ante, porque o que
está em jogo não é a negação e a extinção dos privilégios,
mas a sua continuidade sob novas formas.
Isso não significa, naturalmente, que tudo esteja ou
permaneça como no passado. Se não ocorrer um mínimo de
mudança institucional e de crescimento econômico, de
modo constante, a própria estrutura ocupacional e de
distribuição da renda, em que se fundam os privilégios
econômicos, sociais e educacionais vigentes, se veria
ameaçada. Mas que, dependendo do impulso atual do
crescimento econômico e do ritmo da mudança institucional
que resulte da atuação consciente das élites culturais, a
conjugação entre universidade e desenvolvimento tenderá a
estabelecer-se dentro de níveis em que o fundamental
sempre virá a ser resguardar o padrão tradicional de
aproveitamento dos graduados pela sociedade. Se esse
panorama não se alterar a partir da própria estrutura
ocupacional e de distribuição da renda, é mais que certo
que ele não se modificará a partir da universidade. Pois ela
não dispõe de dinamismos bastante fortes para romper o
terrível isolamento cultural a que se vê relegada, em virtude
dessa mesma estrutura ocupacional e de distribuição da
renda, que privilegia os seus graduados.
UNIVERSIDADE   E   DESENVOLVIMENTO

A QUESTÃO DE SABER-SE qual é a importância estrutural e


dinâmica das universidades como fator de desenvolvimento,
na América Latina, depende, naturalmente, do que se
entenda por “desenvolvimento”. Uma sociedade nacional
pode transformar-se de maneira acelerada e tumultuosa,
sem que se possa falar, no entanto, que ela esteja se
diferenciando no padrão organizatório de sua estrutura
social, ou seja, que se encontre em desenvolvimento. Isso
significa que a universidade pode se ver projetada no
contexto de uma sociedade em mudança — e contribuir
positivamente para o condicionamento, a orientação ou a
intensificação de determinadas mudanças — sem que
mereça ser qualificada, sociologicamente, como “fator de
desenvolvimento”.
Atendo-nos apenas ao que nos interessa diretamente, na
situação econômica, sociocultural e política, imperante na
América Latina, desenvolvimento significa alteração na
posição através da qual suas sociedades nacionais
participam da civilização ocidental. O subdesenvolvimento
dessas sociedades decorre do modo pelo qual elas
participam dessa civilização: através de uma posição
heteronômica (ou dependente), que não se altera pela
simples manifestação do crescimento econômico e da
mudança sociocultural progressiva. Ambos são requisitos
para que elas se mantenham numa posição heteronômica
em um mundo em mudança (isto é, são condições para que
elas se adaptem, dinamicamente mas na mesma posição
dependente, às alterações ocorridas nas estruturas
econômicas e de poder no plano internacional). As
universidades das nações subdesenvolvidas também estão
inseridas nessas relações de dependência e concorrem para
preservar as formas de subordinação cultural existentes,
servindo de elo à assimilação de cultura produzida nas
nações desenvolvidas e hegemônicas, que exercem o
monopólio na invenção e difusão das formas básicas de
saber. Elas podem exercer influências ativas, diretas ou
indiretas, sobre o crescimento econômico e a mudança
sociocultural, e, não obstante, tais influências podem estar
especificamente vinculadas à preservação do statu quo (no
caso, a consolidação da ordem social competitiva que
emerge e se expande em conexão com o capitalismo
dependente).
Dessa perspectiva, a universidade só aparece e se afirma
historicamente como “fator de desenvolvimento”, quando
concorre para a negação e a superação desse statu quo.
Realizada esta condição estrutural-funcional, os seus
dinamismos se caracterizam pela contribuição que ela dá,
institucionalmente, para a autonomização progressiva da
respectiva sociedade nacional na esfera da cultura. Nesse
sentido, ela assume, desde o momento em que se coloca a
negação e a superação do subdesenvolvimento, funções de
transição que possuem caráter revolucionário, ajudando a
calibrar e a orientar o tipo de revolução que é inerente ao
desenvolvimento.
As duas partes precedentes deste estudo demonstram,
conclusivamente, que isso não está ocorrendo (e ao que
parece está longe de ocorrer) na América Latina. Mesmo os
países mais “ricos” e “avançados” da região (com a exceção
de Cuba) projetam o seu esforço educacional, em todos os
níveis do ensino, numa direção que preserva ou aumenta
sua dependência cultural em relação ao exterior e que
redunda no fortalecimento da ordem social competitiva
associada ao capitalismo dependente. Em consequência,
suas universidades obedecem a diretrizes que as convertem
em fatores de progresso cultural, mas nas condições
crônicas, predominantes, de subdesenvolvimento. Suas
funções socioculturais construtivas estão voltadas para a
consolidação do statu quo, cabendo-lhes imprimir a eficácia
possível ao padrão de integração da ordem social
competitiva nascido da conjugação de hegemonia cultural
externa, capitalismo dependente e estratificação em classes
sociais.
Essa conclusão choca-se com o que se afirma comumente
sobre o assunto, com base em evidências quantitativas ou
qualitativas mal interpretadas. Na verdade, o pensamento
corrente procede de políticos, educadores e cientistas
sociais que confundem sistematicamente “mudança
sociocultural progressiva” e “desenvolvimento”. Assim,
qualquer evidência de alteração pode ser tomada como
sintoma de desenvolvimento, independentemente de suas
relações dinâmicas com a preservação estrutural ou com a
transformação estrutural do statu quo. É óbvio que viciam a
perspectiva de análise e acabam descobrindo o que
desejariam que acontecesse. O “progresso educacional”
pode assumir várias dimensões e possuir vários
significados. Cabe à investigação sociológica determinar o
que tais dimensões e significados representam no contexto
social. Até o presente, pelo menos, o “progresso
educacional” que se vem desenrolando nas universidades
latino-americanas ainda parece insuficiente sequer para
servir de patamar à avalanche, que se desencadeia nas
fases incipientes de negação do subdesenvolvimento e de
transição para formas mais ou menos autônomas de vida
intelectual fermentativamente criadora.
De acordo com essa compreensão do assunto, as
universidades latino-americanas — mesmo as melhores: em
termos de pessoal, de equipamento, de orientação e de
realizações — ainda não se adaptaram, de fato, às funções
que, embora contingentes e transitórias, são vitais para a
negação e a superação do subdesenvolvimento: a conquista
de autonomia intelectual na organização do esforço
educacional e de criação intelectual, com vistas aos dilemas
materiais, humanos e morais que deitam raízes na falta de
correspondência efetiva entre a ordem social vigente e a
forma de integração da sociedade nacional. Em todas as
esferas cruciais de organização do esforço educacional e da
criação intelectual, prevalece uma acomodação mais ou
menos passiva diante das soluções procedentes do exterior
(às vezes até postas em prática sob supervisão direta de
agentes humanos vindos de fora), que substitui o processo
que seria “normal” nas nações avançadas — a descoberta
das soluções necessárias à luz do padrão de civilização
vigente e do poder que ele confere ao homem de intervir
consciente e deliberadamente, na organização e na
alteração da porção institucionalizada do meio social.
Acresce que a busca e o aproveitamento das vias possíveis
de destruição das barreiras mais visíveis da heteronomia
cultural desenrolam-se em planos nos quais o irrealismo e
as atitudes compensatórias (de cunho individual, grupal ou
nacional) importam mais que a realização eficaz, que possa
servir de patamar para a espiral da acumulação cultural
progressiva, com verdadeiros ganhos na absorção e
interiorização de processos de invenção cultural. Essa
situação cultural configura-se, do ponto de vista sociológico,
como inegavelmente sociopática. As universidades latino-
americanas submetem-se, de maneira variável, ao clima
dominante de resistência à mudança progressiva, de
solapamento sistemático das inovações necessárias a um
esforço educacional e de criação intelectual
autonomizantes, e de desmoralização do pensamento
produtivo livre. Daí as conhecidas formas de derrotismo, de
“mudança de fachada” e até de charlatanismo intelectual
que elas, com frequência, abrigam, favorecem e chegam a
estimular. Em consequência, dentro delas torna-se difícil e
precária a mudança progressiva que acarrete
desenvolvimento: recursos materiais e humanos
ultraescassos são mal aplicados ou dissipados
destrutivamente de maneira crônica. E o seu crescimento se
processa em zigue-zagues, com constante perda e
reconquista das posições ganhas, como se o professor
universitário responsável devesse lutar, durante toda a sua
vida, com os mesmos problemas instrumentais,
relacionados com as condições mínimas do seu labor
intelectual. Poder-se-ia argumentar, em sentido contrário,
com os “casos excepcionais”. Eles, no entanto, apenas
confirmam a regra. Na América Latina, como em qualquer
parte, eles rompem o seu caminho contra a adversidade,
graças ao seu talento, à sua coragem e decisão ou ao apoio
também excepcional que às vezes atraem. Contudo, é
evidente que eles não conseguem alterar as condições
rotineiras de trabalho, pois a realidade continua a mesma
para os demais e, em seguida, para os seus próprios
sucessores.
Portanto, o aspecto institucional é deveras importante
para entender-se o que ocorre com as universidades latino-
americanas. Só que é preciso fazer-se uma espécie de
rotação macrossociológica, para ver-se a instituição em suas
relações estruturais e dinâmicas com a sociedade e a
cultura, em escala nacional. Parece evidente que a
sociedade e a cultura não lhes deram o impulso que, em
outras situações históricas, conduziu os mesmos modelos
institucionais às culminâncias de suas potencialidades
educacionais e intelectuais. Ao inverso do que se admite, a
conclusão que se poderia tirar, do que tem acontecido e do
que está acontecendo, consiste em que tanto os modelos
institucionais “antigos”, quanto os “modernos” foram e
continuarão a ser mal explorados, em grande parte, por
causas extrínsecas à vida universitária. Esta foi plasmada
sob um clima permanente de baixas exigências e de apoio
superficial e irregular. Não é de admirar-se, por conseguinte,
o baixo rendimento. Mas que, em tais condições, as
universidades funcionem, produzam alguns frutos e atinjam,
aqui ou ali, resultados dignos de consideração.
Na análise dessa questão, pelo menos enquanto
prevalecerem as condições de subdesenvolvimento, deve-se
pôr de lado o tipo de abordagem sociológica usualmente
empregado pelos sociólogos das nações avançadas no
estudo de suas universidades. As correlações entre certas
condições da organização do ambiente (como índices do
crescimento econômico, da urbanização, da secularização
do comportamento político ou econômico etc.) e as
tendências mensuráveis do “progresso educacional”, no
nível do ensino superior, apenas explicam os dinamismos
que revelam o grau de adaptação dos modelos
institucionais, absorvidos pelas universidades, às condições
histórico-sociais imperantes na América Latina. O que quer
dizer que explicam como e por que os dinamismos das
universidades latino-americanas são os dinamismos das
universidades de nações subdesenvolvidas, que ainda não
aprenderam ou mal começam a aprender a utilizar seus
recursos materiais e humanos para enfrentar o
subdesenvolvimento. Elas só são heuristicamente
iluminadoras por uma razão: deixam irrefutavelmente claro
que a uma sociedade nacional subdesenvolvida
correspondem, de modo fatal, universidades
subdesenvolvidas. Os professores, pesquisadores e
estudantes universitários repudiam amargamente as
injunções dessa ideia. Doutro lado, a própria valorização e o
cultivo sociais da universidade como “símbolo de civilidade”
(senão de civilização) chocam-se com essa constatação.
Contudo, ambas devem ser admitidas como o ponto zero de
uma mudança de orientação diante do próprio uso
estratégico da universidade como fonte de autonomização
cultural e fator de racionalização na utilização produtiva de
recursos materiais ou humanos escassos. Na verdade, nem
o excedente criado pelo crescimento econômico, nem o uso
social desse excedente, nem o modo de empregar a parcela
dele que é destinada às universidades permitem configurar
a realidade de outra maneira. O melhor parece ser a
admissão pura e simples dessa circularidade, como meio
para conhecê-la positivamente e combatê-la com maior
eficácia. Mantida na penumbra, nada se altera; e a própria
universidade fica à margem da história e da evolução
cultural do seu país, tendo valor efetivo e perene apenas
como “símbolo civilizatório”.
Por isso, o foco da análise sociológica, a partir da situação
de interesses de que compartilha o investigador que
pertence à sociedade subdesenvolvida, deve estar nos
aspectos que permitam explicar a persistência dos referidos
dinamismos da “universidade de nação subdesenvolvida”. É
presumível que de algum ponto deveria esboçar-se e
irromper uma ruptura com as acomodações sociais e
intelectuais que redundam nessa persistência. Ou de dentro
da universidade; ou de fora, através do comportamento
inteligente das elites culturais ou então da ação de círculos
sociais inconformistas; ou de todos esses setores,
conjugadamente. O conformismo diante dos padrões
culturais e do horizonte intelectual médio predominantes
em tal tipo de universidade e, o que é pior, a aceitação e a
valorização da “mediocridade satisfeita”, que elas instituem
como parte normal da vida acadêmica, são indicadores
expressivos de que nenhum círculo social e nem mesmo os
intelectuais encastelados nas universidades se empenham
decisivamente na superação dessa conjuntura.
Na raiz de semelhante apatia não está nem o grau de
crescimento econômico, nem a intensidade da urbanização,
nem os contrastes entre a “sociedade tradicional” e a
“sociedade moderna”, nem tampouco as inconsistências da
secularização de atitudes e comportamentos sociais. Sem
dúvida, efeitos de tais processos se fazem sentir tanto na
superfície, quanto no fundo da vida universitária. Todavia, o
que acontece nos países subdesenvolvidos é que esses e
outros processos se equacionam dentro de limites
quantitativos e qualitativos que são insuficientes para
alterar os rumos preestabelecidos das coisas. Estas
continuam praticamente como antes ou quase iguais depois
da intensificação do crescimento econômico, da
urbanização, da modernização etc. De fato, o moderno
arcaíza-se com a mesma facilidade com que o arcaico se
moderniza. Feitas as contas, a mudança real e substancial é
muito menor do que se pensa. Por isso, não opera como
fator de precipitação e de coordenação de outras mudanças
subsequentes. A razão disso não está no homem, mas no
tempo dentro do qual ele organiza socialmente suas
atividades e constrói a sua história.
De qualquer modo, valeria a pena fazer duas
ponderações. Se existissem disposições coletivas
igualmente fortes, polarizadas em torno de opções culturais
conflitantes e inconciliáveis, é provável que surgissem
círculos sociais empenhados em combater o
subdesenvolvimento (como existem círculos sociais que
estão empenhados em preservá-lo indefinidamente). Nesse
sentido, as limitações existentes só são barreiras na medida
em que não surgem forças sociais que atuem na direção
oposta, desencadeando formas realistas de consciência
social da situação e de atuação social inteligente. Segundo,
é preciso evitar a tentação de converter tradicionalismo e
modernização em encarnações antitéticas do bem e do mal.
Muitas das forças “modernizadoras”, ligadas a interesses
sociais internos ou externos, trabalham abertamente contra
a autonomização econômica, social e cultural da América
Latina. Mesmo as classes médias, que já foram
representadas como o fiat do “crescimento equilibrado”, são
propensas a comportamentos sociais tão egoísticos e
destrutivos quanto os setores tradicionais das classes altas
(como se verifica através de suas tentativas de defender
níveis de consumo incompatíveis com o estancamento
econômico ou no apoio sistemático que dispensam a
regimes totalitários disfarçados). As grandes organizações
estrangeiras, que parecem provocar uma revolução
tecnológica, estão traduzindo os liames da dependência
econômica e cultural para a lógica dos nossos dias. Elas
inauguram a era da tecnologia moderna, mas sob a
dominação do mercado e da cultura pelos centros de
irradiação do capitalismo monopolista. Portanto, é ingênuo
supor-se que se possam transferir precedentes de países
que transitaram da “sociedade tradicional” à “sociedade
moderna” em bloco e sob processos autossustentados para
as nações subdesenvolvidas. Nestas, toda a realidade é
diferente, e a verdadeira força dinâmica emerge quando os
conflitos de classe atingem as estruturas de poder e
ameaçam politicamente os interesses sociais “internos” ou
“externos”, que sejam responsáveis pelo estado crônico de
subdesenvolvimento.
Se nos descartarmos das interpretações parciais e
ilusórias, teremos de buscar os fatores topicamente
explicativos nos processos de formação e de diferenciação
das sociedades latino-americanas, que afetaram ou afetam
a organização e o rendimento de suas universidades como
instituições sociais. Sobre três pontos já existem evidências
conclusivas, que permitem entender melhor a situação e,
talvez, modificá-la no futuro próximo.
Em primeiro lugar, a emergência do Estado e a evolução
posterior da “sociedade nacional” não ocasionaram a
extinção de velhas estruturas de poder. Ao contrário, estas
se incrustaram nas instituições emergentes e acabaram
decidindo como elas deveriam funcionar. Esse processo nos
interessa aqui em virtude de suas evidentes implicações
socioculturais dinâmicas. Ele levou a uma situação histórico-
social na qual Povo, como entidade social, e Povo, como
entidade política, são coisas distintas e exclusivas. Para as
elites tradicionais, “Povo” tanto podia ser a ralé ignorante e
desprezível (tomada a palavra na primeira acepção), quanto
o pequeno grupo de detentores privilegiados do poder
(tomada a palavra na segunda acepção). À nossa análise
somente interessam algumas implicações desse
desdobramento de perspectivas. Ele significa que o Estado
nacional surgiu e consolidou-se sem que existisse um
movimento paralelo de integração nacional, que abrangesse
todas as classes sociais em presença. Em consequência, a
integração nacional iria refletir, a cada momento histórico,
as constelações de interesses econômicos, sociais e
políticos que dominassem o rateio do poder organizado
institucionalmente. Ela nunca aparece como mero
amálgama (pois em cada momento representa uma
composição articulada de interesses econômicos, sociais e
políticos solidários ou convergentes), mas também nunca
traduz os elementos comuns e universais do querer
coletivo. Configura-se como o poder de coalizão das classes
que encarnam o querer coletivo politicamente, falando e
decidindo em nome dele.
A esse processo de formação societária nacional
corresponderam formas típicas de nacionalismo e de
democratização do poder. O nacionalismo emergiu e evoluiu
como uma força disciplinada, contida e parcial, que
respondia às modalidades de consciência social, de
interesses e de valores dos estratos sociais dominantes. Ele
não adquiriu uma natureza explosiva e revolucionária nem
assumiu poder integrativo aglutinante, pois não devia
exprimir a conciliação de concepções, de interesses e de
valores sociais em tensão e em conflito. Por isso, não se
irradiou através do sistema institucional das sociedades
nacionais em formação nem captou a vontade profunda dos
homens de status diferentes. Elaborou-se e permaneceu
como uma força social de superfície e de circunstância,
mantendo-se perenamente incapaz de identificar as
diversas classes sociais com alvos coletivos que as
transcendessem e as galvanizassem acima de seus destinos
históricos particulares. Não chegou sequer a invadir as
instituições onde poderia medrar com ímpeto construtivo
insopitável, como as escolas ou os quartéis. Com a
democratização do poder sucedeu algo semelhante. Dada a
estrutura econômica da sociedade e sua rápida evolução no
sentido do regime de classes, ela era uma fatalidade.
Entretanto, também não adquiriu o caráter de um processo
que afetasse o status de todas as classes sociais em
presença. Como o controle do poder político garantia às
classes dominantes toda a eficácia inerente à ordem legal
estabelecida (e produzisse o efeito inverso para as outras
classes), a democratização do poder evoluiu como um
processo descontínuo e sinuoso. Ele se caracteriza
profundamente por sucessivos desnivelamentos superficiais
de privilégios sociais e nada tem em comum com a
universalização da equidade em face da ordem legal. Tal
estilo de democratização do poder significou (e continua a
significar) que a democracia confere aos estratos sociais
localizados estrategicamente na estrutura de poder a
faculdade de decidir e de comandar em nome de todos. Em
vez de pôr um paradeiro à privatização do poder
politicamente organizado, ela conduziu a novas formas de
privatização desse poder, ampliando sucessivamente,
através dos desnivelamentos que generalizaram certos
privilégios das elites tradicionais para os estratos mais ou
menos ativos das classes médias, o número dos que podem
participar da eficácia da ordem legal.
Esse apertado bosquejo sugere como o background da
formação e da expansão da sociedade nacional condicionou
a reelaboração cultural das instituições sociais-chaves. A
universidade sempre esteve imersa nos acontecimentos ou
nos processos políticos socialmente relevantes. Apenas, não
surgiram condições favoráveis à ebulição de qualquer
“nacionalismo cultural” construtivo, capaz de exercer
influências duradouras e profundas na autonomização da
vida intelectual. A ciência, a tecnologia e os próprios
modelos institucionais de organização das universidades
foram submetidos ao controle das concepções, interesses e
valores sociais dos estratos sociais que definiram, em cada
momento histórico, o sentido e a forma da integração
nacional. Doutro lado, a universidade não se projetou, como
instituição, em um campo em que operassem as forças
sociais que combatiam os privilégios, mesmo em nome do
simples desnivelamento progressivo das “prerrogativas dos
poderosos”. Ela ficou jungida e estreitamente incorporada à
própria rede dos privilégios e dos privilegiados. Nos
momentos de crise, somente depois de consumada a
transição, é que ela passava a atender clientelas
sucessivamente mais amplas, em termos de status de renda
e de prestígio social. O importante a assinalar, sob esse
aspecto, é que ela não compartilhou frutiferamente dos
benefícios das tensões que atuaram, de modo latente ou
explícito, como “fermentos revolucionários” das convulsões
da ordem legal, provocadas pela democratização parcial do
poder. Por conseguinte, é uma das instituições
fundamentais nas quais se mantêm mais fortes (quase
intocáveis, no nível do pessoal docente) as avaliações da
mudança cultural progressiva imperantes nos estratos
superiores das classes médias e altas. Essas avaliações
caracterizam-se pelo frio egoísmo particularista e pela
resistência sociopática a quaisquer inovações que pareçam
ameaçar a segurança desses estratos sociais. O teor
urgente ou o grau de necessidade imperiosa das inovações,
em termos dos interesses da nação como um todo, não
contam acima desse limite. É claro que a ciência e a
tecnologia científica incluem-se largamente entre tais
inovações. No fundo do diagnóstico encontramos, pois, uma
realidade sombria. Nenhum movimento de efervescência
nacional e nenhuma classe social tomaram a si, até hoje, a
tarefa histórica de moldar novas formas de consciência
social e de valores sociais suscetíveis de comunicar às
universidades uma nova vitalidade cultural, relacionando-as
com o processo de integração nacional como influências
dinâmicas construtivas de alcance revolucionário.
Em segundo lugar, deve-se considerar outro conjunto de
fatores, que tem sido negligenciado nas interpretações
correntes. Uma nação econômica, cultural e politicamente
dependente não dispõe de meios para organizar e expandir,
com autonomia, o sistema institucional em que se funda o
desenvolvimento normal da ciência e da tecnologia
científica. A universidade depende do sistema institucional
básico que se congrega em torno dela e que lhe infunde
vitalidade de crescimento, independência diante das
pressões mais ou menos irracionais do meio e apego aos
valores do pensamento inventivo sob quaisquer
contingências. Por mais que se escreva a respeito das
repercussões da urbanização, da industrialização e da
modernização sobre o estilo de vida imperante nas
metrópoles e grandes cidades da América Latina, a verdade
é que o sistema emergente de serviços científicos, técnicos
e técnico-científicos ainda está longe de provocar as
pressões requeridas para que as universidades se tornem
multifuncionais e atuantes, em sentido criador. Por
enquanto, essas pressões não chegaram sequer a abalar os
padrões de organização e de rendimento das universidades,
que demonstram ser demasiado baixos e insatisfatórios. A
razão disso parece estar no fato de que o referido sistema
institucional diferenciou-se e expandiu-se, de modo
realmente considerável, apenas nos setores da tecnologia
importada (e, com frequência, controlada de fora, como
puro “negócio comercial”). Ele não depende ou depende
muito pouco da capacidade criadora das universidades e
das iniciativas locais. Raramente chega a levantar
problemas que desafiem ou interessem os professores ou
pesquisadores das universidades, não se refletindo, em
regra, nos rumos que imprimem às suas investigações puras
ou aplicadas. Por enquanto, os segmentos mais vivos desse
sistema institucional devotam-se à pesquisa científica
(embora, na maioria das vezes, com fins práticos). Muitos
deles constituem órgãos prestigiosos, até em escala
internacional. Mas, mesmo esses segmentos não interagem
produtivamente com as universidades — ou porque vivam à
sua sombra, ou porque contam com terríveis limitações,
nascidas de suas precárias condições de trabalho. Embora
não exista uma guerra surda entre eles e as universidades,
na maioria dos casos são injustamente ignorados pelos
investigadores acadêmicos. Essa situação anômala explica-
se pela falta de “tradição de pesquisa” nas universidades.
Contudo, a ela não são alheios outros motivos, menos
impessoais ou contingentes.
O que devemos ressaltar, sob esse aspecto, é que a
sociedade não dispõe de uma cultura com dinamismos
fundamentais independentes. Por isso, ela não pode
sustentar e ampliar um sistema de instituições básicas
capaz de absorver gerações sucessivas de cientistas e de
técnicos, com sólida preparação universitária. E, o que é
pior, ela não pode manter e melhorar o conjunto de
motivações e de controles sociais indiretos, de natureza
especificamente intelectual, que poderiam fomentar um
verdadeiro clima de vida universitária inquieta e criadora.
As universidades, como outras instituições, abrigam gente
que precisa ser continuamente provocada e
constantemente satisfeita em suas necessidades de
reconhecimento de valor. Sem um sistema de instituições
científicas e tecnológicas bastante diferenciado e em
crescimento permanente, é quase impraticável forjar tais
motivações e controles de forma produtiva. As
universidades elaboram internamente seus próprios
sucedâneos: mas eles não produzem os mesmos efeitos. O
paroquialismo e a autocomplacência misturam avaliações
intelectuais com relações congeniais e coleguismo. Não
tendo com quem dialogar, com quem discutir e a quem
convencer, o professor e o pesquisador universitários
convertem-se em criaturas altamente egocêntricas e em
planta de estufa. O lado dramático dessa situação aparece
na cisão irremediável com o ambiente e com suas
necessidades culturais. Na ausência do mencionado suporte
e do canal de comunicação que ele engendra, a
universidade fecha-se sobre si mesma. Termina por
favorecer uma linha destrutiva de trabalho intelectual, de
purismos rígidos e dogmáticos, de avaliações
compensatórias puramente neuróticas, de virtuosismo
estreito ou estéril e de rotina sufocante. Só o talento
excepcional consegue remar contra a corrente e evitar a
autodestruição. Todavia, com frequência através de
ajustamentos intelectuais que supervalorizam as
contribuições abstratas sobre temas abstratos, como se o
pensamento “teórico” pudesse compensar a ausência de
comunicação frutífera com o meio cultural. Tudo se passa,
pois, como se as universidades existissem na sociedade e
não para a sociedade. Elas não se engrenam, por falta de
mecanismos culturais adequados, com o fluxo da vida, que
liga o pensamento inventivo aos processos civilizatórios de
crescimento autônomo da cultura.
Em terceiro lugar, situam-se os problemas de dinâmica
cultural inerentes à organização e ao funcionamento das
universidades. Três questões são deveras importantes para
a presente discussão: 1º) a socialização para os papéis
intelectuais relacionados com as funções socioculturais
preenchidas efetivamente pelas universidades nas
respectivas sociedades nacionais; 2º) o grau de poder
conferido pela sociedade a professores e investigadores
para desempenharem os papéis especificamente
intelectuais organizados através do status acadêmico, e o
grau de autonomia de que dispõem as universidades para
realizar suas funções socioculturais; 3º)a estrutura e o
funcionamento do sistema de motivações, aspirações e
controles intelectuais organizado em torno das atividades
acadêmicas e das carreiras universitárias (nos níveis do
ensino, da pesquisa e da administração).
Em todos os três planos apontados ocorrem
inconsistências e disfunções que decorrem da inexistência
de uma subcultura acadêmica propriamente dita (ou, como
preferem outros, de um “estilo universitário de vida
intelectual”). A maneira pela qual o ensino superior se
constituiu, desenvolveu e entrosou-se à sociedade inclusiva,
no passado remoto ou recente, reduziu fortemente a
diferenciação de um setor especial da cultura, diretamente
vinculado às atividades e carreiras universitárias; e, ao
mesmo tempo, impediu que ele se desenvolvesse com um
ritmo próprio. Por conseguinte, o universitário — professor,
investigador ou estudante — não possui o seu “mundo
intelectual e moral”. Tem um pé na “vida acadêmica” e
outro fora dela. Isso acontece com os professores e
pesquisadores, que na quase totalidade combinam os
papéis docentes com papéis ligados às profissões liberais ou
com variadas ocupações técnico-profissionais ou políticas (e
com frequência o escritório, o consultório, a clínica, o jornal,
a administração ou a política etc. são mais importantes em
suas carreiras, ambições e aspirações). E também sucede
com os estudantes que, na maioria dos países, além de
estudar, trabalham em diversos tipos de emprego (numa
proporção que varia aproximadamente da metade a dois
terços da população estudantil). Poucas são as
universidades da América Latina que possuem professores e
pesquisadores em regime de tempo integral,
frequentemente repelido por causa dos seus reflexos sobre
a redução da renda e do prestígio social ou simplesmente
impraticável por falta de recursos financeiros. Também são
poucas, dentro dessas universidades, as escolas que exigem
tempo integral dos estudantes. O homem que vive e
trabalha na universidade, sob aspectos cruciais de seus
centros de interesses profissionais, de suas aspirações
intelectuais e de suas preocupações sociais, é sobretudo o
representante típico de sua classe ou de seu nível social —
e raramente deseja ser algo além disso. Se é verdade que
leva para as suas atividades profissionais extrauniversitárias
e para o “grande mundo” o prestígio acadêmico, também é
verdade que traz para a universidade o seu prestígio
profissional ou mundano. Poucas são as escolas, entre as
melhores universidades da América Latina, nas quais o eixo
exclusivo e absorvente da vida intelectual dos universitários
gira em torno de suas ocupações docentes, de pesquisa ou
de criação original.
A inexistência de um “mundo intelectual universitário”
poderia ser deveras importante e estimulante, se os
diversos centros de interesses profissionais, de aspirações
intelectuais e de preocupações sociais se intercruzassem,
influenciando construtivamente o labor intelectual realizado
nas universidades. Tal circunstância, nessas condições,
permitiria eliminar os inconvenientes da especialização e
corrigir os efeitos negativos do isolamento do “mundo
acadêmico”. Todavia, na situação predominante na América
Latina, esse se não se concretiza nem como uma realidade
fluida e contingente. Os centros de interesses profissionais,
as aspirações intelectuais e as preocupações sociais de
cada setor ocupacional desdobram-se segundo padrões
divergentes, o que significa que o “acadêmico pela metade”
possui uma vida intelectual bifurcada ou trifurcada,
raramente encontrando meios para fugir da esterilização
que daí resulta. No fundo, apenas resta um terrível e
irreparável saldo negativo: a erosão permanente da
mentalidade universitária, que se mantém amorfa, débil e
inoperante, sem qualquer vantagem para os demais setores
de atividades intelectuais ou para a sociedade.
A partir dessa situação global, são variados e
incontroláveis os lapsos na socialização dos universitários
para os seus papéis especificamente intelectuais. O preparo
rigoroso e intensivo é mais um produto da chance que da
institucionalização das atividades de ensino e de pesquisa.
Doutro lado, as instituições ficam indefesas diante do tipo
de intelectuais a que estão entregues: elas deveriam
socializá-los para seus papéis intelectuais, mas eles as
moldam segundo suas conveniências e determinam,
portanto, o alcance e a bitola da própria socialização. Assim,
as debilidades e as inconsistências dos acadêmicos
condicionam as debilidades e as inconsistências da
universidade, germinando um círculo vicioso insanável. Tudo
se passa como se uma imensa e interminável conspiração
silenciosa fosse conscientemente entretida para afastar tais
instituições de suas funções construtivas normais e das
funções potenciais que as tendências da expansão da
civilização exigem de forma crescente. Desse ângulo,
parece evidente que a soma de poder inerente ao status do
acadêmico e o grau de autonomia das universidades são
regulados numa linha de controles sociais mínimos. Na
medida em que aquele é apenas um semiacadêmico, ele se
desinteressa totalmente dos requisitos dinâmicos do seu
status universitário e prefere apelar para acomodações nas
quais o poder de autodeterminação da própria universidade
seja o mais restrito possível. Nos momentos cruciais, onde e
quando possam surgir crises incontornáveis por meios
rotineiros, recorre a seu prestígio extra-acadêmico ou a
outros recursos. Mesmo que as soluções obtidas não
correspondam ao ideal, elas lhe parecem melhor que o risco
de enfrentar um tipo de autonomia que pode voltar-se para
a limitação ou a eliminação de sua “liberdade”. A esse
curioso processo intelectual autodestrutivo corresponde,
naturalmente, uma orientação mais ou menos tosca da
sociedade inclusiva. Como a maioria das grandes
universidades são oficiais, elas se inserem no âmbito da
administração estatal. Mesmo onde os movimentos de
reforma universitária tiveram maior êxito, eles não
conseguiram extinguir as pressões indiretas do
financiamento oficial e a necessidade de empregarem-se
expedientes políticos (às vezes através das entidades
estudantis), para compensar a falta de autonomia real.
O que nos importa, nesse painel sumário, são as
repercussões de semelhante estilo de vida acadêmica sobre
a dinâmica da universidade como instituição social. Ela se
compõe, regularmente, de professores, pesquisadores e
estudantes que, mesmo em matérias de maior significado
para a sua existência e aperfeiçoamento, agem como
“homens do seu meio” (o que quer dizer: “homens de seu
nível social” e apenas ocasionalmente “homens de sua
época”). Eles ignoram e contrariam facilmente as
imposições mais simples e claras de seus papéis
intelectuais como universitários ou os interesses legítimos
da própria universidade, onde enxerguem (ou pensem
enxergar) qualquer ameaça efetiva ou fictícia e atual ou
remota ao complexo statu quo cultural, que permite manter
e fortalecer a situação descrita. Dessa perspectiva, a
universidade é uma instituição desarmada e desorientada,
incapaz de tomar consciência de si mesma, das
necessidades culturais que deveria atender e das
atribuições que a converteriam numa instituição
educacional diretora. No passado, dados a estabilidade da
ordem social e o equilíbrio dinâmico que se estabeleceu
entre ela e o funcionamento da universidade, isso não
importava. O “acadêmico” não era nem devia ser um
“universitário”. Era um “notável”, cujo prestígio procedia da
conjugação de sua condição estamental com a qualidade de
“homem de saber”. No presente, aí se acha o próprio fulcro
do drama em que se debatem os universitários e as
universidades na América Latina. Rompida a estabilidade da
ordem social e quebrado o equilíbrio dinâmico que existia
nas relações do “acadêmico” com a sociedade, as tensões e
os conflitos que irrompem no meio social eclodem
devastadoramente no seio da universidade, apanhando-a
desprevenida para resguardar suas funções socioculturais
no clima de uma sociedade em mudança. O pior é que as
inconsistências da instituição e dos papéis intelectuais
configurados em seu sistema de status condicionam a
definição de lealdades em direções centrífugas. Interesses,
aspirações e valores sociais imanentes às posições dos
universitários na estrutura da sociedade é que determinam
seus ajustamentos intelectuais, mesmo sob a quebra
fragorosa de obrigações ou deveres universitários
imperiosos. A universidade perde, por conseguinte, em
substância e em capacidade estratégica. Em vez de
adaptar-se rapidamente às condições de mudança da
sociedade, renovando-se para influenciar qualitativamente
as direções e a intensidade das alterações socioculturais em
processo, lança-se à defesa obstinada de suas estruturas
inoperantes (algumas “arcaicas”, mas outras “modernas” e
até “ultramodernas”) e das tendências de conservantismo
cultural predominantes nos estratos superiores das classes
médias e altas. Em alguns países, ela chega a comprometer-
se, pela omissão e pela adesão mais ou menos disfarçada
da maioria do corpo docente e discente, ao novo modelo de
opressão totalitária, que dissimula a exacerbação do
conservantismo sob a capa de “revolução”. Portanto, a
universidade latino-americana não está apenas desarmada
e desorientada numa era de mudança. Ela se revela incapaz
de absorver institucionalmente o impacto construtivo da
mudança sociocultural. Por isso, em vez de adaptar sua
organização, estrutural e funcionalmente, às necessidades
histórico-sociais emergentes, ela se acomoda, pela opção
consciente e pela ação deliberada, principalmente ao nível
do corpo de professores e de pesquisadores, às
expectativas sociais dos círculos conservadores. O
observador estranho poderia pensar na fórmula consagrada
da “traição dos intelectuais”. Entretanto, nem isso
acontece. Ninguém trai uma causa que não existe ou que
não aceita. Em um sentido preciso, a universidade como
instituição integrativa das grandes ambições intelectuais e
como instituição culturalmente orientadora da sociedade
está por constituir-se. Os universitários que optam pelos
caminhos políticos de suas classes sociais e agem de acordo
com sua miopia histórica, mantêm-se fiéis àquilo que
aprenderam a acreditar, a respeitar e a servir. Pode-se
lamentar a confusão e o drama resultantes, pois a
universidade concorre para fortalecer o bloqueio cultural do
horizonte intelectual das próprias elites. Mas, não se deve
obscurecer o fato primordial: a universidade realiza, através
da maioria dos professores, investigadores e alunos, a
missão que lhe é conferida por uma sociedade na qual os
interesses culturais da coletividade se subordinam aos
interesses culturais “dos que mandam”. Se não ocorrer
nenhum outro tipo de alteração, ela só se converterá num
fator de desenvolvimento quando a mudança sociocultural
progressiva entrar livremente na lógica do comportamento
político dos estratos superiores das classes médias e altas.
Essas duas conclusões são irrefutáveis. Os problemas de
dinâmica cultural de qualquer instituição precisam ser
resolvidos a partir de dentro. As pressões externas podem
dar um impulso inicial, exercer uma influência fiscalizadora
estimulante ou proporcionar alguns incentivos constantes.
Todavia, os professores, pesquisadores e administradores
das universidades — para não se falar dos estudantes —
precisam assumir as responsabilidades impostas por uma
era de desequilíbrio e de exigências radicais. Precisam, pois,
definir seus papéis intelectuais e os deveres morais
correspondentes segundo limites mais amplos e complexos.
Sem essa redefinição, jamais poderão obrigar-se a si
próprios e à sociedade a uma nova orientação, no
incremento dos recursos materiais e humanos destinados
ao ensino superior ou à pesquisa científica e na melhoria
dos critérios de aplicação de tais recursos. Os chamados
problemas do ensino superior, de tão graves e crônicos, já
pertencem ao consenso geral (pelo menos nos aspectos
mais visíveis e nas suas implicações quantitativas). Eis os
principais tópicos do repertório usual: número reduzido de
vagas e sua má distribuição entre as escolas mais
procuradas; privilegiamento de critérios extraeducacionais
na seleção dos candidatos; mecanismos impróprios de
formação, recrutamento e promoção de professores ou
pesquisadores; predomínio do ensino livresco, verbal e
dogmático; falta de interação construtiva nas relações entre
docentes e estudantes, inclusive no treinamento em
pesquisa; inexistência de meios adequados para a pesquisa,
quer a vinculada ao ensino, quer a associada à descoberta
de conhecimentos originais; ausência de vitalidade
financeira e de autonomia real das universidades, incapazes
de elaborar e pôr em prática os seus próprios orçamentos e
suas políticas educacionais; deficiência dos canais de
comunicação regular com centros mais avançados de
ensino e de pesquisa, da região ou do exterior; incapacidade
de manter a continuidade do crescimento quantitativo e da
melhoria qualitativa dos serviços de ensino e de pesquisa; a
impossibilidade de converter o ensino pós-graduado em via
eficiente de seleção, especialização e aproveitamento
constante dos talentos jovens; dificuldades em instituir e
em universalizar os requisitos acadêmicos da carreira
universitária (mestrado, doutoramento etc.) e em convertê-
los na base do peneiramento e promoção do pessoal
docente ou de pesquisa; níveis baixos de retribuição
financeira das ocupações docentes e de pesquisa,
agravados por fatores permanentes de insegurança
intelectual e de coação suasória ou violenta, apontadas
como os fatores responsáveis pelo desinteresse diante das
carreiras universitárias e pelo aumento crescente da
“evasão de cérebros” para a exterior; obstáculos à
realização e desenvolvimento de grandes projetos de
pesquisa fundamental e aplicada, por motivos econômicos
ou por outras razões, de natureza institucional, cultural ou
política. Sabe-se que enquanto problemas dessa
envergadura não forem resolvidos, as universidades
permanecerão como um “símbolo civilizatório”, satisfazendo
apenas parcialmente as funções socioculturais que o meio
já absorveu institucionalmente. Contudo, como eles poderão
ser resolvidos se a sociedade e a própria universidade não
modificarem suas atitudes, avaliações e comportamentos
diante da mudança sociocultural progressiva e das funções
do ensino superior, da ciência e da tecnologia científica na
civilização moderna? É pouco provável que, numa época em
que até nações avançadas perdem terreno na competição
cultural pelo progresso da ciência e da tecnologia científica,
sociedades subdesenvolvidas consigam marcar tentos
concretos sem aceitar transformações profundas e radicais
em suas instituições universitárias.
À luz dessas considerações, seria conveniente indagar-se
quais são as perspectivas que se abrem, em nossos dias, às
universidades latino-americanas. Estão elas condenadas a
uma espécie de hibernação cultural precariamente
dissimulada, ou podem, realmente, conquistar o terreno que
as afastam de uma autêntica fermentação intelectual
criadora? É impossível responder a essa pergunta através
de prognósticos seguros. Não obstante, há margem para
esperanças razoavelmente alentadoras e elas delineiam um
quadro de relativa confiança no futuro. Ao que parece, as
perspectivas mais promissoras não são para o presente ou
para o futuro imediato. Além disso, dependem de mudanças
de atitudes e de comportamentos que não são automáticas
e tampouco simples ou rápidas. No entanto, a cada dia que
passa a modificação de atitudes e de comportamentos, nas
esferas centrais da dinâmica da cultura e da sociedade,
impõe-se, visivelmente, como matéria de pura
sobrevivência. Queiram ou não, as novas gerações terão de
enfrentar os dilemas econômicos, sociais e culturais que
pesam sobte os diferentes países da América Latina, à luz
de novos critérios morais e políticos. Desse ângulo, não só
as coisas terão de alterar-se em sua substância. Na escolha
entre a estagnação e a sobrevivência a universidade se
encaminhará, voluntária ou involuntariamente, no sentido
de saturar o vazio cultural em que ela se debate na
atualidade. Isso nos permite inferir que ela acabará
assimilando e dominando o seu destino, que consiste em
transformar-se num centro dinâmico de produção autônoma
de saber original.
Contra tais perspectivas de transformação revolucionária
a largo prazo militam certas influências ativas (que,
presumivelmente, serão eliminadas ou neutralizadas sob a
aceleração do crescimento econômico e do
desenvolvimento sociocultural). Entre essas influências,
medularmente negativas, cumpre-nos ressaltar: o caráter
irracional e destrutivo da opressão conservadora; a
escassez de recursos (especialmente financeiros) para
enfrentar os custos crescentes da expansão da pesquisa
fundamental e aplicada de relativa envergadura; as
propensões individualistas e altamente irrealistas,
predominantes entre os cientistas e os técnicos de maior
imaginação e talento criador.
A primeira influência erige-se, atualmente, na grande
barreira invisível da luta surda das universidades com um
ponto de partida histórico-cultural desanimador. A opressão
conservadora atua de forma corrosiva, tanto no seio das
universidades (graças ao número de professores, de
pesquisadores e até de estudantes que se identificam com o
statu quo), quanto no meio social inclusivo (pois amplos
círculos sociais das classes altas, médias e baixas ligam os
seus destinos ao capitalismo dependente). O que a torna
particularmente destrutiva e perniciosa é a técnica de
desmascaramento total, de que lança mão para resguardar-
se de toda espécie de mudança que pareça ameaçar o statu
quo. Essa técnica, descoberta pelos socialistas e por eles
aplicada na luta contra os ideólogos da burguesia, é
explorada na América Latina pelos elementos mais
obstinadamente reacionários dos círculos conservadores. O
procedimento seguido é tosco e brutal: projetar as soluções
ou opções consideradas “perigosas” (em termos dos
interesses conservadores e de sua hegemonia nas
estruturas de poder), com as pessoas ou grupos sociais que
as representem, numa área de abominação ideológica.
Assim, problemas de natureza técnica, equacionados e
resolvidos em bases estritamente técnicas, são convertidos
em matéria ideológica e manipulados como conflitos de
natureza política. Forja-se, desse modo, o conjunto de
verbalizações simuladoras que dão base seja à repudiação
das tentativas de mudança cultural, seja à repressão das
condutas inovadoras (ou de seus agentes humanos) por
meios políticos, militares ou policiais. Semelhante técnica
rudimentar causou e está causando maiores danos ao
desenvolvimento das universidades latino-americanas que o
estancamento econômico, a estagnação cultural ou a
escassez de recursos materiais e humanos, considerados
em si mesmos.
A segunda influência negativa é de observação mais
difícil. Por motivos aparentemente louváveis, entre os quais
se misturam o orgulho intelectual, o temor de
incompreensões e o risco da perda de prestígio, os líderes
dos melhores grupos de cientistas e de técnicos tendem a
esconder ou a camuflar os aspectos mais precários de suas
condições normais de trabalho. Todavia, desde os fins do
século passado, mas principalmente depois da Primeira
Guerra Mundial, é fácil notar-se certos florescimentos
súbitos em alguns campos de pesquisas e, em seguida, o
declínio paulatino, por vezes irrecuperável, dos progressos
obtidos. Essa curva tem sido vista e interpretada,
especialmente por observadores estrangeiros, como
evidência de uma versatilidade intelectual insanável. De
fato, porém, ela nasce de fatores de natureza institucional.
As universidades não possuem meios para captar recursos
volumosos segundo um ritmo multiplicativo. Em
consequência, elas conseguem desencadear certos
desenvolvimentos do ensino ou da pesquisa que não podem
ser mantidos ao longo de um período grande de tempo. Os
primeiros passos vão muito bem, sob a euforia de condições
circunstanciais. O difícil é preservar o terreno ganho e usá-lo
para avançar regularmente nas direções previstas. Os
cientistas e os técnicos possuem plena consciência do que
ocorre, fazendo com frequência terríveis esforços para se
garantirem continuidade de desenvolvimento em seus
projetos mais ou menos ambiciosos. Como não possuem
controle dos recursos nem da administração, acabam
sofrendo as frustrações resultantes e ficando com a
responsabilidade dos malogros. Acresce que nem sempre
estes podem ser atribuídos a causas financeiras visíveis:
mudanças inesperadas e inevitáveis na direção política ou
administrativa do país ou da instituição acarretam o
desenlace negativo com a proverbial dança de áreas
aparentemente privilegiadas na aplicação de recursos
escassos. O que interessa, é que se estabelece, de maneira
crônica, um processo de vaivém. O terreno ganho em dez
anos é perdido nos dez anos seguintes, o que faz com que
as relações de gerações sucessivas sejam insuficientes para
a recuperação dos avanços que não chegam a se
incorporar, definitivamente, na rotina do trabalho intelectual
institucionalizado. A “curva” descrita parece ser uma
fatalidade das sociedades subdesenvolvidas. Ao se atingir
uma fase crucial, que poderia servir de base para um
esforço mais complexo e produtivo, o próprio processo
global se esboroa ou entra em deterioração, passando a dar
um rendimento desencorajador. Tal fenômeno não é produto
de inépcia nem de versatilidade, pois tanto o início quanto a
manutenção do processo exigem pensamento criador,
energias intelectuais incomuns e grande tenacidade. Porém,
das condições materiais e culturais ambientes, que não
garantem, como ocorre nas sociedades desenvolvidas, uma
evolução constante na direção de patamares (ou picos)
mais altos.
A terceira influência negativa transparece nas orientações
dominantes nos campos mais dinâmicos da ciência ou da
tecnologia.
Os grupos de maior gabarito e de prestígio consolidado
apegam-se, com frequência, a duas tendências nocivas.
Uma delas consiste em estimular-se especializações que
respondem a progressos recentes da ciência e da tecnologia
nos centros mundiais mais avançados. Essa tendência leva
à valorização sistemática de áreas de trabalho que
raramente podem ser cultivadas em países
subdesenvolvidos. O seu resultado mais funesto é bem
conhecido. A preparação de cientistas ou de técnicos
destinados, fatalmente, ao inaproveitamento pelo meio
social ou à imigração para o exterior. Há uma enorme
polêmica em torno da “evasão de cérebros” da América
Latina. As estimativas existentes mostram que só os
Estados Unidos absorveram, de 1941 a 1963, numerosas
ondas sucessivas de pessoal qualificado dessa região.[70] O
que não se analisa são os fatores intelectuais ocultos, que
comprometem as universidades nesse processo. Se
excluirmos os baixos salários, os fatores de insegurança
intelectual e de repressão violenta, verificaremos que
muitos grupos de cientistas e técnicos teimam em
incentivar o cultivo de áreas de trabalho que não encontram
possibilidades de fomento e de expansão nas atuais
condições, o que significa que eles estão, consciente ou
inconscientemente, estimulando a “evasão de cérebros”. A
outra tendência consiste em valorizar unilateralmente a
pesquisa fundamental, independentemente do significado
que ela possa ter para os problemas práticos ou humanos
do mundo ambiente. Assim, cientistas e técnicos, cada qual
a seu modo, voltam as costas para as implicações
intelectuais de suas investigações para a autonomização
cultural de seus países. Os argumentos em que essa
orientação se funda não podem ser discutidos aqui. O que
nos interessa são os seus efeitos: os melhores
representantes do progresso da ciência e da tecnologia
científica assumem atitudes ou comportamentos que não
correspondem à ética de responsabilidade intelectual, que
deveria ter vigência numa sociedade subdesenvolvida.
Omitindo-se diante dos problemas práticos e humanos do
mundo ambiente, nos setores de trabalho intelectual
produtivo que procuram expandir, concorrem direta e
permanentemente para divorciar a pesquisa científica e a
pesquisa tecnológica dos esforços de desenvolvimento
cultural autônomo.
A favor das perspectivas de uma revolução criadora no
seio das universidades latino-americanas contam outras
influências: a emergência e a difusão de novas formas de
percepção e de consciência da realidade pelos universitários
(professores, pesquisadores e estudantes); os efeitos
construtivos do ensino e da difusão da ciência ou das
compulsões da tecnologia avançada; a crescente
valorização e utilização de técnicas racionais de captação e
de aplicação dos recursos materiais e humanos disponíveis.
Essas influências são, frequentemente, solapadas ou
neutralizadas. Todavia, o fato de que elas existam e se
fortaleçam dia a dia é, em si mesmo, um índice de que as
próprias universidades entraram em uma fase de
desorganização da qual não poderão sair senão aceitando e
absorvendo inovações mais ou menos radicais.
Os estudos sociológicos sobre os estudantes, os
professores e o uso das oportunidades educacionais
revelam que estão ocorrendo mudanças de grande
significação em toda a América Latina e que essas
mudanças afetarão, profundamente, o futuro próximo e
remoto das universidades. A dissidência e a natureza da
dissidência no seio do corpo docente e no meio estudantil
não possuem os característicos cataclísmicos que lhe são
comumente imputados pelos círculos conservadores. Ao
contrário do que se afirma nesses círculos, trata-se de um
inconformismo intelectual substancialmente construtivo,
com objetivos críticos patrióticos e altruísticos. Rala e
inconstante entre os professores, a dissidência é, porém,
quase maciça entre os estudantes. Ameaçados em seu
futuro pelo estancamento econômico e pelo atraso cultural,
os jovens se mostram mais propensos a um radicalismo
utópico, pretendendo encontrar na transformação estrutural
das universidades respostas para problemas que só podem
ser resolvidos através da “revolução pelo desenvolvimento”.
Em consequência, combinam, de uma forma ou de outra, a
filosofia do gradualismo à “crítica do sistema”. As conexões
desse radicalismo utópico com as situações sociais de
classes médias é bem conhecida. Os membros dessas
classes lutam com maiores dificuldades de preservação do
status na sucessão de gerações. Somente sob a condição de
intensificação do crescimento econômico e do
desenvolvimento social é que podem privilegiar o saber
técnico, científico ou técnico-científico na competição por
melhores posições na participação do rateio social da renda,
do prestígio social e do poder. Os círculos conservadores
têm consciência disso e temem os movimentos estudantis
mais por causa de seus efeitos indiretos imprevisíveis e
incontroláveis. O importante, para a nossa análise, está nas
alterações implícitas nessa mudança de perspectiva
intelectual. A universidade acaba abrigando uma população
crescentemente vinculada a uma impostação pragmática
das relações entre conhecimento e sociedade ou entre
universidade e desenvolvimento. Aos poucos, as áreas de
resistência às inovações essenciais restringem-se, diluem-se
ou desmoralizam-se. Ao mesmo tempo, cresce a
consciência de que a universidade é um “investimento
produtivo” e um meio para atingir fins de significação
nacional. Portanto, as manifestações de dissidência
apontadas projetam a universidade no próprio fluxo das
mudanças econômicas, sociais e culturais que são vitais
para desencadear a era de transição numa sociedade
subdesenvolvida. Elas suscitam os problemas da “reforma
universitária” em termos estruturais. E voltam-se, direta e
conscientemente, para as funções potenciais irrealizadas da
instituição, procurando encontrar nelas a chave para a
autonominação cultural e política do desenvolvimento
econômico. Assim, na crista de tensões reprimidas ou
toleradas, as universidades ganham o centro do palco e
insinuam-se entre as forças históricas que tentam plasmar o
futuro segundo padrões especificamente nacionais.
O ensino da ciência em bases institucionais e os efeitos
reflexos da absorção de tecnologia avançada também estão
provocando alterações radicais nas representações
relacionadas com a organização e o rendimento das
universidades. Para o cientista, a universidade não é nem
pode ser um fim em si, mas um meio para atingir certos
fins: cabe-lhe proporcionar ao jovem de talento uma
preparação rigorosa, que o torne apto a dedicar-se à
investigação científica e ao progresso da ciência. Por isso, à
expansão do ensino da ciência se conjugou o aparecimento
de novas atitudes na avaliação das universidades latino-
americanas, surgindo um processo de renovação
institucional que colocou os problemas de reforma
universitária na linguagem objetiva mas revolucionária do
conhecimento científico. Algo paralelo desenrolou-se em
conexão com a absorção de tecnologia avançada pelo
ambiente. Surgiram grandes organizações que não se
interessam pela extração social ou pelo prestígio dos
graduados, mas por sua competência e qualificações
profissionais. Elas não só necessitam crescentemente de
maior número de graduados; querem graduados aptos para
as carreiras técnico-profissionais escolhidas. Em
consequência, também nessa esfera a universidade —
símbolo e fim em si mesma — cede lugar à universidade
como meio para certos fins, avaliados em termos
pragmáticos estritamente utilitários. A importância especial
desses dois desenvolvimentos procede do fato de que eles
deram origem a processos de avaliação objetiva que
repercutiram, estão repercutindo e tendem a repercutir
ainda mais na adoção de novos critérios de organização das
universidades e de melhoria do seu rendimento quantitativo
e qualitativo. O falso humanismo, que se alimentava de um
ensino enciclopédico-dogmático estéril, colocou-se na
defensiva e passou a ser substituído por uma filosofia
educacional pragmática, que procura fortalecer as funções
da universidade que são fundamentais para o florescimento
da ciência e da tecnologia científica.
Um dos pontos nevrálgicos do impasse das universidades
latino-americanas sempre residiu na escassez de recursos
materiais e humanos, agravada por sua má aplicação
sistemática. O encravamento cultural da instituição
concorreu para que ela ignorasse, até hoje, os recursos de
aprendizagem do ambiente e, ao mesmo tempo, tornou-a
pouco sensível às necessidades sociais emergentes,
divorciando a aplicação dos recursos disponíveis dos
processos de mudança cultural alimentados pelo próprio
meio. Apesar das deficiências de tais recursos para o
esforço educacional requerido, toda tentativa de
racionalização esbarrava nos vícios congênitos de uma
estrutura institucional montada para converter o ensino
superior em um fim em si mesmo e em um bem de
consumo. As controvérsias que eclodiram, em toda parte,
quando se introduziram novas ideias, que pretendiam
instaurar critérios de avaliações de custos e eficácia das
universidades, indicam de maneira insofismável o quanto
certos hábitos de devastação improdutiva estavam e
continuam a estar firmemente arraigados. No entanto, a
explosão demográfica, primeiro, e as pressões qualitativas
sobre a diferenciação e a melhoria dos padrões de ensino,
em seguida, concorreram para impor certos procedimentos
de racionalização do esforço educacional como uma espécie
de mal necessário. Por aí acabaram se esboçando novas
tendências, que foram fortalecidas e reorientadas por
organismos internacionais (principalmente os instituídos
pela UNESCO), e que estão acentuando a importância
multiplicativa do uso racional de recursos escassos. Embora
palavras como “racionalização escolar”, “programação
educacional” e “planejamento educacional” (e outras
correlatas) ainda constituam mera fachada, para esconder
ou disfarçar a realidade antiga, o fato é que a absorção e a
difusão de novas técnicas de avaliação e aproveitamento
eficaz dos recursos destinados à educação aumentam dia a
dia. A grande dificuldade, que obstava esses processos no
passado, residia na falta de especialistas para lidar com os
problemas de administração e de supervisão do
funcionamento do sistema escolar. Não só o número desses
especialistas tem aumentado, na esfera da educação e das
ciências sociais, como também surgiram novos serviços
(mantidos pelos governos, pela iniciativa privada ou por
organismos internacionais), nos quais a sua cooperação
pode ser explorada construtivamente. Esse
desenvolvimento é significativo para todo o sistema escolar,
mas apresenta especial importância no que concerne ao
ensino superior e à expansão da pesquisa científica ou
tecnológica através das universidades. Como o incremento
dos recursos materiais e humanos está sujeito a certos tetos
relativamente rígidos, a elasticidade tem de ser obtida na
esfera do modo de usar os recursos. A introdução de
critérios racionais contém implicações positivas em outros
dois pontos. De um lado, no da captação de recursos para a
expansão e melhoria das universidades. Vários vícios e
deformações, herdados do passado, e que limitavam
drasticamente a mobilização de recursos materiais ou
humanos disponíveis, estão sendo lentamente removidos.
De outro, a questão do rendimento tende a ser levantada
dentro de uma linha de superação consciente e deliberada
do subdesenvolvimento. As universidades acordam para as
necessidades econômicas, sociais e culturais emergentes,
entrosando-se lentamente às tentativas de associar a
expansão da ciência e da tecnologia científica à
intensificação do crescimento econômico e do
desenvolvimento social.
Esse sumário mostra, em traços largos, que existem
influências que trabalham no sentido de adaptar as
universidades aos processos de mudança social progressiva
e às funções que elas devem preencher, nos períodos
iniciais de transição, como fatores de autonomização
cultural. As evidências comprováveis não permitem falar
que as transformações estão se dando de modo acelerado e
em bloco. Ao contrário, trata-se de um processo difícil, em
que o próprio homem com frequência prejudica a si mesmo
e aos objetivos vitais de sua comunidade nacional. Todavia,
as coisas não poderiam se desenrolar de outra maneira. As
sociedades subdesenvolvidas precisam percorrer um árduo
caminho para vencerem suas barreiras internas e a corrida
de obstáculos com as sociedades avançadas. Aos poucos, à
medida que aprendem a lidar produtivamente com suas
tensões e desequilíbrios sociais, é que descobrem que
também podem recorrer por conta própria às técnicas de
invenção cultural ao seu alcance e que a utilização
construtiva dessas técnicas, nas condições permitidas por
seus recursos materiais e humanos, pode se converter
numa rotina fecunda. Sob muitos aspectos, o fato de que
esse processo esteja se desenrolando é muito mais
importante que as debilidades e as inconsistências que ele
apresenta. Isso significa que, por fim, as universidades
latino-americanas estão modificando sua relação dinâmica
com o próprio padrão da civilização ocidental. Elas
começam a desenvolver-se no sentido de saturar as funções
potenciais que deviam preencher institucionalmente e
tendem a fazer isso numa escala que se adapta,
progressivamente, à negação e à superação do
subdesenvolvimento. Portanto, as páginas da história estão
virando. É provável que ao desempenhar tais funções elas
se convertam em instituições diretoras, despertando em
seus Povos a consciência do valor da liberdade para a
construção de seus destinos nacionais.
SOBRE   O   AUTOR

FLORESTAN FERNANDES nasceu em São Paulo (SP) no dia 22 de


julho de 1920. Tendo abandonado o primário na infância,
frequentou o curso de madureza nos anos letivos de 1938 a
1940. Formou-se em ciências sociais em 1943 pela
Universidade de São Paulo, onde obteve a licenciatura em
1944 — ano em que se casou com Myriam Rodrigues, com
quem teve seis filhos. De 1945 a 1946 cursou a pós-
graduação na Escola Livre de Sociologia e Política de São
Paulo, onde obteve o título de mestre em ciências sociais
(antropologia) com a dissertação A organização social dos
Tupinambá (publicada em 1949). Tornou-se doutor em
ciências sociais (sociologia) pela USP em 1951 com a tese A
função social da guerra na sociedade tupinambá (publicada
em 1952) e, em 1953, livre-docente da cadeira de
Sociologia I da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
USP com a tese Ensaio sobre o método de interpretação
funcionalista na sociologia. Em 1964 foi aprovado como
professor titular de Sociologia I da mesma faculdade com a
tese A integração do negro na sociedade de classes
(publicada em 1965). Entre 1965 e 1966 foi visiting-scholar
na Columbia University. Afastado da USP por aposentadoria
compulsória em 24 de abril de 1969, em decorrência do Ato
Institucional nº 5, lecionou sociologia na Universidade de
Toronto, Canadá, de 1969 a 1972, regressando ao Brasil no
final desse último ano. De 1976 a 1977 foi professor de
cursos de extensão cultural no Instituto Sedes Sapientiae,
sendo contratado como professor da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo no último trimestre de 1977. Durante
o primeiro semestre desse ano foi visiting-professor na Yale
University. Em 1978 torna-se professor titular da PUC-SP. Foi
eleito duas vezes deputado federal por São Paulo, pelo
Partido dos Trabalhadores, nas legislaturas de 1987 a 1990
e de 1991 a 1994. Entre os prêmios e distinções que
recebeu, destacam-se: Prêmio Temas Brasileiros, conferido
pela USP (1944), Prêmio Fábio Prado (1948), Medalha Silvio
Romero, conferida pela Prefeitura Municipal do Rio de
Janeiro (1958), título de cidadão emérico conferido pela
Câmara Municipal de São Paulo (1961), Prêmio Jabuti de
Ciências Sociais (1963), Prêmio Sociedade Brasil-Israel
(1966), The Anisfield-Wolf Award in Race Relations for 1969,
conferido pela Cleveland Foundation, professor emérito da
USP (1985), doutor honoris causa pela Universidade de
Utrecht (1986), Prêmio Estácio de Sá conferido pelo Governo
do Estado do Rio de Janeiro (1989), doutor honoris causa
pela Universidade de Coimbra (1990), título de grande
oficial da Ordem Nacional do Mérito Educativo, conferido
pelo Ministério da Educação (1993), Prêmio Almirante Álvaro
Alberto / Ciências Humanas, conferido pela Secretaria de
Ciência e Tecnologia da Presidência da República (1993),
título de cidadão honorário conferido pela Câmara Municipal
de São Carlos (1994), título de grande oficial da Ordem do
Rio Branco, conferido pelo Ministério das Relações
Exteriores (1995) e título póstumo de cidadão honorário
conferido pela Câmara Legislativa do Distrito Federal (1995).
Faleceu no dia 10 de agosto de 1995, em São Paulo, seis
dias após ter sido submetido a transplante de fígado no
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Autor, organizador e tradutor de diversas obras, entre
teses, ensaios, artigos, conferências, monografias e
prefácios, colaborou intensamente em jornais como O
Estado de S. Paulo, Folha da Manhã, Folha de S.Paulo, Jornal
do Brasil e Jornal de Brasília. Entre seus inéditos e
publicações no Brasil e no exterior, destacam-se:
Contribuição à crítica da economia política, de Karl Marx
(tradução e introdução, 1946); A organização social dos
Tupinambá (1949); A função social da guerra na sociedade
tupinambá (1952); A etnologia e a sociedade no Brasil:
ensaio sobre aspectos da formação e desenvolvimento das
ciências no Brasil (1958); Negros e brancos em São Paulo
(em colaboração com Roger Bastide, 1959); Mudanças
sociais no Brasil (1960); Ensaios de sociologia geral e
aplicada (1960); Folclore e mudança social na cidade de São
Paulo (1961); A sociologia numa era de revolução social
(1962); A integração do negro na sociedade de classes
(1964); Educação e sociedade no Brasil (1966);
Fundamentos empíricos da explicação sociológica (1967);
Sociedade de classes e subdesenvolvimento (1968); The
Latin American in Residence Lectures (1969/1970);
Elementos de sociologia teórica (1970); O negro no mundo
dos brancos (1972); Comunidade e sociedade no Brasil
(organização, 1972); Comunidade e sociedade (organização,
1973); Comunidade e sociedade (organização, tomos
inéditos); Las clases sociales en América Latina (em
colaboração com N. Poulantzas e A. Touraine, 1973);
Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina
(1973); A investigação etnológica no Brasil e outros ensaios
(1975); A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de
interpretação sociológica (1975); A universidade brasileira:
reforma ou revolução? (1975); Circuito fechado: quatro
ensaios sobre o “poder institucional” (1976); A sociologia no
Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e
desenvolvimento (1977); A condição de sociólogo (1978); O
folclore em questão (1978); Lênin (organização e
introdução, 1978); Da guerrilha ao socialismo: a Revolução
Cubana (1979); Apontamentos sobre a “teoria do
autoritarismo” (1979); Brasil: em compasso de espera
(l980); A natureza sociológica da sociologia (1980);
Movimento socialista e partidos políticos (1980); Poder e
contrapoder na América Latina (1981); O que é revolução?
(1981); A ditadura em questão (1982); K. Marx, F. Engels:
história (organização e introdução, 1983); A questão da USP
(1984); Que tipo de república? (1986); Nova República?
(1986); O processo constituinte (1988); A Constituição
inacabada (1989); O desafio educacional (l989);
Pensamento e ação: o PT e os rumos do socialismo (1989);
O significado do protesto negro (l989); A transição
prolongada (1990); As lições da eleição (1990); O PT em
movimento: contribuição ao I Congresso do Partido dos
Trabalhadores (1991); Reflexão sobre o socialismo e a
autoemancipação dos trabalhadores (1992);
Parlamentarismo: contexto e perspectivas (1992); LDB:
impasses e contradições (1993); Democracia e
desenvolvimento: a transformação da periferia e o
capitalismo monopolista da era atual (1994); Consciência
negra e transformação da realidade (1994); Tensões na
educação (1995); A contestação necessária (1995); Em
busca do socialismo (1995); O colapso do governo Collor e
outras reflexões (em colaboração com Antônio Risério,
inédito).
ÍNDICE   REMISSIVO

abertura dos portos


abolição da escravatura
abolicionismo
açúcar
acumulação de capital
África do Sul
Alemanha
algodão
Alves, S. Rodrigues
Amaral, Raul Joviano do
América Latina
“American imperialism and the Brazilian student movement” (Goertzel)
anomia social
antigo regime
apropriação colonial
Argentina
aristocracia
artesãos
“atraso cultural”
autocracia burguesa
autonomização cultural
autoritarismo
Azevedo, Fernando de
 
“baiano”
Bastide, Roger
Bento, Antônio
Blute, Marion
Bolívia
Buarque de Holanda, Sergio ver Holanda, Sergio Buarque de burguesia
ver também revolução burguesa
burocracia
 
cacau
café
Camargo, Oswaldo de
 
Candido, Antonio
capital mercantil
capitalismo comercial
capitalismo competitivo
capitalismo da periferia ver periferia do capitalismo
capitalismo dependente
capitalismo industrial
Cardim, padre
Cardoso, Fernando Henrique, 20 castas
catolicismo
centros econômicos
Chile
civilização ocidental
classe alta
classe média
classe operária ver operários
classes sociais
ver também estratificação social
Colômbia
Colônia
colônia de exploração
colônia de povoamento
colonialismo
colonização
colonos
comércio
competição
comunismo
ver também socialismo
concentração de poder
concentração de riqueza
conformismo
consciência social
consumo
Coroa
cortiços
Costa Rica
Couty
crescimento econômico
ver também desenvolvimento econômico
crise da universidade brasileira
Cuba
 
democracia
“democracia racial”
descolonização
desenvolvimento econômico
ver também crescimento econômico
desenvolvimento social
desigualdade racial
ver também relações raciais
despotismo
direita política
ver também esquerda política discriminação racial
ditadura militar
dominação burguesa
dominação patrimonialista
Duarte, Nestor
Durkheim, Émile
 
economia colonial
economia de plantação
economia metropolitana
economia urbano-comercial
economia urbano-industrial
educação
ver também ensino médio; ensino superior; universidades latino-americanas
El Salvador
elites
elitismo
emancipação nacional
empresas
Engels, Friedrich
ensino médio
ensino superior
ver também universidades latino-americanas
Equador
era colonial
era de emergência
era de transição neocolonial
Escola Paulista de Sociologia
“escravidão antiga”
escravidão mercantil
“escravidão moderna”
escravos
escravos indígenas
Espanha
esquerda política
ver também direita política
Estado autocrático
Estado Novo
Estado patrimonial
Estados Unidos
estamentos sociais
estratificação social
ver também classes sociais
estruturas sociais
“Estudante e política no Brasil” (Foracchi)
estudantes
ver também educação; ensino médio; ensino superior; universidades latino-
americanas
Europa
“evasão de cérebros”
 
família real portuguesa, transplantação da
família senhorial
favelas
fazenda
feudalismo
Foracchi, Marialice M.
Forças Armadas
França
Franco, Maria Sylvia de Carvalho
Freyre, Gilberto
Furtado, Celso
 
Goertzel, Ted
Goes, Fernando
golpes militares
Grã-Bretanha
Guatemala
 
Haiti
Hernández, Salvador
Holanda
Holanda, Sergio Buarque de
Honduras
 
Ianni, Octavio
“Ideologia estudantil e sociedade dependente” (Foracchi)
ideologias
Igreja católica
imigrantes
imperialismo
Império brasileiro
império colonial
importação
inconformismo
Independência do Brasil
industrialização
inflação
Inglaterra
Integração do negro na sociedade de classes, A (Florestan Fernandes),
integração nacional
intelligentsia latino-americana
interesses de classe
Itália
 
Japão
Juventude na sociedade moderna, A (Foracchi)
 
lavoura
Leite, José Correia, 104 liberalismo
liberdade intelectual
libertos
lucros
 
macrocosmo social
Maier, Joseph
Mannheim, Karl
Mariátegui, José Carlos
Marx, Karl
massa negra
massas
McKie, Craig
mercado colonial
mercado mundial
mestiços
Metrópole
México
microcosmo social
migrantes
militarismo
Minas Gerais
mineração
miscigenação
miséria
Missão Rockefeller
Mito y realidad de la universidad boliviana (Taborga)
mobilidade social
modernização
Modernización y crisis en la universidad latinoamericana (Vasconi & Rega),
monarquia
monopólio da terra
mudança cultural
mudança social
mulatos
 
Nabuco, Joaquim
nacionalismo
Nascimento, Abdias do
neocolonialismo
Nicarágua
nobreza
Nordeste brasileiro
Novo Mundo
 
Oeste paulista
operários
opressão
ordem escravocrata
ordem racial
ordem social
 
Panamá
Paraguai
participação institucional
Partido dos Trabalhadores
paternalismo
patrimonialismo
Patrocínio, José do
Pelegrini, José
periferia do capitalismo
Peru
 
pesquisa científica
pesquisadores
pilhagem
pobreza
poder político
política econômica
população negra
populismo
Portugal
Prado Júnior, Caio
preconceito racial
prestígio social
PRI y el movimiento estudantil de 1968, El (Hernández)
Primeira Guerra Mundial
produção capitalista
produção escravista
professores
profissões
progresso educacional
prosperidade
protesto negro
 
racismo
ver também discriminação racial; preconceito racial “radicalismo democrático”
“radicalismo intelectual”
Reca, Inés
reforma universitária
relações raciais
ver também desigualdade racial
República brasileira
República Dominicana
revolução burguesa
ver também
burguesia
Revolução burguesa no Brasil, A (Florestan Fernandes)
revolução capitalista
“Revolução de 30”
revolução socialista
Ribeiro, Darcy
Rio de Janeiro
 
salários
São Paulo
São Vicente, 64 secularização
serviços públicos
Sete ensaios de interpretação da realidade peruana (Mariátegui)
sistema colonial
 
sistema escolar
socialismo
sociedade de classes
ver também classes sociais sociedade escravista
sociedade feudal
sociedade metropolitana
sociedades subdesenvolvidas
sociologia crítica
sociólogos
Sousa, Antonio Candido de Melo e ver
Candido, Antonio
Stein, S. J.
“Student politics and political systems” (Weinberg & Walker)
subdesenvolvimento
 
Taborga, Huascar
tecnologia
tirania de classe
trabalho escravo
trabalho livre
tradicionalismo
tráfico negreiro
transição neocolonial
 
Universidade brasileira: reforma ou revolução? (Florestan Fernandes)
Universidade de São Paulo
Universidade de Toronto
Universidade necessária, A (Darcy Ribeiro)
universidades latino-americanas
urbanização
Uruguai
utopias
 
Vale do Paraíba
Vasconi, A.
Veneza
Venezuela
Viana, Oliveira
Vicente do Salvador, frei
violência
 
Walker, Kenneth N.
Weatherhead, R. W.
Weber, Max
Weinberg, Ian
[1] Ensaio escrito para o simpósio sobre “Perspectivas comparadas sobre a
escravidão nas sociedades de plantação do Novo Mundo”, realizado em Nova
York, de 24 a 27 de maio de 1976, sob os auspícios da New York Academy of
Sciences.
[2] Para melhor entendimento dessa caracterização, veja-se, do autor:
Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina, pp. 13 e segs., e
esp., A revolução burguesa no Brasil, cap. 6.
[3] Essa caracterização foi explorada sinteticamente pelo autor em Sociedade
de classes e subdesenvolvimento, p. 111 e segs. Alguns aspectos centrais do
solapamento da ordem escravocrata e senhorial pelo elemento competitivo são
descritos em A revolução burguesa no Brasil, cap. 4.
[4] Conforme R. Bastide e F. Fernandes, Brancos e negros em São Paulo, caps. 1
e 2, passim; e F. Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, esp.
vol. I, cap. 1. Quanto à interpretação das transformações da produção escravista
e da transição para a plantatação tropical moderna, ver A revolução burguesa
no Brasil, pp. 103 e segs.; e O negro no mundo dos brancos, pp. 142 e segs.
[5] Em alguns casos excepcionais, essa debilidade não era tão forte ou podia ser
compensada pelo recurso simultâneo a várias formas de apropriação colonial e,
em consequência, de acumulação de capital mercantil pelo senhor. Boxer, em A
idade de ouro do Brasil, aponta alguns desses casos e concentra-se em um
deles, que permite ilustrar de modo quase limite o que era necessário para que
isso ocorresse (veja-se Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola. 1602-1686,
passim).
[6] Esta interpretação, é óbvio, não colide com o que escreve F. H. Cardoso
(Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, pp. 186-205). Aqui, o que temos
em vista é a importância estrutural e dinâmica do trabalho combinado sob a
escravidão colonial e mercantil, elemento sem o qual não se tem uma
perspectiva para entender a própria localização e a função da extensão da
jornada de trabalho e, em especial, o acréscimo da produtividade através do
trabalho cooperativo indiferenciado ou pouco diferenciado, mas sujeito a ritmos
próprios e a uma supervisão constante.
[7] Aliás, até ao nível da produção o trabalho escravo podia criar espaço
econômico para o trabalho livre (cf. A. von der Straten-Ponthoz, Le budget du
Brésil. vol. III, pp. 112-113 e, esp., 117-118). Isso quer dizer que a relação geral,
apontada por O. Ianni (Ensaio sobre a escravidão e capitalismo), segundo a qual
o aparecimento do operário deitava uma de suas raízes na existência do
escravo, pode ser generalizada e aplicada aos países da periferia. No Brasil, por
exemplo, os fundos para custear a imigração nasceram do excedente econômico
gerado pela escravidão mercantil, quer eles proviessem da iniciativa privada
(como na experiência da fazenda Ibicaba), quer do Estado senhorial e
escravista).
[8] Cf. R. Bastide e F. Fernandes, Brancos e negros em São Paulo, pp. 34 e segs.;
F. Fernandes, O negro no mundo dos brancos, pp. 143-144.
[9] O negro, como escravo, liberto ou homem livre e semilivre, esteve excluído,
na qualidade de agente histórico, do desencadeamento da revolução burguesa;
o mesmo não acontecia com a escravidão, que foi um dos eixos em torno no
qual se processou a acumulação do capital mercantil. Por isso, a protagonização
histórica do processo ficou nas mãos do fazendeiro e do imigrante (cf. F.
Fernandes, A revolução burguesa no Brasil, cap. 3). Para um alargamento da
descrição histórica do período: C. Prado Jr., História econômica do Brasil, caps.
16-20; e S. Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, cap. VII.
[10] Cf. A. M. Perdigão Malheiros, A escravidão no Brasil, vol. I, p. 32.
[11] A respeito dessa inconsistência medular, cf. R. Bastide e F. Fernandes,
Brancos e negros em São Paulo, pp. 82 e segs.
[12] Apesar de que, como se sabe, foram os sacerdotes os principais críticos do
terror organizado, inerente à escravidão, no Brasil colonial (veja-se, por
exemplo, F. Mauro, Nova história e Novo Mundo, pp. 205-224).
[13] Para se avaliar, em profundidade, essa crise da consciência senhorial
ultraconservadora, veja-se C. G. Mota, Atitudes de inovação no Brasil: 1789-
1801 e, principalmente, Nordeste 1817.
[14] A descrição foi contida na primeira etapa da transição neocolonial. O leitor
que tiver interesse por uma interpretação mais ampla, em função dos efeitos
econômicos, sociais e políticos da Independência, deve recorrer a A revolução
burguesa no Brasil, caps. 1 e 2.
[15] O leitor poderá ter uma ideia clara do que era o estadão de vida senhorial e
da rede de articulações que prendiam o senhor ao circuito econômico geral em
S. J. Stein, Grandeza e decadência do café.
[16] Os marcos dessa revolução urbana aparecem caracterizados por R. M.
Morse, Formação histórica de São Paulo. Sobre as conexões do processo com a
expansão interna do capitalismo, cf. F. Fernandes, A revolução burguesa no
Brasil, cap. 3.
[17] Cf. esp. R. Bastide e F. Fernandes, Brancos e negros de São Paulo, pp. 56 e
segs.
[18] Cf. E. Viotti da Costa, Da senzala à colônia.
[19] Cf. F. Fernandes, A revolução burguesa no Brasil, cap. 3; F. Fernandes, A
integração do negro na sociedade de classes, pp. 24 e segs,; W. Dean, A
industrialização de São Paulo, caps. I-V.
[20] F. Fernandes, A revolução burguesa no Brasil, cap. 4.
[21] Cf. esp. M. I. Pereira de Queiroz, O mandonismo local na vida política
brasileira, e V. Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto. Sobre a conexão do
antigo elemento mandonista com o padrão de dominação burguesa, cf. F.
Fernandes, A revolução burguesa no Brasil, cap. 5.
[22] Cf. “Os abolicionistas” (A Redempção, 29 ago. 1897).
[23] Ensaio a ser publicado nos Estados Unidos e na França em livros de
homenagem, respectivamente, a Charles Wagley e Roger Bastide.
[24] R. Bastide e F. Fernandes, O preconceito racial em São Paulo (reproduzido
em R. Bastide e F. Fernandes, Brancos e negros em São Paulo, pp. 271-300).
[25] Veja-se a enumeração dos principais colaboradores em R. Bastide e F.
Fernandes, Brancos e negros em São Paulo, pp. 16-17. A investigação global, da
qual o estudo das relações raciais na cidade de São Paulo era apenas uma parte,
contava ainda com um estudo sociológico das relações no município de
Itapetininga, feito pelo dr. Oracy Nogueira, e de duas análises psicológicas,
realizadas pelas dras. Virgínia Leone Bicudo e Aniela Meyer Ginsberg (ver R.
Bastide et alii, Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo.
[26] O principal grupo de contribuições consta dos seguintes trabalhos: R.
Bastide e F. Fernandes, Brancos e negros em São Paulo; F. Fernandes, A
integração do negro na sociedade de classes; F. Fernandes, O negro no mundo
dos brancos; R. Bastide, Le prochain et le lointain, toda a primeira parte; R.
Bastide, Les réligions africaines au Brésil, parte I, cap. IV.
[27] Vejam-se, especialmente: L. A. Costa Pinto, O negro no Rio de Janeiro; T.
Azevedo, Les élites de couleur dans une ville brésilienne; C. Wagley (org.), Races
et classes dans le Brésil rural; R. Ribeiro, Religião e relações raciais.
[28] Vejam-se, especialmente: F. H. Cardoso e O. Ianni, Cor e mobilidade social
em Florianópolis; F. H. Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional; O.
Ianni, As metamorfoses do escravo; J. B. Borges Pereira, Cor, profissão e
mobilidade. Sobre a bibliografia pertinente aos estudos das relações raciais no
Brasil: O. Ianni, Raças e classes sociais no Brasil, cap. VIII.
[29] O desdobramento da pesquisa para o Sul do Brasil previa a elaboração
posterior de um estudo comparativo. No entanto, não pudemos (F. H. Cardoso,
O. lanni e o autor deste artigo) realizar esse projeto. Tentativas de uso
comparado dos materiais começaram a ser feitas mais tarde: cf. F. Fernandes, O
negro no mundo dos brancos, caps. II e III; T. Azevedo, Democracia racial, caps. II
e III. Quanto à comparação da situação racial brasileira oom outras situações
raciais, cf. esp.: M. Harris, Patterns of race in the Americas; H. Hoetink,
Caribbean race relations; P. L. van den Berghe, Race and racismo.
[30] Várias conferências feitas em associações culturais negras permitiram ao
autor acompanhar a evolução de múltiplos aspectos da situação de contato
racial e a influência que os resultados da pesquisa tiveram na qualidade da
percepção da realidade e nas categorias de explicação utilizadas pelos ativistas
do meio negro. A última conferência, feita sob os auspícios do Instituto Brasileiro
de Estudos Africanistas, em 13/10/1975, sobre “A atual situação do negro no
Brasil — perspectivas”, suscitou um longo debate e permitiu consolidar muitas
das conclusões a que o autor tinha chegado previamente, explorando sua
condição de membro-adotivo e pesquisado-participante.
[31] Uma preocupação mais específica pelo mulato no mundo racial brasileiro
aparece no estudo de C. N. Degler, Neither black nor white (Sobre este livro, E.
de Oliveira e Oliveira escreveu um comentário que merece atenção: “O mulato,
um obstáculo epistemológico”, pp. 65-73); T. de Queiroz Júnior, Preconceito de
cor e a mulata na literatura brasileira.
[32] Essa ponderação é deveras importante. A maioria das conferências
organizadas no meio negro são da iniciativa dos antigos líderes do movimento
de protesto coletivo ou de ativistas novos, que se formaram sob sua influência.
O próprio autor se identifica com uma perspectiva militante e radical, pois sem
ela nunca se constituirá no Brasil uma democracia racial (ver, em especial, F.
Fernandes: “Aspectos políticos do dilema racial brasileiro”, em O negro no
mundo dos brancos, pp. 259-283). Não obstante, os materiais aproveitados para
análise, neste artigo, foram cuidadosamente selecionados e criticados, para não
apresentarem uma imagem distorcida da presente situação. No pensamento
negro moderno, a posição mais radical, de um “racismo antirracista”, tem sido
tomada e defendida com envergadura por Abdias do Nascimento (vejam-se seu
depoimento, em Cadernos brasileiros, pp. 3-7; e, do livro que organizou, O negro
revoltado, o capítulo introdutório de sua autoria, pp. 13-63). Os estudos
sociológicos já feitos permitem caracterizar a ideologia racial dominante e a
contraideologia negra (cf. notas 3, 4 e 5, referências a F. Fernandes, L. A. Costa
Pinto, F. H. Cardoso e O. Ianni). Um balanço recente do que se poderia chamar
da “falsa consciência racial” no pensamento brasileiro foi feita por T. E.
Skidmore, Black into white. Quaisquer que sejam as limitações perceptivas e
cognitivas das categorias críticas aplicadas pelos negros (nos movimentos de
protesto coletivo, das décadas de 1930 e 1940; ou nas conferências de agitação
das décadas de 1960 e 1970), o uso do desmascaramento como técnica de
combate e a identificação com impulsões raciais igualitárias e democráticas
tornam o seu pensamento muito mais objetivo e penetrante que o do branco.
[33] Por motivos óbvios, eximimo-nos de arrolar uma bibliografia sociológica
sobre o assunto. Quem estiver familiarizado com os estudos de H. Freyer, K.
Mannheim ou C. W. Mills sabe em que consiste a conexão mencionada da
sociologia com a “consciência crítica da situação”.
[34] Cf. F. Tönnies, Princípios de Sociologia, pp. 349-357.
[35] C. W. Mills denuncia esse efeito em The sociological imagination.
[36] Em contraste, a avaliação do branco conservador foi, com frequência, muito
mais moderada e restritiva. Houve, até, quem assinalasse que estaríamos
introduzindo “o problema racial” no Brasil!
[37] Ver F. Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, vol. 2,
cap. 4. xxxvi Ver F. Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes,
vol. 2, cap. 5.
[38] Ver F. Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, vol. 2,
cap. 5.
[39] Para a caracterização sociológica da revolução burguesa no Brasil, ver F.
Fernandes, A revolução burguesa no Brasil (quanto ao caráter que essa
revolução assume em sua fase de apogeu, caps. 5, 6 e 7).
[40] Ver acima, referência da nota 14.
[41] Sobre o controle político conservador da mudança social: F. Fernandes,
Sociedade de classes e subdesenvolvimento, pp. 101-111; Idem, A sociologia
numa era de revolução social, cap. 7; Idem, Mudanças sociais no Brasil, pp. 19-
57; Idem, A revolução burguesa no Brasil, cap. 7.
[42] Ver R. Bastide e F. Fernandes, Brancos e negros em São Paulo, pp. 56 e
segs.; F. Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, vol. 1, pp.
24-38.
[43] Ver O. Ianni, O colapso do populismo no Brasil; e F. H. Cardoso, O modelo
político brasileiro e outros ensaios, cap. III.
[44] Ver F. Fernandes, A revolução burguesa no Brasil, caps. 5 e esp. 7.
[45] Como vêm descritos, por exemplo, em F. Frazier, Bourgeoisie noire; e L.
Kuper, An african bourgeoisie.
[46] Ver F. Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, vol. 1,
cap. 2.
[47] Os atuais estudos sobre populações marginais não contêm referências às
diferenças raciais. Ainda assim, eles são úteis não só para uma sondagem dos
processos de espoliação e de expansão da pobreza, mas também para estudar-
se como a modernização e a industrialização se refletem nos estratos mais
pobres da população (ver esp. M. T. Berlinck, Marginalidade social e relações de
classes em São Paulo; e, apesar de referir-se à Baixada Santista, M. C. Pinheiro
Machado Paoli, Desenvolvimento e marginalidade). Com a mesma ressalva,
pode-se aproveitar estudos recentes sobre as migrações para a cidade (E. R.
Durhan, A caminho da cidade); e sobre a mobilização do trabalho (L. Pereira,
Trabalho e desenvolvimento no Brasil; L. Martins Rodrigues, Industrialização e
atitudes operárias).
[48] Conforme, especialmente, Oswaldo de Camargo, O carro do êxito.
[49] Várias dessas propensões são muito bem apanhadas através dos contos de
Oswaldo de Camargo.
[50] Tradução revista pelo autor.
[51] A versão apologética do regime peruano aparece em Carlos Delgado, A
revolução peruana, 1972; a versão crítica mais contundente, em Aníbal Quijano,
Nationalism and capitalism in Peru, 1971. Ambas as posições precisam ser
vistas com reservas. Carlos Delgado impregna a “revolução peruana” de uma
originalidade socialista que ainda não se concretizou; e Aníbal Quijano ignora
dimensões populistas, reformistas e anti-imperialistas notórias do regime.
[52] J. Nun, Latin America: the hegemonic crisis and the military coup, 1969.
[53] Alguns estudos a respeito dos golpes de Estado na América Latina são bem
conhecidos, como os ensaios ou livros de V. Alba, G. Germani e K. Silvert, Louis
Higgs (ed.), I. L. Horowitz, J. J. Johnson, E. Lieuwen, G. Lupo, L. N. MacAlister, L.
North etc. (ver L. N. MacAlister, “Recent research on the role of the military in
Latin America”, 1966). A esta bibliografia, seria necessário acrescentar os
artigos publicados pela Revista Latino-Americana de Sociologia (Buenos Aires) e
o número especial de Apartes (nº 6, 1967, com artigos de V. R. Beltran, A. Ciria,
R. P. Case, F. C. Turner, M. C. Grondona, V. Alba e H. Jaguaribe). No IX Congresso
Latino-Americano de Sociologia (México, 1969) foram apresentadas importantes
contribuições, também utilizadas nesta discussão: J. Cotler, Crisis política y
populismo militar en el Peru, 1969; J. Saxe-Fernandez, De “nation-building” a
“empirebuilding”: hacia una estrategia militar hemisférica; E. Valencia, Notas
para una sociología de la guerrilla; F. L. Buitrago, Política y intervención militar
en Colombia; A. Pearce, El campesino en la revolución boliviana. Em relação à
minha análise dos aspectos do desenvolvimento econômico, social e político na
América Latina, ver meu livro Sociedade de classes e subdesenvolvimento, esp.
cap. I.
[54] Conforme, especialmente, os trabalhos citados de J. Saxe-Fernandez e R. P.
Case; e E. Lieuwen, U. S. policy in Latin America, pp. 83-125. As consequências
da nova política metropolitana de “desenvolvimento com segurança” possuem
desdobramentos que afetam profundamente as ciências sociais (veja-se, a
respeito, J. Saxe-Fernandez, “Ciencia social y contrarrevolución preventiva en
Latinoamérica”, pp. 53-81.
[55] Os organizadores autorizaram gentilmente a publicação do trabalho em
português em sua versão original. Pediram para mencionar, porém, que
obtiveram os fundos para a organização da obra de The Midgard Foundation.
[56] A respeito da organização em “escolas”, “faculdades” e “universidades”
existem diferenças notórias na orientação da administração colonial portuguesa
e espanhola, como na atuação dos respectivos cleros. Tais diferenças
persistiram após a implantação dos Estados nacionais e converteram-se em
tradição cultural, que só recentemente começou a ser corrigida. Essa questão
não pode ser debatida aqui e pode ser facilmente esclarecida pelos estudos de
história educacional e de educação comparada.
[57] Nesta parte do trabalho teremos de dar, forçosamente, pouca atenção ao
desenvolvimento recente ou atual das instituições de ensino superior. Adiante,
teremos de voltar repetidamente ao assunto, focalizando essas instituições sob
seus diferentes aspectos e sob prismas diversos. O leitor que quiser
esclarecimentos de ordem histórica sobre a antiga ou a nova universidade terá
de socorrer-se dos estudos sobre história educacional ou de educação
comparada, que tomam por objeto o mundo latino-americano.
[58] Deve-se notar que o êxito dos movimentos de “autonomia” ou de “reforma”
universitária foi mais rápido em países de língua espanhola e que o Brasil só
conhece a dinamização de tais movimentos em época posterior. Todavia, com
frequência o terreno ganho em um momento perdia-se no momento seguinte
(como se poderia ilustrar com o caso da Argentina: a reforma da Universidade
de Cordoba, em 1918, consagrou uma situação que foi revogada pela ditadura
peronista; estabelecida em novas bases, por uma lei sancionada em 30 de
setembro de 1958, de iniciativa do reitor Risieri Frondizi, viu-se de novo
ameaçada pela recente ditadura militar do general Ongania). A pressão
quantitativa e os dilemas políticos acabam tendo, em semelhante contexto de
incompreensão e de opressão da inteligência, mais eficácia que as soluções de
pura origem racional.
[59] Compilação feita por Havighurst, com base nos resultados das pesquisas de
Bertram Hutchinson (Universidade de São Paulo), Gino Germani (Universidade
de Buenos Aires) e Comissão Coordenadora da Reforma da Universidade
Nacional de San Marcos, todas feitas na década de 50 (veja-se Robert J.
Havighurst et alii, La sociedad y la educación en América Latina, tabela XXII, p.
187).
[60] Dados extraídos de Situação social da América Latina, pp. 159-164.
[61] As informações concernentes a 1966 foram extraídas de Felipe Herrera,
“América Latina se transforma” (O Estado de S. Paulo, p. 38, 28 jan. 1968).
[62] Os cálculos foram refeitos para cada grupo de países.
[63] No entanto, o estudo de Aldo Solari (Aproximaciones al problema de la
educación y el desarrollo económico en el Uruguai) fornece indicações que
permitem concluir que, não obstante suas dificuldades econômicas, o Uruguai
continuou a expandir todos os ramos do ensino, na referida década.
[64] “MEC recebe menos”, O Estado de S. Paulo, 24 dez. 1967.
[65] UNESCO-MINEDECAL/9, La formación de recursos humanos en el desarrollo
económico y social de América Latina, p. 45.
[66] Tivemos de adotar a classificação fornecida pela fonte utilizada, Não
obstante, o leitor interessado poderá reagrupar os dados facilmente, para
compará-los com a enumeração anterior.
[67] Essa nos parece ser a hipótese de melhor valor heurístico para explicar a
orientação de comportamento discutida, em termos sociológicos. Fomos levados
a essa interpretação pela análise de casos nos quais os fazendeiros
encaminham seus filhos, terminantemente, para outras carreiras e depois os
reabsorvem nas administrações das fazendas; e de casos nos quais os próprios
pais, que possuem grandes propriedades rurais, não procuram aproveitar filhos
ou sobrinhos, formados em agronomia e veterinária, na solução de problemas
práticos relacionados com a produtividade da terra ou com o tratamento dos
rebanhos.
[68] Dados extraídos de Gino Germani, “Estrategia para estimular la movilidad
social”, pp. 250-251.
[69] Seria importante que o leitor procurasse ler, na fonte citada, a parte
relativa às projeções com referência a 1980 (cf. UNESCO-MINEDECAL/9, La formación
de recursos humanos en el desarrollo económico y social de América Latina, pp.
57 e segs. e esp. quadros 14, 15 e 16). A projeção, por levar em conta o futuro
(embora o futuro próximo), focaliza melhor as deformações da estrutura
ocupacional e as dificuldades para corrigi-las. As implicações dessa projeção não
foram incluídas no texto por causa da extensão que a análise tomaria.
[70] Vejam-se, a respeito, os dados fornecidos por UNESCO-MINEDECAL/9, La
formación de recursos humanos en el desarrollo económico y social de América
Latina, pp. 51-53. Só da Argentina, entre 1950 e 1964, foram para os Estados
Unidos mais de 5.000 professores e técnicos, sendo que 60% desse pessoal
eram constituídos por engenheiros, médicos e professores. Do Chile, por sua
vez, só em 1963 foram 1.153 pessoas para os Estados Unidos, das quais a
quarta parte era constituída de profissionais com qualificação universitária. Um
inquérito feito sobre o assunto pôs em evidência que 24% se declararam
motivados a imigrar em busca de melhores salários; 29% por aspirações de
progresso profissional; 16% por maior reconhecimento de valor; e 13% por
melhores oportunidades de investigação (as fontes dos dados originais são
indicadas na obra citada). Ao que parece, seria preciso investigar as relações
existentes entre as orientações dominantes no ensino e na pesquisa das
melhores universidades da América Latina e essa imigração em massa. Por meio
de entrevistas com alguns cientistas de renome descobrimos, há vários anos,
que incentivam, deliberadamente, especializações que acarretam trabalho
permanente no exterior dos melhores talentos. Pusemos à prova essa
descoberta e constatamos que a tendência possui até uma filosofia própria, pois
se alega que não adiantaria trabalhar em áreas da ciência que não possuam
“significado internacional”!

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