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C I R C U I T O F E C H A D O
Obras reunidas de Florestan Fernandes
Coordenação:
Maria Arminda do Nascimento Arruda
prefácio:
Maria Arminda do Nascimento Arruda
Copyright © 2005 by herdeiros de Florestan Fernandes
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode
ser utilizada ou reproduzida – em qualquer meio ou forma, seja
mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. – nem apropriada
ou estocada em sistema de bancos de dados, sem a expressa
autorização da editora.
U M A S O C I O L O G I A D O
D E S T E R R O I N T E L E C T U A L
B R A S I L:
P A S S A D O E P R E S E N T E
Eu canto aos Palmares
odiando opressores
de todos os povos
de mão fechada
contra todas as tiranias!
SOLANO TRINDADE (Canto dos Palmares)
CAPÍTULO 1
A SOCIEDADE ESCRAVISTA
NO BRASIL[1]
25 ANOS DEPOIS:
O NEGRO NA ERA ATUAL[23]
AMÉRICA LATINA: HOJE
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos
e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta,
um verme.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, (Nosso tempo)
CAPÍTULO 3
A DITADURA MILITAR
E OS PAPÉIS POLÍTICOS
DOS INTELECTUAIS NA
AMÉRICA LATINA[50]
NOTA EXPLICATIVA
ESTE ENSAIO FOI EDITADO como publicação avulsa da
universidade de Toronto em 1969-1970, junto com outro
estudo e sob o título The Latin American in residence
lectures (com prefácio do professor Kurt. L. Levy; e a
colaboração, na preparação do texto em inglês ou na
revisão, do querido colega professor Kenneth N. Walker e
dos então estudantes pós-graduados Marion Blute e Craig
McKie). Não cometi a injúria de solicitar autorização para
publicá-lo em português na presente edição.
O sociólogo não está livre de exercer suas funções e seus
papéis intelectuais nas piores condições para si próprio (e,
quiçá, para a sociologia). Às vezes, se o que entra em conta
é uma denúncia (expressa ou velada), ele é limitado por sua
profissão ou por suas vinculações acadêmicas dentro do
mundo da universidade. Os que lerem este ensaio não
devem deixar de ter isso em mente — não para desculpar o
autor, que conhece e aceita os riscos que deveria correr,
mas para ajudá-lo. Estamos num limite em que a
inteligência e a imaginação dos leitores são essenciais: ela
permite saturar os vazios, colorir as omissões e perceber o
que nem sempre é óbvio.
Na ocasião em que foi escrito, entre fim de dezembro de
1969 e início de janeiro de 1970 (a versão inicial do trabalho
foi apresentada como conferência pública, sob patrocínio
oficial, em um dos auditórios da Universidade de Toronto em
20 de janeiro de 1970), os focos de referência implícitos da
discussão eram o Brasil, a Argentina, a Bolívia e o Peru. A
explicitação dos casos que serviam de base para a análise
do novo estilo de golpe de Estado e de militarização do
Estado capitalista era simplesmente inócua. Os ouvintes,
professores, estudantes e intelectuais tinham condições de
acompanhar uma formulação altamente abstrata, sem
perder de vista do que se tratava, empiricamente; e, o que
é mais importante, de introduzir as gradações históricas
inevitáveis, dadas as diferenças existentes entre esses
países.
A inclusão do Peru não se devia a qualquer animosidade
pessoal ou a alguma ignorância dos aspectos positivos que
a militarização do poder estatal tenderia a assumir naquele
país.[51] Embora o autor nunca se tenha entusiasmado com
a ideologia da “revolução peruana”, ambígua no seu
aparente repúdio concomitante do capitalismo e do
comunismo, é evidente que, no Peru, o novo modelo de
ditadura militar tentou enfrentar e resolver problemas
capitais, que vão da reforma agrária à proteção da Nação
contra os interesses ultraconservadores internos e contra os
interesses imperialistas externos, articulados na prática
econômica e política. O caso peruano se incluiu no campo
de observação e de exposição por motivos formais. A
impregnação tecnocrática-militar do Estado e o
funcionamento do governo militarizado são altamente
similares em todos os quatro casos. O que varia são as
funções históricas do Estado e as identificações políticas do
governo militarizado, pois em um plano se configura, em
toda a plenitude, a ditadura militar polarizada através da
reação e da contrarrevolução burguesas; e, no outro, a
ditadura militar pretende configurar-se como uma espécie
de bonapartismo acima das classes, polarizando-se através
de um nacionalismo revolucionário oscilante (embora,
concretamente, tenha tentado medidas exclusivas de
“revolução dentro da ordem” e de “revolução contra a
ordem”). Desde que tais diferenças essenciais sejam
tomadas em conta, é crucial considerar em conjunto os
quatro casos: assim aparecem com maior nitidez as linhas
de demarcação, que separam a ditadura militar em nome
das classes possuidoras e de suas elites da ditadura militar
“acima das classes”; e, o que é mais relevante, o que é
específico aos três casos que tendem para a situação típica
no presente, na qual os interesses internos e os interesses
externos, articulados pelo capitalismo monopolista e
unificados pela dominação burguesa, fazem com que a
ditadura militar das classes possuidoras seja instrumental
para impedir a revolução contra a ordem, tanto quanto para
confinar a revolução dentro da ordem à modernização
consentida, imposta de fora para dentro e de cima para
baixo. O leitor poderá, certamente, lamentar que esses
filões não tenham sido explorados explicitamente e de
modo sistemático; eles estão, porém, mais do que
evidentes, já que iluminam o sentido global da análise e, em
particular, a caracterização das evoluções potenciais de
curto e médio prazos (no tópico que focaliza o tema “Estado
e sociedade em tensão” e, posteriormente, numa passagem
do debate sobre os papéis políticos dos intelectuais).
Naquele momento já eram evidentes os contrastes que
permitiriam separar as características e as prováveis linhas
de evolução dos três casos que cabiam na ditadura militar
de classe, com orientações reacionárias e
contrarrevolucionárias (definidos em termos da contradição
com a “democracia burguesa” e com o radicalismo
burguês). No entanto, como o limite explicativo e crítico se
oferecia na abstração de traços comuns essenciais (em
termos de instituições e de processos ou de comportamento
de classes dominantes), tais diferenças eram irrelevantes.
Parecia, então, que o caso extremo já se havia dado. Porém,
só no Chile e em 1973, a América Latina tomaria
conhecimento de que aquela realidade histórica ainda não
se esgotara e que, nas dobras da ditadura militar das
classes possuidoras, havia uma conexão histórica
contrarrevolucionária permanente, suscetível de
aprofundamento em função dos embates entre capitalismo
monopolista e o movimento socialista revolucionário. No fim
da década de 1960, em suma, uma análise de oposição
frontal e que não se situava no âmbito de demonstrações
especificamente políticas podia limitar-se à enumeração
abstrata de aspectos estruturais e dinâmicos comuns aos
casos conhecidos de maior significação histórico-
sociológica.
Haveria pouco sentido em aproveitar esta nota explicativa
para arrolar leituras complementares e, em particular, para
situar os desdobramentos da pesquisa sociológica sobre o
assunto. As referências bibliográficas originais não tinham
significado “erudito”. Elas visavam, apenas, a sugerir as
linhas de informação do autor e a atualidade do tema na
preocupação dos sociólogos, “comprometidos” ou
“neutros”, “pró” ou “contra”. Quanto à evolução do
pensamento do autor, que continuou a aprofundar o exame
do tema e o seu envolvimento na oposição a esse tipo de
regime, o leitor que estiver interessado deve recorrer a
Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina
(Rio de Janeiro: Zahar, 1973, esp. pp. 102-115) e A
revolução burguesa no Brasil (Rio de Janeiro: Zahar, 1975,
toda a última parte ou, esp., cap. 7). Aí se poderão
patentear as linhas de compensação introduzida por
descrições mais balanceadas, que também pretendem
participar da “sociologia crítica e militante”, mas atingem
esse propósito fora e acima de uma confrontação
contingente ou condicionada por objetivos reduzidos de
relação com um público determinado.
Há, ainda, a considerar as críticas feitas a este trabalho
(os elogios nem sempre chegam ao autor; e, quando
chegam, podem ser negligenciados na comunicação com o
leitor). A crítica mais frequente focalizou a falta de
fundamentação empírica ou a ausência de um propósito
formal de construir uma teoria desses regimes. Ora, se fui
claro, tanto no texto original quanto nesta breve nota
explicativa, trata-se de uma desorientação da crítica.
Pretendia algo que não se enquadrava nem na descrição
sistemática nem na interpretação exaustiva, com
pretensões classificatórias. Ou seja, uma apertada síntese
de certos conhecimentos sociológicos, além do mais de uma
perspectiva de negação e de confrontação aberta, quase
uma “literatura de partido” (a qual não cheguei, por falta de
um palco partidário e, ao mesmo tempo, porque a
Universidade de Toronto, e, posteriormente, outras
universidades, ofereceram uma “alternativa acadêmica”
para o livre debate de cunho sociológico — embora sem ser
estritamente profissional). Não buscava beneficiar-me de
nenhuma ambiguidade nem proteger-me por trás dos muros
acadêmicos. É que as circunstâncias eram aquelas e não me
era dado escolher as condições em que tentava sair à liça.
Isso me impunha uma severa limitação. Todavia, qual foi o
partido, organização radical ou movimento político que me
convidou para outro tipo de discussão? Só me foi dado
discutir francamente como “sociólogo engajado”: um debate
que podia ser crítico, militante e contundente, mas ficando
sempre dentro da sociologia (pela natureza dos argumentos,
os fins da exposição ou as expectativas do público). Se o
resultado desagrada os que só entendem a sociologia como
descrição empírica ou alta construção teórica mais ou
menos “neutra”, o melhor é passar adiante. Para esses,
recomendo — não adianta comprar este livro e, muito
menos, procurar no seu terceiro ensaio o que ele não
contém nem pretende oferecer.
Uma segunda crítica tem se voltado contra um pretenso
“preconceito antimilitar” do autor. Como e enquanto
socialista, sempre fui e serei contra o militarismo; como e
enquanto cientista, por outro lado, não posso aceitar a
violência dos poderosos como última via de decisão política
e instrumento de conformação da razão. Mas, ser
antimilitarista não é o mesmo que ser contra o militar. O
militar nunca escolhe, individualmente ou como
coletividade, os papéis que pode ou que tem de
desempenhar na história. Doutro lado, na própria sociedade
capitalista há um amplo campo de utilização do militar a
favor ou contra a revolução democrática (isto é, em termos
de preservação do status quo, de revolução dentro da
ordem ou de revolução contra a ordem). É um erro crasso
querer transformar o militar, individual ou coletivamente,
em uma categoria pura e na ultima ratio dos processos
históricos. Acredito que antes já dei demonstrações
concretas de que posso compartilhar com os militares aquilo
que se pode chamar de defesa da “boa causa” (tentei, de
motu proprio e inutilmente, buscar o seu apoio para a
Campanha de Defesa da Escola Pública; e, ocasionalmente,
tive alguns companheiros militares lúcidos nas várias
manifestações do radicalismo burguês nos últimos trinta
anos). E, mesmo neste texto, indiquei os vários caminhos
que a presente crise abre ao uso político do militar e das
forças militares como “braço armado da burguesia” ou
contra ela. Tenho a impressão de que a minha posição é
clara e coerente; e que não me coloco contra o militar em
geral, pois aqui cuido do militarismo engendrado na
sociedade de classes capitalista dependente e
subdesenvolvida, na era em que a sua crise interna e a crise
mundial do capitalismo ameaçam a dominação burguesa e a
sobrevivência do estado capitalista.
A terceira crítica se concentrou no modo pelo qual tentei
situar os papéis do intelectual no mesmo processo de
contrarrevolução burguesa e de militarização do poder
estatal. Muitos julgam que não houve nem capitulação
passiva nem colaboração dissimulada nem solidariedade
ativa por parte dos intelectuais (seria melhor dizer-se: de
grupos de intelectuais) a um odioso movimento
contrarrevolucionário e a uma férrea ditadura de classes
privilegiadas. Ao mesmo tempo, os que afirmam isso
continuam a usufruir, imperturbavelmente, as vantagens
que alcançaram ou a melhorá-las — como se o mundo
criado pela autocracia burguesa fosse o melhor dos mundos
possíveis (salvo alguns inconvenientes, que atingem os
precipitados ou os renitentes). Essa não é sequer a
linguagem ou o comportamento de um Pilatos. Não se
lavam as mãos. Come-se mesmo de mãos sujas. Admitindo
que todos os argumentos têm uma base de verdade — não
é isso que me preocupa; e tampouco pretendi generalizar,
pois também mencionei o “maquis” da intelligentsia. O que
fica, como papel crítico e negador da ordem para o
intelectual, se ele se acomoda sem “boa” ou “má” crise de
consciência? Ou se ele se comporta como se o mister
intelectual fosse indiferente às transformações do mundo e
da cultura? Não estava cuidando de casos concretos ou de
experiências individuais. E, de fato, se a exceção pode
invalidar um princípio, a exceção também confirma a regra.
E era isto que tinha de ser posto a nu. A omissão, na área
vital da produção do pensamento, é a pior das fugas. E,
como já pregava o clássico Vieira, pecar por omissão é o
pior dos pecados. O que esperar de uma sociedade ou de
uma civilização nas quais os intelectuais assistem
impassíveis à brutalização do homem, enquanto desfrutam,
com ou sem requinte mas sempre com afinco, o seu “nível
de vida” e os seus grandes ou pequenos privilégios?
F. F.
1º de setembro de 1975.
INTRODUÇÃO
A IDEIA DE QUE a América Latina é uma região na qual os
golpes de Estado são uma rotina política tornou-se comum.
Tendo-se em vista a participação dos militares nesses
golpes, o melhor estudo sociológico sobre o fenômeno
mostra que, de 1930 a 1965, os países latino-americanos
sofreram cento e um golpes militares de estado com êxito.
[52]Somente o Uruguai e o México, por motivos diversos,
estiveram ausentes desse levantamento, no período acima
mencionado. Apesar disso, os países latino-americanos
tiveram, no passado e no presente, períodos de relativa
estabilidade, nos quais os setores civis dominantes da
sociedade foram capazes de controlar tanto o poder político
quanto o militar.
O estilo do golpe de Estado, o envolvimento político dos
militares e os tipos de ditadura militar variam no tempo e no
espaço, de acordo com as características demográficas,
econômicas, sociais, culturais e políticas dos países, e de
acordo com a organização das Forças Armadas e de suas
funções, manifestas ou latentes, dentro do Estado e da
sociedade nacional.[53] A discussão de um assunto de tal
complexidade torna-se impossível numa exposição breve.
Minha intenção é mais específica. Em alguns países da
América Latina, atualmente emerge e se expande, como um
processo transitório, uma militarização definida do Estado e
da política.
Este fenômeno pode ser descrito e interpretado,
sociologicamente, sob muitos pontos de vista. Nesta
discussão, abordá-lo-ei em termos da situação total em que
as forças armadas se converteram num prolongamento da
política mediante outros meios, e num fator contingente de
contrarrevolução.
A NATUREZA SOCIOLÓGICA DO PROCESSO
A UNIVERSIDADE
EM UMA SOCIEDADE EM
DESENVOLVIMENTO
NOTA EXPLICATIVA
ESTE ENSAIO FOI ESCRITO em 1966 e destinava-se a um livro
sobre A universidade na América Latina, organizado por
Joseph Maier e Richard W. Weatherhead.[55] Cabia-me
discutir algumas relações da situação do ensino superior e
da organização da universidade com a transformação da
sociedade circundante. Outros temas ficaram a cargo de
autores diferentes, o que explica a sua negligência ou
localização muito sumária no presente trabalho.
É obvio que os dados empíricos se referem aos materiais
que me eram acessíveis no Brasil até 1966. A atualização do
quadro de referência empírica está, naturalmente, fora de
cogitações. Isso implicaria a redação de um trabalho novo.
O tópico 2, sobre o que se poderia chamar de “a
universidade tradicional e sua transformação”, não exigiria
qualquer alteração. Conviria agregar à leitura, em particular,
um livro de José Carlos Mariátegui (Sete ensaios de
interpretação da realidade peruana. Tradução de S. O. de
Preitas e C. Lagrasta. São Paulo: Alfa-Omega, 1975, pp. 95-
105), recém-publicado em português (não só para o leitor
avaliar por si próprio o atraso com que o movimento de
reforma universitária se desencadeia no Brasil; também
para que ele tome contato com a amplitude pedagógica,
intelectual e política daquele movimento na América
Espanhola da década de 1920). É com relação ao tópico 3
que os dados que servem de base à análise envelheceram.
Todavia, a técnica analítica (que constitui uma parte
importante do trabalho) mantém sua atualidade; ela abriu
margem a reflexões que ainda hoje são úteis e que, por sua
vez, não perderam consistência, quando se considera o
período ao qual se aplicavam. A alteração da posição do
Brasil, naquele quadro global, se fez mais quantitativamente
que qualitativamente (veja-se F. Fernandes. A universidade
brasileira: reforma ou revolução? São Paulo: Alfa-Omega,
1975, esp. pp. 33-37). Pela natureza do assunto, o tópico 4
deveria ter envelhecido, pois as relações entre universidade
e desenvolvimento se alteraram, em virtude da expansão
do capitalismo monopolista. Não obstante, a
contrarrevolução, que eclodiu em todos os países nos quais
a “democracia burguesa” parecia prestes a consolidar-se e
expandir-se, abortou alterações de maior significado. O
ensaio, que pareceu “pessimista” a vários colegas que o
leram (inclusive com referência às expectativas reformistas
e revolucionárias despertadas pela rebelião da juventude),
hoje pode ser avaliado como objetivamente crítico
(evidenciando que o autor não se curvou às suas
esperanças como e enquanto socialista militante). Em seu
livro acima citado se encontra matéria para aprofundar as
reflexões com material mais recente (esp. caps. 3, 4, 6 e 8).
Não teria propósito atualizar a bibliografia utilizada. Todavia,
pelo menos alguns poucos livros merecem ser salientados:
Darcy Ribeiro. A universidade necessária (Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1969), La universidad peruana (Lima: CENTRO,
1974); Tomás A. Vasconi e Inés Reca. Modernización y crisis
en la universidad latinoamericana (Santiago: CESO, 1971);
François Bourricaud. La universidad a la deriva (Caracas:
Fundación Eugenio Mendoza, 1971); Huascar Taborga. Mito y
realidad de la universidad boliviana (La Paz: Cochabamba,
1970); Marialice M. Foracchi. A juventude na sociedade
moderna (São Paulo: Pioneira, 1972). É impraticável fazer
uma atualização da bibliografia sobre o papel da juventude
radical e dos movimentos estudantis. Pelo menos os
seguintes artigos devem ser mencionados, como ponto de
partida: Marialice Mencarini Foracchi. “Ideologia estudantil e
sociedade dependente” (Revista Mexicana de Sociologia,
vol. XXXI, nº 3, 1969) e “Estudante e política no Brasil”
(Aportes, Paris, nº 7, jan. 1968); Ian Weinberg e Kenneth N.
Walker. “Student politics and political systems” (The
American Journal of Sociology, vol. 75, jul. 1969); Ted
Goertzel, “American imperialism and the Brazilian student
movement” (Youth & Society, vol. 6, nº 2, 1974). Como um
marco na descrição da violência na repressão do
inconformismo estudantil: Salvador Hernández, El PRI y el
movimiento estudantil de 1968 (México: El Caballito, 1971).
A universidade sempre esteve em relação tensa com os
estratos dominantes e com o obscurantismo na América
Latina. Mesmo a “universidade tradicional” não escapou à
incompreensão e a algumas represálias, que certas vezes
atingiram seriamente os elementos mais representativos do
corpo docente ou as tentativas mais ousadas dos
estudantes. No entanto, as crises que se inauguram no
após-1930 e, em especial, as repercussões da chamada
“guerra fria” no continente, antes e particularmente depois
da revolução cubana, expuseram a universidade latino-
americana a formas sistemáticas e institucionalizadas de
repressão e de opressão, malgrado as tendências
conservadoras do corpo docente e sua propensão suicida à
capitulação passiva. Como consequência, a fermentação em
processo no meio estudantil e entre os intelectuais mais
esclarecidos (e mais ou menos radicais) tornou-se um
capítulo da ultraviolência, sendo sufocada no nascedouro.
Sempre me coloquei à frente dos que acham que a função
do intelectual consiste em negar a ordem, em nome do
pensamento crítico e das forças de transformação
revolucionária da sociedade de classes. Se esses temas não
comparecem na presente discussão ou só aparecem em
termos de certas conexões da mudança social com a
seleção das funções sociais construtivas da universidade,
isso se deve aos aspectos do assunto que me cabia abordar.
Minha participação no movimento da reforma universitária
iria intensificar-se e radicalizar-se somente em 1967 e 1968,
alterando toda a minha perspectiva do assunto. O ensaio,
como um todo, no entanto, não foge a tudo que tenho
tentado fazer de minha vida, em constante confrontação
com o pensamento conservador e o controle externo da
universidade.
F.F.
1º de setembro de 1975.
INTRODUÇÃO
A década de 1950-60, apesar da relativa adversidade
econômica, parece marcada por um crescimento
relativamente considerável do sistema escolar desses
países, como evidenciam os seguintes dados:[60]
Como se pode constatar, os países que se aproximaram
ou superaram essas médias atingiram ou estão atingindo
um patamar de alfabetização que lhes permite dedicar
maiores esforços ao ensino médio e superior. Ao que parece,
os objetivos centrais de mudança da política educacional
voltavam-se para este último. Mas, dados o afunilamento do
sistema escolar, as avaliações sociais dominantes e a maior
acessibilidade do ensino médio, isso acarretou uma
elevação desproporcional do ensino médio (que teve a sua
matrícula aumentada em escala inesperada). Em
consequência, a relação entre uma matrícula no ensino
superior e o total de matrículas correspondentes no ensino
primário caiu de 57 para 50, de 1950-60. No entanto, a
mesma relação do ensino superior com o ensino médio
subiu de 6 para 7. Informações relativas a 1966 mostram,
grosso modo, como as mencionadas características estão
evoluindo:[61]
Por esses dados, a uma matrícula no ensino superior, em
1966, correspondia, aproximadamente: 42 matrículas no
ensino primário; e 8 matrículas no ensino médio. A
representação percentual demonstra que, em conjunto,
implantou-se uma tendência no sentido de diminuir
paulatinamente o achatamento estrutural do sistema
escolar:
A correlação entre as matrículas nos três níveis de ensino
sugere que não se processou nenhuma alteração
substancial nos critérios econômicos e socioculturais de
distribuição das oportunidades educacionais. Contudo, ela
confere algum vigor à hipótese segundo a qual a pressão
demográfica tem operado como uma espécie de
equivalente da influência dinâmica da democratização do
ensino. Pois uma parte considerável da população
escolarizada no nível médio não contou com suficiente
fluidez no sistema escolar para poder passar ao nível
ulterior. Esse efeito poderia explicar-se pela rigidez do
ensino superior, sujeito ao critério de número clausus em
alguns países ou a crescimento moderado, por falta de
recursos, em outros. Todavia, o simples congestionamento
das matrículas no ensino médio altera a concorrência pelas
oportunidades educacionais no nível imediato do ensino,
introduzindo ou aumentando a importância relativa do fator
competição no rateio social das referidas oportunidades.
Isso não modifica, certamente, a qualidade de privilégio
social que caracteriza, em maior ou menor grau, o ensino
médio e superior. Mas indica claramente que, graças aos
dinamismos demográficos e aos processos socioculturais
correlatos, a sociedade tende a mudar sua relação com o
sistema escolar.
Esta conclusão é deveras importante, porque sublinha que
não é o sistema escolar, em si mesmo, que se modifica em
sua estrutura, em suas funções e em seu rendimento, como
condição prévia para o atendimento de parcelas
crescentemente maiores da população. Ao inverso, são as
transformações do volume e da organização da população
que compelem o sistema escolar a se abrir gradualmente à
avalanche, embora mantendo seus caracteres estruturais e
funcionais “arcaicos”. A contraprova dessa interpretação é
fornecida pelo fato de que, na maioria dos países, o sistema
escolar enfrenta o aumento crescente das matrículas nos
níveis do ensino médio e superior (para não se falar do
ensino primário), apenas em termos quantitativos: ele
ingurgita, sem transformar-se estrutural e dinamicamente.
De modo geral, ainda não se constituíram (ou estão em
elaboração lenta) novas orientações de política educacional
que permitam passar do crescimento quantitativo para a
reorganização do sistema escolar.
A discussão precedente, tomando por pano de fundo o
ano de 1950 ou a evolução ocorrida entre 1950-60 e 1966,
desemboca numa evidência melancólica. O ensino superior,
embora não seja definido legalmente como “privilégio”, na
prática é monopolizado socialmente pelos estratos médios e
altos da população. Entretanto, até na prodigalização dos
privilégios existe uma hierarquia. Os quadros 1 e 2 abrem
margem para muitas conjecturas fundadas a esse respeito.
É claro que países como o Brasil e o México, ou a Colômbia
e o Peru, possuem perspectivas que não se definem
claramente nas estatísticas, pois contam com
potencialidades de crescimento econômico e de
desenvolvimento social que ainda não foram exploradas
dentro dos limites da própria expansão do capitalismo
dependente. Todavia, nas fases de transição que estão
atravessando, devem submeter-se a penosos sacrifícios, se
quiserem garantir-se tais perspectivas. Os países que já
lograram o tipo de integração econômica permitido pelo
capitalismo dependente, ao contrário, ostentam maior
progresso médio, mas, ao mesmo tempo, defrontam-se com
sérias dificuldades no que concerne à preservação e à
elevação das vantagens acumuladas. Estariam nesse caso
países como a Argentina, o Uruguai ou o Chile, por exemplo.
No contexto latino-americano, somente Cuba poderá evoluir
no sentido de neutralizar influências socioeconômicas e
políticas que interferem cronicamente na evolução do
sistema escolar. Infelizmente, não podemos examinar a
fundo as questões que se colocam dessa perspectiva e
somos forçados a considerar as diferenças relativas, com
frequências apreciáveis, de um ângulo mais limitado, que as
dramatiza em termos do que elas representam
quantitativamente, em um momento determinado.
Uma aproximação grosseira da realidade é fornecida
através do volume e variação da matrícula na América
Latina. Esse indicador é passível de críticas, pois alguns
países (como a Argentina) aceitam livremente os
candidatos; outros, como o Chile ou o Brasil, levantam
barreiras à promoção ou restringem o número de vagas.
Além disso, a evasão escolar no nível do ensino superior
constitui uma realidade desoladora, mais grave
naturalmente nos países em que a transição do ensino
médio ao superior é mais fácil. No entanto, as informações
comparáveis disponíveis dizem respeito à matrícula (ver
quadro 2), não nos restando outro recurso senão aproveitar
os dados com o cuidado possível. Se tomarmos os países
que atingiram ou superaram a média da matrícula (em
ordem decrescente: Argentina, Uruguai, Chile, Panamá,
Venezuela, Costa Rica, Cuba e México), descobriríamos: 1º)
que o aumento percentual da matrícula, no ensino superior,
neles era de 5,1 em 1960 (e não 3,0); 2º) que a variação do
aumento percentual da matrícula, com referência a 1950,
neles era da ordem de 222% (e não de 67%). Inversamente,
se tomarmos os países que não atingiram a média de
matrícula (em ordem crescente da diferença negativa: Peru,
Equador, Paraguai, Colômbia, Brasil, Bolívia, República
Dominicana, El Salvador, Nicarágua, Honduras, Guatemala e
Haiti), descobriríamos: 1º) que o aumento percentual da
matrícula, no ensino superior, neles era da ordem de 1,5 (e
não de 3,0); 2º) que a variação do aumento percentual da
matrícula, com referência a 1950, neles foi da ordem de
37% (e não de 67%).[62] Se se levar em conta que o
aumento da taxa anual de crescimento da população foi,
neste último grupo de países, de 2,4 para 2,9 (no período
1945-55), reclamando um esforço adicional de 22% ao ano,
aproximadamente, pode-se avaliar as deficiências do seu
crescimento real na esfera considerada. Doutro lado, para
romper o verdadeiro estado de estagnação invisível em que
se encontram, e atingir simplesmente a média da região, os
doze países do segundo grupo teriam de realizar um
incremento adicional médio de matrículas no ensino
superior no mínimo da ordem de 100% ao ano. Se se
propusessem alcançar os níveis atuais do primeiro grupo de
países, então o referido incremento adicional médio deveria
ser da ordem de 240%!
Os dados coligidos no quadro 1 oferecem uma base
razoável para se entender por que os países do primeiro
grupo conseguiram alcançar, antes de 1950 ou na década
de 1950-60, condições para expandir seu ensino superior.
Excetuando-se o México e a Costa Rica, eles incluíam-se
entre os países com mais de US$ 300 per capita, em 1959;
excetuando-se o Panamá e Costa Rica, eles contavam com
uma população urbana igual ou superior a 50% da
população total; além disso, o que é mais importante, na
América Latina, excetuando-se Costa Rica, todos possuíam
mais de 1/4 de sua população em cidades de 20.000
habitantes e mais, embora em alguns países (Costa Rica,
Venezuela, México e Panamá) a intensificação da
urbanização seja fenômeno recente (como se pode inferir
da porcentagem do crescimento urbano na década de 1950-
60). Ao inverso, no segundo grupo de países, excetuando-se
a Colômbia e o Brasil, os demais contavam com uma renda
percapita inferior a US$ 250; todos apresentavam menos de
50% de população urbana, com predominância de menos de
40%; excetuando-se a Colômbia e o Brasil, nenhum país
possuía 1/4 de sua população em cidades de 20.000
habitantes e mais; e, com exceção da Colômbia, a
intensidade do crescimento urbano, onde ela ocorreu,
evidencia mais “fuga do campo” que outra coisa.
A correlação positiva da situação socioeconômica do
primeiro grupo de países com o desenvolvimento do ensino
superior torna-se evidente, quando se associam as
condições apontadas com a variação do aumento
percentual de matrículas (conforme quadro 2). Excetuando-
se Cuba, que mudou a orientação de sua política
educacional, e o Uruguai, sobre o qual não se dispõe de
dados comparáveis,[63] todos os países daquele grupo
igualaram ou superaram porcentagens de crescimento da
matrícula no ensino superior que lhes permitiriam alcançar
ou manter ritmos de aumento análogos ou superiores ao da
média da região. Os avanços mais impressionantes foram
feitos pela Venezuela, México e Chile, que em 1950 não
atingiam os níveis médios e os igualaram ou ultrapassaram
em 1960. Contudo, o significado vantajoso do
desenvolvimento econômico, social e cultural anterior fica
ainda mais patente com os casos do Chile, Argentina e
Uruguai. Apesar do estancamento econômico (e por vezes
de crises sociais e de agruras políticas), conseguiram
preservar um ritmo de progressão constante do aumento da
matrícula (o que explica a proeza do Chile, que não é fruto
da aceleração do crescimento econômico, como na
Venezuela e no México, e as tendências observadas nos
outros dois países). O quadro 8 sugere que as dificuldades
econômicas se refletiram nos gastos orçamentários com a
educação, tanto na Argentina, quanto no Chile. É provável,
pois, que a iniciativa privada, a ajuda externa e a
racionalização do uso dos recursos destinados à educação
tenham compensado, de alguma maneira, quanto ao ensino
superior, as limitações dos recursos oficiais. A parte tomada
pelos gastos com educação nos orçamentos do México,
Costa Rica e Venezuela demonstra que os governos desses
países estão participando ativamente (e com relativa
disponibilidade de recursos financeiros) da elevação do
esforço educacional no nível do ensino superior. Ao que
parece, o êxito das iniciativas oficiais é garantido pelas
condições externas ao sistema escolar, as quais garantem
àquelas nações um aproveitamento construtivo do
incremento de esforço educacional (o que nem sempre se
realiza com referência aos países do segundo grupo).
Os países do segundo grupo, por sua vez, comprovam que
a ausência de certas condições econômicas, socioculturais e
políticas tanto dificulta ou impede a aceleração do
crescimento do ensino superior, quanto pode determinar
fenômenos bem definidos de estagnação ou de retrocesso.
Aparentemente, os casos mais dramáticos seriam os dos
países que evidenciariam a última condição (o Peru e a
Bolívia, por exemplo, em 1950 superavam a média da
região; em 1960 decaíram e ficaram aquém da referida
média). Todavia, bem examinadas as coisas, os casos mais
dramáticos não aparecem nitidamente como tais nas
estatísticas. A razão disso é simples. O que dificulta o
crescimento da educação, no segundo grupo de países, é o
clima dentro do qual o esforço educacional se vê projetado.
Os problemas educacionais são focalizados socialmente
com relativa negligência e resolvidos apenas nos limites em
que sua solução vem a ser importante para a perpetuação
do statu quo. Daí resulta uma inércia cultural crônica diante
das exigências da educação, a qual reduz o esforço
educacional desses países (colocando-o, com frequência,
muito abaixo do que eles poderiam efetivamente fazer, se
fosse outra a ótica usada na esfera da política educacional).
Tomando-se esta perspectiva de avaliação, todos os países
do segundo grupo ilustrariam, de um modo ou de outro, o
mesmo drama comum: a persistência, em nossos dias, de
uma tradição cultural imprópria às funções que a educação
escolarizada preenche na organização da vida moderna.
Entre eles, talvez dois países (a Colômbia e o Brasil)
mereçam ser tomados como casos exemplares, na medida
em que possuíam elementos para vencer a mencionada
tradição cultural ou para realizar um esforço educacional de
maior amplitude, e não o fizeram.
A Colômbia alcançara vários requisitos econômicos e
sociais, que permitiriam incluí-la, de fato, no primeiro grupo,
com um pouco mais de elasticidade no uso dos critérios
descritivos empregados. Doutro lado, ostenta uma variação
do aumento percentual das matrículas no ensino superior
da ordem de 100%. No entanto, o quadro 8 deixa patente
que a deliberação de intensificar o esforço educacional não
chegou a ser tão forte a ponto de conferir à educação uma
alta participação nos gastos orçamentários (de 5,3%, em
1950, passou a 9,1%, em 1960; outros países, do primeiro e
do segundo grupos, privilegiaram a educação como esfera
de investimento produtiva, destinando-lhe acréscimos que
envolviam uma variação relativa superior a 9% e a 10% ou
mais). Parece evidente, pois, que um dos países da América
Latina, que dispunha de condições mais propícias para
acelerar o seu esforço educacional no ensino superior, não
se impôs, como o fez o México, por exemplo, alvos
suficientemente ambiciosos para levarem ao atendimento
dos mínimos médios da região. Semelhante esforço teria
exigido um aumento percentual na variação das matrículas
da ordem de 234%, com claras implicações quanto à
orientação programática e financeira da política
educacional.
A situação brasileira é, sob todos os aspectos, porventura
mais típica da condição do segundo grupo de países que a
da Colômbia. Não só porque o esforço educacional
desenvolvido pelo Brasil, no mesmo período, é visivelmente
menor (com relação ao ensino superior e com referência à
proporção dos gastos orçamentários com a educação), mas
ainda porque certos acontecimentos políticos recentes
fizeram com que ele se tornasse o principal representante
do “farisaísmo educacional” tradicionalista na América
Latina. Esse farisaísmo consiste em proclamar uma
ideologia educacional de conteúdo democrático e de
significado moderno; e em desenvolver uma prática
educacional que corresponde à negação de tal ideologia. O
exemplo brasileiro também é típico à luz das implicações
educacionais da militarismo. Agora está em voga,
especialmente nos Estados Unidos, uma literatura
sociológica que valoriza o sentido “racional” e “inovador” do
militarismo nos países subdesenvolvidos. É provável que,
por motivos de segurança da política internacional dos
Estados Unidos, o militarismo represente, do ponto de vista
norte-americano, o máximo de progresso com o mínimo de
riscos. Para os países que sofrem os golpes militares, porém
(em particular, para os países da América Latina que estão
no segundo grupo), se a ação política desencadeada não
tiver ligações profundas com movimentos civis de
reconstrução da ordem legal vigente (como sucedeu no
Brasil com a revolução de 1930), o militarismo representa
uma preservação do statu quo por meios violentos (ou da
presunção do uso da violência). Eles não se dirigem apenas
contra os riscos potenciais da democratização do poder:
voltam-se contra todos os símbolos ou mecanismos pelos
quais a democracia pode estabelecer-se, como aspiração
social, como estilo de vida e como realidade política. Por
isso, adquirem significados e funções reacionárias, que
irrompem de forma negativa na esfera da educação. É fácil
avaliar tais efeitos, no que eles nos interessam aqui. Apesar
de serem figuras de confiança do governo militarista
brasileiro (que tomou o poder em 1964), os reitores das
universidades federais do Brasil se viram compelidos a
“denunciar” publicamente: 1º) que a participação do
Ministério de Educação e Cultura no orçamento da União
vem decaindo progressivamente: 11,0%, em 1965; 9,7%,
em 1966; 8,7%, em 1967; 7,7%, na proposta orçamentária
de 1968; 2º) que as universidades federais receberam
cortes que reduziram seus orçamentos em 37%; 3º) que a
participação das universidades federais nas dotações
destinadas à educação também vem decrescendo
continuamente: 3,9%, em 1965; 3,5%, em 1966; 3,4%, em
1967; 2,8%, na proposta orçamentária de 1968.[64] Esse
quadro é característico. A educação sofre um processo de
esvaziamento financeiro, como se não constituísse uma
esfera de inversão produtiva e necessária. Como, ao mesmo
tempo, as medidas simplistas vão do corte das verbas ao
aumento compulsório das matrículas, pode-se imaginar qual
é o resultado final do militarismo como ingrediente da
“política educacional” dos países subdesenvolvidos.
Não obstante, já na década de 1950-60, o crescimento da
matrícula no ensino superior do Brasil estava aquém de
uma política deliberada, que visasse pelo menos equiparar
o país aos progressos médios da região. O aumento
alcançado na variação percentual da matrícula
representava, aproximadamente, 1/3 do esforço que deveria
ser feito para a consecução de semelhante objetivo global.
O caso brasileiro ilustra, pois, que é inerente às propensões
de uma tradição cultural conservadora moderar a expansão
do ensino, contendo-a dentro de um ritmo que permita
atender, especificamente, ao aumento potencial da procura
nos estratos superiores das classes médias e altas. Os
golpes militares, em vez de destruir, fortalecem essa
orientação e agravam os seus efeitos perniciosos,
exacerbando a conotação das oportunidades educacionais,
no nível do ensino médio e superior, como “privilégio de
classe”. Dentro desse contexto, o ensino superior fica
permanentemente associado ao status e ao prestígio social
das élites, com o agravante de que ele não é concebido e
usado como um fator de dinamização do crescimento
econômico, do desenvolvimento sociocultural, ou do
progresso da pesquisa científica e tecnológica. Mas, como
um dos fatores da estrutura social que regulam a
transmissão do status e do prestígio social, de uma geração
a outra, segundo os padrões da ordem social existente e das
estruturas de poder que eles configuram. Por aí se vê que a
inércia cultural relativa, que afeta o desenvolvimento do
ensino superior no segundo grupo de países, constitui um
produto crônico (e sob vários aspectos sociopático) da
estrutura e funcionamento da ordem social. Explicam-se,
assim, o solapamento e a neutralização de todas as
pressões favoráveis à mudança, especialmente daquelas
que afetem a qualidade do ensino e a distribuição das
oportunidades educacionais, e o amortecimento das
tendências puramente quantitativas de crescimento global
do sistema escolar. A visão tradicionalista, que organiza a
percepção e a inteligência da situação, converte o ensino
superior numa barreira social e resiste tenazmente contra a
sua transformação em núcleo institucional dinâmico do
desenvolvimento da personalidade, da sociedade e da
cultura.
Essa apreciação de conjunto precisa ser completada em
dois pontos. Na discussão precedente foi negligenciado um
aspecto que agrava seriamente o esforço educacional do
segundo grupo de países. Dez deles apresentam uma
população em idade escolar, de 20 a 24 anos, igual ou
superior à média da região (em ordem de diferença
decrescente: República Dominicana, Guatemala, Nicarágua,
Brasil, El Salvador, Honduras, Peru, Costa Rica, Paraguai e
Haiti). No entanto, nove desses países se encontravam, em
seu esforço de expansão do ensino superior, abaixo da
média global (em ordem de diferença crescente: Peru,
Paraguai, República Dominicana, Brasil, El Salvador,
Nicarágua, Honduras, Guatemala e Haiti). E quatro entre
esses países enfrentavam um retrocesso ou alguma
estagnação nesse nível do seu esforço educacional
(respectivamente: Nicarágua e Peru; Guatemala e Haiti).
Pensando-se em termos da massa de população em idade
escolar e dos padrões médios da região, excetuando-se o
Peru (cujo caso não possui, em termos relativos, a gravidade
que aparenta) e o Haiti (que praticamente deveria começar
da estaca zero), sete dos países mencionados (na ordem
das diferenças negativas crescentes: Nicarágua e Paraguai;
República Dominicana; Brasil e Guatemala; El Salvador;
Honduras) não lograram crescimento verdadeiramente
compensador das matrículas no ensino superior. Para que
isso tivesse ocorrido, o seu esforço educacional, nesse nível,
deveria ter sido duas, duas vezes e meia, três, cinco e até
oito vezes maior do que foi.
Outro aspecto negligenciado refere-se ao aumento da
variação percentual aparentemente alto (da ordem de 50%,
60%, 80% e até 100%) de seis países que estavam abaixo
da média para a região, em 1950, e mantiveram essa
posição, em 1960 (Honduras, El Salvador, República
Dominicana, Brasil, Colômbia e Equador). A discussão
anterior já esclareceu suficientemente as proporções do
malogro relativo do esforço educacional dos quatro
primeiros países. Restam, pois, os casos da Colômbia e do
Equador, que devem ser estimados em função dos padrões
médios da região. Ambos são dois casos-limites, pois a
variação do aumento percentual das matrículas aparenta
uma magnitude considerável (100% e 80%,
respectivamente). Contudo, apesar de ultrapassarem a
média da região (67%), o esforço educacional de ambos os
países ficou, nesse nível do ensino, aquém do que deveria
ser feito para atingirem a média da região (para que isso
ocorresse, a Colômbia deveria ter realizado um esforço
quase duas vezes e meia maior; e o Equador, pelo menos
mais a metade do que conseguiu realizar). Isso evidencia
que mesmo as duas nações de maior êxito relativo no
segundo grupo de países, na verdade, perderam terreno
quanto ao ritmo médio de desenvolvimento global da
matrícula no ensino superior (embora a perda relativa do
Equador seja de magnitude quase insignificante). Os dois
casos possuem um interesse especial, porém, porque
revelam até onde as aparências são enganadoras. Um
crescimento aparentemente intenso e compensador oculta,
na realidade, a preservação de posições relativas
desvantajosas no conjunto da região. O que quer dizer que o
segundo grupo de países não sairá da estagnação real em
que se acha, se não forem postas em prática medidas
corretivas de natureza estrutural e de longo alcance.
Os resultados dessa análise quantitativa apanham apenas
aspectos da situação que são necessariamente superficiais.
Pelo que se sabe, através das investigações feitas por
educadores e cientistas sociais, o aspecto mais grave do
ensino superior na América Latina é qualitativo. Portanto,
haveria um paradoxo a adicionar ao quadro descrito com
tintas inevitavelmente sombrias. Ele consiste em que, além
de deficiente, a expansão quantitativa desenrola-se numa
direção errada: o sistema escolar, ao crescer e diferenciar-
se, multiplica e difunde um tipo de ensino superior superado
e, sob vários aspectos, “disfuncional” numa sociedade
competitiva em desenvolvimento. Desse prisma, o avanço
do primeiro grupo de países traduziria um progresso ingrato,
porque eles estariam empregando maior soma de recursos
materiais e humanos na propagação e na expansão de um
ensino superior que mereceria ser posto à margem e
superado. Não possuímos dados comparáveis que permitam
discutir semelhantes problemas; e na última parte deste
estudo trataremos, sumariamente, dos aspectos qualitativos
que interessam mais à presente análise. Apenas para nos
situarmos diante desse debate, gostaríamos de assinalar
que o fenômeno apontado não possui o caráter de um mal
em si e de um drama insuperável. Era preciso que os países
da América Latina atingissem um nível de desenvolvimento
socioeconômico que provocasse o desnivelamento social do
ensino superior, com a subsequente expansão das velhas
escolas e dos antigos padrões de escolarização. Só através
desse processo histórico-social, que se acha em curso em
todos os países (embora com intensidade variável), é que se
dará a lenta depuração e a fatal superação de práticas
educacionais envelhecidas ou arcaicas. Por isso, o esboço
descritivo, que pretendíamos realizar, abrangerá apenas
mais duas questões. Uma, que diz respeito à distribuição
das matrículas pelos diferentes ramos de ensino. Outra, que
se relaciona com o destino prático dos graduados. No
exame das duas questões pretendemos completar o
diagnóstico sociológico já esboçado, tentando desvendar se
uma “sociedade subdesenvolvida”, nos marcos históricos do
capitalismo dependente, pode ou não imprimir à
universidade as funções que ela deveria desempenhar para
constituir-se em “fator de desenvolvimento” (ou de
aceleração e de autonomização do desenvolvimento).
Em 1965 graduaram-se, aproximadamente, 71.000
pessoas por universidades ou escolas superiores latino-
americanas. Eis a distribuição dos graduados, pelos diversos
ramos do ensino:[65]
O conjunto de ramos de ensino ligados com as profissões
tidas como tradicionais (medicina, direito e engenharia)
concorre nada menos que com 52% do total. Doutro lado,
setores tão vitais para o desenvolvimento cultural de uma
nação moderna, como o da educação e o das ciências
naturais, participam de modo relativa mente baixo ou ínfimo
(21% e 4%, respectivamente). Além disso, somando-se os
totais de educação, direito, ciências sociais e econômicas,
arquitetura e belas-artes, temos 37.000 graduados (ou 51%)
contra os 14.000 graduados (ou 20%) de engenharia,
ciências naturais e agricultura. Ao que tudo indica, pois, a
universidade latino-americana ainda não conseguiu superar
as distorções nascidas do antigo condicionamento técnico-
profissional e socioeconômico, que inibia o seu
desenvolvimento como um fator cultural multifuncional.
Essas conclusões poderiam ser confirmadas e ampliadas,
se usássemos os dados concernentes à distribuição de
matrículas em 11 países da América Latina (veja-se o
quadro 3). Tais dados mostram que, entre 1955-56 e 1960,
havia a seguinte distribuição percentual das matrículas:[66]
Parece evidente que a antiga distorção técnico-
profissional ainda prevalece nas universidades latino-
americanas, em termos que concorrem para preservar uma
alta concentração da procura em torno de ramos do ensino
relativamente pouco significativos para a modernização da
tecnologia, o crescimento econômico e o desenvolvimento
sociocultural. Razões econômicas e psicossociais,
relacionadas com a manutenção de status das famílias de
classe média e alta ou com as pressões dinâmicas de uma
estrutura ocupacional deformada em alguns de seus níveis
pelo congestionamento de profissionais liberais, continuam
a preponderar no ânimo dos jovens e em suas aspirações de
“carreira intelectual”. O círculo permanece tão fechado, que
os jovens são permanentemente compelidos a fazer o
reduzido grupo de escolhas que prevaleciam no passado,
mesmo em sociedades nas quais já existem novos recursos
educacionais, novas oportunidades de “empregos
compensadores” e novas vias de aproveitamento
construtivo do talento.
Tende-se a condenar a universidade latino-americana por
essa situação. Todavia, não é a universidade que cria a
estrutura de avaliações das carreiras, fundadas em
requisitos universitários. Ao que parece, ela se adaptou
profundamente, ao longo de uma evolução secular, às
exigências de uma sociedade que atrelava estreitamente a
universidade a uma organização do poder na qual só
possuíam significação interesses econômicos, sociais e
culturais de uma estreita parcela da população. Isso
produziu uma espécie de vácuo social na configuração da
universidade e de suas relações com a sociedade. Ela
interage estrutural e funcionalmente com esta, mas apenas
no nível da organização de poder em que se encontra
inserida (ou seja, dos interesses materiais e morais das
classes médias e altas, bem como de suas élites
econômicas, culturais e políticas). Daí resultou uma barreira
invisível à diferenciação progressiva das funções na
universidade e uma tendência quase inexorável à
concentração dominante das escolhas em um número
reduzido de ramos do ensino. Como a esse processo
institucional sempre correspondeu uma acentuada
concentração dos graduados em algumas “carreiras
condignas” (o que continua a ocorrer com as oportunidades
intelectuais, científicas ou técnicas emergentes), a
universidade ficou presa dentro de malhas pouco elásticas,
que reduziam inevitavelmente o seu impulso criador e
restringiam fatalmente a sua contribuição para a alteração
da estrutura, do significado e das funções das “ocupações
intelectuais”. Portanto, aprofundando-se a análise,
descobre-se que a universidade não é responsável pela
situação existente e suas consequências mais ou menos
negativas. O aparecimento, a consolidação e a valorização
positiva de novas “carreiras intelectuais” não se produzem
como efeitos secundários da modernização. É preciso que a
própria estrutura da sociedade global se altere, provocando
transformações profundas na organização do sistema
ocupacional, nos critérios de peneiramento dos intelectuais
e no aproveitamento socialmente construtivo do talento.
Como nada disso ocorreu, pelo menos dentro de uma escala
sociologicamente significativa, as mudanças que afetaram a
organização, o funcionamento e o rendimento da
universidade foram superficiais. Até as novas escolas ou
faculdades acabam se defrontando com uma realidade
dramática. Por falta de suporte institucional adequado e de
dinamismos societários vigorosos, elas por assim dizer
envelhecem precocemente. Em vez de fazerem pressão no
sentido de transformar as unidades preexistentes, elas se
obsoletizam por contágio ou graças a controles sociais
indiretos, tornando-se totalmente impotentes diante das
“estruturas arcaicas”. Convertem-se às expectativas
socioculturais predominantes no meio e logo ficam
irrelevantes como fator de mudanças substanciais nas
formas possíveis de vida intelectual.
Os dados apresentados não comportam uma análise
sistemática das orientações da procura de cursos ou de
suas implicações propriamente educacionais. Todavia, eles
sugerem algumas conjecturas, úteis à compreensão do
estado atual do ensino superior na América Latina. Em
primeiro lugar, não deixa de ser impressionante a
negligência de matérias tão essenciais para esses países,
como a agronomia e a veterinária. As pessoas que lidam
praticamente com tais questões, em posições dominantes e
de liderança, formaram seu horizonte cultural através da
rotina, do conhecimento de senso comum e, por vezes, do
folclore. Mesmo quando aceitam inovações de caráter
técnico-científico ou quando admitem a colaboração
circunstancial e localizada dos especialistas, repelem o que
chamam de “técnica formada” e desmerecem de várias
maneiras suas qualificações científicas “teóricas”. Os
motivos que determinam semelhantes atitudes e
comportamentos ligam-se, provavelmente, à defesa de
prerrogativas autoritárias de status e de dominação
incondicional, que poderiam ser minadas e destruídas
juntamente com o tradicionalismo.[67] Doutro lado, não é
raro que a criação e a expansão de escolas de agronomia e
de veterinária (como acontece de modo universal também
com outras faculdades, especialmente as de direito, de
farmácia e odontologia, de filosofia, ciências e letras etc.)
exprimam mais o desejo de possuir certos símbolos de
civilização, que a decisão de enfrentar determinados
problemas em escala racional. Por isso, as escolas mais
fáceis de montar encontram decidida preferência. Elas nada
representam (e em regra nada devem representar) como
fontes de modificação da rotina ou de mobilização e de
utilização racionais dos recursos materiais e humanos do
ambiente.
Em segundo lugar, é preciso notar-se que a alta
concentração da procura em certos ramos do ensino
superior, como a arquitetura, a engenharia e a medicina
(que alcançaram 42,5% das matrículas), não quer dizer que
as universidades da região estejam formando e preparando
o pessoal especializado que seus países necessitam nesses
setores. Ao contrário, não só existe escassez de pessoal
qualificado nessas áreas, como são notórios tanto a sua má
distribuição dentro dos diferentes países (em regra, os
graduados tendem a preferir as grandes cidades ou as
metrópoles como núcleos de exercício de suas profissões),
quanto o seu subaproveitamento (com frequência em
atividades bem remuneradas e de prestígio, mas que não
requerem as qualificações indicadas). Além disso, na
maioria dos países, os médicos e os engenheiros,
principalmente, têm demonstrado que são mais sensíveis à
defesa dos seus níveis de renda e de prestígio que às
necessidades mais ou menos prementes de seus povos.
Fundados em razões aparentemente louváveis, como a “alta
qualidade do ensino” ou a “preparação rigorosa” para a vida
profissional, impedem, restringem ou inibem o
aproveitamento da capacidade ociosa de suas escolas ou
faculdades. No que diz respeito à expansão do ensino de
arquitetura, engenharia e química industrial, ao que parece
apenas o México está tentando realmente modificar, de
maneira decisiva, os padrões tradicionais. Em menor escala,
o mesmo parece estar acontecendo na Colômbia e no
Panamá. Merece também consideração especial, por
motivos inversos, a situação do Brasil. Apesar de carecer de
uma reviravolta nesse campo (não só pela extensão do país
e do volume da população, mas por causa de ter a
industrialização atingido a fase de formação de indústrias
de produção de bens de produção), o Brasil está abaixo das
médias globais e muito abaixo do esforço educacional dos
países que estão enfrentando com maior tenacidade as suas
deficiências nesses setores. No que tange à farmácia,
medicina e odontologia, duas coisas chamam a atenção. De
um lado, as deficiências flagrantes, que alcançam
proporções dramáticas em alguns países da América Latina.
De outro, que alguns países estão empenhados em corrigir,
como podem, tais deficiências. O que acarreta,
naturalmente, porcentagens que são aparentemente altas
para o grau de diferenciação e de desenvolvimento dos
respectivos países. De qualquer modo, seria bom não se
perder de vista uma hipótese de conjunto. Os dados
sugerem, conclusivamente, que os onze países,
representativos dos dois grupos analisados acima, em
ramos do ensino importantes para o desenvolvimento como
a engenharia, a química industrial e as ciências médicas,
mal conseguem adaptar-se à pressão do aumento crescente
das matrículas. Excetuando-se o México, prevalece uma
orientação passiva e inibidora, a qual impede que a
universidade assuma a iniciativa de romper os bloqueios
tradicionais, forçando modificações urgentes na organização
e distribuição das matrículas.
Em terceiro lugar, cumpre-nos observar que nem sempre
são justas as críticas feitas à preponderância da procura em
ramos do ensino como o direito, as ciências sociais e
econômicas, a pedagogia etc. Tais críticas fundam-se na alta
participação do direito nessa procura (por si só, esse ramo
do ensino entra com uma quota de 25% a 30% ou mais das
matrículas, na maioria dos países) e na presunção de que o
direito não possui mais a importância que teve no passado
como fonte de recrutamento das élites culturais, político-
administrativas e econômicas. Na realidade, porém, a
maioria dos países ainda depende dos “bacharéis em
direito” para compor suas élites. E a carência de cientistas
sociais e de professores de ensino médio, além das
necessidades que impõem o uso maciço do planejamento,
tornam as demais escolas superiores tão úteis e necessárias
quanto as de engenharia, química e medicina. Feitas essas
ressalvas, seria conveniente mencionar alguns traços
sintomáticos do atual sistema de ensino, revelados pelas
indicações expostas. A maneira pela qual países tão
diversamente desenvolvidos na esfera do ensino superior
(como Argentina, Brasil, El Salvador, Costa Rica, Panamá,
Paraguai e Peru) oscilam em torno ou acima da média global
sugere o quanto a procura nesse nível reflete a persistência
do padrão tradicional. Essa implicação deve ser
devidamente ponderada, pois ela assinala que, nesse plano,
não existem diferenças substanciais entre os dois grupos de
países. Independentemente da magnitude do seu esforço
educacional e de sua pobreza ou riqueza relativas, todos
tentaram e conseguiram um mínimo de êxito na montagem
do tipo de “ensino superior” que era encarado pelas élites
tradicionais como o próprio símbolo da “cultura refinada” e
da qualificação para o exercício do poder. Os mesmos dados
apoiam uma observação importante. O México e a Colômbia
são os dois únicos países cujo esforço educacional está
fortemente abaixo da média, quanto a esse nível do ensino
superior. Como não se pode presumir que isso resulte de
uma escassez relativa de recursos para a educação, é
provável que esteja emergindo uma tendência definitiva no
sentido de reorientar e reorganizar a procura das matrículas
universitárias. Não deixa de ser sintomático, porém, que
apenas em dois países sobre onze apareça tal tendência,
tida em muitos círculos intelectuais como a pedra de toque
para o início de transformações verdadeiramente
substanciais do ensino superior.
A segunda questão leva-nos à discussão do destino
prático dos graduados. Apesar do muito que se escreveu a
respeito, não se dispõem de dados comparáveis,
suficientemente consistentes, para toda a América Latina.
Faltam, especialmente, indicações mais ou menos precisas
sobre os requisitos intelectuais das ocupações em que os
graduados são aproveitados. Em regra, pode-se afirmar que,
excetuando-se carreiras inerentes às “profissões liberais” ou
técnicas, a preferência por graduados não nasce de
exigências intelectuais específicas, mas de questões de
prestígio, tradição ou de pura solidariedade social. Doutro
lado, a emergência e a ascensão das classes médias não
quebraram os padrões tradicionais, como se tem
interpretado tão generosamente. As classes médias não
tinham meios para privilegiar a riqueza, o prestígio social ou
o poder em sua competição por status e por mobilidade
vertical. Tais fatores eram monopolizados pelas classes
altas. Por isso, a acumulação de saber ou de “cultura”
erigiu-se em seu verdadeiro bastião nas relações
competitivas com as demais classes, embora isso não
engendrasse nenhuma forma de monopolização do saber ou
da “cultura” (pois as classes altas preservaram suas antigas
posições nesse nível, admitindo apenas um alargamento
dos círculos sociais que tinham acesso às formas
privilegiadas de educação). Em consequência, as classes
médias tenderam a se acomodar aos padrões tradicionais,
de supervalorização e de nobilitação tanto do título de
bacharel, quanto da preferência pelos setores da advocacia,
medicina e engenharia. Onde e como puderam,
manipularam a ordem legal com vistas à criação de
requisitos de exercício das profissões que impunham (ou
poderiam impor) qualificações universitárias. Dessa
maneira, privilegiavam o fator através do qual contavam
com probabilidades de competir com as classes altas numa
estrutura social eivada de privilégios. Por aí se explica por
que as transformações tão profundas, acarretadas pela
“revolução burguesa” no plano econômico, tecnológico e
político, quase não afetaram a organização, o
funcionamento e o rendimento das universidades. Estas
continuaram a ser uma espécie de “fábrica de bacharéis”,
no melhor estilo da antiga universidade.
Esse processo não impediu que as relações entre a
universidade e a sociedade se alterassem em muitos
pontos. Graças à complicação da divisão social do trabalho,
o sistema de ocupações inerente à economia de mercado, à
“grande cidade” e ao “Estado moderno”, surgiu em todos os
países como uma realidade histórica. Essa circunstância,
combinada ao mecanismo pelo qual as classes médias
privilegiaram intelectualmente (e por vezes também
legalmente) os requisitos universitários das profissões
“qualificadas” ou “altamente qualificadas”, determinaram a
persistência e a redefinição social dos padrões tradicionais
no novo contexto histórico. Como no passado mais ou
menos remoto, os graduados visam a carreiras altamente
compensadoras (em prestígio, em renda ou em ambas as
coisas) de “natureza intelectual”; e como então sucedia,
várias dessas carreiras situam-se no âmbito de atuação do
profissional liberal, livre e independente, ou nos setores de
atividades do “homem de ação” (da política à administração
pública e privada). Ao que parece, no entanto, as mudanças
econômicas, tecnológicas e políticas tendem a estabelecer
uma nítida predominância do assalariamento do
universitário. Pode-se verificar essa tendência através das
seguintes indicações, pertinentes a 1950, que evidenciam
que a proporção de profissionais, semiprofissionais e
técnicos livres é, normalmente, 2, 3 ou 4 vezes menor (e
circunstancialmente é 5, 6 ou até 7 vezes menor) que a dos
seus colegas assalariados:[68]
Está em curso, portanto, um processo de transformação
do sistema ocupacional, com referência a profissões com
requisitos universitários, que se adapta às mudanças de
estrutura da ordem econômica, social e política.
Infelizmente, não existem dados que permitam analisar as
implicações educacionais (especialmente no nível do ensino
superior) desse processo. Até o presente, é possível avaliar
apenas um aspecto de suas consequências. Trata-se da
dispersão (ou da polarização dispersiva) do pessoal com
formação universitária. É cada vez maior a amplitude e a
diversificação de oportunidades de carreira que a sociedade
oferece aos graduados das universidades, tanto dentro de
uma linha que respeita e aproveita as potencialidades da
especialização, quanto numa linha de intensificação
crescente de duras competições interprofissionais. Esse
processo, todavia, não pode ser descrito com relação a
todos os países. Utilizando-nos de informações
concernentes ao Brasil, contudo, podemos esboçar uma
imagem viva do que está acontecendo. Assim, dados
relativos a pessoas ocupadas em profissões técnico-
científicas (no censo de 1/7/1950) revelam que, num total
de 97.114 profissionais, semiprofissionais e técnicos, 42.265
(ou seja, 47%) dedicavam-se às profissões liberais,
enquanto 51.849 (ou seja, 53%) dedicavam-se a outras
atividades, por conta própria ou como assalariados. O
quadro 9 fornece uma visão de conjunto da situação
brasileira, sob esse aspecto (note-se que várias profissões
técnico-científicas não foram computadas: economistas,
sociólogos, psicólogos, orientadores educacionais,
administradores etc.). Por ele se verifica que algumas
profissões técnico-científicas são mais suscetíveis que
outras à polarização dispersiva. Os dentistas e protéticos
(com 92,9% em profissões liberais), os advogados (com
75%) e os médicos (com 51,9%) estão entre os profissionais
que logram o máximo de autonomização numa estrutura
ocupacional competitiva. Por sua vez, o inverso se revela
com os químicos (com 2,2% em profissões liberais), os
agrônomos (com 9,8%), os engenheiros (com 10,4%), os
veterinários (com 16,8%) e os arquitetos (com 25,5%), os
quais tendem a um máximo de irradiação dispersiva. Com
três exceções, que não vem ao caso discutir, essa irradiação
envolve os profissionais de formação universitária em todos
os ramos de atividade econômica. É possível que as
proporções indicadas traduzam potencialidades de
aproveitamento de pessoal de nível superior alcançadas
pela sociedade brasileira na década de 1950. Entretanto,
presumimos que as tendências centrais possuem caráter
geral (em termos da organização da economia e da
sociedade sob o capitalismo dependente), aplicando-se pelo
menos aos países da América Latina que conseguem formar
internamente os profissionais em questão.
O processo mencionado suscitou várias controvérsias. Há
quem pense que a tendência a incorporar o universitário a
“élites culturais” de funções criadoras tão dispersivas e
improdutivas seja uma degradação do intelectual. Também
se tem ventilado o problema de saber se a maneira indicada
de dispersar os graduados de diferentes ramos de ensino
em carreiras tão variadas e disparatadas não seria mera
devastação de recursos humanos relativamente escassos
(já que, no mínimo, haveria subaproveitamento sistemático
de pessoal de nível superior). Na verdade, semelhante
irradiação dispersiva de intelectuais com formação
universitária não estimula a produção criadora e colide
abertamente com o que se poderia chamar de uso racional
do talento pela sociedade. Mas, é preciso ter-se em vista
que os países latino-americanos estão incorporando, dessa
maneira, novas formas de saber artístico, científico ou
técnico a uma massa crescentemente maior de indivíduos.
Isso significa que se está alterando, por uma via tão
tumultuosa quão dispersiva e cara, os conteúdos e a
organização do horizonte cultural dos “intelectuais”. Aos
poucos, a sociedade acabará contando, em quantidade e
em qualidade, com pessoal abundante para ocupações que
exigem altas qualificações. Portanto, ao processo descrito
são inerentes pelo menos alguns significados positivos, que
têm sido negligenciados. O nível de qualificação dos
diferentes tipos de profissionais, que controlam as posições-
chaves da estrutura ocupacional de uma sociedade
moderna, constitui em si mesmo um dos fatores invisíveis
mais importantes da continuidade e da intensidade do
desenvolvimento econômico e sociocultural. O que se
poderia e deveria pôr em causa, sob esse prisma, não seria
a polarização dispersiva de “intelectuais” com formação
universitária, mas se eles obtêm (ou deixam de obter), nos
cursos universitários, o mínimo de qualificação requerida ou
desejável. Posta nestes termos, a questão muda de aspecto.
Pois as escolas e faculdades que ministram ensino superior
(inclusive nos países do primeiro grupo) raramente estão
adaptadas para preencher a função de preparar seus
graduados para os diferentes tipos de carreira em que eles
são ou podem ser aproveitados. Eles sequer “aprendem a
aprender” nas escolas e faculdades mais deficientes. As
instituições que absorvem os graduados, por sua vez,
também raramente possuem condições para complementar
e aperfeiçoar a aprendizagem universitária (tanto no setor
público, quanto no setor privado). Estabelece-se, assim, um
círculo vicioso, que redunda, de fato, no “mau uso” e no
“subemprego sistemático” de fatores humanos essenciais à
criação de suportes psicoculturais do desenvolvimento
econômico e social.
O aspecto mais dramático da situação, do ponto de vista
em que ela é colocada neste trabalho, consiste em que o
círculo vicioso apontado não encontra um fator de ruptura e
de superação nem no crescimento da estrutura ocupacional
da sociedade nem em algum desequilíbrio súbito de origem
especificamente educacional. É sabido que o crescimento
econômico tende a diluir, a longo prazo, as inconsistências
institucionais do sistema escolar. Doutro lado, em condições
de ebulição social e política, o sistema escolar por vezes
consegue (através do egresso das universidades e
independentemente do padrão e do ritmo do crescimento
econômico) imprimir à sociedade uma evolução
revolucionária. Até o presente, nenhuma das duas
alternativas se configurou como uma saída histórica nos
países da América Latina. O impulso fornecido à mudança
institucional pela “revolução burguesa”, sob o capitalismo
dependente, é descontínuo, fraco e dispersivo. Além disso,
atingido certo patamar mais avançado, os efeitos
construtivos do crescimento econômico deixam de operar
construtivamente em escala nacional, porque em seguida
aquele patamar se estabiliza (por falta de fatores de
aceleração da mudança) e deixa de funcionar como um
simples elo na direção de uma organização econômica mais
complexa. Em semelhantes condições, o agente humano da
mudança institucional redefine constantemente suas
motivações econômicas, sociais e políticas, imprimindo
insensivelmente maior peso aos interesses egoísticos que o
prendem ao statu quo ante. Desse modo, esvazia de modo
parcial ou total e perverte de um jeito ou de outro o
complexo processo de adaptação das instituições às suas
funções econômicas, sociais e políticas emergentes. Foi
graças a uma progressão desse tipo que as universidades
ficaram permanentemente envolvidas pela situação de
interesses e pela perspectiva social dos estratos superiores
das classes médias e altas. As ideologias e as utopias
educacionais, que poderiam dar fundamento a uma
autêntica e profunda “reforma universitária”, em vez de
serem usadas como forma de negação e de superação da
antiga universidade, serviram de biombo para ocultar a sua
perpetuação sob novo figurino. Em consequência, da
universidade e dos seus egressos não partiu nenhum
processo cultural de teor revolucionário, suscetível de
causar um impacto sobre a transformação da ordem legal e,
através dela, sobre o crescimento econômico e o
desenvolvimento social.
Os quadros 6, 7 e 8[69] lançam, indiretamente, alguma
luz sobre esses aspectos sombrios do impasse que nasce da
conjugação crônica de ritmos insuficientes de crescimento
econômico com padrões débeis e inconsistentes de
mudança institucional. O que chama a atenção do analista,
nos referidos quadros, é o círculo vicioso quase perfeito que
inibe, solapa ou destrói qualquer influência recíproca
altamente criadora nos sentidos economia Ü sociedade Ü
ensino superior; ou ensino superior Ü sociedade Ü
economia. Como a inibição, o solapamento ou a
neutralização das influências dinâmicas construtivas se dá
sob transformações quantitativas constantes, o aspecto
sociopático da rigidez relativa do ensino superior é perdido
de vista. Contudo, a estrutura ocupacional e da renda,
suportada pelo sistema econômico, não alimenta um
processo educativo suficientemente diferenciado e vigoroso
para galvanizar a universidade, erigindo-a em um fator real
de ruptura da inércia cultural e do desenvolvimento. No
conjunto total de ocupações, apenas 1,4% das pessoas
ocupadas dispõem de formação universitária (completa ou
incompleta). Elas concentram-se em algumas categorias
ocupacionais (fornecem 23,6% dos profissionais e técnicos,
9,9% dos administradores e gerentes, e 2,0% dos
empregados e vendedores). É esse número ínfimo que
delimita a estrutura ocupacional das pessoas com formação
universitária (na qual 62,3% se ocupam como profissionais
e técnicos; 21,7%, como administradores e gerentes; e
16,0%, como empregados e vendedores). Por aí se
depreende o que a formação universitária pode representar,
estrutural e funcionalmente, como “força socioeconômica”.
Em condições de crescimento econômico contínuo e em
aceleração crescente, essa minoria poderia agir como um
elo dinâmico entre a ordem social estabelecida e a
transformação da economia, da tecnologia e do sistema de
instituições (inclusive as instituições educacionais e, entre
elas, as universidades). Nas condições predominantes da
América Latina, de estancamento econômico e de
crescimento econômico instável ou moderado, essa minoria
apenas opera como um elo dinâmico entre a ordem
existente e a estabilidade social (ou a mudança sob o
máximo de segurança para os estratos superiores das
classes médias e altas). Por sua própria situação
socioeconômica, tal minoria está condenada (pelo menos
enquanto prevalecerem as condições econômicas, sociais e
culturais do presente) a canalizar o crescimento econômico
e o desenvolvimento educacional (especialmente do ensino
médio e superior) no sentido da preservação e do
fortalecimento dos seus próprios níveis de renda, de
prestígio social e de poder. Os sociólogos sabem que não
existe “lógica dos grandes números” que resista ao
estancamento socioeconômico crônico ou ao
desenvolvimento socioeconômico moderado. Todavia, dadas
e mantidas essas mesmas condições, a alternativa da
“lógica dos pequenos números” desemboca numa
encruzilhada, na qual todos os privilégios se unificam para a
defesa do que garante a existência e a sobrevivência dos
privilégios: a ordem estabelecida. Atrás de uma mudança
aparentemente contínua, profunda e avassaladora,
esconde-se a perpetuação do statu quo ante, porque o que
está em jogo não é a negação e a extinção dos privilégios,
mas a sua continuidade sob novas formas.
Isso não significa, naturalmente, que tudo esteja ou
permaneça como no passado. Se não ocorrer um mínimo de
mudança institucional e de crescimento econômico, de
modo constante, a própria estrutura ocupacional e de
distribuição da renda, em que se fundam os privilégios
econômicos, sociais e educacionais vigentes, se veria
ameaçada. Mas que, dependendo do impulso atual do
crescimento econômico e do ritmo da mudança institucional
que resulte da atuação consciente das élites culturais, a
conjugação entre universidade e desenvolvimento tenderá a
estabelecer-se dentro de níveis em que o fundamental
sempre virá a ser resguardar o padrão tradicional de
aproveitamento dos graduados pela sociedade. Se esse
panorama não se alterar a partir da própria estrutura
ocupacional e de distribuição da renda, é mais que certo
que ele não se modificará a partir da universidade. Pois ela
não dispõe de dinamismos bastante fortes para romper o
terrível isolamento cultural a que se vê relegada, em virtude
dessa mesma estrutura ocupacional e de distribuição da
renda, que privilegia os seus graduados.
UNIVERSIDADE E DESENVOLVIMENTO