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O conceito de representação e os estudos latinos:

relendo as obras dos Filostratos e de Calistrato (séculos


II/III d.C.)
The conception of representation and Latin studies: analysing Philostratus
and Calistratus’ works (II/III Centuries A.D.)
Ana Teresa Marques Gonçalves
Professora Adjunta
Universidade Federal de Goiás (UFG)
anteresa@terra.com.br
Rua 229A, 145/601 - Setor Leste Universitário
Goiânia - GO
74605-110
Brasil

Resumo
Neste artigo, pretendemos analisar as obras de Flávio Filostrato, de Filostrato, o Antigo, de
Filostrato, o Jovem e de Calistrato, intituladas respectivamente Vida dos sofistas, Descrição de
quadros, Imagens e Descrições, importantes trabalhos para o conhecimento acerca da arte e de
sua observação pela sociedade romana. Trata-se de obras produzidas entre o segundo e o
terceiro séculos d.C., portanto durante os governos dos Imperadores Antoninos e Severos, nas
quais se percebe como a realidade e a imaginação se unem para a formulação de um conceito

33 de representação adequado ao mundo latino. Nas descrições de quadros e estátuas realizadas


nas obras em questão, o observador fornece um sentido ao que vê pelo que já sabe e pelo que
sente ao olhar para a imagem, dando um sentido à representação.

Palavras-chave
Arte; Romanos; Representação.

Abstract
With this paper, we aim to analyse the works of Flavius Philostratus, Philostratus, the Ancient,
Philostratus, the Young and Calistratus, entitles The Life of Sofists, Description of Pictures, Images
and Descriptions, some important works for art knowledge and its observation for the roman
society. This books date of passage the second to third century A.D., during the Antonines and
Severans Governments. In this works, reality and imagination one join for the formulation of the
concept of representation adequate for the latin world. In the pictures and statues descriptions,
the observer provides a direction to leave from look to the images.

Keywords
Art; Romans; Representation.

Enviado em: 29/04/2010


Autora convidada

história da historiografia • ouro preto • número 05 • setembro • 2010 • 33-43


O conceito de representação e os estudos latinos

Ao reler a obra de Flávio Filostrato, Vida de Apolônio de Tiana, deparamo-


nos com uma passagem que chamou muito nossa atenção. Trata-se do capítulo
vinte e dois do livro segundo da obra, no qual Apolônio e seu acompanhante
Damis chegam à cidade de Taxila, na Índia, onde Alexandre Magno também
havia estado e que tinha as mesmas dimensões de Nínive na Assíria (FILOSTRATO.
Vida de Apolônio de Tiana, II. 20). No momento em que Apolônio passou por
lá, a cidade era capital do reino de Poro e apresentava um grande palácio e
vários templos. Num desses templos, esperando para falar com o rei, Apolônio
começou a observar as pinturas feitas nas paredes e travou com Damis um
diálogo bastante interessante a respeito da arte visual e de como na Antiguidade
romana se lidava com a relação estabelecida entre o executor, a imagem e o
observador.
O diálogo se inicia com Apolônio perguntando: “Damis, a pintura tem
algum valor?” Damis responde: “Sim, se for também verdade (alethéia)”. “E
no que consiste esta arte (techné)?”, pergunta Apolônio, no que Damis responde:
“Na mescla de quantas cores existem: os azuis com os verdes, os brancos
com os negros e os vermelhos com os amarelos”. Não contente com a resposta,
Apolônio continua sua inquirição: “Por que as cores são misturadas? Pois não é
somente para gerar cores, como nos cosméticos.” Damis, então, responde
“Para uma imitação (mimesis) e para representar um cachorro, um cavalo, um
homem, um barco e tudo aquilo que contempla o Sol. Além disso, pode-se
representar o próprio Sol”. Continuando o diálogo, pergunta Apolônio: “Damis,
então a pintura é uma imitação?”, no que Damis responde também com uma
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questão: “Que outra coisa seria?” Apolônio resolve, dessa forma, ir mais fundo
na questão:

Apolônio – Que dizes das coisas que se veem no céu, quando as nuvens
se mesclam umas nas outras, centauros e cervos, assim como, por Zeus,
lobos e cavalos, não seriam produtos da imaginação (phantasía)?

Damis – Parece.

Apolônio – Então, Damis, a divindade é um pintor e abandonando o carro


alado em que viaja põe ordem no divino e no humano? [...]. Nós, dotados
por natureza da capacidade de imitação (mimesis), submetemos as coisas
a uma ordem e as formamos. [...] Assim, é dupla a arte da imitação,
Damis, e devemos pensar que tem uma que imita com a mão e com a
mente, e esta é a pintura, e outra que somente representa com a mente
(FILOSTRATO. Vida de Apolônio de Tiana, II. 22).

Apolônio encerra a discussão defendendo que “a capacidade de imitação


vem aos homens da natureza, mas a capacidade pictórica vem da destreza”
(FILOSTRATO. Vida de Apolônio de Tiana, II. 22). Pintura não seria somente o
que vem da mistura das cores, pois seria possível trabalhar com uma só cor;
de igual forma, não seria simplesmente a combinação de luz e sombra, já que
só essa combinação não garantiria “forma, inteligência, pudor e audácia”, que
marcariam a confecção dos painéis. Acrescenta que: “o que vem das obras da
pintura requer capacidade de imitação, pois ninguém poderia elogiar um cavalo

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ou um touro pintados sem ter na mente o animal representado”, a imagem


(eikon) tem de ser verossímil (FILOSTRATO. Vida de Apolônio de Tiana, II. 23).
Esse rápido diálogo nos suscita várias questões. Para Apolônio, a pintura
só teria valor, no sentido de utilidade, se passasse uma mensagem, ou seja, se
pudesse ser reconhecida pelo observador. Se não fosse verossímil, portanto,
reconhecível, legível iconicamente falando, ela se transformaria num jogo de
cores e luminosidades sem inter-relação direta com a natureza, da qual ela
deveria emanar em primeiro lugar. A pintura é encarada, antes de tudo, como
técnica, nesse diálogo, como a arte do bem fazer, e a verdade é garantida pela
aproximação com a natureza, com o que podemos chamar de realidade. Mas
para Apolônio essa realidade só poderia ser apreendida por meio da imitação
(mimesis) e da imaginação (phantasía), pois o verossímil só seria garantido
pelo reconhecimento da forma usada na mente do observador. E caberia ao
humano usar as capacidades de mimesis e de phantasía, mas dotando-as de
uma ordem, uma lógica própria. Essa ordem na disposição da técnica do pintor
garante a compreensão por parte do observador, o entendimento mantido pela
verossimilhança.
A relação mimesis/phantasía, na produção de obras de arte, também
pode ser percebida em textos que apresentam o que se convencionou denominar
de ekphrasis. Andrew Laird conceitua ekphrasis como “uma descrição literária
de obras de arte visuais, que aparecem principalmente nas obras de poetas,
35 filósofos e retóricos antigos; em latim pode ser entendida como descriptio”
(LAIRD 1996, p. 76). O importante é perceber como essa descrição das obras,
sejam pinturas ou esculturas, é feita nos textos, garantindo-se a aproximação
da mimesis com a phantasía na relação do observador com a obra.
Na obra de Filostrato, o Antigo, filho de Nerviano e genro de Flávio Filostrato,
este o autor da Vida dos sofistas e da Vida de Apolônio de Tiana, e de seu neto,
Filostrato, o Jovem, que continuou a obra do avô materno (FILOSTRATO, O
JOVEM. Imagens, III. 2) em tema e estilo, mantendo o mesmo título de Eikones
ou Imagens, ambos os autores se propõem a fazer uma descrição de painéis
e/ou quadros e/ou afrescos (pínakes – painéis ou quadros ou graphaí – pinturas
ou afrescos), que estariam dispostos numa edificação de quatro ou cinco andares,
construída em Nápoles (a antiga colônia grega de Neapolis), na beira do mar
Tirreno, denominada de região da Magna Grécia (FILOSTRATO, O ANTIGO.
Imagens, I. 4). Tanto para o avô quanto para o neto foi importante demarcar
em sua narrativa a presença de um observador mais velho cercado de jovens,
que com ele desenvolviam uma prática pedagógica (paideia). A descrição das
pinturas tinha a função de rememorar fatos mitológicos e temas modelares
fundamentais na educação juvenil. Afirma Filostrato, o Antigo:

Enquanto pensava que era necessário fazer o elogio de tais pinturas, o


filho de meu hóspede, um rapaz certamente muito jovem, com dez anos,
mas muito experto no escutar e ávido por aprender, que observava como
eu as percorria com os olhos, me pedia que interpretasse as pinturas. Para
que não me considerasse antipático, lhe disse: “Faremos dessas pinturas
tema de uma dissertação tão logo cheguem seus jovens amigos”. Quando

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chegaram, lhes disse: “Que se coloque o menino à frente e seja ele o


destinatário de minha exposição, mas vós podeis nos seguir, não somente
para nos acompanhar, mas também fazendo perguntas se eu disser algo
que não fique claro (FILOSTRATO, O ANTIGO. Imagens, I. 5).

Essa mesma preocupação pedagógica no relato transparece no livro


terceiro da obra, escrito pelo neto. Diz Filostrato, o Jovem:

Sem dúvida, para que nosso livro não seja um relato de uma só pessoa,
devemos acreditar que tem alguém ao lado de quem se dispõe a explicar
todos e cada um dos detalhes das pinturas, afim de que o discurso tenha
coerência (FILOSTATO, O JOVEM. Imagens, III. 7).

Da mesma forma como aparece no diálogo travado entre Apolônio e


Damis, a existência das pinturas suscita uma ação pedagógica. Enquanto na
Vida de Apolônio de Tiana o sábio mago usa os painéis do templo para refletir
junto com seu aprendiz acerca da utilidade da pintura e da relação mimesis/
phantasía, os dois Filostratos, o Antigo e o Jovem, colocam em sua narrativa
um mestre interpretando as pinturas para acompanhantes jovens e ávidos por
ensinamentos. Assim, o que é pintado e reconhecido pelo mestre, ao perceber
na pintura passagens mitológicas já conhecidas pela poesia, serve a propósitos
pedagógicos, pois ao descrever e interpretar os painéis, o mestre sempre
aproveita para passar algum tipo de ensinamento.
Vejamos um pequeno exemplo entre os trinta e quatro quadros expostos
por Filostrato, o Antigo, e os dezessete quadros descritos por Filostrato, o 36
Jovem. Num painel onde aparecia pintado Anfíon, filho de Zeus (disfarçado de
sátiro) e de Antíope, irmão de Zeto, tocando uma lira, aquele que descreve
ressalta não apenas as cores da pintura e o material usado, mas dá grande
ênfase ao mito que pode ser narrado a partir da imagem, descrita como Anfíon
tocando a lira enquanto pedras se moviam sozinhas, formando uma muralha
(FILOSTRATO, O ANTIGO. Imagens, I. 10. 1-5). Lembremos que, enquanto
Zeto dedicou-se às artes manuais e violentas, como a luta, a agricultura e a
criação de gado, seu irmão Anfíon se entregou à música, ao receber de Hermes
uma lira como presente. Costumeiramente, os dois jovens discutiam a respeito
do mérito de suas artes, com Anfíon cedendo, com frequência, aos argumentos
do irmão. Ao reinarem sobre Tebas, os dois irmãos gêmeos resolveram cercá-
la de muralhas. Zeto transportava as pedras às costas, enquanto Anfíon as
atraía com os acordes de sua lira. Apolo acabou ficando com ciúmes de sua
arte e matou-o com uma flecha (GRIMAL 1992, p. 28). O mestre não retoma
todo esse relato, pois parte do pressuposto que os rapazes conhecem a
mitologia e seu repertório de exempla, mas ao descrever o quadro relembra
que as muralhas de Tebas têm sete portas, como o número de cordas da lira,
uma homenagem ao seu construtor, e ainda firma a moral de que é necessário
se aprender música num bom processo pedagógico, pois eliminava esforços e
se mostrava uma arte tão produtiva quanto as manuais, como indica a
interpretação do mito suscitada pela apreciação da pintura.
Assim, esse tipo de relato tem muito a ver com o potencial retórico de quem

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produz o texto, bem como com a intenção de inter-relacionar palavra e imagem


na produção de um repertório de comportamentos exemplares para a juventude,
a partir de temas mitológicos. Filostrato, o Antigo demonstra tal fato ao dizer:

Esta obra não tratará dos pintores nem de suas vidas, mas pretendemos
descrever diversos tipos de pinturas, na forma de conversas destinadas
aos jovens, para que sejam capazes de interpretar e de apreciar o valioso
da arte pictórica (FILOSTRATO, O ANTIGO. Imagens, I. 3).

Espera-se, então, que o mestre interprete as pinturas, usando-as como


mote para o ensino, e que os jovens tenham seu olhar guiado pelas informações
fornecidas. Porém, para iniciar o processo pedagógico, o mestre deve reconhecer
do que trata a pintura, ou seja, o observador deve conhecer os relatos mitológicos
e conseguir identificar os mitos pela verossimilhança garantida pela destreza do
pintor. Não é à toa que o relato de Filostrato, o Antigo se inicia com a afirmação
de que “a arte da pintura é a imitação (mimesis) da natureza” e por deter
“proporção e verdade, o exercício da arte participa da razão” (FILOSTRATO, O
ANTIGO. Imagens, I. 1). Mas como o pintor só conhece o que pinta pela poesia,
lida ou relatada oralmente, ele tem de usar também a imaginação (phantasía),
pois ao conhecer o relato mitológico, ele forma imagens na sua mente e com
sua destreza passa-as para o painel. E ao escrever a descrição da visita aos
quadros, Filostrato se insere nesse jogo de imagens, pois ao narrar os quadros

37 que são vistos e como eles podem ser interpretados, ele conta que o leitor e/
ou ouvinte de sua obra realize em sua mente o mesmo trabalho do pintor, que
precede à própria pintura, ou seja, que se imagine a cena mitológica descrita
pelo observador.
Nesse entrelaçar de imagens e palavras, Filostrato, o Jovem ressalta que
tanto a pintura de painéis quanto a escrita de textos visam a uma sobrevivência,
uma perenidade, o ingresso no campo da memória. Diz Filostrato, o jovem:

A pintura é uma arte excelente e se ocupa de temas não insignificantes.


Quem dominar esta arte deverá ter capacidade de observar a fundo a
natureza humana e de apreciar os traços de cada caráter, inclusive quando
estão calados; quantas coisas podem indicar as mechas dos cabelos, a
expressão dos olhos, o que há em cada tipo de sobrancelha, em definitivo
em todos os aspectos relacionados com o pensamento. Se dominar todas
estas questões, poderá captar todo sentimento e a mão será capaz de
interpretar magistralmente a estória (drama) de cada pessoa, [...] pintando
os traços adequados a cada caso. [...] Os antigos e os sábios do passado
escreveram muito [...] sobre as proporções na arte pictórica, [...] pois
não é possível encontrar casualmente a expressão adequada a cada
pensamento a não ser que a harmonia do conjunto concorde com a medida
justa da natureza, pois o anormal e o que excede esta medida não podem
conter uma expressão que represente (imite) o que tem na natureza.
Analisando bem, descobre-se que esta arte tem muito a ver com a poesia,
pois ambas compartilham a imaginação (phantasía). [...] Tudo que os poetas
dizem com palavras, a pintura o indica graficamente (FILOSTRATO, O JOVEM.
Imagens, III. 1-6).

Pela imitação pictórica da realidade, usando-se a imaginação, isto é, a


produção de imagens na mente, poetas e pintores produzem obras cujo valor

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fica garantido pela importância dos temas tratados, que eles compartilham, ao
tratarem de seres exemplares e dignos de recordação. Tanto os painéis quanto
os textos servem de suporte para a rememoração constante de feitos que
deveriam auxiliar no processo pedagógico do homem antigo. A verdade da
cena retratada, no texto ou no painel, era garantida pela harmonia das formas
e pelo ordenamento dos personagens, que permitiam o reconhecimento pela
verossimilhança com o que era retratado.
Essa mesma percepção pode ser encontrada na obra Ekfráseis ou
Descrições de Calistrato, que desde a edição feita por Aldo Manuzio, em 1503,
em Veneza, encontra-se acoplada às obras dos Filostratos (CUENCA 1987, p.
170). Mesmo tendo sido composta posteriormente e tratando de esculturas
(são descritas quatorze estátuas), como o autor promove um exercício retórico
de descrição de estátuas, as obras são sempre postas numa mesma edição.
Como nas obras filostratianas, Calistrato raramente menciona as técnicas
empregadas e só cita o nome de três escultores, considerados os delineadores
dos cânones escultóricos: Escopas (CALISTRATO. Descrições, 2), Lisipo
(CALISTRATO. Descrições, 6) e Praxíteles (CALISTRATO. Descrições, 3, 8 e
11). Para ele, esses escultores produzem no bronze e no mármore um tipo de
imitação da natureza similar a que é feita pelos pintores. Muda o material
empregado e a técnica utilizada, mas continua-se reafirmando a importância
da destreza do técnico e a necessidade da busca da verdade, vista como a
imitação (mimesis) da natureza. Afirma Calistrato: “Escopas, apesar de esculpir
figuras sem vida, era um artesão da verdade (alethéia) e operava prodígios em
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corpos de matéria inanimada” (CALISTRATO. Descrições, 2. 5). O autor sempre
indica o material no qual foi produzido a estátua e o local onde a mesma se
encontra, sublinhando a relação do objeto artístico com o ambiente no qual
está introduzido.
Na relação que se estabelecia entre o observador da estátua, que
reconhecia o tema tratado pela destreza do escultor em dar a ela forma
verossímil com os mitos conhecidos, e a obra em si, a interpretação do que era
visto se misturava às sensações garantidas pela imaginação. A obra de Calistrato
é farta em exemplos de momentos nos quais o observador podia garantir ter
gravado em sua mente fenômenos como ouvir o som de instrumentos talhados
na pedra, dançarinos que adquiriam movimento, Bacantes que pareciam estar
tomadas pelo transe dionisíaco. Por exemplo, na descrição da estátua de uma
Bacante, o autor afirma:

Feita com mármore de Paros, foi transformada em uma Bacante de verdade.


A pedra, ainda retendo sua própria textura, parecia ir além das leis que
regem as pedras, sendo na realidade uma imagem, a arte conseguiu
confundir a representação com a realidade. [...] Dirias, sem dúvida, que a
arte tem sua origem na capacidade de dar vida à natureza; deste modo,
considera o que vês incrível e o que não vês, crível (CALISTRATO.
Descrições, 2. 2-4).

Sendo assim, a verdade parece estar no que não é visto, mas apenas
imaginado, pois o que é visto parece ao observador incrível. Ao descrever a estátua

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de Memnón, filho de Eos (a Aurora) e Titono, irmão de Príamo e rei da Etiópia


(GRIMAL 1992, p. 302), diz Calistrato:

A natureza deu ao mármore a natureza de ser mudo, de não poder falar,


sem a possibilidade de ser governado pela dor ou a possibilidade de conhecer
o prazer, imune a todo tipo de sorte; mas nesta estátua de Memnón a arte
deu ao mármore prazer, e mesclou com a pedra também a dor, e sabemos
que esta é a única obra de arte em mármore dotada de voz (CALISTRATO.
Descrições, 9. 2).

Na descrição da estátua de Pã, afirma:

O que eu vejo não me parece uma escultura, mas uma representação


(mimesis) da realidade. Olha como a arte não somente é capaz de
representar o caráter, mas também, depois de se ter modelado uma imagem
a semelhança do deus, transforma-se no próprio deus. Ainda sendo matéria,
leva incorporada a inteligência divina e mesmo sendo a obra de um artista
resulta que é capaz de realizar o que normalmente a escultura não pode e
o executa ao criar secretamente os sinais de uma alma, um sopro de vida
(CALISTRATO. Descrições, 10. 2).

Essa destreza técnica, inspirada pelas divindades e desenvolvida pelo


esforço do artista, que permitia ao escultor dar voz às personagens retratadas
fazia com que eles se aproximassem também da técnica dos tragediógrafos,
que colocavam no palco temas mitológicos e divindades, dando vida ao que
39 antes habitava apenas o espaço escrito. Ao descrever uma estátua de Dioniso,
Calistrato afirma que ele estava com “o mesmo aspecto com o qual Eurípides o
fez aparecer nas Bacantes, [...] onde a matéria se convertia em prova de prazer
e o bronze atuava como demonstração das emoções” (CALISTRATO. Descrições,
8. 3). O mesmo tipo de comparação entre a poesia trágica e a arte estatutária
aparece estabelecido na descrição de uma escultura de Medeia:

Era de mármore e revelava o aspecto de sua alma; [...] demonstrava


pensamento e paixão e levava consigo a tensão da dor; em uma palavra, o
que se via era uma perfeita explicação do seu próprio drama. [...] Estes
sentimentos, a imagem os representava junto com o corpo e se podia ver
como o mármore ora demonstrava paixão aos olhos, ora promovia um olhar
sombrio e suavemente banhado em tristeza, exatamente igual como se o
artista tivesse moldado uma imitação do impressionante drama de Eurípides
(CALISTRATO. Descrições, 13. 2-3).

Dessa forma, o bom conhecedor da técnica conseguia trabalhar a pedra


de tal forma que o observador captava os sentimentos das personagens
retratadas. A expressão da alma era garantida pelo olhar e pela sensibilidade
daquele que observava atentamente a estátua. Mais uma vez a imaginação do
artista, na busca da imitação da natureza, tinha que se interpolar com a
imaginação do observador, para que a obra de arte ganhasse sentido. Tanto a
pintura quanto a escultura buscaram seus temas na literatura, mas as obras
aqui analisadas demonstram que esse exercício também teve outra face, ou
seja, os escritores buscaram temas no relato de esculturas e pinturas. Para os
gregos, como nos lembra Jás Elsner, o verbo grapsai significava tanto pintar uma

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O conceito de representação e os estudos latinos

imagem quanto escrever um texto (ELSNER 1996, p. 1). A arte era antes de
tudo mimética e seu potencial de credulidade vinha de seu reconhecimento
diante do que participava da natureza. E existiam muitas obras espalhadas pela
cidade, para apreciação dos passantes. Como ressalta Catherine Edwards, existia
uma “segunda população” em Roma, formada pelas muitas estátuas espalhadas
pela cidade e, possivelmente, pelas comunidades conquistadas (EDWARDS 2004,
p. 44).
Dessa maneira, ao analisarmos os diversos tipos de construções públicas
e privadas que foram sendo feitas no limes imperial, ao longo da República e do
Império, devemos ficar atentos como essas edificações correspondiam aos
interesses do promotor da obra, à destreza técnica do construtor e/ou artista,
do material empregado e disponível, do tema escolhido para ser retratado,
entre outros fatores que são destacados, por exemplo, por Catherine Johns
(2003, p. 9), no capítulo intitulado “Art, Romanisation and Competence”, no
livro Roman Imperialism and Provincial Art, editado por Sarah Scott e Jane
Webster. Nessa obra, podem-se encontrar vários artigos nos quais se discutem
conceitos, como os de romanização, emulação, resistência, negociação, como
no capítulo “Art as Resistence and Negotiation”, de Jane Webster, também
integrante da obra supracitada.
Tonio Hölscher, no livro The Language of Images in Roman Art, propõe
que se entenda a arte romana como um sistema semântico, no qual se aliam
formas artísticas e mensagens ideológicas. Por isso, diferentes formas estilísticas
deveriam ser usadas pelos romanos para passar diferentes temas e mensagens,
40
respondendo às necessidades de compreensão por parte de uma população
multicultural. Hölscher também defende que essas formas deveriam ser
constantemente repetidas e integrar um acessível sistema de comunicação
visual, permitindo aos habitantes de diferentes regiões entrarem em contato
com formas artísticas muito parecidas, o que garantiria uma identidade cultural
aos integrantes do Império (HÖLSCHER 2004, p. 1-2 e 125-126).
Alain M. Gowing, no livro Empire and Memory: The Representation of the
Roman Republic in Imperial Culture, relembra que, para os romanos, história
sempre foi menos um gênero e mais a definição de um tema: o passado, e que
os textos estabeleciam, mas também criavam memórias (GOWING 2005, p.
10-11). Acreditamos que o mesmo possa ser dito das obras de arte. Ao escolher
um tema, o artista usava sua técnica para estabelecer um padrão de recordação,
mas cabia principalmente ao observador captar a intenção da produção da
obra.
Sabemos que nas várias províncias romanas, os autóctones souberam
mesclar os cânones romanos com as necessidades e disponibilidades de seu
tempo e espaço. Gostaríamos de acrescentar a esta discussão apenas, como
já alertou Paul Zanker, no livro Augusto y el Poder de las imágenes, que “o
poder das imagens se materializa na interação; nas relações entre as imagens
e seu efeito no observador” (ZANKER 2005, p. 20).
É na relação estabelecida no tripé autor-obra-observador que, segundo os

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Filostratos e Calistrato, se forma um sentido para a construção. Interessante


notar que atualmente vários autores se debruçam sobre o conceito de
representação, definindo-o como a presença de algo ausente, na esteira de
textos como os de Carlo Ginzburg (por exemplo, o capítulo “Representação: a
palavra, a ideia, a coisa”, do livro Olhos de madeira: nove reflexões sobre a
distância – 2001, p. 85-103) e de Roger Chartier (por exemplo, o capítulo “O
mundo como representação”, do livro À beira da falésia: a história entre certezas
e inquietude – 2002, p. 61-80).
Outra questão que há bastante tempo intriga os historiadores diz respeito
à possibilidade de verdade no relato histórico, como pode ser percebido em
obras, como La memoria, la historia, El olvido de Paul Ricoeur (2003)
(principalmente o capítulo “Memoria e imaginación” – p. 21-80); Lembrar,
escrever, esquecer de Jeanne Marie Gagnebin (2006) (principalmente o capítulo
“Verdade e memória do passado” – p. 39-47) ou História. Ficção. Literatura de
Luiz Costa Lima (2006) (principalmente a seção “A escrita da História” – p. 29-
164), nas quais os autores enfatizam a importância da operação historiográfica
e da intenção de veracidade na constituição do relato histórico.
Nas obras dos Filostratos e de Calistrato, a obra de arte é mais do que um
vestígio do passado. Ela é fonte de interpretação para quem entra em contato
com ela e sua veracidade é garantida pela destreza do técnico em criar ordem e
harmonia, em dar sentido. A mensagem é indicada pelo reconhecimento, palavra
41 e imagem são inseparáveis e não é possível pensar mimesis sem phantasía,
pois só se poderia compreender a obra por meio da imaginação. Acreditamos,
portanto, que ainda temos muito a aprender com os antigos, pois para eles a
noção de representação era inseparável da formulação de sentido gerada pelo
contato entre realidade e imaginação.

Bibliografia

Documentos textuais
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______. FILOSTRATO. Imagines. Trad. Arthur Fairbanks. London: William
Heinemann, 1931 (The Loeb Classical Library).
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Trad. Francesca Mestre. Madrid: Gredos, 1996.

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O conceito de representação e os estudos latinos

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Ana Teresa Marques Gonçalves

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