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Dos ótimos modelos dos artistas

A abundância de ótimos modelos parece ser um subsídio


sobretudo para os estudos que consistem na imitação. Dizem que
não haveria Virgílio, se antes não tivesse existido Homero; nem
entre nós Torquato, se antes não tivesse existido Virgílio. É
comum afirmar-se que é fácil acrescentar ao já inventado. Por
outro lado, a maior vantagem é a Prerrogativa da invenção1; e os
Jurisconsultos incluem entre as suas definições aquela de que a
melhor condição é a dos que ocupam primeiro2. Que outra razão
há para o fato de que na maior parte dos casos os Inventores
mostraram-se os primeiros não só no tempo, como na dignidade,
e até muitas vezes os únicos? E se eu dissesse que os ótimos
modelos dos artistas obstruem mais do que promovem todo
método de estudos desse gênero? Pode ser espantoso, mas é
certamente verdadeiro.

1
Cf. DNB, p. 1356, n. 1: “ironicamente, justo na seção em que se apresentam reservas em relação ao
princípio de imitação, Vico vale-se de um lugar da Retórica aristotélica (I, 9, 1368 a), na qual entre os
modos de amplificar os méritos de alguém é indicada a prerrogativa de ter sido o único ou o primeiro a
fazer qualquer coisa”.
2
Cf. DNG, p. 259, n. 259 : “Alude, muito provavelmente, à actio Publiciana, a respeito da qual diz Juliano
(citado por Ulpiano, 16 ed. Digesta: 6, 2, 9, 4): ‘é melhor a condição daquele que possui do que daquele
que pede’; e Paulo (19 ed. Digesta: 50, 17, 128 pr.): ‘em igualdade de condições, deve ser preferido o
possuidor’”.
Pois, aqueles que nos legaram seus ótimos modelos artísticos não
tiveram nenhum modelo antes deles, a não ser a ótima natureza3.
Aqueles que se propõem a imitar os ótimos modelos dos artistas,
como dos pintores, por exemplo, não podem fazer coisas
melhores; de fato, o quanto havia de bom na natureza foi
exaurido pelos melhores em seu gênero; de outro modo, não
seriam ótimos; tampouco podem igualá-los, uma vez que não têm
a força da fantasia, nem a mobilidade e abundância dos espíritos,
nem a estrutura dos nervos, pelo que são levados do cérebro à
mão4, nem a mesma prática, donde a mesma facilidade. Portanto,
já que não podem nem superá-los nem igualá-los, é inevitável
que tendam para o pior. Verdade essa que reconheceu e professou
Ticiano, o qual, enquanto pintava em Veneza, indagado por
Francisco Vargas5, Embaixador do Imperador Carlos V junto a
essa república, por que se deleitava com esse gênero de pintura
tão espessa

3
Cf. DNB, p. 1356, n. 4: “em acepção platônica, não é a natureza física e empírica, mas ideal. CF. E.
PANOFSKY, Idea. Contributo alla storia dell’estetica [1924], tr. it., Firenze, La Nuova Italia, 1973”. Cf.
DNN, p. 231, n. 1; DNG, p. 259, n. 260.
4
Desde Lucrécio (?), a fisiologia de teor materialista considerava que o sangue e os nervos eram compostos
por minúsculas partículas chamadas espíritos, cujo fluxo produz o movimento e as sensações dos corpos.
Vico distingue os espíritos em vitais, que compõem o sangue, e animais, que percorrem os nervos; cf. DA,
IV, 6; cf. Hobbes, ?; Descartes, Discurso, Do homem 18, 129, 10-11, 269 (AT, v. 11, p. 119-220), Paixões;
cf. DNB p. 1356, 1; DNN, p. 231, n. 2.
5
Cf. DNB, p. 1357, n. 2: “Vargas, jurisconsulto espanhol, tinha sido enviado à Itália para seguir o Concílio
de Trento (cf. P. Sforza Pallavicino, Storia del Concilio di Trento X, 11; XXI, 11; XXII, 1). Durante uma
das duas longas interrupções, transferiu-se para Veneza por cerca de sete anos. O encontro com Ticiano
deve ter ocorrido nesse período”.
que seus pincéis quase pareciam vassouras, ele responde:
convém a cada um visar na arte que exerce alguma glória de
excelência, e aquela dos imitadores é menor do que a do
medíocre. Assim, visto que Michelangelo e Rafael ocuparam
cada um o ponto culminante, aquele no grandioso, este no
delicado gênero de pintura, convém enveredar por outro
caminho bem longe deles, por onde se possa proporcionar
alguma celebridade ao próprio nome6. Daí, eu suspeito, o fato de
que, uma vez que chegaram até nós o Hércules Farnese7 e outras
ótimas obras de Escultores antigos, mas não o Ialíso de
Protógene, nem a Vênus de Apelle8, na Escultura haja muito a
desejar, enquanto a Pintura foi levada até o ponto mais alto. Se
não é assim, como disse, por que é que entre os Gregos, Latinos
e os modernos, em matéria de poesia (para não falar de História
e Oratória, que refletem as mudanças políticas),

6
Cf. DNN, p. 231, n. 3: “Segundo Vasari (Vite, VII, 445), em 1541 ele fez o retrato de Don Diego de
Mendonça, então embaixador de Carlos V em Veneza, todo inteiro e em pé, de belíssima figura; desde
então, Ticiano começou a fazer aquilo que depois se tornou usual, isto é, fazer alguns retratos inteiros”. Cf.
DNF, p. 178, n. 174: “Refere-se provavelmente à pintura de Ticiano L’Assunta (pintado entre 1516-18,
conservado em Veneza na Igreja de Santa Maria Gloriosa dei Frari), o qual tinha sido notado por um
embaixador austríaco, que queria comprá-lo”.
7
Cópia romana em mármore do século III d.C., feita pelo escultor ateniense Glicon, de um original
desaparecido em bronze de Lisipo, datado do século IV a.C.. Encontrada em 1546 durante as escavações
nas Termas de Caracalla, passou a fazer parte da coleção de escultura clássica da família Farnese em Roma
até 1787, quando foi herdada pela casa Bourbon de Nápoles. Encontra-se, hoje, junto com toda coleção
Farnese, exposta no Museu Arqueológico Nacional de Nápoles; cf. DNP, p. 72, n. 77; DNB, p. 1357, n. 3.
8
Protógene foi célebre discípulo de Apelle; este último, pintor oficial de Alexandre e o mais ilustre pintor
grego do século IV a.C.; cf. DNB, p. 1357, n. 5: “ maior e mais conhecido pintor grego do século IV a.C..
A sua fama é transmitida pelo catálogo de obras e anedotas de Plínio, o Velho, o qual recorda o quadro de
Vênus na Nat. Hist. XXXV, 10, 79”; DNG, p. 259, n. 261: “(Cícero, De officiis, III, 2, 10) ... costumava
dizer Publio Rutilio Rufo, discípulo de Panécio, que não havia nenhum pintor que na Vênus de Cos se
atrevesse a concluir a parte que Apele havia deixado incompleta...”.
quase sempre aos ótimos têm sucedido poetas menores, ainda que
esteja em vigor a mesma língua, religião e método dos estudos?
Eis porque seria necessário que os ótimos modelos artísticos
fossem inteiramente destruídos para que tivéssemos ótimos
autores. Mas, como isso é bárbaro e criminoso, e a poucos é dado
escalar o topo, que sejam conservados aos engenhos menores;
aqueles que são dotados de índole mais feliz, tirem-nos de sua
vista, a fim de que rivalizem com os ótimos ao imitar a ótima
natureza9.

9
Vico insiste no caráter engenhoso e inventivo da arte, cf. DNN, p. 232, n. 1. Cf. DNB, p. 1357, n. 6: “todos
os exegetas idealistas, frente a essa “conclusão audacíssima”, encontraram a presumida confirmação de um
Vico precursor do Romantismo. Na realidade, remontando essas afirmações ao seu contexto de cultura
tardobarroca, seria suficiente evocar as sentenças substancialmente antimiméticas de Tesauro e de Sforza
Pallavicino, mesmo no interior de uma poética aristotélica. Tampouco deve-se esquecer as declarações de
Agostinho Mascardi e Virgílio Malvezzi a favor da natureza sempre individual do estilo. Cf. E. Raimondi,
Letteratura barocca, pp. 186-9. E, em âmbito napolitano, vide a condenação das regras a favor do engenho
de G. Caloprese na Lettera sopra la concione di Marfisa a Carlo Magno, Napoli, Bulifon, 1691. Pela
importância atribuída à fantasia, esse texto, ainda que seja obra de um cartesiano, é de se considerar como
uma das fontes da estética de Vico.

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