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PREFÁCIO

Vivemos uma época em que o prazo de validade de alguns livros, no campo das artes, é
medido em meses, às vezes em semanas, para logo terem que ser substituídos por outros que
supostamente os superaram. É o espírito do tempo em que incorporamos – não somente para
os bens de consumo, mas mesmo para esforços de pesquisa e teóricos – o adjetivo descartável.
A reedição de O Reinado da Lua: Escultores Populares do Nordeste, quase trinta anos depois da
primeira, deve ser saudada como um fato que o transforma inevitavelmente num clássico de
sua área. E quando entramos em contato com diversas publicações posteriores ao Reinado
podemos observar como se converteu numa referência incontornável; mais que isso: foi a fonte
que economizou esforço similar por outros autores, sendo aproveitado em algumas de suas
passagens, às vezes sem as devidas aspas.
A meu ver, três são os aspectos que preservam a integridade do Reinado, expostos com muita
clareza pelas autoras na apresentação. Primeiro, a compreensão de um processo histórico que
transformou objetos antes “funcionais” em obras de arte e de sua inscrição pelos segmentos
“cultos” da sociedade em um mercado de arte específico. No caso do Brasil, isto se dá a partir
do movimento modernista e seu trabalho de construção de uma identidade mais complexa que
aquela que reservava a categoria “arte” para designar somente as obras produzidas no interior de
um saber que, na falta de termo melhor, continuamos a chamar de erudito. Essa metamorfose do
trabalho-arte produzido pelos setores mais humildes da população – que se passa na apreensão
subjetiva de seu resultado – é plena de consequências para aqueles que o realizam, sobretudo
no plano econômico.
Segundo, o interesse documental do livro, ao cobrir um universo de 109 artistas de diferentes
estados do Nordeste. Se não é uma amostra no sentido estatístico do termo, como nos advertem
as próprias autoras, trata-se de um corpus bastante significativo. Atento às particularidades do
fenômeno artístico, não importa qual seja este, o Reinado lembra que “documentar, aqui, significa
considerar o escultor e sua obra como singularidades: é de sua individualidade, em relação com
o contexto em que se situa, que pretendemos dar conta.”
Terceiro aspecto, que deriva diretamente do segundo, mas o extrapola e dá um caráter
pioneiro à obra: o lugar privilegiado da fala dos artistas no lugar do exercício interpretativo das
autoras. Com isto, o Reinado não os reduz a meros informantes de uma pesquisa em ciências
sociais: apresenta-os como protagonistas da produção artística em posse, não apenas de um
“saber fazer”, mas também de um discurso sobre sua vida e sua obra. Não se trata de atribuir
nenhuma essência de verdade privilegiada ao “texto” de artista em relação a qualquer outra
fala. Os depoimentos coletados em o Reinado adquirem uma significação especial levando em
consideração a extração social, a educação formal precária e o índice de analfabetismo nessa
população. Mesmo quando sabem ler e escrever, esses artistas raramente o fariam para discursar
sobre o próprio trabalho.
Esses três aspectos, junto com a redação fluente e a contextualização mais que exata -
sensível às particularidades de cada um dos doze grupos construídos pelas autoras -, aliadas a
um precioso balanço entre as narrativas dos artistas e o texto que os visita, cravaram o destino de
O Reinado da Lua: ser um marco na abordagem da arte popular no Brasil.
Passados cerca de trinta anos, como será lido, sobretudo pelas novas gerações de artistas
e cientistas sociais, esse livro? De 1980 – ano da primeira edição – para cá mudou muito o
mundo, mudou também o Brasil. O abismo entre a produção de arte popular e o chamado
“sistema da arte” só fez se aprofundar. Este, além de se inscrever definitivamente na indústria do
lazer, levando milhões de visitantes por ano aos principais museus do planeta, foi fortemente
marcado pelo império da imagem e tem sua produção controlada por um mercado sofisticado
e agressivo. Nessas três décadas de debilitação proposital da esfera pública em todos os campos,
vimos crescer o papel das feiras de arte a tal ponto que elas hoje ocupam, quando não superam
em importância, as mostras tradicionais, como as bienais internacionais.
Durante esse período surgiram no campo da teoria da arte, particularmente nas obras de
Hans Belting e de Arthur Danto do início da década de 1980, reflexões que circunscrevem os
fenômenos artísticos, tal como os experimentam os segmentos cultos do Ocidente, como uma
manifestação particular a esta cultura, com data de nascimento e morte. E, se não morte, pelo
menos sua transformação em algo que teria pouco a ver com o que era chamado de arte. Para
essas teorias, a arte teria surgido no Renascimento e se transformado a ponto de desaparecer
em relação ao que representava a partir dos anos 60 do século XX. Esta seria a “era da arte”: do
século XV à arte moderna. Antes dela e depois dela, mas, acima de tudo, fora dela, não haveria
experiência de arte.
Não cabe, aqui, desenvolver o quanto uma leitura apressada dessas teorias pode levar a
equívocos. Mas é sintomático que elas possam ser levantadas como argumento contra o valor
de manifestações artísticas que se encontram fora do “sistema da arte”, embora este possa lidar
tranquilamente com as manifestações de antiarte produzidas pelo questionamento do conceito
de arte de Marcel Duchamp, pelas obras e happenings dadaístas, até a Merda d’artista, múltiplo
de supostos excrementos do artista, enlatados por Manzoni. Todos esses fatores e muitos outros
atuaram nas últimas décadas para aprofundar o divórcio entre o que se catalogou como “arte
popular” e o outro, nem sempre “erudito”, mas incluído no “sistema da arte”.
O desafio para o teórico contemporâneo da arte – não estou falando do “teórico da arte
contemporânea” – seria reconstruir os conceitos e retraçar as fronteiras do fenômeno estético
de modo que possamos realizar a leitura das obras lado a lado, independente de sua origem
social e de sua inscrição no mundo institucionalizado da “história da arte”. A leitura atualizada
de O Reinado da Lua seria um desses inevitáveis pontos de partida para uma nova construção
teórica.
No momento atual, não existe ponte traçada entre um mundo – o da arte popular – e o
outro – o do “sistema da arte”. Entretanto, quando visito o Museu do Pontal, no Rio de Janeiro,
não deixo de me emocionar e aprender com a magnífica herança organizada por Jacques Van
de Beuque. Ali se encontra um maravilhoso acervo de escultura popular no qual podemos
entrar em contato direto com o universo mapeado e narrado pelo Reinado da Lua. E constatar
na experiência direta com as obras a riqueza apresentada nas páginas desse livro. Que venham
muitas outras edições.
Paulo Sergio Duarte
Rio de Janeiro, maio de 2009.

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