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Leandro Narloch (/colunas/leandro-narloch/)

Leandro Narloch é jornalista e autor do Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil,


entre outros.

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Luxo e riqueza das 'sinhás pretas' precisam inspirar


o movimento negro
Negras prósperas no ápice da escravidão são pedra no sapato de quem diz que o
capitalismo é essencialmente racista e machista

29.set.2021 às 8h00
Atualizado: 30.set.2021 às 15h17

Antonio Risério acaba de publicar um livro (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/07/quem-


eram-as-sinhas-negras-ex-escravas-ricas-que-tinham-tambem-os-seus-escravos.shtml) sobre um personagem

fascinante da história do Brasil: a “sinhá preta”, como se dizia no século 19, a


escrava que conquistou a liberdade, superou preconceitos, enriqueceu pelo
comércio de rua e deixou em seu testamento joias, vestidos, casas e escravos.

Em 1836, Marcelina Obatossi comprou sua alforria de um outro negro liberto e


a partir de então acumulou 18 escravos, meia dúzia de casas no que hoje
chamamos de centro histórico de Salvador e muitas joias.

Francisca Maria da Encarnação, liberta em 1812, tinha quatro escravos e


diversas peças de ouro e prata. Custódia Machado de Barros morreu com duas
casas e seis escravos. Joaquina Borges de Sant’Anna tinha dinheiro suficiente
para emprestar a donos de armazéns do porto de Salvador.

Casos assim são exemplos anedóticos ou um fenômeno mais consistente?


Certamente não eram raros, pelo menos em regiões em que a economia
prosperava e criava oportunidades.
“Na verdade, pesquisas mais recentes indicam, com segurança razoável, que
mulheres de cor libertas formavam a categoria mais rica de nossa sociedade,
depois dos homens brancos”, diz Risério em “As Sinhás Pretas da Bahia: suas
Escravas, suas Joias” (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/07/quem-eram-as-sinhas-negras-ex-escravas-
ricas-que-tinham-tambem-os-seus-escravos.shtml), baseado em estudos de Sheilla de Castro Faria
e Eduardo França Paiva.

O viajante austríaco Johann Emanuel Pohl percebeu essa riqueza em 1819,


quando passou pela cidade de Goiás. Segundo ele, muitas mulheres brancas,
envergonhadas de sua pobreza, frequentavam a missa às 5 horas da manhã.
“Nela aparecem principalmente as brancas empobrecidas, envoltas num manto
de má qualidade, para não se exporem aos olhares desdenhosos das negras que
aparecem mais tarde e entram altivamente ornadas de correntes de ouro e
rendas.”

(As “joias de crioula” renderam outro grande livro, “Joias na Bahia dos Séculos
18 e 19”, de Itamar Musse Júnior, que conta com uma extensa coleção
fotográfica.)

A sinhá preta é um personagem poderoso porque complica narrativas de


ativistas. As negras prósperas no ápice da escravidão
(https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/entenda-o-fim-da-escravidao-no-brasil-e-as-consequencias-do-13-de-maio-de-

1888.shtml) são uma pedra no sapato de quem acredita que “o capitalismo é


essencialmente racista e machista” e que o preconceito é uma força
determinante, capaz de impedir que indivíduos discriminados enriqueçam.

A teoria crítica racial, em voga hoje nas faculdades de humanas, enxerga o


mundo pela lente das relações coletivas de poder. Nessa visão, houve na
história uma divisão nítida entre opressores e oprimidos, nitidez que
persistiria hoje. No entanto, como diz Risério, na história da Bahia “esse
dualismo esquemático não encontra correspondência factual”.

Outra ideia que a sinhá preta abala é a da culpa coletiva pela escravidão. Na
verdade, como se diz em sessões de terapia, “todos são culpados, mas ninguém
tem culpa”. Se há um responsável pela crueldade escravista, não são
exatamente os portugueses ou africanos que tiveram escravos. Muito menos os
imigrantes europeus (cuja maioria chegou faminta por aqui no finalzinho da
escravidão). A culpada é a época e seus valores diferentes dos nossos.

Ativistas do movimento negro não deveriam desprezar as lindas histórias de


vida das sinhás pretas. O costume de tratar negros somente na voz passiva
(“escravizados, humilhados, exterminados”) acaba por menosprezar o
protagonismo deles na história do Brasil.

Como observou certa vez o historiador Manolo Florentino (que assina a


apresentação do livro de Risério), é muito mais estimulante, para negros de
hoje, imaginar que seus antepassados foram em alguma medida protagonistas
de seu destino. Protagonizaram ações —ações dentro dos costumes da época,
como a de comprar e alugar escravos.

Muitos ativistas e estudiosos militantes confundem a atividade do historiador


com a de um promotor moralista que monta peças de condenação. As sinhás
pretas oferecem a essas pessoas a oportunidade de enxergar o passado com
mais maturidade e conciliação.

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