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MÁRCIO SELIGMANN-SILVA

A virada testemunhai
e decolonial do saber histórico
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELO
SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP
DIVISÃO DE TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO
BIBLIOTECÁRIA: MARIA LÚCIA NERY DUTRA DE CASTRO - CRB-8*
1 / 1724

Se48v Seligmann-Silva, Márcio, 1964-


A virada testemunhai e decolonial do saber histórico / Márcio
Seligmann-Silva. Campinas, SP : Editora da Unicamp, 3022.

1. Pós-colonialismo. 2. Memória na arte. 3. Cultura - História.


4. Negacionismo. I. Título

CDD-325.3
- 701
ISBN 978-85-268-1531-5 - 320.569

Copyright © Márcio Seligmann-Silva


Copyright © 2022 by Editora da Unicamp

ia reimpressão, 2023

As opiniões, hipóteses, conclusões e recomendações expressas


neste livro são de responsabilidade do autor e não
necessariamente refietem a visão da Editora da Unicamp.

Editora da Unicamp
Rua Sérgio Buarque de Holanda, 421 - 3= andar
Campus Unicamp
CEP 13085-859 - Campinas - SP - Brasil
Para Ariani
History is not the past.
It is thepresent.
We carry our history with us.
We are our history.
If wepretend otherwise, we literally are criminais.

James Baldwin (2017, p. 107)

[A história não é 0 passado.


É 0 presente.
Carregamos nossa história conosco.
Nós somos a nossa história.
Se fingirmos 0 contrário, somos literalmente criminosos.]
SUMARIO

Apresentação.................................................................................................... 11

Introdução ........................................................................................................ 15

i. “Da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”.............. 27

2. O tempo depois das catástrofes................................... ,......................... 113

3. Narrar o trauma........................................................................................ 141

4. A era do trauma....................................................................................... 163

5. O que resta do testemunho .................................................................... 171

6. O local do testemunho ........................................................................... 187

7. Anistia e (in)justiça no Brasil................................................................ 205

8. Do revisionismo ao negacionismo: pensando uma escrita


da história crítica como resistência ao apagamento....................... 223

9. Grande sertão: veredas como gesto testemunhai e confessional........ 249

10. Violência, encarceramento, (in)justiça: memórias de histórias


reais das prisões paulistas.................................................................. 267

11. Novos escritos dos cárceres: uma análise de caso............................. 285

12. A colônia penal de Kafka, ou as vicissitudes da colonialidade ...... 311

Palavras finais.................................................................................................. 337

Bibliografia ...................................................................................................... 343


APRESENTAÇÃO

Maria Eugenia Cabaleda: “Realmente creio que as fotografias são a única


forma pela qual podemos visualizar a desaparição forçada na Colômbia e
especialmente em Antioquia, onde temos ínais desaparecidos”.
Museo Casa de la Memória, Medellin, Antioquia, Colombia1

Ana González: “Não ter foto da família é como


não ser parte da história da humanidade”.
La ciudad de los fotografas, documentário, Sebastián Moreno, 2006

Aproveitei o período da pandemia para organizar e compor este livro


que já gestava havia anos. Enclausurado, por conta de um vírus fatal, quase
como um testemunho de minha existência e também como um testamento,
retomei meus trabalhos e minhas notas para produzir esta publicação. Tanto
o conceito de testemunho como o de testamento possuem a mesma raiz, test-,
que de certo modo estrutura estes textos. Atestar, testemunhar, deixar um
testamento, estamos falando de gestos, de atitudes associadas à nossa relação
com o mundo. Veremos como Benveniste vai associar essa raiz ao istor, de
“história”, e à noção de visualidade, de testemunhar visualmente. Enclausurado,
passei a testemunhar minhas memórias, a recolecionar minhas idéias. Era (e
é) como se a possibilidade de desaparição tivesse disparado um dispositivo de
inscrição da vida, um “testemunho que vivi”, para parafrasear Pablo Neruda. A
biologia explica esse fenômeno, afinal, também as quaresmeiras aqui da minha
casa floram cada vez mais - com a piora da poluição. Diante da ameaça de
extinção, queremos dar um testemunho. O absurdo contido nessa afirmação
é evidente, pois, se a humanidade vai desaparecer, por que, por quem.e para
quem testemunhar?
Mas esse paradoxo apenas radicaliza outro, já presente ao longo do século
XX: na era moderna, o testemunho tornou-se cada vez mais uma contradição.
Nosso sentido de história mudou de modo tão radical que não nos sentimos
mais associados a uma “tradição”. Podemos testemunhar apenas um frágil
presente, como em blogs ou em posts nas redes sociais, que logo são lavados
pela constante avalanche de novas postagens. Walter Benjamin já percebera
essa despedida da tradição, muito tempo antes, devido ao triunfo da técnica
da fotografia e do cinema. Em meados dos anos 1930 ele escreveu:

11
APRESENTAÇÃO

A autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo que nela é originalmente


transmissível, desde sua duração material até o seu testemunho histórico. Como
este testemunho está fundado sobre a duração material, no caso da reprodução,
onde esta última tornou-se inacessível ao homem, também o primeiro - o
testemunho histórico da coisa - torna-se instável. E somente isso; mas aquilo
que com isso se desestabiliza é a autoridade da coisa, seu peso tradicional. [...] a
técnica reprodutiva desliga o reproduzido do campo da tradição. Ao multiplicar a
reprodução, ela substitui sua existência única por uma existência massiva.2

O cinema implicava, segundo Benjamin, a “liquidação do valor da tradição


na herança cultural”.3 Nesse sentido, minha sensação diante da urgência do
testemunho só fez se radicalizar. Estamos falando de um duplo vazio, um
originário (nossas sociedades modernas não possibilitam mais o testemunho)
e outro futuro: deu um bug na humanidade, o futuro se apagou! Mas escrevi.
A outra opção poderia ser abrir mão dessa inscrição e “deixar a peteca cair”...
Nietzsche decerto foi o primeiro profeta do esquecimento na era moderna.
Sua relação com a tradição e a memória era o negativo do culto historicista do
passado do século XIX. Daí suas formulações extremas:

Como fazer no bicho-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa
inteligência voltada para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação
do esquecimento? [...] Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o
que não cessa de causar dor fica na memória.-1

Por outro lado, essa associação entre dor e memória não deixa de conter
uma verdade indiscutível. Freud, poucas décadas depois dessas palavras de
Nietzsche, teorizou essa dor em termos do conceito de “trauma”. Para ele, os
traumatizados sofrem de “memória demais”. A memória do trauma é ambígua,
“latente”, igualmente banhada no rio Lete (do esquecimento) e no rio da
Memória. A questão justamente é como lidar com essas inscrições do trauma,
como inscrevê-las, como elaborá-las. Neste livro proponho uma discussão
desses temas a partir de um outro excesso correlato a esse “excesso traumático
de memória”, a saber, a violência inerente ao processo da Modernidade. Essa
violência é tanto biotanatopolítica, ou seja, é fatal, como também é memoricida
e negacionista: carrega em seu bojo uma contínua política do apagamento e
do esquecimento.

12
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Meu dilema inicial, portanto, ao proceder a esta minha operação


testemunhai, não deixava de ser absolutamente autoperformático com relação
ao meu tema: como escrever sobre os testemunhos - e a partir deles - em uma
era duplamente alheia à construção de memórias, seja pelas características da
técnica moderna, seja pela violência da Modernidade. Mas .essa mesma técnica
é paradoxal e ambígua. Pois, se a fotografia estabeleceu um corte em nossa
relação com a tradição, com o passado e com a morte, ela também instituiu
um poderoso meio de inscrição do próprio apagamento. Assim, lemos nas
duas epígrafes desta apresentação declarações de mulheres latino-americanas
que se referem à fotografia como um dispositivo essencial no testemunho e na
sobrevida em um território particularmente marcado por políticas estatais de
desaparecimento, ou seja, a América Latina. Dessas tensões e ambiguidades
devem se desdobrar os capítulos deste livro. São tentativas, sempre parciais,
de enfrentar esses dilemas.
Não poderia deixar de fazer uma série de agradecimentos, correndo o risco
de esquecer amigos e colegas que me incentivaram, animaram e acolheram
ao longo deste percurso, mas aqui segue uma lista, tentativa cheia de gratidão
e esperança de mais encontros e diálogos. Antes de mais nada recordo meus
ex-alunos e pós-doutorandos: Paloma Vidal, liana Feldman, Antonio Barros de
Brito Junior, Aline Amsberg, Tiago Elídio da Silva, Jacqueline Ceballos Galvis,
Lua Gill da Cruz, Annita Costa Malufe, Augusto Sarmento-Pantoja, Abilio
Pacheco, Liniane Brum, Carlos André Ferreira, Pablo Gasparini, Markus
Lasch, Sabrina Sedlmayer Pinto, Alexia Cruz Bretas, Patrícia da Silva Santos,
Sheila Cabo Geraldo, Michelle Carreirão Gonçalves e Flávia Albergaria Raveli.
E a essas pessoas especiais: Adalberto Müller, Ana Pato, Andréa Lombardi,
Andreas Knitz, Betty Fuks, Carol Jacobs, Caroline Silveira Bauer, Claudia
Gonçalves, David Foster, Diego Matos, Edson Luis André de Sousa, Edson Rosa
da Silva (in memoriarri), Eduardo Sterzi, Élcio Cornelsen, Ernani Chaves, Fúlvia
Molina, Georg Otte, Giselle Beiguelman, Gonzalo Leiva, Helena Carvalhão
Buescu, Horst Hoheisel, Isabel Capeloa Gil, Jaime Ginzburg, Janaina Teles, João
Camillo Penna, Jochen Volz, Júlio Cézar Bentivoglio, Karl Erik Schollhammer,
Kathrin Rosenfield, Kathrin Sartingen, Lais Myrrha, Lawrence Flores Pereira,
Leila Danziger, Lucia Maciel Barbosa de Oliveira, Luis Krausz, Luiz Costa
Lima, Manuel Vallecilla, Marcelo Brodsky, Marcelo Jacques de Moraes, Marcos
Napolitano, Maria Esther Maciel, Marília Bonas, Marina Ludemann, Maurício

13
APRESENTAÇÃO

Cardozo, Miguel Vedda, Moacir dos Anjos, Nelson Camata, Olgária Mattos,
Paulo de Sousa Aguiar de Medeiros, Paulo Endo, Rachel Cecília de Oliveira
Costa, Ralph Buchenhorst, Raquel Mercado Salas, Ricardo Timm de Souza,
Roberto Vecchi, Rosana Kohl Bine, Rosane Kaminski, Rosangela Rennó, Sandra
Arenas, Sandra Berman, Sandra Lorenzano, Sigrid Weigel, Solange Farkas,
Susana Kampff Lages, Susanne Klengel, Susanne Zepp, Suzana Sacramin, Tania
Rivera, Tania Sarmento-Pantoja, Vera Casa Nova, Virgínia Vecchioli, Willi
Bolle e Winfried Menninghaus.
Evidentemente, a certeza de que tudo isso vale a pena, apesar de tudo,
veio da pessoa a quem eu agradeço por último, justamente por ser a primeira:
Ariani Sudatti.

São Paulo, outubro de 2021

Notas

1 Disponível em <https://www.museocasadelamemoria.gov.co/RV/mnt/archivo/>. Acesso


em 30/10/2021. Quando não indicado explicitamente na bibliografia, todas as traduções
feitas neste livro são de minha responsabilidade.
2 Benjamin, 2013, p. 55.
3 Idem, ibidem.
4 Nietzsche, 1988b, p. 295; 1998, p. 50.

14
INTRODUÇÃO

Os. PODERES DO TESTEMUNHO E DA ARTE DA


MEMÓRIA NA TAREFA DECOLONIAL

Na paisagem da geografia mítica da Grécia antiga, dois rios paralelos


cruzavam os limites do Hades, ou seja, o além: Lete, o rio do esquecimento, e
Mnemosyne, o rio da recordação. Esse paralelismo não deixa de ser sintomático:
memória e esquecimento caminham juntos, de modo que um não existe sem o
outro. A história do esquecimento é digna de nota: se na Antiguidade acreditava-
-se na capacidade de desenvolver a memória e vencer o esquecimento, o homem
moderno está convencido de duas coisas só aparentemente irreconciliáveis: a
certeza de que tudo o que percebemos se inscreve em nós e o saber de que a
maior parte de nossa memória nos é inconsciente. Freud foi o primeiro a tentar
explicar isso na Modernidade.
Tanto na visão antiga como na moderna atribui-se ao esquecimento um teor
negativo. Verdade em grego é alétheia, ou seja, não esquecimento. Lembrar-se,
ensinava Sócrates, é a forma de atingir a verdade (esquecida porque, segundo
ele, quando nascemos, havíamos antes bebido das águas de Lete). Já a psicanálise
nos ensina a prática da recordação como terapia. A talking cure (cura pela fala)
é também uma cura pela rememoração, ou assim se apresenta. O paradoxo é
que essa recordação visa permitir (nietzscheanamente) a possibilidade de um
“esquecimento” não culpado ou de uma memória sem peso.
Mas a nossa era da onipresença das imagens modificou a história da relação
entre memória e esquecimento. Nossos mega-arquivos virtuais prometem a
perenidade de uma memória total da humanidade. O avesso disso é nossa

15
INTRODUÇÃO

indiferença com relação ao esquecer: se tudo está armazenado, não precisamos


lembrar de nada por nós mesmos. Vivemos confortavelmente de próteses de
memória: embalados nas ondas do rio da web. Sócrates, ao afirmar que a
escrita levaria ao esquecimento (tema que desenvolvo neste livro), já adiantara
o modelo dessa crítica às técnicas de armazenamento em mais de dois mil anos.
Não podemos perder de vista que memória e esquecimento têm tudo a
ver também com a construção da autoimagem de grupos, culturas e nações.
A memória é^ composta de muitas camadas que se interconectam: existe
um aspecto dela que é cumulativo (que armazena fatos), mas ela é também
responsável por cimentar os grupos. A memória nos vincula. Ao compartilhar
memórias, construímos um bem comum que nos une. Toda memória, já dizia
Maurice Halbwachs, é de algum modo coletiva. Toda memória é memória
vicária, “dos outros”, pois somos animais sociais, e nossas memórias nos
constituem enquanto tais. Isso tem a ver também com o fato de que somos
seres políticos, vivemos em sociedades, e as memórias fornecem nossos dados,
que estão na base dos pactos morais e de nossos hábitos.
Mais do que nunca, em uma época de crise das grandes narrativas e teorias,
a memória se transformou em um dos últimos bastiões da ética. Temos que
pensar na prática da memória como uma prática política que pode ajudar a
construir uma sociedade mais igualitária e justa. Toda sociedade é atravessada
por querelas em torno do que recordar, e, de modo geral, nós nos esquecemos
de muito mais coisas do que podemos recordar. Por exemplo, se pegarmos
nossas práticas memorialísticas que nos marcavam até recentemente, veremos
que nossos modelos eram figuras como generais, estadistas e os nossos
bandeirantes, pessoas que, na vida real, dificilmente podemos dizer que
foram modelos de convivência ética e dialógica. Nossos monumentos e nossos
“heróis” são ainda frutos de uma historiografia elitista voltada para reafirmar a
história dos vencedores, que afirmava de modo enfático o sistèma e glorificava
o progresso (técnico e de um determinado modelo socioeconômico) como algo
positivo e inexorável. Mas esses “vencedores” sempre triunfaram espezinhando
a maioria da população.
Daí pensar hoje na necessidade de fazer uma virada mnemônica ética
nas encenações de nossa memória. Em vez de comemorarmos os “grandes
vultos da nação”, bandeirantes que estupravam, escravizavam e matavam
indígenas, por exemplo, devemos comemorar os próprios indígenas (que

16
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

vivem neste continente há milhares de anos sem nunca ter destruído nada de
sua natureza). Devemos comemorar os afrodescendentes que lutaram e lutam
pela sua emancipação, assim como os que participam de movimentos sociais
do campo e das cidades. Assim, estaremos construindo uma memória ética,
um genuíno meio capaz de plasmar uma sociedade mellíor. Recentemente,
em julho de 2021, o monumento ao bandeirante Borba Gato (do artista Júlio
Guerra, de 1957) foi incendiado em São Paulo, em um claro ato de protesto
contra nossa paisagem mnemônica ainda dominada pela colonialidade. Nomes
de ruas, memoriais e monumentos no Brasil estão ainda dentro da lógica
monumentalista e colonial herdada do século XIX. Essas marcas conservadoras
da memória constroem muros que barram a construção de outras memórias,
dificultam a inscrição de outras narrativas e a produção de novas subjetividades
resistentes à colonialidade.
É justo falarmos que políticas identitárias são construídas na trama da
memória e do esquecimento. Todo ato de lembrar encerra atos de esquecer.
Mas isso é parte de uma economia da memória que podemos considerar
natural. Mas existem também políticas de esquecimento. Em termos da
nação, países constroem as suas políticas da memória e do apagamento.
Com a ascensão do modelo de organização política sob a forma de nações
como base da vida burguesa, ocorreu, desde o século XIX, uma poderosa
construção de dispositivos e políticas da memória e do esquecimento. As
disciplinas da história, da literatura, da antropologia e da linguística serviram
a essas políticas. Elas ajudaram a dar forma às nações para justificar suas
fronteiras e seus ensejos colonialistas. Poderosas narrativas foram traçadas,
como mostrou, entre outros, Benedict Anderson,1 em torno do que seria cada
nação. De certo modo, para que cada narrativa se adequasse a uma história
nacional “de sucesso”, dever-se-iam apagar outras histórias. Não por acaso,
tem-se falado tanto em negacionismo nas últimas décadas. Devemos pensar
o negacionismo associado tanto às políticas de apagamento da memória
(sem as quais as nações não se constroem) como também como um aliado
sempre presente em políticas de massacres e de genocídios, que marcaram as
biotanatopolíticas do século XX e do nosso também. O discurso monolíngue
do nacionalismo fundamentalista, que se desenvolveu ao longo do século XIX,
produziu e reproduz até hoje máquinas genocidas e memoricidas. Recordo
dois exemplos rapidamente.

17
INTRODUÇÃO

Hitler, em um discurso a seus chefes militares em 22 de agosto de 1939,


às vésperas da invasão da Polônia, teria dito: “Quem se lembra hoje do
extermínio dos armênios [durante a Primeira Guerra Mundial]?”. Sua intenção
era clara: apenas o lado “heroico” da guerra seria lembrado e a impunidade
estaria garantida aos perpetradores de crimes. Como também veremos neste
livro, o genocídio da população armênia ocorrido durante a Primeira Guerra
Mundial nos estertores do Império Otomano, a chamada Sublime Porta, deu-se
acompanhado de sua negação por parte dos nacionalistas turcos que, até hoje,
mantêm na Turquia leis que proíbem que se aborde de modo crítico esse evento
terrível. Ou seja, Hitler apostou no esquecimento, nas políticas de apagamento,
que haviam sido até então bem-sucedidas no caso do genocídio dos armênios,
como garantia para o sucesso de seu projeto genocida.
Por sua vez, antes disso, em 1918, em meio a pressões internacionais que
exigiram esclarecimentos e justiça com relação ao genocídio armênio, o
nacionalista turco e último embaixador do Império Otomano nos EUA, Ahmed
Rusten Bey, publicou um livro em defesa da honra dos turcos. Desde 1914 ele
publicava em jornais norte-americanos artigos defendendo a Sublime Porta
em suas ações contra os armênios. Para defender esses crimes, Bey recordava
que, nos Estados Unidós, os negros sofriam linchamentos (1918: 84), assim
como narrava uma longa lista de crimes cometidos pelos países da Europa
Ocidental. Com relação à Inglaterra, ele recordou a repressão e a violência
contra os irlandeses, os massacres realizados na índia, bem como a violência
colonial na África, como no caso do Egito. Também lembrou dos terríveis
campos de concentração de Transvaal, criados pelo Lord Kitchener, na segunda
guerra dos bôeres, entre tantos outros crimes. Seu argumento era para lá de
ambíguo: apontava o dedo para as potências ocidentais, elencando os seus
crimes e chamando-as de hipócritas - para justificar os crimes turco-otomanos
contra a população armênia, que ele considerava, na verdade, justificáveis.2 Para
além dessa contradição, típica dos argumentos fundamentalistas nacionalistas,
que só veem razão nos atos de sua própria pátria, o importante é que Bey, como
Hitler depois dele, aponta para o fato de que as políticas de apagamento da
história, o esquecimento, são parte do movimento político. Déspotas genocidas
apostam no poder no memoricídio como indulto contratado de antemão para
garantir a impunidade dos seus atos. Negacionismo, apagamento e genocídios
andam sempre de mãos dadas.

18
A VIRADA TESTEMUNHAI E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

A violência colonial, até hoje recalcada pelo mundo ocidental, dito


“civilizado”; precisa ser enfrentada. A persistência de monumentos em
homenagem a genociaas, escravocratas, traficantes de escravos, autores de
massacres só é passível de entender se levarmos em conta as políticas de
esquecimento ,da violência colonial: violência esta que se repete até hoje,
em forma de racismo, exploração territorial, de classe e de gênero. Antigas
potências e elites coloniais foram em parte substituídas e têm continuidade com
as elites locais. As políticas do esquecimento precisam ser enfrentadas, já que
elas sustentam quadros de memória que balizam a repetição da exploração e
da violência. Daí a importância, sempre, de políticas de inscrição da memória,
sobretudo quando se trata desse tipo de violência exterminadora. As forças
do oblívio são sempre poderosas e exigem resposta e políticas resistentes de
memória.
Este livro pretende ajudar a gerar argumentos para desconstruirmos essa
lógica colonial que nos engessa e tende a reproduzir a violência colonial em
nossos dias, com práticas racistas, de opressão e violência de classe, misóginas
e sempre a favor de uma elite cada vez mais indiferente ao sofrimento dos
espezinhados. Ê importante destacar que, quando falo de “virada testemunhai
do saber histórico”, me refiro a novas sensibilidades desenvolvidas nesse contexto
pós-colonial em que o corpo e sua localização passam a ser reconhecidos como
parte da construção de outras narrativas e epistemologias.
Nossos escritores, cineastas e artistas são justamente alguns dos principais
agentes dessa nova arte da memória ética construída a partir dessas novas
sensibilidades. Eles têm a capacidade de nos apresentar os conflitos sociais de
modo a produzir pontes, abrir arcos que nos conectam com as vítimas daquilo
que a ideologia chama de “progresso”, mas que é, na verdade, a continuidade
da exploração dos viventes pelos homens e dos homens sobre a natureza. No
cinema, por exemplo, a memória tornou-se um tema em si, sobretudo desde
a Segunda Guerra Mundial. Aquele acúmulo de violência produziu uma nova
estética do cinema, voltada para mostrar os escombros, como no neorrealismo
italiano - lembremos do Alemanha, ano zero (1948), de R. Rossellini, e, dentro
de uma nova estética e ética da memória, do muito influente Noite e neblina
(1955), de Alain Resnais, sobre o Holocausto. Toda a obra de Resnais reflete
sobre a memória, como seu fundamental Hiroshima, meu amor (1959) e O ano
passado em Marienbad (1961). Chris Marker, que foi assistente de Resnais,

19
INTRODUÇÃO

tornou-se depois um dos maiores criadores de um estilo de cinema-arquivo,


voltado para documentar sua época, das imagens do Japão às lutas políticas na
Europa e na América Latina.
No Brasil, é importante lembrar uma nova cinematografia que tem se
desenvolvido em torno do registro da ditadura de 1964-1985. Se a sociedade
brasileira de um modo geral resiste à inscrição e à leitura das memórias
daquele período, os cineastas tornaram-se plasmadores de uma poderosa
contramemória, com filmes como o pioneiro Que bom te ver viva (de Lucia
Murat, 1989), Cidadão Boilesen (de Chaim Litewski, 2009), Os dias com ele (de
Maria Clara Escobar, 2014), Orestes (de Rodrigo Siqueira, 2015), entre tantos
outros. A memória da ditadura é fundamental se quisermos construir um país
mais igualitário e democrático. Foi a manipulação dessa memória a partir de
2013 que, em boa parte, pavimentou o caminho, em termos do imaginário
da nação, para a eleição de um presidente negacionista, adepto de práticas
ditatoriais e representante acabado da nossa colonialidade.
Não podemos nos esquecer do cinema de Eduardo Coutinho, que criou
uma verdadeira escola do cinema-testemunho no Brasil, na linha do que
Claude Lanzmann e Marcei Ophüls haviam iniciado nos anos 1970. A uma
era de catástrofes, grandes cineastas respondem com uma estética e uma ética
do testemunho. O mesmo vale para a muito bem-vinda propagação, desde o
final do século XX, de cineastas indígenas no Brasil, como Larissa Yepadiho
Duarte, Genito Gomes, Isael e Sueli Maxakali, entre tantos outros brilhantes
cineastas. Projetos como o “Vídeo nas aldeias”, iniciado por Vincent Carelli,
e o “Instituto Catitu”, desenvolvido por Mari Corrêa, ajudaram a desenvolver
essa produção que permite a divulgação das perspectivas ameríndias via
cinema.
Nas artes plásticas, o mesmo movimento pode ser descrito. Uma de nossas
grandes artistas do (des)esquecimento no Brasil é sem dúvida Rosângela
Rennó. Como ela costuma dizer, sua obra lida com o esquecimento - e,
particularmente no Brasil, tendemos a esquecer e silenciar a violência. Sua
obra se dá em amplo diálogo e incorporação da fotografia, algo também
sintomático, já que é uma marca dessa nova arte da memória lançar mão do
dispositivo da fotografia. Essa arte quer captar o “real”, seus “traços”, como nas
fotos, sobretudo na sua era analógica. Também uma nova geração de artistas
tem se dedicado à memória, repaginando a história do Brasil de modo muito

20
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

criativo e carregado de um forte potencial de revisionismo crítico. Essa arte é


responsável pela construção de um novo espaço de imagem (Bildraum, como
veremos com Benjamin), que nos penetra e instaura novas possibilidades de
olhar o passado e de vislumbrar outros futuros. Esses artistas desconstroem
máquinas coloniais poderosas, como o próprio maquinário da estética que tem
servido para formatar subjetividades na Modernidade no sentido da produção
de hierarquias eurocêntricas e produtoras de outrificações subalternizantes.
O classicismo, que está na base do nascimento da história da arte, com
Winckelmann, e que também sustenta a teoria estética da arte de Kant, deve
ser reconhecido como uma poderosa máquina ontotipológica. 3 Esse modelo
clássico gera o “próprio” eliminando o “outro” que é produzido nesse mesmo
gesto de aniquilação. Estamos diante de um dispositivo^ o dispositivo estético,
talvez o mais violento que a Modernidade criou, pois é a partir dele que se
produz a linha divisória entre os dignos de direitos e de solidariedade e aqueles
que são a “carne” da máquina colonial.4 O dispositivo estético é um aliado
do dispositivo colonial - ambos produzem e aniquilam os seus “outros”. O
“próprio” (europeu), para existir, necessita de seu “não eu”, o “outro”, seja a
África ou o Oriente, como autores como Frantz Fanon, Abdias Nascimento,
Edward Said e Stuart Hall5 constataram no século XX e, mais recentemente,
toda uma série de autores pós-coloniais desenvolveram em seus trabalhos,
como Achille Mbembe, Walter Mignolo, Grada Kilomba ou Bell Hooks.6
Podemos dizer que a luta que se dá no campo das artes afrodescendentes
no Brasil é a luta pelo reconhecimento do elemento violento, ideológico, de
apagamento dos negros e de uma miríade de culturas, no bojo dessa ideologia
estética “universal” e universalizante, antes de mais nada branca, eurocêntrica
e racista. Portanto, temos que pensar a “arte negra” (expressão cara a Abdias
Nascimento, Paul Gilroy e tantos teóricos da cultura contemporâneos),
afrodescendente ou afro-brasileira, como uma arte produzida por artistas que
se entendem como parte de uma continuidade daquelas populações submetidas
à história da violência e de sua resistência a ela. Mas, vale reforçar: trata-se,
para esses artistas, de uma conquista dessa continuidade. Trata-se da superação
de um apagamento imposto por poderosas políticas de esquecimento que, no
Brasil, procuram, de modo ambíguo, glamourizar nossa história na mesma
medida em que negam qualquer continuidade entre a violência do sistema
escravocrata e as violências biopolíticas e raciais de hoje.

21
INTRODUÇÃO

A história da arte negra é a história da construção de pontes e de veios


de comunicação com o passado (um passado traumático que não passa, que
está em suspenso); é a história de ruptura da camada de concreto com a qual
a ideologia colonial branca procurou enterrar a história da violência de classe
e racial neste país, bem como a história de lutas e resistências. Na medida em
que o magma dessa história de violência jorrou, a virada na história da arte
negra levou também a uma ruptura radical com a ideologia do estético: a nova
arte negra que pasceu dessa história colonial, mas também da luta resistente,
é eminentemente política e crítica do discurso do universalismo amnésico,
assimilador e destruidor da identidade negra, na mesma medida em que
procura estabelecer as bases de uma cultura afro-atlântica. Ela desconstrói
também o dispositivo nação, responsável por tantas mortes e que é sempre
a desculpa para as ações de “limpeza étnica” e de “purificação”, via eugenia,
políticas de assimilação (esquecimento) ou pelo genocídio.
Recordo, a título de exemplo, uma artista e uma de suas obras. Rosana
Paulino é reconhecida como uma pioneira na nova arte negra brasileira. Sua
obra Parede da memória, de 1994, é uma referência dentro dessa produção. Essa
obra é composta de 11 fotografias de sua família que se repetem em diferentes
números, chegando a atingir 1.500 fotos, que são impressas sobre tecido em
tamanho de cerca de 8 x 8 x 3 cm cada, formando patuás, ou seja, um elemento
da religiosidade afro que tem um valor de amuleto no candomblé. Cada patuá
leva cores específicas, associadas a orixás que irão, então, proteger aquele que
porta o talismã. Lembremos que Abdias Nascimento definiu o candomblé
como “o ventre gerador da arte afro-brasileira”.7 É importante pensar que a
própria Rosana Paulino narra a sua carreira a partir dessa obra emblemática
que esteve também presente na sua recente exposição na Pinacoteca de São
Paulo de 2018-2019.
Parede da memória, na sua apresentação aparentemente simples, sintetiza,
na verdade, o encontro de vários gestos: o fotográfico, o da costura, o da
rememoração tanto da família como de uma origem afro. A obra também alude
aos universos da religiosidade, do jogo (jogo de memória) e da montagem, já
que se trata de um arranjo que está sempre em movimento, sendo remontado,
sem nunca deixar de ser a Parede da memória. Essa parede, com uma série de
patuás, não deixa de ser uma versão contemporânea afro dos loci memoriai,
os lugares de memória da mnemotécnica. Nessa tradição, une-se a memória
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

rerum, memória das coisas, com a memória verborum, memória das palavras
(conceitos que apresento aqui na abertura deste livro). Os imagnines agentes,
ou seja, agentes da memória, são colocados em certos locais para narrar
imageticamente história.8 Existe um movimento, nessa obra de Paulino, de
apropriação de elementos da memória, de uma memória próxima, familiar,
mas também distante, associada a uma ruptura, a uma deriva, de um saber e de
um modo de estar no mundo o qual, de certa forma, a artista reconhece como
seu. Como nas palavras de Musa Michelle Mattiuzzi, Rosana Paulino parece
de fato “habitar as ruínas da colonialidade”; ela se apresenta como alguém que
sabe “habitar e reviver as ruínas dessa pluralidade afro-atlântica”.9
A fotografia tornou-se uma metáfora fundamental na arte contemporânea
e, no Brasil, tem estado na base da produção de artistas que lidam com a
memória e, mais ainda, com o esquecimento. Recordo Hélio Oiticica, com
seu Bólide Caixa 18 “Homenagem a Cara e Cavalo”, de 1966, ou seu famoso
Seja marginal, seja herói, de 1968. A fotografia, sobretudo a analógica, tem
um momento de “impressão” (vale lembrar que Rosana Paulino é bacharel
e especialista em gravura10). A fotografia reatualiza outras metáforas da
memória, como a escritura, metáfora também fundamental, como veremos, na
referida tradição da arte da memória com sua ideia de inscrições mnemônicas.
Afinal, a fotografia é literalmente uma escrita de luz. Mas ela também remete à
concepção psicanalítica de nossa memória como camadas, umas mais outras
menos conscientes. A inscrição do trauma também já foi comparada ao/las/i
fotográfico. A fotografia enquanto retrato tem também um elemento corpóreo
e fantasmático: o retrato fotográfico literaliza ambiguamente o aparecer e o
desaparecer, a presença e a ausência, o desejo de ver e o evanescer da imagem.
Paulino torna-se também, nessa sua obra/jogo, quem dá as cartas na cena da
apresentação dos corpos negros. Como Eustáquio Neves e seus retratos, ela
afirma-se como agente de suas imagens, e não mais como objeto representado
e sem fala própria. A obra consegue ao mesmo tempo ser extremamente
contemporânea e citar passados mais ou menos próximos. Ela é um buraco
no tempo, cria uma metaespacialidade e outros cronotopoi. A fotografia é
tratada como fragmento, escombro, sobrevivência de um naufrágio, e é em
torno de fotografias apropriadas, suas cópias, seus recortes e suas inversões,
que boa parte da obra de Paulino se constrói. Isso sem, no entanto, romancear
alguma origem perdida, ou estabelecer alguma ontologia identitária. Antes, a

23
INTRODUÇÃO

reprodução técnica das fotografias desconstrói qualquer visada essencialista.


Trata-se de abrir espaço para imaginar origens e narrativas alternativas às
construídas pelos discursos coloniais.
Estou recordando aqui autores de poderosos dispositivos que abrem nossos
olhos para populações e fatos invisibilizados pela história e pela mídia. Se
hoje as águas de Lete e Mnemosyne parecem estar misturadas, essas obras são
como arcas que portam os escombros de uma humanidade que sobreviveu ao
seu próprio naufrágio, mas também peças de construção de um mundo novo
talvez menos violento.
Nestas páginas, procurei reunir trabalhos meus em torno do tema
da memória e do testemunho, que, desde 2018, ganharam uma urgência
inimaginável até então. Mais do que nunca precisamos rever nossos hábitos
culturais. A eleição de um presidente representante do que tem de pior na
nossa cultura política (neo)colonial só pode ser explicada porque ele, de fato,
encontrou eco em corações e mentes. Precisamos ativar a máquina de guerra
cultural contra esse tipo de política que não só destrói a incipiente democracia
deste país, além do próprio solo em que vivemos, mas também reverte
projetos de' emancipação de classes, de etnias outrizadas e de subjetividades
não heteronormativas. Como nos anos de resistência durante a ditadura de
1964-1985, novamente a cultura é chamada para ativar seu teor político e de
resistência.

Notas
1 Anderson, 2008.
2 Rusten Bey, 1918, pp. 75-93.
3 Lacoue-Labarthe & Nancy, 1991.
4 Seligmann-Silva, 2019.
5 Fanon, 2008 [1952]; Nascimento, 2016 [1976]; Said, 1978; Hall, 2003.
6 Mbembe, 2017; Mignolo, 2011; Kilomba, 2019; Hooks, 2014.
' Nascimento, 2016, p. 125.
8 Yates, 1966.
9 Refiro-me ao pequeno e poderoso texto de Musa Michelle Mattiuzzi publicado no catálogo
Histórias afro-atlânticas. Vale a pena citá-lo, já que apresenta uma espécie de manifesto
decolonial da maior importância hoje no Brasil marcado pelas políticas neocoloniais:
“Na história contada pela branquitude - que ainda hoje apresenta facetas de um Brasil
colonial - a noção compulsória sobre o ‘outro’ é o que qualifico de mirada folclórica branca
sobre aspectos da estética negra e indígena. É um olhar e uma prática construídos a partir
do uso de signos que engendram a necropolítica como possibilidade de inclusão e de

24
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

representatividade, em um jogo perverso da linguagem branca de captura e visibilidade.


Penso isso quando investigo as narrativas que fazem parte desse imaginário supremacista.
Penso isso de Tarsila do Amaral (1886-1973), artista que pintou a obra A negra, que, se
analisada friamente, é de cunho racista, embora tenha conseguido fazer-se creditada por
uma falsa narrativa de que a representatividade importa e tenha sustentado durante muito
tempo o mito da diversidade racial e cultural deste país. Há uma tecnologia política dos
colonos herdeiros de criar soterramentos. [...] A ‘arte’ destas terras que nunca deixaram de
ser colônia, uma ‘arte’ instituída aqui com o violento processo de inserção na Modernidade
ocidental. ‘Arte’ como o meio privilegiado por onde circulam as idéias escritas e a criação
visual realizadas por colonos herdeiros, estes que fazem parte de uma classe social abastada,
que operam os signos na onda de apropriação e tratam as suas idéias como universais. Na
representação do discurso de que somos todos iguais eles nos expropriam. Vejo a etnografia
como parte e como exemplo de agenciamento do poder dessas elites aplicado por meio
de um método científico. [...] Se não vamos mudar nada, que ao menos possamos habitar
as ruínas da colonialidade e sobreviver de alguns encontros. [...] Escurecer com o meu
negrume. [...]'(S]aber habitar e reviver as ruínas dessa pluralidade afro-atlântica” (Pedrosa;
Carneiro & Mesquita, 2018, pp. 607-609).
10 Lopes; Bevilaqua & Palma, 2018, p. 171.

25
1

“da APS MEMORIAE AOS ESTUDOS


DE MEMÓRIA PÓS-COLONIAIS”

AS NOVAS BATALHAS EM TORNO DA MEMÓRIA

No dia ia de fevereiro de 2018, o Senado polonês aprovou uma lei, em


seguida promulgada pelo presidente Andrzej Duda, que criminaliza qualquer
pessoa que atribua algum tipo de culpa à Polônia e aos poloneses com relação
ao Holocausto ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial. Quem utilizar
a expressão “campo de extermínio polonês” pode ser condenado a até três
anos de prisão por estar ofendendo a “honra nacional polonesa”. Pesquisas
científicas e trabalhos artísticos estariam fora do âmbito dessa lei, mas isso
não a torna de modo algum menos rigorosa e assustadora. Basta lembrar que,
em fevereiro de 2021, dois historiadores foram condenados a se “desculpar”
e a pagar uma multa por conta dessa lei negacionista.1 Por que um governo
decide em 2018, portanto 73 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial,
estabelecer uma lei dessas? A justificativa oficial é a de “defender a imagem do
país”. Que um partido de direita e populista, 0 Lei e Justiça, esteja por detrás
dessa lei talvez ajude a iluminar o ocorrido. Trata-se de mais um caso notório
de intervenção direta da política e de políticos nas políticas da memória/do
esquecimento. O singular desse caso é o fato de o legislador ter estabelecido
uma salvaguarda que, evidentemente, equivale a querer “tampar o sol com a
peneira”, já que existem milhares de testemunhos e muitos estudos sobre a
colaboração de poloneses com o projeto nazista de extermínio judaico. O caso
exemplar do massacre feito por poloneses de cerca de 340 judeus no povoado
polonês de Jedwabne (pogrom ocorrido em 10 de julho de 1941), que foi muito
recordado no contexto da promulgação da lei de 2018, é apenas o que se tornou

27
‘da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”

mais paradigmático dessa colaboração. Essa lei é diferente, por exemplo, do


bloqueio editorial que durante anos não permitiu na Alemanha a reedição
do livro Mein Kampf, de Hitler,2 ou mesmo das diversas leis e declarações
oficiais em vários países que criminalizam a negação do Holocausto ou do
genocídio armênio. No caso destas últimas, elas são uma resposta à lei turca
que criminaliza falar em “genocídio armênio”. Se a lei turca é um caso patente
de negacionismo do genocídio, a nova lei polonesa é um caso de negacionismo
da colaboração com o genocídio. Em junho de 2016, quando o Parlamento
alemão reconheceu oficialmente o genocídio armênio promovido pelo Império
Otomano (conhecido como Medz Yeghern, em armênio, Grande Crime),
o embaixador turco na Alemanha afirmou que os parlamentares haviam
sucumbido a “Acções” em torno do que se sucedera em 1915.
Essas querelas em torno da memória se desdobram com cada vez mais
ênfase desde o fim da “Guerra Fria”. A onda de revisionismo positivo que
abalou centenas de estátuas e monumentos no ano de 2020, em plena pandemia
de covid-19, após o brutal assassinato de George Floyd, um afrodescendente
norte-americano de 46 anos, executado em Minnesota no dia 25 de maio, por
policiais que o sufocaram, mostra em que medida essa guerra de memória e de
imagens expressa traumas profundos das sociedades contemporâneas. Foram
ao chão obras que homenageavam Cristóvão Colombo, o rei belga Leopoldo
II, traficantes de escravo (como a estátua em homenagem ao traficante Edward
Colston em Bristol, na Inglaterra), monumentos que reproduziam imagens
humilhantes de afrodescendentes e de indígenas (como a que ficava diante
do Museu de História Natural de Nova York com Theodore Roosevelt sobre
um cavalo ladeado por um indígena e um afrodescendente a pé), de militares
confederados da guerra civil norte-americana (como a que homenageava
Jefferson Davis, presidente do Exército Confederado, na Virgínia, EUA). Essas
derrubadas mostram 0 poder do revisionismo crítico de histórias coloniais
que até hoje moldam as paisagens de nossas cidades, estradas, a nossa cultura
e a nossa prática política. São Paulo, com suas centenas de homenagens aos
“heróis” bandeirantes, equipara-se a essas homenagens nos EUA aos militares
confederados escravocratas e racistas. Essas querelas apontam para o fato de
que as identidades passaram a ser construídas, a partir da segunda metade
do século XX, e a cada passo com mais ênfase, a partir de memórias coletivas
que são mobilizadas para as novas lutas políticas. Os monumentos e toda

28
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

uma imagerie da comunidade política são utilizados na criação de uma nova


concepção do próprio, seja este pensado como etnia, raça, nação ou pátria.
Não por acaso, o século XX, como veremos aqui, deu lugar ao nascimento
do conceito de “memória coletiva” (Mauriche Halbwachs) e de “locais de
memória” (lieiix de mémoire) (Pierre Nora). Das grandes narrativas da história
monumental do século XIX passou-se às histórias do cotidiano e, finalmente,
aos testemunhos. Mas essas novas negociações e conflitos identitários não
tiveram soluções unívocas. Ora penderam para propostas de revisionismo
crítico (que denomino de “positivo”), no sentido de tentar elaborar os traumas
e as violências acumuladas ainda não narradas e elaboradas, visando produzir
sociedades menos desiguais e promover a convivência com as diferenças, ora
produziram respostas fundamentalistas, como no caso mencionado da Polônia.
A guerra civil iugoslava dos anos 1991-2001 também é um triste exemplo desse
tipo de solução pela via da autoafirmação de nacionalismos xenófobos. Nesses
contextos, os dispositivos de memória ajudam a desenhar a face do “próprio”
calcada na exclusão do “outro”. Como veremos aqui, devemos entender nesse
contexto o papel das obras de arte, como auxiliares desse design do rosto da
comunidade. Elas tanto são aparelhos de produção de identidades abertas,
que tencionam as fronteiras do “eu”, como podem ser instrumentalizadas na
produção de imageries que engessam a imagem de grupos e nações.
Um outro exemplo dessas querelas da identidade/memória aconteceu em
2007 na Estônia em torno do monumento aos soldados russos da Segunda
Guerra (0 Soldado de Bronze) em Tallinn. Esse monumento, inaugurado
em 22 de setembro de 1947, portanto quando a Estônia estava sob domínio
soviético, foi retirado do seu local de destaque sobre a vala onde os russos
estavam e realocado em um cemitério militar. Na ocasião, Mikhail Kaminin,
porta-voz da diplomacia russa, declarou: “O Monumento ao Combatente
Libertador foi desmontado em vésperas de uma festa sagrada: o Dia da Vitória
[sobre a Alemanha nazista em 1945]. E isso só se pode classificar de sacrilégio
e desumano”.3 O sagrado e 0 político estão lado a lado: uma obra de arte
monumental, que representa também um marco da dominação soviética, é
lida como um documento religioso e índice de humanidade. Nossos conflitos
políticos tornam-se de modo explícito querelas em torno da memória. Menos
de dez anos após esse conflito, foi inaugurado na cidade estoniana de Tartu
um dos mais impressionantes museus nacionais já construídos. Em uma área

29
“da ars memoriab aos estudos de memória pós-coloniais’

de 34 mil metros quadrados, o visitante tem acesso a detalhes da história,


da paisagem natural e da cultura estoniana, em um tour de force de teatro
resistente da memória de uma população que sempre se viu ameaçada por
vizinhos imperialistas. Não por acaso, a imagem final do tour nesse museu é
uma gigantesca bandeira da Estônia.
Essas querelas, apesar de intensificadas nas últimas décadas, já marcavam
os conflitos políticos desde o século XIX. E já durante a Revolução Francesa,
de modo paradigmático a Bastilha foi tomada e simbolicamente destruída
pelos revolucionários; a Coluna de Vendôme, construída em Paris em 1810
para comemorar o imperador Napoleão, foi demolida durante a Comuna de
Paris de 1871 (e em seguida reerguida); o Memorial ao Kaiser Guilherme I,
construído em Berlim em 1897, foi parcialmente demolido durante a Revolução
de Berlim de 1918; em 1956, uma gigantesca estátua de Stalin foi derrubada
durante os levantes em Budapeste e muitos hoje ainda se recordam das imagens
que correram o mundo da derrubada da estátua de Saddam Hussein, durante
a entrada das tropas norte-americanas em Bagdá em 2003. Os exemplos são
inúmeros e, como veremos, também no Brasil a mesma querela em torno de
imagens e memórias pode ser retraçada com inúmeros exemplos. A história,
afinal, é uma sucessão de narrativas, e essas imagens são peças centrais desses
constructos narrativos. Nossas “comunidades imaginadas”4 são construídas
com peças, com imagens da memória, que servem de esteio para criar o nosso
“em comum”. Mas existe nessa história um processo de diferenciação. Entre
os nacionalísmos analisados por Benedict Anderson no final do século XX,
e os novos discursos e as novas querelas de memória, nota-se uma diferença
qualitativa, já que o conceito de nação perde sua força estruturante central para
outras bases mnemônicas, como etnia, raça, ou para comunidades construídas
a partir de lutas em defesa do meio ambiente, por espaços urbanos e no campo.
Esse abalo da centralidade do dispositivo unificador da nação tem recebido
como resposta, por outro lado, a ascensão de grupos políticos que reivindicam
novamente, de modo radical, racista e segregacionista, o antigo modelo da
nação como principal meio de construção da unidade. Lemas como o do
trumpismo norte-americano, “Faça a América grande novamente”,5 adotado
em 2016 (reciclando o lema utilizado na campanha de Ronald Reagan em 1980),
são a caricatura desse fato. Com a nação vem junto a ideia de “povo”, forjada nos
séculos XIX e XX a partir de noções de pureza, ancestralidade e uniformidade.

30
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Essa passagem do modelo da nação para modelos mais localizados e calcados


em uma autêntica experiência em comum foi acompanhada pela ascensão da
importância dos testemunhos e do que chamo de dispositivos testemunhais. Não
se trata, nesse conceito, do testemunho pensado, por exemplo, por Foucault
como uma parte da “ortopedia” e da educação seja via religião seja em seus
modelos secularizados. Ele via a confissão e os testemunhos, como veremos
mais adiante, como técnicas de construção da verdade que foram apropriadas
pelo paradigma judiciário da verdade. Antes, penso aqui na ascensão do
testemunho resultante da era de catástrofes que foi o século XX, com suas
duas grandes guerras, com as inúmeras guerras de libertação colonial e com
novas guerras de domínio imperialistas, com suas ditaduras e seus governos
totalitários.0 O que chamo de virada testemunhai do saber histórico determina
novas modalidades de construção da memória, atravessadas pelos corpos,
pela experiência individual e coletiva, e despede-se aos poucos da noção mais
abstrata e artificial de uma unidade do “povo” e da “nação”.
Por agora lembremos apenas que, na cidade de São Paulo, também vivemos
conflitos desse tipo, como, por exemplo, revelam os ataques que tem sofrido o
Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, no Ibirapuera. Símbolo de um
tipo de poder e de domínio colonial, falocêntrico, violento e que se reproduz
até hoje em nossa política, esse monumento constitui um dos vértices de
um verdadeiro triângulo da memória paulista. Os outros são a estátua em
homenagem a Pedro Álvares Cabral e o Obelisco lembrando os quatro jovens
tombados em 1932 (construído de 1947 a 1970, o Mausoléu aos Heróis de 32,
homenagem aos “mártires” paulistas da “Revolução Constitucionalista”). Em
2014, foi inaugurado, na mesma região paulista, o Monumento em Homenagem
aos Mortos e Desaparecidos Políticos, de autoria do arquiteto Ricardo Ohtake,
em homenagem às vítimas da ditadura civil-militar de 1964-1985. Em que
pese a importância que podemos atribuir a este último memorial, a verdade
é que ele ainda não conseguiu abalar o domínio “soberano” dos três referidos
ângulos do triângulo da memória paulista. A memória da violência da ditadura
(assim como de toda nossa história da violência no Brasil) ainda é recessiva
diante da visão edulcorada de nosso passado com seus “heróis” conquistadores.
Nesse jogo de imagens-lembrança, vemos como inscrição e apagamento atuam
concomitantemente o tempo todo. Voltaremos a essas e outras querelas.
Veremos, sobretudo, em que medida algumas modalidades da arte permitem

31
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”

também a construção de um outro tipo de memória e de autoimagem, mais


aberta, tensa e não resolvida, com fronteiras porificadas, e não purificadas,
como ocorre nessas imagens monumentais mobilizadas nas guerras políticas
da era moderna. Por ora proponho fazer um périplo pela história da memória,
a fim de termos um esteio para entender a base cultural sobre a qual atuam as
artes e os campos “minados” de nossas políticas - que são sempre “políticas da
memória”. Nesse périplo, trilharemos também caminhos paralelos à história
do “logos” ocidental e de sua construção como aparelho de processamento de
identidades. Veremos como a sua tendência a reproduzir políticas outricidas
ou “altericidas”7 só pode ser entendida se tentarmos conhecer e desconstruir
seus dispositivos de inscrição e apagamento mnemônicos.

AS NARRATIVAS PRÉ-CLÁSSICAS ACERCA DOS


PRIMÓRDIOS DA HISTÓRIA DA MEMÓRIA

Para entendermos os atuais debates em torno da memória, é, portanto,


importante antes repassarmos alguns capítulos da história dessas discussões.
O que é a memória, como ela se articula, quais são suas bases materiais, por
que precisamos de lugares da memória e quais são os “agentes da memória”?
Qual a relação entre memória e história? Como se dá a interação entre memória
e recordação? As querelas em torno da memória são fenômenos culturais que
marcam a humanidade desde quando? Todo ato de memória está associado
a atos de apagamentos? Como se estruturou, na tradição ocidental, a relação
entre memória e verdade?
Como se trata de pensar criticamente a tradição logocêntrica da noção de
memória, é inescapável partirmos desse locus mítico da “origem” ocidental que
foi sendo construído desde o Renascimento. Refiro-me, é claro, à Antiguidade
clássica. A memória esteve presente como tema na Antiguidade já desde as
epopeias homéricas, passando pela filosofia e pelas teorias poéticas e retóricas.
Homero abre a Ilíada com as conhecidas palavras:

O homem canta-me, ó Musa, o multifacetado, que muitos males padeceu, depois de


arrasar Troia, cidadela sacra. Viu cidades e conheceu costumes de muitos mortais.
No mar, inúmeras dores feriram-lhe o coração, empenhado em salvar a vida e
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

garantir o regresso dos companheiros. Mas não conseguiu contê-los, ainda que
abnegado. Pereceram, vítimas de suas presunçosas loucuras. Crianções! Forraram
a pança com a carne das vacas de Hélio Hipérion. Este os privou, por isso, do dia
do regresso. Das muitas façanhas, Deusa, filha de Zeus, conta-nos algumas a teu
critério.8

Essa evocação das Musas remete ao acesso a uma memória total, cósmica,
que de certo modo é atemporal, pois funda o evento enquanto ato de memória.
Não se trata aqui de uma simples rememoração de fatos passados que o aedo se
recordaria para narrar. O aedo seria, antes, um visionário, alguém que via os
fatos que narrava e os transportava diante de seus ouvintes. Estamos em plena
era do triunfo da oralidade (do século XII ao século IX a.C.), e essa memória do
aedo é articulada à cosmogonia que transforma a fala em gesto de criação. As
estruturas rítmicas da linguagem articulam a memória, do mesmo modo que
as narrativas (re)produzem o mundo. Marcei Detienne, analisando a relação
na Grécia arcaica entre memória poética e verdade, escreve que “a palavra do
poeta, tal como se desenvolve na atividade poética, é solidária a duas noções
complementares: a Musa e a Memória. Essas duas potências religiosas definem
a configuração geral que dá à Aletheia poética sua significação real e profunda”.9
A Musa é uma potência religiosa que está associada à memória do mundo no
sentido de sua constante recriação e manutenção. A palavra musal, o seu canto
de memória, é “Palavra de Louvor”,10 palavra cantada que mantém o mundo
em ordem e faz dele Cosmos e não permite derivar para o caos. As Musas são
filhas da Memória, que era pensada como uma entidade antes de mais nada
cósmico-religiosa. O campo da memória não se restringia ao passado, mas
antes era parte de um saber mântico cósmico, que abarcava também o futuro.
O poeta que tem o dom da Memória é capaz de “decifrar o invisível”, e sua
memória é “potência religiosa que confere ao verbo poético seu estatuto de
palavra mágico-religiosa”.11 Daí a palavra poética não ser simples restauração,
mas, antes, instauração do real. As Musas como agentes da Memória dizem
“o que é, o que será, o que foi”.1- Mas a palavra poética enquanto instauradora
do mundo é calcada, observa ainda Detienne, no binômio censura/louvor:
pessoas e atos censurados tendem a Lete (o rio do esquecimento), ou seja, a
serem “deletadas”, ao esquecimento. Já pessoas e atos dignos de louvor são
patrimônio da memória, do tempo sem tempo da glória (Kléos), são “sem-
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’

-esquecimento”, Aletheia, e, portanto, verdadeiros. Assim, observa enpassant


o autor, estabelece-se, tendo o poeta como árbitro supremo, a comunidade dos
“semelhantes” e dos “iguais”.13 Estes são os valentes guerreiros, defensores, por
exemplo, de Esparta, sociedade militarizada na qual as Musas têm papel de
destaque na organização simbólico-social. A Memória é, assim, monumento
das Musas.14 Detienne conclui essa reflexão sobre a memória na Grécia arcaica
afirmando essa proximidade entre a palavra do poeta e a verdade como não
esquecimento, Aletheia. Com o paulatino triunfo da filosofia e de sua visão de
verdade sobre essa concepção poético-cosmológica, a poesia teria se restringido
ao papel de instituidora dessa memória e monumentalização dos guerreiros,
políticos e ricos, e perdido essa arcaica força religiosa instituidora do real e
mantenedora do Cosmos.
É digno de nota que o eminente helenista Pierre Vidal-Naquet, em sua
apresentação dessa obra de seu colega Marcei Detienne, Os mestres da Verdade
na Grécia Antiga (publicada originalmente em 1967), observe que se trata, no
referido livro, de estudar a linguagem cientifica (que é apresentada como derivada
remota da Aletheia poética) enquanto linguagem que possui o “poder de atingir
todos aqueles que fizeram o esforço de aprendê-la, e [de] ser conversível em
qualquer dialeto humano”.15 Trata-se, portanto, de uma autêntica linguagem
universal, realizando avant la lettre 0 sonho leibniziano e da Modernidade de
fazer uma tal linguagem científica matemática. Isso, destaca Vidal-Naquet com
um salvo-conduto de humildade, em que pese o valor “de outras experiências
humanas, africanas, indianas, chinesas ou ameríndias”.16 Essa linguagem
“encontra a sua origem na Grécia, numa Grécia sustentada, além de tudo, por
uma herança rica e complexa”.17 E, por sua vez, Marcei Detienne abre o seu
estudo com a afirmação que corrobora as palavras de seu colega:

Em uma civilização científica, a ideia de Verdade introduz imediatamente as


de objetividade, comunicabilidade e unidade. Para nós, a verdade se define em
dois níveis: por um lado, conformidade com alguns princípios lógicos e, por
outro, conformidade com o real, sendo, desse modo, inseparável das idéias de
demonstração, verificação e experimentação.’8

Cabe nos perguntar com relação a essas palavras de abertura: qual o


significado do conceito de “civilização científica” (seria aqui uma referência

34
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

ao grupo dos “mestres da verdade” que triunfaram na Modernidade por meio


de estratégias políticas, militares e de memoricídio?); por que a verdade só
poderia ser pensada como objetiva, comunicável e única, quando esse conceito
de verdade é apenas um dos inúmeros que ainda sobrevivem hoje?; quando o
autor escreve “para nós”, não caberia explicitar para quem, a quem se refere esse
“nós” e, sobretudo, quem são os excluídos aqui?; e, por íim, a visão de verdade
como subordinada a princípios lógicos e à conformidade ao real é, novamente,
apenas uma e a mesma noção de Verdade que o autor lança, logo no início de seu
trabalho, como a única possível e válida. Estudarmos essa “origem na Grécia”
significa, portanto, analisarmos - e nos aproximarmos dela - uma longa e
complexa história da construção do “próprio”, da linguagem pretensamente
universal e “omnitraduzível” que correspondería ao logos universalizável grego.
Para além desse fato, que não pode ser esquecido em nenhum momento desta
trajetória, podemos pensar nessa “origem” como uma poderosa construção
do dispositivo que, veremos, deve ser encarado como ontotipológico, ou seja,
produtor de identidades estanques e, mais ainda, produtor de um dispositivo
que produz o próprio secretando um “outro”, que tem como um de seus nomes
o de colonizado.
Como escreve Marcei Detienne, “uma civilização oral exige um
desenvolvimento da memória, ela necessita da execução de técnicas de
memória muito precisas”.19 As epopeias homéricas, portanto, só podem ser
compreendidas como parte de uma mnemotécnica. O tour deforce mnemônico
para a sua memorização, estruturado por parâmetros rítmico-narrativos, era
exacerbado pela listagem de nomes, os chamados “catálogos”, como no caso
das listas dos melhores guerreiros aqueus e dos melhores cavalos elencados no
poema homérico. O íim dessa longa e prolífica tradição mnemônica dos poetas,
aedos e das Musas deixou traços profundos no modo de pensar grego, mesmo
em sua era do triunfo da racionalidade filosófica, no século IV a.C. Afinal, a
teoria da memória e da reminiscência de Aristóteles é uma das herdeiras dessa
tradição secularizada. Ela, depois, em parte inspirou as concepções de memória
de toda a Idade Média até a Modernidade. Recordemos essa importante e
triunfante tradição que ilumina princípios básicos do funcionamento da
memória e, assim, da cultura.

35
'da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”

A MEMÓRIA EM ARISTÓTELES

A teoria da memória aristotélica pode ser reconstruída a partir de sua teoria


do conhecimento exposta no tratado De anima. Na sua concepção dinâmica
do nosso aparelho cognitivo, os cinco sentidos são responsáveis pela captação
das sensações e seu transporte para a faculdade de imaginação que, por sua
vez, fornece as imagens que constituem a matéria bruta da nossa faculdade
intelectual. A parte da alma que cria imagens é considerada, em Aristóteles,
como um a priori para o processo intelectual mais “elevado”. Afinal de contas,
para ele, “a alma nunca pensa sem uma imagem mental” {De anima, 432 a 17),20
e “mesmo quando pensamos de modo especulativo, devemos ter uma imagem
mental com a qual pensamos” {De anima, 432 a 9). Nesse modelo, toda teoria
da memória é teoria das imagens e das bases esquemáticas que a sustentam.
Kant, depois, apontará o “esquematismo transcendental”, ou seja, justamente
essa base da criação de nossas imagens na imaginação {Einbildungskraff), como
um dos mais profundos mistérios de nosso aparelho cognitivo. Como resumiu
Jean-Luc Nancy de modo robusto: para Kant, “A faculdade de representação
permanece irrepresentável”.21
Aristóteles estruturou, no plano tópico de sua teoria, os três sentidos
internos (memória, imaginação e engenho/razão) como contraponto dos
cinco sentidos externos e localizou-os em três câmaras no cérebro. Os sentidos
internos seriam as faculdades da alma que trabalham as informações que vêm
do exterior. Essa arquitetura cerebral manteve-se constante por séculos afora
na filosofia europeia. Na câmara posterior encontrar-se-ia a imaginação, que
realiza a tradução dos dados dos sentidos em imagens, mas que também gera
imagens independentes, como ocorre quando sonhamos. Na câmara mediana
teríamos o senso comum {common sense), que compara os dados e gera juízos.
Na última câmara localizar-se-ia a memória, que é vista como um reservatório.22
Em seu pequeno tratado que ficou conhecido por seu título traduzido ao
latim, De memória et reminiscentia {IIEPIMNEIMHX KAIANAMNHXEDE,
Peri mnemes kai anamneseos), Aristóteles nota que a memória, dado seu caráter
de arquivo de imagens, pertence à mesma parte da alma que a imaginação -
“É óbvio, então, que a memória pertence àquela parte da alma à qual pertence
à imaginação” {De memória et reminiscentia, 450 a 24): ela é um conjunto de
imagens mentais das impressões sensuais, mas com um adicional temporal;

6
A VIRADA TESTEMUNHAI E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

trata-se de um conjunto de imagens de coisas do passado (sendo que esse dado


temporal que Aristóteles destacou nessas imagens só veio a ser realmente levado
a sério na tradição com a obra de Santo Agostinho). Graças a essa relação da
memória com as impressões sensíveis, ela não é exclusividade dos seres humanos
(em contraste com a recordação ou a reminiscência que lhe seria exclusiva).
Aristóteles compara a imagem mental gerada pela impressão sensual a um
retrato pintado que permanece na memória: “pois”, ele escreveu, “o estímulo
produzido imprime uma espécie de semelhança com o percebido, exatamente
como nós selamos com sinetes dos anéis” (De memória et reminiscentia,
450 a 30-32). Ele concebe, portanto, a formação da imagem mental como o
movimento de impressão de uma imagem na cera por um anel que sela. Como
na famosa descrição do Teeteto de Platão, para Aristóteles também cada pessoa
possuiría uma determinada consistência dessa superfície mnemônica, que é
aproximada da noção de tábua ou bloco de cera, metáfora escriturai mnemônica
por excelência na Antiguidade, o que determina a sua capacidade de reter mais
ou menos informações. Recordemos das palavras de Aristóteles:

em certas pessoas, devido à incapacidade ou idade, a memória- não se dá mesmo


sob um forte estímulo, como se o estímulo ou selo fosse aplicado à água que corre;
enquanto em outras, devido ao desgaste, como em paredes antigas de prédios, ou
à dureza da superfície de apoio, a impressão não penetra. Daí os muito novos e os
muito velhos terem memória fraca; eles estão no estado de fluxo: o jovem, devido
ao seu crescimento; o idoso, devido à sua decadência. Pelo mesmo motivo, nem o
muito veloz nem o muito vagaroso parecem ter boa memória; os primeiros são mais
úmidos do que deveríam ser, e os últimos, mais duros; nos primeiros, a imagem
não permanece na alma, e, nos últimos, ela não deixa nenhuma impressão. (De
memória et reminiscentia, 450b 1-11)

Platão e a memória como uma “tábua de cera”

No Teeteto, na pessoa de Sócrates, ao discutir quais seriam as possíveis


origens do erro e do engano, Platão descreve o nosso aparato de conhecimento
como estando baseado na memória. Ao percebermos, confrontamos o percebido
cqm nossas imagens mnemônicas. A base material da memória, uma espécie
de “bloco de cera”, é apresentada como um presente, doron, de Mnemosine, a

37
“DA ARS MEMORIAE AOS ESTUDOS DE MEMÓRIA PÓS-COLONIAIS”

mítica mãe das Musas que já visitamos aqui. Estamos migrando da memória
mágico-cósmica para uma descrição das faculdades intelectuais. Platão
estabelece a tópica da relação entre a inscrição e a memória ao falar de um

cunho de cera; numas pessoas, maior; noutras, menor; nalguns casos, de cera
limpa; noutros, com impurezas, ou mais dura ou mais úmida, conforme o tipo,
senão mesmo de boa consistência, como é preciso que seja. [...] Diremos, pois, que
se trata de uma dádiva (doronj de Mnemosine, mãe das Musas, e que sempre que
queremos nos lembrar de algo visto ou ouvido, ou mesmo pensado, calcamos a
cera mole sobre nossas sensações ou pensamentos e nela os gravamos em relevo,
como se dá com os sinetes dos anéis. Do que fica impresso temos a lembrança
e o conhecimento enquanto persiste a imagem; o que se apaga ou não pôde ser
impresso, esquecemos e ignoramos, (ipic-d; cf. 1940-1953)

Mais adiante voltaremos a essa passagem platônica que estabelece essa


ideia de uma memória interna como "dádiva” de Mnemosine. Se Platão,
nessa passagem, descreve procedimentos que encadeiam memória como
armazenamento e o ato de recordar, Aristóteles distingue de modo claro entre
memória e reminiscência, como o nome do seu texto indica. A reminiscência
é definida como a recuperação intencional de um conhecimento ou de uma
sensação. Ela é marcada por dois princípios: o de associação e o de ordem. A
associação pode dar-se via similaridade, inversão ou por contiguidade. Por
outro lado, a ordem da recordação pode seguir a ordem da apreensão dos
objetos: é fácil de nos recordarmos do que segue uma ordem, como ocorre na
matemática. Aristóteles menciona também a utilização de locais para recordar
das coisas, ou ainda fala em possíveis séries, como na sucessão de letras abc
d e f g h, sendo que ele destaca que também são possíveis erros no processo de
recordação assim ordenado:

se uma pessoa não encontrar o que busca em A, ela o fará em E; pois a partir desse
ponto pode-se ir em qualquer direção, ou seja, tanto para D como para F. Se uma
pessoa não quer uma dessas, ela recordar-se-á passando para F, se ela quiser G ou
H. Caso contrário, ela passa para D. Sempre tem-se sucesso desse modo. O motivo
pelo qual nós nos recordamos e algumas vezes não, apesar de iniciar do mesmo
ponto, é que é possível prosseguir do mesmo ponto de partida para mais de um
destino; por exemplo, de C podemos ir direto para F ou apenas até D. (De memória
et reminiscentia 452a 15 ss.)2-'

38
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Em Aristóteles, portanto, encontramos tanto uma concepção da memória


como escritura na nossa placa mnemônica das impressões do mundo, quanto
uma forte concepção de reminiscência ou recordação, como um procedimento
de leitura - e, como é evidente, a comparação com as letras do alfabeto não
é de modo algum casual aqui. O elemento ativo da memória é comparado ao
modo de ação de um pesquisador ou viajante que busca a inscrição mnemônica
pelos labirintos de nossa memória-arquivo. A noção de associação também
é essencial no nosso contexto: a estruturação da recordação - e, portanto,
do discurso de um modo geral, que sempre está recuperando informações
arquivadas - funciona a partir de um princípio de leitura de semelhanças que
não deixa de lembrar a definição aristotélica, da sua Poética, do homem como
um “ser mimético”. Com a entronização de um modelo escritural/espacial da
memória, podemos perceber também, lembrando do que vimos acima com
Detienne sobre a memória na era homérica, que na Grécia antiga vislumbram-se
duas metáforas de memória e de seu funcionamento na recordação: de um lado,
o campo mnemônico é pensado de um modo “interno” regido pela inspiração
musal, com a oralidade e seus esquemas rítmicos e com a sua performatividade
que “cria” o mundo ao reencená-lo; de outro, temos uma memória que,
apesar de ainda ser pensada como uma faculdade interna, tende a uma certa
“exterioridade”, já que é pensada como técnica de inscrição, que lança mão da
metáfora da escrita e da tabuinha de memória. Estamos a um passo de pensar
a escrita como um “suplemento de memória”.

SlMÔNIDES DE CEOS E AS ORIGENS


MÍTICAS DA ARTE DA MEMÓRIA

Como Yates recordou em sua obra clássica sobre The art of memory,24 um
marco nos estudos da memória contemporâneos, para a escolástica, Aristóteles
teria dado a sua aprovação para a mnemotécnica com o tratado De memória
et reminiscentia. É claro que isso está longe de ser evidente. A escolástica e a
mnemotécnica pós-aristotélica identificaram nessa centralidade das imagens
da teoria do conhecimento de Aristóteles um ponto em comum com as suas
próprias doutrinas. Por outro lado, se a memória, além de seu aspecto espacial
e dinâmico, também é vista como um constructo no qual imagens e conceitos se

39
'da ARS MEMORIAE AOS ESTUDOS DE MEMÓRIA PÓS-COLONIAIS’

entrelaçam, então tanto estamos, de fato, em um campo muito propício à “arte


da memória” (ou, mais propriamente, às técnicas de fixação na memória e de
recordação), como já está indicado que essa reflexão sobre a memória passa por
uma crença na possibilidade de tradução recíproca entre palavras e imagens.
Vejamos esse aspecto mais de perto na tradição antiga da arte da memória.
A arte da memória tem como a sua figura originária (histórica e mítica)
Simônides de Ceos (556-468 a.C.). Três anedotas que cercam a figura desse
poeta mostram em que medida a arte da memória deve muito ao culto da
memória no sentido do louvor aos grandes feitos (e aqui deveriamos pensar
evidentemente no conceito de glória), ao culto dos mortos (lembremos da noção
de piedade) e, finalmente e paradoxalmente, ao desejo de poder selecionar o que
queremos lembrar e, portanto, também de poder determinar o que queremos
esquecer. A primeira dessas anedotas é a mais conhecida e constitui um lugar-
-comum~5 em qualquer estudo sobre a arte da memória. Refiro-me à história
do banquete que foi oferecido em homenagem ao pugilista Skopas. Esse atleta
orgulhoso havia encomendado a Simônides um poema em homenagem a
sua vitória. Posteriormente, durante uma recepção, Simônides - que fizera o
encômio em homenagem a esse atleta no qual louvara também Castor e Pólux
- foi chamado à porta por duas pessoas que queriam falar com ele. Ao chegar
à soleira do salão, Simônides não encontrou ninguém; mas logo compreendeu
a mensagem, bem como quem era a misteriosa dupla: às suas costas, o salão
desabou matando todos os convivas. Não havia dúvida, os dióscuros Castor e
Pólux recompensaram Simônides pelo encômio preservando a sua própria vida.
Skopas havia feito o pagamento do poeta com apenas a metade do combinado,
indicando que o restante deveria ser pago pelos deuses gêmeos. Eles o fizeram
em grande estilo! O teto da sala de recepções caíra com uma violência tal
sobre os convivas, que eles ficaram totalmente desfigurados e irreconhecíveis.
Simônides, o único sobrevivente, pôde nomear cada um dos cadáveres graças à
sua arte da memória. Na medida em que ele se recordava exatamente do local
(locus) que cada conviva ocupara, todos puderam ser identificados e receber
as devidas honras fúnebres?6
A segunda anedota sintomaticamente também trata de um enterro e da
sobrevivência do pai da mnemotécnica: durante uma de suas viagens, ele
teria encontrado um cadáver e imediatamente providenciado o seu enterro.
Na noite seguinte a esse evento, o espírito do cadáver teria surgido em um

40
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

sonho de Simônides para preveni-lo de que o barco no qual ele deveria viajar
no dia seguinte iria afundar. Simônides desistiu de continuar a sua viagem e,
ao fim, a embarcação de fato naufragou, matando todos os seus passageiros.27
Se, nessa anedota, os mortos/o passado já assumem uma forma espectral (e
o seu culto, uma maneira de apaziguá-los), na última historieta que gostaria
de recordar aqui, esse espectro assume a sua face assustadora e não mais
salvacionista. Cícero narra a anedota que envolve o grande general e político
ateniense Temístocles (circa 524-460 a.C.), responsável pela derrota dos persas
na Batalha de Salamina e, portanto, a quem Atenas devia o seu poderio sobre
o Mediterrâneo. Já em idade madura, em 470 a.C., devido a intrigas, ele foi
submetido a um tribunal que o condenou ao ostracismo. Durante o seu exílio,
em uma ocasião Simônides teria oferecido ensinar-lhe a sua arte da memória.
Temístocles - que era conhecido por sua memória prodigiosa - recusou a
oferta dizendo que ele necessitava de uma outra arte: a arte do esquecimento.
O general sofria de “memória demais” e não carecia de uma ars memoriae.-6
Apesar de sabermos que não pode existir, rigorosamente falando, uma ars
oblivionis,29 não é menos verdade que a Antiguidade também nos legou muitos
exemplos, belamente analisados por Harald Weinrich, de como o esquecimento
pode ser atingido: Ulisses encantado por Circe e Calipso, a sua tripulação
inebriada na ilha dos lotófagos, Ovídio tratando do Amor Lethaeus etc. Nessa
terceira anedota aparece a imagem de um passado que não é mero conjunto
de fatos que podem ser guardados, mas que constituem ao mesmo tempo uma
peça fundamental na nossa vida e na nossa identidade. Com relação a esse
passado, fica mais evidente em que medida a memória não é apenas um bem,
mas também uma força que encerra ainda uma carga espectral que gostaríamos
muitas vezes de esquecer - ou enterrar, como fazemos com nossos mortos. Esse
passado que não quer passar também é um íntimo conhecido nosso, moradores
da era dos extremos.
O impressionante é que essas três anedotas em torno de Simônides tenham
sido repetidas desde a Antiguidade até recentemente sem levar em conta o
elemento terrorífico envolvido nelas. Lendo-as na contemporaneidade, é como
se, para falar de memória, tivéssemos que lembrar necessariamente da morte (e
não de qualquer morte, mas sim de uma morte catastrófica), de nossa relação
respeitosa para com nossos mortos (o que afirma 0 ritual de enterro como um
núcleo antropológico de toda memória cultural) e da nossa ambiguidade com

41
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’

relação ao desejo de lembrar/esquecer o passado - o que faz pensar também


que não existe uma relação automática e mecânica com o que queremos nos
recordar. A memória não é um “músculo” que pode ser desenvolvido ad libitum
- como a memória como ars o sugere mas sim envolve as nossas emoções
e, desse modo, torna-se essencial destacar a memória como força vital (vis). A
primeira e a segunda anedotas são marcadas por umbrais, locais de passagem:
na primeira, Simônides encontra-se em um umbral quando é salvo da morte.
Ele, em seguida, assume a figura de comunicação entre o reino dos mortos e o
dos vivos. O artista da memória surge, assim, como um artista dos umbrais, das
passagens - locais “assombrados” que fascinaram Walter Benjamim Para ele, o
“despertar” como cânone da revolução copernicana do pensamento histórico
que veremos mais adiante - marcado por um abandono da teleologia linear,
uma crítica da ideia de história universal e um ponto de vista dos vencidos
- indica que o trabalho de rememoraçâo se dá na soleira entre o sonho e a
vigília. Também na segunda anedota, Simônides lê o futuro a partir de seu
despertar de um sonho. O local do umbral e o do despertar surgem como
espaços encantados, encruzilhadas onde a história é explodida pelo encontro
com a memória recalcada. Nas notas às suas teses Sobre o conceito de história,
ele escreveu ainda, pensando em Proust e em sua Recherche: “O agora da
cognoscibilidade é o instante do despertar”.30 Nas últimas décadas, a “virada
testemunhai” - que também é uma “virada mnemônica” - ensinou-nos a
valorizar esses aspectos, digamos, mais dramáticos e políticos que envolvem
essas três anedotas fundacionais da reflexão ocidental sobre a memória.

Excurso em Marte 2084

Impossível deixar de lembrar um outro encontro entre as anedotas em torno


de Simônides e a nossa atualidade. Refiro-me agora não a Walter Benjamin,
mas a Arnold Schwarzenegger. No papel de Doug Quaid, em O vingador do
futuro (1990), de Paul Verhoeven, Schwarzenegger chega a um bairro pobre na
Marte de 2084, onde moram as vítimas de um bárbaro sistema de colonização
que racionaliza o oxigênio para dominar. (Não comentarei o paralelo com a
questão biopolítica da gestão de oxigênio como necropolítica em 2021 no Brasil
de Bolsonaro sob a pandemia de covid-19 e com o grito sufocado de George

42
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Floyd sendo esmagado por um policial no ano anterior: “Não posso respirar”.31)
Em Marte, Quaid é assediado por prostitutas e por um vidente que pergunta
se ele gostaria de saber sobre o seu futuro. Em uma quase reversão da resposta
a Simônides dada pelo general grego Temístocles, que gostaria de aprender
a esquecer, Doug Quaid responde que gostaria de aprender não sobre o seu
futuro, mas sim sobre o seu passado: Vidente: “Ei, você quer saber o futuro?”.
Quaid: “E que tal o passado?”.32 Quaid sofre de “memória de menos”, e não de
“memória de mais” como o general grego. Na era das próteses de memória, nosso
pânico deriva de nossos acessos ou não a nossos dispositivos exossomáticos de
memória e ao modo como eles funcionam ou não. Lembremos que o título do
filme de Verhoeven em inglês é Total Recall, em uma alusão tanto ao desejo de
Quaid de se recordar como à luta revolucionária na forma de uma redenção
que ele realiza em Marte, libertando os colonizados e eliminando boa parte
dos malvados colonizadores. Sendo que toda essa ação revolucionária e “de
recordação” se dá sob o signo do “sonho” (no fim da luta, Doug fala: “E se tudo
isso for um sonho?”), já que, até o final do filme, não sabemos se toda a aventura
em Marte acontece na ordem da vigília ou se tudo não passa de uma pane na
máquina que deveria realizar um implante de memória pacifieadora em Quaid.
Dando mais um passo nessa leitura, pergunto-me ainda: não seria o próprio
filme de Verhoeven um implante de memória “pacifieadora” na platéia? Mas
prefiro não cair no discurso da “indústria cultural” e ler esse filme como uma
interessante manifestação de nossos atuais dilemas em torno da memória, suas
próteses e governos distópicos.

A MNEMOTÉCNICA

Mas voltemos à Terra. A arte da memória foi descrita na Antiguidade por


vários teóricos da retórica, sendo que as descrições que chegaram até nós são
as de Cícero, Quintiliano e, sobretudo, a do autor do tratado Ad Herennium.33
Cícero vê a memória como uma das cinco partes da retórica (inventio, dispositio,
elocutio, memória, pronunciado):3* “A memória é a firme compreensão mental
da matéria e das palavras”.35 A arte da memória tanto servia como uma técnica
para decorar longos discursos quanto deveria desenvolver a capacidade de
memorização do orador (essencial, por exemplo, na cena do tribunal, quando

43
‘da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”

todos os argumentos do oponente deveríam ser cuidadosamente registrados,


bem como o discurso a ser apresentado teria que estar “decorado”). Na
Antiguidade, vale lembrar, não só não existia a impressão de livros, como
tampouco havia papel tal como nós o conhecemos hoje; daí a importância da
memória para o orador.
Também em Cícero é patente o valor atribuído à visão dentro da técnica
de memorização. O princípio central da mnemotécnica antiga consiste na
memorização dos fatos através da sua redução a certas imagens que deveríam
permitir a posterior tradução em palavras: a realidade (res) e o discurso final
(verba) deveríam ser mediatizados pelas imagens (os imagines agentes, agentes
imagéticos). Essas imagens, por sua vez, deveríam ser estocadas na memória
em certos locais ou lugares (loci) imaginários ou inspirados em arquiteturas
de prédios reais. O importante era que o retor tivesse domínio sobre esses
espaços da memória que deveríam ser percorridos no ato de sua fala, quando
cada imagem seria retraduzida em uma palavra ou em uma ideia.36 No texto Ad
Herennium, após o autor anônimo recordar a divisão entre memória natural
(naturalis) e artificial (artificiosa), e que, portanto, toda arte é um complemento
de um dom natural - no caso, o dom da memória -, lemos:

A memória artificial constitui-se de lugares e imagens (ex locis et imaginibus).


Chamo lugar àquilo que foi encerrado pelo homem ou pela natureza num espaço
pequeno inteira e distintamente, de modo que possamos facilmente percebê-lo
e abarcá-lo com a memória natural: como uma casa, um vão entre colunas, um
canto, um arco e coisas semelhantes. Já as imagens são determinadas formas,
marcas (notae) ou simulacros (simulacro) das coisas que desejamos lembrar
(meminisse). Por exemplo, se queremos guardar na memória um cavalo, um leão
ou uma águia, será preciso dispor suas imagens em lugares determinados.37

A explicação subsequente do mecanismo da mnemotécnica é importante


no nosso contexto, pois ela retoma a comparação com a escritura que nós já
encontramos na teoria da memória e da reminiscência de Aristóteles e pode
ser encarada como um poderoso modelo de inscrição mnemônica até hoje.

Assim como quem conhece as letras do alfabeto é capaz de escrever o que lhe é
ditado e ler em voz alta o que escreveu, quem tiver aprendido a mnemotécnica
será capaz de colocar nos lugares o que ouviu e, recorrendo a eles, pronunciar de

44
A VIRADA TESTEMUNHAI E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

memória. Os lugares assemelham-se muito a tábuas de cera ou rolos de papiro; a


imagens, a letras; à disposição e à colocação das imagens, à escrita; à pronunciação,
à leitura. Devemos, então, se desejarmos lembrar muitas coisas, preparar muitos
lugares, para neles colocar muitas imagens?8

Esses lugares e a sua sucessão devem ser de tal modo incorporados na nossa
mente, que se tornem tão fixos quanto um suporte de escrita que pode sempre
receber novas letras que substituem as anteriores por nós apagadas. Como se
fosse um museógrafo moderno, toda uma cenografia da memória é pensada
pelo autor anônimo: esses lugares devem ser bem demarcados uns dos outros,
ter uma dimensão mediana, ser iluminados de modo correto. No que tange à
escolha das imagens, ela deve proceder seguindo o princípio da semelhança (que
caracteriza a recordação) tanto com as coisas a serem lembradas (um princípio
icônico quanto à imagem), quanto com as palavras (iconicidade mediatizada
pela semelhança sonora dos nomes).39 Vale a pena lermos o exemplo dado pelo
autor do tratado Ad Herennium que “estranhamente” volta a tematizar morte
e assassinato e a cena jurídica para tratar de memória:

Com frequência abarcamos a memória de um assunto inteiro com apenas uma


marca, em uma só imagem. Por exemplo: o acusador diz que um homem foi
envenenado pelo réu, argumenta que o motivo do crime foi uma herança e acrescenta
que houve muitas testemunhas e cúmplices (testes et conscious). Se quisermos
lembrar disso prontamente, para fazer a defesa com desenvoltura, colocaremos,
no primeiro lugar, uma imagem referente ao caso inteiro: mostraremos a própria
vítima, agonizante, deitada no leito. Isso se soubermos quais são suas feições; se
não a conhecermos, tomaremos outro como doente, mas não de posição inferior,
para que possa vir à memória prontamente. E colocaremos o réu junto ao leito,
segurando um copo com a mão direita, tábuas de cera com a esquerda e testículos
de carneiro (testículos arietinos) com o dedo anular. Assim conseguiremos lembrar
das testemunhas (testium), da herança e da morte por envenenamento.40

Observamos que partes da imagem construída representam corpos


semelhantes, como o próprio cadáver e o réu; já no caso dos testículos de
carneiro, eles servem para lembrar, via proximidade do som da palavra
testículos, a imagem das testemunhas (testes) que presenciaram o crime. O
autor ainda caracteriza longamente os tipos de imagem que devemos escolher:

45
‘da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’

seguindo uma lei que aprendemos com a natureza, devemos optar por imagens
chocantes, que fogem à norma. Ele afirma, por exemplo, que nos recordamos
de um eclipse do Sol, mas o percurso cotidiano do Sol não é excepcional e
não deixa marcas na nossa memória. Coisas extremamente feias ou belas nos
marcam, ele afirma destacando que faremos essas imagens que podem ficar
muito tempo na memória

se ornarmos algumas com coroas ou vestes de púrpura [...]; se de algum modo


as desfiguramos, manchando-as de sangue, cobrindo-as de lama ou borrando-as
com tinta vermelha, para que sua forma seja mais notável; ou ainda se atribuirmos
às imagens alguns elementos ridículos, pois também isso nos fará lembrar com
mais facilidade.4'

Estamos diante não só de um tratado de memória, mas também de sua


aplicabilidade à disciplina moderna da publicidade! Um exemplo gritante são
as imagens do famoso fotógrafo Olivero Toscani, da grife italiana Benetton,
que nos anos 1980/1990 encheu o mundo da publicidade com suas imagens
de guerra, de convalescentes de Aids, de condenados à morte, de refugiados
de guerra e da fome. Tudo isso em nome das coloridas roupas da marca.
Também é interessante notar como esse autor anônimo, em sua teoria da
memória, foge e vai além da estética do belo, adentrando um culto do trágico
e do sublime.

Arte da memória na Idade Média:


FANTASIA E FIGURABILIDADE

O trabalho pioneiro de Francês Yates, uma discípula da escola de Aby


Warburg, abriu muitas portas nos estudos da memória. A medievalista norte-
-americana Mary Carruthers42 foi uma das que deram continuidade a esses
trabalhos em uma vertente mais filológico-histórica do que culturalista, como
ocorre com o casal Aleida Assmann e Jan Assmann ou com Harald Weinrich,
Yosef Yerushalmi, Jacques Derrida, alguns dos autores mais constantemente
citados nos estudos de memória cultural.43 Carruthers vai enfatizar o momento
de “invenção” da arte da memória. Se, como vimos, Cicero (entre outros autores
de retórica da Antiguidade) destacou as cinco partes da composição retórica,

46
A VIRADA TESTEMUNHAI E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

inventio, dispositio, elocutio, memória, pronunciatio, Carruthers, por sua


vez, mostra que a memória não deve ser vista como um momento autônomo
com relação à invenção. Ela procurou mostrar que a memória era vista no
medievo como uma “arte composicional”, uma verdadeira arte de pensar,
que não pode ser vista sem seus momentos de imaginação ê criatividade. Ela
propõe também que aquele que quer estudar a memória na Idade Média deve
diferenciar a tradição retórica da filosófica. A primeira enfatiza o elemento
locacional, como vimos, diferente da filosófica, que introduz o tempo na
equação. Um autor como Santo Agostinho em suas Confissões significou o
encontro dessas duas tradições. Essa diferenciação acentuada por Carruthers
é fundamental. Afinal, como vimos, é surpreendente para nós, modernos,
vermos as descrições das técnicas mnemônicas. Elas parecem esvaziadas do
tempo (quando se mostram como artes de associar locais e imagens), ou como
desprovidas de paixão (como nas descrições da anedota de Simônides como
pai da arte da memória ao sobreviver o desabamento da casa de Skopas). Mas
ela acentua o predomínio da vertente retórica e, dentro dela, destaca que há
mais dinâmica e emoção na arte da memória do que se poderia supor a partir
dos estudos de Yates.
Assim, ela destaca que o conceito áephantasiai era reservado “para ficções
carregadas de emoção e que atuam poderosamente na memória e na mente”.4'’
As “imagens da memória” seriam marcadas tanto pela semelhança como por
uma intentio, ou seja, uma inclinação, uma tonalidade emotiva. Para pensar essa
intentio, na tradição estoica deve-se destacar o tratado anônimo Do sublime, o
tratado de retórica mais carregado de emoções e distante do tecnicismo.
Esse tratado foi traduzido por Boileau em 1674 e teve uma repercussão
enorme no século seguinte, sendo peça fundamental na gênese das teorias
estéticas e poéticas do romantismo. O tratado descreve o estilo sublime de
modo totalmente original, associando ao efeito sublime a capacidade de abalar
o espectador (uma verdadeira estética da recepção, portanto). Do ponto de
vista da teoria da memória, vale destacar: esse efeito sublime em si torna-se
uma memória marcante; para atingir esse efeito sublime, o autor necessita
mobilizar nossos afetos por meio de imagens (como pretendia o autor anônimo
do tratado Ad Herenium, como acabamos de ver). Para o autor, também de
nome desconhecido para nós, do tratado sobre o sublime, o efeito sublime
teria cinco fontes, duas naturais: pensamentos grandes/grandeza da alma e

47
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”

emoção forte e arrebatadora; depois viriam qualidades acessíveis através do


estudo: as figuras de pensamento e expressão, uma linguagem nobre e dicção
adornada; e, por fim, as estruturas da sentença e as palavras dignas. Quando o
autor anônimo trata da segunda fonte do sublime, as emoçõesfortes, ele reserva
um capítulo para as imagens da fantasia (phantasiaí) (Do sublime XV). Esse
conceito é de difícil tradução. O tradutor alemão desse tratado optou por
Vergengenwãrtigung, presentificação, visualização;45 já a tradução brasileira
de Filomena Hjrata optou por “aparição”.46 Lemos no tratado:

Para produzir a majestade, a grandeza de expressão e a veemência, meu jovem


amigo, é preciso acrescentar também as aparições [...]. Por natureza, em todos
os casos desse tipo, ouvimos sempre o mais forte; donde somos desviados da
demonstração em direção ao choque da aparição (phantasian).-'’7

De modo original, Carruthers destaca que a própria anedota de Skopas e


Simônides deve ser vista como uma máquina de produzir memória e ilustra
a sua tese do poder criativo e do caráter dinâmico dos locais de memória. A
história é evidentemente inverossímil como outras dessas anedotas, mas, ela
acrescenta,

essa qualidade de serem absurdas é exatamente o que as torna memoráveis, e


portanto valiosas para culturas em que as pessoas dependiam de sua memória para
conservar tudo que sabiam, culturas que também reconheciam o papel essencial
da memória na cognição humana.

E ela arremata: “Outra fábula de invenção dessa mesma cultura é aquela


que faz das musas filhas de Mnemosine, e que, assim, ‘gera’ por um processo
similar as sete artes liberais”.48 Vários procedimentos técnicos eram codificados
com base em anedotas assim, incluindo aí as técnicas da alquimia medieval. A
autora descreve, então, o elemento dinâmico da concepção tópica da memória
no medievo afirmando de modo sutil que as

redes locacionais - ainda mais finas que os filamentos de uma teia de aranha - são
ricos dispositivos do pensar, construindo padrões ou “cenas” dentro dos quais as
“coisas” são presas e para dentro das quais são “reunidas” e re-unidas, de maneiras
inumeráveis, pelas mentes humanas individuais.49

48
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

A res (realidade) como criação torna-se, assim, um dispositivo de construção


de memória, pois ela tem uma “capacidade de ‘localizar’ inventários mentais
e sociais e de encaixar-se neles, inventários que mais produzem mapas para o
pensar e o responder do que se parecem com bancos de dados".50 É importante
destacar que essas “coisas” não valem enquanto memória dê algo, mas como
bases comuns, lugares de memória dinâmicos. A mémoria rerum (memória do
mundo, sensível) é ilustrada por Carruthers, de modo original, com o Vietnam
Veterans Memorial Wall, de Maya Lin, de 1982. Discuti esse tipo de arte da
memória em outro texto,5* mas destaco aqui que Carruthers utiliza essa obra
(que se tornou paradigmática das novas formas de recordar a guerra no final
do século passado) para exemplificar o que é a memória das coisas, memória
rerum, em oposição àquilo que é recordado pelas palavras, ad verba. Maya Lin
realizou seu memorial partindo de uma proposta extremamente econômica nas
formas: ela fez uma enorme “lista” com os nomes dos soldados caídos na guerra.
O que parecería uma citação de um modelo clássico, a listagem dos nomes dos
mortos, torna-se uma proposta original, já que essa lista foi feita não em ordem
alfabética, mas segundo a ordem cronológica das mortes, o que transforma
a pedra de inscrição dos nomes em uma verdadeira topografia, ou geografia
da guerra. Os familiares visitando esse espaço calcam folhas em branco de
papel sobre os 75 metros de mármore negro da parede do memorial para,
hachurando, copiar o nome do soldado caído junto com os demais que caíram
com ele. O memorial tem um caráter não de pedestal, que se eleva sobre a terra,
comemorando heróis, mas, antes, realiza um percurso “para baixo”, literalmente
“depressivo”, em uma depressão, uma vez que o número de soldados mortos
no início e no final da guerra é bem menor do que o número de mortos no
auge do conflito. Andamos acompanhando a cronologia dos mortos, descendo
uma depressão cavada no parque Constitution Gardens como se adentrássemos
em uma ferida aberta. Afinal, nessa guerra colonial não há nada de heroico
a ser comemorado. Maya Lin homenageou os mortos, e não eventuais “atos
heroicos” (comemorados, no entanto, na escultura vizinha ao Memorial Wall,
ou seja, na obra de Frederick Hart Three soldiers statue, realizada após a pressão
de veteranos insatisfeitos com a estética funerária de Lin). Original também
é que Carruthers, ao tomar como exemplo esse verdadeiro ícone dos atuais
estudos de memória, contrapõe-se explicitamente à noção contemporânea de
“memória cultural” (conceito central para o casal Assmann, por exemplo) e

49
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”

“coletiva” (que deriva dos estudos de Maurice Halbwachs, como já lembrei


aqui), pois, para ela, o conceito medieval de memória rerum proporcionaria
“uma descrição mais satisfatória e complexa do fenômeno social da narrativa
cívica”.52 Não deixa de ser uma posição digna de atenção, ainda que não me
pareça suficientemente robusta para superar os conceitos de “memória coletiva”
e de “memória cultural”. Na verdade, considero que a leitura de Carruthers do
conceito de memória rerum como parte de um mecanismo de engendramento
da memória contribui com uma noção importante que pode ser incorporada
aos estudos da memória cultural e não se opõe a eles.
Retornando ao interessante tema das “redes locacionais” e seus
funcionamentos como máquinas de memória e recordação, é importante
lembrar que essas passagens e transposições ocorrem de modo semelhante à
exploração dos recursos figurais da linguagem. Como recordou Erich Auerbach
em seu belo ensaio Figura, de 1938, no qual desenhou de modo pioneiro essa
noção basilar da teoria da escritura/leitura retórica, como uma máquina de
reescritura: “Figura, do mesmo tronco que fingere, figulus, fictor e ejfigies,
significa, segundo a sua origem, ‘imagem plástica’ [plastisches Gebilde]”.53 Essa
profunda relação entre a figurabilidade da linguagem e a (nossa) capacidade
de simular, por um lado, e a fatura de imagens, por outro, é essencial, pois,
ao notar os termos gregos para forma, esse mesmo autor recorda que morphé,
eidos, skhêma, typos e plásis entram em jogo.54 As figuras, por um lado, são
pensadas enquanto protoformas da linguagem: elas fornecem um tipo, um
selo impresso que guarda a memória dessas imagens sem as quais não existe
o pensamento. Por outro lado, o procedimento das imagens é o dos saltos, da
transposição, meta-phérein (metáfora), via analogia (das formas). Esses saltos
e essas transposições podem dar-se também como inversões (como no caso
da ironia, eironeía, dissimulação), mas o que importa é o seu princípio ativo,
a capacidade de se deslocar de um campo para outro, de percorrer de modo
“soberano” a linguagem como construção constante. Afigura, para Auerbach,
cria a interdependência entre “dois” (ou mais) eventos via uma trama de
similaridades. No caso exemplar do Novo Testamento, o Antigo foi como que
reescrito via transformação de personagens como Adão e Moisés em aparições
avant la lettre, ou seja, em “figuras”, de Cristo. Auerbach mostrou como os
Padres da Igreja construíram o cristianismo lendo figuralmente (projetando
no passado) passagens e eventos bíblicos, como no caso da construção de


A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

“profecias” da vinda de Cristo, dando, assim, legitimidade à vinda do Redentor.


Nessa modalidade de leitura, a temporalidade, a extensão temporal revela-se
como aglomerado, hipertexto, como uma espécie de acúmulo de camadas
geológicas que permitem - com mínimos movimentos - saltos de um século a
outro, ou até de um milênio a outro.
Entendo que, inspirados nesse estudo de Auerbach e em Carruthers, que
vê no memorial de Lin um modelo de memória rerum (memória das coisas),
podemos ver no gênero ficção científica um exemplo de figurabilidade no qual
figuras da técnica (e de sua determinação social) são projetadas em um futuro
imaginário, em um sentido inverso ao da fundação do novo pelo antigo que
Auerbach viu na relação entre os Testamentos. Em vez de legitimarmos nosso
presente, no entanto, com a ficção científica podemos pensar criticamente nossa
relação com a natureza e com o trabalho, enfim, nossa relação com todo o campo
da técnica. O caso do Total Recall acima mencionado é patente nesse sentido.55
Configurando o “futuro” nas ficções científicas fazemos uma figura crítica de
nosso presente. Como veremos mais adiante, toda linguagem e toda cultura
tendem para a tipificação, vale dizer, para o lugar-comum, quando os “locais
de memória” se tornam um patrimônio comum. As artes especializaram-se
em criar “obras-primas” que rompiam com lugares-comuns para estabelecer
novos tipos que, por sua vez, viriam a ser superados. A cultura como um
todo cristaliza-se em lugares-comuns que se tornam peças ideológicas, como
ocorre de modo exemplar na historiografia com sua proverbial tendência para
a história dos vencedores. Tanto o historiador crítico como os novos artistas da
memória nascidos nas últimas décadas (de certo modo, os protagonistas destes
ensaios) vão resistir e desconstruir esses tipos/lugares-comuns da história. Um
dos efeitos mais bem-vindos dos estudos culturais da memória é ter permitido
lançar uma luz crítica sobre as máquinas de guerra da memória, deixando
claro o funcionamento dos lugares-comuns/tipos e da resistência contra eles.
Também Carruthers recorda aquela transposição do Antigo para o Novo
Testamento estudada por Auerbach em que certos locais (que ela vai pensar
a partir de Jerusalém e da Bíblia) são contíguos e permitem o salto de um
registro para o outro. Ela recorda que as peregrinações a Jerusalém e os locais
de procissão funcionam também como enredamento de locais de memória.
N(esse capítulo de seu trabalho, ela reconhece a contribuição de Maurice
Halbwachs, sobretudo de seu estudo La topographie légendaire des évangiles

51
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”

en terre sainte,56 sobre a construção dos lugares santos cristãos no século IV.57
Ela afirma que a

peregrinação se havia desenvolvido em um roteiro inteiramente “colorido” no


sentido retórico do termo, no qual os eventos principais do Antigo e do Novo
Testamento são trazidos à recordação pelos sítios contíguos, topográficos e
cronológicos, nos quais se dizia que haviam ocorrido. [...] A narrativa da Bíblia
como um todo era concebida como um “caminho” entre “lugares” - em resumo,
como um mapa?8

Um mapa mnemônico, duplo, que traduzia a temporalidade do Antigo no


Novo Testamento e daquelas temporalidades no agora da peregrinação. Assim,
cria-se a comunidade, ligam-se os indivíduos, estabelecem-se, eu acrescento,
novos poderes, que, desse modo, são legitimados. Nada de poder sem passado,
nada de poder sem arquivos. Os locais da memória são tais arquivos e esteios
do poder. Ao colecionar do pensamento mnemônico soma-se o agrupar
da comunidade do rebanho de seguidores da Igreja. O texto guia os passos
pelos locais: a narrativa não apenas acolhe o tempo em si, mas faz pontes
entre diferentes temporalidades. Mais adiante veremos como esses mapas da
memória podem assumir um papel resistente e de crítica, rompendo com as
“excursões” fechadas e monótonas e abrindo novos horizontes.

OS PALÁCIOS DA MEMÓRIA DE SANTO AGOSTINHO

E é a um dos Padres da Igreja, Santo Agostinho, que devemos algumas


das mais belas passagens que foram compostas no medievo sobre a memória.
Esse professor de retórica e conhecedor da mnemotécnica transformou-a nos
termos de uma teologia lançando-a em um outro universo, bem distinto do da
Antiguidade. Como também acontecerá com Locke, para Agostinho não existe
uma oposição entre recordar e esquecer, como existia até então na doutrina
retórica.59 Nas suas palavras insubstituíveis:

Chego aos campos e vastos palácios da memória onde estão tesouros de inumeráveis
imagens trazidas por percepções de toda espécie. Aí está também escondido tudo
o que pensamos [...] os objetos que os sentidos atingiram. Enfim, jaz aí tudo o que

5-
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER.HISTÓRICO

se lhes entregou e depôs, se é que o esquecimento ainda não absorveu e sepultou


(quae oblitus

Como observa Carruthers, para Agostinho, “ter esquecido alguma coisa


era visto [...] como uma condição necessária para lembrar-se de outra”.61 O
esquecido está na paisagem da memória, é parte dela: “Quando me lembro do
esquecimento, estão ao mesmo tempo presentes o esquecimento e a memória: a
memória que faz com que me recorde, e o esquecimento que lembro”.62 Estamos,
portanto, distantes da visão clássica, retórica, de onde nasceu a mnemotécnica,
que via o esquecimento como algo a ser dominado e superado pela arte da
memória. As formulações desse Padre da Igreja são preciosas para entendermos
ainda hoje a memória, uma memória que também “retém o esquecimento”. Essa
“presença do esquecimento” tornou-se, hoje, uma pedra de toque em nossa
autoimagem: lembramos dos esquecidos como meio de termos uma memória
se não integral (total recalí), ao menos íntegra, ética. O esquecimento está
sim, mais do que nunca, “presente na memória, não por si mesmo, mas por
uma imagem sua”.63 Mas em Santo Agostinho essa imagem do esquecimento
tem, é claro, outro sentido. Ele afirma que todas as nossas memórias são
percepções que se traduzem em imagens que conservamos. Se temos uma
imagem do esquecido é porque de algum modo também o contemplamos
em algum momento. Mas essa percepção ou contemplação tem também algo
de platônico, no sentido de sua doutrina das idéias inatas. Como lemos, por
exemplo, do diálogo Mênon, de Platão, a filosofia é recordação, anamnese que
visa a um despertar de um saber latente: termo justamente derivado de Lete,
o rio do esquecimento da mitologia clássica grega. A recordação é um ato de
iluminar as câmaras escuras da memória, ou, lembrando a imagem de Lete,
que atravessaríamos ao nascermos segundo a doutrina platônica, esquecendo-
-nos das verdades contempladas na outra margem (da vida e do rio): recordar
seria um ato de remar contra a corrente do esquecimento. A anamnese é esse
caminho à verdade, aletheia, como vimos, o não Lete, o não esquecimento, em
grego. Daí também Platão colocar na boca de Sócrates, no mencionado diálogo
Teeteto, a ideia de que o método do filósofo deve ser a maiêutica, o dar à luz
ao saber que estaria latente (embebido no Lete) em todos nós (Teeteto, 149 a).
No Fedro, Platão faz um rasgado elogio da memória e coloca o esquecimento
ao lado do erro e do vício. As almas que antes de nascer experimentaram

53
‘da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”

“a máxima visão” nascem como amantes da filosofia ou das artes das Musas
(Fedro, 248 d):

De fato, a alma que nunca viu a verdade não pode jamais assumir uma forma
humana, visto que um ser humano tem que compreender o discurso em termos
de formas gerais procedendo à reunião de muitas percepções dos sentidos numa
unidade raciocinada; isso corresponde a uma reminiscência [anamnesis] das
coisas que nossa alma outrora contemplou quando esteve viajando com o deus e,
elevando a sua visão acima das coisas que dizemos agora existirem, ascendeu ao
ser real. (Fedro, 249 b-c)

Essa noção de “reunião das percepções” corresponde à noção de Agostinho


segundo a qual conceitos abstratos habitam nossa memória e nós “já em tempos
aprendemos e conhecemos estas coisas”.64 Também para o bispo de Hipona,
assim como nessa passagem platônica, pensar (cogitaré) seria um ato de reunir
(coligere) e organizar esses conhecimentos. Aqui na filosofia, como na retórica,
o pensar é concebido como uma máquina figurante, com a diferença que, para
Platão, a matriz figurai está no mundo das idéias. Assim, Agostinho busca
a imagem de Deus em seus palácios da memória. Platão, na continuação da
passagem- do Fedro, afirma o mesmo com relação à verdade:

E, portanto, é com justiça que somente a alma do amante da sabedoria (filósofo)


tem asas, pois ele está sempre, na medida de sua capacidade, em comunhão, através
da memória [mnéme], com essas coisas cuja comunhão torna os deuses divinos.
Ora, um homem que utiliza corretamente tais memórias [hupomnérnasin65] está
sendo sempre iniciado nos perfeitos mistérios e ele, exclusivamente, em realidade
torna-se perfeito. (Fedro, 249 c)

Agostinho diz que, assim como alguém que perdeu algo sabe que o
encontrou porque uma vez o viu e pode reconhecê-lo, também ele, em suas
andanças pelas veredas de sua memória, busca encontrar Deus. Mas este,
paradoxalmente, está em um para além da memória, já que é o todo e não
poderia ser contido em uma pessoa. A memória é uma espécie de escada para
Deus, assim como, para Platão, era o caminho para a verdade:

Grande é a potência da memória, ó meu Deus! Tem não sei quê de horrendo, uma
multiplicidade profunda e infinita. Mas isto é o espírito, sou eu mesmo. E que

54
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

sou eu, ó meu Deus? Qual é a minha natureza? Uma vida variada de inumeráveis
formas com amplidão imensa.
Eis-me nos campos da minha memória, nos seus antros e cavernas sem número,
repletas, ao infinito, de toda a espécie de coisas (reruiri) que lá estão gravadas, ou
por imagens (per imagines), como os corpos, ou por si mesmas (perpraesentiam),
como as ciências e as artes, ou, então, por não sei que noções e sinais, como
os movimentos da alma, os quais, ainda quando a não agitam, se enraizam na
memória, posto que esteja na memória tudo o que está na alma. Percorro todas
estas paragens. Vou por aqui e por ali. Penetro por toda parte quanto posso, sem
achar fim. Tão grande é a potência da memória e tal o vigor da vida que reside
no homem vivente e mortal! Que farei, ó meu Deus, ó minha verdadeira Vida?
Transporei esta potência que se chama memória. Transpô-la-ei para chegar até
Vós, ó minha doce Luz? Que me dizeis? Subindo em espírito até Vós, que morais
lá no alto, acima de mim, transporei esta potência que se chama memória.66

Mas a recordação em Agostinho, além da característica de coligir imagens,


é marcada por não ser simples repetição ou volta do idêntico. Agostinho
também foi um dos construtores da metáfora da recordação como processo
de “ruminação” no sentido de uma interiorização (Erinnerung justamente é o
termo alemão para recordação e que significa ao mesmo tempo interiorização).67
Escreve Agostinho:

Não há dúvida de que a memória é como o ventre da alma. A alegria, porém, e a


tristeza são o seu alimento, doce ou amargo. Quando tais emoções se confiam à
memória, podem ali encerrar-se depois de terem passado, por assim dizer, para
esse estômago; mas não podem ter sabor. É ridículo considerar estas coisas como
idênticas. Contudo, também não são inteiramente dessemelhantes.68

Agostinho continua:

Assim como a comida, graças à ruminação, sai do estômago, assim também elas
[as perturbações] saem da memória, devido à lembrança. Então por que é que o
disputador, ou aquele que se vai recordando, não sente, na boca do pensamento, a
doçura da alegria, nem a amargura da tristeza? Porventura nisto é dessemelhante
o que não é semelhante em todos os seus aspectos?69

55
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”

Confissão, conversão e esquecimento feliz

A memória, portanto, como a anamnese para os platônicos, ganha um


papel fundamental na doutrina de Agostinho. Vimos que, diferentemente da
doutrina retórica, o esquecimento é visto aqui como enlaçado com a memória.
É importante lembrar que o próprio Padre da Igreja foi também um convertido
que, antes, pecou pelas sombras do esquecimento: ele vivia no esquecimento
de Deus, oblívio Dei.7° Sua conversão é o ponto central de suas Confissões e
de certa maneira produziu a “figura”, o modelo produtivo das autobiografias
posteriores. Apresentou-se nessa obra fundamental a vida como um voltar-se
para a luz, para um renascer via encontro com o Deus bíblico. Como na
tradição judaica, a relação com Deus é vista como uma aliança, um pacto de
lembrança mútua. Agostinho escreve ao final das suas Confissões: “Invoco-Vos,
ó meu Deus, misericórdia minha, que me criaste e não Vos esquecestes de
quem Vos esqueceu”.71 Pois Deus é, por sua vez, fonte de um esquecimento feliz:
esquecimento do esquecimento do próprio Deus: “Quem me dera repousar em
Vós! Quem me dera que viésseis ao meu coração e o inebriásseis com a vossa
presença, para me esquecer de meus males e me abraçar convosco, meu único
bem!”.72 Podemos perceber em que medida o esquecimento assume aqui tons
que vão além do esquecimento em Platão, ainda associado ao vício e à “queda”,
não perdendo de vista que o verbo esquecer em português, diferentemente de
outras línguas neolatinas, deriva de “cair”, ou seja, do latim cadere. Escreve
Platão em seu Fedro ilustrando o que afirmo sobre essa acepção puramente
negativa do esquecer:

não é fácil [...] para todas as almas obter a partir de coisas terrestres uma
reminiscência [anamimnésko] dessas realidades (coisas que são), quer para os que
delas tiveram uma efêmera visão nessa ocasião anterior, quer.para os que, após
caírem na Terra, foram tão infelizes a ponto de serem desviados para a injustiça
devido a más companhias e terem esquecido [léten] as visões sagradas que uma vez
experimentaram. São poucos, portanto, os que retêm uma adequada reminiscência
[mnémes] delas. (Fedro 250 a)

Em Platão, a beleza e a verdade estão associadas à visão “espiritual”; já a vida


terrestre tende, pelo corpo, a nos afastar dessa visão. Estamos condenados a ver

56
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

um mundo de cópias (do mundo das idéias) que nos recorda com dificuldade
dos originais (Fedro 250 c). Já na dramaturgia do conhecimento e da psicologia
cristã, a cena é transposta para o interior do ser humano. Agostinho convertido
e confessando-se diante de Deus, um puro ato de memória catártico, diz-se
disposto a “esquecer as navegações errantes de Eneias e outras narrações
semelhantes”.73 Aqui, performaticamente, confissão, escuta e perdão unem-se
em laço ao esquecimento. Perdoar é visto como um tipo de esquecimento,
questão que voltaria a assombrar a humanidade no final do século XX com
seus tribunais de guerra, comissões de verdade e reparação e leis de anistia:

Vós, que sois o Médico do meu interior, esclarecei-me sobre o fruto com que faço
esta confissão. Na verdade, as confissões dos meus males passados - que perdoastes
e esquecestes para me tornardes feliz em Vós, transformando-me a alma com a fé e
com o vosso sacramento -, quando se leem ou ouvem, despertam o coração para
que não durma no desespero nem diga: “não posso”. Despertam-na para que vigie
no amor da vossa misericórdia e na doçura da vossa graça, com a qual se torna
poderoso o fraco que, por ela, toma consciência da sua fraqueza. Consolam-se,
além disso, os bons ao ouvirem os males passados daqueles que já não sofrem.
Deleitam-se não por serem males, mas porque o foram e agora não o são.74

A confissão é apresentada como um despertar do coração dos leitores dessa


obra. Eles serão contaminados pelo ato de lembrança e confissão e também eles
serão convertidos ou renovarão a sua fé. Confessar é trocar 0 esquecimento
pela conquista da verdade. O veritatem facere (fazer a verdade) está no cerne
da confissão.75 A confissão, para Santo Agostinho, como recorda Jean-Louis
Chrétien, é confissão de fé, dos pecados e de louvor. Que a palavra que confessa
seja “grito, canto, pedido, questão, resposta, toda palavra cristã [...] não será
o que ela é senão por ser antes de mais nada e finalmente confessional".76 E
mais: a palavra torna-se confessional justamente pelo meio da circuncisão, do
batismo: sendo que a segunda aliança reatualiza a primeira aliança do Antigo
Testamento.77 A palavra da confissão é sempre palavra de “conversão”: de
circonfissão, dirá Jacques Derrida;78 é palavra-ação,performance, metamorfose.
No capítulo sobre “A escritura e os anjos” de Confissões, Agostinho apresenta
a imagem de uma memória angélica, absoluta. Os anjos seriam capazes de
apreender toda a verdade apenas contemplando a face de Deus. Eles teriam

57
‘da ars memoriae aos estudos de memóhia pós-coloniais”

também uma memória infalível e eterna, sendo a própria encarnação do ideal


mnemônico daquele que quer se converter à verdade:

Há sobre este firmamento outras águas que, segundo creio, são imortais e
isentas de toda a corrupção terrena. Que elas louvem b vosso nome! Que os
povos supracelestes de vossos anjos, que não têm necessidade de olhar este
firmamento nem de conhecer, pela leitura, a vossa palavra, Vos bendigam!
Eles veem continuamente a vossa face e percebem, sem o auxílio de sílabas que
passam, a vossa vontade. Sim, percebem-na, elegem-na e amam-na. Aprendem
continuamente, e nunca esquecem o que aprendem!79

A famosa nona tese de Walter Benjamin sobre o conceito de história, que


apresenta seu anjo da história como um anjo da redenção, e que gostaria de
criar uma memória integral, não deixa de ter elementos desse anjo de Santo
Agostinho. Mas, em vez da face de Deus, esse anjo benjaminiano encara a
história como catástrofe que clama por uma redenção. Em vez do louvor da
figura divina, temos o historiador como catador de débris, dos restos, do que
resta do testemunho, como veremos adiante.80

Igrejas e livros como artefatos de memorização

Não caberia aqui recordar com mais detalhes os caminhos percorridos


pela arte da memória na Idade Média, cujas marcas podem ser lidas tanto na
topografia desenhada por Dante na sua Divina Comédia,3' como nas catedrais
com a sua arquitetura simbólica, seus nichos repletos de imagens da paixão
de Cristo (“sangrentas”, chocantes, seguindo os conselhos do autor anônimo
da Rhetorica ad Herennium), mas também com suas inúmeras representações
pictóricas da hierarquia celeste ou das virtudes cardinais. Isso para não falar na
poesia imagética e na prática dos acrósticos etc. A função didática e reprodutora
de idéias e da visão de mundo eclesiástica das obras medievais representa
um campo de estudos em si; por outro lado, a hibridização das palavras com
imagens também respondia a um princípio básico da arte (leia-se: técnica') da
memória, que, como vimos, tendeu para uma teoria da escritura.
Recordo aqui apenas um belo artigo de Mary Carruthers que tive o prazer
de publicar como parte do dossiê “Literatura como uma arte da memória”, 2006,

58
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

na revista Remate de Males, sobre a relação da memória com o “lugar” livro. O


texto de Carruthers serve como uma excelente apresentação do tema da relação
entre teoria da memória, arte da memorização e a questão do livro como um
modelo tópico. Carruthers recorda alguns princípios básicos da visão antiga e
medieval da memória. Como vimos, para esse universo, zdnvenção (inventió)
era pensada como criação de algo novo, mas ela destaca aqui o seu outro
momento, de inventário. Sem os saberes depositados e inventariados na nossa
mente, não poderiamos criar ou inventar. A noção de inventário, por sua vez, já
traz em si a questão de uma topografia do saber acumulado. O conhecimento
era necessariamente articulado à nossa capacidade de montar uma espécie
de “biblioteca privada” dentro de nós. A autora lembra os grandes exemplos
dos pensadores exilados Guillerme de Occam e John Wyclif, que tiveram que
compor boa parte de suas obras a partir de suas “bibliotecas privadas” que eles
haviam memorizado. (No século XX, era de guerras e de sectarismos, temos
também vários exemplos de intelectuais exilados que tiveram que produzir a
partir de sua memória. O livro Mtmesis, de Erich Auerbach, talvez seja o caso
mais famoso, que teve que se restringir ao uso dos clássicos que citou, sem
acesso às vastas bibliotecas de comentadores.) Segundo a concepção antiga e
medieval, essas informações que sustentavam tanto a escritura como a leitura
eram, sobretudo, imagéticas. Assim, podemos entender as tradições do design
gráfico com a sua divisão dos livros em capítulos e em parágrafos. O conspectus,
ou seja, a súmula que permite o abarcar da imagem informacional com um único
olhar, funcionou como a medida básica das criações verbais. Gêneros como o
florilegium, a coletânea de máximas, esclarece Carruthers, são, na verdade, a
aplicação dessa concepção do saber como um processo de leitura e memorização.
A máxima forma um bloco informacional facilmente assimilável e arquivável na
nossa memória. Assim também se explica a utilização de determinados lugares
(topoi), como a arca de Noé, ou outras construções arquitetônicas descritas na
Bíblia e, ainda, jardins, como modelos para a organização de textos. Seus itens
e blocos temáticos eram distribuídos em compartimentos desses lugares da
memória. Vislumbramos aí também, nota ainda a autora, o protomodelo das
enciclopédias modernas, com a diferença de que estas últimas se estruturam
não mais a partir dessas topografias herdadas da tradição religiosa ou mí(s)tica,
mas sim em uma nova visão do saber que se quer “racional” e “lógico”. A autora
ainda apresenta a relação entre essa tradição da memória antiga com as imagens

59
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”

que acompanhavam alguns escritos medievais. Estas podem ser lidas como
espécies de súmula imagética de textos (como nos conjuntos de rezas) ou como
estruturas que serviam para compor os blocos de texto tendo em vista facilitar a
memorização. Nesse sentido, ela destaca também como se valorizavam, na Idade
Média, não apenas as iluminuras, mas também todos os elementos sinestésicos
do texto, da forma das letras às suas cores. Tudo funcionava dentro de um grande
teatro da memória que tinha no seu centro o modelo da escritura sobre a página
branca de papel. Não espanta, portanto, que Carruthers perceba, nessa concepção
topográfica e escriturai da memória, o antecessor de nosso hipertexto.81 Também
nossa moderna preocupação com as bases materiais da escritura (com o livro,
seus antecessores, com os tipos de escrita etc.) encontra uma correspondência
nessa rica tradição desvendada pela autora.
Com Francês Yates, podemos recordar ainda que mesmo a atração medieval
pelo grotesco tem em parte suas raízes nessa doutrina da arte da memória.83 Isso
ficou claro ao vermos acima algumas passagens do Rhetorica ad Herennium
e do Sobre o sublime. Assim como o sublime é o avesso do cotidiano em sua
versão ascendente, o grotesco o é em sua versão descendente. Ambos marcam
e se inscrevem em nossa memória por desviarem da norma. No Renascimento,
essa tradição mnemotécnica, escreve ainda Yates, tem continuidade tanto
em tratados de pura mnemotécnica, como em simples listas de imagines
agentes (agentes imagéticos) e no desenvolvimento de alfabetos visuais.84
Um dos sonhos dos tratadistas da memória dessa época - representado de
modo exemplar pelo teatro da memória de Giullio Camillo - era justamente
conseguir reduzir todo o conhecimento macrocósmico em um conjunto de
imagens (um microcosmo) que poderia ser assimilado por uma só pessoa, de
tal modo que, com um simples olhar sobre as imagens organizadas de um modo
panóptico, poderiamos nos apropriar de todo esse saber. Era como se os agentes
de memória conseguissem mimetizar a face de Deus, da citação de Santo
Agostinho que acabamos de ler.8’ A verdade enquanto aletheia (como vimos, o
não esquecimento), tal como ela era pensada na tradição platônica, aliara-se, de
um modo anticlássico, à doutrina da arte da memória. Por outro lado, a atração
renascentista pelo hieróglifo somada à releitura dessa tradição neoplatônica
por um filtro cabalista transformou, finalmente, a arte da memória em uma
espécie de subgênero da escrita de mistérios e de enigmas típica da “era das
semelhanças”, para falarmos com Foucault.86 E foi justamente Foucault quem

6o
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

destacou também a mudança epistêmica da Idade Média para a Modernidade,


encarnada nas descobertas de Galileu. Na Idade Média existiam lugares
característicos e delimitados (profanos/sagrados; protegidos/desprotegidos;
urbanos/rurais; supracelestes/celestes; celestes/terrestres) e todos eram
basicamente localizáveis. Já com Galileu, mais do que a (re)descoberta de que
a Terra não estava no centro do universo, o decisivo com esse grande físico
de Pisa foi a abertura do espaço infinito, que dissolveu a hierarquia espacial
medieval. O lugar passa a ser visto como um ponto no deslocamento infinito do
objeto, “a extensão se substitui à localização”.87 Esse processo de dinamização
do espaço só se fez acelerar com os séculos, chegando a tal ponto na nossa
era, que o espaço cibernético adquire uma qualidade totalmente efêmera. Mas
nem por isso deixamos de falar em lugares da memória e de enfatizar o papel
da visualidade nos processos mnemônicos. Também na web temos locais de
memória - por mais que olhemos esse rio eletrônico como um ambíguo rio
Lete, onde tudo pode se afogar e pescar.
Para nossa reflexão, vários pontos dessa tradição da arte da memória
clássica e da sua recepção medieval e renascentista são importantes: a
doutrina dos loci que afirma uma concepção eminentemente visual/espacial
da memória e que é aproximada da noção de escritura (tanto do ato de escrever
como de sua leitura), a relação entre teoria da memória e o culto dos mortos,
a ligação entre o sobreviver e a arte da memória, entre esta e a cena (retórica)
do tribunal, bem como a doutrina das imagens marcantes (extraordinárias).
Fundamental também é a teoria da figurabilidade da linguagem, sendo esta
vista como uma máquina que produz constantemente lugares-comuns e que
também os descontrói, permitindo ver a história como uma luta mnemônica
entre topoi articulados, como contraponto cultural da luta social. A ideia
da Bíblia como um mapa permite pensarmos em arquivos que se tornam
poderosas bússolas culturais. No item culto dos mortos deveriamos ainda
recordar que a manutenção do nome dos mortos - muitas vezes sob a forma
de sua inscrição em epitáfios e lápides - constitui o núcleo antropológico da
memória enquanto vis, ou seja, como força vital e construtora da identidade
que é oposta à memória como ars (procedimento mecânico de arquivamento e
recuperação de informações).88 Vimos que o tratado Rhetorica ad Herennium
dis.tinguia entre a memória interna e natural e aquela artificial, construída a
partir da mnemotécnica e que se baseia largamente em modelos escriturais. A

61
‘DA ARS MEMORIAE AOS ESTUDOS DE MEMÓRIA PÓS-COLONIAIS’

memória como ars pode ser de certo modo substituída ou complementada pela
máquina. Como afirmou Paul Ricoeur no seu livro A memória, a história, o
esquecimento: “para a memória artificial [ou seja, para a visão da memória como
ars] tudo é ação, nada é paixão”,89 como ficou claro no que vimos acima sobre a
mnemotécnica clássica. Por outro lado, tampouco podemos desprezar a íntima
relação dessas duas modalidades de memória. Lembrando-nos do conceito de
memória como glória/fama, fica claro que o arquivamento de determinados
nomes em detrimento de outros - e a memória sempre seleciona - já implica
uma política da memória enquanto vis. Ã “má-memória” de Temístocles (sua
melancolia), o peso do passado que ele portava no coração, corresponde não
só o seu desejo de apagá-la, mas também a possibilidade de uma reparação,
de uma anistia: nem tanto de um “esquecimento decretado”, mas sim de um
“perdão recíproco” que poderia reconciliar Atenas com seu ilustre filho.90

“A PINTURA É UMA POESIA SILENCIOSA E


A POESIA UMA PINTURA QUE FALA”

Já a noção escriturai da memória e a doutrina dos loci põem em relevo a


afirmação aristotélica que vimos acima, segundo a qual a memória se localiza
na imaginação. Se com a imaginação ela compartilha esse caráter imagético,
ela mesma constitui, graças a esse aspecto, um “espaço” nas nossas mentes
no qual plantamos nossas paisagens mnemônicas e escrevemos com os
imagines agentes. É essa localização entre o mundo sensível e o conceituai que
caracteriza a imaginação que permite também o funcionamento da arte da
memória enquanto dispositivo tradutório que ora traduz histórias em imagens,
ora retrotraduz estas em novas falas ou textos. A arte da memória tem como
um de seus movimentos básicos a transformação da história em uma escrita
imagética e a sua legibilidade posterior. Se Plutarco atribuía a Simônides de
Ceos a frase “a pintura é uma poesia silenciosa e a poesia uma pintura que fala”
(De gloria atheniensium, 3), então fica fácil compreender a cumplicidade entre
essa tradição da arte da memória e a doutrina antiga da utpictura poesis - ou
seja, da crença na conversibilidade entre imagens e palavras, poesia e quadros.
Como veremos, na arte da memória contemporânea, ainda que apareça de
modo bem diverso, também esse elemento é central.

62
A VIRADA TESTEMUNHAI E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Quanto a essa frase de Simônides, vale lembrar de sua reversão por Leonardo
da Vinci, no contexto da competição agônica entre as artes, o paragone, no
Renascimento. O grande pintor e pensador renascentista escreveu: “E se tu
disseres que a pintura é um poema mudo, não seria [a poesia] ela mesma muda
se não houvesse alguém para recitá-la ou para explicar o que ela representa”.91
A visão é, para Leonardo, “o sentido mais nobre”, o mais próximo da realidade:
“A imaginação [imagginatione] não vê tão excelentemente quanto o olho”;92
as coisas imaginadas permanecem, para ele, pouco tempo na nossa memória.
O pintor, uma vez que se dirige à visão, sempre estaria adiante do poeta na
imitação.93 Leonardo da Vinci elogia ainda a velocidade da recepção da pintura
sobre a recepção da poesia. A única coisa que ele admite faltar na pintura são
os sons; mas também aqui ele não deixa por menos: “Portanto, diremos que
a poesia é a ciência que melhor serve ao cego, e a pintura faz o mesmo para o
surdo; mas a pintura permanece a mais digna, na mesma medida em que serve
ao melhor sentido”.9-1 Esse debate é fundamental para entender essa disputa
entre o logocentrismo e os adeptos das imagens, que aprofundarei ao longo
deste ensaio. Mas o interessante é que essa centralidade da visão e da pintura,
para Leonardo, não era necessariamente antípoda do platonismo, já que a
“visão da verdade” no sentido das Eide, o mundo das idéias, é conciliável com
esse culto das imagens, como ocorre, por exemplo, com as obras de Botticelli
com sua tradução pictórica de preceitos neoplatônicos de Marsilio Ficino.95

Memória e culto dos mortos

Por fim, antes de passarmos a tratar da moderna teoria da memória, é


importante reforçar a relação entre memória e morte na visão da Antiguidade.
Michele Simondon, em seu erudito e elegante ensaio La mémoire et 1’oubli
dans la pensée grecque jusquà lafin du Ve siècle avant J.-C.,96 apresentou em
detalhes os diversos significados de mnema (que em grego antigo significa
tanto memória como recordação, mas também memorial e túmulo) na sua
relação com a morte, a glória, o monumento belo (que compensa a morte) e a
gratidão (cáris). Ela recorda, entre outros pontos essenciais, que, para o poeta
Simônides, a poesia e a memória no espírito dos homens (mnastis) eram mais
duradouras que a pedra da sepultura, um largo elogio, portanto, da memória

63
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”

natural considerada “interna”. Como já afirmei aqui, pode-se considerar que a


relação de cada população com seus mortos constitui o núcleo simbólico de sua
cultura. Se Freud, com sua narrativa do assassinato do pai da horda primeva
em Totem e Tabu,97 insistia na relação entre morte e o nascimento da cultura,
podemos dizer com ele que o simbólico se estrutura em diálogo com a ideia
de morte (o reino de Tânatos). Na própria etimologia do termo grego sema,
podemos vislumbrar a proximidade entre signo e morte: originalmente, esse
termo significa “túmulo”,98 e só posteriormente recebe o sentido de “signo”. Já
o conceito de mnema, desde suas origens remotas, indica traços ou vestígios de
um passado esquecido. Ou seja, memória e dificuldade de leitura dos seus traços
são idéias arcaicas dentro do imaginário grego. Por outro lado, mnema passa a
significar não só o elemento material de uma lembrança, mas também o próprio
canto fúnebre para finalmente se aproximar cada vez mais da noção de sema
como túmulo, conforme ocorre, por exemplo, em Eurípides (cf. Eurípedes,
As troianas, 39). Sema significa mais o próprio local, a elevação que indica o
túmulo, sendo que mnema é a qualidade que faz do sema um memorial ou um
objeto de glória (Jcléos), remetendo à imbricação existente no universo grego
entre morte, signo e vida eterna. Mnemosine, a mãe das Musas (e, logo, da
cultura)2 só pode ser pensada, portanto, no seu aspecto de face dupla: uma
voltada para o passado, outra para o futuro.99

O MAL DE ARQUIVO

Um dos aspectos mais fascinantes na história da memória e de suas


metáforas é a sua relação próxima (e tensa) com a noção de escritura que,
como vimos, desde a Antiguidade acompanha as tentativas de teorizá-la. Nos
atuais debates e estudos da memória é notório que os pesquisadores de um
modo geral reconheçam esse fato e em seus textos remetam a essa tradição da
memória que reconstituí até aqui, como ocorre com Jan e Aleida Assmann,
Harald Weinrich, assim como outros não citados, como alguns dos reunidos
no volume organizado por Astrid Erll e Angsgar Nünning, A Companion to
Cultural Memory Studies.'00 Nessa tradição, como vimos, existe uma forte
associação (positiva) entre memória e escritura. Por outro lado, desde o texto
já clássico de Jacques Derrida De la Grammatologie,™ ficou patente que existe

64
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

um conflito, uma verdadeira aporia insuperável, quando se trata da relação


da memória com a escritura. Derrida102 voltaria com força ao assunto da
memória com um ensaio que se tornou, este sim, figura corrente nos estudos
desse tema. Refiro-me ao seu livro publicado originalmente em 1995 intitulado
Mal de arquivo. Uma impressão freudiana (conhecido também pelo título em
inglês: Archive fever). Mas 0 sucesso desse artigo nãò implicou, infelizmente,
um tetorno ao seu Gramatologia.103 No entanto, é nesse livro de 1967 que está
também a gênese dos temas de seu livro sobre arquivos. Talvez 0 problema
esteja nas diferentes fontes e preocupações mestras desses autores: Derrida,
de dentro da filosofia e a partir de um diálogo com as artes e a literatura,
transita por temas e abordagens estranhos a boa parte dos professores da área
de Letras que dominam os estudos da memória atualmente. Esses professores
e pesquisadores tendem a valorizar a tradição poético-retórica; já Derrida
não dialoga com a arte da memória, mas, via antropologia e filosofia, faz uma
outra história da relação da memória com a escrita. Mesmo sem pretender
aprofundar tanto quanto seria desejável aqui essa leitura derridiana da questão
da memória/escrita, é fundamental lembrar alguns de seus elementos, pois sem
ela os estudos de memória abrem mão, parece-me, de um poderoso pensador
da escrita e da memória.
Em Mal de arquivo, Derrida escreve: “Não havería certamente desejo de
arquivo sem a finitude radical, sem a possibilidade de um esquecimento que
não se limita ao recalcamento”.*0-1 Ou seja, do ponto de vista dos anos 1990, de
um momento pleno de fascínio e ainda elaborando o recém-fundado mundo
da web, repensava-se a inscrição arquivai da cultura do ponto de vista dessa
nova base, ao mesmo tempo tão voraz e, pelo seu elemento etéreo, ao menos
na aparência, muito vulnerável. Retomando sua leitura da psicanálise como
uma doutrina da inscrição e da projeção de traços em nossa psique,105 Derrida
se questionava:

O aparelho psíquico seria melhor representado ou diferentemente afetado pelos


muitos dispositivos técnicos de arquivamento e reprodução, de próteses da
memória chamada viva, de simulacros do vivente que já serão no futuro tanto mais
refinados, complicados, potentes que o “bloco mágico” (microinformatização,
eletronização, computadorizaçâo etc.).106

65
‘da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’

Ou seja, trata-se de perguntar duplamente, primeiro quanto à capacidade


desses novos dispositivos mnemônicos, ou próteses de memória, de representar
nossa estrutura interna de memória (representação antes calcada, para Freud,
no “primitivo” dispositivo do bloco mágico)-,107 e também, em segundo lugar, de
pensar em que medida o ser humano é afetado por esses novos e tecnológicos
“blocos de cera” digitais, os nossos Ipads, tablets etc. Derrida se pergunta: “que
futuro terá a psicanálise na era do correio eletrônico, do cartão telefônico,
da multimídia, do CD-ROM?”.108 A psicanálise, como prática arqueológica
de escavação, como um discurso inspirado nas idéias de cifragem, inscrição,
calçamento e recalcamento, censura, repressão e interpretação, enfim, como
um conhecimento baseado no arquivo, estaria posta diante de novos desafios
na era da internet. Nesse ensaio, Derrida repensa a psicanálise a partir de uma
leitura crítica do arquivo, figura essa que se tornou recorrente na nossa era de
gadgets e de próteses de memória. Se no termo Arkhê, como enfatizou Derrida,
encontramos simultaneamente a noção de origem e a de comando,109 é porque
no arquivo se encontra aquilo que legitima o poder, tanto positiva quanto
negativamente. O poder depende de seus arquivos. Ele necessita, portanto,
dominar e controlar as informações aí contidas. O Estado depende do segredo
e do secreto, mas também, é claro, do não secreto. Ele estabelece (ou tenta
estabelecer) o recorte entre o público e o privado - assim como nossa psique
é descrita pela psicanálise a partir do “dentro” e do “fora”, do consciente e do
recalcado -, da mesma forma que Platão diferenciava a memória interna (â
“dádiva (doron) de Mnemosine”, Teeteto, 191 c d) e a prótese da escrita, o dom,
phármakon, de Thoth (Fedro, 275 a). Por outro lado, na era do superarquivo
da web, vem à tona com novo significado o conceito freudiano de pulsão de
morte. Derrida interpreta essa pulsão como “anarquívica”, ou ainda como
“arquiviolítica”, destruidora do arquivo.110 A pulsão de morte, como pulsão
destrutiva, como Freud a desenvolveu em Mal-estar na cultura,

leva não somente ao esquecimento, à amnésia, à aniquilação da memória como


mneme [arquivo de armazenamento] ou anamnesis [recordação, recollection], mas
comanda também o apagamento radical, na verdade a erradicação daquilo que
não se reduz jamais à mneme ou à anamnesis; a saber, o arquivo, a consignação,
o dispositivo documental ou monumental como hupomneme, suplemento ou
representante mnemotécnico, auxiliar ou memento.111

66
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

O arquivo atravessado pela pulsão de morte opõe-se à anamnese como


memória viva interior; ele existe onde não há memória. Ele depende de uma
técnica de repetição e de uma exterioridade. Nesse ponto, Derrida afirma
novamente a distinção clássica entre, de um lado, mneme e anamnese e, de
outro, hupómnema (base material exterior da memória).112 O hupómnema como
exterioridade e espaço de repetição, Foucault o associava ao “já dito”, e Freud,
por sua vez, em Para além do princípio de prazer, texto que introduz o conceito
de pulsão de morte, associa a repetição ao trauma e justamente à pulsão de
morte. Portanto, o arquivo só existe associado à sua destruição: daí Derrida
derivar um mal de arquivo. É interessante lembrar que esse filósofo faleceu em
2004, ano de fundação do Facebook. Mas nesse texto, de dez anos antes, ele
já anunciava de certa forma essa rede (antis)social: “O arquivo sempre foi um
penhor e, como todo penhor, um penhor do futuro. Mais trivialmente: não se
vive mais da mesma maneira aquilo que não se arquiva da mesma maneira.
O sentido do arquivável se deixa também, de antemão, codeterminar pela
estrutura arquivante”."3 Ou seja, nossa era dos superarquivos e da inscrição
contínua de si na memória hupomnésica do Facebook e de outras extensões
protéticas transforma-nos radicalmente. Daí a crise arquiviolítica da psicanálise
também, entre tantos outros abalos.

A GRAMATOLOGIA

Já em seu ensaio de 1967 sobre a gramatologia, Derrida fez uma leitura


da história da filosofia, com ênfase em Rousseau, mas sem esquecer Platão,
Leibniz, Hegel, a linguística de Saussure e também a antropologia de Claude
Lévi-Strauss e de André Leroi-Gourhan, a partir da questão da exterioridade,
dos suplementos, do que ele chama em 1995 de prótese. Trata-se da história
do pensamento ocidental do ponto de vista do recalcamento da escritura, de
seu elemento supostamente secundário, doentio, negativo, fraco. A filosofia
ocidental opôs-se sempre à escritura como hupómnema. Ou seja, diferentemente
da tradição da mnemotécnica, que sempre valorizou sem mais 0 modelo escriturai
da memória, inclusive produzindo uma técnica calcada na escrita, na filosofia
preponderou a ideia de um logos puro de toda exterioridade. Lembrando do
Curso de Linguística de Saussure, Derrida nota que, para o linguista, a escrita

67
‘da ARS MEMORIAE AOS ESTUDOS DE MEMÓRIA PÓS-COLONIAIS”

é algo que deve ser considerado como exterior à linguagem. Ele cita Saussure:
“Conquanto a escritura seja, por si, estranha ao sistema interno, é impossível
fazer abstração de um processo através do qual a língua é ininterruptamente
figurada; cumpre conhecer a utilidade, os defeitos e os inconvenientes de
tal processo”."4 A escrita seria descrita por Saussure como uma ferramenta
imperfeita e uma “técnica perigosa”, comenta Derrida. Saussure detém-se
na escritura para controlá-la, proteger a língua como um sistema interno
puro, evitar a sua contaminação. “O mal da escritura vem de fora (eksoten),
já dizia Fedro (275 a). A contaminação da escritura, seu feito e sua ameaça são
denunciados como acentos de moralista e de pregador pelo linguista genebrês”,
afirma Derrida."5 A linguística, para se construir, teve que abrir um processo
contra a heresia da escritura. Como no Fedro, a episteme e o logos estão
ameaçados por essa “irrupção do fora no dentro”. Desse modo, a origem do
saber, a presença pura da alma a si mesma no logos, ficaria bloqueada. Para o
linguista de Genebra isso seria um pecado.

O pecado foi definido frequentemente - por Malebranche e por Kant, entre


outros - como a inversão das relações naturais entre a alma e o corpo na paixão.
Saussure acusa aqui a.inversão de relações naturais entre a fala e a escritura. Não
é uma simples analogia: a escritura, a letra, a inscrição sensível sempre foram
consideradas pela tradição ocidental como o corpo e a matéria exteriores ao
espírito, ao sopro, ao verbo e ao logos."6 E o problema relativo à alma e ao corpo,
sem dúvida alguma, derivou-se do problema da escritura a que parece - ao invés
- emprestar as metáforas.117

Ou seja, a relação escritura-logos é a base metafórica, diriamos agora,


figurai, de toda a longuíssima prédica ocidental sobre a tensão corpo-alma, e
não o contrário. No Fedro, é bom recordar, essa exterioridade da escritura ao
logos é posta de modo claro na anedota que Sócrates relata sobre a origem da
escritura. Esta teria sido um presente do deus egípcio Thoth, deus da sabedoria,
ao rei egípcio Tamos, que alcunhou Thoth como “engenhoso”, ou seja, deus
das técnicas. Se vimos com Marcei Detienne que memória na Grécia arcaica
é “potência religiosa que confere ao verbo poético seu estatuto de palavra
mágico-religiosa”,118 sendo 0 dom da linguagem poético-cosmológica um dom
“natural” (como em Teeteto, 191 c d), aqui estamos diante de um suplemento
“de fora”. Mas é importante lembrar ainda que Thoth também era um deus

68
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

associado ao culto dos mortos: ponto fundamental para pensarmos a história


da relação entre escritura, arquivamento e arquiviolítica. No diálogo platônico,
o termo verdadeiramente engenhoso que entra em questão é o phármakon,
já que a escrita teria sido apresentada pelo próprio deus Thoth ao imperador
Tamos como uma tal “droga”, termo ambíguo que remete à cura e à morte. Não
se trata, portanto, de uma simples dádiva dos deuses (como seria a memória
interna), mas de um ambíguo phármakon. Diz Thoth: “Isto, ó rei, uma vez
aprendido, tornará os egípcios mais sábios e aprimorará suas memórias
[mneme]: trata-se de uma poção [phármakon] para a memória [mnémes] e a
sabedoria [sophia] por mim descoberta” (Fedro, 274 e). Mas o imperador, longe
de aceitar a descrição do engenho feita por seu criador, Thoth, afirma:

tu, agora, pai das letras, foste levado pelo afeto a elas a conferir-lhes um poder
que corresponde ao oposto do poder que elas realmente possuem. O fato é que
essa invenção irá gerar esquecimento [leten] nas mentes dos que farão o seu
aprendizado, visto que deixarão de praticar com sua memória. A confiança que
passarão a depositar na escrita, produzida por esses caracteres externos [eksoten]
que não fazem parte deles próprios, os desestimulará quanto ao uso de suá própria
memória, que lhes é interior. O que descobriste não é uma poção [phármakon] para
a memória [mneme], mas sim para a evocação [hupomneseus]; proporcionará aos
teus discípulos a aparência de sabedoria [doxan], mas não a verdadeira sabedoria
[aletheia], (Fedro, 275 a;

Toda uma sequência de dicotomias é desdobrada aqui, entre interior-


-exterior, memória como mneme (dádiva, dorori) e memória protética
como húpomnema (phármakon), verdade como Aletheia e falso saber como
doxa. Extrapolando ainda, teremos as dicotomias espírito-corpo, pureza-
-degenerescência etc. Estamos, portanto, no campo da fundação da metafísica da
presença, que nasce de um banimento da escritura/do corpo como exterioridade
que deve ser controlada. Se, em Teeteto, Platão, como vimos, saudou nossa placa
de cera interna da memória, aqui em Fedro as letras externas são condenadas
como fonte de erro. Fedro é apresentado como um típico sofista que depende
do ler e do decorar textos para “saber” algo que, na verdade, ele apenas repete
de modo mecânico. Como comenta Derrida em A farmácia de Platão,1X9 o que
Platão objetiva em sua crítica aos sofistas nesse diálogo “não é o recurso à
memória” em si, mas sim o recurso sofista às próteses de memória. Os sofistas

69
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’

sofreriam da “perversão” de colocar a “memória-auxiliar” acima da “memória


viva”. Poderiamos pensar também, a partir dos conceitos retórico-poéticos que
vimos acima: os sofistas colocariam a memória como ars acima da memória
como vis. É como se a memória, “em vez de estar presente a si em sua vida,
como movimento da verdade”, se deixasse “suplantar pelo arquivo”.110 O conflito
entre mneme e hupomnesis põe a questão da impossibilidade de estancar a
intromissão do “fora” no “dentro”. Mas se a memória é finita e depende de
signos (lembremos o que vimos sobre o sema/túmulo com Simondon), essa
“perversão” é insuperável, o arquivo sempre ameaçará a “verdade”. Derrida
acredita que Platão sonha como uma memória interna plena, sem dependência
do “fora”, do arquivo, uma “memória sem signo”, “sem suplemento. Mneme
sem hupomnesis, sem phármakon”.'-1 A memória viva seria pura repetição da
presença do eidos, a ideia. A escrita bloquearia essa plenitude ideal e idealista.
Destaco que, de modo oposto à mnemotécnica com sua entronização do
modo escriturai de pensar, memorizar e lembrar, que influenciará a literatura
e as artes, na filosofia dominará esse exorcismo da escritura. O próprio Platão,
de resto, na continuidade desse diálogo estabelece essa divisãoentre a escrita
para o divertimento e, por outro lado, o pensamento sério:

Quando escrever, é provável que semeará jardins de letras com o intuito de divertir-
-se, armazenando para si mesmo lembretes [hupomnemata] para quando atingir a
propensão ao esquecimento [letes] da velhice. [...] Mas, a meu ver, o discurso sério
sobre esses temas [justiça entre outros] é sumamente mais nobre, quando alguém
prega a arte dialética, plantando e semeando numa alma apropriada o discurso do
conhecimento, discurso simultaneamente capaz de auxiliar a si mesmo e aquele
que o plantou - discurso que nâo é estéril [acaprós, sem fruto, infértil], mas que
gera uma semente [spérma] da qual mais discurso é cultivado em outras mentes.
(276 d-e)

O discurso sério é fecundo, espermático e, “instaurando um processo


interminável e eterno”, é vis (força) em oposição à esterilidade da escritura
que seria escrita morta a priori, sema/túmulo, mera técnica, ars infértil.
Derrida realiza em sua gramatologia a empresa de ir contra essa tendência
atávica da filosofia ocidental a valorizar essa interioridade (anímica) em
detrimento da escritura (corpo). Ele vai falar então, baseado inclusive na obra
central de Leroi-Gourhan, Le geste et la parole (de 1964, cujo primeiro volume

70
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

tem um item dedicado ao “nascimento do grafismo”, e o segundo volume é


dedicado à “memória e seus ritmos”), de uma arquiescritura que deixaria sua
marca em toda linguagem. Em determinado momento, Derrida resume seu
projeto com estas palavras:

Tornar enigmático o que se crê entender sob os nomes de proximidade, de


imediatez, de presença (o próximo, o próprio e o pre- de presença), tal seria, pois,
a intenção última do presente ensaio. Esta desconstruçâo da presença passa pela
da consciência, logo, pela noção irredutível do rastro (Spur), tal qual aparece no
discurso nietzschiano assim como no discurso freudiano. Por fim, em todos os
campos científicos e notadamente no da biologia, esta noção parece hoje dominante
e irredutível.1”

Ora, com isso estamos em pleno campo da memória, já que o “rastro” é


visto como fenômeno primeiro, como inscrição inaugural e ao mesmo tempo
fronteira impossível de ser (re)traçada, entre lembrança e esquecimento,
animalidade e humanidade. Derrida continua;

Se o rastro, arquifenômeno da “memória” que é preciso pensar antes da oposição


entre natureza e cultura, animalidade e humanidade etc., pertence ao próprio
movimento da significação, esta está a priori escrita, quer se a inscreva ou não,
sob uma forma ou outra, num elemento “sensível” e “espacial” que se denomina
“exterior”. [Eu lembraria aqui do “monólito” do filme 2001: Uma odisséia no espaço,
de Stanley Kubrick, 1968.] Arquiescritura, possibilidade primeira da fala, e em
seguida da “grafia” no sentido estrito, lugar natal de “usurpação” denunciada
desde Platão até Saussure, este rastro é a abertura da primeira exterioridade em
geral, a enigmática relação do vivo com seu outro e de um dentro com um fora:
o espaçamento. [...] A presença-ausência do rastro [...] traz em si os problemas
da letra e do espírito do corpo e da alma e de todos os problemas cuja afinidade
primeira lembramos. Todos os dualismos, todas as teorias da imortalidade da
alma ou do espírito, tanto quanto os monismos, espiritualistas ou materialistas,
dialéticos ou vulgares, são o tema único de uma metafísica cuja história inteira teve
que tender em direção à redução do rastro. A subordinação do rastro à presença
plena resumida no logos, o rebaixamento da escritura abaixo de uma fala sonhando
sua plenitude, tais são os gestos requeridos por uma onto-teologia determinando
0 sentido arqueológico e escatológico do ser como presença, como parusia, como
vida sem diferência.123

71
‘da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’

Na sua pesquisa e desconstrução da metafísica da presença com sua alergia


à escritura, Derrida recorda passagens “platonizantes” que apontam para o
oposto do que vimos acima com a arte da memória. Em um momento do Emile,
por exemplo, Rousseau faz uma observação que vai totalmente de encontro à
mnemotécnica: “Em geral não substituais nunca a coisa pelo signo, a não ser
quando vos for impossível mostrá-la; pois o signo absorve a atenção da criança
e a faz esquecer-se da coisa representada”.124 É interessante que Rousseau afirma
não apenas que o esquecimento é engendrado pelo uso de signos abstratos e
arbitrários, como a escrita de base fonética, mas também que “os signos fazem
negligenciar as coisas” como no caso da moeda.125 É como se tanto a linguagem
como o campo financeiro precisassem de um lastro natural (diriamos, uma
“força”) para garantir o logos e a economia.126

Hegel E A CRÍTICA À MNEMOTÉCNICA

Se Derrida não desenvolve, em seu estudo gramatológico, uma reflexão


mais profunda sobre a mnemotécnica, no entanto, ela é recordada por alguns
dos autores que ele estuda, como Hegel, em sua Enzyklopadie. Mas Derrida não
deixa de destacar que também Hegel

determinou a ontologia como lógica absoluta; reuniu todas as delimitações do ser


como presença; designou à presença a escatologia da parusia, da proximidade a si da
subjetividade infinita. E é pelas mesmas razões que teve de rebaixar ou subordinar
a escritura. [...] A escritura é este esquecimento de si, esta exteriorização, o
contrário da memória interiorizante, da Erinnerung que abre a história do espírito.
É o que dizia o Fedro: a escritura é ao mesmo tempo mnemotécnica e potência de
esquecimento. Naturalmente, a crítica hegeliana da escritura detém-se diante do
alfabeto. Enquanto escritura fonética, o alfabeto é simultaneamente mais servil,
mais desprezível, mais secundário.127

Lembremos das palavras de Hegel:

Mais precisamente, a escrita hieroglífica denota as idéias por meio de figuras


espaciais, a escrita alfabética, por outro lado, sons, que são eles próprios signos. Estes,
portanto, consistem em signos de signos e de tal forma que decompõe os signos

72
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

concretos da linguagem tonal, as palavras, em seus elementos simples e designa


esses elementos. [...] A linguagem escrita hieroglífica do povo chinês corresponde
perfeitamente ao elemento emperrado da educação intelectual chinesa.128

Comparando, portanto, a escrita alfabética fonética-aos “hieróglifos”


da escrita chinesa, Hegel conclui que “a escrita alfabética é em si e para si a
mais inteligente”.129 Trata-se de um típico gesto de um eminente membro da
cultura letrada europeia em pleno momento de ebulição dos nacionalismos e
da expansão colonial. A língua/técnica mais apurada seria a considerada mais
abstrata, superior e digna, portanto, de dominar as demais línguas/culturas.130
Mas na verdade existe em Hegel uma crítica radical da mnemotécnica que
nos permite vislumbrar o quanto se manteve, desde a Antiguidade platônica
até ele, essa oposição à retórica e a seu culto das imagens e dos seus loci, e como
se reafirma aqui a valorização de uma inteligência abstrata e independente das
imagens. Para Hegel, a mnemotécnica é um absurdo e um rebaixamento da
inteligência. Vejamos como a própria descrição de Hegel dessa técnica, em seu
parágrafo 462 da Enciclopédia das Ciências Filosóficas, já a amarra e torna nela
tudo estático, em que, na verdade, como vimos com Carruthers, imperava a
dinâmica:

A mnemotécnica dos antigos, há pouco requentada, mas logo outra vez facilmente
esquecida, consiste em transformar nomes em imagens e dessa forma novamente
rebaixar a memória [Gedachtnis] à imaginação [Einbildungskraft]. O lugar da força
da memória é ocupado por um quadro permanente fixado na imaginação, que
contém uma série de imagens, às quais é associado o texto a ser decorado [auswendig
zu lernender Aufsatz], a sequência de suas representações. Devido àheterogeneidade
do conteúdo dessas representações e daquelas imagens permanentes, assim como
por causa da velocidade em que isso deve ocorrer, essa associação não se dá senão
via conexões insípidas, tolas e totalmente casuais. Não apenas o espírito é torturado
por ter de se afligir com um material louco, como também o que é decorado dessa
maneira também é, por isso, logo esquecido, na medida em que de qualquer
maneira [sempre] o mesmo quadro é utilizado para decorar. Qualquer outra série
de representações, que antes fora a ele associada é novamente apagada. Aquilo que
é inculcado mnemonicamente não se torna, como ocorre com o que é guardado
na memória, decorado [auswendig], quer dizer, produzido de dentro para fora [von
innen heraus], do poço profundo do eu, e assim declamado, mas é, por assim dizer,
lido no quadro da imaginação. A mnemotécnica conecta-se aos preconceitos que

73
“da ars memórias aos estudos de memória pós-coloniais”

normalmente se tem acerca da relação da memória com a imaginação, como se esta


última fosse uma atividade mais elevada e espiritual do que a memória. Antes, a
memória não tem mais nada a ver com a imagem, que é derivada do ser determinado
imediato e não espiritual da inteligência, [ou seja,] da intuição, mas sim com uma
presença [Dasein] que é produto da própria inteligência - com algo assim voltado
para fora [Auswendigen, um falar de cor], que permanece fechado no interior
[Inwendig] da inteligência e que é seu lado voltado para fora [auswendig], existente
apenas no interior dela mesma.'3'

Para além da bela passagem poética sobre a memória como algo evocado
“do poço profundo do eu”,132 o que predomina aqui é a crítica das imagens
e da imaginação, bem como a destruição da mnemotécnica. A dicotomia
estanque entre interior e exterior, a ideia, refletida criticamente por Derrida,
da verdade como algo intrínseco e interior em oposição a uma escrita imagética
exterior, ficou mais do que clara aqui. O espiritual, “interno”, vale mais que o
“exterior”, intuitivo e imagético. O termo-chave e intraduzível dessa passagem
é o auswendig, que literalmente significa “virado para fora”, ou “voltado para
fora”, que é oposto, em termos linguísticos, ao inwendig, “voltado para dentro”.
Mas no cotidiano o significado de auswendig é justamente o de saber falar
algo de cor (de coração), sem precisar de um apoio externo, um livro, um
texto (o hupomnesis que vimos no Fedro de Platão). O que está em jogo aqui
são a preservação da fronteira e o respeito dela, entre o interior e o exterior, a
separação entre as faculdades “superiores” intelectuais e o elemento “baixo”
sensual. Hegel quer dizer que o Auswendig (a fala direta de cor) é Inwendig.
Fala-se para fora a partir de uma interioridade intocada. Intocada pelo corpo e
por sua localização. Só assim o pensamento pode se autoproclamar universal:
sendo “sem-lugar”, atópico, ele seria válido em qualquer lugar. O logos está
pronto para ser também um logos colonial: colonizador. A mnemotécnica seria
uma hibridização que é desprezada como tal por Hegel. Seria uma violação da
fronteira, uma aberração. Ela força a memória (interior) a se calcar em algo
externo, um corpo, alheio e, sobretudo, considerado por ele (e pela tradição
filosófica analisada por Derrida) como inferior: como na crítica de Tamos à
escrita presenteada por Thoth do diálogo Fedro de Platão. Assim como Tamos
(Sócrates e Platão) recusa o elemento positivo do phármakon-escritura e
descreve essa engenhoca como fonte do esquecimento, também para Hegel a

74
A VIRADA TESTEMUNHAI E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

mnemotécnica seria uma tal fonte e opor-se-ia à verdadeira memória, interior


e pura. Mas se existe uma possibilidade de atar as pontas dessas duas críticas
(socrática e hegeliana) aos suplementos perigosos, por outro lado não é menos
verdade que desde a Antiguidade, como vimos, também ocorreu um culto à
mnemotécnica, com sua hibridização entre palavras e imagens, com seu jogo
com a imaginação criativa, que alimentou tanto as letras como as artes. Derrida
não trata dessa tradição e, portanto, não tentou responder a esse conflito.

O GESTO-GRÁFICO E A FACE-PALAVRA

Mas outros dois autores permitem enfrentar essa questão: André Leroi-
-Gourhan e Vilém Flusser. Ambos pensaram a história da humanidade
a partir desse conflito entre a “palavra-falada” e as “imagens-inscritas”.
Leroi-Gourhan, em seu mencionado estudo de 1964, parte da ideia de que só
podemos pensar o Homo sapiens junto com a possibilidade de expressão de
pensamento em símbolos materiais. Esses símbolos ele encadeia a partir de
uma visada antropológica, em dois pares funcionais: mão/instrumento e face/
linguagem. As funções motoras das mãos e da face são decisivas na modelação
dos pensamentos, tanto como instrumentos de ação material quanto como
símbolos sonoros.*33 Para o antropólogo,

nada de comparável à escritura e à leitura de símbolos existiu antes do nascimento


do Homo sapiens. Podemos, portanto, dizer que, enquanto a função motora
determina a expressão nas técnicas e na linguagem de todos os antropoides,
na linguagem figurativa dos antropoides mais recentes a reflexão determina o
grafismo.’34

Gravações em ossos que datam de mais de 35 mil anos já revelam inscrições


rítmicas. Impossível saber o significado dessas expressões - os traços
mnemônicos mais antigos que conhecemos. Analisando o caso dos Churinga,
da Austrália, o antropólogo nota que os desenhos dessa população também
são marcados pela abstração, e que, em rituais, as recitações encantatórias
acompanham esses objetos com grafismos, mostrando o entrelaçamento desses
'■ dois modos de expressão. É importante destacar que o grafismo se associa aqui
ao modo rítmico e não “realista”. Ele especula que demorou alguns milhares de

75
‘da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”

anos para as primeiras pinturas “realistas” aparecerem. A conclusão de Leroi-


-Gourhan é central para nós:

Um fato de particular relevância [...] é que o grafismo certamente não iniciou


reproduzindo a realidade de um modo escravo e fotográfico. [...] Tudo sugere
que em seus inícios a arte figurativa estava diretamente associada à linguagem e
estava muito mais perto da escritura (no sentido mais largo) do que aquilo que
nós entendemos por obra de arte.'35

Mesmo as obras de Lascaux e similares, que normalmente são louvadas


pelo realismo, Leroi-Gourhan as interpreta como altamente carregadas de
um elemento escriturai; são mitogramas, algo “mais próximo aos ideogramas
do que aos pictogramas e mais próximo do pictograma do que da arte
descritiva”.136 Com esses grafismos e mitogramas, acompanhados dos rituais,
ditos encantatórios, gestos e danças, estamos, portanto, nos arcanos da
construção de matrizes mnemônicas que marcaram o processo, complexo,
nunca linear e de modo algum no sentido de um suposto “progresso”, da
história da hominização. No período Aurignaciano (de 45 a 10 mil anos atrás),
destaca o autor, após um rápido caminhar da arte em direção ao “realismo”,
ocorreu uma separação entre a arte visual e a escrita. Mas as artes teriam
permanecido junto da linguagem e se movimentado dentro do par da fonação-
-expressão gráfica. As figuras gráficas são uma linguagem da mão, uma forma,
de expressão visual, assim como a face tem a sua linguagem, ligada à escuta:
mas há ainda comunicação entre as duas. Como se expressa de modo poético
Leroi-Gourhan: “O gesto interpreta a palavra, e a palavra comenta a expressão
gráfica”.137 Foi apenas em um longo processo que elas se separaram, sendo que
na escrita linear permanece essa origem pareada, e o momento gráfico está, se
não subordinado, sempre coordenado ao fonético. A linguagem da audição é
ligada às áreas de coordenação sonora e à linguagem da visão, conectada com
o desenvolvimento das áreas de coordenação gestual, sendo que esta última
tem seus gestos traduzidos em símbolos gráficos. Mas os símbolos gráficos
também acrescentam algo à linguagem fonética, eles estão independentes
da temporalidade extensa da fala. Daí a relação entre o grafismo artístico e
as religiões: a arte tem a possibilidade de expressar o que não pode ser dito
em um tempo instantâneo. A arte, escreve Leroi-Gourhan, “é um modo de

76
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

expressão que restaura aos humanos o seu verdadeiro lugar no cosmos”.*38


Existe um contrabalanço entre “mito-logia” (verbal) e “mito-grafia” (manual).
Com o desenvolvimento da agricultura e o maior agrupamento de pessoas
dando início à vida urbana, surge a escritura linear, sem que tenha se passado
necessariamente pela escrita pictográfica: na medida em que se passa do
pensamento mítico para o racional, passa-se também da mitografia para a
escrita linear marcada pela fonação. “De símbolos com implicações extensivas
eles se desenvolveram no sentido dos signos, instrumentos genuínos a serviço
da memória, por um lado, e da contabilidade, por outro.”*39 Com mais técnicas
para dominar a natureza e a vida, a linguagem como técnica de comunicação
também se transforma.
O mitograma já é em si um ideograma, na medida em que a junção de
imagens gera um terceiro significado. Nesse sentido, vê-se que a escrita linear
herda do mitograma esse pendão narrativo e o associa à linearização fonética.*40
A escrita linear abdica da bidimensionalidade da escritura “mitográfica”.
Evidentemente, a passagem para a escrita linear fonética não ocorre sem
resistências, por exemplo, de culturas que por muito tempo mantiveram uma
escritura ideográfica. Alguns dos exemplos de Leroi-Gourhan, como os ex-votos
japoneses e as estatuetas Tabuai da Polinésia representando o mito da criação,
lembram muito as coletâneas de imagens associadas à tradição ocidental da arte
da memória. Nesse sentido somos autorizados a ver na tradição mnemotécnica
uma sobrevivência e uma resistência de práticas gráficas diante do domínio da
escritura fonética linear. Isso é patente na arte das iluminuras e na construção
pictórica das páginas dos incunábulos medievais, como vimos acima. Devem-
-se incluir como parte da tarefa gramatológica de desconstrução crítica da
história do pensamento, do ponto de vista do resgate da escritura, a história e
as práticas mnemotécnicas. Se nem Derrida fez isso nem Leroi-Gourhan fez
essa aproximação entre mnemotécnica e sobrevivência da escrita mitográfica,
no entanto este último notou argutamente que essa cultura gráfica-imagética
retorna na publicidade.141 E, devemos acrescentar, na poesia, do Un coup de
dés, de Mallarmé (1897), passando pelos caligramas de Guillaume Apollinaire,
pelos demais vanguardistas dadaístas até os concretos Campos, Pignatari
etc. Na literatura vanguardista do século XX, o elemento escriturai serviu de
instrumento para ferir a longa história do “espiritualismo” antissensual da
poesia e do pensamento ocidentais. Leroi-Gourhan estava lendo a história e

77
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’

seu mundo a partir do “tempo-agora”14- do início dos anos 1960 na França. Mas
as coisas mudaram bastante desde então.

Das tabuinhas de cera aos tablets de silício

Leroi-Gourhan era um profundo conhecedor da língua e da escrita


chinesas, que ele analisa detalhadamente, iluminando a sua associação de escrita
pictográfica com fonética. É interessante que na mesma época, no Brasil, Haroldo
de Campos também se voltava para o estudo da escrita chinesa, inspirado por
Ezra Pound e pelos trabalhos do sinólogo Ernest Francisco Fenollosa. Já nos
manifestos e textos explicativos da época do movimento da Poesia Concreta,
Haroldo de Campos leva adiante uma crítica à cultura da escrita fonética linear.
O poeta concreto buscava, então, uma organização da linguagem “de maneira
‘sintético-ideogrâmica’ ao invés de ‘analítico-discursiva ’”.143 Por sua vez, Leroi-
Gourhan faz uma reflexão crítica sobre a sua época, que assistia ao avanço
vertiginoso das técnicas, 20 anos após a Segunda Guerra Mundial. Ele nota a
velocidade da reprodução das inscrições aumentando a cada momento - sendo
que a internet sequer era um sonho então. Ele faz uma leitura que se assemelha
(mas não pode ser de modo algum confundida) à dos filósofos frankfurtianos
do cinema e da indústria cultural (termo que ele não utiliza), uma vez que vê na
cultura das imagens eletrônicas não uma reconquista da bidimensionalidade
da mitografia, mas, antes, uma queda na passividade dos espectadores. Sua
leitura lembra muito também a concepção crítica de “massa” de Freud,
Benjamin e Canetti,*44 como uma regressão cultural. Ele vê não um triunfo da
imaginação, mas sua destruição, sendo que (em oposição a Hegel e sua crítica da
imaginação), para ele, “imaginação é a propriedade fundamental da inteligência
e uma sociedade com sua capacidade simbólica enfraquecida sofreria de perda
concomitante de capacidade de ação”.*45 Ele via que, em sua época, a tarefa da
construção das imagens estava concentrada “nas mentes de uma minoria de
especialistas”. Uma pequena elite age como 0 “órgão digestivo” (lembremos do
conceito de Agostinho de ruminar) e “as massas atuam puramente como seus
órgão de assimilação”.*46 É como se a massa fosse regida pelas imagens. Não foi
a fotografia que causou isso, mas esse processo teria se iniciado com o cinema.
Essa técnica separa aquele que faz a imagem daquele que a consome.

78
A VIRADA TESTEMUNHAI E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

No capítulo sobre a memória, Leroi-Gourhan desdobra essa crítica. Ele


acompanha o processo de exteriorização dos órgãos (e da memória) via técnica
que nos levará a uma sociedade de robôs na qual nosso aparelho osteomuscular
herdado do Paleolítico não terá nenhuma utilidade. Libertamos nossas mãos do
trabalho, mas o preço a pagar é alto. Adiantando em quase méio século algumas
reflexões de Derrida em seu Mal de arquivo, ele afirma que os modernos
sistemas de catalogação por fichas já seriam “um verdadeiro córtex cerebral
exteriorizado”, apesar de ainda serem uma memória no sentido estrito, mas sem
possibilidade de rememoração (mnême sem anamnesis).1*7 Os computadores
dos anos 1960 dão um passo adiante em direção ao progressivo “exteriorizar
das faculdades cada vez mais elevadas”.148 Como na tradição da crítica filosófica
aos gadgets de memória, das tabuinhas de cera inscritas aos computadores,
e, acrescentemos, aos tablets de silício, aqui reencontramos esse topos, ainda
que o antropólogo seja bem menos crítico e tente ser mais um narrador
dessa história. Leroi-Gourhan foi justamente um dos poucos teóricos que
conseguiram iluminar a escrita e sua história de modo a possibilitar descrever
esse processo de um outro modo, não metafísico. Para ele, essa história não
é limitada por uma querela entre interioridade e mundo externo, entre os
eide e o mundo como cópia inferior, entre a palavra falada e a escrita, mas
existe, na verdade, uma fundamentação material em nosso próprio corpo que
determinou essa multimilenar e tão rica história de confronto entre a palavra
e os rastros. Daí, aliás, Derrida ter eleito em sua gramatologia essa noção de
rastro para desconstruir a noção metafísica da escritura como suplemento.
O rastro é a escrita avant la lettre que permite a sua crítica. Leroi-Gourhan,
com sua arqueologia da escrita que restitui ao rastro a sua complexidade,
permite pensar a memória de um modo mais denso e menos preso à armadilha
dos dualismos, já que, para ele, existe uma interação entre os sistemas mão/
instrumento (escrita) e face/linguagem (fala).

A QUERELA DAS PALAVRAS E IMAGENS EM FLUSSER

Praticamente da mesma geração de Leroi-Gourhan (1911-1986), o filósofo


pçaguense-paulista Vilém Flusser (1920-1991) desenvolve uma teoria da escrita
e da técnica que possui muitos pontos em comum com a de seu colega francês.

79
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’

Ambos localizam a questão da escritura no centro de suas pesquisas, ambos


refletem sobre o novo estatuto das imagens técnicas e criticam a sociedade
contemporânea administrada por funcionários especialistas. A história da
escritura de Flusser evidentemente tem pontos em comum com a de Leroi-
-Gourhan, sobretudo no que diz respeito à relação entre a escrita linear e a
revolução agrícola.
Na história da humanidade, vista por Flusser como uma história da técnica
e dos modos de comunicação, imagens e escrita digladiam-se como meios em
nossa tentativa de organizar a nossa existência. Pois, se para existirmos temos
que sair de nós, as imagens têm, inicialmente, o propósito de nos representar
o mundo. Elas seriam mapas (novamente essa bela metáfora que já vimos em
Carruthers tratando da Bíblia), mas que teriam se transformado em biombos,
e nós teríamos passado de utilizadores de imagens a cultuadores delas. Esse
culto teria chegado a um ponto tal, descreve Flusser a nossa mito-história
originária, que as imagens obtiveram um estatuto alucinatório, não podiam
mais ser decifradas e tornaram-se mágicas.

No segundo milênio a.C., esta alucinação alcançou o seu apogeu. Surgiram pessoas
empenhadas na “rememóração” da função originária das imagens, que passaram a
rasgá-las a fim de abrir a visão para o mundo concreto escondido pelas imagens. O
método do rasgamento consistia em desfiar as superfícies das imagens em linhas e
alinhar os elementos imagéticos. Eis como foi inventada a escrita linear.1-”

Essa escrita linear introduz, com o seu alinhamento, uma outra consciência
da nossa relação com o tempo: “Tratava-se de transcodificar o tempo circular
em linear, traduzir cenas em processos. Surgia assim a consciência histórica,
consciência dirigida contra as imagens”,150 e o pensamento organizado conforme
as leis de causa e efeito. Essa passagem significou um aprofundamento da
alienação do mundo, pois a escrita tende à conceptualização do mundo. Ou seja,
Flusser afirma umaprimeiridade das imagens com relação ao mundo concreto, já
os textos estão condenados a uma secundidade e se relacionam com o mundo via
“imagens rasgadas”. A esse universo gramatológico corresponde uma história
que tenta incessantemente traduzir imagens em textos, conceptualizando,
desmagicizando. E o auge dessa história das letras teria sido justamente o século
XIX, o mesmo que deu nascimento às imagens técnicas, a saber, à fotografia?51

8o
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Mas se as imagens tradicionais apresentavam um grau de abstração com relação


ao fenômeno concreto, as imagens técnicas implicam uma tripla abstração, pois
passaram das imagens tradicionais (imagem-mundo) para o mundo conceituai
(conceitos abstratos) para serem criadas novamente sob a forma de imagens
(imagens técnicas). Vai-se, nesse percurso, da pré-história, passando pela
história, até a pós-história. Nesse percurso ocorre também uma refusão das
palavras e das imagens superando essa dicotomia.

A LIQUIDAÇÃO DO PASSADO HISTÓRICO

Em seu livro A escrita. Há futuro para a escrita? Flusser descreve a


revolução informática como uma superação do pensamento determinado por
“coisas sólidas”, as moléculas. O pensar passa a se articular agora como elétrons
e prótons. A partir “dessa camada inferior, imaterial”, agora poderemos
“transformar as coisas sólidas, inclusive os homens enquanto corpos, de
maneira mais radical do que todas as revoluções anteriores”.152 As imagens
tornam-se mais interessantes que as coisas sólidas. Novas máquinas inteligentes
exigem que agora revalorizemos tudo o que tem a ver com o pensamento e
com o trabalho: Prometheus redivivus (a volta de Prometeu). A técnica lançar-
nos-á de volta ao paraíso no qual o trabalho será eliminado da face da Terra.
Mas, para que isso aconteça, a revolução informática, que leva ao triunfo o
cálculo sobre o pensamento lógico causai e sobre a visão da história linear
e contínua, tem que antes vencer a resistência ao ponto de vista iluminista
vinculado “ao pensamento alfabético e histórico”.153 Ou seja, para implantarmos
esse novo sistema revolucionário, antes teremos que passar por um processo de
desconstrução, de autodestruição: “Teremos de apagar o alfabeto da memória
para lá podermos armazenar o novo código”.154 Deletar o passado para fazer o
download do código com o qual refaremos nosso presente e construiremos um
futuro radicalmente diferente de nosso agora: a partir das contas do cálculo,
dos pixels. Tudo deverá ser transcodificado, ou ao menos tudo o que for julgado
digno de ser salvo na arca da escrita eletrônica digital:

A transcodificação da literatura nos novos códigos é uma tarefa de aprendizagem


vertiginosa. Ela nos exige sair de nosso mundo dos pensamentos e passar para

81
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”

um estranho: do mundo das línguas faladas para o das imagens ideográficas, do


mundo das regras lógicas para o das matemáticas, e, sobretudo, do mundo da linha
para o das redes formadas por pontos?55

Em Pós-história, Flusser escreveu sobre essa tradução de códigos:

A história toda, política, arte, ciência, técnica, vai destarte sendo incentivada pelo
aparelho, a fim de ser trancada no seu oposto: em programa televisionado. O
aparelho se tornou a meta da história. Passa ele a ser represa do tempo linearmente
progressivo. A plenitude dos tempos. História transcodada em programa torna-se
eternamente repetível?56

Em Walter Benjamin, como podemos ler em seu ensaio A obra de arte na era
de sua reprodutibilidade técnica, preconizava-se a articulação entre a fotografia,
o fim da aura e o fim da tradição. Benjamin falava de um “abalo violento do
que é transmitido”,157 ou seja, do corte na tradição. Passando ao cinema, ele
formulou essa “liquidação do valor de tradição na herança cultural”158 com
palavras que decerto inspiraram Flusser:

Esse fenômeno é especiãlmente acessível nos grandes filmes históricos. Ele submete
posições cada vez mais distantes ao seu domínio. E quando Abel Gance exclamou
entusiasticamente em 1927: “Shakespeare, Rembrandt, Beethoven serão filmados...
Todas as lendas, todas as mitologias e todos os mitos, todos os fundadores de.
religiões, e mesmo todas as religiões... aguardam sua ressurreição em celulóide, e
os heróis precipitam-se aos portais”, convidava, embora sem a intenção de fazê-lo,
a uma liquidação generalizada?5’

Flusser concebia a história da humanidade a partir dessa história dos modos


de escrita: “Os níveis de consciência pré-históricos articulam-se em códigos
imagéticos; os históricos, em códigos alfabéticos; os novos, em digitais”.160 A
luta para superar a escrita alfabética poderia ser feita em duas direções: indo
para o passado e reconquistando as imagens, ou indo em direção aos numerais,
indo “para frente”. Em um torneio típico do pensamento messiânico, Flusser
mostra, no entanto, que esses dois caminhos, o “para trás” e o “para frente”,
encontram-se: “os numerais deixam-se computar em imagens”?61
Em seu livro Ins Universum der technischen Bilder (No universo das imagens
técnicas), de 1985?62 ele levou a cabo uma teoria das imagens técnicas na qual a

82
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

fotografia assume um papel menos importante do que ocupara em seu ensaio


seminal Filosofia da caixa-preta.l6} As fotografias apareciam agora como uma
espécie de pioneiras das imagens técnicas, mas ainda anteriores às imagens
eletrônicas que agora assumem o primeiro plano de suas reflexões. Nessa obra,
Flusser aprofunda sua crítica da sociedade moderna com Bildfuncionãren
(funcionários das imagens) ao mesmo tempo que apresenta uma nova sociedade
dialógica e telemática composta por Bilderzeugern (criadores de imagens) e
Bildersammlern (colecionadores de imagens), transformação pós-histórica da
figura de Santo Agostinho do pensar (cogitare) como reunir (coligeré). Essa
sociedade puramente informacional seria composta de pessoas livres, criadoras
e colecionadoras de imagens. Com efeito, o modelo crítico de Flusser - que
no ensaio Filosofia da caixa-preta tendia mais para uma distopia - assume
agora um caráter mais próximo de uma utopia positiva. Se os funcionários das
imagens fossem vencidos pelos artistas das imagens, teríamos a possibilidade
de construir uma sociedade de livres-pensadores. A despeito de uma carregada
dose de linearidade teleológica, o pensamento de Flusser permite vislumbrar,
com Leroi-Gourhan, a história das matrizes mnemônicas na sua relação com
o embate entre palavras e imagens, face e gesto, arquiescritura, e a linearidade
associada ao pensamento lógico. Deve-se também realizar uma crítica dos
elementos eurocêntricos dessas “cosmologias” flusserianas dos signos e da
humanidade. Mas o autor, de resto, ao associar a escrita alfabética linear e um
tipo de pensamento racional que oprimiu o Ocidente por séculos, estabeleceu
um modo sui generis de realizar uma crítica da Modernidade. No início dos
anos 1980, ele afirmava ser impossível se engajar no projeto do “progresso da
cultura” tal como ele se apresentava então, pois essa cultura não conseguira
romper a lógica do aniquilamento que depois de Auschwitz se repetira nas
bombas atômicas, no Gulag, nas guerras neocoloniais e em tantas outras
configurações. O projeto de Flusser, sua midialogia, estabelece-se, portanto,
como uma busca de “nos projetarmos fora do projeto” do Ocidente que teria
se realizado nas políticas de morte como ocorrera em Auschwitz.
Flusser formulou: “A nossa cultura mostrou que deve ser rejeitada in toto, se
admitirmos que o propósito de toda cultura é permitir a convivência de homens
que se reconhecem mutuamente enquanto sujeitos”.164 Nada mais necessário
de ser lembrado hoje do que essa ordem de idéias, que é também um mote
ético-mnemônico: toda cultura tem como ideal o reconhecimento mútuo de

83
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”

todos os seus agentes como humanos. Ou seja, não há lugar para apagamentos,
obliterações e muito menos genocídios, o lado perverso da Modernidade que
gerou os campos de extermínio, o tráfico de escravos, o genocídio indígena etc.
Auschwitz mostra o Ocidente como uma tendência em direção ao aparelho e
a eventos desse tipo. Se não rompermos essa tendência, eles irão se repetir.
E, de fato, eles têm se repetido, ainda no século XXI: em 27 de agosto de
2018 a ONU reconheceu como sendo um genocídio o que aconteceu com a
população muçulmana rohingya em Mianmar (país que em 2021 teve sua jovem
democracia abalada por mais um golpe de Estado militar). A pandemia de covid-19
em 2020/2021 atinge especialmente populações mais desprotegidas, como as
indígenas e as quilombolas, no Brasil, sem contar os habitantes das metrópoles
sem acesso a hospitais e vacinas. De modo peremptório, o sobrevivente Flusser
(que perdeu sua família nos campos de extermínio) escreve que Auschwitz
revelou “a utopia inerente na nossa cultura [...] podemos vivenciar que a utopia,
em não importa que forma, para a qual tendemos é o campo de extermínio”.165
Ou seja, ou saímos desse trilho, ou o que Flusser denominou aparelho irá se
realizar: a morte, o abismo, engolir-nos-á. Seremos tragados pelo triunfo da
entropia, de Tânatos, a pulsão de morte teorizada por Freud, ou a arquiviolítica
tratada por Derrida. O sonho tecnológico ocidental levado ao extremo é o
campo de extermínio.166 Toda uma tradição da ficção científica concorda com
isso: de Metropolis a Matrix e Blade Runner 2049. O projeto de Flusser, sua
midialogia, estabelece-se, portanto, como uma busca de “nos projetarmos fora
do projeto” do Ocidente que deu no campo de extermínio, seja nas colônias da
Modernidade, seja em Auschwitz, seja na colonialidade atual, com campos de
refugiados e projetos genocidas de negros, indígenas e demais bodes expiatórios
da vez. E ele conclui em Pós-história: “Tal o clima ‘pós-histórico’ no qual somos
condenados a viver doravante”.167

O IMPERATIVO DA MEMÓRIA

Flusser foi apenas um dos pensadores que refletiram no século XX a partir


do abismo que foi Auschwitz. A Dialética do esclarecimento, escrita a quatro
mãos por Theodor Adorno e Max Horkheimer,168 enquanto ocorria na Europa
o assassinato dos judeus, dos ciganos, dos homossexuais e dos opositores do

84
A. VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

regime nazista, representa um dos maiores testemunhos históricos e filosóficos


do século XX derivados dessa mesma catástrofe. Se, para Adorno e Horkheimer,
a filosofia não poderia existir independentemente da tarefa de crítica da falsa
totalidade, mais do que nunca esse elemento do pensamento se tornou premente
diante das atrocidades ocorridas na Segunda Grande Guerra. A presença do
aguilhão da catástrofe, concretizada no momento da escrita, fez com que esta
se tornasse uma espécie de grito congelado de horror.
À dor e ao extermínio de milhões de pessoas, corresponde também uma
necessidade extrema de colocar no centro da atividade intelectual de caráter
materialista e dialético a rememoração dos mortos e da catástrofe. O novo
imperativo da filosofia é o lema “Não esquecerei”. Como Adorno escreveu em
seu ensaio “Educação após Auschwitz” (originado em uma palestra de 1966):
“Para a educação, a exigência que Auschwitz não se repita é primordial. [...]
Todo debate sobre parâmetros educacionais é nulo e indiferente em face deste
- que Auschwitz não se repita. Foi a barbárie, à qual toda educação se opõe”.1'’9
Na contramão desse imperativo da memória, no entanto, ele diagnosticou,
em 1959, uma tendência ao esquecimento daquele passado recente e associou
isso a um pragmatismo produtivista: “Quando a humanidade se aliena da
memória, esgotando-se sem fôlego na adaptação ao existente, nisto reflete-se
uma lei objetiva de desenvolvimento”.'70 Para se manter fiel a seu ideal “crítico”,
a teoria deve ser não apenas crítica e desencantamento da ideologia; a luta pela
emancipação, pela autonomia, pela liberdade passa também pela preservação
da memória da catástrofe. A conclusão do pequeno texto de Adorno de 1959
intitulado “O que significa elaborar o passado”'7' é atual para os brasileiros,
pois evidencia em que medida o Brasil do primeiro quartel do século XXI
tem muito em comum com a Alemanha dos anos 1960: “O passado só estará
plenamente elaborado no instante em que estiverem eliminadas as causas do
que passou. O encantamento do passado pôde manter-se até hoje unicamente
porque continuam existindo as suas causas”.'72 Assim, se hoje no Brasil ainda
existem os encantados com a ditadura civil-militar de 1964-1985 é porque o tipo
de política que então era praticado não foi superado até hoje. Como 0 casal de
psicanalistas alemães Mitscherlich173 diagnosticou com relação à Alemanha,
nesses mesmos anos 1960, ou seja, a incapacidade de enlutar 0 passado dos
alemães, o mesmo se dá no Brasil até hoje.'74 Um exemplo evidente é termos

85
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’

eleito em 2018 um presidente admirador do nazismo, entusiasta da ditadura e


de suas práticas de tortura.
Mas voltando ao livro de Adorno e Horkheimer, a obra nasce das entranhas
de seu presente. Conforme os autores notaram no primeiro prefácio de 1944,
“o que nos propusemos era, de fato, nada menos do que descobrir por que a
humanidade, em vez de entrar em estado verdadeiramente humano, está se
afundando numa nova espécie de barbárie”.175 A filosofia desenvolvida no livro
corresponde plenamente à exigência que Benjamin esboçara em seu acima
referido último texto, de 1940, “Sobre o conceito de história”: “A tradição dos
oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ «Ausnahmezustand»,176 no
qual estamos vivendo, é a regra. Precisamos atingir um conceito de história
que corresponda a esse dado”.177

DO HISTORICISMO AO DEVER DE LEMBRAR OS


VENCIDOS: A VIRADA ÉTICA DA REMEMORAÇÃO

Mas à mencionada necessidade detectada por Flusser de explodir 0 curso


da história ditado pela Modernidade, corresponde também um impulso de
repensar a história de um ponto de vista crítico. Antes dele, Benjamin foi um dos
pensadores que haviam percebido de modo pioneiro nos anos 1930 a necessidade
de levar a cabo uma ruptura com o modelo historicista da construção histórica.
Sua consciência da necessidade de rever a estrutura do pensamento histórico
esteve desde sempre articulada à sua reflexão sobre as mudanças profundas que
determinavam a sociedade moderna a partir das novas técnicas de reprodução
mecânica. Sua teoria da história articulava-se também a uma reflexão sobre
a história da escrita e suas mudanças no “ecossistema” da cidade. Assim, em
Rua de mão única,vS publicado em 1928 pela editora Rowohlt, ele escreveu uma
passagem que depois marcaria profundamente a visão de mundo, por exemplo,
de um Haroldo de Campos em suas pesquisas concretistas e críticas do cânone
ocidental. Benjamin escreveu de modo inspirado no fragmento “Guarda-livros
juramentado”:

Nosso tempo, assim como está em contraposto com o Renascimento pura e


simplesmente, está particularmente em oposição à situação em que foi inventada

86
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

a arte do livro. Com efeito, quer seja um acaso ou não, seu aparecimento na
Alemanha cai no tempo em que o livro, no sentido eminente da palavra, o Livro
dos Livros, tornou-se, através da tradução da Bíblia por Lutero, um bem popular.
Agora tudo indica que o livro, nessa forma tradicional, vai ao encontro de seu fim.
Mallarmé, como viu em meio à cristalina construção de sua escritura, certamente
tradicionalista, a imagem verdadeira do que vinha, empregou pela primeira vez no
coup de dés as tensões gráficas do reclame na configuração da escrita. O que depois
disso foi empreendido por dadaístas em termos de experimentos de escrita não
provinha do plano construtivo, mas dos nervos dos literatos reagindo com exatidão
e por isso era muito menos consistente que o experimento de Mallarmé, que crescia
do interior de seu estilo. Mas justamente através disso é possível reconhecer a
atualidade daquilo que, monadicamente, em seu gabinete mais recluso, Mallarmé
descobriu, em harmonia preestabelecida com todo o acontecer decisivo desses
dias, na economia, na técnica, na vida pública. A escrita, que no livro impresso
havia encontrado um asilo onde levava sua existência autônoma, é inexoravelmente
arrastada para as ruas pelos reclames e submetida às brutais heteronomias do
caos econômico. Essa é a rigorosa escola de sua nova forma. Se há séculos ela
havia gradualmente começado a deitar-se, da inscrição ereta tornou-se manuscrito
repousando oblíquo sobre escrivaninhas, para afinal acamar-se na impressão,
ela começa agora, com a mesma lentidão, a erguer-se novamente do chão. Já o
jornal é lido mais a prumo que na horizontal, filme e reclames forçam a escrita a
submeter-se de todo à ditatorial verticalidade. E, antes que um contemporâneo
chegue a abrir um livro, caiu sobre seus olhos um tão denso turbilhão de letras
cambiantes, coloridas, conflitantes, que as chances de sua penetração na arcaica
quietude do livro se tornaram mínimas. Nuvens de gafanhotos de escritura,
que hoje já obscurecem o céu do pretenso espírito dos habitantes das grandes
cidades, se tornarão mais densas a cada ano que passa. Outras exigências da vida
dos negócios levam mais além. O fichário traz consigo a conquista da escrita
tridimensional, portanto um surpreendente contraponto à tridimensionalidade
da escrita em suas origens como runas ou escritura de nós. (E hoje o livro já é,
como ensina o atual modo de produção científico, uma antiquada mediação entre
dois diferentes sistemas de fichário. Pois todo o essencial encontra-se na caixa de
fichas do pesquisador que o escreveu, e o cientista que nele estuda assimila-o ao
seu próprio fichário.) Mas está inteiramente fora de dúvida que o desenvolvimento
da escrita não permanece atado, a perder de vista, aos decretos de um caótico labor
em ciência e economia, antes está chegando o momento em que quantidade vira
em qualidade e a escritura, que avança sempre mais profundamente dentro do
domínio gráfico de sua nova, excêntrica imagética, tomará posse, de uma só vez, de

87
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”

seu teor coisal [Sachgehalt] adequado. Nessa escrita-imagem os poetas, que então,
como nos tempos primitivos, serão primeiramente e antes de tudo calígrafos, só
poderão colaborar se explorarem os domínios nos quais (sem fazer muito alarde de
si) sua construção se efetua: os do diagrama estatístico e técnico. Com a fundação
de uma escrita conversível internacional eles renovarão sua autoridade na vida
dos povos e encontrarão um papel em comparação ao qual todas as aspirações de
renovação da retórica se demonstrarão como devaneios jarreta.'79

Escrevendo" esse texto, decerto Benjamin não poderia sonhar com a


qualidade que assumiría o que chama de “nuvens de gafanhotos de escritura”
que, de fato se tornaram “mais densas a cada ano que passa”. A misteriosa
“escrita conversível internacional”180 que ele profetiza pode ter sua realização
na escrita eletrônica, plástica, omnipresente em nossas telas de silício. O teor
coisal da escritura, seu elemento gráfico, que se torna consciente e manifesto,
é justamente a carga imagética da escritura que havia sido recalcada por
séculos de doutrina antiescritura do pensamento ocidental. É importante
destacar que Benjamin refletiu sobre a escritura em vários de seus artigos e
trabalhos.181 Mas o importante aqui é termos claro em que medida essa ruptura
no logocentrismo da visão tradicional da escrita, sua submissão a uma razão
despótica, pretensamente universal, sem corpo e sem local, articula-se à crítica
destruidora do historicismo levada a cabo por Benjamin. Também a escrita
linear fonética ocidental guardava uma relação profunda com a concepção que
triunfou na Modernidade de um tempo linear, que se dá em um espaço/tempo
homogêneo, vazio e dentro de uma concepção de progresso ascendente. Esse
tempo vazio e linear foi preenchido de modo despótico por um único modelo
de sociedade que seria considerado digno, justamente aquele que triunfou na
Europa pós-Revolução Francesa. Benjamin explodiu essa monolíngua. Sua
teoria da história rompeu com a coluna vertebral desse esquema que habita
também o coração da colonialidade, ou seja, o nosso atual modelo de sociedade
que garante a sobrevida dos valores e práticas inventados na era colonial,
marcada por políticas de racialização, outrificação genocida e exploração de
corpos controlados por uma biotanatopolítica que também serve para acabar
com Gaia.
Resumamos alguns momentos essenciais de sua concepção acerca de como
se dá o saber histórico. Walter Benjamin formula a necessidade de destruir

88
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

os monumentos construídos pelas narrativas históricas tradicionais. Para ele,


devem-se destruir/desconstruir:

o a noção de História Universal: a ela Benjamin opõe a descontinuidade


do tempo histórico. Essa descontinuidade permite tanto romper com
o biombo erigido pela noção única de progresso linear (que barra
o sonho com outros modelos de viver em comum), como articular
um contramodelo de história a partir dos momentos de resistência e
tentativa de ruptura da ideologia do progresso;
o a ideia de narrabilidade da história, a sua epicidade: Benjamin contrapõe
a essa narrabilidade a necessidade de uma estrutura teórica robusta
para o pensamento histórico, calcada na ideia de “força destrutiva da
classe trabalhadora”;182
« a empatia com os vencedores: a ela Benjamin contrapõe a solidariedade
com a tradição dos oprimidos.

Resumindo esses três aspectos, lemos nos “Manuscritos: esboços e versões”


às teses Sobre o conceito de história:

O momento destrutivo: desmontagem da História Universal, eliminação do


elemento épico, nenhuma empatia «Einfühlung» com o vencedor. A história
deve ser escovada a contrapelo. A história da cultura «Kulturgeschichte» como
tal é descartada: ela deve ser integrada na história das lutas de classes.183

Assim Benjamin se volta contra toda historiografia historicista construída


do ponto de vista teleológico das grandes “histórias das civilizações”, pensada
a partir do modelo europeu, universalizado de modo violento, e que provoca
apagamentos de todas as outras histórias que não fluíram para esse veio do que
foi batizado como “progresso”. Destruir, desmontar são as palavras e os gestos
que comandam o novo pensamento crítico da história semeado por Benjamin.
A “empatia com o vencedor” é um dado fundamental da historiografia desde
seus primórdios nas primeiras manifestações historiográíicas na Antiguidade
clássica. Na Modernidade, essa identificação foi reforçada pela associação
da história a um único modelo de processo histórico: se a saga de todas as
sotiedades deve ser a do progresso em direção à era industrial, ou, agora, à era
pós-industrial, no sentido da revolução cibernética, tudo o que não se coaduna

89
‘da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”

com essa linearidade triunfal seria “desvio”, “atraso”, “falta de desenvolvimento”


etc. A identificação com a burguesia em sua série de triunfos é compulsória
nessa visão monolítica e monológica do devir histórico. Ao romper com essa
poderosa identificação patológica (Einfühlung), Benjamin permite pensarmos
em outros agentes da história e em outros agenciamentos possíveis desse
devir. A Kulturgeschichte, a história das formações das nações, a história que
romanticamente homogeneiza e cria um “povo” unificado sob a égide de um
mesmo projeto, a ■-história das “culturas” e “civilizações”, que apaga as outras
narrativas e inscrições que não convêm a essa narrativa unificada, toda essa
historiografia deve ser explodida e desmontada a partir de narrativas que levem
em conta a história das lutas, a história das resistências, a história das violências
tentativamente apagadas. Essas narrativas devem ser estruturadas pelo que
Benjamin denomina “luta de classes”. Hoje estamos autorizados a traduzir
esse conceito atualizando-o para nosso tempo-agora. Nesse sentido, podemos
pensar não apenas nas classes trabalhadoras, mas também em todos aqueles
que são vítimas dessa máquina voraz do progresso, o aparelho da colonialidade,
que nos jogou agora no fundo de uma das maiores crises que a humanidade já
viveu, a saber, a pandemia de covid-19. O modelo monológico e altericida da
Modernidade capitalista184 permite que possamos expandir essa noção de “luta
de classes” para incluir as populações indígenas originárias que sofrem hoje
um aprofundamento da necropolítica contra elas, bem como as populações
afrodescendentes^ igualmente mais vitimadas pela covid e por projetos de
extermínio via suspensão da penalização a membros das forças policiais que
assassinarem em trabalho; também devemos incluir as mulheres vítimas da
violência feminicida que igualmente se aprofundou durante o confinamento
imposto pelas politicas.de saúde para o enfrentamento da pandemia. Sabemos
que as populações que mais têm sofrido com as crises socioambientais são
aquelas que justamente são empurradas pelo modelo de acumulação capitalista
para a base da pirâmide de riqueza. Segundo dados da Oxfam, a fortuna dos dez
homens mais ricos do mundo (U$ 540 bilhões) seria o suficiente para financiar
a imunização de toda a humanidade contra a covid.185 Mas a imunização está
ocorrendo de modo acelerado, como condiz com a situação de calamidade,
praticamente apenas nos países ricos, com raras exceções.
A poderosa e sempre reafirmada noção de uma continuidade do progresso
como algo positivo tem uma oportunidade única de sofrer a mais profunda

90
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

crítica no momento em que vivemos. E, se sobrevivermos a essa pandemia,


poderemos a partir dessa crítica abrir as portas para outros modelos de
convivência inter-humana e com não humanos. Recordemos outro dos
fragmentos de Benjamin às suas teses: “Enquanto a ideia «Vorstellung»
do continuum arrasa tudo, a ideia da descontinuidade'«die Vorstellung
des Diskontinuums» é a base da tradição genuína. É necessário mostrar a
conexão entre o sentimento de um novo começo e a tradição”.1815 Apenas com
essa outra representação da história, marcada pela descontinuidade, podem-se
associar as visões de sociedades e futuros alternativos à miríade de utopias
e sonhos, de histórias de luta e resistência que se encontram recalcadas sob
o peso da historiografia burguesa. Essa mudança de representação implica
também a ruptura dos grilhões que amarram e submetem outras memórias,
histórias e epistemologias que são reprimidas sob a batuta da representação
matricial do progresso no tempo linear e vazio. Liberar outras representações
do devir histórico, outras histórias e projetos de sociedade significa também
reconhecer outras epistemologias como igualmente dignas de participação na
construção de nosso viver em comum. Com o acachapante colapso do modelo
de progresso ocidental, está mais do que na hora de revolucionar as estruturas
epistemológicas que sustentam nossas políticas. Temos, se não quisermos
perecer em crises sanitárias cada vez mais fatais, que nos abrir para fundar
novas tradições a partir da escrita a contrapelo da história. A historiografia
apologética que imperou até hoje se tornou insustentável. Como escreveu
Benjamin: “‘Celebração’ é empatia com a catástrofe”, e em seguida acrescentou:
“A história «Geschichte» não tem como tarefa apenas apoderar-se da tradição
dos oprimidos, mas também, fundá-la”.187 Estamos no momento dessa premente
refundação da tradição dos oprimidos. Daí as acima referidas revoltas contra
os símbolos da história colonial que vêm se acelerando. Refundar a tradição
dos oprimidos no Brasil significa também se opor a séculos de história de
apagamento das histórias afrodescendentes diaspóricas e ameríndias. Nesse
sentido, vale lembrar um dos documentos mais representativos da história
desse apagamento, a saber, o decreto de Ruy Barbosa, de 14 de dezembro de
1890, comandando a queima dos arquivos da escravidão:

í Ruy Barbosa, Ministro e Secretário do Estado dos Negócios da Fazenda e presidente


do Tribunal do Tesouro Nacional: Considerando que a nação brasileira, pelo mais

91
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’

sublime lance de sua evolução histórica, eliminou do solo da pátria a escravidão


- a instituição funestíssima que por tantos anos paralisou o desenvolvimento
da sociedade, inficionou-lhe a atmosfera moral; considerando que a República
está obrigada a destruir esses vestígios por honra da pátria, e em homenagem
aos nossos deveres de fraternidade e solidariedade para com a grande massa de
cidadãos que pela abolição do elemento servil entraram na comunhão brasileira;
resolve:
i. Serão requisitados de todas as tesourarias da Fazenda todos os papéis, livros
e documentoslexistentes nas repartições do Ministério da Fazenda, relativos ao
elemento servil, matrícula dos escravos, dos ingênuos, filhos livres de mulher
escrava e libertos sexagenários, que deverão ser sem demora remetidos a esta
capital e reunidos em lugar apropriado na Recebedoria.
2. Uma comissão composta dos Srs. João Fernandes Clapp, presidente da
Confederação Abolicionista, e do administrador da Recebedoria nesta capital
dirigirá a arrecadação dos referidos livros e papéis e procederá à queima e
destruição imediata destes, o que se fará na casa da alfândega desta capital, pelo
modo que mais conveniente parecer à comissão.
Capital Federal, 14 de Dezembro de 1890. Ruy Barbosa.188

Esse decreto é importante não apenas por documentar de modo cristalino


a história do apagamento da escravidão (“a República está obrigada a destruir
esses vestígios por honra da pátria”), mas também a construção de uma falsa
harmonia entre as classes, já que se teria feito esse ato “em homenagem aos
nossos deveres de fraternidade e solidariedade para com a grande massa
de cidadãos que pela abolição do elemento servil entraram na comunhão
brasileira”. Apagam-se a história e os conflitos sociais com uma penada. A
história edulcorada oculta a catástrofe real.
Benjamin vê “a catástrofe como o continuum da história”189 e contava com
a reminiscência como “última esperança” de uma sociedade que se afoga
na necrópole em que se converteu. Daí, para ele, ser a revalorização dessa
reminiscência que deve sustentar também novas visões de futuro, já que a
“função da utopia política” é a de “iluminar o setor digno de ser destruído”.190
Ou seja, deve-se destruir, antes de mais nada, a poderosa ideologia do progresso
aliada às representações/repressões/apagamentos produzidos pela historiografia
apologética. Trata-se de liberar do jugo do esquecimento e do apagamento
contínuo outras epistemologias, outras narrativas, outras opções de estar no

92
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

mundo. Essa libertação dá-se sob o signo de uma redenção, já que se trata de
“liberar as forças destrutivas subjacentes à ideia de redenção”.*91
Essa redenção, para Benjamin, dar-se-ia em termos materiais, com o fim
da exploração de uns sobre os outros, mas também em termos mnemônicos:

O cronista, que narra os [...] acontecimentos sem distinguir os grandes dos


pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que já ocorreu pode ser
considerado perdido para a história. Decerto, apenas a uma humanidade redimida
cabe a totalidade do seu passado. Isso quer dizer: somente para uma humanidade
redimida o seu passado pode ser citável em cada um dos seus momentos. Cada um
de seus instantes vividos se tornará uma citation à l’ordre dujour - dia esse que é
justamente o do juízo final.'9-

Mas esse elemento de “juízo final”, de redenção, implica uma noção de


ruptura absoluta, de realização da ideia de descontinuidade. Se a continuidade é
a catástrofe, a redenção é a ruptura, ou, como afirma Benjamin em outra de suas
teses, ela é o “estado de exceção efetivo”, já que o “estado de exceção” enquanto
continuidade da catástrqfe e da distopia gerida por soberanos déspotas, como
vimos, “é a regra”.193 Daí Benjamin afirmar com razão que “o espanto ante o
fato de que as coisas que vivemos no século XX ‘ainda’ sejam possíveis não
tem nada de filosófico”.194 A eleição de Trump em 2016, a de Bolsonaro em
2018, a sequência de golpes e tentativas de golpes que assombram o mundo
em meio à pandemia, tudo isso é 0 corolário do “progresso”, ou seja, de um
modelo para o qual o “estado de exceção” como distopia autor reprodutor a
é a regra. Já o “estado de exceção efetivo” seria aquele inteiramente outro, a
ruptura. A ideia de que Hitler, Trump ou Bolsonaro seriam contradições com
relação aos tempos que lhes pariram, voltando a Benjamin, “não se encontra
no início de um conhecimento, a não ser aquele que aponta para o fato de
que a representação da história da qual ele deriva não pode ser sustentada”.195
Apenas mudando nossa visão da história e do seu devir poderemos induzir ao
efetivo estado de exceção. Enquanto permanecermos lutando pelo “progresso”
estaremos atuando na direção das forças que defendem o fascismo. Se os
governos mais fascistas são também os que menos se ocupam com questões
ambientalistas, não há nenhuma contradição nisso. A concepção que reduz a
natureza à commodity, ou, na expressão de Benjamin, aquele que vê a natureza
como algo que “está aí de graça”,196 é a contraparte da redução do trabalhador

93
“DA ARS MEMORIAE AOS ESTUDOS DE MEMÓRIA PÓS-COLONIAIS’

a mero corpo domesticável e explorável. Quando Benjamin anota, em seus


esboços e versões das teses, que “é necessária uma teoria da história, a partir
da qual se possa encarar o fascismo”,197 é porque sabe que não é possível vencer
as forças fascistas mantendo uma “fé teimosa [...] no progresso, a confiança no
‘apoio das massas’ e, por fim, [...] [o] alinhamento obediente a uma aparelho
incontrolável”.198

A ESCOLA DO OLHAR: ESPAÇO IMAGÉTICO, ESPAÇO CORPÓREO


E A IMAGEM DOS ANTEPASSADOS ESCRAVIZADOS

A escola do olhar guia para esse filósofo a construção de nossos afetos e de


nossas forças políticas. Daí a centralidade, neste contexto no qual procuro traçar
uma reflexão sobre os usos da memória e da história, da tese que justamente se
inicia citando uma passagem do texto de Nietzsche Vom Nutzen und Nachteil
der Historiefür das Leben (Vantagens e desvantagens da história para a vida). A
epígrafe dessa tese é clara: “Precisamos da História [Historie], mas precisamos
dela de modo diferente do que o daquele ocioso mimado andando pelos jardins
do conhecimento”.199 Estamos diante de uma visão bastante pragmática do
saber histórico, que abala a ideia de torre de marfim associada a esse saber. Mais
do que um saber “elitista”, no entanto, esse saber era produzido por uma elite
e em seu nome. Ou seja, ela o faz em nome de sua continuidade: a saber, em
nome do “progresso”. Em oposição a essà historiografia, Benjamin propõe em
suas teses aquilo que denomino “escola do olhar”, pois ele propõe a construção
de imagens históricas poderosas, que apresentem (na visualidade requerida) a
história das lutas e dos sofrimentos dos “antepassados escravizados”. Leiamos
a tese central nessa construção de um conceito de escola do olhar:

O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe oprimida combatente. Em


Marx, ela aparece como a última classe escravizada, como aquela que se vinga, e
que vai consumar o trabalho de libertação em nome de gerações de massacrados.
Essa consciência, que esteve ativa durante o breve período da “Liga Spartacus”,200
foi sempre incômoda para a social-democracia. Ao longo de três décadas, ela quase
conseguiu apagar o nome de um Blanqui, que soava retumbante no século passado.
Ela preferiu atribuir à classe trabalhadora o papel de salvar as gerações futuras.
Desse modo, cortou o tendão de suas melhores forças. A classe desaprendeu nessa

94
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

escola tanto o ódio quanto a capacidade de sacrifício. Pois ambos se alimentam da


imagem dos antepassados escravizados, e não do ideal dos descendentes libertos.
[...] A Revolução Russa sabia disso. O ditado “nenhuma glória para o vencedor,
nenhuma compaixão para os vencidos” é penetrante, porque expressa mais a
solidariedade com os irmãos mortos do que uma com os herdeiros. [...] Se existe
uma geração que deveria sabê-lo é a nossa: o que devemos esperar dos pósteros
não é um agradecimento por nossos grandes feitos mas antes a reminiscência de
nossas derrotas |uma| memória daqueles que sucumbiram.201

Essa tese apresenta de modo cristalino a “virada copernicana” no saber


histórico proposta por Benjamin.202 Para tanto, ele apresenta o paralelismo
entre a tarefa revolucionária e o pensamento histórico - em ambos os casos
o agente é a classe oprimida combatente. Se o combatente luta tendo em vista
a libertação do passado reprimido e não combate tendo em vista um futuro
radioso, da mesma forma o historiógrafo deve alimentar a luta presente a partir
das imagens “dos antepassados escravizados”. Trata-se de uma estratégia de
biopolítica positiva das emoções, de canalização dos sentimentos de vingança,
ódio e da capacidade de sacrifício a favor da revolução. Isso ocorre através
de uma verdadeira guerra de imagens. Em seu ensaio sobre o surrealismo de
1929, ele já formulara a necessidade de construção de um Bildraum, espaço
de imagem (conceito retomado nos esboços às teses),203 que associou a uma
politização do pensamento histórico. Para ele, o corpo e o espaço das imagens
interpenetrados permitirão que “todas as tensões revolucionárias se tornem
inervações do corpo coletivo, e todas as inervações do corpo coletivo se tornem
tensões revolucionárias”.204 Os exemplos de Benjamin, a Liga Spartacus e a
Revolução Russa, teriam sido momentos de manifestação dessa consciência
histórica revolucionária. Sempre que governos fascistas assumem o comando,
essa consciência histórica se torna vital na luta política. No mesmo ensaio, “O
Surrealismo. O último instantâneo da inteligência europeia”, ele formulou a
necessidade de organizar 0 pessimismo, o que, em 1939, no contexto da escrita
das teses, deu-se na chave de vencer o fascismo. Importante destacar que
em 1929 Benjamin desenvolveu a ideia de construção do espaço imagético,
considerando que ele teria um elemento corpóreo, o Leibraum (espaço
corpóreo), como meio de enfrentar a política reduzida ao falso moralismo. Nas
teses, a ideia da virada copernicana, que se torna a virada do anjo da história
em direção ao passado, visa alimentar o espaço de imagens com aquelas que

95
'da ARS memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’

permitem a instauração de um autêntico estado de exceção, ou seja, a revolução.


Essas imagens apresentam a história dos oprimidos em sua descontinuidade.
No ensaio sobre o surrealismo, lemos:

Organizar o pessimismo205 significa simplesmente extirpar a metáfora moral da


esfera da política, e descobrir no espaço da ação política o espaço completo da
imagem. Mas esse espaço de imagem não pode mais absolutamente ser medido de
forma contemplativa. Se a dupla tarefa da inteligência revolucionária é derrubar
a hegemonia intelectual da burguesia e estabelecer um contato com as massas
proletárias, ela fracassou quase inteiramente na segunda parte dessa tarefa, pois
esta não pode mais ser realizada contemplativamente. [...] Pois também na pilhéria,
no insulto, no mal-entendido, em toda parte em que uma ação produz a imagem
a partir de si mesma e é essa imagem, em que a incorpora e devora, em que se
perde a própria proximidade de vista - aí abre-se esse espaço de imagens que
procuramos, o mundo em sua atualidade completa e multifacetada [...]. Também
o coletivo é corpóreo. E a physis, que para ele se organiza na técnica, só pode ser
engendrada em toda a sua eficácia política e objetiva naquele espaço de imagens
que a iluminação profana nos tornou familiar.206

Com a ideia de um espaço imagético que nos atravessa, que é corpóreo,


capaz de vencer as imagens do progresso e as demais falsas concepções da
história, Benjamin tanto contrabandeia para dentro do discurso histórico
a concepção de “iluminação profana”, como reivindica, no mesmo ensaio,
“mobilizar para a revolução as energias da embriaguez”.207
A técnica é o local de articulação dessas imagens corpóreas, técnica esta
que Benjamin denominou “segunda técnica”, para diferenciar da “primeira
técnica”, a associada tanto às guerras e à produção de morte quanto ao
conceito corrupto de progresso.208 No ensaio A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica, Benjamin volta ao tema da técnica como meio de
inervação do corpo coletivo que ele pregara em seu ensaio sobre o surrealismo.
A segunda técnica, teorizada nesse ensaio, como aparelho de produção desse
espaço de imagens que penetra o corpo coletivo, é pensada pelo autor a partir
do cinema e da fotografia e tem no seu coração o gesto do “jogar com”.2”9 Se a
primeira técnica quer a “dominação da natureza”, a segunda técnica quer “um
jogo conjunto entre natureza e humanidade”.210 Benjamin articula, então, a
sua teoria da técnica com a teoria da produção de um espaço imagético capaz

96
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

de inervar o corpo coletivo. Assim ele vai da sua teoria do espaço de imagem
{Bildraum), passando pelo espaço do corpo (Leibraum), elaborados no ensaio
sobre o surrealismo, atingindo uma teoria da ampliação do “campo de ação”,
que ele pensa no ensaio sobre a obra de arte como um campo lúdico de ação:
Spielraum (literalmente: espaço-jogo).2*1
Resumindo e articulando suas idéias do ensaio de 1929 sobre o surrealismo,
passando pelo seu ensaio sobre a obra de arte e chegando nas teses Sobre o
conceito de história, de 1919-1940, Benjamin constrói uma poderosa teoria
da necessidade de criar imagens capazes de despertar as consciências para
a revolução. Elas alimentariam o corpo coletivo, inervando-o, produzindo 0
ímpeto para a mudança histórica, que significaria o fim do progresso como
catástrofe e a inauguração de um novo tempo, que liberaria as histórias
recalcadas pela historiografia associada ao progresso e ao culto do tempo linear,
homogêneo e vazio. O tempo denso, pleno de Jetztzeit, tempo-agora, que para
Benjamin é o tempo da historiografia a contrapelo, esse tempo nasce também
da nossa capacidade de nos apropriarmos dessa segunda técnica que, como uma
caverna platônica ao contrário, nos libertaria dos grilhões das falsas imagens
que nos dominam. Não por acaso, como vimos na tese XII, que citei acima a
partir da variante do manuscrito de Hannah Arendt, Benjamin fala na tarefa
de alimentar esse ímpeto revolucionário com a “imagem dos antepassados
escravizados” (e não, como o fazem os partidos burgueses, prometendo um
futuro liberto e rico para todos).

A “IMAGEM DOS ANTEPASSADOS escravizados”


E A VIRADA PÓS-COLONIAL

Após a Segunda Guerra Mundial, é justamente a questão das histórias


das colônias e da colonialidade que se tornariam cada vez mais centrais para
pensarmos essa reviravolta imagética. A máquina de guerra da produção das
imagens, a construção de uma ancestralidade, ao lado da tentativa de recuperar
e narrar as infinitas histórias do sofrimento e da luta anticolonial, tornaram-se
propulsoras para repensarmos a história e a memória. Um profundo processo
de jevisionismo positivo foi inaugurado então. Autores como Aimé Césaire,
Frantz Fanon, Léopold Sédar Senghor, seguidos de Abdias Nascimento, Lélia

97
“da abs memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”

Gonzalez, Edward Said, Stuart Hall, Gayatri Spivak, Ranajit Guha, Homi
Bhabha, Dipesh Chakrabarty, Stuart Hall, Achille Mbembe, chegando a
representantes dessa tradição hoje, como a artista e ensaísta Grada Kilomba,
foram e estão sendo responsáveis por produzir essa historiografia a contrapelo
que Benjamin já reivindicava do fundo do inferno da Segunda Guerra em 1940.
Também esses autores produzem novas imagens, “imagem dos antepassados
escravizados” e de suas lutas, que têm produzido uma impressionante e bem-
-vinda virada copernicana nas Humanidades. Os estudos pós-coloniais têm
fecundado as mais diversas áreas do saber, rompendo com hábitos poderosos,
desconstruindo imagens do esquecimento que impediam a articulação de
outras histórias, outras epistemologias e outros futuros. Autores brasileiros
como os mencionados Abdias Nascimento e Lélia Gonzalez, e os mais jovens
Djamila Ribeiro e Silvio Almeida, participam dessa virada epistemológica
e política. Esses autores rompem com o falso universalismo do pensamento
ocidental, introduzindo a questão da localização dos saberes. Não por acaso
Dipesh Chakrabarty2'2 dedica um ensaio inteiro à crítica do historicismo,
alvo declarado também das teses sobre a história de Benjamin. Este último
evidentemente não pode ser classificado como um autor pós-colonial, mas sua
teoria da história e da escrita histórica fornece-nos bases teóricas para pensar
a pós-colonialidade. Ele percebeu a necessidade de romper com o conceito da
temporalidade do progresso que bloqueia a contraescritura da história, assim
como assombra e domina as políticas até hoje, sempre baseadas no modelo
monológico da Europa branca. Benjamin pensava em uma localização do
saber a partir da questão da luta de classes e do tempo-agora. O pensamento
pós-colonial desdobra esse gesto para pensar a articulação da história da
Modernidade capitalista com a violência colonial, racista, de gênero e de
classe. A virada copernicana do saber se dá tanto no sentido de pensar na
posição do “anjo da história”, ou seja, voltado para a história dos escravizados,
como no de pensar o significado da colonização e da racialização impostas
como dispositivo biopolítico de controle de corpos individuais e coletivos. A
proclamada inervação de corpos coletivos através de contraimagens embebidas
na “iluminação profana” passa a ser pensada também como valorização de
outras epistemologias não logo/eurocêntricas. “Provincializar a Europa”
significa mostrar que o conhecimento é localizado. Assim, assume-se o corpo
como parte do saber, rompendo-se com milênios de doutrinas espiritualizantes,

98
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

antissensuais, que pretendiam construir um logos universal teoricamente


“neutro” (como pudemos acompanhar neste capítulo), mas que, na verdade,
é branco e europeu. A história da plantation surge como um mote central
nessa contra-história, na medida em que se percebe zplantation como núcleo
inconsciente da Modernidade: recalcado em sua história e em seu significado.
O trabalho de escavar essa história é realizado no sentido também de recuperar
a seiva da luta antiescravocrata. Para autores como Abdias Nascimento e
Paul Gilroy, esse dispositivo colonial representava “a essência interna do
capitalismo”, e sua história e sua destruição devem ocupar “um lugar central
nas lembranças históricas do Atlântico negro”.213 Gilroy vê nessa história da luta
da emancipação da escravidão algo que ele denomina com o termo de Walter
Benjamin “história primordial da Modernidade”. E conclui: “Está na hora de
reconstruir a história primordial da Modernidade a partir dos pontos de vista
dos escravos”.214
Ao incluir a localização e o corpo como partes essenciais de todo saber, a
virada pós-colonial revela-se também como uma virada testemunhai, como já
adiantei no início deste texto. Desde Frederick Douglas e de W. E. B. Du Bois,
com seu fundamental e influente The Souls ofBlack Folk, autores como Richard
Wright, F. Fanon, A. Nascimento, L. Gonzalez, G. Kilomba têm articulado a sua
crítica à colonialidade, no sentido de apontar as continuidades e metamorfoses
das violências coloniais, a partir da curadoria de experiências próprias ou
recolecionadas de outros negros que narraram suas histórias. Descrevendo
a vida e a obra de Frederick Douglas, Gilroy destaca como a autobiografia
funciona nele exemplarmente como “processo de simultânea autocriação e
autoemancipação”.215 A cultura da diáspora africana é profundamente marcada
por esse gesto de criação de uma “persona pública”.216 Esse gesto é de revolta
contra a mordaça do logos ocidental pretensamente universal:

É importante notar aqui que uma nova economia discursiva emerge com a recusa
em subordinar a particularidade da experiência escrava ao poder totalizante da
razão universal detida exclusivamente por mãos, canetas ou editoras brancas.
Autoria e autonomia emergem diretamente do deliberado tom pessoal desta história.
Avidamente recebidos pelo movimento para o qual se dirigiam [os relatos de
resistência contra a escravidão] ajudaram a demarcar um espaço dissidente dentro
da esfera pública burguesa que eles visavam preencher com seu conteúdo utópico. O
caráter autobiográfico de muitas declarações como esta é absolutamente crucial.217

99
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”

Gilroy nota ainda como esse tipo de narrativa autodiegética desmonta


também os regimes de verdade da episteme eurocêntrica, na medida em que
propõem outras modalidades do que seria a verdade e o racional. Ele reconhece
no “testemunho pessoal”, no entanto, não um novo gênero literário, mas,
antes, “uma modalidade distinta e constrangedora de comentário metafísico,
filosófico”. Frederick Douglas apontaria, segundo Gilroy,

para o início e a reprodução de uma perspectiva política distinta na qual a


autopoiesis se articula com a poética para construir uma postura, um estilo e
um clima filosófico que têm se repetido e reformulado desde então na cultura
política do Atlântico negro. Os componentes vernáculos da cultura expressiva
negra estão portanto vinculados a textos mais explicitamente filosóficos de
escritores modernistas negros como Wright e Du Bois. Eles desenvolvem esta
linha de investigação buscando responder às perguntas metafísicas “Quem sou
eu?” e “Quando sou mais eu mesmo?”.213

Tanto Douglas como Du Bois escreveram no sentido de localizar o tráfico


escravo e aplantation no cerne da Modernidade e não como a sua aberração,
lembrando aqui o. que lemos acima com Flusser, que afirmava que o telos do
aparelho ocidental era o campo de concentração. “A existência permanente
do racismo desmentiu” os vereditos que veem neles eventos “aberrantes”. Esse
fato, antes, “exige que consideremos mais profundamente a relação de terror e
subordinação racial com a própria natureza interna da Modernidade”.2"9
A artista performer, psicóloga e ensaísta Grada Kilomba também destaca
esse ponto da virada epistêmica pós-colonial associada ao gesto testemunhai,
a partir da escritura do corpo. No item “Descolonizando o conhecimento” de
seu ensaio Memórias da plantação, ela destaca:

Escrever sobre o próprio corpo e explorar os significados do corpo pode, obviamente,


ser visto como um ato de narcisismo ou de essencialismo, escreve Nkweto Simmonds
(1997). Ela conclui, contudo, que essa é uma estratégia importante usada por mulheres
africanas e afrodiaspóricas para desconstruir sua posição dentro da academia. [...]
Como Gayatri C. Spivak (1993) explica em seu ensaio Marginality in the Teaching
Machine, que tais escritos pessoais são uma “crítica persistente e (des)construtiva à
teoria”, um debate sobre a impossibilidade de o corpo e as construções racistas sobre
ele escaparem dentro da “máquina de ensino”.220

100
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Kilomba estrutura sua pesquisa sobre a situação das mulheres negras baseada
em entrevistas, em estudos de caso. Ela faz uma curadoria de testemunhos
para repensar criticamente a colonialidade hoje a partir de mulheres negras
que vivem na Alemanha?2’ Essa centralidade no sujeito é fundamental na sua
(contrajepistemologia. Essa pesquisa centrada em sujeitos permite perscrutar
a realidade de dentro para fora, constituindo ao mesmo tempo os sujeitos
sofredor e resistente. Essas mulheres negras passam a ser vistas como agentes
e não como objetos, já que são elas que constroem a perspectiva do desenho:

Tem-se o direito de ser um sujeito - político, social e individual - em vez da


materialização da Outridade, encarcerada no reino da objetividade. Isso só se
torna concebível quando existe a possibilidade de expressar a própria realidade
e as experiências a partir de sua própria percepção e definição, quando se pode
(re)definir e recuperar a própria história e realidade. Se as mulheres negras, bem
como outros grupos marginalizados, têm o direito capital, em todos os sentidos do
termo, de ser reconhecidas como sujeitos, então também devemos ter esse direito
reconhecido dentro de processos de pesquisa e de discursos acadêmicos. Esse
método de focar no sujeito não é uma forma privilegiada de pesquisa, mas um
conceito necessário.222

Também obras recentes de impacto no revisionismo histórico positivo que


vivemos, de autoria de ameríndios, como Davi Kopenawa Ailton Krenak,223 têm
aportado novas imagens que alimentam uma necessária contra-história que
precisa se articular na luta contra a presente volta do pensamento fascista. Essa
potente linhagem testemunhai ocorre em um século marcado pela ascensão
do dispositivo testemunhai como meio de inscrição e tentativa de elaboração
dos traumas do século.

Este livro

Neste livro reúno vários ensaios que também testemunham a história de meu
pensamento em torno dessa questão da virada testemunhai. Transitando entre
diferentes áreas do saber, como a psicanálise, as teorias da história, da estética,
das artes, da literatura e os estudos da Shoah e pós-coloniais, gostaria de poder
apresentar aos leitores possibilidades de trabalhar a partir da concepção de

101
‘da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’

virada testemunhai do saber histórico. Essa abordagem, como espero que tenha
ficado evidente, recusa o esteticismo das abordagens da cultura que, em grande
parte, ainda dominam não só no Brasil. Os estudos de testemunho possuem
para mim, desde meu livro História, memória, literatura: o testemunho na
era das catástrofes (primeiro editado em 2003), como conceito fundamental a
noção de “teor testemunhai”. Como escrevo em uma nota do texto “O local do
testemunho”, parte deste livro, desenvolvi esse conceito de “teor testemunhai”
partindo dos conceitos benjaminianos de “teor de verdade” (Wahrheitsgehalf)
e de “teor coisal” (Sachgehalt), que Benjamin desenvolveu em seu ensaio sobre
As afinidades eletivas de Goethe e, por outro lado, da sua famosa frase segundo
a qual “não há um documento da cultura que não seja ao mesmo tempo um
documento da barbárie”.224 Essa frase é central no contexto dessas teses. É
muito importante destacar que, na versão francesa das teses, Benjamin utiliza
o conceito de témoigner, ou seja, testemunhar para traduzir: “Tudo isso não
testemunha a cultura sem testemunhar ao mesmo tempo a barbárie”.225 Na
versão em alemão esse conceito de testemunho, raro na pena desse autor, não
aparece. Essa frase estabelece teoricamente a possibilidade de formular uma
nova historiografia e uma outra concepção de virada histórica, que chamo de
“testemunhai” e que permite a desconstrução da visão iluminista, eurocêntrica
e triunfalista que via na história um processo linear, ascendente e positivo.
Benjamin faz explodir esse modelo com a sua ideia de Jeztzeit, tempo-agora,
que fragmenta a coluna vertebral da falsa linearidade, e, por outro lado, com
a reversão dos valores, que lança luz sobre os que sempre levaram o fardo da
história e não mais sobre as elites “triunfantes”.
Se, na abertura deste capítulo, lembrei das palavras de Pierre Vida-Naquet
e de Marcei Detienne que defendiam a ideia de uma civilização científica com
um conceito unívoco de verdade (associado a “objetividade, comunicabilidade
e unidade”), fecho lembrando de outras possibilidades de cartografias do saber
que são também as bases de nossas ações e de nosso estar no mundo. Voltando à
metáfora medieval da Bíblia como mapa, podemos pensar em novas cartografias
que precisam ser desenhadas para nos lançar fora do caminho do progresso
(Benjamin)226 e da programação do aparelho (Flusser). Essa proposta também
é a do curador camaronês Bonaventure Ndikung, que recentemente expressou
a necessidade de realizarmos a “demolição de cartografias de poder” e de levar
a cabo uma “recalibragem das relações humanas e não humanas, espaciais

102
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

e sociais”, baseada em uma “interdependência de todos os seres animados e


inanimados que coabitam este mundo”.227 Acredito que, nessa confecção de
novas cartografias, de saber e de poder, a virada testemunhai está produzindo
um poderoso revisionismo positivo instituindo novos campos de imagem,
novos espaços de ação.

Notas

1 “Um tribunal de Varsóvia decidiu nesta terça-feira (09/02) que dois historiadores poloneses
devem pedir desculpas por terem ‘manchado a memória’ de um ex-prefeito polonês
num livro que escreveram sobre o Holocausto, ao apontarem o envolvimento da antiga
autoridade no extermínio de judeus. [...] O tribunal declarou que os pesquisadores Barbara
Engelking, diretora do Conselho Internacional de Auschwitz na Polônia, e Jan Grabowski,
da Universidade de Ottawa, devem se desculpar com Edward Malinowski por terem citado
no livro Dalejjest noc (k Noite sem Fim, em tradução livre), de 2018, que o então prefeito do
vilarejo de Malinowo entregou judeus a alemães nazistas. A justiça, no entanto, não acatou
0 pedido de pagamento de uma indenização de 100 mil zlotys - o equivalente a cerca de Rs
145 mil”. Disponível em <https://www.dw.com/pt-br/autores-condenados-a-se-desculpar-
por-livro-sobre-holocausto/a-5Ó5i6297 >. Acesso em 18/2/2021.
2 O livro continuou a circular na Alemanha pós-guerra apenas em exemplares antigos, sem
que isso fosse considerado ilícito, e voltou a poder ser publicado em edição crítica a partir de
2016, após terem expirado, em 2015, os direitos autorais que pertenciam ao Estado da Baviera.
3 Disponível em <https://www.rtp.pt/noticias/mundo/moscovo-estuda-possibilidade-de-
-sancoes-contra-tallinn_ni3ó5i8>. Acesso em 22/3/2022.
4 Anderson, 2008.
2 “Make America great again.”
6 Fanon, 1961; Wieviorka, 1998; Felman & Laub, 1991; Mbembe, 2017 e 2019; Felman, 2014;
Seligmann-Silva & Nestrovski, 2000; Seligmann-Silva (org.), 2003.
' Mbembe, 2017, p. 29.
8 Homero, 2007.
9 Detienne, 2003, p. 15.
10 Idem, ibidem.
11 Idem, p. 17.
12 Idem, p. 18.
13 Idem, p. 19.
14 Idem, p. 21.
12 Vidal-Naquet, 2003, p. 7.
16 Idem, p. 8.
lz Idem, ibidem.
18 Detienne, 2003, p. 13.
19 Idem, p. 16.
20 Cf. Yates, 1966, p. 32; 2008, p. 53.
“Die Vorstellungskraft bleibt unvorstellbar” (Nancy, 2007, p. 161).
22 Assmann, 1999, p. 30; 2012, p. 35.

103
‘da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”

23 Cf. Yates, 1966, p. 34 e ss.; 2008, p. 56.


24
Yates, 1966.
25 Locus comunis, expressão que sobrevive ainda hoje como uma descendente da arte da
memória. O leitor logo compreenderá por quê.
26 Cicero, De oratore II, p. 351 e ss.; Quintiliano, Institutio Oratória, XI, II, pp. 11-16.
Assmann, 1999, p. 35 e ss.; 2012, p. 40 e ss.
28
Cicero, De oratore, II, pp. 299 e 351; cf. Weinrich, 1997, p. 23 e ss.
29
Eco, 1988.
30
Benjamin, 2020, p. 173.
31
“I cantbreathe.”
32
“Total Recall Script”. Disponível em <http://www.script-o-rama.eom/movie_scripts/t/
total-recall-script-transcript-arnold.htm>. Acesso em 20/3/2021.
33
Esse tratado durante muito tempo fora atribuído a Cícero e durante a Idade Média era
chamado de “Segunda Retórica de Tullius” (sendo que a “primeira” era considerada como
tendo sido o De inventione de Cícero).
34
Cf. De inventione I, VII, 9; Yates, 1966, p. 8 e ss.; 2008, p. 25.
35
“memória est firma animi rerum ac verborum ad inventionem perceptivo” (“Memory is
the firm mental grasp of matter and words”, na tradução de H. M. Hubbell, De inventione
I, VII, 9).
36
O tratado Ad Herennium distingue entre a memória de coisas, memória rerum, e a
memória das palavras, memória verborum. Ou seja, podem-se estabelecer tanto imagens
que representam uma ideia ou condensam algumas idéias, como uma série de imagens
correspondendo às palavras de um discurso. Devido à sua dificuldade, essa segunda
modalidade teve na história da arte da memória um papel secundário. Nesse método, as
palavras são subsumidas à escrita hieroglífica das imagens.
37
Retórica a Herênio III, p. 29.
38
Idem, p. 30.
39
Idem, p. 33.
40
Idem, ibidem.
41
Idem, p. 37.
42
Carruthers, 1990 e 2011.
43
A. Assmann, 1999 e 2012; J. Assmann, 1988 e 2008; Weinrich, 1997 e 2001; Yerushalmi, 1982,
1988,1991 e 1993; Derrida, 2001 [1995].
44
Carruthers, 2011, p. 40.
45
Vom Erhabenen, 1988.
46
Do sublime, 1996.
47
Do sublime XV, 1 e 11. Em Santo Agostinho, no seu estudo Sobre a música, ele trata
esse conceito de “phantasiai” como parte de sua teoria da memória que, como em
Aristóteles, coabita com a imaginação: “São essas representações dos movimentos da
alma, correspondentes às impressões dos órgãos, que, gravadas no depósito da memória,
chamamos, em grego, de fantasia [phantasiai]: não encontro em latim um termo melhor que
esse” (Santo Agostinho, 2019, p. 158). A partir dessa referência à presença das emoções na
visão estoica e medieval da memória, Carruthers remete, para certificar essa concepção, de
modo que me parece surpreendente, ao neuropsicólogo Antonio Damasio e suas pesquisas
que teriam constatado que “memórias emocionais envolvendo o> medo estão gravadas
permanentemente no cérebro; elas podem ser reprimidas, mas nunca apagadas” (Damasio,
apud Carruthers, 2011, p. 41). Digo surpreendente porque normalmente os pesquisadores
culturalistas da memória não costumam comungar dessa bibliografia, digamos, “científica”;

104
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

pelo contrário, costumam ser críticos a ela destacando seu reducionismo biossomático
dos fenômenos emocionais e psicológicos. Mas, assim como Yates, tampouco Carruthers
pode ser associada aos estudos de memória cultural, apesar de suas contribuições serem
muito importantes e contemporâneas a esse movimento. Como afirmei, ela se enquadra
nos estudos de linhagem mais filológico-histórica. Com relação a essa questão específica,
antes, eu diría que as pesquisas de Damasio reafirmam as descobertas bem antigas de
Aristóteles, do autor anônimo do tratado Do sublime, de Spinozà, Moses Mendelssohn,
Lessing, Edmund Burke, Freud, entre tantos outros, e não o contrário.
48
Carruthers, 2011, p. 60.
49
Idem, p. 68.
50
Idem, ibidem.
51
Seligmann-Silva, 2016.
52
Carruthers, 2011, p. 69.
53
Auerbach, 1938, p. 436.
54
Idem, p. 438; 1997, p. 15.
55
Seligmann-Silva, 2020b.
56
Halbwachs, 1994 [1941].
57
Carruthers, 2011, p. 77.
58
Idem, p. 80.
59
A. Assmann, 2012, p. 107.
60
Santo Agostinho, 1987, p. 224.
61
Carruthers, 2011, p. 62.
62
Santo Agostinho, 1987, p. 233.
63
Idem, ibidem.
64
Idem, p. 229.
65
Ou seja, aquele que utiliza corretamente as bases escritas, hupomnémata, sem deixar o
suplemento se sobrepor à memória natural, mnéme (Derrida, 2001, p. 22; Foucault, 2004,
p. 826).
66
Santo Agostinho, 1987, p. 234 e ss.
67
Chrétien, 2002, p. 54.
68
Santo Agostinho, 1987, p. 231.
69
Idem, ibidem. Jean-Louis Chrétien recorda também, ao tratar do ato de ruminação em
Santo Agostinho, da seguinte passagem de seu De Trinitate: “Aquilo que a visão da alma
abarcou, mesmo rapidamente [etsí transiens], e que ela depositou na memória, como uma
espécie de estômago, ela pode se recordar por um tipo de ruminação e transformar em
conhecimento metódico aquilo que assim conquistou” (De Trinitate, XII, XIV, 23, BA, 16,
257, apud Chrétien, 2002, p. 54).
70
Weinrich, 2001, p. 46.
71
Santo Agostinho, 1987, p. 328.
Idem, p. 26.
73
Idem, p. 37.
74
Idem, p. 218 e ss. Grifos meus.
75
Chrétien, 2002, p. 122.
76
Idem, p. 121,
77
Idem, pp. 121 e 238.
78
Derrida, 1991b.
79?
Santo Agostinho, 1987, p. 340.

105
“DA ARS MEMOIHAE AOS ESTUDOS DE MEMÓRIA pós-coloniais”

80 “Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Nele se apresenta um anjo que
parece estar na iminência de afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão
arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estiradas. É assim que deve parecer o
Anjo da História. Sua face se volta para o passado. Lá onde nós vemos surgir uma sequência
de eventos, ele vê uma catástrofe única, que incessantemente empilha escombros sobre
escombros e os lança a seus pés. Ele gostaria de se demorar, de despertar os mortos e
reunir de novo o que foi esmagado. Mas uma tempestade sopra do paraíso, que se agarra
às suas asas, é tão forte que o Anjo já não as consegue mais fechar. Essa tempestade o
leva inexoravelmente para o futuro, para o qual ele dá as costas, enquanto diante dele
a pilha de escombros cresce rumo ao céu. Aquilo que chamamos de progresso é essa
tempestade” (Benjamin, 2020, p. 76). No texto de apresentação da revista Angelus Novus,
que Benjamin planejou em 1922 mas não conseguiu editar, ele escreveu também de modo
bem agostiniano: “Segundo uma lenda talmúdica, por acaso não são os anjos criados -
novos, a cada momento, em bandos incontáveis - para, depois de terem cantado o seu hino
diante de Deus, cessarem e definharem no nada? Que à revista [Angelus Novus] caiba uma
tal atualidade, que é a única verdadeira, é isto que o seu nome deve significar” (Benjamin,
1980, p. 246).
81
Weinrich, 2001, pp. 49-66.
82
Carruthers, 2006, p. 22.
83
Yates, 1966, p. 104; 2008, p. 138.
84
Idem, p. 118; Idem, p. 156.
85
Santo Agostinho, 1987, p. 340.
86
Foucault, 1984.
87
Idem, p. 47. Em seu poderoso e influente ensaio Comunidades imaginadas, que deve muito,
apesar de não os destacar, aos estudos de memória e da construção social de espaços e
modelos de recordação (cf. Halbwachs, 1925, e Nora, 1984), Benedict Anderson destaca que
apenas com a invenção do cronômetro, em 1761, por John Harrison, a arte da cartografia
pôde se desenvolver de modo mais preciso, permitindo o “cálculo exato das longitudes”.
Assim a superfície de todo planeta foi recortada por quadrados que serviram para a
extensão colonial das fronteiras nacionais que se estabeleceram ao longo da Modernidade
(Anderson, 2008, p. 239). Cf. Landes, 1983.
88
A. Assmann, 2012, p. 33 e ss.
89
Ricceur, 2008, p. 80.
90
Nicole Loraux (1988, p. 31) recorda da anistia de 403 a.C. em Atenas, que estabeleceu
uma espécie paradoxal (e impossível) de “dever de esquecimento” (me mnesikakein, “é
proibido recordar-se os males”), quando do fim da violenta oligarquia dos 30. Ela explica
que se na cultura grega temos inúmeras personagens representando a memória do mal,
o desejo de vingança, enfim, toda uma galeria de personagens assombradas pelas Fúrias/
Erínias e irmanadas a elas, por outro lado, a política e seus decretos estavam do lado do
esquecimento. A ausência de ressentimento era vista como uma grande virtude política,
como lemos, entre outras obras, em De cohibenda ira de Plutarco. Plutarco elogia o fato de
que no conflito entre Poseidon e Atena pelo controle de Atenas, o deus dos mares derrotado
não guardou ressentimento, amenitos, para com a deusa. Os atenienses, em agradecimento
e essa clemência divina, erigiram um altar a Lete, o esquecimento, no Erecteion. Altar
ambíguo, eu acrescento, que, ao homenagear o esquecimento, recorda a derrota que deveria
ser esquecida. Ele, na verdade, comemora apenas a ausência da memória do mal, ou seja,
do ressentimento. Devemos ter em conta a relação entre a noção clássica de esquecimento
e a de superação do rancor (uma espécie de variante de perdão, mas que se dá em termos de

106
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

uma troca ritual do esquecimento das rixas por uma coexistência pacificada). É interessante
notar que ainda hoje existe uma maior tendência dos Estados no sentido de promover a
reconciliação por meio do esquecimento e não tanto o reparo (jurídico ou não) dos males,
como vemos no caso do Brasil pós-ditadura, mas não só. Quando processos ocorrem,
como no caso da Alemanha pós-terceiro Reich, eles são normalmente mais exemplares do
que efetivamente restituidores de justiça. A justiça sempre fica relegada a um plano quase
utópico.
91 Da Vinci, 1992, p. 206.
92 Idem, p. 199.
93 Essa teoria semiótica insipiente já podia ser encontrada na tradição retórica clássica. Para
Horácio, haveria uma clara hierarquia entre os sentidos, sendo a visão aquele sentido capaz
do maior impacto sobre o espectador: “As ações [no teatro] ou se apresentam em cena ou
se narram. Quando recebidas pelos ouvidos, causam emoção mais fraca do que quando,
apresentadas à fidelidade dos olhos, o espectador mesmo as testemunha” (Horácio, 1988,
p. 60).
94 Da Vinci, 1992, p. 202.
9:1 Quanto à relação entre Ficino e a pintura renascentista, cf. Warburg, 2010. Quanto ao
paragone e à tradição da relação entre as artes e a literatura (conhecida pelo verso de
Horácio utpictura poesis - “poesia é como a pintura”), cf. minha introdução ao Laocoonte
de G. E. Lessing (Seligmann-Silva, 1998).
96 Simondon, 1982.
9/ Freud, 1912.
98 Cf. ainda em Platão, Górgias 493a: “De fato, uma vez ouvi um de nossos sábios dizer que
estamos agora mortos e que o corpo é o nosso túmulo [sema]”.
99 Simondon, 1982.
100 Erll & Nünning, 2010 [2008].
101 Derrida, 1967b.
102 Idem, 2001 [1995].
103 Ou quando, por exemplo, Aleida Assmann refere-se a essa obra de Derrida, é apenas em
um sentido negativo, para descartá-la (A. Assmann, 1998, p. 282).
104 Derrida, 2001, p. 32.
105 Idem, 1967a e 1978.
106 Idem, 2001, p. 27.
107 Freud, 1975 [1925].
108 Derrida, 2001, p. 8.
109 Idem, p. 11.
110 Idem, p. 21.
111 Idem, p. 22.
112 Quanto a essa divisão, cf. Foucault, 2004 [1983].
113 Derrida, 2001, p. 31.
114 Saussure, apud Derrida, 1973, p. 41.
115 Derrida, 1973, p. 42.
116 Cf. o que lemos acima em passagens citadas de Platão (Fedro 250 a) e de Santo Agostinho
(1987, p. 234 e ss.).
117 Derrida, 1973, 42.
118 Detienne, 2003, p. 17.
149 Derrida, 1991a.
120 Idem, p. 56.

107
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”

121 Idetn, ibidem.


122 Idem, 1973, p. 86.
123 Idem, p. 87.
124 Rousseau, apud Derrida, 1973, p. 323.
12d Idem, p. 367 e ss.
126 Em um contexto radicalmente diverso, David Kopenawa, em seu relato a Bruce Albert,
que tem como pano de fundo uma narrativa da terrível história de genocídio do povo
Yanomami, também faz sua crítica à “exterioridade”, ou à infertilidade do dinheiro que
guia a cultura capitalista: “Os xamãs yanomami não trabalham por dinheiro, como os
médicos dos brancos. Trabalham unicamente para o céu ficar no lugar, para podermos
caçar, plantar nossas roças e viver com saúde. Nossos maiores não conheciam o dinheiro.
Omama não lhes deu nenhuma palavra desse tipo. O dinheiro não nos protege, não enche
0 estômago, não faz nossa alegria. Para os brancos, é diferente. Eles não sabem sonhar com
os espíritos como nós. Preferem não saber que o trabalho dos xamãs é proteger a terra,
tanto para nós e nossos filhos como para eles e os seus” (Kopenawa & Albert, 2015, p. 216
e ss.). Se Rousseau criticava a abstração do dinheiro em nome de uma “economia natural”
idealizada, pensada como origem pura, em Kopenawa a crítica da monetarização da vida se
dá no sentido de uma contra-antropologia que percebe na cultura não indígena sociedades
alienadas por seu culto do dinheiro, nas quais muitos morrem de fome, enquanto outros
acumulam dinheiro de modo desproporcional às suas necessidades.
I2/ Derrida, 1973, p. 30.
128 Hegel, 1970, pp. 273-274. Citação original: “Nãher bezeichnet die Hieroglyphenschrift die
Vorstellungen durch rãumliche Figuren, die Buchstabenschrift hingegen Tone, welche selbst
schon Zeichen sind. Diese besteht daher aus Zeichen der Zeichen, und so, dafi sie die
konkreten Zeichen der Tonsprache, die Worte, in ihre einfachen Elemente auflõst und
diese Elemente bezeichnet. [...] Nur dem Statarischen der chinesischen Geistesbildung ist
die hieroglyphische Schriftsprache dieses Volkes angemessen”.
129 Idem, p. 274.
130 Nesse ponto, Hegel concordava com o iluminista Dumarsais, responsável pelo verbete
“Alfabeto” da Enciclopédia francesa, composto cerca de meio século antes. Ele escreve aí,
em uma passagem que já indica o projeto de construção de uma noção de língua europeia
universal superior às demais e resultado de uma suposta evolução e de um suposto progresso,
cujo ápice seria a cultura filosófica francesa: “De início, símbolos ou figuras hieroglíficas
apresentaram-se ao espírito. Mas esses signos não eram nem suficientemente claros, nem
suficientemente precisos, nem suficientemente unívocos para realizar a finalidade de fixar
a fala e erguer um monumento mais imponente do que o bronze ou o mármore. O desejo
e a necessidade de realizar esse desígnio levaram por fim a que se imaginassem os signos
particulares chamados de letras, e que cada um desses signos fosse destinado a assinalar
cada um dos sons simples que formam as palavras” (Dumarsais, 2015, p. 38). A busca de
uma escrita mais precisa teria levado ao alfabeto de base fonética, eliminando-se as imagens
e boa parte do elemento sensual da escritura. Percebemos em que medida o preceito que
vimos acima, de Horácio e Leonardo da Vinci, da maior clareza das imagens, é substituído
nesta tradição cara ao Iluminismo, pela suposta clareza universal do logos. Aquilo que a
tradição retórico-poética defende será e sempre foi detratado pela filosofia, ao menos até
o século XX.
Ijl Hegel, 1970, p. 279. Trad. Gabriel Valladão Silva.
1?2 Weinrich, 2001, p. 21.
Leroi-Gourhan, 1993, p. 187.

108
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

134 Idem, p. 188.


1 3:1 Idem, p. 190.
136 Idem, p. 191.
137 Idem, p. 210.
138 Idem, p. 200.
139 Idem, p. 202.
140 Idem, p. 205.
141 Idem, p. 196.
142 Benjamin, 2020, p. 51.
143 Campos et ai, 1965, p. 5. Na sua análise do texto de Fenollosa sobre os ideogramas chineses -
autor esse cuja obra também representou, deve-se lembrar, uma das vias de continuidade do
ideário romântico dentro das vanguardas literárias da nossa época -, Haroldo de Campos
destacou reiteradas vezes “a propensão do chinês para as construções paratáticas e para
os esquemas paradigmático-paralelísticos, inspirados numa ‘lógica da correlação’, [que]
parece coincidir com a tendência da própria linguagem poética ocidental a romper com a
lógica tradicional, para reger-se por uma lógica outra, a ‘lógica da imaginação’ de Eliot [...],
a ‘lógica concreta’ dapensée sauvage de Lévi-Strauss, a lógica da analogia ou ‘analógica’”
(Campos, 1977, p. 70). Via Lévi-Strauss, Campos toca nas descobertas de Leroi-Gourhan.
144 Freud, 1921; Benjamin, 2013, p. 59; Canetti, 1995 [1960].
143 Leroi-Gourhan, 1993, p. 214.
146 Idem, ibidem.
14/ Idem, p. 263.
148 Idem, p. 265.
149 Flusser, 1998, p. 29.
130 Idem, ibidem.
131 Idem, p. 31.
152 Idem, 2010b, p. 158.
133 Idem, p. 161.
134 Idem, p. 163.
133 Idem, p. 168.
136 Idem, 2011, pp. 119-120.
137 Benjamin, 2013, p. 55.
138 Idem, ibidem.
139 Idem, pp. 54-55.
160 Flusser, 2010b, p. 174.
161 Idem, p. 177. Flusser reelabora essa ideia em diversos momentos de sua obra. Lembremos
da sugestiva versão de sua entrevista de 1988, durante o European Media Art Festival: “Na
minha terminologia, digo que, antes da invenção da escrita, as pessoas pensavam de forma
pré-histórica. Após a invenção do alfabeto, a consciência histórica foi elaborada. E, agora,
estamos começando a elaborar um modo de pensar estrutural e pós-histórico” (“In my.
terminology, I say that before the invention of writing, people thought in a pre-historical
way. After the invention of the alphabet, historical consciousness was elaborated. And
now, we are beginning to elaborate a post-historical, structural way of thinking”) (Flusser,
2010a, p. 37). Diferentemente dos adeptos do Iluminismo, Flusser tem uma visão crítica
dessa consciência histórica, não admitindo uma hierarquia entre os povos com e os sem
história. Pelo contrário, ele percebe um ganho na conquista do que chamou de pós-história.
162 Flusser, 1985.
163 Idem, 1998.

109
‘da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”

164 Idem, 2011, p. 23.


165 Idem, p. 25.
166 Idem, p. 26.
167 Idem, p. 27.
168 Adorno & Horkheimer, 1985.
169 Adorno, 1986, p. 33.
170 Idem, 1995, p. 33
171 “Was bedeutet: Aufarbeitung der Vergangenheit.”
172 Adorno, 1995, p. 49.
173 Mitscherlich & Mitscherlich, 1967.
174 O casal de psicanalistas escreveu em 1967 com relação à Alemanha que “existe um nexo
determinante entre o imobilismo e o provincialismo político e social que imperam na
Alemanha [agora] e, por outro lado, a defesa [Abwehr, o recalcamento] tenaz de recordações,
em especial o bloqueio com relação à participação emocional nos feitos do passado”
(Mitscherlich & Mitscherlich, 1967, p. 9). O mesmo se aplica ao Brasil dos anos 2016 em
diante. Eles escreveram ainda: “Trata-se de pesquisar, com base na psicologia, por que até
hoje [1967] a época do Terceiro Reich [...] foi enfrentada de modo insuficientemente crítico.
Isso naturalmente não vale para o saber de especialistas, mas para a problemática difusão
desse conhecimento na consciência política da esfera pública” (idem, p. 8). Diferentemente,
no entanto, do que os autores detectam com relação aos alemães dos anos 1960, não
percebemos no Brasil um “momento de culpa insuportável” (idem, p. 10) com relação ao
passado criminoso da nação.
173 Adorno & Horkheimer, 1985, p. 11.
176 Esse conceito remonta ao teórico conservador Carl Schmitt e já fora explorado por
Benjamin em seu livro sobre o drama barroco alemão. Cf. Benjamin, 1977, p. 246; e 1984,
p. 89.
177 Benjamin, 2020, pp. 37-38.
178 Idem, 2012b.
179 Idem, pp. 25-27.
180 “Internationale Wandelschrift” (Benjamin, 2009, p. 31).
181 Remeto aqui ao meu ensaio “Walter Benjamin e os sistemas de escritura”, Seligmann-Silva,
2018, pp. 123-142.
182 Benjamin, 2020, p. 181.
183 Idem, pp. 142-143.
.184 Mbembe, 2017, p. 29.
183 Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-558o4878>. Acesso em
8/2/2021.
186 Benjamin, 2020, p. 148.
18/ Idem, p. 182.
188 O texto encontra-se em: Ruy Barbosa. Obras completas de Rui Barbosa, vol. XVII, 1890,
tomo II, pp. 338-340. Na sessão que aprovou a moção de apoio à iniciativa de Ruy Barbosa,
Francisco Coelho Duarte Badaró discordou com as seguintes palavras: “Sr. Presidente,
não quero que ninguém entenda que, ao levantar para pronunciar-me contra esta moção,
eu pretenda condemnar a obra meritória dos abolicionistas. O que faço é protestar
contra o acto de cremação de todo o archivo da escravidão no Brazil, porque envolve
interesse historico. Nós, em vez de procurarmos destruir, o que é uma obra de verdadeiros
iconoclastas, devíamos ter a nossa Torre do Tombo, um edifício destinado a recolher os
papéis de todos os archivos do paiz. Somos um povo novo que corremos o risco de ter

110
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

difficuldades para escrever a nossa historia, porque é deplorável o que se observa em todas
as municipalidades e nas repartições das antigas províncias: por toda a parte o mesmo
abandono, o mesmo descuido, e por ultimo o facto de mandar-se queimar grande numero
de documentos que podiam servir para se escrever com exactidão a historia do Brazil, no
futuro. (Muito bem; muito bem.). (Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 22/12/1890, p. 1)”.
Tanto o decreto de Ruy Barbosa como essa passagem de Coelho Duarte estão disponíveis em
<https://cartorios.org/2010/01/25/penhor-de-escravos-e-queima-de-livros-de-registro/ >.
Acesso em 31/3/2021.
189 Sobre a concepção de Walter Benjamin da história como catástrofe, remeto ao meu
ensaio: “Catástrofe, história e memória em Walter Benjamin e Chris Marker: a escritura
da memória” (Seligmann-Silva (org.), 2003, pp. 387-413).
190 Benjamin, 2020, p. 175.
191 Idem, p. 182.
192 Idem, p. 68.
193 Idem, p. 75.
194 Idem, ibidem.
193 Idem, ibidem.
196 Idem, p. 79.
197 Idem, p. 176.
198 Idem, pp. 76-77.
199 Nietzsche, 1988a, p. 245; Benjamin, 2020, p. 79.
200 A Liga Spartacus ou Liga espartaquista é conhecida em alemão pela expressão
Spartakusbund. Tratava-se de uma liga marxista-socialista alemã que atuou na Primeira
Guerra Mundial, visando realizar uma Revolução comunista. Esse grupo teve origem em
uma dissensão do SPD, o Partido Social-Democrata alemão, em 1916, que foi batizada então
como Spartakusgruppe. Na Revolução de novembro, em 1918, o grupo reorganizou-se em
nível nacional com o nome Spartakusbund, sempre em homenagem a Espártaco, o escravo
que liderou a rebelião dos escravos na Roma Antiga em 73-71 a.C. Em 10 de janeiro de 1919,
a Liga entrou no recém-fundado KPD, Partido Comunista Alemão. No dia 15 de janeiro,
Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht, seus principais líderes, foram presos e barbaramente
assassinados.
201 Benjamin, 2020, pp. 80-81. Benjamin, em seus “Comentários às obras de Brecht”, também
recorda o famoso poema de seu amigo “An die Nachgeborenen”, “Aos pósteros”. Ele cita
dois versos do poema de Brecht “Do pobre B. B.” e depois os comenta: ‘“Sabemos que somos
efêmeros/E depois de nós virá: nada digno de nota’. ‘Efêmeros’ (Vorlãufige) - talvez fossem
‘precursores’ (Vorlãufer); mas como poderíam, se não são seguidos por nada digno de nota?
Não é tanto sua culpa se passarão à história sem nome e sem fama. (Dez anos mais tarde,
o poema subsequente, ‘An die Nachgeborenen’ [Aos pósteros], retoma um pensamento
similar.)”. Benjamin, “Comentários sobre poemas de Brecht” (Benjamin, 2017, p. 60).
Tradução modificada.
202 Cf. a minha apresentação ao volume Benjamin, 2020, pp. 9-28.
203 Benjamin, 2020, p. 184.
204 Idem, 2012a, pp. 35-36.
203 Essa expressão Benjamin encontrou no ensaio do surrealista Pierre Naville “Mieux et moins
bien”, publicado na revista La Révolution Surréaliste (Naville, 1927).
206 Benjamin, 2012a, pp. 34-35.
2“;/ Idem, pp. 23-34.
208 Idem, 2013, p. 63.

111
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’

209 Idem, p. 62.


210 Idem, p. 63.
211 Idem, ibidem.
212 Chakrabarty, 2007.
213 Gilroy, 2012, p. 125.
214 Idem, pp. 125-126.
215 Idem, p. 151.
216 Idem, ibidem.
217 Idem, ibidem.
218 Idem, p. 153.
219 Idem, p. 154. 1
220 Kilomba, 2019, p. 63.
221 Recordo aqui a obra seminal de Margareth Rago A aventura de contar-se: feminismos,
escrita de si e invenções da subjetividade (2013), na qual ela também faz uma (re)construção
histórica a partir da curadoria de sete vozes femininas. Rago também vai valorizar a
oralidade e vozes femininas em detrimento do grafocentrismo e da mania documental
da escrita histórica positivista e falocêntrica. A verdade de que se trata na obra de Rago é
aquela à qual Foucault (2001) se referia ao reviver o conceito antigo deparrhesia, o dizer a
verdade sem medo. Trata-se de uma verdade eminentemente política, que fere, provoca e
desmonta o establishment. Quem pratica essefalar-franco sabe que a verdade que emite é
também a sua própria opinião, que defende com palavras claras e diretas. Assim como essas
sete mulheres recorreram à prática da escrita de si para tentar se reinventar, costurando
suas subjetividades a partir de suas trajetórias, seus conflitos, suas frustrações e suas
vitórias, utilizando essa escrita como ferramenta política, inspiradas pelas lutas feministas,
do mesmo modo Margareth, ao reinscrever essas vivências, dando a elas uma acolhida
aberta e generosa, perfilando-as lado a lado, contextualizando essas narrativas, justamente
destaca o aspecto feminista e disruptivo dessas experiências.
222 Kilomba, 2019, p. 82.
223 Kopenawa & Albert, 2015; Krenak, 2019 e 2020.
224 “es ist niemals ein Dokument der Kultur, ohne zugleich ein solches der Babarei zu sein”
(Benjamin, 2010, p. 34; 2020, p. 74). Importante lembrar que essa frase fez parte antes do
ensaio de Benjamin sobre “Eduard Fuchs, o colecionador e o historiador” (“Eduard Fuchs,
der Sammler und der Historiker”), de 1937 (Benjamin, 1980, p. 477).
225 Benjamin, 2020, pp. 100-101. “Tout cela ne témoigne <pas> de la culture sans témoigner,
en même temps, de la barbarie” {idem, 2010, pp. 63-64).
226 Benjamin pensou essa interrupção da ideia de progresso como uma crítica tanto ao
pensamento burguês quanto ao marxismo. Nos esboços e versões de suas teses, lemos:
“Marx afirma que as revoluções são as locomotivas da história do mundo. Mas talvez isso
seja totalmente diferente. Talvez as revoluções sejam o acionar do freio de emergência pela
humanidade que viaja neste trem” (2020, p. 202). Em 2020/2021, essa consciência de que a
locomotiva do progresso se dirige a um abismo só não está clara para quem não quer ver.
227 Ndikung, 2019, p. 64; cf. Seligmann-Silva, 2019.

112
2

O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES

Prometeu: Falar-te disso é doloroso para mim,


mas calar-me também me causa muitas dores.
Esquilo*

O testemunho é um tema que tem despertado a atenção de estudiosos


através de diferentes campos do conhecimento. Começando pela teologia,
que estuda o testemunho como afirmação e revelação da fé,2 passando pelos
estudos jurídicos (que nas últimas décadas desenvolveu uma área que, para
além das técnicas de entrevista das testemunhas e dos réus, estuda criticamente
a própria possibilidade do testemunho),3 chegamos ao campo da psicologia, que
estuda o tema polêmico da recovered memory, abordando o testemunho tanto
do ponto de vista comportamental e da narrativa da situação traumática,4 como
da psicologia social, com seus estudos de histórias de vida e de comunidades.5 A
psicanálise é toda baseada na situação dialógica da clínica que tem o testemunho
no seu centro.6 Além desses campos, não podemos esquecer do papel central
da etnologia, que desenvolveu técnicas de entrevista com os informantes e
uma vasta bibliografia sobre a relação entre o etnólogo e as fontes vivas de
suas pesquisas,7 o mesmo valendo para o novo campo da história oral e da
historiografia de um modo geral, que tem debatido sua relação (tensa) com os
testemunhos históricos e, ao longo do século XX, redescobriu-se como filha de
Mnemosyne, a Memória.8 Na filosofia, o testemunho tem um valor tanto na teoria
da percepção como no estudo dos atos de linguagem testemunhais, entre muitas
outras abordagens, inspiradas por autores como Walter Benjamin, Derrida,
Lévinas e Paul Ricoeur.9 Finalmente, na literatura e nos estudos literários, o
conceito de testemunho tem servido para repensar vários leitmotive desse vasto
campo, como o próprio estatuto do literário, as fronteiras entre a ficção e o
factual, a relação entre literatura e ética etc.10 O mesmo vale para a teoria das
artes e a teoria estética na sua constante busca de reflexão sobre os limites de seu

113
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES

objeto." No que segue tentarei apresentar algumas dessas questões, focando os


estudos literários. Para introduzir o tema, iniciaremos com uma passagem pelas
tragédias gregas. A partir daí tentaremos uma primeira mise au point do que
está em jogo no conceito de testemunho, com auxílio de W. Benjamin, Freud e
Benveniste. Após apresentar em linhas gerais duas grandes áreas de estudos do
conceito nas últimas décadas, a saber, os estudos sobre a Shoah e os dedicados ao
testimonio hispano-americano, fecho essa apresentação com uma reflexão sobre
o testemunho cqmo uma categoria que pode nos ajudar a pensar uma virada de
paradigma que vem ocorrendo no campo das artes e da literatura.

Eumênides ou a cumplicidade entre a lei,


O TESTEMUNHO E O ESTADO DE EXCECÃO
)

Iniciemos com uma sintomática protocena do testemunho, com todo


o cuidado que essa empreitada traz em si. Porque, se é verdade que certas
estruturas podem ser vistas - ou simplesmente projetadas - nas tragédias,
também não podemos deixar de lado as diferenças históricas. No que segue
destacarei mais essas diferenças, mas antes penetremos na nossa primeira
estação lembrando de algumas passagens de Esquilo.
Para tratar da figura do testemunho é conveniente não esquecer de sua
relação como que umbilical com a cena jurídica. Esquilo apresentou o que pode
ser tratado como o primeiro tribunal “humano”, a sua primeira encenação, na
tragédia Eumênides, a terceira da trilogia que narra a história dos Atreus. Em
Agamêmnon, a primeira tragédia desse ciclo, Agamêmnon, o pai de Orestes e
Electra, é assassinado por sua esposa, Clitemnestra, com a cumplicidade de seu
amante, Egisto; nas Coéforas, Orestes e sua irmã, Electra, vingam-se matando a
mãe. Essa peça se fecha com Orestes vendo a imagem das Fúrias, com seus cabelos
de serpentes e sangue correndo de seus olhos, perseguindo-o e clamando por
vingança. Eumênides,1' a tragédia que nos interessa aqui, abre-se apresentando
Orestes depois de muitas viagens, em sua fuga desesperada, quando chega ao
templo de Apoio em Delfos. Nesse momento, de modo significativo, as Fúrias
dormem. Apoio surge e ordena que Hermes, “O condutor”, guie Orestes até o
templo de Atena, na Acrópole, onde ele deverá ser julgado e, assim, se livrar de
seu sofrimento. Em seguida, o fantasma de Clitemnestra desperta as Fúrias e as

114
A VIRADA TESTEMUNHAI E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

envia atrás de Orestes. Atena, após receber Orestes e as Fúrias e se informar do


conflito, chama 12 jurados para formar o primeiro tribunal que trataria de um
homicídio, como ela mesma o afirma (E. 900-4 [681-4]). Esse gesto de certo modo
apresenta o tribunal como um reflexo do mundo divino, já que, mais adiante,
Apoio recorda a figura de Ixion, o primeiro assassino, que teria recebido sua
purificação por meio do próprio pai (patêr, E. 9535. [717S.]), Zeus. O resultado
do julgamento de Orestes é conhecido: após o empate, o voto de Minerva/
Atena decide a seu favor. As Fúrias são pacificadas com presentes de Atena, e
Orestes pode voltar a Argos e ser o rei. O plot da peça apresenta justamente essa
pacificação, esse acordo, ou compromisso, para usar uma expressão cara a Freud,
entre as violentas Fúrias, representantes dos deuses ctônicos antigos, a violência
sob a forma feminina e sua justiça feita com sangue (arrancando os olhos ou
castrando; E. 244SS. [187 ss.]; 336 [252S.]) que nega a instituição do tribunal (E.
467 ss. [359SS.]), e, por outro lado, os deuses olímpicos, representantes da nova
ordem e das novas instituições. A peça é um largo elogio da instituição do
tribunal do Areópago que era presidido pelo arconte rei. Mais importante ainda,
o compromisso encenado na tragédia não implica o abandono da violência e da
lógica da vingança; muito pelo contrário, a violência é reconhecida como parte
da estrutura jurídica. A tragédia indica de modo inequívoco que, sem o medo e
a potencial punição, não pode haver sistema jurídico, a reverência ao governo e
às leis só existe com o terror como garantia. Eis as palavras de Atena:

Prestai atenção ao que instauro aqui, atenienses, convocados por mim mesma para
julgar pela primeira vez um homem, autor de um crime em que foi derramado
sangue. A partir deste dia e para todo o sempre o povo que já teve como rei Egeu
terá a incumbência de manter intactas as normas adotadas neste tribunal na colina
de Ares [...]. Sobre esta elevação digo que a Reverência e o Temor, seu irmão, seja
durante o dia, seja de noite, evitarão que os cidadãos cometam crimes, a não ser
que eles prefiram aniquilar as leis feitas para seu bem (quem poluir com lodo ou
com eflúvios turvos as fontes claras não terá onde beber). Nem opressão, nem
anarquia: eis o lema que os cidadãos devem seguir e respeitar. Não lhes convém
tampouco expulsar da cidade todo o Temor; se nada tiver a temer, que homem
cumprirá aqui seus deveres? (E. 900-30 [681-99])

Podemos ler aqui aquilo que já foi denominado, por Marcei Mauss e
outros autores, ambiguidade do sacro. A tragédia apresenta o rito jurídico de

115
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES

reintegração daquele que estava proscrito, fora da lei, o homo sacer, Orestes, que
passa pela kátharsis de seu ser poluído. Nesse ritual “de civilização/purificação”,
a ambiguidade é reinstaurada e reafirmada. Na tragédia, ocorre uma reversão
da posição de Orestes, que pode voltar ao trono após deixar a condição de
homo sacer. O trono é o outro polo da lei que lhe é ao mesmo tempo externo e
interno. Orestes passa, para recordar a diferença estabelecida por Benveniste,
da qualidade de sacer para a de sanctus.13 Assim como o banido (sacer) é um fora
da lei, o rei (sanctus) está acima desta. A purgação de Orestes, ou seja, sua dura
viagem fugindo das Fúrias - que, para Apoio, significaria sua longa despoluição,
e, portanto, deveria qualificá-lo para uma reintegração e uma superação de seu
banimento -, não é reconhecida pelas Fúrias. Para elas, não existe perdão ou
esquecimento do mal: elas representam a pura força da memória do mal (kakôn
te mnêmones semnai, E. 503 [383]) e do desejo de vingança. A kátharsis trágica
das paixões negativas não significa, tampouco, sua eliminação, mas a mise en
scène delas como uma espécie de memento. As Fúrias, que são transformadas
por Atena em Eumênides, as benévolas, por meio de seu pacto com elas, são
incorporadas à lei que mantém a lógica da espectralidade do passado em seu
elemento terrorífico. Isso também é importante para o que segue.
Mas vejamos o que ocorre no julgamento de Orestes destacando a recorrência
dos termos que evocam o testemunho, o termo-chave que nos interessa aqui.
Atena chama os jurados diante da divisão aparentemente irreconciliável dos
dois partidos (E. 6i8ss. [470SS.]): a situação arquetípica da cena do tribunal e
das tragédias, como depois Eurípides a exploraria. O julgamento depende da
instituição do testemunho. Assim, o coro das Fúrias diz que vai se apresentar
como testemunha contra Orestes para vingá-lo:

se um mortal nos mostra suas mãos imaculadas, nunca o atingirá nosso rancor
[mênis] e sua vida inteira passará isenta de todos os sofrimentos. Mas quando um
celerado igual a este oculta suas mãos ensanguentadas, chegamos para proteger
os mortos testemunhando [mártures] contra o criminoso, e nos apresentando
implacáveis, para cobrar-lhe a dívida de sangue! (E. 423SS. [313SS.])

Em seguida, Orestes recorda que ainda existia a rede com que Clitemnestra
matara seu marido como um testemunho (ou prova) do crime (um loutrôn
exemarturei phonon, E. 605 [461]), o que faz lembrar a passagem em Coéforas

116
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

(1293 [1010]) quando Orestes mostra a roupa do pai manchada de sangue e


perfurada pelo punhal de Egisto como um testemunho [ou “prova certa”,
martirei] do crime. Atena, ao abrir o tribunal, observa que cada partido deve
trazer suas testemunhas (marturia) e provas (tekmêriã) para evidenciar suas
respectivas causas (E. 645 [485SS.]): Aristóteles, em sua 'Retórica, reservou
um local especial para os tekmêriã, as provas ou sinais que evidenciam os
enthymemes ou argumentos retóricos. Eles funcionam segundo uma lógica
da evidência metonímica, como se fossem partes ou rastros do evento.14 Em
seguida, na Eumênides, Apoio se apresenta como testemunha e advogado de
Orestes (kai marturêsôn êlthon; E. 752 [576]). Nessa qualidade ele também
assume para si a culpa do assassinato de Clitemnestra, assim como afirma já
ter purificado (katharsios) Orestes. No interrogatório a que as Fúrias submetem
Orestes - de um modo que, em que pesem as diferenças, nada deixa a desejar
quando comparado a um interrogatório em um tribunal de hoje em dia -, elas
perguntam se ele havia sido convencido por alguém a cometer o homicídio. A
resposta é: “Foi este deus que agora é minha testemunha” (marturei de moi; E.
775 [594])- Pouco depois, ele afirma estar confiante na ajuda de seu pai (“Tenho
fé em meu pai; ele me ajudará”; E. 779 [598]). Nesse diálogo, Esquilo introduz
um argumento central na disputa que desdobra essa lógica “patrilinear”:
Orestes reconhece ser o assassino, mas nega que tenha sido injusto. Afinal,
ele não teria matado um parente ao matar a mãe. Nesse ponto ele pede que
Apoio o apoie com seu testemunho (“depoimento”, marturêsôn; E. 793 [609]).15
O deus, afirmando falar em nome do pai (patêr, E. 808 [618]) Zeus, primeiro
critica o modo como Clitemnestra matou o grande herói, Agamêmnon, que foi
assim assassinado por uma mulher e de maneira nada heróica, para em seguida
introduzir seu argumento principal:

Aquele que se costuma chamar de filho não é gerado pela mãe - ela somente é
a nutriz do germe nela semeado; de fato o criador é o homem que fecunda; ela,
como uma estranha [xenôi xenê, estranha para um estranho], apenas salvaguarda
o nascituro quando os deuses não o atingem. (E. 868ss. [658SS.])

Aqui, Apoio chama ninguém menos que Atena - a juíza! - como prova e
testemunha de sua argumentação a favor de Orestes.

117
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES

Oferecer-te-ei uma prova cabal [tekmêrion] de que alguém pode ser pai sem haver
mãe. Eis uma testemunha [martus] aqui, perto de nós - Palas, filha do soberano
Zeus olímpico -, que não cresceu nas trevas do ventre materno. (E. 874SS. [66ass.])

O resultado desse argumento, que mais uma vez sela a aliança dos novos
deuses em oposição às Fúrias (“estas virgens malditas”, E. 99 [69], como Apoio
as denomina), é o voto de Atena, um voto antes de mais nada no partido dos
homens:

Serei a última a pronunciar o voto e o somarei aos favoráveis a Orestes. Nasci


sem ter passado por ventre materno; meu ânimo sempre foi a favor dos homens,
à exceção do casamento; apoio o pai. Logo, não tenho preocupação maior com a
esposa que matou seu marido, o guardião [paíros] do lar. (E. 974SS. [734SS.])

Diante dessa evocação da lei paterna, o coro das Fúrias volta-se para sua
mãe: “Ah! Noite negra, nossa mãe! Vês tudo isto?” (E. 986 [745]). Essa oposição
entre lei solar-masculina e a (ausência de) lei da noite-feminina, vinculada
à cena do julgamento e do testemunho, pode ser aproximada também de
uma passagem em Coéforas (1265SS. [984SS.]) em que o testemunho é ligado à
figura paterna, quando Orestes, ao final da peça, diz que o pai, a saber, o Sol,
“estará presente [no dia de meu julgamento] como testemunha [martus] de que
perseverei nesta vingança justa e fui até o cúmulo de eliminar a minha própria
mãe”. Com relação ao argumento central da cena do julgamento na Eumênides,
é importante lembrar que, segundo a Teogonia de Hesíodo, Atena tinha uma
mãe, Métis, a Astúcia, que Zeus engoliu grávida, com medo de se repetir com
ele o mesmo que ele fizera com seu pai, Cronos - fato lembrado ironicamente
pelas Fúrias em Eumênides. Atena, “a de olhos glaucos”, glaukôpin Athênên,
na expressão de Hesíodo, é aquela que vê com clareza16 e, portanto, pode
testemunhar como juíza o crime de Orestes: o olhar, e não a audição, tem a
absoluta precedência na cena patriarcal do testemunho. Apoio e Atena do lado
de Zeus-Sol, em oposição às Fúrias-mães que cegam e castram com sua justiça
“primitiva”. Se o argumento que afirma o não parentesco da mãe com seus
filhos lembra mais uma astúcia [métis] do que um raciocínio lógico, ele faz todo
sentido nesse primeiro tribunal. De modo contrário ao parricida Édipo (que se
cega como castigo e é banido, torna-se sacer), o matricida Orestes é absolvido.
Em vez de ser banido e/ou sacrificado (ou seja, desdobrar a lógica do homo sacer

118
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

que vai da sacralidade ao sacrifício), ele é como que “santificado”, reconhecido


novamente como autoridade. As Fúrias, por sua vez, são integradas ao círculo
de fogo dos deuses olímpicos e transformadas em Eumênides.

Testemunho da masculinidade

Essa apresentação da protocena do testemunho deverá permanecer como


pano de fundo para o que se segue. É evidente que o conflito e as tentativas de
compromisso entre a memória do mal e a purificação/o perdão, assim como
a relação sistêmica entre crime e castigo, governam até hoje em grande parte
a cena literária, não menos que a política. Diante da onipresença das guerras,
dos genocídios e da lógica da vingança, poderiamos pensar que o falocentrismo
(não só “olímpico”, mas também “iluminista”, na acepção adorniana desse
termo) incorporou “em grande estilo” a memória do mal, tal como Zeus
incorporara a astúcia e sente a necessidade de testemunhar sua masculinidade.
O que Eumênides tem a ver com isso? Da cena trágica podemos derivar um
modelo do testemunho como prova e evidência. Em Eumênides, a claridade dos
olhos e a luminosidade irrefutável da prova são postas ao lado do argumento
patrilinear e falocêntrico.*7 A evidência da masculinidade estaria na origem da
concepção do testemunho. Cabe então nos perguntarmos se ainda vale a pena
testemunhar: testemunhar é frutífero?
Com essa pergunta permito-me dar um salto de alguns séculos, pois Walter
Benjamin respondeu a ela de modo lacônico e direto em sua Einbahnstrasse (Rua
de mão única), de 1928. Nessa obra, ele escreveu, sob a rubrica “Für Mânner”
(“Para Homens”), a seguinte frase: “Überzeugen ist unfruchtbar”18 - ou seja,
“convencer é infecundo”, sendo que Überzeugen também pode ser lido de modo
analítico enquanto uma palavra-valise significando supergerar, supercriar,
superprocriar, superfecundar. Nessa frase de Benjamin entrecruza-se, como
Sigrid Weigel já teve a oportunidade de destacar,*9 a sua filosofia da linguagem
e da história, na qual ele critica uma visão instrumental da linguagem tal
como ela é característica da Modernidade, com, por outro lado, uma reflexão
sobre a criação intelectual que, no caso, é sexualizada. De resto, e é isto que
nqs interessa aqui, Überzeugen ainda carrega uma forte conotação jurídica,
se levarmos em conta que originalmente esse termo ainda tinha o sentido de

119
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES

“convencer alguém no tribunal por meio de testemunhos”. Sendo que, a partir


do século XVIII, Überzeugen passou a significar “levar alguém a reconhecer
com base em evidências que algo é verdade, correto, necessário”.20 “Überzeugen
ist unfruchtbar” indica, portanto, não apenas que a linguagem (masculina) do
convencimento e do testemunho é vazia, vã, como também que a linguagem
da criação/fecundação (da supercriação ou da sobrecriação) o é. Na verdade,
esse espaço assombrado aberto pela poética do convencer, em que criação e
“verdade dos fatos” embatem-se, é o próprio terreno no qual o testemunho se
dá. Benjamin está apresentando isso de um modo ao mesmo tempo crítico e
irônico, sendo que nesse gesto ele está violando performaticamente seu mote,
uma vez que não apenas está escrevendo (e escrevendo um livro), mas também
tentando convencer seu público de que “Überzeugen ist unfruchtbar”. Sua
escrita aporética novamente revela um oco na linguagem do conhecimento. No
testemunho, a citação (em termos literários e jurídicos: somos citados diante de
um tribunal) desdobra a sua lógica de descontextualização, de descolamento - de
disseminação. Benjamin, no mesmo Rua de mão única, formúlou que “citações
no meu trabalho são como ladrões no caminho que irrompem armados para
tomar a convicção [Überzeugung] do preguiçoso”.21 Em um fragmento do work
in progress de Benjamin sobre as passagens de Paris, lemos: “Escrever a história
quer dizer, portanto, citar a história. No conceito do citar está implícito, no
entanto, que o objeto histórico é retirado do seu contexto”.22 A testemunha
mencionada no tribunal também cita a história, mas nesse momento mesmo'
ela a destrói e a recria dando início a um processo potencialmente sem fim de
escritura e disseminação. Poderiamos dizer que todo testemunho enquanto
zeugen (testemunhar e procriar) tende a se transformar em um Überzeugen
(convencer e supergerar) infrutífero.
Mas esse dito de Benjamin que condena o Überzeugen (ou seja, ao mesmo
tempo o supergerar e o supertestemunhar) também pode ser transposto para
nosso atual e novo universo virtual da web. A questão é como selecionar.
Ou ainda: como controlar a sede da web, como usar os sites de busca e como
acessar - ou não - os documentos por eles listados. A web reproduz nossa
estrutura mnemônica já descrita por Aristóteles como um misto de memória
e reminiscência.25 No computador temos tanto os hard-disks correspondendo
à memória, quanto programas de busca internos ou externos que navegam
na web. Nessas buscas recordamos, we recollect, como se fala em inglês mais

120
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

precisamente. Mas, se no computador existe a tecla deletar (que significa jogar


no rio Lete) e se, ainda por cima, existem programas especializados em apagar
totalmente determinados documentos de nossos computadores, o mesmo não
se pode dizer com relação às informações na nossa mente. Afora os problemas
físicos causados por mutilações, acidentes ou pelo envelhecimento, ainda não
inventaram uma ars oblivionalis efetiva. Segundo o semiólogo Umberto Eco, tal
ciência seria classificada como impossível, uma vez que ela seria uma tentativa
de aplicar a “arte da memória” (a mnemotécnica) de modo negativo. Mas ocorre
que a arte da memória é uma semiótica, ou seja, uma arte “capaz de tornar
presente algo ausente”.24 Ao presentificarmos o que queremos esquecer, apenas
o reiteramos. Não existiría uma arte do esquecimento. Como no exemplo da
famosa anedota sobre Kant, que, ao querer se esquecer de seu criado Lampe,
anotou em um bilhete posteriormente encontrado em seu espólio: “Tenho de
esquecer completamente o nome Lampe”.25 Dificilmente esse método pode ter
funcionado. Assim podemos dizer que indivíduos que sofrem de “memória
demais” (uma das definições do traumatizado, segundo Freud) podem, no
máximo, tentar diminuir o teor de maldade ou de tristeza de suas memórias.
A terapia em certo sentido propõe isto: uma visada crítica sobre o passado
que permita uma certa autonomia do sujeito com relação a ele. Em vez de
agir guiado cegamente por um passado não elaborado, o indivíduo deveria
canalizar as energias do passado para uma ação libertadora no seu presente.
Sem querer tentar escapar a essa lógica do convencimento, permitam-me
fazer outra citação: citar outro testemunho. Tendo em vista essa reflexão
benjaminiana, vale lembrar uma passagem surpreendente de Freud que,
poderiamos apenas especular, constituiría uma origem apropriada à frase de
Benjamin de Rua de mão única, permitindo estabelecer uma ponte não tão
frágil, espero, com a análise que vimos acima da Eumênides. Trata-se de uma
nota do seu texto de 1909, Bemerkungen über einen Fali von Zwangsneurose
(Notas sobre um caso de neurose obsessiva), o famoso caso do “homem dos
ratos”. Ao comentar que uma das características do neurótico obsessivo é a sua
“necessidade de incerteza” - ele prefere a incerteza e a dúvida à verdade final,
o que o leva a criar incertezas -, Freud destaca o grande interesse da parte do
obsessivo pela questão da paternidade, pela extensão da vida e pela memória,
e introduz a seguinte nota:

121
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES

Lichtenberg: “Se a Lua é habitada, o astrônomo o sabe aproximadamente com


a mesma certeza com a qual ele sabe quem foi seu pai, mas não com a mesma
com a qual sabe quem foi sua mãe”. - Ocorreu um grande progresso cultural/
civilizatório quando as pessoas se decidiram a pôr o silogismo [Schlufl] ao lado do
testemunho [Zeugnis] dos sentidos e a passar do matriarcado para o patriarcado.
- Figuras pré-históricas, nas quais uma figura menor senta-se sobre a cabeça de
uma maior, apresentam a descendência do pai: a Atena sem mãe salta da cabeça
de Zeus. Ainda na nossa língua significa o Zeuge [testemunha] diante do tribunal,
aquele que atesta [beglaubigen] algo, a partir do modo de participação masculino
no trabalho de procriação, e já nos hieróglifos a testemunha [Zeuge] é escrita com
a imagem das genitálias masculinas.16

Após a leitura da Eumênides, essa nota parece um comentário à tragédia


de Esquilo. E, de fato, o é. A chave dessa passagem de 1909 encontra-se no
último grande ensaio de Freud, o seu DerMann Moses und die monotheistische
Religion (O homem Moisés e a religião monoteístd), de 1939. Nesse ensaio, o pai
da psicanálise mergulha, em plena era que já anunciava o terror da Shoah, em
uma pesquisa acerca da história do homem Moisés. Para Freud, na verdade
teriam existido dois Moisés: um egípcio e monoteísta, que teria sido assassinado
pelos judeus, e outro posterior. O importante para nós nesse ensaio é que Freud
apresenta a figura do Moisés introdutor das leis na cultura judaica. Essas leis
são interpretadas como sendo paralelas à instituição do superego em cada
indivíduo. Nos dois casos, as leis implicam abrir mão de pulsões. Essa passagem
para a lei significa também, na leitura freudiana, um progresso cultural. Freud
descreve o “Progresso na intelectualidade” (ou espiritualidade),27 como estando
associado, por exemplo, à proibição mosaica das imagens, indicando um
“triunfo da intelectualidade sobre a sensualidade”.28 Em vez do culto a imagens,
a religião de Moisés seria puramente espiritual. Para explicar o que seria esse
progresso, Freud recorre novamente à história, ou ao menos a uma especulação
histórica que nos leva de volta a Esquilo e ao testemunho masculino:

Sob a influência de fatores externos nos quais não precisamos ingressar aqui e
que também, em parte, são insuficientemente conhecidos, aconteceu que a ordem
social matriarcal foi sucedida pela patriarcal, o que, naturalmente, acarretou
uma revolução nas condições jurídicas até então predominantes. Um eco dessa
revolução parece ainda audível na Oréstia, de Esquilo. Mas essa virada da mãe
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

em direção ao pai aponta, além disso, para uma vitória da intelectualidade sobre
a sensualidade - isto é, para um avanço cultural, já que a maternidade é provada
pelo testemunho [Zeugnís] dos sentidos, ao passo que a paternidade é uma hipótese
baseada numa inferência [Schlufi] e numa premissa. Tomar partido, dessa maneira,
por um processo de pensamento, de preferência a uma percepção sensória, provou
ser um passo momentoso?9

O “grande progresso” saudado por Freud se deu em direção ao patriarcado e


teria ocorrido concomitantemente à entronização da figura do silogismo lógico.
Mas o dado interessante nessas narrativas freudianas é que, na nota de 1909, ele
passa dessa constatação entusiástica do progresso espiritual/intelectual para a
afirmativa do testemunho como figura masculina, conectando os dois sentidos
de zeugen. Como na terceira parte da Oréstia, também Freud concilia se não as
Fúrias e Atenas, ao menos o testemunho e o falocentrismo.30
Desse conjunto de idéias seria, creio, lícito deduzir que esse testemunho
patriarcal e falocêntrico (tendo por patrono Atena) seria aquele que se atém às
regras “da evidência”, da lei do olho, associada a uma dedução lógica, e crê em
uma “presença originária” total atesíável (sendo que testis, testemunho, está
presente neste último termo).
Essa nota de Freud de 1909, abrupta e impactante, pode ser lida como uma
caixa de ressonância histórica. Não só Esquilo e Benjamin fariam parte desse
concerto, em que testemunho e falogocentrismo são associados, para o bem
ou para o mal, mas uma outra passagem que se encontra no fundamento da
mnemotécnica também ecoa esse topos e ratifica essa estreita comunhão entre
testemunho e falogocentrismo. Trata-se da famosa passagem do autor anônimo
do tratado Ad Herennium, que lemos no capítulo anterior deste livro, que aporta
como exemplo central na sua mnemotécnica, na parte dedicada à teoria das
imagens mnemônicas, o exemplo de uma imagem que deveria servir ao retor
como escritura imagética de um caso. Como vimos, nessa passagem (Retórica
a Herênio III, 33) a relação entre a imagem do testículo e a do testemunho é
feita pela via da analogia fonética: testis em latim significa tanto testemunho
como testículo. Ou seja, tanto pela via do germânico encontramos a “poética”
do testemunho desaguando no tema da fertilidade masculina (via conceito de
zeugen, procriar/testemunhar), como pela do latim (via testis: testemunho e
testículo). Aqui também no tratado Ad Herennium, como na tragédia grega,
o testemunho está ligado à cena sublime do assassinato e à sua representação.

123
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES

É importante notar, com Avishai Margalit, que nas sociedades tradicionais


as mulheres são excluídas das cortes enquanto testemunhas. Josephus afirma
que nos tempos bíblicos isso ocorria, o mesmo valendo para a “mulher romana”.31
Isso tem a ver com uma hierarquia social e sexual da respeitabilidade que pode
ser revelada em fenômenos linguísticos, como também Margalit observou ao
notar que no hebraico bíblico existe “uma associação fortemente sugestiva
entre as lavras” Zehker (memória) e Zakhar (masculino) e, por outro lado, Isha
(mulher, esposa) e Neshia (esquecimento). Poderiamos também lembrar das
figuras femininas do esquecimento da “volta ao lar” (nóstos') na Odisséia, Circe
e Calypso.32 Por outro lado, Margalit recorda ainda o fato de que o mandamento
da memória hebraico Yad Vashem, que batizou o memorial e centro de pesquisas
da Shoah de Jerusalém, significa, em Isaías 56:5, um ato de suplementação da
infertilidade. Nos versos em questão, promete-se um memorial ao pio eunuco
(ou homem castrado). Deus construiría um memorial onde se escrevería o
nome daqueles que não poderíam multiplicar suas sementes, testemunhando,
assim, a passagem deles pela terra.33 O universo semântico e cultural é diferente
do grego, mas novamente percebemos a relação entre o testemunho (no caso,
a memória testemunhai) e a masculinidade.

O MODELO AURICULAR DO TESTEMUNHO

Benveniste pode nos ajudar a lançar um pouco de luz sobre alguns desses
entrecruzamentos.
Lendo Benveniste fica claro que o testemunho implica tanto uma proximidade,
uma primeiridade (pensando em termos peirceanos), como, em outro sentido,
uma capacidade de julgar. Isso não apenas em termos do testemunho jurídico
contemporâneo. Desde a Antiguidade vinculam-se testemunha e testemunho à
visão. Benveniste recorda que também o sânscrito vettar tem o mesmo sentido
de testemunha (témoiri) e significa “o que vê, em gótico weitwops, particípio
perfeito [...] é aquele que sabe por ter visto; [...]. O grego ístor entra na mesma
série”.3-1 O autor cita um texto do Satapatha-Brahmana: “e o valor próprio
dessa raiz *wid- se esclarece na regra enunciada no Satapatha-Brahmana: ‘se
agora dois homens disputam entre si (têm um litígio), um dizendo eu vi’, o
outro ‘eu ouvi’, o que diz ‘eu vi’, é nele que devemos acreditar”.35 Benveniste

124
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

ainda nota que, originalmente, arbiter significava também “testemunha” e


apenas posteriormente assumiu o sentido de “árbitro”, enquanto “o que vê” a
testemunha se aproxima tanto dos paradigmas da historiografia como da cena
do tribunal. Neste último sentido também o termo mantém ecos de sua origem
em terstis, terceiro, enquanto instância para decisão em um julgamento entre
duas partes. Benveniste destaca um outro parentesco semântico da noção de
testemunha que pode nos ajudar a pensar melhor a situação do sobrevivente
que veremos mais adiante. Superstes, como ele comenta,

não é somente “ter sobrevivido a uma desgraça, à morte”, mas também “ter passado
por um acontecimento qualquer e subsistir muito mais além desse acontecimento”,
portanto, dè ter sido “testemunha” de tal fato.36

Vale recordar também esta outra passagem:

Verificamos a diferença entre superstes e testis. Etimologicamente testis é aquele


que assiste como um “terceiro” (terstis) a um caso em que dois personagens estão
envolvidos; e essa concepção remonta ao período indo-europeu comum. Um texto
sânscrito enuncia: “todas as vezes em que duas pessoas estão presentes, Mitra
está lá como terceira pessoa”; assim o deus Mitra é por natureza a “testemunha”.
Mas superstes descreve a “testemunha” seja como aquele “que subsiste além de”,
testemunha ao mesmo tempo sobrevivente, seja como “aquele que se mantém no
fato”, que está aí presente.37

Benveniste não toca na proximidade e na contaminação semântica entre


os dois sentidos latinos de testis.38
O “manter-se no fato” do superstes remete à situação singular do sobrevivente
como alguém que habita na clausura de um acontecimento extremo que o
aproximou da morte. Nosso conceito de mártir moderno está mais perto desse
sentido do que do testemunho como testis. O modelo do testemunho como
superstes tem a audição, e não a visão, em seu centro. Pensar a história a partir
dele significa aprender a diminuir o papel dado ao ístor (saber por ter visto)
do termo e pensar em uma história mais auricular: aberta aos testemunhos
e também ao próprio evento do testemunhar, sem reduzir o testemunho a
meio. O modelo do testemunho como testis é visual e corresponde ao modelo
do saber representacionista do positivismo, com sua concepção instrumental

125
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES

da linguagem e que crê na possibilidade de transitar entre o tempo da cena


histórica (ou a “cena do crime”) e o tempo em que se escreve a história (ou
se desenrola o tribunal). A crítica do testemunho que ocorre na psicologia
e especificamente na psicologia forense parte desse paradigma visual ao pôr
em questão a capacidade de percepção da cena, de seu armazenamento e da
sua restituição.39 Ao voltarmo-nos para o paradigma do superstes os valores
são outros. Aqui pressupõe-se uma incomensurabilidade entre as palavras
e essa experiência da morte; como veremos, um topos na bibliografia sobre
o testemunho no século XX. Nessa cena do testemunho como superstes o
presente do ato testemunhai ganha a precedência. Creio, no entanto, que não
se trata de simplesmente trocar um modelo pelo outro. Valorizar o paradigma
do superstes não deve implicar uma negação da possibilidade do testemunho
como testis (como, por exemplo, Giorgio Agamben o sugere40). Acredito que os
caminhos da memória e do esquecimento do mal sofrido passam também pela
construção da história e pelos julgamentos propriamente jurídicos. O essencial,
no entanto, é ter claro que não existe a possibilidade de separar os dois sentidos
de testemunho assim como não se pode separar historiografia da memória.
Devemos aceitar o testemunho com o seu sentido profundamente aporético
de exemplaridade possível e impossível, de singularidade que nega o universal
da linguagem e nos remete “diante da lei”,41 para lembrarmos Kafka, mas ao
mesmo tempo exige e cobra essa mesma lei.42 Em lugar de reduzir o testemunho
ao paradigma visual, falocêntrico e violento (que tende a uma espetacularizaçãó
da dor), e sem esquecer testis a favor apenas de superstes, minha proposta é
entender o testemunho na sua complexidade enquanto um misto entre a visão,
a oralidade narrativa e a capacidade de julgar: um elemento complementa o
outro, mas eles relacionam-se também de modo conflitivo. O testemunho revela
a linguagem e a lei como constructos dinâmicos, que carregam a marca de uma
passagem constante, necessária e impossível entre o “real” e o simbólico, entre o
“passado” e o “presente”. Se o “real” pode ser pensado como um “desencontro”
(algo que nos escapa como o sobrevivente o demonstra a partir de sua situação
radical), não deixa de ser verdade que a linguagem - sobretudo a linguagem da
poesia e da literatura - busca esse encontro impossível. Vendo o testemunho
como o vértice entre a história e a memória, entre os fatos e as narrativas,
entre, em suma, o simbólico e o indivíduo, essa necessidade de um pensamento
aberto para a linguagem da poesia no contexto testemunhai fica mais clara.

126
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Paul Celan remeteu insistentemente, no seu famoso discurso “Der Meridien”


(de 22 de outubro de 1962), a essa ideia de que o poema existe “no mistério
encontro”,43 que implica justamente a capacidade “trópica” da língua de unir
e cortar pontos aparentemente isolados uns dos outros.44 Esse encontro se dá
apesar e, paradoxalmente, por conta do que ele denomina “uma forte tendência
ao emudecimento” no poema.45 “Niemand /zeugt für den/ Zeugen”,40 lemos
no poema “Aschenglorie”, “ninguém testemunha para quem testemunhou”,
para quem vivenciou 0 invivível. Cada testemunho é único. Mas o testemunho
ocorre, “se dá” e é a prova e a manifestação desses encontros.

Testemunhar a guerra: o caso Jean Norton Cru

Lembrando duas expressões que foram recorrentes no final do século XX,


respectivamente de Eric Hobsbawm e de Shoshana Felman, podemos dizer
que à “era das catástrofes” corresponde a “era dos testemunhos”. As catástrofes
na mesma medida em que explodem o referencial simbólico do Iluminismo,
revelando seus ocos e suas contradições, geram um gigantesco acúmulo de
dor e morte. O trabalho de luto das catástrofes do século XX deu uma nova
dimensão ao trabalho da história, assim como despertou novamente o interesse
pela memória em oposição ao modelo historicista/positivista da historiografia
(monumentalista, como afirmou Nietzsche já nos anos 1870). Como vimos no
capítulo 1 deste livro, Maurice Halbwachs e Walter Benjamin foram dois dos
primeiros teóricos da história a reagir a essa nova situação após a Primeira
Guerra Mundial. Por outro lado, o conceito de testemunho só foi receber maior
atenção após a Segunda Guerra Mundial. Mas seria injusto, ao tratar da história
desse conceito, deixar de fora a figura, raramente lembrada, mas nem por isso
menos importante, de Jean Norton Cru. Ele representa uma exceção aqui. Jean
Norton Cru nasceu em 1879, filho de uma mãe inglesa e de um pai pastor de
origem camponesa. Na Primeira Guerra Mundial, ele retornou dos EUA, onde
trabalhava como professor no Williamstown College, para lutar no exército
francês, tendo estado no fronte, mais especificamente na guerra de trincheiras,
por dois anos e 105 dias. Ainda durante a guerra, desde 191547 ele começou a se
interessar pelos escritos testemunhais dos soldados. Seu ponto de partida são
a dificuldade e a necessidade de escrever esses relatos. Em junho de 1916, em

127
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES

meio à Batalha de Verdun (que custou a vida de mais de 66o mil soldados), ele
constata: “Quem nunca viu o que eu vejo, nunca poderá imaginá-lo”.48 Sua luta
vai se dar no sentido de estabelecer critérios objetivos para 0 julgamento dos
testemunhos da guerra. Ele criticava a exploração comercial do sofrimento. Em
uma carta de 1917, ele escreve: “considero um sacrilégio fazer do nosso sangue
e de nossas aflições a matéria da literatura”,49 com o que já percebia uma aporia
que estaria na base de grandes debates estéticos após 1945. Após quase 15 anos de
trabalho ele publicou sua obra monumental, Témoins, em 1929, que contém um
levantamento exaustivo e uma análise de cerca de 300 testemunhos da Primeira
GM. Seu crivo se deu a partir do mote do testemunho como visão, como lemos
em uma das epígrafes de seu livro (também utilizada em seu segundo livro,
Du Témoignage, de 1930): “Ah, como sempre, aqueles que não viram, como
poderíam eles julgar?”.50 Em outra epígrafe, no entanto, percebemos que
essa vivência da guerra não é apenas visual, mas corpórea: “Aquele que não
compreendeu com sua carne não pode falar daquilo”.51 Aquele que testemunha
de modo autêntico a guerra é o militar do fronte: só ele viu e viveu o perigo na
carne.52 A classificação das obras testemunhais estabelecida por Cru continha os
seguintes gêneros: o jornal/diário (que é o gênero mais valorizado por ele, dada
sua “exactitude fondamentale”);53 as memórias, as reflexões, as cartas (muito
valorizadas e aproximadas do diário) e, por último, também na sua hierarquia
da exatidão, os romances. Estes são os mais propícios a difundir erros e lendas,
os grandes inimigos de Cru. Ele tende a valorizar mais o “valor documental”
(yaleur documentaire) do que o “valor estético” (yaleur esthétique)5i das obras,
sendo que o que é “apreendido no calor da hora”,55 como nas cartas e nos diários,
tende a uma maior e mais desejada proximidade. Ele critica a tese de que a
literatura teria uma verdade sintética superior à do diário ou da carta. O que ele
entende por proximidade, podemos perceber em outra epígrafe de 1930:

O combatente tem uma visão limitada... mas pelo fato de suas visões serem
estreitas, elas são precisas; porque elas são restritas, elas são claras. Ele não vê
grande coisa, mas ele vê bem o que vê. Porque seus olhos e não os de outros o
informam, ele vê o que é.56

Ao longo de Du Témoignage e de Témoins, a impressão que temos é


justamente a de uma aproximação em zoom da paisagem dos campos de

128
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

batalha. Em vez da tradicional representação em grande plano das batalhas -


que não podem ser realistas ou verdadeiras, segundo os critérios de Cru ele
privilegia o soldado na sua solidão do fronte. Assim, ele afirma-se contrário
ao que denomina “paradoxo de Stendhal”, ao lembrar a figura do soldado da
Cartucha de Parma, Fabrice dei Dongo, que não teria percebido estar em uma
batalha, o que significaria que apenas os comandantes, com a visão do todo,
poderiam ter a visão do que é a guerra. Para Cru, apenas tratando o soldado
como a realidade primordial da guerra, ela deixará de ser uma abstração,57
e poderá ser criticada. Essa “guerra vista de perto” (guerre vue de près) leva
também a iluminar os detalhes nada heroicos da vida material do soldado: “o
comer, o beber, as cartas, os pacotes, as pulgas, os ratos, a chuva, o barro etc.”?8
Para ele, a grande história deve aprender a se ocupar das penas e angústias
do combatente, uma lição que de fato foi ouvida pelos historiadores. Para
Cru, o testemunho é um documento antes de tudo exato. Seu paradigma de
fidelidade, positivista, no entanto, é posto em questão, na medida em que tenta
conciliar, por um lado, exatidão e não contradição com, por outro lado, o seu
reconhecimento de que “os fatos psicológicos são a essência mesma da guerra”.59
E ainda:

Cada um sabe que é impossível para a testemunha relatar o que ele fez e viu
permanecendo estritamente objetivo. Ele é homem e ele é artista, em diferentes
doses; a fidelidade mecânica do cinema lhe está interditada.60

Por outro lado, ele defende a capacidade do soldado para relatar sua
experiência estabelecendo uma diferença entre a experiência de um acidente
(que é pontual, parcial e limita a qualidade de testemunho dos que o presenciam)
e, por outro lado, a guerra, que é marcada pela monotonia e pela repetição que
permitem um registro detalhado.61 Cru destaca que existe uma quantidade
muito grande de testemunhos (e também um número razoável daqueles que
ele considera excelentes testemunhos, 29) da Primeira GM. Ele atribui esse fato
novo em parte à presença de muitos combatentes mais velhos que a média das
guerras e também à presença de soldados mais intelectualizados.61
Não tenho como fornecer aqui uma ideia mais clara da impressionante
obra de Cru. Apesar de seu positivismo, ele tem uma visão detalhada de
muitas das aporias do testemunho e, sobretudo, da complementaridade do

129
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES

trabalho do historiador com o autor desses relatos do fronte. Diferentemente


de W. Benjamin, ele acredita em uma experiência derivada da guerra e está
longe de desdenhar aquilo que o filósofo da República de Weimar denominou
pejorativamente “uma inundação de livros de guerra” no seu famoso ensaio “O
narrador”. Mas, como Benjamin na sua crítica de Ernst Jünger, Cru despreza
a estetização da guerra.63 Podemos hoje em dia olhar com desconfiança
para muitas de suas hierarquias, mas sua obra permanece como um marco
importante na história do conceito de testemunho e já apresenta muitas das
idéias que foram posteriormente repensadas no contexto do pós-Segunda
Guerra Mundial.
Mas existe um elemento particularmente delicado na obra de Cru. Nos
debates negacionistas do século XX, ela tem sido revalorizada também por
revisionistas da Shoah que veem em seus argumentos uma arma contra os
testemunhos dos campos de concentração. Esse tipo de instrumentalização
da obra de Cru evidentemente ocorre de modo violento e invertendo seus
argumentos principais que justamente colocam o testemunho como uma
espécie de protofenômeno do estudo das guerras.64 Cru queria desmontar a
grande tradição da história militar nacionalista e épica. Por outro lado, essa
apropriação também ocorre a partir dos “flancos” mais frágeis da argumentação
de Cru, quando ele se torna ínaceitavelmente positivista, por assim dizer. Pois
sua crença na representação da guerra leva-o a afirmar também um perigoso
critério negativo: assim como para ele “a liberdade da arte sempre foi limitada
pelo absurdo”65 (o que é um absurdo em si e não valia deste modo restrito nem
para Aristóteles e Horácio), para Cru também o excepcional e o inacreditável
não devem fazer parte da imagem da guerra.66 O que importava para ele eram os
“casos gerais”. Ocorre que na guerra também pode se dar uma generalização do
que fora dela é inacreditável. E aqui encontramos um limite da reflexão de Cru.

Testemunho e literatura

A questão do testemunho tem sido cada vez mais estudada desde os anos
1970. Para evitar confusões devemos deixar claro dois pontos centrais: (a) Em
vez de se falar em “literatura de testemunho”, que não é um gênero, percebemos
agora uma face da literatura que veio à tona na nossa época de catástrofes e que

130
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

fez com que toda a história da literatura - após 200 anos de autorreferência -
fosse revista a partir do questionamento da sua relação e do seu compromisso
com o “real”. Nos estudos de testemunho deve-se buscar caracterizar o “teor
testemunhai” que marca toda obra literária, mas que aprendemos a detectar
a partir da concentração desse teor na literatura e na escritura do século XX.
Esse teor indica diversas modalidades de relação mètonímica entre o “real” e
a escritura, (b) Em segundo lugar, esse “real” não deve ser confundido com
a “realidade” tal como ela era pensada e pressuposta pelo romance realista e
naturalista: o “real” que nos interessa aqui deve ser compreendido na chave
freudiana do trauma, de um evento que justamente resiste à representação.
O conceito de testemunho concentra em si uma série de questões que
sempre polarizaram a reflexão sobre a literatura: antes de qualquer coisa, ele
põe em questão as fronteiras entre o literário, o fictício e o descritivo. E mais:
o testemunho aporta uma ética da escritura. Partindo-se do pressuposto, hoje
em dia banal, de que não existe “grau zero da escritura”, ou seja, a literatura está
ali onde o sujeito se manifesta na narrativa, não podemos deixar de reconhecer
que, por outro lado, o histórico que está na base do testemunho exige uma visão
“referencial”. Ou seja, o testemunho impõe uma crítica da postura que reduz
o mundo ao verbo, assim como solicita uma reflexão sobre os limites e modos
de representação. Pensar o testemunho significa transpor para a análise da
cultura a máxima benjaminiana que vimos acima: todo documento de cultura
é um documento da barbárie. Essa história tensionada, marcada pela violência,
é o contexto que participa de modo determinante na definição das estratégias
enunciativas-estéticas que devemos ler como mensagens na garrafa, portadoras
de “teor testemunhai”. Não se trata de modo algum de pensar em um estudo
do teor testemunhai, de opor, de um lado, “o histórico” e, do outro, algo como
um “teor estético”. Esse equívoco positivista repetiría o corte cartesiano entre
corpo e razão. Antes, tudo na obra analisada deve ser lido do ponto de vista
dessa construção de seu teor testemunhai: por que a obra possui, por exemplo,
uma estrutura fragmentada; por que porta um narrador autodiegético, ou,
ao contrário, por que porta um narrador heterodiegético; como se constrói
a temporalidade na obra; quais as geografias apresentadas; que espaços e
arquiteturas entram em questão; qual a sua relação com outras obras que cita
ou parodia; como ela subverte (ou não) gêneros literários convencionados;
como se estruturam as relações de classe, gênero e étnico-raciais na obra; quais

131
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES

são os modos de apresentação dos personagens e de suas subjetividades; como


a violência é apresentada (ou por que é ocultada e apenas sugerida); a quem a
obra se destina de modo programático; como se (des)constroem, no caso da
lírica, a versiíicação, o sistema de assonâncias etc. Uma abordagem testemunhai
da obra só possui consistência enquanto uma abordagem total.67

Teor testemunhal e escrita testemunhal

O conceito de testemunho tornou-se uma peça central na teoria literária


nas últimas décadas devido à sua capacidade de responder às novas questões
postas por várias áreas de pesquisa, com destaque para os estudos pós-coloniais.
A autoconsciência de que vivemos no espaço da colonialidade, ou seja,
da continuidade da empresa colonial, faz com que nos despertemos para a
necessidade de abrir caminhos para a escuta (e leitura) da voz (e escritura)
daqueles que antes eram (e ainda em parte são) sistematicamente recalcados nesse
espaço. Daí também esse conceito ter um papel central nos estudos de literaturas
de minorias. Pode-se, de resto, estabelecer uma relação de proximidade entre
esse conceito e o de “minorização”, desenvolvido nos estudos culturais a partir
da noção de littérature mineure de Deleuze e Guattari.68 Se, para esses autores,
nessa literatura “tudo é político”, o mesmo se passa com a literatura em que
se busca articular um testemunho resistente. Devem-se, portanto, articular
nos estudos de testemunho, por um lado, a virada testemunhal da cultura,
ou seja, a abordagem que deu origem ao conceito de teor testemunhal, e, por
outro, o surgimento dessas novas inscrições programaticamente testemunhais.
Ambos os momentos, a construção da abordagem testemunhal e as práticas
de inscrição, estão associados ao que denominei aqui “virada testemunhal”.
Assim vemos também aumentar o papel desempenhado por esse conceito
nos estudos de literatura LGBT,69 nos gender studies70 de um modo geral, nos
quais as escritas de si representam uma questão fundamental. Genocídios e
massacres na segunda metade do século XX também estão na origem de ondas
de testemunho e de estudos de testemunho, como no caso das bombas atômicas
lançadas sobre o Japão pelos EUA em 1945/' do genocídio dos tutsis em Ruanda
em 1994,72 ou no caso do genocídio promovido pelo ditador do Camboja Pol
Pot, na segunda metade da década de 197o.73 A Nobel de Literatura Svetlana

132
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Aleksiévitch tem seus trabalhos calcados na coleta e no estudo de testemunhos


e é uma autêntica representante da virada testemunhai no campo das letras,74
sendo de certa forma a correspondente na Europa Oriental à escritora e ensaísta
mexicana Elena Poniatowska,75 outra poderosa praticante e teórica no campo
dos testemunhos. O tema do testemunho, como ficou claro acima, não se
limita aos estudos literários e tem sido analisado com relação às artes visuais,
incluindo o cinema76 e as discussões sobre o antimonumento e sobre a relação
entre arte e memória.77
Para concluir, quero observar que a tensão que habita a literatura na
sua relação dupla com o “real” e com o “histórico” também se encontra no
coração do testemunho. Literatura e testemunho só existem no espaço entre
as palavras e as “coisas”. Mas existe uma marca específica de como essa tensão
se dá no testemunho: “o testemunho está sempre associado à possibilidade
ao menos da ficção, do perjúrio e da mentira”, afirma Derrida.78 “Eliminada
essa possibilidade, nenhum testemunho será possível e, em todo caso, não terá
mais o seu sentido de testemunho”.79 Ou seja, o testemunho não é o literário
- onde não existe a mentira mas apenas a “verdade estética”. O famoso “caso
Wilkomirski”80 deixou claro que no campo do testemunho as questões da
autoria e da referência não podem ser tratadas nem de modo positivista nem
hiper-relativista. Pierre Louys, em suas Chansons de Billitis, de 1895, pôde
simular ser o tradutor dos versos de Billitis, que ele na verdade inventara, sem
levantar a ira de ninguém (a não ser de um “fundamentalista” da filologia como
Ulrich Wilamowitz-Moellendorf; mas Louys soube se vingar da resposta irada
desse helenista atribuindo ao próprio Wilamowitz-Moellendorf a “tradução”
de uma fictícia edição alemã do mesmo volume que Louys inventara81). Ele
estava atuando no campo livre do estético. Louys e Wilkomirski encontram-se
e devem ser pensados a partir de seus diferentes contextos.
O conceito de testemunho permite hoje um acesso a uma série de questões
que estão no centro do debate estético. Ele reintroduz uma reflexão sobre as
fronteiras dos registros de escritura, aproximando-nos dos “fatos” sem a ilusão
do positivismo. Não por acaso grandes exposições de arte, ao menos desde
a Documenta XI de 2002 de Kassel, estão marcadas por uma forte presença
de trabalhos que utilizam o arquivo como metáfora-chave. Algumas dessas
obras dificilmente são discerníveis dos programas a que assistimos na televisão
como jornais ou reportagens antropológicas. Mesmo porque existem tanto uma

133
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES

tendência ao documentário nas artes, como uma tendência ao desenvolvimento


de documentários dramáticos com ficções testemunhais. Isso prova mais
uma vez que, de fato, vivemos numa “era de testemunhos”. O testemunho
também funciona como um sistema de arquivamento do passado, e sua força
advém desse fato. Podemos pensar, diante da dissolução das fronteiras entre
disciplinas assim como entre os registros do ético, do estético, do político
e dos restos do modo de pensar religioso, que o conceito de testemunho,
com suas diferentes modalidades, permite focar essa cena atual de modo
concentrado. Se a estética da ilusão estava moribunda desde o “ataque” das
vanguardas artísticas do início do século XX, a impressão que temos agora
é que o espaço estético como um todo ficou abalado com as catástrofes
daquele período e que se estendem até agora. A fratura do ais ob (o “como se”
ilusionista) está na origem de uma série de novas pesquisas para resolver os
desafios da apresentação estética. O indivíduo romântico - dilacerado entre
a esfera pública e a sua individualidade - ainda podia ter como consolo sua
tarefa quixotesca de reencantar o mundo. Mesmo se essa tarefa fosse vista com
ironia, uma espécie de “consolo metafísico” moderno. Com a simbiose dessas
esferas e a impossibilidade de levar esse sonho adiante, restou ao sobrevivente
do século XX testemunhar as catástrofes. Nesse testemunho não se trata mais,
como no tribunal da Eumênides, de reforçar as energias míticas que habitam a
cena do tribunal, mas sim de permitir pensar para além da polaridade crime-
-vingança. Trata-se de construir um testemunho não falocêntrico, marcado
por ser inscrição da sobrevivência e passagem para a escuta do Outro. O
testemunho, com seu compromisso com o “real” (traumático) e o “histórico”,
duas categorias distintas e que marcam a duplicidade do superstes e do testis,
pode indicar algumas pistas para aprendermos a lidar com esses novos jogos
não só de linguagem, mas de memória, que temos diante de nós.

Notas
1 Esquilo, 1993, versos 268 e ss.
2 Cf. Chrétien, 2002; Delehaye, 1927.
J Cf. Informazione e Tetimonianza, Archivio di Filosofia, 1972; Brooks, 2000.
4 Cf. Ballinger, 1998; Leys, 2000; Loftus, 1993.
3 Cf. Bosi, 1983.
6 Cf. Felman & Laub, 1991; Caruth (org.), 1995; Caruth, 1996.
' Kopenawa & Albert, 2015, pp. 512-549.

134
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

8
Cf. Pollak, 1986; Pollak & Heinrich, 1986; Friedlander, 1992; LaCapra, 1998; Winter & Sivan,
1999; White, 1987; Rüsen & Straub, 1998; Wieviorka, 1992 e 1998; Wieviorka & Mouchard,
1999.
9
Gibbs, 2000; Seligmann-Silva, “Catástrofe, história e memória em Walter Benjamin e Chris
Marker: a escritura da memória” (Seligmann-Silva (org.), 2003, pp. 391-417); Ricoeur, 2000
e 2008.
10
Cf. Derrida, 1998; Penna, 2003; Seligmann-Silva, 2001.
11
Cf. Berg, 1996; Wajman, 1998; Mesnard, 2000.
12
Esquilo, 2003. Citamos cada uma das tragédias de Esquilo indicando a sua inicial seguida
do número dos versos segundo a tradução ao português (2003) e, entre colchetes, do
número dos versos segundo a edição bilíngue, Esquilo, 1999.
13
Benveniste, 1995, p. 192. Em grego os termos correspondentes são hierós (= sacer) e hágios
(= sanctum). Idem, p. 193.
14
Na Poética ele descreve, no capítulo XVI, os reconhecimentos em que tematiza o
reconhecimento (Anagnorisis) por meio de signos: como é o caso do que ocorre em Coéforas
quando Electra reconhece o irmão devido às suas pegadas em torno da tumba do pai (que
são descritas como tekmérion, 266 [205]).
15
As Fúrias ironizam esse culto ao pai, lembrando que Zeus acorrentou seu próprio pai,
Cronos, e pedem que os jurados levem isso em conta (martiromai, E. 844 [643]).
16
Torrano, 2001, p. 18.
17
Cf. A. V. de Azevedo, 2001.
18
Benjamin, 1972b, p. 87.
19
Cf. Weigel, 2000.
20
Duden. Etymoligie, 1989, p. 829.
21
Benjamin, 2009, p. 67.
22
Idem, 1982, p. 595.
23
Aristóteles, 1995.
24
Eco, 1988, p. 258.
25
Weinrich, 1997, p. 107.
26
Freud, 1989, p. 91.
“Fortschritt in der Geistigkeit.”
28
Freud, 1993, p. 559; 1996, p. 127.
29
Idem, 1993, p. 560; 1996, p. 128. Tradução modificada.
30
No item “Triebverzicht”, “Renúncia instintual”, de seu ensaio sobre Moisés, Freud desenvolve
essa ideia de passagem da sensualidade (testemunho visual) para a intelectualidade: “Um
avanço em intelectualidade consiste em decidir contra a percepção sensória direta, em
favor do que é conhecido como processos intelectuais superiores - isto é, lembranças
[Erinnerungen], reflexões [Überlegungen] e inferências [Schluflvorgange]. Consiste, por
exemplo, em decidir que a paternidade é mais importante do que a maternidade, embora
não possa, como esta última, ser estabelecida pelo testemunho [Zeugnis] dos sentidos, e
que, por essa razão, a criança deve usar o nome do pai e ser herdeira dele” (Freud, 1993,
P- 563; 1996, p. 132. Tradução modificada). Freud, portanto, coloca em uma hierarquia as
lembranças acima do testemunho, que estaria preso a uma sensualidade que o rebaixa.
Pensando no que ele escrevera em 1909, parece que Freud também opta pela “incerteza”
da memória (“Gedãchtnis"; 1989, p. 91) e, portanto, pelo partido do neurótico obsessivo.
Derrida, no mencionado ensaio sobre o mal de arquivo, dedica uma passagem, ainda que
rápida, para criticar as premissas da nota de Freud de 1909 que analisei aqui. Ele afirma
que Freud se engana ao afirmar que sabemos quem é nossa mãe (pois existem mães de

135
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES

aluguel, maternidades protéticas, inseminação artificial etc.); equivoca-se ao achar que


só a paternidade é incerta e ao aceitar com Lichtenberg que seria incerto se existe vida na
Lua (para Derrida, que não leva em conta que Lichtenberg faleceu em 1799, sabemos com
“certeza objetiva” que não existe vida no nosso satélite) e, por fim, Freud se equivoca com
sua conclusão “falogocêntrica” segundo a qual esse suposto apelo à razão na atribuição
da paternidade implicaria a passagem ao patriarcado acompanhado do triunfo da razão
e da ciência sobre a sensibilidade e a percepção (2001, pp. 64-65). Nesta última crítica
podemos acompanhar Derrida. Lamentavelmente, ele não comenta a segunda parte da nota
sobre a ambiguidade de “zeugen” como procriação e testemunho. No seu ensaio Poétique
et politique du témoignage, ele passa por essa ambiguidade, mas sem desenvolvê-la,
limitando-se a sugerir pensarmos o testemunho enquanto terceiro/sobrevivente (terstis/
superstes) como “herdeiro, guardião, garantia e legatário do testamento, no fundo daquilo
que existiu e desapareceu” (2005b, p. 28).
31 Margalit, 2002, p. 176. Cf. o artigo “Zeugen” do dicionário de Adelung (Grammatisch-
-kritischen Wõrterbuchs von J.C. Adelung, 1811), no qual tanto o verbo é definido como
“criar algo” como se afirma que o termo “em primeiro lugar é aplicado com relação ao pai.
Ele só gerou [gezeugt] um filho. [...] Prestar testemunho [Ein Zeugnifl ablegen], confirmar
a verdade de um fato através da sua experiência. Uma mulher não pode gerar, não pode
atestar. [Em Weib kann nicht zeugen, kann keinen Zeugen abgeben.] [...] Tratou-se de uma
derivação muito pobre quando Frisch e outros derivaram Zeuge e zeugen de ziehen [puxar]
porque antigamente costumava-se puxar a testemunha pelas orelhas”. Essa aparição da
orelha como mero instrumento para arrastar alguém diante do tribunal não deixa de ser
ilustrativa dessa concepção falocêntrica (e violenta) de testemunho como testis. Devemos
pensar aqui também na tradição de torturas tendo em vista a confissão nos tribunais de
ontem e de hoje. A linguagem nessa cena é reduzida a mero instrumento, meio da prova,
substituto da experiência, sem valor em si.
32 Cf. Weinrich, 1997 e 2001.
33 Margalit, 2002, p. 21 ss.
34 Benveniste, 1995, p. 174 e ss.
3: 5 Idem, p. 175.
j6 Idem, p. 277 e ss.
3' Idem, p. 278.
38 Com relação a este ponto, eis o que lemos em dois dicionários on-line. Online Etymology
Dictionary: “TESTIS: (pl. testes), 1704, do latim testis ‘testículo’, um uso especial de testis
‘testemunha’ [tvífíiess], presumivelmente porque ‘dá testemunho’ [‘bears witness’] da
virilidade (cf. Grego, parastates, lit. ‘o que presencia algo’; e o termo usual francês témoins,
lit., ‘testemunhos’). Mas Buck acha que o grego parastatai ‘testículos’ foi erroneamente
associado com o sentido legal de parastates ‘defensor’ ['supporter, defender] e sugere em
vez disso parastatai no sentido de um duplo ‘pilar de suporte, suporte de um mastro”’ etc.
The American Heritage® Dictionary ofthe English Language (Fourth Edition, 2000): “A
semelhança entre testemunho, testificar, testis e testículo mostra uma relação etimológica,
mas os linguistas não têm um consenso quanto a como o inglês testis veio a ter seu sentido
atual [ou seja, de testículo]. O termo latino testis originalmente significa ‘testemunho’ e
etimologicamente significa ‘uma terceira (pessoa) que presencia algo’: o te- vem de um
tri- mais antigo, uma forma combinada da palavra ‘três’, e -stis é um nome derivado da
raiz indo-europeia st- significando ‘estar de pé’. Não há consenso quanto a como isto veio
a referir a parte(s) do corpo. Uma teoria antiga afirma que os romanos colocavam sua mão
direita sobre os testículos e juravam por eles antes de testemunhar na corte. Outra teoria

136
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

afirma que o sentido de testículo no latim testis tem origem em uma falsa tradução do grego.
O termo grego parastats significa ‘defensor (na lei)’ [‘defender (in law), supporter’] (para-
‘junto, ao lado de’, como em paramilitar e -stats de histanai, ‘estar de pé’). No número
duplo utilizado em muitas línguas para pares que existem naturalmente, em contraste ou
complementares, como por exemplo mãos, olhos e orelhas, parastats tinha o sentido técnico
médico de ‘testículos’, ou seja, ‘duas glândulas lado a lado’. Os romanos simplesmente
tomaram este sentido de parastats e adicionaram-no ao de testis, a palavra latina para
defensor legal, testemunha”. Desenvolví a questão da masculinidade de um determinado
tipo de testemunho como testis no ensaio “Grande sertão: veredas como gesto testemunhai
e confessional”, neste volume.
39 Cf. Dulong, 1998, p. 25 e ss.
40 Cf. Agamben, 1998. Um bom exemplo de testemunho mais auricular e menos marcado
pela “espetacularização” da violência é o livro de Ruth Klüger weiter leben. Eine Jugend
(1991). Klüger opta por uma escritura que programaticamente oscila entre o passado da
experiência da guerra e dos campos de concentração nazistas e o presente de sua escritura,
em 1990. O fato de ela não descrever a violência e o mundo militar e focar seu relato na sua
visão, na sua experiência, faz com que seu texto testemunhe sua história sem apresentar
ostensivamente os seus horrores. Não se trata de “higienização” do passado, pois tudo
está dito (ou no mínimo sugerido). Klüger escreve após centenas de outros sobreviventes e
parte dessa situação do horizonte de expectativas de seus leitores. Dizer que seu texto não
faz um “espetáculo” da violência não significa, por outro lado, que sempre o testemunho
como testis o faça. Mas pode-se dizer que a tendência para a visualidade e a apresentação
das provas da violência abre o testemunho para essa via. Não é necessário repetir que, na
cena jurídica, essa apresentação é tratada como essencial.
41 “Vor dem Gesetz.”
42 Penso aqui no texto de Kafka “Vor dem Gesetz", que pode ser traduzido tanto como “diante
da lei” quanto como “antes da lei”, fora dela, sendo que esse “fora” reproduz a estrutura
psicanalítica da cripta, do encriptamento/recalcamento, do banimento para o interior. Cf.
Derrida, 1985 e 1999.
43 “im Geheimnis der Begegnung" (Celan, 1983a, p. 198).
44 Celan, 1983a, p. 202.
4:1 Idem, p. 197.
46 Idem, 1983b, p. 72.
4/ Cru, 1997, p. 19.
48 “Quiconque n’a jamais vu ce que je vois, ne s’en fera jamais une idée” (Cru, 1967, p. 163).
49 “je considère comme un sacrilège de faire avec notre sang et nos angoisses de la matière à
littérature” (Cru, 1967, p. 165).
50 “Ah, comme toujours, ceux qui n’ont pas vu, comment peuvent-ils juger?”
51 “Celui qui n’a pas compris avec sa chair ne peut vous en parler.”
32 Cru, 1997, p. 26.
33 Idem, p. 87.
34 Idem, p. 88 e ss.
33 “saisis sur le vif” (Cru, 1997, p. 90).
36 “Le combattant a des vues courtes... mais parce que ses vues sont étroites, elles sont
precises; parce quelles sont bornées, elles sont nettes. II ne voit pas grand-chose, mais il
voit bien ce qu’il voit. Parce que ces yeux et non ceux des autres le renseignent, il voit ce
qui est.”
3/ Cru, 1997, p. 40.

137
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES

58 “le manger, le boire, les lettres, les colis, les poux, les rats, la pluie, la boue etc.” (Cru, 1997,
P-42)-
59 “les faits psychologiques sont 1’essence même de la guerre” (Cru, 1997, p. 46).
60
“Chacun sait qu’il est impossible au témoin de relater ce qu’il a fait et vú en restant
strictement objectif. II est honune et il est artiste, plus ou moins ; la fidélité mécanique du
cinématographe lui est donc interdite” (Cru, 1997, p. 125).
61
Cru, 1997, p. 22. Esta reflexão faz lembrar os argumentos do paragone ou competição entre
as artes, que se desenrolou do Renascimento ao século XVIII. Para G. E. Lessing, a poesia
deveria representar ações (que se estendem no tempo) em oposição às artes plásticas,
que deveríam se limitar à representação de corpos no espaço (e, portanto, só poderíam
representar as ações de modo alusivo, elegendo um momento mais fecundo) (Cf. o seu
Laocoonte, tessing, 1998). Nesse sentido, poderiamos pensar que o cinema estaria mais
próximo do testemunho do que a fotografia, seguindo esse modelo de Cru. Com relação a
essa diferença entre representação do acidente e da guerra, importa lembrar do conceito
de “trauma cumulativo” que desmontaria o argumento de Cru, já que também esse trauma
extenso no tempo produziría o efeito traumático.
62
Cru, 1997, p. 24.
t>3
Com relação a W. Benjamin e a Primeira GM, cf. Jay, 2002.
64
Rousseau, 2003, pp. 255-271.
65
“la liberté de 1’art a toujours été limitée par labsurde” (Cru, 1997, p. 105).
66
Idem, p. 129.
67
No capítulo 6 de meu livro O local da diferença (Seligmann-Silva, 2018 [2005]), dedicado
ao tema “Literatura, testemunho e tragédia: pensando algumas diferenças”, apresento dois
grande modelos do testemunho desenvolvidos no final do século XX/início do nosso século:
o modelo advindo dos estudos do testimonio latino-americano e o modelo pensado a partir
dos estudos da Shoah (pp, 81-97). Não se trata, no entanto, de pensar em modelos no sentido
de duas concepções fechadas e estanques, já que os eventos que estão na origem desses
conceitos, a exploração colonial e pós-colonial na América Latina, com suas ditaduras e
gigantescas desigualdades socioeconômicas em suas populações e, por outro lado, a Shoah,
não são passíveis de interpretações unívocas.
68
Deleuze & Guattari, 1995.
69
Pollak, 1990a; Bernardet, 1996; Beck, 1999; Jensen, 2002; Brophy, 2004; Silva, 2009; Seel, 2018.
70
Butler, 1999.
71
Nakagawa, 2014.
72
Coquio, 1999 e 2004; Hatzfeld, 2005; Ilibagiza, 2008; Mukasonga, 2018.
73
Panh & Bataille, 2011; Pran, 1997.
74
Aleksiévitch, 2016a, 2016b e 2018.
75
Poniatowska, 1991,1998, 2005 e 2016.
76
Lanzmann, 1985; Insdorf, 1985; Cuau et al„ 1990; Felman & Laub, 1991; Koch, 1993 e 1999;
Olin, 1997; Hansen, 1997; Kõppen & Scherpe, 1997; Didi-Huberman, 2015.
77
Cf. Hoheisel et al„ 2004; J. Young, 2000; Assmann, 1999 e 2012; Berg, 1996; Baer, 2000;
Borsdorf & Grütter, 1999; Brodsky, 2001; Seligmann-Silva, 2016. Para uma bibliografia mais
extensa sobre os estudos de testemunho, remeto ainda à bibliografia que compilei no livro
Seligmann-Silva (org.), 2003, pp. 469-555.
78
“le témoignage a toujours partie liée avec la possibilite au moins de la fiction, du parjure et
du mensonge” (Derrida, 1998, p. 28).
79
“Cette possibilité éliminée, aucun témoignage ne serait plus possibleet naurait plus en tout
cas son sens de témoignage” (Derrida, 1998, p. 28).

138
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

80 Refiro-me aqui à falsa autobiografia de Binjamin Wilkomirski (1998), que afirmou ser judeu
e sobrevivente de campos de concentração e depois foi desmascarado como um farsante,
ou no mínimo como alguém que se convenceu da veracidade de suas falsas memórias.
Cf. “Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a ficção”, Seligmann-Silva,
2018, pp. 105-118; Suleiman, 2019, pp. 209-223. Tive a oportunidade de assistir a seu longo
vídeo-testemunho em que ele narra sua pretensa epopeia (ele teria atéfpassado pela câmara
de gás e a ela sobrevivido). Seu testemunho, sintomaticamente, é o único que já vi, de
sobreviventes que passaram pela Shoah quando crianças, que narra como se se tratasse de
uma criança falando e tentando descrever (para adultos) suas impressões de um mundo
incompreensível. Esse recurso retórico de Wilkomirski (que visa convencer - e funcionou
muito bem no seu livro) desmascara-o como alguém que precisou inventar seu mundo,
seu “como se” ficcional. O problema não é escrever uma ficção sobre Auschwitz (qualquer
um com um pouco de talento pode fazê-lo): a questão que se põe é moral devido a sua falsa
postura diante da sociedade.
81 Cf. Venuti, 1998. Tratei mais detalhadamente deste “caso Louys”, confrontando-o com o
Wilkomirski, em “O testemunho: entre a ‘ficção’ e o ‘real’” (Seligmann-Silva (org.), 2003,
PP- 375-390).

139
3

NARRAR O TRAUMA

Falar, escrever é, para o deportado que regressa, uma


necessidade tão imediata e tão forte quanto a sua necessidade
de cálcio, açúcar, sol, carne, sono, silêncio. Não é verdade que
ele pode se calar e esquecer. É necessário que primeiro ele se
recorde. É necessário que ele explique, que ele narre, que ele
domine este mundo do qual ele foi vítima.

(Parler, écrire, est, pour le déporté qui revient, un besoin aussi


immédiat et aussi fort que son besoin de calcium, de sucre, de
soleil, de viande, de sommeil, de silence. II nest pas vrai quil
peut se taire et oublier. II faut d’abord qu’il se smivienne. II fav.t
qiíil explique, quil raconte, qu’il domine ce monde dont iljut
la victime.)
Georges Perec*

Essas palavras de Perec nos lançam sem mais no coração da cena do


testemunho. Antes de mais nada vemos aqui a necessidade absoluta do
testemunho. Ele se apresenta como condição de sobrevivência. Primo Levi
também expressou esse fato no prefácio de É isto um homem?. Vale a pena
voltarmos a essas palavras de Levi porque ele acrescenta a essa ideia de
necessidade de testemunhar outro dado fundamental, a saber, a sua implícita
dialogicidade. Citemos as palavras de Levi: “A necessidade de contar ‘aos
outros’, de tornar os outros’ participantes, alcançou entre nós, antes e depois
da libertação, caráter de impulso imediato e violento, até o ponto de competir
com outras necessidades elementares”.2 Seguindo essas palavras, podemos
caracterizar, portanto, o testemunho como uma atividade elementar, no
sentido de que dela depende a sobrevida daquele que volta do Lager (campo
de concentração) ou de outra situação radical de violência que implique
essa necessidade, ou seja, que desencadeie essa carência absoluta de narrar.
Essa situação pode ser uma violência associada a um conflito e limitada
temporalmente (mas o trauma é justamente o que está posto “fora do tempo”),
seja a sobrevivência a uma circunstância que se estende no tempo, como a
passagem durante meses ou anos em um campo de refugiados, seja a condição
de alguém que vive em um trauma contínuo devido a conflitos raciais, étnicos,

141
NARRAR O TRAUMA

de classe ou de gênero. É importante destacar que Levi, nessa passagem, coloca


as expressões “aos outros” e “os outros” entre aspas. Esse destaque indica tanto
o sentimento de que entre o sobrevivente e “os outros” existia uma barreira,
uma carapaça, que isolava aquele da vivência com seus demais companheiros
de humanidade, como a consequente dificuldade prevista dessa cena narrativa.
Sabemos que, entre os sonhos obsessivos dos sobreviventes dos campos de
concentração e de extermínio nazistas, consta, em primeiro lugar, aquele em
que eles se viam narrando suas histórias, após retornar ao lar. Mas o próprio
Levi também narrou uma versão reveladora desse sonho, que ficou conhecida,
na qual as pessoas, ao ouvirem a sua narrativa, se retiravam do recinto
deixando-o a sós com as suas palavras. A outridade do sobrevivente é vista aí
como insuperável. A narrativa teria, portanto, entre os motivos que a tornavam
elementar e absolutamente necessária, esse desafio de estabelecer uma ponte
com “os outros”, de conseguir resgatar o sobrevivente do sítio da outridade, de
romper com os muros do campo. A narrativa seria a picareta que poderia ajudar
a derrubar esse muro. A circulação das imagens do campo de concentração, que
se inscreveram como uma queimadura na memória do sobrevivente, na medida
em que são aos poucos traduzidas, Über-Setzte, transpostas, para “os outros”,
permite que o sobrevivente inicie seu trabalho de (re)ligamento ao mundo, de
(re)construção da sua casa. Narrar o trauma, portanto, tem, em primeiro lugar,
esse sentido primário de desejo de (re)nascer.
Gostaria aqui, neste espaço, de pensar algumas características desse
gesto testemunhai enfatizando algumas das aporias que o marcam. A cena
testemunhai deve ser pensada em diálogo com o saber derivado da psicanálise.
Em certo sentido podemos ver a cena psicanalítica elementar, ou seja, o paciente
diante de seu analista, como uma cena testemunhai. Trata-se, mutatis mutandis,
de um sobrevivente buscando a atenção e a escuta de um outro tendo em vista
a construção de um mundo menos inóspito, Unheimlich.3 Isso sem contar a
centralidade da noção de trauma em Freud e na história da psicanálise, noção
cuja história não trato aqui, mas é pressuposta, tendo em vista sua importância
vital para entender a questão da narrativa do trauma.4 Visando a um local de
compromisso entre essa cena familiar à psicanálise e abordagens mais históricas
ou filosóficas, e sem perder de vista um possível diálogo, enfatizo aqui algumas
das problemáticas nascidas da confluência entre a tarefa individual da narrativa
do trauma e de sua componente coletiva. Daí ser importante considerar

142
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

que lidamos aqui com “catástrofes históricas”? Nessas situações, como nos
genocídios, nas perseguições violentas em massa de determinadas parcelas da
população, nas situações de sobrevida extremas, a memória do trauma é sempre
uma busca de compromisso entre o trabalho de memória individual e outro
construído pela sociedade. Aqui, a já em si extremamente .complexa tarefa de
narrar o trauma adquire mais uma série de determinantes que não podem ser
desprezadas mesmo quando nos interessamos em primeiro plano pelas vítimas
individuais. No que segue apresentarei, em primeiro lugar, alguns aspectos da
mencionada dificuldade de testemunhar. Veremos que o testemunho de certo
modo só existe sob o signo de seu colapso e de sua impossibilidade. No segundo
passo, tratarei especificamente da questão da política da memória: primeiro,
introduzindo algumas definições importantes para entender o conceito de
memória; depois, tratando do tema da memória como uma política.

Narrar o inenarrável

Dori Laub, em um ensaio importante sobre o tema do testemunho da


Shoah, dedicou especial atenção à questão da “impossibilidade de narração” e
formulou a ideia de que o Holocausto foi “um evento sem testemunha”.6 Nesse
trabalho, ele destacou a impossibilidade daquele que esteve no Lager (o que se
passou com o próprio Laub quando criança) de se afastar de um evento tão
contaminante para poder gerar um testemunho lúcido e integral. O próprio
grau de violência impediu que o testemunho pudesse ocorrer. Sem testemunho,
evidentemente, não se constitui a figura da testemunha. Para ele, a principal
tarefa que coube aos sobreviventes foi a de construir a posteriori esse testemunho
e a figura da testemunha. Essa tese de Laub me parece correta, mas deve ser
vista cum grano salis. Ela gerou alguns mal-entendidos, do tipo daqueles que, a
partir daí, negam a importância ou a possibilidade dos testemunhos. O objetivo
de Laub era evidentemente o oposto, daí ele ser, ao lado de Geoffrey Hartman,
o fundador do primeiro arquivo de vídeo-testemunhos de sobreviventes da
Shoah, o Fortunoff Video Archive, localizado na Universidade de Yale.7
Primo Levi também destacou em diversas oportunidades essa impossibilidade
dp testemunho. Ele afirmava que aqueles que testemunharam foram apenas os
que justamente conseguiram se manter a uma certa distância do evento, não

143
NARRAR O TRAUMA

foram totalmente levados por ele como o que ocorreu antes de mais nada com a
maioria dos que passaram pelos campos e morreram, mas também com aqueles
que eram denominados Musulmãnner dentro do jargão do campo, ou seja,
aqueles que haviam sido totalmente destruídos em sua capacidade de resistir.
Os que ocuparam algum local na hierarquia do campo, quer por conta de suas
relações políticas quer por causa de seu conhecimento técnico (o caso do próprio
químico Levi), estes puderam testemunhar, mesmo que não de forma integral, já
que a distância deles também implicou uma visão atenuada dos fatos. Para Levi,
não se pode falar, com Laub, que não existiu o testemunho no Lager, mas antes
que esse testemunho foi parcial, limitado. Giorgio Agamben deriva das palavras
de Levi algo semelhante ao que Laub afirmara. Isso, a meu ver, não corresponde
aos textos de Levi. Para Agamben,8 apenas os Musulmãnner poderíam ser as
testemunhas do campo, mas Levi nunca afirmou isso. Na introdução do volume
Os afogados e os sobreviventes, ele apenas aponta para as limitações do testemunho,
como lemos na famosa frase: “a história do Lager foi escrita quase exclusivamente
por aqueles que, como eu próprio, não tatearam seu fundo. Quem o fez não
voltou, ou então sua capacidade de observação ficou paralisada pelo sofrimento
e pela incompreensão”.9 Mas mesmo para ele, membro desse grupo de paradoxais
“privilegiados” dentro do inferno, a realidade do campo permaneceu como uma
cripta (lembrando da expressão de Nicolas Abraham e Maria Torok), cripta esta
que suas palavras atingiram com força, mas nunca conseguiram quebrar, o que
talvez esteja na origem do próprio suicídio de Primo Levi em 1987.
No seu É isto um homem?, de 1947, ele escrevera o seguinte com relação
.a esse elemento encriptado da realidade do Lager: “Parecia impossível que
existisse realmente um mundo e um tempo, a não ser nosso mundo de
lama e nosso tempo estéril e estagnado, para o qual já não conseguíamos
imaginar um fim”.10 Lembremos também outra passagem-chave do mesmo
livro: “Hoje - neste hoje verdadeiro, enquanto estou sentado frente a uma
mesa, escrevendo - hoje eu mesmo não estou certo de que esses fatos tenham
realmente acontecido”.1* Nessa passagem vemos dois momentos exemplares
do testemunho: em primeiro lugar, ele se dá sempre no presente. Na situação
testemunhai 0 tempo passado é tempo presente. (Mais um paralelo, aliás, com a
cena psicanalítica, já que Freud buscou várias metáforas ao longo de sua vida,
como a da câmera fotográfica, um campo geológico e o bloco mágico, para
exprimir esse elemento paradoxal da temporalidade psíquica concentrada em

144
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

um mesmo topos.) Mais especificamente, o trauma é caracterizado por ser


uma memória de um passado que não passa. O trauma mostra-se, portanto,
como o fato psicanalítico prototípico no que concerne à sua estrutura temporal.
LeVi diz que neste hoje da sua escritura ele não está certo se os fatos (do
Lager, o campo) de fato aconteceram. Esse teor de irrealidade é sabidamente
característico quando se trata da percepção da meihória do trauma. Mas, para
o sobrevivente, essa “irrealidade” da cena encriptada desconstrói o próprio teor
de realidade do restante do mundo.1-

Trabalho de luto: a simbolizacão


> tardia da morte

Hélène Piralian, psicanalista de origem armênia, refletiu sobre essa questão


ao tratar do genocídio armênio e sobre a questão de sua representação. Para
ela, a simbolização do evento implica a “(re)construção de um espaço simbólico
de vida”.’3 Essa simbolização deve gerar um retemporalização do fato antes
embalsamado, encriptado. Ele adenda, assim, ao fluxo dos demais fatos da vida.
Romper a cripta é, para Piralian, quase um gesto literal de enterrar os mortos
que não puderam ser enlutados, já que sua reflexão parte do caso extremo
do genocídio armênio produzido pelo Império Otomano durante a Primeira
Guerra Mundial. Daí ela colocar a seguinte pergunta: “Como não morrer pela
herança do genocida?”.14 Ou seja: como sobreviver à morte? Ou ainda, como
ela desdobra essa questão: como viver diante da morte da própria morte? Ela
tem como herança o genocídio armênio, o crime por excelência quando se trata
de pensar a forclusão do genocídio. Até hoje, para o Estado turco, na verdade,
os armênios assassinados “nunca existiram” e, portanto, nunca foram mortos.
Piralian cita G. Raimbault, que nos remete às reflexões que desenvolvemos
no capítulo i em torno da tensão inerente ao conceito de sema, que realiza a
ponte entre a ideia de túmulo e a de signo: “A sepultura traça a distinção entre
o morto e o vivo. Enquanto marca específica do humano, indica a presença da
ordem simbólica”.15 A primeira tarefa do sobrevivente então é, paradoxalmente,
ir ao encontro da morte, dependendo disso o caminho para a vida. O genocídio
destrói a morte e as bases da memória coletiva. Os genocidas são memoricidas
que também anulam os suportes da memória coletiva: eles destroem cemitérios,
inscrições, o idioma, todas as marcas. Se, como vimos anteriormente, o núcleo

145
NARRAR O TRAUMA

de nosso vínculo com o passado se articula por nossa relação com os mortos, ao
destruir os espaços de memória dos ancestrais se mata também a possibilidade
de sobrevivência. Assim, a tarefa do sobrevivente e de seus herdeiros passa a ser,
em primeiro lugar, a luta pela restituição dos mortos. Como formula Piralian,
os sobreviventes são herdeiros não só de violências tentativamente apagadas,
mas, literalmente, de cadáveres insepultos que eles portam na tentativa de
exumá-los e finalmente poder enlutá-los, enterrá-los, simbolizá-los:

Em outras palavras, é factível pensar que uns mortos, por falta de tumbas
possíveis, podem ser transmitidos, passar de corpo em corpo, até que alguém,
situado nessa cadeia genealógica muito particular, seja capaz de exumar o corpo
morto como cadáver e enterrá-lo? Por acaso não assumiría essa esperança toda
criança que nasce, quero dizer, como uma esperança possível, mesmo quando
forças gigantescas se opõem a ela? Uma vez que, quem não pode enterrar seus
mortos segue sendo um morto vivo.16

Piralian fala também, e de modo muito apropriado, de uma


tridimensionalidade advinda da simbolização.17 Em vez da imagem calcada
e decalcada, chata, advinda do choque traumático, a cena simbolizada
adquire tridimensionalidade. Passa-se do abjeto (a morte não simbolizada)
à possibilidade de construção da relação objetai e do sujeito. A linearidade
da narrativa, suas repetições, a construção de metáforas, tudo trabalha no
sentido de dar essa nova dimensão aos fatos antes enterrados e não narrados.
Conquistar essa nova dimensão equivale a conseguir sair da posição do
sobrevivente para voltar à vida. Significa ir da sobrevida à vida. É claro que
nunca a simbolização é integral e nunca essa introjeção é completa. Falando
na língua da melancolia, podemos pensar que algo da cena traumática sempre
permanece incorporado, como um corpo estranho, dentro do sobrevivente.
Na cena do trabalho do trauma nunca podemos contar com uma introjeção
absoluta. Essa cena nos ensina a sermos menos ambiciosos ou idealistas
em nossos objetivos terapêuticos. Para o sobrevivente, sempre restará esse
estranhamento do mundo advindo do fato de ele ter morado como que “do
outro lado” do campo simbólico.
Também Achille Mbembe, em seu vigoroso ensaio Sair da Grande
Noite,18 que trata da África descolonizada, volta-se para esse tema central do
enterro dos mortos, quando toca especificamente no caso da África do Sul.

146
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Além de valorizar os procedimentos associados à “Truth and Reconciliation


Commission” (1996-2003), ele afirma que

uma grande parte do trabalho memorialista se traduz [...] no sepultamento


apropriado das ossadas daqueles que pereceram no combate; no erguimento de
esteias funerárias nos próprios locais onde eles caíram, na consagração de ritos
religiosos tradicionais e cristãos destinados a ‘curar’ os sobreviventes da cólera e
do desejo de vingança.19

Para além desses espaços de culto fúnebre, Mbembe destaca também


a importância de criar museus e parques comemorativos, de incentivar o
“florescimento das artes”, apontando para outros espaços de “curadoria” da
dor. Se Piralian lembra que aquele barrado em seu trabalho de luto porta
cadáveres insepultos, Mbembe, por sua vez, nos fala de um trabalho de
elaboração das mortes que permitirá “transformar em presença interior a
destruição física daqueles que foram perdidos, que viraram pó”.20 Trata-se,
aqui, de uma introjeção, e não de uma incorporação melancólica dos mortos. E
mais, essa ritualização do luto permite também a conquista de um novo espaço
de ação: “Em grande parte, meditar sobre essa ausência e sobre os caminhos
para restaurar simbolicamente aquilo que foi destruído consiste em dar à
sepultura toda a sua força subversiva” que estará na origem da restituição de
um “suplemento de vida”.21

O ESTRANHAMENTO DO MUNDO: ELABORAR


O DOUBLE BIND DOS SOBREVIVENTES

Tanto Piralian como Mbembe enfatizam a necessidade de sair da morte


em direção à sua simbolização. Habitar a morte significa permanecer estranho
ao mundo. Esse estranhamento está intimamente vinculado ao tema da
irrealidade dos fatos vividos e da consequente inverossimilhança deles. Este
constitui um topos importante das narrativas do trauma. O sobrevivente, como
o tradutor, está submetido a um double bind. Enquanto aquele que traduz deve
se submeter ao mesmo tempo, sem esperanças de uma trégua, aos ditames da
língua que traduz e aos da língua para a qual está traduzindo, do mesmo modo

147
NARRAR O TRAUMA

o sobrevivente tenta (sem sucesso) conciliar as regras de verossimilhança, por


exemplo, do universo concentracionário, com as do “nosso mundo”. O Levi
que sonha com seu público ouvinte que o abandona já previa a sensação de
inverossimilhança gerada pelos fatos que narraria e a consequente acusação de
mentiroso que o esperava. Robert Antelme, outro sobrevivente de Buchenwald,
em seu testemunho sobre sua experiência nos campos alemães, também
expressou essa angústia que está na base da pulsão testemunhal:

Há dois anos, durante os primeiros dias que sucederam ao nosso retorno, estávamos
todos, eu creio, tomados por um delírio. Nós queríamos falar, finalmente ser
ouvidos. Diziam-nos que a nossa aparência física era suficientemente eloquente
por ela mesma. Mas nós justamente voltavamos, nós trazíamos conosco nossa
memória, nossa experiência totalmente viva, e nós sentíamos um desejo frenético
de a contar tal qual. E desde os primeiros dias, no entanto, parecia-nos impossível
preencher a distância que nós descobrimos entre a linguagem que nós dispúnhamos
e essa experiência que, em sua maior parte, nós nos ocupávamos ainda em
perceber nos nossos corpos. Como nos resignar a não tentar explicar como nós
havíamos chegado lá? Nós ainda estávamos lá. E, no entanto, era impossível.
Mal começávamos a contar e nós sufocávamos. A nós mesmos, aquilo que nós
tínhamos a dizer começava então a parecer inimaginável. Essa desproporção entre
a experiência que nós havíamos vivido e a narração que era possível fazer dela não
fez mais que se confirmar em seguida. Nós nos defrontavamos, portanto, com uma
dessas realidades que nos levam a dizer que elas ultrapassam a imaginação. Ficou
claro então que seria apenas por meio da escolha, ou seja, ainda pela imaginação,
que nós poderiamos tentar dizer algo delas."

Testemunho como trabalho de imaginação

É essencial nos determos um pouco nessa conclusão que Antelme extrai


do dilema da testemunha. A imaginação apresenta-se a ele como o meio para
enfrentar a crise do testemunho. Crise que, como vimos, tem inúmeras origens:
a incapacidade de testemunhar, a própria incapacidade de imaginar o campo, o
tabu da recordação no caso do genocídio armênio, as políticas de memoricídio
em algumas sociedades pós-ditadura na América Latina, o elemento
inverossímil da realidade narrada ao lado da imperativa e vital necessidade
de testemunhar, como meio de sobrevivência. A imaginação é chamada como

148
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

arma que deve vir em auxílio do simbólico para enfrentar o buraco negro
do real do trauma. O trauma encontra na imaginação um meio para sua
narração. A literatura é chamada diante do trauma para prestar-lhe serviço.
Nada mais evidente: se dermos uma pequena olhada na história da literatura e
das artes veremos que os serviços que elas têm prestado *à humanidade e seus
complexos traumáticos não são desprezíveis. Da Iltada a Os sertões, de Êdipo
Rei a Guernica (1937), de Hamlet ao teatro pós-Shoah de um Beckett, podemos
ver que o trabalho de (tentativa) introjeção da cena traumática praticamente se
confunde com a história da arte e da literatura. A teoria freudiana da tragédia
como ritual de exorcismo do assassinato do pai pela horda primeva é apenas
uma das inúmeras versões da teoria estética que vê as artes como uma espécie
de escudo de Perseu. Nesse escudo miramos os olhos da Górgona que, segundo
Primo Levi, matou ou emudeceu aqueles que chegaram ao fundo do sistema
concentracionário e depararam com eles. Para muitos sobreviventes, como é
o caso de Jorge Semprun, a pessoa que melhor pode escrever sobre os campos
de concentração é quem não esteve lá e lá entrou pelas portas da imaginação?3
Mas essa solução está longe de implicar uma pacificação na cena do trauma
e do seu testemunho. Antes, é por conta da imaginação que muitas acusações
são feitas contra o testemunho. Ou seja, antes de criticar a literatura (com seu
evidente compromisso com a imaginação), a própria narrativa testemunhai, que
se quer “primeira”, atestação, fonte original da realidade, mesmo esta narrativa
é descartada por muitos historiadores - como o próprio Raul Hilberg24 - como
sendo fonte não fidedigna para o historiador. Neste ponto vislumbramos uma
querela que acompanha a historiografia desde seus primórdios, em sua luta
contra a escrita dita imaginativa. Mas, em vez de negarmos ao testemunho a
possibilidade de ver na imaginação e em seu trabalho de síntese de imagens um
potente aliado, devemos, com autores como, entre outros, Derrida, ver nessa
aproximação entre o campo testemunhai e o da imaginação a possibilidade
mesma de repensar tanto a literatura como o testemunho e o registro da escrita
autodenominado sério e representacionista. Ocorre uma revisão da noção de
literatura justamente porque, do ponto de vista do testemunho, ela passa a ser
vista como indissociável da vida, a saber, como tendo um compromisso com o
real. Como já dissermos anteriormente, aprendemos, ao longo do século XX,
que todo produto da cultura pode ser lido no seu teor testemunhai. Não se
trata da velha concepção realista e naturalista que via na cultura um reflexo da

149
NARRAR O TRAUMA

realidade, mas antes de um aprendizado - psicanalítico - da leitura de traços


do real no universo cultural. Já o discurso dito sério é tragado e abalado na
sua arrogância quando posto diante da impossibilidade de estabelecer uma
fronteira segura entre ele, a imaginação e o discurso dito literário. Não existe
uma essência do literário que dê conta de contê-lo diante do discurso dito
sério. Por fim, como vimos com Derrida,25 o testemunho só faz sentido de o
pensarmos ligado e ao mesmo tempo em tensão com a possibilidade de ficção,
perjúrio e de jnentira. O testemunho só tem sentido com a sua contraparte
estrutural, o falso-testemunho. Ou seja, assim como Coleridge26 definiu a
literatura como uma suspensão voluntária da desconfiança, o mesmo, em
outro grau (mas justamente tudo se torna uma questão de grau), se dá no
testemunho. Sem a nossa vontade de escutar, sem o desejo de também portar
aquele testemunho que se escuta, ele não existe. O testemunho para se dar
necessita de ouvidos generosos. O dialogismo do testemunho transporta-o para
o campo da pragmática do testemunho. E aqui já estamos anunciando nosso
próximo passo: a política do testemunho.

A SINGULARIDADE E A EXEMPLARIDADE DO TESTEMUNHO

Antes de passar para este item, mas já nos dirigindo a ele, tratemos por
fim, dentro do tema das aporias do testemunho, da questão de sua paradoxal
singularidade. Todo testemunho é único e insubstituível. Essa singularidade
absoluta condiz com a singularidade de sua mensagem. Ele anuncia algo
excepcional. Por outro lado, é essa mesma singularidade que vai corroer sua
relação com o simbólico. A linguagem é um constructo de generalidades, ela
é feita de universais. O testemunho como evento singular desafia a linguagem
e o ouvinte. Sabemos que a fragmentação do real, o colapso do testemunho do
mundo, como vimos, emperra sua passagem e sua tradução para o simbólico.
A conhecida literalidade da cena traumática - ou o achatamento de suas
imagens, a face gorgónea do real que petrifica que vimos acima - trava a
simbolização. Mas, ao reafirmar essa singularidade absoluta do testemunho,
barra-se a possibilidade de sua repetição e sinapse com o simbólico, ponto em
que a ficcionalização entra com seus serviços. Como vimos, essa passagem
para o imaginário é desejável e pode ter um efeito terapêutico, mas, para um

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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

certo discurso sobre o testemunho - sobretudo o jurídico e o de uma certa


historiografia (como no caso de Norton Cru), mas não só -, a ficção contamina
e dissolve o teor de verdade do testemunho. É no discurso jurídico que esse
elemento paradoxalmente singular do testemunho (e das provas) é levado mais
adiante, colocando o testemunho em um verdadeiro território de ninguém.
Dostoievski percebeu isso e, frequentador contumaz de tribunais, dizia que as
provas têm sempre “dois gumes”,27 um verdadeiro insight psicanalítico sobre
o double bind. Ou seja, a “literalidade” da situação traumática traz consigo a
sensação de singularidade absoluta. Esta não é nada mais do que o sintoma da
ruptura com o simbólico. Na tentativa de cobrir essegap com a simbolização, a
testemunha volta-se para o trabalho da imaginação. É neste ponto que o campo
jurídico passa a lançar uma suspeita sobre o testemunho. Ele gostaria de manter
a singularidade total do testemunho, que significaria a chancela de seu teor
de “prova”, de fragmento do real. Mas a engrenagem jurídica emperra uma
segunda vez, justamente ao defender essa singularidade literal do evento. Pois
também as leis - como a linguagem - são generalizantes, são universais, e muito
precariamente cobrem os “delitos” individuais. O testemunho como híbrido
de singularidade e de imaginação, como evento que oscila entre a literalidade
traumática e a literatura imaginativa, assombra duplamente o direito.
Por outro lado, o testemunho também se quer compreensível, e mesmo, o
testemunho se quer exemplar. Neste sentido, reencontramos um veio tradicional
do conceito de testemunho, que o articula à figura cristã do mártir (também
muito cara a Dostoievski). Mártir é aquele que sofre e morre para testemunhar
sua fé. O mártir (do grego mártus/uros, aquele que testemunha, ou seja, que
percebe o mundo), ao testemunhar de modo único essa fé universal, torna-se
ele mesmo um exemplo, um modelo, uma vida exemplar, que as hagiografias até
o século XX reproduziam com certo sucesso. Aquele que testemunha um fato
excepcional muitas vezes torna-se ele também uma figura exemplar. Sabemos
do valor atribuído em nossa sociedade aos sobreviventes. Eles representam
exemplos únicos daqueles que viram de perto atrocidades inomináveis. Eles
portam essas verdades e são tratados como porta-vozes delas. Aqui vemos
um ponto central na nossa era com sua “virada testemunhai”, se a verdade
é a verdade do testemunho, a testemunha faz parte dessa verdade. Abala-se,
assim, o modelo epistemológico do saber como um sujeito neutro que domina
seu objeto. O mundo objetivo é composto pela verdade formulada pelo sujeito

151
NARRAR O TRAUMA

sobrevivente que testemunha. Sua perspectiva é fundadora da verdade. A


universalidade do singular, que na epistemologia kantiana só existia no campo
estético, penetra o campo do saber. Isso é fundamental, pois é essa visão bipolar
sujeito x objeto que se desdobrou na hierarquia entre as ditas ciências duras e,
por outro lado, as humanidades (que viveram por muito tempo sob a tutela do
modelo objetivista). Esse modelo também justificou uma relação de espoliação
da natureza. A virada testemunhai implica, portanto, não só uma libertação
de vozes antes emudecidas, mas também uma virada epistemológica e, por
fim, nas lutas políticas, nas quais a natureza passa a ser incluída como sujeito
com direitos.
Essa unicidade paradoxal do testemunho, que desafia a linguagem, levou
também ao discurso da unicidade das catástrofes. Em particular, fala-se muito
da unicidade da Shoah. Como escreveu Primo Levi: “o sistema concentracionário
nazista permanece ainda um unicum, em termos quantitativos e qualitativos”.23
Mas essa questão deve ser vista com cautela. Seria moral compará-los para
saber que grupo tentativamente dizimado sofreu mais? Do ponto de vista das
vítimas - e este ponto de vista é fundamental ao estudar o testemunho -,
toda catástrofe é única. Radicalizar essa singularidade assim como condenar
toda comparação entre os genocídios, por outro lado, pode gerar uma espécie
de teologia negativa concentracionária (ou uma queda em um esteticismo
inconsequente), muito improdutiva e que apenas tende a reproduzir dois males:
em primeiro lugar, a própria situação do traumatizado na sua resistência à
simbolização e, em segundo lugar, o discurso dos algozes que visa estender um
tabu sobre o discurso que recorde as atrocidades cometidas. Como escreveu
Ruth Klüger, ela mesma uma sobrevivente de três campos de concentração
e autora de um relato autobiográfico publicado em português com o título
Paisagens da memória (na edição original alemã weiter leben), “mesmo cada
cachorro é único”.29 Nas Américas fala-se de um genocídio de ameríndios cuja
dimensão precisa é impossível calcular. Segundo Todorov, em 1500 a população
indígena das Américas girava em torno de 80 milhões. Em meados do século
XVI ela teria sido reduzida a 10 milhões.30 Segundo o historiador Luiz Felipe de
Alencastro,3' provavelmente 4,8 milhões de africanos desembarcaram no Brasil,
o que representa, em termos globais, 46% dos escravizados africanos. Já para
Jaime Rodrigues, a morte nos navios negreiros era muito alta e podia alcançar
um quarto da população transportada.32 E Abdias Nascimento recordou que

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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

a vida de um escravo era submetida a tantas violências que não ultrapassava


sete anos:

Depois de sete anos de trabalho, o velho, o doente, o aleijado e o mutilado - aqueles


que sobreviveram aos horrores da escravidão e não podiam continuar mantendo
satisfatória capacidade produtiva - eram atirados à rua, à sua própria sorte, qual
lixo humano indesejável; estes eram chamados de “africanos livres”.33

A abolição de 1888 teria apenas duplicado essa farsa do “africano livre”,


produzindo descartados, expelidos do mundo dos vivos em um limbo sem
esperança de redenção. Também é impossível um cálculo preciso do número de
vítimas fatais da empresa escravocrata, base da Modernidade e origem abjeta de
nosso neoliberalismo desumanizado. A incomparabilidade entre as catástrofes
deve ser acompanhada de uma visão da história que permita as ordenar na
concepção de uma história como trauma, como acúmulo de explorações e
violências, visão essa essencial para a construção de uma cultura e de uma
política éticas.

Política da memória: inscrever


CONTRA OS NEGACIONISMOS

O testemunho é uma modalidade da memória. Se os estudos sobre 0


testemunho - no seu sentido não mais religioso ou meramente jurídico,
mas, antes, como uma busca por ler na cultura as marcas das catástrofes da
Modernidade - se desenvolveram nas últimas décadas é porque ocorreu nesse
período uma virada culturalista dentro das ditas ciências humanas, como
acompanhamos na abertura deste livro. Nessa virada, a memória passou a
ocupar um lugar de destaque, submetendo a quase onipresença da historiografia
no que tange à escritura de nosso passado. Nesse período também a própria
historiografia se abriu aqui e ali à influência dos discursos da memória, como
vemos em trabalhos de história que introduzem procedimentos da história
oral ou nos que se abrem também ao trabalho com as imagens. Como vimos, a
historiografia positivista tradicional é avessa às imagens, desconfia delas, assim
como despreza a imaginação. Já a memória sempre foi pensada como um misto

153
NARRAR O TRAUMA

de verbalidade e imagens. As formulações de Aristóteles que lemos acima - “a


alma nunca pensa sem uma imagem mental” (De anima, 432 a 17);34 "mesmo
quando pensamos de modo especulativo, devemos ter uma imagem mental com
a qual pensamos” (De anima, 432 a 9) - devem nos acompanhar ao tratarmos do
testemunho, porque, assim como falamos de narrativa testemunhai, também
devemos pensar em uma arte testemunhai, ou seja, em práticas imagéticas do
testemunho.35
Por agora nos contentemos em acentuar o elemento eminentemente
político no qual se desdobram os discursos testemunhais. O próprio conceito
de testemunho pode ser traçado ao longo do século XX na sua relação com o
pensamento político. Jean Norton Cru, como vimos, o primeiro a introduzir
o conceito no campo da historiografia,30 tinha como objetivo fazer uma crítica
da Primeira Guerra Mundial e dos discursos oficiais, belicistas, que enalteciam
as figuras dos heróis guerreiros. Sua resposta foi propor que a historiografia se
abrisse para os testemunhos dos soldados. Seu livro Témoins, de 1929, deve ser
visto como a primeira tentativa sistemática de pensar o testemunho moderno.37
Já Walter Benjamin, com a sua concepção do historiador como um chiffonier,
também abriu a historiografia para o discurso testemunhai, apesar de ter
utilizado pouco esse conceito. Já na América Latina, sobretudo desde os anos
1960, o conceito de testemunho adquiriu uma centralidade enorme no contexto
da resistência às ditaduras que assolaram o continente.
Hélène Piralian escreve seu referido livro de ensaios sobre o genocídio
dos armênios de 1915-1916 sob o signo de uma escritura contra 0 negacionismo.
Como é conhecido, aquele genocídio que atingiu cerca de 1.200.000 armênios
do então Império Otomano, de uma população total de cerca de 1.800.0000,
até hoje é negado pelo governo da Turquia. Ainda em 2005, um congresso
sobre esse genocídio, que deveria ocorrer na Universidade de Bogazici, teve sua
realização impedida pelo governo turco. Para Piralian, o desafio do testemunho
desse genocídio negado - que assim matou duas vezes suas vítimas e continua
a assassiná-las simbolicamente - é o de construir em termos coletivos espaços
para além do desejo da vingança, da parte dos descendentes das vítimas, e
com a renúncia da negação, do lado dos turcos. Apenas desse modo ela crê
que se poderia finalmente proceder ao trabalho de luto, que até o momento
foi travado e impedido por conta da negação. O negacionismo aqui é apenas
um caso particularmente radical de um movimento que acompanha o gesto

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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

genocida. O genocida sempre visa à total eliminação do grupo inimigo para


impedir as narrativas do terror e qualquer possibilidade de vingança. Os
algozes sempre procuram também apagar as marcas do seu crime. Essa é
uma questão central, que assombra o testemunho do sobrevivente em mais
de um sentido.38 Em primeiro lugar, porque o sobrevivente vive o sentimento
paradoxal da culpa da sobrevivência. A situação radicalmente outra, na qual
todos deveriam morrer, constitui sua origem negativa. A indizibilidade do
testemunho ganha com esse aspecto um peso inaudito. Mas o negacionismo
é também perverso, porque toca no sentimento acima referido de irrealidade
da situação vivida. O negacionista parece coincidir com o sentimento comum
que afirma a impossibilidade de algo tão excepcional. O apagamento dos locais
e marcas das atrocidades corresponde àquilo que, no imaginário posterior,
também tende a se afirmar: não foi verdade. A resistência quando se trata
de enfrentar o real parece estar do lado do negacionismo. Esse sentimento
comum mora no próprio sobrevivente e o tortura, gerando uma visão cindida
da realidade. Piralian nota que o testemunho visa à integração do passado
traumático. Essa integração só pode ser conquistada contra o negacionismo.
Não por acaso, conta-se que Hitler, em um discurso a seus chefes militares
em 22 de agosto de 1939, às vésperas da invasão da Polônia, teria dito: “Quem
se lembra hoje do extermínio dos armênios [durante a Primeira Guerra
Mundial]?”. Sua intenção era clara: apenas o lado “heroico” da guerra seria
lembrado; a impunidade estaria garantida. A negação antecedeu o próprio ato,
ou seja, a tentativa de extermínio dos judeus europeus. A memória da barbárie
tem, portanto, também esse momento instituidor de novas práticas da vida em
comum: preservar contra o negacionismo, como que em uma admoestação, as
imagens de sangue do passado.39
Catherine Coquio, em um incontornável livro sobre o genocídio dos tutsis40
na Ruanda de 1994, aborda justamente os conflitos entre os rituais oficiais de
memória e as tentativas individuais da população sobrevivente de enfrentar o
luto quase impossível de 1.300.000 assassinados com facões ao longo de apenas
três meses. Ela descreve uma situação na qual, enquanto o Estado tende para um
rápido “trabalho de memória”, mais parecido a um trabalho de esquecimento,
boa parte da população sofre diante da ausência de interlocutores para suas
demandas de testemunho. Os rituais oficiais pareceríam mais memória
encobridora (Deckerinnerimg) do que real disposição a tratar do passado.

155
NARRAR O TRAUMA

Fazem parte desses rituais a publicação de um dicionário com o nome dos


desaparecidos, a exumação dos cadáveres enterrados em fossas coletivas e a
construção de memoriais, como foi o caso do Memorial de Kigali. Este último
foi inaugurado em 2004, aos dez anos do massacre, e contém um museu do
genocídio, cuja cenografia foi inspirada em Yad Vashem, o memorial central
dedicado à Shoah em Jerusalém. Mas faltam espaços para o testemunho. As
igrejas, que poderíam em parte abrigar essa demanda, foram transformadas em
1994 em cenárjo para os massacres. Um relato da ensaísta e ativista dos direitos
humanos Monique Ilbudo, escrito em 1998, quatro anos após o genocídio,
apresenta um pouco o retrato dessa população destruída por aquela experiência:

Em 1998 as pessoas ainda estavam embrutecidas, perdidas. Alguns haviam


escolhido a loucura para sobreviver e nos contavam coisas incoerentes. Outros
estavam fechados no mutismo. Outros ainda andavam como fantasmas,
completamente destruídos.4'

Já o testemunho da socióloga e psicoterapeuta ruandesa, uma das


sobreviventes do genocídio tutsi, Esther Mujawayo, citado por Coquio, mostra
um descompasso entre as boas intenções daqueles que querem dar apoio a essa
população e suas necessidades:

estes psicólogos... nâo queriam ouvir nosso traumatismo senão sob a forma que
eles o compreendiam. [...] percebíamos que o país se transformava em um campo
de experiências de um bando de aventureiros e, antes de mais nada, de aprendizes
de psicólogo, de engenheiros, médicos... Quantos energúmenos nós nâo vimos?
[...] a maior parte dos que emprestam fundos e agentes humanitários são pessoas
apressadas e, como todas as pessoas apressadas, frequentemente julgam antes de
escutar: eles querem soluções rápidas, eficazes como mecanismos de automóvel,
mas que não podem funcionar com humanos, ainda menos com humanos que
saem de um genocídio. Eles querem se livrar da sua culpa com programas rápidos.42

Esther Mujawayo reclama também da retórica oficial de 2004 que afirmava


que já se havia falado “0 suficiente” do genocídio. Ela vê uma coincidência
entre esse tipo de concepção e o desejo dos hutus de esquecer tudo e de apagar
o passado. O Estado assumiu um discurso de unidade nacional, tentando
conciliar os desejos dificilmente conjugáveis dos hutus e dos tutsis. Desse modo,

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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

o testemunho não pôde acontecer e estabelecer sua tentativa de criar pontes


entre o sobrevivente e a realidade, entre ele e a sociedade. O discurso ficou
estancado. Mesmo as tentativas de introduzir algo semelhante às Comissões
de Verdade e Conciliação da África do Sul parecem não ter obtido o resultado
esperado. A introdução da Gacaca, uma instituição jurídica tradicional de
Ruanda, uma espécie de conselho popular, deveria ter permitido a confissão
em massa dos culpados e o testemunho das vítimas. Como esse ritual não
previa sanções penais, ele acabou se transformando em um ritual de anistia
disfarçado de boas intenções. Nesse sentido, a Gacaca foi instrumentalizada
pelo projeto de reconciliação e unificação que previa o perdão como meio de
cura dos traumas sociais. Tampouco foi bem-aceita a iniciativa da ONU de
criar um Tribunal Penal Internacional para Ruanda, uma vez que ela é vista
como cúmplice por sua inação durante o genocídio. Jean Hatzfeld destaca a fala
de uma sobrevivente desse genocídio que afirma, dentro de um topos que vimos
acima, que não adiantaria testemunhar, porque ninguém acreditaria nos fatos
relatados.43 Sem contar que os sobreviventes têm medo de retaliações contra
os que testemunham em público; em 2003, ocorreu uma série de assassinatos
de sobreviventes que foram considerados potenciais denunciantes das
atrocidades.44 Lendo o testemunho de Sylvie, uma assistente social de Ruanda
citada por Hatzfeld, entendemos um pouco melhor de que se trata essa luta com
tal legado do mal. Percebemos que a justiça, com sua capacidade de negociação
entre os partidos e entre o passado e o presente, ainda pode ter um papel a
desempenhar nessa cena, como de resto já está ocorrendo na América Latina
em países como a Argentina e o Chile, que também se veem às voltas com a
herança dos gigantescos desmandos ocorridos durante seus regimes ditatoriais.
Citemos as palavras de Sylvie:

No fundo de mim mesma não se trata de perdão ou de esquecimento, mas de


reconciliação. O branco que deixou os assassinos agirem, não há nada a lhe
perdoar. Quem olhou o vizinho abrir o ventre das moças para matar o bebê diante
dos olhos delas, não há nada a perdoar. Não há por que desperdiçar palavras para
falar desse assunto com esta gente. Só a justiça pode perdoar... Uma justiça que
ofereça um lugar à verdade, para que o medo se esvaia... Um dia, talvez, uma
coabitação ou uma ajuda mútua voltem a existir entre as famílias dos que mataram
’’ e dos que foram mortos.45

157
NARRAR O TRAUMA

O tema da narração do trauma de catástrofes históricas nos levou, portanto,


a passar da cena do testemunho para a cena jurídica. Mas será esta capaz de
permitir a construção da desejada passagem entre os indivíduos traumatizados
pela catástrofe e a sociedade? Ela permitirá uma reintegração do passado?46
Sem dúvida a esfera do direito e a instituição do tribunal podem criar fóruns
para essa construção de passagens e para a refundação de moradias para estes
Eus danificados, mas é verdade também que, como um membro da esfera do
poder, o direito não está isento de parcialidades. E mais, enquanto um modo
de pensar falocêntrico calcado no discurso da comprovação e da atestação, ou
seja, do testemunho como testis, o terceiro em uma cena de litígio, e não como
superstes, discurso de um sobrevivente, o direito tende a não garantir espaço
para a fala muitas vezes fragmentada e plena de reticências do testemunho do
trauma. Sem abrir mão do importante caminho jurídico, ou seja, sem deixar de
enfrentar o poderoso porteiro da justiça (da famosa parábola de Kafka “Diante
da lei”), a busca desse local do testemunho é também uma errância, um abrir-se
para sua assistematicidade, para suas fraturas e seus silêncios. É na literatura
e nas artes que essa voz tem tido mais bem acolhida, mesmo sendo utópico
pensar que a arte e a literatura poderíam, por exemplo, servir de dispositivo
testemunhai em massa para populações como as sobreviventes de genocídios,
de ditaduras violentas ou herdeiras de regimes escravocratas, como a nossa.
No entanto, a literatura e as artes têm cumprido um papel fundamental de
resistência ao esquecimento e de luta pela inscrição da violência, como veremos
mais de perto nos próximos capítulos.

Notas

1 Perec comentando a obra do sobrevivente de Buchenwald Robert Antelme (autor de A


espécie humana, [1947] 1957); citado em Levi, 2005, p. 15.
2 Levi, 1988, pp. 7-8.
3 Este paralelo entre a cena do testemunho e a da clínica parece-me importante porque
responde em parte à questão acerca da possibilidade do testemunho em meio, às situações
traumáticas - e não após essas situações. O testemunho, na verdade, como veremos,
é marcado pelo tempo do presente. Trata-se também sempre de uma performance
testemunhai. O ato de testemunhar tem o seu valor em si, para além do valor documental
ou comunicativo desse evento. A cena do testemunho, se o testemunho de fato acontece,
é sempre e paradoxalmente externa e interna ao evento narrado. Interna porque em certo
sentido não existe um “depois” absoluto da cena traumática, já que esta justamente é

158
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

caracterizada por uma perenidade insuperável. Por outro lado, o testemunho é externo
àquela cena traumática na medida em que ele cria um local metarreflexivo. Ele exige
um certo distanciamento. Assim, poder testemunhar durante uma situação traumática,
como a vida no Lager, o soldado no campo de batalhas, ou o morador de zonas de conflito
bélico e social (com todas as características particulares de cada uma dessas situações),
poder testemunhar já implica uma saída (mesmo que apenas simbólica) dessa situação. O
testemunho em si é terapêutico. Os diários de guerra e de prisioneiros e muitos documentos
testemunhais encontrados enterrados nos campos nazistas são prova dessa atividade teste-
-munhal mesmo em situações aparentemente impossíveis de abrigar um espaço testemunhai.
Recordo também dos testemunhos recolhidos por M. V. Bill no seu filme Falcão, meninos do
tráfico (2006) e analisados por Ana Maria Rudge e Betty Fuks no artigo “O documentário
Falcões, meninos do tráfico - testemunhos do cotidiano traumático” (2007), que também
são uma prova contundente desse fato.
4 Sobre o conceito de trauma repercutindo nos estudos culturais e de memória, cf. o capítulo
4 deste livro, “A era do trauma”; cf. também meu capítulo “Literatura e trauma: um novo
paradigma" (Seligmann-Silva, 2018, pp. 63-80); Kaplan, 2005; Assmann, 2012, pp. 276-316.
Sobre testemunho e trauma, cf. Caruth, 1996 e 2000; Quindeau, 1995; Chiantaretto, 2004;
meu artigo “Literatura e trauma: um novo paradigma” (Seligmann-Silva, 2018, pp. 63-80);
a obra coletiva Clínicas do testemunho. Reparação psíquica e construção de memórias, 2014,
e Wikinski, 2016 e 2019.
3 O conceito de “catástrofe” tem sido central em minhas reflexões. Esse conceito também é
uma herança benjaminiana. Lembro aqui da frase-chave de sua famosa tese sobre o anjo
da história, que vê a história da humanidade de costas, sendo soprado pela tempestade
que vem do paraíso, de onde fomos expulsos. Essa tempestade se chama progresso:
“Lá onde nós vemos surgir uma sequência de eventos, ele vê uma catástrofe única, que
incessantemente empilha escombros sobre escombros e os lança a seus pés” (Benjamin,
2020, p. 39). Nos fragmentos a essas teses, Benjamin anotou ainda: “A catástrofe como o
continuam da história” (.idem, p. 175); “‘Celebração’ é empatia com a catástrofe” (idem,
p. 182). Essa concepção de história como catástrofe está no cerne do que destaquei no
primeiro capítulo deste livro quando tratei da relação entre virada testemunhai da história
e a noção benjaminiana que afirma que todo documento de cultura é um testemunho da
barbárie (idem, pp. 100-101). Cf. ainda meu ensaio “Catástrofe, história e memória em
Walter Benjamin e Chris Marker: a escritura da memória” (Seligmann-Silva (org.), 2003,
PP- 391-417).
6 “an event without a witness” (Laub, 1995, p. 65).
' Desde 2019 a biblioteca Antônio Cândido, do Instituto de Estudos da Linguagem da
Unicamp, estabeleceu um convênio com esse arquivo de Yale, e os pesquisadores nesse
espaço da biblioteca em Campinas têm acesso aos milhares de vídeo-testemunhos do
Fortunoíf Video Archive for Holocaust Testimonies.
8 Agamben, 1998.
9 Levi, 1990, p. 5.
10 Idem, 1988, p. 119.
11 Idem, 105.
12 No final de A trégua, Primo Levi narra um sonho que o perseguiu após seu retorno de
Auschwitz que também expressa essa força da realidade do Lager de dissolver tudo aquilo
que poderiamos denominar de seu “exterior”. Trata-se de um sonho em cascata: Primo
.Levi vê-se entre familiares e amigos, à mesa ou em outro local aprazível. Aos poucos ele é
tomado de uma angústia difusa, “tudo desmorona e se desfaz ao meu redor, o cenário, as

159
NARRAR O TRAUMA

paredes, as pessoas, e a angústia se torna mais intensa e mais precisa. Tudo agora tornou-se
caos: estou só no centro de um nada turvo e cinzento. E, de repente, sei o que isso significa,
e sei também que nada era verdadeiro fora do Lager. De resto eram férias breves, o engano
dos sentidos, um sonho: a família, a natureza em flor, a casa. Agora esse sonho interno,
o sonho de paz, terminou, e no sonho externo, que prossegue gélido, ouço ressoar uma
voz, bastante conhecida; uma única palavra, não imperiosa, aliás breve e obediente. É
o comando do amanhecer em Auschwitz, uma palavra estrangeira, temida e esperada:
levantem, ‘Wstavach’” (1997, p. 359). A realidade “externa” torna-se a exceção, tempo
de “férias”, imagem de “sonho”. Ela fica sitiada pelo real do Lager, que é descrito como
sonho-pesadelo que engloba e devora o mundo exterior. O despertar final de A trégua -
comandado por uma voz conhecida e estrangeira (Heimlich totalmente Unheimlich) - é
o despertar para essa terrível verdade do trauma. Jorge Semprun, o escritor e filósofo
sobrevivente de Buchenwald, narra esse mesmo sonho em cascata em seu livro-testemunho
L’écriture ou la vie (1994, p. 163).
13 Piralian, 2000, p. 21.
' idem, p. 19.
13 Idem, p. 25
16 Idem, p. 37.
Iz Idem, p. 22.
18 Mbembe, 2019.
19 Idem, p. 55.
20 Idem, ibidem.
21 Idem, pp. 55-56. Em seu ensaio Crítica da razão negra, ao comentar as novelas de Amos
Tutuola, lhe Palm-Wine Drinkard e My Life in the Bush ofGhosts, Achille Mbembe afirma
que o “vazio, criado pela ausência do vestígio fundamental que é o corpo do morto, é
vivido como um imenso buraco no real. O vestígio do corpo do morto é, de fato, essencial
para compor o significante de sua morte. Sem ele, o morto e a sua morte ficam inscritos
numa estrutura de ficção. Pois é o corpo que confere ao real da morte uma obscura
autoridade” (2017, p. 247). Sem o corpo, o sema torna-se hieróglifo ilegível e não passa ao
campo da significação. Nesse sentido, vale lembrar o verso de Paul Celan que inscreve o
ritual de enterro como essa passagem do corpo/cadáver ao significado/sema em seu poema
“Nãchtlich Geschürzt”, que cito e comento ao final do capítulo 7 deste livro, “Anistia e (in)
justiça no Brasil”.
22 Antelme, 1957, p. 9. Cf. também uma passagem de uma entrevista de Primo Levi, na qual
ele responde ao famoso dictum adorniano segundo o qual escrever poesia após Auschwitz
seria um ato de barbárie: “A minha experiência prova o contrário. Pareceu-me, então, que
a poesia era melhor mesmo do que a prosa para exprimir o que me oprimia. Quando eu
digo ‘poesia’ eu não penso em nada lírico. Nessa época eu teria reformulado a frase de
Adorno: depois de Auschwitz não se pode escrever poesia senão sobre Auschwitz” (Levi,
2005, p. 34). De fato, o próprio Adorno reformulou aquele dictum alguns anos depois em
um sentido próximo ao de Levi. Como ele escreveu em 1962 em seu trabalho “Engagement”,
também se referindo à sua frase de 1949: “O excesso de sofrimento real não permite
esquecimento; a palavra teológica de Pascal ‘on ne doit plus dormir’ deve-se secularizar.
[...] aquele sofrimento [...] requer também a permanência da arte que proíbe” (Adorno,
1973b, p. 64). No mesmo passo lemos ainda: “não há quase outro lugar [senão na arte] em
que o sofrimento encontre a sua própria voz”.
2j Neste sentido ele fez um largo elogio da imaginação como meio de “suscitar a imaginação
do inimaginável” (Semprun, 1994, p. 135).

160
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

24 De modo paradoxal é esse mesmo historiador que fala a Claude Lanzmann em seu filme
Shoah, como uma das poucas não testemunhas oculares do evento e como o portador
do saber historiográfico e histórico. Quanto à negativa de Hilberg com relação ao uso de
testemunhos para o saber histórico, cf. Wieviorka, 1998, p. 167.
23 Derrida, 1998, p. 28.
26 Coleridge, 1983, p. 6.
2/ Dostoievski, 2001, p. 348.
28 Levi, 1990, p. 7.
29 Klüger, 1994, p. 70.
30 Todorov, 2003, pp. 191-193.
31 Alencastro, 2018.
32 J. Rodrigues, 2018, p. 347.
33 Nascimento, 2016, p. 79.
34 Cf. Yates, 1966, p. 32.
33 Refiro-me aqui a um importante filão na arte contemporânea no qual encontramos artistas
que praticam uma nova "arte da memória . Ct. beligmann-Silva, 2017.
36 Evidentemente, desde a Antiguidade os historiadores discutem o estatuto e a importância
das testemunhas. Mas esse testemunho era visto de modo secundário e instrumental.
O testemunho serviría apenas para reafirmar aquilo que documentos e outras provas já
teriam antes indicado. Cf. minha discussão sobre esse conceito no historiador iluminista
Chladenius, no meu artigo “Ficção e imagem, verdade e história: sobre a poética dos
rastros” (Seligmann-Silva, 2013).
3/ Com relação ao papel de Jean Norton Cru na história do conceito de testemunho, cf. o
mencionado livro de Frédéric Rousseau (2003) e nosso capítulo anterior.
38 Como desenvolverei no capítulo abaixo a partir de um diálogo com o filósofo Marc
Nichanian.
39 Se existem, de um lado, o negacionismo, como uma prática tradicional dos autores de
crimes e sobretudo dos autores coletivos de crimes contra a humanidade, e, de outro lado,
a tendência do sobrevivente e da vítima a querer se “esquecer” do seu passado traumático,
podemos distinguir ainda uma terceira modalidade de resistência ao real que seria a marca
de nossa atual sociedade caracterizada pela presença traumatizante da violência. Em Freud
a teoria da defesa diante da “vivência da dor” contém, neste sentido, ensinamentos preciosos.
O mesmo vale para seu conceito de Verleugnung, recusa da realidade. Vale lembrar de uma
passagem do dicionário de Laplanche/Pontalis ao tratar deste último termo: “Na medida
em que a recusa incide na realidade exterior, Freud vê nela, em oposição ao recalcamento,
o primeiro momento da psicose: enquanto o neurótico começa por recalcar as exigências
do id, o psicótico começa por recusar a realidade” (1988, p. 562). O psicanalista Sándor
Ferenczi desdobrou esse conceito de Verleugnung no sentido de destacar a importância
fundamental do reconhecimento do outro diante da narrativa do trauma ocorrido. Em
caso de desautorização da narrativa estamos em plena cena do trauma. Cf. Ferenczi, 1992,
pp. 97-106.0 mesmo vale para o testemunho: sem alguém para recebê-lo e portá-lo, ele não
pode se dar. Cf. Kuperman & Osmo, 2017; Osmo, 2018. Voltaremos às teorias de Ferenczi
no próximo capítulo.
40 Coquio, 2004.
41 Monique Ilbudo, apud Coquio, 2004, p. 83.
42 Esther Mujawayo, apud Coquio, 2004, p. 84.
43*’Hatzfeld, 2005, p. 51.
44 Coquio, 2004, p. 92.

161
NARRAR O TRAUMA

43 Sylvie, apud Hatzfeld, 2005, p. 218.


46 Shoshana Felman, mesmo destacando todos os limites do espaço da corte, apostou nessa
. possibilidade de o testemunho jurídico criar um local para o testemunho em seu belo livro
de ensaios de 2002 (2014).

162
4

A ERA DO TRAUMA

O termo trauma tornou-se, nas últimas décadas, um conceito-chave nos


estudos culturais e nas assim chamadas ciências humanas de um modo geral.
Se o trauma pode ser pensado tanto como um evento que produz um abalo
(“o trauma que alguém sofre”) quanto como o efeito desse evento (“a pessoa
traumatizada”), é porque estamos diante de um desses fenômenos que colocam
em questão as fronteiras entre o sujeito e o seu mundo. O trauma desestabiliza
qualquer noção simplista de “realidade”. Ele tensiona a possibilidade de
pensar um mundo representado sem problemas pelo sujeito. Pensar o trauma
implica uma série de questões que foram colocadas historicamente pelo século
XX. Esse século, que revelou com toda a clareza o profundo significado da
dialética do Iluminismo, ou seja, em que medida a razão ocidental se desdobra
simultaneamente em progresso (técnico-científico) e em barbárie (nas relações
inter-humanas e na nossa relação com a natureza), entronizou também o
conceito de trauma como conceito que permite lançar luz sobre nós.
Mas o périplo desse conceito está longe de ser linear. Termo derivado do
grego e significando etimologicamente “ferida”, ele foi ressignificado pela
psicanálise, na última década do século XIX, e alternou fases de esquecimento
com momentos em que se tornou reconhecido como meio para descrever-nos
em um mundo cujas relações sociais não deixaram de mostrar uma altíssima
dose de opressão e violência. Mas não se trata apenas de um conceito que
simplesmente se coloca na continuidade do conceito de “choque”, e que já
servia para explicitar essa violência da vida moderna. Antes, já na sua origem
psicanalítica, esse conceito serve também para indicar a nossa relação com uma
força desestruturante que vem de dentro de nós, derivando daquilo que Freud
denominou “impulsos” ou “pulsões”, Triebe. Ou seja, pensar o trauma como

163
A ERA DO TRAUMA

marca do indivíduo moderno significa pensá-lo como um sobrevivente que


resiste tanto aos ataques de um mundo externo, como de seu próprio mundo
interior, que tem o seu eu constantemente fragmentado, posto em questão e à
prova por esses ataques. Essa visão, por assim dizer, “traumática” do indivíduo
moderno é correlata também a uma nova visão do que seria a verdade, a saber,
é fruto de uma profunda crise da noção de verdade, que se tornou clara em
Nietzsche e que tomou novas proporções com a psicanálise freudiana.
A era das destruições, dos genocídios, da violência neocolonial, das
ditaduras sanguinárias, da espoliação dos recursos naturais da Terra exigiu
a reformulação do conceito positivista de verdàde como representação
autossuficiente do mundo. Foi abalada a visão da história como dirigida por um
progresso contínuo, que coloca o presente no ápice da humanidade e o futuro
como um paraíso tecnológico que nos aguarda. Foi abalada a visão dos heróis
da história, como aqueles que estavam diante de Estados e Exércitos. A terceira
ferida narcísica, levada a cabo pela psicanálise, depois de termos perdido, com
Copérnico, a centralidade do universo e, com Darwin, a certeza de que somos
criaturas feitas por Deus, afirma que o eu não é o senhor na sua própria casa.
Ao lado do conceito de alienação, desenvolvido pelo marxismo, o conceito
de trauma tornou-se indispensável para entender o indivíduo moderno e
compreender suas mazelas.
Assim, gostaria de lançar luz sobre alguns dos aspectos do conceito de
trauma, visando destacar essa sua importância como meio de construção de
uma visão crítica da história e de nossa autoimagem. Para tanto, restrinjo-
-me aqui a explorar algumas passagens dos textos de Freud e a desdobrar do
conceito de trauma uma ética do testemunho.

Trauma e pulsão de morte

Freud nunca procurou desenvolver uma “teoria do trauma” em sentido


estrito. Antes, esse conceito aparece e desaparece de seus escritos e não apresenta
uma definição unívoca. Já em seus Estudos sobre a histeria (1893-1895),1 escritos
juntamente com Breuer, ele fala sobre a “histeria traumática”, referindo-se às
pacientes que teriam vivido experiências “de medo, vergonha ou dor psíquica”,
as quais teriam se inscrito de modo muito particular em suas psiques. Essas

164
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

memórias seriam uma espécie de corpo estranho nas pacientes e caracterizadas


por uma manifestação temporalmente deslocada. É nesse texto que lemos a
famosa definição, segundo a qual as histéricas “sofrem, antes de mais nada, de
reminiscências”. Aqui já encontramos, portanto, uma série de características
que acompanharam esse conceito: a ideia de um encontro marcante com uma
realidade específica; a noção de um período de latência até o momento de
manifestação da doença; a concepção do traumatizado como alguém que sofre
por conta dessa memória estranha que o habita sem estar integrada à sua psique.
Também já estava evidente para Freud que essas memórias teriam um caráter de
cunho sexual, daí serem chamadas de “teoria da sedução”, ideia que nem sempre
acompanhará, ao longo do século passado, as definições de trauma. Ainda nos
anos 1890, Freud abandona essa teoria da sedução e a substitui pela noção de
uma fantasia de sedução. Ou seja, as cenas narradas pelos pacientes poderíam
ser vistas como frutos da fantasia. Essa mudança de acento foi posta em questão,
entre outros, por Sándor Ferenczi, que, em sua teoria, volta a

dar grande importância ao fator traumático original na equação etiológica das


neuroses. [...] são sempre perturbações e conflitos reais com o mundo exterior que
são traumáticos e têm um efeito de choque, que dão o primeiro impulso à criação
de direções anormais de desenvolvimento?

Para esse psicanalista húngaro, conforme escreveu em 1929, “as fantasias


histéricas não mentem”.3
Mas, voltando a Freud, foi apenas em 1920, em seu estudo fundamental
Além do princípio do prazer,4 que esse conceito recebeu seus contornos mais
claros. Com a guerra, as neuroses traumáticas passaram a ser estudas ao lado
das neuroses de guerra. Freud enfatiza o papel do susto, Schreck, e do medo,
Furcht, no evento que desencadeia o trauma. Ele diferencia a angústia, Angst,
dessas duas sensações, já que considera a angústia como um afeto que nos
prepara e protege do susto e do medo. A situação traumática seria aquela na
qual a preparação angustiosa falha e permite que sejamos surpreendidos. Daí
os sonhos dos traumatizados serem caracterizados por uma volta à situação
traumática, em uma tentativa atrasada, e sempre condenada ao fracasso, de
aparar o agente do trauma. Ocorre o que Freud denomina “fixação no momento
do trauma”. Isso explicaria por que esses sonhos fogem à lógica do princípio

165
A ERA DO TRAUMA

do prazer que, segundo seu ensaio de 1900 sobre a Interpretação dos sonhos,5
determinaria nossa atividade onírica.
Nesse ponto de seu texto, Freud introduz uma digressão que ficou famosa,
sobre o jogo de seu neto em seu berço. Trata-se do jogo que em alemão se
denomina Fort-Da, uma espécie de esconde-esconde, no qual o nenê joga algo,
para em seguida pegá-lo de volta. Esse jogo, nota Freud, pode ser visto como
uma tentativa do nenê de se tornar agente com relação à situação opressora
de desaparecimento da mãe de seu campo de visão. Jogando com a dor, o
nenê transformaria a dor em um ganho de prazer. Ele fala de um “impulso
de apoderamento” em uma situação de desamparo e lembra que também os
adultos fazem algo semelhante, como nas tragédias, obras a que assistimos
com fruição e que serviríam para uma elaboração espiritual daquilo que causa
desprazer. Mas o que interessa a ele naquele momento não é esse desvio da
dor para o prazer via jogo, mas sim o que denomina “compulsão à repetição”
que vemos tanto no caso dos traumatizados como nesses jogos. Para ele, essa
compulsão seria “mais primordial, mais elementar, mais pulsional do que o
princípio de prazer”. Impossível resumir aqui os detalhes desse ensaio cheio
de insights surpreendentes, mas o fundamental é reter como Freud associa
essa compulsão traumática à repetição a uma pulsão de morte, conceito que
ele desenvolve nesse ensaio de 1920 e será desdobrado mais tarde, por exemplo
em O mal-estar na cultura (193o),6 quando ele falará de “pulsão de destruição”
(Destruktionstrieb). A conclusão de Freud, partindo de uma reflexão sobre a
compulsão à repetição contida na situação traumática, é que a nossa vida tem
como objetivo a própria morte. A vida é um (mero) desvio em direção à morte.
Vivemos para além do princípio do prazer, e as nossas pulsões sexuais (a libido)
estão submetidas às pulsão de morte. Essa teoria, escrita no tempo do “após”,
que, no caso de situações traumáticas é o tempo do “ainda”, da Primeira Guerra
Mundial, é com certeza uma filha de sua época.

Freud e a visão da história como trauma

Não por acaso, o período histórico no qual Freud mais insiste em sua
tentativa de apresentar a noção psicanalítica de trauma dá-se justamente durante
o governo nazista na Alemanha e, portanto, em meio à corrida armamentista

166
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

que levaria à Segunda Guerra Mundial. O homem Moisés e a religião monoteísta


(1939)7 é considerado o testamento teórico e pessoal de Freud. Nele, seu autor
buscou pensar as causas originárias do antissemitismo exterminacionista de
sua época, partindo das premissas da psicanálise. Esse mergulho na história
do judaísmo é em grande parte uma construção, em terníos psicanalíticos.
Uma das peças centrais desse constructo é a noção de trauma, que tem em
si, como vimos, a ideia de um período de latência entre 0 evento originário e
a manifestação dos sintomas. Para Freud, Moisés teria sido um líder egípcio,
que passara ao povo judeu a religião monoteísta do faraó Aquenáton, que
cultuava apenas ao deus Aton. Esse povo, no entanto, teria posteriormente se
rebelado contra Moisés e o assassinado. Décadas depois, após um período de
esquecimento do monoteísmo, este teria sido como que revivido quando do
aparecimento de um segundo Moisés, em Cades.
O que me interessa aqui nessa construção é o local que pode parecer
proporcionalmente exagerado que a reflexão sobre o conceito de trauma tem
nesse ensaio. Para explicar do ponto de vista psicanalítico a noção de latência
ou incubação, ou seja, de esquecimento temporário, Freud desenvolve uma
longa passagem sobre o trauma. Novamente, sua época deixa-se inscrever
por sua pena. A história cultural torna-se, aos olhos de Freud, no limiar do
genocídio judaico, uma história de sobrevivências. A religião de Aton teria
sobrevivido através de traços, Spuren, que germinaram novamente em Cades.
Algo esquecido teria, ainda assim, exercido um efeito poderoso sobre toda
uma população. A esse encadeamento de idéias, Freud associa novamente
uma análise da cultura grega como elaboração de catástrofes históricas. Ele se
pergunta qual seria a origem do material lendário que alimentou as epopeias de
Homero e as tragédias dos grandes dramaturgos áticos. A resposta que dá é clara:
esse povo viveu em sua pré-história uma fase de grande brilho e eflorescência
que foi sucedida por uma “catástrofe histórica” que levou à sua decadência,
sendo que essas lendas permitiram uma conservação dessa “obscura tradição”.
Para Freud, as pesquisas arqueológicas de sua época confirmam essa tese -
assim como, acrescento, a arqueologia da psique proposta por ele confirmaria
que nossa vida anímica é um campo habitado por “obscuras tradições”. Ele
propõe aos historiadores da literatura empreender esse trabalho arqueológico
em outros contextos. Freud tem certeza de que eles também trarão à luz “um
pedaço de pré-história”.

167
A ERA DO TRAUMA

Sempre o historiador da cultura depararia com algo semelhante à estrutura


do trauma, que Freud assim descreve:

Denominamos traumas aquelas impressões, cedo experimentadas e mais tarde


esquecidas, a que concedemos tão grande importância na etiologia das neuroses.
[...] a gênese de uma neurose invariavelmente remonta a impressões muito
primitivas da infância. [...] a experiência adquire seu caráter traumático apenas
em resultado de um fator quantitativo.8

Em outra passagem, quando Freud descreve a figura daquele que é


traumatizado, podemos perceber uma prefiguração da testemunha, figura que
se tornou paradigmática no século XX: “Os traumas são ou experiências sobre
o próprio corpo do indivíduo ou percepções sensórias, principalmente de algo
vivido ou ouvido, isto é, experiências [Erlebnisse] ou impressões [Emdrücke]”.9
Essas “impressões” inscrevem-se, com os traços ambíguos com que Freud pensa
a inscrição psíquica, ou seja, são algo ao mesmo tempo marcante e que se torna
“esquecido”, latente - latejante. O trabalho do psicanalista-arqueólogo seria o
de trazer essas inscrições à sua legibilidade. Assim, o paciente consegue sair
de sua “fixação no trauma”, marcada simultaneamente por reações reiterativas
(compulsão à repetição) e negativas (evitações do tipo fobias e inibições).
A humanidade, para Freud, também viveria sob o signo (a sombra) do
trauma. Tanto nesse ensaio de 1939 como no de 1912 sobre Totem e tabu,10
ele desenvolve sua teoria segundo a qual a cultura teria se iniciado com o
assassinato do pai da horda primeva, levado a cabo pelos seus filhos em revolta.
Esse fato traumático teria sido repetido pelos judeus, que assassinaram o
primeiro Moisés, e pela crucificação de Cristo - assim como pelas tragédias
e por tantos outros atos de cultura de cunho marcadamente sacrificial. Ele
acredita, portanto, em uma herança transgeraciónal do trauma, tema que se
tornou tanto mais importante ao final do século XX, quando assistimos às
sucessivas gerações de vítimas do terror genocida e a seus descendentes portando
consigo, ou tentando portar, o testemunho após os genocídios que marcaram
esse século - o armênio, o judaico, o dos tutsis, de bósnios, de vietnamitas, de
cambojanos, de populações africanas nas guerras de independência e em seus
desdobramentos, de indígenas, mas também de gerações inteiras perseguidas
por ditaduras na América Latina e em outros continentes. Freud estabelece uma

168
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

distinção fundamental entre os que ficam presos ao círculo do eterno retorno


da repetição da cena traumática e os que tentam inscrever essa cena, elaborá-la.
Essa diferença pode ser também aquela entre a loucura fundamentalista e a
conquista da liberdade, com toda a precariedade que caracteriza esta última.

A TAREFA DO TESTEMUNHO

A cultura seria toda marcada pelo ciclo das catástrofes seguidas do


conflito entre esquecimento e tentativa de inscrição. A psicanálise formula
à humanidade a tarefa dessa inscrição. Trata-se de uma ética da escuta e da
construção de narrativas. Esse processo abriu a consciência para a tarefa do
testemunho, com todas as aporias que essa tarefa implica. O testemunho vai a
contrapelo da tradição da historiografia como arquivamento do passado. É essa
recusa da competência do registro tradicional da história que Lyotard deduziu
da destruição genocida de Auschwitz e que o também filósofo de origem
armênia Marc Nichanian tomou como ponto de partida para a sua pesquisa,
como analisaremos mais detalhadamente abaixo. Trata-se do desafio de pensar
a “metarrealidade” que sobrevive à destruição da realidade: o historiador deve
saber dedicar-se a outras práticas, sobretudo a ouvir isso que Lyotard chamou
de modo tão eloquente de “o que resta do testemunho”, em seu ensaio Le
différend," como veremos mais de perto adiante.
Trata-se de abandonar o registro dos fatos e o próprio arquivo e seu poder
arcôntico de dizer onde está e o que é a verdade. Trata-se de assumir a visão
traumática da história e a necessidade de inscrever a violência a contrapelo da
lei do arquivamento - que é também a lei do esquecimento da violência. Assumir
a natureza traumática da história, Cathy Caruth já o escreveu, implica assumir,
antes, que “os eventos são apenas históricos na medida em que eles implicam
os outros”.12 A história como trauma nunca é apenas a nossa, mas sim se dá
em diálogo com a dos outros. Trata-se do abrir-se à história (traumática e
silenciada) do outro. Veja-se o caso brasileiro, com sua incapacidade crônica
de inscrever sua longa e terrível história de violências, da escravidão à última
ditadura, as histórias dos Amarildos de nosso presente. Esse silenciamento nos
condena também a repetir sem trégua a violência iniciada pelo ciclo colonial.

169
A ERA DO TRAUMA

Notas

1
Freud, 2016a.
2
Ferenczi, 1992, p. 63.
3
Idem, p. 106.
4
Freud, 2010a.
5
Idem, 2016b.
6
Idem, 2010b.
7
Idem, 1993a.
8
Idem, 1996,. p. 87.
9
Idem, pp. 92-93.
10
Idem, 1993b.
11
Lyotard, 1983.
12
Caruth, 1996, p. 18.

170
5

O QUE RESTA DO TESTEMUNHO

E o terrível acontecimento ficou inacessível.


Hagop Oshagan1

Marc Nichanian é considerado uma das vozes mais importantes dentre as


que, nas últimas décadas, se dedicam a estudar o fenômeno do testemunho.
Nascido em 1946, em Paris, filho de pais emigrados na década de 1920, ele
pertence àqueles descendentes da população armênia que receberam, como
legado, a difícil tarefa de portar adiante o fardo terrível da catástrofe que se
tornou parte integrante dessa população a partir do massacre de 1915/1916. Como
viver com esse legado? O horror de seus parentes que conseguiram sobreviver,
como bem sabemos, foi e continua a ser desdobrado pelo negacionismo de
Estado, de Estados, de historiadores e de outros intelectuais, alguns, inclusive,
de amplo reconhecimento. Não por acaso, decidido - ou talvez impelido, por
uma injunção geracionai e histórica - a enfrentar esse legado e a tentativa de
obliterá-lo, Nichanian estudou filosofia e se doutorou com ninguém menos
que Philippe Lacoue-Labarthe, um dos filósofos franceses mais interessantes
da geração pós-guerra. A vida de Nichanian confunde-se com sua investigação
sobre o testemunho, com essa tentativa de inscrição da catástrofe que se tornou,
ao longo do século XX, uma prática fundamental. Esse século de genocídios,
aberto por práticas genocidas na África colonial e pelo genocídio dos armênios,
foi pontuado por uma série de outras tentativas de apagar da face da Terra
populações inteiras. Se a reflexão sobre o negacionismo se tornou mais pública
a partir dos anos 1970, por conta dos negacionistas de Auschwitz, não é menos
verdade que a negação do genocídio armênio tem um caráter mais profundo e
mais trágico, pois ela até hoje é parte de um programa oficial de banimento, de
falsificação, de apagamento. Os historiadores e políticos que dizem reconhecer
qúé ocorreu violência contra os armênios, mas que não se trataria de um
genocídio, historiadores e políticos cujos discursos Nichanian se dedicou a

171
O QUE RESTA DO TESTEMUNHO

desconstruir, não fazem nada mais do que repetir o ato genocida de tentativa
de apagamento: eles assassinam novamente um milhão de pessoas que até hoje
têm seus lutos bloqueados.
Mas o questionamento de Nichanian vai muito mais fundo do que
demandar uma inscrição histórica e documental daquele terror infinito que foi
a perseguição genocida do Império Otomano contra os armênios. Justamente,
ele percebe, com outros importantes pensadores, como Jean-François Lyotard,
Jacques Derrida, Shoshana Felman e Giorgio Agamben, em que medida o
evento da violência genocida no século XX exige que repensemos nossos hábitos
historiográficos. Nichanian nota uma cumplicidade entre a historiografia
positivista tradicional, calcada em provas e em documentos oficiais, e o
mecanismo genocida. Não esqueçamos que os negacionistas sempre insistem:
apresentem as provas. Nichanian sempre volta a essa exigência negacionista
com sua demanda (cínica) que solicita que os mortos apresentem as provas do
ato que roubou suas vidas ao mesmo tempo que já apagou as suas mortes. Ele
percebe que não existe contradição entre, por um lado, o regime de verdade
positivista, calcado na lógica falogocêntrica da visualidade, do convencimento
pelas provas, e, por outro lado, a política genocida, que mata apagando os
rastros, eliminando as provas. Mais do que isso: a historiografia tradicional
acredita em contextos, em uma lógica racional intrínseca aos fatos. Ela não tem
lugar para aquilo que escapa à lógica e ao contexto. E se a violência genocida,
com seus milhões de mortes no século XX, representar um derretimento dos
contextos? E, como se expressou Lyotard, referindo-se a Auschwitz, se existem
eventos terríveis que, como um terremoto, quebram os próprios instrumentos
que permitiríam medir o grau de destruição? Esses aparelhos permitem que
se compare um abalo sísmico com o outro, de modo científico e lógico. Pois
bem, e se esses aparelhos se quebraram? Devemos negar a excepcionalidade dos
eventos não mensurados? Ou devemos inventar novos modos de aproximação
da realidade, outras modalidades de imaginá-la que permitam incluir aí o
terror genocida sem normalizá-lo? Essa segunda opção é a de Nichanian, e
neste espaço gostaria de mostrar três aspectos de sua reflexão, já destacando
que seria necessário muito mais espaço para apresentar sua análise em toda
a sua complexidade, a começar por sua vasta e erudita obra sobre a literatura
armênia do século XX, que ele publicou em três volumosos livros, entre 2006 e
2008, pela editora Métis, de Genebra. Aqui vou apresentar: (1) a sua visão crítica

172
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

da história, (2) a sua teoria da arte na era pós-catástrofes e (3) o seu olhar sobre
a história do testemunho armênio. História, arte e testemunho constituem uma
das possíveis constelações que se formam no céu do pensamento de Nichanian.
Aqui, contentemo-nos em observar essa constelação mais de perto.
Nichanian parte, em sua crítica de nossos hábitos historiõgráficos, de uma
importante passagem do livro Le différend, de Lyotard.2 É importante retomar
essa passagem aqui:

pois os fatos, os testemunhos que estavam marcados pelos aqui e pelos agora, os
documentos que indicavam o sentido ou os sentidos dos fatos e os nomes, ou seja,
a possibilidade dos diversos tipos de frases cuja conjunção forma a realidade, tudo
isso foi destruído tanto quanto possível. Cabe ao historiador levar em conta não
apenas o dano, como também o ato ilícito? Não a realidade, mas a metarrealidade,
que é a destruição da realidade? Não o testemunho, mas o que resta do testemunho
quando o testemunho é destruído...? Obviamente, sim, se é verdade que não
haveria história sem conflito (différend)... Mas, então, é preciso que o historiador
rompa com o monopólio concedido ao regime cognitivo das frases sobre a história,
e se aventure a dar ouvidos ao que não é apresentável nas regras do conhecimento.
[...] Seu nome [o de Auschwitz] marca os confins onde o conhecimento histórico
vê sua competência recusada?

É essa recusa da competência do registro tradicional da história, que


Lyotard deduziu da destruição genocida da Shoah, que Nichanian irá tomar
como ponto de partida para a sua pesquisa. Trata-se do desafio de pensar nessa
“metarrealidade” que sobrevive à destruição da realidade: o historiador deve
saber abandonar-se a outras práticas, sobretudo a ouvir isso que Lyotard chamou,
de modo tão eloquente, de “o que resta do testemunho”. Após a destruição do
testemunho tal como ele era possível na era antes da catástrofe - e já voltarei a
esse termo -, ou seja, a era do regime de verdade positivista e representacionista,
a era dos contextos e da hermenêutica filológica, o historiador ou aquele que quer
se voltar para a inscrição e a leitura do evento catastrófico deve se abrir ao que
resta do testemunho: às suas ruínas. Daí Nichanian falar de uma necessidade e, eu
diria, de uma urgência de pensar uma nova poética do testemunho, a saber, uma
virada testemunhai do saber histórico, como estamos analisando neste volume.
i Estamos, portanto, com Lyotard e Nichanian, procurando pensar a história
após o fim da História com “H” maiúsculo. Por que é essencial pensar esse fim do

173
O QUE RESTA DO TESTEMUNHO

regime tradicional da historiografia? Para Nichanian, isso é simples e essencial:


afinal, esse registro tradicional do trabalho da história como levantamento de
evidências e de documentos, de provas e de atestações irrefutáveis estava ligado
ao registro da lei do arquivo e do arquivamento. O arquivo como arkhé, que
deriva tanto a verdade como a realidade do documento, que pensa a partir da
lógica classificatória, da articulação e da imposição de hierarquias, que reduz
o outro à normalidade e à igualdade do próprio, anulando e exterminando o
diferente, essa lógica do arquivo está também por detrás da razão genocida. A
fúria genocida quer apagar do arquivo Terra aquele que foi outrizado, reduzido
à categoria de um inteiramente outro que ameaça a pretensa homogeneidade
do próprio.4 Ela não permite a inscrição de nenhum traço que poderia pôr em
risco essa propriedade pretensamente absoluta. Nas palavras de Nichanian:

A vontade genocida [genocidaire, genocidária] é aquela que quer suprimir o fato no ato
mesmo que o executa. Vemos aí um fenômeno característico do conjunto do século
XX, que é o século dos genocídios justamente porque ele é o século do arquivo?

Inspirado no ensaio Force de loi, de Jacques Derrida,6 Nichanian percebe


nessa lógica de autorrasura do gesto genocida, que incorpora uma violência
mítica (Walter Benjamin), uma “perversão historiográfica”, título de seu
fecundo ensaio de 2006. Expliquemos melhor. A lógica da historiografia
tradicional, arquivista, arquiarquivista, pretende que só exista fato se houver
provas. Trata-se, como Foucault o demonstrou nos anos 1970, do paradigma
judiciário, da verdade como atestação visual, que domina no âmbito da história-
-arquivo. Como a vontade genocida também comunga desse mesmo credo, ela
vai se esforçar para eliminar as provas e os traços de seu crime. Depois, ela
poderá, com ar triunfante, afirmar: se isso que vocês dizem que ocorreu de
fato ocorreu, então provem! Essa é a perversão historiográfica, perversão essa
que, para piorar, contamina a mente de muitos dos historiadores que tentaram
se opor aos negacionistas e embarcaram nessa lógica do convencimento pelas
provas. Eles, Nichanian explica, foram para uma batalha munidos de uma arma
que, na verdade, era uma mina, que explode sob seus pés.
Pierre Vidal-Naquet é um dos exemplos desses historiadores que tentaram
enfrentar a lógica do arquivo com as armas do seu inimigo. Em seu belo e forte
ensaio contra os negacionistas da Shoah, de 1985, ele declarou, de modo enfático:

174
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Nós estamos aqui no terreno da história positiva, wie es eigentlich gewesen, como
os fatos efetivamente se passaram, segundo a fórmula do século passado, de Ranke,
um terreno onde o verdadeiro simplesmente opõe-se ao falso, independentemente
de toda interpretação.7

Também Cario Ginsburg, em seu ensaio “Just one Witness”,8 volta a esse
mesmo mote. Nichanian ataca de modo veemente essa estratégia que lhe parece
absolutamente equivocada. Ao tentarem combater o que chamam de relativismo
histórico, esses historiadores voltam ao positivismo tradicional e não percebem
que o relativismo, de resto, só existe como contraparte e complemento - não
em oposição - ao pensamento realista positivista. Realismo e relativismo
são, poderiamos dizer, farinha do mesmo saco.9 Não se trata de estabelecer o
genocídio, seja a Shoah, o genocídio armênio, ou qualquer outro, como um fato
histórico no sentido positivista e representacionista desse termo, mas, antes, de
mostrar como esses eventos exigem uma nova visão histórica; eles nos lançam na
era dos testemunhos e não permitem a noção, subjacente à insistência na lógica do
arquivo, de que tudo continua na mesma normalidade após a catástrofe. Na era
pós-catástrofe, a linguagem, a verdade e a historiografia devem ser reinventadas.
É a isso que autores como Paul Celan, Primo Levi, Aimé Césaire, Frantz Fanon
e Hagop Oshagan se dedicaram nesse século de genocídios. É nesse contexto
que Nichanian também opta por se referir ao massacre armênio não como um
genocídio (categoria histórica e normalizadora), mas, seguindo Hagop Oshagan,
como Catástrofe, com “C” maiúsculo. Nichanian afirma:

Ignorar, colocar fora de circuito, pôr entre aspas: essas são as expressões e práticas
que resultam de uma distinção radical entre a Catástrofe (que exige que se ponha
a questão acerca de sua representação possível ou impossível) e o “genocídio” (o
objeto dos historiadores, a palavra final da refutação, sua trama repertoriada e
renovada).10

Uma vez feita essa distinção fundamental, podemos procurar observar o


que acontece à linguagem diante (e dentro) da experiência-limite da catástrofe,
sendo que, para Nichanian, como veremos melhor, apenas a literatura pode levar
essa busca a seu termo. Com Maurice Blanchot, Nichanian também afirma: “Não
traremos provas”,1' ou seja, não nos submeteremos à lógica da comprovação, ao
círculo vicioso da representação e da denegação. A catástrofe, dessa maneira,

175
O QUE RESTA DO TESTEMUNHO

é deslocada para uma zona paradoxal que, ao mesmo tempo, destaca a sua
opacidade (o elemento necessariamente apresentável e irrepresentável da
violência vivida, a herança de silêncios, traumas e gritos, articulados ou não)
e permite que alcance uma visibilidade maior. A catástrofe do povo armênio
deve ser vista em sua unicidade que resiste aos contextos e derrete os conceitos.
Ela exige uma aproximação múltipla, e não apenas de suas eventuais provas.
Cada um de seus traços, existentes apesar de tudo, sobreviventes, exige uma
escuta única. Daí a história ser superada pelo testemunho, e a historiografia
tradicional e sua teoria, pela poética do testemunho. Ou seja, contra a lógica
da classificação normatizadora, e a redução do histórico às provas, devem-se
criar uma prática e um pensamento capazes de lidar com a singularidade e a
imanência dos eventos. Em vez do arquivo, podemos pensar aqui na antilógica
do colecionador, que ordena sua coleção do ponto de vista de suas emoções.
Uma das idéias seminais de Walter Benjamin sobre a coleção pode ser lida no
seu texto "Elogio da boneca”,*2 que trata justamente de um ponto vital do gesto
do colecionador: a relação entre o indivíduo (que seleciona, arranca do contexto
e coleciona) e o mundo objetivo das “coisas”.

O verdadeiro feito, normalmente desprezado, do colecionador é sempre anarquista,


destrutivo. Pois esta é a sua dialética: ele conecta à fidelidade para com as coisas,
para com o único, por ele assegurado, o protesto teimoso e subversivo contra o
típico e classificável.'3

Refletindo sobre a história dessa catástrofe do povo armênio (e, portanto,


que deveria ser sentida como de toda a humanidade), Nichanian fala do ponto
de vista do aviltamento desse fato, devido ao seu esquecimento. Em um artigo
de 1995 ele notara como uma luz inusitada foi lançada então sobre esse massacre,
por conta de um processo contra Bernard Lewis, um historiador do mundo
islâmico e otomano, acusado de negar o evento e banalizar os sofrimentos das
vítimas daquele acontecimento. Nichanian inicia assim seu artigo:

A exterminação sistemática e radical dos armênios do Império Otomano durante


os anos 1915-16 está, ao que parece, na ordem do dia, oitenta anos após o evento.
Para os sobreviventes e seus descendentes, ela evidentemente não deixou de estar
um só instante na ordem do dia. Ela é hoje, no entanto, para a “humanidade
civilizada”, a época de um processo e de um julgamento.14

1/6
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Lewis justamente batia na velha tecla de que não haveria uma prova
com relação a uma decisão e um plano de governo otomano a respeito do
genocídio. Tudo teria sido apenas uma deportação que acabara em tragédia.
Essa argumentação procura também naturalizar o que aconteceu: teria sido
apenas uma catástrofe quase de caráter natural, como uma tempestade. Para
além desse tipo de negacionismo, Nichanian denuncia também os historiadores
que procuram eliminar o caráter genocida da catástrofe armênia, afirmando
a exclusividade desse traço com relação à Shoah. Nada mais limitado. Afinal,
ao percebermos a persistência de uma vontade genocida ao longo do século
XX, no Império Otomano, entre os nazistas e seus aliados, no Camboja, na
ex-Iugoslávia, em Ruanda etc., não se quer negar um evento para se afirmar
outro, ou dizer que um é pior que o outro. Lewis, note-se, foi condenado
pelo tribunal de Paris não por ter contestado o genocídio, mas sim por ter
ocultado “elementos contrários a sua tese”.15 A perversão histórica foi mantida
intacta. Mas como seria possível sair do círculo vicioso da exigência de
provas, senão rompendo com o paradigma positivista? Afinal, não existem
os fatos comprobatórios, do ponto de vista da historiografia tradicional e do
negacionismo que lhe é intrínseco. Mas existem os testemunhos e as memórias.
Nichanian escreve, então, deslocando sua escrita para a primeira pessoa, gesto
que em si indica sua ruptura com o discurso da história tradicional:

Onde e como se fazem então a validação dos fatos na comunidade humana?


Quando meu pai morreu, eu não estava lá. Não o vi morrer, não o soube morrer.
Apenas mais tarde, uma inscrição sobre uma tumba me assegurou que ele estava
bem morto. Quando, quarenta anos antes, meus avós foram esmagados com suas
famílias já no início de sua deportação (os meus não foram até o deserto), ninguém
os viu morrer a não ser eles mesmos, quero dizer: nenhum vivo. No entanto, eu
sei como um entre eles sucumbiu sob pancadas de machado, como aquele outro
foi extirpado do grupo de mulheres, onde se escondia, como aquela tia foi cedida
a um dignitário muçulmano para que suas irmãs sobrevivessem (existe também
a vergonha; quem nunca falou da vergonha entre os sobreviventes?). Sim, eu sei
aproximadamente em detalhe o local onde cada um deles morreu, o modo como
ele foi violado ou assassinado. A grande narrativa familiar, com todo o pudor,
assegurou-me disso durante toda a minha infância. Sim, eles estão mortos. A
narrativa é a tumba deles e assim será para sempre. [...] A narrativa valida os fatos
próximos. Quanto aos longínquos, eles são validados, parece, pelas mídias, os
arquivos, a história.16

177
O QUE RESTA DO TESTEMUNHO

Ocorre que a lógica do arquivo exige a validação para além dessa narrativa
familiar. E, como essa mesma lógica levou ao apagamento das provas e dos
traços, não se deixa construir o fato segundo o arquivo. Como escreve muito
acertadamente Nichanian:

Portas abertas para a loucura para aqueles que se encontraram na morada assassina
de um fato que não o é. Existe genocídio apenas lá onde a cena da validação, a cena
na qual os "fatos” adquirem uma “realidade”, é dominada pelo arquivo. Por isso
só existe genocídio no século XX.17

“A essência do genocídio é a denegação. O genocídio está destinado a


se anular enquanto fato.”'8 Daí também o grande literato e estudioso do
testemunho armênio Hagop Oshagan afirmar de modo peremptório: "Em
suma, a história não é nada senão uma sequência de denegações”.19 Lembro,
aqui, outra passagem, não menos forte, de Walter Benjamin, que, em seu último
texto, a sétima de suas teses “Sobre o conceito da história”, lança a ideia de que
todo documento de cultura também o é barbárie. Vale a pena reconstituir o
contexto dessa frase:

Os que ora dominam são herdeiros de todos os que venceram. A empatia com
os vencedores beneficia, portanto, sempre os que ora dominam. Isso diz tudo
para o materialista histórico. Todos os que até hoje foram vencedores vão junto
ao cortejo triunfal dos dominantes, que marcham sobre aqueles que jazem hoje
no chão. Os espólios, còmo de costume, são levados no cortejo triunfal. São os
chamados bens culturais. O materialista histórico os observa sempre com o devido
distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele contempla têm uma origem
sobre a qual não pode refletir sem horror. Devem a sua existência não apenas
ao esforço dos grandes gênios, que os criaram, mas também à corveia anônima
dos contemporâneos destes. Não há um documento da cultura que não seja ao
mesmo tempo um documento da barbárie. E assim como a cultura não está livre
da barbárie, assim também ocorre com o processo de sua transmissão, na qual ela
é passada adiante. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico dela se
afasta ao máximo. Ele considera que a sua tarefa é escovar a história a contrapelo.20

É esse ato de escovar a contrapelo a história que Nichanian assume também


para si. Como Benjamin, ele também percebe a necessidade de, antes de mais
nada, limpar a área na qual se dá esse conhecimento, libertar-se de todo

178
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

dogmatismo historicista. Mas, diferentemente de Benjamin, que não conheceu


de perto a figura do sobrevivente e da testemunha, Nichanian percebe como
é necessário fundar um outro conceito de verdade que supere o império do
arquivo e das provas, que faça com que essa verdade da narrativa, de uma
narrativa que nasce da morte, passe a ser aceita como uma nova moradia para o
discurso sobre o passado. O historiador transforma-se desse modo em catador
de ruínas, de traços, de testemunhos, vale dizer, em colecionador, como a figura
benjaminiana que vimos acima.
Assim, Nichanian recorda o trabalho de Aran Andonian em Aleppo,
em 1918, que recolheu o testemunho dos sobreviventes desesperados que lá
chegavam. Eles tinham a clara visão de que, depois da exterminação das
pessoas, o próximo passo seria o apagamento de tudo o que pudesse levar
à construção dos fatos. Mas Andonian recolhia os testemunhos na chave
de seu arquivamento, tentando resistir a esse apagamento, e não no sentido
de integrá-los na grande narrativa familiar. Como de certo modo previsto,
os dirigentes Jovens-Turcos e os da Organização especial destruiríam esses
arquivos também.21 Da mesma maneira, todos os arquivos ligados à condenação
dos otomanos, em 1919, em Istambul, por cortes marciais erigidas por pressão
dos ocupantes ingleses, seriam (ao menos tentativamente) destruídos, assim
como os exemplares dos jornais que tinham noticiado sobre esse processo.23
Um caso paradigmático que Nichanian estudou no primeiro volume de
seu Writers ofDisaster foi Zabel Essayan (1878-1942). Ela era uma escritora de
grande destaque na Constantinopla armênia onde nasceu. Foi enviada para
Cilícia em 1909 (um ano após os Jovens Turcos tomarem o poder), após os
pogroms contra os armênios, como membro da comissão de averiguação criada
pelos Patriarcas Armênios de Constantinopla e pela Cruz Vermelha e lá tentou
organizar um orfanato para sobreviventes. Em 1911, ela publicou um livro, Dans
les rumes, romance sobre os massacres de Adana (Cilícia) de 1909, no qual
deixou um testemunho sobre essa experiência com os sobreviventes, obra que
Nichanian muito admira e considera “um monumento aos mortos em forma
de testemunho”.23 Ele também admira essa obra por sua forma híbrida, entre
a literatura e a reportagem. Daí também o grande apreço que Hagop Oshagan
alimentou por essa obra de Zabel Essayan. Ela escapou dos massacres contra
os,ántelectuais em 1915, primeiro vivendo clandestinamente em Constantinopla
e depois se refugiando na Bulgária e finalmente no Cáucaso, quando teve a

179
O QUE RESTA DO TESTEMUNHO

oportunidade de conversar com muitos sobreviventes da catástrofe. Então,


dedicou quase três anos a colecionar testemunhos, transcrevê-los e traduzi­
dos ao francês, visando, como ocorreu outras vezes ao longo do século XX
entre os armênios, apresentar esses testemunhos ao que Nichanian chama
ironicamente de “humanidade civilizada”. A apresentação dessa obra que,
como a de Andonian, visava recolher os testemunhos como provas é da maior
importância para o projeto de Nichanian. Ele cita uma longa passagem dessa
apresentação; eu recorto as seguintes linhas dessa apresentação de Essayan aos
testemunhos da catástrofe por ela recolhidos:

Dolorosamente impregnada da tarefa que me coube, considerei que teria sido um


sacrilégio transformar em assunto literário os sofrimentos nos quais um povo
inteiro agonizou, a história inenarrável das moças desonradas, dos destroços de
uma nação civilizada aviltada à condição da animalidade pela dor e a miséria,
das multidões que estavam morrendo de sede olhando para a água na beira
dos rios, dos fantasmas que ainda vivem em montes de cadáveres, das moças e
senhoras transformadas em mercadorias como objetos sem valor, das mulheres
mortalmente feridas em seus sentimentos maternos. Logo, abordei este trabalho
na maior simplicidade e no maior respeito.24

Esse projeto de Essayan explicitaria, para Nichanian, a incapacidade


armênia de dar um passo além do testemunho como prova. Como ele mesmo
relata, falando de si:

Eu mesmo apenas cheguei a essas questões muito tarde, após ter acumulado
trabalhos de cunho crítico sobre a literatura armênia da catástrofe e o testemunho
armênio no século XX. Embora, há mais de noventa anos, os sobreviventes e seus
descendentes não tenham cessado de narrar os acontecimentos de 1915-1916 por
meio de suas recordações pessoais e das que lhes foram legadas, não temos uma
história do testemunho armênio. Está mais do que na hora de cuidar disto.25

Essa história é, para ele, também uma tentativa de salvar o testemunho da


servidão das provas. Digno de nota, no entanto, é que, por detrás dessa querela
entre os usos do testemunho, se encontra o grande debate desenvolvido de
modo mais intenso após a Shoah, em torno da representação dessas grandes
catástrofes que eclipsam a razão e a história. Basta lembrar a famosa frase

180
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

de Adorno, de 1949, de seu ensaio “Crítica cultural e sociedade”:26 “escrever


um poema após Auschwitz é um ato de barbárie, e isso corrói até mesmo o
conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas”.27
Adorno depois reviu essa formulação, que falava da impossibilidade de
escrever poemas após Auschwitz, que pareceu a muitos um tabu erigido contra
a literatura. Já Nichanian vê com olhos críticos esse bloqueio do literário que
ocorreu no caso de Essayan. Ela, que era para Nichanian a maior escritora de
sua época, foi transformada em “a secretária do arquivo”.28 Também outro
escritor armênio, o dramaturgo Lévon Shant, teria trilhado a mesma ordem
de idéias ao tratar da catástrofe. Nichanian cita as palavras de Shant, não sem
um sentimento de revolta contra elas:

A descrição dos golpes terríveis sofridos pelo povo armênio nâo trará benefício
algum no campo artístico. A realidade é suficientemente forte e cruel por si só.
É melhor esses testemunhos permanecerem nos acervos de documentos oficiais
de todas as cores, exatamente como foram coletados da boca das testemunhas.29

Shant exige que esses documentos fiquem restritos aos relatórios


diplomáticos, com seus livros azuis e amarelos que na década de 1890
arquivaram as atrocidades do Império Otomano. Também o grande escritor
armênio Hagop Oshagan, admirado por Nichanian, em seu romance intitulado
Mnatsortats (título traduzido por Nichanian de diversos modos: Sobreviventes,
o Resto (Reliquaf), ou ainda Paralipômenos'), publicado em três volumes no
Cairo, entre 1932 e 1934, deveria ter uma terceira parte, intitulada “O Inferno”,
que trataria, na chave do romance, da catástrofe. Também esse projeto,
Oshagan não conseguiu concretizar. É como se a catástrofe, com o seu real
esmagador, bloqueasse a literatura. O semu/tumba/cadáver não caminhou para
o significante/significado.
Mas, mais do que uma limitação, como Nichanian o percebe nesses e em
outros casos, acredito que devemos ver atuando aqui em Shant, Essayan e
Oshagan a força não só do real, mas também do arquivo, que faz com que toda
arte seja por ele contaminada no século XX. Nichanian luta por aproximar
0 testemunho das artes, mas essa aproximação também se deu no sentido
inverso: as artes também tiveram que ser reinventadas após as catástrofes, e elas
incorporaram amplamente aspectos dos arquivos nessa reinvenção (mesmo

181
O QUE RESTA DO TESTEMUNHO

que desconstruindo seu princípio totalitário, anarquivando os arquivos). Como


vimos, elas transformaram a razão arquivai em colecionismo.30 Assim, a obra
de Essayan pode ser posta ao lado de outros colecionadores de testemunho
do século XX, como as já acima mencionadas Elena Poniatowska e Slevtana
Aleksiévitch.31
As décadas de negação pura e simples do massacre deram lugar, nota
Nichanian, a partir do caso Lewis e com autores do final dos anos 1990, como
Michel Cahen e Pierre Chuvin, a um novo tipo de negacionismo, calcado na
teoria das diversas interpretações dos fatos. Parte-se de uma definição do fato
genocídio (que deve ter uma intenção precisa, uma organização centralizada
e uma execução sistemática) para interpretar se houve ou não um genocídio
armênio. O historiador exige, para estabelecer os fatos, provas e desdenha
inteiramente os testemunhos. O arquivo exige provas e o arquivo acerca do
genocídio armênio estaria vazio. (O que Akçam de certo modo contradiz, ao
levantar vários documentos sobre o genocídio.32) O que existiría, os testemunhos,
não provaria nada para os negacionistas. Os historiadores, nota Nichanian,
analisando essa perversão historiográfica, não só decidem o que é ou não a
prova, como também são os guardiões de suas interpretações, de seus sentidos.
Eles detêm a chave da porta dos arquivos. Daí a necessidade de implodir essa
lógica. Ou seja, nessa batalha com as armas dadas pelo próprio inimigo, a lei do
arquivo, o sobrevivente sempre perderá. Temos que superar 0 poder de atração
exclusiva do arquivo e sua presença fantasmática. Isso Nichanian extrai de sua
longa e profunda experiência com o massacre armênio. Ou seja, a verdade existe,
é clara fora do arquivo e não depende dessa caixa-preta para existir.
Nós na América Latina, e sobretudo no Brasil, com os arquivos da última
ditadura até hoje e boa parte desaparecidos ou lacrados, temos muito a aprender
com esses trabalhos de Nichanian. É bastante sintomático que nosso autor
perceba que, nos casos de debate sobre o negacionismo acerca da catástrofe
armênia, foram os tribunais que decidiram contra o negacionismo.33 Também
essa lição é preciosa para nós, que mantemos os tribunais fechados aos
julgamentos ligados aos crimes contra a humanidade, imprescritíveis e não
passíveis de anistia, perpetrados pela ditadura de 1964-1985.
Mas, como vimos, Nichanian também é duro com a própria tradição
armênia de enfrentar essa situação negacionista. Em vez de implodir a lógica
do arquivo, ela, segundo Nichanian, tem procurado jogar com as suas regras:

182
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

“A lógica da prova é a lógica do carrasco. Os armênios nunca conseguiram sair


dela”.34 Eles insistem que o luto não pode ser feito por conta do negacionismo.35
Eles culpam o carrasco pela falta de interpretação, de sentido e de luto. “Um
tal desamor”, diz Nichanian, “é bem raro, deve-se dizer”.36 Para o filósofo, o
passo que deve ser dado aqui, como dito, é para fora do arquivo. Trata-se, eu
diria em um jogo de palavras, de anarquivar, de mostrar a perversão da lógica
arquivística e desconstruí-la, transformar o arquivo em coleção, recollection,
ato político de rememoração.37
O testemunho abre esse novo campo, desde que ele seja trilhado não mais
como prova, mas justamente em sua oposição àquela lógica. O testemunho
em sua fragmentação nos fala, afirma Nichanian, não do evento como fato,
mas sim do evento como signo.3S E ainda: “Nos sobreviventes armênios
da Catástrofe, o mal de arquivo viceja há oito ou nove décadas, sem falta,
dominando toda a paisagem, internalizando toda a reflexão sobre o status
mesmo do testemunho. Precisa-se ‘salvar’ o testemunho do arquivo”.39 Daí
Nichanian apostar numa passagem do testemunho como documento para o
testemunho como monumento.
Não acredito que Nichanian estivesse, com essa proposta; de algum modo
visando restaurar a história monumentalizante, justamente criticada por
Nietzsche já em 1873, em uma de suas Considerações intempestivas.40 O termo
monumento vem do latim monere, que significa advertir, exortar, lembrar.
Mas vale recordar, contra Nichanian, que desde a Antiguidade a tradição de
construção de monumentos esteve ligada mais à comemoração (de vitórias
bélicas) do que à ideia de advertir. Foi ao longo da segunda metade do século
XX, a partir da acima analisada virada testemunhai e da necessidade de inscrever
e elaborar os horrores daquele período - guerras, genocídios, ditaduras
sanguinárias do Camboja à América Latina, violências (neo)coloniais -, que se
desenvolveu uma estética do que se tornou conhecido como antimonumento,
que, de certa maneira, funde a tradição do monumento com a da comemoração
fúnebre.41 Desse modo, o sentido heroico do monumento é totalmente
modificado e deslocado para um local de lembrança (na chave da admoestaçâo)
da violência e de homenagem aos mortos. Os antimonumentos, na medida
em que se voltam aos mortos, e não às figuras singulares de supostos “heróis”,
injetam uma nova visão da história na cena da comemoração pública e, ao
mesmo tempo, restituem práticas antiquíssimas de comemoração e rituais

183
O QUE RESTA DO TESTEMUNHO

de culto aos mortos. Mas talvez eu não esteja me distanciando das idéias de
Nichanian ao propor ao invés de uma estética do monumento, uma estética do
antimonumento. Tanto o testemunho como o antimonumento são marcados
pela fragmentação, uma visão mais humanizada e quente da história, mais
próxima da memória do que da historiografia, uma visão do ponto de vista dos
vencidos e dos mortos, uma estética do efêmero e não do triunfo eterno. Para
Nichanian, eu cito, “o testemunho, para se libertar da opção realista, dirige-se
ao que chamamos de arte”.42 Contra a falsificação da verdade, a arte coloca-se
ao lado dos demais discursos que buscam justiça. Aproximar o testemunho
da arte implica libertá-lo do dever de representação e da esfera da refutação.43
E, de modo inverso, eu diria, a arte ativa agora o seu momento testemunhai.
Sendo que, contrariamente à visão positivista da testemunha (que vê nela uma
instância neutra), agora a testemunha é, via de regra, a vítima, e seu engajamento
em sua causa é total. Em vez de prova, a arte testemunhai mostra o momento em
que a representação é como que rasgada, como escreve Nichanian com relação ao
belo filme Ararat, de Atom Egoyan.44 Se, como Benjamin notou em 1940, como
já lembrei, todo documento de cultura testemunha a barbárie, é porque, graças ao
acúmulo de violência do século XX, aprendemos a ver na cultura uma inscrição
da violência. Ler a história a contrapelo implica revelar esse elemento catastrófico
da história. A arte aliada ao testemunho torna-se, assim, um exercício de contra-
-arquivar a barbárie. Ela é um dispositivo político que visa a uma catarse que tem
por objetivo não tanto uma cura, mas sim o despertar para 0 outro.

Notas

1 Hagop Oshagan, Hamapatker arevmtahaygrakanut’ean [Panorama da literatura armeno-


-ocidental], apud Nichanian, 2012, p. 31.
2 Lyotard,1983.
J Lyotard, 1983, p. 92, apud Nichanian, 2012, p. 38.
4 Ao destacar a pertinente crítica de Nichanian ao grafologocentrismo da historiografia
tradicional e seu culto dos documentos, não quero, entenda-se, desvalorizar o precioso
trabalho de pesquisas nos arquivos e nos seus escombros. Antes, trata-se de perceber os
limites dessa “restituição do passado” via documentos oficiais. Os testemunhos somam-se a
esses trabalhos de recuperação e leitura de arquivos permitindo uma releitura crítica deles.
Nesse sentido, parece-me interessante e importante o trabalho do historiador Taner Akçam
(2008 [2006]), que, em seus estudos sobre o genocídio dos armênios, consegue articular
um trabalho sério de investigação documental com a leitura e a escuta de testemunhos/
testemunhas. Em seu livro. Akçam não deixa dúvidas quanto ao fato de que “os massacres

184
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

dos armênios se inscreveram dentro de uma planificação central e que se tratou, portanto,
sem equívocos, de um caso de genocídio” (2008, p. 18). Ele narra tanto a história desse
massacre como a da tentativa de eliminar, queimar e/ou esconder os documentos que
podem comprovar as ordens e a organização por detrás desse “ato vergonhoso”. Akçam cita
as palavras do grande vizir Talât Pacha, em uma carta ao Parlamento de 26 de maio de 1915
(ano do início do genocídio), mencionando os planos genocidas do Comitê União e Progresso
(CUP), o partido no poder durante a guerra e que levou a cabo o crime: “Nós discutimos
e realizamos os preparativos necessários para a eliminação completa e fundamental desse
problema que ocupa um local importante na lista dos problemas vitais do Estado” (idem,
p. 23). Esse “problema” era justamente a questão armênia (idem, p. 78). O CUP partia
de uma visão racializada do que deveria ser a nova nação e pretendia a purificação e a
homogeneização raciais do espaço otomano, que se tornou, ao longo da guerra, um espaço
turco (idem, p. 81). O nacionalismo turco foi alimentado pelos nacionalismos europeus,
por historiadores e linguistas turcos, entre outras influências (idem, p. 127). Akçam aponta
ainda para a relação estreita entre o genocídio do povo armênio e a fundação do Estado
turco em 1922: isso explica em certa medida a política de negação desse genocídio por parte
do Estado turco até hoje. Os pais da nação, que em parte participaram ou foram cúmplices
desse crime, são venerados como heróis, e não existe lugar para uma crítica a eles. O projeto
de Akçam de rever criticamente a história da Turquia é calcado em um mote que também
vale para o Brasil: só a completa integração da história da violência nesse país permitirá a
construção de uma verdadeira democracia.
3 Nichanian, 2006, p. 25. A tradução inglesa dessa obra, Tíie Historiographic Perversion, feita
por Gil Anidjar, foi publicada em 2009 pela Columbia University Press (cf. Nichanian, 2009).
6 Derrida, 1994.
7 Vidal-Naquet, 1987, p. 31.
8 C. Ginsburg, 1992.
9 Além do positivismo e do relativismo, devemos levar em conta também a simples falsificação
da verdade. Nesse ponto vale a pena retomar o ensaio de Hannah Arendt “Verdade e política”
(2009a): “provavelmente, nenhuma época passada tolerou tantas opiniões diversas sobre
assuntos religiosos ou filosóficos; a verdade fatual, se porventura opõe-se ao lucro ou prazer
de um determinado grupo, é acolhida hoje em dia com maior hostilidade que nunca” (idem,
p. 293). Essa assertiva vale tanto para a negação de genocídios quanto para a negação de
postulados mais do que comprovados da ciência, como no caso da pandemia de covid
(2020/2021), durante a qual o presidente do Brasil negou tanto a sua fatalidade destruidora
(chamou-a de “gripezinha”) como as medidas de contenção, como o uso de máscaras,
o distanciamento físico e a necessidade imperativa de ampla aplicação de vacinas. Mas,
observa a filósofa, “o apagamento da linha divisória entre verdade fatual e opinião é uma
das inúmeras formas que o mentir pode assumir, todas elas formas de ação” (Arendt, 2009a,
p. 309). No mundo paranoico do mandatário autoritário, tudo se transforma em questão
de opinião - mesmo os saberes derivados da ciência seriam meras opiniões das quais ele
se outorga o direito de discordar. Diz a autora: “a verdade tem um caráter despótico. Ela é,
portanto, odiada por tiranos que temem com razão a competição de uma força coercitiva
que não podem monopolizar” (idem, 298). Arendt argumenta contra o positivismo, sem abrir
mão de uma noção complexa de fato histórico: “Não demonstraram gerações de historiadores
e filósofos da história a impossibilidade da determinação de fatos sem interpretação, visto ser
mister colhê-los de um caos de puros acontecimentos [...] e depois adequá-los a uma estória
que só pode ser narrada em uma certa perspectiva, que nada tem a ver com a ocorrência
original? Sem dúvida, esta e muitas outras perplexidades inerentes às Ciências Históricas

185
O QUE RESTA DO TESTEMUNHO

são reais, mas não constituem argumento contra a existência de matéria fatual, e tampouco
podem servir como uma justificação para apagar as linhas divisórias entre fato, opinião e
interpretação, ou como desculpa para o historiador manipular os fatos a seu bel-prazer”
(idem, p. 296). Diante da onda terraplanista que ocorreu no Brasil da era pós-golpe de 2016,
vale citar outra preciosa passagem de Arendt: “Asserções como ‘Os três ângulos de um
triângulo são igual aos dois ângulos de um quadrado’, ‘A Terra move-se em torno do Sol’,
‘É melhor sofrer o mal do que praticar o mal’, ‘Em agosto de 1919 a Alemanha invadiu a
Bélgica’ diferem muito na maneira como se chegou a elas, porém,' uma vez percebidas como
verdadeiras e declaradas como tal, elas possuem em comum o fato de estarem além de
acordo, disputa, opinião ou consentimento” (idem, p. 297).
10
Nichanian,12012, p. 21.
11 “Nous napporterons pas de preuves” (Nichanian, 2012, p. 23).
12
“Lob der Puppe.”
13
Benjamin, 1972a, p. 216. Grifos meus.
14
Nichanian, 2006, p. 37.
15
Idem, p. 44.
16
Idem, p. 47.
17
Idem, p. 48.
18
Idem, p. 56.
19
Oshagan, apud Nichanian, 2006, p. 48.
20
Benjamin, 2020, p. 74.
21
Nichanian, 2006, p. 52.
22
Akçam, 2008; Bloxham, 2009.
23
Nichanian, 2012, p. 16.
24
Essayan, apud Nichanian, 2012, p. 18.
25
Nichanian, 2012, pp. 13-14.
26
“Kulturkritik und Gesellschaft.”
Adorno, 1977b, p. 26.
28
Nichanian, 2012, p. 20.
29
Shant, apud Nichanian, 2012, p. 20.
30
Seligmann-Silva, 2014b.
31
Poniatowska, 1991,1998, 2005 e 2016; Aleksiévitch, 2016a, 2016b e 2018.
Akçam, 2008.
33
Nichanian, 2006, p. 81.
34
Idem, p. 84.
35 Mas vale a máxima, onde persiste o negacionismo, assim como onde se dá a ausência de
corpos e de tumbas, o luto fica eternizado e se transforma em melancolia. Lembro da frase
da sobrevivente da Shoah Ruth Klüger: “Onde não existe túmulo, o trabalho de luto não se
encerra” (Klüger, 1994, p. 95).
36
Nichanian, 2006, p. 85.
37
Seligmann-Silva, 2014b.
38
Nichanian, 2006, p. 149.
39
Idem, p. 162.
40
Nietzsche, 1992.
41
Seligmann-Silva, 2016.
42
Nichanian, 2006, p. 165.
43
Idem, p. 31.
44
Idem, p. 171.

186
6

O LOCAL DO TESTEMUNHO

Leo Spitzer, em um pequeno artigo sobre o termo “témoin”, publicado em


1938, já destacara que, com esse termo,

estamos, portanto, diante de um dos numerosos casos nos quais aquele que
exerce uma função é confundido com esta (cf. esp. Um cura, fr. Guide Talvez
pudéssemos inferir, da coexistência dos dois sentidos, que se trata não tanto de dois
sentidos, mas que o personagem e seu papel não estão separados na consciência
do indivíduo que fala.1

Um dos exemplos de Spitzer é o português, em que testemunho e testemunha


também indicam essa confusão entre personagem (que testemunha) e seu
papel de portador de um testemunho. Mais ainda, pode-se dizer que há uma
confusão entre o personagem e o testemunho em si, como tendemos a ver o
diário como uma parte de seu autor e as marcas da sua presença. Aproximando
essas observações de Spitzer do estudo de Benveniste sobre o testemunho que
vimos anteriormente, que distinguia o testemunho como terceiro, testis, e o
testemunho como sobrevivente, superstes, proponho fazermos um percurso
por dois locais para refletir sobre o tema: o diário e o caso exemplar de
resistência ao testemunho quando se trata de pensar a ditadura de 1964-1985.
Tem consequências nefastas a não inscrição dessa história violenta, momento
de explicitação do projeto neocolonial, que retorna em 2019 com o governo de
extrema direita que assumiu então. O testemunho deve ser pensado como um
modo poderoso de ruptura dos biombos de esquecimento, das falsas imagens
que, bloqueiam a inscrição na memória coletiva da sociedade do real teor de
violência daquele período.

187
O LOCAL DO TESTEMUNHO

O DIÁRIO COMO AUTOESCRITURA PERFORMÁTICA


E EXEMPLO DO LOCAL DO TESTEMUNHO

Permito-me fazer aqui então um pequeno excurso sobre o diário, para


tentar mostrar especificamente um importante local do testemunho no campo
literário. Em um ensaio de 2007, Philippe Lejeune contrapõe a autobiografia e
ojournal (“diário”).2 Para ele, a autobiografia flertaria com a ficção, enquanto
o diário teria uma tendência para a verdade: “a autobiografia vive sob o feitiço
da ficção, o jornal tem uma queda pela verdade”? Lejeune prefere manter
bem separados os campos de força da ficção e da autoescritura: “Gosto de
autobiografia, gosto de ficção, gosto menos da mistura deles”.4 Para ele, o
diário seria um bom meio para atingir tal objetivo. O diário é, segundo ele,
“antificção”, assim como falamos em uma pista “antiderrapante”? De resto, ele
se orgulha de ter formulado o que seria a primeira teoria da antificção. Mas,
antes, creio que Lejeune deveria se questionar por que, de modo acertado, a
teoria literária havia até ele evitado esse “palavrão”, a “antificção”. Pois, se
Lejeune acredita, com Ricoeur, que somos seres-narrativa (Jwmmes-récits), ele
também quer impedir qualquer suspeita de que sejamos o que ele chama de
seres-mentira (hommes-mensonges). Em Lejeune, tudo se passa como se, para
garantir nossas identidades, tivéssemos que construir barreiras de gênero em
torno da autoescritura. Essa crença em um gênero que poderia travar o que
pode ser denominado processo de ficcionalização, que considero inerente a
toda narrativa, parece-me questionável.6 Já o grande teórico do testemunho
Jean Norton Cru,7 como vimos anteriormente, caiu nesse erro - que pode
ser justificável em um positivista em 1929, mas que talvez seja imperdoável
em um teórico da literatura em 2007. Equacionar ficção e mentira também é
complicado, pois, além de a fantasia não ser necessariamente avessa à verdade,
a mentira não existe da mesma forma dentro e fora da literatura.
Por outro lado, é inegável que podemos identificar no diário algo como as
marcas e os traços do presente de sua escritura. O diário produz páginas que
se embaralham com a vida de seu autor-protagonista.8 Nele, somos tocados
pelo ar que esse personagem respirava. Tendemos a ver nele um testemunho,
ou seja, um índice, metonímia, e não uma metáfora, que é tradução imagética
e mais distanciada dos fatos arrolados. Além disso, o diário possui também
uma respiração, um ritmo, que expressa e aponta para a situação anímica e

188
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

corpórea de seu autor. Os traços materiais inscritos no diário - que muitas


vezes se desdobram em características bem sensíveis, matéricas, como o estado
do papel, a caligrafia, os borrões de tinta, as rasuras etc. - reforçam o teor
testemunhai9 do diário. Quando falamos de diário, mais do que nunca sua base
matérica - o suporte do diário - se torna importante e elemento essencial da
obra. Vemos o diário como parte do evento narrado, e não como observação
de segunda ordem - por mais equivocada que essa percepção possa ser em
alguns casos. Não se trata de uma “antificção”, como quer Lejeune, mas de
uma inscrição da vida - e da morte, vale acrescentar, pensando em toda escrita
como autotanatobiomitograíia10 - na qual a fantasia e a literatura não impedem
que acreditemos no “real” que estava na sua origem. É como se no diário se
fundissem “autor”, texto e temporalidade, em uma selfie analógica (mas não
sempre) que adentra outros cronotopoi. Não esqueçamos que tampouco a
fotografia é factografia: como o diário, ela é inscrição que constrói narrativas
a partir da inscrição de traços.
Tamanha é a força perlocutória de convencimento do ato de escrita
do diário, que ela reverbera em boa parte da literatura, sobretudo desde o
Romantismo, como vemos em Goethe, Dostoievski, Kafka, Graciliano Ramos,
Thomas Bernhard, Georges Perec, W. G. Sebald, J. M. Coetzee, Aimé Césaire
(com seu Diário [Cahier] de um retorno ao país natal, 1956),11 Carolina de Jesus,
Conceição Evaristo (com seu conceito de “escrevivência”, uma verdadeira
teoria do testemunho), entre tantos outros autores. Seu convencimento estético
é reforçado por um elemento ético. Tanto a escrita é vista como dueto por
onde escorre a vida privada, como também, em muitos diários, nesse dueto
misturam-se de modo claro as águas da vida pública. O texto, nesses casos,
transforma-se em um dique. A potência que guarda pode ser transformada
em energia mesmo muitos anos depois dos fatos passados, justamente porque,
na estrutura do texto, se entrecruzam, em uma trama, a vida íntima com a
pública, o trabalho literário com as marcas do “real”. No limite, tendemos
a ver nesses diários uma escrita performática. Não podemos separar, como
pretendeu Lejeune no referido artigo, o literário e a ficção. Não se trata apenas
do fato de que o autor do diário elege o que vai inscrever do real que o cerca.
A electio (seleção) retórica é parte de todo discurso. O autor cria um universo
íntimo e a realidade que o envolve conforme sua capacidade de transpor e
saltar entre imagens e palavras, palavras e imagens. Tradução, como 0 próprio

189
O LOCAL DO TESTEMUNHO

Benjamin observou em um texto famoso, é uma forma: não é mera mímesis,


imitação, cópia em outra língua. Em vez da visão corriqueira que vê no diário
uma representação e uma imitação dos fatos da vida, aprendemos agora a ler
nessas páginas, fragmentos de um presente que se amontoa diante de nós: de
um passado que não passou. Pretérito presente, presente do passado. Fruto de
um trabalho de coletor e de arranjador de fragmentos: de curadoria do real.
Mas é claro que não existe um acesso direto a essas ruínas. Elas se
misturam com as de nossos presentes. À escrita performática do diário
responde a nossa própria leitura performática, na qual nos lemos no espelho
do diário. Refletimo-nos, assim, nos cacos e estilhaços dos diários que lemos.
Trata-se de uma leitura, portanto, particularmente autorreflexiva e que será
tanto mais demandada quanto mais nossa autoimagem estiver em crise.
Desde o Romantismo, mais e mais essa escrita-espelho da autoescritura -
sobretudo do diário - é performatizada, e, desde o final do século XX, vivemos
um verdadeiro boom da escrita e da leitura de diários ou de textos literários
profundamente contaminados por esse ato linguístico-literário. O mesmo se
passa nas artes plásticas e no mundo da web, com sua blogosfera pontilhada por
milhões de diários. A autoficção virou moda - mas moda é algo muito sério.
Lejeune lembra de Barthes que, em seu último curso sobre a preparação do
romance, formulou a incompatibilidade entre o tempo presente e a ficção. O
romance (ou a ficcionalização) exigiría uma distância. Ora, mas é justamente
esse modelo do romance que implicava uma certa distância que está em crise no
século XX. Esse distanciamento tornou-se impossível, ou, caso seja simulado,
aparece agora ao leitor como um truque sem graça. Na sua rejeição dessa
mistura entre ficção e agora, Lejeune equaciona a reconstrução imaginária
do presente não só com a mentira, mas também com a loucura. Com efeito,
trata-se de uma escritura louca a do diário, se aceitarmos que ele não é pura
factografia, mas trabalho de acumulação criativa de fragmentos. Na verdade,
o diário é uma aporia, vale dizer: é a aporia. Ele mostra e atua (no sentido de
uma mise en scène) o enfrentamento do real, do simbólico e do imaginário. É o
grande fantasma da literatura desde o Romantismo, que vem sendo exorcizado
pelos adeptos da “arte pela arte” de diferentes matizes e gerações, mas que
comungam desse mesmo purismo e dessa mesma aversão ao real. Eles são os
entusiastas da torre de marfim e tentam resolver a crise romântica do indivíduo
burguês - que se vê obrigado a mergulhar na prosa da vida para sobreviver

190
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

- com uma suposta capacidade da poesia de criar uma utopia limpa, um


local livre desse real “sujo” do mundo das relações prosaicas (econômicas). A
literatura desde o Romantismo vive dessa crise, que se desdobra na questão
da autoria da obra: campo assombrado pelas figuras do autor, do narrador e
dos personagens. Do ponto de vista romântico, a obra é tanto uma voz sempre
parcial, parte de um canto polifônico de uma grande obra em processo, como,
também e paradoxalmente, fruto original e singular de uma mente “genial”.
Esse conflito entre o todo e o indivíduo desdobra-se na visão da literatura a
partir de então como o campo de embate entre um “Eu” sem pátria, moderno,
e um “mundo” que lhe é estranho. Daí também todos os dilemas e oscilações
entre a terceira pessoa - supostamente mais objetiva, realista e naturalista - e
a primeira, subjetiva, e a criação do discurso indireto livre. Os grandes autores
pós-românticos - como Baudelaire, Dostoievski, Proust, Joyce, Beckett e tantos
outros - foram aqueles que não tentaram resolver esse dilema que divide a
existência burguesa entre as forças da prosa e as da poesia, entre o ele e o
eu. O testemunho e o diário são dispositivos que surgem na literatura dentro
desse embate entre esse Eu moderno e o Mundo, sobretudo quando o mundo
se apresenta como uma manifestação violenta. Testemunho e diário são as
marcas ou as pegadas do indivíduo na era da sua desaparição. Esse indivíduo
precisa se apegar a um Eu que ele está recriando e reafirmando tanto quanto
lhe é permitido em um mundo que o puxa, se não para o extermínio, ao menos
para o anonimato e para a sua insignificância. Na nossa era de pandemia,
evidentemente essa situação pós-romântica se radicalizou rapidamente.
Lejeune tem o mérito de, de dentro da referida tradição purista, valorizar
o diário. Mas por motivos que considero equivocados. Ele traça essa linha
entre o diário e a ficção que é não só facilitadora e confortável, mas também
equivocada (positivista), e bloqueia justamente o que o diário possui de mais
rico e complexo: a “indizibilidade” entre o real e a ficção. Mas Lejeune está
coberto de razão quando afirma, por exemplo, que “o diário é uma espécie de
‘instalação’, que joga com a fragmentação e a deriva, numa estética da repetição
e da vertigem muito diferente daquela da narrativa clássica”.1- Ele também
acerta ao notar que o diário “contesta os modelos estéticos clássicos” e exige
do leitor um papel mais ativo.13 O diário nos ensina a ler com outros olhos, a
rever o campo literário que ainda se encontra - apesar dos 200 anos de crítica
romântica e pós-romântica - submetido aos ditames neoclássicos do estético.

191
O LOCAL DO TESTEMUNHO

Esse ditame neoclássico possui uma relação umbilical com uma certa estética
da Modernidade, da fundação da teoria estética no século XVIII até Albert
Speer durante o regime nazista, chegando aos atuais ditadores e candidatos.14

O CASO DA DITADURA CIVIL-MILITAR NO BRASIL


OU O NÃO LUGAR DO TESTEMUNHO

Considero essencial, ao tratar do testemunho, um gesto marcado pelo


presente, tratarmos também de nosso aqui e agora. No Brasil, assistimos
nas últimas décadas a um debate sobre a memória da ditadura civil-militar
de 1964-1985 que merece ser destacado aqui. Se com o estabelecimento da
Comissão Nacional da Verdade, em 2011, durante o governo de Dilma Rousseff,
o tema voltou à baila e se intensificou após as jornadas de 2013, com o golpe
de 2016 contra essa presidente ocorreu uma virada em termos da recuperação
mnemônico-política desse período. Se aos poucos, a partir de 2011, o tema
voltou às pautas no sentido de uma reivindicação das demandas por verdade,
memória e justiça, a partir de 2016 se consolida, também aos poucos mas de
modo bastante articulado (por parte de grupos de direita com forte ação nas
mídias digitais e no espaço público), um discurso saudosista com relação ao
tempo da ditadura. Essa nostalgia da ditadura ajudou a embalar a campanha
do atual presidente, marcada por negacionismo de toda espécie no que toca ao
tema da violação dos direitos humanos ontem e hoje. Portanto, a ausência de
uma inscrição robusta de uma visão equilibrada do que ocorreu no período da
ditadura - inscrição esta que depende em grande parte de processos jurídicos até
hoje barrados por saudosistas da ditadura -, a ausência dessa memória coletiva
crítica no que toca ao período de 1964-1985 permitiu tanto a disseminação do
discurso negacionista como a instauração de plataformas políticas visando
à restauração do regime de suspensão do estado de direito. Vimos com
Benjamin que “a tradição dos oprimidos nos ensina que 0 ‘estado de exceção’
«Ausnahmezustand», no qual estamos vivendo, é a regra. Precisamos atingir
um conceito de história que corresponda a esse dado”.'5 Ou seja, o estado de
exceção nos atravessa, não é passado, mas está na base das políticas atuais. Em
março de 2020, dois professores da Universidade Federal de Pelotas receberam
um “Termo de Ajustamento de Conduta” da parte da Corregedoria-Geral da

192
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

União por proferir “manifestação desrespeitosa e de desapreço direcionada ao


Presidente da República”. Trata-se de uma tentativa clara de cercear o direito
ao livre pensamento e de intimidar os professores e a academia. A ditadura,
portanto, está sempre à espreita, e construir uma imagem clara do período
de 1964-1985 deve servir para nos vacinarmos contra essas tentativas de
generalização renovada do estado de exceção. A continuidade clara entre o
regime ditatorial e muitas das práticas do atual governo federal fica patente,
por exemplo, no número de vezes em que ele lançou mão na famigerada Lei de
Segurança Nacional, de 1983, mais autêntica herança ditatorial, na tentativa de
silenciar seus opositores. Outra característica gritante que permite sublinhar
essa continuidade, para além da presença recorde de militares em ministérios
e ocupando altas funções administrativas, são a necropolítica e as práticas
genocidas. Isso fica claro tanto com relação ao genocídio dos povos indígenas,16
quanto com relação à atitude negacionista diante da pandemia que, a esta
altura, já produziu mais de 660 mil vítimas no Brasil.
Em agosto de 2009, Rosalina Santa Cruz, na abertura do “Seminário
Internacional 30 anos da Anistia no Brasil: o direito à memória, à verdade
e à justiça”,17 falou que gostaria de propor novamente, como em 1979 ela o
fizera, uma CPI da tortura. Essa proposta, que para quem não conhece a
história recente do Brasil pode parecer insólita, é emblemática com relação ao
enfrentamento do terror de Estado no Brasil pós-ditadura. Em 2019, assim como
hoje, em 2022, essa proposta ainda é premente. Mais de 40 anos após a anistia,
está mais do que claro que aquela manobra dos donos do poder, ou seja, a Lei
de Anistia, visava, antes de mais nada, garantir a impunidade. De 1979 a 2009,
com relação à revelação da verdade e ao julgamento dos responsáveis pelos
crimes cometidos pelas garras do poder, foi como se o tempo tivesse estancado.
Ficamos no tempo da latência. Rosalina disse também, naquela ocasião, que
não falava em seu nome, mas sim no de uma coletividade. Esse gesto é típico,
como sabemos, de boa parte dos depoimentos e da escrita testemunhai de
catástrofes. A memória, antes de ser individual, é coletiva. No caso específico
dos que sofreram sob o terrorismo de Estado, essa coletividade é a daqueles que
se opuseram ao estado de exceção. Mas sabemos também - como vimos com
Celan - que é impossível testemunhar pelo outro. A coletividade, no entanto,
constrói-se primeiro como um grupo com laços políticos que compartilha
certas memórias. A memória do mal passou a ser algo compartilhado por esse

193
O LOCAL DO TESTEMUNHO

grupo, e o século XX viu inúmeras sociedades serem recortadas em grupos


que compartilhavam a experiência comum de uma barbárie. O século XX foi
um século de catástrofes, de genocídios e de perseguições em massa, práticas
que atravessaram a fronteira cronológica do século e ainda são banalizadas até
hoje. Ele gerou um número de mortes e de sociedades devastadas pela violência
como nunca antes se vira. Muitas populações ocuparam esse lugar de vítima.18
No Brasil, constitui-se desde a última ditadura uma sociedade na qual
uma fração se identifica com o desejo de busca da verdade dos fatos ocorridos
sob a ditadura. Essas pessoas lutam pela memória e pela justiça. Esse grupo é
constituído pelas vítimas, pelos solidários com elas e por muitos que acreditam
na importância de estabelecer justiça como condição de construção de um
estado de direito autenticamente justo e democrático. Ocorre uma espécie de
privatização das demandas por memória, justiça e verdade no Brasil. Em 2010,
o Supremo Tribunal Federal ratificou, em uma decisão infame, a Lei de Anistia
de 1979 como uma barreira aos processos jurídicos. A Comissão Nacional da
Verdade (CNV), que atuou entre 2011 e 2014, colocou em movimento essa
memória. Apesar de todos os seus limites, ela tentou romper com o círculo de
silenciamento que impera sobre a memória das violências praticadas durante
a ditadura. Tentou expandir o âmbito da memória da ditadura para além da
esfera privada das famílias das vítimas. Mas, após os fatos de 2016 e de 2018,
com um dos votos que perpetraram o golpe contra a presidente eleita sendo
justificado como homenagem a um torturador, e posteriormente com a eleição
justamente desse seu discípulo, ficou claro que a CNV foi insuficiente para
romper o silêncio ensurdecedor em torno da tortura, dos desaparecimentos,
das perseguições, das demissões arbitrárias e de todo tipo de covardia que é a
marca dos governos autoritários. Não é por falta de testemunhos, de obras de
historiografia, de filmes, de obras musicais e das artes visuais que não ocorre a
virada mnemônica com relação ao período da ditadura no Brasil. Como já vimos,
para o testemunho se dar, é preciso que exista uma platéia, o ouvinte, aquele que
recebe esse testemunho. Na sociedade brasileira, cerceia-se sistematicamente a
possibilidade de criar esse espaço para a escuta dos testemunhos da ditadura
de 1964-1985. O espaço testemunhai deve ser conquistado e construído como
estratégia para produzir outros espaços imagéticos resistentes, lembrando do
conceito benjaminiano de Bildraum (espaço de imagem) que está na origem de
novos espaços de ação (Spielrãume), conforme discutimos no início deste livro.

194
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Aqueles que foram perseguidos no período de exceção são, antes de mais


nada, vítimas. Mas existe a possibilidade de essa comunidade sair dessa
posição. Justamente o testemunho pode servir de caminho para a construção
de uma nova identidade pós-catástrofe. A uma era de violência e de acúmulo
de crimes contra a humanidade corresponde também uma nova cultura do
testemunho. O testemunho tanto artístico/literário como jurídico pode servir
para a criação de um novo espaço político para além dos traumas que serviram
tanto para esfacelar a sociedade quanto para construir novos laços políticos.
Essa passagem pelo testemunho é, portanto, fundamental não somente para
indivíduos que vivenciaram experiências-limite, mas também para sociedades
pós-ditadura. No caso da América Latina, existe uma vastíssima produção
de cunho testemunhai. A essa produção somam-se os inúmeros testemunhos
que estão sendo realizados já há alguns anos em tribunais. Mas esse caminho
testemunhai que países como Argentina, Chile e Uruguai estão trilhando é muito
pouco compartilhado pelo Brasil. Neste país, a transição para a democracia foi
engasgada por articulações políticas que - com leis como a da Anistia (tal
como ela foi formulada e é interpretada) e com a continuidade de políticos
como Sarney no coração do Estado pós-ditadura - impediram a passagem pelo
testemunho. Nossas vítimas não puderam se transformar em acusadores, os
eventos da ditadura não puderam sequer ser transformados em fatos. O fantástico
e escandaloso sequestro das provas e dos testemunhos mantém o Brasil como
que congelado no tempo, quando se trata do enfrentamento político-jurídico e
do trabalho de memória da nossa ditadura. As elites simplesmente decidiram
que “a página da história deve ser virada” - sem antes ter sido escrita. Elas
estigmatizam as tentativas de estabelecer a verdade e a justiça como meros atos
de revanchismo. Como Eugenia Fávero colocou muito bem ainda no referido
seminário sobre a anistia de 2009, nossos juizes defendem a interpretação da
conectividade dos crimes, tratada na Lei de Anistia, como impedimento e
bloqueio a qualquer tentativa de abrir processos contra os torturadores e seus
mandatários. Trata-se de uma querela de interpretação, ou seja, de um debate
antes de mais nada político, pois tudo na interpretação jurídica é político.
O bloqueio e o sequestro do testemunho impedem que este se dê tanto
em sua forma jurídica - que se quer objetiva - quanto nos moldes dos demais
testemunhos falados e escritos. Nossa literatura testemunhai é comparativamente
muito pequena. Alguns livros coletam testemunhos de ex-prisioneiros, como

195
O LOCAL DO TESTEMUNHO

o de Alípio Freire sobre o presídio Tiradentes.19 Apenas em 2009, um projeto


coordenado por Marcelo Ridenti e Zilda Márcia lokoi, e que contou com Janaína
Teles como sua principal pesquisadora, iniciou um trabalho de entrevista com
ex-combatentes do regime civil-militar. Trata-se de um resgate essencial, mas
os 30 anos de “atraso” não deixam de nos assustar.20 É verdade que existe um
filme fundamental, quando se trata de testemunho da ditadura no Brasil, Que
bom te ver viva, de Lúcia Murat, de 1989, mas ele também é uma exceção. Na
nossa literatura temos uma forte tradição de apresentação da violência; autores
como Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Drummond
apresentaram muitos aspectos da violência que marca profundamente nossas
estruturas sociais desde sempre. Com relação à ditadura de 1964-1985, temos
dezenas de autores como Antonio Callado, Paulo Francis, Renato Tapajós, Carlos
Sussekind, Renato Pompeu, Luiz Roberto Salinas, Bernardo Kucinski, Urariano
Mota, Marcelo Rubens Paiva, Claudia Lage, que, em suas obras, fizeram um
substancial enfrentamento da questão da violência e de sua representação.21
Gostaria de me deter um pouco em uma dessas obras. O livro de Tatiana
Salem Levy A chave de casa-- apresentou, de um modo que me parece bastante
convincente, essa situação de parte da sociedade brasileira que só pode se
relacionar com o passado violento da ditadura como um terrível peso, uma
herança que oprime e que não pode ser transformada em discurso, não consegue
ser processada tanto no sentido simbólico como no jurídico. Não há processo
aqui, apenas estancamento. O livro narra a história de uma mulher que nasceu
em Lisboa, filha de pais brasileiros exilados, e que retorna ao Brasil no mesmo
ano da aprovação da Lei da Anistia. Ela nasceu de modo simbólico no ano de
1979, ano que deveria representar uma virada, um início de democratização e
de acerto de contas com o passado. Não por acaso, essa personagem é obcecada
pelo seu passado. Ela decide persegui-lo para tentar exorcizá-lo. O percurso
narrado é o de uma busca isolada, individual, de enfrentaménto desse passado,
das torturas e do exílio dos pais. Nesse sentido, o livro, que joga com o registro
da autoficção, constrói muito bem um efeito de realismo. Na sua viagem, a
personagem volta à sua terra natal, Lisboa, e o que encontra lá é uma relação
carnal. É como se a redenção passasse agora pelo corpo, pelo indivíduo. Essa
personagem quase alegórica apresenta um mundo pós-utópico e mergulhado
na melancolia. Após o desencanto e os sofrimentos provocados pela grande
política, é como se a saída fossem os “cuidados de si”.

196
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Mas, como mencionei, essa obra e os demais autores que arrolei e os que
não citei não são suficientes para a criação de uma cultura da memória, como
a que percebemos em outros países da América Latina. Daí críticas como a de
Beatriz Sarlo23 a essa cultura da memória e aos “excessos” de testemunho não
terem nada a ver com a realidade brasileira. Mal começamõs a testemunhar.
Em que pesem os milhares de depoimentos dados à Comissão de Anistia,
não temos o testemunho como testis, ou seja, o testemunho jurídico, nem o
testemunho como superstes, o testemunho como a fala de um sobrevivente
que não consegue dar forma à sua experiência única. Nossos testemunhos
estão sufocados pelas amarras de uma “política do esquecimento” que não
conseguimos até agora desmontar. Novamente: o testemunho sem ouvinte não
existe em sua plenitude. De certa maneira, podemos dizer que as vítimas e
aqueles que lutam pela verdade, pela memória e pela justiça ficam relegados
pelas elites a uma posição melancólica, que é difícil de aceitar e de conviver
com ela. Ela corrói as entranhas. O grande desafio que se coloca ainda hoje, 43
anos depois da promulgação da Lei de Anistia, é a necessidade de quebrar as
barreiras que até hoje impediram esse trabalho de testemunho de entrar em
funcionamento.
É evidente que muita coisa foi feita, com destaque para as realizações da
Comissão de Familiares de Mortos e de Desaparecidos Políticos, que tem levado
adiante lutas pela abertura de arquivos, pela construção de memoriais, pelo
estabelecimento de arquivos, pela reversão do efeito perverso da Lei de Anistia
de 1979. Exemplo desse trabalho é a publicação do volume Dossiê ditadura:
mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985), que contém a lista de
426 mortos e desaparecidos por perseguição política na ditadura civil-militar
brasileira, com informações até então inéditas e vários novos nomes de vítimas
daquele regime. O relatório da Comissão Nacional da Verdade de dezembro
de 2014 estendeu o número de vítimas para 434 e tornou pública uma série de
crimes como os genocídios indígena e no campo, temas que ainda precisam ser
mais pesquisados e aprofundados. Esse relatório ainda repete erros basilares,
heranças da colonialidade, ao não incluir, por exemplo, o número de indígenas
assassinados pela ditadura entre o número oficial de mortos e desaparecidos.
Trata-se de uma clara hierarquização étnica e de classe.24 Muito já foi feito e
devemos reconhecer os avanços, como a vitória obtida no processo civil contra
o coronel Carlos Alberto Ustra, movido pela família Teles em 2008, quando

197
O LOCAL DO TESTEMUNHO

esse militar foi reconhecido como torturador pela Justiça, fato inédito até então.
O processo foi movido por César Augusto Teles, Maria Amélia de Almeida
Teles, Janaína de Almeida Teles, Edson Luís de Almeida Teles e Crimeia Alice
Schmidt de Almeida. Mas a luta dessa e de outras comissões tem sido até agora
uma luta de Davi x Golias, mas sem a vitória do primeiro. Trata-se de uma
luta que ainda não conquistou a sociedade e que está muito dependente de
iniciativas das vítimas. Quando os testemunhos dos sobreviventes se tornarem
parte dos currículos escolares, quando arquivos forem abertos, mais memoriais
debatidos e construídos, quando os tribunais forem abertos aos testemunhos
dos que sofreram sob a ditadura, quando a verdade começar a se delinear e os
responsáveis começarem a pagar pelo que fizeram, aí sim teremos a nossa cultura
da memória. Aí poderemos debater também de modo mais claro os limites da
fala testemunhai. Por enquanto, esse debate no Brasil é feito a partir de outras
culturas da memória, como a da Shoah e sobretudo a de nossos países vizinhos.

O COLAPSO DO TESTEMUNHO

Para desenvolver essa tese da ausência da cultura da memória e da virada


testemunhai em nossa cultura política, gostaria de citar uma passagem de Jean-
-François Lyotard, do seu Le différend, de 1983, e comentar em que medida sua
reflexão sobre o colapso do testemunho se aplica ao caso brasileiro. Recordo
apenas que esse livro de Lyotard foi escrito contra as ondas revisionistas e
negacionistas do Holocausto. Tratava-se de pensar uma postura crítica com
relação ao testemunho, que ao mesmo tempo o salvasse da desmontagem que
lhe é feita pelas máquinas negacionistas. Cito comentando uma passagem do
referido ensaio de Lyotard:

É característico da vítima não poder provar que ela sofreu um dano. Um sujeito
que acusa [plaignant] é alguém que sofreu um prejuízo e que dispõe de meios
para prová-lo. Ele os perde se, por exemplo, o autor do prejuízo acontece de ser
diretamente ou indiretamente o seu juiz?5

No Brasil, isso em parte aconteceu graças a um processo de redemocratização


que foi orquestrado pelos algozes e seus cúmplices. A transição ficou nas mãos

198
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

dos que realizaram a violência e de seus aliados, o que até hoje tem cerceado
a busca de verdade e justiça. Em 2019, com a volta dos militares ao poder,
que admitem nunca ter aceitado a CNV, esse cerceamento da verdade se
radicalizou. “Este [juiz] possui a autoridade de rejeitar seu testemunho como
falso ou'a capacidade de impedir a sua publicação. Mas este ê apenas um caso
particular.”26 No Brasil, até hoje se barram as tentativas de apresentação das
provas. Os arquivos estão fechados, e os cadáveres, em boa parte, desaparecidos.
No caso dos que procuram testemunhar, eles não encontram eco na sociedade.
Mesmo a publicação ocorrendo, esses testemunhos não se tornam públicos, no
sentido de que não entram na esfera pública. Testemunhar é um ato que ocorre
no presente. Nosso presente ainda não se abriu para esses testemunhos. “De
um modo geral aquele que acusa torna-se uma vítima quando não é possível
nenhuma apresentação do dano que ele afirma ter sofrido.”27 Entre nós, é isso
que acontece; essa apresentação do dano é reprimida até o limite máximo, mas,
quando ela se dá, não ocorre a recepção do testemunho e das provas. Os meios
(a mídia e os agentes de opinião) como que fazem um trabalho de destruição
desse material: ele é ao mesmo tempo apresentado e anulado. Posto como um
resquício indesejável de um passado que deve ser considerado passado. As
portas da lei (da justiça) sequer se abrem para os processos.

Reciprocamente, o “crime perfeito” não consistiría em matar a vítima ou as


testemunhas (ou seja, acrescentar novos crimes ao primeiro e assim agravar a
dificuldade de apagar tudo), mas antes em obter o silêncio das testemunhas, a
surdez dos juizes e a inconsistência (a insanidade) do testemunho.28

No Brasil, é essa desconstrução do testemunho que sempre esteve em


jogo. Mas se isso também ocorreu em outros países da América Latina, a
originalidade do caso brasileiro está em, mesmo depois do final da ditadura, ter
sido mantida essa máquina de esquecimento. O debate político não conseguiu
pôr em movimento a vítima no sentido de ela se transformar em um sujeito
que acusa. A sociedade negou às vítimas o direito à acusação. A vítima foi
tratada como alguém alheio à esfera do direito, como um menor a ser tutelado
e tratado com migalhas de justiça e de verbas. É evidente que a anistia de
197,9, tal como foi e é instrumentalizada pelas elites civis e militares, foi uma
peça fundamental nessa desmontagem do testemunho, nesse cerceamento da

199
O LOCAL DO TESTEMUNHO

comprovação e da publicização daqueles crimes cometidos dos anos 1960 em


diante. O crime perfeito da nossa ditadura civil-militar consistiu em conseguir,
de fato, silenciar as testemunhas - por mais que elas fossem a público -, em
articular a surdez jurídica (lembremos das inúmeras interpretações forçadas
da Lei de Anistia, que a transformaram em uma anulação de qualquer teor
criminal dos terríveis feitos durante a ditadura realizados pelos braços do
poder); aqueles criminosos conseguiram - com ajuda da mídia - convencer
a sociedade de que toda busca pela memória, pela verdade e pela justiça seria
apenas revanchismo. Os que tentam se tornar acusadores são imediatamente
transformados em vítimas que sofrem novamente de feridas que já deveríam
ter sido fechadas. Na batalha pela memória-verdade-justiça, as elites - de ontem
e de hoje - impõem a lei da mordaça e do silêncio. Mesmo a voz que soa não
encontra ouvidos nessa sociedade “cordial”. “Neutraliza-se o destinador, o
destinatário, o sentido do testemunho; tudo se passa então como se ele não
tivesse um referente (um prejuízo).’-9
No Brasil, vale observar como essa equação pode ser compreendida.
O destinador, ou seja, aquele que transmite a mensagem, é transformado
em vítima que sofre uma patologia da memória. Projeta-se nele a figura do
vingador, de alguém sem controle e, portanto, um menor em termos jurídicos.
O destinatário é neutralizado porque a sociedade é mobilizada contra a
luta pela tríade memória-verdade-justiça. Dentro da sociedade, o sistema
jurídico faz valer sua fama de labirinto kafkiano que emperra eternamente os
processos dos “pequenos” e funciona de modo instantâneo para os poderosos.
Já o sentido do testemunho é neutralizado pelas duas operações anteriores
e pelo impedimento de que mais testemunhos e provas venham à tona. Os
testemunhos publicados no Brasil, como afirmei, nem de longe tiveram o
impacto da literatura testemunhai de nossos vizinhos. Se no Brasil tínhamos,
é verdade, uma potente música de forte caráter testemunhai, também ela foi
rapidamente esquecida e transformada em artigo de museu após 1985. Ao
tratarmos dos testemunhos publicados no Brasil, de Renato Tapajós, Fernando
Gabeira, Salinas Fortes, Flávio Tavares, entre outros, devemos, antes de mais
nada, tentar falar sobre a ausência desse testemunho. Devemos refletir por
que não temos uma cultura da memória. Esses testemunhos são exceções e,
como tais, tampouco foram capazes de quebrar a barreira de silêncio que o
establishment impõe com relação a tudo que se reporte à tríade memória-

200
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

-verdade-justiça. Se é verdade ser impossível falar essas palavras no singular,


por outro lado, justamente o modelo de memória da ditadura que predominou
até agora entre nós (desenhado em grande parte ainda durante aquela ditadura,
com base no mito do “milagre econômico”) não pode ser mantido como a face
da verdade. Muito menos o casuísmo provocado pela Lei de Anistia de 1979, que
tem servido para bloquear qualquer movimento - novamente com raríssimas
exceções -, pode ser equacionado com o que deveriamos aceitar por justiça. O
escândalo dessa situação no Brasil é que o referente, ou seja, aquilo que deveria
ser testemunhado, desaparece de nosso campo visual e simbólico. O campo de
imagem é bloqueado por biombos de falsas memórias encobridoras. Isso vale
não apenas com relação à justiça, mas com relação à verdade dos fatos e também
com relação à memória. A falta de uma topografia da memória do mal em
nossas cidades e em nossas mentes é patente. Ainda temos poucos memoriais
em homenagem aos perseguidos e aos desaparecidos, assim como, por conta
dessa forte propaganda antimemória da ditadura, não nos identificamos com
a cultura da memória de nossos vizinhos. Mesmo um memorial original e
importante como o de autoria de Ricardo Ohtake, inaugurado em 2014, em
homenagem aos mortos e desaparecidos e situado em São Paulo próximo ao
prédio do antigo DOI-Codi, um dos centros de tortura daquele período, não
consegue se impor na paisagem mnemônica da cidade. No Brasil, a política do
aniquilamento da memória acaba por aniquilar os fatos.

Se não existe ninguém para administrar a prova, ninguém para a admitir, e/ou se a
argumentação que a sustenta é considerada absurda, aquele que acusa é indeferido,
o dano do qual ele se queixa não pode ser atestado.30

Ou seja, voltando ao nosso caso, o testemunho não acontece. Nem a cena


que permitiría a apresentação do testemunho, seja o literário, seja o jurídico,
existe. Não há espaço para a literatura de teor testemunhai que trate da
ditadura, assim como na esfera jurídica os tribunais estão fechados pela Lei
de Anistia. Ê sintomático como, em livrarias de cidades como Buenos Aires,
Santiago do Chile e Montevidéu, existe um generoso espaço reservado para
as obras referentes ao período da ditadura naqueles países. Isso não ocorre no
Brasil. Gostaria de escrever: isso ainda não ocorre no Brasil. Se não há espaço
para as publicações testemunhais, tampouco há espaço para o testemunho

201
O LOCAL DO TESTEMUNHO

jurídico. A esfera jurídica está imobilizada. Ela não pôde ainda nos facultar o
importante local do tribunal onde os testemunhos também podem se tornar
públicos. Terminemos de ler a passagem de Lyotard:

Ele se torna uma vítima. Se ele persiste em invocar esse dano como se ele existisse
(destinador, destinatário, expert comentando o testemunho) o farão facilmente'
se passar por louco.31

A tarefa que cabia em 2009, proposta por Rosalina Santa Cruz, ainda vale
para hoje. Precisamos pôr 0 processo em processo. A luta pelo testemunho é uma
luta política que costura necessidades individuais às coletivas e às da sociedade.
Se a frase de Borges é correta, “Só uma coisa não existe, o esquecimento”,32então
devemos mostrar que essa cultura do esquecimento é apenas o outro lado de
uma cultura do encobrimento. O testemunho, com todos os seus conhecidos
limites, buracos e impossibilidades, pode ser um caminho para essa volta
do que foi e ainda é recalcado pelas nossas elites. Que o espaço testemunhai
dos diários tardios se abra para a necessária inscrição das verdades acerca da
ditadura brasileira de 1964-1985.

Notas

1 “nous sommes donc en présence d’un des nombreux cas ou celui qui exerce une fonction
est confundu avec celle-ci (cfr. Esp. Un cura, fr. Guide [...]). Peut-être pourrait-on inférer
de la coexistence des deux sens, qu’il s’agit pas à proprement dire de deux sens, mais que le
personage et son rôle ne sont pas distincts dans la conscience de 1’individu parlant” (Spitzer,
1938, P- 374)-
2 Lejeune, 2007, p. 3.
3 ‘Tautobiographie vit sous le charme de la fiction, le journal a le béguin pour la vérité”
(Lejeune, 2007, p. 3).
4 “J’aime 1’autobiographie, jaime la fiction, j’aime moins leur mélange” (Lejeune, 2007, p. 3).
3 Lejeune, 2007, p. 4.
6 Em outra passagem, Lejeune (2007, p. 8) afirma de modo peremptório, deixando entrever o
verdadeiro “perigo” que ele projeta na ficção: “Ao entrar em contato com a ficção, o diário
murcha, desmaia ou sofre uma crise de urticária. Em contato com a ficção, autobiografias,
biografias e livros de história se contaminam, carregam a ficção no sangue” (“Au contact de
la fiction le journal s’étiole, s’évanouit, ou fait une crise dúrticaire. Au contact de la fiction
les autobiographies, les biographies, les livres d’histoire sont contamines, ils ont la fiction
dans le sang”). A metáfora biológica é sintomática da visão do universo literário defendida
por Lejeune. Blanchot, na sua conhecida crítica do diário também lembrada por Lejeune no
mesmo artigo de 2007, acusa esse gênero de “proteger-se da escrita” (Blanchot, 2005, p. 270).

202
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

O pacto do diário seria com o calendário e com a verdade: o que resultaria na superficialidade
desse tipo de escrita. O diário exigiria a constatação e a prova e se oporia à profundidade da
narrativa, submetida ao acaso. Blanchot, com essa concepção, acaba mostrando-se vítima de
uma visão positivista do diário - nesse ponto ele concordaria com Lejeune -, já que atribui
a essa forma uma factografia com grau zero de ficcionalidade. Por outro lado, é justamente
a estética da superficialidade, do acúmulo de escombros, de ruínas,,o que restou de mais
“nobre” da literatura no século XX. Blanchot ainda tentou salvar uma noção de nobreza
do récit. Ele defendeu o modelo romântico da inspiração do autor {idem, p. 293) e o “espaço
fechado, separado e sagrado que é o espaço literário” {idem, p. 302). Nada disso pode ser
mais sustentado sem uma ponta de cinismo no século XX, após as vanguardas e a revelação
do suposto nobre périplo do Espírito pelo Tempo como manifestação do abjeto. Por outro
lado, é importante notar que o diário e o testemunho querem ser narrativa, mas percebem a
impossibilidade dessa narrativa. Derrida, de modo genial e irônico, percebeu como o próprio
Blanchot em sua narrativa foi um exímio autor de testemunhos (Derrida, 1998).
‘ Cru, 1929.
8 Para uma história erudita do diário, cf. Hocke, 1991.
9 O conceito de “teor testemunhai”, desenvolví em outros textos (cf. Seligmann-Silva [org.],
2003). Para tanto, parti dos conceitos benjaminianos de “teor de verdade” {Wahrheitsgehalt)
e de “teor coisal” {Sachgehalf), que ele desenvolveu em seu ensaio sobreis afinidades eletivas
de Goethe e, por outro lado, de sua famosa frase segundo a qual “não há um documento
da cultura que não seja ao mesmo tempo um documento da barbárie” (“es ist niemals
ein Dokument der Kultur, ohne zugleich ein solches der Babarei zu sein”) (Benjamin,
2010, p. 34; 2020, p. 74). Reafirmo, aqui, que considero mais produtivo estudar os traços
característicos desse teor testemunhai, que pode ser encontrado em qualquer produção
cultural, do que falar em um gênero “literatura de testemunho”. Essa expressão, por outro
lado, tem sido aplicada àquelas obras programaticamente nascidas para testemunhar
catástrofes nos séculos XX e XXI. Não considero errado falar em literatura de testemunho,
mas creio que não devemos reduzir o estudo do teor testemunhai a essa produção específica.
10 Derrida, 1991, p. 198.
11 Césaire, 2012.
12 “Le journal est une sorte d’‘installation’, qui joue sur la fragmentation et la dérive, dans une
esthétique de la répétition et du vertige très différente de celle du récit classique” (Lejeune,
2007, p. 5).
lj Idem, p. 10.
14 Lacoue-Labarthe & Nancy, 2020.
13 Benjamin, 2020, pp. 37-38.
16 Bonilla & Capiberibe, 2021.
17 Realizado em agosto de 2009 na Faculdade de Direito da USP e organizado pelo LEI-USP,
Projeto Escritas da Violência/IEL e Goethe-Institut São Paulo.
18 Por uma questão demográfica e de paralelo desenvolvimento das técnicas de guerra e de
extermínio, o século XX é de longe aquele que mais produziu assassinatos, extermínios e
violência. Ê claro que a história da humanidade pode (e deve) ser vista como uma história
de violências, mas essa situação do século XX fica ainda mais gritante, porque destoa
daquilo que o Ocidente se autoimputou, ou seja, a sua capacidade “civilizatória” do mundo.
O mundo “civilizado” exala o cheiro da podridão de cadáveres.
19 Freire; Almada & Ponce, 1997.
281 Teles; Ridenti & lokoi, 2010. O Memorial da Resistência, em São Paulo, também tem
se dedicado à coleta de testemunhos associados à ditadura de 1964-1985 em seu projeto

203
O LOCAL DO TESTEMUNHO

“Coleta Regular de Testemunhos”. Já são 155 testemunhos arquivados que podem ser
visualizados no local e, em parte, estão disponibilizados no site da instituição: chttp://
memorialdaresistenciasp.org.br/coleta-testemunhos/ >. (Informação fornecida pela diretora
do Memorial, dra. Ana Pato, em conversa particular.)
21 Cf. quanto aos estudos da literatura produzida no Brasil e ao tema da ditadura e/ou do
testemunho: Dalcastagné, 1996; Franco, 2003; Umbach, 2008; Salgueiro, 2011; Umbach &
Calegari, 2011; Seligmann-Silva; Ginzburg & Hardman, 2012; Finazzi-Agrò, 2014; Vecchi,
2014; Seligmann-Silva, 2014a; Sarmento-Pantoja; Umbach & Sarmento-Pantoja, 2014;
Salgueiro, 2017; Figueiredo, 2017. Remeto para mais dados e análises do tema, além de uma
ampla bibliografia, à tese de doutorado de Lua Gill da Cruz, Pretéritos futuros: ditadura
militar naditeratura do século XXI (Cruz, 2021).
22 Levy, 2007.
23 Sarlo, 2005.
24 No relatório da CNV lemos: “Como resultados dessas políticas de Estado, foi possível estimar
ao menos 8.350 indígenas mortos no período de investigação da CNV, em decorrência da
ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão. Essa cifra inclui apenas aqueles
casos aqui estudados em relação aos quais foi possível desenhar uma estimativa. O número
real de indígenas mortos no período deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas
uma parcela muito restrita dos povos indígenas afetados foi analisada e que há casos em
que a quantidade de mortos é alta o bastante para desencorajar estimativas” (Anexo II do
Relatório da CNV, 2014).
2:3 Lyotard, 1983, pp. 22-23.
26 Idem, ibidem.
2' Idem, ibidem.
28 Idem, ibidem.
29 Idem, ibidem.
30 Idem, ibidem.
31 Idem, ibidem.
:2 “Solo una cosa no hay, el olvido” (Borges, 1986, p. 73).

204
7

ANISTIA E (iN)jUSTIÇA NO BRASIL

Você que inventou o pecado / Esqueceu-se de inventar o perdão.

Esses conhecidos versos de “Apesar de você” (1970), de Chico Buarque,


remetem às origens, na última ditadura brasileira (1964-1985), das lutas pela
anistia. A oposição ao regime levantou essa bandeira no final dos anos 1960
visando permitir a volta dos exilados e a libertação dos prisioneiros políticos. A
anistia, nesse contexto, significava, antes de mais nada, restauração da justiça,
já que esses exilados e prisioneiros estavam sendo vítimas de um governo
pontuado por arbitrariedades, no qual o estado de direito estava suspenso.
Imperava, portanto, a exceção (instaurada com o golpe civil-militar de 1964
e aprofundada com o AI-5 em dezembro de 1968), e a fachada de legalidade
era mais do que frágil. A anistia, nesse sentido de cumprimento da justiça, de
restabelecimento do estado de direito, tem um valor plenamente positivo, tal
como encontramos no nome da conhecida organização internacional que luta
pelos direitos humanos, a Amnesty International, que, aliás, desde 1969 apurou
e denunciou a violência ditatorial no BrasiL*
No Brasil, a anistia chegou apenas em 1979, organizada pelos responsáveis
pela ditadura civil-militar. Sua intenção naquele momento, no entanto, não era
a de realizar a justiça, visada nos versos de Chico Buarque. Antes, os donos
do poder pretenderam, então, diante da inexorável derrocada do regime e do
avanço das forças democráticas - que teriam como correlato imediato a volta
dos exilados e a libertação dos prisioneiros políticos -, decretar, de antemão,
a>sua própria impunidade. Essa anistia foi costurada não como justiça -
trabalho de restituição do mal realizado, pagamento de uma dívida para com os

205
ANISTIA E (IN)JUSTIÇA NO BRASIL

perseguidos e violentados pelos órgãos de repressão do Estado que se voltaram


contra a população que deveríam proteger mas, antes, ela foi decretada como
suspensão de toda futura tentativa de concretizar a justiça. Os donos do poder
apropriaram-se da anistia para convertê-la em mecanismo de impunidade. Os
militares e aliados civis brasileiros não estavam sós nesse trabalho de reversão
dos ideais de justiça da anistia. Em 1978, o governo militar de Pinochet fizera
o mesmo gesto. Argentina e Uruguai seguiríam o mesmo caminho. Gostaria,
neste texto, de explorar essas duas faces da anistia (como portadora de justiça e
como portadora da injustiça e da impunidade), privilegiando o caso brasileiro.

Quando chegar 0 momento/ Esse meu sofrimento /Vou cobrar com juros. Juro!/
Todo esse amor reprimido,/Esse grito contido,/ Esse samba no escuro.

O período de ditadura brasileiro foi marcado pela suspensão dos direitos


básicos que caracterizam a cidadania. A partir da Doutrina de Segurança
Nacional (que marca a Constituição de 1967) e da sua incorporação da teoria
do “inimigo interno”, ocorreu uma utilização de todo aparato da violência
estatal para reprimir a oposição. Com 0 AI-5, a figura jurídica basilar do habeas
corpus fica suspensa nos casos considerados vinculados à segurança nacional.
Em 1969, com a Lei de Segurança Nacional, suspenderam-se as liberdades de
imprensa e de reunião. Em 1971, criou-se a figura dos decretos-lei secretos, um
reconhecimento tácito da total anomalia jurídica desse governo. Se a anomia
está sempre dormitando em qualquer estado de direito (como aprendemos
com Benjamin e com Agamben2), o que aconteceu durante a última ditadura
brasileira foi um flagrante atentado a essa forma mesma do estado de direito,
com os seus limites estruturais. A violência, em vez de dormitar no seio da lei
(como lemos na Eumênides de Esquilo, como já vimos), passou a dominá-la
por completo. A lei foi reduzida a força da lei (force de loijv Mas é importante
destacar que a prática generalizada da violência através da perseguição, do
encarceramento, da tortura, do assassinato de opositores deu-se/ora da lei,
nas bordas desse aparato jurídico em si monstruoso (que, além de implantar
o estado de exceção e suspender o habeas corpus, previa a pena de morte,
que nunca foi aplicada juridicamente, mas apenas às escondidas nos porões

206
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

da ditadura). Este ponto é essencial, porque revela o quanto esse estado de


exceção desprezou (e despreza) as regras do jogo jurídico, e, portanto, as ações
acobertadas por esse mesmo Estado merecem um tratamento excepcional no
sentido de que não se deve alegar que nele havia algo como um estado de direito
amparando as ações dos membros do aparelho de repressão. As execuções
eram realizadas sem prévio julgamento. As leis de exceção serviam apenas para
dar uma aparência de ordem judicial a um governo que, na verdade, “punha
e dispunha” das leis e dos homens como queria.4 Elas serviam para encobrir a
radicalidade da exceção e da violência praticadas pelo Estado.
Durante o período da ditadura e posteriormente, os militares e os civis
vinculados ao regime negaram sistematicamente a existência dessa violência.
Essa negação já estava na origem dessas mesmas práticas ilícitas e dá sua forma
clandestina de execução. O aparato de violência negava suas ações ao praticá-las
em quartéis, delegacias e outros lugares escondidos da vista do público em
geral. Negava às famílias o direito de informação sobre o paradeiro dos que
haviam sido presos (a bem da verdade, sequestrados) por ele próprio. Negava
também os corpos das vítimas de tortura (que eram ou enterrados em valas
comuns clandestinas, ou queimados ou mesmo lançados ao mar). E, por íim,
o Estado continua negando até hoje a abertura dos arquivos que poderíam
possibilitar uma busca da verdade do que ocorreu e da justiça. É nessa cadeia
de negações que se insere a Lei de Anistia de 1979. Se ela serviu para costurar a
passagem do governo civil-militar para um regime democrático, e não nego que
ela teve um papel histórico importante, isso não significa que a sociedade deve
se submeter ao seu arbítrio para sempre. Temos que ter a coragem de perceber
que essa lei, tal como foi feita, significou também mais um ato de arbítrio
dentro da série de disparates político-jurídicos dos governos da ditadura.
Como o jurista Fábio Konder Comparato notou, para além das querelas
em torno da aplicabilidade da Lei de Anistia aos torturadores homicidas, vale
antes de mais nada observar que “esse aparente obstáculo [a Lei de Anistia] não
tem nada a ver com o dever estatal de investigar os fatos, nem com o direito
fundamental dos familiares de saber a verdade”.5 Citando um documento da
Corte Interamericana de Direitos Humanos, ele recorda que, com relação a
esses atos de violência acobertados pelo Estado, “a responsabilidade existe,
nãjO só independentemente das mudanças de governo em determinado período
de tempo, como também de modo contínuo desde a época do ato gerador de

207
ANISTIA E (lN)jUSTIÇA NO BRASIL

responsabilidade até o momento em que tal ato é declarado ilegal”.6 Ou seja,


diante da excepcionalidade dos atos de violência, vale levar em conta uma
excepcionalidade temporal também. A prescrição de crimes hediondos está
suspensa, a continuidade temporal e de responsabilidade deve ser reconhecida.
De resto, como o professor Dalmo de Abreu Dallari notou em um artigo de
1992, havia uma contradição entre a Lei de Anistia e Constituição de 1967
que desmente a tese que catapulta os crimes praticados sob a cobertura do
Estado no regime ditatorial para fora da esfera jurídica. Citemos as palavras
do jurista:

Com efeito, a Lei de Anistia, lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979, foi ditada quando
vigorava no Brasil, formalmente, a Constituição de 1967, com a nova redação
que lhe deu a chamada Emenda Constitucional n. 1, de 1969. Essa Constituição
estabelecia expressamente, no artigo 153, que os crimes dolosos, intencionais,
contra a vida seriam julgados pelo Tribunal do Júri.7

Ele concluía que

os dispositivos da Lei de Anistia não podem prevalecer contra a Constituição.


[...] os torturadores eram servidores públicos civis ou militares que agiam
profissionalmente, mediante remuneração, não podendo alegar objetivos políticos.
[...] Os torturadores homicidas, e possivelmente outros, nunca foram anistiados.8

De resto, Comparato levantou dúvidas já em 1995 sobre o fato de que a


Lei de Anistia cobriría os crimes cometidos pelos agentes estatais. O texto de
1979 dita que “é concedida anistia a todos quantos, no período compreendido
entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos
ou conexos com estes”. Como se sabe, é por essa cláusula da conectividade
que se tenta eliminar os agentes da ditadura da esfera da lei. É evidente que
essa lei, como mencionei, foi feita, antes de tudo, pelos agentes da ditadura e
para esses mesmos agentes. Mas não cabe, na interpretação da letra, especular
sobre as intenções que estavam na sua origem. Se ela está “mal” redigida e não
acoberta os crimes do aparato civil-militar, tanto melhor para os que, hoje,
visam à justiça.
Esse debate sobre a conectividade ou não dos crimes dos agentes da
ditadura voltou à baila após a abertura do processo da família Teles (Maria

208
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Amélia Teles, César Teles, Janaína Teles, Edson Teles e Crimeia Almeida Teles)
contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que dirigiu a unidade do
DOI-Codi de São Paulo entre 1970 e 1974.9 No período, “houve 502 denúncias
de torturas” contra essa unidade.10 O juiz Santini Teodoro considerou que o
coronel Ustra era passível de ser réu, e não necessariamente a União. Como
o que está em jogo são “direitos humanos”, para ó juiz, esse tipo de crime é
imprescritível. Apesar de esse processo ter um caráter declaratório e não visar
à punição do membro do aparelho de repressão, trata-se sem dúvida, ainda
hoje, do maior passo já dado no Brasil, desde a decretação da Lei de Anistia,
em direção à busca da justiça referente aos desmandos da ditadura de 1964-
-1985. Esse processo trouxe mais uma vez à tona os malabarismos jurídicos
e “narrativos” dos membros do regime ditatorial. O ex-ministro Jarbas
Passarinho, em entrevista concedida à Folha de S.Paulo em 2006,“ tentou ao
mesmo tempo dizer que, diferentemente dos regimes totalitários, a tortura
no Brasil não era institucional. De fato, ela era “institucionalizada ”, ou seja,
parte integrante da instituição da ditadura, mas não institucionalizada no
sentido de ter um código legal que a justificasse integralmente: mas tampouco
nos regimes totalitários a tortura foi institucionalizada dessa forma. Sabemos
que os campos de concentração e de extermínio nunca foram propagandeados
pelos nazistas, assim como a tortura e a execução nas câmaras de gás muitas
vezes também não passavam por tribunais ou processos jurídicos. A decisão da
chamada “solução final” foi feita em uma reunião secreta, na famosa mansão
de Wansee em Berlim. Passarinho atribui o grande número de torturados e
desaparecidos na Argentina, no Uruguai e no Chile ao “sangre caliente” dos
espanhóis. Por outro lado, na mesma entrevista, Passarinho afirma que “Ustra,
jovem major, recebeu uma missão”, e que, portanto, estava submetido a seus
comandantes; logo, não seria responsável por crimes que o próprio Passarinho
afirma não haver existido. Ou seja, a tentativa de levar lado a lado o argumento
da “obediência devida” com o da inexistência da tortura revela um típico gesto
(antes de mais nada cínico) dos membros do poder que querem acobertar os
fatos a todo custo e afastar seus responsáveis do “julgamento devido”.12 Outro
argumento contraditório com relação à afirmação de que não houve violência
do lado dos agentes do regime ditatorial é o que volta a bater na tecla da Lei
de.;Anistia de 1979. Passarinho afirma que essa “foi uma anistia mútua. É
preciso reconciliação. Para reconciliar é preciso esquecer”. Esse argumento é

209
ANISTIA E (lN)jUSTIÇA NO BRASIL

excelente para os verdugos, mas, para as vítimas da violência (e essas vítimas


são não apenas os torturados, os assassinados e os desaparecidos, mas seus
familiares e também toda a sociedade que é vítima da violência ao excluí-la
da esfera jurídica), ele é cínico. Finalmente, outro argumento usual entre
os defensores da “anistia mútua” é o de que os crimes ocorreram dos dois
lados. É o que se chama na Argentina de “teoria dos dois demônios”.13 Esse
argumento novamente assume que ocorreram crimes praticados pelos agentes
do poder ditatorial. Ele reaparece em artigo publicado no mesmo jornal.14
Nele, Passarinho volta a insistir na tese do esquecimento reconciliatório:
“Intentávamos [com a anistia] cicatrizar feridas e reconciliar a nação por meio
do esquecimento recíproco das violências mútuas, as quais haviam despertado
emoções intensas e dolorosas”. Ora, como decretar o esquecimento de quem
foi humilhado, torturado?15 Como pedir aos familiares que esqueçam seus
parentes desaparecidos? Como pedir a uma nação que esqueça o que aconteceu
naqueles anos de chumbo? Muito pelo contrário, para reforçar a democracia
e para construir um verdadeiro estado de direito, cabem, antes de mais nada,
um dever de memória e um dever de justiça.
Poucos dias antes da publicação desse artigo de Passarinho, a mesma Folha
publicara um pequeno artigo do ex-presidente José Sarney defendendo a anistia
e o esquecimento.16 Sarney concluía seu texto com as palavras:

Portanto, é necessário um esforço nacional para, de uma vez por todas, sepultarmos
esses fatos no silêncio da história. Não remexamos esses infernos, porque não é
bom para o Brasil. Essa conduta nos distingue dos nossos vizinhos e, assim, o
Brasil é uma sociedade reconciliada.

É importante analisar a escolha dos termos por parte do ex-presidente


escritor. Ele afirma que devemos sepultar esses fatos (ou seja, as torturas, os
assassinatos, os corpos insepultos...) no silêncio da história. Em que medida
a história é silêncio, é túmulo, pedra do esquecimento? Apenas do ponto de
vista dos vencedores que veem na história um enorme triunfo, silente, por
onde desfilam seus heróis sob mantos brilhantes e louros da glória. Para os
humilhados, os perseguidos, os que se opuseram aos déspotas, a história grita e
exige reparo. Como na cortante reflexão de Maurício Rosencof, em seu brilhante
romance ao modo de epístolas ficcionais, por demais testemunhais, que narram

210
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

cenas de seus longos anos no cárcere da ditadura uruguaia misturadas a cartas


de parentes prisioneiros em guetos e campos de concentração nazistas. Em uma
dessas últimas, lemos:

Uma noite, sabes?, uma moça do nosso barracão começou .a’dar gritos terríveis
enquanto dormia; logo depois, todas estávamos gritando sem saber nem por quê.
Por quê? Penso que esse som lamurioso que em algumas ocasiões - só Deus sabe
como - cruza os ares como um pássaro sem corpo é uma expressão reconcentrada
do último vestígio da dignidade humana. É a forma, talvez a única forma, que um
homem tem de deixar uma marca, de dizer aos demais como viveu e morreu. Com
seus gritos, faz valer o seu direito à vida, envia uma mensagem ao mundo exterior
pedindo ajuda e exigindo resistência. Se já não sobra nada, então devemos gritar.
O silêncio é o verdadeiro crime de lesa-humanidade.17

Defender o silêncio da história significa repetir, portanto, o crime de lesa-


-humanidade. O próprio Sarney reconhece que esse passado é um inferno, mas,
ao defender o pacto do esquecimento, posiciona-se do lado oposto ao estado
de direito e da construção da democracia. Não podemos montar nossa casa
sobre uma montanha de ossos e fingir que moramos em uma paisagem idílica.18
Esses corpos devem ser devolvidos às suas famílias e devidamente nomeados e
enterrados. Os responsáveis pelos crimes devem ser julgados. A frase final de
Sarney nesse texto é mais uma típica formulação de nossas elites políticas: o
brasileiro quer a reconciliação (e não a luta). Essa boutade, que lembra o mote
do brasileiro “homem cordial”, é típica daqueles que sempre teimam em ver no
“povo brasileiro” uma massa amorfa e subserviente. A “cordialidade” sempre
foi uma conquista das elites que usaram, para tanto, da violência para gerar
essas “incríveis” reconciliação e cordialidade.19
Mas a referência tanto de Passarinho como de Sarney aos casos dos países
vizinhos é muito importante. Precisamos apenas reverter o acento dado: não
devemos temer esses movimentos em direção à justiça, mas sim saudá-los. De
fato, vemos que nesses países conseguiu-se arrancar a mordaça imposta pela
anistia. A lei de anistia chilena, de 1978, foi redigida pelos próprios membros do
governo ditatorial e publicada quando o Congresso estava fechado já havia cinco
anos. O governo de Michelle Bachelet revogou-a. No Uruguai, o governo Tabaré
Vàzquez facilitou uma interpretação da lei de anistia que permitiu o julgamento
de militares e policiais que violaram os direitos humanos na ditadura de 1973-

211
ANISTIA E (IN)JUSTIÇA NO BRASIL

-1984. Na Argentina, a “Ley de Punto Final” (n. 23.492 de 12/1986), que limitou o
período de acusação dos envolvidos na repressão militar a apenas 60 dias, teve
suas drásticas consequências radicalizadas com a “Ley de Obediência Debida”
(7/1987), que isentou de culpa todos os militares inferiores a general de Brigada.
O governo Kirchner revogou essas leis. As lutas persistentes de “Las Madres
de Plaza de Mayo”, entre outros grupos de resistência ao esquecimento oficial,
são responsáveis por essa reviravolta. É verdade, por outro lado, que existem
diferenças, entre cada um desses países. A ditadura na Argentina fraturou
muito mais profundamente aquela sociedade. O debate aqui em torno da
memória da ditadura não pode ser comparado ao que aconteceu no nosso país
vizinho. O processo em torno da Escuela Mecanica de la Armada (Esma),20 em
Buenos Aires, que levou à transformação desse gigantesco local de violação
aos direitos humanos em um memorial e centro em que funcionam diversas
entidades relacionadas aos direitos humanos, reflete a dimensão da violência
que foi exercida então pelos militares. Calcula-se que cerca de 30 mil pessoas
desapareceram nas mãos do Estado durante a ditadura naquele país. Cerca de
300 mil argentinos tiveram que se exilar.
Mas, apesar dessas diferenças, certas questões são comuns a esses países. Isso
fica patente, por exemplo, quando algumas obras literárias conseguem atingir
certas estruturas de poder, jurídicas e de memória, que são compartilhadas no
Chile, na Argentina, no Uruguai ou no Brasil. Esse é o caso da peça de Ariel
Dorfman La muerte y la doncella. Nessa obra, carrasco e vítima confroritam-
-se sob uma nova divisão de forças, com a vítima dominando a situação. Um
terceiro elemento, um advogado - recém-nomeado para fazer parte de uma
comissão que deveria levantar os casos de abuso dos direitos humanos com
consequências fatais -, e que é marido da vítima, representa de certo modo
a instância jurídica. A almejada justiça - que não pode ser confundida com
o direito e suas instituições - paira como uma promessa irrealizável na peça.
Opostas a ela, encontram-se as forças do oblívio, sugeridas, por exemplo, na
frase do personagem Gerardo, o advogado: “vamos virar essa página de uma
vez por todas e nunca mais falar sobre isso, nunca”...21 Não existe reparação:
mas a confissão e o procedimento do julgamento (mesmo sem a condenação)
representados na peça mostram que esses dispositivos têm um papel central
a desempenhar no trabalho de memória (jurídico e lutuoso) do período
ditatorial. O próprio Dorfman afirma, no posfácio de sua obra, que buscou
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

com essa peça uma purgação do terror e da comiseração” - o que faz lembrar
os tribunais sul-africanos de reconciliação idealizados pelo bispo Tutu que
visam à confissão e ao encontro catártico com o mal passado, sem, no entanto,
ter implicações propriamente penais. Essa obra de Dorfman vale para boa parte
da América Latina.

Você vai pagar, e é dobrado,/ Cada lágrima rolada/ Nesse meu penar.

Carlos Alberto Idoeta, em um artigo de 1995, recordou, dentro do debate


sobre a responsabilidade jurídica dos agentes do regime ditatorial, as palavras
de A condição humana, de Hannah Arendt, que afirmam que “os homens são
incapazes de perdoar o que não podem punir”.23 No campo da discussão sobre
os fatos ocorridos nas ditaduras civil-militares na América Latina não cabe
falar em perdão. Como notou Derrida em vários de seus textos, a justiça, a
anistia e, por outro lado, o perdão funcionam em registros diversos. Perdoar
tem a ver com dar um dom (isso vale também para outras línguas: pardon,
forgive, Vergehung). Trata-se de uma restituição, de uma volta a termos de
igualdade: diante da enormidade de certos crimes, isso é impossível. Como
nota ainda Derrida, a cena do perdão exige uma “solidão a dois”, um “face
a face”: nada disso pode ser desejado ou seria possível diante dos crimes em
questão aqui. A noção de crime contra a humanidade derivada do Tribunal
de Nuremberg e mesmo a da “Comissão de Verdade e Reconciliação” sul-
-africana não têm também nada em comum com o conceito de perdão.24 Caso
esse perdão fosse possível, quem pediria perdão a quem? A princípio, caberia
sempre às vítimas propô-lo. Mas quem o concedería? Pode-se perdoar no lugar
de pessoas que morreram? Assim como não se pode testemunhar no lugar de
um outro, também não se pode perdoar pelo outro. Assim como 0 testemunho,
o perdão liga-se a situações extremas: em ambos os casos, existe uma espécie
de impossibilidade a priori. Não se pode testemunhar totalmente a catástrofe
provocada pelos homens, o mal absoluto, assim como não é possível perdoar
esses fatos. Por outro lado, existem dispositivos jurídico-estatais que procuram
estabelecer certas modalidades (“impuras”) do perdão, tais como a graça e a
anistia.

213
ANISTIA E (in)jUSTIÇA NO BRASIL

O importante é ter claro que esses dispositivos são justamente os que


tornam explícito o quanto o estado de direito é tênue e vive normalmente à
custa de “exceções”. Ao decretar a anistia (no seu sentido de “esquecimento
oficial”, de “pôr a sujeira para debaixo do tapete”), o Estado revela-se como
cúmplice de crimes e de criminosos?5 A memória do mal é uma importante
contraparte da justiça, e sem esta, por sua vez (por mais imperfeita que ela seja),
o estado de direito e a democracia não podem se construir. Os antigos donos
do poder sempre declaram que essa memória do mal é apenas fruto do ódio,
da vontade de vingança. Mas justamente não se trata da lei do talião, do “olho
por olho, dente por dente”, porque estamos diante de crimes sem medida. Trata-
-se, antes, do reconhecimento do mal e do restabelecimento da verdade. Não
se pode falar de memória social e de democracia sem levar em conta o papel
da instância jurídica nesse trabalho de restabelecimento da verdade dos fatos.
Diante da retomada em boa parte da América Latina da questão dos crimes
cometidos nas últimas ditaduras militares, podemos perceber que se atingiu, no
início do século XXI, um novo momento nos debates sobre esse passado. Não
se coloca mais o tema da proximidade e da necessidade de se calar em troca da
democracia. Existe um clima interno e internacional (lembremos do caso de
Pinochet preso na Inglaterra em 1998) que indica claramente que já atingimos
um ponto no qual se pode, sim, enfrentar os crimes cometidos nesse passado
sem que isso signifique abandonar o projeto democrático. Na Alemanha, para
retomar a comparação, o Tribunal de Nuremberg pôde ocorrer já em 1945 por
conta dos aliados que o impuseram. Mas a própria sociedade alemã precisou
de décadas para poder encarar a questão das responsabilidades individuais.
Apenas na última década do século XX, ela começou a aceitar a culpa do seu
exército nas ações de extermínio na Europa Oriental. A Alemanha mostrou ser
possível esse enfrentamento do passado, apesar de todas as dificuldades que
esse trabalho de “perlaboração” do passado implica. Sem esse enfrentamento,
que deve se dar no registro da memória familiar, coletiva e social e que inclui
também necessariamente o enfrentamento jurídico dos crimes do passado, a
sociedade está condenada a repetir seus erros?6
Mas a memória pensada em sua chave política, jurídica e moral não pode
ocultar o fato de que ela é também memória antropológica. Nunca é demais
insistir na tese de que a luta pela justiça se dá em diferentes níveis, todos
distintos e ao mesmo tempo determinantes entre si: o da memória e da história

214
A VIRADA TESTE1MUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

da sociedade, o da memória de grupos sociais e o da memória dos familiares.


A luta de Antígona é tanto familiar como cívica. Do mesmo modo, no campo
histórico, a luta pela devolução dos corpos dos “desaparecidos” na ditadura, a
luta pela restituição da verdade e a luta pela justiça devem levar em conta esses
diversos níveis de relacionamento com o passado. Tratar -o desejo de saber
todos os fatos que cercaram a morte de um parente e o local de seu enterro
como um sentimento nascido do revanchismo ou do ódio é não entender
minimamente que toda nossa identidade, toda nossa memória social, passa por
nosso relacionamento com nossos antepassados. O núcleo cultural da memória
é o culto e o respeito para com os mortos. A memória do mal de quem perdeu um
familiar ou foi torturado é uma memória onipresente e aterrorizante. É papel
da sociedade ajudar esses indivíduos a tentar reconstruir suas vidas, e isso
depende tanto da restituição da verdade como da construção da justiça. Cabe
ao Estado abrir seus arquivos (incluindo os arquivos das Forças Armadas)
visando a essa busca da verdade. Como sabemos, infelizmente, a Comissão
Nacional da Verdade, em seus três anos de funcionamento, de novembro de 2011
a dezembro de 2014, não conseguiu romper o lacre desses arquivos. Apesar de
ter democratizado muitas informações sobre o período da ditadura que antes
eram restritas ao grupo de pesquisadores especialistas, não se deu com ela a
esperada virada mnemônica no sentido da implementação de um estado de
direito calcado nos direitos humanos. Esses direitos ainda são politizados no
Brasil, na medida em que se associa a eles uma ideia de “fraqueza” do Estado
e de ruptura de seu suposto “dever de punição”. Pelo contrário, muitos veem
como um dos efeitos da Comissão da Verdade o recrudescimento da direita
no país, a repolitização das Forças Armadas e o lançamento da candidatura
de Jair Bolsonaro a presidente. Evidentemente, não se pode ser monocausal
neste último ponto, mas a verdade é que essa volta à esfera pública brasileira
de militares saudosos dos tempos da ditadura não se deu até o estabelecimento
da CNV. O medo medular dos militares e de seus associados civis diante da
possibilidade de julgamentos (não previstos, de resto, na fundação da CNV)
levou a uma rearticulação no campo político desse grupo da caserna e caterva.
A onda mnemônica e a favor dos direitos humanos que se erguia no final do
século XX retraiu aos poucos no século XXI, diante do cenário de políticos
e políticas cada vez mais autoritários e antidemocráticos, como foi o caso
gritante do governo de Trump nos EUA (2016-2020), mas também de figuras

215
ANISTIA E (lN)jUSTIÇA NO BRASIL

como os atuais presidentes da Polônia, Andrzej Sebastian Duda, da Hungria,


János Áder, e da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, sem contar Vladimir
Putin, da Rússia, e os de uma série de países que nunca tiveram tradição
verdadeiramente democrática, como China, Indonésia e as Filipinas. Em
termos de políticas da memória, essa onda neoconservadora tende ao culto dos
“heróis nacionais” em lugar da preocupação em criar espaços de rememoração
para as vítimas de crimes contra a humanidade. Em 2020, em meio à onda de
ataques e derrubadas de monumentos em homenagem aos soldados e políticos
confederados nos EUA, desencadeada pelo brutal assassinato de George Floyd
(25/5/2020), Trump baixou um decreto, o “Executive Order on Building and
Rebuilding Monuments to American Heroes”, voltado à construção de um
gigantesco panteão em homenagem aos supostos heróis pátrios, em uma
resposta supremacista e brancocêntrica à onda de revisão crítica da história
norte-americana.
Da memória do mal praticado pelas ditaduras na América Latina, podemos
derivar tanto o dever de memória como o de reparação (impossível, mas mesmo
assim inescapável). Como vimos, não existe “arte do esquecimento”, por mais
que seja essa arte que os antigos donos do poder tentam inventar e praticar com
o desaparecimento de corpos e de arquivos. Por outro lado, existe uma arte da
memória, e essa, desde suas origens, tem como núcleo a tentativa de dar nome
aos mortos e de enterrá-los. Recordo a acima mencionada anedota em torno
do poeta Simônides de Ceos e do pugilista Skopas. Após um incidente na casa
deste último, o poeta associou o nome de cada um dos mortos ao local em que
eles foram encontrados mortos - como, hoje em dia, as equipes de medicina
forense fazem em vários países da América Latina e de outros continentes. Se
a mnemotécnica, em seu sentido clássico, caiu em desuso há alguns séculos,
por outro lado, esse procedimento de topografia do terror permanece central
na arte da memória contemporânea. Ele serve de antídoto aos negacionistas
que sempre estiveram e estarão de plantão quando fatos extremos acontecem.
Para concluir estas reflexões sobre a anistia como amnésia oficial e o dever
de memória, gostaria de tecer alguns comentários sobre os versos de uma
música de Chico Buarque que representam, de modo compacto e denso, muitos
aspectos da memória dos desaparecidos durante a ditadura de 1964-1985 no
Brasil. Refiro-me ao seu “Angélica” (de Chico Buarque e Miltinho, de 1977),27
inspirado no assassinato de Zuzu Angel (Zuleika Angel Jones), em 1976, por

216
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

membros do aparato de governo que queriam impedir a continuidade de suas


investigações sobre o paradeiro de seu filho (Stuart Edgart Angel Jones, raptado
e assassinado por agentes da ditadura). Não por acaso, esse episódio da história
da ditadura se tornou tão importante, tendo sido, inclusive, “popularizado”
a partir do filme de Sérgio Rezende.28 Zuzu representa ao' mesmo tempo o
desejo de restabelecimento da verdade, a determinação de reencontrar um
parente arbitrariamente raptado, torturado e assassinado e o peso terrível da
realidade do oblívio imposto pelas autoridades que, ao final, desaguou em um
novo assassinato, ou seja, o da própria Zuzu. É negado a ela o direito de enterrar
seu filho. Sua luta pela verdade confunde-se com a luta pelo corpo do filho.
Os desaparecimentos do corpo e da justiça misturam-se em sua história. Esse
caso revela ao mesmo tempo as práticas homicidas do Estado terrorista de
1964 e a tentativa de representar essa arbitrariedade. Zuzu, para fazer seu luto,
precisava, antes de mais nada, saber a história de seu filho, ver seu cadáver,
enterrá-lo, fazer com que a justiça se cumprisse. “Angélica” enfatiza o aspecto
repetitivo da memória do mal, que vive de observar uma ausência que não pode
ser sanada a não ser com a restituição do corpo. Na música, a repetição do verso
“Quem é essa mulher”, a volta recorrente do advérbio temporal “sempre” e a
imagem de um sino que invariavelmente dobra da mesma forma representam
essa característica da memória do mal como constante e reiterativa. A cena
desenhada é a da mãe que quer enterrar seu filho, dar uma moradia e paz para
seu corpo - requisito essencial para que ela mesma recupere a sua paz. Essa
mulher, visada pela pergunta repetida quatro vezes, é tanto Zuzu como as outras
mães de desaparecidos e, no limite, a sociedade brasileira órfã de seus filhos
desaparecidos (abandonados em valas comuns ou jogados nas profundezas dos
mares).29 A mãe na música quer “lembrar o tormento” que fez seu filho suspirar:
a narração dosfatos, a restituição da verdade, é uma etapa essencial no trabalho
de luto assim como nos processos de transição de regimes autoritários para
regimes democráticos. No fim, na última “estrofe”, a mãe quer cantar por seu
menino, que não pode cantar. Ela mesma se torna testemunha dessa história
que encerra em si o silêncio, o apagamento da verdade. Assim como a própria
música de Chico Buarque traz em si essa história perfurada, que não cessa de
voltar porque a justiça e o trabalho de memória ainda não foram feitos.30

217
ANISTIA E (IN)JUSTIÇA NO BRASIL

Notas

1
Teles, 2020, p. 275.
Benjamin, 1977; Agamben, 2004.
3
Derrida, 1994.
4
Com relação ao conceito de “por e dispor”, cf. meus comentários ao ensaio de Benjamim
sobre a critica da violência (Seligmann-Silva, 2007).
5
Comparato, 1995, p. 59.
6
Idem, ibidem.
7
Dallari, 1992, p. 32.
8
Idem, ibidem.
9
Cf. o artigo de Tercio Sampaio Ferraz Júnior, “Revisão para tudo ficar como está”, que
advoga que a anistia foi “irrestritamente geral”, defendendo a não conexidade entre os
crimes dos opositores ao regime e os de seus defensores; ct. o artigo de Hélio Bicudo e Flávia
Piovesan intitulado “Direito à verdade e à justiça” (ambos publicados na Folha de S.Paulo,
2/12/2006, p. A-3). Cf. ainda o artigo de Bicudo que já apontava para essa não conexidade
(Bicudo, 1995).
10
Folha de S.Paulo, 9/11/2006, p. A-9.
11
Idem, 22/11/2006, p. A-11.
12
Por outro lado, em várias ocasiões membros do aparelho repressivo da ditadura já
reconheceram a prática da tortura, como se pode ler, por exemplo, no livro de Hélio
Cordeiro intitulado Militares - confissões. Histórias secretas do Brasil (1998), analisado por
João Roberto Martins Filho (2001). Geisel, em uma declaração que ficou famosa, também
disse que “há circunstâncias em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura, para obter
determinadas confissões e, assim, evitar um mal maior!” (apud Martins Filho, 2001, p. 109).
Na Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial, falava-se também que em uma guerra tudo
é infernal, portanto não caberia a acusação de exagero por parte dos soldados. Da mesma
forma, nas décadas posteriores, aos poucos se reconheceram os crimes, mas mais raramente
os próprios criminosos de guerra.
13
Calveiro, 2013.
14
Folha de S.Paido, 28/11/2006, p. A-3.
15
Como escreveu Marta Nehring: “Quem foi torturado nunca esquece” (Nehring, 1999,
p. 126). Cf. também as observações de Jean Améry escritas nos anos 1960, retomando
sua experiência de torturado pela Gestapo após ter sido preso distribuindo propaganda
antinazista na Bélgica ocupada. Para ele, “a dor é a intensificação mais elevada de nossa
corporeidade [Kõrperlichkeit] que podemos pensar”; nela ocorre a redução à equação “corpo
= dor = morte” (Améry, 2002, p. 615). A situação da dor extrema gera uma distância com
o mundo, no sentido de seu constructo conceituai falsamente universal, e revela a única
verdade incontestável: “Tanto quanto permanece da experiência da tortura um saber que
vai além do mero pesadelo, é o de uma grande surpresa e de uma estranheza do mundo
que não pode ser compensada por qualquer comunicação humana posterior. Um estupor
acerca da existência do outro que se afirma sem-limites na tortura - e diante daquilo em
que nós mesmos podemos nos transformar: carne e morte. [...] A ignomínia de uma tal
aniquilação não se deixa apagar. Quem foi martirizado permanece, desarmado, entregue
ao medo. É ele que a partir de então detém o cetro” (idem, p. 622).
16
“Anistia e os ossos de d. Pedro”. Folha de S.Paulo, 17/11/2006, p. A-2.
17
Rosencof, 2013, s./p.

218
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

18 A partir dessa imagem que criei aqui, um país cuja população vive em um aparente paraíso
tropical, quando está chapinhando na lama sanguinolenta de seu passado violento não
elaborado, não tenho como não remeter à poderosa obra do artista Gilvan Barreto Postcards
from Brazil. Cicatrizes da paisagem (2016-2020). Nessa obra, o artista recoleciona imagens
de propaganda da empresa Embratur, criada sob a ditadura (em 1966) com a intenção
de propagandear o idílio tropical brasileiro, sendo que ele faz pequenos recortes nessas
imagens e legenda-as com descrições de chacinas e de outros crimes cometidos pelos
agentes do governo brasileiro durante a ditadura de 1964-1985, tendo como cenário essas
paisagens “paradisíacas”.
19 Analisando a anistia de 1979, Daniel Aarão Reis Filho observou que ela gerou ao menos três
“deslocamentos de sentido”: (1) apagou-se da memória a diferença entre aqueles que lutavam
por uma revolução e os que visavam à restituição da democracia. Os revolucionários
“não tinham mesmo propósitos ou princípios democráticos” (Reis Filho, 1999, p. 134); (2)
apagou-se da memória o fato de que o regime ditatorial teve um apoio entusiástico de várias
camadas da sociedade. Aos poucos, todos foram parecendo como parte do movimento pela
democracia. Diga-se de passagem, na França também, após a guerra, era como se todos
tivessem.sido membros da resistência antinazista; (3) por fim, ele destaca que a tese da
anistia recíproca subverteu os ideais que levaram, no início dos anos 1970, a se levantar a
bandeira pela anistia. Esta veio, por fim, parcial e “recíproca”.
20 Escuela Mecanica de la Armada foi o maior dos 520 campos clandestinos de detenção que
atuaram durante a ditadura no serviço de aterrorizar e eliminar os oponentes do regime
ditatorial argentino. Cerca de cinco mil dessas pessoas passaram pela Esma.
21 Dorfman, 1992, p. 63. Poucas páginas antes, lemos, no texto da peça, a seguinte fala do
mesmo personagem, marido da ex-torturada Paulina, dirigindo-se ao algoz: “Eu acho que
entendo a necessidade de Paulina. Coincide com a necessidade que o país inteiro tem. É a
necessidade de pôr em palavras o que aconteceu conosco” (idem, p. 59). Dorfman, com essa
peça, que elegeu personagens paradigmáticos da cena histórica - e dramática: a tragédia
nas suas origens tinha três atores -, expressa a necessidade de um acerto com um passado
onipresente nos países da América Latina pós-ditadura.
22 Dorfman, 1992, p. 87.
23 Arendt, apud Idoeta, 1995, p. 76.
24 Derrida, 2005a, p. 19. Para ser mais exato, é necessário lembrar que a expressão “crime
contra a humanidade” já havia sido cunhada após a Primeira Guerra Mundial para se referir
ao primeiro grande genocídio do século XX, o dos armênios, perpetrado pelos turcos. Já
o conceito de genocídio foi criado por Rafael Lemkin durante a Segunda Guerra Mundial.
Nos tribunais de Nuremberg, a maior parte das acusações não se referia ao genocídio dos
judeus; no entanto, foi no seu âmbito que se tentou pela primeira vez “definir e punir crimes
contra a humanidade sob leis internacionais e estabelecer certas ações como criminosas,
independentemente das leis do país onde foram praticadas. Mais avanços no sentido de
colocar crimes contra a humanidade e direitos civis numa posição de proeminência nas
leis internacionais foram feitos em 1948, quando as Nações Unidas aprovaram a Convenção
de Genocídio e a Declaração dos Direitos Humanos” (Bartov; Grossmann & Nolan, 2005,
p. 13. Grifos meus).
2j Nietzsche, na sua Genealogia da moral, pensou a soberania como um conceito-limite. Para
ele, o todo-poderoso (Mãchtigsten) é o único capaz de decretar o perdão (Nietzsche, 1988b,
p, 309). Nesse ato altruísta ele exerce e impõe seu poder, salvando a vida matável. Esse
fato aponta para o “ser-excepcional" do estado de direito, ou seja, para a verdade de que o
estado de exceção habita o interior do estado de direito e não lhe é estranho. Mais adiante,

219
ANISTIA E (lN)jUSTIÇA NO BRASIL

na mesma obra, Nietzsche formula: “É preciso mesmo admitir algo ainda mais grave: que,
do mais alto ponto de vista biológico, os estados de direito não podem senão ser estados de
exceção [Ausnahme-Zustãndé], enquanto restrições parciais da vontade de vida que visa ao
poder, a cujos fins gerais se subordinam enquanto meios particulares: a saber, como meios
para criar maiores unidades de poder” (Nietzsche, 1998, p. 65, correspondendo a Nietzsche,
1988b, p. 312 e ss.).
26 Cf. Freud, 1914.
27 Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho
Que morama escuridão do mar
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento?
Só queria lembrar 0 tormento
Que fez meu filho suspirar
Quem é essa mulher
Que canta sempre 0 mesmo arranjo?
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar
Quem é essa mulher
Que canta como dobra um sino?
Queria cantar por meu menino
Que ele não pode mais cantar.
28 Sérgio Rezende. Zuzu Angel. Filme baseado na história real da estilista mineira Zuleika
Angel Jones (1921-1976), 2006.
29 É importante destacar que, em 2014, foi fundado na Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp) o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), coordenado pelo
professor Edson Luís de Almeida Teles, voltado a pesquisas nas áreas dos direitos humanos
e que tem como uma de suas tarefas centrais o trabalho de reconhecimento e conservação
de ossadas de mortos não identificados da época da ditadura de 1964-1985. No site do Caaf
lemos sobre especificamente o “Grupo de Trabalho Perus”, que leva a cabo essa tarefa: “O
Grupo de Trabalho Perus foi criado em 2014 com o objetivo de fazer a análise das 1.049
caixas com remanescentes humanos que foram encontrados na Vala de Perus. O trabalho
visa identificar 41 desaparecidos políticos cujas histórias indicam que foram colocados
nesse local, nos anos 70, como modo de encobrir as graves violações de direitos humanos
dos governos militares. Atualmente no Caaf acontecem os processos de limpeza dos
remanescentes humanos, análise antropológica e coleta de amostras ósseas para exames
genéticos. Com uma equipe multidisciplinar, temos dialogado com uma postura inclusiva
muito presente na Antropologia Forense Latino-Americana. Neste projeto buscamos por
pessoas desaparecidas, buscamos histórias, memórias, dignidade. Buscamos reconstruir
um pedaço da história de nosso passado recente. Para que não se esqueça. Para que nunca
mais aconteça” (Disponível em <https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/projetos/grupo-de-
-trabalho-perus>. Acesso em 24/3/2021. Desnecessário dizer que, sob o governo Bolsonaro,
essa instituição tem sofrido cortes de verba e todo tipo de perseguição.
30 É interessante confrontar essa letra de Chico Buarque com o poema de Paul Celan
“Nãchtlich Geschürzt” (“De noite arrepanhados”, na tradução de João Barrento). Celan tem
uma poética derivada, em grande parte, de sua experiência de sobrevivente das atrocidades
do nazismo, sendo que ele perdera seus pais em campos de concentração. A diferença entre

220
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

as poéticas desses dois poetas é clara: Buarque cria um poema com uma temporalidade
estendida e não concentrada e espacializada, como Celan. Em Buarque, os espaços privado
e público encontram-se em um drama político; já em Celan, a poesia tende para uma
mise en abytne que nos faz oscilar entre a referência histórica e a força de suas imagens
poéticas. Mas o confronto é interessante, na medida em que colocamos lado a lado duas
potentes artes da memória poéticas de duas barbáries do século XX. Ambos os poetas
buscam criar pelas palavras um espaço para os seus “desaparecidos”, ambos podem ser
incluídos na literatura do trauma que se desenvolveu no século XX em função de suas
inúmeras catástrofes (cf. “Literatura e trauma: um novo paradigma”, M. Seligmann-Silva,
2018, pp. 63-80): “De noite, arrepanhados/ os lábios das flores,/ cruzados e entrelaçados/
os fustes dos abetos,/ encanecido o musgo, estremecida a pedra,/ desperta para o voo
infinito/ as gralhas sobre o glaciar:// estas são as paragens onde/ descansam aqueles que
surpreendemos:// eles não irão nomear a hora,/ nem contar os flocos,/ nem seguir as águas
até o açude.// Estão separados no mundo./ cada um com a sua noite./ cada um com a sua
morte,/ rudes, de cabeça descoberta, cobertos de geada/ de pertos e longes.// Pagam a culpa
que animou a sua origem,/ pagam-na com uma palavra/ que existe injustamente, como
o verão.// Uma palavra - bem sabes:/ um cadáver.// Vamos lavá-lo,/ vamos penteá-lo,/
vamos voltar-lhe os olhos/ para o céu” (“Nãchtlich geschürzt/ die Lippen der Blumen,/
gekreuzt und verschrãnkt/ die Schãfte der Fichten,/ ergraut das Moos, erschüttert der
Stein,/ erwacht zum unendlichen Fluge/ die Dohlen über dem Gletscher:// dies ist die
Gegend, wo/ rasten, die wir ereilt:// sie werden die Stunde nicht nennen,/ die Flocken nicht
zãhlen,/ den Wassern nicht folgen ans Wehr.// Sie stehen getrennt in derWelt,/ einjeglicher
bei seiner Nacht,/ ein jeglicher bei seinem Tode,/ unwirsch, barhaupt, bereift/ von Nahem
und Fernem.// Sie tragen die Schuld ab, die ihren Ursprung beseelte,/ sie tragen sie ab an
ein Wort,/ das zu Unrecht besteht, wie der Sommer.// Ein Wort - du weisst:/ eine Leiche.//
Lass uns sie waschen,/ lass uns sie kãmmen,/ lass uns ihr Aug/ himmelwãrts wenden")
(Celan, 1996, p. 56 e ss.).
8

DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO:
PENSANDO UMA ESCRITA DA HISTÓRIA
CRÍTICA COMO RESISTÊNCIA AO APAGAMENTO

Walter Benjamin, desde seu ensaio sobre o surrealismo, de 1929,


esteve ocupado com o projeto de “mobilizar para a revolução as forças da
embriaguez”.* Tratava-se daquilo que ele denominou, na linha do surrealista
Pierre Naville,2 “organização do pessimismo”.3 Nada mais atual. A tarefa que
ele se colocava era a de alterar radicalmente a relação entre a política e a moral
a partir dessa mobilização. Benjamin adere ao que acredita ser a alternativa
dada pelos surrealistas. Nessa visão, em oposição ao otimismo burguês da
social-democracia e ao “arcabouço imagético” dos seus poetas, prega-se um
pessimismo de princípio como guia para a mudança. E, sobretudo: trata-se de
uma clara consciência de que o único “avanço” alcançável no atual modelo
capitalista é o da técnica que leva à destruição. Também essa ideia é luminar
hoje, nestes tempos de nuvens negras provocadas pela queimada dos biomas da
Amazônia e do Pantanal. Como vimos no início deste livro, segundo Benjamin,
para organizar o pessimismo, seria necessário “simplesmente extirpar a
metáfora moral da esfera da política, e descobrir no espaço da ação política
0 espaço completo da imagem [den hundertprozentigen Bildraum]".’ Ou seja,
tratava-se e trata-se, ontem como hoje, de reconhecer na política voltada para
o moralismo, para a “luta contra os corruptos”, para a higiene que eliminaria
os “esquerdistas”, a mais clara expressão do fascismo.
Benjamin formula aqui o embrião de uma técnica do artista (que vale
também para o intelectual) que consiste em extrair da ação um novo e poderoso
espaço de imagem, Bildraum, correspondente a um mundo “em sua atualidade
completa e multifacetada” que leva a uma destruição da imagem do indivíduo.
Ele denomina esse processo de “destruição dialética”. É essa destruição mesma,
que garante o novo espaço de imagem, Bildraum, que ele descreve de modo mais

223
DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO

concreto como um “espaço de corpo”, Leibraum, que também tem um sentido


coletivo nesse autor: “Também o coletivo é corpóreo”.5 Assim, ele reivindica
um novo materialismo antropológico, inspirado nos surrealistas e descendente
de autores queridos seus, como Hebel, Georg Büchner, Nietzsche e Rimbaud.
Nesse materialismo é o espaço da imagem que permite uma ação efetiva no
presente. Como produzir a destruição dialética das falsas totalidades através de
obras que apresentem o presente “em sua atualidade completa e multifacetada”?
Como extirpar a metáfora moral da esfera política? Trata-se de uma guerra de
imagens que incidem sobre nossos corpos e os dominam. Saber organizar o
pessimismo construindo um outro campo imagético como espaço corpóreo é uma
das tarefas principais da cultura hoje. Ela se tornou espaço de resistência - e
por isso está sendo, como à época de Benjamin, perseguida e tentativamente
calada e destruída por um governo abertamente fascista.
Para pensar esse panorama que coloca as ciências humanas diante dos
desafios do século XXI, proponho refletir sobre algumas questões que têm
pontuado sistematicamente nossa vida política nos últimos tempos e que dizem
respeito a essa resistência no campo cultural. Para essas reflexões, vou me
basear sobretudo em duas obras recentemente publicadas, uma coletânea de
ensaios editada na Argentina e um romance brasileiro.

***

Neste momento em que lembramos no Brasil dos 40 anos da Lei de


Anistia,6 é fundamental recordar o aporte das pesquisas acadêmicas. Essas
pesquisas servem de contrapeso por se inscreverem justamente a contrapelo
de novas e poderosas ondas revisionistas e negacionistas que se articulam na
Argentina, desde 2015, e, no Brasil, sobretudo desde o ano passado e neste ano
de 2019. Nossa situação política atual teve a sua pedra de toque no revisionismo
negacionista. Essa pedra foi lançada como base de campanha já durante a
votação do impeachment na Câmara dos Deputados.7 A anistia, como vimos,
foi associada no Brasil a um bloqueio do campo jurídico. Trata-se, é claro, de
um bloqueio político, de certo modo metajurídico, uma vez que, sobretudo
desde que vivemos sob a égide da Constituição de 1988, nada justifica essa
associação entre anistia e suspensão de direitos inalienáveis, indivisíveis e
universais, como são os direitos à verdade, à memória e à justiça. O estado de

224
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

exceção, que é radicalizado nos momentos em que o país vive uma ditadura,
quando efetivamente se declara um estado de sítio e se suspende o habeas
corpus, é mantido no Brasil na área dos direitos humanos mesmo após o fim
oficial da ditadura, uma vez que, no campo da memória, predominam quer a
amnésia, quer o edulcorar do período ditatorial; no campo áa verdade, a nossa
Comissão Nacional da Verdade não teve a força necessária para se impor e
efetivamente aprofundar mais a verdade sobre aquele período; e, por fim, no
campo jurídico, tampouco se suspendeu o estado de exceção no que tange
ao período da ditadura. Corpos ainda estão desaparecidos; processos não se
dão; criminosos, terroristas de estado estão livres e são alçados à categoria de
modelos morais.
Contra essa política do esquecimento e do “memoricídio”, ou do
“inexistencialismo ”, para falarmos com Vidal-Naquet,8 e no contexto dessa
guerra de imagens, que infelizmente, no Brasil, até agora foi vencida pelos
algozes e seus associados, temos preciosos livros que se somam a uma
importante bibliografia sobre esse período e sobre a sua memória. Recordo,
por exemplo, três livros recentemente publicados e que tratam do tema: de
Desirée de Lemos Azevedo, Ausências incorporadas: etnografiaentre familiares
de mortos e desaparecidos políticos no Brasil;9 de Liliana Sanjurjo, Sangue,
identidade e verdade: memórias sobre o passado ditatorial na Argentina;'0 e de
Danielle Tega, Tempos de dizer, tempos de escutar: testemunhos de mulheres
no Brasil e na Argentina." Esses três livros se originam de teses de doutorado
defendidas nos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. O foco das autoras é a
memória, sobretudo a memória testemunhai: Desirée se volta para a etnografia
com os familiares de mortos e desaparecidos no Brasil, analisando a construção
dessa categoria social de familiares, suas narrativas e performances de grupo.
Liliana se debruça, especificamente no caso argentino, sobre a relação entre
identidade biológica e identidade política, notando como, a partir do caso dos
filhos de desaparecidos, o DNA torna-se uma poderosa instituição do político
e da política. Já Daniella tem um recorte que une estudos de testemunho da
ditadura com estudos de gênero: ela analisa as narrativas de mulheres no Brasil
e na Argentina no contexto das lutas pelos direitos humanos.
í Sabemos que o Brasil é um país onde os direitos humanos não se
enraizaram como parte da política de Estado. Aqui, políticos no poder falam

225
DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO

de modo abominávelde “direitos humanos para humanos direitos”, lema esse


que poderia estar inscrito na portada de qualquer campo de extermínio, mas
nunca poderia ser usado como mote em um país supostamente democrático
e que vive sob a égide do estado de direito. Esse mote repete o lema colonial
que transformava os colonizados e escravizados em pessoas sub-humanas,
para excluí-las da esfera do direito e autorizar a violência colonial.12 Enfim,
a assertiva “direitos humanos para humanos direitos” permite transformar
o país eip um campo de extermínio: de mulheres, de LGBTs, de pobres,
de jornalistas, de pessoas engajadas nas lutas pelos direitos humanos, de
aposentados, de negros, de favelados etc. Portanto, Desirée e Danielle, que
tratam da memória da ditadura neste país, têm de lidar com o fato de que essa
memória e as lutas por justiça e verdade tendem a ser agenciadas sobretudo e
quase que exclusivamente por familiares de mortos e desaparecidos ao lado de
sobreviventes. Ou seja, sem a ruptura do estado de exceção na memória e na
justiça, dá-se esse enclausuramento da luta pelos direitos em uma campânula.
Como enfatiza Danielle, o testemunho necessita de ouvidos para ocorrer. Sem
uma esfera pública aberta ao evento testemunhai, o testemunho não se dá de
modo integral. A violência ditatorial, no Brasil, extrapola o período ditatorial,
pois ela se faz valer até hoje, 40 anos após a anistia e 34 anos após o final oficial
da ditadura. Essa violência não é “apenas” simbólica e jurídica, pois o fato de as
práticas de tortura e de desaparecimento continuarem a persistir aqui também
está associado à ausência de elaboração simbólica e jurídica dos crimes daquele
período. Tudo o que fizemos até hoje nesse campo foi insuficiente.
Nesse sentido, permito-me agora concentrar na leitura de outro
interessantíssimo livro. Trata-se do volume organizado por Fabiana Rousseaux
e Stella Segado intitulado Territórios, escriturasy destinos de la memória.13Essa
obra é interessante justamente pelo encontro nela das urgências derivadas do
neoliberalismo radical que vivemos hoje, ao lado da tarefa de rememoração,
de justiça e verdade com relação ao período da ditadura. Para nós, brasileiros,
é muito importante esse confronto com a experiência bastante diversa de
nossos vizinhos, especialmente com a paradigmática experiência argentina.
Nós muitas vezes invejamos até os seus problemas... Pois, se eles, desde 2015,
sofrem com um governo que dá eco a idéias revisionistas, esse governo, por sua
vez, tem de enfrentar uma sociedade eivada de cultura da memória, em cujas
cidades memoriais e em cujos espaços de recordação criou uma cultura dos

226
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

direitos humanos, que só podemos olhar com admiração. Mas, por outro lado,
o desafio neoliberal (com sua necropolítica, sua política da amnésia quando se
trata dos crimes contra a humanidade) é o deles (sob o governo Macri, 2015-
-2019) e é o nosso também. Assim, Jorge Alemán, no seu prólogo a esse livro,
recorda que nossos estados neoliberais implantam uma política de morte que
entroniza o esquecimento matando as populações duas vezes, eliminando-
-as e apagando suas histórias. Os “dispositivos neoliberais de produção de
subjetividade”14 são totalmente alheios à lógica do testemunho, ao double bind
de sua necessidade e de sua impossibilidade de inscrição. Em vez das imagens
precárias típicas da inscrição testemunhai do terror, o sistema reduz tudo a
números. A operação seguinte é negar esses próprios números. Mas Jorge
Alemán destaca também o local excepcional do qual a Argentina parte nessa
que eu gostaria de chamar agora de era dos negacionismos. Ela deu lugar a um
“sujeito político sem precedentes”15 a partir das lutas pelos direitos humanos.
Para pensar essa memória e o testemunho na era neoliberal, as organizadoras
enfatizam, na abertura do livro, que ele leva a marca da interdisciplinaridade:
elas procuraram fazer um trabalho “entre as dimensões continentes do
testemunho e dos arquivos, no seu cruzamento interdiscursivo com a
psicanálise, as políticas públicas de memória, a antropologia, a arquivística, a
teoria crítica, o direito, as manifestações artísticas, entre outras”.16
No início do primeiro capítulo, “Território da palavra. O sacro e a ética
do silêncio”, Silvia Delfino já coloca o desafio de pensar o testemunho, o
território da palavra, os “modos como a topologia do terror se imprime no
corpo”, em meio às “lutas coletivas de resistência contra o silenciamento e,
de modo correlato, às lutas pelo ato de testemunhar”.17 Ela destaca, nesse
sentido, o trabalho do Centro de Assistência às Vítimas de Violações de
Direitos Humanos “Dr. Fernando Ulloa”, da Secretaria de Direitos Humanos
do Ministério da Justiça, que teve como diretora entre 2010 e 2014 Fabiana
Rousseaux. O trabalho desse centro extrapolou o delicado cuidado das vítimas
de delitos de lesa-humanidade, na medida em que percebeu a relação desse
trabalho com os processos desencadeados no campo jurídico e, mais além,
articulando-o à “imperiosa necessidade de instalar um debate público acerca
das consequências do terror de Estado não como fatos do passado, nem
como um problema das vítimas, mas como de toda a sociedade presente”.18
É justamente esse passo que se faz necessário no Brasil até hoje, já que, em

227
DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO

que pese a importância da Clínica do Testemunho*9 entre nós, não pudemos


dar esses outros dois passos em direção à articulação com as lutas no campo
jurídico e na implementação de um debate generalizado na sociedade sobre
o tema dos direitos humanos (DDHH). Passou-se, nessa clínica dirigida por
Fabiana Rousseaux, da narrativa que auxiliou na reestruturação de vidas, para
a construção de uma memória coletiva de uma experiência compartilhada.
Nesse sentido, a psicanálise pôde contribuir na construção de uma sociedade
mais calcada nos direitos humanos, derivada da consciência da coparticipação
da experiência das vítimas. O testemunho psicanalítico também se enredou
ao testemunho jurídico, impondo uma pluralidade de narrativas em vez das
versões singulares e monolíticas prenhes de esquecimentos que o Estado muitas
vezes tenta impor à sociedade.
Fabiana Rousseaux, no seu ensaio “30.000? Ni idea! El Estado y lo sacro”,
parte do fato de que um objeto até então tratado como sagrado, os direitos
humanos, estava sendo tocado pelo Estado e, portanto, violado. Não podemos
esquecer que o governo Macri tivera início em dezembro de 2015. Em agosto
do ano seguinte, o presidente afirmou em uma entrevista: “Não tenho ideia,
não sei se [...] foram 9.000 ou 30.000 ou os que estão anotados no muro”,20
em uma referência ão número de mortos e desaparecidos na ditadura de
1976-1983 e ao muro com a inscrição com os nomes dessas vítimas, no Parque
de la Memória em Buenos Aires (que inclui também vítimas do período de
1969 a 1976). Fabiana percebe que se dava então algo novo. Se o sagrado está
associado ao estabelecimento de fronteiras em torno do intocável, esse intocável
fora então ameaçado e, ela acrescenta, “quem toca as bordas [do sagrado] se
torna obsceno”21 O violador da proibição torna-se ele mesmo portador de uma
mácula. “O governo argentino atual [Macri]”, ela escreveu, “deu mostras de
sobra quanto ao fato de estar disposto a tocar o nó da dor traumática inscrita no
tecido social”.22 O governo retomava o discurso dos “dois demônios” rebaixando
as vítimas e incriminando-as. Governos neoliberais radicais implantam uma
necropolítica que se volta contra o passado, o presente e que tolhe o futuro.
Os negacionismos e o memoricídio são parte essencial da necropolítica: para
eliminar corpos hoje é necessário ter apagado os rastros dos assassinatos de
ontem. Todo genocídio é intrinsecamente negacionista. Mas, no caso argentino,
o tema dos desaparecidos alcançou um patamar distinto. Esse termo, como
escreve Fabiana, “fundou uma ‘neológica’ derivada de uma nova retórica

228
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

social construída pelas e pelos sobreviventes, pelas Madres e Abuelas da Plaza


de Mayo”.23 Desaparecidos tornou-se uma nova categoria e, paradoxalmente,
“converte-se em uma presença plena”.24 O governo de Nestor Kirchner (2003-
-2007) não apenas possibilitou levar adiante os processos jurídicos, como, nesse
contexto, deu uma dignidade ao testemunho nunca antes alcançada. A palavra
testemunhai foi reconhecida em seu “estatuto de verdade”.25 Essa palavra
também sustentou a criação de um sujeito político dos direitos humanos.
Nesse campo aberto pela palavra testemunhai, as experiências traumáticas
puderam ser (tentativamente) elaboradas. A representação dos delitos de lesa-
-humanidade encontrou caminhos para a sua concretização. A tradução do
que parecia intraduzível foi se dando, de modo processual e aberto, sem nunca
se fechar, mas o processo se deu. No período de Menem, as primeiras leis de
reparação ainda deixavam as vítimas sob suspeita. Elas tinham que trazer as
provas do delito - como até pouco tempo era o caso no sistema brasileiro de
reparação, ao menos enquanto funcionou. Mas, a partir de 2006, ocorreram na
Argentina mais de 180 julgamentos envolvendo a responsabilidade do Estado
nos crimes de lesa-humanidade. Nesse contexto surge uma cultura dos direitos
humanos que penetra as ações de Estado. Já com Macri ocorre uma reversão
desse processo. Ao pôr em questão o número de vítimas, ele realçou a sua
atitude revisionista e negacionista. A burocracia de Estado inicia um processo
de criminalização das vítimas. Faz-se alusão a supostas somas avultantes pagas
como indenização; fala-se em “curral dos direitos humanos”.26 Essa verdadeira
avalanche de ataques à cultura dos direitos humanos se deu, no entanto,
em um país que construíra novos sujeitos políticos calcados na experiência
coletiva da rememoração e da luta pela verdade e pela justiça. Fabiana nota
que, diferentemente do Brasil, em que pesem nossa CNV e a Comissão de
Anistia, na Argentina desenvolveu-se “a ideia de um sujeito político derivado
de modo direto do campo dos direitos humanos e articulado fortemente com
as políticas de Estado”.27
A autora destaca o papel da criação, em 2006, do Plano Nacional de
Acompanhamento a Testemunhas e Querelantes Vítimas do Terrorismo de
Estado. A testemunha passou a ser vista como uma figura-chave na sociedade.
Ao contrário do paradigma jurídico da testemunha como portadora “objetiva”
(no sentido positivista do termo) da realidade, a sociedade teria se aberto para a
verdade do elemento subjetivo do testemunho: as suas faltas, os esquecimentos,

229
DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO

os atos falhos, como na psicanálise, são reconhecidos como momentos de


verdade, de uma certa lucidez, apesar de tudo. A reparação atingiu, assim, um
novo significado. Ela mudou os conceitos de memória, justiça e verdade, na
medida em que aceitou os sujeitos políticos como sujeitos de linguagem pelos
quais o inconsciente se manifesta. Muito além da impossível monetarização da
dor, tratou-se de construir uma política da dor calcada na ética e na dignidade.
As testemunhas enunciavam o que ocorrera a um “nós” construído no próprio
ato testemunhai. Não se tratava mais da impossível factografia positivista,
mas sim de dar voz a uma sociedade marcada por dezenas de milhares de
desaparições, por apropriações, por “corpos vivos com identidades falsificadas
e corpos mortos insepultos”.18
Com razão, Fabiana destaca a importância simbólica e política do número
30.000.

Em nosso país “os 30.000” refletem não apenas o “nome” da desaparição e do


extermínio, mas antes e sobretudo a clandestinização dos crimes cometidos. Essa
cifra implica a nível simbólico muitas coisas, e, mais que um número, estamos
diante de um in-número, ou seja, daquilo que não pode ser reduzido a um fato
contável. [...] significa que a desaparição (não a morte, mas a desaparição) não é
passível de ser medida. Não podemos medir a desaparição de pessoas se a morte
foi abolida e ainda não podemos “escrevê-la”. É algo impossível.19

Também o ex-prisioneiro, o ex-desaparecido, faz parte dessa cifra; afinal,


“se é um ex-desaparecido, como definir essa temporalidade? Existe uma
temporalidade para essa experiência?”, pergunta-se Fabiana.30
Impossível resumir aqui os demais textos e debates dessa obra essencial.
Victoria Basualdo, por exemplo, traz o tema extremamente atual da participação
de empresários e da utilização de estruturas de empresas durante a ditadura
argentina. Esse ponto é central para mostrar que as ditaduras - com sua
violência genocidária, seu desejo de submissão dos trabalhadores e de redução
do trabalho à categoria do trabalho escravo - está diretamente ligada a projetos
econômico-políticos. As ditaduras são órgãos da bionecropolítica.
Ileana Arduino destaca justamente dois alvos dessa necropolítica: os
jovens e os migrantes. A precarização como parte da política de Estado leva à
substituição do estado social pelo estado repressivo que funciona pelas políticas
do medo. Ela destaca também como as políticas de segurança estabelecem

2-30
A VIRADA TESTEMUNHAI E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

uma política punitiva, uma verdadeira geopolítica do extermínio. No Brasil,


vale lembrar, não só nossas favelas e periferias são parte dessa geopolítica
(lembremos da ocupação das “comunidades” do Rio com tropas do exército,
comandadas pelo general Walter Braga Netto, indicado em 29/3/2021 como
ministro da Defesa e, um ano depois, exonerado para poder Concorrer a cargo
público, mas imediatamente nomeado assessor especial do gabinete pessoal do
presidente da República), mas também populações indígenas e ribeirinhas, que,
não por acaso, são também as maiores vítimas dos crimes socioambientais, o
chamado racismo ambiental. A política transforma-se, com base no fascismo
territorial, em guerra de extermínio. A política de combate às drogas revela-se
como política de assassinato das populações pobres, negras e precarizadas.
Coincidentemente ou não, as leis antiterrorismo da Argentina e do Brasil são
da mesma época, de 2016. Lá, como aqui, criminaliza-se a população excluída
do neoliberalismo na mesma medida em que se desmontam as redes de controle
da criminalidade no campo financeiro. Os dois primeiros anos do governo
Bolsonaro aprofundaram esse modelo, diante também da necessidade do
presidente de proteger a sua família de investigações por parte do Judiciário e
da Polícia Federal.

***

Passemos ao prometido comentário de um romance. Bernardo Kucinski


publicou recentemente (em junho de 2019) um livro, pela editora Alameda,
com o título sugestivo de A Nova Ordem. Na ficha catalográfica, a obra é
tipificada com as seguintes palavras-chave: “1. Ficção brasileira. 2. Distopia.
3. Ficção Política”. Para os leitores de Kucinski, ao menos desde seu K., de
2011, que foi publicado como “romance”, já está claro que, novamente, nessa
obra recém-publicada também estamos diante de um jogo irônico baseado
no uso da ficção. A capa, com o título A Nova Ordem estampado sobriamente
sobre uma ilustração de Enio Squeíf retratando um militar de modo caricato,
na medida em que é colocada como a porta de entrada para uma obra de
“ficção”, já indica que estamos no campo das lutas políticas, como os outros
dois termos da catalogação o ratificam: distopia e ficção política. No Brasil,
ao.,'que tudo indica, essas ironias com o real costumam não ser facilmente
aceitas, ou pelo menos o público tem-se mostrado pouco aberto a elas. Talvez

231
DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO

pelo fato de vivermos uma situação política para lá de complicada, exige-se


uma definição, de resto impossível, entre o que seria ficção e o que se espera de
um certo realismo factográfico evidentemente impossível de existir. Sofremos
demais com a história e queremos que exista clareza onde sabemos imperar a
ambiguidade. Não existem fronteiras claras entre a ficção e o dito relato sério,
mesmo porque a ficção é séria e, neste caso específico, seriíssima - em que pese
toda a sua ironia. Se, com Oswald, “a alegria é a prova dos nove”, aqui essa
alegria está transformada em ironia sarcástica. Com Benjamin, vemos aqui
substanciado o mencionado pessimismo radical como estratégia política. Por
outro lado, o dito relato sério de modo algum está isento da fictio.
Kucinski se defrontou e defronta ainda com as aventuras da recepção de
seu K„ talvez o melhor romance já escrito sobre o período da ditadura de 1964-
-1985. A metarreflexão em Kucinski, um autor que se iniciou na ficção apenas
aos 74 anos, é onipresente. Sua veia de jornalista contamina suas construções
literárias, mas, entre outros motivos por conta desse elemento profundamente
irônico e autorreflexivo, seus textos são bem diversos dos de outros vários
jornalistas e documentaristas que se debruçaram sobre a época da ditadura,
fato em si digno de nota, indo de Antônio Callado, Carlos Heitor Cony, Paulo
Francis, Renato Tapajós e Gabeira a Urariano Mota, entre outros. Temos que
ter claro que, quanto mais a violência determina a produção de uma obra, seja
por sua temática, pelas experiências pretéritas do autor ou pelo ambiente no
qual ele escreve, tanto mais o teor testemunhai se manifestará, sob as mais
diversas formas. Assim, em Os visitantes: novela, de 2016, como o título indica,
Kucinski novamente se divertiu aprofundando esse jogo entre o literário e
nosso “mundinho real”. Essa obra de 2016 é composta de 12 capítulos que
narram, de modo escarnecido e sarcástico, as confusões de leitores com relação
ao seu K. Mutatis mutandis, essa obra de Kucinski, que revisita seu primeiro
romance, lembra a obra de Primo Levi Os afogados e os sobreviventes, de 1986,
na qual o autor revisitou seu testemunho clássico É isto um homem?, de 1947.
Ambos os autores voltam-se para os leitores de suas respectivas obras com alto
teor testemunhai e procuram responder às provocações e aos “deslizes” desses
leitores. Mas Kucinski, diferentemente de Levi, que optou pelo gênero ensaio,
fez sua resposta na chave (irônica, insisto) do romance. De um modo geral,
os leitores são retratados como sendo ineptos que tomam o mote que abria
o K. na sua primeira edição, ou seja, a formulação tópica “Tudo neste livro
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

é invenção, mas quase tudo aconteceu”,31 de modo equivocado, invertendo,


tomando a invenção pelo ocorrido e o ocorrido pela ficção. Não por acaso, no
capítulo “Sangue no escorredor de pratos”, o autor refere-se ao livro de Zvi
Kolitz intitulado Yossel Rakover dirige-se a Deus. Nesse ponto, a metanarrativa
engolfa e revela a sua intertextualidade: com textos e com a história e seus
traços.
Vale a pena recordar rapidamente do caso Kolitz. Em 25 de setembro de
1946, foi publicado no Yiddishe Zeitung, de Buenos Aires, um texto denominado
“Jossl Rakowers Wendung zu Gott” (“Yossel Rakover dirige-se a Deus”), de
autoria de Zvi Kolitz, um judeu da Lituânia, nascido em 1919. Kolitz compôs
esse texto em Buenos Aires mesmo, no City Hotel: um texto que pouco tempo
depois se tornou, pelas vias mais inesperadas, um dos exemplos máximos da
literatura das testemunhas - note-se: oculares - da Shoah, apesar de o autor
estar na Palestina desde 1940 e, portanto, não ter vivido na pele os eventos do
gueto de Varsóvia de 1943 que ele narra. O seu texto apresenta a fala irada de
um judeu nos estertores do gueto de Varsóvia, que se volta para Deus em busca
de uma resposta para o que se passava com seus irmãos de credo. Realidade e
apresentação artística estavam mais uma vez na história da humanidade unidas
de modo tão harmônico, que se tornava patente o quão limitadas são nossas
concepções de historiografia e literatura. O texto circulou como testemunho
autêntico de primeira mão, eliminando a existência de seu autor, Zvi Kolitz, e
atribuindo-o ao personagem fictício, Yossel Rakover. Lèvinas, em 1955, foi quem
pela primeira vez indicou o elemento de ficção desse texto, mas justamente
para reafirmar a sua verdade. Ele formulou que se tratava de um texto “belo e
verdadeiro, tão verdadeiro como apenas a ficção pode sê-lo”.32 Mas o filósofo
logo acrescenta: “esse texto... traduz uma experiência profunda e autêntica da
vida espiritual”.33 Trata-se, sem dúvida, de uma tradução de algo não visto, mas
sentido, estudado e imaginado como a mais pura verdade. Tanto isso é assim
que, alguns anos depois, quando o próprio Kolitz foi buscar a sua publicação
que estava nos arquivos da Associação Mutual Israelita Argentina (Amia)
em Buenos Aires, descobriu que seu “Yossel Rakover” acabara de fato, como
ele escrevera na abertura do seu texto de ficção, “entre um monte de pedras
carbonizadas e de restos humanos”. O prédio do centro cultural judaico de
Buenos Aires, na calle Pasteur 633, foi explodido em 1994 em um atentado
terrorista, soterrando quase uma centena de pessoas e os últimos exemplares
DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO

do Yiddishe Zeitung no qual o texto fora publicado. Sem dúvidas, a literatura


tem uma força prognostica.34
Kucinski, em seus romances e ficções, mistura vivido e imaginado
construindo seu espaço de imagens, que contrapõe ao “vazio do esquecimento”
que prevalece em nossa autoimagem propagandeada e alardeada, cada vez com
mais intensidade, ao menos desde 2013. Essas imagens de propaganda, para
além de negarem a corrupção e o fiasco do chamado “milagre econômico”,
encobrem35 ^a violência, a política de tortura e de extermínio sobre as quais
se erigiu o Estado então. Produz-se um esquecimento da dor, da morte, dos
cadáveres que sintomaticamente eram desaparecidos. Contra essa política do
esquecimento, erguem-se não só as contribuições da academia, como as que
vimos acima, mas também a literatura e as artes como modos de inscrição de
outras imagens. Um dos temas principais de K. é justamente o negacionismo, a
destruição do espaço público que ocorre nos governos autoritários e totalitários.
Quando a memória da dor é negada após os pactos de transição, 0 que ocorre é a
mencionada extensão do estado de exceção que perdura no campo da memória.
A memória da dor e a tarefa do luto das vítimas da ditadura são legadas apenas
aos seus amigos e familiares. Kucinski fala de uma privatização da memória
da violência e da dor.
Em sua recente publicação, A Nova Ordem, lançada no dia 18 de junho
de 2019, com menos de seis meses dessa “Nova Ordem”, Kucinski já torna
público o seu diário da dor. Segundo a sua editora Joana Monteleone, que
no dia do lançamento compunha a mesa com o autor e com o ilustrador
da capa, 0 mencionado Enio Squeff, Bernardo teria lhe enviado o texto do
livro em meados de janeiro. Portanto, esse texto que estou chamando aqui
de “diário da dor” é paradoxal, pois funde as características da inscrição
distópica do futuro e a escrita do diário com seu forte teor testemunhai.
Evidentemente, encontramos também nessa prosa elementos que fazem
lembrar a ditadura de 1964-1985, pontuada pela onipresença de militares nas
altas rodas do poder e por um projeto distópico para o país. Mas esse projeto
que Kucinski apresenta agora tem as características do nosso presente. Não
se trata mais de um desenvolvimentismo baseado em uma industrialização
construída graças à repressão aos trabalhadores com sua máxima exploração.
O momento econômico-político é outro. Trata-se de um projeto do agronegócio
(compartilhado pelas mineradoras, eu acrescentaria) que pretende fazer do

234
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Brasil novamente um mero exportador de commodities, modelo esse calcado


na destruição das florestas, dos rios e do que resta da natureza intacta do país,
associado a um plano tanatobiopolítico de genocídio da população considerada
excedente a esse projeto. A obra gravita em torno de poucos personagens, a
maioria sendo militares de alta patente e suas esposas. Também temos um
representante dos excluídos, um ex-engenheiro, catador de recicláveis,
sobretudo de livros, já que esses arquivos foram praticamente banidos pela
Nova Ordem.
O primeiro capítulo tem a função de lançar o leitor no coração da distopia.
A secura da narrativa de Kucinski, sua radical economia de palavras, a quase
ausência de referências diretas ao estado psicológico das pessoas e, por outro
lado, a descrição do horror que impera sobre as vítimas desse Estado déspota
apenas intensificam o clima desenhado na obra. Novamente, Kafka vem à
memória do leitor, autor cujas obras já funcionavam como intertexto desde
K. Mas foquemos a nova obra de Kucinski. O primeiro capítulo ocupa-se dos
professores e de suas execuções. Podemos ver aqui uma continuidade com K.
Mas agora estamos no tempo presente, e a narrativa não se dá em primeira
pessoa, mas pela voz de um narrador em terceira pessoa com um tom que
beira ao do relato - outra forma também presente, de resto, no autor de Praga,
o relatório. O título desse primeiro capítulo já crava o tom da narrativa: “A
Nova Ordem proclama seu advento. O fechamento das universidades e a morte
do pensamento crítico”. É digno de nota que no capítulo não existe nenhuma
proclamação da Nova Ordem. Ela simplesmente já estaria proclamada e em
execução. A morte a que se refere o título, logo sabemos, é literal - não só o
pensamento crítico é morto, também seus agentes o são. A cena descrita é a de
um grupo de professores e cientistas, todos homens, discutindo animadamente.
O clima kafkiano também é dado pelo tom descontraído daqueles acadêmicos,
que se assemelham a nós em congressos. É como se esses encontros se dessem
agora à beira de um abismo, que não queremos olhar ou reconhecer como
tal... Na narrativa de Kucinski, os professores estão orgulhosos por ter
entrado na lista dos acadêmicos mais importantes do país que havia sido ali
concentrada. À medida que vão comentando a conjuntura e suas agruras,
entram longas notas no texto que descrevem os éditos que compõem a Nova
Ofdem. Por exemplo, ficamos sabendo da implantação da Econec, Economia-
Neoliberal - Coercitiva, que extinguiu o Banco Nacional de Desenvolvimento

235
DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO

Econômico e Social (BNDES), privatizou as empresas estatais, acabou com


o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), introduziu o regime único
de capitalização na aposentadoria, acabou com o Bolsa Família, o Auxílio-
-Doença, o Seguro Defeso, com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) e com o Sistema S - Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
(Senai); Serviço Social do Comércio (Sesc); Serviço Social da Indústria (Sesi);
Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio (Senac) -, entre outras coisas.
A discussão dos acadêmicos caminha no sentido de defender, com Jacob
Gorender (vários autores conhecidos são citados ao longo do livro), que no
Brasil não apenas existiu um capitalismo escravista, mas que esse capitalismo
está sendo reinstaurado pela Nova Ordem. Essa Ordem teria se originado
justamente por conta das lutas consideradas excessivamente vitoriosas dos
sindicalistas e dos utopistas. “Na Nova Ordem tudo é possível”, clama um
catedrático de direito, referindo-se ao fato de não existir mais nenhum limite
legal no país. Os militares poderíam tudo, inclusive fuzilar. Após um colega
dizer que isso seria fascismo, ele afirma: “Chame como quiser; eu digo que
vivemos um estado excitado do capitalismo que se manifesta sempre que é
preciso refrear os avanços do povo”.36 Essa frase, sem nos surpreendermos com
a coincidência, parece ecoar as idéias de Robert Antelme, autor de A espécie
humana acima citado,37 que lutou na resistência à ocupação nazista na França,
foi preso e levado a um campo de concentração por conta dessa luta. Antelme,
em um pequeno e contundente texto de 1948 chamado “Pauvre-Prolétaire-
-Déporté”, anotou: “Quando o pobre torna-se proletário, o rico torna-se SS”.3S
É esse processo que é descrito nessas contundentes linhas iniciais do novo
livro de Kucinski. Elas também estão penetradas de autorreflexão literária
irônica, como não poderia deixar de ser. Assim, um interlocutor recorda a
peça de Nathan Englander The twenty-seventh man, que descreve um grupo de
escritores judeus russos conversando animadamente antes de sua execução por
parte do exército de Stalin. O tragicômico se dá também pela citação do conto
de ítalo Calvino de 1943 (portanto, com caráter também de diário da violência)
intitulado “Um general na biblioteca”, que descreve um general e sua tropa
que, ao entrarem em uma biblioteca para destruir os livros “não patrióticos”,
com a leitura das obras, acabam se tornando eles mesmos críticos. Poderiamos
dizer que essa é uma pequena utopia absurda dentro de uma distopia. Pois,
logo um interlocutor ressalta a incompatibilidade entre a formação militar e o

236
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

pensamento crítico. Aquela é feita para ensinar a matar. Nesse capítulo, ainda
conhecemos muitos outros éditos, como o que passa as atribuições do Banco
Central para a Febraban e o da Nova Ordem do Ensino Superior que “fundiu
os Ministérios da Educação da Cultura e do Esporte num só da Formação
Moral e Cívica”, que fechou as universidades federais (conrexceção dos cursos
de economia agrícola e veterinária), extinguiu as disciplinas de sociologia
e política, psicologia, literatura, história, geografia, antropologia “e línguas
estrangeiras, exceto o hebraico”,39 além de ter instituído o ensino a distância,
acabado com as cotas raciais e com todos os programas de financiamento
estudantil. Ao final do capítulo, um coronel, com uma pistola em punho, leva
os professores para a borda de uma enorme cova. Um pelotão de fuzilamento
metralha todos, e, em seguida, os soldados empurram com os pés os corpos
dos ilustres acadêmicos para dentro do buraco. O coronel pula dentro da vala
comum e dá tiros de misericórdia na cabeça daqueles que ainda dão sinal de
vida. É clara a semelhança dessa cena com o que aconteceu a partir de junho
de 1941 à população judaica, que vivia na União Soviética, durante a Operação
Barbarossa, por parte de soldados SS associados a Einsatzgrüppe (comandos
móveis de assassinato). Também nessa ocasião os fuzilamentos eram realizados
ao lado de covas coletivas, e a frieza que emana da ação descrita nesse primeiro
capítulo ecoa esse outro genocídio, frequentemente recordado por Kucinski. A
mensagem é clara: vivemos um fascismo redivivo.
Como já se percebe com a apresentação desse primeiro capítulo, a técnica
literária de Kucinski nessa obra consiste em duplicar a realidade para provocar
um estranhamento. O que lemos em suas notas, a sucessão de éditos absurdos,
é a transcrição, quase literal em alguns casos, dos decretos-lei ou das propostas
que circulam na esfera do poder em Brasília. A duplicação irônica permite um
distanciamento crítico, estranhar o estranho, ou seja, criticar a naturalização
da barbárie. No âmbito da construção narrativa, a história evidentemente
envereda pelo ficcional com mais soltura, mas os fatos igualmente absurdos
aí narrados não deixam de duplicar novamente o que ocorre em volta de nós,
hoje, mesmo que com tons talvez mais acentuados. Não estamos diante da
alegoria, mas de um tipo de realismo decantado de uma situação histórica ela
mesma marcada pela repetição, na forma da farsa, para falar com Marx. Isso,
evidentemente, só traz mais combustível para a máquina literário-irônica do
autor.

23/
DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO

O segundo capítulo introduz a figura do catador Angelino, praticamente a


única personagem com consciência crítica na obra. Ele é um catador sobretudo
de livros, pois a Nova Ordem baniu todos os livros, com exceção da Bíblia,
conforme nota que descreve o édito da Nova Ordem do Impresso que criou o
Departamento de Preservação dos Valores da Nova Ordem (Depravano). Todas
as bibliotecas públicas foram extintas com esse decreto. Angelino identifica-se
com os livros, escreve o autor: “Sente-se tão aviltado quanto os livros, ele próprio
atirado ao lixo. A simbologia é forte demais”.40 Essa identificação também
não deixa de dialogar com uma frase que hoje consta na praça Bebelplatz, em
Berlim, local em que, no dia 10 de maio de 1933, foi executada uma das mais
espetaculares queimas de livros do regime nazista. Na placa que lembra esse
evento terrível, lemos a frase de Heine: “Lá onde se queimam livros, no fim
queimam-se também as pessoas”.41 Mas a referência que 0 narrador de Kucinski
faz é outra: ele afirma que Angelino se recorda do filme de Truífaut Farenheit
451, adaptação feita em 1966 do livro de Ray Bradbury sobre uma era na qual
os bombeiros foram transformados em queimadores de livros, considerados
perigosos produtores de sonhos e utopias. E justamente o livro que Angelino
separa para ler naquele dia é o que leva 0 título de Utopia. Não ficamos sabendo
se se trata da obra de Thomas Morus ou se seria um outro representante da
tradição que pensou a utopia. Esse capítulo também introduz o importante édito
que trata da Produtividade do Trabalho. Ele extingue o Ministério do Trabalho
(fato), a Secretaria de Inspeção do Trabalho, o Departamento Intersindical de
Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o Departamento Intersindical
de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho (Diesat), as leis
trabalhistas, o Estatuto da Empregada Doméstica e o do Trabalhador Rural,
revoga o capítulo do Código Penal que pune o trabalho escravo e extingue o
Programa Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo. Em contrapartida
- lemos ainda na nota sobre o trabalho -, foi criada na Polícia Federal uma
Delegacia Especializada de Fiscalização da Produtividade do Trabalho. Esse
órgão, diga-se de passagem, lembra não apenas a figura do capitão do mato
do engenho colonial, como as instituições semelhantes que de fato existiam
no regime nazista, em que a produtividade era associada ao patriotismo, e
a impossibilidade de cumprir as metas de trabalho levava à internação em
campos de trabalho e até a morte.

238
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Kucinski apresenta o édito que cria a Agência Nacional de Vigilância Social


(Anviso), que institui uma sociedade de denunciantes, extingue todos os órgãos
associados aos direitos humanos e implanta a Exclusão de Ilicitude. Como
resposta a essa liberação da licença para matar, cria-se na Polícia Federal o
Corpo Especial de Atiradores de Elite para abater criminosos. Essa liberação
da violência estatal, ao lado da superação de todo limite jurídico ao poder
do Estado, é amparada, por fim, pelo decreto que cria a Agencia Nacional de
Vigilância Digital, que proíbe sites, blogs, redes, jornais digitais, reservando
a web à página Nova Ordem e a programas gospel ou de esportes. Golpe
derradeiro: todos passam a ser obrigados a baixar em seus celulares o aplicativo
da Nova Ordem.
Os demais capítulos do livro narram a história do capitão Ãriovaldo e
de sua aventura para conseguir ler a mente dos subversivos utopistas. Seu
mote é: “Esmagar os utopistas é a prioridade absoluta da Nova Ordem”.42
Para tanto, Ãriovaldo tenta desenvolver uma máquina que lê sonhos. Para
matar as utopias, elege esse caminho da leitura de sonhos, como se, nesses
momentos, nossa censura baixasse e permitisse detectar os utopistas. Como
em qualquer totalitarismo, também na Nova Ordem o espaço privado é cada
vez mais cerceado. Aqui, apresenta-se o paroxismo desse processo com os
próprios sonhos sendo controlados. Outro plano paralelo e complementar a
esse é o de criação de psicanalistas informantes. A operação de perseguição
aos utopistas ganha um departamento com um nome que novamente faz
com que leiamos essa distopia como um emaranhado temporal: “Vai se
chamar Departamento de Operações da Inquisição, subordinado ao Centro
de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi)”.43 Lembrando que o DOI-
-Codi (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações
de Defesa Interna) em São Paulo era um órgão subordinado ao Exército que
tinha como função, na ditadura, investigar a sociedade e reprimir brutalmente
qualquer ameaça de oposição ao regime ditatorial. Ele foi criado em 1970-1971,
comandado pelo mencionado major do exército Carlos Brilhante Ustra, como
um desdobramento da Operação Bandeirante (criada em 1969), que foi um dos
meios da institucionalização da tortura e do desaparecimento como técnicas
de controle.
Esse aparato repressivo serviría também para a execução da Nova Ordem
Fundiária, ou da Concentração Fundiária, “que determina a expropriação

239
DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO

de propriedades rurais com área inferior a dez alqueires paulistas para a


incorporação a propriedades vizinhas de maior área”.44 Esse mesmo édito
que criou tal lei também extinguiu o Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (Incra), acabou com o Estatuto do índio, com os quilombos
e reservas indígenas, com a Fundação Nacional do índio (Funai) e a Fundação
Nacional de Saúde (Funasa), e definiu como terrorista todo movimento de
ocupação de terras, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST). Associado a esse édito, encontra-se também o que cria a Nova Ordem
Ambiental, que retira o país do Acordo de Paris, desobriga os proprietários de
manter reservas florestais, extingue o Ministério do Meio Ambiente, o Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Monitoramento
e Manejo da Pesca, proíbe o financiamento estrangeiro de Organizações Não
Governamentais (ONGs) e libera todos os agrotóxicos. Além da guerra rural
e no campo ambiental, também o fronte religioso é agressivo: proíbem-se,
com o édito 22/2019 da Nova Ordem da Fé, ritos afro-brasileiros e institui-se
a Igreja Universal do Reino de Jesus como religião oficial do Estado. A guerra
na educação implanta as Diretrizes da Escola Sem Partido, proíbe a educação
sexual e de gênero. A alfabetização de adultos torna-se crime enquadrado na
Lei Antiterrorismo, “dobrando-se as penas nos casos de adoção do método
Paulo Freire”.45
As dificuldades do coronel Ariovaldo em conseguir cobaias, à la Mengéle,
para seus estudos do sonho são superadas com a instauração de um sistema
de coleta de retirantes-mendigos. Como Mengele, Ariovaldo tem uma
predileção pelos raros gêmeos univitelinos. Essas cobaias são alimentadas com
“Ração Humana”, produto desenvolvido pela Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (Embrapa) junto com multinacionais. A descrição desse produto
é sugestiva:

a Ração Humana utiliza partes inaproveitáveis do agronegócio, tais como folhas


e talos dos vegetais exportados, sobras dos abates de suínos, aves e bovinos, como
pele e vísceras e um aditivo antilibido. Embora de sabor desagradável, apesar da
adição de adoçantes e sabores artificiais, uma Ração Humana contém exatamente
as 2.100 calorias e os carboidratos necessários ao sustento diário de um humano
adulto. É fornecida a presídios e substitui as merendas nas escolas, com grande
economia.16

240
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Essa passagem talvez seja uma alusão distante ao projeto do então prefeito
João Doria, de São Paulo, em 2017, de introduzir ração humana de farinata para
distribuir para famílias carentes.
Mas Ariovaldo e seus experimentos não conseguem consumir todo o
exército de sobrantes dessa sociedade tão sobriamente estruturada para poucos.
Instituem-se, então, os campos de trabalho para moradores de rua. O general
sugere batizar essa operação de Ação Solidária, e justifica:

Será a nossa resposta aos reclamos da população contra as hordas de mendigos


que vêm infestando as cidades [...]. Campos de reeducação e trabalho no interior,
bem longe das cidades; chega de hipocrisia, de se deixar intimidar por essa gente
de Genebra e da União Européia que defende os direitos dos migrantes, mas só
na terra dos outros.47

Esse expurgo dos mendigos era um sucedâneo de outras operações


radicais que haviam eliminado professores (a Operação Cátedra) e os “gays”,'’s
a Operação Sodoma. Os próximos colocados na lista de espera do extermínio
seriam “as prostitutas, os drogados, os aleijados, os cegos, os doentes mentais, os
portadores de síndrome de Down, esses inúteis todos, um grupo de cada vez”.49
Ou seja, esse plano repete o realizado pelos nazistas antes do início da eliminação
dos judeus, assassinando pessoas com distúrbios mentais.50 Sua lógica é a da
produtividade, do controle absoluto sobre os corpos dóceis laborantes, sendo
que também no nazismo se atribuía um sentido de “caridade” a essas execuções.
No fim, também os mendigos seriam incluídos nas “minorias indesejáveis”,
executados e despejados no mar (“método chileno”, como se lembra no livro51),
já que se deve “adequar a força de trabalho ao novo modo de produção da
agroindústria. O Brasil da Nova Ordem não precisa [mais] de 210 milhões de
habitantes. Basta um mercado interno de uns 30 milhões de famílias, já que o
agronegócio é voltado essencialmente para a exportação”.52 Somos autorizados
a ver essas passagens como um dos momentos de maior clareza dessa obra que
ilumina nossas trevas com uma luz aterrorizante e abala qualquer possibilidade
de edulcorarmos nosso presente. Além da política de extermínio (necropolítica
acelerada pelo “parceiro” coronavírus a partir de 2020, podemos pensar), será
instituída, esclarece ainda o general, a deportação de “negros retintos para
a África, de onde nunca deveríam ter saído, os chamados azulões,53 e haverá

241
DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO

banimentos de indesejáveis, vamos expulsar bolivianos, argentinos, vamos


acelerar a esterilização das mulheres pobres, enfim, um conjunto de ações”.54
Aqui parece que o autor até se cansou de desdobrar essa fileira de atrocidades.
Mas, cada vez que relemos essa obra, com seus éditos e projetos, e comparamos
com o que tem acontecido, percebemos que seu procedimento é o da distopia,
o da ficção científica. Quando esses gêneros são praticados em eras de trevas,
o momento de inscrição do presente apenas fica mais evidente. A futurologia
é transformada em diário e inscrição da dor do presente.
Ao final de suas pesquisas, Ariovaldo consegue desenvolver um chip que
permite remover memórias específicas, criar euforia, alterar valores e instaurar
comportamentos predeterminados. Realiza-se, assim, o verdadeiro sonho dos
corpos robôs, como vemos nos filmes de Leni Riefenstahl, no Brave new world,
de Aldous Huxley, no 1984, de George Orwell, ou em grandes aglomerações,
encenações e desfiles fascistas de um modo geral. Não por acaso, os personagens
do filme Metropolis, de Fritz Lang, de 1927, momento de gestação do
nazifascismo, recordam robôs. Na distopia de Kucinski, o chip de customização
é produzido em dois modelos: um para Humanos Dirigentes e outro para
Humanos Conformados. A sociedade harmônica de formigas trabalhadoras
estava finalmente criada. Um aperfeiçoamento no chip fez com que os idosos se
suicidassem automaticamente aos primeiros sintomas de demência!55
Mas, antes de essa sociedade de robôs se implantar totalmente, Angelino,
que retorna no penúltimo capítulo do livro, consegue matar o general Lindoso
Fagundes (o idealizador dos campos de trabalho para moradores de rua), com
uma arma que encontrara no lixo. Podemos pensar que ainda restaria uma
esperança, mas tudo é muito efêmero nessa passagem. Essa morte não leva
a nenhuma mudança de rumo. O epílogo, novamente em tom tragicômico,
mostra Ariovaldo deprimido. Sua invenção dos chips de customização fez
com que as pessoas deixassem de ter desejos e paixões. Com isso, perderam o
principal impulso para sonhar. Seu projeto de criação dos chips tornou obsoleto
seu programa de estimação, que visava conseguir traduzip e vigiar os sonhos.
Ariovaldo acaba internado em uma clínica psiquiátrica. Aí sua vida resume-se
a escrever seus próprios sonhos delirantes. Em um loop, o livro se fecha com
esse ato de escrita onírica de um dos últimos humanos ainda capazes de sonhar:
um militar psiquiatra louco internado em uma clínica. Machado, aqui, com
seu Simão Bacamarte, decerto explica muita coisa.

242
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

A brevidade e a fragmentação dessa obra de Kucinski fazem pensar


novamente nos mobiles literários e aporéticos de Kafka. Mas aqui, de modo
radicalmente diverso do autor de Praga, o solo histórico imediato retira-nos da
esfera do mítico e devolve-nos ao campo da mencionada guerra de imagens.
Essa obra é um “abalo” que, no mínimo, pode nos despertar do sonho
diurno que tende a naturalizar esse pesadelo que vivemos durante o governo
Bolsonaro. Ou seja: se o personagem Ariovaldo queria controlar nossos sonhos
noturnos para dirigir nossas vidas, de certa forma a verdade dessa imagem
pode ser lida como um reflexo de espelho; na verdade, o que ocorre através
do “consenso da grande mídia” é um controle de nossos sonhos na vigília.
Trata-se de um controle de nossas utopias, que são esmagadas, barradas de
se formular em imagens. O programa explicitado pelo narrador do livro de
“esmagar os utopistas” está dando certo cada vez que deixamos de imaginar
e de lutar pelas utopias. O tempo dos regimes de exceção é sempre o tempo
da sucessão dos ataques que dificulta a construção temporal que encadeia as
lutas por um futuro emancipado a partir do alimento das imagens do passado
de aviltamento. Se temos que nos defender de golpes que se sucedem, nossa
perspectiva temporal é esmagada e reduzida ao presente. A vida reduz-se à
sobrevivência. Essa situação surge de modo radical no campo de concentração.
Dele, escreveu Primo Levi em Ê isto um homem?: “Sabem como a gente diz
nunca’, na gíria do Campo? Morgen früh: amanhã de manhã”.56 Mas o livro,
como heterotopia, catapulta-nos para um local onde podemos novamente
sonhar com as utopias - que, vale lembrar, são sempre ucronias. Contra o
programa totalitário de higienização da memória, um romance como esse de
Kucinski serve de terapia de choque para despertarmos para nossa história
e nosso presente de violência. Sua fina e sombria ironia serve de injeção
que inocula nos leitores um germe de revolta. Seu pessimismo revela-
-se otimista: ele, afinal, ainda aposta na crítica. Se o personagem acaba no
hospício escrevendo sonhos de melatonina, vivendo em um tempo sem tempo
e sem possibilidade de mudança, enterrado no seu isolamento outrofóbico, o
leitor, por sua vez, desperta para seu mundo ao redor, antes que ele mesmo
sucumba à loucura, não da melatonina, mas do sistema. Seu tempo deixa de
ser o da clausura do eterno retorno do mesmo, a violência, abrindo-se para o
acontecimento de outro tempo, um tempo no qual o eu só existe em função
do outro e para o outro.

243
DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO

Efeito comparável dá-se da leitura dos mencionados livros sobre os


períodos ditatoriais que comentei inicialmente. O livro de Fabiana Rousseaux,
no qual mais me detive, também permite esse despertar, que se dá por meio do
confronto da experiência argentina com a brasileira, no que tange ao trabalho
de inscrição e/ou apagamento da memória da ditadura. Cabe ao historiador
crítico conseguir encadear a história à altura dos desafios impostos pelo seu
presente. Nestes tempos sombrios, as teses benjaminianas “sobre o conceito
da História” tornam-se incrivelmente translúcidas. Concluo, então, citando a
sexta dessas teses:

Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo “como ele foi de fato”.
Significa apoderar-se de uma recordação, tal como ela relampeja no instante de
um perigo. Para o materialismo histórico, trata-se de capturar uma imagem do
passado tal como ela, no instante do perigo, configura-se inesperadamente ao
sujeito histórico. O perigo ameaça tanto a sobrevivência da tradição quanto os
seus destinatários. Para ambos, ele é um e o mesmo: entregar-se como ferramenta
da classe dominante. Em cada época, deve-se tentar novamente liberar a tradição
de um novo conformismo, que está prestes a subjugá-la. Pois o Messias não vem
apenas como Redentor, ele vem como o vencedor do Anticristo. Apenas tem o dom
de atiçar no passado aquelas centelhas de esperança o historiógrafo atravessado
por esta certeza: nem os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse
inimigo não tem cessado de vencer.57

Notas

1 Benjamin, 2012a, p. 33.


2 Naville, 1927.
■’ Benjamin, 2012a, p. 34.
4 Idem, ibidem.
' Idem, p. 35.
6 Este texto tem por base minha apresentação no XVI Congresso Internacional da Associação
Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), ocorrido em 2019 na Universidade de Brasília
(UnB).
' Nessa ocasião, o depois eleito presidente Jair Bolsonaro elegeu como patrono de seu
voto contra a presidenta Dilma Rousseff o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra. É
importante destacar como a tática negacionista-revisionista sempre esteve na base dos
políticos fascistizantes. Hitler não apenas prometeu aos alemães um “futuro brilhante”, que
seria harmonioso e reservado aos “arianos germânicos”, mas também os presenteou com
uma “grande história”, do mundo romano à vitória de Germânia, a nova capital nazista,

244
A VIRADA TESTEMUNHAI E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

que seria construída, passando pelos mitos germânicos medievais, os Nibelungos e sua
reapropriação wagneriana. Também Bolsonaro e seus seguidores são praticantes da arte do
esquecimento e do memoricídio. Para lembrar apenas de uma fala exemplar nesse sentido,
recordo que em 30/7/2018, no programa televisivo Roda Viva, ele atribuiu aos negros o
tráfico negreiro a partir da África: “O português nem pisava na África. Eram os próprios
negros que entregavam os escravos”.
8
Vidal-Naquet, 1987, p. 14.
9
D. de L. Azevedo, 2018.
10
Sanjurjo, 2018.
11
Tega, 2019.
12
Nesse sentido, Achille Mbembe recordou as palavras do teórico francês da colonialidade
do final do século XIX Jules Ferry: ‘“É preciso dizer francamente que de fato as raças
superiores têm mais direitos que as raças inferiores’. A Declaração dos Direitos do Homem
não ‘foi escrita pelos Negros da África Equatorial’” (Ferry, apud Mbembe, 2017, p. 135).
13
Rousseaux & Segado, 2018.
14
Idem, p. 6. '
15
Idem, p. 7.
16
Idem, pp. 9-10.
17
Idem, p. 14.
18
Idem, p. 15.
19
A Clínica do Testemunho foi estabelecida a partir de um projeto da Comissão de Anistia
do Ministério da Justiça do Brasil entre 2013 e 2016.
20
Macri, 2016.
21
Rousseaux & Segado, 2018, p. 27.
22
Idem, p. 28.
23
Idem, ibidem.
24
Idem, p. 29.
25
Idem, p. 30.
26
Idem, p. 32.
Idem, p. 35.
28
Idem, p. 39.
29
Idem, p. 43.
30
Idem, ibidem.
31
Kucinski, 2011, p. 13.
32
“Beau et vrai, vrai comme seule la fiction peut l’être” (Lèvinas, 1998, pp. 103-104).
33
“Ce texte... traduit une expérience de la vie spirituelle profonde et authentique” (Lèvinas,
2003, p. 74).
34
Quanto a essa obra de Kolitz, remeto ao meu artigo: “O testemunho entre a ficção e o ‘real’”
(Seligmann-Silva, 2016, pp. 371-385).
35
Trata-se, é importante destacar, de um encobrimento perverso. Pois os entusiastas da
ditadura elogiam abertamente torturadores e, aqui e ali, reconhecem essa prática como
parte do regime e de seus meios. O elemento perverso está em encobrir, mostrando, em
negar, afirmando, e em desautorizar, autorizando. O negacionista, já para Ferenczi em seu
conceito de Verleugnung (desmentido), é aquele que desautoriza, nega a voz do testemunho,
instituindo, assim, o espaço do trauma. Cf. Ferenczi, 1992; Osmo, 2018.
36
Kucinski, 2019, p. 15.
37
Antelme, 1957.
38
Idem, 1994, p. 110.

M5
DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO

39
Kucinski, 2019, P-18.
40
Idem, p. 24.
41
“Dort wo man Bücher verbrennt, verbrennt man auch am Ende Menschen” (Heinrich
Heine). Nessa ocasião, deu-se o famoso discurso de Goebbels sobre a revolução cultural-
-política nazista. Vale a pena lembrar essas palavras para vermos em que medida o
presidente Bolsonaro deve ser colocado nessa linhagem de políticas: “Meus colegas
estudantes! Homens e mulheres alemães! A era do intelectualismo judaico exagerado
acabou, e o avanço da revolução alemã também abriu caminho para a via alemã. [Cf. a
ideologia bolsonarista que comemora o fim do marxismo globalista.] A partir de 30 de
janeiro deste ano o movimento Nacional Socialista conquistou o poder, naquela época não
poderíambs saber que a Alemanha poderia ser limpa tão rápida e radicalmente. A revolução
que estourou naquela época - agora podemos admitir francamente - foi preparada por
nós por um longo tempo. E se alguém se admira hoje que estamos fora da lei, por assim
dizer demos um chute nela: não é à toa, porque nós só precisamos transpor para a prática
a legalidade de nosso movimento”. Disponível em <https://www.nibis.de/uploads/igohrgs/
za2Oi8/oiDeutschHinweise2oi8-4.pdf>. Acesso em 30/3/2021. Esse mesmo gesto de forçar as
leis até o extremo, no caso, o desejo de queimar a Constituição de 1988, explicita-se agora
a cada semana com novas tentativas de instalar um estado de exceção ditatorial, fechando
o Congresso e o STF.
42
Kucinski, 2019, p. 38.
Idem, p. 83.
44
Idem, p. 90.
45
Idem, p. 102.
46
Idem, p. 111.
47
Idem, p. 124.
48
Idem, p. 125.
49
Idem, ibidem.
50
Mas essa ordem de idéias não deixa de ecoar o discurso na era bolsonarista, uma vez
que, durante a pandemia, a deputada Janaína Paschoal sugeriu privilegiar os mais jovens
quando se tratasse de auxílio hospitalar (ela escreveu em sua conta no Twitter no dia
27/3/2021: “Eu me preocupo com todas as vidas! Mas as vidas daqueles que viveram menos
me preocupam mais. Aliás, penso que já estejamos no momento de estabelecer claramente
regras para priorizar o uso dos recursos disponíveis: leitos, respiradores, etc. É pesado,
mas é necessário!”). Por sua vez, a apresentadora Xuxa Meneghel sugeriu, no mesmo dia,
em uma live da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, que se utilizassem
os prisioneiros para testar remédios, já que assim “acho que pelo menos eles serviríam
para alguma coisa antes de morrer, entendeu?”. Ambas as idéias caberíam muito bem no
romance de Kucinski. O problema é que, na atual conjuntura, está1 difícil acompanhar as
atrocidades da realidade, por mais criativo que seja o escritor.
51
Kucinski, 2019, p. 128.
52
Idem, p. 126.
53
Ao escrever essa passagem podemos especular se o autor estava pensando em outra das
declarações bastante problemáticas que o então candidato fez quando de sua infamosa
fala na Hebraica Rio em 3/4/2017: “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve
lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais.
Mais de Rs 1 bilhão por ano é gasto com eles". “Se eu chegar lá [na Presidência], não vai
ter dinheiro pra ONG. Esses vagabundos vão ter que trabalhar. Pode ter certeza que se eu
chegar lá, no que depender de mim, todo mundo terá uma arma de fogo em casa, não vai

246
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”. Essa promessa
de genocídio indígena e de afrodescendentes concretizou-se ao longo da pandemia de
modo acelerado, como inúmeros estudos têm observado. Não podemos esquecer que, para
os adeptos do supremacismo, a ideia de “diversidade” implica, de modo paranoico, o “fim
dos brancos”. A profusão de símbolos e gestuais supremacistas nesse governo é parte de
sua assumida necropolítica.
04 Kucinski, 2019, p. 129.
35 Idem, p. 164.
36 Levi, 1988, p. 135.
3/ Benjamin, 2020, p. 70.

247
9
GRANDE SERTÃO: VEREDAS COMO GESTO
TESTEMUNHAL E CONFESSIONAL

Confissão e testemunho como dispositivos

Michel Foucault, nos anos 1970, insistiu muito no papel da confissão como
uma técnica específica, poderiamos dizer, como um dispositivo de construção
da verdade e do indivíduo. “Desde a Idade Média, pelo menos” - ele escreveu
no primeiro volume de sua História da sexualidade “as sociedades ocidentais
colocaram a confissão entre os rituais mais importantes de que se espera a
produção da verdade”.1 Com efeito, nossa sociedade está marcada pela confissão
e isso, nota ainda Foucault, não apenas no âmbito religioso e jurídico, mas
também

na medicina, na pedagogia, nas relações amorosas, na esfera mais cotidiana e


nos ritos mais solenes; confessam-se os crimes, os pecados, os pensamentos e os
desejos, confessam-se passado e sonhos, confessa-se a infância; confessam-se as
próprias doenças e misérias; emprega-se a maior exatidão para dizer o mais difícil
de ser dito; confessa-se em público, em particular, aos pais, aos educadores, aos
médicos, àqueles que se ama; fazem-se a si próprios, no prazer e na dor, confissões
impossíveis de confiar a outrem, com o que se produzem livros.2

A confissão tornou-se tão essencial dentro de nosso regime de construção


da verdade que, quando ela não é espontânea, é arrancada pela tortura. Em
um tom que não deixa de ser muito nietzschiano, Foucault sentenciou: “O
homem, no Ocidente, tornou-se um animal confidente”.3 O importante, no
nosso contexto, é destacar que, para esse autor, esse longo processo de triunfo
do modo confessional de ser do homem ocidental teve profundas consequências

249
GRANDE SERTÃO: VEREDAS COMO GESTO TESTEMUNHAL E CONFESSIONAL

na literatura. Para ele, a partir de então passamos da tradição da narrativa que


apresenta provas de bravura ou de santidade, para uma literatura que tem como
fim a apresentação de verdades escondidas dentro dos indivíduos. A confissão
tem um efeito de verdade.
A confissão foi introduzida pelo Concilio de Latrão em 1215. Ela está ligada,
na origem, aos tribunais de Inquisição e, por outro lado, seu desenvolvimento
como dispositivo de construção da verdade foi paralelo ao recuo de provações
de culpa, çomo o duelo. De certo modo, esse modelo de verdade - Foucault
bem o sabia - não foi uma criação medieval, pois já pode ser encontrado nos
primórdios do Ocidente. Mas foi a partir de então que a confissão tomou o lugar
que, de certa maneira, mantém até hoje. No limite, Foucault faz da confissão
cristã uma espécie de Urphãnomen, protofenômeno, da psicanálise, o que é
verdade, mas também um exagero, já que a psicanálise também pode se erguer
contra a confissão como dispositivo de adequação e enquadramento.
Mas existe também outro dispositivo, próximo ao de confissão, vizinho,
mas distinto dele, o de testemunho, que Foucault não explora ou subsome
àquele. Para entendermos a complexidade das manifestações simbólicas que
se estruturam a partir da elocução do eu e nos aproximarmos do modelo de
verdade calcado no segredo dos indivíduos, o conceito de testemunho é, no
mínimo, tão importante quanto o de confissão. Na cena do tribunal - que,
de certa forma, é o local paradigmático da confissão -, ouvimos também os
testemunhos daqueles que viram o ato que está sob a lupa do julgamento. Em
resumo, o réu confessa, as testemunhas testemunham, assim como, no registro
religioso, testemunhamos nossa fé e confessamos nossos pecados. Existe
também uma relação de complementaridade entre um gesto e outro, como lemos
na definição de “confissão” do Houaiss: “revelação, diante de testemunha(s)
privada(s) ou pública(s), que alguém faz de um ato censurável que cometeu”.
Mas o testemunho tanto deve ser entendido como a apresentação do ponto
de vista de um terceiro - terstis -, de onde se deriva a noção latina de testis,
testemunho jurídico que se quer objetivo, como ser abordado como a tentativa
de apresentar uma experiência que resiste a essa apresentação. O testemunho
neste segundo sentido sofre um deslocamento da elocução da verdade para
a própria pessoa que testemunha. Passa-se do testemunho pretensamente
objetivo para a subjetividade da testemunha. Ela é, como notou Benveniste
e vimos acima, superstes, testemunha sobrevivente.4 Ela tenta apresentar

250
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

o real, a saber, o que escapa ao simbólico, mas essa apresentação é sempre


também apresentação da impossibilidade de se apresentar. O testemunho está
submetido ao double bind de sua simultânea necessidade e impossibilidade.
É verdade que, apesar de testemunho e confissão serem distintos, podemos
dizer que, no ato de confissão, encontramos também testemunhos, e não se
pode descartar a possibilidade de, em meio a um testemunho, brotar uma
confissão. E mais, ambos, como são lançados paradigmaticamente na cena do
tribunal, têm a ver com culpa e culpabilização, ou com inocência. Desse modo,
a ideia de justiça é a força motriz que está por detrás tanto da confissão como
do testemunho. Uma justiça que paira como uma possibilidade de redenção:
dos males, das culpas, dos pecados, como uma purificação catártica, que leva
o julgado a uma nova vida. Tanto o testemunho como a confissão visam ao
veritatem facere - trata-se de uma troca de apresentação da nudez, do pacto
e do preço da nudez: colocamo-nos nus diante Dele para que Ele mostre a
verdade nua. A nudez volta-se a uma outra nudez.5 Para Santo Agostinho, a
confissão implica o desnudar-se diante de Deus. A verdade aqui é também a da
cena do tribunal: a autoapresentação visa a um testemunho, apresentar a vida
para voltar à vida (yevixit). “Acusa-te, glorifica-o”, escreve Santo Agostinho.
Nessa cena, o dentro volta-se para fora. Pois, como Derrida recorda a partir
de Santo Agostinho, a confissão apresenta não apenas o que sabemos de nós,
mas também aquilo que ignoramos.6 O escondido, o esquecido, vem à tona:
Unheimlich (o estranho, sinistro). A palavra da confissão é sempre palavra de
“conversão”: de “circonfissão”, dirá Derrida; é palavra-ação, ato de différance,
momento de crise, transbordamento, metamorfose, diriamos depois de Kafka.

Testemunha ocular e testemunho do invivível

Neste momento gostaria de apresentar a possibilidade de ler o romance


Grande sertão: veredas, a partir de seus traços testemunhais e confessionais. É
claro que a confissão e o testemunho são mais do que evidentes nesse romance,
mas gostaria de desdobrar os aspectos aporéticos desses atos e, sobretudo,
analisar como podem ser lidos nesse livro, por um lado, o confessional como ato
de linguagem simbólico e, por outro, o testemunhai, enquanto testis e superstes.
A ideia é não tratar confissão e testemunho como gêneros tradicionais, como

251
GRANDE SERTÃO: VEREDAS COMO GESTO TESTEMUNHAL E CONFESSIONAL

tem sido feito na teoria literária, mas repensar esses conceitos, com a ajuda
da psicanálise e da filosofia. Vamos perscrutar a confissão e o testemunho
como gestos, como traços que permitem iluminar essa obra roseana. Vamos
observar o que resta do testemunho e da confissão nesse romance. Trata-se
também de ver esse romance como uma performance da memória e do ato de
recordação: Se atos literários testemunhais tiveram momento desde o século
XVIII, foi no século XX que assistimos ao surgimento de uma literatura com
forte teor testemunhai. Não diria que existe a partir de então um novo gênero,
a literatura de testemunho, mas, antes, que nesse século tanto se desenvolveu
uma literatura com forte teor testemunhai, quanto, por outro lado, aprendemos
a ler nos documentos de cultura traços, marcas da barbárie.7 O excesso de
catástrofes impingidas pelas nossas próprias mãos - nesse século, cerca de 140
milhões morreram por atos bárbaros em guerras, genocídios e perseguições -
gerou uma necessidade de testemunho.
Guimarães Rosa conseguiu canalizar para seu romance de 1956 as fantásticas
forças retóricas tanto da confissão como do testemunho.8 Riobaldo narra suas
memórias a um paciente senhor. O romance é o teatro de suas memórias, e o
fio que mantém toda a tensão da trama é o relacionamento amoroso, posto
como condenável, entre ele e Diadorim. O segredo é apenas revelado no final
da narrativa-confissão-testemunho. O ponto de vista subjetivo, do narrador em
primeira pessoa, que apresenta, por um lado, o que viu e, por outro, o que viveu,
suas emoções e seus sofrimentos, é apresentado de modo exemplar por Rosa na
expressão de Riobaldo: “Coisas que vi, vi, vi -oi...”.9 Ver e viver fundem-se aqui.
O romance contém tanto elementos confessionais quanto o testemunho em suas
duas faces: a de testemunho ocular, testis, e a de testemunho como tentativa
de apresentação do inapresentável, superstes. O senhor a quem ele se dirige é
uma construção complexa e essencial na situação testemunhai e confessional.
Trata-se de um “outro”. Esse outro vai tornar-se testemunha secundária das
histórias. Daí a expressão recorrente na pontuação do texto, quando o narrador
se volta para esse senhor e afirma: “Mire veja”. Nós todos estamos mirando e
vendo, traduzindo o teatro de palavras em imagens. Toda confissão deve voltar-
-se para uma outra pessoa. Também no caso do testemunho esse outro-ouvinte
é absolutamente fundamental. A catarse testemunhai é passagem para o outro
de um mal que 0 que testemunha carrega dentro de si. Para fazer 0 trabalho
do trauma exige-se uma espécie de trabalho de luto da experiência sofrida:
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

um enterro ritual do passado que muitas vezes inclui mortos, como é o caso
da narrativa de Riobaldo, com sua longa vida de jagunço sendo desfiada diante
do “senhor” e que também porta o luto pela morte de Diadorim.

Um espaço mnemônico intenso

Mas esse senhor a quem ele se dirige é também, evidentemente, o leitor.


“Mas o senhor calado convenha”, escreve Rosa não sem certa malícia.10
O leitor é o fim, o telos, da escrita, aquele a quem a “mensagem imperial”
(Kafka) está direcionada. Esse senhor é descrito como muito instruído, como
alguém do sexo masculino11 e paciente. A matéria do livro, a memória de
Riobaldo, é apresentada a esse ouvinte paciente de modo não linear. Trata-se da
apresentação e da simultânea construção de um espaço mnemônico intenso, sem
começo ou fim, com uma temporalidade apenas parcialmente cronológica e
muito mais emocional. “No real da vida, as coisas acabam com menos formato,
nem acabam”, formula Riobaldo.12 E, ainda, o professor Tatarana também diz
(com Lacan): “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para
a gente é no meio da travessia”.13 Os cronotopoi entrecruzam-se, em curtos-
-circuitos espaçotemporais, como também costuma acontecer em narrativas de
testemunho. Riobaldo constrói sua topografia emocional da memória, passando
por cronotopoi que lhe marcaram a vida. Mas em Rosa, evidentemente, trata-se
de uma construção literária, e isso se dá de modo assumidamente artístico e
autorreferente. As inúmeras intervenções metanarrativas, nas quais Riobaldo
se volta para seu interlocutor, na verdade um ouvinte-leitor, estão cheias dessa
astúcia de um autor que, ao mesmo tempo que constrói sua narrativa-fluxo-de-
-memória, campo espaçotemporal, também como que puxa o leitor para fora
desse rizoma. Assim ele pode convencê-lo melhor de sua existência e potência.
A nós, só resta admirar a galáxia-mnemônica de Riobaldo em suas sístoles e
diástoles - e nos emocionarmos.
Riobaldo é o primeiro a afirmar que sua narrativa é fragmentada. Ela é
saturada de emoções. Trata-se da mise en scène de uma memória traumática,
marcada pela “literalidade”, ou seja, por sua tendência ao fragmento, a ser caco
do passado. A construção narrativa é o meio de articular esses fragmentos. Seu
fio narrativo executa saltos, assim como o universo de nossa memória o faz,

253
GRANDE SERTÃO: VEREDAS COMO GESTO TESTEMUNHAL E CONFESSIONAL

comandado tanto pelo princípio das afinidades eletivas como por exigências
emocionais. Uma porta em um hic et nunc permite que se escorregue para
outro lugar-tempo, como no túnel em que cai Alice e que a leva ao País das
Maravilhas, ou nas portas de Matrix. A contiguidade é uma função qualitativa e
não quantitativa. Assim lemos em uma das referidas passagens metanarrativas
uma clara teoria do que se passa no próprio livro:

A lembrança da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e


sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido,
alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento
que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era
como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. [...] O senhor é bondoso
de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que
outras, de recente data. O senhor mesmo sabe. [...] O que muito lhe agradeço é a
sua fineza de atenção.14

Esse tempo qualitativo e submetido a essa lei emocional da proximidade


é apresentado em doses diversas de detalhe. Às vezes, Riobaldo apenas indica
que aconteceu uma batalha, sem entrar em seus meandros. Noutras, apresenta
longamente diálogos e trocas de olhares com Diadorim.
A construção desse campo mnemônico é o presente, o agora da narrativa
que ao se desdobrar traça esse mesmo campo. Essa presentificação do passado,
típica dos atos de confissão e de testemunho, é explicitada na frase: “Comigo,
as coisas não têm hoje e ant'ontem amanhã: é sempre”.15 Note-se que, ao tratar
dessa temporalidade na chave do “sempre”, a narração é aproximada também
da memória traumática, que se inscreve como um passado que não passa.
Riobaldo diz que “lembro de tudo” e que fala demais de seu passado porque está
velho.16 De fato, os traumatizados como que sofrem de excesso de memória: uma
ótima definição para Riobaldo. Mas essa lembrança, que é apresentada como
sendo a matéria do livro, é também um folhear a vida de trás pra frente, como
os idosos costumam fazer. Daí a formulação surpreendente: “Eu me lembro
das coisas, antes delas acontecerem...”.17 As coisas só se tornam "coisas” no
próprio ato de recordação. É esse ato que as funda como fatos. As lembranças
assumem a tintura da nostalgia e da saudade, com sua ambígua tonalidade de
alegria e melancolia. Mas seus nós são constituídos justamente por aquilo que
é encenado como sendo irrepresentável: seu amor por Diadorim, as mortes

254
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

e violências, assim como o sofrimento da passagem do Liso do Sussuarão:


esse espaço atópico, espécie de dobra na banda de Moebius, deserto de onde
acena o buraco negro do real. Descrevendo esse martírio para o “senhor”, o
narrador diz: “o que não pode, para o senhor, é ter sido, vivido”.18 Já em outra
ocasião, Riobaldo nota que o que apresenta é pouco crível: o«que dispara uma
angústia na testemunha que deseja poder contar com a benevolência crédula de
seu interlocutor: “O senhor mire e veja, o senhor: a verdade instantânea dum
fato, a gente vai departir, e ninguém crê. Acham que é um falso narrar”.*9 Esse
elemento inverossímil da passagem pela morte também é tópico nas narrativas
testemunhais de catástrofes do século XX. O inverossímil desconstrói a
narrativa e seu decoro. Para a poética clássica, como é conhecido, o impossível
que persuade é preferível ao que pode acontecer, mas não é persuasivo. O ter
vivido o excepcional antes de abalar os modos de apresentação produz uma
quebra no próprio eu, daí a afirmação que vimos de Riobaldo: “vejo que eu
era como se fosse diferente pessoa”. Noutra passagem, ele formula: “Fui eu?
Fui e não fui”.20 Nos testemunhos de catástrofes é frequente os sobreviventes
se verem como um outro. O eu se desloca para um ele ou ela. A construção do
testemunho tem justamente a função de aproximar os cacos desse outro-eu-
-narrado.
Mas o senhor-interlocutor é também alguém que está invadindo o segredo
íntimo da testemunha e do confessor. Essa invasão, no entanto, é desejada, pois
não só permite o ato testemunhai e a confissão, mas também - como o senhor
é de fora e se vai após ouvir/ler a história - cria espaço para um paradoxal
solilóquio a dois. Ou seja, o dispositivo de enunciação do eu é a oportunidade de
construção de uma narrativa: de uma vereda por onde o mal pode fluir. O leitor
- como a temporalidade - é o leito por onde o rio pode correr. O testemunho e a
confissão visam a uma paradoxal apresentação que é ao mesmo tempo memória e
esquecimento. Só no branco do esquecimento que a imagem da memória pode ser
deitada. Além disso, a memória do trauma deve ser ao mesmo tempo apresentada
e afastada. É embalada na nau da narração. Mas para isso acontecer necessita-se
de um “tu”. O senhor é caracterizado como “estranho”, e é a esse estranho que
Riobaldo revela seu estranho - Unheimlich - eu.

Não devia de estar relembrando isto [ou seja, a paixão por Diadorim], contando
assim o sombrio das coisas. Lenga-lenga! Não devia de. O senhor é de fora, meu

255
GRANDE SERTÃO: VEREDAS COMO GESTO TESTEMUNHAL E CONFESSIONAL

amigo mas meu estranho. Mas talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim,
que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que
eu falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente
perverte sempre por arredar mais de si. Para isto é que o muito se fala?21

Riobaldo como catador de logoi. Epopéia no sertão

Esse ‘‘muito falar” nasce de uma necessidade, exatamente como o


testemunho tem a necessidade em sua origem. Riobaldo mesmo pondera: “o
tudo que eu conto, é porque acho que é sério preciso”.22 Mas esse Riobaldo não
é um jagunço típico, afinal ele não só domina muito bem o idioma, como até
mesmo se gaba de sua suprema memória. Não nos esqueçamos de que ele é
também professor, como na alcunha com a qual Zé Bebelo o trata. Esse loquaz
ex-jagunço narra para um estranho, doutor, homem de letras. E nós - “homens
de letras” - lemos isso tudo da pena de um autor implícito, também ele doutor
e homem de letras, mas um estranho ao mundo de Riobaldo. Percebemos,
portanto, que a figura do “senhor” receptor da narrativa pode ser interpretada
tanto como o leitor quanto como o próprio autor implícito. Este último, por sua
vez, constrói-se como um coletor de logoi do sertão. Ele coleciona histórias, a
vox populi. Ele é uma espécie de Lumpensammler (catador de restos). Em vez
da figura (aristocrática) do escritor que trabalha no gabinete, ele executa seu
trabalho de escrita a partir de um arquivo resultante de seu trabalho como
“catador”. Benjamin, no seu “Paris do Segundo Império em Baudelaire”, citou
esse poeta, autor não só do poema “O vinho dos trapeiros”, mas também de uma
descrição do trapeiro que aproxima essa figura urbana moderna do trabalho
do próprio poeta. Podemos, mutatis mutandis, aproximar também essa figura
de trapeiro à do autor implícito de Grande sertão: veredas:

Aqui temos um homem - ele tem de recolher na capital o lixo do dia que passou.
Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou,
tudo o que destruiu, é reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão,
o cafarnaum da escória; separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede
como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas
da deusa indústria, vai adotar a forma de objetos úteis ou agradáveis.23

256
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

O interessante de ver nessa obra uma tal coleção do resto da civilização, ou


seja, do que restava da vida não urbana na cultura brasileira, é que novamente
vislumbramos aqui algo que pode ser aproximado do registro da poética do
testemunho. Nesta, observamos a possibilidade de dar voz àqueles que não
tinham lugar no universo simbólico e econômico. A perspectiva do testemunho
é a da história dos vencidos. Na obra em questão, tendemos a também nos
solidarizarmos com este mundo em extinção, que como que acena, na pena
de um autor que, ironicamente, mistura um regionalismo reinventado, com
Dostoievski, Joyce, e outros grandes autores da história da literatura e da
filosofia?4
Uma das características mais marcantes dessa sofisticada construção
narrativa é justamente essa mistura de referências. Por exemplo, na medida em
que o texto se apresenta como uma longa narrativa das aventuras do protagonista
Riobaldo, este se torna uma espécie de aedo; com o perdão do jogo de palavras
evidente, ele se revela um Rio-bardo. A própria voz narrativa torna-se, assim,
a protagonista. Como no canto IX da Odisséia, quando Ulisses, em meio aos
feácios, não só se emociona ao ouvir de um aedo as suas próprias aventuras,
como ele mesmo narra outras passagens de sua história, transmutando-se os
papéis de Homero com o de Ulisses. Em Grande sertão: veredas, não só a lei da
força - a astúcia, a lei dos bravos - impera; também temos profetisas, amizades
inabaláveis, grandes atos de hospitalidade e uma estrutura episódica, como
em Homero. E ainda: o tempo e a morte são pensados em torno do conceito
de glória, kléos, termo-chave na poética da epopeia homérica. O livro de Rosa
faz inúmeras referências aos sucessos cantados das sagas dos bravos jagunços;
como também ocorre na epopeia, sua musa é Mnemosine. Mesmo o outro polo
dialético da epopeia, a vingança, motor das ações, está no coração do livro de
Rosa.
Para finalizar, gostaria de tomar duas passagens, como que episódicas,
que permitem enfatizar essa relação do romance roseano com a confissão e o
testemunho. Refiro-me à passagem narrada por Jõe, o “caso de Maria Mutema
e do padre Ponte”, e ao julgamento de Zé Bebelo. Essas duas passagens - das
mais conhecidas do romance - têm uma, a confissão auricular, e a outra, o
testemunho no seu centro.

257
GRANDE SERTÃO: VEREDAS COMO GESTO TESTEMUNHAL E CONFESSIONAL

Maria Mutema: confissão como


CASTRAÇÃO E PHÁRMAKON

Jõe conta que Maria Mutema, “mulher em preceito sertanejo”, de repente


perdeu o marido. Em seguida, tornou-se fervorosa religiosa, passando a frequentar
assiduamente a igreja. Essas visitas tinham por objetivo confessar-se com o
padre Ponte (pai de três crianças), e essas confissões eram infindáveis e sempre
pareciam escandalizá-lo muito. Lemos no texto uma bela descrição do ato de
linguagem confessional:

Mas o que logo se soube, e disso se falou, era em duas partes: que a Maria Mutema
tivesse tantos pecados para de três em três dias necessitar de penitência de coração
e boca; e que o Padre Ponte visível tirasse desgosto de prestar a ela pai-ouvido
naquele sacramento, que entre só dois se passa e tem de ser por ferro de tanto
segredo resguardado.25

Finalmente, o padre adoeceu e morreu. Aparentemente, mas de modo


incompreensível, ele morrera de excesso de confissão. Em seguida, chegaram
dois padres estrangeiros missionários ao arraial; uma feita, durante a missa,
Mutema reaparece na igreja: imediatamente, o padre, que mal concluía a sua
reza, ordenou que ela se retirasse do templo, pois guardava “maus segredos” e
deveria, depois, fazer sua confissão na frente do cemitério.26 Mutema começou
a confessar-se ali mesmo, diante de todos, e a “verdade” rompeu o dique de
seu silêncio: “E rompeu fala, por entre prantos, ali mesmo, a fim de perdão de
todos também, se confessava”.27 Assim, ela libertou de si seu terrível segredo:
ela matara o marido derramando chumbo em seu ouvido enquanto ele dormia
e depois teria mentido ao padre Ponte em suas confissões, dizendo que havia
matado o esposo por causa dele. Com isso, teria levado o padre ao desgosto e
à morte. Presa, Mutema clamou por “perdão e castigo”. E, de fato, após passar
por “culpa e júri”, na cadeia de Arassuaí o povo afluiu para lhe perdoar. Ao
fim, concluíram que seu arrependimento humilde e seu sofrimento estavam
convertendo-a em santa.
Nessa pequena história dentro da história, como no teatro dentro do teatro
em Hamlet, assistimos não só a essa mise en abyme da narrativa, mas também
à cena do assassinato de um marido, por parte de sua esposa, e utilizando o

258
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

mesmo e peculiar modo, chumbo derretido derramado no ouvido. Mas, se


não temos na história de Mutema a utilização desse assassinato como meio de
ascender ao poder, por outro lado, nas duas histórias vemos uma espécie de
“estado de exceção” revelado por esses atos ignominiosos: em Hamlet, o poder
real é assaltado por esse golpe, mostrando que a origem do'poder soberano é
a violência; em Grande sertão, o ato de Mutema é apenas mais uma exceção
em um universo em que padres têm filhos. Sua ação é apresentada como uma
espécie de prazer perverso em matar e ver morrer. Esse gozo sintomaticamente
passou, nos dois assassinatos praticados por Mutema, pelo canal auditivo. O
primeiro homem foi assassinado pelo chumbo no ouvido e o segundo, pelo
ferro e pelo veneno de suas palavras. A confissão no fim da história - após gerar
a morte do padre, mais confissão, sua condenação, o arrependimento e o perdão
- acabou, de fato, purificando Mutema, que se tornou uma espécie de santa.
A relação entre nosso canal auricular e os atos de fala confessionais e
testemunhais é da maior importância. Como vimos, sem alguém para escutar,
pronto a receber em seus ouvidos as palavras de dor ou de arrependimento,
esses atos não podem se dar. Nesse sentido, tais atos podem ser denominados
“otobiográficos”, expressão utilizada por Derrida para qualificar de modo geral
as autobiografias. Também os atos “otobiográficos” são onipresentes na vasta
obra de Santo Agostinho, autor de Confissões. E isso decerto responde a uma
intertextualidade com os textos bíblicos: lembremos da passagem bíblica de
Deus perfurando a orelha de seus seguidores com uma sovela (Ex. 21,6; cf.
De 15,17); da descrição do sacrifício do novilho e do preceito que comanda
que seu sangue deve ser posto na ponta da orelha direita de Arão e seus filhos
(Ex. 29,20); das palavras de Josué: “Ajuntai perante mim todos os anciãos das
vossas tribos, e vossos oficiais, e aos vossos ouvidos falarei estas palavras, e
contra eles por testemunhas tomarei os céus e a terra” (De. 31,28); “Inclinai os
ouvidos, ó céus, e falarei” (último cântico de Moisés; De. 32,1); “Ouvindo-me
algum ouvido, me tinha por bem-aventurado; vendo-me algum olho, dava
testemunho de mim” (Jó 29,11); “porque o ouvido prova as palavras, como o
paladar prova a comida” (Jó 34,3); “Dá ouvidos às minhas palavras, ó Senhor;
atende à minha meditação” (Sal. 5,1); “Têm veneno semelhante ao veneno da
serpente; são como a víbora surda que tem tapado os seus ouvidos” (Sal. 58,4)
etcí Estabelece-se nessas passagens um vínculo entre a audição e a entrega
às palavras “que iluminam”, entre a fé e o canal auditivo que, por sua vez,

259
GRANDE SERTÃO: VEREDAS COMO GESTO TESTEMUNHAL E CONFESSIONAL

é conjugado ao testemunho visual. O alimento (espiritual) vem da boca de


Deus (que deve ser ruminado, diz Santo Agostinho), assim como - na aliança
que une o fiel a ele - a boca daquele que confessa se dirige aos ouvidos de
Deus. A escuta transforma-se em manducação. Na história de Maria Mutema,
a escuta transforma-se não tanto em manducação e ruminação, mas, antes,
em indigestão. As palavras convertem-se em chumbo que penetra os ouvidos
de padre Ponte. Mas as metamorfoses não param aí. A palavra da confissão
é sempre palavra de “conversão”: de “circonfissão”, dirá Derrida. Mutema de
fato se converte e reconverte: primeiro, em “onça monstra, tinha matado o
marido”, “cobra, bicho imundo”;28 depois, em santa. A ideia de aproximar
confissão e circuncisão - formando circonfissão - pode ser derivada do fato
de que, no cristianismo, tanto o testemunho como a confissão têm a ver com
essa transformação do eu, com o evento de uma metamorfose que também
sela um pacto, um anel que une o indivíduo com Deus. Citemos as palavras
de Santo Agostinho:

Se é verdade que na carne do homem circuncidado eu não posso encontrar o


local onde repetir a circuncisão, pois o membro é único, ainda menos podemos
encontrar o local em um coração onde se repetir o batismo de Cristo. É por causa
disto que para vocês que querem duplicar o batismo, é absolutamente necessário
que vocês procurem corações duplos.29

Mutema, de certo modo, mostrou uma iterabilidade desse gesto que, para
Santo Agostinho, seria irrepetível. Ela busca uma suplementação fálica para
construir sua aliança de carne com Deus. Mutema encontrou de fato dois falos
que ela como que sacrificou, castrou, para com eles conquistar suas alianças
de carne e assinar o pacto de fé e sua confissão. Sua história mostra como a
confissão é um phármakon amargo-doce que pode tanto matar como salvar.

Testemunho falocêntrico: o “falo”


COMO FALA E ÓRGÃO SEXUAL

Essa relação entre falo como órgão genital masculino e o ato de fala apenas
explicita o aspecto falocêntrico do testemunho e da confissão. O testemunho,
sobretudo em seu sentido de testemunho de um terceiro, do testemunho

260
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

jurídico, como vimos acima, é falogocêntrico. Recordo novamente que,


nas sociedades tradicionais, as mulheres são excluídas das cortes enquanto
testemunhas.30 Daí Riobaldo se voltar, em seu discurso testemunhai, a um
senhor e não a uma senhora. A lógica do testemunho é a do convencimento
via apresentação espetacular, superocular, de provas. Prova-Se um crime como
se prova a masculinidade. Como vimos, a cena do testemunho falogocêntrico
tem sua representação mais acabada na Eumênides de Esquilo, que apresenta o
tribunal com o julgamento de Orestes, que é absolvido de seu ato de matricídio.
Palas Atena vota no partido dos homens, de Zeus, Apoio e Orestes, contra a
apelação das Fúrias, que, defendendo Clitemnestra, se voltam para a mãe delas,
a Noite. Em Grande sertão: veredas encontramos também uma Palas Atena
que, como na tragédia de Esquilo, é apresentada como alguém que não teve
mãe: Diadorim. Esse personagem, híbrido como a deusa grega, também vota
no partido dos homens. Vale notar que, diferentemente de Clitemnestra, que
foi morta pelo seu ato conjugicida, Mutema soube se precaver com a astúcia
da “dupla” confissão fálica.
Nesse sentido é interessante destacar como, no julgamento de Zé Bebelo,
existe uma espécie de espelhamento do próprio julgamento de Orestes. Ambos
os réus são perdoados, absolvidos. Os dois tribunais representam, de certo
modo, uma forma de transição entre a justiça tradicional, a lei do talião, feita
com base em provações de culpa e puro exercício da força, e a lei do tribunal,
com seus jurados e a tentativa de construção de uma justiça neutra: “cega”.
Os testemunhos nesse tribunal oscilam entre esses dois modelos de justiça..
Hermógenes, o primeiro a falar sua acusação, não apresenta provas, apenas
condena o réu à morte. Sô Candelário - após sugerir um duelo com o réu, o que
significaria uma contradição com a ideia de julgamento - defende Zé Bebelo,
apelando para a lei da guerra: não seria crime guerrear. O jus in bello justifica -
com um estado de exceção da guerra - os atos de violência. Ricardão, o terceiro
a testemunhar, tem como argumento a necessidade da vingança, quando a
justiça justamente pretende se colocar acima desse patamar subjetivo. Riobaldo
pondera, após essas três falas, que oscilava entre um ponto de vista e outro.
Mas conclui que todo julgamento é defeituoso “porque o que a gente julga é o
passado. [...] Quem julga já morreu”.31 Nesse ponto, a justiça é posta em questão
devido a esse fato cronológico insuperável: o julgado não é o criminoso, pois o
crime está sempre no passado. O julgamento, em sua inevitável “posteridade”,

261
GRANDE SERTÃO: VEREDAS COMO GESTO TESTEMUNHAL E CONFESSIONAL

estará sempre em descompasso com o que é julgado. Os demais jagunços


falam a favor de Zé Bebelo. Tião Passos recorda que, na lei do sertanejo, ou
se mata no calor da hora, ou não. Como o próprio Ricardão havia falado: “Lei
do jagunço é o momento”.32 Novamente vemos posta a incompatibilidade
cronológica do julgamento com o ponto de vista jagunço. O próprio Riobaldo,
ao falar seu testemunho, não apenas apela para seu profundo conhecimento
do réu em uma chave bem visual - “Vi. Testemunhei”33 -, como também apela
para a glória (kléos) daqueles homens ali reunidos após a batalha. Eles não a
teriam se matassem alguém desse modo não jagunço, covarde, após a pausa
suspensiva de um julgamento. Sô Candelário concorda com esse argumento
em favor da “fama de glória”.34 Esse julgamento circula constantemente entre
a lei do talião e a do tribunal, apagando as fronteiras entre o “estado natural”
e a suposta civilização da cidade e da justiça positiva. O pacto, que na teoria
política clássica estaria na origem da vida civilizada, é revelado como sendo,
antes de mais nada, um pacto com a força bruta. No final do julgamento,
Joca Ramiro revela toda a arbitrariedade desse ritual ao decretar o seguinte,
em sua condenação de Zé Bebelo ao desterro temporário: “O julgamento é
meu, sentença que dou vale em todo este norte”.35 Como também se passa na
Eumênides, a anomia que deveria ser barrada e contida pelo dispositivo do
tribunal é, na verdade, aprofundada por ele: as Fúrias são incorporadas como
parte do sistema jurídico. Esse julgamento é também uma espécie de teatro
dentro do teatro, figura da figura do romance. Ele põe em cena o testemunho
como dispositivo de julgamento, de construção do indivíduo e, sobretudo, de
poder. Nessa cena masculina, de bravos homens esgrimindo com palavras, não
vemos a saída do universo jagunço, mas, antes, a desconstrução da própria
justiça, que é apresentada como política masculina da força e das amizades.
Joca Ramiro, em seu veredicto, é tão arbitrário quanto Palas Atena.

Testemunho e confissão como ficções

Concluindo, gostaria apenas de lembrar que não existe a possibilidade


de estabelecer uma fronteira entre, por um lado, a ficção e, por outro lado, a
confissão e o testemunho. Do mesmo modo, testemunho e confissão também
são assombrados pela possibilidade de mentira. Como vimos, Riobaldo

262
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

mesmo já desconfiava de que seu interlocutor achava que o que narrava era
falso. Derrida, vimos acima, foi um dos pensadores que melhor formulou essas
idéias: “uma confissão não tem nada a ver com a verdade”,36 “uma circonfissão
é sempre simulada”,37 ele sentenciou. E ainda constatou:

[O] testemunho tem sempre parte com a possibilidade ao menos da ficção, do


perjúrio e da mentira. Eliminada essa possibilidade, nenhum testemunho será
possível e, de todo modo, não terá mais o sentido do testemunho.38

Caberia pensar se a encenação testemunhai e confessional de Tatarana


também não estaria sombreada pela ficção (da ficção). Ou seja, podemos nos
perguntar se a solução de seu drama de consciência (revelar que Diadorim era
uma mulher) não seria uma racionalização a posteriori. O desnudamento da
verdade nesse livro é o desnudamento do corpus delicti: Diadorim é mulher,
a prova é a falta, a ausência do falo. O testemunho dá a ver o “nada”, o vazio.
Pensando-se essa ficção como um jogo confessional e testemunhai, podemos
imaginar também que Diadorim, na verdade, é claro, na verdade da ficção, era
um homem. O veritaten facere é também uma ficta confessio. Ele e Riobaldo
se amaram como dois bravos, como Aquiles e Pátroclo, só que, por assim
dizer, fora do lugar: no tempo-espaço do sertão, e não na Troia mítica. Daí a
necessidade dessa racionalização no ato confessional. A sobreposição de Troia
com o sertão, ou o cruzamento das veredas de Ulisses com as de Riobaldo,
ambos engendraram um romance único no qual lemos uma trans-helenização
do jagunço, que em seguida é quem sertaneja a Hélade. Esse é apenas mais
um dos aspectos que se podem desdobrar desse projeto de releitura de Grande
sertão como um ato confessional e de testemunho. Sabemos que, para Riobaldo,
vale a regra: “Eu me lembro das coisas, antes delas acontecerem...”. O que conta
é a lembrança e sua performance, e não algo que ela representaria.39
Mas a cena testemunhai do Grande sertão: veredas fecha-se de modo
enfaticamente falogocêntrico, destacando novamente o compromisso entre a
apresentação do testemunho e o espetáculo da visualização do grande falo.
Trata-se de um testemunho hiperbólico: é um sobre- ou supertestemunho.
O grande de Grande sertão é rédito no parágrafo final do livro, como se
fosse um mastro a demarcar a última cena do testemunho: “O Rio de São
Francisco - que de tão grande se comparece - parece é um pau grosso, em

263
GRANDE SERTÃO: VEREDAS COMO GESTO TESTEMUNHAL E CONFESSIONAL

pé, enorme...”.40 O Velho Chico - duplo do velho Riobaldo aqui nessa


passagem, é tanto uma figura da torrente caudalosa da narrativa como do falo.
E o autor continua: “Amável o senhor me ouviu [...] O senhor é um homem
soberano, circunspecto”: nós fomos fecundados por essa fala e suas sementes.
Nossos ouvidos senhoriais estão agora nos investindo de soberania sobre esse
testemunho. Este se dissemina, então, em infinitas leituras. As veredas, como
o sertão na sua apenas aparente infertilidade, não têm fim.41

Notas

! Foucault, 1988, p. 8.
2 Idem, p. 59.
3 Idem, ibidem.
4 Benveniste, 1995, p. 277.
5 Se na confissão existe um despimento metafórico que muitas vezes, simbolicamente, torna-se
literal, na cena do testemunho/da confissão arrancados à força, frequentemente essa nudez
é parte da estratégia de humilhação e de tortura na busca da “verdade”. Espera-se extrair
a verdade do indivíduo submetido à humilhação do desnudamento público.
6 Santo Agostinho, 1987, p. 221.
7 Remeto, aqui, à nota 9 do capitulo 6 deste livro, “O local do testemunho”, em que desenvolvo
o conceito de “teor testemunhai”.
8 Neste texto analiso os aspectos da performance testemunhai e confessional do romance de
Rosa, sem levar em conta a relação do teor testemunhai dessa obra com a sua vida e a sua
época. Pesquisas nesse sentido têm sido feitas por Jaime Ginzburg (2009). Outro autor
muito propício para um estudo tanto dessa performance quanto da relação entre sua vida
e o teor testemunhai é Graciliano Ramos.
9 Rosa, 1980, p. 54.
10 Idem, p. 108.
11 Idem, p. 173.
12 Idem, p. 67.
13 Idem, p. 52.
14 Idem, p. 77 e ss.
15 Idem, p. 109.
16 Idem, p. 112.
*' Idem, p. 27.
18 Idem, p. 41.
19 Idem, p. 331.
20 Idem, p. 166.
21 Idem, p. 33.
“ Idem, p. 134.
23 Benjamin, 1989, p. 78.
24 Mas vale notar também que tanto no gesto do autor implícito de Grande sertão como
no do gestor de testemunhos, existe uma violência em jogo: uma hierarquia produzida

264
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

por uma diferença de saberes e de domínio de códigos e também pelo lugar que o gestor
e o colecionador de logoi ocupam na sociedade. Trata-se de uma “tradução” (criativa/
criadora) de um código oral para o da escrita e nessa transposição tudo é transformado.
É importante não deixar escapar essa ambiguidade que marca a figura desse criativo e
estranho colecionador de histórias: ele é compassivo e violento.
25 Rosa, 1980, p. 171. ?
26 Esse padre, que de imediato reconhece quem é Mutema e já sabe de seus pecados, é sem
dúvida um duplo do padre de O processo - uma das obras mais brilhantes sobre as aporias
do direito e de suas instituições, como a própria confissão - que chama Josef K. pelo nome,
quando este está só na igreja, e mostra saber toda a sua história.
Rosa, 1980, p. 172.
28
Idem, ibidem.
29
Epist. 23, 4, apud Chrétien, 2002, p. 238.
30
Margalit, 2002, p. 176.
31
Rosa, 1980, p. 205.
Idem, p. 204.
33
Idem, p. 208.
34
Idem, p. 209.
35
Idem, p. 213.
36
Derrida, 1991b, p. 103.
37
Idem, p. 120.
38
Idem, 1998, p. 28.
39
Portanto, podemos apenas especular sobre esses não ditos e desditos de Riobaldo
testemunha e confessor. Evidentemente, proponho um novo jogo de leitura, que leva em
conta esse elemento de construção do relato testemunhai e confessional. Não se trata de
modo algum de dizer que Diadorim era “na verdade” um homem, pois de qualquer maneira
toda verdade aqui é fictícia. Mas, dentro dessa ficção, é possível colocar essa hipótese de
leitura acerca do “falso testemunho” de Riobaldo. Pode-se, inclusive, pensar também que
ele “de fato” possui essa memória do corpo revelado de Diadorim como um corpo feminino,
afálico: essa memória pode ser uma alucinação, um delírio ou uma construção posterior,
como uma memória encobridora da “verdade” do corpo de seu amado. Essas hipóteses
podem ser sustentadas dentro dessa poética que apresentei aqui, mas tudo fica em suspenso,
pois trata-se de “verdades da ficção”.
40
Rosa, 1980, p. 560.
41
Nesta passagem introduzo um jogo entre a ideia de sobre- ou supertestemunhar e o
conceito de infertilidade. Como vimos, Benjamin, em seu Rua de mão única, escreveu que
“Überzeugen ist unfruchtbar’, ou seja, “convencer é infecundo”, sendo que Überzeugen pode
ser lido de modo analítico como uma palavra-valise significando supergerar, supercriar,
superfecundar. Zeugen tem estes dois sentidos: testemunhar e fecundar.

265
10

VIOLÊNCIA, ENCARCERAMENTO,
(in)justiça: MEMÓRIAS DE HISTÓRIAS
REAIS DAS PRISÕES PAULISTAS

No final do século XX e início do nosso século, podíamos olhar para a


paisagem cultural e afirmar sem medo de errar: Mnemosine, a mãe das musas
e personificação da memória, está vencendo a batalha com sua filha Clio, musa
da história, que triunfara sobre a mãe no século XIX e permanecera invicta até
meados do século seguinte. A crítica radical ao historicismo, levada a cabo por
autores como Nietzsche e Walter Benjamin,1 e os fatos históricos catastróficos
que pontuaram esse período foram os grandes responsáveis pela destronização
de Clio e por aquilo que estou chamando aqui de “virada testemunhal do
saber”. Mas essa vitória também se mostrou uma vitória de Pirro, na medida
em que, ao longo das duas primeiras décadas de nosso século, uma robusta
onda revisionista conservadora tentou e tenta fazer recuar essa virada. Mais
do que nunca, portanto, resistir é preciso.
Mas o que nos interessa aqui neste momento é uma tentativa específica de
rearticulação da história traumática, tal como ela se manifesta em um gênero
que tem muito de autobiográfico e que vai muito além do que a historiografia
tradicional atinge em termos de recuperação dos traços singulares do
sofrimento. Refiro-me à literatura carcerária ou prisional. Essa modalidade
de escritura da memória apresenta uma imagem radical - mas não por isso
menos fiel e terrificante - da situação do homem contemporâneo esmagado
por uma fantástica máquina de exploração social e econômica denominada
neoliberalismo ou, simplesmente, colonialidade. Benjamin, em 1936, no seu
famoso ensaio sobre “O narrador”, refletiu a respeito da incapacidade dos
soldados que voltavam do fronte de articular as suas histórias e experiências.
Vale a pena retomar as palavras do filósofo:

267
VIOLÊNCIA, ENCARCERAMENTO, (iN)jUSTIÇA

E não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais
radicalmente desmentidas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras,
a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela batalha material
e a experiência moral pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num
bonde puxado por cavalos encontrou-se desabrigada, numa paisagem em que nada
permanecera inalterado, exceto as nuvens, e, debaixo delas, num campo de forças
de torrentes e explosões destruidoras, o frágil e minúsculo corpo humano?

Devemos acrescentar a essa lista os terrores da Empresa Colonial, o


genocídio da Segunda Guerra Mundial, as inúmeras guerras anticoloniais, os
massacres de milhões e milhões ocorridos na União Soviética e no Camboja,
o desemprego, a tortura onipresente no chamado “Terceiro Mundo”, os
“desaparecidos” nos regimes ditatoriais, o imperialismo norte-americano e
suas consequências etc. Nosso “frágil e minúsculo corpo” está ainda mais
despedaçado. Daí a nova literatura memorial - que tem como uma de suas
manifestações a literatura dos cárceres - ter o corpo que sofre como uma de
suas temáticas centrais. Voltemo-nos agora para a situação especificamente
brasileira desta questão.
Pode-se falar que no Brasil, no início do século XXI, vivemos um pequeno
boom de literatura prisional. Não creio que se possa indicar uma origem única
e simples para esse fato, mas é certo que, entre os motivos para a prosperidade
dessa modalidade de literatura, se encontra, antes de mais nada, o enorme
interesse do público leitor brasileiro por tudo o que tem a ver com violência
e sua própria sobrevivência em uma sociedade que se torna cada vez mais
polarizada entre os ricos encastelados em seus bunkers e os pobres, em sua
maioria afrodescendentes, bisnetos e tataranetos de uma paradoxal “abolição
dos escravos”, em uma sociedade elitista que até hoje não admite que negros
ocupem locais considerados nobres e exclusivos de “brancos” na geografia da
repressão. Desde o imediato pós-abolição, uma das “soluções” que as elites
brasileiras inventaram para a “questão dos ex-escravos” foi sua perseguição
e seu envio para as cadeias cada vez mais superlotadas. Outro motivo - mais
pontual, mas não de menor importância - para o surgimento dessa literatura
foi o sucesso obtido pelo trabalho de alguns “heróis”, quase sempre voluntários,
que se dispuseram a levar um pouco de humanidade ao ambiente árido e cinza
dos presídios. Assim surgiu, em 1999, a iniciativa de realizar um concurso de

268
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

contos no Carandiru (então o maior complexo carcerário da América Latina,


com cerca de 7.200 presos, criado em 1920 e desativado em 2002) que tanto
permitiu, a alguns presos que já tinham o hábito de escrever, apresentar (e
posteriormente publicar) seus escritos, como despertou o interesse pela escrita
em outros prisioneiros. Por último, a publicação, também em 1999, da premiada
e aclamada obra do médico Drauzio Varella intitulada Estação Carandiru (ele
mesmo voluntário nesse presídio) também serviu de incentivo para escritores
(aprisionados) e editores escreverem e publicarem essas obras.
Devemos recordar ainda a tradição latino-americana da literatura de
testimonio (como no caso do famoso livro de Elisabeth Burgos/Rigoberta
Menchu, ou do Biografia de um cimarrón de Miguel BarneP) como um fator
determinante nessa nova onda literária. Mas é preciso lembrar que essa
literatura se deu de modo mais característico nos países de língua espanhola.
No Brasil dos anos 1960 e 1970, ocorreram ecos dessa literatura (lembremos
dos romances de Antonio Callado), mas é difícil perceber (a não ser pela via
indireta de um pequeno público de intelectuais) a relação daquela tradição com
a atual produção literária vinda dos cárceres.4
Por outro lado, em termos da literatura ocidental e de sua história, podemos
notar outros motivos que poderíam nos ajudar na busca de compreensão do
mencionado boom. Refiro-me, aqui, a uma forte e às vezes subterrânea tradição
da literatura (e das artes de um modo geral) que, por falta de um termo
convencionado, podemos denominar “literatura do real”. Evidentemente,
não se trata, com essa expressão, de renomear o realismo ou o naturalismo.
Muito pelo contrário, essa “literatura do real” não deve ser confundida com as
estratégias do realismo do século XIX. Ela se manifesta também nessa tradição,
mas não apenas nela. Com esse termo, refiro-me, antes, à tendência que se
manifesta com mais força a partir do final do século XVIII no Ocidente de
apresentar na literatura e nas artes elementos de um real marcado pela sua
violência e que foi pensada em parte sob conceitos como o de sublime (em
Mendelssohn, Burke e Kant), grotesco (sobretudo em Baudelaire), abjeto (com
Julia Kristeva) e Unheimlich (com Freud). Não posso aqui dar conta das enormes
diferenças entre autores e artistas como Hogarth, Sade, E. T. A. Hoffman, Goya,
Baudelaire, Kafka, Francis Bacon e Beckett, mas neles vemos a manifestação de
um real violento que se tornou mais e mais central na estruturação da literatura
e das artes ao longo dos últimos 200 anos. Nesse movimento em direção ao real,

269
VIOLÊNCIA, ENCARCERAMENTO, (iN)jUSTIÇA

pensado como um (des)encontro violento com o mundo,5 vemos construir-se


a narrativa do nascimento do Eu (moderno) como perda e aborto, que leva a
uma retórica da nostalgia, do lamento e da acusação. Trata-se, nessa narrativa,
de uma retradução de esquemas arcaicos do nosso mundo simbólico-cultural,
mas também de uma "volta às origens”, na medida em que a literatura e as artes
reivindicam agora novamente seu papel de sacrifício como parte de um sistema
de trocas que garante a vida.
É necessário ter esse painel histórico em mente ao nos confrontarmos
com essa impressionante literatura dos cárceres que está sendo produzida nos
“porões do inferno”,6 a saber, nas prisões brasileiras. Nessa literatura, enquanto
um fenômeno radical, extremo, para recordar uma noção e um procedimento
metodológico de Benjamin (pensar a partir dos extremos7), podemos
acompanhar sob a lupa aspectos históricos de longa duração da nossa história
literária, bem como características próprias da nossa contemporaneidade
marcada pelo terror, pela constante ameaça de guerra e por suas concretizações,
por “genocídios” e “etnicídios” (“outricídios” de um modo geral), e pela
reprodução em escala inaudita da exploração e da desigualdade econômicas.
Apresento a seguir os pontos que nos permitem enquadrar essa produção
literária dos cárceres em termos de uma reflexão mais geral sobre o fenômeno
literário atual, para em seguida arrolar alguns subtemas que devem servir de
base para fundamentar as teses gerais. No capítulo seguinte, debruçar-me-ei
sobre um caso específico.

i) Literatura do real: o primeiro ponto é a já mencionada tese de que essa


produção literária se enquadra na “tradição” (ou antitradição que a
nossa contemporaneidade elevou à condição de veio fundamental) da
apresentação do real como (des)encontro com a outridade, violento
e fundador. Essa perspectiva, por sua vez, à primeira vista converge
para a atual tendência dos estudos humanísticos de pensar e incluir o
“outro” na sua reflexão. Aqui, o outro é o próprio autor - um prisioneiro
- que narra sua situação radical. Devemos, no entanto, vigiar-nos para
não hipostasiar esse “outro” sob uma etiqueta simples e eliminadora
das suas particularidades. De resto, dentro desses mesmos estudos
culturais, nas últimas décadas ocorreu a inversão da narrativa de
constituição da comunidade que implicou um abandono da narrativa

2/0
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

heróica e sua substituição pela narrativa do trauma e das perdas


constitutivas. Não é difícil perceber que essa mudança de perspectiva
ocorreu devido a implicações tanto de ordem histórica (lembremos
novamente as guerras no século XX, com a descolonização, a Primeira
e a Segunda Grandes Guerras) como de ordem epistfemológica (basta
pensar na crescente influência dos discursos advindos da psicanálise e
da antropologia nas ciências humanas). A partir deste primeiro ponto
desdobram-se os demais.
2) Literatura como inscrição do eu: o boom de literatura carcerária no
Brasil avança sobre o leito aberto pela literatura de “auto-bio-grafia”
(com hífens), que estiliza e desdobra certos aspectos da autobiografia
enquanto “gênero” - ou protofenômeno da literatura, como prefere
Paul de Man. A “auto-bio-grafia”, ou simplesmente as escritas de si,
pode ser pensada a partir das tendências ao “real-ismo” (com hífen)
das artes, como é possível acompanhar desde o neorrealismo italiano
até o grupo Dogma,8 passando pelo novo jornalismo e pela construção/
desconstrução do cine e do vídeo-documentário. Como é sabido, as
fronteiras entre os gêneros ditos “sérios7“factuais” e os “fictícios”
há tempos não podem ser mais traçadas. Nessa literatura carcerária,
0 simbólico aparece esmagado sob 0 peso do real e determina um
redimensionamento dessas fronteiras. A noção de escritura do corpo
assume aqui uma literalidade raramente encontrada na história da
literatura.9 Daí um prisioneiro como Humberto Rodrigues dizer que
escrever para ele é o modo de costurar sua existência e o único modo
de sobreviver.10 Essa literatura faz parte, portanto, de uma nova ética e
estética da escritura que está sendo traçada aos poucos desde a metade
do século XX. Ela tem como mandamento paradoxal o imperativo de
sua necessidade - e a luta conflituosa com os limites da representação.
Não existe comensurabilidade possível entre a dor-corpo e as palavras.
3) Literatura e compromisso social: desdobrando este último aspecto
arrolado, a literatura e a arte, após mais de um século de domínio
das tendências formalistas, recuperam, na virada testemunhai, seu
compromisso com a mudança social e assumem seu papel nas lutas
políticas. É claro que o “desvio pelas vanguardas” foi essencial para a
construção dessa nova ética e estética da representação. Sem o trabalho

271
VIOLÊNCIA, ENCARCERAMENTO, (lN)jUSTIÇA

de desconstruçâo dos códigos representativos das artes, essa literatura


decerto teria se articulado de outro modo. Com as vanguardas, a tradição
da utpictura poesis foi rearticulada sobre uma base radicalmente nova
que também fornece modelos para a arte e a literatura do real. Na
América Latina, evidentemente, o compromisso entre arte e política
encontra-se, com um outro peso, na ordem do dia. Aqui, vemos a
retórica do testimonio e a do testemunho se entrecruzarem, ou seja, o
encontro das tradições latino-americana e europeia (sobretudo, com
relação a esta última, a vinculada ao testemunho da Shoah e do Gulag).11
A literatura dos cárceres coloca-se abertamente como literatura-
-denúncia, cumprindo o papel de acusação nos tribunais jurídico e
da história.12 Seu entrelaçamento com a cultura rap e hip-hop não é
casual (basta lembrar dos casos de Jocenir e de André du Rap). Nessas
obras, não apenas o testemunho como testis (terceiro a testemunhar,
certificação) é levado em conta, mas também encontramos a noção
de martírio e sobrevivência (superstes) dos corpos dos prisioneiros e,
como vimos, o tema correlato da indizibilidade da dor, do sofrimento
e da experiência carcerária como um todo.
4) Literatura, leis e justiça: por último, é essencial perceber em que
medida essa literatura reabre a caixa de instrumentos da literatura
ocidental, tal como ela fora confeccionada na sua “origem grega”,
para reconfigurá-la. O compromisso entre a literatura e a cena
judiciária é um traço que pode ser visto na estrutura da tragédia. Nela,
encontramos os elementos básicos do julgamento, o réu, o acusador e
o jurado-coro, assim como a própria palavra judicante. Por outro lado,
o universo da tragédia é antípoda do universo da “literatura do real”,
na medida em que esta só pode ser pensada no campo do histórico
e não se deixa compreender como puro tipo ideal de encenação dos
conflitos (trágicos) entre o ser humano e o destino. Mas a caixa de
instrumentos literários que herdamos da Grécia também contém o
“estojo” da epopeia. E, na epopeia, a astúcia entra em cena para se
opor às forças míticas e violentas. Nesse sentido, o Polifemo, do
Canto IX da Odisséia, representa uma figura ambígua de carcereiro
antropófago - e não por acaso a cena que descreve esse monstro
dormindo e vomitando os restos dos companheiros de Ulisses guarda

272
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

semelhanças “surpreendentes” com algumas narrativas dos massacres


dos cárceres brasileiros.13 A (in)justiça é cegada nessa protocena do
encarceramento. A única “culpa” de Ulisses é a sua hybris de ter se
julgado digno de bons presentes... Ulisses polymetis (o cheio de astúcias)
consegue no fim vencer a força do Ciclope, que, ao ser cegado, não pôde
mais, panopticamente, vigiar e punir seus prisioneiros. Já no sistema
carcerário moderno, narrado na literatura dos cárceres atual, fica claro
o sentido nada alegórico, e sim literal, do fato de a justiça ser cega. Essas
narrativas contam as tentativas de vencer com alguma astúcia a força
bestial de um sistema penal que em grande parte serve para eliminar
aqueles considerados “resto” (homo sacer, para recordarmos Agamben
interpretando Benjamin e Foucault14) de uma sociedade moldada pela
ideologia do consumo e do sucesso.15 Se tento articular aqui essas obras
com a cena homérica do “nascimento” da literatura ocidental é porque
nelas o elemento repressivo, violento e, mesmo, mítico que se reproduz
e sustenta a dialética do Iluminismo manifesta-se com uma força e
uma evidência raras de encontrar na atual produção literária. Essas
obras não podem ser lidas a partir da escala “estética” estabelecida pela
história canônica da literatura. Pelo contrário, elas desconstroem esses
parâmetros de medida. Enquanto frutos de uma realidade extrema,
elas nos permitem repensar a literatura como um todo e, em termos
pragmáticos, o próprio sentido atual da relação entre crítica literário-
-estética e crítica social. Afinal, nessa literatura vem à tona um desfile
terrificante de pessoas cuja única “culpa” foi terem sido consideradas
como resto, homo sacer: elas muitas vezes nunca fizeram nada “contra as
leis”, são simplesmente negras, e/ou pobres e/ou periféricas, que devem
aguardar anos atrás das grades por um processo que nunca termina. A
natureza do processo, como na obra homônima de Kafka, é, também
nessas obras atuais, seu eterno estar em processo. Se universo jurídico
e Justiça não têm nada em comum a não ser sua mútua exclusão,'6 essa
literatura é uma das provas mais contundentes desse fato. Não por
acaso, Hosmany Ramos vai fazer apelo à “Justiça divina” ao descrever
o massacre do Carandiru, nó qual 111 prisioneiros foram assassinados
por policiais de modo espetacular e bárbaro. Essa parece ser a única,
justiça possível em um mundo carcerário abandonado ao tempo da
VIOLÊNCIA, ENCARCERAMENTO, (iN)jUSTIÇA

repetição infernal do castigo. Esse massacre, de resto, constitui, por


assim dizer, o núcleo e o "buraco negro” em torno dos quais essa nova
literatura do cárcere se orienta. Nela, a impunidade dos algozes, o
desconhecimento da culpa factual e o tempo dos processos que levam
anos - às vezes apenas para que se chegue à conclusão de que a pessoa
era inocente - geram uma suspensão da lógica, do bom senso, do logos,
que apenas a "lógica da loucura” parece poder abarcar. Nesse sentido,
também essas obras dos cárceres remetem a uma ligação originária
entre literatura e instituição (ativa) da lei, ou seja, elas revelam a íntima
relação entre literatura e loucura; o espaço literário como cenário de
aparição e manifestação do outro do logos. Mas isso em um sentido
não tanto neorromântico (foucaultiano), de permanência de elementos
do mundo das semelhanças no sistema de trocas econômico e cultural
capitalista moderno, mas sim em um sentido benjaminiano, enquanto
explicitação da cultura como barbárie e, acrescentaríamos ainda,
das relações de dependência sistêmica entre loucura e lei. O espaço
literário, como local de manifestação da loucura, é essencial não só
como possibilidade de transgressão (de certo modo controlada) da
lei, mas também para a reafirmação e a delimitação dessa mesma lei.
A Justiça paira como um Sol distante no horizonte dessa literatura e
é sempre ela que conquista a empatia do leitor dos testemunhos da
barbárie.

A partir desses temas gerais passo a indicar agora outros conceitos e


subtemas que permitem aprofundar as questões propostas por essa literatura:

a) Os temas ligados à teoria do sublime (lembremos das reflexões de


Burke, Mendelssohn, Lessing, Kant e, sobretudo, Adorno sobre esse
conceito17) e, posteriormente, do abjeto,13 enquanto tentativas de
dar conta desse real violento que é tanto portador da morte como
constante traçamento e apagamento de nossos limites. Não por acaso
aparecem com frequência nas páginas dessas obras dos cárceres cenas
de coprofagia e outras inúmeras manifestações do asqueroso. Como na
arte abjeta, também nessas obras vemos que o estético se transforma no
exato oposto da proibição de apresentação do asqueroso dos teóricos do

274
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

século XVIII. Lembremos apenas de uma frase de Moses Mendelssohn


condenando o asqueroso nas artes em meados do século XVIII: “Os
sentimentos de asco são [...] sempre natureza, nunca imitação”.19 Na
arte do abjeto, o que conta é justamente essa “natureza” em oposição
à concepção iluminista de arte como ilusão. Só que, diferentemente
da pura estetização do abjeto (ou desmontagem do estético via abjeto)
que ocorre na arte (programaticamente) abjeta, na literatura carcerária
o asqueroso aparece como manifestação dos limites do corpo diante
do medo, da dor e da violência.20 Essa desintegração do ser humano,
o ruir de suas bordas, é apresentada como realidade e parte do campo
literário. Como escreve André du Rap, no cárcere, “tudo é conteúdo
[...] a literatura é muito grande lá dentro, é infinita”.21
b) Nessas obras vislumbramos, portanto, uma reflexão sobre os limites
do humano e do animal. A violência extrema sofrida pelos prisioneiros
desencadeia um processo de desumanização. Nesse sentido, também
aparecem com toda a força nessa literatura os temas da vergonha, do
desnudamento, da redução do ser humano à animalidade e à massa de
tecidos do corpo sem vontade própria via humilhação, onipresença do
olhar, exposição à falta de higiene e tortura. No tempo do ser humano
na era da sua síntese técnica, a literatura testemunhai também trabalha
no traçamento dos novos limites de nosso ser. Ela está na base de uma
ética pós-metafísica, como podemos ler nas obras de Adorno22 e de
Lèvinas,23 desenvolvida a partir da Shoah, e que toma como base nosso
ínfimo e frágil corpo.
c) Também encontramos aqui o tema da relação entre o fictício, o
literário e o histórico. Como pensar essa tríade à luz da literatura
do real? No limite, essa literatura reivindica uma “terceira coluna”
que, na medida em que se quer “calcada no real”, desestabiliza os
discursos ditos “fictícios” e os ditos “históricos”.2-1 Os autores estão
conscientes de que “às vezes vale mais uma boa versão do que a
história verdadeira”, como lemos em Humbert Rodrigues,25 pois,
como já sabia Aristóteles, o real muitas vezes é inverossímil.26 Dentro
dessa tensão insolúvel entre o fictício, o literário e o registro histórico,
í encontramos também a possibilidade de ver na literatura carcerária
uma reconquista (pelas “portas dos fundos”) da literatura “ingênua”.

275
VIOLÊNCIA, ENCARCERAMENTO, (iN)jUSTIÇA

Como se sabe, desde o final do século XVIII e início do século seguinte,


autores como Schiller, Friedrich Schlegel, Goethe, Hegel e Baudelaire
estabeleceram a superação na Modernidade da escritura “inocente”
que teria marcado de modo paradigmático a cultura da Antiguidade. A
“inocência” significa, antes de mais nada, a relação sem fraturas entre
o mundo objetivo e a produção literária e artística. É evidente que esse
modelo é em si idealista e ilusório (representando mais uma projeção
utópica do que um dado real da história da cultura). Mas a questão
nuclear é pertinente para a reflexão sobre a literatura carcerária. Via
violência, dá-se, nessa escritura prenhe de real, a manifestação do que
Adorno descreveu como a “historiografia inconsciente, anamnese do
subterrâneo, do recalcado”.27 A literatura carcerária, de resto, no Brasil
e na América Latina, representa uma espécie de realização do ideal
literário de muitos literatos. Nos últimos anos, estes têm buscado,
por meio de obras com uma tonalidade de crônica da violência e com
pitadas de encenação autobiográfica, atingir o que essas obras realizam
de modo quase “natural”.28
d) Reencontramos nessas obras toda a metaforologia ligada à memória e
ao esquecimento. A memória traumática e encriptada é revelada como
uma modalidade de apresentação do esquecimento, do censurado e do
recalcado, e agora vem à tona nessas obras e reivindica o seu direito à
voz. Inúmeras vezes lemos sobre prisioneiros “aprisionados” em suas
recordações, emflashback, das torturas que sofreram ou dos assassinatos
a sangue-frio aos quais assistiram dentro da prisão. Essas marcas, se,
por um lado, são terríveis na sua presença constante e massacrante - que
leva, paradoxalmente, à escritura como estratégia de arquivamento e
inscrição para “esquecer”29 -, por outro, são consideradas também como
provas do ocorrido. A ambiguidade da memória do trauma deixa seus
traços nas próprias expressões utilizadas: “O massacre do Pavilhão Nove
não pode cair no esquecimento”,30 lemos na reconstrução que Hosmany
Ramos faz desse massacre a partir das palavras de uma testemunha
ocular. “Cair” e “esquecer” ecoam-se mutuamente a partir de sua origem
comum em “cadere”, cair, e que se metamorfoseia, por sua vez, também
em “cadáver”. Essa cena que não deve cair no esquecimento remete aos
111 cadáveres, sob alguns dos quais as testemunhas que narraram esses

2/6
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

fatos puderam sobreviver?1 Além disso, toda uma economia da memória


do mal é construída nessa literatura das prisões a partir de noções como
ódio, mágoa, desejo de vingança e, por outro lado,perdão e esquecimento
(como apagamento do mal)?2
e) O código de honra que impera entre os prisioneiros também se
desdobra dentro da “lógica da troca” e, mais especificamente, da
troca agônica que tem como seu corolário a transformação do outro
em cativo do próprio presente/presenteador, sendo que, no limite,
aquele que recebe um presente deve sua vida ao outro. Desse modo,
os prisioneiros mimetizam, em suas relações, a violência a que estão
submetidos. Isso, de resto, é parte da “lógica do encarceramento” que
precisa também “dividir para dominar”. Como essa “lógica da troca”33
marca a história da cultura, o antropólogo Marcei Mauss destacou,
em diversas ocasiões, que a instituição de trocas coletivas, que leva o
nome áepotlach (a partir de sua denominação por indígenas da costa
do Pacífico americano), pode ser encontrada em diversas culturas e
épocas. Essas trocas de caráter agônico estão na origem de pactos, de
acordos, mas também de conflitos e de guerras que levam, segundo o
estudioso, ao “combate, à morte, à perda do nome e das armas. [...] Em
todo caso, é por esse meio que se fixa a hierarquia das famílias e dos
clãs”?-1 A situação de prisão reencena, também nesse ponto, estruturas
originárias de nossa cultura.
f) Existe também a figura espectral de um fascínio e de um gozo diante
da ruptura e da transgressão das leis em algumas dessas obras. Apesar
de toda a desubjetivação do prisioneiro narrada nelas - ou justamente
devido a ela e como seu antídoto -, podemos ainda ouvir aí ecos do
culto do ladrão-herói de que Benjamin nos fala no seu “Zur Kritik der
Gewalt” (“Crítica do poder/violência”)?5 Assim como já se denunciou
uma exploração obscena das imagens concentracionárias, aqui
também na literatura dos cárceres beira-se essa cena não tão marginal.
A questão que se coloca no nosso contexto é a relação da literatura
(e o seu princípio moderno do (auto)estranhamento) com esse prazer­
em romper a lei?6 Novamente encontramos aqui uma aproximação e
uma metamorfose da escritura em corpo que não deixa de ter grandes
consequências para a teoria literária. Kafka, com o seu Na colônia

277
VIOLÊNCIA, ENCARCERAMENTO, (lN)jUSTIÇA

penal,37 evidentemente se coloca diante dessa literatura, como veremos


no último capítulo deste livro.38 Ainda sobre essa categoria do gozo
estético vale recordar Baudelaire, que associava tortura e volúpia no seu
Mon coeur mis à nu: “Crueldade e volúpia, sensações idênticas, como
o extremo calor e o extremo frio”.39 Já no seu Lesparadis artificieis, ele
anotou: “Pois, assim como de uma droga terrível, o ser humano goza
deste privilégio de poder extrair novos e sutis prazeres mesmo da dor,
da catástrofe e da fatalidade”.40 Diante dos horrores do século XX, no
entanto, Adorno extraiu a questão dos limites éticos desse prazer. A
arte deve existir, como meio de expressar a dor, mas sua existência está
sempre abalada pela lembrança da dor real.41
g) A voz do encarcerado, por sua vez, é a manifestação de uma oralidade e
de uma corporeidade que nem sempre tomam as vias da escrita de modo
direto. Na literatura carcerária, ocorre, como na literatura de testimonio,
um encontro entre uma cultura oral e outra escrita. Em primeiro lugar,
porque o universo populacional dos cárceres brasileiros reflete a violência
social do país, que impede que uma boa parcela de sua população tenha
direito à alfabetização, uma via essencial na conquista da cidadania.
Em segundo lugar, a oralidade dessa população é carregada de marcas
do seu cotidiano, do seu meio cultural e de códigos que normalmente
servem para delimitar e apresentar a sua identidade (e poder). Esse
aspecto é particularmente importante de destacar quando tratamos
de prisões e de outras instituições “totais”, nas quais se desenvolve
um verdadeiro jargão a partir do estabelecimento de códigos internos
de comportamento e de distribuição do poder.42 Podemos, portanto,
perceber uma terceira determinação nessa oralidade que marca a
literatura dos cárceres, na medida em que mesmo os prisioneiros
letrados são obrigados a reciclar a linguagem trazida do exterior para
dar conta do traçamento desse espaço que é não só física, mas também
linguisticamente isolado da sociedade.43 André du Rap, por exemplo,
é escritor, mas mesmo assim publicou o seu texto por meio de uma
entrevista transcrita por um jornalista, Bruno Zeni. Essa junção entre
a narrativa (gravada) e a transcrição executada por um jornalista faz
dessa obra talvez a mais autêntica manifestação do testimonio dentro da
literatura carcerária brasileira; mas de um testimonio particularmente

278
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

sofisticado, que nâo cai nem no lugar-comum do “gênero carcerário”,


nem no das histórias detetivescas, ou ainda na sucessão de anedotas (o
que ocorre em outras obras paulistas, seguindo o exemplo do livro do
médico Drauzio Varella).44 Também a obra de Negrini, um advogado,
é a transcrição do testemunho de um ex-prisioneiro. Á transcrição traz
consigo os temas da tradução (do real para o relato) e da fidelidade -
impossível - à oralidade do testemunho. A impossibilidade de passar
a oralidade para a escritura leva à confecção de uma escrita particular,
prenhe de real no seu traçamento. Essas marcas são deixadas na textura
do texto, particularmente nos mais marcados por esse jogo com a
oralidade-corporeidade, como é o caso da obra de André du Rap com
Bruno Zeni. Vale notar, ainda com relação ao tema da oralidade, que, na
linguagem do cárcere dessas obras, nomes próprios, apelidos e epítetos
têm um papel fundamental e, novamente, nos remetem à tradição
popular oral e à da epopeia. No nome próprio, a linguagem busca
reativar a sua força criadora, recobrar uma pureza e uma humanidade
antípoda da abjeção onipresente.

Como o também autor de rap Jocenir escreveu (ao modo de uma letra
de música): “Cada detento uma mãe, uma crença, cada crime uma sentença,
cada sentença um motivo, uma história de lágrimas, sangue, vidas inglórias,
abandono, miséria, ódio, sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo”. E
ele arremata: “Traduzia o cárcere com um lápis”.45 Esses textos são parte da
literatura contemporânea que se constrói a partir dessa necessidade de traduzir
uma cena real e dos limites dessa tradução. A nós, teóricos da literatura e
da estética, cabe não apenas descrever esse double bind, mas tirar dele as
consequências para nossa própria atividade de críticos. Não podemos fazer de
conta que não desempenhamos um papel no “teatro histórico da memória”, de
sua inscrição e de seu apagamento, em suma, de sua política.46

Notas
1 Nietzsche, 1988a [1873], e Walter Benjamin, 1974 [1940] e 2020.
■ B,ênjamin, 2012a, p. 214.
3 Penna, 2003.

279
VIOLÊNCIA, ENCARCERAMENTO, (iN)jUSTIÇA

4 Por outro lado, é absolutamente legítimo se comparar (sem necessariamente ter em vista
qualquer modalidade de influência direta) essa literatura realizada no Brasil sobre as e
a partir das prisões com a produção correspondente da hispano-América. Essa tradição
remonta aos livros de José Marti (El presidio político en Cuba, de 1871) e de Mercedes
Cabello de Carbonera (El conspirador, de 1892) e reaparece em Federico Gamboa (La llaga,
de 1910; México, Ediciones Botas, 1947), Juan Seoane (Hombres y rejas, de 1936; Santiago,
Ediciones Ercilla, 1937), Antonio Arraiz (Puros hombres; Caracas, Cooperativa de Artes
Gráficas, 1938), Carlos Montenegro (Hombres sin mujer, de 1938; México, Impresora Azteca,
1959), Alfredo Pareja Diez-Canseco (Hombres sin tiempo; Buenos Aires, Editorial Losada,
1941), Gustavo Valcárcel (La prisión; México, Ediciones Cuadernos Americanos, 1951),
Edmundo dé los Rios (Losjuegos verdaderos; Havana, Casa de las Américas, 1968), José
Maria Arguedas (El Sexto; Lima, Editorial Horizonte, 1969) e Carlos Alberto Montaner
(Perromundo; Barcelona, Ediciones 29,1972). Vale notar que alguns desses autores também
fazem parte da literatura pensada sob o signo do testimonio e, de resto, os limites desta
são difíceis de ser traçados de modo estrito (cf. Achugar, 1994; Beverley & Achugar, 1992).
Na apresentação dessas obras do cárcere hispano-americano feita por Kessel Schwartz
(1983), salta aos olhos o paralelo das temáticas com as obras brasileiras: a violência, a
“desumanização”, o homossexualismo, o código de honra dos prisioneiros etc. O título
da obra de Antonio Arraiz, Puros hombres, por sua vez, remete à questão dos limites do
humano tal como ela é pensada em outro campo literário, o da representação da Shoah,
como lemos nos títulos e obras de Primo Levi (É isto um homem?) e de Robert Antelme (A
espécie humana).
3 Remeto, aqui, a meus trabalhos “Do delicioso horror sublime ao abjeto e à escritura do
corpo” (Seligmann-Silva, 2018, pp. 31-44); “A história como trauma” (Seligmann-Silva &
Nestrovski, 2000, pp. 73-98); “Literatura e trauma: um novo paradigma” (Seligmann-Silva,
2018, pp. 63-80).
6 Ramos, 2002, p. 232.
' Seligmann-Silva, 2020a, p. 121.
8 O movimento cinematográfico “Dogma" foi iniciado em 1995 a partir de um manifesto
publicado em Copenhague. Com diretores como Thomas Vintenberg e Lars von Trier
como iniciadores e modelos, esse movimento pregou a volta a um cinema sem artifícios,
um cinema “raiz”, com câmera na mão, som direto, sem truques, sem trilha sonora, entre
outros princípios básicos.
9 Seligmann-Silva, 2005, pp. 31-44.
10 H. Rodrigues, 2002, p. 56.
11 Nas obras de alguns prisioneiros ou ex-prisioneiros, encontramos uma comparação
frequente entre as prisões brasileiras e os campos de concentração nazistas. Essa
comparação, que é feita sem as devidas mediações e diferenciações, é repetida, por exemplo,
quando André du Rap compara o massacre do Carandiru de 2 de outubro de 1992 à Shoah
(Du Rap, 2002, p. 175 e ss.). O mesmo acontece na música dos Racionais, “Diário de um
detento”, de 1997, com seus versos: “Cadáveres no poço, no pátio interno/ Adolf Hitler sorri
no inferno!”
12 A epígrafe da obra de Hosmany Ramos, Pavilhão 9, uma citação de Alexander Soljenítsin, é
eloquente nesse sentido e também dá conta da confluência da literatura de teor testemunhai
da virada do século XX ao XXL “A Literatura que não respira o mesmo ar da sociedade
sua contemporânea, que não espelha seus sofrimentos e seus medos, nem previne contra
males morais e sociais... é mera maquilagem literária” (Ramos, 2002, p. 9). Nessa linha
de Soljenítsin, lemos também nas notas de Theodor Adorno, na sua Teoria estética: “O

280
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

primado do objeto só se afirma esteticamente no caráter da arte como historiografia


inconsciente, anamnese do subterrâneo, do recalcado e do talvez possível” (Adorno, 1982,
p. 289) [“Der Vorrang des Objekts behauptet ãsthetisch allein sich am Charakter der
Kunst ais bewuCtloser Geschichtsschreibung, Anamnesis des Unterlegenen, Verdrãngten,
vielleicht Mõglichen” (1973a, p. 384)].
13
Cf. a passagem em que André du Rap narra a limpeza após o massacre do Carandiru: “Eu
chorava, em pânico. Eu só pensava, vai chegar a minha vez, agora vai ser eu. A cena era
horrorizante. Começamos a lavar o pavilhão, puxando com rodo aquele monte de sangue.
Pedaço de carne, pedaço de companheiro seu, pedaço de ser humano ali no meio da água
misturada com sangue, sangue de vários homens. Vários companheiros se infectaram
com doenças, tava todo mundo nu. Você imagina? Os caras encapuzados e você indefeso,
nu como veio ao mundo. [...] Tava chovendo, a gente sentado no pátio, nu, frio. Mas eu
nem sentia frio, eu só queria esquecer a dor. Os PMs andavam no meio dos presos dando
cacetada, chutando. Um policial quase arrancou meu braço por causa de uma tatuagem de
esqueleto que eu tenho. [...] Ninguém nunca vai tirar isso da minha mente [...] até hoje tenho
pesadelos com isso. Às vezes me vejo naquele dia...” (Du Rap, 2002, p. 25. Grifos meus).
14
Agamben, 1998 e 2002.
15
Sobre o prisioneiro como “carne descartável”, cf. H. Rodrigues, 2002, p. 252: “A carne
humana é descartável”; Ramos, 2002, p. 263: “Imagino as prisões como um campo estéril.
Imagino os presos como carne barata, que o mercado capitalista condena por excedente,
não lhe servindo nem como mão de obra, nem como mercado. Imagino as prisões, que
não servem para produzir bons cidadãos, mas bons presidiários. O sistema carcerário,
que funciona apenas pra segregar, punir de forma cruel e massacrar. Juizes que julgam a
distância, como se nada tivessem a ver com o problema”; Jocenir, 2001, p. 126: “O ser humano
é descartável no Brasil”. Descrevendo os dependentes de crack no sistema carcerário,
Jocenir utiliza termos que recordam os utilizados na literatura dos sobreviventes de campos
de concentração nazistas, para descrever a figura-limite dos assim chamados Muselmãnner,
ou seja, aqueles prisioneiros esqueléticos que haviam abandonado toda esperança e se
entregado apenas às suas funções corpóreas fundamentais: “Quando estavam desesperados
atrás de consumo, tornavam-se verdadeiros esqueletos perambulando pelas galerias”
(Jocenir, 2001, p. 165), ou seja, máquinas humanas, o ser humano aquém e além de si.
16
Felman, 2014.
17
Seligmann-Silva, 2010, pp. 98-109.
18
Kristeva, 1980; Foster, 1996.
19
Frase citada pelo amigo de Mendelssohn, Lessing (Lessing, 1998, p. 259), no seu Laocoonte,
de 1766. Cf. uma passagem semelhante na Crítica do juízo de Kant (pp. 189-190, na paginação
standart da edição original dessa obra). Sobre o asqueroso como conceito negativo na
fundação da estética, cf. Menninghaus (1999) e meu já mencionado artigo “Do delicioso
horror sublime ao abjeto e à escritura do corpo” (Seligmann-Silva, 2018, pp. 31-44).
20
Ramos, 2002, p. 252.
21
Du Rap, 2002, p. 54.
22
Adorno, 1975 e 1998.
23
Cf. sobretudo o seu ensaio De 1’évasion (Lèvinas, 1982 [1935]) e sua análise por parte de
Agamben (1998).
24
Seligmann-Silva (org.), 2003, pp. 375-390. .
25
H. Rodrigues, 2002, p. 206.
26
Salvato Trigo nota, com relação à literatura das prisões, que nela “o ato perlocutório” da
escrita é “atingido desde que as situações narrativas fossem mais verossimilhantes, mais

281
VIOLÊNCIA, ENCARCERAMENTO, (iN)jUSTIÇA

realistas”. Para ele, o ser literário dessas narrativas (e ele enfoca as de Angola e Moçambique)
não se submete ao seu teor de narrativa da realidade. Falando de José Luandino Vieira,
ele afirma que “o biográfico está nele a serviço do literário, isto é, a sua escrita recusa-se
a ser simplesmente panfletária” (Trigo, 1986, p. 157). O recurso ao diário e à memória é
uma estratégia literária explorada nesse mesmo sentido tanto na literatura dos cárceres
brasileiras (cf., por exemplo, Du Rap, 2002; Jocenir, 2001; H. Rodrigues, 2002) como na
hispano-americana (cf. Schwartz, 1983, p. 321). Ê claro que o “conflito” entre o ser literário
dessas narrativas e o seu aspecto de denúncia e acusação não deve ser “resolvido” de um
modo simples a favor de algum dos partidos. Essa ambiguidade é constitutiva desse tipo
de literatura “do real”, que justamente “embaça” as fronteiras de gênero, e entre a literatura
e o “real”, l
Adorno, 1982, p. 289.
28
Por outro lado, é importante reforçar que a “literatura do real” não se limita apenas às obras
programaticamente testemunhais. O importante é perceber como, mesmo na literatura
não programaticamente testemunhai (em autores como Kafka, Proust, Beckett, Celan,
Rosa, Ramos e, mais recentemente, Itamar Vieira Junior, 2020), podemos surpreender um
“teor testemunhai” e traços da barbárie do mundo que lhe deu nascimento. No atual debate
brasileiro entre os adeptos da literatura documental e os seus inimigos, comete-se o erro
básico de cortar, estabelecendo dois campos que não existem de modo puro, a saber, o do
documentário e o da literatura.
29
H. Rodrigues, 2002, p. 116.
30
Ramos, 2002, p. 270.
31
Varella, 1999, pp. 288 e 294; Du Rap, 2002, pp. 21 e 23; Ramos, 2002, p. 257.
32
Com relação à memória do mal como elemento nuclear das tragédias gregas, cf. o belo
capítulo de Michèle Simondon “La mémoire dans le destin de 1’homme; la tragédie”
(Simondon, 1982).
33
Mauss, 1999, p. 358;
34
Idem, p. 357.
35
Benjamin, 1977.
36
Outra questão importante, ao pensar a relação entre literatura e ludicidade, é a dos limites
entre o ficticio e o teor testemunhai dessas obras. Vale a pena fazer um confronto entre
os textos em primeira pessoa programaticamente testemunhais e os “de ficção”, contidos
na coletânea de textos de autoria de Hosmany Ramos. Seu relato sobre o que ocorreu no
massacre, do Carandiru segue os procedimentos do relato de testimonio, uma vez que ele
parte do testemunho do sobrevivente Milton Marques Viana e escreve em uma primeira
pessoa “de segunda mão”. Lemos aí detalhes da ação bárbara dos policiais, as torturas
cometidas e também uma lista com os nomes dos 111 assassinados. Não é ocioso lembrar
que esse tipo de listagem constitui um topos na literatura da memória de catástrofes,
assim como em monumentos aos caídos nas guerras. Cf. o que já escrevemos aqui sobre o
memorial aos soldados mortos no Vietnã, de Maya Lin, sobre as listas na Ilíada e sobre as
listas de agentes imagéticos.
37
Kafka, 2020.
38
De resto é importante lembrar a questão das tatuagens que desempenham um papel central
na cultura carcerária. Os policiais leem, por exemplo, as tatuagens de André du Rap como
sinal de que ele é “matador de polícia” (Du Rap, 2002, p. 109). Assim como Kafka descreve
a máquina da colônia penal como uma executora que mata ao escrever o código infringido
no corpo do infrator (nas suas costas), do mesmo modo Negrini narra que, nas prisões,
as leis violadas são muitas vezes inscritas sobre o corpo do detento. A tatuagem viola, por

282
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

sua vez, a lei mosaica que proíbe a inscrição sobre a pele. No universo em que a lei impera
do modo mais radical, como lei do talião, antes de mais nada, a contravenção está em
toda parte. De resto, nas tatuagens vemos marcas escritas sobre a pele que fazem parte da
tentativa do prisioneiro de reconstruir seu ser despedaçado pela violência. Cf. também,
quanto às tatuagens, H. Rodrigues, 2002, p. 291 e ss., bem como a série de Rosângela Rennó
“Cicatriz” (1996-2003). Nessa série, vemos, alternadamente, fotos de fragmentos de corpos
com suas tatuagens - extraídas de negativos fotográficos do Museu Penitenciário Paulista
- e fotos de fragmentos de peles recobertas com inscrições, como se estas tivessem sido
realizadas sobre a pele, queimando-a. Os textos, como na série “Vaidade e violência” de
Rennó, também dizem respeito a fotografias. Cf. Seligmann-Silva, 2009, p. 317.
°9 Baudelaire, 1975, p. 683.
40 Idem, p. 400.
41 “O excesso de sofrimento real não permite esquecimento; a palavra teológica de Pascal
‘on ne doit plus dormir’ deve-se secularizar. Mas aquele sofrimento [...] requer também
a permanência da arte que proíbe. [...] A chamada configuração artística da crua dor
corporal dos castigados com coronhas contém, mesmo que de muito longe, o potencial
de espremendo-se escorrer prazer” (Adorno, 1973b, p. 64 e ss.). Quanto a esse ponto dos
limites éticos (e não técnicos) de representação, cf. Seligmann-Silva & Nestrovski, 2000.
42 H. Rodrigues, 2002, pp. 271-289.
43 Mas a situação cultural dos prisioneiros é mais complexa. Na verdade, encontramos não só
a tradição da literatura do cárcere citada em algumas dessas obras, mas também a tradição
filosófica sobre o aprisionamento, do século XVII a Foucault. Ou seja, seria inocente
tentarmos a leitura dessas obras dispensando o instrumental haurido a partir da história
e teoria literárias. Nesse sentido, devem-se destacar os escritos de Hosmany Ramos, com
suas referências a - entre outros - Graciliano Ramos, Céline, Jean Genet, Dostoievski,
Foucault, P. Levi, O. Wilde e W. Whitman. Ele sem dúvida é um conhecedor da história
da literatura ocidental. Como não poderia deixar de ser, Dante, com sua descrição do
inferno, também constitui uma constante nessas obras sobre e a partir da experiência no
cárcere. Como Primo Levi, H. Ramos cita a famosa frase da entrada do inferno que ele veria
muito bem transposta para a entrada do Carandiru, entrada esta ironicamente chamada
“Divineia”: “Abandone toda a esperança, você que entra" (“Lasciate ogni spereanza, voi
ch’entrate”) (Ramos, 2002, p. 232). Entre todos os autores arrolados aqui, apenas dois não
são prisioneiros, o médico Drauzio Varella e o advogado Pedro Paulo Negrini; Hosmany
Ramos e Humberto Rodrigues possuem formação de nível superior, uma raridade entre
os detentos. Essa formação explica em parte por que a obra de Rodrigues (e não só ela)
recorda a tradição das “vidas” e se serve de muitas citações “eruditas” que, não por último,
também buscam uma autodignificação de sua obra. Bruno Zeni, como jornalista, literato
e estudioso de literatura, encontra-se à parte nesse grupo de escritores e tem também um
papel sui generis na sua parceria com Andre du Rap, diverso do de Pedro Paulo Negrini
com relação ao ex-prisioneiro Rogério Aparecido, já que Zeni optou por uma elaborada
estratégia de “intervenções mínimas” no relato de Andre du Rap.
44 Salvato Trigo (1986, p. 150) nota que, na literatura dos cárceres da África lusófona (em
particular, da Angola e do Moçambique), encontramos uma desfiguração proposital da
língua do colonizador, que funciona como um ato de revolta e autoafirmação da população
oprimida, o que não deixa de recordar o importante capítulo “O negro e a linguagem”,
de Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon (2008, pp. 33-53). Fanon escreve: “Todo
povo colonizado - isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade
devido ao sepultamento de sua originalidade cultural - toma posição diante da linguagem

283
VIOLÊNCIA, ENCARCERAMENTO, (INJUSTIÇA

da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana” (idem, p. 34). Na literatura brasileira


dos cárceres poderiamos falar dessa mesma manifestação sendo que esse fato deve ser
estendido a toda uma “cultura da periferia” tal como se manifesta no rap e na literatura
dita “marginal”. Vale notar, no entanto, que Trigo destaca que, nessa literatura africana dos
cárceres, o “eu social” é mais importante que o “eu individual” (1986, pp. 152,154 e 157) do
prisioneiro; esse aspecto é uma marca da literatura de testimonio latino-americana, mas
não é parte da literatura dos cárceres produzida no Brasil. Salvato Trigo cita as seguintes
obras em sua análise da literatura prisional: José Craveirinha (Cela 1; Lisboa, Edições 70,
1980) e José Luandino Vieira (Vidas novas; Lisboa, Edições 70,1976; A cidade e a infância;
Lisboa, Edições 70,1980; Lourentinho, Dona Antónía de Sousa Neto e Eu; Lisboa, Edições
70,1981; e João Véncio: os seus amores; Lisboa, Edições 70,1979).
43 Jocenir, 2001, p. 97.
46 Este trabalho foi realizado em dezembro de 2002 graças ao apoio financeiro e institucional
do Zentrum für Literaturforschung de Berlim, dentro de um grupo de pesquisas sobre
memória e testemunho. Agradeço à então diretora daquela instituição, professora Sigrid
Weigel, pelo apoio recebido.

284
11

NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES:


UMA ANÁLISE DE CASO

O livro Memórias de um sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes, publicado


em 2001, tem uma característica sui generis se confrontado com as demais
obras dos cárceres paulistas que têm sido publicadas na virada do século.1 Luiz
Alberto apresenta seu texto como um manuscrito que estava engavetado havia
cerca de dez anos.2 A história relatada termina aproximadamente 20 anos antes
da data de sua publicação. Ela teria sido escrita após o seu encarceramento,
mas Mendes não havia procurado as vias da divulgação pública. Espécie de
“arquivo morto”, foi ressuscitado graças ao encontro dos esforços de Luiz
Alberto visando à realização de um “concurso para poesias, crônicas e contos”,3
com o trabalho e a disposição de figuras públicas como Fernando Bonassi e
Drauzio Varella. O fato de Memórias de um sobrevivente ter sido publicado
por uma prestigiosa editora paulista indica em que medida ele atingiu a esfera
pública em um momento propício, quando havia espaço e demanda para essa
narrativa. Esse encontro (nesse caso, por assim dizer, “atrasado”) entre uma
demanda interna do autor (que o levou a escrever o livro) e a esfera pública é um
traço característico de qualquer obra publicada, mas ganha especial significado
em se tratando de uma obra com forte teor testemunhai. A temporalidade da
esfera privada teve que esperar o tempo da esfera pública para poder emergir
para os leitores.
A obra articula-se, portanto, como um arquivo com diferentes datas. Vale
a pena refletir sobre outras implicações desse fato. Se inicio pelo “final”, ou
seja, pela questão da publicação e de sua data, é também levado pelo fato de
que seu autor optou por explicitar a trajetória de seu texto no “Epílogo” do
livro. Talvez pensando na manutenção de uma certa “pureza original” de seu

285
NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES

manuscrito testemunhai, o autor introduz-se apenas no final da obra enquanto


entidade metadiscursiva e autorreflexionante. Nós, como leitores e críticos, só
temos acesso à obra depois de sua publicação e começamos a escrever sobre
ela após a leitura do último capítulo: o “Epílogo”. Ou seja, nosso percurso
vai, por assim dizer, inverter o caminho do autor. Partimos do presente da
leitura - realizado próximo ao momento da publicação da obra - e, portanto,
partimos também do momento em que existiu um espaço público propício
para receber o relato narrando a história do detento Luiz Mendes. Nossa leitura
está inevitavelmente marcada por esse momento. Voltamo-nos para esse livro
dentro de um complexo panorama cultural em que uma demanda pelas vozes
dos “marginalizados” e “esquecidos” (criada tanto no mundo acadêmico,
sobretudo após a consolidação dos estudos culturais e das abordagens
pós-coloniais, como na indústria cultural, como o sucesso da obra de Varella
e do filme de Babenco baseado nela o demonstram) ocorre simultaneamente
a uma situação política e econômica que, tragicamente, só faz aprofundar os
problemas sociais que estão em grande parte na origem da violência retratada
nesse tipo de relato.
O Epílogo de Mendes também apresenta o que o autor percebe como
estando na origem de seu relato: “A intenção do livro não foi a de ter uma
mensagem. Não tenho essa pretensão. Apenas escrevi para ter uma sequência
que permitisse que eu mesmo entendesse o que havia acontecido realmente”.4
Luiz Mendes visava dar um sentido ao caos de sua vida. Sua obra apresenta-se
como um relato autobiográfico em primeira pessoa e carrega características
típicas desse gênero. O “pacto autobiográfico”, que está subentendido na
leitura do livro, parte da identificação entre autor e narrador. A narrativa é
cronológica. O narrador é onisciente. Esse modelo pode ser retraçado às origens
da moderna autobiografia no século XVIII quando ela tinha como uma de
suas características centrais a criação de uma unidade (de um sentido) na vida
de seu autor. Diferentemente da narrativa de experiências de encarceramento
relatadas por prisioneiros políticos no Brasil - de Graciliano Ramos até os
anos 1980 e 1990 -, que normalmente narram as atividades que os levaram à
prisão e enfatizam os detalhes das atrocidades ocorridas durante a reclusão,
no caso de Luiz Mendes a narrativa se inicia pela sua infância. Trata-se de uma
completa “história de vida”, já que toda ela, desde o início, estaria marcada
pela exclusão e pela violência. Nos relatos prisionais não é incomum esse tipo

286
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

de enquadramento da experiência do cárcere no plano mais amplo da vida, da


família e do background social. A moldura da narrativa, além de ser político-
-social, é familiar.
Por outro lado, a obra de Mendes diferencia-se do ponto de vista de sua
opção estética de um livro como Sobrevivente André du Rap, do massacre do
Carandiru, que possui uma estrutura mais fragmentada e tem a marca de
uma dupla fonte autoral, a do sobrevivente do massacre do Carandiru de 2
de outubro de 1992 e ex-prisioneiro André du Rap e a de Bruno Zeni, um
jornalista e escritor que editou o texto. Mendes opta por um modelo literário
mais tradicional, mais próximo de um realismo convencional, em vez de aderir
a uma estética da fragmentação que, na sua forma descontínua, mimetiza a
catástrofe representada. Também a linguagem de Mendes é menos carregada
da gíria e do jargão das prisões, se a confrontarmos com as demais obras dos
cárceres publicadas neste século. As estratégias de representação literária de
Mendes estão distantes das que marcam o momento de sua publicação. Um
trabalho que ainda merece ser feito será o estudo dos manuscritos do livro.
Uma análise genética dessa obra deverá lançar mais luz sobre a construção
dessa voz autoral que, ao mesmo tempo, é e não é uma típica voz prisional
devido ao seu domínio do idioma e dos códigos literários. Esse trabalho não
será enfrentado aqui.5
O elemento eminentemente testemunhai da narrativa de Mendes pode ser
desdobrado em seu momento individual e no social. No primeiro momento,
percebemos uma narrativa que dá testemunho das experiências individuais do
personagem central (que testemunha 0 que viu e sofreu na mesma medida em
que se confessa diante do público). No segundo momento, ou seja, no plano
social, o relato pode ser lido como uma apresentação cheia de detalhes da vida
urbana e suburbana paulista dos anos 1960-1970,6 além da descrição também
carregada de detalhes da vida nos cárceres do prisioneiro comum (não político)
durante os anos de chumbo da ditadura militar. Esse duplo viés testemunhai
cria um esteio de realidade que torna a narrativa particularmente forte para
o leitor, na medida em que ela o envolve emocionalmente (tendemos a nos
identificar com a figura, de certo modo e paradoxalmente, frágil do narrador)
e também faz um apelo aos nossos sentimentos morais e éticos de justiça,
igualdade, solidariedade etc. Esse apelo não deixa de ser ambíguo na medida
em que estamos tratando da narrativa de um autor que assume também, diante

287
NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES

de seu público, outro tipo de autoria, a saber, a de inúmeros assaltos e ao menos


dois assassinatos que lhe custaram mais de 70 anos de condenação.7
É evidente, por outro lado, que esse esteio pessoal e histórico não reduz o
elemento programaticamente literário da narrativa. Trata-se de uma história
narrada segundo padrões bem conhecidos. É verdade que nada impede que esse
panorama, por assim dizer, “histórico” e “testemunhai” seja posto em dúvida.
Isso ocorreria de modo explícito, por exemplo, se o autor fosse um escritor
conhecido e se antes do texto (ou no seu Epílogo, ou no aparato crítico que
acompanha alguns livros) pudéssemos ler um aviso (também convencional)
deste gênero:

Existem dois modos de se encarar este livro. Ou de fato existiu, com efeito, um
maço de papéis amarelos e desiguais sobre os quais foram encontrados registrados,
um a um, os últimos pensamentos de um miserável; ou existiu um homem, um
sonhador ocupado em observar a natureza em proveito da arte, um filósofo, um
poeta, quem o saberia?, sendo que esta ideia foi a fantasia, que a tomou ou, antes,
deixou-se tomar por ela e não pôde desfazer-se dela a não ser lançando-a em um
livro. Destas duas explicações, o leitor escolherá a que ele quiser.

Estas são as. palavras que Victor Hugo colocou diante de sua narrativa
Le dernier jour ã’un condamné.s Já Luiz Mendes utilizou como epígrafe duas
frases, uma de Brecht e outra de Sartre, que não só servem para dignificar
sua narrativa, mas já remetem à relação entre a história e o indivíduo. A
apresentação do livro, da pena de Fernando Bonassi, reitera esse elemento
autobiográfico e histórico da narrativa.

Autobiografia - testemunho - confissão

Da tradição autobiográfica podemos destacar também a questão das


conversões pelas quais Luiz Mendes passa. A autobiografia tradicionalmente
se articula como narrativa de uma metamorfose, de uma crise que gerou uma
profunda transformação, como Santo Agostinho formulou de modo canônico
nas suas Confissões.9 A confissão autobiográfica como ato de linguagem visa
também criar uma verdade.10 O fato - a vida - existe e é (rejcriado via linguagem,
como se (do ponto de vista do leitor) “no princípio fosse o verbo”, já que não

288
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

existe nenhuma outra garantia para o leitor senão as palavras sobre o papel.
Começamos pelo resultado final: a vida de papel. A “verdade autobiográfica”
é a própria vida e também, desde sempre, a verdade da morte. A egoescritura
inscreve-se sempre a contrapelo do caminhar da vida para a morte. Toda
autobiografia é autotanatobiográfica: e mais, é "bio-mitografia”.11 A egoescrita
é uma máquina de ipseidade, mesmo que apresente um eu esfacelado, como
é o caso de Luiz Mendes. Essa máquina não pode ser controlada, por mais
que o leitor queira se travestir de Sherlock Holmes.12 Além disso, a confissão é
tradicionalmente confissão de pecados, de fé e de louvor. No caso de Mendes,
os pecados são confessados (seus crimes e contravenções'3), assim como sua fé
(na vida criminosa, nas suas regras e em seu estrito código de conduta, pelos
quais ele se deixa torturar estoicamente sem dar com a língua nos dentes'4)
e também seu louvor por sua mãe (que recorda mutatis mutandis o louvor
de Santo Agostinho por sua mãe, Mônica). Se toda autobiografia visa a uma
salvação “do santo”, da “nudez virginal e intacta” então “[n]ada corre o risco
de ser mais envenenador quanto uma autobiografia”.'5 No livro de Mendes, esse
“acerto de contas” fica tanto mais claro se tivermos em mente que ele narra
uma dupla metamorfose: primeiro, ele é transformado (e educado, por meio dos
espancamentos terríveis de seu pai e depois pelas torturas sofridas da parte do
aparelho militar de repressão) em um indivíduo “antissocial”, um ladrão que
viria a participar de vários assaltos e de latrocínios; em segundo lugar, o livro
mostra sua transformação em um ser social e sociável, leitor incansável de boa
literatura e de filosofia, que está na origem do Luiz Mendes autor desse livro
autobiográfico.16 A verdade aqui é a da cena do tribunal: a autoapresentação
visa a um testemunho, apresentar a vida para voltar à vida (revixit). “Acusa-te,
glorifica-o”, escreve Santo Agostinho. Mendes quer recuperar a vida, seus laços
com o “fora”, com a sociedade. Nessa cena, o seu dentro volta-se para fora. Pois,
como Derrida recorda a partir de Santo Agostinho, a confissão apresenta não
apenas o que sabemos de nós, mas também aquilo que ignoramos.'7
Mas o “segredo” de Luiz Mendes é inenarrável, na medida em que ele se
encontra calcado na extrema dor corporal. Por outro lado, sendo aquele que
viveu o inferno em vida - as prisões paulistas com suas torturas e violência
mimetizada pelos próprios prisioneiros18 -, ele se torna uma espécie de Ulisses
ou dé Dante, personagens de si que conheceram em vida o inferno. Assim
como as figuras paradigmáticas do narrador recordadas por Walter Benjamin,

289
NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES

o viajante e o artesão, também Luiz Mendes tem o que narrar, algo único: sua
“paixão” pelos corredores e celas do aparelho de repressão estatal com seu
papel (ainda mais ostensivo na época da ditadura) de controlar e até mesmo
exterminar aqueles marginalizados pelo sistema.19 Benjamin, na sua tipologia
que visava delinear uma fronteira entre a “era da narrativa” e seu fim, deixou de
fora a figura daquele que narra o seu martírio (e suas várias configurações, indo
da confissão à autobiografia). Esse narrador em primeira pessoa pode também
ser desdobrado nos inúmeros “testemunhos secundários” daqueles que narram
a vida desses “mártires” (das hagiografias até as diversas histórias e narrativas
sobre os mais variados tipos de personagens que conheceram, cada qual, seu
“inferno particular”, tenham sido eles prisioneiros políticos, prisioneiros
“comuns”, sobreviventes de uma guerra, vítimas de perseguição de cunho
sexual ou étnico etc.). Benjamin, como é bem conhecido, enfatizou o mutismo
dos que voltavam da Primeira Guerra Mundial e a moderna incapacidade de
enunciar narrativas.20 Por outro lado, um contemporâneo dele, Jean Norton
Cru, na sua monumental obra Témoins - apesar de seu positivismo, ou
justamente devido a ele! -, vai saudar o testemunho da Primeira Guerra como
uma fonte incontornável para representar aquele evento histórico. Cru estava
consciente dos limites da narrativa do soldado que retornara do fronte (como
era seu próprio caso21). Desse ponto de vista poderiamos pensar nessa narrativa
impossível, ou na narrativa apesar de seus limites e impossibilidades, como
uma característica da narrativa que não só persiste no século XX e para além
dele, mas que seria uma característica dessa era de catástrofes.22 Como vimos,
o teor testemunhai não só se tornou mais visível nas narrativas ao longo do
século XX, como determinou o desenvolvimento de uma área de estudos. O
“real” irrompeu fazendo desmoronar as formas tradicionais da literatura e das
narrativas. A esse abalo denomino aqui “virada testemunhai”.
Se a leitura de autobiografias desperta algo como uma curiosidade de
voyeur, no caso específico do texto de Mendes a cena enfocada é aquela que
provoca uma intensa curiosidade e até um certo fascínio em uma sociedade
(a nossa contemporânea, sobretudo na América Latina) caracterizada pela
violência. A cena é “obscena”, “marginal”, na mesma medida em que está no
coração do próprio sistema político. O “segredo” da sociedade é exposto na sua
“verdade nua”. De modo semelhante, a “interioridade”, o universo psíquico
e emocional do protagonista, é apresentado (ou “representado”) ao público.

290
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Um segredo sustenta e revela o outro. São as desventuras do protagonista que


guiam a mão do autor-desenhista e a nossa leitura. A construção do quadro
se dá pintando, simultaneamente, o indivíduo por dentro e seu meio, que é o
que determina seus limites e transformações. A “realidade histórica” nasce da
“verdade pessoal” e vice-versa. O fascínio que a cena exerce ho público deve
ser visto como mais um traço da continuidade da violência colonial que o
livro testemunha. Não podemos esquecer que toda cena biotanatopolítica do
universo carcerário é parte integrante dos dispositivos de controle herdados
do sistema colonial-escravocrata. O presídio Tiradentes, em São Paulo, serviu
como local de flagelação e encarceramento tanto de escravos como das vítimas
da tortura praticada pela ditadura de 1964-1985. A colonialidade em que vivemos
até hoje reproduz a velha máquina colonial, descrita por Kafka, como veremos,
em sua narrativa Na colônia penal.23 Como Robert Young destacou, em seu
ensaio bastante atual Desejo colonial, “o colonialismo estava sempre fechado
na máquina do desejo”.24 A produção do marginalizado é um desdobramento
da produção dos “negros” que calcou a história da Modernidade desde o
século XVII.25 Esse “outro” construído pela máquina da colonialidade é fonte
simultânea de medo e de fascínio.
Diferentemente da tradição épica da narrativa episódica, reciclada por
autores como Varella e Rodrigues, que contam diversas histórias anedóticas
das prisões, Mendes concentra-se na sua história de vida.26 Ele apresenta sua
história não apenas como consequência de seu meio, mas também como
resultado de uma veneração incontida pela vida do crime: “Era fã incondicional
de Elvis Presley, juntamente com minha mãe. Assim como era fã do Bandido da
Luz Vermelha, do Bando do Fusca, destaques nos noticiários policiais”.27 “Saí da
boate de arma na cinta sentindo-me malandro. Meu sonho era ser malandro,
daqueles que saíam nos jornais”,28 ele narra, lembrando-se de quando tinha 14
anos, portanto em torno de 1966. O bandido-herói é uma referência central,29
apesar de sua aura ser despedaçada ao longo do livro, na medida em que Mendes
narra as consequências terríveis de sua vida criminosa. A existência dos jornais
e noticiários sensacionalistas tanto apresenta o contexto midiático e voyeurista
do crime na sociedade (as caixas de ressonância da colonialidade que produzem
ao mesmo tempo medo e fascínio), Como desdobra reflexivamente o papel do
escçitor, observador de si, e do leitor, que, ao ler sua história, “assiste” à sua vida.
A mídia faz parte também da criação do mito do bandido-herói. Ela cria sua

291
NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES

fama/glória, deusa que, desde a Antiguidade, acompanha generosamente tanto


os “bons” quanto os “maus”. Mendes escreve que “faria à bala meu nome de
bandido”,30 mas fazer um nome, no seu caso, não era o mesmo que ser lembrado
por gerações futuras, mas sim obter um sucesso instantâneo que lhe trouxesse
respeito dentro e fora do cárcere.31

Testemunho e exposição da virilidade

A vida de Mendes desde muito cedo foi determinada pela dependência de


drogas e por seu envolvimento com o crime. A figura paterna é apresentada
como um ser monstruoso, um alcoólatra quase sempre desempregado, um
homem extremamente violento, que sentia um prazer perverso em fazer o filho
sofrer e reduzi-lo à mais humilhante animalidade. É como se a educação pelo
espancamento gerasse nele uma revolta contra a lei e a autoridade. A vida de
Luiz teria sido marcada pelo desejo de vingança - pelo ódio que criou em
relação ao pai: “Odiava-o com todas as forças do meu pequeno coração. Vivi
a infância toda fermentando ódio virulento àquele meu algoz e envenenando
minha pobre existência”.32 A família aparece como uma espécie de microcosmo
que reproduz a mesma estrutura violenta da sociedade. A estrutura familiar
edipiana (re)produz a violência patriarcal castradora. Também fora de casa,
desde muito pequeno Mendes foi submetido à educação pela violência, que
atingiu graus bárbaros de tortura deixando-o, algumas vezes, à beira da morte.
Como seu pai, também os policiais demonstravam “um prazer mórbido em
nos bater”.33 Em vez do modelo clássico da formação como um processo de
introjeção das leis, vemos a paulatina “deformação” de Mendes, que vai aderir
apenas às leis do crime, ao código de honra da criminalidade: “Eu já havia
introjetado a lei do crime”.34 Em vez de uma entrada no universo do simbólico
no qual, segundo a concepção iluminista da formação do cidadão, as leis seriam
universalmente introjetadas e criariam uma sociedade de irmãos, Mendes
trilha o caminho da violência (que ele vai reproduzir nas suas relações sociais)
que se liga explicitamente ao seu desenvolvimento sexual precoce. Faz parte
da imagem do bandido-herói a sua supermasculinidade, mimese, por sua
vez, da sexualidade exacerbada fantasmática do “pai”. A violência patriarcal,
falocêntrica, da colonialidade desdobra-se na violência intestina da sociedade.

292
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Esse ponto é particularmente interessante e digno de destaque se recordarmos


que existe uma tradição testemunhal antiquíssima e arquetípica que aproxima
o testemunho da posição masculina no ato sexual. Devemos lembrar, como
vimos acima, que, nas sociedades mais tradicionais, as mulheres não podem
testemunhar no tribunal. Já Freud recorda que, nos hieróglifos, o símbolo para
a testemunha é um falo.35 Na tragédia Eumênides, de Esquilo, que representa
uma verdadeira matriz da nossa concepção tradicional de direito e do papel do
testemunho, o famoso julgamento de Orestes é todo ele baseado na questão da
masculinidade e de sua superioridade diante da mulher. Palas Atena, a juíza, dá
seu famoso voto a favor de Orestes - o matricida, assassino de Clitemnestra -,
declarando votar no partido dos homens. Ela é o exemplo que Apoio, o advogado
de Orestes, dá para provar que somos filhos apenas de nossos pais,36 e que nossas
mães são estrangeiras a nós. Atena, como aquela que nasceu da cabeça de seu pai,
Zeus, dispensou o papel da mãe na procriação. Na própria língua percebemos
essa conexão entre o testemunho e a masculinidade: testis em latim quer dizer
tanto testemunho como testículo. Em alemão, testemunha é Zeugen, que vem do
verbo que significa fertilizar, no sentido masculino de procriar. Testis encontra-se
como étimo em atestar, assim como em testamento. Ele tem a vercom uma visão
presencial da comprovação, como apresentação de algo à visão.37 A apresentação
à claridade dos olhos do sexo masculino como prova seria o paradigma desse
modelo de atestação. Na concepção matricial de testemunho que lemos na
Eumênides, testemunha-se, antes de mais nada, a virilidade.
O livro de Mendes também é um verdadeiro tratado de testemunho como
apresentação da masculinidade. O “grande bandido” também deve ser o
“grande macho” que desde pré-adolescente leva para cama os meninos da sua
redondeza e depois o maior número possível de mulheres. Seu maior pavor é a
possibilidade de ser estuprado pelos prisioneiros mais fortes: isso significaria
uma condenação a se transformar em “garoto” para sempre.

Sistema testemunhal: lei e violência

Notar essa coincidência entre o elemento testemunhal e a presença dessa


encenação falogocêntrica da masculinidade significa também revelar a
complementaridade entre a lei, a cena do tribunal, a sociedade civil e esse sistema

293
NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES

testemunhai. Ou seja, a visão iluminista do indivíduo isola artificialmente o


“mal” do “bem”, separa a justiça e o bem-estar da sociedade, dos indivíduos
não formados ou deformados. Aquilo que eu gostaria de denominar sistema
testemunhai revela o compromisso da lei com a violência. As leis (a censura do
superego freudiano), afinal de contas, só existem em sua relação conflituosa com
o universo amorfo dos desejos e das pulsões. O recalcado desde sempre existe
dentro de um compromisso com a censura. Esta nasce, como nos ensinou Freud
em Totem e Tabu,33 justamente para recalcar a culpa originada no assassinato
do “pai primevo”, o líder da horda originária. A sociedade e seu sistema de
leis seriam uma resposta a uma pulsão destrutiva. No sistema policial e penal,
esse compromisso, como lemos no livro de Mendes, vai bem longe, na medida
em que percebemos uma verdadeira simbiose entre o aparato de segurança e o
crime. Ambos são marcados por uma “violência excessiva”, por mais paradoxal
que seja essa noção.
Quando batedor de carteira, Mendes era sempre liberado após pagar uma
parte aos policiais: “Presos, não poderiamos produzir dinheiro para que nos
assaltassem com suas carteirinhas de policiais. Éramos tipo galinhas de ovos
de ouro, para eles”.39 Em outra situação, preso novamente, ocorre um “acerto
financeiro” com os policiais. Dinho, um colega de Mendes, seria libertado para
ir buscar dinheiro e só então ele seria solto também: “Eu era refém da polícia, e
só mediante resgate me soltariam. De ladrão a vítima, triste destino...”.40 Nessa
passagem, a “hospitalidade” da prisão, que é a que mais expressa a proximidade
entre hospes (hóspede) e hostis (inimigo, o segundo termo sendo derivado do
outro41), transforma-se em pura hotage, sequestro. Não por acaso, no mesmo
julgamento de Orestes acima lembrado, na Eumênides, Atena pacifica o coro
das Fúrias, as representantes de Clitemnestra e de seu desejo de vingança, por
meio de um pacto que incorpora a violência e o castigo à lei. Esse pacto trágico
é o mesmo que Freud localizou no início da civilização. Átena afirma que o
cidadão só é justo se for controlado pelo medo. A fúria vingativa é incorporada
à lei, e não substituída por ela. A ambiguidade dos sentimentos de Mendes com
relação a seu pai (odeia-o e admira-o) pode ser lida como um sintoma dessa outra
ambiguidade, a da lei, que, ao mesmo tempo que é falogocêntrica e misógina, está
calcada no assassinato do pai (primevo, arquetípico). A visão trágica da vida como
um ciclo incessante de violência é um lugar-comum nos escritos dos cárceres.
Neles, a vingança - a incapacidade de esquecimento e de perdoar - ocupa um

294
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

local de honra. Mendes raciocina, em uma das raras metáforas extensas de seu
livro, revelando a lógica circular que rege o sistema penal:

Certa vez, li, não sei onde [provavelmente em Brecht], que condenava-se o rio por
ser caudaloso e devastador em sua corrente, mas nada se diz[a"das margens que
o limitavam e comprimiam, tornando-o tão violento. Era o caso ali [na triagem
do RPM]. Queriam proteger a sociedade de nós, mas talvez a solução fosse nos
proteger da proteção social. Daí é para se perguntar se éramos animais, como
queriam, ou se éramos animalizados, como nos faziam. Marginais e criminosos
ou “marginalizados” e “criminalizados”? O resultado se observaria no estrago, na
devastação que retribuiriamos, no futuro, à sociedade.-12

O medo também está onipresente no livro de Mendes. “O medo era o


instrumento mais utilizado e aproveitado naquela sucursal do inferno”,43 ele
escreve com relação ao efeito da onipresente tortura no presídio da avenida
Tiradentes. Apesar de esse sentimento aparentemente se opor ao espetáculo de
virilidade, Mendes apresenta-o como parte de sua autoencenação como alguém
pequeno e fraco. Sua fortaleza teria sido duramente conquistada, em grande
parte devido à astúcia e ao uso de armas.44 Nesse sentido, ao expor seu medo e
sua fragilidade - sobretudo diante do brutal aparato de polícia -, ele também
gera um apelo à piedade do leitor.45 Phóbos e eleos, medo e compaixão, as duas
paixões fundamentais da tragédia, interagem ao longo do livro produzindo
um teatro no qual se misturam fascínio e repulsa. Na medida em que nos
identificamos com o protagonista, de certo modo transgredimos também as.
leis e compactuamos com sua violência.

Literatura como denúncia

Mas seria errado concluir que a obra tem uma moral pacificadora ou
conformista. A apresentação da tortura - que Mendes sofreu desde adolescente
- tem um valor não apenas literário, mas também social e político. A literatura
de forte teor testemunhai não apenas tem uma relação tensa com a produção
de prazer (o delectare da tradição poética), como também, contra o esteticismo
neórromântico, reinstaura o elemento educador, útil, por assim dizer, que
sempre fora pensado como o prodesse da Paideia clássica.

295
NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES

O pau de arara, a que Mendes é várias vezes submetido, inicialmente


lhe é aplicado com “comedimento” por parte dos torturadores que não
queriam deixar marcas no corpo do menor de apenas 14 anos: “A perfeição
do torturador é causar o maior volume de dano e jamais deixar vestígios”.46
O torturado é reduzido a mero objeto nas mãos dos algozes: vai perdendo
os contornos humanos, torna-se algo amorfo. Várias vezes lemos frases do
tipo: “Não era mais gente. Era apenas uma coisa que odiava e se rendia, ao
mesmo tempo”.47 “Todos formados à distância de um braço, fomos contados
como gado. Os guardas não falavam. Eles gritavam, e quase sempre ofensas.
Palavrões” (ele escreve referindo-se ao Recolhimento Provisório de Menores,
no qual os guardas usavam, entre outros instrumentos, chicotes48).49 O medo é
internalizado pela via da dor: “O medo era visceral, nascia de minhas entranhas
e me sufocava. A cada passo era preciso dominar o pânico. Na verdade, meu pai
me criara preso ao medo”.50 Essas técnicas de desumanização são descendentes
do pelourinho e foram recicladas na segunda metade do século XX nas guerras
contra a independência da Argélia e do Vietnã, para aportarem na América
Latina via escolas militares internacionais. O Estado neoliberal, assim como a
colônia, depende da produção de corpos “dóceis”, subalternizados, para existir.

SEXISMO + RACISMO

O torturado aprende que uma das maneiras de conter a fúria dos torturadores
é apresentar-se o mais destruído e humilhado possível, adiantando, assim, a
reação esperada. Por outro lado, diante dos demais “malandros”, “aprendera
que o medo é algo que não deve ser demonstrado em hipótese alguma”.51
Mostrar-se medroso equivale a “efeminar-se”, “fraquejar”. Aos leitores, Mendes
apresenta-se ao mesmo tempo como vítima e agressor. Ele apresenta-se também
como alguém que nunca traiu o código da “malandragem” que inclui, antes de
mais nada, a proteção de sua virilidade: “Jamais abusei de ninguém em prisão
alguma. A moral estava na bunda, e a minha era meu tesouro”.52 “O crime é
machista por necessidade.”53
Essa literal “corporificação ” e “sexualização” dos códigos morais pode
ser lida também nas alusões a diferenças de cor dos prisioneiros. Vale a pena
transcrever a seguinte longa passagem sobre o período em que Mendes estava
no Instituto de Menores de Mogi-Mirim:

296
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Tínhamos nossos próprios conceitos e um regime social secreto. Parece que a


relação humana é sempre uma expressão cultural. Havia até estratificação social.
Aqueles com idéias afins, ou mesmo os que eram provenientes de um mesmo
bairro, formavam uma sociedade. Havia até preconceito racial, só que invertido.
Aqueles que eram mulatos já se consideravam “negrões”, e negrãp era elemento não
desejado sexualmente. Logo, o negrão era ativo, geralmente o maior, o mais forte,
portanto, mais conceituado. O branco era sempre “branquinho”. Como éramos
todos jovens, raros eram os que tinham pelo no corpo, então o branquinho tinha
algo a ver com feminino, daí desejável. Em geral tinha uma bundinha branquinha
que às vezes era até cor-de-rosa.
Numa microssociedade tão profundamente dirigida pela sexualidade
desabrochante, é fácil entender como aqueles que constituíam objeto de desejo
eram tão desprestigiados socialmente. Os negrões eram conceituados, os
branquinhos precisavam provar, na base da valentia, que eram homens e capazes
de enfrentamentos com os negrões. Era preciso ser perigoso para ser respeitado.
Muito perigoso, inspirar temor. Aqueles que não o fossem, que tratassem de
arrumar um jeito de sê-lo, senão...54

O racismo era “invertido” do ponto de vista da moral “malandra” que vê no


fato de alguém ser desejado sexualmente (ser visto como “bonito” e “delicado”)
um rebaixamento, um “efeminamento” e uma objetificação.55 O “negrão” era o
forte, o maior e o ativo. Invertida é a situação da burguesia brasileira branca,
objeto fantasmático dos desejos de consumo de Mendes e seus companheiros de
encarceramento, que é como que projetada nos “branquinhos”. Na situação da
microssociedade prisional, esse “branquinho” pode finalmente ser dominado
e possuído. A ambiguidade expressa-se novamente aqui: o modelo é amado
e odiado. Deseja-se ser igual aos “belos” e “delicados” brancos burgueses e
ao mesmo tempo se quer destruí-los, dominá-los, incorporá-los, “comê-los”.
Mendes encarna essa ambiguidade de um modo complexo, na medida em que
era identificado pelos companheiros como um “branquinho”,’6 apesar de ter
um currículo de “negrão” e de desejar ser visto como tal. Uma das práticas
de violência entre os prisioneiros é, além de violentar os mais fracos, travesti-los,
obrigar a “vestir calcinha de mulher, desfilar se requebrando, depilar-se”,57
como ele conta com relação ao presídio da Tiradentes (local em que, na época,
se torturavam também os membros da oposição à ditadura). A racialização
errf toda a história da colonialidade sempre esteve associada à sexualidade e à

297
NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES

construção de uma economia libidinal que perpassa tanto a “economia política”


como as práticas políticas, como notou Robert Young.58 O patriarcalismo com o
seu falocentrismo estipula a racialização que também é uma divisão violenta de
gêneros e de papéis sexuais. Como elaborou Frantz Fanon, a violência colonial é
abertamente sexualizada. O “branco” projeta no “negro” uma hipersexualidade
que, em seguida, é tentativamente neutralizada pela violência:

Ainda no plano genital, será que o branco que detesta o negro não é dominado
por um sentimento de impotência ou de inferioridade sexual? Sendo o ideal de
virilidade absoluto, não haveria aí um fenômeno de diminuição em relação ao
negro, percebido como um símbolo fálico? O linchamento do negro não seria
uma vingança sexual? Sabemos tudo o que as sevícias, as torturas, os murros
comportam de sexual. Basta reler algumas páginas do Marquês de Sade para nos
convencermos... A superioridade do negro é real? Todo mundo sabe que não. O
pensamento pré-lógico do fóbico decidiu que é assim.59

Essa violência abertamente sexualizada expressa os dois sentimentos


básicos projetados no processo de outrificação e animalização do “negro”:
o sentimento de ameaça e de fascínio.60 Escreve Fanon: o branco “tem
necessidade de se defender deste ‘diferente’, isto é, de caracterizar o Outro.
O Outro será o suporte de suas preocupações e de seus desejos”.61 Portanto, o
desejo produzido e orquestrado pelo modelo falogocêntrico colonial e que se
estende na colonialidade perpassa também os jogos e as práticas violentas da
sexualidade nos cárceres. Como em um espelho, neles se refletem, repetindo e
deslocando, as hierarquias da colonialidade, que desenharam o topo da “cadeia
dos seres” como sendo ocupado pelo “branco”, e sua escala mais baixa, quase
animal, pelo “negro”. A supersexualização do corpo negro também é parte do
pacote racista que, desde ao menos o século XVIII, se projeta sobre o negro.
Frantz Fanon, no mesmo Pele negra, máscaras brancas, comenta ainda, não
sem certa ironia:

quem diz estupro está dizendo preto. Durante três ou quatro anos entrevistamos
cerca de quinhentos indivíduos da raça branca. [...] Cerca de seis décimos das
respostas apresentavam-se assim: Preto = biológico, sexo, forte, esportista, potente,
boxeador, Joe Louis, Jess Owen, soldados senegaleses, selvagem, animal, diabo,
pecado.61

298
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Narrar a dor e a morte

A narrativa de Mendes leva o título de Memórias de um sobrevivente. Já


discuti anteriormente a questão do elemento memorial-autobiográfico do texto
na sua relação com o conceito de testemunho como testis. Vale á pena determo-
-nos mais no conceito de “sobrevivente”. Num determinado momento do livro,
Mendes define o que significa proceder e pensar “como um sobrevivente de
alguma guerra”, coisa que ele aprendera com sua vida: “Amor para mim era
sexo. Estava preparado apenas para defender e resistir. Se me dessem uma
chance, revidar com extrema violência, para matar, se facilitassem. [...] Era
aquela educação que as instituições do governo me dotaram”.63 Por outro lado,
sobrevivente quer dizer também que a pessoa assim denominada conheceu a
morte de perto. O sobrevivente como que carrega consigo a experiência de algo
inexperienciável, que é a morte ou algo muito próximo a ela. O sobrevivente
é superstes, sobrevivente em latim, mas também a testemunha que porta
consigo a experiência da dor. Ao lado do testemunho como testis, como
apresentação da prova, que, como vimos, tem muito a ver com comprovação
da virilidade e funciona dentro do registro da visualidade, existe também
essa figura da testemunha como uma sobrevivente. Neste segundo sentido
ela tem algo a narrar que sequer ela mesma pôde experienciar ou traduzir
em termos simbólicos. Superstes, como Benveniste comenta, “não é somente
‘ter sobrevivido a uma desgraça, à morte’, mas também ‘ter passado por um
acontecimento qualquer e subsistir muito mais além desse acontecimento’,
portanto, de ter sido ‘testemunha’ de tal fato”.64 O testemunho como superstes
radicaliza o fato fundamental da linguagem - ao menos desde os românticos -
que é justamente seu descolamento do real. Diante do “real” da dor, as palavras
revelam-se como moeda gasta e sem sentido preciso. Tudo pode ser dito, mas
isso não implica que tudo possa ser significado, passado através dos signos.
Por outro lado, o signo que porta o testemunho como superstes torna-se uma
espécie de pele na qual praticamos outra modalidade de leitura que procura
decifrar as marcas deixadas pela violência que podemos apenas imaginar, mas
nunca sentir. Trata-se de uma recepção do testemunho que está aquém e além
do registro da visualidade. A violência praticada nos “porões da sociedade”,
via de regra, ocupa um local paradoxal: por um lado, a instituição responsável
pela violência quer esconder suas práticas que fogem ao contrato social que

299
NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES

estabelece o monopólio estatal da violência; por outro lado, essas mesmas


instituições - e sobretudo o aparato da repressão no caso específico da ditadura
militar brasileira, período em que se passa a história narrada por Mendes
- procuram ostentar suas garras visando à intimidação da população. Não
podemos esquecer que, na ditadura, calcada - como os regimes totalitários - na
suspensão dos direitos básicos dos cidadãos e na paradoxal institucionalização
do estado de exceção, essa ambiguidade e essa contradição da violência estatal
ficam ainda mais explícitas.65 Assim, Mendes narra, como vimos, as técnicas
de tortura que visavam não deixar marcas na pele do torturado, sobretudo
no caso das torturas que sofreu quando era menor de idade. O que revela
um “pudor” dos policiais em torturar mais explicitamente (ou seja: deixando
marcas na pele) “apenas” os adultos. Surpreendemos essa dialética no desejo do
aparato de repressão de mostrar sua potência e ao mesmo tempo esconder as
consequências dela. Esse movimento é refletido pelas vítimas que não apenas se
lembram do ocorrido como, muitas vezes, sequer conseguiríam se esquecer do
que viram. Essas memórias têm a qualidade de um fardo difícil de carregar. As
imagens queimaram a retina de seus olhos. Como Mendes escreve referindo-
-se às vítimas da tortura no presídio Tiradentes: “Nunca mais esqueço aquela
poça de sangue na entrada do xadrez, acho que está fotografada para o resto
da vida, como uma tatuagem”.66
Diferentemente dessas imagens, a dor no próprio corpo deixa outras
marcas. A dor é algo que se passa na ilha que é nosso corpo. Quando presenciou
um prisioneiro sendo violentado sucessivas vezes por companheiros de cela,
Mendes assistiu àquilo como se estivesse em outro planeta, apesar de sua
proximidade: “Eu a tudo observava qual tivesse com uma luneta, observando
outro planeta”.6' Já a sua própria dor e as torturas pelas quais passou, ele tenta
- apesar de tudo - descrever do modo mais claro possível, sem recuar diante
da recordação desses fatos dolorosos. Podemos interpretar isso argumentando
que tais cenas são essenciais tanto à sua vida como à sua própria denúncia do
sistema policial e penitenciário. Um dos fenômenos que ele destaca a respeito
dessas cenas é uma espécie de descolamento entre mente e corpo, ou seja, sua
vontade de abandonar o corpo. Esse tipo de “esquizofrenia”, típico de relatos
de torturado, aparece também quando ele descreve um linchamento por
populares na rua de que foi vítima: “Assistia àquilo tudo como [se] fosse um
filme, não parecia real, no entanto doía e sangrava”.68 Ao ler essas descrições

300
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

detalhadas das cenas de tortura, o leitor, ao mesmo tempo que sente pena
da vítima - e assim reforça seu sentimento social de compaixão -, perde a
crença no ser humano como um ser “bom” e “digno”. Através da barbárie
nos “humanizamos” para em seguida recusar qualquer tipo de humanismo
inocente.

A DIALÉTICA ABJETO/OBJETO

Mendes descreve também a “animalização” dos prisioneiros destacando


não apenas a sua objetificação, mas também sua abjetificação. A perda do
corpo (da sua liberdade), a sua transformação em massa corpórea disponível
ao sacrifício como também ao trabalho (muitas vezes escravo nos presídios), a
redução do ser humano a agregado de carne, ossos e nervos são radicalizadas
com o espetáculo da dor e da abjetificação. Se o Iluminismo e sua antropologia
otimista são postos à prova através dos testemunhos dos cárceres, é porque seus
conceitos de “igualdade”, “liberdade” ou “fraternidade” sofrem aí profundas
transformações. Em vez de nobres conceitos puros, significando os elevados fins
da humanidade, são revelados em seu compromisso com a dominação. As fezes
que os policiais introduzem na boca do torturado69 são o contraponto literal
dessa reversão dos conceitos em “violência crua”, para usar uma expressão
de Mendes empregada para caracterizar as torturas de que foi vítima.70 Em
outra passagem, quando está em uma cela forte, Mendes se viu obrigado a
se comunicar exclusivamente pela privada: os canos de esgoto (chamados
de “telefone”) constituíam o seu único canal de comunicação.710 simbólico
literalmente é conduzido pelo abjeto - e a partir desse abjeto. A prisão pode ser
vista como um micromodelo da sociedade em que todas as ambiguidades da lei
e da civilização se manifestam de modo explícito. Essa ambiguidade também
é explicitada em frases do tipo: “na prisão quase tudo era proibido e permitido
ao mesmo tempo”.72 O testemunho revela que o que se passa nos “porões da
sociedade” passa-se, na verdade, nos seus pilares e estacas de sustento.73 Resta
pensar se e em que medida essa violência pode ser separada do poder.
O abjeto, aquilo que é recusado, ejetado, vomitado, é, para Julia Kristeva, um
“objeto” originário, é o “recalcamento originário” (refoulement originairé). Ele
nos defronta, ela escreveu em seu livro de 1980, “com esses estados frágeis nos

301
NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES

quais o homem erra nos territórios do animar.74 Se o sublime, conceito-chave


da fundação da estética no século XVIII, é todo derivado da autopreservação
diante de forças da natureza (externas ou internas), o abjeto ilumina nosso
ser fragmentado: ele também é originário e também dele nasce a nossa vida,
mas o foco agora é lançado da “outra borda”, ou seja, da margem sem linha do
“sujeito” pré-subjetivo, quando o mundo ainda não era mundo. Se no sublime
existe uma tendência para o “divino”, e se seu efeito é um deleite, no abjeto
existe gozcnjouissance, um prazer ambíguo derivado da catársis do Outro, que
traça ao mesmo tempo a catastrófica topografia do nosso ser.75 Ou seja, o abjeto é
pensado, de acordo com Kristeva, como algo que nos remete ao momento ritual
de nossa cultura; ele obriga o simbólico a um ato regressivo para garantir a si
mesmo, já que este mundo está desde sempre ameaçado de romper sob a força de
uma massa abjeta originária que insiste em vir à tona. Também a colonialidade
se estrutura na produção daqueles que são outrificados e abjetificados. Fanon
criticou em Jung justamente esse procedimento de identificar os negros com o
“estrangeiro” e com a “obscuridade”. Ele comenta:

Esse mecanismo de projeção, ou de transitivismo, foi descrito pela psicanálise


clássica. Na medida em que descubro em mim algo de insólito, de repreensível,
só tenho uma solução: livrar-me dele, atribuir sua paternidade a outro. Assim,
ponho fim a um circuito tensional que poderia comprometer meu equilíbrio. [...]
Na Europa, o preto tem uma função: representar os sentimentos inferiores, as más
tendências, o lado obscuro da alma. No inconsciente coletivo do homo occidentalis,
o preto, ou melhor, a cor negra, simboliza o mal, o pecado, a miséria, a morte, a
guerra, a fome. [...] todo indivíduo deve rejeitar suas instâncias inferiores, suas
pulsões, jogando-as nas costas de um gênio mau que será aquele da cultura à qual
pertence (vimos que é o preto).76

Esse processo de catarse, de descarga e de abjeção do negro se desdobra,


da escravidão até hoje, nos gestos de subalternização, dentre os quais o
encarceramento tem um papel fundamental. Para evitar comprometer “o
equilíbrio” da sociedade, ela cria esses dispositivos de descarga. A ameaça de
ruptura paradoxalmente é produzida e controlada pelo abjeto. Ele é produzido
pelo poder/pela violência (neo)colonial e ameaça explodir a estrutura do
sistema da colonialidade. Sua repressão é condição de manutenção dessa mesma
estrutura -- repressão esta que só faz com que aumentem a pressão e a ameaça.

302
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

O INFERNO DO AGORA E A DESREALIZAÇÃO DO MUNDO

Uma das características mais marcantes da experiência em instituições


totais (ou sob regimes de exceção), nas quais a qualquer momento e por
qualquer motivo absurdo pode-se perder a vida, é a temporãlidade marcada
pela ditadura do agora. A vida de Mendes vai se tornando aos poucos um
verdadeiro inferno do agora. Apenas sua metamorfose final, em escritor, é
que vai lhe abrir as portas do passado e do futuro. Antes disso, sua narrativa
da vida nas prisões e nos cativeiros é um verdadeiro paroxismo do tempo do
presente. O “tempo do agora” para alguém na situação dele é o verdadeiro
oposto do utópico “tempo do agora” (Jetztzeit) benjaminiano, caracterizado
pela explosão do contínuo da história e pela simultânea libertação do peso do
histórico e da dominação dos homens sobre os homens e dos homens sobre a
natureza.77 Já Mendes escreve, por sua vez: “Para mim só existia o momento,
nem passado acontecera. Viver era um mergulho no agora, instantaneamente.
O resto era ilusão. Futuro não existia, passado idem. Só o presente, em sua
exuberância, era real”.78 Essa “exuberância” tanto podería ser positiva,79 como
é o caso da passagem da qual vem essa citação - quando ele realizava seus
sonhos de “grande bandido” e de “rei”, ou “pai” de uma família de filhos que lhe
pertenciam -, quanto podería ser seu oposto, como os momentos de extrema
penúria na carceragem mostram. Após passar por várias sessões de tortura e
de receber dos policiais uma corda de náilon, com recomendações para que se
enforcasse, ele escreve: “Era sexta à tarde, e pensei em viver, pelo menos mais
um fim de semana”.80
Por outro lado, a vida enclausurada leva a um superdimensionamento
do tempo. Como “matá-lo” passa a ser uma questão primordial. Ou seja, o
tempo momentâneo pesa sobre o prisioneiro como um bloco compacto que o
esmaga. Mendes descreve suas estratégias para fugir da depressão decorrente
daquela opressão, que incluíam uma rigorosa rotina de exercícios ou ainda a
fuga para o mundo dos sonhos.81 Mas, após nove meses de solitária, ele já era
vítima da sensação decorrente daquele esmagamento espaçotemporal, também
narrada pelos prisioneiros de campo de concentração nazistas: “Há momentos
na vida do preso em que ele não acredita que exista nada além da prisão. Mesmo
verido a rua pela janela, aquilo parece mais um quadro apenas. Rua é ficção,
ilusão”.82 Essa desrealização do mundo externo pode ser interpretada também

303
NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES

como um retrato fiel do processo de “encriptação” desses indivíduos isolados,


abjetificados e “recalcados” pela sociedade.
Como já foi visto aqui, a “solução” que Mendes encontrou para esse processo
de ruptura do mundo e de encapsulamento foi a saída pelo universo das letras.
Iniciado pelo amigo Henrique, ele mergulha nos livros com um plano em mente:
“Eu iria construir uma nova história de minha vida, doravante. Uma história
mais bonita”.83 Nessa segunda e profunda metamorfose, o passado de Mendes
recebe um npvo significado: “ [T] odos os males de minha vida me fizeram bem.
O que não mata...”84 “Só me restava fazer uma releitura e reinterpretação desse
mundo. Simples.”85 Sua identidade passa agora pela busca de um outro tipo de
reconhecimento, não mais como o “grande bandido”, mas sim “como pessoa
culta e sábia”.86 Mendes acaba seu livro contando que, em 2000, era pai de dois
filhos, estava casado e cursava o primeiro ano de direito na PUC de São Paulo.
Paradoxalmente, vemos que, apesar da crítica radical do livro ao sistema penal,
seu happy end parece indicar que o autor conseguiu, sim, se “regenerar”, tornar-
-se um “cidadão respeitável”. Mendes estava formado. Seu passado sofrido foi
revertido em seus “anos de aprendizagem”. Mas, se levarmos em conta que
Mendes é um “sobrevivente”, fica claro que ele também é uma enorme, uma
gigantesca exceção ao sistema. O tipo de exceção que confirma a regra.

Notas

1 Cf. Mendes, 2001; Du Rap, 2002; Jpcenir, 2001; Letras de liberdade, 2000; Negrini, 2002;
Ramos, 2002; H. Rodrigues, 2002; Prado, 2003; e também, apesar de não se tratar de
memórias de um prisioneiro, mas devido à importância dessa obra na atual onda de
publicações de escritos dos cárceres, Varella, 1999.
2 Mendes, 2001, p. 471.
4 Idem, p. 472.
4 Idem, p. 476.
’ Palmeira, 2009; Machado & Machado, 2015.
6 Aos 18 anos, ao sair de seu internamento de cerca de três anos em unidades para menores,
Mendes comenta, destacando esse estrato histórico de seu relato: “Em agosto de 1970,
Lennon já havia dito que o sonho acabara. Não quis acreditar. A Guerra do Vietnã estava em
pleno curso, a guerrilha no Brasil começara a ser desmantelada pelos órgãos da repressão.
O DOI-Codi era 0 palco dos horrores, o Esquadrão da Morte matava todo dia. O mundo
de pernas para o ar, arreganhado como uma puta, e eu ali no meio, abobado com tudo o
que via, sem entender nada” (Mendes, 2001, p. 205). Mais abaixo discutiremos a imagem
da mulher nesse livro, no qual essa metáfora da puta fica contextualizada.
' Mendes, 2001, p. 411.

3°4
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

8
Hugo, 1970, p. 253.
9
Chrétien, 2002.
10
Idem, p. 122.
11
Derrida, 1991b, p. 170.
12
É claro que qualquer pesquisador pode se dedicar a colher os “autênticos testemunhos” da
vida do seu autor: percorrendo os passos da sua vida, levantando os documentos correlatos
etc., mas esse não é nosso interesse aqui. A obra de Luiz Mendes também permite uma rica
leitura a partir do horizonte de expectativas da literatura, do confronto com o momento
histórico que constitui o pano de fundo de sua narrativa e também de uma referência ao
nosso presente de leitura da obra.
13
Em um momento crucial de sua vida, quando estava na iminência de ser libertado do
Recolhimento Provisório de Menores (RPM), devido a uma confissão sincera a um
psicólogo, Mendes foi condenado a ficar mais três anos em reclusão. “Haviam me ensinado
que quem fala a verdade não merece castigo” (Mendes, 2001, p. 137). Em função dessa
confissão, ele foi transferido para o Instituto de Menores de Mogi-Mirim, que mantinha
menores “de máxima periculosidade”: “Daí para frente odiei todos os psicólogos que pude”
(idem, p. 144).
14
Cf. a passagem: “Malandro possuía moral engessada, com um sentimento fortíssimo de
honra. Havia até uma fidalguia, uma nobreza em certos malandros. Acreditavam em duelo
à bala ou à faca por questões de moral e honra. Alguns gostavam de arrogar que favoreciam
pobres e oprimidos, diziam só roubar ricos. Esse era o ideal de ser malandro, com muita
moral e honra inatacável, defendida com a própria vida, em nosso meio” (Mendes, 2001,
p. 251 e ss.). Esse código rigoroso estabelece a pertença ao grupo, a identidade de “malandro
honrado”.
15
Derrida, 2002, p. 87.
16
Mendes, 2001, p. 438 e ss.
17
Santo Agostinho, 2019, p. 221.
18
Cf. sua frase: “O pior de estar preso era ter que conviver com presos” (Mendes, 2001, p. 167).
19
Com relação a essa passagem pelo inferno e sua primeira “metamorfose”, eis o que escreve
o autor na triagem do RPM: “Todas as minhas boas intenções de trabalhar, viver com meus
pais numa boa, foram se evaporando na medida exata dos dias que ia passando no inferno.
Julgava-me traído, roubado, e pensava que não merecia o que passara. [§] Uma revolta densa
ia tomando conta do meu ser. Queria agora ser bandido mesmo. Viver armado para nunca
mais me sentir fraco e indefeso. Queria matar policiais, assaltar qualquer um, sem dó ou
piedade” (Mendes, 2001, p. 154; cf., ainda, pp. 305, 313, 321 e 360).
20
Benjamin, 2012a, p. 214.
21
Rousseau, 2003; Dulong, 1998.
22
Felman & Laub, 1991; Wieviorka, 1998; Seligmann-Silva (org.), 2003.
23
Kafka, 2020.
24
Young, 2005, p. 220.
Mbembe, 2017.
26
Mendes, apesar de não entrar em muitos detalhes das histórias de seus colegas e
companheiros, recorda das conversas dos internos, nas quais, ele escreve, “em geral
aumentavam os fatos, colorindo-os, mentindo descaradamente. Era preciso sempre contar
uma vantagem maior para aumentar o prestígio, aumentando ao mesmo tempo o conceito
de malandro de que tanto gostávamos. Ser considerados malandros era todo nosso objetivo
ali” (Mendes, 2001, p. 153). Ou seja, a insinceridade é assumida como parte da narrativa
das histórias da rua. Para o leitor, essa sinceridade acerca da insinceridade contamina o

305
NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES

relato da sua vida, mas o seu efeito paradoxal é o de reforçar a “base referencial”, já que
o “contar vantagem” é parte da vida também. O ato de linguagem que afirma a mentira
leva o leitor a querer avaliar onde existe maior ou menor dose de mentira, mas não a
anular a fonte “histórica” do relato. Todo discurso autobiográfico joga com essa tensão: no
momento mesmo em que o autor afirma tacitamente - como em um juramento no tribunal
- “prometo dizer a verdade...”, a “mentira” e a pura fantasia já surgem para assombrar o
autor e seus ouvintes/leitores.
Mendes, 2001, p. 45.
28
Idem, p. 68.
29
Idem, pp. 103 e 162.
30
Idem, p. 358.
31
Após um assalto, no qual Mendes cometera um assassinato, ele escreve que todos do bando
comentaram os fatos “que para nós eram uma odisséia. Os louros da vitória me couberam”
(Mendes, 2001, p. 363).
32
Mendes, 2001, p. 15.
33
Idem, pp. 151 e 385.
34
Idem, p. 127.
35
Freud, 1989, p. 91. Na escrita acádica cuneiforme, o símbolo para testemunha é semelhante
a um olho e significa tanto ver aquilo que está diante quanto a pessoa que testemunha
(Labat, 2001). Já o sinal para o falo, para o número um e para indicar uma pessoa é um
traço vertical. Esse sinal aparece diante de cada nome nas listas de testemunhas nos escritos
cuneiformes. Devo esta última informação a dra. Kathryn Slanski da Coleção da Babilônia
da Sterling Memorial Library de Yale, a quem agradeço.
36
Filhos “do pai”, deveria escrever, já que a língua portuguesa já nos faz dizer que a mãe está
submetida ao pai quando dizemos “pais" para nos referirmos aos nossos progenitores. A
“lei da língua” e da gramática também é falocêntrica. Ou melhor, é antes de mais nada
nessa lei que o falocentrismo se instaura.
37
Benveniste, 1995.
38
Freud, 1993.
39
Mendes, 2001, p. 108. Cf. ainda esta outra passagem que trata do internamento em Mogi-
-Mirim: “Até os guardas eram influenciados pela nossa cultura marginal e secreta. Usavam
nossas gírias e, muitas vezes, procediam conforme nossos valores. Realmente, não seria
juntando uma multidão de meninos de rua, delinquentes juvenis, em alojamentos,
alimentando-os, obrigando-os ao trabalho e sujeitando-os a uma rígida disciplina que se
conseguiría educá-los” (Mendes, 2001, p. 180 e ss.).
40
Mendes, 2001, p. 298.
41
Benveniste, 1995, p. 98 e ss.
42
Mendes, 2001, p. 146. Cf. também: “Criava-se uma geração de predadores que iria aterrorizar
São Paulo. A maioria seria morta pela polícia, mas antes disso... [...] Nossa preocupação
não era só o dinheiro. Era vingança, explosão de uma revolta contida e cultivada em longos
anos de cativeiro, nas mãos de sádicos carrascos torturadores” (idem, p. 182). A consciência
de Mendes do fato de que os “marginais/marginalizados” são uma espécie de escória e
de alimento (quase que sacrificial e necessário) da sociedade, homo sacer, na expressão
consagrada de Giorgio Agamben, fica clara quando explica a lógica do artigo 59 do Código
Penal (que ele teve que assinar quando foi preso como batedor de carteiras no centro de
São Paulo): “Teria 30 dias para arrumar um emprego. Caso contrário, a qualquer momento
que fosse preso, poderia ser autuado em flagrante de vadiagem. [§] Num país em que o
desemprego é parte do esquema para manter os salários baixos, o artigo 59 do Código Penal

306
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

é um absurdo inominável. No momento em que alguém é mandado embora do emprego,


já está infringindo as disposições legais desse artigo. Mais 30 dias e poderá, inclusive, ser
apanhado por ter sido desempregado. Além de ficar sem o emprego, ainda vai preso” (idem,
p. 232).
43 Mendes, 2001, p. 300.
44 Descrevendo a violência entre os detidos no RPM, Mendes afirma que o-medo desumanizava
as pessoas que mimetizavam a violência a que estavam submetidas. Sua astúcia nem
sempre podia ajudar: “Sobressaía sempre pela astúcia e ousadia. E ali não era local onde
tais virtudes pudessem ser consideradas. Predominava a lei dos mais fortes. A força bruta.
[...] Os loucos, os débeis e os fracos eram o alvo favorito de todos naquele depósito de
vidas humanas” (Mendes, 2001, p. 122). O que é considerado o “resto” da humanidade,
encarcerados em dispositivos biopolíticos neocoloniais, reproduz internamente esse
mecanismo de destruição do “outro”. Sobre a astúcia, é importante lembrar que ela é uma
velha personagem da narrativa épica, sendo o epíteto do Ulisses homérico, “aquele de
muitas astúcias”, Odisseu “polimétis”. No espaço regido pela violência da colonialidade,
o instinto de sobrevivência produz o “malandro” com a sua característica “astúcia”, a
inteligência dos subalternizados.
43 Mendes se apresenta como um amigo dos mais fracos. “Sempre fora mais amigo dos
pequenos e humildes. [...] Tinha pena do ostracismo a que eram submetidos, quando não
conhecidos. Havia algo de bom em mim” (Mendes, 2001, p. 183). “Jamais consegui ver
pessoas sofrendo, sem me comover” (idem, p. 194).
46 Mendes, 2001, p. 75; cf. p. 71.
4/ Idem, p. 73.
48 Idem, p. 111.
49 Guardadas as enormes diferenças, em vários momentos do livro a descrição dos
procedimentos de humilhação dos prisioneiros faz lembrar a instituição biopolítica dos
campos de concentração, sobretudo na sua vertente nazista. Mendes mesmo observa, com
relação ao caminhão que transportava os prisioneiros entre a cadeia e o presídio: “Parecia
aqueles carros com escapamentos para dentro em que os nazistas transportavam os judeus.
Eu ainda iria sofrer muito, e muitas vezes, nas mãos daquele torturador motorizado”
(Mendes, 2001, p. 271). A diferença está no fato de que todos os que eram transportados
nos referidos caminhões nazistas realmente eram mortos. Os prisioneiros, outro exemplo,
são submetidos a típicos rituais de entrada na prisão que incluem a raspagem dos cabelos,
a obrigação de desfilarem nus diante dos demais detentos e policiais (idem, p. 424), a
dedetização, a utilização de uniformes e a privação de comida (certa vez, Mendes ficou
dez dias sem receber nada para comer (idem, p. 296). Além disso, os prisioneiros são
submetidos a contagens e chamadas, e a divisão do espaço se dá algumas vezes a partir
de elementos corporais, como tamanho e força (seguindo uma “biotipologia”, segundo o
próprio Mendes) (idem, p. 451). A cumplicidade dos médicos nas sessões de tortura, que
Mendes narra em detalhes, também lembra a profunda cumplicidade do ideário nazista
com uma ideologia médica baseada na higienização da sociedade e a extirpação do que
era considerado insano. Nos dois casos, a identidade é reduzida aos dados meramente
animalescos. Todos esses procedimentos evidentemente despersonalizam e desumanizam
o prisioneiro, concorrendo para transformá-lo não em um cidadão - indo contra o que
uma visão correcional do sistema penal levaria a crer -, mas sim em alguém com enormes
dificuldades de poder um dia voltar a ser um membro da sociedade (idem, p. 156 e ss.).
«Vale lembrar que desde Aimé Césaire a relação entre a violência (neo)colonial e a nazista
é aproximada, e Hannah Arendt, no ano seguinte à publicação do Discurso sobre o

307
NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES

colonialismo (1950), em seu Origens do totalitarismo, destacou a profunda relação entre


a violência colonial e o nazismo nas suas técnicas biopolíticas: “As possessões coloniais
africanas tornaram-se o solo mais fértil para que florescesse o grupo que viria a ser mais
tarde a elite nazista. Viram ali como era possível transformar povos em raças e como, pelo
simples fato de tomarem a iniciativa desse processo, podiam elevar o seu próprio povo à
posição de raça dominante” (Arendt, 2013, p. 274). E Césaire: “o burguês muito distinto,
muito cristão do século XX [...] carrega consigo um Hitler sem saber, que Hitler vive nele
[...] o que ele não perdoa em Hitler não é o crime em si, o crime contra 0 homem, não é
a humilhação do homem em si, é o crime de haver aplicado à Europa os procedimentos
colonialistas que atingiam até então apenas os árabes da Argélia, os coolies da índia e os
negros da África” (Césaire, 2020, p. 18). Acrescentemos à lista de Césaire os subalternizados
da América Latina.
50 Mendes, 2001, p. 98.
51
Idem, p. 116.
52
Idem, p. 129; cf. p. 441.
53
Idem, p. 304.
54
Idem, p. 175.
55
Mas essa identificação da mulher com a fragilidade não é tão simples na obra de Mendes.
É verdade que ele escreve, por exemplo: “Sempre foi bem mais fácil fazer amizade com
mulheres do que com homens. Sempre desconfiei dos homens. [...] As mulheres eram mais
frágeis, possuíam mais sensibilidade, o que me aproximava delas” (Mendes, 2001, p. 188).
Por outro lado, seu protagonista vai sistematicamente cair em relações com mulheres fortes
que o espancavam - como seu pai o fizera, os policiais e os colegas mais fortes -, como
foi o caso de seu relacionamento com Zoião, com Isabel e com Sueli. Com relação a esta
última, ele observa: “Sempre me disseram que o homem é que ataca, e a minha experiência
com mulheres sempre apontava para o contrário. Ela era mais alta e mais forte que eu, me
dominava facilmente” (idem, p. 352 e ss.).
56 Ao entrar em um grupo de jovens no seu bairro, Mendes torna-se o “Luiz Branquinho”,
para ser diferenciado do “Luiz Negrinho”: o estabelecimento de diferenças epidermizadas
(Fanon, 2008, p. 105) talha aqui identidades (Mendes, 2001, p. 217). Vale a pena ler úm
de seus raros autorretratos ao longo da narrativa: “Tornara-me rapaz baixo, entroncado,
robusto, sem nada de especial, senão os olhos grandes e brilhantes de sede de viver. Olhos
e cabelos castanhos, feições regulares, sem nada que chamasse atenção. Figura comum.
Sem nada mesmo fora do normal. [...] A única coisa de que não gostava era o meu tamanho.
Queria ser alto e forte” (idem, p. 189). Seu sonho era se tornar uma potência viril, que ele
relata ter realizado durante alguns momentos de sua vida (idem, p. 315).
57
Mendes, 2001, p. 224.
58
Young, 2005, p. 206.
59
Fanon, 2008, p. 139.
60
Kilomba, 2019, p. 37.
61
Fanon, 2008, p. 147.
62
Idem, p. 144.
63
Mendes, 2001, p. 190.
64
Benveniste, 1995, p. 277.
65
Para uma teoria política que sobrepõe o poder estatal e a violência, cf. o famoso texto de
W. Benjamin (1977) “Zur Kritik der Gewalt” (“Para uma crítica da violência/do poder”).
Para uma concepção oposta e mais pragmática, que vê como necessária a distinção entre
power eviolence, cf. Arendt (1970, p. 56). A argumentação de Benjamin é essencial para uma

308
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

crítica do poder e da violência, mas a de Arendt é mais passível de ser pensada em termos
históricos.
66 Mendes, 2001, p. 301.
6/ Idem, p. 223.
68 Mendes, 2001, p. 293. Cf. também a descrição de uma das sessões de tortura por que passou
em uma delegacia. Após narrar como havia sido espancado, recebido chutes na cara, sofrido
choques no ânus e sarrafos, ele escreve: “Os tiras já estavam bêbados, havia litros de uísque
para todo lado, várias garrafas foram quebradas na minha cabeça. Mas eu nada sentia.
Parecia estar pairando sobre meu corpo, assistindo à tortura e sofrendo-a, mas só de ver o
que faziam com meu corpo, ficava com dó de mim. [§] A impressão de estar fora do corpo
era tão forte que mexi o corpo para ver se ele mexia, e não mexeu. Achei que havia morrido.
[...] Era incompreensível” (idem, p. 377). Mais adiante ele escreve ainda, após a sessão de
tortura: “Fiquei ali gemendo, sentindo o inferno de ser eu mesmo, estar vivo e não ter sido
morto ainda” (idem, p. 379). Na sessão seguinte, no pau de arara, após mais choques, dessa
vez além do ânus também na glande, ao apanhar com palmatória de ferro ele conta que
“minha alma qiiis abandonar meu corpo. [...] Ele só batia nas unhas dos pés e das mãos. E
com uma perícia incrível, pois quase não batia em cima, mas contra as pontas das unhas,
para fincá-las na carne. A dor era lancinante, enlouquecedora” (idem, p. 380). Sobre essa
separação entre o corpo e a consciência produzida pela tortura, essa “morte em vida”, cf.
também o ensaio de Jean Améry (2002) apresentado na nota 15 do capítulo 7 - “Anistia e
(in)justiça no Brasil” -, neste livro.
69 Mendes, 2001, p. 388.
/0 Idem, p. 389.
zI Idem, p. 430.
Idem, p. 405.
/3 Como Mendes relata, após descrever o que passou durante três meses de sessões de tortura:
“Estávamos cientes de que aqueles que nos barbarizaram o fizeram em nome de uma
sociedade. Uma sociedade que nos repelia, brutalizava, segregava, e que quase nos destruía.
E o pior: uma sociedade que precisava dessas monstruosidades para se manter. A tortura
era uma instituição social” (Mendes, 2001, p. 399 e ss. Grifo meu). Esse ato de “repelir” é a
literalização do gesto de abjetar. A sociedade abjeta para os cárceres a “poluição” que ela
projeta nos subalternizados. Esse quisto abjetificado, ao mesmo tempo, é ejetado e é parte
essencial da estrutura social. O ódio e o desejo de vingança de Mendes foram canalizados
no sentido da escritura de seu martírio (“minha via-crúcis”, como ele escreveu) (idem,
p. 405). Só assim ele conseguiu quebrar o ciclo de vingança e ódio que descreve tão bem em
seu livro. Se é evidente que essa saída simbólica (pelo simbólico) não significa o fim dessa
necessidade de violência da parte da sociedade (pensemos na sua necessidade de outrificar,
de subalternizar e sacrificar parte de sua população), ao menos ela permite uma reflexão
crítica. Ou seja: a desmontagem do Iluminismo não significa que devemos deixá-lo para
trás e abandonar suas utopias inocentes, mas sim que precisamos criticá-las. O que importa
é a consciência da dialética do esclarecimento, e não simplesmente a sua condenação (que
seria tão inocente quanto a crença não crítica nos seus teoremas clássicos).
/4 Kristeva, 1980, p. 20.
Idem, p. 16.
'6 Fanon, 2008, pp. 161-164. Recordo também das palavras de Robert Young: “O sujeito
europeu civilizado definia-se a si mesmo especificamente por meio da exclusão do que
foi identificado como sujo e baixo. Mas a aversão sempre carrega a marca do desejo.
Esses domínios baixos, aparentemente rejeitados como ‘Outro’, retornam como objeto de

309
NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES

nostalgia, aspiração e fascínio” (Young, 2005, p. 139). O autor nota como no século XIX a
questão da miscigenação e da assimilação dos negros pelas sociedades europeias e coloniais
era encarada como uma fonte de ameaça, sendo compreendida como estando na origem
de um declínio fatal.
7/ Benjamin, 2020, p. 51.
/S Mendes, 2001, p. 327.
79 Cf.: “deveriamos curtir a vida, pois ela nos era breve” (Mendes, 2001, p. 371).
80 Mendes, 2001, p. 394.
81 Idem, p. 435.
82 Idem, p. 443.
83 Idem, ibidem.í
84 Idem, p. 454.
83 Idem, p. 461.
86 Idem, p. 468.

310
12

A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS


VICISSITUDES DA COLONIALIDADE

Entre 5 e 18 de outubro de 1914, portanto poucos meses após o início da


Primeira Guerra Mundial, Kafka fez um retiro de duas semanas de férias nas
quais pretendia desenvolver seu manuscrito de O processo (livro que nunca
concluiu). Em vez disso, escreveu, de uma tirada, a narrativa “Na colônia penal”
(“In der Strafkolonie”). Esse rápido e impressionante parto de um texto que
depois veio a ser considerado um dos mais impactantes de sua obra teve como
contraparte um longo e complicado período de espera até sua publicação.
Isso não apenas por conta da guerra e das dificuldades de publicar qualquer
coisa então no Império Austro-húngaro. Isso se deu, sobretudo, porque Kafka
aparentemente nunca ficou totalmente satisfeito com a conclusão de seu texto.
Desde a primeira leitura que fez a seus amigos Franz Werfel, Otto Pick e Max
Brod (que depois foi o responsável por seu espólio e pela publicação de sua obra),
ainda em dezembro de 1914, ele mostrou-se reticente com relação ao final. No
ano seguinte, planejou publicar um volume que reuniría essa narrativa ao lado
de “O veredito” (“Das Urteil”, 1912) e de “A metamorfose” (“Die Verwandlung”,
1912), e que levaria o título Strafen (Castigos), plano que não se concretizou,
mas que não deixa de revelar o modo como o autor encarava sua obra e as
relações entre suas narrativas. É importante lembrar que, assim como “Na
colônia penal”, também “A metamorfose” tem um final com um corte que
muda totalmente a perspectiva da narrativa.
Em 1916, respondendo ao convite do livreiro e galerista Hans Goltz, Kafka
leu esse texto em Munique para uma audiência de cerca de 30 pessoas, entre
elas o poeta Rilke, interessado, então, em conhecer pessoalmente o autor
de “Ã metamorfose”. Lendo seu texto, tendo como pano de fundo obras

311
A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE

expressionistas da “Neue Secession” de Munique, Kafka aparentemente deixou


a platéia em estado de choque. Muitos abandonaram a sala em meio à leitura.
Conta-se que uma senhora desmaiou. Os críticos que estavam presentes
redigiram textos nada elogiosos: Kafka sofreria de falta de tato, o seu texto teria
uma forma equivocada. No Münchner Zeitung, o crítico Hans Beilhack chegou
a denominar Kafka de “Lascivo do horror” (“Lüstlingdes Entsetzens”').1 Apenas
em 1918, e sem qualquer modificação digna de menção, o texto foi publicado
em um pequeno volume e com uma tiragem de mil exemplares.
Por que esse texto provocou tanta comoção quando de sua leitura pública?
Em que consiste a narrativa “Na colônia penal”? Noventa e cinco por cento
do texto consiste em um diálogo entre um oficial e um estrangeiro viajante.
Eles se encontram em uma ilha nos trópicos que, como indica o título da
narrativa, é uma colônia penal. Além desses dois personagens que dialogam
(sendo que, na maior parte do tempo, o estrangeiro apenas escuta o oficial),
temos dois personagens clownescos, um soldado e um condenado. Essas duas
duplas são opostas: os de patente superior falam francês; os de patente inferior
falam apenas a língua local, ficando, portanto, durante quase toda a narrativa,
excluídos do campo da comunicação simbólica. O par de alta patente tende ao
trágico; o outro tende áo cômico e ao grotesco e pode ser aproximado a duplas
cômicas como “O gordo e o magro” (posterior a Kafka), a comediantes como
Buster Keaton e Charlie Chaplin (contemporâneos a ele) ou a personagens de
peças (posteriores no tempo, é claro) de Samuel Beckett.
A fala do oficial que domina o texto é a apresentação entusiástica de “um
aparelho peculiar”, como lemos logo na primeira frase da narrativa. Esse
aparelho ele diz consistir em três partes: uma cama, um desenhador e um
rastelo. Do mesmo modo, podemos dizer que o texto de Kafka possui três
partes: 1) a apresentação do aparelho (durante a qual ele utiliza apenas o termo
“aparelho” para tratar do dispositivo); 2) o aparelho posto em marcha que se
transforma em uma “máquina”; 3) em terceiro lugar, ocorre uma virada e temos
o autossacrifício do oficial junto com o seu dispositivo. A página final, com a
qual Kafka não se sentia totalmente satisfeito, tem a função de um apêndice.
Até essa página final, que denominei aqui de apêndice, a narrativa se dá
toda em torno do aparelho-máquina que, logo sabemos, é um dispositivo que
concentra em si a capacidade de torturar, inscrever no condenado a lei que ele

312
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

infringiu e, por fim, executá-lo. Essa execução é apresentada como uma espécie
de “redenção”, “transfiguração” e “compreensão”.
É importante destrinchar os fatos apresentados ao longo da narrativa.
Nessa ilha sulina (que poderia estar na Ásia, pois temos nela uma casa de
chá, mas também poderia ser uma colônia inglesa ou de outra metrópole
europeia em qualquer parte do sul do mundo), ocorrera havia pouco tempo
uma importante mudança política. O antigo comandante, que tinha criado o
dispositivo de execução, morrera e fora substituído por outro aparentemente
avesso às práticas violentas associadas a esse procedimento. Ele e sua entourage
de damas compassivas queriam acabar com esse costume; se o oficial não era
o único que se mantinha adepto dela, com certeza era o único com coragem
de defendê-la. O “viajante explorador” francês tinha um papel nos planos do
novo comandante: este lhe solicitara assistir ao funcionamento do dispositivo
em disputa, para ele mesmo dar a sua opinião esclarecida sobre o uso de tal
procedimento, visto agora como “bárbaro”.
Aparentemente estamos, portanto, diante de uma narrativa que apresenta a
virada de uma situação anterior à instauração de um direito moderno (no qual
juizes, acusadores e executores não se confundem mais em uma mesma pessoa,
marcado pelo respeito ao direito de defesa, ao habeas corpus e à presunção
de inocência). Passar-se-ia do modelo das Fúrias, que faziam “justiça” com
as próprias mãos, ao direito instituído. Teríamos, portanto, uma espécie de
tradução moderna da Eumênides de Esquilo. Essa tragédia, vale lembrar, encena
o que teria sido o primeiro julgamento de um humano, Orestes, por um tribunal,
com direito a advogados, testemunhas e defesa. Como costuma acontecer em
Kafka, gêneros e modelos antigos são reaproveitados: mas eles sempre sofrem
deslocamentos tremendos nessa tradução para o seu presente. Em Esquilo, o
pano de fundo era mítico, e sua peça continha em si um largo elogio à deusa
Palas Atena (que dá seu voto de Minerva) e às novas instituições jurídicas
atenienses. Digno de nota é que Atena, para pacificar as Fúrias, desapontadas
com a perda do caso (já que advogavam em nome de Clitemnestra, a mãe
assassinada pelo filho, Orestes), convida-as para sentarem-se ao lado de seu
trono no Olimpo. Ou seja, Atena reconhece que a lei só funciona se associada
à violência. Kafka, em sua narrativa, vai levar às últimas consequências esse
modçlo antigo do direito em sua aliança com a violência. Não existe lei sem
law enforcement.

313
A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE

O que Kafka faz em sua narrativa com essa encenação da superação da lex
talionis primitiva com base no banimento do dispositivo (aparelho-máquina)
e de toda violência a ele ligada? A aparente apresentação dessa virada moderna
e da introdução de “direitos humanos” nessa ilha sulina está, por assim dizer,
plena de buracos, que não deixam os “direitos humanos” ficarem em pé nesse
Sul cheio de sol. As ambiguidades amontoam-se ao longo do texto, justamente
porque ele tende à dispersão, ao acúmulo de significados conflitantes. Temos
a impressão de-que um magma ferve sob a narrativa que vai se tornando cada
vez mais inflamada até explodir.
Assim como a narrativa tem três momentos, também podemos dizer
que três camadas predominantes de sentido se alternam, se abraçam e
disputam espaço no texto. Se, aparentemente, temos um texto (r) sobre leis
e procedimentos penais (primeiro nível de leitura), temos também (2) uma
constante contaminação do dispositivo pela própria literatura (segundo nível
de leitura). Ou seja: 0 dispositivo também é, além de aparelho ou máquina
jurídica (incluindo aí uma função de máquina de executar, de redimir e de
fazer “justiça”), uma máquina de escrever (já que literalmente escreve nas
costas do condenado a lei por ele infringida). Mas também estamos diante de
(3) uma máquina sexual, com sua cama, sua vibração e seus instrumentos de
penetração, além do próprio fetichismo da máquina expresso pelo oficial - que,
ao fim e ao cabo, se entrega nu a ela. Assim como a narrativa tem seu apêndice,
a cena na sala de chá, também devemos considerar um quarto nível de leitura:
Kafka, ao focar uma máquina torturadora-executora, um aparelho que domina
corpos através da dor e do medo em uma colônia no Sul, apresenta também
um dispositivo central no poder colonial. Mais do que isso: ao descrever essa
máquina de controlar corpos pelo sofrimento, Kafka também descreveu avant
la lettre um campo de extermínio nazista, sucedâneo das práticas violentas
desenvolvidas pelos países europeus em suas colônias. Ou seja, em quarto lugar,
Kafka apresenta (4) o dispositivo colonial-concentracionário. Paul Gilroy, em
seu livro de ensaios que justamente leva o título Entre campos. Nações, culturas
e 0 fascínio da raça, cita a seguinte passagem de Hannah Arendt, de seu Origens
do totalitarismo:

As possessões coloniais africanas tornaram-se o solo mais fértil para que florescesse
o grupo que viria a ser mais tarde a elite nazista. Viram ali como era possível

314
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

transformar povos em raças e como, pelo simples fato de tomarem a iniciativa


desse processo, podiam elevar o seu próprio povo à posição de raça dominante.2 A
África serviu para curá-los da ilusão de que o processo histórico é necessariamente
“progressista” [...]. Conscientes disso, estavam perfeitamente dispostos a pagar o
preço necessário, a retroceder ao nível de uma organização racista; desde que com
isso pudessem conseguir o domínio de outras “raças”.3 -

Nessas possessões, tanto campos de concentração foram instalados como


genocídios foram perpetrados, como o ocorrido nas colônias alemãs contra as
populações Herero e Nama na Namíbia no início do século XX. Ao escrever
uma narrativa sobre uma colônia penal, Kafka sublinhava o dispositivo
concentracionário, que veio a se tornar uma marca do poder genocida no
século XX.
Exploremos melhor esses quatro níveis de leitura.

A MÁQUINA JURÍDICA QUEBRADA

Para nossa surpresa - ou talvez nem tanto também a teoria do direito


postula três critérios de valoração das regras jurídicas. Como escreve Norberto
Bobbio em sua Teoria da norma jurídica, “toda norma jurídica pode ser
submetida a três valorações distintas”, a saber, se ela é (i) justa ou injusta, (2)
se é válida ou não e (3) se é eficaz ou não.4 Saber se é justa ou não implica saber
se a norma corresponde aos ideais de justiça que seriam os “valores últimos
ou finais” que estão por detrás de todo ordenamento jurídico. No caso da
colônia penal, as normas que são seguidas pelo oficial foram estabelecidas
pelo antigo comandante e correspondiam, portanto, a um universo de ideais
considerado ultrapassado na narrativa. Assim, o viajante estrangeiro, diante
do procedimento de execução, reflete: “Não havia dúvida quanto à injustiça do
processo e à desumanidade da execução”.5 Já a validade de uma norma jurídica
é garantida para além de qualquer juízo de valor, sendo que aqui interessam
três elementos: a) averiguar se a autoridade tinha o poder legítimo para dela
emanar a norma (originalmente, ao que tudo indica, tinha); b) analisar se não
foi ab-rogada (o poder autorizado pode ter sido superado, o que é o caso na
narrativa kafkiana); e c) averiguar a compatibilidade ou não com outras normas
(não vem ao caso na narrativa de Kafka, pois as leis do antigo comandante se

315
A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE

confundiam com suas ordens e seus desejos). Já a eficácia, recorda Bobbio,


depende de averiguar se as leis são seguidas e, em caso negativo, se existe
coação no sentido de seu cumprimento. Ou seja, a teoria da norma jurídica,
como na Eumênides, reconhece que o aparato jurídico depende da violência
para existir. Nesse ponto, a quantidade e o tipo de violência a ser aplicada
é o que está em questão na narrativa de Kafka, mas não a violência em si.
Seguindo Bobbio, poderiamos dizer que o ordenamento jurídico baseado no
dispositivo parece ser injusto no momento da visita do francês, não válido,
mas paradoxalmente eficaz, assim como as leis de escravidão ou racistas eram
válidas e eficazes em muitos lugares, sem serem justas. O direito é um corpo
frio. Mas justamente por ter perdido a validade, a eficácia final que a máquina
jurídica apresenta em Kafka revelar-se-á na sua capacidade de descartar aquele
que tentou dar continuidade a um ordenamento jurídico inválido.
A ausência de autoridade do pai do dispositivo também é posta em questão
pelo fato de aquele antigo comandante acumular indevidamente várias funções:
“Era soldado, juiz, construtor, químico, projetista”.6 Essa figura autoritária -
como os fascistas que vicejam no aparato jurídico costumam ser, acumulando
também a função de juiz inquiridor e executor -, que também estava no topo do
poder, escreveu, ou melhor, desenhou a sentença do condenado, que era: “Honre
seus superiores!”.7 O ato de escrever essa sentença nas costas do condenado
significa tanto um desejo de fazer fundir para sempre o condenado com a
lei que supostamente infringiu quanto uma prática que remonta a regimes
escravocratas que tratavam os escravos como coisas a serem identificadas e
marcadas, como voltou a acontecer nos campos de concentração nazistas.
Não devemos esquecer que no Antigo Testamento a inscrição sobre a pele é
considerada uma infração das ordens divinas (Levítico, 19,28). É importante
ler em alemão a sentença com a lei infringida: “Ehre deinem Vorgesetzten!”. A
tradução é sem dúvida “Honre seus superiores!”, mas encontramos aqui o termo
“Vorgesetzter”, chefe, superior, que é formado com o prefixo “vor” e o termo
“setzer”, que é derivado do verbo pôr, “setzen”. Ocorre que lei em alemão é
“Gesetz”, literalmente, aquilo que foi posto. Portanto, essa lei que foi infringida
pode ler lida, entre as linhas e palavras, como “honre aquele que vem antes da
lei”, ou seja, honre aquele de onde a lei derivou. Mas também temos que lembrar
que Kafka, nesse momento, estava às voltas com a escrita de O processo, e nesse
romance existe uma conhecida passagem, que ele tratava de modo autônomo

316
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

com o título de “Diante da lei”, “Vor dem Gesetz”. Derrida mostrou que esse
título remete também a uma ideia de “antes da lei”.8 Essa famosa parábola, do
camponês que se dirige à cidade para tentar adentrar os portões da lei, mas
morre fora dela, sem atingi-la, também apresenta um dispositivo jurídico que
a seu modo é mortal, pois se não executa diretamente, como ocorre em “Na
colônia penal” e no próprio O processo, ele associa morte e lei. Nesse desvio do
superior para o “antes da lei”, passa-se da instituição a uma pessoa de carne
e osso. A face humana demasiado humana da lei se explicita. Como escreveu
Carl Schmitt em agosto de 1934, estamos diante do lema “O Führer protege o
direito” (“Der Führer schützt das Recht”), que imperou sob o Terceiro Reich,
mas que, para autores como Benjamin (que viveu na carne as consequências do
nazismo) e Kafka (falecido em 1924, nove anos antes da ascensão de Hitler ao
poder), no limite, vale para pensar o direito como um todo. Mas deixemos as
coisas claras: Schmitt era um entusiasta do personalismo do direito; já Kafka
e Benjamin tentavam desconstruir esse aparelho violento com seus textos.
Neles, a lei é desvelada como comando, como meio de afirmação do poder,
Gewalt. Como escreve Silvio Almeida: “O poder não é um elemento externo,
mas o elemento preponderante, que concede realidade ao direito”.9 O direito
é uma “tecnologia de controle social”.10 Daí esse processo narrado em “Na
colônia penal” ser pontuado por arbitrariedades: o oficial decide tudo em um
tempo excepcional (em apenas uma hora de processo, a execução é decretada),
o condenado não tem direito a defesa e em nenhum momento fica sabendo qual
infração cometeu (ele deveria ter uma iluminação orgânica, pois a conhecería
através da dor corpórea, como num martírio, a lei sendo inscrita em sua carne
e traduzindo-se na sua mente em uma intuição místico-carnal).
Muito já se observou sobre a semelhança entre esse procedimento e aquele
descrito por Foucault em Vigiar e punir, em que o autor fala das punições
públicas rodeadas de espectadores (como ocorria também nas operações desse
aparelho-máquina, nos tempos do velho comandante) anteriores à Revolução
Francesa (e não por acaso temos um francês na narrativa de Kafka):

O suplício faz parte do procedimento que estabelece a realidade do que é punido.


Mas não é só: a atrocidade de um crime é também a violência do desafio lançado
ao soberano: é o que vai provocar da parte dele uma réplica que tem por função
ir mais longe que essa atrocidade, dominá-la e vencê-la por um processo que a

31/
A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE

anula. A atrocidade que paira sobre o suplício desempenha portanto um duplo


papel: sendo princípio da comunicação do crime com a pena, ela é por outro lado a
exasperação do castigo em relação ao crime. Realiza ao mesmo tempo a ostentação
da verdade e do poder; é o ritual do inquérito que termina e da cerimônia onde
triunfa o soberano. E ela os une no corpo do suplicado.11

Ou seja, o suplício realiza a "articulação do escrito com o oral”,11 do


inquérito coma confissão. O corpo torna-se o ponto de ação do poder, segundo
a leitura de Foucault. Local de encontro também entre a verdade e o poder;
não por acaso, Kafka afirma que, no suplício, o condenado “compreende”
a sua pena. Mas Kafka não faz uma simples descrição desse procedimento
posteriormente estudado por Foucault, o suplício público pré-Revolução. Não
podemos esquecer que, na cena kafkiana, por assim dizer, o “rei”, o “soberano”,
está morto. Temos uma espécie de aparelho que funciona em moto-contínuo,
por inércia, como um Golem desgovernado, mas cuja origem, aquilo que, nas
palavras de Bobbio, daria validade a esse aparato jurídico, não existe mais. Na
paisagem das obras de Kafka, os reis ou estão morrendo ou já não existem mais
- ele que viveu o final do “grandioso” Império Austro-húngaro.
Ao deslocar esse teatro jurídico para uma ilha colonial nos trópicos, o autor,
com essa poderosa imagem do aparelho jurídico que se transforma em pura
máquina de execução, lança uma luz provocadora sobre as sutis diferenças entre
a situação pré- e pós-Revolução. Afinal, o viajante francês não se identifica com
o pobre coitado que está em vias de ser executado nem tampouco se apiedará
do oficial a ponto de conseguir salvá-lo. Ele se coloca como alguém de fora,
de outro lugar, e pensa que “viajava apenas com a intenção de olhar e não,
de forma alguma, alterar o poder judiciário alheio”.13 Não existe local para a
compaixão: “o condenado não era seu conhecido, nem compatriota, tampouco
uma pessoa que provocasse compaixão”.14 Ou seja, só temos compromisso
ético para com os nossos compatriotas... Pelo contrário, o forasteiro mostra-se
fascinado pelo procedimento e pensa: “as coisas ali se mostravam bastante
tentadoras”.15 Se, na ordem anterior, “a sociedade organizava-se ao redor da
máquina”,'6 e se “a nova orientação, leniente, é de outra opinião”,17 nem por
isso o novo comandante deixa de ser o soberano do qual emanam as novas
leis. A execução em si não é condenada, apenas seu meio, o dispositivo. Mas,
como escreveu Benjamin poucos anos depois de Kafka, o direito alimenta-se

318
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

e fortalece-se desse poder decisório sobre a vida e a morte. Aqui Benjamin


detecta “um elemento de podridão dentro do direito” (“etwas morsches im
Recht”).18 O oficial da narrativa de Kafka preocupa-se com o conflito entre
o modelo da ordem jurídica daquela ilha meridional e o modelo ocidental
representado pelo francês e que o novo comandante parece admirar também.
A narrativa é uma tentativa frustrada de argumentação e convencimento em
que dois modelos são confrontados, mas apenas um é apresentado em detalhe.
Por outro lado, em se tratando de uma colônia penal associada a uma metrópole
europeia, os limites entre “Ocidente” e “Sul” ficam embaçados. O leitor em
parte é empurrado para se identificar com o estrangeiro, o que nos deixa numa
posição de voyeurs carregada de tensões que não se resolvem. Voltaremos e essa
questão colonial.

A MÁQUINA DE ESCREVER ENIGMAS

Como observei, o texto tem uma estrutura que lembra as partes da tragédia
em sua descrição aristotélica: a máquina faz seu trabalho em 12 horas (o que
remete de certo modo à prescrição aristotélica de unidade temporal restrita a
“uma revolução do sol”*9), a sexta hora é descrita como o momento de virada
(peripécia20) na execução. Além disso, existe uma clara virada na narrativa
quando, após ficar evidente que o viajante não iria auxiliar o oficial, lemos:
“O oficial permaneceu mudo e virou-se para a máquina”.2* A peripécia, a
virada trágica, ocorre muitas vezes justamente com um gesto semelhante
de emudecimento. Pouco depois, novamente se marca esse momento: “O
condenado pareceu particularmente assolado pela intuição de alguma grande
reviravolta”.22 Mas essa aproximação com o modelo trágico se dá de modo
irônico: evidentemente, a narrativa não é uma tragédia, e Kafka recusaria
a ideia de tentar fazer uma tragédia seguindo o modelo clássico. Ele, antes,
recupera fragmentos desse poderoso dispositivo literário para a sua obra.
Em um determinado momento, o oficial denomina o dispositivo de o
“Lebenswerk” do antigo comandante, ou seja, “a obra de uma vida”, da mesma
forma como se faz referência à grande obra de um escritor. Como vimos, o
dispositivo, ora aparelho, ora máquina, escreve nas costas dos condenados
textos que se aproximam de desenhos. Enfatiza-se muito o elemento não

319
A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE

decifrável dessa escrita jurídica, mais próxima daquilo que acontece em textos
literários, carregados de imagens, de alusões disparatadas e de alegorismos
misteriosos - como o próprio texto kafkiano. (Se bem que, a bem da verdade,
o jargão juridiquês constantemente se transforma em floreio ilegível e
indecifrável, como os textos que dirigem a máquina.) A autorreferencialidade
é total aqui. Busca-se a distância hermenêutica correta para que o francês
possa decifrar a escritura-desenho, mas em vão: não há distância correta,
porque se quer encenar a existência de uma ruptura epistemológica, de uma
fratura, duas epistemes confrontando-se. Na verdade, o que se dá é a falência
do momento hermenêutico da leitura. A escrita simbólica derrete-se em uma
inscrição somático-pulsional, como na descrição psicanalítica do nosso aparato
psíquico com suas camadas de traços, Spuren, e recalcamentos, ou como o
inconsciente escriturai (letriíicado) lacaniano. Em vez da leitura na chave
intelectual, considerada “mais nobre”, ocorre uma leitura com o próprio corpo.
Como explica o oficial detalhando a escrita da lei que será impressa
nas costas do condenado: “a própria escrita [die eigentliche Schrift] deve ser
rodeada por muitos, muitos floreios [ou ornamentos, Zieraten]; a escrita real
[die wirkliche Schrift] cinge o corpo apenas em uma faixa estreita, o restante do
corpo fica para os ornamentos [ou enfeites, Verzierungen]”.23 Esses “ornamentos”
e “enfeites” remetem tanto à poesia como ao conceito estético. Vale lembrar
que, aqui, Kafka se alia mais uma vez à crítica do Iluminismo. Kant, na sua
terceira crítica,24 tratou dos parerga (Zieraten) como uma espécie de molduras
do belo que não poderíam reivindicar atrativos próprios, caso contrário eles se
transformariam em adornos (Schmuck) e destruiríam a beleza. Os românticos,
com a sua valorização do elemento ativo da poesia, desprezaram essa hierarquia
kantiana: nas obras românticas por excelência, não poderiamos traçar de modo
claro e “limpo” as fronteiras entre obra (ergori) e ornamento (parergori). Aqui
em Kafka, “escrita real” ou “a própria escrita” são abaladas pelos ornamentos e
enfeites. Assim, abandona-se também o culto do belo e do clássico que sustentou
o nascimento da disciplina Estética. A ironia kafkiana está em associar a essa
maquinaria jurídica brilhante, com glamour erótico-tecnológico, essa escrita
indecifrável que é todo o oposto da escrita jurídica que se quer objetiva. Como
quando o oficial afirma: “a culpa é sempre indubitável!”.25 O direito quer uma
linguagem domada e controlada: Kafka apresenta a linguagem como um
pântano de onde brotam violências míticas que tendem a se repetir eternamente.

320
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Ele retrata fluxos e intensidades, corpos retalhados por inscrições jurídicas


enigmáticas. A incompreensão se dá, de modo geral, como um resultado da
“escrita suja” de Kafka, que embaralha em seus textos, diários, narrativas,
contos, novelas etc. Podemos aproximar sua escrita da definição que Deleuze
e Guattari dão da “produção desejante”,26 na qual “linhas de ‘catástrofe’ ou de
‘queda’ são disjunções rodeadas de espirais”,27 não esquecendo que “catástrofe”,
a virada para baixo, é considerada por Aristóteles um elemento essencial nas
tragédias. Mas aqui em Kafka o trágico dá lugar ao escritural-abjeto. No lugar de
sujeitos agindo na cena trágica, temos corpos que tendem a coisas, “corpos sem
órgãos”, na expressão de Deleuze e Guattari ao descreverem o corpo “esquizo”.
Trata-se de uma protoescritura na carne, inscrição em sangue no suporte
somático que seria o suporte abjeto da escrita de significados.28 A incapàcidade
de decifrar é programática, faz disparar o ímpeto hermenêutico no leitor, que
passa a interpretar tudo sem um chão. Esse aguilhão hermenêutico é ainda
mais atiçado - e sabotado - na medida em que os textos tendem a imagens
oníricas, gráficas e inquietantes em Kafka. E essa tendência da escrita à imagem
é coroada no apêndice, quando a escrita se transforma em escrita tumular,
novamente confhiindo escritura e morte. Sendo que essa escrita não é mais do
que a promessa do retorno do antigo comandante, ou seja, o “estado de exceção”
pode voltar a qualquer momento.
As narrativas kafkianas estão marcadas pelo peso de suas imagens, seja o
inseto de A metamorfose, seja o dispositivo dessa narrativa. Sem contar que
essa escrita também tende para o “aquém da lei”, no sentido de que ela aponta
para o abjeto, o elemento pré-simbólico sobre o qual se inscreve o simbólico.29
Esse asqueroso aparece nessa narrativa na forma do sangue, do cadáver, dos
feltros com vômito. Esses elementos asquerosos também eram condenados
pelo decoro kantiano das “belas-artes” e das “belas-letras”. Para Kant, vale
lembrar, toda aparição do asqueroso correspondia a um furo no campo estético,
a um abalo na representação artística, pois, para ele (e para a teoria estética
do Iluminismo), o asqueroso seria sempre real e não teria lugar nas artes.30
O asqueroso, de resto, encontra-se mesmo na própria figura “canina” do
condenado, aliás, um autêntico representante do homo sacer, ou seja, daquela
figura jurídica do ser matável, cujo assassinato não implica nem sacrifício nem
culpa?1 Aqui, a máquina de escrever encontra a maquinaria jurídica quebrada.
Como veremos, esse ser matável é também o corpo do trabalhador colonial.

321
A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE

A MÁQUINA SEXUAL MORTAL

Nada mais evidente nessa narrativa do que a admiração fetichista do oficial


por seu poderoso “aparelho peculiar”. O ato de deitar a vítima, nua e de bruços,
em uma cama que vibra para em seguida amarrá-la com tiras de couro e fazer
descer sobre ela um dispositivo que a penetra é uma imagem que me parece
bastante clara:

Quando o homem é posto na cama, e ela começar a tremer, o rastelo é baixado


até o corpo. Ele se posiciona sozinho de tal forma que toca o corpo apenas com
as pontas; quando o posicionamento termina, este cabo de aço imediatamente se
tensiona como uma barra. E aí começa o funcionamento?2

Não por acaso, aproximou-se esse aspecto da escrita de Kafka da de Sacher-


-Masoch, marcada pela profusão de imagens, de descrições, de alusões a sentidos
ocultos e obscenos?3 A própria relação dos dois pares na narrativa é carregada
de traços de relação homoerótica. Além disso, o momento final, quando o oficial
sacrifica seu próprio corpo ao aparelho de seu venerado ex-comandante, não
deixa de apresentar uma paradoxal “volta ao útero”, só que não da mãe, mas sim
de seu pai morto. As mulheres entram na narrativa apenas como veneradoras
e bajuladoras de homens poderosos. Esses homens sentem-se atraídos entre si
ou, como o oficial, também por aparelhos técnicos brilhantes e penetrantes.
Como indicam Deleuze e Guattari descrevendo máquinas desejantes:

O esquizo recai sobre seus pés sempre vacilantes, pela simples razão de que é a
mesma coisa de todos os lados, em todas as disjunções. É que as máquinas-órgãos
podem aferrar-se ao corpo sem órgãos; este não deixa de permanecer sem órgãos
e não volta a ser um organismo no sentido habitual da palavra. Ele mantém um
caráter fluido e deslizante?4

Comentando diretamente essa narrativa de Kafka, os autores descrevem


uma máquina celibatária (emprestando o termo de Duchamp) com traços
paranóicos, porém de outra qualidade:

[A] máquina celibatária indica uma antiga máquina paranóica, com seus suplícios,
suas sombras, sua antiga Lei. Ela não é, entretanto, uma máquina paranóica. Tudo

322
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

a distingue desta última, suas engrenagens, carrinho, tesoura, agulhas, ímãs,


raios. Até nos suplícios ou na morte que ela provoca, manifesta alguma coisa de
novo, uma potência solar. Em segundo lugar, essa transfiguração não pode ser
explicada pelo caráter miraculante que a máquina deve à inscrição que encerra,
embora ela encerre efetivamente as mais altas inscrições [...]. Há um çpnsumo atual
da nova máquina, um prazer que pode qualificar de autoerótico, ou melhor, de
automático, onde se celebram as núpcias de uma nova aliança, novo nascimento,
êxtase resplandecente como se o erotismo maquinai liberasse outras potências
ilimitadas.35

Essas palavras dos autores de O anti-Édipo não deixam de reverberar a


teoria benjaminiana do “sex appeal do anorgânico”,36 desenvolvida pelo autor
berlinense nos fragmentos de seu trabalho das Passagens. A moda, para
Walter Benjamin, “engata o corpo (Leity vivo ao mundo anorgânico. A moda
percebe nos viventes os direitos do cadáver. O fetichismo, submetido ao sex
appeal do anorgânico, é o seu nervo vital”.37 Esse engate do corpo ao mundo
anorgânico é o que ocorre também com as máquinas de Deleuze e Guattari.
Para os autores, a arte, como em Kafka, em Arman, em Dali, em Rube Goldberg
ou em César, produz máquinas desejantes que sabotam as máquinas técnicas
gerando “antiprodução”.38 Mais ainda, essas máquinas são justamente “sistemas
de cortes”,39 mas de cortes que não interrompem, antes, estabelecem novos
fluxos, são cortes e ao mesmo tempo conexões. Desse modo, essas máquinas
desconstroem toda possibilidade de totalidade. São assemblage de “objetos
parciais” (Melanie Klein40), mas sem a nostalgia de uma completitude; são
máquinas gaguejantes, esgarçadas, quebradas. A escrita sexual somática produz
significantes telúricos que tendem ao “jargão”, são abertos e polívocos. Trata-se
de “uma escrita diretamente Real”,4' que articula elementos díspares, signos
de diferentes alfabetos, imagens e, escrevem ainda Deleuze e Guattari, “talvez,
um cadáver”.42 Para esses autores, o oficial, com sua veneração pela máquina,
“mostra o que pode ser o investimento libidinal intenso de uma máquina que
não é apenas técnica, mas também social, através da qual o desejo deseja a sua
própria repressão”;43 como no sistema capitalista, descrito como uma máquina
com fluxos na qual muitos dentre os menos favorecidos e excluídos investem
no próprio sistema que os oprime.44
Qüe Kafka tenha, ao longo de seus textos, retornado ao tema da tortura,
não há dúvida. Em uma carta a Milena, bastante ambígua, como eram suas

323
A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE

cartas de amor, ele não só descreve, como faz o desenho de um aparelho de


tortura que rasga uma vítima ao meio:

Para que você possa visualizar um pouco das minhas “ocupações”, estou anexando
um desenho. São quatro estacas, através das duas do meio são empurradas
barras nas quais as mãos do “delinquente” estão amarradas; pelas duas estacas
das extremidades empurram-se varas amarradas aos pés. Quando o homem se
encontra preso desta forma, as barras são lentamente empurradas para fora até
que o homem seja rasgado ao meio. O inventor se inclina contra a coluna cruzando
braços e pernas sentindo-se o máximo, como se tudo fosse uma invenção original,
embora se trate apenas de uma cópia do açougueiro que estica o porco estripado
diante de sua loja.45

Desenho de autoria de Kafka.

Essa sexualização do aparelho mortífero e de sua escrita pulsional revela uma


sexualidade tanto solar como mórbida, mas também uma metáfora da relação
entre as metrópoles e as colônias, ou entre grupos que assumem posteriormente
o papel de colonizadores e os que são subalternizados e colocados como os
atuais descendentes das populações colonizadas. Aprofundemos então esse
elemento colonial da narrativa kafkiana, sua capacidade de iluminar, hoje, a
nossa escancarada e terrível colonialidade.

324
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

O DISPOSITIVO COLONIAL-CONCENTRACIONÁRIO

O biógrafo de Kafka, Peter-André Alt, recorda algumas obras que podem


ter inspirado o escritor diretamente na composição dessa narrativa sobre uma
colônia penal tropical: Robert Heindl, Meine Reise nach deríStrafkolonien
(Minha viagem às colônias penais) (1912), em que descreve prisões na Austrália,
na China e na Nova Caledônia; Octave Mirbeau, Lejardin des Supplices (1899),
obra com uma sexualidade exuberante, autor admirado por Kafka; Norbert
Jacques, Südsee (Mar do sul), publicado na Neue Rundschau no verão de 1914,
que descreve a viagem de oficiais alemães pelo Pacífico; Hans GroB, que foi
professor de direito penal de Kafka em 1903-1904, publicou, em 1909, um artigo
acerca da evidência jurídica da prática de deportações focado no Caso Dreyfus46
e em seu banimento para a ilha do Diabo na América do Sul (Guiana Francesa).47
O próprio Alfred Dreyfus, de resto, publicara a sua autobiografia, Cinq années
de ma vie, 1894-1899, em 1901, um livro bastante divulgado então, narrando
os horrores sofridos por conta do antissemitismo na sociedade francesa que
culminou no seu banimento e nas torturas na ilha do Diabo. Também é digno
de lembrança o relato que Arthur Holitscher fez de sua viagem aos Estados
Unidos, publicado em 1913, o seu Amerika heute unã morgen (América ontem
e hoje). Nessa minibiblioteca, reflexões sobre direito, colônias penais, geografia
colonial, sexualidade transbordante e violência racista misturam-se de um
modo facilmente reconhecível no texto de Kafka.
Na narrativa, os personagens não possuem nome, são representantes
de papéis: o oficial, que venera a máquina, o viajante francês, o soldado e o
condenado que, na verdade, também é um soldado, a saber, um ordenança.
Ele, na cena inicial, encontra-se acorrentado do modo como se acorrentavam
escravos nas colônias e nações dominadas pelo sistema de plantação:

no vale pequeno, profundo, arenoso e cercado por escarpas nuas, além do oficial
e do viajante, estavam presentes apenas o condenado, um homem aparvalhado
de boca larga, cabelo e rosto bagunçados, e um soldado que segurava a pesada
corrente na qual se prendiam as correntes menores, com as quais o condenado
estava aferrado nos tornozelos, nos pulsos e também no pescoço, e que também
se uniam por outros elos.48

325
A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE

A esses detalhes do “cabelo e rosto bagunçados” e da “boca larga” do


condenado, um autóctone que só fala a língua local, depois Kafka também
acrescenta o pormenor de que “seus lábios [seriam] grossos e apertados”,49 o que
justifica a expressiva ilustração de Lourenço Mutarelli para a edição da Editora
Autofágica, com tradução de Petê Rissatti. O crime do condenado foi o de
desobediência, ou seja, ele não teria se mostrado um corpo trabalhador dócil.50
Seu primeiro castigo foi uma chicotada no rosto, ministrada pelo capitão que
ele teria desrespeitado. Sua resposta a essa chicotada é apresentada também
com uma narrativa que o animaliza novamente. Ele teria dito ao capitão:
“Jogue o chicote fora ou eu devoro você”.51 O mencionado tempo de apenas
uma hora entre esse incidente e o início de sua execução aponta para a prática
de tortura e, eventualmente, assassinato dos infratores no contexto da lei
absoluta de obediência devida nessa colônia. Isso também era prática comum
nos regimes escravocratas, por exemplo, no Brasil até 1888, mas que não foi
superada de modo algum hoje, como evidencia de modo inequívoco o caso da
tortura pública seguida de execução de João Alberto Silveira Freitas, em Porto
Alegre, ocorrido no dia 19 de novembro de 2020. Também João Alberto foi
condenado sem processo e executado sem veredito. Em menos de uma hora.
Quando lemos que na colônia penal “medidas especiais [besondere Maflregeln]
eram necessárias e era preciso proceder de modo militar até as últimas
consequências”,52 lembramos que também entre nós, aqui, essa militarização
do cotidiano e 0 estado de exceção estão onipresentes. A máquina colonial-
-concentracionária, além disso, possuía um dispositivo de limpeza da sujeira,
ou seja, um mecanismo que visava ao desaparecimento dos líquidos secretados
por suas vítimas, vômito e sangue, para garantir o ser brilhante dessa máquina -
o que lembra também a imediata limpeza do sangue em torno do corpo de João
Alberto Silveira Freitas após a sua execução. A empresa colonial vai bem neste
país. O público tampouco faltou à cena no supermercado Carrefour, no qual
João Alberto Silveira Freitas foi executado, como o oficial narra descrevendo
o funcionamento da máquina antes da chegada do novo comandante e como
também costumava acontecer nos linchamentos no Sul dos EUA até não muito
tempo atrás. Agora, acrescentam-se ao dispositivo de tortura e execução
os onipresentes aparelhos celulares, que multiplicam a platéia. Também
o linchamento e a execução de George Floyd em Minneapolis tornaram-se
globalizados por esses gadgets em 2020. A escopoíilia, associada ao consumo

326
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

de imagens violentas de linchamentos e execuções de corpos outrizados e


subalternizados, não deixa de lembrar as já citadas palavras de Frantz Fanon:
“Sabemos tudo o que as sevícias, as torturas, os murros comportam de sexual.
Basta reler algumas páginas do Marquês de Sade para nos convencermos...”.53
Para que a violência contra determinados corpos possa,sêr livremente
exercida é necessário outrizar esses corpos e, assim, romper com toda
capacidade de empatia. O narrador kafkiano oscila entre o ponto de vista
abertamente colonizador e racista do oficial e o ponto de vista “civilizado”,
na verdade distanciado, do francês visitante. Assim, o oficial define a comida
do condenado como sendo composta de “peixes fedidos”, o que contribui para
esse processo de outrificação que prepara o corpo do outro para ser abjetado,
no caso da narrativa de Kafka, para ser literalmente cuspido em uma fossa
localizada ao lado da máquina espetacular.
A famosa dialética senhor-escravo descrita na Fenomenologia do espírito de
Hegel é explodida nessa máquina de morte kafkiana. Se, em Hegel, ela era parte
da teoria da construção de nossa consciência, no jogo eu-outro, aqui em Kafka
o jogo é transformado em destruição. Não existe espaço para o jogo lúdico de
construção das identidades. Novamente, Fanon tem as palavras adequadas para
indicar isso no que toca à empresa colonial:

Claro, bem que existe o momento de “ser para-o-outro”, de que fala Hegel, mas
qualquer ontologia torna-se irrealizável em uma sociedade colonizada e civilizada.
Parece que este fato não reteve suficientemente a atenção daqueles que escreveram
sobre a questão colonial.54

Não pode haver, no regime escravocrata, o jogo de construção mútuo,


que em Hegel acaba com a redenção do “escravo” via trabalho. Fanon: “Há,
na base da dialética hegeliana, uma reciprocidade absoluta que precisa ser
colocada em evidência”.55 Essa reciprocidade não existe na situação colonial.
Kafka também encena esse desmonte da dialética hegeliana em uma pequena
imagem de pensamento escrita na cidade de Zürau, em torno de 1917/1918,
quando se hospedava com sua irmã Ottla: “O animal arranca o chicote do
senhor e chicoteia-se a si mesmo para tornar-se senhor e não sabe que isso é
apenas uma fantasia produzida por um novo nó na tira do chicote do senhor”.56
Lemtírando que a desavença do ordenança com seu superior também envolveu

327
A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE

uma luta em torno do chicote e da fala do subordinado (“Jogue o chicote fora


ou eu devoro você”57).
A empresa colonial, de resto, foi descrita como uma máquina por
importantes escritores da negritude e das teorias pós-coloniais. Aimé Césaire,
em seu fundamental Discurso sobre o colonialismo, de 1950, cita as palavras de
Carl Siger (pseudônimo de Charles Régismanset), funcionário do Ministério
das Colônias francês, de seu Essai sur la colonisation, de 1907:

Os novos países são um vasto campo aberto a atividades individuais violentas que,
na metrópole, se chocariam com certos preconceitos, com uma concepção sábia
e regulada da vida, e que, nas colônias, podem se desenvolver mais livremente e,
portanto, afirmar melhor seu valor. Assim, as colônias podem, de certa maneira,
servir como uma válvula de segurança para a sociedade moderna. Essa utilidade,
se fosse única, já seria imensa.’8

As colônias como válvulas de segurança funcionariam, portanto, como


parques de entretenimento para a vazão de impulsos sexuais e violentos que o
“preconceito”, nas metrópoles, impede que transbordem. As colônias são, assim,
iluminadas, como na série da HBO, Westworld, de Jonathan Nolan, na qual
turistas podem matar e estuprar sem ter que se aterem a seus “preconceitos”,
já que a população do parque de entretenimento no qual a série se passa é
constituída de robôs feitos para esse prazer destrutivo. O corpo colonial é
um boneco - ou uma boneca - do qual se podem extrair prazeres mórbidos.
Frantz Fanon também formulou de modo peremptório em seu fundamental
Pele negra, máscaras brancas publicado em 1952: “O preto é um brinquedo
nas mãos do branco”.59 Césaire fala também da necessidade de introdução
de uma “máquina de esquecimento” que operaria nas colônias no sentido de
emplacar o discurso hipócrita de que o colonizador, na verdade, veio “civilizar”
os colonizados.60 Toda máquina de memória, como dizia Nietzsche, produz
uma inscrição que deve a sua lembrança à dor;61 já aqui Césaire recorda, indo
mais a fundo na questão, que a inscrição da cultura colonial na população
subalternizada exige também o apagamento. Todo genocídio é acompanhado
pelo etnocídio: o memoricídio.
Jean Paul Sartre, em sua resenha de 1957 do livro de Albert Memmi
Retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador, também descreve

328
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

um “aparelho colonial”, a saber, uma “pesada máquina que foi construída,


no fim do Segundo Império, sob a Terceira República, e que, após ter dado
toda satisfação aos colonizadores, se volta contra eles e arrisca esmagá-los”.62
Novamente encontramos nessa passagem de Sartre tanto a menção ao elemento
Golem da máquina colonial, ou seja, a alusão a uma máquina gigantesca de
colonização que se descontrola e se desfaz, como a satisfação que essa empresa
produziu, tanto em termos financeiros quanto, agora sabemos, libidinosos e
pulsionais. Sartre desenvolveu a ideia de que a máquina iria em breve ruir:

O terror e a exploração desumanizam, e o explorador se autoriza, com essa


desumanização, a explorar mais. A máquina gira; impossível distinguir a ideia da
práxis e a da necessidade objetiva. [...]. O sistema quer ao mesmo tempo a morte e a
multiplicação de suas vítimas; toda transformação lhe será fatal: que se assimilem
ou que se massacrem os indígenas; o custo da mão de obra não cessará de subir. A
pesada máquina conserva entre a vida e a morte - sempre mais perto da morte que
da vida - aqueles que são obrigados a movê-la; uma ideologia petrificada se aplica
em considerar homens como animais que falam. [...] A impossível desumanização
do oprimido volta-se e se transforma em alienação do opressor [...] é a rigidez
mecânica do aparelho que está em via de destruí-lo.63

Essa máquina colonial, no entanto, não se desfez por completo. Olhando


a paisagem histórica do final do século passado e início deste século, fica
claro que ela soube se transformar para sobreviver. A colonialidade na
qual vivemos reproduz dispositivos que replicam a máquina colonial. A
racialização subalternizante, a misoginia, a homofobia, a transfobia sustentam
a continuidade do dispositivo maquínico colonial. Máquinas constroem
máquinas que se acoplam a corpos para, após o gozo, serem cuspidos em valas
coletivas. Negacionismos, apagamentos e genocídios seguem como prática
central do capitalismo em sua fase neoliberal sem freios. A violência colonial
revela-se, como vimos no início deste capítulo com Hannah Arendt, como palco
do grande ensaio da aventura capitalista industrial e pós-industrial. Corpos
subalternizados são tratados como robôs descartáveis.64 Arendt estabelece uma
relação entre a violência colonial e a violência antissemita que culminou no
projeto de eliminação dos judeus da Europa pelo governo nazista. Kafka, em
uma,:carta a seu editor Kurt Wolff, datada de n de outubro de 1916, justificou
a violência de sua narrativa com base no momento histórico que ele vivia. A

329
A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE

Primeira Guerra acabara de estourar quando a narrativa foi feita, para além de
toda a questão do antissemitismo que crescera com os nacionalismos do início
do século. Wolff havia expressado a Kafka o seu “desagrado” com relação à
violência apresentada:

Com prazer recebi suas amáveis palavras sobre meu manuscrito. A sua ressalva
com relação ao elemento torturante coincide totalmente com a minha opinião, que
tenho, porém, em relação a quase tudo que produzi até agora. Observe quão pouco,
de uma forma ou de outra, está livre desse elemento torturante! Para explicar esta
última narrativa, apenas acrescento que não só é torturante, mas também que
nossos tempos em geral e o meu em específico foram e o são igualmente muito
torturantes, e o meu em específico ainda mais torturante do que em geral.65

Quando escreveu a Kurt Wolff, Kafka sequer poderia imaginar que a


máquina genocida nazista mataria as suas três irmãs, Elli, Valli e Ottla, sua
querida e predileta irmã. Essas semelhanças todas que podemos detectar entre
a máquina de Na colônia penal e a máquina colonial não impedem, portanto,
que leiamos nessa narrativa também uma versão antecipada dos campos de
extermínio nazistas. Otto Dov Kulka, que foi prisioneiro em Auschwitz de
setembro de 1943 até o fim desse campo, em janeiro de 1945, em seu relato
autobiográfico Paisagens da metrópole da morte. Reflexões sobre a memória e
a imaginação, publicado em 2013, descreve de modo assustadoramente claro
em que medida Kafka soube dar corpo a uma máquina que só faria crescer
após a sua morte prematura. Cito aqui o livro de Kulka, mais exatamente o
subcapítulo intitulado, justamente, “Na colônia penal”, que descreve uma cena
de espancamento de um prisioneiro. A passagem é longa, mas indispensável:

A cerimônia começou com uma espécie de jogo, como que uma diversão, na qual
os homens da SS espancaram o prisioneiro com suas bengalas; eu só enxergava
a cabeça careca do homem, os golpes que choviam sobre seu crânio, as manchas
vermelhas que surgiam depois de cada pancada. Tudo aconteceu como que em
silêncio, sem som, no ar saturado de névoa, e no entanto tudo também estava
perfeitamente nítido e próximo, cada detalhe visível. O prisioneiro, em uma
espécie de dança grotesca, estrambótica, tenta se esquivar dos golpes e proteger
os lugares onde é golpeado. Chovem pancadas por todos os lados e, sempre na
esteira, as manchas vermelhas na cabeça. Como se fosse uma espécie de jogo. A

330
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

impressão que me ficou marcada na memória - sem nenhuma consciência moral


do ato de tortura - permaneceu apenas como uma imagem na minha mente: o jogo
de taco jogado pelos homens de verde da SS, os Kapos em seus trajes bem passados
de prisioneiros, o prisioneiro, de cabeça raspada, com um uniforme de prisioneiro
imundo, sendo espancado e torturado. De sua pessoa como uín todo, eu gravei
apenas uma parte: a brancura do crânio onde as manchas vermelhas brotavam e
o sangue escorrendo pela face.
Depois dessas preliminares, amarraram o prisioneiro em um equipamento especial
de flagelação. Ataram as pernas dele, puxaram suas mãos à frente e as amarraram
também. Acho que foram os Kapos que o amarraram ao poste, enquanto os
homens da SS aguardavam ao lado. Começou então a segunda parte da cerimônia:
o açoitamento, com o próprio prisioneiro contando em voz alta as chibatadas, uma
por uma. É assim que recordo as chibatadas, uma após a outra, e a contagem que
prosseguia, cada vez mais fraca, até por fim silenciar. Depois - pelo que ainda
me lembro - soltaram o homem do poste, e todos se dispersaram. O que retenho
dessa cena resume-se a um sentimento de uma “justiça” singular que havia em
tudo aquilo; um sentimento que era uma espécie de concretização de uma “ordem”
desnorteante que pairava sobre o cotidiano do campo. Vítima e perpetradores, ou
os açoitadores e as chibatadas de justiça às quais o prisioneiro fora sentenciado
formavam como que um sistema no qual era impossível distinguir, separar a
vítima daqueles que aplicavam a punição.
Provavelmente eu não teria me lembrado desse incidente, não teria gravado a cena e
sua implicação na memória, se ela não tivesse surgido à minha frente muito tempo
depois ao ler o conto de Kafka “In der Strafkolonie”, “Na colônia penal”. Também
nele havia a noção de uma estranha “justiça” que residia na unidade dos opostos,
a justiça supostamente exclusiva da “colônia penal”, o estranho mundo onde o
viajante da história vai parar; e eu me vi como quem assiste de fora, observando
como aquela perversa máquina “engenhosa”, a invenção do comandante da colônia
penal, registra com precisão na carne do condenado a medida da punição que ele
merece segundo as regras do jogo. Sim, era a mesma noção de justiça, precisão
e absurdo que caracteriza o espetáculo descrito na história de Kafka e que pode
ser vista como um espetáculo de justiça esotérica, um espetáculo de justiça feita
e sentença executada com o maquinário de punição em um sistema penal que
é sua própria entidade autônoma. Como que envolto nisso há uma espécie de
sistema capaz de existir sem nenhuma ligação com a estranha paisagem que o
viajante encontra e que pode ser transposto para a paisagem do campo naquela
manhã nevoenta em Auschwitz. E, de Auschwitz, poderia infiltrar-se em cada
situação possível, como se fosse um sistema autônomo, totalmente divorciado

331
A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE

de qualquer sentimento de piedade, repulsa, crueldade - até mesmo a distinção


entre vítima e perpetrador parece desaparecer completamente aqui. É esse o modo
como me lembro da cena, daquela cena de violência-como-ritual, como parte do
sistema, não da Grande Morte ou dos jogos da pequena morte, mas do cotidiano.
A rotina diária do sistema que funcionou entre a Grande Morte e a liquidação do
campo de Auschwitz - na etapa de “Auschwitz como uma cidade fantasma”. Mas
também de Auschwitz sob o domínio de uma sombra de sua “glória” - um aspecto
dessa cidade fantasma que continuou a existir, como a colônia penal da história de
Kafka, já destituída de seu propósito, de seu “sentido” original de quando o sistema
estava no auge, quando a colônia penal estava no apogeu. Algo que parecia já ter
partido do mundo mas que ainda existe, e a ordem existe, a punição existe, e a
vítima faz seu papel com aparente concordância, e o viajante perplexo registra os
acontecimentos como os vê. Assim eu os registrei.66

Essa tomada de posição de relator, de autor de um relato sobre essa estranha


“justiça”, essa violência naturalizada, foi possível a Kulka graças à leitura,
muitos anos depois de Auschwitz, da narrativa kafkiana. Kafka como que
inscreveu “antes” aquele sistema que, na verdade, já fora imposto a boa parte da
humanidade com a Modernidade colonial. Esse “testemunho precoce” de Kafka
na realidade também foi um testemunho tardio, aprés coup, como costumam
ser os testemunhos que às vezes necessitam de décadas para ser inscritos. O
próprio testemunho de Kulka é uma prova desse ser “tardio” do testemunho,
já que foi publicado em 2013, mais de 60 anos após os fatos narrados.
O século XXI mostra-se, então, como o cronotopo complexo, no qual
a máquina genocida-memoricida continua a atuar, na continuidade da
colonialidade, ao mesmo tempo que poderosas forças de resistência se articulam
em contradiscursos e políticas decoloniais que permitem uma difícil, mas
fundamental, reescritura crítica da memória e da história. A “verdade toda
branca”67 abre espaço para outras verdades resistentes que ajudam a configurar
outras subjetividades, outros “esquemas corporais”,68 outras utopias e projetos
de construção do comum. Se no século XXI continua-se a “regurgitar o vômito
de Hitler”69 é porque a máquina colonial ainda está bem azeitada e continua a
produzir a sua “justiça” genocida. A batalha contra os novos Hitlers que surgem
a cada chance aberta pelas democracias agonizantes só estará garantida quando
estruturas verdadeiramente democráticas em sociedades autenticamente
igualitárias puderem ser instituídas. Enquanto isso não acontecer, estaremos

33 2
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

condenados a, a qualquer momento, ser novamente imolados em “holocaustos”


grotescos, reproduzindo máquinas que funcionam, nas palavras de Kulka
novamente, em “um sistema autônomo, totalmente divorciado de qualquer
sentimento de piedade, repulsa, crueldade”.70

Notas

1 Alt, 2005, p. 477.


■ Gilroy (2007, p. 75) cita apenas até aqui.
3 Arendt, 2013, pp. 274-275.
4 Bobbio, 2008, pp. 45-46.
Kafka, 2020, p. 65.
6 Idem, p. 35.
‘ Idem, ibidem.
8 Derrida, 1985.
9 Almeida, 2020, p. 134.
10 Idem, p. 135.
11 Foucault, 2009, p. 55.
12 Idem, p. 54.
13 Kafka, 2020, p. 65.
14 Idem, ibidem.
10 Idem, ibidem.
16 Idem, p. 73.
17 Idem, p. 69.
18 Benjamin, 1986, p. 166; 1977, p. 188.
19 Aristóteles, 1980, p. 49; 1449b 14.
20 Idem, p. 57; 1450a 35.
21 Kafka, 2020, p. 100.
22 Idem, p. 117.
23 Idem, p. 55.
24 Kant, 1959, p. 65.
2o Kafka, 2020, p. 40.
26 Deleuze & Guattari, 1976, p. 30.
27 Idem, p. 31.
28 Idem, p. 184.
29 Kristeva, 1980.
30 Recordo a passagem correspondente da Crítica da faculdade do juízo, de I. Kant: “A bela
arte mostra a sua preeminência precisamente no fato que ela descreve belamente as coisas
que na natureza seriam feias ou desaprazíveis. [...] somente uma espécie de feiura não pode
ser representada de acordo com a natureza sem deitar por terra todo o comprazimento
estético, por conseguinte a beleza da arte: a.saber, a fealdade que desperta asco. Pois, porque
nessa sensação peculiar, que assenta na mera imaginação, o objeto é representado como se
elese impusesse ao gozo, ao qual contudo resistimos com violência, assim a representação
artística do objeto não se distingue mais, na nossa sensação, da natureza desse próprio

333
A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE

objeto, e então é impossível que aquela seja tomada como bela” (Kant, 1998, p. 217; Kant,
1959, p. 166). Cf. Menninghaus, 1999; Seligmann-Silva, 2018, pp. 31-56.
31
Agamben, 2002.
32
Kafka, 2020, p. 49.
33
Vogl, 2010, p. 54.
34
Deleuze & Guattari, 1976, p. 31.
35
Idem, p. 34.
36
Benjamin, 1982, p. 130.
37
Idem, ibidem.
38
Deleuze & Guattari, 1976, p. 49.
39
Idem, p. 54. 1
40
Klein, 1984.
41
Deleuze & Guattari, 1976, p. 57.
42
Idem, p. 58.
43
Idem, p. 439.
44
Idem, p. 440.
45
Kafka, 1966, p. 176.
46
Sobre o “Caso Dreyfus”, cf. Pagès, 2021.
47
Alt, 2005, pp. 483-488.
48
Kafka, 2020, pp. 148-151.
49
Idem, p. 38.
50
Com relação ao tema do trabalhador associado ao dispositivo do aparelho-máquina, vale
lembrar também que Kafka trabalhou, desde 1908 até a sua aposentadoria por tuberculose,
no Instituto de Seguro contra Acidentes de Trabalho, tendo acompanhado de perto
inúmeros casos de mutilações devido a máquinas mal planejadas. Em uma ocasião, ele
inclusive sugeriu as devidas alterações para que uma máquina de aplanação da indústria
madeireira tivesse a sua segurança aprimorada, o que resultou “na preservação de
incontáveis lesões” (Begley, 2010, p. 43).
51
Kafka, 2020, p. 44.
52
Idem, p. 48.
53
Fanon, 2008, p. 139. Gustav Janouch, em seu livro contendo suas conversas com Kafka,
narra-nos uma observação do autor de Praga: “O marquês de Sade, cuja biografia você
me emprestou, é o verdadeiro patrono de nossa era. [...] O marquês de Sade só pode obter
prazer através do sofrimento dos outros, assim como o luxo dos ricos é pago pela miséria
do pobre” (Janouch, 1953, p. 77). Sobre essas aproximações entre tortura e prazer sexual
nas representações artísticas, cf. Sorgo, 1997; Gubern, 2005.
54
Fanon, 2008, p. 103.
55
Idem, p. 180. Fanon explica a diferença entre a visão hegeliana e a situação colonial:
“Esperamos ter mostrado que aqui o senhor difere essencialmente daquele descrito por
Hegel. Em Hegel há a reciprocidade, aqui o senhor despreza a consciência do escravo. Ele
não exige seu reconhecimento, mas seu trabalho. Do mesmo modo, o escravo não é de
forma alguma assimilável àquele que, perdendo-se no objeto, encontra no trabalho a fonte
de sua libertação. O negro quer ser como o senhor. Assim, ele é menos independente do que
o escravo hegeliano. Em Hegel, o escravo se afasta do senhor e se volta para o objeto. Aqui,
o escravo volta-se para o senhor e abandona o objeto” (2008, p. 183). Sobre essa dialética
senhor-escravo relacionada com a colonização, ver também, em um sentido bem diverso
de Fanon, Gilroy (2012, pp. 138-141) e o volume de Kistner & Haute (2020), que explora a
origem dessa interpretação da dialética senhor-escravo nas leituras de Hegel por parte

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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

de Alexandre Kojève nos anos 1930 e da tradução da Fenomenologia de Hegel por Jean
Hyppolite de 1939-1942.
2,6 Kafka, 1994, VI, p. 232.
Idem, 2020, p. 44.
08 Césaire, 2020, p. 23.
39 Fanon, 2008, p. 126. Essa formulação de Fanon, afirmando que o preto seria um brinquedo
na mão do branco, permite que lembremos de outra obra de. Kafka que também trata da
violência da escravidão e do racismo, ainda que, como na narrativa Na colônia penal, de
modo indireto. Trata-se do capítulo ou parte final de seu romance também inacabado
O desaparecido (Der Verschollene), conhecido pelo nome que lhe foi atribuído por seu
primeiro editor, Max Brod, Amerika, e que Kafka redigiu na mesma época que compôs
seu escrito sobre a colônia penal. Nessa parte da narrativa, que foi intitulada por Brod
de “O Teatro Natural de Oklahoma”, o protagonista, Karl Rossmann, dirige-se a uma
espécie de grande feira realizada em uma pista de hipódromo na qual ele se candidata a
uma vaga no teatro de Oklahoma. O problema de Karl é que ele não tinha documentos
e nenhuma qualificação especial para ser contratado. Além de estar “muito malvestido”
(Kafka, 2003, p. 255). Ele acaba no último dos guichês, o mais baixo e menor. Sentindo-se
inferiorizado, a última das pessoas, quando lhe perguntam seu nome, ele responde: “Negro”
(idem, p. 258; idem, 1994, II, p. 306). Para ser admitido, apalpam-lhe os braços para ver
se seria forte para o trabalho duro que o esperava. Digno de nota é que, no mencionado
livro de Arthur Holitscher sobre a América do Norte, que Kafka lera, aquele autor destaca
como, nos EUA, os negros se identificavam com os judeus e vice-versa. ‘“We are in the
same boat!’, disse meu amigo, o jovem negro da Rua 53. ‘Nossos destinos são muito
parecidos. E então nós dois viemos da África, os judeus e nós, negros1 .” (Holitscher, 1913,
p. 365). Holitscher também descreve os linchamentos dos negros em passagens que podem
ter inspirado Kafka a escrever sobre a violência em sua colônia penal, e inclusive estampa
uma fotografia macabra de dois negros linchados e enforcados com o seguinte subtítulo:
“Idílio de Oklahoma” (“Idyll aus Oklahoma”; idem, p. 366). Essa fotografia e sua legenda
servem para lembrar dessa prática violenta e de sua glamourização pela população branca,
lembrando que Oklahoma era um dos estados mais racistas do sul dos EUA. (Cf. <https://
www.okhistory.org/publications/enc/entry.php?entryname=SEGREGATION>. Acesso em
4/8/2021.) Essa realidade, aliás, não mudou muito no século XXI, tendo-se em conta que,
após o assassinato de George Floyd e da onda de protestos antirracistas, na retranca desse
processo, o estado de Oklahoma aprovou uma lei proibindo o ensino crítico de questões
raciais. (Cf. <https://www.nbcnews.com/news/us-news/teachers-worry-oklahoma-s-ban-
-systemic-racism-lessons-could-put-ni268554>. Acesso em 4/8/2021.)
60 Césaire, 2020, p. 38.
61 Como formula Nietzsche nesta passagem tão cheia de significado: “Como fazer no bicho-
-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa inteligência voltada para o
instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação do esquecimento? [...] Grava-se algo
a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória”
(Nietzsche, 1988a, p. 295; idem, 1998, p. 50). No caso do dispositivo de Na colônia penal, a
inscrição a ferro e fogo leva a uma paradoxal memória fatal.
62 Sartre, 1968, p. 42.
63 Idem, pp. 45-46.
64 Foi Karel Capek (1890-1938), em sua peça RUR (que significa a abreviação do nome de uma
firma: Resons Universal Robots), de 1920, quem introduziu o termo “robô” na cultura
moderna. A palavra vem do termo tcheco robota, utilizado para expressar o trabalho servil,

335
A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE

duro, enfim, o labor. Capek, inspirado na tradição do Golem de Praga, também escreve
a sua ficção científica a partir da experiência da Primeira Guerra Mundial, que revelou a
força destrutiva da técnica. Nessa obra, o robô Golem é uma metonímia da técnica, mas
também da revolta dos trabalhadores escravizados.
63 “Ihre freundlichen Worte über mein Manuskript sind mir sehr angenehm eingegangen.
Ihr Aussetzen des Peinlichen trifft ganz mit meiner Meinung zusammen, die ich allerdings
in dieser Art fast gegenüber aliem habe, was bisher von mir vorliegt. Bemerken Sie, wie
wenig in dieser oder jener Form von diesem Peinlichen frei ist! Zur Erklãrung dieser
letzten Erzãhlung füge ich nur hinzu, dass nicht nur sie peinlich ist, dass vielmehr unsere
allgemeine und meine besondere Zeit gleichfalls sehr peinlich war und ist und meine
besondere sogâr noch lãnger peinlich ais die allgemeine” (Wolff, 1980, p. 40 e ss.).
66 Kulka, 2013, pp. 56-58.
6/ Fanon, 2008, p. 132.
68 Idem, p. 104.
69 Césaire, 2020, p. 55.
70 Kulka, 2013, p. 65.

336
PALAVRAS FINAIS

Ao final deste percurso chega em minhas mãos um livro que saiu em


novembro de 2021 com o título Traces of violence.' Nele, encontram-se
oito ensaios em torno do primeiro genocídio que abriu o século XX, o das
populações Ovaherero (ou Herero) e Nama, na Namíbia, então colônia do
Império Alemão (de 1884 até a Primeira Guerra Mundial). Como acabamos
de ler, com Hannah Arendt: “As possessões coloniais africanas tornaram-se o
solo mais fértil para que florescesse o grupo que viria a ser mais tarde a elite
nazista”.2 Traces of violence foi organizado pelo fotógrafo e artista Marcelo
Brodsky. Nele, Brodsky realizou uma série de “apropriações” e de inserções
em fotografias dessa era colonial alemã na África. Suas 30 obras, reproduzidas
no catálogo, possuem títulos eloquentes e produzem uma poderosa narrativa
dos gestos colonizadores, com ironias que apenas vendo as imagens se podem
perceber: Feliz natal; Nós internamos vocês em campos de concentração; Nós
invadimos vocês; Nós escravizamos vocês em nossas minas; Nós punimos vocês;
Nós fizemos suas mulheres trabalharem para nós; Nós mentimos para vocês;
Nós desprezamos vocês; Nós destruímos as suas vilas; Nós empurramos vocês
para 0 deserto; Nós dominamos vocês; Nós fuzilamos vocês; Nós levamos vocês
acorrentados; Nós acorrentamos vocês; Nós testamos os chuveiros; Nós testamos 0
transporte de trem; Nós forçamos vocês a trabalhar por nós; Nós emprisionamos
vocês; Nós queimamos as suas casas; Nós ocupamos a sua terra; Nós examinamos
seus crânios; Nós tomamos as terras de vocês; Nós abusamos de vocês; Nós
penduramos vocês; Nós odiamos vocês; Nós matamos vocês; Nós testamos ferro;
Nós fizemos vocês construírem nossas ferrovias; Nós escravizamos vocês; Nós
escravizamos seus filhos.

337
PALAVRAS FINAIS

Essa obra de Brodsky deve ser lida também como um gesto, uma reação
à brutal continuidade das violências da colonialidade em nossa era. Apenas
recentemente o governo da Alemanha reconheceu esse genocídio africano e
estabeleceu medidas de reparação que estão sendo em boa parte contestadas
como insuficientes pelos descendentes dos povos vitimados. Brodsky, com
essa obra, junta-se a outros artistas e defensores dos direitos humanos que têm
procurado unir a criatividade artística às atuais pautas de luta pela liberdade e pela
igualdade. Eles se apropriam muitas vezes das fotografias coloniais para, por meio
de intervenções e da legendagem, transformar essas imagens fotográficas em um
dispositivo mnemônico decolonial crítico. Assim, essa obra dialoga diretamente
com a de outra fotógrafa e artista, a norte-americana Carrie Mae Weems. Sua
obra, From Here I Saw What Happened and I Cried (1995-1996),3 também é
construída a partir da apropriação de fotografias de corpos afrodescendentes do
século XIX, submetidos, por dispositivos científicos, fotográficos, sexistas, ao
exército, ou de mulheres reduzidas ao papel de ama de leite etc. Nas fotografias
dessa série de Weems também lemos uma série de legendas que potencializam
criticamente a leitura das imagens: “Você se tornou um perfil científico”; “Um
tipo negro”; “Um debate antropológico”; “O objeto fotográfico”; “Um brinquedo
para o patriarca” etc. Weems fala do ponto de vista de uma negra. A primeira
fotografia dessa série é de uma mulher retratada no Congo em 1920; ela está de
perfil, olhando para a direita, e sobre essa fotografia lemos: “Daqui eu vi o que
aconteceu”.-' A última imagem da série é essa mesma fotografia, com a face voltada
para a esquerda, portanto como que observando as fotografias anteriores, com
o letreiro: “E eu chorei”.5 Brodsky, em sua série, assume nas legendas a persona
dos alemães que são protagonistas nas fotografias coloniais que ele colecionou e
sobre as quais desenhou e escreveu seus títulos em alemão e em inglês. Ambos
os artistas fotógrafos reencenam criticamente a violência colonial que ecoa
de um passado que não passa, porque não foi inscrito, ensinado e introjetado.
Antes, esse passado racista colonial está em boa parte recalcado, produz uma
repetição do gesto colonial-racista nas políticas internacionais e domésticas, sem
contar o que se dá nas nossas relações interpessoais e intergrupais. Esse passado
colonial exige elaboração. O encontro entre essas obras de Weems e Brodsky
mostra como as histórias afro-atlânticas se repetem para além das fronteiras
nacionais. O sistema colonial era e é global. Temos que aprender a reescrever a
história também a partir de campos de força transnacionais, como o da história

338
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

da diáspora afro-atlântica, como vemos em autores como Paul Gilroy, Bell Hooks
e Lélia Gonzalez. Também Rosana Paulino, cujo Parede da memória discutimos
na introdução deste livro, lança mão, em sua obra, das fotografias coloniais para
ressignificá-las, apropriando-se e reconquistando um passado-presente, antes
sequestrado por versões colonialistas da história. Isso vemos<ém Paulino, tanto
em Assentamento (2013), como em Atlântico vermelho (2017), em As gentes (2016),
como em outras de suas obras.6
A escrita testemunhai das violências da era moderna é uma demanda
global, pois essa era foi justamente caracterizada por sua voracidade em cobrir
com a “razão ocidental” toda a superfície do planeta. Deste planeta, dominado
até seu último rincão por essa razão iluminista, emana, hoje, o cheiro de morte.
Se a teoria crítica no entreguerras e na segunda metade do século XX percebeu
a necessidade de uma crítica profunda dessa razão instrumental tanatofílica,
no século XXI a virada decolonial do pensamento cobra uma radicalização
dessa revisão. Ela não pode se dar sem o compromisso com a releitura crítica
da história dos sofrimentos e das lutas dos subalternizados pelo “processo
civilizatório”. Toda uma literatura africana e afrodescendente tem despontado
agora como bastião dessa reinscrição crítica, ao lado dos aqui mencionados e
de tantos outros artistas de rememoração. Outras produções culturais antes
marginalizadas, ou reduzidas colonialmente ao clichê de “cultura popular”,
de “folclore”, de documento antropológico, são reconhecidas agora como
possuindo ao menos o mesmo direito a participar de nossas referências
culturais-chave. Se no século XX se lutava pelo direito de a literatura atingir
a todos (Antônio Cândido), agora se trata do direito de outras manifestações
culturais serem reconhecidas como dignas. Nesse processo, os próprios
conceitos de literatura e de belas-artes são profundamente ressignificados.
Não se trata mais de tentar moldar as inscrições narrativas produzidas nas
mais diversas localizações sob os conceitos decantados ao longo de mais de dois
mil anos de reflexões eurocêntricas sobre os gêneros literários, mas, antes, de
repensar esses conceitos à luz dessa produção narrativa antes subalternizada.
Assim, o elemento “local” dessas produções serve para desconstruir o falso
e pretenso universalismo dos conceitos da teoria literária. Todo um amplo
horizonte se abre diante de nós em face do desafio de reinventar a teoria
literária e a teoria estética (desde sempre comprometidas com a ontotipologia
e com a produção subalternizante de outrificados7).

339
PALAVRAS FINAIS

É fundamental aprendermos a ler e destacar o “teor testemunhal” da


história e da cultura, para não deixarmos a construção histórica se esvair no
ar como cantilena abstrata que embala a justificativa da dominação de ontem
e de hoje. Temos que aprender que todo documento de cultura está prenhe
de teor testemunhal, seja uma carta, um romance, um poema, um gesto, um
palácio ou um barraco. Aprender a escandir a história do ponto de vista do teor
testemunhal não é nada mais do que aprender a pensar a partir do encontro
de nosso presente com outras cronotopias que preenchem nosso tempo com
sementes do passado, cheias de desejo e de força fecundante. O dispositivo
testemunhal pensado do ponto de vista da emancipação permite a explosão das
falsas construções históricas, com sua teleologia barata que promete a redenção
da humanidade em um futuro de riqueza e plenitude que só chega para as elites
de sempre. Uma história articulada do ponto de vista do teor testemunhal da
cultura é um poderoso antídoto contra os salvadores da pátria de plantão, pois
essa história crítica mostra que esses autointitulados redentores são os capitães
do mato redivivos.
Fala-se que o Brasil é um país sem memória. Não é verdade. O que acontece
é que, quando se trata das marcas da memória daqueles que são subalternizados,
dos que se opõem às políticas das elites e lutam por uma sociedade mais justa,
são essas as memórias que são recalcadas e tendencialmente apagadas em
nossa sociedade. Assim, temos que aprender a valorizar as marcas do período
da escravização dos retirados à força da África e dos indígenas, assim como
do genocídio dessas nossas populações originárias, entre tantas histórias
soterradas. Temos que inscrever essa história naturalizada da nossa violência,
contra os trabalhadores, as mulheres, as populações LGBTQIA+, mas também a
história das lutas, dos sonhos, das utopias e das resistências. Todo esse processo
resistente traz um testemunho que estrutura as lutas do presente. Como lemos
na epígrafe deste livro, nas palavras de James Baldwin:

History is not the past.


It is the present.
We carry our history with us.
We are our history.
If wepretend otherwise, we literally are criminais

340
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO

Daí a história dever ser pensada e erigida a partir do tempo-agora.


Por outro lado, nossas cidades, ruas e estradas comemoram presidentes,
generais, industriais, grandes terras-tenentes e torturadores. Existe aqui uma
comemoração da colonialidade, uma monumentalização da barbárie que é
apresentada como se fosse signo do progresso, do Iluminismo e da Razão.
Então, é fundamental que entremos nessa luta para reverter esse cenário. Como
postulava Benjamin, como vimos ao longo deste percurso, precisamos criar
novos espaços de imagem, Bildrãume, instituir um novo campo de ação lúdico,
Spielraum, como meio de sair da aporia na qual nos encontramos, nesse beco
aparentemente sem saída, cada um em seu casulo tentando respirar enquanto o
oxigênio se esvai.8 Nas palavras do pensador Ailton Krenak: “Vamos aproveitar
toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos.
Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado, mas como o cosmos
onde a gente pode despencar em paraquedas coloridos”.9

Notas

1 Brodsky, 2021.
2 Arendt, 2013, p. 274.
3 Disponível em <https://www.moma.org/learn/moma_learning/carrie-mae-weems-from-
-here-i-saw-what-happened-and-i-cried-i995/#:~:text=With%2oFrom%2oHere%2oI%20
Saw,%2C%2ostereotyping%2C%2oand%2osocial%20Ínjustice>. Acesso em 11/4/2022.
4 “From Here I Saw What Happened.”
3 “And I cried.”
6 Paulino, 2018.
' Lacoue-Labarthe & Nancy, 2020; Seligmann-Silva, 2019 e 2021a.
8 Seligmann-Silva, 2021b.
9 Krenak, 2019, p. 30.

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Título A virada testemunhal e decolonial
do saber histórico

Autor Márcio Seligmann-Silva

Coordenador editorial Ricardo Lima


Secretário gráfico Ednilson Tristão
Preparação dos originais Lúcia Helena Lahoz Morelli
Revisão Vinícius Emanuel Russi Vieira
Editoração eletrônica José Severino Ribeiro
Design de capa Estúdio Bogari
Formato 16x23 cm
Papel Pólen natural 80 g/m2 - miolo
Cartão supremo 250 g/m2 - capa
Tipologia Minion Pro
Número de páginas 368

Imagem de capa
“Parede da Memória”, de Rosana Paulino.
Fotografia: Cláudia Melo.

ESTA OBRA FOI IMPRESSA NA GRÁFICA CS


PARA A EDITORA DA UNICAMP EM JUNHO DE 2023.

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