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A virada testemunhai
e decolonial do saber histórico
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELO
SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP
DIVISÃO DE TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO
BIBLIOTECÁRIA: MARIA LÚCIA NERY DUTRA DE CASTRO - CRB-8*
1 / 1724
CDD-325.3
- 701
ISBN 978-85-268-1531-5 - 320.569
ia reimpressão, 2023
Editora da Unicamp
Rua Sérgio Buarque de Holanda, 421 - 3= andar
Campus Unicamp
CEP 13085-859 - Campinas - SP - Brasil
Para Ariani
History is not the past.
It is thepresent.
We carry our history with us.
We are our history.
If wepretend otherwise, we literally are criminais.
Apresentação.................................................................................................... 11
Introdução ........................................................................................................ 15
11
APRESENTAÇÃO
Como fazer no bicho-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa
inteligência voltada para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação
do esquecimento? [...] Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o
que não cessa de causar dor fica na memória.-1
Por outro lado, essa associação entre dor e memória não deixa de conter
uma verdade indiscutível. Freud, poucas décadas depois dessas palavras de
Nietzsche, teorizou essa dor em termos do conceito de “trauma”. Para ele, os
traumatizados sofrem de “memória demais”. A memória do trauma é ambígua,
“latente”, igualmente banhada no rio Lete (do esquecimento) e no rio da
Memória. A questão justamente é como lidar com essas inscrições do trauma,
como inscrevê-las, como elaborá-las. Neste livro proponho uma discussão
desses temas a partir de um outro excesso correlato a esse “excesso traumático
de memória”, a saber, a violência inerente ao processo da Modernidade. Essa
violência é tanto biotanatopolítica, ou seja, é fatal, como também é memoricida
e negacionista: carrega em seu bojo uma contínua política do apagamento e
do esquecimento.
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APRESENTAÇÃO
Cardozo, Miguel Vedda, Moacir dos Anjos, Nelson Camata, Olgária Mattos,
Paulo de Sousa Aguiar de Medeiros, Paulo Endo, Rachel Cecília de Oliveira
Costa, Ralph Buchenhorst, Raquel Mercado Salas, Ricardo Timm de Souza,
Roberto Vecchi, Rosana Kohl Bine, Rosane Kaminski, Rosangela Rennó, Sandra
Arenas, Sandra Berman, Sandra Lorenzano, Sigrid Weigel, Solange Farkas,
Susana Kampff Lages, Susanne Klengel, Susanne Zepp, Suzana Sacramin, Tania
Rivera, Tania Sarmento-Pantoja, Vera Casa Nova, Virgínia Vecchioli, Willi
Bolle e Winfried Menninghaus.
Evidentemente, a certeza de que tudo isso vale a pena, apesar de tudo,
veio da pessoa a quem eu agradeço por último, justamente por ser a primeira:
Ariani Sudatti.
Notas
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INTRODUÇÃO
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INTRODUÇÃO
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vivem neste continente há milhares de anos sem nunca ter destruído nada de
sua natureza). Devemos comemorar os afrodescendentes que lutaram e lutam
pela sua emancipação, assim como os que participam de movimentos sociais
do campo e das cidades. Assim, estaremos construindo uma memória ética,
um genuíno meio capaz de plasmar uma sociedade mellíor. Recentemente,
em julho de 2021, o monumento ao bandeirante Borba Gato (do artista Júlio
Guerra, de 1957) foi incendiado em São Paulo, em um claro ato de protesto
contra nossa paisagem mnemônica ainda dominada pela colonialidade. Nomes
de ruas, memoriais e monumentos no Brasil estão ainda dentro da lógica
monumentalista e colonial herdada do século XIX. Essas marcas conservadoras
da memória constroem muros que barram a construção de outras memórias,
dificultam a inscrição de outras narrativas e a produção de novas subjetividades
resistentes à colonialidade.
É justo falarmos que políticas identitárias são construídas na trama da
memória e do esquecimento. Todo ato de lembrar encerra atos de esquecer.
Mas isso é parte de uma economia da memória que podemos considerar
natural. Mas existem também políticas de esquecimento. Em termos da
nação, países constroem as suas políticas da memória e do apagamento.
Com a ascensão do modelo de organização política sob a forma de nações
como base da vida burguesa, ocorreu, desde o século XIX, uma poderosa
construção de dispositivos e políticas da memória e do esquecimento. As
disciplinas da história, da literatura, da antropologia e da linguística serviram
a essas políticas. Elas ajudaram a dar forma às nações para justificar suas
fronteiras e seus ensejos colonialistas. Poderosas narrativas foram traçadas,
como mostrou, entre outros, Benedict Anderson,1 em torno do que seria cada
nação. De certo modo, para que cada narrativa se adequasse a uma história
nacional “de sucesso”, dever-se-iam apagar outras histórias. Não por acaso,
tem-se falado tanto em negacionismo nas últimas décadas. Devemos pensar
o negacionismo associado tanto às políticas de apagamento da memória
(sem as quais as nações não se constroem) como também como um aliado
sempre presente em políticas de massacres e de genocídios, que marcaram as
biotanatopolíticas do século XX e do nosso também. O discurso monolíngue
do nacionalismo fundamentalista, que se desenvolveu ao longo do século XIX,
produziu e reproduz até hoje máquinas genocidas e memoricidas. Recordo
dois exemplos rapidamente.
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INTRODUÇÃO
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INTRODUÇÃO
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INTRODUÇÃO
rerum, memória das coisas, com a memória verborum, memória das palavras
(conceitos que apresento aqui na abertura deste livro). Os imagnines agentes,
ou seja, agentes da memória, são colocados em certos locais para narrar
imageticamente história.8 Existe um movimento, nessa obra de Paulino, de
apropriação de elementos da memória, de uma memória próxima, familiar,
mas também distante, associada a uma ruptura, a uma deriva, de um saber e de
um modo de estar no mundo o qual, de certa forma, a artista reconhece como
seu. Como nas palavras de Musa Michelle Mattiuzzi, Rosana Paulino parece
de fato “habitar as ruínas da colonialidade”; ela se apresenta como alguém que
sabe “habitar e reviver as ruínas dessa pluralidade afro-atlântica”.9
A fotografia tornou-se uma metáfora fundamental na arte contemporânea
e, no Brasil, tem estado na base da produção de artistas que lidam com a
memória e, mais ainda, com o esquecimento. Recordo Hélio Oiticica, com
seu Bólide Caixa 18 “Homenagem a Cara e Cavalo”, de 1966, ou seu famoso
Seja marginal, seja herói, de 1968. A fotografia, sobretudo a analógica, tem
um momento de “impressão” (vale lembrar que Rosana Paulino é bacharel
e especialista em gravura10). A fotografia reatualiza outras metáforas da
memória, como a escritura, metáfora também fundamental, como veremos, na
referida tradição da arte da memória com sua ideia de inscrições mnemônicas.
Afinal, a fotografia é literalmente uma escrita de luz. Mas ela também remete à
concepção psicanalítica de nossa memória como camadas, umas mais outras
menos conscientes. A inscrição do trauma também já foi comparada ao/las/i
fotográfico. A fotografia enquanto retrato tem também um elemento corpóreo
e fantasmático: o retrato fotográfico literaliza ambiguamente o aparecer e o
desaparecer, a presença e a ausência, o desejo de ver e o evanescer da imagem.
Paulino torna-se também, nessa sua obra/jogo, quem dá as cartas na cena da
apresentação dos corpos negros. Como Eustáquio Neves e seus retratos, ela
afirma-se como agente de suas imagens, e não mais como objeto representado
e sem fala própria. A obra consegue ao mesmo tempo ser extremamente
contemporânea e citar passados mais ou menos próximos. Ela é um buraco
no tempo, cria uma metaespacialidade e outros cronotopoi. A fotografia é
tratada como fragmento, escombro, sobrevivência de um naufrágio, e é em
torno de fotografias apropriadas, suas cópias, seus recortes e suas inversões,
que boa parte da obra de Paulino se constrói. Isso sem, no entanto, romancear
alguma origem perdida, ou estabelecer alguma ontologia identitária. Antes, a
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INTRODUÇÃO
Notas
1 Anderson, 2008.
2 Rusten Bey, 1918, pp. 75-93.
3 Lacoue-Labarthe & Nancy, 1991.
4 Seligmann-Silva, 2019.
5 Fanon, 2008 [1952]; Nascimento, 2016 [1976]; Said, 1978; Hall, 2003.
6 Mbembe, 2017; Mignolo, 2011; Kilomba, 2019; Hooks, 2014.
' Nascimento, 2016, p. 125.
8 Yates, 1966.
9 Refiro-me ao pequeno e poderoso texto de Musa Michelle Mattiuzzi publicado no catálogo
Histórias afro-atlânticas. Vale a pena citá-lo, já que apresenta uma espécie de manifesto
decolonial da maior importância hoje no Brasil marcado pelas políticas neocoloniais:
“Na história contada pela branquitude - que ainda hoje apresenta facetas de um Brasil
colonial - a noção compulsória sobre o ‘outro’ é o que qualifico de mirada folclórica branca
sobre aspectos da estética negra e indígena. É um olhar e uma prática construídos a partir
do uso de signos que engendram a necropolítica como possibilidade de inclusão e de
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‘da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”
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“da ars memoriab aos estudos de memória pós-coloniais’
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“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”
garantir o regresso dos companheiros. Mas não conseguiu contê-los, ainda que
abnegado. Pereceram, vítimas de suas presunçosas loucuras. Crianções! Forraram
a pança com a carne das vacas de Hélio Hipérion. Este os privou, por isso, do dia
do regresso. Das muitas façanhas, Deusa, filha de Zeus, conta-nos algumas a teu
critério.8
Essa evocação das Musas remete ao acesso a uma memória total, cósmica,
que de certo modo é atemporal, pois funda o evento enquanto ato de memória.
Não se trata aqui de uma simples rememoração de fatos passados que o aedo se
recordaria para narrar. O aedo seria, antes, um visionário, alguém que via os
fatos que narrava e os transportava diante de seus ouvintes. Estamos em plena
era do triunfo da oralidade (do século XII ao século IX a.C.), e essa memória do
aedo é articulada à cosmogonia que transforma a fala em gesto de criação. As
estruturas rítmicas da linguagem articulam a memória, do mesmo modo que
as narrativas (re)produzem o mundo. Marcei Detienne, analisando a relação
na Grécia arcaica entre memória poética e verdade, escreve que “a palavra do
poeta, tal como se desenvolve na atividade poética, é solidária a duas noções
complementares: a Musa e a Memória. Essas duas potências religiosas definem
a configuração geral que dá à Aletheia poética sua significação real e profunda”.9
A Musa é uma potência religiosa que está associada à memória do mundo no
sentido de sua constante recriação e manutenção. A palavra musal, o seu canto
de memória, é “Palavra de Louvor”,10 palavra cantada que mantém o mundo
em ordem e faz dele Cosmos e não permite derivar para o caos. As Musas são
filhas da Memória, que era pensada como uma entidade antes de mais nada
cósmico-religiosa. O campo da memória não se restringia ao passado, mas
antes era parte de um saber mântico cósmico, que abarcava também o futuro.
O poeta que tem o dom da Memória é capaz de “decifrar o invisível”, e sua
memória é “potência religiosa que confere ao verbo poético seu estatuto de
palavra mágico-religiosa”.11 Daí a palavra poética não ser simples restauração,
mas, antes, instauração do real. As Musas como agentes da Memória dizem
“o que é, o que será, o que foi”.1- Mas a palavra poética enquanto instauradora
do mundo é calcada, observa ainda Detienne, no binômio censura/louvor:
pessoas e atos censurados tendem a Lete (o rio do esquecimento), ou seja, a
serem “deletadas”, ao esquecimento. Já pessoas e atos dignos de louvor são
patrimônio da memória, do tempo sem tempo da glória (Kléos), são “sem-
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’
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'da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”
A MEMÓRIA EM ARISTÓTELES
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“DA ARS MEMORIAE AOS ESTUDOS DE MEMÓRIA PÓS-COLONIAIS”
mítica mãe das Musas que já visitamos aqui. Estamos migrando da memória
mágico-cósmica para uma descrição das faculdades intelectuais. Platão
estabelece a tópica da relação entre a inscrição e a memória ao falar de um
cunho de cera; numas pessoas, maior; noutras, menor; nalguns casos, de cera
limpa; noutros, com impurezas, ou mais dura ou mais úmida, conforme o tipo,
senão mesmo de boa consistência, como é preciso que seja. [...] Diremos, pois, que
se trata de uma dádiva (doronj de Mnemosine, mãe das Musas, e que sempre que
queremos nos lembrar de algo visto ou ouvido, ou mesmo pensado, calcamos a
cera mole sobre nossas sensações ou pensamentos e nela os gravamos em relevo,
como se dá com os sinetes dos anéis. Do que fica impresso temos a lembrança
e o conhecimento enquanto persiste a imagem; o que se apaga ou não pôde ser
impresso, esquecemos e ignoramos, (ipic-d; cf. 1940-1953)
se uma pessoa não encontrar o que busca em A, ela o fará em E; pois a partir desse
ponto pode-se ir em qualquer direção, ou seja, tanto para D como para F. Se uma
pessoa não quer uma dessas, ela recordar-se-á passando para F, se ela quiser G ou
H. Caso contrário, ela passa para D. Sempre tem-se sucesso desse modo. O motivo
pelo qual nós nos recordamos e algumas vezes não, apesar de iniciar do mesmo
ponto, é que é possível prosseguir do mesmo ponto de partida para mais de um
destino; por exemplo, de C podemos ir direto para F ou apenas até D. (De memória
et reminiscentia 452a 15 ss.)2-'
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Como Yates recordou em sua obra clássica sobre The art of memory,24 um
marco nos estudos da memória contemporâneos, para a escolástica, Aristóteles
teria dado a sua aprovação para a mnemotécnica com o tratado De memória
et reminiscentia. É claro que isso está longe de ser evidente. A escolástica e a
mnemotécnica pós-aristotélica identificaram nessa centralidade das imagens
da teoria do conhecimento de Aristóteles um ponto em comum com as suas
próprias doutrinas. Por outro lado, se a memória, além de seu aspecto espacial
e dinâmico, também é vista como um constructo no qual imagens e conceitos se
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'da ARS MEMORIAE AOS ESTUDOS DE MEMÓRIA PÓS-COLONIAIS’
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sonho de Simônides para preveni-lo de que o barco no qual ele deveria viajar
no dia seguinte iria afundar. Simônides desistiu de continuar a sua viagem e,
ao fim, a embarcação de fato naufragou, matando todos os seus passageiros.27
Se, nessa anedota, os mortos/o passado já assumem uma forma espectral (e
o seu culto, uma maneira de apaziguá-los), na última historieta que gostaria
de recordar aqui, esse espectro assume a sua face assustadora e não mais
salvacionista. Cícero narra a anedota que envolve o grande general e político
ateniense Temístocles (circa 524-460 a.C.), responsável pela derrota dos persas
na Batalha de Salamina e, portanto, a quem Atenas devia o seu poderio sobre
o Mediterrâneo. Já em idade madura, em 470 a.C., devido a intrigas, ele foi
submetido a um tribunal que o condenou ao ostracismo. Durante o seu exílio,
em uma ocasião Simônides teria oferecido ensinar-lhe a sua arte da memória.
Temístocles - que era conhecido por sua memória prodigiosa - recusou a
oferta dizendo que ele necessitava de uma outra arte: a arte do esquecimento.
O general sofria de “memória demais” e não carecia de uma ars memoriae.-6
Apesar de sabermos que não pode existir, rigorosamente falando, uma ars
oblivionis,29 não é menos verdade que a Antiguidade também nos legou muitos
exemplos, belamente analisados por Harald Weinrich, de como o esquecimento
pode ser atingido: Ulisses encantado por Circe e Calipso, a sua tripulação
inebriada na ilha dos lotófagos, Ovídio tratando do Amor Lethaeus etc. Nessa
terceira anedota aparece a imagem de um passado que não é mero conjunto
de fatos que podem ser guardados, mas que constituem ao mesmo tempo uma
peça fundamental na nossa vida e na nossa identidade. Com relação a esse
passado, fica mais evidente em que medida a memória não é apenas um bem,
mas também uma força que encerra ainda uma carga espectral que gostaríamos
muitas vezes de esquecer - ou enterrar, como fazemos com nossos mortos. Esse
passado que não quer passar também é um íntimo conhecido nosso, moradores
da era dos extremos.
O impressionante é que essas três anedotas em torno de Simônides tenham
sido repetidas desde a Antiguidade até recentemente sem levar em conta o
elemento terrorífico envolvido nelas. Lendo-as na contemporaneidade, é como
se, para falar de memória, tivéssemos que lembrar necessariamente da morte (e
não de qualquer morte, mas sim de uma morte catastrófica), de nossa relação
respeitosa para com nossos mortos (o que afirma 0 ritual de enterro como um
núcleo antropológico de toda memória cultural) e da nossa ambiguidade com
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“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
Floyd sendo esmagado por um policial no ano anterior: “Não posso respirar”.31)
Em Marte, Quaid é assediado por prostitutas e por um vidente que pergunta
se ele gostaria de saber sobre o seu futuro. Em uma quase reversão da resposta
a Simônides dada pelo general grego Temístocles, que gostaria de aprender
a esquecer, Doug Quaid responde que gostaria de aprender não sobre o seu
futuro, mas sim sobre o seu passado: Vidente: “Ei, você quer saber o futuro?”.
Quaid: “E que tal o passado?”.32 Quaid sofre de “memória de menos”, e não de
“memória de mais” como o general grego. Na era das próteses de memória, nosso
pânico deriva de nossos acessos ou não a nossos dispositivos exossomáticos de
memória e ao modo como eles funcionam ou não. Lembremos que o título do
filme de Verhoeven em inglês é Total Recall, em uma alusão tanto ao desejo de
Quaid de se recordar como à luta revolucionária na forma de uma redenção
que ele realiza em Marte, libertando os colonizados e eliminando boa parte
dos malvados colonizadores. Sendo que toda essa ação revolucionária e “de
recordação” se dá sob o signo do “sonho” (no fim da luta, Doug fala: “E se tudo
isso for um sonho?”), já que, até o final do filme, não sabemos se toda a aventura
em Marte acontece na ordem da vigília ou se tudo não passa de uma pane na
máquina que deveria realizar um implante de memória pacifieadora em Quaid.
Dando mais um passo nessa leitura, pergunto-me ainda: não seria o próprio
filme de Verhoeven um implante de memória “pacifieadora” na platéia? Mas
prefiro não cair no discurso da “indústria cultural” e ler esse filme como uma
interessante manifestação de nossos atuais dilemas em torno da memória, suas
próteses e governos distópicos.
A MNEMOTÉCNICA
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‘da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”
Assim como quem conhece as letras do alfabeto é capaz de escrever o que lhe é
ditado e ler em voz alta o que escreveu, quem tiver aprendido a mnemotécnica
será capaz de colocar nos lugares o que ouviu e, recorrendo a eles, pronunciar de
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A VIRADA TESTEMUNHAI E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
Esses lugares e a sua sucessão devem ser de tal modo incorporados na nossa
mente, que se tornem tão fixos quanto um suporte de escrita que pode sempre
receber novas letras que substituem as anteriores por nós apagadas. Como se
fosse um museógrafo moderno, toda uma cenografia da memória é pensada
pelo autor anônimo: esses lugares devem ser bem demarcados uns dos outros,
ter uma dimensão mediana, ser iluminados de modo correto. No que tange à
escolha das imagens, ela deve proceder seguindo o princípio da semelhança (que
caracteriza a recordação) tanto com as coisas a serem lembradas (um princípio
icônico quanto à imagem), quanto com as palavras (iconicidade mediatizada
pela semelhança sonora dos nomes).39 Vale a pena lermos o exemplo dado pelo
autor do tratado Ad Herennium que “estranhamente” volta a tematizar morte
e assassinato e a cena jurídica para tratar de memória:
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‘da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’
seguindo uma lei que aprendemos com a natureza, devemos optar por imagens
chocantes, que fogem à norma. Ele afirma, por exemplo, que nos recordamos
de um eclipse do Sol, mas o percurso cotidiano do Sol não é excepcional e
não deixa marcas na nossa memória. Coisas extremamente feias ou belas nos
marcam, ele afirma destacando que faremos essas imagens que podem ficar
muito tempo na memória
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A VIRADA TESTEMUNHAI E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”
redes locacionais - ainda mais finas que os filamentos de uma teia de aranha - são
ricos dispositivos do pensar, construindo padrões ou “cenas” dentro dos quais as
“coisas” são presas e para dentro das quais são “reunidas” e re-unidas, de maneiras
inumeráveis, pelas mentes humanas individuais.49
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”
en terre sainte,56 sobre a construção dos lugares santos cristãos no século IV.57
Ela afirma que a
Chego aos campos e vastos palácios da memória onde estão tesouros de inumeráveis
imagens trazidas por percepções de toda espécie. Aí está também escondido tudo
o que pensamos [...] os objetos que os sentidos atingiram. Enfim, jaz aí tudo o que
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER.HISTÓRICO
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‘da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”
“a máxima visão” nascem como amantes da filosofia ou das artes das Musas
(Fedro, 248 d):
De fato, a alma que nunca viu a verdade não pode jamais assumir uma forma
humana, visto que um ser humano tem que compreender o discurso em termos
de formas gerais procedendo à reunião de muitas percepções dos sentidos numa
unidade raciocinada; isso corresponde a uma reminiscência [anamnesis] das
coisas que nossa alma outrora contemplou quando esteve viajando com o deus e,
elevando a sua visão acima das coisas que dizemos agora existirem, ascendeu ao
ser real. (Fedro, 249 b-c)
Agostinho diz que, assim como alguém que perdeu algo sabe que o
encontrou porque uma vez o viu e pode reconhecê-lo, também ele, em suas
andanças pelas veredas de sua memória, busca encontrar Deus. Mas este,
paradoxalmente, está em um para além da memória, já que é o todo e não
poderia ser contido em uma pessoa. A memória é uma espécie de escada para
Deus, assim como, para Platão, era o caminho para a verdade:
Grande é a potência da memória, ó meu Deus! Tem não sei quê de horrendo, uma
multiplicidade profunda e infinita. Mas isto é o espírito, sou eu mesmo. E que
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
sou eu, ó meu Deus? Qual é a minha natureza? Uma vida variada de inumeráveis
formas com amplidão imensa.
Eis-me nos campos da minha memória, nos seus antros e cavernas sem número,
repletas, ao infinito, de toda a espécie de coisas (reruiri) que lá estão gravadas, ou
por imagens (per imagines), como os corpos, ou por si mesmas (perpraesentiam),
como as ciências e as artes, ou, então, por não sei que noções e sinais, como
os movimentos da alma, os quais, ainda quando a não agitam, se enraizam na
memória, posto que esteja na memória tudo o que está na alma. Percorro todas
estas paragens. Vou por aqui e por ali. Penetro por toda parte quanto posso, sem
achar fim. Tão grande é a potência da memória e tal o vigor da vida que reside
no homem vivente e mortal! Que farei, ó meu Deus, ó minha verdadeira Vida?
Transporei esta potência que se chama memória. Transpô-la-ei para chegar até
Vós, ó minha doce Luz? Que me dizeis? Subindo em espírito até Vós, que morais
lá no alto, acima de mim, transporei esta potência que se chama memória.66
Agostinho continua:
Assim como a comida, graças à ruminação, sai do estômago, assim também elas
[as perturbações] saem da memória, devido à lembrança. Então por que é que o
disputador, ou aquele que se vai recordando, não sente, na boca do pensamento, a
doçura da alegria, nem a amargura da tristeza? Porventura nisto é dessemelhante
o que não é semelhante em todos os seus aspectos?69
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“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”
não é fácil [...] para todas as almas obter a partir de coisas terrestres uma
reminiscência [anamimnésko] dessas realidades (coisas que são), quer para os que
delas tiveram uma efêmera visão nessa ocasião anterior, quer.para os que, após
caírem na Terra, foram tão infelizes a ponto de serem desviados para a injustiça
devido a más companhias e terem esquecido [léten] as visões sagradas que uma vez
experimentaram. São poucos, portanto, os que retêm uma adequada reminiscência
[mnémes] delas. (Fedro 250 a)
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
um mundo de cópias (do mundo das idéias) que nos recorda com dificuldade
dos originais (Fedro 250 c). Já na dramaturgia do conhecimento e da psicologia
cristã, a cena é transposta para o interior do ser humano. Agostinho convertido
e confessando-se diante de Deus, um puro ato de memória catártico, diz-se
disposto a “esquecer as navegações errantes de Eneias e outras narrações
semelhantes”.73 Aqui, performaticamente, confissão, escuta e perdão unem-se
em laço ao esquecimento. Perdoar é visto como um tipo de esquecimento,
questão que voltaria a assombrar a humanidade no final do século XX com
seus tribunais de guerra, comissões de verdade e reparação e leis de anistia:
Vós, que sois o Médico do meu interior, esclarecei-me sobre o fruto com que faço
esta confissão. Na verdade, as confissões dos meus males passados - que perdoastes
e esquecestes para me tornardes feliz em Vós, transformando-me a alma com a fé e
com o vosso sacramento -, quando se leem ou ouvem, despertam o coração para
que não durma no desespero nem diga: “não posso”. Despertam-na para que vigie
no amor da vossa misericórdia e na doçura da vossa graça, com a qual se torna
poderoso o fraco que, por ela, toma consciência da sua fraqueza. Consolam-se,
além disso, os bons ao ouvirem os males passados daqueles que já não sofrem.
Deleitam-se não por serem males, mas porque o foram e agora não o são.74
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‘da ars memoriae aos estudos de memóhia pós-coloniais”
Há sobre este firmamento outras águas que, segundo creio, são imortais e
isentas de toda a corrupção terrena. Que elas louvem b vosso nome! Que os
povos supracelestes de vossos anjos, que não têm necessidade de olhar este
firmamento nem de conhecer, pela leitura, a vossa palavra, Vos bendigam!
Eles veem continuamente a vossa face e percebem, sem o auxílio de sílabas que
passam, a vossa vontade. Sim, percebem-na, elegem-na e amam-na. Aprendem
continuamente, e nunca esquecem o que aprendem!79
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“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”
que acompanhavam alguns escritos medievais. Estas podem ser lidas como
espécies de súmula imagética de textos (como nos conjuntos de rezas) ou como
estruturas que serviam para compor os blocos de texto tendo em vista facilitar a
memorização. Nesse sentido, ela destaca também como se valorizavam, na Idade
Média, não apenas as iluminuras, mas também todos os elementos sinestésicos
do texto, da forma das letras às suas cores. Tudo funcionava dentro de um grande
teatro da memória que tinha no seu centro o modelo da escritura sobre a página
branca de papel. Não espanta, portanto, que Carruthers perceba, nessa concepção
topográfica e escriturai da memória, o antecessor de nosso hipertexto.81 Também
nossa moderna preocupação com as bases materiais da escritura (com o livro,
seus antecessores, com os tipos de escrita etc.) encontra uma correspondência
nessa rica tradição desvendada pela autora.
Com Francês Yates, podemos recordar ainda que mesmo a atração medieval
pelo grotesco tem em parte suas raízes nessa doutrina da arte da memória.83 Isso
ficou claro ao vermos acima algumas passagens do Rhetorica ad Herennium
e do Sobre o sublime. Assim como o sublime é o avesso do cotidiano em sua
versão ascendente, o grotesco o é em sua versão descendente. Ambos marcam
e se inscrevem em nossa memória por desviarem da norma. No Renascimento,
essa tradição mnemotécnica, escreve ainda Yates, tem continuidade tanto
em tratados de pura mnemotécnica, como em simples listas de imagines
agentes (agentes imagéticos) e no desenvolvimento de alfabetos visuais.84
Um dos sonhos dos tratadistas da memória dessa época - representado de
modo exemplar pelo teatro da memória de Giullio Camillo - era justamente
conseguir reduzir todo o conhecimento macrocósmico em um conjunto de
imagens (um microcosmo) que poderia ser assimilado por uma só pessoa, de
tal modo que, com um simples olhar sobre as imagens organizadas de um modo
panóptico, poderiamos nos apropriar de todo esse saber. Era como se os agentes
de memória conseguissem mimetizar a face de Deus, da citação de Santo
Agostinho que acabamos de ler.8’ A verdade enquanto aletheia (como vimos, o
não esquecimento), tal como ela era pensada na tradição platônica, aliara-se, de
um modo anticlássico, à doutrina da arte da memória. Por outro lado, a atração
renascentista pelo hieróglifo somada à releitura dessa tradição neoplatônica
por um filtro cabalista transformou, finalmente, a arte da memória em uma
espécie de subgênero da escrita de mistérios e de enigmas típica da “era das
semelhanças”, para falarmos com Foucault.86 E foi justamente Foucault quem
6o
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
61
‘DA ARS MEMORIAE AOS ESTUDOS DE MEMÓRIA PÓS-COLONIAIS’
memória como ars pode ser de certo modo substituída ou complementada pela
máquina. Como afirmou Paul Ricoeur no seu livro A memória, a história, o
esquecimento: “para a memória artificial [ou seja, para a visão da memória como
ars] tudo é ação, nada é paixão”,89 como ficou claro no que vimos acima sobre a
mnemotécnica clássica. Por outro lado, tampouco podemos desprezar a íntima
relação dessas duas modalidades de memória. Lembrando-nos do conceito de
memória como glória/fama, fica claro que o arquivamento de determinados
nomes em detrimento de outros - e a memória sempre seleciona - já implica
uma política da memória enquanto vis. Ã “má-memória” de Temístocles (sua
melancolia), o peso do passado que ele portava no coração, corresponde não
só o seu desejo de apagá-la, mas também a possibilidade de uma reparação,
de uma anistia: nem tanto de um “esquecimento decretado”, mas sim de um
“perdão recíproco” que poderia reconciliar Atenas com seu ilustre filho.90
62
A VIRADA TESTEMUNHAI E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
Quanto a essa frase de Simônides, vale lembrar de sua reversão por Leonardo
da Vinci, no contexto da competição agônica entre as artes, o paragone, no
Renascimento. O grande pintor e pensador renascentista escreveu: “E se tu
disseres que a pintura é um poema mudo, não seria [a poesia] ela mesma muda
se não houvesse alguém para recitá-la ou para explicar o que ela representa”.91
A visão é, para Leonardo, “o sentido mais nobre”, o mais próximo da realidade:
“A imaginação [imagginatione] não vê tão excelentemente quanto o olho”;92
as coisas imaginadas permanecem, para ele, pouco tempo na nossa memória.
O pintor, uma vez que se dirige à visão, sempre estaria adiante do poeta na
imitação.93 Leonardo da Vinci elogia ainda a velocidade da recepção da pintura
sobre a recepção da poesia. A única coisa que ele admite faltar na pintura são
os sons; mas também aqui ele não deixa por menos: “Portanto, diremos que
a poesia é a ciência que melhor serve ao cego, e a pintura faz o mesmo para o
surdo; mas a pintura permanece a mais digna, na mesma medida em que serve
ao melhor sentido”.9-1 Esse debate é fundamental para entender essa disputa
entre o logocentrismo e os adeptos das imagens, que aprofundarei ao longo
deste ensaio. Mas o interessante é que essa centralidade da visão e da pintura,
para Leonardo, não era necessariamente antípoda do platonismo, já que a
“visão da verdade” no sentido das Eide, o mundo das idéias, é conciliável com
esse culto das imagens, como ocorre, por exemplo, com as obras de Botticelli
com sua tradução pictórica de preceitos neoplatônicos de Marsilio Ficino.95
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“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”
O MAL DE ARQUIVO
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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‘da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
A GRAMATOLOGIA
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‘da ARS MEMORIAE AOS ESTUDOS DE MEMÓRIA PÓS-COLONIAIS”
é algo que deve ser considerado como exterior à linguagem. Ele cita Saussure:
“Conquanto a escritura seja, por si, estranha ao sistema interno, é impossível
fazer abstração de um processo através do qual a língua é ininterruptamente
figurada; cumpre conhecer a utilidade, os defeitos e os inconvenientes de
tal processo”."4 A escrita seria descrita por Saussure como uma ferramenta
imperfeita e uma “técnica perigosa”, comenta Derrida. Saussure detém-se
na escritura para controlá-la, proteger a língua como um sistema interno
puro, evitar a sua contaminação. “O mal da escritura vem de fora (eksoten),
já dizia Fedro (275 a). A contaminação da escritura, seu feito e sua ameaça são
denunciados como acentos de moralista e de pregador pelo linguista genebrês”,
afirma Derrida."5 A linguística, para se construir, teve que abrir um processo
contra a heresia da escritura. Como no Fedro, a episteme e o logos estão
ameaçados por essa “irrupção do fora no dentro”. Desse modo, a origem do
saber, a presença pura da alma a si mesma no logos, ficaria bloqueada. Para o
linguista de Genebra isso seria um pecado.
68
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
tu, agora, pai das letras, foste levado pelo afeto a elas a conferir-lhes um poder
que corresponde ao oposto do poder que elas realmente possuem. O fato é que
essa invenção irá gerar esquecimento [leten] nas mentes dos que farão o seu
aprendizado, visto que deixarão de praticar com sua memória. A confiança que
passarão a depositar na escrita, produzida por esses caracteres externos [eksoten]
que não fazem parte deles próprios, os desestimulará quanto ao uso de suá própria
memória, que lhes é interior. O que descobriste não é uma poção [phármakon] para
a memória [mneme], mas sim para a evocação [hupomneseus]; proporcionará aos
teus discípulos a aparência de sabedoria [doxan], mas não a verdadeira sabedoria
[aletheia], (Fedro, 275 a;
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“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’
Quando escrever, é provável que semeará jardins de letras com o intuito de divertir-
-se, armazenando para si mesmo lembretes [hupomnemata] para quando atingir a
propensão ao esquecimento [letes] da velhice. [...] Mas, a meu ver, o discurso sério
sobre esses temas [justiça entre outros] é sumamente mais nobre, quando alguém
prega a arte dialética, plantando e semeando numa alma apropriada o discurso do
conhecimento, discurso simultaneamente capaz de auxiliar a si mesmo e aquele
que o plantou - discurso que nâo é estéril [acaprós, sem fruto, infértil], mas que
gera uma semente [spérma] da qual mais discurso é cultivado em outras mentes.
(276 d-e)
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A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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‘da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
A mnemotécnica dos antigos, há pouco requentada, mas logo outra vez facilmente
esquecida, consiste em transformar nomes em imagens e dessa forma novamente
rebaixar a memória [Gedachtnis] à imaginação [Einbildungskraft]. O lugar da força
da memória é ocupado por um quadro permanente fixado na imaginação, que
contém uma série de imagens, às quais é associado o texto a ser decorado [auswendig
zu lernender Aufsatz], a sequência de suas representações. Devido àheterogeneidade
do conteúdo dessas representações e daquelas imagens permanentes, assim como
por causa da velocidade em que isso deve ocorrer, essa associação não se dá senão
via conexões insípidas, tolas e totalmente casuais. Não apenas o espírito é torturado
por ter de se afligir com um material louco, como também o que é decorado dessa
maneira também é, por isso, logo esquecido, na medida em que de qualquer
maneira [sempre] o mesmo quadro é utilizado para decorar. Qualquer outra série
de representações, que antes fora a ele associada é novamente apagada. Aquilo que
é inculcado mnemonicamente não se torna, como ocorre com o que é guardado
na memória, decorado [auswendig], quer dizer, produzido de dentro para fora [von
innen heraus], do poço profundo do eu, e assim declamado, mas é, por assim dizer,
lido no quadro da imaginação. A mnemotécnica conecta-se aos preconceitos que
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“da ars memórias aos estudos de memória pós-coloniais”
Para além da bela passagem poética sobre a memória como algo evocado
“do poço profundo do eu”,132 o que predomina aqui é a crítica das imagens
e da imaginação, bem como a destruição da mnemotécnica. A dicotomia
estanque entre interior e exterior, a ideia, refletida criticamente por Derrida,
da verdade como algo intrínseco e interior em oposição a uma escrita imagética
exterior, ficou mais do que clara aqui. O espiritual, “interno”, vale mais que o
“exterior”, intuitivo e imagético. O termo-chave e intraduzível dessa passagem
é o auswendig, que literalmente significa “virado para fora”, ou “voltado para
fora”, que é oposto, em termos linguísticos, ao inwendig, “voltado para dentro”.
Mas no cotidiano o significado de auswendig é justamente o de saber falar
algo de cor (de coração), sem precisar de um apoio externo, um livro, um
texto (o hupomnesis que vimos no Fedro de Platão). O que está em jogo aqui
são a preservação da fronteira e o respeito dela, entre o interior e o exterior, a
separação entre as faculdades “superiores” intelectuais e o elemento “baixo”
sensual. Hegel quer dizer que o Auswendig (a fala direta de cor) é Inwendig.
Fala-se para fora a partir de uma interioridade intocada. Intocada pelo corpo e
por sua localização. Só assim o pensamento pode se autoproclamar universal:
sendo “sem-lugar”, atópico, ele seria válido em qualquer lugar. O logos está
pronto para ser também um logos colonial: colonizador. A mnemotécnica seria
uma hibridização que é desprezada como tal por Hegel. Seria uma violação da
fronteira, uma aberração. Ela força a memória (interior) a se calcar em algo
externo, um corpo, alheio e, sobretudo, considerado por ele (e pela tradição
filosófica analisada por Derrida) como inferior: como na crítica de Tamos à
escrita presenteada por Thoth do diálogo Fedro de Platão. Assim como Tamos
(Sócrates e Platão) recusa o elemento positivo do phármakon-escritura e
descreve essa engenhoca como fonte do esquecimento, também para Hegel a
74
A VIRADA TESTEMUNHAI E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
O GESTO-GRÁFICO E A FACE-PALAVRA
Mas outros dois autores permitem enfrentar essa questão: André Leroi-
-Gourhan e Vilém Flusser. Ambos pensaram a história da humanidade
a partir desse conflito entre a “palavra-falada” e as “imagens-inscritas”.
Leroi-Gourhan, em seu mencionado estudo de 1964, parte da ideia de que só
podemos pensar o Homo sapiens junto com a possibilidade de expressão de
pensamento em símbolos materiais. Esses símbolos ele encadeia a partir de
uma visada antropológica, em dois pares funcionais: mão/instrumento e face/
linguagem. As funções motoras das mãos e da face são decisivas na modelação
dos pensamentos, tanto como instrumentos de ação material quanto como
símbolos sonoros.*33 Para o antropólogo,
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‘da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”
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A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’
seu mundo a partir do “tempo-agora”14- do início dos anos 1960 na França. Mas
as coisas mudaram bastante desde então.
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A VIRADA TESTEMUNHAI E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’
No segundo milênio a.C., esta alucinação alcançou o seu apogeu. Surgiram pessoas
empenhadas na “rememóração” da função originária das imagens, que passaram a
rasgá-las a fim de abrir a visão para o mundo concreto escondido pelas imagens. O
método do rasgamento consistia em desfiar as superfícies das imagens em linhas e
alinhar os elementos imagéticos. Eis como foi inventada a escrita linear.1-”
Essa escrita linear introduz, com o seu alinhamento, uma outra consciência
da nossa relação com o tempo: “Tratava-se de transcodificar o tempo circular
em linear, traduzir cenas em processos. Surgia assim a consciência histórica,
consciência dirigida contra as imagens”,150 e o pensamento organizado conforme
as leis de causa e efeito. Essa passagem significou um aprofundamento da
alienação do mundo, pois a escrita tende à conceptualização do mundo. Ou seja,
Flusser afirma umaprimeiridade das imagens com relação ao mundo concreto, já
os textos estão condenados a uma secundidade e se relacionam com o mundo via
“imagens rasgadas”. A esse universo gramatológico corresponde uma história
que tenta incessantemente traduzir imagens em textos, conceptualizando,
desmagicizando. E o auge dessa história das letras teria sido justamente o século
XIX, o mesmo que deu nascimento às imagens técnicas, a saber, à fotografia?51
8o
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”
A história toda, política, arte, ciência, técnica, vai destarte sendo incentivada pelo
aparelho, a fim de ser trancada no seu oposto: em programa televisionado. O
aparelho se tornou a meta da história. Passa ele a ser represa do tempo linearmente
progressivo. A plenitude dos tempos. História transcodada em programa torna-se
eternamente repetível?56
Em Walter Benjamin, como podemos ler em seu ensaio A obra de arte na era
de sua reprodutibilidade técnica, preconizava-se a articulação entre a fotografia,
o fim da aura e o fim da tradição. Benjamin falava de um “abalo violento do
que é transmitido”,157 ou seja, do corte na tradição. Passando ao cinema, ele
formulou essa “liquidação do valor de tradição na herança cultural”158 com
palavras que decerto inspiraram Flusser:
Esse fenômeno é especiãlmente acessível nos grandes filmes históricos. Ele submete
posições cada vez mais distantes ao seu domínio. E quando Abel Gance exclamou
entusiasticamente em 1927: “Shakespeare, Rembrandt, Beethoven serão filmados...
Todas as lendas, todas as mitologias e todos os mitos, todos os fundadores de.
religiões, e mesmo todas as religiões... aguardam sua ressurreição em celulóide, e
os heróis precipitam-se aos portais”, convidava, embora sem a intenção de fazê-lo,
a uma liquidação generalizada?5’
82
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”
todos os seus agentes como humanos. Ou seja, não há lugar para apagamentos,
obliterações e muito menos genocídios, o lado perverso da Modernidade que
gerou os campos de extermínio, o tráfico de escravos, o genocídio indígena etc.
Auschwitz mostra o Ocidente como uma tendência em direção ao aparelho e
a eventos desse tipo. Se não rompermos essa tendência, eles irão se repetir.
E, de fato, eles têm se repetido, ainda no século XXI: em 27 de agosto de
2018 a ONU reconheceu como sendo um genocídio o que aconteceu com a
população muçulmana rohingya em Mianmar (país que em 2021 teve sua jovem
democracia abalada por mais um golpe de Estado militar). A pandemia de covid-19
em 2020/2021 atinge especialmente populações mais desprotegidas, como as
indígenas e as quilombolas, no Brasil, sem contar os habitantes das metrópoles
sem acesso a hospitais e vacinas. De modo peremptório, o sobrevivente Flusser
(que perdeu sua família nos campos de extermínio) escreve que Auschwitz
revelou “a utopia inerente na nossa cultura [...] podemos vivenciar que a utopia,
em não importa que forma, para a qual tendemos é o campo de extermínio”.165
Ou seja, ou saímos desse trilho, ou o que Flusser denominou aparelho irá se
realizar: a morte, o abismo, engolir-nos-á. Seremos tragados pelo triunfo da
entropia, de Tânatos, a pulsão de morte teorizada por Freud, ou a arquiviolítica
tratada por Derrida. O sonho tecnológico ocidental levado ao extremo é o
campo de extermínio.166 Toda uma tradição da ficção científica concorda com
isso: de Metropolis a Matrix e Blade Runner 2049. O projeto de Flusser, sua
midialogia, estabelece-se, portanto, como uma busca de “nos projetarmos fora
do projeto” do Ocidente que deu no campo de extermínio, seja nas colônias da
Modernidade, seja em Auschwitz, seja na colonialidade atual, com campos de
refugiados e projetos genocidas de negros, indígenas e demais bodes expiatórios
da vez. E ele conclui em Pós-história: “Tal o clima ‘pós-histórico’ no qual somos
condenados a viver doravante”.167
O IMPERATIVO DA MEMÓRIA
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A. VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
a arte do livro. Com efeito, quer seja um acaso ou não, seu aparecimento na
Alemanha cai no tempo em que o livro, no sentido eminente da palavra, o Livro
dos Livros, tornou-se, através da tradução da Bíblia por Lutero, um bem popular.
Agora tudo indica que o livro, nessa forma tradicional, vai ao encontro de seu fim.
Mallarmé, como viu em meio à cristalina construção de sua escritura, certamente
tradicionalista, a imagem verdadeira do que vinha, empregou pela primeira vez no
coup de dés as tensões gráficas do reclame na configuração da escrita. O que depois
disso foi empreendido por dadaístas em termos de experimentos de escrita não
provinha do plano construtivo, mas dos nervos dos literatos reagindo com exatidão
e por isso era muito menos consistente que o experimento de Mallarmé, que crescia
do interior de seu estilo. Mas justamente através disso é possível reconhecer a
atualidade daquilo que, monadicamente, em seu gabinete mais recluso, Mallarmé
descobriu, em harmonia preestabelecida com todo o acontecer decisivo desses
dias, na economia, na técnica, na vida pública. A escrita, que no livro impresso
havia encontrado um asilo onde levava sua existência autônoma, é inexoravelmente
arrastada para as ruas pelos reclames e submetida às brutais heteronomias do
caos econômico. Essa é a rigorosa escola de sua nova forma. Se há séculos ela
havia gradualmente começado a deitar-se, da inscrição ereta tornou-se manuscrito
repousando oblíquo sobre escrivaninhas, para afinal acamar-se na impressão,
ela começa agora, com a mesma lentidão, a erguer-se novamente do chão. Já o
jornal é lido mais a prumo que na horizontal, filme e reclames forçam a escrita a
submeter-se de todo à ditatorial verticalidade. E, antes que um contemporâneo
chegue a abrir um livro, caiu sobre seus olhos um tão denso turbilhão de letras
cambiantes, coloridas, conflitantes, que as chances de sua penetração na arcaica
quietude do livro se tornaram mínimas. Nuvens de gafanhotos de escritura,
que hoje já obscurecem o céu do pretenso espírito dos habitantes das grandes
cidades, se tornarão mais densas a cada ano que passa. Outras exigências da vida
dos negócios levam mais além. O fichário traz consigo a conquista da escrita
tridimensional, portanto um surpreendente contraponto à tridimensionalidade
da escrita em suas origens como runas ou escritura de nós. (E hoje o livro já é,
como ensina o atual modo de produção científico, uma antiquada mediação entre
dois diferentes sistemas de fichário. Pois todo o essencial encontra-se na caixa de
fichas do pesquisador que o escreveu, e o cientista que nele estuda assimila-o ao
seu próprio fichário.) Mas está inteiramente fora de dúvida que o desenvolvimento
da escrita não permanece atado, a perder de vista, aos decretos de um caótico labor
em ciência e economia, antes está chegando o momento em que quantidade vira
em qualidade e a escritura, que avança sempre mais profundamente dentro do
domínio gráfico de sua nova, excêntrica imagética, tomará posse, de uma só vez, de
87
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”
seu teor coisal [Sachgehalt] adequado. Nessa escrita-imagem os poetas, que então,
como nos tempos primitivos, serão primeiramente e antes de tudo calígrafos, só
poderão colaborar se explorarem os domínios nos quais (sem fazer muito alarde de
si) sua construção se efetua: os do diagrama estatístico e técnico. Com a fundação
de uma escrita conversível internacional eles renovarão sua autoridade na vida
dos povos e encontrarão um papel em comparação ao qual todas as aspirações de
renovação da retórica se demonstrarão como devaneios jarreta.'79
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
mundo. Essa libertação dá-se sob o signo de uma redenção, já que se trata de
“liberar as forças destrutivas subjacentes à ideia de redenção”.*91
Essa redenção, para Benjamin, dar-se-ia em termos materiais, com o fim
da exploração de uns sobre os outros, mas também em termos mnemônicos:
93
“DA ARS MEMORIAE AOS ESTUDOS DE MEMÓRIA PÓS-COLONIAIS’
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'da ARS memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
de inervar o corpo coletivo. Assim ele vai da sua teoria do espaço de imagem
{Bildraum), passando pelo espaço do corpo (Leibraum), elaborados no ensaio
sobre o surrealismo, atingindo uma teoria da ampliação do “campo de ação”,
que ele pensa no ensaio sobre a obra de arte como um campo lúdico de ação:
Spielraum (literalmente: espaço-jogo).2*1
Resumindo e articulando suas idéias do ensaio de 1929 sobre o surrealismo,
passando pelo seu ensaio sobre a obra de arte e chegando nas teses Sobre o
conceito de história, de 1919-1940, Benjamin constrói uma poderosa teoria
da necessidade de criar imagens capazes de despertar as consciências para
a revolução. Elas alimentariam o corpo coletivo, inervando-o, produzindo 0
ímpeto para a mudança histórica, que significaria o fim do progresso como
catástrofe e a inauguração de um novo tempo, que liberaria as histórias
recalcadas pela historiografia associada ao progresso e ao culto do tempo linear,
homogêneo e vazio. O tempo denso, pleno de Jetztzeit, tempo-agora, que para
Benjamin é o tempo da historiografia a contrapelo, esse tempo nasce também
da nossa capacidade de nos apropriarmos dessa segunda técnica que, como uma
caverna platônica ao contrário, nos libertaria dos grilhões das falsas imagens
que nos dominam. Não por acaso, como vimos na tese XII, que citei acima a
partir da variante do manuscrito de Hannah Arendt, Benjamin fala na tarefa
de alimentar esse ímpeto revolucionário com a “imagem dos antepassados
escravizados” (e não, como o fazem os partidos burgueses, prometendo um
futuro liberto e rico para todos).
97
“da abs memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”
Gonzalez, Edward Said, Stuart Hall, Gayatri Spivak, Ranajit Guha, Homi
Bhabha, Dipesh Chakrabarty, Stuart Hall, Achille Mbembe, chegando a
representantes dessa tradição hoje, como a artista e ensaísta Grada Kilomba,
foram e estão sendo responsáveis por produzir essa historiografia a contrapelo
que Benjamin já reivindicava do fundo do inferno da Segunda Guerra em 1940.
Também esses autores produzem novas imagens, “imagem dos antepassados
escravizados” e de suas lutas, que têm produzido uma impressionante e bem-
-vinda virada copernicana nas Humanidades. Os estudos pós-coloniais têm
fecundado as mais diversas áreas do saber, rompendo com hábitos poderosos,
desconstruindo imagens do esquecimento que impediam a articulação de
outras histórias, outras epistemologias e outros futuros. Autores brasileiros
como os mencionados Abdias Nascimento e Lélia Gonzalez, e os mais jovens
Djamila Ribeiro e Silvio Almeida, participam dessa virada epistemológica
e política. Esses autores rompem com o falso universalismo do pensamento
ocidental, introduzindo a questão da localização dos saberes. Não por acaso
Dipesh Chakrabarty2'2 dedica um ensaio inteiro à crítica do historicismo,
alvo declarado também das teses sobre a história de Benjamin. Este último
evidentemente não pode ser classificado como um autor pós-colonial, mas sua
teoria da história e da escrita histórica fornece-nos bases teóricas para pensar
a pós-colonialidade. Ele percebeu a necessidade de romper com o conceito da
temporalidade do progresso que bloqueia a contraescritura da história, assim
como assombra e domina as políticas até hoje, sempre baseadas no modelo
monológico da Europa branca. Benjamin pensava em uma localização do
saber a partir da questão da luta de classes e do tempo-agora. O pensamento
pós-colonial desdobra esse gesto para pensar a articulação da história da
Modernidade capitalista com a violência colonial, racista, de gênero e de
classe. A virada copernicana do saber se dá tanto no sentido de pensar na
posição do “anjo da história”, ou seja, voltado para a história dos escravizados,
como no de pensar o significado da colonização e da racialização impostas
como dispositivo biopolítico de controle de corpos individuais e coletivos. A
proclamada inervação de corpos coletivos através de contraimagens embebidas
na “iluminação profana” passa a ser pensada também como valorização de
outras epistemologias não logo/eurocêntricas. “Provincializar a Europa”
significa mostrar que o conhecimento é localizado. Assim, assume-se o corpo
como parte do saber, rompendo-se com milênios de doutrinas espiritualizantes,
98
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
É importante notar aqui que uma nova economia discursiva emerge com a recusa
em subordinar a particularidade da experiência escrava ao poder totalizante da
razão universal detida exclusivamente por mãos, canetas ou editoras brancas.
Autoria e autonomia emergem diretamente do deliberado tom pessoal desta história.
Avidamente recebidos pelo movimento para o qual se dirigiam [os relatos de
resistência contra a escravidão] ajudaram a demarcar um espaço dissidente dentro
da esfera pública burguesa que eles visavam preencher com seu conteúdo utópico. O
caráter autobiográfico de muitas declarações como esta é absolutamente crucial.217
99
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”
100
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
Kilomba estrutura sua pesquisa sobre a situação das mulheres negras baseada
em entrevistas, em estudos de caso. Ela faz uma curadoria de testemunhos
para repensar criticamente a colonialidade hoje a partir de mulheres negras
que vivem na Alemanha?2’ Essa centralidade no sujeito é fundamental na sua
(contrajepistemologia. Essa pesquisa centrada em sujeitos permite perscrutar
a realidade de dentro para fora, constituindo ao mesmo tempo os sujeitos
sofredor e resistente. Essas mulheres negras passam a ser vistas como agentes
e não como objetos, já que são elas que constroem a perspectiva do desenho:
Este livro
Neste livro reúno vários ensaios que também testemunham a história de meu
pensamento em torno dessa questão da virada testemunhai. Transitando entre
diferentes áreas do saber, como a psicanálise, as teorias da história, da estética,
das artes, da literatura e os estudos da Shoah e pós-coloniais, gostaria de poder
apresentar aos leitores possibilidades de trabalhar a partir da concepção de
101
‘da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’
virada testemunhai do saber histórico. Essa abordagem, como espero que tenha
ficado evidente, recusa o esteticismo das abordagens da cultura que, em grande
parte, ainda dominam não só no Brasil. Os estudos de testemunho possuem
para mim, desde meu livro História, memória, literatura: o testemunho na
era das catástrofes (primeiro editado em 2003), como conceito fundamental a
noção de “teor testemunhai”. Como escrevo em uma nota do texto “O local do
testemunho”, parte deste livro, desenvolvi esse conceito de “teor testemunhai”
partindo dos conceitos benjaminianos de “teor de verdade” (Wahrheitsgehalf)
e de “teor coisal” (Sachgehalt), que Benjamin desenvolveu em seu ensaio sobre
As afinidades eletivas de Goethe e, por outro lado, da sua famosa frase segundo
a qual “não há um documento da cultura que não seja ao mesmo tempo um
documento da barbárie”.224 Essa frase é central no contexto dessas teses. É
muito importante destacar que, na versão francesa das teses, Benjamin utiliza
o conceito de témoigner, ou seja, testemunhar para traduzir: “Tudo isso não
testemunha a cultura sem testemunhar ao mesmo tempo a barbárie”.225 Na
versão em alemão esse conceito de testemunho, raro na pena desse autor, não
aparece. Essa frase estabelece teoricamente a possibilidade de formular uma
nova historiografia e uma outra concepção de virada histórica, que chamo de
“testemunhai” e que permite a desconstrução da visão iluminista, eurocêntrica
e triunfalista que via na história um processo linear, ascendente e positivo.
Benjamin faz explodir esse modelo com a sua ideia de Jeztzeit, tempo-agora,
que fragmenta a coluna vertebral da falsa linearidade, e, por outro lado, com
a reversão dos valores, que lança luz sobre os que sempre levaram o fardo da
história e não mais sobre as elites “triunfantes”.
Se, na abertura deste capítulo, lembrei das palavras de Pierre Vida-Naquet
e de Marcei Detienne que defendiam a ideia de uma civilização científica com
um conceito unívoco de verdade (associado a “objetividade, comunicabilidade
e unidade”), fecho lembrando de outras possibilidades de cartografias do saber
que são também as bases de nossas ações e de nosso estar no mundo. Voltando à
metáfora medieval da Bíblia como mapa, podemos pensar em novas cartografias
que precisam ser desenhadas para nos lançar fora do caminho do progresso
(Benjamin)226 e da programação do aparelho (Flusser). Essa proposta também
é a do curador camaronês Bonaventure Ndikung, que recentemente expressou
a necessidade de realizarmos a “demolição de cartografias de poder” e de levar
a cabo uma “recalibragem das relações humanas e não humanas, espaciais
102
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
Notas
1 “Um tribunal de Varsóvia decidiu nesta terça-feira (09/02) que dois historiadores poloneses
devem pedir desculpas por terem ‘manchado a memória’ de um ex-prefeito polonês
num livro que escreveram sobre o Holocausto, ao apontarem o envolvimento da antiga
autoridade no extermínio de judeus. [...] O tribunal declarou que os pesquisadores Barbara
Engelking, diretora do Conselho Internacional de Auschwitz na Polônia, e Jan Grabowski,
da Universidade de Ottawa, devem se desculpar com Edward Malinowski por terem citado
no livro Dalejjest noc (k Noite sem Fim, em tradução livre), de 2018, que o então prefeito do
vilarejo de Malinowo entregou judeus a alemães nazistas. A justiça, no entanto, não acatou
0 pedido de pagamento de uma indenização de 100 mil zlotys - o equivalente a cerca de Rs
145 mil”. Disponível em <https://www.dw.com/pt-br/autores-condenados-a-se-desculpar-
por-livro-sobre-holocausto/a-5Ó5i6297 >. Acesso em 18/2/2021.
2 O livro continuou a circular na Alemanha pós-guerra apenas em exemplares antigos, sem
que isso fosse considerado ilícito, e voltou a poder ser publicado em edição crítica a partir de
2016, após terem expirado, em 2015, os direitos autorais que pertenciam ao Estado da Baviera.
3 Disponível em <https://www.rtp.pt/noticias/mundo/moscovo-estuda-possibilidade-de-
-sancoes-contra-tallinn_ni3ó5i8>. Acesso em 22/3/2022.
4 Anderson, 2008.
2 “Make America great again.”
6 Fanon, 1961; Wieviorka, 1998; Felman & Laub, 1991; Mbembe, 2017 e 2019; Felman, 2014;
Seligmann-Silva & Nestrovski, 2000; Seligmann-Silva (org.), 2003.
' Mbembe, 2017, p. 29.
8 Homero, 2007.
9 Detienne, 2003, p. 15.
10 Idem, ibidem.
11 Idem, p. 17.
12 Idem, p. 18.
13 Idem, p. 19.
14 Idem, p. 21.
12 Vidal-Naquet, 2003, p. 7.
16 Idem, p. 8.
lz Idem, ibidem.
18 Detienne, 2003, p. 13.
19 Idem, p. 16.
20 Cf. Yates, 1966, p. 32; 2008, p. 53.
“Die Vorstellungskraft bleibt unvorstellbar” (Nancy, 2007, p. 161).
22 Assmann, 1999, p. 30; 2012, p. 35.
103
‘da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”
104
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
pelo contrário, costumam ser críticos a ela destacando seu reducionismo biossomático
dos fenômenos emocionais e psicológicos. Mas, assim como Yates, tampouco Carruthers
pode ser associada aos estudos de memória cultural, apesar de suas contribuições serem
muito importantes e contemporâneas a esse movimento. Como afirmei, ela se enquadra
nos estudos de linhagem mais filológico-histórica. Com relação a essa questão específica,
antes, eu diría que as pesquisas de Damasio reafirmam as descobertas bem antigas de
Aristóteles, do autor anônimo do tratado Do sublime, de Spinozà, Moses Mendelssohn,
Lessing, Edmund Burke, Freud, entre tantos outros, e não o contrário.
48
Carruthers, 2011, p. 60.
49
Idem, p. 68.
50
Idem, ibidem.
51
Seligmann-Silva, 2016.
52
Carruthers, 2011, p. 69.
53
Auerbach, 1938, p. 436.
54
Idem, p. 438; 1997, p. 15.
55
Seligmann-Silva, 2020b.
56
Halbwachs, 1994 [1941].
57
Carruthers, 2011, p. 77.
58
Idem, p. 80.
59
A. Assmann, 2012, p. 107.
60
Santo Agostinho, 1987, p. 224.
61
Carruthers, 2011, p. 62.
62
Santo Agostinho, 1987, p. 233.
63
Idem, ibidem.
64
Idem, p. 229.
65
Ou seja, aquele que utiliza corretamente as bases escritas, hupomnémata, sem deixar o
suplemento se sobrepor à memória natural, mnéme (Derrida, 2001, p. 22; Foucault, 2004,
p. 826).
66
Santo Agostinho, 1987, p. 234 e ss.
67
Chrétien, 2002, p. 54.
68
Santo Agostinho, 1987, p. 231.
69
Idem, ibidem. Jean-Louis Chrétien recorda também, ao tratar do ato de ruminação em
Santo Agostinho, da seguinte passagem de seu De Trinitate: “Aquilo que a visão da alma
abarcou, mesmo rapidamente [etsí transiens], e que ela depositou na memória, como uma
espécie de estômago, ela pode se recordar por um tipo de ruminação e transformar em
conhecimento metódico aquilo que assim conquistou” (De Trinitate, XII, XIV, 23, BA, 16,
257, apud Chrétien, 2002, p. 54).
70
Weinrich, 2001, p. 46.
71
Santo Agostinho, 1987, p. 328.
Idem, p. 26.
73
Idem, p. 37.
74
Idem, p. 218 e ss. Grifos meus.
75
Chrétien, 2002, p. 122.
76
Idem, p. 121,
77
Idem, pp. 121 e 238.
78
Derrida, 1991b.
79?
Santo Agostinho, 1987, p. 340.
105
“DA ARS MEMOIHAE AOS ESTUDOS DE MEMÓRIA pós-coloniais”
80 “Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Nele se apresenta um anjo que
parece estar na iminência de afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão
arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estiradas. É assim que deve parecer o
Anjo da História. Sua face se volta para o passado. Lá onde nós vemos surgir uma sequência
de eventos, ele vê uma catástrofe única, que incessantemente empilha escombros sobre
escombros e os lança a seus pés. Ele gostaria de se demorar, de despertar os mortos e
reunir de novo o que foi esmagado. Mas uma tempestade sopra do paraíso, que se agarra
às suas asas, é tão forte que o Anjo já não as consegue mais fechar. Essa tempestade o
leva inexoravelmente para o futuro, para o qual ele dá as costas, enquanto diante dele
a pilha de escombros cresce rumo ao céu. Aquilo que chamamos de progresso é essa
tempestade” (Benjamin, 2020, p. 76). No texto de apresentação da revista Angelus Novus,
que Benjamin planejou em 1922 mas não conseguiu editar, ele escreveu também de modo
bem agostiniano: “Segundo uma lenda talmúdica, por acaso não são os anjos criados -
novos, a cada momento, em bandos incontáveis - para, depois de terem cantado o seu hino
diante de Deus, cessarem e definharem no nada? Que à revista [Angelus Novus] caiba uma
tal atualidade, que é a única verdadeira, é isto que o seu nome deve significar” (Benjamin,
1980, p. 246).
81
Weinrich, 2001, pp. 49-66.
82
Carruthers, 2006, p. 22.
83
Yates, 1966, p. 104; 2008, p. 138.
84
Idem, p. 118; Idem, p. 156.
85
Santo Agostinho, 1987, p. 340.
86
Foucault, 1984.
87
Idem, p. 47. Em seu poderoso e influente ensaio Comunidades imaginadas, que deve muito,
apesar de não os destacar, aos estudos de memória e da construção social de espaços e
modelos de recordação (cf. Halbwachs, 1925, e Nora, 1984), Benedict Anderson destaca que
apenas com a invenção do cronômetro, em 1761, por John Harrison, a arte da cartografia
pôde se desenvolver de modo mais preciso, permitindo o “cálculo exato das longitudes”.
Assim a superfície de todo planeta foi recortada por quadrados que serviram para a
extensão colonial das fronteiras nacionais que se estabeleceram ao longo da Modernidade
(Anderson, 2008, p. 239). Cf. Landes, 1983.
88
A. Assmann, 2012, p. 33 e ss.
89
Ricceur, 2008, p. 80.
90
Nicole Loraux (1988, p. 31) recorda da anistia de 403 a.C. em Atenas, que estabeleceu
uma espécie paradoxal (e impossível) de “dever de esquecimento” (me mnesikakein, “é
proibido recordar-se os males”), quando do fim da violenta oligarquia dos 30. Ela explica
que se na cultura grega temos inúmeras personagens representando a memória do mal,
o desejo de vingança, enfim, toda uma galeria de personagens assombradas pelas Fúrias/
Erínias e irmanadas a elas, por outro lado, a política e seus decretos estavam do lado do
esquecimento. A ausência de ressentimento era vista como uma grande virtude política,
como lemos, entre outras obras, em De cohibenda ira de Plutarco. Plutarco elogia o fato de
que no conflito entre Poseidon e Atena pelo controle de Atenas, o deus dos mares derrotado
não guardou ressentimento, amenitos, para com a deusa. Os atenienses, em agradecimento
e essa clemência divina, erigiram um altar a Lete, o esquecimento, no Erecteion. Altar
ambíguo, eu acrescento, que, ao homenagear o esquecimento, recorda a derrota que deveria
ser esquecida. Ele, na verdade, comemora apenas a ausência da memória do mal, ou seja,
do ressentimento. Devemos ter em conta a relação entre a noção clássica de esquecimento
e a de superação do rancor (uma espécie de variante de perdão, mas que se dá em termos de
106
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
uma troca ritual do esquecimento das rixas por uma coexistência pacificada). É interessante
notar que ainda hoje existe uma maior tendência dos Estados no sentido de promover a
reconciliação por meio do esquecimento e não tanto o reparo (jurídico ou não) dos males,
como vemos no caso do Brasil pós-ditadura, mas não só. Quando processos ocorrem,
como no caso da Alemanha pós-terceiro Reich, eles são normalmente mais exemplares do
que efetivamente restituidores de justiça. A justiça sempre fica relegada a um plano quase
utópico.
91 Da Vinci, 1992, p. 206.
92 Idem, p. 199.
93 Essa teoria semiótica insipiente já podia ser encontrada na tradição retórica clássica. Para
Horácio, haveria uma clara hierarquia entre os sentidos, sendo a visão aquele sentido capaz
do maior impacto sobre o espectador: “As ações [no teatro] ou se apresentam em cena ou
se narram. Quando recebidas pelos ouvidos, causam emoção mais fraca do que quando,
apresentadas à fidelidade dos olhos, o espectador mesmo as testemunha” (Horácio, 1988,
p. 60).
94 Da Vinci, 1992, p. 202.
9:1 Quanto à relação entre Ficino e a pintura renascentista, cf. Warburg, 2010. Quanto ao
paragone e à tradição da relação entre as artes e a literatura (conhecida pelo verso de
Horácio utpictura poesis - “poesia é como a pintura”), cf. minha introdução ao Laocoonte
de G. E. Lessing (Seligmann-Silva, 1998).
96 Simondon, 1982.
9/ Freud, 1912.
98 Cf. ainda em Platão, Górgias 493a: “De fato, uma vez ouvi um de nossos sábios dizer que
estamos agora mortos e que o corpo é o nosso túmulo [sema]”.
99 Simondon, 1982.
100 Erll & Nünning, 2010 [2008].
101 Derrida, 1967b.
102 Idem, 2001 [1995].
103 Ou quando, por exemplo, Aleida Assmann refere-se a essa obra de Derrida, é apenas em
um sentido negativo, para descartá-la (A. Assmann, 1998, p. 282).
104 Derrida, 2001, p. 32.
105 Idem, 1967a e 1978.
106 Idem, 2001, p. 27.
107 Freud, 1975 [1925].
108 Derrida, 2001, p. 8.
109 Idem, p. 11.
110 Idem, p. 21.
111 Idem, p. 22.
112 Quanto a essa divisão, cf. Foucault, 2004 [1983].
113 Derrida, 2001, p. 31.
114 Saussure, apud Derrida, 1973, p. 41.
115 Derrida, 1973, p. 42.
116 Cf. o que lemos acima em passagens citadas de Platão (Fedro 250 a) e de Santo Agostinho
(1987, p. 234 e ss.).
117 Derrida, 1973, 42.
118 Detienne, 2003, p. 17.
149 Derrida, 1991a.
120 Idem, p. 56.
107
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”
108
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
109
‘da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais”
110
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
difficuldades para escrever a nossa historia, porque é deplorável o que se observa em todas
as municipalidades e nas repartições das antigas províncias: por toda a parte o mesmo
abandono, o mesmo descuido, e por ultimo o facto de mandar-se queimar grande numero
de documentos que podiam servir para se escrever com exactidão a historia do Brazil, no
futuro. (Muito bem; muito bem.). (Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 22/12/1890, p. 1)”.
Tanto o decreto de Ruy Barbosa como essa passagem de Coelho Duarte estão disponíveis em
<https://cartorios.org/2010/01/25/penhor-de-escravos-e-queima-de-livros-de-registro/ >.
Acesso em 31/3/2021.
189 Sobre a concepção de Walter Benjamin da história como catástrofe, remeto ao meu
ensaio: “Catástrofe, história e memória em Walter Benjamin e Chris Marker: a escritura
da memória” (Seligmann-Silva (org.), 2003, pp. 387-413).
190 Benjamin, 2020, p. 175.
191 Idem, p. 182.
192 Idem, p. 68.
193 Idem, p. 75.
194 Idem, ibidem.
193 Idem, ibidem.
196 Idem, p. 79.
197 Idem, p. 176.
198 Idem, pp. 76-77.
199 Nietzsche, 1988a, p. 245; Benjamin, 2020, p. 79.
200 A Liga Spartacus ou Liga espartaquista é conhecida em alemão pela expressão
Spartakusbund. Tratava-se de uma liga marxista-socialista alemã que atuou na Primeira
Guerra Mundial, visando realizar uma Revolução comunista. Esse grupo teve origem em
uma dissensão do SPD, o Partido Social-Democrata alemão, em 1916, que foi batizada então
como Spartakusgruppe. Na Revolução de novembro, em 1918, o grupo reorganizou-se em
nível nacional com o nome Spartakusbund, sempre em homenagem a Espártaco, o escravo
que liderou a rebelião dos escravos na Roma Antiga em 73-71 a.C. Em 10 de janeiro de 1919,
a Liga entrou no recém-fundado KPD, Partido Comunista Alemão. No dia 15 de janeiro,
Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht, seus principais líderes, foram presos e barbaramente
assassinados.
201 Benjamin, 2020, pp. 80-81. Benjamin, em seus “Comentários às obras de Brecht”, também
recorda o famoso poema de seu amigo “An die Nachgeborenen”, “Aos pósteros”. Ele cita
dois versos do poema de Brecht “Do pobre B. B.” e depois os comenta: ‘“Sabemos que somos
efêmeros/E depois de nós virá: nada digno de nota’. ‘Efêmeros’ (Vorlãufige) - talvez fossem
‘precursores’ (Vorlãufer); mas como poderíam, se não são seguidos por nada digno de nota?
Não é tanto sua culpa se passarão à história sem nome e sem fama. (Dez anos mais tarde,
o poema subsequente, ‘An die Nachgeborenen’ [Aos pósteros], retoma um pensamento
similar.)”. Benjamin, “Comentários sobre poemas de Brecht” (Benjamin, 2017, p. 60).
Tradução modificada.
202 Cf. a minha apresentação ao volume Benjamin, 2020, pp. 9-28.
203 Benjamin, 2020, p. 184.
204 Idem, 2012a, pp. 35-36.
203 Essa expressão Benjamin encontrou no ensaio do surrealista Pierre Naville “Mieux et moins
bien”, publicado na revista La Révolution Surréaliste (Naville, 1927).
206 Benjamin, 2012a, pp. 34-35.
2“;/ Idem, pp. 23-34.
208 Idem, 2013, p. 63.
111
“da ars memoriae aos estudos de memória pós-coloniais’
112
2
113
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES
114
A VIRADA TESTEMUNHAI E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
Prestai atenção ao que instauro aqui, atenienses, convocados por mim mesma para
julgar pela primeira vez um homem, autor de um crime em que foi derramado
sangue. A partir deste dia e para todo o sempre o povo que já teve como rei Egeu
terá a incumbência de manter intactas as normas adotadas neste tribunal na colina
de Ares [...]. Sobre esta elevação digo que a Reverência e o Temor, seu irmão, seja
durante o dia, seja de noite, evitarão que os cidadãos cometam crimes, a não ser
que eles prefiram aniquilar as leis feitas para seu bem (quem poluir com lodo ou
com eflúvios turvos as fontes claras não terá onde beber). Nem opressão, nem
anarquia: eis o lema que os cidadãos devem seguir e respeitar. Não lhes convém
tampouco expulsar da cidade todo o Temor; se nada tiver a temer, que homem
cumprirá aqui seus deveres? (E. 900-30 [681-99])
Podemos ler aqui aquilo que já foi denominado, por Marcei Mauss e
outros autores, ambiguidade do sacro. A tragédia apresenta o rito jurídico de
115
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES
reintegração daquele que estava proscrito, fora da lei, o homo sacer, Orestes, que
passa pela kátharsis de seu ser poluído. Nesse ritual “de civilização/purificação”,
a ambiguidade é reinstaurada e reafirmada. Na tragédia, ocorre uma reversão
da posição de Orestes, que pode voltar ao trono após deixar a condição de
homo sacer. O trono é o outro polo da lei que lhe é ao mesmo tempo externo e
interno. Orestes passa, para recordar a diferença estabelecida por Benveniste,
da qualidade de sacer para a de sanctus.13 Assim como o banido (sacer) é um fora
da lei, o rei (sanctus) está acima desta. A purgação de Orestes, ou seja, sua dura
viagem fugindo das Fúrias - que, para Apoio, significaria sua longa despoluição,
e, portanto, deveria qualificá-lo para uma reintegração e uma superação de seu
banimento -, não é reconhecida pelas Fúrias. Para elas, não existe perdão ou
esquecimento do mal: elas representam a pura força da memória do mal (kakôn
te mnêmones semnai, E. 503 [383]) e do desejo de vingança. A kátharsis trágica
das paixões negativas não significa, tampouco, sua eliminação, mas a mise en
scène delas como uma espécie de memento. As Fúrias, que são transformadas
por Atena em Eumênides, as benévolas, por meio de seu pacto com elas, são
incorporadas à lei que mantém a lógica da espectralidade do passado em seu
elemento terrorífico. Isso também é importante para o que segue.
Mas vejamos o que ocorre no julgamento de Orestes destacando a recorrência
dos termos que evocam o testemunho, o termo-chave que nos interessa aqui.
Atena chama os jurados diante da divisão aparentemente irreconciliável dos
dois partidos (E. 6i8ss. [470SS.]): a situação arquetípica da cena do tribunal e
das tragédias, como depois Eurípides a exploraria. O julgamento depende da
instituição do testemunho. Assim, o coro das Fúrias diz que vai se apresentar
como testemunha contra Orestes para vingá-lo:
se um mortal nos mostra suas mãos imaculadas, nunca o atingirá nosso rancor
[mênis] e sua vida inteira passará isenta de todos os sofrimentos. Mas quando um
celerado igual a este oculta suas mãos ensanguentadas, chegamos para proteger
os mortos testemunhando [mártures] contra o criminoso, e nos apresentando
implacáveis, para cobrar-lhe a dívida de sangue! (E. 423SS. [313SS.])
Em seguida, Orestes recorda que ainda existia a rede com que Clitemnestra
matara seu marido como um testemunho (ou prova) do crime (um loutrôn
exemarturei phonon, E. 605 [461]), o que faz lembrar a passagem em Coéforas
116
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
Aquele que se costuma chamar de filho não é gerado pela mãe - ela somente é
a nutriz do germe nela semeado; de fato o criador é o homem que fecunda; ela,
como uma estranha [xenôi xenê, estranha para um estranho], apenas salvaguarda
o nascituro quando os deuses não o atingem. (E. 868ss. [658SS.])
Aqui, Apoio chama ninguém menos que Atena - a juíza! - como prova e
testemunha de sua argumentação a favor de Orestes.
117
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES
Oferecer-te-ei uma prova cabal [tekmêrion] de que alguém pode ser pai sem haver
mãe. Eis uma testemunha [martus] aqui, perto de nós - Palas, filha do soberano
Zeus olímpico -, que não cresceu nas trevas do ventre materno. (E. 874SS. [66ass.])
O resultado desse argumento, que mais uma vez sela a aliança dos novos
deuses em oposição às Fúrias (“estas virgens malditas”, E. 99 [69], como Apoio
as denomina), é o voto de Atena, um voto antes de mais nada no partido dos
homens:
Diante dessa evocação da lei paterna, o coro das Fúrias volta-se para sua
mãe: “Ah! Noite negra, nossa mãe! Vês tudo isto?” (E. 986 [745]). Essa oposição
entre lei solar-masculina e a (ausência de) lei da noite-feminina, vinculada
à cena do julgamento e do testemunho, pode ser aproximada também de
uma passagem em Coéforas (1265SS. [984SS.]) em que o testemunho é ligado à
figura paterna, quando Orestes, ao final da peça, diz que o pai, a saber, o Sol,
“estará presente [no dia de meu julgamento] como testemunha [martus] de que
perseverei nesta vingança justa e fui até o cúmulo de eliminar a minha própria
mãe”. Com relação ao argumento central da cena do julgamento na Eumênides,
é importante lembrar que, segundo a Teogonia de Hesíodo, Atena tinha uma
mãe, Métis, a Astúcia, que Zeus engoliu grávida, com medo de se repetir com
ele o mesmo que ele fizera com seu pai, Cronos - fato lembrado ironicamente
pelas Fúrias em Eumênides. Atena, “a de olhos glaucos”, glaukôpin Athênên,
na expressão de Hesíodo, é aquela que vê com clareza16 e, portanto, pode
testemunhar como juíza o crime de Orestes: o olhar, e não a audição, tem a
absoluta precedência na cena patriarcal do testemunho. Apoio e Atena do lado
de Zeus-Sol, em oposição às Fúrias-mães que cegam e castram com sua justiça
“primitiva”. Se o argumento que afirma o não parentesco da mãe com seus
filhos lembra mais uma astúcia [métis] do que um raciocínio lógico, ele faz todo
sentido nesse primeiro tribunal. De modo contrário ao parricida Édipo (que se
cega como castigo e é banido, torna-se sacer), o matricida Orestes é absolvido.
Em vez de ser banido e/ou sacrificado (ou seja, desdobrar a lógica do homo sacer
118
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
Testemunho da masculinidade
119
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES
120
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
121
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES
Sob a influência de fatores externos nos quais não precisamos ingressar aqui e
que também, em parte, são insuficientemente conhecidos, aconteceu que a ordem
social matriarcal foi sucedida pela patriarcal, o que, naturalmente, acarretou
uma revolução nas condições jurídicas até então predominantes. Um eco dessa
revolução parece ainda audível na Oréstia, de Esquilo. Mas essa virada da mãe
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
em direção ao pai aponta, além disso, para uma vitória da intelectualidade sobre
a sensualidade - isto é, para um avanço cultural, já que a maternidade é provada
pelo testemunho [Zeugnís] dos sentidos, ao passo que a paternidade é uma hipótese
baseada numa inferência [Schlufi] e numa premissa. Tomar partido, dessa maneira,
por um processo de pensamento, de preferência a uma percepção sensória, provou
ser um passo momentoso?9
123
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES
Benveniste pode nos ajudar a lançar um pouco de luz sobre alguns desses
entrecruzamentos.
Lendo Benveniste fica claro que o testemunho implica tanto uma proximidade,
uma primeiridade (pensando em termos peirceanos), como, em outro sentido,
uma capacidade de julgar. Isso não apenas em termos do testemunho jurídico
contemporâneo. Desde a Antiguidade vinculam-se testemunha e testemunho à
visão. Benveniste recorda que também o sânscrito vettar tem o mesmo sentido
de testemunha (témoiri) e significa “o que vê, em gótico weitwops, particípio
perfeito [...] é aquele que sabe por ter visto; [...]. O grego ístor entra na mesma
série”.3-1 O autor cita um texto do Satapatha-Brahmana: “e o valor próprio
dessa raiz *wid- se esclarece na regra enunciada no Satapatha-Brahmana: ‘se
agora dois homens disputam entre si (têm um litígio), um dizendo eu vi’, o
outro ‘eu ouvi’, o que diz ‘eu vi’, é nele que devemos acreditar”.35 Benveniste
124
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
não é somente “ter sobrevivido a uma desgraça, à morte”, mas também “ter passado
por um acontecimento qualquer e subsistir muito mais além desse acontecimento”,
portanto, dè ter sido “testemunha” de tal fato.36
125
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES
126
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
127
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES
meio à Batalha de Verdun (que custou a vida de mais de 66o mil soldados), ele
constata: “Quem nunca viu o que eu vejo, nunca poderá imaginá-lo”.48 Sua luta
vai se dar no sentido de estabelecer critérios objetivos para 0 julgamento dos
testemunhos da guerra. Ele criticava a exploração comercial do sofrimento. Em
uma carta de 1917, ele escreve: “considero um sacrilégio fazer do nosso sangue
e de nossas aflições a matéria da literatura”,49 com o que já percebia uma aporia
que estaria na base de grandes debates estéticos após 1945. Após quase 15 anos de
trabalho ele publicou sua obra monumental, Témoins, em 1929, que contém um
levantamento exaustivo e uma análise de cerca de 300 testemunhos da Primeira
GM. Seu crivo se deu a partir do mote do testemunho como visão, como lemos
em uma das epígrafes de seu livro (também utilizada em seu segundo livro,
Du Témoignage, de 1930): “Ah, como sempre, aqueles que não viram, como
poderíam eles julgar?”.50 Em outra epígrafe, no entanto, percebemos que
essa vivência da guerra não é apenas visual, mas corpórea: “Aquele que não
compreendeu com sua carne não pode falar daquilo”.51 Aquele que testemunha
de modo autêntico a guerra é o militar do fronte: só ele viu e viveu o perigo na
carne.52 A classificação das obras testemunhais estabelecida por Cru continha os
seguintes gêneros: o jornal/diário (que é o gênero mais valorizado por ele, dada
sua “exactitude fondamentale”);53 as memórias, as reflexões, as cartas (muito
valorizadas e aproximadas do diário) e, por último, também na sua hierarquia
da exatidão, os romances. Estes são os mais propícios a difundir erros e lendas,
os grandes inimigos de Cru. Ele tende a valorizar mais o “valor documental”
(yaleur documentaire) do que o “valor estético” (yaleur esthétique)5i das obras,
sendo que o que é “apreendido no calor da hora”,55 como nas cartas e nos diários,
tende a uma maior e mais desejada proximidade. Ele critica a tese de que a
literatura teria uma verdade sintética superior à do diário ou da carta. O que ele
entende por proximidade, podemos perceber em outra epígrafe de 1930:
O combatente tem uma visão limitada... mas pelo fato de suas visões serem
estreitas, elas são precisas; porque elas são restritas, elas são claras. Ele não vê
grande coisa, mas ele vê bem o que vê. Porque seus olhos e não os de outros o
informam, ele vê o que é.56
128
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
Cada um sabe que é impossível para a testemunha relatar o que ele fez e viu
permanecendo estritamente objetivo. Ele é homem e ele é artista, em diferentes
doses; a fidelidade mecânica do cinema lhe está interditada.60
Por outro lado, ele defende a capacidade do soldado para relatar sua
experiência estabelecendo uma diferença entre a experiência de um acidente
(que é pontual, parcial e limita a qualidade de testemunho dos que o presenciam)
e, por outro lado, a guerra, que é marcada pela monotonia e pela repetição que
permitem um registro detalhado.61 Cru destaca que existe uma quantidade
muito grande de testemunhos (e também um número razoável daqueles que
ele considera excelentes testemunhos, 29) da Primeira GM. Ele atribui esse fato
novo em parte à presença de muitos combatentes mais velhos que a média das
guerras e também à presença de soldados mais intelectualizados.61
Não tenho como fornecer aqui uma ideia mais clara da impressionante
obra de Cru. Apesar de seu positivismo, ele tem uma visão detalhada de
muitas das aporias do testemunho e, sobretudo, da complementaridade do
129
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES
Testemunho e literatura
A questão do testemunho tem sido cada vez mais estudada desde os anos
1970. Para evitar confusões devemos deixar claro dois pontos centrais: (a) Em
vez de se falar em “literatura de testemunho”, que não é um gênero, percebemos
agora uma face da literatura que veio à tona na nossa época de catástrofes e que
130
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
fez com que toda a história da literatura - após 200 anos de autorreferência -
fosse revista a partir do questionamento da sua relação e do seu compromisso
com o “real”. Nos estudos de testemunho deve-se buscar caracterizar o “teor
testemunhai” que marca toda obra literária, mas que aprendemos a detectar
a partir da concentração desse teor na literatura e na escritura do século XX.
Esse teor indica diversas modalidades de relação mètonímica entre o “real” e
a escritura, (b) Em segundo lugar, esse “real” não deve ser confundido com
a “realidade” tal como ela era pensada e pressuposta pelo romance realista e
naturalista: o “real” que nos interessa aqui deve ser compreendido na chave
freudiana do trauma, de um evento que justamente resiste à representação.
O conceito de testemunho concentra em si uma série de questões que
sempre polarizaram a reflexão sobre a literatura: antes de qualquer coisa, ele
põe em questão as fronteiras entre o literário, o fictício e o descritivo. E mais:
o testemunho aporta uma ética da escritura. Partindo-se do pressuposto, hoje
em dia banal, de que não existe “grau zero da escritura”, ou seja, a literatura está
ali onde o sujeito se manifesta na narrativa, não podemos deixar de reconhecer
que, por outro lado, o histórico que está na base do testemunho exige uma visão
“referencial”. Ou seja, o testemunho impõe uma crítica da postura que reduz
o mundo ao verbo, assim como solicita uma reflexão sobre os limites e modos
de representação. Pensar o testemunho significa transpor para a análise da
cultura a máxima benjaminiana que vimos acima: todo documento de cultura
é um documento da barbárie. Essa história tensionada, marcada pela violência,
é o contexto que participa de modo determinante na definição das estratégias
enunciativas-estéticas que devemos ler como mensagens na garrafa, portadoras
de “teor testemunhai”. Não se trata de modo algum de pensar em um estudo
do teor testemunhai, de opor, de um lado, “o histórico” e, do outro, algo como
um “teor estético”. Esse equívoco positivista repetiría o corte cartesiano entre
corpo e razão. Antes, tudo na obra analisada deve ser lido do ponto de vista
dessa construção de seu teor testemunhai: por que a obra possui, por exemplo,
uma estrutura fragmentada; por que porta um narrador autodiegético, ou,
ao contrário, por que porta um narrador heterodiegético; como se constrói
a temporalidade na obra; quais as geografias apresentadas; que espaços e
arquiteturas entram em questão; qual a sua relação com outras obras que cita
ou parodia; como ela subverte (ou não) gêneros literários convencionados;
como se estruturam as relações de classe, gênero e étnico-raciais na obra; quais
131
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES
132
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
133
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES
Notas
1 Esquilo, 1993, versos 268 e ss.
2 Cf. Chrétien, 2002; Delehaye, 1927.
J Cf. Informazione e Tetimonianza, Archivio di Filosofia, 1972; Brooks, 2000.
4 Cf. Ballinger, 1998; Leys, 2000; Loftus, 1993.
3 Cf. Bosi, 1983.
6 Cf. Felman & Laub, 1991; Caruth (org.), 1995; Caruth, 1996.
' Kopenawa & Albert, 2015, pp. 512-549.
134
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
8
Cf. Pollak, 1986; Pollak & Heinrich, 1986; Friedlander, 1992; LaCapra, 1998; Winter & Sivan,
1999; White, 1987; Rüsen & Straub, 1998; Wieviorka, 1992 e 1998; Wieviorka & Mouchard,
1999.
9
Gibbs, 2000; Seligmann-Silva, “Catástrofe, história e memória em Walter Benjamin e Chris
Marker: a escritura da memória” (Seligmann-Silva (org.), 2003, pp. 391-417); Ricoeur, 2000
e 2008.
10
Cf. Derrida, 1998; Penna, 2003; Seligmann-Silva, 2001.
11
Cf. Berg, 1996; Wajman, 1998; Mesnard, 2000.
12
Esquilo, 2003. Citamos cada uma das tragédias de Esquilo indicando a sua inicial seguida
do número dos versos segundo a tradução ao português (2003) e, entre colchetes, do
número dos versos segundo a edição bilíngue, Esquilo, 1999.
13
Benveniste, 1995, p. 192. Em grego os termos correspondentes são hierós (= sacer) e hágios
(= sanctum). Idem, p. 193.
14
Na Poética ele descreve, no capítulo XVI, os reconhecimentos em que tematiza o
reconhecimento (Anagnorisis) por meio de signos: como é o caso do que ocorre em Coéforas
quando Electra reconhece o irmão devido às suas pegadas em torno da tumba do pai (que
são descritas como tekmérion, 266 [205]).
15
As Fúrias ironizam esse culto ao pai, lembrando que Zeus acorrentou seu próprio pai,
Cronos, e pedem que os jurados levem isso em conta (martiromai, E. 844 [643]).
16
Torrano, 2001, p. 18.
17
Cf. A. V. de Azevedo, 2001.
18
Benjamin, 1972b, p. 87.
19
Cf. Weigel, 2000.
20
Duden. Etymoligie, 1989, p. 829.
21
Benjamin, 2009, p. 67.
22
Idem, 1982, p. 595.
23
Aristóteles, 1995.
24
Eco, 1988, p. 258.
25
Weinrich, 1997, p. 107.
26
Freud, 1989, p. 91.
“Fortschritt in der Geistigkeit.”
28
Freud, 1993, p. 559; 1996, p. 127.
29
Idem, 1993, p. 560; 1996, p. 128. Tradução modificada.
30
No item “Triebverzicht”, “Renúncia instintual”, de seu ensaio sobre Moisés, Freud desenvolve
essa ideia de passagem da sensualidade (testemunho visual) para a intelectualidade: “Um
avanço em intelectualidade consiste em decidir contra a percepção sensória direta, em
favor do que é conhecido como processos intelectuais superiores - isto é, lembranças
[Erinnerungen], reflexões [Überlegungen] e inferências [Schluflvorgange]. Consiste, por
exemplo, em decidir que a paternidade é mais importante do que a maternidade, embora
não possa, como esta última, ser estabelecida pelo testemunho [Zeugnis] dos sentidos, e
que, por essa razão, a criança deve usar o nome do pai e ser herdeira dele” (Freud, 1993,
P- 563; 1996, p. 132. Tradução modificada). Freud, portanto, coloca em uma hierarquia as
lembranças acima do testemunho, que estaria preso a uma sensualidade que o rebaixa.
Pensando no que ele escrevera em 1909, parece que Freud também opta pela “incerteza”
da memória (“Gedãchtnis"; 1989, p. 91) e, portanto, pelo partido do neurótico obsessivo.
Derrida, no mencionado ensaio sobre o mal de arquivo, dedica uma passagem, ainda que
rápida, para criticar as premissas da nota de Freud de 1909 que analisei aqui. Ele afirma
que Freud se engana ao afirmar que sabemos quem é nossa mãe (pois existem mães de
135
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES
136
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
afirma que o sentido de testículo no latim testis tem origem em uma falsa tradução do grego.
O termo grego parastats significa ‘defensor (na lei)’ [‘defender (in law), supporter’] (para-
‘junto, ao lado de’, como em paramilitar e -stats de histanai, ‘estar de pé’). No número
duplo utilizado em muitas línguas para pares que existem naturalmente, em contraste ou
complementares, como por exemplo mãos, olhos e orelhas, parastats tinha o sentido técnico
médico de ‘testículos’, ou seja, ‘duas glândulas lado a lado’. Os romanos simplesmente
tomaram este sentido de parastats e adicionaram-no ao de testis, a palavra latina para
defensor legal, testemunha”. Desenvolví a questão da masculinidade de um determinado
tipo de testemunho como testis no ensaio “Grande sertão: veredas como gesto testemunhai
e confessional”, neste volume.
39 Cf. Dulong, 1998, p. 25 e ss.
40 Cf. Agamben, 1998. Um bom exemplo de testemunho mais auricular e menos marcado
pela “espetacularização” da violência é o livro de Ruth Klüger weiter leben. Eine Jugend
(1991). Klüger opta por uma escritura que programaticamente oscila entre o passado da
experiência da guerra e dos campos de concentração nazistas e o presente de sua escritura,
em 1990. O fato de ela não descrever a violência e o mundo militar e focar seu relato na sua
visão, na sua experiência, faz com que seu texto testemunhe sua história sem apresentar
ostensivamente os seus horrores. Não se trata de “higienização” do passado, pois tudo
está dito (ou no mínimo sugerido). Klüger escreve após centenas de outros sobreviventes e
parte dessa situação do horizonte de expectativas de seus leitores. Dizer que seu texto não
faz um “espetáculo” da violência não significa, por outro lado, que sempre o testemunho
como testis o faça. Mas pode-se dizer que a tendência para a visualidade e a apresentação
das provas da violência abre o testemunho para essa via. Não é necessário repetir que, na
cena jurídica, essa apresentação é tratada como essencial.
41 “Vor dem Gesetz.”
42 Penso aqui no texto de Kafka “Vor dem Gesetz", que pode ser traduzido tanto como “diante
da lei” quanto como “antes da lei”, fora dela, sendo que esse “fora” reproduz a estrutura
psicanalítica da cripta, do encriptamento/recalcamento, do banimento para o interior. Cf.
Derrida, 1985 e 1999.
43 “im Geheimnis der Begegnung" (Celan, 1983a, p. 198).
44 Celan, 1983a, p. 202.
4:1 Idem, p. 197.
46 Idem, 1983b, p. 72.
4/ Cru, 1997, p. 19.
48 “Quiconque n’a jamais vu ce que je vois, ne s’en fera jamais une idée” (Cru, 1967, p. 163).
49 “je considère comme un sacrilège de faire avec notre sang et nos angoisses de la matière à
littérature” (Cru, 1967, p. 165).
50 “Ah, comme toujours, ceux qui n’ont pas vu, comment peuvent-ils juger?”
51 “Celui qui n’a pas compris avec sa chair ne peut vous en parler.”
32 Cru, 1997, p. 26.
33 Idem, p. 87.
34 Idem, p. 88 e ss.
33 “saisis sur le vif” (Cru, 1997, p. 90).
36 “Le combattant a des vues courtes... mais parce que ses vues sont étroites, elles sont
precises; parce quelles sont bornées, elles sont nettes. II ne voit pas grand-chose, mais il
voit bien ce qu’il voit. Parce que ces yeux et non ceux des autres le renseignent, il voit ce
qui est.”
3/ Cru, 1997, p. 40.
137
O TEMPO DEPOIS DAS CATÁSTROFES
58 “le manger, le boire, les lettres, les colis, les poux, les rats, la pluie, la boue etc.” (Cru, 1997,
P-42)-
59 “les faits psychologiques sont 1’essence même de la guerre” (Cru, 1997, p. 46).
60
“Chacun sait qu’il est impossible au témoin de relater ce qu’il a fait et vú en restant
strictement objectif. II est honune et il est artiste, plus ou moins ; la fidélité mécanique du
cinématographe lui est donc interdite” (Cru, 1997, p. 125).
61
Cru, 1997, p. 22. Esta reflexão faz lembrar os argumentos do paragone ou competição entre
as artes, que se desenrolou do Renascimento ao século XVIII. Para G. E. Lessing, a poesia
deveria representar ações (que se estendem no tempo) em oposição às artes plásticas,
que deveríam se limitar à representação de corpos no espaço (e, portanto, só poderíam
representar as ações de modo alusivo, elegendo um momento mais fecundo) (Cf. o seu
Laocoonte, tessing, 1998). Nesse sentido, poderiamos pensar que o cinema estaria mais
próximo do testemunho do que a fotografia, seguindo esse modelo de Cru. Com relação a
essa diferença entre representação do acidente e da guerra, importa lembrar do conceito
de “trauma cumulativo” que desmontaria o argumento de Cru, já que também esse trauma
extenso no tempo produziría o efeito traumático.
62
Cru, 1997, p. 24.
t>3
Com relação a W. Benjamin e a Primeira GM, cf. Jay, 2002.
64
Rousseau, 2003, pp. 255-271.
65
“la liberté de 1’art a toujours été limitée par labsurde” (Cru, 1997, p. 105).
66
Idem, p. 129.
67
No capítulo 6 de meu livro O local da diferença (Seligmann-Silva, 2018 [2005]), dedicado
ao tema “Literatura, testemunho e tragédia: pensando algumas diferenças”, apresento dois
grande modelos do testemunho desenvolvidos no final do século XX/início do nosso século:
o modelo advindo dos estudos do testimonio latino-americano e o modelo pensado a partir
dos estudos da Shoah (pp, 81-97). Não se trata, no entanto, de pensar em modelos no sentido
de duas concepções fechadas e estanques, já que os eventos que estão na origem desses
conceitos, a exploração colonial e pós-colonial na América Latina, com suas ditaduras e
gigantescas desigualdades socioeconômicas em suas populações e, por outro lado, a Shoah,
não são passíveis de interpretações unívocas.
68
Deleuze & Guattari, 1995.
69
Pollak, 1990a; Bernardet, 1996; Beck, 1999; Jensen, 2002; Brophy, 2004; Silva, 2009; Seel, 2018.
70
Butler, 1999.
71
Nakagawa, 2014.
72
Coquio, 1999 e 2004; Hatzfeld, 2005; Ilibagiza, 2008; Mukasonga, 2018.
73
Panh & Bataille, 2011; Pran, 1997.
74
Aleksiévitch, 2016a, 2016b e 2018.
75
Poniatowska, 1991,1998, 2005 e 2016.
76
Lanzmann, 1985; Insdorf, 1985; Cuau et al„ 1990; Felman & Laub, 1991; Koch, 1993 e 1999;
Olin, 1997; Hansen, 1997; Kõppen & Scherpe, 1997; Didi-Huberman, 2015.
77
Cf. Hoheisel et al„ 2004; J. Young, 2000; Assmann, 1999 e 2012; Berg, 1996; Baer, 2000;
Borsdorf & Grütter, 1999; Brodsky, 2001; Seligmann-Silva, 2016. Para uma bibliografia mais
extensa sobre os estudos de testemunho, remeto ainda à bibliografia que compilei no livro
Seligmann-Silva (org.), 2003, pp. 469-555.
78
“le témoignage a toujours partie liée avec la possibilite au moins de la fiction, du parjure et
du mensonge” (Derrida, 1998, p. 28).
79
“Cette possibilité éliminée, aucun témoignage ne serait plus possibleet naurait plus en tout
cas son sens de témoignage” (Derrida, 1998, p. 28).
138
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
80 Refiro-me aqui à falsa autobiografia de Binjamin Wilkomirski (1998), que afirmou ser judeu
e sobrevivente de campos de concentração e depois foi desmascarado como um farsante,
ou no mínimo como alguém que se convenceu da veracidade de suas falsas memórias.
Cf. “Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a ficção”, Seligmann-Silva,
2018, pp. 105-118; Suleiman, 2019, pp. 209-223. Tive a oportunidade de assistir a seu longo
vídeo-testemunho em que ele narra sua pretensa epopeia (ele teria atéfpassado pela câmara
de gás e a ela sobrevivido). Seu testemunho, sintomaticamente, é o único que já vi, de
sobreviventes que passaram pela Shoah quando crianças, que narra como se se tratasse de
uma criança falando e tentando descrever (para adultos) suas impressões de um mundo
incompreensível. Esse recurso retórico de Wilkomirski (que visa convencer - e funcionou
muito bem no seu livro) desmascara-o como alguém que precisou inventar seu mundo,
seu “como se” ficcional. O problema não é escrever uma ficção sobre Auschwitz (qualquer
um com um pouco de talento pode fazê-lo): a questão que se põe é moral devido a sua falsa
postura diante da sociedade.
81 Cf. Venuti, 1998. Tratei mais detalhadamente deste “caso Louys”, confrontando-o com o
Wilkomirski, em “O testemunho: entre a ‘ficção’ e o ‘real’” (Seligmann-Silva (org.), 2003,
PP- 375-390).
139
3
NARRAR O TRAUMA
141
NARRAR O TRAUMA
142
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
que lidamos aqui com “catástrofes históricas”? Nessas situações, como nos
genocídios, nas perseguições violentas em massa de determinadas parcelas da
população, nas situações de sobrevida extremas, a memória do trauma é sempre
uma busca de compromisso entre o trabalho de memória individual e outro
construído pela sociedade. Aqui, a já em si extremamente .complexa tarefa de
narrar o trauma adquire mais uma série de determinantes que não podem ser
desprezadas mesmo quando nos interessamos em primeiro plano pelas vítimas
individuais. No que segue apresentarei, em primeiro lugar, alguns aspectos da
mencionada dificuldade de testemunhar. Veremos que o testemunho de certo
modo só existe sob o signo de seu colapso e de sua impossibilidade. No segundo
passo, tratarei especificamente da questão da política da memória: primeiro,
introduzindo algumas definições importantes para entender o conceito de
memória; depois, tratando do tema da memória como uma política.
Narrar o inenarrável
143
NARRAR O TRAUMA
foram totalmente levados por ele como o que ocorreu antes de mais nada com a
maioria dos que passaram pelos campos e morreram, mas também com aqueles
que eram denominados Musulmãnner dentro do jargão do campo, ou seja,
aqueles que haviam sido totalmente destruídos em sua capacidade de resistir.
Os que ocuparam algum local na hierarquia do campo, quer por conta de suas
relações políticas quer por causa de seu conhecimento técnico (o caso do próprio
químico Levi), estes puderam testemunhar, mesmo que não de forma integral, já
que a distância deles também implicou uma visão atenuada dos fatos. Para Levi,
não se pode falar, com Laub, que não existiu o testemunho no Lager, mas antes
que esse testemunho foi parcial, limitado. Giorgio Agamben deriva das palavras
de Levi algo semelhante ao que Laub afirmara. Isso, a meu ver, não corresponde
aos textos de Levi. Para Agamben,8 apenas os Musulmãnner poderíam ser as
testemunhas do campo, mas Levi nunca afirmou isso. Na introdução do volume
Os afogados e os sobreviventes, ele apenas aponta para as limitações do testemunho,
como lemos na famosa frase: “a história do Lager foi escrita quase exclusivamente
por aqueles que, como eu próprio, não tatearam seu fundo. Quem o fez não
voltou, ou então sua capacidade de observação ficou paralisada pelo sofrimento
e pela incompreensão”.9 Mas mesmo para ele, membro desse grupo de paradoxais
“privilegiados” dentro do inferno, a realidade do campo permaneceu como uma
cripta (lembrando da expressão de Nicolas Abraham e Maria Torok), cripta esta
que suas palavras atingiram com força, mas nunca conseguiram quebrar, o que
talvez esteja na origem do próprio suicídio de Primo Levi em 1987.
No seu É isto um homem?, de 1947, ele escrevera o seguinte com relação
.a esse elemento encriptado da realidade do Lager: “Parecia impossível que
existisse realmente um mundo e um tempo, a não ser nosso mundo de
lama e nosso tempo estéril e estagnado, para o qual já não conseguíamos
imaginar um fim”.10 Lembremos também outra passagem-chave do mesmo
livro: “Hoje - neste hoje verdadeiro, enquanto estou sentado frente a uma
mesa, escrevendo - hoje eu mesmo não estou certo de que esses fatos tenham
realmente acontecido”.1* Nessa passagem vemos dois momentos exemplares
do testemunho: em primeiro lugar, ele se dá sempre no presente. Na situação
testemunhai 0 tempo passado é tempo presente. (Mais um paralelo, aliás, com a
cena psicanalítica, já que Freud buscou várias metáforas ao longo de sua vida,
como a da câmera fotográfica, um campo geológico e o bloco mágico, para
exprimir esse elemento paradoxal da temporalidade psíquica concentrada em
144
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
145
NARRAR O TRAUMA
de nosso vínculo com o passado se articula por nossa relação com os mortos, ao
destruir os espaços de memória dos ancestrais se mata também a possibilidade
de sobrevivência. Assim, a tarefa do sobrevivente e de seus herdeiros passa a ser,
em primeiro lugar, a luta pela restituição dos mortos. Como formula Piralian,
os sobreviventes são herdeiros não só de violências tentativamente apagadas,
mas, literalmente, de cadáveres insepultos que eles portam na tentativa de
exumá-los e finalmente poder enlutá-los, enterrá-los, simbolizá-los:
Em outras palavras, é factível pensar que uns mortos, por falta de tumbas
possíveis, podem ser transmitidos, passar de corpo em corpo, até que alguém,
situado nessa cadeia genealógica muito particular, seja capaz de exumar o corpo
morto como cadáver e enterrá-lo? Por acaso não assumiría essa esperança toda
criança que nasce, quero dizer, como uma esperança possível, mesmo quando
forças gigantescas se opõem a ela? Uma vez que, quem não pode enterrar seus
mortos segue sendo um morto vivo.16
146
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
147
NARRAR O TRAUMA
Há dois anos, durante os primeiros dias que sucederam ao nosso retorno, estávamos
todos, eu creio, tomados por um delírio. Nós queríamos falar, finalmente ser
ouvidos. Diziam-nos que a nossa aparência física era suficientemente eloquente
por ela mesma. Mas nós justamente voltavamos, nós trazíamos conosco nossa
memória, nossa experiência totalmente viva, e nós sentíamos um desejo frenético
de a contar tal qual. E desde os primeiros dias, no entanto, parecia-nos impossível
preencher a distância que nós descobrimos entre a linguagem que nós dispúnhamos
e essa experiência que, em sua maior parte, nós nos ocupávamos ainda em
perceber nos nossos corpos. Como nos resignar a não tentar explicar como nós
havíamos chegado lá? Nós ainda estávamos lá. E, no entanto, era impossível.
Mal começávamos a contar e nós sufocávamos. A nós mesmos, aquilo que nós
tínhamos a dizer começava então a parecer inimaginável. Essa desproporção entre
a experiência que nós havíamos vivido e a narração que era possível fazer dela não
fez mais que se confirmar em seguida. Nós nos defrontavamos, portanto, com uma
dessas realidades que nos levam a dizer que elas ultrapassam a imaginação. Ficou
claro então que seria apenas por meio da escolha, ou seja, ainda pela imaginação,
que nós poderiamos tentar dizer algo delas."
148
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
arma que deve vir em auxílio do simbólico para enfrentar o buraco negro
do real do trauma. O trauma encontra na imaginação um meio para sua
narração. A literatura é chamada diante do trauma para prestar-lhe serviço.
Nada mais evidente: se dermos uma pequena olhada na história da literatura e
das artes veremos que os serviços que elas têm prestado *à humanidade e seus
complexos traumáticos não são desprezíveis. Da Iltada a Os sertões, de Êdipo
Rei a Guernica (1937), de Hamlet ao teatro pós-Shoah de um Beckett, podemos
ver que o trabalho de (tentativa) introjeção da cena traumática praticamente se
confunde com a história da arte e da literatura. A teoria freudiana da tragédia
como ritual de exorcismo do assassinato do pai pela horda primeva é apenas
uma das inúmeras versões da teoria estética que vê as artes como uma espécie
de escudo de Perseu. Nesse escudo miramos os olhos da Górgona que, segundo
Primo Levi, matou ou emudeceu aqueles que chegaram ao fundo do sistema
concentracionário e depararam com eles. Para muitos sobreviventes, como é
o caso de Jorge Semprun, a pessoa que melhor pode escrever sobre os campos
de concentração é quem não esteve lá e lá entrou pelas portas da imaginação?3
Mas essa solução está longe de implicar uma pacificação na cena do trauma
e do seu testemunho. Antes, é por conta da imaginação que muitas acusações
são feitas contra o testemunho. Ou seja, antes de criticar a literatura (com seu
evidente compromisso com a imaginação), a própria narrativa testemunhai, que
se quer “primeira”, atestação, fonte original da realidade, mesmo esta narrativa
é descartada por muitos historiadores - como o próprio Raul Hilberg24 - como
sendo fonte não fidedigna para o historiador. Neste ponto vislumbramos uma
querela que acompanha a historiografia desde seus primórdios, em sua luta
contra a escrita dita imaginativa. Mas, em vez de negarmos ao testemunho a
possibilidade de ver na imaginação e em seu trabalho de síntese de imagens um
potente aliado, devemos, com autores como, entre outros, Derrida, ver nessa
aproximação entre o campo testemunhai e o da imaginação a possibilidade
mesma de repensar tanto a literatura como o testemunho e o registro da escrita
autodenominado sério e representacionista. Ocorre uma revisão da noção de
literatura justamente porque, do ponto de vista do testemunho, ela passa a ser
vista como indissociável da vida, a saber, como tendo um compromisso com o
real. Como já dissermos anteriormente, aprendemos, ao longo do século XX,
que todo produto da cultura pode ser lido no seu teor testemunhai. Não se
trata da velha concepção realista e naturalista que via na cultura um reflexo da
149
NARRAR O TRAUMA
Antes de passar para este item, mas já nos dirigindo a ele, tratemos por
fim, dentro do tema das aporias do testemunho, da questão de sua paradoxal
singularidade. Todo testemunho é único e insubstituível. Essa singularidade
absoluta condiz com a singularidade de sua mensagem. Ele anuncia algo
excepcional. Por outro lado, é essa mesma singularidade que vai corroer sua
relação com o simbólico. A linguagem é um constructo de generalidades, ela
é feita de universais. O testemunho como evento singular desafia a linguagem
e o ouvinte. Sabemos que a fragmentação do real, o colapso do testemunho do
mundo, como vimos, emperra sua passagem e sua tradução para o simbólico.
A conhecida literalidade da cena traumática - ou o achatamento de suas
imagens, a face gorgónea do real que petrifica que vimos acima - trava a
simbolização. Mas, ao reafirmar essa singularidade absoluta do testemunho,
barra-se a possibilidade de sua repetição e sinapse com o simbólico, ponto em
que a ficcionalização entra com seus serviços. Como vimos, essa passagem
para o imaginário é desejável e pode ter um efeito terapêutico, mas, para um
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NARRAR O TRAUMA
estes psicólogos... nâo queriam ouvir nosso traumatismo senão sob a forma que
eles o compreendiam. [...] percebíamos que o país se transformava em um campo
de experiências de um bando de aventureiros e, antes de mais nada, de aprendizes
de psicólogo, de engenheiros, médicos... Quantos energúmenos nós nâo vimos?
[...] a maior parte dos que emprestam fundos e agentes humanitários são pessoas
apressadas e, como todas as pessoas apressadas, frequentemente julgam antes de
escutar: eles querem soluções rápidas, eficazes como mecanismos de automóvel,
mas que não podem funcionar com humanos, ainda menos com humanos que
saem de um genocídio. Eles querem se livrar da sua culpa com programas rápidos.42
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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Notas
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
caracterizada por uma perenidade insuperável. Por outro lado, o testemunho é externo
àquela cena traumática na medida em que ele cria um local metarreflexivo. Ele exige
um certo distanciamento. Assim, poder testemunhar durante uma situação traumática,
como a vida no Lager, o soldado no campo de batalhas, ou o morador de zonas de conflito
bélico e social (com todas as características particulares de cada uma dessas situações),
poder testemunhar já implica uma saída (mesmo que apenas simbólica) dessa situação. O
testemunho em si é terapêutico. Os diários de guerra e de prisioneiros e muitos documentos
testemunhais encontrados enterrados nos campos nazistas são prova dessa atividade teste-
-munhal mesmo em situações aparentemente impossíveis de abrigar um espaço testemunhai.
Recordo também dos testemunhos recolhidos por M. V. Bill no seu filme Falcão, meninos do
tráfico (2006) e analisados por Ana Maria Rudge e Betty Fuks no artigo “O documentário
Falcões, meninos do tráfico - testemunhos do cotidiano traumático” (2007), que também
são uma prova contundente desse fato.
4 Sobre o conceito de trauma repercutindo nos estudos culturais e de memória, cf. o capítulo
4 deste livro, “A era do trauma”; cf. também meu capítulo “Literatura e trauma: um novo
paradigma" (Seligmann-Silva, 2018, pp. 63-80); Kaplan, 2005; Assmann, 2012, pp. 276-316.
Sobre testemunho e trauma, cf. Caruth, 1996 e 2000; Quindeau, 1995; Chiantaretto, 2004;
meu artigo “Literatura e trauma: um novo paradigma” (Seligmann-Silva, 2018, pp. 63-80);
a obra coletiva Clínicas do testemunho. Reparação psíquica e construção de memórias, 2014,
e Wikinski, 2016 e 2019.
3 O conceito de “catástrofe” tem sido central em minhas reflexões. Esse conceito também é
uma herança benjaminiana. Lembro aqui da frase-chave de sua famosa tese sobre o anjo
da história, que vê a história da humanidade de costas, sendo soprado pela tempestade
que vem do paraíso, de onde fomos expulsos. Essa tempestade se chama progresso:
“Lá onde nós vemos surgir uma sequência de eventos, ele vê uma catástrofe única, que
incessantemente empilha escombros sobre escombros e os lança a seus pés” (Benjamin,
2020, p. 39). Nos fragmentos a essas teses, Benjamin anotou ainda: “A catástrofe como o
continuam da história” (.idem, p. 175); “‘Celebração’ é empatia com a catástrofe” (idem,
p. 182). Essa concepção de história como catástrofe está no cerne do que destaquei no
primeiro capítulo deste livro quando tratei da relação entre virada testemunhai da história
e a noção benjaminiana que afirma que todo documento de cultura é um testemunho da
barbárie (idem, pp. 100-101). Cf. ainda meu ensaio “Catástrofe, história e memória em
Walter Benjamin e Chris Marker: a escritura da memória” (Seligmann-Silva (org.), 2003,
PP- 391-417).
6 “an event without a witness” (Laub, 1995, p. 65).
' Desde 2019 a biblioteca Antônio Cândido, do Instituto de Estudos da Linguagem da
Unicamp, estabeleceu um convênio com esse arquivo de Yale, e os pesquisadores nesse
espaço da biblioteca em Campinas têm acesso aos milhares de vídeo-testemunhos do
Fortunoíf Video Archive for Holocaust Testimonies.
8 Agamben, 1998.
9 Levi, 1990, p. 5.
10 Idem, 1988, p. 119.
11 Idem, 105.
12 No final de A trégua, Primo Levi narra um sonho que o perseguiu após seu retorno de
Auschwitz que também expressa essa força da realidade do Lager de dissolver tudo aquilo
que poderiamos denominar de seu “exterior”. Trata-se de um sonho em cascata: Primo
.Levi vê-se entre familiares e amigos, à mesa ou em outro local aprazível. Aos poucos ele é
tomado de uma angústia difusa, “tudo desmorona e se desfaz ao meu redor, o cenário, as
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NARRAR O TRAUMA
paredes, as pessoas, e a angústia se torna mais intensa e mais precisa. Tudo agora tornou-se
caos: estou só no centro de um nada turvo e cinzento. E, de repente, sei o que isso significa,
e sei também que nada era verdadeiro fora do Lager. De resto eram férias breves, o engano
dos sentidos, um sonho: a família, a natureza em flor, a casa. Agora esse sonho interno,
o sonho de paz, terminou, e no sonho externo, que prossegue gélido, ouço ressoar uma
voz, bastante conhecida; uma única palavra, não imperiosa, aliás breve e obediente. É
o comando do amanhecer em Auschwitz, uma palavra estrangeira, temida e esperada:
levantem, ‘Wstavach’” (1997, p. 359). A realidade “externa” torna-se a exceção, tempo
de “férias”, imagem de “sonho”. Ela fica sitiada pelo real do Lager, que é descrito como
sonho-pesadelo que engloba e devora o mundo exterior. O despertar final de A trégua -
comandado por uma voz conhecida e estrangeira (Heimlich totalmente Unheimlich) - é
o despertar para essa terrível verdade do trauma. Jorge Semprun, o escritor e filósofo
sobrevivente de Buchenwald, narra esse mesmo sonho em cascata em seu livro-testemunho
L’écriture ou la vie (1994, p. 163).
13 Piralian, 2000, p. 21.
' idem, p. 19.
13 Idem, p. 25
16 Idem, p. 37.
Iz Idem, p. 22.
18 Mbembe, 2019.
19 Idem, p. 55.
20 Idem, ibidem.
21 Idem, pp. 55-56. Em seu ensaio Crítica da razão negra, ao comentar as novelas de Amos
Tutuola, lhe Palm-Wine Drinkard e My Life in the Bush ofGhosts, Achille Mbembe afirma
que o “vazio, criado pela ausência do vestígio fundamental que é o corpo do morto, é
vivido como um imenso buraco no real. O vestígio do corpo do morto é, de fato, essencial
para compor o significante de sua morte. Sem ele, o morto e a sua morte ficam inscritos
numa estrutura de ficção. Pois é o corpo que confere ao real da morte uma obscura
autoridade” (2017, p. 247). Sem o corpo, o sema torna-se hieróglifo ilegível e não passa ao
campo da significação. Nesse sentido, vale lembrar o verso de Paul Celan que inscreve o
ritual de enterro como essa passagem do corpo/cadáver ao significado/sema em seu poema
“Nãchtlich Geschürzt”, que cito e comento ao final do capítulo 7 deste livro, “Anistia e (in)
justiça no Brasil”.
22 Antelme, 1957, p. 9. Cf. também uma passagem de uma entrevista de Primo Levi, na qual
ele responde ao famoso dictum adorniano segundo o qual escrever poesia após Auschwitz
seria um ato de barbárie: “A minha experiência prova o contrário. Pareceu-me, então, que
a poesia era melhor mesmo do que a prosa para exprimir o que me oprimia. Quando eu
digo ‘poesia’ eu não penso em nada lírico. Nessa época eu teria reformulado a frase de
Adorno: depois de Auschwitz não se pode escrever poesia senão sobre Auschwitz” (Levi,
2005, p. 34). De fato, o próprio Adorno reformulou aquele dictum alguns anos depois em
um sentido próximo ao de Levi. Como ele escreveu em 1962 em seu trabalho “Engagement”,
também se referindo à sua frase de 1949: “O excesso de sofrimento real não permite
esquecimento; a palavra teológica de Pascal ‘on ne doit plus dormir’ deve-se secularizar.
[...] aquele sofrimento [...] requer também a permanência da arte que proíbe” (Adorno,
1973b, p. 64). No mesmo passo lemos ainda: “não há quase outro lugar [senão na arte] em
que o sofrimento encontre a sua própria voz”.
2j Neste sentido ele fez um largo elogio da imaginação como meio de “suscitar a imaginação
do inimaginável” (Semprun, 1994, p. 135).
160
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
24 De modo paradoxal é esse mesmo historiador que fala a Claude Lanzmann em seu filme
Shoah, como uma das poucas não testemunhas oculares do evento e como o portador
do saber historiográfico e histórico. Quanto à negativa de Hilberg com relação ao uso de
testemunhos para o saber histórico, cf. Wieviorka, 1998, p. 167.
23 Derrida, 1998, p. 28.
26 Coleridge, 1983, p. 6.
2/ Dostoievski, 2001, p. 348.
28 Levi, 1990, p. 7.
29 Klüger, 1994, p. 70.
30 Todorov, 2003, pp. 191-193.
31 Alencastro, 2018.
32 J. Rodrigues, 2018, p. 347.
33 Nascimento, 2016, p. 79.
34 Cf. Yates, 1966, p. 32.
33 Refiro-me aqui a um importante filão na arte contemporânea no qual encontramos artistas
que praticam uma nova "arte da memória . Ct. beligmann-Silva, 2017.
36 Evidentemente, desde a Antiguidade os historiadores discutem o estatuto e a importância
das testemunhas. Mas esse testemunho era visto de modo secundário e instrumental.
O testemunho serviría apenas para reafirmar aquilo que documentos e outras provas já
teriam antes indicado. Cf. minha discussão sobre esse conceito no historiador iluminista
Chladenius, no meu artigo “Ficção e imagem, verdade e história: sobre a poética dos
rastros” (Seligmann-Silva, 2013).
3/ Com relação ao papel de Jean Norton Cru na história do conceito de testemunho, cf. o
mencionado livro de Frédéric Rousseau (2003) e nosso capítulo anterior.
38 Como desenvolverei no capítulo abaixo a partir de um diálogo com o filósofo Marc
Nichanian.
39 Se existem, de um lado, o negacionismo, como uma prática tradicional dos autores de
crimes e sobretudo dos autores coletivos de crimes contra a humanidade, e, de outro lado,
a tendência do sobrevivente e da vítima a querer se “esquecer” do seu passado traumático,
podemos distinguir ainda uma terceira modalidade de resistência ao real que seria a marca
de nossa atual sociedade caracterizada pela presença traumatizante da violência. Em Freud
a teoria da defesa diante da “vivência da dor” contém, neste sentido, ensinamentos preciosos.
O mesmo vale para seu conceito de Verleugnung, recusa da realidade. Vale lembrar de uma
passagem do dicionário de Laplanche/Pontalis ao tratar deste último termo: “Na medida
em que a recusa incide na realidade exterior, Freud vê nela, em oposição ao recalcamento,
o primeiro momento da psicose: enquanto o neurótico começa por recalcar as exigências
do id, o psicótico começa por recusar a realidade” (1988, p. 562). O psicanalista Sándor
Ferenczi desdobrou esse conceito de Verleugnung no sentido de destacar a importância
fundamental do reconhecimento do outro diante da narrativa do trauma ocorrido. Em
caso de desautorização da narrativa estamos em plena cena do trauma. Cf. Ferenczi, 1992,
pp. 97-106.0 mesmo vale para o testemunho: sem alguém para recebê-lo e portá-lo, ele não
pode se dar. Cf. Kuperman & Osmo, 2017; Osmo, 2018. Voltaremos às teorias de Ferenczi
no próximo capítulo.
40 Coquio, 2004.
41 Monique Ilbudo, apud Coquio, 2004, p. 83.
42 Esther Mujawayo, apud Coquio, 2004, p. 84.
43*’Hatzfeld, 2005, p. 51.
44 Coquio, 2004, p. 92.
161
NARRAR O TRAUMA
162
4
A ERA DO TRAUMA
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A ERA DO TRAUMA
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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A ERA DO TRAUMA
do prazer que, segundo seu ensaio de 1900 sobre a Interpretação dos sonhos,5
determinaria nossa atividade onírica.
Nesse ponto de seu texto, Freud introduz uma digressão que ficou famosa,
sobre o jogo de seu neto em seu berço. Trata-se do jogo que em alemão se
denomina Fort-Da, uma espécie de esconde-esconde, no qual o nenê joga algo,
para em seguida pegá-lo de volta. Esse jogo, nota Freud, pode ser visto como
uma tentativa do nenê de se tornar agente com relação à situação opressora
de desaparecimento da mãe de seu campo de visão. Jogando com a dor, o
nenê transformaria a dor em um ganho de prazer. Ele fala de um “impulso
de apoderamento” em uma situação de desamparo e lembra que também os
adultos fazem algo semelhante, como nas tragédias, obras a que assistimos
com fruição e que serviríam para uma elaboração espiritual daquilo que causa
desprazer. Mas o que interessa a ele naquele momento não é esse desvio da
dor para o prazer via jogo, mas sim o que denomina “compulsão à repetição”
que vemos tanto no caso dos traumatizados como nesses jogos. Para ele, essa
compulsão seria “mais primordial, mais elementar, mais pulsional do que o
princípio de prazer”. Impossível resumir aqui os detalhes desse ensaio cheio
de insights surpreendentes, mas o fundamental é reter como Freud associa
essa compulsão traumática à repetição a uma pulsão de morte, conceito que
ele desenvolve nesse ensaio de 1920 e será desdobrado mais tarde, por exemplo
em O mal-estar na cultura (193o),6 quando ele falará de “pulsão de destruição”
(Destruktionstrieb). A conclusão de Freud, partindo de uma reflexão sobre a
compulsão à repetição contida na situação traumática, é que a nossa vida tem
como objetivo a própria morte. A vida é um (mero) desvio em direção à morte.
Vivemos para além do princípio do prazer, e as nossas pulsões sexuais (a libido)
estão submetidas às pulsão de morte. Essa teoria, escrita no tempo do “após”,
que, no caso de situações traumáticas é o tempo do “ainda”, da Primeira Guerra
Mundial, é com certeza uma filha de sua época.
Não por acaso, o período histórico no qual Freud mais insiste em sua
tentativa de apresentar a noção psicanalítica de trauma dá-se justamente durante
o governo nazista na Alemanha e, portanto, em meio à corrida armamentista
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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A ERA DO TRAUMA
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
A TAREFA DO TESTEMUNHO
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A ERA DO TRAUMA
Notas
1
Freud, 2016a.
2
Ferenczi, 1992, p. 63.
3
Idem, p. 106.
4
Freud, 2010a.
5
Idem, 2016b.
6
Idem, 2010b.
7
Idem, 1993a.
8
Idem, 1996,. p. 87.
9
Idem, pp. 92-93.
10
Idem, 1993b.
11
Lyotard, 1983.
12
Caruth, 1996, p. 18.
170
5
171
O QUE RESTA DO TESTEMUNHO
desconstruir, não fazem nada mais do que repetir o ato genocida de tentativa
de apagamento: eles assassinam novamente um milhão de pessoas que até hoje
têm seus lutos bloqueados.
Mas o questionamento de Nichanian vai muito mais fundo do que
demandar uma inscrição histórica e documental daquele terror infinito que foi
a perseguição genocida do Império Otomano contra os armênios. Justamente,
ele percebe, com outros importantes pensadores, como Jean-François Lyotard,
Jacques Derrida, Shoshana Felman e Giorgio Agamben, em que medida o
evento da violência genocida no século XX exige que repensemos nossos hábitos
historiográficos. Nichanian nota uma cumplicidade entre a historiografia
positivista tradicional, calcada em provas e em documentos oficiais, e o
mecanismo genocida. Não esqueçamos que os negacionistas sempre insistem:
apresentem as provas. Nichanian sempre volta a essa exigência negacionista
com sua demanda (cínica) que solicita que os mortos apresentem as provas do
ato que roubou suas vidas ao mesmo tempo que já apagou as suas mortes. Ele
percebe que não existe contradição entre, por um lado, o regime de verdade
positivista, calcado na lógica falogocêntrica da visualidade, do convencimento
pelas provas, e, por outro lado, a política genocida, que mata apagando os
rastros, eliminando as provas. Mais do que isso: a historiografia tradicional
acredita em contextos, em uma lógica racional intrínseca aos fatos. Ela não tem
lugar para aquilo que escapa à lógica e ao contexto. E se a violência genocida,
com seus milhões de mortes no século XX, representar um derretimento dos
contextos? E, como se expressou Lyotard, referindo-se a Auschwitz, se existem
eventos terríveis que, como um terremoto, quebram os próprios instrumentos
que permitiríam medir o grau de destruição? Esses aparelhos permitem que
se compare um abalo sísmico com o outro, de modo científico e lógico. Pois
bem, e se esses aparelhos se quebraram? Devemos negar a excepcionalidade dos
eventos não mensurados? Ou devemos inventar novos modos de aproximação
da realidade, outras modalidades de imaginá-la que permitam incluir aí o
terror genocida sem normalizá-lo? Essa segunda opção é a de Nichanian, e
neste espaço gostaria de mostrar três aspectos de sua reflexão, já destacando
que seria necessário muito mais espaço para apresentar sua análise em toda
a sua complexidade, a começar por sua vasta e erudita obra sobre a literatura
armênia do século XX, que ele publicou em três volumosos livros, entre 2006 e
2008, pela editora Métis, de Genebra. Aqui vou apresentar: (1) a sua visão crítica
172
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
da história, (2) a sua teoria da arte na era pós-catástrofes e (3) o seu olhar sobre
a história do testemunho armênio. História, arte e testemunho constituem uma
das possíveis constelações que se formam no céu do pensamento de Nichanian.
Aqui, contentemo-nos em observar essa constelação mais de perto.
Nichanian parte, em sua crítica de nossos hábitos historiõgráficos, de uma
importante passagem do livro Le différend, de Lyotard.2 É importante retomar
essa passagem aqui:
pois os fatos, os testemunhos que estavam marcados pelos aqui e pelos agora, os
documentos que indicavam o sentido ou os sentidos dos fatos e os nomes, ou seja,
a possibilidade dos diversos tipos de frases cuja conjunção forma a realidade, tudo
isso foi destruído tanto quanto possível. Cabe ao historiador levar em conta não
apenas o dano, como também o ato ilícito? Não a realidade, mas a metarrealidade,
que é a destruição da realidade? Não o testemunho, mas o que resta do testemunho
quando o testemunho é destruído...? Obviamente, sim, se é verdade que não
haveria história sem conflito (différend)... Mas, então, é preciso que o historiador
rompa com o monopólio concedido ao regime cognitivo das frases sobre a história,
e se aventure a dar ouvidos ao que não é apresentável nas regras do conhecimento.
[...] Seu nome [o de Auschwitz] marca os confins onde o conhecimento histórico
vê sua competência recusada?
173
O QUE RESTA DO TESTEMUNHO
A vontade genocida [genocidaire, genocidária] é aquela que quer suprimir o fato no ato
mesmo que o executa. Vemos aí um fenômeno característico do conjunto do século
XX, que é o século dos genocídios justamente porque ele é o século do arquivo?
174
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
Nós estamos aqui no terreno da história positiva, wie es eigentlich gewesen, como
os fatos efetivamente se passaram, segundo a fórmula do século passado, de Ranke,
um terreno onde o verdadeiro simplesmente opõe-se ao falso, independentemente
de toda interpretação.7
Também Cario Ginsburg, em seu ensaio “Just one Witness”,8 volta a esse
mesmo mote. Nichanian ataca de modo veemente essa estratégia que lhe parece
absolutamente equivocada. Ao tentarem combater o que chamam de relativismo
histórico, esses historiadores voltam ao positivismo tradicional e não percebem
que o relativismo, de resto, só existe como contraparte e complemento - não
em oposição - ao pensamento realista positivista. Realismo e relativismo
são, poderiamos dizer, farinha do mesmo saco.9 Não se trata de estabelecer o
genocídio, seja a Shoah, o genocídio armênio, ou qualquer outro, como um fato
histórico no sentido positivista e representacionista desse termo, mas, antes, de
mostrar como esses eventos exigem uma nova visão histórica; eles nos lançam na
era dos testemunhos e não permitem a noção, subjacente à insistência na lógica do
arquivo, de que tudo continua na mesma normalidade após a catástrofe. Na era
pós-catástrofe, a linguagem, a verdade e a historiografia devem ser reinventadas.
É a isso que autores como Paul Celan, Primo Levi, Aimé Césaire, Frantz Fanon
e Hagop Oshagan se dedicaram nesse século de genocídios. É nesse contexto
que Nichanian também opta por se referir ao massacre armênio não como um
genocídio (categoria histórica e normalizadora), mas, seguindo Hagop Oshagan,
como Catástrofe, com “C” maiúsculo. Nichanian afirma:
Ignorar, colocar fora de circuito, pôr entre aspas: essas são as expressões e práticas
que resultam de uma distinção radical entre a Catástrofe (que exige que se ponha
a questão acerca de sua representação possível ou impossível) e o “genocídio” (o
objeto dos historiadores, a palavra final da refutação, sua trama repertoriada e
renovada).10
175
O QUE RESTA DO TESTEMUNHO
é deslocada para uma zona paradoxal que, ao mesmo tempo, destaca a sua
opacidade (o elemento necessariamente apresentável e irrepresentável da
violência vivida, a herança de silêncios, traumas e gritos, articulados ou não)
e permite que alcance uma visibilidade maior. A catástrofe do povo armênio
deve ser vista em sua unicidade que resiste aos contextos e derrete os conceitos.
Ela exige uma aproximação múltipla, e não apenas de suas eventuais provas.
Cada um de seus traços, existentes apesar de tudo, sobreviventes, exige uma
escuta única. Daí a história ser superada pelo testemunho, e a historiografia
tradicional e sua teoria, pela poética do testemunho. Ou seja, contra a lógica
da classificação normatizadora, e a redução do histórico às provas, devem-se
criar uma prática e um pensamento capazes de lidar com a singularidade e a
imanência dos eventos. Em vez do arquivo, podemos pensar aqui na antilógica
do colecionador, que ordena sua coleção do ponto de vista de suas emoções.
Uma das idéias seminais de Walter Benjamin sobre a coleção pode ser lida no
seu texto "Elogio da boneca”,*2 que trata justamente de um ponto vital do gesto
do colecionador: a relação entre o indivíduo (que seleciona, arranca do contexto
e coleciona) e o mundo objetivo das “coisas”.
1/6
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
Lewis justamente batia na velha tecla de que não haveria uma prova
com relação a uma decisão e um plano de governo otomano a respeito do
genocídio. Tudo teria sido apenas uma deportação que acabara em tragédia.
Essa argumentação procura também naturalizar o que aconteceu: teria sido
apenas uma catástrofe quase de caráter natural, como uma tempestade. Para
além desse tipo de negacionismo, Nichanian denuncia também os historiadores
que procuram eliminar o caráter genocida da catástrofe armênia, afirmando
a exclusividade desse traço com relação à Shoah. Nada mais limitado. Afinal,
ao percebermos a persistência de uma vontade genocida ao longo do século
XX, no Império Otomano, entre os nazistas e seus aliados, no Camboja, na
ex-Iugoslávia, em Ruanda etc., não se quer negar um evento para se afirmar
outro, ou dizer que um é pior que o outro. Lewis, note-se, foi condenado
pelo tribunal de Paris não por ter contestado o genocídio, mas sim por ter
ocultado “elementos contrários a sua tese”.15 A perversão histórica foi mantida
intacta. Mas como seria possível sair do círculo vicioso da exigência de
provas, senão rompendo com o paradigma positivista? Afinal, não existem
os fatos comprobatórios, do ponto de vista da historiografia tradicional e do
negacionismo que lhe é intrínseco. Mas existem os testemunhos e as memórias.
Nichanian escreve, então, deslocando sua escrita para a primeira pessoa, gesto
que em si indica sua ruptura com o discurso da história tradicional:
177
O QUE RESTA DO TESTEMUNHO
Ocorre que a lógica do arquivo exige a validação para além dessa narrativa
familiar. E, como essa mesma lógica levou ao apagamento das provas e dos
traços, não se deixa construir o fato segundo o arquivo. Como escreve muito
acertadamente Nichanian:
Portas abertas para a loucura para aqueles que se encontraram na morada assassina
de um fato que não o é. Existe genocídio apenas lá onde a cena da validação, a cena
na qual os "fatos” adquirem uma “realidade”, é dominada pelo arquivo. Por isso
só existe genocídio no século XX.17
Os que ora dominam são herdeiros de todos os que venceram. A empatia com
os vencedores beneficia, portanto, sempre os que ora dominam. Isso diz tudo
para o materialista histórico. Todos os que até hoje foram vencedores vão junto
ao cortejo triunfal dos dominantes, que marcham sobre aqueles que jazem hoje
no chão. Os espólios, còmo de costume, são levados no cortejo triunfal. São os
chamados bens culturais. O materialista histórico os observa sempre com o devido
distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele contempla têm uma origem
sobre a qual não pode refletir sem horror. Devem a sua existência não apenas
ao esforço dos grandes gênios, que os criaram, mas também à corveia anônima
dos contemporâneos destes. Não há um documento da cultura que não seja ao
mesmo tempo um documento da barbárie. E assim como a cultura não está livre
da barbárie, assim também ocorre com o processo de sua transmissão, na qual ela
é passada adiante. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico dela se
afasta ao máximo. Ele considera que a sua tarefa é escovar a história a contrapelo.20
178
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
179
O QUE RESTA DO TESTEMUNHO
Eu mesmo apenas cheguei a essas questões muito tarde, após ter acumulado
trabalhos de cunho crítico sobre a literatura armênia da catástrofe e o testemunho
armênio no século XX. Embora, há mais de noventa anos, os sobreviventes e seus
descendentes não tenham cessado de narrar os acontecimentos de 1915-1916 por
meio de suas recordações pessoais e das que lhes foram legadas, não temos uma
história do testemunho armênio. Está mais do que na hora de cuidar disto.25
180
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
A descrição dos golpes terríveis sofridos pelo povo armênio nâo trará benefício
algum no campo artístico. A realidade é suficientemente forte e cruel por si só.
É melhor esses testemunhos permanecerem nos acervos de documentos oficiais
de todas as cores, exatamente como foram coletados da boca das testemunhas.29
181
O QUE RESTA DO TESTEMUNHO
182
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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O QUE RESTA DO TESTEMUNHO
de culto aos mortos. Mas talvez eu não esteja me distanciando das idéias de
Nichanian ao propor ao invés de uma estética do monumento, uma estética do
antimonumento. Tanto o testemunho como o antimonumento são marcados
pela fragmentação, uma visão mais humanizada e quente da história, mais
próxima da memória do que da historiografia, uma visão do ponto de vista dos
vencidos e dos mortos, uma estética do efêmero e não do triunfo eterno. Para
Nichanian, eu cito, “o testemunho, para se libertar da opção realista, dirige-se
ao que chamamos de arte”.42 Contra a falsificação da verdade, a arte coloca-se
ao lado dos demais discursos que buscam justiça. Aproximar o testemunho
da arte implica libertá-lo do dever de representação e da esfera da refutação.43
E, de modo inverso, eu diria, a arte ativa agora o seu momento testemunhai.
Sendo que, contrariamente à visão positivista da testemunha (que vê nela uma
instância neutra), agora a testemunha é, via de regra, a vítima, e seu engajamento
em sua causa é total. Em vez de prova, a arte testemunhai mostra o momento em
que a representação é como que rasgada, como escreve Nichanian com relação ao
belo filme Ararat, de Atom Egoyan.44 Se, como Benjamin notou em 1940, como
já lembrei, todo documento de cultura testemunha a barbárie, é porque, graças ao
acúmulo de violência do século XX, aprendemos a ver na cultura uma inscrição
da violência. Ler a história a contrapelo implica revelar esse elemento catastrófico
da história. A arte aliada ao testemunho torna-se, assim, um exercício de contra-
-arquivar a barbárie. Ela é um dispositivo político que visa a uma catarse que tem
por objetivo não tanto uma cura, mas sim o despertar para 0 outro.
Notas
184
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
dos armênios se inscreveram dentro de uma planificação central e que se tratou, portanto,
sem equívocos, de um caso de genocídio” (2008, p. 18). Ele narra tanto a história desse
massacre como a da tentativa de eliminar, queimar e/ou esconder os documentos que
podem comprovar as ordens e a organização por detrás desse “ato vergonhoso”. Akçam cita
as palavras do grande vizir Talât Pacha, em uma carta ao Parlamento de 26 de maio de 1915
(ano do início do genocídio), mencionando os planos genocidas do Comitê União e Progresso
(CUP), o partido no poder durante a guerra e que levou a cabo o crime: “Nós discutimos
e realizamos os preparativos necessários para a eliminação completa e fundamental desse
problema que ocupa um local importante na lista dos problemas vitais do Estado” (idem,
p. 23). Esse “problema” era justamente a questão armênia (idem, p. 78). O CUP partia
de uma visão racializada do que deveria ser a nova nação e pretendia a purificação e a
homogeneização raciais do espaço otomano, que se tornou, ao longo da guerra, um espaço
turco (idem, p. 81). O nacionalismo turco foi alimentado pelos nacionalismos europeus,
por historiadores e linguistas turcos, entre outras influências (idem, p. 127). Akçam aponta
ainda para a relação estreita entre o genocídio do povo armênio e a fundação do Estado
turco em 1922: isso explica em certa medida a política de negação desse genocídio por parte
do Estado turco até hoje. Os pais da nação, que em parte participaram ou foram cúmplices
desse crime, são venerados como heróis, e não existe lugar para uma crítica a eles. O projeto
de Akçam de rever criticamente a história da Turquia é calcado em um mote que também
vale para o Brasil: só a completa integração da história da violência nesse país permitirá a
construção de uma verdadeira democracia.
3 Nichanian, 2006, p. 25. A tradução inglesa dessa obra, Tíie Historiographic Perversion, feita
por Gil Anidjar, foi publicada em 2009 pela Columbia University Press (cf. Nichanian, 2009).
6 Derrida, 1994.
7 Vidal-Naquet, 1987, p. 31.
8 C. Ginsburg, 1992.
9 Além do positivismo e do relativismo, devemos levar em conta também a simples falsificação
da verdade. Nesse ponto vale a pena retomar o ensaio de Hannah Arendt “Verdade e política”
(2009a): “provavelmente, nenhuma época passada tolerou tantas opiniões diversas sobre
assuntos religiosos ou filosóficos; a verdade fatual, se porventura opõe-se ao lucro ou prazer
de um determinado grupo, é acolhida hoje em dia com maior hostilidade que nunca” (idem,
p. 293). Essa assertiva vale tanto para a negação de genocídios quanto para a negação de
postulados mais do que comprovados da ciência, como no caso da pandemia de covid
(2020/2021), durante a qual o presidente do Brasil negou tanto a sua fatalidade destruidora
(chamou-a de “gripezinha”) como as medidas de contenção, como o uso de máscaras,
o distanciamento físico e a necessidade imperativa de ampla aplicação de vacinas. Mas,
observa a filósofa, “o apagamento da linha divisória entre verdade fatual e opinião é uma
das inúmeras formas que o mentir pode assumir, todas elas formas de ação” (Arendt, 2009a,
p. 309). No mundo paranoico do mandatário autoritário, tudo se transforma em questão
de opinião - mesmo os saberes derivados da ciência seriam meras opiniões das quais ele
se outorga o direito de discordar. Diz a autora: “a verdade tem um caráter despótico. Ela é,
portanto, odiada por tiranos que temem com razão a competição de uma força coercitiva
que não podem monopolizar” (idem, 298). Arendt argumenta contra o positivismo, sem abrir
mão de uma noção complexa de fato histórico: “Não demonstraram gerações de historiadores
e filósofos da história a impossibilidade da determinação de fatos sem interpretação, visto ser
mister colhê-los de um caos de puros acontecimentos [...] e depois adequá-los a uma estória
que só pode ser narrada em uma certa perspectiva, que nada tem a ver com a ocorrência
original? Sem dúvida, esta e muitas outras perplexidades inerentes às Ciências Históricas
185
O QUE RESTA DO TESTEMUNHO
são reais, mas não constituem argumento contra a existência de matéria fatual, e tampouco
podem servir como uma justificação para apagar as linhas divisórias entre fato, opinião e
interpretação, ou como desculpa para o historiador manipular os fatos a seu bel-prazer”
(idem, p. 296). Diante da onda terraplanista que ocorreu no Brasil da era pós-golpe de 2016,
vale citar outra preciosa passagem de Arendt: “Asserções como ‘Os três ângulos de um
triângulo são igual aos dois ângulos de um quadrado’, ‘A Terra move-se em torno do Sol’,
‘É melhor sofrer o mal do que praticar o mal’, ‘Em agosto de 1919 a Alemanha invadiu a
Bélgica’ diferem muito na maneira como se chegou a elas, porém,' uma vez percebidas como
verdadeiras e declaradas como tal, elas possuem em comum o fato de estarem além de
acordo, disputa, opinião ou consentimento” (idem, p. 297).
10
Nichanian,12012, p. 21.
11 “Nous napporterons pas de preuves” (Nichanian, 2012, p. 23).
12
“Lob der Puppe.”
13
Benjamin, 1972a, p. 216. Grifos meus.
14
Nichanian, 2006, p. 37.
15
Idem, p. 44.
16
Idem, p. 47.
17
Idem, p. 48.
18
Idem, p. 56.
19
Oshagan, apud Nichanian, 2006, p. 48.
20
Benjamin, 2020, p. 74.
21
Nichanian, 2006, p. 52.
22
Akçam, 2008; Bloxham, 2009.
23
Nichanian, 2012, p. 16.
24
Essayan, apud Nichanian, 2012, p. 18.
25
Nichanian, 2012, pp. 13-14.
26
“Kulturkritik und Gesellschaft.”
Adorno, 1977b, p. 26.
28
Nichanian, 2012, p. 20.
29
Shant, apud Nichanian, 2012, p. 20.
30
Seligmann-Silva, 2014b.
31
Poniatowska, 1991,1998, 2005 e 2016; Aleksiévitch, 2016a, 2016b e 2018.
Akçam, 2008.
33
Nichanian, 2006, p. 81.
34
Idem, p. 84.
35 Mas vale a máxima, onde persiste o negacionismo, assim como onde se dá a ausência de
corpos e de tumbas, o luto fica eternizado e se transforma em melancolia. Lembro da frase
da sobrevivente da Shoah Ruth Klüger: “Onde não existe túmulo, o trabalho de luto não se
encerra” (Klüger, 1994, p. 95).
36
Nichanian, 2006, p. 85.
37
Seligmann-Silva, 2014b.
38
Nichanian, 2006, p. 149.
39
Idem, p. 162.
40
Nietzsche, 1992.
41
Seligmann-Silva, 2016.
42
Nichanian, 2006, p. 165.
43
Idem, p. 31.
44
Idem, p. 171.
186
6
O LOCAL DO TESTEMUNHO
estamos, portanto, diante de um dos numerosos casos nos quais aquele que
exerce uma função é confundido com esta (cf. esp. Um cura, fr. Guide Talvez
pudéssemos inferir, da coexistência dos dois sentidos, que se trata não tanto de dois
sentidos, mas que o personagem e seu papel não estão separados na consciência
do indivíduo que fala.1
187
O LOCAL DO TESTEMUNHO
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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O LOCAL DO TESTEMUNHO
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O LOCAL DO TESTEMUNHO
Esse ditame neoclássico possui uma relação umbilical com uma certa estética
da Modernidade, da fundação da teoria estética no século XVIII até Albert
Speer durante o regime nazista, chegando aos atuais ditadores e candidatos.14
192
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
Mas, como mencionei, essa obra e os demais autores que arrolei e os que
não citei não são suficientes para a criação de uma cultura da memória, como
a que percebemos em outros países da América Latina. Daí críticas como a de
Beatriz Sarlo23 a essa cultura da memória e aos “excessos” de testemunho não
terem nada a ver com a realidade brasileira. Mal começamõs a testemunhar.
Em que pesem os milhares de depoimentos dados à Comissão de Anistia,
não temos o testemunho como testis, ou seja, o testemunho jurídico, nem o
testemunho como superstes, o testemunho como a fala de um sobrevivente
que não consegue dar forma à sua experiência única. Nossos testemunhos
estão sufocados pelas amarras de uma “política do esquecimento” que não
conseguimos até agora desmontar. Novamente: o testemunho sem ouvinte não
existe em sua plenitude. De certa maneira, podemos dizer que as vítimas e
aqueles que lutam pela verdade, pela memória e pela justiça ficam relegados
pelas elites a uma posição melancólica, que é difícil de aceitar e de conviver
com ela. Ela corrói as entranhas. O grande desafio que se coloca ainda hoje, 43
anos depois da promulgação da Lei de Anistia, é a necessidade de quebrar as
barreiras que até hoje impediram esse trabalho de testemunho de entrar em
funcionamento.
É evidente que muita coisa foi feita, com destaque para as realizações da
Comissão de Familiares de Mortos e de Desaparecidos Políticos, que tem levado
adiante lutas pela abertura de arquivos, pela construção de memoriais, pelo
estabelecimento de arquivos, pela reversão do efeito perverso da Lei de Anistia
de 1979. Exemplo desse trabalho é a publicação do volume Dossiê ditadura:
mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985), que contém a lista de
426 mortos e desaparecidos por perseguição política na ditadura civil-militar
brasileira, com informações até então inéditas e vários novos nomes de vítimas
daquele regime. O relatório da Comissão Nacional da Verdade de dezembro
de 2014 estendeu o número de vítimas para 434 e tornou pública uma série de
crimes como os genocídios indígena e no campo, temas que ainda precisam ser
mais pesquisados e aprofundados. Esse relatório ainda repete erros basilares,
heranças da colonialidade, ao não incluir, por exemplo, o número de indígenas
assassinados pela ditadura entre o número oficial de mortos e desaparecidos.
Trata-se de uma clara hierarquização étnica e de classe.24 Muito já foi feito e
devemos reconhecer os avanços, como a vitória obtida no processo civil contra
o coronel Carlos Alberto Ustra, movido pela família Teles em 2008, quando
197
O LOCAL DO TESTEMUNHO
esse militar foi reconhecido como torturador pela Justiça, fato inédito até então.
O processo foi movido por César Augusto Teles, Maria Amélia de Almeida
Teles, Janaína de Almeida Teles, Edson Luís de Almeida Teles e Crimeia Alice
Schmidt de Almeida. Mas a luta dessa e de outras comissões tem sido até agora
uma luta de Davi x Golias, mas sem a vitória do primeiro. Trata-se de uma
luta que ainda não conquistou a sociedade e que está muito dependente de
iniciativas das vítimas. Quando os testemunhos dos sobreviventes se tornarem
parte dos currículos escolares, quando arquivos forem abertos, mais memoriais
debatidos e construídos, quando os tribunais forem abertos aos testemunhos
dos que sofreram sob a ditadura, quando a verdade começar a se delinear e os
responsáveis começarem a pagar pelo que fizeram, aí sim teremos a nossa cultura
da memória. Aí poderemos debater também de modo mais claro os limites da
fala testemunhai. Por enquanto, esse debate no Brasil é feito a partir de outras
culturas da memória, como a da Shoah e sobretudo a de nossos países vizinhos.
O COLAPSO DO TESTEMUNHO
É característico da vítima não poder provar que ela sofreu um dano. Um sujeito
que acusa [plaignant] é alguém que sofreu um prejuízo e que dispõe de meios
para prová-lo. Ele os perde se, por exemplo, o autor do prejuízo acontece de ser
diretamente ou indiretamente o seu juiz?5
198
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
dos que realizaram a violência e de seus aliados, o que até hoje tem cerceado
a busca de verdade e justiça. Em 2019, com a volta dos militares ao poder,
que admitem nunca ter aceitado a CNV, esse cerceamento da verdade se
radicalizou. “Este [juiz] possui a autoridade de rejeitar seu testemunho como
falso ou'a capacidade de impedir a sua publicação. Mas este ê apenas um caso
particular.”26 No Brasil, até hoje se barram as tentativas de apresentação das
provas. Os arquivos estão fechados, e os cadáveres, em boa parte, desaparecidos.
No caso dos que procuram testemunhar, eles não encontram eco na sociedade.
Mesmo a publicação ocorrendo, esses testemunhos não se tornam públicos, no
sentido de que não entram na esfera pública. Testemunhar é um ato que ocorre
no presente. Nosso presente ainda não se abriu para esses testemunhos. “De
um modo geral aquele que acusa torna-se uma vítima quando não é possível
nenhuma apresentação do dano que ele afirma ter sofrido.”27 Entre nós, é isso
que acontece; essa apresentação do dano é reprimida até o limite máximo, mas,
quando ela se dá, não ocorre a recepção do testemunho e das provas. Os meios
(a mídia e os agentes de opinião) como que fazem um trabalho de destruição
desse material: ele é ao mesmo tempo apresentado e anulado. Posto como um
resquício indesejável de um passado que deve ser considerado passado. As
portas da lei (da justiça) sequer se abrem para os processos.
199
O LOCAL DO TESTEMUNHO
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A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
Se não existe ninguém para administrar a prova, ninguém para a admitir, e/ou se a
argumentação que a sustenta é considerada absurda, aquele que acusa é indeferido,
o dano do qual ele se queixa não pode ser atestado.30
201
O LOCAL DO TESTEMUNHO
jurídico. A esfera jurídica está imobilizada. Ela não pôde ainda nos facultar o
importante local do tribunal onde os testemunhos também podem se tornar
públicos. Terminemos de ler a passagem de Lyotard:
Ele se torna uma vítima. Se ele persiste em invocar esse dano como se ele existisse
(destinador, destinatário, expert comentando o testemunho) o farão facilmente'
se passar por louco.31
A tarefa que cabia em 2009, proposta por Rosalina Santa Cruz, ainda vale
para hoje. Precisamos pôr 0 processo em processo. A luta pelo testemunho é uma
luta política que costura necessidades individuais às coletivas e às da sociedade.
Se a frase de Borges é correta, “Só uma coisa não existe, o esquecimento”,32então
devemos mostrar que essa cultura do esquecimento é apenas o outro lado de
uma cultura do encobrimento. O testemunho, com todos os seus conhecidos
limites, buracos e impossibilidades, pode ser um caminho para essa volta
do que foi e ainda é recalcado pelas nossas elites. Que o espaço testemunhai
dos diários tardios se abra para a necessária inscrição das verdades acerca da
ditadura brasileira de 1964-1985.
Notas
1 “nous sommes donc en présence d’un des nombreux cas ou celui qui exerce une fonction
est confundu avec celle-ci (cfr. Esp. Un cura, fr. Guide [...]). Peut-être pourrait-on inférer
de la coexistence des deux sens, qu’il s’agit pas à proprement dire de deux sens, mais que le
personage et son rôle ne sont pas distincts dans la conscience de 1’individu parlant” (Spitzer,
1938, P- 374)-
2 Lejeune, 2007, p. 3.
3 ‘Tautobiographie vit sous le charme de la fiction, le journal a le béguin pour la vérité”
(Lejeune, 2007, p. 3).
4 “J’aime 1’autobiographie, jaime la fiction, j’aime moins leur mélange” (Lejeune, 2007, p. 3).
3 Lejeune, 2007, p. 4.
6 Em outra passagem, Lejeune (2007, p. 8) afirma de modo peremptório, deixando entrever o
verdadeiro “perigo” que ele projeta na ficção: “Ao entrar em contato com a ficção, o diário
murcha, desmaia ou sofre uma crise de urticária. Em contato com a ficção, autobiografias,
biografias e livros de história se contaminam, carregam a ficção no sangue” (“Au contact de
la fiction le journal s’étiole, s’évanouit, ou fait une crise dúrticaire. Au contact de la fiction
les autobiographies, les biographies, les livres d’histoire sont contamines, ils ont la fiction
dans le sang”). A metáfora biológica é sintomática da visão do universo literário defendida
por Lejeune. Blanchot, na sua conhecida crítica do diário também lembrada por Lejeune no
mesmo artigo de 2007, acusa esse gênero de “proteger-se da escrita” (Blanchot, 2005, p. 270).
202
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
O pacto do diário seria com o calendário e com a verdade: o que resultaria na superficialidade
desse tipo de escrita. O diário exigiria a constatação e a prova e se oporia à profundidade da
narrativa, submetida ao acaso. Blanchot, com essa concepção, acaba mostrando-se vítima de
uma visão positivista do diário - nesse ponto ele concordaria com Lejeune -, já que atribui
a essa forma uma factografia com grau zero de ficcionalidade. Por outro lado, é justamente
a estética da superficialidade, do acúmulo de escombros, de ruínas,,o que restou de mais
“nobre” da literatura no século XX. Blanchot ainda tentou salvar uma noção de nobreza
do récit. Ele defendeu o modelo romântico da inspiração do autor {idem, p. 293) e o “espaço
fechado, separado e sagrado que é o espaço literário” {idem, p. 302). Nada disso pode ser
mais sustentado sem uma ponta de cinismo no século XX, após as vanguardas e a revelação
do suposto nobre périplo do Espírito pelo Tempo como manifestação do abjeto. Por outro
lado, é importante notar que o diário e o testemunho querem ser narrativa, mas percebem a
impossibilidade dessa narrativa. Derrida, de modo genial e irônico, percebeu como o próprio
Blanchot em sua narrativa foi um exímio autor de testemunhos (Derrida, 1998).
‘ Cru, 1929.
8 Para uma história erudita do diário, cf. Hocke, 1991.
9 O conceito de “teor testemunhai”, desenvolví em outros textos (cf. Seligmann-Silva [org.],
2003). Para tanto, parti dos conceitos benjaminianos de “teor de verdade” {Wahrheitsgehalt)
e de “teor coisal” {Sachgehalf), que ele desenvolveu em seu ensaio sobreis afinidades eletivas
de Goethe e, por outro lado, de sua famosa frase segundo a qual “não há um documento
da cultura que não seja ao mesmo tempo um documento da barbárie” (“es ist niemals
ein Dokument der Kultur, ohne zugleich ein solches der Babarei zu sein”) (Benjamin,
2010, p. 34; 2020, p. 74). Reafirmo, aqui, que considero mais produtivo estudar os traços
característicos desse teor testemunhai, que pode ser encontrado em qualquer produção
cultural, do que falar em um gênero “literatura de testemunho”. Essa expressão, por outro
lado, tem sido aplicada àquelas obras programaticamente nascidas para testemunhar
catástrofes nos séculos XX e XXI. Não considero errado falar em literatura de testemunho,
mas creio que não devemos reduzir o estudo do teor testemunhai a essa produção específica.
10 Derrida, 1991, p. 198.
11 Césaire, 2012.
12 “Le journal est une sorte d’‘installation’, qui joue sur la fragmentation et la dérive, dans une
esthétique de la répétition et du vertige très différente de celle du récit classique” (Lejeune,
2007, p. 5).
lj Idem, p. 10.
14 Lacoue-Labarthe & Nancy, 2020.
13 Benjamin, 2020, pp. 37-38.
16 Bonilla & Capiberibe, 2021.
17 Realizado em agosto de 2009 na Faculdade de Direito da USP e organizado pelo LEI-USP,
Projeto Escritas da Violência/IEL e Goethe-Institut São Paulo.
18 Por uma questão demográfica e de paralelo desenvolvimento das técnicas de guerra e de
extermínio, o século XX é de longe aquele que mais produziu assassinatos, extermínios e
violência. Ê claro que a história da humanidade pode (e deve) ser vista como uma história
de violências, mas essa situação do século XX fica ainda mais gritante, porque destoa
daquilo que o Ocidente se autoimputou, ou seja, a sua capacidade “civilizatória” do mundo.
O mundo “civilizado” exala o cheiro da podridão de cadáveres.
19 Freire; Almada & Ponce, 1997.
281 Teles; Ridenti & lokoi, 2010. O Memorial da Resistência, em São Paulo, também tem
se dedicado à coleta de testemunhos associados à ditadura de 1964-1985 em seu projeto
203
O LOCAL DO TESTEMUNHO
“Coleta Regular de Testemunhos”. Já são 155 testemunhos arquivados que podem ser
visualizados no local e, em parte, estão disponibilizados no site da instituição: chttp://
memorialdaresistenciasp.org.br/coleta-testemunhos/ >. (Informação fornecida pela diretora
do Memorial, dra. Ana Pato, em conversa particular.)
21 Cf. quanto aos estudos da literatura produzida no Brasil e ao tema da ditadura e/ou do
testemunho: Dalcastagné, 1996; Franco, 2003; Umbach, 2008; Salgueiro, 2011; Umbach &
Calegari, 2011; Seligmann-Silva; Ginzburg & Hardman, 2012; Finazzi-Agrò, 2014; Vecchi,
2014; Seligmann-Silva, 2014a; Sarmento-Pantoja; Umbach & Sarmento-Pantoja, 2014;
Salgueiro, 2017; Figueiredo, 2017. Remeto para mais dados e análises do tema, além de uma
ampla bibliografia, à tese de doutorado de Lua Gill da Cruz, Pretéritos futuros: ditadura
militar naditeratura do século XXI (Cruz, 2021).
22 Levy, 2007.
23 Sarlo, 2005.
24 No relatório da CNV lemos: “Como resultados dessas políticas de Estado, foi possível estimar
ao menos 8.350 indígenas mortos no período de investigação da CNV, em decorrência da
ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão. Essa cifra inclui apenas aqueles
casos aqui estudados em relação aos quais foi possível desenhar uma estimativa. O número
real de indígenas mortos no período deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas
uma parcela muito restrita dos povos indígenas afetados foi analisada e que há casos em
que a quantidade de mortos é alta o bastante para desencorajar estimativas” (Anexo II do
Relatório da CNV, 2014).
2:3 Lyotard, 1983, pp. 22-23.
26 Idem, ibidem.
2' Idem, ibidem.
28 Idem, ibidem.
29 Idem, ibidem.
30 Idem, ibidem.
31 Idem, ibidem.
:2 “Solo una cosa no hay, el olvido” (Borges, 1986, p. 73).
204
7
205
ANISTIA E (IN)JUSTIÇA NO BRASIL
Quando chegar 0 momento/ Esse meu sofrimento /Vou cobrar com juros. Juro!/
Todo esse amor reprimido,/Esse grito contido,/ Esse samba no escuro.
206
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
207
ANISTIA E (lN)jUSTIÇA NO BRASIL
Com efeito, a Lei de Anistia, lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979, foi ditada quando
vigorava no Brasil, formalmente, a Constituição de 1967, com a nova redação
que lhe deu a chamada Emenda Constitucional n. 1, de 1969. Essa Constituição
estabelecia expressamente, no artigo 153, que os crimes dolosos, intencionais,
contra a vida seriam julgados pelo Tribunal do Júri.7
208
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
Amélia Teles, César Teles, Janaína Teles, Edson Teles e Crimeia Almeida Teles)
contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que dirigiu a unidade do
DOI-Codi de São Paulo entre 1970 e 1974.9 No período, “houve 502 denúncias
de torturas” contra essa unidade.10 O juiz Santini Teodoro considerou que o
coronel Ustra era passível de ser réu, e não necessariamente a União. Como
o que está em jogo são “direitos humanos”, para ó juiz, esse tipo de crime é
imprescritível. Apesar de esse processo ter um caráter declaratório e não visar
à punição do membro do aparelho de repressão, trata-se sem dúvida, ainda
hoje, do maior passo já dado no Brasil, desde a decretação da Lei de Anistia,
em direção à busca da justiça referente aos desmandos da ditadura de 1964-
-1985. Esse processo trouxe mais uma vez à tona os malabarismos jurídicos
e “narrativos” dos membros do regime ditatorial. O ex-ministro Jarbas
Passarinho, em entrevista concedida à Folha de S.Paulo em 2006,“ tentou ao
mesmo tempo dizer que, diferentemente dos regimes totalitários, a tortura
no Brasil não era institucional. De fato, ela era “institucionalizada ”, ou seja,
parte integrante da instituição da ditadura, mas não institucionalizada no
sentido de ter um código legal que a justificasse integralmente: mas tampouco
nos regimes totalitários a tortura foi institucionalizada dessa forma. Sabemos
que os campos de concentração e de extermínio nunca foram propagandeados
pelos nazistas, assim como a tortura e a execução nas câmaras de gás muitas
vezes também não passavam por tribunais ou processos jurídicos. A decisão da
chamada “solução final” foi feita em uma reunião secreta, na famosa mansão
de Wansee em Berlim. Passarinho atribui o grande número de torturados e
desaparecidos na Argentina, no Uruguai e no Chile ao “sangre caliente” dos
espanhóis. Por outro lado, na mesma entrevista, Passarinho afirma que “Ustra,
jovem major, recebeu uma missão”, e que, portanto, estava submetido a seus
comandantes; logo, não seria responsável por crimes que o próprio Passarinho
afirma não haver existido. Ou seja, a tentativa de levar lado a lado o argumento
da “obediência devida” com o da inexistência da tortura revela um típico gesto
(antes de mais nada cínico) dos membros do poder que querem acobertar os
fatos a todo custo e afastar seus responsáveis do “julgamento devido”.12 Outro
argumento contraditório com relação à afirmação de que não houve violência
do lado dos agentes do regime ditatorial é o que volta a bater na tecla da Lei
de.;Anistia de 1979. Passarinho afirma que essa “foi uma anistia mútua. É
preciso reconciliação. Para reconciliar é preciso esquecer”. Esse argumento é
209
ANISTIA E (lN)jUSTIÇA NO BRASIL
Portanto, é necessário um esforço nacional para, de uma vez por todas, sepultarmos
esses fatos no silêncio da história. Não remexamos esses infernos, porque não é
bom para o Brasil. Essa conduta nos distingue dos nossos vizinhos e, assim, o
Brasil é uma sociedade reconciliada.
210
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
Uma noite, sabes?, uma moça do nosso barracão começou .a’dar gritos terríveis
enquanto dormia; logo depois, todas estávamos gritando sem saber nem por quê.
Por quê? Penso que esse som lamurioso que em algumas ocasiões - só Deus sabe
como - cruza os ares como um pássaro sem corpo é uma expressão reconcentrada
do último vestígio da dignidade humana. É a forma, talvez a única forma, que um
homem tem de deixar uma marca, de dizer aos demais como viveu e morreu. Com
seus gritos, faz valer o seu direito à vida, envia uma mensagem ao mundo exterior
pedindo ajuda e exigindo resistência. Se já não sobra nada, então devemos gritar.
O silêncio é o verdadeiro crime de lesa-humanidade.17
211
ANISTIA E (IN)JUSTIÇA NO BRASIL
-1984. Na Argentina, a “Ley de Punto Final” (n. 23.492 de 12/1986), que limitou o
período de acusação dos envolvidos na repressão militar a apenas 60 dias, teve
suas drásticas consequências radicalizadas com a “Ley de Obediência Debida”
(7/1987), que isentou de culpa todos os militares inferiores a general de Brigada.
O governo Kirchner revogou essas leis. As lutas persistentes de “Las Madres
de Plaza de Mayo”, entre outros grupos de resistência ao esquecimento oficial,
são responsáveis por essa reviravolta. É verdade, por outro lado, que existem
diferenças, entre cada um desses países. A ditadura na Argentina fraturou
muito mais profundamente aquela sociedade. O debate aqui em torno da
memória da ditadura não pode ser comparado ao que aconteceu no nosso país
vizinho. O processo em torno da Escuela Mecanica de la Armada (Esma),20 em
Buenos Aires, que levou à transformação desse gigantesco local de violação
aos direitos humanos em um memorial e centro em que funcionam diversas
entidades relacionadas aos direitos humanos, reflete a dimensão da violência
que foi exercida então pelos militares. Calcula-se que cerca de 30 mil pessoas
desapareceram nas mãos do Estado durante a ditadura naquele país. Cerca de
300 mil argentinos tiveram que se exilar.
Mas, apesar dessas diferenças, certas questões são comuns a esses países. Isso
fica patente, por exemplo, quando algumas obras literárias conseguem atingir
certas estruturas de poder, jurídicas e de memória, que são compartilhadas no
Chile, na Argentina, no Uruguai ou no Brasil. Esse é o caso da peça de Ariel
Dorfman La muerte y la doncella. Nessa obra, carrasco e vítima confroritam-
-se sob uma nova divisão de forças, com a vítima dominando a situação. Um
terceiro elemento, um advogado - recém-nomeado para fazer parte de uma
comissão que deveria levantar os casos de abuso dos direitos humanos com
consequências fatais -, e que é marido da vítima, representa de certo modo
a instância jurídica. A almejada justiça - que não pode ser confundida com
o direito e suas instituições - paira como uma promessa irrealizável na peça.
Opostas a ela, encontram-se as forças do oblívio, sugeridas, por exemplo, na
frase do personagem Gerardo, o advogado: “vamos virar essa página de uma
vez por todas e nunca mais falar sobre isso, nunca”...21 Não existe reparação:
mas a confissão e o procedimento do julgamento (mesmo sem a condenação)
representados na peça mostram que esses dispositivos têm um papel central
a desempenhar no trabalho de memória (jurídico e lutuoso) do período
ditatorial. O próprio Dorfman afirma, no posfácio de sua obra, que buscou
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
com essa peça uma purgação do terror e da comiseração” - o que faz lembrar
os tribunais sul-africanos de reconciliação idealizados pelo bispo Tutu que
visam à confissão e ao encontro catártico com o mal passado, sem, no entanto,
ter implicações propriamente penais. Essa obra de Dorfman vale para boa parte
da América Latina.
Você vai pagar, e é dobrado,/ Cada lágrima rolada/ Nesse meu penar.
213
ANISTIA E (in)jUSTIÇA NO BRASIL
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A VIRADA TESTE1MUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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ANISTIA E (lN)jUSTIÇA NO BRASIL
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
217
ANISTIA E (IN)JUSTIÇA NO BRASIL
Notas
1
Teles, 2020, p. 275.
Benjamin, 1977; Agamben, 2004.
3
Derrida, 1994.
4
Com relação ao conceito de “por e dispor”, cf. meus comentários ao ensaio de Benjamim
sobre a critica da violência (Seligmann-Silva, 2007).
5
Comparato, 1995, p. 59.
6
Idem, ibidem.
7
Dallari, 1992, p. 32.
8
Idem, ibidem.
9
Cf. o artigo de Tercio Sampaio Ferraz Júnior, “Revisão para tudo ficar como está”, que
advoga que a anistia foi “irrestritamente geral”, defendendo a não conexidade entre os
crimes dos opositores ao regime e os de seus defensores; ct. o artigo de Hélio Bicudo e Flávia
Piovesan intitulado “Direito à verdade e à justiça” (ambos publicados na Folha de S.Paulo,
2/12/2006, p. A-3). Cf. ainda o artigo de Bicudo que já apontava para essa não conexidade
(Bicudo, 1995).
10
Folha de S.Paulo, 9/11/2006, p. A-9.
11
Idem, 22/11/2006, p. A-11.
12
Por outro lado, em várias ocasiões membros do aparelho repressivo da ditadura já
reconheceram a prática da tortura, como se pode ler, por exemplo, no livro de Hélio
Cordeiro intitulado Militares - confissões. Histórias secretas do Brasil (1998), analisado por
João Roberto Martins Filho (2001). Geisel, em uma declaração que ficou famosa, também
disse que “há circunstâncias em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura, para obter
determinadas confissões e, assim, evitar um mal maior!” (apud Martins Filho, 2001, p. 109).
Na Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial, falava-se também que em uma guerra tudo
é infernal, portanto não caberia a acusação de exagero por parte dos soldados. Da mesma
forma, nas décadas posteriores, aos poucos se reconheceram os crimes, mas mais raramente
os próprios criminosos de guerra.
13
Calveiro, 2013.
14
Folha de S.Paido, 28/11/2006, p. A-3.
15
Como escreveu Marta Nehring: “Quem foi torturado nunca esquece” (Nehring, 1999,
p. 126). Cf. também as observações de Jean Améry escritas nos anos 1960, retomando
sua experiência de torturado pela Gestapo após ter sido preso distribuindo propaganda
antinazista na Bélgica ocupada. Para ele, “a dor é a intensificação mais elevada de nossa
corporeidade [Kõrperlichkeit] que podemos pensar”; nela ocorre a redução à equação “corpo
= dor = morte” (Améry, 2002, p. 615). A situação da dor extrema gera uma distância com
o mundo, no sentido de seu constructo conceituai falsamente universal, e revela a única
verdade incontestável: “Tanto quanto permanece da experiência da tortura um saber que
vai além do mero pesadelo, é o de uma grande surpresa e de uma estranheza do mundo
que não pode ser compensada por qualquer comunicação humana posterior. Um estupor
acerca da existência do outro que se afirma sem-limites na tortura - e diante daquilo em
que nós mesmos podemos nos transformar: carne e morte. [...] A ignomínia de uma tal
aniquilação não se deixa apagar. Quem foi martirizado permanece, desarmado, entregue
ao medo. É ele que a partir de então detém o cetro” (idem, p. 622).
16
“Anistia e os ossos de d. Pedro”. Folha de S.Paulo, 17/11/2006, p. A-2.
17
Rosencof, 2013, s./p.
218
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
18 A partir dessa imagem que criei aqui, um país cuja população vive em um aparente paraíso
tropical, quando está chapinhando na lama sanguinolenta de seu passado violento não
elaborado, não tenho como não remeter à poderosa obra do artista Gilvan Barreto Postcards
from Brazil. Cicatrizes da paisagem (2016-2020). Nessa obra, o artista recoleciona imagens
de propaganda da empresa Embratur, criada sob a ditadura (em 1966) com a intenção
de propagandear o idílio tropical brasileiro, sendo que ele faz pequenos recortes nessas
imagens e legenda-as com descrições de chacinas e de outros crimes cometidos pelos
agentes do governo brasileiro durante a ditadura de 1964-1985, tendo como cenário essas
paisagens “paradisíacas”.
19 Analisando a anistia de 1979, Daniel Aarão Reis Filho observou que ela gerou ao menos três
“deslocamentos de sentido”: (1) apagou-se da memória a diferença entre aqueles que lutavam
por uma revolução e os que visavam à restituição da democracia. Os revolucionários
“não tinham mesmo propósitos ou princípios democráticos” (Reis Filho, 1999, p. 134); (2)
apagou-se da memória o fato de que o regime ditatorial teve um apoio entusiástico de várias
camadas da sociedade. Aos poucos, todos foram parecendo como parte do movimento pela
democracia. Diga-se de passagem, na França também, após a guerra, era como se todos
tivessem.sido membros da resistência antinazista; (3) por fim, ele destaca que a tese da
anistia recíproca subverteu os ideais que levaram, no início dos anos 1970, a se levantar a
bandeira pela anistia. Esta veio, por fim, parcial e “recíproca”.
20 Escuela Mecanica de la Armada foi o maior dos 520 campos clandestinos de detenção que
atuaram durante a ditadura no serviço de aterrorizar e eliminar os oponentes do regime
ditatorial argentino. Cerca de cinco mil dessas pessoas passaram pela Esma.
21 Dorfman, 1992, p. 63. Poucas páginas antes, lemos, no texto da peça, a seguinte fala do
mesmo personagem, marido da ex-torturada Paulina, dirigindo-se ao algoz: “Eu acho que
entendo a necessidade de Paulina. Coincide com a necessidade que o país inteiro tem. É a
necessidade de pôr em palavras o que aconteceu conosco” (idem, p. 59). Dorfman, com essa
peça, que elegeu personagens paradigmáticos da cena histórica - e dramática: a tragédia
nas suas origens tinha três atores -, expressa a necessidade de um acerto com um passado
onipresente nos países da América Latina pós-ditadura.
22 Dorfman, 1992, p. 87.
23 Arendt, apud Idoeta, 1995, p. 76.
24 Derrida, 2005a, p. 19. Para ser mais exato, é necessário lembrar que a expressão “crime
contra a humanidade” já havia sido cunhada após a Primeira Guerra Mundial para se referir
ao primeiro grande genocídio do século XX, o dos armênios, perpetrado pelos turcos. Já
o conceito de genocídio foi criado por Rafael Lemkin durante a Segunda Guerra Mundial.
Nos tribunais de Nuremberg, a maior parte das acusações não se referia ao genocídio dos
judeus; no entanto, foi no seu âmbito que se tentou pela primeira vez “definir e punir crimes
contra a humanidade sob leis internacionais e estabelecer certas ações como criminosas,
independentemente das leis do país onde foram praticadas. Mais avanços no sentido de
colocar crimes contra a humanidade e direitos civis numa posição de proeminência nas
leis internacionais foram feitos em 1948, quando as Nações Unidas aprovaram a Convenção
de Genocídio e a Declaração dos Direitos Humanos” (Bartov; Grossmann & Nolan, 2005,
p. 13. Grifos meus).
2j Nietzsche, na sua Genealogia da moral, pensou a soberania como um conceito-limite. Para
ele, o todo-poderoso (Mãchtigsten) é o único capaz de decretar o perdão (Nietzsche, 1988b,
p, 309). Nesse ato altruísta ele exerce e impõe seu poder, salvando a vida matável. Esse
fato aponta para o “ser-excepcional" do estado de direito, ou seja, para a verdade de que o
estado de exceção habita o interior do estado de direito e não lhe é estranho. Mais adiante,
219
ANISTIA E (lN)jUSTIÇA NO BRASIL
na mesma obra, Nietzsche formula: “É preciso mesmo admitir algo ainda mais grave: que,
do mais alto ponto de vista biológico, os estados de direito não podem senão ser estados de
exceção [Ausnahme-Zustãndé], enquanto restrições parciais da vontade de vida que visa ao
poder, a cujos fins gerais se subordinam enquanto meios particulares: a saber, como meios
para criar maiores unidades de poder” (Nietzsche, 1998, p. 65, correspondendo a Nietzsche,
1988b, p. 312 e ss.).
26 Cf. Freud, 1914.
27 Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho
Que morama escuridão do mar
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento?
Só queria lembrar 0 tormento
Que fez meu filho suspirar
Quem é essa mulher
Que canta sempre 0 mesmo arranjo?
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar
Quem é essa mulher
Que canta como dobra um sino?
Queria cantar por meu menino
Que ele não pode mais cantar.
28 Sérgio Rezende. Zuzu Angel. Filme baseado na história real da estilista mineira Zuleika
Angel Jones (1921-1976), 2006.
29 É importante destacar que, em 2014, foi fundado na Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp) o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), coordenado pelo
professor Edson Luís de Almeida Teles, voltado a pesquisas nas áreas dos direitos humanos
e que tem como uma de suas tarefas centrais o trabalho de reconhecimento e conservação
de ossadas de mortos não identificados da época da ditadura de 1964-1985. No site do Caaf
lemos sobre especificamente o “Grupo de Trabalho Perus”, que leva a cabo essa tarefa: “O
Grupo de Trabalho Perus foi criado em 2014 com o objetivo de fazer a análise das 1.049
caixas com remanescentes humanos que foram encontrados na Vala de Perus. O trabalho
visa identificar 41 desaparecidos políticos cujas histórias indicam que foram colocados
nesse local, nos anos 70, como modo de encobrir as graves violações de direitos humanos
dos governos militares. Atualmente no Caaf acontecem os processos de limpeza dos
remanescentes humanos, análise antropológica e coleta de amostras ósseas para exames
genéticos. Com uma equipe multidisciplinar, temos dialogado com uma postura inclusiva
muito presente na Antropologia Forense Latino-Americana. Neste projeto buscamos por
pessoas desaparecidas, buscamos histórias, memórias, dignidade. Buscamos reconstruir
um pedaço da história de nosso passado recente. Para que não se esqueça. Para que nunca
mais aconteça” (Disponível em <https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/projetos/grupo-de-
-trabalho-perus>. Acesso em 24/3/2021. Desnecessário dizer que, sob o governo Bolsonaro,
essa instituição tem sofrido cortes de verba e todo tipo de perseguição.
30 É interessante confrontar essa letra de Chico Buarque com o poema de Paul Celan
“Nãchtlich Geschürzt” (“De noite arrepanhados”, na tradução de João Barrento). Celan tem
uma poética derivada, em grande parte, de sua experiência de sobrevivente das atrocidades
do nazismo, sendo que ele perdera seus pais em campos de concentração. A diferença entre
220
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
as poéticas desses dois poetas é clara: Buarque cria um poema com uma temporalidade
estendida e não concentrada e espacializada, como Celan. Em Buarque, os espaços privado
e público encontram-se em um drama político; já em Celan, a poesia tende para uma
mise en abytne que nos faz oscilar entre a referência histórica e a força de suas imagens
poéticas. Mas o confronto é interessante, na medida em que colocamos lado a lado duas
potentes artes da memória poéticas de duas barbáries do século XX. Ambos os poetas
buscam criar pelas palavras um espaço para os seus “desaparecidos”, ambos podem ser
incluídos na literatura do trauma que se desenvolveu no século XX em função de suas
inúmeras catástrofes (cf. “Literatura e trauma: um novo paradigma”, M. Seligmann-Silva,
2018, pp. 63-80): “De noite, arrepanhados/ os lábios das flores,/ cruzados e entrelaçados/
os fustes dos abetos,/ encanecido o musgo, estremecida a pedra,/ desperta para o voo
infinito/ as gralhas sobre o glaciar:// estas são as paragens onde/ descansam aqueles que
surpreendemos:// eles não irão nomear a hora,/ nem contar os flocos,/ nem seguir as águas
até o açude.// Estão separados no mundo./ cada um com a sua noite./ cada um com a sua
morte,/ rudes, de cabeça descoberta, cobertos de geada/ de pertos e longes.// Pagam a culpa
que animou a sua origem,/ pagam-na com uma palavra/ que existe injustamente, como
o verão.// Uma palavra - bem sabes:/ um cadáver.// Vamos lavá-lo,/ vamos penteá-lo,/
vamos voltar-lhe os olhos/ para o céu” (“Nãchtlich geschürzt/ die Lippen der Blumen,/
gekreuzt und verschrãnkt/ die Schãfte der Fichten,/ ergraut das Moos, erschüttert der
Stein,/ erwacht zum unendlichen Fluge/ die Dohlen über dem Gletscher:// dies ist die
Gegend, wo/ rasten, die wir ereilt:// sie werden die Stunde nicht nennen,/ die Flocken nicht
zãhlen,/ den Wassern nicht folgen ans Wehr.// Sie stehen getrennt in derWelt,/ einjeglicher
bei seiner Nacht,/ ein jeglicher bei seinem Tode,/ unwirsch, barhaupt, bereift/ von Nahem
und Fernem.// Sie tragen die Schuld ab, die ihren Ursprung beseelte,/ sie tragen sie ab an
ein Wort,/ das zu Unrecht besteht, wie der Sommer.// Ein Wort - du weisst:/ eine Leiche.//
Lass uns sie waschen,/ lass uns sie kãmmen,/ lass uns ihr Aug/ himmelwãrts wenden")
(Celan, 1996, p. 56 e ss.).
8
DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO:
PENSANDO UMA ESCRITA DA HISTÓRIA
CRÍTICA COMO RESISTÊNCIA AO APAGAMENTO
223
DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO
***
224
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
exceção, que é radicalizado nos momentos em que o país vive uma ditadura,
quando efetivamente se declara um estado de sítio e se suspende o habeas
corpus, é mantido no Brasil na área dos direitos humanos mesmo após o fim
oficial da ditadura, uma vez que, no campo da memória, predominam quer a
amnésia, quer o edulcorar do período ditatorial; no campo áa verdade, a nossa
Comissão Nacional da Verdade não teve a força necessária para se impor e
efetivamente aprofundar mais a verdade sobre aquele período; e, por fim, no
campo jurídico, tampouco se suspendeu o estado de exceção no que tange
ao período da ditadura. Corpos ainda estão desaparecidos; processos não se
dão; criminosos, terroristas de estado estão livres e são alçados à categoria de
modelos morais.
Contra essa política do esquecimento e do “memoricídio”, ou do
“inexistencialismo ”, para falarmos com Vidal-Naquet,8 e no contexto dessa
guerra de imagens, que infelizmente, no Brasil, até agora foi vencida pelos
algozes e seus associados, temos preciosos livros que se somam a uma
importante bibliografia sobre esse período e sobre a sua memória. Recordo,
por exemplo, três livros recentemente publicados e que tratam do tema: de
Desirée de Lemos Azevedo, Ausências incorporadas: etnografiaentre familiares
de mortos e desaparecidos políticos no Brasil;9 de Liliana Sanjurjo, Sangue,
identidade e verdade: memórias sobre o passado ditatorial na Argentina;'0 e de
Danielle Tega, Tempos de dizer, tempos de escutar: testemunhos de mulheres
no Brasil e na Argentina." Esses três livros se originam de teses de doutorado
defendidas nos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. O foco das autoras é a
memória, sobretudo a memória testemunhai: Desirée se volta para a etnografia
com os familiares de mortos e desaparecidos no Brasil, analisando a construção
dessa categoria social de familiares, suas narrativas e performances de grupo.
Liliana se debruça, especificamente no caso argentino, sobre a relação entre
identidade biológica e identidade política, notando como, a partir do caso dos
filhos de desaparecidos, o DNA torna-se uma poderosa instituição do político
e da política. Já Daniella tem um recorte que une estudos de testemunho da
ditadura com estudos de gênero: ela analisa as narrativas de mulheres no Brasil
e na Argentina no contexto das lutas pelos direitos humanos.
í Sabemos que o Brasil é um país onde os direitos humanos não se
enraizaram como parte da política de Estado. Aqui, políticos no poder falam
225
DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO
226
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
direitos humanos, que só podemos olhar com admiração. Mas, por outro lado,
o desafio neoliberal (com sua necropolítica, sua política da amnésia quando se
trata dos crimes contra a humanidade) é o deles (sob o governo Macri, 2015-
-2019) e é o nosso também. Assim, Jorge Alemán, no seu prólogo a esse livro,
recorda que nossos estados neoliberais implantam uma política de morte que
entroniza o esquecimento matando as populações duas vezes, eliminando-
-as e apagando suas histórias. Os “dispositivos neoliberais de produção de
subjetividade”14 são totalmente alheios à lógica do testemunho, ao double bind
de sua necessidade e de sua impossibilidade de inscrição. Em vez das imagens
precárias típicas da inscrição testemunhai do terror, o sistema reduz tudo a
números. A operação seguinte é negar esses próprios números. Mas Jorge
Alemán destaca também o local excepcional do qual a Argentina parte nessa
que eu gostaria de chamar agora de era dos negacionismos. Ela deu lugar a um
“sujeito político sem precedentes”15 a partir das lutas pelos direitos humanos.
Para pensar essa memória e o testemunho na era neoliberal, as organizadoras
enfatizam, na abertura do livro, que ele leva a marca da interdisciplinaridade:
elas procuraram fazer um trabalho “entre as dimensões continentes do
testemunho e dos arquivos, no seu cruzamento interdiscursivo com a
psicanálise, as políticas públicas de memória, a antropologia, a arquivística, a
teoria crítica, o direito, as manifestações artísticas, entre outras”.16
No início do primeiro capítulo, “Território da palavra. O sacro e a ética
do silêncio”, Silvia Delfino já coloca o desafio de pensar o testemunho, o
território da palavra, os “modos como a topologia do terror se imprime no
corpo”, em meio às “lutas coletivas de resistência contra o silenciamento e,
de modo correlato, às lutas pelo ato de testemunhar”.17 Ela destaca, nesse
sentido, o trabalho do Centro de Assistência às Vítimas de Violações de
Direitos Humanos “Dr. Fernando Ulloa”, da Secretaria de Direitos Humanos
do Ministério da Justiça, que teve como diretora entre 2010 e 2014 Fabiana
Rousseaux. O trabalho desse centro extrapolou o delicado cuidado das vítimas
de delitos de lesa-humanidade, na medida em que percebeu a relação desse
trabalho com os processos desencadeados no campo jurídico e, mais além,
articulando-o à “imperiosa necessidade de instalar um debate público acerca
das consequências do terror de Estado não como fatos do passado, nem
como um problema das vítimas, mas como de toda a sociedade presente”.18
É justamente esse passo que se faz necessário no Brasil até hoje, já que, em
227
DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO
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A VIRADA TESTEMUNHAI E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
pensamento crítico. Aquela é feita para ensinar a matar. Nesse capítulo, ainda
conhecemos muitos outros éditos, como o que passa as atribuições do Banco
Central para a Febraban e o da Nova Ordem do Ensino Superior que “fundiu
os Ministérios da Educação da Cultura e do Esporte num só da Formação
Moral e Cívica”, que fechou as universidades federais (conrexceção dos cursos
de economia agrícola e veterinária), extinguiu as disciplinas de sociologia
e política, psicologia, literatura, história, geografia, antropologia “e línguas
estrangeiras, exceto o hebraico”,39 além de ter instituído o ensino a distância,
acabado com as cotas raciais e com todos os programas de financiamento
estudantil. Ao final do capítulo, um coronel, com uma pistola em punho, leva
os professores para a borda de uma enorme cova. Um pelotão de fuzilamento
metralha todos, e, em seguida, os soldados empurram com os pés os corpos
dos ilustres acadêmicos para dentro do buraco. O coronel pula dentro da vala
comum e dá tiros de misericórdia na cabeça daqueles que ainda dão sinal de
vida. É clara a semelhança dessa cena com o que aconteceu a partir de junho
de 1941 à população judaica, que vivia na União Soviética, durante a Operação
Barbarossa, por parte de soldados SS associados a Einsatzgrüppe (comandos
móveis de assassinato). Também nessa ocasião os fuzilamentos eram realizados
ao lado de covas coletivas, e a frieza que emana da ação descrita nesse primeiro
capítulo ecoa esse outro genocídio, frequentemente recordado por Kucinski. A
mensagem é clara: vivemos um fascismo redivivo.
Como já se percebe com a apresentação desse primeiro capítulo, a técnica
literária de Kucinski nessa obra consiste em duplicar a realidade para provocar
um estranhamento. O que lemos em suas notas, a sucessão de éditos absurdos,
é a transcrição, quase literal em alguns casos, dos decretos-lei ou das propostas
que circulam na esfera do poder em Brasília. A duplicação irônica permite um
distanciamento crítico, estranhar o estranho, ou seja, criticar a naturalização
da barbárie. No âmbito da construção narrativa, a história evidentemente
envereda pelo ficcional com mais soltura, mas os fatos igualmente absurdos
aí narrados não deixam de duplicar novamente o que ocorre em volta de nós,
hoje, mesmo que com tons talvez mais acentuados. Não estamos diante da
alegoria, mas de um tipo de realismo decantado de uma situação histórica ela
mesma marcada pela repetição, na forma da farsa, para falar com Marx. Isso,
evidentemente, só traz mais combustível para a máquina literário-irônica do
autor.
23/
DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO
238
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
239
DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO
240
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
Essa passagem talvez seja uma alusão distante ao projeto do então prefeito
João Doria, de São Paulo, em 2017, de introduzir ração humana de farinata para
distribuir para famílias carentes.
Mas Ariovaldo e seus experimentos não conseguem consumir todo o
exército de sobrantes dessa sociedade tão sobriamente estruturada para poucos.
Instituem-se, então, os campos de trabalho para moradores de rua. O general
sugere batizar essa operação de Ação Solidária, e justifica:
241
DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO
242
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
243
DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO
Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo “como ele foi de fato”.
Significa apoderar-se de uma recordação, tal como ela relampeja no instante de
um perigo. Para o materialismo histórico, trata-se de capturar uma imagem do
passado tal como ela, no instante do perigo, configura-se inesperadamente ao
sujeito histórico. O perigo ameaça tanto a sobrevivência da tradição quanto os
seus destinatários. Para ambos, ele é um e o mesmo: entregar-se como ferramenta
da classe dominante. Em cada época, deve-se tentar novamente liberar a tradição
de um novo conformismo, que está prestes a subjugá-la. Pois o Messias não vem
apenas como Redentor, ele vem como o vencedor do Anticristo. Apenas tem o dom
de atiçar no passado aquelas centelhas de esperança o historiógrafo atravessado
por esta certeza: nem os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse
inimigo não tem cessado de vencer.57
Notas
244
A VIRADA TESTEMUNHAI E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
que seria construída, passando pelos mitos germânicos medievais, os Nibelungos e sua
reapropriação wagneriana. Também Bolsonaro e seus seguidores são praticantes da arte do
esquecimento e do memoricídio. Para lembrar apenas de uma fala exemplar nesse sentido,
recordo que em 30/7/2018, no programa televisivo Roda Viva, ele atribuiu aos negros o
tráfico negreiro a partir da África: “O português nem pisava na África. Eram os próprios
negros que entregavam os escravos”.
8
Vidal-Naquet, 1987, p. 14.
9
D. de L. Azevedo, 2018.
10
Sanjurjo, 2018.
11
Tega, 2019.
12
Nesse sentido, Achille Mbembe recordou as palavras do teórico francês da colonialidade
do final do século XIX Jules Ferry: ‘“É preciso dizer francamente que de fato as raças
superiores têm mais direitos que as raças inferiores’. A Declaração dos Direitos do Homem
não ‘foi escrita pelos Negros da África Equatorial’” (Ferry, apud Mbembe, 2017, p. 135).
13
Rousseaux & Segado, 2018.
14
Idem, p. 6. '
15
Idem, p. 7.
16
Idem, pp. 9-10.
17
Idem, p. 14.
18
Idem, p. 15.
19
A Clínica do Testemunho foi estabelecida a partir de um projeto da Comissão de Anistia
do Ministério da Justiça do Brasil entre 2013 e 2016.
20
Macri, 2016.
21
Rousseaux & Segado, 2018, p. 27.
22
Idem, p. 28.
23
Idem, ibidem.
24
Idem, p. 29.
25
Idem, p. 30.
26
Idem, p. 32.
Idem, p. 35.
28
Idem, p. 39.
29
Idem, p. 43.
30
Idem, ibidem.
31
Kucinski, 2011, p. 13.
32
“Beau et vrai, vrai comme seule la fiction peut l’être” (Lèvinas, 1998, pp. 103-104).
33
“Ce texte... traduit une expérience de la vie spirituelle profonde et authentique” (Lèvinas,
2003, p. 74).
34
Quanto a essa obra de Kolitz, remeto ao meu artigo: “O testemunho entre a ficção e o ‘real’”
(Seligmann-Silva, 2016, pp. 371-385).
35
Trata-se, é importante destacar, de um encobrimento perverso. Pois os entusiastas da
ditadura elogiam abertamente torturadores e, aqui e ali, reconhecem essa prática como
parte do regime e de seus meios. O elemento perverso está em encobrir, mostrando, em
negar, afirmando, e em desautorizar, autorizando. O negacionista, já para Ferenczi em seu
conceito de Verleugnung (desmentido), é aquele que desautoriza, nega a voz do testemunho,
instituindo, assim, o espaço do trauma. Cf. Ferenczi, 1992; Osmo, 2018.
36
Kucinski, 2019, p. 15.
37
Antelme, 1957.
38
Idem, 1994, p. 110.
M5
DO REVISIONISMO AO NEGACIONISMO
39
Kucinski, 2019, P-18.
40
Idem, p. 24.
41
“Dort wo man Bücher verbrennt, verbrennt man auch am Ende Menschen” (Heinrich
Heine). Nessa ocasião, deu-se o famoso discurso de Goebbels sobre a revolução cultural-
-política nazista. Vale a pena lembrar essas palavras para vermos em que medida o
presidente Bolsonaro deve ser colocado nessa linhagem de políticas: “Meus colegas
estudantes! Homens e mulheres alemães! A era do intelectualismo judaico exagerado
acabou, e o avanço da revolução alemã também abriu caminho para a via alemã. [Cf. a
ideologia bolsonarista que comemora o fim do marxismo globalista.] A partir de 30 de
janeiro deste ano o movimento Nacional Socialista conquistou o poder, naquela época não
poderíambs saber que a Alemanha poderia ser limpa tão rápida e radicalmente. A revolução
que estourou naquela época - agora podemos admitir francamente - foi preparada por
nós por um longo tempo. E se alguém se admira hoje que estamos fora da lei, por assim
dizer demos um chute nela: não é à toa, porque nós só precisamos transpor para a prática
a legalidade de nosso movimento”. Disponível em <https://www.nibis.de/uploads/igohrgs/
za2Oi8/oiDeutschHinweise2oi8-4.pdf>. Acesso em 30/3/2021. Esse mesmo gesto de forçar as
leis até o extremo, no caso, o desejo de queimar a Constituição de 1988, explicita-se agora
a cada semana com novas tentativas de instalar um estado de exceção ditatorial, fechando
o Congresso e o STF.
42
Kucinski, 2019, p. 38.
Idem, p. 83.
44
Idem, p. 90.
45
Idem, p. 102.
46
Idem, p. 111.
47
Idem, p. 124.
48
Idem, p. 125.
49
Idem, ibidem.
50
Mas essa ordem de idéias não deixa de ecoar o discurso na era bolsonarista, uma vez
que, durante a pandemia, a deputada Janaína Paschoal sugeriu privilegiar os mais jovens
quando se tratasse de auxílio hospitalar (ela escreveu em sua conta no Twitter no dia
27/3/2021: “Eu me preocupo com todas as vidas! Mas as vidas daqueles que viveram menos
me preocupam mais. Aliás, penso que já estejamos no momento de estabelecer claramente
regras para priorizar o uso dos recursos disponíveis: leitos, respiradores, etc. É pesado,
mas é necessário!”). Por sua vez, a apresentadora Xuxa Meneghel sugeriu, no mesmo dia,
em uma live da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, que se utilizassem
os prisioneiros para testar remédios, já que assim “acho que pelo menos eles serviríam
para alguma coisa antes de morrer, entendeu?”. Ambas as idéias caberíam muito bem no
romance de Kucinski. O problema é que, na atual conjuntura, está1 difícil acompanhar as
atrocidades da realidade, por mais criativo que seja o escritor.
51
Kucinski, 2019, p. 128.
52
Idem, p. 126.
53
Ao escrever essa passagem podemos especular se o autor estava pensando em outra das
declarações bastante problemáticas que o então candidato fez quando de sua infamosa
fala na Hebraica Rio em 3/4/2017: “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve
lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais.
Mais de Rs 1 bilhão por ano é gasto com eles". “Se eu chegar lá [na Presidência], não vai
ter dinheiro pra ONG. Esses vagabundos vão ter que trabalhar. Pode ter certeza que se eu
chegar lá, no que depender de mim, todo mundo terá uma arma de fogo em casa, não vai
246
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”. Essa promessa
de genocídio indígena e de afrodescendentes concretizou-se ao longo da pandemia de
modo acelerado, como inúmeros estudos têm observado. Não podemos esquecer que, para
os adeptos do supremacismo, a ideia de “diversidade” implica, de modo paranoico, o “fim
dos brancos”. A profusão de símbolos e gestuais supremacistas nesse governo é parte de
sua assumida necropolítica.
04 Kucinski, 2019, p. 129.
35 Idem, p. 164.
36 Levi, 1988, p. 135.
3/ Benjamin, 2020, p. 70.
247
9
GRANDE SERTÃO: VEREDAS COMO GESTO
TESTEMUNHAL E CONFESSIONAL
Michel Foucault, nos anos 1970, insistiu muito no papel da confissão como
uma técnica específica, poderiamos dizer, como um dispositivo de construção
da verdade e do indivíduo. “Desde a Idade Média, pelo menos” - ele escreveu
no primeiro volume de sua História da sexualidade “as sociedades ocidentais
colocaram a confissão entre os rituais mais importantes de que se espera a
produção da verdade”.1 Com efeito, nossa sociedade está marcada pela confissão
e isso, nota ainda Foucault, não apenas no âmbito religioso e jurídico, mas
também
249
GRANDE SERTÃO: VEREDAS COMO GESTO TESTEMUNHAL E CONFESSIONAL
250
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
251
GRANDE SERTÃO: VEREDAS COMO GESTO TESTEMUNHAL E CONFESSIONAL
tem sido feito na teoria literária, mas repensar esses conceitos, com a ajuda
da psicanálise e da filosofia. Vamos perscrutar a confissão e o testemunho
como gestos, como traços que permitem iluminar essa obra roseana. Vamos
observar o que resta do testemunho e da confissão nesse romance. Trata-se
também de ver esse romance como uma performance da memória e do ato de
recordação: Se atos literários testemunhais tiveram momento desde o século
XVIII, foi no século XX que assistimos ao surgimento de uma literatura com
forte teor testemunhai. Não diria que existe a partir de então um novo gênero,
a literatura de testemunho, mas, antes, que nesse século tanto se desenvolveu
uma literatura com forte teor testemunhai, quanto, por outro lado, aprendemos
a ler nos documentos de cultura traços, marcas da barbárie.7 O excesso de
catástrofes impingidas pelas nossas próprias mãos - nesse século, cerca de 140
milhões morreram por atos bárbaros em guerras, genocídios e perseguições -
gerou uma necessidade de testemunho.
Guimarães Rosa conseguiu canalizar para seu romance de 1956 as fantásticas
forças retóricas tanto da confissão como do testemunho.8 Riobaldo narra suas
memórias a um paciente senhor. O romance é o teatro de suas memórias, e o
fio que mantém toda a tensão da trama é o relacionamento amoroso, posto
como condenável, entre ele e Diadorim. O segredo é apenas revelado no final
da narrativa-confissão-testemunho. O ponto de vista subjetivo, do narrador em
primeira pessoa, que apresenta, por um lado, o que viu e, por outro, o que viveu,
suas emoções e seus sofrimentos, é apresentado de modo exemplar por Rosa na
expressão de Riobaldo: “Coisas que vi, vi, vi -oi...”.9 Ver e viver fundem-se aqui.
O romance contém tanto elementos confessionais quanto o testemunho em suas
duas faces: a de testemunho ocular, testis, e a de testemunho como tentativa
de apresentação do inapresentável, superstes. O senhor a quem ele se dirige é
uma construção complexa e essencial na situação testemunhai e confessional.
Trata-se de um “outro”. Esse outro vai tornar-se testemunha secundária das
histórias. Daí a expressão recorrente na pontuação do texto, quando o narrador
se volta para esse senhor e afirma: “Mire veja”. Nós todos estamos mirando e
vendo, traduzindo o teatro de palavras em imagens. Toda confissão deve voltar-
-se para uma outra pessoa. Também no caso do testemunho esse outro-ouvinte
é absolutamente fundamental. A catarse testemunhai é passagem para o outro
de um mal que 0 que testemunha carrega dentro de si. Para fazer 0 trabalho
do trauma exige-se uma espécie de trabalho de luto da experiência sofrida:
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
um enterro ritual do passado que muitas vezes inclui mortos, como é o caso
da narrativa de Riobaldo, com sua longa vida de jagunço sendo desfiada diante
do “senhor” e que também porta o luto pela morte de Diadorim.
253
GRANDE SERTÃO: VEREDAS COMO GESTO TESTEMUNHAL E CONFESSIONAL
comandado tanto pelo princípio das afinidades eletivas como por exigências
emocionais. Uma porta em um hic et nunc permite que se escorregue para
outro lugar-tempo, como no túnel em que cai Alice e que a leva ao País das
Maravilhas, ou nas portas de Matrix. A contiguidade é uma função qualitativa e
não quantitativa. Assim lemos em uma das referidas passagens metanarrativas
uma clara teoria do que se passa no próprio livro:
254
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
Não devia de estar relembrando isto [ou seja, a paixão por Diadorim], contando
assim o sombrio das coisas. Lenga-lenga! Não devia de. O senhor é de fora, meu
255
GRANDE SERTÃO: VEREDAS COMO GESTO TESTEMUNHAL E CONFESSIONAL
amigo mas meu estranho. Mas talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim,
que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que
eu falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente
perverte sempre por arredar mais de si. Para isto é que o muito se fala?21
Aqui temos um homem - ele tem de recolher na capital o lixo do dia que passou.
Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou,
tudo o que destruiu, é reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão,
o cafarnaum da escória; separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede
como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas
da deusa indústria, vai adotar a forma de objetos úteis ou agradáveis.23
256
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
257
GRANDE SERTÃO: VEREDAS COMO GESTO TESTEMUNHAL E CONFESSIONAL
Mas o que logo se soube, e disso se falou, era em duas partes: que a Maria Mutema
tivesse tantos pecados para de três em três dias necessitar de penitência de coração
e boca; e que o Padre Ponte visível tirasse desgosto de prestar a ela pai-ouvido
naquele sacramento, que entre só dois se passa e tem de ser por ferro de tanto
segredo resguardado.25
258
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
259
GRANDE SERTÃO: VEREDAS COMO GESTO TESTEMUNHAL E CONFESSIONAL
Mutema, de certo modo, mostrou uma iterabilidade desse gesto que, para
Santo Agostinho, seria irrepetível. Ela busca uma suplementação fálica para
construir sua aliança de carne com Deus. Mutema encontrou de fato dois falos
que ela como que sacrificou, castrou, para com eles conquistar suas alianças
de carne e assinar o pacto de fé e sua confissão. Sua história mostra como a
confissão é um phármakon amargo-doce que pode tanto matar como salvar.
Essa relação entre falo como órgão genital masculino e o ato de fala apenas
explicita o aspecto falocêntrico do testemunho e da confissão. O testemunho,
sobretudo em seu sentido de testemunho de um terceiro, do testemunho
260
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
261
GRANDE SERTÃO: VEREDAS COMO GESTO TESTEMUNHAL E CONFESSIONAL
262
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
mesmo já desconfiava de que seu interlocutor achava que o que narrava era
falso. Derrida, vimos acima, foi um dos pensadores que melhor formulou essas
idéias: “uma confissão não tem nada a ver com a verdade”,36 “uma circonfissão
é sempre simulada”,37 ele sentenciou. E ainda constatou:
263
GRANDE SERTÃO: VEREDAS COMO GESTO TESTEMUNHAL E CONFESSIONAL
Notas
! Foucault, 1988, p. 8.
2 Idem, p. 59.
3 Idem, ibidem.
4 Benveniste, 1995, p. 277.
5 Se na confissão existe um despimento metafórico que muitas vezes, simbolicamente, torna-se
literal, na cena do testemunho/da confissão arrancados à força, frequentemente essa nudez
é parte da estratégia de humilhação e de tortura na busca da “verdade”. Espera-se extrair
a verdade do indivíduo submetido à humilhação do desnudamento público.
6 Santo Agostinho, 1987, p. 221.
7 Remeto, aqui, à nota 9 do capitulo 6 deste livro, “O local do testemunho”, em que desenvolvo
o conceito de “teor testemunhai”.
8 Neste texto analiso os aspectos da performance testemunhai e confessional do romance de
Rosa, sem levar em conta a relação do teor testemunhai dessa obra com a sua vida e a sua
época. Pesquisas nesse sentido têm sido feitas por Jaime Ginzburg (2009). Outro autor
muito propício para um estudo tanto dessa performance quanto da relação entre sua vida
e o teor testemunhai é Graciliano Ramos.
9 Rosa, 1980, p. 54.
10 Idem, p. 108.
11 Idem, p. 173.
12 Idem, p. 67.
13 Idem, p. 52.
14 Idem, p. 77 e ss.
15 Idem, p. 109.
16 Idem, p. 112.
*' Idem, p. 27.
18 Idem, p. 41.
19 Idem, p. 331.
20 Idem, p. 166.
21 Idem, p. 33.
“ Idem, p. 134.
23 Benjamin, 1989, p. 78.
24 Mas vale notar também que tanto no gesto do autor implícito de Grande sertão como
no do gestor de testemunhos, existe uma violência em jogo: uma hierarquia produzida
264
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
por uma diferença de saberes e de domínio de códigos e também pelo lugar que o gestor
e o colecionador de logoi ocupam na sociedade. Trata-se de uma “tradução” (criativa/
criadora) de um código oral para o da escrita e nessa transposição tudo é transformado.
É importante não deixar escapar essa ambiguidade que marca a figura desse criativo e
estranho colecionador de histórias: ele é compassivo e violento.
25 Rosa, 1980, p. 171. ?
26 Esse padre, que de imediato reconhece quem é Mutema e já sabe de seus pecados, é sem
dúvida um duplo do padre de O processo - uma das obras mais brilhantes sobre as aporias
do direito e de suas instituições, como a própria confissão - que chama Josef K. pelo nome,
quando este está só na igreja, e mostra saber toda a sua história.
Rosa, 1980, p. 172.
28
Idem, ibidem.
29
Epist. 23, 4, apud Chrétien, 2002, p. 238.
30
Margalit, 2002, p. 176.
31
Rosa, 1980, p. 205.
Idem, p. 204.
33
Idem, p. 208.
34
Idem, p. 209.
35
Idem, p. 213.
36
Derrida, 1991b, p. 103.
37
Idem, p. 120.
38
Idem, 1998, p. 28.
39
Portanto, podemos apenas especular sobre esses não ditos e desditos de Riobaldo
testemunha e confessor. Evidentemente, proponho um novo jogo de leitura, que leva em
conta esse elemento de construção do relato testemunhai e confessional. Não se trata de
modo algum de dizer que Diadorim era “na verdade” um homem, pois de qualquer maneira
toda verdade aqui é fictícia. Mas, dentro dessa ficção, é possível colocar essa hipótese de
leitura acerca do “falso testemunho” de Riobaldo. Pode-se, inclusive, pensar também que
ele “de fato” possui essa memória do corpo revelado de Diadorim como um corpo feminino,
afálico: essa memória pode ser uma alucinação, um delírio ou uma construção posterior,
como uma memória encobridora da “verdade” do corpo de seu amado. Essas hipóteses
podem ser sustentadas dentro dessa poética que apresentei aqui, mas tudo fica em suspenso,
pois trata-se de “verdades da ficção”.
40
Rosa, 1980, p. 560.
41
Nesta passagem introduzo um jogo entre a ideia de sobre- ou supertestemunhar e o
conceito de infertilidade. Como vimos, Benjamin, em seu Rua de mão única, escreveu que
“Überzeugen ist unfruchtbar’, ou seja, “convencer é infecundo”, sendo que Überzeugen pode
ser lido de modo analítico como uma palavra-valise significando supergerar, supercriar,
superfecundar. Zeugen tem estes dois sentidos: testemunhar e fecundar.
265
10
VIOLÊNCIA, ENCARCERAMENTO,
(in)justiça: MEMÓRIAS DE HISTÓRIAS
REAIS DAS PRISÕES PAULISTAS
267
VIOLÊNCIA, ENCARCERAMENTO, (iN)jUSTIÇA
E não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais
radicalmente desmentidas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras,
a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela batalha material
e a experiência moral pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num
bonde puxado por cavalos encontrou-se desabrigada, numa paisagem em que nada
permanecera inalterado, exceto as nuvens, e, debaixo delas, num campo de forças
de torrentes e explosões destruidoras, o frágil e minúsculo corpo humano?
268
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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VIOLÊNCIA, ENCARCERAMENTO, (iN)jUSTIÇA
2/0
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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VIOLÊNCIA, ENCARCERAMENTO, (lN)jUSTIÇA
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VIOLÊNCIA, ENCARCERAMENTO, (iN)jUSTIÇA
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VIOLÊNCIA, ENCARCERAMENTO, (lN)jUSTIÇA
278
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
Como o também autor de rap Jocenir escreveu (ao modo de uma letra
de música): “Cada detento uma mãe, uma crença, cada crime uma sentença,
cada sentença um motivo, uma história de lágrimas, sangue, vidas inglórias,
abandono, miséria, ódio, sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo”. E
ele arremata: “Traduzia o cárcere com um lápis”.45 Esses textos são parte da
literatura contemporânea que se constrói a partir dessa necessidade de traduzir
uma cena real e dos limites dessa tradução. A nós, teóricos da literatura e
da estética, cabe não apenas descrever esse double bind, mas tirar dele as
consequências para nossa própria atividade de críticos. Não podemos fazer de
conta que não desempenhamos um papel no “teatro histórico da memória”, de
sua inscrição e de seu apagamento, em suma, de sua política.46
Notas
1 Nietzsche, 1988a [1873], e Walter Benjamin, 1974 [1940] e 2020.
■ B,ênjamin, 2012a, p. 214.
3 Penna, 2003.
279
VIOLÊNCIA, ENCARCERAMENTO, (iN)jUSTIÇA
4 Por outro lado, é absolutamente legítimo se comparar (sem necessariamente ter em vista
qualquer modalidade de influência direta) essa literatura realizada no Brasil sobre as e
a partir das prisões com a produção correspondente da hispano-América. Essa tradição
remonta aos livros de José Marti (El presidio político en Cuba, de 1871) e de Mercedes
Cabello de Carbonera (El conspirador, de 1892) e reaparece em Federico Gamboa (La llaga,
de 1910; México, Ediciones Botas, 1947), Juan Seoane (Hombres y rejas, de 1936; Santiago,
Ediciones Ercilla, 1937), Antonio Arraiz (Puros hombres; Caracas, Cooperativa de Artes
Gráficas, 1938), Carlos Montenegro (Hombres sin mujer, de 1938; México, Impresora Azteca,
1959), Alfredo Pareja Diez-Canseco (Hombres sin tiempo; Buenos Aires, Editorial Losada,
1941), Gustavo Valcárcel (La prisión; México, Ediciones Cuadernos Americanos, 1951),
Edmundo dé los Rios (Losjuegos verdaderos; Havana, Casa de las Américas, 1968), José
Maria Arguedas (El Sexto; Lima, Editorial Horizonte, 1969) e Carlos Alberto Montaner
(Perromundo; Barcelona, Ediciones 29,1972). Vale notar que alguns desses autores também
fazem parte da literatura pensada sob o signo do testimonio e, de resto, os limites desta
são difíceis de ser traçados de modo estrito (cf. Achugar, 1994; Beverley & Achugar, 1992).
Na apresentação dessas obras do cárcere hispano-americano feita por Kessel Schwartz
(1983), salta aos olhos o paralelo das temáticas com as obras brasileiras: a violência, a
“desumanização”, o homossexualismo, o código de honra dos prisioneiros etc. O título
da obra de Antonio Arraiz, Puros hombres, por sua vez, remete à questão dos limites do
humano tal como ela é pensada em outro campo literário, o da representação da Shoah,
como lemos nos títulos e obras de Primo Levi (É isto um homem?) e de Robert Antelme (A
espécie humana).
3 Remeto, aqui, a meus trabalhos “Do delicioso horror sublime ao abjeto e à escritura do
corpo” (Seligmann-Silva, 2018, pp. 31-44); “A história como trauma” (Seligmann-Silva &
Nestrovski, 2000, pp. 73-98); “Literatura e trauma: um novo paradigma” (Seligmann-Silva,
2018, pp. 63-80).
6 Ramos, 2002, p. 232.
' Seligmann-Silva, 2020a, p. 121.
8 O movimento cinematográfico “Dogma" foi iniciado em 1995 a partir de um manifesto
publicado em Copenhague. Com diretores como Thomas Vintenberg e Lars von Trier
como iniciadores e modelos, esse movimento pregou a volta a um cinema sem artifícios,
um cinema “raiz”, com câmera na mão, som direto, sem truques, sem trilha sonora, entre
outros princípios básicos.
9 Seligmann-Silva, 2005, pp. 31-44.
10 H. Rodrigues, 2002, p. 56.
11 Nas obras de alguns prisioneiros ou ex-prisioneiros, encontramos uma comparação
frequente entre as prisões brasileiras e os campos de concentração nazistas. Essa
comparação, que é feita sem as devidas mediações e diferenciações, é repetida, por exemplo,
quando André du Rap compara o massacre do Carandiru de 2 de outubro de 1992 à Shoah
(Du Rap, 2002, p. 175 e ss.). O mesmo acontece na música dos Racionais, “Diário de um
detento”, de 1997, com seus versos: “Cadáveres no poço, no pátio interno/ Adolf Hitler sorri
no inferno!”
12 A epígrafe da obra de Hosmany Ramos, Pavilhão 9, uma citação de Alexander Soljenítsin, é
eloquente nesse sentido e também dá conta da confluência da literatura de teor testemunhai
da virada do século XX ao XXL “A Literatura que não respira o mesmo ar da sociedade
sua contemporânea, que não espelha seus sofrimentos e seus medos, nem previne contra
males morais e sociais... é mera maquilagem literária” (Ramos, 2002, p. 9). Nessa linha
de Soljenítsin, lemos também nas notas de Theodor Adorno, na sua Teoria estética: “O
280
A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
281
VIOLÊNCIA, ENCARCERAMENTO, (iN)jUSTIÇA
realistas”. Para ele, o ser literário dessas narrativas (e ele enfoca as de Angola e Moçambique)
não se submete ao seu teor de narrativa da realidade. Falando de José Luandino Vieira,
ele afirma que “o biográfico está nele a serviço do literário, isto é, a sua escrita recusa-se
a ser simplesmente panfletária” (Trigo, 1986, p. 157). O recurso ao diário e à memória é
uma estratégia literária explorada nesse mesmo sentido tanto na literatura dos cárceres
brasileiras (cf., por exemplo, Du Rap, 2002; Jocenir, 2001; H. Rodrigues, 2002) como na
hispano-americana (cf. Schwartz, 1983, p. 321). Ê claro que o “conflito” entre o ser literário
dessas narrativas e o seu aspecto de denúncia e acusação não deve ser “resolvido” de um
modo simples a favor de algum dos partidos. Essa ambiguidade é constitutiva desse tipo
de literatura “do real”, que justamente “embaça” as fronteiras de gênero, e entre a literatura
e o “real”, l
Adorno, 1982, p. 289.
28
Por outro lado, é importante reforçar que a “literatura do real” não se limita apenas às obras
programaticamente testemunhais. O importante é perceber como, mesmo na literatura
não programaticamente testemunhai (em autores como Kafka, Proust, Beckett, Celan,
Rosa, Ramos e, mais recentemente, Itamar Vieira Junior, 2020), podemos surpreender um
“teor testemunhai” e traços da barbárie do mundo que lhe deu nascimento. No atual debate
brasileiro entre os adeptos da literatura documental e os seus inimigos, comete-se o erro
básico de cortar, estabelecendo dois campos que não existem de modo puro, a saber, o do
documentário e o da literatura.
29
H. Rodrigues, 2002, p. 116.
30
Ramos, 2002, p. 270.
31
Varella, 1999, pp. 288 e 294; Du Rap, 2002, pp. 21 e 23; Ramos, 2002, p. 257.
32
Com relação à memória do mal como elemento nuclear das tragédias gregas, cf. o belo
capítulo de Michèle Simondon “La mémoire dans le destin de 1’homme; la tragédie”
(Simondon, 1982).
33
Mauss, 1999, p. 358;
34
Idem, p. 357.
35
Benjamin, 1977.
36
Outra questão importante, ao pensar a relação entre literatura e ludicidade, é a dos limites
entre o ficticio e o teor testemunhai dessas obras. Vale a pena fazer um confronto entre
os textos em primeira pessoa programaticamente testemunhais e os “de ficção”, contidos
na coletânea de textos de autoria de Hosmany Ramos. Seu relato sobre o que ocorreu no
massacre, do Carandiru segue os procedimentos do relato de testimonio, uma vez que ele
parte do testemunho do sobrevivente Milton Marques Viana e escreve em uma primeira
pessoa “de segunda mão”. Lemos aí detalhes da ação bárbara dos policiais, as torturas
cometidas e também uma lista com os nomes dos 111 assassinados. Não é ocioso lembrar
que esse tipo de listagem constitui um topos na literatura da memória de catástrofes,
assim como em monumentos aos caídos nas guerras. Cf. o que já escrevemos aqui sobre o
memorial aos soldados mortos no Vietnã, de Maya Lin, sobre as listas na Ilíada e sobre as
listas de agentes imagéticos.
37
Kafka, 2020.
38
De resto é importante lembrar a questão das tatuagens que desempenham um papel central
na cultura carcerária. Os policiais leem, por exemplo, as tatuagens de André du Rap como
sinal de que ele é “matador de polícia” (Du Rap, 2002, p. 109). Assim como Kafka descreve
a máquina da colônia penal como uma executora que mata ao escrever o código infringido
no corpo do infrator (nas suas costas), do mesmo modo Negrini narra que, nas prisões,
as leis violadas são muitas vezes inscritas sobre o corpo do detento. A tatuagem viola, por
282
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
sua vez, a lei mosaica que proíbe a inscrição sobre a pele. No universo em que a lei impera
do modo mais radical, como lei do talião, antes de mais nada, a contravenção está em
toda parte. De resto, nas tatuagens vemos marcas escritas sobre a pele que fazem parte da
tentativa do prisioneiro de reconstruir seu ser despedaçado pela violência. Cf. também,
quanto às tatuagens, H. Rodrigues, 2002, p. 291 e ss., bem como a série de Rosângela Rennó
“Cicatriz” (1996-2003). Nessa série, vemos, alternadamente, fotos de fragmentos de corpos
com suas tatuagens - extraídas de negativos fotográficos do Museu Penitenciário Paulista
- e fotos de fragmentos de peles recobertas com inscrições, como se estas tivessem sido
realizadas sobre a pele, queimando-a. Os textos, como na série “Vaidade e violência” de
Rennó, também dizem respeito a fotografias. Cf. Seligmann-Silva, 2009, p. 317.
°9 Baudelaire, 1975, p. 683.
40 Idem, p. 400.
41 “O excesso de sofrimento real não permite esquecimento; a palavra teológica de Pascal
‘on ne doit plus dormir’ deve-se secularizar. Mas aquele sofrimento [...] requer também
a permanência da arte que proíbe. [...] A chamada configuração artística da crua dor
corporal dos castigados com coronhas contém, mesmo que de muito longe, o potencial
de espremendo-se escorrer prazer” (Adorno, 1973b, p. 64 e ss.). Quanto a esse ponto dos
limites éticos (e não técnicos) de representação, cf. Seligmann-Silva & Nestrovski, 2000.
42 H. Rodrigues, 2002, pp. 271-289.
43 Mas a situação cultural dos prisioneiros é mais complexa. Na verdade, encontramos não só
a tradição da literatura do cárcere citada em algumas dessas obras, mas também a tradição
filosófica sobre o aprisionamento, do século XVII a Foucault. Ou seja, seria inocente
tentarmos a leitura dessas obras dispensando o instrumental haurido a partir da história
e teoria literárias. Nesse sentido, devem-se destacar os escritos de Hosmany Ramos, com
suas referências a - entre outros - Graciliano Ramos, Céline, Jean Genet, Dostoievski,
Foucault, P. Levi, O. Wilde e W. Whitman. Ele sem dúvida é um conhecedor da história
da literatura ocidental. Como não poderia deixar de ser, Dante, com sua descrição do
inferno, também constitui uma constante nessas obras sobre e a partir da experiência no
cárcere. Como Primo Levi, H. Ramos cita a famosa frase da entrada do inferno que ele veria
muito bem transposta para a entrada do Carandiru, entrada esta ironicamente chamada
“Divineia”: “Abandone toda a esperança, você que entra" (“Lasciate ogni spereanza, voi
ch’entrate”) (Ramos, 2002, p. 232). Entre todos os autores arrolados aqui, apenas dois não
são prisioneiros, o médico Drauzio Varella e o advogado Pedro Paulo Negrini; Hosmany
Ramos e Humberto Rodrigues possuem formação de nível superior, uma raridade entre
os detentos. Essa formação explica em parte por que a obra de Rodrigues (e não só ela)
recorda a tradição das “vidas” e se serve de muitas citações “eruditas” que, não por último,
também buscam uma autodignificação de sua obra. Bruno Zeni, como jornalista, literato
e estudioso de literatura, encontra-se à parte nesse grupo de escritores e tem também um
papel sui generis na sua parceria com Andre du Rap, diverso do de Pedro Paulo Negrini
com relação ao ex-prisioneiro Rogério Aparecido, já que Zeni optou por uma elaborada
estratégia de “intervenções mínimas” no relato de Andre du Rap.
44 Salvato Trigo (1986, p. 150) nota que, na literatura dos cárceres da África lusófona (em
particular, da Angola e do Moçambique), encontramos uma desfiguração proposital da
língua do colonizador, que funciona como um ato de revolta e autoafirmação da população
oprimida, o que não deixa de recordar o importante capítulo “O negro e a linguagem”,
de Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon (2008, pp. 33-53). Fanon escreve: “Todo
povo colonizado - isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade
devido ao sepultamento de sua originalidade cultural - toma posição diante da linguagem
283
VIOLÊNCIA, ENCARCERAMENTO, (INJUSTIÇA
284
11
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NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES
Existem dois modos de se encarar este livro. Ou de fato existiu, com efeito, um
maço de papéis amarelos e desiguais sobre os quais foram encontrados registrados,
um a um, os últimos pensamentos de um miserável; ou existiu um homem, um
sonhador ocupado em observar a natureza em proveito da arte, um filósofo, um
poeta, quem o saberia?, sendo que esta ideia foi a fantasia, que a tomou ou, antes,
deixou-se tomar por ela e não pôde desfazer-se dela a não ser lançando-a em um
livro. Destas duas explicações, o leitor escolherá a que ele quiser.
Estas são as. palavras que Victor Hugo colocou diante de sua narrativa
Le dernier jour ã’un condamné.s Já Luiz Mendes utilizou como epígrafe duas
frases, uma de Brecht e outra de Sartre, que não só servem para dignificar
sua narrativa, mas já remetem à relação entre a história e o indivíduo. A
apresentação do livro, da pena de Fernando Bonassi, reitera esse elemento
autobiográfico e histórico da narrativa.
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
existe nenhuma outra garantia para o leitor senão as palavras sobre o papel.
Começamos pelo resultado final: a vida de papel. A “verdade autobiográfica”
é a própria vida e também, desde sempre, a verdade da morte. A egoescritura
inscreve-se sempre a contrapelo do caminhar da vida para a morte. Toda
autobiografia é autotanatobiográfica: e mais, é "bio-mitografia”.11 A egoescrita
é uma máquina de ipseidade, mesmo que apresente um eu esfacelado, como
é o caso de Luiz Mendes. Essa máquina não pode ser controlada, por mais
que o leitor queira se travestir de Sherlock Holmes.12 Além disso, a confissão é
tradicionalmente confissão de pecados, de fé e de louvor. No caso de Mendes,
os pecados são confessados (seus crimes e contravenções'3), assim como sua fé
(na vida criminosa, nas suas regras e em seu estrito código de conduta, pelos
quais ele se deixa torturar estoicamente sem dar com a língua nos dentes'4)
e também seu louvor por sua mãe (que recorda mutatis mutandis o louvor
de Santo Agostinho por sua mãe, Mônica). Se toda autobiografia visa a uma
salvação “do santo”, da “nudez virginal e intacta” então “[n]ada corre o risco
de ser mais envenenador quanto uma autobiografia”.'5 No livro de Mendes, esse
“acerto de contas” fica tanto mais claro se tivermos em mente que ele narra
uma dupla metamorfose: primeiro, ele é transformado (e educado, por meio dos
espancamentos terríveis de seu pai e depois pelas torturas sofridas da parte do
aparelho militar de repressão) em um indivíduo “antissocial”, um ladrão que
viria a participar de vários assaltos e de latrocínios; em segundo lugar, o livro
mostra sua transformação em um ser social e sociável, leitor incansável de boa
literatura e de filosofia, que está na origem do Luiz Mendes autor desse livro
autobiográfico.16 A verdade aqui é a da cena do tribunal: a autoapresentação
visa a um testemunho, apresentar a vida para voltar à vida (revixit). “Acusa-te,
glorifica-o”, escreve Santo Agostinho. Mendes quer recuperar a vida, seus laços
com o “fora”, com a sociedade. Nessa cena, o seu dentro volta-se para fora. Pois,
como Derrida recorda a partir de Santo Agostinho, a confissão apresenta não
apenas o que sabemos de nós, mas também aquilo que ignoramos.'7
Mas o “segredo” de Luiz Mendes é inenarrável, na medida em que ele se
encontra calcado na extrema dor corporal. Por outro lado, sendo aquele que
viveu o inferno em vida - as prisões paulistas com suas torturas e violência
mimetizada pelos próprios prisioneiros18 -, ele se torna uma espécie de Ulisses
ou dé Dante, personagens de si que conheceram em vida o inferno. Assim
como as figuras paradigmáticas do narrador recordadas por Walter Benjamin,
289
NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES
o viajante e o artesão, também Luiz Mendes tem o que narrar, algo único: sua
“paixão” pelos corredores e celas do aparelho de repressão estatal com seu
papel (ainda mais ostensivo na época da ditadura) de controlar e até mesmo
exterminar aqueles marginalizados pelo sistema.19 Benjamin, na sua tipologia
que visava delinear uma fronteira entre a “era da narrativa” e seu fim, deixou de
fora a figura daquele que narra o seu martírio (e suas várias configurações, indo
da confissão à autobiografia). Esse narrador em primeira pessoa pode também
ser desdobrado nos inúmeros “testemunhos secundários” daqueles que narram
a vida desses “mártires” (das hagiografias até as diversas histórias e narrativas
sobre os mais variados tipos de personagens que conheceram, cada qual, seu
“inferno particular”, tenham sido eles prisioneiros políticos, prisioneiros
“comuns”, sobreviventes de uma guerra, vítimas de perseguição de cunho
sexual ou étnico etc.). Benjamin, como é bem conhecido, enfatizou o mutismo
dos que voltavam da Primeira Guerra Mundial e a moderna incapacidade de
enunciar narrativas.20 Por outro lado, um contemporâneo dele, Jean Norton
Cru, na sua monumental obra Témoins - apesar de seu positivismo, ou
justamente devido a ele! -, vai saudar o testemunho da Primeira Guerra como
uma fonte incontornável para representar aquele evento histórico. Cru estava
consciente dos limites da narrativa do soldado que retornara do fronte (como
era seu próprio caso21). Desse ponto de vista poderiamos pensar nessa narrativa
impossível, ou na narrativa apesar de seus limites e impossibilidades, como
uma característica da narrativa que não só persiste no século XX e para além
dele, mas que seria uma característica dessa era de catástrofes.22 Como vimos,
o teor testemunhai não só se tornou mais visível nas narrativas ao longo do
século XX, como determinou o desenvolvimento de uma área de estudos. O
“real” irrompeu fazendo desmoronar as formas tradicionais da literatura e das
narrativas. A esse abalo denomino aqui “virada testemunhai”.
Se a leitura de autobiografias desperta algo como uma curiosidade de
voyeur, no caso específico do texto de Mendes a cena enfocada é aquela que
provoca uma intensa curiosidade e até um certo fascínio em uma sociedade
(a nossa contemporânea, sobretudo na América Latina) caracterizada pela
violência. A cena é “obscena”, “marginal”, na mesma medida em que está no
coração do próprio sistema político. O “segredo” da sociedade é exposto na sua
“verdade nua”. De modo semelhante, a “interioridade”, o universo psíquico
e emocional do protagonista, é apresentado (ou “representado”) ao público.
290
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local de honra. Mendes raciocina, em uma das raras metáforas extensas de seu
livro, revelando a lógica circular que rege o sistema penal:
Certa vez, li, não sei onde [provavelmente em Brecht], que condenava-se o rio por
ser caudaloso e devastador em sua corrente, mas nada se diz[a"das margens que
o limitavam e comprimiam, tornando-o tão violento. Era o caso ali [na triagem
do RPM]. Queriam proteger a sociedade de nós, mas talvez a solução fosse nos
proteger da proteção social. Daí é para se perguntar se éramos animais, como
queriam, ou se éramos animalizados, como nos faziam. Marginais e criminosos
ou “marginalizados” e “criminalizados”? O resultado se observaria no estrago, na
devastação que retribuiriamos, no futuro, à sociedade.-12
Mas seria errado concluir que a obra tem uma moral pacificadora ou
conformista. A apresentação da tortura - que Mendes sofreu desde adolescente
- tem um valor não apenas literário, mas também social e político. A literatura
de forte teor testemunhai não apenas tem uma relação tensa com a produção
de prazer (o delectare da tradição poética), como também, contra o esteticismo
neórromântico, reinstaura o elemento educador, útil, por assim dizer, que
sempre fora pensado como o prodesse da Paideia clássica.
295
NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES
SEXISMO + RACISMO
O torturado aprende que uma das maneiras de conter a fúria dos torturadores
é apresentar-se o mais destruído e humilhado possível, adiantando, assim, a
reação esperada. Por outro lado, diante dos demais “malandros”, “aprendera
que o medo é algo que não deve ser demonstrado em hipótese alguma”.51
Mostrar-se medroso equivale a “efeminar-se”, “fraquejar”. Aos leitores, Mendes
apresenta-se ao mesmo tempo como vítima e agressor. Ele apresenta-se também
como alguém que nunca traiu o código da “malandragem” que inclui, antes de
mais nada, a proteção de sua virilidade: “Jamais abusei de ninguém em prisão
alguma. A moral estava na bunda, e a minha era meu tesouro”.52 “O crime é
machista por necessidade.”53
Essa literal “corporificação ” e “sexualização” dos códigos morais pode
ser lida também nas alusões a diferenças de cor dos prisioneiros. Vale a pena
transcrever a seguinte longa passagem sobre o período em que Mendes estava
no Instituto de Menores de Mogi-Mirim:
296
A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES
Ainda no plano genital, será que o branco que detesta o negro não é dominado
por um sentimento de impotência ou de inferioridade sexual? Sendo o ideal de
virilidade absoluto, não haveria aí um fenômeno de diminuição em relação ao
negro, percebido como um símbolo fálico? O linchamento do negro não seria
uma vingança sexual? Sabemos tudo o que as sevícias, as torturas, os murros
comportam de sexual. Basta reler algumas páginas do Marquês de Sade para nos
convencermos... A superioridade do negro é real? Todo mundo sabe que não. O
pensamento pré-lógico do fóbico decidiu que é assim.59
quem diz estupro está dizendo preto. Durante três ou quatro anos entrevistamos
cerca de quinhentos indivíduos da raça branca. [...] Cerca de seis décimos das
respostas apresentavam-se assim: Preto = biológico, sexo, forte, esportista, potente,
boxeador, Joe Louis, Jess Owen, soldados senegaleses, selvagem, animal, diabo,
pecado.61
298
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NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES
300
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detalhadas das cenas de tortura, o leitor, ao mesmo tempo que sente pena
da vítima - e assim reforça seu sentimento social de compaixão -, perde a
crença no ser humano como um ser “bom” e “digno”. Através da barbárie
nos “humanizamos” para em seguida recusar qualquer tipo de humanismo
inocente.
A DIALÉTICA ABJETO/OBJETO
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Notas
1 Cf. Mendes, 2001; Du Rap, 2002; Jpcenir, 2001; Letras de liberdade, 2000; Negrini, 2002;
Ramos, 2002; H. Rodrigues, 2002; Prado, 2003; e também, apesar de não se tratar de
memórias de um prisioneiro, mas devido à importância dessa obra na atual onda de
publicações de escritos dos cárceres, Varella, 1999.
2 Mendes, 2001, p. 471.
4 Idem, p. 472.
4 Idem, p. 476.
’ Palmeira, 2009; Machado & Machado, 2015.
6 Aos 18 anos, ao sair de seu internamento de cerca de três anos em unidades para menores,
Mendes comenta, destacando esse estrato histórico de seu relato: “Em agosto de 1970,
Lennon já havia dito que o sonho acabara. Não quis acreditar. A Guerra do Vietnã estava em
pleno curso, a guerrilha no Brasil começara a ser desmantelada pelos órgãos da repressão.
O DOI-Codi era 0 palco dos horrores, o Esquadrão da Morte matava todo dia. O mundo
de pernas para o ar, arreganhado como uma puta, e eu ali no meio, abobado com tudo o
que via, sem entender nada” (Mendes, 2001, p. 205). Mais abaixo discutiremos a imagem
da mulher nesse livro, no qual essa metáfora da puta fica contextualizada.
' Mendes, 2001, p. 411.
3°4
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8
Hugo, 1970, p. 253.
9
Chrétien, 2002.
10
Idem, p. 122.
11
Derrida, 1991b, p. 170.
12
É claro que qualquer pesquisador pode se dedicar a colher os “autênticos testemunhos” da
vida do seu autor: percorrendo os passos da sua vida, levantando os documentos correlatos
etc., mas esse não é nosso interesse aqui. A obra de Luiz Mendes também permite uma rica
leitura a partir do horizonte de expectativas da literatura, do confronto com o momento
histórico que constitui o pano de fundo de sua narrativa e também de uma referência ao
nosso presente de leitura da obra.
13
Em um momento crucial de sua vida, quando estava na iminência de ser libertado do
Recolhimento Provisório de Menores (RPM), devido a uma confissão sincera a um
psicólogo, Mendes foi condenado a ficar mais três anos em reclusão. “Haviam me ensinado
que quem fala a verdade não merece castigo” (Mendes, 2001, p. 137). Em função dessa
confissão, ele foi transferido para o Instituto de Menores de Mogi-Mirim, que mantinha
menores “de máxima periculosidade”: “Daí para frente odiei todos os psicólogos que pude”
(idem, p. 144).
14
Cf. a passagem: “Malandro possuía moral engessada, com um sentimento fortíssimo de
honra. Havia até uma fidalguia, uma nobreza em certos malandros. Acreditavam em duelo
à bala ou à faca por questões de moral e honra. Alguns gostavam de arrogar que favoreciam
pobres e oprimidos, diziam só roubar ricos. Esse era o ideal de ser malandro, com muita
moral e honra inatacável, defendida com a própria vida, em nosso meio” (Mendes, 2001,
p. 251 e ss.). Esse código rigoroso estabelece a pertença ao grupo, a identidade de “malandro
honrado”.
15
Derrida, 2002, p. 87.
16
Mendes, 2001, p. 438 e ss.
17
Santo Agostinho, 2019, p. 221.
18
Cf. sua frase: “O pior de estar preso era ter que conviver com presos” (Mendes, 2001, p. 167).
19
Com relação a essa passagem pelo inferno e sua primeira “metamorfose”, eis o que escreve
o autor na triagem do RPM: “Todas as minhas boas intenções de trabalhar, viver com meus
pais numa boa, foram se evaporando na medida exata dos dias que ia passando no inferno.
Julgava-me traído, roubado, e pensava que não merecia o que passara. [§] Uma revolta densa
ia tomando conta do meu ser. Queria agora ser bandido mesmo. Viver armado para nunca
mais me sentir fraco e indefeso. Queria matar policiais, assaltar qualquer um, sem dó ou
piedade” (Mendes, 2001, p. 154; cf., ainda, pp. 305, 313, 321 e 360).
20
Benjamin, 2012a, p. 214.
21
Rousseau, 2003; Dulong, 1998.
22
Felman & Laub, 1991; Wieviorka, 1998; Seligmann-Silva (org.), 2003.
23
Kafka, 2020.
24
Young, 2005, p. 220.
Mbembe, 2017.
26
Mendes, apesar de não entrar em muitos detalhes das histórias de seus colegas e
companheiros, recorda das conversas dos internos, nas quais, ele escreve, “em geral
aumentavam os fatos, colorindo-os, mentindo descaradamente. Era preciso sempre contar
uma vantagem maior para aumentar o prestígio, aumentando ao mesmo tempo o conceito
de malandro de que tanto gostávamos. Ser considerados malandros era todo nosso objetivo
ali” (Mendes, 2001, p. 153). Ou seja, a insinceridade é assumida como parte da narrativa
das histórias da rua. Para o leitor, essa sinceridade acerca da insinceridade contamina o
305
NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES
relato da sua vida, mas o seu efeito paradoxal é o de reforçar a “base referencial”, já que
o “contar vantagem” é parte da vida também. O ato de linguagem que afirma a mentira
leva o leitor a querer avaliar onde existe maior ou menor dose de mentira, mas não a
anular a fonte “histórica” do relato. Todo discurso autobiográfico joga com essa tensão: no
momento mesmo em que o autor afirma tacitamente - como em um juramento no tribunal
- “prometo dizer a verdade...”, a “mentira” e a pura fantasia já surgem para assombrar o
autor e seus ouvintes/leitores.
Mendes, 2001, p. 45.
28
Idem, p. 68.
29
Idem, pp. 103 e 162.
30
Idem, p. 358.
31
Após um assalto, no qual Mendes cometera um assassinato, ele escreve que todos do bando
comentaram os fatos “que para nós eram uma odisséia. Os louros da vitória me couberam”
(Mendes, 2001, p. 363).
32
Mendes, 2001, p. 15.
33
Idem, pp. 151 e 385.
34
Idem, p. 127.
35
Freud, 1989, p. 91. Na escrita acádica cuneiforme, o símbolo para testemunha é semelhante
a um olho e significa tanto ver aquilo que está diante quanto a pessoa que testemunha
(Labat, 2001). Já o sinal para o falo, para o número um e para indicar uma pessoa é um
traço vertical. Esse sinal aparece diante de cada nome nas listas de testemunhas nos escritos
cuneiformes. Devo esta última informação a dra. Kathryn Slanski da Coleção da Babilônia
da Sterling Memorial Library de Yale, a quem agradeço.
36
Filhos “do pai”, deveria escrever, já que a língua portuguesa já nos faz dizer que a mãe está
submetida ao pai quando dizemos “pais" para nos referirmos aos nossos progenitores. A
“lei da língua” e da gramática também é falocêntrica. Ou melhor, é antes de mais nada
nessa lei que o falocentrismo se instaura.
37
Benveniste, 1995.
38
Freud, 1993.
39
Mendes, 2001, p. 108. Cf. ainda esta outra passagem que trata do internamento em Mogi-
-Mirim: “Até os guardas eram influenciados pela nossa cultura marginal e secreta. Usavam
nossas gírias e, muitas vezes, procediam conforme nossos valores. Realmente, não seria
juntando uma multidão de meninos de rua, delinquentes juvenis, em alojamentos,
alimentando-os, obrigando-os ao trabalho e sujeitando-os a uma rígida disciplina que se
conseguiría educá-los” (Mendes, 2001, p. 180 e ss.).
40
Mendes, 2001, p. 298.
41
Benveniste, 1995, p. 98 e ss.
42
Mendes, 2001, p. 146. Cf. também: “Criava-se uma geração de predadores que iria aterrorizar
São Paulo. A maioria seria morta pela polícia, mas antes disso... [...] Nossa preocupação
não era só o dinheiro. Era vingança, explosão de uma revolta contida e cultivada em longos
anos de cativeiro, nas mãos de sádicos carrascos torturadores” (idem, p. 182). A consciência
de Mendes do fato de que os “marginais/marginalizados” são uma espécie de escória e
de alimento (quase que sacrificial e necessário) da sociedade, homo sacer, na expressão
consagrada de Giorgio Agamben, fica clara quando explica a lógica do artigo 59 do Código
Penal (que ele teve que assinar quando foi preso como batedor de carteiras no centro de
São Paulo): “Teria 30 dias para arrumar um emprego. Caso contrário, a qualquer momento
que fosse preso, poderia ser autuado em flagrante de vadiagem. [§] Num país em que o
desemprego é parte do esquema para manter os salários baixos, o artigo 59 do Código Penal
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES
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A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
crítica do poder e da violência, mas a de Arendt é mais passível de ser pensada em termos
históricos.
66 Mendes, 2001, p. 301.
6/ Idem, p. 223.
68 Mendes, 2001, p. 293. Cf. também a descrição de uma das sessões de tortura por que passou
em uma delegacia. Após narrar como havia sido espancado, recebido chutes na cara, sofrido
choques no ânus e sarrafos, ele escreve: “Os tiras já estavam bêbados, havia litros de uísque
para todo lado, várias garrafas foram quebradas na minha cabeça. Mas eu nada sentia.
Parecia estar pairando sobre meu corpo, assistindo à tortura e sofrendo-a, mas só de ver o
que faziam com meu corpo, ficava com dó de mim. [§] A impressão de estar fora do corpo
era tão forte que mexi o corpo para ver se ele mexia, e não mexeu. Achei que havia morrido.
[...] Era incompreensível” (idem, p. 377). Mais adiante ele escreve ainda, após a sessão de
tortura: “Fiquei ali gemendo, sentindo o inferno de ser eu mesmo, estar vivo e não ter sido
morto ainda” (idem, p. 379). Na sessão seguinte, no pau de arara, após mais choques, dessa
vez além do ânus também na glande, ao apanhar com palmatória de ferro ele conta que
“minha alma qiiis abandonar meu corpo. [...] Ele só batia nas unhas dos pés e das mãos. E
com uma perícia incrível, pois quase não batia em cima, mas contra as pontas das unhas,
para fincá-las na carne. A dor era lancinante, enlouquecedora” (idem, p. 380). Sobre essa
separação entre o corpo e a consciência produzida pela tortura, essa “morte em vida”, cf.
também o ensaio de Jean Améry (2002) apresentado na nota 15 do capítulo 7 - “Anistia e
(in)justiça no Brasil” -, neste livro.
69 Mendes, 2001, p. 388.
/0 Idem, p. 389.
zI Idem, p. 430.
Idem, p. 405.
/3 Como Mendes relata, após descrever o que passou durante três meses de sessões de tortura:
“Estávamos cientes de que aqueles que nos barbarizaram o fizeram em nome de uma
sociedade. Uma sociedade que nos repelia, brutalizava, segregava, e que quase nos destruía.
E o pior: uma sociedade que precisava dessas monstruosidades para se manter. A tortura
era uma instituição social” (Mendes, 2001, p. 399 e ss. Grifo meu). Esse ato de “repelir” é a
literalização do gesto de abjetar. A sociedade abjeta para os cárceres a “poluição” que ela
projeta nos subalternizados. Esse quisto abjetificado, ao mesmo tempo, é ejetado e é parte
essencial da estrutura social. O ódio e o desejo de vingança de Mendes foram canalizados
no sentido da escritura de seu martírio (“minha via-crúcis”, como ele escreveu) (idem,
p. 405). Só assim ele conseguiu quebrar o ciclo de vingança e ódio que descreve tão bem em
seu livro. Se é evidente que essa saída simbólica (pelo simbólico) não significa o fim dessa
necessidade de violência da parte da sociedade (pensemos na sua necessidade de outrificar,
de subalternizar e sacrificar parte de sua população), ao menos ela permite uma reflexão
crítica. Ou seja: a desmontagem do Iluminismo não significa que devemos deixá-lo para
trás e abandonar suas utopias inocentes, mas sim que precisamos criticá-las. O que importa
é a consciência da dialética do esclarecimento, e não simplesmente a sua condenação (que
seria tão inocente quanto a crença não crítica nos seus teoremas clássicos).
/4 Kristeva, 1980, p. 20.
Idem, p. 16.
'6 Fanon, 2008, pp. 161-164. Recordo também das palavras de Robert Young: “O sujeito
europeu civilizado definia-se a si mesmo especificamente por meio da exclusão do que
foi identificado como sujo e baixo. Mas a aversão sempre carrega a marca do desejo.
Esses domínios baixos, aparentemente rejeitados como ‘Outro’, retornam como objeto de
309
NOVOS ESCRITOS DOS CÁRCERES
nostalgia, aspiração e fascínio” (Young, 2005, p. 139). O autor nota como no século XIX a
questão da miscigenação e da assimilação dos negros pelas sociedades europeias e coloniais
era encarada como uma fonte de ameaça, sendo compreendida como estando na origem
de um declínio fatal.
7/ Benjamin, 2020, p. 51.
/S Mendes, 2001, p. 327.
79 Cf.: “deveriamos curtir a vida, pois ela nos era breve” (Mendes, 2001, p. 371).
80 Mendes, 2001, p. 394.
81 Idem, p. 435.
82 Idem, p. 443.
83 Idem, ibidem.í
84 Idem, p. 454.
83 Idem, p. 461.
86 Idem, p. 468.
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12
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A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
infringiu e, por fim, executá-lo. Essa execução é apresentada como uma espécie
de “redenção”, “transfiguração” e “compreensão”.
É importante destrinchar os fatos apresentados ao longo da narrativa.
Nessa ilha sulina (que poderia estar na Ásia, pois temos nela uma casa de
chá, mas também poderia ser uma colônia inglesa ou de outra metrópole
europeia em qualquer parte do sul do mundo), ocorrera havia pouco tempo
uma importante mudança política. O antigo comandante, que tinha criado o
dispositivo de execução, morrera e fora substituído por outro aparentemente
avesso às práticas violentas associadas a esse procedimento. Ele e sua entourage
de damas compassivas queriam acabar com esse costume; se o oficial não era
o único que se mantinha adepto dela, com certeza era o único com coragem
de defendê-la. O “viajante explorador” francês tinha um papel nos planos do
novo comandante: este lhe solicitara assistir ao funcionamento do dispositivo
em disputa, para ele mesmo dar a sua opinião esclarecida sobre o uso de tal
procedimento, visto agora como “bárbaro”.
Aparentemente estamos, portanto, diante de uma narrativa que apresenta a
virada de uma situação anterior à instauração de um direito moderno (no qual
juizes, acusadores e executores não se confundem mais em uma mesma pessoa,
marcado pelo respeito ao direito de defesa, ao habeas corpus e à presunção
de inocência). Passar-se-ia do modelo das Fúrias, que faziam “justiça” com
as próprias mãos, ao direito instituído. Teríamos, portanto, uma espécie de
tradução moderna da Eumênides de Esquilo. Essa tragédia, vale lembrar, encena
o que teria sido o primeiro julgamento de um humano, Orestes, por um tribunal,
com direito a advogados, testemunhas e defesa. Como costuma acontecer em
Kafka, gêneros e modelos antigos são reaproveitados: mas eles sempre sofrem
deslocamentos tremendos nessa tradução para o seu presente. Em Esquilo, o
pano de fundo era mítico, e sua peça continha em si um largo elogio à deusa
Palas Atena (que dá seu voto de Minerva) e às novas instituições jurídicas
atenienses. Digno de nota é que Atena, para pacificar as Fúrias, desapontadas
com a perda do caso (já que advogavam em nome de Clitemnestra, a mãe
assassinada pelo filho, Orestes), convida-as para sentarem-se ao lado de seu
trono no Olimpo. Ou seja, Atena reconhece que a lei só funciona se associada
à violência. Kafka, em sua narrativa, vai levar às últimas consequências esse
modçlo antigo do direito em sua aliança com a violência. Não existe lei sem
law enforcement.
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A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE
O que Kafka faz em sua narrativa com essa encenação da superação da lex
talionis primitiva com base no banimento do dispositivo (aparelho-máquina)
e de toda violência a ele ligada? A aparente apresentação dessa virada moderna
e da introdução de “direitos humanos” nessa ilha sulina está, por assim dizer,
plena de buracos, que não deixam os “direitos humanos” ficarem em pé nesse
Sul cheio de sol. As ambiguidades amontoam-se ao longo do texto, justamente
porque ele tende à dispersão, ao acúmulo de significados conflitantes. Temos
a impressão de-que um magma ferve sob a narrativa que vai se tornando cada
vez mais inflamada até explodir.
Assim como a narrativa tem três momentos, também podemos dizer
que três camadas predominantes de sentido se alternam, se abraçam e
disputam espaço no texto. Se, aparentemente, temos um texto (r) sobre leis
e procedimentos penais (primeiro nível de leitura), temos também (2) uma
constante contaminação do dispositivo pela própria literatura (segundo nível
de leitura). Ou seja: 0 dispositivo também é, além de aparelho ou máquina
jurídica (incluindo aí uma função de máquina de executar, de redimir e de
fazer “justiça”), uma máquina de escrever (já que literalmente escreve nas
costas do condenado a lei por ele infringida). Mas também estamos diante de
(3) uma máquina sexual, com sua cama, sua vibração e seus instrumentos de
penetração, além do próprio fetichismo da máquina expresso pelo oficial - que,
ao fim e ao cabo, se entrega nu a ela. Assim como a narrativa tem seu apêndice,
a cena na sala de chá, também devemos considerar um quarto nível de leitura:
Kafka, ao focar uma máquina torturadora-executora, um aparelho que domina
corpos através da dor e do medo em uma colônia no Sul, apresenta também
um dispositivo central no poder colonial. Mais do que isso: ao descrever essa
máquina de controlar corpos pelo sofrimento, Kafka também descreveu avant
la lettre um campo de extermínio nazista, sucedâneo das práticas violentas
desenvolvidas pelos países europeus em suas colônias. Ou seja, em quarto lugar,
Kafka apresenta (4) o dispositivo colonial-concentracionário. Paul Gilroy, em
seu livro de ensaios que justamente leva o título Entre campos. Nações, culturas
e 0 fascínio da raça, cita a seguinte passagem de Hannah Arendt, de seu Origens
do totalitarismo:
As possessões coloniais africanas tornaram-se o solo mais fértil para que florescesse
o grupo que viria a ser mais tarde a elite nazista. Viram ali como era possível
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
com o título de “Diante da lei”, “Vor dem Gesetz”. Derrida mostrou que esse
título remete também a uma ideia de “antes da lei”.8 Essa famosa parábola, do
camponês que se dirige à cidade para tentar adentrar os portões da lei, mas
morre fora dela, sem atingi-la, também apresenta um dispositivo jurídico que
a seu modo é mortal, pois se não executa diretamente, como ocorre em “Na
colônia penal” e no próprio O processo, ele associa morte e lei. Nesse desvio do
superior para o “antes da lei”, passa-se da instituição a uma pessoa de carne
e osso. A face humana demasiado humana da lei se explicita. Como escreveu
Carl Schmitt em agosto de 1934, estamos diante do lema “O Führer protege o
direito” (“Der Führer schützt das Recht”), que imperou sob o Terceiro Reich,
mas que, para autores como Benjamin (que viveu na carne as consequências do
nazismo) e Kafka (falecido em 1924, nove anos antes da ascensão de Hitler ao
poder), no limite, vale para pensar o direito como um todo. Mas deixemos as
coisas claras: Schmitt era um entusiasta do personalismo do direito; já Kafka
e Benjamin tentavam desconstruir esse aparelho violento com seus textos.
Neles, a lei é desvelada como comando, como meio de afirmação do poder,
Gewalt. Como escreve Silvio Almeida: “O poder não é um elemento externo,
mas o elemento preponderante, que concede realidade ao direito”.9 O direito
é uma “tecnologia de controle social”.10 Daí esse processo narrado em “Na
colônia penal” ser pontuado por arbitrariedades: o oficial decide tudo em um
tempo excepcional (em apenas uma hora de processo, a execução é decretada),
o condenado não tem direito a defesa e em nenhum momento fica sabendo qual
infração cometeu (ele deveria ter uma iluminação orgânica, pois a conhecería
através da dor corpórea, como num martírio, a lei sendo inscrita em sua carne
e traduzindo-se na sua mente em uma intuição místico-carnal).
Muito já se observou sobre a semelhança entre esse procedimento e aquele
descrito por Foucault em Vigiar e punir, em que o autor fala das punições
públicas rodeadas de espectadores (como ocorria também nas operações desse
aparelho-máquina, nos tempos do velho comandante) anteriores à Revolução
Francesa (e não por acaso temos um francês na narrativa de Kafka):
31/
A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
Como observei, o texto tem uma estrutura que lembra as partes da tragédia
em sua descrição aristotélica: a máquina faz seu trabalho em 12 horas (o que
remete de certo modo à prescrição aristotélica de unidade temporal restrita a
“uma revolução do sol”*9), a sexta hora é descrita como o momento de virada
(peripécia20) na execução. Além disso, existe uma clara virada na narrativa
quando, após ficar evidente que o viajante não iria auxiliar o oficial, lemos:
“O oficial permaneceu mudo e virou-se para a máquina”.2* A peripécia, a
virada trágica, ocorre muitas vezes justamente com um gesto semelhante
de emudecimento. Pouco depois, novamente se marca esse momento: “O
condenado pareceu particularmente assolado pela intuição de alguma grande
reviravolta”.22 Mas essa aproximação com o modelo trágico se dá de modo
irônico: evidentemente, a narrativa não é uma tragédia, e Kafka recusaria
a ideia de tentar fazer uma tragédia seguindo o modelo clássico. Ele, antes,
recupera fragmentos desse poderoso dispositivo literário para a sua obra.
Em um determinado momento, o oficial denomina o dispositivo de o
“Lebenswerk” do antigo comandante, ou seja, “a obra de uma vida”, da mesma
forma como se faz referência à grande obra de um escritor. Como vimos, o
dispositivo, ora aparelho, ora máquina, escreve nas costas dos condenados
textos que se aproximam de desenhos. Enfatiza-se muito o elemento não
319
A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE
decifrável dessa escrita jurídica, mais próxima daquilo que acontece em textos
literários, carregados de imagens, de alusões disparatadas e de alegorismos
misteriosos - como o próprio texto kafkiano. (Se bem que, a bem da verdade,
o jargão juridiquês constantemente se transforma em floreio ilegível e
indecifrável, como os textos que dirigem a máquina.) A autorreferencialidade
é total aqui. Busca-se a distância hermenêutica correta para que o francês
possa decifrar a escritura-desenho, mas em vão: não há distância correta,
porque se quer encenar a existência de uma ruptura epistemológica, de uma
fratura, duas epistemes confrontando-se. Na verdade, o que se dá é a falência
do momento hermenêutico da leitura. A escrita simbólica derrete-se em uma
inscrição somático-pulsional, como na descrição psicanalítica do nosso aparato
psíquico com suas camadas de traços, Spuren, e recalcamentos, ou como o
inconsciente escriturai (letriíicado) lacaniano. Em vez da leitura na chave
intelectual, considerada “mais nobre”, ocorre uma leitura com o próprio corpo.
Como explica o oficial detalhando a escrita da lei que será impressa
nas costas do condenado: “a própria escrita [die eigentliche Schrift] deve ser
rodeada por muitos, muitos floreios [ou ornamentos, Zieraten]; a escrita real
[die wirkliche Schrift] cinge o corpo apenas em uma faixa estreita, o restante do
corpo fica para os ornamentos [ou enfeites, Verzierungen]”.23 Esses “ornamentos”
e “enfeites” remetem tanto à poesia como ao conceito estético. Vale lembrar
que, aqui, Kafka se alia mais uma vez à crítica do Iluminismo. Kant, na sua
terceira crítica,24 tratou dos parerga (Zieraten) como uma espécie de molduras
do belo que não poderíam reivindicar atrativos próprios, caso contrário eles se
transformariam em adornos (Schmuck) e destruiríam a beleza. Os românticos,
com a sua valorização do elemento ativo da poesia, desprezaram essa hierarquia
kantiana: nas obras românticas por excelência, não poderiamos traçar de modo
claro e “limpo” as fronteiras entre obra (ergori) e ornamento (parergori). Aqui
em Kafka, “escrita real” ou “a própria escrita” são abaladas pelos ornamentos e
enfeites. Assim, abandona-se também o culto do belo e do clássico que sustentou
o nascimento da disciplina Estética. A ironia kafkiana está em associar a essa
maquinaria jurídica brilhante, com glamour erótico-tecnológico, essa escrita
indecifrável que é todo o oposto da escrita jurídica que se quer objetiva. Como
quando o oficial afirma: “a culpa é sempre indubitável!”.25 O direito quer uma
linguagem domada e controlada: Kafka apresenta a linguagem como um
pântano de onde brotam violências míticas que tendem a se repetir eternamente.
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE
O esquizo recai sobre seus pés sempre vacilantes, pela simples razão de que é a
mesma coisa de todos os lados, em todas as disjunções. É que as máquinas-órgãos
podem aferrar-se ao corpo sem órgãos; este não deixa de permanecer sem órgãos
e não volta a ser um organismo no sentido habitual da palavra. Ele mantém um
caráter fluido e deslizante?4
[A] máquina celibatária indica uma antiga máquina paranóica, com seus suplícios,
suas sombras, sua antiga Lei. Ela não é, entretanto, uma máquina paranóica. Tudo
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE
Para que você possa visualizar um pouco das minhas “ocupações”, estou anexando
um desenho. São quatro estacas, através das duas do meio são empurradas
barras nas quais as mãos do “delinquente” estão amarradas; pelas duas estacas
das extremidades empurram-se varas amarradas aos pés. Quando o homem se
encontra preso desta forma, as barras são lentamente empurradas para fora até
que o homem seja rasgado ao meio. O inventor se inclina contra a coluna cruzando
braços e pernas sentindo-se o máximo, como se tudo fosse uma invenção original,
embora se trate apenas de uma cópia do açougueiro que estica o porco estripado
diante de sua loja.45
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
O DISPOSITIVO COLONIAL-CONCENTRACIONÁRIO
no vale pequeno, profundo, arenoso e cercado por escarpas nuas, além do oficial
e do viajante, estavam presentes apenas o condenado, um homem aparvalhado
de boca larga, cabelo e rosto bagunçados, e um soldado que segurava a pesada
corrente na qual se prendiam as correntes menores, com as quais o condenado
estava aferrado nos tornozelos, nos pulsos e também no pescoço, e que também
se uniam por outros elos.48
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A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
Claro, bem que existe o momento de “ser para-o-outro”, de que fala Hegel, mas
qualquer ontologia torna-se irrealizável em uma sociedade colonizada e civilizada.
Parece que este fato não reteve suficientemente a atenção daqueles que escreveram
sobre a questão colonial.54
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A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE
Os novos países são um vasto campo aberto a atividades individuais violentas que,
na metrópole, se chocariam com certos preconceitos, com uma concepção sábia
e regulada da vida, e que, nas colônias, podem se desenvolver mais livremente e,
portanto, afirmar melhor seu valor. Assim, as colônias podem, de certa maneira,
servir como uma válvula de segurança para a sociedade moderna. Essa utilidade,
se fosse única, já seria imensa.’8
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
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A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE
Primeira Guerra acabara de estourar quando a narrativa foi feita, para além de
toda a questão do antissemitismo que crescera com os nacionalismos do início
do século. Wolff havia expressado a Kafka o seu “desagrado” com relação à
violência apresentada:
Com prazer recebi suas amáveis palavras sobre meu manuscrito. A sua ressalva
com relação ao elemento torturante coincide totalmente com a minha opinião, que
tenho, porém, em relação a quase tudo que produzi até agora. Observe quão pouco,
de uma forma ou de outra, está livre desse elemento torturante! Para explicar esta
última narrativa, apenas acrescento que não só é torturante, mas também que
nossos tempos em geral e o meu em específico foram e o são igualmente muito
torturantes, e o meu em específico ainda mais torturante do que em geral.65
A cerimônia começou com uma espécie de jogo, como que uma diversão, na qual
os homens da SS espancaram o prisioneiro com suas bengalas; eu só enxergava
a cabeça careca do homem, os golpes que choviam sobre seu crânio, as manchas
vermelhas que surgiam depois de cada pancada. Tudo aconteceu como que em
silêncio, sem som, no ar saturado de névoa, e no entanto tudo também estava
perfeitamente nítido e próximo, cada detalhe visível. O prisioneiro, em uma
espécie de dança grotesca, estrambótica, tenta se esquivar dos golpes e proteger
os lugares onde é golpeado. Chovem pancadas por todos os lados e, sempre na
esteira, as manchas vermelhas na cabeça. Como se fosse uma espécie de jogo. A
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Notas
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objeto, e então é impossível que aquela seja tomada como bela” (Kant, 1998, p. 217; Kant,
1959, p. 166). Cf. Menninghaus, 1999; Seligmann-Silva, 2018, pp. 31-56.
31
Agamben, 2002.
32
Kafka, 2020, p. 49.
33
Vogl, 2010, p. 54.
34
Deleuze & Guattari, 1976, p. 31.
35
Idem, p. 34.
36
Benjamin, 1982, p. 130.
37
Idem, ibidem.
38
Deleuze & Guattari, 1976, p. 49.
39
Idem, p. 54. 1
40
Klein, 1984.
41
Deleuze & Guattari, 1976, p. 57.
42
Idem, p. 58.
43
Idem, p. 439.
44
Idem, p. 440.
45
Kafka, 1966, p. 176.
46
Sobre o “Caso Dreyfus”, cf. Pagès, 2021.
47
Alt, 2005, pp. 483-488.
48
Kafka, 2020, pp. 148-151.
49
Idem, p. 38.
50
Com relação ao tema do trabalhador associado ao dispositivo do aparelho-máquina, vale
lembrar também que Kafka trabalhou, desde 1908 até a sua aposentadoria por tuberculose,
no Instituto de Seguro contra Acidentes de Trabalho, tendo acompanhado de perto
inúmeros casos de mutilações devido a máquinas mal planejadas. Em uma ocasião, ele
inclusive sugeriu as devidas alterações para que uma máquina de aplanação da indústria
madeireira tivesse a sua segurança aprimorada, o que resultou “na preservação de
incontáveis lesões” (Begley, 2010, p. 43).
51
Kafka, 2020, p. 44.
52
Idem, p. 48.
53
Fanon, 2008, p. 139. Gustav Janouch, em seu livro contendo suas conversas com Kafka,
narra-nos uma observação do autor de Praga: “O marquês de Sade, cuja biografia você
me emprestou, é o verdadeiro patrono de nossa era. [...] O marquês de Sade só pode obter
prazer através do sofrimento dos outros, assim como o luxo dos ricos é pago pela miséria
do pobre” (Janouch, 1953, p. 77). Sobre essas aproximações entre tortura e prazer sexual
nas representações artísticas, cf. Sorgo, 1997; Gubern, 2005.
54
Fanon, 2008, p. 103.
55
Idem, p. 180. Fanon explica a diferença entre a visão hegeliana e a situação colonial:
“Esperamos ter mostrado que aqui o senhor difere essencialmente daquele descrito por
Hegel. Em Hegel há a reciprocidade, aqui o senhor despreza a consciência do escravo. Ele
não exige seu reconhecimento, mas seu trabalho. Do mesmo modo, o escravo não é de
forma alguma assimilável àquele que, perdendo-se no objeto, encontra no trabalho a fonte
de sua libertação. O negro quer ser como o senhor. Assim, ele é menos independente do que
o escravo hegeliano. Em Hegel, o escravo se afasta do senhor e se volta para o objeto. Aqui,
o escravo volta-se para o senhor e abandona o objeto” (2008, p. 183). Sobre essa dialética
senhor-escravo relacionada com a colonização, ver também, em um sentido bem diverso
de Fanon, Gilroy (2012, pp. 138-141) e o volume de Kistner & Haute (2020), que explora a
origem dessa interpretação da dialética senhor-escravo nas leituras de Hegel por parte
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de Alexandre Kojève nos anos 1930 e da tradução da Fenomenologia de Hegel por Jean
Hyppolite de 1939-1942.
2,6 Kafka, 1994, VI, p. 232.
Idem, 2020, p. 44.
08 Césaire, 2020, p. 23.
39 Fanon, 2008, p. 126. Essa formulação de Fanon, afirmando que o preto seria um brinquedo
na mão do branco, permite que lembremos de outra obra de. Kafka que também trata da
violência da escravidão e do racismo, ainda que, como na narrativa Na colônia penal, de
modo indireto. Trata-se do capítulo ou parte final de seu romance também inacabado
O desaparecido (Der Verschollene), conhecido pelo nome que lhe foi atribuído por seu
primeiro editor, Max Brod, Amerika, e que Kafka redigiu na mesma época que compôs
seu escrito sobre a colônia penal. Nessa parte da narrativa, que foi intitulada por Brod
de “O Teatro Natural de Oklahoma”, o protagonista, Karl Rossmann, dirige-se a uma
espécie de grande feira realizada em uma pista de hipódromo na qual ele se candidata a
uma vaga no teatro de Oklahoma. O problema de Karl é que ele não tinha documentos
e nenhuma qualificação especial para ser contratado. Além de estar “muito malvestido”
(Kafka, 2003, p. 255). Ele acaba no último dos guichês, o mais baixo e menor. Sentindo-se
inferiorizado, a última das pessoas, quando lhe perguntam seu nome, ele responde: “Negro”
(idem, p. 258; idem, 1994, II, p. 306). Para ser admitido, apalpam-lhe os braços para ver
se seria forte para o trabalho duro que o esperava. Digno de nota é que, no mencionado
livro de Arthur Holitscher sobre a América do Norte, que Kafka lera, aquele autor destaca
como, nos EUA, os negros se identificavam com os judeus e vice-versa. ‘“We are in the
same boat!’, disse meu amigo, o jovem negro da Rua 53. ‘Nossos destinos são muito
parecidos. E então nós dois viemos da África, os judeus e nós, negros1 .” (Holitscher, 1913,
p. 365). Holitscher também descreve os linchamentos dos negros em passagens que podem
ter inspirado Kafka a escrever sobre a violência em sua colônia penal, e inclusive estampa
uma fotografia macabra de dois negros linchados e enforcados com o seguinte subtítulo:
“Idílio de Oklahoma” (“Idyll aus Oklahoma”; idem, p. 366). Essa fotografia e sua legenda
servem para lembrar dessa prática violenta e de sua glamourização pela população branca,
lembrando que Oklahoma era um dos estados mais racistas do sul dos EUA. (Cf. <https://
www.okhistory.org/publications/enc/entry.php?entryname=SEGREGATION>. Acesso em
4/8/2021.) Essa realidade, aliás, não mudou muito no século XXI, tendo-se em conta que,
após o assassinato de George Floyd e da onda de protestos antirracistas, na retranca desse
processo, o estado de Oklahoma aprovou uma lei proibindo o ensino crítico de questões
raciais. (Cf. <https://www.nbcnews.com/news/us-news/teachers-worry-oklahoma-s-ban-
-systemic-racism-lessons-could-put-ni268554>. Acesso em 4/8/2021.)
60 Césaire, 2020, p. 38.
61 Como formula Nietzsche nesta passagem tão cheia de significado: “Como fazer no bicho-
-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa inteligência voltada para o
instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação do esquecimento? [...] Grava-se algo
a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória”
(Nietzsche, 1988a, p. 295; idem, 1998, p. 50). No caso do dispositivo de Na colônia penal, a
inscrição a ferro e fogo leva a uma paradoxal memória fatal.
62 Sartre, 1968, p. 42.
63 Idem, pp. 45-46.
64 Foi Karel Capek (1890-1938), em sua peça RUR (que significa a abreviação do nome de uma
firma: Resons Universal Robots), de 1920, quem introduziu o termo “robô” na cultura
moderna. A palavra vem do termo tcheco robota, utilizado para expressar o trabalho servil,
335
A COLÔNIA PENAL DE KAFKA, OU AS VICISSITUDES DA COLONIALIDADE
duro, enfim, o labor. Capek, inspirado na tradição do Golem de Praga, também escreve
a sua ficção científica a partir da experiência da Primeira Guerra Mundial, que revelou a
força destrutiva da técnica. Nessa obra, o robô Golem é uma metonímia da técnica, mas
também da revolta dos trabalhadores escravizados.
63 “Ihre freundlichen Worte über mein Manuskript sind mir sehr angenehm eingegangen.
Ihr Aussetzen des Peinlichen trifft ganz mit meiner Meinung zusammen, die ich allerdings
in dieser Art fast gegenüber aliem habe, was bisher von mir vorliegt. Bemerken Sie, wie
wenig in dieser oder jener Form von diesem Peinlichen frei ist! Zur Erklãrung dieser
letzten Erzãhlung füge ich nur hinzu, dass nicht nur sie peinlich ist, dass vielmehr unsere
allgemeine und meine besondere Zeit gleichfalls sehr peinlich war und ist und meine
besondere sogâr noch lãnger peinlich ais die allgemeine” (Wolff, 1980, p. 40 e ss.).
66 Kulka, 2013, pp. 56-58.
6/ Fanon, 2008, p. 132.
68 Idem, p. 104.
69 Césaire, 2020, p. 55.
70 Kulka, 2013, p. 65.
336
PALAVRAS FINAIS
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PALAVRAS FINAIS
Essa obra de Brodsky deve ser lida também como um gesto, uma reação
à brutal continuidade das violências da colonialidade em nossa era. Apenas
recentemente o governo da Alemanha reconheceu esse genocídio africano e
estabeleceu medidas de reparação que estão sendo em boa parte contestadas
como insuficientes pelos descendentes dos povos vitimados. Brodsky, com
essa obra, junta-se a outros artistas e defensores dos direitos humanos que têm
procurado unir a criatividade artística às atuais pautas de luta pela liberdade e pela
igualdade. Eles se apropriam muitas vezes das fotografias coloniais para, por meio
de intervenções e da legendagem, transformar essas imagens fotográficas em um
dispositivo mnemônico decolonial crítico. Assim, essa obra dialoga diretamente
com a de outra fotógrafa e artista, a norte-americana Carrie Mae Weems. Sua
obra, From Here I Saw What Happened and I Cried (1995-1996),3 também é
construída a partir da apropriação de fotografias de corpos afrodescendentes do
século XIX, submetidos, por dispositivos científicos, fotográficos, sexistas, ao
exército, ou de mulheres reduzidas ao papel de ama de leite etc. Nas fotografias
dessa série de Weems também lemos uma série de legendas que potencializam
criticamente a leitura das imagens: “Você se tornou um perfil científico”; “Um
tipo negro”; “Um debate antropológico”; “O objeto fotográfico”; “Um brinquedo
para o patriarca” etc. Weems fala do ponto de vista de uma negra. A primeira
fotografia dessa série é de uma mulher retratada no Congo em 1920; ela está de
perfil, olhando para a direita, e sobre essa fotografia lemos: “Daqui eu vi o que
aconteceu”.-' A última imagem da série é essa mesma fotografia, com a face voltada
para a esquerda, portanto como que observando as fotografias anteriores, com
o letreiro: “E eu chorei”.5 Brodsky, em sua série, assume nas legendas a persona
dos alemães que são protagonistas nas fotografias coloniais que ele colecionou e
sobre as quais desenhou e escreveu seus títulos em alemão e em inglês. Ambos
os artistas fotógrafos reencenam criticamente a violência colonial que ecoa
de um passado que não passa, porque não foi inscrito, ensinado e introjetado.
Antes, esse passado racista colonial está em boa parte recalcado, produz uma
repetição do gesto colonial-racista nas políticas internacionais e domésticas, sem
contar o que se dá nas nossas relações interpessoais e intergrupais. Esse passado
colonial exige elaboração. O encontro entre essas obras de Weems e Brodsky
mostra como as histórias afro-atlânticas se repetem para além das fronteiras
nacionais. O sistema colonial era e é global. Temos que aprender a reescrever a
história também a partir de campos de força transnacionais, como o da história
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A VIRADA TESTEMUNHAI. E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
da diáspora afro-atlântica, como vemos em autores como Paul Gilroy, Bell Hooks
e Lélia Gonzalez. Também Rosana Paulino, cujo Parede da memória discutimos
na introdução deste livro, lança mão, em sua obra, das fotografias coloniais para
ressignificá-las, apropriando-se e reconquistando um passado-presente, antes
sequestrado por versões colonialistas da história. Isso vemos<ém Paulino, tanto
em Assentamento (2013), como em Atlântico vermelho (2017), em As gentes (2016),
como em outras de suas obras.6
A escrita testemunhai das violências da era moderna é uma demanda
global, pois essa era foi justamente caracterizada por sua voracidade em cobrir
com a “razão ocidental” toda a superfície do planeta. Deste planeta, dominado
até seu último rincão por essa razão iluminista, emana, hoje, o cheiro de morte.
Se a teoria crítica no entreguerras e na segunda metade do século XX percebeu
a necessidade de uma crítica profunda dessa razão instrumental tanatofílica,
no século XXI a virada decolonial do pensamento cobra uma radicalização
dessa revisão. Ela não pode se dar sem o compromisso com a releitura crítica
da história dos sofrimentos e das lutas dos subalternizados pelo “processo
civilizatório”. Toda uma literatura africana e afrodescendente tem despontado
agora como bastião dessa reinscrição crítica, ao lado dos aqui mencionados e
de tantos outros artistas de rememoração. Outras produções culturais antes
marginalizadas, ou reduzidas colonialmente ao clichê de “cultura popular”,
de “folclore”, de documento antropológico, são reconhecidas agora como
possuindo ao menos o mesmo direito a participar de nossas referências
culturais-chave. Se no século XX se lutava pelo direito de a literatura atingir
a todos (Antônio Cândido), agora se trata do direito de outras manifestações
culturais serem reconhecidas como dignas. Nesse processo, os próprios
conceitos de literatura e de belas-artes são profundamente ressignificados.
Não se trata mais de tentar moldar as inscrições narrativas produzidas nas
mais diversas localizações sob os conceitos decantados ao longo de mais de dois
mil anos de reflexões eurocêntricas sobre os gêneros literários, mas, antes, de
repensar esses conceitos à luz dessa produção narrativa antes subalternizada.
Assim, o elemento “local” dessas produções serve para desconstruir o falso
e pretenso universalismo dos conceitos da teoria literária. Todo um amplo
horizonte se abre diante de nós em face do desafio de reinventar a teoria
literária e a teoria estética (desde sempre comprometidas com a ontotipologia
e com a produção subalternizante de outrificados7).
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PALAVRAS FINAIS
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A VIRADA TESTEMUNHAL E DECOLONIAL DO SABER HISTÓRICO
Notas
1 Brodsky, 2021.
2 Arendt, 2013, p. 274.
3 Disponível em <https://www.moma.org/learn/moma_learning/carrie-mae-weems-from-
-here-i-saw-what-happened-and-i-cried-i995/#:~:text=With%2oFrom%2oHere%2oI%20
Saw,%2C%2ostereotyping%2C%2oand%2osocial%20Ínjustice>. Acesso em 11/4/2022.
4 “From Here I Saw What Happened.”
3 “And I cried.”
6 Paulino, 2018.
' Lacoue-Labarthe & Nancy, 2020; Seligmann-Silva, 2019 e 2021a.
8 Seligmann-Silva, 2021b.
9 Krenak, 2019, p. 30.
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Título A virada testemunhal e decolonial
do saber histórico
Imagem de capa
“Parede da Memória”, de Rosana Paulino.
Fotografia: Cláudia Melo.