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Filosofia e Consciência

Aula 1

Quando Sócrates, ao repetir o oráculo de Delfos, propagara o conhece-te a


ti mesmo estava legando, às gerações de pensadores seguintes, uma espécie de
missão à filosofia que dava origem: a de promover, nas palavras de Maurice
Pradines1, a reunião do indivíduo. Não seria filosofia, a partir de então, a
atividade que não desenvolvesse, por trabalho e intenção do filósofo, a
consciência de si. E a consciência que temos de nós mesmos é o que somos, esclareceu
Lavelle2. Portanto, a mais fundamental obra da Filosofia é devolver ao homem a
posse de si mesmo e, consequentemente, o reconhecimento do universo que
carrega nas entranhas e do qual é parte ao mesmo tempo. Em outras palavras, a
técnica filosófica serve ao propósito da reverência à Presença Total 3 que vivifica
e sustenta tudo que é.

Desde os gregos antigos o homem tem buscado corresponder à missão


proposta. A filosofia, desde as formas aristotélicas, passando pelas discussões
entre São Tomás de Aquino e Duns Scott e o advento da mônada de Leibniz -
para citar alguns exemplos - empreendera grandes esforços intelectuais a fim de
encontrar aquilo que individualiza os seres. A arte – em especial a literatura – faz
também suas contribuições em relação ao homem: ao longo do tempo escritores
foram conquistando o que, na psicologia de Jung, pode ser chamado principio de
individuação. Os romances do século XIX, com suas descrições sutis da psique de
cada personagem, alcançaram novos patamares com Proust ou Dostoievski,
quando estes se tornaram verdadeiros inquiridores das profundezas da alma.
Os dramas de uma pessoa justificavam um livro todo. Nuances dantes nunca
expressadas se vertem em belas páginas. Leitores passam a expressar seus
conflitos ou projetos com parágrafos de Madame Bovary ou Eugênio de
1
PRADINES, Maurice, Tratado de Psicologia Geral, Argentina, 1962. Pradines foi um filoó sofo franceê s
(1874 – 1958), conhecido por seus trabalhos sobre a mente e as sensaçoõ es. Seu Tratado de
Psicologia Geral eó um verdadeiro oaó sis de reflexoõ es sobre os principais mecanismos psíóquicos.
2
LAVELLE, Louis, A conscieê ncia de si (traduçaõ o de Luciane Amato).
3
LAVELLE, Louis, A presença total (ediçaõ o portuguesa online).
Rastinagc. O mundo interior amplia-se ao mesmo tempo em que os salões
testemunham o rebaixamento da comunhão entre os homens e mulheres que,
por força da etiqueta burguesa, restringem aos diários a intimidade
inconfessável a outrem. Conflitos entre o eu substancial e o eu social passam a ser
mais frequentes, fazendo emergir, na consciência de cada um, preocupações a
respeito do destino pessoal e da comunicação pública do mesmo. Isso não quer
dizer que antes o homem não pensasse sobre sua própria vida ou vocação; isso
quer dizer que o homem nunca pensou tanto sobre o que lhe distingue ou, em
palavras bem modernas, o faz especial pertencendo à massa. A aventura do
encontrar a si mesmo foi alavancada e a prova é o crescimento impressionante
da psicologia e seus diversos modos de responder aos anseios dos homens.

Mas, se a Filosofia de Sócrates era justamente a promoção deste encontro,


o que de mal há nisso tudo que a modernidade concretizou? O que foi perdido
com a literatura psicológica, as obras de Freud ou Jung, a filosofia
existencialista? Justamente, o todo. As partes sobressaíram-se (cada sentimento,
cada tipo de vida, cada complexo, cada decisão ou motivo pessoal) na
esperança de que se pudesse reunir tudo novamente por força da consciência.
Hoje, personagens como Dom Quixote já não dão conta dos meandros da alma
humana revelados pela Literatura, Psicologia e Filosofia através dos séculos. Foi
preciso mais luz e mais detalhamento. Dr. Freud teve seus consultórios cheios –
e seus discípulos também – de ansiosos pacientes que pediam análise: que os
separassem em partes, a fim de que, anos depois, conseguissem juntar aquela
substancia que ficou psicologicamente suspensa (pelo menos durante as
sessões). O abstracionismo tomou conta da vida psíquica e aviltou o homem,
diria Gabriel Marcel. Ao invés da união de estados, a exaltação dos fragmentos
psíquicos, tratados pormenorizadamente com conceitos universais. Há dois
complexos de Édipo iguais? - poderíamos perguntar. Pradines, para desespero de
todos os analistas e analisados, afirmara que o esforço de síntese – consequência
do desmembramento – é um aborto da consciência que, no momento em que é
condensada na explicação que se lhe encontra, se vê limitada.
A posse de si, segundo o filósofo francês, é o resultado da consciência
que opera a fim de unificar, segundo a intenção e o desígnio do eu. A odisseia
humana moderna é reunir aquilo que, por sua própria obra, separou. Os
personagens sociais, a miríade de desejos e sentimentos, as porções de história
pessoal: tudo que se proporcionou ver através da lupa agora precisa ser
agrupado num tipo de oásis, com a diferença que este só nasce em virtude da
tensão anímica.

II

O eu nasce no momento em que se interroga, disse Lavelle. Mas, que


interrogação é essa? De onde ela vem? Quais portas interiores foram
paulatinamente sendo abertas desde Sócrates? E que relação tem o eu com a
consciência?

Paul Diel4, o psicólogo da motivação interior, afirmara: “sem se dar


conta, cada homem faz isso, sem descanso e ao longo de sua vida, uma espécie
de observação íntima de suas motivações”. O que ele argumenta é que há uma
inclinação natural no homem de perceber-se (a consciência, de alguma forma, é
perceber que percebe). A observação – pré-consciente – é uma nota de
composição da estrutura humana; nas palavras de Aristóteles em sua ética
(Ética a Nicômaco) a tendência ontológica para o perfeito. A busca da
felicidade, o balanço que constantemente cada um faz da própria vida, é
resultado deste apetite de perfeição contra o qual o homem nada pode fazer,
sob pena de perder o quem ele é. Diel diz que esta observação ao menos
pressente as motivações que sustentam as ações individuais, o que instala
automaticamente uma espécie de tribunal interior ao qual se presta contas. As
divindades míticas ou o Deus cristão representariam, nesse sentido,
personificações do código moral pelo qual cada pessoal julga a si mesma. Da
mesma maneira, convivem dentro do homem a inclinação para o bem e a
miséria existencial. O homem é um culpado, pois está sempre abaixo do eu-ideal
(a culpa sempre invocada pela altura nunca atingida). É como sua hamartia
4
DIEL, Paul, O Simbolismo na Mitologia Grega, ATTAR, 1991.
constante, com a qual deve lutar heroicamente a fim de sublimar-se
(aproximando-se na divindade). Não se pode recuar, diria Paul Diel, diante
deste esforço.

Resumindo: naturalmente o homem observa-se – sua miséria e sua


grandeza - e julga-se intimamente; o conhecimento dos estados deste processo,
enquanto eles ocorrem, é o que se pode chamar consciência.

Consciência é um estado defectível de percepção do conhecimento; não é


uma luz – como a inteligência – mas uma atividade que lança o eu sobre si
mesmo. Maurice Pradines, em seu Tratado Geral, complementa: “a consciência,
a vigilância, o esforço, o dinamismo mental, não são mais que tensões”. Por
oposição, inconsciência e desatenção são formas de afrouxamento da atividade
psíquica, o que significa perda da posse de si. Sendo a consciência união, a
inconsciência é fragmentação. Quanto mais fracionado o sujeito, maior domínio
tem sobre ele as partes desorganizadas que compõem sua psique – o que remete
aos estudos de Szondi e a psicologia do destino familiar ou então Freud e as
imagens do inconsciente que teimam por dirigir o indivíduo. Para que isso não
aconteça é necessário forçar a psique, o que a amplia no mesmo instante.
Portanto, é a consciência também uma tensão, da qual nascem as únicas
possibilidades de reintegração do eu.

Partes, fragmentos, papéis: o homem moderno, ironicamente, conhece


todos os quinhões e há muito debate inflamadamente sobre eles (as escolas de
psicologia, por exemplo). Todavia, escapa-lhe ou eu capaz de sofrer ou ativar
todas as porções que o compõem. O eu é como um rei assediado por muitos
súditos – desejos, motivos etc – e a consciência uma espécie de ciência de todos
os caminhos do reino. Mais do que as partes, o eu identifica o reino. Pradines
ensinou: não há várias reuniões do sujeito. A operação de unificar é apenas
uma, porém plural: a consciência, que se organiza sempre em estados, os quais
revelam uma espécie de sistema integrador. Uma pessoa pode estar consciente
de um evento marcante com seu pai, ou pode estar consciente da relação e
todos os matizes da convivência com o pai. A abrangência do segundo tipo de
consciência – e ao mesmo tempo sua profundidade – revela a amplitude
psíquica do indivíduo que se descobre a cada novo círculo conscientizado,
perfazendo o caminho pessoal do conhece-te. Torna-se cada vez mais integrador
quanto mais direcionado ao núcleo pessoal ou, nas palavras de Olavo de
Carvalho, quanto maior a vontade de consciência das experiências fundantes.

Estar consciente é estar presente com toda a alma diante de algo. Para
isso, é preciso certa instalação na realidade e inteireza do indivíduo. Quanto
menos fragmentos, maior a presença. Todos aqui podem relatar várias
experiências de estarem diante de alguém e não o perceberem. Por um breve ou
longo momento, esqueceram-se, como se faz ao dormir: deitados (espalhados)
sobre a terra. O despertar é símbolo do processo de conscientização justamente
por fornecer o análogo da experiência do reunir-se ao acordar. “O próprio da vida
espiritual é produzir a intimidade mais perfeita entre os seres múltiplos que habitam
nossa consciência”, escreveu Lavelle, e intimidade é o que se conquista quando se
toca a majestade que existe no eu e que não se confunde com ele. O que era
reunião se torna reencontro, pois o homem revive sua gênese e adentra a porta
do paraíso, o que sempre lhe soará familiar.

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