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SER OCEÂNICO

Parto e as Raízes

ANTONIO CARLOS TELLES - Psicanalista Clínico e Consultor em


Desenvolvimento Humano, Ético e Organizacional. Autor da Trilogia Ser
Oceânico –Diálogos em Luz, Sombras e Autorrealização.
ser.oceanico@actelles.com.br fone: 21 98749 8018 instagram ser.oceanico.antoniocarlos

Este livro nasceu em um laboratório de reinvenção de mim mesmo. Nasceu da


necessidade de reintegrar em mim coisas “partidas” e explorar minha oceanicidade.
Nasceu dessa escavação arqueológica de mim mesmo. Nasceu do diálogo interior em
busca do contato amoroso com o que há de sombra e luz, com o que freia ou impulsiona
minha autorrealização. Nasceu da necessidade de compartilhar um pouco de
conhecimento que possa ser útil a quem busca ampliar e aprofundar a compreensão da
vida. Essa busca nos convida a um certo tipo de mergulho.
Se o símbolo da vida for a piscina, isso dá alguma segurança. E se o símbolo da
vida for o oceano? E o quanto o ser humano é (ou está) piscínico ou oceânico? Quais as
consequências da percepção que construimos da vida e de nós mesmos? Como isso
afeta nosso bem-estar? Somos “senhores” de nossas escolhas ou somos “escolhidos”
pela vida? O quanto temos de livre-arbítrio?
Cerca de 2.300 anos antes de Sigmund Freud, os gregos já sabiam que somos
ambivalentes, clivados entre os desejos e a realidade, entre emoção e razão. Aristóteles
(384 a.C.-322 a.C.) investigou o quanto o ser humano é capaz de ter mais ou menos
“domínio de si” ou ser “senhor de si”, ser enkrático ou akrático. Dilema que o filósofo
francês Michel de Montaigne (1533-1592) resumiria perguntando: “vamos ou somos
levados?”
Essa obra explora essas questões sem tentar encontrar respostas finais. Obra
imperfeita, autor imperfeito! Sigo a trilha sugerida por admirável poeta da música
brasileira: “aperfeiçoando o imperfeito…”1

Ser Oceânico: Finitudes e Infinitudes

O Universo observável teria cerca de 2 trilhões de galáxias. 2 E o universo

1
GIL. G, Meio de Campo, 2014.
2
Cerca de 20 vezes mais do que se imaginava: foram coletados dados durante 20 anos, pelo Telescópio Espacial Hubble
(informação publicada no Astronomical Journal). Segundo outro estudo da sonda New Horizons da NASA, divulgado no The
Astrophysical Journal (11/1/2021), o número seria menor*, na casa de centenas de bilhões de galáxias, o que em nada diminui a
realidade fantástica da infinitude do universo. (THE GUARDIAN, AFP Paris, 13 Oct 2016).
interior? O cientista Antonio Nobre 3do INPE, Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais, diz que somos uma “galáxia ambulante de sistemas celulares”. Será oceânico
o ser humano por ter 86 bilhões de neurônios e 100 trilhões de células? Isto é o corpo. E
a alma psíquica? E se formos além? E se formos uma alma divina e imortal conectada a
um centro divino universal? O quanto o oceânico depende de nossa imaginação? O que
há de real? Este livro vai explorar essas questões sem a pretensão de ter respostas
definitivas.
Já nas duas primeiras páginas de sua obra clássica, Mal-Estar na Civilização
(1930), o neurologista Sigmund Freud, pai da Psicanálise, fala da “sensação de
eternidade”, do “sentimento de algo ilimitado”, sem barreiras, como que “oceânico”
(p.10). São sentimentos compartilhados, em carta, por seu amigo Romain Rolland,
Nobel Literatura 1915. Freud diz que não se convenceu “por experiência própria” desse
sentimento de conexão ou união com o todo, mas disse: “isso não me autoriza a
questionar sua ocorrência em outros” (p.11). Após o sentimento oceânico, Freud analisa
a finalidade da vida, afirmando que o ser humano busca a felicidade, o prazer, e, ao
mesmo tempo, busca evitar o desprazer.

Sonhos e Anseios do Ser e de Ser Mais

O ser humano sonha em ser feliz. Até se questiona: “o que é ser feliz?” “O quanto
depende do que vem de dentro, o quanto do que vem de fora, de si”? Quer encontrar seu
lugar no mundo. Quer livrar-se de sofrimentos, compreender porque sofre, e se há valor
no sofrer. Mas, o quanto isso será possível sem que ele tenha coragem de se conhecer e
se decifrar em profundidade? O quanto isso será possível sem que reconheça a
dimensão oceânica da vida e de seu ser?
A crise pandêmica do coronavírus fragilizou o ser humano. Evidenciou sua
impotência diante da Natureza. Porém, não tirou do ser humano o poder de sonhar e de
interrogar. De buscar respostas para as questões fundamentais da existência: a finitude
ou infinitude da vida, a morte, Deus e a espiritualidade, o sentido e o propósito da vida,
e se há missão e programa de autorrealização para cada ser vivo. Esta obra explora tudo
isso.

Ser Semente e Crescer: Autorrealização e Individuação

O que nos diria a semente da sequoia sobre quem é, e seu projeto de


autorrealização? “Sou uma sementinha: tenho apenas 60 milímetros e peso 5
miligramas. Meu destino é ser a árvore mais alta do mundo: chegarei a 100 metros de
altura e pesarei 6.000 toneladas”. Eis a dimensão oceânica da sequoia.

*NOTA DE CORREÇÃO DA NASA: “Uma versão anterior desta notícia indicava que as observações da New Horizons eram
inconsistentes com um estudo anterior que estimou a existência de 2 trilhões de galáxias no universo. As observações da New
Horizons não restringem o número total de galáxias, mas restringem a quantidade total de luz que todas as galáxias emitem nos
comprimentos de onda ultravioleta e óptico.” (NASA TV, 13/1/2021)
3
NOBRE, 2019.
Embora tendo certo grau de livre-arbítrio, cada ser humano é também uma
semente? De quê?
Descobrir isso, em certa medida, pode ser a chave da felicidade e da
autorrealização? Talvez, sim, afirmaria Abraham Maslow 4, que foi presidente da
Associação Americana de Psicologia (1968). Para ele “A tendência do ser humano é se
tornar verdadeiramente o que ele é potencialmente. De se tornar tudo que alguém pode
se tornar. Deve-se responder ao destino ou pagar caro por não fazê-lo. Deve-se permitir
ser escolhido”. Aí está parte de sua Luz.
“Meu sonho é praticar medicina entre os pobres da Índia, como fez meu herói
Albert Schweitzer (Nobel da Paz, 1952) na África”, afirmou com enorme convicção a
revolucionária psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross quando ainda era uma criança. Esta
trilogia dedica o penúltimo capítulo do Livro 3 (Diálogo 16) a sua notável história de
autorrealização.
Autorrealização não pode, contudo, ser confundida, simplesmente, com
“realização profissional”. É o processo de “realização das potencialidades do ser
integral” em todas suas relações com a vida: consigo mesmo, com os outros, com o
divino etc. Isto é Individuação, diria o psiquiatra Carl Gustav Jung, a quem Freud via
como sucessor, mas que tomou outro caminho, pois buscava também sua própria
vivência do “sentimento oceânico”. Nesse sentido, Jung defendia que, para individuar-
se ou autorrealizar-se, era fundamental que o ser humano conhecesse, além de sua “luz”
(o “numinoso”)5, a sua “sombra”. A sombra para ele é o desconhecido, o que está na
escuridão do ser. Estão na sombra do inconsciente o positivo (tendências criadoras) e o
negativo. Pode ser o que nos atormenta, entristece e amedronta, por exemplo, sem
sabermos como lidar com essas forças emocionais, e tudo aquilo que “o indivíduo
recusa admitir, como traços inferiores de caráter ou tendências incompatíveis” com seus
valores.

Limpar a Casa Interior: Alegria e Coragem

Alguém se sente bem e feliz vivendo todo dia em uma casa suja? Não, durante e
depois da limpeza brota outro sentimento de alegria. E com relação à nossa “casa
interior”? Tomemos outra imagem: imaginemos uma lâmpada acesa, mas totalmente
coberta de impurezas e lama escura. Mesmo acesa quase não irradia luz, não é verdade?
O quanto cada um de nós tem uma lâmpada acesa na própria casa interior que não
irradia luz apenas porque precisa de “limpeza”? Quanto mais lixo acumulado e
guardado mais difícil e desagradável sua limpeza. Assim ocorre com o oceano poluído,
assim ocorre com nosso oceano interior. Mas, o ser humano quer mesmo limpar sua
casa? Quem decidir encarar essa faxina convém ouvir o que Freud disse: “O eu não é

4
“Maslow is undoubtedly the most influential anthropologist ever to have worked in industry”. (THE ECONOMIST, Oct 10th,
2008). Nota do autor: Maslow estudou a cultura sinérgica (colaborativa) dos índios Blackfoot.
5
NUMINOSO – “Influenciado, inspirado pelas qualidades transcendentais da divindade.” (HOUAISS)
mais senhor em sua própria casa!” 6 E aí?

Akrasia e Enkrateia: Os Gregos já Sabiam…

O quanto eu precisaria ser senhor de mim mesmo para conquistar minha


autorrealização?
É oportuno resgatar o conceito grego de akrasia – “condição de quem, apesar de
saber o melhor a ser feito, faz outra coisa” (Houaiss). Por que é oportuno e atual? Por
que parece que nós, seres humanos, após milênios “civilizatórios” acumulamos muito
conhecimento e pouca sabedoria. Abundam conhecedores, escasseiam sábios.
Sabedoria não é a arte de conhecer: é a arte de viver de acordo com nossas melhores
convicções.
Porém, a sabedoria maior nem estaria na suposta ou utópica “perfeição” do
comportamento coerente. Já seria sábio termos consciência da própria incoerência, e
deixarmos de ignorar a própria ignorância de si.
Por isso, Sócrates valorizou mais o autoconhecimento do que o conhecimento.
Para ele o problema não é apenas o comportamento akrático, a fraqueza de vontade para
fazer o que se quer, mas a inconsciência da própria akrasia. A psicanalista Maria
Homem, em sua reflexão sobre o “Eu contra si mesmo”, cita o psicanalista francês
Jacques Lacan: “Você realmente quer o que você deseja? E responde: “Não quero, mas
acabo fazendo.”
Adoramos dizer ao outro o que ele precisa fazer, não é? “Quem poderia pretender
governar os outros se não se governa a si próprio?” questionou o historiador francês
Michel Foucault (1926-1984), que resgata outro conceito grego: enkrateia, o oposto da
akrasia. Para ele enkrateia é a “relação consigo mesmo como domínio, poder que se
exerce sobre si mesmo”. Foucault interessou-se profundamente pelo conceito grego do
“cuidado de si.”7
Para Platão enkrateia significa “viver cada dia de modo a que fosse senhor de si
mesmo (…) o mais possível.” (Carta VII, 331 d)
Por que há muito mais akrasia do que enkrateia? A força oceânica do
insconsciente nos domina. Relembrando Montaigne: muitas vezes, “não vamos, somos
levados…!” Por quê?

Universo Exterior e Interior: Esses Desconhecidos

O que está em cima é como o que está embaixo” ensinou grande sábio do antigo
Egito. Publicação da Nasa Science afirma que 95% do Universo é um completo

6
FREUD, 1917/1944 (p.295)
7
Curso ministrado por Foucault no Collègede France (1981-1982) –“A Hermenêutica do Sujeito”.
mistério. O neurocientista David Eagleman 8, da Universidade de Stanford, afirma que
“95% de nossas decisões são tomadas por nossa mente inconsciente.”
Somos ignorantes da maior parte do universo exterior e interior. O mergulho no
universo exterior depende de um número enorme de cientistas e tecnologias. O
mergulho no universo interior só depende de mim: sou cientista de mim mesmo!
Somos desafiados a iluminar nosso sombrio oceano interior: vencer o medo de
mergulhar no desconhecido. Por medo do escuro, nessa busca, às vezes, somos vítimas
do autoengano, seduzidos por soluções aparentemente fáceis, mas ilusórias.
Isso lembra a história do sujeito embriagado, desesperado porque perdeu a chave
de casa, de madrugada. Como estava muito escuro, decidiu concentrar sua busca apenas
em torno do poste de luz, porque ali estava mais claro.
Na realidade, é através da coragem de caminhar no mundo interior sombrio que
encontraremos a luz, não do lado de fora, mas dentro de nós. O brilho das estrelas se
destaca quando o céu é mais escuro.
Ao lado da sombra da mágoa e do ressentimento há a luz do perdão. Ao lado da
sombra da hipocrisia e da falsidade há a luz da autenticidade e da sinceridade. Ao lado
da sombra do egocentrismo há a luz da empatia. Ao lado da sombra da raiva há a luz da
serenidade. Ao lado da sombra do ódio há a luz do amor. Ao lado da sombra do medo
há a luz da coragem. Ao lado da sombra do radicalismo e da intoletância há a luz da
moderação e da compreensão. Nesse mergulho descobriremos que a sombra é ilusória,
só a luz é real.

8
Ganhador do Prêmio Educador Científico 2012, da Society for Neuroscience - citado no Journal of Neuroscience, 17/2/2016.
(MARTINEZ-CONDE, 2016).

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