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PEER GYNT

O impacto da psicanálise foi enorme e de grandes conseqüências. Foi um soco na face


do
pensamento convencional. Você pensa que determina livremente as suas próprias
ações? Longe
disso: a sua ação consciente é apenas uma gota na superfície de um mar de processos
inconscientes,
do qual você nada pode saber — e sobre o qual, na verdade, tem medo de saber algo.
Você se sente
orgulhoso da "individualidade da sua personalidade" e da "abertura da sua mente"? Qual
o quê? Na
verdade, você é apenas o brinquedo dos seus instintos, que fazem com você tudo o que
bem
entendem. Isso, não há dúvida, ofende intensamente a sua vaidade! E você se sentiu
depois tão
desiludido quando lhe disseram que era descendente dos macacos e que a Terra na qual
se arrasta não
era o centro do Universo, quanto antes se sentira feliz em pensar o contrário. Você ainda
crê que a
Terra, um entre milhões de planetas, é o único que permite a vida. Em suma, você é
regulado por
processos que não pode controlar, que não conhece, que teme, e que interpreta
erroneamente. Há
uma realidade psíquica que se estende muito além da sua mente consciente. O seu
inconsciente é
como a "coisa em si", de Kant. Em si mesmo não pode ser agarrado; revela-se a você
apenas nas suas
manifestações. O Peer Gynt de Ibsen sente isso:
Para trás ou para a frente, é igualmente longe. — Fora ou dentro, o caminho é igualmente
estreito. — É ali! — e ali!— e tudo ao meu redor! Penso que saí, e estou de volta, bem no meio.
Qual é
o seu nome? Deixe-me vê-lo! Diga o que você é!
É o "grande Boyg" Li muitas vezes o Peer Gynt. Li muitas interpretações também.
Somente a
de Brandes, o grande sábio nórdico, tocou os meus próprios sentimentos sobre o drama
de Ibsen
A rejeição emocional da teoria do inconsciente de Freud não pode ser totalmente
explicada
sobre a base do medo tradicional às idéias novas e grandes. O homem tem de existir,
material e
psiquicamente; tem de existir em uma sociedade que segue um modelo prescrito e tem
de defenderse.
A vida diária o exige. Uma divergência do que é conhecido, do que é familiar, um
desvio do
caminho muitas vezes trilhado, pode significar a confusão total, e a ruína. O medo do
homem ao que
é incerto, ao insondável, ao cósmico justifica-se, ou ao menos se compreende. Aquele
que se afasta
do caminho comum se torna facilmente um Peer Gynt, um visionário, um paciente
mental. Pareceume
que Peer Gynt queria revelar um profundo segredo, não sendo, entretanto, muito capaz
de fazê-lo.
È a história de um jovem que, embora insuficientemente aparelhado, se libertou das
fileiras cerradas
da turba humana. Não é compreendido. As pessoas riem dele quando está fraco; tentam
destruí-lo
quando está forte. Se não consegue compreender a infinitude que atingem os seus
pensamentos e
ações, é condenado a desencadear a sua própria ruína. Tudo se agitou e rodopiou em
mim quando li e
entendi Peer Gynt, e quando encontrei e compreendi Freud. Eu era ostensivamente
semelhante a Peer
Gynt. Senti que o seu destino era a conseqüência mais provável, quando alguém se
aventurava a
libertar-se das fileiras cerradas de uma ciência autorizada e do pensamento tradicional.
Se a teoria do
inconsciente de Freud era correta — e eu não tinha dúvidas de que o fosse — então a
infinitude
psíquica interior tinha sido entendida. O homem se tornava uma pequena mancha no
fluxo das suas
próprias experiências. Senti tudo isso de uma forma nebulosa— mas não
"cientificamente".
Encarada do ângulo da vida sem couraça, a teoria científica é um ponto de apoio no
caos dos
fenômenos vivos. Serve, por isso, ao objetivo de uma proteção psíquica. Não há muito
perigo de que
se seja tragada por esse caos, quando se classificaram nitidamente, se catalogaram, se
descreveram
— e por isso se pensa haver compreendido — esses fenômenos. Dessa maneira, é até
mesmo
possível dominar certa porção desse caos. Isso me trazia um consolo muito pequeno.
Com vistas às
infinitas possibilidades da vida, tem sido minha preocupação constante nos últimos
vinte anos limitar
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o alcance das minhas investigações científicas. No fundo de cada item pormenorizado
do meu
trabalho havia o sentimento de ser apenas um ponto infinitesimal no Universo. Para
quem voa a uma
altitude de mil metros, quão miseravelmente parecem os carros arrastar-se lá embaixo!
Nos anos seguintes, estudei astronomia, eletrônica, a teoria do quantum de Planck e a
teoria da
relatividade de Einsten. Heisenberg e Bohr tornaram-se conceitos vivos. Embora a
semelhança entre
as leis que governam os eléctrons e as que governam o sistema planetário pudesse ser
reconhecida
com a conveniente imparcialidade científica, não podia também deixar de despertar
sentimentos de
natureza cósmica — exatamente como não se pode desprezar a ilusão de flutuar sozinho
no espaço
cósmico, por considerá-la simplesmente como uma ilusão do seio materno. Desse
ângulo, os carros a
arrastar-se e as preleções a respeito dos eléctrons turbilhonantes pareciam muito
insignificantes. Eu
sabia que a experiência dos pacientes mentais se movia fundamentalmente nessa
direção. A
psicanálise argumentava que nos pacientes mentais a consciência é inundada pelo
inconsciente. Isso
resulta no rompimento das barreiras que isolam o caos no próprio inconsciente do
indivíduo, e na
perda da faculdade de avaliar a realidade exterior. No esquizofrênico, a ilusão de que o
dia do Juízo
está próximo é precursora do colapso psíquico.
Eu estava profundamente emocionado pela seriedade com que Freud procurava entender
os
pacientes mentais. As suas idéias estavam muito acima das opiniões "pedantemente
afetadas" com
que os psiquiatras da velha escola se expressavam sobre a doença mental. Como a
entendiam, alguns
aspectos eram simplesmente "loucos". Depois que li o questionário para os pacientes
mentais, escrevi
uma peça curta, na qual pintei o desespero de um paciente mental, que, incapaz de lutar
contra as
suas fortes tendências interiores, pede ajuda e tenta encontrar a luz. Há, por exemplo, os
estereótipos
catatônicos, que se sentam durante horas a fio com os dedos apertados contra a testa
como se
estivessem em profunda meditação. Pensemos no olhar profundo, perdido, penetrante e
vago, e na
expressão facial desses pacientes mentais. E o que é que o psiquiatra lhes pergunta? —
"Que idade
tem?" "Como se chama?" "Quanto é três vezes seis?" "Qual é a diferença entre uma
criança e um
anão?" — E descobre que o paciente está desorientado, esquizofrênico e
megalomaníaco. Ponto
final. Havia umas vinte mil dessas pessoas no "Steinhof" de Viena. Cada uma delas,
sem exceção,
havia sofrido o colapso do seu mundo interior e, para conseguir flutuar, tinha construído
um novo
mundo ilusório, no qual pudesse existir. Por isso, eram muito claras para mim as idéias
de Freud,
sobretudo a de que a loucura é realmente uma tentativa de reconstrução do ego perdido.
Ainda assim,
a explicação de Freud não era totalmente satisfatória. Para mim, a sua teoria da
esquizofrenia tinha
parado na conclusão prematura de que essa doença é atribuível a uma regressão auto-
erótica. Ele
tinha idéia de que uma fixação do desenvolvimento psíquico de uma criança no período
do
narcisismo infantil primário constitui uma disposição para a doença mental. Defendi
essa idéia por
ser correta, mas não por ser completa. Não era tangível. Parecia-me que o ponto em
comum de
contato entre a criança absorvida em si mesma e o esquizofrênico adulto está na forma
como sentem
o seu meio ambiente. Para o recém-nascido o meio ambiente com os seus inúmeros
estímulos não
pode ser mais que um caos do qual as sensações do seu próprio corpo são uma parte.
Em termos de
experiência, não existe nenhuma distinção entre o eu e o mundo. Era minha opinião que,
inicialmente, o mecanismo psíquico distinguia os estímulos agradáveis dos
desagradáveis. Todos os
agradáveis tornavam-se parte do ego em expansão; todos os desagradáveis tornavam-se
parte do nãoego.
Com o correr do tempo, a situação muda. Algumas das sensações do ego que se
localizam no
mundo exterior são absorvidas pelo ego. Da mesma forma, alguns dos elementos
agradáveis do
ambiente (por exemplo, o seio materno) se reconhecem como pertencentes ao mundo
exterior.
Assim, o ego da criança, cristaliza-se gradualmente a partir do caos de sensações
interiores e
exteriores, e começa a perceber a fronteira entre o ego e o mundo exterior. Se, durante
esse processo
de separação, a criança experimenta um choque sério, as fronteiras entre o eu e o mundo
permanecem confusas e nebulosas, e a criança se torna insegura nas suas percepções1.
Quando isso
1 Cf. Reich, Der triebhafte Charakter, Intemationaler Psychoanalystischer Verlag, 1925.
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acontece, as impressões do mundo exterior podem ser experimentadas como algo
interno ou, ao
contrário, sensações internas podem ser sentidas como pertencendo ao mundo exterior.
No primeiro
caso, repreensões exteriores são interiorizadas e se transformam em melancólicas
autocensuras. No
segundo, o paciente pode ter a sensação de estar sendo eletrizado por um secreto
inimigo quando está
apenas percebendo as suas próprias correntes bioelétricas. A esse tempo, eu não sabia
nada sobre a
realidade das sensações do paciente mental quanto ao seu próprio corpo. Tentava apenas
estabelecer
uma relação entre o que é a experiência enquanto eu e o que é a experiência enquanto
mundo. Essas
observações formaram a base da minha ulterior convicção de que a perda do sentido da
realidade no
esquizofrênico começa com a interpretação errônea das sensações do seu próprio corpo
em
desenvolvimento. Todos nós somos apenas Ira máquina elétrica organizada de certa
forma, e
relacionada com a energia do cosmos. Haverá mais a dizer sobre isso, mais tarde. De
qualquer forma
tive de admitir uma consonância entre o mundo e o eu. Isso parecia ser a única saída
para o impasse.
Hoje sei que os pacientes mentais experimentam essa consonância sem distinguir o eu
do mundo, e
que o cidadão médio não suspeita dessa consonância e apenas sente o seu querido ego
como um
centro nitidamente delineado do mundo. A profundidade do paciente mental é
humanamente mais
valiosa que a do cidadão médio com os seus ideais nacionalistas! O primeiro tem, pelo
menos, um
pressentimento do que seja o cosmos. O último tem como fonte de todas as suas grandes
idéias a sua
constipação e a sua insignificante potência.
Foram todas essas observações e sugestões que me levaram a ler muitas vezes Peer
Gynt.
Através de Peer Gynt, um grande poeta deu voz às suas percepções do mundo e da vida.
Em 1920,
estudei o drama e tudo quanto fora escrito a respeito dele. Vi a representação teatral no
Burgtheater
de Viena e mais tarde em Berlim. Em 1936, vi uma interpretação da peça pelo Teatro
Nacional de
Oslo, com Maurstad como Peer Gynt. Foi aí que finalmente entendi o meu interesse
pelo significado
da peça. Ibsen havia simplesmente dramatizado a miséria do sujeito não-convencional.
De início
Peer Gynt tem muitas idéias fantásticas e se sente forte. Está fora de sintonia com a vida
de todos os
dias; é um sonhador, um ocioso. Os outros vão diligentemente à escola ou ao trabalho e
riem do
sonhador. Bem no fundo, eles todos são também Peer Gynts. Peer Gynt sente o pulso da
vida, que
arremete impetuosamente. A vida de todos os dias é estreita e exige um método rígido.
De um lado
se encontra a imaginação de Peer Gynt; do outro, a Realpolitik. Temendo o infinito, o
homem prático
se tranca em um pedacinho da terra e procura segurança para a sua vida. É um problema
simples a
que ele, como cientista, dedica a sua vida inteira. É um comércio modesto de que se
ocupa como
sapateiro. Ele não deve pensar a respeito da vida: vai ao escritório, ao campo, à fábrica;
visita os
pacientes; vai à escola. Cumpre o seu dever e tem a sua paz. Matou há muito tempo o
Peer Gynt que
havia nele. Pensar é muito cansativo e muito perigoso. Os Peer Gynts são uma ameaça à
sua paz de
espírito. Seria muito tentador parecer-se com eles. Na verdade ele (o homem prático) se
está
tornando cada vez mais impotente, mas tem um "espírito crítico", estéril embora; tem
ideologias ou
tem a autoconfiança fascista. É um escravo, um ninguém, mas a sua raça é uma "raça
pura" ou
nórdica; ele sabe que o "espírito" governa o corpo e que os generais defendem a
"honra".
Peer Gynt está explodindo de energia e de alegria sensual. Os outros se identificam com
os
sentimentos do filhote de elefante da história de Kipling. Fugiu da mãe, chegou ao rio, e
fez cócegas
no crocodilo. Era tão curioso e cheio de vida. O crocodilo agarrou-o pelo nariz — ainda
muito curto
nesse tempo em que os elefantes não tinham longas trombas. O filhote de elefante
defendeu-se o
melhor que pôde. Plantou as patas dianteiras firmemente no chão. O crocodilo puxou
mais e mais. O
filhote de elefante puxou, e tornou a puxar. O seu nariz foi crescendo cada vez mais.
Quando o nariz
ficou bem grande, o crocodilo o deixou partir, mas o filhote de elefante gritava
desesperado e
fanhoso: "— Isso é demais para mim!" E sentia-se envergonhado do tamanho do nariz:
esse é o
castigo para a loucura e a desobediência. Peer Gynt acabará com o pescoço quebrado
com a sua
loucura — pois as pessoas cuidarão para que ele acabe com o pescoço quebrado. Isso
vai ser metido
pelos seus ouvidos adentro repetidas vezes! O sapateiro deve ficar nos seus sapatos. O
mundo é mau,
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ou não haveria Peer Gynts. Ele parte, mas é arrastado de volta como um cão acorrentado
querendo
agarrar uma cadela que passa. Abandona a mãe e a garota de quem é noivo.
Intimamente permanece
preso a ambas — não pode evitá-lo. Tem uma consciência má e começa a ser envolvido
pelas
tentações e por perigosas diabruras. Transforma-se em um animal e lhe cresce uma
cauda. Mais uma
vez se afasta e escapa ao perigo. Cuida dos seus ideais, mas o mundo só entende de
negócios. Tudo o
mais é loucura e tolice. Quer conquistar o mundo, mas este se recusa a ser conquistado:
tem de ser
dominado. Só que isso é complicado demais, brutal demais. Os ideais são para os tolos.
Para dominálo,
precisa-se de conhecimento, de muito conhecimento, completo e irrefutável. Mas Peer
Gynt é um
sonhador que não aprendeu nada de "sensato". Quer modificar o mundo, e o carrega
dentro dele
mesmo. Sonha um grande amor para a sua mulher, a sua namorada, que é mãe, amante e
companheira, e que dá à luz os seus filhos. Mas Solveig é inacessível como mulher, a
mãe o
repreende, embora carinhosamente. Ele lhe lembra demais o louco do pai. E a outra
mulher, Anitra,
não passa de uma prostituta vulgar. Onde está a mulher que se pode amar, e que
corresponde aos
sonhos de um homem? É preciso ser um Brand para conseguir o que Peer Gynt quer.
Mas Brand não
tem imaginação suficiente. Brand tem a força — Peer sente a vida. Que absurdo que
tudo seja
repartido dessa forma! Ele acaba entre os capitalistas. Perde a fortuna de acordo com as
regras: os
outros são capitalistas "práticos", e não sonhadores. Sabem quando o seu negócio dá
dinheiro; em
assuntos financeiros não são tolos como Peer. Quebrado e cansado, volta como um
velho à cabana da
floresta, a Solveig, que lhe toma agora o lugar da mãe. Está curado das suas ilusões;
aprendeu o que
que a vida tem a oferecer quando se ousa senti-la. Isso é o que acontece à maioria das
pessoas que se
recusam a permanecer quietas. E os outros não vão fazer papel de tolos — pode estar
certo! Têm sido
inteligentes e superiores desde o início.
Assim era Ibsen, e assim era o seu Peer Gynt É um drama que só perderá a sua
pertinência
quando os Peer Gynt finalmente vencerem. Até lá o bom e o justo serão escarnecidos.
Escrevi um longo ensaio sobre "O Conflito da Libido e a Ilusão de Peer Gynt". No
verão de
1920, tornei-me membro honorário da Sociedade Psicanalítica de Viena. Foi pouco
antes do
congresso de Haia. Freud presidia às sessões. Muitos trabalhos tratavam de assunto
clínico. Os
oradores trouxeram relatórios objetivos e bons sobre as questões em discussão. Freud
era muito
eficiente no sumariar os pontos essenciais de uma comunicação, e no declarar em
poucas palavras a
sua própria opinião, no fim. Era de fato um prazer ouvi-lo. Falava com cuidado e sem
afetação, mas
com facilidade, e freqüentemente com uma ironia mordaz. Estava, afinal, gozando o
sucesso que se
seguia a muitos anos de pobreza. Não havia ainda, na sociedade desse tempo,
psiquiatras ortodoxos.
O único psiquiatra militante, homem bem dotado, Tausk, havia cometido suicídio pouco
antes. O seu
trabalho, Über den Beeinflussungsapparat bei der Schizophrenie, era importante.
Demonstrava que o
mecanismo que influencia o esquizofrênico é uma projeção do seu próprio corpo,
especialmente dos
órgãos sexuais. Foi só quando descobri as excitações bioelétricas nas correntes
vegetativas que
entendi corretamente isso. Tausk estava certo: é o seu próprio corpo que o paciente
esquizofrênico
sente como seu perseguidor. Posso dizer também que ele não consegue enfrentar as
correntes
vegetativas que irrompem. Tem de senti-las como algo estranho, que pertence ao mundo
exterior e
tem intenções más. O esquizofrênico apenas revela, de maneira grotescamente
exagerada, uma
condição que caracteriza o homem moderno em geral. O homem moderno é estranho à
sua própria
natureza, ao cerne biológico do seu ser, e o sente como estranho e hostil. Tem de odiar a
todo aquele
que tente restaurar o seu contato com a sua essência biológica.
A Sociedade Psicanalítica era como uma comunidade de gente que tinha de erguer uma
luta
única contra um mundo de inimigos. Era maravilhoso. Semelhantes cientistas exigiam
respeito. Eu
era o único médico jovem entre "adultos", a maioria dos quais era dez ou vinte anos
mais velha que
eu.
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No dia 13 de outubro de 1920, apresentei a minha comunicação como candidato a
membro da
sociedade. Freud não gostava de que as comunicações fossem lidas. Nesses casos, dizia,
o ouvinte se
sente como uma pessoa que, com a língua, de fora, está perseguindo um carro veloz no
qual o
conferencista viaja comodamente. Tinha razão. Por isso, ensaiei para apresentar a minha
palestra de
improviso. Prudentemente conservei o manuscrito à mão, e foi bom que o fizesse. Mal
tinha
pronunciado três frases quando perdi o fio da meada em uma confusão de idéias.
Felizmente,
encontrei logo o ponto perdido. A comunicação correu bem, exceto pelo fato de que eu
não
satisfizera ao desejo de Freud. Esses pormenores são importantes. Se as pessoas não se
sentissem
inibidas pelo medo à autoridade, falariam muito menos tolamente e muito mais
logicamente. É
possível a qualquer um falar de improviso sobre um assunto que conheça perfeitamente,
e ainda
manter o seu equilíbrio. Mas eu tinha querido impressionar muito, e tinha querido ter a
certeza de
não passar por tolo. Senti todos os olhos focados em mim — e por isso achei melhor
prender-me ao
meu manuscrito. Desde então, pronunciei centenas de conferências improvisadas e me
tornei
conhecido como orador. Devo isto à minha resolução de nunca mais levar um
manuscrito à uma
conferência, preferindo "boiar".
O meu trabalho foi muito bem recebido. Na sessão seguinte, fui admitido como membro
da
Sociedade Psicanalítica. Freud sabia muito bem como se manter à distância e exigir
respeito Não era
arrogante; pelo contrário, muito amistoso. Mas por detrás dessa fachada, podia-se sentir
frieza.
Poucas vezes se mostrava realmente afável. Era grande quando, com severidade
mordaz, repreendia
um inexperiente sabe-tudo, ou quando falava contra os psiquiatras, que o tratavam de
maneira
deplorável. Era inflexível ao discuti' um ponto teórico importante. Havia apenas poucos
trabalhos
sobre técnica, omissão que eu sentia muito vivamente no meu trabalho com os
pacientes.. Também
não havia um instituto para treinamento nem um programa de treinamento organizado.
Cada qual
tinha de contar com os seus próprios recursos. Procurei freqüentemente os analistas
mais velhos em
busca de conselho. Não eram de grande ajuda. "Continue analisando", diziam, "você
chegará lá".
Onde era preciso "chegar", isso ninguém parecia saber. Descobrir como lidar com
pacientes inibidos,
ou mesmo silenciosos, era mais difícil. Os analistas que vieram mais tarde não
"boiaram" em
assuntos de técnica, de maneira assim tão desolada. Quando um paciente não fazia
associações, "não
queria ter" sonhos, ou não tinha nada a dizer sobre eles, o analista ficava sentado lá
sessão após
sessão, sem saber o que fazer. Na verdade, a técnica de análise da resistência tinha sido
teoricamente
estabelecida, mas não era empregada na prática. Eu sabia que as inibições
representavam resistências
contra a revelação da matéria inconsciente; e sabia também que devia eliminá-las. Mas
como? Essa
era a questão crucial. Se se dissesse ao paciente — "Você tem uma resistência!"—, ele
olharia para o
analista com olhar vazio. Assim mesmo, isso também não era uma informação muito
inteligente.
Também não era melhor dizer-lhe que "se estava defendendo contra o seu próprio
inconsciente". Se o
analista tentava persuadir o paciente de que o seu silêncio, ou a sua resistência, não
adiantava nada,
sendo apenas uma expressão de medo ou desconfiança, de certa forma isso era melhor e
mais
inteligente, mas também não tinha nenhuma utilidade. E o conselho dos analistas mais
velhos era
sempre o mesmo: "Continue apenas analisando". Todo o meu método e meu trabalho de
análise do
caráter derivam desse "continue apenas analisando". Eu não tinha idéia disso em 1920.
Procurei
Freud. Freud era um mestre em esclarecer teoricamente as dificuldades de uma situação
complicada.
Mas, do ângulo da técnica, as suas explicações eram insatisfatórias. Sobretudo, dizia,
análise
significa paciência. O inconsciente é intemporal. É preciso refrear as ambições
terapêuticas. Outras
vezes, encorajava-me a intervir energicamente. Finalmente, entendi que o trabalho
terapêutico pode
ser eficaz somente quando a analista tem a paciência de compreender o processo
terapêutico em si.
Pouquíssimo se sabia sobre a natureza da doença psíquica. Esses pormenores podem
parecer sem
importância para a nossa intenção de descrever a função do processo da vida, mas são
muito
importantes. A questão do como e do por que das incrustações e das rigidificações da
vida emocional
humana leva diretamente ao domínio da vida vegetativa.
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Em um dos últimos congressos, Freud modificou a fórmula terapêutica original.
Estabelecerase
inicialmente que o sintoma tinha de desaparecer quando o seu significado inconsciente
se tivesse
tornado consciente. Agora Freud afirmava: "Temos de fazer uma correção. O sintoma
pode, mas não
é obrigado a, desaparecer quando o significado houver sido descoberto". Essa
modificação causoume
forte impressão. Levou-me a perguntar qual a condição que muda "pode desaparecer"
em "deve
desaparecer". Se o tornar o inconsciente consciente não elimina necessariamente o
sintoma, que
outro fator deve existir que garanta o seu desaparecimento? Ninguém sabia a resposta.
A
modificação feita por Freud na sua fórmula da cura de sintomas nem mesmo chamou
muito a
atenção. O analista continuou a interpretar sonhos, atos falhos e correntes associativas,
sentindo-se
pouco responsável pelo mecanismo da cura. Não lhe ocorria perguntar: "Por que não
conseguimos
efetuar a cura?" Isso é compreensível em termos da situação da psicoterapia na época, A
aproximação terapêutica neurológica habitual, principalmente o uso de brometos, ou a
frase —
"Você só está nervoso, não há nada de errado com você"—, era tão desagradável para o
paciente que
o poder deitar-se no divã e dar livre curso aos seus pensamentos foi um bem para ele.
De fato, ele
não só podia dar livre curso aos seus Pensamentos: na verdade, ordenava-se-lhe "dizer
tudo quanto
lhe viesse à cabeça". Foi só muitos anos mais tarde que Ferenczi afirmou que ninguém
realmente
seguia, ou podia seguir, essa regra. Isso é tão claro para nós hoje que nem mesmo
esperamos que
alguém o faça.
Pensava-se em 1920 que a neurose média podia ser "curada" em três ou, no máximo, em
seis
meses. Freud enviou-me pacientes com a observação: "Para psicanálise, impotência, três
meses".
Parecia impossível. Enquanto isso, os sugestionistas e psiquiatras enfureciam-se contra
a
"depravação" da psicanálise. Havia um compromisso profundo com o trabalho; estava-
se firmemente
convencido de sua correção. Cada caso era uma prova a mais da exatidão de Freud. E os
colegas
mais velhos nunca se cansaram de repetir: "Continue apenas analisando!" Os meus
primeiros escritos
não diziam respeito à técnica, mas ao assunto clínico e teórico. Claro que havia muito
mais a
compreender antes de poder obter resultados melhores. Essa conseqüência fazia-nos
querer lutar
mais firmemente e cavar mais profundamente. Pertencíamos a uma elite de lutadores da
ciência,
postos completamente à margem da charlatanice existente na terapia das neuroses.
Talvez esses
pormenores históricos possam tornar mais pacientes os atuais terapeutas do orgônio,
quando não
conseguirem atingir o objetivo, que é a "potência orgástica", nos seus pacientes.

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