O impacto da psicanálise foi enorme e de grandes conseqüências. Foi um soco na face
do pensamento convencional. Você pensa que determina livremente as suas próprias ações? Longe disso: a sua ação consciente é apenas uma gota na superfície de um mar de processos inconscientes, do qual você nada pode saber — e sobre o qual, na verdade, tem medo de saber algo. Você se sente orgulhoso da "individualidade da sua personalidade" e da "abertura da sua mente"? Qual o quê? Na verdade, você é apenas o brinquedo dos seus instintos, que fazem com você tudo o que bem entendem. Isso, não há dúvida, ofende intensamente a sua vaidade! E você se sentiu depois tão desiludido quando lhe disseram que era descendente dos macacos e que a Terra na qual se arrasta não era o centro do Universo, quanto antes se sentira feliz em pensar o contrário. Você ainda crê que a Terra, um entre milhões de planetas, é o único que permite a vida. Em suma, você é regulado por processos que não pode controlar, que não conhece, que teme, e que interpreta erroneamente. Há uma realidade psíquica que se estende muito além da sua mente consciente. O seu inconsciente é como a "coisa em si", de Kant. Em si mesmo não pode ser agarrado; revela-se a você apenas nas suas manifestações. O Peer Gynt de Ibsen sente isso: Para trás ou para a frente, é igualmente longe. — Fora ou dentro, o caminho é igualmente estreito. — É ali! — e ali!— e tudo ao meu redor! Penso que saí, e estou de volta, bem no meio. Qual é o seu nome? Deixe-me vê-lo! Diga o que você é! É o "grande Boyg" Li muitas vezes o Peer Gynt. Li muitas interpretações também. Somente a de Brandes, o grande sábio nórdico, tocou os meus próprios sentimentos sobre o drama de Ibsen A rejeição emocional da teoria do inconsciente de Freud não pode ser totalmente explicada sobre a base do medo tradicional às idéias novas e grandes. O homem tem de existir, material e psiquicamente; tem de existir em uma sociedade que segue um modelo prescrito e tem de defenderse. A vida diária o exige. Uma divergência do que é conhecido, do que é familiar, um desvio do caminho muitas vezes trilhado, pode significar a confusão total, e a ruína. O medo do homem ao que é incerto, ao insondável, ao cósmico justifica-se, ou ao menos se compreende. Aquele que se afasta do caminho comum se torna facilmente um Peer Gynt, um visionário, um paciente mental. Pareceume que Peer Gynt queria revelar um profundo segredo, não sendo, entretanto, muito capaz de fazê-lo. È a história de um jovem que, embora insuficientemente aparelhado, se libertou das fileiras cerradas da turba humana. Não é compreendido. As pessoas riem dele quando está fraco; tentam destruí-lo quando está forte. Se não consegue compreender a infinitude que atingem os seus pensamentos e ações, é condenado a desencadear a sua própria ruína. Tudo se agitou e rodopiou em mim quando li e entendi Peer Gynt, e quando encontrei e compreendi Freud. Eu era ostensivamente semelhante a Peer Gynt. Senti que o seu destino era a conseqüência mais provável, quando alguém se aventurava a libertar-se das fileiras cerradas de uma ciência autorizada e do pensamento tradicional. Se a teoria do inconsciente de Freud era correta — e eu não tinha dúvidas de que o fosse — então a infinitude psíquica interior tinha sido entendida. O homem se tornava uma pequena mancha no fluxo das suas próprias experiências. Senti tudo isso de uma forma nebulosa— mas não "cientificamente". Encarada do ângulo da vida sem couraça, a teoria científica é um ponto de apoio no caos dos fenômenos vivos. Serve, por isso, ao objetivo de uma proteção psíquica. Não há muito perigo de que se seja tragada por esse caos, quando se classificaram nitidamente, se catalogaram, se descreveram — e por isso se pensa haver compreendido — esses fenômenos. Dessa maneira, é até mesmo possível dominar certa porção desse caos. Isso me trazia um consolo muito pequeno. Com vistas às infinitas possibilidades da vida, tem sido minha preocupação constante nos últimos vinte anos limitar 26 o alcance das minhas investigações científicas. No fundo de cada item pormenorizado do meu trabalho havia o sentimento de ser apenas um ponto infinitesimal no Universo. Para quem voa a uma altitude de mil metros, quão miseravelmente parecem os carros arrastar-se lá embaixo! Nos anos seguintes, estudei astronomia, eletrônica, a teoria do quantum de Planck e a teoria da relatividade de Einsten. Heisenberg e Bohr tornaram-se conceitos vivos. Embora a semelhança entre as leis que governam os eléctrons e as que governam o sistema planetário pudesse ser reconhecida com a conveniente imparcialidade científica, não podia também deixar de despertar sentimentos de natureza cósmica — exatamente como não se pode desprezar a ilusão de flutuar sozinho no espaço cósmico, por considerá-la simplesmente como uma ilusão do seio materno. Desse ângulo, os carros a arrastar-se e as preleções a respeito dos eléctrons turbilhonantes pareciam muito insignificantes. Eu sabia que a experiência dos pacientes mentais se movia fundamentalmente nessa direção. A psicanálise argumentava que nos pacientes mentais a consciência é inundada pelo inconsciente. Isso resulta no rompimento das barreiras que isolam o caos no próprio inconsciente do indivíduo, e na perda da faculdade de avaliar a realidade exterior. No esquizofrênico, a ilusão de que o dia do Juízo está próximo é precursora do colapso psíquico. Eu estava profundamente emocionado pela seriedade com que Freud procurava entender os pacientes mentais. As suas idéias estavam muito acima das opiniões "pedantemente afetadas" com que os psiquiatras da velha escola se expressavam sobre a doença mental. Como a entendiam, alguns aspectos eram simplesmente "loucos". Depois que li o questionário para os pacientes mentais, escrevi uma peça curta, na qual pintei o desespero de um paciente mental, que, incapaz de lutar contra as suas fortes tendências interiores, pede ajuda e tenta encontrar a luz. Há, por exemplo, os estereótipos catatônicos, que se sentam durante horas a fio com os dedos apertados contra a testa como se estivessem em profunda meditação. Pensemos no olhar profundo, perdido, penetrante e vago, e na expressão facial desses pacientes mentais. E o que é que o psiquiatra lhes pergunta? — "Que idade tem?" "Como se chama?" "Quanto é três vezes seis?" "Qual é a diferença entre uma criança e um anão?" — E descobre que o paciente está desorientado, esquizofrênico e megalomaníaco. Ponto final. Havia umas vinte mil dessas pessoas no "Steinhof" de Viena. Cada uma delas, sem exceção, havia sofrido o colapso do seu mundo interior e, para conseguir flutuar, tinha construído um novo mundo ilusório, no qual pudesse existir. Por isso, eram muito claras para mim as idéias de Freud, sobretudo a de que a loucura é realmente uma tentativa de reconstrução do ego perdido. Ainda assim, a explicação de Freud não era totalmente satisfatória. Para mim, a sua teoria da esquizofrenia tinha parado na conclusão prematura de que essa doença é atribuível a uma regressão auto- erótica. Ele tinha idéia de que uma fixação do desenvolvimento psíquico de uma criança no período do narcisismo infantil primário constitui uma disposição para a doença mental. Defendi essa idéia por ser correta, mas não por ser completa. Não era tangível. Parecia-me que o ponto em comum de contato entre a criança absorvida em si mesma e o esquizofrênico adulto está na forma como sentem o seu meio ambiente. Para o recém-nascido o meio ambiente com os seus inúmeros estímulos não pode ser mais que um caos do qual as sensações do seu próprio corpo são uma parte. Em termos de experiência, não existe nenhuma distinção entre o eu e o mundo. Era minha opinião que, inicialmente, o mecanismo psíquico distinguia os estímulos agradáveis dos desagradáveis. Todos os agradáveis tornavam-se parte do ego em expansão; todos os desagradáveis tornavam-se parte do nãoego. Com o correr do tempo, a situação muda. Algumas das sensações do ego que se localizam no mundo exterior são absorvidas pelo ego. Da mesma forma, alguns dos elementos agradáveis do ambiente (por exemplo, o seio materno) se reconhecem como pertencentes ao mundo exterior. Assim, o ego da criança, cristaliza-se gradualmente a partir do caos de sensações interiores e exteriores, e começa a perceber a fronteira entre o ego e o mundo exterior. Se, durante esse processo de separação, a criança experimenta um choque sério, as fronteiras entre o eu e o mundo permanecem confusas e nebulosas, e a criança se torna insegura nas suas percepções1. Quando isso 1 Cf. Reich, Der triebhafte Charakter, Intemationaler Psychoanalystischer Verlag, 1925. 27 acontece, as impressões do mundo exterior podem ser experimentadas como algo interno ou, ao contrário, sensações internas podem ser sentidas como pertencendo ao mundo exterior. No primeiro caso, repreensões exteriores são interiorizadas e se transformam em melancólicas autocensuras. No segundo, o paciente pode ter a sensação de estar sendo eletrizado por um secreto inimigo quando está apenas percebendo as suas próprias correntes bioelétricas. A esse tempo, eu não sabia nada sobre a realidade das sensações do paciente mental quanto ao seu próprio corpo. Tentava apenas estabelecer uma relação entre o que é a experiência enquanto eu e o que é a experiência enquanto mundo. Essas observações formaram a base da minha ulterior convicção de que a perda do sentido da realidade no esquizofrênico começa com a interpretação errônea das sensações do seu próprio corpo em desenvolvimento. Todos nós somos apenas Ira máquina elétrica organizada de certa forma, e relacionada com a energia do cosmos. Haverá mais a dizer sobre isso, mais tarde. De qualquer forma tive de admitir uma consonância entre o mundo e o eu. Isso parecia ser a única saída para o impasse. Hoje sei que os pacientes mentais experimentam essa consonância sem distinguir o eu do mundo, e que o cidadão médio não suspeita dessa consonância e apenas sente o seu querido ego como um centro nitidamente delineado do mundo. A profundidade do paciente mental é humanamente mais valiosa que a do cidadão médio com os seus ideais nacionalistas! O primeiro tem, pelo menos, um pressentimento do que seja o cosmos. O último tem como fonte de todas as suas grandes idéias a sua constipação e a sua insignificante potência. Foram todas essas observações e sugestões que me levaram a ler muitas vezes Peer Gynt. Através de Peer Gynt, um grande poeta deu voz às suas percepções do mundo e da vida. Em 1920, estudei o drama e tudo quanto fora escrito a respeito dele. Vi a representação teatral no Burgtheater de Viena e mais tarde em Berlim. Em 1936, vi uma interpretação da peça pelo Teatro Nacional de Oslo, com Maurstad como Peer Gynt. Foi aí que finalmente entendi o meu interesse pelo significado da peça. Ibsen havia simplesmente dramatizado a miséria do sujeito não-convencional. De início Peer Gynt tem muitas idéias fantásticas e se sente forte. Está fora de sintonia com a vida de todos os dias; é um sonhador, um ocioso. Os outros vão diligentemente à escola ou ao trabalho e riem do sonhador. Bem no fundo, eles todos são também Peer Gynts. Peer Gynt sente o pulso da vida, que arremete impetuosamente. A vida de todos os dias é estreita e exige um método rígido. De um lado se encontra a imaginação de Peer Gynt; do outro, a Realpolitik. Temendo o infinito, o homem prático se tranca em um pedacinho da terra e procura segurança para a sua vida. É um problema simples a que ele, como cientista, dedica a sua vida inteira. É um comércio modesto de que se ocupa como sapateiro. Ele não deve pensar a respeito da vida: vai ao escritório, ao campo, à fábrica; visita os pacientes; vai à escola. Cumpre o seu dever e tem a sua paz. Matou há muito tempo o Peer Gynt que havia nele. Pensar é muito cansativo e muito perigoso. Os Peer Gynts são uma ameaça à sua paz de espírito. Seria muito tentador parecer-se com eles. Na verdade ele (o homem prático) se está tornando cada vez mais impotente, mas tem um "espírito crítico", estéril embora; tem ideologias ou tem a autoconfiança fascista. É um escravo, um ninguém, mas a sua raça é uma "raça pura" ou nórdica; ele sabe que o "espírito" governa o corpo e que os generais defendem a "honra". Peer Gynt está explodindo de energia e de alegria sensual. Os outros se identificam com os sentimentos do filhote de elefante da história de Kipling. Fugiu da mãe, chegou ao rio, e fez cócegas no crocodilo. Era tão curioso e cheio de vida. O crocodilo agarrou-o pelo nariz — ainda muito curto nesse tempo em que os elefantes não tinham longas trombas. O filhote de elefante defendeu-se o melhor que pôde. Plantou as patas dianteiras firmemente no chão. O crocodilo puxou mais e mais. O filhote de elefante puxou, e tornou a puxar. O seu nariz foi crescendo cada vez mais. Quando o nariz ficou bem grande, o crocodilo o deixou partir, mas o filhote de elefante gritava desesperado e fanhoso: "— Isso é demais para mim!" E sentia-se envergonhado do tamanho do nariz: esse é o castigo para a loucura e a desobediência. Peer Gynt acabará com o pescoço quebrado com a sua loucura — pois as pessoas cuidarão para que ele acabe com o pescoço quebrado. Isso vai ser metido pelos seus ouvidos adentro repetidas vezes! O sapateiro deve ficar nos seus sapatos. O mundo é mau, 28 ou não haveria Peer Gynts. Ele parte, mas é arrastado de volta como um cão acorrentado querendo agarrar uma cadela que passa. Abandona a mãe e a garota de quem é noivo. Intimamente permanece preso a ambas — não pode evitá-lo. Tem uma consciência má e começa a ser envolvido pelas tentações e por perigosas diabruras. Transforma-se em um animal e lhe cresce uma cauda. Mais uma vez se afasta e escapa ao perigo. Cuida dos seus ideais, mas o mundo só entende de negócios. Tudo o mais é loucura e tolice. Quer conquistar o mundo, mas este se recusa a ser conquistado: tem de ser dominado. Só que isso é complicado demais, brutal demais. Os ideais são para os tolos. Para dominálo, precisa-se de conhecimento, de muito conhecimento, completo e irrefutável. Mas Peer Gynt é um sonhador que não aprendeu nada de "sensato". Quer modificar o mundo, e o carrega dentro dele mesmo. Sonha um grande amor para a sua mulher, a sua namorada, que é mãe, amante e companheira, e que dá à luz os seus filhos. Mas Solveig é inacessível como mulher, a mãe o repreende, embora carinhosamente. Ele lhe lembra demais o louco do pai. E a outra mulher, Anitra, não passa de uma prostituta vulgar. Onde está a mulher que se pode amar, e que corresponde aos sonhos de um homem? É preciso ser um Brand para conseguir o que Peer Gynt quer. Mas Brand não tem imaginação suficiente. Brand tem a força — Peer sente a vida. Que absurdo que tudo seja repartido dessa forma! Ele acaba entre os capitalistas. Perde a fortuna de acordo com as regras: os outros são capitalistas "práticos", e não sonhadores. Sabem quando o seu negócio dá dinheiro; em assuntos financeiros não são tolos como Peer. Quebrado e cansado, volta como um velho à cabana da floresta, a Solveig, que lhe toma agora o lugar da mãe. Está curado das suas ilusões; aprendeu o que que a vida tem a oferecer quando se ousa senti-la. Isso é o que acontece à maioria das pessoas que se recusam a permanecer quietas. E os outros não vão fazer papel de tolos — pode estar certo! Têm sido inteligentes e superiores desde o início. Assim era Ibsen, e assim era o seu Peer Gynt É um drama que só perderá a sua pertinência quando os Peer Gynt finalmente vencerem. Até lá o bom e o justo serão escarnecidos. Escrevi um longo ensaio sobre "O Conflito da Libido e a Ilusão de Peer Gynt". No verão de 1920, tornei-me membro honorário da Sociedade Psicanalítica de Viena. Foi pouco antes do congresso de Haia. Freud presidia às sessões. Muitos trabalhos tratavam de assunto clínico. Os oradores trouxeram relatórios objetivos e bons sobre as questões em discussão. Freud era muito eficiente no sumariar os pontos essenciais de uma comunicação, e no declarar em poucas palavras a sua própria opinião, no fim. Era de fato um prazer ouvi-lo. Falava com cuidado e sem afetação, mas com facilidade, e freqüentemente com uma ironia mordaz. Estava, afinal, gozando o sucesso que se seguia a muitos anos de pobreza. Não havia ainda, na sociedade desse tempo, psiquiatras ortodoxos. O único psiquiatra militante, homem bem dotado, Tausk, havia cometido suicídio pouco antes. O seu trabalho, Über den Beeinflussungsapparat bei der Schizophrenie, era importante. Demonstrava que o mecanismo que influencia o esquizofrênico é uma projeção do seu próprio corpo, especialmente dos órgãos sexuais. Foi só quando descobri as excitações bioelétricas nas correntes vegetativas que entendi corretamente isso. Tausk estava certo: é o seu próprio corpo que o paciente esquizofrênico sente como seu perseguidor. Posso dizer também que ele não consegue enfrentar as correntes vegetativas que irrompem. Tem de senti-las como algo estranho, que pertence ao mundo exterior e tem intenções más. O esquizofrênico apenas revela, de maneira grotescamente exagerada, uma condição que caracteriza o homem moderno em geral. O homem moderno é estranho à sua própria natureza, ao cerne biológico do seu ser, e o sente como estranho e hostil. Tem de odiar a todo aquele que tente restaurar o seu contato com a sua essência biológica. A Sociedade Psicanalítica era como uma comunidade de gente que tinha de erguer uma luta única contra um mundo de inimigos. Era maravilhoso. Semelhantes cientistas exigiam respeito. Eu era o único médico jovem entre "adultos", a maioria dos quais era dez ou vinte anos mais velha que eu. 29 No dia 13 de outubro de 1920, apresentei a minha comunicação como candidato a membro da sociedade. Freud não gostava de que as comunicações fossem lidas. Nesses casos, dizia, o ouvinte se sente como uma pessoa que, com a língua, de fora, está perseguindo um carro veloz no qual o conferencista viaja comodamente. Tinha razão. Por isso, ensaiei para apresentar a minha palestra de improviso. Prudentemente conservei o manuscrito à mão, e foi bom que o fizesse. Mal tinha pronunciado três frases quando perdi o fio da meada em uma confusão de idéias. Felizmente, encontrei logo o ponto perdido. A comunicação correu bem, exceto pelo fato de que eu não satisfizera ao desejo de Freud. Esses pormenores são importantes. Se as pessoas não se sentissem inibidas pelo medo à autoridade, falariam muito menos tolamente e muito mais logicamente. É possível a qualquer um falar de improviso sobre um assunto que conheça perfeitamente, e ainda manter o seu equilíbrio. Mas eu tinha querido impressionar muito, e tinha querido ter a certeza de não passar por tolo. Senti todos os olhos focados em mim — e por isso achei melhor prender-me ao meu manuscrito. Desde então, pronunciei centenas de conferências improvisadas e me tornei conhecido como orador. Devo isto à minha resolução de nunca mais levar um manuscrito à uma conferência, preferindo "boiar". O meu trabalho foi muito bem recebido. Na sessão seguinte, fui admitido como membro da Sociedade Psicanalítica. Freud sabia muito bem como se manter à distância e exigir respeito Não era arrogante; pelo contrário, muito amistoso. Mas por detrás dessa fachada, podia-se sentir frieza. Poucas vezes se mostrava realmente afável. Era grande quando, com severidade mordaz, repreendia um inexperiente sabe-tudo, ou quando falava contra os psiquiatras, que o tratavam de maneira deplorável. Era inflexível ao discuti' um ponto teórico importante. Havia apenas poucos trabalhos sobre técnica, omissão que eu sentia muito vivamente no meu trabalho com os pacientes.. Também não havia um instituto para treinamento nem um programa de treinamento organizado. Cada qual tinha de contar com os seus próprios recursos. Procurei freqüentemente os analistas mais velhos em busca de conselho. Não eram de grande ajuda. "Continue analisando", diziam, "você chegará lá". Onde era preciso "chegar", isso ninguém parecia saber. Descobrir como lidar com pacientes inibidos, ou mesmo silenciosos, era mais difícil. Os analistas que vieram mais tarde não "boiaram" em assuntos de técnica, de maneira assim tão desolada. Quando um paciente não fazia associações, "não queria ter" sonhos, ou não tinha nada a dizer sobre eles, o analista ficava sentado lá sessão após sessão, sem saber o que fazer. Na verdade, a técnica de análise da resistência tinha sido teoricamente estabelecida, mas não era empregada na prática. Eu sabia que as inibições representavam resistências contra a revelação da matéria inconsciente; e sabia também que devia eliminá-las. Mas como? Essa era a questão crucial. Se se dissesse ao paciente — "Você tem uma resistência!"—, ele olharia para o analista com olhar vazio. Assim mesmo, isso também não era uma informação muito inteligente. Também não era melhor dizer-lhe que "se estava defendendo contra o seu próprio inconsciente". Se o analista tentava persuadir o paciente de que o seu silêncio, ou a sua resistência, não adiantava nada, sendo apenas uma expressão de medo ou desconfiança, de certa forma isso era melhor e mais inteligente, mas também não tinha nenhuma utilidade. E o conselho dos analistas mais velhos era sempre o mesmo: "Continue apenas analisando". Todo o meu método e meu trabalho de análise do caráter derivam desse "continue apenas analisando". Eu não tinha idéia disso em 1920. Procurei Freud. Freud era um mestre em esclarecer teoricamente as dificuldades de uma situação complicada. Mas, do ângulo da técnica, as suas explicações eram insatisfatórias. Sobretudo, dizia, análise significa paciência. O inconsciente é intemporal. É preciso refrear as ambições terapêuticas. Outras vezes, encorajava-me a intervir energicamente. Finalmente, entendi que o trabalho terapêutico pode ser eficaz somente quando a analista tem a paciência de compreender o processo terapêutico em si. Pouquíssimo se sabia sobre a natureza da doença psíquica. Esses pormenores podem parecer sem importância para a nossa intenção de descrever a função do processo da vida, mas são muito importantes. A questão do como e do por que das incrustações e das rigidificações da vida emocional humana leva diretamente ao domínio da vida vegetativa. 30 Em um dos últimos congressos, Freud modificou a fórmula terapêutica original. Estabelecerase inicialmente que o sintoma tinha de desaparecer quando o seu significado inconsciente se tivesse tornado consciente. Agora Freud afirmava: "Temos de fazer uma correção. O sintoma pode, mas não é obrigado a, desaparecer quando o significado houver sido descoberto". Essa modificação causoume forte impressão. Levou-me a perguntar qual a condição que muda "pode desaparecer" em "deve desaparecer". Se o tornar o inconsciente consciente não elimina necessariamente o sintoma, que outro fator deve existir que garanta o seu desaparecimento? Ninguém sabia a resposta. A modificação feita por Freud na sua fórmula da cura de sintomas nem mesmo chamou muito a atenção. O analista continuou a interpretar sonhos, atos falhos e correntes associativas, sentindo-se pouco responsável pelo mecanismo da cura. Não lhe ocorria perguntar: "Por que não conseguimos efetuar a cura?" Isso é compreensível em termos da situação da psicoterapia na época, A aproximação terapêutica neurológica habitual, principalmente o uso de brometos, ou a frase — "Você só está nervoso, não há nada de errado com você"—, era tão desagradável para o paciente que o poder deitar-se no divã e dar livre curso aos seus pensamentos foi um bem para ele. De fato, ele não só podia dar livre curso aos seus Pensamentos: na verdade, ordenava-se-lhe "dizer tudo quanto lhe viesse à cabeça". Foi só muitos anos mais tarde que Ferenczi afirmou que ninguém realmente seguia, ou podia seguir, essa regra. Isso é tão claro para nós hoje que nem mesmo esperamos que alguém o faça. Pensava-se em 1920 que a neurose média podia ser "curada" em três ou, no máximo, em seis meses. Freud enviou-me pacientes com a observação: "Para psicanálise, impotência, três meses". Parecia impossível. Enquanto isso, os sugestionistas e psiquiatras enfureciam-se contra a "depravação" da psicanálise. Havia um compromisso profundo com o trabalho; estava- se firmemente convencido de sua correção. Cada caso era uma prova a mais da exatidão de Freud. E os colegas mais velhos nunca se cansaram de repetir: "Continue apenas analisando!" Os meus primeiros escritos não diziam respeito à técnica, mas ao assunto clínico e teórico. Claro que havia muito mais a compreender antes de poder obter resultados melhores. Essa conseqüência fazia-nos querer lutar mais firmemente e cavar mais profundamente. Pertencíamos a uma elite de lutadores da ciência, postos completamente à margem da charlatanice existente na terapia das neuroses. Talvez esses pormenores históricos possam tornar mais pacientes os atuais terapeutas do orgônio, quando não conseguirem atingir o objetivo, que é a "potência orgástica", nos seus pacientes.