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HISTÓRIA E ENTRECHO
Ele sai.
Entra o açougueiro.
CONFINAMENTO
COINCIDÊNCIAS
A coincidência é uma ferramenta bastante útil, mas deve ser usada com
cuidado e poucas vezes. Como no teatro o tempo está comprimido, o público pode
aceitar uma coincidência antes de começar a duvidar da consistência do entrecho.
ENTRECHO ABERTO
O DIÁLOGO
Alguém já disse que as peças de teatro, em geral, são sobre gente tagarela.
Os diálogos são a combinação daquilo que a personagem tem de dizer com
aquilo que é compelida a dizer. Toda linha de diálogo tem de fazer avançar tanto a
personagem quanto a história.
“CENA 1
Casa de Orgon. Dona Pernelle, Elmira. Mariana, Dorinha, Dimas e Cléber.
Dona Pernelle – Não fico mais um minuto nesta casa. Não suporto mais...
Elmira – Por favor, minha sogra. Não compreendo esta atitude.
Dona Pernelle – Deixa pra lá, esqueça. Não precisa me levar na porta, eu sei
o caminho.
Elmira – Fiz alguma coisa de mal, ofendi a senhora, por acaso? Se o fiz, não
foi por querer.
Dona Pernelle – Então não sabe? Sou tratada aqui como uma velha caduca,
esclerosada. Ninguém me leva a sério, cansei! Tudo o que eu digo é motivo de
chacota. Nunca pensei que a casa de meu filho fosse se transformar nessa bagunça.
Dorinha – Senhora...
Dona Pernelle – Você, então, é a pior. Não se comporta como uma
empregada que é, não conhece o próprio lugar, se mete em tudo, dá opiniões
mesmo quando não sabe do que se trata.
Dimas – Mas...
Dona Pernelle – quanto a você, meu neto, não passa de um idiota, um tolo,
um mimado. Cansei de falar ao seu pai que você estava indo para o mau caminho,
que só nos traria desgosto...
Mariana – Eu acho...
Dona Pernelle – Você não acha nada. Na minha frente se faz de modesta, de
recatada, com uma doçura incapaz de ferir alguém. Mas é como diz o ditado, nada
pior do que água parada. Minha neta é uma fingida...
Elmira – Minha sogra...
Dona Pernelle – Minha nora. Não me leve a mal, mas seu comportamento é
horrível, reprovável em todos os sentidos. Só sabe cair no consumo; uma
gastadeira. E esse seu jeito? Céus, isto são modos de uma mulher casada se vestir?
Aquelas que só querem agradar o marido não se vestem dessa maneira.
Cléber – Mas senhora, afinal de contas...
Dona Pernelle – Ora vejam só, o irmão da minha nora. Até que o admiro, é
inteligente, refinado. Mas se meu filho tivesse juízo, pediria que não pusesse mais
os pés nesta casa. O senhor é um homem sem religião, sem Deus, que prega uma
vida sem freios, uma vida que não é de gente honesta. Desculpe a franqueza,
sempre fui assim, não sou de esconder o que penso.
Dimas – Mas do Tartufo ela gosta.
Dona Pernelle – É claro, um homem de bem, piedoso, um homem de Deus.
Fico irritada só em pensar que um tolo como você se meta a criticá-lo.
Dorinha – Se agente seguir o que ele diz, não se fará mais nada, porque tudo
é proibido e pecado. O homem controla tudo, que coisa.
Dona Pernelle – E tem de controlar mesmo. Esta casa está um descontrole. E
ele quer apenas levar a todos ao caminho da salvação.
Dimas – Que que é isso, vovó? Não suporto esse cara. E não escondo isso
de ninguém. Fico incomodado com o fanatismo do sujeito. Do jeito que vão as
coisas ele vai querer mandar na nossa vida. Isso aqui vai virar um inferno.
Dorinha – É isso mesmo, esse tipo chega aqui e põe logo banca, como se
fosse dono do pedaço. Entrou nesta casa com as mãos abanando, só tinha uma
muda de roupa e um par de sapatos furados. Parece que não se enxerga! Põe ares
de santo (ri irônica).
Dona Pernelle – Que Deus tenha piedade de mim. Quem dera vocês
seguissem os conselhos do senhor Tartufo.
Dorinha – Ele pode ser santo pra senhora, mas aqui comigo ninguém me
engana, esse cara não passa de um vigarista.
Dona Pernelle – Linguaruda.
Dorinha – Ele é desses caras que a gente não confia nem um alfinete.
Dona Pernelle – Nem vou responder tamanha besteira. Só tenho a dizer que
vocês são contra ele porque temem a verdade e não querem a salvação. Preferem
o pecado, o vício, o caminho da perdição.
Dorinha – Ah, é? Por que será que ele agora deu para impedir as pessoas de
visitarem a casa. É pecado receber amigos? Mas o cara fica irritado, grosseiro... até
parece que ele tem e ciúmes de dona Elmira. É isso mesmo, falei!
Dona Pernelle – Cala essa boca e pensa no que estás dizendo! Ele não é o
único que se incomoda com as visitas, com esse rebuliço de gente entrando e
saindo desta casa, os carros estacionando pela redondeza, a música entrando pela
madrugada, incomodando a vizinhança. Talvez não haja nada demais receber
amigos, mas gera muito falatório e isso não é uma coisa boa.
Cléber – Era só o que faltava, renunciarmos aos nossos amigos porque
alguns vizinhos fofoqueiros ficam falando pelos cantos. Minha senhora, ninguém
está livre da maledicência, e mesmo que parássemos de receber os amigos, ainda
assim os mexericos continuariam. Deixe em paz os faladores e vivamos a nossa
própria vida.
Dorinha – Eu sei bem o que os vizinhos falam. Sentem inveja, é isso. Essa
gente leva uma vida mesquinha e querem colorir a própria mediocridade jogando
lama nos outros.
Dona Pernelle – Isso bobagem. Conheço alguns dos vizinhos desta casa, são
pessoas de bem e reprovam o que aqui se passa.
Dorinha – Sei de quem a senhora está falando. É daquela dona da esquina, a
maior fofoqueira da redondeza. Eu sei que ela já brilhou nas colunas sociais, teve
muitas aventuras e agora envelheceu, perdeu o brilho e o dinheiro. Ela não
reprova a vida desta casa porque é honesta, é por inveja mesmo. A velha e amarga
inveja.
Dona Pernelle – Se é isso o que querem, bom proveito. Na sua casa, minha
nora, temos de calar a boca porque sua empregada não para de tagarelar. Só
posso dizer que meu filho fez muito bem em acolher aqui tão devota personagem.
Acho que foi o Céu que mandou o senhor Tartufo para converter a todos para o
bom caminho. Ele nada censura o que não deve ser censurado. Essas festas, a
gastança, são coisas do maligno. Aqui nunca se faz orações ou se ouve palavras
piedosas, apenas heresias e obscenidades. Pode rir, seu Cléber, mas esta é
verdade. Adeus, minha nora, nada mais tenho a dizer.
Sai.”